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Antíteses

Revista do Programa de Pós-graduação em História Social

Dossiê
La Unidad Popular chilena: una historia cultural
32
32
Jul-Dez, 2023

ISSN: 1984-3356 Vol. 16, n. 32, jul-dez, 2023


Antíteses
Revista do Programa de Pós-graduação em História Social

32
Jul-Dez, 2023
Reitora
Marta Regina Gimenez Favaro

Vice-reitor
Airton José Petris

Pró-reitor de Pesquisa e
Pós-graduação
Silvia Márcia Ferreira Meletti

Centro de Letras e
Ciências Humanas

Diretora
Laura Brandini

Departamento de História

Chefe
Célia Regina da Silveira

Programa de
Pós-graduação em
História Social

Coordenador
Cláudio DeNipoti

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Antíteses / Universidade Estadual de Londrina. Centro de Letras e Ciências


Humanas. Departamento de História. - Programa de Pós-Graduação em História.
Londrina, PR.

Vol. 16, n. 32, Jul-Dez / 2023 Semestral

ISSN 1984-3356

1- Ciências Humanas – Periódicos. 2- História Periódicos.


I. Universidade. II. Estadual de Londrina. III. Centro de Letras e Ciências Humanas.
IV. Departamento de História. V. Programa de Pós-Graduação em História.
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A revista Antíteses
é um periódico semestral
eletrônico on-line em Open
Access , no sistema ahead of print Capa
e volume fechado, do Programa Cardoso, Armindo, Fotógrafo. Primero de
de Pós-Graduação em História mayo 1971 [fotografía] Armindo Cardoso.
Social da Universidade Estadual Archivo Fotográfico. . Disponible en
de Londrina. Publica, após Biblioteca Nacional Digital de Chile https://
processo de avaliação entre pares, www.bibliotecanacionaldigital.gob.cl/
bnd/629/w3-article-156436.html . Accedido
contribuições multidisciplinares
en 19/01/2024.
inéditas a partir da perspectiva
histórica nos idiomas português,
Editor
espanhol e inglês.
Lukas Gabriel Grzybowski

Comitê Editorial
Caio Pedrosa da Silva
Carolina Amaral Aguiar
Dora Shellard Correa
Mariana Oliveira Arantes

Preparação de originais e
revisão de textos
Equipe Antíteses
.
Projeto gráfico e Diagramação
Site Marília Diogo
https://ojs.uel.br/revistas/ Raquel de Medeiros Deliberador
uel/index.php/antiteses

E-mail
[email protected]

Endereço para
correspondência
Universidade Estadual
de Londrina CLCH –

32
Departamento de História
Caixa Postal nº 6001
CEP 86051-990
Londrina – Paraná

Jul-Dez, 2023
ISSN: 1984-3356
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Conselho Consultivo Externo


UFSC Alexandre Busko Valim
UFOP Álvaro de Araújo Antunes
UAM-México Álvaro Vázquez Mantecón
UFMT Carlile Lanzieri Junior
UFRGS Caroline Bauer
UNL-Portugal Cristina Joanaz de Mello
UFPE Diogo Arruda Carneiro da Cunha
USACH-Chile Elisabet Prudant Soto
UFCE Euripedes Antonio Funes
UNNE-Argentina Fernando Ruchesi
UFRN Francisco das Chagas F. Santiago Júnior
UFRGS Igor Salomão Teixeira
UNB Jonas Pegoraro
UNICAMP José Alves Freitas Neto
UGM-Chile José Manuel Cerda Costabal
USP Júlio César Magalhães de Oliveira
USP Marcos Napolitano
SUNY-EUA Paula Halperín
UFG | UEG | PUC-Goiás Renata C. S. Nascimento
UFPR Renata Senna Garraffoni
UEM Sidnei Munhoz

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Jul-Dez, 2023
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Conselho Consultivo: v.16, n.32

PUC-RJ Adamo Bouças Escossia da Veiga


UFES Adriana Pereira Campos
UFG Adriana Vidotti
UFRJ Álvaro Alfredo Bragança Júnior
UFRJ Andreia Cristina Lopes Frazao da Silva
Unochapecó Arlene A. Renk
PUC-SP Bruno Huberman
U. Minho Bruno Madeira
UFOP Bruno Tadeu Salles
UEL Caio Pedrosa da Silva
UFMT Carlile Lanzieri Júnior
UEL Carolina Amaral de Aguiar
UFMA Cesar Augusto Castro
UFPR Cláudia Stephan
U. Chile Claudio Salinas
UFJF Denise da Silva Menezes do Nascimento
U. Santiago de Chile Elisabet Prudant
UFMG Ely Bergo de Carvalho
IFG Fabiana Lula Macedo
UFPR Fernando Seliprandy
UEM Flavio da Silva Mendes
UFPI Francisco Gleison da Costa Monteiro
UEG Gercinair Silvério Gandara
Unicap Gilbraz de Souza Aragão
UFU Gustavo de Souza Oliveira
UESPI Harlon Homem de Lacerda Sousa
USP Helmut Galle
UNL Hugo Silveira Pereira
Unicamp Ignacio Del Valle Dávila
UEMS Ilsyane do Rocio Kmitta
UPE Isabela Albuquerque
UFRJ Jacqueline Hermann
UFES João Bezerra Vianna
UFPA João Santos Nahum
UFPA José Maia Bezerra Neto

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Conselho Consultivo: v.16, n.32

UFMS Keila Patricia Gonzalez


Belas Artes-SP Maíra Cunha Rosin
UFRN Margarida Maria Dias de Oliveira
PUC-GO Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante
MASP Mariana Oliveira Arantes
Unifesp Marina Gusmão de Mendonça
U. Chile Martin Farías
UFSCar Melissa Santana de Oliveira
UPE Moisés Almeida
UERJ Mônica Regina Ferreira Lins
UHH Natália Schmiedecke
Sorbonne Nouvelle Olivier Compagnon
UFPA Pablo Nunes Pereira
UFRGS Pablo Quintero
UERJ Paula Leonardi
E. N. S. das Graças - SP Plínio Labriola Negreiros
UNIGOIÁS Renato Dering
CONICET/PUC-Argentina Santiago Francisco Barreiro
U. Paris Nord Silvia Capanema Pereira de Almeida
UFJF Vítor F Figueiredo

Aporte técnico

Biblioteca Digital:

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Elaine Cristina de Souza Silva Arvelino
Diretora

Divisão de Referência:
Elaine Cristina de Souza Silva Arvelino
Bibliotecária Jul-Dez, 2023
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Indexação

BASE (Alemanha)
Crossref (Reino Unido)
Diadorim (Brasil)
Dialnet (Espanha)
DOAJ (Suécia)
ERIH PLUS (Noruega)
Emerging Sources Citation Index
EZB (Alemanha)
Google Scholar (Estados Unidos)
Keepers (Reino Unido)
Latindex 2.0 (México)
RCAAP (Portugal)
ROAD (Unesco)
Sumários de Revistas Brasileiras (Brasil)
WorldCat (Estados Unidos)

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Jul-Dez, 2023
}}}}}} Sumário }}}}}}}}}}}}}}}}}}}
Editorial
pág. 013 Nota Editorial
Lukas Gabriel Grzybowski

Dossiê

pág. 015 Hacia una historia cultural de la Unidad Popular


Ignacio del Valle-Dávila, Olivier Compagnon e Carolina Amaral de Aguiar

María de la Luz Uribe y Charo Cofré: hacia una estética del disenso en la poesía
pág. 034 chilena para la infancia durante los años setenta
Carola Vesely Avaria e Andrea Jeftanovic Avdaloff

pág. 059 ¡Vivan los hippies buenos! Tres yippies en el Chile de Salvador Allende
Manuel Suzarte

Mulheres cineastas durante o governo da Unidade Popular (Chile, 1970-1973):


pág. 089
reflexões sobre o extra e o intra fílmico
Marina Cavalcanti Tedesco

pág. 127 La televisión chilena y las elecciones de 1970: el caso de UCV-TV


Ignacio del Valle-Dávila

Amor, sexualidad y control de la natalidad en la revista Paula durante la Unidad


pág. 157 Popular
Claire-Emmanuelle Block

Artigos

pág. 187 Xamanismo contemporâneo: no Brasil e no mundo


Karina Oliveira Bezerra

pág. 216 A sensorialidade dos pomares medievais


Lidia Raquel Miranda e Gerardo Fabián Rodríguez

Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:


pág. 247 (re)considerações a partir da análise da evidência histórica
Elton O. S. Medeiros

Educação no Antropoceno: articulações cosmopolíticas num mundo em ruínas


pág. 281 Maria Alice Gouvêa Campesato

“A Palestina é uma questão de justiça climática”: um panorama sobre a prática


pág. 311 de greenwashing israelense e as formas de resistência palestina à ocupação
Carolina Ferreira de Figueiredo

Fumar tabaco, consumir ipadu: a constituição do sujeito na ontologia


pág. 338 Yepamahsã (Tukano)
Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

pág. 371 Ramon Llull e a Idade Média Global: geopolítica, integração e diversidade
Guilherme Queiroz de Souza

“Servidos por boas estradas fluviais”: Os rios Araguaia e Tocantins e os planos


pág. 401 de navegação na Amazônia do Século XIX
Francivaldo Alves Nunes

Livros escolares de autores maranhenses no Pacotilha (1880-1939)


pág. 422
Samuel Castellanos e Jarina Santos
}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}} }}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}
Entre florestas e as fronteiras: as paisagens do oeste de Santa Catarina
pág. 445 nas décadas de 1920 a 1960
Marlon Brandt e Samira Peruchi Moretto

pág. 471 Sudene: os percursos sensíveis em relação à pobreza


Fabio Silva de Souza

Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da perspectiva católica


pág. 500 em 1926 através dos artigos de Carlos de Laet no periódico O Jornal
Adriana Gomes

“Chamamos atenção dos nossos leitores para as diversas publicações gerais”:


pág. 528 representações sobre os escravos nos jornais piauienses, 1850-1887
Talyta Marjorie Lira Sousa e Pedro Vilarinho Castelo Branco

“A Sentinela junto ao Reno”: imagens da Germânia, do poema de Max


pág. 563 Schneckenburger ao monumento de Johannes Schilling
Daniele Gallindo Gonçalves

A erudição de João Guimarães Rosa na intersecção de outras erudições


pág. 593 e artes da cidade
Bruno Flávio Lontra Fagundes

Práticas de escolarização católica e seus usos na vida de Elfrida Lobo


pág. 619 (Paranaguá, décadas de 1910 a 1960)
Andréa Bezerra Cordeiro e Juarez José Tuchinski dos Anjos

A representação da Cruzada e das Ordens Militares na produção historiográfica


pág. 647 Alcobacense do século XVII
Joana Lencart

Escovar a literatura a contrapelo: espaços de recordação e antimonumentos


pág. 674 na poesia de Cora Coralina
Clovis Carvalho Britto, Paulo Brito do Prado e Ludmila Santos Andrade

pág. 707 Escolas de aprendizes marinheiros de Santa Catarina no século XIX


Sidneya Gaya e Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin

Primeiros Passos

Um Olimpo massificado: a campanha publicitária Sócio Olímpico e dinâmicas


pág. 739 sociais na São Paulo do meio século XX
Matan Ankava

Resenhas

Colonialismo e experiências missionárias em África: os casos de Angola e


pág. 760 Uganda (séculos XIX e XX)
Thiago Henrique Sampaio

A proposta de uma ecologia decolonial pensada por Malcom Ferdinand


pág. 767
Camila André de Souza

Paraíso ou local de perdição? Minas colonial e as idealizações sobre a natureza


pág. 779
João Gabriel Covolan Silva e Alberto Camargo Portella

Içar velas, livros a bordo! A circulação de livreiros entre França, Portugal e


pág. 788 Brasil (séculos XVIII e XIX)
Wagner de Carvalho

Perspectivas sobre Nova Canção Chilena e o debate cultural durante


pág. 797 a Unidade Popular
Carolina Amaral de Aguiar
}}}}}} Sumary }}}}}}}}}}}}}}}}}}}
Editorial Notes
p. 013 Editorial Notes
Lukas Gabriel Grzybowski

Dossier

p. 015 Towards a cultural history of Popular Unity


Ignacio del Valle-Dávila, Olivier Compagnon e Carolina Amaral de Aguiar

María de la Luz Uribe and Charo Cofré: towards an aesthetics of dissente in


p. 034 children’s chilean poetry during the seventies
Carola Vesely Avaria e Andrea Jeftanovic Avdaloff

Long live the good hippies! Three yippies in Salvador Allende’s Chile
p. 059
Manuel Suzarte

Women filmmakers during the Popular Unity government (Chile, 1970-1973):


p. 089 reflections on the extra and intra filmic
Marina Cavalcanti Tedesco

Chilean television and the 1970 elections: the case of UCV-TV


p. 127
Ignacio del Valle-Dávila

Amor, sexualidad y control de la natalidad en la revista Paula durante la Unidad


p. 157 Popular Popular
Claire-Emmanuelle Block

Articles

Contemporary shamanism: in Brazil and in the world


p. 187
Karina Oliveira Bezerra

Sensoriality of medieval orchads


p. 216 Lidia Raquel Miranda e Gerardo Fabián Rodríguez

Revisiting the “paganism” of Anglo-Saxon England:


p. 247 (re)considerations based on the analysis of the historical evidence
Elton O. S. Medeiros

p. 281 Education in the Anthropocene: cosmopolitical articulations in a world in ruins


Maria Alice Gouvêa Campesato

“Palestine is a climate justice issue”: an overview of the practice of Israeli


p. 311 greenwashing and ways of Palestinian resistance to the occupation
Carolina Ferreira de Figueiredo

Smoking tobacco, consuming ipadu: the constitution of the subject in


p. 338 Yepamahsã (Tukano) ontology
Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

p. 371 Ramon Llull and the Global Middle Ages: geopolitics, integration, and diversity
Guilherme Queiroz de Souza

“Served by good river roads”: The Araguaia and Tocantins rivers and navigation
p. 401 plans in the 19th century Amazon
Francivaldo Alves Nunes

School books by authors from Maranhao in Pacotilha (1880-1939)


p. 422
Samuel Castellanos e Jarina Santos
}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}} }}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}

Between forests and frontiers: the landscapes of the west of Santa Catarina in
p. 445 the 1920s to 1960s
Marlon Brandt e Samira Peruchi Moretto

p. 471 Sudene: The Sensitive Paths in Relation to Poverty


Fabio Silva de Souza

Spiritualism and ultramontane critique: an analysis of the catholic perspective


p. 500 in 1926 through Carlos de Laet’s articles in the newspaper O Jornal
Adriana Gomes

“We draw the attention of our readers to the various general publications”:
p. 528 representations about slaves in Piauí newspapers, 1850-1887
Talyta Marjorie Lira Sousa e Pedro Vilarinho Castelo Branco

“The Watch on the Rhine”: Images of Germania, from the poem by Max
p. 563 Schneckenburger to the monument by Johannes Schilling
Daniele Gallindo Gonçalves

The erudition of João Guimarães Rosa at the intersection of other scholarship


p. 593 and arts of the city
Bruno Flávio Lontra Fagundes

Catholic schooling practices and their uses in the life of Elfrida Lobo
p. 619 (Paranaguá, decades from 1910 to 1960)
Andréa Bezerra Cordeiro e Juarez José Tuchinski dos Anjos

The representation of the Crusade and the Military Orders in the


p. 647 historiographical production of Alcobaca monastery in the 17th century
Joana Lencart

Brushing literature against: spaces of rememberance and antimonuments in the


p. 674 poetry of Cora Coralina
Clovis Carvalho Britto, Paulo Brito do Prado e Ludmila Santos Andrade

Sailor apprentices schools in Santa Catarina in the 19th century


p. 707
Sidneya Gaya e Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin

First Steps

A massified Olympus: the Sócio Olímpico advertising campaign and social


p. 739 dynamics in São Paulo of mid-20th century
Matan Ankava

Review

Colonialism and missionary experiences in Africa: the cases of Angola and


p. 760 Uganda (19th and 20th centuries)
Thiago Henrique Sampaio

The proposal for a decolonial ecology thought by Malcom Ferdinand


p. 767
Camila André de Souza

Paradise or place of perdition? Colonial Minas and idealizations about nature


p. 779
João Gabriel Covolan Silva e Alberto Camargo Portella

Hoist sails, books on board! The circulation of booksellers between France,


p. 788 Portugal and Brazil (19th and 20th centuries)
Wagner de Carvalho

Perspectives on the Chilean New Song and the cultural debate during
p. 797 Popular Unity
Carolina Amaral de Aguiar
}}}}} Editorial }}}}}}}}}}}}}
No âmbito dos círculos acadêmicos dedicados à gestão de
periódicos científicos, ecoam murmúrios sobre a crescente
dificuldade de encontrar colegas altruístas o bastante para
se aventurarem na árdua tarefa de avaliação. Esta jornada,
embora desafiadora, é inegavelmente essencial para ponderar
os manuscritos que chegam às nossas mesas editoriais. Não é
por acaso que a Revista Antíteses se encontra imersa nesse
cenário. Não são raros os artigos que, em um limbo de espera,
aguardam ansiosamente o veredito de avaliadores voluntários.
No entanto, mesmo quando um colega disposto se permite
localizar, muitos desses são pressionados pelas exigências
implacáveis de suas carreiras, que em descontrolado frenesi
ora exigem um produtivismo sobre-humano, ora transformam
os intelectuais acadêmicos nos mais qualificados burocratas
de repartição, forçados a suprir as falhas estruturais de
nossas instituições. Oh, ironia dos tempos modernos!
Por outro lado, não é incomum ver os editores serem
ignorados por possíveis avaliadores, seja em função de dados
desatualizados dados nas bases digitais de nossas revistas,
seja pelo afogamento destes potenciais avaliadores em um
mar de comunicações digitais, onde tantos acadêmicos
se encontram incapazes de responder às inúmeras
solicitações que inundam suas caixas de correio eletrônico.
No entanto, não devemos nos deter em lamentos! Levantemos
nossas taças para saudar o nobre ofício dos avaliadores, que,
entre suspiros e desilusões, dedicam seu precioso tempo a
zelar pela qualidade das páginas que desfilam diante de nossos
olhos ansiosos. São eles, os heróis anônimos, que sustentam os
pilares da rigorosidade e da excelência, moldando o edifício da
ciência histórica. Destes nobres cúmplices do fazer científico,
fiéis da balança da qualidade acadêmica, destes garantidores do

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rigor acadêmico é que nos lembramos neste breve laudatório.


Assim, é com sincero fervor que expressamos nossa
profunda gratidão aos valorosos avaliadores que, com
generosidade, enobrecem as páginas da Revista Antíteses. Que
este gesto não seja apenas um eco solitário no vasto deserto
editorial, mas sim um brado que ressoe pelos recantos mais
distantes da academia, destacando a importância desse papel.
Que os artigos deste número sirvam como parceiros de diálogo
que nos conduzam rumo ao futuro do conhecimento histórico. Que
cada palavra impressa seja um elo na corrente do entendimento,
e que cada debate suscitado seja um farol a iluminar os recantos
mais obscuros do saber. Que este número seja não apenas uma
data no calendário editorial, mas sim um monumento erguido
em homenagem à colaboração, ao conhecimento e à dedicação
incansável daqueles que trabalham nos bastidores da academia.

Lukas Gabriel Grzybowski


Editor-Chefe

Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p. 13-14, jul-dez. 2023 } 14


DOI: 10.5433/1984-3356.2023v16n32p015-033

Hacia una historia cultural de


la Unidad Popular

Towards a cultural history of


Popular Unity

Por uma história cultural da


Unidade Popular

Ignacio del Valle-Dávila1


Olivier Compagnon2
Carolina Amaral de Aguiar3

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Resumen: A pesar de la abundante historiografía sobre


la Unidad Popular, esta ha sido abordada principalmente
desde la óptica de la historia política y de las relaciones
Ignacio del Valle-Dávila / Olivier Compagnon / Carolina Amaral de Aguiar

internacionales. Existen relativamente pocos trabajos que


se hayan aproximado a la llamada “vía chilena al socialismo”
desde la historia cultural. Una historia social de las
representaciones y prácticas culturales de ese periodo crucial
de la Guerra Fría en América Latina permitiría estudiar con
más profundidad cuestiones tales como la democratización
de las instituciones culturales durante el gobierno de Allende,
las iniciativas culturales y artísticas militantes surgidas
Hacia una historia cultural de la Unidad Popular

entre los grupos que lo apoyaban, las numerosos relaciones


culturales transnacionales que se desarrollaron en esa época
y el rol jugado por los medios de comunicación masiva.
Palabras clave: Unidad Popular; historia cultural; Chile;
socialismo; Salvador Allende.

Abstract: Despite the abundant historiography on the Unidad


Popular, it has been approached mainly from the perspective
of political history and international relations. Relatively few
works have approached the so-called “Chilean road to socialism”
from the perspective of cultural history. A social history of the
cultural representations and practices of this crucial period of
the Cold War in Latin America would allow for a more profound
study of issues such as the democratization of cultural
institutions during the Allende government, the militant
cultural and artistic initiatives that emerged among the groups
that supported it, the numerous transnational cultural relations
that developed at the time, and the role played by the mass media.
Keywords: Popular Unity; cultural history; Chile; socialism;
Dossiê

Salvador Allende

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Introducción

No es sorprendente que la copiosa historiografía dedicada a la Unidad Popular


–un verdadero “océano bibliográfico” en palabras de Franck Gaudichaud (2016,
p. 30)– sea ante todo una historiografía política y social (Castro, 2020; Morra;
Ignacio del Valle-Dávila / Olivier Compagnon / Carolina Amaral de Aguiar

Palieraki; Pedemonte, 2023). Esta historiografía se ha esforzado ante todo por


reconstruir en una duración más o menos larga los orígenes del proyecto político
impulsado por la coalición de fuerzas de la izquierda chilena, su naturaleza y
las condiciones en que se puso en práctica, pero también por comprender la
conflictividad política que caracterizó esos tres años y desembocó en el golpe
de Estado del 11 de septiembre de 1973. En menor medida, la historiografía de la
Unidad Popular se ocupa también de las relaciones internacionales, dando cuenta
del lugar de los años de Allende en la Guerra Fría interamericana (Fermandois,
Hacia una historia cultural de la Unidad Popular

1985; Harmer, 2011; Harmer; Riquelme Segovia, 2014), de la recepción


internacional de este ensayo político a la vez revolucionario y democrático
(Compagnon; Moine, 2015) y de las intervenciones externas que condujeron al
golpe de Estado (Burns, 2014; Haslam, 2005; Kornbluh, 2003). Por otra parte,
a pesar del auge internacional de la historia cultural desde finales de los años
ochenta y noventa (Burke, 2004; Cohen et al., 2020; Ory, 2004), esta dimensión
de la Unidad Popular sólo se ha tratado de forma fragmentaria. A partir de esta
constatación nació la idea de este dossier –que no pretende, evidentemente,
agotar un tema que merecería centenares de libros, sino abrir modestamente
una serie de pistas de investigación–, con la certeza de que la historia cultural,
entendida como historia social de las representaciones y prácticas culturales,
permite una aproximación desde otro punto de vista, a la manera en que Roger
Chartier (1990), entre otros, pudo hacerlo con la Revolución Francesa. Dicho
de otro modo, se trata de documentar una experiencia política progresista, sus
promesas y sus límites desde una historia cultural de lo político más que una
historia de las culturas políticas.
La Unidad Popular fue un momento fundamental en la historia de Chile y del
mundo en el siglo XX, sin duda el único encuentro auténtico entre marxismo
y democracia, una utopía política que echó raíces en la democracia liberal.
Dossiê

Chile experimentó un momento de efervescencia cultural y artística durante


la “larga década” de los años sesenta del siglo XX. El dinamismo alcanzado por
distintas disciplinas como la música, el cine, la literatura, el teatro, la pintura
mural y las artes gráficas contrasta fuertemente con el apagón cultural de los
primeros años de la dictadura. Poco después de las conmemoraciones de los

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cincuenta años del golpe de Estado del 11 de septiembre de 1973, este dossier
busca preguntarse cómo situar los mil días de la Unidad Popular dentro de ese
contexto cultural. ¿Cuál fue el lugar de la cultura en la práctica del poder en un
clima político tan fuertemente tensionado? ¿Cuál ha sido el lugar atribuido a la
cultura posteriormente por la historiografía sobre la Unidad Popular?
Ignacio del Valle-Dávila / Olivier Compagnon / Carolina Amaral de Aguiar

La cuestión de la democratización y de la soberanía cultural

La efervescencia cultural durante los años de la Unidad Popular puede


analizarse siguiendo dos líneas principales. En primer lugar, se debe considerar
que en diversas áreas de la cultura, como el cine, la música y la literatura, a
partir de los años sesenta se crearon nuevos espacios de producción y difusión
cultural (como escuelas y cursos universitarios, festivales de cine y de la
Hacia una historia cultural de la Unidad Popular

canción, sellos discográficos, etc.), que fomentaron el desarrollo de industrias


culturales en el país. Este fenómeno fue acompañado por la inclusión de
artistas chilenos en redes y circuitos internacionales, tanto en América Latina
como fuera del continente. Durante la campaña electoral de 1970 y tras la
victoria de Salvador Allende, esta creciente expansión del campo cultural se vio
intensificada, en gran medida, por el apoyo de los artistas al proyecto político
de la Unidad Popular. Además, hay que tener en cuenta que la UP buscó, a partir
de su Programa Básico de Gobierno aprobado por los miembros de la coalición
el 17 de diciembre de 1969, ponerse al servicio del desarrollo de una “nueva
cultura”, “[...] orientada a considerar el trabajo humano como el más alto valor,
a expresar la voluntad de afirmación e independencia nacional y a conformar
una visión crítica de la realidad” (Programa [...], 2021, p. 401-402). El Programa
destaca las “deformaciones culturales” propias de la sociedad capitalista,
proponiendo generar una gran ruptura en el campo. Sin embargo, el propio
documento reconoce los límites de la implementación de una política cultural
asertiva a través del Estado, ya que:

[...] la cultura nueva no se creará por decreto; ella surgirá de


la lucha por la fraternidad contra el individualismo; por la
Dossiê

valoración del trabajo humano contra su desprecio; por los


valores nacionales contra la colonización cultural; por el acceso
de las masas populares al arte, la literatura y los medios de
comunicación contra su comercialización (Programa [...], 2021, p.
402).

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Como medidas efectivas, el Programa Básico de Gobierno de la Unidad


Popular preveía la creación de centros locales de cultura popular y una medida
concreta –la única, de hecho, de las 40 que se le dedicaban al ámbito cultural–:
la inauguración del Instituto Nacional del Arte y la Cultura. Como puede verse,
el documento apunta en dos direcciones aparentemente opuestas: por un lado,
Ignacio del Valle-Dávila / Olivier Compagnon / Carolina Amaral de Aguiar

aboga por la descentralización de las actividades culturales y, por otro, anuncia


la creación de una institución estatal centralizadora. Hay que recordar que este
Instituto no se materializó durante los años en que la Unidad Popular estuvo en
el poder, lo que evidencia que la cultura nunca fue considerada una prioridad
de las políticas públicas durante los mil días de UP.
La expectativa del surgimiento de una cultura desde la base puede
considerarse una razón plausible de la vacilación de la Unidad Popular a la
hora de crear nuevas instituciones culturales. Si bien no se creó un Ministerio
Hacia una historia cultural de la Unidad Popular

de Cultura ni un Instituto Nacional de Arte, el gobierno comenzó a apropiarse


y reestructurar empresas ya activas en el ámbito cultural, como señala César
Albornoz (2005, p. 153). En el campo del cine, se reequipó Chile Films, empresa
estatal creada en 1941. Su primer director fue Miguel Littin, quien durante la
campaña electoral había redactado el Manifiesto de los cineastas de la Unidad
Popular (1970), texto firmado colectivamente por el Comité de Unidad Popular
de Cineastas (CUP). Como señala Ignacio del Valle-Dávila (2014), la Unidad
Popular no disponía de los suficientes votos en el Parlamento para crear una
nueva institucionalidad cinematográfica. La precariedad material y técnica, la
coexistencia de proyectos contrapuestos, los diversos cambios administrativos
de la empresa y los problemas relativos a la distribución de películas extranjeras
derivados del bloqueo de las majors estadounidenses fueron algunos de los retos
a los que se enfrentaron los cineastas durante el gobierno de Salvador Allende.
Como muestra Carolina Amaral de Aguiar (2023), esta situación llevó a algunos
cineastas que trabajaban en la empresa, como Patricio Guzmán, a implicarse
cada vez más en la defensa de decretos efectivos de apoyo a la cultura, como
la creación de un Instituto Nacional de Cinematografía, lo que nunca llegó a
materializarse.
En el campo de la música, una de las organizaciones más activas durante
Dossiê

los años de la Unidad Popular fue la Discoteca del Cantar Popular (DICAP),
fundada en 1968 por las Juventudes Comunistas de Chile. En el momento de
la victoria de la UP, la DICAP ya era un importante escaparate del movimiento
de la Nueva Canción Chilena. Javier Rodríguez Aedo (2017) señala que el sello
editó la mayoría de las canciones y discos que apoyaban al gobierno de Allende.

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Natália Ayo Schmiedecke (2022) analiza cómo la DICAP se autoasignó la tarea


de colaborar con la promoción de la "nueva cultura" y cómo se consolidó como
un espacio de sociabilidad para los músicos a principios de los años setenta.
Sin embargo, la Unidad Popular también actuó más directamente en el ámbito
musical al nacionalizar el sello discográfico RCA Victor en 1971 y transformarlo
Ignacio del Valle-Dávila / Olivier Compagnon / Carolina Amaral de Aguiar

en la Industria de Radio y Televisión (IRT). Vemos, pues, la coexistencia de


apoyos espontáneos procedentes del campo cultural y el intento de movilizar las
instituciones existentes para actuar de forma contundente en la transformación
social.
En 1971 la Unidad Popular creó la Editora Nacional Quimantú, tras la
compra por el estado de la editorial Zig-Zag (Molina, 2018). Quimantú
nació con el objetivo manifiesto de democratizar el acceso a la literatura y
dinamizar el mercado editorial. Durante sus tres años de vida sirvió para
Hacia una historia cultural de la Unidad Popular

desarrollar diferentes iniciativas asociadas al mundo del libro y al mercado


de las publicaciones periódicas. Entre sus principales productos cabría citar
la emblemática colección de libros Nosotros los chilenos (Córdova; García-
Huidobro; Montecinos, 2023), la revista cultural La Quinta Rueda, la revista
femenina Paloma y los Cuadernos de Educación Cultural. El interés por alcanzar a
diferentes segmentos de la población, como la juventud, los niños, las mujeres,
los trabajadores y los medios intelectuales iba de la mano con un estudio de
la identidad y la cultura chilenas, a partir de un prisma cercano al gobierno
aunque no necesariamente militante. Quimantú fue, sin duda, la institución
cultural más emblemática de la Unidad Popular y la que llegó a más amplios
sectores de la sociedad. Quizás por ello, en uno de sus primeros actos simbólicos
de “extirpación del cáncer marxista”, la dictadura quemó algunos de sus libros
el 12 de septiembre de 1972 (Bergot, 2004, p. 24). Pese a ello, Quimantú fue
también una de las pocas empresas del área cultural que los militares no
cerraron drásticamente tras el golpe de Estado. Tras permanecer algunos meses
clausurada, tuvo algunos años de sobrevida, a partir de 1974, rebautizada como
Empresa Editorial Nacional Gabriela Mistral –en un momento en que la poeta
chilena aún no era necesariamente asociada al feminismo–, pero con una línea
editorial abiertamente proclive a la dictadura.
Dossiê

Tampoco puede dejar de mencionarse otra iniciativa de corta duración, pero de


alcance masivo, el Tren Popular de la Cultura que durante un mes, entre febrero
y marzo de 1971, recorrió el país, realizando escalas en las principales ciudades
entre Puerto Montt y Rancagua, durante las que se hacían presentaciones de
baile, música, artes escénicas y visuales. Ese tren cultural recuerda, en cierta

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medida, otras célebres iniciativas en las que el tren fue puesto al servicio de la
difusión del arte militante, como el caso del tren cinematográfico de Alexsandr
Medvedkin que durante los años treinta recorrió la URSS filmando y mostrando
documentales en localidades distantes de las grandes urbes. Sin embargo, el
antecedente más directo de la utilización del tren por parte de la izquierda
Ignacio del Valle-Dávila / Olivier Compagnon / Carolina Amaral de Aguiar

chilena es la campaña de Salvador Allende de 1964, realizada en el llamado


“tren de la victoria”, que el Tren Popular de la Cultura parece haber actualizado
en una versión festiva.
Toda esa serie de políticas e instituciones estimuladas por el gobierno de la
Unidad Popular se encuentran a medio camino entre la voluntad de democratizar
la cultura, formar una nueva identidad nacional a través de la cultura (Bowen,
2008) y su inserción en la batalla ideológica, en un país considerado como uno
de los más norteamericanizado en la región latinoamericana desde el fin de la
Hacia una historia cultural de la Unidad Popular

Primera Guerra Mundial (Purcell, 2012; Rinke, 2013). Sin embargo, instituciones
como Chile-Films, DICAP, Quimantú y el Tren Popular de la Cultura ¿son solo
la parte visible de un iceberg cuya profundidad aún no ha sido estudiada o
fueron iniciativas aisladas en un contexto en el que las políticas culturales no
eran necesariamente grandes prioridades? ¿Qué función tuvieron instituciones
no gubernamentales como las universidades y las televisiones en los debates
culturales y la producción artística de la época? ¿Cuál fue el rol que jugaron en
los museos y las casas de cultura?

Las relaciones culturales internacionales

En el ámbito de las relaciones internacionales, los intercambios y las


transferencias culturales se abre también un abanico de inquietudes. ¿Hubo
una diplomacia cultural especifica durante la Unidad Popular? ¿Cómo fueron
las relaciones culturales con otros países socialistas? ¿Existieron tensiones en
el campo cultural con los países capitalistas? ¿Fue el Chile de la Unidad Popular
un verdadero polo de atracción para los artistas e intelectuales extranjeros?
¿Cuál fue la importancia como “embajadores culturales” de artistas como Pablo
Neruda, Víctor Jara, Roberto Matta y de grupos musicales como Quilapayún?
Dossiê

Algunos estudios sobre diplomacia cultural sirven de punto de partida


para responder a estas preguntas y abren el camino a investigaciones futuras.
Considerando la lógica bipolar de la Guerra Fría, se destacan el libro de Rafael
Pedemonte (2020) sobre la triangulación entre Chile, Cuba y la Unión Soviética
y la reciente tesis de Manuel Suzarte (2023) sobre las acciones diplomáticas

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estadounidenses dirigidas al mundo universitario chileno. Otros estudios se


han centrado en las relaciones diplomáticas de la Unidad Popular con países
específicos, como es el caso de Fernando Camacho Padilla (2007), quien analizó
las relaciones entre el Chile de Allende y la Suecia de Olof Palme. Sin embargo,
no todos abordan especialmente la dimensión cultural de estas relaciones.
Ignacio del Valle-Dávila / Olivier Compagnon / Carolina Amaral de Aguiar

Más allá de los acuerdos y acciones de una diplomacia más institucionalizada,


las relaciones culturales internacionales durante la Unidad Popular pueden
analizarse de múltiples maneras. Un aspecto importante se refiere a la
presencia de extranjeros provenientes de otros países latinoamericanos en
el Chile de comienzos de los años setenta, producto de procesos regionales
como la creación de la Comisión Económica para América Latina y el Caribe
(CEPAL) (1948), el golpe de Estado en Brasil (1964) y, posteriormente, el golpe
de Estado en Uruguay (1973). La gran presencia de políticos y actores del medio
Hacia una historia cultural de la Unidad Popular

cultural latinoamericano en el Chile de Salvador Allende propició la creación de


redes transnacionales en el campo cultural, algunas de las cuales continuaron
después del 11 de septiembre de 1973, facilitando la acogida de exiliados y las
campañas de denuncia internacional contra la dictadura (Moine, 2015).
Desde 1964, importantes nombres de la cultura brasileña estaban exiliados
en Chile, como Paulo Freire, Ferreira Gullar y Mario Pedrosa. Esta presencia dio
lugar a algunas iniciativas notables, como el Museo de la Solidaridad con Chile,
creado por Pedrosa en 1972, como forma de apoyo internacional a la Unidad
Popular. La institución reunió obras donadas por artistas plásticos de renombre
como Joan Miró, Alexander Calder, Victor Vasarely, Joaquín Torres García y
Frank Stella (Paladino, 2020). El proyecto de museo colaborativo, cuya colección
estaba compuesta por obras de todo el mundo donadas por simpatizantes de la
UP de distintos orígenes nacionales, pasó a llamarse Museo de la Resistencia
Salvador Allende después del 11 de septiembre de 1973 y trasladarse fuera de
Chile, volviéndose itinerante.
Siguiendo con el tema de los latinoamericanos en la Unidad Popular chilena,
cabe destacar la presencia del director brasileño Glauber Rocha en 1971, cuyo
proyecto de realizar una película en el país no se concretó. Lo mismo ocurrió
con el argentino Raymundo Gleyzer. A pesar de los proyectos de cooperación
Dossiê

no realizados, durante el gobierno de Allende hubo colaboraciones fructíferas


para el Nuevo Cine Latinoamericano, que fueron analizadas por Del Valle
Dávila (2015), como el trabajo de dirección de fotografía de Affonso Beato
en el largometraje La tierra prometida (1973), de Miguel Littín, o los vínculos
establecidos por el boliviano Jorge Sanjinés con cineastas chilenos. También

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para Nueva Canción Chilena (NCCh), la Unidad Popular fue un momento


para estrechar lazos latinoamericanistas previos. Según Rodríguez Aedo, [...]
“se esbozó una vocación internacional que exhortaba a los integrantes de la
NCCh a partir al encuentro de otros músicos extranjeros, promoviendo así
la creación de una red político-musical que logró extenderse más allá del
Ignacio del Valle-Dávila / Olivier Compagnon / Carolina Amaral de Aguiar

territorio nacional” (Rodríguez Aedo, 2017, pár. 8). Un ejemplo emblemático


fue la visita del grupo musical cubano Manguaré a Chile por seis meses, entre
octubre de 1971 y marzo de 1972. Durante este período, los músicos cubanos
buscaron redimensionar su trabajo a través del contacto con grupos chilenos
como Quilapayún e Inti-Illimani.
No sólo los artistas latinoamericanos viajaron al Chile de Allende. La
presencia de extranjeros en esos años muestra cómo, en el campo cultural,
se relativizó la bipolaridad de la Guerra Fría, ya que el país era atractivo
Hacia una historia cultural de la Unidad Popular

tanto para los intelectuales y artistas del bloque capitalista como para los
del socialista. Otro punto importante en esta reflexión es considerar cómo
la presencia de personalidades con perfiles diferentes en el campo cultural
planteaba a menudo debates entre los partidarios de la Unidad Popular sobre el
tipo de arte considerado más apropiado para apoyar la revolución en marcha.
Es emblemático el caso del cantante de rock estadounidense Dean Reed,
afincado en Chile desde los años sesenta y consolidado como una estrella
juvenil latinoamericana. Como señala Jedrek Mularski (2014), en la década de
los setenta se convirtió en una “figura controvertida” porque no contaba con el
respaldo ni de los conservadores ni de la intelectualidad de izquierda (vinculada
al proyecto folclorista y antiimperialista), sin embargo asumió públicamente
posiciones cercanas a la Unidad Popular. A partir de 1972, Reed se instaló en la
República Democrática Alemana (RDA), convirtiéndose en un actor importante
de la solidaridad chilena en el país tras el golpe de Estado, como señala Caroline
Moine (2015) sobre el "Elvis rojo".
La visita de Costa-Gavras a Chile en 1972 es otro conocido ejemplo de las
tensiones generadas por actores extranjeros que escapaban a las expectativas
de los proyectos estéticos e ideológicos en marcha durante la UP, ya que el
cineasta fue muy cuestionado por su reciente película La confesión (1970), un
Dossiê

thriller político sobre el juicio al que fue sometido el checo Artur London como
consecuencia de la represión soviética. Ahora bien, a pesar de esas tensiones
al igual que en el caso de la música, las redes cinematográficas transnacionales
creadas por la presencia de agentes internacionales en Chile perduraron
más allá del 11 de septiembre y fueron fundamentales para la acogida de los

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exiliados y la producción cultural del exilio. Ejemplo de ello fueron los vínculos
entre Chris Marker y Patricio Guzmán tras el viaje a Chile del francés en 1972
(Aguiar, 2016).
Aunque es imposible agotar en este texto las posibilidades de análisis
de las relaciones culturales internacionales durante la Unidad Popular, es
Ignacio del Valle-Dávila / Olivier Compagnon / Carolina Amaral de Aguiar

imprescindible hacer una última mención: importantes artistas chilenos


vinculados al proyecto socialista en marcha circularon por diversos países y,
especialmente aquellos que ya gozaban de gran notoriedad, jugaron un papel
en la diplomacia cultural de la UP. Es el caso de Pablo Neruda, que tras renunciar
a su precandidatura a la presidencia de Chile por el Partido Comunista en
favor de la de Allende, fue nombrado embajador de Chile en Francia (cargo
que ocupó desde marzo de 1971 hasta finales de 1972). El poeta también
puede considerarse un agente que contribuyó a dar visibilidad internacional
Hacia una historia cultural de la Unidad Popular

al proyecto de la Unidad Popular, especialmente tras la concesión del Premio


Nobel de Literatura al chileno en Suecia en 1971.

Medios y política

Los intelectuales de izquierdas manifestaron una preocupación real durante


la Unidad Popular por el desarrollo de las industrias culturales y los medios de
comunicación, considerados –en consonancia con el pensamiento althusseriano
en boga en la época– como aparatos de difusión y consolidación de ideología.
Para leer al Pato Donald, uno de los textos clave de la época sobre la visión
crítica de los medios de comunicación de masas, fue publicado en Chile en 1971
por el belga Armand Mattelart y el chileno-argentino Ariel Dorfman y ganó
rápidamente una difusión mundial, transformándose en uno de los estudios
latinoamericanos más leídos de la historia. Ese estudio sobre los mecanismos
de difusión de la ideología capitalista en las historietas de Disney inspiró
múltiples análisis de diversas medios de comunicación, cuyos productos fueron
vistos como vehículos de transmisión ideológica. En esos mismos años Armand
Mattelart, Michèle Mattelart y Mabel Piccini desarrollaron una intensa labor de
investigaciones académicas sobre comunicación masiva, cultura y revolución en
Dossiê

el Centro de Estudios de la Realidad Social (CEREN) de la Universidad Católica


de Chile y acabaron siendo nombrados por Allende asesores comunicacionales
de la Editorial Quimantú y del canal de Televisión Nacional (Rivera, 2015, p.
347, 355).
No carece de significación que en su último discurso Salvador Allende haya

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hecho referencias explícitas a las radios Magallanes, Corporación y Portales


que el 11 de septiembre estaban siendo atacadas por las fuerzas armadas.
Ello se explica, como es lógico, porque se trató de una alocución radial; sin
embargo, esas alusiones revelan hasta qué punto el presidente era consciente
de la importancia de los medios de comunicación para su gobierno, incluso en
Ignacio del Valle-Dávila / Olivier Compagnon / Carolina Amaral de Aguiar

los momentos más críticos. A pesar de ello, durante la UP no existió una política
revolucionaria respecto de los medios de comunicación, en gran medida porque
el gobierno no poseía la representación parlamentaria necesaria como para
impulsar grandes reformas en ese ámbito. Es más, como apunta Carla Rivera
(2015), en lo esencial no se alteró el sistema de medios. Tampoco existió un
intento por controlarlos a través de otras estrategias de carácter autoritario,
como la censura o el boicot. La libertad de expresión fue respetada siguiendo
una visión propia de la democracia burguesa, incluso cuando ello podía resultar
Hacia una historia cultural de la Unidad Popular

contraproducente para los objetivos de la coalición de gobierno.


En cambio, sí hubo iniciativas para hacerse con la propiedad o la dirección
de algunos vehículos de información específicos que fueron considerados
claves. Personas del círculo cercano a Salvador Allende adquirieron la radio
Portales –una de las más importantes del país– a comienzos del primer
año de gobierno, con el objetivo de alcanzar a un público masivo y popular
(Salgado Muñoz, 2022). En el caso de la prensa escrita, la izquierda contaba
con algunos medios de gran circulación, el más importante y tradicional de
ellos era el diario El Siglo del Partido Comunista, al que hay que añadir Clarín,
destinado a los segmentos populares y con abundantes noticias de carácter
sensacionalista. Tampoco puede olvidarse la revista Punto Final, cuya línea
editorial explícitamente comprometida con una visión revolucionaria no le
impedía ser crítica con el gobierno ni, de modo general, con diferentes sectores
de la izquierda. Finalmente, a esos medios escritos se añade la amplia lista de
revistas, publicaciones y cuadernos culturales de la editorial Quimantú.
La televisión es un caso especial pues, a raíz de su llegada tardía al país, se
encontraba en pleno proceso de masificación a comienzos de los años setenta
y llegaba a sectores cada vez más amplios, sobre todo en las clases altas y
medias. La ley chilena entregaba su desarrollo a las universidades, siguiendo
Dossiê

un modelo bastante atípico de televisión de servicio público. A Canal 13 de


la Universidad Católica, Canal 9 de la Universidad de Chile y Canal 4 de la
Universidad Católica de Valparaíso se sumó, a partir de 1969, el único canal no
universitario, Televisión Nacional, de propiedad pública (Santa Cruz, 2017, p. 10).
Ninguno de ellos fue totalmente proclive a la Unidad Popular. Los dos canales

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de la universidades católicas tenían directorios de oposición. Canal 13, el más


visto del país, asumió un posicionamiento abiertamente contrario al gobierno
mientras que el pequeño canal de la Universidad Católica de Valparaíso optó
por una línea editorial ambigua y bastante moderada para la época. En el caso
de Canal 9 existieron fuertes tensiones entre el rector democratacristiano de la
Ignacio del Valle-Dávila / Olivier Compagnon / Carolina Amaral de Aguiar

Universidad de Chile y los trabajadores de la televisión, cercanos a la UP, esas


divergencias llegaron a afectar el correcto funcionamiento de las emisiones
televisivas (Albornoz, 2014). Por último, en Televisión Nacional la Unidad
Popular no poseía mayoría en el directorio, lo que hizo que la línea editorial no
estuviera alineada con el gobierno, a pesar de que entre sus dirigentes estaba
el cineasta Helvio Soto abiertamente partidario del gobierno.
A pesar de los diferentes intentos del gobierno de la Unidad Popular y
sus grupos partidarios por alcanzar una mayor visibilidad en los medios de
Hacia una historia cultural de la Unidad Popular

comunicación masiva, en la práctica los principales grupos mediáticos del


país, en términos de audiencia y prestigio, se situaron en la oposición. Agustín
Edwards, el empresario más importante de la prensa chilena, propietario de El
Mercurio, La Segunda y de varios medios regionales no solo era un declarado
opositor, sino que, como he sido reiteradamente repetido, recibió financiación
de la CIA para desestabilizar al gobierno y preparar el terreno para el golpe de
Estado. Le sigue en importancia estratégica Canal 13, cuya línea editorial con
el paso del tiempo se volvería cada vez más dura contra la Unidad Popular. Solo
en la radio la hegemonía de la oposición se vio parcialmente relativizada.
El lenguaje utilizado en los medios adquirió una beligerancia nunca antes
conocida en la historia del periodismo chileno. Se hicieron comunes los apodos
peyorativos, los calificativos vejatorios, las denuncias sensacionalistas e, incluso,
las amenazas en una prensa cada vez más de barricada lo que contribuyó a
enrarecer y enardecer los ánimos (Bernedo; Porath, 2004). Sin embargo, incluso
en aquellos medios “serios” que evitaban esas estrategias, como El Mercurio, el
posicionamiento político se hizo mucho más explícito de lo que nunca había
sido hasta entonces. La crispación palpable en la prensa no es únicamente un
reflejo de las tensiones de la época, puede considerarse a los grandes medios
como agentes históricos que contribuyeron a enrarecer la convivencia social
Dossiê

y a minar la confianza en la democracia. Sin embargo, ¿debe la investigación


historiográfica contentarse con constatar esas responsabilidades? ¿En qué
medida una historia cultural de los medios y sus representaciones permitiría
explorar la manifestación de otras dimensiones menos evidentes de la cultura
de la época, como el feminismo o la contracultura, situadas al margen de los

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grandes conflictos políticos en torno a la Unidad Popular? ¿De qué forma, por
ejemplo, revistas femeninas como Paula permiten aproximarse a debates que
han quedado solapados, como la progresiva ruptura con los valores católicos o
el control de la natalidad?
Ignacio del Valle-Dávila / Olivier Compagnon / Carolina Amaral de Aguiar

Nuevas fuentes para el estudio de las prácticas culturales

Como puede verse, el estudio de la historia cultural de la Unidad Popular


supone múltiples y fascinantes desafíos que se vuelven aún más complejos
si tenemos en cuenta que sus partidarios tenían visiones muchas veces
contradictorias o abiertamente opuestas sobre lo que debería significar la
cultura popular. Asimismo, a las instituciones culturales oficiales hay que
sumar el trabajo emprendido por diversas redes que gravitan en la órbita de
Hacia una historia cultural de la Unidad Popular

la UP, que la apoyan, pero no proceden directamente del poder político y que,
en no pocas ocasiones, llegaron a dirigir duras críticas contra el oficialismo.
Por otro lado, las fronteras entre lo que puede considerarse como una cultura
oficial, promovida por el gobierno, y lo que puede atribuirse a la producción
de artistas comprometidos o grupos militantes son bastante porosas y a veces
indiscernibles. Esas zonas grises representan un desafío para la investigación.
Decíamos al principio que este dossier no pretende ni mucho menos agotar
las posibilidades que ofrece una historia cultural de la Unidad Popular. Sin
embargo, en los trabajos que presentamos en estas páginas sí se advierte un
esfuerzo, de la parte de sus autores y autoras, por innovar en el estudio de esa
época a partir de fuentes poco conocidas y de objetos que no han merecido
mucha atención de parte de la literatura especializada en el tema. Buscan otorgar
nuevas luces y abrir nuevas interrogantes sobre ese pasado al abordarlo desde
perspectivas poco comunes: un canal de televisión regional; la producción
cinematográfica de las mujeres; la visita de intelectuales norteamericanos; un
disco musical para niños; una revista femenina. El resultado abre la puerta para
nuevos caminos.
En el artículo “María de la Luz Uribe y Charo Cofré: hacia una estética del
disenso en la poesía chilena para la infancia durante los años setenta” las
Dossiê

investigadoras Carola Vesely Avaria y Andrea Jeftanovic Avdaloff analizan el


disco infantil Tolín, tolín tolán (1972) para mostrar su forma de posicionamiento
ante algunos de los grandes principios que orientaron la vía chilena al
socialismo. El texto demuestra cómo esa producción poética y musical buscó
de forma explícita dialogar con el contexto de su época a través de diferentes

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imágenes literarias y tropos.


La dimensión transnacional de la Unidad Popular y la circulación de diferentes
agentes extranjeros en el Chile de la UP es estudiada por Manuel Suzarte desde
una perspectiva poco frecuente en el texto “¡Vivan los hippies buenos! Tres
yippies en el Chile de Salvador Allende”. El autor se aproxima a la experiencia
Ignacio del Valle-Dávila / Olivier Compagnon / Carolina Amaral de Aguiar

de tres miembros de la Nueva Izquierda estadounidense, cercanos al ámbito de


la contracultura, que viajaron a Chile en 1971. El estudio de los testimonios de
dos de ellos permite reconstruir el periodo desde una óptica que entremezcla el
interés y la simpatía con el extrañamiento cultural, demostrando las sincronías
y distancias entre las juventudes contestatarias de ambos países.
“Mulheres cineastas durante o governo da Unidade Popular (Chile, 1970-
1973)” de Marina Cavalcanti Tedesco es un estudio sobre la participación
femenina en la dirección de filmes durante la Unidad Popular, una cuestión
Hacia una historia cultural de la Unidad Popular

poco conocida hasta hoy. La autora identifica 15 producciones realizadas por


mujeres –muchas veces en compañía de directores masculinos– procurando
dilucidar cuáles eran las cuestiones temáticas y formales que caracterizaron
a esas obras. Para ello, Tedesco analiza cuestiones tales como el formato, el
género narrativo, la forma de financiación, la incorporación de entrevistas, el
papel de la música y las lógicas del montaje y de la relación entre imagen y
sonido.
Ignacio del Valle-Dávila en “La televisión chilena y las elecciones de 1970: el
caso de UCV-TV” aborda uno de los hitos fundacionales de la Unidad Popular,
desde una perspectiva que nunca ha sido explorada con atención: la cobertura
que le brindó a los comicios presidenciales el periodismo televisivo. Para ello el
investigador analiza las noticias sobre esa temática realizadas por el canal de la
Universidad Católica de Valparaíso. Los cambios legislativos para la ampliación
del derecho a voto, la nominación de los candidatos, las campañas, la jornada
electoral y el recuento de escrutinios son estudiados a partir de los guiones y
los registros fílmicos del canal de Valparaíso.
El dossier incluye también el artículo “Polifonía, ambigüedad y
contradicción: amor, sexualidad y control de la natalidad en la revista Paula
durante la Unidad Popular” de Claire-Emmanuelle Block que analiza la revista
Dossiê

femenina Paula a comienzos de los años setenta. De acuerdo con Block, se trata
de una de las primeras publicaciones chilenas en abrir espacios de discusión
sobre cuestiones polémicas relacionadas tradicionalmente con la mujer, como
el aborto, los métodos anticonceptivos o la virginidad. Sin embargo, aunque
muchas veces la revista asumía posiciones progresistas, no se autodefinía

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como feminista y podía asumir puntos de vista contradictorios. De esa forma el


estudio de Paula muestra los límites del proyecto editorial en un momento en
que las reivindicaciones feministas eran desconsideradas tanto por los grupos
conservadores como por buena parte de la Unidad Popular.
Finalmente, en consonancia con el tema de este dossier, Carolina Amaral
Ignacio del Valle-Dávila / Olivier Compagnon / Carolina Amaral de Aguiar

de Aguiar publica una reseña sobre el libro Chilean New Song and the Question
of Culture in the Allende Government: Voices for a Revolution (2022), de Natália
Ayo Schmiedecke. El libro aborda la relación entre la Nueva Canción Chilena y
la Unidad Popular, a partir de un análisis del campo cultural en la época y los
postulados estéticos e ideológicos de su producción musical. Por esas razones
puede considerarse como una publicación de importancia para los estudios
culturales en torno a la Unidad Popular.
Iniciábamos este texto diciendo que el desafío que nos orientaba era una
Hacia una historia cultural de la Unidad Popular

historia cultural de la política y no una historia de las culturas políticas.


Consideramos que los trabajos aquí presentados ofrecen un estudio de prácticas
culturales y representaciones sociales que nos encaminan, quizás aún en forma
incipiente, hacía las interrogantes propias de una historia cultural de la Unidad
Popular.

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Notas
Ignacio del Valle-Dávila / Olivier Compagnon / Carolina Amaral de Aguiar

1
Doctor en Cine por la Université Toulouse 2 – Jean Jaurès. Profesor del Programa de
Posgrado en Muldimedios de la Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). ORCID:
0000-0002-8174-0582.
2
Profesor de historia contemporánea en la Universidad Sorbonne Nouvelle (Institut
de Hautes Etudes de l’Amérique latine), miembro del Centre de Recherche et de
Documentation des Amériques (CREDA UMR 7227) y del Institut Universitaire de France.
ORCID: 0000-0002-2660-3665.
3
Doctora en Historia Social por la Universidad de Sao Paulo. Profesora de Historia de
América y del Programa de Posgrado en Historia Social en la Universidad Estadual de
Londrina (UEL). ORCID: 0000-0003-1447-1527.
Hacia una historia cultural de la Unidad Popular
Dossiê

Recebido em 06/11/2023 - Aprovado em 03/01/2023


Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.015-033, jul-dez. 2023 } 33
DOI: 10.5433/1984-3356.2023v16n32p034-058

María de la Luz Uribe y Charo


Cofré: hacia una estética del
disenso en la poesía chilena
para la infancia durante los
años setenta1

María de la Luz Uribe and


Charo Cofré: towards an
aesthetics of dissent in
children’s chilean poetry
during the seventies

María de la Luz Uribe e Charo


Cofré: por uma estética do
dissenso na poesia para a
infância chilena dos anos
1970

Carola Vesely Avaria2


Andrea Jeftanovic Avdaloff3

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Resumen: El presente trabajo se desarrolla en el campo de


los estudios literarios, tomando como objeto de estudio la
producción poética destinada a niños y niñas en Chile durante
los años setenta, a fin de indagar en las posibilidades del
lenguaje poético para tomar posición frente a sus contextos de
producción y circulación. Para estos efectos, se profundiza en
la obra de las creadoras chilenas María de la Luz Uribe y Charo
Cofré, quienes desarrollaron durante el periodo un trabajo
coral desde la poesía, la música y la visualidad (esto último
gracias a la relevante participación del ilustrador Fernando
Carola Vesely Avaria / Andrea Jeftanovic Avdaloff

Krahn), el que se materializa en la publicación del disco Tolín,


estética del disenso en la poesía chilena para la
María de la Luz Uribe y Charo Cofré: hacia una

tolín, tolán (1972). Considerado un hito sin precedentes en la


historia de la música infantil chilena, esta producción hoy se
actualiza gracias al trabajo de rescate patrimonial realizado
por el sello chileno Monophone y su reciente reedición del
infancia durante los años setenta

álbum (2022) para conmemorar los cincuenta años desde su


publicación. Así pues, a partir de la lectura crítica de algunos
poemas cantados de la obra, este trabajo merodea en los
entresijos de la memoria traumática y revisa las trayectorias de
la creación poética destinada a niños y niñas durante el periodo
dictatorial chileno, marcadas por la articulación de imaginarios
transformadores sobre la infancia y la reivindicación de su
carácter político a partir de estéticas del disenso que combinan
lo fantástico, lo subversivo y lo neosubversivo, estableciendo
un significativo diálogo con las nuevas generaciones.
Palabras clave: poesía infantil; estéticas del disenso; dictadura
chilena; memoria; fantasía.

Abstract: This study is situated within the realm of literary


Dossiê

studies, specifically examining the poetic works created for


children in Chile during the 1970s. The primary objective is
to explore the potentialities of poetic language in actively
positioning itself within the specific contexts of its production
and circulation. For this purpose, we delve into the work of

Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.034-058, jul-dez. 2023 } 35


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Chilean creators María de la Luz Uribe and Charo Cofré, who


collaborated during this period through poetry, music, and
visual art (the latter, thanks to the significant contribution
of illustrator Fernando Krahn), which materialized in the
publication of the album "Tolín, tolín, tolán" (1972). Considered
an unprecedented milestone in the history of Chilean children”s
music, this production has been recently revisited through the
heritage preservation efforts of the Chilean label Monophone,
which reissued the album in 2022 to commemorate its fifty
years since publication. Therefore, through a critical analysis
of selected sung poems from the work, this study delves
into the intricacies of traumatic memory and reviews the
trajectories of poetic creation for children during the Chilean
Carola Vesely Avaria / Andrea Jeftanovic Avdaloff

estética del disenso en la poesía chilena para la


María de la Luz Uribe y Charo Cofré: hacia una

dictatorship period, characterized by the articulation of


transformative imaginaries about childhood and the assertion
of its political nature through aesthetics of dissent that
combine the fantastic, the subversive, and the neo-subversive,
establishing a significant dialogue with new generations.
infancia durante los años setenta

Keywords: children poetry; aesthetics of dissent; chilean


dictatorship; memory; fantasy.
Dossiê

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Los regímenes dictatoriales que marcan la historia latinoamericana reciente


han llevado a problematizar una serie de concepciones sobre arte, subjetividad
y memoria, en línea con los antecedentes establecidos por la experiencia del
Holocausto, transformado en un tropos universal del horror (Huyssen, 2002)
que vemos reiterarse en la Latinoamérica de los años setente y ochente y 80.
Estos procesos históricos recalcan el imperativo de rescatar los discursos de
la memoria, incorporando la multiplicidad de voces que componen el tejido
social y apuntando a la elaboración del trauma. En tal contexto se enmarca la
presente investigación, que asume como objeto de estudio un corpus de voces
tejidas por fuera de los discursos de la Historia oficial de Chile, orientadas a
un grupo tradicionalmente invisibilizado y marginado de los procesos sociales,
como son las infancias (Castillo; González, 2015; Duarte, 2012; Gaitán, 2006).
En concreto, este trabajo aborda un corpus de poesía infantil cuya circulación
Carola Vesely Avaria / Andrea Jeftanovic Avdaloff

estética del disenso en la poesía chilena para la


María de la Luz Uribe y Charo Cofré: hacia una

se enmarca en los primeros años de la dictadura chilena (1973-1990), en tanto


su producción se desarrolla durante el periodo inmediatamente previo al
golpe de Estado perpetrado en 1973 por el general Augusto Pinochet contra el
presidente Salvador Allende, hito que da inicio a diecisiete años de dictadura.
Este proceso histórico está signado por un régimen autoritario que ejerció la
infancia durante los años setenta

violación sistemática de los Derechos Humanos en contra de la ciudadanía, por


medio de desapariciones forzadas, tortura, exilio y censura, a partir de principios
emanados de la extrema derecha y la imposición de doctrinas económicas
neoliberales. Como resultado de ello, los informes de Derechos Humanos, entre
los que destaca el trabajo de la Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación,
arrojan cifras cercanas a las 30 mil víctimas de prisión política y tortura, casi
tres mil ejecutados y más de mil detenidos desaparecidos. Junto con ello, más
de 200 mil personas fueron exiliadas del país junto con sus familias, lo cual
instala a este momento histórico como el proceso migratorio más masivo en la
historia de Chile (Chile, 1991) .
Reconocida como una de las más sanguinarias de Latinoamérica, la dictadura
de Pinochet sigue siendo una herida abierta en el país, lo cual tiene su correlato
en una importante producción de literatura infantil y juvenil actual planteada
desde las posmemorias (Hirsch, 2015), así como en la reedición de producciones
Dossiê

culturales para la infancia que se posicionan como hitos claves de aquella época
y que hoy vuelven a salir a la luz para dialogar con las nuevas generaciones.
Entre ellas destacamos la reedición en 2022 de la Colección Cuncuna (Ed.
USACH), por medio de la cual la mítica Editorial Quimantú materializó su
compromiso con la literatura para las infancias durante el gobierno de Salvador

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Allende (1970-1973). Asimismo, se acaba de reeditar el disco Tolín, tolín, tolán


(2022), al cumplirse cincuenta años desde su publicación original. Este álbum
se constituye, precisamente, como el objeto de estudio del presente trabajo,
que se propone como un gesto necesario para el rescate de la memoria en
un contexto como el actual, en el que se conmemoran los cincuenta años de
acaecido el golpe militar en Chile.
Este estudio se propone indagar en las repercusiones de este debate en la
literatura producida para niños, adolescentes y jóvenes. “Hay siempre una
política del arte”, propone María Teresa Andruetto (2018, p. 24) en consonancia
con el amplio espectro de teóricos que han reflexionado sobre la relación arte-
política, y a partir de ello formula una pregunta imprescindible: “¿hay reflexión
sobre la política del arte en el campo de la literatura infantil?” (Andruetto, 2018,
p. 24) El presente artículo pretende aportar a las reflexiones surgidas de esta
Carola Vesely Avaria / Andrea Jeftanovic Avdaloff

estética del disenso en la poesía chilena para la


María de la Luz Uribe y Charo Cofré: hacia una

pregunta, yendo un paso más allá de la idea de tematización de la política (como


podría ser una literatura sobre guerra, sobre migraciones o sobre dictadura) y
plegándonos a las propuestas de autores como Benjamin (1989), De Man (1998)
o Ranciére (2010), entre otros que piensan la política del arte incorporando
como eje la dimensión estética del problema y tensionando las nociones de
infancia durante los años setenta

consenso para invitar al disenso. Siguiendo a Rancière (2010, p. 51),

[…] disenso significa una organización de lo sensible en la que


no hay ni realidad oculta bajo las apariencias ni régimen único
de presentación y de interpretación de lo dado que imponga a
todos su evidencia [...]. Reconfigurar el paisaje de lo perceptible y
de lo pensable es modificar el territorio de lo posible en todos los
niveles: las jerarquías de poder/dominación, el predominio de la
razón sobre la sensibilidad, la imposición de la forma por sobre
la materia y la distribución de las capacidades e incapacidades.

Esta reconfiguración de lo sensible, esta transformación de los órdenes


establecidos, daría origen a la experiencia emancipatoria de un receptor
que se ve desafiado a articular sentidos inusitados y múltiples en lugar de
consumir pasivamente certezas conceptuales. Para María Teresa Andruetto,
Dossiê

quien toma de Rancière la noción de disenso, el giro político del arte tiene que
ver con la ruptura estética, que hace a los receptores copartícipes del mundo
creado, invitando a ver lo que era invisible desde ojos cotidianos, a poner en
relación elementos que no lo estaban o, parafraseando a Shklovski (1917),

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a desautomatizar la percepción. En esta línea, más que el realismo o el arte


mimético, propone Andruetto que la ficción sería el campo en que se juega el
disenso, la rearticulación de los órdenes naturalizados, la emancipación:

Arte y política se sostienen así uno a la otra como formas de


disenso, independientemente de los anhelos que podamos tener
los escritores o los ilustradores de servir a tal o cual causa, así el
efecto de un libro reside más en la interpretación sensible que
instituye que en el contenido y lo que llamaríamos política del
arte consiste más que nada en hacer ver aquello que no era visto,
en hacer ver de otra manera aquello que era visto demasiado
fácilmente, en poner en relación aquello que no lo estaba con el
objetivo de producir rupturas en el tejido de las percepciones. Ese
es el trabajo de la ficción, no la creación de un mundo imaginario
Carola Vesely Avaria / Andrea Jeftanovic Avdaloff

estética del disenso en la poesía chilena para la


María de la Luz Uribe y Charo Cofré: hacia una

opuesto al mundo real, tampoco la copia del mundo real, sino un


trabajo que produce disenso, que socava lo real, lo fractura, lo
multiplica de un modo polémico (Andruetto, 2018, p. 26).

Más adelante se revisará la noción de fantasía como concepto portador de


infancia durante los años setenta

este cometido que Andruetto entiende desde la ficción, en tanto revisaremos


las nociones de subversión y neosubversión, de Alison Lurie (1989) y Laura
Guerrero Guadarrama (2016), respectivamente, como modos de disenso. Por lo
pronto, retomamos la pregunta esbozada anteriormente en torno a la existencia
o no de reflexión política en el campo de la literatura infantil y juvenil (en
adelante LIJ), tomando como referencia el periodo histórico que nos convoca
en este trabajo.

Antecedentes y actualidad del debate

Es necesario en este punto dar cuenta del florecimiento que experimentó


en Chile la producción y crítica de LIJ en torno a la memoria histórica de la
dictadura a partir de 2013, año en que se conmemoraban los 40 años del golpe
de Estado. Previo a ello, el tema permaneció invisibilizado por décadas, tal como
Dossiê

constata la “Carta abierta a la comunidad LIJ chilena”. Difundida profusamente


en redes sociales en septiembre de 2013 bajo la firma de numerosos creadores,
académicos y editores vinculados a este campo, la misiva hace un llamado
de atención “sobre el silencio que estamos teniendo en este momento, sobre
el absurdo lugar en el que nos estamos refugiando para no hablar del golpe”

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(VV.AA, 2013 apud González, 2014, p. 32). Este panorama experimenta un giro
significativo a partir de 2013 con la publicación de obras como Niños (2013),
poemario de María José Ferrada, Un diamante en el fondo de la tierra (2014),
libro álbum de Jairo Buitrago y Daniel Blanco Pantoja, novelas gráficas —
género que cuenta a la fecha con un nutrido corpus sobre temas de memoria
histórica— como El golpe (2014) de Nicolás Cruz y Quique Palomo o Los años
de Allende de Carlos Reyes y Rodrigo Elgueta (2015), así como las novelas La
bicicleta mágica de Sergio Krumm (2013) de Marcelo Guajardo y Matilde (2016)
de Carola Martínez Arroyo, entre otros. La lista se sigue engrosando hoy en día,
en que ya se conmemora medio siglo desde el golpe de Estado que origina el
proceso dictatorial chileno, dando cuenta de importantes avances en materia
de producción de LIJ sobre el tema desde el contexto postdictatorial. Lo anterior
se condice con significativos aportes críticos en la materia, como los trabajos
Carola Vesely Avaria / Andrea Jeftanovic Avdaloff

estética del disenso en la poesía chilena para la


María de la Luz Uribe y Charo Cofré: hacia una

de Macarena García González (2017, 2021), Denise Ocampo (2021) y Bernardita


Muñoz-Chereau (2018),
Estas referencias se instalan en el campo de las posmemorias, concepto
acuñado por Marianne Hirsh (2015, p. 19) para designar “la relación de la
‘generación de después’ con el trauma personal, colectivo y cultural de la
infancia durante los años setenta

generación anterior, es decir, su relación con las experiencias que ‘recuerdan’


a través de los relatos, imágenes y comportamientos en medio de los que
crecieron”. Así, aunque estos avances vienen a saldar progresivamente las
mencionadas cuentas pendientes con la memoria traumática en Chile, resulta
sintomática la ausencia casi total de estudios que se hagan cargo del tema
desde los testigos de primera generación, es decir, que aborden la producción
de literatura para la infancia durante el periodo dictatorial y predictatorial.
Al respecto, cabe mencionar el trabajo realizado por Carola Vesely y Andrea
Jeftanovic (2021) en torno a la poesía para la infancia producida en contexto de
prisión política en la dictadura chilena, aunque fuera de ello el panorama sigue
lleno de silencios.
Interpelado por esa ausencia e instalado en un contexto de especial
significado histórico al conmemorarse el año recién pasado año los 50 años del
golpe militar en Chile, el presente trabajo nace del interés por relevar algunas
Dossiê

voces literarias destinadas a los niños y niñas de los años setenta y ochenta que
se nutren de las posibilidades expresivas de la poesía (en su cruce con el lenguaje
de la música) para dar cuenta de la experiencia traumática de sus contextos de
producción y recepción, correspondientes al contexto dictatorial y a la Unidad
Popular. De este modo, se pretende explorar la dimensión político-estética de

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estas voces mediante un análisis crítico que propone la fantasía creadora como
modo de disenso y subversión de los órdenes establecidos.
Con este propósito, se establece como objeto de estudio el trabajo de
dos autoras chilenas que crearon durante los años setenta una obra poético
musical que proponemos como referente de la creación para niños en el
contexto esbozado: el disco Tolín, tolín, tolán (1972). Compuesto por versos de
la poeta María de la Luz Uribe (1936-1995) musicalizados por la compositora e
intérprete Charo Cofré (1941), esta obra marca un hito en la historia de Chile
a causa del éxito sin precedentes que marcó su aparición y que determinó
su anclaje definitivo en el acervo simbólico de las generaciones que vivieron
su infancia durante los años 70 y 80 en el país. El disco, además, adquiere
especial actualidad por estos días a raíz de su reciente reedición en 2022,
en conmemoración de los 50 años de su publicación original. Esta reedición
Carola Vesely Avaria / Andrea Jeftanovic Avdaloff

estética del disenso en la poesía chilena para la


María de la Luz Uribe y Charo Cofré: hacia una

estuvo a cargo del sello chileno Monophone Records, como parte de su trabajo
de rescate del patrimonio sonoro y musical chileno y se propone como réplica
de la obra original, conservando su formato en vinilo y su trabajo gráfico tan
característico, a cargo del ilustrador Fernando Krahn (1935-2010).
La reciente publicación del disco tiene como antecedente dos trabajos
infancia durante los años setenta

previos de rescate. Por un lado, el proyecto llevado a cabo por el programa


televisivo chileno Tikitiklip (2005), que propone una reinvención del disco
original a partir de nuevas versiones de las canciones a cargo de músicos
nacionales contemporáneos. Este trabajo, encabezado por Alejandra Egaña y
Paz Puga, combina las canciones con animaciones que rescatan motivos de la
artesanía local de Chile en sus diversos territorios, y ha permitido aproximar
la obra de Uribe y Cofré a las generaciones actuales de niños chilenos. Junto
con ello, se cuenta otra reedición del disco que tuvo lugar durante 1979 en
Italia. Publicada en el contexto de exilio de ambas autoras producto de la
dictadura militar (por ese entonces Cofré se encontraba en Italia y Uribe en
Barcelona), esta nueva aparición confiere al disco nuevas significaciones, en
su afán de interpelar a los niños y niñas chilenos también desterrados, tal
como lo consigna Soledad Bianchi (1981, p. 210) “Ahora, desde el destierro, [las
autoras] repiten la experiencia volviendo a dirigirse con las mismas canciones
Dossiê

a la infancia chilena que vive hoy lejos de su país. Como Charo lo expresa, ella
quisiera hacer recordar a estos niños un tiempo (y, a veces, un idioma) que han
quedado lejos”.
Al constituirse como parte fundamental de los imaginarios simbólicos
transmitidos no solo a quienes vivieron su infancia bajo el contexto de la

Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.034-058, jul-dez. 2023 } 41


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dictadura, sino también a los niños y niñas del exilio durante los años 80, así
como a las infancias actuales por medio de los trabajos de rescate surgidos en
los últimos años, el disco Tolín, tolín, tolán reclama la urgencia de desarrollar
un trabajo investigativo en línea con la relevancia y actualidad que reviste.
Los diez poemas cantados compilados en este álbum proponen interesantes
trayectorias de la escritura poética destinada a los niños y niñas, todas ellas
portadoras de concepciones de infancia que reivindican su carácter político.
Este cometido se realiza, tal como se verá a lo largo de este trabajo, apelando
a la fantasía, a la articulación de universos metafóricos que se posicionan
ideológicamente frente a las tensiones sociales y políticas de su contexto de
producción, así como al empleo de recursos estéticos que merodean en el
ámbito del absurdo y la subversión de las jerarquías y órdenes convencionales.
Carola Vesely Avaria / Andrea Jeftanovic Avdaloff

estética del disenso en la poesía chilena para la


María de la Luz Uribe y Charo Cofré: hacia una

Fantasía y subversiones: poemas cantados para niños despiertos

El disco Tolín, tolín, tolán fue publicado en Chile en 1972 bajo el sello IRT
y se compone por diez canciones de María de la Luz Uribe y Charo Cofré.
Su aparición marca un hito en la historia de la cultura chilena, al proponer
infancia durante los años setenta

una perspectiva renovadora en relación a los modos en que se interpela a las


infancias, legitimando a sus receptores y receptoras como sujetos inteligentes,
activos y merecedores de propuestas de alta calidad estética y crítica. Junto
con ello, el carácter de hito de esta producción está dado por la inusitada
repercusión que esta tuvo en la audiencia al momento de su aparición, en
tiempos convulsionados a nivel global y local, con una densa cortina de hierro
dividiendo el mundo y con la amenaza latente del quiebre de la democracia
en Chile. Así lo constata Juan Pablo Bastidas, uno de los fundadores del sello
Monophone Records, a cargo de la reciente reedición del disco en 2022:

Este disco en su momento fue un súper ventas. Nosotros


conversamos con Charo Cofré hace muy poquito y ella nos
comentaba que nunca se esperaron ese éxito de ventas. […] El
disco fue publicado en 1972, tuvo un impacto mediático muy
grande, fue muy popular, marcó a toda una generación dentro de
Dossiê

la cual me incluyo (Ritoque FM, 2022)4.

El disco está planteado como un trabajo coral en el que confluye el genio


de grandes artistas chilenos de reconocida trayectoria al momento de su

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publicación: Charo Cofré, María de la Luz Uribe y Fernando Krahn. Esta tríada
imprime la forma definitiva a un producto cultural de rasgos multimodales, dado
el cruce que establece entre diversos lenguajes expresivos como son la poesía,
la música y la visualidad. Así, al diálogo entre la dimensión lírica y musical
establecido por el trabajo de Uribe y Cofré, respectivamente, se suma el trabajo
visual realizado por Fernando Krahn, quien logró enfatizar el carácter único de
esta obra por medio de la creación de una significativa portada [Anexo. Fig. 1]
y de diez tarjetones ilustrados que llevan impresas las letras de cada una de las
canciones del álbum [Anexo. Fig. 2]. La ilustración de la carátula se propone
como una llamativa puerta de entrada al mundo ficcional de la obra, a través de
la presencia de un numeroso grupo de niños y niñas montados sobre el lomo de
un enorme animal de fantasía que mira directo a los ojos del espectador, como
invitándole a la aventura. El intenso colorido de la portada del disco contrasta
Carola Vesely Avaria / Andrea Jeftanovic Avdaloff

estética del disenso en la poesía chilena para la


María de la Luz Uribe y Charo Cofré: hacia una

con el blanco y negro de los diez grabados que componen el folleto con las letras
de las canciones. Esta también es una invitación: a cantar, a imaginar e incluso
a colorear mientras emprendemos viaje a bordo del animal extraordinario, todo
lo cual confluye en una apuesta clara hacia el protagonismo infantil, por medio
de recursos que reclaman la interacción y participación activa de los receptores
infancia durante los años setenta

dentro el mundo fantástico que se despliega ante sus ojos y oídos.


“Tolín, tolín, tolán”, “El rey de papel”, “El tonto Perico”, “Viaje a Concepción”,
“Arrurú”, “El soldado Trifaldón”, “La señorita aseñorada”, “Los gorrioncitos”,
“Barco en el puerto” y “Don Crispín” son los títulos que componen la obra en
su conjunto. Todas ellas historias versificadas que merodean los territorios de
la imaginación y el humor por medio de un uso lúdico e inteligente del lenguaje
que abunda en juegos sonoros, imágenes disparatadas, personajes de fantasía
y asociaciones que se articulan en múltiples direcciones. La contraportada del
disco contiene el siguiente texto de presentación:

Este es un disco para niños y viene a llenar un vacío en nuestra


canción folclórica y nuestra literatura infantil. Si los niños no
cantan y no experimentan el sabor y color de la música nuestra,
difícilmente podrán apreciarla más tarde. Las canciones de gran
musicalidad están hechas con cariño. Mezclan la ternura con la
Dossiê

fantasía y cada una es un cuento en que los hechos mínimos y


cotidianos de la vida están transportados a un plano de aventura.
Y esa es la realidad de los niños (Uribe; Cofré, 1972).

La idea de poner el acento en la construcción de imaginarios pasados por el

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prisma de la fantasía constituye un aspecto clave de los estudios sobre memoria


en su vínculo con la literatura y la infancia. En este sentido, nos proponemos
avanzar en la ruta trazada por Rossana Nofal (2006) en sus reflexiones sobre
infancia y violencia política en la LIJ, quien asume la ficción, y en concreto
la fantasía, desde su potencialidad para referir el horror, ejerciendo a una
transgresión de lo real que permitirá reelaborar las memorias desde la vereda
de la creación literaria, lo que complejiza y expande su alcance en relación, por
ejemplo, con el testimonio:

La experiencia del horror es intransferible a los chicos sin


un discurso velado. La fantasía y su acción violentamente
transgresiva introducen una diferencia crucial en la inscripción
de las memorias testimoniales de la represión, muchas de las
Carola Vesely Avaria / Andrea Jeftanovic Avdaloff

estética del disenso en la poesía chilena para la

cuales apelan al regodeo en el desastre y en la sinrazón como tono


María de la Luz Uribe y Charo Cofré: hacia una

narrativo. […] Frente a la posibilidad de textualizar los escenarios


de la tortura y la represión clandestina, propongo una apuesta a
la ficción para pensar otro orden de cosas. (Nofal, 2006, p.127).

En su apuesta de apelar a formas no representativas para transmitir la


infancia durante los años setenta

experiencia traumática, Nofal (2006, p. 117) propone la elaboración de mundos


otros que a su vez hagan confluir múltiples memorias, verdades, presencias y
ausencias. Esta perspectiva sobre la fantasía se presenta asociada a un rechazo
rotundo “a las definiciones hegemónicas de lo real o lo posible”, idea que se
vincula estrechamente con el concepto de subversión en la LIJ desarrollado
por Alison Lurie. Esta noción apunta a un tipo de literatura desobediente que
ha estado siempre presente en la historia de la LIJ, desafiando convenciones,
replanteando los órdenes imperantes y rompiendo cánones. Para la autora,
“debemos considerar la literatura infantil desde una óptica más seria por la
faceta subversiva que contiene: porque sus valores no son los tradicionalmente
convencionales del mundo de los adultos.” (Lurie, 1989, p. 13) De este modo,
las obras subversivas de la LIJ serían aquellas que invitan a poner del revés las
construcciones valóricas del mundo adulto, tomando una distancia de sus
construcciones sociales y proponiendo modos otros de mirar el mundo dado
Dossiê

por medio de la fantasía:

Estos libros, y otros como ellos, recomendados e inclusive famosos,


nos transportan a la ensoñación, nos llevan a la desobediencia, a
contestar, a escaparnos de casa y a guardar nuestros sentimientos

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más íntimos, ocultándolos a los mayores que no nos comprenden.


Ponen del revés todos los valores de los adultos, burlándose de
sus instituciones, como la familia y la escuela. En pocas palabras,
podemos decir que son subversivos, al igual que las rimas, burlas
y juegos que yo he aprendido en los patios de recreo (Lurie, 1989,
p. 12).

En diálogo con estas nociones de subversión, Laura Guerrero Guadarrama


(2016) retoma las propuestas de Lurie para dar un paso más al acuñar el
concepto de neosubversiones en la LIJ contemporánea. Esta noción, anclada en
los paradigmas de la posmodernidad, consistiría en “trastornar lo trastornado,
[en] ir más allá del ejercicio desestabilizador y cuestionador, más allá de lo
permitido en la modernidad” (Guerrero Guadarrama, 2016, p. 110). Para la
Carola Vesely Avaria / Andrea Jeftanovic Avdaloff

estética del disenso en la poesía chilena para la

autora, el
María de la Luz Uribe y Charo Cofré: hacia una

[…] aspecto subversivo en la postmodernidad ha sido resignificado,


como lo han sido los cuentos de hadas; la subversión afecta a
la misma subversión; es así como podemos hablar de una neo-
subversión que cuestiona también lo cuestionado, que no admite
infancia durante los años setenta

el regreso a la normalidad de los personajes rebeldes, que maneja


valores no convencionales y una visión de mundo que se burla de
los presupuestos comunes (Guerrero Guadarrama, 2008, p. 42).

En esta línea, Guerrero enfatiza la transformación de un paradigma en que


los personajes desobedientes de la LIJ subversiva, en conflicto con la autoridad,
irreverentes y pícaros, finalmente siempre volverán al status quo, abandonando
el sueño y la fantasía para regresar a sus roles tradicionales. No ocurriría lo mismo
en el contexto de las neosubversiones. Al respecto, la autora traza una serie de
rasgos posmodernos en la LIJ, en el contexto de la sociedad postindustrial y la
crisis de los metarrelatos, entre las que se cuentan la irrupción de la noción
de otredad (donde a menudo se presenta el adulto como el otro desde una
perspectiva infantil), la literatura antiautoritaria, el humor (especialmente el
sinsentido), la ironía y la contradicción y la presencia de relatos metaficcionales.
Dossiê

Del mismo modo, la autora destaca la tendencia a un regreso al pasado de


forma resignificada, planteando que “se retoman estrategias, temáticas,
formatos, temáticas anteriores, como los cuentos de hadas y leyendas; se
crean, reconstruyen o se fijan en una búsqueda de la memoria histórica común”
(Guerrero Guadarrama, 2008, p. 41), la interacción de diversos lenguajes, que

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podemos entender desde la noción de multimodalidad, la intertextualidad,


la interrelación entre realidad y ficción, siempre privilegiando la fantasía, la
presencia de géneros literarios subvertidos, la polifonía textual, la presencia
de estrategias lúdicas y subversivas para reposicionar el mundo de la infancia,
la reivindicación de la imaginación y la fantasía en oposición al mundo adulto
y un cuestionamiento de la jerarquía por medio del humor, lo carnavalesco y la
ironía, entre otros recursos.
A la hora de revisar el corpus seleccionado para este trabajo, veremos
cómo cobra presencia parte importante de los rasgos subversivos de Lurie y
neosubversivos delineados por Guerrero.

María de la Luz Uribe y Charo Cofré: voces que salen del silencio
Carola Vesely Avaria / Andrea Jeftanovic Avdaloff

estética del disenso en la poesía chilena para la


María de la Luz Uribe y Charo Cofré: hacia una

La poeta María de la Luz Uribe y la cantautora Charo Cofré desarrollaron


una labor que se encuentra en plena proliferación a principios de los años 70
y que cambia de trayectoria producto del exilio de ambas a partir del golpe de
Estado de 1973. Este proceso está marcado poderosamente por la publicación
del disco Tolín, tolín, tolán, que cobra el carácter de hito en la carrera de ambas
infancia durante los años setenta

creadoras al instalarse como referente fundamental del cancionero que marcó


las infancias de los años 70 y 80 en Chile.
María de la Luz Uribe destaca por una amplia trayectoria orientada a la
creación literaria para niños (y una más desconocida dirigida al público adulto),
que tiene sus orígenes con anterioridad al golpe de Estado y que continuó
desarrollándose hasta el final de sus días. Poeta, ensayista, dramaturga y
docente, parte importante de su obra para niños fue realizada en conjunto
con Fernando Krahn, compañero de vida de Uribe que cuenta a su vez con una
destacada carrera en el campo de la ilustración y la LIJ. Esta dupla creativa tiene
a su haber una prolífica producción que supera la treintena de publicaciones,
entre las cuales destaca Cuenta que te cuento (1979), que reproduce en formato
escrito parte de los poemas cantados de Tolín, tolín, tolán y que fue reeditada
en 2010 como el primer libro de la editorial Libros de la Mora Encantada
(Candeleda, España). Dentro de la extensa obra de la poeta chilena destaca, a
Dossiê

su vez, Doña Piñones (1973), publicada por la colección Cuncuna de Editorial


Quimantú, sello editorial de la Unidad Popular que instala el compromiso
entre el gobierno de Salvador Allende y la democratización de la cultura. La
colección Cuncuna marca un antes y un después en la historia de la LIJ chilena,
al impulsar la publicación de propuestas literarias renovadoras, de bajo costo

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y de alta calidad dirigidas al público infantil, como esta obra de Uribe, en un


proyecto que fue interrumpido abruptamente por el golpe de Estado de Augusto
Pinochet. En este contexto, es necesario mencionar y celebrar la reciente
reedición en 2022 de cinco títulos de Cuncuna, que vienen a romper un silencio
de medio siglo gracias al trabajo editorial e investigativo de Claudio Aguilera e
Isabel Molina, en conmemoración de los 50 años desde la primera publicación
de esta colección.
En cuanto a Fernando Krahn, conocidas son sus colaboraciones durante la
década del sesenta en medios estadounidenses como The New Yorker y The
Reporter (entre otros), así como en la chilena Revista Ercilla en años posteriores.
Tras el golpe de Estado en Chile parte al exilio y se radica definitivamente en
Barcelona, desde donde continuaría publicando en diversos medios europeos,
entre los cuales destaca su labor como colaborador permanente en el periódico
Carola Vesely Avaria / Andrea Jeftanovic Avdaloff

estética del disenso en la poesía chilena para la


María de la Luz Uribe y Charo Cofré: hacia una

español La Vanguardia. Dentro de la extensa obra que Uribe y Krahn destinaron


a las infancias destaca el poemario ilustrado Cuenta que te cuento (1979), parte
de cuyos textos e ilustraciones ya formaban parte del álbum Tolín, tolín, tolán,
así como Cosas y Cositas (1987) y El viaje (1995), entre muchas otras.
Por su parte, María Rosario Cofré constituye una figura reconocida como
infancia durante los años setenta

referente del canto con sentido, aquel camino trazado por Víctor Jara que se
despliega de manera floreciente durante la Unidad Popular y que consistiría en
una

[…] toma [de] conciencia de las posibilidades que involucra


hacer música, lo cual, mezclado con un compromiso social y una
militancia política, es un canto con sentido, con dirección; su
labor no es comercial sino social, tiene algo que decir y por lo
que cantar. La experiencia de la Unidad Popular demuestra que
la música une y consolida lazos dentro de una sociedad, en esos
años la experiencia estética de la música se hizo colectiva y sus
letras son la voz para muchos (Carrasco, 2022, p. 504).

Como compositora e intérprete representante de la Nueva Canción Chilena,


movimiento musical a través del cual “se intenta establecer un vínculo entre
Dossiê

música y política, abordar el tema de la militancia en los años sesenta y


setenta, las discusiones artísticas junto a la concepción de cultura y el rol que
esta juega en el contexto mundial” (Carrasco, 2022, p. 492), la obra creativa de
Cofré se enriquece a partir de un trabajo de recuperación de fuentes orales y

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musicales del patrimonio cultural chileno iniciado en los años 60, en una labor
transversalmente comprendida como continuadora de la forjada por Violeta
Parra.
A partir de la publicación de su primer álbum de estudio, titulado Charo Cofré
y lanzado en 1971 bajo el sello discográfico Peña de los Parra (a cargo de los
hijos de Violeta Parra, Isabel y Ángel), Cofré desarrolla una nutrida obra musical
destinada tanto al público adulto como al infantil, la que hoy forma parte clave
de la memoria colectiva del país. Uno de sus trabajos más reconocidos para las
infancias es, precisamente, Tolín, tolín, tolán.
A causa del golpe militar, Cofré se exilia en Italia junto a su marido Hugo
Arévalo, folclorista y realizador audiovisual con quien forja además una
prolífica pareja creativa que se materializa en varias obras, entre las que se
destaca la publicación del álbum Solo digo compañeros (1975). En Italia la autora
Carola Vesely Avaria / Andrea Jeftanovic Avdaloff

estética del disenso en la poesía chilena para la


María de la Luz Uribe y Charo Cofré: hacia una

continúa desarrollando una obra ahora marcada por las nuevas circunstancias
políticas y biográficas, lo que acentuará su aproximación a las raíces a partir
de la experiencia del destierro. Tras varios discos dirigidos al público adulto,
en 1985 publica ¿En dónde tejemos la ronda? con poemas musicalizados de
Gabriela Mistral.
infancia durante los años setenta

Subversiones y juego sonoro

Para efectos de este trabajo tomamos como base un poema cantado


perteneciente al disco Tolín, tolín, tolán, cuya lectura se complementará con
otras piezas del mismo álbum. Titulado “El soldado Trifaldón”, este poema
cobra especial sentido atendiendo a sus contextos de producción y recepción,
al proponer un relato en verso protagonizado por un militar. Las construcciones
simbólicas que impregnan los discursos críticos de la segunda mitad del siglo
XX en el mundo están marcadas por un rechazo generalizado a todo imaginario
bélico, en respuesta a las agitadas circunstancias sociopolíticas gatilladas
por la guerra de Vietnam, la persistencia de la Guerra Fría y las dictaduras
latinoamericanas.
Ante este escenario, resulta apropiado interrogarse sobre la presencia del
Dossiê

soldado Trifaldón como protagonista de este poema homónimo que versifica


las aventuras de un ejército muy particular en su enfrentamiento, armas en
mano, con el batallón enemigo. Introducida por un redoble de tambores que
reproduce el espíritu heroico de una marcha militar, el compás binario de la
composición marca una cadencia que se corresponde con la versificación del

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poema, planteado en un metro clásico. En este caso, todos los versos rimados
finalizan con el mismo sufijo, incorporando así la aliteración del sonido -ón
para marcar un ritmo constante y repetitivo a partir de signos magnificados que
subrayan el carácter hiperbólico de la épica militar. Esto se ve reforzado por la
incorporación del recurso onomatopéyico presente en el verso “porom pom pom
/ el soldado Trifaldón”, que se alitera al final de cada estrofa, evidenciando a su
vez el carácter lúdico de una composición que invita al juego como elemento
primordial.
El uso de onomatopeyas, interjecciones y otros recursos sonoros tiene una
presencia crucial en la totalidad de la obra de Uribe y Cofré. El propio título del
álbum (Tolín, tolín, tolán), que corresponde al primer poema del conjunto, da
cuenta de ello. Esta pieza versifica la historia de una pequeña niña que se va de
paseo y decide quitarse los zapatos para transitar descalza, momento en el cual
Carola Vesely Avaria / Andrea Jeftanovic Avdaloff

estética del disenso en la poesía chilena para la


María de la Luz Uribe y Charo Cofré: hacia una

los zapatos cobran vida y comienzan a caminar, para luego correr escapando
de la niña que intenta atraparlos, sin éxito. El poema “Tolín, tolín, tolán” está
lleno de sonoros neologismos que se van aliterando en cada verso, como se
puede ver a continuación: “Una niñita chiquitita tolita molita / salió de paseo
un día tolín tolín tolán. / Se saca los zapatitos tolitos molitos / y va con los
infancia durante los años setenta

pies desnudos tolín tolín tolán”. En lo sucesivo, se repetirá este mismo recurso
al final de cada verso (“tolito molito” y “tolín tolín tolán”), dando forma a un
texto lúdico que invierte las jerarquías, por cuanto “los zapatos se sublevan
frente a su dueña” (Bianchi, 1981, p. 210), frustrando así las expectativas de
un paseo que finalmente es experimentado por ellos y no por la protagonista.
En línea con esta subversión, el texto utiliza el recurso de la jitanjáfora,
elemento identificado por Guerrero Guadarrama como parte de los atributos
neosubversivos de la LIJ, articulada a partir de vocablos carentes de sentido
aparente aunque de alto valor estético y poder evocador en base a su sonoridad.
Tomando como referencia los trabajos de Alfonso Reyes en torno a la
jitanjáfora, Guerrero Guadarrama subraya la presencia del absurdo como
influencia clave en esta forma poética y enfatiza el carácter emancipatorio de
esta forma poética en el campo de la LIJ tradicional y contemporánea, atendiendo
a “su rebeldía implícita, la crítica al mundo adulto, patriarcal, burgués y bélico
Dossiê

que conduce a la duda, al cuestionamiento de los valores sociales y artísticos”


(Guerrero Guadarrama, 2016, p. 66). Mediante el uso de este recurso, pues, el
poema cantado “Tolín, tolín, tolán” otorga a la dimensión sonora del lenguaje
poético un valor significativo proponiéndose, de este modo, como muestra del
carácter subversivo de la obra de Uribe y Cofré.

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Algo similar ocurre en el poema “Don Crispín”, elaborado a partir de juegos


sonoros que articulan la narración de las aventuras del personaje homónimo:
“Don Crispín es bailarín / cantarín y saltarín / flaco como un tallarín / y usa un
pelu peluquín”. La aliteración del sonido “ín” en prácticamente todas las palabras
que componen el poema imprime un carácter lúdico, al tiempo que remite a
un universo poético de lo leve y diminuto, en contraste la grandilocuencia
de Trifaldón. Asistimos en esta canción a un universo chispeante que se
encuentra atiborrado de imágenes de alto alcance poético. Don Crispín abre
su maletín y extrae de él, cual sombrero de mago, un calcetín, aserrín y un
peluquín, materiales con los cuales el personaje construye un muñequín que
luego cobrará vida, para transformarse en el mágico compañero de juegos de
Crispín en su paseo por “la plaza del Pin pin”. La canción abunda en recursos
onomatopéyicos, como los del violín que hace rin tin tin mientras el personaje
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estética del disenso en la poesía chilena para la


María de la Luz Uribe y Charo Cofré: hacia una

y su muñeco suben y bajan en el balancín, en tanto se articula una serie de


elementos fantásticos, que tienen su remate en el vuelo que emprenden los
personajes asidos a un volantín.

Una espada de chocolate: las posibilidades de la fantasía


infancia durante los años setenta

“El soldado Trifaldón / vive dentro de un melón / las pepitas amarillas /


forman firme el batallón”. Así se nos presenta al protagonista de “El soldado
Trifaldón”, cuyas huestes se enfrentarán a un “ejército de hormigas / en
correcta formación”. Esta introducción llama a la reflexión sobre la presencia
de dos elementos poderosamente cargados de significado en el contexto de
producción de la obra: para caracterizar a los bandos enemigos de esta historia
se escogen el color amarillo (de las pepitas de Trifaldón) y las hormigas (que
componen el ejército antagonista). Al respecto, resulta pertinente atender a
la connotación tradicionalmente asociada al color amarillo en el campo del
debate político en Chile:

El origen del amarillismo está vinculado a las luchas sindicales.


El ‘amarillo’ era aquel que se desmarcaba de sus compañeros y,
Dossiê

por ejemplo, se oponía a la huelga acordada por el sindicato; ser


amarillo es ser apatronado. Se emparenta con la traición, con
la deslealtad de clase. […] Por ello, desde “lo rojo” se trata de
‘amarillos’ a los que no adhieren a la causa o son desertores de
ella. (Montealegre, 2022).

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En el poema comentado, pues, el ejército de Trifaldón tiene como atributo el


color amarillo de sus huestes que, leídas desde las acepciones discursivas de los
años 70 chilenos, se representarían de manera crítica como parte de los grupos
ideológicos contrarios a la Unidad Popular liderada por Salvador Allende. En
contraposición a ello, el bando enemigo está representado por un ejército de
hormigas, insectos sociales reconocidos por su sorprendente capacidad de
articularse en comunidades altamente organizadas y jerarquizadas. En este
sentido, la figura de las hormigas adquiere gran carga semántica en el contexto
de producción de la obra, como metáfora de los grupos obreros que lideraban
los procesos de transformación social encabezados por Salvador Allende. “¿De
qué le sirve al humano / detenerse en las estrellas / cuando vemos que de pobres
/ está sembrada la tierra? // Declaro con humildad: / yo soy la hormiga vecina
/ que contemplaba las rosas / separando las espinas” (Parra, 1972), reza una
Carola Vesely Avaria / Andrea Jeftanovic Avdaloff

estética del disenso en la poesía chilena para la


María de la Luz Uribe y Charo Cofré: hacia una

canción que la cantautora Isabel Parra, hija de Violeta, publicó como sencillo
el mismo año en que vio la luz Tolín, tolín, tolán, esbozando de manera clara la
vinculación cultural entre las hormigas y las clases populares con sus demandas
de justicia social.
Esta disparatada historia en verso insiste en la dislocación, contradicciones e
infancia durante los años setenta

inversiones de sentido al instalar al soldado Trifaldón como líder de un ejército


que se representa armado con una espada y una escopeta muy particulares: “Su
espada es de chocolate / su escopeta es de turrón / de caluga es el sombrero
/ del soldado Trifaldón”. Pese a la dulzura que reviste esta configuración
poética del personaje, resulta provocador el giro que se produce cuando tal
dulzor se transforma en detonante del conflicto central de la historia, dando
cuenta otra vez de las subversiones del sentido. De este modo, el ejército de
hormigas intercepta súbitamente a las tropas de Trifaldón, encabezado por “un
capitán gruñón” que se dirige a su par enemigo: “’Deme todo lo que sea / dulce,
agridulce o dulzón’, / dice la hormiga furiosa / al soldado Trifaldón.” La ira de
la hormiga se expresa mediante el descabellado gesto de exigir el enemigo la
entrega de todas sus posesiones dulces, en el marco de un universo disparatado
que permite considerar esta ocurrencia como algo plenamente normal. Algo
similar ocurre cuando “Trifaldón mira su espada / su escopeta, el batallón” y
Dossiê

solo entonces repara en que “todo es dulce lo que lleva”, por lo que emplaza
al capitán enemigo -con la grandilocuencia acostumbrada-, enrostrándole que
se encuentra ante “el gran regimiento / del soldado Trifaldón”. Así, le ordena
que se detenga “pero el capitán hormiga / sin más le da un coscorrón / y cae de
espalda al suelo / el soldado Trifaldón.”

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La imposición de la fuerza y la conducta irreflexiva de la hormiga capitana


contrasta con el temple de Trifaldón, que ha optado por el diálogo a la vez
que maneja códigos de honor inconcebibles para el enemigo. Sin embargo,
resulta interesante la evolución que experimenta el personaje a continuación
pues, tras caer al suelo derrotado, al instante se levanta en un gesto heroico,
desenvainando su espada y provocando “[…] un gran chichón / a la hormiga
capitana”. Tamaña gesta en respuesta a la violencia de la hormiga provoca
carcajadas en las pepitas del soldado Trifaldón, cuya figura se engrandece a
partir de la atmósfera épica que logran configurar los versos y de la utilización
de expresiones como el epíteto “valiente como un león”.
Los cambios de trayectoria en la conducta de Trifaldón no se detienen
ahí. Alejado de toda configuración arquetípica, luego de plantearse como un
líder democrático que se ve obligado a usar la fuerza como gesto defensivo,
Carola Vesely Avaria / Andrea Jeftanovic Avdaloff

estética del disenso en la poesía chilena para la


María de la Luz Uribe y Charo Cofré: hacia una

los versos siguientes dan luces sobre un atributo que añadirá complejidad al
poema. Las pepitas ríen a carcajadas celebrando la estocada de su líder, “pero
Trifaldón las calla / viendo que un gran lagrimón / está llorando la hormiga. /
Y el soldado Trifaldón / se acerca, toma a la hormiga / y luego le pide perdón”.
Este inesperado gesto subvierte las lógicas de una historia planteada desde
infancia durante los años setenta

el hasta las últimas consecuencias por defender sus intereses, al tiempo que
adquiere interesantes significaciones a la luz de su contexto de producción.
Tanto durante el gobierno de Allende como en años previos, los grupos de
izquierda chilenos se habían puesto como uno de sus objetivos estratégicos
conseguir el apoyo de sectores de las FF.AA para concretar el proyecto
revolucionario, acompañadas por un discurso legitimador del carácter
democrático y constitucionalista de las FF.AA chilenas. En tal contexto,
el soldado que pide perdón en el poema cantado de Uribe y Cofré adquiere
especial sentido al leerse a la luz del convulsionado contexto sociopolítico
del Chile predictatorial, apuntando a un de discurso de paz y alianza entre los
grupos militares y civiles. Algo similar es posible de vislumbrar en otra de las
canciones del álbum, titulada “El rey de papel”. “Una tarde de paseo me tropecé
con un rey / magnífico y elegante / pero todo de papel”, escribe María de la Luz
Uribe para dar la bienvenida a una historia en verso que se articula a partir de
Dossiê

los imaginarios clásicos de los cuentos de hadas, estableciendo así conexiones


con una de las estrategias subversivas apuntadas por Guerrero, en relación
a la recuperación de la memoria, en este caso a partir de una relectura de la
tradición de los cuentos de hadas.
En esta canción tenemos como protagonista a una niña que, en línea con

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las claves de la fantasía, tropieza en su camino con un rey que le regalará su


corona y la llevará, a lomo de una jirafa, a recorrer su majestuoso reino. La
particularidad del relato está dada por la fragilidad de esta atmósfera mágica,
donde todos los objetos y personajes que la componen son de papel. Al llegar
al palacio, “lleno de torres, campanas y princesas papel”, la niña se alarma al
ver a las diez hijas de este rey “tirando un largo cordel” para cerrar todas las
puertas y ventanas. Entonces la protagonista se dirige al rey, quien la alerta
sobre la terrible amenaza que asola al reino: “¿Por qué tanto cerrar puertas?
Le pregunté a mi buen rey. / Ay hija mía, me dijo, somos todos de papel. / Si
alguien quiere nos arruga, nos pueden hasta romper / o tirarnos o quemarnos
porque somos de papel”.
Si nos situamos en el contexto de producción del poema, sorprende la
delicadeza y precisión con que la metáfora del papel indica la fragilidad de un
Carola Vesely Avaria / Andrea Jeftanovic Avdaloff

estética del disenso en la poesía chilena para la


María de la Luz Uribe y Charo Cofré: hacia una

reino —de un país— que meses más tarde se transformaría en cenizas producto
del bombardeo al Palacio de La Moneda. Junto con ello, resulta revelador el
giro que adopta la historia hacia el final, pues la niña, la única presencia que
no es de papel en este universo precario, toma la iniciativa y decide defender
el reino echando mano a una idea tan disparatada como poética: “Entonces
infancia durante los años setenta

deme, le dije, deme rápido un pincel. / Tal vez yo pueda salvar a este reino de
papel. […] el rey me dio su espalda y escribí un gran cartel: / “Prohibido no se
rompa porque todo es de papel”.” Este gesto permite identificar la asunción
de un rol protagónico y agencial de la niña en medio de la crisis que asola a su
entorno, dando cuenta de una evidente subversión de los órdenes establecidos,
al apostar por el protagonismo infantil y reivindicar la condición de sujetos
históricos de los niños y niñas en los procesos sociales (Castillo; González,
2015; Gaitán, 2006).

Subversiones y neosubversiones: acerca de los finales felices

Tanto “El soldado Trifaldón” como “El rey de papel” abundan en elementos
que dan cuenta de su faceta subversiva en relación con los imaginarios que
articulan. Metáforas disparatadas, inversiones de sentidos y jerarquías, así
Dossiê

como numerosas alusiones metafóricas a los discursos políticos de la época


llenan en el tejido de estos poemas cantados, lo que responde a varios rasgos de
la LIJ neosubversiva según las conceptualizaciones de Guerrero Guadarrama,
como el antiautoritarismo, la ironía y la contradicción. Sin embargo, en el caso
de Trifaldón, el gesto del perdón a la hormiga capitana por parte del militar

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parece tensionar los paradigmas estrictamente subversivos. La misma Alison


Lurie repara en que muchas obras de la LIJ que se presentan como literatura
subversiva optan finalmente por finales felices que regresan la historia al
status quo, al resguardo de los principios del mundo adulto, por medio de la
transformación de los malos en buenos. En este tipo de obras,

[…] impera la idea de que el mundo de la infancia es más simple


y natural que el de los adultos y que los niños aunque puedan
tener defectos son, en general, buenos o pueden llegar a serlo. […]
[Así,] hay ocasiones en que incluso el tirano irascible o el chivato
mentiroso llegan a reformarse y obtener perdón (Lurie, 1989, 15).

Esto es lo que ocurre entre Trifaldón y la hormiga, en un giro que Guerrero


Carola Vesely Avaria / Andrea Jeftanovic Avdaloff

Guadarrama cuestiona al proponer que “en la neosubversión no hay regreso,


estética del disenso en la poesía chilena para la
María de la Luz Uribe y Charo Cofré: hacia una

no se trata de forzar un final feliz incoherente con la trama, por lo general se


ofrecen alternativas nuevas o finales abiertos” (Guerrero Guadarrama, 2016, p.
14).
El final feliz del poema de Trifaldón invita, pues, a problematizar su condición
infancia durante los años setenta

subversiva en este sentido, alertando sobre el regreso de la historia a los


órdenes convencionales de mundo. En contraste, el final de “El rey de papel” se
presenta abierto. La amenaza está latente y la niña decide tomar acción, pero –
al menos en el mundo ficcional– no sabemos qué ocurrirá. Lo anterior, sumado
a otros aspectos, como la configuración de un rey que asume su vulnerabilidad o
como la atribución de un rol protagónico a la infancia, aproximarían con mayor
precisión este segundo poema a las propuestas neosubversivas delineadas a
partir de Guerrero Guadarrama.

El despertar de la memoria: reflexiones finales

A la luz de las lecturas realizadas en este estudio, es posible identificar la


dimensión política de la obra poético musical de María de la Luz Uribe y Charo
Cofré, instalada en medio de las tensiones que asolan el Chile de los setenta y
que desembocan en el golpe militar de 1973 y la larga dictadura que lo sucedió.
Dossiê

Desde este lugar de enunciación las autoras articulan una propuesta estética
desafiante que se constituye como un caso excepcional en la historia de la LIJ
chilena, ofreciendo a los niños y niñas de los años 70 y 80 en Chile un producto
cultural que opera desde la lógica del disenso e instala la fantasía, la paradoja,

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la ternura, el juego, el absurdo y la imaginación al centro de su quehacer. En


lugar de recurrir a estrategias evasivas en pos de una mal entendida protección
a la infancia, el trabajo de estas autoras asume el imperativo de propiciar el
pensamiento crítico y la experiencia estética por medio de una LIJ de rasgos
subversivos, que opera como agente de liberación y transformación.
A modo de reflexión final, resulta necesario reparar en la actualidad de la que
dan cuenta estos poemas cantados en el contexto de un Chile contemporáneo
marcado por las repercusiones políticas y sociales del estallido social de 2019,
cristalizadas en la puesta en marcha de dos procesos constituyentes fallidos,
que han terminado situando al país en un escenario de polarizaciones, pérdida
de sentidos y de un progresivo avance de idearios conservadores, pese al
carácter revolucionario, participativo y democrático del primer proceso
constituyente. Este nuevo contexto resignifica y revaloriza en gran medida los
Carola Vesely Avaria / Andrea Jeftanovic Avdaloff

estética del disenso en la poesía chilena para la


María de la Luz Uribe y Charo Cofré: hacia una

estudios aquí proyectados. Indagar en torno a las poéticas de la memoria del


Chile predictatorial desde la perspectiva de las creaciones literarias dirigidas
a la infancia, adolescencia y juventud se vuelve hoy un propósito de suma
actualidad para vislumbrar la reproducción de las fracturas del pasado y
proyectar escenarios futuros. Valga este trabajo, pues, como un pequeño aporte
infancia durante los años setenta

hacia la reflexión en torno a las poéticas de la memoria en Chile desde una


perspectiva que favorezca la elaboración de las memorias del futuro a partir
de una conciencia que incorpore y legitime la multiplicidad de voces que
componen el tejido social, con especial énfasis en las infancias como agentes
participativos y protagónicos.

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Notas
1
Este trabajo se enmarca en el proyecto de investigación postdoctoral titulado ‘Abramos
todas las jaulas para que vuelen como pájaros’: versos y cantos para niños durante la
dictadura chilena, desarrollado en el Departamento de Lingüística y Literatura de la
Universidad de Santiago de Chile con el patrocinio de la Vicerrectoría de Investigación,
Desarrollo e Innovación. Universidad de Santiago de Chile, USACH. Proyecto POSTDOC_
DICYT. Código 031951JA_POSDOC, Vicerrectoría de Investigación, Desarrollo e
Innovación.
2
Dra. Carola Vesely Avaria / Universidad de Santiago de Chile / [email protected] /
https://orcid.org/0000-0002-6134-4566.
Dossiê

3
Dra. Andrea Jeftanovic Avdaloff / Universidad de Santiago de Chile / andrea.jeftanovic@
usach.cl / Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3655-1667.
Entrevista sobre la reedición del disco Tolín, tolín, tolán.
4

Recebido em 16/10/2023 - Aprovado em 01/02/2024


Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.034-058, jul-dez. 2023 } 58
DOI: 10.5433/1984-3356.2023v16n32p059-088

¡Vivan los hippies buenos!


Tres yippies en el Chile de
Salvador Allende

Long live the good hippies!


Three yippies in Salvador
Allende’s Chile

Vivam os hippies bons! Três


hippies no Chile de Salvador
Allende

Manuel Suzarte1

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Resumen: La victoria de Salvador Allende en 1970 no fue solo


un evento determinante para el contexto chileno, tuvo también
un eco global, transformando el incipiente experimento que
buscaba la creación de una vía democrática al socialismo, en un
evento que capturó la atención de militante del mundo entero.
Como parte de estas audiencias cautivas, tres miembros de la
Nueva Izquierda estadounidense, ligados al movimiento Yippie
y desilusionados con el estado de las luchas políticas en su país,
decidieron embarcarse en un viaje para conocer la experiencia
chilena de primera mano. Nuestro artículo reconstruye este viaje,
con el objetivo de mostrar las particulares interacciones que cada
viajero tuvo con la realidad chilena y, a través de estas, analizar
¡Vivan los hippies buenos! Tres yippies en

las características y límites del proyecto de la Unidad Popular,


el lugar de la cultura como elemento constitutivo del proyecto
de cambio y en paralelo el desarrollo de la contracultura juvenil.
Palabras clave: unidad popular; sesentas globales;
contracultura; nueva izquierda; Estados Unidos; Chile.
el Chile de Salvador Allende

Abstract: Salvador Allende's victory in 1970 was not only a


determining event in the Chilean national context, but also
had a global echo, transforming the incipient experiment that
Manuel Suzarte

sought to create a democratic pathway to socialism into an


event that captured the attention of militants from all over
the world. Within this captive audience, three members of the
US New Left, linked to the Yippie movement and disillusioned
with the state of their struggles at home, decided to embark
on a journey to experience the new Chile firsthand. Our article
reconstructs this trip, with the aim of showing the particular
interactions that each of the travelers had with the Chilean
Dossiê

reality: the characteristics and limits of the Popular Unity


project, culture as a constituent element of the project of change
and the parallel development of the youth counterculture.
Keywords: popular unity; global sixties; counterculture; new
left; United States; Chile.

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Introducción

El triunfo de Salvador Allende en la elección presidencial de 1970 reverberó


en el mundo entero, convirtiéndose, en palabras de Compagnon y Moine (2015,
p. 5), en una verdadera “passion politique” para las izquierdas de todo el mundo.
En este contexto Chile se volvió un epicentro revolucionario, por una parte,
gracias al (re) establecimiento de relaciones diplomáticas con distintos países
del mundo socialista y, por otra, por la gran cantidad de viajeros que visitaron el
país para conocer de primera mano el experimento chileno (Fermandois, 2005,
p. 214). Nuestro artículo presenta un caso de estudio ligado a esto último; se
trata de un viaje realizado por tres estadounidenses –Phil Ochs, Stew Albert y
Jerry Rubin– a Chile durante agosto y septiembre de 1971.
Albert y Rubin eran yippies, militantes del Youth International Party, una
organización fundada en 1967 como parte del movimiento de la Nueva Izquierda
estadounidense. Ambos habían dado sus primeros pasos en la política en la
¡Vivan los hippies buenos! Tres yippies en

Universidad de Berkeley como parte de la oposición a la guerra de Vietnam.


Rubin era sin dudas el más célebre del grupo. Como yippie alcanzó fama mundial,
gracias a las protestas mediáticas del grupo y a la publicación en 1970 de su
libro Do It!, un manifiesto contracultural en el que define a los yippies como
el Chile de Salvador Allende

“a hybrid mixture of New Left and hippie coming out something different […].
A longhaired, bearded, hairy, crazy motherfucker whose life is theater” (Rubin,
1970, p. 87). A la hora de intervenir públicamente, esta noción de teatro era
fusionada con la idea de guerrilla, guerrilla theater, mezclando humor absurdo
Manuel Suzarte

y contestación política frontal. Para Albert, los yippies hacían una especie de
“lucha libre profesional”, salvo que sus combates eran reales, pues buscaban
comunicar sus ideales en torno a la libertad, la paz y la creatividad (Albert, 2004,
p. 71). A medida que la década del sesenta progresaba los yippies aumentaron
su presencia mediática en especial luego de su intervención el 24 de agosto de
1967 en la Bolsa de Comercio de New York, donde un pequeño grupo ingresó
al salón de transacciones lanzando billetes por los aires y posteriormente
quemándolos, todo como una protesta contra el capitalismo. Ochs, el tercer
miembro del grupo era músico, uno de los principales exponentes de la música
Dossiê

folk comprometida en la escena de la costa este estadounidense. Un cantante


político, autor de canciones que denunciaban el imperialismo estadounidense
y sus intervenciones en lugares como Santo Domingo y Vietnam. Estas
preocupaciones lo llevaron a conocer a Rubin y el mundo de la Nueva Izquierda,
volviéndose amigos y compañeros de lucha.

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Los tres viajeros habían protagonizado los años más gloriosos de los
sesenta estadounidenses, sin embargo, hacia finales de la década lo que había
parecido como un momento de cambio revolucionario comenzó a extinguirse.
Por un lado, la gran causa célebre, la guerra de Vietnam, continuaba a pesar
del movimiento global en su contra y se extendería a otros países luego de
la elección de Richard Nixon como presidente de los EE.UU en 1968. Por otro
lado, ese mismo año la violencia política golpeaba al mundo progresista con los
asesinatos de Martin Luther King Jr. y Robert Kennedy. La historia no parecía
estar de su lado. En sus memorias, Rubin dio cuenta de este rápido cambio y del
impacto que significó para él

I was a folk hero of rebellion to young people. My life was exciting,


involved, relevant. I had satisfied all my childhood dreams. And
then: crash. In two brief years the mass political movement
disappeared […]. A group of young kids publicly retired me from
¡Vivan los hippies buenos! Tres yippies en

the movement for being over thirty […] People began relating to
me as an image, not as a human being. Worst of all, I believed the
image; I forgot who I was. I felt dead at thirty-four (Rubin, 1976,
p. 1-2).
el Chile de Salvador Allende

La vida de Phil Ochs mostraba también signos de agotamiento; hacia 1971


su carrera estaba estancada. Si bien sus primeros años habían estado marcados
por el compromiso político y la esperanza de cambiar el mundo, el cantante
nunca consiguió un despegue comercial como el de su amigo Bob Dylan, quien
Manuel Suzarte

transcendió el género folk, transformándose en la voz de su generación. Así,


mientras el mundo de los viajeros se derrumbaba, al igual que sus esperanzas,
al sur del continente otra realidad se construía. En 1971 Chile aparecía en el
horizonte de los viajeros como “the most exciting place on earth” (Albert, 2004,
p. 172), un lugar en donde las esperanzas y sueños de los tres podían resurgir.
La reconstrucción de este episodio va más allá de la restitución de una
experiencia puntual de viaje. La visita debe analizarse en la línea de los estudios
sobre los Global Sixties, en cuanto a pensar la década del sesenta desde sus
dinámicas de circulación e interacción transnacional de activistas y militantes.
Dossiê

Retomando lo expuesto por Marchesi (2017, p. 198) nuestro caso de estudio da


cuenta justamente de esta globalidad al posicionar a Chile como un país dentro
de los lugares de interés para militantes ligados al movimiento contracultural
estadounidense, a la altura de Cuba y Vietnam. Al igual que otros estudios de
caso nacionales relativos a los sesentas latinoamericanos y el desarrollo de

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la contracultura (Barr Melej, 2017; Zolov, 1999) nuestro artículo se propone


mostrar las complejidades al seno de la sociedad chilena y más específico de
la izquierda a la hora de su articulación con los movimientos contraculturales
criollos a través la experiencia de estos viajeros.
Como veremos, los tres se enfrentaron de manera distinta a la realidad
chilena, mostrándose cada uno interesado por diferentes aspectos de la
sociedad. A través de la reconstrucción del viaje nos preguntamos, en primer
lugar, de qué manera estos aspectos particulares dieron cuenta de la complejidad
del proceso político chileno; en segundo lugar, de qué manera la idealización
inicial respecto del Chile de Allende se vio confrontada a voces disonantes a
lo largo del viaje; y, finalmente, en qué grado los viajeros, identificados con el
proceso chileno, lograron encontrar una acogida favorable en Chile.
Respecto de la reconstrucción del episodio, las fuentes disponibles no
son abundantes, pero se caracterizan por su diversidad. En primer lugar,
recurrimos a las biografías y autobiografías de Albert (2004), Ochs (Elliot, 1989;
¡Vivan los hippies buenos! Tres yippies en

Schumacher, 1996) y Rubin (1976; Thomas, 2017); en estas el viaje a Chile


ocupa solo una parte en sus trayectorias vitales. En segundo lugar, recurrimos
a fuentes provenientes de la prensa underground estadounidense, entre las que
destacan algunos escritos de Albert y Rubin durante su estadía en Chile. Cabe
el Chile de Salvador Allende

mencionar la relevancia de estos registros, ya que ambos yippies plasmaron sus


impresiones en artículos de prensa que de cierta manera buscaban interesar y
cautivar a los lectores estadounidenses. En tercer lugar, destacamos archivos
personales de Albert, como cartas e información sobre los seguimientos que
Manuel Suzarte

vivió por agentes del FBI.


Esto último es relevante, ya que, a pesar de no tratarse de un viaje oficial
o una invitación política, como en el caso de otras figuras de la izquierda
internacional que visitaron Chile durante el período (por ejemplo, Fidel Castro
en 1971 o Ángela Davis en 1972), el FBI venía haciendo un seguimiento de
todos sus movimientos, tanto en los EE.UU como en el extranjero. Aun si
esperaron pasar desapercibidos, lo cierto es que la ropa multicolor, el pelo hasta
los hombros y las frondosas barbas con que abordaron el vuelo con destino a
Santiago, el 3 de agosto de 1971, los convirtieron en llamativos visitantes en
Dossiê

Chile (FBI, 1971, p. 9).

¿En dónde está la revolución?

“Chile was a place where discussing politics was still part of

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everyday life […]” (Albert, 2004, p. 172)

De los tres viajeros, Stew Albert fue el más interesado en el proceso chileno,
intentando dar a conocer sus distintas facetas. Su reflexión nos muestra que
buscó tener una experiencia más política que la de sus compañeros de viaje.
Desde un inicio, el trío se alojó en un hotel en el centro de Santiago, cuyo
lujo distaba del imaginario que Albert tenía de una revolución victoriosa:
para él “encontrar la revolución” se transformó era su máxima. Una cosa era
clara: el paisaje moderno de la capital chilena difería de una utopía donde se
construyera el socialismo. La gente seguía vistiendo la formalidad de los trajes,
se veía bien alimentada y se movía por una urbe genérica, “[it] could be any
prosperous bourgeois city in the world” (Albert, 1971, p. 18) sentenciaba el
viajero. En un primer momento, la capital se caracterizaba principalmente por
las ventajas tradicionales para los turistas provenientes del norte del mundo
que poseían dólares, en efecto, Chile era una ganga. Albert describe esa primera
¡Vivan los hippies buenos! Tres yippies en

noche como una de lujos:

Our first night in Santiago, we sat in a turn of the century elegant


hotel dining room. We ate an enormous steak, drank the finest
wine and smoked cigars. We thought we were taking the pleasure
el Chile de Salvador Allende

of a dying social order, all those rich men stuffing themselves at


the other tables, they were living dead, eating their last meal, we
were different, on the workers side (Albert, [19--]).
Manuel Suzarte

A los pocos días la revolución comenzó tímidamente a dibujarse. Rumores


dentro de algunos círculos juveniles universitarios llevaron a una pareja de
jóvenes familiarizados con el libro de Rubin2 a encontrarse con el resto del
grupo (Albert, 2004, p. 173). Junto a dos otros chilenos, Ricardo y Agna, el
grupo se dirigió a su primera entrevista “revolucionaria”, una reunión con
un funcionario de la Unidad Popular y militante del Partido Comunista. El
intercambio distó de estar a la altura de las expectativas de Albert, resultando en
una exposición demasiado formal sobre las políticas del gobierno (Albert, 1971,
p. 18). Tras ello, Ricardo le advirtió que, pese a la cordialidad, el funcionario les
Dossiê

había expuesto la línea oficial del partido. Claramente la revolución existía, al


menos en los discursos oficiales, pero las cifras y líneas de partido no ayudaban
a materializarla. Frente a esta situación Ricardo los invitó a conocer a los
“verdaderos revolucionarios”.

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Así el grupo recaló en el la Facultad de Filosofía de la Universidad de Chile,


la cual se encontraba tomada. Es interesante notar que la universidad y en
especial los estudiantes universitarios estuvieron al centro de las actividades
de Albert y sus compañeros. Esto no es casual si consideramos que la lucha
política se había encarnado en este espacio. El triunfo de la Unidad Popular
tuvo un efecto importante en las luchas políticas internas de las universidades
chilenas, especialmente en la Universidad de Chile, institución que empujaba
desde la segunda mitad de los años sesenta un complejo proceso de reforma.
A partir de 1971, la universidad pasó a reflejar el proceso político nacional con
los distintos actores universitarios identificados con los del panorama político
nacional (Garretón; Martinez, 1987, p. 78).
Por primera vez desde su llegada al país, Albert se vio sorprendido por
la escena, dada la gran similitud con lo visto durante su viaje a Francia. La
comparación fue inmediata: “[It] looked like Paris in the midst of the student
uprising. The slogans on the walls were anarchistic and had the earmark of
¡Vivan los hippies buenos! Tres yippies en

French wit and intellect” (Albert, 1971, p. 18). Habiendo sido alumno y activista
en Berkeley, para Albert la toma universitaria chilena tenía un aire más familiar.
No obstante, la verdadera revolución la encontraría fuera del centro, alejada de
la capital.
el Chile de Salvador Allende

Las poblaciones a las afueras de Santiago captaron igualmente su atención,


transformándose en una parada obligatoria para conocer la pobreza en Chile
y entender el porqué del programa de la Unidad Popular. Sobre la visita Albert
recordaría: “I really dug these people of the Poblacion”. En este entorno, no
Manuel Suzarte

solo las condiciones de vida lo impactaron, también la energía del lugar: “In
some way, which is both silent and loud they sing to Allende – like the French
lumpen sang to Marat – for justice and dignity”. Este primer acercamiento a una
realidad social diferente vino acompañado además de una primera experiencia
en torno a lo que Salvador Allende inspiraba en la gente, sobre esto Albert
escribió: “[They call Allende] Companero Presidente. This is a great character
reference” (Albert, 1971b, p. 18).
Las sorpresas continuaron algunos días más tarde cuando el grupo salió
de Santiago para conocer Chile en su extensión. Poco a poco, Albert entró
Dossiê

en contacto con distintas personas, con el fin de descubrir los avances de la


experiencia chilena. Para un activista como él este regreso a un ambiente en
donde había un proyecto común, optimismo y lucha política, significaba una
bocanada de aire fresco, “Chile was a place where discussing politics was still
part of everyday life” (Albert, 2004, p. 71). En ruta por el sur de Chile, el grupo

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visitó la mina de Lota, conociendo la vida de los mineros en los bares de la ciudad
y sorprendiéndose por la omnipresencia de Allende, cuya imagen parecía estar
siempre en todos los muros, además de escucharse siempre “música socialista”
(Albert, 1971b, p. 19).
Más al sur, en Valdivia, Albert llegó al astillero SOCONAVE, compañía
que pasaba por un mal momento económico y que había sido tomada por
los trabajadores. Se trataba entonces de otra toma, aunque esta vez con
consecuencias mayores a las de una universitaria. Albert describió la escena
para la prensa estadounidense de la siguiente manera: “The workers occupied
the plant and proclaimed it ‘tomado’. ‘Tomado’ means taken. ‘Tomado’ is
happening all over Chile […] You see the word in the headlines every day. It is
a popular sport to guess what is being taken over today” (Albert, 1971b, p. 19).
“Tomado” se transformará en la manifestación más clara del conflicto
político chileno para Albert. Al regresar a Santiago, este conflicto entre “capital
y trabajo”, entre patrones y obreros, se hizo patente a su alrededor: el dueño
¡Vivan los hippies buenos! Tres yippies en

del hotel donde alojaban peleaba contra sus trabajadores o en la sala de cine
cercana los trabajadores habían decidido tomarse la sala de proyección (Albert,
2004, p. 172). Otro ejemplo de movilización popular lo encontró en el trabajo
voluntario universitario: “All over Chile thousands of students and workers
el Chile de Salvador Allende

are putting in free time. There are about a hundred students from Technical
University of Santiago working in the mine”. Interesado en saber por qué hacían
ese trabajo, Albert entrevistó a los estudiantes participantes, obteniendo como
respuesta: “To set an example. We are trying to create a new man who is not
Manuel Suzarte

motivated by money” (Albert, 1971b, p. 19). Los estudiantes encarnaban los


ideales de Allende.
Lo que vuelve interesante la perspectiva de Albert es que, a pesar de su
admiración por el proceso chileno, por la voluntad del trabajador, por la ética
revolucionaria y la búsqueda del hombre nuevo, se interesó también por los
problemas del proceso. Un ejemplo de esto fueron las fracturas y diagnósticos
divergentes tanto al interior de la Unidad Popular como en el resto de la
izquierda chilena. En este sentido, como parte de las reuniones con funcionarios
del gobierno, el grupo de estadounidenses se reunió con Cristián Casanova,
Dossiê

Director de Difusión Cultural del Ministerio de Relaciones Exteriores. Si


anteriormente los yippies habían recibido la línea del Partido Comunista, en
su encuentro con Casanova conocieron la línea de la Unidad Popular, las claves
del proceso chileno y su unicidad. En primer lugar, en un intento por bajar las
expectativas revolucionarias de los viajeros, Casanova les informó que Chile

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no era Cuba, no se debía esperar el mismo tipo de proceso. Esta aclaración era
importante, si consideramos que Cuba era el gran referente latinoamericano
de la revolución para los estadounidenses. Albert y Rubin habían visitado la
isla en 1960 y 1964 respectivamente (Albert, 2004, p. 11-23; Rubin, 1970, p. 20),
mientras que para Ochs la revolución no solo era admirada, sino que también
se había convertido en un tópico para su música.3
En efecto, las razones de la particularidad chilena eran el peso de la historia
del país, el que contaba con una tradición democrática excepcional en el
contexto del continente, además de tener unas Fuerzas Armadas que operaban
como garante democrático y ente no deliberativo. Sobre la reunión Albert
retuvo que:

[…] there has been constitutional government for 40 years. The


army stays out of politics. Chile has had previous Popular Front
governments and much socialist law is already on the books. The
new government is only carrying out the law. For the first time
¡Vivan los hippies buenos! Tres yippies en

the peoples’ vote made a difference. They elected a government


which served them. Previous governments turned guns on the
people – guns supplied by the gringos. Now the government was
into free milk and schools (Albert, 1971, p. 18).
el Chile de Salvador Allende

La mirada sobre el proceso entregada por Casanova chocó con los que los
amigos chilenos de Albert pensaban. Para Ricardo, lo que realmente hacía
Allende era cooptar a los trabajadores y no construir un verdadero socialismo
Manuel Suzarte

(Albert, 1971, p. 18). Esta no fue la única postura crítica hacía la Unidad Popular
proveniente de la izquierda que Albert encontró. Dentro de los actores políticos
por los cuales se interesó, el Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR) se
transformó en el principal, ocupando varias líneas en su relato:

[They] are the Tupamaros of Chile. Before Allende won, they used
to hold up banks and supermarkets and distribute money and
food to the poor. They thought the Communists and Socialists
were wasting their time in electoral politics, but when the last
election came, they suspended their military activities. They
Dossiê

didn’t want to be accused of hurting the traditional left in the


voting booth (Albert, 1971b, p. 19).

Sin embargo, lo que más sorprendió a Albert fue la relación de los miristas
con Salvador Allende, ya que durante 1971 estos formaban parte del aparato de

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seguridad del presidente, el denominado Grupo de Amigos Personales (Pérez,


2000, p. 31-81). Sobre esta situación, Albert reportó:

Before the election the MIR was underground and many of its
people were in jail. Allende pardoned them all and the MIRistas
moved into the President's house with loaded guns. Allende
could not trust the conservative army or police, and neither the
Communists nor the Socialists had a military cadre. So it fell to
the MIR to become part of the Chilean secret service (Albert,
1971a, p. 19).

Albert fue aún más lejos en su fascinación con esta relación improbable entre el
“compañero” presidente y los jóvenes revolucionarios. Para explicar su asombro
a los lectores estadounidenses, realizó una curiosa comparación: “It would be
like Dave Dellinger getting elected President and the Weather Underground,
including Bernadine, Mark and J.J. becoming his official bodyguards” (Albert,
¡Vivan los hippies buenos! Tres yippies en

1971b, p. 19). En este paralelo, Salvador Allende es Dave Dellinger, conocido


líder de la no-violencia estadounidense, protagonista del movimiento pacifista
antiguerra desde la década de 1930 y uno de los “7 de Chicago” (junto con
Rubin), arrestados en 1968 luego de la convención del Partido Demócrata en
el Chile de Salvador Allende

Chicago (Farber, 1994). Siguiendo el parangón, los miristas eran los tres jóvenes
líderes del movimiento clandestino Weather Undergound, Bernardine Dohrn,
Mark Rudd y John Jacobs. Esta agrupación, había nacido como una escisión
del grupo Students for a Democratic Society, por su decisión de pasar a la acción
Manuel Suzarte

directa revolucionaria, combinándolo con un fuerte discurso anti-imperialista


y en favor del Black Power y los Black Panthers (Garvey, 2007). Es así como para
Albert, en Chile se daba una inversión de la lógica, un lugar donde el líder de la
izquierda chilena contaba con una vanguardia juvenil revolucionaria dispuesta
a sacrificar todo por defenderlo.
Su interés por el MIR contó con una desafortunada coincidencia, ya que su
estadía en Santiago coincidió con el funeral del líder mirista Luciano Cruz, el 16
de agosto de 1971, fallecido dos días antes a causa de un accidente doméstico.
Conmovido por la convocatoria, según sus cálculos unas 25 mil personas, Albert
Dossiê

escribió esperanzado: “The MIR is young and their eyes sparkle of Che, Fidel
and Lenin. Reality has moved in ways they did not expect. But they are flexible
and matured. I think they are Nixon’s nightmare” (Albert, 1971a, p. 16).
Un encuentro terminó por desarrollarse entre el visitante y un militante del
MIR al que pudo entrevistar, conversación que desarrolló en medio de rumores

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de golpe de Estado. Para su entrevistado, este era inevitable, ya que en su opinión


se avecinaba una fuerte crisis económica, sumada a una polarización política
creciente y a una oposición de derecha fuertemente organizada. Esta no era
la primera vez que Albert se enfrentaba a estos rumores, ya en su reunión con
el funcionario comunista había interrogado por la posibilidad de un golpe de
Estado. La respuesta en esa ocasión apuntó a que de ocurrir este sería suave, un
golpe “a la chilena”, sin guerra civil, breve, sin derramamiento de sangre y con
Salvador Allende en el exilio (Albert, 2004, p. 174). Para el MIR, el escenario era
distinto, la suma de la virulencia de la derecha, el rol de la prensa conservadora,
del ejército y la intervención de la CIA presagiaban un escenario mucho más
sombrío, el cual, en efecto, se desarrollaría a partir del año siguiente.
Pese a esto, como muchos simpatizantes de la Unidad Popular, Albert
concluyó su observación con un tono optimista, sobre todo debido al poder de
la movilización popular. Chile se ubicaba no sólo a la vanguardia, sino también
como un referente revolucionario que sería defendido en caso de ser necesario:
¡Vivan los hippies buenos! Tres yippies en

“If the army moves, they may topple Allende, but they might well precipitate
people’s war throughout the continent. Che’s vision of turning the Andes into
the Sierra Maestra might come true” (Albert, 1971b, p. 19). Aún con golpe de
por medio, la revolución estaba destinada a triunfar.
el Chile de Salvador Allende

Porque la guitarra tiene sentido y razón…

I sang for the worker […] they seemed to like it – I guess they
catch spirit – but not words […]. (Schumacher, 1996, p. 241)
Manuel Suzarte

De los tres viajeros, probablemente el que tenía la necesidad más urgente


de un cambio era Phil Ochs. A pesar de un cancionero marcado por un canto
comprometido, con letras plagadas de humor negro, ironía y denuncia, su
mensaje ya no surtía el mismo efecto. Aquejado por un trastorno bipolar y
una caótica vida personal, Ochs se había puesto como objetivo, hacia finales
de la década, conocer el mundo. En ese contexto, Salvador Allende se había
transformado en su nuevo héroe, al ser el protagonista del evento político más
interesante desde la revolución cubana. La “vía chilena” hacia el socialismo
Dossiê

coincidía con el tipo de revolución pacífica que Ochs soñaba para los EE.UU,
por eso debía ser testigo presencial de un momento histórico (Schumacher,
1996, p. 204). Se podría decir que la motivación principal del viaje era política
y que la música no estaba en el radar. A pesar de ello, esta sí se hizo presente a

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través de un encuentro fortuito.


Una mañana a finales de agosto, Ochs y sus compañeros caminaban por
Santiago, llegando a la Universidad Técnica del Estado. Allí se encontraron
con un grupo de estudiantes que se preparaban para partir a la mina de
cobre “El Teniente”, ubicada a 120 kilómetros al sur de la capital. El personal
administrativo y los supervisores de la mina se encontraban en huelga contra
el gobierno. Ante esta situación los estudiantes habían decidido emprender el
viaje para ayudar a los mineros y así mantener la producción. Con un campus
en movimiento, donde se arreglaban los últimos detalles para la partida de la
caravana, los tres intentaron acercarse con la idea de participar, sin embargo, a
pesar de su entusiasmo, sufrieron el rechazo por parte de los estudiantes.4
Fue en ese momento en que se cruzaron con una anglófona, Joan Jara,
esposa del cantante Víctor Jara, a quien le contaron su interés por sumarse a
la actividad “a fin de expresar su apoyo a los mineros y cantar si era posible
algunas canciones para decirles que muchos norteamericanos condenaban la
¡Vivan los hippies buenos! Tres yippies en

política del gobierno de Estados Unidos” (Jara, 2001, p. 193).


Este primer contacto resultó vital, pues J. Jara le comentó la situación a
su esposo, militante del Partido Comunista, y una de las principales figuras
del movimiento de la Nueva Canción chilena y del mundo de la cultura de
el Chile de Salvador Allende

la izquierda5. V. Jara inmediatamente intervino para incluir a los extranjeros


dentro de uno de los buses. Para Albert, el encuentro cara a cara con el cantautor
fue impactante, ya que no correspondía a los estereotipos anti-yanqui de un
militante comunista, sino que, al contrario, se mostró muy interesado por ellos.
Manuel Suzarte

V. Jara intentó explicarles el rechazo inicial de los chilenos hacia ellos: “my
brothers are a little bit mistrustful of you. They think maybe your long hair is
some kind of spy’s disguise […] Usually we Chilenos meet only bad guys from
the U.S., like from the CIA […] but it’s really nice to know we have some brothers
up north” (Albert, 1974, p. 10).
Durante el trayecto, entablaron una amistosa conversación con el cantante,
indagando sobre sus gustos musicales y su opinión sobre la música rock.
El chileno reconoció su simpatía por el género musical, sobre todo por The
Beatles, ya que habían sido influenciados por el blues afroamericano. Víctor
Dossiê

había conocido de primera mano la contracultura durante su viaje a California


en 1968, maravillándose por la estética psicodélica del movimiento hippie,
calificándolo como una normal reacción en contra de un mundo siniestramente
higiénico y mecanizado (Albert, 1974, p.10), pero finalmente ingenuo, ya que
los jóvenes estadounidenses preferían escapar de los problemas contingentes a

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través de las drogas y la música (Sepúlveda, 2001, p. 131-132). Ochs escuchaba


casi hipnotizado a este artista revolucionario, si bien no conocía su música,
Víctor Jara era una figura magnética, admirada por muchos6.
Al llegar a la mina el plan era simple, se jugaría un partido de básquetbol
y en el entretiempo V. Jara cantaría unas canciones para entretener a los
trabajadores y a los estudiantes. Llegado el momento invitó a Ochs a unírsele.
Este aceptó de inmediato, sin embargo, un detalle no menor se presentaba, no
hablaba español, por lo que interpretó lentamente su canción I ain’t Marching
Anymore, una crítica a las guerras iniciadas por los ricos a las cuales enviaban
al pobre a morir: “It's always the old to lead us to the war /It's always the young
to fall/Now look at all we've won with the saber and the gun/Tell me is it worth
it all”. La versión contó con una traducción simultánea de V. Jara.
Lo que vino después fue otra sorpresa para los estadounidenses. V. Jara
comenzó a cantar una canción en español, pero se trataba de algo familiar: era
“If I Had a Hammer” de Pete Seeger, la cual había sido grabada bajo el título de
¡Vivan los hippies buenos! Tres yippies en

“El Martillo” por Víctor en 1969. Sobre la canción recuerda Albert: “we joined
with English words, trying hard to pick up a little Spanish in the chorus. We
sang very loud, hopping by sheer volume to drown out the Chilean suspicion”
(Albert, 1974, p. 10).
el Chile de Salvador Allende

A pesar del canto, la recepción inicial de los estudiantes y mineros hacia estos
extraños viajeros fue algo difícil, ya que no sólo eran extranjeros, provenientes
del principal enemigo de la Unidad Popular, sino que visualmente resaltaban en
un país que mostraba un incipiente movimiento contracultural. Como había sido
Manuel Suzarte

constante en el viaje, recibieron burlas; como confesaría Albert, “insinuating


whistles from the miners” (Albert, 1974, p. 11). V. Jara rápidamente intercedió
para explicar la situación a los viajeros: “You shouldn’t take it personally […]
the only people who have long hair in Chile are the lazy rich kids, so it’s a
good experience for these men to meet someone with long hair who is a
friend” (Albert, 1974, p. 11). Para introducirlos formalmente a la multitud de
trabajadores y estudiantes, Víctor los presentó como sus hermanos: “These
brothers have come a long way to be with us and to support our revolution. Are
we going to make them think we are cold-hearted like the rich?” (Albert, 1974,
Dossiê

p. 11), ante lo cual la multitud gritó en respuesta “Vivan los hippies buenos!”
(Albert, 1974, p. 11).
Luego de la presentación, entraron en la mina para comenzar la faena. De
vuelta en Santiago, Víctor llevó a los gringos a la Peña de los Parra, donde era
posible escuchar a los mejores exponentes del folklore nacional y la Nueva

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Canción Chilena (Jara, 2001, p. 194). Para Ochs, conocer al cantor chileno
se convirtió en una experiencia definitoria en su vida. Como lo reconocería
posteriormente Albert: “I think Victor Jara was a role model for Phil. He did
what Phil wanted to do. He was nationally famous, he had played a part in
electing a president” (Schumacher, 1996, p. 240). Además, la experiencia
de mostrar su música en aquel ambiente obrero y en el marco de una lucha
revolucionaria, ayudó al artista a reconectarse con algo que creía perdido. En
su bitácora de viaje, escribió: “I sang for the workers [...] They seemed to like
it-I guess they catch spirit-but not words” (Schumacher, 1996, p. 241). Como
último gran gesto hacia Ochs, V. Jara lo invitó a grabar un programa para la
televisión7. Esto fue un gran momento, ya que en los EE.UU nunca había tenido
una oportunidad como esa (Elliot, 1989, p. 206). Tal vez Chile sí podría ser un
nuevo inicio en su carrera.

Jerry Rubin y la otra revolución chilena


¡Vivan los hippies buenos! Tres yippies en

There is an incredible cultural revolution going on in Chile


in the middle and upper classes tho [sic] no one admits it […]
(Rubin, 1971, p. 9)
el Chile de Salvador Allende

Los intereses de Rubin en Chile fueron diferentes a los de sus amigos,


fuera de la lógica política más tradicional, no mostrando tanto interés en el
proceso mismo de la Unidad Popular, sino en la “otra” revolución chilena: la
contracultura. Sus primeras impresiones sobre Chile se asemejan a las de Albert:
Manuel Suzarte

un país algo formal y lejos de lo que una revolución debería parecer. Dentro del
panorama gris Rubin destacaba, vanagloriándose de su look: “you should see
the reaction our long hair is getting! I feel like a Martian who had arrived on
earth” (Rubin, 1971, p. 9). A pesar de la formalidad, y siempre desde una pluma
humorística, en sus reportes destacó la elección del nuevo presidente y sus
primeras medidas:

They have elected a Marxist Commie govt which plans to socialize


the entire country under the hammer and sickle […]. Allende
apparently is a very brilliant heavy politician […]. He holds off
Dossiê

both the right and the left while building his own organizational
apparatus and a popular following (Rubin, 1971, p. 9).

A pesar de la primera impresión, Chile aparecía como un buen lugar,

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sintiéndose a gusto por la oportunidad de estar en un verdadero país de


izquierda (Rubin, 1971, p. 9).
Si bien la atracción principal era el proceso político en marcha, el Chile de
septiembre de 1971 había sufrido otros cambios importantes con respecto a
la cultura juvenil y a los movimientos contraculturales. No obstante, estas
expresiones tuvieron dificultades para encontrar un espacio propio en medio de
la vorágine política de aquellos años. En 1970 dos hitos pusieron en la discusión
pública la contracultura. Primero, el estreno en cines de la película Woodstock,
en septiembre de 1970, donde por primera vez los jóvenes chilenos podían ver
un concierto de artistas que conocían solamente a través de fotos y/o discos
(Woodstock. El festival hippie más grandioso del mundo, 1970). Segundo, la
realización de una versión criolla del mismo, en octubre de 1970: el Festival
Piedra Roja. A pesar de no haber contado con ninguna similitud técnica,
organizacional ni musical respecto de la versión estadounidense, durante
tres días un centenar de jóvenes se dieron cita en un terreno en las afuera de
¡Vivan los hippies buenos! Tres yippies en

Santiago para escuchar distintas agrupaciones. A pesar de no haber estado a la


altura de las expectativas, Barr Melej destaca la importancia del evento, pues
su mediatización ayudó a que “muchos de los temas históricamente asociados
con las contraculturas y el hippismo [hicieran] su entrada al debate público una
el Chile de Salvador Allende

vez que la noticia del Festival de Piedra Roja apareció́ en los medios de prensa”
(Barr- Melej, 2009, p. 306).
A pesar de estas dificultades, el panorama que encontró Rubin en 1971 le
llamó la atención, relatando la existencia de un líder hippie que venía de ser
Manuel Suzarte

apresado: “The leader of the Yippies here is in jail! […] He’s 35 years old and
he leads a movement of 21-year-olds and younger” (Rubin, 1971, p. 9). Para
él, la versión chilena de los yippies chilenos eran los siloistas, un movimiento
contracultural fundado por el argentino Mario Luis Rodríguez Cobos, conocido
como Silo, que eran conocidos en Chile como movimiento “Poder Joven”. Dentro
de sus principales ideas estaba la existencia de la confrontación generacional
entre jóvenes y adultos, algo que a Rubin nuevamente le llamó la atención:
“they are a Zen religious group whose slogans include “kill you parents”, “total
revolution” (Rubin, 1971, p. 9).
Dossiê

En su estudio sobre la contracultura chilena, Barr-Melej define a los siloista


como un grupo contracultural, porque cuestionaban las convenciones sociales:
sexualidad, el lugar de la juventud, las relaciones políticas, laborales y humanas.
A pesar de esto, se diferenciaban de los hippies:

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Siloists were not melenudos […] nor were they marihuaneros


(potheads). They did not advocate promiscuity. They did not
wear bright flowery shirts or huge earrings with peace symbols.
Rather [they] reflected a sober demeanor – which was still
soundly countercultural – that focused on a new consciousness,
generational conflict, and ‘total revolution’ […]. Siloist simply
put, rejected existing authorities and nearly all aspects of
contemporary society (Barr-Melej, 2017, p. 174).

Dentro del repertorio de acción de Poder Joven, sus llamativos grafitis se


volvieron una marca registrada, algo que Rubin notó inmediatamente: “all over
Santiago are signs saying JOVEN PODER [sic] with their symbol (The Yippies
need a symbol)” (Rubin, 1971, p. 9).
Pese a que los siloistas no abogaban explícitamente por el uso de drogas,
para los yippies estas sí eran importantes, de ahí el interés de Rubin por relatar
sus hallazgos. En primer lugar, el consumo de marihuana, el cual, a pesar de
¡Vivan los hippies buenos! Tres yippies en

ser ilegal, se extendía sin mayores trabas entre la juventud. La posibilidad del
consumo lo impactó, y es que su acceso era relativamente fácil gracias a la
producción de cáñamo en algunas regiones, no lejos de la capital. Desde 1968
el consumo se había masificado de manera importante, sobre todo entre los
el Chile de Salvador Allende

jóvenes. De acuerdo con la Policía de Investigaciones, la mayoría de los jóvenes


chilenos consumía por primera vez gracias a los marinos mercantes en los
puertos o extranjeros (principalmente provenientes de los EE. UU y Europa).
A pesar de esto, el consumo se mantuvo restringido y basado más bien en
Manuel Suzarte

relaciones interpersonales y no en un tráfico a gran escala (González, 2012, p.


86-87).
El panorama no se agotaba en la marihuana, ya que Rubin dio cuenta también
de los incipientes estudios relativos al ácido lisérgico. Desde fines de la década
del sesenta, existía un lazo entre el LSD y la psicología en Chile, debido a los
estudios desarrollados por el Instituto de Psicología Aplicada, que realizaba
experimentos con ácido y mezcalina. Para Rubin, en Chile se experimentaba
con LSD “a la [Timothy] Leary”, el conocido psicólogo de Harvard, pionero en
los estudios del LSD en los EE.UU. Finalmente, relató la sencillez para hacerse
Dossiê

de farmacéuticos potentes por medios perfectamente legales como Ritalin y


Valium, los cuales se podían obtener fácilmente en farmacias (Rubin, 1971, p.
9).
Rubin concluyó su relato con un frase clave en donde daba cuenta de que

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tal vez la verdadera revolución no la protagonizaba Salvador Allende: “there


is an incredible cultural revolution going on in Chile in the middle and upper
classes tho [sic] no one admits it” (Rubin, 1971, p. 9). Pese a que esto puede
parecer accesorio ante el proceso político que vivía el país, es posible ver en
este caso una de las grandes temáticas con respecto a la cultura juvenil durante
el periodo: una tensión causada por la cohabitación entre una izquierda
tradicional y una cultura alternativa, inspirada por los sesenta globales que no
seguía sus guías morales ni culturales. En respuesta a esto, durante el gobierno
de Salvador Allende, el discurso ideológico de la izquierda tendió a invisibilizar
estas manifestaciones contraculturales, una estrategia que Rubin conocía bien.
En efecto, la Nueva Izquierda estadounidense8, motor de la contestación
contra la Guerra de Vietnam, atravesó un fenómeno similar. Para un sector, la
contracultura aparecía como gente más comprometida con el uso de drogas,
libertinaje sexual y el uso de ropa extraña, elementos que no ayudaban en los
esfuerzos que se realizaban para el posicionamiento público del movimiento.
¡Vivan los hippies buenos! Tres yippies en

Para otro sector, más interesado en lograr un verdadero cambio de la consciencia


humana, veían en la contracultura una alternativa a los debates políticos
anquilosados y estrechos (Farber, 1992, p. 8).
Hacia finales de la década el “movimiento de movimientos” se vio afectado
el Chile de Salvador Allende

también por el natural recambio generacional de sus participantes, con el


ingreso de nuevos jóvenes, poseedores de una relación menos traumática
con los elementos característicos de la contracultura. Como lo explica Farber
(1992, p. 14), “by 1967 many young people in the anti-war movement – even
Manuel Suzarte

those who by no means considered themselves a part of the counterculture –


regularly used marihuana and other drugs”. La diferencia residía en el lugar que
ocupaban estas expresiones en las vidas de los individuos, las cuales, señala
Farber, “remained peripheral to their personal identity and to their political
agenda” (Farber, 1992, p. 8).
Volviendo al caso chileno, Barr-Melej (2009, p. 321-322) se refiere al mismo
fenómeno, ideas y prácticas contraculturales que superaron su campo original
para transformarse en algo generalizado, como jóvenes marxistas, centristas o
conservadores que rechazaban la contracultura, pero que abrazaban la música
Dossiê

rock. La juventud chilena de la época emerge como diversa en cuanto a sus


gustos y preferencias, sin embargo, se verá rápidamente atrapada en la vorágine
política de la Unidad Popular. En este escenario, la izquierda intentó modelar
estos hábitos para generar una juventud en línea con el proceso revolucionario
chileno.9

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Fue así que en 1973 la editorial de gobierno, Quimantú, recolectó una serie
de artículos sobre la juventud en donde se presentaba un país dividido con
dos tipos: una burguesa y una trabajadora. La primera, fuertemente criticada
por seguir modelos estadounidenses como “escuchar música en inglés para,
por unas horas […] romper el aburrimiento de una existencia ociosa, gris, sin
horizontes” (Abarca, 1973, p. 12), establecía una relación entre una pobreza
existencial y las expresiones culturales provenientes de los EE.UU. El texto
finalizaba con una lapidaria conclusión: “un adolescente burgués nacional es
diez mil veces más parecido a un hijo de familia media norteamericana que a
un joven proletario chileno. Sus creencias y valores forman un mundo aparte,
distinto y curioso” (Abarca, 1973, p. 25).

Chile y la revolución peluda

“Los yippies son acción en movimiento. Han utilizado las drogas


¡Vivan los hippies buenos! Tres yippies en

y se han apoyado en ellas contra el sistema […]. Muchas de las


cosas que dicen a continuación sorprenderán a algunos lectores.
Rubin y Albert insisten en que su análisis es válido para EE.UU”
(La revolución [...], 1971, p. 43).
el Chile de Salvador Allende

Como parte de sus actividades, Albert y Rubin realizaron una entrevista para
la revista Ahora titulada “La revolución peluda”, también editada por Quimantú.
Esta constituye el registro más extenso sobre la visita de los yippies a Chile,
Manuel Suzarte

además de tratarse de la única fuente chilena. Si bien, los entrevistados pudieron


expresar sus puntos de vista, el resultado es un texto más bien expositivo, en
donde se trata a los viajeros de manera algo condescendiente y escéptica, a pesar
de los elogios hacia el proceso chileno, mostrándolos como representantes de
una revolución menos seria, que se hace con “collares e incienso”. A modo de
introducción, Rubin se presentó ante los lectores chilenos, explicando además
el interés genuino por la Unidad Popular:

Somos representantes del movimiento antiimperialista en


Norteamérica. Me llamo Jerry Rubin […] soy uno de los fundadores
Dossiê

del Partido Internacional de la Juventud […]. Hemos venido


por dos meses a observar con nuestros propios ojos el proceso
revolucionario chileno para luego volver a EE.UU e informar al
pueblo norteamericano. Queremos decirle al pueblo chileno que
la juventud de Amerika [sic] aprueba y apoya la nacionalización

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de las minas de cobre y de todas las propiedades norteamericanas


en Chile […]. Anhelamos que ustedes no les paguen ni un centavo
a los capitalistas por la explotación de sus minas de cobre y sus
recursos naturales. Anhelamos que no indemnicen ni un peso
a los momios internacionales que han engordado a costa del
trabajo de ustedes (La revolución [...], 1971, p. 43).

A pesar de las elogiosas palabras dirigidas al proyecto de la Unidad Popular,


la conversación fue conducida a los aspectos más polémicos del movimiento
yippie, como el look de sus militantes y su relación con las drogas. Con
respecto al primer punto, tal como en las distintas visitas que el grupo realizó,
nuevamente el tema del pelo largo fue cuestionado; de cierta manera la revista
dejó entrever una especie de incompatibilidad entre declararse revolucionario
y utilizarlo de aquella forma. Rubin defendió la elección, explicando que en los
EE.UU esto representaba la “marginación de la cultura burguesa-capitalista” y
que “melenudos de todas las clases están en primera línea de la batalla contra
¡Vivan los hippies buenos! Tres yippies en

el capitalismo y el imperialismo”, agregando además que el modelo estético no


era otro que el Che Guevara (La revolución […], 1971, p. 46).
En cuanto al segundo punto, le tocó a Albert contextualizar el consumo
de drogas, defendiendo el uso de la marihuana, pero estableciendo una clara
el Chile de Salvador Allende

diferencia con las que él llamó las “drogas de la muerte”, como la heroína,
las cuales de acuerdo a él eran utilizadas por el gobierno para debilitar a la
población afroamericana y la gente joven para evitar que se incorporasen a las
luchas revolucionarias.
Manuel Suzarte

La entrevista abordó también temas políticos, en específico Rubin y Albert


debieron explicar algunas características de la lucha política de los yippies, las
que parecían lejanas para la experiencia chilena. Si en Chile los partidos de la
Unidad Popular eran herederos de un largo proceso de unidad de las fuerzas de
izquierda a través de las urnas, el movimiento Yippie aparecía como informal,
sin medios de comunicación nacionales sino prensa underground local y solo
realizando actos masivos que pudieran impactar (La revolución […], 1971, p.
42). Ante este “estilo no organizativo” el entrevistador rebatió poniendo en
duda la efectividad de tal apronte, ya que Richard Nixon, de todos modos, había
Dossiê

resultado electo presidente. Al respecto, Rubin retrucó: “una manifestación no


se mide en EE.UU por la adquisición del poder, sino por cómo se aumenta el
grado de consciencia de la gente” (La revolución […], 1971, p. 43).
Un último elemento abordado fue el de los medios de acción para conquistar

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el poder, que en el caso chileno había probado ser mediante las urnas. Rubin las
desestimó como el gran factor determinante del proceso; para él, esa no era la
realidad clave, no era eso lo que convertía a los chilenos en un ejemplo a seguir:
“La realidad clave es que Chile nacionalizó las minas de cobre […] Chile se ha
convertido en un nuevo símbolo al expropiar las propiedades norteamericanas
y destruir su poderío” (La revolución […], 1971, p. 45). Este punto es importante
ya que, como veremos más adelante, da cuenta del decalaje político entre
la visión yippie y la chilena. Con respecto al estado de la lucha armada y su
lugar en el proceso revolucionario – otro tema sensible para el proceso chileno
–, los entrevistados explicaron la lucha de los Black Panthers y del Weather
Undergound, apoyando explícitamente a los últimos, pero desde la legalidad.
De cierto modo, la entrevista nos muestra una recepción estrecha de otra
experiencia revolucionaria, la cual no seguía los elementos que eran centrales
para la Unidad Popular: el rol de la democracia para conquistar el poder, la
disciplina militante y el rol de partidos organizados con voluntad de poder. A
¡Vivan los hippies buenos! Tres yippies en

pesar de tratarse de visiones políticas que en teoría estaban bastante alineadas,


esta entrevista dejó en claro que el diálogo podía ser dificultoso. Como explican
Klimke y Nolan (2018, p. 3), estas circulaciones e interacciones entre activistas
de distintas partes del mundo durante los Global Sixties no estuvieron exentas
el Chile de Salvador Allende

de tensiones ya que la solidaridad (real u imaginada) en la práctica era compleja,


ambivalente y desafiante.
“Una mutua tolerancia” pedía Rubin al final de la página. A pesar de esta
demanda la cotidianeidad en Chile no se limitaba a los elogios y reconocimientos
Manuel Suzarte

que los yippies reportaban en sus escritos, esta había tensionado la dinámica
interna del grupo.

Ecos y conflictos del viaje

The length of one’s hair and the methods of one’s recreation are
no longer signs of one’s revolutionariness [sic] (Seler, 1972, p. 5)

A pesar de sus palabras de admiración por el país, Rubin nunca se sintió a


gusto en Chile. A pesar de jactarse de parecer un extraterrestre en el gris Chile,
Dossiê

las constantes burlas a su pelo largo lo habían hartado, sumado a que su fama
no había trascendido hasta Chile, siendo reconocido por solo un puñado de
jóvenes universitarios. Sin embargo, este no fue el único problema. Algunos
meses más tarde el corresponsal de la revista World View, durante su propio

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viaje a Chile, se refirió a la dificultad que Rubin encontró para acercarse a


militantes de izquierda: “they generally refused even to see him, treating him
as something of a plague. Revolutionary Left youth fear drugs as politically
debilitating” (Collins, 1971, p. 8-9). En cierta medida, Rubin, que se pensaba
como un igual, no había sido reconocido como un interlocutor válido.
Un segundo elemento de disgusto era el de las drogas, cuestión que, si bien
en un inicio había sido destacada como algo positivo, en el largo plazo y sobre
todo en sus esfuerzos por desarrollar una cotidianeidad en Chile, se convirtió en
un problema: Chile era un país de vino de calidad, pero con marihuana de mala
calidad. Según Albert, Rubin no podía obtener los efectos deseados al fumar la
variante criolla (Albert, 2004, p. 174). Lo cierto es que sus problemas eran un
poco más profundos, ya que además arrastraba una enfermedad respiratoria,
la que solo empeoró por su reticencia a ser tratado por médicos locales. Esta
situación y sus quejas dañaron la convivencia interna.
David Ifshin, un líder estudiantil estadounidense y amigo de Ochs que
¡Vivan los hippies buenos! Tres yippies en

también se encontraba en Chile10, sugirió una broma para el enfermo: “we


ought to find somebody to dress up like one of those witch doctors and send
him up there with a big jar of leeches” (Thomas, 2017, p. 88). Ante una creciente
tensión, el grupo decidió separarse, Albert y Rubin partieron a Perú volviendo
el Chile de Salvador Allende

finalmente a los EE.UU, mientras que Ochs e Ifshin continuaron hacia Buenos
Aires. La actitud quejumbrosa de Rubin enfureció al músico por su poca
consecuencia. Por un lado, se ufanaba de ser “Mr. Revolutionary—Che Guevara
with war paint”, pero ante el primer síntoma, “he’s dying and wants to Medivac
Manuel Suzarte

back to the States” (Schumacher, 1996, p. 243).


A pesar de estas diferencias de tipo personal, la política también jugó un rol en
la separación, principalmente entre Albert y Rubin. Como vimos anteriormente,
los énfasis que ambos pusieron en sus relatos tuvieron matices diferentes.
Mientras Albert se mostró interesado en los distintos aspectos políticos del
proceso chileno, Rubin se centró principalmente en la contracultura y el
movimiento Poder Joven. Albert recordó posteriormente las consecuencias de
esta diferencia:

[Jerry] began identifying himself with a strange assortment of


Dossiê

left and right wing libertarians [Poder Joven], and even some
eccentric cultist. He criticized the Chilean government from
both sides of the political spectrum, arguing that Allende was a
sellout. Jerry mocked my frequently-stated belief that the CIA

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and military were going to carry out a brutal fascist coup – that
blood would flow – and that maybe our friends would die (Albert,
2004, p. 174-175).

Mientras el conflicto interno estallaba, los ecos del viaje llegaron a EE.UU,
tanto a los lectores de los distintos periódicos que publicaron los artículos de
los viajeros, como a los círculos políticos. A pesar de las promesas de trabajar
por Chile, de regreso Albert se encontró con un público local que desconocía
gran parte del proceso chileno, tildaban a Allende de revisionista, de estar
en contra de la lucha armada, no como el Weather Underground que llevaba
a cabo una lucha clandestina “verdaderamente” revolucionaria11. A pesar de
sus intentos por darle visibilidad a la lucha del pueblo chileno, los temas de
interés para la juventud radical de los EE.UU eran otros, por ejemplo, la lucha
por los derechos homosexuales aparecía como más urgente que los esfuerzos
de un país lejano por combinar democracia y socialismo (Albert, 2004, p. 175).
¡Vivan los hippies buenos! Tres yippies en

Pero tal vez la crítica más demoledora vino de los Black Panthers algunos meses
después del fin del viaje.
En un artículo publicado en el periódico oficial del partido, se denunció a
la izquierda blanca “culturalista”, aquellos militantes de izquierda que habían
renunciado a la política como arma de cambio, enfocándose en los aspectos
el Chile de Salvador Allende

culturales, como el consumo de drogas, la metafísica, el escapismo y la auto-


indulgencia (Seler, 1972, p. 5). Esta denuncia no era casual. Ya en 1972 el
panorama de la Nueva Izquierda estadounidense había cambiado bastante en
relación a sus orígenes a inicios de los años sesenta. Si en ese momento el
Manuel Suzarte

objetivo de los jóvenes radicales era re-inventar una alternativa de izquierda


diferente de una izquierda ortodoxa pro-soviética, con el avance de la década
la radicalización se hizo creciente. Es por esto que es posible distinguir dos
vertientes a inicio de los años setenta. Por un lado, una que abrazaba el
marxismo y la lucha armada y, por el otro, una que, desilusionada de la política,
se inclinaba por las experiencias de vida colectiva y el desarrollo espiritual.
Rubin representaba esta segunda vertiente, por lo que no es casual que el autor
del artículo lo usara como ejemplo de este fenómeno:
Dossiê

One recent example of “left” cultural imperialism, Jerry Rubin […]


and some of his ‘Yippie’ cohorts, visited Chile – a country which
has just begun to undertake a program of socialist construction.
Rubin returned saying that the Chileans were “orthodox Marxist”
and condemned the policies of President Allende because he

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doesn’t advocate pot smoking (Seler, 1972, p. 5).

El diagnóstico que Rubin había hecho meses antes sobre una revolución
silenciosa contracultural en Chile no coincidía con la imagen internacional del
experimento socialista. A esto se suma que no se había guardado sus aprensiones,
expresándolas públicamente. Para los Black Panthers la lucha chilena merecía
ser tomada con seriedad, en el panteón de la lucha revolucionaria, Chile debía
ser defendido, pero no por un tipo como Jerry Rubin.

El final del viaje

I went to Chile to learn about the democratic implementation


of socialism; instead, I learned about violence, selfishness, and
America’s role in the world (Rubin, 1976, p. 204).

El 11 de septiembre de 1973 se produjo el temido golpe de Estado en Chile y


¡Vivan los hippies buenos! Tres yippies en

los ecos del final del gobierno de la Unidad Popular tuvieron un alcance global,
con un palacio presidencial en llamas luego de un bombardeo aéreo y Salvador
Allende muerto. Miles de chilenos fueron detenidos, torturados y asesinados a
partir de ese día. El impacto para Albert, Rubin y Ochs fue total.
el Chile de Salvador Allende

Para Albert, la posibilidad de un golpe de Estado ya estaba instalada en


1971, así dio cuenta en sus reportes. Durante su estadía en Chile esta idea
fue constantemente ridiculizada por Rubin, para quien no era plausible que
la CIA se aliara con los militares para llevar a cabo una masacre, tal vez sí
Manuel Suzarte

una intervención más suave. Con el paso de los años, el golpe de Estado se
transformó para Albert en el tiro de gracia a su espíritu político, sobre todo
por la violencia ejercida sobre la gente que había conocido, entre los cuales
muchos fueron fusilados pocos días después. Asimismo, el impacto psicológico
frente a la magnitud de la intervención estadounidense fue considerable, como
lo resumiría en sus memorias de 2004: “If they can destroy democracy in Chile
just because Allende nationalized a few copper mines, they could do it here just
as easily. Easier. The Left was much stronger in Chile” (Albert, 1971, p. 176).
¿Qué esperanza podían tener ellos y su movimiento dentro de los EE.UU si no
Dossiê

contaban con la fortaleza organizativa de la Unidad Popular?


La sombra de la intervención estadounidense en Chile también lo golpeó al
descubrir una referencia a su viaje en documentos del FBI12:

I once read an FBI memo that listed all the subversive

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demonstrations that I had attended. The list went on for pages. It


seemed to be nothing special—just the combined work of several
local agents in different parts of the country. And then I spotted
the phrase ‘observed at a rally for President Salvador Allende in
Santiago, Chile.’ How did they know that? A chill went up my
spine (Albert, 2004, p. 176).

La implicancia era clara, no solo la CIA había operado en Chile para propiciar
un golpe de Estado, también el FBI estaba al tanto de todos sus movimientos,
sus discusiones y sus relaciones personales.
El 16 de septiembre de 1973, Víctor Jara fue asesinado. Luego de quebrarle
las manos, los militares lo acribillaron. Como mostró Aedo para el caso de
la circulación europea del crimen (2022), su muerte fue leída políticamente
como un símbolo de la violencia del nuevo régimen y se convirtió en una causa
política, sobre todo para Ochs, quien tomó un rol más activo en la defensa de
Chile. Un ejemplo de esto fue un concierto el 17 de abril de 1974, donde en
¡Vivan los hippies buenos! Tres yippies en

una referencia directa a Chile, cambió una estrofa de su canción Small Circle of
Friends. Originalmente la canción narra la historia de un asesinato que ocurre
ante la indiferencia de la gente. En la nueva versión, Chile era el asesinado y los
estadounidenses los indiferentes:
el Chile de Salvador Allende

Down in Santiago where they took away our mines/We cut of all
their money so they robbed the storehouse blind/Now maybe we
should ask some questions, maybe shed a tear/But I bet you a
copper penny, it cannot happen here/And I’m sure it wouldn’t
Manuel Suzarte

interest anybody/Outside a small circle of Friends (Schumacher,


1996, p. 230).

Sin embargo, el mayor esfuerzo vendría más tarde, con la realización de The
Friends of Chile benefit: An evening with Salvador Allende, un concierto en el
Madison Square Garden de Nueva York, en mayo de 1974, que contó con la
participación de Bob Dylan (su primera aparición en años) e Isabel Allende,
hija del fallecido presidente Salvador Allende (Rivas, 2019). Ochs hizo lo
posible por ayudar, aunque a esa altura su salud mental había empeorado
Dossiê

considerablemente, sumado a un alcoholismo creciente. El golpe en Chile y la


muerte de Víctor Jara fueron dos impactos de los cuales no pudo recuperarse.
Años más tarde Albert reflexionó sobre la situación de Ochs: “Phil did not sing
at the event he organized. He did not write any new songs. He drank until he

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went insane” (Albert, 2004, p. 176). A pesar de las esperanzas de renovación que
el viaje a Chile había suscitado, Phil Ochs no volvió a publicar nueva música,
suicidándose el 9 de abril de 1976.
Al igual como los sesenta estadounidenses de nuestros viajeros terminaron
tras múltiples desilusiones, los sesenta chilenos terminaron aquel 11 de
septiembre de 1973. Para Stew Albert, Jerry Rubin y Phil Ochs, la experiencia
chilena representó, en efecto, una breve bocanada de aire fresco, de esperanza.
Sin embargo, el grado de violencia del golpe, sumado al rol de los EE.UU en
el golpe y la indiferencia de sus compatriotas frente a estos hechos, dieron a
esta historia un final amargo. Lo que comenzó como un nuevo camino hacia la
revolución acabó convertido en una prueba más de que esta había terminado y
con ella una época.

Conclusiones
¡Vivan los hippies buenos! Tres yippies en

Más allá del anecdotario que este viaje dejó, la reconstrucción del episodio
nos abre una ventana a los primeros meses de la Unidad Popular desde la óptica
de tres estadounidenses provenientes de otra experiencia política. A pesar del
conocimiento que estos poseían sobre América Latina y de su genuino interés
por el desarrollo del gobierno de Salvador Allende, la realidad del terreno se
el Chile de Salvador Allende

mostró más compleja. Si bien las fuentes dan cuenta de momentos de épica
revolucionaria, es posible apreciar también la complejidad del proceso chileno,
sus voces disonantes y otros fenómenos como el auge de la contracultura, la
cual parecía más transversal que lo que algunas voces más ortodoxas querían
Manuel Suzarte

reconocer.
Un aspecto interesante de este caso es justamente lo paradójico de pensar los
años sesenta en su dimensión global ya que, si bien las circulaciones culturales
y políticas son evidentes a través de las fronteras, como lo muestra el desarrollo
de la contracultura chilena, esto no se transformó necesariamente en una
invitación a un entendimiento mutuo sin tensiones. A pesar de la disposición,
al menos pública, de los viajeros a empaparse de la experiencia chilena, se
vieron confrontados a la indiferencia de algunos actores locales e incluso al
Dossiê

menosprecio de sus experiencias políticas. Las razones de esto las encontramos


en dos dimensiones: por una parte, el solo hecho de ser estadounidenses,
con un look que destacaba, les granjeó constantes críticas; por la otra, como
grafica la entrevista de la revista Ahora, los yippies venían de una experiencia
política muy distinta a lo que era la Unidad Popular, por lo que más allá de un

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interés puntual, el diálogo recíproco y los puntos comunes fueron difíciles de


establecer.

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Notas
1
Doctor del Instituto de Altos Estudios de América Latina (Université Sorbonne
Nouvelle), donde ejerce actualmente en cargo de ATER. Orcid: https://orcid.org/0000-
0002-1877-2207.
2
La circulación de este libro hacía Chile no es clara, sin embargo, la Revista Cormorán
publicó un extracto del libro traducido al español algunos meses antes del viaje de Rubin
a Chile en diciembre de 1970 con el título “Manifiesto Yippie” (Rubin, 1971).
3
Dos ejemplos son las canciones “Ballad of William Worthy” y “Talking Cuban Crisis” del
disco All The News That's Fit To Sing de 1964.
4
El antiamericanismo era algo extendido en la mayoría de las universidades chilenas,
con importantes episodios de manifestaciones contra las Cuerpos de la Paz (Purcell,
2014), sin embargo, en el caso de la UTE la situación era aún más conflictiva al ser una
universidad con un rector comunista y fuertemente identificada con la Unidad Popular.
5
El movimiento de la Nueva Canción chilena se origina en la segunda mitad de la década
del sesenta, protagonizado por músicos ligados con la izquierda que se propusieron
resignificar el folklor tradicional incorporando una dimensión política comprometida al
centro de la producción musical (Rodriguez, 2017).
¡Vivan los hippies buenos! Tres yippies en

6
Si bien Víctor Jara era militante Comunista, mostró una apertura e interés por la nuevas
expresiones artísticas y musicales. Un ejemplo de esto lo plasmó en una versión de su
canción “El Derecho de Vivir en Paz” publicada en 1971 en donde se hizo acompañar de
músicos jóvenes que incluyeron guitarras eléctricas y órganos al sonido.
7
Las fuentes no especifican que tipo de programa ni en que canal, sin embargo, en enero
el Chile de Salvador Allende

de 1972 Televisión Nacional emitió un programa llamado “Musical, con Phil Ochs” por
lo que asumimos que se trata del programa grabado por intermediario de Víctor Jara
(1972).
8
Al no tratarse de una orgánica formal, la Nueva Izquierda estadounidense debe pensarse,
Manuel Suzarte

retomando la caracterización realizada por Van Gosse, como un “movimiento de


movimientos”, es decir un movimiento que relacionaba distintos tipos de movilizaciones
político-culturales (Zolov, 2014, p. 350).
9
Un trabajo interesante en esta línea es el de Salgado sobre las discusiones valóricas en
las Juventudes Comunistas durante la Unidad Popular (Salgado, 2014).
10
Ifshin era miembro de la delegación estadounidense que participó del encuentro
internacional “La Juventud Latino y Norteamericana acusa al imperialismo : solidaridad
con Vietnam, Laos y Camboya” que contó con representantes del mundo entero, el
apoyo del gobierno chileno, los partidos de la Unidad Popular y dos organizaciones
internacionales: la Federación Mundial de la Juventud Democrática y la Unión
Internacional de Estudiantes (Suzarte, 2015, p. 76-82).
Dossiê

Con motivo del golpe de estado, el 28 de septiembre de 973, esta organización atentó
11

contra la sede latinoamericana de la empresa multinacional International Telephone &


Telegraph la cual había jugado un importante rol en los esfuerzos por desestabilizar el
gobierno de la Unidad Popular (Dohrn; Ayers; Jones, 2006, p. 209-214).
12
El FBI realizó un detallado seguimiento de los viajes de Albert y Ochs a Europa y América

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Latina, esto como parte de sus operaciones generales de seguimiento de militantes de


izquierda estadounidenses. En el caso del paso por Chile los archivos muestran en detalle
los itinerarios de vuelo, descripciones físicas y reportes de discusiones mantenidas
durante la estadía. El archivo del FBI sobre Ochs fue publicado en 2019 (Blair, 2019).
¡Vivan los hippies buenos! Tres yippies en
el Chile de Salvador Allende
Manuel Suzarte
Dossiê

Recebido em 16/10/2023 - Aprovado em 15/01/2024


Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.059-088, jul-dez. 2023 } 88
DOI: 10.5433/1984-3356.2023v16n32p089-126

Mulheres cineastas durante o


governo da Unidade Popular
(Chile, 1970-1973): reflexões
sobre o extra e o intra fílmico

Women filmmakers during


the Popular Unity government
(Chile, 1970-1973): reflections
on the extra and intra filmic

Mujeres cineastas durante


el gobierno de la Unidad
Popular (Chile, 1970-1973):
reflexiones sobre lo extra e
intra fílmico

Marina Cavalcanti Tedesco1

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Resumo: Alguns filmes produzidos durante o governo da


Unidade Popular (UP – 1970-1973) entraram para o cânone não
apenas do cinema chileno, mas do cinema latino-americano.
Por conseguinte, foram muito estudados ao longo dos anos,
enquanto outra parte da filmografia realizada no Chile naquele
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

período teve pouca ou nenhuma visibilidade. São exemplos


desse segundo caso as obras cinematográficas dirigidas por
mulheres nos primeiros anos da década de 1970, embora,
felizmente, algumas dessas cineastas sejam cada vez mais tema
de estudos e mostras. Não obstante, mesmo na bibliografia
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

recente, as produções com mulheres na direção feitas nos


tempos da UP não foram pensadas de forma conjunta. É esta
contribuição às pesquisas sobre o cinema de mulheres na
América Latina o objetivo do presente artigo. Após realizarmos
um levantamento partindo de diversas fontes, chegamos
a um corpus de 15 obras, que foram analisadas a partir dos
seguintes aspectos: composição da direção; formato; gênero
Marina Cavalcanti Tedesco

narrativo; forma de financiamento e estrutura de produção;


se tem entrevista; se tem narração; se tem música (se sim,
qual seu papel); a partir de que lógicas são construídas
as relações entre imagem e som; e lógicas de montagem.
Palavras-chave: cinema; mulheres; unidade popular; análise.

Abstract: Some films produced during the Popular Unity - UP


government (1970-1973) entered the canon not only of Chilean
cinema, but of Latin American cinema. Consequently, they
have been studied a lot over the years, while another part of
the filmography made in Chile in that period had little or no
visibility. Examples of this second case are the cinematographic
Dossiê

works directed by women in the early 1970s, although,


fortunately, some of these filmmakers are increasingly the
subject of studies and exhibitions. However, even in the recent
bibliography, the productions with women filmmakers made
in the days of the UP were not conceived together. It is this

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contribution to research on women's cinema in Latin America


that is the purpose of this article. After carrying out a survey
based on several sources, we arrived at a corpus of 15 works,
which were analyzed from the following aspects: composition
of the direction; Format; narrative genre; form of financing and
production structure; if it has an interview; if it has narration;
if there is music (if so, what is its role); from which logics are
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

built the relations between image and sound; assembly logic.


Keywords: cinema; women; popular unity; analysis.
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade
Marina Cavalcanti Tedesco
Dossiê

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Unidade Popular, cultura e cinema

Há aproximadamente 50 anos, em 11 de setembro de 1973, um golpe de Estado,


que aglutinou militares, capital nacional e internacional e setores conservadores
pertencentes a diferentes classes, depôs e assassinou Salvador Allende, então
presidente do Chile. Interrompeu-se, assim, através do uso extremo da violência,
uma transformação estrutural que se iniciara no país, a qual pretendia ser uma
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

via democrática para o socialismo – e que, independentemente de alcançar tal


objetivo ou não, já estava trazendo mudanças importantes para a população
mais pauperizada do campo e da cidade.
Allende, cuja posse ocorreu em 4 de novembro de 1970, foi eleito pela Unidade
Popular (UP), uma coalizão entre o Partido Socialista, o Partido Comunista, o
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

Movimiento de Acción Popular Unitaria, a Acción Popular Independiente e o


Partido Social Demócrata. Era o ápice de um processo de mobilização social,
organizado em formas mais ou menos institucionalizadas, em torno de pautas
progressistas, reformistas e/ou revolucionárias, que se iniciara anos antes.
Partimos, aqui, de um entendimento de cultura como uma esfera da vida
existente em qualquer sociedade (ainda que de formas muito distintas) e
interdependente das demais esferas da vida social, “elemento constitutivo da
ideologia, como também formador da consciência revolucionária” (Teixeira;
Marina Cavalcanti Tedesco

Dias, 2010, p. 124). Se considerarmos a polarização que se agudizava no Chile


na década de 1960 e durante o governo da UP, perceberemos a luta de classes
em torno do signo (Bakhtin, 2009). Logo, não surpreende encontrarmos no
Programa Básico de Gobierno de la Unidad Popular (1969) o seguinte trecho:

As profundas transformações que se empreenderão requerem de


um povo socialmente consciente e solidário, educado para exercer
e defender seu poder político, apto científica e tecnicamente
para desenvolver a economia de transição ao socialismo e aberto
massivamente à criação e ao gozo das mais variadas manifestações
da arte e do intelecto (Programa [...], 1969, p. 28, tradução nossa)2

Sobre os meios de comunicação, entre eles o cinema, a avaliação do programa


Dossiê

era:

São fundamentais para ajudar na formação de uma nova cultura


e de um homem novo. Por isso, deve-se imprimir neles uma
orientação educativa e liberá-los do seu caráter comercial,

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adotando as medidas para que as organizações sociais disponham


desses meios, eliminando deles a presença nefasta dos monopólios
(Programa [...], 1969, p. 28, tradução nossa)3

Não obstante, a compreensão da importância da cultura no programa da UP


não conseguiu se traduzir na elaboração de uma política efetiva para o setor
durante o governo. É preciso lembrar da forte resistência enfrentada desde
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

o primeiro dia por Allende, e essa correlação de forças impediu a criação de


estruturas, tais como ministérios e institutos, que eram de grande interesse do
governo (Yáguez, 2012). Ademais, não se pode ignorar as cisões internas. Dentro
da Unidade Popular havia distintas visões em relação a até que ponto e em
que temporalidade era possível avançar no processo revolucionário, pensado
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

de forma geral, e nas propostas para a cultura, em particular (Mouesca, 1988).


Carolina Amaral de Aguiar (2023) traz, ainda, outro elemento: uma sinalização
simultânea para dois caminhos aparentemente contraditórios. Encontrava-se
no programa da UP tanto “o esforço de descentralização e de apoio às iniciativas
espontâneas, bem como a tentativa de levar a cabo uma política cultural estatal
centralizadora por meio de novas instituições” (Aguiar, 2023, p. 234). Segundo
a autora, “a dificuldade de se conciliar esses dois princípios norteadores foi um
dos fatores responsáveis pelo desencontro dos agentes envolvidos nos distintos
Marina Cavalcanti Tedesco

campos artísticos” (Aguiar, 2023, p. 234).


Assim, a despeito de ter sido um período de ebulição e democratização da
cultura (a Editora Nacional Quimantú,4 as Brigadas Ramona Parra,5 o Tren de
la Cultura,6 entre tantas outras iniciativas que se somaram a Nueva Canción
Chilena e ao Nuevo Cine Chileno)7), muitos estudos, entre eles o de Jacqueline
Mouesca e Carlos Orellana (2010, p. 138, tradução nossa), avaliam que os
diferentes setores culturais acabaram ficando à mercê de “visões parciais,
produto do talento, maior ou menor, e do conhecimento de seus atores, ou de
uma maior ou menor capacidade de inspiração ou improviso daqueles que se
viram, de repente, à frente de um determinado campo de atividade”.8
Especificamente no cinema, a então estatal Chile Films, “criada em 1941,
durante o governo do radical Pedro Aguirre Cerda, e seus estúdios inaugurados
Dossiê

em 1942” (Del Valle Dávila, 2014, pos. 5411, tradução nossa),9 foi o carro chefe
das ações implementadas no governo da UP.

A Chile Films assumiu uma série de funções durante a Unidade


Popular que iam além daquelas adotadas por uma simples

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produtora estatal: ateliês de formação, comunicação oficial do


governo, produtora industrial, gerenciadora de salas de exibição,
promotora de mostras cinematográficas e até distribuidora de
filmes (Aguiar, 2023, p. 241).

Contudo, ao contrário do que a citação acima poderia sugerir, a estrutura


estava longe de ser a ideal. Mas os entusiasmados e até eufóricos (Mouesca,
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

1988) cineastas da UP e do Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR)


buscavam alternativas para contornar as limitações existentes. Ao rememorar
esta época, Patricio Guzmán (2021, p. 214, tradução nossa) relata:

O cinema utiliza a Chile Films e outros organismos ao seu


alcance para multiplicar suas obras. [...] o Departamento de Cine
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

de la Universidad de Chile, a Escuela de Artes de la Comunicación


de la Universidad Católica, a Escuela de Cine de la Universidad
Técnica, o Ministerio de la Agricultura, o Ministerio de Educación,
o Departamento de Cine de la Central Única de Trabajadores
e alguns canais de televisão. Os cineastas criam produtoras e
cooperativas independentes; buscam estabelecer convênios
entre si ou com organismos estatais, bancos do governo, e ainda
com a própria Chile Films ou com empresas estrangeiras10.
Marina Cavalcanti Tedesco

Percebe-se a mobilização dos trabalhadores e das trabalhadoras do cinema


por meio da filmografia que era realizada, mas também via o documento que
acabou conhecido como Manifiesto de los Cineastas de la Unidad Popular – o
qual não foi tão estudado como outros manifestos da época (Del Valle Dávila,
2014), mas é bastante revelador do cinema chileno do período e teve grande
circulação na América Latina e em publicações anglófonas (Palácios, 2013).
Em sua investigação sobre o tema, Pablo Marín Castro (2007) reconstruiu, na
medida do possível, sua história. Devido ao golpe de 1973, muitas fontes foram
destruídas. Restaram poucas publicações na imprensa e os depoimentos de
quem sobreviveu àqueles tempos, os quais, relata o autor, são bastante díspares.
Com segurança, ele considera possível afirmar que o manifesto foi redigido
Dossiê

entre março e setembro de 1970, no contexto eleitoral, pelo Comité de la


Unidad Popular (CUP) dos cineastas. O realizador Miguel Littin foi responsável
por parte significativa das ideias que o integraram, mas também houve outras
colaborações, inclusive através de assembleia – talvez, mais de uma.
Os autores e autoras do Manifiesto de los Cineastas de la Unidad Popular se

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posicionaram como homens (comprometidos com a construção do socialismo


(Manifiesto [...], 1988, p. 71)) e cineastas (instrumento de comunicação do povo
(Manifiesto [...], 1988, p. 71)). Declararam que o cinema chileno deveria ser uma
arte revolucionária (Manifiesto [...], 1988, p. 71) com o objetivo de liberação,
mas sem nenhuma forma de sectarismo. Defenderam que o cinema era um
direito de todo o povo e, por isso, precisava chegar a todos. Propuseram igual
acesso aos meios de produção a todos os trabalhadores do cinema (Manifiesto
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

[...], 1988, p. 72).

Perguntando-se pelo papel do cinema em um governo socialista,


o manifesto chileno traz três argumentos como resposta: 1)
o imperialismo e a burguesia alienaram a cultura nacional, e a
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

isso é necessário opor uma cultura “autêntica”; 2) o cinema deve


ser uma arte revolucionária, comprometida com a construção
do socialismo, y 3) as películas se convertem e revolucionárias
somente na medida em que mobilizam o espectador a uma ação
revolucionária. (Palácios, 2013, p. 128-129, tradução nossa)11

O meio cinematográfico estava em ebulição. Não é um acaso que, naquele


momento, tenham sido realizados filmes que se tornaram clássicos não apenas
Marina Cavalcanti Tedesco

no contexto da produção chilena, mas também no da latino-americana.


Porém, como sabemos, cânones são construídos a partir de disputas e acasos
que se dão dentro de determinadas relações de força, e são atravessados pela
exploração e pelas opressões que estruturam as sociedades. Logo, em muitos
lugares, inclusive na América Latina, há a tendência de que os cânones sejam
compostos por homens cisgêneros, brancos, heterossexuais e das classes média
e alta. No cinema da UP não foi diferente. Basta pensarmos nos grandes nomes
do período: Helvio Soto, Miguel Littin, Patricio Guzmán, Raúl Ruiz… Ainda
que suas carreiras tenham se iniciado antes de 1970, é indiscutível que suas
atuações durante o governo Allende foram um divisor de águas.
Outra tendência, quando ocorre a conformação de cânones, é a invisibilidade
de tudo o que não cabe nele. No caso do cinema chileno produzido entre o final
de 1970 e o golpe de 1973, isso significou, evidentemente, muitos homens, mas
Dossiê

também mulheres. Algumas delas, felizmente, têm sido temas de pesquisas e


mostras nos últimos anos (Ahumada, 2022; Cuneo; Pérez V., 2021; Soto; Pinto,
2016).
Não obstante, mesmo na bibliografia mais recente, os filmes com cineastas

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mulheres feitos durante o governo da UP não foram pensados de forma


conjunta. É esta contribuição aos estudos do cinema de mulheres na América
Latina o objetivo do presente artigo. Através de um levantamento que teve
como principais fontes os mecanismos de busca do site da Cineteca Nacional
de Chile e da Enciclopedia del Cine Chileno, constituímos um corpus composto
por 15 obras, as quais apresentaremos divididas em produções dirigidas apenas
por mulheres e produções com direção mista – uma divisão que retomaremos
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

em nossas análises posteriores.


Os filmes que têm apenas mulheres na direção são: Crónica del Salitre
(Angelina Vázquez, 1971), A tiempo (Cecilia Martorell, 1972), Amuhuelai-mi (ya
no te irás) (Marilú Mallet, 1972), Kardex 341 (Cecilia Ramírez, 1972), Salto de
Rapel (María Teresa Guzmán, 1972), A, E, I (Marilú Mallet, 1972), Hoy Medea
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

hoy (Manuela Gumucio, 1972) e Un sueño como de colores (Valeria Sarmiento,


1973). Já os com direção mista são: Flores S.A (Angelina Vázquez, Antonio
Menchaca, Carmen Bueno, Cecilia Martorell, Cristián Sánchez, David Vera-
Meiggs, Edmundo Olivares, Germán Bueno, Juan José Ulriksen, Patricio Campos,
Patricio Scarzella, Ricardo de la Fuente, Sergio Navarro, 1971), La explotación del
hombre por el hombre (Gustavo Moris, Kristiane Gagnon, Olinto Taverna, 1972),
Los minuteros (Raúl Ruiz, Valeria Sarmiento, 1972), Poesía popular, la teoría y
la práctica (Raúl Ruiz, Valeria Sarmiento, 1972), ¿Qué hacer? (Nina Serrano,
Marina Cavalcanti Tedesco

Raúl Ruiz, Saúl Landau, 1972),12 Vamos viendo (Antonio Montero, Jacqueline
Mouesca, Wolfgang Tirado, 1972) e Nueva Canción Chilena (Raúl Ruiz, Valeria
Sarmiento, 1973).
Com o objetivo de chegar, ao fim da investigação, a uma visão geral desta
filmografia, elegemos variáveis que, avaliamos, permitiram uma compreensão
extra e intra fílmica desse universo: composição da direção (mista ou uma
mulher); formato; gênero narrativo; forma de financiamento e estrutura
de produção; se tem entrevista; se tem narração; se tem música (e, em caso
afirmativo, qual seu papel); a partir de que lógica(s) são construídas as relações
entre imagem e som; e que lógicas predominam na montagem.
Quatro filmes que integram o corpus não estão disponíveis para visionamento
(A, E, I; Poesía popular, la teoría y la práctica; Los minuteros; Nueva Canción
Dossiê

Chilena). Não se conhece cópias deles que tenham sobrevivido à repressão.


Ainda assim, avaliamos que poderíamos mantê-los, pois, como afirmado, parte
de nossa análise será de elementos extra fílmicos.
Contudo, antes de nos aprofundarmos nessas produções, consideramos
pertinente tratar, mesmo que de forma breve, das questões de gênero do

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contexto pesquisado. Tais questões, somadas ao momento que o cinema vivia,


parecem-nos imprescindíveis (embora, evidentemente, também haja outros
fatores) para a compreensão tanto do aumento do número de diretoras no
Chile, entre 1971 e 1973, como para as limitações deste crescimento.

Unidade Popular e as mulheres em luta na sociedade chilena


Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

A primeira metade do século XX não pertence ao nosso escopo. Entretanto,


para um melhor entendimento do que veio depois, é importante mencionar
que nela houve fortes mobilizações feministas, as quais foram responsáveis
pela conquista de direitos importantes para as mulheres chilenas. Já entre 1950
e 1973, pode-se falar em um “silêncio feminista”, denominação cunhada por
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

Julieta Kirkwood (apud Alfaro; Inostroza; Hiner, 2021).


O silêncio de Kirkwood não se refere a um silêncio literal das mulheres, posto
que elas foram se tornando cada vez mais presentes na esfera pública ao longo
destes mais de 20 anos. Refere-se, sim, à sua dispersão entre movimentos sociais,
associações, partidos etc., o que fez com que, temporariamente, parassem de
gritar juntas (e, no caso de muitas de esquerda,13 de se identificarem como
feministas).
No que tange especificamente aos partidos em geral, as mulheres e “suas
Marina Cavalcanti Tedesco

questões” (vistas, via de regra, como específicas, ou seja, que não diziam
respeito ao conjunto da classe trabalhadora) costumavam ser organizadas em
setores. Dessa maneira, suas pautas e as próprias militantes tendiam a não
serem consideradas centrais.
No Programa Básico de Gobierno de la Unidad Popular, por exemplo, há uma
rápida menção ao combate à desigualdade salarial motivada por gênero em
uma proposta que pretende resolver um problema que é mais amplo:

Será estabelecido, em um prazo tecnicamente definido, um


sistema de remunerações e salários mínimos de níveis iguais,
independente de qual seja a empresa onde estes trabalhos se
realizem. […] Esta política se iniciará na área estatal, para ser
estendida a toda economia [...]. Do mesmo modo, se eliminará
Dossiê

toda discriminação entre o homem e a mulher ou por idade em


matéria de remunerações e salários (Programa [...], 1969, p. 26,
tradução nossa). 14

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A maior parte das políticas da Unidade Popular para as mulheres foram


em áreas consideradas femininas, como assistência, educação e saúde. Um
primeiro grande motivo para isso é que a concepção, então vigente na esquerda,
de que era preciso estatizar os cuidados para que as mulheres pudessem
entrar no mundo do trabalho (conforme aparece no próprio manifesto) não
significava desnaturalizar as funções sociais das mulheres ou redistribui-las
com os homens. Estas funções passariam a ser desempenhadas por mulheres
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

assalariadas, em horário comercial, e seguiriam com as mulheres de forma não


assalariada quando retornassem às suas casas. Ou seja, houve políticas para
que as mulheres entrassem ainda mais na esfera da produção, mas que não
levavam os homens à da reprodução.
Outra razão é que, mesmo se a concepção da UP e de seus líderes fosse outra
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

(o que não era o caso), a materialidade da vida das mulheres obrigava que as
políticas públicas para melhorar imediatamente sua situação estivessem ligadas
à alimentação familiar, escola para crianças e adolescentes, moradia etc. Basta
lembrar do seguinte item do Programa Básico de Gobierno de la Unidad Popular
para ver o quanto era necessário avançar:

Será estabelecida a plena capacidade civil da mulher casada e


condição jurídica igual para todos os filhos, nascidos dentro ou fora
Marina Cavalcanti Tedesco

do matrimônio, assim com uma adequada legislação de divórcio


com dissolução de vínculo, com plena garantia dos direitos da
mulher e dos filhos (Programa [...], 1969, p. 27, tradução nossa)15

Este fragmento do programa nos leva a um terceiro grande motivo para que
a maior parte das ações do governo Allende, no tocante às mulheres, tenham
sido em áreas “feminizadas”: a ferrenha oposição, por parte dos setores
conservadores do Congresso, a temas como aborto, controle da natalidade
e divórcio. Mesmo propostas baseadas em um ordenamento de gênero mais
tradicional, mas que beneficiariam as mulheres, como a criação de um Ministério
da Família, foram barradas (Yáguez, 2012).
Ou seja, havia muitas resistências da direita, complexidades estruturais
e contradições na esquerda. Assim, durante o período da Unidade Popular,
Dossiê

grandes lideranças mulheres (a sindicalista Mireya Baltra, por exemplo, que


foi Ministra do Trabalho) foram exceções e o lugar das mulheres no caminho
chileno para o socialismo estava “na retaguarda do doméstico e do privado, ainda
que pudessem participar na esfera pública na qualidade de ajudantes” (Yáguez,

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2012, p. 33, tradução nossa).16 Entretanto, elas participavam cada vez mais da
vida pública do país como militantes, líderes locais “nas comunidades, nos
diversos comitês de ocupação de terrenos, centro de mães, clubes desportivos”
etc. (Alfaro; Inostroza; Hiner, 2021, pos.1233, tradução nossa).17
E as estatísticas eleitorais nos levam a pensar que houve uma melhora efetiva
na vida de parte expressiva das mulheres. Em 1970, nas eleições presidenciais,
30,6% das mulheres votantes optaram pela UP. Nas eleições municipais de
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

1971, tal percentual foi para 43,6% (Yáguez, 2012, p. 30). Mesmo nas eleições
legislativas de 1973, quando o país já vivia as duras consequências do caos criado
para preparar o terreno do golpe, 39% das mulheres votaram na UP (Yáguez,
2012, p. 37). A despeito de estarmos estabelecendo comparações entre pleitos
muito diferentes, os números apontam, sim, para o aumento e manutenção do
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

apoio das mulheres, provavelmente relacionado com mudanças nas condições


de vida.
Ainda assim, é preciso observar que a UP não teve o voto nem de metade
das mulheres eleitoras naqueles anos. Considerando os filmes e trajetórias
que analisamos nesta pesquisa, os percentuais de apoio à coligação entre
as mulheres diretoras de cinema certamente foram bem maiores, apesar da
presença de algumas militantes do Movimiento de Izquierda Revolucionaria.18
Marina Cavalcanti Tedesco

Mulheres na direção cinematográfica durante a Unidade Popular

Antes de começarmos a apresentar nossas análises de tal filmografia, é


preciso destacar que, segundo Antonio Machuca Ahumada (2022), é apenas a
partir de 1969 que a atividade criativa das mulheres enquanto “presença atrás
das câmeras com trabalho narrativo e estético- não se deteria mais, sendo o
aporte feminino determinante no panorama cinematográfico chileno posterior”
(Ahumada, 2022, p. 147, tradução nossa)19.
Antes disso, as mulheres diretoras eram aparições raras e pontuais: Gabriela
Bussenius, Rosaria Rodríguez e Alicia Armstrong no período silencioso;
mais de 20 anos depois, Bélgica Castro codirigindo com Domingo Tessier,
seu companheiro, Quinta Normal (1954) – e tendo seu nome “omitido nas
Dossiê

publicações, como em geral acontecia com as mulheres realizadoras” (Ahumada,


2022, p. 133, tradução nossa) –.;20 e Nieves Yankovic sendo praticamente a única
cineasta em atividade entre 1958 e 1968 (Ahumada, 2022).
Assim, sem ignorar todas as complexidades e limitações que apresentaremos
nas próximas páginas (e, de diferentes maneiras, até o final do presente artigo)

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à atuação das mulheres na direção cinematográfica, é possível constatar a


mudança apontada por Ahumada, uma mudança que tem início quase junto
com a UP.
Em 1971, encontramos dois filmes chilenos com mulheres diretoras. Um deles
é Flores S.A., feito na Escuela de Artes de la Comunicación de la Universidad
Católica de Chile – e o fato de ser uma produção universitária vai aproximá-
la em certos aspectos de alguns títulos do corpus, ponto ao qual voltaremos
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

mais tarde. Sua realização foi compartilhada por 12 pessoas, entre elas
Angelina Vázquez,21 Carmen Bueno22 e Cecilia Martorell. Vázquez e Martorell
reaparecerão em outros trabalhos aqui analisados.
Este curta-metragem ficcional/experimental de pouco mais de quatro minutos
mostra a destruição dos canteiros de flores de um homem devido à chegada do
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

“progresso”, representado pela construção de prédios. Como consequência, ele


acaba tendo que comprar de um vendedor uma flor de plástico, no que parece
ser uma metáfora da destruição dos modos tradicionais de vida, que obriga a
aquisição, através de dinheiro, de versões piores do que antes se produzia. A
influência do cinema silencioso na obra é evidente.
O outro filme é Crónica del Salitre, de Angelina Vázquez, documentário
proveniente das oficinas da Chile Films (Ahumada, 2022). Em seus quase dez
minutos, a narração conta, estabelecendo algumas conexões com a história
Marina Cavalcanti Tedesco

do movimento operário chileno, a repressão do início do século XX, as más


condições de trabalho e as mudanças trazidas pelo surgimento da luta sindical
na Oficina Salitrera Alemania, mina de sal em Antofagasta.
Em um relato comovente sobre tal obra, contido na Enciclopedia del Cine
Chileno, Angelina Vázquez avalia: “A recuperação da memória, as esperanças dos
velhos mineiros no futuro e a dignidade de um ofício destinado a desaparecer
foram a matéria-prima do trabalho de campo de um grupo de jovens que,
nessa sua primeira película, pôs todas suas esperanças de justiça e igualdade”
(Crónica [...], [1971], tradução nossa)23.
Se encontramos duas realizações de Vázquez em 1971, a segunda de Cecilia
Martorell aparecerá em 1972. A tiempo é mais um curta-metragem da Escuela de
Artes de la Comunicación de la Universidad Católica de Chile com pouco mais
Dossiê

de quatro minutos. Contudo, nesse caso, há apenas uma pessoa na direção:


Martorell.
A ficção experimental mostra ao público um homem apressado e a imaginação
de três personagens sobre que motivos ele teria para tamanha pressa. Através
da trilha sonora, presente desde os créditos iniciais, e da caracterização de

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uma das pessoas que persegue o protagonista com o objetivo descobrir sua
motivação, estabelece-se, como já havia ocorrido em Flores S.A., referências à
história do cinema.
Nesse mesmo ano, mais três filmes foram realizados por mulheres na Escuela
de Artes de la Comunicación de la Universidad Católica de Chile. Kardex 341, de
quatro minutos e meio, foi dirigido por Cecilia Ramírez. Nele, acompanhamos
a história de um burocrata que, saturado do trabalho, joga tudo para cima e,
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

depois, conquista uma mulher que, a princípio, não havia lhe dado nenhuma
atenção.
Através da montagem de imagem e trilha sonora, percebemos que o abandono
do emprego e a sedução tinham sido um devaneio. Ao burocrata não resta outra
alternativa a não ser voltar a trabalhar. Dentre as ficções analisadas em nosso
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

corpus, trata-se da mais tradicional em sua estrutura e linguagem.


A segunda produção da Escuela de Artes de la Comunicación de la
Universidad Católica de Chile que integra nossa pesquisa é Salto de Rapel, de
María Teresa Guzmán. Salto… é um documentário com duração de menos de
três minutos, que, após fornecer algumas informações sobre uma hidrelétrica,
passa a apresentar imagens das quedas de água e das piscinas formadas pelo
represamento, acompanhadas de música clássica.
O volume de água em movimento, aliado a enquadramentos que fazem as
Marina Cavalcanti Tedesco

águas parecerem nuvens e à suavidade da trilha sonora, despojam a obra de


qualquer crítica ao “progresso” – diferente de Flores S.A.. Não por acaso, o filme
teve apoio creditado da então estatal Empresa Nacional de Electricidad S.A.
(Endesa).
Por fim, a terceira realização feita em 1972 na mesma instituição é Hoy Medea
hoy, de Manuela Gumucio. Gumucio, que, como a maioria das citadas, não
seguiu na carreira de cineasta, dirigiu uma obra que se diferencia das demais
principalmente por dois motivos. O primeiro é sua duração, posto que ele tem
mais de 27 minutos. Os outros da Escuela de Artes de la Comunicación de la
Universidad Católica de Chile com mulheres na direção não chegavam a cinco
minutos segundo Corro et al. (2007) (a produção universitária tinha, em média,
entre cinco e 15 minutos).
Dossiê

O segundo é a abordagem de um tema inusual no período, conforme


trataremos adiante. Valendo-se de algumas ficcionalizações a partir de Medéia
(431 AEC.), de Eurípides, o documentário traz uma longa entrevista sobre a
maneira equivocada que a maternidade era vista na sociedade chilena, a qual
acarretava muitas consequências nefastas para as mulheres abandonadas pelos

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maridos e seus filhos.24


Outros quatro filmes de 1972 que integram nosso estudo tiveram
envolvimento direto do Estado. Dois foram feitos por Marilú Mallet enquanto
trabalhou no Instituto de Cinematografía Educativa del Departamento de
Cultura del Ministerio de Educación (1971 a 1973). Amuhuelai-mi (ya no te
irás), em pouco mais de 11 minutos, denuncia e comprova, através de dados,
imagens e entrevistas, a opressão aos mapuches que os leva para as cidades,
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

onde seguem sendo explorados.


A “questão mapuche”, cara ao contexto da Unidade Popular, fez-se presente
em El Primer Año (Patricio Guzmán, 1971), mas, na película de Mallet, é o
tema principal. Chile Films também consta nos créditos. Segundo a cineasta,
foi na estatal que conseguiu finalizar Amuhuelai-mi. “Terminei ela em Chile
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

Films, graças a Osvaldo del Campo, presidente do sindicato à época, que me


apresentou Carlos Piaggio, um montador argentino, generoso, culto e dedicado
com quem aprendi muito” (Soto; Pinto, 2016, p. 254, tradução nossa)25.
A, E, I, da mesma realizadora, é considerada perdida. Em seus supostos dez
minutos, o documentário tratava do problema do analfabetismo no Chile.26 Não
sabemos nada sobre sua linguagem e se, além do Instituto de Cinematografía
Educativa del Departamento de Cultura del Ministerio de Educación, teve o
suporte de outra instituição.
Marina Cavalcanti Tedesco

Chile Films também aparece creditada, junto com a Secretaria de Extensión


y Comunicaciones de la Universidad Técnica del Estado, em Vamos viendo,
de Antonio Montero, Jacqueline Mouesca e Wolfgang Tirado. Em pouco mais
de 19 minutos, apresenta-se ao público o imperialismo, principalmente o
estadunidense, como causa do subdesenvolvimento chileno e latino-americano.
A narração, as músicas que surgem em vários momentos e as imagens do
presente mostram agressões dos Estados Unidos pelo mundo, com destaque
para o Vietnã, e as locais, contra a Unidade Popular. Contudo, o filme termina
otimista, afirmando (o que é corroborado pela trilha sonora) que os agressores
terão que enfrentar o povo. Vale lembrar que o povo como sustentação do
governo e agente das mudanças não estava só no cinema, mas também em
canções como El pueblo unido jamás será vencido, Canción del Poder Popular,
Dossiê

entre outras.
No documentário La explotación del hombre por el hombre, Gustavo Moris,
Kristiane Gagnon e Olinto Taverna mesclam entrevistas, músicas e uma
narradora (narradoras mulheres existiam no cinema político e militante latino-
americano do período, embora isso fosse bastante incomum) para construir

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uma narrativa que, após um breve prólogo, retrocede para antes da colonização,
mas dedica aproximadamente 30 minutos de seus pouco mais de 40 ao presente
chileno.
Dado que foi uma produção do Instituto de Desarrollo Agropecuario (INDAP),
a ênfase da narrativa está no campo: a importância do campo nas lutas no Chile
e na Revolução Cubana; a falsa proposta de reforma agrária que os Estados
Unidos impunham aos governos latino-americanos para apaziguar os setores
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

mais combativos da sociedade; e as diferenças entre tais propostas e a da


Unidade Popular.
Único longa-metragem do corpus, ¿Qué hacer? foi realizado pelos
estadunidenses Nina Serrano e Saúl Landau, sendo Raúl Ruiz contratado para
dirigir a parte chilena do elenco27. Em seus 90 minutos, situações ficcionais
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

são mobilizadas para refletir sobre o Chile no contexto eleitoral de 1970. São
elementos fundamentais para produzir tal reflexão a inserção de muitos planos
documentais (dos quais, por vezes, as personagens ficcionais participam) e
dispositivos de distanciamento, para o público não imergir na narrativa.
A semente do filme, segundo Serrano, foi plantada nela e em Landau por Fidel
Castro. O líder cubano teria dito a eles, em 1969: “A próxima película de vocês
deveria ser sobre o Chile, porque lá haverá eleições que mudarão a história. Se
poderá votar no socialismo, evitando a revolução, as mortes e as guerras civis”
Marina Cavalcanti Tedesco

(Serrano, 2018)2829. Para tal fim, formaram a Lobo Films e começaram a captar
recursos junto a diversas fontes.
Encerrando o ano de 1972, há duas realizações da dupla Raúl Ruiz e Valeria
Sarmiento para a Editora Nacional Quimantú e a Televisión Nacional de
Chile (TVN). Por serem obras desaparecidas, apresentaremos, mais uma vez,
informações da Enciclopedia de Cine Chileno.
Em Los minuteros, de supostamente 15 minutos, “mostra-se a um fotógrafo
de praça explicando os procedimentos do seu trabalho. Ao fundo, escuta-se um
poema escrito pelo diretor. É um filme que faz parte de uma série documental
produzida pelo Canal 7 e pela Editorial Quimantú” (Los minuteros, [1972],
tradução nossa)30.
Por sua vez, em Poesía popular, la teoría y la práctica, de presumidos 20
Dossiê

minutos,

São mostradas duas ações paralelas. Em uma delas, está uma


especialista em poesia popular, que expõe teoricamente as
características de tal arte no Conservatório. Na outra, em um

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bairro humilde, um poeta popular escreve em um muro enquanto


chove, logo marca as letras com uma faca, para que a chuva não
borre o poema. Aborda-se a realidade dos poetas populares,
muitos analfabetos e mestres do improviso. (Poesía [...], [1972],
tradução nossa)31

O único filme com mulher na direção de 1973 ao qual tivemos acesso é Un


Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

sueño como de colores, produção da Chile Films e estreia de Valeria Sarmiento na


carreira solo de cineasta.32 Neste documentário de quase 11 minutos baseado
em entrevistas, ela se soma a Manuela Gumucio ao levar às telas “questões de
mulheres”: suas protagonistas são dançarinas que ficam seminuas no palco e
em nenhum momento expressam vergonha da profissão que exercem.
Em relação à sua recepção, “não foi muito comentado, porque não se
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

entendeu que eu tivesse feito uma película sobre as bailarinas da Bim Bam Bum
[companhia chilena de teatro de revista] quando todos os cineastas estavam
fazendo filmes sobre o processo político” (Sarmiento apud Ahumada, 2022, p.
203, tradução nossa).3334 Ao mesmo tempo, Sarmiento relatou a Ian Christie
que, quando o diretor Miklos Jancso esteve no Chile, durante o governo da
Unidade Popular, e assistiu às películas do período, disse sobre Un sueño como
de colores: “essa é a que gosto mais!” (Christie, 2016, p. 279, tradução nossa).35
Marina Cavalcanti Tedesco

O outro filme de 1973 que integra nossa pesquisa, Nueva Canción Chilena, é
considerado perdido. Supostamente, sua duração era de 20 minutos.36 Realizado
pela dupla Raúl Ruiz e Valeria Sarmiento, novamente para a Quimantú e a TVN,
era um “documentário sobre o movimento musical chamado Nueva Canción
Chilena. São mostrados os novos cantores populares e seus distintos grupos.
Vê-se apresentações ao vivo”) (Nueva [...], [1973], tradução nossa)37.
Em nosso levantamento encontramos, ainda, Dónde voy a encontrar otra
Violeta, de Marillú Mallet. No entanto, não o incluímos em nosso corpus porque
ele esteve muito próximo de ser finalizado, mas não o foi devido ao golpe.
Ainda assim, avaliamos que cabe, nesse texto, trazer dados sobre o que a obra
teria sido.
Segundo Mallet (apud Soto; Pinto, 2016), a produção estava baseada em um
poema de Nicanor Parra em homenagem à sua irmã. Participaram, além do
Dossiê

irmão, outros familiares de Violeta Parra (mãe, filhos, ex-marido etc.). Ademais,
havia imagens de arquivos nacionais e internacionais.

