Um Fake Dating Com Benefícios A Atriz e o Rockstar Tayana Alvez-1

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Sumário

Prólogo
Ou: Talvez você estivesse errada quanto a sair da terapia.
Beatriz
Capítulo 1
Ou: Essa mulher me odeia? (Pergunta retórica.)
Guilherme

Pasmei.com.br
Capítulo 2
Ou: De todas as vezes que o mundo acabou, essa com certeza é a
mais absurda.
Beatriz
Capítulo 3
Ou: Beatriz Lopes vai ser minha namorada.
Guilherme
@ViciousbondsBrasil
Capítulo 4
Ou: Eu detesto Guilherme Almeida, mas AMO o Elvis Presley.
Beatriz

Capítulo 5
Ou: Beatriz Lopes é minha namorada de mentira, mas inundou a
minha casa de verdade.
Guilherme

Capítulo 6
Ou: 9 semanas. Tudo o que precisamos é de 9 semanas.
Beatriz

@GUIVICIOUS
Pasmei.com.br
Capítulo 7
Ou: Eu devia ter feito um contrato, devia ter colocado: “Proibido se
apaixonar” no contrato.
Guilherme

Pasmei.com.br
Capítulo 8
Ou: 6 semanas. Tudo o que precisamos é de 6 semanas.
Beatriz

Capítulo 9
Ou: Beatriz Lopes ainda vai me matar.
Guilherme
Capítulo 10
Ou: Eu devo ser uma palhaça.
Beatriz
@ViciousbondsBrasil
Capítulo 11
Ou: Atenção: Um namoro de mentira é um namoro que não é real.
Guilherme

@GUIVICIOUS
Capítulo 12
Ou: Eu devia ter feito um contrato. Devia ter colocado “proibido
tentar seduzir sua namorada de mentira” como a cláusula principal
do contrato.
Beatriz

Capítulo 13
Ou: Apaixonado é uma palavra muito forte (para assumir).
Guilherme

Capítulo 14
Ou: Como já diria Dulce Maria: O calor do meu corpo se eleva quase
sem controle só de ver esse homem gostoso. Ou alguma coisa assim.
Beatriz

Capítulo 15
Ou: Como diria meu pai, o não eu já tenho.
Guilherme

Capítulo 16
Ou: Eu te entendo, Olivia Rodrigo, eu também quero arranhar o carro
dele, preparar o almoço pra ele, aí quero partir o coração dele e ser a
pessoa que vai consertá-lo. Então quero beijar o rosto dele e dar um
soco logo depois. E também quero encontrar a mãe dele só pra dizer
a ela que o filho dela não presta!
Beatriz
@QueenBLopes
Capítulo 17
Ou: Quando ela parou de ser a Coisinha e se tornou a Minha Coisinha?
Guilherme

Capítulo 18
Ou: Tulipas vermelhas significam amor verdadeiro e eterno.
Beatriz

Capítulo 19.1
Ou: O pedido é amor, para viagem por favor.
Guilherme

Capítulo 19.2
Ou: RBD marcou vidas lançando Para Olvidarte de mí.
Guilherme
Capítulo 20
Ou: Minha vida é uma fanfic, e o escritor me odeia.
Beatriz

Capítulo 21
Ou: 0-0-11, todo mundo pro ataque.
Guilherme
Capítulo 22
Ou: Eu só o vejo como amigo! Essa é a maior mentira que já contei.
Beatriz
Capítulo 23
Ou: Ela me ama? Ela me odeia? Acho que são altos e baixos…
Guilherme

Capítulo 24
Ou: Você prefere uma verdade que te magoe ou dois reais?
Beatriz

Capítulo 25
Ou: Eu pedi duas camas, senhor. Sinto muito, só temos uma
disponível.
Guilherme

Capítulo 26
O tesão de cinco Olivias Rodrigo performando Get Him Back.
Beatriz
Capítulo 27
Ou: O problema com os segredos é que, com o tempo, eles se tornam
fantasmas.
Guilherme
Capítulo 28
Ou: Me diga, Taylor, por quanto tempo poderíamos ser uma música
triste?
Beatriz

Capítulo 29
Ou: Existem coisas que só Deus pode perdoar.
Guilherme

Capítulo 30
Ou: Gabriella Montez pode até não ser a mocinha que High School
Musical nos fez crer que ela era, mas a gata estava certa: às vezes a
gente precisa seguir nosso próprio caminho.
Beatriz

Capítulo 31
Ou: De volta à estaca zero.
Guilherme

Capítulo 32
Ou: Algumas coisas, só Deus pode perdoar.
Beatriz

Capítulo 33
Ou: When you think of me, I hope it ruins rock 'n' roll.
Guilherme

Capítulo 34
Ou: O show tem que continuar.
Beatriz
Pasmei.com.br
Capítulo 35
Ou: Você nunca vai ser minha, mas eu sou para sempre seu.
Guilherme