Esta película foi confiscada pelo regime militar e não se soube

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mais dela. Estava quase terminada, já tinha a montagem final e a


mixagem feitas. Faltava o corte de negativo e a produção da cópia
final. Para mim, foi algo sumamente trágico e irrecuperável, pois
era uma homenagem a uma mulher artista chilena que tinha
sido bastante menosprezada em vida pela sociedade do seu país.
Nunca fiz o luto (Soto; Pinto, 2016, p. 254, tradução nossa)38.
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

Durante essa breve apresentação dos filmes com os quais estamos


trabalhando, fomos explicitando algumas relações mais evidentes entre uns
e outros. Agora, conforme os objetivos apontados anteriormente no texto,
trataremos dos resultados das análises de caráter mais geral empreendidas
sobre nosso corpus.
Das 15 realizações que o integram, oito (Crónica del salitre, Amuhuelai-mi,
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

A tiempo, Kardex 341, Salto de Rapel, A, E, I, Hoy Medea hoy e Un sueño como de
colores) foram dirigidas de forma solo por mulheres e sete têm direção mista.
Este primeiro dado extra fílmico (nos voltaremos, posteriormente, para as
questões de linguagem) já traz algumas inquietações. Vimos, na segunda seção,
que parte significativa das ações da Unidade Popular para integrar as mulheres
eram atravessadas por certo conservadorismo no que tange às questões de
gênero. É impossível não recordarmos disso ao olharmos para as composições
Marina Cavalcanti Tedesco

das equipes.
O aumento de cineastas mulheres em início de carreira no período é
evidente (muitas das obras aqui investigadas são de estreia), em consonância
com o que trouxemos no começo deste tópico. Ao mesmo tempo, diversas
vezes seus caminhos para a direção cinematográfica foram percorridos junto
com um homem. Evidentemente, não é possível inverter a pergunta (“quantos
homens se atrelaram a mulheres para começar suas carreiras?”), dada a brutal
desigualdade de gênero na ocupação da função. Contudo, indagamos: quase
metade dos homens à época precisaram se associar a outros homens para dar
início às suas atividades na realização? Não nos parece ser o caso.
Também é importante destacar que, dos sete filmes com direção mista, em
três uma mesma dupla se repete: Raúl Ruiz e Valeria Sarmiento. Considerando
que ela foi a mulher que mais exerceu a função de cineasta nos tempos da UP,
Dossiê

fica explícito que a continuidade da trajetória de uma mulher na direção (porque


não temos que olhar apenas para o ingresso, mas também para a permanência)
era facilitada pela presença de um homem.
Nesse caso, Raúl Ruiz e Valeria Sarmiento foram casados durante muitas

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décadas, ao longo das quais fizeram vários filmes juntos, em geral tendo Ruiz
na direção e Sarmiento na montagem. Conforme destaca Ian Christie (2016, p.
272), em entrevista que realizou com Sarmiento: “Este acaso limitou a produção
própria de Valeria? Sem dúvidas que sim, de algumas maneiras”.39 Ao mesmo
tempo, “foi Ruiz quem primeiro lhe permitiu trabalhar com cinema durante
a Unidade Popular, e seguiu apoiando muitos de seus projetos”.40 É a própria
Valeria Sarmiento, nessa mesma entrevista, quem complementa: “Era um
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

assunto económico. As películas de Raúl atraíam financiamento, e quando era


necessário terminar uma e não havia dinheiro para a edição […] era a questão
da nossa sobrevivência. E a economia também é importante” (Christie, 2016,
p. 287, tradução nossa).41 Especialmente após partirem para o exílio, depois do
golpe de 1973.
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

A presença de um homem também fez diferença para um horizonte onde


houvesse mais diversidade de formatos. Das nossas 15 obras, nove são curtas-
metragens (Flores S. A., Crónica del salitre, Amuhuelai-mi, A tiempo, Kardex 341,
Salto de Rapel, A, E, I, Los minuteros e Un sueño como de colores) – duas com
direção mista; cinco são médias-metragens (La explotación del hombre por el
hombre, Vamos viendo, Poesía popular, la teoría y la práctica, Hoy Medea hoy e
Nueva Canción Chilena) – quatro com direção mista; e uma é longa-metragem
(¿Qué hacer?) – com direção mista.
Marina Cavalcanti Tedesco

Trata-se de um percentual esperado, já que o curta costuma ser o formato de


“entrada” e, como apontamos, estamos estudando realizadoras em princípio de
carreira. Assim, o atrelamento a um homem facilitou duplamente o “salto” para
filmes com mais de 15 minutos (classificação que utilizamos para demarcar
a diferença entre curta e média metragem) ao agregar gênero e, por vezes,
experiência.
No caso do longa-metragem, deve ser considerada, ainda, a questão da
nacionalidade. Como vimos, ¿Qué hacer? foi uma iniciativa de estadunidenses,
responsáveis tanto pelo conceito criativo (Nina Serrano e Saúl Landau) da
obra quanto pela captação de recursos (Saúl Landau e James Beckett). Ou seja,
Serrano, única mulher do nosso corpus a fazer um longa-metragem, mesmo
que em uma equipe de direção mista, não é chilena – o que nos parece bastante
Dossiê

significativo.42
Outra situação que esperávamos constatar, e que se confirmou, foi a
predominância do documentário, gênero narrativo de 11 produções. Da mesma
maneira que no formato, avaliamos que a desigualdade de gênero é, sim,
um fator estruturante, mas que participa de uma complexa equação. Afinal,

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estamos falando de um país cujo cinema sempre foi marcado por inconstâncias,
descontinuidades, dificuldades para filmar, finalizar e exibir. Falamos, portanto,
de uma filmografia onde o documentário é uma realidade mais acessível.
Ademais, não estamos estudando qualquer contexto. Uma revolução
estava em curso e precisava ser registrada, visibilizada e defendida, e, em
geral, acreditava-se que o documentário era a melhor forma de fazer isso. “A
preferência pelo documentário, no lugar da ficção, apela fortemente à crença
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

de que o que se estava vivendo se escrevia nos anais da história enquanto se


filmava” (Bossay, 2014, p. 109, tradução nossa)43.
Tomemos, por exemplo, o caso de Patricio Guzmán, um dos responsáveis
por fazer, para Chile Films, longas-metragens de ficção dedicados a alguns
“heróis da pátria”. Ele não se dedicou inteiramente a tal projeto não apenas
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

por questões estruturais e econômicas, mas (e talvez principalmente) porque


“era absolutamente impossível deixar de filmar o que estava acontecendo nesse
momento” (Guzmán apud Mouesca; Orellana, 2010, p. 148, tradução nossa)44.
São exemplos disso seus filmes El primer año (1972) e La respuesta de Octubre
(1972).
Não obstante, mesmo considerando tudo o que acabamos de expor, não é
possível ignorar que as mulheres, de forma solo, só dirigiram ficção dentro do
curta-metragem, através de curtas-metragens bem curtos (com menos de cinco
Marina Cavalcanti Tedesco

minutos de duração) e universitários (Flores S. A., A tiempo e Kardex 341). Aliás,


o adjetivo universitário se refere ao modo de produção que viabilizou seis obras
do nosso corpus, ou seja, quase metade delas.45 Por isso, parece-nos importante
tecer brevíssimas considerações sobre a importância dessas instituições para o
cinema chileno à época antes de prosseguir com nossas análises.
Conforme já mencionamos, naqueles anos o documentário seguia
predominante em relação às ficções. E, segundo Ignacio del Valle Dávila (2014,
pos. 5523, tradução nossa), “o grosso da produção documental do período foi
responsabilidade de instituições ligadas a universidades”.46
Corro et al. (2007, p. 11) apontam que “dominarão em termos temáticos
e numéricos na produção universitária do período -filmes realizados por
encomenda para empresas do Estado (Endesa, Entel, Banco del Estado)”.47
Dossiê

Curiosamente, apenas uma das películas com as quais estamos trabalhando


se encaixa nesse perfil: Salto de Rapel. Dentre os não ficcionais, a maior parte
privilegiava, filiando-se a outra vertente desta filmografia, “as zonas intersticiais,
compreendendo estes interstícios como os vastos espaços, realidades e grupos
humanos que permanecem à margem do relato oficial” (Corro et al., 2007, p. 8,

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tradução nossa).48
A importância do cinema universitário no Chile era tamanha que, em seu
livro Historia analítica del cine experimental en la Universidad de Chile. 1957-
1973 (2007), Claudio Salinas e Hans Stange recordam uma proposição da grande
investigadora Jacqueline Moesca:

Mouesca estabelece o nascimento do documentário


Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

contemporâneo no Chile a partir de três eventos ocorridos


todos na segunda metade dos anos cinquenta: a fundação do
Instituto Fílmico de la Universidad Católica (1955), a exibição do
filme Andacollo, de Nieves Yancovic e Jorge di Lauro (1958), e a
fundação do Centro de Cine Experimental de la U. de Chile (1959)
(Salinas; Stange, 2007, p. 27, tradução nossa)49.
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

No caso das mulheres, acrescentaríamos ao conteúdo destes importantes


estudos algumas observações nossas (e nos valemos delas na falta de pesquisas
sistemáticas sobre cursos universitários de cinema e gênero). A universidade,
embora tenha em seu interior a exploração e as opressões que encontramos de
forma geral nas sociedades, costuma possibilitar mais diversidade de gênero
na direção cinematográfica que outros espaços, como a militância, o mercado
Marina Cavalcanti Tedesco

etc. Isso ocorre, entre outros fatores, porque de uma forma ou de outra todo
mundo tem que participar das realizações, o que faz com que a concorrência
pelas cabeças das equipes se dê de outras formas, e que o network e o sistema de
indicações, que tendem a ser bastante endógenos, importem um pouco menos.
Durante o processo de pesquisa, encontramos uma afirmação de Valeria
Sarmiento para Bruno Cuneo e Pérez V. (2021, pos. 2051, tradução nossa) que
vai em direção semelhante:

Eu acredito em algo que me dizia uma diretora mexicana: que


a única maneira das mulheres entrarem no cinema nessa época
era através das escolas [de cinema], porque se tentassem através
dos sindicatos não as deixavam, porque os sindicatos eram
terrivelmente machistas.50
Dossiê

Diante de tudo o que expusemos sobre a produção universitária chilena


durante a UP, os quase 50% acima referidos não surpreendem. Tampouco
que tenham vindo dessas seis obras metade dos filmes apenas com cineastas
mulheres do nosso corpus. Aos já referidos nos parágrafos acima, soma-se Hoy

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Medea hoy – que quebra padrões não só temáticos, conforme comentamos em


sua apresentação, mas também de duração para o cinema universitário e de
mulheres na UP, posto que é um média-metragem.
Além de instituições de ensino superior, o Estado foi o outro grande
financiador das produções com mulheres na direção no Chile de Allende.
Trabalhar no Instituto de Cinematografía Educativa del Departamento de
Cultura del Ministerio de Educación permitiu que Marillú Mallet fizesse
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

Amuhuelai-mi e A, E, I, sendo o primeiro em parceria com a Chile Films. A Chile


Films, por sua vez, foi a produtora de Crónica del salitre, realizado por Angelina
Vázquez, em uma de suas oficinas. E o local de edição de Un sueño como de
colores, de Valeria Sarmiento, cuja edição, a cargo de Carlos Piaggio, foi feita
em seu tempo livre na estatal – um acesso não sabemos se teria ocorrido sem
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

sua associação amorosa e profissional a Raúl Ruiz.51 Esta ressalva não diminui
em nada os méritos e talentos de Sarmiento, os quais podem ser comprovados
em sua longeva carreira. Expõe, sim, as desigualdades de gênero à época.
Aliás, o mesmo pode ser dito sobre o financiamento de Poesía popular, la
teoría y la práctica, Los minuteros e Nueva Canción Chilena por parte da Editora
Nacional Quimantú e a Televisión Nacional de Chile. Dentro do que é possível
afirmar a partir dos dados que sobreviveram aos horrores do golpe de 1973,
nenhum projeto de mulher com direção solo ou recebeu este apoio ou foi
Marina Cavalcanti Tedesco

encomendado. E isso não é desprezível, já que temos a impressão de que a


Quimantú e a TVN poderiam aportar uma boa quantidade de recursos em
comparação com os outros agentes mencionados.
O último filme do nosso corpus produzido pelo Estado, no caso o INDAP,
é La explotación del hombre por el hombre. Mais uma vez, tratava-se de uma
realização de equipe mista. Ou seja, de oito obras “estatais”, quatro foram
dirigidas apenas por cineastas mulheres. Porém, uma delas foi em oficina
(um espaço formativo), duas por uma trabalhadora do Estado (mais uma vez,
nenhum demérito; vale para Mallet o mesmo que falamos sobre Sarmiento) e
uma quarta que, como vimos, dificilmente pode ser dissociada de um homem.
¿Qué hacer?, único longa-metragem de ficção que encontramos – e,
provavelmente o único mesmo, já que longas-metragens de ficção são o produto
Dossiê

característico das salas de cinema e costumam deixar mais vestígios –, foi feito
por uma produtora independente de estadunidenses com capital internacional.
Mas levanta a pergunta: Patricio Guzmán, em fala citada acima, refere-se a
diferentes formas de viabilizar filmes, como produtoras independentes,
cooperativas e empresas internacionais. Nenhuma delas foi procurada pelas

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mulheres? Ou faltou confiança nas realizadoras?


Certamente, não esgotamos todas as abordagens possíveis dos elementos
extra fílmicos do cinema de mulheres durante a Unidade Popular. Contudo,
avaliamos que as análises que empreendemos permitem compreender, em
linhas gerais, o que foi tal conjunto no que tange às intersecções entre formatos,
gêneros narrativos, modos de produção e desigualdade de gênero.
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

Reflexões sobre os filmes dirigidos por mulheres durante a Unidade


Popular

Para refletir sobre os aspectos intra fílmicos do nosso corpus, foi necessário,
como havíamos antecipado, reduzir o número de filmes estudados para 11
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

(apenas aqueles aos quais tivemos acesso às cópias): Flores S.A, Crónica del
Salitre, ¿Qué hacer?, Amuhuelai-mi (ya no te irás), A tiempo, Kardex 341, Salto de
Rapel, La explotación del hombre por el hombre, Vamos viendo, Hoy Medea hoy e
Un sueño como de colores.
Quando se fala em realizações latino-americanas dos anos 1970,
especialmente em um contexto revolucionário, e ainda mais no documentário,
costuma vir à nossa mente certas maneiras de trabalhar e estruturar a linguagem
cinematográfica. Não obstante, o conjunto que encontramos é bem mais diverso
Marina Cavalcanti Tedesco

que esse imaginário em vários níveis – embora haja tendências e convergências


importantes.
Quanto ao uso de entrevistas, foi uma surpresa sua ausência em Vamos viendo.
Em termos sonoros, este documentário aposta principalmente na narração e,
em segundo lugar, em canções que acentuam o clima do que está sendo visto
para falar do imperialismo e suas consequências nefastas e dos ataques ao
projeto da Unidade Popular desde a campanha que levou à sua vitória. Também
não há entrevistas em Salto de Rapel, mas esta obra de não ficção tem uma forte
dimensão poética (apesar de ter financiamento da Endesa) e não é, de nenhuma
forma, militante, o que diminui a quase certeza do uso do recurso.
¿Qué hacer?, por outro lado, surpreende por interromper sua narrativa
ficcional quase aos 25 minutos para trazer uma entrevista com Sergio Zorrilla.
Dossiê

Nela, ele comenta, em tom de crítica, ideias trazidas na sequência anterior:

Se tiende a mostrar, en las escenas anteriores, por la información


que tengo, de que la contradicción fundamental del proceso
revolucionario en Chile estaría centrada fundamentalmente

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entre sectores del Partido Comunista y sectores de la izquierda


revolucionaria chilena. Contradicción que, primero, es falsa. Y
segundo, mucho más falsa aún la contradicción cuanto a que la
escena tiende no tan sólo a mostrar una contradicción entre el
Partido Comunista y los sectores de izquierda revolucionaria en
Chile en lo que tiende a acentuar una contradicción entre sectores
de más edad y sectores de menos edad. Nosotros creemos que la
contradicción fundamental en nuestro país, en América Latina y
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

en todo el mundo del subdesarrollo por la lucha revolucionaria


es entre los opulentos y los explotados, entre los que tienen la
riqueza, los medios de producción en sus manos, y los que lo
tiene (¿Qué hacer?, 1972).
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

Uma cartela informa que ele é uma liderança do MIR filmado na prisão
(Figura 1). Fica evidente, por comparação com outras cartelas, que não é um
ator interpretando-o. A entrevista, elemento tão comum nos documentários, é
intencionalmente convertida em um dispositivo brechtiano de distanciamento
(Serrano, 2018), e será novamente utilizada perto do fim da película.

Figura 1 - Entrevista como dispositivo brechtiano em ¿Qué hacer?


Marina Cavalcanti Tedesco

Fonte: ¿Qué hacer? (1972).


Dossiê

Já em Hoy Medea hoy, a quebra de expectativas não se dá pela presença ou


ausência de entrevistas, e, sim, por como ela é apresentada e registrada. A
narradora do filme, após terminar um longo texto dirigido a nós, público, revela
que irá iniciar uma entrevista: “No entanto, há aqueles que se preocuparam em

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estudar as paixões humanas. Temos conosco Ernesto Figueroa, um psiquiatra.


Queríamos lhe perguntar…” (¿Qué hacer?, 1972, tradução nossa)52. E se volta
para o entrevistado, que, até então, não sabíamos que existia (Figura 2 (b)).
Um movimento de câmera acompanha a mudança a quem a narradora, agora
também entrevistadora, se dirige (Figura 2 (c), (d), (e)).

Figura 2 - O movimento de câmera que acompanha a narradora de Hoy Medea hoy se


convertendo em entrevistadora
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

(a) (b)
Marina Cavalcanti Tedesco

(c) (d)

(e)
Fonte: Hoy Medea hoy (1972).

Da narração, nenhuma das ficções se valeu, ao contrário do que aconteceu


Dossiê

na maioria dos documentários (apenas Amuhuelai-mi (ya no te irás) e Un sueño


como de colores não mobilizaram o recurso). Chamaram nossa atenção as
narrações de Crónica del Salitre e La explotación del hombre por el hombre. A
primeira, por seu texto informal e que se dirige ao público como compañero,

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palavra que cumpre múltiplas funções: demarca o caráter militante do filme;


se aproxima do espectador (ao contrário de ¿Qué hacer?), pois, para alguém
ser nosso compañero na política precisa compartilhar um mínimo de posições
políticas conosco; e reforçar a solidariedade de classe. A segunda, por, como
mencionamos na apresentação do filme, ser uma narração feita por uma mulher.
A narração de Hoy Medea hoy ser feita por uma mulher não é algo que cause
estranheza no público, pois, durante muito tempo, “a questão da mulher” foi
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

considerada específica. Portanto, era “natural” que apenas as mulheres falassem


dela – inclusive no cinema. Mas La explotación del hombre por el hombre é um
documentário bastante afim às convenções estéticas e estilísticas do cinema
político e militante do período. E, nele, era bastante raro ouvir uma mulher em
lugar de autoridade (mesmo em entrevista, ainda mais na narração).53
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

Ainda dentro dos elementos sonoros, Amuhuelai-mi (ya no te irás) se destaca,


posto que praticamente não tem música. Nos demais, abundam as canções, o
que não significa que elas apareçam nos filmes (ou mesmo dentro do mesmo
filme) pela mesma razão. Há, sem dúvidas, uma predominância da música que
trabalha em consonância com a imagem, reforçando o clima do que é visto.
Essa lógica usual da trilha sonora aparece com força em Flores S.A, Crónica del
Salitre, A tiempo, Kardex 341, La explotación del hombre por el hombre, Vamos
viendo, Hoy Medea hoy e Un sueño como de colores.
Marina Cavalcanti Tedesco

Salto de Rapel escapa totalmente disso. Depois de um brevíssimo começo


informativo, a produção justapõe imagens de grandes volumes de água caindo
em uma hidrelétrica com uma música clássica quase “celestial”. Ela neutraliza
a violência do movimento das águas (e dos processos que envolvem este tipo
de intervenção nos territórios) e leva o clima da obra para a sua direção. Os
enquadramentos que aproximam água e horizonte também acentuam o
“celestial”, ao propor planos em que as águas quase se tornam nuvens. Porém,
avaliamos que o determinante para tal sensação é a trilha sonora.
Explorando outra possibilidade, a música possui uma importante dimensão
reflexiva no começo de A tiempo. O curta-metragem de Cecilia Martorell brinca
do princípio ao fim com as convenções dos gêneros narrativos cinematográficos
(no roteiro, na decupagem, na construção de personagens etc.). E é a música da
Dossiê

vinheta da antiga 20th Century Fox sobre os créditos iniciais que instaura essa
reflexividade.
De forma totalmente diferente, as canções em ¿Qué hacer? são, na maior
parte do tempo, reflexivas. Trata-se de “a música [de] Country Joe McDonald,
cujas inquietantes letras comentam a ação em seus momentos climáticos como

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um coro grego” (Serrano, 2018, tradução nossa),54 em mais uma instância de


distanciamento brechtiano no longa-metragem. Um exemplo é quando o padre,
uma liderança comunitária de esquerda, está agonizando em frente à igreja
após ataque das forças conservadoras. Country Joe McDonald, que havia saído
do recinto religioso um pouco antes vestido como mais um fiel, começa a tocar
uma gaita de boca e, a seguir, canta uma composição intitulada Padre, padre.
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

Figura 3 - A música como coro grego em ¿Qué hacer?


Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

Fonte: ¿Qué hacer? (1972).


Marina Cavalcanti Tedesco

Embora tenhamos encontrado, em nosso corpus, algumas utilizações


irônicas da trilha sonora, acreditamos que em nenhum momento isso tenha
ocorrido com a força e importância que verificamos nos créditos finais de Hoy
Medea hoy. Depois de mobilizar Medéia para criticar a construção social da
necessidade de entrega total das mulheres ao casamento e aos filhos, vemos,
no encerramento, planos de diferentes casais, enquanto ouvimos, em vozes
masculinas e femininas, Perdóname (“Perdóname. Perdóname por malograr todo
lo bueno que me has dado./ Por provocar las cosas malas que han pasado./ Hoy
me arrepiento de no haberlas evitado”), Aquel amor (“Aquel amor. Que destrozó
mi vida./ Aquel amor. Que fue mi perdición”), Mis noches sin ti (“Porque sin ti
ya ni el sol ilumina mis días/ y al llegar la aurora me encuentra llorando mis
noches sin ti”) e Si no te vas (“Si no te vas, te voy a dar mi vida si no te vas, vas
Dossiê

a saber quien soy”). É a cultura que ensina homens e mulheres que o correto é
ser assim e, a julgar pelos seus produtos mais populares, tal situação ainda vai
demorar muito a mudar.
Se verificamos que, no conjunto dos filmes estudados, na maior parte das

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vezes a música vai na direção da imagem, reforçando o clima do que vemos,


quando se trata da presença de entrevistas e narração a situação se inverte.
Em vários documentários, a banda imagética é montada de forma a ilustrar as
informações verbais. É o que ocorre em muitas das sequências de La explotación
del hombre por el hombre e Vamos viendo.
Em Amuhuelai-mi (ya no te irás) e Un sueño como de colores também se tem a
impressão de que narrações e entrevistas foram montadas primeiro – ainda que,
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

obviamente, ajustes tenham sido feitos no som na medida em que o processo


transcorria. Contudo, a dinâmica entre imagem e som está mais para diálogo.
Entendemos a relação do que é visto com o que é dito, mas haveria outras
possibilidades de imagens em comparação com uma proposta mais “amarrada”,
como é a ilustração.
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

Hoy Medea hoy articula imagens e sons de modo a nos dar a sensação de som
síncrono o tempo todo. Crónica del Salitre, de certa maneira, junta todas estas
possibilidades, pois há momentos de imagens que ilustram o som, imagens que
dialogam com o som, sem ilustrá-lo, e planos que parecem ter som direto.55 E,
conforme já foi mencionado, Salto de Rapel quase não tem informações verbais,
sendo sua montagem predominantemente voltada para a fruição estética.
É uma lógica bastante particular dentro de um corpus no qual, em
parte expressiva dos casos, predomina a montagem transparente, com
Marina Cavalcanti Tedesco

sequenciamentos de planos que não causam nenhum tipo de estranhamento,


pois algum elemento da forma ou do conteúdo “chama” o que vem depois;
decupagens que começam mais abertas, fazendo as devidas apresentações de
personagens e lugares, para, com o tempo, a escala de planos ir se tornando
mais fechada etc.
Outra exceção será A tiempo. Seu roteiro é fragmentado e, apesar das
referências aos diferentes gêneros narrativos serem compreensíveis, sua
história não o é apenas com o visionamento (a leitura da sinopse se faz
necessária). A montagem acompanha esta dimensão experimental da obra.
Continuidades temporais e espaciais são complexas, e “por que um plano veio
depois do outro?” nem sempre é uma pergunta possível de responder.
Evidentemente, a partir de todos os elementos que já foram trazidos
Dossiê

sobre ¿Qué hacer?, é fácil deduzir que, embora tal filme possa ter, também,
momentos de montagem clássica, transparente e de decupagem ficcional
tradicional, muitas vezes não é isso que acontece. Se há um esforço de mesclar
o documentário, quando, por exemplo, alguns personagens “vão” a um comício
de Salvador Allende, ainda em campanha (Nina Serrano relata que “os atores

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improvisaram o diálogo enquanto viviam e se submergiam na situação”


(Serrano, 2018, tradução nossa)56 , diversas quebras ocorrem na montagem para
produzir o almejado efeito de distanciamento brechtiano.
Já citamos a entrevista com Zorrilla e as músicas de Country Joe McDonald.
Mas poderíamos mencionar, ainda, a inserção de planos rápidos estilo making
of. É este o caso quando se insere, durante uma sequência romântica, planos da
claquete sendo batida na frente do casal. O objetivo é evidente: impedir que o
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

público se envolva com a história de amor (Figura 4).

Figura 4 - Estratégias para manter o distanciamento do público


Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

(a) (b)
Marina Cavalcanti Tedesco

(c)

Fonte: ¿Qué hacer? (1972).

Considerações finais

Este artigo teve como objetivo analisar, em conjunto, filmes com mulheres na
direção realizados durante o governo da Unidade Popular. Influenciaram, para
Dossiê

a adoção deste recorte de pesquisa, tanto a proximidade do cinquentenário do


golpe de 1973 quanto a observação de que, mesmo na bibliografia mais recente,
aparecem apenas algumas das cineastas que filmaram no período.
Ainda que haja muita produção acadêmica sobre o cinema chileno daqueles
anos, consideramos importante que a primeira seção do texto o apresentasse

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de forma breve, sem se deter tanto nas obras, mas com foco no contexto, para
situar quem lê, que não necessariamente tem intimidade com o tema, em qual
universo se inseria nosso corpus fílmico.
A seguir, em uma segunda parte, tratamos das complexas relações entre a
esquerda e a Unidade Popular e as chamadas à época questões das mulheres.
Consideramos que as dinâmicas entre a sociedade, em geral, e o cinema, em
particular, são indissociáveis. Não obstante, tentamos olhar para elas sem
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

estabelecer uma lógica determinista, posto que há singularidades no meio


audiovisual que não podem ser ignoradas.
O terceiro tópico começou com uma introdução a cada um dos 15 filmes do
corpus, algo que nos pareceu necessário diante do desconhecimento que há em
torno deles. A seguir, trouxemos os principais resultados de nossas análises.
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

No que tange ao que denominamos análises extra fílmicas, refletimos sobre os


motivos que levaram à predominância do curta-metragem e do documentário
em uma produção vinda em grande parte de universidades ou realizadas com
recursos estatais.
Compreendendo que nenhuma dessas características se explica apenas pelo
gênero, é impossível ignorar que o gênero é um fator que afasta as mulheres
de formatos maiores, nos quais a incidência da direção mista aumenta
significativamente. Ele também parece ter impactado na falta de diversidade
Marina Cavalcanti Tedesco

de financiamento para obras com mulheres.


Nossas análises intra fílmicas partiram, de certa maneira, de um imaginário
incontornável: o do cinema político e militante latino-americano dos anos 1960
e 1970. Afinal, propusemo-nos a investigar um corpus feito durante um processo
revolucionário. Contudo, o que encontramos foi muito mais diversificado do
que o esperado.
Uma parte expressiva dos filmes não tocava no que estava ocorrendo no
país e, mesmo os que o faziam, nem sempre mostravam Salvador Allende.
Nem narração nem entrevistas fizeram parte da linguagem de todos os
documentários, ainda que um ou outro tenha estado presente na maioria deles.
A música se apresentou como um recurso bastante versátil – ao mesmo tempo
em que serviu para reforçar o clima do que era visto nas imagens em grande
Dossiê

parte dos casos.


Apesar de terem sido realizadas durante o “silêncio feminista”, duas dessas
produções falaram de questões caras aos feminismos ainda hoje: o desrespeito
às mulheres que se despem por trabalho e a construção social da maternidade
e do matrimônio, que exige uma anulação completa das mulheres e traz

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consequências dramáticas a todos os envolvidos.


Não era fácil se tornar e permanecer sendo diretora de cinema no período
da Unidade Popular. Marillú Mallet relata que, “paralelamente [aos problemas
de produção], também estavam os outros problemas. Como, sendo mulher,
podíamos ser invisíveis em um meio de homens que faziam cinema. Éramos
nós, as mulheres, e eles, os homens” (Mallet apud Soto; Pinto, 2016, p. 248,
tradução nossa).57
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

Em uma ocasião em que Mallet, Angelina Vázquez e Valeria Sarmiento


tiveram na Chile Films para apresentar um projeto que seria dirigido pelas três,
“[Eduardo ‘Coco’ Paredes, um dos presidentes da empresa] dijo: “O que desejam
as senhoras?” (só faltou falar de quem vocês são) e depois disso, francamente,
não tive mais vontade de apresentar nada a ele” (Mallet, 2016, p. 248, tradução
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

nossa).58
Mallet avalia:

As duas caras da mesma moeda era algo com o que convivíamos.


Por um lado, aqueles que nos ‘permitiam’ ou ‘ajudavam’, e, por
outro, os grandes freios com os quais nos encontrávamos nessa
sociedade frente aos direitos que deviam nos ajudar a viver em
igualdade de condições (Mallet, 2016, p. 248, tradução nossa)59.
Marina Cavalcanti Tedesco

É importante destacar que essa história aconteceu justamente com as três


únicas cineastas do nosso corpus que conseguiram ter uma carreira após o
golpe, no exílio. Isso nos faz pensar o que boa parte das outras enfrentou e
(ainda) não sabemos. Esperamos que este artigo estimule outros trabalhos
sobre os filmes e diretoras que compuseram a pesquisa e instigue quem o ler a
pensar em recortes não explorados. Há muito o que aprender sobre o cinema de
mulheres na América Latina, e só colaborativamente a construção de um sólido
conhecimento sobre tal tema é possível.

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Notas
1
Doutora em Comunicação e professora do curso de Cinema e Audiovisual e do Programa
de Pós-graduação em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2659-7541.
2
Tradução livre de: “Las profundas transformaciones que se emprenderán requieren de
un pueblo socialmente consciente y solidario, educado para ejercer y defender su poder
político, apto científica y técnicamente para desarrollar la economía de transición al
socialismo y abierto masivamente a la creación y goce de las más variadas manifestaciones
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

del arte y del intelecto”.


3
Tradução livre de: “Son fundamentales para ayudar a la formación de una nueva cultura
y un hombre nuevo. Por eso se deberá imprimirles una orientación educativa y liberarlos
de su carácter comercial, adoptando las medidas para que las organizaciones sociales
dispongan de esos medios eliminando en ellos la presencia nefasta de los monopolios”.
Para saber mais, consultar (Editora [...], 2020).
4
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

Para saber mais, consultar (Brigadas [...], [2023]).


5

Para saber mais, consultar Espinoza Cartes (2021).


6

7
Apesar de termos ciência da contestação contemporânea ao uso da expressão Nuevo Cine
Chileno para se referir a uma produção, de fato, bastante heterogênea, realizada entre
meados de 1960 até o golpe de 1973, valemo-nos dela porque é de fácil entendimento.
Há pesquisas nas quais se discute o tema em profundidade e na sua complexidade, mas
este não é nosso objetivo neste artigo.
Marina Cavalcanti Tedesco

8
Tradução livre de: “visiones parciales, producto del mayor o menor talento y versación
de sus actores, o de la mayor o menor capacidad de inspiración o improvisación de
quienes se hallaron, de golpe, al frente de un determinado campo de actividad”.
9
Tradução livre de: “creada en 1941, durante el gobierno del radical Pedro Aguirre Cerda,
y sus estudios inaugurados en 1942”.
Tradução livre de: “La cinematografía utiliza Chile Films y otros organismos que tiene
10

a su alcance para multiplicar sus obras. […] el Departamento de Cine de la Universidad


de Chile, la Escuela de Artes de la Comunicación de la Universidad Católica, la Escuela
de Cine de la Universidad Técnica, el Ministerio de la Agricultura, el Ministerio de
Educación, el Departamento de Cine de la Central Única de Trabajadores y algunos canales
de televisión. A la vez, los cineastas crean productoras y cooperativas independientes;
buscan establecer convenios entre sí o con organismos estatales, bancos del gobierno, o
también con el propio Chile Films o con empresas extranjeras”.
11
Tradução livre de: “Preguntándose por el rol del cine en un gobierno socialista, el
manifiesto chileno plantea tres argumentos como respuesta: 1) el imperialismo y la
burguesía han alienado la cultura nacional, frente a lo cual hay que oponer una cultura
Dossiê

nacional “auténtica”; 2) el cine debe ser un arte revolucionario, comprometido con la


construcción del socialismo, y 3) las películas se convierten en revolucionarias solo en
la medida en que movilizan al espectador hacia una acción revolucionaria”.
Segundo a Enciclopedia del Cine Chileno, a data de lançamento de ¿Qué hacer? é 1970.
12

Contudo, por ter filmagens feitas durante a campanha que elege Allende combinadas

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com trechos ficcionais, na escala de um longa-metragem, parece-nos pouco provável


que a estreia tenha ocorrido nesse ano. Por isso, optamos por adotar o ano apontado
por outras fontes, que é o da exibição no Festival de Cannes. Ainda sobre este filme, sua
direção é dividida entre cineastas dos Estados Unidos e do Chile, as pessoas que integram
a equipe pertencem a alguma das duas nacionalidades, em um relativo equilíbrio, e a
rodagem aconteceu integralmente no país sul-americano. Pensando em termos atuais,
estamos diante de algo muito próximo de uma coprodução. É bastante provável que, por
isso, ¿Qué hacer? seja considerado um filme chileno.
13
As mulheres também se tornaram cada vez mais ativas em torno das pautas da direita.
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

Contudo, como este não era o perfil das que dirigiram filmes entre 1970 e 1973, não
trataremos delas. Para saber mais, consultar Alfaro, Inostroza e Hiner (2021).
Tradução livre de: “Se procederá en un plazo que será definido técnicamente, a
14

establecer un sistema de sueldos y salarios mínimos de niveles iguales, cualquiera sea la


empresa donde estos trabajos se realicen. […] Esta política se iniciará en el área estatal
para irla [sic] extendiendo a toda la economía […]. Del mismo modo, se eliminará toda
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

discriminación entre el hombre y la mujer o por edad en materia de sueldos y salarios”.


15
Tradução livre de: “Se establecerá la plena capacidad civil de la mujer casada ya la igual
condición jurídica de todos los hijos habidos dentro o fuera del matrimonio así como
una adecuada legislación de divorcio con disolución del vínculo, con pleno resguardo de
los derechos de la mujer y los hijos”.
Tradução livre de: “en la retaguardia de lo doméstico y privado aunque pudieran
16

participar en el público en calidad de ayudistas”.


Tradução livre de: “en las poblaciones, en los diversos comités de tomas de terreno,
17
Marina Cavalcanti Tedesco

centro de madres, clubes deportivos”.


O MIR não fez parte da coligação Unidade Popular. Naquele momento, acreditava na
18

via armada, não na via eleitoral.


Tradução livre de: “presencia tras las cámaras con trabajo narrativo y estético- no se
19

detendría más, siendo el aporte femenino determinante en el panorama cinematográfico


chileno posterior”.
Tradução livre de: “omitido en las publicaciones como era costumbre con las mujeres
20

realizadoras”.
A primeira instituição de ensino de cinema cursada por Vázquez foi a Escuela de Cine
21

de Viña del Mar, a qual ela deixou por falta de recursos para produzir (Soto; Pinto, 2016).
Carmen Bueno foi desaparecida pela ditadura de Pinochet, em 1974, junto com o diretor
22

de fotografia Jorge Müller. A data do sequestro de Bueno e Müller, 29 de novembro, foi


escolhida como o Día del Cine Chileno. Para saber mais, consultar (Carmen [...], [2023]).
Tradução livre de: “La recuperación de la memoria, las esperanzas de los viejos mineros
23
Dossiê

en los tiempos por venir y la dignidad de un oficio destinado a desaparecer, fueron la


materia prima del trabajo de campo de un grupo de jóvenes, que en ésta, su primera
película, pusieron también todas sus esperanzas de justicia y equidad”.
A pesquisadora Adriana da Silva Duarte (2021, pos. 87) aponta que, “através de sua
24

heroína, Eurípedes denuncia a condição da mulher na patriarcal sociedade grega. Numa

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longa fala [...], Medeia expõe toda a fragilidade do seu sexo, que, com o dote, paga para
servir a um marido que não escolhe, reclusa e sem reclamar, sob o risco de ser repudiada.
A declaração de que preferiria três vezes ir à guerra a parir uma única vez é sintomática”.
Lembremos, ainda, que, apesar de seus planos serem considerados errados por diferentes
sujeitos, ninguém denuncia Medeia. Ela tampouco responde pelos seus assassinatos.
Tradução livre de: “La terminé en Chile Films, gracias a Osvaldo del Campo, presidente
25

del sindicato de la época que me presentó a Carlos Piaggio, un montajista argentino,


generoso, culto y dedicado con el que aprendí mucho”.
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

26
Segundo relato de Mallet a Soto e Pinto (2016) e a Enciclopedia del Cine Chileno (A, E,
I, [1972]).
Segundo informação disponível na Enciclopedia del Cine Chileno ([s.d.]c, online), Ruiz
27

não considerava “própria esta obra, en termos criativos”, informação que vai ao encontro
do relato de Serrano sobre o processo de ¿Qué hacer? (Serrano, 2018).
Tradução livre de: “La próxima película que deberías hacer es una película sobre
28
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

Chile porque van a tener elecciones, lo que va a cambiar la historia. Podrían votar en el
socialismo, evitando la revolución, las muertes y las guerras civiles”.
29
Este é relato de Nina Serrano, e por isso o reproduzimos. No entanto, é preciso lembrar
que Fidel Castro tinha muita descrença em uma via democrática ao socialismo, o que,
inclusive, aparece no filme El diálogo de América (1972).
Tradução livre de: “Se muestra a un fotógrafo de plaza explicando los procedimientos
30

de su trabajo. De fondo, se oye un poema escrito por el director. Película que forma parte
de una serie de documentales producidos por Canal 7 y la editorial Quimantú”.
Marina Cavalcanti Tedesco

Tradução livre de: “Se muestran dos acciones paralelas. Por una parte, está una experta
31

en poesía popular, que desde el Conservatorio expone teóricamente las características


de tal arte. Por otro, desde un barrio humilde, un poeta popular escribe en un muro
mientras llueve, luego remarca las letras con un cuchillo, para que la lluvia no borre el
poema. Se habla de la realidad de los poetas populares, analfabetos muchos y maestros
de la improvisación”.
Este filme foi considerado desaparecido durante décadas, até a diretora desconfiar que
32

um material em película em um canto de sua casa poderia ser ele. A partir de contato do
produtor Jaime Morera com a Cineteca de la Universidad de Chile, constatou-se que não
se tratava de uma cópia, e sim dos negativos originais, e em bom estado de conservação.
Assim, Un sueño como de colores passou a circular a partir de 2022. No entanto, adotamos
aqui a data de 1973 pois, em várias entrevistas, Sarmiento relata que neste ano o curta-
metragem foi finalizado e exibido em algumas poucas sessões privadas.
Tradução livre de: “no fue muy alabado, porque no se entendió mucho que yo hiciera
33

una película acerca de las bailarinas del Bim Bam Bum, cuando todos los cineastas
estaban volcados haciendo filmes sobre el proceso político”.
Dossiê

Dependendo da entrevista consultada, Sarmiento relata que uma das dançarinas-


34

personagem era do Tap Room ou do Mon Bijou, outros dois locais frequentados pela
boemia santiaguina.
Tradução livre de: “¡ésa es la que más me gusta!”.
35

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Tal informação foi retirada da plataforma de |streaming MUBI. No entanto, não sabemos
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o quanto ela é confiável, já que não consta na Enciclopedia del Cine Chileno, uma fonte
de grande credibilidade.
Tradução livre de: “documental sobre el movimiento musical llamado Nueva Canción
37

Chilena. Se muestran a los nuevos cantantes populares y sus distintos grupos. Se


muestran presentaciones en vivo”.
38
Tradução livre de: Esta película fue confiscada por el régimen militar y no se supo
más de ella. La película estaba casi terminada, tenía la copia montaje final y la mezcla
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

hecha. Faltaba el corte de negativo y la copia final. Para mí, fue algo sumamente trágico
e irrecuperable, ya que era un trabajo de homenaje a una mujer artista chilena que había
sido bastante menospreciada en vida por la sociedad de su país. Nunca he hecho el duelo.
39
Tradução livre de: “¿Limitó esto acaso la producción propia de Valeria? Sin duda que
sí, de ciertas maneras”.
Tradução livre de: “fue Ruiz el que primero le permitió trabajar en cine durante la
40
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

Unidad Popular, y seguirá apoyando muchos de sus proyectos”.


41
Tradução livre de: “Era un asunto económico. Las películas de Raúl atraían
financiamiento, y cuando había que terminar una y no había dinero para la edición… era
una cuestión de nuestra supervivencia. Y la economía también es importante”.
Afirmar isso significa o reconhecimento de que há desigualdades dentro desse amplo
42

“guarda-chuva” que é a categoria “mulheres”. Mas é evidente que as estadunidenses


enfrentavam desigualdades de gênero no exercício da função, às vezes não tão diferentes
das vivenciadas na América Latina. A própria Nina Serrano relata: “Saul [Landau] había
hecho una película documental sobre Fidel el año anterior en 1968. Trabajé en ella, pero
Marina Cavalcanti Tedesco

no me lo acreditaron porque KQED-TV insistió en que las esposas no deberían obtener


ningún crédito, ya que era nuestro deber ayudar a nuestros maridos” (Serrano, 2018).
Tradução livre de: “La predilección por el formato documental, en vez de la ficción,
43

apela fuertemente a la creencia de que lo que se estaba viviendo se escribía en los anales
de la historia mientras se filmaba”.
Tradução livre de: “era absolutamente imposible dejar de filmar lo que estaba pasando
44

en esos momentos”.
Um deles tem coprodução da Chile Films. Porém, em decorrência do seguinte trecho,
45

encontrado na Enciclopedia del Cine Chileno (Nueva […], [1973]), acreditamos que o
maior aporte tenha sido da Universidad Técnica del Estado (UTE): “Dentro del marco
del compromiso de la UTE con las transformaciones llevadas a cabo durante la Unidad
Popular, este material trata de los peligros que trae el fascismo para los pueblos de
América y el mundo”.
Tradução livre de: “el grueso de la producción documental del período fue
46
Dossiê

responsabilidad de instituciones ligadas a universidades”.


Tradução livre de: “dominarán en términos temáticos y numéricos en la producción
47

universitaria del período -filmes realizados por encargo para empresas del Estado
(Endesa, Entel, Banco del Estado)”.
Tradução livre de: “las zonas intersticiales, comprendiendo estos intersticios como
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los vastos espacios, realidades y grupos humanos que permanecen al margen del relato
oficial”.
Tradução livre de: “Mouesca fija el nacimiento del documental contemporáneo en
49

Chile a partir de tres hitos ocurridos todos en la segunda mitad de los años cincuenta: la
fundación del Instituto Fílmico de la Universidad Católica (1955), la exhibición del filme
Andacollo de Nieves Yancovic y Jorge di Lauro (1958) y la fundación del Centro de Cine
Experimental de la U. de Chile”.
Tradução livre de: “Yo creo en algo que me decía una directora mexicana: que la única
50
Popular (Chile, 1970-1973): reflexões sobre o extra e o intra fílmico

manera de que las mujeres entraran al cine en esa época era a través de las escuelas,
porque si lo hacían a través de los sindicatos no las iban a dejar, porque los sindicatos
eran terriblemente machistas”.
Em entrevista a Bruno Cuneo e Fernando Pérez V. (2021), Sarmiento relata que a
51

película para a captação foi um pagamento de Raúl Ruiz por serviços de montagem que
ela havia feito. Portanto, a Chile Films, apesar de constar como produtora, não teve
Mulheres cineastas durante o governo da Unidade

exatamente essa função.


Tradução livre de: “Sin embargo, hay quienes se han preocupado de estudiar las
52

pasiones humanas. Tenemos con nosotros a Ernesto Figueroa, un psiquiatra. Quisiéramos


preguntarle…”.
Era raro, mas acontecia. A diretora cubana Sara Gómez, por exemplo, teve narradoras
53

mulheres em alguns de seus curtas-metragens documentais.


Tradução livre de: “la música [de] Country Joe McDonald, cuyas inquietantes letras
54

comentan la acción en sus momentos climáticos como un coro griego”.


Marina Cavalcanti Tedesco

Nas palavras de Angelina Vázquez, “mucha gente cree que Crónica del Salitre […] tenía
55

sonido directo porque la sonorización salió tan buena. No había ni un sonido directo. Si
era una Bolex de cuerda no más, no tenía ni siquiera motor” (Soto; Pinto, 2016, p. 250).
Tradução livre de: “Los actores improvisaron el diálogo mientras vivían y se sumergían
56

en la situación”.
Tradução livre de: “paralelamente [aos problemas de produção], también están los otros
57

problemas, que es cómo una, como mujer, podía ser invisible en medio de los chicos que
hacían cine. Éramos nosotras, las chicas, y ellos, los chicos”.
58
Tradução livre de: “Qué desean las señoras?” (le faltó agregar de quién vendríamos
siendo) y después de eso, francamente, ya uno no tenía ganas de presentarle nada”.
Tradução livre de: “Eso era algo con lo que se convivía, las dos caras de una moneda.
59

Por una parte, aquellos que nos “permitían” o “ayudaban”, y por otro, los grandes frenos
con los que uno se encontraba en esta sociedad frente a los derechos que nos debieran
ayudar a vivir en igualdad de condiciones”.
Dossiê

Recebido em 16/10/2023 - Aprovado em 08/01/2024


Antíteses, Londrina, v.15, 6. 32, p.089-126, jul-dez. 2023 } 126
DOI: 10.5433/1984-3356.2023v16n32p127-156

La televisión chilena y las


elecciones de 1970: el caso
de UCV-TV

Chilean televisión and the


1970 elections: the case of
UC-TV

A televisão chilena e as
eleições de 1970: o caso da
UCV-TV

Ignacio del Valle-Dávila1

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Resumen: Este artículo tiene como objetivo estudiar la


cobertura televisiva realizada por UCV-TV de las elecciones
presidenciales chilenas de 1970. Durante alrededor de un
año el canal televisivo de la Pontificia Universidad Católica
de Valparaíso difundió en sus noticiarios diferentes aspectos
de la contienda electoral relacionados con la ampliación del
derecho a voto; las campañas electorales de Salvador Allende,
Jorge Alessandri y Radomiro Tomic; la emisión de los sufragios
en los colegios electorales; el recuento de los votos y el pago
de apuestas relacionados con los resultados. Realizadas en
un momento en que comenzaba a masificarse la televisión,
La televisión chilena y las elecciones de 1970:

esas noticias de UCV-TV permiten analizar cómo se abordó


en ese medio una de las elecciones más importantes de la
historia chilena, en la que el proyecto socialista de la Unidad
Popular llegaría al poder por un estrecho margen de votos.
Palabras clave: unidad popular; televisión; elecciones
presidenciales; Salvador Allende; periodismo.
Ignacio del Valle-Dávila

Abstract: This article aims to study UCV-TV's television


el caso de UCV-TV

coverage of the 1970 Chilean presidential elections. For about


a year, the television channel of the Pontificia Universidad
Católica de Valparaíso broadcast in its news programs different
aspects of the electoral process related to the extension of the
right to vote; the electoral campaigns of Salvador Allende,
Jorge Alessandri and Radomiro Tomic; the casting of votes in
polling stations; the counting of votes and the payment of bets
related to the results. Produced at a time when television was
beginning to become widespread, these UCV-TV news reports
allow us to analyze how the medium covered one of the most
Dossiê

important elections in Chilean history, in which the Unidad


Popular socialist project came to power by a narrow margin.
Keywords: popular unity; television; presidential elections;
Salvador Allende; journalism.

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Introducción

Este artículo tiene como objetivo estudiar la cobertura de la campaña electoral


y de la elección presidencial de 1970 realizada por el canal de televisión de la
Universidad Católica de Valparaíso, UCV-TV. A pesar de la importancia histórica
de esas elecciones, en las que por primera vez en la historia un marxista fue
elegido de forma democrática en la presidencia de un país, hasta la actualidad
no se ha analizado en profundidad el papel que jugaron en ella los canales
televisivos chilenos que se encontraban, en esos momentos, en pleno proceso
de masificación. Esta investigación permitirá mostrar cómo los servicios
informativos de un canal específico de televisión transformaron las elecciones
en un evento mediático constituido por diferentes notas y reportajes difundidos
en sus noticieros. Parto de una serie de preguntas que la investigación de la
televisión en Chile aún no ha conseguido responder: ¿qué papel jugaron los
La televisión chilena y las elecciones de 1970:

servicios informativos de la televisión en las elecciones de 1970? ¿Hay indicios


en el lenguaje audiovisual de la beligerancia que caracterizaría a buena parte
del periodismo durante la Unidad Popular? ¿De qué forma se abordaron los
discursos políticos de las tres fuerzas en disputa?
Como fue indicado anteriormente, la fuente escogida para este artículo es
UCV-TV, un canal que reúne una serie de particularidades bastante atípicas
dentro del panorama general de la televisión chilena. Por un lado, se trata del
Ignacio del Valle-Dávila

primer canal creado en el país, junto al de la Pontificia Universidad Católica de


el caso de UCV-TV

Chile (Hurtado; Edwards; Guilisasti, 1989, p. 402). Por otro lado, es el único canal
televisivo radicado fuera de la capital, por lo que, en un país tan centralizado
como Chile, permite acceder al estudio de la historia nacional desde una
perspectiva comúnmente poco llevada en consideración: la de la actual Región
de Valparaíso2. Finalmente, al tratarse de un canal con menos medios y menos
audiencia que las cadenas de Santiago, ha sido en gran medida desconsiderado
hasta hoy por los historiadores de la televisión durante la Unidad Popular y la
dictadura.
El total de las noticias analizadas en este texto no corresponden a todas
las noticias emitidas por UCV-TV sobre las elecciones de 1970; sin embargo,
Dossiê

son todas las noticias sobre ese acontecimiento que han sido digitalizadas por
la Cinemateca Nacional al momento de escribir estas líneas3. Por lo tanto, es
bastante probable que nuevos trabajos terminen relativizando los análisis que
expondré en estas páginas, en la medida en que los investigadores universitarios
tengamos acceso a nuevos materiales. Con todo, estas 16 noticias son, en las

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circunstancias actuales, un material extraordinariamente rico y poco frecuente.


A diferencia de lo que ocurre en buena parte de los países donde hubo un
modelo de televisión de servicio público, en Chile es particularmente difícil
y económicamente costoso acceder a los archivos de las televisiones. Cuando
existen, esos archivos están en manos de empresas mediáticas que se han
demostrado increíblemente reacias a ponerlos a disposición de la investigación
académica y los usan con fines lucrativos. Por ello, los archivos televisivos
chilenos son una especie de caja negra y el estudio de la historia de ese medio
suele realizarse a partir de un “enfoque oblicuo” (Durán Escobar, 2012), es decir
fuentes indirectas, como artículos de opinión, cartas al director y resúmenes o
anuncios de la programación televisiva difundidos en la prensa escrita.

La televisión y los medios de comunicación


La televisión chilena y las elecciones de 1970:

Los estudios sobre los medios durante la Unidad Popular suelen coincidir
en que estos se posicionaron ideológicamente de forma cada vez más explícita
hasta el golpe de Estado (Bernedo, Porat, 2004, p. 115-116). Es sobradamente
conocido que los diarios de propiedad de Agustín Edwards, en particular El
Mercurio y La Segunda, recibieron financiamiento de la CIA para desestabilizar
la democracia chilena y que el propio Edwards fue un agente clave en las
triangulaciones entre la Casa Blanca y los sectores golpistas chilenos (Moscoso,
Ignacio del Valle-Dávila

2019). En el caso de la principal cadena de televisión del país, Canal 13 de la


el caso de UCV-TV

Pontificia Universidad Católica de Chile4, hubo una clara oposición al gobierno


de la Unidad Popular que se volvió abiertamente beligerante cuando el
sacerdote Raúl Hasbún asumió su dirección. Dentro de los medios alineados
con la oposición habría que incluir algunas de las principales radios del país
como Minería, Agricultura y Cooperativa –es preciso recordar al respecto
que la radio era, con gran distancia, el principal medio de comunicación del
país en ese momento y lo seguiría siendo durante varias décadas– y algunos
diarios destinados a sectores populares donde el lenguaje se volvía bastante
incendiario, como Tribuna.
Por su parte, entre los medios más proclives a la Unidad Popular podemos
Dossiê

citar el diario El siglo, cercano al Partido Comunista y Clarín, que como Tribuna
buscaba un público popular y se caracterizaba por un lenguaje en el que
eran comunes las ofensas abiertas contra los opositores. A ellos se añaden
algunas radios como Corporación, Magallanes y Portales, esta última había
sido adquirida por cercanos al mandatario en 1971 (Salgado Muñoz, 2022, p.

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178). En el caso de la televisión, la Unidad Popular contaba con el apoyo de


los trabajadores del precario Canal 9 de la Universidad de Chile, pero no con
el sustento del rector de esa casa de estudios, que era democratacristiano.
También tenía el apoyo de los trabajadores y de parte del directorio de la recién
creada Televisión Nacional de Chile, pero aquellos miembros que pertenecían
a los partidos de la oposición consiguieron evitar que la línea del canal fuese
abiertamente proclive al gobierno (Albornoz, 2014, p. 221-222). En todo caso,
ambos canales se encontraban claramente por detrás de Canal 13 en lo que
respecta a las preferencias de los telespectadores. La búsqueda por más espacios
audiovisuales proclives a la Unidad Popular llevó a que la empresa estatal de
cine Chile Films invirtiera buena parte de sus esfuerzos a la realización de un
noticiero (Del Valle-Dávila, 2014, p. 367). En síntesis, puede concluirse que
los principales medios de comunicación del país estuvieron en manos de la
La televisión chilena y las elecciones de 1970:

oposición. Solamente en la radio hubo un cierto equilibrio.


La Unidad Popular tuvo una preocupación real por transmitir mensajes
favorables para sus políticas a través de los medios de comunicación, lo que
incluyó la búsqueda por administrar algunos de ellos; sin embargo, garantizó
la libertad de expresión y el derecho a la información del sistema global de
los medios. Es más, fomentó la producción masiva de televisores nacionales
–marca IRT– a pesar de que, como hemos visto, el medio televisivo no le era
particularmente proclive. Al respecto hay que destacar que, durante los tres
Ignacio del Valle-Dávila

años de la Unidad Popular, el parque de receptores aumentó vertiginosamente


el caso de UCV-TV

llegando, en 1972, a alrededor de 600.000 (Albornoz, 2014, p. 193-194). Eso


representa un aumento del 60% respecto del último año del gobierno de Frei
Montalva.
Aunque la televisión estaba lejos todavía de las cifras que conseguiría
durante la UP, es posible considerar las elecciones de 1970 como las primeras
en las que la televisión ya era un medio de comunicación masiva en Chile.
Según cálculos de Hurtado (1989, p. 209), a comienzos del año 1970, había en
Chile aproximadamente 374.000 aparatos, lo que significa que alcanzaba a un
público aproximado de más de un millón y medio de personas, concentradas
principalmente en la capital5. Se trata, por lo tanto, de un 17% de la población
Dossiê

del país en ese entonces.


Llevando en consideración que la penetración del medio televisivo era mucho
más grande en las clases acomodadas y medias que en los sectores populares,
puede deducirse que durante las elecciones de 1970 tal vez haya sido un medio
estratégicamente más importante para las candidaturas de Alessandri y Tomic

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que para la candidatura de Allende. Sin embargo, debido al estrecho margen


de votos que definió el ganador de la elección no puede menospreciarse la
importancia de los canales televisivos en los comicios, aunque solo llegasen a
una minoría privilegiada de electores.
La polarización ideológica de los medios chilenos ya está presente durante
las elecciones de 1970. La prensa escrita da buenos ejemplos de ello: el
diario Clarín se refería al candidato Alessandri como “la señora”, una alusión
homofóbica a los rumores que existían en la época sobre su opción sexual,
al tratarse de un hombre anciano que nunca se había casado ni había tenido
hijos (Donner, 1989, p 133-134). Por su parte El Mercurio relativizó el triunfo de
Allende en su portada del 5 de septiembre de 1970, con un titular en el que se
leía “Allende: mayoría relativa” y una bajada en la que se sugería que los votos
de los candidatos Tomic y Alessandri superaban a los de Allende. Esa misma
La televisión chilena y las elecciones de 1970:

portada incluía el artículo “Las dos primeras mayorías” (1970), que cuestionaba
abiertamente las posibilidades del candidato de la UP de llegar al gobierno,
pues debía pasar por la aprobación del Congreso Pleno. El título dejaba claro
que el Congreso podría optar por la segunda mayoría, es decir, por Alessandri.
A pesar de que la televisión no escapó a algunas polémicas durante las
elecciones, la cobertura de UCV-TV no se caracterizó por asumir un tono
abiertamente partidista ni por apoyar, al menos de forma obvia, ninguna de
las tres candidaturas. El análisis de sus imágenes en movimiento contrasta
Ignacio del Valle-Dávila

fuertemente con los relatos sobre la tensión y las polémicas que habrían
el caso de UCV-TV

marcado a las cadenas televisivas de la época. Cabe destacar que esa misma
línea editorial se mantendría a lo largo de toda la Unidad Popular (Del Valle-
Dávila, Bossay, 2023). Por ello, me parece posible sostener la hipótesis de que el
canal de televisión se incluye dentro de la lista, raramente analizada, de medios
“moderados”, al menos en lo que respecta a sus noticieros.
Pero también existe una segunda posibilidad que, aunque parezca menos
probable, en el estado actual de la investigación en Chile no puede ser
totalmente descartada. Esa segunda hipótesis a la que me refiero es que los
noticieros de las televisiones chilenas hayan sido menos beligerantes en su día
a día que otros espacios televisivos dedicados a la actualidad política, como los
Dossiê

programas de tertulias y debates. Estos últimos tenían una mayor repercusión


en la prensa escrita y por lo tanto contamos con más fuentes para estudiarlos.
Pero incluso en el caso de los programas de debate, tanto lo que recogen las
fuentes escritas de la época, como lo que recuerdan los entrevistados, muchas
veces corresponde más a acontecimientos excepcionales –es decir cuando se

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producían polémicas– que a emisiones normales. Sin un acceso profundo a


los archivos de los tres canales de televisión de Santiago no resulta posible
determinar con un mínimo de seguridad cuáles eran los contenidos reales de
esos noticieros y cuál su grado de polarización y radicalidad ideológica.
En el caso específico de UCV-TV lo que muestran las noticias analizadas es
que la cobertura de las elecciones se caracterizó por un estilo heredero del
periodismo positivista, con su teórica búsqueda de la objetividad informativa,
sus tentativas por privilegiar la narración de los hechos por encima de las
opiniones y su tendencia a utilizar un vocabulario en apariencia neutral y con
pocos adjetivos calificativos. Aunque la dirección del canal y la de la universidad
eran cercanas a la Democracia Cristiana, esto se tradujo en un distanciamiento
respecto de las candidaturas de Allende y de Alessandri y no necesariamente
en un apoyo evidente a Tomic. En el caso de algunas noticias en las que se
La televisión chilena y las elecciones de 1970:

aprecia cierta cercanía con la Unidad Popular –siempre implícita y de carácter


principalmente visual– esta podría atribuirse a la posición personal de algunos
de los trabajadores del canal y no a la línea editorial.

Las condiciones de los materiales investigados

Los materiales que analizaremos tienen algunas particularidades que se hace


necesario explicar para facilitar la comprensión de este artículo. Los archivos
Ignacio del Valle-Dávila

que estudiaremos son filmaciones en película blanco y negro de 16 milímetros,


el caso de UCV-TV

sin sonido directo ni tampoco de cualquier otro tipo, que corresponden a la


banda de imágenes de las notas que componían el noticiario de UCV-TV. En la
mayoría de los casos, se ha conservado también el guion escrito a máquina que
el presentador del noticiario leía mientras en la televisión se veían las imágenes
de cada noticia. No se conservan registros de esas lecturas ni tampoco de la
presentación del noticiero en el estudio del canal, pues las emisiones se hacían
en directo y nunca se grababan. De ese modo, hay una dimensión de las noticias
que la investigación histórica no puede reconstituir, como el tono y énfasis de
la lectura realizada por el locutor en el estudio. También es difícil saber con
total seguridad el orden en que las noticias eran presentadas. Con todo, gracias
Dossiê

a los archivos de las imágenes filmadas en exteriores y a los guiones que las
acompañaban es posible conocer lo esencial de los contenidos. En ocasiones,
los guiones incluyen también la entradilla o lead, es decir, el encabezado de la
noticia que leía el presentador ante la cámara antes de que se diera paso a las
imágenes registradas. Muchas veces hay también indicaciones técnicas escritas

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a mano sobre los planos de las tomas, los momentos en que se debería leer el
texto y, en casos excepcionales, la introducción de fotografías o de sonidos
grabados. En muchos de los guiones se puede leer el apellido “Larreta” que
probablemente hace referencia al periodista Alfredo Larreta, quien trabajó en
el canal desde mediados de los años sesenta hasta mediados de los setenta.
Excepcionalmente también hay otros apellidos del equipo de redacción como
“Silva” y “Otero”. En cambio, en otros casos, solo se indican siglas como
“RCC” o simplemente no hay ninguna alusión a la autoría. La mayoría de las
noticias analizadas fueron emitidas en el Noticiario Prolene, nombre con el
que se conocía al telediario del canal debido a su auspiciador, la textil Prolene,
que también financiaba noticieros homónimos en los otros canales chilenos
(Hurtado; Edwards; Guilisasti, 1989). Hay que destacar que algunos guiones
hacen alusiones a un “Noticiario elección”, lo que lleva a pensar que hubo un
La televisión chilena y las elecciones de 1970:

especial la noche del 4 de septiembre de 1970.


La gran mayoría de las noticias de UCV-TV no contaban con sonido directo
debido a los altos costes de producción que ello implicaba (Del Valle-Dávila,
Bossay, 2023). Las noticias sobre las elecciones no son una excepción. Solo en
el guion de una de ellas, sobre la precandidatura de Jacques Chonchol, se hace
alusión a la incorporación de una entrevista con el político, pero el material no
se ha conservado. Asimismo, muchas de las noticias no eran montadas en una
moviola, sino que para ahorrar tiempo y dinero se hacía uso de lo que la jerga
Ignacio del Valle-Dávila

cinematográfica llamaría un montaje en cámara, es decir, el camarógrafo filmaba


el caso de UCV-TV

los planos de la noticia en el orden en que serían exhibidos. Esa forma de filmar
requería una pequeña planificación para lo cual se solía echar mano a algunas
estructuras básicas preconcebidas, como comenzar mostrando un plano general
del exterior del edificio donde acontecía la acción filmada, hacer panorámicas
de la concurrencia a los actos oficiales antes de mostrar al orador principal o,
al contrario, intercalar las tomas del orador y las del público, etc. Sin embargo,
en muchos casos, el material filmado es excesivamente repetitivo, demasiado
general o escasamente descriptivo y su comprensión solo resulta posible con
el acompañamiento del guion. Además, frecuentemente la asociación entre la
imagen y el texto es muy débil y los guiones acaban bastándose por sí solos
Dossiê

para comprender la información, como si se tratase de noticias radiales.


Buena parte de los materiales tienen problemas de iluminación, por la
ausencia de focos y reflectores durante las filmaciones. Además, algunos de
ellos, sobre todo durante las elecciones, presentan una sobreexposición o, por
el contrario, están demasiado oscuros, lo que puede ser indicio de un revelado

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realizado a toda prisa y sin mucho cuidado para conseguir salir al aire a tiempo.
Por su parte, en los guiones abundan las palabras tachadas, las frases con
errores de sintaxis y gramática y las faltas de ortografía, nuevos indicios de una
labor realizada a contrarreloj. La precariedad de esos recursos deja entrever las
enormes limitaciones de la televisión chilena en esos momentos, así como el
agitado ritmo de trabajo de los camarógrafos y reporteros durante las elecciones
de 1970.

Las noticias sobre la ampliación del electorado

Las primeras noticias sobre las elecciones que analizaremos en este artículo
no están relacionadas con las diferentes candidaturas, sino con reformas legales
realizadas a finales del gobierno de Eduardo Frei Montalva y que tuvieron como
objetivo ampliar el derecho al sufragio entre la población. El decreto 1667 del
La televisión chilena y las elecciones de 1970:

11 diciembre de 1969 concedió el derecho a voto a los no videntes, mientras


que la Ley N°17.284 redujo la mayoría de edad de los 21 a los 18 años y concedió
el derecho a voto a los analfabetos6. Las tres reformas se implementaron por
primera vez en las elecciones de 1970. UCV-TV destinó al menos tres noticias a
dos de esas reformas. La primera, que fue archivada con el código L-42027, fue
realizada antes de los comicios de septiembre, por lo que en ella no se perciben
indicios de la campaña electoral.
Ignacio del Valle-Dávila

La noticia fue filmada en una escuela para adultos con discapacidad visual de
el caso de UCV-TV

Valparaíso. La cámara muestra lo que parece una reunión informativa, destinada


a explicar a los nuevos electores ciegos de la ciudad el funcionamiento de las
plantillas especialmente elaboradas para facilitar su voto. Un hombre sentado
a una mesa recorre con un lápiz la plantilla con tres ranuras, mientras otro lo
asiste. Junto a ellos, un pequeño grupo de adultos escucha las explicaciones.
Las características de esa plantilla para los deficientes visuales habían sido
específicamente definidas por el Decreto 1667:

Las plantillas facsímiles tendrán, para facilitar su uso legal,


bordes salientes. En las elecciones pluripersonales, cada lista que
figure en la cédula electoral estará enmarcada en la plantilla, en
Dossiê

su lado exterior, por líneas en relieve que sigan los respectivos


dobleces materiales de la cédula. Dentro de estos espacios,
figurará, también en relieve, la letra de la lista correspondiente
en alfabeto corriente y en Braille (Chile, 1969).

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A pesar de la atención dada a esas plantillas, en el guion de la noticia se explica


que las oficiales aún no habían llegado al establecimiento en el momento de la
filmación. Por ello, lo que vemos en la pantalla no son las plantillas emitidas
por el gobierno, sino una copia realizada por la escuela (Imagen 1). A pesar del
interés que se percibe entre las personas que aparecen en la imagen, en el guion
se explica que solamente unas setenta personas en la ciudad se beneficiarían
con el derecho a voto concedido a los no videntes. A escala nacional, la medida
podría beneficiar a alrededor de ocho mil chilenos; sin embargo, la mayoría de
ellos no se había inscrito para votar en las elecciones (Guion L-4202, 1970, p.
1).

Imagen 1 - Noticia L-4202. Un hombre con deficiencia visual aprende a utilizar la


plantilla de votación
La televisión chilena y las elecciones de 1970:
Ignacio del Valle-Dávila

el caso de UCV-TV

Fuente: Fotograma de la noticia L-4202 (1970).

A diferencia de la nota sobre los votantes no videntes, la noticia relacionada


con la reducción de la edad mínima para sufragar fue filmada y emitida el 4 de
septiembre de 1970, día de la elección presidencial. Tiene el código L-5642 y en
ella se muestra una mesa de votación de varones en Valparaíso, compuesta en
su mayoría por jóvenes de alrededor de 18 años (Imagen 2)8. El clima de la mesa
parece alegre, muchos de los hombres filmados mientras hacen la fila para votar
Dossiê

miran directamente a la cámara, sonríen e incluso saludan. Algunos de ellos


ríen ante lo que parece ser una broma que, por la ausencia de sonido directo,
no podemos captar. La cámara realiza varias tomas de uno de los jóvenes más
extrovertidos, que apunta hacia su camiseta, en la que está escrito el lema
“I’m a lover not a fighter”, en sintonía con los movimientos de contracultura

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que comenzaban a introducirse en Chile en ese periodo. En el guion hay un


esfuerzo evidente, como en las imágenes, por poner de relieve la corta edad de
los votantes: “Un enorme interés en votar se ha mostrado hasta el momento
entre la juventud. Desde tempranas horas, donde se notaba la mayor afluencia
de ciudadanos en las últimas mesas formadas, es decir donde la mayoría de los
inscritos son menores de veinte años” (Guion L-5642, 1970, p. 1).

Imagen 2 - Nota L-5642. Un joven saca burlonamente la lengua al momento de


votar
La televisión chilena y las elecciones de 1970:

Fuente: Fotograma de la noticia L-5642 (1970).


Ignacio del Valle-Dávila

el caso de UCV-TV

Aunque la ley 17.284 no se menciona explícitamente es bastante obvio que el


objetivo de la noticia es mostrar, con un tono liviano, los cambios que introdujo
la nueva legislación. Las imágenes sirven como un contrapunto alegre para las
notas sobre el resto de la jornada electoral, que se caracterizan por un estilo
más serio y donde las personas filmadas tienen una actitud bastante más
reservada y circunspecta. En ese sentido, puede considerársela como la típica
noticia leve destinada a aligerar el ritmo interno de la emisión del noticiero.
Sin embargo, no debe pasarse por alto que esa opción del canal contribuye a
despolitizar al electorado joven. La visión de los jóvenes que transmite UCV-
TV, al menos en esa noticia, los asocia fundamentalmente a las clases medias,
además se cuida de mostrar cualquier indicio de sus preferencias electorales
Dossiê

y se preocupa exclusivamente por el electorado masculino. Las mujeres, los


militantes y los electores de los sectores populares son excluidos del imaginario
que se promueve sobre la juventud que acude a las urnas9. Como veremos, lo
mismo sucederá en otras noticias de carácter festivo donde vuelve a mostrarse

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al electorado joven.

Las candidaturas y las campañas

De todas las noticias sobre las elecciones de 1970 a las que hemos podido tener
acceso, las únicas que fueron filmadas en Santiago son las que corresponden
a la designación de dos de los cinco precandidatos de la Unidad Popular y
del candidato del Partido Nacional, Jorge Alessandri. Entre los materiales
digitalizados que hemos analizado no hay noticias sobre las designaciones de
Salvador Allende, como candidato definitivo de la UP, ni de Radomiro Tomic
como abanderado de la Democracia Cristiana (PDC). Sin embargo, con toda
seguridad ambas noticias fueron difundidas por el noticiero de UCV-TV10.
La nota N-471 tiene como tema la conferencia del MAPU, en octubre de 1969,
La televisión chilena y las elecciones de 1970:

en la que se hizo pública la precandidatura a la presidencia de Jacques Chonchol


para las elecciones de septiembre del año siguiente (Imagen 3). Sin embargo,
las imágenes no corresponden al día del anuncio, sino a la jornada siguiente,
durante la cual el MAPU debatió el programa de la Unidad Popular. Como se
explica en el guion: “Elaborando el programa presidencial de la izquierda
chilena, continuó hoy la asamblea del Movimiento de Acción Popular Unitaria,
que ayer designó a su candidato presidencial, Jacques Chonchol” (Guion N-471,
1969, p. 1).
Ignacio del Valle-Dávila

el caso de UCV-TV

Imagen 3 - Noticia N-471. Jacques Chonchol, en el centro de la imagen, durante las


reuniones del MAPU en que se anunció su precandidatura
Dossiê

Fuente: Fotograma de la noticia N-471 (1969).

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La cámara de UCV-TV recoge algunas tomas del acto, en una pequeña sala de
conferencias, en la que el precandidato escucha el discurso de un compañero de
partido. Curiosamente, a pesar de ser el protagonista del acto en los registros
fílmicos del noticiero asume una actitud bastante pasiva. En el guion se hacen
alusiones a que la noticia contaba con declaraciones de Chonchol grabadas
con sonido magnético, que probablemente no fueron archivadas o acabaron
extraviándose a lo largo de los años. El partido tenía en ese entonces pocos
meses de vida, había sido fundado el 19 de mayo de 1969, tras la escisión del
sector más progresista de la Democracia Cristiana, liderado por Chonchol.
El lanzamiento de la precandidatura del poeta Pablo Neruda, por las filas del
Partido Comunista fue recogido por UCV-TV en la nota N-483, que también fue
emitida en octubre de 1969. Como en el caso del MAPU, el espacio escogido
por los comunistas para la conferencia de prensa fue un salón de actos, al que
La televisión chilena y las elecciones de 1970:

el camarógrafo del canal porteño dedicó algunas panorámicas realizadas con


la cámara al hombro11. Se aprecia en las imágenes una fuerte presencia de
miembros de la prensa, que se agrupan con micrófonos y cuadernos de notas
alrededor de los dirigentes del PC (Imagen 4). El anuncio de la precandidatura
de Neruda parece haber suscitado un gran interés, probablemente a causa de la
fama del poeta que iba bastante más allá de los límites del electorado comunista.
Como la gran mayoría de las noticias de UCV-TV en los años sesenta y setenta,
la nota no tiene audio. Sin embargo, en las imágenes vemos a Neruda sentado
Ignacio del Valle-Dávila

ante una gran mesa, hablando para el público y la prensa reunidos. En la mesa,
el caso de UCV-TV

junto al precandidato, se encuentran algunas figuras históricas del comunismo


chileno del último tercio del siglo XX, como Luis Corvalán, en ese entonces
Secretario General del partido, el escritor y senador Volodia Teitelboim y una
joven diputada Gladys Marín.
Dossiê

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Imagen 4 - Noticia N-483. Pablo Neruda hace declaraciones a la prensa durante el


anuncio de su precandidatura
La televisión chilena y las elecciones de 1970:

Fuente: Fotograma de la noticia N-483 (1969).

Tanto la precandidatura de Neruda, como la de Chonchol fueron bastante


efímeras. Lo mismo sucedió con otros dos precandidatos que no aparecen en
las noticias consultadas, Alberto Baltra del Partido Radical y Rafael Tarud de
la Acción Popular Independiente. Los cuatro terminarían desistiendo de sus
candidaturas en favor de Salvador Allende, del Partido Socialista, que fue
Ignacio del Valle-Dávila

nombrado candidato de la Unidad Popular el 22 de enero de 1970.


el caso de UCV-TV

Muy diferente a las noticias sobre los precandidatos de la Unidad Popular


es la nota N-581 que anuncia que el expresidente Jorge Alessandri se había
inscrito el día 10 de noviembre de 1969 como candidato independiente a la
presidencia de la república, con apoyo del Partido Nacional. Aunque pueda
resultar sorprendente, la nota comienza con la portada de un periódico que trae
la noticia de la candidatura de Alessandri en los titulares. Ese breve ejercicio de
metacomunicación, donde la noticia comienza con una noticia, deja claro que
fue emitida por UCV-TV después del anuncio.
En el guion se explica que Alessandri había declarado la noche anterior, en
un discurso radial, que había decidido postularse a las elecciones presidenciales
Dossiê

de septiembre del año siguiente. El lenguaje adoptado por el reportero


reproduce en gran medida el tono que caracterizaría la campaña del candidato
conservador, marcada por la idea del sacrificio: “Jorge Alessandri en su sobrio
discurso emitió declaraciones tales como […] ‘el sacrificio y la postergación’
que le significaba asumir la candidatura, y, recalcó enfáticamente que ‘nunca

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jamás había albergado ambiciones políticas de especie alguna […]’” (Guion


N-581, 1969, p. 1).
A pesar de la seriedad y formalidad del guion escrito, la nota N-581 tiene
una libertad formal bastante grande dentro del corpus analizado, al plano con
la portada del periódico lo sucede otro de la fachada de un edificio en el centro
de Santiago de donde sale el candidato de derecha acompañado por algunos
colaboradores, entre los aplausos de un grupo de personas congregadas. En
algunas tomas el camarógrafo optó por colocar el objetivo a una altura muy
baja, para filmar los pies de Alessandri, quien era célebre por su costumbre de
desplazarse por el centro de la ciudad caminando, incluso durante el periodo
en que fue Presidente del país (Imagen 5).

Imagen 5 - Nota-581. Toma de los pies de Jorge Alessandri y sus acompañantes


durante la noticia sobre su candidatura
La televisión chilena y las elecciones de 1970:
Ignacio del Valle-Dávila

el caso de UCV-TV

Fuente: Fotograma de la noticia N-581 (1969).

Las tres notas sobre la inscripción de los candidatos y precandidatos son


las únicas de las elecciones a las que hemos tenido acceso que fueron filmadas
en Santiago. Ese número limitado se explica, en gran medida, porque UCV-
TV tenía como interés principal las noticias sobre la provincia de Valparaíso,
en particular las ciudades de Valparaíso y Viña del Mar. Sin embargo, hay una
Dossiê

segunda razón que está relacionada con las limitaciones que tenía el canal
para emitir materiales provenientes de Santiago. UCV-TV contaba con algunos
camarógrafos en la capital, pero no con reporteros, por lo que los guiones sobre
acontecimientos sucedidos en Santiago solían redactarse en la sede del canal,

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después de que el material fílmico hubiese llegado allí. Por lo general, los rollos
de 16 mm con los registros filmados en la capital se enviaban en buses de línea
hasta Valparaíso, lo que hacía que estuviesen sujetos a todo tipo de imprevistos
(Del Valle-Dávila; Bossay, 2023).
Si las noticias de las candidaturas suceden en la capital, todas las referidas
a las campañas electorales están situadas en lo que, en ese entonces, eran las
provincias de Valparaíso y Aconcagua. Las notas L-3600 y L-3609 muestran el
viaje de Allende a la provincia e incluyen visitas a fábricas y actos públicos
masivos. En la primera de ellas, el candidato presidencial de la UP interviene
ante un público compuesto en su mayoría por trabajadoras de la Industria
Oxford vestidas con delantales. En el guion se relata el resto de las actividades
del candidato ese mismo día, de las cuales no hay imágenes: Allende había
acudido a Limonares, una población de Viña del Mar y a dos fábricas textiles que
La televisión chilena y las elecciones de 1970:

se encontraban en huelga. También se anuncia que esa noche –probablemente


después del horario del noticiero– el candidato participaría en un encuentro
con la juventud en el Parque Italia de Valparaíso (Guion L-3600, 1970, p. 1).
La nota L-3609, que fue emitida en el noticiero del día siguiente, muestra
fragmentos de los discursos que se pronunciaron durante ese evento y tomas de
la multitud llevando material de la campaña como carteles, viseras y pancartas.
A juzgar por la oscuridad de las imágenes del público, es posible deducir que el
equipo de UCV-TV no contaba con ningún tipo de iluminación de apoyo, más
Ignacio del Valle-Dávila

allá de la del propio acto. En el guion se comenta que el viaje de Allende por la
el caso de UCV-TV

provincia había durado cuatro días y terminaba con ese encuentro en el Parque
Italia (Guion L-3609, 1970, p. 1).
Es interesante destacar que en los guiones de ambas noticias se hace también
alusión a los actos de campaña de Tomic y de Alessandri, sin embargo, no hay
imágenes en movimiento de ellos, pues fueron realizadas fuera de la provincia
de Valparaíso y, por lo tanto, no revestían para el canal el mismo interés que
el viaje de Allende. Por otro lado, resulta bastante probable que el canal no
contase con los medios suficientes como para enviar un equipo a cubrir todos
los eventos de cada candidato en distintas localidades del país. Para suplir la
ausencia de imágenes en movimiento se incluían fotografías de los candidatos
Dossiê

que no se han conservado, pero cuyo empleo se especifica en las instrucciones


técnicas de los guiones.
Algunos días después, se emitió la noticia L-3900, de la que no se ha
conservado el guion, sobre un acto de campaña de Jorge Alessandri en la
provincia de Valparaíso. A diferencia del encuentro en el Parque Italia con el

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que terminaba la gira de Allende, los responsables de la campaña del candidato


de la derecha optaron por un local cerrado. Se trata de un salón, de grandes
dimensiones, en el que se aglomera el público, bajo banderolas y carteles de
Alessandri. El candidato, sentado y con gesto serio, escucha el discurso de uno
de los líderes de la campaña. El registro coincide con los testimonios de la
época que afirman que al expresidente no le gustaban los grandes actos y se
decantaba, por lo general, por reuniones con pocos participantes. Una parte
del comando de la derecha mostró inquietud ante ese comportamiento, pues
temía que tuviese consecuencias negativas entre el electorado. De acuerdo con
Verónica Valdivia Ortiz de Zárate (2008, p. 248): “En ese sentido, la campaña
no logró la unidad requerida. Asimismo, a Alessandri le molestaban las giras y
ponía numerosas exigencias que dificultaban el trabajo de sus acompañantes”.

Votaciones y recuentos
La televisión chilena y las elecciones de 1970:

Por la trascendencia histórica que tendrían los resultados de las elecciones


presidenciales del 4 de septiembre de 1970, las notas sobre las votaciones y
el recuento de sufragios tienen un interés particular. Hay que añadir que una
de las noticias fue filmada en la ciudad de Los Andes por lo que constituye
uno de los escasos registros audiovisuales de las elecciones fuera de un gran
centro urbano. Se trata de la nota L-4183, que, con más de dos minutos de
Ignacio del Valle-Dávila

duración, es relativamente larga para los parámetros del noticiero del canal.
el caso de UCV-TV

Está consagrada a las votaciones en el Instituto Comercial de esa localidad,


destinado a los electores masculinos. Al final, también se incluyen, aunque en
menor proporción, algunas tomas de mesas femeninas dentro de otro centro
escolar de la misma localidad.
La cámara muestra a algunos soldados custodiando la entrada del Instituto
Comercial, mientras varios civiles hacen la cola para votar, ingresan en las
casetas o depositan el sufragio en la urna. La mayoría de los hombres que vemos
son de edad madura lo que lleva a pensar que el centro no albergaría muchas
mesas de creación reciente. Muchos de los hombres visten ropas de confección
sencilla y a veces gastada, pero se nota un cierto esmero en la indumentaria
Dossiê

escogida para ese día: corbatas, trajes de lana, gruesas chaquetas y, en algunos
casos, sombreros. El acto de acudir a votar parece una ceremonia social revestida
de una cierta solemnidad y también un momento de exposición pública en el
que se verán muchos vecinos y conocidos. La indumentaria también nos revela
una población con costumbres más tradicionales que la de los grandes núcleos

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urbanos y con un mayor contacto con las actividades agrícolas.


El camarógrafo dedicó dos tomas, la segunda de ellas de varios segundos, a
filmar un plano general de un hombre sin piernas, que avanzaba lentamente,
con ayuda de muletas de madera, por el patio polvoriento de la escuela, bajo la
mirada curiosa de otros individuos (Imagen 6). En el momento de la grabación,
probablemente la imagen tenía como objetivo añadir cierto pintoresquismo a
la noticia, pero hoy nos habla con fuerza de la pobreza y la desigualdad de un
país que, ese mismo día, trataría de emprender un camino democrático hacia
el socialismo.

Imagen 6 - Nota L-4183. Un hombre con las piernas amputadas se dirige a votar en
la ciudad de Los Andes
La televisión chilena y las elecciones de 1970:
Ignacio del Valle-Dávila

el caso de UCV-TV

Fuente: Fotograma de la noticia L-4183 (1970).

Los últimos cuarenta segundos de la nota L-4183 están destinados a las


votaciones en el colegio electoral femenino. El camarógrafo filmó un cartel
escrito a mano que deja clara la finalidad del local: “Comuna de Los Andes,
recinto de votación solo para damas. El Recinto de votación para varones se
encuentra en el Instituto Comercial. Av. Independencia. Esq. Freire”. Al igual
que en las filmaciones realizadas en el Instituto Comercial, el centro de atención
son las filas para votar y el gesto de dejar el escrutinio en la urna. Las mujeres
Dossiê

están bastante arregladas –abrigos, grandes pendientes y collares, peinados


esmerados, muchos de peluquería– como sus compañeros masculinos y hay
una ausencia bastante marcada de personas jóvenes. El camarógrafo filmó a
dos monjas caminando por los pasillos del colegio y un perro, dos detalles que

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contribuyen a darle al registro un tinte de “carácter local”, recurso típico del


periodismo televisivo.
La noticia L-5636 no sucede en Los Andes, sino en un centro de Valparaíso
destinado a la votación masculina. La cámara registra todo el ritual de votación
de un hombre maduro: lo vemos salir de la caseta con el escrutinio y un lápiz
en la mano, cerrar el sobre de votación pasándole la lengua y plegándolo
parsimoniosamente y, finalmente, entregárselo a uno de los dos vocales que
aguardan en la mesa. Este lo revisa lentamente y, después, se lo devuelve al
hombre que lo deposita en la urna. Al final de la pequeña escena, filmada
en tres tomas, el hombre se sienta en la mesa, lo que nos permite descubrir
que él también es un vocal. Resulta bastante evidente que todo fue filmado
con el consentimiento previo de los tres vocales, los cuales ejecutaron una
pequeña puesta en escena para el camarógrafo. Todos se esfuerzan por ignorar
La televisión chilena y las elecciones de 1970:

la cámara, por hacer como si no estuviera allí, aunque la ceremoniosidad es


bastante artificial y, además, nada más salir del cubículo destinado a la votación
el protagonista de la escena no puede evitar posar sus ojos, fugazmente, en el
objetivo (Imagen 7).

Imagen 7 - Nota L-5636. El vocal de mesa mira fugazmente a la cámara al salir de la


cámara de votación
Ignacio del Valle-Dávila

el caso de UCV-TV

Fuente: Fotograma de la noticia L-5636 (1970).


Dossiê

La voluntad de no mirar durante la puesta en escena contrasta con la actitud


de los vocales de mesa filmados en otras tomas de la misma noticia, que giran el
cuello, e incluso todo el cuerpo, al advertir la presencia de la cámara que recorre

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los pasillos del colegio, al inicio de la jornada electoral. Lo mismo sucede con
los infantes de marina que custodian el local y que dejan entrar a los primeros
votantes. Esa actitud de interacción evidente o disfrazada con la cámara está
presente en muchas de las noticias de la época y deja entrever la novedad y la
extrañeza que significaba para los hombres y mujeres del Chile de comienzos
de los años setenta la presencia de los equipos de televisión. El nerviosismo, la
emoción e incluso la petrificación parecen apoderarse de sus cuerpos.
Algo similar ocurre al principio de la noticia L-4189, dedicada al recuento de
sufragios en un local de votación masculino del Liceo Eduardo de la Barra de
Valparaíso. Algunos de los hombres filmados miran furtivamente a la cámara
y, después, parecen querer ignorarla explícitamente. Sin embargo, el ajetreo
de las acciones realizadas, la concentración que requieren y la expectación
que suscita el conteo hacen que la cámara sea un elemento menos disruptivo.
La televisión chilena y las elecciones de 1970:

En las imágenes, vemos la lectura de los libros con las firmas de los votantes
y, después, todo el proceso que lleva a la firma del acta, la abertura de una
de las urnas de votación y el recuento de escrutinios de una mesa. La cámara
capta, en plano detalle, los montones de votos plegados y amontonados en
pequeños grupos, que un vocal de largas patillas va abriendo y leyendo en voz
alta. Una vez abiertos, los votos son colocados en tres montones separados,
uno por candidatura. En el guion, se explica que han comenzado los recuentos
en diferentes escuelas de la ciudad. Hay, además, espacio para un comentario
Ignacio del Valle-Dávila

que, cincuenta y tres años después, resulta fuertemente machista: “En general,
el caso de UCV-TV

las mesas de varones superaron un poco a las de damas, pues estos trabajaron
con mayor rapidez y expedición” (Guion L-4189, 1970, p. 1).
Hay dos noticias en las que se muestran los recuentos paralelos al cómputo
oficial que emprendieron los comandos regionales de las candidaturas
presidenciales. La primera, que cuenta con el código L-4194, está dedicada al
comando de Radomiro Tomic y, la segunda, con el código L-4195, al de Salvador
Allende. Por la numeración de ambas, es bastante probable que hayan sido
emitidas, una después de la otra, en el mismo noticiero. Desgraciadamente no
hemos podido ver noticias sobre los recuentos en el comando de Alessandri,
aunque es probable que, originalmente, sí las haya habido o que, al menos, el
Dossiê

presentador del noticiero haya hecho alusiones a lo que había sucedido en la


sede local del Partido Nacional.
Tanto en la noticia sobre el comando de la DC como aquella sobre el de la UP
vemos panorámicas y tomas realizadas con cámara al hombro de varios hombres
y mujeres leyendo largas planillas de votos y realizando cálculos en grandes

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máquinas mecánicas. También se incluyen tomas exteriores de las calles y las


fachadas de los edificios donde estaban los comandos. En el comando de Tomic,
con una inmensa mayoría de hombres, el conteo se realiza sin gran agitación,
en algunos rostros se dibujan breves sonrisas cuando miran a la cámara, otros
conversan entre ellos y ríen con desgana. La ausencia de cualquier signo de
efervescencia parece un síntoma de que los resultados no les son favorables.
Al final, una toma muestra a los militantes, tras el conteo, agrupados en torno
a un televisor para ver los resultados. Fuera, en la calle, hay un pequeño grupo
de curiosos.
Por su parte, en el comando regional de la candidatura de Allende resulta
notorio que las expectativas de la victoria son más grandes que entre los
democratacristianos. Dos hombres cuelgan números de votaciones en un espacio
destinado para ello en una pared. Otros discuten en un pequeño círculo entorno
La televisión chilena y las elecciones de 1970:

a un tercero que realiza anotaciones en un cuaderno. La cámara recorre los


rostros de los hombres y mujeres reunidos. Muchos fuman y parecen nerviosos
(Imagen 8). Varios planos muestran los carteles que cubren las paredes de las
habitaciones: un póster del Che Guevara, retratos de campaña de Allende,
afiches del Partido Socialista, del Partido Radical, del MAPU, de la Acción
Popular Independiente, del Partido Comunista, del Partido Socialdemócrata.
Hacia el final de la noticia una nueva panorámica muestra a un grupo de
militantes sentados a una mesa, realizando inscripciones en cuadernos y otro
Ignacio del Valle-Dávila

grupo de pie, detrás de ellos, haciendo comentarios e indicando cosas con el


el caso de UCV-TV

dedo. El ambiente parece distendido y animado. Un zoom in se detiene en un


gran cartel de la Unidad Popular con el acrónimo compuesto por las letras UP
en horizontal y VA en vertical, estas dos últimas, juntas, forman una gran X
cuyo significado es Vote x Allende. Una nueva toma, realizada probablemente
desde las ventanas del comando, muestra a centenares de personas festejando
mientras hacen el número tres con los dedos, con el que se identificaba la
candidatura de Allende. Muchos saltan, ríen y parecen corear un canto de
campaña. La noticia termina con un plano cerrado de un retrato de Luis Emilio
Recabarren, creador del Partido Comunista chileno, la cámara abre el objetivo
y vuelve a mostrar el cartel con las siglas UP y el Vote x Allende.
Dossiê

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Imagen 8 - Nota L-4195. Militantes del comando local de la Unidad Popular


recuentan los votos

Fuente: Fotograma de la noticia L-4195 (1970).


La televisión chilena y las elecciones de 1970:

Aunque los archivos que se conservan de las noticias sobre el comando de


Tomic y el comando de Allende tienen casi la misma duración (100 segundos
y 98 segundos, respectivamente), resulta evidente que el recuento realizado
en la sede local de la candidatura de la UP despertó más interés por parte del
canal. Como es obvio, lo anterior se explica por los resultados de la elección; sin
embargo, la atención con la que el camarógrafo filmó los carteles de propaganda
Ignacio del Valle-Dávila

y, sobre todo, la inclusión al final de la imagen de Recabarren hacen pensar


el caso de UCV-TV

que hubo también, al menos de parte del responsable por la filmación, una
cierta cercanía ideológica. En ese sentido, la imagen de Recabarren es clave
porque se trata de una alusión explícita a la historia de la izquierda chilena y,
en particular, a la tradición del comunismo en ese país. En el guion se cuenta
que los electores de la Unidad Popular consideraban que habían ganado las
elecciones, a pesar de que aún no había resultados oficiales:

A medida que aumenta el número de mesas escrutadas a través


de todo el país el ambiente de fiesta se engrandece entre los
partidarios del Candidato de la Unidad Popular, doctor Salvador
Allende. La gente está llegando hasta el comando que se encuentra
Dossiê

en la calle Victoria de Valparaíso y está cantando y bailando como


una forma de exteriorizar la alegría por lo que ellos llaman de
triunfo de su abanderado. En el interior del local, entretanto, las
autoridades, parlamentarios de las colectividades que apoyan al
doctor Allende y dirigentes de la Unidad Popular de la provincia,

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continúan atentos a los resultados que están dando a través de


receptores de radio y de televisión […]. Aunque faltan votos por
escrutar, los allendistas del país ya se dicen vencedores y así lo
están demostrando no solo en Valparaíso, sino que también en
otras provincias de Chile (Guion L-4195, 1970, p. 1).

El pago de apuestas

En los días siguientes a las elecciones de 1970 el canal UCV-TV emitió al


menos tres noticias sobre el pago de apuestas realizado, en público, tanto por
personalidades del mundo de la política y de los medios de comunicación, como
por vecinos anónimos de Valparaíso. Ese tipo de apuestas que involucraban
acciones graciosas y un poco ridículas, como bañarse en una fuente pública o
lustrar los zapatos del ganador, constituían una tradición bastante arraigada
La televisión chilena y las elecciones de 1970:

dentro de los rituales oficiosos de las elecciones chilenas. En el caso de las


apuestas filmadas por el canal, los lugares escogidos fueron la Plaza Aníbal
Pinto y la Plaza Victoria, ambas en el centro de Valparaíso. En la noticia L-4198
jóvenes haciendo con los dedos el signo “dos” de la campaña de Alessandri
llegan a la plaza a hombros de algunos amigos y un estudiante se pasea sin
camisa, sonriente, camino de la fuente a la que se lanzará.
En el registro L-4204 una enorme multitud presencia, en la Plaza Aníbal
Pinto, como el locutor Hugo Opazo de la Radio Portales – una de las más
Ignacio del Valle-Dávila

populares de la ciudad y del país–, llega con albornoz y toalla para pagar su
el caso de UCV-TV

apuesta ante su colega de radio Luis Caprile. Al final de la noticia ambos se


abrazan. El guion, con tono irónico, comenta:

Los compañeros de Hugo Opazo, para hacer más agradable el


chapuzón, colocaron cuatro grandes barras de hielo que dejaron
el agua a dos grados bajo cero. Pero después de la mojada, alguien
ofreció una botella de whisky que fue tomada por el perdedor de
la apuesta y sus compañeros (Guion L-4204, 1970, p. 1).

El mismo tono humorístico se percibe en la noticia L-4227: el regidor


democratacristiano, Hernán Concha se lanza a la fuente de la Plaza Victoria para
Dossiê

pagar una apuesta ante el regidor del Partido Comunista, Moisés Bahamondes
(Imagen 9). De acuerdo con el guion:

Totalmente mojado y chorreando agua de su ropa [Concha] abrazó a


su colega Bahamondes al que dejó también empapado, en medio de

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los aplausos del público que riendo premió la honradez de Concha al


cumplir con su palabra. Luego ambos regidores se fueron juntos a tomar
providencias para evitar un resfrío del perdedor (Guion L-4227, 1970, p.
1).

Imagen 9 - L-4227. El regidor Concha (PDC) y el regidor Bahamondes (PC) ríen


juntos después de que Concha se lance a la fuente de la Plaza Victoria
La televisión chilena y las elecciones de 1970:

Fuente: Fotograma de la noticia L-4227 (1970).

Las tres noticias resultan bastante llamativas si tenemos en consideración


Ignacio del Valle-Dávila

que la campaña había sido muy tensa y que, inmediatamente después de las
el caso de UCV-TV

elecciones, el Partido Nacional y parte de la Democracia Cristiana barajaron


la posibilidad de que Allende no fuese ratificado por el Congreso Pleno, que
tendría que escoger entre las dos primeras mayorías (Arellano, 2009, p. 166).
La crispación de ese momento político solo iría en aumento en las semanas
inmediatamente posteriores; sin embargo, las noticias sobre el pago de
apuestas y el abrazo entre rivales políticos no solo evitan hacer alusiones a la
tensión existente, sino que se esfuerzan por retratar lo contrario. UCV-TV hace
hincapié en los inocentes y bienhumorados rituales alrededor de las elecciones,
como si fueran una metáfora del hipotético consenso social y del arraigo de los
valores democráticos, en un momento en que el régimen político establecido
Dossiê

por la Constitución de 1925 pasaba por una de sus mayores pruebas. En los años
siguientes, esa imagen de supuesta armonía nacional se haría añicos. Pasarían
dos décadas antes de que los chilenos volviesen a votar en unas elecciones
presidenciales.

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Conclusión

Las noticias de UCV-TV sobre las elecciones presidenciales de 1970 son un


patrimonio inestimable tanto por la importancia histórica de esos comicios
como por la escasez de registros televisivos sobre ellos. Los tradicionales
rituales democráticos que el canal de UCV-TV se esforzó por mostrar se cargan
de una significación nueva y ciertamente dramática, si pensamos que serían
interrumpidos drásticamente por la dictadura y que no volvería a haber una
elección presidencial hasta 1990.
Como hemos podido ver a lo largo de este artículo, el canal cubrió diferentes
aspectos de la elección, como la ampliación del electorado, las campañas
electorales, el día de la votación, los recuentos de votos y, finalmente, el
ritual de las apuestas públicas. Sin embargo, es notoria la ausencia de otros
La televisión chilena y las elecciones de 1970:

acontecimientos de importancia fundamental como el lanzamiento de las


candidaturas de Allende y Tomic y, desde luego, las reacciones de las principales
fuerzas políticas ante los estrechos resultados de la noche del 4 de septiembre
de 1970. Si esos eventos fueron filmados por las cámaras del canal, no han
llegado hasta nuestros días o no han sido, todavía, digitalizados.
El material que ha sido estudiado llama poderosamente la atención por la
falta de cualquier tipo de análisis sobre la coyuntura política, por la ausencia de
explicaciones sobre los programas de cada candidatura y por no haber ninguna
Ignacio del Valle-Dávila

alusión a polémicas o conflictos en los que estén involucradas las principales


el caso de UCV-TV

fuerzas políticas. A partir del material estudiado se diría que UCV-TV no solo
evitaba rigurosamente mezclar la descripción de los hechos con las opiniones –
siguiendo el clásico imperativo del periodismo positivista–, sino que su concepto
de lo que serían los “hechos” es bastante particular. Casi todas las noticias dan
cuenta de actos muy concretos como reuniones, conferencias, votaciones, pero
rara vez se incluyen las declaraciones de las personas involucradas y nunca se
alude a debates abstractos. La esfera de las ideas no parece formar parte de la
actualidad que el canal se interesa en difundir. Por consiguiente, se percibe una
ausencia total de embates ideológicos o de conflictos sociales, a pesar de que las
noticias tienen como tema central las elecciones más reñidas y polarizadas del
Dossiê

siglo XX chileno y de que en ellas existiese la posibilidad real de que una alianza
encabezada por socialistas y comunistas llegase al poder, como efectivamente
sucedió.
Si las fuentes audiovisuales de UCV-TV no aportan muchos antecedentes
para comprender las dinámicas de los grupos de poder durante las elecciones,

Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.127-156, jul-dez. 2023 } 151


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son bastante ricas para acercarnos a los individuos anónimos que participaron
en ellas. Esos fragmentos de películas sin sonido parecen rescatar del olvido,
durante breves instantes, a los ciegos de Valparaíso que se preparaban para
votar por primera vez, a los jóvenes de 18 años que acudían entusiasmados a
las urnas, a los hombres y mujeres de Los Andes ataviados con sus ropas de
domingo ese viernes 4 de septiembre de 1970. Los militantes anónimos que
apuntan en sus cuadernos las cifras de votación de cada rincón de la provincia y
sonríen nerviosos ante la perspectiva de una posible victoria, los hombres que
saltan a pocos metros de allí convencidos del triunfo de la UP, los estudiantes
que al día siguiente cepillan entre risas los zapatos de sus rivales políticos o se
lanzan a las fuentes traen a la luz, desde el pasado, pequeñas historias al margen
de los grandes relatos. Estos archivos televisivos nos ayudan a redescubrirlas
fugazmente. Tienen, además, el curioso efecto de hacer presente lo pretérito, es
La televisión chilena y las elecciones de 1970:

decir, de ayudarnos a ver esas elecciones no como acontecimientos concluidos


para siempre, sino como algo que está sucediendo y cuyos actores aún no
comprenden plenamente. Las miradas y las sonrisas esperanzadas de unos, los
gestos de incertidumbre y desasosiego de otros ante el vuelco histórico que
estaba experimentando el país en el momento en que las cámaras filmaban,
nos invitan a volver a interrogar el futuro inmediato que se cernía sobre todos
ellos.
Ignacio del Valle-Dávila

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Ignacio del Valle-Dávila

SANTA CRUZ, E. Derrotero histórico, tendencias y perspectivas de la televisión


el caso de UCV-TV

chilena. Comunicación y Medios, Santiago, n. 35, p. 8–21, 2017. Disponible en:


https://comunicacionymedios.uchile.cl/index.php/RCM/article/view/45906.
Acceso en: 29 dic. 2023.

VALDIVIA ORTIZ DE ZÁRATE, Verónica. Nacionales y Gremialistas: El ‘parto’ de


la nueva derecha política chilena, 1964- 1973. Santiago de Chile: LOM, 2008.

Notas
1
Doctor en Cine por la Université Toulouse 2 – Jean Jaurès. Profesor del Programa de
Posgrado en Muldimedios de la Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). ORCID:
0000-0002-8174-0582.
Dossiê

2
Utilizo la nomenclatura actual para facilitar la comprensión de los lectores, a pesar de
que la regionalización de Chile fue establecida, posteriormente, por la dictadura. En
1970, año de la elección presidencial, esos territorios correspondían, en lo esencial, a las
provincias de Valparaíso y Aconcagua.
Los archivos de UCV-TV fueron donados por el canal a la Cineteca Nacional que, desde
3

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2022, se ha hecho cargo de su conservación y digitalización. Parte de ellos se encuentra


disponible para libre acceso en la página web de la institución. En 2023, junto a Claudia
Bossay realicé la investigación “Miradas descentralizadas: los archivos de UCV-TV”
con financiamiento de la Cineteca Nacional, en esa ocasión analizamos un total de 166
registros audiovisuales realizados por la televisión de Valparaíso entre 1968 y 1977. Este
artículo prolonga y profundiza ese primer estudio enfocándose específicamente en las
elecciones de 1970.
4
Chile fue uno de los últimos países de América Latina en crear canales de televisión.
El desarrollo del medio estuvo asociado a tres universidades: la Pontificia Universidad
Católica de Chile, la Universidad de Chile y la Pontificia Universidad Católica de
Valparaíso. En 1970 se creó un cuarto canal no universitario: Televisión Nacional (Santa
Cruz, 2017, p. 9).
5
Albornoz (2014, p. 193) con base en los trabajos seminales de Hurtado (1989, p. 209)
hace la siguiente proyección para 1972: tres millones de personas tenían acceso directo
a la televisión, casi un tercio del país, en el caso de la capital la proporción subía hasta
un 65% de los santiaguinos.
La televisión chilena y las elecciones de 1970:

Estos últimos permanecieron sin derecho a ser candidatos.


6

7
Para facilitar la identificación de las noticias, la mayoría de las cuales no contaban
con títulos ni autores claramente identificados, he optado por utilizar el código con
el que fueron catalogadas por el canal UCV-TV y que se ha conservado en los fondos
de la Cineteca Nacional. Se trata del mismo sistema de referencia que empleamos en
el estudio “Miradas descentralizadas: Las noticias de UCV-TV (1968-1977)” (Del Valle-
Dávila; Bossay, 2023).
8
Chile hasta el día de hoy es uno de los pocos países del mundo donde las mesas de
votación están separadas por género. En el caso de los centros de votación mixtos los
Ignacio del Valle-Dávila

hombre y mujeres depositan su sufragio en urnas diferentes.


el caso de UCV-TV

9
Tampoco hay entre el material investigado noticias sobre la votación de los analfabetos
lo que, evidentemente, contribuye a marginar de la imagen, al menos durante las
elecciones, a parte de los sectores más vulnerables de la sociedad.
Cabe destacar que prácticamente no hay noticias sobre la candidatura
10

democratacristiana, lo que no parece explicarse por cuestiones relativas a la línea


editorial del canal –relativamente cercano al PDC– sino porque los archivos no se han
conservado o no han sido digitalizados.
11
Siguiendo la tendencia general de muchos noticieros de la época, los camarógrafos de
UCV-TV no utilizaban trípodes y preferían desplazarse por los lugares que filmaban con
la cámara al hombro. A raíz de ello muchas de las imágenes tiemblan, presentan los ejes
de la imagen inclinados y encuadres poco académicos.
Dossiê

Recebido em 30/12/2023 - Aprovado em 15/01/2024


Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.127-156, jul-dez. 2023 } 156
DOI: 10.5433/1984-3356.2023v16n32p157-186

Amor, sexualidad y control de


la natalidad en la revista Paula
durante la Unidad Popular

Love, sexuality and birth


control in Paula magazine
during Popular Unity

Amor, sexualidade e controle


da natalidade na revista Paula
durante a Unidade Popular

Claire-Emmanuelle Block1

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Resumen: Este artículo centra su análisis en una publicación


dominante del mercado de la prensa femenina de su época, la
revista chilena Paula, durante el periodo de la Unidad Popular.
Aunque la prensa femenina a menudo se ha interpretado
como un instrumento de reproducción de roles de género
tradicionales, Paula desafía esta categorización. Fundada
en 1967, la revista adopta una posición ambivalente durante
la Unidad Popular, perteneciendo a un grupo mediático
conservador, pero manteniendo una línea editorial progresista,
aunque no del todo. El artículo propone un análisis cualitativo
de los artículos que abordaron las temáticas del amor, de la
sexualidad y del control de la natalidad en los números de la
Amor, sexualidad y control de la natalidad en

revista publicados entre 1970 y 1973, revelando una compleja


la revista Paula durante la Unidad Popular

"escritura de la contradicción" que recompone de forma parcial


y ambigua el orden de género. La revista revela tensiones en
las normas de género y luchas de definiciones de la legitimidad
social de ciertas identidades y comportamientos femeninos.
Actúa como un espacio público femenino que aborda
Claire-Emmanuelle Block

discusiones relegadas de la agenda política. Hasta el golpe


de Estado que marcó cambios en la revista, el éxito comercial
de Paula sugiere que reflejaba aspiraciones de cambio en
la sociedad que no encontraron un verdadero eco político.
Palabras clave: prensa femenina; género; sexualidad; unidad
popular; Chile.

Abstract: This article focuses its analysis on a dominant


publication in the market of women's press during its time,
the Chilean magazine Paula, during the period of the Popular
Unity. Although women's press has often been interpreted as a
Dossiê

tool for reproducing traditional gender roles, Paula challenges


this categorization. Founded in 1967, the magazine takes an
ambivalent stance during the Popular Unity, belonging to a
conservative media group while maintaining a progressive
editorial line, although not entirely. The article proposes a

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qualitative analysis of the articles that addressed the themes


of love, sexuality, and birth control in the issues published
between 1970 and 1973, revealing a complex "writing of
contradiction" that partially and ambiguously recomposes the
gender order. The magazine exposes tensions in gender norms
and struggles over defining the social legitimacy of certain
female identities and behaviors. It acts as a women's public
space addressing discussions marginalized from the political
agenda. Until the coup that led to changes in the magazine,
Paula's commercial success suggests that it reflected societal
aspirations for change that did not find a true political echo.
Keywords: women's press; gender; sexuality; popular unity;
Chile.
Amor, sexualidad y control de la natalidad en

Resumo: Este artigo centra sua análise em uma publicação


la revista Paula durante la Unidad Popular

dominante no mercado da imprensa feminina de sua época, a


revista chilena Paula, durante o período da Unidade Popular.
Embora a imprensa feminina frequentemente tenha sido
interpretada como um instrumento de reprodução de papéis de
gênero tradicionais, Paula desafia essa categorização. Fundada
Claire-Emmanuelle Block

em 1967, a revista adota uma posição ambivalente durante a


Unidade Popular, pertencendo a um grupo midiático conservador,
mas mantendo uma linha editorial progressista, embora não
completamente. O artigo propõe uma análise qualitativa
dos artigos que abordaram temas como amor, sexualidade e
controle de natalidade nos números da revista publicados entre
1970 e 1973, revelando uma complexa "escrita da contradição"
que recomposta parcial e ambiguamente a ordem de gênero. A
revista revela tensões nas normas de gênero e lutas pela definição
da legitimidade social de certas identidades e comportamentos
femininos, e também atua como um espaço público feminino
que aborda discussões relegadas da agenda política. Até o
Dossiê

golpe de Estado, que marcou mudanças na revista, o sucesso


comercial da Paula sugere que refletia aspirações de mudança
na sociedade que não encontraram um eco político verdadeiro.
Palavras-chave: imprensa feminina; gênero; sexualidade;
unidade popular; Chile.

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Desde las ciencias sociales y de la comunicación, una brecha interpretativa


atraviesa los estudios sobre prensa femenina. Vector de consumismo, de
frivolidad y de reproducción de un orden de género tradicional, por un lado,
instrumento de transformaciones sociales y de emancipación femenina por
otro, esta prensa, entendida generalmente como la prensa dirigida a mujeres
(Lugan Dardigna, 1974; Sullerot, 1966), es un objeto de estudio paradójico,
ya que siendo un mercado de publicación muy dinámico ha ocupado un lugar
menor en las historiografías nacionales (Pavard; Blandin, 2014). La exclusión
de género se ha traducido en una invisibilización de sus archivos, a veces
conservados de forma parcial. En Chile, esta discusión en torno al rol de la
prensa femenina en la reproducción de un orden y de identidades de género se
ha materializado en la selección y marginación de ciertas fuentes. Los periódicos
y las revistas políticas o culturales concentraron el foco de atención, aunque
más recientemente la cantidad y la diversidad de publicaciones estudiadas ha
Amor, sexualidad y control de la natalidad en

aumentado. Claudia Montero, autora de los principales estudios en Chile sobre


la revista Paula durante la Unidad Popular

edición y periodismo femeninos, define su objeto de estudio como “prensa de


mujeres” cuyas fronteras excluyen las revistas femeninas, concebidas como las
“revistas dirigidas a las mujeres y que ‘enseñan’ las formas ‘adecuadas’ del ser
femenino” (Montero, 2018, p. 1).
Sin embargo, la complejidad de los discursos que circulan en ciertas revistas
Claire-Emmanuelle Block

femeninas parece desafiar esa categorización dicotómica. La revista quincenal


Paula, fundada en Chile en 1967 por el empresario Roberto Edwards Eastman,
cuyo primer número plantea en portada: “¿Puedo tomar la píldora?”, podría
encarnar esta dificultad. Aunque actualmente beneficie de una memoria
bastante homogénea de pionera del nuevo periodismo y de la liberación
femenina, que se debe en gran medida al primer periodo de su existencia
(entre su creación y 1973), a lo largo de sus 57 años de existencia, no dejó de
situarse en el medio de esta disyuntiva interpretativa. En vez de resolver este
debate, un análisis cualitativo de Paula invita, más bien, a superarlo. Tal como
la historiografía francesa se dedicó a hacer desde unos veinte años, explorar
la prensa femenina requiere abarcar una verdadera polifonía que tensiona la
fácil categorización de una publicación. Diferentes voces y registros, a menudo
Dossiê

contradictorios, coexisten en el papel couché entre los artículos de periodistas,


las publicidades, los editoriales, el correo de las lectoras, el horóscopo, las
entrevistas, las fichas de cocina, los patrones de costura y los consejos de
belleza. Incluso dentro de una misma categoría de artículos, los mensajes no
son exentos de contradicciones y ambigüedades.

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A nivel institucional y de línea editorial, aunque las fuentes para profundizar


este estudio hacen falta, la posición ambigua de Paula queda de manifiesto,
en particular durante el periodo de la Unidad Popular. El fundador de la
revista, Roberto Edwards, es hermano de Agustín Edwards, dueño del diario
El Mercurio, principal agente mediático de desestabilización del gobierno de
Salvador Allende desde sus primeros días gracias al apoyo financiero de la CIA.
Si bien Paula surge de la ambición personal de Roberto Edwards de impulsar un
proyecto periodístico capaz de quebrar los modelos de la prensa femenina de la
época, no deja de pertenecer a un imperio mediático de claro corte conservador
y derechista cuya voluntad de supervisar la edición de la revista se habría
acentuado durante la Unidad Popular. En ausencia de Roberto Edwards, radicado
junto a su hermano en Estados Unidos desde la llegada de Allende al poder, el
personal de El Mercurio habría empezado a encargarse de revisar el contenido
de Paula, subrayando los elementos con los que entraba en oposición, según
Amor, sexualidad y control de la natalidad en

los relatos de su primera directora, Delia Vergara. Sin embargo, recuerda que
la revista Paula durante la Unidad Popular

se trataba más de manifestar un desacuerdo que de ejercer una presión para


cambiar el contenido porque “con el éxito, no se discute”2. Fuera de los relatos
del equipo de la revista, la falta de fuentes adicionales dificulta una comprensión
precisa del funcionamiento, de las intenciones y de las relaciones de poder entre
todos los miembros de esta empresa editorial. Sin embargo, es menester poner
Claire-Emmanuelle Block

de relieve que, durante este periodo, el sello progresista y transgresor, en cierta


medida, en materia de normas de conductas femeninas de la revista no cesó
de afirmarse, aunque entrara en contradicción con las posiciones tradicionales
de los sectores de derecha sobre esas materias. Al parecer, esa línea editorial
fue precisamente uno de los elementos clave en su dominación del mercado
editorial en su segmento. El modelo económico de la prensa femenina se basa
en que la revista se vende dos veces: una vez a las lectoras y otra vez a los
publicistas (Sonnac, 2010). El éxito de Paula se verifica en ambas dimensiones.
Se podría suponer que las ganancias de la revista permitieron su relativa
libertad de tono en materia de género, sobre todo considerando que Paula es
muy distante del discurso político e ideológico de la izquierda de su época, que
no comentaba la coyuntura política y que, aun en materia de conyugalidad,
Dossiê

sexualidad y control de la natalidad, no proponía discursos radicales, sino que


múltiples y no unívocos, capaces por su ambigüedad de complacer a un público
lector amplio y diverso.
Este artículo se propone analizar esta “escritura de la contradicción” (Pavard,
2009) en Paula a través del análisis cualitativo sistemático de los artículos que

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abordaron las temáticas del amor, de la sexualidad y del control de la natalidad


en los números de la revista publicados durante el periodo de la Unidad
Popular3. Paula no fue la primera revista femenina en Chile en abordar esos
temas. Sin embargo, desde su primer número, su forma iterativa de hacerlo,
proponiendo un discurso directo, eventualmente provocador, alejándose en
cierta medida de los modelos femeninos tradicionales permitió a la revista
imprimir un sello particular y distinguirse dentro de un mercado editorial
femenino caracterizado por su abundancia y fragmentación. El equipo de la
revista y el público lector al que va dirigida pertenecen a los sectores liberales
y a las clases más acomodadas de la sociedad chilena. Sin embargo, la revista
pretende también conquistar nuevas lectoras, en primer lugar, lectoras jóvenes
y, en menor medida, de extracciones sociales un poco más diversas, lo que queda
en evidencia en particular en las secciones de moda que proponen modelos
“ponibles” y repetibles en casa. Abordar la sexualidad femenina y el control
Amor, sexualidad y control de la natalidad en

de la natalidad, temas considerados tabúes en la época, puede ser interpretado


la revista Paula durante la Unidad Popular

como una estrategia comercial que persigue un objetivo de modernización


de la imagen de la prensa femenina y así atraer lectoras que solo tenían la
posibilidad de escoger entre variaciones de discursos conservadores. Sin
embargo, podría responder también a una estrategia política de promoción de
la emancipación femenina de parte de actrices comprometidas personalmente
Claire-Emmanuelle Block

con este objetivo. En Paula, se puede considerar que la sexualidad y el control


de la natalidad son a la vez temas y línea editorial. La mayoría del equipo
editorial de la revista se compone de mujeres que escriben para otras mujeres
teniendo la intención de alzar la voz desde su posición social de mujeres. No
implica que su discurso sea feminista, sin embargo, la línea editorial revela
una autocomprensión de las autoras como ocupando un lugar específico en la
sociedad determinado por relaciones sociales de género. Los estudios de género
pueden proporcionar herramientas teóricas para profundizar el análisis de los
discursos de las revistas femeninas, en particular la producción de estereotipos
de género. Así, la prensa femenina, como otros medios de comunicación como
la televisión, puede ser considerada una “tecnología de género” (De Lauretis,
1987): difunde representaciones de las relaciones sociales de género que a
Dossiê

través de la repetición producen y reproducen el género de forma performativa.


Inscribiéndose en esta línea teórica, este artículo propone por lo tanto estudiar
la producción de discursos, estereotipos y normas de género desde un espacio
público de mujeres (Montero, 2018) hacia un público lector de mujeres. Se
plantea entonces que la prensa femenina es actriz de la (re)producción del

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orden de género y, de forma más general, de permanencias o transformaciones


sociales.
Pero la prensa femenina constituye también un reflejo de la sociedad que la
produce. El periodo de la Unidad Popular se caracterizó por una participación
política creciente, desde lo local hasta los partidos políticos. En varios sectores
de la población, los mil días del gobierno de Salvador Allende constituyeron un
momento de efervescencia y de apertura del horizonte de las posibilidades hacia
múltiples direcciones: desde las relaciones de poder hasta las representaciones
del mundo. Se creó la Secretaría Nacional de la Mujer y se buscó promover la
igualdad de sueldo entre hombres y mujeres, la igualdad civil para la mujer
casada, nuevos derechos para las mujeres, relacionados con los derechos de
propiedad de la tierra y la protección del binomio madre-hijo antes y después
del parto, aunque gran parte de ellos quedaron como medidas del programa
de gobierno o proyectos de ley. Se buscaba construir una sociedad igualitaria
Amor, sexualidad y control de la natalidad en

para todos y todas, sin embargo, sin cuestionar las desigualdades de género,
la revista Paula durante la Unidad Popular

entendiendo que estas se solucionarían en la medida de la realización del


proyecto socialista. Tampoco se pusieron en tela de juicio los roles sociales
tradicionales de género. En los discursos y la agenda política se hacía
referencia sobre todo a las mujeres desde sus roles de dueñas de casas, madres
y trabajadoras. Si bien, varias de ellas integraron agrupaciones y partidos
Claire-Emmanuelle Block

políticos y si bien existieron trayectorias femeninas de emancipación a través


de la participación política, una minoría extremadamente pequeña de mujeres
llegó a ocupar lugares decisionales y muchas de ellas seguían concebidas como
compañeras y acompañantes del varón en el proceso de transformación de la
sociedad. Aun cuando ejercían papeles políticos, solían cumularlos con sus roles
tradicionales en la esfera doméstica y alcanzar una menor visibilización de sus
actividades. La socióloga feminista Julieta Kirkwood describió la incorporación
de las mujeres al proyecto político de la Unidad Popular de la forma siguiente:

La discriminación femenina aparecerá disfrazada, postergada


como secundaria o, en ocasiones, directamente negada. En parte
porque dentro de la gama de relaciones de dominación, la de
mayor elaboración teórica es la que se ocupa de las relaciones
Dossiê

entre clases antagónicas, y la mujer aparecía, inobjetablemente,


repartida en clases sociales (Kirkwood, 1986, p. 49).

Desde ningún lugar surgieron propuestas de incorporación de las mujeres

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a los espacios de poder o al espacio público. Desde la obtención del sufragio


femenino, el periodo se suele caracterizar como un momento de reflujo dentro
del movimiento feminista y las mujeres activas en agrupaciones y partidos
políticos no solían levantar problemáticas de género, aunque, en algunas, las
desigualdades que experimentaron durante estos años sembraron los gérmenes
de un compromiso posterior, estructurante de la segunda ola del feminismo
chileno4. Del lado de las mujeres de la oposición, su toma de posición en el
espacio público se realizó desde roles de género tradicionales reivindicados.
Por lo tanto, como objetos de discursos y proyectos políticos, así como sujetos
políticos, durante la Unidad Popular, las mujeres continuaron ocupando un
lugar subalterno, postergado y subordinado a un orden de género en gran
medida intacto. En materia de educación sexual y planificación familiar, las
políticas públicas de la Unidad Popular pretendieron hacer de esos programas
un servicio público más, capaz de promover la amplia difusión de informaciones,
Amor, sexualidad y control de la natalidad en

de proporcionar una atención integral a las mujeres a lo largo de su edad fértil


la revista Paula durante la Unidad Popular

y un acompañamiento eficaz de la pareja hacia una “paternidad responsable”.


El objetivo era proporcionar a la pareja las informaciones y los medios para
planificar el número y el ritmo de los embarazos con el objetivo de mejorar
las condiciones de vida y el bienestar de la familia por sobre la reducción del
número de hijos (Rojas Mira, 1994). Se definieron las herramientas válidas
Claire-Emmanuelle Block

para llegar a ese fin: los métodos anticonceptivos modernos, pero no el aborto
provocado cuya reducción siguió siendo un objetivo. Esos programas, por lo
tanto, pusieron el énfasis sobre la disociación entre sexualidad y reproducción,
pero principalmente dentro de la pareja y del marco de la familia. Aunque
el estado civil de las mujeres no haya sido un obstáculo para acceder a los
anticonceptivos, se siguió sin concebir como objetivo de políticas públicas la
promoción de su propia autonomía como poseedora de derechos reproductivos
y sexuales y las mujeres siguieron siendo objetos de políticas de salud pública
esencialmente como componentes de una pareja y madres. Si se propuso salir
de modelos verticales de programas de salud pública a través de la capacitación
de lideres locales en materia de educación sexual y planificación familiar, las
políticas públicas no emergieron de las demandas de las mismas mujeres ya
Dossiê

que no se le otorgó un rol protagónico en su diseño (Jiles Moreno; Rojas Mira,


1992).
En este contexto, la prensa femenina de la época puede representar un espejo
de problemáticas que ciertas mujeres sí se plantearon, aunque no aparecieron
traducidas en discursos políticos o demandas sociales. Aparece entonces como

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un espacio público constituido por “mujeres que se asumen sujetos sociales


y que tienen la intención de expresar una opinión”, donde buscan “promover
transformaciones o reforzar convicciones, ideas, proyectos sobre la propia vida,
la sociedad, la política y la cultura” (Montero, 2018, p. 11). De esta forma, Paula
puede representar el reflejo de discusiones que se dieron en ciertos sectores
de la sociedad, discusiones que quedaron invisibilizadas en las fuentes que
se han revisado para estudiar la Unidad Popular y por las preguntas que se
han planteado a este periodo desde la disciplina histórica. Pone de manifiesto
que las normas y los roles tradicionales de género se ven tensionados dentro
de las clases medias y altas liberales, pero incluso se podría suponer que más
allá. La Unidad Popular representa un momento de tensiones entre proyectos
de sociedad antagónicos. Si bien esos proyectos no alzan discursos en torno
al orden de género, existen de forma implícita y Paula establece un dialogo
público con ellos. Los artículos que abordan las temáticas del amor, de la
Amor, sexualidad y control de la natalidad en

sexualidad y del control de la natalidad colocan en el espacio público temas


la revista Paula durante la Unidad Popular

considerados como pertenecientes a lo privado, lo individual, lo no político. La


sexualidad y la reproducción son objetos de luchas de definición de las fronteras
de su ejercicio legítimo (Ruault, 2019) en un contexto de supuesta liberación
femenina, de transformaciones sociales y de mayor autonomización de las
mujeres en materia de control de la natalidad. Propongo analizar Paula como
Claire-Emmanuelle Block

un observatorio de discusiones, tensiones y reajustes de las normas de género


y de las definiciones del ejercicio socialmente legítimo de la sexualidad. Esas
ideas e inquietudes dicen algo de las aspiraciones al cambio que atravesaban
ciertos segmentos de la sociedad chilena y representan debates que no estaban
presentes en la agenda pública.

Paula, un espacio público de expresión femenina novedoso

Desde su primer número en julio de 1967, la revista Paula representa una


propuesta voluntariamente rupturista dentro del panorama general de la
prensa femenina. En los años 1960, el mercado editorial dirigido a las mujeres
se compone de numerosas publicaciones con orientaciones temáticas diversas
(cultura, actualidad, farándula, hogar, moda, belleza), diferentes formatos –
Dossiê

algunos emergentes como las fotonovelas –, material proveniente del extranjero


y producido nacionalmente, segmentado principalmente por la posición social
de sus lectoras: por ejemplo, Rosita se dirigía a las clases populares, Confidencias
a la clase media y Eva a la oligarquía. Sin embargo, las representaciones de

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lo femenino son homogéneas: tradicionales y construidas como atemporales,


fuera del espacio y del tiempo, vinculadas a lo que se concibe como una esencia
femenina asociada al espacio del hogar, a la maternidad y al matrimonio.
En este contexto, Paula es rupturista desde distintos puntos de vista: por su
formato, por la presencia iterativa de temáticas asociadas a “lo privado” y por
la forma de abordarlas proponiendo un discurso tensando, aunque no del todo,
las normas tradicionales de género.
Al fundar la revista después de haber heredado la Editorial Lord Cochrane
de parte de su padre, Roberto Edwards la concibe como un negocio con fines de
lucro: opta por una revista femenina sabiendo que esas publicaciones benefician
de recursos publicitarios importantes. El sello progresista de la revista llena un
vacío en el mercado editorial y es propicio para generar cierto grado de escándalo
y, por lo tanto, de visibilidad dentro de un mercado competitivo. El equipo
editorial debe encarnar esta línea editorial y ser capaz de impulsarla. Roberto
Amor, sexualidad y control de la natalidad en

Edwards escoge a Delia Vergara, joven periodista formada en la Universidad


la revista Paula durante la Unidad Popular

de Chile y en la Universidad de Columbia que vive desde 1965 en Ginebra. Por


medio de una carta le propuso asumir la dirección de la revista, lo que ella
acepta a la condición de poder disponer de una total autonomía en cuanto a
su equipo y a la línea editorial. Se rodea de periodistas egresadas de la misma
universidad que ella, como Malú Sierra, Constanza Vergara, Cecilia Domeyko y
Claire-Emmanuelle Block

Amanda Puz y de Isabel Allende que conoció en Ginebra. Todas pertenecen a


una misma generación de periodistas jóvenes, habiendo estudiado o vivido en
el extranjero en el caso de algunas, de clase media o alta, de orientación liberal,
que no tienen cercanía con la Unidad Popular a excepción de Amanda Puz e
Isabel Allende, comprometidas con un proyecto que se propone ser un reflejo
de las transformaciones en cuanto al lugar de las mujeres en la sociedad. Esta
intención se manifiesta en el primer editorial de 1967, pero coexistiendo con
asignaciones de género tradicionales:

El mundo de la mujer latinoamericana ha cambiado. Ya no


está reducida a las agujas de coser, las recetas de cocina y los
pañales de guagua. Ahora su mundo es el mundo entero. Fuera
del hogar diseña casas, pelea juicios en los tribunales, firma
Dossiê

cheques, produce, influye en política, enseña en la universidad,


es cirujano, periodista y hace noticia. Pero al participar en todas
estas actividades que eran feudo de los hombres no se ha vuelto
hombre. Sigue y seguirá siendo dueña de casa, madre y un poco

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frívola (Paula, 1967).

Se concibe el formato de la revista como eco de este sello moderno e


innovador: gracias a la impresión de la revista en talleres más modernos que
los de la editorial Zig-Zag que dominaba el mercado de la prensa femenina,
con máquina offset a cuatro colores importada por Edwards, la totalidad de
las páginas se publican en color. Desde el momento en que aceptó asumir la
dirección de la revista, desde Ginebra donde vivía, Delia Vergara concibió el
modelo de Paula. Según sus relatos, en este proceso, las revistas femeninas
chilenas de la época jugaron para ella un rol de contra modelos y las revistas
europeas de fuentes de inspiración. Se escribe y concibe todo el material de
la revista en Chile, rompiendo así con la práctica habitual de traducción de
artículos internacionales o, en cuanto a la moda, de importación de modelos y
patrones extranjeros. Se trata de reflejar y encarnar “la nueva mujer chilena”
Amor, sexualidad y control de la natalidad en

en todas sus dimensiones: sus centros de intereses, sus preocupaciones, sus


la revista Paula durante la Unidad Popular

actividades, sus gustos y su estética.


Desde su aparición, Paula se distingue de las otras revistas femeninas
netamente por las temáticas abordadas. La memoria de la revista se construyó
de hecho rescatando esa dimensión en particular. Es bien sabido que los
primeros números abordaron temas como los métodos modernos de control
Claire-Emmanuelle Block

de la natalidad, el aborto o la infidelidad femenina. Esas temáticas ocupan un


espacio sustancial en la revista en la medida en que suelen ser examinadas
a través de extensos reportajes y entrevistas, anunciados en portada, y ser
el objeto de reacciones de lectoras que la revista publica a lo largo de varios
números posteriores. A menudo, se inscriben en lo que la revista llama debates o
polémicas: series de números consecutivos que convocan expertos y reportajes
que proponen una variación de lecturas acerca de un tema específico. Es el
caso de la serie de artículos “La vida erótica de la mujer chilena” entre junio y
julio de 1973, declinada entre tres números por edades y estatus conyugales:
la mujer soltera en el número 143, la mujer casada en el número 144 y la mujer
madura en el número 145. Cada reportaje se extiende sobre cerca de 10 páginas
y la publicación de diversas cartas de reacciones de lectoras acompaña la serie.
Dossiê

Mas allá de la presencia en sí misma de estos temas, las voces que se expresan
en los artículos se distinguen por el tono adoptado: un vocabulario explícito,
el cuestionamiento de ciertas normas de género y la legitimación de prácticas
y modelos femeninos más variados. En particular, la revista se compromete
con la reivindicación de un derecho al placer femenino y de una igualdad entre

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hombres y mujeres en este ámbito: el sexo “debe ser para ambos fuente de
alegría” (Paula, 1972b). Esta posición de Paula tensa las representaciones y los
mandatos tradicionalmente asociados a la sexualidad femenina como pasiva y
postergada:

Esa vieja concepción del sexo, junto con la tan sobada teoría
de que las mujeres ‘son biológicamente diferentes al hombre y
no necesitan del sexo’, caducó hace algunas generaciones, pero
recién en la última década la mujer se atreve a exigir una vida
sexual plena como un derecho natural (Paula, 1971a).

Como en esta cita, la revista suele pretender proponer una mera descripción
de las transformaciones sociales, sin expresar una opinión unívoca acerca
de ellas. Otro dispositivo privilegiado para mantener las apariencias de la
pura descripción es la citación de expertas y entrevistadas. Sin embargo, las
Amor, sexualidad y control de la natalidad en

opciones de las citas no pueden ser consideradas casuales, como a lo largo de


la revista Paula durante la Unidad Popular

los reportajes sobre la vida erótica de las mujeres. Paula entra en dimensiones
y consideraciones íntimas y explícitas de la realidad retratada y propone un
discurso de promoción de una vida sexual femenina más libre y satisfactoria en
la que la mujer desempeña un rol más protagónico. En el reportaje dedicado a
la mujer casada, la periodista Malú Sierra, comparte el caso de una esposa de
Claire-Emmanuelle Block

25 años que narra el camino de su aprendizaje junto a su marido hacia una vida
sexual plena:

Me costó bastante llegar a captar cuál era la gracia del asuntito.


Tenía que aprender. […] Me demoré como seis meses en aprender
a gozar los dos juntos, al llegar a un clímax al mismo tiempo. […]
Después de las primeras caricias me empiezan a dar ganas, sobre
todo que sé que lo voy a pasar muy bien. […].” [A la entrevistada]
Le gusta hacer innovaciones, tener la luz prendida, irse de vez
en cuando a un hotel galante. Ni siquiera se le ocurre ponerse
camisa de dormir “para qué, si me la van a sacar”, explica – y le da
lo mismo si está esperando guagua, si está con la menstruación o
si tiene fiebre (Paula, 1973f).
Dossiê

Respecto a la mujer madura, entendida en el reportaje como mayor de 40


años, la revista pretende derrumbar el mito de la menopausia como sinónimo
del ocaso de la vida sexual femenina y cita a mujeres que afirman disfrutar

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su sexualidad más que nunca, incluso fuera de un matrimonio que a veces se


acabó. En la respuesta a la carta de una lectora enamorada de un hombre que
no da el primer paso, la revista expresa un incentivo a ampliar la definición de
lo socialmente aceptado de parte de una mujer en materia de seducción:

Pase de frentón al ataque. Si él es tan tímido, usted tiene que


ayudarlo. Es un prejuicio tonto ese de que la mujer debe estar
siempre a la espera, pasiva, receptiva. La mujer también puede
¡y debe! tomar la iniciativa. […] Es lo que haría un hombre que
quiere seducir a una mujer (Paula, 1973f).

Es necesario recalcar que si bien, la sexualidad dentro del matrimonio, sigue


representando el ideal para Paula, la revista no condena necesariamente la
expresión de la sexualidad fuera de este marco normativo – dentro de ciertas
condiciones –, lo que representa un neto desplazamiento de las fronteras
Amor, sexualidad y control de la natalidad en

del ejercicio socialmente legítimo de la sexualidad femenina. Las relaciones


la revista Paula durante la Unidad Popular

prematrimoniales son un tema recurrente, en particular del “Correo del


amor”, sección que aparece a partir del número 46 a cargo de Francisca Román
“asesorada por consultores matrimoniales, sicólogos y médicos” (Paula, 1969).
Se repiten cartas de mujeres jóvenes y solteras preocupadas por conocer
la opinión de la revista acerca de la preservación de la virginidad antes del
Claire-Emmanuelle Block

matrimonio porque se sienten tentadas por experimentar relaciones sexuales


penetrativas, porque no saben cómo reaccionar ante un “pololo” que se lo pide
o porque se desesperan porque ya no son vírgenes o que sus parejas sexuales
dudaron de ello. Sin alentar a las jóvenes a tener una sexualidad fuera de la
norma matrimonial, Francisca Román proporciona sistemáticamente las
mismas recomendaciones. A una joven que se considera “inferior” y sin ningún
futuro amoroso por haber tenido relaciones sexuales con su primer novio, la
revista reafirma una vez más su posición en la materia:

No crea que la virginidad es una cosa que la hará más apreciada en


el mercado matrimonial o le abrirá las puertas a una felicidad color
de rosa. Lo que importa en la vida es el carácter, la personalidad,
Dossiê

y eso es independiente de un tejido vaginal. Ya no estamos en


la Edad Media. Es hora que usted y millones de mujeres de su
generación se liberen del complejo de la virginidad y aprendan a
considerar el sexo como lo que es: una parte muy importante de
todo ser humano. […] Cuando la mujer comprende el verdadero

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significado y valor del sexo, aprende a ser libre. Hágalo. Ya es


tiempo (Paula, 1973a).

A otra lectora en la misma situación de desesperación responde: “Las


relaciones sexuales, cuando son practicadas con seriedad y madurez, aunque
sea fuera del matrimonio, son una experiencia que enriquece tanto a hombres
como mujeres, y no hay por qué avergonzarse de ello” (Paula, 1971b). Paula
se concibe un rol de promoción de una educación sexual emancipadora,
deconstruyendo por el ejemplo el mito de la conservación del himen como
sinónimo de virginidad. El “Correo del amor” constituye un lugar de consultas
individuales acerca de los métodos anticonceptivos, femeninos y masculinos,
de la edad a partir de la cual se requiere proporcionar una educación sexual a
sus hijos y la publicación de suplementos temáticos al final del número apoya
puntualmente este proyecto.
Amor, sexualidad y control de la natalidad en

De estos artículos, se puede desprender la intención de Paula de encarnar una


la revista Paula durante la Unidad Popular

forma de vanguardia en materia de amor, sexualidad y control de la natalidad,


instrumento de paso de su distinción dentro del mercado editorial femenino. La
revista tiene un discurso constante de promoción de la “liberación de la mujer”
dentro de una sociedad descrita, a menudo, como impregnada de machismo.
Sin embargo, la revista toma sus distancias con el feminismo. A una lectora
Claire-Emmanuelle Block

que se alegra del hecho de que Paula haya “iniciado un movimiento feminista
en Chile, movimiento que nosotras debemos apoyar”, responde: “Aunque en
Paula no somos precisamente feministas, el tema de la emancipación de la
mujer nos apasiona y seguirá siendo una de las preocupaciones fundamentales
de la revista.” (Paula, 1970). La revista mantiene una relación ambigua con
el feminismo. Difunde informaciones sobre el desarrollo y los fundamentos
teóricos de los movimientos feministas en Europa y Estados Unidos y dedica
reseñas extensas a las publicaciones de Simone de Beauvoir y de Betty Friedan,
pero a través de una lectura peculiar. Si por un lado los artículos consisten en
resúmenes detallados y extensos de El Segundo Sexo (Paula, 1972c) y de El Mito
Femenino (Paula, 1972d) que destacan el carácter radical de sus planteamientos,
se propone simultáneamente argumentos tranquilizadores que garantizan a
Dossiê

las lectoras que las feministas no pretenden generar una “sociedad asexuada”
o dejar atrás la pareja y la maternidad.
Abordar las temáticas del amor, de la sexualidad y del control de la natalidad
con esta recurrencia, esta extensión y a través de un discurso que rompe con
algunas pautas de comportamiento femenino tradicionales es lo que más

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diferencia Paula de las otras publicaciones femeninas resultados de iniciativas


empresariales de amplia circulación. Es lo que define su identidad en el
mercado. Desde su primer número hasta el golpe de Estado, Paula conoce un
verdadero éxito editorial que es difícil de cuantificar precisamente: entre 60.000
ejemplares cada quincena desde su lanzamiento según encuestas realizadas por
el Centro de Investigación de la Realidad Nacional para el año 1969 (Alvarez
Caselli, 2011, p. 107) hasta 100.000 durante sus primeros años de existencia
según otras evaluaciones (Mir Brahm, 1998) o 120.000 según Delia Vergara.
Otra forma de medir el éxito de la revista puede ser el balance de su longevidad:
Paula sigue existiendo, aunque con cambios de propietarios y formatos, cuando
la mayoría de las publicaciones femeninas de los años 1960-1970 alcanzaron
periodos de publicación menores. Las revistas directamente rivales de Paula
intentan incorporar elementos inspirados del sello característico de Paula,
pero sin éxito: durante los años posteriores a la aparición de Paula muchas de
Amor, sexualidad y control de la natalidad en

ellas desaparecen. Confidencias cesa su publicación en 1971, Rosita en 1972,


la revista Paula durante la Unidad Popular

Eva en 1974, por ejemplo. Las conclusiones que se pueden emitir no pueden
exceder los círculos sociales que constituyen el equipo editorial y el público
lector de la revista. Sin, embargo, es cierto que Paula abre un espacio público
femenino de discusiones, negociaciones y reajustes referente a la definición
de las fronteras del ejercicio socialmente legítimo de la sexualidad y del
Claire-Emmanuelle Block

control de la reproducción. Esta tribuna parece entrar en resonancia y reflejar


preocupaciones de sujetos históricos, situados socialmente, pero múltiples y
anónimos, que no necesariamente dejaron huellas algunas de sus opiniones y
cuestionamientos relacionados al orden de género.

Paula y la escritura de la contradicción

Los discursos representativos de esta línea editorial rupturista en cierta


medida respecto a los modelos y mandatos omnipresentes en el resto del mercado
editorial femenino coexisten, sin embargo, con un amplio contenido dedicado
a la entretención y con un conjunto de discursos y representaciones conformes
con el orden de género tradicional. Las otras rúbricas y las publicidades hacen
Dossiê

referencia a una identidad femenina asignada en gran medida a la producción


y reproducción del hogar y de la familia y a una performance estética diaria.
El llamado a la identidad de madres y esposas de las lectoras es omnipresente,
como en la rúbrica permanente “Consultas pedagógicas”.

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Figura 2 - Publicidad para una


tienda de ropa maternal: “Hay
Figura 1 - Manual de realización de un
periodos en la vida de la mujer, en
chaleco para niños en la rúbrica “Paula
que la belleza debe acentuarse,
práctica”
especialmente durante los meses
de la dulce espera.”
Amor, sexualidad y control de la natalidad en
la revista Paula durante la Unidad Popular
Claire-Emmanuelle Block

Fuente: Guiralde (1973, p. 94). Fuente: (Más bonita […], 1973,


p. 32)

La revista, más que una voz única, alza una polifonía de discursos
y representaciones, múltiples, diversos, ambiguos y eventualmente
contradictorios. Esta diversidad de mensajes se puede entender como una
voluntad de coincidir con un público lector amplio y variado. Paula suele
presentarse como observadora de los debates que agitan la sociedad y mera
tribuna de expresión de otras voces respecto a las cuales no se posiciona. Uno
de los dispositivos que permite multiplicar los puntos de vistas sin que la
revista se haga cargo de ser su autora es a través de la publicación del correo de
Dossiê

las lectoras en diversas secciones. Desde su primer número, Paula afirma como
línea editorial la dimensión dialógica de su contenido. Así, la primera página
después de la tabla de contenido es un llamado a contribución: “Paula no quiere
ser un monólogo, sino que un diálogo. ¡Escriban!” (Paula, 1967). En respuesta

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a un reportaje sobre el movimiento feminista en Nueva York, Paula abre una


nueva sección titulada “Tribuna de las lectoras” en la que publica cinco cartas
de reacciones al artículo (Tribuna […], 1971, p. 14). Dos lectoras se declaran de
acuerdo con los movimientos de liberación de la mujer y alentadas por sentirse
parte de una ola mundial. Otra explica estar “de acuerdo en general” pero creer
que el “feminismo exagerado es un peligro”. Dos lectores varones expresan
opiniones hostiles y ofensivas hacia esas manifestaciones, uno considerando
que la fealdad de las feministas no les deja otra opción que “dedicarse a atacar
al hombre” y el otro que el feminismo representa un movimiento “innecesario”
(Tribuna […], 1971). Las rúbricas de Isabel Allende “Los impertinentes” y
“Civilice a su hombre” son objetos de ataques regulares por su sátira de los
comportamientos masculinos y del machismo. Un lector que declara odiar a
Isabel Allende “con toda su alma” desafía la revista de publicar su carta en
la que emite la hipótesis de que sea una vieja solterona rencorosa que se
Amor, sexualidad y control de la natalidad en

muere secretamente por encontrar un hombre “por sebiento y hediondo que


la revista Paula durante la Unidad Popular

sea” (Paula, 1971d). Esas cartas pueden ser interpretadas como una llamada al
orden de género que contrasta con el sello de la revista, pero que sin embargo
encuentran en ella una tribuna ambigua.
Cuando la revista aborda temas que sabe controversiales, se suele
atrincherar detrás de su posición de observadora, por encima de la contienda,
Claire-Emmanuelle Block

que otras rúbricas vienen a veces, contradecir, como es el caso con el aborto.
La segunda mitad de los años 1960 marca el principio de la generalización de
las políticas de planificación familiar impulsadas bajo el gobierno de Eduardo
Frei y continuadas por Salvador Allende. En este contexto, el aborto no aparece
como un instrumento de control de la natalidad legítimo y aceptable, sino
que, al contrario, la premisa de esos programas de salud pública es que los
métodos anticonceptivos modernos, la píldora y el dispositivo intrauterino
principalmente, gracias a su amplia difusión deberían erradicar la necesidad de
recurrir al aborto. Permitido dentro de la figura legal del aborto terapéutico, la
discusión en torno a su legalización sin restricciones empezó sin embargo a ser
empujada por algunos sectores de la salud ante el peso de las consecuencias de
los abortos ilegales sobre la mortalidad materna y el sistema de salud pública.
Dossiê

Paula abre su primera “polémica” titulada “¿Aborto legal o control intensivo


de la natalidad?” en el contexto de la primera discusión parlamentaria para su
legalización en diciembre de 1969. Es también en este contexto que Hortensia
Bussi de Allende, todavía no primera dama, intervino en el debate a través de
una entrevista en la revista Variedades de Caracas declarándose personalmente

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a favor de su legalización considerando los riesgos para la salud de las mujeres


que implicaba su realización clandestina (Eva, 1972). Durante el periodo de
la Unidad Popular, las discusiones en torno al aborto siguen poniendo el
énfasis en su prevención a través de la anticoncepción para luchar contra las
consecuencias nefastas de su practica en precarias condiciones. No se excluyó
completamente su legalización, pero tampoco se impulsaron discusiones en
torno a esa posibilidad o se empujaron proyectos legislativos, como el de 1969.
Este contexto estimuló, sin embargo, la realización de iniciativas puntuales
como en el Hospital Barros Luco de Santiago. Este establecimiento, pionero
en materia de anticoncepción, inauguró un amplio programa de planificación
familiar que incluyó una interpretación más extensa del concepto de aborto
terapéutico que permitió abarcar una gama más amplia de situaciones y así
practicar una cantidad inédita de abortos realizados en un contexto hospitalario
hasta que el golpe de Estado marcara el fin del experimento. Pero fuera de
Amor, sexualidad y control de la natalidad en

esta iniciativa aislada, la política de la Unidad Popular en materia de control


la revista Paula durante la Unidad Popular

de la natalidad se concentró esencialmente en la información, la prevención


y la promoción de la paternidad responsable. La legalización del aborto no
representó un tema central de los programas de salud pública y no ocupó un
lugar significativo en las discusiones dentro de las agrupaciones y partidos
políticos comprometidos con el programa de gobierno.
Claire-Emmanuelle Block

La relación de Paula con el tema del aborto contrasta con el lugar menor
y postergado de la cuestión en la agenda y las discusiones políticas. Por su
presencia recurrente y por el enfoque que se afirma a lo largo del tiempo, el tema
del aborto parece ser constitutivo de la identidad de la publicación. Durante el
periodo de la Unidad Popular, el aborto vuelve a ser sujeto de varios reportajes y
aparece puntualmente en el correo de las lectoras. Esas menciones evidencian
tomas de posición variables, ambiguas e incluso contradictorias. Francisca
Román, responsable del “Correo del amor”, expresa una posición constante y
unívoca de condena del aborto. Una lectora de 14 años, cuyo embarazo resulta
de su relación con un hombre de 30 que le insta a abortar, le escribe pidiendo
ayuda ante su decisión de no interrumpir la gestación por no sentirse “capaz de
matar a [su] niño”. La revista la felicita por su decisión:
Dossiê

Me alegro que no quiera hacerse un raspaje: eso demuestra que


es una mujer cabal y que asume sus responsabilidades. […] Creo
que usted es suficientemente mujer como para salir adelante de
este mal paso. […] No se arrepentirá nunca una vez que tenga a su

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niñito en los brazos (Paula, 1971e).

En el número “especial niños” que acompaña esta respuesta, Paula dedica


un artículo a la “maravillosa evolución del feto” con la explicita intención de
difundir informaciones que desincentiven el aborto:

Sin embargo, hasta en estos casos extremos ella [la mujer


embarazada] reconoce la existencia de ese nuevo ser que dentro
de poco será uno más en la casa. Esta madre sabe que destruirlo es
matar y si aborta lo hará a conciencia. Sin embargo, hay muchas
madres que lo hacen por ignorancia. No saben lo que destruyen y
a menudo creen, de buena fe, que solo se están haciendo remedio.
Quizá si ellas hubieran conocido el proceso que se desarrollaba
en su interior, lo habrían pensado dos veces (Paula, 1971f).
Amor, sexualidad y control de la natalidad en

Sin embargo, los reportajes extensos dedicados al tema y los editoriales,


la revista Paula durante la Unidad Popular

sin declararse explícitamente a favor de la legalización del aborto, permiten


vislumbrar una postura pragmática resultado del balance de las consecuencias
de la ilegalidad sobre los cuerpos y las trayectorias femeninas. A parte de
referencias dispersas, Paula dedica cuatro artículos de fondo al tema durante el
periodo de la Unidad Popular. El primero de julio de 1971 se concentra sobre las
Claire-Emmanuelle Block

personas que practican abortos, el segundo de agosto de 1972 propone el relato


de un aborto clandestino, pero desde un punto de vista masculino, el novio de la
mujer embarazada, y los dos últimos de febrero de 1973 presentan testimonios de
una cantidad sustancial de mujeres. Los cuatro artículos presentan similitudes
respecto al enfoque sobre las diferentes actrices de los procesos abortivos. No
se condena a las mujeres que deciden abortar en términos morales, sino que
la revista busca más bien restituir elementos de comprensión de su decisión
desde sus situaciones familiares y socioeconómicas: “Pero hay una cosa que
es muy clara. Ninguna mujer abortó por gusto. Las que toman esa decisión
tienen imperativos muy serios. Llevar ese embarazo a término significa para
ellas una tragedia” (Paula, 1973b). La condena se dirige hacia las personas
que practican los aborto, parteras y médicos. Los artículos las retratan – los
Dossiê

ejemplos movilizados suelen apuntar hacia mujeres practicantes – desde el


estereotipo de la mujer inescrupulosa que se aprovecha de la desesperación de
sus prójimas. El artículo que la revista les dedica se titula “La mafia del aborto
y sus víctimas” y se refiere a ellas como “parteras de la muerte” (Paula, 1971c).

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Si las figuras de mujeres que abortan retratadas en los diferentes artículos son
variadas, queriendo así evidenciar el carácter transversal socialmente de esta
práctica, existe un solo arquetipo de partera, con leves variaciones vinculadas
al estrato social – las más pobres, “promiscuas” en palabras de la revista, son
consideradas además “ignorantes” y “sucias” – pero todas descubrieron en el
aborto “a la gallina de los huevos de oro”(Paula, 1971c). No se conciben otros
motivos de acción en esas mujeres aun cuando consideraciones pragmáticas
de salud pública o la voluntad de apoyar las decisiones femeninas sobre su
capacidad reproductiva son argumentos de los que la revista es la tribuna cuando
los plantean médicos. La mayoría del tiempo, los hombres están ausentes de los
artículos, salvo en un artículo que posee un formato peculiar. Se presenta como
el relato en primera persona de un joven que organiza el aborto de la mujer con
la que tiene una relación. Este articulo no es exento de cierta ambigüedad en
la medida en que le otorga un protagonismo al hombre, lo que no coincide con
Amor, sexualidad y control de la natalidad en

la realidad de la participación masculina en los procesos abortivos, sino del


la revista Paula durante la Unidad Popular

lado del financiamiento, pero al mismo tiempo el joven aparece retratado como
cobarde, manipulador y egoísta.
En cuanto a las mujeres, a lo largo de las publicaciones, entre 1970 y
1973, las voces de mujeres a favor del aborto se multiplican en las páginas
de la revista y los editoriales llaman con más fuerza a una solución, aun sin
Claire-Emmanuelle Block

formularla explícitamente: “Y si tantas mujeres se ven en el imperativo de


hacerlo [abortar] – especialmente mujeres modestas – la sociedad de alguna
manera debe resolver el problema y no ignorarlo como lo ha hecho hasta ahora
a costo de tantas vidas humanas.” (Paula, 1973b) o, en el número siguiente:
“En la medida que las mujeres discutamos estos temas y analicemos sus pro
y sus contra, se definirá mejor que es lo que nos conviene, para exigir a las
autoridades una solución pronta y adecuada a este problema.” (Paula, 1973c).
Ante una “avalancha” de reacciones consecutivas a esas publicaciones, Paula
abre nuevamente una amplia tribuna para darles la palabra. Las cartas ponen
en evidencia el hecho de que esos artículos fueron interpretados por una parte
de las lectoras como una “campaña” de la revista por conseguir el aborto legal.
Paula se emplea a matizar esa lectura publicando, aunque no exclusivamente,
Dossiê

opiniones en contra, introducidas por esta caracterización en el editorial: “El


tema resulta más polémico que el de la liberación, con el que la mayoría resultó
estar de acuerdo. El aborto tiene todavía en Chile muchas detractoras con muy
buenos argumentos.” (Paula, 1973d). Esa polifonía ambigua y eventualmente
contradictoria es, por un lado, un reflejo de las discusiones en torno a la liberación

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sexual y, por otro, pone en evidencia el rol de Paula como vector de legitimación
social del ejercicio de un grado mayor de autonomía en materia de sexualidad
y reproducción. Sin proporcionar una respuesta unívoca, la revista impulsa sin
embargo la producción de un espacio público de discusiones en torno al aborto
donde las mujeres – periodistas, entrevistadas y lectoras – desempeñan un rol
protagónico dentro de la reflexión y del diseño de soluciones para enfrentar un
problema pendiente, rol que no tienen a nivel de políticas públicas. En efecto,
si bien la difusión de los métodos anticonceptivos redujo significativamente la
cantidad de hospitalizaciones por complicaciones y la mortalidad materna por
aborto, sigue sin erradicarlas.

Paula, prensa de deseos, derechos y deberes

Sin embargo, de forma paralela a esta polifonía, se pueden identificar


Amor, sexualidad y control de la natalidad en

discursos recurrentes en torno al amor y al sexo. Al abordar públicamente esas


la revista Paula durante la Unidad Popular

temáticas, la prensa femenina actúa como un nuevo foco de discursos y pautas


en materia de conyugalidad y sexualidad, en un contexto de multiplicación
y diversificación de esos focos (Cardon, 2003). Ya no existe una sola fuente
de prescripción de comportamientos como la Iglesia, sino que la sexualidad y
la conyugalidad se vuelven objetos de conflictos de definición de lo legítimo.
Claire-Emmanuelle Block

Paula participa, explícita e implícitamente, en esta lucha de definición a través


de la iteración de ciertos mandatos.
El amor tiene un lugar medular en el discurso de la revista. Se concibe como
un ideal y el horizonte inevitable de toda existencia femenina: “Pero siempre
– aun la más emancipada – la mujer quiere AMOR.” (Paula, 1973f). Desde la
adolescencia, la vida de las mujeres se relata como un recorrido de aprendizajes
con un único norte: la búsqueda del amor e, idealmente, su concretización
dentro del marco normativo correspondiente, el matrimonio:

Para la chilena soltera no hay nada más importante que el eros


o amor. Su adolescencia está centrada en el amor y todas sus
actuaciones son una búsqueda consciente o inconsciente de
él. A los 13 años en que su vida afectiva y la madurez no van a
Dossiê

la par, esta búsqueda se traduce en ansias desenfrenadas de


experimentar la vida a través de los sentidos. Es la época en
que predomina ‘el atraque’ y los pololeos efímeros. La mujer no
sabe todavía lo que quiere. En tres años, la muchacha cambia.
No ha llegado a la madurez total pero sabe claramente lo que no

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quiere: sensaciones inconsecuentes, compromisos inestables,


atracciones momentáneas. Intuye el amor pero no lo siente. Lo
busca afanosamente a través de pololeos que se establecen sobre
la base del conocimiento humano. Porque siente que tiene que
estar preparada para elegir al hombre de su vida; al que la unirá
el verdadero amor. Alrededor de los 18 años se siente preparada
para encontrar al gran amor. Aquel que barre con todo, lo permite
todo, hace hermoso todo. Aun si no está enamorada intuye como
será este gran sentimiento y como transformará su vida. Está
preparada para el matrimonio: el compromiso serio y duradero
que la atemoriza un poco pero que ella piensa luchar por mantener
aunque 'el amor no dure tantos años' (Paula, 1973e).

Esta búsqueda caracterizaría una esencia femenina inalterable: según la


revista, las expectativas referentes a la pareja y los valores asociados a su éxito
Amor, sexualidad y control de la natalidad en

cambian, pero no la necesidad de encontrar el amor. Un artículo del número


la revista Paula durante la Unidad Popular

105 pretende transcribir fragmentos de un “auténtico Diario de Vida de una


adolescente de hoy” en el que “el amor sigue siendo el mismo que el de tiempos
inmemoriales” (Paula, 1972a) aunque bajo otros códigos. El relato en primera
persona de siete meses dentro de la vida de esta adolescente se concentra
únicamente en su trayectoria romántica. Las otras dimensiones de su existencia
Claire-Emmanuelle Block

tales como sus amistades femeninas, su familia o sus estudios conforman


solamente un telón de fondo del “amor a los 15 años” porque “sigue siendo
lo más importante”5. Para las mujeres, la felicidad fuera del amor conyugal y
heterosexual se presenta como improbable. En un artículo dedicado a “la mujer
sola”, los ejemplos de mujeres solteras pero realizadas son considerados “casos
raros”, cuya sinceridad se cuestiona, y el matrimonio, aunque poco satisfactorio,
la mejor opción ante la perspectiva de terminar su vida en la soledad de asilos
y residenciales donde “las mujeres solas esperan la llegada de la muerte
oyendo radio sin cesar y recordando lo que antes fueron… si es que hay algo
que valga la pena recordar” (Paula, 1971e). Esta extrema valorización del amor
se realiza bajo un claro sesgo de género: los hombres pueden prescindir de
ello tanto para su realización personal como para su sexualidad. El tema de
Dossiê

la infidelidad, recurrente en la revista, evidencia la naturalización del vínculo


entre los afectos y la sexualidad del lado de lo femenino. Si los hombres son
considerados inclinados prácticamente por naturaleza hacia la infidelidad, las
mujeres serían “muy pocas” en ser infieles “a menos que se enamoren de otro
hombre” (Paula, 1791a).

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Pero el amor representa también un nuevo principio de definición de lo


legítimo y de lo deseable dentro de las existencias afectivas y sexuales de las
mujeres, incluso por sobre el matrimonio. La existencia o la ausencia del amor
es lo que traza las fronteras entre “los atraques malos” y “los atraques buenos”,
entre el sexo prematrimonial aceptable y el sexo condenable. Rechazando la
asociación de la perdida de la virginidad con “la gran falla”, la revista participa
de una legitimación de la sexualidad dentro de un nuevo marco normativo:

¿Habría que formular un nuevo código con respecto a la vida


erótica? La mujer chilena, sin saberlo realmente, está camino a
hacerlo y de una manera que no deja de ser digna: sexo basado
en elementos como la ternura, comprensión y respeto (una
relación humana buena); amor (enamoramiento); compromiso
(una relación que está hecha para ser perdurable); confianza (sin
engaño por ambas partes); madurez (edad en que se puede amar
Amor, sexualidad y control de la natalidad en

realmente) y una clara aceptación de las consecuencias (Paula,


la revista Paula durante la Unidad Popular

1973e).

Esta enumeración de criterios diseña un nuevo perímetro del ejercicio legítimo


de la sexualidad femenina que hace coexistir elementos de conformidad y de
ruptura con la pauta tradicional de comportamiento sexual. Si el matrimonio
Claire-Emmanuelle Block

ya no constituye una condición sine qua non, aunque todavía ideal, del ejercicio
de la sexualidad femenina, el amor, la inscripción de la unión en el tiempo
y la aceptación del potencial reproductivo de la sexualidad no pueden faltar.
Según Paula, la liberación sexual no debe exceder este marco normativo como
lo ponen de manifiesto las condenas formuladas desde la sección del “Correo
del amor” hacia las lectoras que reconocen tener relaciones sexuales fuera del
matrimonio y sin amor:

No creo que sea frígida cuando esté enamorada y cuando se


preocupe más de dar placer que de recibirlo. Usted tiene todos
los valores trastocados en la cabeza. Le sugiero que en vez de
ocuparse de su posible frigidez se dedique a trabajar o estudiar, a
hacer de su vida algo productivo y útil y a buscar un compañero
Dossiê

de vida, en vez de un compañero de cama. […] Si me envía su


dirección me gustaría contestarle más largo, porque su caso me
preocupa (Paula, 1972b).

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La mención de actividades como el trabajo y los estudios en esta cita llama la


atención por su carácter relativamente excepcional. El incentivo a proyectarse
fuera del hogar para realizar tareas que exceden la reproducción del hogar y
de la familia interviene únicamente en casos concebidos como problemáticos
por la ilegitimidad de los comportamientos sexuales o por la manifestación de
dificultades dentro del matrimonio.
Por lo tanto, la idealización del amor reúne de forma ambigua elementos
tradicionales y reajustes al orden de género. Por un lado, introduce una ampliación
del marco del ejercicio socialmente legítimo de la sexualidad femenina y,
por otro, una reafirmación del lugar preferencial de realización femenina:
dentro de la conyugalidad heterosexual y del hogar. Pero esta valorización del
amor constituye también una reactualización de las expectativas dentro de
las relaciones conyugales y en particular del matrimonio. El matrimonio en
Paula aparece como un lugar donde la mujer debe realizarse, ya no solo desde
Amor, sexualidad y control de la natalidad en

su rol de dueña de casa y de madre, sino desde una satisfacción de su vida


la revista Paula durante la Unidad Popular

afectiva y sexual. Introduce por lo tanto una nueva norma: performar el éxito
del matrimonio en pos de la felicidad de ambos cónyuges. El arquetipo de la
mujer encerrada entre cuatro paredes, frustrada por las pocas perspectivas que
le propone su vida de esposa y dueña de casa constituye una figura repulsiva:
es responsabilidad de la mujer encontrar su felicidad, dentro e incluso fuera del
Claire-Emmanuelle Block

hogar, para seguir siendo alegre, interesante y no amargarle la vida a su esposo.


Según Paula, con mayor razón en una época de emancipación femenina, se
puede, y se debe, esperar más del matrimonio que un padre para los hijos y
un sostenedor. Ya no basta con conformarse de poco, lo ideal es tener “una
verdadera vida de pareja”:

Pero son pocas las que logran despegar (y hacer despegar al


hombre) y casi todas se conforman con una relación mediocre
que busca justificarse con argumentos como que ‘él no toma’, ‘es
bueno con los niños’, ‘da toda la plata para la casa’ o ‘casi nunca
me pega’. Nada que hable de una auténtica comunicación, de una
verdadera vida de pareja (Paula, 1973f).
Dossiê

Se establece una jerarquización valórica entre el matrimonio “mediocre”, es


decir por obligación y como “cadena perpetua” aunque haya desaparecido el
amor y nuevas formas de relacionarse dentro del matrimonio: “La emancipación
de la mujer la ha colocado en un plano de igualdad intelectual frente al hombre

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que lo obliga a respetarla como ser humano, lo que da a su relación una nueva
madurez. Entre los jóvenes, la relación amorosa promete ser más rica, completa,
sólida y duradera” (Paula, 1971a).
Así, Paula sugiere que las condiciones de posibilidad de una unión
heterosexual más satisfactoria serían productos de un movimiento de fondo, la
emancipación o liberación de la mujer y el retroceso del machismo. El discurso
de la revista no es constante en cuanto a su grado de realización: ciertos
artículos se refieren a veces a ello como un proceso a medio camino, a veces
como finalizado. De la misma forma, en la conyugalidad como en otros ámbitos,
la responsabilidad de la persistencia de desigualdades se atribuye a veces a los
hombres: “Por desgracia la solución no está en su mano [de la mujer] y muchos de
sus problemas derivan de las taras y los traumas del ‘machus chilensis’”(Paula,
1973f). En otras ocasiones, se atribuye a las mujeres un protagonismo en la
reproducción del machismo: “El machista la quiere dependiente y ella acepta
Amor, sexualidad y control de la natalidad en

depender” (Paula, 1973f) o, al contrario, en su derrota. Paula, de forma general,


la revista Paula durante la Unidad Popular

alienta a sus lectoras a ser agentes de cambio y se alegra por el proceso de


conquista de la igualdad de género que, entre otras cosas, promete a la mujer
ser “en el amor mucho más feliz de lo que es actualmente” (Paula, 1971a). Sin
embargo, Paula se compromete con la adquisición de una igualdad de derechos
y condiciones entre hombres y mujeres, pero que no acabe con sus diferencias
Claire-Emmanuelle Block

y, en cierta medida, con la división sexual del trabajo. Las conquistas por parte
de las mujeres de nuevos roles en el espacio público y en el mundo laboral
es motivo de celebración, pero sobre todo cuando se concilian con sus roles
tradicionales en el hogar. La perspectiva de que los hombres se hagan cargo de
las tareas domésticas nunca se menciona.
En suma, Paula representa el foco discursivo de afirmación de un nuevo modelo
de conyugalidad heterosexual cuyas fronteras están definidas por determinados
principios: el amor, la realización sexual, no enteramente disociada de la
reproducción, y la igualdad en la diferencia sexual. La construcción discursiva
de este modelo se realiza a través de la iteración de los valores y de las pautas
de conductas que le dan contenido, pero también a través de la comparación
con otros arquetipos de conyugalidad que representan contra modelos. Los
Dossiê

discursos sobre la conyugalidad y la sexualidad actúan como instrumentos de


las relaciones sociales de género, pero también de clase o de edad. Las pautas de
comportamiento en el amor, el sexo y el control de la natalidad operan como un
instrumento de distinción entre las lectoras de la revista y las otras mujeres. En
particular, de forma recurrente, se moviliza discursivamente a dos grupos que

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encarnan una femineidad de la alteridad: la “lola” y la “mujer del pueblo”. Se les


asocia pautas de comportamiento diferentes a las de las lectoras de Paula. No
se define nunca explícitamente a esas últimas desde sus características sociales
o etarias, pero su retrato se puede deducir de lo que no son: ni adolescentes ni
de clases populares. La caracterización de las jóvenes es paradójica: funcionan
como una encarnación a la vez de las esperanzas y de los excesos anticipados
de la liberación femenina. Por su lado, las mujeres modestas representan más
bien el pasado, no exento de virtudes, pero tampoco de defectos. A través de
retratos miserabilistas de sus modos de vida y pautas de conducta, la revista
expresa alternativamente críticas y compasión hacia ellas:

En los medios socioeconómicos bajos este problema [la gestión


de los ‘atraques’ para que no ‘pasen más allá’] no se presenta en
la misma forma. La vida de relación entre hombre y mujer de los
Amor, sexualidad y control de la natalidad en

13 a 15 años es mal mirada por los padres y se hace de forma


escondida. Esto no quiere decir que la muchacha sea inocente.
la revista Paula durante la Unidad Popular

Por el contrario, generalmente la promiscuidad del hogar o del


ambiente la hacen más consciente de ‘los hechos de la vida’. Pero
por lo mismo, tienen una actitud más defensiva hacia los hombres
– ya que los que la pretenden no son siempre muchachos jóvenes
sino hombres mayores, entre ellos, primos, tíos o padrastros –.
Claire-Emmanuelle Block

No tiene ocasión de ir libremente a fiestas, de coquetear en forma


abierta y jugar ‘al atraque’. Si inicia una vida erótica, lo hace en
forma más directa (Paula, 1973e).

Al contrario, la lectora de Paula encarna la mujer moderna en su justa


medida. Sus pautas de conductas reúnen desplazamientos de las fronteras de
lo socialmente aceptado y reproducción de elementos tradicionales. La postura
de la revista ante los embarazos resultados de relaciones prematrimoniales
constituye un ejemplo que lo evidencia: se condena el aborto como solución
y mal menor ante la vergüenza social y se prescribe desafiar el qué dirán
conservador, apoyando la maternidad. Por lo tanto, los discursos sobre
conyugalidad y sexualidad pueden ser vectores de reajustes y cuestionamientos
Dossiê

hacia ciertas relaciones sociales, de género en este caso, y de reafirmación de


otras, en particular aquí de clase (Legouge, 2013). A través de la caracterización
de un modelo de mujer moderna e, incluso, pionera, esta definición opera como
un instrumento de distinción y jerarquización que circula dentro de un espacio
público femenino, novedoso, pero socialmente homogéneo.

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El análisis de los artículos que Paula dedica al amor, a la sexualidad


y al control de la natalidad durante los años de la Unidad Popular pone en
evidencia que, desde un espacio público femenino con características inéditas,
surge una recomposición parcial y ambigua del orden de género. Categorizar
definitivamente esta publicación como promotora de la alienación o, al
contrario, de la emancipación femenina hace correr el riesgo de silenciar la
polifonía que se expresa en sus páginas. Aunque el estudio de la recepción de
esos discursos queda por realizar, desde ya Paula se puede concebir como el
espejo y el vector de luchas de definiciones de la legitimidad social de ciertas
identidades y comportamientos femeninos durante un periodo que hasta
ahora ha sido poco examinado desde la existencia de tales conflictos. Aun si
las actrices de esta empresa periodística no comulgaron con las ambiciones
revolucionarias del periodo de la Unidad Popular, esos años podrían aparecer
sin embargo para Paula como una ventana de oportunidad en la que pudieron
Amor, sexualidad y control de la natalidad en

expresarse discursos progresistas y transgresores, aunque no del todo, en


la revista Paula durante la Unidad Popular

cuanto a las relaciones y el orden de género. Durante este periodo, la revista


pudo otorgar protagonismo a ciertas mujeres para poner en discusión, dentro
de un espacio público femenino, temas relegados y postergados de la agenda
política y de las políticas públicas de la Unidad Popular. El éxito comercial de la
publicación pone de manifiesto que Paula se hacía eco de aspiraciones al cambio
Claire-Emmanuelle Block

que atravesaban ciertos segmentos de la sociedad sin verse materializadas. El


golpe de Estado marcó el fin de este periodo de la revista con la censura y
auto censura de las periodistas y el exilio de miembros fundadores del equipo
editorial como Amanda Puz e Isabel Allende. Roberto Edwards, de regreso de
Estados Unidos, impuso el abandono del sello editorial histórico de la revista,
provocando la renuncia de Delia Vergara en 1975. Desde este momento, Paula
propuso una nueva línea editorial conforme con las expectativas de una dictadura
que promovía el retorno a políticas pronatalistas y relaciones e identidades de
genero conservadoras, pero que no permitió a la revista mantener los mismos
niveles de éxito.

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Dossiê

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TRIBUNA de las lectoras. Paula, Santiago, n. 80, ene. 1971.

Notas
1
Doctoranda en Historia de la Universidad Rennes 2, Francia; ORCID: https://orcid.
org/0009-0003-6623-9698.
2
En palabras de Delia Vergara que entregó su relato de este periodo en algunas entrevistas,
aunque relativamente escasas, la periodista manteniendo cierta distancia con los
medios, en Caras (2004, p. 89-91) o más recientemente a través de su intervención en la
Cátedra Mujeres y Medios de la Universidad Diego Portales de Santiago de Chile el 22 de
agosto de 2023.
3
Se abarcan dentro del estudio los números de la revista cuya revisión se pudo realizar
considerando las condiciones de conservación y difusión a la fecha de los archivos de
la revista por la Biblioteca Nacional de Chile, es decir desde el número 75 de la primera
quincena de noviembre de 1970 hasta el número 145 de la segunda quincena de julio de
Amor, sexualidad y control de la natalidad en

1973.
la revista Paula durante la Unidad Popular

4
La segunda ola del movimiento feminista chileno se afirmó en los años 1980, anclándose
en el contexto de la dictadura, impulsado por mujeres de izquierda perteneciendo a
múltiples organizaciones luchando por la recuperación de la democracia, la defensa de los
derechos humanos y contra las desigualdades agudizadas por las reformas neoliberales.
Los procesos de reflexión generados en este contexto desembocaron en la identificación
de desigualdades especificas vinculadas a su posición social de mujeres. Las llevó a
articular la lucha contra el autoritarismo en la sociedad y en la casa, lo que resume el
Claire-Emmanuelle Block

lema emblemático de esta ola “Democracia en el país y en la casa.” Aunque el concepto


de olas y silencios feministas puede ser criticado por su propensión a invisibilizar las
continuidades del movimiento feminista, permite destacar momentos culmines de la
expresión de sus reivindicaciones.
5
Según lo indica el título del reportaje de Malú Sierra que acompaña la transcripción del
diario.
Dossiê

Recebido em 15/01/2024 - Aprovado em 01/02/2024


Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.157-186, jul-dez. 2023 } 186
DOI: 10.5433/1984-3356.2023v16n32p187-215

Xamanismo contemporâneo:
no Brasil e no mundo

Contemporary shamanism: in
Brazil and in the world

Karina Oliveira Bezerra1

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Resumo: Esse artigo traça a história do neoxamanismo no Brasil


através de pesquisa bibliográfica e documental, participação
em rituais, entrevistas pessoais e questionários. Primeiro,
investigamos o surgimento do conceito de xamanismo no
Ocidente e a consequente fusão desse com as ideias de natureza
no século XIX. Analisamos o desenvolvimento do xamanismo
contemporâneo sob a liderança indígena e suas aberturas e
fusões com o mundo moderno, assim como, de modo inverso,
a criação do movimento sob a liderança dos acadêmicos e suas
buscas pela tradição. Na segunda parte, investigamos como
Xamanismo contemporâneo: no Brasil e no mundo

esse movimento aconteceu no Brasil, e buscamos criar uma


curta história do movimento no país, através das histórias
de quatro importantes figuras desse movimento religioso.
Palavras-chave: Xamanismo; Paganismo; indígenas; nova
era; história.

Abstract: This paper traces the history of neoshamanism in


Brazil through bibliographical and documentary research,
participation in rituals, personal interviews and questionnaires.
Karina Oliveira Bezerra

First, we investigated the emergence of the concept of shamanism


in the West and its consequent fusion with ideas of nature in
the 19th century. We analyze the development of contemporary
shamanism under indigenous leadership and its openings and
mergers with the modern world, as well as, conversely, the
creation of the movement under the leadership of academics and
their searches for tradition. In the second part, we investigate
how this movement happened in Brazil, and we try to create
a short history of the movement in the country, through the
stories of four important figures of this religious movement.
Keywords: Shamanism; Paganism; indigenous; new age;
Artigo

history.

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Introdução

Este artigo é parte da minha tese de doutorado sobre o Paganismo


contemporâneo (Bezerra, 2019). Realizamos pesquisa bibliográfica e
documental, participamos de rituais e realizamos entrevistas pessoais e por
meio de questionários via internet. Um dos questionários continha trinta
perguntas abertas divididas em seis partes. A primeira parte, que consiste sobre
a adesão e permanência dos adeptos, muniu-nos de informações para a parte a
histórica. Também tivemos necessidade de realizar outro questionário, apenas
para coletar relatos de tradição oral e de reminiscência pessoal, visto que as
respostas do primeiro estavam sendo curtas.
Iniciamos o artigo discutindo o conceito e as visões sobre o xamã no
Xamanismo contemporâneo: no Brasil e no mundo

século XVIII. Verificamos as influências do século XIX (filosofia da natureza,


panteísmo e transcendentalismo americano) sob todo o xamanismo do século
seguinte, inclusive o indígena. Abordamos as influências dos antropólogos para
o desenvolvimento do xamanismo, a relação desse com o paganismo e a Nova
Era, e sua entrada no mundo moderno.
Para iniciar a discussão do xamanismo no Brasil, começamos falando um
pouco da apropriação da ayahuasca pelo Daime e outros, e sobre traduções de
alguns livros no Brasil. Depois tratamos do xamanismo Nova Era por meio da
história da criadora do xamanismo matricial, que resgata o feminino e da história
Karina Oliveira Bezerra

do criador do xamanismo universal, que une diversos sistemas de crenças.


Depois, vamos tratar do xamanismo tradicional moderno, ou neoxamanismo
tradicional. Para isso, falamos um pouco da tradição iniciática nativa andina
através da história de Wagner Frota e explicamos detalhadamente a diferença
entre os dois xamanismos. Também analisamos como alguém se torna um
xamã através da história de vida de Marcos Ninguém. Todas essas histórias nos
permitem compreender o desenvolvimento do neoxamanismo no Brasil.

Surgimento do neoxamanismo

Analisar os discursos sobre xamanismo é muito complexo, “[...] requer uma


Artigo

consciência histórica da formação de identidades, o poder das definições e a


persistência de conceitos mais antigos” (Stuckrad, 2002, p. 791-792). É comum
apontar que o neoxamanismo tem pouco a ver com a tradição indígena, mas a
descrição acadêmica de “tradição indígena” também deve ser avaliada, assim
como a autodescrição nativa; todos sofreram interferências.

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Os xamãs siberianos foram os primeiros a serem conhecidos pelos acadêmicos


ocidentais. Dessa forma, essa palavra siberiana, especificamente dos Tungus,
foi utilizada para definir práticas similares ao redor do mundo.
Há 300 anos, viajantes, comerciantes e missionários que iam às vastas estepes
do nordeste da eurásia até o oeste levavam para o Ocidente histórias de exóticos
rituais. Então, no século XVIII já se tinha certa imagem do “xamanismo” como
um tipo específico de religião. Para a maioria dos iluministas, os xamãs eram
um modelo de comportamentos irracionais, mas para outros, como J. G. Herder,
W. von Goethe e Victor Hugo, eram religiosos virtuosos, “[...] uma lembrança
daqueles antigos extáticos e artistas que conseguiram transgredir a realidade
comum por meio da música e da poesia” (Stuckrad, 2002, p. 773). Dessa forma,
as atitudes para com os xamãs foram ambivalentes desde o início, com um
Xamanismo contemporâneo: no Brasil e no mundo

misto de refutação e desejo, de acordo com Kohl (1987 apud Stuckad, 2002).
Stuckad (2002, p. 791) mostra que os conceitos de natureza no xamanismo
contemporâneo são oriundos do século XIX e o de alma, aplicados por neoxamãs
e antropólogos “não é de forma alguma ‘indígena’, mas mostra a marca do
neoplatonismo e das ideias modernas de ‘personalidade’, ou no conceito de
‘outro mundo’, que é um termo crucial para a interpretação esotérica ocidental
da realidade”. Sobre o conceito de natureza, já pudemos discuti-lo acima, com
o revivalismo Pagão e sua linguagem de desejo por uma união orgânica entre
pessoas, cultura e natureza. E, mais próximo do xamanismo – do que Diana e
Karina Oliveira Bezerra

Pã – para citar a idealizada Grécia Antiga, natural, criativa e livre, podemos


mencionar a famosa figura de Orfeu. Esse, como os xamãs idealizados, conhecia
a linguagem da natureza e viajava para os reinos da realidade que estavam
velados para outras pessoas. Capturados por essa poderosa imagem órfica,
Stuckrad considera que os neoxamãs hoje e os xamanologistas desse século
passado estão intimamente relacionados.
Também é necessário citar a influência da filosofia da natureza, do panteísmo
romântico – que se baseavam em conceitos presentes desde a época do
Renascimento na Europa – e do transcendentalismo americano. O primeiro,
para Hanegraaff, na verdade, é uma filosofia da religião. Um dos expoentes da
filosofia da natureza é Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854). Para o
Artigo

xamanismo contemporâneo, dois aspectos de sua filosofia serão de primordial


importância: a conceituação da natureza como um processo vivo e o papel da
empatia pela cognição da natureza. “Schelling conceitua a natureza como uma
entidade independente e auto-organizada que pode ser conhecida por qualquer
ser humano com uma mente empática e aberta” (Stuckrad, 2002, p. 786). O

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panteísmo, que já havia aparecido em Spinoza, tem sua existência linguística


criada em 1717, pelo irlandês John Toland, o mesmo que supostamente teria
sido o primeiro a lançar as bases de uma ordem druída moderna. Um dos mais
importantes representantes do início do romantismo alemão é Friedrich Von
Hardenberg (1772-1801), mais conhecido como Novalis. Sua combinação
de poesia, arte, filosofia e religião é considerada por Stuckrad (2002), como
uma prefiguração das atitudes neoxamânicas de maneira característica, sendo
a sacralização da natureza e a fusão de seres humanos com entidades não
humanas as questões trazidas por Novalis que interessam. Comparando trechos
de pensamentos de Novalis, e de Halifax, uma xamã moderna, Stuckrad (2002,
p. 788). conclui que,
Xamanismo contemporâneo: no Brasil e no mundo

As semelhanças são impressionantes. O conceito de natureza como um


universo comunicante, no qual o humano é apenas um participante
entre muitos outros, levou Novalis à suposição de que os limites entre
entidades aparentemente díspares são indistintos: ‘Logo para ele as
estrelas eram humanos, os humanos estrelas, as pedras animais, as
nuvens plantas’

No transcendentalismo americano, dos vários autores, destacamos Henry


David Thoreau (1817-1862). Esse identificava seres humanos e entidades não
humanas, além de ontologizar objetos naturais. Na sua obra mais famosa,
Karina Oliveira Bezerra

Walden, ele descreve o lago que possui tal nome como “personagem”, “vizinho”,
“grande companheiro de cama” etc. Diante de todas essas influências que
apresentamos, Stuckrad (2002, p. 791) considera que

[...] não pode haver dúvida de que a atitude contemporânea do


xamã ocidental em relação à natureza deve suas características a
uma tradição de longa data na cultura europeia e americana (para
a América do Norte, veja Fuller em particular). Em vez de ser um
híbrido degenerado de culturas indígenas ou uma bricolagem
arbitrária de espiritualidades subjetivas, o xamanismo ocidental
moderno pertence a um movimento contra a mecanização e o
desencantamento da natureza, do cosmos e do eu humano.
Artigo

Xamanismo Nova Era

Tal interpretação de Stuckrad (2002, p. 774) revela a constante ainda

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ambivalência nas atitudes para com o xamanismo. O mesmo autor diz que o
maior responsável pela reviravolta “[...] entre o discurso intelectual do século
dezenove e a apropriação popular do xamanismo na segunda metade do século
vinte” foi Mircea Eliade. Esse em 1951, com sua nova construção do xamã
como um especialista do transe, fomentou a ideia do xamanismo como “[...]
uma espécie de constante antropológica, um conjunto de práticas e doutrinas
religiosas que permitiam que certas pessoas socialmente discerníveis se
inter-relacionassem com entidades espirituais em nome de sua comunidade”
(Stuckrad, 2002, p. 773). Depois dele, virão C. G. Jung e Joseph Campbell, e o
imprescindível Carlos Castaneda.
Kocku Stuckrad (2002), para tratar dos atributos do que ele prefere chamar
xamanismo moderno ocidental, enumera quatro conjuntos de características:
Xamanismo contemporâneo: no Brasil e no mundo

a) a primeira trata da popularização do conhecimento acadêmico,


iniciada com Carlos Castaneda, sendo a maioria dos protagonistas
xamânicos, formados em Antropologia. Tal “interferência” entre a pesquisa
acadêmica e a prática religiosa implica uma transformação do “clássico
xamanismo indígena” quando os nativos leem e reagem as etnografias;
b) a segunda é a similaridade com os grupos neopagãos, observada
tanto pelo ponto de vista êmico quanto ético. Obviamente, concordamos
com tal semelhança, por isso incluímos o neoxamanismo em nossa tese.
Stuckard diz que “[...] muitas características das tradições dos Nativos
Karina Oliveira Bezerra

Americanos ou das religiões Celta e do Norte da Europa, juntamente com


os cânticos wiccanos e a ritualização da magia natural, formam o pano de
fundo espiritual da prática ritual neoxamânica” (Stuckrad, 2002, p. 775);
c) a terceira é a intima relação com os conceitos de natureza e religião
ocidentais e que foi recentemente apreciado dentro da cena Nova Era;
d) a quarta é que, em comparação com os xamanismos indígenas, o
moderno, pelo menos os com mais ênfase novaerista, “[...] tendem a negar
a realidade de espíritos intrinsecamente nefastos. Além disso, é orientado
para o fortalecimento pessoal e espiritual entre os praticantes. Portanto,
o papel da comunidade é menos importante do que no contexto mais
tradicional do xamanismo” (Stuckrad, 2002, p. 775).
Artigo

Sobre a questão da comunidade, Graham Harvey (2011), que inclui o


neoxamanismo dentro do paganismo, diz que, se esse último quer ser
verdadeiramente xamânico, deve aprender que os xamãs tradicionais não
são individualistas virtuosos, mas sim funcionários da comunidade. Assim,
o paganismo “[...] deve revitalizar os valores comunitários e lutar contra o

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individualismo e o consumismo pelos quais são devastados” (Harvey, 2011, p.


121). Apesar das diferenças, Stuckrad concorda com Vitebsky, que diz que não
é mais possível fazer uma distinção estanque entre as sociedades xamanísticas
“tradicionais”, e a nova onda de movimentos neoxamânicos.
Stuckrad (2002, p. 776) diz que o xamanismo moderno ocidental é um cultic
milieu “[...] com vários pontos de sobreposição com o paganismo ocidental
contemporâneo e as correntes da Nova Era”. E diz que deve ser visto em
um senso amplo e um estrito. Para o último, as obras de Castaneda são de
importância primordial. Para o primeiro, pode-se citar o xamanismo core,
criado pelo importante antropólogo e praticante Michael Harner, que designa
algumas características xamânicas básicas encontradas, segundo ele, em uma
variedade de cenários tradicionais.
Xamanismo contemporâneo: no Brasil e no mundo

Com toda a exposição até aqui, consideramos que o neoxamanismo, assim


como a wicca e outras formas de bruxaria, o neodruidismo, o ásatrú, e o odinismo
possuem o mesmo pano de fundo de criação, portanto é igualmente neopagão.
No entanto, podemos dividi-lo em dois: xamanismo nova era e neoxamanismo
tradicional, ambos já exemplificados acima, mas a seguir trataremos um pouco
do último para esclarecer a entrada dele no mundo moderno.

Neoxamanismo tradicional
Karina Oliveira Bezerra

Enquanto os românticos idealizavam um passado de amor a natureza – e


alguns como Thereau tentaram viver na prática –, os indígenas vivos estavam
lutando para manter suas tradições, ao mesmo tempo que se convertiam ao
cristianismo e aceitavam a participação de não índios e a divulgação de suas
práticas.

Igreja nativa americana

Nos Estados Unidos, várias lideranças nativas se juntaram e criaram em


1918 a igreja nativa americana. E, em uma longa batalha político-judicial,
conseguiram criar a Lei de Liberdade Religiosa dos Índios Americanos, em 11 de
Artigo

agosto de 1978. Essa foi codificada em 1996. Antes da lei, muitos aspectos das
várias religiões indígenas americanas haviam sido proibidos por lei, inclusive
a utilização do peyote. Portanto, a criação da igreja nativa americana tinha
intuito em garantir o direito de manter suas cerimônias.

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Sua criação esteve relacionada a vários fatores, entre eles a existência


de cerimônias nativas antigas, a catequização pelo cristianismo dos
indígenas norte-americanos e o contato com nativos mexicanos que
consumiam o cacto peyote. Assim, iniciou-se o que foi visto como um
culto pan-indígena, com a utilização em certos casos de elementos
cristãos nos rituais nativos de alguns dos povos indígenas (Smith apud
Ressel, 2013, p. 33).

Ressel (2013) observa a influência do Estado na mudança da tradição


indígena, uma vez que, para sobreviver, uma tradição que era direta e oral
passa a ter a necessidade de registro escrito. Ele também salienta a relação
visceral entre modernidade e religião, em que a primeira abrange o processo
de definição e balizamento da segunda. E observa que a institucionalização dos
Xamanismo contemporâneo: no Brasil e no mundo

nativos como Igreja pode ser vista como uma das ações criativas decorrente
do contato entre culturas. Assim depreende que a tradição é alterada e (re)
construída historicamente na ação.
No entanto, como observado acima, a inovação cristã já estava inserida em
vários povos indígenas, inclusive no líder espiritual da tribo Oglala Lakota
Sioux da América do Norte, Black Elk. Esse se converteu ao cristianismo aos
40 anos, em 1903, e é referência histórica sobre a abertura das cerimônias
nativas tradicionais a não índios, outra inovação. Isso resultou na ampliação
da extensão e do alcance das práticas. Black Elk
Karina Oliveira Bezerra

[...] ficou internacionalmente conhecido pelo livro Black Elk speaks.


Mesmo tendo sido batizado na Igreja Católica em 1903, continuou
sendo um líder espiritual da Sun Dance (Dança do Sol) e do Calumet
(Cachimbo Sagrado - Chanupa). Segundo o historiador das religiões
Mateus Soares de Azevedo (2005), Black Elk não via nenhuma
incompatibilidade fundamental entre as duas tradições, e teria sido
um homem de contemplação intensa, que recebeu diversas visões do
mundo espiritual e explicou para as novas gerações de índios o sentido
de sua religião e a utilidade de seus antigos ritos. No final da sua vida,
Black Elk transmitiu ensinamentos espirituais reservados dos índios
das planícies a dois pesquisadores: John Neihardt e Joseph Epes Brown.
Artigo

Neihardt publicou um livro que se tornou um clássico, Black Elk speaks:


being the life story of a holy man of the Oglala Sioux (1932). Para Brown,
teria revelado os principais ritos de sua tradição, publicados em The
sacred pipe: Black Elk's account of the seven rites of the Oglala Sioux (1953)
(Ressel, 2013, p. 45).

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A abertura ao não índio e as fusões se desenvolveram de várias formas ao


longo no século e no novo milênio.

Neoxamanismo no Brasil

Indo para o Brasil, podemos começar a falando da Ayahuasca, pois ela é o


elemento que dá identidade ao neoxamanismo no Brasil, apesar deste país
dividir esse componente com seus vizinhos que dividem a Amazônia.
Portanto, comecemos a tratar de seu uso pelos não índios. Com a ayahuasca,
veremos surgir as religiões brasileiras ayahuasqueiras, sendo a planta seu
principal elemento religioso. Com o ciclo da borracha no Brasil, houve um
fluxo migratório de nordestinos para a região amazônica. Um deles, Raimundo
Xamanismo contemporâneo: no Brasil e no mundo

Irineu Serra, maranhense, migrou para o sul do Acre. Lá, “[...] segundo alguns
relatos colhidos por Jair Bercê (2007), teve sua iniciação com o chá através
de um caboclo vegetalista2 peruano descendente dos Incas” (Mandarino, 2010,
p. 17). E, em 1930, cria na periferia de Rio Branco o Centro de Iluminação
Cristã Luz Universal – Alto Santo (CICLU), conhecido como Santo Daime. Esse,
assim, surge do encontro da floresta com a periferia urbana, do caboclo e do
índio amazônico com o nordestino. Posteriormente, o Daime expande-se para
as grandes metrópoles e centros urbanos, e mesmo para outros países. Irão
surgir também, com outros líderes, diferentes doutrinas religiosas igualmente
Karina Oliveira Bezerra

baseadas na ayahuasca, como a barquinha, em 1945, e a união do vegetal, em 1960.


Contudo, esse universo é eclético, possui práticas indígenas evidentemente,
mas com elementos da religiosidade afro-brasileira e kardecista, porém,
sobretudo, possui seu eixo doutrinário central no cristianismo e catolicismo
popular. Portanto, não representam tradições xamânicas. Sobre essa análise no
Daime, ver Groisman (1999) e Ferreira (2008).
A seguir investigaremos o neoxamanismo em suas diversas expressões, da
mais Nova Era a mais tradicional.

O início
Artigo

É em 1979, que localizamos documentação revelando o interesse dos


brasileiros, pelo xamanismo. Em uma sessão chamada “Xamanismo”, a revista
Planeta3 publica uma matéria intitulada “Maria Sabina e o alimento dos deuses”.
O livro de Mckenna ainda não existia, e os leitores comuns tinham acesso ao
tema, mediante tal revista. Maria Sabina era considerada a maior feiticeira viva

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da terra mexicana e foi estudada pelo antropólogo Gordon Wasson. No final da


matéria, são apresentados livros sobre o tema. Um em espanhol Los indios de
México, de Fernando Benítez, outro Vida de Maria Sabina, de Álvaro Estrada,
e cinco livros de Castanẽda: A erva do Diabo (1968), Uma estranha realidade
(1971), Porta para o infinito (1975), Viagem a Ixtlan (1972) e O segundo círculo
do poder (1977). Colocamos as datas dos originais, pois não sabemos as de
tradução, apesar de muito provavelmente serem bem próximas, ou no mesmo
ano.
Em 1987, foi traduzido pela editora Imago, a mesma editora de As brumas
de Avalon, o livro O cálice e a espada, da socióloga, advogada e ativista social
Riane Eisler. E, em 1989, o livro de Michael Harner O caminho do xamã. Esses
dois autores influenciaram bastante a mãe do neoxamanismo no Brasil, como
Xamanismo contemporâneo: no Brasil e no mundo

veremos. Esse caminho pagão foi introduzido no Brasil por uma mulher de
55 anos, sob um viés feminista, e sem a utilização da ayahuasca e nenhum
outro enteógeno, apenas com instrumentos musicais, como o tambor, maracá
e didjeridu.

Xamanismo matricial

Em 1981, Carminha Levy é iniciada no xamanismo por ninguém menos que


Michael Harner, o antropólogo americano que deu início ao renascimento
Karina Oliveira Bezerra

contemporâneo no mundo ocidental do interesse pelo xamanismo. A iniciação


foi realizada no Instituto Esalen, na Califórnia. Essa entidade foi um importante
centro de constituição do “Movimento de Potencial Humano”. A partir daí,
através da Universidade da Paz (UNIPAZ), sendo membro didata, oficialmente
ministrou Xamanismo e se dedicou à sua difusão, em todo Brasil e Portugal. De
acordo com seu site, realizou até 2007 mais de 4.000 horas entre congressos,
palestras, workshops e jornadas xamânicas em todo o Brasil e exterior: Flórida,
Oregon, Bahamas, Portugal, Finhord na Escócia, e França4.
Ainda em seu site, apresenta como marco de sua posição como instrutora de
neoxamanismo no Brasil a publicação na revista Viver Psicologia, de um artigo
seu chamado, “O que a Psicologia deve aos feiticeiros”, de 1986. Carminha
Artigo

também é pedagoga e psicóloga clínica, com especialização em Jung (PUC-SP);


terapeuta transpessoal (Stanislaw Groff – Esalen – CA – USA); psicodramatista
terapeuta corporal (Gaiarsa); arte-terapeuta; T.V.P. (Edith Fiore – M. Netherton);
e membro honorário da “The Fundation of Shamanic Studies”.
Em 1989, Carminha é convidada pelo programa Sexto Sentido5, apresentado

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por Luiz Gasparetto, na TV Gazeta de São Paulo, para falar sobre terapia
xamânica. Ele apresenta o trabalho de Carminha como muito novo, e que
talvez no Brasil não exista similar. Começa questionando o que é xamânico ou
xamanismo. Ela responde que é a mais antiga técnica de cura, e que data do
paleolítico. E que, no Brasil, se tem conhecimento dos xamãs, dos pajés, por
exemplo, mas é uma técnica que nasceu nos primórdios da humanidade. Para
explicar sobre o tema, ela diz que tem que contar a lenda do xamã, o qual nasceu
da cópula de uma mulher com uma águia especial. Um dia, ele ou ela se isola
da tribo e entra em estado de coma e começa a passar pelas dores da iniciação.
Depois disso, vai para a tribo que o recebe com uma festa e, posteriormente,
começa a xamanizar. Levando para a terapia, ela parte do princípio de que o
que tem de ser mobilizado internamente é o arquétipo do xamã. Esse seria o
Xamanismo contemporâneo: no Brasil e no mundo

arquétipo primordial do curador, contendo em si a saúde. A pessoa deve ser


capaz de autocura, com humildade, e contando com as forças animais. Em seu
segundo livro, 13 anos depois, explica:

Nosso modus operandi para tal inicia-se propiciando o autodespertar


do arquétipo do xamã. Ele, como Herói da Consciência, com sua força
de visionário, quebra todos os paradigmas e sugere novos valores e
conteúdos – as “novas imagens”. Pela celebração à vida, pela nossa
fidelidade à Mãe-Terra nós, os Xamãs, movidos pela inspiração de
sermos luz para todos que nos cercam, ousamos pôr em ação esta
Karina Oliveira Bezerra

proposta visionária de uma nova ética de vida (Levy, [2018d]).

Abordaremos sobre essa nova ética mais à frente. Continuando a entrevista,


ela cita Michael Harner e seu sistema de batida de tambores especiais para
entrar em estado alterado de consciência e entrar no mundo xamânico,
recuperando o antigo poder primitivo. Também fala como conhecer o animal
de poder. E o entrevistador sempre tenta traduzir o que Carminha diz em temos
psicológicos. Ela termina comentando que será lançada uma matéria sobre seu
trabalho na revista Planeta.
No ano seguinte, em 1990, novamente em Esalen, num curso avançado em
xamanismo, igualmente com Michael Harner, Carminha “[...] recebeu, junto
Artigo

com seus colegas, a instrução de perguntar às forças da Natureza: ‘Qual a minha


Missão de Alma?’” (Levy, [2018b]). A sua pergunta foi ao Oceano Pacífico, e
recebeu como resposta:

[...] dançando ao sabor das ondas, o mantra “Piece of Peace”.

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Imediatamente, como se fosse uma visão, delineei o meu projeto da


Alma: levar as pessoas a serem um “Pedaço da Paz”, formando uma
grande tapeçaria onde, tal qual um trabalho de patchwork, cada um
pudesse dar sua diferente e colorida participação, independente de raça
ou credo (Levy, [2018b]).

Ela conta que o xamã poeta Roberto Piva lhe dizia diariamente para fundar
uma instituição, uma escola. Então, quando ouviu a resposta do oceano, concebeu
e fundou, com ajuda de um grupo fundador, sua própria Escola de Xamanismo
– Paz Geia Instituto de Pesquisas Xamânicas. Ela apresenta como estrutura
pedagógica básica “[...] a integração entre a Psicologia, Antropologia e a Sagrada
Sabedoria do Xamã” (Carminha [...], [2018]). Ou seja, a mesma estrutura de seu
mestre e do movimento em geral do neoxamanismo. Porém, ela se apresenta
Xamanismo contemporâneo: no Brasil e no mundo

como a pioneira no ensino simultâneo de xamanismo e psicologia. Já havíamos


citado no primeiro capítulo essa primeira escola de xamanismo, pois Magnani
a estudou. Ele a classificou no “Grupo III – Centros Especializados”, e cita que
eles forneciam um curso de formação de Facilitadores Xamânicos, de três anos.
A linha de xamanismo de Carminha e do Instituto chama-se xamanismo
matricial. Esse é uma criação de Carminha, sendo o termo e inspiração originários
de Riane Eisler, em sua obra O cálice e a espada (1987). No entanto, o embrião
dessa ideia nasceu de um sonho que ela teve no dia que teve um aneurisma, em
1981. No sonho, apareceu um leão negro, então, depois de recuperada, começou
Karina Oliveira Bezerra

a pesquisar para descobrir o que era esse leão negro. Até que um dia caiu em
suas mãos uma revista Planeta, em que a capa era uma madona negra cercada
de animais negros. Daí ela conta que foi pesquisar as mães e os primórdios
da humanidade6. Como vimos no segundo capítulo, na década de 1980, para
além do feminismo da wicca, com Budapeste e Starhawk, desenvolveu-se um
movimento de espiritualidade feminino, conhecido como “Espiritualidade da
Deusa”, e que, além, é claro, das influências da cultura feminista americana e
da wicca, também foi influenciado pelo trabalho de Riane Eisler. Dessa forma, o
trabalho de Carminha surge num momento de forte influência do feminismo na
espiritualidade. Inclusive, já havendo como referência o trabalho de Starhawk,
que é bruxaria wicca, porém xamânica e psicologizada.
Artigo

Nas palavras de Levy, o xamanismo matricial é um caminhar para frente nos


estudos xamânicos, um casamento entre o masculino e feminino, um poder de
parceria, ao invés de um poder sobre o outro (O que [...], 2016).

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O Xamanismo Matricial também busca sua origem na aurora da


Humanidade, quando vivíamos uma Época de Ouro na qual mulheres,
animais e natureza faziam parte de um contexto sagrado de adoração
à Grande Deusa. [...] propõe uma comunhão do paradigma vigente do
Patriarcado com os valores da Grande Deusa, simbolizado pelo Cálice
Sagrado, recipiente de vida e criatividade. Ressurge uma nova (ou
antiga) forma de parceria, regida pela igualdade sexual, liberdade,
justiça, alegria, beleza, amor e poder, como sinônimos de mútua
responsabilidade. Atributos femininos como Amor, Compaixão e
Misericórdia, entre outros, regerão a Espada da Ordem Patriarcal,
num Casamento Sagrado com o Cálice, levando a descobrir, homens e
mulheres, o que pode significar ser HUMANO (Levy, [2018c]).
Xamanismo contemporâneo: no Brasil e no mundo

Há uma fusão e aclimatação da Grande Deusa, que é a Mãe Terra e também


Madona Negra, para as terras do Brasil. Carminha a identifica como Nossa
Senhora Aparecida. Para ela, as três são “o máximo do amor materno acolhendo
todo mundo” (Madona [...], 2017). Vejamos um trecho de um texto seu, sobre as
mil faces da Madona Negra.

Quem é a Madona Negra? Qual a sua primeira face? È a Mãe Terra, o


Princípio Feminino, nossa Mãe Primordial, símbolo de Sabedoria e
Integração dos Opostos. Como perpetuação das poderosas Deusas
da antiguidade, ela volta com as características sagradas de Maria.
Karina Oliveira Bezerra

Metaforicamente Virgem, mas não no sentido do Patriarcado, porque não


pertence a nenhum homem e sim a todos os homens. Doadora de vida,
dela provêm os homens como frutos da Terra e a Ela todos retornam, à
Deusa Mãe – Mãe Terra. [...] A Madona Negra está a favor, politicamente,
do povo e de sua dignidade. Sua face mais importante hoje é a da
justiça social. Ela é a consoladora dos Aflitos e dos Excluídos e aparece
misteriosamente onde há sofrimento e opressão. Em todo o mundo,
encontram-se as faces da Madona Negra com essas características. Mas,
para nós, a sua mais importante face é a de Padroeira do Brasil – Nossa
Senhora Aparecida! (Levy, [2018a]).

Aparentemente, Carminha traduziu sua devoção à santa para a linguagem


Artigo

xamânica da Mãe Terra. E, além daquela, Levy também traz a figura do Espírito
Santo. Ela sugere que a visionária nova ética de vida é centrada na resolução
de opostos, em que dá foco na parceria, na comunhão do feminino com o
masculino, partindo do individual para o coletivo. E está ancorada:

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1. Nos valores essenciais da Grande Deusa/Mãe Terra/Madona Negra


que são: Intuição/Sabedoria, Justiça, Liberdade, Criatividade, Beleza,
Concórdia, Misericórdia, Tolerância, Alegria, Compaixão, Perdão.
2. Nos dons do Espírito Santo: Profecia/Visões do Passado, Fé,
Clarividência, Milagres, Poliglotismo, Entusiasmo, Exorcismo, Cura,
Diplomacia, Ensinamentos Inspirados, Clariaudiência (Levy, [2018d]).

Olhando rapidamente, por conta da polaridade, parece ser uma fusão do


Grande Espírito do Xamanismo, para o Espírito Santo cristão. Mas, em uma
passagem, ela diz que “somos filhos de um Deus Criador amoroso, um Grande
espírito, que nos ama” (Artese, 2018). E, em uma entrevista, finaliza com tais
palavras: “Abençoados pela Madona Negra, pelo Espírito Santo, Deusa, Deus e
Xamanismo contemporâneo: no Brasil e no mundo

tudo que é” (Especial [...], 2013, 38 min. 34s). Para o neoxamanismo, a forma
ou nome que se refere ao “ser supremo” (outro nome que ela utilizou) não tem
muita importância. O foco é na prática de cura, com alterações de consciência
através dos elementos e símbolos que caracterizam o xamanismo. Acreditamos
que os adeptos tenham uma percepção do mundo como realidade inventada,
pois, através dos rituais, a imaginação e a realidade deixam de ser opostas e as
pessoas são curadas.
Observamos que a linha de neoxamanismo que Carminha criou tem uma
prática baseada nos ensinamentos de seu mestre Michael Harner, sob o
Karina Oliveira Bezerra

entendimento da psicologia e a teoria do movimento de Espiritualidade da


Deusa, fusionado com sua crença pessoal.
Em seu livro já citado Xamanismo Matricial, de 2002, Carminha apresenta
um código de ética fortemente influenciado pelas ideias de Riane Eisler, sem
nenhuma diferença na verdade, as ideias podem ser encontradas no último
capítulo da obra de Eisler, “A descoberta evolutiva: rumo a um futuro de
parceria”. Carminha lança três temas para suas proposições. Primeiro, a Parceria,
que é a alternativa que Eisler propõe em substituição a dominação, tendo o
“[...] enfoque principal nos Relacionamentos em detrimento das Hierarquias”,
que Eisler apresenta como produção acadêmica feminista e da teoria do caos.
Segundo, o Poder, “[...] que não seja limitador do desenvolvimento do outro por
Artigo

não ser ‘sobre’ o outro e sim o Poder da Responsabilidade ‘para com’ o outro”.
Essa visão não destrutiva do poder foi, segundo Eisler, tema central da literatura
feminista do século XX. “Não mais o Poder piramidal com chefes governando
do alto, mas sim o Poder como União, simbolizando pela forma circular ou oval

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– o Ovo Cósmico da Grande Deusa”. Eisler diz que, desde tempos imemoriais,
esse tipo de poder “[...] vem sendo simbolizado pelo círculo ou pela elipse – a
elipse cósmica da Deusa ou rotundum alquímico – ao invés dos ângulos das
pirâmides, onde os homens reinam do alto, como chefes de nações e famílias”
(Eisler, 2007, p. 271). O terceiro tema é o Conhecimento,

[...] que seja de solicitude, priorizando a prática da empatia,


através da intuição e da razão. Este conhecimento irá influenciar
a mente coletiva, ajudando a formar a massa crítica que levará
a mente coletiva de forma consistente e gradativa, a mudar o
curso do futuro da humanidade. A sociedade humana, tal qual o
xamanismo matricial a vê, será concebida como um sistema vivo
do qual todos nós somos parte, numa grande tapeçaria (Levy,
Xamanismo contemporâneo: no Brasil e no mundo

[2018d]).

O que Carminha faz é, com sua tradição, colocar em prática as ideias de Eisler.
Essa diz que já havia se avançado bastante em desembaraçar e refazer a trama
de nossa tapeçaria mítica para padrões mais gilânicos. O que faltava era “[...]
uma ‘massa crítica’ de novas imagens e mitos, massa crítica necessária para que
sejam levados para realidade por um grande número de pessoas” (Eisler, 2007, p.
265). Quando Carminha cria o xamanismo matricial, ela cria essa realidade. Ao
invés de dar continuidade ao xamanismo dos caçadores de seu mestre, ela tece
Karina Oliveira Bezerra

uma realidade gilânica e, através de sua escola, entrevistas e livros, lança um


novo programa de verdade, em que imagina promulgar estilos de vida humanos
respeitosos.
Nessa sociedade pacífica e altamente criativa, apoiada na nova ética, o “[...]
trabalho mais valorizado, a prioridade número um, será o desenvolvimento
físico, mental e espiritual das Crianças” (Levy, [2018d]). Essa ideia também é
de Eisler. Contudo, em uma entrevista7 de 2016, com 82 anos de idade, diz que,
entre os muitos itens do código de ética, o principal é que o foco da educação
seja voltado para as crianças, e acrescenta que os mais velhos tenham a função
quase profissional de educar as crianças. Assim, segundo ela, dois polos com
bastante carência se complementariam. A idade de Carminha quando da sua
Artigo

adesão, 47 anos, também nos dá aporte para confirmarmos o que percebemos


anteriormente, que, além de ter predominância de adultos, o movimento
neoesô ou Nova Era no Brasil continha também considerável público maduro.

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Xamanismo Universal

Em nosso questionário, Leo nos conta que foi batizado e crismado na Igreja
católica, mas sua família toda era espírita. E depois se tornou umbandista. Em
seu site, diz que sua mãe era benzedeira e seu pai médium. Portanto, participava
desde criança de cerimônias espirituais. Conta que aos 11 anos tinha muitos
sonhos iniciáticos e visões. E que teve sua iniciação espiritual quando criança
com seu padrinho de batismo: “Cid Toledo (o Cidão de Xangô) um ‘mestre’
que o Criador pôs em meu caminho”. Segue contando que, com o passar dos
anos, teve contato com diversas linhas: “[...] pelo estudo de escolas iniciáticas,
artes marciais, oráculos, acupuntura e massagem, terapia corporal, yoga, ervas
medicinais, aromaterapia etc, até chegar ao ‘Xamanismo’” (Artese, [2018]).
Xamanismo contemporâneo: no Brasil e no mundo

Em nosso questionário, ele revela que foi em 1986, com 29 anos de idade que
começou a estudar e praticar o xamanismo.
Em seu site, Artese alega que criou o “Movimento Xamânico Universal”
em 1990, ou seja, no mesmo ano que Caminha Levy criou o Paz Geia. Artese
explica que xamanismo universal é um caminho

[...] onde são possíveis as alianças espirituais entre os diversos


sistemas de crenças. É baseado no conhecimento da Roda Medicinal
dos nativos norte-americanos, nos Ritos de Passagem das Estações do
Karina Oliveira Bezerra

Calendário Sagrado e Pajelança, adaptados para a vida contemporânea.


O entendimento de que “Tudo é Sagrado” permite-nos à unificação na
corrente universal da beleza, da paz, do amor incondicional, da saúde
do corpo e da mente. A premissa básica é o reconhecimento que todos
fazemos parte da Família Universal e tudo está interligado. O praticante
compreende o Espírito Essencial que está dentro dele mesmo, na
natureza e em todos os seres. Apresento esse conteúdo na forma de
cursos, workshops, cerimônias, formações de multiplicadores, jornadas,
ritos. É um trabalho que desenvolvo desde 1992 e o mais conhecido de
todos são as Jornadas Xamânicas Voo da Águia (Artese, [2018]).

Artese conta ainda sobre seus caminhos de aprendizado no mundo xamânico,


com a sabedoria dos nativos norte-americanos (roda medicinal, cachimbo
Artigo

sagrado, tenda do suor e peiote), e peruanos (ayahuasca e cacto San Pedro). E,


através do estudo das chamadas “plantas de poder”, chegou ao Centro Eclético
Fluente Luz Universal – Santo Daime. Em nosso questionário, Artese diz que,
em 1991, paralelamente ao xamanismo, converteu-se ao Santo Daime e pratica

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os dois até hoje.


Léo Artese é fundador e diretor do Espaço – Centro de Estudos de Xamanismo
Vôo da Águia. E fundador e presidente do Centro Eclético da Fluente Luz
Universal Céu da Lua Cheia. Lançou, em 1996, o livro: O Vôo da Águia: uma
iniciação aos mistérios e magia do Xamanismo” e em 2001 “O Espírito Animal”.
A metodologia desenvolvida por Artese desde 1992, que visa estudar
o xamanismo universal e praticar no dia a dia, tem sido difundida pelos
“Multiplicadores da Roda de Estudos de Xamanismo Voo da Águia”, no Brasil
e em vários países. E no seu site ele deixa claro que não representa nenhuma
tradição: “As jornadas e vivências Voo da Águia, assim como na forma de como
interpreto o xamanismo, são resultado de muitos anos de pesquisa, iniciações
e aplicação de conhecimentos espirituais na condução de ritos e cerimônias”
Xamanismo contemporâneo: no Brasil e no mundo

(Artese, [2018]).
De 13 a 20 de março de 2005, de acordo com a página do Facebook, de
Artese, “Xamanismo” (Xamanismo, [2018]), ocorreu o maior encontro desse já
realizado no país: o “Primeiro Encontro Brasileiro de Xamanismo”. Reuniu 64
palestrantes, entre condutores de práticas, índios, antropólogos, terapeutas,
fitoterapeutas, erveiros, artistas e estudiosos. Artese considera que depois do
encontro o xamanismo nunca mais foi o mesmo. Ele conta que o “[...] encontro
contribuiu para a revitalização das práticas xamânicas, por séculos desprezadas,
ao mesmo tempo que fomentou o interesse crescente pelo xamanismo em nossa
Karina Oliveira Bezerra

sociedade” (Artese, 2017).


Apesar do sucesso descrito, um evento similar só aconteceu em 2017, 12
anos depois, e se chamou “Primeira Virada Musical Xamânica”. O propósito do
evento é

[...] criar um ambiente propício para reunir praticantes e estudiosos de


xamanismo afim de restabelecer uma conexão direta com a natureza,
através de uma viagem musical que permita explorar - através dos
ritmos da canção e dos instrumentos de poder um vasto panorama de
sons, de várias tradições xamânicas, a fim de obter, com o coração, a
intenção de cura no ritmo da respiração sagrada (Artese, 2017).
Artigo

Em janeiro de 2018, ocorreu o 2º Encontro Brasileiro de Xamanismo e a 2ª


Virada Musical Xamânica. No entanto, no intervalo de tempo aludido Artese
realizou outros projetos, como o Movimento: Xamanismo Sem Fronteiras,
iniciado em 2010, que atendeu convites da Europa e América. Sua finalidade é

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a união de “[...] entidades e pessoas que adotam como base comum a filosofia,
a teoria das práticas xamânicas universais, sem excluir as contribuições
decorrentes de novos estudos e pesquisas e a sua aplicação nos diversos
campos do conhecimento humano” (Bezerra, 2019). Em 2016, criou uma
Aliança Internacional de Xamanismo Universal, chamada IAUSH (International
Aliance Of The Universal Shamanism), “[...] uma organização sem fins lucrativos,
de direito privado, de caráter espiritual, científica e cultural dedicada à
preservação, desenvolvimento, estudos, disseminação de práticas xamânicas”
(Bezerra, 2019).
Torna-se claro, portanto, que o xamanismo universal e o matricial são
ecléticos e Nova Era, diferentemente dos próximos que veremos adiante.
Xamanismo contemporâneo: no Brasil e no mundo

Xamanismo tradicional moderno

Tradição Iniciática Nativa Andina

Em resposta a nosso questionário, Wagner Frota, também conhecido como


Jaguar Dourado, conta que nasceu e se criou em Brasília, formou-se em Recife
em Sociologia e morou em Alagoas 10 anos, entre 1998 e 2008. Seu primeiro
contato com o xamanismo foi em 1989, com 27 anos, no Caminho de Santiago.
Em 1993, foi contratado pela Unipaz para desenvolver um curso de xamanismo
Karina Oliveira Bezerra

e lá conheceu Claudio Capparelli (marido de Mirella Faur), que veio a ser seu
mestre e pai espiritual. Em 1994, fundou junto com ele o Clã Lobos do Cerrado.
Em 2000, quando esteve nos Andes pela primeira vez, conheceu Mama Julia,
que se tornou sua mentora, com ensinamentos contínuos até hoje. Em 2011,
ela apresentou Frota ao seu mentor, o boliviano Tayta Matzú, que passou a
ser tutor de Frota até este ser iniciado como um líder espiritual da Tradição
Iniciática Nativa Andina.
Em uma entrevista para o Canal Consciência Próspera, falando sobre sua
iniciação, Frota diz que não escolheu seus mestres, mas foi escolhido por eles
(Xamanismo [...], 2018). Por exemplo, com Mama Julia ele a conheceu e conversou
naturalmente com ela, que o convidou para voltar lá no outro ano, oferecendo
Artigo

casa e comida. Quando percebeu já era aprendiz dela. E, posteriormente,


quando ela o apresentou Tayta Matzú, esse reconheceu Frota como um líder
espiritual andino. Em três cruzes, onde nasce dois sóis, o primeiro sol nasceu
e bateu no terceiro olho de Frota, e o segundo em seu peito. Para a tradição,
isso é considerado uma iniciação. Em 2017, Tayta faleceu e Frota passou a ser

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mentor de alguns de seus alunos. Alguns veem ao Brasil encontrá-lo e outros o


encontram no Peru, pois ele viaja para lá duas vezes ao ano.
Frota escreveu três livros: Caminhando com os Ventos: uma jornada xamânica
(2008), Xamanismo visceral: o despertar do guerreiro (2014) e Xamanismo
nos Andes: cosmologia, mitos & ritos (2017). Ele também possui o site www.
xamanismo.com

Igreja Nativa Sul Americana Caminho do Guerreiro

Marcos Ninguém conta que nasceu em uma família católica, mas ele
considera que era catolicismo pagão. Ele diz que esse catolicismo é aquele
que acredita em bruxaria, em magia, em poções, em lendas, e principalmente
Xamanismo contemporâneo: no Brasil e no mundo

em curandeirismo. Sua avó era benzedeira, e ele se lembra de ter sido muito
tratado em benzedeiros, ou poderia chamá-los de curandeiros. Além disso,
ele considera que é totalmente oposto do catolicismo tradicional, diz que o
curandeirismo é a vertente Pagã do catolicismo.
Na adolescência, com 15 anos de idade, conta que rompeu com a igreja e virou
ateu, ficando assim por uns cinco anos. Com 17 para 18 anos, entrou na faculdade
de Filosofia e sentiu a necessidade de buscar alguma conexão. Começou a atuar
na política, no campo da esquerda, e estudou bastante Nietzche, tanto que seu
trabalho de conclusão de curso foi sobre ele.
Karina Oliveira Bezerra

Mas, por volta da metade ou mais pra o fim da faculdade, começou a


pesquisar sobre religiões, gnose. E, em conversas com um amigo, em que
expressava suas ideias, aquele sempre dizia que o que Ninguém pensava já
existia, e era xamanismo. Então um dia, Ninguém resolveu pedir algo para ler
sobre xamanismo a ele, e seu amigo diz que tinha Carlos Castaneda. Ninguém
se interessou e seu amigo emprestou o livro O Poder do Silêncio.
Ele conta que se apaixonou pelo livro, e que

[...] ele tem alguma coisa nele, algumas chaves de linguagem que
o Castaneda deixou, que todo mundo que leu esse livro, ativa o
corpo sonhador da pessoa, começa a sonhar muito, acontece muito
desdobramento, muito sonho lúcido. Isso é descontroladamente,
Artigo

obviamente, involuntariamente acontecem sonhos lúcidos. E isso


aconteceu comigo, aconteceu com várias pessoas pra quem eu emprestei
esse livro. Ele tem essas chaves aí (Ninguém, 2018).

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E se identificou muito com as ideias do livro. Percebeu que sua cosmovisão


era muito parecida com a do nagualismo, em que o mundo é uma interpretação.
Ele diz que muitos filósofos pensavam assim, que o que chamamos de realidade
é uma interpretação racional. Então, ele explica que foi mudando, que se
interessou pelas plantas de poder, sendo que imaginava que era algo muito
distante dele, que não poderia fazer parte de sua vida, de seu cotidiano, que era
uma coisa utópica, romântica.
Então, por volta de 2003 ou 2004, foi para o Fórum Social Mundial e conheceu
a profecia dos guerreiros do arco-íris da paz e conta que

[...] essa profecia tava colada numa árvore. Eu já tava estudando


xamanismo, aí eu tava sentado, eu vi aquilo de longe, eu tava expondo
Xamanismo contemporâneo: no Brasil e no mundo

artesanato, e eu vi aquela profecia colada longe naquela árvore sozinha


assim. Aí eu falei: ‘Caraca, eu vou lá vê o que tem escrito naquele
papel’. Aí quando eu fui lá, era a profecia dos guerreiros do arco-íris
da paz. Fala justamente desse momento que a gente tá passando, né?
Da ganância do homem branco, o planeta aí sucumbindo, uma grande
tragédia ambiental, social. Cultura indígena ia quase desaparecer, mas
os espíritos dos antepassados, dos grandes antepassados, iam encarnar
em homens e mulheres de todas as raças, de todas as etnias. E brancos,
negros, amarelos, todos iam ser da cultura deles, mas com espíritos dos
grandes xamãs, dos antepassados. Eles iam se lembrar quem eles eram e
Karina Oliveira Bezerra

qual era o verdadeiro papel, e aí começar a despertar outros guerreiros,


pra juntos resgatar os cantos, as danças, com os antepassados, com os
avós, e trazer a medicina de novo, pra curar as pessoas. E empregar
a paz entre as pessoas, entre as nações. Isso se chama guerreiros do
arco-íris da paz, iam deixar o cabelo crescer. Todo movimento hippie
foi influenciado por essa profecia, né? O primeiro navio do Greenpeace
se chama Rainbow Warrior. Então, essa é uma das profecias mais
importantes da humanidade, que mais influenciou a humanidade e as
pessoas nem sabem. Influenciou muito. Então, eu conheci a profecia e
falei: “Caraca!”. E aí eu me reconheci nela. E aí me reconheci nela, me
reconheci no sentido de que eu disse: ‘Nossa, eu sou um guerreiro do
arco-íris, eu sou um espírito dos antepassados que tá despertando, que
Artigo

precisa despertar mais, e precisa ajudar outros irmãos a despertarem o


seu propósito pra junto a gente cumprir essa missão’ (Ninguém, 2018).

Ele também conheceu pessoas do Calendário da Paz, que é do Sincronário 13


luas, e explica que tal movimento estava chegando no Brasil.

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[...] tinha uma galera de São Paulo bem articulada, a gente recebia o
calendário gratuitamente, calendário de bolso pra distribuir. Então, eu
comecei junto com essa onda, né? A onda do xamanismo começou com
a onda do estudo dos maias, né? Do calendário 13 luas e do Castaneda. E
aí tinha essa galera, a galera se encontrava, a gente criou um círculo de
xamanismo, um grupo, meus amigos mais próximos também começaram
a estudar meio que a força, como eu digo, apulso, porque faziam porque
eu tava estudando, a galera na minha casa, a galera acabava estudando
comigo, né? Conhecendo mais, mas e aí o pessoal do calendário maia.
Aí eu me juntei com a galera que tava trazendo esse movimento para o
Brasil. Aí conheci muita gente, e fui conhecendo xamãs, fui aprendendo
sobre rapé, fui aprendendo muita coisa. Viajei pela América Latina pra
participar de outros encontros (Ninguém apud Bezerra, 2019, p. 305).
Xamanismo contemporâneo: no Brasil e no mundo

Quando ele estava se formando na faculdade de 2005 pra 2006, disse que
começou se questionar sobre se iria querer seguir a vida acadêmica, ou tornar-
se xamã. Então, conta que projetou as duas, viu no que iria dar a primeira, e na
segunda não viu nenhum caminho, então disse: “Ah, eu quero caminhar numa
estrada que ainda eu não conheço. [...] Aqui que tem graça, aqui que a gente vai
vibrar, né?” (Ninguem apud Bezerra, 2019, p. 305).
Para Ninguém, a escolha por ser xamã representava que ele tinha de
negar a sociedade. Dessa forma, ele fez uma ruptura muito forte. Sob influência
Karina Oliveira Bezerra

de Osho, que falava sobre a ausência do ego, e do nagualismo, que falava sobre o
abandono que a gente tem de nós mesmos, ele jogou seus documentos, cartões
de banco fora e foi viajar pela América Latina para aprender xamanismo. Ele
diz que ninguém sabia seu nome, de onde vinha, que seu sotaque não é fácil
de identificar. Então, muitas pessoas ficaram anos o conhecendo apenas como
ninguém.
Entretanto, ele disse que saiu com um plano. Pesquisando mais sobre a profecia
dos guerreiros do arco-íris da paz, ele ficou sabendo da caravana do arco-íris
pela paz, do xamã mexicano, guardião da profecia, Alberto Ruz Buenfil. Esse é
filho do arqueólogo que descobriu o túmulo subterrâneo de Pakal, o Grande,
nas ruínas maias de Palenque, em 1952. Seu trabalho é dedicado à mudança
Artigo

social, sustentabilidade ambiental e artes cênicas. A caravana durou 13 anos,


promovendo em dezessete países da América Latina o design sustentável e a
permacultura, bem como apresentações teatrais. Recebeu em nome da Caravana
o prêmio “Escuela Viva” do presidente brasileiro Lula da Silva e o ministro da
Cultura Gilberto Gil, como um dos 60 projetos mais avançados na educação no

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país. Assim, enquanto a caravana estava no Brasil, Ninguém se juntou a eles e


aprendeu muito, e isso foi em 2007. Sendo que, no intervalo entre entrar para a
caravana e de estar na caravana, ele conta que participou de vários encontros
internacionais e nacionais, e conviveu com muitos xamãs.
Ele ganhou aprendizado empiricamente; diz que seu estilo era ficar perto
dos que sabem, para assim aprender. Entrava nos países ilegalmente e vivia de
artesanato. Ele diz: “Eu era uma pessoa, um andarilho assim, das galáxias. Um
mochileiro das galáxias. Eu não tinha casa, não tinha nada. Nem tinha nome.
Foi muito bonito, foi uma fase bem romântica, digamos assim” (Ninguem apud
Bezerra, 2019, p. 306). Ele viajou muito entre 2007 e 2008, e só em 2009 que
ele revela sua identidade. Em sua linguagem, ele começou a hackear o sistema,
inserindo-se nele para transformá-lo, ao invés de bater de frente. Isso se torna
Xamanismo contemporâneo: no Brasil e no mundo

mais evidente na sua história com a permacultura, que perpassa toda sua
história no xamanismo. Ele também a conheceu durante a faculdade e também
se tornou referência no Brasil sobre o tema. Em entrevista concedida a Djalma
Nery do site “Outras Palavras”8, Ninguém diz:

Fui o permacultor que mais deu cursos no Brasil, em média quatro


por mês, cada um em uma capital diferente. Acabei trabalhando
a permacultura na maior parte dos estados brasileiros através de
cursos, editais, consultorias, obras de bioconstrução, fundando
ecovilas e projetos governamentais, sempre com o intuito de difundir
Karina Oliveira Bezerra

a permacultura e capacitar comunidades e indivíduos. Atualmente,


estou criando uma ecovila e fundei uma universidade alternativa de
permacultura (UniPermacultura) que ministra o primeiro Diplomado
em Permacultura em língua portuguesa e com um ano de duração
(Ninguem apud Bezerra, 2019, p. 306).

E sua inserção e desenvolvimento na permacultura é fruto de sua busca em


ser um xamã. Em nossa entrevista, ele conta que:

[...] veio essa necessidade de conhecer as plantas, veio essa necessidade


de conhecer os ciclos naturais, de aprender a plantar mais e saber colher
e ser uma pessoa da terra, ser verdadeiro, ser real. Não queria ser um
Artigo

xamã de botique, queria ser um xamã real, verdadeiro. E aí pra isso eu


tive que estudar muitas coisas, né? E aí a permacultura veio com essa
resposta e com uma proposta de uma nova humanidade, de uma nova
sociedade (Ninguem apud Bezerra, 2019, p. 307).

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Mesmo seu deixar de ser Ninguém foi influenciado pelo nagualismo de


Castaneda. Ele diz que o autor explica que o papel do nagual moderno é “mover
o pó de aglutinação do planeta” e não mais só das pessoas individualmente.
É dessa forma que ele percebeu que tinha de “mudar toda uma construção
de interpretação da realidade que é social”. E considera que seu trabalho na
permacultura, agroecologia e economia solidária desenvolve esse papel.
Então, foi nesse período que ele começou a servir a ayahuasca com mais
regularidade e o início foi no Nordeste, onde formou grupos, sobretudo
no Recife. Em 2012, ele conheceu Aurélio Diaz Tekapankalli, o chefe e líder
espiritual do Fogo Sagrado do Itzachilatlan, e começou a participar da Igreja
Nativa. Ele foi para o México e fez o ritual da busca da visão, que são quatro
dias e quatro noites sem comer, em uma montanha, sozinho. Foi aí que seu
Xamanismo contemporâneo: no Brasil e no mundo

grupo, Caminho do Guerreiro, tornou-se Igreja Nativa Sul Americana Caminho


do Guerreiro.
O xamanismo praticado por Ninguém, como o título indica, é vinculado à
igreja nativa americana. Ele conta que enxerga tal movimento como parte da
profecia dos guerreiros do arco-íris da paz, na qual ele está incluído, e que
faz parte da igreja nativa de Aurélio Diaz Tekpankalli, o Fogo Sagrado de
Itzachilatlan9, apesar de não frequentar muito por ser no México.
Ninguém segue, na sua tradição, desenhos cerimoniais de vários povos
indígenas, sendo a maioria do Peru. Desenhos cerimoniais são uma referência
Karina Oliveira Bezerra

às suas cerimônias que “[...] tem o desígnio de marcar que elas contêm um
know-how, uma forma, uma organização, uma estrutura, uma sequência, cujo
formato (‘desenho’) tradicional específico é observado com precisão, compondo
um sistema de conhecimento e de aprendizado” (Ressel, 2013, p. 17). Ele conta
que usa mais a cerimônia andina do tabaco, mas, ao mesmo tempo, tem o
estudo do fogo que é do México. Explica que o formato da igreja nativa permite
usar várias medicinas durante a mesma noite, sendo que sempre com o formato
tradicional. Em uma noite, podem ser apresentadas três, quatro tradições. E é
dessa forma que ele procede, sempre com desenhos cerimoniais tradicionais,
sendo esse o diferencial em relação às cerimônias chamadas de neoxamanismo.
Esse, explica Ninguém,
Artigo

É mais fluido, mantém o mesmo desenho. A gente já não, a gente para,


tipo, a gente toma peyote e a ayahuasca na mesma noite. Então, são duas
plantas com poderes diferentes, com desenho e povos diferentes, com
desenho diferente. Então, quando a gente vai tomar um peyote, a gente

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canta os cantos de peyote. Faz como se tivéssemos só fazendo peyote.


Aí quando a gente vai fazer a ayahuasca, a gente avisa que muda. ‘Oh,
galera, a gente agora vai servir a ayahuasca e tal’, aí muda os cantos,
muda a ritualística da forma de servir. Aí, o legal é justamente isso, cara,
o ideal é não inventar coisas, assim, tipo, no meu ponto de vista: ‘ah!
vou fazer a ayahuasca, mas, assim, eu vou fazer a ayahuasca, e eu vou
botar uma música russa, e aqui vou botar umas luzes e tal, na hora, e
depois vou fazer isso, e vamos fazer yoga, e depois a gente vai meditar
durante o trabalho’. As pessoas inventam procedimentos. Então, a igreja
nativa é resgate de vários procedimentos. Não importa qual ele seja,
desde que ele seja tradicional (Ninguém, 2018).

No entanto, salientamos que, como observado no segundo capítulo, essas


Xamanismo contemporâneo: no Brasil e no mundo

próprias tradições já tiveram muitas alterações. Todavia, apesar de manter


tais tradições, Ninguém diz que tem havido aberturas na igreja nativa, citando
a quebra de algumas tradições na questão de gênero, por exemplo, a mulher
antigamente não podia servir a ayahuasca. Hoje, pode; ela serve qualquer
medicina e a dança do sol era masculina.
E o próprio Ninguém se abriu para uma experiência denominada de xantra,
através de um convite de um instrutor de tantra, residente na praia da Pipa, no
Rio Grande do Norte. Staine Medeiros criou um evento chamado “Experiência
Xantra”, que ocorreu dia 7 de julho, e nós estivemos presentes. Tal experiência
Karina Oliveira Bezerra

pretendeu juntar xamanismo com tantra. Todavia, não houve fusão dos dois;
o que ocorreu foi a realização de uma respiração tântrica por uma hora, antes
da cerimônia de ayahuasca. A programação estava prevista para começar às
14h20 com Encontro de Sagrado Feminino e Sagrado Masculino, seguida de
aula de Yoga Sri Prem Baba às 16h20, depois às 18h20 a Respiração Tântrica –
Método Centro Metamoforse. E, antes da cerimônia, às 20h20, houve a Palestra/
Anamnese com o Xamã Marcos Ninguém Homem Medicina.
A cerimônia começou mais tarde do que o programado, às 22h. Participaram
22 pessoas, sendo 11 homens e 11 mulheres. A maioria (13) já havia
experimentado a ayahuasca anteriormente. E quase metade das pessoas (10)
estava na faixa de 31-40 anos. A razão mais comentada como propósito em
Artigo

conhecer e participar de uma cerimônia xamânica com uso ritualístico de


ayahuasca foi autoconhecimento, respondido por (10) pessoas. A cerimônia
ocorreu em uma pousada, em frente ao mar, em cima de uma falésia, durando
até de manhã sem nenhum problema.

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Em síntese, na opinião de Ninguém, as cerimônias xamânicas que seguem


o desenho tradicional são um tesouro intacto, bonito, deixado para as futuras
gerações:

São interpretações da realidade que nossos avós tiveram e


transcreveram isso; afinaram até chegar num estudo tão fino
que, quando a gente faz, a gente dá certo, então eu sei. O legal
de participar de uma cerimônia tradicional é que sabe que vai dar
certo, porque existe um passo a passo que os antigos deixaram.
Um mapa. Quando você faz o xamanismo Nova Era, o mapa é o
momento, assim, tipo, pra onde for, né? Por isso que acho um
pouco até perigoso esse xamanismo Nova Era (Ninguem apud
Bezerra, 2019, p. 309).
Xamanismo contemporâneo: no Brasil e no mundo

Considerações Finais

A complexidade do xamanismo se encontra desde o significado do termo e


conceito, até as inúmeras transformações que esse diverso movimento, criado
em torno do termo, enfrentou. Todos os envolvidos realizaram trocas, com
diferentes aspirações e metas. As mudanças históricas do século XX e a formação
de novas formas de se relacionar em comunidade, assim como a consciência ou
a falta dela, das mudanças de mentalidades, percepção de mundo, e tradições,
Karina Oliveira Bezerra

possibilitaram a criação de novas identidades.


Essas novas identidades e ideias chegam ao Brasil e encontram território
para seu assentamento. Assim como fora, aqui, as duas variantes do xamanismo
vão se estabelecer, sendo que novas identidades serão criadas nessa terra que
possui seus próprios povos indígenas e tradições. Novas trocas serão realizadas
expandindo mais ainda a diversidade e geografia do movimento. O xamanismo
Nova Era ganha novos desenhos que serão compartilhados com o mundo e o
xamanismo tradicional moderno expande suas fronteiras territoriais, étnicas e
garante sua vitalidade na contemporaneidade.
Vivemos em mundo de constantes mudanças, onde a dominação da natureza
foi lema, colocando em perigo a sobrevivência da espécie humana. Nesse
Artigo

sentido, a sabedoria xamânica e seus rituais, trazem para a modernidade uma


perspectiva de integração, ao invés de exploração. Artese (2018) conta que
“os rituais xamânicos podem trazer a consciência de que somos apenas um
microcosmo, somos parte de algo maior, filho da Terra, parte de uma terra viva.

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O xamanismo resgata a relação sagrada do homem com o planeta”. A seguir, a


fala de Ninguém complementa essa ideia e revela que apesar das diferenças, há
certa unidade sobre o que é considerado xamanismo.

Tudo é sagrado. A todo o momento o sagrado tá se manifestando. Nas


folhas, no vento, na respiração nossa, a todo o momento. E esse é um
dos conceitos antropológicos em que uma crença possa ser considerada
xamanismo ou não. Que é a divinização do mundo. Tudo é sagrado.
Tudo é divino (Ninguém apud Bezerra, 2019, p. 383).

Referências

ARTESE, Leo. Carminha Levy. Xamanismo. [S. l.], 3 maio 2018. Disponível em:
Xamanismo contemporâneo: no Brasil e no mundo

http://xamanismo.com.br/carminha-levy/. Acesso em: 15 set. 2018.

ARTESE, Léo. Léo Artese: apresentação. Xamanismo. [S. l., 2018]. Disponível em:
https://www.xamanismo.com.br/xamanismo/leo-artese-apresentacao/. Acesso
em: 15 set. 2018.

ARTESE, Levy. Primeira Virada Musical Xamânica. [S. l.], 11 jan. 2017. Facebook:
@Xamanismo. Disponivel em: https://m.facebook.com/xamanismo.com.br/
photos/a.275877449186645/1198136656960715/?type=3. Acesso em: 16 set.2018.

BEZERRA, Karina Oliveira. Paganismo contemporaneo no Brasil: a magia da


Karina Oliveira Bezerra

realidade. 2019. Tese (Doutorado Ciências da Religião) – Universidade Católica de


Pernambuco, Recife, 2019. Disponível em: http://tede2.unicap.br:8080/handle/
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em: https://www.facebook.com/xamanismo.com.br/. Acesso em: 18 set. 2018.
Xamanismo contemporâneo: no Brasil e no mundo

Notas
1
Doutora em Ciências da Religião e graduada em História. Professora de Filosofia e ética
em The Priory School, Inglaterra.
2
“Os vegetalistas são curandeiros (curadores) de populações rurais do Peru e da Colômbia
que mantêm elementos dos antigos conhecimentos indígenas sobre as plantas, ao
mesmo tempo em que absorvem algumas influências do esoterismo europeu e do meio
urbano” (Labate apud Mandarino, 2010, p. 15).
Número 76, janeiro de 1979.
3

Ver (Carminha [...], [2018]).


4
Karina Oliveira Bezerra

Ver (Sexto [...], 2017).


5

Entrevista para Consciência Próspera, 15 set. 2013 (Especial [...], 2013).


6

Ver (O que [...], 2016).


7

Disponível em: https://outraspalavras.net/djalmanery/tag/marcos-ninguem/.


8

9
No entanto, o Fogo Sagrado de Itzachilatlan existe no Brasil, desde 2003 e já foi
estudado na academia. O grupo começou a organizar suas atividades por volta do final
da década de 1990, dirigido por Haroldo Evangelista Vargas, médico psiquiatra, natural
de Canoinhas/SC, que conheceu Tekpankalli em viagens pela América do Sul para
participar das cerimônias do Fogo Sagrado, consolidando-se o movimento no país no
início dos anos 2000 como FSI do Brasil. Haroldo recebeu o nome de Ehekateotl Karaí
Riapu Uvdju na tradição e foi reconhecido por Aurelio Diaz Tekapankalli como Chefe e
Líder Espiritual do Fogo Sagrado do Itzachilatlan do Brasil, sendo o fundador e líder da
Artigo

primeira Igreja Nativa Americana no país. [...] As cerimônias acontecem em diferentes


lugares e cidades, sendo mais comuns no sul do país, em especial Florianópolis, Joinville,
Curitiba, Porto Alegre e São Paulo, além da fazenda de Segualquia em Urubici. Mas
também são realizadas em outras cidades e estados, tais como Minas Gerais, Rio de
Janeiro, Rio Grande do Norte e Brasília, onde quer que se encontrem “carregadores da
tradição” – condutores das cerimônias. Em Curitiba, por exemplo, há pelo menos sete

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espaços nos quais os ritos do Fogo Sagrado costumam ser realizados, com número maior
de “carregadores da tradição” do que de espaços, sendo que dezenas de cerimônias são
realizadas em espaços de pessoas que se oferecem para recebê-las por uma única vez ou
ocasionalmente. Assim, conforme já relatado por Rose (2010), tudo indica que o Fogo
Sagrado vem se expandindo e se consolidando pelo Brasil, principalmente no sul do país
(Ressel, 2013, p. 78-79, 85).
Xamanismo contemporâneo: no Brasil e no mundo
Karina Oliveira Bezerra
Artigo

Recebido em 21/06/2023 - Aprovado em 03/08/2023


Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.187-215, jul-dez. 2023 } 215
DOI: 10.5433/1984-3356.2023v16n32p216-246

La sensorialidad de los
vergeles medievales

Sensoriality of medieval
orchads

A sensorialidade dos
pomares medievais

Lidia Raquel Miranda1


Gerardo Fabián Rodríguez2

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Resumen: Pese a que el hombre medieval conocía y vivía


en contacto con la naturaleza, las alusiones en los textos
literarios no se explayan grandemente sobre ella. Ello se debe
a que su apreciación del mundo vegetal era fundamentalmente
retórica, heredada de la Antigüedad e impregnada por la
perspectiva cristiana. El espacio expresivo de la literatura,
destinado en gran medida a persuadir, describe la naturaleza
a través de metáforas sensoriales y corporales que siempre la
vinculan al ser humano. En ese marco, el artículo analiza la
sensorialidad de los vergeles en dos obras, pertenecientes al
Lidia Raquel Miranda / Gerardo Fabián Rodríguez

género milagroso pero de distintas centurias, que recuperan el


paisaje retórico del vergel pero lo connotan como un paisaje
La sensorialidad de los vergeles medievales

sensorial: los Milagros de Nuestra Señora, de Gonzalo de


Berceo, del siglo XIII, y Los Milagros de Guadalupe, del siglo XV.
Palabras clave: sensorialidad; vergel; edad media; paisaje;
retórica.

Abstract: Although medieval people knew and lived in


contact with nature, the allusions in the literary texts do
not go into great detail about it. This is due to the fact that
the appreciation of the vegetal world was fundamentally
rhetorical, inherited from Antiquity and impregnated by the
Christian perspective. The expressive space of literature,
largely intended to persuade, describes nature through sensory
and bodily metaphors that always link it to the human being.
Within this framework, the article analyses the sensoriality of
orchards in two works, belonging to the miraculous genre but
from different times, which recover the rhetorical landscape of
the orchard but connote it as a sensory landscape: Milagros de
Nuestra Señora, written in the 13th century by Gonzalo de Berceo,
Artigo

and Los Milagros de Guadalupe, composed in the 15th century.


Keywords: sensoriality; orchad; middle ages; landscape;
rhetoric.

Resumo: Apesar de o homem medieval conhecer e viver em

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contato com a natureza, as alusões nos textos literários não


entram em muitos detalhes sobre ela. Isso se deve ao fato de
que sua apreciação do mundo vegetal era fundamentalmente
retórica, herdada da Antiguidade e impregnada pela perspectiva
cristã. O espaço expressivo da literatura, em grande parte
destinado à persuasão, descreve a natureza por meio de
metáforas sensoriais e corporais que sempre a vinculam ao ser
humano. Neste âmbito, o artigo analisa a sensorialidade dos
pomares em duas obras, pertencentes ao género milagroso
mas de diferentes centúrias, que recuperam a paisagem
retórica do pomar mas conotam-no como paisagem sensorial:
Milagros de Nuestra Señora escrito por Gonzalo de Berceo
no século XIII, e Los Milagros de Guadalupe, do século XV.
Lidia Raquel Miranda / Gerardo Fabián Rodríguez

Palavras-chave: sensorialidade; pomar; idade média;


La sensorialidad de los vergeles medievales

paisagem; retórica.
Artigo

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Punto de partida

Cuando en el siglo XXI pensamos en nuestras relaciones con la naturaleza,


sea cual fuera el paisaje que elijamos, las evidencias de una catástrofe ecológica
nos impulsan a evaluar las percepciones que tenemos de ella y las modalidades
de contacto que establecemos con el resto de los seres vivos. Pero cuando los
medievalistas de este nuevo milenio volvemos la mirada a la naturaleza no
podemos sustraernos al interrogante acerca de cómo eran esos vínculos en la
Edad Media, en qué han cambiado y qué nos han legado, en términos históricos
y estéticos.
Como muchos autores y obras de esa época sostienen, la naturaleza se
concebía como la capacidad de dar vida pero, fundamentalmente, como lo
que ha sido creado y existe por voluntad divina. Isidoro, por ejemplo, en sus
Lidia Raquel Miranda / Gerardo Fabián Rodríguez

Etimologías, explica que:


La sensorialidad de los vergeles medievales

1. La naturaleza debe su nombre a ser ella la que hace nacer las


cosas. Es, por lo tanto, lo que tiene capacidad para engendrar y
dar vida. Hay quienes han afirmado que la naturaleza es Dios, por
quien todo ha sido creado y existe. 2. Genus (linaje) es palabra
derivada de gignere (engendrar), nombre que tiene su origen en
la tierra, que todo lo engendra, ya que, en griego, “tierra” se dice
gé. 3. Vida debe su denominación al “vigor”, o tal vez al hecho
de tener fuerza (vis) para nacer y crecer. De ahí decimos que los
árboles tienen vida porque producen frutos y crecen. 4. Llamamos
así al hombre (homo), porque está hecho de humus (barro), tal y
como se dice en el Génesis (2,7): “Y creó Dios al hombre del barro
de la tierra” […]. (Etim. XI, 1)3 (Oroz Reta; Casquero, 2004, p. 845).

Los medievales tenían sin duda esa apreciación de la naturaleza, heredada


en parte de la Antigüedad e impregnada por la perspectiva cristiana, lo que nos
habilita a preguntar qué sentido y qué imagen tenía la naturaleza para ellos,
cómo la interpretaban fuera de asignarle el valor estrictamente utilitario que
sugerían las Sagradas Escrituras.
Algunas respuestas podemos encontrar en la literatura, porque el mundo
Artigo

natural se presenta de diferentes maneras según el género, la disposición


textual y la expresividad de los poetas. Pero en general, y pese a que el hombre
de la Edad Media conocía y vivía en contacto con la naturaleza, las alusiones en
los textos no se explayan grandemente sobre ella. ¿Por qué?

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Consideramos que eso se debe a que la naturaleza es de manera primordial


un elemento retórico. No es esta una afirmación original, pues Curtius (1995)
y Zumthor (1994), entre otros estudiosos, se han dedicado a explicarlo
acabadamente: la idea de la naturaleza en la Edad Media está altamente
codificada desde el punto de vista discursivo y alegórico, es decir que responde
a modelos textuales previos. Al menos en lo relativo a las élites intelectuales, el
sistema cultural de la civilización latina del Bajo Imperio sobrevivió hasta los
siglos XIII y XIV, nutriéndose de los mismos temas, las mismas comparaciones
y los mismos lugares comunes sobre el ambiente y los seres naturales. Pero
también es retórica porque la imagen de la naturaleza está destinada a persuadir,
que es la finalidad principal de la elocuencia. De ello se deduce que el centro de
la representación de la naturaleza es siempre, en definitiva, la persona humana:
ella es el modelo y es el destinatario de toda alusión al mundo natural. De
Lidia Raquel Miranda / Gerardo Fabián Rodríguez

ahí que el espacio expresivo de la literatura, a través de metáforas sensoriales


La sensorialidad de los vergeles medievales

y corporales, sirva para describir una naturaleza que se comprende siempre


vinculada, sino subsumida, al ser humano: en pocas palabras, no contiene la
naturaleza al hombre sino que la naturaleza está contenida en él.
En función de esta idea inicial, analizaremos en este artículo cómo se
construye en algunos textos medievales el paisaje natural, especialmente el del
mundo vegetal en los vergeles, a través de modelos sensoriales y corporales,
reconocibles en el discurso en marcas habilitadas por recursos como metáforas,
alegorías y analogías para sostener una concepción ideológica de la persona
humana.
Las marcas sensoriales constituyen indicios textuales –por lo tanto,
generalmente son implícitos– de las percepciones que poseen especial
significación para la configuración de una cultura. Dichos índices habilitan
el reconocimiento del conjunto de experiencias sensoriales y su valoración,
es decir del modelo sensorial, que identifica a un grupo social y le permite
interpretar el mundo según una cosmovisión particular (Rodríguez, 2012).
En cuanto a las figuras retóricas mencionadas, no deben entenderse como
meros elementos expresivos aislados, sino como manifestaciones discursivas
que fundan una enunciación metafórica que dispone un modelo sensorial
Artigo

y corporal, al deslizar en los textos percepciones y conceptos con un gran


dinamismo semántico que no requiere necesariamente la interacción inmediata
ni el encuentro físico real entre los sujetos (Smith, 2007). Un discurso de estas
características conlleva “una experiencia, un modo de vivir y de estar-en-el-
mundo que lo precede y pide ser dicho” (Ricoeur, 2010, p. 35) y, al entrañar un

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matiz performativo, se concibe como significado4 ya que la dinámica entre la


estructuración y el contenido textual da cuenta de un ‘mundo’ que debe ser
comprendido.
Trataremos en estas páginas, entonces, de interpretar ese mundo vegetal de
los vergeles literarios medievales y de reconocer la configuración sensorial que
los define.

El vergel medieval y la cuestión terminológica

A lo largo de este trabajo emplearemos los vocablos en español ‘vergel’,


‘jardín’, ‘huerto’, ´huerta’ y, en ocasiones, el latino hortus con un valor semántico
equivalente, no solo para asegurar la cohesión léxica de la exposición, sino
también porque la representación literaria del vergel no suele hacer distinciones
Lidia Raquel Miranda / Gerardo Fabián Rodríguez

en tanto refiere a un paisaje retórico.


La sensorialidad de los vergeles medievales

Sin embargo, es oportuno recordar que las distintas palabras que remiten a
nuestro referente no poseen las mismas connotaciones y, en general, aluden a
tipos de jardines diferentes: ´jardín’ y ‘vergel’ tienen un significado semejante
ya que sugieren el placer que ofrece el lugar, mientras que ‘huerto’ y ‘huerta’
destacan el sentido más bien productivo que tenía como espacio de cultivo
(Aguilar Perdomo, 2010). Hortus, por su parte, indica un recinto, una propiedad
cerrada por un muro, que por concurrencia con el germánico *gard asimiló el
significado de jardín, según Ernout y Meillet en el Dell (1951, entrada “hortus,
-i”).
A partir del siglo XI el paisaje medieval se fue transformando debido al
aumento regular e importante de la población, el que llegaría a un desarrollo
prominente del espacio urbano en el siglo XIII, con la consecuente demanda
de alimentación que daría lugar a la creación de numerosos jardines. Ya fuera
en un contexto urbano o rural, el vergel se instaló en todas las regiones, y
sufrió, con el paso del tiempo, los cambios ocasionados por los movimientos
poblacionales.
Según Gesbert (2003), la comparación terminológica en diferentes obras
literarias francesas del siglo XI al XIV demuestra la polisemia y gran diversidad
Artigo

de términos empleados para designar el jardín en la Edad Media. La nota común


a todos ellos es que se trataba de un lugar estructurado y planificado, cuyas
descripciones permanecen cercanas a las que daban los enciclopedistas de la
época, como Alberto Magno y Pietro de Crescenzi, entre otros, y recordaban
con frecuencia a los alegóricos jardines bíblicos. También revelan los registros

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que el vocabulario del jardín tiene por lo menos dos sentidos: el de un espacio
placentero, lugar propicio para las escenas de amor en la literatura cortés o en
los relatos caballerescos, y el de otro utilitario, como el del jardín medicinal o
el del vergel de árboles frutales.
La palabra castellana ‘jardín’ es un galicismo5 que, aunque profundamente
arraigado en la literatura francesa y frecuente en los clásicos hispánicos,
como El Quijote, es de uso tardío en lengua castellana y no se registra en la
Edad Media, período en que se empleaba con el mismo sentido el término de
origen latino ‘huerto’ y el de ‘vergel’. Este último manifiesta también las dos
acepciones, placentero y productivo, y suma la de mixto, es decir de placer y
utilitario a la vez.
Según Sánchez González de Herrero (2015), la voz ‘vergel’ procede del
occitano antiguo vergier, del latín vulgar viridiarium, que sustituyó al clásico
Lidia Raquel Miranda / Gerardo Fabián Rodríguez

viridarium (‘arboleda’, derivado de ‘verde’, del latín viridis). Entre las distintas
La sensorialidad de los vergeles medievales

acepciones de la palabra en la Edad Media está la de “huerto con árboles


frutales”, atestiguada en Berceo y otras fuentes. En el DCECH, entrada “verde”,
se recoge la de “mancha verdeante en medio del robledal”, ajustada a su
conocida aparición en el Cantar de Mio Cid:

Entrados son los ifantes al rrobredo de Corpes,


los montes son altos, las rramas puian con las núes;
¡e las bestias fieras que andan aderredor!
Fallaron un vergel con una linpia fuent, 2700
mandan ficar la tienda, ifantes de Carrión, (Cantar tercero)
(Michael, 1981, p. 255)

Montaner Frutos (2007) señala que la descripción del robledo conjuga dos
paisajes tipificados, el del bosque salvaje y deshabitado, ámbito de lo terrible y
dramático, y el del vergel, claro grato y acogedor, propicio para las escenas de
amor. En los siglos XII y XIII el desierto era concebido, gracias a la tradición
bíblica, como una soledad áspera y atestada de reptiles y fieras amenazantes.
Pero también la noción se completaba con otras topografías, como la de la
montaña y, especialmente, la del bosque, que representa una abundancia pero
Artigo

terrorífica, asociada con el caos y la vida salvaje. Más que el bosque real, en esa
época en remisión por la consolidación de la cultura urbana, la referencia es
un lugar opresivo por el volumen vegetal y la presencia de animales feroces,
aunque generoso en caza y frutos (Zumthor, 1994).

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‘Vergel’ (vergier) es el término del jardín más abundantemente utilizado


en la literatura francesa, desde el siglo XI en la Chanson de Roland, pasando
por la lírica trovadoresca, el Roman de Renart y el Roman de Tebas del siglo
XII, de acuerdo con el rastreo de Gesbert (2003), lo que demuestra un empleo
generalizado de la palabra en distintos géneros. Para numerosos autores de la
Edad Media, la equivalencia entre jardín y vergel no ofrece ninguna duda.
Las formas latinas equivalentes, viridarium o virgultum –que en latín
clásico significan un conjunto de ramas, plantas jóvenes o enramada6 –, o sus
traducciones ‘viridario’ y ‘virgulto’, respectivamente, también aparecen en los
textos. Sostiene Bartolomé Ánglico en De Proprietatibus Rerum, enciclopedia
castellana del siglo XIII, en la versión denominada PBN (1494), que:

Virgulto o pimpollar es un lugar donde nacen muchos pimpollos


Lidia Raquel Miranda / Gerardo Fabián Rodríguez

de árboles [...]. Virgulto algunas vezes es dicho vergel que es


un lugar verde y deleitoso de muchas plantas y yervas verdes
La sensorialidad de los vergeles medievales

constituido segund ya de suso havemos dello hablado (PBN fol.


249r. apud Sánchez González De Herrero, 2015, p. 39).

La forma virectum es más rara y parece señalar un área verde o césped.


Viridarium y virgultum pueden traducirse por el usual e impreciso ‘jardín’, ya sea
de placer o cultivado con árboles frutales, porque en ausencia de indicaciones
no es posible determinar el tipo de jardín de que se trata.
El vergel como lugar plantado de árboles frutales también era conocido con
los nombres latinos de ortum cum arboribus, pomerium o pomeriola: los dos
últimos denotan a los que estaban constituidos principalmente de manzanos,
muy apreciados en la época medieval por sus frutos muy consumidos, aunque
también alojaban otros árboles. En cuanto a arboretum, vocablo igualmente
latino, designaba un lugar poblado de árboles pero no necesariamente frutales.
Como vemos hasta aquí, la diferencia entre el vergel y el bosque radica
principalmente en que uno es un lugar construido y el otro agreste, lo que
instaura en la imaginación medieval la polarización entre la organización
apacible de una “interioridad topográfica” (Zumthor, 1994, p. 58) y el caos
aterrador del exterior.
Artigo

Si ‘jardín’ o ‘vergel’ pueden cubrir varios tipos de jardín, no ocurre lo mismo


con ‘prado’, término proveniente del latino pratellum, la pradera o el pequeño
prado que se convirtió en el patio cubierto de hierba de un claustro o el césped
florido de un castillo. Se trata de un jardín de placer caracterizado por la

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presencia de pasto y pudo también haber designado las hierbas que servían
para acompañar el jardín de placer, es decir que formaba parte de un espacio
ajardinado mayor. Al igual que el vergel, el prado era un lugar privilegiado para
los encuentros amorosos y para la intimidad (Gesbert, 2003).
El prado más emblemático de la literatura castellana es, sin duda, el de la
Introducción de los Milagros de Nuestra Señora de Gonzalo de Berceo, del que
hablaremos más adelante, descripto por el verdor de su hierba no segada, las
fragancias de sus flores y la frescura que procuraba una fuente de agua (cc. 2
y 3). También menciona el narrador los árboles frutales que abundaban allí:
“Milgranos e figueras, peros e mazanedas” (c. 4b, Bolaño e Isla, 1997, p. 2), que
ofrecen frutos sazonados de todo tipo y sombra para el ideal descanso. Igual de
elocuente es la pintura del prado de la Razón de amor con los denuestos del agua
y del vino, que también lo presenta a través del color y fragancia de las flores
Lidia Raquel Miranda / Gerardo Fabián Rodríguez

(“y es la saluia, y sson [l]as Rosas, / y el liryo e las ui[ol]as”, vv. 24, Barra Jover,
La sensorialidad de los vergeles medievales

1989, p. 127), las hierbas y el agua refrescante de la fuente. Ambos se presentan


como un tapiz de hierba rociado de pequeñas flores.7
Dichas descripciones apuntan a la imagen del paraíso terrenal, lugar ideal,
deleitable y perfecto por excelencia, denotado en las enciclopedias castellanas
comúnmente por el término ‘huerto’, más escasamente ‘huerta’, sitio cercado
en el que se plantaban árboles frutales para recreo, y algunas veces hortalizas
y legumbres para consumo doméstico.8
El término ‘floresta’ también es usa en la literatura, especialmente a partir
del siglo XIV y en los libros de caballería. Tomado del francés antiguo forest,
designa una selva o monte tupido y frondoso o un lugar ameno poblado de
árboles (Sánchez González De Herrero, 2015). Al igual que el vergel y el huerto,
la floresta tiene una connotación positiva.
Ya fuera por fines prácticos o estéticos, los espacios ajardinados se
caracterizaban por la clausura. En efecto, debían estar cerrados y protegidos
de los intrusos, para evitar cualquier daño intencional; pero también debían
estar resguardados de las variaciones climáticas, en particular el viento, y de
los desgastes provocados por los animales, tanto domésticos como salvajes.
El cerco podía ser una valla de ramas entrelazadas, una cobertura viva, una
Artigo

empalizada de tirantes de madera o, más sólida, hecha en piedra o en ladrillo.


Pero además del aspecto funcional, los cercados cumplían un rol espiritual,
porque ellos habilitaban el paso a los momentos de intimidad del hombre con
Dios y con la tierra (Deluz, 2014), como en el jardín del Edén, intimidad que
se perdió cuando el hombre fue expulsado del paraído: el cerramiento no era

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solamente una protección de evantuales robos o intrusos, sino que remitía


a los jardines bíblicos, al paraíso perdido y también a la virginidad de María
(Miranda; Rodríguez, 2022a). “La clôture est un des éléments clés des jardins
de la chrétienité: elle isole le jardin de la campagne, la nature sauvage de la
nature cultivée” (Gesbert, 2003, p. 398).
En la literatura se mencionan con frecuencia los muros del vergel, incluso
los altos árboles que los sobrepasan, por ejemplo en La Celestina, texto del siglo
XV en el que tienen un sentido metafórico referido al cuerpo femenino y a las
relaciones entre los amantes:

‘conténtate con venir mañana a esta hora por las paredes de mi


huerto’ (Melibea, en el Auto XII de la Comedia)
‘Quebrantó con escalas las paredes de tu huerto; quebrantó mi
Lidia Raquel Miranda / Gerardo Fabián Rodríguez

propósito’ (Melibea, en el Auto XV de la Comedia)


‘los sombrosos árboles del huerto se sequen con vuestra vista’
La sensorialidad de los vergeles medievales

(Elicia en el Auto XV de la Tragicomedia)


‘jamás noche ha faltado sin ser nuestro huerto escalado como
fortaleza’ (Melibea, en el Auto XVI de la Tragicomedia)9 (Botta,
2007, p. 157-182).

En el interior del jardín, el espacio estaba delimitado en rectángulos o


cuadrados de tierra cultivada, rodeados de pasillos por los que se podía pasear
o trabajar la tierra, desmalezar sin caminar sobre las plantaciones y cosechar
con facilidad.
Sea cual fuera la función del jardín y su medio de pertenencia (rural, urbano,
aristocrático, campesino), las descripciones textuales dan cuenta del orden que
parece haber reinado entre los plantíos. Ciertamente, en la Edad Media, el jardín
era un espacio organizado y estructurado, no se plantaban anárquicamente los
vegetales, sino que la disposición era rigurosa: en el vergel, como en la retórica,
se hace gala del arte y la ciencia de ordenar las partes para que resulte un
producto agradable y sugestivo tanto para quien lo ‘cultiva’ como para quien lo
‘consume’.
Tratándose de un espacio destinado al placer, el terreno del vergel era vasto.
Artigo

Las plantaciones de árboles frutales lindaban los cuadros que contenían las
distintas categorías de plantas (aromáticas, flores, medicinales). En los huertos
las especies se organizaban en camas de flores, a veces bordeadas de planchas
de madera o de enrejados bajos. Se supone que pequeños pasillos separaban
los grupos de plantaciones y permitían a los jardineros mantener los cultivos

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y facilitar las recolecciones. Podemos apreciar esa disposición en la recreación


del vergel medieval llevada a cabo por Los amigos del Museo Cluny, de París, y
otras instituciones (Ilustración 1 y 2):

Ilustración 1 - Plano del jardín medieval del Museo Cluny, París (Francia):
(1) Bosque del unicornio. (2) Pequeño claro. (3) Claro de los niños. (4) Huerto
doméstico. (5) Medicinas simples. (6) Patio. (7) Jardín celestial. (8) Jardín de amor.
(9) Camino encajonado. (10) Tapiz de milflores. (11) Patio del museo. Digitalizado
por los autores
Lidia Raquel Miranda / Gerardo Fabián Rodríguez
La sensorialidad de los vergeles medievales

Fonte: Museo Cluny de la Edad Media (folleto digitalizado por los autores).

Ilustración 2 - Imagen del huerto doméstico (4), medicinas simples (5) y los
pasillos que separan los cuadros sembrados en el recreado vergel medieval del Museo
Cluny, París (Francia)
Artigo

Fonte: Foto de los autores.

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El agua era un elemento esencial para el jardín, pues sin ella no había
siembra ni cosecha posibles. Por ello, y por su sentido simbólico, al vergel
medieval siempre se lo asocia con una fuente o un pozo. Diversas técnicas se
utilizaban para conservar un punto de agua o disponer de agua corriente en el
jardín, tales como cambiar un curso de agua, secar un pantano o instalar largas
canalizaciones. Especialmente los monasterios y las abadías emprendieron
tales empresas hidráulicas para domesticar el agua y a la vez dotar de una
estética placentera a los vergeles de sus claustros (Gesbert, 2003).
En los textos literarios, las fuentes sugieren más un objeto de regocijo que
un sistema que permite la irrigación, aun cuando servían efectivamente para
el riego de ciertas hierbas medicinales y flores sensibles a la estación cálida.
Quedan pocos testimonios de estos surtidores, porque no son descriptos con
realismo en la literatura: podían ser un cuenco octogonal, rodeado de escalones,
Lidia Raquel Miranda / Gerardo Fabián Rodríguez

una columna rematada con una estatua o una pila con pedestal (Bazin, 1988),
La sensorialidad de los vergeles medievales

como en el ejemplo de la Ilustración 3.

Ilustración 3 - Antiguo convento de San Vicente, hoy Museo Arqueológico de


Asturias, en Oviedo, España. Detalle de la fuente del jardín del claustro (siglo XIV)
Artigo

Fonte: Foto de los autores.

La fuente, como la cerca, estaba presente en todos los jardines de


reminiscencias bíblicas, porque refería metafóricamente a los cuatro ríos del
paraíso. El agua debía fluir y ser pura, por oposición a las aguas estancadas

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del pecado. Asimismo, en estos vergeles solía haber un prado ornamentado de


árboles, como ya hemos indicado, cuyos terrones de hierbas eran renovados de
tiempo en tiempo para que se mantuvieran siempre verdes.
La composición floral del vergel era un conjunto de todo lo que podía deleitar
los sentidos: rosas, gladiolos, flores de lis, margaritas y violetas aportaban
colorido y perfume al espacio y sugerían suavidad, delicadeza y salud. Como
las flores, los árboles eran infaltables: entre los frutales más nombrados en las
fuentes literarias figuran el aliso, el cerezo, el castaño, la higuera, el granado,
el nogal, el avellano, el olivo, el duraznero, el peral y el manzano, especies que
concedían sombra y frescura además de frutos. Entre los árboles no frutales del
jardín aparecen en los textos el ébano, el laurel, el ciprés, el olmo, el álamo, el
fresno, el roble y muchos más. Pero además de su fertilidad, la apelación a los
sentidos gracias a sus aromas, sabores, colores y tersura inspiraban una idea de
Lidia Raquel Miranda / Gerardo Fabián Rodríguez

belleza, esperanza y delectación.


La sensorialidad de los vergeles medievales

Si bien no hay casi datos que indiquen la presencia de otros arbustos en los
jardines, se mencionan espinos y, especialmente, la vid, ya que además de útil
era un vegetal estéticamente atractivo y sugerente: en invierno, muy pálida y
fea pero en verano, muy verde y de buen olor, en especial al florecer. La viña
siempre ofrecía un gran deleite a los sentidos: a la vista por su verdor; al olfato,
por sus cientos de aromas; al gusto, por su exquisito sabor y al tacto, por su
humedad (Sodigné-Costes, 2014).
Las hierbas aromáticas y medicinales, como albahaca, hisopo, mejorana,
ajedrea, menta y otras semejantes, tenían también un lugar de preferencia en
el vergel de placer, al proporcionar diversidad de perfumes y colores y dar idea
de abundancia.
Espacio cerrado, composición floral de muy variado tipo, árboles, arbustos y,
en especial, agua: con esos elementos la orden jerónima concibe el simbolismo
del hortus conclusus. Se trata de un locus amoenus que vincula lo desconocido
y amenazante del paisaje silvestre (exterior) con un escenario de naturaleza
deseada y controlada (interior), como puede verse tanto en la fotografía
del claustro mudejár (Ilustración 4), como en los propios textos de autores
jerónimos. Gabriel de Talavera, fraile de la orden en el siglo XVI, en su Historia
Artigo

de Nuestra Señora de Guadalupe consagrada, publicada en Toledo en 1597,


se refiere al contraste en estos términos, al describir el emplazamiento del
monasterio, que resumen el paisaje de todo vergel:

Puesto entre valles amenos, de mucha frescura, en sitio alto y vistoso,

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mirando al cielo que lo recrea, y por su temple, vistas, árboles y frescas


aguas, viene a ser esta granja en verano y espacialmente en lo recio del
estío, un retrato de aquel terreno y deleytoso jardín, morada venturosa
de los padres primeros. (Talavera, 1597, fº 12 r).

Ilustración 4 - Monasterio de Guadalupe, España. Detalle del jardín del claustro


mudéjar (siglo XVI)
Lidia Raquel Miranda / Gerardo Fabián Rodríguez
La sensorialidad de los vergeles medievales

Fonte: Juan Carlos (2022).

Paisaje retórico y paisaje sensorial

Sin descripciones precisas o realistas en la literatura, ya que era común


la presentación de un marco simplificado y los elementos más importantes,
generalmente simbólicos o con un rol en la escena, podemos suponer que
las palabras ‘vergel’ y ‘prado’ resultaban suficientes para recrear a los ojos de
los lectores una realidad vegetal considerada evidente. Se trata de un locus
amoenus, es decir un tema retórico-poético central de las descripciones de
la naturaleza desde la época del Imperio romano hasta el siglo XVI, motivo
de carácter técnico e intelectual que prosperó en una serie de tópicos de la
naturaleza bien delimitados, como los presentados en el acápite anterior.
Ciertamente, el vergel era un espacio construido en el entorno telúrico pero
Artigo

ratificado en el discurso gracias a una operación controlada de los sentidos:


como paisaje estaba asociado a marcas visuales relacionadas con el color
(verde) o la forma (de vara), también con marcas olfativas (que propiciaban el
ambiente deleitoso) y gustativas (dada su vinculación con las plantas y hierbas

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conocidas por sus diferentes usos culinarios o medicinales). Incluso los textos
señalan las diferencias entre invierno y verano en las sensorialidades propias
de este tipo de espacio, así como los distintos estados de ánimo que promovían,
por lo general positivos, como la propia palabra ‘deleite’ sugiere.
Si lo entendemos desde esta perspectiva, el vergel medieval es un lugar
ficticio, un espacio creado y, como tal, remite necesariamente al sujeto que
le dio vida. Por ello, si bien las obras literarias no carecen de alusiones a la
vegetación, a la tierra, incluso a la fauna y a los efectos de la luz y el agua,
las imágenes suelen permanecer en el plano de los estereotipos pues la visión
de la naturaleza incitaba a ensalzar a Dios y su creación antes que a procurar
un juicio estético sobre el mundo. Ello hace posible una forma particular de
sensibilidad que da cuenta de la emoción experimentada por el hombre del
Medioevo, “una sensación cinestésica que acompaña la conciencia feliz de
Lidia Raquel Miranda / Gerardo Fabián Rodríguez

ocupar un lugar sobre la tierra” (Zumthor, 1994, p. 88), que puede entenderse a
La sensorialidad de los vergeles medievales

partir del concepto de ‘paisaje sensorial’.


La noción de paisaje sensorial se desarrolló de manera reciente, para dar
lugar en el campo histórico a la importancia que tienen los sentidos, de manera
individual, es decir con la participación de un sentido, o de manera holística,
para incidir sobre el medio, ya sea para transformarlo, ya para interpretarlo
o para valorarlo. Los estudios en marcha recuperan la intersensorialidad de
paisajes diferentes, desde un espacio reducido en una ciudad, por ejemplo, una
plaza, una estación de tren, una instalación portuaria determinada a un amplio
espacio, que puede coincidir con la ciudad misma, la red ferroviaria o el puerto
en su conjunto. Estos estudios tensionan dichos ámbitos dado que tratan de
reconstruir las sensorialidades colectivas a partir de expresiones sensoriales
individuales y subjetivas.
También puede el paisaje sensorial referirse a un ámbito privado o público,
a un evento que, por lo ordinario, se repite o que resulta extraordinario y
por ello efímero, como puede ser la llegada de una autoridad o los festejos
por la obtención de un triunfo deportivo. O bien puede prestar atención a
los cambios sonoros, visuales, olfativos, gustativos y hápticos generados por
transformaciones que, como la revolución industrial, demuestran la novedad de
Artigo

su presencia con una fuerza sensorial notable (Rodríguez, 2012; Mehl; Péaud,
2019; Rodríguez; Coronado Scwhindt, 2016).
Finalmente, los paisajes sensoriales que trascienden en el tiempo y
en el espacio se relacionan con los fenómenos de patrimonialización y
memorialización, que resultan muy relevantes para el estudio histórico de la

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Edad Media. En el primer caso, las marcas de productos asociadas a un lugar


podrían ser el ejemplo más conocido actualmente. En el segundo, sobresalen
las marcas sensoriales y emocionales que se vinculan con un período histórico
determinado, convirtiéndose en memoria, por ejemplo el sufrimiento en los
campos de concentración del nazismo. Por ello, los museos, en la actualidad,
constituyen los lugares de encuentro entre patrimonio, memoria y sentidos por
excelencia (Lejavitzer; Ruz, 2020).
Para poder analizar las fuentes desde la perspectiva historiográfica de
la Historia sensorial, Coronado Schwindt y Rodríguez (2017) propusieron el
concepto de “marcas sensoriales”, al que aludimos en el primer apartado de
este artículo, que resulta útil y eficaz para reconocer y analizar los indicios
significativos e ideológicos diseminados en las fuentes medievales. Dicho
concepto tiene su fundamento en la noción de soundmarks formulada por
Lidia Raquel Miranda / Gerardo Fabián Rodríguez

Schafer (1969), con la cual se identifica a todos aquellos sonidos que revisten
La sensorialidad de los vergeles medievales

importancia para una sociedad, de acuerdo al valor simbólico y afectivo que


poseen.
Los textos pueden albergar diversos registros sensoriales, conscientes o
inconscientes, propios del plano vivencial como del retórico, pero siempre es
el investigador el que les otorga una significación intelectual en el marco del
contexto analizado, y solo por ello se convierten en marcas sensoriales.
En atención a estos planteamientos, y para acotar los alcances de nuestro
estudio, seguidamente nos ocuparemos de recuperar la sensorialidad de los
vergeles en dos obras, pertenecientes al género milagroso pero de distintas
centurias, que recuperan el paisaje retórico del vergel pero lo connotan como
un paisaje sensorial: los Milagros de Nuestra Señora, de Gonzalo de Berceo, del
siglo XIII, y Los Milagros de Guadalupe, del siglo XV.

Vergeles y milagros

Según García López (2008), los poetas del siglo XIII se valieron de las
composiciones en cuaderna vía para acercar, en lengua vernácula, los temas
de la cultura alta latina a los receptores legos. La cita de las fuentes bíblicas,
Artigo

recurso muy habitual en sus obras, contribuía a darles mayor autoridad y


verosimilitud. De ese modo escribió Gonzalo de Berceo, como puede notarse
en los Milagros de Nuestra Señora, texto realizado bajo la advocación de San
Pedro (c. 17 cd) y San Pablo (c. 905).
Los Milagros están constituidos por una Introducción de naturaleza doctrinal

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(cc. 1-46), en la que la alegoría unifica y permite comprender el repertorio de


milagros de la Virgen que continúa (cc. 46-911), segunda parte esta de carácter
narrativo en la que las referencias a la Escritura aparecen en las historias y las
plegarias de los personajes.
Muchas son las clasificaciones que se han hecho de los milagros de María
que narra Berceo pero, pese a la profusión de historias y circunstancias de cada
relato, la parte narrativa de los Milagros se desarrolla como un todo unitario
en torno de la Virgen, protagonista más del hecho milagroso que del episodio
narrado: son milagros románicos, es decir historias en las que el beneficiario
del milagro es un simple pecador, pero pasivo respecto de la acción primordial,
que ejecuta la propia Virgen.10
García Álvarez (2016), que estudia la organización retórica de los Milagros
de Nuestra Señora, afirma que el patrón compositivo de cada milagro y de
Lidia Raquel Miranda / Gerardo Fabián Rodríguez

la obra entera responde a las cinco divisiones del discurso clásico –exordio
La sensorialidad de los vergeles medievales

(introducción), presentación, elaboración (situación agonística), recapitulación


(consecuencia) y peroración (glorificación de la Virgen)–. También se ocupa del
género al que corresponden los milagros, que para él es la homilía demostrativa,
en la que la doctrina de la salvación y la intercesión de María es central y vincula
el tiempo humano con la salvación y la alabanza eterna expresada en el epílogo.
La Introducción de los Milagros de Nuestra Señora presenta un locus amoenus,
donde descansa el peregrino, que se identifica con el paraíso (c. 14 ab).11 La
fuente de ese prado (c. 3) se divide en cuatro brazos (c. 21), que remiten a los
cuatro ríos del paraíso, y los árboles que producen frutos saludables y vistosos
(c. 4) representan la abundancia y la felicidad anterior al pecado original. En ese
contexto, la imagen de la Virgen María es la matriz de redención del pecado de
Adán y Eva mediante su intermediación entre Cristo y los hombres (Miranda,
2011).
Casi todas las imágenes vegetales de este prólogo aluden a María: el prado,
a la Virgen misma; el verdor, a su virginidad; la sombra de los árboles, a las
oraciones de la Virgen; los árboles, a sus milagros; y las flores, a los nombres de
María. Con estas relaciones, Berceo propone que la Virgen resulta indispensable
en el camino de la salvación para llegar al paraíso: es la intercesora para que
Artigo

los fieles devotos logren la gracia y puedan librarse de los diversos conflictos y
problemas que sufren en los milagros narrados (Lacarra; Cacho Blecua, 2012).
Los elementos tópicos de ese paisaje brindan un cuadro del crecimiento
fecundo a través del prado verde, de hierba no cortada y colmado de flores,
que permite el reposo y la protección del romero que se despoja de sus ropas

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para recostarse bajo la sombra (c. 6). Los olores fragantes y la fuente de agua
límpida, expuestos de la c. 21 a las c. 25, le transmiten al personaje narrador
una satisfacción, en el cuerpo y en el alma, que lo impulsa hacia la virtud. La
enumeración de árboles con sus frutos dulces –granados, higueras, perales
y manzanos–, todos de arraigado simbolismo clásico y bíblico, posibilitan
la vinculación del espacio arbolado con la Virgen mediante una alegoría
claramente femenina, pues ella ha entregado a la humanidad el mejor fruto
(Miranda, 2011).12 La pintura de los árboles olorosos, verdes y exuberantes,
cargados de aves canoras, completa la asociación con el Edén pues el paraíso se
revela como melodía celestial (Delumeau, 2005), como se lee en las siguientes
coplas de los Milagros de Nuestra Señora:

Odí sonos de aves dulces e modulados:


Lidia Raquel Miranda / Gerardo Fabián Rodríguez

Nunqua udieron omnes órganos más temprados,


Nin que formar pudiessen sones más acordados. (7 b-d)
La sensorialidad de los vergeles medievales

Unas tenien la quinta, e las otras dovlaban,


Otras tenien el punto, errar no las dexavan,
Al posar, al mover todas se esperaban,
Aves torpes nin roncas hi non se acostaban. (8 a-d)

Non serie organista nin serie vilero,


Nin giga, nin salterio, nin mano de rotero,
Nin estrument, nin lengua, nin tan claro vocero,
Cuyo canto valiese con esto un dinero. (9 a-d) (Bolaño e Isla,
1997, p. 2).

La descripción se concentra en dos aspectos de la naturaleza sensible de


las aves: por un lado, el sentido del gusto, causa de que los trinos sean dulces
y, por otro, la capacidad vocal, que los hace articulados y bien modulados. Las
coplas subrayan una relación entre dulcis, suavis y la persuasión –ya existente
desde el punto de vista etimológico dado que (per)suadeo (persuadir) significa
‘endulzar’– y, por lo tanto, entre el paisaje sonoro y el cuadro retórico del
jardín. De forma metafórica, lo dulce aquí excede las referencias alimenticias,
Artigo

remitiendo a sensaciones bellas, sin hacer distinción de sentidos.13


Ambos atributos sensoriales se vinculan con la boca y, por lo tanto, con
el lenguaje: de esta manera adquiere sentido que estas aves alegoricen a los
apologetas de la Virgen (“Estos son Agustint, Gregorio, otros tales, / Quantos
que escrivieron los sos fechos reales”, 26 c-d). Como correlato, aparece el

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sentido del oído, asociado al narrador que escucha tan agradables sonidos. El
torrente del discurso también está connotado en la imagen del agua presente
en el vergel, que es igualmente sonora y desbordante.
La dimensión sensorial de las aves incluye también el movimiento (c. 8), que
implica la participación del cuerpo, pues estos animales cantan y se mueven –
ejecutan sus sones– a través de la propia corporalidad. Pero la marca sensorial
no remite a cualquier cuerpo sino al modelo corporal del pájaro, que es ligero
como para elevarse hacia el cielo y desplazarse en el medio aéreo, que resulta
inaccesible para el hombre. El ave se manifiesta en el paisaje del vergel como
un objeto transicional (Jevtíc, 2018), ya que pertenece a la tierra y al cielo, su
desplazamiento es ascendente y, cuando se detiene, lo hace sobre las elevadas
y verdes ramas de los árboles, indicio también de una disposición hacia lo alto.
Esta representación de las aves permite asimilarlos a los sentidos porque
Lidia Raquel Miranda / Gerardo Fabián Rodríguez

ocupan una posición intermedia entre lo exterior y lo interior: los pájaros están
La sensorialidad de los vergeles medievales

en el huerto cerrado pero pueden salir de él y volar en altura y los sentidos


actúan como entradas al alma mediante las emociones que provoca el gozo
paradisíaco: alegría, calma y esperanza (Miranda; Rodríguez, 2022a).
En este vergel reinan la felicidad, la paz y la concordia, producto de la
conjunción entre el júbilo cristiano y la belleza del mundo natural, plasmados
en las imágenes coloridas (visuales), fragantes (florales) y acústicas (melódicas):

Semeia esti prado egual de paraiso,


En qui Dios tan grand gracia, tan grand bendición miso:
El que crió tal cosa, maestro fue anviso:
Omne que hi morasse, ninqua perdrie le viso. (14 a-d) (Bolaño e
Isla, 1997, p. 4).

La c 4 enumera los árboles frutales que crecen en el jardín con sus dulces
frutos –granados, higueras, perales y manzanos– y descarta la existencia en
él de frutos podridos y frutos verdes. El granado fue consagrado por Alberto
Magno, en Alabanzas a María, como una figura de Cristo y también de la
Virgen (Delumeau, 2005), lo que permitió cristianizar la significación pagana
del granado que remitía a la primavera, a la fecundidad y a la inmortalidad.
Artigo

La presencia del árbol de granadas en el prado de Berceo puede representar


también a la Iglesia, ya que cada fruta esconde innumerables granos, como
sostenía San Jerónimo.
La higuera es considerada como el más fértil de todos los árboles; por ello

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refiere a la Virgen, que es más fecunda en virtudes y buenas obras que el resto
de los santos, y porque, aunque alumbró a un único hijo, con Él se convirtió
en la madre de todo el linaje humano. Esta planta también puede simbolizar
a Cristo, dado que, al final de su vida terrenal, fue colocado negro y sin los
colores de la vida –como los frutos de la higuera al madurar– en el sepulcro.
El peral lleno de frutos, por su parte, encarna la abundancia material14 y la
madurez espiritual. Su flor blanca y efímera es emblema de la belleza, pero
también de la condición mortal de la vida humana, con lo cual su presencia en
el vergel consolida el valor de tránsito que tiene la peregrinación descripta por
Berceo en la Introducción de los Milagros.
El manzano y la manzana son indicación del amor místico en el Cantar de
los cantares (2, 3-5),15 ya que el esposo ofrece sombra y alimento a la esposa y
de sus flores forma los gustosos frutos. La idea de María como esposa y a la vez
Lidia Raquel Miranda / Gerardo Fabián Rodríguez

madre de Jesucristo “subyace en la figura de este árbol que, además, representa


La sensorialidad de los vergeles medievales

la humildad de un Dios humanado porque la esposa lo prefiere a pesar de


que hay muchos otros frutos que son más exquisitos que la manzana, que es
simplemente bella y pura” (Miranda, 2011, p. 33).
Los árboles nombrados en la c. 4 se distinguen por sus frutos dulces y
comestibles y por la sombra, o sea la protección que ofrecen. El lazo de este
espacio arbolado con la Virgen compone un fuerte emblema femenino, pues
María ha concebido el mejor fruto (“El fructo de los arbores era dulz e sabrido,”
15a) y prodiga seguridad a quien se coloca bajo su cuidado (“Si don Adam
oviesse de tal fructo comido, / de tan mala manera no serie decibido, / nin
tomarien tal danno Eva ni so marido.” 15 b-d) (Bolaño e Isla, 1997, p. 4).
De la estrofa 7 a la 15 se revela el placer y la felicidad que genera el hortus
deliciarum (jardín de las delicias), analogía del paraíso que alberga el júbilo
cristiano y el encanto del mundo natural. Esta perfección del prado de los
Milagros de Nuestra Señora es un claro ejemplo de la evolución del simbolismo
mariano y la alusión a la virginidad de María mediante las imágenes sensoriales
del jardín cerrado, que ensalzan a la mujer, el amor y la maternidad (Zumthor,
1994). De hecho, el paraíso alegórico de Berceo significa un ámbito universal de
salvación, refugio para los devotos que identifican en la Virgen el socorro y la
Artigo

gracia de Jesús. Y justamente de eso se tratan los milagros que se narran luego
de la Introducción: del poder mediador de la Virgen en los 25 casos concretos
en que los pecadores acuden a su auxilio para obtener la salvación de sus almas.
Los Milagros de Guadalupe se componen de nueve códices en total, que
abarcan desde principios del siglo XV hasta fines del siglo XVIII. El Códice

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1 contiene el primer milagro, fechado en 1407, en tanto el Códice 9 recoge


milagros correspondientes a los años 1704 a 1722. Los cinco primeros códigos
son de pergamino, aunque el Códice 4 tiene algunos folios de papel, mientras
que los Códices 6 y 7 están escritos parte en pergamino, parte en papel y los
dos últimos enteramente en papel. Los textos incluidos en dicho corpus se
encuentran inéditos en su mayor parte.
En función de los testimonios brindados por los peregrinos que llegaban
a Guadalupe y recogidos por los monjes en el corpus, se pueden establecer
familias de milagros. A partir de los estudios de Ramiro Chico (1984a, 1984b,
1984c, 1985, 1986, 1988), Crémoux (2001), Rodríguez (2011) y Díaz Tena
(2017a, 2017b), es posible realizar una tipología que dé cuenta de los milagros
contenidos en los códices y clasificarlos en: 1) milagros relativos a cautiverio
o esclavitud; 2) milagros referidos a peligros y zozobras en el mar; 3) milagros
Lidia Raquel Miranda / Gerardo Fabián Rodríguez

referidos a sanaciones y curaciones de diversa índole (constituyen el bloque


La sensorialidad de los vergeles medievales

más importe: muchos enfermos encuentran alivio a sus males, otros sanan
completamente); 4) milagros referidos a las calamidades públicas (pestilencias,
sequías); y 5) milagros relativos a la protección, asistencia y liberación de
diversos males y peligros (bajo este epígrafe se incluyen resurrecciones,
salvamentos de accidentes, milagros relacionados con la justicia –divina y
humana–, salvamentos en combate, exorcismos, salvamentos de diversas
agresiones –físicas, sexuales–, milagros de orden espiritual –conversiones– y
obtención de gracias en relación a la procreación).
En dos relatos contenidos en el Códice 1, transcriptos por Díaz Tena,
identificados como Milagro CXXIII y Milagro CLXXXII, encontramos que la
intervención mariana salva a los devotos de una muerte segura.
En el primero de ellos, fechado en 1492, “un honbre fue librado de ser afogado
en un pozo”. Cuenta que Miguel cayó en un pozo profundo, andando de noche
por un campo desconocido, que estaba descuidado y lleno de piedras, por lo que
no podía sujetarse para subir. Al hacer cualquier esfuezo, todo se desmoronaba
(Díaz Tena, 2017a, p. 457-458).
El segundo, cuya fecha corresponde al año 1496, relata cómo un hombre fue
librado de “morir despeñado”. Se trata de Alonso, vecino de Cuenca, que un día
Artigo

de recorrida por su huerta, tropezó con las piedras, enganchó sus pies, rodó
por un estrecho y no sintió fuerzas para levantarse por el dolor de espaldas que
tenía (Díaz Tena, 2017a, p. 630-632).
Tanto Miguel como Alonso se encomiendan a la Virgen de Guadalupe para
que los socorriese de sus infortunios, prometiendo ir en romería a su santuario

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en Villuercas. En estos relatos, el espacio salvaje de un campo desconocido,


pedregoso y resbaladizo se contrapone al vergel que representa la Virgen:
espacio figurado de protección y salvación, la intervención mariana actúa como
paisaje de acogida para estos cautivos que, en el exterior, pueden perder todo,
empezando por sus propias vidas.
En el Milagro CXLVII se narra la huida de un cautivo de tierra de moros. En
su partida, durante la noche, llega a una sierra donde consigue alimentarse en
una viña “cogiendo figos de una figuera” (Díaz Tena, 2017a, p. 523). El milagro
se produce luego de orar con devoción a la Virgen y quedarse dormido, pues a
la mañana siguiente se halló en tierra cristiana y a salvo. La alusión al espacio
vegetal es, explícitamente, muy escueta, pero muy significativa para el tema
que nos ocupa. Ciertamente, la contraposición entre el ámbito moro y el mundo
cristiano se plantea en términos biológicos16, ya que el primero se analoga con
Lidia Raquel Miranda / Gerardo Fabián Rodríguez

la sierra, espacio agreste y montañoso donde crecen algunos árboles pero de


La sensorialidad de los vergeles medievales

poca altura17, y el segundo con este lugar de cultivo encarnado por dos frutos
emblemáticos: la vid (no mencionada, pero referida de manera implícita en
el concepto de viña) y el higo, ambos de clara significación cristológica. El
higo es dulce y suave y el cristiano solo puede comerlo cuando ha escapado
de su cautiverio e ingresado al terreno plantado: tanto el higo como la vid son
símbolos de la abundancia comestible que lo aguarda en el mundo cristiano,
en el seno de la Iglesia. También esta escena de la viña puede interpretarse
desde el punto de vista metafórico y sensorial, ya que el color rojo del vino –
sangre de la vid– simboliza visualmente la vida y el conocimiento y el alimento
físico, desde el sentido del gusto, alude a la nutrición cultural y espiritual que
promueve la devoción mariana.
En otra documentación conservada en Guadalupe es posible encontrar,
también, los valores simbólicos y sensoriales del vergel registrados en el texto
señalado de Gabriel de Talavera y en Los Milagros de Guadalupe. Se trata del
Cantoral 34 del scriptorium monacal, conservado en el Archivo del Monasterio
(Ilustración 5), que contiene una letra capital O que ilumina a la Virgen
resguardada por ángeles en actitud intelectual, la cual podría entenderse como
un indicio de la actividad de copia de libros y otros tipos de documentos que se
Artigo

realizaba en el monasterio (Mogollón Cano Cortés, 1994-1995). María aparece


dentro de un hortus conclusus y, en un segundo plano, pueden verse varias
edificaciones y entre ellas un jardín más pequeño cercado, circular, unido al
monasterio por una pasarela. Dentro de ese vergel hay dos monjes que, con el
hábito jerónimo, realizan sus labores (Fuentes Ortíz, 2016), escena que podría

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ser indicativa de la existencia real de ese tipo de jardín en la zona guadalupense.


Pero, más allá de eso, la imagen es en sí misma una síntesis visual, una écfrasis,
de las condiciones simbólicas más relevantes del vergel ideal para la comunidad
cristiana.
Desde el punto de vista sensorial, la intensidad de los colores (rojo, azul
y verde, principalmente) se concentra en torno a la Virgen, lo que señala su
centralidad en la escena y la ubicación del sentido de la vista en el tope de la
jerarquía de los sentidos. Esos colores constituyen una evocación a lo vegetal
del espacio ajardinado: verde para el pasto, en una alusión quizá más realista,
y rojo y azul para la Virgen, cuyo manto retiene los colores de las principales
flores, en una perspectiva alegórica.
El visualismo además se aprecia en la figura de los ángeles, que leen –y tal
vez entonan– los pasajes de un libro, y en la mirada de la Madre y el Niño
Lidia Raquel Miranda / Gerardo Fabián Rodríguez

dirigida hacia ellos. El vergel con los monjes es más reducido, lo que instaura
La sensorialidad de los vergeles medievales

una relación también jerárquica –y también visual– entre la Virgen y el


monasterio: ambos son un espacio cerrado cristiano, de protección y vida, pero
en un orden de preeminencia, primero está la Virgen y segundo el convento
jerónimo.

Ilustración 5 - Letra capital O del Cantoral 34 del scriptorium monacal,


conservado en el Archivo del Monasterio de Guadalupe, España
Artigo

Fonte: Juan Carlos (2022).

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Reflexiones finales

La consideración del espacio como experiencia vivida y como productor de


significado ha demostrado que un lugar es social y existencialmente aprehendido
pero también que es instaurado y conservado por la tradición literaria. En esa
perspectiva, toda conceptualización sobre el espacio se halla intrincadamente
ligada a la intervención humana, ya sea en las distintas prácticas como en
la teoría y en el discurso, y el destinatario de las imágenes que condensan la
noción siempre es el propio ser humano.
Muchos escritores y artistas se han valido del tema de los jardines, el paisaje
y las plantas para educar a sus receptores, para introducir debates políticos o
culturales o para mostrar momentos de desarrollo o transformación intelectual
o espiritual. Por ello, los vergeles, como ambientes relevantes de la Edad Media,
Lidia Raquel Miranda / Gerardo Fabián Rodríguez

además de lugares reales constituyen espacios textuales y sensoriales que deben


La sensorialidad de los vergeles medievales

ser leídos e interpretados, dado que los elementos del mundo orgánico que los
componen son a menudo utilizados para representar determinados modos de
sociabilidad y modelos estéticos e ideológicos establecidos.
Luego de este repaso que hemos realizado por las características sensoriales
que manifiestan los jardines medievales, anclados en una realidad viviente
pero, fundamentalmente, en un reservorio de figuraciones simbólicas, podemos
concluir que el significado de las descripciones del vergel reside en imágenes
sencillas y conocidas para el receptor pero que se convierten casi en objetos del
mundo, dado que las metáforas del paisaje y sus elementos se hacen ‘más reales’
que sus referentes: el vergel medieval es un espacio natural “metafóricamente
verdadero” (Ricoeur, 1980, p. 308). En efecto, el campo alegórico que instaura
la representación sensorial de los vergeles se pone al servicio de la función
poética y la memoria, con lo cual los textos se alejan del discurso meramente
descriptivo para suscitar un intento ‘realista’ en el marco de la mímesis,
esencialmente construida en torno al milagro mariano, y no de la referencia a
los jardines empíricos. En pocas palabras, los vergeles de los textos comentados
crean un mundo natural particular, cuyo centro significante es la persona y sus
valores cristianos, expresados por un modelo vivencial fecundo que toma sus
Artigo

connotaciones de un paisaje retórico y sensorial bien reconocible.

Referencias

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1

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CONICET, Universidad Nacional de Mar del Plata.


2

3
1. Natura dicta ab eo quod nasci aliquid faciat. Gignendi enim et faciendi potens est.
Hanc quidam Deum esse dixerunt, a quo omnia creata sunt et existunt. 2. Genus a
gignendo dictum, cui dirivatum nomen a terra, ex qua omnia gignuntur; γη enim Graece
terra dicitur. 3. Vita dicta propter vigorem, vel quod vim teneat nascendi atque crescendi.
Vnde et arbores vitam habere dicuntur, quia gignuntur et crescunt. 4. Homo dictus, quia
ex humo est factus, sicut [et] in Genesi dicitur (2,7) : ‘Et creavit Deus hominem de humo
terrae’ […]. Citamos según la edición bilingüe latín-español de Oroz Reta y Marcos
Casquero (2004).
4
El significado de un término o un enunciado tiene validez en el contexto de un
determinado sistema semiótico y todo sistema, en espacial el lingüístico, se organiza
para permitir la significación (Eco, 1994). En consecuencia, el significado constituye “un
nivel simbólico en que los signos remiten en general a las instancias del discurso o, si se
quiere, en el que proporcionan instrucciones previas a la ubicación de aquellas instancias
en un discurso efectivo” (Lozano; Peña-Marín; Abril, 1993, p. 199, énfasis de los autores).
Contrariamente, el sentido es una noción interna a los enunciados o textos, que aparece
Lidia Raquel Miranda / Gerardo Fabián Rodríguez

merced a referencias puntuales a instancias efectivas de la circunstancia comunicativa,


o sea remite a sujetos y coordenadas espaciotemporales precisos e identificables en el
La sensorialidad de los vergeles medievales

discurso proferido (Miranda, 2022).


5
Se trata de un diminutivo romance del francés antiguo jart, procedente del fráncico
*gard, con significado de ‘cercado’ o ‘seto’, según Corominas y Pascual en el DCECH
(1984, p. 496, entrada “jardín”).
6
De estas características da cuenta De Proprietatibus Rerum, en su versión más antigua,
PBL, cuando define: “Vergel es lugar onde nacen muchas varas; segunt Isidro, es llamado
el ramo que nace del tronco del árbor, mas verga es aquella que nace e sale de los ramos.
Iten el vergel en el invierno aborrece, mas en el verano aplaze porque entonce florece; e
corto, otra vez nace e se enramece; e cuando nace, arriédranlo de la tierra; e a las vezes
es llamado lugar verde e deleitoso cercado de plantas e de yerbas” (PBL fol. 191r. apud
Sánchez González De Herrero, 2015, p. 39).
7
Las citas textuales de la obra berceana de este párrafo, y las que siguen más adelante,
corresponden a la edición de Bolaño e Isla (1997), y la de la Razón de amor a la de Barra
Jover (1989).
8
La diferencia entre ‘huerto’ y ‘huerta’ es dimensional: el DCECH (1984) considera a
‘huerta’ un aumentativo-colectivo común a los tres dialectos romances hispánicos y a
la lengua de Oc.
9
La representación del vergel en La Celestina es un tema complejo porque las
denominaciones y alusiones, a través de los términos ‘huerto’ y ‘huerta’, no son
equivalentes en la versión de la Comedia y en la de la Tragicomedia. Asimismo, los
lugares a que hacen referencia no son siempre los mismos, aunque los argumentistas de
Artigo

algunas ediciones los identifiquen bajo el vocablo de ‘huerto’ (cf. Botta, 2007, texto de
donde hemos extraído las citas de la obra).
10
Las perspectivas de clasificación de los milagros pueden encontrarse en González
(2011), artículo en el que también se discute acerca del género más apropiado para
definir el relato del milagro.

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Según Curtius (1995), a partir del siglo XII, el motivo clásico del locus amoenus fue un
11

recurso empleado con frecuencia para describir el paraíso terrenal.


12
La analogía entre María y el mundo vegetal aparece también en la c. 39, una de las
que presenta los nombres de la Virgen: “Es dicha vid, es uva, almendra, malgranada /
Que de granos de graçia está toda calcada; / Oliva, cedro, bálsamo, palma bien aiumada,
/ Piértega en que sovo la serpiente alzada”. Además de los sentidos simbólicos, estas
menciones ofrecen muchos matices sensoriales al sugerir formas, colores y tamaños
diversos y sabores, olores y tersuras bien característicos.
En la literatura latina ya se registraba dulcis para indicar toda fuente de placer (Asiss
13

González, 2021).
La forma de la pera, que va ensanchándose hacia abajo, se asemeja a un cuerpo femenino
14

de ancha pelvis y, por lo tanto, simboliza la fecundidad.


15
“–Como el manzano entre los árboles silvestres, / así mi amado entre los mozos. / A
su sombra apetecida estoy sentada, / y su fruto me es dulce al paladar. / Me ha llevado a
Lidia Raquel Miranda / Gerardo Fabián Rodríguez

la bodega, / y el pendón que enarbola sobre mí es Amor. / Confortadme con pasteles de


pasas, / con manzanas reanimadme, / que enferma estoy de amor” (Ubieta, 1981).
La sensorialidad de los vergeles medievales

16
Además del vegetal, en este relato el mundo animal es utilizado también desde la
óptica simbólica para representar la protección y el auxilio que significa María para
los cristianos fugitivos, tema que hemos desarrollado en otra ocasión (cf. Miranda;
Rodríguez, 2022b).
La sierra se ve como una “línea de montañas”, significado que posee en los textos
17

medievales de todas las épocas en la zona circummediterránea. La denominación es


metafórica ya que sugiere “el aspecto dentado de las cordilleras” (Corominas; Pascual,
1984, p. 242-243, entrada “sierra”).
Artigo

Recebido em 26/02/2023 - Aprovado em 03/07/2023


Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.216-246, jul-dez. 2023 } 246
DOI: 10.5433/1984-3356.2023v16n32p247-280

Revisitando o “paganismo” da
Inglaterra Anglo-Saxônica:
(re)considerações a partir da
análise da evidência histórica

Revisiting the “paganism” of


Anglo-Saxon England:
(re)considerations based on
the analysis of the historical
evidence

Elton O. S. Medeiros1

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Resumo: Desde os tempos de Émile Durkheim que o problema


de analisar formas de manifestações religiosas dentro de
culturas específicas tem sido o foco de pesquisadores no
campo da História e Antropologia. Antes de Durkheim, nomes
como Max Weber, Herbert Spencer, J. G. Frazer e Bronislaw
Malinowski já haviam abordado a questão, tentando separar
o universo do sagrado e do profano. Este artigo irá abordar,
(re)considerações a partir da análise da evidência histórica

dentro do viés historiográfico, o contexto cultural e religioso


Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:

da Inglaterra na Alta Idade Média e como o uso da ideia


tradicional de “paganismo” é inadequada na atualidade, o
que leva a necessidade de um conhecimento mais profundo
das fontes e do período da história inglesa. Com o objetivo
de compreender o que chamamos de “o universo espiritual da
Inglaterra Anglo-Saxônica”. Para tanto, teremos como ponto
principal de análise do artigo o artefato conhecido como a
Franks Casket e de que forma ele nos auxilia a compreender
o universo da cultura e das mentalidades do período.
Palavras-chave: Inglaterra; paganismo; Franks Casket;
sociedade; religião.
Elton O. S. Medeiros

Abstract: Since the times of Émile Durkheim, the problem


of analyzing religious manifestations within specific cultures
has been the focus of researchers in the field of History and
Anthropology. Before Durkheim, names like Max Weber, Herbert
Spencer, J. G. Frazer and Bronislaw Malinowski had already
addressed that issue, aspiring to separate the universes of the
sacred and the profane. This article aims to address, within the
area of the historiographical debate, the cultural and religious
context of England in the Early Middle Ages and how the use
of the traditional idea of “paganism” is inadequate nowadays,
Artigo

leading to the need for a deeper knowledge of the sources and


respective periods of time in the English history. Intending to
comprehend what we are going to name “the spiritual universe
of Anglo-Saxon England”, the main point of our analysis is
the artifact known as the Franks Casket and how it helps us

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understand the universe of culture and mentalities of the period.


Keywords: England; paganism; Franks Casket; society; religion.
(re)considerações a partir da análise da evidência histórica
Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:
Elton O. S. Medeiros
Artigo

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“The one place Gods inarguably exist is in our minds


where they are real beyond refute,
in all their grandeur and monstrosity”,

Alan Moore, From Hell

Introdução

Neste artigo, pretendemos tratar do que diz respeito ao espaço geográfico


entendido como a Inglaterra dos séculos V – X, entre os grupos sociais que
(re)considerações a partir da análise da evidência histórica

podemos denominar hegemonicamente como os anglos e saxões ou simplesmente


Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:

anglo-saxões, como consagrado pela historiografia.2 A existência de trabalhos


voltados às práticas religiosas ou espirituais dos anglos e saxões dentro do
recorte histórico proposto não é algo inédito no campo de estudos sobre o
período. Entretanto, apesar de uma área já consolidada internacionalmente,
em solo brasileiro o assunto ainda carece de maiores e melhores abordagens.
Há menos de vinte anos foi publicado na Revista Brathair o primeiro artigo
científico no Brasil a falar sobre o período da Inglaterra Anglo-Saxônica
(séculos V – XI): “O paganismo anglo-saxão: uma síntese crítica” de autoria do
professor Ciro Flamarion Cardoso (Cardoso, 2004, p. 19–35). Na época o tema
era praticamente desconhecido dentro da academia brasileira, se restringindo –
além do artigo do professor – a apenas duas pesquisas de mestrado que estavam
Elton O. S. Medeiros

ainda em desenvolvimento.3 O trabalho de Cardoso despertou muita atenção


naquele momento por sua metodologia e originalidade. Entretanto, devido
justamente ao ineditismo do tema e o conhecimento ainda incipiente do autor
(e de seus leitores) a respeito do período histórico, o artigo apresentava certas
deficiências que passaram desapercebidas. O que contribuiu por perpetuar
problemas e vícios historiográficos a respeito do estudo da religiosidade e
religião pré-cristã e o advento do cristianismo entre anglos e saxões.4
Cardoso optou por um referencial metodológico em que trata a ideia de
religião – qualquer religião – como expressões da ideologia social. O autor
esclarece logo de início trabalhar com o conceito de ideologia desenvolvido por
Antonio Gramsci. Ainda que reconheça que tal opção não seja a mais adequada
Artigo

para o assunto ao qual está se debruçando no artigo,5 mesmo assim, segue a


utilizá-lo (Cardoso, 2004, p. 21). A partir disso, o autor demonstra em seu texto
estar mais preocupado em estabelecer a legitimidade da metodologia do que se
apropriar e analisar as evidências históricas do período em seu contexto.

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Em seu artigo, o autor tenta utilizar evidências oriundas da Cultura Material


e fontes escritas, com especial atenção à Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum
de Beda, o Venerável. Escolhas pertinentes à proposta temática do trabalho.
Todavia, Cardoso faz um uso equivocado das evidências históricas ao submetê-
las à metodologia escolhida e carecendo de uma melhor reflexão e familiaridade
com as fontes. O autor, por exemplo, utiliza a Historia Ecclesiastica de Beda
como um relato fiel do cenário histórico da Inglaterra pré-cristã. Ignorando o
fato de que Beda não a concebeu como um tratado histórico ou antropológico
sobre as crenças dos povos pré-cristãos da Bretanha e sim uma ode à história
(espiritual) da Igreja católica, atrelada à concepção de uma gênese identitária
(re)considerações a partir da análise da evidência histórica
Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:

de anglos e saxões sob a fé cristã – como uma única Igreja e um povo unido sob
um único deus.6
Dois exemplos claros dos problemas que o artigo de Cardoso traz, a partir
da abordagem da obra de Beda, podem ser encontrados quando ele utiliza
da passagem da carta de Gregório Magno aos missionários na Inglaterra –
orientando-os a destruir apenas os ídolos dos pagãos, mas preservar e santificar
os templos para que fossem usados para a fé cristã – e o relato sobre o sacerdote
pagão de nome Coifi na corte do rei Edwin da Nortúmbria (BEDA, livro II,
capítulo 13).7 Este último episódio envolve a aceitação do rei à nova fé, o que
levará também o próprio Coifi a abandonar os ídolos e profanar o templo dos
antigos deuses, desrespeitando normas de conduta social e tabus da fé pagã.
A partir disso, Cardoso argumenta que “as referências a sacerdotes são pouco
Elton O. S. Medeiros

numerosas, mas indubitáveis” (Cardoso, 2004, p. 30).


A única menção de maior complexidade de um sacerdote e sua conversão,
profanando seu próprio templo, é essa de Beda sobre Coifi, e é muito mais
plausível compreender tal passagem como fruto da imaginação do autor a
partir das narrativas de templos do Oriente Médio bíblico e da antiga idolatria
romana, tomando como modelo a História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia.
Portanto, a ideia de “sacerdotes”, “templos” ou “rituais pagãos” que Beda
apresenta em sua obra deveria ser encarada, na verdade, como um topos
literário cristão (Niles, 2013, p. 309)8 e não como descrições factuais de uma
realidade histórica. A Historia Ecclesiastica de Beda pode ser interpretada como
Artigo

uma construção literária que contém a visão do autor a respeito daquilo que
ele entendia por práticas pagãs – pelo viés da tradição cristã mediterrânea – e
as adaptou ao contexto dos anglos e saxões, como um contraponto à exaltação
do presente cristão de seu tempo. E não evidências de uma realidade sobre o
cotidiano religioso e espiritual na Bretanha anterior ao século VII.

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Em outro momento do artigo, Cardoso novamente volta a cometer os mesmos


equívocos de interpretação por desconhecer as fontes e o contexto no qual elas
foram produzidas. Por exemplo, ao tentar explorar a figura do deus Woden.
Existem evidências toponímicas de locais na Inglaterra que estão vinculadas a
tal divindade e a outras do universo pré-cristão anglo-saxônico e elementos da
Cultura Material (Yorke, 2015, p. 167 – 175). Cardoso, entretanto, volta a usar
do texto da Historia Ecclesiastica de Beda (livro IV, capítulo 22), em um episódio
em que um prisioneiro teria poderes sobrenaturais devido ao uso de literas
solutorias (“letras salvadoras”) para escapar de correntes ou cordas. No artigo,
o autor diz que isso seria uma evidência clara do uso de “runas” e vinculado ao
(re)considerações a partir da análise da evidência histórica
Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:

deus Woden. Entretanto, ao ler o texto de Beda, em absolutamente nenhum


momento a narrativa faz qualquer menção a tal divindade pagã ou a runas,
estando claro que se trata de uma construção fabulosa9 atrelada a práticas
folclóricas cristãs (Le Goff, 1980, p. 207 – 219) – o que nos remete novamente
ao topos literário mencionado anteriormente. O vínculo da fonte histórica com
o “paganismo” voltado ao deus Woden e o uso mágico de runas fica por conta
da subjetividade e criatividade de Cardoso.
Ainda sobre o deus Woden, o artigo cita o poema o Encantamento das Nove
Ervas. No poema está presente o nome de Woden – ainda que desnaturalizado
de seu contexto pré-cristão – ao lado de outros elementos lendários do
passado de fundo germânico e da imagem de Cristo crucificado, como parte do
encantamento para a cura e prevenção de venenos. Cardoso (2004, p. 28, grifo
Elton O. S. Medeiros

nosso) diz: “Os “nove ramos gloriosos” são galhinhos marcados individualmente
com runas que designam, pelas iniciais, os nomes das ervas encantadas”. O grande
problema é que nada disso que Cardoso afirma está presente na evidência do
texto do Encantamento das Nove Ervas (Medeiros, 2015a, p. 313 – 363) – logo,
pode-se supor, Cardoso não leu ou não compreendeu a fonte histórica que cita.10
É evidente que os problemas e equívocos do artigo “O paganismo anglo-
saxão: uma síntese crítica” – desde sua inadequação metodológica até as
interpretações e afirmações (muitas vezes categóricas) – são decorrentes do
fato de que seu autor não era familiar e não analisou as evidências históricas
elencadas com o devido rigor e conhecimento necessário. É possível dizer que o
Artigo

“paganismo anglo-saxão”, presente no título e apresentado ao longo do artigo


de 2004, só existiu na construção textual de Cardoso, sem qualquer sustentação
na evidência histórica e na produção historiográfica sobre o tema.
O propósito dessa rápida análise crítica do artigo de Ciro Flamarion
Cardoso é no intuito de alertar sobre os problemas que uma pesquisa voltada

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ao estudo da Inglaterra Anglo-Saxônica (séculos V – XI) pode apresentar ao


subutilizar ou ignorar as evidências históricas em favor de metodologias e
conceitos específicos, para o desenvolvimento de argumentações puramente
teóricas. E, o principal, reforçar que ao se trabalhar com tal período histórico e
a temática voltada às práticas religiosas e espirituais dos povos desse contexto,
não podemos ignorar ou pouco se aprofundar nos elementos socioculturais,
políticos e outros que constituem aquilo que Jean-Pierre Vernant chamaria,
ao se referir ao período da Grécia Clássica, de “o universo espiritual da pólis”
(Vernant, 2002, p. 53 – 72) – e que iremos nos apropriar e chamaremos aqui de
“o universo espiritual da Inglaterra Anglo-Saxônica”.
(re)considerações a partir da análise da evidência histórica
Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:

O intuito deste artigo é demonstrar o papel fundamental das evidências


históricas para a pesquisa e análise do período abordado. E, principalmente,
no que se refere aos elementos vinculados ao campo das mentalidades, com
destaque ao campo dos elementos religiosos e das espiritualidades.
É também objetivo deste trabalho apontar as inconsistências que a dualidade
metodológica entre uma tradição “pagã” versus uma cristã pode apresentar
dentro de uma análise das fontes do período da Inglaterra alto medieval. O que
reforça a importância das evidências históricas da época como ponto de partida
primordial para o desenvolvimento de qualquer pesquisa dentro desse campo
de estudos.
Desta forma, a partir de elementos da Cultura Material, em especial do artefato
conhecido como a Franks Casket, será desenvolvida uma reflexão a respeito do
Elton O. S. Medeiros

que podemos entender sobre a espiritualidade do período da Alta Idade Média


inglesa. E demonstrar como elementos que remetem a uma tradição anterior à
chegada do cristianismo à ilha da Bretanha não são incompatíveis com imagens
da tradição cristã que estão presentes na mesma evidência histórica – não como
um equívoco de seu criador, mas como um exemplo do universo espiritual da
Inglaterra Anglo-Saxônica.

O que o “paganismo” tem a ver com a Inglaterra Anglo-Saxônica?

A produção historiográfica do século XXI, em suas mais diversas áreas de


Artigo

pesquisa e recortes cronológicos, vem sendo marcada por um processo de


desconstrução dos discursos das histórias nacionais que ainda remontam ao
século XIX. É no Oitocentos que o construto histórico chamado “paganismo”
surgiu e viveu sua era de ouro. O século no qual pesquisadores falaram com
confiança sobre as crenças pagãs dos povos do norte-europeu, ditos germânicos,

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sua devoção ao ideal de um destino implacável (wyrd, em inglês antigo) e ao


éthos heroico frente aos desafios do mundo terreno, supostamente demonstrado
nas sagas nórdicas e na literatura heroica em inglês antigo.
A conceito de “paganismo” no século XIX foi uma apropriação derivada
de autores do princípio da era cristã. Em especial, do período missionário no
norte da Europa. Em tais obras existe uma relação de alteridade com povos que
viviam alheios à fé cristã, caracterizados como detentores de um outro tipo de
fé – que, por exclusão, é interpretada como uma outra religião, mas avessa à
religião centrada em Cristo (Niles, 2013, p. 305). A partir disso, o “paganismo”
entre os povos norte europeus, como caracterizado pelo Oitocentos, é um
(re)considerações a partir da análise da evidência histórica
Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:

construto histórico que tenta definir um cenário ideal (de fundo cristão) e não
uma realidade histórica. Em suma, o conceito de “paganismo” concebido pelo
século XIX (e ainda presente em trabalhos do século XX e XXI) nunca existiu.
Ao buscarmos pelas evidências históricas, o cenário que encontraremos
é mais desafiador para uma definição simples sobre o que era o cenário pré-
cristão do norte-europeu. No contexto da Inglaterra Anglo-Saxônica, há uma
evidência linguística importante. Assim como em outros idiomas germânicos
do período, em inglês antigo inexiste um termo específico para “religião” (Niles,
2013, p. 305). Um dos termos utilizado será æfestnes ou eaufæstnys. Entretanto,
essas palavras não remetem ao mesmo significado do latim religio, mas à ideia
de “devoção”, “obediência” e “retidão”, atrelado a algo ou alguém – termos
apropriados do universo semântico sociopolítico do âmbito administrativo de
Elton O. S. Medeiros

aplicação e manutenção das leis. Da mesma forma, temos gesetednes, usado para
se referir a “religião”, mas atrelado à ideia de cerimonial legal, ordenamento
(legislativo ou político).
O que chama a atenção é a assimilação de terminologias do vernáculo e
a adaptação para o léxico de práticas da fé cristã. Ao mesmo tempo que há
a ausência de termos específicos ao contexto das práticas ditas “pagãs”. Por
que em inglês antigo não há evidência de termos equivalentes voltados à fé
pré-cristã? Talvez o que existia não correspondia exatamente aos mesmos
ideais e conceitos de religião como no cristianismo? A evidência do léxico
vernáculo aponta o vínculo da religião cristã e suas práticas ao universo
Artigo

político-administrativo dos anglo-saxões e não simplesmente a uma mudança


de crenças religiosas.
Outros exemplos de palavras nativas que serão assimiladas ao novo contexto
cristão é o termo para o ritual da missa: husel (em sua origem, “sacrifício”,
“oferenda”) e para excomunhão weargian (“aquele que foi expulso”, a pessoa

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que é banida do seio da sociedade). Para “altar” ou “local de adoração” eles já


existia o termo weofod, mas para os sacerdotes cristãos será necessário unir
weofod à palavra þegn11 (“aquele que serve”). O que dará origem ao termo
weofodþegn (“aquele que serve ao altar”), i.e., “padres”.
Não existe um termo específico para templos em inglês antigo. Palavras
como ealh (“residência”, “moradia”) e hearh (termo associado a locais, não
edificações, de adoração “pagã” ou ídolos) por vezes serão assimilados, mas não
com a mesma conotação do contexto cristão para templum. A palavra específica
em inglês antigo para o templo cristão, cirice, por exemplo, será uma derivação
do grego kuriakón (Niles, 2013, p. 310).
(re)considerações a partir da análise da evidência histórica
Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:

A partir do que foi exposto, é possível inferir que, antes dos tempos cristãos, os
anglos e saxões realizavam sacrifícios e oferendas em locais especiais e mesmo
em altares. Porém, tais práticas não estavam vinculadas a edificações como
templos e nem a sacerdotes – uma vez que há a ausência semântica de palavras
no inglês antigo para tais definições. O que acabaria sendo implementado
apenas com a chegada dos missionários do continente. E a ideia de um grupo
sacerdotal institucionalizado entendido como algo importante e próximo ao
poder régio para a administração das leis e estabelecimento da ordem.12 O
mundo pré-cristão entre anglos e saxões seria, portanto, mais complexo do que
o construto do “paganismo” apresenta.
Uma hipótese de cenário seria o seguinte: de um lado, a preponderância de
práticas populares, manifestas por uma espiritualidade vinculada a fórmulas
Elton O. S. Medeiros

mágicas medicinais, bençãos de campos e de animais de criação (como o


Encantamento das Nove Ervas, citado anteriormente). Por outro lado, práticas
espirituais realizadas em um nível mais aristocrático e atrelado à moralidade
social, à administração pública e a líderes locais e à figura régia. Com a chegada
do cristianismo, a nova fé irá se vincular a essa espiritualidade aristocrática
como uma força auxiliar fundamental de regramento moral político e legislativo
dos reinos que se consolidavam (Blair, 2005; Chaney, 1970; Mayr-Harting, 1972;
Niles, 2013, p. 305 – 321; Yorke, 1990, 2015, p. 167 – 175). A existência de uma
“religião não-cristã” organizada e de uma personagem como o sacerdote Coifi
– um tipo de “sumo sacerdote” de um “clero pagão” na Nortúmbria do século
Artigo

VII – como sugerido por Beda em sua Historia Ecclesiastica, se torna muito
improvável à luz das evidências históricas trabalhadas até agora.

Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.247-280, jul-dez. 2023 } 255


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Religião e religiosidade na Inglaterra alto-medieval: uma proposta


conceitual

A princípio, para o tema ao qual se dedica este artigo, tomemos a definição


de religião de Clifford Geertz. Segundo o antropólogo, uma religião é (1) um
sistema de símbolos que agem para (2) estabelecer sentimentos e motivações
poderosas, penetrantes e duradouras nos homens ao (3) formular conceitos de
uma ordem geral da existência e (4) revestindo estes conceitos com tamanha
aura de factualidade que (5) os sentimentos e motivações pareçam realistas de
uma forma única (Geertz, 1973, p. 90).13
(re)considerações a partir da análise da evidência histórica
Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:

O primeiro ponto importante a ressaltar dentro dessa definição é que ela


se aplica à prática religiosa e suas diversas manifestações, tanto no registro
escrito quanto em práticas físico-materiais e rituais pessoais do indivíduo e da
sociedade como um todo. Segundo Geertz, a religião é um sistema de símbolos,
que por sua vez podem ser definidos como qualquer ato, objeto, evento,
qualidade ou relação que sirva como um veículo, um canalizador, para se chegar
a um conceito; sendo o conceito o “significado” do símbolo (Geertz, 1973, p.
91). Desta forma, este sistema simbólico (a religião) e o sistema cultural que o
adota possuiriam uma relação intrínseca ao dar significado à realidade social
do grupo, e ambos se amoldam e se adequam entre si reciprocamente (Geertz,
1973, p. 93).14
Outro aspecto da definição de Geertz (1973, p. 90) seria referente ao que ele
Elton O. S. Medeiros

diz sobre a função desses símbolos ao “estabelecer sentimentos e motivações


poderosas, penetrantes e duradouras”. Pode-se interpretar como um conjunto
de práticas, anseios, valores e iniciativas como uma forma de se enxergar o
mundo por parte do grupo e do indivíduo. A concepção religiosa da realidade,
portanto, deve ser algo duradoura e que penetre na sociedade, interagindo com
todos os aspectos de uma dada cultura.
No caso das crenças na Inglaterra, isso pode ser observado com a
cristianização dos anglos e saxões e a persistência de modelos e ideais do
passado pré-cristão. O que nos leva a pensar que isso possa ser um indício da
existência de elementos religiosos/espirituais na Inglaterra anterior à fé cristã
Artigo

e da qual pouco sabemos em detalhes atualmente. Contudo, tais elementos não


desapareceram completamente com a chegada do cristianismo.
Ainda sobre a definição de Geertz, há a formulação de conceitos que acabam
por ser revestidos por uma “aura de factualidade”. Tal factualidade se refere
também ao modo que religiões criam textos e ritos a partir de conceitos e

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símbolos. Tais construções podem ser extremamente elaboradas, literariamente,


entrando no âmbito do mito, de uma “história sagrada”, mitos fundadores e
processos de etnogênese. Assim como podem possuir um caráter de maior
praticidade – no caso do cristianismo, por exemplo, textos litúrgicos, orações,
o cerimonial do batismo e a eucaristia e ritos de consagração régia. Em todos
temos esta dita “aura de factualidade”, fruto de um simbolismo que necessita
de uma interpretação para sua compreensão (Geertz, 1973, p. 109 – 113).
Quando tais elementos entram no campo da poesia, por exemplo, o leitor/
ouvinte se vê obrigado a reconhecer as interpretações religiosas ali contidas,
ainda que não consiga absorvê-las em sua totalidade. Por exemplo, no que diz
(re)considerações a partir da análise da evidência histórica
Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:

respeito ao simbolismo da cruz na Inglaterra Anglo-Saxônica: a adoração da


cruz e a centralidade da crucificação para o pensamento cristão não pode ser
satisfatoriamente ignorada na interpretação do poema O Sonho da Cruz, pois
estes são “fatos” da cosmovisão religiosa dominante tanto do poema quanto
da sociedade que o criou (Conner, 2001, p. 256; Medeiros, 2019, p. 199 – 252).
Finalmente, a última parte da definição de Geertz sobre como os sentimentos
e motivações devem parecer realistas de uma forma única. Podemos entender
isso como a materialização da concepção religiosa: a execução do ritual religioso,
que rememora ou revive acontecimentos que fazem parte não do tempo comum,
mas de uma “história sagrada”. Desta forma o ritual – e os ensinamentos que
o permite ser conhecido – surge como a manifestação atemporal do mundo
religioso no mundo secular (Eliade, 1992, p. 84 – 88).
Elton O. S. Medeiros

A definição do historiador Wouter J. Hanegraaff, derivada de Clifford


Geertz, talvez seja ainda mais didática e mais adequada como metodologia de
análise às práticas religiosas da Inglaterra Anglo-Saxônica. Hanegraaff divide
sua definição de religião em três conceitos gerais interligados: Religião, Uma
Religião e Uma Espiritualidade (Hanegraaff, 1999, p. 145 – 160).
1) Religião: qualquer sistema simbólico que influencie a ação humana
por oferecer possibilidades de manter contato ritual entre o mundo
cotidiano e um quadro metaempírico mais geral de significado.
Exemplo: o cristianismo, de forma ampla, em suas variadas
manifestações.
Artigo

2) Uma Religião: qualquer sistema simbólico, incorporado em uma


instituição social, que influencie a ação humana por oferecer
possibilidades de manter contato ritual entre o mundo cotidiano
e um quadro metaempírico mais geral de significado. Exemplo: o
cristianismo e a Igreja católica da Alta Idade Média.

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3) Uma Espiritualidade: qualquer prática humana que mantém contato


entre o mundo cotidiano e um quadro metaempírico mais geral de
significado por meio da manipulação individual de sistemas simbólicos.
Exemplo: o cristianismo e as manifestações populares de fé cristã
(que podiam corresponder ou não à ortodoxia da Igreja católica do
período).
A partir disso é possível visualizar com maior facilidade o que pode ter sido
o mundo pré-cristão dos anglos e saxões. A partir das evidências históricas
e os conceitos de Hanegraaff, é possível interpretar uma sociedade detentora
de uma Religião15 e Uma Espiritualidade16 que remontam a elementos de um
(re)considerações a partir da análise da evidência histórica
Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:

passado continental pré-migratório em comum aos diversos grupos que


chegaram à Bretanha.
Com o advento do cristianismo e a consolidação de um corpo eclesiástico
católico na região da Inglaterra passa a existir também Uma Religião. Esta
traz consigo todo um aparato da tradição cristã mediterrânea, que assimila
elementos da Religião local (como palavras e termos do inglês antigo) e
influenciando o surgimento de novas manifestações de Uma Espiritualidade
(como aparece no Encantamento das Nove Ervas). Ao invés de uma rivalidade de
tradições e de “sacerdotes pagãos” (que nunca existiram) contra missionários
cristãos, teríamos processos de transformações sociopolíticas que atenderam
anseios diversos em locais e estratos diferentes das sociedades da Inglaterra dos
séculos V – VIII. Desta forma, seria possível pensarmos em uma população do
Elton O. S. Medeiros

período da Inglaterra Anglo-Saxônica que a partir do advento da cristianização


passa a compartilhar de práticas, crenças e mentalidades diversas – antigas e
novas.
O olhar do século XIX sobre a Inglaterra do período a enxergava detentora
de elementos religiosos antagônicos. Entretanto, o que existiu foi uma
artificialidade metodológica da contemporaneidade ao interpretar um passado
histórico baseado na dicotomia “cristianismo versus paganismo”.
Em nossa atualidade a perpetuação de pesquisas baseadas no construto
histórico do “paganismo” não deve ser encarada apenas como um erro
metodológico, mas uma forma deliberada de desprezo pela análise das
Artigo

evidências históricas. E um exemplo da importância das evidências históricas


nesse debate se encontra na análise de artefatos como a Franks Casket.

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O universo em uma caixa de marfim

Desde o início, um dos principais trabalhos dos missionários cristãos foi tentar
integrar o passado dos anglos e saxões na história universal da Cristandade.
Semelhante aos primeiros pais da Igreja, ao reinterpretar e tornar o passado
veterotestamentário não mais restrito à tradição judaica, mas parte de algo
maior que envolvesse o advento do império romano e subsequentemente os
demais povos do mundo, dentro de uma mesma narrativa de “História Sagrada”.
Desta forma, atrelados a um importante modelo da hermenêutica cristã: a uma
“História de Salvação”.
(re)considerações a partir da análise da evidência histórica
Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:

Na Inglaterra da Alta Idade Média um dos melhores exemplos ocorre com a


obra de Beda, Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum, e a ideia do autor de uma
gens anglorum: o ideal de um “povo inglês”, unido perante Deus. Em outras fontes
literárias em inglês antigo temos esse mesmo princípio de Beda, integrando o
passado bíblico e o mundo clássico ao seu próprio passado de fundo germânico.
Recriando ou “reimaginando” seu passado histórico (Medeiros, 2015b, p. 46 –
77).
Na Cultura Material do período encontra-se a Franks Casket (também
conhecida como a “Caixa de Auzon”). Feita a partir de ossos de baleia, em suas
laterais foram esculpidas passagens históricas e míticas do passado judaico,
romano e germânico, juntamente com inscrições rúnicas e latinas para explicar
as imagens ou ainda como forma de charada.
Elton O. S. Medeiros

A confecção da Franks Casket remonta ao antigo reino da Nortúmbria do


século VIII – reino anglo-saxônico mais ao norte da Inglaterra da época; que
corresponde atualmente a toda a região norte da Inglaterra e o sul da Escócia.
Em função de sua matéria prima – osso de baleia – a qualidade do trabalho, e os
detalhes das imagens, é plausível dizer que o artefato possa ter pertencido aos
círculos aristocráticos ou eclesiásticos (Wood, 1990, p. 1 – 19).
Em uma das imagens que compõe os painéis da caixa não há qualquer
explicação, outras duas possuem curtas inscrições explicativas e em uma há
na verdade um tipo do que poderíamos classificar como uma charada – algo
tradicional na literatura poética anglo-saxônica do período. É possível supor que
Artigo

as cenas e as histórias por trás delas eram suficientemente familiares para seu
público para não precisar de maiores explicações do artista. Por outro lado, as
imagens inspiradas na tradição judaico-cristã possuem inscrições explicativas
bem claras. Este conjunto de imagens e passagens escritas de inspiração tanto
germânica quanto da tradição cristã, nos levam a crer que a caixa teria sido

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criada para pessoas minimamente letradas e educadas a respeito das histórias


ali presentes.
A partir da influência da Igreja, uma cultura letrada floresceu na Inglaterra
de fins do século VI e início do século VII. A palavra escrita – com o uso da
escrita rúnica em inglês antigo (futhorc) em paralelo do idioma e alfabeto latino
– seria usada inicialmente pela Igreja, mas logo também pelo universo laico
devido à necessidade de composição de documentos. Inicialmente em atestados
de propriedade de terra e depois em registros históricos, ensino, documentos
legislativos, monumentos etc. (Kelly, 1998, p. 36 -62).
É importante lembrar que a introdução da escrita entre os anglo-saxões de
(re)considerações a partir da análise da evidência histórica
Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:

forma alguma eliminou a cultura oral. Basta observarmos a narrativa de obras


poéticas, como no poema Beowulf, onde pode-se perceber a coexistência da
palavra escrita e de estruturas de composição típicas da oralidade. Fenômeno
que ocorre na produção escrita durante todo o período da Inglaterra Anglo-
Saxônica.
Presente nos círculos aristocráticos e da realeza anglo-saxônica, essas
produções podem ser encaradas como manifestações literárias possíveis de
expressar elementos capazes de persuadir as pessoas a serem governadas
e líderes a governar bem – por meio do que pesquisadores como David Pratt
chamam de “o teatro da corte”. Desta forma, textos legislativos, normativos
e outros ligados à figura régia poderiam ser considerados como “discursos
ritualizados”, visando, por exemplo, a manifestação e legitimação da autoridade
Elton O. S. Medeiros

do governante (Pratt, 2007, p. 130 – 178).


Parte importante também dessa cultura letrada e oral anglo-saxônica
eram as charadas e adivinhações. No Livro de Exeter, datado por volta do ano
mil, temos diversos exemplos disso. Através dessas charadas e adivinhações
podemos ver que esse tipo de obra estava entre as prediletas da Igreja como
veículo para o ensino e a catequese (Medeiros, 2019, p. 200 – 252). E é muito
claro que o responsável pela Franks Casket aplicou essa tradição em sua obra,
ao utilizar isso no painel frontal da caixa – assim como ao representar temas
religiosos cristãos e vernáculos de fundo germânico, construindo assim um tipo
de “charada em três dimensões.” Um enigma que envolve não apenas os painéis
Artigo

da Franks Casket como também se reflete na própria história e preservação da


caixa até os dias de hoje.
Em meados do século XIX um historiador local do sul da França, P. Mathieu,
havia comprado o que havia restado da Franks Casket de uma família da região
de Auzon. A caixa estava desmontada e um de seus painéis faltando. Segundo

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Mathieu, a caixa tinha sido usada pelas mulheres da família para guardar seus
instrumentos de costura, mas foi desmontada quando o filho da família resolveu
vender os pregos de prata da caixa para comprar um anel de compromisso para
sua futura noiva. Por volta dos anos de 1850, os painéis resgatados por Mathieu
passaram a fazer parte da coleção de Jean-Baptiste Joseph Barrois, famoso
colecionador parisiense interessado principalmente por artefatos medievais.
Após a morte de Barrois, em 1855, os painéis passaram às mãos de uma loja
de antiguidades de Paris. Por volta de 1858, notícias sobre os painéis chegaram
ao Museu Britânico, segundo o registro no diário de Sir Frederic Madden (então
cuidador dos manuscritos do museu) ao relatar a curiosa aquisição feita por
(re)considerações a partir da análise da evidência histórica
Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:

Augustus W. Franks – na época curador júnior do departamento de antiguidades


do museu.
Na época, Augustus Franks tinha ouvido falar da caixa na França e tentou
adquiri-la para o Museu Britânico através de um negociante em Londres.
Contudo, ainda em 1858, o museu desistiu do financiamento da compra. Mesmo
assim, Augustus Franks decidiu comprar a caixa com seu próprio dinheiro e
doá-la ao museu nove anos depois. Em função disso, a razão do nome pelo qual
ela ficou sendo conhecida: “Franks Casket” (em inglês, a “Caixa de Franks”), e
não uma alusão aos francos (erro comum até os dias de hoje). Porém, quando
Franks adquiriu a caixa, ela estava incompleta. Faltava o painel direito, que
continuava desaparecido.
Em 1867, Augustus Franks tentou localizar o painel e por fim descobriu que
Elton O. S. Medeiros

a peça havia sido encontrada numa gaveta na casa em Auzon, e posteriormente


adquirida pelo colecionador parisiense Jean-Baptiste Carrand – que havia se
mudado para Lyons em 1835. Carrand morreu em 1871 e toda sua coleção foi
doada por seu filho ao Museu Bargello em Florença. O painel perdido da Franks
Casket se encontra até hoje lá. Logo, o painel direito que está em exibição no
Museu Britânico é na verdade uma réplica (Webster, 2012a, p. 55 – 60).
A história da Franks Casket anterior a seu aparecimento em Auzon continua
um mistério. Supõe-se que, baseado nas condições de preservação da caixa,
por muito tempo ela foi preservada e até mesmo reparada em uma ou mais
ocasiões. Isso, aliada à temática cristã dos painéis, leva a crer na possibilidade
Artigo

de que ela permaneceu aos cuidados de uma igreja. Uma hipótese seria de
que a caixa estaria na basílica de São Juliano em Brioude, próximo de Auzon.
Documentos da basílica, analisados no começo do século XXI, fazem menção
a um importante relicário que se encontrava no altar principal da basílica e
cuja descrição se assemelha muito à Franks Casket. A primeira menção da

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caixa é de finais do século XIII, ao falar de uma caixa esculpida em osso/marfim


contendo relíquias. E no século XVII a mesma caixa volta a ser mencionada na
documentação (Webster, 2012a, p. 55 – 60). Supondo que a caixa mencionada na
basílica de São Juliano era de fato a Franks Casket, nos vem à mente a pergunta:
se ela é de origem anglo-saxônica, o que ela estaria fazendo na França do século
XIII?
Como outros objetos religiosos anglo-saxônicos que sobreviveram no
continente, a Franks Casket possivelmente foi levada para a França ainda
durante o período da Inglaterra Anglo-Saxônica. Em um momento em que havia
um intenso tráfego de objetos religiosos entre França e Inglaterra, promovido
(re)considerações a partir da análise da evidência histórica
Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:

por representantes eclesiásticos e a corte carolíngia e as cortes anglo-saxônicas


– especialmente do sul da Inglaterra, que desde o século VIII e IX mantinham
fortes laços, inclusive familiares, com a corte franca. A sua chegada à França
poderia também ter ocorrido durante o período anglo-saxônico em função das
invasões vikings, quando muitos objetos religiosos, livros e outros artefatos
foram levados para o continente como forma de salvá-los das mãos dos piratas
escandinavos (Medeiros, 2021, p. 157 – 181).
O estilo característico, o idioma e o formato das letras da Franks Casket
sugerem que ela teria sido feita na Nortúmbria, possivelmente na primeira
metade do século VIII. Ainda que muitos elementos artísticos da caixa não
encontrem paralelos em outras obras anglo-saxônicas, eles se assemelham
bastante ao estilo de ilustrações encontradas em livros religiosos e alguns
Elton O. S. Medeiros

artefatos também do início do mesmo século. Como, por exemplo, uma


representação de Cristo como Rei David nos Comentários sobre os Salmos de
Cassioro do mosteiro de Wearmouth/Jarrow, na Nortúmbria (Webster, 2012a, p.
45 – 54).
Os elementos linguísticos das inscrições também apontam para o início do
século VIII. O dialeto do inglês antigo usado e o estilo das runas é o mesmo usado
na Nortúmbria da época. Dialeto idêntico ao encontrado em outro monumento
do mesmo período, a Cruz de Ruthwell – onde se encontra, esculpido em
runas, trechos do poema conhecido como O Sonho da Cruz (Medeiros, 2019,
p. 199 – 252). O que coincidiria com o período conhecido como a “Renascença
Artigo

da Nortúmbria”, tendo como grandes centros artísticos e voltados ao ensino


e erudição mosteiros como o de Lindisfarne, Whitby e Wearmouth/Jarrow;
este último, o lar Beda. Centros que se tornaram também muito famosos pela
produção de manuscritos que combinavam em suas iluminuras elementos
judaico-cristãos, romanos e de fundo germânico. Exatamente como podemos

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encontrar na Franks Casket (Webster, 2012a, p. 45 – 54).

Histórias em marfim: os painéis da Franks Casket

Os painéis da Franks Casket estão posicionados de forma que sigam algum


tipo de ordem narrativa. Os textos que acompanham as imagens estão em sua
maior parte escritos em inglês antigo e na forma do alfabeto rúnico anglo-
saxônico (futhorc), emoldurando as imagens.

Painel Frontal17
(re)considerações a partir da análise da evidência histórica
Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:

Figura 1 - Franks Casket: painel frontal


Elton O. S. Medeiros

Fonte: Webster (2012a).

Este é o único painel que mostra duas cenas distintas ao mesmo tempo e o
único cuja inscrição não tem qualquer relação com o que está sendo mostrado.
A cena à direita mostra a adoração dos reis magos e o menino Jesus e Maria
entronados. Os reis magos estão oferecendo seus presentes a Jesus e logo à
frente deles há a figura de um pássaro que talvez esteja representando o
Artigo

Espírito Santo. Logo acima deles temos a imagem semelhante a uma flor que
estaria representando a Estrela de Belém, que guiou os reis magos. E à esquerda
da estrela temos uma inscrição em letras rúnicas, mas se trata da palavra latina
“Magi”, i.e., os magos.

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Já à esquerda do painel nós temos uma cena que hoje necessita explicações,
mas que provavelmente seria facilmente identificada pelo público da época.
Aqui nós temos a representação da lenda do ferreiro mítico Weland, famoso em
diversas lendas do norte europeu.18
A cena que vemos na Franks Casket é Weland segurando a cabeça de um
dos filhos do rei Nithhad com uma pinça de ferreiro – o corpo decapitado do
príncipe pode ser visto caído aos pés de Weland – e com a outra mão ele está
oferecendo o que segundo a lenda seria uma poção para a princesa, que vai
fazê-la adormecer. Temos também na cena uma segunda figura feminina, que
não fica claro se é a própria Beadohild indo até Weland ou se é talvez uma dama
(re)considerações a partir da análise da evidência histórica
Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:

de companhia. E por fim temos a imagem de um homem matando pássaros.


Talvez seja Weland ou seu irmão Egil, recolhendo penas de pássaros para que
Weland construa as asas para sua fuga.
A cena é presente também na poesia anglo-saxônica – o que nos leva a crer ser
uma história difundida no cenário cultural daquela sociedade. Especificamente
no poema Deor:

Weland conheceu o exílio através da espada, o resoluto guerreiro


sofreu tormentos, teve como companheiros a mágoa e a tristeza, e
o exílio no frio inverno; certa vez, encontrou infortúnios quando
Nithhad confinou-o, impondo maleáveis grilhões nos tendões do
homem. Aquilo já passou, isto também passará. Para Beadohild,
Elton O. S. Medeiros

a morte de seus irmãos não foi tão pesarosa para seu espírito
naquela situação, pois ela percebeu claramente que estava
grávida; nunca conseguiu pensar claramente o que resultaria
daquilo. Aquilo já passou, isto também passará (Medeiros, 2022,
p. 279).

Por fim, temos a inscrição que emoldura as duas cenas. A inscrição é uma
charada e ao final sua resposta; em versos aliterativos, escrita rúnica e em
inglês antigo. A partir da primeira runa logo acima da imagem de Weland, é
possível ler:
Artigo

fisc flodu ahof on fergenberig


warþ ga:sic grorn þær he on greot giswom.
Hronæsban

[O mar ergueu o peixe até um monte funerário rochoso;

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o rei do terror ficou triste quando ele nadou até a areia.


Osso de baleia]

Painel Superior

Figura 2 - Franks Casket: painel superior


(re)considerações a partir da análise da evidência histórica
Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:
Elton O. S. Medeiros

Fonte: Webster (2012a).

Infelizmente o painel superior foi o único que sobreviveu sem uma inscrição.
Na verdade, supõe-se que nem existia, mas não há certeza, pois se pode ver que
de ambos os lados da imagem, superior e inferior, existem espaços que poderiam
fazer parte de uma moldura completa ou de inscrições. A única inscrição presente
está em runas logo acima da figura do arqueiro à direita, identificando-o pelo
nome de “Ægili”. Inicialmente acreditava-se que cena estava representando a
Guerra de Tróia, onde “Ægili” poderia ser “Aquiles”. Porém essa hipótese há
muito foi descartada e hoje em dia acredita-se que Ægili em questão seja Egil o
Artigo

Arqueiro, irmão do ferreiro Weland; e o que a cena retrata seria algum episódio
lendário germânico que hoje em dia desconhecemos (Webster, 2012a, p. 31 –
44).

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Painel Traseiro

Figura 3 - Franks Casket: painel traseiro


(re)considerações a partir da análise da evidência histórica
Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:

Fonte: Webster (2012a).

O Painel traseiro pode ser dividido em uma parte superior e uma parte inferior.
De forma geral, neste painel está representado o saque do Templo de Jerusalém
pelos romanos liderados por Tito no ano 70 d.C. No plano superior, podemos
Elton O. S. Medeiros

identificar Tito (à esquerda), pois ele é o único usando um elmo e empunhando


uma espada, liderando seus homens contra o Templo que se encontra no centro
do painel, e dentro do qual podemos identificar a Arca da Aliança cercada por
figuras de animais. Do outro lado, à direita, temos os judeus fugindo.
No plano inferior esquerdo temos uma figura sentada em um tipo de trono
e ao que parece exercendo algum tipo de função administrativa, pois no canto
inferior esquerdo pode-se ler em runas a palavra em inglês antigo “dom”
(“julgamento”). Do outro lado da cena, à direita, temos um aglomerado de
pessoas, onde no canto inferior direito lê-se a inscrição em runas e em inglês
antigo “gisl” (“refém” ou “prisioneiro”).
Além dessas duas inscrições, temos a inscrição principal. Diferentemente
Artigo

dos demais painéis, a inscrição do painel traseiro começa em inglês antigo


com runas, mas na parte em que é descrito a fuga dos judeus a inscrição se
transforma para o alfabeto latino e o idioma latino, para logo depois voltar ao
uso das runas, mas com a palavra em latim “afitatores” (“habitantes”):

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her fegtaþ Titus end Giuþeasu19


hic fugiant Hierusalim20 afitatores21

[Aqui Tito e os Judeus lutam;


Aqui os habitantes de Jerusalém fogem]

Pode-se observar que essa mudança de idioma e de alfabeto é muito peculiar


para ser mero acaso ou um erro do artista. Possuindo algum tipo de mensagem
a ser passada ao leitor, como veremos mais à frente.
(re)considerações a partir da análise da evidência histórica
Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:

Painel Esquerdo

Figura 4 - Franks Casket: painel esquerdo


Elton O. S. Medeiros

Fonte: Webster (2012a).

Aqui é apresentado ao observador a lenda de Rômulo e Remo. No centro da


imagem temos os dois irmãos, de ponta-cabeça, mamando na loba, que está
deitada de barriga para cima – enquanto outro lobo lambe os pés deles na parte
Artigo

superior do painel. E nas laterais da cena, surgem homens armados de lanças


se embrenhando na floresta para resgatá-los. A inscrição rúnica da imagem diz
em inglês antigo, a partir da inscrição vertical do lado esquerdo, seguindo em
sentido horário (assim como nos demais painéis):

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Romwalus ond Reumwalus twægen gibroþær


afæddæ hiæ wylif in Romæcæstri oþlæ unneg
[“Rômulo e Remo, dois irmãos.
Uma loba os alimentou, bem longe, na cidade de Roma”.]

Painel Direito

Figura 5 - Franks Casket: painel direito


(re)considerações a partir da análise da evidência histórica
Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:

Fonte: Webster (2012a).


Elton O. S. Medeiros

Da mesma forma que o painel esquerdo, a imagem do painel direito nos


mostra um cenário na floresta. Aqui, apesar de não haver uma divisão clara
das cenas, como no painel frontal e traseiro, podemos dividir a imagem em
três momentos. A cena central mostra um cavalo curvado sobre um monte
funerário. Supõe-se que é um monte funerário, pois há uma imagem de uma
pessoa dentro dele. Ao lado do monte, temos uma figura feminina com um
bastão e um cálice, e um pássaro está voando na parte inferior da imagem. Há
também três palavras em runas. Logo acima do dorso do cavalo está escrito
em inglês antigo “risci” [“veloz”], acima da figura feminina temos a palavra
“bita” [“amargo” ou “mordida”], e por fim entre o pássaro e o monte funerário
Artigo

a palavra “wudu” [“madeira” ou “floresta”].


No canto esquerdo do painel, temos uma figura com asas e meio humano
e meio animal, sentada sobre um monte e entrelaçada pelo que parece ser
uma serpente em sua cabeça. À sua frente temos um guerreiro de elmo, lança

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e escudo. Enquanto no canto direito do painel temos três figuras femininas,


encapuçadas, onde as duas das laterais parecem estar segurando a figura do
centro.
A inscrição rúnica principal, assim como a do painel frontal e a do painel
esquerdo, também está em inglês antigo e versos aliterativos. Contudo, não
fica claro o sentido dos veros; se estão explicando a cena ou se também é algum
tipo de charada (como no painel frontal):

Her Hos sitiþ on harmberga


agl(..) drigiþ swa hiræ Ertae gisgraf
(re)considerações a partir da análise da evidência histórica

sarden sorga and sefa torna


Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:

[Aqui Hos senta-se em uma colina de mágoa;


ela suportou sofrimento que assim lhe foi imposto por Ertae,
amargas tristezas e tormentos do coração]

Sabemos que os nomes Hos e Ertae são nomes próprios. Logo, podemos
supor que, assim como no caso do painel superior da Franks Casket, o painel
direito esteja retratando alguma lenda anglo-saxônica ou de fundo germânico
que também se perdeu até a atualidade.

O universo espiritual da Inglaterra Anglo-Saxônica


Elton O. S. Medeiros

No século XIX a Franks Casket foi subestimada por seus primeiros


interessados e estudiosos. Da mesma forma que as primeiras interpretações
sobre o poema Beowulf, a Franks Casket foi inicialmente considerada uma obra
bárbara, primitiva, produzida por algum “pagão” recém converso com pouco
conhecimento da tradição cristã. O que faria da obra um simples e curioso
amontoado de diversas lendas e histórias antigas do passado pagão e cristão.
(Medeiros, 2022, p. 289 – 295; Webster, 2012a, p. 45 – 53; Wood, 1990, p. 1 –
19;).
Este tipo de consideração é um fruto característico do construto histórico do
“paganismo” do Oitocentos. Qualquer produção cultural, intelectual, artística
Artigo

etc. que reúna indícios desses dois mundos é encarada como um equívoco,
fruto de uma autoria ignorante do que confeccionou. O que gera conclusões de
que seriam pessoas recém-convertidas, ainda pouco habituadas com a tradição
cristã. Entretanto, é possível dizer que as imagens da Franks Casket não são

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uma reunião aleatória de histórias e produzidas de forma açodada por alguém


ignorante do que esculpia (Webster, 2012a, p. 31 – 53).
Uma das possíveis interpretações é de que os painéis da caixa formam um
paralelo de histórias moralizantes ou parábolas nas quais uma com temática
cristã combinaria com outra do passado germânico. Uma obra na qual a
percepção de uma intertextualidade dos painéis se torna um elemento crucial
para compreendê-la (Wood, 1990, p. 1 – 19).
Em conjunto, fariam parte de um tipo de diorama representando uma proposta
de história universal dentro do contexto cristão medieval de uma História de
Salvação. O passado lendário romano atrelado ao passado bíblico e ao passado
(re)considerações a partir da análise da evidência histórica
Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:

lendário germânico, vinculando os anglo-saxões ao modelo espiritual de uma


História Sagrada. Dessa forma, integrando o passado pré-cristão dos anglos e
saxões à história de toda Cristandade.22 Esse tipo de elaboração surge de forma
muito clara no texto de Beda, citado no início desse artigo – e mais tarde em
escritos do século IX e X, com as iniciativas de reforma política e cultural
promovidas pelo rei Alfred o Grande (Medeiros, 2011, p. 134 – 172). Por exemplo,
na construção do texto da Crônica Anglo-Saxônica temos a genealogia do rei
Alfred e de seu pai Æthelwulf, referente ao ano de 855 (Medeiros, 2015b, p. 46
– 77):

On se Æþelwulf wæs Ecgbrehting, Ecgbryht Ealhmunding,


Ealhmund Eafing, Eafa Eopping, Eoppa Ingilding; Ingild wæs Ines
Elton O. S. Medeiros

broþur Westseaxna cyninges, þæs þe eft ferde to Sancte Petre 7


þær eft his feorh gesealde; 7 hie wæron Cendredes suna, Cenred
wæs Ceolwalding, Ceolwald Cuþaing, Cuþa Cuþwining, Cuþwine
Ceaulining, Ceawlin Cynricing, Cynric Cerdicing, Cerdic Elesing,
Elesa Esling, Esla Giwising, Giwis Wiging, Wig Freawining,
Freawine Friþogaring, Friþogar Bronding, Brond Bældæging,
Bældæg Wodening, Woden Friþowalding, Friþuwald Freawining,
Frealaf Friþuwulfing, Friþuwulf Finning, Fin Godwulfing, Godwulf
Geating, Geat Tætwaing, Tætwa Beawing, Beaw Sceldwaing,
Sceldwea Heremoding, Heremod Itermoning, Itermon Hraþraing,
se wæs geboren in þære earce: Noe, Lamach, Matusalem, Enoh,
Iaered, Maleel, Camon, Enos, Sed, Adam primus homo et pater
Artigo

noster est Christus, Amen.

E Æthelwulf era o filho de Egbert, o filho de Ealhmund, o filho de


Eafa, o filho de Eoppa, o filho de Ingild. Ingild era irmão de Ine,

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rei dos Saxões do Oeste, que manteve o reino por 37 anos e que
mais tarde foi para junto de São Pedro e findou sua vida lá. E eles
eram filhos de Cenred. Cenred era o filho de Ceowold, o filho de
Cutha, o filho de Cuthwine, o filho de Ceawlin, o filho de Cynric,
o filho de Creoda, o filho de Cerdic. Cerdic era o filho de Elesa, o
filho de Esla, o filho de Gewis, o filho de Wig, o filho de Freawine,
o filho de Freothogar, o filho de Brand, o filho de Bældæg, o filho
de Woden, o filho de Frealaf, o filho de Finn, o filho de Godwulf, o
filho de Geat, o filho de Tætwa, o filho de Beaw, o filho de Sceldwa,
o filho de Heremod, o filho de Itermon, o filho de Hathra, o filho
de Hwala, o filho de Bedwig, o filho de Sceaf, i.e. o filho de Noé.
(re)considerações a partir da análise da evidência histórica
Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:

Ele nasceu na arca de Noé. Lamech, Methuselah, Enoch, Jared,


Mahalaleel, Cainan, Enos, Seth, Adão o primeiro homem e nosso
pai, i.e. Cristo, amém (Medeiros, 2015b, p. 46 – 77, tradução
nossa, grifo nosso).

Os nomes iniciais se referem aos nomes históricos dos reis de Wessex, sendo
o primeiro, Æthelwulf, o pai do rei Alfred. Posteriormente temos a linhagem
da casa real de Wessex seguida de nomes lendários presentes na poesia anglo-
saxônica e na mitologia: os nomes de Baeldeg e Woden,23 Beaw, Sceldwa e
Heremod,24 e depois temos ali o nome de Sceaf filho de Noé – uma referência
apócrifa de origem siríaca a respeito de um suposto quarto filho de Noé; ideia
que teria chegado na Inglaterra por volta do século VIII (Medeiros, 2011, p. 134
Elton O. S. Medeiros

– 172). E ao final podemos ver os nomes dos patriarcas bíblicos remontando até
Cristo/Deus.
Na Franks Casket, em seu painel frontal, as duas cenas podem ser observadas
se complementando, trazendo uma mensagem de Salvação. Na adoração dos
reis magos e seus presentes a Cristo a prefiguração da Salvação da humanidade
que estaria por vir. No caso da lenda de Weland, a Salvação através de sua
fuga, mas também a ideia de Salvação presente na ideia implícita na figura de
Beadohild – que, segundo a lenda, mesmo futuramente grávida, fruto de uma
violência, virá a amar a criança que tornar-se-á o herói Widia. Uma terceira
interpretação para o painel de Weland é a da justiça e libertação (logo, de
Salvação), ao vingar-se do mal causado pelo rei Nithhad por ter aprisionado e
Artigo

mutilado Weland. A mensagem geral contida seria, portanto, de que apesar do


sofrimento e incertezas do mundo é possível surgir o bem, o correto e a justiça.
A charada/adivinhação, a respeito da baleia como o “rei do terror”, que
emoldura as histórias pode trazer outro nível de interpretação referente à figura

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régia: o líder benevolente e aquele que é maligno. Assim como a baleia (“rei do
terror”), o rei Nithhad também acabou sofrendo por seus atos malignos, sendo
um contraponto a figura de Cristo como o exemplo máximo de realeza divina.25
Assim, é possível entender as imagens do painel frontal da Franks Casket em
diversos níveis interpretativos de mensagens. Todas, é claro, girando em torno de
elementos espirituais da tradição cristã e do passado cultural mítico dos anglos
e saxões – divergindo substancialmente dos ideais do construto do “paganismo”
do século XIX; pois não há uma oposição de símbolos e significados, mas uma
combinação de ideias.
Os painéis superior e traseiro da caixa, na imagem do ataque contra Ægili
(re)considerações a partir da análise da evidência histórica
Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:

e sua defesa da fortaleza em que se encontra no painel superior é possível um


paralelo ao saque de Jerusalém no painel traseiro. A ideia do saque do Templo
pelos romanos como símbolo do fim da Antiga Aliança e o surgimento da Nova
Aliança com Deus: a substituição do judaísmo pelo cristianismo. O que poderia
ser enfatizado pela mudança da inscrição do painel, do inglês antigo e rúnico
para o latim e novamente a mudança para a escrita rúnica, mas mantendo o
idioma latino. Um símbolo justamente dessa mudança e dessa Nova Aliança
divina, representada pela palavra “habitantes” que une o estilo do alfabeto
rúnico e da língua latina – novamente, e de forma ainda mais óbvia, através
da união de elementos (linguísticos) da tradição latina cristã e da cultura local
anglo-saxônica.
O painel esquerdo e direito, por sua vez, trazem um cenário mais selvagem,
Elton O. S. Medeiros

de floresta. No caso do painel esquerdo, podemos ver a lenda de Rômulo e


Remo interpretada dentro do contexto cristão como não apenas um símbolo
de Roma, mas também da Igreja de Roma: protegendo os desamparados e
oferecendo Salvação. E essa simbologia seria muito importante para os anglo e
saxões. Beda, por exemplo, fala a respeito de como Deus permitiu a ascensão do
Império Romano para que assim a palavra do Senhor fosse mais rapidamente
espalhada pelo mundo (Webster, 2012b, p. 97). Além disso, temos novamente
aqui a ideia de que mesmo através do sofrimento pode vir o bem: Rômulo e
Remo deixados na floresta para morrer, mas por fim eles são salvos e em função
disso nasce Roma.
Artigo

Entretanto, todo esse conteúdo cristão moralizante e sua mensagem de


Salvação parecem estranhos frente ao painel direito, principalmente por não
sabermos do que se trata a lenda ali representada. Nós não sabemos quem era
Hos a causa de seu sofrimento nas mãos de Ertae, mas podemos supor que as
três figuras do canto esquerdo sugerem a ideia de opressão e angústia. O que

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poderia ser confirmado pelo restante do painel, representado por um cenário


lúgubre no meio da floresta. Em outras obras do mesmo período vamos encontrar
essa mesma ideia vinculada à floresta e aos pântanos e charcos, como um lugar
perigoso, físico e espiritualmente, habitado por demônios e criaturas malignas.
Por exemplo, na Vida de São Guthlac, São Guthlac decide se isolar do mundo
e ruma para o meio da floresta. Lá ele encontra um pântano e se depara com
um demônio, iniciando um combate. No poema Beowulf, Grendel, o monstro
que ataca a corte dos daneses, é descrito como um “Ser de raça monstruosa,
guardião dos pântanos, alagadiços e charcos” e habitante de uma caverna
subterrânea localizada no meio de uma floresta (Medeiros, 2022, p. 27).
(re)considerações a partir da análise da evidência histórica
Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:

Comparando os dois painéis, enquanto ambos mostram cenas de perigo na


floresta, Rômulo e Remo simbolizam a salvação, a redenção. Já o painel direito
estaria simbolizando o oposto, a morte, punição, aprisionamento. Além disso,
se formos interpretar Rômulo e Remo representando Roma e a Igreja, logo o
cristianismo, poderíamos talvez interpretar o painel direito como o oposto. O
quão sombrio eram – dentro da interpretação cristã – os tempos anteriores à
Igreja. Representados, por exemplo, pela estranha figura meio homem e meio
animal no canto direito. E Ertae como referente a alguma divindade, talvez Erda
ou Erce a deusa da Terra. O que também encontraria ecos na poesia em inglês
antigo, quando no poema Beowulf é feito referência a ruína que advém àqueles
que, desesperançados, se afastam de Deus e confiam suas almas aos ídolos
(Medeiros, 2022, p. 33) – o mesmo ocorre no relato de Beda sobre o sacerdote
Elton O. S. Medeiros

Coifi e os infortúnios de se manter nas trevas dos falsos deuses (Church, 2008,
p. 173 – 175).
A Franks Casket pode ser encarada como a manifestação material de discursos
e mentalidades que serão encontrados em outras fontes do período. Uma
amostra de como a sociedade anglo-saxônica integrou elementos oriundos do
passado de seus ancestrais, que remontam às migrações do continente, ao novo
paradigma do cristianismo.
Retomando a metodologia e conceitos de Wouter J. Hanegraaff, é possível
identificar na Franks Casket elementos vinculados a uma Religião e Uma
Espiritualidade que possui raízes em elementos intrínsecos da sociedade
Artigo

anglo-saxônica anteriores à cristianização, que por sua vez são integrados ou


orientados por novos elementos de Uma Religião.
Painéis com a história de Weland, Ægili, Ertae não são reminiscências
esculpidas em osso de baleia como simples antiguidade pagã de um artesão
recém converso à fé cristã. A presença de tais narrativas não seria algo antagônico

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aos outros painéis com representações da tradição latina-cristã. Ao contrário,


suas histórias se complementam, dialogam entre si. A Franks Casket, dessa
maneira, funciona como um objeto de arte, mas também como uma ferramenta
de instrução e reflexão espiritual e talvez até mesmo de contemplação aos
observadores – a exemplo de outros artefatos do período, como a já mencionada
Cruz de Ruthwell (Medeiros, 2019, p. 199 – 252). Além disso, demostra como
elementos do passado anterior ao cristianismo se mesclaram à nova tradição
que chegou a partir do século VI na Bretanha entre os anglo e saxões. O que pode
ser encontrado em outras produções da época como os poemas encantatórios e
curativos (Medeiros, 2015a, p. 313 – 363) e o poema Beowulf (Medeiros, 2020, p.
(re)considerações a partir da análise da evidência histórica
Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:

135 – 162), entre outros tantos exemplos do período.

Considerações Finais

Neste artigo, tentamos demonstrar, ainda que de forma breve, que um artefato
como a Franks Casket está bem longe de ser uma obra meramente decorativa
com imagens e histórias aleatórias. Trata-se de um objeto extremamente
complexo de se analisar, especialmente pelo fato dele possuir diferentes níveis
interpretativos.
Entre outras possibilidades, reforçamos a importância da Franks Casket
como uma evidência histórica de suma importância do “universo espiritual da
Inglaterra Anglo-Saxônica”, no sentido como abordamos no início deste artigo.
Elton O. S. Medeiros

O artefato é capaz, por meio de uma representação artística material (fugindo


da tradicional evidência histórica textual manuscrita, abundante no período),
integrar os anglos e saxões e seu passado mítico pré-cristão como mais um dos
povos e culturas a se juntar à Cristandade, e, principalmente, uni-los como um
único povo cristão perante Deus. Desta forma, não apenas como membros de
uma Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum, mas como membros de uma Historia
Ecclesiastica universal.
O propósito deste artigo é lançar uma luz à complexidade do que se pode
entender como elementos religiosos e espirituais dos anglos e saxões. Propor
uma nova abordagem sobre o assunto, rompendo com a dicotomia oitocentista
Artigo

“pagão versus cristão” e possibilitar uma nova visão para as pesquisas sobre
o tema. Ao mesmo tempo, desconstruir a ideia sobre um passado pré-cristão
anglo-saxônico incompatível – ou minimamente avesso – aos elementos da
nova fé implementada na Bretanha. Como se fossem tradições auto excludentes.
A título de exemplo, diferentemente do que o século XIX e, sob sua influência,

Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.247-280, jul-dez. 2023 } 274


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o artigo de Ciro Flamarion Cardoso tentou demonstrar, ao se aprofundar e se


familiarizar com as evidências históricas, encontramos um quadro diferente do
que o construto do “paganismo” defende. O advento do cristianismo entre os
anglo-saxões não foi de simples substituição de mentalidades e sobrevivências
residuais de uma suposta “religião pagã organizada” – o caso sacerdote Coifi
em Beda, por exemplo –, mas um processo de transformações e manifestações
em diversos níveis da sociedade do período. Algo extremamente diverso e
complexo e que coexistiu entre os diferentes estratos da sociedade e mutável
ao longo do tempo.
Reforçamos, a partir da metodologia de Wouter Hanegraaff, que o
(re)considerações a partir da análise da evidência histórica
Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:

cenário histórico da Inglaterra Anglo-Saxônica pré-cristã seria detentor de


práticas vinculadas a uma Religião e Uma Espiritualidade, as quais acabaram
posteriormente se alinhando à Uma Religião com a cristianização, que ocupa
um espaço naquelas sociedades que não existia anteriormente. Desta forma,
esta Uma Religião, alinhada principalmente à aristocracia e ao poder régio, toma
um lugar de destaque como norteadora de uma cosmovisão espiritual naquele
momento que irá integrar elementos dos outros dois conceitos de Hanegraaff
supracitados à sua esfera de influência.
Nesta Inglaterra alto-medieval, no âmbito do mundo religioso, seja no
ambiente anterior ou após o cristianismo, reiteramos, existiam diferentes
manifestações e práticas religiosas coexistindo e atendendo a diversos anseios
dentro dos diferentes estratos da sociedade. Um cenário no qual se utilizam
Elton O. S. Medeiros

elementos pré-cristãos e cristão de forma integrada – e não necessariamente


suprimindo os primeiros em prol dos últimos – para suprir as necessidades
e objetivos daquelas sociedades. Um quadro muito diferente de um suposto
“paganismo” anglo-saxão em contraposição ao cristianismo do mesmo período
– algo que só existiu nas mentes e nas páginas de autores dos séculos XIX e XX.

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Notas
1
Universidade Federal do Paraná (UFPR). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9901-
014X.
2
Não é propósito deste artigo se aprofundar a respeito do debate da utilização da
Elton O. S. Medeiros

terminologia utilizada pelo cenário acadêmico do campo de pesquisa. Para maiores


informações sobre tal debate ver Medeiros e Albuquerque (2021).
3
A primeira produção científica de fato voltada ao período histórico da Inglaterra
Anglo-Saxônica foi a dissertação de mestrado de Thaís Lima Benedetti, no ano de 2004,
intitulada: “O Reinado de Aethelred II (978 - 1016) e os seres monstruosos em Beowulf”,
sob orientação da professora Néri de Barros Almeida, pelo departamento de História
da Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Pouco tempo depois um segundo trabalho no Brasil
que também abordava temática semelhante foi de Elton Oliveira Souza de Medeiros,
no ano de 2006, com sua dissertação de mestrado intitulada: “O Rei, o Guerreiro e o
Herói: Beowulf e sua representação no mundo germânico”, sob orientação do professor
Nachman Falbel, pelo departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP).
Um excelente estudo que faz um levantamento amplo da tradição de estudos a respeito
Artigo

do “paganismo” na Inglaterra Anglo-Saxônica, seu desenvolvimento e problemas, é o


trabalho de Stanley (2000).
5
“A opção por Gramsci não resolve todos os problemas para um emprego adequado do
conceito de ideologia no estudo das religiões. Isto porque tal autor continuava afirmando
a dicotomia material/ideal devido a apegar-se ainda à oposição base/superestrutura, uma

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postura a meu ver impossível de sustentar-se após as discussões da segunda metade do


século XX” (Cardoso, 2004, p. 21).
6
Problema semelhante pode ser encontrado ao se utilizar a Germania de Tácito para
trabalhar com os povos germânicos do continente, ver Momigliano (2004, p. 157 – 186).
No que diz respeito, de forma mais específica, à relação de identidades e mesmo de
etnicidade entre romanos e bárbaros, recomendamos Halsall (2007).
7
Cui primus pontificum ipsius Coifi continuo respondit [...] “Iam olim intellexeram nihil esse
quod colebamus; quid videlicet quanto studiosius in eo cultu veritatem quaerebam, tanto
minus inveniebam I[...]”[...] Statimque abiecta superstitione vanitatis, rogavit sibi regem
arma dare et equum emissarium, quem ascendens ad idola destruenda veniret. Non enim
licuerat pontificem sacrorum vel arma ferre, vel praeter in équa equilare. [Ao que o sumo
sacerdote, Coifi, respondeu imediatamente [...] “Há tempos entendi que havia algo de
(re)considerações a partir da análise da evidência histórica
Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:

errado em nossos cultos; pois quanto mais diligentemente eu buscava a verdade neles,
menos a encontrava [...]” [...] E imediatamente rejeitada a vã superstição, ele implorou
ao rei que lhe desse armas e um garanhão de combate, no qual ele montaria para destruir
os ídolos. Pois não era permitido ao sagrado sacerdote portar armas, nem cavalgar senão
em uma égua].
8
Quanto a Gregório Magno e sua carta, temos o mesmo problema. O papa nunca esteve
na Inglaterra ou presenciou as práticas pagãs do norte europeu. Será a partir das
informações sobre as práticas pagãs e a idolatria entre os povos do Oriente da narrativa
bíblica e do Mediterrâneo que Gregório Magno irá se basear para instruir os missionários
na Inglaterra
9
A história descrita por Beda faz referência a um guerreiro que fora capturado e cujo
irmão, um clérigo, que acreditava que ele estava morto. Ao ir ao campo de batalha, o
clérigo recolhe um corpo que acredita ser do irmão, o sepulta e passa a fazer missas
diárias dedicadas à sua alma. O guerreiro, que está vivo, cada vez que o clérigo realiza suas
missas à sua memória, tem seus grilhões abertos pelo poder sobrenatural das orações
Elton O. S. Medeiros

do irmão. E é neste momento que Beda relata, de forma muito breve, que seus captores
chegam a cogitar que o guerreiro estivesse sob o poder de algum tipo de encantamento
que o protegesse.
10
Uma hipótese é a de que Cardoso tomou essa interpretação de “segunda mão”, a partir
da bibliografia consultada, e (por não conhecer as fontes) confundiu-se. Provavelmente,
ele misturou informações de dois poemas diferentes: o Encantamento das Nove Ervas e
Salomão e Saturno I (Medeiros, 2015a, p. 313 – 363) – neste último há menção de runas
e os poderes que cada uma desempenha durante a oração do Pai Nosso. De qualquer
forma, reforça o fato de Cardoso desconhecer as fontes que cita.
Termo comum utilizado para se referir a guerreiros de alto nível, vinculados legalmente
11

a outros aristocratas e mesmo ao rei.


Por exemplo, na legislação do reino de Kent no século VII, com a chegada e
12
Artigo

estabelecimento da Igreja e de um corpo eclesiástico, se fez necessário o estabelecimento


de valores atrelados a compensações financeiras de seus representantes – remontando
ao conceito de wergeld. O que leva à conclusão que anteriormente, no contexto pré-
cristão, não existia esse tipo de legislação voltada a um grupo de indivíduos devotados
ao mundo religioso ou, caso tal grupo existisse, não tinha a mesma importância que os
representantes cristãos passaram a ter a partir da cristianização (Church, 2008, p. 173 –
174).

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“(1) a system of symbols which acts to (2) establish powerful, pervasive, and long-lasting
13

moods and motivations in men by (3) formulating conceptions of a general order of existence
and (4) clothing these conceptions with such an aura of factuality that (5) the moods and
motivations seem uniquely realistic”.
14
A respeito do tema, em paralelo a Geertz, é interessante a leitura do texto de Le Goff
(1997); e Niles, (1994). Já para uma abordagem mais específica sobre práticas religiosas
e mágicas na Inglaterra Anglo-Saxônica, ver a obra de Jolly (1996); North (2006); e
principalmente Carver, Sanmark e Semple (2010).
Vinculada, por exemplo, às práticas e legitimações régias, que envolviam também
15

a aristocracia e demais rituais coletivos dos grupos sociais do espaço da Inglaterra


(Chaney, 1970, p. 7 – 155).
(re)considerações a partir da análise da evidência histórica

16
Na vida particular do indivíduo e de pequenos grupos por meio de práticas populares
Revisitando o “paganismo” da Inglaterra Anglo-Saxônica:

locais (Jolly, 1996, p. 6 – 34).


Todas as imagens da Franks Casket são a partir de Webster, Leslie. The Franks Casket.
17

Londres: British Meu Press, 2012a.


A lenda conta que Weland era o melhor dos ferreiros que já havia existido. Por isso,
18

ele foi aprisionado pelo rei Nithhad para obrigá-lo a trabalhar eternamente para o rei.
Para que Weland não fugisse, Nithhad manda cortar os tendões de seus pés. Porém,
Weland decide se vingar: ele mata os dois filhos de Nithhad e de seus crânios ele faz duas
taças encrustadas de joias como presentes ao rei – que as usa durante um banquete e só
mais tarde ele descobre a verdade. Além disso, Weland estupra e engravida a princesa
Beadohild, filha de Nithhad, antes de ele construir um conjunto de asas que utiliza
depois para fugir voando.
Aqui, a inscrição rúnica está em inglês antigo, no lado esquerdo do painel; logo acima
19

da palavra dom.
Elton O. S. Medeiros

Aqui, a inscrição nesse trecho usa o alfabeto latino e está em latim, no lado superior
20

direito do painel.
Aqui a inscrição utilizada é o alfabeto rúnico anglo-saxônico, mas o idioma é o latim,
21

no lado direito do painel; terminando logo acima da palavra gisl.


Fenômeno idêntico pode ser encontrado no prólogo da obra do islandês Snorri Sturluson,
22

a Edda (ou “Edda em Prosa”). O autor descreve como o Deus cristão criou o mundo e
como a humanidade acabou se esquecendo Dele e passou a adorar heróis acreditando
serem deuses, até o advento de Cristo e o retorno à verdadeira fé. Integrando o passado
pré-cristão mitológico nórdico ao universo cultural do cristianismo (Medeiros, 2015b, p.
46 – 77).
Os equivalentes escandinavos aos deuses Balder e Odin.
23

Personagens presentes no poema Beowulf como parte da lendária casa real dos daneses.
24
Artigo

25
E a resposta da charada, “osso de baleia” – uma referência ao material da caixa –,
interpretado como: apesar do final funesto do “rei do terror” isso possibilitou a matéria-
prima para a confecção de um objeto como aquele. Novamente o tema de sofrimento
que promove algo bom no final (Webster, 2012a, p. 31 – 44).

Recebido em 28/02/2023 - Aprovado em 19/10/2023


Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.247-280, jul-dez. 2023 } 280
DOI: 10.5433/1984-3356.2023v16n32p281-310

Educação no Antropoceno:
articulações cosmopolíticas
num mundo em ruínas

Education in the
Anthropocene:
cosmopolitical articulations in
a world in ruins

La educación en el
Antropoceno: articulaciones
cosmopolíticas en un mundo
en ruinas

Maria Alice Gouvêa Campesato1

Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.281-310, jul-dez. 2023 } 281


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Resumo: Este artigo busca discutir o campo educacional no


Antropoceno, época na qual a presença humana, sobretudo nos
últimos 2 séculos, vem provocando impactos catastróficos na vida
do planeta. Para tal, problematiza a tradição ocidental moderna
de pensamento, que coloca o humano (um tipo de humano) na
centralidade do mundo e não considera que os demais seres
possuem historicidade e, portanto, como seres agentes. Toma a
floresta como um entre-lugar que permite elaborar outras e novas
estratégias de subjetivação neste mundo em ruínas. Por fim,
explora algumas possibilidades de composição entre o campo
articulações cosmopolíticas num mundo em ruínas

educacional, notadamente regido por uma visão eurocêntrica de


mundo, e o pensamento ameríndio, como forma de conjecturar
um outro mundo possível para humanos e extra-humanos.
Palavras-chave: antropoceno; cosmopolítica; perspectivismo;
educação; Gaia.
Maria Alice Gouvêa Campesato

Abstract: This article seeks to discuss the educational field in


Educação no Antropoceno:

the Anthropocene, a time when human presence, especially in


the last 2 centuries, has been causing catastrophic impacts on
the life of the planet. To this end, it problematizes the modern
Western tradition of thought, which places the human (a type of
human) at the center of the world and does not consider that other
beings have historicity and, therefore, as agent beings. It takes
the forest as an in-between place that allows the elaboration of
other and new subjectivation strategies in this world in ruins.
Finally, it explores some possibilities of composition between
the educational field, notably governed by a Eurocentric view
of the world, and Amerindian thought, as a way of conjecturing
another possible world for humans and extra-humans.
Keywords: anthropocene; cosmopolitics; perspectivism;
Artigo

education; Gaia.

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Ruínas agora são os nossos jardins. Nossa subsistência é provida


por paisagens degradadas, ‘arruinadas’ (Tsing, 2018, p. 367).

Ao tomar a história dos cogumelos Matsutake, a antropóloga Anna Tsing


(2018) apresenta a ambivalência de uma planta que cresce em um terreno
devastado pela bomba atômica, servindo, ao mesmo tempo, de alimento e
toxidade para pessoas e animais. Tsing (2018, p. 367) aponta que “apesar do
ataque nuclear”, a história da propagação desses cogumelos pode ser uma
“boa metáfora não apenas para a nova economia capitalista emergindo dos
entulhos da modernização socialista, mas também para o papel estimulante
dos produtos da floresta, a despeito de um histórico de impactos ambientais”.
Como é possível um território devastado produzir vida? De que maneiras
articulações cosmopolíticas num mundo em ruínas

tal metáfora pode nos ajudar a pensar o terreno educacional no presente?


Como a história pode ajudar a desnaturalizar alguns conceitos tomados como
universais, abrindo espaço para apontar outras formas de relação com a vida?
Que composições podem ser estabelecidas para conjecturar um outro mundo
possível para humanos e extra-humanos?
Tais questionamentos atravessam este texto que, sem a pretensão de dar
Maria Alice Gouvêa Campesato

respostas conclusivas, explora algumas possibilidades de composição entre


o campo educacional, notadamente regido por uma visão eurocêntrica de
Educação no Antropoceno:

mundo, e o pensamento ameríndio. Para tal, aborda alguns aspectos da tradição


ocidental greco-romana e medieval como forma de romper com o hábito
moderno de tomar o passado como inexistente. Pois, nas palavras de Bergson
(2006, p. 174-175),

[...] a distinção que fazemos entre nosso presente e nosso passado


é [...] senão arbitraria, pelo menos relativa à extensão do campo
que nossa atenção à vida pode abarcar. [...] Numa palavra, nosso
presente cai no passado quando deixamos de lhe atribuir um
interesse atual.

Nesse sentido, trazer à visibilidade algumas cenas passadas pode nos ajudar a
(re) pensar a própria história, como foi e como vem sendo contada, “entrelaçada
com objetivos elitistas e compromissos nacionalistas” (Tsing, 2019, p. 17),
Artigo

privilegiando apenas a humanidade como matéria de estudo, como se apenas os


humanos fossem dotados de historicidade. Faz-se necessário, pois, “recuperar a
história e permitir a entrada de não humanos, assim como historiadores sociais
se abriram para as histórias de povos colonizados, povos indígenas, pessoas

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de cor2 e mulheres no final do século XX” (Tsing, 2019, p. 17). Isso provoca-
nos a pensar, também, nos regimes de verdade que tomamos como algo dado
à priori, como, por exemplo, a separação entre natureza e cultura, humano e
não-humano, civilização e barbárie, teoria e prática e outros antagonismos que
expressam uma forma dualista de pensar.
Se experimentamos, na contemporaneidade, uma sucessão de acontecimentos
ambientais, aparentemente despropositados, como as fortes mudanças
climáticas, com ondas de calor ou de frio excessivo; incêndios florestais
de grandes proporções; enchentes; tempestades; secas, etc., isso anuncia
que o planeta está entrando em colapso, juntamente com o modo de vida
moderno. De acordo com as previsões de diversos climatologistas, conforme
aponta Costa (2020, p. 13), dispomos de apenas 11 anos para “reconsiderar as
articulações cosmopolíticas num mundo em ruínas

escolhas sociopolíticas, tecnológicas e econômicas que vêm alicerçando nossas


sociedades [...] e reduzir drasticamente as emissões de gases de efeito estufa,
oriundas principalmente da queima de combustíveis fósseis, na atmosfera”.
Todo esse cenário de esgotamento parece tornar difícil perceber o que,
comumente, chamamos de natureza, a partir de outra(s) perspectiva(s). Por
isso – mas não somente – escutar as palavras do xamã yanomami Kopenawa e
Maria Alice Gouvêa Campesato

do pensador Ailton Krenak, opera como um rasgo, uma grande abertura num
Educação no Antropoceno:

pensamento e num modo de existência petrificado e enrijecido, que se repete,


não como produção da diferença, mas como perpetuação de algo que ficou
perdido no tempo, como no mito de Sísifo, num movimento de eterna punição.

***

Nós, habitantes da floresta, só gostamos de lembrar dos homens


generosos. Por isso temos poucos bens e estamos satisfeitos
assim. [...]. Não queremos arrancar os miné­rios da terra, nem que
suas fumaças de epidemia acabem caindo sobre nós! Que­remos
que a floresta continue silenciosa e que o céu continue claro,
para poder­mos avistar as estrelas quando a noite cai (Kopenawa;
Albert, 2015, p. 407).

Avistar as estrelas do espaço silencioso da floresta, algo tão caro ao mundo


Artigo

indígena, não se apresenta como um desejo exclusivo a esse mundo: a floresta,


este ser imanente, temível, acolhedor, ameaçador, com seus paradoxos e
ambiguidades, tem a capacidade de abrigar as mais diversas percepções. Ao
longo da história, a natureza – ou a floresta – “sempre foi uma categoria central

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do pensamento humano, ao menos na cultura ocidental, desde a Antiguidade”


(Pádua, 2010, p. 83).
No início do século XIII, o “precursor e talvez modelo de Robin Hood, o
aventureiro Eustáquio, o Monge, [...] refugia-se no bosque de Boulonnais” (Le
Goff, 2005, p. 124). Mundo de refúgio, a floresta tem seus atrativos: aventura e
caça para o cavaleiro; fonte de subsistência para os camponeses, ela é repleta
“de ameaças, de perigos imaginários ou reais. É o horizonte inquietante do
mundo medieval. Ela o circunscreve, o isola, o estreita. [...] De sua ‘opacidade’
amedrontadora surgem os lobos famintos, os salteadores, os cavaleiros
saqueadores” (Le Goff, 2005, p. 125-126).
No limiar entre o material e o quimérico, o palpável e o etéreo, o real e o
imaginário, pode-se dizer que a floresta se situa no entre. “Estar entre, estar à
articulações cosmopolíticas num mundo em ruínas

escuta são estados do sensível, do corpo que transborda de si” (Spritzer, 2021,
p. 7) para compor um mundo comum.
É precisamente esse verbo-movimento de transbordar/transbordamento
de si que importa neste artigo: para pensar a Educação no Antropoceno3,
essa “era geológica do ser humano, na qual este é a força transformadora do
meio ambiente e do planeta” (Colacios; Locastre, 2020, p. 2); para estabelecer
Maria Alice Gouvêa Campesato

composições com aqueles que, conosco, habitam a Terra. Criações, fabulações,


Educação no Antropoceno:

articulações, montagens: menos importa o termo; interessam os afetos em


seus múltiplos desdobramentos. Por isso é preciso voltar no tempo, retroceder
(em sentido cronológico) alguns momentos; interromper, mesmo que por certo
instante, o fluxo acelerado e hiperconectado que experimentamos (e vivemos,
acolhemos e assumimos como verdade) no presente, em que “a inscrição
generalizada da vida humana na duração sem descanso, definida por um
princípio de funcionamento contínuo” (Crary, 2014, p. 18) não oferece pausas.
Se no mundo medieval do Ocidente, a floresta provocava sobre si um conjunto
díspar de entendimentos, percepções e afetos, sendo fonte de vida e/ou refúgio,
envolvendo as mais variadas incertezas, na atualidade este mesmo mundo a
percebe como fonte de recursos (inesgotável, para alguns). Envolta em um
imaginário místico que se produzira ao longo de séculos e que se transmitira
oralmente de geração a geração, a floresta medieval guarda toda uma relação
Artigo

simbiótica entre humanos e outros seres.

O substrato mágico formava parte de uma concepção animista da


natureza que não admitia nenhuma separação entre a matéria e
o espírito, e deste modo imaginava o cosmos como um organismo

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vivo, povoado de forças ocultas, onde cada elemento estava em


relação ‘favorável’ com o resto (Federici, 2017, p. 257).

Dessa forma, encontra-se, no decorrer da história ocidental (ao menos da


Antiguidade ao final da Idade Média), um conjunto de práticas envolvendo
a preparação de unguentos e remédios que associavam o uso de ervas com
rituais que, para além dos efeitos medicinais, exerciam um “forte impacto
no imaginário coletivo, devido ao seu uso mágico marcante, sendo usadas
para tentar curar as doenças, mas também para tentar resolver situações que
eram ocultas e inexplicáveis” (Sterza, 2019, p. 16). Conforme Federici (2017),
dada à sua condição ilimitada de possibilidades, a magia se fazia presente
em práticas que se estendiam da quiromancia à cura: daí a importância de
articulações cosmopolíticas num mundo em ruínas

erradicação de tais práticas no mundo moderno, pois vinham de encontro à


“racionalização capitalista do trabalho” (Federici, 2017, p. 258). Para a autora,
todo o movimento de caça às bruxas vai se dar a partir do século XV, quando
ocorreram os “primeiros julgamentos de bruxas [...] e o desenvolvimento da
doutrina sobre a bruxaria, na qual a feitiçaria foi declarada como uma forma
de heresia e como o crime máximo contra Deus, contra a Natureza e contra o
Maria Alice Gouvêa Campesato

Estado” (Federici, 2017, p. 296).


Federici (2017) argumenta que entre os anos de 1435 e 1487 produziram-se
Educação no Antropoceno:

28 tratados sobre bruxaria. Porém, foi a partir da segunda metade do século


XVI, “nas mesmas décadas em que os conquistadores espanhóis subjugaram as
populações americanas”, que houve um crescimento no número de mulheres
julgadas como bruxas, quando “a iniciativa da perseguição passou da Inquisição
às cortes seculares” (Federici, 2017, p. 297). Todo esse empreendimento de
perseguição às mulheres que praticavam sua medicina em forte conexão com os
elementos sobrenaturais da floresta, teve seu apogeu entre os anos de “1580 e
1630, ou seja, numa época em que as relações feudais já estavam dando lugar às
instituições econômicas e políticas típicas do capitalismo mercantil” (Federici,
2017, p. 297).
Embora não seja o objetivo deste artigo traçar uma genealogia da relação
humanidade e floresta, é importante mencionar que esta última passa a receber
Artigo

um perfil objetificado com a modernidade. Isso não significa que nas tradições
anteriores, a relação humano X natureza tenha sido, digamos, pacífica, que não
tenha havido exploração do solo, desmatamentos e outras intrusões ambientais
danosas (muito embora não tenham atingido a amplitude que experimentamos
hoje). O mesmo pode-se dizer com relação à Modernidade, ou seja, não obstante

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a exploração capitalista consiga seduzir grande parcela da população, há um


contingente de pessoas, grupos, instituições, que vêm mobilizando esforços
para resguardar as vidas das e nas florestas e os seres que nelas/com elas vivem.
Mesmo que o pensamento racional de mundo tenha se dado com os primeiros
pensadores gregos, esses mantêm a estrutura que constituía as cosmogonias
míticas que já, há muito, existiam no Oriente Médio e na chamada Grécia
arcaica. Essas cosmogonias narravam a história do mundo “como uma luta
entre entidades personificadas. Eram gênesis no sentido bíblico do livro do
Gênesis, ‘livro das gerações’, destinadas a conduzir um povo à memória de seus
ancestrais e a uni-los às forças cósmicas e às gerações dos deuses” (Hadot,
2014, p. 28). O objeto dessas cosmogonias centrava-se na Criação: do mundo,
da humanidade, do povo (Hadot, 2014).
articulações cosmopolíticas num mundo em ruínas

As mudanças quanto ao entendimento sobre a relação do humano no


universo, não obstante variem conforme o contexto em que são desenvolvidas,
mantém, ao longo do pensamento ocidental, uma concepção em comum: a de
que há um único universo, habitado por diversas culturas. E essa é uma grande
diferença entre o pensamento ocidental e o ameríndio:
Maria Alice Gouvêa Campesato

[...] enquanto nossa ontologia multiculturalista moderna,


antropológica, está fundada na implicação mútua da unidade da
Educação no Antropoceno:

natureza e da pluralidade de culturas, a concepção ameríndia iria


supor uma unidade espiritual e uma diversidade corpórea – ou,
em outras palavras, uma ‘cultura’, múltiplas ‘naturezas’ (Viveiros
De Castro, 2018, p. 251).

Ou seja, o sentido que nós, ocidentais, atribuímos à natureza, à floresta, aos


animais, etc., é o de que eles são desprovidos de alma. A cosmologia ameríndia,
por sua vez, “imagina um universo povoado por diferentes tipos de agências
subjetivas, humanas assim como não-humanas, cada uma dotada com o mesmo
tipo genérico de alma, isto é, do mesmo tipo de capacidades cognitivas e
volitivas” (Viveiros De Castro, 2018, p. 251).
Quando os indígenas se referem à floresta, aos rios, à Terra, etc., o que está
implicado – e que escapa à nossa compreensão – é que tais seres são dotados
Artigo

de humanidade. Difícil compreensão para uma tradição de pensamento que


coloca o humano na centralidade do universo.
Voltando, então, ao propósito deste artigo e ao título que abre esta seção,
tomando a floresta como em entre, ou como um entre-lugar4, pergunta-se “de

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que modos isso se articula ao campo educacional e à formação humana?” O


entre-lugar “é um conceito que aponta para um determinado arranjo espacial
que se caracteriza por ser fronteira, ou seja, ao mesmo tempo em que separa e
limita, permite o contato e aproxima” (Ferraz, 2014, p. 30). Nessa perspectiva,
o entre possibilita arranjos, conexões, composições, necessárias, urgentes e
estratégicas para enfrentarmos os problemas – muitos, a propósito – deste
mundo comum a todos (mesmo àqueles que não o percebem como tal). Nesse
sentido, os entre-lugares “fornecem o terreno para a elaboração de estratégias
de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de
identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir
a própria ideia de sociedade” (Bhabha, 1998, p. 20). E é precisamente no sentido
de elaborar outras estratégias de subjetivação, para conjecturar alianças neste
articulações cosmopolíticas num mundo em ruínas

mundo em ruínas, que o campo educacional se apresenta como uma possibilidade.


Sendo a escola, tal como a universidade, um “locus privilegiado para fazer uma
experiência radical da potência humana” (Lopez, 2015, p. 156), isso significa
que é, também, um lugar para a pensar sobre as práticas cotidianas e sobre
um espectro mais amplo “da produção industrial, dos ciclos econômicos, das
escolhas políticas, das interações sociais e mesmo da ética humana para os
Maria Alice Gouvêa Campesato

próprios humanos e não-humanos [...], essencial para as expectativas futuras


Educação no Antropoceno:

do planeta frente ao Antropoceno” (Colacios; Locastre, 2020, p. 13)


Este artigo não tem a pretensão de dar uma resposta que venha a solucionar
as questões apontadas ou as problemáticas que enfrentamos no presente,
mas busca estabelecer pontos de aproximação entre formas diversas de
pensamento para perspectivar uma possibilidade de atuação nos processos
formativos humanos. Para tal, estabelece uma conversação com outros campos
epistemológicos e com outros tempos históricos, partindo de um diagnóstico
do presente, conforme a próxima seção.

Diagnóstico do presente, um breve esboço

Somos, na Contemporaneidade, invadidos, ininterruptamente, por notícias,


imagens, ruídos, propagandas, etc. que, a todo momento, nos conclamam
Artigo

a consumir produtos, ideias e, sobretudo, modos de vida. Os algoritmos


conduzem nossa atenção conforme os hábitos que desenvolvemos no mundo
digital. Por meio deles – dos hábitos – munimos todo um sistema de gestão de
dados que “acessa, traduz e classifica gestos, relacionamentos, subjetividades e
individualidades em tempo imediato, capturando as mais sensíveis ou rústicas

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variações” (Teles, 2018, p. 430).


Nessa busca interminável pela captura da atenção, as redes sociais
desempenham um papel crucial. E é precisamente a partir delas, mas não
exclusivamente, que a propagação de fake news toma centralidade na política
contemporânea, observável nas campanhas

[...] eleitorais em grandes democracias, como o Brasil (2018), a


Nigéria (2019) e a Índia (2019), até as relações diplomáticas entre
Estados Nacionais, passando pela formação da opinião pública
em torno de políticas públicas, pelas ondas de violência coletiva e
linchamentos públicos ou pela pandemia de Covid-19 (Mendonça
et al., 2023, p. 10).
articulações cosmopolíticas num mundo em ruínas

No Brasil, assistimos, muito recentemente e no interregno de uma semana, a


duas imagens que se (contra)põem num único cenário: a Praça dos Três Poderes,
em Brasília. A primeira cena, multicores, como num elogio à vida (a diferentes
formas de vida), se produz no dia 1 de janeiro de 2023, quando da posse do
presidente eleito Luís Inácio Lula da Silva, que sobe a rampa do Palácio e recebe
a faixa presidencial de pessoas representantes da coletividade brasileira (um
Maria Alice Gouvêa Campesato

líder indígena, um menino negro, um homem com deficiência, um metalúrgico,


Educação no Antropoceno:

um professor, uma catadora de materiais recicláveis, um atleta, uma cozinheira


e um artesão).
A segunda cena, paradoxalmente composta, de forma majoritária, pelas cores
verde e amarelo da bandeira brasileira, se dá no dia 8 de janeiro. O mesmo local
tomou, desta vez, outra configuração, com os atos de vandalismo protagonizados
por grupos bolsonaristas que depredaram o patrimônio público, danificaram
obras de arte de valor inestimável, saquearam e destruíram dependências do
Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e a sede do Supremo Tribunal
Federal.
Duas cenas que se distinguem filosófica, política e esteticamente. Se a
primeira aponta para um panorama estético e multicolorido que traduz a
heterogeneidade da sociedade brasileira, “atravessado pela mais multifacetada
galeria de personagens” (Pelbart, 2005, p. 1325), a segunda volta-se para a
Artigo

decomposição dessa mesma sociedade em direção a um único, hegemônico


modelo, padrão ou forma de vida que busca excluir e/ou subjugar todas as
demais que não se encaixam nesse modelo. Neste momento, o ódio tomou o
lugar da alegria experimentada na semana anterior. Essas cenas de ruína nos

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remetem a cenas de guerra, a territórios devastados, a passados cujas imagens


se atualizam em nossa memória.
Racismo, genocídio, xenofobia, sexismo são alguns dos termos que vêm a
compor um quadro que coloca o outro em posição de subalternidade, vindo
a respaldar todo um conjunto de práticas de violência que, em casos mais
extremados, resultam em extermínio. “As técnicas de policiamento e disciplina,
além da escolha entre obediência e simulação que caracterizou o potentado
colonial e pós-colonial, estão gradualmente sendo substituídas por uma
alternativa mais trágica, dado o seu extremismo” (Mbembe, 2016, p. 141).
No Brasil, o Racismo de Estado, tomado como política de governo nos últimos
4 anos, levou ao extermínio milhares de pessoas, quer seja pela opção por “deixar
morrer”, como vimos no gerenciamento da pandemia de Covid-19; quer seja
articulações cosmopolíticas num mundo em ruínas

pela crença de que há vidas (humanas e extra-humanas) que não valem a pena:
“fazer morrer”, nessa perspectiva, pode ser uma possibilidade de compreender,
por exemplo, a investida das atividades extrativistas protagonizadas pelo
garimpo ilegal contra a vida de seres humanos e de espécies animais e vegetais
na região do Amazonas, mais especificamente na Terra Indígena Yanomami
(TIY).
Maria Alice Gouvêa Campesato

Tais episódios se inscrevem numa lógica extrativista na qual o mundo


Educação no Antropoceno:

ocidental vem operando nos últimos dois séculos. A intervenção humana nos
biomas da Terra atinge não somente os níveis atômicos, mas todo o planeta,
“com interferência nos ciclos naturais, nas estações do ano, nas chuvas, no
curso de rios, no sistema climático mundial, na criação involuntária de desertos
e voluntária de pastagens, no desmatamento e desaparecimento de florestas e
na poluição” (Colacios; Locastre, 2020, p. 2) que abrange todos os “seres-da-
terra, sejam eles animais, plantas, rios, montanhas ou atmosfera” (Costa, 2019,
p. 110).
Diante desse quadro, pensar a formação humana5 se configura como um
dos maiores desafios do campo educacional do presente, cujos esforços para
enfrentá-lo serão infrutíferos se não conseguirmos estabelecer conexões com o
passado que nos constitui; não formos capazes de criar articulações com formas
extra-modernas de pensamento e se não estivermos abertos ao estabelecimento
Artigo

de relações com os outros seres que, conosco, habitam este planeta. Nessa
perspectiva, a aproximação do campo educacional às cosmologias ameríndias,
tomando a floresta como um entre-lugar, permite outros modos de subjetivação
frente ao Antropoceno.

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Regra da ciência

A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em


des­truí-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da
terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras
vão rachar no calor. A terra ressecada ficará vazia e silenciosa
(Kopenawa, 2015, p. 6).

As palavras do xamã indígena yanomami se apresentam como um aviso


derradeiro ao povo da mercadoria; palavras que tiveram de ser desenhadas em
peles de papel para que os brancos, quem sabe, possam escutá-las. Se o povo da
mercadoria insistir em continuar com sua atuação devastadora contra a floresta,
os espíritos xapiri fugirão, e, nem mesmo os xamãs serão capazes de chamá-
articulações cosmopolíticas num mundo em ruínas

los para que façam suas danças de proteção; não conseguirão mais manter
distantes as epidemias e os espíritos maléficos “que transformarão a flo­resta
num caos. Então morreremos, um atrás do outro, tanto os brancos quanto nós.
Todos os xamãs vão acabar morrendo. Quando não houver mais nenhum deles
vivo para sustentar o céu, ele vai desabar” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 6).
A catástrofe anunciada por Kopenawa em A queda do céu “guarda profundas
Maria Alice Gouvêa Campesato

ressonâncias com os diagnósticos ocidentais da degradação ambiental – a


Educação no Antropoceno:

qual, experimentada por seu povo na floresta, prenunciaria a devastação de


todo o mundo” (Costa, 2020, p. 69). Tais diagnósticos apontam para um colapso
ambiental em nível global e de efeitos irreversíveis. Na região amazônica,
sobretudo nas terras yanomami, a investida extrativista atinge patamares
nunca alcançados.
De acordo com o Relatório desenvolvido pela Associação Hutukara Yanomami
e a Associação Wanasseduume Ye’kwana, publicado no ano de 2022, a destruição
decorrente do garimpo ilegal na TIY no ano de 2021 teve um aumento de 46%
em relação ao ano anterior (HAY; AWY, 2022). “Houve um incremento anual
de 1.038 hectares, atingindo um total acumulado de 3.272 hectares” (HAY;
AWY, 2022, p. 15), sendo esse o maior aumento desde o ano de 2018, quando
foi iniciado o monitoramento. Segundo o Relatório, essa é “possivelmente, a
maior taxa anual desde a demarcação da TIY em 1992” (HAY; AWY, 2022, p. 15),
Artigo

abarcando um contingente superior a 16.000 pessoas, o que corresponde a 56%


da população que habita essa Terra (HAY; AWY, 2022).
Conforme Arruda e Colacios (2019, p. 69), “ao devastar parcial ou totalmente
uma floresta, exterminando seus ecossistemas, a empresa capitalista lega aos

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habitantes da região, do país e de todo o planeta as consequências imediatas e a


longo prazo desta atividade”. Tais efeitos concorrem para alterações profundas
nos sistemas ambientais e climáticos que atingem escala planetária, em que “à
perda de patrimônio genético e da diversidade de fauna e flora somam-se as
implicações para a qualidade do ar e da água, a queda da fertilidade do solo e os
futuros (tão presentes) desequilíbrios atmosféricos e oceânicos e a deterioração
dos ambientes urbanos” (Arruda; Colacios, 2019, p. 69). Para os autores, trata-
se de uma guerra direcionada contra humanos e não-humanos, pautada pelo
desenvolvimentismo capitalista. “Uma guerra do presente, inserida no regime
presentista de historicidade, e que tem a devastação como principal arma de
destruição em massa” (Arruda; Colacios, 2019, p. 69).
Esse direito exercido sobre a vida e sobre a morte das populações, cuja
articulações cosmopolíticas num mundo em ruínas

humanidade lhes fora suprimida, esse poder de decidir e “ditar quem pode viver
e quem deve morrer”, segundo Mbembe (2016, p. 123) é a “expressão máxima
da soberania”. Um direito de matar que, nas colônias, não está subordinado a
quaisquer normas, regras ou princípios; ao contrário disso, “o terror colonial se
entrelaça constantemente com fantasias geradas colonialmente, caracterizadas
por terras selvagens, morte e ficções para criar um efeito de real” (Mbembe,
Maria Alice Gouvêa Campesato

2016, p. 134). Direito, esse, que não está circunscrito aos humanos, mas a todos
Educação no Antropoceno:

os demais seres.
A ideia de tomar o outro, o diferente, por selvagem, bárbaro ou exótico é que irá
legitimar toda uma série de atrocidades cometidas sobre diversos povos, como
no caso dos indígenas brasileiros. Tal ideia, não obstante não seja inaugurada
na Modernidade6, encontra condições de possibilidade a partir do final do
século XV, quando “as potências marítimas europeias disputavam o controle
das terras do Novo Mundo: primeiramente, com o propósito exploratório de
suas riquezas; posteriormente, como potenciais mercados consumidores para
os bens produzidos nas metrópoles” (Rodrigues; Campesato; Schuler, 2022, p.
91). Do final da centúria dos XVII aos fins do século seguinte, essas potências se
empenharam na legitimação de “seus projetos de expansão militar, diplomática
e produtiva em empresas que buscavam aperfeiçoar o conhecimento ilustrado,
destinadas a constituir um conhecimento universal sobre o planeta, suas
Artigo

espécies vegetais e animais e suas sociedades e culturas” (Paredes; Rodrigues,


2013, p. 96).
Todo esse esforço pode ser compreendido a partir do empreendimento
genealógico desenvolvido por Michel Foucault (2005), quando argumenta que
aquilo a que comumente chamamos de desenvolvimento do saber tecnológico do

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século XVIII resulta de um processo de disputa pelo controle do saber. O século


XVIII é atravessado por uma pluralidade de saberes que “estavam em luta uns
com os outros, uns diante dos outros, numa sociedade em que o segredo do
saber tecnológico valia riqueza e em que a independência desses saberes [...]
significava também a independência dos indivíduos” (Foucault, 2005, p. 214).
Com o desenvolvimento das forças produtivas e das “demandas” econômicas,
houve não somente a valorização desses saberes, mas um tensionamento entre
eles, sendo essa luta que caracteriza o “desenvolvimento do saber tecnológico
do século XVIII” (Foucault, 2005, p. 215).
Nessas lutas e nesse esforço de “anexação” e “generalização”, o Estado
intervém, lançando mão de quatro procedimentos: eliminação e desqualificação
de pequenos saberes; normalização dos saberes dispersos; classificação
articulações cosmopolíticas num mundo em ruínas

hierárquica e, por fim, o controle desses saberes (Foucault, 2005). Portanto, o


que ocorreu não foi aquilo a que comumente compreende-se como o progresso
da razão, mas um disciplinamento de saberes heterogêneos, como uma “espécie
de grande aparelho uniforme dos saberes” (Foucault, 2005, p. 218). Isso vai tomar
uma forma mais nítida com a emergência da ciência oficializada e legitimada
pela Universidade, ao desempenhar seu papel de seleção de saberes, exercendo
Maria Alice Gouvêa Campesato

um monopólio de fato e de direito, que faz com que um saber que não tenha se
Educação no Antropoceno:

produzido em seu interior seja desclassificado ou desprezado (Foucault, 2005).


Evidentemente que as instituições educacionais não podem abrir mão dessa
escolha, ou, dito de outro modo, a seleção é um dos papeis das escolas e das
universidades. Mas o que a hierarquização e seleção de saberes nos faz pensar
é justamente naqueles conhecimentos que são, a priori, desqualificados e que
não constam dos currículos, das matérias de estudo, das discussões em aula.
Pode-se dizer que toda essa produção irá estabelecer os papeis e os lugares
dos sujeitos e das instituições, numa geração de valores que se coloca antagônica
aos não-modernos com quem os europeus começaram a “se deparar com o
advento das grandes viagens marítimas. A racionalidade colonial fundamentada
na oposição dicotômica entre civilizados e selvagens, entre humanos e não
humanos passou a abranger uma multiplicidade de dicotomias hierarquizadas”
(Hillesheim et al., 2022, p. 115) e que persistem ainda hoje.
Artigo

Isso nos ajuda a compreender como se vai constituindo todo um “direito”


de fala sobre o outro e pelo outro; de perceber como se vai produzindo todo um
conjunto de qualificação de saberes, que coloca os não-ocidentais em posição
inferior e a nomeá-los por bárbaros, selvagens, canibais, atribuindo-lhes o
estatuto de não-humanos, não-pensantes, e, por conseguinte, incapazes de

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filosofar, conforme mencionado anteriormente. Daí o direito exercido sobre


eles, passíveis de subjugação ou extermínio e do poder sobre seus territórios;
legitimando a destruição de (suas) florestas e de seu modo de vida. Por isso a
importância da problematização, do olhar crítico e atento sobre as verdades
que se colocam como universais e que a história tradicional vem perpetuando.
Como são selecionados os temas, os autores e as perspectivas teóricas que
atravessam o trabalho docente e a formação de crianças, jovens e adultos de
nossas escolas e universidades hoje? Será que as discussões contemporâneas,
sobretudo aquelas que exploram temas como o Antropoceno, por exemplo,
estão sendo levadas para as salas de aula? Será que pensamentos não-
modernos, como as cosmologias ameríndias, estão presentes nos currículos
escolares e universitários? De que maneira a interdisciplinaridade ocorre, de
articulações cosmopolíticas num mundo em ruínas

fato, quando pensamos em temas transversais (como a Educação Étnico-Racial


ou a Educação Ambiental)? Essas perguntas podem auxiliar a perspectivarmos
o gigantesco desafio àqueles que se ocupam dos processos formativos humanos
(professores, gestores educacionais, pesquisadores). Mas também é um desafio
que atravessa a todas as áreas de conhecimento ou campos epistemológicos,
visto que, independentemente da área de atuação, todos vivemos em um único
Maria Alice Gouvêa Campesato

planeta que está ameaçado e que cujas reações têm se mostrado catastróficas
Educação no Antropoceno:

para humanos e não-humanos. O perspectivismo ameríndio nos oferece uma


possibilidade para pensarmos o campo educacional no Antropoceno, como
uma “abertura radical à alteridade e à escuta do ponto de vista do outro, tão
necessária como urgente nos tempos que correm” (Freitas, 2018, p. 390).

Natureza(s) & cultura(s)

Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que


somos a humanidade. Enquanto isso [...], fomos nos alienando
desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar
que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade (Krenak,
2019, p. 16).

Este breve excerto nos convoca a pensar, dentre outras possibilidades, sobre
Artigo

dois aspectos, a meu ver, fundamentais para que se possa adentrar com um
pouco mais de profundidade nas questões ambientais de nosso presente. A
primeira delas diz respeito à concepção dualista, tributária do pensamento
platônico, e que tomou centralidade na tradição ocidental, que coloca os

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seres em posição de antagonismo, como apontado anteriormente. A segunda


questão, que está fortemente imbricada à primeira, se refere aos conceitos de
humanidade e natureza, ou, melhor dizendo, apesar dos conceitos variarem
conforme o contexto em que são produzidos, ainda assim, não dão conta da
multiplicidade que compõem tanto a “humanidade” quanto a “natureza”. Como
argumenta Viveiros de Castro (2008, p. 93), “a vulgata metafísica ocidental
consiste na ideia de que não existe senão uma única natureza externa, e várias
culturas, várias subjetividades que giram em torno dessa natureza”.
Não obstante as concepções correntes atribuídas ao par humanidade e
natureza, elas guardam, ao menos a partir da modernidade, algo em comum:
a ideia de que apenas os humanos são agentes ativos no planeta, e a natureza,
incluindo a Terra e os demais seres, estão sujeitos às ações humanas, ou seja,
articulações cosmopolíticas num mundo em ruínas

apenas os humanos são “agentes históricos, e a natureza não passa de mera


concatenação de matéria inerte” (Costa; Da Veiga, 2021, p. 286). Romper com
essa concepção de que somente os humanos são capazes de agir no mundo, é
crucial para que consigamos estabelecer alianças possíveis, capazes de promover
outros modos de relação com os outros viventes. Assim, a aproximação com
outros modos de conceber e de se relacionar com o planeta e com os seres
Maria Alice Gouvêa Campesato

que nele vivem, nos ajudam a “problematizar o gesto fundante de pensar os


Educação no Antropoceno:

problemas educacionais com base na construção de quadros classificatórios


dicotômicos” (Freitas, 2018, p. 390).
A ideia de que a Terra “se mostra como o resultado provisório e contingente
de uma longuíssima história em que os organismos foram modificando as
condições de sua própria existência” (Costa; Da Veiga, 2021, p. 279) é o que
propõe a teoria de gaia desenvolvida por Lovelock e Margulis “e as ciências do
sistema Terra que dela se desdobraram” (Costa; Da Veiga, 2021, p. 279).
A partir de Lovelock e Margulis, Bruno Latour e Isabele Stengers retomam a
ideia de Gaia como um ser “vivente e sentiente” (Sztutman, 2019, p. 88);

[...] o antidoto a uma teologia política da Natureza, manifestando


um novo poder de convocação, desta vez não dos ‘humanos’ – em
oposição radical aos não humanos – mas dos ‘terranos’, estes que
deliberadamente deixam de ser modernos para reatar vínculos
Artigo

com os seres da terra.

Deixar de ser moderno, nesse sentido, é recusar-se a perpetuar todo um


modo de vida antropocêntrico, hedonista, individualista, autocentrado; é

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compreender o mundo em sua multiplicidade; recusar-se à universalização;


tomar o futuro não como uma consequência inevitável da linearidade do tempo
e da história – o progresso, o desenvolvimento; é recusar-se ao esquecimento
de que os conceitos que tomamos como universais não passam de criação
humana, de um tipo de humano.
Nessa perspectiva, os “Humanos são aqueles que, vendo seu projeto
modernizador ameaçado pela intrusão de Gaia, optam por nele insistir,
acreditando poder prescindir do solo que os sustenta. Eles fogem da Terra, da
iminência de sua intrusão, como se pudessem se abrigar alhures” (Costa, 2020,
p. 222). Daí se pode compreender o desapego, a indiferença e até a negação de
alguns para com os problemas ambientais em todos os seus desdobramentos.
Se o preço é alto para uma grande parcela da população do planeta, bem como
articulações cosmopolíticas num mundo em ruínas

para as espécies animais e vegetais das florestas e para a própria Terra, isso
parece não importar, pois este é o custo do progresso, do desenvolvimento. E
em nome dele que a insistência por continuar extraindo, explorando, vem a
justificar as ações destrutivas.
Os Terranos, por sua vez
Maria Alice Gouvêa Campesato

[...] são aqueles que são atraídos por uma força diametralmente
oposta, puxados em direção à Terra. Sabem que é na própria Terra
Educação no Antropoceno:

que precisam se refugiar, é a Terra que precisam aprender a ocupar


de uma maneira que não impeça outros seres de a ocuparem a seu
modo (Costa, 2020, p. 222).

Daí a importância das composições, das alianças, do ativismo que não restrinja
o “foco de sua luta a uma ampliação de igualdade de direitos – insurgência
macropolítica”, como sugere Rolnik (2018, p. 25), mas expandindo-a num
sentido micropolítico “para a afirmação de um outro direito que engloba todos
os demais: o direito de existir ou, mais precisamente, o direito à vida em sua
essência de potência criadora” (Rolnik, 2018, p. 25). Esse direito de existir em
toda sua potência não se encerra no humano, ao contrário, é extensivo a outras
formas que não-humanas de vida.
Artigo

Esquecimento da convivência (pacífica ou não) com outros

Kopenawa escreve para os brancos, porque estes esquecem. Não


guardam conhecimentos na memória, precisam inscrevê-los no

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papel, essa ‘pele de imagens’ (Sztutman, 2019, p. 98).

Pelbart (1993, p. 34) diz que vivemos numa época de “achatamento


temporal”; uma cronopolítica que confere eternidade ao presente, abolindo a
história, o passado e o futuro. Um presente achatado, inconsistente, “ilusão
da imortalidade que ignora o começo e o fim, a morte e o imprevisto, que só
integra o desconhecido enquanto probabilidade calculável. O paradoxo é que a
desmaterialização provocada pela velocidade absoluta equivale a uma inércia
absoluta” (Pelbart, 1993, p. 34).
Uma inércia que se encontra de mãos dadas com a velocidade: par perfeito
ao consumo intermitente de informações, produtos, modos de vida, ofertas,
que apelam por nossa, cada vez mais rara, atenção. A memória, nesse contexto
articulações cosmopolíticas num mundo em ruínas

parece estar obsoleta: nada que uma rápida consulta ao Google não resolva em
questão de segundos. Dessa forma, a história e a História parecem também não
apresentar utilidade alguma, pois se o presente é o que importa, se o passado
não faz sentido hoje, por que precisaríamos da memória? Se para os antigos,
à memória atribui-se divindade, nós parecemos tender para colocá-la, por
definitivo, no panteão do esquecimento.
Maria Alice Gouvêa Campesato

É importante lembrar que ao longo da Antiguidade greco-romana, os


exercícios mnemônicos se constituíam como ferramentais importantíssimos
Educação no Antropoceno:

para a formação do caráter dos indivíduos. Inúmeros são os exercícios


praticados nas escolas filosóficas com o propósito de “reativar as normas de
conduta [...], recuperar uma verdade que havia sido esquecida” (Foucault, 2004,
p. 342). A memória, pois, não tinha o caráter utilitarista e pragmático que
adquiriu posteriormente na modernidade, mas estava inserida num “conjunto
de técnicas, exercícios e práticas em que o exame de si se dá por meio da
internalização de regras e preceitos que buscam a constituição do sujeito
verdadeiro” (Campesato, 2021, p. 433).
A memória, nesse contexto, é concebida como um arquivo ao qual se pode
recorrer sempre que necessário, por isso deve ser constantemente exercitada. A
importância atribuída à memória articula-se ao papel que a história e a tradição
representam na antiguidade e no medievo; algo com que os modernos buscarão
romper. Com a Modernidade, há um esgarçamento da tradição, em que o hiato
Artigo

entre passado e presente deixa de ser uma preocupação restrita àqueles que
possuem o tempo livre para ocupar-se com o pensamento, tornando-se um fato
de envergadura política a todos, como argumenta Arendt (2016).
Com o avançar do capitalismo, a produção e o consumo por novidades tomam

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centralidade na vida contemporânea, em que a memória coletiva perde seu


sentido. Essa “evaporação do conhecimento histórico”, segundo Crary (2014, p.
54), não mais demanda uma imposição vertical, visto que as próprias “condições
cotidianas de comunicação e acesso à informação garantem o apagamento
sistemático do passado como parte da construção fantasmagórica do presente”
(Crary, 2014, p. 54). A esse desligamento do passado, essa certa renúncia à
história, atribui-se o sucesso dos sujeitos contemporâneos, um sucesso atrelado
mais à capacidade que possuem de se desvencilhar dos antigos hábitos do que à
velocidade com que conseguem contrair novos (Bauman, 2008). Porém, salienta
Bauman (2008, 161), o melhor de tudo é “o hábito de viver sem hábitos”. Esse
hábito de viver sem hábitos, numa presentificação da vida, coloca o passado, a
tradição e a contemplação em um não-lugar, ou em um lugar de esquecimento
articulações cosmopolíticas num mundo em ruínas

e de abandono. A história cede lugar ao projeto; a atenção, ao interesse.


A fragmentação, a velocidade e a flexibilidade parece ser a tônica de nosso
presente. A mudança flexível, diz Sennett (2009, p. 55) “busca reinventar
decisiva e irrevogavelmente as instituições, para que o presente se torne
descontínuo com o passado”. Uma descontinuidade que acolhe o esquecimento
e outorga qualidade anacrônica à anamnese, ou seja, a memória não só passou
Maria Alice Gouvêa Campesato

a compor o hall das questões obsoletas, como adquiriu o estatuto de algo


Educação no Antropoceno:

indesejado. Evidentemente que aqui não estou tomando o mundo inteiro, sua
suposta totalidade, até porque não é disso que se trata. Também não é uma
generalização, mas uma leitura possível de alguns sintomas do presente que
são muito fortes e parecem nos arrastar a todos.
Se a fragmentação das instituições também fragmentou as vidas das
pessoas, e tal desmantelamento “não gerou maior senso comunitário”, ao
contrário, como pensar o campo educacional no presente? López (2015, p. 143)
diz que é cada vez mais difícil “estar presente nas relações com os alunos, os
colegas e com o próprio conhecimento”, não devido ao impedimento “de estar
fisicamente presente nas aulas, mas ao fato de ser cada vez mais complicado
estar realmente presente, isto é, se fazer presente de certa maneira: demorada,
atenta, íntegra” (López, 2015, p. 143). A demora atenta e íntegra de que fala
o autor apresenta-se incompatível à velocidade contemporânea, pois vivemos
Artigo

apressados. Erguida sobre “a negação e a mudança, [...] sem duração nem


densidade, a sociedade moderna tornou-se uma sociedade sem presente. [...].
Mas foi a captura mercantil da mudança e sua aceleração a que acabará tornando
o tempo moderno definitivamente inabitável” (López, 2015, p. 144).
Essa forma apressada de habitar o presente também produz modos de

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percepção, em que a atenção às sensações e aos sentidos também se torna


reduzida, restrita a suprir instantaneamente necessidades que se vão criando
continuamente. Assim, relações aparentemente básicas, como a percepção do
sabor de um alimento, o contato da pele com alguma superfície, ou mesmo
uma paisagem capturada pela visão, parecem não receber tempo e nem
atenção necessárias para sua contemplação. Isso está associado à dispersão,
à fragmentação e à velocidade. Cada vez mais prestamos menos atenção às
percepções sensoriais, e as coisas do mundo parecem nos afetar através das
lentes de uma câmera: sensações, prazeres e sentimentos que se vão publicando
incessantemente nas vitrines midiáticas do mundo contemporâneo. Consumo
rápido de desejos para que novos possam ser produzidos. E consumidos. E em
nome desse consumo, provocamos danos irreversíveis ao planeta e a muitas
articulações cosmopolíticas num mundo em ruínas

outras formas de vida que nele habitam.