Capítulo 36
Ou: Me diz, Taylor Swift, se a história acabou, por que ele ainda está
escrevendo?
Beatriz
@ViciousBondsBrasil
Capítulo 37
Ou: Vou matar meu baterista.
Guilherme
Capítulo 38
Ou: Sim, Taylor Swift, se me chamarem de vadia dessa vez, vai ter
valido a pena.
Beatriz

Capítulo 39
Ou: Para sempre minha garota.
Guilherme

Epílogo
Ou: Made To Never Break
Beatriz

Prólogo
Regra número 1 dos colegas de apartamento: Nunca tome um porre
com a pessoa que você não quer dormir.
Alê

Agradecimetos
Para todos aqueles que perderam alguém na pandemia
ou surtaram por causa do vírus: Um novo dia
amanheceu, se permitam viver de novo.

PS: “Se Diego e Roberta eram seu casal favorito,


esse livro é para você!”
Prólogo
Ou: Talvez você estivesse errada quanto a sair da
terapia.
Beatriz
Quando você é uma pessoa pública, existem três
meios muito rápidos de acabar com a sua reputação: O
primeiro deles é sendo esnobe com um fã, o segundo, tendo
um caso com uma pessoa comprometida, e o terceiro, e
consideravelmente mais humilhante, seguindo, por
acidente, na sua principal rede social, o cara que te
abandonou.
Adicione a essa receita que ele é a única pessoa que
você segue num universo de quatrocentos mil seguidores e
que, na sua última sessão de terapia, você prometeu para a
sua ex-psicóloga que não iria stalkeá-lo e pronto: Seu
retorno glorioso à televisão agora é um show de horrores.
Como se isso não fosse ruim o bastante, não existe
nenhum lugar no multiverso onde o Flash tenha estado no
qual você consegue se livrar dessa bagunça sem pedir a
ajuda dele:
O cara que partiu seu coração e se tornou ídolo
mundial no processo.
Capítulo 1
Ou: Essa mulher me odeia? (Pergunta retórica.)
Guilherme
A Vicious Bonds parece uma daquelas piadas de
péssimo gosto que nossos tios favoritos contavam quando
éramos crianças: Um brasileiro, um francês, um canadense
e um inglês entram num bar.
A diferença é que nós estamos sentados à mesa do
café da manhã em uma casa de praia, bem no meio de uma
ilha, ao invés de num boteco. E, em vez da descontração
típica de uma roda de samba, o que nos envolve é o silêncio
mortífero que caracteriza o presságio de que alguém fez
merda.
Pelos últimos treze minutos, esse silêncio só tem sido
interrompido pelo dedilhar do nosso guitarrista na madeira,
que vai e vem em pequenos intervalos.
Olhares desviam uns dos outros e suspiros podem ser
ouvidos, bem como o som de alguém limpando a garganta,
mas todos se mantêm em silêncio porque nenhum de nós
tem controle sobre o que aconteceu.
O escândalo da vez, no entanto, está nas minhas
costas, por isso abro a boca antes que os dedos de A.J.
abram um buraco na mesa.
— Acho que devo me desculpar com vocês. — Esfarelo
o pão francês em minha mão e olho para cada um deles,
sem me demorar em ninguém em particular. — Apesar de
não ter culpa de nada, sei que a situação é meio merda. —
Engulo em seco sob os olhares atentos dos meus amigos.
— Por “a situação” você se refere à imprensa
transformar um simples botão em algo tão grande. — Os
olhos quase líquidos de tão azuis de Rick me estudam. —
Ou a estarmos esperando o gerente de turnê/babá que o
Victor colocou no nosso pescoço aparecer para tentar
abafar um escândalo, que nem deveria ser um escândalo,
para início de conversa? — Ele arrasta as perguntas em sua
típica voz rouca e, em seguida, massageia as olheiras de
quem já está cansado demais para essa merda, mesmo que
sejam oito e meia da manhã.
A.J. e Thomas assentem devagar, tirando os olhos do
nosso baterista e pousando-os em mim.
— Acho que os dois. — Solto o sanduíche no prato
depois de ponderar. — É quase ridículo pensar que ainda
estou de férias e já vou ser cancelado.
— Isso nem faria sentido. — Thomas joga os dreads de
lado, saindo em minha defesa. — Quer dizer, Alex está
atravessando o estado de helicóptero por causa de uma ex
com a qual você nem fala — ironiza, diminuindo a situação,
mas eu dispenso com um balançar de cabeça.
A primeira pessoa na Vicious que soube a relevância
de Beatriz na minha história foi o Thomas, o cara que tem
sido meu melhor amigo desde o primeiro dia no Next Idol,
reality show no qual nos conhecemos. Por isso, sei que ele
só está tentando amenizar as coisas e me convencer de que
meus esforços para um recomeço limpo no Brasil não vão
para o brejo. Mas ninguém pode garantir isso.