Dessa forma, a atenção hoje tende a voltar-se para uma vida nua, que, “tal
como Agamben a teorizou, é a vida reduzida ao seu estado de mera atualidade,
indiferença, impotência, banalidade biológica” (Pelbart, 2007, p. 65), em que
não há tempo para a ruminação (de ideias, de pensamentos, de imagens, de
sensações corpóreas, de sentimentos, de memórias), à contemplação.
Maria Alice Gouvêa Campesato

A contemplação, algo que para os modernos parece não fazer sentido, uma
Educação no Antropoceno:

vez que a máxima: “tempo é dinheiro”, ainda opera com significativa força
nossas subjetividades. Para os indígenas ocorre justamente o inverso, ou seja, a
contemplação é de vital importância para que consigam manter-se conectados
com os outros seres da floresta e com suas ancestralidades. Isso aparece com
muita intensidade nas narrativas indígenas.
Ao descrever sua relação com o Rio Doce, o pensador indígena Ailton Krenak
apresenta a nós a potência desse encontro: não se trata de apenas ouvir o
barulho das águas, ou de extrair delas seu alimento, trata-se de um encontro –
com os seres da mata, com os ancestrais, com as forças da floresta.

Esse nosso rio-avô, chamado pelos brancos de rio Doce, cujas


águas correm a menos de um quilômetro do quintal da minha
casa, canta. Nas noites silenciosas ouvimos sua voz e falamos com
nosso rio-música. Gostamos de agradecê-lo, porque ele nos dá
Artigo

comida e essa água maravilhosa, amplia nossas visões de mundo


e confere sentido à nossa existência. À noite, suas águas correm
velozes e rumorosas, o sussurro delas desce pelas padras e forma
corredeiras que fazem música e, nessa hora, a pedra e a água nos

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implicam de maneira tão maravilhosa que nos permitem conjugar


o nós: nós-rio, nós-montanhas, nós-terra. Nos sentimos tão
profundamente imersos nesses seres que nos permitimos sair de
nossos corpos, dessa mesmice da antropomorfia, e experimentar
outras formas de existir (Krenak, 2022, p. 13-14).

De que maneiras toda essa potência de vida e de pensamento se articula


com a educação, em tempos de negacionismos, desconfianças e crises das
instituições que experimentamos no Antropoceno?
Longe de encerrar o assunto, ou de dar uma resposta que venha a confortar
a todos e todas que, de alguma maneira, atuam no campo educacional e que se
importam com a formação humana e com o futuro do planeta, apostam-se nas
articulações cosmopolíticas num mundo em ruínas

composições possíveis que o nosso tempo permite, não esquecendo de que as


“condições favoráveis à vida não estão garantidas de uma vez por todas [...],
[pois] não há uma única narrativa capaz de abarcar tudo o que pode ser dito
sobre esse mundo imprevisível, dinâmico, continuamente prenhe de criações
e modificações” (Costa, 2021, p. 47). Floresta como um entre-lugar que permite
elaborar outras e novas estratégias de subjetivação neste mundo em ruínas
Talvez o espaço de sala de aula venha a se constituir hoje como um possível
Maria Alice Gouvêa Campesato

para lidar com esse arquivo que é a memória. Trazer ao campo educacional um
Educação no Antropoceno:

modo de pensar que destitua o humano da centralidade da matéria de estudo,


como se somente a humanidade fosse dotada de história é uma possibilidade
que se abre com a inclusão do pensamento ameríndio nas matérias de estudo
e pesquisa. Daí a importância de darmos mais atenção àquilo que pauta os
currículos escolares e universitários e, também, de que maneiras tais currículos
vêm dialogando com outros modos de compreender o mundo e as relações que
nele se estabelecem.
Portanto, pensar a formação humana no Antropoceno exige que atentemos
para o que se passa com as coisas do mundo, perceber como reagimos a elas,
observar os sentidos e a fazer “a experimentação cuidadosa e a permanente
releitura do que parece já dado e tranquilo [...]. Entender o presente, abrir-se
para o futuro, saber indagar e conseguir indignar-se são o combustível para
um pensamento relevante e para uma ação consequente” (Veiga-Neto; Lopes,
Artigo

2010, p. 163). Anna Tsing (2019, p. 17) argumenta que “teorias e conceitos
emergem melhor da atenção para o mundo. Além disso, não é preciso se
afastar de casa: a vida nas ruínas está em toda parte à nossa volta”. Sabemos
dos muitos e nada simples desafios que se colocam para nós, compreendemos

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que as alterações no ambiente do planeta são profundas e, “possivelmente


irreversíveis, e extremamente danosas à biodiversidade e às sociedades
humanas. A preocupação com o porvir está diretamente relacionada com as
atitudes atuais da humanidade” (Colacios; Locastre, 2020, p. 13) em relação aos
demais seres e com a Terra.
Ao pensar sobre a velocidade, cada vez maior, a que somos interpelados
ininterruptamente, com estímulos de toda a ordem, nos conclamando à ação
imediata, cada vez mais temos menos tempo para digerir as informações, ou os
estímulos recebidos, reduzindo, assim, nossa existência a rápidas, pragmáticas
e utilitárias respostas.

Composições Cosmopolíticas: algumas considerações


articulações cosmopolíticas num mundo em ruínas

Retomo a pergunta que permeou este artigo: “como pensar a educação no


Antropoceno?”, para fazer algumas amarrações parciais, não-conclusivas, mas
que podem, assim espero, contribuir para, ao menos, provocar certa inquietação
naqueles que vem na Educação um espaço potente de produção de novos modos
de subjetivação.
Maria Alice Gouvêa Campesato

Antropoceno, este conceito cunhado por Paul Crutzen e Eugene Stoermer,


Educação no Antropoceno:

se refere à intensa intervenção das ações humanas no sistema terrestre,


sobretudo desde a Revolução Industrial, quando “a produção material e a
reprodução humana adquiriram escalas sem precedentes –, nos sistemas
naturais do planeta, razão pela qual a chamada crise ecológica é considerada
por muitos a maior ameaça já sofrida por nossa civilização” (Costa, 2014, p.
133). Tais ações vieram e vêm exercendo forte impacto sobre a biodiversidade
do planeta, alterando, significativamente, as relações humanas e extra-
humanas: não se trata, portanto, de compreender o Antropoceno desde uma
perspectiva puramente ecológica, biológica, mas, sobretudo, ética. Isso exige
um posicionamento crítico frente ao modo de vida que se pauta pelo capital.
Se concordamos com Haraway (2016, p. 140), quando afirma que “o
Antropoceno marca descontinuidades graves; o que vem depois não será como
o que veio antes”, urge pensar como poderemos equipar as novas gerações
Artigo

(Arendt, 2016) para esse novo contexto que se anuncia. “A preocupação com
o porvir”, como apontam Colacios e Locastre (2020, p. 13), “está diretamente
relacionada com as atitudes atuais da humanidade”; trata-se, pois, das escolhas
políticas que assumimos, das relações que estabelecemos com os outros, sejam
eles humanos ou não. Nesse sentido, “a Educação Ambiental tem um papel

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fundamental neste processo” (Colacios; Locastre, 2020, p. 13): daí a importância


de romper com um modelo educacional que privilegia o modo antropogênico
de existência.
Como argumenta Rolnik (2018, p. 25), momentos de “convulsão são sempre os
mais difíceis de viver, mas é neles também que a vida grita mais alto e desperta
aqueles que ainda não sucumbiram integralmente à condição de zumbis – uma
condição a que estamos todos destinados pela cafetinagem da pulsão vital”.
Assim, cabe perguntar: que conexões podemos estabelecer para que possamos
sair de um imobilismo, para não mais permitirmo-nos sucumbir ao abuso, à
cafetinagem, à vampirização? (Rolnik, 2018).
Essa pulsão vital, cuja potência se fora esmaecendo no mundo ocidental,
especialmente nas últimas décadas, nos convoca a agir. Quais movimentos
articulações cosmopolíticas num mundo em ruínas

seriam necessários para romper com essa “sedução perversa” a qual refere
Rolnik (2018, p. 25), nesta teia que nos enreda e nos paralisa? Uma alternativa
bastante plausível se encontra na composição com as formas de vida marginais,
aquelas mesmas às quais a ciência moderna tratou de colocar no terreno do
improvável; o multinaturalismo.
Ainda incipiente no campo educacional, a temática perspectivista,
Maria Alice Gouvêa Campesato

multinaturalista ou outra designação que venha a compor “uma teoria


Educação no Antropoceno:

cosmopolítica indígena cuja interpretação toma uma outra imagem do


pensamento que libera a conceitualidade virtual do mundo ameríndio”
(Uchôa, 2017, p. 43), vem ampliando seu terreno de penetração para além da
Antropologia. Tal alargamento, experimentado na Filosofia, na Literatura, na
Arte, caminha a passos lentos e muito tímidos, quando o assunto diz respeito
ao campo da Educação.
Se a teoria cosmopolítica indígena, como sugere Uchôa (2017, p. 43) propicia
“os seus contextos de recepção para a filosofia contemporânea e seu desafio
a respeito da questão ambiental” e se esta última é matéria de interesse – ou
deveria ser – de todos os humanos e extra-humanos que habitam o planeta,
por que a demora e a timidez? O estranhamento que determinadas formas de
compreender o(s) mundo(s) – formas essas distantes do dualismo platônico
ou do racionalismo cartesiano que permeia o campo educacional –, provocam,
Artigo

no típico pensamento ocidental, pode vir a responder a questão. Ao mesmo


tempo, tais pensamentos vêm a colocar em xeque um modo de vida que já se
anunciava inadequado, a propósito, aos povos originários quando tiveram seus
primeiros contatos com o “povo da mercadoria” (Kopenawa; Albert, 2015). O
anúncio, silencioso aos ouvidos modernos de um colonialismo em expansão,

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pois, desfruta, ainda hoje, de um lugar à margem em algumas esferas do mundo


capitalístico. A floresta ainda é tomada, pelo senso comum, como um elemento
exótico e distante, cuja existência se justifica como garantia de fonte de riqueza
ou de equilíbrio ambiental e/ou atmosférico. Desde a perspectiva de que a escola
e a universidade produzem modos de subjetivação, trazer ao espaço áulico o
que os povos da floresta têm a dizer é uma possibilidade de romper com esse
pensamento que insiste em tomar a floresta a serviço do humano.
O modelo educacional moderno se assenta em uma tradição euro-
antropocêntrica, em que a hierarquização de saberes foi uma das vias
encontradas para atender as urgências de determinado tipo de sociedade,
conforme apontado. Essa hierarquização, que coloca saberes extra-modernos
em posição de subalternidade, por vezes tratados como algo excêntrico, vem
articulações cosmopolíticas num mundo em ruínas

a justificar sua pouca participação nos conteúdos escolares ou universitários.


Nesse sentido, a imagem de ruínas trazida para este artigo busca provocar
um tensionamento entre o modo de vida ocidental moderno – modo, aliás,
incompatível com a vida do planeta e das espécies que dele fazem parte,
incluindo a humana – e os modos de vida não ocidentais, para pensar o campo
educacional. Se a ruína “remete a uma paisagem em destroços, em que tudo
Maria Alice Gouvêa Campesato

está por fazer, em que as verdades erigidas há muito tempo estão suspensas
Educação no Antropoceno:

ou estilhaçadas, onde mesmo as construções que conseguiram se manter em


pé estão ameaçadas, podendo ruir a qualquer momento”, como argumenta
Sampaio (2019, p. 26), toma-las desde outras perspectivas, a exemplo dos
cogumelos Matsutake, pode nos ajudar a vislumbrar outros modos de habitar
tais destroços, “sem a pretensão de construir novas fortalezas com a ilusão de
segurança e eternidade, aceitando a instabilidade e a provisoriedade das nossas
construções discursivas” (Sampaio, 2019, p. 26).
Dessa forma, adentrar nas cosmologias ameríndias possibilita ampliar nosso
modo de compreender e de nos relacionarmos com os outros seres que, conosco,
vivem na Terra. Para tal, precisaríamos fazer o movimento contrário àquele
tomado pelos portugueses que cá aportaram no século XVI, ou seja, escutar o
que os povos da floresta têm a nos dizer, aprender o que têm a nos ensinar. Isso
tornaria possível criar composições cosmopolíticas e, quem sabe, promover um
Artigo

outro futuro viável para humanos e extra-humanos.


Procurei trazer para esse artigo algumas questões que, em meu entendimento,
poderão contribuir para pensar o campo educacional no Antropoceno que,
junto com os problemas ambientais, se constitui num grande desafio. Desafio,
esse, que passa por mudanças epistemológicas, a começar por deslocar o

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“homem” ocidental do lugar de superioridade que vem tomando como legítima


nos últimos 2 séculos, legitimação que lhe outorga o direito decisório sobre
as vidas dos outros seres que habitam o planeta; pela ampliação do campo
da história para além dos humanos, considerando que todos os seres são
dotados de historicidade; pelo questionamento constante às grandes verdades,
às generalizações, aos universalismos, às dicotomias; pelas composições
cosmopolíticas que podemos estabelecer com outros humanos e extra-
humanos, reconhecendo a pluralidade dos modos de existência na fabricação
de um comum.
Nesse sentido, o pensamento ameríndio se constitui como uma resposta
ao problema posto pelo Antropoceno, pois ao mesmo tempo em que expõe a
fragilidade do modo de vida ocidental-capitalista, apresenta uma outra forma
articulações cosmopolíticas num mundo em ruínas

de relação com a Terra e os outros seres. Não se trata aqui de sugerir que
passemos a pensar como os indígenas, mas o que nós “podemos, e devemos,
no mínimo e no máximo, é pensar com eles, levar, em suma, seu pensamento a
sério – a diferença de seu pensamento a sério. É apenas pela acolhida integral
dessa diferença e dessas singularidades que se poderá imaginar – construir
– o comum” (Viveiros De Castro, 2012, p. 164). Nessa perspectiva, o campo
Maria Alice Gouvêa Campesato

educacional tem um papel importante nesse processo, sendo um espaço


Educação no Antropoceno:

profícuo para a problematização, e que “permite repensar o que a humanidade,


as sociedades e os indivíduos podem fazer por si mesmos para garantir o futuro
das próximas gerações” (Colacios; Locastre, 2020, p. 13) e a vida dos demais
seres que habitam este planeta.
Pensar a educação no Antropoceno, requer que tomemos essas questões
como ponto de partida para as revisões curriculares e os processos formativos
em nossas escolas e universidades. Pensar a educação no Antropoceno é apostar
nas alianças capazes de fabricar vida nos destroços, é “imaginar, antes que um
novo mundo em lugar deste nosso mundo presente, um novo povo; o povo que
falta: Um povo que creia no mundo que ele deverá criar com o que de mundo
nós deixamos a ele”, como sugerem Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de
Castro (2014, p. 159).
Artigo

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Notas
Maria Alice Gouvêa Campesato

Universidade do Vale do Rio dos Sinos.


1
Educação no Antropoceno:

Aqui manteve-se o termo empregado pela autora.


2

3
Para Danowski e Viveiros de Castro (2014, p. 16), o Antropoceno “é uma época, no
sentido geológico do termo, mas ele aponta para o fim da ‘epocalidade’ enquanto tal, no
que concerne à espécie”.
4
Para Santos Souza (2007, p. 8), o entre-lugar “se insere no conjunto de conceitos
indicadores de zonas de descentramento, que vêm testemunhar as heterogeneidades e
deslocar a única referência atribuída à cultura europeia, no momento da debilitação dos
esquemas cristalizados de unidade, pureza e autenticidade”.
5
A formação humana aqui é compreendida como “arte da existência” (Foucault, 2006),
e que vem ao encontro “dos desafios contemporâneos, sobretudo, como uma forma
de resistência política à formalização do existente e à instrumentalização da cultura,
presumindo a assunção de uma atitude ética diante da vida que, concomitantemente,
pressupõe certa transformação de si”. (Pagni, 2015, p. 23).
6
O termo “bárbaro” fora criado pelos gregos da Antiguidade para se referirem ao modo
de falar dos persas, que “se generalizou e acabou designando, de maneira pejorativa,
Artigo

quem não é grego e, portanto, não é civilizado” (Charlot, 2019, p. 162).

Recebido em 28/02/2023 - Aprovado em 22/08/2023


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“A Palestina é uma questão


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“Palestine is a climate
justice issue”: an overview
of the practice of Israeli
greenwashing and ways of
Palestinian resistance to the
occupation

“Palestina es uma cuestión


de justicia climática”:
una descripción general
de la práctica del israelí
greenwashing y las formas
de resistencia palestina a la
ocupación
Carolina Ferreira de Figueiredo2

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Resumo: Este artigo tem por objetivo discutir a luta palestina


contemporânea relacionada aos debates recentes sobre a crise
climática. A partir de uma discussão bibliográfica e análise da
produção historiográfica sobre o tema, buscamos traçar um
panorama do processo histórico palestino desde a criação do
Estado de Israel, em 1948, com atenção específica às políticas
israelenses em torno da ocupação do território e das práticas
israelense e as formas de resistência palestina à ocupação

de greenwashing, que buscam escamotear ações violentas e


ilegais a partir do discurso ecológico. Parte-se da hipótese de
que há um imbricamento entre o processo colonial israelense
e a alteração da paisagem, entendida aqui de maneira ampla,
“A Palestina é uma questão de justiça climática”:
um panorama sobre a prática de greenwashing

a “natural” e social. Buscamos compreender a relação entre


as práticas de ocupação e a expulsão de palestinos/as do seu
território como processos sociais, econômicos e ambientais.
São abordadas políticas israelenses como os projetos de
florestamento, a exploração de recursos naturais e a expansão
Carolina Ferreira de Figueiredo

de ocupação territorial. Ainda, se discute a aproximação da


luta palestina com a crise climática sob o aspecto da justiça
climática, a partir da análise de materiais do movimento
BDS – The Boycott, Divestment, Sanctions, bem como a partir
da reflexão dos sentidos históricos e culturais construídos e
imaginados por palestinos/as em relação ao seu território.
Palavras-chave: Palestina; greenwashing israelense;
colonialismo; justiça climática; movimento BDS.

Abstract: This article aims to discuss the contemporary


Palestinian struggle related to recent debates on the climate
crisis. Based on a bibliographical discussion and analysis of the
historiographical production on the subject, we seek to draw
an overview of the Palestinian historical process since the
Artigo

creation of the State of Israel, in 1948, with specific attention


to Israeli policies around the occupation of the territory and
practices of greenwashing, which seek to hide violent and
illegal actions based on ecological discourse. It starts from the
hypothesis that there is an overlap between the Israeli colonial

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process and the alteration of the landscape, understood


here in a broad way, the “natural” and social. We seek to
understand the relationship between occupation practices and
the expulsion of Palestinians from their territory as social,
economic and environmental processes. Israeli policies such as
forestry projects, the exploitation of natural resources and the
expansion of territorial occupation are addressed. Furthermore,
the approximation of the Palestinian struggle with the climate
crisis from the perspective of climate justice is discussed,
israelense e as formas de resistência palestina à ocupação

based on the analysis of materials from the BDS movement


- The Boycott, Divestment, Sanctions, as well as from the
reflection of the historical and cultural meanings constructed
and imagined by Palestinians in relation to their territory.
“A Palestina é uma questão de justiça climática”:
um panorama sobre a prática de greenwashing

Keywords: Palestine; Israeli greenwashing; colonialism;


climate justice; BDS movement.
Carolina Ferreira de Figueiredo
Artigo

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Introdução: a questão palestina e alteração de paisagens

Tratar de questões climáticas têm sido cada vez mais recorrente, ainda que
seus estudos não sejam especificamente novos. Contudo, dada a realidade
alarmante mundial, tem-se percebido, cada vez mais, espaços de veiculação
sobre as preocupações da relação do ser humano com o meio ambiente;
sobretudo, em uma urgência de ruptura com o pensamento dicotômico da
modernização – o progresso, a civilização, representando a vida humana e por
outro, a estagnação, dito para a natureza, para uma dimensão mais integradora
israelense e as formas de resistência palestina à ocupação

dos espaços vividos por todas as sociedades. É deste cenário atual que partimos
para refletir sobre a “questão palestina”. Diversas problemáticas se colocam
ao falarmos da causa palestina, com dimensões que versam sobre um processo
histórico da contemporaneidade e seus múltiplos efeitos, na política, economia,
“A Palestina é uma questão de justiça climática”:
um panorama sobre a prática de greenwashing

sociedade, cultura e no meio ambiente. Nesse âmbito, o presente artigo


busca propor reflexões acerca da história da Palestina dos séculos XX e XXI,
considerando-se a singularidade de seu processo histórico, que abordaremos
ao longo do texto, em diálogo com algumas questões propostas pela área da
história ambiental, a relação do ser humano com a natureza, atravessada aqui,
sobretudo, pelo colonialismo. Buscamos entender como o processo violento de
Carolina Ferreira de Figueiredo

instalação de uma população sobre um território já habitado, chamado de settler


colonialism, ou “colonialismo de assentamento”, está intimamente relacionado
à transformação da população palestina e de sua paisagem natural e social.
Para isso, nos aprofundaremos nos projetos de constituição do Estado de Israel
ainda na primeira metade do século XX e suas políticas ao longo do século e
nos primeiros anos do século XXI.
É possível identificar uma historiografia preocupada com o tema do
colonialismo em diálogo com a história ambiental, analisando diferentes
processos mundiais. O livro de Alfred Crosby, Imperialismo Ecológico: A expansão
biológica da Europa 900-1900 (2012), publicado em 1986, explora o processo
de expansão das populações europeias, e com elas as transformações da flora,
fauna e das populações locais em diversas partes do mundo. Mais recentemente
o trabalho de Mike Davis, Holocaustos Coloniais: a criação do terceiro mundo,
Artigo

de 2002, também trata de locais diversos, como a Índia, China e Brasil para
problematizar as políticas coloniais na virada do século XIX e XX. O autor
desenvolve o que chama de uma “ecologia política da fome”, demonstrando a
conduta governamental de países como a Inglaterra para lidar com o fracasso
das safras e de período de secas. Ao analisar a Índia, por exemplo, Davis afirma

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que a fome não era uma questão de escassez de alimentos, mas de poder
decisório colonial em momentos de “crise”, tornando o país “[...] um laboratório
utilitarista em que milhões de vidas foram apostadas na fé dogmática no
mercado onipotente para superar a ‘inconveniência da escassez’” (Davis, 2022,
p. 31). Ainda sobre o contexto indiano, o pesquisador V. M. Ravi Kumar (2010)
investiga o colonialismo britânico e seus efeitos no território do sul da Índia,
por um lado, a partir das políticas de desmatamento de florestas para obtenção
de madeira e construção de ferrovias – sob a dimensão da modernização, e por
outro, de discursos dessecacionistas3, que embora versassem sobre aspectos do
israelense e as formas de resistência palestina à ocupação

meio ambiente, foram utilizados como uma forma de dominação dos territórios
indianos.
No caso palestino, percebe-se pontos de aproximação com esse modelo
de colonialismo do fim do século XIX, mas que se encaminha para questões
“A Palestina é uma questão de justiça climática”:
um panorama sobre a prática de greenwashing

específicas de dominação do território. Tem-se, portanto, um processo mais


recente de ocupação do território, e uma singularidade do processo histórico
na Palestina com a convivência, em meados do século XX, da intervenção da
Inglaterra no território – especialmente sob a forma de Mandato, a partir de 1922,
e a proposição do movimento sionista de criação de um lar nacional judaico,
a ser instalado na Palestina, também com apoio da Inglaterra, a despeito de
Carolina Ferreira de Figueiredo

sua população local. Nesse sentido, o Sionismo, fundado na Europa no final do


século XIX pode ser entendido como tendo uma política própria do pensamento
colonial de sua época (Tolosa, 2018). Uma dinâmica que atendia aos binômios
da civilização e da barbárie, do pensamento da superioridade europeia em
termos de sua “modernização” e ao fardo do sujeito branco ao se deslocar para
os espaços coloniais. Portanto, da lógica colonial sionista e sua prática, tem-se
o processo de criação do Estado de Israel em 1948, com o padrão de colonização
a partir da expulsão da população local e instalação dos colonos, um processo
permanente e atual de exclusão e eliminação de palestinos/as do território a
partir de mecanismos do Estado, como veremos mais detalhadamente.
Este processo histórico que levou a alteração do território e da população
palestina pode ser dimensionado a partir do termo Nakba, uma palavra em
árabe que designa a “catástrofe”, que diz respeito a criação do Estado de Israel,
Artigo

em 1948, bem como ao processo em andamento de expulsão de palestinos/


as, ocupação de seus territórios e das políticas de apartheid de Israel4. Nesse
sentido, a Nakba é referida para um acontecimento e para um processo: a Nakba
é a data que marca a perda do território palestino, mas também o sentido mais
amplo da expulsão da população, com as políticas de limpeza étnica, como

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fundamenta Ilan Pappé (2006), de migração forçada, como analisa Julie Peteet
(2005) ao estudar os campos de refugiados no Líbano e até mesmo de um
genocídio contínuo, na compreensão de Nahla Abdo (2018, p. 58).
Como mencionado, a região da Palestina sofreu, assim como muitas outras
localidades, os efeitos do colonialismo europeu do século XIX, efetivados
por ações de controle territorial militar, político e sob a elaboração de
uma superioridade da “modernidade” europeia. No território palestino
especificamente, o “[...] revivalismo religioso, combinado com nacionalismo
messiânico fervoroso, movimentos de ‘retorno à Bíblia’ e ‘redescoberta’ da
israelense e as formas de resistência palestina à ocupação

Palestina, varreu a Europa e Rússia” (Masalha, 2018a, p. 243, tradução nossa)5, e


foram fundamentais para a criação de mitos e símbolos sobre a Terra Santa. Ao
inventar o “primitivo”, os viajantes europeus traçaram moldes civilizatórios,
contribuindo para o controle social a partir das normatizações raciais e sexuais
“A Palestina é uma questão de justiça climática”:
um panorama sobre a prática de greenwashing

(McClintock, 2010, p. 272); bem como para uma dominação do saber, isto é,
o poder para controlar a representação e as designações sociais, situando
aquilo que Edward Said (2007) desenvolveu sobre o Orientalismo, suas bases
acadêmicas e literárias sobre a imaginação do Oriente a partir do Ocidente.
Neste mesmo ambiente se fundamenta o Sionismo, e seu projeto de
“transferência” populacional, um eufemismo para o processo de expulsão
Carolina Ferreira de Figueiredo

dos nativos do território (Masalha, 1992), uma estratégia que se relaciona à


dimensão do settler colonialism, o colonialismo de assentamento. Evelyn
Glenn (2015) enfatiza a necessidade de diferenciar os aspectos formativos do
colonialismo de maneira mais ampla, dos processos de settler colonialism. Para
a autora, no colonialismo “clássico”, o objetivo de dominação de um território
era sua exploração – sobretudo de matérias-primas, levadas à metrópole – e
de sua população, garantindo a geração de riqueza. No settler colonialism, o
objetivo central é obter terras e controlar seus recursos:

[...] Para realizar essas ambições, a primeira coisa que deve ser
feita é eliminar os ocupantes indígenas da terra. Isso pode ser feito
de várias maneiras: genocídio, remoção forçada de territórios
desejados por colonos brancos e confinamento em reservas fora
dos limites do assentamento branco. Também pode ser realizado
Artigo

através da assimilação. A assimilação pode ser biológica (por


exemplo, por meio de casamentos mistos para ‘diluir’ o sangue
indígena) e/ou cultural (por exemplo, despojando os indígenas
de sua cultura e substituindo-a pela cultura dos colonos) (Glenn,

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2015, p. 57, tradução nossa)6.

Ainda que seja necessário ponderar sobre as diferenças de formação


histórica e ideológica de diversos territórios que foram/são cenários do settler
colonialism, como Estados Unidos e Austrália7, é possível compreendê-lo como
uma organização que molda os sentidos de raça, gênero e classe, e para Evelyn
Glenn e Patrick Wolfe (1999), uma estrutura permanente que se modifica, não
sendo apenas um evento. De fato, Patrick Wolfe (2006), afirma em outro estudo
que o settler colonialism e as práticas de violência (como genocídios) foram
utilizadas historicamente como organizadoras da gramática da raça. Mas neste
israelense e as formas de resistência palestina à ocupação

ponto, os termos de raça também não são fixos, mas significados em torno da
prática de colonialismo e domínio territorial. Há também aspectos alegóricos na
lógica de eliminação, presente neste tipo de colonialismo, já que o apagamento
“A Palestina é uma questão de justiça climática”:
um panorama sobre a prática de greenwashing

do elemento nativo está em tensão com a afirmação do nacionalismo do grupo


que está se assentando no território: por um lado a “[...] sociedade colonizadora
exig[e] a eliminação prática dos nativos para se estabelecer em seu território.
No nível simbólico, porém, a sociedade colonizadora busc[a] posteriormente
recuperar a indigeneidade [...]” (Wolfe, 2006, p. 389, tradução nossa)8, tanto
para afirmar sua presença no território como para se diferenciar de seus locais
Carolina Ferreira de Figueiredo

de origem.
Questões que podem ser representadas, no caso da formação de Israel e mais
recentemente, por exemplo, em discursos popularizados em torno da ideia de
que o novo país “faria o deserto florir” (“to make the desert bloom”), ou mesmo
a noção de que a criação do Estado se daria em “uma terra sem pessoas para um
povo sem terra” (“a land without a people for a people without a land”). Não sem
coincidência, população e paisagem se misturam para determinar o projeto de
colonização: uma combinação entre a transformação populacional e territorial
a partir de uma negação da população local que ali habitava, conjuntamente
com uma ideia de um território vazio, árido, sem vida e riqueza. Ou em
outras palavras, ao sentido dado a modificação da natureza com a chegada da
“civilização”. É o que Said (2012, p. 9), em outro livro, A questão palestina, afirma
sobre a Palestina ser uma luta, também, de uma afirmação e uma negação, ou
de uma presença e de uma imaginação. A partir da consolidação da narrativa
Artigo

sionista, ao extremo dessa equação, tem-se o discurso contemporâneo de que


Israel é a única democracia do Oriente Médio – em um apagamento completo
da população local, mas também de uma inferiorização de países (árabes) da
região, mais uma relação racial, espacial e política; ou aquilo que Said (2011, p.

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163), ao falar do imperialismo, conceitua como “geografia moral”, acentuando a


importância da espacialização para a dominação e a imaginação dos territórios.
Este breve cenário histórico tem relevância para as discussões que se
seguirão no artigo, em primeiro lugar, por tratar-se de um processo não
finalizado, e com o aprofundamento das políticas de expulsão da população,
ocupação e controle militar nos territórios palestinos da Cisjordânia, Jerusalém
Oriental e Gaza, além das políticas internas de palestinos que vivem em Israel.
Relacionado a isso, partimos do entendimento de que para compreender as
políticas de greenwashing de Israel, ou seja, condutas com fachada ecológica
israelense e as formas de resistência palestina à ocupação

empregadas oficialmente pelo Estado e/ou por empresas instaladas no país, é


necessário uma análise da própria situação de ocupação territorial, ambientada
aqui. Como desenvolve Kyle White (2018, p. 140, tradução nossa),
“A Palestina é uma questão de justiça climática”:
um panorama sobre a prática de greenwashing

[...] no nível superficial, a violência ambiental se manifesta


como a imposição da destruição ambiental e poluição. Em outro
nível, é possível olhar para a violência ambiental como um
enfraquecimento das qualidades dos relacionamentos que são
constitutivos da resiliência social ou continuidade coletiva de
qualquer sociedade9.
Carolina Ferreira de Figueiredo

Isto é, o contínuo processo de violência e ocupação tem efeitos sobre a


possibilidade de existência dos palestinos/as, bem como de suas formas de
vivência cultural, econômica e social. A violência ambiental, portanto, é mais
um elemento constitutivo dessa rede complexa da atuação colonial, em que o
impedimento ao acesso à natureza, a uma relação específica com a paisagem
– efetiva e prática da mesma, afeta a vida da população nativa. É a dimensão
utilizada por Lila Sharif (2014), ao estudar o cultivo de oliveiras na Palestina,
argumentando que o colonialismo de assentamento se utiliza de mecanismos
materiais e culturais para a destruição das plantações e das populações locais,
um processo cunhado pela autora de desaparecimento (vanishment).
Na mesma direção, o historiador Nur Masalha (2018b) afirma que a Palestina
passa por um processo de “memoricídio” (memoricide), uma política de
apagamento de todos os aspectos da vida palestina. Um elemento central de
Artigo

discussão aparente nesta historiografia contemporânea, assim como latente


em trabalhos de artistas palestinos, é a invisibilidade da população indígena
do território, e especificamente, o processo de apagamento cultural promovido
pelo Estado de Israel, que desvirtua não somente a “origem” de práticas

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culturais como também os próprios espaços e seus usos sociais. Nur Masalha
(2018b) enfatiza que no processo de instituição do Estado israelense, objetos,
edifícios públicos e propriedades privadas foram apreendidas, tornando-se
forçadamente parte do novo país. Assim: “em 1948, o estado de Israel apropriou-
se de bens materiais palestinos imóveis [...] incluindo [...] papéis, documentos
históricos e manuscritos, móveis, igrejas, mesquitas, santuários, prédios
públicos históricos, sítios arqueológicos e artefatos [...]” (Masalha, 2018b, p.
7, tradução nossa)10, gerando, por um lado, a incorporação destes para o novo
projeto cultural israelense, e por outro, dando inacessibilidade aos palestinos/
israelense e as formas de resistência palestina à ocupação

as aos seus próprios registros.


Conjuntamente a esse processo, o apagamento da população palestina
ocorre a partir de um domínio topográfico. O controle sobre o nome de ruas
e localizações, com a mudança de nomes árabes para hebraicos, também é
“A Palestina é uma questão de justiça climática”:
um panorama sobre a prática de greenwashing

analisado como um projeto colonial e uma política de des-arabização do


território palestino. Seguindo com o Masalha (2012, p. 91, tradução nossa), na
Palestina, “[...] o projeto Sionista-hebraico de toponímia, que foi fundamental
para a etno-racialização dos judeus e a nacionalização da Bíblia hebraica, seguiu
de perto e fielmente as ‘explorações’ arqueológicas e geográficas britânicas e
americanas [...]”11. Nesse sentido, é possível perceber, por um lado, o intricado
Carolina Ferreira de Figueiredo

processo de constituição de Israel e a permanência da estruturação sionista


do Estado, a partir da nacionalização da religião e seus elementos; por outro,
o mapeamento da rede de dominação que impacta diretamente a paisagem
como este espaço social e como integrado às práticas culturais. Não por acaso,
as lutas de resistência palestina também têm ocorrido no reconhecimento da
centralidade da memória, da cultura oral e na reatualização das práticas mesmo
em localidades diferentes. Voltaremos a abordar esta questão no mais à adiante
ao discutirmos os significados contemporâneos do território palestino.
Considerando que “cada vez se percebe mais a presença da história humana
na constituição de paisagens ‘naturais’” [...] assim como [...] “nota-se a forte
diversidade das formas de percepção cultural do mundo biofísico e de sua
relação com a vida humana” (PÁDUA, 2010, p. 94), investigar as políticas de
alteração dessas paisagens e o entendimento sobre elas, na perspectiva de um
Artigo

Estado colonizador, e da mesma forma, da relação construída e imaginada pela


população afetada, traz dimensões relevantes para o estudo do caso palestino.
Para tanto, o texto seguirá dividido em duas seções: na primeira delas, tratar-
se-á das práticas de greenwashing como política de expulsão de palestinos/as,
sobretudo a partir da criação de florestas “nacionais” israelenses e nos processos

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de desapropriações em territórios ocupados; e na segunda parte, abordar-se-á


aspectos de resistência palestina, como a luta do Movimento BDS e como este
tem direcionado a luta palestina como uma questão climática.

O greenwashing estatal: políticas de constituição de Israel

A partir daqui, é possível discutir os efeitos da política de greenwashing de


Israel, que podem ser traçados como projetos desde a criação do Estado até
práticas mais recentes. O greenwashing, em português chamado de “lavagem
israelense e as formas de resistência palestina à ocupação

verde” ou “maquiagem verde”, diz respeito a estratégias utilizadas por empresas,


ONGs e governos, com o objetivo de veicular uma falsa ideia de sustentabilidade.
O termo, portanto, está relacionado à prática de “promover discursos, anúncios,
propagandas e campanhas publicitárias com características ecologicamente/
“A Palestina é uma questão de justiça climática”:
um panorama sobre a prática de greenwashing

ambientalmente responsáveis, sustentáveis [...]” (Santos, 2020), mas que na


prática, não condizem com a realidade, ou são utilizadas para escamotear outras
situações, como é o caso da Palestina. Esse fenômeno, seguindo as proposições
de Sara Hughes, Stepha Velednitsky e Amelia Green (2022), ao estudarem o
caso palestino especificamente, refletem um amálgama do estado, do meio
ambiente e dos interesses de colonização, e informa as políticas ecológicas
Carolina Ferreira de Figueiredo

da construção do estado. Nesse sentido, dizem respeito aos termos da “[...]


‘ecologia geopolítica’ ou do ‘estadismo ambiental’, examinando-se como os
estados, e neste caso os estados coloniais, gerenciam o meio ambiente para
fins estratégicos” (Hughes; Velednitsky; Green, 2022, p. 2, tradução nossa)12.
Em torno desta temática, uma historiografia recente tem se debruçado em
aproximar o caso da Palestina aos sentidos de ecocídio, isto é, a destruição de
ecossistemas. Há uma dimensão comum de análise em torno das relações entre
o colonialismo de assentamento, a violência contra a população nativa e a
destruição do meio ambiente. É o caso dos estudos do historiador Nur Masalha,
já citado, mas que seguirá presente nas próximas páginas, pois apresenta
reflexões importantes sobre a constituição de Israel nesta perspectiva. Também
é possível citar o estudo de Damien Short (2016), especialista em “estudos sobre
genocídios”, que traz no seu livro Redefining Genocide: settler colonialism, social
Artigo

death and ecocide [Redefinindo Genocídio: colonialismo de assentamento, morte


social e ecocídio], uma discussão em geografia ampliada, tratando de diversas
localidades do mundo como Vietnã, Sri-Lanka e Ruanda, a ampliação do debate
sobre as significações de genocídio em relação aos processos de colonização.
Além disso, o autor explora uma relação que intitula como “nexo genocídio-

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ecocídio”, que tem sido desenvolvido a partir da noção da destruição de


territórios indígenas bem como a partir das mudanças climáticas (Short, 2016,
p. 38). No caso da Palestina, suas reflexões corroboram com o desenvolvido
na historiografia recente, sobre o projeto colonial e a ocupação aprofundarem
as questões em torno do clima, que por sua vez, afetam nas formas de vida
de palestinos/as para além do ambiente, como a cultura e a economia, como
detalharemos mais adiante. Ainda, em direção semelhante, D. A. Jaber (2018)
propõe um estudo de caso na região de Al-Khader, na Palestina, demonstrando
como o crescimento de assentamentos torna-se um ecocídio através da
israelense e as formas de resistência palestina à ocupação

intersecção entre expropriação de terra, violência e devastação. Para o autor,


no [...] settler colonialism, a capacidade de dominar e manipular uma ecologia
para obter benefícios contribui para o objetivo dos colonos de eliminação
nativa. Portanto, o ecocídio como destruição da ecologia nativa é simultâneo
“A Palestina é uma questão de justiça climática”:
um panorama sobre a prática de greenwashing

à criação de um espaço exclusivo para os colonos” (Jaber, 2018, p. 8, tradução


nossa)13. Relacionado aos estudos sobre a destruição ecológica como política de
ocupação, encontram-se trabalhos mais recentes que abordam o greenwashing,
como os citados ao longo do artigo.
Buscando mapear algumas dessas questões delineadas para o caso
palestino, podemos compreender que, historicamente falando, o projeto de
Carolina Ferreira de Figueiredo

consolidação do Estado de Israel esteve associado com diferentes organizações,


como a Jewish Colonization Association, a Associação judaica de colonização,
estabelecida em 1891, e o Jewish National Fund, em português, Fundo Nacional
Judaico, criado em 1901. A primeira tinha como objetivo organizar a colonização,
e atuou na compra de terras e no treinamento para as atividades agrícolas,
enquanto a segunda tornou-se o braço oficial do movimento global sionista para
a compra e garantia de terra para os judeus (Masalha, 1992, p. 212). A imigração
para a Palestina, portanto, iniciou-se no século XIX, ainda que, por décadas, se
manteve em números relativamente pequenos. Por exemplo, o Censo Britânico
na Palestina, realizado em 1922, apresenta, no ano de 1914, uma população de
quase 700 mil habitantes, sendo que os judeus representavam aproximadamente
10% desse número (Said, 2012, p. 20). O crescimento mais vertiginoso da
população judaica na Palestina se deu na década de 1930, entre 1931 e 1936,
Artigo

que subiu de 17,1% para 29,5% (Masalha, 1992, p. 49). Evidentemente, aqui é
necessário pontuar sobre o contexto mundial e o crescimento do antissemitismo
na Europa, bem como os movimentos fascistas e nazista naquele continente,
ainda que não seja possível aprofundar esta problemática neste momento.
De toda forma, na Palestina, o entendimento do projeto sionista por parte da

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população local palestina esteve presente tão logo a criação do movimento,


como apresenta o historiador Rashid Khalidi (1997, 2020), e mobilizações de
denúncia e resistência estão presentes antes mesmo da criação de Israel em
1948.
O processo da Nakba iniciou-se ainda em 1947 quando se tem a
mobilização, de fato, para a criação de Israel, em meio a proposta da ONU,
através da Resolução 181, que previa a criação de dois Estados, que fora recusada.
Khalidi (2020, p. 74) evidencia o caráter violento da criação do Estado de Israel,
que ainda em 1947 iniciou a primeira fase do plano de conquista do território,
israelense e as formas de resistência palestina à ocupação

com milícias sionistas, resultando na limpeza étnica e expulsão de cerca de


300.000 palestinos/as. Com a criação de Israel, em maio de 1948, iniciou-se uma
segunda fase, marcada por confronto com os exércitos dos países árabes, também
conhecida como a Primeira Guerra Árabe-Israelense, e com aproximadamente
“A Palestina é uma questão de justiça climática”:
um panorama sobre a prática de greenwashing

mais 400.000 habitantes expulsos da Palestina. O processo de transferência, já


em curso, foi imposto neste período, resultando nos milhares de refugiados,
alguns internos ao território de Israel/Palestina, e outros que seguiram para
regiões próximas, como Líbano e Jordânia. A partir da constituição do Estado,
se consolidaram, ao longo das décadas de 1950 e 1960, políticas institucionais
para impedir o retorno dos palestinos. Por exemplo, a Absentee´s Property Law,
Carolina Ferreira de Figueiredo

a Lei dos Ausentes da Propriedade, de 1950, que declarava que as propriedades


de palestinos/as ausentes poderiam ser legalmente passadas para proprietários
israelenses14, como também a Basic Law of 1960, ou a Lei Básica de 1960, que
afirmava que os territórios de Israel não podiam ser vendidos (Masalha, 2003, p.
132-134). Por meio de violência física e aparatos institucionais, os palestinos/
as foram privados de retornarem à sua terra.
No período pós-Nakba, outra política do jovem Estado foi a plantação de árvores
– e subsequente criação de parques florestais, para encobrir vilas palestinas
destruídas, mais de 500 em diversas áreas da Palestina. O já mencionado Jewish
National Fund – JNF, importante instituição para a consolidação de Israel,
tornou-se, em 1961, o órgão oficial para a administração das florestas, o que
possibilitou, segundo Corey Balsam (2011, p. 100), uma notoriedade enquanto
autoridade pública em Israel, e ao mesmo, conseguiu manter a sua imagem
Artigo

positiva e ecológica de uma organização não-governamental sem fins lucrativos


sob os olhos da comunidade internacional. O autor enfatiza que o JNF ocupa
um lugar central no discurso sionista, e até os dias atuais, procura veicular uma
imagem progressista e preocupado com as questões ambientais, vinculando-se
aos cuidados com o “reflorestamento”. Por exemplo, a Floresta Birya, a maior

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floresta administrada pela JNF na Galileia, na região norte da Palestina/Israel,


oculta seis vilas palestinas destruídas em 1948, Biriyya, ‘Alma, Dishon, Qaddita,
‘Amqa e ‘Ayn Zaytun (Masalha, 2012, p. 122). Da mesma forma, o Parque Canadá,
situado entre Tel Aviv e Jerusalém, foi construído para cobrir as ruínas das vilas
palestinas de ‘Imwas, Yalu e Beit Nuba, que foram despovoadas e demolidas
anos antes pelo exército israelense (Balsam, 2011, p. 101). Inaugurado em
1973, o Parque Canadá ainda toma parte do território palestino da Cisjordânia,
ocupando-o ilegalmente, como estratégia de ampliação da zona territorial e
impedindo a organização de moradia e plantio pela população palestina.
israelense e as formas de resistência palestina à ocupação

Portanto, diversas regiões do território passaram por este projeto de


florestamento, sob uma cobertura “verde”, contribuindo para um apagamento
material e simbólico da Palestina. Em muitos sites oficiais do governo,
inclusive, não há qualquer informação sobre as vilas e populações palestinas,
“A Palestina é uma questão de justiça climática”:
um panorama sobre a prática de greenwashing

sendo narrados como espaços imemoriais de uma história longínqua que


guarda “continuidades” com a Israel contemporânea, apropriando-se também
de artefatos arqueológicos históricos. Além da denúncia de diversos grupos e
pessoas, como veremos no próximo tópico, diversos estudos têm se direcionado
para problematizar e documentar o apagamento realizado pelo Estado de
Israel, como na documentação das vilas destruídas, preocupação central de
Carolina Ferreira de Figueiredo

Walid Khalidi, com o livro, publicado em 1992, All that Remains: The Palestinian
Villages Occupied and Depopulated by Israel in 1948, em português, Tudo que
resta: as vilas palestinas ocupadas e despovoadas por Israel em 1948. Iniciativas
mais recentes, como a ONG Zochrot15, fundada em 2002 por ativistas israelenses,
também procuram questionar a história oficializada por Israel e atuam na
produção de conteúdo, visitações às localidades e reunião de documentação
para relembrar a história da Nakba. Há também diversos movimentos de
resistência ao continuado processo de expulsão, como na vila beduína de al-
Araqib, que resiste à expulsão e retorna constantemente ao seu lugar, na região
de Naqab/Negev, no sul de Israel (Masalha, 2012, p. 133).
Nesse âmbito, é possível dimensionar este “novo” tipo de exploração que
Robert Nelson (2003), ao analisar a presença europeia no continente africano
na segunda metade do século XX, chamou de “colonialismo ambiental”. Para
Artigo

Nur Masalha (2012), o JNF teve e continua tendo um papel central na política
de terras de Israel, solidificado no discurso do direito natural ao território, e no
papel do colono europeu judeu na transformação daquele espaço. Ainda mais,
com a transformação do meio ambiente através do florestamento, a tentativa
de criação de uma memória coletiva em torno de uma paisagem autêntica

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bíblica. Destaca o historiador ainda que “[...] as terras palestinas evacuadas


foram arborizadas por coníferas não nativas, pinheiros (nativos do hemisfério
norte) e ciprestes, após o desenraizamento das árvores nativas e destruição
da paisagem em forma de terraços” (Masalha, 2012, p. 121, tradução nossa)16,
isto é, a retórica mítica ironicamente indica o “estrangeirismo” de uma política
colonial contemporânea.
Não somente o território que hoje é Israel foi modificado, mas também, ao
longo das últimas décadas, a transformação da paisagem ocorre a partir de
políticas de ocupação dos territórios palestinos, para a destruição da agricultura
israelense e as formas de resistência palestina à ocupação

nativa, para o controle de recursos naturais, e para as medidas de apartheid


que criam mecanismos específicos de locomoção e habitação para colonos
israelenses e comunidades palestinas17. Desde 1967, quando estourou a Guerra
de Junho, conhecida também como Guerra dos Seis Dias, ocorrida entre Israel
“A Palestina é uma questão de justiça climática”:
um panorama sobre a prática de greenwashing

e os exércitos árabes do Egito, Síria e Jordânia, Israel passou a controlar uma


região maior do território palestino. Um confronto que pode ser analisado a
partir dos projetos sionistas para o controle da água da região, bem como o
fruto de uma disputa de poder regional entre os países árabes (Barnett, 1998),
a guerra, que teve uma duração muito curta, trouxe uma implacável derrota
aos árabes, gerando crises nas políticas institucionais de diferentes países do
Carolina Ferreira de Figueiredo

Oriente Médio. No caso da Palestina, ainda que a anexação de territórios já


viesse ocorrendo antes deste período (Baconi, 2018, p. 2), a partir da vitória de
Israel em 1967, o país passou a dominar toda a chamada “Palestina Histórica”,
controlando o restante dos 22% do território – uma vez que, na criação do
Estado em 1948, tinha se apropriado de 78% das fronteiras palestinas. Segundo
Tareq Baconi (2018, p. 14), Jerusalém Oriental foi formalmente anexada – sem
reconhecimento internacional (considerando-se a Resolução 181 da ONU),
enquanto os territórios palestinos de Cisjordânia e Gaza, assim como as Colinas
de Golã, na Síria, e a Península do Sinai, no Egito, foram colocadas sob domínio
militar israelense (vale lembrar que o Sinai foi devolvido ao Egito em acordo
assinado em 1979). Assim, para a Palestina, a vitória militar de Israel significou
um novo processo de controle, com expulsão e ocupação nas regiões de
Cisjordânia e Gaza, que concentravam grande parte da população palestina que
Artigo

permanecera no território. Acrescenta-se a este processo também catastrófico


para os palestino/as, as políticas mais recentes, como a assinatura dos Acordos
de Oslo, de 1993 e 1995, compreendidos de modo geral como negativos para a
população da região, tendo levado ao aprofundamento da ocupação por parte
de Israel a partir dos projetos de anexação do território palestino, além das

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definições de áreas de atuação dos governos palestino e israelense. Algumas


localidades, divididas entre A, B e C, mesmo na Cisjordânia, tem presença e
controle do estado israelense e de seu exército.
Nesse cenário, muitos territórios ocupados, na região da Cisjordânia,
por exemplo, apresentam assentamentos ilegais que são construídos, em
casos recorrentes, em terras que são desenvolvidas atividades agrícolas por
palestinos/as. Com a política de ocupação, as escavadeiras israelenses são
utilizadas para destruir locais de subsistência de palestinos, como as oliveiras,
e outros cultivos de frutas, bem como suas moradias. O processo de remoção
israelense e as formas de resistência palestina à ocupação

de plantações, além de graves violações dos direitos dos palestinos/as, acaba


também por alterar a qualidade do solo, que acabam sofrendo com erosão
(Baroud; Rubeo, 2019)18. Essas terras, forçadamente tomadas, por vezes também
são transformadas em novos assentamentos para colonos. Como destaca Sharif
“A Palestina é uma questão de justiça climática”:
um panorama sobre a prática de greenwashing

(2014, p. 12), a colheita de oliveira é a mais importante para os palestinos/


as, fornecendo-o alguma sustentabilidade econômica, ainda que sob uma
realidade economicamente bem delicada. Para se ter uma dimensão, “cerca de
metade (48%) das terras agrícolas nos territórios ocupados da Palestina estão
plantadas com 10 milhões de oliveiras, a grande maioria das quais se encontram
na Cisjordânia” (Sharif, 2014, p. 12, tradução nossa)19. Isso representa algo em
Carolina Ferreira de Figueiredo

torno de 20% da renda da indústria da produção de óleo de oliva, um número


significativo para o sustento de família palestinas. Portanto, fica evidenciado
como a ocupação atua na destruição da natureza ao atingir especificamente a
população também em termos econômicos. Em outros casos, quando as árvores
não são arrancadas, elas são impedidas de serem acessadas por ações violentas
de colonos, impossibilitando que os palestinos/as cultivem as oliveiras;
e ainda, há cenários em que elas são cultivadas pelos próprios colonos que,
posteriormente, vendem a colheita aos donos palestinos (Deutsch, 2011, p. 26).
Esse processo leva a diversas consequências, para além da dimensão social e
cultural, já mencionado, como o empobrecimento generalizado da população
palestina, bem como a necessidade de buscar empregos em fábricas ou empresas
com base em Israel, tornando o trabalho cada vez mais precarizado, explorado
e sob atualizações na condição entre colonizado e colonizador.
Artigo

É possível ainda mencionar outras políticas que atingem os territórios


ocupados, como a instalação de indústrias que produzem resíduos tóxicos,
lixo ou produtos químicos, contaminando o solo e a água para a população
local, sendo estas muitas vezes construídas com incentivo de isenção fiscal
do governo israelense (Hughes; Velednitsky; Green, 2022, p. 9). Para além da

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contaminação, que atinge o cotidiano e a própria agricultura, a disponibilidade


de água também é um ponto estratégico para as políticas de Israel. Grande
parte do aquífero ocidental (Western aquifer) se encontra na Cisjordânia,
contudo, por medidas de segregação, há um direcionamento para que Israel
tenha acesso maior a essa água. Segundo descreve Judith Deutsch (2011, p. 28,
tradução nossa):

O Muro da Separação/Apartheid está localizado dentro dos limites


do Aquífero Ocidental. A área de bombeamento está confinada
a uma estreita faixa de terra paralela à própria Linha Verde. O
israelense e as formas de resistência palestina à ocupação

Aquífero Ocidental, situado completamente dentro do território


palestino, é o recurso de água subterrânea mais importante em
todo o território de Israel/Palestina. Os militares permitiram
“A Palestina é uma questão de justiça climática”:

a perfuração de apenas 23 poços em toda a Cisjordânia pelos


um panorama sobre a prática de greenwashing

palestinos entre 1967 e 1990 (...) [hoje] Em Israel, por outro


lado, existem aproximadamente 500 poços profundos de forte
fluxo, enquanto os palestinos devem se contentar com 159
poços antigos, que foram projetados para irrigação e são menos
profundos20.
Carolina Ferreira de Figueiredo

Processos similares ocorrem em Gaza, com acesso dificultado à água,


além de contaminação do recurso e o processo de salinização por conta das
características locais. Somado a isso, a região de Gaza enfrenta uma situação
ainda mais delicada por seu controle territorial geográfico, considerada a maior
prisão em céu aberto. Exemplos como estes, além de outros, como a construção
de rodovias exclusivas para israelenses em territórios da Cisjordânia, que
também atuam na expropriação de palestinos/as – e uma política direta do
apartheid israelense, indicam, como se vem argumentando, pela relação
singular e intricada da ocupação do território palestino na contemporaneidade.
As práticas de greenwashing pelo governo israelense atuam como estratégia
de política internacional e interna. Assim, em termos de veiculação
internacional, de modo geral, “[...] Israel é apresentado como um líder global
em ações para mitigar e adaptar-se às mudanças climáticas, exportando suas
Artigo

tecnologias e conhecimentos para o exterior, especialmente para nações em


desenvolvimento” (Hughes; Velednitsky; Green, 2022, p. 2, tradução nossa)21,
levando Israel a fechar acordos internacionais com diversos países. Mas como
foi possível analisar ao longo deste tópico, as políticas encobrem práticas de
apropriação de terras, desde as projeções da construção de florestas nacionais

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até os processos de ocupação recentes que atuam diretamente na mobilidade,


agricultura e recursos hídricos para os palestinos/as.

Movimentos de resistência e a ideia de justiça centrada na terra

Um dos movimentos que pauta a prática de greenwashing por Israel é o BDS


- Boycott, Divestment, Sanctions, em português, Boicote, Desinvestimento e
Sanções. A organização, administrada por palestinos/as, se diz um movimento
investido para a liberdade, justiça e igualdade, e inspirado no movimento anti-
israelense e as formas de resistência palestina à ocupação

apartheid da África do Sul. O movimento BDS foi constituído em 2005, em meio


a um debate de anos anteriores concernente a um apelo por boicote e sanções
contra Israel demandado pela sociedade civil. O BDS, então, foi anunciado após
completar um ano da decisão do Tribunal Internacional da ONU considerar
“A Palestina é uma questão de justiça climática”:
um panorama sobre a prática de greenwashing

a construção do Muro (na Cisjordânia) ilegal. A partir de uma proposição


global e institucional, o BDS enfatiza a necessidade de pressionar Israel para
cumprir as leis internacionais, baseando-se em três instrumentos: o boicote,
o desinvestimento e as sanções. As ações de boicote envolvem retirar apoio
a Israel e companhias israelenses ou que estão envolvidas com a violação de
direitos humanos, incluindo-se aí o boicote acadêmico e cultural (por exemplo,
Carolina Ferreira de Figueiredo

a participação de artistas em eventos culturais em Israel), o boicote a consumo


de produtos e serviços vindos de Israel e o boicote no setor do esporte. O
desinvestimento diz respeito a uma campanha que pede o fim de investimentos
de diferentes setores – bancos, igrejas, fundos e universidade, das companhias
israelenses e de companhias envolvidas com violação de direitos humanos. E
por fim, as sanções são medidas para incentivar os governos a pressionar Israel
seguir suas obrigações legais internacionais, além de, por meio dessas pressões,
encerrar contratos de comércio e do setor militar.
É possível identificar, no site oficial do movimento BDS, postagens recentes e
continuadas, pelo menos desde 2019, relacionando a luta palestina com a crise
climática. No artigo de 19 de setembro de 2019, com o título Join the Global
Climate Strike. Oppose Israel’s climate apartheid, em português, Junte-se à Greve
Global pelo Clima. Oponha-se ao apartheid climático de Israel, enfatiza que a
Artigo

crise climática tem relação com a desigualdade global, afirmando que “as lutas
contra o racismo e a militarização e pelas justiças climática, econômica e social
estão profundamente interligadas” (Palestinian BDS National Committee,
2019a, tradução nossa)22. É nessa relação que o artigo insiste, ao compreender
que grandes empresas têm investido em combustíveis fósseis – uma grande

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pauta global atual e em Israel e na opressão ao povo palestino. E continua


afirmando que, “Israel trabalha para ‘lavar’ sua imagem. No entanto, Israel
está desenvolvendo grandes campos de gás para exportação, e 97,7% de sua
produção de eletricidade vem de combustíveis fósseis” (Palestinian BDS
National Committee, 2019a, tradução nossa)23.
Em outra reportagem, de 21 de novembro de 2019, o tema é novamente
abordado, com o título Palestine is a climate justice issue – Israeli apartheid is not
“green”, ou Palestina é uma questão de justiça climática – o apartheid Israelense não
é “verde”, que dá nome, parcialmente, a esse artigo. Relacionando, novamente,
israelense e as formas de resistência palestina à ocupação

racismo e militarização com o colonialismo, o movimento BDS chama para


que as pessoas procurem justiça climática cobrando governos e corporações.
Também, pontua alguns dados sobre o tema da urgência pela justiça climática:
1 – nos territórios ocupados da Palestina, assentamentos ilegais israelenses
“A Palestina é uma questão de justiça climática”:
um panorama sobre a prática de greenwashing

consomem água seis vezes a mais que palestinos/as; 2 – Israel gera energia solar
e eólica em territórios ocupados; 3 – a indústria bélica, um pilar importante da
economia israelense, é uma das indústrias que mais poluem (Palestinian BDS
National Committee, 2019b).
Nessa, e em outras matérias, como a de 31 de agosto de 2022 (Palestinians [...],
2022) e 12 de setembro de 2022 (Across [...], 2022), o movimento BDS denuncia
Carolina Ferreira de Figueiredo

que empresas específicas continuam apoiando Israel, e pede então, pelo fim
dessas relações. É o caso de corporações que investem em companhias que
financiam Israel, e empresas que atuam como patrocinadores de associações e
clubes desportivos.
As reportagens do movimento BDS também se alinham à chamada global
por justiça climática nas edições da COP – Conferência das Partes, mais
especificamente a COP26 e a COP27, em publicações do dia 01 de novembro
de 2021 (Palestinian BDS National Committee, 2021) e 07 de novembro de
2022 (Palestinian BDS National Committee, 2022), respectivamente. Nesse
sentido, é possível compreender que o movimento, em consonância com sua
proposta internacional, se insere e vincula a Palestina dentro dos debates
contemporâneos. No artigo da COP27, com o mesmo título informando que
a “Palestina é uma questão de justiça climática”, outra questão se destaca.
Artigo

A conferência em 2022 foi realizada no Egito, sob protestos em relação à


perseguição do governo egípcio de parte sociedade civil e ativistas, um governo
que aprofunda também as suas relações de normalidade com Israel. Assim, a
reportagem indica que

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As lutas por direitos políticos e civis, justiça socioeconômica, bem


como justiça climática no mundo árabe e em outros lugares são
interconectadas e interseccionais. Unidos, venceremos todos os
sistemas de opressão. Liberdade para todos os presos políticos no
Egito e em todo o mundo (Palestinian BDS National Committee,
2022, tradução nossa)24.

Neste ponto, destaca-se que o movimento BDS, ainda que criado e articulado
para a causa palestina, dialoga com outros cenários e contextos em que
sistemas de desigualdade, opressão e greenwashing podem estar presentes.
israelense e as formas de resistência palestina à ocupação

Assim, ainda que do ponto de vista institucional, percebe-se que a Palestina


é uma pauta potencial para os debates das permanências imperiais e coloniais
no tempo presente em diferentes regiões do globo, assim como, com as devidas
proporções, a Palestina esteve presente, em décadas anteriores, nos debates
“A Palestina é uma questão de justiça climática”:
um panorama sobre a prática de greenwashing

sobre a possibilidade de revolução em contextos variados. Nota-se também que


o movimento BDS tem enfatizado, nos últimos anos, o entrelaçamento da luta
palestina como uma questão urgente do clima, reforçando o imbricamento do
colonialismo com o meio ambiente, alinhados também à uma historiografia
mais recente que tem desenvolvido trabalhados por esta ótica.
Carolina Ferreira de Figueiredo

Outros movimentos importantes, mais direcionados aos sentidos simbólicos


da sobrevivência, se dão pela construção íntima dos palestinos/as com o
território. Nesse sentido, a resistência da população palestina encontra espaço
de construção na imaginação e na prática, que muitas vezes está ligada à
terra, à natureza e a forma como se relacionavam com a paisagem antes dos
processos coloniais. É necessário, contudo, estar atento, pelo menos do ponto
de vista analítico, às construções possivelmente idealizadas destas relações,
uma vez que a elaboração da perda é perpassada por uma linguagem poética
da terra natal. Entretanto, ainda que sob um olhar cautelar a essas questões,
compreende-se que as possibilidades de resistência dos palestinos/as, e de
outros povos nativos, está justamente na força continuada em praticar seu ritos
culturais e suas relações com a natureza que encontram eixos diferenciados
da lógica colonial, e também de certa forma, capitalista. A resistência beduína
à expulsão em al-Araqib, como mencionado, é um exemplo, ou a tantos
Artigo

outros palestinos/as que continuam produzindo e reatualizando práticas


associadas ao plantio e a agricultura. De um modo mais amplo, é o sentido
de continuidade das vivências palestinas, ainda que para muitos ocorrem em
espaços distantes do território palestino. É aquilo do que trata Nur Masalha

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(2012) ao compreender a possibilidade da escrita de uma história palestina


“de baixo”, que de uma vez só, possibilita o questionamento às narrativas
hegemônicas – e sua “validação” por documentos oficiais represados por Israel,
assim como mobiliza outras formas de conhecimento da Nakba e da realidade
palestina atual. Por exemplo, as estruturas da oralidade e memória adquiriram
caráter fundamental para a sobrevivência da Palestina no pós-1948, de maneira
que projetos de memorialização tornaram-se formas de resistência cultural,
e são utilizadas como estratégias contemporâneas, seja na alimentação,
vestimentas, festividades, entre outros. Assim, a exploração da memória, seja
israelense e as formas de resistência palestina à ocupação

conceitualmente ou no registro das memórias de diferentes gerações, parece


ser uma abordagem contemporânea fortemente explorada, conjuntamente com
outras formas de registro e comunicação sobre a Palestina. Novas gerações,
por exemplo, renovam a luta palestina buscando sentidos de identificação
“A Palestina é uma questão de justiça climática”:
um panorama sobre a prática de greenwashing

e pertencimento apoiadas por acervo disponibilizado através de câmeras e


acesso à internet. Certamente, essas ferramentas não estão isentas de tensões
e diferenças nesse complexo cenário palestino atual, incluindo justamente a
relação das novas gerações com o território, de certa forma mais distantes para
muitos. Longe de esgotar essas problemáticas, que não cabem neste espaço,
aponta-se um caminho amplo e diverso que, invariavelmente, volta-se para
Carolina Ferreira de Figueiredo

o tema central deste percurso: a relação dos palestinos/as com o território, as


formas de lutas para lidar com esta perda e a busca por justiça, que como se
argumentou, tem se aproximado cada vez mais do sentido da justiça climática,
uma causa local e global.

Considerações Finais

Este artigo buscou analisar aspectos da história recente da Palestina, com


realce às transformações territoriais e populacionais da região, a partir da
criação do Estado de Israel. O objetivo dessa investigação foi propor uma
aproximação da compreensão do processo histórico palestino com reflexões
acerca das transformações do meio ambiente pela atuação colonial. Visualizou-
se que a Palestina atravessou um processo de dominação britânica, em meados
Artigo

do século XX, mas que transformou-se profundamente na medida que outro


processo colonial se instalou com o movimento sionista. Com este cenário
em tela, foi possível compreender estratégias políticas coloniais, configuradas
intimamente com a prática de greenwashing praticadas por Israel a partir de
sua fundação em 1948. Uma política continuada que determina o isolamento,

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a expulsão e a ocupação de territórios palestinos, atuando, contudo, dentro de


um espetáculo “verde”, com a modelação de florestas, empresas e pesquisas
aparentemente enquadradas como ecológicas.
Como foi possível observar, há estudos focalizados em compreender as
relações entre a constituição de Israel, o settler colonialism, o colonialismo
ambiental – o ecocídio e seus impactos na população palestina, e buscamos
traçar um panorama dessas investigações e suas abordagens, ainda que
entendendo como um campo em expansão. Podemos analisar que parte desta
bibliografia segue preocupações de uma historiografia contemporânea atenta
israelense e as formas de resistência palestina à ocupação

à transformação sócio-histórica de populações, tendo o colonialismo como


ponto nodal, e que tem perspectivado suas análises também pelas mudanças
ambientais e da paisagem. Da mesma forma, é possível observar movimentos
como o BDS centralmente preocupado com a luta pela libertação da Palestina
“A Palestina é uma questão de justiça climática”:
um panorama sobre a prática de greenwashing

atravessada pela crise climática, trazendo questões que são particulares da


chamada “questão palestina”, mas que também tem relevância e significação
global. Há, nesse sentido, uma dimensão “total” da terra e do território, que
imbrica pensarmos nas violências contemporâneas – a pobreza, o racismo, o
genocídio, a expropriação e a destruição da natureza, de maneira integrada e
suas formas de combate.
Carolina Ferreira de Figueiredo

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Notas
“A Palestina é uma questão de justiça climática”:

1
Este artigo deriva de problemáticas desenvolvidas durante o período do Doutorado,
um panorama sobre a prática de greenwashing

e presentes na tese defendida que buscou investigar a produção literária palestina


contemporânea.
2
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1054-9924 Doutorado em História Social pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ. Professora de História da Universidade
Federal do Espírito Santo/UFES.
Teses que defendiam a ideia de que o desmatamento gerava secas locais, regionais e
3
Carolina Ferreira de Figueiredo

mesmo continentais.
4
Para se aprofundar sobre o processo da Nakba, ver o trabalho de Rashid Khalidi (2020),
que além de analisar os efeitos sobre a população palestina, traz detalhamentos com
datas específicas e números que dão dimensão desta “catástrofe”.
5
[No original]: “[...] religious revivalism, combined with feverish messianic nationalism,
‘back to the Bible’ movements and ‘rediscovery’ of Palestine, swept across Europe and
Russia” (Masalha, 2018a, p. 243).
6
[No original]: [...] To realize these ambitions, the first thing that must be done is to
eliminate the indigenous occupants of the land. This can be accomplished in a variety
of ways: genocide, forced removal from territories desired by white settlers, and
confinement to reservations outside the boundaries of white settlement. It can also
be accomplished through assimilation. Assimilation can be biological (e.g., through
intermarriage to “dilute” indigenous blood) and/or cultural (e.g., by stripping indigenes
of their culture and replacing it with settler culture) (Glenn, 2015, p. 57).
7
Evelyn Glenn, por exemplo, se debruça sobre o caso dos Estados Unidos. Ainda que não
seja possível nos aprofundar sobre o tema neste momento, cabe destacar a importância
Artigo

de se refletir sobre essas formações históricas em torno do colonialismo. Isto perpassa


por problematizar as diferentes formas coloniais delineadas desde o século XVI e suas
especificidades, e sobretudo em sua transformação no século XIX, com a formação
de uma modernidade europeia pautada pelo discurso científico e a consolidação do
capitalismo industrial.

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8
[No original]: “[...] settler society required the practical elimination of the natives in
order to establish itself on their territory. On the symbolic level, however, settler society
subsequently sought to recuperate indigeneity [...]” (Wolfe, 2006, p. 389).
9
[No original]: “at the surface level, environmental violence manifests as the imposition
of environmental destruction and pollution. At another level, it is possible to look
at environmental violence as undermining the qualities of relationships that are
constitutive of any society’s social resilience or collective continuance” (White, 2018,
p. 140).
[No original]: “In 1948 the Israeli state appropriated for itself immovable Palestinian
10

material assets [...] including [...] papers, historical documents and manuscripts,
furniture, churches, mosques, shrines, historic public buildings, archaeological sites and
israelense e as formas de resistência palestina à ocupação

artefacts [...]” (Masalha, 2018b, p. 7).


[No original]: “in Palestine the Zionist-Hebrew toponymy project, which was critical to
11

the ethno-racialisation of Jews and nationalisation of the Hebrew Bible, followed closely
and faithfully British and American archaeological and geographical ‘explorations’ [...]”
“A Palestina é uma questão de justiça climática”:

(Masalha, 2012, p. 91).


um panorama sobre a prática de greenwashing

12
[No original]: “[...] ‘geopolitical ecology’ or ‘environmental statecraft’, examining
how states, and in this case settler colonial states, manage their environments toward
strategic ends” (Hughes; Velednitsky; Green, 2022, p. 2).
[No original]: “[...] case of settler colonialism, the ability to dominate and manipulate
13

an ecology for power benefits contributes to the settler goal of native elimination.
Therefore, ecocide as the destruction of native ecology is simultaneous with the creation
Carolina Ferreira de Figueiredo

of settler exclusive space” (Jaber, 2018, p. 8).


14
Cabe ressaltar que, durante o processo da Nakba, a própria perda da terra – que viria
a ser definitiva – não era exatamente uma certeza. Como disserta Nahla Abdo (2018),
o movimento de saída de suas casas não significava o abandono da Palestina, mas
uma busca por refúgio temporário na casa de amigos e familiares em vilas vizinhas. E
assim, “eles ficavam lá até que estas vilas e cidades também eram atacadas e eram todos
forçados para fora da terra da Palestina” (Abdo, 2018, p. 54, tradução nossa). Na retórica
sionista, a busca por abrigo temporário foi usada como argumentação para afirmar que
os palestinos/as estavam abandonando as suas casas, tornando seus lares “vagos” para
serem ocupados pela nova população. Esta questão ainda reforçou o discurso sionista
de que não havia sido a guerra que expulsara os palestinos/as. Por fim, a “vacância”
dos lares foi tornada um instrumento legal de Israel a partir da promulgação da The
Absentee´s Property Law, a lei que versa justamente sobre a ocupação dessas propriedades
de “ausentes”, como já indicado. Com isso, os novos moradores de Israel tornaram-
se proprietários de propriedades e imóveis, enquanto os palestinos/as tornaram-se
definitivamente refugiados/as.
15
Para conhecer a iniciativa do Zochrot, consultar: https://www.zochrot.org/welcome/
Artigo

index/en.
[No original]: “[...] the evacuated Palestinian lands were forested by non-indigenous
16

conifers, pine trees (native to the northern hemisphere) and cypress trees, after the
uprooting of indigenous trees and destruction of the terraced landscape” (Masalha,
2012, p. 121).

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Um ponto importante a se considerar, e investigado Adam Hanieh (2003), diz respeito


17

às políticas de Israel e suas transformações a partir da evolução do capitalismo no país


e seu movimento global. Para o autor, a partir dos anos 1980 é possível visualizar uma
mudança de política econômica no país, voltada para o neoliberalismo, no contexto da
ascensão do partido de direita Likud.
É necessário problematizar também o uso de agrotóxicos e outros produtos químicos
18

nas plantações de diferentes cultivos realizados por palestinos/as. Ainda que seja uma
população nativa ao território, isto não quer dizer sempre uma produção totalmente
ecológica, e deve-se também considerar o contexto de produção e comércio no cenário
capitalista global atualmente. Dessa maneira, compreende-se que é importante realizar
um debate de modo amplo com vistas à produção agrícola em diferentes espaços,
contudo, enfatiza-se aqui que as formas de produção estão intimamente relacionadas
israelense e as formas de resistência palestina à ocupação

com a ocupação israelense e o capitalismo contemporâneo, não sendo possível comparar


termos de uma devastação ecológica de Israel e Palestina.
[No original]: “about half (48%) of agricultural land in the Occupied Palestinian
19

Territory is planted with 10 million olive trees, the vast majority of which are in the
“A Palestina é uma questão de justiça climática”:
um panorama sobre a prática de greenwashing

West Bank” (Sharif, 2014, p. 12).


20
[No original]: The Separation/Apartheid Wall is located within the boundaries of the
Western Aquifer. The pumping area is confined to a narrow strip of land running parallel
to the Green Line itself. The Western Aquifer, lying completely within Palestinian
territory, is the most important groundwater resource in the whole of Israel/Palestine.
The military allowed drilling of only 23 wells in the entire West Bank by Palestinians
between 1967 and 1990 (...) [today] In Israel by contrast, there are approximately 500
Carolina Ferreira de Figueiredo

strongly flowing deep wells, whereas Palestinians must make do with 159 old wells,
which were designed for irrigation and are less deep (DEUTSCH, 2011, p. 28).
[No original]: “[...] Israel is presented as a global leader in climate change mitigation
21

and adaptation, exporting its tech and expertize abroad, particularly to developing
nations” (Hughes; Velednitsky; Green, 2022, p. 2).
[No original]: “the struggles against racism and militarization, and for climate,
22

economic and social justice are profoundly interconnected” (Palestinian BDS National
Committee, 2019a).
[No original]: “Israel works to “greenwash” its image. Yet Israel is developing major
23

gas fields for export, and 97.7% of its electricity production comes from fossil fuels”
(Palestinian BDS National Committee, 2019a).
24
[No original]: The struggles for political and civil rights, socio-economic justice, as well
as climate justice in the Arab World and elsewhere are interconnected and intersectional.
United, we shall prevail over all systems of oppression. Freedom for all political prisoners
in Egypt and around the world (Palestinian BDS National Committee, 2022).
Artigo

Recebido em 28/02/2023 - Aprovado em 10/08/2023


Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.311-337, jul-dez. 2023 } 337
DOI: 10.5433/1984-3356.2023v16n32p338-370

Fumar tabaco, consumir


ipadu: a constituição
do sujeito na ontologia
Yepamahsã (Tukano)1

Smoking tobacco, consuming


ipadu: the constitution of
the subject in Yepamahsã
(Tukano) ontology

Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto2

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Resumo: Tomando por base o relato autobiográfico de


Barreto (2018), o artigo pretendeu analisar a concepção
de sujeitos humanos e não humanos e suas interações no
sistema cosmopolítico Yepamahsã (Tukano) do noroeste
amazônico. Apoiou-se nos teóricos da “virada ontológica na
Antropologia”: Descola, Latour e Viveiros de Castro, cujas
interpretações avançaram sobre o problema epistemológico
a constituição do sujeito na ontologia Yepamahsã (Tukano)

da representação moderna na separação radical entre


natureza e cultura. A metodologia baseou-se na simetrização
antropológica seguindo o percurso da “reflexividade tucana”
empreendida por Barreto (2018) na incursão ao corpus
Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

mitológico de seu grupo de origem, os Búbera Põra. Os


resultados apontaram que os modos de identificação do ser
manifestos na cosmologia Yepamahsã revelam um regime
anímico e multinaturalista como condição universal, uma vez
que o estatuto do humano é compartilhado como disposição
Fumar tabaco, consumir ipadu:

ontológica geral, no qual, as relações entre os entes são guiadas


e administradas pelas práticas xamânicas dos kumuã, ao evocar
o tempo das origens. No exercício auto descritivo, o autor
apontou que na práxis desempenhada pelos especialistas,
sobressaem ainda peculiaridades que envolvem os discursos
Kehtí Ukunse e Mūropaū Ussétisse como “Artes do Diálogo”, uma
vez que esse coletivo define a fala como ato transformador.
Palavras-chave: ontologia Yepamahsã; animismo;
multinaturalismo; Xamanismo; sujeitos.

Abstract: Taking as a basis the autobiographical account of


(Barreto, 2018), the article intended to analyze the conception
of human and non-human subjects and their interactions
in the Yepamahsã (Tukano) cosmopolitical system of the
Artigo

Northwest Amazon. It relied on theorists of the ontological


turn in Anthropology: Descola, Latour, and Viveiros de
Castro, whose interpretations advanced on the epistemologia
problem of modern representation in the radical separation
between nature and culture. The methodology was based

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on anthropological symmetrization following the path of


"Toucan reflexivity" undertaken by (Barreto, 2018) in his foray
into the mythological corpus of his home group, the Búbera
Põra. The results pointed out that the identification modes
of being manifested in Yepamahsã cosmology reveal a soul
and multinaturalist regime as a universal condition, since
the status of the human is shared as a general ontological
disposition in which the relations between beings are guided
and managed by the shamanic practices of the kumuã, evoking
the time of the origins. In the self-descriptive exercise, the
a constituição do sujeito na ontologia Yepamahsã (Tukano)

author pointed out that, in the praxis performed by the


specialists, peculiarities that involve the Kehtí Ukunse and
Mūropaū Ussétisse discourses as "Arts of Dialogue" also stand
out, since this collective defines speech as a transforming act.
Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

Keywords: Yepamahsan ontology; animism; multinaturalism;


Shamanism; subjects.
Fumar tabaco, consumir ipadu:
Artigo

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Introdução

Esse artigo pretende analisar a concepção de sujeitos humanos e não


humanos e os aspectos relacionais desses entes no sistema de pensamento da
etnia Tukano, cujos grupos de origem pertencentes à família linguística Tukano
Oriental, residentes no noroeste amazônico, nas proximidades das fronteiras
do Brasil, Colômbia e Venezuela. As dezessete etnias que compõem uma
extensa rede de trocas matrimoniais, rituais e comerciais vivem às margens
do rio Uaupés e afluentes (Hugh-Jones; Cabalzar, 2021, p. 1). O problema de
pesquisa situa-se no limiar entre a Filosofia e as Ciências Sociais e despontou
a constituição do sujeito na ontologia Yepamahsã (Tukano)

das provocações teóricas do movimento denominado de “virada ontológica”.


Trata-se da conciliação da metafísica com materiais etnográficos, que
resultou no reconhecimento e na valorização do pluralismo ontológico dos
povos originários e na tentativa de superação da visão epistemológica moderna
Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

que pretende a divisão radical entre o homem e o mundo no ato de conhecer.


Para os teóricos da “virada”, a hegemonia ontológica dada ao humano no cânone
ocidental é um posicionamento que necessita ser rompido porque, ao colocar
a cognição do sapiens no centro da História, desvalorizou e hierarquizou certas
Fumar tabaco, consumir ipadu:

formas de existir em detrimento de um modelo único.


As teses de Latour (1994, 2019) e Descola (2015) discutida à frente com mais
detalhes, propõem uma nova reflexão sobre a concepção dicotômica moderna
entre natureza e cultura, reverberando também na teoria do perspectivismo
multinaturalista de Viveiros de Castro (2018, 2020). No caso da Amazônia, a
floresta pensada como natureza é o resultado de uma longa história cultural e
de uma aplicada atividade humana, o que desfaz a representação equivocada do
ocidente, ao imaginar que os povos originários seriam radicalmente diferentes
porque estariam em sintonia natural com a natureza, ideia tributária de um
naturalismo simplista, presente tanto no senso comum como nos círculos
científicos (Viveiros De Castro, 2008, p. 84).
Ao proporem uma leitura abrangente da natureza, esse grupo de pensadores
“parece prosseguir no mesmo caminho de outra metafísica alheia ao kantismo,
ou seja, uma ontologia da diferença, a metafísica dos “outros” a qual é visível
Artigo

nas cosmopolíticas amazônicas” (Uchôa, 2017, p. 39).


O reconhecimento ontológico da pluralidade de mundos resultante das
investigações situadas entre a Filosofia e a Antropologia não descarta a oposição
entre natureza e cultura, no entanto, aponta que essas categorias operam um
diálogo a partir de contextos relacionais, perspectivas móveis, em suma, pontos

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de vista (Viveiros De Castro, 1996, p. 116). O que pode ser demonstrado na saída
conceitual denominada por Viveiros de Castro (2018, p. 55) de multinaturalismo,
o qual reconhece a natureza não como única, mas como múltipla, pois não
se falaria mais de um mundo repleto de culturas, uma vez que todos os entes
cósmicos são considerados sujeitos dotados de interioridade, portadores de
perspectivas diferenciadas. Haveria uma continuidade metafísica entre todos os
seres e uma descontinuidade física, manifesta pelo corpo e determinante para
o mundo das diferenças, constituindo, assim, os “discursos” de cada espécie.
No tocante ao tema das florestas, suas estórias e memórias é possível associá-
lo à discussão da temática aqui proposta, uma vez que a crítica empreendida
a constituição do sujeito na ontologia Yepamahsã (Tukano)

pelos teóricos da “virada ontológica” amplificou a noção de natureza, atribuindo


a ela própria e aos seres que a povoam, uma altivez ontológica que move o
regime animista substituindo, desse modo, a errônea e ultrapassada concepção
da instrumentalização científica da natureza como algo inerte, à disposição dos
Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

interesses humanos dentro da relação sujeito e objeto do conhecimento.


Portanto, é inegável a necessidade de reestabelecer a convivência do homem
com os ecossistemas terrestres, nos quais a ascendência das florestas apontam
sua exuberância e biodiversidade por ser explorada. Os “terranos” devem
Fumar tabaco, consumir ipadu:

promover relações de horizontalidade e respeito com todos os tipos de vida


existentes. O lócus do objeto de análise deste trabalho é a floresta amazônica.
As etnografias referidas pelos teóricos da “virada ontológica” são procedentes
das terras baixas americanas, que registraram formas de pensar dos coletivos da
floresta amazônica e trouxeram novidades capazes de suplantar o difusionismo
e o determinismo geográfico, impostos através dos modelos construídos antes
dos anos setenta no século passado sobre a Amazônia.
De acordo com Viveiros de Castro (2020, p. 279), a imagem socioecológica da
Floresta Tropical apresentava uma série de equívocos, mostrando-a como região
que gozava de grande uniformidade, hostil à civilização, ocupada recentemente
e sociologicamente rudimentar. Com pesquisas advindas de diversas matrizes
disciplinares, foi possível divisar novas imagens da relação entre natureza e
sociedade.
Artigo

[...] Os últimos anos assistem à emergência de uma imagem da


Amazônia indígena caracterizada pela ênfase na complexidade
das formas sociais e na diversidade da fisionomia natural da
região. Essas novas imagens da sociedade e da natureza se formam
em um contexto teórico marcado pela sinergia entre abordagens

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estruturais e históricas, por uma tentativa de superação de


modelos explicativos monocausais (naturalistas ou culturalistas)
em favor de uma apreensão mais nuançada das relações entre
sociedade e natureza, e por esperanças de uma ‘nova síntese’
capaz de vir integrar o conhecimento acumulado pelas diversas
disciplinas (Viveiros De Castro, 2020, p. 278).

Pretendeu-se aqui a análise sobre o sistema ontológico Tukano. Nessa


investigação sobre a ontologia Yepamahsã, referência aos seres humanos
feitos do sopro do cigarro, apresenta-se registro da versão contada por Nahuri
a constituição do sujeito na ontologia Yepamahsã (Tukano)

e Kumarõ (2003, p. 22) segundo o clã Tukano Hausirõ Porã no quinto volume da
Coleção Narradores Indígenas do Rio Negro.
Foi utilizado, ainda, o relato autobiográfico de João Rivelino Barreto, (2018,
2022), resultado dos trabalhos sobre a organização social do seu coletivo e
Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

a forma de articulação das pessoas que a ele se vinculam dentro da rede de


afinidades com os demais clãs Tukano, a partir do ponto de vista narrado
pelos especialistas (kumuã) de cada grupo. Na investigação, o interlocutor
principal foi o Sr. Luciano Barreto, cujo diálogo intergeracional resultou no
aprofundamento teórico e no fortalecimento desse sistema de pensamento,
Fumar tabaco, consumir ipadu:

reconhecido como fonte de formação e transformação dos Tukano, na medida


de sua autodeterminação ontológica.
Em termos metodológicos, empreendeu-se análise crítica do texto com o
intuito de extrair os elementos conceituais das narrativas míticas, indispensáveis
para que fossem analisadas as concepções dos entes que povoam o universo
cosmopolítico Tukano, incluindo as transespecifidades entre humanos e não
humanos e suas formas de interação. Escrutinou-se, nesse exercício interétnico
de pensamento, formas de elaboração conceituais inusitadas, arranjos e
dispositivos que valorizam e validam a experiência direta, ou seja, experiências
visuais, auditivas e perceptivas que aparecem como o fundamento da autoridade
dos especialistas.
Ressalta-se que as principais categorias evidenciadas no discurso de Barreto
foram o resultado dos processos investigativos elaborados em conjunto com
seu pai, que resultou na construção da reflexividade anunciada entre a figura
Artigo

do pesquisador (antropólogo) e a imagem dos filhos diplomados com interesses


em seus próprios saberes (Barreto, J.P. et al, 2018 p. 22). Alinham-se sobre essa
questão as teses de (Carneiro da Cunha, 2017, p. 294) sobre os conhecimentos
tradicionais e direitos intelectuais das minorias étnicas quando afirma que o

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“conhecimento tradicional possui vitalidade na medida em que preserva as


dinâmicas de produção dos seus meios”.
O artigo distribui-se em três partes, a primeira é uma breve apresentação
teórica dos pensadores da virada ontológica; a segunda versa sobre a apreciação
do relato autobiográfico de Barreto e de sua obra, fundamentais na observação
do reposicionamento da relação sujeito e objeto, uma vez que o autor nos
trouxe uma “teoria indígena do conhecimento”. Hugh-Jones apud Dias Junior
(2018, p. 14) fornece pistas sobre a contextualização dos níveis discursivos
das narrativas míticas, denominados em termos Tukano: Ukunse e Mūropaū
Ussétisse, estabelecidas pelo autor como “Artes do Diálogo”. Na terceira parte,
a constituição do sujeito na ontologia Yepamahsã (Tukano)

apresentamos as implicações teóricas do perspectivismo e do animismo


associadas aos achados etnográficos de João Rivelino Barreto (2018).

O papel e a tinta na terra das canoas: os pensadores da virada ontológica


Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

Assentada há mais de cinco séculos no continente americano, a empresa


colonial continua sua marcha de dominação, quando promove a exclusão e a
desvalorização de certos modos de existir em detrimento de um modelo de
Fumar tabaco, consumir ipadu:

civilização. Neste sentido, a invasão colonial é o marco temporal da imposição


inteligível de uma humanidade universal. A colonização das Américas e a
modernização do ocidente são coproduções do mesmo regime epistêmico
de rejeição da maioria dos membros da espécie humana em função dos seus
corpos, hábitos e formas de ver o mundo (Botton, 2021, p. 1).
No limiar dos séculos XX ao XXI, os estudos decoloniais apresentam-se como
um movimento crítico à normatividade colonizadora e ao pseudo universalismo
europeu, disposto a questionar o conservadorismo e a manutenção deste
regime político-subjetivo. A ausência de representatividade das minorias
sociais e as crises instauradas na pós-modernidade atingiram os setores da
economia, política e religião. Assistem-se também as crescentes emergências
sanitárias e climáticas globais, a epocabilidade do ser humano, denominada de
Antropoceno.
Uma das consequências das teorias decoloniais foi trazer para o campo
Artigo

disciplinar das Ciências Humanas uma reaproximação com as questões


metafísicas, denominada de “virada ontológica”. Esse conjunto de teorias
comparou ontologias heterodoxas com o auxilio das etnografias descritivas
disponíveis (Tomaz, 2022, p. 21). A reunião de matrizes conceituais filosóficas
com dados empíricos visou à adoção de novos regimes de pensamento, uma

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vez que conceitos indígenas emergentes no jogo antropológico ensejam o


alargamento da nossa racionalidade. A proposta de reordenação do campo
passa por uma crítica ao empirismo isolado, já que as metafísicas dos povos
originários são contrapontos onto-epistêmicos ao apresentarem o multiverso
de naturezas e associações que expressam uma realidade ontologicamente
plural (Uchôa, 2007, p. 37).
Considera-se nesse conjunto de sociedades etnografadas a ausência do
privilégio ontológico humano. O pensamento originário questiona a tradição
filosófica, alicerce das ciências naturalistas, forjada na modernidade, fundadora
do colonialismo e responsável pela segregação epistêmica, ao repensar a
a constituição do sujeito na ontologia Yepamahsã (Tukano)

dicotomia conceitual natureza e cultura. A primeira, delineada como entidade


homogênea, fria e objetiva, regida por leis mecânicas, passíveis de serem
descobertas pelo único sujeito do conhecimento; e a cultura considerada como
manifestação exclusiva da criatividade do sapiens. Portanto, a cisão homem-
Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

natureza cria a imagem do real como determinação do sujeito do conhecimento,


na qual é negada a possibilidade de pensar um “mundo sem nós”.
As metafísicas das sociedades originárias adotam o ideal das relações de
horizontalidade e organicidade entre os seres. Os pressupostos metatéoricos
Fumar tabaco, consumir ipadu:

dos projetos ontológicos comparativos reconhecem, no pensamento nativo,


alto grau de sofisticação e complexidade. O regime conceitual adota como
elementos, os mitos, os sonhos, as visões espectrais, no conhecimento das
propriedades dos entes cósmicos, não adotando a separação entre epistemologia
e ontologia, a partir do padrão “perspectivista-animista xamânico” (Tomaz,
2022, p. 11). Isso eleva a prática filosófica a uma prática social do mundo e das
relações entre os seres que vivem sob a égide de uma ontologia horizontal, sem
hierarquizações.
As teses de Descola (2015), Latour (1994) e Viveiros de Castro (2018) trazem
elementos que corroboram com a crítica à tradição filosófica da modernidade
e a abertura para o estado de descolonização permanente do pensamento.
Intérpretes do pensamento amazônico, esses autores aproximaram-se do regime
conceitual ameríndio a partir das ontologias do animismo, perspectivismo e
do xamanismo enquanto exercício político e epistemológico. Entendida como
Artigo

o estudo dos modos de ser e estar no mundo, essa cruzada onto-epistêmica


adentrou na seara investigativa de outros modos de vida extra modernos.
Descola, ao examinar o pensamento dos Achuar na Amazônia equatoriana,
tentou compreender o tratamento que os indígenas dedicavam aos animais,
pois mesmo na condição de predados eram tratados de forma diferenciada e

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descobriu que, no caso amazônico, as diferenças entre humanos e não humanos


eram de grau, não de natureza. “Os animais são considerados pessoas com que
os humanos podem e devem interagir de acordo com as regras sociais” (Descola,
2007, p. 17).
Em sua tese, Descola (2007) sustenta que realidades sociais, isto é,
sistemas relacionais estáveis, estão analiticamente subordinados a realidades
ontológicas, ou seja, sistemas de propriedades que os humanos atribuem
aos seres. Partindo dessa premissa e insurgindo-se contra a Antropologia
evolucionista, Descola distingue quatro regimes epistêmicos de identificação
da realidade: totemismo, analogismo, animismo e naturalismo. Em função da
a constituição do sujeito na ontologia Yepamahsã (Tukano)

discussão proposta, destacam-se aqui apenas o animismo e o naturalismo.


No entanto, salienta-se que as quatro ontologias são sistemas de distribuição
de propriedades entre objetos e seres existentes no mundo que fornecem pontos-
chave para a compreensão das formas sociocósmicas de associação e concepção
Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

de pessoas e não pessoas. Esses modos de identificação não são mutuamente


excludentes, cada humano pode ativá-los de acordo com as circunstâncias, mas
sempre um deles é predominante num lugar e tempo específico.
Em inúmeras sociedades etnografadas, entre elas a Achuar, identificou-se a
Fumar tabaco, consumir ipadu:

ocorrência do animismo no continente americano, também em parte da Ásia e na


Sibéria, nele a humanidade seria condição compartilhada como condição geral,
na qual haveria uma continuidade de almas e uma descontinuidade de corpos,
revelando as fisicalidades como distintas e associadas como “roupas” a corpos.
Por usarem equipamentos corporais distintos, cada uma dessas entidades,
percebia e agia no mundo, segundo perspectivas diferentes. O animismo seria
antropogênico porque toma emprestado dos humanos o necessário para tratar
os não humanos como pessoas.
No tocante ao naturalismo, seria aquele regime no qual os ocidentais vivem.
“Designa um domínio ontológico determinista chamado natureza em que leis
gerais poderiam explicar eventos e onde nada aconteceria sem uma causa”
(Sá Junior, 2014, p. 21). A espécie humana seria a única dotada da capacidade
de se objetivar graças ao privilégio reflexivo, garantido por sua interioridade
reificada no curso do aparecimento das ciências particulares, baseadas no
Artigo

modelo cartesiano que separa o homem e a natureza ao conceber a realidade


como determinação do sujeito.
O modelo antropocêntrico proposto define tautologicamente os outros seres
pela ausência de humanidade. Nesse sentido, o mapeamento realizado por
Descola (2015, p. 139) sobre as disposições das agências e suas predicações,

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identificando maneiras de estar no mundo, tem fomentado o debate acadêmico


dos últimos vinte anos.
Bruno Latour, com sua crítica à ideia de modernidade, foi outro pensador
empenhado na reforma da filosofia e na construção de uma teoria sobre a
realidade na qual coubessem ontologias plurais. Para isso, empreendeu uma
investigação sobre os modos de existência dentro de uma matriz combinatória
que pudesse abarcar outras sociedades no momento em que todas enfrentam
crises ecológicas.
O tratamento dado ao problema clássico das relações entre natureza e cultura
se constitui na análise da historicidade do conceito ambíguo de modernidade,
a constituição do sujeito na ontologia Yepamahsã (Tukano)

pois ao mesmo tempo em que deseja a ordem, provoca a hibridização das coisas e
dos sujeitos (humanos e não humanos). A invenção do mundo moderno implicou
a dissociação do campo da ciência do campo da política que são tratados de
forma separada, quando, na verdade, estão diretamente relacionados.
Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

[...] Do momento em que traçamos este espaço simétrico,


reestabelecendo assim o entendimento comum que organiza
a separação dos poderes naturais e políticos, deixamos de ser
modernos. [...] O etnólogo evitará escrever três livros – um para
Fumar tabaco, consumir ipadu:

os conhecimentos, outro para os poderes e um último para as


práticas. Escreverá apenas um como aquele, magnífico, em que
Descola tenta resumir a constituição dos Achuar da Amazônia.
[...] A tarefa da antropologia do mundo moderno consiste em
descrever da mesma maneira como se organizam todos os ramos
do nosso governo, inclusive os da natureza e das ciências exatas, e
também explicar como e por que estes ramos se separam (Latour,
1994, p. 20-21).

Latour propõe uma mudança de paradigma e a necessidade de superar a


distinção ontológica entre humanos e não humanos, que é a singularidade da
modernidade. Ao propor uma antropologia simétrica, busca verificar a relação
híbrida entre natureza e sociedade. Trata-se de desmistificar a dicotomia
construída a partir do século XVII entre o mundo das representações políticas
Artigo

e o mundo das representações científicas. “Fomos modernos. Tudo bem. Não


podemos mais sê-lo do mesmo jeito”. [...] “seremos eternamente incapazes de
acolher este meio-ambiente que não podemos mais controlar” (Latour, 1994, p.
140-143).
Os indígenas não são modernos e nem dicotômicos no sentido de pensar a

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separação entre humanos e não humanos, a antropologia simétrica busca um


diálogo não somente entre as áreas do conhecimento, mas também entre mundos
diversos, como o mundo dos ameríndios e o mundo da ciência moderna. Desde
o evento do Antropoceno, tudo se complicou e impôs uma tomada de posição
entre modernizar ou ecologizar, ou seja, se faz mister encontrar alternativas
para pensar as relações entre natureza e cultura substituindo o modelo vigente
(Latour, 2019, p. 20).
Eduardo Viveiros de Castro apresenta o perspectivismo ameríndio como
uma teoria antropológica em total consonância com o regime ontológico do
animismo, ao articular debates fundamentais da disciplina com o material
a constituição do sujeito na ontologia Yepamahsã (Tukano)

pouco explorado da etnologia das terras baixas americanas. Não podemos


deixar de mencionar ainda os estudos de (Arhem,1993 apud Cayon, 2010, p.
24) sobre os Makuna, Tukano orientais do lado colombiano, que inspiraram a
teoria de Viveiros de Castro. Por meio da Ecosofia já se preconizava a ideia de
Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

que homens e animais participam de uma sociedade única, compartilhada por


uma comunidade cósmica integral, possuidoras de pontos de vista distintos.
O perspectivismo é um dos temas trazidos à tona no exame radical
das ontologias das sociedades amazônicas, trata-se da “reconstituição da
Fumar tabaco, consumir ipadu:

imaginação conceitual indígena nos termos da nossa própria imaginação


conceitual” (Carneiro da Cunha apud Viveiros de Castro, 2020), cujo objetivo
foi contribuir para a criação de uma linguagem analítica à altura dos mundos
indígenas radicada nas linguagens que constituem sinteticamente esses
mundos. O perspectivismo adiciona ao animismo o fato de que além da
percepção antropomórfica reflexiva dos seres com características psicossociais
tipicamente humanas, os animais saltam para fora dos seus coletivos ao
perceberem os “outros” como não humanos.

Nada é humano absolutamente, já que, de certo modo, todos


podem vir a ser considerados como humanos, desde que esteja no
interior de um determinado ponto de vista, aquele que percebe
reflexivamente sua humanidade. A definição do existente dá-se,
por todos os outros seres pelos quais ele pode ou deve passar. [...] O
conhecimento do mundo das perspectivas, em especial, do fato de
Artigo

que os outros seres que estão no cosmos consideram os humanos


(nós) como não humanos, dá-se no contexto do xamanismo. [...]
O mundo, por isso, não passaria de um conglomerado de sujeitos
de perspectivas, ocupantes da posição de humanos – pronomes
cosmológicos que funcionariam como posições de sujeito, e não

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substâncias imutáveis (Tomaz, 2022, p. 91-92).

Diante desse quadro, o perspectivismo revela-se também como teoria


ontológica multinaturalista, na medida em que não se falaria de um mundo
repleto de culturas, mas de uma unicidade da cultura, uma vez que todos os
entes cósmicos são culturais, dotados de interioridade, a qual se manifesta na
multiplicidade dos corpos naturais, equipamento necessário para enxergar o
mundo (Tomaz, 2022, p. 100).
O xamã seria o multinaturalista por excelência, porque é capaz de ver e
escutar como são as outras naturezas por intermédio de sua consciência cósmica.
a constituição do sujeito na ontologia Yepamahsã (Tukano)

Enquanto modalidade epistêmica, no xamanismo, a relação do conhecimento


acontece entre agentes animados, cuja premissa é a existência de pequenas
multiplicidades que povoam o cosmos. Na próxima parte, observar-se-á como
essas teorias reverberam na narrativa do tukano Rivelino Barreto.
Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

O autor e a obra: coletivos Tukano em transformação

No último século, houve transformações significativas no campo dos


Fumar tabaco, consumir ipadu:

direitos das minorias. Na Academia, assistiu-se ao debate sobre epistemologias


e ontologias diversas do modelo hegemônico. No campo da historiografia,
o protagonismo sempre foi de historiadores brancos que tomaram para si o
ponto de vista das narrativas. No entanto, adensa-se a presença de um corpus
literário, empenhado em realizar o contraponto dessas verdades e na demolição
de versões canonizadas pela cultura dominante.
Coragem e determinação são atributos que marcam a trajetória acadêmica
e existencial de João Rivelino Rezende Barreto, assim como se caracteriza a
história do seu coletivo contada na sua investigação. O autor fez uso do termo
“coletivo” para compor o título do trabalho. É possível associar ao termo, a tese
de Latour, quando defende, na sociologia das associações (Latour, 2005 apud
Bennertz, 2011, p. 949), uma reconfiguração do social em um coletivo, a fim de
reescrever a narrativa de constituição do mundo, evitando a clássica separação
entre sociedade e cultura.
Artigo

Os povos originários seguem “lutando pelo direito à diferença e por sua


autodeterminação histórica, fustigados por inimigos poderosos que desejam
vê-los, por um lado, como joguetes da lógica onipotente do Estado e do Capital,
e por outro da razão ecológica ou sociobiológica” (Viveiros de Castro, 2020, p.
296). No século XXI, a resistência dessas minorias étnicas avança fortalecendo

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suas pautas reivindicatórias, as universidades brasileiras tornaram-se,


recentemente, um espaço de encontros interétnicos de saberes, graças ao
aumento do número de ingressantes quilombolas e indígenas.
Esse é o caso de João Rivelino Rezende Barreto, da etnia Tukano, nascido
na Colômbia quando o pai encontrava-se em busca de trabalho nos seringais
e garimpos da Amazônia, na década de oitenta. Historicamente, vivia-se o
contexto de organização do movimento indígena brasileiro nas lutas contra
a exploração dos seus territórios que se intensificaram nos últimos anos do
século XX, principalmente no tocante à exploração mineral desordenada e
ainda ativa na atualidade, colocando em risco a vida na Terra. Assim, podemos
a constituição do sujeito na ontologia Yepamahsã (Tukano)

perguntar com Latour: “É possível fazer o elogio da civilização que está por
vir?” (Latour, 2019, p. 363).
João Rivelino Barreto (2018, p. 29) inicia seu relato falando sobre o casamento
dos avós e dos pais, menciona o sistema de trocas matrimoniais que implicam
Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

hierarquia e afinidade, conforme as regras de parentesco dos grupos que são


patrilineares e exogâmicos. O Sr. Luciano Barreto, da etnia Tukano e a Senhora
Maria Clélia Rezende, da etnia Tuyuka se uniram dentro do padrão corrente do
Rio Tiquié. Rivelino enfatiza que os pais foram alunos dos padres salesianos,
Fumar tabaco, consumir ipadu:

apontando nessa experiência o impacto causado pela chegada da missão


salesiana no noroeste amazônico no século XX, cujo propósito evangelizador
se deu a partir da instalação de escolas e internatos no ano de 1916.
Na década de cinquenta, o Sr. Luciano Barreto vivenciou as regras da Ordem
Salesiana, ao ingressar na escola no distrito de Pari-Cachoeira, fronteira com a
Colômbia. Lá, não havia a desdita da exploração e dos maus tratos praticados
pelos colonizadores, no entanto, o uso da violência simbólica em negar a cultura
do outro, com as proibições de fala da língua materna e dos usos e costumes
ancestrais foi sentida como mais um choque com a cultura não indígena. O
objetivo desse modelo educacional, afinado com os valores do projeto colonial
seria o de integrar os Tukano à sociedade nacional, desqualificando por
completo as metafísicas indígenas.
Concluído os estudos, o Sr. Luciano optou por permanecer na comunidade
São Domingos Sávio, no Alto rio Tiquié, junto com o restante da família, local
Artigo

onde os Tukano do grupo Sararó Yúpuri Búbera Põra situam e reconhecem


sua origem ancestral. Posteriormente, em busca do sustento familiar, foi ao
encontro dos parentes que moravam na Colômbia, onde permaneceu por vinte
anos, lidando com a seringa e outras formas de extrativismo. De acordo com
João Paulo Barreto (2018, p. 180) sua permanência no território colombiano,

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convivendo com vários povos, fez do Sr. Luciano um poliglota. A saída dos
indígenas de suas comunidades de origem, em busca de melhores condições de
vida, se constitui em mais um capítulo da história de migração e dispersão dos
grupos. O que na ótica do autor não afeta o ser Tukano:

Em meio a esse contexto na Colômbia, nascemos meus irmãos


e eu. Hoje, somos quatro irmãos vivos, o menor Luís Ademar é
o único que nasceu no Brasil. [...] Quando meus pais retornaram
ao Brasil, eu tinha seis meses de vida e os meus avós já tinham
antecipado o retorno a São Domingos Sávio. [...] Enfim, tenho
a constituição do sujeito na ontologia Yepamahsã (Tukano)

primos, tios e tias na Colômbia e na Venezuela; é claro que cada


um constrói a sua história, mas não deixamos de ser Tukano e
reconhecer que pertencemos ao coletivo Búbera Põra. Uma
extensão difícil de situar e de descrever (Barreto, J. R., 2018, p. 9).
Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

Mesmo manifestando dificuldade na descrição ontológica do seu grupo, João


Rivelino Barreto (2018, p. 34) discorre sobre a retomada da vida cotidiana da
família na comunidade São Domingos Sávio quando retornaram ao Brasil. O
ingresso na escola formal da comunidade foi um acontecimento na vida de
Fumar tabaco, consumir ipadu:

Rivelino e dos seus irmãos, pois contrastava com a vida corrente em tudo,
desde o aprendizado até o consumo da merenda escolar. Anos depois, uma nova
descoberta de ouro no Rio Traíra provocou a saída do pai de Barreto.
Nessas ocasiões, o contato intercultural com os Tuyuka se intensificava por
parte da família da mãe, quando procurava o apoio dos seus pais. Para Rivelino,
essas aproximações se constituíam em desafios linguísticos no convívio com
as crianças da Comunidade São Pedro. Até mesmo a mãe já não se identificava
tanto com o grupo de origem em função dos costumes do marido Tukano.
Quanto às crianças, elas iam se desenvolvendo na experimentação dos entre-
mundos indígena e não indígena. Em seu exercício de reflexividade, Rivelino
nos conta que foi por meio da observação do ritmo diário da comunidade que
começou a construir sua identidade, apesar de não estar vivenciando os fatos
do passado ancestral narrados pelo pai, ao mesmo tempo em que o universo
escolar apontava para outras realidades:
Artigo

[...] Sendo índio e propondo etnografar meu próprio coletivo, a


forma que mais bem me pareceu para esse desafio (“transformar
o familiar em exótico”) foi partir de uma autobiografia comentada
e acrescida de alguns levantamentos etnográficos pontuais [...]

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fui aprendendo a construir minha identidade observando o


ritmo diário da comunidade, desde os trabalhos dos meus pais
até o relacionamento com meus tios, primos e primas, avôs e
avós. Porém, a escola formal proporcionava um novo horizonte
racional e, com isso, a imagem que meu pai falava ou lembrava em
seus contos mitológicos e históricos não existia mais na minha
época, simplesmente estava na memória dos mais velhos e pouco
se praticava aquilo que falavam ser “nossa cultura”, ou seja, não
se produzia o banco Tukano, as danças e os ensinamentos orais
dos conhecimentos tradicionais se particularizavam no encontro
a constituição do sujeito na ontologia Yepamahsã (Tukano)

entre pai e filho e não se formavam mais em coletividade. Além


disso, não se via mais a realização de grandes festas cerimoniais
que meu pai costumava relatar, realizadas longamente e em
tempos específicos (Barreto, J. R., 2018, p. 38).
Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

As festas de oferta e trocas cerimoniais, denominadas de Dabucuris, eram


as únicas que persistiam entre as comunidades à época da infância de Barreto,
mesmo participando de longe e observando com as outras crianças, gerava-se
aí um ethos propiciador de um elo com o passado. No entanto, cada vez que as
Fumar tabaco, consumir ipadu:

famílias deixavam a comunidade em busca de trabalho, era experimentado o


enfraquecimento dessa ligação com o restante do grupo.
Além da estadia na Colômbia, outras saídas em busca da exploração do ouro
e de trabalhos que pudessem garantir a subsistência foram experimentadas
pela família Barreto. Inúmeras vezes, obrigada a vivenciar momentos de medo,
de precariedade, doenças e perdas que culminaram com a partida precoce de
sua mãe, falecida nas proximidades do município de São Gabriel da Cachoeira,
novo local de estadia para a família durante um tempo, até que ocorresse nova
dispersão dos irmãos e dos pais.
Deste modo, em meio às ausências e mudanças de residência, por vezes
morando com tios e conhecidos, Barreto, apesar de aplicado, claudicava em
seus estudos. Suas últimas paradas foram nos municípios de Santa Isabel do Rio
Negro e na capital, Manaus. Com o Sr. Luciano trabalhando para os salesianos
em Santa Isabel, Barreto retomou sua vida escolar estancada na quarta série.
Nesse ínterim, houve nova dispersão familiar, contudo, Barreto optou por
Artigo

permanecer com o irmão morando na casa de conhecidos a fim de prosseguir


nos estudos. Trabalhando e vivendo segundo ele, no “estrangeiro cultural”, em
meio ao sacrifício, Barreto concluiu o Ensino Médio e ingressou no seminário
salesiano, sendo encaminhado para Manaus. Desta forma, se organizava entre

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sua formação teológico-filosófica e o trabalho no Colégio Dom Bosco. Na


formação seminarística, Barreto alargou seu horizonte cultural quando pôde
conhecer outras capitais brasileiras, da experiência nas fronteiras trabalhando
com a família, Barreto extraiu um achado ontológico quando afirma:

Reconheço esses extremos como parte da minha pessoa Tukano.


[...] A saída da aldeia me proporcionou um ambiente cultural
diferente. Esse contato mostrou que a minha cultura não era a
única no mundo e muito menos a melhor e, sim, uma das formas
de viver diferenciada, a de ser Tukano [...] minha própria trajetória
a constituição do sujeito na ontologia Yepamahsã (Tukano)

espelha de modo exemplar a trajetória de muitos índios Tukano do


Alto Rio Negro. De modo ainda mais preciso, expressa a trajetória
do coletivo Búbera Põra de São Domingos Sávio (Barreto, J. R.,
2018, p. 58).
Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

Barreto optou pela vida secular, desejando prosseguir nos estudos e, a partir
da formação filosófica inicial, ingressou na Universidade. Era o ano de 2009
e foi um marco, pois foi o primeiro aluno indígena a ingressar no mestrado.
Ainda não existiam as políticas de ações afirmativas, o que só ocorreu no ano
Fumar tabaco, consumir ipadu:

de 2011, abrindo caminho para que outros pós-graduandos trouxessem suas


questões de pesquisa para a Academia, cujos resultados começam agora a ser
publicados, discutidos e consagrados nessa inédita floresta epistemológica de
conhecimentos.
João Rivelino Barreto (2018) exercitou a estratégia da “reflexividade”
metodológica proposta por Carneiro da Cunha (2010, p. 321) na qual, a partir
das teorias antropológicas conjugadas com o ponto de vista originário do seu
povo, recolheu e identificou conceitos e categorias nativas sobre a natureza e
a ordem das coisas e das relações entre humanos e não humanos, encontradas
no sistema de pensamento tukano. “Meus esforços estarão voltados para situar
o ambiente de reflexividade (grifo do autor) sociológico e discursivo no qual
nasci, cresci e hoje me esforço para descrevê-lo”.
Nessa nova proposta investigativa, não era suficiente praticar a língua
materna como a primeira língua e ser conhecedor da tradição, o desafio da
Artigo

inversão de teorias e métodos a fim de encontrar uma lógica outra, resultou


na publicação da obra de Barreto denominada Formação e Transformação dos
Coletivos Indígenas do Noroeste Amazônico: do mito à sociologia das comunidades.
A obra versa, a partir das teorias Tukano, sobre aspectos da hierarquia

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social do Alto Rio Negro, cuja análise enfocou seu clã, os Sararó Yúpuri Búbera
Põra. Realizar uma antropologia de si e do seu coletivo, simetrizando, ou seja,
colocando lado a lado os dados da antropologia canônica, com seus resultados
de campo, foi um desafio que Barreto cumpriu com distinção. Dividida em duas
sessões, a obra apresenta na primeira parte sua autobiografia. Falar sobre si
mesmo resultou em alcançar o nível da metalinguagem e discorrer sobre a
“diferença” como constituinte da sua identidade.

Minha trajetória revela uma faceta da dispersão do coletivo


Búbera Põra ao qual integro, e esse movimento, me permitiu
a constituição do sujeito na ontologia Yepamahsã (Tukano)

menos um esquecimento do que um conhecimento formal sobre


meu próprio coletivo. A familiarização de ambientes tão diversos
permitiu-me notar com mais clareza cada diferença, com seus
desenvolvimentos socioculturais específicos [...]. Nesses termos,
Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

a experiência indígena se inspira nos conhecimentos de uma


cosmologia específica, na qual fatos míticos e cosmogônicos
constituem parte da matriz teórica do pensamento tukano, que
se manifestam por diálogos, como também por meio das danças
e dos rituais da vida cotidiana. Tudo isso está presente na vida
Fumar tabaco, consumir ipadu:

aldeã. [...] O fato de estarmos, hoje, nas cidades não significa o fim
da cultura e tradição dos indígenas. Pelo contrário, proporciona
uma nova reflexividade do ser indígena: o Tukano Búbera Porã,
transformada e em transformação, desde os tempos primordiais
(Barreto, J. R., 2018, p. 57).

Os dados significativos para a compreensão da ontologia tukano motivou


a recomposição mais detalhada das memórias de Barreto, sobretudo, no que
diz respeito ao seu principal interlocutor, tanto pela afinidade familiar como
pelo fato de ser, reconhecidamente, um especialista (kumu), detentor de um
repertório considerável sobre o pensamento tradicional. A metodologia adotada
por Barreto segue um padrão frequente no noroeste amazônico, trata-se de
fenômeno recente, observado, por exemplo, na Coleção Narradores Indígenas
do Rio Negro (1995-2018). Os nove volumes abordam os mitos originários de
alguns grupos do sistema rionegrino, nos quais, a autoria é compartilhada por
Artigo

um especialista narrando o texto ao filho versado na língua portuguesa, com o


apoio de um antropólogo (Andrello, 2010, p. 4).
Nos últimos anos, a publicação desses livros foi objeto de análise também
de Hugh Jones (2016, p. 55), que a classificou como um ato político no Alto

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Rio Negro por trazer inúmeras provocações, tanto ao campo antropológico


como aos outros atores sociais desse sistema interétnico. Em sua análise, o
antropólogo corrobora as observações de Andrello (2010) quando menciona, no
esquema de narradores e narrativas, um trabalho intergeracional composto por
autobiografias coletivas e a exposição dos mitos de origem.
Observa-se ainda que a autoridade intelectual legitimada pelos mais jovens
tem sido utilizada como ferramenta recursiva no trato com os saberes indígenas.
As últimas gerações que tiveram acesso pleno ao sistema escolar não indígena,
especialmente os que atingiram a formação universitária, tomaram para si o
esforço de tradução das suas cosmologias e dos sistemas de pensamento dos
a constituição do sujeito na ontologia Yepamahsã (Tukano)

seus coletivos, realizando adaptações da tradição poética-oral para a prosa,


o que tem gerado volume expressivo de literatura, ainda carente de análises
e discussões mais aprofundadas. Depreende-se que a sistematização dos
conhecimentos dos povos originários é uma das consequências do movimento
Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

de reforma decolonial.
A segunda parte do trabalho é dedicada às narrativas míticas, denominadas
de Kehtí Ukunse. O autor enfatiza que a apresentação do material se constitui
em esforço de tradução sobre a criação do mundo, a história de ocupação e
Fumar tabaco, consumir ipadu:

a dispersão dos humanos na plataforma terrestre, focando no objeto da sua


pesquisa que são as formas de construção de unidades sociais e dos coletivos.
No sistema de pensamento Tukano, o ato de narrar produz implicações, uma
vez que não se trata apenas de informar e muito menos de distrair os ouvintes.
As narrativas de Kehtí Ukunse são proferidas por aqueles capazes de assimilar
conhecimentos dos fatos míticos e que se tornaram agentes da cosmopolítica
Tukano como os pajés (Yaí), os benzedores (Kumu) e os mestres de música
(Bayá). A fala se caracteriza aqui como um ato transformador e se distribui
em níveis discursivos distintos, na medida em que são tomadas como fórmulas
que conduzem à sabedoria Tukano. “Acreditamos que fazendo uma exegese dos
kitht ukũse seja possível extrair e identificar certos conceitos que estruturam as
teorias yepamahsã” (Barreto, J. P., 2018 p. 27).

Por esse viés, úkũsse conduz, através da sua arte do diálogo, para
o universo linguístico da ancestralidade, da diacronia. Com isso,
Artigo

tenho o entendimento de que úkũsse proporciona o encontro


entre a linguagem diacrônica e a linguagem de ação e de prática
no dia a dia dos Tukano, dos indígenas nas aldeias (Barreto, J. R.,
2022, p. 206).

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Barreto elucida a relação entre a difusão dos conhecimentos e as sociabilidades


dos coletivos, à medida que envolvem dinâmicas, cuja transmissão consiste
nos pais ou nos mais velhos contar fatos passados na juventude ou notícias
recentes com características próprias. Tais fatos, muitas vezes, se conectam
com os fatos míticos instaurando formas de construção do conhecimento e a
apreciação de narrativas míticas, denominadas de Kehtí Werésse, que marcam o
vínculo entre narrador e ouvintes (Barreto, J. R., 2018, p. 62).
No momento em que se expressa verbalmente, o narrador tem a possibilidade
de contar as histórias do corpus mítico e descrever fatos contemporâneos, ao
mesmo tempo em que teoriza os mitos que explicam os fenômenos no mundo.
a constituição do sujeito na ontologia Yepamahsã (Tukano)

O Kehtí Ukunse é uma reatualização acerca dos procedimentos que envolvem


a formação do pensamento Tukano, no qual o narrador opera com a prática e
a teoria. Segundo Viveiros de Castro (2018, p. 74), essa premissa contradiz a
antropologia canônica quando recusa ao pensamento ameríndio a capacidade
Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

de teorização, “quanto mais prático o nativo, mais teórico o antropólogo”.


Há ainda outro recurso discursivo denominado de Mūnropaū Usétise utilizado
como parte da fala cerimonial na abordagem da genealogia de cada coletivo. O
nome remete à metáfora da planta do tabaco, Mūnro (no singular), Mūnropaū
Fumar tabaco, consumir ipadu:

(no plural), as folhas da árvore do tabaco que representam a hierarquização dos


grupos Tukano com sua distribuição, representação, ordenamento, nominações
e sequencialidade.
Segundo João Rivelino Barreto (2018, p. 65) o tabaco ocupa posição
privilegiada como ingrediente cerimonial que, juntamente com outros como o
ipadu, que é mascado e o chá do kahpí (ayahuasca). potencializam a performance
dos especialistas e ocupam posição privilegiada na ontologia Tukano, na
constituição do mundo e dos homens. Considerando a pluralidade dos
saberes, Albuquerque (2011, p. 75) defende as plantas como sujeitos de saber,
subvertendo a epistemologia convencional, ao reconhecer a não humanidade
como fonte de conhecimento e situando sua análise no âmbito de uma Ecologia
dos Saberes.
Viveiros de Castro (2020, p. 310) observa também que, nas culturas
da Amazônia ocidental, sobretudo as que fazem uso de alucinógenos, a
Artigo

personificação das plantas e de objetos parece se destacar como a dos animais,


no entanto, esses últimos ocupam posição privilegiada em relação aos demais.
Mūnropaū Usétise, enquanto discurso sagrado é proferido em ocasiões
festivas como as cerimônias de iniciação, nominações, as festas de Yurupari,
um dos principais heróis primordiais e os encontros de oferecimento como os

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Dabucuris. Os autores indígenas denominam essas falam rituais de bahsese,


cujo significado pode ser traduzido como uma linguagem terapêutica utilizada
pelos especialistas (kumuã) para prevenir, proteger e curar as pessoas (Barreto,
J. R., 2022, p. 123). O termo é utilizado em oposição ao “benzimento” cristão.
Cada coletivo sistematiza uma interpretação acerca de sua formação
hierárquica, descrevendo a socialidade Tukano, considerada a prática de
Mūnropaū Usétise. Na vivência Tukano, segundo os mitos, a descrição e a
fundamentação hierárquica ocorrem a partir de dois grupos liderados, cada um
por seus ancestrais míticos: Yúpuri Waúro, cujos seguidores são os Wauroa; e o
segundo por Ȉnremiri Sararó que é seguido pelos Sararoá.
a constituição do sujeito na ontologia Yepamahsã (Tukano)

Nos momentos solenes de enunciação e troca de saberes entre coletivos,


os Mūnropaū Usétise concentram-se a partir de mecanismos do tipo xamânico
nas figuras centrais do mestre de música (bayá), o chefe da casa (Wisery Khūn)
e o benzedor (kumu), acompanhados de objetos sagrados como o banco, o
Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

bastão, a cuia, o cigarro e o consumo do ipadu, do tabaco e do3 kahpí, a fim de


potencializar as palavras e os sentidos e de transitarem nos patamares (do alto,
do meio e do subterrâneo), firmando acordos entre especialistas humanos e
não humanos (Rezende, 2021, p. 167).
Fumar tabaco, consumir ipadu:

Em relação ao consumo do ipadu (erythroxylum coca,) do tabaco (nicotiana


tabacum) e do kahpí (banisteriopsis caapi), eles podem ser ingeridos como
alimentos e bebidas, ou inalados, ou fumados, de acordo com o campo de ação
dos kumuã nos trabalhos xamânicos de bahsese. De acordo com Azevedo (2022,
p. 6), o patú (ipadu) é uma substância resultante do processamento das folhas
de coca tostadas no forno, seu consumo está associado ao compartilhamento
de conhecimentos, tanto na vida ordinária como nos rituais. Em consonância
com o mito, o ipadu foi consumido pelo Avô do Mundo para criar o universo, os
primeiros seres existentes e os humanos.
De acordo com Andrello (2010, p. 9), o elenco, a exibição e a circulação
pública desses materiais, objetos e plantas alucinógenas ocorriam antes da
entrega formal das dádivas, no qual as partes envolvidas recitavam, de maneira
agressiva, suas genealogias e histórias. De acordo com o relato de Domingos
Rezende, kumu da etnia Tuyuka, observado por Cabalzar Filho (2005, p. 79), nas
Artigo

cerimônias envolvendo o kahpí que seria consumido somente por um grupo de


homens, o fumo era rezado por sua associação com os peixes que surgiram na
Casa de Transformação, situada onde hoje é Manaus.
Ainda, conforme Azevedo (2018, p. 54), outro antropólogo indígena
estudioso dos bahsese, o agenciamento do mundo pelos kumuã yepamahsã

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consistiria na aplicação de um conjunto de fórmulas associadas a um repertório


de tramas míticas, palavras e expressões que possibilitariam a comunicação
com os “super-humanos”, os donos originais de todos os espaços da plataforma
terrestre, os waimahsã.
Momentos solenes, ocasiões festivas de iniciação ou oferecimento ensejam
a utilização das práticas xamânicas e o manejo dos objetos e das plantas
destacadas acima, ambos espiritualizados, mas de um modo secundário em
relação ao animal, que parece ser o protótipo da alteridade. O xamanismo
implica um modo de conhecer, ou antes, um ideal de conhecimento, o oposto
polar da epistemologia objetivista da modernidade ocidental (Viveiros de
a constituição do sujeito na ontologia Yepamahsã (Tukano)

Castro, 2020, p. 310).


Esses encontros entre grupos de irmãos hierarquizados são marcados por
momentos distintos de início, desenvolvimento e término, cuja complexidade
envolve discursos de longa duração, de acordo com as ocasiões festivas. Na
Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

atualidade, Andrello e Vianna (2020, p. 7) especulam sobre o uso dos registros


escritos da mitologia do noroeste amazônico como prestadores da atualização
das diferenças entre clãs que, ao longo do processo histórico, criavam
oportunidades de reiterar os dissensos nas práticas rituais.
Fumar tabaco, consumir ipadu:

Conforme João Rivelino Barreto (2018, p. 69), as narrativas míticas


trabalhadas nos níveis discursivos de Kehtí Ukunse e Mūnropaū Usétise são
dispositivos que, concomitantemente, ajudam a pensar os fatos míticos
Tukano e contextualizam a realidade sociocultural no dia a dia, demonstrando
que esse sistema de conhecimento repensa a vida de modo sistemático a partir
dos mitos, entendidos como fonte da racionalidade dos coletivos e podem ser
considerados como “Artes do Diálogo”.
Desse modo, o conteúdo da segunda parte da obra de João Rivelino Barreto
(2018) é dedicado aos Kehtí Ukunse, transcrevidos juntamente com o Sr. Luciano.
Observando tratar-se de uma noção parcial da formação do homem Tukano e
suas respectivas unidades e hierarquizações, a versão apresentada por Barreto,
conforme esclarece, é uma constituição do pensamento Tukano, não se tratando
de uma teoria homogeneizada entre todos os coletivos. Há nuances distintas
de um discurso para outro que envolvem um aspecto prático do sistema ético
Artigo

e moral, ao mesmo tempo em que pode ser tratada a questão da formação do


mundo e do homem com variações sobre o tema, uma vez que depende do modo
como foi apresentada por seus pais e segue de acordo com os conhecimentos e
saberes diferenciados nos desenvolvimentos práticos, fundados na obediência
às normas.

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Para os Yúpuri Sararó Búbera Porã, a referência mítica sobre questões


primordiais como a instituição do homem, da Terra e do universo, existe a
partir dos fundamentos de Kehtí Ukunse, ou seja, desde a verbalização do mito
dialogado entre os heróis primordiais. De acordo com o Sr. Luciano Barreto,
o seu coletivo pertence à segunda turma dos irmãos maiores, “encabeçada”
pelo ancestral Yúpuri Waúro e assim formaram nova turma em outro patamar.
O manejo do conhecimento Tukano, nas palavras do Sr. Luciano deve ser
respeitado, já que reivindica os direitos de propriedade intelectual e adverte
sobre a necessidade de seguir certos preceitos, na medida em que demarcam os
limites entre os grupos.
a constituição do sujeito na ontologia Yepamahsã (Tukano)

Nem todos podem dizer que são conhecedores e se


autopromoverem como Yai (pajé), kumu (benzedor), ou bayá
(mestre de cerimônias), entre outras. Aqui podemos considerar
Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

que há pessoas equivocadas quando querem tratar no que


corresponde a esse tipo de temática, e muitas vezes passaram
a descrever com muitas invenções falando de coisas que nunca
existiram ou que nunca foi vivenciado pelos ancestrais. Não
quero dizer que é uma proibição, mas que se deve ter respeito por
Fumar tabaco, consumir ipadu:

aquilo que pertence a nós e é o que, certamente, nos identifica


ou que é preciso ser evidente no que falamos e compreendemos
(Barreto, J. R., 2018, p. 73).

Após essa incursão ao passado do autor e do grupo, foram estabelecidas as


condições para situar o problema filosófico em questão, considerando que as
vivências pessoais e intergeracionais narradas são premissas necessárias para a
acomodação da questão da concepção e do jogo relacional entre seres humanos
e não humanos sob a ótica Yepamahsã (Tukano), considerando as versões do
corpus mítico enunciadas pelo seu coletivo, pontuando que esse arranjo de
narrativas é a fonte primária da racionalidade Tukano.
Finaliza-se, portanto, essa primeira parte, pontuando que entre o tempo
cosmológico de emergência mítica dos ancestrais e os tempos atuais de dispersão
contínua dos grupos, o conceito de “transformação” funciona como operador
Artigo

de diferenças em nível ontológico, sendo fundamental para se compreender


como, nesse universo, os elementos natureza e cultura não são tomados como
pares dicotômicos a fim de explicar a realidade.
Os assim chamados domínios naturais e sobrenaturais são povoados por
coletivos com os quais os humanos mantêm relações pautadas por normas

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comuns a todos, ou seja, há entre eles trocas de signos e perspectivas, de tal


modo que se considera uma espécie de entendimento entre esses domínios,
natural e sobrenatural.
De acordo com Descola, os pressupostos do regime ontológico animista
postulam que seus membros são reconhecidamente conscientes de pertencerem
a um coletivo particular com atributos distintos de formas e comportamento. A
autoconsciência é reforçada pela noção de que outros coletivos os percebem a
partir de um ponto de vista diferente. Nesse regime, as diferenças de corpo são
morfológicas, portanto, comportamentais, mais que substanciais. Deste modo,
a metamorfose possui importância porque permite a interação dos seres no
a constituição do sujeito na ontologia Yepamahsã (Tukano)

mesmo patamar com xamãs, entidades, entre outros (Descola, 2015, p. 13).
O desenrolar das narrativas demonstra que o conceito de transformação se
destaca entre os elementos mais significativos dos mitos, tanto como vocábulo
autodesignativo, Gente da Transformação, como nas referências às paradas
Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

feitas nas Casas de Transformação e ao barco com aparência de cobra que


transportou a humanidade na sua viagem iniciática, conhecida também como
Canoa da Transformação. A transformação é considerada como um estado
inerente à metamorfose mítica, uma superposição intensiva de estados
Fumar tabaco, consumir ipadu:

heterogêneos e não um processo de mudança. Na sequência da metamorfose,


os seres estariam em constante fluxo transformacional e orgânico (Viveiros de
Castro, 2006, p. 324)
Para Hugh-Jones (2016, p. 30), a cosmologia Tukano ocupa um lugar
incomum perante outros povos das terras baixas porque falam de uma criação
do nada, de deuses que trazem o mundo e seu conteúdo à existência através de
seus pensamentos, e seu foco principal está em objetos e artefatos ao invés de
animais. Concluímos esse bloco com a observação de João Paulo Barreto (2022,
p. 92) sobre os mitos de criação Tukano no conjunto dos outros povos das
terras baixas, pois de acordo com o antropólogo, os Yepamahsã e os Utapirõporã
consideram-se como grupos sociais que participaram diretamente da viagem
ancestral na Canoa da Transformação.

Fumar tabaco, comer ipadu: fundamentos da ontologia Yepamahsã


Artigo

Ligada à potencialidade da ação criadora dos heróis primordiais, o


surgimento da condição humana e sua formação posterior seguem arranjos
reproduzidos em unidades e hierarquizações distintas. Conforme a narrativa,
os Búbera Porã situam-se hierarquicamente na segunda escala de “irmãos

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maiores”, provenientes da liderança de Yúpuri Waúro, um dos ancestrais


responsáveis pela articulação da vida coletiva e pela distribuição dos homens
no mundo. Anteriores ao surgimento de todos os seres, o mundo era ocupado
pela ascendência criativa representada pelos irmãos Yepa Oãkhe e Yepa Būrkūo,
princípios masculino e feminino e Būrpo (trovão), o Avô do Mundo.
De acordo com João Paulo Barreto (2022, p. 88), esses personagens são as
próprias forças transformadoras de bahsese capazes de operarem manipulações
metafísicas e metaquímicas das coisas pelas palavras. A tríade ocupava
patamares diferenciados no espaço e sem objetivação material estavam
empenhados no fazer genesíaco de constituição da terra e seus viventes, tarefa
a constituição do sujeito na ontologia Yepamahsã (Tukano)

tomada desde então como o primeiro problema a ser resolvido: “Foi assim
que Yepa Oãkhe começou a pensar no que se efetivaria o labor de sua projeção
para a formação do mundo e do homem enquanto ser transformativo”, o que
demonstra a contiguidade entre o exercício do pensamento e a racionalidade
Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

da matéria (Barreto, J. R., 2018, p. 75).


Atenta-se nesse primeiro quadro da narrativa de constituição do mundo para
os heróis primordiais e sua condição ontológica não material de espíritos. Na
ótica de Viveiros de Castro, (2006, p. 319), os conceitos amazônicos sobre esses
Fumar tabaco, consumir ipadu:

entes apontam para uma síntese disjuntiva entre o humano e o não humano
e ensejam uma discussão sobre cosmologia e xamanismo, tomando o último
como o “exercício de uma diplomacia cósmica”, cuja prática se faz presente em
todo o enredo do mito cosmogônico Tukano.
Partindo de um marco fincado com o bastão cerimonial pelo princípio
masculino no centro do universo, unindo os patamares inferior e superior
habitados pelos netos e avô do mundo, sucederam-se encantações xamânicas,
responsáveis pela formação e transformação do mundo e dos homens. João
Rivelino Barreto (2018, p. 63), ao descrever os elementos constituintes da
plataforma terrestre na cena primordial cósmica, esclarece que os irmãos
fizeram brotar os principais tipos de tabaco no quadrante inferior esquerdo e
no quadrante inferior oposto os principais tipos de ipadu.
Andrello e Vianna (2022) em seus estudos sobre a relação entre mito e
parentesco no noroeste amazônico assinalam o conjunto de transformações
Artigo

Tukano como mecanismo para a compreensão da passagem de uma ordem


intensiva (ordem do mito) para um sistema extensivo (plano do parentesco e
da ordem social). Para pensar essas questões, utiliza as categorias de gênero
(masculino e feminino) e de transespecificidade (humano e não humano).

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A ordem intensiva do mito é aquela que não conhece ‘distinção de


pessoas nem de gêneros, tampouco conhece qualquer distinção
de espécies, particularmente uma distinção entre humanos e não
humanos’. Considerando isso podemos compreender que os seres
do mito habitam um campo interacional único, ontologicamente
heterogêneo, onde se supõe variações pré-pessoais em
intensidade, mas sociologicamente contínuo (Viveiros de Castro,
2007 apud Andrello; Vianna, 2022, p. 4).

O Kehtí Ukunse da criação do primeiro espaço-tempo serviu como sustentáculo


para os primeiros trabalhos xamânicos que contavam com os bancos cerimoniais
a constituição do sujeito na ontologia Yepamahsã (Tukano)

e a declamação de fórmulas rituais, os basehsé (benzimentos) acompanhados


da fumaça soprada dos cigarros de tabaco e do consumo das folhas do ipadu
(Barreto, 2013 apud Azevedo, 2022, p. 33). Hugh-Jones (2016, p. 2) menciona o
conjunto de elementos, como o tabaco, pátu, banco de quartzo, forquilha como
Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

atribuições dos heróis primordiais constitutivos de sua existência e extensão.


Posicionados no escudo de proteção do universo e sentados em seus bancos
sagrados, os dois irmãos racionalizavam e buscavam a concentração das forças
espirituais.
Fumar tabaco, consumir ipadu:

No entanto, foi necessário buscar ajuda do Avô do Universo que os aconselhou


na criação, tanto da terra como na busca pelos seres humanos, o que se tornou
possível graças às sementes de tabaco doadas por ele. Assim, instituíram-se o
ritual de espalhamento da terra e o chamamento da humanidade, sacralizado
com o tabaco e o ipadu, substâncias transformativas dos ossos humanos. Esse
ritual de chamamento dos seres humanos denominado de Marsa Kun Pihíkaro
consiste, por meio de tentativas com os basehsé em fazer ou encontrar os
humanos e chamá-los para adentrar a Cobra-Canoa da Transformação (Frade,
2023, p. 30). Podemos afirmar que é um ritual yepamahsã, na medida em que a
narrativa do ritual se encontra problematizada também em Azevedo (2022, p.
33) e João Rivelino Barreto (2018, p. 69).
Alburquerque (2011, p. 206) ressalta que a experiência xamânica com as
“plantas professoras” pode possibilitar a transformação da humanidade em
animais ou em outros seres e objetos, diluindo as fronteiras entre humanos e não
Artigo

humanos. A noção de “plantas professoras” de Luna (2005 apud Albuquerque,


2017, p. 6-7), extraída de estudos sobre o vegetalismo dos ribeirinhos peruanos,
preconiza que essas plantas são consideradas habitadas por seres inteligentes,
com personalidade própria, com quem podemos nos relacionar e aprender. A

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ayahuasca (banisteriopsis caapi), por sua vez, de origem indígena, é conhecida


por uma diversidade de nomes, entre eles, caapi, que é a planta professora, por
excelência. Vários antropólogos indígenas, apesar de não adotarem o termo
“plantas professoras”, como João Paulo Barreto (2022, p. 75) admitem que o
conjunto de vidas vegetais existentes são detentoras de qualidades curativas,
protetivas, e podem ser veneno e agencialidades.
Nas etnografias amazônicas, os xamãs podem se considerados seres múltiplos,
portadores do poder de mutação interespecífica, vivendo em um estado
polimorfo anterior à separação entre espécies (Viveiros de Castro, 2006, p. 322-
323). A condição pré-cosmológica virtual diz respeito ao regime ontológico do
a constituição do sujeito na ontologia Yepamahsã (Tukano)

mito, no qual cada ser é pura virtualidade, em função de sua irredutibilidade


radical a essências ou identidades fixas. Paralelo a essas materializações, surgiu
o pensamento Tukano, o conhecimento especializado dos criadores, ou seja, o
xamanismo.
Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

A prática dos bahsese (benzimentos) acompanhada de diálogos e da


enunciação de fórmulas sagradas geraram, inicialmente, o aparecimento de
rios, pedras e cachoeiras, seguidas depois por diversas tentativas de criação
dos humanos. Somente na sexta tentativa, os irmãos começaram a ouvir
Fumar tabaco, consumir ipadu:

vozes se aproximando e, assim, surgiram os protótipos humanos. Junto a essa


materialização, surgia a produção de saberes e conhecimentos Tukano. Esses
foram os acontecimentos do primeiro tempo, o mais antigo e do mundo invisível
que ainda não era o tempo da humanidade.
No segundo tempo, começaram as transformações dos seres humanos com
a aquisição de conhecimentos e a formação das instituições socioculturais
durante a navegação da humanidade em uma embarcação que tinha aparência de
cobra, denominada no mito da Canoa da Transformação. Yepa Oãkhȅ conduzia
o barco formalizando seus raciocínios e desejos conforme as regras rituais
que levariam aos processos de formação e mudanças ocorridos nas paradas,
denominadas de Casas da Transformação (Pamūri Wisery). Elas contabilizam
centenas de Casas com suas representações e notoriedades, cujo percurso
compreende a navegação no Oceano Atlântico rumo ao rios Amazonas, Negro,
Uaupés e Tiquié, até o desembarque no noroeste amazônico, a fim de que os
Artigo

viajantes pudessem viver em seus lugares ancestrais de ocupação.


A primeira instância de transição ocorreu na partida do Lago de Leite, local
correspondente à Baía de Guanabara no Rio de Janeiro. No meio da navegação,
manifestou-se uma passagem desafiadora que daria acesso ao mundo atual, os
comandantes tiveram que enfrentar inimigos ferozes como a Cobra Sen, a qual

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ocupava com o seu tamanho toda a extensão do rio, impedindo a navegação.


Nessa época, os animais viviam como gente e eram “os donos dos lugares”. Os
humanos eram devorados como presas fáceis das cobras e das onças, obrigando
o comandante a formar e organizar novas turmas. Novamente estamos diante
de um detalhe da narrativa que ilustra o ponto de vista nativo em relação aos
outros viventes
Viveiros de Castro (2020, p. 305-306) observa que no mundo relacional dos
seres, altamente transformacional, no qual não se é, mas se está, os animais
predadores e os espíritos veem os humanos como presa. Na economia geral
da alteridade, os estatutos relacionais sobre predador-presa demonstram as
a constituição do sujeito na ontologia Yepamahsã (Tukano)

inversões de perspectivas.
A derrota da Cobra Sen só se tornou possível, graças à clarividência do Avô
do Mundo em relação às manobras do inimigo e à sua capacidade de transitar
entre os patamares celeste e terrestre, habilidade concedida ao xamã (kumuã).
Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

A rivalidade com entes da floresta instituiu os benzimentos para combate dos


males e enfermidades. Vencida a cobra, a embarcação deu entrada no Lago
de Leite e prosseguiu viagem subindo os rios, a fim de chegar à Cachoeira de
Ipanoré, na qual a humanidade emergiu dos buracos das pedras.
Fumar tabaco, consumir ipadu:

Durante o percurso da cobra canoa, as paradas nas Casas de Transformação


(Pamury Wisery), fonte da racionalidade Tukano, implicavam ocasiões para
que os usos xamânicos fossem agenciados na preparação da humanidade
para a subida em terra firme. No complexo universo de transformações da
cosmologia Tukano oriental, segundo Cabalzar Filho (2005, p. 80-81), a cobra
grande representa uma passagem da camada de águas para a camada de terra.
Passagem essa que permite a transformação envolvendo a cobra, gente e
animais associada às capacidades reprodutivas e transformativas.
O prolongado episódio da viagem iniciática da Canoa da Transformação
constitui-se como elemento fundamental para a compreensão da questão
posicional dos entes no sistema cosmopolítico Yepamahsã. Os primeiros ciclos
temporais do relato cosmogônico compartilhado pelo grupo linguístico Tukano
Oriental apontam para uma uniformidade existencial entre humanos e não
humanos, conforme esclarece João Rivelino Barreto (2018, p. 95-101).
Artigo

Além da relação de hostilidade com a cobra, surgem outras “gentes”


como a cutia, por exemplo, cujos planos foram arruinados porque o capitão
da embarcação pôde acessar o ardil metamorfoseado em rouxinol. “As
autodesignações coletivas de tipo gente significam pessoas, não membros da
espécie humana; elas são pronomes pessoais, registrando o ponto de vista do

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sujeito que está falando” (Viveiros de Castro, 2020, p. 323).


João Rivelino Barreto (2018, p. 108) esclarece que surge daí a necessidade
dos benzimentos, a fim de promover um ato pacificador capaz de garantir a
integridade da vida humana, uma vez que as doenças são consequências da
ação negligente da gente-peixe (Way Marsa), cujo consumo humano só pode
acontecer depois do trato xamânico nas crianças recém-nascidas. O papel do
trabalho xamânico na Amazônia seria o de exorcizar o caráter humano dos
alimentos e extirpar o aspecto potencialmente gêntico para evitar a guerra,
cuja posição metafísica seria assumir o ponto de vista do inimigo nas relações
de alteridade, reconhecido pelo autor como xamanismo transversal (Viveiros
a constituição do sujeito na ontologia Yepamahsã (Tukano)

de Castro, 2018, p.171).


O prolongado tema cosmológico da criação do mundo e da humanidade
encerra seu ciclo com o desembarque na Cachoeira de Ipanoré, na qual a
proto-humanidade, os Pamūri-Marsa, homens de transformação, após passar
Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

por sucessivas metamorfoses emergem para a vida no tempo ordinário, no


qual “já não podem mais se comunicar com os não humanos e já não podem
mais produzir pessoas sem utilizar como recurso as relações de sexo cruzado”
(Andrello; Vianna, 2022, p. 4).
Fumar tabaco, consumir ipadu:

A parte final do relato corresponde sempre ao ponto de vista do narrador de


um clã específico que culmina com o estabelecimento de seu próprio grupo em
domínio territorial correspondente a uma hidrosfera. A trajetória do clã dos
Búbera Porã, narrada pelo Sr. Luciano, completou-se com o estabelecimento
das relações de parentesco que unem sua genealogia aos acontecimentos
épicos do mito ligando as teorias à ação. “Aparentemente seria mais simples
se organizássemos numa única sequência, mas aqui entra a importância da
arte do diálogo Tukano (Ukunse e Mūropaū Ussétisse) enquanto fundamentação
teórica das categorias do pensamento” (Barreto, J. R., 2018, p. 122).

Considerações Finais

O movimento teórico da “virada ontológica” na Antropologia tem contribuído


para o debate sobre o reposicionamento das relações entre natureza e cultura
Artigo

e na superação do etnocentrismo epistemológico, a xenofobia e o racismo


intelectual. Reconhece-se nessa metafísica reformada, potencial para uma
virada ontológica nas Ciências Humanas, porquanto, seus campos disciplinares
tem se aproximado cada vez mais do problema das relações entre humanos e
outras espécies vivas, como é o caso da História Ambiental. A potência das

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teses decoloniais aqui expostas contribuíram para iluminar a análise do relato


de Barreto que demonstrou, entre outros aspectos, a instabilidade do conceito
de humano no pensamento ameríndio.
As menções sobre a gente-cutia, gente-cobra, gente-peixe remetem a uma
cosmopolítica que não leva em conta o jogo da imanência-transcendência, e no
qual, cada forma de vida segrega uma ontologia e uma “personitude”, ou seja,
a capacidade de ocupar um ponto de vista. A noção de sujeito, neste processo,
inverte a teoria evolucionista moderna, pois não fala de diferenciação do
humano a partir do animal, o que implica que as relações entre uma sociedade e
os componentes do seu ambiente são pensadas e vividas como relações sociais,
a constituição do sujeito na ontologia Yepamahsã (Tukano)

ou seja, como relações entre pessoas que são ontologicamente coextensivas. Os


humanos não são o único foco da voz ativa no discurso cosmológico (Viveiros
de Castro, 2008, p. 87).
Dentro do universo cosmopolítico Tukano, essas agências seriam
Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

administradas pelos xamãs, detentores de conhecimentos que refletiriam


sempre um trato, uma interação, a arte política da diplomacia com a alteridade.
O encontro se faz a partir de uma mirada de perspectivas, encontro de olhares,
que toma o mundo como espaço de negociação. Trata-se, neste caso, de
Fumar tabaco, consumir ipadu:

uma epistemologia anímica e relacional, oposta ao naturalismo moderno ao


considerar, no ato de conhecer, a dessubstacialização dos objetos, criador do
mundo opaco no qual vivemos.
Esperamos que seja possível iluminar o Antropoceno com a entrada de novas
epistemologias no circuito do pensamento ocidental e que aprendamos com o
pensamento ameríndio a estabelecer alianças com esse universo saturado de
intencionalidades, ainda invisível para nós. A antropologia simétrica, pensada
por Latour, pretende substituir o que antes era um discurso sobre o pensamento
indígena, passando a pensar com eles, considerando que a simetrização é uma
operação descritiva que consiste em tornar contínuas as diferenças entre todos
os termos analíticos.
Essa outra cosmopolítica deve interagir com as correntes conceituais que
atravessam nossa própria tradição, nas palavras de Krenak (2022, p. 82), quando
afirma que devemos “reflorestar nosso imaginário e atinar para o conceito de
Artigo

alianças afetivas que pressupõe afetos entre mundo não iguais e reconhece
uma intrínseca alteridade em cada pessoa, em cada ser” Esperamos que seja
possível praticar um diálogo intelectual articulando passado, presente e futuro,
conforme fizeram Barreto e seu pai, recuperando saberes e respeitando as
peculiaridades dos entes na grande floresta cósmica a qual habitamos. Façamos

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as pazes com Gaia!

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a constituição do sujeito na ontologia Yepamahsã (Tukano)

Notas
1
O artigo é resultado de pesquisa realizada no Estágio Pós-doutoral, no Programa de
Pós-Graduação em Metafísica da Universidade de Brasília, financiada pela Universidade
Federal do Amazonas (2022-2023).
Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto

2
Doutora em Ciências Sociais, docente da Licenciatura em Filosofia e do Programa de
Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Amazonas.
Fumar tabaco, consumir ipadu:
Artigo

Recebido em 07/03/2023 - Aprovado em 02/08/2023


Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.338-370, jul-dez. 2023 } 370
DOI: 10.5433/1984-3356.2023v16n32p371-400

Ramon Llull e a
Idade Média Global:
geopolítica, integração e
diversidade

Ramon Llull and the


Global Middle Ages:
geopolitics, integration, and
diversity

Guilherme Queiroz de Souza1

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Resumo: Nos últimos anos, a Idade Média Global tem sido


um conceito que conquista cada vez mais adeptos no meio
acadêmico. Não se trata de uma história mundial, de todos os
continentes, mas da Afro-eurásia, suas porções conectadas e
integradas. O objetivo deste artigo é explorar três aspectos
daquele mundo afro-euroasiático (geopolítica, integração
e diversidade), com destaque para os séculos XIII-XIV.
Para tanto, examinaremos a experiência de globalidade
do filósofo maiorquino Ramon Llull (c. 1232-1316),
recolhendo indícios em sua trajetória e produção textual.
Metodologicamente, trabalharemos com comparações,
contextualizações e a análise das (des)conexões e (des)
integrações entre distintas sociedades, ao considerar escalas
que transcendem o enquadramento e as fronteiras nacionais.
Palavras-chave: Ramon Llull; Idade Média Global; geopolítica;
geopolítica, integração e diversidade
Ramon Llull e a Idade Média Global:

integração; diversidade.
Guilherme Queiroz de Souza

Abstract: Recently, the concept of the Global Middle


Ages has attracted many scholars. It is not a world history
covering all continents, but focuses on Afro-Eurasia, in
their connected and integrated portions. This article aims to
explore three aspects of that Afro-Eurasian world (geopolitics,
integration, and diversity) with emphasis on the 13th and
14th centuries. To do so, we will examine the experience of
globality of the Majorcan philosopher Ramon Llull (c. 1232-
1316), gathering traces of it in his trajectory and textual
production. Methodologically, we will work with comparisons,
contextualization, and analyses of the (dis)connections and
(dis)integrations between different societies, considering
scales that transcend national frontiers and framework.
Keywords: Ramon Llull; Global Middle Ages; geopolitics;
Artigo

integration; diversity.

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A Idade Média Global: um conceito para o século XXI

Em 2003, a historiadora Geraldine Heng lançou um conceito que vem se


popularizando entre os medievalistas ao redor do mundo: a Idade Média Global
(Global Middle Ages). Filha de seu tempo, como não poderia deixar de ser, a
ideia foi gestada num contexto bastante específico de Globalização. A partir
da queda do Muro de Berlim (1989) e do fim da Guerra Fria (1991), observamos
um significativo impulso em estudos relacionados, direta ou indiretamente, à
História Global. É daquela primeira data, por exemplo, a publicação do livro
Before European Hegemony: The World System, A.D. 1250-1350, de Janet Abu-
Lughod, que se baseou na teoria do sistema-mundo e se tornou um marco
historiográfico ainda citado com frequência.
Depois do 11 de Setembro de 2001, verificamos um novo boom (Conrad,
2019, p. 11). Pesquisas sobre processos considerados “globais” passaram a ser
uma tendência historiográfica, que direcionavam suas críticas, sobretudo, aos
chamados nacionalismo metodológico e eurocentrismo conceitual. Não por
acaso, a formulação de Heng – uma professora de origem chinesa, nascida
geopolítica, integração e diversidade
Ramon Llull e a Idade Média Global:

em Cingapura e residente nos Estados Unidos – apareceu em 2003. Ela foi


elaborada num experimento pedagógico aplicado na University of Texas (EUA),
Guilherme Queiroz de Souza

que atualizava o que entendemos por “Idade Média” conforme os parâmetros


do século XXI (Heng, 2021, p. 2). Alguns anos depois, surgiu o Global Middle
Ages Project (GMAP), plataforma virtual criada por Heng e Susan Noakes.2
As primeiras publicações sobre a Idade Média Global seguiram esse influxo.
Qualquer balanço bibliográfico do campo mostra que a historiografia anglófona
largou na frente, não somente na Inglaterra e nos Estados Unidos, mas também
na Austrália. A produção de artigos e livros, muitos dos quais publicados em
revistas especializadas nessa perspectiva global (The Medieval Globe etc.),
cresceu exponencialmente nos últimos anos. Tal desenvolvimento ainda pode
ser notado pelo interesse de várias tradições historiográficas, inclusive em
línguas neolatinas (Silveira, 2019),3 e por já merecer um estudo dedicado ao
mapeamento dessa ampliação (“estado da arte”) (Ertl; Oschema, 2021).
Além da popularização da Internet, dois fenômenos de natureza distinta
Artigo

contribuíram para acelerar esse processo. O primeiro ocorreu em Charlottesville,


EUA (2017), quando uma manifestação de supremacistas utilizou uma estética
“medieval” que se referia a um fantasioso passado branco e puro. A Idade Média
Global, ao defender noções como diversidade e inclusão, seria uma resposta
(Lomuto, 2020, p. 504). O segundo foi a Pandemia de COVID-19 (2020-2022),

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cujo alcance impactou os interesses de muitos historiadores – “toda história é


contemporânea”, diz um velho axioma croceano. Nesse sentido, as investigações
da historiadora estadunidense Monica Green sobre doenças infecciosas, em
especial a Grande Peste, ganharam uma nova dimensão.4
Sem dúvida, o Medievo Global é um conceito que conquista cada vez mais
adeptos no meio acadêmico. Não se trata de uma história mundial, de todos
os continentes, mas da Afro-eurásia, suas porções conectadas e integradas.
Estamos diante de uma periodização que leva em conta processos históricos
muito mais amplos do que aqueles que ocorriam no espaço europeu. Essa Idade
Média Global era extraordinariamente complexa, diversa e, principalmente,
multicêntrica (Holmes; Standen, 2018, p. 19). O entendimento da globalidade
medieval ainda contribui para desconstruir o mito da “Idade das Trevas”, contra
o qual os medievalistas têm lutado há décadas. O objetivo deste artigo é explorar
três aspectos daquele mundo afro-euroasiático (geopolítica, integração e
diversidade), com destaque para os séculos XIII-XIV. Para tanto, examinamos
a experiência de globalidade do filósofo maiorquino Ramon Llull (c. 1232-
1316), recolhendo indícios em sua trajetória e produção textual. Trabalhamos
geopolítica, integração e diversidade
Ramon Llull e a Idade Média Global:

com comparações, contextualizações e a análise das (des)conexões e (des)


integrações entre distintas sociedades, ao considerar escalas (local, regional,
Guilherme Queiroz de Souza

transregional e intercontinental) que transcendem o enquadramento e as


fronteiras nacionais.5

O contexto geopolítico: mamelucos versus mongóis

O contexto no qual Ramon Llull se encontrava era marcado por uma disputa
geopolítica entre mamelucos e mongóis. As dominações do Mediterrâneo
oriental, do Egito e das rotas que ligavam o Mar Vermelho até a Índia eram
cruciais para estabelecer uma hegemonia política e econômica. Cristão, Llull se
interessava por esse cenário, pois defendia uma nova cruzada para conquistar
Jerusalém, que havia sido tomada pelos mamelucos (1260).6 Em sua visão, era
preciso bloquear economicamente o Sultanato Mameluco, motivo pelo qual
sugeria o seguinte plano: fabricar alguns navios que impediriam o comércio de
Artigo

especiarias transportadas do Egito para as terras cristãs.

Assim, o sultão e toda a sua pátria ficariam empobrecidos. Os


cristãos, como os genoveses e os catalães, passariam a comprar
especiarias em Bagdá e na Índia; portanto, para além da terra

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do sultão. Assim, os territórios do Egito e da Babilônia seriam


afligidos de tal maneira que, em seis anos, poderiam ser facilmente
capturados pelos cristãos (Llull, 1981, II, 5, p. 281).

Llull não oferece muitas informações sobre as dinâmicas relações comerciais


que conectavam o Mediterrâneo ao Oceano Índico. Para obtê-las, precisamos
consultar outros autores coetâneos, como o dominicano Guilherme Adão (c.
1275-1338), provavelmente de origem francesa, que atuou em vários bispados
orientais, com experiência em regiões como a Pérsia e a Índia (Gil, 2008, p. 130).
O tratado que escreveu, intitulado De modo Sarracenos extirpandi, foi composto
entre 1316-1317, ou seja, na mesma época do falecimento de Llull. Seus fins
eram os mesmos: conquistar Jerusalém. Seus meios também: empobrecer
o Egito, que detinha uma imensa importância na rede de comércio entre o
Mediterrâneo e o Oceano Índico.
Na Idade Média Global, o Egito era uma região rica, com uma economia
complexa; nas palavras de Chris Wickham (2019, p. 492), “o motor do sistema
de trocas do Mediterrâneo, entre os séculos X e XIV”. Entretanto, não tinha
geopolítica, integração e diversidade
Ramon Llull e a Idade Média Global:

abundância de minérios e florestas, como Guilherme Adão (2012, I, p. 27-29)


registra em seu texto: “Os sarracenos do Egito não têm ferro nem madeira”,
Guilherme Queiroz de Souza

mercadorias que eles obtêm por meio do comércio com os cristãos, sobretudo em
Alexandria. Essa é a mesma percepção de Llull (1981, II, 4, p. 279), para quem os
sarracenos “não têm tanta madeira” e possuem “ferro apenas incidentalmente”.
Por outro lado, havia uma vantagem natural: o rio Nilo, cujas cheias permitiam
o contínuo cultivo das terras, gerando uma considerável quantidade de trigo
que abastecia importantes núcleos urbanos mediterrânicos.
Mas por que o Egito era um empecilho para Ramon Llull e Guilherme Adão?
Ora, a região encontrava-se numa posição estratégica, numa encruzilhada.
Desde o século XI, a principal rota que ligava o Mediterrâneo à Índia passava
pelo Mar Vermelho, por onde eram transportadas mercadorias como especiarias,
produtos têxteis e outros itens de luxo. Antes da chamada “expansão marítima
europeia”, que buscava se integrar àquele sistema, os egípcios ocupavam uma
das mais significativas artérias do comércio inter-regional (Petry, 2022, p.
80). Naquele momento, o Mar Vermelho, inclusive, superava o Golfo Pérsico
Artigo

em volume transportado (Humphreys, 1998, p. 449). Quando os mamelucos


tomaram o poder no Egito (1250), essas rotas comerciais foram preservadas.
Um exemplo impressionante desse comércio de longa distância está num
estudo publicado por quatro pesquisadores. Nele, a análise de um manuscrito

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italiano (c. 1241-1244) revela a existência de uma indireta conexão entre Europa
e Oceania; isso muito antes do que se imagina. A comprovação disso vem com a
identificação da imagem de uma cacatua, pássaro australasiano que havia sido
oferecido como presente pelo sultão aiúbida Al-Kamil ao imperador Frederico
II de Hohenstaufen. Segundo os autores, “a Europa situava-se na periferia da
complexa rede comercial que se originou no sistema-mundo afro-eurasiano,
com a Ásia sendo a fonte de bens de luxo” (Dalton; Salo; Niemela; Örmä, 2018,
p. 53). Na realidade, não se trata de uma novidade: desde meados do século
XX, parte da historiografia tem destacado o caráter periférico da Europa, que
exportava para os domínios muçulmanos principalmente escravos, peles,
armas, estanho e madeira (Lombard, 1953, p. 40).
Llull acreditava que apenas o bloqueio no Mediterrâneo, cortando o
comércio entre latinos e egípcios, seria suficiente para colapsar a economia dos
mamelucos. Ela entraria em crise se não escoasse seus produtos para a Europa.
Todavia, seus conhecimentos param por aí. Se comparado a Llull, Guilherme
Adão mostrou-se mais consciente da complexidade da dinâmica econômica
existente naquelas regiões, que ele visitou pessoalmente. Em sua narrativa, o
geopolítica, integração e diversidade
Ramon Llull e a Idade Média Global:

dominicano aponta outro aspecto a ser considerado: as rotas que atravessavam


o Mar Vermelho em direção ao Oceano Índico, de onde vinham “todas as coisas
Guilherme Queiroz de Souza

vendidas no Egito” (Adão, 2012, V, p. 100-101). Ele queria atingir a retaguarda


e, assim, obstruir o comércio no Índico. Ademais, recomenda que três ou quatro
navios bloqueassem o Golfo de Adem, “para que ninguém que transporte as
mercadorias acima mencionadas possa navegar com segurança da Índia para
o Egito” (Adão, 2012, V, p. 102-103). Llull queria prejudicar as exportações
mamelucas; Adão, as exportações e importações.
Curiosamente, a ideia de um bloqueio latino no Mar Vermelho, que cortaria
as ligações entre o Egito e a Índia, já havia sido sugerida e colocada em prática,
mesmo que por um curto período. Referimo-nos à expedição do cruzado francês
Reinaldo de Châtillon, que ordenou que navios fossem posicionados naquela
região (1182-1183). Eles passaram a atacar caravanas de mercadores e peregrinos
muçulmanos, o que significou uma clara ameaça às cidades sagradas de Meca
e Medina. Contudo, a iniciativa foi derrotada por combatentes enviados pelo
Artigo

irmão de Saladino, que governava o Egito. Após Reinaldo, uma tropa europeia
voltaria a penetrar no Mar Vermelho apenas com os portugueses (1513) (Leiser,
1977, p. 87).
Com efeito, a História Global funciona como uma chave de leitura dessas
formas de integração. Entretanto, uma ressalva deve ser feita. Se, por um lado,

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“qualquer estudo de história global depende de algum conhecimento básico


acerca do grau, escopo e qualidade da integração a grande escala” (Conrad,
2019, p. 124); por outro, essas pesquisas “não podem prescindir de abordar o
lado negro da força, a desintegração, a opressão, a exploração e a resistência
em escala global” (Malerba, 2019, p. 469). Em razão disso, os bloqueios
econômicos sugeridos por Ramon Llull e Guilherme Adão servem como casos
paradigmáticos de fenômenos que pretendiam ir de encontro a determinados
processos integrativos. Buscavam a ruptura; a descontinuidade. Estudá-los é
uma condição sine qua non para tentar compreender aquela totalidade histórica,
considerando as múltiplas tensões e agentes envolvidos.7
As proibições ao comércio cristão com os muçulmanos remontam ao III
Concílio de Latrão (1179), sendo reforçadas por vários pontífices, especialmente
a partir de 1291 (Trenchs Odena, 1980, p. 250, 317). Os bloqueios, porém, não
devem ser superestimados. Tanto Llull quanto Adão reconhecem e lamentam
o fato de “falsos cristãos” burlarem tais embargos.8 A pressão sobre o Papado
vinha especialmente das cidades italianas, com destaque para Veneza. É
preciso, pois, considerar que poderosas forças “globais” atuavam naquele
geopolítica, integração e diversidade
Ramon Llull e a Idade Média Global:

momento; eram pressões transregionais. Muitas vezes, as excomunhões tinham


efeitos limitados ou simplesmente eram ignoradas; o lucro falava mais alto.
Guilherme Queiroz de Souza

A quantidade de multas aplicadas revela uma prática que, ao fim e ao cabo,


parecia compensar. Além disso, devemos levar em consideração o papel dos
intermediários nesses negócios, como os judeus, que não se preocupavam com
as admoestações pontifícias. Esse também era o caso dos bizantinos cipriotas,
com quem os latinos faziam intenso comércio (Jacoby, 2017, p. 33). Llull esteve
naquela região – Chipre e Armênia Menor – entre 1301-1302, referindo-se a essa
persistência dos latinos e recomendando punições àqueles que comprassem
mercadorias em Alexandria ou na Síria: “será excomungado todo aquele que
desrespeitar a proibição, e seus bens apreendidos” (Llull, 1981, II, 5, p. 281).
Para Llull, o Egito também era uma região poderosa devido à capacidade
militar dos mamelucos (originalmente escravos), que ele menciona de forma
elogiosa. Outro aspecto percebido pelo filósofo foi a complexa diversidade
étnica desses guerreiros, em sua visão, “tártaros, turcos e de outras nações”
Artigo

que eram comprados na Grécia e vendidos por “falsos cristãos” na Babilônia


(isto é, no Cairo) (Llull, 1981, II, 5, p. 281),9 uma das maiores cidades medievais.
Como sabemos, muitos desses escravos eram capturados no Mar Negro pelos
mongóis, que os vendiam sobretudo aos genoveses, os quais, por sua vez, os
revendiam aos sultões egípcios. O Egito, portanto, era uma região multiétnica

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e multicultural, com centros cosmopolitas e intenso comércio inter-regional.


Era um fervilhante universo em conexão e movimento.
Com a menção ao Egito, Bagdá e Índia, Llull demonstra a centralidade de
alguns dos principais sistemas-mundo de sua época. No caso de Bagdá, poder-
se-ia supor que o autor tenha exagerado, pois a cidade havia sido destruída pelos
mongóis (1258). No entanto, pesquisas recentes indicam que ela conservou a
prosperidade econômica, não apesar do domínio mongol, mas por causa dele.
Depois do saque, os conquistadores imediatamente iniciaram a restauração da
cidade, que se tornou um importante núcleo multicultural e cosmopolita do
Ilkhanato (Biran, 2022, p. 286, 310).10 Embora também tenha sofrido as invasões
mongóis, a Índia conseguiu manter o dinamismo e a vitalidade econômica. O
Sultanato de Déli, o principal poder político da região, foi atacado várias vezes,
mas nunca conquistado. É muito possível que Llull tenha se referido à Costa do
Malabar, onde existiam cidades portuárias que se destacavam comercialmente,
razão pela qual já eram citadas por autores cristãos, judeus e muçulmanos.
Mesmo sem indicar os produtos indianos, o filósofo aponta a necessidade de
integrar os cristãos europeus aos sistemas-mundo mais relevantes e lucrativos
geopolítica, integração e diversidade
Ramon Llull e a Idade Média Global:

de então. De acordo com Philippe Beaujard (2005, p. 428), podemos encontrar


quatro principais “corações” do sistema eufrasiano (séculos XIII-XIV), dois
Guilherme Queiroz de Souza

deles controlados pelos mongóis.

Figura 1 – O sistema-mundo euroasiático e africano nos séculos XIII e XIV


Artigo

Fonte: Capdepuy (2011).

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Assim como Abu-Lughod (1989, p. 34), Beaujard adota a teoria do sistema-


mundo e expõe uma cartografia atualizada dos centros econômicos medievais.
Outra atualização foi proposta por Monica Green, que publicou, em sua conta no
Twitter (18/03/2019), um mapa da Afro-eurásia, com a inserção de um “circuito”
e a ampliação de outro.11 O primeiro englobava as rotas transaarianas; o segundo
abrangia o Mar Arábico, estendendo-se através da costa Suaíli até Madagascar.
Nesse sistema-mundo afro-euroasiático, com quatro centros principais, Llull
viajou especialmente pelo Mediterrâneo. Dali, direcionou seu olhar para o
leste, para o Egito, a Índia e o Império Mongol, que exerciam uma poderosa
atração. Ele ainda nos informa da presença de genoveses e catalães para além
do Mediterrâneo, o que demonstra a relevância desses centros, principalmente
no Oceano Índico.12
Ora, a expansão marítima europeia buscava atingir os corações daquele
sistema, com o objetivo de recolher os cobiçados produtos de luxo. Llull
compartilha da proposta, defendida por outros autores em sua época, de atingir
diretamente a Índia. Ali, havia um enorme e dinâmico fluxo comercial, já que
“a rota que ligava a China à África era a mais longa e densamente percorrida
geopolítica, integração e diversidade
Ramon Llull e a Idade Média Global:

rota marítima antes de 1492” (Hansen, 2020, p. 264). Era um plano ousado,
cujo resultado enfraqueceria os poderes muçulmanos e colocaria a Europa
Guilherme Queiroz de Souza

em contato direto com o Oceano Índico; isso dois séculos antes de Vasco da
Gama! Na verdade, os europeus apenas se integrariam a um pujante sistema
econômico existente desde a Antiguidade, conforme indica o texto conhecido
como Périplo do Mar Eritreu (século I d.C.). Algo salientado pela historiografia
indiana é que a viagem do navegador português não inaugurou uma “era das
descobertas” no Índico, que estava no radar dos latinos há séculos e consistia
num destino muito frequentado (Chakravarti, 2015, p. 43). Os textos de Llull e
Adão comprovam isso.
Apesar de ter sido gestado no Mediterrâneo, o pensamento luliano não
ponderou sobre as estratégias para o controle daquele espaço, porque, em sua
opinião, já existia ali uma integração comandada pelos cristãos. De acordo com
Llull (2003a, I, p. 336), “os cristãos possuem ilhas no mar e são mais fortes que
os sarracenos no mar”. Em verdade, o autor acerta ao dizer que as principais
Artigo

ilhas do Mediterrâneo eram dominadas: Córsega, Sardenha, Sicília, Malta,


Rodes, Creta e Chipre, além das recém-conquistadas Maiorca (1229-1232),
Formentera (1235), Ibiza (1235) e Minorca (1287). Trata-se de um poderio naval
dos cristãos, que “possuem galés em maior abundância que os sarracenos, e no
mar são mais audazes” (Llull, 2018, I, p. 208).

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O plano de Llull consistia em derrotar os mamelucos no Mediterrâneo


oriental, pois ele conhecia a fragilidade naval de seu inimigo. Da Armênia Menor
até a costa do Egito, existia um poder muçulmano que precisava ser destruído.
Ele sugeria que algumas galés ficassem de prontidão, para que “nenhum cristão
pudesse oferecer qualquer ajuda aos sarracenos ou fizesse negócios com eles”
(Llull, 2003b, p. 328). Llull era muito consciente do contexto geopolítico da
região e adotava uma estratégia mais pragmática, necessária à conquista de
Jerusalém. Em sua época, porém, nem todos pensavam assim: o rei Carlos II de
Anjou (1285-1309), por exemplo, desconhecia o frágil poder naval mameluco e
assegurava que a costa egípcia era inexpugnável. Ainda que ele tenha proposto
o bloqueio econômico do Egito, isso, na prática, era muito mais uma oposição
aos interesses dos bizantinos, genoveses e aragoneses do que um freio ao poder
do sultão (Domínguez Reboiras, 2004, p. 69).
De modo geral, a historiografia especializada enfatizou somente o
pensamento cruzadístico de Ramon Llull, sem destacar sua sugestão em criar
uma rota comercial direta até a Índia, superando os mamelucos. O Egito não
é apenas um obstáculo à conquista de Jerusalém. Ele impede o acesso dos
geopolítica, integração e diversidade
Ramon Llull e a Idade Média Global:

cristãos aos mercados indianos. O plano, inclusive, tinha um tempo estimado


(“seis anos”) para estrangular o comércio do Sultanato Mameluco, que entraria
Guilherme Queiroz de Souza

em colapso. Ao contrário de Adão, Llull não diz explicitamente que o comércio


da Índia chegava ao Egito, contudo isso pode ser deduzido: se a conquista do
território egípcio possibilitaria aos cristãos um acesso direto à Índia, é porque
havia um monopólio muçulmano no meio do caminho. A desintegração que ele
instava pretendia não apenas destruir o inimigo, mas também construir novas
articulações e integrações para si.
O bloqueio econômico do Egito era uma proposta conhecida naquela época,
sendo defendida por Guilherme Adão, Jacques de Molay, Hayton de Korykos,
entre outros.13 É interessante observar a relação (direta ou indireta) dos dois
últimos com Ramon Llull. Sabemos que o filósofo se encontrou com o grão-
mestre dos templários, que o recebeu “alegremente” em sua casa, em Famagusta
(1302), no Chipre, onde ficou “até ter recuperado a saúde” (Llull, 1980, VIII, 35,
p. 296). Diálogos sobre a conquista de Jerusalém podem ter ocorrido, com a
Artigo

troca de informações estratégicas relacionadas à geopolítica do Mediterrâneo


oriental. Seja como for, Jacques de Molay escreveu um tratado sobre o assunto,
que endereçou ao papa Clemente V (1307). Nele, igualmente defendeu um
bloqueio comercial ao Egito, com a ilha de Chipre selecionada para ser o centro
de suas operações (Bontea, 2018, p. 213).

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Quanto ao príncipe armênio Hayton de Korykos, talvez uma relação direta


também tenha acontecido. Exilado de sua terra por questões políticas, Hayton
atuou como monge no Chipre. Cristão piedoso, peregrinou até a Europa
ocidental e ali permaneceu por dois anos (em algum momento entre 1299 e
1302), mais precisamente no mosteiro cartuxo de Vauvert, em Paris. Entre 1306
e 1308, o príncipe retornou à Europa e passou por Poitiers, na França, onde
redigiu textos destinados ao papa Clemente V. Entre eles, havia um que tratava
das tentativas mamelucas de conquistar o reino armênio e que propunha uma
aliança entre cristãos e mongóis para a tomada de Jerusalém.
É possível conjecturar que Llull e Hayton tenham se conhecido e interagido.
Temos a informação de que a segunda estada luliana em Paris (Vauvert) ocorreu
entre 1297 e 1299. O encontro pode ter contribuído para que, logo em seguida, o
filósofo embarcasse naquela viagem até Chipre e Armênia Menor.14 Semelhante
a Llull, Hayton sugeria o bloqueio naval do Egito, a primeira parte do plano.
Ele destaca a importância dos dois portos marítimos egípcios (Alexandria e
Damieta) e a carência da região por certas “mercadorias” (como madeira,
escravos e ferro), que “são transportadas pelo mar” (Korykos, 1906, X, p. 349).
geopolítica, integração e diversidade
Ramon Llull e a Idade Média Global:

Esse comércio precisava ser urgentemente destruído. A segunda parte do plano


consistia num desembarque na Armênia Menor e no Chipre, o que envolveria
Guilherme Queiroz de Souza

exércitos mongóis, latinos, armênios e até núbios (Hauf Valls, 1996, p. 133).
A História Global contribui para reordenar o entendimento do passado e
reavaliar o significado do Egito para o mundo medieval. Como sabemos, a história
universal tradicionalmente foi contada sob o ponto de vista eurocêntrico,
numa perspectiva entendida pela metáfora da “corrida de revezamento”, com
cada civilização passando o “bastão” para outra, que a sucederia no tempo e em
protagonismo. Nessa leitura do leste para o oeste, do oriente para o ocidente,
o Egito desaparece depois de repassar suas “contribuições”: a escrita e a
burocracia. Em seguida, entram em cena, nessa ordem, Grécia, Roma e Europa.
Estamos diante da “união entre o eurocentrismo morfológico e o internalismo
metodológico” (Morales; Silva, 2020, p. 128).
Além do Sultanato Mameluco, existia outra potência global nos séculos
XIII-XIV: o Império Mongol. Guiados por Gengis Khan, os mongóis iniciaram a
Artigo

conquista de um enorme território, inspirados por uma ideologia “universalista”


que sempre os impelia a progredir. Em 1260, suas hordas avançaram sobre a
Síria, com planos de invadir o Egito. Todas as campanhas mongóis contra os
mamelucos fracassaram, exceto uma ocorrida em 1299. Gradativamente, no
entanto, as investidas diminuíram, até que um acordo de paz foi selado em

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1323 (Amitai-Preiss, 2004, p. 1). Não podemos entender as últimas cruzadas e


seus projetos (como o luliano) sem levar em conta o seu “momento global”, já
que mamelucos e mongóis também buscavam controlar Jerusalém. Aliás, foi
a notícia daquela única vitória mongol que Llull recebeu, com certo atraso,
na ilha de Maiorca. Sem pestanejar, o filósofo “partiu para Chipre no primeiro
navio que encontrou” (Llull, 1980, VIII, 33, p. 294-295), com a intenção de
convertê-los ao cristianismo, o que nunca aconteceu.
É muito provável que Llull também tenha presenciado a chegada de
embaixadas mongóis capitaneadas por Rabban Bar Sauma (1287-1288) e
Buscarello de Ghisolfi (1289-1290), que visitaram algumas cidades europeias,
como Roma e Paris. Naquela mesma época, Llull transitava por essas localidades,
e podemos presumir que tenha assistido aos eventos diplomáticos. Inclusive, os
especialistas acreditam que a primeira embaixada motivou a redação do Livro
do Tártaro e o Cristão (Soler, 1992, p. 9-10), que o autor escreveu logo depois
do episódio. Essa obra literária descreve, inicialmente, as argumentações
teológicas de três sábios (um judeu, um cristão e um muçulmano), que buscam
(sem sucesso) converter um tártaro às suas respectivas religiões. O tártaro,
geopolítica, integração e diversidade
Ramon Llull e a Idade Média Global:

personagem “muito sábio e erudito em filosofia” (Llull, 2016, I, p. 72), somente


se convence depois da exposição do eremita cristão Blaquerna, que o envia
Guilherme Queiroz de Souza

à cúria romana para ser batizado. Ao contrário do Livro do Gentio e dos Três
Sábios (c. 1274-1283), que apresenta traços de um cenário idealizado, o Livro
do Tártaro e o Cristão detém alguns detalhes históricos que o situam no mundo
real (concreto) (Friedlein, 2011, p. 133-134).
Apesar de contemporâneo à invasão mongol à Europa oriental, Llull começou
a redigir suas obras num contexto em que havia a esperança de uma aliança
latina com o Ilkhanato. Logo, era urgente que o trabalho missionário fosse
iniciado. Naquele momento, o Papado e os reinos cristãos europeus enviaram
embaixadas aos mongóis, com o propósito de convertê-los ao cristianismo
e estabelecer uma aliança militar contra os muçulmanos. Jaime I de Aragão,
por exemplo, manteve relações diplomáticas com Abaqa Khan (1265-1282),
soberano mongol da Pérsia. Em 1300, foi a vez de Jaime II de Aragão enviar uma
carta a outro ilkhan, Gazan (1295-1304), o mesmo que Llull procurou encontrar
Artigo

em sua viagem ao Mediterrâneo oriental. Em tom de lamento, o filósofo declara


que Gazan pretendia abraçar o cristianismo, mas, como não conseguiu, “tornou-
se sarraceno com todo o seu exército” (Llull, 1981, I, 5, p. 267).
De qualquer modo, o Império Mongol transformou profundamente a
Eurásia. À luz da História Global, Marie Favereau recentemente reavaliou o

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impacto e as consequências dessa poderosa expansão. Pela primeira vez, o


Mediterrâneo foi conectado à Índia e à China. Os mongóis estimularam novas
formas de comércio de longa distância ao firmar acordos com diversos povos.
Suas patrulhas foram designadas para proteger os mercadores, que passaram
a acessar as instalações e a logística imperial (Favereau, 2018, p. 62). Assim,
a Rota da Seda foi impulsionada. Era um império estável, multilinguístico e
multiétnico; um mundo cosmopolita sem precedentes. Até então, nenhum
poder havia governado tantos povos de variadas culturas, religiões e línguas,
como o turco, chinês, persa, árabe, armênio, entre muitas outras (Kinoshita,
2013, p. 41).
O embate entre mamelucos e mongóis significava um conflito entre duas
potências com aspirações “universais”. De um lado, o Sultanato Mameluco era
o principal poder muçulmano daquele período, não somente nas esferas militar
e econômica, mas também simbólico-religiosa. Ele atuava como uma espécie
de “guardião” das cidades sagradas do islamismo (Meca e Medina), que atraíam
incontáveis peregrinos – um dos mais famosos foi o Mansa Musa do Mali
(1324-1325). De outro, os mongóis tinham como ideologia basilar o conceito
geopolítica, integração e diversidade
Ramon Llull e a Idade Média Global:

de “império universal”, que se apoiava na crença de que eles tinham recebido


um mandato celestial para conquistar o mundo e dominar todos os povos. Essa
Guilherme Queiroz de Souza

lógica de expansão em escala global os motivou à invasão da Síria (Biran, 2021,


p. 223; Petry, 2022, p. 80, 100).
Em busca da hegemonia global, os mongóis também projetaram uma guerra
marítima contra os mamelucos. Contudo, faltava-lhes experiência nesse tipo
de confronto. Em 1290, Arghun Khan (1284-1291), governante mongol da
Pérsia, recorreu à mão de obra de oitocentos genoveses para a construção de
navios em Bagdá. Seu objetivo era enviá-los em direção ao Golfo de Adem, onde
bloqueariam o comércio entre a Índia e o Egito. Em outras palavras, o plano de
bloquear os mamelucos no Mar Vermelho era compartilhado tanto pelos latinos
quanto pelos mongóis. Ele forçaria um desvio comercial, do Mar Vermelho para
o Golfo Pérsico, cujo controle estava nas mãos do ilkhan (Chakravarti, 2015, p.
53). A desintegração de um favoreceria a integração do outro. Era uma estratégia
global, com uma envergadura reconhecida por Guilherme Adão, por isso ele a
Artigo

considerava “impossível”. O ousado projeto, que contrariava um tratado entre


genoveses e egípcios (1261), acabou não efetivado por disputas internas entre
os primeiros, como nos contam alguns cronistas (Adão, 2012, V, p. 102-105;
Richard, 1968, p. 49).
De fato, o papel político e econômico das cidades italianas era fundamental.

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Em nosso caso, não podemos compreender a trajetória de Llull sem levar em


consideração o protagonismo desempenhado por Gênova, que ele visitou
em seis oportunidades. Os principais entrepostos comerciais dos genoveses
estendiam-se pelo Mediterrâneo e Mar Negro, onde também um amigo genovês
de Llull, Perceval Spinola, praticava o tráfico escravagista. No Egito, havia um
consulado genovês desde o fim do século XII. Llull, como vimos, indicou a
presença de genoveses em Bagdá e na Índia. Isso demonstra o interesse das
cidades italianas por novos mercados, que se tornaram mais conhecidos e seguros
graças à integração mongol. Em 1291, inclusive, houve uma tentativa genovesa
de atingir a Índia pelo Atlântico, com os irmãos Vivaldi, que se lançaram numa
expedição cujo desfecho desconhecemos. Como destaca Sebastian Conrad
(2019, p. 165), “Gênova esteve, durante séculos, profundamente enredada nos
circuitos transnacionais”. Tripulante frequente dos navios genoveses, Llull se
aproveitou dessas conexões pelo Mediterrâneo.
Por sua vez, a indicação de Llull de que havia catalães no Oceano Índico
não surpreende. Para conferir credibilidade à notícia, necessitamos conhecer
a expansão da Coroa de Aragão no Mediterrâneo (séculos XIII-XV). Ainda que
geopolítica, integração e diversidade
Ramon Llull e a Idade Média Global:

tenha existido uma superioridade naval catalã no norte africano, não podemos
falar de um “lago catalão”, considerando sua limitada hegemonia (Hillgarth,
Guilherme Queiroz de Souza

1984, p. 88, 117). Esse avanço esbarrava nas próprias pretensões de governantes
europeus, como das cidades italianas e da França, a maior potência da Europa
ocidental. Em suma, a Coroa de Aragão nunca construiu uma “integração” no
Mediterrâneo. Como todo historiador global sabe, conexões não produzem,
necessariamente, integrações. Isso não quer dizer, todavia, que entrepostos
comerciais catalães não tenham sido fundados em distintas porções daquele
mar, como os consulados em Tiro (1187) e Alexandria (1262). Por isso, não seria
estranho se eles acompanhassem os genoveses, do Mediterrâneo ao Oceano
Índico.
Essa expansão da Coroa de Aragão e dos catalães não gerou um sentimento
político “nacionalista” em Ramon Llull. Na verdade, tanto na Vida Coetânea
(1311), sua autobiografia, quanto no restante de seu vasto corpus documental,
o filósofo não menciona certos eventos decisivos da história da Catalunha que
Artigo

impactaram diretamente em sua trajetória. Há um silêncio sobre as Vésperas


Sicilianas (1282), a invasão da Catalunha pelos franceses (1285), a anexação
de Maiorca pela Coroa de Aragão (1285) e a recuperação da ilha por Jaime
II (1298). Outro aspecto desse viés supranacional é que Llull nunca prestou
fidelidade exclusiva a um senhor em particular (Rubió i Balaguer, 1985, p. 28-

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29). Era vassalo incondicional apenas de Cristo. Portanto, uma abordagem


fundamentada num “nacionalismo metodológico” mostra-se inadequada para
compreender os seus interesses e motivações. Ele não tomou partido e se
engajou nas questões políticas regionais e locais. É a Cristandade que estava
em primeiro lugar.15

A consciência de globalidade luliana

A “consciência de globalidade” é um traço do pensamento de Ramon Llull,


algo notado em sua referência à expansão mongol. Para o maiorquino, tal
avanço militar aconteceu numa dimensão espaço-temporal extraordinária:
“setenta anos já se passaram desde que os tártaros desceram das montanhas e
têm mais poder neste mundo do que os sarracenos e todos os cristãos” (Llull,
1981, I, 5, p. 268). Pouco depois, o autor atualiza o marcador cronológico: “e
ainda não se passaram oitenta anos desde que eles [os mongóis] deixaram
suas montanhas” (Llull, 2018, III, 2, p. 228). Embora essas palavras tenham
sido escritas na primeira década do século XIV, o pensamento luliano não
geopolítica, integração e diversidade
Ramon Llull e a Idade Média Global:

compreendeu o fenômeno tão rapidamente.


O ano de 1287 marca o ponto de inflexão nesse tema. Se obras escritas antes
Guilherme Queiroz de Souza

desse período – O Livro do Gentio e dos Três Sábios, a Doutrina Pueril (1274-
1276) e o Blaquerna (1276-1283) – contêm uma noção de diversidade do mundo,
é a partir daí que Llull passa a destacar que os cristãos eram minoria. Esse é o
momento de sua primeira viagem a Roma e Paris, quando teria presenciado a
chegada das embaixadas mongóis. De alguém que havia transitado somente
entre Maiorca e Montpellier, no noroeste mediterrânico, a vida de Llull
“adquire uma perspectiva mais universal” (Domínguez Reboiras, 2016, p. 161).
A ideia aparece, pela primeira vez, no Livro das Maravilhas (c. 1287-1289),
em cujo Prólogo afirma que um homem, numa terra estranha, “fortemente se
maravilhava com o fato de que as pessoas deste mundo conheciam e amavam
tão pouco a Deus” (Llull, 2011, p. 81, prólogo I). Alguns anos depois, podemos
encontrá-la numa petição enviada por Llull ao papa Celestino V (1294): “eu
acredito que para um cristão há uma centena ou mais que não são cristãos”
Artigo

(Llull, 1982, 8-9, p. 30-31). Uma década mais tarde, o autor escreve que “são
poucos os cristãos e muitos os infiéis que, todos os dias, tentam destruir os
cristãos” (Llull, 1981, p. 250). O mesmo raciocínio pode ser encontrado em
distintos momentos e em textos de naturezas diversas.
Acreditamos que os episódios depois de 1287 contribuíram significativamente

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para ampliar a noção de globalidade de Llull. Jocelyn Hillgarth (2018, p. 27)


lembra que, “no século XIII, depois das invasões mongóis, era de conhecimento
geral que havia dez ou talvez cem infiéis para cada cristão”. Esse entendimento
de Llull não era incomum em sua época: podemos encontrá-lo em autores como
Roger Bacon (1214-1294). Assim como o filósofo maiorquino, o franciscano
inglês tinha o domínio da língua árabe e uma sensação incômoda de inferioridade
numérica cristã, que acreditava ser transmitida por cálculos matemáticos
(Power, 2013, p. 235). Guilherme Adão (1907, p. 820) também defendia a noção
de que os “verdadeiros cristãos” (veri Christiani) não ocupavam nem um décimo
do mundo habitado. Não se trata de um mero recurso literário, simbólico e
hiperbólico.
Para Fernando Domínguez Reboiras (2016, p. 161), essa consciência de
constituir uma minoria, de pequenez do mundo cristão (pauci sunt christiani), é
a “caraterística fundamental do horizonte teológico luliano”. Entretanto, havia
uma evidente contradição que incomodava o pensador: se o cristianismo era
a “verdadeira fé”, por que tantos homens praticavam outras religiões? Essa
pergunta não causava desconforto na maior parte dos escolásticos daquele
geopolítica, integração e diversidade
Ramon Llull e a Idade Média Global:

tempo, ao contrário de Llull, que se definia como “procurador dos infiéis” e


arabicus christianus (Llull, 2009, II, 61.4, p. 280-281, 1981, I, 2, p. 256). A
Guilherme Queiroz de Souza

diferença estava no ambiente de fronteira no qual ele nasceu e cresceu, que


o impulsionou a refletir profundamente sobre a alteridade. O Mediterrâneo
medieval era um cenário propício para o desenvolvimento dessa concepção.
Em verdade, processos como a integração mongol na Eurásia promoveram
uma acentuada ampliação na circulação do conhecimento. A partir daquele
momento, havia à disposição uma enorme quantidade de informações sobre
povos, línguas e costumes. Isso fez com que espaços – antes apenas imaginados
e mitologizados – fossem racionalizados e ordenados em termos políticos.
Agora, estavam conectados e integrados; eram frequentemente percorridos e
explorados (Macedo, 2011, p. 14-15). A intensa mobilidade alterou a consciência
de globalidade daquele período. Esse fenômeno gerou produções intelectuais
arrojadas, como quando Rashid al-Din (c. 1247-1318), que vivia na corte do
Ilkhanato, foi solicitado a escrever a “história de todas as pessoas do mundo”.
Artigo

Para essa “história hemisférica”, que finalizou em torno de 1310, o cronista


pôde utilizar diversas fontes orais e escritas (judaicas, latinas, persas, chinesas,
árabes, indianas etc.), reflexo de uma época em que várias regiões se tornavam
mais integradas (Wiesner-Hanks, 2018, p. 147-148). Sintomático disso também
é a evolução da cartografia a partir do século XIII, o que pode ser observado

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em mapas-múndi tanto ocidentais (Atlas catalão, c. 1375) quanto orientais


(Kangnido, c. 1402).

A diversidade do mundo

Outro aspecto de globalidade no pensamento luliano está na diversidade


do mundo. Recentemente, a historiadora Naomi Standen colocou à prova
a seguinte questão: seria o contexto medieval mais “diverso” que o atual? A
pergunta, raramente alvo de maiores reflexões, é um típico assunto do século
XXI, de nossa época. A resposta de Standen era afirmativa, já que, em termos
globais, a Idade Média mostrou uma diversidade cultural muito maior em
comparação à contemporaneidade. Para começar, havia mais línguas, crenças e
práticas religiosas. Nas últimas décadas, verificamos o crescimento de “línguas
mundiais” lideradas pelo inglês, chinês, espanhol e árabe, ao passo que outras
(como o galês) estão em declínio (Standen, 2022, p. 18, 42).
Antes desse tipo de reflexão, o Medievo era entendido como culturalmente
homogêneo e uniforme, sem nenhuma diversidade. Fórmulas como “sociedade”
geopolítica, integração e diversidade
Ramon Llull e a Idade Média Global:

ou “civilização” medieval não eram questionadas pelas correntes historiográficas


vigentes. O problema é que elas privilegiavam determinadas facetas (ocidental,
Guilherme Queiroz de Souza

europeia, latina, católica e branca), negligenciando o papel de diversos atores


sociais, suas etnias e culturas. Como salientou Marcelo Cândido da Silva (2020,
p. 16), a expressão “Idade Média” evoca um período, sem que possamos “inferir
daí a existência de uma ‘civilização medieval’; ou, ainda, sem inferir que
essas sociedades, apenas por situar-se nesse período, possuiriam as mesmas
características”.
Alguns medievalistas têm cada vez mais explorado a diversidade medieval.
Sharon Kinoshita, por exemplo, tratou da questão numa palestra intitulada
“Marco Polo and the Diversity of the Global Middle Ages”.16 Já o pesquisador
Michael Borgolte (2017, p. 79) desconfia de terminologias que pretendem
identificar grandes entidades culturais, como “mundo islâmico da Espanha ao
Irã”. Esse tipo de expressão atualmente perde força, pois não é capaz de designar
uma homogeneidade para cenários tão plurais e complexos. Como pensar
Artigo

numa unidade em regiões tão diferentes como o Al-Andalus, o Egito e a Pérsia?


Sem dúvida, a Idade Média Global designava uma Afro-eurásia conectada e
integrada, com uma colorida diversidade cultural, étnica e religiosa.
Desde suas primeiras obras, escritas antes mesmo de sua viagem a Roma
e Paris, Llull sumarizou a diversidade de povos que existiam no mundo. No

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Blaquerna, lemos uma disposição com onze nomes indicados: “[...] sarracenos,
judeus, gregos, mongóis, tártaros, búlgaros, húngaros da Hungria Menor,
comanos, nestorianos, russos, guinovins. Todos esses e muitos outros infiéis”
(Llull, 2009, II, 61.4, p. 280). Essa passagem lembra outra escrita na Doutrina
Pueril, que dedicou a seu filho Domingos (Llull, 1987, LXXII, p. 166-167). Nesse
extrato mais antigo, porém, não há referência aos três primeiros povos; os
demais são classificados como “gentios”, ou seja, aqueles que não praticavam
uma das três “religiões reveladas” e todos os cristãos não católicos (Llinarès,
1994, p. 106).
O interesse de Llull pelos mongóis merece uma atenção especial, porque
aparece em distintas obras, inicialmente em referências muito vagas que, a
partir da década de 1280, se tornam mais detalhadas (Soler, 1992, p. 4). Na
etnografia luliana, os mongóis são “rudes e sem religião” (Llull, 2018, II, 6, p.
224), pessoas que “não têm ciência porque sua inteligência se ocupa somente
de coisas sensíveis e imagináveis” (Llull, 1981, I, 5, p. 266). Llull os identificava
como homens em seu estado puro da natureza (tabula rasa), que poderiam ser
convertidos sem maiores dificuldades (Liu, 2005, p. 315). Em função disso, havia
geopolítica, integração e diversidade
Ramon Llull e a Idade Média Global:

o medo de que os mongóis escolhessem o islamismo, assim “toda a Cristandade


estará em grande perigo” (Llull, 2003b, p. 329). Por outro lado, se eles fossem
Guilherme Queiroz de Souza

convertidos ao cristianismo, “todos os sarracenos poderiam ser facilmente


destruídos” (Llull, 2003a, IV, p. 345).
Com relação à diversidade linguística medieval, Ramon Llull manifestou
uma interessante forma de multilinguismo. Embora isso já tenha sido mapeado
pelos especialistas, a ênfase é quase sempre conferida à sua dimensão ternária
– as línguas de redação de suas obras (catalão, árabe e latim). Lola Badia foi uma
das primeiras a explorar outro aspecto fundamental dessa questão: a linguagem
oral luliana. Em sua concepção, semelhante a um típico comerciante daquela
época, o filósofo poderia falar fluentemente o catalão de Maiorca, o occitano
de Montpellier, o francês de Paris, os dialetos italianos de Gênova, Pisa, Roma
e Nápoles, o latim dos círculos intelectuais e o árabe da Tunísia (Badia, 2009,
p. 186-187).
Ainda em Maiorca, Llull aprendeu latim, árabe e occitano – essa última,
Artigo

inclusive, antes de sua “conversão”, quando compôs poesias trovadorescas


(Llull, 1980, I, p. 272). Os dialetos italianos foram aprendidos durante suas
viagens pela Península Itálica, onde precisou se comunicar em lígure, toscano,
romano, napolitano e siciliano. Determinados questionamentos surgem:
como ele apresentou seus planos ao conselho comunal de Pisa (1308)? Num

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toscano com sotaque maiorquino (Badia, 1992, p. 291)? Já no Mediterrâneo


ocidental, Llull se comunicou em árabe ou mesmo em catalão, uma das línguas
“internacionais” para o comércio e a diplomacia no século XIV (Hillgarth, 1984,
p. 121).
Nos últimos anos, o multilinguismo tem sido foco dos estudos de Albrecht
Classen. Em sua opinião, não se trata de um fenômeno moderno; no Medievo,
era comum que pessoas falassem uma ou mais línguas estrangeiras, motivo pelo
qual devemos descartar a noção de sociedades monolíngues (Classen, 2013,
p. 135). Esse multilinguismo era manifestado, em especial, por mercadores,
intelectuais, peregrinos, embaixadores, entre outros. Exemplo do primeiro
grupo são os judeus radanitas, que dominavam várias línguas para facilitar o
comércio nos imensos territórios que percorriam, do Mediterrâneo à China. Já
o famoso mercador veneziano Marco Polo (c. 1254-1324), contemporâneo de
Llull, conhecia quatro idiomas, algo muito frequente entre aqueles que faziam
comércio em domínios mongóis (Kinoshita, 2013, p. 47).
O multilinguismo é essencial no pensamento luliano. Entre seus projetos,
estava a formação da Ordem do Espírito Santo, cujos membros deveriam
geopolítica, integração e diversidade
Ramon Llull e a Idade Média Global:

aprender “especialmente as línguas árabe, persa, comânica, guza e outras


línguas cismáticas” (Llull, 2003b, p. 328). Em 1292, Llull (2003a, III, p. 341)
Guilherme Queiroz de Souza

propôs a criação de escolas de línguas (studia linguarum) em Roma, Paris,


Hispânia, Gênova, Veneza, Prússia, Hungria, Caffa, Armênia e Tartária. Mais
tarde, o autor simplificou o plano para ser executado apenas em Paris, Roma
e Toledo, cidades nas quais “homens sábios” estudariam vários idiomas (Llull,
2018, II, 1, p. 217). Essa proposta foi apresentada no Concílio de Vienne (1311-
1312) e autorizada para ser aplicada em Paris, Oxford, Bolonha e Salamanca.
Ali, seriam ensinados árabe, hebraico e caldeu (Domínguez Reboiras, 2016, p.
285). De forma mais rápida e eficaz, o multilinguismo era uma estratégia para
os missionários propagarem o cristianismo a todos os rincões do mundo.
No caso de Llull, ainda precisamos distinguir sua vida prática de seu ideal
literário (Badia, 1992). No Blaquerna, o filósofo escolhe um monolinguismo
latino – a “língua mais geral” (pus general lenguatge), mas sua própria biografia
é marcada por um intenso multilinguismo. Tal particularidade consta nesse
Artigo

romance, quando Llull se refere à pluralidade linguística de seu ambiente, onde


existiam “diversas nações e diversas línguas; por causa dessa diversidade de
línguas [os homens] guerreavam uns contra os outros” (Llull, 2009, IV, 94.2, p.
414). Ainda que valorizasse a universalidade do latim, a língua oficial da Igreja
Católica, Llull chegou a escrever obras em distintos idiomas, com o objetivo

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de divulgar sua mensagem ao máximo (Soler, 2006, p. 56-65). Em nenhuma


hipótese, podemos afirmar que ele “amava” o catalão acima de tudo, como parte
da historiografia nacionalista do fim do século XIX e início do XX assegurou.
As próprias noções de “autor catalão” e “patriarca da língua catalã” precisam
ser questionadas. Ademais, a literatura luliana tinha um aspecto transcultural,
outra marca de sua globalidade (Souza, 2022, p. 211, 215-216).
Em algumas obras dialógicas, como a Disputa dos cinco sábios, O Livro
do Gentio e dos Três Sábios e O Livro do Tártaro e o Cristão, existem debates
teológicos entre vários personagens de distintas religiões, sem que possamos
identificar em qual língua eles conversam. Esse não parecia ser um problema
para Llull, talvez porque era de se esperar que todos fossem poliglotas. Como
no épico francês a Canção de Rolando, que descreve negociações entre cristãos
e muçulmanos antes das batalhas, dificuldades de comunicação parecem não
existir, por isso o autor não sente a necessidade de abordar quaisquer obstáculos.
Não há tradutores. As diferenças são basicamente de caráter religioso (Classen,
2013, p. 136).
Essa potência multilinguística medieval se enfraqueceu com a ascensão do
geopolítica, integração e diversidade
Ramon Llull e a Idade Média Global:

nacionalismo. A partir do século XVIII, os estados nacionais europeus elegeram


um idioma “oficial”, o que resultou num apagamento de muitas tradições
Guilherme Queiroz de Souza

culturais e línguas minoritárias. Houve uma ampliação do sistema escolar,


da alfabetização em massa, que priorizou o monolinguismo. Tudo isso em
benefício da história nacional, que pretendia ser unificada e homogênea (Geary,
2005, p. 29). Alguns casos são curiosos, como o pomerano, que praticamente
desapareceu na Europa central, mas pode ser encontrado em algumas cidades
do interior do Brasil. Trata-se de um projeto que foi exportado para outras
regiões, com distintas repercussões. Para finalizar, vejamos o exemplo das
principais línguas do universo luliano: árabe, catalão, occitano e latim. Na
contemporaneidade, apenas a última desapareceu como idioma falado; das
outras três, o occitano, a língua dos trovadores medievais, hoje recua na França
em detrimento do francês.

Considerações Finais
Artigo

A mobilidade, sem a qual não existe globalidade (Belich; Darwin; Wickham,


2016, p. 15), caracteriza a trajetória de Ramon Llull e, em menor grau, a de seus
pais, os quais emigraram de Barcelona para Maiorca após a queda da capital
da ilha (1229). Depois de sua “conversão”, Llull peregrinou até Santiago de

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Compostela (1263), participando de um dos principais deslocamentos humanos


naquele período.17 Ele não se restringiu ao lugar onde nasceu. Foi alguém que
circulou incansavelmente, com um itinerário transfronteiriço dentro de um
palco euro-mediterrânico. De maneira ainda mais surpreendente, suas jornadas
mais longas ocorreram a partir de 1287, quando ele superava os 55 anos – faixa
etária muito elevada para os parâmetros daquela época.
Ramon Llull viveu numa Idade Média Global diversa, integrada e conectada,
cujos principais centros econômicos estavam no Egito, na Índia e no Império
Mongol. Cristão, mediterrânico e cosmopolita, o filósofo maiorquino buscou
compreender estrategicamente essa geopolítica, com o fito de atender aos
seus interesses principais: a conversão dos “infiéis” e a tomada de Jerusalém
(a cruzada). O Sultanato Mameluco era visto como um obstáculo para isso;
Bagdá e a Índia, como mercados lucrativos que poderiam favorecer os cristãos;
o Império Mongol, como um aliado poderoso capaz de auxiliar a Cristandade a
conquistar a Cidade Santa e derrotar os muçulmanos.
Dentro desse quadro global, a Europa era uma periferia. A teoria do
sistema-mundo de Philippe Beaujard, com seus “corações” egípcio, indiano e
geopolítica, integração e diversidade
Ramon Llull e a Idade Média Global:

mongol, expressa satisfatoriamente o contexto vivenciado por Llull. Invejados


ou odiados, eram centros que ele deveria levar em conta em seu projeto de
Guilherme Queiroz de Souza

cruzada. Mas derrotar o Egito não era apenas uma preocupação para efetivar a
conquista de Jerusalém. Llull queria que os latinos participassem diretamente
dos mercados asiáticos (sobretudo indianos), cujos acessos os mamelucos
impediam. Desintegrar para se integrar. A abordagem do “momento global”,
observando a sincronicidade dos fenômenos, favoreceu a compreensão daquela
conjuntura histórica, com uma recalibragem que traduz a (in)tensa relação e o
choque entre as forças políticas e econômicas envolvidas.
A análise de diferentes escalas mostrou-se pertinente para a explicação da
trajetória de Ramon Llull. Na Idade Média Global, as identidades nacionais ainda
não haviam florescido, razão pela qual Llull não se considerava um catalão. Ele
pensava em termos de Cristandade,18 o que ficou estampado em suas intenções
político-religiosas. Em seu entendimento, a Cristandade lamentavelmente
estava desunida, pois as cidades italianas e os reinos cristãos competiam entre
Artigo

si e tinham seus próprios interesses; nos planos político e econômico, havia


práticas transnacionais, que seguiam suas leis e códigos morais. Para superar
a debilidade dos latinos, o plano luliano recomendava uma aliança com a
potência militar mongol.
Llull também revelou uma consciência de globalidade muito além do espaço

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euro-mediterrânico, que ele conhecia bem. O filósofo sabia que os cristãos


eram minoria e estavam cercados por inúmeros “infiéis”. Sua experiência de
globalidade fez com que conhecesse parte da diversidade étnica, cultural e
religiosa de seu tempo. Não por acaso, lamentou a fraqueza e a inferioridade
dos latinos. Essa perplexidade o levou, inclusive, a aproveitar o potencial
multilinguístico disponível. De fato, Llull não se manteve inerte. Por várias
vezes, percorreu a Idade Média Global para alcançar os seus objetivos, para
converter o mundo ao cristianismo – para ele, a “verdadeira fé”.19

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youtube.com/watch?v=I2Xf23QFenU. Acesso em: 10 fev. 2023.

Notas
1
Professor Adjunto de História Medieval da Universidade Federal da Paraíba e do
Artigo

Programa de Pós-Graduação em História (PPGH-UFPB).


Site: (Global [...], [2023]).
2

3
Em espanhol, destacamos a conferência La Peregrinación en el Medievo Global: de Finisterre
a Jerusalén, proferida por Manuel Castiñeiras durante o XII Congreso Internacional de
Estudios Xacobeos, em março de 2022. (XII Congresso [...], 2022).

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Ver, por exemplo: Green ([2023]).


4

5
“Transcender as fronteiras políticas, ir além de nossa unidade fechada, é a condição
indispensável para pensar a história globalmente” (Olstein, 2019, p. 116). Todas as
traduções são de nossa autoria.
6
Na época de Llull, vários outros autores escreveram textos que ficaram conhecidos
como “tratados da recuperação da Terra Santa”. Confira García Espada (2009).
7
Em sua “história global do algodão”, Sven Beckert aplicou essa metodologia ao
estudar algumas resistências às (des)integrações globais. O historiador explica, por
exemplo, o papel da Guerra de Secessão (1861-1865), que consistiu na “primeira crise
verdadeiramente global de matérias-primas”, a partir da qual surgiram “novas redes
globais de trabalho, capital e poder estatal” (Beckert, 2014, p. 246).
8
Guilherme Adão (2012, I, p. 26-27) acusa os mercadores catalães, pisanos, venezianos
e, sobretudo, genoveses.
9
Por sua vez, Guilherme Adão (2012, I, p. 28-29) indica que os mercadores cristãos viajam
por “diversas partes do mundo e compram meninos e meninas, gregos, búlgaros, rutenos,
alanos, húngaros da Hungria menor [...] ou tártaros, cumanos e quaisquer outros pagãos
[…]”.
Michal Biran (2022, p. 301) acrescenta que o ilkhan Gazan havia ordenado a construção
10

de canais nos rios Tigre e Eufrates, facilitando o acesso dos navios até Bagdá.
geopolítica, integração e diversidade
Ramon Llull e a Idade Média Global:

11
Disponível em: Green (2019).
Para Guilherme Adão (2012, V, p. 110-111), os genoveses eram “os únicos que constroem
12
Guilherme Queiroz de Souza

navios no referido mar da Índia”.


Na opinião de Cornel Bontea (2018, p. 217), que levou em conta a logística da época,
13

um “bloqueio geral [no Mediterrâneo] no século XIV era altamente ilusório – a frota
britânica só conseguiu isso no fim do século XVIII”.
14
“Se fosse assim, certamente [Llull] não perderia a oportunidade de se informar sobre
os últimos fatos ocorridos no Oriente. Seus contatos com a casa de Aragão ou com os
círculos mercantis sem dúvida já lhe haviam fornecido um quadro geral da situação. As
informações de Aitón o completariam de forma mais fidedigna. E seu comportamento
posterior nos é apresentado de um modo muito mais compreensível” (Gayà Estelrich,
1997, p. 62-63).
“Por temperamento e convicção [Llull] distanciou-se de abordagens políticas parciais e
15

buscou soluções globais, utópicas até certo ponto, em relação ao conjunto da cristandade
e acima dos particularismos nacionais” (Domínguez Reboiras, 2016, p. 228).
16
Confira: (Marco [...], [2023]).
Com essa peregrinação, Llull “abandona o regionalismo religioso e o substitui pelo
Artigo

17

universalismo eclesial” (Villalba i Varneda, 2015, p. 80).


“[...] a cristandade não é para Ramon Llull o centro do mundo, uma cerca murada, mas
18

o foco espiritual de uma humanidade majoritariamente não cristã, ampla, múltipla e


complexa” (Domínguez Reboiras, 2016, p. 71).

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Este artigo contou com a leitura crítica de Bruno Tadeu Salles e Caio de Amorim Féo,
19

aos quais agradeço.


geopolítica, integração e diversidade
Ramon Llull e a Idade Média Global:
Guilherme Queiroz de Souza
Artigo

Recebido em 10/04/2023 - Aprovado em 30/08/2023


Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.371-400, jul-dez. 2023 } 400
DOI: 10.5433/1984-3356.2023v16n32p401-421

“Servidos por boas estradas


fluviais”: Os rios Araguaia
e Tocantins e os planos de
navegação na Amazônia do
Século XIX

“Served by good river roads”:


The Araguaia and Tocantins
rivers and navigation plans in
the 19th century Amazon

Francivaldo Alves Nunes1

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Resumo: Este texto propõe recuperar os principais debates


que envolveram a implantação de vias de navegação no Pará
da segunda metade do século XIX, com destaque para as
experiências vivenciadas nos rios Araguaia e Tocantins. Para isso
estamos utilizando um conjunto de documentação produzida
e Tocantins e os planos de navegação na Amazônia do Século XIX

pela administração provincial e do Império, assim como os


anais do parlamento brasileiro. A perspectiva é desenvolver
uma análise que percebe a instituição de uma navegação regular
a vapor como ação que busca promover o desenvolvimento
“Servidos por boas estradas fluviais”: Os rios Araguaia

econômico e a promoção do povoamento da Amazônia.


Palavras-chave: transporte fluvial; Amazônia; século XIX.

Abstract: This text proposes to recover the main debates that


involved the implementation of navigation routes in Pará in
the second half of the 19th century, with emphasis on the
experiences on the Araguaia and Tocantins rivers. For this we
are using a set of documentation produced by the provincial
and Imperial administration, as well as the annals of the
Francivaldo Alves Nunes

Brazilian parliament. The perspective is to develop an analysis


that perceives the institution of regular steam navigation
as an action that seeks to promote economic development
and the promotion of the settlement of the Amazon.
Keywords: river transport; Amazon; XIX century.
Artigo

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Na medida em que os produtores tivessem os meios necessários para


transportar seus produtos, estes aumentariam suas áreas de cultivo e
atrairiam novos investimentos (Brusque, 1863, p. 68).

As palavras do presidente do Pará em 1863, Francisco de Araújo Brusque,


se tornam um indicativo da atuação do governo provincial, com apoio do
Império brasileiro, quanto à construção de estradas fluviais na Amazônia
e Tocantins e os planos de navegação na Amazônia do Século XIX

como estratégia para promover o comércio, a produção agrícola, extrativista e


facilitar a ligação entre as regiões no interior. Nesse aspecto os rios Araguaia e
Tocantins se apresentam como importantes rotas fluviais.
Ao associar ideias e ações políticas para incrementar a produção e a sua
“Servidos por boas estradas fluviais”: Os rios Araguaia

comercialização, com a ampliação das vias de transportes, estas estradas


fluviais como dos rios Araguaia e Tocantins ganhavam um significado para
além de elementos de ligações entre regiões produtoras e consumidoras, ou
ainda, como apenas ações de fortalecimento do comércio interno, capaz de
estimular o crescimento econômico de uma área, já que motivaria a circulação
e a troca de mercadorias entre as regiões, províncias e os países limítrofes.
Envolve ainda a ideia de modernização dos meios de transportes e as vias de
comunicação no Brasil e que iniciou em meados do século XIX com a inserção
da ferrovia e da navegação marítima e fluvial a vapor (Natal, 1991).
Como destaca os estudos de Siméia Lopes (2002, p. 24) sobre o comércio
Francivaldo Alves Nunes

interno no Pará no século XIX, a criação de vias de transportes é resultado


da necessidade de facilitar o deslocamento da produção, assim como o
barateamento no preço dos fretes, o que aumentariam as hipóteses de lucro.
Para esta autora, a interferência do governo para subvencionar a instalação
de companhias de comércio e navegação por barcos movidos a vapor, que
dinamizaram a circulação de mercadorias para o mercado interno e para os
portos da Europa e Estados Unidos, materializam os propósitos da administração
provincial e do Império.
No caso do contexto nacional, considerando os estudos de Francisco Ferreira
Neto (1974), a insuficiência da estrutura de transporte e sua necessidade de
modernização fizeram parte dos projetos de diferentes estadistas, empresários
e engenheiros. Segundo estes planos, o país precisava resolver o problema
Artigo

de transportes para se adaptar aos novos tempos marcados pela perspectiva


da modernização e dinamicidade da circulação de mercadorias em diferentes
regiões do mundo. Subentende-se, nesse caso, pelo menos no campo da
perspectiva das autoridades governamentais, que a implantação dessas vias de

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transportes possibilitaria a instalação de uma ordem humana em um mundo


natural desorganizado. Seria, pois, o momento de valorização da capacidade
humana, frente aos aspectos naturais. É o que, em estudo sobre as mudanças
de atitude do homem em relação ao mundo natural, Keith Thomas (1988, p.
303) identifica como mudança de sensibilidade, pois, se “valorizava o trabalho
e dava novos aspectos à natureza disforme". O aprimoramento e a exploração
de regiões, portanto, não eram apenas economicamente desejáveis, mas
e Tocantins e os planos de navegação na Amazônia do Século XIX

constituíam imperativos morais. É ainda, o que Robert Lenoble (1990, p. 283)


identifica como um discurso de defesa de que a natureza não resistiria à força
do homem, reafirmando a perspectiva de uma economia racional em que o
desenvolvimento das forças produtivas estivesse associado ao progresso da
“Servidos por boas estradas fluviais”: Os rios Araguaia

ciência e das modernas técnicas.


Apontar como estes caminhos, no caso aqui as vias fluviais como o Araguaia
e o Tocantins eram importantes é associá-los a ideia de que serviriam para levar
“progresso” e “civilização” a lugares então vistos como “ermos” e “inóspitos”.
Tratava-se de transformar os rios para a instalação de sistemas de transporte
fluvial que se tornava sinônimo de desenvolvimento e progresso econômico,
passando a fazer parte do projeto de construção do Estado Nacional. Sobre a
questão, Molle, Mollinga e Wester (2009) afirmam que a transformação dos
recursos hídricos pelo Estado foi uma estratégia política emergente para
Francivaldo Alves Nunes

controlar o espaço, a água e as pessoas. Essa estratégia é identificada como


parte importante da estruturação dos Estados modernos. Com isso, reitera-se a
interpretação de Worster (1982, p. 505), para quem o controle da água deu lugar
ao surgimento de uma elite poderosa que “incluía cientistas e engenheiros que
construíram uma capacidade sofisticada de manipular o ambiente ribeirinho
natural, uma especialização que eles voluntariamente colocaram a serviço de
autoridades ainda mais poderosas”.
Os rios Araguaia e Tocantins e as intervenções para transformá-los em
vias fluviais de navegação deviam produzir, então, o desenvolvimento
das forças produtivas associadas à agricultura e extração, uma vez que os
lavradores, criadores e extratores teriam como transportar seus produtos com
maior segurança e agilidade (Rabello, 1996). Assim, carregam um conteúdo
Artigo

intrinsecamente simbólico, em grande parte, explicado pela associação


imaginária entre esses meios de transportes e a preponderância que exercem
sobre a natureza.
A reflexão anterior se sustenta na ideia de que os deslocamentos de produtos
não estavam mais dependentes das condições naturais, embora em algumas

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vias, a cheia dos rios amazônicos limitavam o transporte de mercadorias.


Somente em alguns meses do ano, por exemplo, quando do período de chuvas
e enchentes elevavam as águas nos rios, furos e igarapés se faziam ligações
fluviais entre alguns povoados (Matos, 1974, p. 49).
Ao analisarmos as políticas de transporte fluvial e a perspectiva de sua
predominância sobre a natureza, estamos nos colocando na condição de
trabalharmos nos limites entre história ambiental e a história de sistemas
e Tocantins e os planos de navegação na Amazônia do Século XIX

sociotécnicos, considerando a impossibilidade de separação entre técnica e


sociedade. O diálogo aqui proposto é próximo ao argumento de que os dois
campos podem se alimentar mutuamente, uma vez que, o entendimento da
produção do conhecimento técnico sobre a natureza deve ser percebido como
“Servidos por boas estradas fluviais”: Os rios Araguaia

processo social. Nesse aspecto, os estudos sobre os projetos de construção de


estradas fluviais, bem como sobre constituição da expertise nestes campos
de atuação, podem contribuir para um conhecimento aprofundado de como o
“meio ambiente” é percebido, construído, contestado e moldado pelos atores
sociais.
Os rios proporcionam, portanto, um campo fértil para o desenvolvimento
dessa abordagem que se preocupa em analisar as intervenções neste ambiente
fluvial, pautado por dimensões natural e humana que estão completamente
imbricadas. Nesses aspectos, os rios passam a ser entendidos não mais como
Francivaldo Alves Nunes

elemento natural, mas como resultante de um conjunto de processos que, em


parte estão moldados pela ação humana, que também podem ser observados
como independentes dessa ação, ou ainda, entrelaçados, de forma a se tornarem
inseparáveis, como bem se observa nos estudos de Stéphane Castonguay e
Matthew Evenden (2012).
Ao destacar a necessidade dos rios como vias de transportes ficavam evidentes
as preocupações e interesses da administração provincial com a implantação
desses empreendimentos pautados no comércio e na perspectiva de aumento
produtivo. Neste aspecto, este texto se propõe a recuperar os principais
debates que envolveram os projetos para a implantação de vias de navegação
no Pará da segunda metade do século XIX, tendo com espaço de observação
as experiências vivenciadas nos rios Araguaia e o Tocantins, pois, buscava
Artigo

comungar as vias fluviais. A perspectiva que se aponta para este texto é de uma
análise que percebe a instituição de uma navegação regular a vapor como ação
que busca promover o povoamento da região e o desenvolvimento do comércio.
Nesse caso, constituíram projetos que foram justificados, pois, produziriam um
impacto sobre a ocupação populacional e o consequente aumento da produção,

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na medida em que novas áreas de cultivo e extração fossem exploradas e novas


técnicas fossem conduzidas para estas regiões com o processo migratório.

Os planos de navegação e transporte fluvial

Os debates em torno da relação entre o desenvolvimento da agricultura e


a necessária criação de vias de transportes remete ao ano de 1828, quando
e Tocantins e os planos de navegação na Amazônia do Século XIX

em Belém foi formada a Sociedade Promotora da Agricultura, Colonização,


Construção de Embarcações, Comissões e Indústria Paraense. Essa Sociedade,
que deveria reunir empresários, agricultores e comerciantes, tinha entre seus
objetivos auxiliar a navegação a vapor nos rios Amazonas, Tocantins, Solimões
“Servidos por boas estradas fluviais”: Os rios Araguaia

e Arinos.
Em 1834, a Sociedade Promotora da Agricultura, Colonização, Construção de
Embarcações, Comissões e Indústria Paraense recebeu do governo imperial o
privilégio de promover a navegação nos rios do Pará e Maranhão por dez anos,
contando-se esse prazo a partir do primeiro ano em que se estabelecesse a
navegação. De acordo com Vera Medeiros (2006, p. 55), ao analisar o processo
de implantação da navegação a vapor na Amazônia, destaca que mesmo tendo
sido o anúncio de sua criação publicado na Inglaterra, com a intenção de atrair
capitais, a sociedade, até final da década de 1820, não chegara a se concretizar.
Francivaldo Alves Nunes

De fato, na segunda metade dos anos de 1830, o próprio presidente Soares de


Andréa empregaria imensos esforços para favorecer a formação de uma empresa
privada que promovesse a navegação a vapor no Grão-Pará. De acordo com os
estudos de Ângelo Bittencourt (1949, p. 7), em 1837, Soares de Andréa chega a
organizar uma companhia de Navegação que teve 35% de suas ações vendidas
em Belém, não obstante a carência de capitais na província. No ano seguinte,
a Assembléia Legislativa autorizava o presidente a destinar parte dos créditos
do tesouro provincial (até vinte contos de réis – 20:000$000), concedendo
à empresa o privilégio de navegação por vinte anos nos rios já navegáveis e
por trinta anos nos demais. Em 1840, outra iniciativa era executada pelo
parlamento do Pará, no caso, estipulava que concederia privilégio por dez anos
a quem estabelecesse, com o subsídio de quarenta contos (40:000$000) anuais,
Artigo

a navegação a vapor na província (Reis, 1938, p.17).


Neste mesmo ano, iniciaram-se os debates parlamentares a respeito de uma
proposta vinda de Belém, na qual os empresários Joaquim Antônio Pinheiro,
Nuno Nery de Carvalho e João Diogo Sturz se propunham a navegar com barcos
a vapor os rios Amazonas, Tocantins, Solimões, Negro e todos os seus afluentes,

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mediante a concessão de alguns favores por parte do governo central.2 De acordo


com Vitor Gregório (2009, p. 20), quando analisa a relação entre a navegação no
Amazonas e a formação do Estado imperial, teria sido a primeira tentativa, após
a malograda formação da companhia de vapores de Nova York exclusivamente
para o desenvolvimento desta atividade, em 1826. Esta teria enfrentado forte
oposição, não somente do parlamento, como também do governo brasileiro,
uma vez que a mencionada empresa era formada de capitais particulares e
e Tocantins e os planos de navegação na Amazônia do Século XIX

estrangeiros. Temia-se que posteriormente esta empresa, se apossasse de


parte do território nacional, em nome do país que representava. Dessa forma,
atrair capitais estrangeiros para “as margens do Amazonas” poderia colocar em
risco a soberania brasileira sobre esta região, seja devido à ameaça de perda de
“Servidos por boas estradas fluviais”: Os rios Araguaia

território para Inglaterra e França, seja por conta da campanha estadunidense


que provocava, já em meados do século XIX, temores relativos ao caráter
expansionista de suas políticas externas (Luz, 1968; Medeiros, 2006; Sampaio,
2008).
De acordo com Sabóia de Medeiros (1938, p. 38), quando analisa a navegação
no Amazonas, uma das primeiras tentativas de promover o transporte a vapor
remetia a data de 14 de março de 1826, quando o presidente da companhia dos
paquetes de Nova York, da firma Le Roy, Bayard & Company, que constituía
a companhia Amazon Steam Navigation Company, anunciava ao ministro
Francivaldo Alves Nunes

brasileiro em Washington, Silvestre Rebello, que ia despachar para o Pará o


navio a vapor Amazon. Tido como a tentativa inaugural de se navegar as águas
do rio Amazonas com o que de mais moderno dispunha a navegação, a chegada
do novo vapor gerou um episódio peculiar. Este navio, que obteve permissão
para descarregar no porto de Belém e só então navegar nas águas do Amazonas,
pretendeu seguir rio acima carregado, o que contrariava a política de fechamento
do rio. Como consequência, a companhia requereu do governo imperial uma
indenização pelos prejuízos sofridos com a empreitada, que lhe foi concedida
somente em 1845, quando a companhia já havia decretado falência.
De acordo com o relatório da Comissão da Assembléia Geral do Império
que analisou o projeto de navegação para Amazônia, “eram incalculáveis as
vantagens que receberia o país com a realização de semelhante empresa”, pois,
Artigo

“não só animará ela o comércio e a lavoura da mais fértil província do Império,


mais difundirá ao mesmo tempo, por povos ainda não incultos, o salutar
benefício da civilização”. A proposta de que o desenvolvimento da navegação
deveria estar ainda a serviço do povoamento e promoção da atividade agrícola,
se afirmaria, portanto, nas condições apresentadas para a concessão. No caso,

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a companhia responsável pela exploração dos rios receberia 10 sesmarias de


terras devolutas, de uma légua quadrada cada uma, nos locais que julgassem
mais convenientes para formar povoamentos agrícolas. Esta concessão estava
condicionada ao estabelecimento, dentro de três anos, de um número de
colonos europeus, que não fosse menor que 20 indivíduos por sesmarias. Sendo
que, no período posterior há 4 anos estas povoações das 10 léguas quadradas
deveriam estar com um número de 80 pessoas ou 20 casas, pelo menos, cada
e Tocantins e os planos de navegação na Amazônia do Século XIX

uma delas (Brasil, 1884, p. 567).


Observa-se nos debates parlamentares, certo consenso quanto às vantagens
advindas da criação de vias de comunicação no interior do país. Esta situação
não era a mesma quando se tratava da forma como deveria ser desenvolvida
“Servidos por boas estradas fluviais”: Os rios Araguaia

a navegação e outros meios de transportes, o que ficava mais evidente nos


debates entre os senadores. Não havia discordância de que a navegação regular
incentivava o comércio e populações podiam migrar para as áreas em que o
transporte fosse facilitado. No entanto, a Comissão de Comércio do Senado,
responsável em apreciar o projeto, no seu parecer, demonstrava o nível de
divergência no parlamento. A comissão entendia que nenhuma atividade poderia
ser desenvolvida sem a livre concorrência e, neste sentido, longe de auxiliar no
desenvolvimento da região amazônica, o projeto representaria um entrave a
que este objetivo fosse alcançado. A compreensão era que “a melhor forma de
Francivaldo Alves Nunes

impulsionar uma atividade vital para o país” seria “favorecer a concorrência


entre empresários interessados em realizá-la, e não conceder um privilégio de
exclusividade capaz de inviabilizar completamente qualquer disputa”, dizia o
senador por Minas Gerais, Nicolau de Campos Vergueiro (Brasil, 1841, p. 19).
O nível de interferência do Estado, conforme se observa, é o elemento
central de discussão no parlamento. Por um lado, se defendia a atuação do
governo apenas para garantir que esta concorrência se desse nos termos mais
favoráveis possíveis; o que significava oferecer vantagens e favores a todos que
se dispusessem a realizar a navegação. Por outro, havia os que defendiam que
o privilégio de monopólio e concessão de auxílio público se justificava, pois, a
companhia a ser criada, dada a natureza incerta da atividade que realizaria, não
tinha como prever com antecedência o lucro com a navegação, nem quando
Artigo

esse lucro começaria a acontecer. Esta razão também justificava a concessão


dos privilégios previstos no projeto, como uma forma de minimizar as chances
de prejuízo que os empresários teriam de enfrentar necessariamente, apontava
o senador Saturnino da Costa. O senador pelo Mato Grosso acrescentava
ainda que a navegação do Amazonas não era uma atividade tão fácil quanto

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se pensava, pois a existência de numerosas cachoeiras exigia a realização de


grandes obras de desobstrução pela companhia (Brasil, 1841, p. 80).
As vantagens obtidas com o desenvolvimento da navegação e construção de
estradas, como se observa, constituem elementos que agregam interesses no
parlamento. Na Assembléia Geral Legislativa defendia-se que quanto mais os
melhoramentos materiais do país facilitasse o transporte da produção agrícola do
interior, maior seria o desenvolvimento da lavoura. Entendia-se que a presença
e Tocantins e os planos de navegação na Amazônia do Século XIX

de estradas transitáveis e canais abertos que facilitassem a condução dos


produtos da lavoura seriam elementos fundamentais para o desenvolvimento
da colonização. Nesse caso se destacava as estradas como responsáveis pela
valorização das terras, o que atrairia novos colonos e proprietários para a
“Servidos por boas estradas fluviais”: Os rios Araguaia

região (Brasil, 1887, p. 759). Assim, como dissemos anteriormente, muito


mais que o transporte de mercadorias, as estradas deveriam ser tratadas como
ações estratégias de alargamento dos limites da produção agrícola no país,
estendendo essas áreas de cultivo para regiões ainda consideradas inóspitas e
consequentemente incultas.
A Comissão de Fazenda e Negócios da Agricultura, especialmente nomeada
pela Assembléia Geral para estudar os meios de auxiliar a lavoura nacional, em
seu parecer de 1875, destacava que “a viação é necessariamente primordial e
imprescindível” para a agricultura. No caso, adverte que a falta de um sistema
Francivaldo Alves Nunes

regular de caminhos e estradas, como apresentava a Amazônia, tornava ainda


mais difícil o cultivo, tornavam caros os produtos ou aniquilava o povoamento.
Uma região agrícola, uma cidade, um mercado, nesta perspectiva, definhava
ou prosperava conforme eram, ou não, “servidos por boas estradas fluviais”
(Brasil, 1875, p. 126).
De acordo com esta comissão, as vias de comunicação eram, pois, os mais
poderosos instrumentos do desenvolvimento da produção agrícola. Isto se
justificaria, pois, ao mesmo tempo em que tinha a capacidade de diminuir as
distâncias, facilitava a emigração e ainda retinham no campo os cultivadores.
Outra vantagem estava na capacidade de transportar novas técnicas de
produção, com a facilitação do transporte de máquinas e trabalhadores mais
aptos a lidar com a terra, permitindo com isso o maior fracionamento da terra,
Artigo

a transformação da cultura extensiva em intensiva e a aplicação de novas e


mais inteligentes fórmulas agrícolas.
Na Amazônia, estas questões envolvendo as vias fluviais, a exemplo da
facilidade na condução de produtos, desenvolvimento do comércio, ampliação
das áreas de cultivo, transporte de novas técnicas e melhoramentos das

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práticas de plantio estão presentes nos planos de construção dessas vias de


comunicação para o interior da região. No entanto, há de se observar que
tomam uma dimensão, como já registrado, para além da ligação entre áreas
produtoras e de consumo. A perspectiva de progresso e modernidade constitui
os elementos legitimadores desses empreendimentos.
Os planos governamentais na Amazônia, considerando esse contexto
de defesa da navegação e do transporte fluvial, percebem os rios Araguaia e
e Tocantins e os planos de navegação na Amazônia do Século XIX

Tocantins como estratégicos pelas vias de ligação que podiam estabelecer.


Como se observa no mapa a seguir, tratava-se de caminhos fluviais importantes
que permitiam a ligação da capital do Pará, Belém, com o interior da província,
possibilitando acesso às províncias de Goiás e Mato Grosso. Como veremos
“Servidos por boas estradas fluviais”: Os rios Araguaia

posteriormente, tratavam-se de espaços produtivos e que demandam maiores


investimentos públicos em transporte e controle das administrações provinciais
e do Império brasileiro.

Figura 1 – Mapa hidrográfico da Bacia Amazônica de 1793, com destaque para os


rios Araguaia e Tocantins
Francivaldo Alves Nunes
Artigo

Fonte: Fundação Biblioteca Nacional ([1793]).

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Araguaia e Tocantins como novos fronteiras de produção e comércio

Na região do Tocantins, ao Sudeste do Pará, o esforço estava voltado para


promover à navegação envolvendo os rios Araguaia e o Tocantins, este último
que dava nome a região que se estendia desde a foz no Amazonas, algumas
poucas léguas de Belém, até os limites com a província de Goiás e Mato Grosso.
Tratava-se da região que compreendia as comarcas de Cametá e Igarapé-Miri,
e Tocantins e os planos de navegação na Amazônia do Século XIX

no Pará. A de Cametá estava composta pelos municípios de Cametá, Mocajuba


e Baião. A comarca de Igarapé-Miri correspondia aos municípios de Igarapé-
Miri, Abaeté e Moju (Baena, 1885, p. 36-39).
Em 8 de maio de 1866 o presidente da província Couto de Magalhães em
“Servidos por boas estradas fluviais”: Os rios Araguaia

ofício ao Ministério da Agricultura destaca a importância de se criar medidas


que favorecessem as relações de comércio e navegação entre as duas províncias.
De acordo com este ofício, quaisquer que fossem os embaraços da navegação no
Tocantins, era certo que os gêneros procedentes do Pará, chegariam a Goiás por
um preço inferior aos procedentes de outros portos, incluindo os fretes que de
Belém podia chegar 30% menos que os do Rio de Janeiro (Pará, 1866, p. 4). Como
isso justificava a necessidade da administração imperial, através do Ministério
da Agricultura, de promover os estudos que viabilizasse a construção desta
via fluvial que ligasse as províncias de Goiás e Pará através de um transporte
Francivaldo Alves Nunes

regular de passageiros e cargas.


Este ofício citado anteriormente, segundo Vitor Gregório (2009, p. 321),
tinha também o fim declarado de convencer os administradores paraenses das
vantagens da navegação a vapor entre as duas províncias e de requisitar auxílio
nas medidas que tinham de ser feitas para torná-la viável. No entanto, para as
autoridades do Pará, não apenas o comércio seria facilitado com a navegação no
Tocantins e Araguaia. Para o presidente Araújo Brusque (1863, p. 68) o processo
de ocupação desta área e o desenvolvimento da economia agrícola seriam os
principais elementos de justificativa para os investimentos na navegação.
Ao que se observa, a proposta de Couto de Magalhães seria bem recebida
no Pará desde que esta se voltasse também para promover o povoamento e
ocupação agrícola das terras da região banhada pelas águas do Tocantins e
Artigo

Araguaia. Nesse sentido, se defendia que os investimentos do governo goiano


com a construção dos presídios de Santa Leopoldina, localizado na barra do
rio Vermelho, 30 léguas distante da capital da província de Goiás, o de Monte
Alegre, distante 80 léguas e de Santa Maria a 200 léguas, todos nas margens
do rio Araguaia e com o propósito de proteger e auxiliar aos passageiros e ao

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comércio, se propusesse também a finalidade de se constituir em núcleos de


povoação (Magalhães, 1864, p. 62).
Importante destacar que o desenvolvimento da navegação no Tocantins é
justificado nos planos de Couto de Magalhães, muito mais pelos lucros obtidos
com a comercialização. Tanto que aponta que

[...] os gêneros no Pará são, segundo informações que tenho,


e Tocantins e os planos de navegação na Amazônia do Século XIX

20% mais baratos do que na capital do Império, teremos que as


mercadorias importadas do Pará chegarão a esta província com
uma redução de 30% em confrontação com as que vêm do Rio de
Janeiro. Á vista disto me parece fora de dúvida que a navegação
do Pará é de grande interesse para os habitantes de Goiás
“Servidos por boas estradas fluviais”: Os rios Araguaia

(Magalhães, 1864, p. 63).

Em 1864, o Ministro da Agricultura Jesuíno Marcondes de Oliveira e Sá,


informava que a presidência de Goiás, em ofício datado de ano anterior, dava
conta ao presidente do Pará de ter enviado para a região do Araguaia o capuchinho
frei Francisco do Monte de São Vitor, o qual teria a incumbência de conduzir
para estes presídios, famílias de colonos para se dedicar ao trabalho agrícola, o
que tornava claro os planos de abertura dessas vias de navegação associados a
uma política de povoamento. No presídio de Santa Maria, o presidente mandou
Francivaldo Alves Nunes

estabelecer um armazém para os navegantes e uma engenhoca para o fabrico


de farinha, e encaminhou para aquele lugar algumas cabeças de gado vacum e
cavalar que facilitasse a permanência de colonos. Estabelecido assim este centro
e ponto de apoio, a presidência de Goiás se compromete ainda a estabelecer um
presídio entre o de Santa Maria e o de São João do Araguaia, este último, já
localizado no Pará (Sá, 1865, anexo, p. 4).
Em ofício de 16 de maio de 1863 ao Ministro da Agricultura Pedro de
Alcântara Bellegarde, o governo de Goiás destacava os esforços em promover a
navegação no Tocantins e Araguaia. Do presídio de Santa Leopoldina a capital da
província já se encontrava aberta a estrada com 30 léguas, necessitando apenas
de alguns reparos. No entanto, se entendia que para a navegação no Araguaia
ser proveitosa era necessário que no presídio de Santa Maria se estacionasse
Artigo

um vapor para transportar até Santa Leopoldina os gêneros vindos do Pará


(Belegard, 1864, anexo, p. 7). Os planos do governo era que as mercadorias
provenientes de Belém fossem transportadas pelo rio Tocantins até a sua
confluência com o Araguaia, sendo que por este rio era possível atingir Santa

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Leopoldina, quando por terra essas mercadorias chegariam à capital de Goiás.


Neste caso, as vantagens da navegação pelo Araguaia se justificavam, pois, a
subida do rio Tocantins era bastante embaraçosa devido às muitas cachoeiras
encontradas neste percurso.
O presidente Araújo Brusque, embora compreendesse a importância da
navegação, ainda não se mostrava convencido de que o Tocantins fosse um rio
que pudesse ser frequentado por vapores. Dizia que “onde passavam os botes
e Tocantins e os planos de navegação na Amazônia do Século XIX

e canoas de Goiás seria improvável passar embarcações maiores, só viáveis


mediante a remoção de algumas pedras”. Mesmo considerando este esforço de
tornar o rio mais navegável, ainda assim o Tocantins só comportaria barcos,
“não dos que navegam no Amazonas, mas desses que na Europa, e mesmo em
“Servidos por boas estradas fluviais”: Os rios Araguaia

algumas outras províncias do Império, vogam sobre riachos e canais de 4 e


5 palmos de água”. Entendia que a navegação no Tocantins, muito mais do
que favorecer o comércio, servia para promover o povoamento e expansão das
áreas de cultivo, uma vez que, a impossibilidade do transporte por grandes
embarcações além de encarecer o frete, tornava a atividade menos atrativa
para as empresas que buscassem desenvolver a navegação, exigindo com isso,
investimentos do governo na subvenção desses empreendimentos (Brusque,
1863, p. 68).
O governo do Pará compreendia, portanto, que os investimentos públicos
Francivaldo Alves Nunes

só seriam legalmente justificáveis caso fossem associados a uma política de


colonização e não apenas ao comércio e à navegação. No entanto, advertia
que o desenvolvimento da prática agrícola e do comércio na região não estava
condicionado apenas ao transporte fluvial, mas também a construção de estradas
e até ferrovias, de forma a ocupar regiões qualificadas como “desertos, apenas
habitados de selvagens”. Isso exigia, portanto, uma divisão nos investimentos
públicos neste setor e não apenas o deslocamento de recursos para a navegação,
como estava se propondo. Esta situação tornava a execução destas obras muito
mais complicada se dependesse apenas dos auxílios públicos (Brusque, 1863,
p. 68).
A observação de Araújo Brusque fazia referência à impossibilidade de
navegação em grande trecho do rio Tocantins. Embora atravessasse uma das
Artigo

mais ricas comarcas do Pará, Cametá, grande produtora de cacau, castanha e


borracha, a navegação franca se estendia apenas até o lugar chamado Arimateua,
onde começavam as pedras que obstruíam o leito do rio. Distante 22 quilômetros
da cidade de Cametá, sede da comarca, neste local eram registrados apenas a
presença de algumas cabanas aglomeradas ou pequenas povoações nos lugares

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Areão e São João do Araguaia. Este último, sede de uma colônia militar fundada
ainda em 1797 e situada entre a praia do Tição e o seco do Bacabal, à margem
direita do Tocantins. A escassa população era então justificada pela dificuldade
de se chegar a estes locais, pois inexistiam as estradas e a navegação era feita
por alguns poucos aventureiros (Baena, 1885, p. 37).
Os botes de Goiás, chamados pelos populares de canoas dos mineiros, eram
as poucas embarcações que faziam o comércio pelo Tocantins, o que poderia
e Tocantins e os planos de navegação na Amazônia do Século XIX

ser explicado pela forma de construção especialmente adaptadas às condições


hidrográficas do rio, mormente a passagem das cachoeiras. Com descida
regular de 25 botes por ano, este era ainda pouco suficiente para atender a
demanda do comércio das cidades de Cametá, da freguesia de Baião, Mocajuba
“Servidos por boas estradas fluviais”: Os rios Araguaia

e das povoações de Limoeiro, Carapajó e Pacajá, sem contar que inviabilizava o


povoamento nas regiões das cachoeiras.
De Baião a São João do Araguaia, em que parte deste trecho correspondia
aos das cachoeiras e cuja distância se valia de 50 a 60 léguas, não se encontrava
qualquer povoação regular. No espaço compreendido entre a vila de Baião e
a ilha de Santos, abaixo da cachoeira das Guaribas, conforme descrição do
secretário da província Ferreira Penna (1864, p. 38), “sempre que apareciam as
barreiras às margens do rio seriam estas coroadas de sítios e habitações, mais
ou menos vizinhas entre si”. Próximo ao igarapé dos Patos se registrava ainda
Francivaldo Alves Nunes

grande número de sítios que “quase já constituía um núcleo de população”.


Situação semelhante a anterior era observada no Mutuacá, pequeno rio, que
se ligando ao da Cachoeirinha, formava com o Tocantins a ilha de Jutahí, onde
havia grandes plantações de cacau. Nesses dois lugares bastantes altos, como
nos sítios das Barreiras, cultivavam-se mandioca, pacovas, milho, café, algodão,
tabaco e cana, tudo em quantidade bastante para o consumo dos moradores,
o que era resultado muito mais das dificuldades com o transporte do que a
infertilidade dessas terras. Pouco acima da ilha Tauá, avistava-se na margem
ocidental um grupo de apenas 4 ou 5 casas contínuas chamado Juquirapuá, e
perto da ilha de Santos, na mesma margem, havia ainda outro sítio junto do
qual se achavam estabelecidos os índios Anambés. A partir daí entrava-se numa
região totalmente sem povoações regulares, até São João do Araguaia, região
Artigo

de confluência do Tocantins com o Araguaia (Penna, 1864, p. 38), avistando-


se apenas poucos sítios e isolados engenhos, como o do Capitão João Manoel
Roiz, registrado em prospecto do século XIX. Para Ferreira Penna esta devia ser
a principal área beneficiada com a navegação e o povoamento, pois, tratava-se
de uma região própria para o cultivo do cacau e da cana.

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Figura 2 – Prospecto da casa da residência do Engenho de açúcar do capitão João


Manoel Roiz, rio Araguaia, [s.d.]
e Tocantins e os planos de navegação na Amazônia do Século XIX
“Servidos por boas estradas fluviais”: Os rios Araguaia

Fonte: Fundação Biblioteca Nacional ([18--]).

De acordo com Dalísia Doles (1972, p. 62), ao estudar as comunicações


fluviais entre o Araguaia e Tocantins, apesar das dificuldades de transportes,
o comércio com o Pará foi bastante significativo para a economia da província
de Goiás, haja vista que a balança de comércio, nas primeiras décadas do século
XIX, pendeu favoravelmente aos produtos do Norte do Império. Isto foi possível
devido às importações de sal, ferro e manufaturas, via Bahia e Pará, que saíam
por preços duas a três vezes menores do que os comercializados com o Sul,
no caso, as importações oriundas de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.
Francivaldo Alves Nunes

Para a autora é justamente esse comércio que motiva as ações dos governos
provinciais em aperfeiçoar a navegação pelos rios Araguaia e Tocantins. Sendo
que as primeiras tentativas aconteceram em 1815, com a formação da Comissão
Pereira Lago, com a finalidade de apresentar propostas para solucionar o
problema dos trechos não navegáveis. De acordo com o projeto, para transpor
as cachoeiras – um dos principais obstáculos – seria necessário construir
estradas marginais, ou seja, ferrovias e rodovias às margens dos dois rios e de
preferência nas regiões encachoeiradas (Cavalcante, 1999, p. 41).
Quando administrou a província do Pará em 1864, Couto de Magalhães não
deixava de citar em seus relatórios a importância que as vias de comunicação
poderiam trazer para a agricultura. Tratava-se de meios indiretos de favorecer
esta atividade, isto porque entendia que a posição geográfica da região contribuía
Artigo

para transformar a Amazônia na mais comercial de todas as localidades. Este


entusiasmo se justificava pela presença de imensos e férteis vales, que eram
cortados por toda parte por rios navegáveis, o que resolveria o mais difícil
problema do comércio, a locomoção (Magalhães, 1864, p. 20).

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A presença de estradas naturais, os rios e igarapés, eram apontados como


condição estratégica para que os produtos fossem exportados, e nesse aspecto,
a atividade econômica da região devia se voltar para o aproveitamento das
riquezas disponíveis nas margens desses rios. No entanto, Couto de Magalhães
não deixava de destacar que o Pará necessitava estender um braço até Goiás e
Mato Grosso através do rio Tocantins, porque havia a necessidade de se romper
o bloqueio a que estava sujeita uma população de aproximadamente 100 mil
e Tocantins e os planos de navegação na Amazônia do Século XIX

habitantes, composta de parte da província do Maranhão e todo o Norte de


Goiás. Esta população estaria na mesma condição de boa parte das povoações
do interior do Pará, ou seja, produtora, porém pobre, por que sua exportação
era menos lucrativa pela carência dos transportes e sua importação mais
“Servidos por boas estradas fluviais”: Os rios Araguaia

dispendiosa pelo mesmo motivo (Magalhães, 1864, p. 22).


Ao retomar o discurso de que a navegação no Tocantins teria o propósito de
desenvolver o comércio na região, Couto de Magalhães (1864, p. 23) justificava
o pedido a Assembléia Legislativa provincial da quantia de 12:000$000 de
réis anuais para investir na navegação, sendo que o governo imperial já havia
concedido 48:000$000 de réis para o mesmo fim. No entanto, advertia que esses
doze contos de réis deviam ser gastos conforme entendesse, não querendo
qualquer tipo de limitação. No caso, propunha o subsídio de uma companhia
com botes particulares, e ainda que se procedesse a estudos sobre os rios do
Francivaldo Alves Nunes

interior no intuito de explorar o que chamava de “coisas desconhecidas”;


expressão usada para designar produtos e algumas regiões da Amazônia.
Em 13 de abril de 1864, Couto de Magalhães apresentou aos membros da
Comissão da Praça de Comércio em Belém, o plano para navegação. Em um evento
que reunia a elite política local comunicava que em 17 de março daquele ano, “na
preamar da manhã, caia ao mar o vapor Pará”, destinado a linha de navegação
que se procurava criar nos rios Tocantins e Araguaia, o que concretizava um
projeto defendido por Magalhães. Neste plano ficava evidente a defesa de que a
navegação poderia promover o povoamento de regiões ainda pouco habitadas,
como se observou. Em seu discursos Couto de Magalhães citava a situação de
Mato Grosso que teria cerca de 200 léguas de terras banhadas pelo rio Araguaia,
só tendo ali uma insignificante povoação, a do Rio Grande que não teria qualquer
Artigo

valor comercial, pois os seus habitantes produziam apenas para o consumo


familiar. Para este presidente e em resumo ao que se discutia quanto à questão
dos transportes, afirmava de forma bastante otimista que essas 200 léguas de
“magníficos e ubérrimos campos” seriam provavelmente povoadas logo que
houvesse navegação (Magalhães, 1864, p. 22).

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Aspectos conclusivos

Não havia dúvidas que estes investimentos pautados nos planos de


desenvolvimento do transporte na Amazônia e que se observa a partir do caso
dos rios Araguaia e Tocantins, seja do governo ou de particulares, estavam
associados à importância do comércio na região e uma estratégia de expansão
de uma fronteira econômica e promoção do desenvolvimento de uma ocupação
e Tocantins e os planos de navegação na Amazônia do Século XIX

pauta pela promoção da agricultura.


A perspectiva, embora os planos não tenham sido efetivados ao longo do
século XIX, era de que o desenvolvimento do transporte fluvial expandia as áreas
produtivas, ampliando o número de engenhos, fazenda de gado e plantações
“Servidos por boas estradas fluviais”: Os rios Araguaia

de cacau. Importante atentarmos para os propósitos do governo provincial


nesta região, em que se observa, concomitante ao atendimento da demanda
de transporte, buscava dinamizar a economia local e assegurar o processo de
ocupação populacional desses espaços.
Aos planos de desenvolvimento dos transportes na região amazônica, como
no caso do Araguaia e Tocantins, guarda-se a percepção de que se mostram
como ações que se sustentam, sob o ponto de vista das possibilidades de
encurtar distâncias, ligando regiões até então separadas por obstáculos naturais
como as cachoeiras, ou facilitar o escoamento da produção, dinamizando a
Francivaldo Alves Nunes

circulação de pessoas e mercadorias. Em um primeiro momento isto parece ser


algo evidente e de aspectos em relevo. No entanto, guarda uma perspectiva de
se constituir como medidas importantes para promoção do desenvolvimento
produtivo agrícola, pois, atrairia novos investimentos para as áreas produtivas,
introduziu novas técnicas, implementos agrícolas e população, ampliando,
assim, as fronteiras produtivas.

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em virtude do Aviso circular do Ministério da Justiça de 20 de setembro de 1883,
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Notas
Universidade Federal do Pará, Campus Universitário de Ananindeua.
1

2
Na sessão de 2 de junho de 1840 era lida na Câmara dos Deputados o parecer da Comissão
de Comércio, Agricultura, Indústria e Artes acerca deste requerimento defendendo o
empreendimento (Brasil, 1884, p. 567). Na sessão de 22 de maio de 1841, nove meses
após a aprovação pela Câmara Geral, o senador por Minas Gerais, Nicolau Pereira de
Campos Vergueiro leu diante da Assembléia o parecer que a Comissão de Comércio – da
qual fazia parte – elaborou acerca do projeto, o que inaugurou a sua discussão no Senado
e Tocantins e os planos de navegação na Amazônia do Século XIX

do Império (Brasil, 1883, p. 159-160).


“Servidos por boas estradas fluviais”: Os rios Araguaia
Francivaldo Alves Nunes
Artigo

Recebido em 22/04/2023 - Aprovado em 25/10/2023


Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.401-421, jul-dez. 2023 } 421
DOI: 10.5433/1984-3356.2023v16n32p422-444

Livros escolares de autores


maranhenses no Pacotilha
(1880-1939)

School books by authors


from Maranhao in Pacotilha
(1880-1939)

Libros de texto de los autores


maranhenses en la Pacotilha
(1880-1939)

Samuel Castellanos1
Jarina Santos2

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Resumo: Analisa-se neste artigo a influência da proclamação


da República na organização e seleção de conteúdos dos livros
escolares maranhenses em usos, assim como seus autores
e as motivações. Fundamenta-se nos pressupostos teórico-
Livros escolares de autores maranhenses no Pacotilha (1880-1939)

metodológicos da história cultural para identificar as obras


escolares e sua materialidade no Pacotilha (1880-1939), os
sujeitos envolvidos segundo imposições das agências de poder
para a produção, as táticas de apropriação empreendidas
pelos autores e as concepções/posicionamentos antagónicos
sobre o conteúdo. Conclui-se que os livros escolares foram
instrumentos fundamentais para colocar em prática o
projeto republicano, tanto no combate ao analfabetismo
quanto na propagação e formação das novas gerações.
Palavras-chave: livro didático; instrução maranhense; cultura
material escolar.
Samuel Castellanos / Jarina Santos

Abstract: Analysis of the influence of the proclamation of


the republic in the organization and selection of contents of
Maranhão school books in uses, as well as their authors and
motivations. It is based on the theoretical-methodological
assumptions of cultural history to identify school works
and their materiality in Pacotilha (1880-1939), the subjects
involved according to the impositions of power agencies
for their production, appropriation tactics undertaken
by the authors and the antagonistic conceptions and
positions about content. It is concluded that school books
were fundamental instruments to put the republican
project into practice, both in the fight against illiteracy
and in the propagation and formation of new generations.
Keywords: textbook; instruction from Maranhão; school
material culture.
Artigo

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Introdução

Os livros escolares produzidos no início da Primeira República (1889-1930),


buscaram reforçar e formar as novas gerações segundo os valores e visões de
mundo, concernentes ao novo modelo que pouco a pouco deveria ser incutido
nos hábitos e costumes dos brasileiros em todas as esferas da sociedade; livros
de classe que se tornaram uma ferramenta fundamental já que ajudaram a
Livros escolares de autores maranhenses no Pacotilha (1880-1939)

colocar em prática tal objetivo via ensino. Com a transformação de regime


político, algumas questões de ordem social se alteraram e de alguma forma
interferiram na produção dessas obras, a exemplo da perda de influência
da Igreja em relação ao Estado e suas demandas, entre elas: a noção de
unidade do país e os temas relativos às questões nacionais, a reorganização
geográfica dos estados, além do combate ao analfabetismo. Desta forma, nossa
problemática se centra em analisarmos até que ponto as mudanças provocadas
pela proclamação da Primeira República influenciaram na produção de livros
escolares maranhenses?
Sendo tal produção condicionada a uma forma social de escolarização que
Samuel Castellanos / Jarina Santos

está intimamente relacionada a questões políticas, estas obras singulares


atendiam a interesses de grupos que detinham o poder de selecionar, decidir e/
ou determinar os caminhos a serem recorridos. Com o advento do novo regime,
a instrução da população, especialmente, no combate ao analfabetismo,
foi um ponto fundamental; autores que tiveram que adequar-se a essa nova
realidade que exigia métodos rápidos e eficazes de alfabetização, diminuição
dos conteúdos religiosos, estabelecimento de regras próprias para a língua
portuguesa praticada no Brasil e a valorização da geografia e história local.
Esta pesquisa de caráter histórico se baseia em fontes documentais e usa
como pressupostos teórico-metodológicos os três eixos indissociáveis da
história cultural (Nunes; Carvalho, 2005; Castellanos, 2022a, 2022b). Com
respeito à História do objeto na sua materialidade como primeiro eixo, analisa-
se o livro escolar no período selecionado a partir de quatro aspectos que o
caracterizam: a) a forma como aparecem as notícias do jornal com respeito
à produção de livros escolares, segundo críticas, elogios e denuncias; b)
Artigo

a estrutura, em que as notícias foram apresentadas em longas discussões


que explanam a organização e conteúdo de cada livro; c) a frequência das
publicações que indicam lançamentos de obras e novas edições, títulos de
destaque e disciplinas que concentram a produção; e d) o dispositivo em uso, o
próprio Pacotilha (1880-1939) que ao dar a conhecer a produção maranhense,

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nos permite perceber as nuances no contexto social, político e cultural em que


as obras foram produzidas (Castellanos, 2020; Santos, 2022).
Quanto à História das práticas nas suas diferenças - segundo eixo de análise-,
pensar de que modo os autores empreenderam suas táticas de apropriação,
ao produzirem livros de classes e coloca-los no mercado, em função das
estratégias de imposição instituídas em leis, decretos e regulamentos que
apontavam para os ideais impostos pela República que se deveriam incorporar
Livros escolares de autores maranhenses no Pacotilha (1880-1939)

nas obras escolares ou identificar os posicionamentos tomados contra ditas


obras é essencial, para questionarmos sobre o que fazem os diferentes sujeitos
com o mesmo objeto que lhes é imposto (Bourdieu, 2007); neste caso, o livro
de classes como artefato da escola que nos remete à singularidade das práticas.
Já em referência às configurações sociais/culturais instauradas entre autores,
professores, instituições de ensino e imprensa com respeito aos livros de classe,
e ao lugar que cada sujeito ocupa no tecido societal, bem como às mudanças
nas estruturas psíquicas dos indivíduos ou nas formas de pensar ditos livros
em função da própria transição de regime político e da profunda transformação
social que carrega, para além do entendimento das armaduras conceituais que
Samuel Castellanos / Jarina Santos

apontam diferentes concepções, sentencias e ações na época que transparecem


nas obras escolares e nas notícias do jornal, são imprescindíveis mobilizar e
analisar aqui via terceiro eixo da história cultural para que orientem nossas
reflexões.
Nessa lógica, o artigo se organiza em três momentos. No primeiro, tratamos os
livros escolares de autores locais no período proposto identificando as obras na
fonte e como se projetaram na instrução maranhense. No segundo, abordamos a
organização, conteúdo e estrutura dos artefatos visando os aspectos valorizados
e silenciados, como as possíveis causas. Por fim, identificamos e analisamos os
discursos sobre esta produção no Pacotilha (1880-1939), em função das críticas,
avaliações e divulgações referentes; isto é, uma reflexão sobre os livros de
classes que contribuirá com a História da educação brasileira e maranhense e
com a História local do livro escolar.

Os livros escolares de autores maranhenses na Primeira República


Artigo

A cultura material escolar, compreendida no “[...] cerne da cultura interna de


cada espaço educacional de acordo com os objetos e com as próprias práticas”
(Castellanos, 2020, p. 5) é aqui enfocada nos livros escolares, na medida em que
a escola ganha notoriedade e se institucionaliza como espaço direcionado para a

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instrução popular. Inicialmente as instituições de ensino primário funcionaram


em locais insalubres e com objetos improvisados; situação que começa a
modificar-se com a introdução da modalidade dos grupos escolares ocorrida no
final do século XIX e, no Maranhão, a partir dos ideais republicanos de ordem
e progresso que “[...] visavam, principalmente, romper com a representação
ineficaz das escolas isoladas do século XIX. Da mesma forma, [que] havia a
urgência em mudar a configuração do espaço educativo” (Silva, 2017, p. 99).
Livros escolares de autores maranhenses no Pacotilha (1880-1939)

Os jornais, por outro lado, nos dão indícios da produção dos livros escolares
e das ações tomadas para a organização do espaço escolar na temporalidade em
foco. Nesses termos, mensagens, matérias, críticas e análises sobre o conteúdo
de obras específicas de autores locais são identificadas nas páginas do Pacotilha
(1880-1939), a saber: Fragmentos para a Chorographia do Maranhão (1901/1ª
ed.), de Justo Jansen Ferreira; A língua Portugueza (1911/1ª ed.), do Dr. Felippe
Franco de Sá, com revisão de Fran Paxeco; a Nova qartilha portugueza (1918/1ª
ed.), de Odolfo Aires Medeiros e a Pátria Brasileira (1911/1ª ed.), de Coelho
Neto e Olavo Bilac. Jornal que se define noticioso, se publica aos domingos e
teve como primeiro redator Victor Lobato e Barbosa de Godois, em 1891; “[...]
Samuel Castellanos / Jarina Santos

periódico de grande expressão no cenário jornalístico maranhense, famoso


por registrar os principais acontecimentos da capital São Luís, do interior do
Estado e do mundo.” (Castellanos, Cabral, Castro, 2019, p. 3), mesmo que “[...]
não [tivesse] programa, nem artigo de fundo – [;] a imprensa a retalho, miúda,
sortida, variada (Pacotilha, 1880, p. 1).
No campo da geografia desde o Império, queixas recorrentes sobre obras
escolares específicas destes saberes no Maranhão, que contemplassem o
território local e nacional, fez com que alguns autores se empenhassem em
suprir a demanda3, a exemplo de Antonio Rego, que publica Rudimentos de
Geografia (1863/1ª ed.) na metade do Oitocentos. Com a chegada da República,
esta situação ainda não havia sido sanada e a carência por este tipo de publicação
persistia, pois em 1901, quando alguns trabalhos já haviam sido lançados e
consolidados, salientava-se que sobre a própria ilha de São Luís, em diversos
aspectos permanecia desconhecida; portanto, se era necessário continuar a
empreender estudos sobre as questões nacionais (Pacotilha, 1901), as questões
Artigo

locais e regionais eram indeléveis. Neste sentido “a inserção de temas nacionais


nos livros escolares, assim como foi na Europa, aconteceu também no Brasil
a partir da Primeira República. Na verdade, houve a adaptação do modelo
europeu para o Brasil” (Silva, 2010, p. 24). Em contraposição a esta concepção,
Castellanos (2017, p. 91) afirma que:

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[...] se na primeira metade do Oitocentos a literatura estrangeira


prevaleceu, coabitante gradativamente com os textos pátrios e
os locais que instituíam aos poucos o sentido de ser brasileiro e
maranhense, posteriormente, mesmo que os livros estrangeiros
pudessem servir de modelos à produção brasileira e regional, esta
foi assumindo seus contornos específicos, expus sua singularidade
e sua diversidade e, por conseguinte, deixou de ser uma “produção
Livros escolares de autores maranhenses no Pacotilha (1880-1939)

modelada” para se concretizar num produto nacional e local.

O livro escolar, como primo pobre da literatura ou produção de pouco


prestígio cultural por ser considerado uma obra menor, embora de ascendência
nobre (Batista; Galvão, 2009; Bittencourt, 2008; Corrêa, 2006; Lajolo;
Zilberman, 1996), não aparece nas biografias nem era muito referenciado na
primeira metade do Oitocentos; mas, a partir do gradual crescimento das vagas
no ensino público, com o projeto brasileiro de nacionalização e depois da
criação da Inspetoria Geral da Instrução Pública no Maranhão em 1841, o livro
de classes aos poucos se transforma na carne da produção livresca (Bittencourt,
2008) e toma lugar de destaque no mercado escolar, aumentando sua produção,
Samuel Castellanos / Jarina Santos

circulação e uso. Ditas estratégias mercadológicas podem explicar “[...] em


parte, porque autores eruditos, em número significativo, utilizaram a literatura
escolar para divulgar os [seus] trabalhos [...]” (Bittencourt, 2008, p. 83); dinâmica
que auxilia a compreender a prevalência de livros de classes estrangeiros que
servem de modelos e coabitam gradualmente com textos pátrios e locais até a
década de 1860, quando o abrasileiramento posterior e crescente fez com que
a produto nacional e local assumisse seus contornos específicos, expusesse sua
singularidade e mostrasse sua diversidade (Castellanos; Castro; Souza, 2023).
Nessa lógica, visando contribuir com o movimento de fortalecer e aprofundar
sobre a história e a geografia local, Justo Jansen Ferreira lança um dos mais
notáveis livros intitulado Fragmentos para a Chorographia do Maranhão
(1901/1ª ed.)4, no intuito de renovar os estudos geográficos, especialmente,
na perspectiva dos livros franceses. Embora bem avaliado, não há informações
sobre sua aprovação ou adoção no ensino, a não ser numa única matéria em que
se destaca o esforço empreendido pelo autor na confecção da obra, precisamente
Artigo

pelas dificuldades já sinalizadas por autores locais5: a insuficiência de dados


na documentação oficial, a exigência de adaptação dos textos e, mesmo, as
insuficientes atualizações dos conteúdos em função de reformas de toda
ordem; mesmo que com este livro “essa difficuldade com que lutavão os

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estudantes maranhenses para o conhecimento geographico da sua terra natal


desaparecesse em que se achão elucidados muitos pontos até então obscuros e
corrigidos differentes erros” (Pacotilha, 1901, p. 3).
Neste sentido, alguns autores conseguiram reunir informações sobre fatos,
feitos e ditos da história do Brasil nem sempre acessíveis a todos6, pela não
regularidade dos registros na documentação oficial que apontam para as
mudanças ocorridas no país, seja na formação de cidades e instituições, seja
Livros escolares de autores maranhenses no Pacotilha (1880-1939)

também por novos acontecimentos e a nova demografia, entre outros aspectos


oriundos em certo ponto do passado recente da história do país. Esta situação
implicou na precariedade dos trabalhos anteriores, segundo Ferreira (1901)
quando afirma que no Maranhão foram publicados alguns importantes trabalhos
sobre geografia; mas encontravam-se desatualizados, com erros nos dados em
boa parte deles, sem contemplar mapas e não atendiam a todas as necessidades
do ensino em função do conhecimento do território local e nacional.
A primeira obra tratada, que considera proveitosa, foi o Dicionário Histórico
Geográfico da Província do Maranhão (1870), do Dr. Cesar Augusto Marques;
no entanto, ressalta a necessidade urgente de nova edição, embora não se
Samuel Castellanos / Jarina Santos

configurasse como um compendio elementar. Sobre o Opusculo do Estado do


Maranhão (1892/1ª ed.), do Dr. Augusto Olympio de Castro, Ferreira (1901)
afirma que o material estava desatualizado, bem como não era apropriado ao
ensino primário. O jornal quando trata da recomendação do Fragmentos para a
Chorographia do Maranhão (1901/1ª ed.), de Justo Jansen Ferreira, argumenta
que supriria “[...] a falta de há muito sentida no ensino entre nós, de uma obra
que tratasse com largueza da chorographia do nosso Estado” (Pacotilha, 1901,
p. 3).
A língua Portugueza (1911/1ª ed.) escrita pelo Dr. Felippe Franco de Sá7 foi
elaborada depois de seu autor se afastar da vida pública nos cargos de senador
e ministro, quando se dedicava aos estudos que resultariam nesse livro; obra
publicada parcialmente e inconclusa, já que infelizmente adoecera sem antes
conclui-la. Nesse contexto, “o governo do [M]aranhão, conciso do valor daquele
trabalho linguístico, e com aprovação do congresso estadual, encarregou
pessoa competente de copiar e rever o manuscrito, dirigindo[-o] a publicação”
Artigo

(Pacotilha, 1915, p. 4). Para tal função designam a Fran Paxeco, publicando-se
em 1915, sua segunda edição em versão completa.
De acordo com Camara Junior (1968), o surgimento de estudos sobre a fonética
no Brasil seguiu o exemplo dos trabalhos empreendidos pelos portugueses.
Neste cenário, A língua Portugueza (1911/1ª ed.), de Felippe Franco de Sá,

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representa um marco na produção destes artefatos escolares, já que inaugura


o estudo da fonética em nível nacional, na medida em que busca de maneira
independente, fixar a pronúncia normal brasileira, fundamentando suas bases
teóricas em Gonçalves Viana, o responsável pelo desenvolvimento dos estudos
fonéticos em Portugal. Destarte, a contribuição de Franco de Sá se deu segundo
dois aspectos
Livros escolares de autores maranhenses no Pacotilha (1880-1939)

Traçou um quadro do vocalismo brasileiro, que firmou doutrina e cuja


influência se prolongou até hoje, e se esforçou por firmar o tipo acentual
das múltiplas palavras eruditas em que há variação livre na seleção da
sílaba tônica, orientando-se tanto pelo uso como por considerações de
ordem histórica, referentes ao étimo próximo (Camara Júnior, 1968, p.
36).

Se autores como Franco de Sá buscam a normatização da língua nacional e


inspiram-se em clássicos europeus; por outro lado, há aqueles que pretenderam
uma renovação, se distanciando em certa medida deste legado. Assim surge um
problema sobre a língua portuguesa do Brasil no que diz respeito à adaptação
Samuel Castellanos / Jarina Santos

do idioma, uma vez que originalmente provém de “[...] uma sociedade europeia
ètnicamente fechada [...] a um nôvo ambiente geográfico e social, ètnicamente
aberto, a que aquela cultura teve de se adaptar por sua vez, pouco a pouco,
para resistir e continuar” (Camara Junior, 1968, p. 25). Neste ponto, aqueles
que se opunham a uma norma rígida equivalente à portuguesa, postulada
pelos cânones clássicos e desconsideraram as especificidades nacionais, “ora
invoca[m] a necessidade de uma língua própria para o habitai-físico e social
brasileiro, ora nos fala[m] de um apuramento da língua cotidiana!” (Camara
Junior, 1968, p. 25).
A tendência de identificação brasileira com a portuguesa prevaleceu até o
início do século XX, pois “não era possível a obediência estrita a cânones de
que resultavam, em última análise, o artificialismo, a incongruência e até, às
vezes, contraproducente excentricidade” (Camara Junior, 1968, p. 26). A partir
de então foi-se endossando a resistência a tal obediência irrestrita e os autores
pouco a pouco passam a sugerir novas proposições para o português praticado
Artigo

no Brasil. Neste sentido, intelectuais de destaque se opunham à adoção do


português tal como herdado pelos colonizadores, a exemplo de Jose de Alencar
e Antônio Joaquim de Macedo Soares que chegaram a publicar o Dicionário
Brasileiro da Língua Portuguesa (1889/1ª ed.), que continha “palavras e phrases

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que, originarias do brazil, ou aqui populares, se não encontrão nos diccionarios


da língua portuguezá, ou nelles vêm com forma ou significação diferente”
(Soares, 1889, p. 7), defendendo-se no prologo da obra, que “já [era] tempo
dos brasileiros escreverem como se fala no Brasil e não como se escreve em
Portugal” (Soares, 1889, p. 9).
É precisamente nessa lógica que se pública A Nova qartilha porugueza (1918/1ª
ed.), de Odolfo Aires Medeiros, na qual se opta por algumas inovações, entre
Livros escolares de autores maranhenses no Pacotilha (1880-1939)

elas: “[...] baniu do abecedário [...] os intrusos – k, w, y, que nunca foram letras
da nossa língua” (Pacotilha, 1918, p. 2). Proposta que o jornal defende, quando
concorda com a retirada destas letras do alfabeto, já que o considera como um
livro necessário que desafia os padrões e vai na contramão do estabelecido nas
regras até então impostas, pois

São velhas as tentativas em prol da ortografia sónica, tanto no


país onde se criou o nosso idioma quanto no Brazil. Mas as que
conhecemos, e são poucas, conteem-se nuns certos limites, para
não escandalizar muito os pirrônicos. O processo do sr. Medeiros
Samuel Castellanos / Jarina Santos

é em demasia revolucionário, atentando contra habito seculares.


Há bastante lógica nas regras que o sr. Odolfo Medeiros concatena.
Mas o mundo é um produto mojico, desde os seus fundamentos.
Contentemo-no, por isso, com o que nos for possível obter, dentro
das normas pacatas do meio termo. E não será mau (Pacotilha,
1918, p. 2).

Pátria Brasileira (1911/1ª ed.), de Coelho Neto8 e Olavo Bilac9, - ex-alunos


da faculdade de direito, embora não concluída -, trata sobre a história do Brasil
desde a chegada dos portugueses. A sua 23ª edição foi publicada em 1930 e fez
parte de um conjunto de livros e demais textos sobre a temática, produzidos
por um grupo de intelectuais (em coautorias ou individualmente), onde a maior
parte dos títulos eram compostos por expressões que remetem ao território
nacional e ao amor ao país, todos direcionados à educação moral e cívica das
crianças na Primeira República, pois “além da função de comprometerem-se
com a nação, os livros carrega[va]m outra missão: divulgar e criar os símbolos e
Artigo

metáforas da nova imagem do Brasil em desenvolvimento” (Silva, 2010, p. 43).


Livros que apresentam uma série de situações que estavam postas no
período e apontam para os posicionamentos dos autores. Formação do alunado
que é tensionada entre dois opostos: uns que consideram a tradição e herança

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portuguesa como ideais e valores que se pretendem preservar; outros voltados


para a construção de um novo país valorizando os hábitos e costumes locais.
Essas significativas diferenças, se revelavam nos livros escolares neste momento
de mudança da ordem social e política, o que demonstra tanto a resistência de
alguns grupos sociais contrários a dita transição, quanto as ações de apoiadores
que pretendem modificar tal situação (Santos 2018, 2022).
Livros escolares de autores maranhenses no Pacotilha (1880-1939)

Livros escolares: organização, conteúdo e estrutura

Ao consultarmos os exemplares identificados no jornal, percebermos que


apresentam um conjunto de elementos que em tese conduziriam ao leitor para
um sentido determinado pelo qual os produtores pretendiam guiar a leitura;
portanto, as notas, as introduções e os prólogos, entre outros paratextos10,
indicam o caminho para a interpretação dos escritos. Fragmentos de Chorographia
do Maranhão (1901/1ª ed.), de J. J. Ferreira, é o livro que apresenta a maior
introdução, na qual se esclarecem alguns pontos, tais como: as produções de
obras locais, as divergências conceituais e os autores nos quais se inspirou. O
Samuel Castellanos / Jarina Santos

primeiro ponto, diz respeito à vontade pessoal de Ferreira de escrever um livro


nesta área, visto que lidava em seu cotidiano como professor de geografia no
Liceu Maranhense com a carência de textos que estivessem de acordo com os
princípios modernos da Pedagogia. Sua inspiração consistia em elaborar um
compendio didático, modelado de acordo com o método de Motzat, um educador
alemão, seguindo os princípios de Levasseur11, um dos precursores da escola
francesa de geografia, que tinha como um dos objetivos centrais, construir
e direcionar a análise geográfica para o campo da economia e da cultura em
detrimento do foco na dimensão política. Desta forma, “no discurso geográfico
francês, o tema da apropriação do espaço passou a ser equacionado na ótica da
relação entre os grupos humanos e o meio e pelo estudo dos “gêneros de vida”
(Moraes, 2015, p. 11).
Outra questão, refere-se ao levantamento que realiza sobre as importantes
produções no campo da geografia local, citando autores e títulos, a qualidade
das obras e os avanços de cada uma delas, bem como as deficiências, erros e
Artigo

os assuntos que deixaram de abordar. Um dos principais pontos de discussão


está relacionado aos mapas expostos e aos respectivos erros que reproduziam.
Neste sentido, esclarece “que em um mappa ou livros haja erros, tolera-se, mas
vê-los reproduzidos em livros ou mapas posteriores, é em grande prejuízo para
o ensino” (Ferreira, 1901, p. 7). Portanto, seu objetivo não era preencher a falta

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de mapas, visto que tal tarefa exigiria a correção dos já existentes e com isso
justifica, o porquê apesar de considerá-los essenciais no ensino da disciplina,
não os insere em seu livro. Segundo o autor, um dos melhores mapas são os
do senhor Candido Mendes publicado em Atlas do Imperio do Brasil (1868/1ª
ed.), configurando-se como um magnifico e precioso trabalho; mas salienta que
não concorda exatamente com o mapa do Maranhão, pois “não haveria algum
engano por ocasião da impressão dos algarismos?” (Ferreira, 1901, p. 8)
Livros escolares de autores maranhenses no Pacotilha (1880-1939)

Sobre os erros e divergências encontrados nos livros, no que se refere à


representação geográfica, como também aos conceitos e estatísticas, J. J.
Ferreira (1901) é categórico ao afirmar que o mais importante seria resolvê-los
a fim de que se produzisse um conhecimento exato da extensão territorial do
Estado do Maranhão, destacando recorrentemente a sua preocupação com as
informações precisas e com a correção dos trabalhos, quando se empenha em
buscar o máximo de dados que pudessem contribuir. Um trabalho que reunisse
um contingente significativo de elementos que subsidiassem a publicação de
novas obras a partir da sua pesquisa, além de auxiliar os alunos que iniciavam
no estudo da chorographia, as suas cidades, vilas e povoações; dados que não se
Samuel Castellanos / Jarina Santos

achariam reunidos em compêndio nenhum nem disponibilizados ao estudante


maranhense (Ferreira, 1901).
Para a produção de Fragmentos de Chorographia do Maranhão (1901/1ª
ed.), ao levantar dados estatísticos sobre o Estado, especialmente, seu
território e população, o autor procurou reunir recortes dispersos que obteve
a partir das fontes consultadas, sustentando-as na leitura de bons livros, nos
conhecimentos adquiridos e nas informações de pessoas fidedignas (Ferreira,
1901). Destarte, coloca sua publicação a disposição dos “entendidos” visando
alcançar o perfeito conhecimento sobre o Estado, bem como convida aos
leitores e a quem lhe interesse em contribuir com seu estudo sobre a geografia
local, a fornecer informações sobre a localidade em que reside, a fim de corrigir
possíveis falhas, omissões e ampliar o saber referente. Acena aos leitores para
uma colaboração, sinalizando possível reedição, corrigida e ampliada a partir
da interação proposta.
Fragmentos de Chorographia do Maranhão (1901/1ª ed.), inicia por aspectos
Artigo

mais gerais sobre o Estado, apontando o litoral, a superfície e a população.


Detalha a configuração e os limites, a latitude e a longitude, discorrendo
posteriormente sobre a ilha de São Luís: igrejas, praças e ruas; escolas,
tipografias e jornais em circulação; habitantes e intelectuais; cidades e as vilas
de cada uma destas localidades, apresentando questões como população e rios,

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e descreve o solo e a agricultura, entre outros pontos. Enfim a forma como o


autor produz seu texto está de acordo com o postulado de Levasseur, que se
registra numa das passagens escolhidas para estampar a epígrafe da obra: na
geografia, é importante que se fixe na memória coisas como os nomes próprios;
mas que é também necessário dar-lhes uma alma, sendo só possível por meio
dos comentários sensíveis dos autores.
Outro livro que apresenta uma longa introdução é A língua Portugueza (1911/1ª
Livros escolares de autores maranhenses no Pacotilha (1880-1939)

ed.), de Felippe Franco de Sá, iniciando-se com as questões que envolveram


sua produção. Primeiramente, apresenta sua carreira pública e enfatiza sua
dedicação aos estudos na área, mencionando-se a doença que lhe impediu
concluí-la: a primeira parte foi publicada e dedicada à ortofonia (pronúncia
rigorosa) e, a segunda, à orthologia (linguagem correta) (Sá, 1911); já o segundo
volume no foi a público em virtude do falecimento do autor. Não entanto, Fran
Paxeco (1915), enfrentou algumas dificuldades na interpretação do conteúdo
elaborado por Sá na revisão, fazendo alguns acréscimos que transformaram o
volume em 200 páginas. O livro dividido em três títulos, dedicado aos sons
e ditongos (subdividido em seis capítulos), aos acentos (quatro capítulos) e à
Samuel Castellanos / Jarina Santos

euphonia, (um capítulo), apresenta discrepâncias e pontos em comum com as


concepções de autores portugueses.
Candido de Figueredo12 (1911), ao fazer uma análise da obra de Sá (1911)
no Jornal do Comercio (1910-1919) do Rio de Janeiro, que posteriormente
se tornaria parte do prefácio, disserta sobre a sua importância para a língua
portuguesa.13 Nesta crítica, discute “quais sejam os ditongos portugueses” no
capítulo I, esclarecendo divergências entre autores portugueses, nacionais e
locais. Nessa lógica, apresenta incoerências: se para João de Barros existem sete
ditongos, para Constancio há trinta e cinco; por outro lado, se o próprio Candido
de Figueiredo admite oito, Goncalves Viana enumera doze. Contudo, se Franco
de Sá (1911) em A língua Portugueza (1911/1ª ed) estabelece sete (Figueiredo,
1915), demonstrando-se aqui a falta de consenso; Figueredo (1915), no Jornal
do Comercio (1910-1919), não só afirma que “é incontestável a erudição e,
geralmente, o critério do linguista maranhense; [como também] pede a justiça
que se pondere sêr, essa erudição, superior, algumas vezes, à clareza do que
Artigo

ele expõe” (Figueiredo, 1915, p. 5), já que elenca a falta de clareza do autor
maranhense em alguns trechos, ao sinalizar erros e discordâncias conceituais
referentes aos acentos, ditongos e tritongos, os quais esclarece e apresenta
visões de autores clássicos sobre estas questões, que por vezes coincidem com
o exposto por Franco de Sá (1911) e às vezes com o próprio Figueiredo.

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Por sua vez, A Nova qartilha portugueza (1918/1ª ed.), de Odolfo Aires Medeiros,
é um volume simples de apenas 31 páginas que não apresenta paratextos; no
entanto, ainda que não se explique a proposta por traz da obra, não deixa de
ser profunda, pois endossa a ideia de uma língua brasileira defendida por vários
intelectuais no período. As 16 lições, devidamente acompanhadas por exercícios,
apresentam o novo alfabeto, que transita desde as vogais (na primeira) até as
sílabas e os exercícios correspondentes com a formação de palavras (na quinta),
Livros escolares de autores maranhenses no Pacotilha (1880-1939)

finalizando com os sinais de pontuação usados na escrita, os algarismos com


seus respectivos nomes escritos por extenso, os nomes próprios de lugares e
pessoas, e uma seção de frases e pensamentos com alguns trechos sobre Deus,
livros, fé, religião e de como deveria ser um bom homem.
A pátria brasileira (21ª ed./1930) de Olavo Bilac e Coelho Neto foi a versão
que tivemos acesso em formato digital. É dedicado à educação moral e cívica
para alunos das escolas primárias. Seus 74 capítulos de duas páginas cada
(aproximadamente) não apresentam paratextos, iniciando-se com o contexto
europeu no último quartel do século XV, trata das navegações que resultaram
na descoberta da América, do descobrimento do Brasil, dos índios, as guerras e
Samuel Castellanos / Jarina Santos

as respectivas personalidades presentes neste momento histórico, fazendo-se


referência também à ação da Igreja Católica e das capitanias hereditárias, aos
primeiros colonos, aos navios negreiros e de como os negros foram tratados,
ao igual que os bandeirantes, a inconfidência e os monarcas D. João e D. Pedro
I e II, além de datas importantes: o 7 de setembro, o 13 de maio e o 15 de
novembro; volume que foi organizado cronologicamente até a proclamação da
República.
Todavia, até aqui, nos detemos sobre a produção das obras em análise, os
autores e as possíveis motivações e inspirações das escritas; mas, também
se faz necessário entender os discursos vinculados a elas, sejam críticas ou
de propagação, sejam de fundamentos que as justifiquem. Neste ponto as
mensagens divulgadas no Pacotilha (1880-1939) nos ajudam a entender o
enredo construído em torno dos livros escolares maranhenses no novo regime.

Os discursos sobre a produção maranhense na Primeira República


Artigo

Desde o Império até a Primeira República o livro escolar sempre foi um


guia para a prática pedagógica do professor com maior ou menor ênfase,
dependendo das prescrições, dos programas de ensino, da própria concepção
das obras e da formação professor; quanto aos alunos, este artefato da cultura

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material escolar se foi constituindo aos poucos numa ferramenta que deveria
regular e facilitar as aprendizagens. Se nas primeiras décadas do Império foi
insubstituível para o fazer do professor sem formação, cumprindo a função de
modelagem da prática; mudanças na subdivisão de conteúdo, nos estilos da
escrita e no teor o transformaram num instrumento de controle da ação e dos
comportamentos das crianças na escola (Teixeira, 2008), mesmo que seu uso e
conteúdos se modificassem segundo os modelos e modalidades de escolas que
Livros escolares de autores maranhenses no Pacotilha (1880-1939)

coabitaram, como também dos métodos de ensino utilizados.


Os modelos de escola segundo o método de ensino usado marcaram a
transformação nas relações, na estrutura e no funcionamento das instituições.
As diferenças entre métodos, seja individual e/ou mútuo (ambos adotados
durante boa parte do Oitocentos), seja misto e/ou simultâneo usados mais
tarde, trouxeram diferenças na gramática do ensino e da escola. No entanto,
embora esses métodos coabitassem dependo da diversidade de modelos de
escolas, para que o método simultâneo se estabelece como mudança de hábitos
escolares e permitisse a autonomização da relação pedagógica, teve “[...] que
esperar a construção de espaços [escolares] próprios [...], que ocorre[u] no
Samuel Castellanos / Jarina Santos

Brasil apenas nas últimas décadas do século XIX” (Faria Filho, 2007, p. 142),
até concretizar-se o método intuitivo via Lições de coisas pela influência da
psicologia, no campo da pedagogia como laboratório e areia experimental.
O jornal não expressa para quais modelos e modalidades de escolas os
livros se direcionavam. Sem embargo, com a propagação do modelo de escola
graduada que se caracteriza por classificar os alunos em grupos homogêneos
segundo a idade e o nível de maturidade, por um currículo dividido por graus e
a divisão/hierarquização do trabalho docente em que cada sala de aula passou a
ter um professor responsável supervisionado por um diretor (Faria Filho, 2007),
acreditamos que boa parte das obras foram adotadas nestes estabelecimentos
de ensino. Grupos escolares que como principal modalidade do modelo de
escola graduada, representaram o projeto educativo pensado para a República e
foram os primeiros prédios escolares construídos pelo Estado, que mobilizavam
conjunto de saberes, projetos políticos educativos e o modelo definitivo
de educação (Faria Filho, 2007). Para além de outras modalidades de escola
Artigo

graduada como modelo de escola, a exemplo das Escolas Modelos anexadas


às Escolas Normais e as Escolas reunidas (Souza, 2013), acreditamos que as
obras foram adotadas principalmente para os Grupos Escolares no intuito de
modificar-se a forma como até então a instrução era praticada.
Nesse bojo surgem A Pátria Brasileira (1911/1ª ed.), de Coelho Neto e

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Olavo Bilac, que aborda aspectos sobre a história do Brasil, Fragmentos para a
Chorographia do Maranhão (1901/1ª ed.), de Justo Jansen Ferreira, que ressalta
a geografia do Estado, a Nova qartilha portugueza (1918/1ª ed.), de Odolfo
Aires Medeiros, com a proposições inovadoras sobre o português praticado no
Brasil e A língua Portugueza (1911/ 1ª ed.), de Felippe Franco de Sá, visando a
normatização da língua nacional em oposição à postura de autores portugueses.
Canal de divulgação para autores renomados que transformaram seus estilos,
Livros escolares de autores maranhenses no Pacotilha (1880-1939)

conceberam novas formas de interagir com um público específico e galgaram


reconhecimento nos espaços locais de ensino e na imprensa local (Costa, 2013;
Soares, 2017; Castellanos, 2017, 2020; 2022c), o que justifica a temporalidade
das fontes garimpadas, em função do cômputo de registros de livros de classes
no Império e na Primeira República.
Pátria Brasileira (1911/1ª ed.), de Coelho Neto e Olavo Bilac, foi alvo de críticas
e discordâncias em uma extensa matéria da Pacotilha (1911), redigida por Fran
Paxeco, sobre o ponto de vista adotado pelos autores, especialmente, no que
se refere, ao descobrimento do país. O jornalista inicia seu julgamento pelo
uso do estilo “[...] floreado, [que] as inteligências das escolas primarias luta[va]
Samuel Castellanos / Jarina Santos

m com embaraços para o entender. Vizou-se mais a forma do que o intuito


didático [...]. Nota[ndo]-se lhes, descaídas imperdoáveis. O cancan ortográfico
mant[iv]e-se, como nos demais [livros]” (Pacotilha, 1911, p. 1). Fran Paxeco, ao
defender que a língua fosse preservada como a herdamos dos colonizadores,
condena veementemente a obra e sinaliza na matéria, cada passagem do livro
que discorda da grafia, além de criticar a linguagem estipulada em função do
público: crianças em idade escolar; ponto fundamental sempre salientado
como essencial para a qualidade do material. Sobre o conteúdo Paxeco ao
redigir matéria publicada no jornal defende que:

Podia-se também ser mais verdadeiro, não ideando que Cabral


encontrou em Veracruz, enjenhos e turbinas. Podia-se ainda ser
exato, não asseverando que o arrojado nauta chegou, por acaso,
ao Brazil, nem avançar que, durante muito tempo, só vieram no
Brazil degradados e criminosos. São duas falsidades clamorozas,
as ultimas, repudiadas pelo testemunho dos arquivos (Pacotilha,
Artigo

1911, p. 1).

Acreditamos que por sua origem portuguesa, Fran Paxeco possui uma visão
colonizadora e critica veementemente a produção de Coelho Neto e Olavo

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Bilac; atribuir o descobrimento do Brasil ao acaso, seria desapossar ou reduzir


fato tão importante à história de Portugal e de igual maneira deslegitimar-lhes
ação no processo de conquista de novo território. A perspectiva dos colonizados
explorada pelos autores, se posiciona na contramão da interferência portuguesa
e da chegada em solo pátrio, da exploração dos recursos naturais, dos nativos
e a escravidão:
Livros escolares de autores maranhenses no Pacotilha (1880-1939)

[...] colonisadores [..] eram donos também dos homens primitivos


[...] como sempre a terra tinha que progredir à custa das lágrimas
dos seus filhos. Amarrados e domados, sem compreender a
violência de que eram victimas, os índios reduzidos à escravidão,
eram amarrados à força das brenhas que os tinha visto nascer
(Coelho Neto; Bilac, 1911, p. 59).

[...] veio dos mares da África cheio de gente negra...O porão esta
entulhado: homens, mulheres, creanças, os pulsos carregados de
ferro, os olhos inundados de lágrimas...vem da África, arrematados
pelo traficante, valem como a especiaria, como gado, são cousa
Samuel Castellanos / Jarina Santos

venal como lenha da terra, como o coral das aguas. Negam-lhes


sentimento, negam-lhes sensibilidade, roubam-lhes os filhos,
laceram-lhes as carnes (Coelho Neto; Bilac, 1911, p. 74).

Coelho Neto e Olavo Bilac faziam parte de um grupo de intelectuais que


no início do novo regime se empenharam em construir a história da nação
republicana em substituição da imperial e reforçar o novo momento político e
social vivido no país. Eles embasaram-se nos conceitos do movimento ufanista,
pautando sua interpretação em elementos que reforçassem o otimismo e na
triangulação das três raças: português, índio e africano que formariam o homem
cordial brasileiro, reforçando-se assim as qualidades naturais do território
nacional (Oliveira, 1990).
Essas armaduras conceituais - aspecto do terceiro eixo da História Cultura a
ser analisado -, também se refletiam nos livros escolares, pois para escrevê-los,
assumem posições favoráveis à República ou ao Império, adeptos ao português
tradicional ou à proposição de uma nova língua neste complexo momento
Artigo

de mudanças nas estruturas psíquicas ou nas formas de se pensar dito livro


de classe na instrução no Brasil; enredo em que seria necessário valorizar a
cultura nacional acima de tudo para superar-se o legado herdado. Portanto,
as críticas à Nova qartilha portugueza (1918/1ª ed.), de Odolfo de Medeiros e à

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Pátria Brasileira (1911/1ª ed.), de Coelho Neto e Olavo Bilac, tem como pano de
fundo, disputas ideológicas entre aqueles que lutavam e propunham ideias de
renovação com o advento da República e os que buscavam conservar a tradição.
Em se tratando dos livros de história, era necessário que abordassem as
questões nacionais e locais. Os livros de alguns autores neste novo período
pretendiam não só ampliar a perspectiva reescrevendo-se a história do Brasil,
como também buscavam expor para além da contribuição portuguesa, a
Livros escolares de autores maranhenses no Pacotilha (1880-1939)

indígena e a africana.

No início da República assiste-se exatamente a este processo,


atestado pelos livros didáticos voltados para a socialização das
novas gerações. Construir-se uma nova história republicana
para substituir a imperial. Esta nova história da nação, porém,
teve que dialogar com a outra, não mais defensora do regime
monárquico, mas organizada sobre valores naturais e de longa
duração como a terra e o caráter do ser humano que habita. Esta
corrente chamada de “ufanismo” está ligada menos a eventos de
figuras do mundo da política do que elementos componentes do
Samuel Castellanos / Jarina Santos

mundo da cultura. Sua interpretação da história da nação está


recheada de elementos que reforçam o otimismo, o que a fez ter
maior aceitação (Oliveira, 1990, p. 3).

Como se percebe, esta mudança de horizontes provocou certa discordância


entre alguns autores que compreendiam de formas diferentes o período
colonial e Imperial. É justamente neste ponto que diverge Fran Paxeco, de
Coelho Neto e Olavo Bilac com respeito a Pátria Brasileira (1911/1ª ed.). Em
relação às produções sobre a língua portuguesa, esses antagonismos também
se apresentam n’A língua Portugueza (1911/1ª ed.), de Felippe Franco de Sá, que
embora buscasse um lugar de independência e tenha sido pioneiro nos estudos
sobre a pronúncia, esteve mais próximo dos postulados de autores clássicos
portugueses; não por acaso o governo maranhense escolhera um autor de tal
nacionalidade para dar-lhe continuidade à revisão da obra. Em contrapartida, A
Nova qartilha porugueza (1918/1ª ed.), de Odolfo Aires Medeiros, é um exemplo,
Artigo

em que o autor propõe, ainda que timidamente, mudanças sobre os estudos e


regras que regem a língua, no sentido de considerar as características do idioma
como era praticado no Brasil.
Diante do empenho destes intelectuais, as expectativas de cada nova edição
do livro de classes ou do livro escolar era que fosse adotado nas instituições de

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ensino e contribuísse com a instrução para tirar o estado e o país do atraso no


qual se encontrava no início da Primeira República; no entanto, a sua aprovação
e utilização no ensino “[...] dependiam ainda dos lugares que ocupavam os
sujeitos no tecido societal (político, econômico, cultural e institucional) e das
relações estabelecidas por eles nos espaços de poder” (Castellanos, 2017, p.
151). Diversos sujeitos envolvidos na produção de uma obra e a sua adoção,
trazia consigo reconhecimento social, para além da formação de novas gerações
Livros escolares de autores maranhenses no Pacotilha (1880-1939)

segundo os ideais defendidos; isto é, “[...] autores, editores e tipógrafos [que


tinham] reconhecimento dos exemplares pela qualidade no sentido didático-
metodológico [e] pela utilidade e aplicação no ensino público” (Castellanos,
2022c, p. 7), tendo em vista que o livro escolar ou livro de classes se constituía
em ferramenta de imposição pelo qual se ensinara e se formava.

Considerações Finais

O livro utilizado na escola no início da Primeira República serviu como um


instrumento que contribuiu com a uniformidade do ensino, tendo em vista que
Samuel Castellanos / Jarina Santos

o conteúdo organizado e sistematizado auxiliaria os professores nas práticas


pedagógicas. Estes objetos sofreram interferências e controle por parte do
Estado, a fim de que interesses fossem transmitidos e a formação pautada na
moral, na civilidade, nos bons costumes e no amor à pátria fosse concretizada;
Primeira República que foi marcada por alguns avanços na educação: a criação/
organização de escolas e um maior número de professores, uma vez que a
formação foi umas das principais questões apontadas para o progresso do
ensino visando-se o aprofundamento do saber docente (Castellanos, 2017).
O novo regime político provoca diversas mudanças e impõe novos padrões
para a produção do livro escolar e seus respectivos conteúdos, que passaram
a privilegiar aspectos da cultura local e nacional, centrando-se na educação
moral e cívica dos alunos (ensino laico) em detrimento das lições religiosas;
situação que foi estimulada pela separação entre Igreja e Estado, instituições
estas que tanto autores e editores, como também professores e alunos deveriam
de alguma maneira se adaptar.
Artigo

Destarte, podemos perceber que a posição social dos autores afetou na


circulação e divulgação da produção, alguns tiveram grande destaque na
imprensa e suas obras apresentaram diversas edições, perpetuando-se no
mercado livresco, já outros não conseguiram alcançar projeção significativa, tal
como Odolfo Aires Medeiros (professor do ensino primário de Carolina – MA),

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que mesmo conseguindo produzir livros de classes e propor novas ideias, sua
representatividade é mínima se comparada a autores consagrados. Há também
aqueles indícios de que novas edições de livros escolares seriam publicados,
a exemplo Jansen Ferreira; no entanto, não foi possível localizar e nem há
registros que apontem tal feito. Já Coelho Neto, que residia na capital do país e
fez associação com importantes intelectuais, incluindo Olavo Bilac (com quem
coproduziu), tive grande repercussão que se constata no número de edições
Livros escolares de autores maranhenses no Pacotilha (1880-1939)

(29ª ed.) e pelos anos de permanência nas instituições de ensino.


Os anos iniciais da Primeira República foram marcados pela disputa entre
ideais nacionalista e o tradicionalismo europeu que perpassou pelos livros
escolares ficando marcada nos conteúdos, nos formatos desses materiais, assim
como nos objetivos propostos para a instrução enquanto formação da nova
geração. Uma parcela de autores, buscando reforçar a identidade nacional,
propõe inovações tanto nos métodos de ensino como no distanciamento da
influência estrangeira (especialmente europeia); posicionamentos políticos e
ideais de construção de um sentimento de nação caro ao povo brasileiro que
fica expresso nas produções escolares. No entanto, ainda havia aqueles que não
Samuel Castellanos / Jarina Santos

concordavam e queriam preservar a originalidade da língua, a história tradicional


europeia e o regime político imperial, a fim de manter seus privilégios, entre
cargos de poder e relações econômicas, para além de outras motivações. Tais
armaduras conceituais conformaram a sociedade brasileira no período em foco
gerando discordâncias entre intelectuais e lutas de representações em torno do
universo dos livros escolares ou livros de classes, da sua produção e o uso na
instrução pública.

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em virtude do Aviso circular do Ministério da Justiça de 20 de setembro de 1883,
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Livros escolares de autores maranhenses no Pacotilha (1880-1939)

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Sessão de 1841 colligidos por Antônio Henoch dos Reis em virtude de resolução
da mesma Câmara. Rio de Janeiro: Typographia da Viuva Pinto & Filho, 1841.

BRASIL. Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa. Annaes do Parlamento


Brasileiro. Câmara dos Srs. Deputados, Décimo Quarto Anno da Décima Quarta
Legislatura, Sessão de 1850 colligidos por Antônio Henoch dos Reis em virtude
de resolução da mesma Câmara. Rio de Janeiro, Typographia da Viuva Pinto &
Filho, 1887.
Samuel Castellanos / Jarina Santos

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Notas
Docente da Universidade Federal do Maranhão.
1

Universidade CEUMA – UNICEUMA.


2

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3
Tais como: Atlas do império do Brasil (1868/1ª ed.), de Candido Mendes de Almeida;
Dicionário Histórico Geográfico da Província do Maranhão (1870), do Dr. Cesar Augusto
Marques; Fragmentos para a Chorographia do Maranhão (1901/1ª ed.), de Justo Jansen
Ferreira.
4
Ferreira nasceu em São Luís, em 16 de março de 1864, e faleceu na mesma cidade, a 18 de
agosto de 1930. Formado em medicina, atuou como professor catedrático da disciplina
de Geografia Geral e Corografia do Brasil no Liceu Maranhense, e de Física, Química e
Mineralogia na Escola Normal. Fez parte de importantes instituições científicas ao redor
do mundo, tais como: a Sociedade de Astronomia de Paris e a Sociedade de Geografia,
Livros escolares de autores maranhenses no Pacotilha (1880-1939)

de Lisboa, como também foi membro do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão.


5
Candido Mendes de Almeida em Atlas do império do Brasil (1868/1ª ed.), José ribeiro do
Amaral em Estado do Maranhão (1896/1ª ed.), Augusto Olympio Viveiros de Castro em A
província do Maranhão e a imigração (1888/1ª ed.).
6
Os Princípios elementares de chronologia para uso do lyceu do Ceará (1850/1ª ed.), de
Thomaz Pompeo de Souza Brasil; a Carta da capitania do Ceará levantada por ordem do
governador Manoel Ignácio de Sampaio (1818/1ª ed.), de Antonio José da Silva Paulet; a
Corografia Histórica da Província de Minas Gerais (1837/1ª ed.), do Marechal Raimundo
José da Cunha Matos.
7
Natural da província do Maranhão, nasceu em 2 de junho de 1841. Bacharel em ciências
sociais e jurídicas pela faculdade de Recife, se forma em 1864 e exerce alguns cargos,
começando pelo de promotor público, representa sua província legislativa de 1878 a
Samuel Castellanos / Jarina Santos

1881. Participou do Publicador Maranhense nos anos de 1885 a 1866 (Blake, 1893, v. 2, p.
354).
8
Natural de Caxias – MA, foi romancista, crítico e teatrólogo. Nasceu em 21 de fevereiro
de 1864 e faleceu no Rio de Janeiro, em 28 de novembro de 1934, mudando-se ainda na
infância com a família à referida cidade.
9
Nasceu em 16 de dezembro de 1865 no Rio de Janeiro, e faleceu, na mesma cidade, em
28 de dezembro de 1918. Foi jornalista, poeta e inspetor de ensino.
10
Para Salomão (2022) os paratextos podem ser definidos como elementos que se
localizam antes e após o texto – capa, epígrafe, dedicatória etc, configurando-se como
um espaço que permite esclarecer o pensamento dos autores e apresentar informações
sobre as suas intenções, concepções e críticas. Genette (2009, p. 17-18) esclarece que
“o paratexto, sob todas as suas formas, é um discurso fundamentalmente heterônomo,
auxiliar, a serviço de outra coisa que constitui sua razão de ser: o texto”.
Émile Levasseur (1828-1911) foi o responsável pela nova organização do ensino básico
11

da Geografia no país [França], e o forte inspirador da Geografia Econômica ali praticada,


além de um grande organizador das estatísticas francesas (Moraes, 2015, p. 2).
12
Candido de Figueredo (1846-1925) foi lexicografo, jornalista, poeta e tradutor. Em
1874 licenciou-se em Direito pela Universidade de Coimbra e muda-se para Lisboa em
Artigo

1876 para exercer a advocacia, tornando-se professor do Liceu. Por outro lado, assume
diversos cargos na administração pública ao longo de sua carreira. Foi autor de diversas
obras tanto de literatura quando de caráter didático nos campos da filologia, história,
geografia, direito e economia. Destacou-se pelo empenho em corrigir erros de ortografia
e sintaxe integrando uma comissão encarregada da fixação das bases ortográficas da
língua portuguesa (Lisboa, 1990, v. 2, p. 77).

Recebido em 24/06/2023 - Aprovado em 11/10/2023


Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.422-444, jul-dez. 2023 } 444
DOI: 10.5433/1984-3356.2023v16n32p445-470

Entre florestas e as fronteiras:


as paisagens do oeste de
Santa Catarina nas décadas
de 1920 a 1960

Between forests and frontiers:


the landscapes of the west of
Santa Catarina in the 1920s
to 1960s

Entre bosques y fronteras: los


paisajes del oeste de Santa
Catarina en las décadas de
1920 a 1960

Marlon Brandt1
Samira Peruchi Moretto2

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Resumo: O oeste de Santa Catarina era ocupado por grupos


indígenas e por caboclos até a chegada de outros migrantes
e imigrantes, no século XX. Os espaços ocupados por campos
e florestas foram descritos como sertões, por não abrigarem
uma prática agrícola convencional à sua época. O objeto do
presente artigo é analisar os usos e o processo de ocupação
das áreas florestais do oeste de Santa Catarina de 1920 a 1960,
quando se verifica o “fechamento” dessa fronteira. Para isso,
analisou-se uma variada tipologia de fontes, em diálogo com
Entre florestas e as fronteiras: as paisagens do oeste

a História Ambiental. O avanço da colonização foi responsável


de Santa Catarina nas décadas de 1920 a 1960

pela diminuição dos espaços dominados pela floresta, que


passam a ser ocupados pela agricultura e pela criação de
animais. Ambos foram os principais elementos responsáveis
Marlon Brandt / Samira Peruchi Moretto

pela formação e consolidação do setor agroindustrial na região.


Palavras-chave: paisagem; fronteira; caboclos; colonização;
sertões; oeste de Santa Catarina.

Abstract: The west of Santa Catarina was occupied by indigenous


groups and caboclos until the arrival of other migrants and
immigrants in the 20th century. The spaces occupied by fields
and forests were described as “sertões” (wilderness), as they
did not have a suitable agricultural practice at the time. The
object of this article is to analyze the uses and occupation
process of forest areas in western Santa Catarina from 1920
to 1960, when this frontier was “closed”. For this, a varied
typology of sources was analyzed, in dialogue with the precepts
of environmental history. The advance of colonization was
responsible for the reduction of spaces dominated by the forest,
which is now occupied by agriculture and animal husbandry.
Both were the main elements responsible for the formation
Artigo

and consolidation of the agro-industrial sector in the region.


Keywords: landscape; frontiers; caboclo population;
colonization; sertões; west of Santa Catarina.

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Introdução

Quando Léo Waibel percorreu o Sul do país para escrever duas de suas mais
conhecidas obras de geografia agrária no país – os artigos Princípios da colonização
europeia no Sul do Brasil (1949) e Zonas Pioneiras do Brasil (1955), ambos publicados
na Revista Brasileira de Geografia – o processo de colonização do Oeste catarinense
estava em pleno desenvolvimento, “semeando povoados ao longo de estradas e rios,
na direção norte, onde está o sertão desabitado” (Waibel, 1949, p. 18). Embora a quase
totalidade das terras já fosse alvo da apropriação privada por companhias colonizadoras3,
nos interstícios das linhas e núcleos coloniais, ainda dominados por vastas extensões de
floresta, residiam diversas famílias caboclas4, que viviam da agricultura para consumo
Entre florestas e as fronteiras: as paisagens do oeste

próprio e atividades como a extração da erva-mate, cuja produção era escoada para a
Argentina, e a criação de porcos soltos na floresta, para o comércio local e consumo
de Santa Catarina nas décadas de 1920 a 1960

próprio. Moradores estes que, para Waibel (1955, p. 5), “criaram uma paisagem que por
longo tempo não era, nem terra civilizada nem mata virgem, e para o qual aqui se tem a
expressão muito feliz de ‘sertão’”5.
Marlon Brandt / Samira Peruchi Moretto

Dessa forma, é necessário, também, observar a própria conotação dada aos moradores
locais. O termo “caboclo” (Brandt; Moretto, 2022) não é um conceito homogêneo e varia
amplamente de acordo com a região do Brasil. A palavra “caboclo” estava, na época em
que Waibel escreveu os artigos, geralmente associada a características depreciativas, como
pobreza, isolamento social, preguiça ou criminalidade. Normalmente, esses sujeitos eram
habitantes de áreas florestais e não praticavam a agricultura de acordo com os ensejos
para venda de sua produção. Além disso, os discursos que permeavam as décadas de 1940
e 1950 traziam a questão da ocupação e dos desmatamentos como algo benéfico, sem
ser dimensionado. Nesse contexto, Sandro Dutra e Silva (2018, p. 35) afirmou que são
“palavras de ordem que não expressavam apenas a consciência de escritores, ideólogos,
políticos e jornalistas, mas o imaginário social de uma geração que admitia regozijar-se
em ver o mundão de árvores arrancadas” e as terras ocupadas.
Leo Waibel estava em sintonia com a produção geográfica da época, uma vez que se
preocupava em registrar o espaço de fronteira no sentido econômico do que ele denomina
como “zona pioneira”, que seria “uma zona, mais ou menos larga, que se intercala entre
a mata virgem e a região civilizada” (Waibel, 1955, p. 4), bem como a incorporação
Artigo

desse espaço à economia, e “a paisagem cultural criada pelo colono” (Waibel, 1949, p.
4), convertendo esse espaço em lavouras comerciais, cidades e estradas, por exemplo,
o que, para o autor, seria a “região civilizada”. Nesses estudos, eram deixadas de lado
as populações pretéritas a esse processo, que habitavam esses “sertões” ou mesmo as
situações de encontros, desencontros e conflitos de diferentes concepções de vida e visões

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de mundo entre caboclos e esses novos habitantes. Esse espaço, onde, para Paul Little
(2002, p. 4), a “expansão de um grupo social, com sua própria conduta territorial, entra
em choque com as territorialidades dos grupos que residem aí”, pode ser entendido como
uma fronteira. A fronteira, para José de Souza Martins (1996, p. 27), seria “essencialmente
o lugar da alteridade. É isso o que faz dela uma realidade singular. À primeira vista, é o
lugar do encontro dos que, por diferentes razões, são diferentes entre si”, sendo

[..] a um só tempo, um lugar de descoberta do outro e de desencontro. Não só o


desencontro e o conflito decorrentes das diferentes concepções de vida e visões
de mundo de cada um desses grupos humanos. O desencontro na fronteira é
o desencontro de temporalidades históricas, pois cada um desses grupos está
situado diversamente no tempo da História (Martins, 1996, p. 27).
Entre florestas e as fronteiras: as paisagens do oeste

Seria essa situação de encontros e de alteridades que, materializada, poderia ser


entendida como uma paisagem de fronteira. O objeto deste texto é analisar esse espaço a
de Santa Catarina nas décadas de 1920 a 1960

partir da colonização da região oeste de Santa Catarina, nos anos seguintes à definição de
limites com o estado do Paraná, em 1916, quando se iniciaram as políticas de colonização
da região, sobretudo na década de 1920, até sua consolidação ao longo das décadas
Marlon Brandt / Samira Peruchi Moretto

de 1950 e 1960, quando ocorre o desenho geopolítico da região. Tal região, que pode
ser visualizada em um mapa da época na Figura 1, compreendida pelos municípios de
Chapecó e Cruzeiro (atual Joaçaba), criados em 1917, se estendia do Vale do Rio do Peixe
até a fronteira com a Argentina.

Figura 1 - Municípios de Chapecó e Cruzeiro, década de 1930


Artigo

Fonte: Centro de Memória do Oeste de Santa Catarina – CEOM.

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A paisagem, nesta pesquisa, é compreendida conforme a definição de Santos


(2006, p. 104), para quem esta seria “o conjunto das formas que, num dado
momento, exprimem as heranças que representam as sucessivas relações entre
o homem e a natureza”. Ela seria, dessa maneira, a materialização, no espaço
geográfico, da acumulação de atividades que expressam uma imbricada relação
que envolve “objetos naturais e objetos fabricados, isto é, objetos sociais” (bem
como ações em variadas escalas temporais (Santos, 2004, p. 53)
Sendo assim, analisar esse conjunto de elementos que formam a paisagem em
um momento do passado – no caso, as primeiras quatro décadas de colonização
do oeste catarinense – se faz a partir da visão de mundo de um outro sujeito e de
seu testemunho, sendo este, como aponta Dora Shellard Corrêa (2008, p. 137),
Entre florestas e as fronteiras: as paisagens do oeste

“um protagonista do enredo, seja produzindo os dados examinados, [...] seja


como ator no relato”. É a partir da representação de um cenário disponibilizado
de Santa Catarina nas décadas de 1920 a 1960

por pesquisas, relatos, memória, imagens e fontes impressas, como os próprios


textos escritos por Waibel (1949, 1955) em suas viagens de campo pelo interior
do Brasil, que formam “um conceito sobre a organização social do espaço, o
Marlon Brandt / Samira Peruchi Moretto

que implica presenças e ausências tanto humanas quanto naturais no quadro


exposto”, e não no que enxergamos e a que atribuímos sentido, que chegamos ao
objeto de análise (Corrêa, 2008, p. 137). E ao realizar essa análise, continuando
com a autora, “o próprio historiador não deixa de projetar sobre ele estruturas
paisagísticas e questões de seu tempo, que interferem na percepção de alguns
detalhes” (Corrêa, 2013, p. 24). Para o historiador Simon Schama (1996, p. 70), a
paisagem é atrelada a elementos históricos e culturais para compor, definindo-a
da seguinte forma:

[...] paisagem é cultura antes de ser natureza; um constructo da


imaginação projetado sobre mata, água, rocha, [...] a natureza não
é algo anterior à cultura e independente da história de cada povo.
Em cada árvore, cada rio, cada pedra, estão depositados séculos
de memória.

Por este fato, é importante analisarmos o processo de ocupação e apropriação


do meio natural, para entendermos os significados enraizados a tais processos.
Artigo

As áreas ocupadas não têm o meio ambiente como determinante, mas como
importante agente nas interseções entre os grupos sociais e o próprio ambiente.

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Ocupando os campos e as florestas

A dualidade campo/floresta é uma das principais características da paisagem


não somente dessa região, mas do planalto Sul do Brasil, destacada por Waibel
em 1949 quanto à natureza da sua ocupação. Nas visitas do geógrafo e de seu
grupo à região nas pesquisas que produziram o referido estudo, eram os campos
registrados da seguinte maneira: neles viviam “o fazendeiro, de origem luso-
brasileira, que cria bovinos e cavalos em grandes propriedades e tem como
empregados negros e mulatos, descendentes de antigos escravos”. Já nas “áreas
que eram outrora florestais, encontramos hoje em dia uma pequena população
de agricultores brancos que, juntamente com suas esposas e filhos têm lavrado
Entre florestas e as fronteiras: as paisagens do oeste

a terra e estabelecido lares do tipo europeu” (Waibel, 1949, p. 9). Essa dualidade,
porém, remete não à colonização, mas à formação das fazendas nos campos
de Santa Catarina nas décadas de 1920 a 1960

pelos luso-brasileiros a partir do século XVIII.


Até as primeiras incursões dos europeus nos séculos XVII e XVIII, esses
campos e florestas eram ocupados por grupos indígenas dos grupos Kaingang,
Marlon Brandt / Samira Peruchi Moretto

Xokleng e Guarani, quando passaram a ser alvo de incursões de jesuítas e, mais


tarde, de bandeirantes provenientes da província de São Paulo à procura de
alguma forma de riqueza, incluindo a escravização dos indígenas. Uma maior
presença europeia se daria principalmente a partir do século XVIII, com a
abertura dos caminhos de tropas destinados ao transporte de gado muar, bovino
e cavalar, interligando por terra o Rio Grande do Sul ao Sudeste e às regiões
mineradoras, e a formação de fazendas nas áreas de campos por onde também
circulavam essas tropas.
Nesse espaço, o processo de ocupação territorial ocorria preferencialmente
nas áreas dominadas pela vegetação campestre, dando continuidade à expansão
das fazendas de criação. Foi dessa maneira, por exemplo, que áreas como
Campos Novos e os Campos de Palmas passaram a abrigar fazendas na primeira
metade do século XIX em um movimento cuja origem eram as áreas de campos
com ocupação mais antiga, como os Campos Gerais, Campos de Guarapuava e
Campos de Lages. Nesse contexto, a floresta representava um espaço marginal
para a economia predominante, “mais um obstáculo do que uma riqueza”. Sua
Artigo

existência impedia a maior extensão dos campos e, portanto, de pasto para o


gado (Lago, 1988, p. 264).
Assim, se a floresta nesse espaço de fronteira representava um espaço de
pouca valia para a pecuária, ela também era a possibilidade de uma nova
vida para muitas pessoas ligadas às fazendas, como ex-escravizados, negros

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libertos, foragidos da justiça, ex-agregados e peões. Ao se instalar nas novas


terras, os ocupantes poderiam viver da criação de animais, da extração da erva-
mate, da caça, da pesca e da agricultura de subsistência. A posse era, na época,
a principal forma de acesso à terra nesses espaços de fronteira. Para Emília
Viotti da Costa (1999, p. 175), “todas as pessoas que penetravam nas regiões
do interior – áreas sem nenhum valor comercial – podiam controlar um pedaço
de terra, desde que fossem capazes de enfrentar os índios e sobreviverem
na selva”, o que leva a compreender que mata era selva, e os indígenas e os
selvagens, ambos que precisavam ser dominados, eram deletérios e precisavam
ser vencidos. Assim, para a autora, “a disponibilidade de grandes extensões
de terra tornou-a acessível àqueles que não tinham condições de participar
Entre florestas e as fronteiras: as paisagens do oeste

da economia comercial, permitindo-lhes sobreviver no âmbito da economia


de subsistência”. Nessa ocupação, que não teve o caráter de uma fronteira
de Santa Catarina nas décadas de 1920 a 1960

em marcha, mas sim o de uma “sorrateira infiltração” (Queiroz, 1981, p. 35),


adentrando e disputando territórios com moradores indígenas, campos
e florestas, representavam não apenas paisagens distintas, mas também
Marlon Brandt / Samira Peruchi Moretto

diferentes modos de vida e possibilidades de independência dos laços até então


costurados com as fazendas das áreas de campos. Esse processo de ocupação
territorial pode ser visualizado no mapa da Figura 2, que apresenta o processo
de irradiação do povoamento rumo às florestas do planalto catarinense a partir
das atividades pastoris:

Figura 2 - Frentes de povoamento do oeste catarinense


Artigo

Fonte: Nascimento, Valentini, Brandt, Scherma e Tombini (2021).

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Essa população passou a ocupar as florestas e pequenas aberturas de campos


às margens das grandes fazendas pastoris, partindo, principalmente, das
áreas situadas ao leste, nos campos de Lages, Curitibanos e Campos Novos,
enquanto a noroeste e oeste partiam dos campos de Guarapuava e Palmas,
no Paraná (Machado, 2004). No oeste catarinense, a extração da erva-mate
em caráter comercial no final do século XIX (Paraná, 1899) teria atraído não
apenas moradores de origem brasileira, mas também famílias provenientes da
Argentina e do Paraguai (Corrêa, 1970).
O modo de povoamento empreendido pelos portugueses no Brasil ao longo
do período colonial foi um dos responsáveis pela formação de um modelo
sociocultural de adaptação ao meio, onde tanto sua ocupação quanto a utilização
Entre florestas e as fronteiras: as paisagens do oeste

dos recursos naturais se devem às influências indígenas e ao caráter cíclico e


irregular do povoamento (Arruda, 1999; Holanda, 2008). Parte do conhecimento
de Santa Catarina nas décadas de 1920 a 1960

indígena foi assimilado, sendo fundamental na construção e adaptação ao


novo meio, nas quais se incluem, mais tarde, as influências africanas, que
seriam amalgamadas pela população local, adotando e ressignificando práticas
Marlon Brandt / Samira Peruchi Moretto

sociais e espaciais condizentes com o meio. Esse conjunto de práticas sociais e


espaciais deu origem nas florestas do planalto sul-brasileiro ao sistema de uso
da terra por essa população recém-instalada que Maurício Vinhas de Queiroz
(1981) denominou como “roça cabocla”, formada, conforme Arlene Renk (2006,
p. 107), a partir da adoção de “uma prática costumeira de dividir as terras em
terras de plantar e terras de criar”.
Nas áreas destinadas ao cultivo, que compunham as “terras de plantar”,
ocorria uma policultura com rotação de terras, que possuía no milho “o centro
da lavoura, consorciado ao feijão e por vezes à abóbora e à melancia” (Queiroz,
1981, p. 36). Cultivavam desmatando e queimando a floresta, muitas vezes
praticando a coivara – para, em seguida, instalar a roça através da rotação de
terras. Após a abertura da roça, esta poderia ser fechada com o emprego de
madeira ou a simples abertura de trincheiras. A madeira poderia ser empregada
na forma de tábuas lascadas; os chamados rachões ou mesmo as árvores, como
as araucárias, poderiam ser aproveitadas inteiras, derrubando algumas árvores
escolhidas para delimitar o perímetro da roça (Brandt, 2015).
Artigo

As “terras de criar”, por outro lado, eram compostas por praticamente toda
a posse ou propriedade, abrangendo a floresta e eventuais trechos de campos,
onde circulavam livremente, compartilhando os mesmos espaços com animais
de criadores vizinhos, bois e, principalmente, porcos em busca de alimento,
pelo fato de as terras não possuírem cercas, e isso persistiu até a colonização,

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“uma vez que a amplitude de terras o dispensava”, como aponta Arlene Renk
(2004, p. 28). O primeiro era criado nas áreas abertas, enquanto o suíno vivia
nas florestas, sendo a principal criação de muitas famílias, por necessitarem de
pouco manejo. Apenas uma marcação em cada animal, por cortes nas orelhas ou
no rabo, era feita para identificar o criador. Depoimentos de antigos criadores,
como Lizário Ferreira (2006), morador e criador de porcos da região de Chapecó,
dão ideia de como ocorria esse compartilhamento em comum das florestas:
“era tudo solto as criação, não tinha potreiro não tinha nada, nem invernada era
tudo solto. […] Porque naquele tempo a cerca era marca, tudo tinha uma marca,
tudo marcado, o que não era marcado podia pegar que era dono, porco também
criava sorto era assim”.
Entre florestas e as fronteiras: as paisagens do oeste

Esses animais poderiam ser destinados tanto ao próprio consumo das


famílias quanto à comercialização. Caso fossem comercializados, depois de
de Santa Catarina nas décadas de 1920 a 1960

arrebanhados, os animais eram confinados em uma encerra de milharal aberta


em meio à floresta para continuarem a engorda, ou a um mangueirão. Esses
eram cercados para impedir a invasão dos animais soltos. Uma dessas formas
Marlon Brandt / Samira Peruchi Moretto

de captura e engorda foi descrita da seguinte forma por Ana Maria Pedroso
da Silva (2006a), rememorando as formas de criação de porcos por seu pai:
“fechava os porcos fazia uma mangueira pra engordar os porcos na mangueira,
daí pinchava [jogava] mandioca, milho tudo assim jogava lá no barro pros porcos
comer, mandioca no barro tudo, era assim que meu pai engordava as vezes 30, 40,
fechava 40 porcos, 50 porcos”. Já com mais peso, as varas de porcos partiam,
então, conduzidas a pé, rumo aos centros consumidores compostos até a
colonização por vilas e cidades próximas em Santa Catarina e no Paraná.
Era o chamado “porco alçado”, cuja criação consistia em uma espécie de
suinocultura extensiva (Chang, 1988, p. 26). Por ser onívoro, esse animal possuía
uma maior variedade de alimentos disponíveis se comparados aos herbívoros
bois e cavalos. Comiam de tudo: frutos caídos, sementes (principalmente a do
pinhão), raízes, relva e qualquer animal pequeno. Por não tolerarem a luz direta
do sol, não conseguiam se adaptar aos campos, descobertos demais, preferindo
viver nas florestas (Crosby, 2011).
É possível afirmar que esses espaços constituíam o que Sueli Ângelo Furlan
Artigo

(2006, p. 4-5) denomina como uma “floresta cultural”, onde seus recursos são
usufruídos de forma compartilhada, como no caso da engorda dos animais,
e se observa o desenvolvimento de práticas sociais adequadas ao ambiente
natural, além de conhecimentos sobre o funcionamento e utilização de forma
sustentável. Tais práticas seriam efetivadas e transmitidas através de um

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conjunto de normas e costumes, fundamentadas na tradição e na memória,


onde a oralidade exerce uma grande importância. Essas formam um conjunto,
conforme Edward Palmer Thompson (2002, p. 120), de “crenças não escritas,
normas sociológicas e usos asseverados na prática, mas jamais registrados por
qualquer regulamento”, que dão origem a uma rede de relações que criam uma
especificidade no território, que pode ser caracterizada por práticas culturais,
de trabalho e de uso e acesso à terra e aos recursos naturais. Tais práticas
de uso e acesso à terra, como aponta Nazareno José de Campos (2011), são
bastante comuns entre populações tradicionais do país e podem ser vistas em
seus hábitos, costumes e inter-relações sociais, dentre elas as formas coletivas
de uso e acesso em comum da terra, como o praticado, também, pela população
Entre florestas e as fronteiras: as paisagens do oeste

cabocla do planalto e oeste catarinenses. Isso, por sua vez, fica evidenciado na
paisagem, marcada pela “roça cabocla” e as atividades de criação e extrativismo,
de Santa Catarina nas décadas de 1920 a 1960

servindo, inclusive, como uma espécie de delimitação territorial dessas


populações (Brandt; Nodari, 2011).
Além da criação de suínos, era também nas florestas que se realizava a extração
Marlon Brandt / Samira Peruchi Moretto

da erva-mate e a caça. A erva-mate seria, inclusive, moeda corrente entre a


população cabocla das florestas. As folhas da planta, após a colheita e o sapeco,
eram vendidas aos comerciantes e ervateiros locais, muitos deles argentinos,
na base da troca, por produtos de consumo como tecidos, sal, açúcar, café e
pólvora, por exemplo. Depois, a erva, que poderia ser beneficiada, era destinada
a empresas argentinas localizadas na fronteira. Com a implementação, na
primeira década do século XX, da Ferrovia São Paulo-Rio Grande, cujo traçado
seguia o rumo do rio do Peixe, o produto poderia, também, ter como destino
empresas e comerciantes locais ou filiais de ervateiras paranaenses localizadas
na região de Porto União. De lá, o produto poderia seguir, via férrea, aos portos
do Paraná e Santa Catarina (Corrêa, 1970; Goularti Filho, 2012; Paraná, 1899).
A ferrovia também dinamizou a produção ervateira nas áreas em seu entorno,
atraindo ervateiros interessados em explorar as terras e comerciantes que
despachavam o produto para os países do Prata e o Rio Grande do Sul.
Não existiam, conforme Vinhas de Queiroz (1981), regras muito fixas nas
relações com o trabalho dos ervais. Todo o trabalho dependia da força familiar.
Artigo

Esta forma de extração do mate ocorria com maior frequência com famílias
de posseiros, em áreas mais afastadas em plena floresta. Em muitos casos,
depoimentos sugerem que o acesso e uso dos ervais eram em comum, como
relata Rita Fernandes da Silva (2006b), antiga moradora da região de Chapecó:
“assim a erva mate, também não era dizer eu vou lá, a erva, como ali no Bormann

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você podia ir em qualquer lugar e cortar erva ninguém fazia conta, ninguém fazia
conta de você derrubar e tiravam um carijo de erva, ninguém se importava”. O
mesmo também é apontado David Marsango (1996), cuja família mudou-se
para a região de Ponte Serrada, para se dedicar às atividades ervateiras: “na
época a erva-mate existia em toda a parte, assim silvestre, eles faziam o dia,
entravam nestes matos ali, criavam um porquinho [...], tiravam erva, sapecavam
ali, ajeitavam ali [e] carregam nos cargueiros”.
O aporte das empresas ervateiras na região fronteiriça atraiu elementos
dos três países na atividade. As condições de trabalho nessas empresas eram
precárias. Conforme Maristela Ferrari (2011, p. 151), os trabalhadores eram
Entre florestas e as fronteiras: as paisagens do oeste

submetidos a um regime de trabalho semiescravo, já que muitos


ervateiros forneciam apenas alimentos e ferramentas de trabalho em
de Santa Catarina nas décadas de 1920 a 1960

troca do trabalho deles. […] nos ervais nativos dessa zona fronteiriça
[...] os assassinatos de trabalhadores do corte da erva-mate eram,
segundo pesquisa de campo, frequentes, como a Mateauda, apontada
Marlon Brandt / Samira Peruchi Moretto

como uma das empresas que frequentemente cometia assassinatos de


trabalhadores nos seus ervais.

A exploração ervateira na região seria um dos fatores que contribuíram


para o assentamento mais efetivo da população na região, principalmente na
fronteira com a Argentina, então principal mercado consumidor. Desse fluxo
surgiram núcleos de povoamento como Dionísio Cerqueira, em Santa Catarina,
Barracão e Santo Antônio do Sudoeste no Paraná, ainda em fins do século XIX
(Ferrari, 2011).
Em relação ao extrativismo da erva-mate nas florestas, Davi Marsango (1996)
menciona a atuação de um ervateiro que chegou a recrutar trabalhadores do
Paraguai para a extração da erva-mate na região de Joaçaba:

Ele entrava nesse sertão, assim ajeitando, arrumando pra compra a erva-
mate, isto foi depois que abriram a estrada de ferro, aqui em Joaçaba, isso
foi por 1908, 1909 por aí, esse foi o lugar mais perto pra escoar essa dita
erva-mate desses fundão, desse município de Palmas, essa região aqui, por
esses lados aqui se não antes de explorar essa estrada, aqui pra Joaçaba,
Artigo

eles extraiam essa erva. Saia no sentido de Porto União, era mais longe e
aqui quando a estrada de ferro passou a transitar em Cruzeiro do Sul, até
um tempo, passou a se chamar Estação Erval motivo que entrava muita
erva-mate, naquela estação ali, este Simões Cavalheiro organizou, ele

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explorava erva e viajava, viajava muito pro Paraguai, Rio Grande do Sul, ele
arrumou uma comissão de uns vinte paraguaios, naquela época em 1910,
então ele contava com os paraguaios que moravam aqui […].

A valorização da erva-mate, no início do século XX, e o desenvolvimento do


setor na região foram um importante fator de atração de diversas famílias. No
entanto, esse mesmo processo iniciou, nesses espaços de fronteira, um intenso
processo de apropriação privada da terra. A instauração da Lei de Terras em 1850
trouxe uma nova concepção de terras no país. As terras devolutas passaram a
ser valorizadas de acordo com as terras privadas, o que dificultava o acesso à
terra pelos brasileiros pobres e pelos imigrantes europeus que aportavam no
país desde a segunda década do mesmo século (Saboya, 1995). No oeste, isso
Entre florestas e as fronteiras: as paisagens do oeste

representou o início da precarização do acesso e uso da terra a essa população


de Santa Catarina nas décadas de 1920 a 1960

a partir da apropriação de imensas faixas de terras devolutas, promovidas


principalmente por grupos políticos, companhias colonizadoras, fazendeiros
locais e empresas de capital estrangeiro, como a Brazil Railway Company e a
Marlon Brandt / Samira Peruchi Moretto

Southern Brazil Lumber and Colonization Company (Machado, 2004, p. 75).


A política de terras de Santa Catarina, definida após a Constituição
Republicana de 1891, quando as terras devolutas passaram ao domínio dos
estados, possuía como objetivo atuar na regularização de antigas posses e na
venda de terras públicas para estímulo da pecuária e da lavoura, estimulando,
também, a colonização por ítalos e teuto-brasileiros de suas terras, incorporando
os “sertões” do “ex-contestado”6 a partir do acordo de limites de 1916.
A colonização destas terras era vista, assim como ocorreu com a colonização
do Sul do Brasil em geral, pelos grupos políticos e econômicos como uma forma
de se ocupar território de modo racional. Promovia-se uma ocupação planejada,
seletiva – subvencionada e dirigida pelo governo, por companhias particulares
de colonização ou proprietários de maneira individual. No caso catarinense,
essas terras não foram colonizadas pelo Estado, mas sim através da concessão
de terras às companhias colonizadoras privadas. Seriam essas, como aponta
Eunice Nodari (2009, p. 34), as responsáveis por colocar “em prática a opção
de uma migração dirigida a grupos específicos que se adequassem aos padrões
estabelecidos pelo governo estadual e por elas próprias, ou seja, que povoassem
Artigo

e colonizassem a região ordeiramente”. Aos colonizadores interessava a venda


daquelas terras. Se, para o governo, colonização quer dizer povoamento e
desenvolvimento de áreas “desabitadas”, para uma companhia particular “quer
dizer negócio; ela quer ganhar dinheiro e é certo que ganhará se conseguir uma

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boa qualidade de terra e também gente de boa qualidade” (Waibel, 1949, p. 16).
Essa política de ocupação, no entanto, alijou a população posseira que já
ocupava as florestas da região. A escolha por “gente de boa qualidade” (Waibel,
1949, p. 16) incidiu sobre os teutos e ítalo-brasileiros estabelecidos, ao longo
do século XIX, nos núcleos de colonização do Rio Grande do Sul, dentro do
contexto de uma política nacional de embranquecimento da população (Relly,
2022). As terras catarinenses, além do baixo custo da terra se comparado ao das
áreas de colonização gaúchas, ainda possibilitava a compra de lotes contíguos,
permitindo que as famílias permanecessem unidas – o que já não ocorria no
Rio Grande do Sul –, fato que possibilitava também a esses grupos reproduzir
ou adaptar às novas terras suas práticas socioculturais e de uso do espaço
Entre florestas e as fronteiras: as paisagens do oeste

valorizadas em seu círculo social (Nodari, 2009).


Jaci Poli (1995, p. 100) destaca que a relação entre posseiros e colonizadores
de Santa Catarina nas décadas de 1920 a 1960

no Oeste de Santa Catarina era sempre complicada, “principalmente quando


envolvia a necessidade de desocupar a posse para dar lugar ao proprietário”.
Quando a empresa colonizadora colocava à venda seus lotes, realizava antes
Marlon Brandt / Samira Peruchi Moretto

uma espécie de “limpeza da área”, onde o direito de propriedade prevaleceu


sobre o direito de posse que, em geral, foi ignorado, visto unicamente como
infração ou intrusamento (Renk, 2006, p. 118). Com a colonização da região,
as formas de uso e acesso à floresta e seus recursos sofreriam modificações e
remodelações com a chegada desses novos moradores. Ao se instalarem nas
terras, os colonos passaram a derrubar a floresta para a formação de lavouras
cuja produção era voltada à comercialização de seus produtos, principalmente
o trigo e o milho, diferentemente das pequenas roças formadas nas “terras de
plantar” (Brandt; Nodari, 2011). Como as ações governamentais de promoção
da colonização não reconheciam a posse dos caboclos, o destino de muitos
destes, não sem resistência a esse processo, era a busca por novas terras
mais distantes da colonização, reproduzindo suas formas tradicionais de
uso da floresta, ou a inserção como assalariado em lavouras nas terras agora
pertencentes aos colonos, como peão de serraria ou balseiros no escoamento
da produção madeireira local via rio Uruguai aos mercados do Rio Grande do
Sul e Argentina. Nesse processo, a “fricção étnica estabelecida a partir do (des)
Artigo

encontro dos dois grupos relega um grupo à subalternidade, revelando a perda


do modo de vida do caboclo, bem como do seu território e da territorialidade
do grupo” (Sulsbach, 2023).
O adensamento demográfico promovido pelo estabelecimento dessas
colônias, além de promover a perda das terras pela população posseira, também

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deu origem a diversas situações de tensão promovidas pela incompatibilidade


entre as formas de acesso e uso da terra. Muitas delas estão relacionadas às
formas de criação dos animais soltos, que invadiam as roças abertas pelos
colonos, como aponta Arlene Renk (1997, p. 107-108):

Os conflitos se originariam por duas razões. A primeira, pela


desvalorização, no mercado imobiliário, das terras próximas às dos
intrusos, com a criação sem cerca [...]. Interessava à companhia o fim
desta prática. A segunda razão, em nível de atitudes, seria a utilização
das terras, isto é, com a agricultura rotativa. Uma utilização mais
‘racional’ permitiria que diversas famílias, em exploração familiar, se
valessem da área com resultados que, do ponto de vista do colonizador,
Entre florestas e as fronteiras: as paisagens do oeste

seriam, seguramente, melhores.


de Santa Catarina nas décadas de 1920 a 1960

Um exemplo dessa incompatibilidade dos usos e acessos à terra e aos


recursos naturais, sob o ponto de vista do colonizador, pode ser observado nos
registros deixados por Wenceslau de Souza Breves (1985) em relação ao seu
Marlon Brandt / Samira Peruchi Moretto

período de atuação em Chapecó entre os anos de 1920 e 1924. Na época auxiliar


da Comissão Técnica Descriminadora de Terras, Breves atuou na demarcação
das terras concedidas à Empresa Colonizadora Bertaso, Maia & Cia, passando,
mais tarde, a ser Agente de Terras do 8º Distrito, que abrangia os municípios de
Cruzeiro e Chapecó, que compreendiam, na época, praticamente todo o oeste
catarinense. Nesse período em que viveu na região, deixou um pequeno artigo,
intitulado “O Chapecó que eu conheci”, registrando “alguns dados para julgar
os elementos que o povoavam, sua mentalidade, seus hábitos e costumes, certos
tipos que ali floresceram, sua primeira resistência a colonização, os defeitos e
qualidades da primitiva e brava gente de Chapecó”. No texto, é possível encontrar
sua visão, sob a perspectiva do poder público e do colonizador em relação à
população local, que, para Arlene Renk (1997, p. 102), “centrou-se na crítica aos
ritmos temporais da população local, ao sistema brasileiro”, sendo as práticas
costumeiras dessa população “um dos grandes entraves à colonização”. Breves
reproduzia o discurso do colonizador que via essa população como fatalista,
preguiçosa, pobre e resignada a pobreza, cuja relação com a terra era vista
Artigo

como irracional, antieconômica e atrasada. Breves (1985, p. 21-22) descrevia


essas práticas e a paisagem local da seguinte maneira:

A maior parte destes caboclos tinham seus ranchos em lugares já


devastados, transformados em campinas. Mas iam fazer suas roças à

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beira de uma sanga ou rio à léguas de distância. Isto para não serem
obrigados a fazer cercas e poderem ter seu cavalo e vaca (quando a
tinham) perto de casa. [...] Isto fazia com que a moradia do caboclo
fosse uma desolação: nem um pé de milho em torno, nem uma árvore
frutífera, nem um pé de couve. Às vezes algumas galinhas e alguns
porcos soltos, nada mais.

Breves (1985) também criticava o regime da posse, visto por ele como
intrusamento. Ainda segundo o autor, aquela população esperava a doação
da área, o que o Estado não poderia fazer, sendo permitida apenas a venda,
dando a ideia, como afirma Renk (2006, p. 129) de uma posição neutra do
Estado, “pairando acima de todos”, assegurando a “’igualdade’ de possibilidade
Entre florestas e as fronteiras: as paisagens do oeste

de compra”. A compra da terra por parte desses moradores, no entanto, era


de Santa Catarina nas décadas de 1920 a 1960

dificultada por várias razões, indo desde a pobreza em que estes viviam, pois
praticavam um regime de subsistência com miúdo comércio com ervateiros,
tropeiros e madeireiros, realizados em âmbito local, o que os impedia de
Marlon Brandt / Samira Peruchi Moretto

acumular o capital necessário para a aquisição da terra, até mesmo o costume


da posse pelo trabalho na terra. Outra razão apontada por Breves (1985, p. 32)
era a que não pensavam em se tornar proprietários, preferindo o intrusamento,
por lhes trazer várias vantagens: “não pagariam impostos, não se sentiriam
na obrigação de fazer uma boa casa ou uma boa roça, visto ali estarem
provisoriamente, e terem a facilidade de se mudar quando quisessem, coisa
muito do gosto de muitos deles”.
É possível imaginar que essa população esperasse que os colonos
reproduzissem as tradicionais práticas de uso da terra local, de maneira
semelhante ao que até então ocorria com a chegada de novos moradores que
compartilhavam seus costumes. Entretanto, os colonos “formavam grupos
bastante fechados, dentro da sua identidade étnica com suas retóricas,
símbolos e rituais através dos quais defendiam a manutenção, e se necessária,
a renegociação das suas práticas socioculturais” (Brandt; Nodari, 2011). Dessa
maneira, a paisagem até então habitada por posseiros ou mesmo moradores
com titulação das terras passou, com a colonização, a sofrer modificações e
remodelações com a inserção de uma nova lógica socioeconômica. Ao se
Artigo

instalarem nas terras, os colonos tratavam de derrubar a floresta para o cultivo,


cuja produção era voltada à comercialização de seus produtos, principalmente
o trigo e o milho, diferentemente das pequenas plantações visando ao consumo
próprio, como era realizado pela população cabocla.

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Embora as práticas de uso da floresta e a abertura das roças fossem


incompatíveis, as práticas de criação dos animais soltos na floresta persistiu
durante a colonização. A criação nesses moldes requeria amplas áreas, sendo
que cada animal necessitava, conforme Roberto Lobato Corrêa (1970, p. 93),
de cerca de cinco hectares de floresta, constituindo “uma atividade de áreas de
muito baixa densidade demográfica, e à medida que o povoamento de colonos
progredia, essa atividade afastava-se para áreas mais remotas”.
O aumento populacional da região, desde a criação dos municípios de
Chapecó e Cruzeiro, atual Joaçaba, entre os anos de 1910, quando a região,
ainda pertencente a Palmas, não havia recebido os fluxos de colonos, a 1950
pode ser observado no Quadro 1.
Entre florestas e as fronteiras: as paisagens do oeste

Quadro 1 - População e área dos municípios de Palmas (PR), Chapecó (SC) e


de Santa Catarina nas décadas de 1920 a 1960

Joaçaba (SC)

1910 1936 1940 1950


Municípios
Marlon Brandt / Samira Peruchi Moretto

Área Área Área Área


Pop. Pop. Pop. Pop.
km² km² km² km²

Palmas
11.435 - 14.710 8.776 23.484 8.776 17.785 5.465
(PR)
Chapecó 17.130 20.556
- - 44.327 14.793 96.624 14.071
(SC)
Joaçaba
- - 13.346 4.038 36.174 4.184 48.299 4.426
(SC)

Fonte: Baseado em IBGE ([2019]).


A partir dos dados dos censos de 1910, 1936, 1940 e 1950

Mesmo com o crescimento populacional, eram vastos nas décadas de 1930 e


1940 os espaços ainda intocados pela colonização, mesmo nas áreas preferenciais
à instalação dos colonos, como nas margens da Estrada de Ferro São Paulo-Rio
Grande. Em 1934, por exemplo, Valentin P. Cuts, ajudante técnico do Ministério
da Agricultura, em um texto publicado no jornal Cruzeiro, do município de
Cruzeiro do Sul, atual Joaçaba, em que criticava a situação da agricultura no
Vale do Rio do Peixe, fez o seguinte comentário sobre a paisagem às margens
Artigo

da ferrovia, associando a existência de florestas à ausência de civilização:

Quem viaja pela Estrada de Ferro que corre na margem esquerda do rio,
fica estranhado: encontram-se quilômetros e mais quilômetros de mata
virgem beirando a linha ferrea. Qualquer extrangeiro [sic] que viajar

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nesta zona tem que pensar: Si na margem da via ferrea ha viveiros para
tigres, o que pode-se encontrar à distância de 20, 30 quilômetros da
linha? (Cruzeiro, 1934, p. 5).

Mais ao oeste, a existência de amplos espaços florestados, entre os


núcleos de colonização, também foi registrada pela imprensa da época. Em
uma reportagem sobre a queda na importância da economia ervateira para o
município, o jornal A Voz de Chapecó (1939, p. 2) destaca que ainda existiam
diversas áreas de florestas onde abundavam os ervais nativos, descrevendo a
paisagem em ruínas de uma atividade outrora próspera:

Os hervaes continuam frondosos por quasi toda extensão territorial do


Entre florestas e as fronteiras: as paisagens do oeste

município.
de Santa Catarina nas décadas de 1920 a 1960

Ao lado de todas as estradas, do Goio-En a Passo Bormann até a sede


da comarca, indo para Guatambú, Caxambú para Xanxerê, Fachinal
dos Guedes para Abelardo Luz e S. Domingos, Campo-Erê e Dionisio
Marlon Brandt / Samira Peruchi Moretto

Cerqueira, a todos os distritos são matas e matas de hervaes, que se


extendem a perder de vista, com algumas interrupções.
Mas, a industria, morreu, nem mais uma arroba se exporta para fora do
municipio.
De ponto a ponto, esqueletos de antigos barbaquás, ruinas, taperas
ou simples vestigios no terreno, atestando uma antiga prosperidade,
que existiu, sinal de extintos trabalhos, rememorando uma época de
atividade e ocupação dos nossos humildes caboclos (A Voz de Chapecó,
1939, p. 2).

Continua a reportagem argumentando que questões tributárias e a produção


ervateira do lado argentino levaram a crise a esse setor. Segundo o jornal, os
espaços “abandonados” poderiam, por sua vez, receber as criações de porcos,
cuja demanda começava a aumentar localmente.
Além do consumo próprio, muitos desses animais poderiam ser comprados
por criadores para a engorda e posterior comercialização, os quais, em alguns
lugares, eram também conhecidos como safristas. Roberto Lobato Corrêa
(1970, p. 93) descreve esse sistema da seguinte maneira: consistia na abertura
Artigo

de uma área, de tamanho variado, que poderia chegar a 100 hectares, ou seja, de
dimensões maiores do que até então eram feitas muitas das roças para a engorda
pelos pequenos e médios sitiantes. Após o milharal se desenvolver, os porcos
eram soltos para a engorda, sendo então comercializados. Mesmo os colonos,

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se não se dedicavam à criação nas florestas, passaram a participar dessa cadeia,


onde não era rara a atuação de compradores de animais ainda criados soltos em
áreas mais distantes dos núcleos de colonização para a engorda em milharais,
para seguirem, então, à comercialização. O agricultor Bruno Zimmermann, da
região de Pinhalzinho, relata da seguinte maneira esse processo da engorda
dos porcos com milho na região:

[...] e daí eles plantavam o milho e quando o milho chegava a lourar, daí
eles, é... eles largavam os suínos. [...] então eles deixavam o porco inté
terminar aquela dita lavoura de milho, inté que ele consumia aquilo e
daí levavam no comércio. Daí eles tocavam ele fora, às vez quilômetros e
noites e noites que eles tocavam pra lá e pra cá inté que eles chegavam
Entre florestas e as fronteiras: as paisagens do oeste

numa estrada, às vez inté perto o comércio tocava. E daí esse tal do porco
de Santa Catarina nas décadas de 1920 a 1960

ia pro frigorífico. De lá pra frente daí é com caminhão, com outros meios de
transporte (Zimmermann, 2017, p. 2).

Os criadores poderiam vender seus animais diretamente com as fábricas de


Marlon Brandt / Samira Peruchi Moretto

banha e derivados de carne locais ou para algum comerciante que poderia atuar
também na estação ferroviária mais próxima.

A criação de porcos: dentro e fora das áreas florestais

O suíno também foi adotado em larga escala pelos colonos que passaram a
se instalar no Oeste. O relevo dominado por encostas íngremes dos vales dos
principais rios do Oeste, como o do Peixe, Chapecó, Irani e demais afluentes do
Uruguai apresentava restrições ao gado bovino. Isso somado à existência das
florestas, cuja derrubada ocorria principalmente para a abertura das roças e não
das pastagens, fez com que o gado bovino fosse criado em menor quantidade,
atendendo principalmente às demandas domésticas de leite, derivados e como
tração animal. Dessa maneira, a criação de suínos surgia como uma alternativa,
principalmente se criado de forma confinada, inicialmente em mangueiras,
passando a desempenhar um importante papel na economia dessas famílias.
Essa forma de criação era compatível com a dimensão média das propriedades
Artigo

dos colonos, que possuíam em torno de 10 alqueires ou 24,2 hectares, adotando


para isso o que Paulo Fernando Lago (1988) denominou como “binômio milho/
porco”, combinado com o uso de sobras da roça. Esse binômio, no entanto, não
foi invenção dos colonos que se estabeleciam no Oeste. Ele já era observado

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em outras áreas de colonização, como na região de Urussanga e Vale do Itajaí,


da mesma forma que era também observado no Meio-oeste norte-americano
e na porção norte dos pampas argentinos, onde já se constatava “a eficácia do
enlace entre o mais notável cereal do Novo Mundo e a espécie porcina” (Lago,
1988, p. 289). Mesmo no Oeste antes da colonização, o milho já era adotado
pelos criadores, embora a vastidão das florestas fornecesse durante boa parte
do ano o alimento necessário, sobretudo o pinhão a partir do outono.
A compra dessa produção ocorria por meio de diversos comerciantes, que
atuavam na compra de produtos agrícolas e animais da região, sobretudo porcos,
e, no caso dos animais, também por produtores locais de banha e derivados
de carne suína. A produção dessas pequenas fábricas era destinada não só ao
Entre florestas e as fronteiras: as paisagens do oeste

comércio local, mas também a outras regiões, cujo transporte poderia ser feito,
no caso das áreas de colonização próximas ao Vale do Rio do Peixe, pela Estrada
de Santa Catarina nas décadas de 1920 a 1960

de Ferro São Paulo – Rio Grande, que interligava a região com o Sul e o Sudeste do
país. Eram também próximos às estações que se encontravam comerciantes que
despachavam via-férrea, cereais, alfafa e suínos, estes últimos para frigoríficos
Marlon Brandt / Samira Peruchi Moretto

do Rio Grande do Sul e Paraná (Corrêa, 1970; Espíndola, 1999; Ferrari, 2011).
O aumento na demanda pela banha relacionava-se, como salienta Corrêa
(1970, p. 89), à expansão do mercado consumidor, “que o comércio importador
não poderia suprir em função dos preços elevados dos artigos importados,
possibilitando o aparecimento de unidades fabris produtoras”. Com o surgimento
dos primeiros frigoríficos na segunda década do século XX, a criação de animais
passou a visar também ao mercado nacional, principalmente São Paulo e Rio de
Janeiro, que passavam por um processo intenso de urbanização, demandando
maior quantidade de carne e banha. E em Santa Catarina, a banha desempenhou
um importante papel na pauta econômica na primeira metade do século XX,
tendo como destino principal a região Sudeste (Bossle, 1988; IBGE, 1986). Nessa
época, as principais raças de porcos criados, como Macau, Caruncho, Tatu, Piau,
Canastra e Canastrão - variedades rústicas de origem ibérica e asiática, criadas
tanto nas florestas quanto nas encerras e mangueiras pelos colonos -, além
de apresentar resistência a doenças e facilidade de reprodução, eram próprias
para a produção de banha (Olinger, 1969).
Artigo

Essa produção tanto dos animais criados soltos na floresta quanto os criados
fechados pelos colonos marcou o surgimento e expansão dos frigoríficos na
região Oeste. Frigoríficos que surgiram a partir de pessoas de origem simples
e modesta. Existiam, nos nascentes núcleos coloniais, diversas pequenas
atividades manufatureiras, como atafonas, moinhos, fábricas de banha e salame,

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por exemplo; ou comerciantes que viviam da importação/exportação do sistema


colônia/venda, marcando a inserção da região no processo de mercantilização e
especialização produtiva. (Espíndola, 1999; Goularti Filho 2007). Esse sistema,
conforme Goularti Filho (2013, p. 160), originou uma acumulação lenta e
pulverizada e permitiu “o surgimento de uma diferenciação social, em que
alguns colonos mais abastados começaram a subordinar o trabalho e a pequena
propriedade, tornando-se madeireiros ou proprietários de frigoríficos”. No caso
da produção nos frigoríficos, esta passou a ocorrer sobretudo quando passou
a ser mais lucrativo realizar o abate e processamento da carne e da banha em
vez da venda dos animais vivos (Moretto; Brandt, 2019). Cabe destacar nesse
contexto o fato de que o escoamento da produção das regiões Oeste e do Vale
Entre florestas e as fronteiras: as paisagens do oeste

do Rio do Peixe era subsidiado pelo Governo Federal, concedendo vagões


gratuitamente entre os anos de 1932 e 1943 (Espíndola, 1999).
de Santa Catarina nas décadas de 1920 a 1960

O desenvolvimento das atividades madeireiras, junto com a abertura de


novas colônias, avançava sobre áreas cada vez mais remotas. As serrarias
exploravam tanto os pinheirais antes ocupados por famílias posseiras quanto
Marlon Brandt / Samira Peruchi Moretto

os encontrados em terras de fazendeiros e herdeiros empobrecidos pela


sucessiva divisão das terras, que viam na comercialização das árvores uma
forma de fazer dinheiro rapidamente, além de expandir a área de criação
bovina. Embora o preço das árvores fosse considerado baixo, a quantidade de
árvores envolvidas dava a impressão de se tratar de uma boa soma. Facilitava
essa exploração o caráter nômade de parte dessas serrarias, pois estas eram
“unidades relativamente simples, podendo ser desmontadas e transferidas para
outros locais de maior densidade de recursos arbóreos industrializáveis. Desse
modo, o caráter ambulatório é resultante habitual” (Lago, 1988, p. 273). “Ia se
mudando conforme o pinhal ia acabando, cortava e se mudava”, como relembra
Altino Bueno da Silva (2005), filho de posseiros e trabalhador em algumas
serrarias da região de Caçador nos anos de 1930 e 1940.

Considerações finais

Até o início do século XX, havia no oeste de Santa Catarina a presença de


Artigo

grupos indígenas e caboclos, caracterizada pela baixa densidade demográfica


e uma paisagem marcada pela presença da floresta e dos campos, que, embora
manejados, ainda possuíam suas principais características morfológicas. Com
os incentivos à colonização dessas áreas, chegaram os imigrantes e migrantes,
que foram gradativamente transformando a paisagem local. A presença da

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erva-mate nas áreas florestais foi um grande atrativo para ocupação.


Duas atividades econômicas eram propiciadas pela presença da floresta: a
extração da erva-mate e a criação dos animais, principalmente porcos criados
soltos. O avanço da colonização e da indústria madeireira a áreas cada vez
mais afastadas gradualmente foi diminuindo os espaços dominados pela
floresta, acarretando a diminuição de ervais nativos e a redução da área para
criação dos porcos. Em contrapartida, houve o aumento das áreas dedicadas
às atividades agrícolas. Os porcos passaram a ser criados de modo fechado,
em mangueiras ou chiqueiros, e gêneros alimentícios, sobretudo o milho,
passaram a ser produzidos para servir de ração para esses animais, sendo o
binômio milho-porco a principal característica da paisagem colonial do oeste
Entre florestas e as fronteiras: as paisagens do oeste

catarinense, correspondendo este a um dos principais elementos responsáveis


pela formação e consolidação do setor agroindustrial na região.
de Santa Catarina nas décadas de 1920 a 1960

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Agradecimentos

A pesquisa contou com os auxílios das seguintes agências de fomento:


Artigo

CNPq (401533/2022-0, Chamada 26/2021 - 409340/2021-9 Chamada 4/2021-


310850/2021-5); FAPESC (Edital 12/2020 – UNI2020121000338 e 16/2021 -
UFF2021331000005); UFFS (PES-2021-0553, PES-2022-0276, PES-2023-0230,
PES-2023-0046, PES-2023-0025 e PES 2023-0031, PES-2023-0044, e PES-2023-
0045).

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Notas
1
Doutor em História pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor do
Programa de Pós-graduação em História e do Programa de Pós-graduação em Geografia
da Universidade Federal da Fronteira Sul. E-mail: [email protected]. Orcid:
https://orcid.org/0000-0002-0392-4167.
2
Doutora em História pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora do
Programa de Pós-graduação em História e do Programa de Pós-graduação em História
da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected]. Orcid:
https://orcid.org/0000-0002-5276-2512.
3
Dentre as diversas companhias colonizadoras que atuaram no Oeste de Santa Catarina
a partir da década de 1920, podemos destacar algumas delas pela extensão territorial das
concessões, como a Brazil Development and Colonization Company, com sede em Portland
(EUA), atuando em Cruzeiro/Joaçaba e Chapecó; Empresa Colonizadora Luce, Rosa &
Entre florestas e as fronteiras: as paisagens do oeste

Cia, com sede no Rio Grande do Sul e área de atuação em Cruzeiro/Joaçaba e Concórdia;
Sociedade Territorial Mosele Eberle, Ahrons & Cia, com sede no Rio Grande do Sul e
de Santa Catarina nas décadas de 1920 a 1960

atuação em Cruzeiro/Joaçaba. Mais ao Oeste, encontrava-se a Irmãos Lunardi, com sede


no Rio Grande do Sul e Empresa Colonizadora Ernesto Bertaso, com sede no Rio Grande
do Sul e Santa Catarina, ambas atuando em Chapecó, e Companhia Territorial Sul Brasil,
com sede no Rio Grande do Sul e área de atuação na porção oeste de Chapecó. Mais
Marlon Brandt / Samira Peruchi Moretto

próximos à fronteira com a Argentina, atuavam a Empresa Chapecó-Peperi Ltda., Barth


Benetti & Cia Ltda., e Volksverein für die deutschen Katholiken in Rio Grande do Sul, todas
com sede no Rio Grande do Sul (Nodari, 2009).
4
O termo “caboclo” para autores como Délcio Marquetti e Juraci Brandalize Lopes da
Silva (2016, p. 109) designa “um dos habitantes das fronteiras do sul do Brasil, que aí
vive desde o período anterior à chegada dos colonizadores de origem europeia”. Mesmo
que, como aponta Paulo Pinheiro Machado (2004, p. 48), “não haja uma conotação
étnica nesta palavra, frequentemente o caboclo era mestiço, muitas vezes negro. Mas
a principal característica desta palavra é que distingue uma condição social e cultual,
ou seja, são caboclos os homens pobres, pequenos lavradores posseiros, agregados ou
peões”.
5
Autores como Gilmar Arruda (2000, p. 165) apontam que o sertão “não tem uma origem
geográfica precisa nem remete a um determinado local. Grosso modo, representa
muito mais um aspecto simbólico de lugar distante, deserto e despovoado do que uma
localização determinada, embora possa ser remetido, em algumas regiões, a lugares
específicos”. É possível, assim, afirmar que “sertão é uma descrição da natureza, uma
paisagem, ou muitas paisagens com o mesmo nome” designando diversas realidades
físicas, geralmente caracterizadas pela ausência de algo, que para Waibel, no caso, seria
a “civilização”.
6
Denominação também dada ao território contestado entre o Paraná e Santa Catarina,
após o acordo de limites firmado em 1916.
Artigo

Recebido em 09/07/2023 - Aprovado em 31/08/2023


Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.445-470, jul-dez. 2023 } 470
DOI: 10.5433/1984-3356.2023v16n32p471-499

Sudene: os percursos
sensíveis em relação à
pobreza

Sudene: The Sensitive Paths


in Relation to Poverty1

Fabio Silva de Souza2

Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.471-499, jul-dez. 2023 } 471


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Resumo: O Em meados do século XX, a dimensão do sensível


constituía a principal marca do discurso sobre a pobreza
seja na literatura, no ensaio ou nos relatórios científicos de
instituições especializadas em planejamento e pesquisas
sociais. Esse caráter permanente das reflexões foi ensejado,
entre outros fatores, pelo surgimento de órgãos comprometidos
em produzir um significado canônico para a realidade de
penúria do Nordeste brasileiro. Neste artigo, analisamos
Sudene: os percursos sensíveis em relação à pobreza

como a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste


– Sudene se constituiu como esforço para a construção e
adensamento dessa sensibilidade em relação à pobreza.
Palavras-chave: Sudene; sensibilidade; subdesenvolvimento.

Abstract: In the mid-20th century, the dimension of


the sensitive constituted the main hallmark of discourse
about poverty, whether in literature, essays, or scientific
reports from specialized institutions in planning and social
research. This enduring nature of reflections was fostered,
among other factors, by the emergence of organizations
Fabio Silva de Souza

committed to producing a canonical meaning for the reality


of poverty in the Brazilian Northeast. In this article, we
analyze how the Superintendence for the Development of the
Northeast - Sudene - established itself as efforts towards the
construction and deepening of this sensitivity towards poverty.
Keywords: Sudene; sensitivity; underdevelopment.
Artigo

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Introdução

No final dos anos 1950, a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste


– Sudene estabeleceu uma significativa ruptura em relação à dimensão sensível3
da análise sobre a questão da pobreza. O olhar técnico e estruturalista4 da Sudene
se caracterizava por duas perspectivas: a primeira consistia em reduzir o lugar
das ações individuais para o diagnóstico da situação de pobreza; a segunda, na
aposta do poder do planejamento técnico como o mais eficaz transformador
das condições econômico-sociais da região Nordeste. Essas novas perspectivas
estavam no polo oposto das análises de Josué de Castro (1946, 1957), João
Cabral de Melo Neto (1954, 1956), e das pesquisas desenvolvidas pelo Instituto
Sudene: os percursos sensíveis em relação à pobreza

Joaquim Nabuco (Freston, 2001; Jucá, 1991). A Sudene privilegiou um projeto


voltado para a superação estrutural da pobreza, no qual o olhar técnico e o
planejamento ocupavam o lugar da percepção historicista da pobreza, da
subjetividade do pobre em meio à fome, da subjetividade de quem observa
o pobre ou da subjetividade do pobre como produto de uma consciência de
mundo.
Neste artigo, buscamos evidenciar o redimensionamento das análises da
Sudene em relação à pobreza a partir das suas diretrizes teóricas, bem como de
sua natureza de órgão técnico de Estado. Essas análises são importantes porque
elas apresentam os limites e as contribuições das ações da Sudene frente às
realidades de penúria da região Nordeste e apontam o papel da autarquia na
Fabio Silva de Souza

construção do significado canônico que surge nesse meio de século XX em


relação às realidades de pobreza e miséria daquela região.

Sudene e JK: o complexo político, econômico e social dos anos 1950

A elaboração e a implementação das ideias que levaram à criação da Sudene,


em 1959, articulavam-se diretamente a dois fatores: às políticas governamentais
do então presidente Juscelino Kubitschek e à efervescência político-social da
região Nordeste, na segunda metade dos anos 1950. A ascensão de Kubitschek
à Presidência da República, em 1956, representou a vitória e a reorganização
Artigo

do Pacto Nacional Popular frente às forças políticas que o ameaçavam depois


do suicídio de Getúlio Vargas, em 1954 (Bresser-Pereira, 2015). O plano de
governo de Kubitschek compreendia um processo de modernização capitalista
com alguma abertura para o social, principalmente para o setor do operariado
urbano. O Plano Nacional de Desenvolvimento era a síntese desse novo projeto

Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.471-499, jul-dez. 2023 } 473


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de Nação. O Plano de Metas, como era popularmente conhecido, tinha como


finalidade alcançar trinta objetivos na esfera econômica privilegiando os
setores de energia, transporte, indústria de base e alimentação. Além desses
trinta objetivos, havia também a meta de construir Brasília (Silva, 2002).
A cientista política Maria Victoria de Mesquita Benevides, em sua obra
“O governo Kubitschek: Desenvolvimento Econômico e Estabilidade Política
1956-1961”, apontou que o sucesso do desenvolvimento econômico do governo
JK estava alicerçado no apoio das Forças Armadas e da bancada majoritária
do Congresso Nacional (PSD-PTB) ao Plano de Metas. Essas considerações
são particularmente significativas na medida em que a autora defendeu que o
plano econômico de JK logrou êxito em acomodar distintos interesses políticos
Sudene: os percursos sensíveis em relação à pobreza

e econômicos. Mas, como tanto a política quanto a economia não são jogos de
soma zero, a autora pontuou que a relação estabelecida entre o executivo, os
partidos políticos e as Forças Armadas produziu, ao mesmo tempo, diversas
crises no governo Juscelino Kubitschek. Na análise que fez dessas crises,
Benevides destacou o cenário político e econômico do ano de criação da Sudene
da seguinte forma:

Em 1959 as crises são de natureza especificamente econômica:


é o planejamento que corre o risco de não ser cumprido. É a fase
mais difícil do governo, pressionado externamente pelo FMI e
internamente pela oposição violenta ao mesmo tempo contra a
Fabio Silva de Souza

inflação e contra o Plano de Estabilização Monetária. Aumentam


o número de greves (e os ‘pactos de ação conjunta’), as atividades
das Ligas Camponesas, a oposição udenista contra pretensos
planos ‘continuístas’ de JK e a oposição de ‘esquerda’ quanto ao
capital estrangeiro [...] (Benevides, 1976, p. 50).

Por motivos distintos, a origem de todas essas crises foi o próprio plano de
desenvolvimento econômico do Governo Federal. O objetivo central do programa
econômico de Juscelino era “acelerar o processo de acumulação aumentando a
produtividade dos investimentos existentes e aplicando novos investimentos
em atividades produtoras” (Kubitschek, 1955, p. 39 apud Benevides, 1976, p.
Artigo

210). O método utilizado pela administração Kubitschek para lograr êxito nesse
empreendimento partia do tripé capital-estrangeiro/capital-estatal/capital-
industrial nacional. No âmbito externo, o executivo passou a sofrer pressão de
organismos internacionais quando diminuiu significativamente a capacidade

Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.471-499, jul-dez. 2023 } 474


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de atrair investimento externo e de oferecer as garantias de que conseguiria


pagar os empréstimos que subsidiou o rápido desenvolvimento econômico dos
primeiros anos do governo JK (Benevides, 1976; Skidmore, 1988). No plano
interno, as tensões entre os atores políticos tinham três ordens de fatores. A
primeira era a disputa em torno dos rumos que o desenvolvimento econômico
brasileiro deveria seguir. Nela, a expressiva participação do capital estrangeiro
na economia nacional era motivo de descontentamento das esquerdas
nacionalistas. No polo oposto, havia um grupo heterogêneo de economistas,
políticos, industriais e técnicos da equipe econômica do Governo Federal
que defendia o desenvolvimento brasileiro a partir de impulsos econômicos
externos e a partir de uma política econômica ortodoxa (Furtado, 2014). Além
Sudene: os percursos sensíveis em relação à pobreza

dessas disputas que visavam tutelar o desenvolvimento econômico nacional, as


pretensões continuístas de Juscelino Kubitschek elevavam as tensões na medida
em que ela desagradava os atores políticos que faziam oposição à administração
JK, mas também a amplos setores da base aliada. Por fim, a concentração dos
investimentos públicos e privados na região Centro-Sul do país aumentou as
disparidades regionais e, por conseguinte, contribuiu significativamente para o
aumento das tensões sociais na região Nordeste (Oliveira, 1977).
Esse último elemento foi decisivo para que Kubitschek colocasse em marcha
o projeto de criação da Sudene. A Superintendência do Desenvolvimento do
Nordeste foi concebida como uma resposta aos desafios sociais da região
Nordeste. Cabe destacar que a “questão nordestina" ganhava ainda mais
Fabio Silva de Souza

relevância para a administração JK por causa do triunfo da Revolução Cubana,


ocorrido em janeiro de 1959. Mesmo sem assumir inicialmente uma perspectiva
socialista, o caráter nacionalista radical e reformista do M-26 estimulava os
nacionalismos de esquerda na América Latina. Nesse sentido, era preciso
enfrentar os contrastes socioeconômicos internos para o Nordeste não se
tornar uma “nova Cuba”.
Nos anos 1950, a especificidade da “questão nordestina” girava em torno
do esgotamento do modelo econômico-social sustentado pela burguesia
agroindustrial do Nordeste. As bases do sistema econômico nordestino
estavam pautadas desde o século XVI na produção e exportação açucareira.
Artigo

A este complexo, se associou, a partir da segunda metade do século XIX, uma


incipiente estrutura industrial dedicada a abastecer o mercado regional e
alguns mercados no exterior5. No âmbito dos traços mais característicos, esse
complexo econômico era caracterizado pelo domínio de uma oligarquia secular.
A produção industrial do açúcar exigia grandes volumes de inversões em

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equipamentos e na qualificação da mão-de-obra. No entanto, as poucas famílias


que detinham o poder econômico e político na região se mantiveram alheias a
esses fatores, buscando a maior capacidade de lucro na intensa exploração dos
trabalhadores das usinas. A ausência de investimento, o pouco valor agregado e
a inércia política das oligarquias nordestinas foram determinantes para a baixa
produtividade econômica da região, na primeira metade do século XX.
As perdas acumuladas da capacidade produtiva da região Nordeste ao
longo dos anos criaram uma série de problemas de ordens política e social. A
dependência da economia nordestina ao setor açucareiro estimulou o aumento
do número de pobres e miseráveis na região, na medida em que o setor
açucareiro não conseguia absorver o excedente de mão de obra criado pelas
Sudene: os percursos sensíveis em relação à pobreza

secas sazonais. Além disso, contribuiu para intensificar o clientelismo entre


a burguesia agroindustrial e o Governo Federal. O executivo era solicitado a
resolver os problemas de infraestrutura da região, sempre que conveniente para
as oligarquias locais. As ações do Governo Federal beneficiavam diretamente
os interesses mais imediatos dos grandes latifundiários ao construir estradas e
açudes dentro ou nas proximidades das grandes fazendas.
A simbiose entre as oligarquias nordestinas e o Governo Federal se
intensificou a partir dos anos 1930. A crise do mercado agroexportador
brasileiro e a aceleração do processo de industrialização do Sudeste faziam a
burguesia agroindustrial recorrer cada vez mais ao Estado a fim de reverter
perdas ocasionadas pela estagnação da economia regional. Assim, mesmo
Fabio Silva de Souza

diante das mais contundentes crises, o grande latifundiário conseguia manter


sua margem de lucro, seja na intensa exploração dos trabalhadores das usinas,
seja por meio do assistencialismo do Governo Federal (Andrade, 1989; Moreira,
1979; Oliveira, 1977; Page, 1972). Esse complexo econômico-social explica a
permanência das estruturas arcaicas do Nordeste brasileiro e a persistência dos
grandes latifundiários em preservá-las mesmo diante da aceleração do processo
de industrialização nacional.

O prelúdio das ideias: o diagnóstico sobre o Nordeste


Artigo

Em 1958, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico – BNDE já


elaborava um diagnóstico sobre a realidade econômica e social nordestina. A
equipe do Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste - GTDN era
formada por Aluízio Campos, responsável pela diretoria do banco encarregada
de elaborar o estudo, e um grupo de técnicos das Nações Unidas. Esses técnicos

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realizavam estudos a partir de dados coletados em viagens que faziam à


região Nordeste. No entanto, a cooperação técnica BNDE - Nações Unidas não
lograva êxito em fornecer as informações necessárias a uma intervenção de
curto prazo na região nordestina. Essa circunstância levou a direção do Banco
a pedir apoio ao economista Celso Furtado que, naquele ano, se juntava à
equipe técnica da instituição. Os conhecimentos acumulados durante os anos
em que trabalhou na Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL)6, o
balizado conhecimento que o economista detinha do conjunto das realidades
política, econômica e social do Nordeste brasileiro e as facilidades em coletar
e processar dados que a estrutura do BNDE disponibilizava, possibilitaram
que Celso Furtado elaborasse o documento “Uma Política de Desenvolvimento
Sudene: os percursos sensíveis em relação à pobreza

Econômico para o Nordeste” (Furtado, 2014).


Tal documento foi dividido em cinco partes: “Introdução”; “O Nordeste
na economia brasileira”; “Elementos dinâmicos da economia do Nordeste”;
“Aspectos econômicos do problema das secas”; e “Plano de Ação”. O conjunto
das partes compreendia 94 páginas que delineavam as bases da política de
desenvolvimento do Governo Federal para a região nordestina. A base teórica
do documento concebia os problemas econômicos e sociais da “sociedade
do açúcar” como sendo pré-determinados pela peculiaridade dos processos
históricos da região. Nesse sentido, cabia à nova política de desenvolvimento:
localizar, avaliar e corrigir os “desvios” e os “deslocamentos” que ocorreram no
processo de formação do complexo econômico-social regional. Esse elemento
Fabio Silva de Souza

teórico orientou o Plano de Ação a agir sobre os resultados da desigualdade,


não sobre os processos que as constituíram em meados do século XX7.
Passemos a analisar como o documento produzido pelo economista
Celso Furtado configurava a pobreza, mas não as estruturas invisíveis que a
reproduziam naquele meio de século.
A “introdução” do documento “Uma Política de Desenvolvimento Econômico
para o Nordeste” sintetizava os pontos centrais da análise de Celso Furtado. Nela,
os arcaísmos regionais foram explicados a partir da tese dos “desequilíbrios
regionais”. Analisemos o que autor propunha, a partir dessa perspectiva, como
recomendação para modificar a realidade nordestina:
Artigo

O Plano de Ação apresentado neste documento está estruturado em torno de


quatro diretrizes básicas:
a) intensificação dos investimentos industriais, visando criar no Nordeste um
centro autônomo de expansão manufatureira;

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b) transformação da economia agrícola da faixa úmida, como vistas a


proporcionar uma oferta adequada de alimentos nos centros urbanos, cuja
industrialização deverá ser intensificada;
c) transformação progressiva da economia das zonas semi-áridas no sentido de
elevar sua produtividade e torná-las mais resistente ao impacto das secas; e
d) deslocamento da fronteira agrícola do Nordeste, visando incorporar à
economia da região as terras úmidas do hinterland maranhese que estão em
condições de receber os excedentes populacionais criados pela reorganização
da economia da faixa semi-árida (GTDN, 1959, p. 12).

A perspectiva teórica formulada e desenvolvida por Furtado indicava que


a região Nordeste estava em permanente crise desde a segunda metade do
Sudene: os percursos sensíveis em relação à pobreza

século XIX. Os repetitivos registros econômicos apresentados no documento


sugeriam a imagem de uma região atrasada por não ter um complexo econômico
sustentado por impulsos internos. A avaliação de Furtado se pautava no êxito
do Centro-Sul em criar elementos para um sistema econômico autônomo
a partir das crises e tensões internas da economia cafeeira. Nesse Nordeste
submerso em uma crise de longa duração, a pobreza e a miséria passavam a
ser analisadas pelo economista em uma nova dimensão. Diferentemente dos
literatos, ensaístas, bem como dos técnicos do Instituto Joaquim Nabuco, que
se colocavam na posição de observadores do cotidiano e das vidas das massas
empobrecidas, Furtado concebia a pobreza e a miséria como sendo resultantes
Fabio Silva de Souza

das ações de agentes econômicos ao longo dos processos históricos que


informaram a formação econômica e social da região Nordeste, resultando em
um colapso estrutural que alimentava o atraso. Essa perspectiva tinha impacto
direto nas recomendações do “Plano de Ação” na medida em que ela não dava
centralidade à figuração do pobre em seus prognósticos, concentrando-se
nas causas estruturais da pobreza. Em sua primeira diretriz, Furtado sugeria
a criação de “um centro autônomo de expansão manufatureira”. Nas palavras
do próprio autor, essa orientação visava criar uma nova classe dirigente
no Nordeste. Essa perspectiva sugeria que os problemas regionais seriam
equacionados na medida em que a “região problema” se tornasse um ambiente
adequado à reprodução do capital em escala comparável à região Centro-Sul do
Artigo

país. A recomendação redimensionava a narrativa sobre a pobreza na medida


em que não era imperativo descrever as condições em que as populações pobres
e marginalizadas viviam no campo e nas cidades. O diagnóstico precisava os
meios pelos quais a pobreza germinava e indicava a forma de superá-la.

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A segunda diretriz: “transformação da economia agrícola da faixa úmida, com


vistas a proporcionar uma oferta adequada de alimentos nos centros urbanos,
cuja industrialização deverá ser intensificada”, relacionava-se diretamente
com a anterior. Na faixa úmida, a economia agrícola era marcada pela baixa
produtividade. Em meados do século XX, as terras dessa região eram ocupadas
por engenhos que exportavam a sua produção para o Centro-Sul do país e
por lavouras de subsistência. Enquanto nos engenhos prevalecia um núcleo
social privilegiado economicamente, nos roçados imperava uma massa de
camponeses empobrecida cuja sobrevivência dependia daquilo que conseguia
plantar. As recomendações de Furtado não problematizavam essa dimensão
do complexo econômico-social da economia da faixa úmida. O argumento
Sudene: os percursos sensíveis em relação à pobreza

central do economista era o fato do conjunto dessa economia estar ligado aos
interesses econômicos da burguesia agroindustrial.

A economia da faixa úmida constitui caso típico de um sistema que


se formou e cresceu por indução de fatôres externos. Enquanto
a procura externa crescia, o sistema ia absorvendo fatôres
(mão-de-obra e terras) a um nível de produtividade crescente,
ou constante: tôda vez que enfraquecia a procura externa, a
absorção de fatôres se fazia na faixa da subsistência, com baixa
da produtividade média do conjunto da economia. A procura
externa jamais sofreu um colapso de grande magnitude, como
Fabio Silva de Souza

ocorreu no caso da economia da borracha. Nos últimos decênios,


as exportações para o exterior foram substituídas por exportações
para o Sul do país, com garantia de preços, o que permitiu ao
sistema atravessar uma crise de grandes proporções no mercado
internacional do açúcar, numa etapa caracterizada pela rápida
intensificação do crescimento demográfico (devido à queda da
taxa de mortalidade), sem sofrer modificações estruturais de
maior monta. O impulso de crescimento que a economia da faixa
úmida recebia das exportações de açúcar já se esgotou há muito
tempo. As importantes inversões realizadas nesse setor, com
recursos provenientes do Banco do Brasil, no decorrer do último
decênio, permitiram elevar a rentabilidade da indústria, cuja
Artigo

posição estava seriamente ameaçada dentro do próprio mercado


nacional. Sem embargo, como fonte de emprego e renda, o setor
açucareiro deixara de constituir um fator dinâmico no complexo
econômico nordestino. E o problema fundamental da região,
consiste, exatamente, em suprir a falta dêsse impulso dinâmico

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(GTDN, 1959, p. 50).

Furtado partia da ideia de que, se o conjunto dessa economia fosse


subordinado aos interesses da nova classe dirigente que seria formada no
Nordeste, os problemas relacionados à insuficiência da economia nordestina
seriam equacionados. Subjacentes às indicações de caráter econômico estavam
aspectos de ordem social das populações pobres que lutavam para se manter
vivas, a partir das arcaicas estruturas econômicas da região Nordeste. Portanto,
o modo de vida dos camponeses pobres era mais uma expressão do atraso do
que de uma alternativa ao colapso da “civilização do açúcar”.
Na sequência das recomendações do “Plano de Ação”, Furtado propunha uma
Sudene: os percursos sensíveis em relação à pobreza

intervenção na região do hinterland seco cujo propósito consistia em realizar


uma “transformação progressiva da economia das zonas semi-áridas (sic) no
sentido de elevar sua produtividade e torná-las mais resistente ao impacto das
secas” (GTDN, 1959, p. 14). Nos anos 1950, a economia da região semiárida
era marcada por três tipos de atividades: criação extensiva de gado, plantio de
algodão e agricultura de subsistência. A reprodução do capital desse complexo
econômico, no que diz respeito à ocupação da terra, mantinha substancial
diferença em relação ao sistema produtivo da faixa úmida. Nas zonas secas,
os latifundiários destinavam as maiores extensões de terras à criação de gado.
Os açudes construídos com recursos do Governo Federal ao longo da primeira
metade do século XX haviam contribuído significativamente para que o gado
Fabio Silva de Souza

conseguisse se adaptar ao clima inóspito da região. Os animais permaneciam


soltos requerendo pouca infraestrutura para gerar lucro aos proprietários. As
plantações de algodão ocupavam, igualmente, vastas extensões de terras. Em
algumas regiões do Sertão nordestino, a cultura algodoeira assumia maior
relevância que a pecuária (Melo, 1962). A herbácea de tipo mocó, cultivada no
semiárido nordestino desde o século XIX, era resistente ao solo e ao clima seco
da região. As melhorias dessa espécie em relação aos cultivares primitivos do
período colonial, possibilitava aos fazendeiros, sobretudo ao longo da primeira
metade do século XX, dispenderem menos recursos para a manutenção das
fazendas elevando, assim, as margens de lucro dos produtores. As lavouras de
Artigo

subsistência completavam o complexo econômico ocupando as menores faixas


de terras.
A renda monetária desse complexo econômico era gerada a partir da atividade
gado-algodoeira. No entanto, Furtado sugeria a economia de subsistência
como o elemento mais importante do conjunto econômico do hinterland seco.

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O argumento central estava no fato de que “O homem do campo trabalhava,


em primeiro lugar, para alimentar-se. A renda monetária que lhe vem da
meação do algodão e outras tarefas desempenha papel suplementar em seu
rudimentar sistema de vida” (GTDN, 1959, p. 63). Nesse sentido, as políticas
públicas deveriam concentrar esforços na reorganização do conjunto do
complexo econômico sertanejo. As ações não deveriam ser direcionadas para a
construção de novos açudes ou de abertura de frentes de obras públicas, vistas
pelo economista com potencial apenas para reduzir os efeitos sociais das crises
provocadas pelas secas. Na perspectiva apresentada no “Plano de Ação”, os
esforços deveriam consistir em fazer com que todas as camadas do complexo
econômico do hinterland seco passassem a se beneficiar das vantagens
Sudene: os percursos sensíveis em relação à pobreza

oferecidas pelas formas mais complexas de organização da produção. Furtado


expressava total confiança nas técnicas de planejamento econômico. O caráter
de suas análises não realizava qualquer juízo político ou moral da pobreza,
ou levava em conta as estratégias subjetivas de sobrevivência dos pobres. A
proposta do economista acenava para necessidade de uma intervenção do
Estado pautada em critérios rigorosamente técnicos.
Na última diretriz “deslocamento da fronteira agrícola do Nordeste, visando
incorporar à economia da região as terras úmidas do hinterland maranhense
que estão em condições de receber os excedentes populacionais [...]” (GTDN,
1959, p. 14), Furtado voltava a expressar a aposta no potencial do planejamento
econômico. Nos anos 1950, já existia um significativo fluxo migratório em
Fabio Silva de Souza

busca das regiões úmidas do Maranhão. No entanto, desde as primeiras levas


de migrantes, a ocupação dessas zonas úmidas mantinha um caráter sazonal.
As migrações ocorriam quando as insatisfatórias condições de vida nas zonas
do semiárido nordestino eram agravadas por rigorosas secas. Um conjunto de
fatores particularmente desfavoráveis como o semi-isolamento da região e a
falta de uma estrutura mínima para o plantio dos roçados contribuía para que
a situação nas terras úmidas maranhenses apresentasse condições ainda mais
precárias que as do semiárido. Isso levava muitos dos migrantes a retornar ao
hinterland seco após o período das secas. Em suas análises, Furtado levava em
consideração todos esses elementos, mas a sua perspectiva era a de um técnico
Artigo

a serviço do Estado. Nesse sentido, o economista estava implicado a resolver,


a priori, o principal problema enfrentado pelo Governo Federal nas regiões do
hinterland seco: evitar a migração dos camponeses dessa região para outras
áreas densamente povoadas.
Ao longo das recomendações apresentadas no documento “Uma Política de

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Desenvolvimento Econômico para o Nordeste”, o foco da narrativa estava em


avaliar as problemáticas em torno dos índices de produção e rentabilidade do
desenvolvimento econômico nordestino em relação aos índices apresentados
no Centro-Sul do Brasil. A partir dessa perspectiva, o economista apresentava
uma epistemologia para o desenvolvimento econômico da região Nordeste. No
período em que as organizações populares, a exemplo das Ligas Camponesas,
apontavam para um protagonismo político no âmbito institucional, as
configurações conceituais de Furtado se delimitavam, assim, a reproduzir
mimeticamente os pressupostos desenvolvimentistas que logravam êxito em
modificar as estruturas econômicas do Centro-Sul do país.
Nas recomendações do “Plano de Ação”, as análises técnicas dos fatores
Sudene: os percursos sensíveis em relação à pobreza

de troca e dos fatores de produção da região Nordeste se sobrepunham aos


diagnósticos voluntaristas, subjetivos ou meramente sensíveis só à pobreza.
Embora suas concepções fossem avançadas politicamente e heterodoxas
economicamente em suas recomendações, os princípios que informavam o
planejamento econômico apresentado pelo documento do GTDN eram estranhos
às necessidades colocadas na ordem do dia pelas organizações populares8. É a
partir desse quadro conceitual que o economista buscou estruturar as ações do
Governo Federal no Nordeste. As recomendações do GTDN serviram de base
para os primeiros Planos Diretores que definiram as regras, os parâmetros e os
instrumentos das ações da Sudene. Dito de outra forma, esse percurso teórico
evidencia a forma como a Sudene se aproximou da questão da pobreza, bem
Fabio Silva de Souza

como os princípios da perspectiva conceitual que se interpunha a maneira


como a instituição analisava as realidades da região Nordeste. E, como veremos
nos próximos itens, esses princípios foram ganhando novos elementos a partir
da atuação prática da instituição.

Sudene: o olhar técnico sobre a pobreza nordestina

Em 15 de dezembro de 1959 foi assinada a lei nº 3.692 que instituía a


Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste – Sudene. A nova instituição
tinha a finalidade de “Estudar e propor diretrizes para o desenvolvimento do
Artigo

Nordeste”; “Supervisionar, coordenar e controlar a elaboração e execução de


projetos a cargo de órgãos federais na Região e que se relacionem especificamente
com o seu desenvolvimento”; “Executar, diretamente ou mediante convênio,
acordo ou contrato, projetos relativos ao desenvolvimento do Nordeste que lhe
forem atribuídos, nos termos da legislação em vigor”; e “Coordenar programas

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de assistência técnica, nacional ou estrangeira, ao Nordeste” (Brasil, 1959, art.


2).
A referida lei preceituava que as ações da Sudene seriam coordenadas
pelo Conselho Deliberativo da instituição. A resolução nº 05 de 1960 fixava a
estrutura do Conselho com a seguinte composição: representantes dos nove
estados da região Nordeste; da Companhia do Vale do São Francisco (CVSF);
das Forças Armadas; do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas; do
Ministério da Viação e Obras Públicas; do Ministério do Trabalho, Indústria e
Comércio; do Ministério da Agricultura; do Ministério da Educação e Cultura;
do Ministério da Fazenda; do Ministério da Saúde; do Banco do Nordeste do
Brasil (BNB); do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico (BNDE); do
Sudene: os percursos sensíveis em relação à pobreza

Banco do Brasil; e pelo Superintendente da Sudene (Resolução n° 5 do Conselho


Deliberativo, 1° de junho de 1960). A partir da lei nº 3.995 de 14 de dezembro
de 1961, passaram a compor a estrutura do Conselho a representação do estado
de Minas Gerais; do Ministério de Minas e Energia; do Ministério da Indústria e
Comércio e da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) (Brasil, 1961).
No período inicial das suas atividades, a sede da instituição funcionou em
diversos endereços da cidade do Recife. A autarquia ocupou o décimo terceiro
andar do Edifício Tereza Cristina, no bairro da Boa Vista. Em seguida, passou
a funcionar na Av. Ruy Barbosa, 251. O último endereço da instituição, antes
do Golpe de Estado ocorrido em 1964, foi o décimo segundo andar do Edifício
Juscelino Kubitschek, localizado na Av. Dantas Barretos, no bairro de Santo
Fabio Silva de Souza

Antônio. O primeiro quadro de funcionários da instituição foi concebido a


partir de vários expedientes. Alguns dos mais destacados técnicos aportaram
em Recife junto com Celso Furtado. Entre eles figuravam: o sociólogo Francisco
Cavalcanti de Oliveira; o médico sanitarista Mário Magalhães da Silveira; o
agrônomo Estevam Strauss; os economistas Luiz F. Leite de Vasconcellos, Jorge
Monteiro Furtado, José Maria Aragão, Antônio Juarez Farias, Sulamir Carapajó
e Jader de Andrade; os advogados José de Medeiros Vieira, Nailton de Almeida
Santos, Edésio Rangel de Farias e José Carlos Cavalcanti; os engenheiros David
Kitover, Genival Barbosa Guimarães, Paulo Junqueira, José Boissy T. de Melo,
Walter Rocha de Oliveira e Alvarino Pereira de Araújo; o tradutor Ricardo
Artigo

Werneck; as secretárias Marlene Vieira de Melo, Eneida Vasconcellos e Maria


Inês Lira; o técnico em administração Osmário Lacet, e a técnica em organização
social Risoleta Cavalcanti (Furtado, 2014).
Levando em consideração a formação acadêmica de Celso Furtado, a
Sudene tinha nesses primeiros tempos: sete economistas, seis engenheiros e

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quatro advogados. Mesmo com a entrada de novos funcionários, a autarquia


privilegiava a formação técnica à frente dos principais cargos da instituição,
em detrimento de quadros oriundos da área da saúde ou das ciências humanas
(sociologia, antropologia). Ao lado de outros elementos que evidenciaremos ao
longo das análises, esse fator contribuía significativamente na conformação
do olhar técnico da Sudene sobre a pobreza nordestina, indicando um novo
paradigma na configuração do conceito de subdesenvolvimento e sua relação
com a figuração do pobre.
A lei que instituiu a autarquia fixava que a Sudene poderia requisitar
servidores de outros órgãos públicos, contratar temporariamente serviços
especializados e admitir pessoal técnico e administrativo para compor seu
Sudene: os percursos sensíveis em relação à pobreza

próprio quadro de funcionários mediante prova pública de habilitação. Essa


norma possibilitou à instituição recrutar o pessoal necessário ao início de suas
atividades. Inicialmente a Sudene contava com cerca de trinta profissionais.
Esse quadro foi ampliado significativamente com a publicação do primeiro
Plano Diretor da instituição, no final de 1961 (Mendes, 2017).
As sedes provisórias e o número reduzido de funcionários não limitavam
a atuação da Sudene. Nesses primeiros anos, a Superintendência firmou
cooperação técnica com vários organismos nacionais e estrangeiros. No
âmbito internacional, destacavam-se as cooperações estabelecidas com a
Organização das Nações Unidas – ONU e com a Agência dos Estados Unidos
para o Desenvolvimento Internacional – USAID. O que aproximava essas
Fabio Silva de Souza

instituições era o diagnóstico que elas faziam da pobreza. As multidões de


pobres e miseráveis que externavam suas mazelas no campo e nas cidades eram
avaliadas e representadas, a depender da instituição que realizava a apreciação
crítica, como ameaça à estabilidade política nacional, internacional ou, no
limite, à democracia ocidental. Embora a repercussão política e os objetivos que
as levavam a agir sobre a pobreza fossem distintos e, por vezes, diametralmente
opostos, essas instituições compartilhavam da ideia de que cabia ao Estado
equacionar o problema.
No plano interno, além das cooperações estabelecidas com as instituições
que compunham o Conselho Deliberativo, sobressaiam-se os intercâmbios
Artigo

técnicos entre a Sudene, o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais e


a Universidade do Recife. Na alçada das cooperações público-privadas, a
autarquia criou sociedades de economia mista. Desse intercâmbio surgiram as
Centrais de Abastecimento do Nordeste S.A. (CANESA); a Companhia de Águas
e Esgotos do Nordeste (CAENE); a Companhia de Eletrificação do Nordeste

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(CERNE); a Pesca do Nordeste S/A (PENESA); a Companhia Nordestina de


Perfuração de Poços (CONESP); e a Companhia Nordestina de Serviços Gerais
(CONESG). Essas empresas formavam uma rede técnico-burocrática para agir
nas áreas de pouca atração para o capital privado. Elas cumpriam, igualmente,
o papel de suprir a insuficiência institucional de alguns estados que estavam
dentro dos limites da jurisdição da Sudene. No âmbito legal, a Sudene detinha
o controle acionário e do capital dessas empresas que exerciam a função de
subsidiárias da autarquia (Nascimento, 2011, p. 103-107). Assim, não obstante
as dificuldades, essa fase foi marcada por significativas ações de planejamento
regional (Pernambuco, 2015).
O enfoque dado a essas ações era pautado pelo primeiro Plano Diretor e
Sudene: os percursos sensíveis em relação à pobreza

pelas decisões tomadas no Conselho Deliberativo da instituição. Do ponto


de vista legal e científico, as atividades da Sudene eram reguladas pelo Plano
Diretor. O documento estava dividido em dez partes: “Introdução”; “Ação do
Governo Federal no Nordeste”; “Aproveitamento racional dos recursos de
água”; “Reestruturação da economia agrícola”; “Política de industrialização”;
“Racionalização do abastecimento”; “Aproveitamento dos recursos minerais”;
“Recursos de mão-de-obra e sua redistribuição regional”; “Investimentos
ligados à saúde pública e à educação de base”; e “Levantamentos cartográficos”9.
As cento e cinquenta e três páginas do documento partiam das concepções
teóricas e das diretrizes formuladas em “Uma Política de Desenvolvimento
Econômico para o Nordeste”. Passemos a analisar como as diretrizes do
Fabio Silva de Souza

plano regional de desenvolvimento da Sudene se fundamentavam em uma


sensibilidade técnico-econômica10 em relação à pobreza.

II – Criação de uma infra-estrutura econômica


Nas economias subdesenvolvidas e de pouco dinamismo, os
investimentos infra-estruturais assumem, muitas vêzes, caráter
pioneiro, já que possibilitam a incorporação de recursos e fatôres, num
nível mais alto de produtividade, provocando a ruptura de estruturas
arcaicas, mediante a abertura de novos mercados, etc. Contudo, não se
deve esquecer, em nenhum momento, o fato de que êsses investimentos
são tipicamente reprodutivos, devendo submeter-se a rigoroso critério
Artigo

sua aplicação. Cabe não perder de vista, em primeiro lugar, que a fôrça
germinativa está menos no investimento do que no complexo econômico
em que ele se insere, sendo necessário partir de cuidadoso estudo deste
último. Em segundo lugar, é necessário não esquecer que o investimento
infra-estrutural mal orientado significa mais do que perda de recursos

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escassos, pois implica a criação de um fluxo indefinido de recursos


malbaratados, representado pelos custos de operação deficitário que o
Poder Público terá de cobrir (SUDENE, 1966, p. 20).

Nessa síntese, a respeito dos investimentos em infraestrutura, o Plano


Diretor reelaborava o preceito básico das ideias apresentadas no diagnóstico
do GTDN: a confiança no potencial das técnicas de planejamento econômico
como instrumento capaz de desfazer as arcaicas estruturas da sociedade
nordestina. Sob essa perspectiva, a superação do subdesenvolvimento regional
passava por um duplo paradigma: investir em setores com capacidade imediata
de responder aos estímulos econômicos e na constante observância dos custos
Sudene: os percursos sensíveis em relação à pobreza

do capital estabelecidos pelo lucro e pelos incentivos às inversões dirigidas


àquela região11. Nesse sentido, o programa de planejamento técnico-econômico
da Sudene enquadrava os problemas culturais, sociais, sanitários, demográficos
e políticos que também informavam a condição de subdesenvolvimento do
Nordeste em uma configuração conceitual pré-determinada. Essas dimensões
eram analisadas a partir de um olhar econômico que abarcava a subjetividade
de homens e mulheres em meio à pobreza valorizando os traços comuns
apresentados pelos indivíduos nas distintas esferas que compõe a organização
social. A primazia desse enquadramento contribuía para evitar discussões com
potencial para atrair a oposição das oligarquias locais aos projetos desenvolvidos
pela Sudene. Entre os temas evitados estavam: estrutura fundiária e a baixa
Fabio Silva de Souza

qualificação da mão-de-obra, para citar dois temas caros aos diagnósticos


sobre o subdesenvolvimento nesse meio de século XX. Nesse sentido, havia
institucionalmente um esforço para que as ações da autarquia fossem vistas
pelas autoridades políticas da região como sendo estritamente técnicas, isto
é, despidas de qualquer interesse político partidário. Essa estratégia política
potencializava os limites da visão técnico-econômica da Sudene em relação a
análises estruturais da realidade social na qual a Superintendência intervinha.
A esse respeito, vejamos o que informava o Plano Diretor em relação a
“Reestruturação da economia agrícola”:

O simples exame dos dados estatísticos revela a dupla natureza


Artigo

das dificuldades que se fazem sentir na agropecuária nordestina:


incapacidade estrutural para responder às solicitações do
mercado, em anos normais, e impacto intermitente das sêcas,
determinando uma seqüência de crises de produção, com

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bruscas interrupções no processo de capitalização. Em face da


baixa capitalização e da escassez relativa de terras acessíveis à
agricultura, a tendência do desenvolvimento do setor tem sido
no sentido de uma maior pressão sôbre as áreas densamente
povoadas do Agreste, do Brejo e das Serras: e da expansão das
lavouras pelo Sertão semi-árido, a distância cada vez maiores
dos centros consumidores do Litoral, tornando toda a economia
regional ainda mais vulnerável às secas (SUDENE, 1966, p. 22).

A Sudene fazia uma opção pela análise quantitativa das realidades da região
Nordeste. Na medida em que o objetivo da autarquia era realizar intervenções
com impacto direto na realidade social da região, esse instrumento de análise
Sudene: os percursos sensíveis em relação à pobreza

se demonstrava inadequado. As ações realizadas no Nordeste pela Organização


das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) e o trabalho
desenvolvido pelo Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais demonstravam
que as análises de fenômenos sociais totais e intervenções em sociedades
restritas deviam partir de análises qualitativas. As análises quantitativas e
intensivas não abarcavam todas as dimensões que informavam a condição de
região subdesenvolvida do complexo social Nordestino. A escolha desse método
de análise cumpria a função de impor uma linguagem técnico-econômica ao
debate que se estendia para além das fronteiras do estritamente econômico,
mas também tentava blindar politicamente a Sudene, o que nem sempre foi
Fabio Silva de Souza

logrado. Esse limite tênue que informa a sensibilidade dos técnicos da autarquia
em relação à pobreza teve impacto decisivo na política de industrialização
desenvolvida pela Superintendência. Vejamos de que forma:

A industrialização do Nordeste encontra sólidas bases econômicas para


firmar-se, tanto do ponto de vista da existência de mercado local para
produtos de consumo geral, como da disponibilidade de matérias primas
e oferta elástica de energia elétrica, nos principais centros urbanos.
Acresce, ainda, a vantagem representada por uma mão-de-obra barata.
A política de industrialização do Nordeste, formulada pela SUDENE,
está orientada nos seguintes eixos de ação:
a) criação de uma adequada estrutura de transportes e energia que
Artigo

possibilite a distribuição geográfica da atividade industrial, em função


dos mercados e das fontes de matéria prima, evitando-se porém,
concentrações excessivas;
b) coordenação dos incentivos proporcionados pelo Poder Público à

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iniciativa privada, objetivando multiplicar o valor real dos mesmos e


preservar os objetivos sociais da política de desenvolvimento;
c) modificação da estrutura industrial, mediante a criação de indústrias
básicas altamente germinativas, como a siderurgia;
d) reorganização e reequipamento das indústrias tradicionais, com real
viabilidade econômica na região, prejudicadas em seu desenvolvimento
por fatôres institucionais ou circunstanciais, como a têxtil algodoeira;
e) aproveitamento, em grande escala, de matérias primas locais de oferta
estruturalmente excedentária, visando estabilizar a atividade no setor
primário, como é o caso da indústria da borracha sintética à base de
álcool;
f) reestruturação das atividades artesanais, visando elevar a renda de
Sudene: os percursos sensíveis em relação à pobreza

importante grupo de população que encontra meio de vida nas mesmas;


g) formação de mão-de-obra especializada ou semi-especializada, tanto
para as novas indústrias como para aumento da eficiência das indústrias
tradicionais (SUDENE, 1966, p. 23).

A Sudene partia de uma explicitada perspectiva de que era preciso reformar


as estruturas de trabalho, de produção e de relações sociais no Nordeste, como
argumentamos ao longo das análises. No entanto, os princípios diretores, nos
quais estabelecia sua posição doutrinária, objetivava superar os arcaísmos
julgados insatisfatórios a partir de ações estruturadas em pressupostos
Fabio Silva de Souza

idealizados. A execução dos planos da política de industrialização era


previamente regulada por interesses econômicos que projetava a superação
da condição de subdesenvolvimento regional em medidas de longo prazo. Isso
implica dizer que essas diretrizes, ao fim e ao cabo, impunham uma distância
entre as realidades sociais, políticas e mesmo econômicas da região e as
intenções projetadas nas ações da Superintendência. Em grande medida, esse
hiato era uma espécie de consequência direta estabelecida pelo olhar técnico-
econômico que a autarquia imprimia em relação à pobreza. Dito de outra forma,
a Sudene assentava suas diretrizes em uma perspectiva científica que buscava
delinear os novos rumos da região a partir da organização técnico-econômica
dos quadros de vida, trabalho e produção tendo como princípio o progresso
Artigo

material. Assim, suas ações visavam organizar tecnicamente a melhoria das


condições de vida de homens e mulheres pobres daquela região através de ações
que pudessem criar, a longo prazo, as condições do progresso social almejado
por setores à esquerda e à direita do espectro político brasileiro.

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As tramas da sensibilidade da Sudene: da lógica afetiva técnica à lógica


afetiva política

Para Pierre Ansart (2019, p. 22), “O próprio termo ‘sensibilidade’ sugere


que designamos fenômenos coletivos que têm a especificidade de serem
interiorizados, de serem ao mesmo tempo objetivos e subjetivos”. Os princípios
diretores da Sudene cumpriam papel fundamental na efetivação dos vínculos
coletivos na instituição. O quadro técnico da autarquia era formado pelo Curso
de Seleção e Treinamento. O curso tinha duração de cinco meses e capacitava
os novos funcionários em desenvolvimento econômico. Nele, o cerne principal
era o de que os novos quadros, independente da área de atuação, enxergasse
Sudene: os percursos sensíveis em relação à pobreza

a realidade nordestina como um problema de desenvolvimento econômico


(Nascimento, 2011, p. 78-79). Os advogados, engenheiros, sociólogos,
psicólogos, agrônomos, economistas, médicos e demais técnicos da instituição
partilhavam dessa sensibilidade, cuja conformação partia das concepções de
Celso Furtado, o principal articulador da base teórica do curso. Assim, a lógica
afetiva interna à Sudene orbitava, de todos os modos, em torno dos conceitos
fixados por Furtado nos princípios diretores da instituição. No plano das
relações com outros órgãos, a lógica afetiva era mediada no âmbito do Conselho
Deliberativo.
O Conselho da instituição discutia os temas mais relevantes do plano de
desenvolvimento do Nordeste. As representações que compunham o colegiado
Fabio Silva de Souza

eram responsáveis por debater e aprovar os Planos Diretores da autarquia;


definir a ordem de prioridade dos projetos e fiscalizar a sua execução; aprovar
incentivos fiscais a empresas privadas; elaborar relatórios anuais para informar
à Presidência da República sobre as ações executadas pela instituição; e
aprovar os relatórios trimestrais da secretaria executiva da Sudene. As datas
das reuniões eram fixadas pelos membros do Conselho. As sessões iniciavam-
se com as palavras do Superintendente da Sudene registrando as presenças e
colocando em votação a escolha do presidente da sessão. O eleito para dirigir
os trabalhos do dia realizava a leitura da ata da reunião anterior e a submetia
à votação. Na sequência das atividades, o presidente da sessão conduzia a
Artigo

leitura do expediente e distribuía aos presentes, antes de retornar a palavra


ao Superintendente para que ele apresentasse o relatório das atividades da
Secretaria Executiva da Sudene.
Os informes de Celso Furtado abrangiam temas pertinentes às atividades
do gabinete do Superintendente, do Departamento de Pesquisa de Recursos

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Naturais; do Departamento de Atividades Econômicas Básicas; do


Departamento de Estudos Específicos; do Departamento de Controle e Ação de
Emergência; do Departamento de Assistência Técnica e Formação de Pessoal;
do Departamento de Atividades Internas; dos Grupos Especiais de Águas
Subterrâneas, de Abastecimento de Água, de Águas de Superfície, de Estudos
do Vale do Jaguaribe e de Irrigação do São Francisco; e dos demais escritórios
mantidos pela autarquia em diferentes estados da região Nordeste e Sudeste
do Brasil12. As exposições de Furtado abarcavam sempre as atividades mensais
desenvolvidas pelo órgão no correr do mês mais anterior. O debate entre os
conselheiros começava depois do relato do Superintendente, quando a palavra
era facultada aos demais presentes. O objeto das discussões variava a depender
Sudene: os percursos sensíveis em relação à pobreza

de quem tomava a palavra. Na sessão da reunião ordinária, realizada no dia


01 de junho de 1960, o representante do governo do estado do Ceará pediu a
palavra para ler uma mensagem do governador.

O Governador do Ceará, como Conselheiro da SUDENE, vem


expor e requerer a VV. Excias. a adoção de uma providência
capaz de abreviar o pagamento das indenizações devidas
aos habitantes do vale do Jaguaribe, face ao tombamento de
prejuízos levantado pela Comissão Inter-Ministerial presidida
pelo Snr. superintendente da SUDENE, tendo em vista os motivos
seguintes. Após a viagem que realizei aos municípios inundados
Fabio Silva de Souza

pelo rio Jaguaribe, julguei de minha obrigação levar ao Conselho


a que pertenço, a dolorosa situação em que se encontram os
prejudicados com destruições ou danificações, urgentemente
necessitados do pagamento dessas indenizações. Como o
Govêrno Federal reconheceu a culpa verificada no arrombamento
da barragem de Orós, o ressarcimento dos prejuízos adquiriram a
feição diferente do que é apresentada por outras áreas inundadas,
e assim urge que tão logo a Comissão aprove o levantamento
realizado pelos técnicos, proponha o pagamento das indenizações
através de crédito extraordinário, pois se o fizer através de crédito
especial, demorará demasiadamente a concessão do benefício.
Ante o exposto, solicito ao Conselho Deliberativo seja aprovada
Artigo

a presente indicação, afim de que o Snr. Superintendente da


SUDENE ultime, quanto antes, o trabalho da Comissão sob sua
presidência, sugerindo ao Exmo. Snr. Presidente da República
o pagamento das indenizações por credito extraordinário [...]
(SUDENE, 1960).

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O Conselho era um espaço de disputas políticas. Os governadores dos estados


comumente pautavam temas ligados as suas respectivas zonas de atuação.
A mensagem do governador do Ceará expressava preocupação em arcar com
os custos políticos e financeiros de tragédia, cujas causas estavam ligadas
diretamente ao Governo Federal. Nela, a figuração da pobreza era introduzida
como argumento para driblar os trâmites técnicos e burocráticos do governo.
Esse registro estava investido de um caráter de denúncia ao Conselho da
instituição responsável em avaliar a situação “de calamidade culposa” do vale
do Jaguaribe. O intuito do governador era obter do Conselho da Sudene apoio
político e o compromisso de que Celso Furtado iria intervir politicamente para
equacionar a situação apresentada. Em resposta à intervenção do representante
Sudene: os percursos sensíveis em relação à pobreza

do governo cearense, Celso Furtado respondeu que:

[...] a Comissão Interministerial, criada pelo Sr. Presidente da


República, é uma comissão simplesmente de tombamento dos
danos. Os trabalhos dessa comissão foram feitos, realmente,
pela SUDENE, com a ajuda das Fôrças Armadas e o relatório deve
estar pronto na próxima semana, pretendendo encaminhá-lo, de
imediato, ao Sr. Presidente da República. Adianta, que não se trata
de uma comissão de indenização. Será fixado, aproximadamente,
o vâlor das destruições causadas. Sr. Presidente, na alta sabedoria,
é que decidirá da forma como será encaminhada a matéria, se para
Fabio Silva de Souza

uma indenização imediata ou, se para outra forma qualquer. Diz


que, quanto a ação do Gôverno Federal, na região, deseja registrar
que talvez nunca o Gôverno tenha agido tão rápidamente,
em ajudar as populações, que antes mesmo das destruições, já
estavam sendo assistidas (SUDENE, 1960).

Quando Furtado indicava o caráter dos trabalhos realizados no vale do


Jaguaribe pela Comissão Interministerial presidida pela Sudene, ele dissolvia
toda a materialidade técnica dos argumentos postos pelo governador do Ceará.
No entanto, mais do que uma resposta técnica, a mensagem demandava uma
solução política. Na posição de Superintendente da autarquia, Furtado exercia
a função de mediar e acomodar, na medida do possível, todos os interesses. Isso
Artigo

implicava, durante as sessões do Conselho Deliberativo, assumir uma postura


mais política que técnica. No caso pautado pelo representante cearense, Furtado
defendeu enfaticamente o Governo Federal, mas tirou da alçada da Sudene
qualquer responsabilidade diante do exposto. Assim, mesmo não atendendo as

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reivindicações, o Superintendente não criava animosidades entre a instituição


e o conselheiro. Essa postura contribuía para Furtado lograsse êxito em obter
os apoios necessários para manter a primazia das suas ideias nos projetos
desenvolvidos pela Sudene. Depois de sua resposta , a palavra foi novamente
facultada e o representante do estado da Bahia fez a seguinte intervenção a
respeito do tema:

[...] a indicação do Governador Parsifal Barroso é justa, pois,


realmente, nós não podemos fugir a êsse problema, que
inclusive é um problema preparatório para qualquer tarefa de
desenvolvimento, isto é, nós precisamos repôr a situação como
Sudene: os percursos sensíveis em relação à pobreza

estava ontem. Apenas, cabe à SUDENE sugerir ao Presidente


da República, critérios objetivos, para evitar que se repitam os
métodos arbitrários que noutros tempos se utilizavam para
atender a emergências como esta que estamos atravessando
(SUDENE, 1960).

Nas palavras do conselheiro baiano encontravam-se dois registros: a


solidariedade política e uma espécie de reafirmação de que as “tarefas de
desenvolvimento” também eram construídas na seara política. Objetivamente,
a intervenção não agregava nenhum elemento novo ao debate, apenas criava
vínculos políticos caros às disputas travadas naquele colegiado. A discussão
Fabio Silva de Souza

seguiu com aparte do conselheiro do Ministério da Fazenda:

O Conselheiro José Neves, reportando-se à indicação do Gôverno


do Ceará, diz que vê na mesma, uma manifesta precipitação, pois,
o próprio texto da proposição dispõe em que o Superintendente
ultime os trabalhos e acha que o Conselho deve aguardar que o
Superintendente termine êsses trabalhos e faça a indicação que
êle achar conveniente (SUDENE, 1960).

A intervenção do representante do Ministério da Fazenda fixava um


entendimento a partir de uma perspectiva técnica e política. De forma
contundente, ele deslegitimava o caráter denunciativo da mensagem do
Artigo

governo cearense ao expor a precipitação da manifestação colocada em pauta.


Em seguida, mesmo se posicionando ao lado dos argumentos de Celso Furtado,
ele não isentava a Sudene de responsabilidade. Porém, argumentava que era
preciso aguardar o fim dos trabalhos para que o colegiado do Conselho se

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posicionasse em relação ao tema. Essa proposta foi à votação sendo aprovada


pelos demais conselheiros. Em outras oportunidades, o simples o argumento
técnico do Superintendente equacionava a disputa. Na sessão do Conselho
Deliberativo, realizada no de 04 de abril de 1962, o conselheiro do estado de
Pernambuco fez a seguinte intervenção:

O Governador de Pernambuco comentando o relatório do


Superintendente faz referência à questão do abastecimento;
diz que a crise advém de uma política agrária falha. Acha que a
estocagem, para enfrentar as crises, é necessária mas o aumento
da produção é o que deve interessar mais. Cita os casos da farinha
Sudene: os percursos sensíveis em relação à pobreza

de mandioca e do feijão, cujos preços subiram astronômicamente


por falta de produção. Comenta em seguida o problema da
colonização. Informa que o Estado possui áreas próprias e
indicadas para colonização, mas o problema requer vultosos
recursos (SUDENE, 1962).

Tal intervenção partia de uma crítica para localizar as causas do incipiente


abastecimento de gêneros alimentícios, tanto nas áreas urbanas quanto nas
zonas rurais. Apesar da crítica, a intervenção corroborava com as principais
diretrizes da Sudene quanto à resolução do problema: “aumento da produção”.
Em seguida, justificava que a situação poderia ser resolvida a partir da
Fabio Silva de Souza

colonização de áreas do território sob sua influência administrativa. Nas


palavras do governador de Pernambuco, o elemento político era colocado mais
uma vez em primeiro plano. Em resposta, Furtado esclarecia:

O Superintendente Celso Furtado, referindo-se ao abastecimento,


informa que o Gôrverno pôs à disposição da COFAP um crédito
rotativo para a aquisição de gêneros para o Nordeste. Não pode
informar com certeza os motivos por que a COFAP não colocou
os gêneros à disposição dos Estados. Sabe que ficou ao arbítrio da
COFAP o critério a ser adotado para a distribuição dos gêneros. O
crédito rotativo foi aberto como primeira massa de recursos e o
Gôverno comprometendo-se a liberar novos recursos (SUDENE,
Artigo

1962).

Nesse primeiro momento, Furtado centra sua fala em responder a crítica


do governador pernambucano. Como em outras oportunidades, ele isenta

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a Sudene de responsabilidades ao explicar que o repasse orçamentário foi


realizado para a instituição que deveria colocar os gêneros à disposição. Essa
fala é particularmente peculiar, porque o Superintendente omite o fato de a
Sudene ser responsável também por fiscalizar projetos e ações executados por
outras instituições. O debate continuou com o governador interrompendo a fala
de Celso Furtado e realizando uma segunda intervenção: “o problema continua
sem solução”. Com esse segundo posicionamento mais enfático do conselheiro
pernambucano, Furtado completou sua resposta, sendo interrompido mais
duas vezes, da seguinte forma:

O Conselheiro Celso Furtado, respondendo à questão da


Sudene: os percursos sensíveis em relação à pobreza

colonização, informa que o Plano Diretor não inclue verbas para


colonizar terras. Restringisse o programa a simples assistência
técnica. Está em entendimentos com o BID para mobilizar
recursos para colonização, quando seriam beneficiados os órgãos
estaduais especializados. [“O conselheiro Cid Sampaio pergunta
se o Estado de Pernambuco poderia receber alguma cousa dessa
assistência técnica” (sic)] O Conselheiro Celso Furtado diz que
fará o que estiver dentro das possibilidades financeiras do órgão.
Em verdade a SUDENE já vem operando em Pernambuco, nas
terras do Govêrno Federal, onde não havia nenhuma assistência.
Considera melhor começar por onde não há assistência porque
nas terras do Estado, a organização estadual competente já
Fabio Silva de Souza

vem atuando. [“O Conselheiro Cid Sampaio pergunta o que


vem sendo feito nas terras do Govêrno Federal, se há programa
de Colonização.”] O Conselheiro Celso Furtado explica que os
trabalhos dêste ano se limitam a uma assistência aos moradores
que já estão nas terras e que não têm nenhuma possibilidade de
utilizá-las. Alí estão em estado de miséria. Antes de se promover
uma colonização sistemática para criar condições de grande
produtividade foi necessário dar uma primeira ajuda àqueles
que não tem nenhuma possibilidade de utilizar terras férteis
(SUDENE, 1962).
Artigo

A resposta de Furtado foi mais técnica que política. Mesmo que em alguns
momentos o Superintendente desse indicativo de possibilidade de atender os
interesses do governo pernambucano na tentativa de arrefecer a suas investidas.
A cada reunião do Conselho Deliberativo, Celso Furtado precisava mediar
politicamente os diversos interesses em disputa para construir o respaldo

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necessário à política de desenvolvimento regional concebida pela Sudene. Essas


disputas estão presentes em todas as atas do Conselho Deliberativo entre os
anos de 1959 a 1964. As variações entre um viés mais político ou mais técnico das
respostas de Celso Furtado visavam construir uma afetividade política em torno
de suas concepções de desenvolvimento regional. Dessa forma, a sensibilidade
da Sudene se sedimentava a partir de dois modos distintos de afetividade que,
ao fim e ao cabo, se complementavam na construção da primazia de uma visão
técnico-econômica em relação à pobreza.

Considerações finais
Sudene: os percursos sensíveis em relação à pobreza

Nesse meio de século XX, as convergências e interações propiciadas pelo


ambiente urbano de Recife, sua sociabilidade e suas instituições, conformaram
um tempo histórico específico em termos de experiência intelectual em relação
à pobreza, adensando uma determinada leitura acerca do subdesenvolvimento
nordestino e brasileiro.
A Sudene cumpria um papel importante no esforço de significar a realidade
socioeconômica do Nordeste. O eixo conceitual que atravessava todos os
projetos da autarquia, com vistas a enfrentar a questão da desigualdade
socioeconômica regional, tinha a marca de estar apoiado em filtros de um
olhar-compreender-técnico. Nesse sentido, a instituição retrabalhou a
sensação dos sentidos formadora de imagens sensíveis apoiadas pela empatia/
Fabio Silva de Souza

simpatia e pela compaixão pelos pobres. Na Sudene, a sensibilidade estava


pautada no campo da racionalidade/razão tendo como pressupostos modelos
interpretativos formulados no pós-guerra por organizações internacionais e
espaços intelectuais como a CEPAL. A distância entre o campo dos sentidos-
sensações e o campo da razão-objetividade levou a instituição à compreensão
racional e às estratégias políticas e estruturais de como equacionar os problemas
de ordem econômica e social da região Nordeste.
No entanto, a ideia canonizada a respeito da pobreza e da miséria
regional partia do amálgama das múltiplas visões que colocavam os pobres e
miseráveis como objeto privilegiado de reflexão nesse meio de século XX. Se
Artigo

por um lado, o discurso da Sudene desfigurava o pobre para analisar a causa


estrutural da pobreza, é dessa narrativa estrutural que se adensará o conceito
de subdesenvolvimento para os setores da esquerda que tentavam conciliar a
figuração da pobreza, a subjetividade do pobre e a superação política das causas
da miséria.

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ATA_S1_004_1960.pdf. Acesso em: 20 abr. 2023.

SUDENE - SUPERINTENDÊNCIA DO DESENVOLVIMENTO DO NORDESTE.


Ata da vigésima terceira reunião ordinária do Conselho Deliberativo da
Superintendência do Desenvolvimento do nordeste, realizada no dia 4 de abril
de 1962. Disponível em: http://procondel.sudene.gov.br/acervo/ATA_023_1962.
Fabio Silva de Souza

pdf. Acesso em: 20 abr. 2023.

SUDENE - SUPERINTENDÊNCIA DO DESENVOLVIMENTO DO NORDESTE. I


Plano Diretor de Desenvolvimento Econômico e Social do Nordeste (1961-1963).
Recife: Div. Documentação, 1966.

Notas
1
Pesquisa financiada pela FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo (Proc. 2017/26955-8).
2
Professor Doutor – ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2215-0635. Concluiu o
doutorado no Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
Artigo

3
Entendemos o “sensível” como fenômeno que visa “influenciar os vínculos e as
repugnâncias, as esperanças e os temores, os sentimentos positivos e negativos em
relação a objetivos, instituições ou heróis da cena política.” Para uma compreensão mais
acurada do referido conceito ver (Ansart, 2019).
O pensamento estruturalista da Sudene concebia as dinâmicas econômicas nacionais a
4

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partir de análises que combinavam o estudo dos processos históricos e do comportamento


de agentes econômicos a partir de contextos definidos. Essa teoria foi formulada e
desenvolvida pelo economista Celso Furtado, ideólogo e primeiro superintendente da
SUDENE (Furtado, 2000, 2007).
5
Destacamos que a precária estrutura industrial do Nordeste era ligada aos setores
açucareiro e têxtil-algodoeiro. Restringiremos a análise ao propósito da linha
argumentativa deste artigo e falaremos especificamente da indústria açucareira. No
entanto, a fortuna crítica a respeito do tema não dissocia esses dois ramos ao analisar a
economia regional da primeira metade do século XX.
6
A Comissão Econômica para a América Latina é um órgão das Nações Unidas criado em
1948. Sediado no Chile, a Cepal tinha como missão produzir conhecimento especializado
sobre as dinâmicas econômicas da América Latina. Celso Furtado passou a compor os
quadros da instituição a partir de 1949 e foi um dos seus intelectuais mais atuantes até
Sudene: os percursos sensíveis em relação à pobreza

1957, ano em que resolveu deixar a Cepal para se ocupar de outros projetos.
7
O sociólogo Francisco de Oliveira já havia localizado esse caráter do documento base
da Sudene nos idos dos anos 1970. No entanto, embora estejamos de acordo com
essa assertiva, nossa linha de argumentação e nossa proposição neste artigo seguem
caminhos diametralmente opostos ao defendido pelo sociólogo pernambucano. Sobre
as teses de Oliveira ver: (Oliveira, 1972, 1977).
8
Manuel Correia de Andrade apresentou contundente crítica aos planos de colonização
da Sudene. Nos argumentos apresentados pelo autor, a efervescência política dos fins da
década de 1950 demandavam ações de curto prazo no sentido de resolver os problemas
colocados na ordem do dia pelos camponeses, ver: (Andrade, 1963). Nossa crítica parte
da cunha aberta por Manuel Correia, mas também das diretrizes econômicas formuladas
pelo Movimento Economia & Humanismo. Sobre este último ver: (Bosi, 2012; Cintra do
Prado, 1948).
Fabio Silva de Souza

9
O Ante-Projeto de Lei do Primeiro Plano Diretor de Desenvolvimento do Nordeste
foi aprovado pela Resolução nº 1 do Conselho Deliberativo da Superintendência do
Desenvolvimento do Nordeste, em sessão do dia 04 de maio de 1960. No entanto, o
Congresso Nacional transformou o documento em lei somente no final de 1961. Ver:
(Brasil, 1961).
Nomeamos de sensibilidade técnico-econômica os meios utilizados pela SUDENE para
10

enquadrar a pobreza como categoria analítica.


Buscando responder a objetivos distintos entre si e em relação a este artigo, outros
11

autores já deram indicações sobre o duplo paradigma da Sudene para superar o


subdesenvolvimento regional. Ver: (Moreira, 1979; Oliveira, 1977).
A partir do decreto-lei nº 52.346 de 12 de agosto de 1963, a estrutura da Secretária
12

Executiva passou a ser organizada da seguinte forma: Gabinete do Superintendente;


Assessoria de Cooperação Internacional – ACI; Departamento de Recursos Naturais
Artigo

– DRN; Departamento de Recursos Humanos – DRH; Departamento de Agricultura


e Abastecimento – DAA; Departamento de Industrialização – DI; Departamento de
Administração Geral – DAG; escritórios mantidos pela autarquia em diferentes estados
da região Nordeste e Sudeste do Brasil (Nascimento, 2011, p. 90-91).

Recebido em 24/07/2023 - Aprovado em 20/11/2023


Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.471-499, jul-dez. 2023 } 499
DOI: 10.5433/1984-3356.2023v16n32p500-527

Espiritismo e crítica
ultramontana: uma análise da
perspectiva católica em 1926
através dos artigos de Carlos
de Laet no periódico O Jornal

Spiritualism and ultramontane


critique: an analysis of the
catholic perspective in 1926
through Carlos de Laet's
articles in the newspaper O
Jornal

Espiritismo y crítica
ultramontana: un análisis de
la perspectiva católica en
1926 a través de los artículos
de Carlos de Laet en el
periódico O Jornal

Adriana Gomes1

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Resumo: Este artigo instrumentalizou uma metodologia


fundamentada na análise textual dos artigos publicados no
periódico O Jornal de 1926. O principal objetivo deste artigo
reside na minuciosa investigação do discurso propagado
pelo intelectual ultramontano Carlos de Laet, cuja influência
era amplamente difundida por meio do periódico carioca. A
pesquisa concentra-se na compreensão da perspectiva do
espiritismo sob a ótica do grupo católico que se opunha de
maneira enérgica às mudanças inerentes à modernidade.
Além disso, busca-se aprofundar a compreensão das diversas
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

formas pelas quais as práticas relacionadas ao espiritismo,


ou aquilo que à época era categorizado sob tal rótulo, eram
classificadas como manifestações supersticiosas. Através da
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

análise de cinco publicações específicas, é possível identificar


que Carlos de Laet empregou uma gama variada de adjetivos
distintos para qualificar o espiritismo, o que proporcionou
um terreno fértil para o desenvolvimento de debates e para
a veemente contestação dessas práticas por meio de suas
eloquentes retóricas. O cerne deste estudo se concentra
na investigação aprofundada das percepções e argumentos
utilizados pelo autor com a finalidade de criticar e refutar o
Adriana Gomes

espiritismo.O enfoque recai sobre a maneira pela qual o fenômeno


era percebido pela perspectiva do catolicismo ultramontano,
uma corrente que demonstrava notável resiliência diante das
profundas mudanças sociais e culturais que marcaram o período.
Palavras-chave: utramontanismo; O Jornal; Carlos de Laet;
espiritismo; pensamento intelectual.

Abstract: This article employed a methodology grounded in


the textual analysis of articles published in the 1926 edition
Artigo

of the O Jornal newspaper. The primary objective of this article


lies in the meticulous investigation of the discourse propagated
by the ultramontane intellectual, Carlos de Laet, whose
influence was widely disseminated through the pages of the
Rio de Janeiro-based newspaper. The research is centered on

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understanding the perspective of Spiritualism through the lens


of the Catholic faction that vehemently opposed the inherent
changes of modernity. Furthermore, this study aims to deepen
the comprehension of the various ways in which practices
related to Spiritualism, or what was categorized as such at the
time, were labeled as superstitious manifestations. Through the
analysis of five specific publications, it is possible to identify that
Carlos de Laet employed a diverse range of distinct adjectives
to characterize Spiritualism, thereby creating fertile ground for
the development of debates and the vehement contestation of
these practices through his eloquent rhetoric. The core of this
study focuses on the in-depth investigation of the perceptions
and arguments utilized by the author to criticize and refute
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

Spiritualism. The emphasis is on how the phenomenon was


perceived from the perspective of ultramontane Catholicism,
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

a faction that displayed remarkable resilience in the face of


the profound social and cultural changes that marked the era.
Keywords: ultramontanism; O Jornal; Carlos de Laet;
spiritualism; intellectual thought.
Adriana Gomes
Artigo

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Introdução

Carlos Maximiliano Pimenta de Laet (1847-1927) figura como um eminente


erudito brasileiro, cuja influência e proficiência abarcaram diversas esferas de
atuação, destacando-se de maneira notável em todas elas. Suas realizações
incluem o exercício da docência no prestigiado ‘Imperial Colégio de Pedro II’,
uma prolífica carreira como jornalista com contribuições disseminadas em uma
variedade de periódicos2, a honrosa filiação à Academia Brasileira de Letras e a
expressiva produção poética e literária, com obras notáveis como Em Minas e
Heresia Protestante (Lopes, 1964, p. 6-7).
No transcurso de sua vida, Laet fez questão de ressaltar duas paixões
preeminentes que orientaram suas convicções: a causa monárquica e sua fé
na Igreja Católica. Essas ardentes convicções encontraram expressão explícita
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

em suas obras, sobretudo em debates que orbitavam em torno do catolicismo,


como evidenciado em seu texto:
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

Queremos significar a predominância que para o eleitor católico,


deve ter o pensamento religioso sobre o interesse político, disse
eu que ante a competição de dois candidatos, um monarquista
ateu e outro republicano católico, não hesitar o eleitor em
sufragar o segundo (Laet apud Nogueira, 1958, p. 52).

Laet, como intelectual imbuído de suas paixões, não se furtou a tomar posições
firmes em questões polêmicas para defendê-las. Um exemplo notório reside em
Adriana Gomes

seus artigos publicados no periódico O Jornal em 1926, nos quais polemizou


vigorosamente contra o espiritismo, inicialmente classificando-o como
uma “superstição perigosa”. Nessa análise crítica da doutrina sistematizada
por Allan Kardec (1804-1869), Laet não apenas exortou os católicos a se
posicionarem contra o espiritismo, mas também instigou judeus e protestantes
a se unirem contra os adeptos dessa doutrina espírita. Vale destacar que Laet já
havia confrontado o protestantismo em 1907, considerando-o uma heresia, um
tema que foi abordado em sua obra Heresia Protestante e que gerou acaloradas
discussões com o pastor presbiteriano Álvaro Reis (1864-1925).
Artigo

Para contextualizar as ideias de Laet em nossa reflexão, é imperativo


sublinhar que a investigação sobre intelectuais tem experimentado uma
crescente relevância na abordagem histórica, notadamente através da História
Política. A história intelectual se propõe a abranger não apenas a análise das

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produções políticas, mas também a exploração dos múltiplos pressupostos


teóricos e metodológicos que concorrem para uma apreciação mais profunda
da complexidade da experiência humana.
A importância de investigar o pensamento de Carlos de Laet em sua defesa
do catolicismo tradicional3 reside no fato de que ele figura como um dos
escritores católicos profundamente envolvidos na dimensão religiosa do Brasil
durante as últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX. Como
figura intelectual, Laet confrontou vigorosamente outras correntes religiosas,
alicerçando a convicção de que os princípios tradicionais da Igreja Católica
representavam um modelo ideal, e, portanto, era necessário defendê-los em
contraposição às doutrinas religiosas de outras correntes. Esse engajamento
é evidenciado em seu confronto com o espiritismo, tema abordado em suas
polêmicas publicações no periódico O Jornal.
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

O intelectual na História Política


de Carlos de Laet no periódico O Jornal

A pesquisa sobre intelectuais tem conquistado um espaço cada vez mais


amplo na escrita da História. O conceito de “intelectual” e suas ideias estão
intrinsecamente ligados aos estudos de História Política, um campo que tem
ganhado significativa relevância nas últimas décadas. Portanto, é fundamental
que este artigo enfatize aspectos do pensamento de Laet.
Conforme a interpretação de Marcos Antônio Lopes (2003), a história
intelectual busca, entre outros objetivos, compreender as obras políticas e
Adriana Gomes

explorar os diversos e variados pressupostos teóricos e metodológicos que,


quando devidamente empregados, permitem a compreensão da complexidade
da dimensão do “fazer humano”.
A história intelectual passou por uma ressignificação e revitalização nas
últimas décadas do século XX e atualmente é considerada um dos campos
historiográficos de maior destaque. Segundo Jean Sirinelli (1998), dedicar-
se aos estudos dos intelectuais é uma oportunidade de explorar um domínio
de pesquisa de grande relevância, uma vez que permite a análise de diversos
e divergentes pensamentos políticos, destacando assim a necessidade de
Artigo

valorizá-la como objeto de estudo.


Na intertextualidade dos pensamentos políticos, um dos principais desafios
reside na análise e compreensão da dimensão da política, da estrutura de
poder e da cultura política, entre outros aspectos. São nesses elementos que
os intelectuais moldam suas interpretações do tempo, em conexão com seu

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espaço e contexto social (Faria, 2017, p. 30).


Para entender o pensamento de um intelectual, é crucial compreender
o indivíduo como alguém que possui a vocação de representar, articular
e comunicar uma mensagem, um ponto de vista, uma atitude, uma filosofia
ou opinião para e em nome de um público. O intelectual é caracterizado por
representar um determinado ponto de vista e por ter ligações representativas
com um público, mesmo que enfrente inúmeros desafios. Trata-se de uma
figura marcada por uma ação e uma atitude crítica contínua, manifestada em
sua produção como disseminador e promotor de (Said, 2005, p. 25-27).
O intelectual é considerado um agente potencial de princípios universais, aos
quais aqueles que se envolvem com suas ideias podem recorrer para orientar
seus padrões de comportamento, valorizando tanto a liberdade quanto a justiça.
Essa agência abrange tanto a esfera política, na qual desafia as estruturas de
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

poder estabelecidas, quanto as violações deliberativas dos padrões, nas quais


o intelectual, por meio de sua influência significativa, defende, denuncia e
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

combate concepções alinhadas com suas próprias percepções sobre o tema em


discussão (Said, 2005, p. 25-26).
Por outro lado, Sirinelli (1998) oferece uma concepção mais abrangente
do termo “intelectual”, enfatizando que a compreensão desse papel pode ser
interpretada de forma ampla e culturalmente construída. O intelectual pode
ser identificado tanto entre os criadores de conhecimento quanto entre os
mediadores culturais, com possíveis funções mais especializadas, dedicadas à
promoção das ideias às quais se associam.
Adriana Gomes

Nesse contexto, considerando a importância do estudo dos intelectuais, é


crucial examinar os aspectos do pensamento de Carlos de Laet em sua defesa do
catolicismo tradicional. É notável que, ao longo de sua carreira como intelectual
profundamente comprometido com a religião, Laet manteve diálogos com D.
Vital4 (1844-1878).
No entanto, enquanto Laet atuava como intelectual, produzindo livros
e contribuindo com publicações em jornais, D. Vital concentrava-se
principalmente na supervisão das condutas e em práticas estritamente pastorais
(Mainwaring, 2004, p. 46; Villaça, 2006, p. 11).
Artigo

Villaça (2006, p. 11) destaca que somente nas décadas finais do século XIX e
nas primeiras décadas do século XX o Brasil começou a contar com escritores
católicos que se dedicaram a defender o tradicionalismo católico, com exemplos
como Eduardo Prado (1860-1901) e Carlos de Laet, que permaneceu engajado
na defesa da Igreja até pouco antes de seu falecimento em 1927.

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Para Laet, a defesa do tradicionalismo católico não se limitava apenas à


promoção de seus princípios, mas também implicava em críticas constantes
às outras confissões religiosas. Ele partia do pressuposto de que os padrões
tradicionais de comportamento da Igreja Católica eram ideais e, para protegê-
los das influências de outras confissões religiosas, Laet se engajou no confronto
de ideias em seus escritos, como evidenciado em suas considerações sobre o
espiritismo no periódico O Jornal.

O Jornal, o Conservadorismo de Chateaubriand e a Contribuição de


Carlos de Laet

Carlos de Laet, um ativo escritor com diversas publicações em várias mídias,


é o foco de nossa investigação, concentrando-nos especificamente em suas
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

contribuições para O Jornal, periódico publicado no Rio de Janeiro.


Fundado em 1919, O Jornal foi concebido como uma resposta provocativa
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

ao Jornal do Commercio, criado por jornalistas dissidentes insatisfeitos com as


políticas deste último. O nome O Jornal surgiu devido à forma coloquial como
os leitores solicitavam o Jornal do Commercio, simplesmente declarando: “eu
quero o jornal!” O periódico apresentava uma aparência sóbria, com uma média
de doze páginas e ausência de manchetes de grande destaque. Na época de sua
criação, o exemplar do jornal custava 200 réis (Messina; Duque; Kaz; Braga,
2007, p. 10).
Em 1924, Assis Chateaubriand (1892-1968) adquiriu O Jornal com o objetivo
Adriana Gomes

de iniciar seu império na comunicação brasileira. Para realizar a aquisição do


periódico, o empresário precisou buscar apoio financeiro de diversas pessoas,
já que possuía apenas 170 contos de réis, sendo necessário reunir 5.700 contos
de réis para a compra (Messina; Duque; Kaz; Braga, 2007, p. 10).
O Jornal foi o pioneiro em uma série de publicações que posteriormente
compuseram os Diários Associados5, um conglomerado de jornais, revistas e
emissoras de rádio e televisão, sendo esta última introduzida por Chateaubriand
no Brasil em 1950 (Messina; Duque; Kaz; Braga, 2007, p. 10).
A obtenção do apoio financeiro por parte de Chateaubriand foi efetivada
Artigo

por meio de diversas estratégias, tais como empréstimos sem juros, a venda
de ações de uma Sociedade Anônima vinculada ao Jornal, algo inovador para a
época, além da obtenção de endossos de papéis e doações, entre outras fontes
de recursos. Virgílio Melo Franco (1897-1948) foi o responsável pela negociação
da compra em 1924, passando a integrar a diretoria do periódico e colaborando

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em diversas edições (Carneiro, 1999, p. 34; Ferro, 2015, p. 24).


Chateaubriand percorreu uma notável trajetória nas mídias de comunicação
no Brasil, sendo caracterizado por Nelson Werneck Sodré (1999, p. 361) como
um homem associado à “história da dívida”. Para concretizar sua ambiciosa
empreitada na comunicação, ele garantiu o apoio de influentes empresários
brasileiros, obteve a aprovação de representantes da economia internacional e,
relevante para nosso estudo, conquistou o respaldo da Igreja Católica (Messina;
Duque; Kaz; Braga, 2007, p. 10).
Chateaubriand empenhou-se em obter a aprovação do bispo da Arquidiocese
do Rio de Janeiro, Dom Sebastião Leme (1882-1942), e foi bem-sucedido nessa
empreitada. A aceitação de Dom Leme era de suma importância para o projeto
de restauração dos ideais conservadores, uma vez que suas percepções eram
consideradas as mais alinhadas, especialmente no que diz respeito à oposição
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

às ideologias socialistas. Esses princípios de restauração e combate ganharam


crescente apreço em diversos segmentos sociais (Soares, 2014, p. 50).
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

Em sua Carta Pastoral6 de 1916, quando ainda atuava na arquidiocese de


Olinda, Sebastião Leme delineou suas propostas para a Igreja Católica em uma
saudação aos diocesanos. Suas ideias ecoaram por todo o Brasil, o que levou, na
década de 1920, à sua indicação pela Cúria Romana para assumir a arquidiocese
do Rio de Janeiro na posição de arcebispo-coadjuvante, com o direito de suceder
ao Cardeal Arcoverde, que estava enfermo (Messina; Duque; Kaz; Braga, 2007,
p. 12-16; Soares, 2014, p. 50-51).
Sobre o acordo firmado entre Chateaubriand e o arcebispo Sebastião Leme,
Adriana Gomes

Alceu Amoroso Lima (1883-1983), conhecido por seu heterônimo Tristão de


Athayde, relatou:

Dom Sebastião Leme nos recebeu muito bem, deixando-nos


à vontade; diante do prelado, aquele homem destemido que
desafiava tudo e todos mostrava-se submisso e afirmava que O
Jornal estaria sempre ao lado do catolicismo. Ele concordou em
dar mais espaço aos artigos de Alceu Amoroso Lima e garantiu que
eliminaria de suas páginas a coluna de assuntos protestantes. Ao
sair do palácio, Chateaubriand elogiou a astúcia e a inteligência
Artigo

do bispo, acrescentando: 'Seu' Athayde, duvido muito que ele


creia em Deus (Athayde apud Messina; Duque; Kaz; Braga, 2007,
p. 12-13).

Com a orientação editorial claramente delineada após Chateaubriand

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assumir o controle do periódico, O Jornal se comprometeu a promover ideias


conservadoras. Em seu editorial de 2 de outubro de 1924, intitulado A Reação
Conservadora o empresário declarou, em nome da nova diretoria, que a “[...]
situação social e política da nação brasileira exige uma ação mais enérgica e
decidida, um combate mais vigoroso à direita, uma luta mais intensa contra os
males e vícios que afetam o organismo nacional [...]” (O Jornal, 2 out. 1924, p.
1).
Além de deixar claro em seu primeiro editorial, sob a liderança de
Chateaubriand, que seguiria uma orientação conservadora alinhada aos
defensores dessas ideias, O Jornal também se comprometeu a apoiar posturas
favoráveis à internacionalização da economia brasileira e à entrada de capital
estrangeiro no país. É importante mencionar que o periódico não apenas se
posicionou a favor dos conservadores, mas também enfatizou que essa era
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

uma guinada “vigorosa” à direita, combatendo a esquerda, que Chateaubriand


rotulava como “corja socialista” (O Jornal, 2 out. 1924, p. 1).
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

Para liderar a equipe de O Jornal, Chateaubriand contou com a colaboração


do ex-presidente da República, Epitácio Pessoa (1865-1942). A direção foi
atribuída a Alfredo Pujol (1865-1930) e Rodrigo Melo Franco de Andrade (1898-
1969). O cargo de diretor da redação foi confiado a Azevedo Amaral (1881-1942),
apesar de suas limitações físicas e de saúde. A função de redator-chefe ficou
a cargo do jesuíta Sabóia de Medeiros (1905-1955), posteriormente sucedido
por Austregésilo de Athayde (1898-1993). Alceu Amoroso Lima assumiu a
responsabilidade de crítico literário.
Adriana Gomes

Diversas personalidades de renome também contribuíram para o jornal,


incluindo o romancista e poeta inglês Ruddyard Kipling (1865-1936), laureado
com o Prêmio Nobel de Literatura, o ex-primeiro-ministro francês Raymond
Poincaré (1860-1934) e o ex-primeiro-ministro britânico Lloyd George (1863-
1945). Entre os colaboradores permanentes na produção de artigos, destacam-
se os historiadores Capistrano de Abreu (1863-1927) e Pandiá Calógeras (1870-
1934), o professor Fidelino de Figueiredo (1888-1967), que lecionava Literatura
na Universidade de São Paulo, Humberto de Campos (1886-1934), Paulo de
Castro Maya (1893-1928), Ferdinando Laboriau (1893-1928) e nosso objeto de
Artigo

estudo devido aos seus artigos em O Jornal, Carlos de Laet (Messina; Duque;
Kaz; Braga, 2007, p. 12-16; Soares, 2014, p. 70).
Nesse periódico de orientação conservadora, sob a liderança de Chateaubriand
e seus compromissos editoriais, Carlos de Laet desfrutava de uma coluna na qual
escrevia regularmente, em média duas vezes por semana, com total liberdade

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para expressar suas ideias, incluindo aquelas de natureza ultramontana.

Uma discussão conceitual de ultramontanismo

Antes de adentrarmos nas análises concernentes a Carlos de Laet e sua crítica


ao espiritismo no veículo de comunicação O Jornal, é de imperativa necessidade
que compreendamos certas percepções ligadas aos conceitos intrinsecamente
relacionados ao ultramontanismo.
Gustavo Oliveira (2019, p. 24-25) ilustra com acerto que os termos
ultramontanismo, ‘romanização’ e ‘reforma’ frequentemente são interpretadas
como sinônimos, todavia, há a premente necessidade de elucidarmos suas
distinções, ainda que compartilhem afinidades conceituais.
No âmbito brasileiro, Pedro Rigolo Filho (2006, p. 2-3) aduz que o termo
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

'romanização' pode ser aplicado ao período pós-Proclamação da República, no


qual se verificou a aproximação do catolicismo brasileiro com os cânones e ritos
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

romanos, viabilizada pela separação entre o Estado e a Igreja. Previamente a


esse cenário, como indicam Gustavo Oliveira (2019, p. 26) e Sérgio Coutinho
(2001, p. 13), prevaleciam os conflitos entre o poder eclesiástico e o poder civil,
com membros da Igreja Católica negligenciando suas obrigações espirituais,
resultando em uma manifestação deturpada do catolicismo no Brasil. O conceito
de ‘romanização’ simbolizou uma assimilação, orientada pelos interesses da
Igreja Católica, dos parâmetros históricos e teológicos, negligenciando as
específicas particularidades culturais e políticas.
Adriana Gomes

No que tange à terminologia ‘reforma’, Gustavo Oliveira (2019, p. 29) destaca


que não se referiu a um esforço de reconfiguração da Igreja Católica, mas
sim a uma “formação religiosa com influência na ortodoxia romana”, a qual
se aproximava mais do ultramontanismo, visto que ambos advogavam pela
reestruturação eclesiástica com base nas diretrizes pontifícias.
Por outro lado, o ultramontanismo, conforme definido por Ivan Aparecido
Manoel (2013, p. 18), emergiu na Igreja Católica após os estertores do processo
revolucionário francês nas últimas décadas do século XVIII, momento em que
Roma empreendeu esforços para reagir às transformações do mundo moderno,
Artigo

consolidando sua ortodoxia, que contrariava as novas perspectivas culturais,


políticas, de produção e relações sociais.

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Carlos de Laet no Jornal: sua abordagem do espiritismo

Os textos escritos por Carlos de Laet em oposição ao espiritismo e às


suas práticas ganharam notoriedade significativa no ano de 1926, mais
especificamente nas edições de O Jornal datadas de 22/04/1926, 29/04/1926,
06/05/1926, 20/05/1926 e 28/05/1926. É digno de nota que, mesmo com
Chateaubriand se aproximando do catolicismo e contando com colunistas de
orientação conservadora que se opunham às tendências modernas, o jornal
abriu espaço para a divulgação de notícias relacionadas a várias religiões. Essas
informações eram veiculadas em uma seção intitulada Religião, em que tópicos
como o catolicismo, o evangelismo, a teosofia, o ocultismo e o espiritismo,
entre outras crenças religiosas e espiritualidades, eram abordados em várias
edições. Entre essas, merecem destaque as edições de 30/03/1926, 10/04/1926
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

e 13/04/1926, devido à sua proximidade temporal com as publicações de Laet


que discutiremos no artigo.
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

É também relevante mencionar o interesse de O Jornal pela organização da


“Primeira Constituinte Espírita no Brasil”7. A estruturação desse evento foi
amplamente discutida na edição de 31/03/1926, intitulada As correntes espíritas
modernas, por meio de uma entrevista conduzida com Jarbas Ramos8, uma figura
de destaque no meio espírita. Durante essa entrevista, Ramos enfatizou que o
espiritismo tinha como seu “único e exclusivo objetivo pregar a moral cristã”,
uma posição que seria posteriormente contestada por Carlos de Laet em seus
artigos (O Jornal, 31 mar. 1926, p. 3).
Adriana Gomes

Não temos a intenção de abordar, neste artigo, a detalhada análise da 'Primeira


Constituinte Espírita no Brasil'. Entretanto, acreditamos que este tema poderia
servir como uma sugestão de pesquisa para investigadores interessados, dado o
acesso a várias fontes impressas relevantes. Durante nossa leitura do periódico,
observamos o compromisso deste em relatar as notícias relacionadas às sessões
da Constituinte Espírita, desde o seu início em 31/03/1926 até a sua conclusão
em 10/04/1926. Na edição de 11/04/1926, O Jornal anunciou a aprovação da
Assembleia Espírita do Brasil e, alguns dias depois, a fundação da ‘Liga Espírita
do Brasil’, com o desembargador Gustavo Farnese9 eleito como presidente (O
Artigo

Jornal, 10 abr. 1926, p. 1; O Jornal, 13 abr. 1926, p. 3).


Carlos de Laet, por meio de seus artigos publicados em O Jornal, abordou uma
ampla gama de tópicos, todos convergindo para sustentar sua crítica em relação
à modernidade, à República e a questões cotidianas. Entre esses artigos, ele se
posicionou de maneira contrária ao regime republicano e explorou temas como

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o “Estudo Psiquiátrico” no Brasil, bem como os desafios sociais resultantes dos


jogos em suas diversas formas.
As críticas mais contundentes de Carlos de Laet ao espiritismo foram
veiculadas no periódico O Jornal, nos meses de abril e maio de 1926, conforme
mencionado anteriormente. Todos os seus artigos sobre esse tema enfatizaram
a correlação do espiritismo com a superstição.
É importante notar que a Igreja Católica considerava o termo “superstição”
inaceitável e digno de rejeição. Nesse contexto, os rituais de exorcismo, parte
integrante da prática católica, eram cuidadosamente dissociados de quaisquer
elementos folclóricos, a fim de evitar associações com magia e superstição. A
Igreja estava empenhada em refutar a ideia de que o exorcismo poderia ser
percebido como mera encenação ou espetáculo.
Embora não existam indícios de que Carlos de Laet tenha fundamentado sua
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

consideração do espiritismo como superstição com base no Ritual de Exorcismo


da Igreja Católica, ele via a doutrina espírita como uma distorção das religiões
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

tradicionais, como o catolicismo, o protestantismo e o judaísmo. Qualquer


conceito que não se enquadrasse nesse sistema de crenças e hierarquias
eclesiásticas era rotulado como crendice e superstição em sua perspectiva,
apesar de sua aproximação com protestantes e judeus na oposição aos espíritas.
Portanto, é plausível concluir que ao utilizar o termo “superstição” para
descrever o espiritismo em seus artigos, Carlos de Laet buscava desacreditar
suas práticas. No entanto, vale ressaltar que, apesar das diferenças entre as
práticas de exorcismo da Igreja Católica e as crenças do espiritismo, ambos
Adriana Gomes

compartilhavam o objetivo de “desobsessar” as pessoas, libertando-as de


influências negativas atribuídas a supostos “espíritos maus”.
Os ensaios escritos por Carlos de Laet e publicados no periódico O Jornal
receberam os títulos sequenciais de Superstição Perigosa (22/04/1926);
Superstição Raivosa (29/04/1926); Superstição Pusillanime (06/05/1926);
Superstição Sophistica (20/05/1926); e Superstição Vesana (28/05/1926).
Destacamos que a primeira publicação, em nossa análise, teve o maior
impacto. Isso ocorreu porque, além de apelar para que protestantes e judeus
se unissem aos católicos na oposição ao espiritismo, como mencionado
Artigo

anteriormente, Carlos de Laet argumentou que o espiritismo não poderia ser


considerado uma confissão religiosa cristã, uma vez que contrariava princípios
judaico-cristãos. Portanto, ele defendeu a necessidade de uma aliança entre
judeus, católicos e protestantes contra os espíritas (O Jornal, 22 abr. 1926, p. 2).
O ponto central de convergência entre as três religiões, na oposição à doutrina

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espírita, residia na suposta prática dos espíritas de invocar os espíritos dos


mortos, o que contrariava a “lei divina de evocação dos mortos” expressamente
proibida no Antigo Testamento. A convocação de espíritos falecidos, uma
prática comum no espiritismo, ia de encontro aos princípios tanto dos judeus
quanto dos cristãos (O Jornal, 22 abr. 1926, p. 2).
Em relação à objeção dos judeus ao espiritismo, Carlos de Laet enfatizou em
O Jornal que “todos aqueles que consideram a legislação mosaica como divina
não devem ser espiritistas”. No caso dos protestantes, que fundamentavam suas
diversas seitas na doutrina da Bíblia, era igualmente lógico que condenassem
o espiritismo. Além dessas considerações, Laet argumentou que a ausência
do batismo entre os espíritas equivale a “renegar a fé” cristã, tornando-os
inelegíveis para serem chamados de cristãos. A observância do sacramento do
batismo era uma condição fundamental para aqueles que seguiam o cristianismo,
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

independentemente da denominação religiosa que seguissem. Dessa forma,


uma vez que os espíritas não praticavam o ritual do batismo, que simboliza
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

a transição de um ciclo de vida para outro por meio da imersão na água, eles
não poderiam ser identificados como cristãos. O batismo, conforme registrado
no Novo Testamento da Bíblia e realizado por Jesus Cristo, representava um
componente essencial do cristianismo (O Jornal, 22 abr. 1926, p. 2).

“Então Jesus veio da Galileia ao Jordão para ser batizado por João” (Mateus,
2013, 3:13).
“Portanto ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do
Adriana Gomes

Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que


eu vos tenho mandado” (Mateus, 2013, 28:19-20).

A abordagem de Carlos de Laet, ao não reconhecer os espíritas como cristãos e


ao alegar que eles violavam os preceitos do Antigo Testamento, são argumentos
que ecoaram na argumentação do legislador João Baptista Pereira (1835-
1899) quando ele se manifestou no Jornal do Commercio em 1890. Na ocasião,
Pereira estava respondendo às reivindicações dos espíritas, representados pela
Federação Espírita Brasileira, que haviam enviado uma carta ao Ministro da
Artigo

Justiça Campos Sales (1841-1913), solicitando a revogação do artigo 157 do


Código Penal de 1890, que criminalizava o espiritismo nas leis penais da recém-
estabelecida república (Jornal do Commercio, 23 dez. 1890, p. 2).
Baptista Pereira adotou uma postura de “bom cristão” e afirmou que perdoaria
os espíritas por suas interpelações junto ao Estado referentes à promulgação

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do artigo 15710. No entanto, ele caracterizou os seguidores da doutrina espírita


como “alucinados” que deveriam ser tratados com caridade, considerando-se a
si mesmo um verdadeiro cristão (Gomes, 2020, p. 278; Jornal do Commercio, 23
dez. 1890, p. 2).
É importante observar que João Baptista Pereira não se declarou
explicitamente como católico ou defensor de uma religião específica. Em vez
disso, ele reiteradamente se posicionou ao lado do cristianismo e contrapôs
a doutrina espírita com base em suas práticas. Ele suavizou sua retórica ao
enfatizar que respeitava as diversas crenças, considerando, portanto, o
espiritismo como uma crença religiosa, embora tenha destacado que suas
práticas eram “extravagantes” (Gomes, 2020, p. 279; Jornal do Commercio, 23
dez. 1890, p. 2).
A abordagem enfatizada por Carlos de Laet em seu primeiro artigo abordou
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

o suposto impacto das práticas espíritas sobre as funções cerebrais de seus


adeptos, alegando que isso levava muitos deles a serem internados em
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

“manicômios” com “doenças mentais” comparáveis àquelas causadas pelo


uso de “certas substâncias tóxicas, como cocaína, abuso de álcool e certas
predisposições mórbidas [...]” (O Jornal, 22 abr. 1926, p. 2).
Ademais, o intelectual literário, Carlos de Laet, destacou a associação
entre o que ele considerava uma “superstição perigosa” e o curandeirismo.
Ele enfatizou que a “ciência médica” não deveria ignorar os supostos danos
causados pelas alegadas “nevroses espiritistas” e argumentou que a prática da
medicina deveria ser conduzida por profissionais devidamente qualificados
Adriana Gomes

academicamente. Esses profissionais deveriam assumir a responsabilidade pela


“vida e saúde humana” (O Jornal, 22 abr. 1926, p. 2).
Essa perspectiva levou Carlos de Laet a concluir que os médiuns curadores
espíritas não deveriam mais se envolver nesse campo. Ele argumentou que suas
ações, independentemente de serem intencionais, motivadas pela “ganância”
e irresponsabilidade, ou mesmo inconscientes, influenciadas pela crença nas
supostas curas mediúnicas destinadas a aliviar o próximo, resultavam em
estatísticas alarmantes que indicavam efeitos prejudiciais (O Jornal, 22 abr.
1926, p. 2).
Artigo

Ao relacionar o espiritismo a problemas de saúde mental e danos à saúde


em geral, Carlos de Laet estabeleceu paralelos com o discurso de João Baptista
Pereira, que defendia a criminalização do espiritismo com base no argumento
de que a omissão diante da participação de pessoas enganadas na “indústria
que prejudica as finanças e compromete a saúde” equivaleria a conivência

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com práticas espíritas, especialmente considerando o aumento de casos de


transtornos físicos e mentais (Jornal do Commercio, 24 dez. 1890, p. 2).
É relevante notar que tanto João Baptista Pereira quanto Carlos de Laet,
ao apresentarem estatísticas para respaldar suas argumentações contra
as supostas curas espíritas, não forneceram dados oficiais. Em vez disso,
recorreram a percentuais presumidos para dar credibilidade a seus argumentos,
sem apresentar números concretos ou citar suas fontes de informação para
corroborar seus discursos.
Apesar de concordar com a necessidade de restringir a atuação dos espíritas
na área de cura, Carlos de Laet se diferenciou de João Baptista Pereira em sua
abordagem. Ele responsabilizou a ausência do Estado na criação de instituições
destinadas a beneficiar os economicamente menos favorecidos. O intelectual
católico observou “despesas inúteis” do governo em “comissões fictícias” e na
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

construção de “grandes edifícios consumindo milhares de contos” (Jornal do


Commercio, 24 dez. 1890, p. 2).
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

Ao chamar a atenção para a falta de intervenção estatal no cuidado dos mais


pobres e sua busca por assistência em instituições de caridade para obter cura
para suas enfermidades, Carlos de Laet refletiu sobre os problemas decorrentes
da falta de ação do governo em assumir a responsabilidade de retirar o cuidado
da cura das mãos da caridade e colocá-lo nas mãos da ciência.
A relação entre caridade e cuidados com a saúde no contexto brasileiro pode
ser analisada em várias perspectivas. Embora nossa intenção não seja discutir
extensivamente esse tópico, é essencial ressaltar alguns aspectos para entender
Adriana Gomes

a crítica de Carlos de Laet.


A Santa Casa da Misericórdia11, uma instituição sob o controle da Igreja
Católica, teve sua origem na devoção a Nossa Senhora da Misericórdia. Ela
desempenhou o papel de local para onde os enfermos se dirigiam em busca
de cura, frequentemente mediante preces direcionadas à piedosa santa, vista
como a mãe e protetora das pessoas afligidas pela dor da doença (Gandelman,
2001, p. 614; Miranzi; Assis; Resende; Iwamoto, 2010, p. 159-160).
Nas primeiras décadas do século XX, o Rio de Janeiro enfrentava altas taxas
de mortalidade e a escassez de hospitais públicos. Em vez disso, a cidade
Artigo

dependia de instituições filantrópicas apoiadas pelo governo e operadas por


voluntários. A Santa Casa de Misericórdia, no Rio de Janeiro, também servia
como local para abrigar doentes com doenças contagiosas (Gandelman, 2001,
p. 614; Miranzi; Assis; Resende; Iwamoto, 2010, p. 159-160).
É importante ressaltar, para o propósito desta discussão, que tanto no Rio de

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Janeiro quanto em Salvador, as Santas Casas de Misericórdia desempenhavam


a função de hospitais universitários. Não havia outras instalações disponíveis
para que estudantes de medicina pudessem realizar suas práticas clínicas.
Somente na década de 1920, o Estado começou a tomar medidas iniciais para
assumir o controle da assistência médica destinada aos menos favorecidos
economicamente (Sanglard, 2006, p. 12-13).
Em sua primeira publicação no periódico O Jornal, Carlos de Laet expressou
suas opiniões sobre o espiritismo, caracterizando-o como um “mal das
perturbações psíquicas”. Ele argumentou que a adesão da população ao
espiritismo decorria da “tendência mística” do povo, da ausência de “união
entre religião e ciência” e da falta de interesse do governo em investir em
saúde pública, incluindo hospitais, centros de atendimento e “sanatórios
para a população menos privilegiada que, atualmente doente e desamparada,
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

afundava na escuridão por falta de proteção”, ou seja, pela falta de investimento


público em instalações controladas por médicos academicamente qualificados,
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

deixando a população vulnerável às práticas dos supostos curandeiros espíritas


devido à negligência governamental (O Jornal, 22 abr. 1926, p. 2).
Na segunda publicação de Carlos de Laet, intitulada Superstição Raivosa, sua
postura tornou-se mais combativa em relação ao Centro Espírita Redemptor,
que operava no Rio de Janeiro desde o início do século XX e seguia a doutrina
do “espiritismo racional e científico cristão”, que considerava a doença mental
uma questão fundamental a ser tratada pelos seus membros. Essa abordagem
foi considerada inaceitável por Laet (Pereira Neto; Amaro, 2012, p. 494).
Adriana Gomes

É relevante destacar que, tanto no século XIX quanto nas primeiras décadas
do século XX, a expressão “espiritismo” frequentemente era utilizada de forma
abrangente para se referir a várias religiões mediúnicas12. Nos artigos, Carlos
de Laet confrontou não apenas o espiritismo kardecista, mas também as
práticas espiritualistas do Centro Espírita Redemptor, considerando-os dentro
do espectro do espiritismo. Ele fez distinções sutis entre eles, como veremos a
seguir.
A postura mais combativa de Carlos de Laet em relação ao Centro Espírita
Redemptor foi uma resposta a uma carta aberta enviada pelo próprio Centro ao
Artigo

professor Carlos de Laet. A carta acusava a Igreja Católica de selecionar jovens


de origem “espirituosa, elegante, nobre e rica” para oferecer “doações”, mas,
em caso de desobediência ao “chamado divino”, esses jovens seriam coagidos e
ameaçados com as “penas eternas” proclamadas pela Igreja. Laet foi associado
a essa situação porque, naquele momento, ocupava a presidência da Associação

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da Mocidade Católica Brasileira (O Jornal, 24 abr. 1926, p. 1).


A resposta do Centro Espírita Redemptor às críticas não se limitou apenas
a isso. Entre várias acusações, uma das mais proeminentes foi a alegação de
que parte das pessoas que buscavam ajuda no Centro devido a problemas
psicológicos eram vítimas do “fanatismo” da Igreja, que eles consideravam uma
“epidemia”. No entanto, não foram apresentadas evidências que sustentassem
essa acusação, e não houve comprovação das alegações feitas contra o Cardeal
Arcoverde de encobrir atitudes “corruptas” da “Santa Madre Igreja” (O Jornal,
24 abr. 1926, p. 1).
O Centro Espírita Redemptor foi fundado por Luiz Mattos (1860-1926), um
imigrante português. Ao estabelecer o manicômio, ele procurou incorporar
práticas espíritas em seus métodos, acreditando que a cura da doença mental
estava relacionada a uma influência espiritual obsessiva. Por esse motivo, os
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

pacientes passavam por sessões de desobsessão com a participação de médiuns


e assistentes. Durante essas sessões, os pacientes eram fixados em cadeiras com
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

amarras nas pernas e pulsos, destinadas a facilitar o processo de desobsessão


espiritual (Pereira Neto; Amaro, 2012, p. 494-496).
Os princípios e métodos do Espiritismo Racional e Científico Cristão foram
registrados em um livro intitulado “Espiritismo Racional e Científico Christão”,
supostamente organizado pelo astral superior que liderava o Centro Espírita
Redemptor no Rio de Janeiro. De acordo com este livro, datado de 1921, as
sessões eram iniciadas com a formação de uma “corrente fluídica”, composta
por pelo menos seis médiuns saudáveis, que não poderiam manifestar nenhum
Adriana Gomes

sinal de medo ou sonolência. Essa corrente tinha o objetivo de proteger os


médiuns e os participantes da sessão contra obsessões espirituais (Centro
Espírita Redemptor, 1921).
O funcionamento dessa corrente fluídica consistia em os supostos espíritos
presentes se aproximarem dos médiuns ao redor da mesa e só serem liberados
quando o presidente da sessão assim decidisse. Essa “corrente fluídica”
servia como um mecanismo de proteção para garantir um ambiente seguro e
controlado durante a sessão. O papel do “presidente da sessão” era fundamental
no tratamento e na cura dos pacientes com doenças mentais. Suas ações e
Artigo

decisões eram tomadas com calma e moderação, sem levar em consideração as


opiniões dos demais participantes (Centro Espírita Redemptor, 1921).
Além disso, era enfatizado que não se deveria sentir pena pelos pacientes, pois,
de acordo com os princípios da doutrina, eles estavam passando por suas dores
necessárias. O “presidente da sessão” tinha horários específicos para atender

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no Centro Espírita Redemptor e, após esses atendimentos, era aconselhado a


descansar por uma hora. Esse período de descanso era considerado essencial
para que ele recarregasse suas energias e mantivesse o equilíbrio emocional
durante seu trabalho de assistência aos doentes mentais (Centro Espírita
Redemptor, 1921).
No Centro Espírita Redemptor, eram realizadas algumas preces, como
a Prece de Cáritas, o Pai Nosso e a Ave Maria. Os pacientes seguiam uma
sequência de eventos simbólicos, pois a disciplina era vista como crucial no
tratamento de doenças mentais pelos seguidores do Espiritismo Racional e
Cristão. Tanto os pacientes internos quanto todos os membros da instituição
eram submetidos a regras rígidas de horários e rotinas, criando um ambiente
protegido e organizado que promovia a recuperação e o equilíbrio emocional
(Centro Espírita Redemptor, 1921).
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

Esses procedimentos conduzidos por Luiz Mattos geraram confrontos


intensos com médicos psiquiatras, como Juliano Moreira (1872-1933), e com a
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

própria Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, que debatia sobre os supostos


impactos prejudiciais do espiritismo na sociedade brasileira (Almeida et. al,
2007, p. 37). Em sua Carta Aberta ao professor Carlos de Laet, o Centro Espírita
Redemptor tratou o psiquiatra de forma pejorativa, chamando-o de “Moreirinha
Catholico”, sugerindo que ele apoiava a Igreja Católica em detrimento da cura
espírita (O Jornal, 24 abr. 1926, p. 1).
Carlos de Laet, por sua parte, manifestava uma visão intransigente em relação
ao funcionamento do Centro Espírita Redemptor13, considerando-o como algo
Adriana Gomes

inadmissível. Contudo, convém salientar que, à exceção das práticas religiosas


de desobsessão, a organização dos sanatórios estatais não diferenciava
substancialmente daquela do Redemptor. Ambos mantinham uma rígida
disciplina institucional, faziam uso de castigos físicos para com os pacientes
e proibiam qualquer forma de contato destes com a sociedade (Pereira Neto;
Amaro, 2012, p. 498-499, 505).
Entretanto, Luiz Mattos expressava críticas em relação à aplicação de
brometos, banhos de imersão em altas temperaturas e duchas, argumentando
que o âmago do problema residia no âmbito espiritual, não na esfera material,
Artigo

entendendo que a saúde mental era afetada pelo processo obsessivo espiritual
(Pereira Neto; Amaro, 2012, p. 498-499).
No terceiro artigo publicado por Carlos de Laet, intitulado “Superstição
Pusillanime”, seu discurso adquiriu uma conotação de crítica religiosa ao
espiritismo, tendo o Centro Espírita Redemptor como seu alvo principal,

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devido às posições defendidas pelo intelectual católico em seu artigo anterior,


intitulado “Superstição Raivosa” (O Jornal, 6 maio 1926, p. 2).
Na tentativa de confrontar as posições dos representantes do Centro
Espírita Redemptor, Laet propôs a criação de duas comissões para investigar
os procedimentos realizados no manicômio espírita. Ele sugeriu os seguintes
nomes para compor essa comissão: Antônio Felino Santos, reconhecido por
Laet como um grande conhecedor dos “assuntos espíritas”; Joaquim Pereira
Fonseca, um clínico; e Oscar Pimentel, a quem também atribuiu conhecimento
sobre as práticas espíritas (O Jornal, 6 maio 1926, p. 2).
Laet considerava que um grupo de sete pacientes seria suficiente para conduzir
a experiência, sujeitando-os às “correntes” brancas a fim de avaliar seus efeitos.
Sua intenção ao lançar esse desafio era colocar em xeque os diretores do Centro
Espírita Redemptor, questionando sua autodeclaração como “cientistas”. Caso
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

o desafio não fosse aceito, Laet os rotularia como “curandeiros do subúrbio” (O


Jornal, 6 maio 1926, p. 2).
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

É relevante notar que, durante esses debates protagonizados por Laet,


várias outras discussões ocorriam simultaneamente em uma seção intitulada
Manicômio Espírita no mesmo jornal, envolvendo confrontos entre o Dr. Oscar
Pimentel e os diretores do Centro Espírita Redemptor, em várias edições ao
longo do mês de maio (O Jornal, 6 maio 1926, p. 1; 7 maio 1926, p. 2; 11 maio
1926, p. 1; 13 maio 1926, p. 1).
Em 1890, durante o processo de criminalização do espiritismo pelo Código
Penal, surgiu uma proposta de realizar uma reunião com cientistas ou céticos
Adriana Gomes

do espiritismo, com o intuito de investigar o que ocorria nas sessões espíritas.


O Centro União Espírita do Brasil sugeriu ao então presidente da República
Marechal Deodoro da Fonseca que o governo constituísse uma “comissão
de homens competentes e imparciais, verdadeiros homens da ciência, que
buscassem somente a verdade”. O propósito dessa comissão era conduzir
exames, estudos e experimentações sobre o tema, evitando preconceitos e
julgamentos que pudessem levar à criminalização do espiritismo. No entanto,
essa proposta não se concretizou, e o artigo penal que criminalizava o
espiritismo permaneceu em vigor (Gomes, 2020, p. 300; Jornal do Commercio,
Artigo

25 dez. 1890, p. 2;).


Após o desafio proposto por Laet ao Centro Espírita Redemptor, os
representantes desta instituição responderam em uma edição de 08/05/1926 de
O Jornal, na seção intitulada “Carta Aberta ao Prof. Carlos de Laet”, aceitando
o desafio e denominando-o como um “inquérito científico”. No entanto, eles

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estabeleceram regras diferentes das sugeridas pelo intelectual católico (O


Jornal, 8 maio 1926, p. 1).
Os dirigentes do Centro Espírita Redemptor consideraram a comissão
de intelectuais sugerida por Laet como insuficiente e propuseram que um
número maior de pessoas fizesse parte da comissão encarregada de examinar
as atividades do centro. Eles sugeriram diversos nomes, incluindo médicos,
escritores e políticos, para integrar essa comissão (O Jornal, 8 maio 1926, p. 1).
Outra regra importante estabelecida pelos dirigentes do Redemptor foi que
a comissão, responsável por selecionar os pacientes que seriam tratados na
instituição, deveria escolher indivíduos “indigentes” recolhidos de hospitais (O
Jornal, 8 maio 1926, p. 1).
Por fim, no último artigo de Carlos de Laet dedicado ao confronto com o
espiritismo, intitulado Superstição Vesana, o intelectual procurou desqualificar
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

os diretores do Centro Espírita Redemptor, alegando que eles faziam uso de


tautologia, ou seja, repetiam pensamentos de forma incessante e obscura, algo
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

que, segundo Laet, ocorria com pessoas mentalmente perturbadas. Utilizando


recursos retóricos, ele empregou termos pejorativos para descreditar seus
oponentes, referindo-se a eles como “petulantes adversários” e rotulando os
dirigentes do manicômio como “infelizes” praticantes de “tautologia”.
A mencionada expressão alude a um hábito linguístico caracterizado pela
reiteração constante de um mesmo termo ou de suas variantes linguísticas.
Carlos de Laet estabeleceu uma correlação entre esse padrão de comportamento
e o estado psíquico das pessoas que demandavam assistência psiquiátrica,
Adriana Gomes

argumentando que tal repetição exaustiva induzia a uma condição de


desequilíbrio mental (O Jornal, 28 maio 1926, p. 2).
Ao designar os diretores do Centro Espírita Redemptor como praticantes
da “tautologia”, Carlos de Laet empregou a ironia como um recurso retórico
adicional para expressar de maneira sarcástica e depreciativa seu julgamento
crítico em relação a eles, com o propósito de dissuadir os leitores de aderirem
às supostas curas espiritualistas realizadas naquela instituição religiosa.
Para além da desqualificação dos dirigentes do Redemptor ao rotulá-los como
adeptos da “tautologia”, Laet almejou enquadrá-los na categoria de indivíduos
Artigo

que também careceriam de auxílio para abordar suas questões de saúde mental,
insinuando que manifestavam “sérios sintomas da afecção” (O Jornal, 28 maio
1926, p. 2).
Apesar de o objetivo primordial do artigo ser sublinhar a inadequação e
ineficácia das curas praticadas pelo Centro Espírita Redemptor, Laet não deixou

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de questionar a conciliação entre ser “espírita e cristão”. Essa abordagem visava


conduzir a discussão novamente ao tema da "evocação" dos mortos para fins de
comunicação, insinuando que essa prática era inconciliável com os princípios
do Antigo Testamento (O Jornal, 28 maio 1926, p. 2).
Nesse cenário, Laet provocou uma análise acerca da impossibilidade de adotar
concomitantemente o espiritismo e o cristianismo, por meio de uma crítica
ao espiritismo e aos seus adeptos. Ele delineou uma distinção clara entre os
seguidores do espiritismo kardecista e aqueles do Centro Espírita Redemptor (O
Jornal, 28 maio 1926, p. 2). Esse questionamento suscita uma reflexão profunda
sobre as complexidades da intersecção entre essas duas crenças.

Considerações finais
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

Ao longo das primeiras décadas do século XX, Carlos de Laet se distinguiu


como uma figura intelectual de destaque, profundamente motivada por suas
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

convicções no âmbito político e religioso. Sua dedicação inabalável aos princípios


monárquicos e ao conservadorismo católico, em consonância com as diretrizes
de Roma, impregnou suas obras, consolidando-o como uma figura de notável
relevância no contexto do ultramontanismo, uma corrente do catolicismo que
advogava pela supremacia da autoridade papal e pela ortodoxia da fé.
A aversão de Laet à modernidade e sua postura inequivocamente
ultramontana em relação à fé católica destacaram-se como traços proeminentes
em seu pensamento. Abordando uma ampla gama de tópicos, ele expressou
Adriana Gomes

vigorosamente sua oposição ao protestantismo, que ele considerava uma


heresia. Em um episódio notável de 1926, Laet buscou apoio tanto de
protestantes quanto de judeus para embasar suas críticas ao espiritismo e suas
variantes espiritualistas.
Seus escritos também se dedicaram com especial atenção ao Centro Espírita
Redemptor e suas abordagens terapêuticas para questões mentais, em parte
devido à sua proximidade com os médicos Juliano Moreira e Oscar Pimentel,
que compartilhavam suas objeções aos métodos de cura espírita, referindo-se a
eles como “Espiritismo Racional e Científico Cristão” e “espíritas kardecistas”.
Artigo

Além de questionar o espiritismo, Laet explorou as complexidades das


dissidências no seio do movimento espírita da época, enfatizando a dificuldade
de unificação nesse contexto. Notável foi a ausência do Centro Espírita
Redemptor no Congresso Constituinte Espírita Nacional de 1926, assim como
a não participação da Federação Espírita Brasileira, uma instituição de grande

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importância para o movimento.


No entanto, a utilização polissêmica do termo “espiritismo” por Laet resultou
em ambiguidades em suas análises, uma vez que o empregou de maneira
genérica para se referir às religiões mediúnicas. Sua rejeição do espiritismo
baseou-se principalmente na prática de invocação dos mortos e na ausência
do batismo em seus rituais, elementos que, em sua perspectiva, afastavam o
espiritismo da condição de religião cristã e do monoteísmo judaico.
É notório que a abordagem de Carlos de Laet em relação às práticas de cura
espírita e seus adeptos se caracterizou por uma visão restrita. Seus escritos
revelaram uma falta de empatia em relação às pessoas que buscavam alívio
para questões de saúde por meio das curas espíritas, frequentemente devido à
ausência de suporte estatal nesse domínio. A perspectiva de Laet em relação às
necessidades e crenças daqueles que procuravam consolo e cura nas práticas
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

espíritas destacou uma carência em seu entendimento das complexas dinâmicas


sociais e religiosas da época. Embora ele valorizasse a ciência, carecia de uma
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

compreensão mais profunda das dificuldades enfrentadas por aqueles que


buscavam alívio por meio dessas práticas.

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Dissertação (Mestrado) - Instituto de Ciências Humanas da UNICAMP, Campinas,


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VILLAÇA, Antonio Carlos. O pensamento católico no Brasil. Rio de Janeiro:


Adriana Gomes

Civilização Brasileira, 2006.

Notas
1
Professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Salgado de
Oliveira (UNIVERSO); Coordenadora da Laboratório de Estudos de Políticas e Ideologias
(LEPIDE); Coordenadora dos grupos de pesquisa do CNPq: Núcleo de Estudos de História
do Espiritismo (NUESHE) e do Núcleo de Estudos de Culturas Políticas, Religiosas,
Jurídicas e Institucionais (NECREJI).
2
Laet contribuiu com sua produção literária em uma ampla gama de jornais e revistas,
tais como O Brazil, Diário do Commercio, A Liberdade, Diário do Rio de Janeiro, O Cruzeiro,
Artigo

Jornal do Commercio, O Jornal, A Tribuna Liberal, Revista Brasileira, Jornal do Brasil, e


diversos outros periódicos (Crispiniano, 2020, p. 14-15).
3
No contexto brasileiro da segunda metade do século XIX, os ultramontanos encontraram
afinidade com o pensamento do catolicismo tradicional, visto que identificaram nele
uma base teológica e filosófica adequada às suas reivindicações. Estas reivindicações

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se centram na defesa de uma sociedade caracterizada pela hierarquia, sustentada pelo


privilégio, profundamente enraizada na fé católica como único alicerce do Estado.
Nesse contexto, os direitos políticos e civis eram subordinados à fé e à prática religiosa.
A sociedade almejada era confiada a uma autoridade investida de autoridade divina,
demandando, portanto, uma obediência inquestionável, e onde o altar e o trono, embora
distintos, estavam intrinsecamente ligados por uma identidade de objetivos e interesses.
Em termos mais explícitos, o propósito era que o altar exercesse domínio tanto religiosa
quanto moralmente sobre o trono (Cordi, 1984, p. 38; Silva; Carvalho, 2019, p. 21-22).
4
A trajetória intelectual e política de Dom Vital tem influência marcante do
ultramontanismo em sua formação. Seu percurso o levou à posição de bispo da diocese
de Olinda, mas também o envolveu profundamente na Questão Religiosa que abalou a
relação entre a Igreja Católica, o Império brasileiro e a maçonaria durante os anos de
1872 a 1876. Dom Vital foi um líder proeminente do movimento, liderando os bispos
católicos em uma resistência vigorosa contra a maçonaria e o pensamento regalista e
liberal representado pelo Visconde do Rio Branco (1819-1880) e pelo Imperador Dom
Pedro II (1825-1891), que detinha o controle do Padroado no Brasil. Esse episódio
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

histórico representou um confronto significativo entre a Igreja Católica e as instituições


seculares no Brasil, marcando um ponto de tensão crucial na relação entre o poder
religioso e o poder político no país. Dom Vital desempenhou um papel central nesse
conflito, defendendo com fervor os interesses e prerrogativas da Igreja Católica diante
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

das reformas e mudanças propostas pelo governo imperial e pela maçonaria (Medeiros,
2019, p. 175).
5
O Jornal desempenhou um papel central como o principal veículo dos Diários Associados,
uma entidade que ao longo de sua história englobou um conjunto abrangente de 28
jornais, 16 estações de rádio, cinco revistas e uma agência telegráfica (Disponível em:
https://www.academia.org.br/academicos/assis-chateaubriand/biografia. Acesso em: 24
jul. 2023).
6
A Carta Pastoral é um documento oficial de instrução religiosa emitido por um bispo
católico romano ou por um grupo de bispos para orientar tanto o clero como os membros
da Igreja que estão sob a sua jurisdição. Disponível em: https://healingearth.ijep.net/pt/
Adriana Gomes

glossary/carta-pastoral/. Acesso em: 1 out. 2023.


Na Carta Pastoral de 1916, D. Sebastião Leme expôs que “direitos inconcussos nos
assistem com relação a sociedade civil e política, de que somos a maioria. Defendê-
los, reclamá-los, fazê-los acatados, é dever inalienável. E nós não o temos cumprido.
Na verdade, os católicos, somos a maioria do Brasil e, no entanto, católicos não são
os princípios e os órgãos da nossa vida política. Não é católica a lei que nos rege. Da
nossa fé prescindem os depositários da autoridade. Leigas são as nossas escolas, leigo o
ensino. Na força armada da República não se cuida da religião. Enfim, na engrenagem do
Brasil oficial não vemos uma só manifestação de vida católica” (Leme, 1916, p. 5).
7
Um dos trabalhos acadêmicos que podemos sugerir para leitura com o propósito de
compreender um pouco mais sobre o Primeiro Congresso Espírita e a Liga Espírita do
Artigo

Brasil é a dissertação de mestrado de Marco Aurélio Gomes de Oliveira defendida em


2014: Imprensa espírita na cidade do Rio de Janeiro: propaganda, doutrina e jornalismo
(1880-1950).
8
Jarbas Ramos, além de ter sido um dos responsáveis na preparação da realização do
Primeira Constituinte Espírita no Brasil, também foi responsável pela circulação da

Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.500-527, jul-dez. 2023 } 526


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revista Brasil Espírita, que não era vinculada especificamente a uma instituição espírita.
Ele foi eleito como o primeiro vice-presidente da Liga Espírita do Brasil (Oliveira, 2014,
p. 81-82).
9
O Desembargador Gustavo Farnese implantou e organizou a Liga em seu próprio
escritório de trabalho. Por sua atuação profissional e com significativo capital social,
conseguiu ajudar alguns médiuns de problemas com a lei (Honesto, 2020, p. 86).
Art. 157 – Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e
10

cartomancias, para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de moléstias


curáveis ou incuráveis, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade pública:
Penas – de prisão celular de um a seis meses, e multa de 100$000 a 500$000.
Parágrafo 1º Se, por influência, ou por consequência de qualquer destes meios, resultar
ao paciente privação ou alteração, temporária ou permanente, das faculdades psíquicas.
Penas – de prisão celular por um ano a seis anos, e multa de 200$000 a 500$000.
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

Parágrafo 2º Em igual pena, e mais na privação de exercício da profissão por tempo igual
ao da condenação, incorrerá o médico que diretamente praticar qualquer dos atos acima
referidos, ou assumir a responsabilidades deles (Brasil, 1890).
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

11
“A irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia foi criada em Portugal, no ano de 1498,
por dona Leonor (1458-1525), irmã de d. Manuel (1469-1521), sob a influência do frei
trinitário Miguel de Contreiras (1431-1505). A irmandade organizava-se em torno das
chamadas quatorze obras de caridade, sete espirituais e sete corporais, inspiradas pelo
Evangelho consignados segundo São Mateus” (Gandelman, 2001, p. 614).
De acordo com o historiador Artur Isaia (2005, p. 599), as religiões mediúnicas
12

apresentam em comum a crença “na reencarnação e no contato entre vivos e mortos”


e, para que isso ocorra, existe a necessidade de haver a existência de um “intermediário
entre ambos, o médium, julgado capaz de emprestar seu corpo para que os espíritos
manifestem-se”.
Adriana Gomes

No âmbito do Centro Espírita Redemptor, imperava um conjunto de preceitos que


13

estritamente regulava o comportamento dos internos. Nesse contexto, a prática de


fumar, o consumo de alimentos fora dos horários previamente estabelecidos, bem
como quaisquer discussões intrusivas acerca das vidas alheias eram terminantemente
proibidos. Um sistema de recompensas favorecia aqueles que mantinham uma conduta
disciplinada, proporcionando-lhes o privilégio de usufruir de camas e de mobília em seus
respectivos quartos. Em contrapartida, os indivíduos que se revelavam indisciplinados
não eram contemplados com nenhum benefício. A realização das tarefas relacionadas à
higiene pessoal e à manutenção da limpeza nos espaços compartilhados, como a varrição
dos aposentos, a higienização dos banheiros e a arrumação das camas, constituía uma
parte integral da rotina imposta a todos os internados, independentemente de sua
conduta (Pereira Neto; Amaro, 2012, p. 497).
Artigo

Recebido em 24/07/2023 - Aprovado em 11/10/2023


Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.500-527, jul-dez. 2023 } 527
DOI: 10.5433/1984-3356.2023v16n32p528-562

“Chamamos atenção dos


nossos leitores para as
diversas publicações gerais”:
representações sobre
os escravos nos jornais
piauienses, 1850-1887

“We draw the attention of our


readers to the various general
publications”: representations
about slaves in Piauí
newspapers, 1850-1887

“Llamamos la atención
de nuestros lectores a las
diversas publicaciones
generales”: representaciones
de esclavos en los periódicos
de Piauí, 1850-1887

Talyta Marjorie Lira Sousa1


Pedro Vilarinho Castelo Branco2

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Resumo: Partindo do referencial das fontes sobre escravidão


no Brasil e no Piauí, analisamos como os escravos foram
representados nos periódicos piauienses do século XIX. No
que diz respeito ao levantamento da documentação pertinente
ao tema, recorremos aos jornais O Governista, O Echo Liberal,
O Propagador, O Expectador, A Imprensa, O Piauhy, O Amigo
do Povo, A Pátria e A Época. Durante o texto dialogamos
Talyta Marjorie Lira Sousa / Pedro Vilarinho Castelo Branco

com Freyre (2010), Schwarcz (2017), Chalhoub (2011) e


Gomes (1996). No que concerne à metodologia do processo
investigativo, adotamos a pesquisa histórica descritiva a
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

partir da consulta e análise da base documental. Ensejamos


que este trabalho ajude a historiografia no estudo sobre a
escravidão e contribua para o interesse de novos pesquisadores.
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

Palavras-chave: História; Piauí; escravidão; representações;


jornais.

Abstract: Based on the reference of sources on slavery in


Brazil and Piauí, we analyze how slaves were represented
in Piauí periodicals of the 19th century. With regard to
the survey of documentation relevant to the subject, we
turned to the newspapers O Governista, O Echo Liberal, O
Propagador, O Expectador, A Imprensa, O Piauhy, O Amigo do
Povo, A Pátria and A Época. During the text we dialogue with
Freyre (2010), Schwarcz (2017), Chalhoub (2011) and Gomes
(1996). With regard to the methodology of the investigative
process, we adopted descriptive historical research based
on consultation and analysis of the documentary base. We
hope that this work will help historiography in the study
of slavery and contribute to the interest of new researchers.
Keywords: History; Piauí; slavery; representations;
Artigo

newspapers.

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Introdução

Os jornais brasileiros do século XIX são fontes ricas na investigação sobre


a sociedade, pois é por meio de seus registros que podemos compreender o
cotidiano, as atividades comerciais, as visões de mundo e os interesses de
grupos, a concepção de comportamento e moralidade daquela sociedade. Os
jornais são produtos do seu tempo, resultado de um ofício desempenhado,
socialmente reconhecido, composto por posições e representações peculiares
(Schwarcz, 2017). São documentos que proporcionam ao pesquisador a medida
mais aproximada do panorama, da consciência e dos problemas que os sujeitos
Talyta Marjorie Lira Sousa / Pedro Vilarinho Castelo Branco

têm de uma época. Mesmo que essas notícias sejam apenas informativas, elas
não estão livres de demonstrações críticas, opinativas e omissões deliberadas
(Camargo, 1971, p. 225), pelo contrário, são a construção social da realidade de
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

sujeitos que criam suas representações sobre si e sobre os outros. A visão parcial
e subjetiva da realidade não significa que ela seja falsa, visto que o pesquisador
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

deve perceber que a concepção de documento se modificou e um documento/


notícia/fato visto como “falso” também é relevante do ponto de vista histórico,
cabendo averiguar o porquê e como foi produzido (Capelato, 1988, p. 23).
À primeira vista, a leitura dos periódicos oitocentistas nos dá a impressão
de um quebra-cabeça, com partes isoladas, mas, se analisadas com rigor,
todas estão interligadas, construindo um caleidoscópio de múltiplas imagens
(Schwarcz, 2017, p. 115). As representações sobre a escravidão não são simples
ideias, são, na verdade, um conjunto de convicções, de orientações cognitivas
orientadas por uma perspectiva social de classe (Pereira, 2006, p. 13), são
socialmente construídas pelas experiências, visões e discursos dos grupos que
as forjam.
A composição do mundo social não é um dado subjetivo, mas, historicamente,
constituída por estratégias discursivas e práticas sociais e políticas (Chartier,
1990, p. 23). Esse mundo social é permeado de tensões e de interesses conflitantes
entre os grupos, que lutam por suas representações. Dessa forma, o estudo sobre
as representações tem como finalidade os processos de formação das práticas
discursivas, dos esquemas conceituais e de condutas (políticas e sociais) ligadas
Artigo

à compreensão, à avaliação social e às consequentes classificações e exclusões


(Oliveira, 2018, p. 72). A representação é um instrumento teórico-metodológico
capaz de internalizar simbolicamente as lutas de poder e de dominação ou,
entre os indivíduos, suas escolhas e condutas (Chartier, 1990, p. 17).
Os articulistas criaram representações sobre a escravidão e que visavam agir

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nas experiências históricas da sociedade oitocentista. Cabe ao pesquisador


apreender e ponderar que as representações possuem intencionalidades e agem
sobre as experiências dos indivíduos daquele momento histórico.
Neste trabalho, analisaremos como os escravos foram representados nos
periódicos piauienses do século XIX. Cada uma das seções nos oferece pedaços
de significação (Schwarcz, 2017, p. 115), assim os escravos aparecem nas
notícias sobre assassinatos, suicídios e prisões, nas matérias sobre as noções
de civilidade onde há a condenação de determinados comportamentos, como
escravos surrados, açoitados, ferrados e denúncias contra castigos excessivos,
nos discursos sobre a depreciação da origem africana e em estudos científicos,
Talyta Marjorie Lira Sousa / Pedro Vilarinho Castelo Branco

na discussão sobre reescravização, manutenção da liberdade e práticas culturais


como a feitiçaria.
Nossa base documental foi composta por fontes hemerográficas do Núcleo
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

de Pesquisa em Jornalismo e Comunicação da Universidade Federal do Piauí3


e da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional4. Os periódicos piauienses
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

selecionados foram: O Governista (1847 a 1848), O Echo Liberal (1849 a 1852), O


Propagador (1858 a 1860), O Expectador (1858 a 1863), A Imprensa (1865 a 1889),
O Piauhy (1867), O Amigo do Povo (1868 a 1873), A Pátria (1870 a 1872), Oitenta
e Nove (1873 a 1874) e A Época (1878 a 1889). Nossa intenção é apresentar uma
possibilidade de pesquisa, chamar a atenção para como determinada realidade
é construída e como a imprensa pode criar representações sobre as experiências
históricas.

Sociedade, economia e escravidão no Piauí

Das primeiras entradas em território piauiense, à constituição das fazendas


pastoris e vilas, a escravidão foi a base da mão de obra, mantendo-se ao longo
dos séculos associada às mais diferentes atividades produtivas, sociais, políticas
e culturais. A formação social do Piauí está ligada ao caráter ruralista que
predominou durante o período colonial e os oitocentos. Tanya Brandão destaca
que os dois grupos formadores da sociedade eram pessoas livres e escravas. O
primeiro composto por fazendeiros, vaqueiros, posseiros, agregados e sitiantes.
Artigo

E o segundo por índios, negros, mestiços submetidos ao regime jurídico-social


da escravidão (Brandão, 1999, p. 87). Podemos dizer que a sociedade piauiense
foi marcada pela presença de elementos variados em consequência das funções
que desempenhavam e da posição social que ocupavam, nesse caso, teremos
os principais elementos constituidores desta sociedade, desde sesmeiros,

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passando por posseiros, arrendatários, vaqueiros, senhores, agregados e os


escravos (Araújo, 2011).
No início do século XIX, o regime escravista continuou e se fortaleceu, assim
como o poder das famílias piauienses possuidoras do patrimônio material, que
monopolizavam a estrutura de governo e reafirmavam o seu poder local (Costa
Filho, 2010, p. 32). Nesse quadro, assumiu como presidente da província do
Piauí Manuel de Sousa Martins, que já havia tomado posse como presidente da
Junta Provisória no movimento de adesão do Piauí à Independência do Brasil.
Este governou a província durante vinte anos, sua administração foi marcada
pelo apoio à monarquia e a Dom Pedro I, bem como pela forte centralização
Talyta Marjorie Lira Sousa / Pedro Vilarinho Castelo Branco

política.
Em 1831, com a abdicação de Dom Pedro I ao trono brasileiro e o início
do período regencial, houve instabilidade política, provocando revoltas em
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

algumas províncias. Mesmo durante esse turbilhão, aconteceram mudanças


significativas na província do Piauí, com destaque para o início da imprensa e a
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

criação de vilas. A imprensa piauiense surgiu na cidade de Oeiras em 1832 com


a publicação do jornal O Piauiense, de cunho oficioso e que narrava as decisões
políticas do governo imperial e provincial (Pinheiro Filho, 1997, p. 23). Segundo
Pereira da Costa, o primeiro periódico nada tinha de particular sobre sua redação
e montagem, aponta que os documentos piauienses do período não atribuem
título ao primeiro periódico, e que só foi possível encontrar a denominação
desse jornal a partir de pesquisa realizada no jornal Aurora Fluminense, do Rio
de Janeiro, do ano de 1832. (Pereira da Costa, 1974, p. 388).
A publicação regular de periódicos na província do Piauí ocorreu a partir de
1839, com O Telégrafo, impresso pela tipografia Saquarema e que tinha como
principal foco as notícias oficiais e os desdobramentos políticos relacionados à
Balaiada. No decorrer do século XIX, surgiram vários periódicos, entre eles A Voz
da Verdade, Echo Liberal, O Conciliador Piauiense, O Propagador, O Expectador,
Liga e Progresso, A Imprensa e A Época. A falta de escolarização, o acanhamento
da província, as condições materiais, a vida rural em detrimento da urbana e
questões políticas, são alguns dos motivos para o incipiente desenvolvimento
da imprensa na província do Piauí durante os oitocentos.
Artigo

Na tentativa de urbanizar a capitania, foram instaladas algumas vilas, como


as de Amarante, São Gonçalo, Poti, Piracuruca, Jaicós e Crateús. A população
continuava essencialmente rural e Manuel de Sousa Martins, ainda presidente
da província, continuando a impor ordens (Costa, 2017, p. 74). Em 1835, foi
instalada a primeira Assembleia Provincial Piauiense, composta por vinte

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deputados, as primeiras leis foram sancionadas, foi criado um bispado no Piauí,


o corpo de polícia, e Oeiras recebeu cinquenta lampiões de querosene para
auxiliar na iluminação pública.
José Ildefonso de Sousa Ramos sucedeu ao Barão da Parnaíba como presidente
da província, e durante sua gerência os ânimos políticos se acirraram devido
à divisão de dois grupos, um Liberal, ligado a Manuel de Sousa Martins que,
mesmo fora da administração, exercia poder e lutava pela recuperação do
prestígio do Partido Liberal, e o outro, cuja atividade política estava ligada ao
Partido Conservador (Dias, 2008). Durante sua atuação como presidente da
província, houve o registrou a tentativa de mudança da capital da província para
Talyta Marjorie Lira Sousa / Pedro Vilarinho Castelo Branco

a confluência do riacho do Mulato, onde hoje seria a cidade de Regeneração.


Na tentativa de urbanização e integração do Piauí à economia nacional, foi
sugerido mais um projeto de transferência da capital da província para as
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

margens do rio Parnaíba.


Em 1850, quando José Antônio Saraiva tomou posse como administrador
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

da província, a ideia da mudança da capital foi novamente cogitada. Em 1851,


foram registrados dois projetos de lei, o de 8 julho autorizava ao presidente
da Província erguer uma igreja, uma cadeia segura, cômoda e salubre, e um
quartel para o corpo de polícia, para promover o processo de transferência
para a Vila do Poti (Piauí, 1851a), e o projeto de lei de 14 de julho do mesmo
ano, que ajustava a transferência da capital da província para a margem do
rio Parnaíba, na confluência do corrente denominado Mulato no termo de São
Gonçalo (Piauí, 1851b).
A população da capital Oeiras não concordava com a mudança da capital e,
por meio de uma representação orientada por Benedicto Ferreira de Carvalho,
Padre Francisco de Paula da Silveira e Justino José da Silva Moura, levou à
Assembleia Legislativa Provincial sua insatisfação. Afirmava que as cidades
do centro-sul da província, Oeiras, Valença e Jaicós iriam ficar à margem das
decisões político-administrativas, acreditava que o deslocamento da capital
para a Vila do Poti era desnecessário, mas que a capital poderia ser transferida
para São Gonçalo, visto que assim ficaria mais próxima do centro de decisão da
Província.
Artigo

Entretanto, a transferência da Capital para a Vila do Poti foi inevitável e


a cidade de Teresina foi fundada atendendo a Resolução n. 315 de 21 de julho de
1852, que elevou a Vila do Poti à categoria de cidade. O Presidente da Província,
José Antônio Saraiva, habilitou-se a fixar residência na nova sede do governo e
pessoalmente inspecionar as obras provinciais que se realizavam (Piauí, 1853).

Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.528-562, jul-dez. 2023 } 533


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Os escravos responsáveis pela edificação dos prédios públicos e residências


da nova capital foram transportados das Fazendas Nacionais. O número de
escravos que estava à disposição na construção da cidade de Teresina era
reduzido. O mestre de obras João Izidoro queixava-se em seus relatórios
da pequena parcela de trabalhadores, dizendo que não bastavam escravos
ajudantes, eram necessários “um escravo para amassador, outro para traçador
de cal, quatro para serventes de pedreiro, três para canoas passando cal, tijolos
e cacos” (Nunes, 2007, p. 87).
A edificação desta capital teve seu início após a Lei Eusébio de Queirós,
que proibia o tráfico negreiro e prescrevia punições mais rigorosas para quem
Talyta Marjorie Lira Sousa / Pedro Vilarinho Castelo Branco

dele participasse. A partir do ano de 1850, o tráfico interno intensificou-se, em


especial na transferência de cativos das regiões nordestinas para as plantações
de café do sudeste brasileiro (Conrad, 1985). Durante a década de 1870, muitos
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

negociantes e políticos dedicaram-se à captura e venda de escravos, e a cidade


de Teresina passou a ser um ponto de apoio para o tráfico interprovincial (Silva,
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

2008, p. 44).
No ano 1871, houve a promulgação da Lei Rio Branco (Lei do Ventre Livre),
que implementou novas medidas para a concessão de liberdade aos filhos
de mulheres cativas nascidos a partir de 28 de setembro de 1871, concedeu
a liberdade aos escravos da nação (Fazendas Nacionais) e a libertação anual
através do Fundo de Emancipação. A Lei Eusébio de Queirós e a Lei do Ventre
Livre comprometeram a permanência dos escravos no Piauí, pois havia a
necessidade de trabalhadores no Rio de Janeiro e em outras províncias, para a
manutenção das lavouras de café.
Nos anos iniciais do governo de Manuel de Sousa Martins, foi realizado
o primeiro censo do Império. Segundo a estatística de 1826, apresentada no
relatório de Adelino Antônio de Luna Freire, existiam 50.438 pessoas livres
e 24.870 cativos, num total de 75.813 habitantes (Freire, 1867). Esses dados
são diferentes dos apresentados por Pereira da Costa, que registrou para este
mesmo ano, 94.948 habitantes, num total de 69.835 livres e 25.113 cativos,
19.193 pretos e 5.920 pardos (Pereira da Costa, 1974, p. 367). Ao analisar a
estrutura e a composição da população, devemos considerar que os registros
Artigo

podem não estar completos, não são imparciais nem livres de intencionalidade,
além disso, ocorreram no Brasil transformações que marcaram a dinâmica
demográfica, por isso os registros estatísticos de 1826 são apresentados de
forma dessemelhante.
A segunda pesquisa demográfica do Império foi executada em 1831, nela, o

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Piauí contava com 118.059 habitantes, distribuídos entre Oeiras com 22.657,
Jaicós, 5.549, Marvão, 5.683, Poti e Piracuruca, 24.160, Príncipe Imperial, 6.729,
Campo Maior, 19.899, Parnaíba, 9.464, São Gonçalo, 6.466, Valença, 8.295, e
Parnaguá com 9.157 (Pereira da Costa, 1974, p. 367). Neste censo não houve
diferenciação entre livres e escravos.
No quadro comparativo entre as províncias do Maranhão, Ceará e Piauí,
observamos que o Piauí concentrou um dos menores índices de escravos entre
1819 e 1872. Na comparação entre as províncias, o Maranhão detinha, em todos
os períodos, um índice maior de cativos, pois desde o período colonial havia
se estabelecido uma rota comercial entre a África e o Estado do Maranhão,
Talyta Marjorie Lira Sousa / Pedro Vilarinho Castelo Branco

por meio da implantação da Companhia-Geral do Grão-Pará e Maranhão, que


assegurou o monopólio do tráfico de duas regiões principais, a Costa da Guiné,
através dos portos de Bissau e Cachéu, e Angola (Dias, 1970, p. 470-471). Assim,
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

no conjunto geral da população do Piauí, o quadro quantitativo do elemento


servil diferenciou-se ao longo dos anos, assumindo configurações a partir do
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

contexto histórico em que os censos foram realizados, das taxas de crescimento


natural, além da influência das alforrias, tráfico interprovincial e mortes dos
escravos.
Por meio do Recenseamento Geral da Nação de 1872, constatamos a condição
social da população piauiense, com a predominância da população livre em
comparação à escrava. Em toda a província havia cerca de 202.222 pessoas,
das quais 23.795 eram cativas e 178.427 eram livres (Brasil, 1872). Os índices
elencados no censo subestimaram o número total de escravos, pois o fim do
tráfico atlântico, a baixa taxa de natalidade e a alta mortalidade, provocaram
uma diminuição relevante do número de escravos entre as décadas de 1850 e
1860, fatos que não foram considerados para o censo de 1872 (Chalhoub, 2012,
p. 42).
No tocante à economia oitocentista, a pecuária continuou a principal
atividade desenvolvida na província do Piauí, mesmo com o acentuado
declínio na produção. Segundo Miridan Britto Knox Falci, as primeiras causas
que explicaram a decadência da pecuária no Piauí durante o século XIX foi
a má administração das fazendas nacionais, a política fiscal imperial, que
Artigo

até 1836 concedia à província do Maranhão as vantagens da arrematação


dos lucros, a estrutura de produção arcaica com técnicas rudimentares, que
não acompanharam o desenvolvimento do mercado mundial, e as frequentes
intempéries climáticas que incidiam sobre o preço do gado pelo baixo
crescimento vegetativo (Falci, 1999, p. 26).

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Em 1853, o vice-presidente Luiz Carlos de Paiva Teixeira justificou o mau


estado da indústria agrícola pelo método antiquado da cultura, “sem nenhum
aperfeiçoamento quer no tamanho da terra, quer em máquinas, que suprindo
as forças dos braços humanos, facilitem o trabalho, aumentem e aperfeiçoem
seus produtos” (Teixeira, 1853, p. 16) A mudança da capital teve como um dos
objetivos incrementar as atividades econômicas e inserir a província no mercado
internacional, mas grande parte dos relatórios de presidente da Província do
século XIX convergiu para o permanente atraso quanto ao desenvolvimento de
atividades agrícolas, industriais e comerciais na província.
Na década de 1860, o Piauí intensificou a produção agrícola e ingressou
Talyta Marjorie Lira Sousa / Pedro Vilarinho Castelo Branco

no mercado internacional com produtos primários como arroz, feijão, milho,


mandioca e algodão. A província exportava algodão em estado bruto e os
negócios do litoral entrelaçavam-se com a rede comercial do interior do
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

Piauí, visto que as cidades de Teresina, União, Barras, Parnaíba e Amarante


eram as maiores produtoras de algodão. A economia algodoeira ocupou lugar
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

importante no sul do Maranhão e em cidades banhadas pelo rio Parnaíba no


Piauí. A demanda internacional durante a Guerra de Secessão nos Estados
Unidos fez crescer a arrecadação das receitas provinciais, contribuindo para o
incremento na economia piauiense (Costa, 2017, p. 59).
Durante a segunda metade do século XIX, o quadro da posse de escravos
concentrou-se cada vez mais nas mãos de uma pequena parcela da população.
Isso ocorreu por fatores como precária estrutura econômica, as vendas no
mercado interprovincial e as crises climáticas como a seca de 1877 a 1879. Esse
período foi de incertezas e apreensões, alguns escravos aproveitaram para fugir
e sair do domínio senhorial, e alguns senhores beneficiaram-se da intempérie
climática, transformando-a em instrumento de ganhos políticos e econômicos
(Lima, 2008, p. 287).
Nos anos de 1877 a 1879, a seca fez com que o número de habitantes da
província do Piauí aumentasse consideravelmente, e os escravos das fazendas
nacionais e particulares fossem enviados para a Corte ou trabalhassem nas
obras públicas. Com o intuito de normatizar e gerir essa população, o governo
provincial passou a fornecer alimento aos fazendeiros que a recebessem em
Artigo

suas propriedades ou a empregasse nas obras públicas, como os 102 emigrantes


que se acham abrigados no sítio São José e foram empregados no serviço de
arrancar pedras de lagos para a Igreja de Nossa Senhora das Dores, na cidade
de Teresina, em novembro de 1877 (Piauí, 1877).
Segundo Francisca Raquel da Costa, durante o período da seca, houve a

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possibilidade de liberdade pelos cativos, pois este poderiam acompanhar os


retirantes, ocultando-se e escapando, “o que não seria tão difícil, pois, a maioria
desses retirantes era gente pobre e de cor, o que possibilitava a dificuldade na
identificação dos escravos fugidos” (Costa, 2017, p. 230).
Os cativos dissiparam-se das páginas da documentação da Secretaria de
Polícia, dos Relatórios de Presidente de Província e das páginas dos jornais.
Segundo Emília Viotti da Costa, entre 1822 e 1888, o Brasil se transformou
sob muitos aspectos, “a população escrava foi de pouco mais de um milhão,
em 1822, para cerca de um milhão e meio, em 1872, caindo a pouco mais de
setecentos mil, em 1887” (Costa, 1997, p. 52). No Piauí, conforme as fontes
Talyta Marjorie Lira Sousa / Pedro Vilarinho Castelo Branco

oficiais, em 1883, existiam 24.391 cativos no Piauí, em 1885, a província contava


com 16.998 cativos (Parte [...], 1885), e um ano antes da abolição da escravidão,
esse número decai para 8.967 escravos (Martins, 1887).
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

As representações sobre os escravos nos jornais piauienses do século


de Carlos de Laet no periódico O Jornal

XIX

Os jornais piauienses do século XIX são fontes complexas devido à diversidade


discursiva no interior da sociedade brasileira e aos embates entre os diferentes
grupos políticos. O panorama piauiense não diferia do nacional, os jornais
estavam ligados à formação prática política dos liberais, conservadores e
republicanos, compunham-se baseados em vínculos de vizinhança, parentesco
e clientela, interesses materiais, afinidades intelectuais e identidades políticas
mutáveis (Martins; Luca, 2012, p. 6).
Compreender o significado de uma representação exige a compreensão
das formas e das intenções. Os periódicos são uma versão da realidade que
dependem da posição social, do interesse político de quem o produzia e seus
discursos estavam cercados de intencionalidade e de representações. Isso
demonstra que não tinham apenas a função de comunicar, mas de produzir e
de reproduzir um discurso por meio da imprensa (Chartier, 1990, p. 35-38). Os
periódicos permitiam a construção intertextual no mesmo espaço tipográfico,
que pode ser compreendido como condição para a construção de um projeto
Artigo

intelectual, político, ideológico, social, por trás daquela publicação. Dessa


forma, a narrativa dos editores e daqueles que contribuem para o jornal, pode
apresentar um quadro multifacetado sobre as relações escravistas piauienses.
As representações sobre os escravos são redefinidas de acordo com as
diferentes seções que estruturavam os jornais. Grande parte dos jornais

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piauienses noticiava sobre a violência, prisão e crimes de todos os tipos


perpetrados por escravos. Segundo o jornal O Piauhy de 20 de julho de 1869,
foram presos, por ordem do subdelegado do 1º distrito, Domingos Furtado
de Mendonça, Jaimes Newhy e Bernardo de Souza e Silva, por embriaguez e
desordem, e a escrava Maria, para correção (Repartição [...], 1869a, p. 4). Em
31 de agosto de 1869, foram presos o indivíduo Pedro de Senna Rosa, por
embriaguez, e de ordem do subdelegado do 2º distrito, os escravos Manoel e
Raimunda, o primeiro de Antônio Moreira do Carmo, e a segunda, de D. Ignácia
Josefa de Carvalho, para averiguação em crime de furto (Repartição [...], 1869b,
p. 4).
Talyta Marjorie Lira Sousa / Pedro Vilarinho Castelo Branco

Nesse quesito, averiguamos que o aparato da vigilância era necessário


para assegurar a ordem e manter a dominação senhorial, e do estado sobre os
indivíduos. Os escravos tinham determinadas restrições temporais, espaciais
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

e modais, isso porque eram vistos como um risco à sociedade. A vida pública
era regulada pelos códigos de postura, as normas existiam para distribuir os
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

indivíduos no espaço e mostrar-lhes o lugar que deveriam ocupar. Além disso,


a legislação controlava e regulamentava as ações dos escravos, em conjunto
com os proprietários. A política do corpo submisso e produtivo, como um
meio que combinava as práticas de subordinação e as punitivas, previstas no
Código Criminal de 1830, bem como a disciplina imposta aos escravos. Isso fica
evidente por meio da prisão da escrava Maria, para correção.
O noticiário policial também fornecia a leitura dos crimes praticados por
escravos, que incidiam diretamente sobre seus senhores, feitores, outros
escravos e libertos. Segundo O Echo Liberal, de 29 de maio de 1851, o escravo da
nação Manoel Joaquim, residente na Fazenda Sacco, da Inspeção de Canindé,
assassinou com três pancadas de cacete o forro Jozé Manoel, por achar-se
em comunicação com sua mulher. Após o crime, Manoel Joaquim foi a sua
residência, partiu para Oeiras com o objetivo de entregar-se à prisão, e no
caminho encontrou a escolta que partiu a sua procura (Notícias [...], 1851, p. 4).
Além do ato de violência, destacamos nesta notícia, três pontos: o primeiro, o
fato de a vítima ser um liberto, o segundo, de possivelmente Manoel Joaquim
ser casado, pois a vítima mantinha contato com sua mulher, e o terceiro, de o
Artigo

“assassino” ter se entregue à polícia sem objeções, podendo indicar que a prisão
seria um espaço onde ele teria melhor tratamento do que na Fazenda Sacco.
Solimar Oliveira Lima, na obra Braço forte, apresenta uma análise que
questiona as visões paternalistas e aponta a frequente e violenta repressão
nas fazendas públicas. Contrapõe a ideia de que, nas fazendas públicas, existia

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uma reduzida fiscalização, que a produção originaria escravos acomodados e


relações aprazíveis. As relações são apresentadas, pelo autor, através da ameaça
e do uso de castigos violentos para fiscalizar e manter as relações do sistema
escravista nas fazendas (Lima, 2005).
Em relação à violência contra os senhores, identificamos o caso do assassinato
da “matrona distinta a toda prova por suas qualidades pessoais”, Dona Maria
José da Silva Conrado, esposa do comerciante Antônio Gomes de Campos, que
foi “cruelmente assassinada” pelo escravo Frederico. De acordo com o relato, ao
meio-dia de 30 de janeiro de 1871, o escravo “perverso” queimou com ferro de
passar uma camisa e sua senhora “apenas o repreendeu”, ameaçando castigá-
Talyta Marjorie Lira Sousa / Pedro Vilarinho Castelo Branco

lo. Nesse momento, os “maus instintos do tigre de feições humanas” foram


assanhados e este, “talvez premeditadamente”, lançou mão de um canivete que
possuía, adentrou o quarto de banho, e a fez sucumbir a 11 golpes de facadas.
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

Segundo a descrição, Dona Maria José não reagiu, só teve força para dar um
pequeno grito, “porque a primeira facada atingiu o órgão da voz”. Os filhos da
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

vítima dispararam a gritar de medo e chamaram a atenção dos vizinhos, após


ouvirem o grito da mãe, abrirem a porta do corredor e depararem-se com o
“malvado a correr todo ensanguentado na direção da rua” (Horrível [...], 1871,
p. 4).
O escravo Frederico foi perseguido até a porta do palácio, onde foi preso e
levado à polícia. No interrogatório ao chefe de polícia, “a fera” confessou com
voz firme todos os detalhes do delito e não esboçou nenhum arrependimento:
“Tão moço ainda, por representa ter apenas 22 anos, mas tão perverso e cruel!”
(Horrível [...], 1871, p. 4).
Os espaços sociais dentro desse recorte estão bem demarcados. Quando se
refere aos atos praticados contra seus senhores, o cativo é representado com
“feições animalescas”, figuras “bárbaras”, sujeitos de “ações premeditadas”,
“perversos” e “feras”. Ao contrário, os proprietários são indivíduos “estimados
pela sociedade”, “dignos”, “respeitados”, com “qualidades distintas”, que
ofereciam bom tratamento aos escravos e acabavam vítimas de ofensas e
assassinatos horríveis (Schwarcz, 2017, p. 140). Constrói-se, assim, a imagem de
um ser animalesco, perigoso, que mata sem esboçar nenhum arrependimento,
Artigo

justificando-se, por esse motivo, a violência empregada sobre qualquer vítima.


As motivações para a ação de Frederico ficam evidentes. Possivelmente, não
era a primeira vez que era ameaçado ou repreendido por sua senhora, também
não seria a primeira vez que sofreria com a violência. O articulista apontou, na
descrição do crime, que o cativo já tentara duas vezes contra a existência de

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sua senhora, mas ela se opusera, apesar disso, a vendê-lo, dizendo “que seus
serviços lhe faziam falta, e que sendo ele muito moço veria a corrigir-se com
o tempo” (Crueldade, 1871, p. 4). Indagamo-nos quais as motivações de Dona
Maria José para permanecer com a propriedade de Frederico, se ele já tinha
atentado contra sua vida duas vezes?
O jornal O Piauhy, de 16 de maio de 1869, e A Imprensa, de 23 de junho
de 1869, estamparam em suas páginas o crime de Portencio, que “assassinou
barbaramente a um pobre velho”, por tê-lo descoberto como escravo fugido.

Crime de morte – De Bom Jesus da Gurgueia nos comunicaram o


Talyta Marjorie Lira Sousa / Pedro Vilarinho Castelo Branco

seguinte:
Na fazenda Caracol do Capitão Domingos Dias Soares, do termo
de São Raimundo Nonato, deu-se um crime assaz horroroso.
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

Um escravo chamado Portencio, mas que há 4 anos ali residia como


forro, como nome mudado de Manoel Joaquim de Sant’Anna, por
alcunha Manoel Preto, da vila do Urubu, da província da Bahia,
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

assassinou barbaramente a um pobre velho que ali apareceu no


dia 28 de março próximo passado, só pelo simples fato de o haver
conhecido, e feito esta declaração, botando uma emboscada na
estrada por onde seguira a infeliz vítima (Crime de morte, 1869,
p. 4).

Descobrimos que o cativo tinha muitos nomes: Portencio, Manoel Joaquim


de Sant’Anna e a alcunha de Manoel Preto. A tática de mudar o nome para
ocultar-se era simples, prática e foi utilizada por muitos cativos, conforme os
anúncios de fuga. Essa tática era possível, pois os sujeitos envolvidos na ação
da fuga utilizavam-se de elementos que eram oferecidos, os ressignificavam e
reformulavam nos termos de suas representações (Certeau, 1998, p. 100). Era
corriqueiro mudar o nome para desfrutar de certa liberdade, como no caso de
Portencio. O que ele não esperava era ser descoberto depois de quatro anos
fugido da vila do Urubu, da província da Bahia.
O caso foi descrito no jornal O Piauhy: “com vinte e tantos anos, crioulo,
muito alto e seco, tem uma cicatriz em uma das orelhas, presume-se não ter
dentes na frente, rosto mais cumprido do que redondo, descarnado, pouco ou
Artigo

nenhuma barba” (Crime horrível, 1869, p. 4). A descrição das características


físicas auxiliava na busca e no reconhecimento de Portencio, com a intenção de
que este pudesse ser apreendido e pagar pelo crime que cometera.
A notícia desse crime, além de expor uma descrição minuciosa de todos os

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sinais e marcas que pudessem identificar o cativo, demonstra os confrontos


com o exercício de poder, quando Potencio “arma emboscada na estrada que
seguia para a fazenda Tanque”, faz a vítima perder os sentidos com cacetadas
na cabeça, conduz o corpo para fora da estrada onde “enfiou um torno de mão
na cabeça do cadáver até vará-lo”, abriu o abdômen do indivíduo, tirando os
intestinos e o levou para dentro da caatinga para ocultar o corpo. Com esse
ato, Portencio demonstrava que qualquer pessoa que tentasse encontrá-lo e
o denunciasse, teria o mesmo destino da vítima. Além disso, observamos o
espaço físico e social de circulação e novas estratégias usadas pelo escravo,
pois ele conseguiu evadir-se mais duas vezes, uma para o termo do Bom Jesus
Talyta Marjorie Lira Sousa / Pedro Vilarinho Castelo Branco

do Gurgueia, e outra para Jerumenha, “fazendo-se surdo e mudo para com


aquelas pessoas, com as quais acontece encontrar em caminho, ou n’alguma
casa, em que vai pedir o comer” (Crime horrível, 1869, p. 4). O articulista faz
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

com que o leitor veja Portencio como um elemento bárbaro, descaracterizando


o motivo que o levou ao crime, reproduzindo aspectos sociais, os valores da
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

sociedade oitocentista e alertando as autoridades para a apreensão do cativo,


pois representava insegurança e ameaça a tranquilidade pública.
Muitos periódicos piauienses ao mesmo tempo que apoiavam a existência do
regime escravista, combatiam a “violência desnecessária e as punições físicas
mais cruéis, assumindo diversas vezes um discurso de tom solidário e de defesa
dos cativos” (Castilho, 2019, p. 53). A escrita jornalística desses periódicos era
produto da sociedade do século XIX e estava permeada pelas ideias e anseios de
seu tempo, visto que, no decorrer desse século, as relações escravistas estiveram
ainda mais presentes no campo econômico, político, social e cultural, e foram
influenciadas pelas transformações em nível internacional, através dos padrões
de civilidade, da retórica alicerçada nos valores do iluminismo, do progresso e
do romantismo, e no desenvolvimento do capitalismo industrial.
Os jornais eram marcados pela visão de mundo de quem escrevia, suas
motivações e suas escolhas. Tanto os jornais liberais quanto os conservadores
defendiam a escravidão e apresentavam as percepções do mundo social que
eram determinadas pelos interesses do grupo social. Os jornais piauienses O
Piauhy, A Imprensa, A Pátria e A Época passaram a destacar noções sobre o
Artigo

controle dos castigos, sentimentos de humanidade, posicionaram-se contra a


prática de ferrar e os excessos implementados pelos senhores. Essa postura
não significava que esses periódicos eram abolicionistas, que queriam o fim da
escravidão ou que sugeriam a solução para a crise do escravismo. Com efeito,
existia um condicionamento para se pensar a escravidão como algo ruim,

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amoral, o cancro da sociedade, mas, ao mesmo tempo, os jornais continuavam


estampando nas páginas, os anúncios de fuga e cativos marcados com açoites.
No levantamento feito durante a pesquisa, observamos que, a partir da
década de 1860, as exposições dos articulistas passaram a apresentar as
denúncias sobre as violências praticadas contra os escravos, pessoas reduzidas
à escravidão, a formação das sociedades emancipadoras, a concessão de cartas
de alforria e artigos apoiando a substituição do trabalho escravo pelo livre. Essas
temáticas intensificaram-se na década de 1870, quando os liberais estavam no
governo (1878-1884), incorporando a divulgação das leis emancipatórias, o fim
da escravidão no Ceará, o caráter abolicionista e o discurso antiescravista nas
Talyta Marjorie Lira Sousa / Pedro Vilarinho Castelo Branco

publicações periódicas piauienses.


Os discursos propagados pela imprensa estavam atrelados ao espaço oficial,
assim como os relatórios de Presidente de Província, onde a escravidão contribuía
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

para o cenário de barbárie, atraso e incivilidade. Nos jornais, a escravidão era


vista como o cancro da sociedade, então, não se poderia aceitar a violência
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

como algo natural. No jornal A Época, essa discussão aparece conectada ao


ambiente político, pois o periódico do Partido Conservador fazia inferências ao
desenvolvimento do Império, às iniciativas do gabinete conservador de 1848.
Em coluna intitulada “O que será do Brasil?”, o jornal apresentou as provações
que o país passava no ano de 1879, quando os liberais eram responsáveis
pelo gabinete, alegando que só o Partido Conservador poderia prestar os
reais serviços ao Império, a exemplo da reforma da Lei de 1831 e a sanção da
extinção do tráfico em 1850: “Foi uma lei de proveitos econômicos e políticos,
granjeando para o Brasil, os aplausos do mundo civilizado” (O que [...], 1879, p.
2).
O interessante dessa perspectiva são as contradições inerentes ao momento
histórico estudado, pois muitos periódicos apresentam, numa mesma edição,
a defesa dos direitos à liberdade e à publicação de anúncios de fuga e venda
de escravos. Ao trabalhar com jornais, percebemos que não são possíveis um
enquadramento e uma abordagem uníssona (Lapuente, 2016, p. 17), pois são
fontes de sua própria história, meios de expressão de ideias, cotidiano de uma
determinada sociedade e práticas políticas, econômicas e culturais (Capelato,
Artigo

1988, p. 21).
No jornal O Piauhy, destacamos um artigo impelido pelos “sentimentos de
humanidade” e convocando a justiça pública para “uma providência que ponha
termo a tanta perversidade”, pois uma escrava no munícipio de União fora
“ferrada com o ferro em brasa, em diversas partes, por sua senhora, Guiomar,

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irmã do Sr. Major Francisco Barboza Ferreira”. O caso foi levado à polícia, mas
não teve andamento, porque o responsável pelo interrogatório, o Capitão
Clemente Fortes, desprezou o ocorrido. O autor da denúncia advertia que não
se tratava de uma intriga, um enredo político, mas “era a justiça que reclamava
o cumprimento da lei contra a desumanidade exercida com incrível fereza na
pessoa de uma criatura desvalida”, as autoridades superiores da província não
davam a atenção necessária e este preocupava-se com “gravidade em relação
a paciente, porque desde que foi divulgado à polícia o fato a escrava tinha
desaparecido” (Crueldade, 1870, p. 4).
O castigo era o controle sobre as ações dos escravos. Por meio dele, os
Talyta Marjorie Lira Sousa / Pedro Vilarinho Castelo Branco

senhores propagavam o temor, na tentativa de produzir “obediência e sujeição”


(Grinberg, 2018, p. 144-145). O corpo supliciado era resultado de um regime
punitivo e estava diretamente mergulhado no campo político, onde as relações
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

de poder possuíam alcance imediato sobre ele, o investiam e o marcavam


(Foucault, 2009, p. 29). Há uma escrita de dominação sobre os corpos dos
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

escravos, que tinha início com o carimbo no peito direito das armas do rei,
e da nação que ficavam vassalos, a marca do poder privativo do senhor após
serem vendidos e as marcas dos castigos ministrados que reafirmavam o poder
senhorial (Lara, 1988, p. 86).
A crítica moral contra a escravidão era um dos pontos de debate na imprensa
dessa província. Os significados dessas críticas podem fornecer sentidos
mais profundos, como as noções de civilidade e iluminista, evocadas pelos
articulistas. Consideramos essa interpretação dos periódicos como resultado
social das contradições da classe dominante, que promovia o “ocultamento
da perda da vitalidade e do sentido dos nexos econômicos” e adequava-se “às
exigências das mobilizações escravas, abolicionismo e movimento capitalista”
(Pereira, 2006, p. 15).
Em 1878, o jornal A Época noticiou, no decorrer de quatro edições, entre 16
de junho e 9 de novembro de 1878, o caso da escrava Esperança. O primeiro
artigo foi publicado pelo proprietário e autor das ofensas a Esperança, que fora
castigada com oito chicotadas, por haver derrubado uma porta, que trabalhava
com outros cativos e roubado alguns objetos. O Capitão José Augusto de Lemos
Artigo

foi denunciado por crime de ferimentos graves e, como consequência, a escrava


ficou com grave incômodo de saúde e deformidade. Defendia-se do ocorrido,
alegando que o resultado das ofensas, que antes foram consideradas graves,
segundo o corpo de delito, foram retificados por um exame de sanidade, onde
os ferimentos estavam “cicatrizados perfeitamente antes de trinta dias sem

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que ficasse presumida deformidade” (Ao público [...], 1878, p. 3).


O aparato jurídico proporcionava ao proprietário a aplicação de castigo
moderado aos escravos, sem punição aos senhores que dele se utilizassem,
conforme o artigo 14, §6º, do Código Criminal de 1830: “Quando o mal
consistir no castigo moderado, que os pais derem a seus filhos, os senhores
a seus escravos e os mestres a seus discípulos; ou desse castigo resultar, uma
vez que a qualidade dele não seja contrária às leis em vigor” (Brasil, 1830).
Estabelecia que esses castigos tinham a finalidade disciplinadora, corretiva,
mas sem agressão cruel, assim as seis ou oito chicotadas dadas em Esperança
não constituíam, segundo o Capitão José Augusto de Lemos, crime ou castigo
Talyta Marjorie Lira Sousa / Pedro Vilarinho Castelo Branco

rigoroso.
Para amenizar os açoites dados em Esperança, o advogado do proprietário,
Simplício Coelho de Resende, utilizou-se da comparação da prática de outros
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

senhores que eram “cruelmente desumanos: faziam castigar a estes pelas mais
leves faltas 9 dias consecutivos (o que chamavam de novena) depois do que
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

abriram as nádegas a navalha e salgavam-nas. Outros marcavam os escravos


com ferro em brasa”. Ponderou que a constituição e o código foram escritos com
“sentimento humano liberal”, não foram criados para perseguir os senhores,
cujos escravos vivem limpos das costas e mãos, comendo e vestindo como os
dos melhores senhores da terra, como no caso do Capitão José Augusto de
Lemos (Ao público [...],1878, p. 3).
O auto de sanidade de Esperança foi realizado em 11 de junho de 1878, na
Casa da Câmara, onde assistiram o juiz municipal Dr. Alfredo Teixeira Mendes,
as testemunhas João Raimundo Martins e Antonio Furtado Mendonça, e os
peritos doutores Joaquim Antonio da Cruz e Raimundo de Area Leão. Ao ser
inquirida, Esperança respondeu que houve ofensa física, como consta no exame
de corpo de delito feito dia 21 de maio de 1878, que as ofensas feitas por “taca”
não eram mortais e não resultaram em mutilação e inabilitação de membros,
não houvera a produção de deformidade, a cicatrização ocorreu por “primeira
intensão” e os ferimentos estavam curados. Os peritos arrazoaram que existiam
os ferimentos descritos por Esperança, porém, todos perfeitamente cicatrizados
(Ao público [...], 1878, p. 4).
Artigo

Dois processos contra José Augusto de Lemos continuaram e no dia 13 de julho


de 1878, este apresentou, no jornal A Época, sua defesa, após o encerramento do
sumário de um deles. A petição do acusado com o exame de sanidade da vítima
foi indeferida pelo juízo competente, “por isso não foi intimado se não para
continuar o processo”. Após a conclusão do processo, o réu pediu o prazo de

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três dias para produzir sua defesa e acreditava que não deveria mais responder
criminalmente pelo processo, visto que “os ferimentos resultantes do aludido
castigo eram leves”, e “não vê na lei, ou em decisão alguma do governo, que
o promotor público tenha atribuições de queixar-se por parte do escravo,
considerando-a pessoa miserável, do senhor deste pelo castigo de que apenas
resultou ferimentos e ofensas físicas leves” (Ilm. [...], 1878, p. 3).
O advogado Simplício Coêlho de Rezende alegou que o castigo de chicote não
era proibido por nenhuma lei, castigo moderado ou o mal dele resultante não
constituía crime, questionava que mal pode resultar do castigo corporal e que
em outros locais muitos escravos tenham morrido em açoites, muitos estejam
Talyta Marjorie Lira Sousa / Pedro Vilarinho Castelo Branco

retalhados de chicote, mas seus senhores não eram acusados de crime algum,
“ao passo que o acusado está sob o peso e mil incômodos de um processo-crime
por que deu seis ou oito chicotadas em uma sua escrava que havia cometido mil
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

faltas, e pelo que, a bem da mesmo da sociedade, devia ser castigada”. Por esses
motivos, o acusado não é criminoso e estava no direito de propriedade, logo o
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

Estado não deveria intervir, pois “não se pode [...] duvidar do direito que existe
no pai, no senhor e no mestre de castigar o filho, o escravo e o discípulo” (Ilm.
[...], 1878, p. 3).
No dia 23 para 24 do mês de outubro de 1878, em meio ao trâmite do
processo, a escrava Esperança fugiu. Sua fuga pode ser compreendida como
unidade básica da resistência ao sistema escravista, pois era produtora direta
do abandono do trabalho, um rompimento das relações entre senhor e escrava,
um desafio radical e ataque ao direito de propriedade (Gomes, 1996, p. 3).

Anuncios
Boa Gratificação
Dá José de Lemos à quem capturar e entregar-lhe a escrava
Esperança, cabocla, baixa, magra, olhos vesgos, cabelos corridos,
avermelhados e aparados, boca grande e falta de dentes; e
tem sinal de relho no pescoço – fugiu na noite do dia 23 para
24 do corrente mês, levando saia de riscado americano branco,
camisa de algodãozinho e uma meia encarnada. Foi encontrada
no caminho da Lagoa da matta, e é de presumir que fosse para
Artigo

Canabrava do capitão Ignácio Marques, onde mora sua irmã de


nome Raimunda.
Teresina, 26 de setembro de 1878 (Anúncios, 1878, p. 4).

O anúncio denota as características da cativa, a tática de ocultar-se levando

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roupas e os seus laços familiares, pois presumiam que ela procuraria a irmã
na Canabrava. A evasão de Esperança era um rompimento no qual a escrava,
conhecedora das malhas finas do sistema, escapou para espaços onde não
pudesse ser descoberta. A possível motivação foi o uso excessivo da violência
durante o castigo. Esperança acabou capturada, como noticiado na edição nº 32
do jornal A Época, de 9 de novembro de 1878, acoitada na casa de uma senhora
chamada Urçula de tal e de seu filho Abreu Bacellar. O seu proprietário, José
Antonio de Lemos, levou a público e “conhecimento de todos que fará com a
dita escrava todo e qualquer negócio até o prazo”, através de seu procurador,
João Raymundo Martins, “em sua quinta à margem do rio Parnaíba, ande se
Talyta Marjorie Lira Sousa / Pedro Vilarinho Castelo Branco

acha a referida escrava” (Atenção, 1878, p. 4).


Havia a preocupação constante ora com a segurança pública, ora com os
castigos impostos aos escravos. O posicionamento dos periódicos expressava
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

os pedidos para um comportamento mais humano, ao mesmo tempo, defendia


os senhores que puniam rigorosamente seus escravos. Ademais, continuou a
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

publicar anúncios de venda, compra, aluguel e fuga. Nesse sentido, destacamos


que os discursos dos periódicos incorporam a expressão e as visões sociais,
a característica solidária e ser contra a prática de castigo não significa ser
contrário à escravidão ou abolicionista (Castilho, 2019, p. 64).
Segundo Lilia Schwarcz, as notícias poderiam ser lidas e compreendidas de
maneiras diversas, permitindo uma análise mais textual, onde o “autor estaria
nos relatando uma história talvez comum de um escravo que, para tentar livrar-
se de sua condição, utilizava artifícios variados, como fingir para escapar do
cativeiro” (Schwarcz, 2017, p. 14). Esse relato poderia, ou não, sensibilizar o
leitor, visto os vários casos de fuga presentes nos jornais, chamava a atenção
das pessoas que se dedicavam à tarefa de procurar escravos, além de despertar
o interesse da sociedade para o controle e a vigilância.
Outra representação dos escravos nos jornais oitocentista estava ligada à
depreciação pela sua origem, pela sua cor e pelos costumes. Nos periódicos
pesquisados, localizamos apenas um artigo sobre essa temática, mas uma
multiplicidade de pontos pode ser elencada a partir dele. O primeiro diz respeito
a quem escreve o artigo. O texto é redigido em primeira pessoa, assinado com
Artigo

o pseudônimo O Velho Matta Fria, da cidade de Piracuruca. A todo momento, o


autor se posiciona como negro, preto e esta é sua raça: “Até mesmo os pretos,
como eu, vão se tornando sediciosos, e parecem prestes a atentarem contra
a existência dos brancos. Esta minha raça jamais perdoará a menor ofensa
recebida” (O Velho Matta Fria, 1869, p. 3). Não há como saber a veracidade das

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palavras do escritor quanto a sua questão étnica. A retórica do negro sedicioso


e vadio fez parte do discurso civilizatório do século XIX, com a finalidade de
incorporar o cativo ao sistema de valores econômico e social.
Em seguida, faz menção ao pecado de Cam, como consequência ao
sofrimento e ao desprezo das outras raças: “No entanto devia lembrar-se que
Cam foi amaldiçoado, e todos os seus descendentes na sua pessoa, razão por
que tanto sofremos e merecemos o desprezo das outras raças” (O Velho Matta
Fria, 1869, p. 3). É válido destacar que o regime escravocrata recebeu apoio da
Igreja Católica para se consolidar, ratificar a escravidão do africano e aceitação
social dessa prática através do discurso da maldição de Cam. O pecado de Cam
Talyta Marjorie Lira Sousa / Pedro Vilarinho Castelo Branco

possivelmente tenha relação com o quarto mandamento católico – honrar pai


e mãe –, talvez, por esse motivo, Noé o tenha amaldiçoado. Sabe-se que nem a
população de Canaã, nem seus descendentes tinham pele negra e que se fixaram
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

na região que se tornou conhecida como Palestina. Os cananeus, com o tempo,


foram sendo subjugados pelos israelitas, descendentes de Jafé. Essa subjugação
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

cumpriu a maldição bíblica sobre Canaã, mas nada teve a ver com a população
africana ou afrodescendente.
O texto com o pseudônimo O Velho Matta Fria diz que de nada valia ser
descendente das famílias reinantes na África, pois se era vendido como escravo
por preço de missanga e não valia coisa alguma no Brasil: “É verdade que ele é
descendente paterno da Etiópia, e a preta velha sua mãe é da família reinante
de Congo. Mas o que vale isto, se ela foi vendida por duas varas de missanga, e
se foi alguma coisa no Brasil, e deveu a boemia dos brancos?! Meu parceiro, se
convença que nós os negros, somos um nada” (O Velho Matta Fria, 1869, p. 3).
Por fim, cita algumas quadrinhas que [ele] diz ser do seu senhor, Lima,
descrevendo a sua figura:

De lado vê-se um jumento,


Deitado figura um porco,
Em pé devisa-se um touco,
Sendo um bode fedorento.

Não tem crinas e é rabixo,


Artigo

A razão disto direi,


É que tudo lhe arranquei,
Desatolando esse bixo.

Acima dos olhos tem

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Uma cinta de cabelos,


De Jacurutu tem modelo;
E feias formas contém.
Sob a mandíbula debaixo,
Tem o topete de bode;
Com dez arroubas bem pode,
É bom cargueiro esse macho.

São largas as suas queixadas,


Tem cabeça de andaluz,
Sempre gadeira conduz, de burro tem arribadas.
Talyta Marjorie Lira Sousa / Pedro Vilarinho Castelo Branco

Já foi muito carregador,


Porcos não lhe davam linha...
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

E quando rabo ele tinha...


Era mui cabiador.
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

É lerdo e muito ronceiro


Topa muito de uma mão;
Sempre foi muito xotão.
Tem catinga de gaieiro.

PARA ABREVIAR

Ele se chama Rusmundo,


Caetano nome de preto,
Parda-vasco fedorento,
Coberto de musgo crespo (O Velho Matta fria, 1869, p. 3).

A ligação entre escravo e animal remonta do direito romano, da condição


jurídica de coisa, que estabelecia as mesmas particularidades entre o escravo
e o animal. O Velho Matta Fria incorpora a estratégia ideológica dos grupos
dominantes para justificar a exploração do senhor Lima sobre os escravos.
Segundo a lei, cativo era considerado uma propriedade, estando dependente
do poder senhorial e equiparado a coisa. Assim, por ser considerado um objeto,
Artigo

não possuía personalidade e era privado de toda capacidade civil (Reis Júnior,
2008, p. 67-76). Se era considerado incapaz, do ponto de vista civil, sem ter
personalidade jurídica, como era a sua situação no caso de cometer um crime?
Para a lei penal, o escravo, sujeito ou agente do delito, era considerado pessoa

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e não coisa, podendo responder diretamente pelos delitos que viesse a cometer,
como nos casos já apresentados neste tópico.
Outra consideração que podemos fazer sobre a escrita do Velho Matta Fria
é a utilização das palavras africano/escravo/negro, durante o século XIX,
empregadas quase como sinônimas. Essas palavras indicavam e tratavam os
sujeitos como homogêneos e com uma identidade definida pelo seu fenótipo.
O termo “preto” surgiu por volta do século X para designar pessoas com pele
escura e originárias da África, e passou a ser associado à palavra “negro”, com
a exploração do trabalho escravo e o tráfico no século XV pelos portugueses e
espanhóis na América (Rocha, 2010, p. 901). As três palavras passavam a ideia
Talyta Marjorie Lira Sousa / Pedro Vilarinho Castelo Branco

de inferioridade pela cor e pela cultura, assim como a forma como se vestiam.
Na consulta ao jornal A Imprensa, encontramos o caso do “cidadão Manoel
Bento Rodrigues”, que, por ter a cor preta, andar na rua às onze horas da noite e
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

em traje esfarrapado, foi preso pela patrulha. Segundo o artigo 6º da Constituição


de 1824, era cidadão brasileiro aquele nascido no Brasil, “quer sejam ingênuos,
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por
serviço de sua Nação”; o filho legítimo de pai brasileiro e ilegítimo de mãe
brasileira, “nascidos em país estrangeiro, que vierem estabelecer domicilio no
Império”, os filhos de pai brasileiro a serviço do Império em outro país, mesmo
que não venham ser domiciliados no Brasil; “todos os nascidos em Portugal, e
suas Possessões”, que já eram residentes no Brasil durante a Independência e
aderiram “a esta expressa, ou tacitamente pela continuação da sua residência”
e os estrangeiros naturalizados (Brasil, 1824).
Manoel Bento Rodrigues era considerado cidadão pelo articulista que
escreveu a matéria, por se enquadrar no primeiro inciso do artigo 6º, nascido no
Brasil, quer seja ingênuo ou liberto, “o cidadão” era “notoriamente conhecido
como livre, por que nasceu já nesta condição, tendo de 25 a 28 anos de idade”
(Ataque [...], 1869, p. 4). Consoante a Constituição de 1824, os escravos não
tinham direitos civis, políticos, não eram cidadãos, não tinham acesso a direitos
“básicos, à integridade física (podiam ser espancados), à liberdade e, em casos
extremos, à própria vida, já que a lei os considerava propriedade do senhor,
equiparando-os a animais” (Carvalho, 2002, p. 21).
Artigo

“O grande criminoso – de esfarrapamento e pretice”, mesmo alegando para


os soldados que era “livre e morava em companhia do capitão Jesuíno José
Avelino”, foi recolhido à casa de detenção. A cor foi um traço distintivo e de
suspeita, pois não bastava a palavra de Manoel Bento Rodrigues, era preciso
averiguar, de forma legal, se ele não era um escravo fujão. Ele ainda foi mantido

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em custódia durante três dias, por falta de pagamento da carceragem, “sendo


relaxada esta detenção no dia 13, às nove horas da manhã, por alegar que não
tinha meios para realizar tal pagamento e estar com muita fome”, e depois do
Doutor Sesostris Silvio de Moraes Sarmento enviar dois bilhetes, a pedido do
nosso amigo capitão Jesuíno Avelino, ao subdelegado do 2º distrito (Ataque
[...], 1869, p. 4).
Para o jornalista, a prisão desse sujeito atingia a liberdade individual, pois
“não estava embriagado, não andava perturbando a tranquilidade pública,
não era vagabundo, tanto que indicou aos algozes de sua liberdade a lugar de
sua morada, em casa de um cidadão respeitável e conhecido de todos nesta
Talyta Marjorie Lira Sousa / Pedro Vilarinho Castelo Branco

cidade”, não servia este nem para ser recruta, “por que tem grave e visível
defeito físico” (Ataque [...], 1869, p. 4). O jornalista indagou “o que motivou
sua prisão?”. Prontamente respondeu que Manoel trajava roupas esfarrapadas
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

e que “o infeliz” não tinha culpa de não ter nascido branco: “Preso por [...]
oferecer suspeitas de ser escravo, em vista do seu traje esfarrapado e ter a cor
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

preta. […] Infeliz do que não teve a glória de ter nascido de pais de cor branca!”
(Ataque [...], 1869, p. 4). Observamos que o discurso convergiu, no final, para
a culpabilidade de Manoel Bento Rodrigues, ele não foi preso porque estava
com roupas esfarrapadas ou pelo horário previsto para circulação na rua, e sim
por ser preto, ressaltando o elemento de sua cor como suspeito de ser escravo
fugido.
Sobre os estudos científicos, o jornal A Imprensa publicou, em três edições
seguidas, a transcrição de uma crítica sobre a obra A origem das espécies, de
Charles Darwin5. Conforme o editorial, a publicação dessa obra “suscitou
numerosas controvérsias, e tiraram-me da sua teoria estupendas consequências
à propósito do homem”. Posteriormente, o naturalista reconheceu as implicações
causadas pela obra e lançou A descendência do homem. Segundo o articulista, a
partir dessas obras, Darwin provou “que o homem saiu da animalidade, e mostra
no animal o gérmen do senso moral, que tão magnificamente está desenvolvido
no homem, dando-lhe nobreza e orgulho de si mesmo” (Transcrição, 1887, p. 2).
De acordo com Lilia Schwarcz, esses editoriais apresentam o ideário evolutivo
e positivista daquele momento que era usado como referência às teorias
Artigo

científicas. Por meio de termos acessíveis, proporcionavam a popularização,


aproximavam as mudanças sociais a regras de evolução biológica, ajustadas às
condições políticas e ideológicas do momento (Schwarcz, 2017, p. 177-119). A
autora destaca que os artigos ironizavam as práticas africanas, usavam termos
negativos empregados comumente aos negros, como “feitiçaria, violência,

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degeneração e imoralidade” (Schwarcz, 2017, p. 134).


Em continuação, há a manifestação da necessidade da teoria do naturalista
em apresentar o senso moral e a consciência, “lançando um golpe de vista sobre
o estado moral dos selvagens”.

Dispondo em ordem metódica as suas observações, atribui a


inferioridade moral dos selvagens à três causas principais. Os
habitantes da Terra do Fogo vivem quase sempre de mariscos.
Um deles voltava da pesca, em companhia da mulher e de um
filho carregava cestas de mariscos muito pesadas para a sua
Talyta Marjorie Lira Sousa / Pedro Vilarinho Castelo Branco

tenra idade. Tendo o menino tropeçado, caindo com seu fardo,


enfurecido, o pai esmagou-lhe a cabeça.
Certo é que este selvagem da mais aviltada raça não sentiu remoço
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

algum. Incapaz de governar-se racionalmente, o selvagem é tão


somente sensível à opinião da sua tribo.
A estrema fraqueza de espírito constitui a segunda causa da
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

inferioridade moral dos selvagens. Muitos há que não podem


contar até quatro. Conheci na África multidão de negros sem
noções elementares do tempo, das estações, da idade, etc, etc.
Em S. Thomé, onde já penetrou alguma civilização, mau grado os
negreiros, não faltam serviçais crioulos que respondem pequenino
ou grande, quando são questionadas a propósito da idade. Duas
horas lhe são familiares – a do meio dia, na ocasião em que o sol
em pino lhe faz bater na barriga para reclamar a banana assada
e o peixe salvado de Mossamedes – e a que sucede ao cansaço
do dia, às fadigas da campina, no mormaço do Equador, peior,
mais acabrunhador que os mais violentos raios do sol. Eles não
se esquecem, nessa hora bem dita, da tina de milho e de brisa
quente (Transcrição, 1887, p. 1-2).

Os aspectos apresentados no artigo evocam os estereótipos negativos


como: inferioridade, incapaz de governar-se, sem noção de tempo, as atitudes
imperialistas e as questões culturais da alimentação. A África vista como o berço
da barbárie em contraponto com a Europa, berço da civilização e do progresso,
Artigo

criavam-se estruturas de comportamento, com o intuito de internalizar as


maneiras consideradas “civilizadas”. Nas ideias ligadas a noção de progresso/
civilização, havia a intenção de produzir um discurso adequado às demandas
socialmente aceitas no processo de transformação de hábitos e costumes
ligados à escravidão (Elias, 1994). Esse movimento ocorre no desenvolvimento

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do pensamento da subjugação de outros territórios, passando por cima das


nações que não se adequassem aos padrões de comportamento (Elias, 1994, p.
64).
Nos periódicos, há inúmeros casos de reescravização e processos de
manutenção de liberdade. Sidney Chalhoub, ao analisar as ações de liberdade
da Corte de Apelação na cidade do Rio de Janeiro, na segunda metade do século
XIX, percebeu a possibilidade de os escravos recorrerem à justiça, os riscos
ao recorrer a essa via, a burocracia e a complexidade do processo de ações de
liberdade: “Não é difícil imaginar os riscos que corriam os negros que tentavam
obter a liberdade na justiça e perdiam. Além da decepção da derrota, a volta
Talyta Marjorie Lira Sousa / Pedro Vilarinho Castelo Branco

para “casa” podia incluir seu cortejo de sevícias por parte de um senhor irado e
vingativo” (Chalhoub, 2011, p. 108-109).
As ações de liberdade poderiam envolver as cartas de alforria concedidas e
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

não cumpridas, seja pelo concedente ou por seus herdeiros, e as promessas de


liberdade. Nesse sentido, sujeitos buscavam a justiça para assegurar, comprovar
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

a alforria ou manter sua liberdade. Para Keila Grinberg, as ações de liberdade


são “um ou um conjunto de supostos escravos inicia um processo judicial contra
seu suposto senhor, argumentando seu direito à libertação – e das ações de
manutenção de liberdade – em que um liberto procura a Justiça para garantir
seu status” (Grinberg, 2007, p. 6).
No O Piauhy e A Imprensa, encontramos uma disputa entre periódicos que
remetia à acusação de redução à escravidão do escravo Lino, por Arcenio Lopez
dos Santos, da fazenda da Cana Brava do Termo dos Picos. Em 20 de janeiro de
1869, o periódico A Imprensa chamou a atenção dos leitores para as diversas
publicações gerais do jornal daquele dia, “sobretudo para o caso do Sr. Ramos
da Vila dos Picos – que trata da redução de pessoa livre à escravidão” (Atenção,
1869, p. 4).
Em resposta a essa publicação, Arcenio Lopez dos Santos, na seção “A
pedido” do jornal O Piauhy, escreveu ter ciência “da edição número 182 da
Imprensa de 10 de janeiro último, atribuindo-lhe o fato criminoso de reduzir a
escravidão um escravo de nome Lino”, pedia que o público não fizesse juízo a
respeito da difamação a sua reputação e que procurava “os meios legítimos para
Artigo

desmascarar o vil caluniador” (A Pedido, 1869a, p. 4). Arcenio Lopes dos Santos
ainda apresentou nova defesa no mesmo periódico em 27 de agosto de 1869,
argumentando que “um miserável e desprezível caluniador sob o pseudônimo
de Ramos, apareceu no jornal Imprensa desta província publicado em 20 de
janeiro último, acusando-me de ter reduzido à escravidão o meu escravo

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Lino, filho de uma de minhas escravas de nome Roberta”, que estava diante
do público justificando-se pelo dever que sua posição social lhe impunha e
sabia “perfeitamente a fonte impura d’onde emanou a imputação [...] Infelizes
que vivem para flagelo da humanidade: um desses miseráveis, que abundam
na sociedade para misteres opostos a honra e probidade” (A Pedido, 1869b,
p. 4). O jornal A Imprensa noticiou, mais uma vez, o caso do escravo Lino,
em 29 de setembro de 1869, descrevendo os pormenores do caso, a partir de
correspondentes na cidade dos Picos. O noticiário afirmava que “um indivíduo
de nome Lino, liberto na pia do batismo, vivia em cativeiro do tenente-coronel
Arcenio Lopes dos Santos”, a polícia não agia com presteza, aceitava “qualquer
Talyta Marjorie Lira Sousa / Pedro Vilarinho Castelo Branco

justificação fosfórica, sem mandar proporcionar aos infelizes os meios de


provarem seus direitos” e julgavam que todas as vezes que se tratar de assuntos
dessa ordem, era dever da “polícia mandar depositar o indigitado liberto,
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

arreda-lo do poder e posse do roubador de seu direito de liberdade, e facilitar-


lhe todos os meios de prova” (Redução [...], 1869, p. 4).
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

O personagem do processo de manutenção de liberdade, Luiz Mandy,


estudado por Francisca Raquel, em sua tese, aparece em diversas edições
do jornal O Piauhy6. A pesquisadora investigou que Luiz Mandy ou Luiz
Antônio da Silva Henriques (nome adotado pelo escravo e como também era
chamado) vivia na cidade de Parnaíba, nasceu escravo, exerceu diversos papéis
naquela sociedade, conquistou uma relativa autonomia em seu cotidiano, foi
guarda nacional, qualificado como votante, por diversas vezes participou do
processo eleitoral, algo incomum numa sociedade escravista, mas seu senhor
o reescravizou, “fazendo retornar ao cativeiro, lugar que provavelmente, para
aquele senhor Ozório, o mesmo nunca deveria ter saído, ou seja, ele não queria
perder o controle sobre a vida de Mandy” (Costa, 2017, p. 273).
Outra marca que podemos elencar quanto às representações bárbaras e
ilegítimas dos cativos pela sociedade oitocentista era a feitiçaria. O combate à
feitiçaria pode ser compreendido como uma forma de higienização do espaço
urbano e ação contra as práticas culturais dos afrodescendentes. Os sujeitos
que se relacionavam a esses discursos eram retratados como um elemento a ser
temido por suas práticas desconhecidas, como no caso do Gama, acusado de
Artigo

feitiçaria nesta província, conforme o jornal A Pátria:

Feiticeiro – Vaga pelo sul do município desta capital, segundo


nos informa pessoa de todo credito, um outro Juca Rosa, fazendo
fortuna à custa dos incautos.

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Pedimos a polícia que deite um olhar de atenção para este melro,


que anda extorquindo tudo quanto pode dos pobres crédulos,
que infelizmente escutam suas especuladoras, escandalosas e
prejudiciais feitiçarias.
Pelo município de São Gonçalo já andou ele, e tem brilhanturas
do arco da velha, pelo que a polícia de lá colheu em cima, e
obrigou-o a retirar-se para o termo desta capital, depois de haver
naquele cometido alguns defloramentos, entre os quais consta a
de uma menor, que perdeu as flores de sua virgindade, a pretexto
de ser desinfeitiçada.
O tal feiticeiro é um preto alto, conhecido pelo nome de Gama, ele
Talyta Marjorie Lira Sousa / Pedro Vilarinho Castelo Branco

já esteve nesta capital, em tratamento no hospital da misericórdia.


Seria bom que a polícia o mandasse vir a fim de verificar se ele é
perito na arte de Juca Rosa (Feiticeiro, 1871, p. 4).
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

Observamos, por meio desta notícia, que Gama foi comparado ao feiticeiro
Juca Rosa, filho de africanos, nascido no Rio de Janeiro e reconhecido durante
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

o século XIX como um líder religioso ou feiticeiro que liderava uma associação
religiosa com adeptos. Juca Rosa, assim como Gama, é retratado no Diário de
Notícias, jornal da cidade do Rio de Janeiro, pela sua cor, suas práticas culturais,
religiosas e pelo defloramento de mulheres:

Crioulo, criado e vivendo nesta vasta cidade, onde é escassa


a civilização entre o povo, filho de uma africana, que legou o
misterioso arcano de dar fortuna, conseguiu este, por longo
tempo criar uma plêiade de mulheres, e ainda moças e bonitas,
que partilhando alternadamente seu leito e para ali conduzindo
suas próprias filhas ainda virgens, para a consumação de um
sacrifício [...] (Importante [...], 1870, p. 1).

Pela publicação, notamos como os periódicos possuíam a função de um


“circuito de interatividade”, pois, nessa província, conhecia-se a arte de Juca
Rosa na corte e a relacionavam às atividades de outros sujeitos. Assim como
Gama, [Antônio Lopes] foi preso em 25 de novembro de 1863, foi recolhido à
Artigo

cadeia de Teresina, por ordem do Delegado de Polícia, o preto velho e liberto


de nome Antônio Lopes, por ser encontrado com diversos embrulhos de casca
de pão reduzidas a pó, pedaços de vidro e outras coisas em um saco, para curar
feitiços (Importante [...], 1870, p. 1).

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Considerações finais

Nos jornais pesquisamos e observamos as diferentes formas de representar


os escravos e como essas narrativas poderiam ser construídas para atender os
interesses dos grupos sociais e políticos. Considerando também, que nessas
representações há espaços de autonomia dos cativos nas relações cotidianas
por meio de crimes, nas experiências de fugas ou nos diferentes espaços de
negociação com seus senhores.
Os jornais oitocentistas, enquanto “produtos sociais”, são constituídos
de expectativas, posições e representações específicas. As notícias e os fatos
Talyta Marjorie Lira Sousa / Pedro Vilarinho Castelo Branco

possuem diversas interpretações, que podem ser selecionadas, entendidas e


recuperadas, “não enquanto situações que realmente aconteceram […], mas
antes enquanto situações plenas de significações” (Schwarcz, 2017, p. 18).
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

Entendemos que os jornais são pedaços de significações atrelados ao seu


tempo histórico, que possuem uma pluralidade de pessoas que o escrevem,
de Carlos de Laet no periódico O Jornal

pensamentos e posicionamentos que nem sempre são convergentes (Lapuente,


2016, p. 17-18). A imprensa propicia à história não só o alargamento das
fontes, mas também, a possibilidade de compreendermos as transformações
das práticas culturais, políticas e econômicas, dos comportamentos e padrões
sociais, das manifestações ideológicas e da representação de determinadas
classes (Bezzerill, 2011, p. 3).
O posicionamento dúbio dos periódicos expressava os pedidos para um
comportamento mais humano, pois, ao mesmo tempo que se defendiam os
senhores que puniam rigorosamente seus escravos, publicavam anúncios de
venda, compra, aluguel e fuga deles. Nesse sentido, destacamos que os discursos
dos periódicos incorporam a expressão e a visão social, a característica solidária
e ser contra a prática de castigo não significa ser contrário à escravidão ou ser
abolicionista (Castilho, 2019, p. 64).
Os discursos produzidos nas páginas piauiense possuem intencionalidades
e visam criar representações dos escravos aos leitores. Uma vez que essas
representações são incorporadas pelos indivíduos, demonstram as práticas de
poder daquela sociedade. Portanto, observamos que o conceito representação
Artigo

auxilia os pesquisadores a perceberem os confrontos sociais, a compreensão


das múltiplas experiências dentro das relações escravistas e o mundo social.
Desse modo, as representações foram construídas e não são discursos
neutros, pois produzem estratégias e práticas que validam um projeto
reformador ou explicam escolhas, ou condutas. Os jornalistas não escrevem

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jornais, assim como os autores não escrevem livros, ambos escrevem textos,
que são transformados num objeto físico, livro e jornal (Chartier, 1990, p. 17).
Assim, ao nos depararmos com uma grande diversidade de representações
referentes aos escravos nos jornais, vimos o quanto eles serviram de
instrumento não violento, no entanto, eficaz nas mãos da elite dirigente, para
controlar uma população, que, apesar de numericamente maior, não dispunha
do poder da escrita, importante meio de persuasão em um combate ideológico
que definia as relações de poder (Silva, 2015, p. 12). Com efeito, os articulistas
foram interlocutores divulgadores do discurso ideológico de dominação e de
contenção de uma grande massa não só de escravos, mas de todos aqueles das
Talyta Marjorie Lira Sousa / Pedro Vilarinho Castelo Branco

camadas subalternas, que poderiam ir contra os interesses de manutenção e de


justificativa da ordem escravista.
perspectiva católica em 1926 através dos artigos
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TRANSCRIÇÃO. A Imprensa, Teresina, ano 17, n. 963, p. 1-2, 2 abr. 1887.

Notas
Universidade Federal do Piauí.
1

Universidade Federal do Piauí.


2

3
A plataforma digital do Projeto Memória do Jornalismo Piauiense democratiza o acesso
Artigo

aos periódicos por parte dos pesquisadores e comunidade em geral. Todos podem
consultar jornais, revistas e almanaques do século XIX e XX. Para saber mais acesse
http://memoriadojornalismopi.com.br/.
4
Os pesquisadores podem acessar títulos de periódicos nacionais, revistas, anuários,
boletins e publicações seriadas, através do site https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-
digital/.

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5
Sobre a transcrição da crítica sobre a obra A origem das espécies (Sobre estudos [...],
1887a, 1887b, 1887c)
6
Sobre o processo de manutenção de liberdade de Luiz Mandy (1872a, 1872b, 1872c,
1872d).
Talyta Marjorie Lira Sousa / Pedro Vilarinho Castelo Branco

perspectiva católica em 1926 através dos artigos


Espiritismo e crítica ultramontana: uma análise da

de Carlos de Laet no periódico O Jornal


Artigo

Recebido em 02/08/2023 - Aprovado em 08/12/2023


Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.528-562, jul-dez. 2023 } 562
DOI: 10.5433/1984-3356.2023v16n32p563-592

“A Sentinela junto ao
Reno”: imagens da
Germânia, do poema de
Max Schneckenburger ao
monumento de Johannes
Schilling

“The Watch on the Rhine”:


Images of Germania,
from the poem by Max
Schneckenburger to the
monument by Johannes
Schilling

“La Guardia del Rin”:


Imágenes de Germania,
desde el poema de Max
Schneckenburger hacia el
monumento de Johannes
Schilling

Daniele Gallindo Gonçalves1

Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.563-592, jul-dez. 2023 } 563


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Resumo: O presente artigo analisa, à luz da crítica literária e


da análise de imagens, como do movimento do Reno (1840) até
os primeiros anos da fundação do Império Alemão (1871-1883),
a figura da Germânia foi instrumentalizada por poetas, pintores
e escultores. No momento da publicação do poema “A Sentinela
junto ao Reno” (1840), de Max Schneckenburger, construiu-se
uma figura literária imaginativa de uma vigília junto ao Reno,
que incorporou os diversos discursos em relação às questões
nacionalistas em um contexto de confronto iminente com a
do poema de Max Schneckenburger ao monumento

França. Toda uma cultura textual e visual foi concebida, assim,


“A Sentinela junto ao Reno”: imagens da Germânia,

durante o chamado longo século XIX tendo como foco essa figura
de Germânia, que vai ganhando formas cada vez mais definidas
à medida que se delimitam os contornos políticos do novo
Estado alemão e sua ideologia bélica. O ápice de sua recepção é a
inauguração do monumento de Niederwald (1883), de Johannes
Schilling, como celebração da vitória na Guerra Franco-
Prussiana. Vê-se, ainda, que a figura continua a ser acionada
Daniele Gallindo Gonçalves

em momentos turbulentos ao se buscar noções de identidade


e unidade nacional, como no caso da Primeira Grande Guerra.
de Johannes Schilling

Palavras-chave: Germânia; movimento do reno; nacionalismo;


longo século XIX; História da Alemanha.

Abstract: The present article analyzes, according to literary


criticism and image analysis, how, from the Rhine Movement
(1840) to the early years of the foundation of the German Empire
(1871-1883), the figure of Germania was instrumentalized by
poets, painters, and sculptors. At the time of the publication
of the poem " The Watch on the Rhine" (1840) by Max
Schneckenburger, an imaginative literary figure of a vigil on the
Rhine was constructed, incorporating various discourses related
Artigo

to nationalist issues in a context of imminent confrontation


with France. A whole textual and visual culture was conceived
during the so-called long 19th century, focusing on this figure
of Germania, which takes on increasingly defined forms as
the political contours of the new German state and its warlike

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ideology are delineated. The climax of its reception is the


inauguration of the Niederwald Monument (1883) by Johannes
Schilling, as a celebration of victory in the Franco-Prussian War.
Furthermore, it can be observed that this figure continues to be
invoked in turbulent moments when notions of identity and
national unity are sought,as was the case during the First World War.
Keywords: Germania; rhine movement; nationalism; long
19th century; History of Germany
do poema de Max Schneckenburger ao monumento
“A Sentinela junto ao Reno”: imagens da Germânia,
Daniele Gallindo Gonçalves

de Johannes Schilling
Artigo

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Em março de 2019, a banda alemã Rammstein lançou o clipe do single


“Deutschland”, dirigido por Eric “Specter Berlin” Remberg. Como figura central
da narrativa encontra-se Germania, representada pela atriz Ruby Commey2.
A personagem participa de momentos considerados decisivos para a história
narrada pelo vídeo, que em si apresenta a sua versão de acontecimentos que
marcaram a história da Alemanha. Entre aceitações e protestos por parte da
crítica3, vê-se uma mulher armada para guerra em vários momentos. Esse
imaginário da mulher guerreira, todavia, é alimentado no território alemão pelo
menos desde o século XIX, momento em que desponta a figura da Germânia
pronta para batalha contra o inimigo. Nesse sentido, propõe-se aqui analisar
como o imaginário da “Sentinela junto ao Reno” vai ser alimentado durante os
do poema de Max Schneckenburger ao monumento

anos de 1840 até pouco após a instauração do Império Alemão. Toma-se como
“A Sentinela junto ao Reno”: imagens da Germânia,

recorte temporal, ainda que através de dois objetos específicos, o poema de


Max Schneckenburger – “Die Wacht am Rhein” (1840) – e suas apropriações até
a inauguração do Niederwalddenkmal (1883) de Johannes Schilling.
A finalidade, aqui, é compreender como a instrumentalização da figura da
Germânia – A Sentinela do Reno – será apropriada em momentos decisivos
da construção (imaginada) da nação alemã4. Ainda que pareça uma discussão
lançada em seu passado sem qualquer relação com o presente, ela se torna
Daniele Gallindo Gonçalves

atual na medida em que o mito da unidade nacional através da construção


de mitos políticos5 durante o século XIX é (re)acionado constantemente na
de Johannes Schilling

contemporaneidade de forma ambígua, como no caso do clipe mencionado


anteriormente ou ainda através de discursos identitários, como no caso do
mito de Arminius revitalizado pela direita alemã6. Faz-se necessário, assim,
compreender como essas imagens são engendradas na construção de uma
mítica de unidade nacional durante parte do século XIX.
Para compreender a fabricação dessa figura emblemática e, por vezes,
contraditória da história da Alemanha, precisa-se retomar a construção de um
inimigo fronteiriço muito presente durante o século XIX alemão, os franceses,
e, com eles, todos os desdobramentos decorrentes dessa relação conflituosa.
Entre admiração e repulsa, a relação entre França e Alemanha foi construída
durante o “longo século XIX”7, principalmente sob o estandarte prussiano em
Artigo

prol da unificação dos territórios germânicos. Parte desse embate foi fomentado
por intelectuais oriundos de campos diversos no espectro político da época,
tais como liberais, nacionalistas, socialistas e conservadores8. Como parte da
construção do nacionalismo durante o século XIX alemão, destacam-se no
presente artigo três momentos (a Crise do Reno, a Revolução de Março e a

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Unificação) durante os quais a figura da Germania, como guardiã das fronteiras


entre os dois territórios e alegoria da nação (“A Sentinela junto ao Reno”),
foi acionada de forma a fomentar a necessidade de luta e união, bem como o
orgulho do pertencimento nacional alemão, através da exortação do passado
de lutas e da projeção de um futuro pacífico e estável.
Charges, poemas, pinturas, um vasto manancial de fontes atesta durante a
década de 1840 uma resposta narrativa e visual alemã aos desenvolvimentos
políticos em relação às fronteiras – o Reno se torna um espaço de disputas
entre a França e o fragmentado território alemão (mais especificamente a
Confederação Germânica). É nesse cenário que floresce o “Movimento da Canção
do Reno” (“Rheinliedbewegung”), do qual também “A canção dos alemães”
do poema de Max Schneckenburger ao monumento

(“Das Lied der Deutschen”, de 28 agosto de 1841), de August Heinrich Hoffmann


“A Sentinela junto ao Reno”: imagens da Germânia,

von Fallersleben, que se tornaria o texto do futuro hino da Alemanha, é parte.


Com teor ufanista, esses poemas rapidamente caíram no gosto popular, e, ao
passarem a ser reproduzidos autonomamente pela população, desempenharam
um papel ativo como plataforma de debate público, tornando-se uma voz
influente e relevante para aqueles que fomentaram a formação de uma noção
de identidade nacional alemã (Vanchena, 2000, p. 241). Todavia, não se trata de
um fato isolado por conta da crise instaurada, uma vez que o Reno inspirava
Daniele Gallindo Gonçalves

mitos (p. ex. Loreley), imagens bucólicas e um protonacionalismo desde o ciclo


romântico de início do século (Veh, 2016). Ressalte-se, contudo, o fato de que
de Johannes Schilling

nem todo o movimento nacionalista tenha sido em sua essência conservador.


Como aponta Jonathan Sperber, podem-se destacar duas frentes nacionalistas
distintas no período:

Ao contrário do nacionalismo de esquerda do Festival de Hambach,


que incluía uma hostilidade pronunciada em relação aos trinta e
nove estados alemães existentes e à Confederação Alemã, a qual
eles estavam ligados, os nacionalistas conservadores elogiavam
as instituições governamentais existentes como a base de uma
nação politicamente conservadora. Esse sentimento recebeu um
forte impulso da crise do Reno em 1840, quando ameaças vagas
de uma invasão francesa provocaram uma resposta tumultuada9
Artigo

(Sperber, 1991, p. 114).

No poema de Nikolaus Becker, “Der freie Rhein”10, publicado no Trierischen


Zeitung em 18.9.1840, o Reno assume característica de território pátrio que

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precisa estar livre do jugo inimigo, representados como “corvos ávidos” (“gierige
Raben”)11. Para que o Reno possa ser livre, ele não pode estar em posse dos
inimigos, conforme os seguintes versos: “Eles não devem tê-lo, / O livre Reno
alemão” (“Sie sollen ihn nicht haben,/ Den freien deutschen Rhein”), versos
que se repetem quatro vezes nas estrofes ímpares de todo o poema. O Reno
se torna, portanto, o espaço de uma disputa nacional, celebrado nos versos
de Becker e, a posteriori, retomado em outros ciclos de poemas com cunho
nacionalista, como é o caso de Ernst Moritz Arndt “Es klang ein Lied vom
Rhein”12 (“Ecoou uma canção do Reno”) e Max Schneckenburger “Die Wacht
am Rhein” (“A Sentinela junto ao Reno”). Jonathan Sperber destaca o fato de
que “[a] canção de Becker era conhecida como a "Colonaise", sugerindo um hino
do poema de Max Schneckenburger ao monumento

patriótico alemão conservador, em contraste com a "Marseillaise", que era um


“A Sentinela junto ao Reno”: imagens da Germânia,

hino revolucionário francês”13 (Sperber, 1991, p. 114).


Ainda que esse movimento tenha ganho destaque com o poema de Becker,
nem todos os intelectuais do período enxergavam a animosidade entre franceses
e alemães como o foco da questão, relacionando-a muito mais à liberdade de
expressão como o grande problema alemão do período – vide por exemplo o
poema “Der Rhein” (1840), de Robert Prutz e o capítulo V em “Deutschland,
ein Wintermärchen” (1844), de Heinrich Heine. No poema de Prutz percebe-se
Daniele Gallindo Gonçalves

claramente a crítica à submissão alemã aos príncipes e à falta de liberdade de


imprensa, conforme pode ser visto na nona estrofe: “Deem livremente a palavra,
de Johannes Schilling

senhores em seus tronos!/ Assim, o resto se libertará por si só./ Arrisquem e


confiem! Em todas as suas coroas,/ onde há uma pedra mais brilhante e nobre?/
Liberdade de imprensa! Nós mesmos nos tornamos juízes,/ o povo está maduro!
Eu ousarei e direi em voz alta:/ Construam sobre seus sábios, sobre seus poetas,/
aqueles a quem Deus confiou coisas ainda maiores!”14 A liberdade do Reno
não impacta em nada a liberdade dos alemães, que se encontram agrilhoados
e amordaçados a seus senhores. Em Heine, que se mostra em seu cântico
extremamente ácido quanto aos movimentos nacionalistas, o próprio Reno
critica severamente o poema de Becker ao afirmar “Que canção mais ultrajante!
/ Que sujeito mais demente!” (Heine, [1844]/2011, p. 57). As críticas parecem,
contudo, não ter surtido qualquer efeito na propagação, entre as massas, de um
Artigo

ideal de consciência nacional proporcionado pelo poema de Becker (Vanchena,


2000, p. 250).
Seguindo as questões incitadas pela crise do Reno, encontra-se o poema de
Max Schneckenburger, “Die Wacht am Rhein”15 (1840), obra musicalizada (como
acontecera com os poemas anteriores em relação ao Reno) e, posteriormente,

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celebrada em publicação de Georg Scherer e Frank Lipperheide (1871) por ser


“A canção do povo e dos soldados do ano de 1870” (“das deutsche Volks- und
Soldatenlied des Jahres 1870”), subtítulo da obra. O que torna, contudo, o
poema de Schneckenburger destacável em relação aos demais?

Die Wacht am Rhein (1840), Max A Sentinela junto ao Reno (1840)


Schneckenburger

Es braust ein Ruf wie Donnerhall, Um chamado de um trovão a soar,


Wie Schwertgeklirr und Wogenprall: como o tilintar das espadas e ao som de
Zum Rhein, zum Rhein, zum ondas a arrebentar:
deutschen Rhein! Ao Reno, ao Reno, ao Reno Alemão,
Wer will des Stromes Hüter sein? Quem da correnteza deseja ser o guardião?
Lieb’ Vaterland, magst ruhig sein, Cara pátria, pode ficar serena,
do poema de Max Schneckenburger ao monumento
“A Sentinela junto ao Reno”: imagens da Germânia,

Fest steht und treu die Wacht, die Firme e fiel mantém-se a Sentinela, a
Wacht am Rhein! Sentinela junto ao Reno!

Durch Hunderttausend zuckt es


schnell, Através de cem mil move-se rapidamente,
Und Aller Augen blitzen hell, E todos os olhos brilham claramente,
Der deutsche Jüngling, fromm und A juventude alemã, piedosa e forte,
stark, Protege a sagrada marca.
Beschirmt die heil’ge Landesmark. Cara pátria, pode ficar serena,
Lieb’ Vaterland, magst ruhig sein, Firme e fiel mantém-se a Sentinela, a
Daniele Gallindo Gonçalves

Fest steht und treu die Wacht, die Sentinela junto ao Reno!
Wacht am Rhein!
de Johannes Schilling

Er blickt hinauf in Himmelsau’n, Ela [a juventude] olha para os prados


Wo Heldengeister niederschau’n, celestiais,
Und schwört mit stolzer Kampfeslust: onde espíritos heroicos olham para baixo,
„Du Rhein bleibst deutsch wie meine e jura com orgulhoso ânimo bélico:
Brust.“ “Você, Reno, permanece alemão como meu
Lieb’ Vaterland, magst ruhig sein, peito!”
Fest steht und treu die Wacht, die Cara pátria, pode ficar serena,
Wacht am Rhein! Firme e fiel mantém-se a Sentinela, a
Sentinela junto ao Reno!

„Und ob mein Herz im Tode bricht, “E se meu coração se quebrar na morte,


Wirst du doch drum ein Welscher16 você não se tornará por isso um francês
nicht; (estrangeiro).
Artigo

Reich wie an Wasser deine Flut rico como n’água sua correnteza,
Ist Deutschland ja an Heldenblut.“ é a Alemanha em sangue heroico!”
Lieb’ Vaterland, magst ruhig sein, Cara pátria, pode ficar serena,
Fest steht und treu die Wacht, die Firme e fiel mantém-se a Sentinela, a
Wacht am Rhein! Sentinela junto ao Reno!

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„So lang ein Tropfen Blut noch glüht, “Enquanto uma gota de sangue ainda arde,
Noch eine Faust den Degen zieht, Ainda um punho puxa a adaga,
Und noch ein Arm die Büchse spannt, e ainda um braço engatilha a espingarda,
Betritt kein Feind hier deinen nenhum inimigo entra aqui em sua borda!”
Strand.“ Cara pátria, pode ficar serena,
Lieb’ Vaterland, magst ruhig sein, Firme e fiel mantém-se a Sentinela, a
Fest steht und treu die Wacht, die Sentinela junto ao Reno!
Wacht am Rhein!

Der Schwur erschallt, die Woge rinnt, O juramento ressoa, a onda corre
Die Fahnen flattern hoch im Wind: as bandeiras tremulam altas ao vento:
Zum Rhein, zum Rhein, zum deutschen Ao Reno, ao Reno, ao Reno Alemão
Rhein! todos nós queremos ser guardiões.
Wir Alle wollen Hüter sein! Cara pátria, pode ficar serena,
do poema de Max Schneckenburger ao monumento

Lieb’ Vaterland, magst ruhig sein, Firme e fiel mantém-se a Sentinela, a


“A Sentinela junto ao Reno”: imagens da Germânia,

Fest steht und treu die Wacht, die Wacht Sentinela junto ao Reno!
am Rhein!

Estilisticamente o poema é simples e apelativo, o que facilita a sua


compreensão. Em sua estrutura encontram-se metáforas (sangue que arde,
o “peito” alemão), prosopopeias (o jovem), apóstrofes (dirigidas ao povo),
personificações (o Reno como alemão ou francês), figuras com as quais se
Daniele Gallindo Gonçalves

fomenta um efeito emocional. Nas seis estrofes repetem-se os dois últimos


versos (refere-se aqui à versão já musicalizada e reproduzida em parte no
de Johannes Schilling

Monumento em Niederwald), através dos quais se evoca a figura da Sentinela.


No poema, contudo, a figura da Sentinela junto ao Reno não é declaradamente
associada à figura da Germânia (que será concebida visualmente mais adiante
em outro recorte político). Tem-se, aqui, a noção de vigia popular das fronteiras
ameaçadas pelo desejo francês de tomar o Reno como sua propriedade, como
pode ser visto nos seguintes versos: “A juventude alemã, piedosa e forte,/
Protege a sagrada marca”. Essa vigília, no entanto, precisa seguir até as
últimas consequências, isto é, o derramamento de sangue. O poema convoca
para o confronto direto perante a ameaça (vide quinta estrofe). A figura da
Germânia aparecerá deliberadamente somente em “Das Lied vom Rhein an
Niklas Becker” (1840) de Ernst Moritz Arndt – “Para toda a Pátria, / jovem está
Artigo

a Germânia” (“Fürs ganze Vaterland, / Jung steht Germania”) –, o que pode


posteriormente ter sugerido que a evocação nos versos de Schneckenburger se
refere à figura de Germânia. A garantia de vigia sob o Reno, no poema, é dada
à Pátria (“Vaterland”), não havendo clareza no emprego da expressão: fala-

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se apenas dos territórios da fronteira com o Reno? Da Confederação Alemã?


Nesse sentido, pensar a figura da Germânia é compreendê-la nesse momento
como “a imagem idealizada de grandeza e imponência nacional em contraste
com a França”17 (Brandt, 2010, p. 220).
Os versos – “Você, Reno, permanece alemão como meu peito!” – retomam, em
determinada medida, os versos de Becker que negam o pertencimento do Reno
ao território inimigo e acionam o elemento sentimental. Em Schneckenburger,
a animosidade com os franceses fica, assim, mais explícita, como nos versos
“você não se tornará um francês (estrangeiro)” e “[v]ocê, Reno, permanece
alemão como meu peito!”.
Do movimento do Reno, a maior circulação durante os anos 1840-1841 foi a do
do poema de Max Schneckenburger ao monumento

poema de Nikolaus Becker, vide todas as respostas a ele – tanto do lado alemão
“A Sentinela junto ao Reno”: imagens da Germânia,

quanto francês. Todavia, a maior recepção nos anos seguintes é a da obra de


Schneckenburger, a qual será reiteradamente apropriada e reinstrumentalizada
através de pinturas, textos e monumentos. Germânia, a alegoria para a nação,
torna-se, assim, uma das figuras mais acionadas durante o século XIX. Como
apontado por Guillaume van Gernert, as recepções locais da canção de Becker
parecem reformular a noção de defesa e evoluir para a ideia de ataque, como
no caso do poema de Arndt (Van Genert, 2001, p. 195). Até mesmo o poema
Daniele Gallindo Gonçalves

de Schneckenburger só será reinterpretado como uma ofensiva em 1870 no


contexto da Guerra Franco-Prussiana (Van Genert, 2001, p. 194).
de Johannes Schilling

Em 1848, na Frankfurter Paulskirche, durante a primeira reunião do


parlamento, encontrava-se uma imagem de Germania (figura 1), atribuída a
Philipp Veit juntamente com Edward von Steinle (Hein, 1998, p. 73). Trajada com
manto dourado e azul em túnica vermelha, no peito a águia de duas cabeças,
Germânia na cabeça porta uma coroa de folhas de carvalho, empunha na mão
direita uma espada em riste juntamente com galhos de oliveira e na esquerda
a bandeira preta, vermelha e dourada. A seus pés vê-se um grilhão estilhaçado.
Desta forma, se poderia pensar que:

[...] ela personifica o despertar da nação em direção à liberdade e


autoconfiança, e no motivo da espada nua, mas envolta por um
ramo de oliveira, que a Germânia segura na mão direita, une-se
Artigo

o amor pela paz com uma determinação defensiva que ainda não
mostra o desafio ou a natureza guerreira das imagens posteriores
da Germânia18 (Hein, 1998, p. 73).

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Bettina Brandt, crítica literária, entretanto, aponta uma dissonância entre a


proposta da representação e o que ela evoca: os atributos remetem a símbolos
revolucionários, mas “sua aparência estática” e a espada evocam mais o “império
medieval”; “a autoridade sagrada do governo”19 (Brandt, 2009, p. 96). Ainda
nessa perspectiva, destaca-se o fato que “[a] imponente Germania se encaixa no
“parlamento de professores” e é difícil imaginá-la em uma cena revolucionária;
em vez disso, Veit parece ter buscado uma conexão com um passado mítico”20
(Bruchhausen, 1999, p. 49). Ainda que essa pintura aparentemente não tenha
ligação direta com as representações posteriores da “Sentinela junto ao Reno”,
alguns dos motivos aqui presentes reaparecem nas imagens seguintes como
cernes narrativos, elementos que a tornam reconhecíveis como Germânia.
do poema de Max Schneckenburger ao monumento

Nos anos que se seguem,


“A Sentinela junto ao Reno”: imagens da Germânia,

Figura 1 - Germania (1848), Philipp Veit


e Edward von Steinle? Christian Köhler (1809-1861),
pintor alemão da escola de
Düsseldorf, retoma a figura
da Germânia em sua pintura
Erwachende Germania (1849)
(figura 2). Germânia desperta e
imediatamente toma a ação ao
Daniele Gallindo Gonçalves

proteger coroa e espada com suas


mãos e seu corpo, que se projeta
de Johannes Schilling

sobre eles. Em sua defesa, dos céus


descem duas figuras. A primeira,
na parte central superior, porta
atributos que fazem referência
à justiça – balança e espada
desembainhada –, e se inclina em
direção à Germânia. A segunda
delas, uma figura em veste
branca, carrega uma bandeira
tricolor (amarela, vermelha e
preta) simbolizando a unidade
Fonte: Veit (1848).
Artigo

nacional, referências às cores


assumidas pelo parlamento em 1848. Cores essas que se repetem nas vestes
de Germânia (dourado e vermelho em seu manto – com brasões de águia – e
preto em sua veste). Do lado oposto à Germânia, figuras disformes em tons de
cinza representam o perigo que se afunda na escuridão: uma das figuras carrega

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grilhões (mão esquerda) e um chicote (mão direita) – uma representação da


servidão atrelada ao passado –, e a outra porta na mão direita uma tocha –
símbolo da anarquia. O despertar da Nação é aqui encenado como o despertar
da Justiça e de um novo tempo de unidade, um presente que se projeta como
vitória sobre a servidão e a anarquia que ficam nas sombras. Do lado esquerdo,
o passado envolto em sombras, do lado direito este passado é acompanhado
dos céus, a luz evoca o despertar de um novo tempo de bons agouros – eis o
que indiciam as pequenas folhas do carvalho que crescem no topo do penhasco.
No misto das cores (tricolor) e insígnias misturam-se passado (tradição)
e presente (avanços): “Na forma como Köhler coloca a coroa imperial sob a
proteção da Germânia, manifesta-se sua convicção política como defensor de
do poema de Max Schneckenburger ao monumento

uma monarquia constitucional”21 (Skokan, 2009, p. 50).


“A Sentinela junto ao Reno”: imagens da Germânia,

Figura 2 - Erwachende Germania (1849), Christian Köhler


Daniele Gallindo Gonçalves

de Johannes Schilling
Artigo

Fonte: Köhler (1849).

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Ainda que na pintura de Köhler não fique nítida a relação com o poema de
Schneckenburger, é a partir dessa imagem que se estabelecerá o diálogo entre a
figura da Germânia e a imagem da Sentinela do Reno nestas obras e em outras
subsequentes. Este é o caso da pintura Germania auf der Wacht am Rhein (1860)
(figura 3) de Lorenz Clasen. Para Isabel Skokan, a pintura de Köhler poderia ter
servido de modelo para este último, pois além de ambos pertencerem à escola
de pintura de Düsseldorf, Clasen tomara parte no movimento da revolução
burguesa entre 1848/49 (Skokan, 2009, p. 51).
A pintura de Clasen, um presente à prefeitura de Krefeld, precisa ser
compreendida dentro do contexto de acirramento da animosidade entre franceses
e alemães, visto que “[a]pós a Guerra Franco-Austríaca na Itália em 1859, o
do poema de Max Schneckenburger ao monumento

público alemão passou a temer cada vez mais um vizinho francês agressivo.
“A Sentinela junto ao Reno”: imagens da Germânia,

[...] A imagem [...] mobiliza a memória de uma controvérsia emocionalmente


acalorada sobre o Reno como fronteira francesa em 1840”22 (Brandt, 2009, p. 99).
É através dessa pintura que se funde a figura de Germânia com a da Sentinela
do Reno, anteriormente presente no poema de Schneckenburger.

Figura 3 - Germania auf der Wacht am Agora desperta, de pé, à beira


Rhein (1860), Lorenz Clasen de um penhasco no Reno, de
semblante fechado, Germânia
Daniele Gallindo Gonçalves

está pronta para a defesa. Com seu


manto vermelho e veste dourada,
de Johannes Schilling

a figura feminina se posiciona


na vigília do Reno, olhando para
o lado inimigo, portando espada
e escudo, e parece pronta para
o embate. Apresenta-se como
uma guerreira, praticamente a
representação de uma valquíria.
Na sombra, quase protegidos
pelo escudo com a águia de duas
cabeças, encontram-se coroa,
cetro e orbe imperais: além de
Artigo

proteger a fronteira do Reno,


Germânia é a guardiã das insígnias
Fonte: Clasen (1860). imperiais. Em seu escudo lê-se “A
espada alemã protege o Reno alemão” (“Das deutsche Schwert beschützt den
deutschen Rhein”). Germânia incorpora a nação, sua espada se torna elemento

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de união na proteção23. A Germânia de Clasen24 pode ser compreendida, assim,


como um apelo visual à proteção, via combate, da fronteira do Reno, apontando
para uma “esperança de um grande império alemão”25 (Skokan, 2009, p. 51).
Durante a Guerra Franco-Prussiana, o poema de Schneckenburger se torna
um chamamento ao combate, uma ode às tropas alemães aguerridas. Assim, o
poema é celebrado no livro organizado por Georg Scherer e Franz Lipperheide
intitulado A Sentinela junto ao Reno, A canção do povo e dos soldados do ano
de 1870 (Die Wacht am Rhein, das deutsche Volks- und Soldatenlied des Jahres
1870), publicado em 1871, que o considera “não apenas um hino nacional,
enquanto a língua alemã ressoar, mas também [...] como o cântico geral de
marcha e guerra dos exércitos alemães, e sob seus sons inspiradores, nossos
do poema de Max Schneckenburger ao monumento

irmãos e filhos se apressam para a batalha”26 (Scherer; Lipperheide, 1871, p. 1).


“A Sentinela junto ao Reno”: imagens da Germânia,

A coletânea é dedicada “À Vossa Majestade a Imperatriz da Alemanha e Rainha


da Prússia”. Trata-se, pois, de um panfleto apologético, que ao celebrar o poema,
celebra a guerra e os soldados que dela tomaram parte. Novamente o Reno é
acionado dentro do topos “fronteira com o inimigo”, o símbolo da liberdade
alemã – “o paládio da liberdade alemã”27 (Scherer; Lipperheide, 1871, p. 19). A
obra de Scherer e Lipperheide produz um apelo emocional ao acionar relatos
acerca do poeta e de seu poema. Sobre Schneckenburger, lê-se a narrativa do
Daniele Gallindo Gonçalves

professor da Faculdade de Teologia em Bonn, Dr. K. Hundeshagen, que em


relato de 11 de agosto de 1870, reproduzido na obra em questão, afirma ter sido
de Johannes Schilling

próximo ao poeta e o define como “um jovem de rara habilidade e diligência”28


(Scherer; Lipperheide, 1871, p. 2). Essa passagem nada mais produz do que
uma legitimação para a autoria do poema. O trecho mais apelativo vem de um
relato de um “amigo” que discorre sobre o encontro com um ex-combatente
em novembro de 1870. “Um oficial prussiano doente”29 (Scherer; Lipperheide,
1871, p. 20) afirmou em sua narrativa que foi a cantoria de “A Sentinela junto
ao Reno” que conduziu as tropas a euforia no momento da marcha e até mesmo
as levou à vitória em batalha.
Do período pós Guerra Franco-Prussiana nasce a Germania auf der Wacht am
Rhein (1873) (figura 4) de Hermann Wislicenus30. Germânia, espada apontada
para o solo, mãos apoiadas no queixo, portando o característico capacete
Artigo

prussiano (Pickelhaube) no lugar em que estaria a coroa de folhas de carvalho,


olha para o outro lado da fronteira do Reno; parece entediada. O capacete
prussiano, bem como a nova roupagem mais militarizada, parece atribuir-lhe
uma identidade, a identidade do novo Império: o Império Alemão. Essa nova
identidade, que à distância do antigo império, é também marcada pela águia

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de uma cabeça no escudo repousado ao seu lado esquerdo. Germânia aparenta


ter vencido o inimigo, representado na imagem como uma serpente a seus pés
e fincada com a ponta da espada, mas continua em vigília, e, juntamente a ela,
uma águia (simbolizando o império) sobrevoa as fronteiras da recém fundada
nação.
Do poema de Schneckenburger Figura 4 - Germania auf der Wacht am
e das pinturas de Veit, Köhler, Rhein (1873), Hermann Wislicenus

Clasen e Wislicenus depreendem-


se distintas etapas do processo de
unificação, bem como percebe-se
a gestação de diferentes projetos
do poema de Max Schneckenburger ao monumento

de nação. Do chamado movimento


“A Sentinela junto ao Reno”: imagens da Germânia,

do Reno, que em seus primórdios


não foi instrumentalizado pelo
lado prussiano, resta apenas, para
a visão imperial bismarckiana, a
antipatia por franceses e católicos,
dentro de noções implementadas
pela Kulturkampf31. Sperber, nessa
Daniele Gallindo Gonçalves

conjectura, aponta para o interesse


prussiano em fomentar determinados
de Johannes Schilling

tropos narrativos – aqui, no caso, a


Fonte: Wislicenus (1873).
inimizade entre alemães e franceses
(Sperber, 1991, p. 114). O amálgama de imagens gestadas desde o período
do movimento de canções ao Reno (Rheinliedbewegung) propicia mais uma
celebração virtual e encenada de uma pátria unificada, uma instrumentalização
consciente que encontra uma de suas maiores representações no monumento
de Niederwald – Niederwalddenkmal (1871-1883). Conforme Lothar Gall, “no
monumento de Niederwald de Johannes Schilling, a ideia pictórica da Germânia,
sem dúvida, encontrou sua expressão mais eficaz na inclusão do ‘protótipo’
determinado principalmente por Veit e Clasen”32 (Gall, 1996, p. 325).
Gestado desde outubro 1871, o monumento só é inaugurado 12 anos depois33,
Artigo

dadas todas as circunstâncias envolvendo o projeto: desde a escolha do local


(Rüdesheim), passando pelos concursos para a escolha do plano (respectivamente
1872, 1873 e 1874) até o angariamento de fundos. Patricia Mazón lembra que
a ideia original previa que o monumento seria financiado por contribuições do
povo. Todavia, o valor de 1,2 milhão foi financiado “pelo Reichstag, doações

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imperiais e principescas, bem como as contribuições da classe alta e da classe


média alta”34 (Mazón, 2000, p. 167). Nem as camadas mais populares nem o
chanceler pareciam entusiasmados com o monumento. No momento de sua
inauguração em Niederwald, Bismarck negou-se a participar da festividade. De
acordo com o Chanceler, uma figura feminina não seria a mais adequada para
representar a nação recém unificada, visto que o fato desta portar armas seria
tido por ele como “antinatural”. Em sua percepção, o ideal seria assumir Carlos
Magno como figura central do monumento, pois isso confrontaria mais os
franceses35. Contudo, é irônico que a figura que acompanha o chanceler alemão
em várias charges dos jornais do período seja ela, Germânia36.
No topo do monumento de Niederwald encontra-se a figura de Germânia
do poema de Max Schneckenburger ao monumento

de 12,5 metros, na mão direita a coroa imperial e na esquerda sua espada


“A Sentinela junto ao Reno”: imagens da Germânia,

emborcada para baixo toca o solo: “a partir da graciosa figura feminina da


Paulskirche surge a couraçada Valquíria e heroína do Império Alemão”37 (Speth,
2000, p. 223). Suas vestes denunciam a retomada de figuras mitificadas oriundas
do processo de construção da identidade nacional alemã, forjada durante
o século XIX através da retroalimentação de um imaginário de uma suposta
cultura alemã (na barra de sua veste veem-se dragões, cisnes, cervos, águias,
corvos): na cabeça, a coroa de folhas de carvalho; a veste repete o modelo que
Daniele Gallindo Gonçalves

já circula através da pintura de Lorenz Clasen, um cinto pesado adorna seu


ventre; no peito, Germânia carrega a águia imperial, ou seja, o próprio império
de Johannes Schilling

(figura 5). Ferdinand Hey’l, escritor e ator alemão, em contribuição ao Jornal


Die Gartenlaube 39 de 1883, descreve a imagem ao topo do monumento como

[...] orgulhosa e ainda assim femininamente bela, [...] postura


imponente diante do trono adornado com águias, vestindo roupas
luxuosas aludindo às lendas de nosso povo, como Genoveva,
Lohengrin e os contos (de fadas) alemães. [...] seu rosto feminino
sério e suave exibe a beleza feminina com majestade e dignidade38
(Hey’l, 1883, p. 1883).

O excesso de marcações acerca da dignidade feminina da figura indicia o


problema da representação de um símbolo pátrio como uma mulher, problema
Artigo

apresentado na fala atribuída a Bismarck. De acordo com Brandt, as qualidades


destacadas no excerto do artigo de Hey’l “expressaram um enobrecimento
do povo e [o autor] enfatizou o caráter pacífico do Estado-nação”39 (Brandt,
2009, p. 109). Desta forma, Mazón acentua que Germânia é muito mais do

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que uma figura feminina, afirmando que “seu tamanho colossal sinalizava aos
contemporâneos que ela representava o Estado e, por meio disso, o próprio
poder”40 (Mazón, 2000, p. 175).

Figura 5 - Die Bildsäule der Germania, Johannes Schilling


do poema de Max Schneckenburger ao monumento
“A Sentinela junto ao Reno”: imagens da Germânia,
Daniele Gallindo Gonçalves

de Johannes Schilling

Fonte: Schilling (1883).

A Germânia de Niederwald, além de retroalimentar o imaginário em relação


a símbolos já cristalizados juntos a essa personagem, “incorporou os traços
de uma Valquíria, mãe, virgem e Loreley, mas, acima de tudo, de uma figura
de Atena” (Mazón, 2000, p. 171)41. Ainda que Mazón compreenda a estátua
em Niederwald como uma Atena germânica, a imagem, diferentemente da de
Hermann em Detmold, não traz aqui elementos visualmente compreendidos
somente como romanos, graças a outros monumentos produzidos durante o
século XIX (como no caso da estátua de Adolf Jahn, figura 7); há um misto
de couraça e saia longa próprio das representações da Germânia ao longo do
Artigo

século XIX, incorporando, assim, o topos de uma valquíria. Ainda sobre a posição
da estátua em relação ao espaço que ocupa e sua postura, Thomas Nipperdey
assevera que:

A Sentinela junto ao Reno é compreendida mais como defensiva

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do que agressiva; como resultado da vitória, não se mostra


o poder, mas sim a paz [...] a espada da Germânia não [...] está
sendo empunhada, mas sim em repouso; [...] seu olhar não está
de forma alguma voltado ameaçadoramente para o oeste, mas
sim flanando vagamente para longe, em pensamentos distantes42
(Nipperdey, 1968, p. 566).

A unificação altera, assim, a face de Germânia – que de “A Sentinela junto ao


Reno”, no sentido de guardiã aguerrida das fronteiras entre França e o território
germânico, passa a ser a “Sentinela [observadora] do Reno”, aquela que olha
para o além, para o futuro que se delineia diante dos olhos dos espectadores do
gigantesco monumento.
do poema de Max Schneckenburger ao monumento
“A Sentinela junto ao Reno”: imagens da Germânia,

Figura 6 - Niederwalddenkmal (1871-1883), Johannes Schilling


Daniele Gallindo Gonçalves

de Johannes Schilling
Artigo

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Fonte: Schilling (1883).


do poema de Max Schneckenburger ao monumento
“A Sentinela junto ao Reno”: imagens da Germânia,

Em sua base encontra-se gravado o poema de Schneckenburger (retirada,


contudo, a quarta estrofe, que se refere especificamente à França) (figura 6). A
representação da “história da elite prussiana” na parte superior corresponde aos
versos da canção “A Sentinela junto ao Reno”. Ao centro Guilherme I, montado
à cavalo, olha para cima e pousa a mão sobre o peito; abaixo reproduzem-se os
versos: “Ele olha para os prados celestiais,/ onde espíritos heroicos olham para
baixo,/ e jura com orgulhoso ânimo bélico:” “Você, Reno, permanece alemão
Daniele Gallindo Gonçalves

como meu peito!”. Guilherme I é, assim, o herói do presente aclamado pelos


heróis do passado; aquele que jurou lealdade à pátria, pois a tem em seu coração.
de Johannes Schilling

Mais distante do centro, no qual se encontram as figuras mais ligadas à elite


prussiana, nos dois extremos esquerdo e direito, encontram-se representados
soldados que participaram da Guerra Franco- Prussiana. Do lado esquerdo (na
extremidade) vê-se um militar apoiando as mãos sobre um canhão, abaixo
acompanham os versos: “Um chamado de um trovão a soar,/ como o tilintar
das espadas e ao som de ondas a arrebentar”, num chamado à guerra.
As imagens na base do monumento, entre Germânia no topo e os rios Reno e
Mosela abaixo, criam, contudo, uma dissonância entre o último verso do poema
– “todos nós queremos ser guardiões” – que aponta para o povo como guardião
(uma noção de movimento popular) e a representação em bronze que destaca o
imperador, o chanceler, príncipes e demais figuras do alto escalão imperial. Em
Artigo

outras palavras, pode se afirmar que entre a Germânia (no topo do monumento)
e o “Pai Reno” (“Vater Rhein”) se encontra o militarismo prussiano (entre alto e
baixo escalão) e não o povo. A representação do Reno e sua filha Mosela fazem
referência aos limites assegurados com a vitória na guerra.
A mesma impressão da dissonância entre a proposta de inclusão e sua

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concretização visual é reforçada pela dedicatória ao povo alemão (“Em memória


da unânime e vitoriosa ascensão do povo alemão e da restauração do Império
Alemão em 1870/71”43), que só se encontra representado em duas placas
laterais do monumento, nas quais estão encenadas a despedida (figura 7) e a
chegada da guerra (figura 8). Nessas duas placas, veem-se mulheres, crianças e
parentes dos soldados. Será que ao povo só cabe participar da guerra e chorar
seus mortos? Essa é a parte que lhe cabe na glória da nação? Aos grandes
personagens o centro (o protagonismo monumental), ao povo duas pequenas
placas na lateral (uma inclusão evidentemente falsa, que destoa do discurso
acerca da pátria de todos). Como grande parte dos monumentos encomendados
durante o período imperial, esse não foge ao plano de fomentar uma história e
do poema de Max Schneckenburger ao monumento

identidade nacional das elites para as elites, apesar das recorrentes dedicatórias
“A Sentinela junto ao Reno”: imagens da Germânia,

ao povo alemão. Além do mais, o monumento marca quem faz parte da nação
e em que níveis age.

Figura 7 - “Der Abschied”, Niederwalddenkmal


Daniele Gallindo Gonçalves

de Johannes Schilling

Fonte: Niederwalddenkmal ([2023]).

Figura 8 - “Das Wiedersehen”, Niederwalddenkmal


Artigo

Fonte: Gesamtkunstwerk [...] (2020).

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Do monumento como ápice da apropriação do poema dos anos 1840 surgem


outras figuras de Germânia. Apesar de Schneckenburger possuir demais
poemas de cunho ufanista – agrupados pelo título “Für’s Vaterland” (À Pátria) –
(Schneckenburger, 1870), “A Sentinela junto ao Reno” se torna tão marcante em
sua biografia que o monumento em sua homenagem (figura 8), inaugurado em
19 de junho de1892 em Tuttlingen44, traz como personagem central Germânia,
estátua em bronze concebida pelo escultor Adolf Jahn45.

Figura 9 - Germania, Adolph Jahn, 1892


do poema de Max Schneckenburger ao monumento
“A Sentinela junto ao Reno”: imagens da Germânia,
Daniele Gallindo Gonçalves

de Johannes Schilling

Fonte: Jahn (1892).

No topo do monumento a Schneckenburger, a figura feminina, Germânia,


altiva e trajada com uma túnica romana e cota de malha, coroa de folhas na cabeça,
cabelos soltos, aparenta estar pronta para a Batalha, pois empunha a espada,
ainda embainhada, como que em constante vigília, em defesa. No obelisco, ao
centro, o rosto do poeta esculpido em relevo concretiza a homenagem. Ainda
que se trate de um monumento memorial, do poeta vê-se apenas a face46,
Artigo

sendo Germânia – a obra – o foco do arranjo cênico: “O monumento individual


transmuta-se em monumento nacional”47 (BRUCHHAUSEN, 1999, p. 82). O
monumento de Jahn é, assim, mais uma peça, na tradição posterior à circulação
do poema de Schneckenburger.

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Do poema de Schneckenburger ao monumento em Niederwald assiste-se à


instrumentalização da figura da Germânia, através da retomada de elementos
que vão se cristalizando progressivamente na montagem da personagem:
coroa, espada, escudo, vestes. Os cernes dessa narrativa (nacional) vão sendo
alterados de acordo com as ideologias que circulam ao longo de seu período de
produção. Despertando alerta, em vigília, pronta ao ataque, triunfante – eis as
faces de mais um mito nacional gestado e retroalimentado durante parte do
longo século XIX. E, a propósito da noção do “longo século XIX”, a representação
da Germânia serve como uma de suas comprovações simbólicas. Não é em
Niederwald que o mito adormece48. No século seguinte, Germânia continua a ser
apropriada como parte integrante do imaginário nacional alemão em postais,
do poema de Max Schneckenburger ao monumento

charges e monumentos posteriores, seja de forma jocosa ou crítica49 seja de


“A Sentinela junto ao Reno”: imagens da Germânia,

forma idealizada50. Sua imagem ainda ressurgirá algumas vezes nos períodos
turbulentos que culminaram com a Primeira Grande Guerra, durante a qual ela
será associada a noções de identidade e animosidade, como no caso da pintura
de Friedrich August von Kaulbach de 1914: novamente, a Sentinela (Valquíria)
do Reno mostra-se pronta para o enfrentamento51.

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Stuttgart: J.B. Mezler’schen Buchhandlung, 1870.

SCHNECKENBURGER, Max. Die Wacht am Rhein. Die Gartenlaube (1870). In:


WIKISOURCE. [San Francisco: Wikimedia Foundation, 2023]. Disponível em:
https://de.wikisource.org/w/index.php?title=Seite:Die_Gartenlaube_(1870)_667.
jpg&oldid=. Acesso em: 9 ago. 2023.

SCHWARZE Frau als Germania-Kritik na Rammstein-video. Zeit Online, Berlin,


Artigo

29 mar. 2019. Disponível em: https://www.zeit.de/news/2019-03/29/schwarze-


frau-als-germania-kritik-an-rammstein-video-190328-99-582875. Acesso em: 9
ago. 2023

SIMPLICISSIMUS. Weimar, [1902]. Disponível em: http://www.simplicissimus.

Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.563-592, jul-dez. 2023 } 587


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lombkswjournaldb_pi1%5Baction%5D=showVolume&tx_lombkswjournaldb_

Notas
Universidade Federal de Pelotas.
1

2
O fato da atriz ser negra e estar no lugar de uma imagem marcadamente branca e loira
construída principalmente pelas imagens produzidas durante o século XIX, estereótipo
reforçado por nazistas a posteriori, gerou desde estranhamentos (principalmente por
parte de uma direita defensora de uma Alemanha branca) até críticas à objetificação do
corpo negro (vide Dawes, 2020).
Vide matérias publicadas online na Revista Bild (Rammstein [...], 2019), no Deutsche
3

Welle (Baumann, 2019) e Zeit Online (Schwarze [...], 2019).


do poema de Max Schneckenburger ao monumento

4
O artigo que aqui se publica é devedor de alguns olhares críticos que se manifestam na
“A Sentinela junto ao Reno”: imagens da Germânia,

tecitura final do texto. Nesse sentido, gostaria de deixar expresso meus agradecimentos
sinceros aos amigos Luiz Montez, Luiz Guerra e Valéria Pereira bem como aos dois
pareceristas anônimos.
5
O conceito de mito político aqui utilizado é apropriado das pesquisas de Andreas
Dörner. Simplificadamente, um mito político é uma fabulação narrativa que se pretende
coletiva e difunde ideologias. Nas palavras de Dörner: “Mitos políticos são estruturas
simbólicas narrativas com um potencial de ação coletivo, relacionado a um problema de
ordem de associações sociais. Trata-se de símbolos políticos complexos cujos elementos
são desdobrados narrativamente” (“Politische Mythen sind narrative Symbolgebilde
Daniele Gallindo Gonçalves

mit einem kollektiven, auf das grundlegende Ordnungsproblem sozialer Verbände


bezogenen Wirkungspotential. Es handelt sich um komplexe politische Symbole, deren
Elemente jeweils narrativ entfaltet sind” (Dörner, 1995, p. 76-77).
de Johannes Schilling

6
A “Arminius-Liga do povo alemão” (“ARMINIUS-Bund des deutschen Volkes”), por
exemplo, foi fundada em 2013. Ainda que considerado um partido menor, por conta dos
poucos membros, mostra o potencial de imagens distorcidas retomadas como forma de
legitimação do discurso reacionário do presente. Em 2016, o ministério da Renânia do
Norte-Vestfália emite um comunicado acerca da ideologia do partido ser próxima a do
NSDAP. (Arminius-Bund Des Deutschen Volkes, 2016).
7
De acordo com Eric J. Hobsbawn (2015, p. 23), o longo século XIX se estende da Revolução
Francesa até a Primeira Guerra Mundial (1789-1914).
8
Para as explicações referentes a cada um desses movimentos políticos cf. Nipperdey
(2013, p. 286-319). Ademais vale destacar o papel do movimento romântico em grande
parte dessas instrumentalizações do passado. Para tanto cf. Geary e Klaniczay (2013).
9
“Unlike the leftist nationalism of the Hambach Festival, which included a pronounced
Artigo

hostility toward the thirty-nine existing German states and the German Confederation
in which they were tied together, the conservative nationalists praised the existing
governmental institutions as the basis of a politically conservative nation. This
sentiment received a strong impetus from the Rhine crisis of 1840, when vague threats
of a French invasion produced a tumultuous response”.

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10
Sie sollen ihn nicht haben,/ Den freien deutschen Rhein,/ Ob sie wie gier’ge Raben/
Sich heiser danach schrein.// So lang er ruhig wallend/ Sein grünes Kleid noch trägt,/
So lang ein Ruder schallend/ In seine Wogen schlägt!// Sie sollen ihn nicht haben,/ Den
freien deutschen Rhein,/ So lang sich Herzen laben/ An seinem Feuerwein.// So lang in
seinem Strome/ Noch fest die Felsen stehn,/ So lang sich hohe Dome/
In seinem Spiegel sehn.// Sie sollen ihn nicht haben,/ Den freien deutschen Rhein,/ So
lang dort kühne Knaben/ Um schlanke Dirnen frei’n,// So lang die Flosse hebet/ Ein
Fisch auf seinem Grund,/ So lang ein Lied noch lebet/ In seiner Sänger Mund.// Sie
sollen ihn nicht haben,/ Den freien deutschen Rhein,/ Bis seine Fluth begraben/ Des
letzten Mann’s Gebein.
Eles não devem tê-lo,/ O livre Reno alemão,/ Mesmo que como corvos ávidos/ Gritem
por ele freneticamente./ Enquanto ele fluir tranquilamente/ Usando ainda seu manto
verde,/ Enquanto um remo ressoante/ Bater em suas ondas!// Eles não devem tê-lo,/
O livre Reno alemão,/ Enquanto corações se deliciarem/ Com seu vinho ardente.//
do poema de Max Schneckenburger ao monumento

Enquanto em suas águas/ As rochas ainda resistirem firmes,/


“A Sentinela junto ao Reno”: imagens da Germânia,

Enquanto altas catedrais/ Se refletirem em seu espelho.// Eles não devem tê-lo,/ O livre
Reno alemão,/
Enquanto jovens corajosos/ Cortejarem moças esbeltas,// Enquanto uma nadadeira se
erguer/ De um peixe em seu leito,/ Enquanto uma canção ainda viver/ Nos lábios de seus
cantores.// Eles não devem tê-lo,/ O livre Reno alemão,/ Até que suas águas sepultem/
Os ossos do último homem. (Becker, 1841, p. 216)
Vale destacar aqui a resposta provocadora do lado francês ao poema de Becker: “Le
11

Rhin allemand” (1841), de Alfred de Musset. Um exemplo dessa provação encontra-


Daniele Gallindo Gonçalves

se no seguinte verso “Etiez-vous de corbeaux contre l'aigle expirant?” (“Eram corvos


contra a águia moribunda?”). Aqui, por exemplo, vemos o jogo direto com o verso citado
no corpo do texto.
de Johannes Schilling

A canção de Arndt se transforma em um chamado para o confronto, vide os seguintes


12

versos, por exemplo: “Ecoa. Um novo tempo/ E um novo povo está aqui;/ Venha,
arrogância, se queres briga,/ Germania aqui está” (“Es klinget. Neue Zeit/ Und neues
Volk ist da;/ Komm, Hoffart, willst du Streit,/ Germania ist da”).
“Becker's song was known as the “Colonaise”, suggesting a conservative German
13

patriotic anthem, in contrast to the Marseillaise, a revolutionary French one”.


“Gebt frei das Wort, ihr Herrn auf euren Thronen!/ So wird das andre sich von selbst
14

befrein./ Wagt's und vertraut! In allen euren Kronen,/ wo gibt's ein hellres, edleres
Gestein?/ Die Presse frei! Uns selber macht zum Richter,/ das Volk ist reif! Ich wag's und
sag' es laut:/ Auf eure Weisen baut, auf eure Dichter,/ sie, denen Gott noch Größres auch
vertraut!”
Uma cópia de um dos manuscritos de Max Schneckenburger foi publicada em Die
15
Artigo

Gartenlaube, Heft 40, 1870, p. 667-668 (Schneckenburger, [2023]). Em Georg Scherer e


Frank Lipperheide (1871, p. 25-28) encontram-se duas versões manuscritas do poema:
na primeira – “Die Rheinwacht” – a estrofe é um quarteto, não havendo os dois últimos
que se tornam refrão na segunda versão – “Die Wacht am Rhein” constante na brochura.
“welsch” inclui todos os povos de origem romana como franceses e italianos, por
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exemplo.
“das Wunschbild nationaler Größe und Imposanz in Abgrenzung zu Frankreich”.
17

18
“[...] verkörpert sie den Aufbruch der Nation zu Freiheit und Selbstbewusstsein, und
in dem Motiv des blanken, aber mit einem Ölzweig umwundenen Schwertes, das die
Germania in der rechten Hand hält, verbindet sich Friedensliebe mit einer Wehrhaftigkeit,
die noch nicht den herausfordernden, ja kriegerischen Zug späterer Germania-Bilder
zeigt.”
“The elements of revolutionary symbolism (the light, the tricolor, and a cast-off
19

shackle) seen to be outweighed by her static appearance and evocations of medieval


empire. […] her sword invoked the sacred authority of government”.
“Die trittfeste Germania paßt ina [sic] „Professorenparlament“ und läßt sich nur
20

schwerlich in einer revolutionären Szenerie vorstellen, Veit scheint vielmehr eine


Anbindung an eine mythische Vergangenheit gesucht zu haben.”
do poema de Max Schneckenburger ao monumento
“A Sentinela junto ao Reno”: imagens da Germânia,

“In der Art, wie Köhler die Kaiserkrone in den Schutz der Germania stellt, kommt seine
21

politische Überzeugung als Anhänger einer konstitionellen Monarchie zum Ausdruck.”


22
“After the Franco-Austrian War in Italy in 1859, the German public became increasingly
fearful of an aggressive French neighbor. [...] The image [...] mobilizes the memory of an
emotionally heated controversy over the Rhine as French border in 1840.”
Outra imagem que aponta para o topos de protetora do território atrelado à figura de
23

Germânia pode ser encontrado no desenho atribuído a Julius Schnorr von Carolsfeld
no jornal Daheim: ein deutsches Familienblatt mit Illustrationen, nr. 6, 1872, p. 85. Na
imagem, Germânia encontra-se ao centro acompanhada à direita por Clio e à esquerda
Daniele Gallindo Gonçalves

por duas donzelas (Alsácia e Lorena). Clio porta um pergaminho e pena e olha em direção
à Germânia, a qual porta uma espada na mão direita e na esquerda com seu escudo
de Johannes Schilling

protege as duas donzelas, os dois territórios. Ainda que não porte a coroa imperial, mas
um simples diadema, suas vestimentas remetem a imagens de pinturas anteriores. Ao
fundo raios iluminam a cena. (Carolsfeld, 1872).
Isabel Skokan demostra através de alguns exemplos o quanto a obra de Clasen foi
24

reproduzida e propagada nas mais diversas formas (toalhas, bandeiras, reproduções em


vários tamanhos, postais, rótulos de vinhos etc) (Skokan, 2009, p. 52-53).
“Hoffnung auf ein großdeutsches Kaiserreich.”
25

“[...] nicht nur zum nationalen Hochgesang, so weit die deutsche Zunge klingt, sie
26

wird auch das allgemeine Marsch- und Kriegslied der deutschen Heere, und unter ihren
begeisternden Klängen eilen unsere Brüder und Söhne in die Schlacht”.
“das Palladium deutscher Freiheit”.
27

“ein Jüngling von seltener Begabung und Strebsamkeit”.


28
Artigo

“ein kranker preußischer Officier”.


29

Hermann Wislicenus vence em 1877 o concurso de pinturas para o Kaisersaal der Pfalz
30

em Goslar. As pinturas do salão principal decorrem até 1890 e contém lendas e histórias
alemães. Da Bela Adormecida ao Imperador adormecido, o ciclo de pinturas tem como
peça central a “Apoteose do Império” (Apotheose des Kaisertums), na qual Guilherme I se

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encontra montado ao centro. (Wislicenus, [1880?]).


O termo designa os embates entre o Império Alemão e a Igreja Católica, mais
31

especificamente nas querelas entre Otto von Bismarck e o Papa Pio IX. Esse embate fora
devidamente representado por algumas charges do período. Dentre elas destacamos
a imagem “Zwischen Berlin und Rom (1875)”, publicada na da revista satírica
Kladderadatsch de 16 de maio de 1875 (Zwischen [...], 1875).
“In Schillings Niederwalddenkmal hat die Bildidee der Germania in Aufnahme des vor
32

allem von Veit und Clasen bestimmten „Prototyps" fraglos ihre am weitesten wirkende
Ausprägung gefunden”.
A pedra fundamental foi lançada em 16 setembro de 1877. Informação contida na
33

placa comemorativa (Niederwalddenkmal, 2012). Cena reapresentada no Jornal Die


Gartenlaube, Heft 44, p. 743–746, 1877. Na imagem ao centro vê-se o próprio imperador
diante da pedra fundamental (Lüders, 1877).
do poema de Max Schneckenburger ao monumento
“A Sentinela junto ao Reno”: imagens da Germânia,

“from the Reichstag, imperial and princely donations, and the contributions of the
34

wealthy and upper-middle class”.


35
“Acho que a figura da Germânia não é apropriada. Uma figura feminina com uma espada
nessa posição desafiadora é algo antinatural. Todos os oficiais concordarão comigo. Teria
sido melhor colocar uma figura masculina lá, um soldado ou um dos antigos imperadores
alemães. Teria também sido uma boa oportunidade para mostrar de uma vez e de forma
clara aos franceses, que gostam tanto de reivindicar o imperador Carlos [Magno] para
si, onde ele realmente pertence.” (“Die Figur der Germania [...] finde ich nicht passend.
Ein weibliches Wesen mit dem Schwert in dieser herausfordernden Stellung ist etwas
Unnatürliches. Jeder Offizier wird dies mit mir empfinden. Es hätte besser eine männliche
Daniele Gallindo Gonçalves

Figur dorthin gepaßt, ein Landsknecht oder einer der alten deutschen Kaiser. Es wäre ja
auch eine gute Gelegenheit gewesen, den Franzosen, welche so gern Kaiser Karl für sich
in Anspruch nehmen, einmal deutlich zu zeigen, wohin der gehört”) (Von Lade, 1901, p.
de Johannes Schilling

78).
36
Um exemplo concreto pode ser visto no jornal Kladderadatsch: Humoristisch-satirisches
Wochenblatt 56, de 09 de dezembro de 1883, página 224, na qual em cima da lareira
do aposento de Bismarck se encontra uma réplica do monumento de Niederwald. Esse
modelo em bronze teria sido um presente de Guilherme I ao chanceler (cf. Gall, 1996, p.
327). Imagem disponível em (E.Spott.Xa, 1883). A imagem, contudo, é estática, mas em
outras charges, o chanceler interage com Germânia; até mesmo a salva, como é o caso
da imagem (In der Schlangen-Grotte) publicada no Berliner Wespen 14 de 02 de abril de
1875. Aqui Germânia apresenta as mesmas vestes, capa e coroa de outras representações
já analisadas nesse artigo. Imagem disponível em:.
“aus der holden Frauengestalt der Paulskirche wird die gepanzerte Walküre und
37

Heroine des deutschen Kaiserreiches”.


“Stolz und doch weiblich schön, hochemporgerichtet vor dem mit Adlern geschmückten
38
Artigo

Thronsessel stehend, in reicher Gewandung, welche Andeutungen an die Sagen unseres


Volkes, an Genoveva, Lohengrin und die deutschen Märchen zeigt [...] das ernst-milde
Frauenantlitz zeigt weibliche Schönheit in Hoheit und Würde.”
“expressed an ennoblement of the people and advertised the peaceful Character of the
39

nation state”.

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“Her colossal size signalled to her contemporaries that she represented the state and,
40

through this, power itself”.


“[…] incorporated the traits of a Valkyrie, mother, virgin and Loreley, but most of all, of
41

an Athena figure”.
“Die Wacht am Rhein ist eher defensiv als aggressiv verstanden, als Resultat des Sieges
42

erscheint nicht die Macht, sondern der Friede [...] das Schwert der Germania ist, [...],
nicht geschwungen, sondern zur Ruhe gestellt, [...]; ihr Blick ist keineswegs drohend
nach Westen gerichtet, sondern unklar versonnen in die Ferne schweifend”.
“zum Andenken an die einmütige und siegreiche Erhebung des deutschen Volkes und
43

die Wiederaufrichtung des Deutschen Reiches 1870/71”.


Die Gartenlaube [...] (2022).
44

45
A mesma estátua é parte reproduzida na íntegra em outros monumentos, vide Jahn
do poema de Max Schneckenburger ao monumento

(1892).
“A Sentinela junto ao Reno”: imagens da Germânia,

Imagem disponível em: Jahn [(18--)].


46

Em alemão: “Das Individualdenkmal mutiert zum nationalen Denkmal”.


47

No momento da construção do prédio do Reichstag (1884) de Paul Wallot, ficou


48

a cargo de Reinhold Begas a modelagem da figura do pórtico principal. Lá reaparece


gloriosa Germânia acompanhada de Guerra (Krieg) e Vitória (Siege) (Gall, 1996, p. 326).
Entretanto, o monumento desapareceu após 1945. Algumas imagens podem ser vistas
em: Reichstagsgebäude (1895), Hofer (1893) e Booni (2005).
Como é o caso da imagem da “Jungfrau Germania” (“Donzela Germânia”), caricatura de
Daniele Gallindo Gonçalves

49

Bruno Paul, veiculada no jornal Simplicissimus. Jg. 7, Nr. 22, p. 176, 26. 08. 1902. A figura
traz uma velha senhora trajada com as couraça (metálica) no busto e coroa imperial
de Johannes Schilling

em sua cabeça. Além de velha, Germânia é representada gorda. Na base da imagem um


poema: “Ela envelheceu em trinta anos, / e piedosa, como toda beleza que desvanece./
Oh, deixemo-nos todos poupar forças,/ sobre as quais os amados filhos prosperam!”
(“Sie ist alt geworden in dreißig Jahren/ Und fromm, wie jede welkende Schöne./ O lasst
uns alle nach Kräften sparen,/ Auf dass gedeihen die Lieblingssöhne!”). Disponível em:
Simplicissimus ([1902]).
Vide os selos da Germânia, projetados por Paul Eduard Waldraff, que circularam entre
50

os anos de 1900 e 1920. Imagem disponível em: Waldraff (1900).


Imagem disponível em Kaulbach (1914).
51
Artigo

Recebido em 09/08/2023 - Aprovado em 28/12/2023


Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.563-592, jul-dez. 2023 } 592
DOI: 10.5433/1984-3356.2023v16n32p593-618

A erudição de João
Guimarães Rosa na
intersecção de outras
erudições e artes da cidade

The erudition of João


Guimarães Rosa at the
intersection of other
scholarship and arts of the
city

La erudición de João
Guimarães Rosa em la
intersección de otros estúdios
y artes en la ciudad

Bruno Flávio Lontra Fagundes1

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Resumo: O artigo discute a relação da literatura e da linguagem


de João Guimarães Rosa com o contexto de trocas e intercâmbios
intelecto-culturais no Brasil dos anos 1940 e 1950 por meio da
consulta aos livros do escritor em sua biblioteca, suas marcas
e marginalias feitas no material impresso, identificando como
o escritor consegue se aproveitar, conforme ele mesmo indica,
de elementos sonoros e imagéticos de uma cultura de massas
publicada em suportes como livros e demais materiais impressos,
assim como rádios e filmes, revelando um Brasil aos brasileiros
que se ouvem, escutam e leem, por meio de palavras, mas
intersecção de outras erudições e artes da cidade

também por seus sons e imagens. O texto pretende adicionar


ao riquíssimo projeto erudito linguístico de Guimarães Rosa,
o que o levou a ser considerado o grande escrito em prosa do
A erudição de João Guimarães Rosa na

século XX brasileiro, suas trocas interculturais e, em especial,


o relacionamento de sua arte com equipamentos de uma
cultura de massas, que, ao invés de subtraírem componentes
Bruno Flávio Lontra Fagundes

de erudição de sua obra, os potencializa e os otimiza.


Palavras-chave: literatura; História; cultura de massas;
interculturalidade; suportes textuais.

Abstract: The article discusses the relationship between


literature and language by João Guimarães Rosa into the context
of intellect-cultural exchanges in Brazil in the 1940s and 1950s
consulting the writer’s books, his marks and notes made in the
printed material, identifying how the writer manages to take
advantage of sound and imagery elements of a mass culture,
as he himself indicates, published in supports such as books
and other printed materials, radios and films revealing a Brazil
to Brazilians who read, heard and read, through words, but
also through theirs sounds and images. The text intends to
Artigo

add to the rich linguistic erudite project of Guimarães Rosa


which led him to be considered the greatest prose writing
of the Brazilian 20 th century his intercultural exchanges
and, in particular, the relationship of his art with equipment
of a mass culture which, instead of subtracting erudition

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components from his work, enhances and opmizes them.


Keywords: literature; History; mass culture; interculturality;
textual supports.

Resumen: El artículo analisa la relación entre literatura y


lengua de João Guimarães Rosa com el contexto de intercambios
y interacción intelectual-culturales en Brasil en las décadas de
1940 y 1950 mediante la consulta de los libros del escritor en
su biblioteca, sus marcas y marginales realizados en el material
impresso, identificando cómo el escritor logra aprovechar,
como él mismo indica, elementos sonoros e imagenológicos de
una cultura de masas, publicado en soportes como libros y otros
materiales impresos, además de radio y películas, revelando un
intersecção de outras erudições e artes da cidade

Brasil a los brasileños que oyen, escuchan y leen, a traves de


las palabras, pero também a traves de sus sonidos y imágenes.
El texto pretende sumar al rico proyecto erudito linguístico de
A erudição de João Guimarães Rosa na

João Guimarães Rosa que lo llevó a ser considerado el mayor


escritor en prosa del siglo XX brasileño, sus intercambios
culturales, y, en particular, la relación de su arte com los
Bruno Flávio Lontra Fagundes

equipamentos de uma cultura de masas que, en lugar de restar


componentes de erudición a sua obra, los realiza y optimiza.
Palabras clave: Historia; cultura de masas; interculturalidad;
soportes textuales.
Artigo

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Ah, tempo de jagunço tinha mesmo de


acabar, cidade acaba com o sertão. Acaba?
(João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas)

Introdução

Os livros de João Guimarães Rosa, não obstante seu sertão, eram consumidos
nas cidades. Nosso procedimento será o de avaliar a literatura rosiana como
criadora de si própria, mas em relação com seu tempo histórico também. É
preciso levar em consideração que Rosa publicou seus livros em meados do
século XX, e é importante termos em mente que escritores não escrevem livros,
mas escrevem textos: “o que quer que possam fazer, autores não escrevem
intersecção de outras erudições e artes da cidade

livros. Livros acima de tudo não são escritos” (Stoddard, 1987, p. 4, tradução
nossa)2. A dimensão de publicação dos livros de Guimarães Rosa precisa ser
considerada. O procedimento de contextualizar sua literatura exige algumas
considerações de antemão. Um texto ou um livro podem ser reportados a dois
A erudição de João Guimarães Rosa na

tipos de contexto: um contexto literário e um contexto social, político, cultural,


mais extensamente um contexto histórico. O procedimento que adotamos aqui
foi o de consultar mais de 500 livros na biblioteca de João Guimarães Rosa,3
Bruno Flávio Lontra Fagundes

observando suas marginalias e marcas nos livros, assim como a composição


gráfica dos livros consultados pelo escritor, a fim de entender como textos são
publicados, verificando que não era mera coincidência que livros com muitas
ilustrações – desenhos e fotografia - eram comuns na biblioteca de Rosa.
O contexto literário é constituído por outros livros na paisagem literária em
que qualquer livro se insere, ou pelos debates nos quais ele ganha sentido em
sua época. Resenhas de edições críticas que caracterizam a época literária em
que o texto se encontra, tradições literárias com relação às quais o texto dialoga.
Há, entretanto, uma outra gama de objetos que pode conter informações
que alargam a condição de textos e livros, a ponto de fazê-los ultrapassar as
fronteiras ordinárias do que é considerado literatura em sentido estrito: são os
elementos de um outro contexto que engloba política, sociedade e cultura em
sentido amplo. No século XX, obras literárias podem ser vinculadas à cultura
eletrônica de massa (cinema, rádio, publicidade), a impressos que multiplicam
Artigo

imagens, fixas ou em movimento, no universo visual, ou obras podem estar


vinculadas “às transformações fundamentais trazidas à estruturação do
espaço habitado pela civilização industrial” (Lyon-Caen; Ribard, 2010, p. 58,
tradução minha)4. Esses dados de contexto são importantes para a análise à

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medida que eles “fazem aparecer realidades culturais, sociais ou socioculturais


pouco observadas de outra maneira” (Lyon-Caen; Ribard, 2010, p. 59, tradução
própria).
A contextualização da literatura de Rosa – escritor literário e diplomata - e
do teor de suas colocações ao debate sobre o Brasil – vislumbradas a partir da
coleção e das marcas de seus livros da biblioteca - consiste em reconstituir
acontecimentos de uma época de modernização e urbanização da sociedade
brasileira de meados do século XX, apurando as inovações técnicas e as
reavaliações conceituais que alteraram o perfil histórico da sociedade brasileira
e os termos do diálogo entre transformações sociais, textos, livros e produtos
de arte. Tal encaminhamento visa a levantar fatores em meio aos quais se
realizaram as atividades literárias de Rosa, averiguando como as condições
intersecção de outras erudições e artes da cidade

históricas puderam afetar a composição e o sentido das formas artísticas junto


ao público das grandes cidades brasileiras, onde estavam os leitores de Rosa
que aceitaram e consagraram sua literatura.
A erudição de João Guimarães Rosa na

A produção industrial brasileira pela primeira vez, em 1938, ultrapassava


a produção agrícola e, no decorrer da Segunda Grande Guerra, a indústria
entrava numa fase decisiva, quando há no país grandes investimentos estatais
em indústrias de base, e o país deixava de ser exportador de matérias-primas
Bruno Flávio Lontra Fagundes

a baixo custo e consumidor de produtos manufaturados. Entre as décadas


de 1940 e 1960, o Brasil passa a produzir seus bens de consumo, crescem as
disparidades entre áreas urbanas e rurais, a segmentação social brasileira se
diversifica e a “industrialização é sinônimo de desenvolvimento” (Santos, 2002,
p. 27). A indústria do livro, que já conhecera um boom nos anos 1930, vai crescer
ainda mais numa situação de convivência da letra e da imagem no livro como
novas mídias categorizadas por linguagem e expressividade que combinam
linguagens alfabéticas com linguagens dos novos meios de massa: os textos
radiofônicos e imagéticos.
Em A Estória de Lélio e Lina, (Rosa, 1994, v. 1, p. 718) do livro Corpo de Baile,5
o vaqueiro Lélio chega à fazenda de Seo Sencler, nos Gerais, mas antes estivera
trabalhando na serra da Tromba-d’Anta “pr’a um seo Dom Borel, senhor uruguai,
que botou fazenda p’ra boiada de raça fina...”6. O processo de modernização
Artigo

com crescimento das cidades avançava para as áreas rurais com abertura de
vias de acesso e projetos de colonização. A ocupação de terras interiores atraía
capital nacional público e privado, este proveniente, em especial, dos capitais
“liberados em decorrência dos progressos econômicos do estado de São Paulo”,
e capitais estrangeiros - “inglês, francês, belga e uruguaio” (Almeida, 1959, p.

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50).7 O Brasil vai sendo percebido como uma “reunião de elementos antagônicos
e harmonização de contrastes”, onde áreas de grande densidade populacional –
identificadas normalmente às cidades da costa litoral – convivem com grandes
vazios do interior (Bastide, 1979, p. 11). Em 1952, dos 210.000 quilômetros
de estradas, apenas 1.200 estavam pavimentados e os ‘buildings’ substituem
as velhas mansões portuguesas. A economia se transforma e “surgem novas
maneiras de pensar” (Monbeig, 1954, p.10). Particularmente após a Segunda
Guerra, os anos brasileiros de modernização configuram uma sociedade urbano-
industrial consumidora de uma pauta diversificada de bens culturais, como
jornais, revistas e livros ilustrados, histórias em quadrinhos, rádio, cinema.

Rádio, cinema, livros da cidade o trânsito entre imagens, sons e


intersecção de outras erudições e artes da cidade

palavras

O rádio é o apoio de grande número de artistas. Segundo Lia Calabre, “no


A erudição de João Guimarães Rosa na

início da década de 1940, o rádio havia se tornado o senhor absoluto dos meios
de comunicação na sociedade norte-americana” e no Brasil se transformava “no
companheiro inseparável das classes populares” (Calabre, 2006, p.27). Ponto de
convergência de produtos, artistas e práticas de cultura e de entretenimento
Bruno Flávio Lontra Fagundes

urbano no país desde os anos 1930, com o teatro de revista e as chanchadas


cinematográficas, o rádio formava um tripé ao redor do qual “gravitavam
a indústria do disco, as editoras de música, as revistas especializadas, a
publicidade” (Lenharo, 1986, p.135 apud Ferreira, 2003, p. 70). Rosa e sua
literatura não estiveram alheios a este processo.
O cinema inicia uma carreira de ascensão irreversível junto à vida
coletiva de algumas cidades brasileiras, a partir do final dos anos 1920.
Cinema e rádio associados alteravam hábitos e modificavam automatismos
lingüísticos coloquiais (Ferreira, 2003). Sinopses de livros, trechos de literatura
radiofonizados, radionovelas constavam da grade de programação das emissoras
de rádio nos anos 1940. As produções radiofônicas transmissoras de textos
aglutinavam “milhares de ouvintes, todos os dias, sintonizados, vivendo e se
emocionando no mundo imaginário das radionovelas” (Calabre, 2006, p.139). O
Artigo

rádio era lugar de divulgação de textos de novelas e fragmentos de livros e era


parte da estratégia de editoras para a divulgação publicitária de seus títulos. Em
1954, os textos introdutórios da segunda edição de Os Subterrâneos da Liberdade,
de Jorge Amado informava do rol de adaptações para o rádio que sofriam alguns
livros de Amado: Terras do Sem Fim, Jubiabá, São Jorge dos Ilhéus, para a Rádio

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São Paulo; Mar Morto, para a Rádio Nacional; e as adaptações internacionais:


Terras do Sem Fim é Terre Violente, para a Radiodifusion Française, em Paris;
Vida de Luis Carlos Prestes é Rytir Nadeje para a Radiodifusão Tchecoslovaca,
em Praga; e Mar Morto é Mar Muerto, para a Radio El Mundo, de Buenos Aires.
A grade de programação de rádio das principais emissoras cariocas continha
programas de vocalização de textos como radionovelas, leitura de trechos de
contos e romances, poesia, radioteatro.8
Num momento da história das experiências urbanas em meio às cidades
brasileiras, as trocas textuais entre literatura e outros textos mediados por suas
formas e audiências combinam-se de modo a possibilitar trocas e negociações
inusitadas. As cidades brasileiras de meados do século XX estão decisivamente
investidas de circunstâncias que multiplicam a proliferação de textos, as
intersecção de outras erudições e artes da cidade

formas de sua publicação e recepção, numa situação que favorecia experiências


e trocas intensas. Seria oportuno verificar o anúncio do Dicionário Enciclopédico
Brasileiro Ilustrado, em 1954, com 2.300 gravuras, 16 pranchas em cores e 56
A erudição de João Guimarães Rosa na

mapas.
A literatura de Rosa não esteve impermeável a tal processo de trocas,
muito pelo contrário. Sua literatura cruzou práticas e atividades culturais que
envolviam o som, a imagem, as páginas de livros e revistas. Na novela O Recado
Bruno Flávio Lontra Fagundes

do Morro (Rosa,1994, v. 1, p. 625), do livro Corpo de Baile, quando a comitiva


encontra pela estrada o sertanejo Gorgulho, que mora numa caverna, o alemão
Seo Olquiste faz uma performance vocal, onde mais importante é o som das
palavras, cuja vocalização tenta recuperar na grafia do texto o som da fala
impresso na página do livro. “- O! Ack! – glogueou seo Olquiste, igual um pato.
Queria que o Gorgulho junto viesse. – Troglodytyt? Troglodyt? – inquiria, e,
abrindo grande a boca, rechupava um ooh!... Quase se despencando, desapeou.
Frei Sinfrão e seo Jujuca desmontaram também.”
Em 1954, episodicamente, Rosa presta ao jornal Correio da Manhã uma
declaração surpreendente, para boa parte da crítica de literatura, sobre uma
das fontes de suas trocas textuais:

[...] Gosto do rádio, uso-o muito. É uma espécie moderna de musa.


É uma regra: estou escrevendo, estou lendo, estou fumando,
Artigo

estou ouvindo. Sub-ouvindo, talvez seja mais certo dizer. Isto


é, o aparelho fica ligado, a música trabalhando de isolante, para
defender a gente dos rumores desencontrados da realidade em
volta, sempre tão excessiva. Música ou canto, pois em geral

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não somo com a parte conversada, falam no vácuo. Uma vez


uma empregada disse a minha mulher: - “o patrão não gosta de
novela, mas bem que ele escuta o capítulo inteiro...” (ocupado
com a cabeça noutra parte, como é que eu ia saber se era Novela,
“Hora do Brasil” ou catarata de anúncios?). Também confessando
desconfio de que o meu muitas vezes abuse de ser o “rádio do
vizinho”, o desembestado, o errado, o barulhento. E mais seria se
não fosse a polícia de minha mulher, pois Ara controla o quanto
pode essa vazão radiofônica. Há músicas (Mozart, operetas,
Beethoven, valsas, Wagner, Schubert, canções populares, velhas
de mais de vinte anos etc) e vozes com charme especial (Ademilde
Fonseca, Virginia Lane, Heleninha Costa, Carmélia Alves, Emilinha
Borba etc) que varam a cortina de cortiça da concentração – fico
intersecção de outras erudições e artes da cidade

vulnerável, rendo-me, paro para escutar de verdade. Tempo de


carnaval – adoro: marchas e marchinhas dão energia e alegria,
bebidas na torneira. Atualmente quase fico na M. da Educação
ou na Eldorado. Mas voto que a Eldorado, em tudo mais ótima,
A erudição de João Guimarães Rosa na

devia mudar, ou variar, ou suprimir aqueles prefixos (?) musicais


de programas, principalmente os vespertinos, sofisticados no
gênero melancólico. Quando estou escrevendo uma passagem
Bruno Flávio Lontra Fagundes

estreita, preciso de “dopar-me”, então requeiro musa apropriada,


isto é, troco para o toca-discos. Televisão? Não. Agora, o que
mais vale na minha opinião – o papel do rádio no interior do
país, suas responsabilidades, sua importância. Destrói o fundo
folclórico, eiva a tradição, desregionaliza. Mas diverte, consola,
anima, alegra, faz companhia. No sertão, encontrei pessoas que
nunca viram nem vão ver o trem de ferro, mas que acompanham
pelo rádio as partidas de futebol carioca, torcem e discutem, sabem
o nome de todos os nossos jogadores. E, de certos lugarejos, nos
campos gerais, sempre alguém era escalado, às segundas, quartas
e sextas-feiras, para montar a cavalo e ir à vila, ou ao arraial,
distante várias léguas, a fim de ouvir a “novela”, e, na volta, no
dia seguinte, repeti-la a toda população do povoado, para isso
reunida. Não é sério? Não é comovente? (Correio da Manhã, 1953)
Artigo

Em Campo Geral (Rosa, 1994, v. 1, p. 495), de Corpo de Baile, na estória do


menino Miguilim, o personagem farmacêutico Seo Aristeo tem “vênias de
dançador”, e uma “viola mestra de todo tocar”, a “Minrela-Mindola, Menina
Gordinha, com mil laços de fita”. Quando entra em casa para ver o menino

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Miguilim, acometido de um mal-estar, “só dizia aquelas coisas dançadas no


ar, a casa se espaceava muito mais, de alegrias” e ao examinar Miguilim, Seo
Aristeo provavelmente glosa a música O que é que a baiana tem, de Dorival
Caymmi, lançada em 1939, e cifrada no texto.

[...] Seo Aristeu entrava, alto, alegre, alto, falando alto, era um
homem grande, desusado de bonito, mesmo sendo roceiro assim;
e doido, mesmo. Se rindo com todos, fazendo engraçadas vênias
de dançador.
- ‘Vamos ver o que é que o menino tem, vamos ver o que é que o
menino tem?!... Ei e ei, Miguilim, você chora assim, assim – p’ra cá
você ri, p’ra mim!...’ Aquele homem parecia desinventado de uma
estória. – ‘O menino tem nariz, tem boca, tem aqui, tem umbigo, tem
intersecção de outras erudições e artes da cidade

umbigo só...’ – ‘Ele sara, seo Aristeo?’ [...] (Rosa, 1994, v. 1, p. 495,
grifo nosso)9
A erudição de João Guimarães Rosa na

A 6 de novembro de 1963, comentando em carta com seu tradutor italiano a


qualidade da tradução, Rosa parodia a música do reclame da indústria de produtos
químicos Bayer e escreve “Se é Bayer é bom”, que resgata no texto impresso o
canto do jingle publicitário que durante muito tempo tocou no rádio brasileiro
Bruno Flávio Lontra Fagundes

(Rosa, 1981, p. 36). Ao longo de uma época marcada pela integração do país
pelo rádio e por publicações que difundiram uma imagem elaborada do Brasil
assimilado por desenhos e fotografias, época em que cresceram os símbolos
populares como o samba, carnaval, futebol, rádio, o pesquisador Fernando
Paixão (1997) assinala que, entre marchinhas de carnaval e chanchadas, os livros
parecem sofrer o cruzamento de duas forças que o vitalizam: a modernização
de sua confecção e uma vontade geral de identidade coletiva que incremente
a publicação de coleções editoriais que descubram o Brasil. O autor assegura
que o país parecia “estar sendo descoberto”, para o que a indústria do livro
desempenhava “um papel fundamental”.

Expansão Editorial, livros e coleções


Artigo

Autores da história do impresso no Brasil que recuperam o que seria o papel


dos ilustradores de revistas e livros desde o fim do século XIX, verificam uma
inflexão nos anos 1930, e é nos anos 1940 que a ilustração recebeu no país algum
incremento em função da consolidação de um sistema de artes plásticas que,
provavelmente, afetou o livro, com a inauguração de museus de arte moderna,

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proliferação de exposições de arte, concessão de prêmios e bolsas de viagens


internacionais a artistas e o intercâmbio artístico e cultural entre artistas
de vários países. O movimento modernista é marco de um “surpreendente
desenvolvimento das artes plásticas e da literatura” (Paixão, 1997, p.47) e a
situação de desprestígio do artista-plástico ilustrador nas principais publicações
do movimento só começa a se reverter ao final dos anos 1920, quando o artista,
pouco a pouco, valoriza revistas e livros com seus desenhos e reforça o estatuto
das publicações como “arte”. Os catálogos das livrarias nos anos 1910, em São
Paulo, mal mencionam o artista ilustrador e, apesar de os catálogos informarem
se a obra era ilustrada ou não, “só esporadicamente era feita uma menção ao
ilustrador [...]. A informação de autoria de ilustração era rara!!!” (Lima, 1985, p.
63). Era raro a ilustração e o tratamento dos “problemas plásticos” em material
intersecção de outras erudições e artes da cidade

impresso. Foi só com o passar da década de 1920 que a “ilustração adquiria,


assim, gradativamente, seu prestígio junto ao livro, tomando corpo nas capas
através do desenho, da cor e da composição” (Lima, 1985, p. 165).
A erudição de João Guimarães Rosa na

Pouco comuns no Brasil, num cenário em que cidades da Europa dominavam


a cena cultural internacional, algumas exposições e amostras destacavam o
papel dos ilustradores de livros. Talvez seja Cândido Portinari, artista plástico
também ilustrador de livros, quem, nos anos 1930, exprima o momento primeiro
Bruno Flávio Lontra Fagundes

de uma realidade que vai se consolidar no Pós-Guerra: o da onipresença


dos Estados Unidos no campo da arte, como produtor de arte e receptor de
artistas, passando a competir a Europa, em especial a França. No tempo em que
executa Os Retirantes - documento iconográfico ícone de um gênero de arte de
preocupação social no Brasil – o pintor Cândido Portinari recebe, em 1935 pela
tela Café, menção honrosa do Carnegie Institute, em Ohio, nos Estados Unidos,
e um ano depois participa da 33ª Exposição Internacional de Pintura no mesmo
instituto americano.
Em 1947, era criado o Museu de Arte de São Paulo, em 1948 o Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro e em 1951, era o ano da I Bienal do Museu de Arte
Moderna de São Paulo., a Europa continuava o centro do mundo de arte, apesar
da incipiente concorrência norte-americana, e Paris era ainda a capital das artes.
No Após-Guerra, praticamente todos os artistas iam a Paris para temporadas
Artigo

em ateliês de artistas plásticos renomados. É no ano de 1948 que Napoleão


Potiguara Lazarotto, o Poty – ilustrador de Guimarães Rosa na Livraria José
Olympio Editora – retorna de Paris depois de período no ateliê de Picassso.
Apesar de devastada pela Guerra, a Europa está ativa, embora Nova Iorque
passe a concorrer na cena artística, incentivando tendências desenvolvidas

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antes na Europa com artistas europeus instalados na América. Os Estados


Unidos vão passar, junto com a Europa, a receber artistas. A arte moderna vai
se desenvolver no mundo inteiro e o Brasil e artistas brasileiros participarão
- de maneira mais ou menos intensa - desse grande movimento de rearranjo
e rearticulações do campo das artes e das relações artísticas num mundo
conturbado da Guerra e do Pós-Guerra.
A partir dos anos 1930, o mercado editorial em expansão atua para fortalecer
o que era identificado com uma vontade coletiva de conhecer o país, uma época
que é marcada por “uma política cultural nacionalista que une a história e a
geografia num élan de conhecimento do país, inscrito em um movimento de
idéias pela formação da ‘consciência nacional’, em vários campos da cultura,
educação e ciências sociais” (Angotti-Salgueiro, 2005, p. 24). O movimento de
intersecção de outras erudições e artes da cidade

pensamento estava associado intimamente à possibilidade de sua publicação


e era incrementado pela expansão do mercado editorial e de demais mídias
de massa que difundia imagens e sons do “país profundo”. O poder político
A erudição de João Guimarães Rosa na

produzia esforços “para criar uma nação” que reforçaria o espírito nacional,
“materializado na unidade do território, em que os geógrafos e a geografia
assumiram um papel de destaque”, desenhando e fotografando o país, criando
regiões culturais no lugar de regiões naturais, e a região sertão de Guimarães
Bruno Flávio Lontra Fagundes

Rosa era iconizada pelos desenhos de seus livros e de diversas publicações


que desenhavam os Tipos e Aspectos do Brasil, um livro que proveio de uma
separata da seção “Tipos e Aspectos” da Revista Brasileira de Geografia, criada
em 1939, um ano depois do Instituto Brasileiro de Geografia, o IBGE - criado em
1938. O livro Tipos e Aspectos do Brasil, em sua 5ª edição, de 1963, existia na
biblioteca de João Guimarães Rosa. O Brasil não era apenas para ser lido, mas
também para ser visto. A indústria de livros ilustrados por artistas plásticos
renomados – Di Cavalcanti, Carybé, Candido Portinari, Poty, Tomás Santa Rosa,
entre outros - incentiva, também, um movimento de interpretação do Brasil
que se debruça sobre a definição de uma identidade nacional e sobre o debate
institucionalizado com relação aos destinos do país, dos quais Rosa participava
como diplomata.
O Brasil verdadeiro – que Euclides da Cunha prognosticava em Os Sertões (o
Artigo

livro mais marcado da biblioteca de Rosa!) só seria conhecido se o brasileiro


virasse as costas para a Europa e olhasse para suas terras interiores - teria seus
dramas populacionais interiores desenhados e escritos em livros, emitidos em
rádios, gravados em filmes. O desenho de retirantes e das secas são exemplos
categóricos que davam a ver as populações que viviam distantes dos grandes

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centros e cidades, mostrando o Brasil aos brasileiros. O contexto de expansão


das viagens ao interior do Brasil – fomentada pela publicação dos dramas
interiores em revistas e livros e que estimulava as viagens a campo – são
viagens instituídas segundo métodos e práticas profissionais de geógrafos, e
faz-se acompanhar de grande divulgação do país em revistas ilustrativas – uma
vez mais plenas de desenhos e fotografias. O surgimento de uma comunidade
de geógrafos, nos anos 1930, com a institucionalização dos cursos de Geografia
nas universidades brasileiras, e o aparecimento de órgãos públicos geográficos,
também incrementam o surgimento de variadas publicações ilustradas de
caráter geográfico, muitas existentes na biblioteca de Guimarães Rosa.
A biblioteca de Guimarães Rosa demonstra o diálogo do escritor com livros
de interpretação do Brasil, os quais, mostrando “o que o Brasil era – ou poderia
intersecção de outras erudições e artes da cidade

ser” oferecia material criativo a artistas e intérpretes. A biblioteca de Rosa


contém apreciável número de livros de coleções de intepretação do Brasil, tais
como a Brasiliana, a Documentos Brasileiros, a Cadernos de Cultura, do Ministério
A erudição de João Guimarães Rosa na

da Educação, para ficarmos nas coleções que se fizeram mais célebres. Ao lado
das coleções consagradas, existiram algumas outras iniciativas de coleções que
insistiam em criar uma comunidade imaginada que se podia encontrar já no
próprio nome das coleções. Assim Romances do Povo, Mundo Brasileiro, Terra
Bruno Flávio Lontra Fagundes

Forte, Visão do Brasil eram coleções de editoras menos expressivas.


A realidade de modernização do Brasil e de disseminação de tipos de
equipamentos culturais diversificados provocava impactos nas atividades
voltadas para o livro. Muitos editores questionavam um processo deletério de
“intromissão” dos mass media modernos no hábito da leitura de livros e a “crise
do livro” é um tema recorrente: o lamento mais comum é o de que o brasileiro
não lê. Nos números 2 e 3 do Jornal de Letras, em 1949, em agosto e setembro,
a denúncia é a da “crise do livro” e da leitura, no Brasil e no mundo. Editorial
adverte que “o Brasil clama pela política do livro”. Com profunda conotação
espiritualista, Tristão de Athayde escreve o artigo A palavra falada, no
Suplemento Letras e Artes do Diário de Notícias, em novembro de 1953. Athayde
lastima o culto da oralização da palavra num “século de massas”, afirmando que
“o estilo oral é a expressão literária do século XX”, e que a oralização desliga a
Artigo

palavra do significado, à medida que a arranca de sua fonte “primeva”, o livro.


Sua atracação essencialista se dirige aos “modernos meios de divulgação da
palavra”, e em especial ao rádio, em que ele lamenta uma onipresença.

[...] O culto da palavra desligada da verdade, desligada da alma

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humana e da sua responsabilidade de distinguir eficazmente


entre o bem e o mal, a verdade e o erro [...]. O rádio facilita muito
essa nova idolatria. Ouvimos sem ver. As palavras passam a
valer por si, a flutuar no ambiente como fantasmas, a destruir
o silêncio [...] pelas janelas vindas das casas vizinhas, como
desencarnados que passeiam livremente entre nós, penetrando
em tudo, embarafustando-se por toda parte, violando os últimos
refúgios das nossas salas de estudo nos bairros outrora mais
silenciosos. Os campos de futebol já não estrugem sozinhos
quando os times fazem gols. Entram por nossos quartos adentro,
por mais protegidos que estejam [...]. Esse tremendo sibilar do
nada é que enche o mundo moderno e ameaça arrastar a palavra
no turbilhão das vozes sem nexo. Poderá a televisão corrigir esse
intersecção de outras erudições e artes da cidade

prejuízo de uma desencarnação da palavra, voltando a ligá-la a


sua fonte natural: o homem? Ou veremos o disco destronar o
livro, o rádio matar a imprensa? (Athayde, 1953, p. 1).
A erudição de João Guimarães Rosa na

Absolutamente nostálgico, Tristão de Athayde repõe a suposta superioridade


intrínseca do livro como meio de entendimento da palavra e de formação de
almas.
Bruno Flávio Lontra Fagundes

[...] Os meios modernos de divulgação da palavra – cinema, disco,


rádio, televisão – não podem nem devem desbancar o livro. O livro
e toda a palavra escrita é necessária na seqüência da expansão da
alma. E tem sobre a palavra falada o grande mérito de falar baixo,
de falar em silêncio, de tomar contacto lentamente com o que há
de mais íntimo em nós mesmos. Pois como diz aquele velho texto
chinês ou japonês do século VI nada é mais caro a nossa alma
do que a leitura de um bom livro à luz de uma lâmpada discreta
(Athayde, 1953, p. 1).

Outro aspecto aqui é uma verdadeira corrida feita por escritores, editores,
personalidades e educadores em geral contra as “histórias em quadrinhos”.
Em outubro de 1954, é realizado em São Paulo o II Congresso de Editores e
Livreiros do Brasil, onde se aprovou a tese sobre “o problema das ‘histórias
Artigo

em quadrinhos’, com todos os pretensos heróis do tipo ‘super-homem’ e mais


figuras de terror e de sensualismo, cuja importação criminosa tantos malefícios
vêm causando às crianças e aos jovens do Brasil” (Boletim [...], 1954, p. 7). É
nesse contexto de trocas culturais – deletérias para alguns - entre equipamentos

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da cultura envolvendo artistas brasileiros e internacionais, concorrência de


uma indústria de mídias modernas, em que vai surgir e crescer a literatura de
Guimarães Rosa.

Livros e inventários de tradições as palavras, os sons e as imagens da


arte

Em 1951, Rosa publica a terceira edição de Sagarana, seu livro de estreia


na Livraria José Olympio Editora, se aproximando dos ilustradores artistas
plásticos internacionais da editora, Tomás Santa Rosa, Poty e Luís Jardim,
e seus livros passarão a incorporar o prestígio ilustrativo do requinte
gráfico das publicações da então famosa casa de edição brasileira. A Livraria
intersecção de outras erudições e artes da cidade

Editora JO (Como era carinhosamente chamada a José Olympio) incorporava


progressivamente artistas plásticos com desenhos de capa e ilustração interna
de livros, em meio a um contexto de expansão de imagens com consolidação
de museus e bienais de arte, além de publicações bastante desenhadas. 10 Isso
A erudição de João Guimarães Rosa na

tudo ajuda a compor o sentido da obra, se não restringirmos o processo de


produção de sentido à produção do escritor. Se a literatura de Rosa se compôs
de obras-primas pelo que rompeu de anteriores convenções da escrita literária
Bruno Flávio Lontra Fagundes

na história da literatura brasileira, os livros deixaram na memória coletiva dos


que os leram a marca dos desenhos de seus ilustradores, a ponto de a crítica
dos livros comentá-los fazendo menção aos belos desenhos que ilustravam os
livros.
Mário Pedrosa analisou Pesquisa Ibope, do ano de 1957, sobre o interesse
artístico da população brasileira, caracterizando os anos 1950 em termos
de produtores e de público de arte, e apontou para o que seriam os novos
componentes em jogo nos processos próprios de realização no universo sócio-
artístico brasileiro. A citação abaixo aponta o que seria um pouco a realidade
da interrelação entre mercado nacional e internacional de artes.

[...] De qualquer modo, a conclusão do quadro de respostas indica


claramente um interesse mais positivo pelas coisas da arte
nas gerações mais novas [...] As exposições de arte nacionais e
Artigo

internacionais nunca foram tão freqüentes quanto agora; os


museus de arte surgem um pouco por toda parte, bem como as
galerias de arte. [...]. Em conversa com vários livreiros daqui e do
estrangeiro, verifiquei serem todos unânimes em afirmar que os

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livros sobre arte, incluindo nela o cinema, passaram a preponderar


na procura aos livros sobre política que dominaram o mercado
para o fim da guerra, e principalmente logo nos primeiros anos
dela [...] (Pedrosa, 1981, p.117). 11

O intercâmbio vivo entre artes se incrementava mundialmente nos anos da


literatura de Rosa publicada pela José Olympio Editora ilustrada por artistas
plásticos que eram autoridades internacionais em seus campos de arte. Pela
biblioteca de Rosa, consultada por nós, a realidade de publicações dirigidas às
cidades brasileiras de meados do século XX pode ser enriquecida pela análise
também de materiais que indicam prováveis mediações criativas e interpretativas
para o escritor-diplomata. Acervos de fotografia sobre o Brasil começam a se
formar. Simultâneas ao desenvolvimento de uma cultura fotográfica no Brasil,
intersecção de outras erudições e artes da cidade

tais acervos estão em publicações que oferecem um estoque a mais de textos –


escritos e visuais - com informações sobre a vida rural do país que poderia ser
motivo de figurações por Rosa na execução de sua arte literária. As atividades
A erudição de João Guimarães Rosa na

de Rosa eram também um trabalho da arte de conhecer o território do sertão


para literaturizá-lo, para o que fez viagens a Minas, sendo a mais conhecida e
divulgada a viagem de 1952, fotografada e publicada na revista O Cruzeiro.
Bruno Flávio Lontra Fagundes

A história da expansão da literatura impressa consagrava a imagem fotográfica


como texto visual do país interior. Revistas como O Cruzeiro, em 1928, e depois
Manchete, em 1952, foram acompanhadas, entre muitas iniciativas, da entrada
no país de impressos como a Revista Seleções, em 1942, revistas em que Rosa
publicou alguns de seus textos. Analisando as fotorreportagens da revista
O Cruzeiro nos anos 1940, Helouise Costa afirma que a revista “conformou
um imaginário sobre o Brasil” (Costa, 1998, p.140) o que teria contribuído
no processo de formação de uma “cultura fotográfica” no país. A partir das
considerações sobre a relação entre fotografia e constituição de políticas para
o patrimônio, Maria Inez Turazzi (1998, p. 8) analisa - para meados do século
XX no Brasil - a consolidação de uma cultura fotográfica. Ante a multiplicidade
de imagens, a autora considera que uma identidade singular sob o nome único
de “fotografia” só foi possível graças à constituição de uma geral “cultura
fotográfica [...] em grande parte responsável pelo alargamento do sentido da
Artigo

visão na sociedade contemporânea”.


No Brasil de meados do século XX, os fotógrafos franceses Pierre Verger,
Marcel Gautherot e Jean Manzon tiveram lugar central na representação
fotográfica do país e na fixação de uma cultura da fotografia e de várias imagens

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do país interior. Tributário de uma interpretação euclidiana do Brasil, quem


alertava para o Brasil se conhecer olhando para dentro de si mesmo, Rosa olha
para dentro do país e as imagens de arte de desenhistas e fotógrafos, fornecem-
lhe amplo material criativo. Já a partir dos anos 1920, especialmente as revistas
ilustradas com fotorreportagens têm uma série de características que atendem
à demanda das grandes massas urbanas, com matérias compostas de muitas
imagens fotográficas, tornando a “alta cultura ‘acessível’ a todos aqueles que
podem dispor de dinheiro suficiente para adquirir não mais um monte de livros
de difícil digestão, mas uma revista bonita e de fácil leitura [...]” (Coelho, 2003,
p. 10).
Segundo o que sugerem as considerações de Maria Inez Turazzi (1998), a
incorporação da fotografia pela inspiração literária ofereceria à criação uma
intersecção de outras erudições e artes da cidade

espécie de repertório de mensagens visuais que mediariam a relação texto e


leitor urbano, a quem se dirige a produção fotográfica organizada do país. O
doutor instruído da cidade, eu-personagem a quem o jagunço Riobaldo fala
A erudição de João Guimarães Rosa na

em Grande Sertão:Veredas sobre a modernização do sertão – e que vai escrever


um livro na cidade - é um escritor que fotografa. Ele viaja pelo sertão de jipe e
carrega uma máquina fotográfica, informação feita por Rosa no livro de maneira
discretíssima, quase imperceptível: “[...] Mas Medeiro Vaz não se achava, os
Bruno Flávio Lontra Fagundes

nossos, dele ninguém não sabia bem. Tocamos, fim que o mundo tivesse. Só
deerrávamos. Assim como o senhor, que quer tirar é instantâneos das coisas,
aproximar a natureza. Estou entendido [...]” (Rosa, 1994, v.2 p. 52, grifo nosso).12
As viagens tornam-se operadores que dão acesso a espaços de realização da
atividade literária que se infiltram de linguagens criativas numa época em que
conhecer o Brasil é percorrê-lo, ir a suas gentes nativas, valorizando-as, fazendo
ver o Brasil por suas imagens. Guimarães Rosa executava trocas entre textos
visuais do Brasil pela mediação de suas viagens e dos livros publicados como
resultados de viagens pelos órgãos governamentais geográficos que, a partir
dos anos 1940 – com a criação do Conselho Nacional de Geografia, o CNG e a
Associação de Geógrafos Brasileiros, a AGB - desencadeiam no Brasil excursões
sistemáticas, momento em que a literatura de Rosa inicia sua trajetória por uma
viagem ao interior de Minas, em 1945. A biblioteca de Rosa é farta em livros de
Artigo

geografia onde o Brasil está sendo desenhado e fotografado no processo de


ocupação do território, o que reforça, certamente, o conhecimento do país pelo
acesso a suas imagens fixadas em revistas e livros. Geográficas ou não.
Se a fotografia integra comunidades pela formação de um repertório seriado
de imagens partilhadas do país, ela impregna a inspiração artística e literária,

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que, nos modos de compor o imaginável, se utiliza dos registros fotográficos


junto ao mesmo universo de leitores e escritores. Abrantes estuda o acervo do
fotógrafo húngaro Tibor Jablonsky, um dos primeiros fotógrafos profissionais
contratados pelo IBGE, entre o fim da década de 1940 e o início da década
seguinte. As regiões fotografadas por Jablonsky resultavam de “excursões de
campo” e geravam artigos publicados em revistas geográficas, como a Revista
Brasileira de Geografia e o Boletim Geográfico – publicação mensal do Conselho
Nacional de Geografia. Jablonski produziu cerca de 7.000 registros imagéticos
sobre o Brasil (Abrantes, [19--]).
O desenvolvimento de um sistema radiofônico também colabora com
a literatura de Rosa no mesmo instante que a consolidação de uma cultura
iconográfica no Brasil de meados do século XX, se tomamos a literatura também
intersecção de outras erudições e artes da cidade

como livro, numa concepção de iniciativas de caráter científico-cultural que


facilitaram fixar tipos e costumes brasileiros a título de documentários e de
inventário de tradições.
A erudição de João Guimarães Rosa na

Em julho de 1949, o editorial do primeiro número do Jornal de Letras,


intitulado Música Popular, um folclorista, era assinado por Lúcio Rangel, que
elogia Simeão Leal, o qual utilizou o “mais moderno processo de registro [de
som] (o fio de arame)” para gravar, em recente viagem à Paraíba, os caboclinhos
Bruno Flávio Lontra Fagundes

e diversos cocos “de sabor marcadamente brasileiro”, em festas populares.


Rangel assinala que o fio de arame ajuda a recuperar o “que resta puro, sem a
influência do rádio e do cinema, da música popular brasileira” (Rangel, 1949,
p. 7). A novela Dão-la-la-lão (Rosa, 1994, p. 839), de Guimarães Rosa, do livro
Corpo de Baile, é marcada também pelo rádio e pelo fio de arame. Quando o
personagem Soropita volta do Andrequicé, para onde vai ouvir a novela do
rádio para recontá-la a todos de volta no arraial, todos já a sabiam, porque
passara no povoado seo Abrãozinho Buristém, “que carregava um rádio
pequeno, de pilhas, armara um fio no arame da cerca...” e conseguira ligar o
rádio. Se o Jornal de Letras elogiava os processos modernos de gravação do som
das festas tradicionais brasileiras, a iniciativa não era isolada. Uma coleção das
mais expressivas da biblioteca de Rosa é a coleção Documentário da Vida Rural,
resultado do Plano de Documentação da Vida Rural, de iniciativa do Ministério
Artigo

da Agricultura em 1952.
Submetido ao ministro da Agricultura em 1951, o Plano, em texto não
assinado, previa trabalhos para “a documentação da vida rural destinados ao
levantamento mais completo possível dos aspectos característicos e peculiares
da sociedade rural brasileira” (Brasil, 1952, p. 3), e o plano compreendia ainda

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à realização de filmes, a gravação de motivos tipicamente rurais e a elaboração


de monografias e estudos. O Serviço de Informação Agrícola (SIA) logo pôs o
Plano em execução e em 1952 apareciam os primeiros “filmes, com monografias
publicadas umas, em elaboração outras, com gravações efetuadas” (Brasil, 1952,
p. 5) Quanto às monografias, o Plano previa a formação da série Documentário da
Vida Rural, e em 1952 já havia sido publicado O Engenho de açúcar no Nordeste,
de Manuel Diegues Júnior. E estavam previstas mais duas monografias: Fazenda
de café em São Paulo, de Olavo Baptista Filho e Fazenda de gado no Vale do São
Francisco, confiado a Jozé Norberto Macedo.
Em 1952, já estariam prontas também as monografias sobre a estância no Rio
Grande do Sul, de Dante de Laytano, e encomendados outros “trabalhos mais
amplos, em particular sobre regiões ou áreas características”: de Arthur César
intersecção de outras erudições e artes da cidade

Ferreira Reis, sobre o seringal e os seringueiros na Amazônia; do sociólogo


João Gonçalves de Souza, sobre uma comunidade no Vale do São Francisco;
do agrônomo Wanderblit Duarte de Barros, sobre o Vale do Paraíba e de Zedar
A erudição de João Guimarães Rosa na

Perfeito da Silva sobre o Vale do Itajaí. “Raul Lima conclui uma monografia
sobre as feiras do Nordeste e outros autores escreverão sobre a habitação rural,
além da organização de uma antologia da vida rural brasileira.” (Brasil, 1952,
p. 7), dizia um dos primeiros livros da coleção Documentário da Vida Rural.
Bruno Flávio Lontra Fagundes

Sobre filmes, dizia o Plano, ainda em 1952, que já estavam prontos Banguê,
sobre engenhos nordestinos, e Casa de Farinha, sobre a produção de farinha
no Nordeste, que estava sendo finalizado um filme sobre as Feiras, e que já
estavam previstos Fazenda de Café, em São Paulo e Estância, no Rio Grande do
Sul. Quanto às gravações de rádio, o Plano mencionava que o setor havia sido
grandemente enriquecido pela realização da IV Semana Nacional de Folclore,
em Alagoas, onde técnicos do Serviço de Informação Agrícola

[...] fizeram a gravação de numerosos motivos caracteristicamente


rurais, cantos e cantigas típicos, tais como aboios, cocos, desafios,
cantos de trabalho, folguedos populares etc. Foram gravados os
diversos autos apresentados naquele festival: guerreiros, reisado,
fandango, chegança, quilombos, caboclinhos, baianas etc. (Brasil,
1952, p.7-8).
Artigo

E, finalizando, o Plano revelava o entrelaçamento entre imagens, textos e


gravações nas monografias:

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[...]. No que toca à publicação, será promovida a divulgação de uma


série de monografias, de finalidade instrutiva e informativa, contendo
dados geográficos, históricos, sociológicos, etnográficos etc. sobre
a vida ou atividades ou manifestações folclóricas do meio rural. Esta
coleção terá um máximo de vinte a trinta páginas impressas. Sua
elaboração se orientará num sentido sociológico, de documentação
viva das manifestações típicas da vida rural. Sempre que possível, ou
preferencialmente, essas monografias servirão de ilustração literária
dos filmes projetados, constituindo, em especial, a base de onde
deverá ser extraída a explicação que acompanhará o filme no seu
desenvolvimento técnico. Essas monografias destinar-se-ão ainda
a uma larga distribuição, principalmente em estabelecimentos de
ensino. Cada monografia será acompanhada de ilustrações fotográficas
intersecção de outras erudições e artes da cidade

atinentes aos aspectos peculiares e típicos do tema estudado [...] (Brasil,


1952, p. 10).

Dos livros publicados de 1952 a 1957 na coleção Documentário da Vida Rural


A erudição de João Guimarães Rosa na

prevista no Plano, Guimarães Rosa colecionou sete, quais sejam: de Manuel


Diegues Júnior, O engenho do açúcar no Nordeste (1952); de Olavo Batista Filho,
A fazenda de café em São Paulo (1952); de Jozé Norberto Macedo, Fazendas
Bruno Flávio Lontra Fagundes

de gado no vale do São Francisco (1952); de Clóvis Caldeira, Fazendas de cacau


na Bahia (1954); de Luis da Câmara Cascudo, Tradições Populares da pecuária
nordestina (1956); de Virgílio Alves Correia Filho, Fazendas de gado no pantanal
mato-grossense (1955); e de Luis da Câmara Cascudo, Jangadeiros (1957).13
Os livros da coleção eram ricamente ilustrados com desenhos de Percy
Lau, peruano radicado no Brasil, desenhista documentarista das publicações
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE – criado em 1938. O
desenhista viajava o Brasil de Norte a Sul, estudando paisagens e tipos humanos,
desenhando-os para compor matérias geográficas. Como resumido na orelha
de um dos livros da coleção Documentário da Vida Rural guardado na biblioteca
de Rosa, o livro de Norberto Macedo – muito marcado por Rosa - é sobre as
fazendas de gado no São Francisco e revela o que pretende a coleção:

[...] amplo documentário da vida rural brasileira, no que ela


Artigo

tenha de expressivo e fundamental, abrangendo não somente


aspectos gerais de estabelecimentos agropecuários – engenhos,
fazendas, garimpos, estâncias, sítios, etc.- como, também,
aspectos peculiares de atividades do meio rural – feiras, meios de

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transporte, habitações, trabalho etc. – destacando-se, ainda, as


manifestações folclóricas ligadas aos respectivos ambientes, tais
como danças, festas, cantos de trabalho [...] (Macedo, 1952, p. 11).

Muitos desenhos e fotografias que ilustram publicações informativas,


institucionais e educativas na biblioteca de Rosa são feitos copiados uns dos
outros. Para desenhar, o desenhista via a fotografia. Num contexto de expansão
da circulação internacional de artistas de meados do século XX, as trocas
textuais efetivadas por Guimarães Rosa com a arte pictórica não se limitaram
a suas visitas a museus europeus e brasileiros, dos quais guardou conjunto
de catálogos de exposições de museus e livros de artistas e teóricos de Artes
Plásticas. Suas trocas com a arte pictórica dos artistas plásticos, ilustradores
intersecção de outras erudições e artes da cidade

ou não, o encaminham mais uma vez para as virtualidades da arte do livro,


tanto quanto para a da arte da palavra. Pelo articulado das trocas textuais que
executa entre textos lidos em textos de arte e textos de idéias, João Guimarães
Rosa realiza uma obra literária que se materializa em livros, com os quais fixa
A erudição de João Guimarães Rosa na

sua autoridade autoral em meio a trocas entre linguagens e textos que são
obras de ler e de ver o sertão e seus tipos e aspectos humanos e naturais. E
com os pintores em exposição em diversos museus, Guimarães Rosa parecia
Bruno Flávio Lontra Fagundes

mesmo procurar aprender. Museus de Berlim, Paris, Munique, Berna, Roma,


Rio de Janeiro, Amsterdã foram visitados por Guimarães Rosa, que marcava
os catálogos e se utilizava das reproduções fotográficas em preto e branco das
pinturas impressas para assinalar as cores dos quadros, provavelmente para
poder visualizá-los depois. “Chapéu preto, olhos vagamente castanhos claros,
colar preto, manto azul”, ele anotou puxando uma seta na imagem reproduzida
do quadro CHRISTUS (Petrus) ou Cristus Portrait de jeune fille. impressa num dos
catálogos.

Considerações Finais

A pesquisadora de Literatura Flora Sussekind (1987) investiga a literatura


brasileira do final do século XIX e das duas primeiras décadas do século
XX e identifica que os artefatos modernos, os novos meios de locomoção/
Artigo

comunicação nascentes, o reclame e a imprensa fizeram parte da figuração


literária dos textos dos escritores. A autora sustenta como “apropriando-se
de procedimentos característicos à fotografia, ao cinema, ao cartaz”, a própria
técnica literária se transformou. Segundo Sussekind, essa literatura esteve

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em sintonia com “mudanças significativas das formas de percepção e na


sensibilidade das grandes cidades brasileiras”. A autora postula uma história da
literatura brasileira que se relacione com uma história dos meios e formas de
comunicação cujas inovações e transformações afetam tanto a consciência dos
autores e leitores, quanto as formas e representações literárias propriamente
ditas” (Sussekind, 1987, p. 26). O texto de literatura poderia ser examinado se
se referisse a realidades auditivas e visuais, a práticas de ouvir/escutar e olhar/
ver a que fomos educados a partir do instante em que equipamentos técnicos
de sonorização e de visualização de certa forma invadiram nossa civilização.
Se entendida como texto e livro, a literatura considera o que seriam os
diversos “autores” de uma obra – escritor, editor, ilustrador e leitor – e em que
condições se transferem e operam sobre o livro a celebridade e o prestígio que
intersecção de outras erudições e artes da cidade

se lhe agregam, provenientes da consagração dos outros autores da obra que


não são os que manejam a letra. Para Guimarães Rosa, o prestígio literário de
seus livros não parece se destacar das expectativas postas nos livros de sua
A erudição de João Guimarães Rosa na

editora e na arte de seus ilustradores. Os textos de Guimarães Rosa, que têm


o sertão como epicentro, ajudaram a fixar, com todos os ilustradores de livros
no Brasil, o sertão de toda uma geração de escritores e intérpretes do Brasil
que pensaram o sertão numa época em que ele era visitado e escrito, ouvido e
Bruno Flávio Lontra Fagundes

figurado/desenhado pela arte iconográfica do desenho e da fotografia. Textos


profundamente visuais e palavras no livro bastante sonorizadas marcam a
literatura de Rosa, segundo ele e a crítica especializada.
Avaliar o grau de trocas entre a arte brasileira e a arte estrangeira de meados
do século XX, entre artes eruditas e mídias modernas, artes plásticas e confecção
gráfica do livro, é trabalho que requer analisar o papel de editores e dos livros
como encontros entre artistas, num contexto de trocas internacionalizadas
de arte. Os livros adquirem o estatuto de objeto que recolhe diversos tipos de
trocas interculturais e sua produção e recepção alteram os termos de grande
parte das análises do texto literário. À medida que a análise da história do
livro se soma à análise da história dos textos, as teorias da Literatura passam a
valorizar os fatores diversos que, por suposto, modificam a cognição dos textos,
processo em que, mesmo as teorias literárias, são levadas em conta conforme
Artigo

sua historicidade.

[...] Relativamente a seus pressupostos, o de maior peso é a


hipótese de que hoje não são muitas, nem tampouco parecem
muito instigantes as teorias literárias que endossam concepções

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exclusivamente textuais e/ou imanentes do literário, da literatura,


da literariedade (Lajolo; Zilberman, 2003, p. 308).

Em vista disso - e em vista do círculo de relação de convívio artístico, político


e intelectual de escritores, ilustradores, cineastas, fotógrafos, artistas plásticos
na história brasileira – não será impertinente analisar a relação da literatura
de Guimarães Rosa com a expansão de um mercado de artes visuais – artes
plásticas e do desenho: imagens reprodutíveis – e de sons, pela disseminação
de meios de difusão de massa desde os anos 1930 no Brasil incrementado na
segunda metade dos anos 1940 e consolidado pelos governos militares depois.
Se tomadas como arte, arte da ilustração em livro, as imagens seriam agentes
poderosos da visualização imaginária dos conteúdos dos livros de Rosa.
intersecção de outras erudições e artes da cidade

Transformado em sertão audível, pela expressão da cultura dos personagens de


oralidade e em sertão visível pela arte iconográfica dos mestres do pincel e do
lápis, em capas de livros e exposições de arte, pela arte iconográfica dos mestres
do clic fotográfico em matérias de revistas e galerias de fotos, o sertão verbal
A erudição de João Guimarães Rosa na

vai incorporando à categoria de entendimento euclidiano do Brasil sertão uma


dimensão visual-iconográfica e sonora que ela não tinha antes.
É no interior desse contexto de trocas em experiências urbanas que a obra
Bruno Flávio Lontra Fagundes

literária de Guimarães Rosa vai crescer. Em meados do século XX brasileiros,


a valorização simbólica do elemento rural-sertanejo – valorização de seus
espaços, de suas vidas e das idéias sobre elas - terá vários empreendedores,
de órgãos de governo a iniciativas individuais, mobilizando intérpretes e
editores por recursos de pesquisa, registro, análise, edição e divulgação que
vão redundar em produtos publicáveis e suportes de vários tipos – como livros,
revistas, jornais, programas de rádio, filmes. No curso de suas atividades
artística e literária, é toda um corpus de material disponível para trocas e
interações de que Rosa se aproveitou, não hesitando de fazer criativamente as
trocas linguísticas, artísticas e literárias que aquele material o disponibilizou.

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Artigo

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A erudição de João Guimarães Rosa na

bestand/objekt/germania-oder-die-wacht-am-rhein-1873.html. Acesso em: 9


ago. 2023.
Bruno Flávio Lontra Fagundes

Notas
Universidade Estadual do Paraná - UNESPAR.
1

2
No original “Whatever they may do, authors do not write books. Books are not written
at all”.
3
Para os (as) interessados (as), estes livros estão agrupados na minha tese de doutorado
intitulada Entre Arte e Interpretação: figurações do Brasil na literatura de Guimarães Rosa,
defendida em 2010 na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
4
No original “Les changements fondamentaux apportés à la structuration de l’espace
habité par la civilization industrielle”.
5
Faremos mais menção aqui aos livros publicados do escritor em 1956, que são Corpo
de Baile (com 7 novelas) e Grande Sertão: Veredas. De Corpo de Baile, vamos identificar
cada novela/conto. O livro Corpo de Baile, publicado em 1956, em dois volumes, foi
republicado depois em 3 volumes, em formato pocket. Os livros foram repartidos assim:
Campos Gerais, Noites do Sertão e No Urubuquaquá, no Pinhén.
Artigo

6
Os trechos de textos de Rosa foram extraídos da Obra Completa do escritor publicada
pela editora Nova Aguilar, em 1994, em 2 volumes.
Livro constante da biblioteca de Guimarães Rosa.
7

Ver a Seção Rádio, do jornal A Manhã, de 5 de janeiro de 1946.


8

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9
O trecho da letra da música de Caymmi é: [...] O que é que a baiana tem? O que é que
a baiana tem? O que é que a baiana tem? O que é que a baiana tem? Tem torço de seda
tem! Tem brincos de ouro tem! Corrente de ouro tem! Tem pano-da-costa tem! Sandália
enfeitada tem! [...] Um rosário de ouro, uma bolota assim, quem não tem balangandãs não
vai no Bonfim (oi não vai no Bonfim, oi não vai no Bonfim). Em 1938, Dorival Caymmi chega
ao Rio de Janeiro, publica alguns desenhos na revista O Cruzeiro, mas depois tenta a
carreira na música. O futuro compositor e músico estréia na gravadora Odeon em 1939
com a música O que é que a baiana tem, cantada por Carmem Miranda no filme Banana
da Terra. A música a partir daí ganha popularidade nacional e será tocada em rádios de
todo o país por muito tempo.
10
Os ilustradores dos livros de Rosa na JO foram Napoleon Potyguara Lazzarotto, o Poty
(Curitiba PR 1924-1998). Ilustrou obras literárias, como as de Jorge Amado, Graciliano
Ramos, Euclides da Cunha, Dalton Trevisan, Guimarães Rosa, entre outros. Tomás Santa
Rosa Júnior (João Pessoa PB 1909-Nova Delhi Índia 1956). Auxiliou Cândido Portinari
(1903-1962) na execução de diversos murais. Luiz Inácio de Miranda Jardim (Garanhuns,
1901), desenhista e ilustrou os livros de Rosa dos anos 1960.
intersecção de outras erudições e artes da cidade

O texto foi originariamente artigo publicado por Pedrosa no Jornal do Brasil, a 14 de


11

agosto de 1957.
Agradecemos à professora Márcia Marques de Morais, que nos chamou a atenção para
12
A erudição de João Guimarães Rosa na

este fato fundamental.


Até onde conseguimos saber, houve 11 títulos publicados pela Coleção. O catálogo de
13

busca do arquivo, não traz os títulos, o que não nos deixa saber se foram lidos pelo
escritor ou não, e o certo mesmo é que não há na biblioteca os quatro títulos faltantes,
Bruno Flávio Lontra Fagundes

aqueles relativos à Estância Gaúcha, ao Seringal e o Seringueiro, ao Vale do Itajaí e aos


Garimpos da Bahia.
Artigo

Recebido em 09/08/2023 - Aprovado em 28/12/2023


Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.593-618, jul-dez. 2023 } 618
DOI: 10.5433/1984-3356.2023v16n32p619-646

Práticas de escolarização
católica e seus usos na vida
de Elfrida Lobo (Paranaguá,
décadas de 1910 a 1960)

Catholic schooling practices


and their uses in the life of
Elfrida Lobo (Paranaguá,
decades from 1910 to 1960)

Prácticas escolares católicas


y sus usos en la vida de
Elfrida Lobo (Paranaguá,
décadas de 1910 a 1960)

Andréa Bezerra Cordeiro1


Juarez José Tuchinski dos Anjos2

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Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar as práticas de


escolarização católica e seus usos na vida de Elfrida Lobo,
entre fins da década de 1910 até meados da década de 1960,
tomando por fonte o egodocumento Retalhos de Uma Vida. Na
primeira parte são investigadas as práticas de escolarização
vivenciadas por Elfrida Lobo e propiciadas a ela pelo Colégio
São José, bricoladas com práticas de espiritualidade católicas,
Andréa Bezerra Cordeiro / Juarez José Tuchinski dos Anjos

mas igualmente transformadas em práticas educativas no


cotidiano da educação destinada à Elfrida e suas colegas pelas
de Elfrida Lobo (Paranaguá, décadas de 1910 a 1960)
Práticas de escolarização católica e seus usos na vida

Irmãs de Chambery. Na segunda parte são estudados os usos


que faz Elfrida, em sua vida adulta, desse repertório de saberes
frente aos fatos que condicionam sua vida na maturidade:
as dificuldades financeiras, a viuvez, os filhos pequenos, a fé
cristã, os desejos de independência e uma grande inclinação
pelo estudo de línguas estrangeiras. As conclusões apontam
que o ensino recebido no Colégio São José funcionou de
muitas formas, ainda que as suas finalidades tenham sido
extrapoladas para a expansão intelectual e independência
financeira e social de Elfrida Lobo através de sua capacitação
e desempenho profissional. Da educação recebida no Colégio
católico e ampliada ao longo da vida, ela fez seu próprio uso.
Palavras-chave: história da educação; história da infância;
educação feminina; egodocumentos; educação católica.

Abstract: This article aims to analyze catholic schooling practices


and their uses in the life of Elfrida Lobo, between the end of the
1910s and the mid-1960s, using the ego document Retalhos de
Uma Vida as a source. In the first part, the schooling practices
experienced by Elfrida Lobo and provided to her by Colégio
São José are investigated, bricolated with practices of catholic
Artigo

spirituality, but also transformed into educational practices in


the daily education destined for Elfrida and her colleagues by
the Sisters of Chambery. In the second part, the uses that Elfrida
makes, in her adult life, of this repertoire of knowledge in the
face of the facts that condition her life to maturity are studied:

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financial difficulties, widowhood, small children, the Christian


faith, the desire for independence and a great inclination for
the study of foreign languages. The conclusions point out
that the teaching received at Colégio São José worked in many
ways, although its purposes have been extrapolated to the
intellectual expansion and financial and social independence
of Elfrida Lobo through her training and professional
performance. From the education received at the Catholic
College and extended throughout her life, she made her own use.
Keywords: history of education; childhood history; female
Andréa Bezerra Cordeiro / Juarez José Tuchinski dos Anjos

education; egodocuments; catholic education.


de Elfrida Lobo (Paranaguá, décadas de 1910 a 1960)
Práticas de escolarização católica e seus usos na vida
Artigo

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Introdução

Uma das características do processo de romanização no Brasil foi o


investimento, através de congregações religiosas europeias acolhidas nas
diversas dioceses, na educação das novas gerações, especialmente, do sexo
feminino (Manoel, 1996). Introduzindo no país colégios católicos, o episcopado
ultramontano fez deles espaços privilegiados de difusão de um novo modelo
de catolicismo, menos laico e mais clerical e alinhado às diretrizes da Igreja
Católica Romana face à modernidade. Mas não só de incenso e preces se fez a
Andréa Bezerra Cordeiro / Juarez José Tuchinski dos Anjos

educação ministrada nesses estabelecimentos de ensino.


Enquanto esse processo histórico se delineava naquele ritmo temporal
de Elfrida Lobo (Paranaguá, décadas de 1910 a 1960)
Práticas de escolarização católica e seus usos na vida

a que Braudel (2007) batizaria de conjuntura, em outro nível, no tempo dos


acontecimentos – “o tempo curto, à medida dos indivíduos, da vida cotidiana,
de nossas ilusões, de nossas rápidas tomadas de consciência” (Braudel, 2007, p.
45) – uma jovem moradora da cidade de Paranaguá, no litoral do Paraná, Elfrida
Marcondes Lobo, nascida a 31 de janeiro de 1911 (Lobo, 1990) era matriculada e
levada a frequentar o Colégio São José, do qual seria aluna de 1918 até 1928. A
instituição funcionava sob os cuidados das irmãs da Congregação de S. José de
Chambery3, trazida à Diocese de Curitiba em 1896, quatro anos após a instalação
daquela circunscrição eclesiástica, a convite do primeiro bispo local, D. José de
Camargo Barros4, a quem coube, num ambiente de crescente anticlericalismo,
iniciar – fazendo uso do clero e do laicato católico, em meio a ampla gama de
estratégias de “combate” – uma “batalha” da qual, na década de 1920, segundo
Tatiana Dantas Marchette (1996) – a clericalização da sociedade paranaense
sairia vencedora5.
Disso, a trajetória de Elfrida Lobo, cuja infância e juventude transcorreram
imersas nas experiências de sua frequência escolar católica, no mesmo período
de auge do embate pela romanização do Paraná, é sólida evidência. Isso se pode
afirmar porque, de suas vivências no Colégio São José de Paranaguá, estamos
relativamente bem-informados e com certa riqueza de detalhes, graças a uma
autobiografia que, redigida entre 1983, quanto contava com 72 anos, até 1990,
ano em que a publicou sob o título “Retalhos de Uma Vida”6. Trata-se de daquele
Artigo

tipo de fonte a que Antonio Viñao denomina de egodocumentos, “textos nos


quais o sujeito fala ou se refere a si mesmo, nos quais o eu encontra refúgio e se
converte em elemento de referência” (Viñao, 2000, p. 11, tradução livre).
De fato, na obra, organizada em 11 capítulos, à exceção do último (dedicado
à figura do seu sogro, que, após a morte do seu único filho e esposo de Elfrida,

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tornou-se apoio fundamental para a criação dos netos, na década de 1940), a


egoautora narra sua história e a história das suas relações e interações sociais,
fazendo de sua vida a referência e argumento da narrativa, periodizando-a
em títulos sempre iniciados com o substantivo “anos” e completados com
adjetivos como “de encantamento”, “de enlevo”, “de esperança”, “de angústia”,
“de amargura”, de “ternura”, “de realização”.7 São, por sinal, dos anos de
“encantamento” as reminiscências sobre a escolarização católica recebida por
ela na infância e juventude. Escolarização que de muitas formas ampliou as
condições de Elfrida diante de alguns sérios percalços vividos nos “anos de
Andréa Bezerra Cordeiro / Juarez José Tuchinski dos Anjos

angústia” da vida adulta, pois através de sua rede de relações na sociedade e


de seu sólido repertório intelectual, Elfrida, como se verá, abriu seu próprio
de Elfrida Lobo (Paranaguá, décadas de 1910 a 1960)
Práticas de escolarização católica e seus usos na vida

caminho.
O testemunho das histórias vividas e narradas por mulheres, quando
convertido em uma fonte histórica, exige delicado exame. Ter acesso a escritas
de mulheres - tanto as que foram preservadas e nos chegam anos depois, como
as escritas autobiográficas realizadas de maneira retrospectiva – desperta
uma certa reverência ao ato da pesquisa, pois os diários, cartas, autobiografias
nos chamam a pensar as práticas da escrita e da leitura para o sexo feminino,
considerando ainda que serão atravessadas pelo seu tempo histórico, pela
condição social, pela raça, nos chegando do passado de maneiras distintas. Se
às meninas pobres nenhuma ou rasa formação para ler e escrever eram mais do
que o bastante, nas classes abastadas as mulheres teriam na leitura e escrita
mais uma ferramenta para, com modéstia e elegância, se apresentarem bem
nos ambientes sociais. Apesar disso, algumas mulheres em todas as classes,
talvez até mais do que imaginamos, liam e escreviam bem, não apenas com
proficiência, mas com técnica, astúcia e arte, como nos mostra o não tão
volumoso, mas consistente legado escrito de egodocumentos femininos que,
por amor ou por força, foi preservado. As escritas autobiográficas, as notas e
memórias do cotidiano de mulheres também nos legam o que pensar, e estes
registros, tanto mais esparsos quanto ricos, podem nos auxiliar a compreender
por outros prismas a vida cultural, as condições de trabalho, as relações das
pessoas em um tempo histórico.
Artigo

As memórias de Elfrida, que nos chegam através de seu livro, evocam alguns
tensionamentos que já foram levantados em análises de obras como “Minha
Vida de Menina”, o diário de infância de Helena Morley (2016). Tratam-se,
sim, de gêneros diferentes: o livro de Morley é um diário alegadamente escrito
em sua infância e adolescência e publicado por ela quando adulta; o livro de

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Elfrida Lobo foi escrito numa narrativa retrospectiva em seus últimos anos de
vida, sujeito à reorganização realizada na “ilha de edição” que é a memória,
parafraseando Waly Salomão (2007). Dadas as diferenças, entendemos as duas
obras como gêneros “vizinhos” que trazem em comum a presença da “relação
de identidade entre o autor, o narrador e personagem” (Lejeune, 2014, p. 17,
grifo nosso). Esta identidade é um vetor precioso de representações que, nas
palavras de Chartier “constituem na sua diferença radical as configurações
sociais e conceituais próprias de um tempo e de um espaço” (Chartier, 1990, p.
27).
Andréa Bezerra Cordeiro / Juarez José Tuchinski dos Anjos

Neste espaço narrativo do íntimo, da exposição da personalidade e dos


costumes, nos confrontamos com as escolhas entre o registrado e o inenarrável
de Elfrida Lobo (Paranaguá, décadas de 1910 a 1960)
Práticas de escolarização católica e seus usos na vida

na vida de uma mulher que escreve e publica sua vida. Entre o que ela e seu
tempo desejam compartilhar e a mais-vida que aconteceu e não foi escrita, há
uma grande brecha, o que não retira a legitimidade de tais fontes.
Por vezes nem mesmo a autodisciplina da modéstia, esperadas de meninas
e mulheres do final do Século XIX e das primeiras décadas do Século XX,
encobrirá em suas escritas as pequenas ousadias e habilidosas apropriações
que elas fizeram das experiências educativas amplas que viveram, não apenas
na escola, família e igreja, mas integralmente em suas vidas. Com cautela
metodológica a historiografia encontra nestes escritos a escassa fonte direta
em que mulheres se registram e se descrevem, sem a “mediação perpétua e
indiscreta” de homens, o que “constitui um tremendo meio de ocultamento”
(Perrot, 2021, p. 198).
“Retalhos de uma vida” é, sobretudo, um egodocumento perpassado pela
espiritualidade católica de matriz ultramontana, do começo ao fim, sem,
contudo, beirar a pieguice ou beatice. Pelo contrário, indica o quanto a educação
católica recebida por Elfrida menina/jovem/adulta foi configurando o repertório
cultural que carregou consigo pela vida toda, a partir do qual aprendeu a viver e
conviver com as alegrias e tristezas de sua trajetória, funcionando como espécie
de norte a conferir sentido e significado ao seu presente bem como a memória
acerca do que já havia passado.
Diante do que se dissemos até aqui, este artigo tem por objetivo analisar
Artigo

as práticas de escolarização católica e seus usos na vida de Elfrida Lobo,


entre fins da década de 1910 até meados da década de 1960, tomando por
fonte seu egodocumento. Trabalharemos com a hipótese de que, do registro
egodocumental, apesar das limitações que a memória enquanto fenômeno de
lembranças e esquecimentos pode acarretar (Burke, 2000), emergem, para o

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presente da pesquisa histórica, fragmentos de uma escolarização que mesclava


práticas tanto católicas como pedagogicamente modernas para aquele
contexto, cujo resultado foi uma escolarização – aqui entendida enquanto “ato
ou efeito de tornar escolar, ou seja, o processo de submetimento de pessoas,
conhecimentos, sensibilidades e valores aos imperativos escolares” (Faria
Filho, 2007, p. 195) – que produziu, em Elfrida, o modelo de mulher católica
instruída, almejado pela Igreja e pela sociedade católica para aquele contexto
histórico de embates entre anticlericais e ultramontanos no Paraná. Não
obstante ter Elfrida se tornado esta mulher exemplar dentro de parâmetros da
Andréa Bezerra Cordeiro / Juarez José Tuchinski dos Anjos

moral religiosa católica, sua formação lhe proporcionou também um repertório


de saberes modernos, sobretudo no campo das línguas estrangeiras, que foram
de Elfrida Lobo (Paranaguá, décadas de 1910 a 1960)
Práticas de escolarização católica e seus usos na vida

criativamente mobilizados em momento de necessidade (e de vontade) levando


essa mulher de família bem colocada socialmente, religiosa, mãe e viúva,
à busca pela continuidade e aperfeiçoamento de seus estudos, em direção à
profissionalização, num caminho um tanto dissonante do que em geral se
projetava para as mulheres em sua condição naquele momento histórico.
Para governo do leitor, a narrativa até aqui introduzida desdobra-se em três
partes. Na primeira, serão investigadas as práticas de escolarização vivenciadas
por Elfrida Lobo e propiciadas a ela pelo Colégio São José, bricoladas com
práticas de espiritualidade católicas, mas igualmente transformadas em
práticas educativas no cotidiano da educação destinada à Elfrida e suas colegas
pelas Irmãs de Chambery. Para aprofundar a compressão dessas práticas,
buscaremos compreender, através das memórias de Elfrida, um pouco mais
sobre a escolarização de meninas que foi construída no amálgama da moral
católica e das necessidades cidadãs emergentes. Num segundo momento
nos debruçaremos sobre os usos que faz Elfrida, em sua vida adulta, desse
repertório de saberes frente aos fatos que condicionam sua vida maturidade:
as dificuldades financeiras, a viuvez, os filhos pequenos, a fé cristã, os desejos
de independência e uma grande inclinação pelo estudo de línguas estrangeiras.
Por fim, a modo de conclusão, será interrogado o significado dessas práticas, a
fim de confirmar, refutar ou matizar a hipótese de trabalho acima referida.
Sem mais cerimônias, acompanhemos Elfrida enquanto menina/moça/
Artigo

mulher dando os arremates em seus “Retalhos de uma Vida”, ao mesmo tempo


em que, parafraseando Walter Benjamin (1987), procuraremos, através da
narrativa histórica, escová-los a contrapelo, para interrogá-los e compreendê-
los.

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Práticas de escolarização católicas na infância de Elfrida Lobo

Elfrida Marcondes Lobo assim se refere ao início de sua escolarização, por


volta de 1916: “Com 5 anos comecei a frequentar o Jardim de infância do Colégio
São José e meus primos também.” (Lobo, 1990, p. 24). Embora a egoautora não
se detenha nessa informação, ela é, por demais, relevante. Indica, junto de
outras evidências que mobilizaremos oportunamente, que a menina pertencia
a um estrato da população brasileira e paranaense que, naquela época, já
buscava diferenciar-se dos demais grupos sociais pela via da escolarização.
Andréa Bezerra Cordeiro / Juarez José Tuchinski dos Anjos

Como recorda-nos Gizele de Souza (2011) na história da educação infantil no


Brasil, os jardins de infância – mesmo quando públicos – foram destinados,
de Elfrida Lobo (Paranaguá, décadas de 1910 a 1960)
Práticas de escolarização católica e seus usos na vida

“prioritariamente, às crianças das famílias com condições socioeconômicas mais


ricas” (Souza, 2011, p. 261) ao passo que outras instituições, como asilos, creches
e educandários, com projetos educativos distintos, eram destinados às crianças
pobres. No caso dos jardins de infância paranaenses, a proposta que veio com
sua implantação desde 1906 em grupos escolares, mas também em instituições
privadas, sob inspiração froebeliana, era a de proporcionar “formação por meio
da educação dos sentidos e do desenvolvimento das faculdades físicas, morais e
intelectuais” (Souza, 2011, p. 251). Até onde pudemos apurar, em Paranaguá, o
primeiro jardim de infância público só veio a ser inaugurado em 1920, no grupo
escolar professor Cleto (Souza, 2004). Deste modo, em 1916, Elfrida fazia parte
do seleto grupo de crianças que tinha, na sua cidade, a oportunidade de iniciar
a escolarização desde a tenra infância.
A vivência da infância de Elfrida e seu grupo foi também cercada pelos cuidados
físicos, a eles dedicados por familiares e empregadas, e pela preocupação com
a socialização e desenvolvimento infantis por meio de espaços e artefatos
capazes de proporcionarem momentos de brincadeiras e interação social entre
os pares do mesmo grupo social, como primos, primas, vizinhos da rua de classe
alta onde vivia.

A casa do Dr. Caetano, ficava em frente à nossa. Eu costumava


brincar nos jardins com a caçula das meninas que se chamava Vera.
Era muito bonita, com lindos olhos azuis e cabelos dourados com
Artigo

lindos cachos. A casa para mim, parecia um castelo de fadas, que


se abria todos os meses de Inverno - Eu brincava com as crianças
que eram muitas. Costumava levar minhas panelinhas, bonecas e
cadeirinhas, para mais animar nossos folguedos, [...]. No grande

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portão de ferro que havia nos fundos, entravam os serviçais e os


carros. No centro do enorme pátio havia gangorras, balanças,
mesas de pingue-pongue. Naquela época Paranaguá não oferecia
nenhum atrativo às crianças, razão por que em toda a casa grande
havia essas atrações e bastante espaço, para que a garotada da
casa e da vizinhança se expandisse (Lobo, 1990, p. 22.)

A autobiografia de Elfrida evoca uma infância luminosa, vivida entre jardins


guardados por portões de ferro, onde as crianças de famílias bem estabelecidas
podiam brincar entre suas iguais, cercadas de artefatos lúdicos e espaços
Andréa Bezerra Cordeiro / Juarez José Tuchinski dos Anjos

atrativos. Uma infância na qual a brincadeira em grupo como possibilidade


de Elfrida Lobo (Paranaguá, décadas de 1910 a 1960)
Práticas de escolarização católica e seus usos na vida

de “expansão” era, ao que parece, uma preocupação dos adultos frente às


limitadas possibilidades oferecidas pela cidade no período. Além da referida
carência de espaços públicos adequados às necessidades infantis, as formas
privadas do brincar também “domesticavam as práticas lúdicas” populares, das
brincadeiras de rua mais espontâneas e muitas vezes mais violentas (Crespo,
2007) e geralmente fora do controle e supervisão de adultos, marcando uma
separação entre o brincar das crianças mais ricas e das mais pobres. Esse tipo
de preocupação possivelmente deriva do espraiamento de ideias sobre o papel
do jogo, do ar livre, dos brinquedos e da produção de artefatos para as crianças
que vão compor no início do século XX o discurso de familiares e profissionais
dedicados à educação das crianças de elite.
O Jardim de Infância compõe o quadro de zelo e de distinção e complementava
a rotina da pequena Elfrida. Todavia, devido à mudança da família de Paranaguá
para Antonina “pelos idos de 1918 ou 1919”, onde seu pai foi trabalhar como
gerente de uma sucursal da firma de seu avô, Elfrida precisou, momentaneamente,
abandonar o Colégio São José, sendo matriculada “no único Grupo Escolar que
havia lá, cujo diretor chamava-se Moysés de Andrade, tio do nosso conhecido
Hélcio Torres e minha professora foi Dona Adelaide Pinto” (Lobo, 1990, p.
25). Ali, a própria menina (embora a avaliação, sem dúvida, seja posterior e
provavelmente construída retrospectivamente, à luz do esforço de memória
posto em movimento na produção do seu egodocumento) teve oportunidade
de verificar a diferença que havia entre a escolarização iniciada na instituição
Artigo

católica e aquela franqueada pela pública: “Não me acostumei na minha nova


escola, não aprendia nada de novo, porque o método de ensino do colégio São
José era mais avançado e atualizado para a época”. (Lobo, 1990, p. 25). Ao final,
o resultado foi que “o tempo todo que meus pais moraram lá, fiquei com meus

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avós para estudar no Colégio São José, tempo de que guardo vivas lembranças,
pois permaneci neste colégio dos 7 até os 17 anos” (Lobo, 1990, p. 28). Afinal,
que ensino era esse e em que se diferenciaria do proporcionado pelo grupo
escolar?
Elfrida Lobo, resumindo sua trajetória escolar, assim se expressa:

No Colégio São José cursei 4 anos do primário, mais 3 anos do


curso de extensão que era optativo e mais outros três anos, uma
espécie de Curso Clássico. As irmãs iniciaram esse curso no ano
em que se inaugurou a Escola Normal, em 1927. No seu currículo
Andréa Bezerra Cordeiro / Juarez José Tuchinski dos Anjos

só constavam matérias ilustrativas, as positivas não eram


de Elfrida Lobo (Paranaguá, décadas de 1910 a 1960)
Práticas de escolarização católica e seus usos na vida

expandidas pelas freiras, pois, no conceito delas, essas matérias


não beneficiavam a educação das moças de sociedade. Nesses três
anos continuei o meu aprendizado de Português, Francês, Latim,
História Universal, História Sagrada, Literatura e Artes Aplicadas,
isto é, toda espécie de bordado, feito a mão e desenhos. Constava
também a pintura, mas optei pela música (Lobo, 1990, p. 36-37).

A descrição do currículo experimentado por Elfrida nos dá a ideia do que


se tratavam as disciplinas “ilustrativas”: Português, Francês, Latim, História
Universal, História Sagrada, Literatura e Artes Aplicadas, Música, Pintura,
trabalhadas especialmente para ajudar a mulher a ilustrar belamente a vida
social, sem contudo prepará-la de maneira muito aprofundada nas ciências, de
modo que não estivessem niveladas aos homens. Afinal, às damas do período
“desejam-se, pois, conhecimentos extensos e duráveis, mas não aprofundados.
Pouca ciência e muita literatura; literatura porém, expurgada, pois há inúmeros
livros que uma jovem ou uma senhora não devem ler” (Trindade, 1996, p. 64).
As irmãs de Chambery se adequam à esta pedagogia e foram, segundo
Manoel (2010), trazidas para São Paulo através da articulação das famílias
que constituíam a oligarquia paulista “que ansiava por recursos técnicos que
pudessem significar um aumento na produtividade [...] e, ao mesmo tempo,
temia que o mundo moderno viesse a provocar avanços da mentalidade, causar
inquietações sociais, promover a desordem na família (Manoel, 2010, p. 53).
Artigo

Assim, às irmãs de São José de Chambery foi confiada a missão de cuidar da


educação das moças católicas das famílias prósperas do Estado de São Paulo e,
no momento de que nos ocupamos, no Paraná. Ainda sobre o ensino ministrado
pelas Irmãs de S. José de Chambery, em outro trecho do egodocumento, Elfrida
complementa:

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O quadro negro era muito usado. As irmãs usavam muito a


expressão ‘Vite, vite écrivez cela au tableau noir!’. Nossos cadernos
e livros eram muito bem encapados e zelados. Todo fim de semana
elas passavam em revista nosso material. O papel para encadernar
era muito resistente, assim como os livros, de brochura bem
firme. Todo o material escolar era adquirido no próprio colégio,
desde a tinta que era da cor roxa até as penas para escrever, que
eram de 3 qualidades: douradas para a escrita normal, as de aço
com duas pontas para a letra ‘gótica’ e a pena de ponta rombuda
para a caligrafia Ronde (Lobo, 1990, p. 39-40).
Andréa Bezerra Cordeiro / Juarez José Tuchinski dos Anjos

A evocação de um cotidiano de menina entre seus materiais escolares, na


de Elfrida Lobo (Paranaguá, décadas de 1910 a 1960)
Práticas de escolarização católica e seus usos na vida

simplicidade da descrição dos cadernos, livros, as formas de encapar e adquirir


esses materiais, encapsula uma lógica de ensino, uma prática e “a constituição
de saberes sobre a educação que explicaram e governaram a escola como um
fato da cultura” (Escolano, 2021, p. 16, tradução nossa). O zelo estimulado pela
vigilância, os detalhes sobre a preservação e encadernação com papel grosso
dizem, no tempo de agora, de uma realidade no passado na qual o papel era
precioso e a disciplina, condensada no capricho minucioso, “uma anatomia
política do detalhe” (Foucault, 1987, p. 128).
A memória de Elfrida sobre as penas para escrever nos aproxima da práxis
pedagógica refletida nos usos e transformações da escrita escolar praticada no
Colégio São José. Ao recordar as penas ela menciona seus usos diferenciados em
três tipos de escrita: a comum, a gótica e a Ronde, escritas que aqui aparecem
como pertencendo ao mesmo projeto curricular, mas que estarão competindo
no campo educacional mais amplo, numa disputa entre a escrita gótica - mais
elaborada e erudita e que guardará herança da tradição escolástica, a escrita
Rondé – ainda bastante elaborada, de origem francesa, mas já apontando para
a transição para uma letra vertical e arredondada, um pouco mais rápida de
traçar, e a escrita comum – verticalizada, rápida, prática, moderna. A tradições
do catolicismo e da cultura francesa caminham juntas às preocupações da
ordem das irmãs da Congregação de S. José de Chambery em estar sintonizada
aos debates pedagógicos que se aprofundam nas primeiras décadas do século
Artigo

XX em torno da transição para o ensino da escrita verticalizada, que para além


da sua proclamada praticidade, se torna signo de uma nova lógica escolar
higiênica e moderna, que anuncia “claramente o pertencimento cada vez
maior da instituição escolar aos ritmos, aos padrões socias e de comportamento

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típicos da emergente sociedade capitalista” (Faria Filho, 2001, p. 37).


Os livros e compêndios utilizados bem como os materiais e métodos adotados
no ensino de geografia também ficaram na memória de Elfrida:

Nossos livros eram todos da coleção F.T.D. comprados na Livraria


de Paulo Azevedo, na rua Libero Badaró, em S. Paulo. Os de
francês eram da Librarie Larrousse de Claude Auqé. Vinham de
Paris para todas as instituições de ensino da língua francesa. A
geografia era ensinada pelo método expositivo. Respondíamos
toda a matéria aprendida nos livros e mostrávamos nos mapas
Andréa Bezerra Cordeiro / Juarez José Tuchinski dos Anjos

com um comprido pau de uva, com uma borrachinha na ponta


para não arranhar os mapas, pois naquela época não existia
de Elfrida Lobo (Paranaguá, décadas de 1910 a 1960)
Práticas de escolarização católica e seus usos na vida

método de plastificar para proteger o material escolar, porque era


exigida muita ordem e capricho, para a conservação de todo o
material de estudo, que durava o máximo. Os mapas do Brasil,
América, Europa, África, Ásia, Oceania adornavam nossa sala.
Respondíamos tudo certinho os rios, com seus afluentes, cadeias de
montanhas, capitais, cidades principais, seus produtos, comércio,
suas riquezas, zonas agrícolas e pastoril. Nas sabatinas tínhamos
que desenhar os mapas da matéria que havia sido ministrada
durante a semana dizendo oralmente todo o seu conteúdo para
obter nota alta. Os mapas eram muito bem coloridos com lápis
de cor raspado em cima de um pedaço de papel para não sujar
as carteiras e passadas cada cor com um pedaço de algodão, para
obter as nuances desejadas. Nossos mapas e desenhos pareciam
telas de artista (Lobo, 1990, p. 40)

A riqueza de detalhes sobre as lições de geografia conserva significados


históricos interessantes, não obstante nos tenham chegado impregnadas da
relação subjetiva de Elfrida com esse conhecimento, que será determinante em
seu desejo secreto de viajar o mundo e que conheceremos mais à frente neste
texto.
A dedicação artística que se esperava das alunas na realização das tarefas de
desenho de mapas, o cuidado na manipulação dos mapas coletivos e as práticas
Artigo

de memorização de detalhes geográficos de diversas paisagens pelo mundo


compõe saberes geográficos que Escolano (2001) identificou como essenciais
à educação das meninas de classe alta também na Espanha. Escolano, através
da análise de revistas destinadas às meninas de famílias pequeno burguesas

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na Espanha nos anos finais do Século XIX e anos iniciais do Século XX detecta
as “bases de uma ciência da Mulher” (Escolano, 2001, p. 53) que aplicada na
educação das meninas as levaria a assumirem com maestria os seus “deveres de
mulher” que incluíam o governo e direção do lar, a ordem e o asseio, a regulação
dos recursos domésticos, a educação dos filhos e a felicidade doméstica e social
da família.
As regras de convivência da burguesia, embora conservadoras em relação
às mulheres, incluíam com agrado a ideia de uma mulher que além dos
labores do lar, da matemática prática e doméstica dominasse a geografia,
Andréa Bezerra Cordeiro / Juarez José Tuchinski dos Anjos

conhecimento considerado útil para passeios e viagens, demonstrando sua


urbanidade e instrução (Escolano, 2001, p. 38). Etelvina Trindade (1996),
de Elfrida Lobo (Paranaguá, décadas de 1910 a 1960)
Práticas de escolarização católica e seus usos na vida

também destaca a constituição de um modelo educacional para as meninas das


famílias burguesas no Paraná, no qual haverá uma ênfase na memorização de
informações entendendo que “a mulher da sociedade é alguém que deve brilhar
pela amplitude de seus conhecimentos, sem aprofundá-los em demasia [...]. Daí
resulta a ênfase excessiva as “prendas de salão” e nas “humanidades” (Trindade,
1996, p. 71). A autora localiza a Geografia e a História Pátria como saberes
desenvolvidos nesta direção, e que Escolano Benito reconhece como práticas
formadoras de um “ethos da domesticidade”, objetivo maior da educação destas
meninas.
Na autobiografia de Elfrida as atividades realizadas na disciplina de Artes
Aplicadas ganham relevo na cultura escolar do Colégio São José. Ela ressalta
o papel que os trabalhos de agulhas tinham como legado para as alunas em
suas vidas de esposas após a escola, mas demonstra também que tais prendas
cumpriam papel de comunicação de resultados das aprendizagens para
as famílias e sociedade, pois eram elaborados também com o objetivo de
comporem as exposições anuais de trabalhos manuais, bastante competitivas e
importantes para a qualificação das alunas e do próprio colégio:

Depois dos exames finais, havia anualmente a exposição, dos trabalhos


manuais, que ocupavam quatro salas. Cada aluna, queria se sobressair
com os trabalhos mais caprichados e rebuscados. Lembro-me bem da
sombrinha de linho branco que bordei com aplicações de renda de
Artigo

Veneza e babado em toda a borda, que minha mãe mandou armar em


Curitiba, na loja do Louvre. As lindas almofadadas de crivo e cordoné que
bordei para enfeitar a bela sala de minha avó Elfrida. As ricas toalhas de
chá em filé e em ponto richelieu. A trabalhosa colcha em linho branco,

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com aplicações de crivo, filé e renda de Veneza, que bordei para o meu
enxoval. Naquela época era costume as mocinhas deixarem sua colcha e
toalhas prontas para o seu casamento (Lobo, 1990, p. 41).

Carvalho (2017) ao pesquisar o papel das Artes Manuais nos colégios da


congregação de São José de Chambery menciona as exposições de artes manuais
e as festividades de encerramento do ano letivo como um relatório material em
que se demonstravam resultados do investimento tanto para as famílias das
estudantes como também para as autoridades eclesiásticas responsáveis pelo
andamento geral dos colégios da congregação (Carvalho, 2017).
Andréa Bezerra Cordeiro / Juarez José Tuchinski dos Anjos

Os trabalhos manuais envolviam também as mães das alunas, como exposto


de Elfrida Lobo (Paranaguá, décadas de 1910 a 1960)
Práticas de escolarização católica e seus usos na vida

por Elfrida ao recordar o projeto da sombrinha bordada trazida pela mãe para
armar em Curitiba. Expressão máxima de uma representação da feminilidade,
as habilidades manuais refletidas nos trabalhos executados nas escolas regidas
pelas irmãs de Chambery carregavam também a simbologia da tradição das
artes femininas transmitidas de geração a geração. Em sua autobiografia Elfrida
relata ter guardado com zelo suas produções manuais, tendo depois passado as
peças como herança para a neta e a nora, as mulheres da nova geração de sua
família, como verdadeiros legados.
Após a exposição de trabalhos, o ano era invariavelmente encerrado com
festividades que envolviam distribuição de prêmios, encenações teatrais, festas
e piqueniques, tendo o teatro encantado e permanecido nas memórias mais
nostálgicas da infância de Elfrida Lobo:

Lembro-me com saudades, que quando cursava o 1.° ano, tomei


parte n'uma peça, na qual eu e mais 2 colegas figurávamos como
andorinhas. O cenário era um jardim, preparado no palco do salão
de festas. Com muita habilidade as irmãs prepararam um galho de
árvore pendente, a que tivemos de subir por uma escada encoberta
por musgos e folhagens que nos deixavam escondidas. Nos levava
a uma grande bacia toda recoberta de musgos à guisa de um ninho.
A peça era intitulada Les ‘hirondelles’ - Eu mais duas colegas da
mesma idade, vestidas com papel crepom, todo repuxado, um bico
de cartolina e duas asinhas presas nos braços, que nós tínhamos
Artigo

que mover quando cantávamos a canção em francês [...] e lá se


foi o nosso ninho. Todas as 3 andorinhas perninhas para o ar,
asas quebradas, bicos torcidos, tudo jazia no chão. O nosso ninho
virado e as andorinhas chorando e morrendo de vergonha diante

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dos convidados. Foi uma verdadeira calamidade! Depois de tanto


trabalho e ensaios E como estávamos orgulhosas de cantar em
francês à Notre-mère. Foi difícil nos conformamos com tamanha
desgraça! (Lobo, 1990, p. 33).

Retalhos de Uma Vida trará mais alguns relatos de participações de sua autora
atuando em outras peças teatrais durante toda sua escolarização, fazendo
desde o papel da sóbria formiga da fábula de La Fointaine, “muito aplaudida”
ao final da peça (Lobo, 1990, p. 33), até personagens que representavam
comportamento socialmente condenáveis como “uma criadinha insolente,
Andréa Bezerra Cordeiro / Juarez José Tuchinski dos Anjos

desajeitada e espevitada” que Elfrida revela ter interpretado em uma “peça de


de Elfrida Lobo (Paranaguá, décadas de 1910 a 1960)
Práticas de escolarização católica e seus usos na vida

teatro, de fundo moral, mas divertida”.

Como nenhuma das minhas colegas que eram mais velhas e mais
vaidosas não quiseram fazer o papel de crioula, eu fui escolhida para
interpretar esse papel. Pintaram o meu rosto com fumaça de veia que
colhiam num pires e me lambuzaram o rosto, me colocaram um par de
luvas pretas com as palmas das mãos pintadas de cor-de-rosa. Fomos
muito aplaudidas- A cena foi extraída de uma peça de Molliére: ‘Les
femmes savantes’. Depois de terminada a representação é que me dei
conta da minha cara toda preta. Não havia naquele tempo, os cremes de
limpeza que existem hoje. Muitas queriam me ajudar a tirar o negrume
do meu rosto em fogo, até que uma das freiras lembrou-se de passar
vazelina boricada e foi retirando com suavidade, todo o negrume.
Resultado, fiquei alguns dias em casa sem poder sair com o rosto cheio
de borbulhas (Lobo, 1990, p.34).

Em relação a esta peça, cujo elenco ela integrou aos 14 anos, cabe dizer que
a personagem por ela interpretada era negra, motivo que fez com que fosse o
papel recusado por várias meninas da turma que não queriam pintar seus rostos
com fuligem; esse elemento racista estava presente nos estereótipos vigentes
no período como marca da segregação racial que determinavam a inexistência
de alunas negras nestas escolas elitizadas e também a prática da estigmatização
da menina negra como mal educada, desajeitada e necessariamente serviçal.
Artigo

Compondo este conjunto de práticas, Trindade (1996, p. 71) destacará


também a “técnica de interrogatório”, como estratégia que somada às festas
e exposições, espetacularizava a educação das meninas enquanto realizava a
aferição do nível de aprendizado das matérias. Na experiência de Elfrida Lobo

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essas aferições eram recorrentes e minuciosas, reforçadas por premiações na


forma de cartões de pontos bons e prêmios, entregues em momentos oportunos:

No final de cada mês eram tiradas as médias pelos trabalhos apresentados


e pelas notas das sabatinas. Recebíamos, então, um cartão condizente
com a nota merecida, os quais eram especificados da seguinte maneira:
Cartão azul, Très bien, valor 8 a 10.
Cartão verde, Bien, valor de 5 a 7.
Cartão vermelho, Assez bien, 3 a 5.
A aluna que não obtivesse a nota de 8 a 10 até o final do ano, era
Andréa Bezerra Cordeiro / Juarez José Tuchinski dos Anjos

reprovada e repetiria o ano (Lobo, 1990, p. 40).


de Elfrida Lobo (Paranaguá, décadas de 1910 a 1960)
Práticas de escolarização católica e seus usos na vida

Embora elaboradas com rigor pelas professoras e levadas a sério pelas alunas,
as avaliações no Colégio São José não geravam diplomas ou certificações, o
resultado quando aquém do esperado era punido com retenção, mas se fosse
positivo era premiado com presentes:

O Colégio São José preparava muito bem as alunas, mas não dava
diplomas. Recebíamos no final de cada ano uma medalha de honra e um
livro de missa em Latim e Francês ou um livro de L'histoire Sacrée, com
uma bela encardenação. Toda a instrução e educação desse colégio era
conduzida para a religião, matrimónio, sociedade e família (Lobo, 1990,
p. 32).

O estudo, a dedicação e o preparo exigido das meninas, não lhes conferia,


pois, qualificação formal, o que no caso de Elfrida Lobo, como veremos
detalhadamente adiante, dificultaria ainda mais sua vida diante dos desafios
que a viuvez e as limitações financeiras viriam a lhe apresentar. A memória de
Elfrida corrobora com as afirmações de Manoel (2010) quanto aos objetivos de
um conjunto de instituições educacionais femininas paulistas na transição dos
séculos XIX e XX, dentre elas as escolas das Irmãs de Chamberry: praticar uma
educação generalista voltada para o governo do lar, dentro de parâmetros da
piedade católica, e resistindo aos perigos da modernização “não permitindo ou
obstando ao máximo a profissionalização da mulher” (Manoel, 2010, p. 53).
Artigo

No entanto, existe um espaço entre o que a escolarização almejava e o que de


fato as pessoas faziam com o que aprendiam na escola. As memórias de Elfrida
possibilitam que pensemos um pouco sobre essa dimensão do que é aprendido
na soma com o que é desejado e com o que se tornará um capital capaz de

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ajudar alguém a construir sua história. Assim, veremos que toda rigidez de
uma educação com vistas a uma representação de mulher do lar se mostrará
flexibilizável a partir das escolhas que Elfrida fará em sua vida adulta, sempre
mantendo como norte a religiosidade católica.
Diante da continuidade da autobiografia de Elfrida Lobo, conhecendo suas
memórias da juventude e vida adulta, nos deparamos com a possibilidade de
levantar as perguntas que Chervel (1990) conclama os historiadores da educação
a fazerem ao analisarem os currículos e programas das disciplinas escolares: “O
ensino funcionou? As finalidades foram preenchidas? As práticas pedagógicas
Andréa Bezerra Cordeiro / Juarez José Tuchinski dos Anjos

foram eficazes? (Chervel, 1990, p. 212)”. Veremos a seguir o que Elfrida fez
na bricolagem de saberes adquiridos no colégio, nos filmes, na literatura, na
de Elfrida Lobo (Paranaguá, décadas de 1910 a 1960)
Práticas de escolarização católica e seus usos na vida

música e na vida.

Usos da escolarização católica na vida de Elfrida Lobo

O destino de Elfrida estava traçado conforme o figurino às moças de


sua condição social e época: um namoro recatado, no final dos tempos de
colégio, com o jovem estudante de medicina Victor Lobo; um noivado de dois
anos, alimentado por cartas românticas e músicas; um casamento promissor
sendo preparado cuidadosamente com a aprovação de ambas as famílias. Tudo
tão perfeito que Elfrida, que se afastara das amigas após o final de seus estudos
no colégio São José, se sentia alvo de inveja:

Quando meu casamento foi marcado para o dia 16 de maio de 1932,


comuniquei às minhas colegas num cartãozinho singelo, com 2
coraçõezinhos entrelaçados pintados por mim. Nada de resposta, uma
palavra de carinho. [...]. Depois da cerimônia religiosa fomos para o
casarão da rua Dr. Leocádio, onde foi oferecido um grande almoço. Vieram
muitos parentes de Curitiba e as moças que compareceram, pertenciam
a nossa família! As minhas colegas de colégio não me deram a satisfação
de aparecer, não se desculparam e não me visitaram. Com tristeza, foi se
aclarando na minha mente, apesar da minha inexperiência da vida, um
sentimento de frustração, pela maneira com que se portaram comigo.
Artigo

Aquelas que em minha ingenuidade de moça, considerava amigas. [...].


Depois de esposa e mãe é que comecei a compreender infelizmente
para mim, o verdadeiro significado de um dos sete pecados capitais, que
eu tanto aprendi e decorei na minha infância, nas aulas de catecismo:
‘Inveja’. Mas eu me sentia tão feliz e querida por todos os de minha

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família e pelos parentes de meu marido, por seus pais, que tudo para
mim se constituía em ternura e segurança (Lobo, 1990, p. 70).

O afastamento de Elfrida das suas amigas após o término dos anos escolares
se deu, entre outras coisas, devido à sua forte ligação com familiares, com os
compromissos do noivado e com sua dedicação aos estudos de idiomas, aos
quais ela deu sequência após a conclusão do colégio. Ela, que já tinha uma forte
base do idioma francês adquirido com as Irmãs de Chambery, seguiu estudando
através do estreitamento de uma amizade com uma mulher mais velha, amiga
de sua avó, uma francesa chamada Mme. Francine Godfroid, esposa do gerente
Andréa Bezerra Cordeiro / Juarez José Tuchinski dos Anjos

do Banco Francês e Italiano de Paranaguá. Na ocasião em que se conheceram


de Elfrida Lobo (Paranaguá, décadas de 1910 a 1960)
Práticas de escolarização católica e seus usos na vida

Elfrida preparava seu enxoval, com ajuda de sua mãe e avó e Mme. Godfroid
comercializava em sua casa tecidos finos trazidos de Paris. A jovem se encantou
pelo refinamento cultural, pelas revistas de moda e livros franceses e pela
presença dessa senhora, que se tornaria sua amiga e professora, ainda que
informal, de cultura e língua francesa:

Ela ensinou-me Literatura Francesa, me contava toda a história


da França, desde o tempo dos Gauleses, dos Parisis, primeiros
habitantes de Paris, que viviam as margens do rio Sena em
palafitas. Contava-me trechos sobre a vida de Saint Louis XIV,
do rei Louis XV, Louis XVI, marido da infortunada rainha Maria
Antonieta que veio a morrer na guilhotina com seu esposo,
ambos vítimas da Revolução Francesa comandada por Danton,
Ropespiére e Marat. Emprestou-me diversos livros ‘Quatre vingt
treze’ de Victor Hugo, 3 volumes que versavam sobre a 1.a Guerra
Mundial e a batalha nos campos de Werdun, ‘Le cousin pauvre’
de Balzac ‘Notre Dame de Paris’, descrição do movimento dos
Girqndeiros, destacando também a figura de Quasímodo, ‘Le
colier de la Reine’ que versava sobre a vida da inditosa rainha
Maria Antonieta, Mme. Bovary de Gustave Flaubert. Presenteou-
me com um livro contendo todas as fábulas de La Fontaine,
enfim essa senhora aprimorou a minha educação, cultivou o meu
espírito, o que muito contribuiu para o meu futuro. Eu me afeiçoei
Artigo

a essa brava criatura, uma verdadeira dama, que se tornou para


mim, além de professora, uma encantadora amiga e orientadora
(Lobo, 1990, p. 55).

Além do aprimoramento em língua e cultura francesa Elfrida começou

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a estudar inglês, motivada pelas músicas e pelo cinema americano, que se


tornaram uma espécie de linguagem romântica entre ela e seu noivo, que
fazia a Faculdade de Medicina em Curitiba e com quem ela mantinha intensa
correspondência:

Quando saí do colégio, já era namorada do meu falecido marido,


único namorado que tive. Iniciamos nosso romance muito cedo
[...]. Naquela época começou a funcionar o cinema sonoro. Assisti
o 1.° filme em companhia dos meus avós e do meu namorado.
Fiquei deslumbrada [...]. Nunca deixei de assistir a um filme
Andréa Bezerra Cordeiro / Juarez José Tuchinski dos Anjos

musical, pois todos eram passados em ambientes requintados,


de Elfrida Lobo (Paranaguá, décadas de 1910 a 1960)
Práticas de escolarização católica e seus usos na vida

palácios luxuosos, jardins e ilhas pitorescas. Influenciada por esses


filmes, comecei então a aprender inglês com M. Maud Eastwood,
que morava na chácara, hoje transformada em armazém de café,
bem ao lado da estrada de ferro. Aprendi com essa professora
durante 3 anos e nunca mais esqueci o que aprendi [...]. Aprendi
depressa, pois eu tocava muito piano, as músicas em voga, eram
as tocadas nos filmes e meu namorado me enviava todas do Rio,
logo que eram lançadas. O meu entusiasmo pela língua inglesa
foi motivado pelas músicas dos filmes (Lobo, 1990, p. 54).

Sua vó, que também se chamava Elfrida, era uma incentivadora de seus
estudos de idiomas e pagava para a jovem as aulas particulares de inglês – “pois
a língua francesa eu já conhecia bem” (Lobo, 1990, p. 57). Esta avó também
incentivou o sonho da neta em viajar para a Europa. Um sonho que seria adiado
mais de uma vez e que foi acalentado por muitos anos, cabendo inclusive no
livro de memórias Retalhos de uma Vida um capítulo inteiramente dedicado a
relatar as viagens que Elfrida Lobo conseguiu realizar depois de viúva.
As oportunidades de viagem perdidas são contadas com resignação nas
memórias de sua juventude. A primeira oportunidade de ir à Europa lhe surgiu
aos 15 anos, um convite para viajar em companhia de seus avós. Elfrida narra
com culpa o episódio desta decepção, pois não pôde viajar por estar doente,
e segundo ela, adoecera por desobedecer a uma regra muito específica - a
proibição de andar de bicicleta:
Artigo

Naquela época surgiu a moda de andar de bicicleta. Na rua Júlia da


Costa, onde eu e minhas primas Juditinha e Aglacy morávamos,
bem na esquina onde hoje funciona a firma de materiais de

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Alberto Veiga & Cia. morava o casal Dna. Leonidia e o seu esposo
João Vila- Sr. João sempre foi ligado a motores. Construiu ao
lado de sua casa uma oficina, onde também havia bicicletas para
alugar. Eu e minhas primas depois que chegávamos do colégio,
com os níqueis que guardávamos para a merenda, alugávamos por
hora a tentadora bicicleta para mulher. Comprar nem em sonhos
porque não era de bom tom mocinha andar de bicicleta. Nós nos
enveredávamos para os arredores da cidade, estrada do Corrêa
Velho toda de areão solto. Outras vezes íamos pelo Campo Grande
e estradinha até o Matadouro, mais ou menos até onde funciona
Andréa Bezerra Cordeiro / Juarez José Tuchinski dos Anjos

hoje o Colégio Estadual. Todo esse trajeto era vencido com muito
esforço, porque nada era calçado. Intimamente eu sabia que
de Elfrida Lobo (Paranaguá, décadas de 1910 a 1960)
Práticas de escolarização católica e seus usos na vida

devido a tamanho abuso, fiquei perdendo grande quantidade de


albumina, ocasionando-me inchação nos pés e mal estar geral.
Minha mãe nunca imaginou que nós pedalávamos para lugares
distantes e difíceis, o meu castigo foi merecido em perder a minha
1a oportunidade de viajar no grande transatlântico alemão ‘Cap
Polônio’ e conhecer o velho mundo (Lobo, 1990, p. 58).

Em suas reminiscências Elfrida associa o adoecimento à desobediência e se


resigna diante da oportunidade perdida. Segue os estudos de idiomas até que
surge novamente uma chance, dois anos depois, de acompanhar novamente os
avós, e novamente seus planos são frustrados diante da proibição do namorado
de que ela realizasse a viagem sem ele.

Dois anos mais tarde quando estava com meus 17 anos meus avós
viajaram novamente à Europa e, eu certa que dessa vez, nada me
impediria de satisfazer o meu sonho, de viajar e conhecer terras
estranhas no transatlântico de luxo ‘Cap Arcona’. Escrevi ao meu
namorado, comunicando que breve iria revê-lo no Rio, onde íamos pegar
o navio. Dois dias depois, recebi dele a resposta via aérea, opondo-se
terminantemente a essa resolução, alegando que ele também pretendia
conhecer a Europa e aguardava e acalentava este sonho, para depois
que estivesse formado e casado, que eu esperasse para desfrutarmos
juntos esse nosso desejo. Como teria sido maravilhoso se assim o fosse!
Artigo

Consegui só depois de viúva realizar este antigo sonho (Lobo, 1990, p.


58).

A ânsia por conhecer outros lugares e culturas irá acompanhar esta mulher

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por toda a vida e inferimos que isso de fato tenha motivado seu vivo interesse por
idiomas. No entanto, entre o ano de seu casamento em 1932 até o falecimento
de seu esposo em 1945 a vida adulta, de mulher casada e mãe, se apresentará
para Elfrida com uma sequência de perdas, adoecimentos de familiares e o
alistamento de seu marido como médico tenente do exército, circunstâncias
que a farão assumir o papel de enfermeira, apoio e cuidadora de várias pessoas
da família, inclusive de seu próprio esposo, que, vítima de um erro médico,
enfrentará anos de adoecimento, dores e cirurgias, sempre tendo ela como seu
apoio principal.
Andréa Bezerra Cordeiro / Juarez José Tuchinski dos Anjos

O falecimento de Victor Lobo aos 36 anos levará Elfrida para um novo capítulo
de sua vida, no qual ela buscará ser esteio da família que se desintegrava diante
de Elfrida Lobo (Paranaguá, décadas de 1910 a 1960)
Práticas de escolarização católica e seus usos na vida

de inúmeros lutos. Ela, agora viúva e mãe de três meninos entre 1 a e 11 anos,
buscará refúgio cumprindo inúmeras tarefas de cuidado e se voltando com
fervor à fé que aprendera também na escola:

Prossegui trabalhando, dando assistência à meus filhos, à minha


sogra doente, dando ânimo a meu sogro e à velha vovó Nezinha.
Chegou o mês de dezembro, Natal e Ano Novo. Passamos na
maior tristeza, datas que nos traziam tantas recordações. O mês
de janeiro encontrou-me muito fraca e esgotada. Eu mesma
me propus a tirar uns dias de férias em Curitiba, para poder
adquirir forças para prosseguir e levar avante minhas intenções.
Quis a Providência Divina me favorecer, oferecendo-me a 1a
oportunidade. Sempre tive em mente uma sábia reflexão de Santo
Ignacio de Loyola, que sempre considerei e considero como um
verdadeiro escudo para nos defender e proteger: ‘Não devemos
nunca ter receios dos grandes problemas. Quem está acostumado
a resolver os pequenos resolverá os grandes’ (Lobo, 1990, p. 105).

A primeira oportunidade a que ela se refere tratou-se de uma chance que


Elfrida criou para ocupar a vaga de professora de francês que estava aberta
na cidade. Relata ela que depois de meses de fadiga e tristeza entre o trauma
familiar da perda precoce de seu esposo, resolveu tirar pequenas férias, vindo
com seus três filhos pequenos para Curitiba. Na viagem de trem entre Paranaguá
Artigo

e Curitiba ela teve a oportunidade de vir conversando sobre sua sorte e seus
planos de contribuir para seu próprio sustento e dos filhos, com o conterrâneo
e recém-eleito deputado estadual Lauro Lopes, que era esposo de sua prima.

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Dr. Lauro se pôs à minha disposição, para ajudar-me no que


fosse possível. Acompanhou-me no dia seguinte à Secretaria
de Educação e qual não foi a minha surpresa ao ser recebida
pelo Dr. Homero de Barros, que havia sido nomeado secretário
daquela pasta. Dr. Homero foi colega do meu marido, desde os
tempos ginasiais até o ingresso na Faculdade de Medicina em
Curitiba. Falei-lhe com toda a franqueza que desejava lecionar
a matéria de francês. Apesar de não possuir nenhum diploma,
sabia que tinha os conhecimentos necessários para lecionar, pois
até casar-me, depois que saí do colégio estudei mais três anos
Andréa Bezerra Cordeiro / Juarez José Tuchinski dos Anjos

com professora particular parisiense, que me deixou integrada na


língua e história da França. Disse a ele que a vaga estava sem ser
de Elfrida Lobo (Paranaguá, décadas de 1910 a 1960)
Práticas de escolarização católica e seus usos na vida

preenchida, porque não havia aparecido nenhum candidato. Com


muita boa vontade e diante da minha decisão, o Sr. Secretário
ponderou e contratou-me para a cadeira vaga, com a condição de
eu conseguir em três anos, os diplomas necessários. Fiz o curso
de Madureza, de suficiência da Faculdade de Filosofia dos Irmãos
Maristas e fiz concurso no Estado (Lobo, 1990, p. 106).

Assim Elfrida Lobo inicia uma trajetória de 26 anos de docência, marcados


por uma infinidade de cursos, especializações, concursos bem-sucedidos e a
conquista de algo que lhe faltara no Colégio São José: os diplomas. A narrativa
da autora sobre estes anos, aos quais ela subintitulará de Anos de Amargura
será repleta de memórias de um cotidiano exigente, em que ela se dividia entre
cuidar dos filhos, dos idosos da família e buscar sua qualificação, estudando
à noite, frequentando primeiro o curso de madureza, depois a Faculdade dos
Irmãos Maristas e a Aliança Francesa em Curitiba algumas vezes na semana,
realizando as formações que julgava necessárias à sua habilitação profissional.
Em 1946, tendo sido aprovada em seu primeiro concurso como professora
para os primeiros anos, ela seguirá estudando para ascender na carreira e
encontrará o apoio do Colégio São José. Após seu primeiro ano lecionando
Elfrida levou as crianças e sua mãe para as férias de verão na cidade de Castro, e
enquanto as crianças se divertiam com a avó em sítios de parentes a Professora
Elfrida aprofundou seus conhecimentos de francês e de didática estudando
Artigo

com as religiosas da instituição:

Nas férias de janeiro, depois de todo o esforço dispendido, tomei a


resolução de passar uma temporada na cidade de Castro, com minha

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mãe e meus 3 filhos. Desejava ficar junto com eles num lugar calmo para
que pudessem aproveitar saudavelmente suas férias. Ficamos no único
hotel bom da cidade, simples, limpo e as refeições saudáveis e fartas.
Moravam em Castro alguns parentes do meu pai que já conheciam minha
mãe e a mim. Moravam em pequenas fazendas próximas à cidade e meus
filhos desfrutaram a temporada o melhor possível. Eu porém aproveitei
para frequentar o Colégio São José onde minha professora Soeur Marie
de Jesus era diretora. Tive aulas diárias com ela, recordando a gramática
e sintaxe da língua, pois no mês de fevereiro seriam chamados todos
os inscritos para os cursos. Animada com o bom resultado prossegui
Andréa Bezerra Cordeiro / Juarez José Tuchinski dos Anjos

assistindo as aulas durante 3 meses na Faculdade dos Irmãos Maristas.


No mês de julho, prestei exames e passei. Penso sempre com carinho
de Elfrida Lobo (Paranaguá, décadas de 1910 a 1960)
Práticas de escolarização católica e seus usos na vida

no Irmão Germano, que muito me auxiliou e orientou. Passei uma


semana no Grande Hotel antes de se iniciarem as provas que iriam me
liberar para ficar titular da cadeira. O Irmão Germano emprestou-me
um quadro-negro e três livros que muito contribuíram para me deixar
segura e enfrentar os exames (Lobo, 1990, p. 105).

A dedicação de Elfrida à sua formação, a levou a ocupar paulatinamente


todas as posições dentro da hierarquia das cadeiras docentes do estado
durante o período, tendo ela inclusive frequentado no ano de 1957, o estágio
de aperfeiçoamento no Centro de Estudos Pedagógicos da Fundação Getúlio
Vargas, no colégio de Nova Friburgo no Estado do Rio de Janeiro:

Eu e mais três professoras, Alcione Correia de Freitas, Alba Braga e


Maria José Borba nos inscrevemos para o estágio. Eu fiz minha inscrição
para didática especial de Francês. Conseguimos licença com o Prof.
Alceu Tramujas que na ocasião era diretor do Colégio José Bonifácio.
Permanecemos 30 dias estagiando. Lá aprendemos muito. Assistíamos
aulas, fazíamos estudos dirigidos para os alunos, mantínhamos
entrevistas com os professores, dávamos aulas sob a observação
deles e apresentamos um trabalho para apreciação sobre o nosso
aprendizado. Para mim o estágio foi muito benéfico e oportuno pois de
todos os exames que tinha feito em nenhum havia a especialidade de
didática específica. Conseguimos trazer nossos diplomas registrados na
Artigo

Fundação Getúlio Vargas e no M.E.C. Fiquei mais uma vez longe dos
filhos, mas o sacrifício valeu. No ano seguinte a professora Guilhermina
Machado, titular da cadeira de francês, mudou-se para Curitiba, fiquei
então com a responsabilidade de elaborar os programas de todas as

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séries ginasiais e do 1.° ano do curso científico (Lobo, 1990, p. 108).

“Comecei a viver estudando e acabei estudando para viver” (Lobo, 1990, p.


107), assim Elfrida sintetiza os anos de magistério até sua aposentadoria em
1969 devido a problemas nas cordas vocais. Os anos de trabalho lhe trouxeram
muito desgaste, mas também vinham ao encontro de sua sede de aprender,
seu amor pela língua e cultura francesa e oportunizaram também a realização
de seu sonho em conhecer a Europa, viagem que ela realizou pela primeira
vez em 1961 aos 49 anos, com os filhos adultos e três netos. Depois desta
Andréa Bezerra Cordeiro / Juarez José Tuchinski dos Anjos

primeira aventura ela retornou ao velho continente mais duas vezes, além de
ter realizado muitas viagens pelo Brasil, alguns países da América do Sul. A
de Elfrida Lobo (Paranaguá, décadas de 1910 a 1960)
Práticas de escolarização católica e seus usos na vida

educação que recebeu com finalidades limitadas a um papel secundário como


mulher-mãe, adorno em festas com sua cultura polida, lhe abriu também para
um universo de autodescobertas, autoaperfeiçoamento e independência.

Considerações finais

Ainda que a memória falseie, crie atalhos e conexões póstumas é


impressionante a quantidade de pormenores que Elfrida Lobo lembra de sua
vida escolar. Dos materiais aos conteúdos do programa de ensino, das peças
teatrais às citações e canções em francês, das exposições e festas aos exercícios
de fé, a idosa Elfrida trazia em vivas cores todas estas memórias na cabeça,
dado que ela mesma relata que nunca entendeu o motivo dos cadernos das
estudantes do Colégio São José ficassem na escola ao final do curso:

Quando terminei os cursos, meus cadernos ficaram no colégio.


Nunca entendi o porquê dessa atitude. Quando se deixava linhas
vagas no final das páginas, tinha que preencher com provérbios
em francês, para não pagar multa. Eu decorei uma infinidade
deles, lembro-me de alguns que são muito usados até nossos
dias: ‘Petit à petit, l'oiseau fait son nid’. ‘Pierre que orule ne crie
pas mousse’ [...] (Lobo,1990, p. 40).
Artigo

Tais memórias muito ativas e detalhadas só nos colocam mais próximos


da afirmação de que essa escolarização vivida por ela foi muito marcante, foi
estruturante e acionada em vários momentos da vida. Retomando as perguntas
de Chervel (1990), e as aplicando ao que pudemos saber de Elfrida Lobo e

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sua escolarização podemos dizer que nossa análise nos leva a entender que o
ensino recebido no Colégio São José funcionou de muitas formas sim, ainda
que as suas finalidades tenham sido extrapoladas para a expansão intelectual
e independência financeira e social de Elfrida Lobo através de sua capacitação
e desempenho profissional. E que, no caso de Elfrida, as práticas pedagógicas
foram eficazes, ainda que o objetivo da educação oferecida tenha se tornado
apenas mais uma parte do que ela de fato conseguiu fazer com a escolarização
que viveu intensamente, somada às oportunidades e privilégios que teve na
infância e adolescência, e ao seu desejo de conhecimento pela língua francesa.
Andréa Bezerra Cordeiro / Juarez José Tuchinski dos Anjos

Da educação recebida no Colégio católico e ampliada ao longo da vida, ela fez


seu próprio uso.
de Elfrida Lobo (Paranaguá, décadas de 1910 a 1960)
Práticas de escolarização católica e seus usos na vida

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Notas
UFPR.
1

UNB.
2

3
A Congregação, nascida no ambiente místico e pastoral da França do século XVII, sob
inspiração de santos como Francisco de Sales e Vicente Paulo, foi fundada por volta de
1650, pelo padre jesuíta Jean Pierre Médaille (Cardoso Filho, 2009). Ao Brasil, o primeiro
grupo de irmãs chegou na década de 1850, para fundar o Colégio de Nossa Senhora do
Patrocínio, em Itu, durante o episcopado de D. Antonio Joaquim de Mello, o primeiro
Artigo

bispo ultramontano daquela diocese (Manoel, 1996).


4
Até 1892, as paróquias do atual Estado do Paraná pertenciam ao território eclesiástico
da Diocese de São Paulo. É de conhecimento na historiografia que, com a Proclamação
da República e a consequente abolição do padroado régio e do regalismo, tem início
o processo de expansão das dioceses em território brasileiro, algo represado durante

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o Império, especialmente, a partir da crescente consciência do clero brasileiro da


necessidade de maior autonomia pastoral e sintonia com Roma. A esse respeito ver o
estudo de Maurício de Aquino (2012).
5
Na verdade, o processo de difusão do catolicismo ultramontano no Paraná antecede
a criação da própria diocese, como tive oportunidade de demonstrar em trabalho
anterior (Anjos, 2014). Todavia, a presença de um bispo com intentos romanizadores
na região, sem dúvida, fez eclodir com toda a força as divergências já existentes entre
ultramontanos e liberais/positivistas naquela região.
6
Os originais manuscritos da obra encontram-se, atualmente, sob a custódia do Instituto
Histórico e Geográfico de Paranaguá. A versão imprensa aqui utilizada foi gentilmente
fornecida em visita de pesquisa realizada à instituição em 2013.
Andréa Bezerra Cordeiro / Juarez José Tuchinski dos Anjos

7
A exceção a essa periodização/adjetivação da própria feita Elfrida Lobo são, além do
capítulo 11 dedicado ao sogro, os capítulos 7, 9 e 10, intitulados, respectivamente:
de Elfrida Lobo (Paranaguá, décadas de 1910 a 1960)
Práticas de escolarização católica e seus usos na vida

“Atividades apostólicas”; “Reminiscência de Viagem” e “Fatos que sobrevivem”.


Artigo

Recebido em 04/09/2023 - Aprovado em 28/12/2023


Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.619-646, jul-dez. 2023 } 646
DOI: 10.5433/1984-3356.2023v16n32p647-673

A representação da Cruzada
e das Ordens Militares na
produção historiográfica
Alcobacense do século XVII

The representation of the


Crusade and the Military
Orders in the historiographical
production of Alcobaca
monastery in the 17th century

La representación de la
Cruzada y de las Órdenes
Militares en la producción
historiográfica del monasterio
de Alcobaca del siglo XVII
Joana Lencart1

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Resumo: A Monarchia Lusytana, redigida por monges de


Alcobaça entre 1597 e 1729 é uma obra assumidamente de caráter
religioso, adotando uma natureza cronística ao relatar a história
do reino de Portugal desde a formação do Condado Portucalense
até ao início do reinado de D. João I. Estando a desenvolver
investigação no âmbito da historiografia das Ordens Militares,
pareceu-nos oportuno aprofundar a temática das Cruzadas
e das Ordens Militares na Monarchia Lusytana, obra saída do
na produção historiográfica Alcobacense do século XVII

scriptorium do mosteiro de Alcobaça, com uma longa tradição


A representação da Cruzada e das Ordens Militares

de produção documental e codicológica. O objetivo deste


trabalho é aferir de que modo as Ordens Militares e a Cruzada
são abordadas e qual o seu impacto na história de Portugal.
Palavras-chave: Cruzada; Ordens Militares; Portugal;
Historiografia Alcobacense.

Abstract: The Monarchia Lusytana, written by the monks of


Alcobaça between 1597 and 1729, is an assumedly religious
work that adopts a chronistic nature by recounting the history
of the kingdom of Portugal from the formation of the Condado
Portucalense to the beginning of the reign of King João I. As I
am developing research in the field of the historiography of the
Military Orders, it seemed appropriate to delve into the theme
Joana Lencart

of the Crusades and the Military Orders in the Monarchia


Lusytana, a work from the scriptorium of the monastery
of Alcobaça, with a long tradition of documentary and
codicological production. The aim of this work is to ascertain
how the Military Orders and the Crusade are approached
and what impact they had on the history of Portugal.
Keywords: Crusade; Military Orders; Portugal; Historiography
from Alcobaça.
Artigo

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Introdução

Tendo trabalhado sobre a produção historiográfica da Ordem de Cristo


no século XVI, parece-nos de todo oportuno uma reflexão sobre a produção
historiográfica de Alcobaça/Cister no que diz respeito à temática das Cruzadas
e Ordens Militares. Para tal, este trabalho terá como principal fonte documental
a Monarchia Lusytana, redigida entre 1597 e 1729. Obra assumidamente de
caráter religioso, adota uma natureza cronística ao relatar a história de Portugal
desde a formação do Condado Portucalense até ao início do reinado de D. João
I (c. 1385).
A nossa exposição será desenvolvida em duas partes. Na primeira faremos
na produção historiográfica Alcobacense do século XVII

uma breve apresentação do scriptorium do mosteiro de Alcobaça. Seguidamente,


A representação da Cruzada e das Ordens Militares

atentaremos na obra Monarchia Lusytana e a sua relação com a temática das


Ordens Militares e da Cruzada.

A tradição do scriptorium de Alcobaça

D. Afonso Henriques, a 8 de abril de 1153, doou e coutou aos monges de


Cister um vasto território, situado entre os castelos de Leiria e Óbidos, com
a obrigação expressa de procederem ao seu povoamento. Logo começaram a
edificar a chamada Abadia Velha. Uns anos mais tarde, em 1178, teve início
a construção do mosteiro que substituía o antigo edifício de madeira e a que
chamaram Abadia Nova. Esta nova construção era concebida e dirigida por
monges-arquitetos, instruídos nas exigências da espiritualidade Cisterciense e
Joana Lencart

provenientes da abadia mãe, no caso Claraval.


Lembre-se aqui que os Cistercienses eram uma ordem religiosa monástica
de raiz beneditina, que se havia separado de Cluny, no início do século XII,
numa preocupação de retomar a observância original beneditina, promovendo
o ascetismo e o rigor litúrgico. Fundada na abadia de Cister, foi graças ao
abade Bernardo de Claraval, ou S. Bernardo, que se impulsionou a reforma
Cisterciense. A par de ser abade reformador de Cister, S. Bernardo foi também
o autor do De Laude Novae Militiae, considerado o texto fundador da Ordem dos
Artigo

Templários, onde se cristaliza o conceito do monge guerreiro.


Ao longo do período medieval, o mosteiro de Alcobaça foi crescendo em
privilégios e doações, dilatando o seu vasto e rico património. O mosteiro serviu
de panteão régio a D. Afonso III e à sua mulher D. Beatriz e a D. Pedro e D.
Inês de Castro, entre outros membros da família real. José Marques redigiu um

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esclarecedor texto sobre Alcobaça e a monarquia, onde examina as relações dos


monarcas com o convento, desde D. Afonso Henriques até à extinção das Ordens
Religiosas (1834), registando não apenas as doações e privilégios concedidos à
abadia, mas também assinalando as deslocações régias ao mosteiro (MARQUES,
2006), que sistematizamos na tabela seguinte:

Tabela 1 - O mosteiro de Alcobaça e a monarquia até 1656

Monarca Deslocações Privilégios Sepultado


D. Afonso X
Henriques
na produção historiográfica Alcobacense do século XVII

D. Sancho I X
D. Afonso II X [intenção]
A representação da Cruzada e das Ordens Militares

D. Sancho II X [intenção]
D. Afonso III X? X X
D. Dinis X? X
D. Afonso IV X
D. Pedro X X X
D. Fernando X X
D. João I X X
D. Duarte X X
D. Pedro (regente) X
D. Afonso V X? X
D. João II X X
D. Manuel X? X
D. João III X? X
D. Sebastião X X
D. João IV X
Joana Lencart

Fonte: Marques, 2006.

No que diz respeito à abadia de Alcobaça e ao seu scriptorium são sumamente


conhecidos os trabalhos de Aires Nascimento, Adelaide Miranda, Manuel Pedro
Ferreira, entre outros (ver BARREIRA, 2017: 33-34).
A palavra scriptorium, enquanto “lugar onde se fazem livros” e “lugar onde
se redigem escrituras”, tem origem medieval, mais concretamente no século
X. Mais tarde, passa a designar uma dependência monástica destinada para
Artigo

o efeito. Além de ser um lugar de trabalho, era também um local que exigia
um ambiente de silêncio para que a atividade intelectual se realizasse nas
melhores condições (NASCIMENTO, 2018: 23-24). Em certos mosteiros existia
o chamado scriptorium individual, na cela do monge para “ler, escrever, compor,

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meditar rezar e adorar o Senhor” (NASCIMENTO, 2018: 50). Nas grandes


abadias, existia o scriptorium coletivo, numa sala ampla, que acumulava as
funções de biblioteca; noutras, as próprias reentrâncias das janelas serviam de
lugar de trabalho; noutras ainda, o trabalho de escrita e cópia fazia-se numa
sala comum dos monges (NASCIMENTO, 2018: 49-51). De uma maneira geral, o
scriptorium exigia encargos, tanto mais elevados quanto maior a complexidade
da produção manuscrita.
A produção documental no scriptorium de Alcobaça iniciou-se com a
edificação do novo mosteiro. Por determinação estatutária, nenhuma nova
fundação podia ser feita sem lhe serem garantidos os livros necessários por
parte da abadia mãe. Como veremos, o scriptorium de Alcobaça adquiriu uma
na produção historiográfica Alcobacense do século XVII

identidade própria. A sua localização, bem como da livraria, ou biblioteca do


A representação da Cruzada e das Ordens Militares

convento, foi sendo definida conforme as necessidades ao longo da história da


abadia.
O scriptorium era, como dissemos, o local onde se produziam os códices. Na
biblioteca, ou livraria, e na sacristia guardavam-se os livros. Os livros guardados
na livraria (e sacristia) eram, inicialmente, em número pouco superior aos
produzidos pelo scriptorium de Alcobaça. A chamada “livraria de mão” era
constituída pelos livros manuscritos. A partir do século XVI, e mormente após
a invenção da imprensa, os livros existentes dilataram em muito o acervo da
biblioteca do mosteiro.
A produção de manuscritos, nomeadamente dos primeiros iluminados, teve
início ainda em finais do século XII (NASCIMENTO, 2012: 292). O período de
maior produção foi o dos dois primeiros séculos após a fundação, registando-
Joana Lencart

se um decréscimo no século XIV (NASCIMENTO, 2018: 165). Frei João Claro,


prior do mosteiro entre 1492 e 1495, em carta dirigida a D. Manuel em finais
do século XVI, dá conta de cerca de 300 códices existentes na livraria, número
que ainda hoje se podem identificar como anteriores a 1500 (NASCIMENTO,
2018: 162). O Index Codicum, produzido em 1775, enumerou 476 exemplares
na livraria de mão. Entre 1755 e 1834 entraram na biblioteca manuscrita mais
sete manuscritos, perfazendo 483 (NASCIMENTO, 2018: 284). Atualmente,
conhecem-se 464 códices pertencentes ao Fundo de Alcobaça depositado na
Artigo

Biblioteca Nacional (NASCIMENTO, 2018: 193).

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Tabela 2 - Distribuição dos Códices Alcobacenses por centúrias, conforme a


produção

Produção de códices
Alcobacenses
Século Nº de Códices
XII 38
XIII c. 150
XIV c. 14
XV c. 100
XVI c. 60
XVII c. 40
XVIII c. 90
na produção historiográfica Alcobacense do século XVII

Fonte: Nascimento, 2018: 163.


A representação da Cruzada e das Ordens Militares

Nem todos os códices alcobacences chegaram até nós. Muitos códices


medievais foram desmembrados, outros acrescentados em centúrias posteriores
e outros ainda reutilizados em encadernações posteriores. Muitos outros se
perderam e extraviaram. Há ainda códices da biblioteca de Alcobaça que não
foram produzidos no scriptorium da abadia, foram antes comprados e copiados
noutras instituições, dentro e fora do reino (NASCIMENTO, 2018: 160-163).
Segundo o catálogo produzido pelo bibliotecário de Alcobaça, em 1819, havia
na livraria do mosteiro 15 052 obras. O inventário de 1834, produzido por ocasião
da extinção das Ordens Religiosas, registava 16 358 obras (NASCIMENTO,
2018: 166). No fundo Arquivo Histórico da Biblioteca Nacional encontram-
se inúmeras relações de livros dos extintos conventos, nomeadamente, os do
mosteiro de Alcobaça2.
Joana Lencart

Atentemos agora na relação entre Alcobaça e as Ordens Militares portuguesas.


A regra beneditina e a Ordem de Cister estão ligadas às Ordens Militares
portuguesas de cariz Cisterciense. São a Ordem de Avis e a Ordem de Cristo,
esta última herdeira da Ordem dos Templários no nosso território. O abade
de Alcobaça era o visitador da Ordem de Cristo e presidia aos capítulos gerais
reunidos para eleger novo Mestre. Saliente-se que o sistema disciplinar
cisterciense adquiriu atenuantes entre os membros das Ordens Militares, ao
longo da época medieval. Por exemplo, a observância dos três votos não era
Artigo

especialmente seguida, assim como também o não era o estrito cumprimento


do ofício divino e da liturgia das horas, bem como havia relaxamento relativo
à disciplina alimentar e ao jejum e à prática sacramental (AYALA-MARTINEZ,
2012: 83).
No que diz respeito às ordens religiosas e militares portuguesas, a transição

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do período medieval para a época moderna fez-se, em muitos casos, debaixo


do signo dos abades comendatários. Frequentemente, um indivíduo externo a
essas instituições, e com origem no clero secular ou mesmo um leigo, assumia a
gestão patrimonial de uma casa monástica gozando do seu direito de usufruto.
As consequências foram, na grande maioria das situações, um depauperamento
dos conventos e um relaxamento na disciplina monástica acelarando a
decadência de algumas dessas instituições. Não obstante, em 1519, o infante D.
Afonso, filho de D. Manuel, recebeu o abaciado de Alcobaça. Importou-se com a
reforma espiritual dos monges, promovendo o estudo da teologia e a formação
dos professos (GOMES, 2006: 385). Enquanto abade de Alcobaça assistia-lhe a
visitação do convento de Cristo, em Tomar. A reforma dos religiosos de Tomar
na produção historiográfica Alcobacense do século XVII

começou em 1529, com o prior Frei António de Lisboa, frade jerónimo, nomeado
A representação da Cruzada e das Ordens Militares

por D. João III para o efeito e com a concordância do abade de Alcobaça, irmão
do rei.
Em dezembro de 1563, são aprovados no Concílio de Trento 22 capítulos
com prescrições relativas à observância e vida das ordens regulares (GOMES,
2006: 403). Na sequência dessas disposições conciliares, em meados do século
XVI, mais concretamente a 26 de outubro de 1567, foi criada a Congregação
Cisterciense de Santa Maria de Alcobaça, que marcou a institucionalização da
sua autonomia jurídico-canónica em relação à casa mãe de Cister (GOMES,
2006: 375-376) e que vigorou até à extinção das ordens religiosas, em 1834.
Alguns dos autores da Monarchia Lusytana foram investidos em vários cargos
da Congregação, como veremos mais à frente.
O período que sucedeu à restauração da independência (1640-1660)
Joana Lencart

caracterizou-se por uma intensa vida intelectual e artística, no convento. Para


tal contribuíra, sem dúvida, a imprensa que os Cistercienses usaram de modo
bastante profícuo, desde meados do século XVI, sobretudo no domínio da
liturgia e da espiritualidade. Lembre-se que a 10 de janeiro de 1597 se concluíra,
no mosteiro de Alcobaça, a impressão da primeira parte da Monarchia Lusytana,
composta pelo cronista-geral da Ordem, Frei Bernardo de Brito (GOMES, 2006:
423-424).

Monarchia Lusytana
Artigo

Os autores e a obra

A Monarchia Lusytana é uma obra magna da historiografia portuguesa, redigida


por cinco autores, quase todos monges de Alcobaça: Bernardo de Brito, António

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Brandão, Francisco Brandão, Rafael de Jesus e Manuel dos Santos. É composta


por oito partes, publicadas entre 1597 e 1729. Em finais do século passado, entre
1973 e 1988, a Imprensa Nacional procedeu a uma reedição fac-simile da obra,
permitindo que a obra ficasse disponível ao grande público. Esta reedição não se
limitou a reproduzir a publicação original, dotou-a de introdução e comentários,
tendo também em conta certas anotações existentes nos manuscritos que
deram origem à obra. Para gáudio de historiadores e investigadores, alguns
destes manuscritos ainda hoje se conservam, nomeadamente cinco na
Biblioteca Nacional e dois no Arquivo da Torre do Tombo. Os manuscritos da
Biblioteca Nacional integram o Fundo de Alcobaça e os da Torre do Tombo, a
coleção Manuscritos da Livraria. Relativamente à primeira parte da Monarchia
na produção historiográfica Alcobacense do século XVII

Lusytana, conservam-se dois manuscritos na Biblioteca Nacional: o BNP, ALC.


A representação da Cruzada e das Ordens Militares

224, autógrafo de Frei Bernardo de Brito, redigido em 1595 e que contém os


livros 1 a 4; e o BNP, ALC. 227, também autógrafo do mesmo autor, redigido em
1592 e que contém os apêndices. Da segunda parte conserva-se o manuscrito
BNP, ALC. 225, autógrafo de Frei Bernardo de Brito, redigido em 1607 e que
contém os livros 5 a 7. Da terceira parte preserva-se o BNP, ALC. 226, autógrafo
do mesmo Frei Bernardo de Brito com anotações marginais de Frei António
Brandão e redigido em 1597. Sobre este manuscrito reporta-se Frei António
Brandão na edição impressa da Monarchia Lusytana. Diz assim:

Tambem cuidar de me aproveitar de hum livro escrito do Doutor


Fr. Bernardo de Brito chronista mor que foy deste reyno intitulado
Terceira Parte da Monarchia Lusitana, mas não achei cousa que
Joana Lencart

me servisse, porque fora do que dizem as Chronicas de mão tem


pouco mais. […] A historia da terceira parte da Monarchia, que o
Doutor Fr. Bernardo deixou imperfeita foi a primeira cousa que
elle fez sendo ainda muito moço (como elle proprio diz nella)
antes de ver os cartorios e ter a noticia que depois alcansou em o
discurso de sua vida (Monarquia Lusitana. Parte Terceira, ed. 1973,
prólogo [p. 5]).

O manuscrito da sétima parte conserva-se no arquivo nacional com a cota


ANTT, Manuscritos da Livraria, nº 1223, estando descrito como sendo um
Artigo

original da autoria de Rafael de Jesus e redigido no século XVII. Da oitava parte


conservam-se dois manuscritos: o BNP, ALC. 302, autógrafo de Frei Manuel dos
Santos, na sua maior parte com emendas, supressões e acrescentos do autor; e
o ANTT, Manuscritos da Livraria, nº 551 como sendo da autoria de Frei Rafael

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de Jesus, e do século XVII. Só uma análise aprofundada permitirá uma edição


comparada dos textos manuscritos e das edições impressas o que não será aqui
possível, pois o que nos propomos tratar é as referências às Ordens Militares e
à Cruzada na Monarchia Lusytana.
Como afirma Saul Gomes, o “esforço historiográfico” da Monarchia Lusytana
deixa transparecer o contributo cisterciense das “suas fontes endógenas mais
remotas postas ao serviço do conhecimento do passado” (GOMES, 2006: 378).
Importa destacar aqui o momento do início da redação da obra – 1597 – que
coincide com um momento particular da história de Portugal: o período da
união ibérica estando Portugal governado por uma nova dinastia – Habsburgo
– e particularmente pelos reis castelhanos que, num primeiro momento, foram
na produção historiográfica Alcobacense do século XVII

atentos às solicitações dos portugueses. Frei Bernardo de Brito, não querendo


A representação da Cruzada e das Ordens Militares

afrontar a coroa castelhana, promove o patriotismo português. Quando


Frei António Brandão redige as terceira e quarta parte da obra – publicadas
em 1632 – a união ibérica acusava sinais de profundo descontentamento
no reino português, procurando-se a restauração da independência. Este
descontentamento poderá explicar relatos como o “milagre de Ourique” que
visavam promover a autonomia portuguesa, num momento de definição das
fronteiras do reino – domínio muçulmano – e com paralelo à situação da década
de 1630 – domínio castelhano -, buscando assim uma nova independência. As
quinta e sexta partes, de Frei Francisco Brandão, correspondentes ao reinado
de D. Dinis, e redigidas já na segunda metade do século XVII, ilustram uma
nova maneira de relatar a história promovendo o conhecimento assente em
documentos históricos, reflexo do saber iluminista.
Joana Lencart

Na tabela que se segue apresentamos sucintamente o esquema da obra:

Tabela 3 - Estrutura da obra Monarchia Lusytana

Estrutura da obra Monarchia Lusytana


Parte Data Autor Conteúdo
Primeira Desde a criação do mundo ao
1597 Fr. Bernardo de Brito
Parte nascimento de Cristo.
Segunda Desde o nascimento de Cristo até à
1609 Fr. Bernardo de Brito
Artigo

Parte doação do Condado Portucalense.


Desde o Conde D. Henrique até
Terceira
1632 Fr. António Brandão ao final do reinado de D. Afonso
Parte
Henrique.
Reinados de D. Sancho I até final do
Quarta Parte 1632 Fr. António Brandão
reinado de D. Afonso III.

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Estrutura da obra Monarchia Lusytana


Parte Data Autor Conteúdo
Fr. Francisco Reinado de D. Dinis (primeiros 23
Quinta Parte 1650
Brandão anos).
Fr. Francisco
Sexta Parte 1672 Reinado de D. Dinis (últimos 23 anos).
Brandão
Sétima Parte 1683 Fr. Rafael de Jesus Reinado de D. Afonso IV.
Fr. Manuel dos Do reinado de D. Fernando ao de D.
Oitava Parte 1729
Santos João I.

Fonte: Monarchia Lusytana, 1597-1729.

Frei Bernardo de Brito foi monge de Cister, cronista-mor do reino e cronista


na produção historiográfica Alcobacense do século XVII

geral da Ordem de Cister, tendo morrido em 1617. Primeiro autor de Monarchia


A representação da Cruzada e das Ordens Militares

Lusytana, cujo primeiro tomo foi publicado em Alcobaça, em 1597, publicou


muitas outras obras (Summario, 1786: 275). A pesquisa documental para a
redação da obra foi feita, naturalmente, na biblioteca do convento de Alcobaça.
E pelos apontamentos marginais que deixou na sua obra manuscrita, temos
conhecimento que havia já manuscritos desaparecidos da dita biblioteca
(NASCIMENTO, 1979: 284-285).
Frei Bernardo de Brito, chamado no “seculo” Baltasar de Brito de Andrade
nasceu na vila de Almeida em 1568 ou 1569. Filho do capitão Pedro Cardoso
de Andrade e Maria de Brito de Andrade, estudou em Roma, entrando para o
noviciado cisterciense no mosteiro de Alcobaça em 1585. Recebeu as insígnias
de doutor em Teologia, em Coimbra, em 1606. Aplicou-se a escrever a História
geral do reino e publicou o primeiro tomo da Monarchia Lusytana aos 27 anos
Joana Lencart

(Bibliotheca Lusitana, tomo 1, p. 524). Nomeado cronista da Congregação de


Cister, escreveu a Crónica de Cister. Vagando o cargo de cronista-mor do reino
por morte de Francisco de Andrade, foi nomeado seu sucessor em 1614 (REGO,
1973a: XV). Morreu com 47 anos, em 1617. Sepultado no convento de Santa
Maria de Aguiar, perto de Almeida, o seu corpo foi mais tarde transferido para
o mosteiro de Alcobaça. Autor de inúmeras obras e, nas palavras do autor
da Bibliotheca Lusitana “excedeo o numero das suas obras ao dos seus anos”
(Bibliotheca Lusitana, tomo 1, p. 525). Além da primeira e segunda partes da
Artigo

Monarchia Lusytana, escreveu outras obras, como Elogios dos Reys de Portugal
com os mais verdadeiros retratos que se poderão achar (1603), Primeira Parte da
Chronica de Cister (1612), Reppublica antigua da Lusitania (1596), e ainda iniciou
a Crónica de D. Sebastião (Bibliotheca Lusitana, tomo 1, p. 526-528; Dicionário,
vol. 1, p. 321-322).

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Diogo Paiva de Andrade, filho do cronista-mor Francisco de Andrade,


sentindo-se frustrado por não suceder ao pai no dito ofício, moveu contra Frei
Bernardo de Brito o processo que ficou conhecido por “suspeita anti-Brito”,
iniciado em 1616, publicando rigorosa crítica às duas partes da Monarchia
Lusytana, acusando Frei Bernardo de Brito, entre outras coisas, de forjar
documentos e autores (REGO, 1973a: XXV-XXVII). A Diogo Paiva de Andrade
se juntaram Frei Fortunato de S. Boaventura e D. João Soares, que redigiu uns
versos desconsiderando o cronista3. Outros houve que saíram em sua defesa,
como o seu sobrinho Frei Bernardino da Silva e Francisco Rodrigues Lobo
(REGO, 1973a: XXVI e XXX).
Segundo José Pereira Tavares, Frei Bernardo de Brito era a antítese do
na produção historiográfica Alcobacense do século XVII

historiador, escrevendo sem imparcialidade e que “por patriotismo aceita como


A representação da Cruzada e das Ordens Militares

seguras fontes históricas todas as lendas e tradições; se serve de quaisquer


documentos sem curar de sua autenticidade e dá crédito a todos os autores”
(TAVARES, 1940: 7-8). Sublinhe-se que a parte escrita por este monge de Cister
foi a que começa na criação do mundo até à fundação do Condado Portucalense.
Na realidade, o método adotado por Frei Bernardo de Brito prejudicou seriamente
a qualidade dos estudos históricos em Portugal (Dicionário, vol. 1, p. 322), pois
em vez de adotar um método crítico e baseado no conhecimento científico
optou por uma redação pautada pela cronística religiosa. Não obstante escrever
em contexto de união ibérica (1580-1640), Frei Bernardo de Brito faz valer o
seu patriotismo. O mesmo se pode dizer do seu sucessor, Frei António Brandão.
Frei António Brandão nasceu em Alcobaça em 1584. Batizado Marcos, por
ter nascido no dia consagrado ao Evangelista, adotou o nome de António ao
Joana Lencart

ingressar no mosteiro. Foi Doutor em Teologia pela Universidade de Coimbra,


em 1619, e Geral da Congregação Cisterciense em 1636. Sucedeu a Manuel
de Meneses enquanto cronista mor do reino, em 1629, e morreu em 1637
(Dicionário, vol. 1, p. 336; REGO, 1973b). Revolveu durante “perto de dez annos”
(Monarquia Lusitana. Parte Terceira, ed. 1973, prólogo [p. 1]) os cartórios de
mosteiros, igrejas, cidades, vilas e o arquivo da Torre do Tombo para poder dar
continuidade à empresa de Frei Bernardo de Brito na redação da Monarchia
Lusytana (Bibliotheca Lusitana, tomo 1, p. 223-224). Logo no prólogo, Frei
Artigo

António Brandão expressa o principal requisito da história: a verdade, sendo


partidário do princípio que sem documentos não há história (REGO, 1973b:
XVIII). Nas suas palavras “a verdade he alma da historia […] e com ella fica izenta
de toda a calumnia” (Monarquia Lusitana. Parte Terceira, ed. 1973, prólogo [p.
1]). Não obstante, o sobrenatural emerge numerosas vezes nas suas narrativas.

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Por exemplo, nas vésperas da conquista de Santarém em que S. Bernardo


aparece a D. Afonso Henriques “ e o certificou do bom sucesso” (REGO, 1973b:
XXII); ou os indícios de santidade de D. Afonso Henriques (REGO, 1973b: XXX).
Frei António Brandão, enquanto sucessor de Frei Bernardo de Brito,
demonstrou um pouco mais de espírito crítico que este, não obstante recorrer ao
maravilhoso, nomeadamente a milagres, em certas partes do texto (TAVARES,
1940: 8). Uma vez mais, o patriotismo emerge também dos seus relatos, ainda
que de forma velada, pois escreve durante a união das Coroas portuguesa
e espanhola, se bem que num momento em que já se faziam sentir reações
adversas a essa união.
Na redação da Monarchia Lusytana seguiu-lhe Frei Francisco Brandão. Este
na produção historiográfica Alcobacense do século XVII

autor nasceu na vila de Alcobaça, em novembro de 1601, e recebeu o hábito no


A representação da Cruzada e das Ordens Militares

mosteiro em 1619. Foi doutor em Teologia (1636) pela Universidade de Coimbra


e substituiu o seu tio Frei António Brandão no cargo de cronista geral da Ordem,
após a morte deste em 1637, e, mais tarde, foi cronista-mor do reino, por carta
de 1644. Foi nomeado examinador das Três Ordens Militares em fevereiro de
1641, investido no cargo de censor régio e distinguido com a dignidade de
qualificador do Santo Ofício em 1642, entre muitos outros cargos (REGO, 1976:
XII-XIII). Enquanto cronista tinha a preocupação de basear os factos narrados
em documentos. A sua modernidade constata-se pela preocupação com temas
de interesse social e económico, prestando ainda especial cuidado à cronologia,
alertando para a questão da datação das escrituras medievais através do X
aspado4 (Monarquia Lusitana. Parte Terceira, ed. 1973, prólogo [p. 3]). Por outro
lado, e sendo religioso, admite o milagre quando verifica haver testemunhos a
Joana Lencart

seu favor (REGO, 1976: XVI-XX). Entre outras obras, redigiu as quinta e sexta
partes da Monarchia Lusytana. Morreu em Lisboa em 1680 (Bibliotheca Lusitana,
tomo 2, p. 122-123; Dicionário, vol. 1, p. 417). Reafirma o seu patriotismo, tal
como Frei Bernardo de Brito e Frei António Brandão. Apesar da restauração da
independência ter sido alcançada em 1640, o reconhecimento de Castela estava
ainda longe de acontecer (1668), o que leva Frei Francisco Brandão a insistir
na questão dos direitos portugueses quando contestados por Castela (REGO,
1976: XX).
Artigo

Frei Rafael de Jesus nasceu em Guimarães em 1614. Foi o único autor da


Monarchia Lusytana fora de Alcobaça. Recebeu a cogula no mosteiro de S. Bento
da Vitória do Porto em 1629. Desempenhou vários cargos na Congregação
Beneditina e foi nomeado cronista mor do reino em 1661. Foi autor da sétima
parte da Monarchia Lusytana. Segundo Diogo Barbosa de Machado, redigiu

Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.647-673, jul-dez. 2023 } 658


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também a oitava e nona partes da Monarchia Lusytana, mas ambos os tomos


se conservavam em poder de Frei Marceliano da Ascensão, monge beneditino
e cronista da Ordem (Bibliotheca Lusitana, tomo 3, p. 632-633). O Dicionário
cronológico de autores portugueses nada refere quanto a esta última afirmação,
antes atribui a autoria das ditas oitava e nona partes a Frei Manuel dos Santos,
seu continuador na obra (Dicionário, vol. 1, p. 473). Segundo o Dicionário de
autores portugueses, apenas se lhe atribui a autoria da sétima parte (Dicionário,
vol. 1, p. 431).
Frei Manuel dos Santos nasceu em Cantanhede em 1672, recebendo a cogula
no mosteiro de Alcobaça em março de 1686. Eleito cronista da Congregação em
1710, foi depois cronista-mor do reino por nomeação de D. João V, em 1726.
na produção historiográfica Alcobacense do século XVII

Entre outras obras, redigiu a oitava parte da Monarchia Lusytana (Bibliotheca


A representação da Cruzada e das Ordens Militares

Lusitana, tomo 3, p. 365-367). Segundo o Dicionário de autores portugueses,


além da oitava parte, contribuiu também com a nona e décima partes, mas
permaneceram manuscritas (Dicionário, vol. 1, p. 473).
A Monarchia Lusytana é uma obra em oito volumes, ou partes como se
intitula, que conta a história de Portugal até ao reinado de D. João I. Na primeira
parte, o autor propõe-se contar a história de Portugal desde a criação do mundo
até ao nascimento de Cristo. Na segunda, relata a história do nosso território
desde o nascimento de Cristo até à doação do Condado Portucalense ao conde
D. Henrique. A terceira parte engloba a narrativa desde a governação de D.
Henrique até ao final do reinado de D. Afonso Henriques, seu filho. A quarta
parte abarca os reinados de D. Sancho I, D. Afonso II, D. Sancho II e D. Afonso
III. A quinta e sexta partes contam o longo reinado de D. Dinis. Na sétima parte
Joana Lencart

é relatado o reinado de D. Afonso IV. A oitava e última parte contém, como


indicado no próprio título “a história e sucessos memoráveis do reino de Portugal
no tempo de el rei D. Fernando, a eleição de el rei D. João I, com muitas noticias
da Europa”. É interessante verificar que no final desta parte, o autor afirma que
tratará do reinado de D. João I na nona parte (Monarquia Lusitana. Parte Oitava,
1988: 785) – as guerras, o casamento, os filhos, as conquistas em África e a sua
morte – mas, infelizmente, o texto não chegou até nós.
Artigo

A presença das Ordens Militares e a invocação da Cruzada

Deixando de lado o caráter literário e fantasioso da obra, onde as mouras


encantadas se vislumbram por entre os bosques e os monstros marinhos
emergem dos oceanos, atentemos nas referências às Ordens Militares e ao

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espírito de Cruzada presentes na Monarchia Lusytana.


A ideologia de Cruzada enquanto “guerra santa”, guerra dirigida contra os
inimigos da fé de Cristo e com o intuito de libertação dos Lugares Santos, surge
no final do século XI, no seguimento do apelo do papa Urbano II, em Clermont
(1095). Anterior ao surgimento das Ordens Militares, rapidamente o movimento
das Cruzadas se associou a essas milícias (COSTA, LENCART, 2023; SALLES;
GREIF; FERNANDES, 2022). Primeiro, com a Ordem do Hospital a prestar
assistência e auxílio aos peregrinos à Terra Santa e logo a seguir com a Ordem
do Templo, a protegê-los no seu percurso. Da Terra Santa, estas instituições
alastraram à Europa ocidental, logo no início do século XII. Na Península
Ibérica, como veremos, tornou-se estreita a ligação entre Reconquista, Cruzada
na produção historiográfica Alcobacense do século XVII

e Ordens Militares.
A representação da Cruzada e das Ordens Militares

De forma a termos uma perceção de conjunto das referências a estas


instituições religioso-militares na obra Monarchia Lusytana, elaboramos uma
tabela que permite visualizar a distribuição dessas referências desde a terceira
parte até à oitava. Na Monarchia Lusytana, nem a primeira nem a segunda
partes, em virtude das suas balizas cronológicas (desde a criação do mundo até
1096), têm qualquer referência às Ordens Militares.

Tabela 4 - Referências às Ordens Militares e à Cruzada na Monarchia Lusytana:


Partes III-VIII

PARTE PARTE PARTE PARTE PARTE PARTE


TOTAL
III IV V VI VII VIII
Ordem de
1 35 66 16 2 1 121
Joana Lencart

Santiago
Ordem do
8 42 44 24 2 0 120
Templo
Ordem de
7 27 26 17 3 12 92
Avis
Ordem do
Hospital/ 3 22 38 16 1 1 81
de Malta
Ordem de
1 0 9 66 2 1 79
Cristo
Ordem de
3 3 4 10 0 0 17
Calatrava
Artigo

Ordem de
47 0 138 2 0 0 19
Alcântara
Ordem Stº
0 0 5 0 0 0 5
Sepulcro

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PARTE PARTE PARTE PARTE PARTE PARTE


TOTAL
III IV V VI VII VIII
Ordem de
0 0 2 1 0 0 3
Montesa
Ordem
0 0 3 0 0 0 3
Teutónica
Ordem da
1 0 1 0 0 0 2
Ala/ Asa

CRUZADA 4 9 3 0 0 0 16

Fonte: Monarchia Lusytana, ed. 1973-1988.


na produção historiográfica Alcobacense do século XVII

Pela análise da tabela, constatamos que há referências a 12 Ordens de caráter


A representação da Cruzada e das Ordens Militares

religioso-militar. A Ordem do Hospital e a Ordem de Malta foram contabilizadas


em conjunto por serem a mesma, apenas com alteração da designação. O
mesmo se aplica à Ordem de Alcântara, inicialmente designada Ordem de S.
Julião do Pereiro. Por outro lado, a Ordem do Templo e a Ordem de Cristo foram
contabilizadas em separado pois, não obstante esta ser herdeira patrimonial da
primeira, houve um processo canónico que ditou a supressão dos Templários,
em 1312, e outro que formalizou a instituição da Ordem de Cristo (1319).
Na obra historiográfica aqui em análise – Monarchia Lusytana – contabilizamos
mais de cinco centenas de referências às milícias, numa cronologia entre o início
do século XII e o início do século XV. As Ordens Militares com mais referências
são Santiago e os Templários. Porém, se juntarmos à Ordem do Templo a Ordem
de Cristo, sua herdeira patrimonial, teremos duas centenas de referências.
Joana Lencart

Com um número pouco representativo de referências estão as Ordens do Santo


Sepulcro e a Teutónica, ambas com origem na Terra Santa e com uma presença
residual no nosso território; a Ordem de Montesa, herdeira patrimonial dos
Templários, foi criada em 1317 no reino de Aragão; e a Ordem da Ala, da Asa, ou
S. Miguel da Ala, cuja existência é duvidosa, e que teria sido criada em Portugal
por D. Afonso Henriques na sequência da tomada de Santarém (1147).
Por sua vez, as referências à Cruzada e aos cruzados em território português
são também significativas (16), sobretudo tendo em conta que apenas se
identificam nas terceira, quarta e quinta partes da obra, e numa cronologia
Artigo

mais recuada que corresponde à cronologia das Cruzadas: entre 1095 e 1272.
Na impossibilidade de analisar todas as referências às Ordens Militares nesta
obra, teremos em conta determinados momentos e episódios da história de
Portugal onde estas instituições tiveram um papel de destaque e, em particular,

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associadas à ideologia da Cruzada. Assim, teremos em consideração:

a. Implantação das Ordens Militares no nosso território;


b. Conquistas de Lisboa, Silves e Alcácer;
c. Ação de Paio Peres Correia na conquista do Algarve;
d. Batalha do Salado.

a. Implantação das Ordens Militares no nosso território

Segundo Frei António Brandão, os Templários fixaram-se no nosso território


em 1126, citando o foral de Ferreira que D. Gualdim Pais doara à dita vila
na produção historiográfica Alcobacense do século XVII

(Monarquia Lusitana. Parte Terceira, ed. 1973, fl. 82r). Para tal, recorreu a uma
cópia de um livro da Leitura Nova que estaria mal datada, sendo o foral, na
A representação da Cruzada e das Ordens Militares

realidade, de 1156 (PMH. Leges, vol. I, pp. 385-386). Não obstante, refere que
a condessa D. Teresa doou Soure à Ordem do Templo pouco depois, o que
aconteceu de facto em 1128 (Documentos Medievais Portugueses. Documentos
Régios, Vol. I, nº 79, p. 101). Na realidade, a presença Templária no Condado
Portucalense poderá ainda recuar um par de anos (COSTA, 2019).
O mesmo autor coloca a entrada da Ordem do Hospital no nosso território após
a chegada dos Templários (Monarquia Lusitana. Parte Terceira, ed. 1973, fl. 82v),
o que também não é correto, pois hoje conhece-se a fixação dos Hospitalários
em Leça do Balio desde 1112 (COSTA, 1996: 101). Em 1340, na sequência da
Batalha do Salado, a sua sede foi transferida para o Crato. Internacionalmente,
depois da queda de Acre (1291), a sede dos Hospitalários foi transferida para
a ilha de Rodes e posteriormente para a ilha de Malta, adotando a instituição
Joana Lencart

esta designação.
Quanto à Ordem de S. Julião do Pereiro, o autor coloca acertadamente a
sua fundação no ano de 1156 (COELHO, 2016). Após a conquista da vila de
Alcântara, em 1213, a Ordem adotou o nome deste lugar (Monarquia Lusitana.
Parte Terceira, ed. 1973, fls. 189r-190r).
Segundo Frei Francisco Brandão, a Ordem de Calatrava teve origem em
1158. Após a conquista do castelo de Calatrava, Sancho III de Castela doou a
D. Raimundo, abade de Santa Maria de Fitero, da Ordem de Cister, e a toda a
Artigo

Ordem o castelo desse lugar, e que deu origem ao nome de Ordem de Calatrava
(Monarquia Lusitana. Parte Terceira, ed. 1973, fls. 193r-194r). Essa doação teve
de facto lugar em janeiro de 1158 (Bullarium Ordinis Militiae de Calatrava, p. 2).
Na Monarchia Lusytana, o autor data a fundação da Ordem de Avis de

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1162, recorrendo para tal a uma escritura citada por Frei Bernardo de Brito
(Monarquia Lusitana. Parte Terceira, ed. 1973, fl. 204r). Na realidade, a milícia
de Évora, designação inicial, implantou-se no nosso território cerca de 1176,
tendo adotado a denominação de Ordem (de S. Bento) de Avis depois de 1211,
após a doação do lugar à milícia por D. Afonso II (CUNHA, 2006: 70).
Por fim, a Ordem de Santiago. Frei António Brandão afirma que a Ordem de
Santiago teve o seu primeiro assento no mosteiro de Santos-o-Velho, ainda
em tempo de D. Afonso Henriques, mudando-se para Alcácer por ocasião da
conquista desta vila aos mouros por D. Afonso II (Monarquia Lusitana. Parte
Terceira, ed. 1973, fl. 249r). A Ordem de Santiago faz a sua entrada em território
português pouco depois da sua instituição em Cáceres em 1170. Em 1172, a
na produção historiográfica Alcobacense do século XVII

Ordem recebe os castelos de Arruda e Monsanto. A conquista definitiva de


A representação da Cruzada e das Ordens Militares

Alcácer em 1217 ditou a fixação do convento nesta vila (SOUSA, 2016: 475-
476). Mais tarde, o convento foi transferido para Palmela.

b. Conquistas de Lisboa (1147), Silves (1189) e Alcácer (1217)

Na Terceira Parte, liv. 10, cap. 25 – “Como el rey Dom Afonso foy pôr
cerco a Lisboa, e o ajudou nelle huma armada de christãos da parte do norte”
(Monarquia Lusitana. Parte Terceira, ed. 1973, fls. 166v-168r) – temos a primeira
referência ao auxílio dos Cruzados na conquista da cidade de Lisboa (1147).
Como sabemos, Lisboa foi conquistada com o auxílio de um exército de cruzados
oriundos do norte da Europa na sua deslocação para a Terra Santa, no contexto
da segunda cruzada. A conquista de Lisboa aproximou a Reconquista ao ideal
Joana Lencart

de Cruzada e ao conceito de guerra santa, na Península Ibérica (BRANCO,


2001: 25; COSTA, LENCART, 2023: 3). No texto da Monarchia Lusytana que se
reporta a este episódio, o autor não faz, porém, qualquer referência a cavaleiros
das Ordens Militares, destacando apenas a ação dos cruzados. O milagroso
está, contudo, presente na narrativa, por exemplo, ao atribuir ao cavaleiro
cruzado alemão Henrique, sepultado em São Vicente de Fora, a cura de dois
surdos-mudos (Monarquia Lusitana. Parte Terceira, ed. 1973, fl. 177v). Mais à
frente, o autor invoca S. Bernardo enquanto auxiliador na tomada de Lisboa
Artigo

(cap. 31-Monarquia Lusitana. Parte Terceira, ed. 1973, fl. 166v-168r). Segundo
Frei António Brandão, S. Bernardo ao promover a divulgação da Cruzada, em
território europeu, concorreu para a vitória dos cristãos em Lisboa. Lembremos
que S. Bernardo foi o fundador dos Cistercienses, Ordem a que pertencia o
mosteiro de Alcobaça, onde professava o autor Frei António Brandão.

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Os Templários são referidos na conquista de Santarém, que ocorreu apenas


uns meses antes da de Lisboa, em março de 1147. No capítulo intitulado “De
alguns cavaleiros que acompanharão a el rey na jornada de Santarem, como
forão a ella os Templarios, e das merces que el rey lhes fez” (Terceira Parte, liv.
10, cap. 24-Monarquia Lusitana. Parte Terceira, ed. 1973, fl. 165r), logo no início
começa por atribuir à tomada de Santarém um caráter milagroso; menciona
depois a promessa de D. Afonso Henriques de dar à Ordem do Templo todas
as igrejas e o eclesiástico de Santarém pelo apoio recebido na conquista da
cidade5. Parece plausível podermos afirmar a presença das Ordens Militares na
conquista da cidade de Lisboa, importante bastião do reino almorávida, e tendo
em conta que era já a segunda tentativa de conquista da cidade por D. Afonso
na produção historiográfica Alcobacense do século XVII

Henriques.
A representação da Cruzada e das Ordens Militares

A conquista de Silves teve lugar em 1189. Tal como Lisboa, a tomada desta
vila algarvia insere-se em contexto de deslocação de cruzados para a Terra
Santa, neste caso no âmbito da terceira Cruzada (MARTINS, 2007: 659; COSTA,
LENCART, 2023: 3). Segundo Frei António Brandão, a providência divina – uma
vez mais o sobrenatural – encaminhara os cruzados do Norte para o porto de
Lisboa, para assim auxiliarem D. Sancho I a empreender a conquista do Algarve
(Monarquia Lusitana. Parte Quarta, ed. 1974, fl. 11r). O rei português apressara-
se a

entrar em contacto com os seus chefes [dos cruzados] convencendo-


os de que o combate aos ‘inimigos da Cruz de Cristo’ tanto se
podia empreender ‘em Espanha como em Syria; pois pera com
Joana Lencart

Deos não alcançarião menor premio os que se ocupassem nesta


sagrada guerra, que aquelles que fazendo mais comprido caminho
se fossem empregar nas conquistas do Levante (Monarquia
Lusitana. Parte Quarta, ed. 1974, fl. 11).

Trata-se aqui do apelo à Cruzada, enquanto guerra santa daquele que oferece
a sua vida em nome de Cristo.
Mais à frente, importa atentar nas declarações do autor: “não reparando
muito em o que dizem as chronicas, venhamos a escrituras autenticas, fonte
Artigo

limpa, donde se colhem estas verdades”. Ou seja, Frei António Brandão tinha
consciência que as crónicas nem sempre relatavam a verdade dos factos, a qual
só se alcançava com escrituras autênticas, que o autor procurava nos cartórios
de diversos mosteiros. A ação dos cruzados foi, de facto, crucial para que o rei

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português conquistasse a cidade, mas Frei António não refere as pilhagens a


que se lançaram esses mesmos cruzados após o longo cerco. Dois anos depois,
porém, a vila foi novamente tomada pelos muçulmanos até à reconquista
definitiva por D. Paio Peres Correia, mestre Santiaguista, em 1242, no reinado
de D. Afonso III, como veremos mais à frente.
Também a conquista da vila de Alcácer teve o auxílio dos cruzados que
em 1217, no âmbito da quinta Cruzada, se dirigiam para a Terra Santa. Uma
vez mais, o autor da Monarchia Lusytana recorre aos “sinaes do Ceo e favor
manifesto com que Deos ajudava as armas dos fieis” (Monarquia Lusitana.
Parte Quarta, ed. 1974, fl. 88v) para justificar a conquista desta vila. Contudo,
verificamos que contesta os escritores antigos que chamavam “Matheus” ao
na produção historiográfica Alcobacense do século XVII

então bispo de Lisboa, afirmando que “não acho memoria de tal bispo de Lisboa
A representação da Cruzada e das Ordens Militares

antes todos concordão que o bispo que então governava esta igreja se chamava
D. Sueiro” (Monarquia Lusitana. Parte Quarta, ed. 1974, fl. 89r), apresentando
seguidamente as provas para tal afirmação, que é de facto a correta. Sabemos
que a queda de Alcácer ocorreu após um longo cerco da iniciativa do bispo de
Lisboa D. Soeiro Viegas e com a participação das Ordens do Templo, Hospital
e Santiago (MARTINS, 2007: 607; COSTA, LENCART, 2023: 4). Recentemente,
em 2019, Jonathan Wilson escreveu um texto sobre este bispo, intitulando-o o
primeiro cruzado português (WILSON, 2019: 209-236). No final da batalha, a
vila foi entregue aos “cavaleiros de Santiago, que nesta guerra acompanharão
a seu comendador mayor Dom Martim Barregão” (Monarquia Lusitana. Parte
Quarta, ed. 1974, fl. 93r) depois eleito Mestre.
Joana Lencart

c. Ação de Paio Peres Correia na conquista do Algarve

D. Paio Peres Correia, enquanto comendador-mor da Ordem de Santiago,


destacou-se na tomada de várias praças ao lado de D. Sancho II. Em 1242
fora eleito Mestre da Ordem de Santiago em toda a Hispânia e, enquanto tal,
desempenhou um papel significativo na conquista do Algarve, ao lado de D.
Afonso III.
A ação deste Mestre está também relacionada com os chamados mártires de
Tavira, seis cavaleiros santiaguistas e um mercador cristão, episódio registado
Artigo

na crónica da conquista do Algarve (Crónica, ed. 2013). Esta crónica relata a


tomada das vilas de Cacela, Castro Marim, Tavira e Faro destacando a figura do
Mestre D. Paio Peres Correia e a gesta dos seis freires cavaleiros santiaguistas
e do mercador Garcia Rodrigues, martirizados pelos mouros. Segundo o

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relatado por Frei António Brandão, o comendador D. Pedro Rodrigues e cinco


companheiros saíram a caçar, aproveitando um momento de pazes entre mouros
e cristãos. Por sua vez, o Mestre D. Paio Peres Correia, desconfiado da “pouca
fé dos mouros”, tentou impedi-los, mas sem êxito. Entretanto atacados pelos
mouros, os cavaleiros enviaram um escudeiro a alertar o Mestre. Passando nas
proximidades, o mercador Garcia Rodrigues decidiu auxiliar os ditos cavaleiros
cercados pelos muçulmanos. Porém, quando chega o Mestre encontrou-os já
mortos. Querendo vingar os seus companheiros, o Mestre decide investir contra
Tavira, tomando a vila aos mouros (Monarquia Lusitana. Parte Quarta, ed. 1974,
fls. 145v-146r). Na igreja de Santa Maria dos Mártires, em Tavira, prestava-se
culto aos sete Cavaleiros de Tavira, em memória dos espatários e do mercador
na produção historiográfica Alcobacense do século XVII

que aí morreram, em 1242 (PICOITO, 2010: 88; LENCART, 2021: 218-219).


A representação da Cruzada e das Ordens Militares

d. Batalha do Salado

A batalho do Salado teve lugar junto à ribeira do mesmo nome, nas imediações
de Cádis, a 30 de outubro de 1340. O exército cristão de Afonso XI de Castela e
D. Afonso IV de Portugal defrontaram os exércitos de dois chefes muçulmanos,
muito superiores em número. Integravam as hostes cristãs membros das Ordens
Militares, nomeadamente o prior do Crato, da Ordem do Hospital, os mestres
de Avis, Santiago e de Cristo, acompanhados de inúmeros freires cavaleiros
(MARTINS, 2007: 236).
Segundo Frei Rafael de Jesus, D. Afonso IV ordenara ao prior do Crato D. Álvaro
Gonçalves Pereira que trouxesse do Marmelar a relíquia da Vera Cruz, com a qual
Joana Lencart

os cristãos alcançaram uma “milagrosa victoria” (Monarquia Lusitana. Parte


Sétima, ed. 1985, pp. 475-479). No entanto, é interessante verificar que num
relato coevo sobre a vitória dos cristãos nesta batalha - In Sancta et admirabili
Victoria Cristianorum - não há qualquer referência à relíquia da Vera Cruz, que
surge apenas na narrativa do cronista-refundidor do Livro de Linhagens, de
cerca de 1380 (RAMOS, 2019: 53-54; COSTA, 2021). Esta associação posterior
– da relíquia da Vera Cruz à batalha do Salado – está intimamente ligada com
a imagem de poder recriada em torno da família Pereira e da legitimidade e
Artigo

prestígio da Ordem do Hospital e da sua ligação à Coroa (NASCIMENTO, 2022:


225-228). Este relato, ou memória - In Sancta et admirabili Victoria Cristianorum
- narra apenas que o rei de Portugal, D. Afonso IV, no dia em que começou
a lutar, a 30 de outubro, ao lado dos outros reis cristãos, “tinha diante de si
a imagem da cruz” (trad. de RAMOS, 2019: 98) e que o estandarte do rei era

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levado pelo cavaleiro Gonçalo Gomes de Azevedo, sobrinho bisneto de D. Paio


Peres Correia (trad. de RAMOS, 2019: 98), mestre da Ordem de Santiago que se
destacara na conquista do Algarve. Os caídos em combate foram considerados
mártires, porque foram mortos em contexto de guerra santa. Quase cem
anos após o fim da Reconquista em território português, as Ordens Militares
retomavam a função para a qual foram criadas: a luta contra o infiel (MARTINS,
2007: 236).
Após esta breve análise de certos momentos e episódios relacionados com
as Ordens Militares e o ideal da Cruzada na história de Portugal que podemos
então concluir?
na produção historiográfica Alcobacense do século XVII

Considerações finais
A representação da Cruzada e das Ordens Militares

Analisando as afirmações registadas na Monarchia Lusytana e contrapondo


com a historiografia recente, decorrente de investigação atualizada em
permanência, concluímos que os autores da referida obra fizeram um esforço
imenso para fornecer uma história “verdadeira” à luz das fontes e informações
que dispunham à época. A sua formação enquanto monges de Alcobaça,
convento de matriz Cisterciense, condicionou muitas das suas afirmações,
carregadas, por vezes, de suposições a que o maravilhoso e o milagre não estão
isentos. Não obstante, representou, à época em que foi redigida, uma obra
magistral da historiografia portuguesa, que fez escola e que ainda hoje é fonte
de investigação histórica.
A Monarchia Lusytana afirma-se, assim, como a primeira história de Portugal,
Joana Lencart

saída quase exclusivamente do scriptorium de Alcobaça. Pretende criar um


distanciamento relativamente às crónicas régias, laudatórias e limitadas a um
ou mais reinados, e inaugurar um novo registo historiográfico, apoiado em
fontes históricas, de cartórios e arquivos, de caráter isento e aprofundado. De
facto, apesar de ter sido redigido ao longo de 150 anos, o seu âmbito cronológico
abarca sobretudo a primeira dinastia, terminando no início do reinado de D.
João I.
Redigida entre finais do século XVI e inícios do século XVIII, é sobretudo
conhecida pelo trabalho de Frei Bernardo de Brito, autor da primeira e segunda
Artigo

partes, com um caráter vincadamente teológico e lendário, desde a criação do


mundo até à constituição do Condado Portucalense. Os autores que lhe seguiram
(António Brandão, Francisco Brandão, Rafael de Jesus e Manuel dos Santos)
imprimiram, por sua vez, um caráter mais científico à obra ao afirmarem que

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não há história sem documentos. Não obstante, o milagroso e o sobrenatural


continuaram a marcar os seus relatos.
Convém referir que as Ordens Militares, entre os séculos XVII e XVIII,
foram alvo de um certo desprestígio social, em virtude de estarem associadas à
venalidade de cargos e à compra de hábitos e comendas, em estreita associação
ao poder régio que procurava os seus membros para agraciar serviços e arranjar
meios de financiamento da Coroa6. Ainda assim, as Ordens Militares marcam
uma presença significativa ao longo de praticamente toda a obra, desde a
terceira até à oitava partes. São mais de cinco centenas de referências a 13
destas milícias: Ordem do Hospital/ Ordem de Malta; Ordem do Templo; Ordem
de Avis; Ordem de Santiago; Ordem de Cristo; Ordem de Calatrava; Ordem de
na produção historiográfica Alcobacense do século XVII

Alcântara; Ordem de S. Julião do Pereiro; Ordem do Santo Sepulcro; Ordem


A representação da Cruzada e das Ordens Militares

da Montesa; Ordem Teutónica; e Ordem de S. Miguel da Ala. As referências às


Cruzadas e aos cruzados são também representativas ao longo da obra. Sem
dúvida, que o espírito de Cruzada associado à atuação das Ordens Militares
assumiu grande impacto no discurso dos autores da Monarchia Lusytana nos
primeiros séculos da nossa história.

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Notas
Universidade do Porto.
1

BNP, Arquivo Histórico, DLEC/14/Cx. 05-01.


2

ANTT, Manuscritos da Livraria, nº 1112, fls. 482r-482v.


3

Nas escrituras medievais, o X aspado (XL) tinha o valor de 40.


4

5
Que aconteceu, de facto, nesse ano de 1147 e que deu depois origem a uma disputa
Artigo

entre a Ordem do Templo e o bispo de Lisboa, acabando por se resolver em 1159 quando
D. Afonso Henriques doa doa à Ordem do Templo o castelo e terra de Ceras (Tomar), em
compensação do eclesiástico de Santarém.
6
Fernanda Olival desenvolveu uma importante investigação histórica sobre as relações
entre o Estado e as Ordens Militares entre os séculos XVII e XVIII, sobretudo no que diz

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respeito à venalidade dos cargos e compra de mercês (OLIVAL, 2001).


Inclui as referências à Ordem de S. Julião do Pereiro.
7

Inclui as referências à Ordem de S. Julião do Pereiro.


8
na produção historiográfica Alcobacense do século XVII
A representação da Cruzada e das Ordens Militares
Joana Lencart
Artigo

Recebido em 04/09/2023 - Aprovado em 28/12/2023


Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.647-673, jul-dez. 2023 } 673
DOI: 10.5433/1984-3356.2023v16n32p674-706

Escovar a literatura a
contrapelo: espaços
de recordação e
antimonumentos na poesia
de Cora Coralina

Brushing literature against:


spaces of rememberance and
antimonuments in the poetry
of Cora Coralina

Rocando la literatura
contrapeel: espacios de
recuerdo y antimonumentos
em la poesia de Cora Coralina
Clovis Carvalho Britto1
Paulo Brito do Prado2
Ludmila Santos Andrade3

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Resumo: O artigo analisa a literatura da escritora goiana Cora


Coralina como um projeto de fabricação de antimonumentos.
Ao se tornar uma voz dissonante no espaço literário e eleger
os “silêncios da história” como centralidade de sua proposta,
Clovis Carvalho Britto / Paulo Brito do Prado / Ludmila Santos Andrade

a poetiza fabricou um discurso contra hegemônico, exercício


que caracterizou pelas ações de amar e cantar “com ternura
todo o errado da [sua] terra”. A análise de alguns poemas
recordação e antimonumentos na poesia de Cora Coralina

e de um conto evidencia o modo como a escritora teceu


imagens que corroboram a ideia de antimonumento. Quando
contraria a ordem masculina do universo intelectual e ousa
dizer, mesmo que proibida, Cora se converte em metáfora e
metonímia de memórias subterrâneas. Sua teima em opinar
Escovar a literatura a contrapelo: espaços de

quando ninguém ousava fazê-lo, fez de seu corpo uma


âncora daquilo que a sociedade escolhera esquecer, apagar e
detratar. Por fim apontamos ser a escritora, mantida viva na
literatura e no Museu4, um antimonumento, bem como a sua
obra, espaços de recordações clandestinas e de lembranças
furtivas sobre Goiás e a sociedade dos séculos XIX e XX.
Palavras-chave: Cora Coralina; Goiás; memória; literatura;
antimonumentos.

Abstract: The article analyzes the literature of the Goiás writer


Cora Coralina as a project to manufacture antimonuments. By
becoming a dissonant voice in the literary space and choosing
the “silences of history” as the centrality of her proposal, the
poet manufactured a counter-hegemonic discourse, an exercise
that was characterized by the actions of loving and singing “with
tenderness all the wrongs of [her] earth”. The analysis of some
poems and a short story highlights the way in which the writer
weaved images that corroborate the idea of a
​​ ntimonument. When
Artigo

she goes against the masculine order of the intellectual universe


and dares to say, even if prohibited, Cora becomes a metaphor
and metonymy of subterranean memories. His persistence
in giving his opinion when no one dared to do so, made his
body an anchor of what society had chosen to forget, erase and

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detract from. Finally, we point out that the writer, kept alive in
literature and in the Museum, is an anti-monument, as well as
her work, spaces of clandestine memories and furtive memories
about Goiás and the society of the 19th and 20th centuries.
Keywords: Cora Coralina; Goiás; memory; literature;
antimonuments.
Clovis Carvalho Britto / Paulo Brito do Prado / Ludmila Santos Andrade

recordação e antimonumentos na poesia de Cora Coralina


Escovar a literatura a contrapelo: espaços de
Artigo

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Conto a estória dos becos,


dos becos da minha terra,
suspeitos... mal afamados
onde família de conceito não passava.
‘Lugar de gentinha’ – diziam, virando a cara.
De gente de pé no chão.
Clovis Carvalho Britto / Paulo Brito do Prado / Ludmila Santos Andrade

Becos de mulher perdida.


Becos de mulheres da vida.
Renegadas, confinadas
na sombra triste do beco.
recordação e antimonumentos na poesia de Cora Coralina

Quarto de porta e janela.


Prostituta anemiada,
solitária, hética, engalicada,
tossindo, escarrando sangue
na umidade suja do beco.
Escovar a literatura a contrapelo: espaços de

[...]
Cora Coralina (2001, p. 93-95)

O poema em epígrafe consiste em roteiro que manejaremos ao longo do texto


na expectativa de evidenciar as estratégias da escritora goiana Cora Coralina
(1889-1985) para burlar as injunções de gênero (Scott, 2008; Smith, 2003), o
sexismo na cultura brasileira (Gonzalez, 2020) e se converter em uma mulher
intelectual, uma pensadora, uma formadora de opiniões, de antimonumentos
(Seligmann-Silva, 2016) e de memórias contra hegemônicas, à medida que sua
obra, trajetória e experiência social tomaram forma em publicações e no Museu
Casa de Cora Coralina, que a homenageia.
Cora Coralina foi escritora e intelectual que elegeu em suas narrativas as/
os personagens subterrâneos, figuras detratadas da sociedade goiana, aquelas/
aqueles que a memória enquadrada (Pollak, 1989) da cidade em Goiás escolhera
silenciar e apagar do processo de arquivamento, edificação e solidificação de
seus monumentos.
Feito tal diagnóstico destacamos que é proposta desse artigo analisar a
literatura produzida por Cora Coralina como um projeto de fabricação de
antimonumentos à medida que apresentarmos poemas e crônicas, fontes,
Artigo

percorrermos sua escrita, descortinarmos sua trajetória musealizada pelo


Museu Casa de Cora Coralina (Britto, 2016).
Nossa hipótese é a de que ao tornar-se voz dissonante no espaço literário
em Goiás e no Brasil, e, ao eleger excluídos e silêncios da história (Perrot,

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1988, 2005) como eixos centrais de sua narrativa, Cora Coralina fabricou,
intencionalmente, um discurso contra hegemônico, por ela caracterizado pela
prática de guardar “no armarinho da memória, bem guardado” (Coralina, 2001,
p. 74), os cacos de tempos idos e, pelas ações de amar e cantar “com ternura
todo o errado da [sua] terra” (Coralina, 2001, p. 93).
Na tentativa de explorar melhor nossa hipótese e questões que estruturam o
Clovis Carvalho Britto / Paulo Brito do Prado / Ludmila Santos Andrade

artigo, propomos a análise de alguns poemas e de um conto que acreditamos ser


representativos do modo como a escritora teceu imagens muito aproximadas de
antimonumentos da cultura compulsoriamente masculina, bem como escovou,
pelo viés da literatura, a história de Goiás a contrapelo (Benjamin, 1987) de
recordação e antimonumentos na poesia de Cora Coralina

seus significados hegemônicos, afinal muito do que Cora Coralina escreveu


tinha “uma origem sobre a qual ela não podia refletir sem horror” (Benjamin,
1987, p. 225), logo o beco, um dos personagens centrais em sua obra, é espaço
de recordação que “têm poesia e têm drama” (Coralina, 2001, p. 95).
Escovar a literatura a contrapelo: espaços de

A poesia se apresenta, paradoxalmente, na descrição da miséria, na luta


diária das mulheres pobres por sobrevivência, no trabalho infantil do menino
lenheiro e na plantinha desvalida “que se defende, viceja e floresce” (Coralina,
2001, p. 92). O drama se apresenta na paisagem triste, no aspecto de abandono
do beco, no teu lixo pobre, nos estigmas sociais e na dura experiência das
mulheres da vida, “renegadas, confinadas na sombra triste do beco” (Coralina,
2001, p. 94) e aí mantidas em silêncio, emudecidas. Antinomias da cultura e
antimonumentos da barbárie.
Examinamos, para além da obra, a trajetória de Cora, na medida em que a
compreendemos, também, por um antimonumento, um discurso que foge à
regra do que se considerava por mulher “ideal” e “honrada” (Caulfield, 2000;
Del Priore, 2009) no curso da história ocidental, no Brasil e em Goiás. O fato de
contrariar a ordem masculina do universo intelectual e ousar dizer, mesmo que
proibida, converteu-a em metáfora e metonímia de memórias subterrâneas, em
uma exceção, ou uma antinomia das relações, normas e simetrias de gênero e
sexualidade na Goiás de meados do século XX.
A teimosia em opinar quando ninguém ousava fazê-lo, mesmo homens, fez
de seu corpo uma âncora daquilo que a sociedade escolhera esquecer, apagar
Artigo

e detratar. Logo, Cora Coralina e sua obra, são antimonumentos (Seligmann-


Silva, 2016), espaços de recordação (Assmann, 2011), de práticas clandestinas e
de lembranças contraditórias sobre Goiás, sua gente e sua sociedade, no entre
séculos XIX e XX.
Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, conhecida e celebrada na literatura

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goiana e brasileira pelo pseudônimo de Cora Coralina, e que cuja obra tomamos
por central em nossas hipóteses, perguntas e reflexões, nasceu na cidade de
Goiás em 20 de agosto de 1889.
Filha de Francisco de Paula Lins dos Guimarães Peixoto, juiz de direito
em Goiás, e de Jacintha Luiza do Couto Brandão Peixoto, uma intelectual e
feminista, reconhecida por solicitar, ainda nos idos de 1889, o direito de votar
Clovis Carvalho Britto / Paulo Brito do Prado / Ludmila Santos Andrade

nas eleições municipais de Goiás (Prado, 2019). Cora Coralina desde muito
cedo se enveredou pela atividade escriturária e, já na primeira década do século
XX, publicou seus primeiros escritos em jornais goianos, cariocas e paulistas
(Britto; Seda, 2009).
recordação e antimonumentos na poesia de Cora Coralina

Nesse contexto, suas publicações se caracterizaram por dissertações, textos


de opinião e crônicas que abordam temáticas bastante sensíveis para a época,
como por exemplo, a condição das mulheres, o feminismo, a sexualidade, o amor
e a produção literária/intelectual de outras mulheres. A poesia se tornou um
Escovar a literatura a contrapelo: espaços de

empreendimento para Cora após as influências que recebeu do modernismo e


só foram publicadas anos depois, quando a escritora já contava mais de setenta
anos de idade (Britto; Seda, 2009).
Cora Coralina foi uma das poucas mulheres a ter coluna fixa em jornais que
circulavam no estado de Goiás em meados do século XX. A Imprensa (1907), Sul
de Goyaz (1908) e Goyaz (1908) trazem textos com linguagem desenvolta, temas
melindrosos e análises ousadas de uma mulher audaciosa, disposta a produzir
uma crítica literária e da cultura de seu tempo.
Não por um acaso Cora tece duros pareceres contra o feminismo branco e
burguês do entre séculos XIX e XX, o mesmo de sua mãe. Segundo Cora Coralina,
esse feminismo se restringia a olhar apenas as demandas das mulheres brancas
e evitava tematizar, por exemplo, as marcas de raça, de classe e a diferença
entre os sexos. Coisa que acreditava só ser melhor “comprehendida, quando
a educação pratica do homem e da mulher se equilibrarem harmoniosamente
quando as duas intelligencias forem desenvolvidas pela mesma forma e
aproveitadas para o mesmo fim” (Coralina, 1910a, p. 2).
Outros exemplos de sua ousadia são o juízo da sociedade em Goiás, quando
apontou ser um “meio tão rebarbativo as lettras” (Coralina, 1910b, p. 2) e o
Artigo

desprezo que nutria pelo ultrarromantismo, gênero que atreveu caracterizar


com a imagem mesma do “mastigar casca de páo”. Gênero esse que acusou de
elevar “a mulher a um pínculo efêmero, [que] muito a prejudica moralmente”
(Coralina, 1909, p. 4), pois fabrica modelos ideais, sexistas e machistas, logo
inalcançáveis para as mulheres.

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Além da intensa produção bibliográfica disponível em jornais de meados do


século XX, é importante destacar que Cora se envolveu com a cultura literária,
política e feminina de seu tempo. Participou de reuniões literárias, saraus e
debates no Gabinete Literário, se aproximou de outras intelectuais de sua
época, a exemplo de Leodegária de Jesus, a primeira mulher negra a publicar
um livro em Goiás (Prado, 2019). E terminou por se envolver em situação de
Clovis Carvalho Britto / Paulo Brito do Prado / Ludmila Santos Andrade

grande constrangimento quando foi exposta, na imprensa local, por grupo


político oposto ao seu companheiro e delegado de polícia, Cantídio Bretas
(Prado, 2023).
A divulgação de sua vida íntima e a revelação da gravidez sem, todavia,
recordação e antimonumentos na poesia de Cora Coralina

a consumação do matrimônio, da chancela familiar e da benção religiosa,


converteu-a em um bode expiatório para os ataques políticos que tentavam
dirigir ao seu companheiro.
O fato de ser apresentada grávida em uma sociedade dominada por normas de
Escovar a literatura a contrapelo: espaços de

gênero masculinas, de já ser considerada velha para o casamento e a soma disso


ao seu comportamento intelectual, tido por alguns como ousado e assimétrico
ao ideal de mulher, fez de Cora um dissenso para sua família e para a sociedade
de Goiás. Logo, sua permanência na cidade se tornou algo insustentável e a
escritora se viu alvo de violências que se interseccionavam.
Violada em sua sensibilidade de mulher, vítima dos “princípios goianos”
(Coralina, 1984, p. 53), de “férreos preconceitos sociais” (Coralina, 1976, p. 13),
da misoginia e do sexismo na cultura goiana, Cora foi forçada a abandonar o
estado de Goiás. Foi viver, junto de Cantídio e dos filhos, no interior de São
Paulo. E por lá permaneceu até a década de 1950. Só retornou a Goiás em 1956.
Recuperou a posse da casa velha da ponte, removeu pedras, plantou flores, fez
doces, escreveu livros e fez poesia, fez dos “papéis de circunstâncias” espaços
de recordação, contou estórias e por aí viveu sua velhice até a manhã de 1985,
quando faleceu e se converteu em poesia, âncora de memórias e antimonumento:

O antimonumento desenvolve-se, portanto, com a psicanálise, em


uma era de catástrofes e de teorização do trauma. Ele corresponde
a um desejo de recordar de modo ativo o passado (doloroso), mas
leva em conta também as dificuldades do ‘trabalho de luto’. Mais
Artigo

ainda, o antimonumento, que normalmente nasce do desejo de


lembrar situações-limite, leva em si um duplo mandamento: ele
quer recordar, mas sabe que é impossível uma memória total do
fato e quanto é dolorosa essa recordação. Essa consciência do

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ser precário da recordação se manifesta na precariedade tanto


dos antimonumentos como dos testemunhos dessas catástrofes.
Estamos falando de obras que trazem em si um misto de memória
e de esquecimento, de trabalho de recordação e resistência. São
obras esburacadas, mas sem vergonha de revelar seus limites que
implicam uma nova arte da memória, um novo entrelaçamento
Clovis Carvalho Britto / Paulo Brito do Prado / Ludmila Santos Andrade

entre palavras e imagens (Seligmann-Silva, 2016, p. 51).

Dito tais palavras, considera-se Cora um antimonumento por escrever,


eleger personagens subterrâneos da cultura em Goiás, mas, também, por
recordação e antimonumentos na poesia de Cora Coralina

colocar em xeque a representação de que “as mulheres eram a quintessência do


amadorismo” (Smith, 2003, p. 25) quando o assunto era a prática intelectual,
bem como apontar contradições na crença de que “os homens, os profissionais
apropriados, serviam a fins mais elevados” (Smith, 2003, p. 25).
Escovar a literatura a contrapelo: espaços de

Tais comportamentos e atitudes fizeram de Cora e de sua escrita algo contra


a cultura (Abu-Lughod, 2018). Sua narrativa, e ela própria, anunciam posições
que vão na contramão da cultura sexista e masculina de sua geração. Cora, seus
escritos e reflexões são antimonumentos, são escrituras rasuradas (Seligmann-
Silva, 2016) em uma sociedade que erradicou “o amadorismo feminino para
contar uma história singular sobre as altas realizações do profissionalismo”
(Smith, 2003, p. 29) que, claro, precisariam (e deveriam) ser masculinas, feitas
por homens viris e de ascendência europeia.
Os becos, o lixo pobre e as mulheres da vida por ela representados são
exemplos de rasuras e antimonumentos que quebram a literalidade da inscrição
da memória enquadrada para Goiás, a mesma ainda assentada na cultura cristã,
branca e masculina. As personagens de Cora abrem os registros, as interpretações
sobre Goiás, suas mulheres e a cultura para outras simbolizações. O gosto da
escritora pelo ínfimo e pelas “mulheres dama”5 injeta subversão naquilo que
estava monumentalizado, petrificado e cristalizado (Albuquerque Júnior, 2007;
Seligmann-Silva, 2016).
Pelo olhar de Cora Coralina Goiás é apresentada, como um espaço sexuado,
atravessado por marcas sociais que complexificam o teatro social. As mulheres
ali não são tão somente mulheres, elas são vítimas da forclusão de gênero, uma
Artigo

dupla negação de seu gênero, sexualidade e raça (Gonzalez, 2020; Segato, 2013).
As mulheres em Cora são pobres, prostituídas, negras, violentadas e abusadas
por homens, como o delegado-chefe de polícia que “dava em cima [...]” (Coralina,
2001, p. 95). E quando não são pobres e negras, estão infelizes, “muito viúvas”

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(Britto; Prado, 2018), vítimas de violências que se interseccionam a outras e


tomam dimensões assoberbadas pelo cotidiano de muito trabalho.
Todavia, essas mulheres resistem às convenções históricas de gênero.
Lance por lance, elas ampliam suas fronteiras de atuação. E, como a plantinha
desvalida, de caule mole, se defendem, vicejam e florescem. De crisalidas mal
afamadas, metamorfoseiam-se em ideias, em antinomias, antimonumentos e,
Clovis Carvalho Britto / Paulo Brito do Prado / Ludmila Santos Andrade

desse modo, instauram um processo de “revalorização da mulher negra, tão


massacrada e inferiorizada por um machismo racista, assim como por seus
valores estéticos eurocêntricos” (Gonzalez, 2020, p. 215).
Ao eleger a memória de personagens obscuras, de lugares frequentados
recordação e antimonumentos na poesia de Cora Coralina

por mulheres pobres e negras, Cora construiu uma narrativa que caminhou
na contramão das memórias coletivas e estabelecidas para a história, a arte, a
intelectualidade e a cultura em Goiás.
Suas experiências de mulher, consciente dos repertórios de violência, em um
Escovar a literatura a contrapelo: espaços de

mundo conjugado sob uma lógica iluminista, e por modelo de humano neutro
e universal (Scott, 2008), bem como as suas personagens transgressoras e os
seus temas literários, pouco convencionais para o cenário intelectual em Goiás,
oportunizam a realização de análises das questões de gênero, da estética e das
marcas sociais.
Essas análises se abrem à compreensão de que a poeta e a sua obra não
poderiam ser tomadas por monumentos da cidade de Goiás, do Estado ou do
Brasil, conforme convencionalmente se deseja e se fabrica através da reedição
(revista e seletiva) de seus escritos e da manutenção do Museu (Delgado, 2003),
mas como um antimonumento, pois as poesias, as crônicas e a experiência
social de Cora Coralina caminham na contramão daquilo que historicamente
se deseja e se entende por mulher ideal.
Cora, sua escrita e suas personagens são pedras no caminho da produção
intelectual masculina, da celebração da memória enquadrada e do registro de
uma certa história oficial. Sua atividade narradora deixa ver como a incapacidade
e a cegueira do homem pode tornar “a mulher igualmente incapaz e cega em
relação a sua suposta unidade supranatural” (Damião, 2016, p. 55). Talvez seja
por isso que Cora escolhe mostrar, a partir de diferentes ideias de mulheres,
Artigo

uma miscelânea de identidades femininas, e que estão em contínua construção,


mutação e metamorfose, de modo a constituir uma constelação identitária.
Um dissenso entre históricas concepções que produziam a mulher por uma
identidade única e universal (Del Priore, 2009; Gonzalez, 2020; Perrot, 2005).
Solange Yokozawa (2009) e Ludmila Andrade (2016, 2022) apontam que a

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“escritora dos becos” e da “gentinha”, da “mulher dama” em Goiás só se libertou


da métrica e da rima após a Semana de 1922, dialogando com a tradição moderna
e modernista. Cora Coralina parecia seguir os caminhos de uma escritora
indisciplinada que elegeu os subalternos e a memória subterrânea de Goiás
como seus interlocutores privilegiados.
Ao cantar os becos de Goiás, ela ressemantizou sua memória, fazendo-a
Clovis Carvalho Britto / Paulo Brito do Prado / Ludmila Santos Andrade

viajar no tempo e promover um entrecruzamento de temporalidades, imagens


e agenciamentos que produziram outras imagens para o passado de Goiás. Ao
cantar os becos, Cora leu a rua e converteu-se em uma rapsoda incômoda, uma
pedra no caminho da memória calcificada.
recordação e antimonumentos na poesia de Cora Coralina

Seus poemas reescrevem os autos do passado para Goiás, transformando-se


em “instrumentos de análise para melhor esclarecer o presente” (Gagnebin,
2008, p. 103), tornando-se meio contrário ao esquecimento e “instrumento de
anotar experiências que precisam ser preservadas, como a sapientia veterum”
Escovar a literatura a contrapelo: espaços de

(Bolle, 2000, p. 310).


Sua memória topográfica não pretende reconstruir os “espaços pelos espaços,
mas estes são pontos de referência para captar experiências espirituais e
sociais” (Bolle, 2000, p. 335) que importam a um projeto literário interessado a
destruir monumentos de Goiás a marteladas. A topografia de Goiás que termina
por construir é móvel, como a sua memória, essa aponta os mais variados
personagens que até então permaneciam nas sombras da história.
É Cora quem seleciona as mulheres, pobres, negras e prostituídas elegendo-
as como sua constelação. Semelhante ao que Carla Damião (2008) explica acerca
da transição de sentidos percebida na crítica de Walter Benjamin, Cora também
percorre diferentes elementos da diferença sexual das/entre as mulheres na
expectativa de evidenciar o caráter “constelar” da constituição de identidades
femininas. As mulheres em Cora Coralina são “herdeiras de uma outra cultura
ancestral, cuja dinâmica histórica revela a diferença pelo viés das desigualdades
raciais” (Gonzalez, 2020, p. 269) e de classe.
Ao observar Cora Coralina e suas personagens a partir da mirada de Lélia
Gonzalez (2020, p. 269) é possível apontar que essas mulheres, atravessadas pela
marca colonial e por tantas outras daí derivadas, sabem “mais de mulheridade
Artigo

do que de feminidade, de mulherismo do que de feminismo. Sem contar que


sabem mais de solidariedade do que de competição, de coletivismo do que de
individualismo”. Logo a opção por mulheres do povo, pobres e negras fabrica
uma outra fisionomia para Goiás, que não é aquela registrada em documentos
da burocracia pública, das memórias de quem tinha o privilégio da palavra

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e que ainda permanece no gosto do investigador apegado ao materialismo


positivista e moderno. A opção por pessoas subalternas faz de Cora Coralina
uma contadora de histórias em que as palavras são escovadas a contrapelo, e
Goiás deixa-se contar por aquela que seguiu silenciada no curso de sua história.
A cidade de onde Cora apura tantas personagens encontra-se em um vale,
cercada pela Serras Dourada e posicionada no centro do país. Considerada o
Clovis Carvalho Britto / Paulo Brito do Prado / Ludmila Santos Andrade

“coração do Brasil”, Goiás foi erguida durante a corrida aurífera no século XVIII
e mantém até os dias atuais características arquitetônicas e marcas do tempo
que remontam a Colônia, o Império e a República.
A cidade de Goiás é uma das principais personagens da poesia de Cora
recordação e antimonumentos na poesia de Cora Coralina

Coralina. A escritora privilegia os becos, suas pedras e suas/seus personagens


obscuros. Ela tece Goiás como uma cidade que se ramifica em becos sinuosos e
ruas incertas, calçadas em pedra ou reduzidas a chão batido. A gente de Goiás
traduzida na poesia é aquela que se divide em classes e grupos, alguns marcados
Escovar a literatura a contrapelo: espaços de

pelo trauma da aristocracia perdida com o fim da escravidão e os “obscuros”,


a “gentinha”, os pobres, aquelas/aqueles que trafegam por ruas e becos
carregando feixes de lenha, comercializando quitutes e quitandas, carregando
água, lavando roupa às margens do rio ou se prostituindo nos becos da cidade.
A Goiás de Cora é aquela impregnada por uma contra memória, suas
“estórias” são narrativas que aborrecem a história oficial e que pulverizam os
monumentos erigidos pela memória coletiva. E isto se dá em função de “Cora
ter sido a escuta mais eficiente das memórias subterrâneas dos becos de Goiás”
(Yokozawa, 2009, p. 201).
Quando Cora Coralina escreveu seu primeiro livro, ainda perdurava a distinção
entre história e estória. Conforme destacou Solange Yokozawa (2009), essa
distinção hoje é imprópria, visto já ter caído no vulgo que a história não passa
de uma interpretação do passado e, por isso mesmo, é relativa, ficcional, e “a
estória, assumidamente ficcional, muita vez, desvela o passado de uma maneira
bem mais verdadeira que as histórias que se querem factuais” (Yokozawa, 2009,
p. 200). Cora adotou o termo estória para se referir aos autos do passado por ela
recuperados literariamente, opção importante para a compreensão de sua obra
na medida em que aparece no título de dois de seus livros (Poemas dos becos
Artigo

de Goiás e estórias mais e Estórias da casa velha da ponte) e se torna elemento


estruturante de toda a sua literatura, pois “pode-se dizer que, em Cora, a estória
não quer ser história” (Yokozawa, 2009, p. 200).
A estória em Cora se propõe a ser antimonumento, um espaço de recordação
outro que fala da mulher amefricana (Gonzalez, 2020), das antinomias de

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passados apagados. Amefricanidade é, segundo Lélia González (2020, p. 131),


uma categoria visando evidenciar a presença negra na construção cultural do
continente americano e modo de enfrentar a ideologia do branqueamento: “o
racismo latino-americano é suficientemente sofisticado para manter índios e
negros na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais
exploradas” reproduzindo a crença de que “as classificações e os valores do
Clovis Carvalho Britto / Paulo Brito do Prado / Ludmila Santos Andrade

Ocidente branco são os únicos verdadeiros e universais”.

As implicações políticas e culturais da categoria de amefricanidade


são, de fato, democráticas; exatamente porque o próprio termo
recordação e antimonumentos na poesia de Cora Coralina

nos permite ultrapassar as limitações de caráter territorial,


linguístico e ideológico, abrindo novas perspectivas para um
entendimento mais profundo dessa parte do mundo onde ela se
manifesta: a América como um todo (Sul, Central, Norte e Insular).
Escovar a literatura a contrapelo: espaços de

Para além de seu caráter puramente geográfico, a categoria de


amefricanidade incorpora todo um processo histórico de intensa
dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e
criação de novas formas) que é afrocentrada. (Gonzalez, 2020, p.
135).

A estória, em Cora, “é contra a história. Contra uma história e uma memória


coletiva uniformizadoras e agressoras. [...] Coralina parece ter sido a escuta
mais eficiente das memórias subterrâneas dos becos de Goiás.” (Yokozawa,
2009, p. 200) Essas informações nos permitem observar como a experiência
social de Cora Coralina deixou marcas que definiram os contornos de suas obras
e do próprio Museu Casa (Britto; Prado, 2018). Até Cora se constituía um dos
“silêncios da história”, conforme definiu Michelle Perrot (2005) ao identificar a
ausência das mulheres no discurso histórico como se estivessem fora do tempo
ou, ao menos, fora do acontecimento.
Cora não somente denunciou as ausências ou lutou para que preenchessem
esses e outros silêncios, ela se tornou uma das primeiras mulheres em Goiás
que ousaram ser protagonistas de um novo registro, subvertendo os silêncios
impostos pela ordem simbólica, não somente os da fala, mas os da expressão
Artigo

gestual e, principalmente, escriturária.


Poemas dos becos se tornou uma fonte de mulher, sobre mulheres, sobre
amefricanidades a partir de um de seus poemas iniciais “Todas as vidas” em
que traz para o centro do poema a voz e a vida das mais diversas mulheres
que compunham àquela cidade, as lavadeiras, cozinheiras, mães e prostitutas

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nos permitindo compreender como Cora Coralina pensou a sociedade de seu


tempo, perseguindo temáticas e estratégias poéticas que eram utilizadas para
enfrentar os silêncios.
A literatura de Cora se torna uma espécie de etnografia das variadas
experiências marcadas por cesuras e silêncios que não foram registradas nos
autos oficiais do passado, e nem do presente. Por isso a escritora recorre a
Clovis Carvalho Britto / Paulo Brito do Prado / Ludmila Santos Andrade

imagens de outros espaços de Goiás, que não são aqueles da aristocracia, mas da
turba, da festa, da bebedeira e da pobreza. Essas imagens geradas em sua poesia
autorizam o tocar de outras realidades da cidade de Goiás disfarçadas pelas
contingências dos hábitos, dos humores e costumes, contidos na austeridade
recordação e antimonumentos na poesia de Cora Coralina

de quem, lá atrás, registrou Goiás sob uma perspectiva do mascaramento e das


idealizações.
Sobre tais imagens George Didi-Huberman (2012, p. 211) afirma que é pelo
canal das imagens que se pode “tocar o real”. As imagens são as cinzas dos
Escovar a literatura a contrapelo: espaços de

arquivos da civilização. São os fragmentos daquilo que não ardeu. As imagens


têm o potencial de interromper as lacunas resultantes de “censuras deliberadas
ou inconscientes, de destruições, de agressões, de autos de fé”. Elas são aquilo
que a barbárie não conseguiu incinerar.
Em muitas vezes é por elas que nos informamos sobre tempos que não são
os nossos e graças a elas que desmistificamos memórias celebradas, escavamos
“memórias petrificadas” (Albuquerque Júnior, 2007, p. 92), despedaçamos e
desinvestimos “memórias grandiosas e heroicas” que persistem em nosso
presente.
As imagens cotejadas aos mais variados registros do passado nos ajudam
a retirar da condição de memória cumulativa as/os personagens até então
inominados, segregados, silenciados e esquecidos. As operações que manejamos
ao confrontar diferentes fontes às nossas expectativas provocam as memórias
inabitadas, “uma memória das memórias, que acolhe em si aquilo que perdeu a
relação com o vital, com o presente” (Assmann, 2011, p. 147).
As potencialidades das imagens para estudos interessados em destruir
antigos monumentos a marteladas são imensas. Daí optarmos por analisar
algumas imagens produzidas por Cora Coralina sintetizadas nas “estórias dos
Artigo

becos”, metáforas das estreitezas da vida e que se contrapõem à memória oficial


simbolizada pelas ruas, largos e suas/seus viandantes.
Em um gesto “arqueológico” sua literatura recupera camadas subterrâneas
e problematiza a rasura do tempo: “alguém deve rever, escrever e assinar os
autos do Passado antes que o Tempo passe tudo a raso.” (Coralina, 2001, p. 25).

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Não sem motivos, elegemos Cora Coralina, sua literatura e suas personagens
como antimonumentos.
O intuito é conceber Cora, suas personagens e sua memória não apenas como
espacializada e “fossilizada no espaço” (Yokozawa, 2009, p. 203) da cidade, mas
uma forma tão diferente de contar velhas estórias que é capaz de desinvestir a
memória do poder, o caráter masculino colonialista da atividade intelectual e
Clovis Carvalho Britto / Paulo Brito do Prado / Ludmila Santos Andrade

a ordem de gênero.
Embora tenha publicado seu primeiro livro aos 76 anos, é importante reiterar
que desde início do século XX Cora já escrevia e publicava em jornais de ampla
circulação. Também é significativo insistir que desde sua juventude, provocava
recordação e antimonumentos na poesia de Cora Coralina

os padrões estabelecidos para as mulheres ao escrever e publicar aquilo que


observava na sociedade, tornando-se uma personagem que contrariava as
injunções do gênero e sexualidade (Prado, 2019).
Em um ambiente em que “as concepções estéticas predominantes afirmavam
Escovar a literatura a contrapelo: espaços de

ser a criação cultural um dom exclusivamente masculino” (Telles, 2012, p.


61), Cora escreveu e escapou para fora do privado deixando que sua diferença
sexual injetasse medo aos homens. Como lembra Joan W. Scott (2008, p. 99), o
protagonismo das mulheres incomodava e gerava diferentes problemas, pois
“ainda que o ‘homem’ pudesse se passar por um sujeito humano neutro ou
universal, o caso da ‘mulher’ é difícil de articular ou representar, porque sua
diferença gera desunião e representa um desafio à coerência.”
A eleição de personagens que vez ou outra rompiam a membrana das
memórias cumulativas e saiam convertendo-se em memórias utilitárias
desobstruía narrativas cristalizadas e muito relacionadas aos interesses de
grupos hegemônicos. Talvez, por essa razão, Cora utilize reincidentemente
a metáfora da pedra. Em sua literatura, Goiás é uma cidade de onde levaram
o ouro e deixaram pedras, sua poética teria nascido de um veio de pedras.
A autora se imiscui à cidade, todavia não se reconhece nos monumentos da
barbárie, violentamente habitada na imagem do bandeirante, das “aparências
de decência, compostura, preconceito” e da “classe média do após (13) treze de
maio” (Coralina, 1984, p. 44).
Em um de seus poemas de abertura do livro Poemas dos Becos de Goiás e
Artigo

estórias mais, Cora Coralina aborda o processo de construção de sua dicção


poética e anuncia de forma dialógica ao leitor o que ele pode esperar daquela
obra. Assim descreve quem poetiza, como essa voz poética se dará a conhecer e
de onde desentranhará sua poesia, também dá a conhecer a arquitetura desses
poemas, conforme é possível ler no poema “Ressalva”:

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Este livro foi escrito


por uma mulher
que no tarde da Vida
recria e poetiza sua própria
Vida.
Clovis Carvalho Britto / Paulo Brito do Prado / Ludmila Santos Andrade

Este livro
foi escrito por uma mulher
que fez a escalada da
Montanha da Vida
recordação e antimonumentos na poesia de Cora Coralina

removendo pedras
e plantando flores.

Este livro:
Versos... Não.
Escovar a literatura a contrapelo: espaços de

Poesia... Não.
Um modo diferente de contar velhas estórias
(Coralina, 2001, p. 27).

Atendendo a semântica da palavra “ressalva” o poema anuncia, antes de tudo,


como em uma errata, o que se apresentará no decorrer da obra. Para isso indica
que seus poemas abordarão: a mulher, um gênero não monumentalizado; além
disso, uma mulher que é velha; e, na última estrofe, explica que seu livro não
apresentará versos ou poesia, mas “um modo diferente de contar velhas estórias”.
Ao ressalvar, antes de tudo, o eu-lírico indica que há algo a ser retificado, o que
funciona como um aviso sobre o que será lido nas próximas páginas, alertando
o leitor que seu projeto literário reverbera as memórias de uma mulher idosa
que registra a sua “[...] escalada/ da Montanha da Vida/ removendo pedras/ e
plantando flores”; a partir de “um modo diferente de contar velhas estórias”
(Coralina, 2001, p. 27).
Dessa forma, o poema funciona como uma epígrafe que antecipa ao leitor
o assunto/tema do livro e o prepara para uma leitura que foge ao modo
tradicional de fazer versos, poesia ou mesmo o modo de contar “estórias”. Além
disso, não são histórias com “h”, mas estórias, ou seja, são narrações relegadas
Artigo

pela história oficial. Não àquelas histórias registradas nos autos e documentos
habituais da sociedade, mas aquelas “estórias” relegadas às conversas do dia a
dia, ou aquelas que eram vivenciadas no âmbito do privado.
Ao colocar em ressalva a voz da mulher e o modo diferente de contar velhas

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estórias não nos parece que o eu-lírico desmerece sua escrita, ao contrário,
questiona de forma implícita e irônica a memória e a história tradicional,
masculina e branca, assim como também anuncia que sua escolha na escrita
poética não se encaixa ou não cabe em padrões, mas é um modo diverso de
contar as coisas que testemunhou, experienciou e escutou. O modo como
escolheu poetizar pelo viés do diferente, parece subverter e questionar a forma
Clovis Carvalho Britto / Paulo Brito do Prado / Ludmila Santos Andrade

poética institucionalizada. Ao escolher o diverso e as pequenezas diárias, como


quem registra sua escalada pela vida, revelando as coisas chãs e despercebidas,
a poetisa evidencia em sua escrita um cotidiano até então silenciado.
Susana Moreira de Lima (2008) e Guita Grin Debert (2010), ao analisarem,
recordação e antimonumentos na poesia de Cora Coralina

respectivamente, trajetórias do envelhecimento feminino em narrativas


brasileiras contemporâneas e a transformação da juventude como um valor,
efetuaram leituras da lugarização da mulher velha e do corpo envelhecido em
nossa sociedade, observando os entrecruzamentos entre visibilidade, espaço
Escovar a literatura a contrapelo: espaços de

físico e espaço enunciativo, na intimidade e na vida social, os preconceitos


relativos ao corpo envelhecido, bem como a produção da decrepitude na
contraposição da busca pela juventude, ou a sua conversão em um valor.
Susana Lima (2008) apontou que a conversão da mulher velha em uma figura
marginal, corrobora a suspeita de pôr qual razão essa permanece silenciada na
literatura e, quando vislumbra como um tema literário, sua história é sempre
narrada por um outro.
Guita Debert (2010) explicita que o envelhecimento nas sociedades ocidentais
se associa à perda de prestígio e ao seu distanciamento das experimentações
sociais e, que isso, explica a escassa presença de personagens velhas na literatura
brasileira, especialmente como protagonistas, conforme explicou Susana Lima
na catalogação de imagens da velhice.
A imagem da velhice é quase sempre permeada pelas concepções de
inutilidade (representada no aspecto físico do corpo) e de sabedoria (relacionada
à experiência vivida). Todavia, ambas as pesquisadoras afirmam que a velhice,
em específico a velhice feminina é sub-representada, quando não totalmente
desprezada, abandonada e solapada.
Questão importante quando se traz tal inquietação para a obra de Cora
Artigo

Coralina. A personagem central é Aninha, essa é sua máscara lírica da infância.


Embora a narradora seja a escritora de cabelos brancos que se torna porta-voz
de sua comunidade. Estrategicamente Aninha não é uma mulher jovial, é sim,
uma jovem adolescente.
Uma das estratégias de resistência de Cora vislumbra-se aí. Ela deixa crianças

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e jovens adolescente falarem. Sua poesia oferece vez e voz para personagens
marginais, projeto que compõem “a retórica de sua poesia, [que serve como]
um modo de licença poética que aponta para a consciência reflexiva da autora,
subjacente aos seus poemas” (Camargo, 2002, p. 79). Logo, a escolha da velha
e da criança não foi aleatória: “pois sendo elas ocupantes de posições sociais
periféricas, as suas vozes, apenas consideradas nos limites da tolerância,
Clovis Carvalho Britto / Paulo Brito do Prado / Ludmila Santos Andrade

representam, ainda no nosso contexto histórico-cultural, papéis pouco ou nada


relevantes” (Camargo, 2002, p. 79). As duas instâncias de criação conferem
liberdade, constituindo espaço de permissibilidade poética, de desconstrução,
de dissenso, nunca de consenso.
recordação e antimonumentos na poesia de Cora Coralina

Os “causos” de uma mulher velha não se apresentam como inocentes e


despretensiosos. Há uma ironia estampada no bojo do texto tanto no campo
estrutural quanto no semântico:
Escovar a literatura a contrapelo: espaços de

Eu sou aquela mulher


que ficou velha,
esquecida,
nos teus larguinhos e nos teus becos tristes,
contando estórias,
fazendo adivinhação.
Cantando teu passado.
Cantando teu futuro (Coralina, 2001, p. 34).

Assim, o que parece ser uma explicação até mesmo simplória se revela com toda
uma densidade irônica, subversora das injunções de gênero e jocosa, indicando
que naquele livro haverá uma contestação da história institucionalizada por
meio de quem conta as “estórias” e pelo modo como as contará. As lembranças
apresentadas pelo eu-lírico tornam-se fonte significativa para recuperar as
“memórias subterrâneas” de Goiás:

Diferentemente dos textos de história que parecem perder a


autoria na impessoalidade, ela se propõe a assiná-los. A assinatura
representa a propriedade dessa visão sobre os autos, ou seja, a
pessoalidade e a coragem de se apropriar de sua própria história
Artigo

e da de sua comunidade para recontá-las. A assinatura significa


também que sua individualidade, e, no caso, a individualidade
artística da poetisa, interfere, recorta, reorganiza e avisa ao leitor
o ponto de vista que ali encontrará (Camargo, 2006, p. 65).

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De acordo com Ludmila Santos Andrade (2016), os poemas “Ressalva”,


“Minha cidade” e “Todas as vidas” compõem uma “tríade de anunciação”, pois
indicam a construção do eu-lírico, da sua dicção poética e das suas escolhas
antimonumentais.
Inicialmente, ressalva seu lugar de enunciação e os contornos de seu
empreendimento poético, o que dialoga estreitamente com o pensamento de
Clovis Carvalho Britto / Paulo Brito do Prado / Ludmila Santos Andrade

Walter Benjamin (1987) e Márcio Seligmann-Silva (2016) quando sublinharam


em suas teses que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido
e que a história deve ser escovada a contrapelo.
Em seguida, compondo a tríade lê-se o poema “Todas as vidas” em que a voz
recordação e antimonumentos na poesia de Cora Coralina

poética indica por meio de um processo de imbricamento a opção pelas vozes


femininas e marginalizadas como um dos marcadores de seu projeto poético.
De tal modo, sublinha que as mulheres que estão à margem da sociedade, vistas
como inferiores ou como vidas detratadas e obscuras, serão eleitas para compor
Escovar a literatura a contrapelo: espaços de

sua poética de durezas e de resistências. A voz poética anuncia sua opção por
elementos que contradizem a história monumentalizada e institucionalizada e
elege a mulher, as vidas obscuras, a cidade velha e quase esquecida para edificar
e escovar a literatura, instaurando uma poética antimonumental:

Vive dentro de mim


uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorado ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...

Vive dentro de mim


a lavadeira o rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Artigo

Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.

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Vive dentro de mim


a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem-feito.
Panela de barro.
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Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
recordação e antimonumentos na poesia de Cora Coralina

Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal

Vive dentro de mim


Escovar a literatura a contrapelo: espaços de

a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos
de casca grossa,
de chinelinha,
e filharada.

Vive dentro de mim


a mulher roceira.
---- Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.
Artigo

Vive dentro de mim


a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,

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tão desprezada, tão murmurada...


Fingindo alegre seu triste fado.

Todas as vidas dentro de mim:


Na minha vida ---
a vida mera das obscuras (Coralina, 2001, p. 31-33.)
Clovis Carvalho Britto / Paulo Brito do Prado / Ludmila Santos Andrade

O título do poema “Todas as vidas” indica uma completude, ao se deparar


com o pronome indefinido “todas” o leitor tem a impressão de que o poema
abarcará as vidas de uma forma completa, por inteiro. Entretanto, a voz poética
recordação e antimonumentos na poesia de Cora Coralina

elenca e elege as vidas que participam do processo de composição da sua


identidade e com as quais ela se consubstancia para construção da sua própria
vida. E essas vidas são derivadas das mulheres amefricanizadas, as mulheres e
vidas que Lélia Gonzalez (2020) representou.
Escovar a literatura a contrapelo: espaços de

A escolha pelo gênero feminino e por uma categoria de mulheres desabastadas


e trabalhadoras se dá pelo viés de uma memória pautada nos antimonumentos,
pelo viés dos silenciados de sua terra, afrontando a memória institucionalizada
e documentada.
A cabocla velha, a lavadeira, a cozinheira, a proletária, a roceira e a mulher
da vida, traduzem um painel de personagens comumente silenciadas. Nesses
termos, Goiandira Ortiz de Camargo (2006, p. 74) reconhece que o poema além
de demarcar tempo, espaço e sujeito da poesia coraliniana, apresenta uma
concepção de vida, pois “problematiza uma tomada de posição, uma escolha
ética em relação aos assuntos que o mundo oferece para serem poetizados. A
mulher, o trabalho, a solidariedade, o prosaico cotidiano, a terra, os desvalidos
serão recorrência em sua obra, porque fizeram parte de sua vida”.
No poema “Minha cidade” o eu-lírico apresenta sua íntima relação com a
cidade e como Goiás fundamenta de forma basilar sua poética da dureza e do
antimonumental. O poema se aproxima das argumentações de Willi Bolle (2000)
quando identificou na obra de Walter Benjamin afinidades entre as estruturas
da cidade e os indivíduos que nela vivem, cunhando a categoria “memória
topográfica”, cujo objetivo não seria reconstruir os espaços pelos espaços, mas
os conceberia como pontos de referência para captar experiências sociais.
Artigo

De acordo com Solange Yokozawa (2009), se o espaço é responsável


por estratificar, espacializar e marcar o tempo, os becos compõem o reduto
da memória grupal eleita pela escritora. Estreitos e sujos, esquecidos e
abandonados, às vezes sem saída, os becos eram o depósito daquilo de que a

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considerada “boa sociedade” desejava se livrar.


Reabilitando a margem, mesmo quando não tematiza tais espaços, Cora
Coralina instituiu metaforicamente uma poética dos becos, a exemplo do poema
“O palácio dos Arcos”, em que opta por narrar a trajetória de um indígena carajá,
ao invés de descrever a vida dos governadores de província que lá passaram; ou
quando trouxe para a sua poética personagens como Lampião, Tiradentes e os
Clovis Carvalho Britto / Paulo Brito do Prado / Ludmila Santos Andrade

judeus errantes.
Optou por poetizar a costura dos lugares empreendida pelos boiadeiros a
guiar os animais pelo interior em “Evém boiada!”, “Trem de gado” e “Pouso de
boiadas”; além de realizar uma celebração do alimento acessível em “Oração
recordação e antimonumentos na poesia de Cora Coralina

do milho” e “Poema do milho”, demonstrando que, apesar de sua “origem


obscura e ascendência pobre” (Coralina, 2001, p. 156) e embora não pertencente
a “hierarquia tradicional do trigo”, o milho exercia um importante papel na
história e trajetória da alimentação da humanidade. Apesar de em apenas três
Escovar a literatura a contrapelo: espaços de

poemas tematizar explicitamente os becos – “Becos de Goiás”, “Do Beco da


Vila Rica” e “O Beco da Escola” –, é possível afirmar que toda a sua obra se
transforma em uma estética dos becos:

Goiás, minha cidade...


Eu sou aquela amorosa
de tuas ruas estreitas,
curtas,
indecisas,
entrando,
saindo
uma das outras.
Eu sou aquela menina feia da ponte da Lapa.
Eu sou Aninha.

[...]

Eu vivo nas tuas igrejas


e sobrados
e telhados
Artigo

e paredes.

Eu sou aquele teu velho muro


verde de avencas

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onde se debruça
um antigo jasmineiro,
cheiroso
na ruinha pobre e suja.

Eu sou estas casas


Clovis Carvalho Britto / Paulo Brito do Prado / Ludmila Santos Andrade

encostadas
cochichando umas com as outras (Coralina, 2001, p. 34-35).

A voz poética vai se dissolvendo nas coisas e lugares, se desfazendo de si


recordação e antimonumentos na poesia de Cora Coralina

mesma para construir uma identidade coadunada à Goiás. A severidade e/ou a


inospitalidade do lugar influenciam a voz poética, pois há uma procura por tirar
das “categorias negativas do espaço a força que alimenta sua poesia” (Andrade,
2016, p. 69-70).
A ordem interna do poema não apresenta imagens elevadas. Ao contrário,
Escovar a literatura a contrapelo: espaços de

leva o leitor aos lugares desprestigiados, estigmatizados, desprezados,


descentralizados, e até mesmo aos arredores da cidade, como se estivesse
buscando nos cantos desconhecidos ou despercebidos de Goiás a sua poesia,
garimpando nas ruas, nos monturos de lixo, pontes e morros, uma matéria para
escovar sua literatura a contrapelo e registrar sua contra memória.
Para Tilza Antunes Ribeiro (2006, p. 161) as pedras na poética de Cora Coralina
são uma espécie de apoio às suas memórias, pois são símbolos da resistência,
da construção de sua poética e “ao mesmo tempo, uma poesia em que todo
o desprezado, tudo aquilo que a sociedade rejeita e que parece indiferente à
própria poesia é revalorizado”. Nos três poemas destacados neste artigo, a
figura da pedra é recorrente e corrobora com a construção do modus operandi
do eu-lírico, calcando sua poética na “frincha das pedras”, na “pedra pontuda”
ou ainda “removendo pedras” para ancorar ali sua estética e personagens
esquecidas pela vida, pela sociedade, despossuídas de sua humanidade e do
direito à vida.
Exemplo disso consiste no conto “Miquita”, de Estórias da Casa Velha da
Ponte:
Artigo

Miquita foi moça como toda moça. Contou seus 15 anos como toda
jovem. Era parda. Nem preta, nem morena, nem mulata; de pele
manchada. Seca, sem ancas; de pernas compridas, canela fina e
jeito de boneca de pano malfeita – sem sal e desajeitada. Nem por
tantos negativos da natureza, deixou de achar quem a quisesse.

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Casou-se mesmo, de palma e capela, que a mãe era lavadeira e


caprichava com a filha. Tempos depois, o marido a largava sem
dizer nada, abria pé no mundo e nunca mais deu ligação. Miquita,
nova e sozinha, da beira do rio, onde passara a morar com a
mãe, que aquela vida de bater roupa nas pedras não era de gente
moça, resvalou para o beco onde abriu porta. Sempre de pele
Clovis Carvalho Britto / Paulo Brito do Prado / Ludmila Santos Andrade

sarapintada, corpo andrógino de boneca de pano, sem sal e sem


jeito, resvalou ainda mais – que o ofício não dava a ela nem para
o aluguel do quarto sujo. Jogou fora os sapatos cambados. Vestiu
uns por cima dos outros, os três vestidos repuxados que possuía.
recordação e antimonumentos na poesia de Cora Coralina

Ajeitou rodinha. Botou pote na cabeça e passou a carregar água, da


Carioca para a casa de uns e de outros. Trabalho mal pago, embora
sempre lhe dava sobra de almoço e de jantar, canto para dormir
e um ou outro cruzeiro para cigarro e pinga – seu maior prazer.
Ia vivendo a Miquita. Pedregulho das ruas não lhe doíam nos pés.
Escovar a literatura a contrapelo: espaços de

Distância da Carioca ao Largo do Chafariz nada era. Sempre seca,


sorridente, calada… Era curtinha de prosa e, para dizer verdade,
curta era sua pinga, sempre certa. Não caía nem se alterava. Ficava
firme e puxava água. Lata vai, pote vem, coitezinho nadando em
cima, todo dia… De vez em quando, Miquita suspirava… Tinha
uma saudade calada do beco triste, do quarto sujo e dos homens
brutais que a espancavam. Um dia, ganhou de uma dona, de
quem vasculhava a casa e arrumava os trens de mudança, um
vestido usado de arrasto, de seda ramada, uma bolsa amassada
de alça comprida, um par de sapatos deformados de salto Luís
XV, muita ramona, um resto de batom e cinco cruzeiros. Miquita,
dona de tanta coisa bonita, pensou numa pinga dobrada. Daí
sentiu mais apertada as saudades do beco sujo, da macheza dos
homens brutais que a espancavam. Resolveu por uma latinha de
pó de arroz Lady. De noite, vestiu o vestido ramado se arrastando
por cima dos outros, que sempre trazia no corpo. Calçou umas
meias desfiadas, botou os sapatos de salto. Besuntou o beiço e a
cara de batom, se branqueou de Lady; atravessou as ramonas na
trunfa, deu jeito no corpo chato e foi se requebrando, num dengo
enjoado, rumo a gafieira animada que fazia um zuadão danado,
Artigo

no fundo de um bar suspeito. Foi entrando, se requebrando, toda


feliz e sorridente. Uma roda de homens olhava com cinismo o
fuzuê do mulherio assanhado. Miquita passou rente. Esbarrou
com propósito canalha no primeiro e esclareceu: – Eu também
sou mulher-dama… Ganhou um safanão que a recambiou para

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o meio do barulho. E aí foi aquele rolo e taponas. Empurrões,


pontapés, xingos, nomes feios, obscenidades… [...] (Coralina,
2006, p. 27-28).

O conto traz como título o nome da personagem principal e uma apresentação


de sua trajetória, uma aparente vida menor, a “mera das obscuras”, mais bem
Clovis Carvalho Britto / Paulo Brito do Prado / Ludmila Santos Andrade

explorada no desenrolar do fio narrativo. A opção por Miquita faz sentido à


medida em que se compreende ser o nome uma variação da palavra “mica”,
que significa pequena porção ou migalha, mas também remete a um grupo de
minerais da família dos filossilicatos (forma de lâminas).
recordação e antimonumentos na poesia de Cora Coralina

Apesar da personagem ser apresentada como uma “moça como toda moça”
que “contou seus 15 anos como toda jovem”, a descrição se dá pelo viés do
negativo. A narradora a apresenta como alguém destituída de qualquer
qualidade que a fizesse sobressair. Miquita “não era parda. Nem preta, nem
Escovar a literatura a contrapelo: espaços de

morena, nem mulata; canela fina e jeito de boneca de pano malfeita – sem
sal desajeitada. Nem por tantos negativos da natureza, deixou de achar quem
a quisesse. Casou-se mesmo, de palma e capela, que a mãe era lavadeira e
caprichava” (Coralina, 2006, p. 49) nos cuidados com a filha. Todavia os males
do racismo em interface com o cultivo de certas estéticas já lhe afetavam e
Miquita resvalou para o beco.
Cora ressalta a imagem da mãe caprichosa e lavadeira que se sacrifica para
que a filha não tivesse a mesma sorte de solidão e de trabalho subalterno.
Entretanto, todo o esforço da mãe de capricho e cuidado com a filha acaba
fadado ao fracasso, pois a filha é abandonada sem motivo pelo marido. As
descrições dos três primeiros parágrafos remetem a uma forte carga imagética
de desprezo e até mesmo repulsa pela imagem da menina que era destituída
de graça e beleza. A sequência trágica da vida de Miquita inicia-se no quarto
parágrafo com o abandono do marido. Diversas tentativas e impossibilidades
permeiam o conto, pois tudo o que Miquita quis ser, buscou ou desejou de
alguma forma não lhe foi possível vivenciar, assim de malogro em malogro foi
adentrando o universo das margens e marginalizados.
De filha de lavadeira, moça feia e sem jeito passa a ser casada, de casada para
abandonada, de abandonada para lavadeira, de lavadeira para prostituta, de
Artigo

prostituta passa a carregar água. A resiliência e resistência ficam evidenciadas


no conto na medida em que a voz narrativa indica que “ia vivendo a Miquita”
como se fosse suportando os dias, e as dores físicas não lhe fizessem mais
diferença, pois “os pedregulhos das ruas não lhe doíam nos pés”, apenas “ficava

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firme e puxava água”. Tais características são marcas da “poética da pedra”, da


“estética dos becos” ou, como também podemos sublinhar, do modo com que
Cora Coralina escolheu escovar a literatura a contrapelo e fazer de seus versos
antimonumentos.
Suas personagens ganham ares de pedra resistente que “não caía nem se
alterava” apenas seguia de forma seca, sorridente e calada resistindo às durezas
Clovis Carvalho Britto / Paulo Brito do Prado / Ludmila Santos Andrade

da solidão. No que tange, as violências sexuais, físicas e psicológicas Miquita


nutria um sentimento contraditório e paradoxal onde fecundava e sobrevivia
“uma saudade calada do beco triste, do quarto sujo e dos homens brutais que a
espancavam” (Coralina, 2006, p. 50).
recordação e antimonumentos na poesia de Cora Coralina

A condição de ser humano coisificado, de subalterna, de mulher abandonada,


destituída de beleza e de simpatia, levava Miquita enquanto trabalhadora
braçal ao desejo de ser alvo ao menos dos desejos vis e das violências brutais
dos homens que a espancavam, pois estaria sendo alvo dos olhares e desejos de
Escovar a literatura a contrapelo: espaços de

algum modo.
A personagem perpassa por diferentes camadas da zona de marginalização
para ocupar talvez a menos importante e a mais esquecida de todas, pois não é
negra, não é branca: é manchada. Não é lavadeira, não é mulher-dama: carrega
água, tem jeito de boneca, mas de pano e malfeita. Não é bonita, é andrógina,
sem sal e sem jeito. É um não lugar, uma não pessoa, uma não mulher já que
nem mesmo desejo desperta nos homens vis. Logo, entre os marginalizados
ocupa o lugar de maior desprestígio e desvalorização social, pois nem mesmo
para lavar o sujo ou aplacar os desejos masculinos serve.
Ao monumentalizar a menor, das menores das vidas em Goiás, Cora Coralina
elege a personagem esquecida da memória e da história, o que relembra ao
leitor que existiam esses “silêncios da história” (Perrot, 2005), as não pessoas.
O desenrolar do conto apresenta Miquita ganhando quinquilharias de uma
dona e em um momento de saudade “da macheza dos homens brutais que a
espancavam” resolve se embelezar usando as roupas ganhadas e o pó de arroz.
E, na busca por ser notada, vista e desejada, esbarra propositalmente para
chamar a atenção. O desfecho lhe é cruel. Miquita termina esbofeteada, xingada
e perde tudo que ganhou. E o pouco de humanidade que lhe restava é retirado
Artigo

quando a negam o gozo do lazer, do riso e do ócio.


Além de não realizar o desejo e matar a saudade da “macheza”, a personagem
ainda carrega as marcas da violência física e simbólica aceitando sua sina de
carregar latas na cabeça, resiliente, “caladona” e tentando se afirmar como
“muié de bem” para justificar tanto para si mesma quanto para os outros a sua

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não valia para os homens.


O último parágrafo aponta a aceitação da sua condição quase que imutável,
da sua falta de opção restando-lhe apenas o trabalho de carregar latas e revela
uma sociedade patriarcal onde existe uma infinidade de memórias diluídas,
marginais na própria margem. Desse modo, Cora Coralina traz para a cena
uma das muitas vidas invisíveis de Goiás, registrando as vidas menores e
Clovis Carvalho Britto / Paulo Brito do Prado / Ludmila Santos Andrade

reescrevendo a história a contrapelo.


Consideramos que Cora Coralina, por meio de seus poemas, contos e crônicas
recupera àquelas vidas que foram barbarizadas, silenciadas e marginalizadas
para compor a sua voz poética e narrativa. Cora lhe oferece alguma cidadania.
recordação e antimonumentos na poesia de Cora Coralina

Por seus versos ecoam vozes de diferentes mulheres e, ao fazer isso, é como
se convidasse o mundo que as cercava e suas vidas meras e obscuras para a
tessitura do seu projeto literário. No mesmo modo, existe uma identificação
profunda entre a autora, essas personagens e o espaço dos becos por elas
Escovar a literatura a contrapelo: espaços de

habitados, aspecto que metamorfoseia a escritora goiana, ela própria, um


antimonumento.
Nesse aspecto, a obra de Cora Coralina representa a vida e as experiências
das anônimas mulheres brasileiras e amefricanas. Ao descrever os papéis
femininos, os afazeres, as coisas e objetos do universo feminino muitas vezes
silenciado, também revelou os costumes de diferentes mulheres, evidenciando
aquilo que Cristiane Pires Teixeira (2006, p. 37) destacou: “o olhar e a escrita de
uma mulher sobre outras; [...] a análise do que era ser mulher em fins do século
XIX e transcorrer do século XX, no Brasil”.
Logo, consentimos com Kátia Bezerra (2009) e Lélia Gonzalez (2020),
respectivamente, quando a primeira compreende ser os poemas de Cora
ponto de ruptura de paradigmas socioculturais que têm procurado justificar
certas configurações constituídas em torno de relações de poder, de gênero,
sexualidade e racial. Já Lélia Gonzalez (2020) contribui com a presente análise
na medida em que diagnostica o racismo estrutural que lugariza a mulher negra
nas periferias do mundo, nas fronteiras de sua própria identidade.
As duas pesquisadoras oportunizam que situemos Cora Coralina no contexto
da literatura escrita por mulheres, verificando o desejo de colocar em circulação
Artigo

experiências diluídas ou tidas como insignificantes no processo de elaboração


da memória coletiva e construindo, assim, novos quadros para a memória em
Goiás.
Ambas demonstram uma genealogia de mulheres inseridas em um tempo
que as produziu e que ajudaram, de certa maneira, a perpetuar a discriminação

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estrutural, colocando para a mulher negra sempre a tarefa mais pesada: “a de


arcar com a posição de viga mestra de sua comunidade” (Gonzalez, 2020, p. 40).
Por essa linha de interpretação se nota uma política de memória em que
Cora desmantela o mito da casa como espaço da harmonia, sacralidade e paz,
focalizando variadas violências de acordo com a posição da mulher no tecido
familiar. Logo, não há como omitir a centralidade da mulher na reprodução das
Clovis Carvalho Britto / Paulo Brito do Prado / Ludmila Santos Andrade

relações de poder. E a violência não se restringe às figuras masculinas, também


está presente nas relações entre senhora e escrava, mãe e filhos, filha mais
velha e irmãos menores, entre mulheres da ponta inicial da rua e as de seu fim.
Cora Coralina se tornou um antimonumento, ela mesma um elemento
recordação e antimonumentos na poesia de Cora Coralina

conectivo para aproximar os leitores do que até então era desconhecido ou


deliberadamente silenciado. Metaforicamente habitou um estreito beco como
mulher, idosa e interiorana. Além de ser um elemento conformador da vida de
Goiás, a imagem da rua estreita e geralmente fechada num extremo suscitava
Escovar a literatura a contrapelo: espaços de

a ideia de uma dificuldade quase insuperável, um grande aperto ou situação


embaraçosa.
A escritora, encantoada, física e socialmente, por uma sociedade fechada,
“que nunca pôde acompanhar o crescimento de sua eudade humana e social,
descobre, nos becos, a matéria-prima para a construção da imagem poética
de sua própria existência e experiência, bem como da gente pobre com a qual
convive e se compromete” (Pesquero-Ramon, 2003, p. 147).
O projeto literário de Cora Coralina reescreveu os autos do passado a
partir da eleição da literatura como estratégia de resistência, enfrentamento
e de instauração de antimonumentos. Cora Coralina, os poemas e suas/seus
personagens são espaços de recordação para o todo que fora rejeitado nos autos
do passado. São antinomias da civilização, evidências da colonialidade, marcas
da cultura e registros da barbárie.

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Notas
Universidade de Brasília. https://orcid.org/0000-0001-6267-544X.
1

Universidade Federal do Piauí. https://orcid.org/0000-0003-1932-3902.


2

Universidade Federal do Piauí. https://orcid.org/0009-0001-9085-3650.


3

4
Museu Casa de Cora Coralina foi inaugurado em 20 de agosto de 1989, consiste em um
Clovis Carvalho Britto / Paulo Brito do Prado / Ludmila Santos Andrade

museu-casa de literatura criado pela Associação Casa de Cora Coralina e está localizado
na residência onde Cora nasceu e residiu.
Às prostitutas eram assim denominadas pela sociedade vilaboense em fins do século
5

XIX e início do século XX.


recordação e antimonumentos na poesia de Cora Coralina
Escovar a literatura a contrapelo: espaços de
Artigo

Recebido em 02/11/2023 - Aprovado em 17/01/2023


Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.674-706, jul-dez. 2023 } 706
DOI: 10.5433/1984-3356.2023v16n32p707-738

Escola de aprendizes
marinheiros de Santa Catarina
no século XIX

Sailor apprentices schools


in Santa Catarina in the 19th
century

Escuelas de aprendizajes de
marinheiro de Santa Catarina
em el siglo XIX

Sidneya Gaya1
Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin2

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Resumo: Este artigo, realizado por meio do paradigma indiciário


objetiva analisar sob diferentes perspectivas a Escola de
Aprendizes Marinheiros de Santa Catarina (EAMSC). Apresenta
e discute elementos classistas e racistas do estado de Santa
Catarina, desde sua gênese, como província, no século XIX.
Escola de aprendizes marinheiros de Santa Catarina no século XIX

Nesse contexto, formas de escolarização e profissionalização


ainda não universalizados, muitas vezes, eram ofertadas às
populações pobres e negras mediante violência e opressão,
concretizando posições hierárquicas e desigualdades sociais.
Sidneya Gaya / Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin

As EAMSC situavam-se na confluência de objetivos como obter


mão-de-obra subalternizada para a Marinha Imperial e higienizar
os espaços públicos livrando as cidades que se modernizavam,
especialmente as cidades portuárias, com maior complexidade
social, dos menores que por ali perambulavam. Por outro lado,
também representavam a esperança de se instruir, alimentar,
trabalhar com remuneração e conquistar a cidadania em meio ao
ambiente de rigidez e ameaças nas quais operavam, para muitas
famílias e meninos que nelas se inseriram voluntariamente.
Palavras-chave: escolas de aprendizes marinheiros de Santa
Catarina; História da educação; instrução dos negros em Santa
Catarina; Constituição da sociedade catarinense; estruturação
do racismo no Brasil.

Abstract: This article, through the evidentiary paradigm, aims


to analyze from different perspectives the Sailor Apprentices
Schools in Santa Catarina (EAMSC). It presents and discusses
classist and racist elements of the state of Santa Catarina,
since its genesis, as a province, in the 19th century. In this
context, forms of schooling and professionalization not yet
universalized were often offered to poor and black populations
Artigo

through violence and oppression, materializing hierarchical


positions and social inequalities. The EAMSC were situated
at the confluence of objectives such as obtaining subaltern
labor for the Imperial Navy and sanitizing public spaces,
ridding the modernizing cities, especially the port cities,

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with greater social complexity, of the minors who roamed


there. On the other hand, they also represented the hope of
being educated, fed, paid work and conquered citizenship in
the midst of the rigidity and threats in which they operated,
for many families and boys who voluntarily entered them.
Keywords: sailor apprentices schools in Santa Catarina;
History of education; instruction of blacks in Santa Catarina;
Constitution of Santa Catarina society; structuring of racism
Escola de aprendizes marinheiros de Santa Catarina no século XIX

in Brazil.
Sidneya Gaya / Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin
Artigo

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Introdução

Este artigo, na intenção de analisar sob diferentes perspectivas a Escola


de Aprendizes Marinheiros de Santa Catarina (EAMSC), apresenta e discute
elementos da constituição classista e racista do estado de Santa Catarina, com
base em sua gênese, como província, no século XIX. Nesse contexto, formas
de escolarização e profissionalização ainda não universalizadas, muitas vezes,
Escola de aprendizes marinheiros de Santa Catarina no século XIX

eram ofertadas às populações pobres e negras mediante violência e opressão,


concretizando posições hierárquicas e desigualdades sociais.
As Escolas de Aprendizes Marinheiros situavam-se na confluência de
objetivos como obter mão-de-obra subalternizada para a Marinha Imperial
Sidneya Gaya / Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin

e higienizar os espaços públicos livrando as cidades que se modernizavam,


especialmente as cidades portuárias, com maior complexidade social, dos
menores que por ali perambulavam. Por outro lado, estas escolas também
representavam a esperança de se instruir, alimentar, trabalhar com remuneração
e conquistar condições de sobrevivência e direitos em meio ao ambiente de
rigidez e ameaças nas quais operavam, para muitas famílias e meninos que
nelas se inseriram voluntariamente.
Considerando ainda que as EAMSC respondiam às mesmas prerrogativas
e deliberações que as demais Escolas de Aprendizes Marinheiros do Brasil,
destacamos neste texto o emblemático episódio da Revolta da Chibata, por sua
grande relevância social e histórica3. Protagonizada pelos marinheiros oriundos
dessas escolas que reinventaram seus próprios papeis sociais ao se posicionarem
contra hegemonicamente, por meio de táticas (compreendidas segundo a
concepção de Michel de Certeau (2020), através de ações movidas por sujeitos
dos grupos subalternalizados, no interior da estrutura subalternalizante e que
possuem significados constituídos com base nas definições de suas próprias
necessidades), estes sujeitos inscreveram-se na história na luta por direitos e
cidadania.
Para introduzir o tema, é preciso também dizer, sobre as fontes disponíveis
para construção da narrativa sobre a primeira EAMSC situada em Desterro4,
que em agosto de 2000 a instituição teve a maior parte de seus documentos
Artigo

queimados e outra parte doada para entidades beneficentes para serem


vendidos para reciclagem e assim arrecadar verbas, a mando do Capitão dos
Portos, Tenente Eddie Gilvanni de Castro Henriques, no processo de mudança
e instalação da escola em novo endereço (Silva, 2002). Desse modo, as fontes
primárias consultadas consistem em: Recenseamento de 1872, artigos do

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periódico “O despertador”, correspondências entre os Presidentes da Província


de Santa Catarina e o Ministério da Marinha, Decretos Imperiais, Coleção de
Leis do Império do Brasil, Decretos da República, Coleção de Leis da Província
de Santa Catarina, Regulamentos das Companhias de Aprendizes Marinheiros.
Essa documentação encontra-se localizada na Hemeroteca Catarinense, além da
Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina (BPESC) e do Arquivo Público do
Estado de Santa Catarina (APESC). Como fontes secundárias, três dissertações
Escola de aprendizes marinheiros de Santa Catarina no século XIX

de mestrado e uma tese de doutorado, além das publicações de Silvia Capanema


de Almeida, José Miguel Arias Neto e Álvaro Pereira do Nascimento que tratam
do tema. Ainda em relação a essas fontes historiográficas, expressamos nossa
opção por manter a escrita da época, conforme consta nos documentos, por
Sidneya Gaya / Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin

considerarmos uma conduta leal e respeitosa.


A primeira dissertação de mestrado concluída em 2002, na Universidade
Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências da Educação no Programa de
Pós-Graduação em Educação, denominada “A Escola de Aprendizes Marinheiros
e as crianças desvalidas: Desterro (SC), 1857-1889”. De Velôr Pereira Carpes
da Silva, o trabalho apresenta “alguns aspectos do cotidiano da Vila de Nossa
Senhora do Desterro (atual Florianópolis)”, além de informações relevantes
sobre a instalação da EAMSC, “sobre seus alunos, seu aprendizado e ainda
sobre a forma como era administrada pelas autoridades”. Velôr Pereira Carpes
da Silva relata sobre a destruição dos documentos relativos ao século XIX e a
necessidade de busca por “fontes documentais oficiais do período, encontradas
no Arquivo Público e na Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina” para a
realização do estudo (Silva, 2002, p. 6)
A segunda dissertação, foi elaborada na Universidade Federal de Santa
Catarina, Centro de Ciências da Educação, no Programa de Pós-Graduação
em Educação, por Giseli Terezinha Machado, defendida em 2007, intitulada
“Escreveu, não leu, o pau comeu: a Escola de Aprendizes-Marinheiro de Santa
Catarina (1889-1930)”. A pesquisa analisou a EAMSC por meio de “documentos
oficiais, jornais, fotografias e bibliografias nas áreas de Educação, Filosofia e
História”, inserida nos contextos tanto imperial quanto “do projeto de nação
republicana, traçando-se suas semelhanças e diferenças com o modelo dos
Artigo

grupos escolares, demonstrando-se de que forma as duas instituições escolares


se aproximam e se afastam dentro da política higienista e educacional”. Estudou
sua “localização, o público-alvo e missão” materializadas em “uma cultura
escolar própria, de docilização do corpo, que parecia ser a única capaz de incluir,
agir e civilizar seu público-alvo: os vadios e vagabundos que perambulavam

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pelas ruas de Florianópolis”, considerando também elementos de resistência a


este “ambiente híbrido, escolar e militar, uma filosofia pautada no trabalho e
no controle de sujeitos” (Machado, 2007, p. 7).
A terceira dissertação de mestrado, de Daniele Sebrão, intitulada “Presença/
Ausência de africanos e afrodescendentes nos processos de escolarização em
Desterro – Santa Catarina (1870-1888)”, do Programa de Pós-graduação em
Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina, em Florianópolis, é
Escola de aprendizes marinheiros de Santa Catarina no século XIX

datada de 2010. A autora aborda “aspectos da cidade, das populações de origem


africana e questões relativas ao ensino primário, secundário e à legislação”,
além de apresentar “experiências de enfrentamento da problemática da
escolarização de africanos e afrodescendentes, sob o enfoque de “indícios”,
Sidneya Gaya / Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin

“intenções”, “iniciativas”:

Em síntese, a pesquisa apresenta elementos sobre a instrução


popular e sobre as possibilidades que as populações de origem
africana poderiam vislumbrar nas políticas voltadas à educação
para os pobres. Apresenta, também, o movimento complexo de
presença/ausência, em que experiências da presença de africanos
e afrodescendentes em escolas coexistem com um processo de
ausência, num sentido de invisibilidade, com um ‘apagamento de
seus rastros’ nas representações engendradas (Sebrão, 2010, p. 7).

Enfim, uma tese de doutorado foi defendida em 2022, também no Programa


de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina, em
Florianópolis, intitulada “Estratégias e táticas para a formação de crianças,
jovens e adultos das classes populares e da população negra em Santa Catarina
(1870-1930)”. Seu objetivo era “compreender a gênese dos processos de
instrução das populações de crianças, jovens e adultos das camadas populares
com especial enfoque das populações negras em Santa Catarina entre 1870 e
1930”, analisando diversas instituições, dentre as quais, a EAMSC (Gaya, 2022, p.
27). Entre os principais resultados aponta a necessidade de registrar “os esforços
despendidos” por parte das crianças, jovens e adultos das classes populares e
da população negra assim como seus familiares no referido contexto histórico:
Artigo

[...] no sentido de se autoformarem em perspectiva contra


hegemônica, validando e revalidando a cada dia, a cada ato e a
cada discurso seu próprio valor e direitos, além de estenderem
ativamente estes direitos e valor a seus companheiros e suas

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companheiras de classe, lutando contra obstáculos materiais e


simbólicos necessita ainda ser combinado, quase 100 anos depois
com esforços de registrá-los, analisá-los e socializá-los na escrita
da história (Gaya, 2022, p. 108).

O diálogo com as fontes ocorre na perspectiva do paradigma indiciário,


buscando a análise minuciosa de todos os registros disponíveis, incluído
Escola de aprendizes marinheiros de Santa Catarina no século XIX

dados considerados marginais ou menos relevantes. Devida à falta da presença


direta do objeto investigado, no caso, da grande parte da documentação que
foi destruída, inspiramo-nos nas nossas ancestrais habilidades para “farejar,
registrar, interpretar e classificar pistas infinitesimais” localizadas na Biblioteca
Sidneya Gaya / Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin

Pública e no Arquivo Público, ambos do Estado de Santa Catarina, além das


grandes contribuições das pesquisas já realizadas (Ginzburg, 1989, p. 151).

Elementos que constituíram a sociedade catarinense

A Ilha de Santa Catarina é relatada por navegadores a serviço da coroa


espanhola em busca do Rio da Prata em 1515 e 1516. Situando-se em uma
longa extensão de costa retilínea, foi importante posto de abastecimento
imprescindível para o comércio de água, alimentos e madeira. Criaram-se os
primeiros povoamentos no século XVII e as famílias de imigrantes açorianos,
como primeiros colonizadores, instalaram-se no século XVIII, para cultivar
trigo, cânhamo, linho e algodão, conforme os interesses da Coroa Portuguesa.
Nesse mesmo século, foram construídas cinco grandes armações baleeiras, que
demandaram grande quantidade de força de trabalho escravizado para a caça
e produção de óleo de baleias. Para além dos trabalhos nos cultivos agrícolas
e nas armações baleeiras; ou do setor primário, a população escravizada
trabalhava nas atividades domésticas e comerciais, na logística de mercadorias
para o porto e casas de comércio, como “escravos de ganho” ou em funções
mais especializadas como marceneiros, sapateiros, calafates, por exemplo
(Biléssimo, 2010, p. 76-78).
No final do setecentos, com a processual integração da Ilha de Santa Catarina
ao circuito comercial de gêneros de abastecimento, a população escravizada
Artigo

aumentou significativamente, segundo os mapas populacionais da capitania,


entre os anos de 1796 e 1814 em quase 40% (Mamigonian; Vidal, 2013, p.
24-25). Entre os anos de 1780 e 1820, a província inseriu-se no circuito de
comercialização de alimentos, fazendo negócios com outros portos das áreas

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Centro-Sul e Nordeste do Brasil. Vendia principalmente a mandioca produzida


localmente e ainda articulava: o tráfico de escravizados entre Angola e Rio-de-
Janeiro, com destino ao Centro-Sul brasileiro; “o contrabando para o Rio da
Prata; e a distribuição de alimentos nas áreas de mineração e de produção de
açúcar no Sudeste” (Mamigonian; Vidal, 2013, p. 25).
Nesse sentido, devido ao fato de a província de Santa Catarina não se ter
inserido nas grandes atividades exportadoras, como a plantation ou a mineração,
Escola de aprendizes marinheiros de Santa Catarina no século XIX

a quantidade de escravizados pode ter sido limitada em comparação com outras


províncias, mas, o grau de dependência dessa modalidade de trabalho e sua
importância foi igualmente relevante (Leite, 1991, p. 17).
Após os açorianos, imigrantes alemães chegaram nas décadas de 1820 e de
Sidneya Gaya / Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin

1880, italianos, a partir de 1875 e poloneses em 1882 (Paulilo, 1998). O incentivo


à colonização europeia justificava-se pela possibilidade de aquisição de mão-
de-obra abundante e barata tanto quanto pela possibilidade de branqueamento
da população, aplicada de modo a servir de exemplo em Santa Catarina (Leite,
1991, p. 5-12).
Em 1738 o território catarinense foi criado, constituído como a Capitania
de Santa Catarina, tendo como capital a Vila de Nossa Senhora do Desterro. A
coroa portuguesa ocupada em defender o território, construiu fortes e enviou
militares com suas famílias para residir e trabalhar na região. Nesse mesmo
movimento, foram enviados casais açorianos, cujas mulheres tivessem a idade
de no máximo 30 anos e os homens no máximo 40, para a colonização, tendo
suas viagens e instalações financiadas pela coroa para povoar a ilha (Cabral,
1951, p. 15).
Segundo Cabral (1972, p. 12), também era usual ao longo do século XVIII que
as tropas portuguesas recrutassem os colonos para serviços do exército tanto
para auxiliar nos serviços quanto para que estivessem mais bem preparados para
defender o território em caso de invasões. Estas convocações eram realizadas
com violência, de acordo com Mesgravis (2003, p. 46), aplicadas pelos militares
contra as populações pobres e pretas, escravizadas ou livres. Enquanto as formas
de violência e rigidez da vida militar eram tidas como motivo de pânico entre
os não membros da elite, era afirmada como mecanismo de disciplinamento
Artigo

necessário a ser aplicado à indisciplinada população civil (Cabral, 1972, p. 9).


O recrutamento (compulsório) na população da Capitania de Santa Catarina de
garotos entre 10 e 17 anos para compor o quadro de alunos da Companhia de
Aprendizes Marinheiros da Corte, e de recrutas entre 17 e 30 anos para compor
o quadro da Companhia do Corpo de Imperiais Marinheiros da Capitania do Rio

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de Janeiro, também era comum no decorrer do período imperial.


Todos os processos de urbanização, modernização e civilização nos séculos
XIX e XX continuaram a acentuar a perspectiva da divisão de classes e raças na
província e, a partir da República, no Estado de Santa Catarina. É fundamental
a compreensão da processual estruturação do racismo nesse estado, que
implicava diretamente aspectos como exploração da força de trabalho,
expropriação de terras, negação de direitos e desvalorização de cosmovisões
Escola de aprendizes marinheiros de Santa Catarina no século XIX

e epistemologias, exercício de violência, entre outros. Nessa perspectiva, a


estruturação do racismo e da ideologia do branqueamento em Santa Catarina,
seguiu o processo histórico dessa construção material e simbólica no Brasil,
entretanto, de forma exemplar.
Sidneya Gaya / Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin

A constituição do racismo no Brasil do oitocentos

Embora consideremos o conceito de racismo definido como “princípio


constitutivo que organiza, a partir de dentro, todas as relações de dominação
da modernidade, desde a divisão internacional do trabalho até as hierarquias
epistêmicas, sexuais, de gênero, religiosas” (Grosfoguel, 2018, p. 67), discutimos
aqui o espraiamento do preconceito racial instituído, especialmente no Brasil,
que legitimou as práticas do regime escravagista e permitiu que a abolição da
escravidão nas últimas décadas do século XIX ocorresse sem maiores mudanças
sociais em relação ao status no qual já se encontrava a população negra; cativa,
liberta e livre. Nesse contexto, segundo Gaya (2022, p. 61):

[...] o argumento racial foi estrategicamente construído e o


conceito de raça assumiu para além da definição biológica, uma
interpretação local, adequada à realidade social brasileira e aos
interesses das elites dominantes, ocupadas em dar respostas aos
problemas referentes à substituição da mão de obra, sem abrir
mão da conservação da rígida hierarquia social no processo de
estabelecimento dos critérios de cidadania.

No Brasil do século XIX, segundo Lilia Schwarcz, desenvolveu-se uma forma


Artigo

específica de determinismo, de cunho racial, o “darwinismo social” ou “teoria


das raças”, que condenava a miscigenação, uma vez que impossibilitaria a
transmissão dos caracteres conquistados pela evolução social. Constitui-se
assim uma percepção das raças como “fenômenos finais, resultados imutáveis,

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sendo todo cruzamento, por princípio, entendido como erro” (Schwarcz, 2010,
p. 85). Consequentemente, essa perspectiva posicionava os “tipos puros” no
topo da hierarquia social e a mestiçagem como elemento de degeneração racial
e social. Schwarcz afirma que em oposição à concepção humanista, as escolas
etnológicas partiam de três proposições fundamentais:

A primeira tese afirmava a realidade das raças, estabelecendo que


Escola de aprendizes marinheiros de Santa Catarina no século XIX

existiria entre as raças humanas a mesma distância encontrada


entre o cavalo e o asno, o que pressupunha também uma
condenação ao cruzamento racial. A segunda máxima instituía
uma continuidade entre caracteres físicos e morais, determinando
que a divisão do mundo entre raças corresponderia a uma divisão
Sidneya Gaya / Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin

entre culturas. Um terceiro aspecto desse mesmo pensamento


determinista aponta para a preponderância do grupo ‘racio-
cultural’ ou étnico no comportamento do sujeito, conformando-
se enquanto uma doutrina de psicologia coletiva, hostil à ideia do
arbítrio do indivíduo (Schwarcz, 2010, p. 80).

De acordo com a autora, esse arcabouço teórico legitimou ideias e práticas


políticas, desde a submissão até a eliminação das raças inferiores, convertidas
em “uma espécie de prática avançada do darwinismo social — a eugenia —, cuja
meta era intervir na reprodução das populações”. O termo “eugenia”, criado em
1883 por Francis Galton significava “boa geração” e sua proposição converteu-
se “em um movimento científico e social vigoroso a partir dos anos 1880, a
eugenia cumpria metas diversas” (Schwarcz 2010, p. 80).

Como ciência, ela supunha uma nova compreensão das leis da


hereditariedade humana, cuja aplicação visava a produção de
‘nascimentos desejáveis e controlados’; enquanto movimento
social, preocupava-se em promover casamentos entre
determinados grupos e — talvez o mais importante — desencorajar
certas uniões consideradas nocivas à sociedade. O movimento
de eugenia incentivou, portanto, uma administração científica e
racional da hereditariedade, introduzindo novas políticas sociais
Artigo

de intervenção que incluíam uma deliberada seleção social


(Schwarcz, 2010, p. 80).

Com base nessas concepções, instituiu-se no Brasil, uma série de políticas

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de branqueamento. Andreas Hofbauer afirma que o ideário de branqueamento


atuou e atua como eixo estruturante ideológico das relações de poder de tipo
patrimonial estabelecidas no Brasil desde o período colonial, com massivo
apoio econômico, que ia desde o pagamento das passagens até a doação de
terras, insumos e animais de cultivo para grupos de europeus que quisessem
viver no Brasil (Hofbauer, 2003, p. 67-68).
Segundo Skidmore (1976), no século XIX as hierarquizações racistas
Escola de aprendizes marinheiros de Santa Catarina no século XIX

aprofundaram-se e se difundiram significativamente a partir dos países


centrais. Os movimentos abolicionistas, vitoriosos no Atlântico Norte,
chegaram ao Atlântico Sul, determinando a iminência do fim da escravização e
a possibilidade de um conjunto de direitos reclamados à população negra, por
Sidneya Gaya / Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin

meio de fortes pressões morais e sanções econômicas. Em resposta, as elites


europeias forjavam e difundiam teorias sobre as diferenças inatas. O racismo,
que havia sido considerado teoria pseudocientífica no início do século XIX,
alcançou status de teoria científica a partir de 1860 e passou a ser aceito por
lideranças políticas nos Estados Unidos da América e nos países da Europa
(Skidmore, 1976, p. 65).
No final do oitocentos, as rígidas articulações entre patrimônio genético,
aptidões intelectuais e inclinações morais, com base no conceito de raça,
forjaram a chave de interpretação para as desigualdades observadas e para
a singularidade nacional no Brasil. Os cientistas locais adaptaram as teorias
deterministas à realidade de um povo já muito miscigenado, segundo os modelos
evolucionistas em voga. Na iminência da abolição, a população de negros e
mestiços livres era superior a 50% em quase todas as províncias, excetuando-se
a região sudeste onde 61% da população branca predominava (Schwarcz, 2010,
p. 11).
A aceitação da doutrina racista esvaziou debates sobre os papeis de
cidadania passíveis de serem exercidos por sujeitos que ameaçavam assumir
funções ativas de cidadania e participar dos processos decisórios políticos. Os
sujeitos passaram a ser compreendidos como resultados de suas determinações
biológicas, cujas fortes influências determinavam, portanto, as limitações
sociais. Os dogmas forjados nesse momento histórico específico possibilitaram
Artigo

que se estruturassem hierarquias de conservação dos papeis sociais impostos


antes da deliberação pela abolição da escravatura e do estabelecimento da
igualdade formal entre os homens e mulheres (negros, mestiços e brancos) que
compunham a sociedade nacional.
Por meio de mecanismos como a imprensa, os romances, as teses científicas

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e os discursos públicos, os conceitos sociais iam se construindo e enraizando,


dando conta de conformar os lugares sociais considerados como predestinados.
À força da lei, restava conformar os sujeitos que insistiam em ficar fora destes
lugares, tanto pela truculência policial, quanto pelas deliberações legais, como
por exemplo o Decreto nº 3.029, redigido por Rui Barbosa, em homenagem ao
ministro José Antônio Saraiva, de 9 de janeiro de 1881, conhecido como Lei
Saraiva. Ao proibir o direito ao voto dos analfabetos, segundo Chalhoub (2010,
Escola de aprendizes marinheiros de Santa Catarina no século XIX

p. 42), esta legislação restringiu significativamente os direitos políticos formais


dos negros, em um “país em que negro na escola chegara até a ser caso de
polícia”. Concretamente, destituiu as possibilidades de cidadania política de
gerações inteiras de negros que lutavam naqueles anos pelo “final da escravidão
Sidneya Gaya / Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin

na esperança de outro futuro. A exclusão dos analfabetos continuou república


adentro, por muitas décadas, com a população afrodescendente a permanecer
à espera da expansão da instrução primária a conta-gotas” (Chalhoub, 2010, p.
42-43).
Os homens de ciência e a imprensa capilarizavam suas teorias congregando a
adesão e anuência da população à manutenção e legitimação das hierarquizações
propostas apresentadas como forma de modernização, higienização e progresso
da nação recém fundada, constituindo uma sociedade dual com indivíduos
e grupos sujeitos desde o nascimento à ação da lei, e de outros indivíduos e
grupos aos quais a legislação apenas protegeria (Schwarcz, 2010).
Desse modo, as instituições privadas e públicas participaram da construção
do ideário racista, tendo a Escola como um de seus instrumentos, operando
hegemonicamente ainda que não de maneira homogênea. Entretanto, a inserção
na modernidade compreendia, também fundamentalmente, a necessidade da
instrução do povo, incluindo “africanos” e “caboclos”, como explicam Romão e
Carvalho:

Observamos o chamado das elites aos filhos das famílias menos


abastadas ao espaço escolar. Essa ‘preocupação’ em conduzir
o povo à escolarização seria o desejo de normatizar, ordenar,
homogeneizar as massas aos meios de controle social, entre
eles a escola, que se apresentava de forma mais eficaz e direta.
Artigo

Nesse novo contexto os negros são considerados cidadãos.


Aparentemente eles vão estar ‘diluídos’ na camada mais
significativa da população – os pobres. Ou seja, vão dividir espaços
com os não negros, mas igualmente pobres (Romão; Carvalho,

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2003, p. 50).

Este chamado à instrução, com poucas vagas e, geralmente em condições


difíceis, para a população negra no espaço escolar deu-se por muitos anos de
forma irregular e intermitente, sob opressão e violência ou ameaça de violência,
que também instituía aos que eram intimidados. Nesse sentido, os registros e
as narrativas sobre as formas de instrução da população negra merecem maior
Escola de aprendizes marinheiros de Santa Catarina no século XIX

visibilidade e registros. Segundo as pesquisas de Viana, Ribeiro Neto e Gomes


(2019, p. 155), “há registros desde o século XVIII que escravizados escreveram
textos ou deixaram expressos em textos escritos por homens livres, suas
vontades, desejos e percepções”:
Sidneya Gaya / Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin

Sendo o letramento restrito a pequeníssima parcela das


sociedades coloniais e pós-coloniais – dos séculos XVIII ao XIX
– a existência desses sujeitos, o uso de códigos que faziam e suas
expectativas se fazem relevantes. Mais do que dominar a escrita
ou a leitura tentavam dominar os símbolos das culturas letradas
e partes dos mundos que estavam envolvidos e faziam reproduzir
(Viana; Ribeiro Neto; Gomes, 2019, p. 155).

Em Santa Catarina, podemos listar poucas ofertas de escolarização no


oitocentos destinadas inclusivamente à população negra, para além do
esforço de se instruírem fora da escola. Citamos entre estas, as irmandades e
associações negras que demonstravam e lutavam por essa intenção, obedecendo
deliberações legais e burocráticas impostas pelo poder público, as Escolas
Noturnas que funcionaram ente 1870 e 1888 sem apoio econômico do estado e
com pouco apoio da sociedade e as EAMSC fundadas em 18855, mantidas pelo
governo, mas, com tratamento totalmente diferenciado segundo as classes
sociais.

A escolarização em Santa Catarina especialmente para a população


negra no século XIX
Artigo

Em relação à escolarização, a primeira proibição à matrícula de cativos


foi deliberada pela Lei nº 382 de 1º de julho de 1854, que em seu Artigo 35
interditava a instrução pública aos “cativos e aos afetados por moléstias
graves” (Santa Catarina, 1854). O Regulamento para a Instrução Primária de

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Santa Catarina de 5 de maio de 1859, manteve a interdição e o Regulamento


para a Instrução Secundária de 30 de junho de 1859, no 27º Artigo, deliberou
que não fossem admitidos à matricula os escravos, os que sofressem moléstias
contagiosas, e os que por mau comportamento tivessem sido expulsos das
aulas, por determinação do Presidente da Província (Santa Catarina, 1859). O
Regulamento de 29 de abril de 1868, aprovado pela Lei nº 620 de 04 de junho
de 1869, manteve a posição assegurando a proibição das matrículas tanto aos
Escola de aprendizes marinheiros de Santa Catarina no século XIX

meninos que padecessem de moléstias contagiosas quanto aos escravos.


Segundo o recenseamento de 1872, a população catarinense era composta por
63.502 homens brancos e 62.440 mulheres brancas; 5.941 homens pardos e 5.796
mulheres pardas; 2.199 pretos e 2.048 pretas e, 1446 caboclos e 1446 caboclas.
Sidneya Gaya / Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin

Os brasileiros somavam 64.731 e as brasileiras 65.241 enquanto os estrangeiros,


8.357 e as estrangeiras, 6.489. A distinção entre alfabetizados indicava que
havia 13.207 pessoas que sabiam ler e escrever para 59.161 analfabetos. Por
fim, a escola era frequentada por 3.100 meninos e 2.114 meninas enquanto
15.776 meninos e 15.473 meninas não a frequentavam (Brasil, 1872). Entre os
14.984 escravizados, 46 sabiam ler e escrever. A proporção de alfabetizados
na província catarinense era de 21%, fator que, somado aos dificultamentos
à população negra de frequentar as escolas, significa a escola e as formas de
instrução disponíveis como estratégia de consolidação da estrutura racista
nesse contexto; mas registra também no mínimo 46 pessoas escravizadas,
que furtivas ao mecanismo panóptico, lograram instruir-se e registrar-se nas
estatísticas oficiais como alfabetizadas a despeito da poderosa estrutura que
lhes interditava tais conquistas (Brasil, 1872).
Aliadas às Escolas como lugares de produção das hierarquias sociais racistas
e classistas, as produções estatísticas eram também produções racionalizadas,
expansionistas, centralizadas, espetaculares (Certeau, 2020, p. 39), a inscrever
na história a quase total impossibilidade de instrução ou alfabetização para
os escravizados, a qual não atingia 1%. Dentro desta história, os pobres e os
negros, absolutamente ocupados com táticas de sobrevivência, uma vez que “as
aspirações e exigências são definidas em sua forma e conteúdo pelas condições
objetivas que excluem a possibilidade de desejar o impossível” nem sempre
Artigo

perdiam seu tempo a “desejar o impossível” (Bourdieu, 1998, p. 47). Além do


que, tanto esforço não se mostrava empiricamente assegurador de garantias
de melhores condições de vida. Entretanto, no curso da história, inscrevem-
se produções diversas, não imediatamente visíveis, em meio às produções
estatísticas e discursivas, demonstrando que as formas de consumo destas

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produções também se fizeram muitas vezes de forma “astuciosa e dispersa”,


“ubiquamente insinuadas” “silenciosas e quase invisíveis”, constituindo-se em
“outras maneiras de empregar os produtos impostos pela ordem econômica
dominante”. (Certeau, 2020, p. 41).
Nessa perspectiva, analisamos a frequência dos meninos pobres e negros
à Escola de Aprendizes Marinheiros de Santa Catarina (EAMSC), fundada na
segunda metade do oitocentos. Situada no cruzamento entre a afirmação da
Escola de aprendizes marinheiros de Santa Catarina no século XIX

instrução como instrumento de acesso à cidadania (legitimado pela Reforma


Eleitoral de 1888) e as interdições materiais e simbólicas para a frequência
da população negra e pobre às escolas, a EAMSC apresentou-se como espaço
de sobrevivência, instrução e possibilidade de trabalho e renda para meninos
Sidneya Gaya / Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin

pobres, negros e brancos, todos acolhidos sob o signo de que podem aprender
a ler, escrever, calcular matematicamente, apropriar-se de conhecimentos
escolares, especializar-se em uma profissão e afirmar-se socialmente sobre
novas bases.

A escola de aprendizes marinheiros de Santa Catarina (EAMSC)

A prática de recrutar menores para servir na Marinha Imperial ocorria antes


mesmo da criação das Companhias de Aprendizes Marinheiros ou das Escolas de
Aprendizes Marinheiros. O aviso Circular emitido pelo Ministério da Marinha
em nome do Imperador ao Presidente da Província de Santa Catarina em 1849
ilustra esta conduta:

Sendo assaz conveniente a aquisição de menores para a respectiva


Companhia do Corpo de Imperiais Marinheiros; Determina Sua
Magestade O Imperador, que V. Exª. procure enviar para esta
Côrte o maior numero que puder obter de taes menores, de dez
até desesete annos de idade, empregando para esse fim, não só
os meios de persuasão, e mesmo dando alguma quantia, a titulo
de gratificação, aos Paes, ou a quaesquer outras pessôas delles
encarregadas, mas tambem o de engajamento, e, em ultimo caso,
o de recrutamento d’aquelles que sem arrimo vagarem pelas ruas
Artigo

[...] (Brasil, 1849).

Somada a esta necessidade, a prática de recrutamento para a EAMSC também


atendia a preocupação das elites em Desterro na década de 1850 relativamente
aos processos de urbanização, especialmente da região central da cidade,

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que incluía o Porto, espaço de consumo e de escoamento da produção da


Capitania de Santa Catarina, portanto, lugar de grande atividade. A circulação
de pessoas das classes populares e das populações negras naquele espaço era
vista com preocupação pelas elites locais por motivos de segurança, higiene
e intenção estética e demandava ações por parte do poder público. Como nos
demais contextos a se urbanizar, as crianças (já que acima de 15 anos eram
considerados adultos) que vagavam pelas ruas eram também consideradas
Escola de aprendizes marinheiros de Santa Catarina no século XIX

problema de segurança pública.


A EAMSC objetivava “além da limpeza de sujeitos indesejáveis dos centros
urbanos, o provimento de sua qualificação profissional, tornando-os úteis,
funcionais ao projeto de Nação Republicana” e anteriormente do Império. O
Sidneya Gaya / Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin

corpo de marinheiros dividia-se entre o baixo escalão composto pelos “jovens


marinheiros da Escola de Aprendizes e em parte por homens indicados pela
polícia – desocupados, malfeitores, criminosos” enquanto o corpo de oficiais era
representado pelos “filhos de senhores do café e descendentes de tradicionais
famílias da aristocracia brasileira e, neste caso, os jovens eram convidados
a integrar as forças navais não para exercer a função de praça, mas já como
oficiais” (Machado, 2007, p. 58).
As preocupações com a ordem, a estética e a civilização fomentavam ações
e discursos em um espaço que necessitava de todas e todos (escravos de
ganho, donos de armazéns, fregueses, etc.), mas, que não aceitava igualmente
a representatividade e os direitos dos diferentes sujeitos e grupos que por
lá circulavam. Desse modo, a EAMSC, criada em Desterro atenderia alguns
anseios tais como; no âmbito imperial e depois republicano, aumentar o corpo
de marinheiros da Marinha Nacional, e, no âmbito local, disciplinar os meninos
pobres, especialmente, os que até o momento circulavam livres pelo espaço
urbano.
Nessa perspectiva, na cidade de Desterro, na década de 1850, “o hospital
militar, que situava-se no meio do pequeno centro urbano; as paredes e
arredores dos templos, locais onde se enterravam os mortos para mantê-los no
espaço do sagrado; e as barraquinhas de comércio que existiam na praça central
da cidade, junto ao mar” foram compreendidos como “focos de desordem
Artigo

sanitária”, bem como “os doentes (especialmente os soldados que circulavam


por Desterro); os cadáveres; e os que frequentavam as barraquinhas, sobretudo
à noite: escravos libertos, ‘brancos vadios’ e ‘prostitutas’” (Oliveira, 1990, p.
147-148). Em relação às crianças órfãs ou cujos pais não pudessem sustentar,
a Roda dos Expostos, criada em 1828, cumpria a função de recolhimento das

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crianças abandonadas. Entretanto, na década de 1850, também este problema


agravou-se:

Em 1854 foram expostos 48 recém-nascidos, o maior número


registrado pela assistência de Desterro. Se na década de 1850,
em termos absolutos, os registros de expostos atingiram os
índices mais elevados do período compreendido entre 1828 e
1893 – época em que a assistência esteve sob a administração da
Escola de aprendizes marinheiros de Santa Catarina no século XIX

Irmandade do Senhor dos Passos -, também na década de 1850


constatamos uma pluralização das problematizações investidas
na produção da ‘questão dos expostos’. Posteriormente à década
de 1850 ocorreu uma gradual inflexão na frequência de registro
Sidneya Gaya / Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin

de expostos, que se tornaram efetivamente raros na década de


1880, sem que tenhamos encontrado evidências de que, ao longo
deste processo de retração, a prática de expor tenha sido coibida
em Desterro (Porto, 2011, p. 77).

As preocupações com a modernização e urbanização, especialmente para


a capital Desterro fundamentavam-se nas teorias científicas, biológicas e
médicas. Na década de 1850, como emblema da reconfiguração arquitetônica
deste espaço, construiu-se o primeiro Mercado Público de Desterro em janeiro
de 1851, o qual se apoiava em documentos como o “Regulamento de Mercado
Público” ou o “Código das Posturas da Câmara Municipal de Desterro” e
deliberava uma série de interdições especificamente destinadas a “mendigos”,
“vadios escravos”, “pretos de ganho” e outros “indesejáveis” (Popinigis, 2013,
p. 161-171).
Nesse contexto, criada em 1857, a Companhia de Aprendizes Marinheiros
de Santa Catarina, tornada em 1885 por meio do Decreto nº 9371 de 14 de
fevereiro de 1885, Escola de Aprendizes Marinheiros de Santa Catarina, teve
sua 1ª Divisão em Desterro e a 2ª Divisão, em Laguna. Dentre as alterações,
passou a recrutar meninos não mais entre 10 e 17 anos, mas, entre 13 e 16
anos. Obedecendo ao Decreto, os Comandantes das Escolas eram diretamente
subordinados ao Quartel-General da Marinha. Por outro lado, os presidentes
das províncias as inspecionariam no mínimo a cada 6 meses enviando ao
Artigo

Governo relatos com os resultados das inspeções. Além da função de diretor


geral da Escola, tendo por responsabilidade exclusiva “a educação moral e
profissional dos aprendizes”, o Comandante ainda deveria enviar ao Quartel-
General relatórios mensais da Escola sobre todo o seu pessoal e, “de seis em seis

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mezes, informações sobre o adiantamento, conducta e aptidão profissional dos


aprendizes, com declaração das faltas commettidas, dos castigos infligidos e de
quaesquer outras occurrencias dignas de nota, que deverão constar do livro do
serviço diário”, além de um Relatório Geral do Estabelecimento, anualmente,
em fevereiro, ao Ministério da Marinha (Brasil, 1885).
Para serem admitidos os meninos deveriam, além da idade especificada, não
ter defeitos físicos que inabilitassem para o serviço da Armada; vacinar-se ou
Escola de aprendizes marinheiros de Santa Catarina no século XIX

revacinar-se na Escola antes de serem matriculados; ser apresentados por seu


pai ou tutor, ou por sua mãe quando filho ilegítimo; ou órfãos desvalidos ou
ingênuos remetidos pelas autoridades competentes. Os aprendizes contratados
teriam direito a um prêmio de cem mil réis, e de cento e cinquenta mil réis
Sidneya Gaya / Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin

quando soubesse ler, escrever e realizar as quatro operações fundamentais da


aritmética. Quando os prêmios não fossem reclamados por pais ou tutores,
seriam revertidos em favor do pecúlio dos aprendizes. Uma vez na Escola, o
aprendiz só poderia ser desligado por incapacidade física ou mental, provada
por inspeção de saúde e de ordem do Ministro da Marinha. (Brasil, 1885).
Por níveis, o ensino seria dividido entre elementar e profissional, sendo o
primeiro nível considerado como Ensino elementar e composto das seguintes
disciplinas:

1º Leitura de manuscriptos e impressos;


2º Calligraphia;
3º Rudimentos da grammatica portugueza;
4º Doutrina christã;
5º Principios de desenho linear e confecção de mappas
regimentaes;
6º Noções elementares de geographia physica, principalmente no
que diz respeito ao litoral do Brazil;
7º Pratica sobre operações de numeros inteiros, fracções
ordinarias e decimaes; conhecimento pratico e applicação do
systema metrico (Brasil, 1885).
    
O segundo nível, de caráter mais técnico, com os estudos caracterizado como
Artigo

Preparatórios para o exercício dos trabalhos da marinha Imperial, ou seja, para


o ensino profissional, seria composto das disciplinas:

1º AppareIho e nomenclatura completa de todas as peças de


architectura do navio;

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2º Nomenclatura das armas de fogo em geral;


3º Nomenclatura e uso dos reparos de artilharia;
4º Exercicios de infantaria, começando pela escola do soldado até
a do pelotão;
5º Exercicios de bordejar e remar em escaleres;
6º Construcção graphica da roza dos ventos, conhecimento dos
rumos da agulha, pratica de sondagem;
7º Em geral, todos os conhecimentos praticos necessarios afim
Escola de aprendizes marinheiros de Santa Catarina no século XIX

de serem depois desenvolvidos no tirocinio da profissão pelo


imperial marinheiro (Brasil, 1885).

O Comandante distribuiria os horários de estudos e materiais de ensino


Sidneya Gaya / Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin

entre os oficiais, Capelão, professor, mestre e inferiores; e seria auxiliado pelo


Ajudante General da Armada. Ao final de cada ano, seriam realizados exames e
registradas notas em cadernetas. Estas notas seriam instrumento de aquisição
de vantagens ou desvantagens sociais dentro da corporação. A permanência na
Escola não poderia ser superior a 3 anos. (Brasil, 1885).
A questão dos castigos físicos era tratada no Art. 38 do Regulamento anexo ao
Decreto nº 1517, de 4 de janeiro de 1855, o qual afirmava-se contrário a “castigo
de pancadas com chibata ou outros instrumentos flageladores”, enquanto o
Art. 38 previa:

As faltas de subordinação e disciplina serão castigadas


correccionalmente ao prudente arbitrio do Commandante da
Companhia, ou do Official respectivo nas Secções filiaes. A prisão
simples, a solitaria, a privação temporaria de parte da ração, e
guardas ou sentinellas dobradas serão os castigos applicados
aos Aprendizes Marinheiros. As outras praças ficão sujeitas aos
Artigos de Guerra da Armada, e ao Regulamento Geral do Corpo.
Os crimes de outra natureza serão processados e punidos segundo
a Legislação Criminal do Imperio (Brasil, 1855).

Pode-se imaginar as implicações do temor de castigos como a prisão simples,


a prisão em cela solitária, a privação temporária de parte da ração, ou ter que
Artigo

realizar guardas ou sentinelas dobradas, certamente acima de suas capacidades


físicas, além de outras formas de punições, sobre os meninos e seus familiares.
Além disto, vale ressaltar que os castigos físicos por palmatória ou chibata
ocorriam com frequência como ficou evidenciado na Revolta da Chibata. Por

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sua vez, o Art. 39 definia:

O Aprendiz Marinheiro que desertar e for capturado, ou se não


apresentar dentro de tres mezes, será remettido logo para o
Quartel central na Côrte, sendo conservado preso até a occasião
da partida. Se, porêm, apresentar-se voluntariamente dentro
de tres mezes depois da deserção, continuará na Companhia,
soffrendo neste caso o castigo correccional que o Commandante
Escola de aprendizes marinheiros de Santa Catarina no século XIX

da Companhia julgar justo (Brasil, 1855).

Os periódicos da época, segundo Machado (2007), apresentavam


frequentemente reclamações e denúncias relativamente aos castigos sofridos
Sidneya Gaya / Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin

pelas crianças. Os órgãos oficiais do Estado também informavam que a


quantidade de vagas ofertadas era bem maior do que o preenchimento, dado que
ao se chocar com a pobreza abundante do contexto leva à possibilidade do medo
que as famílias e os próprios menores apresentavam em relação às punições
sofríveis. Além das punições, a violência fazia-se presente na austeridade da
disciplina e nas precárias condições de existência dos alunos na Escola. No
Ofício de Manoel Ignacio Belfort Vieira, Primeiro Tenente a Francisco José da
Rocha, Presidente da Província de Santa Catarina de 30 de dezembro de 1885,
o tenente relata como ocorreu o Ensino:

O aproveitamento colhido durante o anno a findar, tanto na parte


relativa ao ensino elementar como na do profissional, não foi
tão satisfactorio como seria para desejar-se. Esta circunstancia
originou-se na insalubridade do navio-quartel, que obrigou
grande numero de Aprendizes á baixar a Enfermaria por molestias
de fundo palustre, privando-os de frequentar as aulas; ocorrendo
mais o possuir a Eschola livros completamente inservíveis, já
por estragados, já por não satisfazerem as exigências do ensino
estabelecido pelo novo regulamento, e não dispôr de objectos
apropriados para a instrucção pratica profissional durante
os primeiros tempos da sua reorganisação, e finalmente em
consequencia da mudança para terra que absorveo largos dias
Artigo

com os trabalhos de limpeza e installação (Santa Catarina, 1885).

Como causas que dificultaram o ensino, os adoecimentos por moléstias de


“fundo palustre”, a malária, contagiada devido às condições de “insalubridade
do navio-quartel”, a falta de material didático e o excesso de tarefas dos meninos

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com trabalhos de limpeza e instalação. Nesse mesmo Ofício o Primeiro Tenente


analisa a dificuldade em recrutar os meninos e suas possíveis causas:

Desde Março até a data presente alistarão-se seis menores,


sendo 4 remettidos pelo Juiz de Orphãos da Capital, 1 pelo da
Laguna, apresentado voluntariamente, e outro Contractado a
premio com sua mãe e tutora. Durante este mesmo decurso de
tempo, desligarão-se por incapacidade phisica, dois Aprendises,
Escola de aprendizes marinheiros de Santa Catarina no século XIX

conforme determinou o Aviso de 25 de Junho, dando-se-lhes o


destino marcado no regulamento. O limite de idade - 13 à 16 annos
- longe de facilitar a obtenção de menores, tende a dificulta-la, por
isso que raros são os que n’esta idade não estejão encostados á
Sidneya Gaya / Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin

qualquer mestre de officio, sob a capa de aprendisagem, ou então


ao serviço particular desta ou d’aquella pessôa, que, á pretexto de
protectora, os escravisa. D’ahi provem a principal difficuldade de
obter-se aprendises das duas procedencias do artigo 12.
É convicção enraizada na classe menos favorecida desta
provincia, que a instituição “Eschola de Aprendises” é antes
uma caza destinada a corrigir os vicios e máos costumes de
crianças julgadas perdidas, do que um estabelecimento militar de
educação, cujo unico fim é o de fornecer pessoal moralisado e
instruído para a guarnição dos navios da Esquadra Imperial.
No intuito de Combater uma tão falsa e extravagante ideia – Causa
determinante da má vontade contra a Eschola por parte d’aquelles
cujos filhos andão como verdadeiros farropilhas e muitas veses
famintos – tenho, nos dias de gala e pretexto de festa collegial,
franqueado o estabelecimento a visita do publico, para que de
perto melhor se avalie do modo por que se cuida da educação
moral e profissional dos aprendises, e consequentemente das
vantagens offerecidas pelas Escholas. (Santa Catarina, 1885).

Além de relatar os (poucos) seis recrutados, dos quais apenas um foi de


forma voluntária, o Ofício do tenente explicita a “convicção enraizada na classe
menos favorecida” de que a Escola tinha como principal função a correcional
para as crianças “julgadas perdidas” e não a de “fornecer pessoal moralizado
Artigo

e instruído” para guarnecer a Esquadra Imperial. Também o tenente expressa


sua ideia sobre a proteção que tais crianças teriam em seus tutores ou pais
que, a pretexto de protegê-las, estariam escravizando-as. A visão de parte dos
oficiais militares e de parte da elite sobre as famílias pobres com frequência

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era de que precisavam de rigores e disciplinamento para evitar ou corrigir os


“vícios e os maus costumes”, também resultava em ponto de tensão social
além da legitimação de preconceitos. Esta visão também é expressa no jornal O
Despertador, na Edição de 1870:

É de sentir-se que se conserve como que estacionaria esta util


instituição, em que a indigencia de alguns chefes de família
Escola de aprendizes marinheiros de Santa Catarina no século XIX

encontraria o bem estar presente e futuro de seus filhos.


Entretanto, ou por indifferença, ou por ignorancia, ou por negação
do serviço da nação, esses paes, que nem o indispensavelmente
necessario podem dar aos filhos, preferem vel-os entregues à
ociosidade e consequentemente ao vicio.
Sidneya Gaya / Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin

Em minha opinião conviria o emprego de algum rigor por parte


das autoridades policiaes, tanto mais que o resultado seria
innegavelmente benefico, quer se considere o progresso d’aquella
util instituição, quer se attenda á vantagem de dar honesto meio
de vida a tantos meninos que, assim arredados do vicio ao crime,
virão a ser cidadãos prestimosos (O Despertador, 1870, p. 1).

Por sua vez, a população civil pobre sentia ainda mais receio dos aparelhos
coercitivos do Estado. Eram comuns as contestações dos familiares (sempre
das famílias pobres) sobre o recrutamento dos meninos, nos anos de 1860 a
1870. Algumas destas contestações eram atendidas, como no expresso abaixo,
no qual o pai reclama já ter 3 dos seus filhos recrutados para servir a armada e,
nesse caso, necessitar do 4º filho consigo:

A' capitania do porto, n. 77 - Tendo, por despacho desta data,


á vista de sua informação em oflicio n. 225 do 1º do corrente,
deferido o requerimento em que José da Silva Guimarães pede
a entrega de seu filho menor João José da Silva Guimarães,
actualmente com praça na primeira divisão da companhia de
aprendizes marinheiros, allegando ter já no serviço da armada
trez filhos, assim comunico á V. Si, á fim de que mande annullar
a praça do dito menor, e entregal-o á seu pai. (O Despertador,
Artigo

1869).

Com o advento da República, as Escolas de Aprendizes Marinheiros tiveram


algumas reformulações, tanto que em 1907, por meio do Decreto nº 6.382, de 1º
de agosto de 1907 ganharam o status de escolas primárias. Seu novo estatuto

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definia no Art. 1º como finalidade o objetivo de: “preparar menores para o


alistamento no Corpo de Marinheiros Nacionais, dotando-os com as bases
necessárias para a matricula nas escolas profissionais, de modo a ter a marinha
de guerra nacional pessoal habilitado para os seus múltiplos serviços” (Brasil,
1907). A EAMSC de Desterro é ilustrada na imagem 1.

Figura 1 - Fachada da Escola de Aprendizes Marinheiros de Santa Catarina


Escola de aprendizes marinheiros de Santa Catarina no século XIX
Sidneya Gaya / Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin

Fonte: Serviço de Documentação da Marinha.

Enquanto os estados do Rio Grande do Norte, Bahia, Capital Federal e Rio


Grande do Sul tiveram escolas-modelo com ofertas de ensino equivalentes
ao ensino secundário, em Santa Catarina, houve apenas as escolas de nível
primário. O curso nas escolas primárias era de um ano e nas escolas-modelo
de dois anos. De acordo com o Art. 12, o conteúdo definido para os cursos
primários constava de: “Português, conhecimento do alfabeto, formação de
palavras e leitura elementar”, Caligrafia, Aritmética, “Ler e escrever os números
inteiros; adição e subtração de números inteiros; prática da multiplicação e da
divisão de números inteiros”. O Art. 13 determinava para o ensino profissional
das escolas primárias: “noções elementares de aparelho de navio; classificação
Artigo

dos navios, sua categoria; obras de marinheiro; conhecimento dos rumos da


agulha” (Brasil, 1907).
Por fim, o ensino acessório, ofertava, conforme o Art. 14: “exercícios de
ginástica, de escaleres a remos, de infantaria, de esgrima de baioneta e espada,

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de natação e de jogos escolares ao ar livre, como o futebol e outros próprios para


favorecer o desenvolvimento físico dos aprendizes” (Brasil, 1907). A despeito da
oferta dos soldos e do fato do recrutamento dos jovens aprendizes ter sido feito
nas camadas mais pobres e necessitadas da sociedade, sem distinção racial, as
Escolas de Aprendizes Marinheiros nos estados brasileiros e, particularmente
em Santa Catarina não se constituíram como importante fator de alfabetização
ou instrução primária massiva, possivelmente devido às condições de violência
Escola de aprendizes marinheiros de Santa Catarina no século XIX

e opressão às quais eram os marinheiros submetidos. Segundo Álvaro Pereira


do Nascimento:

Os rapazes negros envolvidos na revolta encontraram na Marinha


Sidneya Gaya / Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin

de Guerra uma opção para as suas vidas. Não havia educação formal
gratuita para todos, além de as famílias enfrentarem uma série
de dificuldades para manterem seus filhos nas escolas, quando
matriculados (Veiga, 2008). Sendo filhos de famílias pobres,
tiveram de começar a atuar auxiliando aos pais ou a si mesmos,
ainda com pouca idade. A Marinha de Guerra [...] também tinha
seu lado cruel, com castigos corporais e rígido regime militar.
Pouquíssimas pessoas apresentavam-se voluntariamente. A
forma mais comum era a matrícula de crianças e rapazes nas
Escolas de Aprendizes Marinheiros espalhadas pelo país. Levados
por pais, juízes de órfãos e tutores, esses menores tinham
educação prática e teórica rudimentar, realizavam serviços
diversos, sofriam castigos e muitos foram vítimas de violência
sexual (Nascimento, 2016, p. 161).

Na segunda metade do século XIX, a Marinha passou a diminuir paulatinamente


o “recrutamento forçado, que caçava a laço mendigos, detentos, andarilhos e
trabalhadores pobres” (Nascimento, 2020, p. 31). Almeida (2010a) comenta
que nesse contexto, as Escolas de Aprendizes Marinheiros passaram a ser mais
procuradas pelos meninos, jovens e homens das populações pobres como uma
alternativa para obter melhores condições de vida, instrução, alimentação
e trabalho e essa instrução recebida foi fundamental para realizar a revolta
de 1910, além de ter sido também motivo de reivindicação; melhor oferta de
Artigo

instrução para os aprendizes.

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Considerações Finais

A instrução em Santa Catarina, desde a segunda metade do século XIX


e nas primeiras décadas do século XX, transcorreu de forma desigual em
relação aos diversos grupos populacionais que compunham a nação. Essa
diferença diz respeito sobretudo às classes populares e à população negra, no
território brasileiro como um todo de maneira geral, mas em Santa Catarina,
Escola de aprendizes marinheiros de Santa Catarina no século XIX

de forma particular, a servir de exemplo como política de branqueamento. A


precarização da oferta combinava-se com diferentes formas que dificultavam
a frequência dos estudantes, como a falta de escolas, as legislações proibitivas
às populações negras, a arbitrariedade da linguagem pedagógica, os castigos
Sidneya Gaya / Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin

físicos e punições, as ameaças destes castigos, a falta de materiais didáticos,


o excesso de serviço a ser prestado à própria instituição educacional, por
exemplo. Contudo, a despeito de tantas dificuldades, encontram-se registros
sobre a instrução desses sujeitos, que se configuram como táticas, no sentido
certeauniano, tanto de apropriação dos conhecimentos escolares quanto de
afirmação a partir de uma perspectiva grafocêntrica de defesa de direitos e
possibilidades. Nesse sentido, configuram-se conquistas forjadas pelas classes
populares, e, no que concerne a este artigo, dos meninos que se formaram nas
EAMSC, bem como de seus familiares.
Em sua dissertação, Machado (2007, p. 15) comenta que os castigos físicos na
Marinha oitocentista no Brasil foram abolidos em 1889, enquanto na Espanha
esta decisão ocorreu em 1823, na França, em 1860, nos Estados Unidos, em
1862, na Alemanha, em 1872, na Grã-Bretanha, em 1881. No Brasil, em 16 de
novembro de 1889, o terceiro decreto da República, aboliu os castigos corporais
na Marinha de Guerra, entretanto, em 12 de abril de 1890, “o castigo foi retomado
com a Companhia Correcional (um pelotão de marinheiros indisciplinados que
era isolado dos demais, com perdas salariais e hierárquicas, além de sofrerem
castigos de chibata e humilhações)” (Nascimento, 2016, p. 157).
Segundo Nascimento (2016, p. 163-166), a composição de 75% de marinheiros
negros era alvo constante de críticas racistas, além de excessivos castigos
físicos os quais se assemelhavam muito às punições “praticadas legalmente em
Artigo

trabalhadores cativos do último país das Américas a abolir juridicamente esse


tipo de disciplinamento” (Nascimento, 2016, p. 154). Capanema (2022) também
comenta sobre o fato de a “Revolta da Chibata” ter sido uma das maiores
insurgências sociais do século XX, e ter ocorrido no último país a abolir o
regime escravagista e ainda o último país a abolir o uso da chibata utilizada

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contra descendentes de escravizados após a abolição.


Nesse sentido, observamos práticas articuladas, racistas, classistas, ao mesmo
tempo em que a Escola de Aprendizes Marinheiros surge como estratégia de
reprodução social, que “exercia constantemente o papel de afastar do convívio
agentes indesejáveis a essa nova ordem, tendo como público-alvo o sexo
masculino, de etnia principalmente africana e de origem economicamente
carente” (Machado, 2007, p. 58). Porém, não se podem ignorar as possibilidades
Escola de aprendizes marinheiros de Santa Catarina no século XIX

destas produções sociais escaparem aos interesses hegemônicos a partir da


experiência de alguns sujeitos que as vivenciaram.
Os aprendizes marinheiros ao ingressarem na instituição enfrentaram
condições extremamente precárias sofrendo violências, discriminações,
Sidneya Gaya / Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin

injustiças e humilhações. Tais condições tenderiam a forjar, em suas memórias,


lugares sociais de inferioridade e subserviência. Entretanto, para além do
adestramento e controle, elaboraram-se na consciência de classe e lutaram por
seus direitos, inscreveram-se na história com agência e transformação, como
no caso em que protagonizaram a Revolta da Chibata em 1910, um movimento
planejado por dois anos (Arias Neto, 2009). Os amotinados dessa Revolta
redigiram um documento reivindicando “fim dos castigos corporais, aumento
do soldo, substituição dos oficiais tidos como incompetentes, melhoria no nível
de educação de alguns marujos”. Apresentavam-se como “cidadãos brasileiros e
republicanos” reivindicando efetivamente seus direitos de cidadania (Almeida,
2010b, p. 111).

Figura 2 - Marinheiros se rebelam na Baía da Guanabara


Artigo

Fonte: Museu Afro-Brasileiro (Reprodução).

Neste acontecimento emblemático, a eficácia do emprego da força pelo


poder hegemônico foi desequilibrada pelos marinheiros rebelados, formados

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pelas Escolas de Aprendizes Marinheiros, os quais, revoltados protestaram


francamente contra o tratamento cruel que recebiam ao afirmar no Manifesto
de novembro de 1910: “Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos,
não podendo mais suportar a escravidão na Marinha Brasileira, [...] rompemos
o véu que nos cobria aos olhos do patriótico e enganado povo” (Morel, 1979, p.
84-85). Nas palavras de Arias Neto (2009, p. 173):
Escola de aprendizes marinheiros de Santa Catarina no século XIX

Na medida em que se anunciavam como cidadãos, os marinheiros


falavam de um lugar que estava sendo construído, através do
livre ir e vir, do pensar e de se associar, ou seja, de um exercício
de construção de sua própria liberdade e cidadania. Em outras
palavras os marinheiros constituíam-se como sujeitos de
Sidneya Gaya / Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin

direitos. Esse enunciar demonstra, então, uma concepção outra


de cidadania e de liberdade que não aquela fundada no direito de
propriedade, mas no de igualdade política, ou seja, é porque se
consideravam cidadãos que se atribuíam o direito de reivindicar.
O que a revolta de 1910 enuncia então é, nada mais que o desejo
de efetivação da república e, consequentemente, da necessidade
de criação de uma carreira profissional para o marinheiro cidadão.

A Revolta da Chibata deu visibilidade à necessidade de outras formas de


negociações sociais, novas construções de futuros possíveis e inéditos viáveis,
com a participação das classes populares. Desse modo, deflagrou mais um
episódio da luta por cidadania. Liderada pelos marinheiros pelos marinheiros
João Cândido Felisberto, André Avelino, Francisco Dias Martins e Manoel
Gregório do Nascimento, demonstrou a possibilidade dos marinheiros,
realizarem, por meio de táticas, operações combinatórias, subverter as poderosas
estratégias condicionantes socioeconômicas nas quais se encontravam e
lutarem abertamente por seus direitos.

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Universidade Federal de Santa Catarina https://orcid.org/0000-0003-2074-6144.
1

Universidade Federal de Santa Catarina https://orcid.org/0000-0002-4562-308X.


2
Escola de aprendizes marinheiros de Santa Catarina no século XIX

3
Sugerimos como bibliografia para aprofundamento desta temática os livros: João
Cândido e os navegantes negros: a revolta da chibata e a segunda abolição de Silvia
Capanema (2022) e João Cândido: o mestre sala dos mares de Álvaro Pereira do
Nascimento (2020). Ambos, apresentam elementos importantes sobre as condições de
vida, estudo e trabalho dos marinheiros nas escolas de aprendizes pelo Brasil, além do
contexto e desenvolvimento da “Revolta da Chibata”.
Sidneya Gaya / Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin

4
A vila de Desterro passou a se chamar cidade de Florianópolis, capital do estado de
Santa Catarina, em 1894.
5
Criada pelo Decreto número 2003 de 24 de outubro de 1857 a Companhia de Aprendizes
Marinheiros de Santa Catarina foi tornada oficialmente Escola de Aprendizes Marinheiros
em 1885.
Artigo

Recebido em 06/11/2023 - Aprovado em 03/01/2023


Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.707-738, jul-dez. 2023 } 738
DOI: 10.5433/1984-3356.2023v16n32p739-759

Um Olimpo massificado: a
campanha publicitária Sócio
Olímpico e dinâmicas sociais
na São Paulo do meio século
XX

A massified Olympus: the


Sócio Olímpico advertising
campaign and social
dynamics in São Paulo of
mid-20th century

Un Olimpo masificado: la
campaña publicitaria Socio
Olímpico y dinámicas sociales
en la São Paulo de mediados
del siglo XX

Matan Ankava1

Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.739-759, jul-dez. 2023 } 739


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Resumo: O presente artigo busca analisar a campanha publicitária


“Sócio Olímpico-Cadeiras Cativas”, criada por Osvaldo Moles
para o São Paulo Futebol Clube. Realizada entre 1955-1959, tinha
por objetivo angariar recursos para a construção do Estádio do
Morumbi, sede pretendida do Clube, através da venda de títulos
de associados. A análise dos anúncios veiculados na imprensa
identificou uma tensão que marcou a divulgação do Título: por
um lado, sua divulgação como objeto de distinção social; por
outro, uma orientação massificada, presente nas entrelinhas
Sócio Olímpico e dinâmicas sociais na São Paulo
Um Olimpo massificado: a campanha publicitária

da campanha, e também na precificação do produto. Ao longo


do artigo, procuramos investigar as estratégias de publicidade
e comercialização do Título Sócio Olímpico, buscando
compreender as possibilidades de acomodação e sobreposição
que conviviam na formação de bens culturais massificados.
Palavras-chave: cultura de massa; história da publicidade;
Osvaldo Moles; São Paulo Futebol Clube; Morumbi.

Abstract: This paper analyzes the advertising campaign Sócio


Olímpico-Cadeiras Cativas, created by Osvaldo Moles
do meio século XX

for the São Paulo Futebol Clube. Ran from 1955 to 1959,
the campaign sought to raise funds for the construction
Matan Ankava

of Morumbi Stadium, through the sale of club memberships.


The newspapers’ advertisements showed an intense promotion
of the Sócio Olímpico title as a factor of social distinction.
Nonetheless, numerous elements have revealed that, on the
contrary, the Campaign had a clear massified dimension,
supported also by widely accessible purchasing conditions. The
Primeiros Passos

paper thus aims to expand the investigation of the publicity


and commercializing and comprehend the coexistence of
the massive and differentiate within the same propaganda.
Keywords: mass culture; history of publicity; Osvaldo Moles;
São Paulo Football Club; Morumbi.

Resumen: Este artículo pretende analizar la campaña

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publicitaria "Sócio Olímpico-Cadeiras Cativas", criada por


Osvaldo Moles para el São Paulo Futebol Clube. Realizada entre
1955 y 1959, su objetivo era recaudar fondos para la construcción
del Estadio Morumbi, sede prevista del club, a través de la venta
de abonos. El análisis de los anuncios en la prensa permitió
identificar una tensión que marcó la promoción del Título: por
un lado, su promoción como objeto de distinción social; por
otro, una orientación de masas, presente entre las líneas de la
campaña, y también en la fijación del precio del producto. A lo
largo del artículo, hemos tratado de indagar en las estrategias
Sócio Olímpico e dinâmicas sociais na São Paulo

de publicidad y comercialización del Abono Olímpico, buscando


Um Olimpo massificado: a campanha publicitária

comprender las posibilidades de acomodación y solapamiento


que coexistían en la formación de bienes culturales de masas.
Palabras clave: cultura de masas; historia de la publicidade;
Osvaldo Moles; São Paulo Futebol Clube; Morumbi.
do meio século XX
Matan Ankava
Primeiros Passos

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Introdução - os progenitores do Sócio Olímpico: São Paulo Futebol


Clube, Osvaldo Moles e a imprensa paulista dos anos 1950

Tomando como objeto de estudo a Campanha Sócio Olímpico-Cadeiras


Cativas, é necessário se atentar, inicialmente, para o contexto no qual o
produto, o título de associado, foi concebido, concretizado e divulgado. Isso
é particularmente importante em casos como o nosso, onde a incipiência
do mercado – a dizer, a publicidade esportiva e, particularmente, a venda
de assentos fixos em estádio esportivos – implica um campo cultural ainda
precoce, sem referências conceituais e práticas sólidas2. Neste vazio – que, na
verdade, representa uma multiplicidade de ações e experimentações –, torna-
se necessário reconstituir as posições que formaram aquela conjuntura na qual
Sócio Olímpico e dinâmicas sociais na São Paulo

nasceu a Campanha - o que objetivamos nesta introdução.


Um Olimpo massificado: a campanha publicitária

Oficialmente, a Ata de Fundação do São Paulo Futebol Clube (SPFC) data de


fins de 19353. À época, o futebol já se encontrava disseminado na capital paulista
e, seguindo o zeitgeist paulistano, vivenciava a sua modernização: oficialização
dos clubes e das torcidas, profissionalização dos jogadores, maior arrecadação
com bilheteria, maior atenção dos meios de comunicação, entre outros (Franco
Junior., 2007; Streapco, 2018; Stycer, 2009). O clube são paulino inseriu-se
rapidamente nesta lógica: sua Torcida Uniformizada, fundada em 1938, foi
um grêmio pioneiro, que sinalizava para a institucionalização dos torcedores
(Hollanda; Chaim, 2020). Ascendendo em popularidade e importância, tornou-
do meio século XX

se um dos maiores times da cidade já no início da década de ‘40. Valendo-se


dos rendimentos oriundos das bilheterias do Estádio do Pacaembu, recém
Matan Ankava

inaugurado, o SPFC contratou, em 1942, o Leônidas da Silva, artilheiro da Copa


de 1938 e um dos melhores jogadores do mundo. A chegada do craque deu início
a um período de hegemonia do time, o qual conquistou cinco títulos paulistas
entre 1943-1949 e recebeu o sugestivo apelido - “O Rolo Compressor”.
No entanto, fora de campo, a situação era diferente. Sediado no Canindé,
em um espaço bastante rudimentar e sujeito às inundações do rio Tietê, a
estrutura do clube atravancava a continuidade do seu crescimento: além de
Primeiros Passos

comprometer as possibilidades financeiras, a precariedade das instalações e


estrutura prejudicava também os esforços de associar o time aos antigos clubes
das elites locais, como o Clube Atlético Paulistano e Associação Atlética das
Palmeiras - narrativas que ainda são reproduzidas, inclusive pelo próprio
clube4. A solução dos dirigentes são-paulinos foi bastante ousada: vender a
sede do clube e seu Centro de Treinamento e emplacar a construção de um

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novo estádio.
Encabeçado pelo presidente do clube, Cícero Pompeu de Toledo, e o diretor
financeiro Laudo Natel, o projeto começou a tomar forma em agosto de 1952.
A Imobiliária Construtora Aricanduva S.A, pertencente ao então governador
paulista Adhemar de Barros, vinha conduzindo grandes obras no Jardim Leonor,
na região do Morumbi, e doou inicialmente ao clube um terreno de 25.000 m².
Logo depois, a empreiteira cedeu ao time, com aval da prefeitura, mais 100.000
m², originalmente destinados a serem uma praça pública. Outros 25.000 m²
foram comprados pelo SPFC, completando a área destinada à empreitada.
Pesava a favor da parceria com a Aricanduva as condições geográficas, que
permitiam a construção de um estádio monumental; a construtora, por sua vez,
aproveitaria o projeto para acelerar a urbanização da região. Em outubro de
Sócio Olímpico e dinâmicas sociais na São Paulo

1952, começaram os trabalhos de drenagem e terraplenagem, em uma região


Um Olimpo massificado: a campanha publicitária

sem qualquer infraestrutura, como mostram as imagens da época:

Figura 1 - Imagens do terreno destinado ao Estádio, nas primeiras etapas da


construção
do meio século XX
Matan Ankava

Fonte: Serra (2017).

As obras de edificação iniciaram-se em 1955. Elaborado pelo escritório de


Vilanova Artigas, o projeto previa a construção de um estádio para 120.000
espectadores - mais que o dobro da capacidade do Pacaembu. A orientação pelo
uso massivo direcionou o projeto, considerado como precursor da Arquitetura
Primeiros Passos

Brutalista Paulista5. Ao plano original ainda foram acrescentados mais 36 mil


lugares, que, além da rentabilidade, outorgariam ao Morumbi o título de maior
estádio particular do mundo6. O estádio foi o ponto alto de um grande complexo
esportivo, com quadras, piscinas, pistas e outras instalações recreativas.
A Comissão Pró-Estádio, responsável pelo projeto, empregou diferentes
estratégias para levantar os fundos necessários. Entre estas se encontrava a

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venda de títulos chamados “Sócio Olímpico” (S.O.) que, além do acesso aos
equipamentos, davam aos associados também a posse de uma “Cadeira Cativa”
(C.C.). São estes títulos, e principalmente a campanha publicitária dirigida à
sua divulgação, que configuram nosso objeto de estudos.
Lançada na imprensa local em 1955, a propaganda ficou a cargo da Morumbi
Publicidade. Agência recém-fundada, provavelmente na ocasião da campanha7,
tinha como diretores Mário Nadeu e Osvaldo Moles, sendo este o principal
criador da Campanha8. Um dos principais produtores culturais da capital
paulista, cabe enfatizar, sobretudo, o seu sucesso como produtor radiofônico,
num momento conhecido como a “Era do Rádio” (Ankava, 2020). Isso porque o
êxito neste setor indicava à capacidade de criar conteúdos que agradavam um
mercado genuinamente massificado e transclassista9. Ainda, indicava também
Sócio Olímpico e dinâmicas sociais na São Paulo

experiência na atividade publicitária - responsabilidade frequentemente


Um Olimpo massificado: a campanha publicitária

assumida pelos produtores, na qual Moles teve uma atuação importante10.


Junto ao rádio, Moles teve também uma longa carreira no jornalismo, campo
no qual ingressou ainda nos anos 1920. Ao longo das décadas seguintes, passou
por periódicos como o Correio Paulistano, Folha da Manhã, Folha da Noite e
Diário da Noite, entre outros, atuando sobretudo como cronista. Esta trajetória
também nos interessa, pois revela a familiaridade de OM com a imprensa -
veículo importante de comunicação e origem do conjunto documental que
sustenta nosso estudo.
As pesquisas em bases de dados encontraram 28 anúncios que, contando as
do meio século XX

repetições, formam um corpus de 103 reclames11. Sua composição abrange uma


série de 11 recortes de jornal, encontrados no acervo particular de Osvaldo
Matan Ankava

Moles, atribuídos ao Última Hora e datados de fevereiro de 1955; 55 anúncios


de O Estado de São Paulo e outros 23 de A Gazeta Esportiva (GE), publicados ao
longo de toda a Campanha (1955-1959); oito reclames das edições matutinas e
noturna da Folha, e mais seis do Diário da Noite (DN), veiculados a partir de fins
de 1956. Este levantamento suscita algumas reflexões preliminares: mesmo
tendo estreado em um jornal de orientação mais popular, o grosso dos anúncios
se encontram no OESP, publicação voltada às camadas mais abastadas da
Primeiros Passos

capital paulista. A partir do seu segundo ano, a campanha ampliou sua base de
divulgação, integrando outros jornais de cunho menos elitista (Capelato, 1980;
Souza, 2018). Independentemente do seu público alvo, todos os periódicos
utilizados destacavam-se por sua grande circulação, permitindo supor que os
anúncios S.O. atingiam algumas centenas de milhares de leitores12.
Cabe ressaltar que às variações de público-leitor não correspondiam mudanças

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na abordagem publicitária e/ou nas mensagens que carregava; inclusive,


uma mesma propaganda pode ser encontrada em diferentes periódicos. Esta
condição sugere que Moles e seus colegas não buscavam atingir gostos e habitus
específicos, visando, ao contrário, ampliar ao máximo o alcance da campanha.
A utilização de A Gazeta Esportiva (GE), o jornal esportivo de maior circulação
na cidade, seguia o mesmo direcionamento. Essas condições sinalizam que
a Campanha S.O buscava ultrapassar as barreiras e particularidades sociais,
culturais e econômicas, e promover uma publicidade massificada.

O Título como mercadoria

As primeiras referências ao título S.O apareceram no início de 1955,


Sócio Olímpico e dinâmicas sociais na São Paulo

anteriormente ao lançamento das vendas. Um conjunto de reclames similares


Um Olimpo massificado: a campanha publicitária

tinha por objetivo despertar a curiosidade dos leitores: a pergunta “quem é ele?”
foi acompanhada por imagens variadas, seguidas por uma “não! É mais que
isso”. Com exceção de um caso13, as respostas não guardavam qualquer relação
com elementos do campo associativo do futebol, ou de qualquer agremiação
esportiva, conforme pode ser visto nas seguintes ilustrações:

Figura 2 - Reclames da campanha publicitária Sócio Olímpico


do meio século XX
Matan Ankava

Fonte: Arquivo pessoal Osvaldo Moles.

Ao invés de dirigir de antemão as expectativas do público para a temática


esportiva, Moles e seus colegas inseriram seu personagem entre figuras e
Primeiros Passos

eventos do mainstream, inclusive aquele internacional, dialogando com tópicos


presentes nos grandes meios de comunicação. Esta atitude reforça a tendência
observada na seleção dos jornais, todos de grande tiragem. Neste sentido, é
sugestiva a estreia da Campanha no Última Hora, jornal pioneiro na circulação
da imprensa hegemônica entre as camadas médias-baixas da população (Passos,
2009).
Apesar da participação em agremiações sócio-esportivas ter sido uma

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prática comum na cidade, inclusive entre as classes subalternas, já nas primeiras


décadas do século XX (Decca, 1991), o lançamento das vendas foi acompanhado
por anúncios que visavam elucidar a natureza do produto:

Figura 3 - Reclames da campanha publicitária Sócio Olímpico


Sócio Olímpico e dinâmicas sociais na São Paulo
Um Olimpo massificado: a campanha publicitária

Fonte: A Gazeta Esportiva (1995a, 1995c).

Essa caracterização atendia a três objetivos: seguindo a lógica da massificação,


introduzia os produtos para aqueles que não os conheciam; paralelamente,
do meio século XX

servia para exaltar alguns atributos, como a magnitude do empreendimento e a


Matan Ankava

posição privilegiada das CC; por fim, possibilitava sua ressignificação como bem
comerciável. Ainda, a descrição contribuía também para reforçar as relações
entre o “título S.O” e a “Cadeira Cativa”, constituídos, ao mesmo tempo, como
autônomos e também como benefício um do outro.
Analisando a “especificação do produto”, é possível perceber duas linhas
centrais: por um lado, sua valorização em função da oferta de lazer, o que
podemos considerar como “valor de uso”; por outro, sua promoção como produto
Primeiros Passos

cambiável, atrelada ao seu “valor de troca”14. Estes discursos se perpetuavam


ao longo de toda a campanha. Na primeira condição, os reclames exaltavam
benefícios ligados à saúde e sociabilidade, oferecidas pelo novo clube:

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Figura 4 - Reclames da campanha publicitária Sócio Olímpico


Sócio Olímpico e dinâmicas sociais na São Paulo
Um Olimpo massificado: a campanha publicitária

Fonte: Diário da Noite (1956b, 1958a, 1958b).

Esta abordagem centrava-se nas diversas instalações presentes no clube e


na oferta de lazer e melhoria da saúde, colocando em segundo plano a Cadeira
Cativa e o estádio futebolístico.
Mesmo recorrente, este tipo de mensagem tem seus limites: apesar das
políticas de fomento institucional à exercitação, promovidas com bastante
ênfase durante o regime varguista (Silva, 2007), representava uma mensagem
do meio século XX

de apelo maior àqueles indivíduos já adeptos a esta prática – que depende de


Matan Ankava

condições culturais e materiais, tal como tempo livre, para sua realização. Dito
em termos mais sociológicos, mensagem como essa só alcançam seu pleno
sentido quando atingia grupos socioculturais cujo habitus incluia estes valores
e costumes15. Como resultado, tratava-se de um recursos persuasivo relevante,
porém restrito.
A divulgação do Título a partir de seu valor de troca permitiu ultrapassar as
fronteiras do habitus, e reforçar o direcionamento massivo:
Primeiros Passos

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Figura 5 - Reclames da campanha publicitária Sócio Olímpico


Sócio Olímpico e dinâmicas sociais na São Paulo
Um Olimpo massificado: a campanha publicitária

Fonte: Diário da Noite (1956a) e Folha da Noite (1957).

Essas matérias informavam que o título “poderá ser transferido a terceiros”


e, mais adiante, constatavam que “os que adquiriram anteriormente esse título,
viram-no valorizar aceleradamente”. É evidente aqui que não estavam em pauta
as possibilidades de uso efetivo, do clube ou do estádio, mas sua aquisição como
investimento financeiro, que não está restrita a um grupo e prática específica.
Percebe-se então que a promoção dos produtos com base em uso e troca não
do meio século XX

apenas coexistiam, mas complementavam-se mutuamente, atingindo uma


Matan Ankava

maior eficácia.

O Sócio Olímpico: distinto, mas nem tanto

Paralelamente à persuasão através dos valores de uso e troca, Moles empregou


como recurso publicitário também elementos do campo simbólico16. Assim
como a defesa de uma raiz aristocrática não buscava apenas a reconstrução
Primeiros Passos

cronológica do SPFC, e a magnitude do Estádio do Morumbi não tinha apenas


razões monetárias, também a campanha publicitária buscou caracterizar os
Sócios Olímpicos como categoria socialmente diferenciada17.
De fato, esta mensagem foi o principal leitmotiv da campanha publicitária,
atravessada pela distinção18. Suas ramificações se expressaram nas constantes
menções à “maior praça de esportes do mundo” e ao “monumental estádio”, e

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cristalizaram-se na própria condição do Sócio Olímpico:

Figura 6 - Reclames da campanha publicitária Sócio Olímpico

Fonte: A Gazeta Esportiva (1955e, 1957a).

Veiculado logo nos primeiros meses da campanha, o primeiro anúncio


Sócio Olímpico e dinâmicas sociais na São Paulo
Um Olimpo massificado: a campanha publicitária

imprimiu a exclusividade da posse em sua manchete; o segundo faz o mesmo


no corpo da propaganda, afirmando que “de cada 200 mil paulistas, somente 1
[um] será S.O! Lembre-se disso e decida se agora”. Mais que as próprias cifras
- aliás, aparentemente bastante infladas19 - é mister perceber a mobilização da
singularidade como argumento a favor da aquisição do Título.
O princípio de diferenciação se expressava também nas figuras presentes na
Campanha, e particularmente em seu protagonista, Sentadinho Oliveira. Além
do trocadilho com as iniciais S.O, o nome “Sentadinho” indicava uma condição
privilegiada, oferecendo um conforto maior que as arquibancadas, onde
do meio século XX

se aglomeravam a maioria dos torcedores. No caso do Morumbi, as cadeiras


cativas contavam também com uma cobertura, que protegia parcela reduzida
Matan Ankava

da plateia20. E Sentadinho não se contentava com seu assento:

Figura 7 - Reclames da campanha publicitária Sócio Olímpico


Primeiros Passos

Fonte: A Gazeta Esportiva (1958a, 1958b).

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Ambos os anúncios afirmavam a condição de posse de Sentadinho,


“proprietário de tudo isto”. Esta mensagem não só retomava o discurso pautado
no valor de troca, como também constituia um patrimônio, naturalmente
imaginado, que dotava o S.O de uma posição sócio-econômica destacada. Essa
imagem se compunha pela aparência do personagem, de pele clara, roupa social
e penteado arrumado, e sem qualquer traço que remetesse à atividade física.
Semblante parecido tiveram também as outras figurações dos Sócios
Olímpicos:

Figura 8 - Reclames da campanha publicitária Sócio Olímpico


Sócio Olímpico e dinâmicas sociais na São Paulo
Um Olimpo massificado: a campanha publicitária

Fonte: A Gazeta Esportiva (1955b, 1957b).

Mais uma vez, as representações, de pessoas e cadeiras, não estabelecem


qualquer relação com a imagem de um usuário de praça esportiva e/ou estádio
de futebol. É sintomático perceber que em nenhum momento o Sentadinho
do meio século XX

aparece de uma forma que a prática de torcer; ao contrário, como regra geral, ele
se apresenta desinteressado naquilo que ocorre em campo – imagem cristalizada
Matan Ankava

no anúncio à direita, no qual ele aparece de costas a uma partida em pleno


andamento. Nesse sentido, os anúncios apagavam também a natureza pública
da permanência num estádio, excluindo por completo os demais torcedores,
em prol da egocentricidade incutida no S.O. Ao extrair das representações sua
base na experiência, os anúncios deixavam de promover o gosto pela atividade,
passando a comercializar uma figuração. Neste movimento, espelham diferentes
traços da “publicidade moderna”, que não se orienta pelas qualidades do objeto
Primeiros Passos

material, mas “foi desenvolvida para vender pessoas em uma determinada


cultura” (Williams, 2011, p. 250). No caso, estava em jogo a venda de pessoas e
fisionomias associadas às elites.
Essa multiplicidade de estratégias comerciais resultava em contradições
internas, como na incongruência entre a presença frequente do cigarro e o
anúncio “estamos vendendo dois pulmões novos”21. Uma incoerência de peso

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maior ocorreu entre o discurso da distinção e um conjunto de mensagens


centradas nas possibilidades de economia oferecidas pelo título S.O: “lembre-
se que os melhores clubes estão cobrando, somente de jóia, para mais de 50
mil cruzeiros e dois deles já não tem mais vaga” (Diário da Noite, 1956a);
“preço: metade da jóia comum de um clube de elite” (Diário da Noite, 1956c);
e, quando foi promovido o torneio de estreia do estádio, “V. já pensou quanto
custará apenas UM INGRESSO para um desse jogos do grandiosos festival de
inauguração?” (A Gazeta Esportiva, 1958a, grifo do autor).
Mesmo que a vontade de poupar dinheiro seja vista como um gosto
universal, sua externalização é incompatível com a aproximação dos grupos
socioeconomicamente superiores22. Assim, ao expor as dificuldades de ingressar
nos “melhores clubes”, por falta de vaga ou recursos, os anúncios revelam que
Sócio Olímpico e dinâmicas sociais na São Paulo

seu público alvo não pertencia, de fato, às camadas endinheiradas. Ademais, ao


Um Olimpo massificado: a campanha publicitária

afirmar uma maior facilidade de acesso, o clube são paulino reconhece que não
pertence aos verdadeiros “clube de elite”.
Cria-se então uma diferenciação que, ironicamente, rebaixa justamente os
Sócios Olímpicos. Não obstante, os anúncios voltavam constantemente para
esse tema, ao longo de toda a campanha, e em todos os jornais:

Figura 9 - Reclames da campanha publicitária Sócio Olímpico


do meio século XX
Matan Ankava
Primeiros Passos

Fonte: A Gazeta Esportiva (1955d) e O Estado de São Paulo (1959).

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A ênfase no preço, principal chamativo no exemplo à esquerda, ou a


necessidade de informar e justificar o encarecimento do título, à direita,
indicam que, apesar das representações elitizadas, os criadores da Campanha
identificaram a questão econômica como fator central na conduta do seu
público. Esta observação se baseia também nas condições de aquisição: lançado
a Cr$19-22 mil, a depender das prestações, o preço do título subiu até atingir
a marca de Cr$50.000, pelo qual foi comercializado até o final da campanha.
Apesar do aumento, que acompanhou com certa precisão as taxas de inflação,
a venda dos título S.O ocorreu em um cenário econômico bastante favorável
e, sobretudo, marcado por aumentos significativos dos salários das classes
trabalhadoras23. Este movimento foi acompanhado pela ampliação do acesso a
bens, inclusive culturais, das camadas médias e baixas, que foi sentido com força
Sócio Olímpico e dinâmicas sociais na São Paulo

especial na cidade de São Paulo. Neste contexto, mesmo sem um verdadeiro


Um Olimpo massificado: a campanha publicitária

enriquecimento ou ascensão social, novos produtos se colocavam no horizonte


de novos grupos sociais, incluindo a adesão a um clube de “fachada” elitista.
Desta forma, enquanto os anúncios revelam que Moles conhecia as reais
condições destes indivíduos, os planos de parcelamento e a ausência de joia,
que eliminam a exigência de uma reserva de capital, indicam que também os
dirigentes do SPFC os conheciam. Percebe-se então um descompasso entre a
constituição do título S.O como princípio de distinção, e o conjunto de dados e
mensagens que expõe o endereçamento da campanha a um público preocupado
com as condições financeiras de sua aquisição. Ao invés de justificar esta
do meio século XX

incongruência como artimanha publicitária, consideramos que seu sucesso


demanda uma explicação maior a qual, no nosso entender, se encontra nas
Matan Ankava

dinâmicas sociais daquele momento histórico.

Considerações Finais: a massificação da distinção - a construção de


sentidos e os sentidos da construção

Neste texto, buscamos investigar a campanha publicitária Sócio Olímpico-


Cadeiras Cativas, elaborada por Osvaldo Moles para o São Paulo Futebol Clube,
Primeiros Passos

com o intuito de angariar recursos para a construção do Estádio do Morumbi.


Entre diferentes recursos de persuasão, identificamos como central a divulgação
do Título como elemento de distinção social, cuja imagem buscava aproximar
seus proprietários às classes dominantes. Este elemento chamou nossa atenção
não somente por sua difusão ao longo de toda a campanha, mas também
pelas contradições que estabelecia com outros componentes da Campanha,

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a veiculação dos anúncios em jornais de grande circulação, a abordagem da


questão financeira atrelada à compra do título, e as próprias condições de sua
aquisição.
Desta forma, apresenta-se um embate entre massificação e distinção, dois
princípios constituintes da Campanha. Apesar do aparente contrassenso, cabe
ressaltar que não se tratava de um caso único, e que na radiodifusão, principal
ambiente criativo de Moles, era comum a publicidade expor produtos cotidianos
e acessíveis como se fossem de luxo (McCann, 2004). A recorrência desta
estratégia e o sucesso de campanha que resultou na venda de 12.000 cadeiras
cativas, indica que, naquela conjuntura, havia um conjunto de condições que
permitiram a acomodação desses princípios, supostamente contraditórios.
Em nosso entender, esta possibilidade decorria do cenário econômico e da
Sócio Olímpico e dinâmicas sociais na São Paulo

melhoria financeira experimentada pelas classes trabalhadoras na segunda


Um Olimpo massificado: a campanha publicitária

metade dos anos 1950. Esse movimento resultou no crescimento das camadas
médias e médias-baixas de São Paulo, e na ampliação da oferta e acesso a
bens culturais. Nesta conjuntura, esses grupos buscavam instrumentos para,
entre outros, traduzir seu crescimento econômico em ascensão social; ou seja,
elementos de diferenciação que em primeiro lugar operassem entre frações de
uma mesma classe, consolidando sua superioridade com relação aqueles que
permaneceram sem acesso a estes bens24.
Dito em outras palavras, o Título S.O não foi uma expressão de pertencimento
às classes favorecidas, mas um instrumento de afastamento das camadas baixas.
do meio século XX

Mesmo sem pertencer às elites – ou justamente por conta disso – os grupos


ascendentes buscavam redesenhar a partilha do universo sociocultural para
Matan Ankava

garantir uma distinção, ainda que precária. Assim, a realidade socioeconômica


dotava de sentido a conciliação entre massivo e distinto, enquanto a publicidade
e os meios de comunicação atuaram sobre os novos arranjos sociais e culturais.
O caso da Campanha S.O revela assim algumas das dinâmicas que
caracterizaram – constituíram, talvez – os processo de massificação cultural.
Com a integração de novos segmentos sociais, a intensificação da cultura
compartilhada e o maior alcance e penetração da cultura hegemônica, torna-
Primeiros Passos

se necessário ressignificar as práticas e os bens culturais, incorporando a


adaptando discursos, imagens e desejos.

Referências

A GAZETA ESPORTIVA. São Paulo, 9 mar. 1955a.

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A GAZETA ESPORTIVA. São Paulo, 12 abr. 1955b.

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A GAZETA ESPORTIVA. São Paulo, 14 maio 1955d.

A GAZETA ESPORTIVA. São Paulo, 24 jun. 1955e.

A GAZETA ESPORTIVA. São Paulo, 5 fev. 1957a.

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A GAZETA ESPORTIVA. São Paulo, 29 out. 1958a.

A GAZETA ESPORTIVA. São Paulo, 12 nov. 1598b.

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ANKAVA, Matan. Modernização não é Mole(s): rádio e produção cultural em São


Paulo, 1937-1962. Dissertação (Mestrado em História) – Escola de Filosofia Letras
e Ciências Humanas, Grarulhos, 2020.

ANTUNES, Jadir. A dialética do valor em O Capital de Karl Marx. Intuitio, Porto


Alegre, v. 5, n. 2, p. 184-198, 2012.

BARRETO, Ivan F. Tabaco: a construção das políticas de controle sobre seu


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do meio século XX

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Notas
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1

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2
Aqui tomamos a noção de campo, com base em Bourdieu (1996, p. 64), como um universo
cultural de certa autonomia que, apesar de dialogar constantemente com outros campos,
pode ser apreendido como “mundo à parte, sujeito às suas próprias leis”. Neste sentido,
a criação de uma campanha como a S.O não tinha por base experiência específica na
área: segundo nossas pesquisas, foi apenas no Maracanã, construído na década anterior,
que se venderam cadeiras cativas. Ainda, o segmento esportivo inseria-se num campo
maior, o da publicidade, que não tinha, à época, um aparato teórico-metodológico sólido
no país.
São Paulo F. C. ([2021b]).
3

4
“O São Paulo FC é dentre os grandes não apenas o primeiro, como diz o hino são-paulino,
mas também o mais jovem. A grande saga do Tricolor começou, porém, quando o futebol
ainda engatinhava no Brasil, com a fundação do clube mais vitorioso da era amadora
do esporte: o Club Athlético Paulistano.” (São Paulo F. C., [2021a]). Em contrapartida,
Streapco (2018), defende que, assim como os demais grandes clubes, o SPFC foi fundado
com base em times populares, aqueles do “futebol de várzea”, e que a genealogia elitista
Sócio Olímpico e dinâmicas sociais na São Paulo

serviu para reforçar a imagem do time e distingui-lo dos seus principais rivais.
Um Olimpo massificado: a campanha publicitária

5
“As primeiras obras dos anos 1950 que aparentam estabelecer um primeiro relacionamento
com a tendência que será denominada, logo a seguir, como ‘brutalista’, aproximam-se,
gradativamente, de seus paradigmas via o emprego extensivo do concreto armado,
sendo as primeiras experiências nesse sentido as que o utilizam em obras que, por seu
porte e natureza, tenderiam inevitavelmente a empregá-lo: estádios, arquibancadas e
outras instalações esportivas; ou seja, equipamentos projetados para um grande público,
com solicitações limite em termos de resistência e flexibilidade estrutural, destinadas
a uma frequência de uso, cada vez maior, por camadas populares - o que induzia poder
prescindir-se ou simplificar-se os tradicionais cuidados de acabamento habitualmente
empregados quando os espaços dessa natureza eram destinados às elites” (Zein, 2005,
p. 95).
do meio século XX

6
Valério e Almeida (2016, p. 37) apontam que “o acréscimo de mais 36 mil lugares não
haveria de alterar tanto assim os ganhos em receitas do clube, porém esses mais de
Matan Ankava

30 mil assentos no estádio significaria a obtenção de outro tipo de capital, não mais o
econômico, e sim o simbólico. Esse capital simbólico é manifestado a partir do orgulho
que os diretores e torcedores do SPFC viriam a ter com o fato de o clube possuir
o maior estádio particular do mundo.”
Última Hora (1960).
7

8
Segundo Laudo Natel: “E foi Osvaldo Moles quem colocava na prática as ideias que foram
surgindo para a construção do estádio. Venda de cadeira cativa; títulos patrimoniais;
campanha do cimento; colocando ao alcance da torcida esportiva, e principalmente ao
são paulino, aquelas ideias que foram surgindo, que possibilitaram, ao longo de 18 anos,
Primeiros Passos

a construção do estádio” (Natel, 2012 apud Adami, 2013, p.7).


9
Segundo o IBOPE, à época, cerca de 95% das residências paulistanas detinham um
aparelho radiofônico (McCann, 2004).
10
À época, diferentes produtores radiofônicos assumiram também a criação e o emprego
de anúncios durante os programas. Além deste tipo de redação, ao longo de sua carreira
Moles ainda elaborou e implementou novos modelos de publicidade radiofônica, sendo

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que alguns se tornaram padrão no setor de comunicação (Ankava, 2020).


11
O material foi obtido através dos acervos digitais de OESP, Folha de SP e da Hemeroteca
Digital da Biblioteca Nacional, utilizando as palavras-chave “sócio olímpico” e “cadeiras
cativas”, e também das nossas consultas ao acervo pessoal de Osvaldo Moles, em posse
de sua família, realizadas entre 2018-2019.
12
Segundo as fontes, ainda na primeira metade dos anos 1950, a tiragem de OESP
foi em torno de 125.000; do UH e das Folhas, cerca de 100.000 (Laurenza, 1998 apud
Passos, 2009, p. 11); do DN, cerca de 70.000 (Romero, 2009, p. 15). Considerando que a
população paulistana, na época, era de 2,5 milhões de habitantes, e que as mulheres são
praticamente inexistentes nos anúncios, pode-se notar que a divulgação atingia uma
parcela significativa dos homens paulistanos, considerados possíveis clientes.
O anúncio do dia 25/02/1955 questionava “é um novo Friedenreich?”, em alusão a um
13

dos ídolos históricos do time são paulino.


14
Sem nos aprofundar em debates, pensamos essas categorias a partir de suas formulações
Sócio Olímpico e dinâmicas sociais na São Paulo
Um Olimpo massificado: a campanha publicitária

mais elementares encontradas em Marx: o valor-de-uso origina-se da qualidade de


“possuir uma utilidade e o poder de satisfazer uma necessidade”, enquanto o valor-de-
troca representa a “proporção na qual valores-de-uso de uma espécie se trocam contra
valores-de-uso de outra espécie”. De uma forma sintética, “o valor-de-uso constitui a
determinação qualitativa e o valor-de-troca a determinação quantitativa da mercadoria”
(Antunes, 2012, p.191).
Utilizamos aqui a noção de habitus segundo a formulação de Bourdieu (2007, p.191):
15

“sistema das disposições socialmente constituídas que, enquanto estruturas estruturadas


e estruturantes, constituem o princípio gerador e unificador do conjunto de práticas e
das ideologias características de um grupo de agentes”.
16
Novamente, na chave de Bourdieu (2013, p. 106), que contrapõe “de um lado,
propriedades materiais que, começando pelo corpo, se deixam denominar e medir como
do meio século XX

qualquer outro objeto do mundo físico; de outro, propriedades simbólicas adquiridas na


relação com sujeitos que os percebem e apreciam, propriedades essas que precisam ser
Matan Ankava

interpretadas segundo sua lógica específica”.


A respeito da genealogia do SPFC, Streapco (2018, p.132) defende que “o mito fundador
17

são-paulino ajuda a cristalizar a ideia de que os fundadores, sócios e simpatizantes


do tricolor, na década de 1930, faziam parte de um grupo social distinto daquele dos
fundadores de Corinthians e Palestra Itália/Palmeiras”.
18
Aqui, pensamos a distinção a partir da formulação de Bourdieu (2007, p. 218): “a
lógica do funcionamento dos campos de produção de bens culturais e as estratégias de
distinção que se encontram na origem de sua dinâmica fazem com que os produtos de
Primeiros Passos

seu funcionamento, tratando-se de criações de moda ou de romances, estão predispostos


a funcionar diferencialmente, como instrumento de distinção, em primeiro lugar, entre
as frações e, em seguida, entre as classes”.
É bastante complicado justificar os cálculos que deram base aos números trazidos nos
19

anúncios: quando foi vinculado o primeiro, estavam à venda 5.000 títulos, com uma
população citadina de 2,5 milhões, e estadual de 10 milhões; o segundo se esbarra em
anúncios anteriores, que informavam a comercialização de 12 mil títulos.

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Dos 100.000 lugares que tinha o estádio em sua estreia, apenas as 9.000 Cadeiras
20

Cativas e as 1.500 “Numeradas” eram cobertas. (O Estado de São Paulo, 1960).


Em meados do século XX a relação entre tabagismo e problemas pulmonares,
21

notadamente câncer, já vinha sendo comprovada. Não obstante, as propagandas


de cigarro seguiam a todo vapor, associando-o a símbolos de status e masculinidade
(Barreto, 2018; White; Oliffe; Bottorff, 2012).
Frisamos que não se trata do interesse pela economia em si, mas de sua afirmação
22

em público. Isso não equivale a dizer que o rico só busca gastar; significa que, quando
se pretende persuadir aqueles que detêm recursos financeiros e, consequentemente,
acesso a diversos bens culturais, a argumentação deve passar pelas qualidades - técnicas
ou imagéticas, reais ou imaginárias - do produto, e não apenas pela razão monetária.
23
O salário mínimo, de Cr$2.400, foi aumentado em agosto de 1956 para Cr$3.800 e, em
janeiro de 1959, foi definido em Cr$6.000. Segundo o IBGE (1960, p. 213-214), em fins
de 1959, o salário mediano dos operários paulistas na “indústria de transformação” foi
de Cr$7.463 e dos “empregados no comércio atacadista” de Cr$8.336 (para maiores de
Sócio Olímpico e dinâmicas sociais na São Paulo
Um Olimpo massificado: a campanha publicitária

18 anos). O Índice de Salário Mínimo Real (DIEESE, 2011) mostra um aumento de 40


para 100 ao longo da década, atingindo um ápice histórico em 1960 - aliás, rapidamente
arrochado nas décadas seguintes.
“A lógica do funcionamento dos campos de produção de bens culturais e as estratégias
24

de distinção que se encontram na origem de sua dinâmica fazem com que os produtos de
seu funcionamento, tratando-se de criações de moda ou de romances, estão predispostos
a funcionar diferencialmente, como instrumento de distinção, em primeiro lugar, entre
as frações e, em seguida, entre as classes” (Bourdieu, 2007, p. 218).
do meio século XX
Matan Ankava
Primeiros Passos

Recebido em 29/12/2023 - Aprovado em 01/02/2024


Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.739-759, jul-dez. 2023 } 759
DOI: 10.5433/1984-3356.2023v16n32p760-766

Colonialismo e experiências
missionárias em África: os
casos de Angola e Uganda
(séculos XIX e XX)

Colonialism and missionary


experiences in Africa: the
cases of Angola and Uganda
(19th and 20th centuries)

Colonialismo y experiencias
misioneras en África: los
casos de Angola y Uganda
(siglos XIX y XX)

Thiago Henrique Sampaio1

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SILVA, Lúcia Helena Oliveira. Colonialismo e cristianidade em espaços missionários


em Uganda e Angola: séculos XIX e XX. São Paulo: FFLCH: USP, 2022. 120 p.

Na atualidade ao se depararmos com as diversas pesquisas sobre África e os


africanos que ocorrem em universidades e outras instituições não imaginamos
o longo percurso de sua institucionalização no Brasil. A partir dos anos de
1950, surgiram diversos centros de investigação que compartilhavam do
estímulo oferecido pela formação dos Estados Nacionais africanos, suas lutas
de libertação colonial que se intensificaram desde o final da Segunda Guerra
Mundial e as novas relações da política externa brasileira em relação a África
(Dávila, 2011).
Entre os centros de pesquisas, podemos mencionar, que em finais da década de
Colonialismo e experiências missionárias em África:

1950 e das seguintes estão o Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade


os casos de Angola e Uganda (séculos XIX e XX)

Federal da Bahia, criado em 1959, que consolidou a forte tradição de estudos


sobre culturas africanas no estado da Bahia; o Centro de Estudos Africanos da
Universidade de São Paulo, fundado em 1969, que participou ativamente na
formação e intercâmbio de diversos pesquisadores das universidades africanas;
e o Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA), organizado em 1973 por Cândido
Mendes, um dos grandes pensadores e promotores de uma política externa
brasileira em relação ao continente africano durante o governo Jânio Quadros
Thiago Henrique Sampaio

(Reginaldo; Ferreira, 2021).


Na década de 1980, uma vertente da historiografia da escravidão se
desenvolveu no Brasil que contribuiu de maneira ímpar para a consolidação
da história da África. As duas grandes referências dessa linha são as obras A
rebelião escrava no Brasil. A história do levante dos Malês em 1835 de João José
Reis, que teve uma edição revista e ampliada em 2003, e o livro Na senzala uma
flor: esperanças na formação da família escrava. Brasil, Sudeste, século XIX (1999),
de Robert Slenes, que demonstrou as contribuições das heranças africanas
no sudeste brasileiro. Ambos os livros tiveram uma importância singular na
formação de novos africanistas devido abordagens, metodologias e temas
que traçam as produções recentes de Estudos Africanos no país (Reginaldo;
Ferreira, 2021).
Resenha

Paralelamente a historiografia da escravidão que estava sendo desenvolvida,


outros processos possibilitaram os estabelecimentos de condições para o
desenvolvimento de pesquisas em África, que também remontavam ao final da
década de 1980, e vinculados ao forte ativismo dos movimentos sociais negros
que ajudaram na elaboração e formulação de políticas públicas em diversas

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esferas políticas (federal, estaduais e municipais) na área da educação. Entre


as grandes conquistas obtidas por esse grupo estão os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCNs), em 1996; a aprovação das leis 10.639/2003 e 11.645/2008
que garantem a obrigatoriedade dos estudos de História e Cultura Africana,
Afro-brasileira e Indígena nas escolas públicas e privadas de Educação
Básica no Brasil; as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira
e Africana, com sua posterior regulamentação pelo Parecer CNE/CP 03/2004
e pela Resolução CNE/CP 01/2004. Essas legislações, além de expressarem
a diversidade étnico-racial resultante da formação do país, possibilitaram
maneiras e debates efetivos de enfrentamento ao racismo e a discriminação
nos contextos sociais e educacionais, pois desenvolveram práticas pedagógicas
Colonialismo e experiências missionárias em África:

que promoveram políticas de igualdade étnico-racial.


os casos de Angola e Uganda (séculos XIX e XX)

Nas últimas duas décadas, acompanhamos o aumento de pesquisas e


formações de diversos pesquisadores, livros, publicações e grupos de estudos
que orbitam suas temáticas no campo dos Estudos Africanos em diversos
centros universitários nacionais. É a partir dessas perspectivas de expansão da
área que se encaixa a obra Colonialismo e cristianidade em espaços missionários
em Uganda e Angola: séculos XIX e XX escrito por Lúcia Helena Oliveira Silva.
O livro reúne um conjunto de textos vinculados a autora de sua participação
Thiago Henrique Sampaio

no projeto internacional de pesquisa “Fontes e Pesquisas sobre a História das


Missões Cristãs na África: arquivos e acervos (Séculos XVIII-XIX)”, coordenados
por ela, Patrícia Teixeira Santos (UNIFESP) e Elvira Cunha de Azevedo Silva
Mea (Universidade do Porto).
O livro encontra-se dividido em prefácio escrito por Patrícia Teixeira Santos
(UNIFESP) e Nuno de Pinho Falcão (UNILAB), introdução e cinco capítulos que
discutem sobre o processo de experiências missionárias no continente africano,
especialmente sobre Angola e Uganda. A obra demonstrou a complexidade e
os paradoxos dos espaços missionários devido as diversidades confessionais,
institucionais, geográficas e culturais que as missões encontraram no continente
africano e nas intervenções das culturas materiais e processos de socialização
empregadas por elas as populações locais.
Resenha

Em seu primeiro capítulo, “Fontes e pesquisas da história das missões na


África: arquivos e acervos” faz uma defesa relevante e elucidativa sobre os
estudos da história das missões em África e demonstrou uma reflexão de caráter
metodológico sobre os fundos e acervos documentais que permitem uma ampla
gama de possibilidade de pesquisas nessa temática. Nos dois escritos seguintes,

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“Negociando religiosidades no pré-colonialismo: missionários em Buganda


(1868-1956)” e “Conversão e negociação: bagandas e missionários no reino
de Uganda”, Lúcia Helena apresentou a atuação missionária anglicana através
da Church Missionary Society em territórios africanos na região dos Grandes
Lagos e as tensões encontradas naquela localidade. Em seus últimos textos,
“Cristianismo e civilidade: a atuação dos missionários espiritanos em Angola”
e “Missionários espiritanos, carisma e ações em África” a autora descreveu a
atuação de congregações religiosas católicas, no caso a Congregação do Espírito
Santo, uma entidade clerical de origem francesa que ao longo dos séculos XIX e
XX tiveram uma forte atuação no território angolano, principalmente durante
a colonização e dominação portuguesa.
Nesses textos, o leitor percebe as duas linhas de pesquisa que Lúcia Helena
Colonialismo e experiências missionárias em África:

Oliveira Silva tem seguido na área de história das missões. Além disso,
os casos de Angola e Uganda (séculos XIX e XX)

possibilitou notarmos de forma comparativa a atuação de missionários católicos


e protestantes em áreas distintas do continente africano, a Oriental e Central,
que tiveram empreendimentos colonialistas diversos, em cada caso específico:
Angola colonizada por Portugal e Uganda pela Inglaterra.
A historiografia sobre as missões religiosas em África demonstrou que
o processo conhecido como missionação caminhou junto com a expansão
colonial. As experiências missionárias afetaram as dinâmicas culturais,
Thiago Henrique Sampaio

religiosas, econômicas e políticas das sociedades missionadas, pois levaram


uma determinada ideia de civilização que descartava completamente os
aspectos singulares da história africana.
Podemos dividir a presença missionária em África em quatro momentos
distintos. O primeiro iniciado com o processo de expansão portuguesa até o
século XVIII, no qual o processo de missionação foi intensificado com o trabalho
clerical que se direcionava a conversão de chefes africanos. Esses missionários
buscaram aprender as línguas e traduzir suas atividades ritualísticas para a
compreensão da população local, isso possibilitou uma melhor aceitação do
clero por parte dos povos locais que se integraram com seus costumes.
O segundo momento se iniciou em finais do século XVIII e pendurou
na primeira metade da centúria seguinte, onde a ação missionária esteve
Resenha

subordinada a Propaganda Fide. O sucesso do processo evangelizador estava


ligado a adesão das elites africanas ao discurso colonizador. A subordinação
dessa camada populacional permitiu diversas transformações das condições
materiais e surgimento de grupos de profissionais liberais em suas localidades.
Assim, percebemos que a experiência missionária entre o Setecentos e

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o Oitocentos passou pela ênfase e sucesso dos processos de negociações


oriundos das alianças políticas com as chefaturas e soberanos locais. Algumas
vozes destoantes desse processo ficaram amplamente conhecidos como o caso
de Daniel Comboni (Santos, 2002), missionário oitocentistas, que defendia a
regeneração da África pela África, ou seja, que o clero local poderia ser o condutor
da Igreja no continente africano. Entretanto, como a historiografia demonstrou,
essa proposta teve pouco espaço nas políticas coloniais implementadas. Foi
nesse momento que teve início o processo de monumentalização da experiência
missionária com a criação de instituições arquivistas, museus e estudos na área
de missiologia.
A terceira fase que começou em finais de Oitocentos e pendurou ao longo
do século XX, mostraram que a experiência missionária estavam atrelada a um
Colonialismo e experiências missionárias em África:

processo de subordinação aos Impérios Coloniais. Os missionários ajudaram


os casos de Angola e Uganda (séculos XIX e XX)

na estruturação do Estado Colonial com a construção de hospital e escolas,


além de ajudarem em sistemas hierárquicos, classificatórios e de registros das
populações locais. Fora isso, tiveram atuações econômicas importantes para
o recrutamento de trabalho forçado nas áreas missionadas. Nesse momento,
percebemos uma produção heterogênea de fontes como diários de missões,
coleções etnográficas, cartas de leitores e filantropos, periódicos missionários
e, posteriormente no Novecentos, documentos audiovisuais.
Thiago Henrique Sampaio

Em sua obra, Lúcia Helena apresentou ao público esse complexo processo


em final de XIX e na primeira metade do século XX. No escrito, percebemos
que a autora resgatou pessoas que vivenciaram as transformações de fé,
costumes e outros, como o caso apresentado de Ham Mukasa que teve sua
biografia incorporada aos livros produzidos pela Igreja Anglicana e utilizado
na divulgação da fé cristã na região de Uganda.
Vale ressaltar que o processo de mudança de fé tanto em Angola como
em Uganda fizeram com que a população local adotasse um modo de vida
ocidental que contribuiu para o apagamento de sua cultura local. Podemos
mencionar como exemplo dessa dinâmica o desaparecimento das funções
femininas nas estruturas burocráticas de poder do Estado Colonial. Com a
intensificação do processo de roedura do continente africano (Hernandez,
Resenha

2008), outros mecanismos de silenciamento e apagamentos foram utilizados


pelo colonialismo.
A última etapa da presença missionária em África está atrelada com a
luta de libertação colonial e os contextos pós-coloniais, onde as populações
locais buscaram novos sentidos para as ações evangelizadoras e procuraram

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“africanizar” os espaços missionários. Desta forma, houveram a emergência


dos chamados cristianismo africanos que se consolidaram como espaços de
combate anticoloniais e possibilitaram o aparecimento de lideranças nos
processos de independências. Nos casos da guerra anticolonial em Angola e
as negociações emancipatórias de Uganda não foram diferentes do restante do
continente, nessas localidades essas dinâmicas foram encabeçadas por pessoas
oriundas de espaços missionários.
O desenvolvimento dessa última fase permitiu o aparecimento de novas
abordagens sobre a história das missões em África. Na década de 1970, as
experiências missionárias tornaram-se objeto de pesquisas para antropólogos,
historiadores, etnógrafos que entenderam a ação missionária dentro de um
processo de mediação e trânsito entre culturas. Assim, o espaço missionado
Colonialismo e experiências missionárias em África:

começou a ser encarado como um universo construído entre africanos e


os casos de Angola e Uganda (séculos XIX e XX)

europeus. As primeiras pesquisas buscaram recuperar as narrativas da África


pré-colonial, colonial e pós-colonial presentes nas fontes missionárias. A
interdisciplinaridade entre História, Linguística, Sociologia e Antropologia
foram uma marca deste início que se prolongaram até os mais recentes estudos.
Já na década de 1980 em diante, com a conjuntura e dilemas pós-colonial,
as instituições religiosas e seus arquivos fizeram questionamento acerca dos
acervos coloniais. Para alguns, essa documentação ficou conhecida como
Thiago Henrique Sampaio

“acervos da vergonha”, mas com o apoio de dioceses africanas e cleros locais


essas fontes passaram por um processo de ressignificação da compreensão da
memória das missões nas novas entidades políticas que apareceram em África.
A obra Colonialismo e cristianidade em espaços missionários em Uganda
e Angola de Lúcia Helena Oliveira Silva apresentou de maneira singular que
as missões não foram apenas braços do processo de conquista, mas foram
lugares que possibilitaram a criação de zonas de contato para processos de
negociações políticos, econômicos, religiosos, sociais e de alteridades culturais
compreendidas nas fontes deixadas por missionários e congregações religiosas.
Lúcia Helena trouxe uma problemática extremamente contemporânea
para pensarmos o continente africano: os trânsitos culturais e os processos
de ressignificação nos contextos pós-coloniais. A partir destes dilemas e
Resenha

inquietações, percebemos que seu livro se faz necessário sua leitura pelos
diversos pesquisadores dos Estudos Africanos no Brasil. É um escrito ímpar
ao apresentar processos de experiências missionárias em localidades de
colonialismos distintos.
O livro termina com uma reflexão em aberto demonstrando que a autora

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produzirá novos escritos sobre a temática missionária em África oportunamente.


No entanto, em sua configuração atual, a obra já responde a uma importante
demanda sobre a necessidade de estudos no país sobre os espaços missionários
do continente africano.
Em um momento histórico atravessado pelo Brasil, onde aconteceu
desmanche de investimentos em verbas educacionais, recursos e fundos de
pesquisas reduzidos e críticas as políticas públicas de combate ao racismo,
a obra de Lúcia Helena de Oliveira Silva é extremamente importante para
compreendermos a importância da história e cultura africana e afro-brasileira
para a construção do país.

Referências
Colonialismo e experiências missionárias em África:
os casos de Angola e Uganda (séculos XIX e XX)

DÁVILA, Jerry. Hotel trópico: o Brasil e o desafio da descolonização africana (1950-


1980). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.

HERNANDEZ, Leila Maria Gonçalves Leite. Á África na sala de aula: visita à


história contemporânea. São Paulo: Selo Negro, 2008.

REGINALDO, Lucilene; FERREIRA, Roquinaldo. África, margens e oceanos:


perspectivas de história social. Campinas: Editora da UNICAMP, 2021.
Thiago Henrique Sampaio

REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês em
1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

SANTOS, Patrícia Teixeira. Dom Comboni: profeta da África e santo no Brasil. Rio
de Janeiro: Mauad, 2002.

SLENES, Robert W. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da


família escrava. Brasil, Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

Notas
Unesp - Assis-SP.
1
Resenha

Recebido em 29/05/2023 - Aprovado em 01/02/2024


Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.760-766, jul-dez. 2023 } 766
DOI: 10.5433/1984-3356.2023v16n32p767-778

A proposta de uma ecologia


decolonial pensada por
Malcom Ferdinand

The proposal for a decolonial


ecology thought by Malcom
Ferdinand

La propuesta de una ecología


decolonial pensada por
Malcom Ferdinand

Camila André de Souza1

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FERDINAND, Malcom. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo


caribenho. São Paulo: Editora Ubu, 2022.

A obra Uma ecologia decolonial de Ferdinand foi publicada pela Ubu, editora
conhecida pela publicação de obras importantes como Pele negra, máscaras
brancas de Frantz Fanon, Chamamento ao povo brasileiro de Carlos Marighella,
e Malcolm X fala de Malcom X. Como o título da obra sugere, Ferdinand discute
a questão ecológica através de uma perspectiva decolonial, mas partindo de um
ponto de vista específico: a realidade do Caribe. Traduzido para o português
em 2022, o trabalho de Malcom sugere uma nova perspectiva para pensar a
realidade da Terra, dos humanos e não humanos que nela habitam, tecendo
reflexões sobre o impacto do modelo colonial na construção do que ele vai
chamar de dupla fratura da modernidade.
Malcom Ferdinand é pesquisador na Centre National de la Recherche
Scientifique (CNRS) de Paris. De origem caribenha (Martinica), Malcom estudou
por 4 anos conflitos ecológicos atuais no Caribe, suas implicações políticas e
A proposta de uma ecologia decolonial

sua relação com as reinvindicações de igualdade e justiça social, o que resultou


no seu doutoramento em ciência política e filosofia pela Université Paris Diderot
pensada por Malcom Ferdinand

(Ferdinand [...], 2023).


Dividida em 4 partes e 17 capítulos, a obra de Ferdinand entrelaça discussões
teóricas, questionamentos políticos e apresentação de fatos sobre a colonização
Camila André de Souza

que fundamentam sua retórica. Além disso, através de uma criativa narrativa
que não deixa de ser também poética, ele se utiliza dos relatos dos navios
negreiros para tecer metáforas que enriquecem a obra. Partindo desses recursos
simbólicos, Ferdinand apresenta suas ideias de maneira incisiva e ao mesmo
tempo criativa e sensível, demonstrando aspectos da questão ecológica que
passam desapercebidos pelo olhar de uma ciência que se fundamenta à moldes
imperialistas.
No prefácio do livro, Angêla Davis (2022) aponta para a nova perspectiva
teórica apresentada por Ferdinand e seu papel para compreender questões
interrelacionais de gênero, raça, classe e meio ambiente. Modelo que
compreende que todas essas lutas respondem a problemas com uma origem em
Resenha

comum: o processo colonial. Davis apresenta o conceito de racismo ambiental


de Benjamin Chavis para se referir a uma forma de racismo que expõe os
indivíduos racializados a condições deploráveis de sobrevivência através do
contato com resíduos tóxicos, bem como a condições de subnutrição. Essa
perspectiva apresentada por Davis em muito se associa com a perspectiva

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trazida por Ferdinand. Ela ainda afirma:

Ferdinand nos convida a mobilizar métodos holísticos


de investigação e respostas a crises fundamentados nas
interdependências que nos constituem como um todo – plantas,
humanos e demais animais, solos, oceanos – ao mesmo tempo
que reconhece que o racismo posicionou a supremacia branca no
coração de nossas noções do humano (Davis, 2022, p. 9).

Ferdinand apresenta três propostas nesse livro: pensar a dupla fratura


colonial e ambiental, pensar sobre o enfoque do porão da modernidade e dirigir-
se ao horizonte de um mundo em comum. Ele apresenta a problemática da
tempestade moderna, e como os diferentes sujeitos em cena são atingidos por
ela. “Diante do anúncio do dilúvio ecológico, muitos são os que se precipitam
em direção a uma arca de Noé, pouco preocupados com os abandonados no
cais ou com os escravizados no interior do próprio navio” (Ferdinand, 2022,
A proposta de uma ecologia decolonial

p. 22). As questões ambientais podem afetar todos de alguma maneira, mas


há aqueles que há muito já tem sido atingidos duramente pela tempestade,
seja na exposição a substâncias tóxicas, seja pela falta de acesso à alimentação
pensada por Malcom Ferdinand

adequada ou ainda pela ocorrência de desastres ambientais.


Na primeira parte do livro (a tempestade moderna: violências ambientais
Camila André de Souza

e rupturas coloniais), Ferdinand nos contextualiza sobre a problemática do


que ele define como dupla fratura da modernidade. A dupla fratura colonial e
ambiental pode ser compreendida como a hierarquização de valores em que os
humanos são compreendidos através de um olhar misógino e racista e em que
a mentalidade do colonizador se torna a referência para se pensar a terra. Com
a dupla fratura, pautas ecológicas e sociais são desmembradas, nesse sentido
temos uma ecologia que não se preocupa com a injustiça social e lutas sociais
que desconsideram os aspectos ambientais. Ele vai discutir a dupla fratura
como a principal causa para a falta de parceria entre os movimentos feministas,
antirracistas, ecológicos e de proteção aos animais; e salienta a importância
de construir alianças em que os problemas de uns sejam considerados como
Resenha

problemas de todos.
No capítulo 1 (o habitar colonial: uma terra sem mundo), o autor começa
explicitando o papel da colonização europeia das Américas (desde 1492) na
formação de problemas sociais, políticos e ecológicos da modernidade. Até
então os povos ameríndios viviam sem a noção de propriedade privada e com

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uma relação sacralizada com a terra, considerada uma grande mãe provedora de
seus filhos. Mas com a chegada dos europeus a noção de propriedade se instaura
de maneira cruel, as terras passam a ter dono e os povos autóctones, também. A
terra e esses novos humanos “descobertos” são tratados pelo colonizador como
sua propriedade por direito e com a benção da Igreja Católica. Esses outros
humanos não cristãos e suas terras passam a ser recursos a serem explorados a
favor dos interesses europeus. Se instaura um novo jeito de habitar a Terra, um
habitar colonial.
Ferdinand aponta três princípios desse habitar colonial:
a) Geográfico: um lugar determinado que se subordina a outro. As colônias
subordinadas aos interesses do país colonizador.
b) Exploração de terras: a terra passa a servir à fins comerciais, perde seu
caráter matricial.
c) Altericídio: negação, destruição e mesmificação do outro diferente como
mecanismo de dominação. Os povos ameríndios e os povos escravizados
são considerados como uma espécie de massa amorfa e homogeneizada,
A proposta de uma ecologia decolonial

desconsidera-se suas peculiaridades.


Esse habitar colonial ao mesmo tempo divide a terra entre os colonizadores
pensada por Malcom Ferdinand

para que ela possa gerar riqueza para seus países de origem (instituição
de propriedade privada); estabelece a cultivo de monocultura intensiva
(plantations) e explora os humanos (escravidão). Sobre a temática das
Camila André de Souza

plantations, Ferdinand apresenta a noção de imperialismo ecológico de Alfred


Crosby como a subjulgação de humanos e não-humanos à realidade das
plantations para serviço do enriquecimento dos colonizadores.
Segundo Crosby (1999), o êxito do imperialismo europeu teria um caráter
também biológico. Ele afirma que os primeiros laboratórios desse tipo de
imperialismo ecológico se deram em três ilhas no Atlântico Oriental (Canárias,
Azores e Ilha da Madeira). Através dessas experiências os colonizadores
aprenderam que seus animais e plantas se adaptariam bem em novas terras e
que as populações indígenas poderiam ser dominadas.
É com base nessas experiências que vai se constituindo uma forma de habitar
a terra que subjuga um espaço a outro, indiferente às consequências ambientais
Resenha

e sociais que isso possa ter para as terras colonizadas (empobrecimento do solo,
subnutrição e morte dos povos autóctones pelo contato com novas doenças
transmitidas pelo contato com o colonizador).
Como resultado desse processo colonial, se instaura um modelo de exploração
da terra que leva à atual tempestade moderna e um modelo de exploração do

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outro que acarreta problemas sociais de alta complexidade (gênero, raça e


classe social). Nesse contexto, Malcom aborda o conceito de Negroceno, uma
era em que o Negro foi utilizado como instrumento para expandir o habitar
colonial, não só cruel pela exploração de seres humanos, mas como também
em seu papel nas mudanças climáticas e paisagísticas do planeta. A escravidão
colonial é aqui entendida como resultado de uma certa maneira de habitar o
mundo que subjugou humanos e não humanos, explorando-os como recursos
pelos colonizadores europeus.
Mas Ferdinand faz ainda mais uma provocação, amplia a noção de Negroceno
ao afirmar que o Negro não é só o que tem a pele negra, o Negro explorado na
sociedade moderna são todos aqueles que estão nos porões do mundo, dedicando
sua energia vital para enriquecer uma minoria de senhores que detêm o poder.
Se utilizando da metáfora do navio negreiro, Ferdinand apresenta o conceito de
porão da modernidade para referir-se às minorias que são comprimidas pelos
interesses das grandes corporações, além de ter seu sofrimento silenciado.
E é importante se enfatizar que diante de uma crise climática de proporções
A proposta de uma ecologia decolonial

mundiais, os porões são os primeiros a serem “inundados”.


Nas partes II e III do livro, o autor apresenta o conceito de Política de
pensada por Malcom Ferdinand

desembarque. Ferdinand aponta essa política como criadora de mecanismos


que levam certas pessoas a serem alienadas de seus corpos, de suas terras
e, por fim, do mundo. Elas são destituídas de suas histórias e de seu vínculo
Camila André de Souza

com a terra para depois serem cristianizadas e inseridas em certas práticas de


trabalho. São como que crias dos mares, transformadas em mercadorias pelo
tráfico negreiro. Vivem uma condição de náufragos, sobreviventes da travessia
que desembarcam em novas terras das quais não farão parte da vida pública e
política.
Nesse sentido, o navio negreiro cria os Negros, pessoas com origens e
características diversas, mas que agora são reduzidas a uma unidade, a
condição de fora-do-mundo, força de trabalho e propriedade dos senhores. São
parte integrante do processo produtivo, mas são inadmissíveis no mundo dos
senhores. Ferdinand aponta que:
Resenha

Diante da política desumanizadora do embarque do navio


negreiro, corpos perdidos, náufragos e Negros procuram se
emancipar, em busca de dignidade, em busca de justiça. Eles
desenham os contornos de uma ecologia decolonial com suas
múltiplas figuras, uma ecologia impulsionada pela busca de um

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eu, de uma Terra e de um mundo onde se possa viver dignamente


(Ferdinand, 2022, p. 165).

Ele ainda vai falar de uma espécie de desmatamento humano na África. Aqui
é importante observar que embora alguns desses homens e mulheres já fossem
escravizados na África, eles estavam em sua terra natal, conectados com suas
raízes sociais e culturais. Ao serem arrastados para as Américas, o cenário
é outro. Há uma ruptura múltipla, essas pessoas são desconectadas de suas
origens, de suas comunidades, de seus rituais, de suas crenças, de sua fauna e
flora. Elas são arrancadas violentamente de suas terras (ruptura ecumenal).
Mas isso tudo que se dá não é ao acaso, mas é parte de um dispositivo político
que produz o mundo moderno: a política do porão. Esses humanos arrancados
de suas origens agora passam a não mais habitar, são os fora-do-mundo,
alienados do mundo. Não participam das decisões políticas e econômicas, são
usados como recursos de seus senhores e nem mesmo seu testemunho tem
muito valor.
A proposta de uma ecologia decolonial

Não possuem mais terra e não possuem mais os próprios corpos, o que
se torna ainda mais evidente na dominação sexual das mulheres e do uso
pensada por Malcom Ferdinand

de seus ventres para procriação, gerando crianças que ao nascerem também


não serão suas. Como afirma Ferdinand: “A política do porão produz seres de
pertencimentos ancestrais e comunitários fragmentados e até dilacerados”
Camila André de Souza

(Ferdinand, 2022, p. 74).


Esse modo de habitar também fica evidente pelas características das
habitações: as casas grandes destinadas aos senhores são feitas para durar, já
as senzalas não, são feitas para não deixar vestígios. Por essa razão, Ferdinand
vai discutir sobre a importância do que ele chama de uma arqueologia da
escravidão, a necessidade de retomar a história desses homens e mulheres que
foram subjugados e silenciados. Embora sua arte e cultura não tivessem espaço
no mundo colonial, esse espaço se fez pela resistência. Uma arqueologia das
senzalas permitiria retomar a história também dessas resistências, tanto as
sabotagens executadas contra os senhores, como a tentativa de manter viva
sua cultura de origem.
Resenha

Apesar de escravidão ter sido abolida, o modelo de dominação que ela


engendrou se mantêm, e a pergunta que fica no ar nas partes I e II do livro é:
como se emancipar das consequências desse habitar colonial? E é só nas duas
partes finais (III e IV) que Ferdinand vai apresentar com mais nitidez a sua
proposta de construção de um mundo em que esse modo de habitar possa ser

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superado. Ele propõe uma nova forma de se pensar a ecologia através do ponto
de partida das pluralidades, construindo novas compreensões sobre como
habitar a terra.
À princípio ele apresenta o exemplo da fuga dos escravizados e os
aquilombamentos como poderosas resistências ecológicas e políticas.
Resistência que se mantem em alguns lugares até os dias atuais como uma
recusa de certo jeito de habitar o mundo. Nos quilombos aqueles indivíduos
antes escravizados e excluídos do mundo agora se deparam novamente com
a terra, com a natureza, com um lugar em que podem habitar e reconstruir
sua base matricial. Na história dos aquilombamentos se torna imprescindível
considerar não só a coragem guerreira de fuga e desejo de liberdade, mas
também a atitude diferente diante da Terra.
Ao fugir para lugares inóspitos, morros, encostas, florestas; o indivíduo via-
se dependendo da natureza, nela estaria a chave para sua sobrevivência. Surge
aqui uma tentativa de se entender com a natureza, vai se reconstruindo um
novo laço matricial com a Terra: “É um pedido metafísico a essa terra para que
A proposta de uma ecologia decolonial

ela cuide de seu corpo, para que ele seja adotado por ela” (Ferdinand, 2022, p.
172). Nesse sentido, o quilombola agora se torna filho da terra, se torna nativo,
pensada por Malcom Ferdinand

reconstrói sua identidade e seu pertencimento no seio da comunidade.


Ferdinand também articula a questão das mulheres quilombolas. Elas eram
minoria nos aquilombamentos justamente por conta das dificuldades de fugir
Camila André de Souza

das platations, bem como pela reprodução das desigualdades de gênero nos
quilombos (herança do modelo colonial). Mas ao mesmo tempo a história
mostra exemplos de resistência feminina e acordos entre os homens e mulheres
quilombolas para proteger-se do inimigo em comum.
No texto, Ferdinand retoma dois conceitos de Henry Thoreau. O primeiro é
sobre os escravizados da escravidão dos Pretos: o autor evidencia os impactos da
escravidão para toda a sociedade, não só para os escravizados. Em uma sociedade
escravagista, todos são subjugados. O segundo conceito é de aquilombamento
civil: resistência do habitar colonial pela sociedade civil. A proposta de Thoreau
seria o aquilombamento civil como a possibilidade de construção de um novo
jeito de se habitar o mundo. Mas é importante esclarecer:
Resenha

Não é possível aquilombar-se infinitamente e evitar o confronto


direto com os defensores de uma economia capitalista que mata
o mundo de fome em prol da opulência de uma minoria. Mas
esse aquilombamento civil permite desenhar o horizonte, a rota

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utópica de um mundo habitável que guia o confronto (Ferdinand,


2022, p. 195).

O que Ferdinand propõe é uma ecologia decolonial, uma luta para combater
a crise ambiental e que entende que a igualdade entre os habitantes do mundo
é parte essencial dessa luta. Essa luta começa pelo esclarecimento do que se
entende por habitar colonial e suas consequências não só para os humanos,
mas também para os animais, plantas e fertilidade da terra.
Como parte do movimento decolonial, busca-se uma abordagem que fuja da
perspectiva eurocêntrica e pense a realidade a partir de outros pontos de vista,
outros modos de ser e de pensar. Uma ecologia decolonial também considera as
intersecções entre as questões de raça e de gênero, em diálogo com o aspecto
ambiental, mas tendo como centro a compreensão sobre o papel do habitar
colonial na criação e manutenção das injustiças e degradações ambientais.
Por fim, o autor discute sobre caminhos possíveis de mudança no nível
cultural e político para pensar em outra maneira de habitar a Terra com a
A proposta de uma ecologia decolonial

libertação daqueles que estavam (e ainda estão) aprisionados nos porões do


mundo. Ele descreve quatro tipos de lutas ecológicas decoloniais presentes na
pensada por Malcom Ferdinand

atualidade. São elas:


1. Luta dos povos pré-colombianos e autóctones;
2. Luta contra a desigualdade social e racial em interface com efeitos das
Camila André de Souza

crises ambientais
3. Ecofeminismo;
4. Denúncia a modelos de habitar colonial ainda presentes na
contemporaneidade
A saída que Malcom aponta para o conflito seria a política do encontro, com
a premissa básica da alteridade e de uma reviravolta no modelo de social com
os senhores desfazendo-se de seus privilégios, aceitando dividir o mundo com
os outros habitantes da Terra, ao invés de uma política da arca de Noé que salva
alguns à custa dos outros. Mas ao mesmo tempo faz parte da proposta do autor
o papel dos quilombolas, nesse sentido eles deixariam de fugir e passariam a
confrontar o mundo.
Resenha

Aqui ele apresenta dois conceitos importantes: o de companheiro de bordo e


de navio-mundo. O companheiro de bordo é aquele que possibilita a existência
de um navio-mundo, de uma extensão de área que possa abarcar a todos. Isso
implica não só o salvamento dos corpos, mas também o passar a ver o outro em
sua totalidade, como igualmente participante das decisões.

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Ferdinand discute a dupla fratura pela ótica do corpo e o caminho de


construção de reconectar-se com uma Mãe Terra tendo o corpo como ponto
de partida. É preciso tomar corpo no mundo. Através da política colonial dos
corpos criaram-se os Negros, aqueles que destituídos de sua origem, identidade
e dignidade foram tomados como recursos para as plantations.
Acontece que essa política de poder através do domínio dos corpos se mantém
mesmo após os processos abolicionistas, os corpos ficam marcados. A retórica
machista, misógina e acima de tudo racista toma alguns corpos como sendo
inferiores aos outros, o que faz que ocupem posições subalternas na sociedade.
E desconsiderando as discussões sobre o poderio de certos corpos por outros,
a ideologia ecológica alienante mantem a dupla fratura. Isso porque os corpos
são ao mesmo tempo sociais e biológicos. Do ponto de vista social, são julgados
e hierarquizados. Já em seu aspecto biológico, são mais ou menos sujeitos a
contaminação com produtos tóxicos e outras situações prejudiciais a saúde, de
acordo com o valor social de seus corpos.
A proposta de uma ecologia decolonial

As exclusões sociais e políticas dos ex-escravizados, dos pobres,


dos racializados e das mulheres manifestam-se também por meio
pensada por Malcom Ferdinand

da contaminação de seus corpos biológicos pelos produtos tóxicos


das plantações e das fábricas, pelas desigualdades de exposição,
de tratamento e de pesquisas médicas sobre as consequências
Camila André de Souza

dessas exposições (Ferdinand, 2022, p. 233).

Ou seja, as violências se acumulam. Ao pensar no consumo de produtos


orgânicos, desconsidera-se os fatores socioeconômicos, preserva a saúde
do próprio corpo quem pode enquanto outros corpos seguem famintos e/ou
contaminados. A escravidão acabou, mas os corpos continuam marcados. E o
mundo segue dividido entre polos: de um lado os que possuem as marcas dos
crimes cometidos e seus descendentes; de outro os marcadores e, também, seus
descendentes.
Ferdinand também retoma várias vezes durante o texto a especificidade da
violência com os corpos das mulheres na escravidão, duplamente violentados e
Resenha

transformados em matriz de reprodução para manter o fazer colonial. Mas ele


também aponta para as resistências, como é o caso dos abortos realizados por
elas como maneira de libertar, ainda que parcialmente seus corpos.
Diante desse domínio de certos corpos, Malcom aponta para três planos de
resistência:

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- Liberdade de movimento corporal (arte, dança): possibilidade de


movimentação dos corpos para além da mecânica de trabalho das
plantations.
- Liberdade de circulação pela Terra: possibilidade de se responsabilizar
pela própria alimentação (agricultura de subsistência camponesa pós-
escravagista)
- Liberdade corporal em nível metafísico: possibilidade de amar e cuidar
do próprio corpo, vê-lo como digno. Um caminho de recuperação da
dignidade.
Ferdinand define com nitidez a proposta de uma ecologia-do-mundo, da
construção de um novo horizonte para humanos e não-humanos. Ele afirma
que não basta decolonizar a natureza, é preciso decolonizar o mundo. Compor
um mundo entre humanos e não-humanos que considere sua pluralidade.
Nesse sentido, o autor discute sobre perspectivas ontológicas que se mantem
fraturadas. Uma delas é a noção de crioulização de Glissant, já que ela dá valor à
relação entre humanos respeitando suas peculiaridades, mas mantem a fratura
A proposta de uma ecologia decolonial

por desconsiderar os não-humanos. Outro exemplo é a ontologia Gestalt Arne


Næss que enfatiza os laços com nossos meios de vida, mas que homogeneíza os
pensada por Malcom Ferdinand

seres humanos e suas histórias. Uma saída seria a construção de uma perspectiva
complementar, duplamente relacional: uma ontologia Gestalt crioulizada.
Ferdinand afirma que uma ontologia alternativa interessante para lidar
Camila André de Souza

com a problemática da dupla fratura é a de Donna Haraway: a Ontologia de


Chthuluceno. É uma perspectiva que discute os interstícios na fronteira entre
humanos e não-humanos, além de considerar as problemáticas de gênero e
raça. Ele defende a construção de uma cosmopolítica da relação que ao mesmo
tempo ligue os humanos entre si em um agir conjunto e considere maneiras de
os não-humanos participarem do mundo que respeitem suas necessidades e
interesses. Preservar o mundo entre humanos com os não-humanos.

Em vez de olharmos apenas para nosso próprio umbigo, os


caminhos umbilicais do mundo incitam o reconhecimento
de nossas existências no seio de teias de relações orgânicas,
Resenha

materiais, políticas e imaginárias com os que vieram antes de nós


e com os que virão depois (Ferdinand, 2022, p.259).

Ferdinand também expõe um conceito que é de Stephen Gardiner: tempestade


intergeracional, e propõe um continuum entre passado e futuro que considere

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as questões sociais, ambientais e políticas em um caráter histórico. O que


Gardiner (2011, p. 147) propõe com sua abordagem intergeracional é abarcar
conflitos severos que não poderiam ser compreendidos de maneira adequada
se não considerarmos o aspecto geracional. Um exemplo que podemos pensar é
quanto à herança do modelo colonial na manutenção das desigualdades sociais
e, por essa razão, a necessidade de reparação histórica.
Por fim, ele evidencia que a ideia de justiça ambiental está intimamente ligada
às lutas decoloniais, e fala de três tipos de tentativas de ação para construção
do convés do navio-mundo. São elas:
1. Lutas dos povos indígenas;
2. Lutas pela reparação histórica da escravidão e do tráfico negreiro
transatlântico;
3. Lutas pela restituição de objetos de arte e partes de corpos humanos
roubados pelas potências coloniais.
Um ponto debatido por Ferdinand que não pode ser negligenciado é quanto
à necessidade de responsabilização dos crimes cometidos pelos impérios
A proposta de uma ecologia decolonial

coloniais: uma reparação histórica que leve em consideração os desafios de


igualdade, justiça e ecologia. Para que seja possível a construção de um mundo
pensada por Malcom Ferdinand

em comum é necessário que haja diálogo ou, como diria o autor, uma política do
encontro. Ao se utilizar das metáforas do navio negreiro e da arca de Noé para
evidenciar as diferenças entre aqueles que foram obrigados fugir do mundo e
Camila André de Souza

aqueles que fogem para se salvar respectivamente, Ferdinand aponta para as


tentativas de fuga do encontro e importância de superar essa ruptura.
Uma ecologia decolonial é uma obra que prima pela sensibilidade poética
para abarcar reflexões sobre problemas políticos, sociais e ecológicos que se
enraízam no mecanismo de habitar colonial e se estendem até os dias atuais. A
fratura denunciada por Ferdinand se engendra no seio da sociedade moderna
capitalista e o caminho para superá-la inclui a retomada das histórias dos povos
colonizados e escravizados (uma arqueologia da escravidão), a necessidade de
reparação histórica (aspecto intergeracional) e a construção de diálogo entre
os diferentes sujeitos da história (política do encontro).
A leitura da obra de Ferdinand é recomendada para todo aquele que se
Resenha

interessa em aprofundar-se na compreensão dos aspectos sociais, políticos e


ambientais que se fazem presentes na atualidade. Sua obra chama a atenção
pela criatividade na escrita e pela apresentação de um arcabouço teórico que
é especialmente útil para evidenciar a realidade do Caribe e outros países que
passaram por processos semelhantes de colonização.

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Referências

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900-1900. Barcelona: Editora Crítica, 1999.

DAVIS, Angela Y. Prefácio. In: FERDINAND, Malcom. Uma ecologia decolonial:


pensar a partir do mundo caribenho. São Paulo: Editora Ubu, 2022. p. 9-15.

FERDINAND, Malcom. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo


caribenho. São Paulo: Editora Ubu, 2022.

GARDINER, Stephen M.. A perfect moral storm: the ethical tragedy of climate
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FERDINAND Malcom. In: DAUPHINE Université. Paris: Université Paris-


Dauphine, 2023. Disponível em: https://irisso.dauphine.fr/en/members/detail-
cv/profile/malcom-ferdinand.html. Acesso em: 23 jun. 2023.
A proposta de uma ecologia decolonial

Notas
Mestre em Ciência da Religião pela PUC-SP.
1
pensada por Malcom Ferdinand
Camila André de Souza
Resenha

Recebido em 27/06/2023 - Aprovado em 02/02/2024


Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.767-778, jul-dez. 2023 } 778
DOI: 10.5433/1984-3356.2023v16n32p779-787

Paraíso ou local de
perdição? Minas colonial e as
idealizações sobre a natureza

Paradise or place of
perdition? Colonial Minas and
the idealizations on nature

¿Paraíso o lugar de
perdición? Minas colonial
e idealizaciones sobre la
naturaleza

João Gabriel Covolan Silva1


Alberto Camargo Portella2

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SOUZA, Laura de Mello e. O Jardim das Hespérides: Minas e as visões do mundo


colonial no século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

O mais recente livro de Laura de Mello e Souza, O Jardim das Hespérides:


Minas e as visões do mundo colonial no século XVIII é o produto de mais
de três décadas de pesquisas por parte da historiadora. Entre idas e vindas,
como deixa claro, a decisão de publicar o texto com o qual viajara à Europa,
em versão impressa, veio da sugestão de Antoine Acker, que inclusive lhe
sugeriu referências bibliográficas para a transformação do manuscrito. Tendo
apresentado o texto em três ocasiões, a autora, diante da receptividade positiva
do trabalho, reescreveu e atualizou o que veio a ser a brilhante obra ora resenhada.
João Gabriel Covolan Silva / Alberto Camargo Portella

Trata-se de um livro sobretudo sobre as concepções mentais dos colonos de


Minas Gerais ao longo do século XVIII acerca do mundo natural que os rodeava,
Minas colonial e as idealizações sobre a natureza

dando ênfase em especial para as “sensibilidades e emoções, dividindo-as em


quatro blocos, a bem da verdade quatro categorias que expressassem modos de
apreender um mundo que se ia devassando à ocupação” (Souza, 2022, p. 14).
Estas quatro categorias ou dimensões, como os títulos dos capítulos sugerem
– mítica, trágica, prática e afetiva, respectivamente – são trabalhadas em
diacronia e sincronia, em capítulos que se complementam de modo inequívoco.
Paraíso ou local de perdição?

O livro se baseia sobretudo em fontes primárias, embora também haja


espaço para discussões historiográficas. Em relação a este aspecto, vale a
pena mencionar o diálogo que o livro apresenta com outras obras da própria
autora, em especial seus livros Desclassificados do Ouro: a pobreza mineira
no século XVIII3, fruto de sua Dissertação de Mestrado, e O Diabo e a Terra
de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial4, resultado
de sua Tese de Doutorado, ambas sob orientação de Fernando A. Novais. Do
primeiro livro, além da grande convergência das fontes primárias presentes
nos dois textos, há dentre os argumentos trabalhados em ambos as menções
às técnicas inadequadas da atividade mineradora e a crença, por parte dos
ilustrados luso-brasileiros, de que a riqueza das minas era ilusória (Souza, 2017,
p. 56) enquanto a agricultura era tida como “a mais ordenada das atividades
humanas” (Souza, 2022, p. 78). Ademais, os dois textos abordam a conformação
Resenha

da consciência do “viver em colônias” na região mineira, expressão cunhada


pelo professor de grego radicado em Salvador, Luís dos Santos Vilhena: se no
primeiro a autora foca na dimensão fiscal e política, no trabalho recente aborda
as representações do espaço mineiro – sobretudo na cartografia e na literatura
– buscando compreender as raízes de uma identidade com o território dentro

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dos quadros estruturais da colonização portuguesa na América.


Já em comparação com O Diabo e a Terra de Santa Cruz, vale mencionar a
abordagem das mentalidades por parte da autora, resultado de influências
de historiadores como Carlo Ginzburg, Jean Delumeau e Jacques Le Goff. O
universo mental é tratado por Laura de Mello e Souza dentro de sua constância
e contradição. Do mesmo modo que, “na esfera divina, não existe Deus sem o
diabo; no mundo da natureza, não existe Paraíso terrestre sem Inferno; entre os
homens, alternam-se virtude e pecado” (Souza, 2009, p. 44), havia no cotidiano
das Minas, junto ao fascínio, a persistente “adversidade, o embate entre
homem e natureza se fazendo a poder de ‘perigos, fomes, sedes e trabalhos’”
(Souza, 2022, p. 46). Estas questões foram analisadas de modo requintado pela
João Gabriel Covolan Silva / Alberto Camargo Portella

historiadora no trabalho ora resenhado.


No primeiro capítulo, Laura de Mello e Souza trata das dimensões míticas
Minas colonial e as idealizações sobre a natureza

da colonização das Minas, já que foi sob “o primado do mito que Minas se
configurou como espaço dotado de unidade interna” (Souza, 2022, p. 22). O
aspecto central deste capítulo é a argumentação, por parte da autora, de que
a edenização repetiu-se em situações de fronteira, seja durante a expansão
mineira, seja durante a sua decadência. Desmente-se assim a afirmação de
que, ao se colonizar, dissipam-se as concepções edênicas acerca das terras
Paraíso ou local de perdição?

americanas. Reproduzem-se ao longo dos séculos atitudes que para Laura


são análogas às de Pero de Magalhães Gandavo, pois “bolsões de mitificação
podiam ficar adormecidos para, em momento oportuno, reeditarem-se e se
readaptarem, originando novos arranjos mentais, mas atestando, por outro
lado, a longa respiração dos fenômenos da mentalidade” (Souza, 2022, p. 24).
Mas estas edenizações podiam também ser eclipsadas, como demonstra, diante
de uma concepção moderna da atividade produtiva em solo mineiro. Neste
capítulo, são evidentes algumas semelhanças com O Diabo e a Terra de Santa
Cruz, obra mencionada acima, e em especial com Sérgio Buarque de Holanda.
Se em outros trabalhos da historiadora são nítidas as influências de Monções
e Caminhos e Fronteiras, aqui é nítido o diálogo com Visão do Paraíso, obra
em que, para Buarque de Holanda, é clara a influência para o colonialismo
português do pensamento mítico, mesmo entre os espíritos mais “realistas”
Resenha

(Holanda, 2010, p. 118) – e também há menções à edenização tardia –, bem


como Raízes do Brasil, ocasião em que o historiador sugere o aprendizado, por
parte dos colonizadores lusitanos, do que “lhes ensinara a rotina”, auxiliando
na aclimatação às novas paragens (Holanda, 1995, p. 52).
Também é digno de nota que a edenização se estende às gemas encontradas,

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algumas vezes exageradas em suas dimensões reais, que refletiam a influência


do espaço mítico Oriental, como se o interior da América portuguesa
compensasse o que fora perdido no outro lado do mundo: algo que apresenta
também similitude, na longa duração. Isto porque para os europeus, desde o
Medievo o Oriente representava riqueza, “Ilhas produtivas de materiais de
luxo: metais preciosos, pedras preciosas, madeiras preciosas, especiarias”,
mas também aberrações, canibalismo e bestialidade (Le Goff, 2013, p. 372).
O maravilhoso, contudo, não se arrefeceu com o desenrolar da colonização.
Como nos lembra a autora, avança, e colore as zonas fronteiriças, como se
fossem fadadas a preencher o lugar antes ocupado por regiões devassadas mas
que foram “inseridas na ordenação mais racional do trabalho produtivo e do
João Gabriel Covolan Silva / Alberto Camargo Portella

convívio social citadino” (Souza, 2022, p. 34).


Se a edenização e o mito foram o tema do capítulo inicial, compondo
Minas colonial e as idealizações sobre a natureza

a primeira categoria interpretativa sobre a natureza de Minas colonial, a


autora dedicou o segundo à dimensão trágica. Como Laura bem apontou, “a
consciência da catástrofe nunca deixou de andar ao lado do devassamento da
natureza” (Souza, 2022, p. 17-18), a tragédia acompanhando e não meramente
substituindo aquele primeiro aspecto. Fossem justificados ou não, diversos
medos atravancaram a ida ao interior da América lusa, à região das Minas,
Paraíso ou local de perdição?

agindo como um curioso e poderoso anteparo às visões edênicas.


Mais notáveis e facilmente perceptíveis na paisagem, as serras compuseram
o primeiro obstáculo físico e mental, articulando as idealizações à prática da
atividade colonizadora. Desde a Antiguidade clássica, as montanhas foram vistas
enquanto locais de passagem, fronteira entre um mundo conhecido e um outro
bárbaro, e assim foram pensadas na região em análise. Não à toa, Antonil pôde
escrever que “‘daí vem o dizerem que todo o que passou a serra da Mantiqueira
aí deixou dependurada ou sepultada a consciência’”, sinal de acesso a outro
local em que a vida ganhava uma nova configuração (Antonil, 1965, p. 422 apud
Souza, 2022, p. 45). Mão não só de serras os medos eram compostos. Também
entravam em cena a fome e o perigo que trazia à subsistência da população, em
uma capitania ainda indevassada em considerável parte e que atraía olhares
às suas riquezas. O clima também compunha o quadro trágico, com as cheias
Resenha

destrutivas dos rios, causadas ou potencializadas pela interferência humana


em suas margens. Nesse caso, aliás, não se tratava de uma particularidade
mineira, haja vista que enchentes e tempestades causaram estragos em outras
localidades americanas, no que muito contou a própria dinâmica colonizadora
local e as transformações empreendidas no meio natural (Schwartz, 2021).

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Resumindo os medos em uma única expressão, havia os sertões.


Regiões pouco afeitas à agricultura, infestadas de doenças, ainda poderiam
descivilizar quem nelas entrasse, ou seja, “desnaturar o homem e o irmanar
às feras” (Souza, 2022, p. 58). Lá o colono pôde encontrar indígenas hostis
ou quilombolas conhecedores do terreno, e buscou, de acordo com sua visão
de mundo, enfrentar tais obstáculos e conquistar o território. O fascínio por
riquezas e status, afinal, fez os medos serem superados, e nessa empreitada
o conhecimento dos caminhos e as práticas sobre o território marcaram uma
nova forma de interpretar a realidade da capitania.
Dessa forma, a autora articula essa sua argumentação ao terceiro capítulo da
obra, dedicado à dimensão prática. Se de início, a região foi vista com admiração
João Gabriel Covolan Silva / Alberto Camargo Portella

ou temor, para “viabilizar a exploração econômica, havia que conhecê-


la, dominá-la, representá-la, transformá-la”, atividades práticas sobre um
Minas colonial e as idealizações sobre a natureza

território em dinâmica edificação material e mental (Souza, 2022, p. 67). Uma


delas foi a nomeação de localidades e acidentes do terreno, que não pôde deixar
de se relacionar à construção de mapas e roteiros, veiculados de forma oral ou
impressa. Em pleno século XVIII, a confecção de mapas para delimitar a região
ganhou ímpeto, representando-a e controlando o que antes era desconhecido.
O objetivo, evidentemente, foi a “ordenação do meio natural” (Souza, 2022, p.
Paraíso ou local de perdição?

72).
Essa praticidade também esteve relacionada à descrição da economia local,
como nos escritos e memórias científicas que versaram sobre a região. No
contexto do reformismo ilustrado luso-americano, tais textos, partindo do
conhecimento então existente sobre o meio natural, postulavam mudanças para
um melhor aproveitamento econômico, no que também contou certa simpatia
pelo terreno em análise. Sem cair em determinismos mas destacando certa
coincidência, é interessante notar que um dos grandes nomes do movimento de
divulgação de textos em Lisboa, frei José Mariano da Conceição Veloso, nasceu
por volta de 1742 justamente em Minas Gerais (Safier, 2019).
Em Minas “[s]ob a ação civilizadora dos entrantes, ora mítico, ora trágico,
o sertão desvenda por fim a potencialidade utilitária” (Souza, 2022, p. 76),
mas tal empreitada envolveu também a destruição do que não se encaixou
Resenha

nos parâmetros da civilização que se buscava criar: o melhor exemplo sendo


os indígenas e suas longevas práticas. Assim, literalmente se abririam os
caminhos para o aproveitamento produtivo da região, baseado na mineração,
na agricultura, nas salinas, recomendadas por José Vieira Couto, ou na
catalogação e utilização da fauna e flora locais. Nesse último caso, a admiração

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ante o fantástico não deixou de existir mas perdeu proeminência, e os colonos


“que domavam a natureza e exaltavam a sedentarização já não viam os animais
como monstruosos ou ameaçadores. Fixavam-nos em coleções, deixavam que,
domésticos, vagassem pelo quintal” (Souza, 2022, p. 81). É assim, portanto, que
a prática ganhou espaço, mas sem substituir completamente a admiração e o
temor persistentes.
O devassamento da região ocorreu por meio da abertura de caminhos,
necessários ao desenvolvimento econômico mas capazes de fazer transitar
criminosos e ideias sediciosas, e pela criação de vilas com o consequente
desmatamento em seus arredores. Em meio à destruição para aproveitar os
recursos que ali estavam, pondo em xeque as antigas visões de admiração ante
João Gabriel Covolan Silva / Alberto Camargo Portella

à natureza indevassada pelos colonos, outro aspecto continuou a tomar força,


mais relacionado ao “mundo dos afetos” nessa peculiar região do Império
Minas colonial e as idealizações sobre a natureza

português (Souza, 2022, p. 93).


No quarto capítulo, “A dimensão afetiva”, Laura de Mello e Souza faz uma
análise acerca das representações imagéticas e literárias da capitania das Minas
no século XVIII, em especial na segunda metade deste século, período em que
se registra um intenso desenvolvimento cultural. Para tal abordagem, afirma a
autora que é neste período que se constituíra um sistema cultural: “Os núcleos
Paraíso ou local de perdição?

urbanos achavam-se então melhor conformados, o meio social mais definido


em suas peculiaridades, bem implantado o mando, esboçadas as relações entre
os produtores de cultura e um público consumidor, por mais incipiente que
se apresentasse” (Souza, 2022, p. 103). Ademais, a aproximação com a cultura
europeia conjugada à interiorização dos elementos próprios das Minas, em
plena transformação, fornece à elite intelectual mineira “subsídios para refletir
sobre a realidade específica de sua terra”, levando a um sentimento regional
mais forte, que se manifesta, sobretudo, na incorporação do mundo natural da
capitania ao “universo dos afetos” (Souza, 2022, p. 104). Estas afirmações de
Laura carregam uma forte influência de Antonio Candido, em especial em dois
aspectos, reconhecidos pela autora: o primeiro é a definição da literatura como
sistema articulado, dependente da existência da tríade autor-obra-público, em
interação constante e dinâmica. Não que a literatura brasileira nasça no século
Resenha

XVIII, mas seu processo formativo encontra neste período as suas raízes. O
segundo aspecto é que, para o crítico literário, o Arcadismo plantou “de vez
a literatura do Ocidente no Brasil”, graças aos padrões universais por que se
regia, dando início à articulação da atividade literária em terra brasileira com
o sistema da civilização ocidental dentro do qual se define, lentamente, a

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originalidade da literatura local (Candido, 2000, p. 17).


As menções às representações da paisagem local por Cláudio Manuel da Costa
e “a clara inteligência” de Alvarenga Peixoto, que compreende os mecanismos
da colonização, são altamente sugestivas. De Cláudio Manuel, é bela a descrição
da obsessão do poeta com a pedra e com o relevo acidentado, e a descrição
do ribeirão do Carmo, caracterizado pela “feiura” e contraposto ao “cristalino
Tejo” e ao Mondego: como o poeta, “o ribeirão não pode fugir da sina de ter
nascido em colônias” (Souza, 2022, p. 108). Esta abordagem de Laura carrega
semelhança com a de Sérgio Alcides, estudioso da obra de Cláudio Manuel da
Costa, para quem a ideia da natureza americana como força desestruturante
e desordenadora era um termo de “mediação para compreender e explicar a
João Gabriel Covolan Silva / Alberto Camargo Portella

sociabilidade” (Alcides, 2003, p. 117). Já no que se refere à Alvarenga Peixoto


e Tomás Antônio Gonzaga, há maiores menções ao tecido social mineiro, pelo
Minas colonial e as idealizações sobre a natureza

último, enquanto o primeiro autor “examina a natureza específica das Minas sob
crivo político e, mesmo contido pela carapaça do reformismo, chega próximo à
contestação do sistema colonial” (Souza, 2022, p. 112). Esta dimensão afetiva
que crescentemente leva a um sentimento de especificidade e pertencimento
à América é fenômeno anterior à configuração de uma ideia de Brasil. Como
afirmou o historiador João Paulo Pimenta, estes autores eram portadores de
Paraíso ou local de perdição?

“sensibilidades especialmente agudas”, indicando transformações pelas quais


passava o império português, e articulavam a identidade nacional portuguesa
com “outras identidades coletivas de menor alcance, maldefinidas, mas que
logo se constituiriam em esferas privilegiadas para a emergência de conteúdos
politicamente inovadores” (Pimenta, 2014, p. 620).
No fim das contas, a presente obra de Laura de Mello e Souza contribui
para o campo da História Colonial luso-americana ao mesmo tempo em que
a relaciona a uma vaga recente de estudos dedicados à História Ambiental
(Pádua, 2010, p. 81). Decididamente, o fato colonial, o “viver em colônias”,
como antes destacado, precisa ser compreendido em sua totalidade, inclusive
com referência ao espaço, seus usos e às idealizações sobre ele tecidas. Não se
trata de um aspecto isolado de um todo, mas de uma peça adicional a compor
um jogo em que fatores políticos, econômicos, sociais e ambientais tiveram o
Resenha

seu peso (Braudel, 2014, p. 22; Worster, 1991, p. 213-214). A própria autora o
demonstrou ao notar que a maneira de a natureza ter sido pensada pode ter
contribuído “na constituição de uma nova forma com que os luso-brasileiros
das Minas passaram a ver a ação política” (Souza, 2022, p. 17). O afeto em
relação àquele território, as ideias que beiraram a contestação colonial, todos

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esses fatos atestam como o ambiente ensejou a ação política na região.


Nessa narrativa sobre o devassamento do espaço colonial mineiro, mito
e história foram entrelaçados, o que justifica a utilização feita por Diogo
de Vasconcelos da imagem do jardim das Hespérides, um mito, em sua
narrativa sobre Minas Gerais. Se o “espaço é algo que precisamos pressupor
meta-historicamente para qualquer história possível e, ao mesmo tempo, é
historicizado, pois se modifica social, econômica e politicamente” (Koselleck,
2014, p. 77), a obra de Laura nos mostra como ele foi pensado e idealizado pelos
atores da época, as maneiras de interpretá-lo contribuindo de maneira certeira
para uma compreensão abrangente da história de Minas e da colonização
portuguesa na América.
João Gabriel Covolan Silva / Alberto Camargo Portella

Referências
Minas colonial e as idealizações sobre a natureza

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In: LE GOFF, Jacques. Para uma Outra Idade Média: tempo, trabalho e cultura no
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PÁDUA, José Augusto. As bases teóricas da História Ambiental. Estudos Avançados,

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SOUZA, Laura de Mello e. O Jardim das Hespérides: Minas e as visões do mundo


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Paraíso ou local de perdição?

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Janeiro, v. 4, n. 8, p. 198-215, 1991.

Notas
Scuola Normale Superiore di Pisa/Lab-Mundi (FFLCH-USP).
1

Universidade de São Paulo.


2

3
A Dissertação, defendida em 1980 na Universidade de São Paulo, foi publicada pela
primeira vez em 1982.
A Tese foi defendida em 1984 e veio a público pela primeira vez em 1986.
4
Resenha

Recebido em 26/10/2023 - Aprovado em 06/02/2024


Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.779-787, jul-dez. 2023 } 787
DOI: 10.5433/1984-3356.2023v16n32p788-796

Içar velas, livros a bordo!


A circulação de livreiros entre
França, Portugal e Brasil
(séculos XVIII e XIX)

Hoist sails, books on board!


The circulation of
booksellers between
France, Portugal and Brazil
(19th and 20th centuries)

¡Izar velas, libros a bordo!


La circulación de libreros
entre Francia, Portugal y
Brasil (siglos XVIII y XIX)

Wagner de Carvalho1

Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.788-796, jul-dez. 2023 } 788


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BOMPARD, Jean-Jacques. Livreiros do Novo Mundo: de Briançon ao Rio de


Janeiro. Campinas: Editora UNICAMP; São Paulo: Editora Unesp e EDUSP,
2021. 246p.

Publicado originalmente na França em 2015, Livreiros do Novo Mundo: de


Briançon ao Rio de Janeiro chegou ao Brasil em 2021, descortinando a trajetória
de gerações de livreiros franceses oriundos de Briançon, localizada nos Altos
Alpes franceses. Jean-Jacques Bompard, autor do livro, é descendente de uma
das famílias mais antigas daquela comuna. Conservou, em sua casa, um vasto
acervo sobre sua família, recheado de papéis e objetos referentes a um dos
principais personagens de sua obra, o livreiro Jean-Baptiste Bompard, nascido
em 1797. Tendo estabelecido contato com Lúcia Maria P. Bastos das Neves em
2008, ele se debruçou sobre arquivos de diferentes países, motivado a revelar a
trajetória de seu antepassado.
Trata-se de um trabalho de fôlego no que se refere ao cotejamento de
fontes. Ajudado por Lúcia Bastos ao longo do percurso, o autor pôde reunir
A circulação de livreiros entre França,

centenas de documentos, muitos deles inéditos para a historiografia brasileira,


Portugal e Brasil (séculos XVIII e XIX)

oriundos de pelo menos sete arquivos. O vasto escopo documental autorizou


o autor a adotar um recorte espacial amplo – França, Portugal, Rio de Janeiro
–, sendo esse, talvez, um dos principais méritos do livro: há, ali, uma série de
Içar velas, livros a bordo!

deslocamentos, transnacionais e transatlânticos que são muito bem explorados


a partir das fontes recolhidas.
Wagner de Carvalho

Sintonizado com as ambições da historiografia no que se refere à História


Global, o autor acessou os documentos produzidos pelos deslocamentos desses
livreiros, como passaportes, pedidos de envio de remessas de livros entre os
países, livros de matrícula de estrangeiros produzidos pela Intendência Geral
da Polícia, anúncios das chegadas de vapores estrangeiros nos grandes jornais
etc. Porém, não encontramos, no livro, diálogos francos com estudos situados
nos diferentes campos da História Global – diálogos que seriam oportunos ao
enriquecimento das análises do autor.
A obra está dividida em 13 capítulos curtos e bem escritos. No capítulo um,
Bompard procurou situar no tempo as famílias da comunidade de La Salle, da Alta
Resenha

Idade Média ao século XVIII. Desse modo, assinalam-se três pontos de partida
centrais para o desenvolvimento do livro: a) os desafios geográficos impostos
pela região dos Altos Alpes a seus habitantes; b) a criação de associações de
ajuda mútua entre as famílias, que se tornaram redes de solidariedade centrais
para a sobrevivência nos ramos do comércio; c) a educação como uma das

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prioridades da comunidade, assegurando formação em leitura, escrita e cálculo,


outro fator fulcral para o sucesso de seus habitantes no comércio.
Os capítulos dois e três tratam do primeiro deslocamento desses comerciantes
rumo a Lisboa. Era comum que fossem à Itália ou à Suíça para fazer comércio,
uma vez que Briançon se localiza em uma região fronteiriça. Mas Portugal era
uma novidade. O primeiro que se estabeleceu em Lisboa como livreiro foi Pierre
Faure, que, em torno de si, formou uma dinastia de livreiros franceses. Segundo
o autor, em 1750, eram 13 livreiros apenas em Lisboa. No capítulo 3, somos
apresentados a Paul Martin, personagem importante para entender o posterior
deslocamento desses livreiros para o Brasil. Nesse período precisaram lidar
com a censura, exercida em Portugal pelo Santo Ofício e pelo Desembargo do
Paço. A censura, que não interrompeu a circulação de livros proibidos, reforçou
a importância das corporações dos livreiros que, coletivamente, sobreviviam às
suas amarras.
Os capítulos quatro e cinco versam sobre os novos horizontes criados no
Brasil para o comércio de impressos. Na década de 1790, o filho de Paul Martin,
A circulação de livreiros entre França,

Paulo Martin, nascido em Portugal, se deslocou para a América Portuguesa


Portugal e Brasil (séculos XVIII e XIX)

para se estabelecer como livreiro, sob as ordens do pai, que, àquela altura, já
era um livreiro bem estabelecido em Lisboa. Enviaram-se, ao Brasil, remessas
e mais remessas de livros, a maioria deles de cunho religioso. O autor discute a
Içar velas, livros a bordo!

vinda da família real para a colônia, o transporte da biblioteca real, bem como
as transformações implementadas no mundo do impresso, e traça um amplo
Wagner de Carvalho

panorama das mudanças sofridas pelo Rio de Janeiro com a chegada do príncipe
regente.
Na década de 1810, Paulo Martin se tornou o principal livreiro do Rio de
Janeiro. Distribuía a Gazeta do Rio de Janeiro, o primeiro jornal impresso na
América Portuguesa. O autor percorre os anúncios publicados na Gazeta,
elencando tecnologias que iam chegando, como gravuras e estampas, vendidas
na loja de Martin. Martin, aliás, é descrito, no livro, como nosso primeiro editor,
ainda que essa informação possa ser controversa.2
Na sequência, o autor retorna à Briançon para nos apresentar Jean-
Baptiste Bompard, que partiu de lá rumo a Lisboa em 1816, desembarcando
Resenha

posteriormente no Rio de Janeiro. Trata-se de descrição fundamentada toda


nos documentos guardados pela família Bompard. Depois, de novo no Brasil,
o autor foca nos anos de 1816-1818, e busca apresentar iniciativas mediadas
por Dom João VI – a Missão Francesa, a criação do Banco do Brasil, a Missão
Científica de Freycinet, a criação de companhias de seguro etc. – como

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“evoluções” vividas pela colônia desde a chegada da corte. O capítulo tem no


título “evoluções e incertezas” e, entre as incertezas discutidas, está a Revolução
de 1817 em Pernambuco, que, no livro, é um pouco reduzida à sua ligação com
o bonapartismo. Com exceção das companhias de seguro, que são discutidas a
partir de algumas dissertações de mestrado, nos chama a atenção a ausência de
diálogos do autor com a historiografia brasileira.
Um personagem interessante, protagonista dos diversos temas abordados
nesse capítulo, é Paulo Martin, que merecia para si um livro inteiro. O livreiro
foi acionista do Banco do Brasil, ajudando a montar um fundo contra a
Revolução de 1817. Era um entusiasta das missões que chegavam ao Brasil,
tornando-se acionista, em 1814, da recém fundada companhia de seguro
Providente. Apesar do mapeamento interessante feito pelo autor, a chave de
análise “evolução/ incertezas” utilizada no capítulo não é pertinente. Acaba,
com isso, por reproduzir a ideia de que devemos às novidades europeias os
“progressos do tempo”. Além disso, o capítulo reduz o capital político deixado
pela Revolução de 1817, que serviu de escopo aos movimentos por liberdade e
A circulação de livreiros entre França,

cidadania, ocorridos mais tarde.3


Portugal e Brasil (séculos XVIII e XIX)

O capítulo oito nos leva de volta a Jean-Baptiste Bompard, em Portugal,


se preparando para sua viagem ao Rio de Janeiro, onde deveria ajudar nos
negócios de Paulo Martin. Acompanhamos a sua viagem de oito semanas pelo
Içar velas, livros a bordo!

mar, desembocando no encontro com seus primos, em 1818. O capítulo nove faz
avançar a narrativa, tendo em vista que o leitor é introduzido às novidades da
Wagner de Carvalho

Revolução Liberal do Porto; às atitudes de Dom João VI e do príncipe regente;


ao fortalecimento das ideias de separação política e às mudanças ocorridas nos
empreendimentos de Paulo Martin. No bojo do fim da censura e do aumento
substancial de publicações, Martin passou a vender os jornais que instruíam
sobre direitos e deveres da nova ordem constitucional. Num jogo de pesos
e contrapesos, o livreiro acabou perdendo a exclusividade sobre a venda da
Gazeta do Rio de Janeiro, que mantivera por 13 anos.
Mas o autor não se deteve em discutir os motivos da perda de exclusividade.
No geral, esse é um problema em diversos dos capítulos: na apresentação de
um levantamento minucioso feito a partir das fontes, o autor deixa de lado a
Resenha

análise e a reflexão sobre aspectos importantes do que foi apresentado. O que


há nas entrelinhas das fontes acaba sendo ignorado, frustrando as expectativas
do leitor em entender as faces simbólicas das disputas políticas, refletidas
nas atividades comerciais dos livreiros. Isto é: quais eram as ideias de Paulo
Martin sobre as luzes constitucionais? A venda de 40 documentos intitulados

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“folhetos constitucionais” recém-chegados de Lisboa indica algo sobre isso?


O que significava alterar o nome de sua livraria? A perda da exclusividade de
publicação do órgão oficial da Coroa pode ter relação com sua afeição às novas
ideias liberais?
Os capítulos 10, 11, 12 e 13 são dedicados a uma apresentação verticalizada
da atuação de Jean-Baptiste, cuja chegada ao Rio de Janeiro foi apresentada no
capítulo oito. Ficamos sabendo do falecimento de Martin, ao que se sabe devido
às epidemias que ceifaram muitas vidas à época. Como herdeiro dos negócios
do primo, Jean-Baptiste Bompard passou a exercer as atividades de livreiro em
seu próprio nome. O capítulo 11 é um dos mais interessantes do livro. Tendo
Jean-Baptiste assumido a livraria de Martin, logo entrou em contato com Pierre
Plancher, livreiro que havia chegado ao Brasil em 1824, com quem estabeleceu
vínculos de parceria. Aqui, somos apresentados a um catálogo de sua livraria,
redigido de próprio punho e datado de 1825, localizado hoje na Fundação
Biblioteca Nacional, onde estão listadas 4.300 obras, em mais de 340 páginas,
que descortinam o que se vendia e o que se procurava na maior livraria da Corte
A circulação de livreiros entre França,

àquela altura.
Portugal e Brasil (séculos XVIII e XIX)

Jean-Baptiste Bompard voltou à França em 1828 e sua livraria foi vendida


para Evaristo da Veiga, personagem bastante conhecido da historiografia
brasileira. De volta a Briançon, o livreiro passou a ser conhecido como
Içar velas, livros a bordo!

“brésilien”, apelido que diz muito sobre a dinâmica do regresso. Para finalizar
o livro, acompanhamos o restante da vida de Jean-Baptiste, que viveu por mais
Wagner de Carvalho

60 anos em Briançon.
O livro foi escrito por um “cidadão ilustrado”4 com o compromisso de
reconstituir “o percurso original desses oriundos de Briançon” (Bompard, 2021,
p. 18), fato que acabou mais ressaltando os feitos e enaltecendo a memória
daqueles briançonnais, do que produzindo uma reflexão histórica em torno desses
sujeitos. Discussões pertinentes, como apontamos, são vez ou outras deixadas
de lado. Mas isso, de maneira nenhuma, prejudica a importante contribuição do
trabalho em recuperar “os caminhos interrompidos da memória”, haja visto que
nos apresenta, na França, em Portugal e no Brasil, personagens desconhecidos
da historiografia.
Resenha

Livreiros do Novo Mundo abre uma porta para o século XIX. Para os
historiadores, o livro apresenta um levantamento de fontes de qualidade, com
uma série de informações inéditas. Esse feito é importante porque abre novos
caminhos para a pesquisa em história. Já há pesquisas consolidadas sobre
Pierre Plancher, chegado ao Brasil em 1824.5 No entanto, os personagens de

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Jean-Jacques Bompard são anteriores a ele, o que nos dá a oportunidade de


observar a atuação desses livreiros no germe da venda de publicações impressas
na América Portuguesa, em um período regido por normas diferentes de
publicação, tal como apontou Marco Morel (Morel, 2009, p. 153-170).
Os personagens principais do livro são, sem dúvida, Paulo Martin e Jean-
Baptiste. São diversos os livreiros mencionados pelo autor, mas são esses dois
que conduzem a narrativa. As suas trajetórias se confundem, convivem juntos
por algum tempo, mas cada qual ilumina o seu próprio caminho. Contudo,
apesar da vasta documentação reunida sobre Jean-Baptiste, é Paulo Martin
quem mais chama atenção ao longo do livro. É ele o fio condutor da narrativa,
tendo capitaneado até mesmo a vinda de seu primo Bompard para o Brasil. Há
sinais claros, ao longo do texto, de que Martin possuía ideias políticas bem
delineadas. Talvez se visse como um liberal moderado? Ajudou a financiar
a repressão à Revolução de 1817, mas tempos depois, com a repercussão da
Revolução do Porto, vendeu entusiasmado uma série de publicações que
provocavam a Coroa Portuguesa, chegando a perder com isso. Foi um homem
A circulação de livreiros entre França,

que se envolveu a fundo com o território em que se estabeleceu, e merece um


Portugal e Brasil (séculos XVIII e XIX)

trabalho só para si.


O livro traz uma abordagem panorâmica sobre diversos assuntos consolidados
na historiografia brasileira sobre as primeiras décadas do XIX, o que revela a
Içar velas, livros a bordo!

preocupação com o público francês e, também, com os não iniciados na história


do Brasil. No que diz respeito à historiografia francesa, o trabalho parece ser
Wagner de Carvalho

tributário dos estudos clássicos de Laurence Fontaine, que, no livro Le voyage


et la mémoire, colporteurs de l’Oisans au XIXe siècle, mapeou as redes de
solidariedade na imigração sazonal rumo ao Oriente (Fontaine, 1984). Porém,
se Fontaine aparece referenciado na bibliografia do autor, chama atenção a
ausência de autores franceses da História do Livro e da Leitura, como Roger
Chartier e Jean-Yves Mollier (obras como Chartier, 1984; Mollier, 2010).
Por fim, gostaríamos de elencar algumas questões que a leitura do livro
despertou e que podem ser caminhos para novas pesquisas. No fim do livro, o
autor diz que a livraria de Martin, herdada por Bompard, acabou sendo vendida
para Evaristo da Veiga, em 1828. Além disso, são indicadas relações entre
Resenha

Bompard e Plancher, ainda que o autor não se demore nessa relação. A partir
disso, percebemos que havia uma rede de contatos entre os comerciantes de
livros instalados na Corte. Essa rede não foi tão estudada pela historiografia
e merece investigação verticalizada. Figuras como Veiga e Martin, Veiga e
Plancher, Bompard e Veiga, atuaram em um ramo que foi bem definido por

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Morel como “comércio político da cultura” (Morel, 2016, p. 22), através da qual
a relação entre livreiros e tipógrafos poderia fornecer elementos centrais para
entender a circulação de ideias, bem como o funcionamento da imprensa, dos
acordos políticos, dos rumos dos negócios impressos etc.
Também é oportuno investigar como o livro forneceu, no período, um
caminho “capaz de transformar pessoas extremamente pobres em comerciantes
estabelecidos, até mesmo em negociantes ou em cavalheiros da indústria”
(Mollier, 2014, p. 83). Mollier apontou para o fato de a profissão do livro ter
se tornado um meio de alcançar posições sociais mais elevadas, usando de
exemplo a trajetória dos irmãos Garnier. Mas não há exemplo melhor desse
tipo de trajetória de ascensão do que aquelas dos habitantes de Briançon,
permitindo-nos entender claramente a centralidade das redes de solidariedade,
dos vínculos familiares e da criação de corporações no caminho para essa
ascensão. Apesar de discutir redes e vínculos familiares, faltou ao livro uma
investigação pormenorizada das relações financeiras entre quem tinha e quem
precisava de capital, tratando de heranças, contratos matrimoniais, dotes e
A circulação de livreiros entre França,

empréstimos.
Portugal e Brasil (séculos XVIII e XIX)

Mollier também ilumina a questão da literatura industrial, que foi mais


bem recebida por esses livreiros que ascenderam socialmente, em detrimento
dos editores provenientes dos grupos dos homens de letras. Para o autor, os
Içar velas, livros a bordo!

livreiros que ascenderam tinham o dinheiro como prioridade em relação


às belas letras. Tal questão pode ser trabalhada a partir do catálogo deixado
Wagner de Carvalho

por Jean-Baptiste Bompard, que somava 4.300 obras em 1825, ao passo que a
livraria de Plancher não somava, em 1827, mais do que 317 obras. Como pontua
o autor, “esse catálogo fornece, hoje, uma informação excepcional sobre o que
era, na época, o acervo de uma livraria do Rio de Janeiro” (Bompard, 2021, p.
192), constituindo uma peça central para investigar o comércio da “literatura
industrial” nos anos 1820.
Ainda uma última questão emerge do livro: a circulação de livros pelo
oceano. Os vapores foram centrais para a circulação de livros e livreiros, mas
a primeira viagem oceânica de um vapor só ocorreu em 1838 (Boscq, 2014, p.
46). Antes disso, eram os veleiros a levar cargas e pessoas entre os países. Os
Resenha

primeiros livreiros franceses chegaram ao Brasil, segundo Bompard, no final do


século XVIII, vivendo, portanto, a maior parte do tempo circulando por meio
das velas. A circulação de livros e de livreiros pelo Atlântico não foi estudada
a fundo no livro, ainda que a vejamos acontecer com frequência. Além das
remessas de livros, circulavam também correspondências que iam do Rio à

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Briançon, imprescindíveis para a manutenção dos negócios. Nesse sentido,


importa questionar: como se dava, afinal, tal circulação?
Diante de tudo que foi exposto, Livreiros do Novo Mundo se apresenta como
um trabalho instigante, demarcado pelos limites expostos. Se, por um lado, fica
preso a uma narrativa investigativa, uma síntese panorâmica, por outro, a obra
abre portas para os mais diferentes estudos, a partir do amplo levantamento de
fontes realizado.
Há, nesse livro, uma série de veredas a serem perseguidas, algumas das quais
procuramos apresentar. O livro é atual e está afinado com duas questões pulsantes
do nosso tempo. Em primeiro lugar, com o tema das redes transnacionais,
uma vez que a historiografia tem se voltado cada dia mais para esse tema. O
autor, por isso, conseguiu apresentar um bom exemplo de como realizar esse
tipo de trabalho a partir dos arquivos. Em segundo lugar, o livro também está
em consonância com a efervescência de trabalhos ligados ao bicentenário da
independência. Isto é, a obra de Bompard, publicada há pouco, contribui com
as discussões que vem sendo realizadas sobre os anos 1820, inserindo, nesse
A circulação de livreiros entre França,

cenário, novos sujeitos, centrais na difusão dos princípios constitucionais que


Portugal e Brasil (séculos XVIII e XIX)

regeram o nosso ordenamento, construído, em grande medida, pelos meios


impressos, instalados e desenvolvidos ao longo do oitocentos.
Içar velas, livros a bordo!

Referências
Wagner de Carvalho

BOMPARD, Jean-Jacques. Livreiros do Novo Mundo: de Briançon ao Rio de Janeiro.


Campinas: Editoras UNICAMP: Unesp; São Paulo: USP, 2021.

BOSCQ, Marie-Claire. A França e os intercâmbios transatlânticos no século


XIX. In: ABREU, Marcia; DEACTO, Marisa Midori. A circulação transatlântica dos
impressos: conexões. Campinas: Setor de Publicações da UNICAMP, 2014. p. 43-
54.

CHARTIER, Roger (org.). Histoire de l’édition française: Le livre triomphant 1660-


1830. Paris: Promodis, 1984. v. 2.

FONTAINE, Laurence. Le voyage et la mémoire, colporteurs de l’Oisans au XIXe


Resenha

siècle. Lyon: Presses de l’Université de Lyon, 1984.

GODOI, Rodrigo Camargo de. Um editor no império: Francisco de Paula Brito


(1809-1861). São Paulo: Edusp: Fapesp, 2016.

MELLO, Evaldo Cabral de. A Outra Independência: o federalismo pernambucano

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}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}} }}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}}

de 1817 e 1824. São Paulo: Editora 34, 2004.

MOLLIER, Jean-Yves. Sobre os itinerários dos profissionais do livro na Europa e


no Brasil. In: ABREU, Marcia; DEACTO, Marisa Midori. A circulação transatlântica
dos impressos: conexões. Campinas: Setor de Publicações da UNICAMP, 2014.

MOLLIER, Jean-Yves. O Dinheiro e as Letras: História do Capitalismo Editorial.


São Paulo: EDUSP, 2010.

MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos


e sociabilidades na Cidade Imperial (1820-1840). São Paulo: Paço Editorial, 2016.

MOREL, Marco. Da gazeta tradicional aos jornais de opinião: metamorfoses da


imprensa periódica no Brasil. In: NEVES, Lúcia Maria Bastos P. (org.). Livros e
impressos: retratos do setecentos e do oitocentos. Rio de janeiro: Editora da
UERJ, 2009. p. 153-184.

Notas
A circulação de livreiros entre França,

Unifesp.
1
Portugal e Brasil (séculos XVIII e XIX)

2
Conforme Rodrigo Godoi, em seu livro Um Editor no Império, “diferentes autores
convergem ao afirmarem que foi na primeira metade do século XIX, por volta de 1830,
que apareceu o editor enquanto empreendedor do mercado de bens culturais impressos”.
Diante disso, o autor propõe que teria sido Francisco de Paula Brito o primeiro editor
Içar velas, livros a bordo!

brasileiro (Cf. Godoi, 2016, p. 24-25).


Wagner de Carvalho

3
Destacamos, por exemplo, a Confederação do Equador, de 1824, que reunia alguns
dos egressos da Revolução de 1817, se valendo do vocabulário político deixado pelo
movimento (Cf. Mello, 2004).
Expressão de Lucia Bastos na apresentação da obra.
4

5
O capítulo um do livro de Marco Morel apresenta Pierre Plancher, bonapartista que
chegou ao Brasil, fugido da França, em 1824, com sua imensa coleção de livros. Morel
mapeou essa coleção, fazendo uma análise do que chamou de “comércio político da
cultura” (Cf. Morel, 2016).
Resenha

Recebido em 05/12/2023 - Aprovado em 06/02/2024


Antíteses, Londrina, v.16, n. 32, p.788-796, jul-dez. 2023 } 796
DOI: 10.5433/1984-3356.2023v16n32p797-802

Perspectivas sobre Nova


Canção Chilena e o debate
cultural durante a Unidade
Popular

Perspectives on the Chilean


New Song and the cultural
debate during Popular Unity

Perspectivas sobre la Nueva


Canción Chilena y el debate
cultural durante la Unidad
Popular

Carolina Amaral de Aguiar1

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SCHMIEDECKE, Natália Ayo. Chilean New Song and the Question of Culture in the
Allende Government: Voices for a Revolution. Lanham: Lexington Books, 2022.

Os estudos sobre a cultura durante os anos da Unidade Popular (UP) no Chile


vêm ganhando espaço na última década, uma vez que o período foi, inicialmente,
abordado em maior proporção pela História Política. É interessante notar que
nas universidades brasileiras surgiram pesquisas relevantes para o debate
sobre as políticas culturais durante a UP. Para citar apenas alguns estudos
sobre o campo musical, podemos destacar as contribuições de Tânia da Costa
Garcia (2009), Caio de Souza Gomes (2013), Mariana Oliveira Arantes (2022),
Rafael Rodrigues Cavalcante (2016) e Natália Ayo Schmiedecke (2013). Esta
última pesquisadora, autora do livro aqui resenhado, vem consolidando uma
reconhecida carreira internacional que a torna referência sobre o tema no
Brasil e no exterior.
e o debate cultural durante a Unidade Popular

Em 2022, Natália Ayo Schmiedecke publicou nos Estados Unidos, pela


Perspectivas sobre Nova Canção Chilena

editora Lexington Books, o livro Chilean New Song and the Question of Culture
in the Allende Government: Voices for a Revolution (2022). A base da pesquisa
foi o mestrado realizado pela pesquisadora na Universidade Estadual Paulista
Júlio de Mesquita Filho (Schmiedecke, 2013), que já havia originado outro livro
no Brasil (Schmiedecke, 2015). O livro estadunidense, como a própria autora
Carolina Amaral de Aguiar

expõe, procura tratar da relação próxima entre o movimento musical da Nova


Canção Chilena (NCC) e o governo de Salvador Allende (1970-1973) no Chile
de forma abrangente, uma vez que grande parte da bibliografia sobre o tema se
restringe a artigos e capítulos de livros com recortes mais específicos.
O livro foca na contribuição dos artistas, particularmente dos músicos, para
a construção de uma “nova cultura” e de um “novo homem” nos mil dias em
que a Unidade Popular governou o Chile. Em relação aos trabalhos anteriores,
a autora afirma que muitas vezes se concentram nos diferentes projetos no
interior do movimento, o que faz com que sejam ressaltadas mais as divergências
internas da NCC do que seu diálogo amplo com o campo da cultura durante
a UP. Entre as exceções, a autora cita pesquisadores como Jan Fairley, César
Albornoz, Martín Bowen Silva e Javier Rodríguez Aedo, com os quais dialoga de
Resenha

forma mais próxima.


Chilean New Song and the Question of Culture in the Allende Government:
Voices for a Revolution tem como um de seus objetivos principais cobrir a Nova
Canção Chilena em sua totalidade, incluindo artistas e obras consagrados e
aqueles menos lembrados. Também procura estabelecer conexões entre o

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campo musical e o universo mais amplo da esquerda chilena, especialmente


no que se refere às políticas culturais que buscaram ser implementadas por
esse campo político no período. Dessa forma, entre as perguntas que norteiam
a pesquisa, é possível destacar qual foi o envolvimento dos músicos com o
debate cultural da UP e a questão sobre se e como a ascensão da esquerda ao
poder pode ter contribuído para as dinâmicas internas e o desenvolvimento do
movimento da NCC. A autora propõe também considerar os músicos a partir
da categoria analítica de “intelectuais”, uma vez que eles tiveram um papel
ativo na proposição de uma mudança substancial política, social e cultural que
procurou ser implementada pela Unidade Popular.
Para analisar a relação entre a cultura política marxista que esteve no poder
durante o governo de Salvador Allende e a Nova Canção Chilena, a autora utiliza
inúmeras fontes, principalmente de natureza impressa, publicadas durante a
Unidade Popular no Chile. Entre elas, chama atenção a grande quantidade de
e o debate cultural durante a Unidade Popular

artigos que povoaram revistas propriamente dedicadas ao campo cultural, como


Perspectivas sobre Nova Canção Chilena

Onda (1971-1973), La Quinta Rueda (1971-1973), Ramona (1971-1973), Ahora


(1971), El siglo (1971-1973). A pesquisa nos periódicos serviu de base para a
seleção dos músicos e das fontes musicais estudados em um segundo momento:
de acordo com a autora, foram analisados mais de 90 álbuns gravados entre
1960 e 1973. Houve, portanto, uma espécie de cotejo entre o posicionamento
Carolina Amaral de Aguiar

público desses artistas por meio da imprensa (bem como o debate crítico de
terceiros sobre a cena musical), e sua produção artística-musical.
O livro está organizado em três capítulos. O primeiro, “The Place of
Culture in the Government of the Popular Unity”, dedica-se às políticas
culturais e aos debates sobre a cultura ocorridos no Chile durante a Unidade
Popular. Dessa forma, não se restringe ao campo musical, e sim procura
mapear alguns discursos que estiveram presentes na cena cultural e nas
tentativas governamentais de implementar políticas publicas no período.
Ressalta, sobretudo, os posicionamentos e as ações da Unidade Popular, além
dos pressupostos defendidos pelas diferentes vertentes intelectuais que
apoiavam a UP. Schmiedecke opta, porém, por não enfatizar a tese de que
houve divergências importantes entre os artistas que defendiam a coalizão
Resenha

política, mas sim tratar os posicionamentos diversos com base na ideia de que
se justificavam pela heterogeneidade de forças no interior do projeto. Nesse
sentido, a autora concorda apenas parcialmente com a ideia disseminada nos
estudos sobre as políticas culturais do governo de Allende de que as divisões
colaboraram para a não implementação de políticas culturais efetivas. Para

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ela, a UP teria sido marcada, principalmente, por uma tentativa constante de


democratizar a cultura.
No capítulo 2, “Official Song?”, Natália Schmiedecke define a Nova Canção
Chilena por meio da presença, entre os músicos, de um discurso engajado.
Dessa forma, a autora utiliza a noção de “intelectual engajado” para analisar
esses atores. O capítulo lança como questão principal a indagação sobre se esse
engajamento seria suficiente para definir a NCC como uma “música oficial”.
Para ela, se é verdade que o próprio termo “Nova Canção Chilena” passou a
ser usado durante a campanha eleitoral e nos anos da Unidade Popular, o que
vincularia esse movimento à aliança que governou o Chile entre 1970 e 1973,
o engajamento da NCC estaria relacionado a um compromisso político mais
amplo (com a esquerda), assim como com um compromisso social com os
trabalhadores e cultural com o folclore chileno.
O livro analisa a trajetória de duas gravadoras fundamentais para Nova
e o debate cultural durante a Unidade Popular

Canção Chilena, a Discoteca do Cantar Popular (DICAP) e a Indústria de Rádio


Perspectivas sobre Nova Canção Chilena

e Televisão (IRT). Nessa análise, chega à conclusão de que nem sempre os


músicos encontraram patrocínio estatal e que não participaram ativamente
das políticas culturais da Unidade Popular, o que seria um indício que caminha
na contramão da ideia de que se tratava de uma “música oficial”. Desse modo,
vincula ao envolvimento direto com o Estado a oficialidade de um fenômeno
Carolina Amaral de Aguiar

cultural. Outro argumento utilizado é o de que nem sempre a NCC aparece no


ranking de popularidade musical exposto pelas revistas publicadas na época,
o que relativiza a afirmação de que tenha sido um movimento privilegiado no
momento em relação a outras vertentes artísticas.
Por fim, no capítulo 3, “Controversies within Chilean New Song”, Schmiedecke
trata de quais foram os temas centrais do debate sobre os rumos da cultura e
do engajamento entre os músicos no período. Dessa forma, procura responder
a perguntas como: quais foram as diferentes posições em relação a assuntos
como a “batalha ideológica” e o fomento a uma “nova cultura”? Este capítulo
é o que mais se dedica a estudar as composições do NCC para indagar sobre de
que forma elas apoiaram a Unidade Popular e como se situam no interior do
movimento musical. Baseada no pesquisador Claudio Rolle, a autora divide as
Resenha

canções em dois grupos. No primeiro, estariam aquelas dedicadas à construção


de um novo Chile e que procuravam ajudar a ampliar a base de apoio da UP.
Nelas, prevalecem um tom otimista. No segundo grupo estariam as “canções
contingentes”, dedicadas a denunciar os inimigos do poder popular. Há ainda
um terceiro bloco, em que estariam aquelas que têm o “povo” como tema e que

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dialogam de forma mais próxima com as músicas populares chilenas. Nesse


sentido, ressalta que, apesar da importância do folclore camponês para a NCC,
os elementos da música popular urbana não estiverem ausentes. É interessante
também, neste último capítulo, a forma como a autora trata do embate entre
o folclorismo e a “invasão cultural” estadunidense durante a Unidade Popular,
bem como a abordagem sobre o debate de época entre as noções de arte popular
e de “alta cultura”.
Como se pode perceber neste breve mapeamento das principais questões às
quais Chilean New Song and the Question of Culture in the Allende Government:
Voices for a Revolution se dedica, a obra é uma leitura fundamental para aqueles
que pretendem conhecer ou pesquisar o movimento da Nova Canção Chilena.
Por sua abrangência, torna-se um ponto de partida para o estudo sobre a NCC.
Porém, isso não implica em dizer que o livro é panorâmico ou superficial, pois a
autora demonstra vasto conhecimento das minúcias tanto do movimento como
e o debate cultural durante a Unidade Popular

das políticas culturais planejadas ou levadas a cabo durante a Unidade Popular.


Perspectivas sobre Nova Canção Chilena

Destaca-se ainda a sólida base teórica da pesquisadora, o amplo diálogo com


a bibliografia existente e a grande presença de fontes de época no estudo.
Nesse sentido, o livro ultrapassa inclusive o campo musical, sendo relevante
para compreender a Unidade Popular como um todo, período em que o Chile se
tornou uma referência mundial para as esquerdas e que seus músicos e canções
Carolina Amaral de Aguiar

foram escutados em várias partes do mundo.

Referências

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e o debate cultural durante a Unidade Popular

revolucionária e música popular no Chile (1966-1973). 2013. Dissertação (Mestrado


Perspectivas sobre Nova Canção Chilena

em História) - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual


Paulista Júlio de Mesquita Filho, Franca, 2013. Disponível em: https://doi.
org/10.22456/1983-201X.120472. Acesso em: 29 dez. 2023.

Notas
Carolina Amaral de Aguiar

1
Professora na área de História da América e do Programa de Pós-graduação em História
Social da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Resenha

Recebido em 29/12/2023 - Aprovado em 01/02/2024


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