Meu mundo virou de cabeça para baixo desde que
nosso café da manhã foi interrompido pela notícia de que
Beatriz Lopes tinha começado a me seguir no Instagram.
A atitude da Coisinha nos tornou não apenas capa de
todos os sites e tópico principal nos perfis de fofoca, como
também o assunto mais falado do X, finado Twitter.
Lanço meu olhar sobre Richard, para que ele faça seu
papel de membro mais velho da banda e abra a boca para
ser realista. Mas é A.J., nosso guitarrista sem filtro, quem faz
as honras:
— Olha, se ninguém acha isso preocupante, preciso
lembrar vocês que essa é a nossa primeira turnê fora das
Américas do Norte e Central e que um dos objetivos dela é
fidelizar o Brasil, caras. — A.J. joga o cabelo, de um
castanho-claro reluzente, para trás. — É quase impossível
ser um artista de sucesso ou ganhar votações populares se
o Brasil te odeia — relembra, como se não tivéssemos
escolhido trazer a turnê para cá antes de ir para a Europa
justamente por isso. — Apesar do passado problemático que
o Gui tem por aqui, a gente precisa ser grandinho e pensar
em uma saída — enfatiza, com os olhos cor de mel em mim
e, de repente, o silêncio inicial toma a mesa outra vez.
O fato de que boa parte dos fãs da GenZ me odeia
porque terminei com a Beatriz do nada e fui embora é um
assunto sensível. Mesmo que a Vicious Bonds tenha fãs no
mundo inteiro, não é legal ser o cara da banda odiado por
metade de seu país de origem.
— Pensar em uma saída é o trabalho do Alex. —
Thomas cruza os pés embaixo da mesa, batendo nos meus
sem querer, e joga um pão de queijo na boca, deixando o
gemido típico de um gringo comendo comida brasileira
escapar.
— Ótimo, então vamos voltar a comer como se nada
estivesse acontecendo — A.J. debocha encolhendo os
ombros, mas Rick joga um guardanapo amassado nele.
— Não estou vendo muitas opções no momento, você
sugere alguma? — Richard encorpa a voz querendo acabar
com o assunto, e A.J. apenas nega com a cabeça.
Eles voltam a atacar o café da manhã como se nunca
tivessem comido nada tão gostoso. Já eu, pego meu celular
na mesa e abro o Instagram, indo direto até o perfil de
Beatriz.
Mesmo que fotos de perfis oficiais sejam profissionais
e milimetricamente idealizadas para parecerem perfeitas,
toco na de Beatriz e reparo em cada detalhe disponível
apenas para constatar o que eu já sei: Beatriz é linda. Os
olhos escuros ainda transbordam paixão e segredos, e seu
sorriso poderia iluminar uma cidade.
— Tudo bem por aí ou a Dani já começou a surtar? —
A.J. pergunta, curioso sobre a minha irmã, que é sua melhor
amiga e trabalha nas redes sociais da banda.
— São quatro e meia da manhã em Los Angeles, A.J.
Relaxa — sem tirar os olhos da foto, lembro-o que fuso
horário existe.
O batom vermelho nos lábios é uma novidade. Mas
não consigo nem estranhar, porque a pele marrom-clara
iluminada da afrobege mais bonita do mundo traz um
contraste perfeito entre as duas cores.
— Acham que eu… vocês sabem… devo seguir de
volta? — Ergo o rosto verbalizando o que está na minha
mente desde que soubemos da notícia.
— Não! — Thomas e A.J. dizem em uníssono com os
olhos arregalados.
— Não seguir é passar recibo — Richard murmura
encolhendo os ombros. — Acho que se você quer dar a
entender que há algo amigável entre vocês, ou que não
existem ressentimentos…
— A essa altura ela é a ex maluca e psicótica —
exponho o relato que li em alguns perfis e sites de fofoca e
que me incomodaram profundamente —, mas, se eu seguir
de volta, posso dar a entender que a gente tem, de fato,
alguma coisa.
— Se é confortável para você e se acha que vai
funcionar a longo prazo deixar a garota que você
abandonou sendo vista como uma doida… — Rick dá de
ombros, bebendo um gole de seu café, e os corpos de A.J. e
Thomas, retesando e segurando o riso, me dizem que nosso
baterista tem razão.
Não quero que a Coisinha seja vista como uma stalker
maluca, mesmo que seja uma. Depois do que fiz, ela não
merece ser a pessoa com haters. O inquisidor olhar de Rick,
que compôs quase todas as músicas do primeiro álbum
comigo e sabe direitinho tudo o que aconteceu, é um
lembrete disso.
— Calma, talvez a garota diga que foi um engano, ou
um hacker. — As palavras de Thomas chegam aos meus
ouvidos quando já é tarde demais.
— Já era, dei o follow — anuncio, procurando uma
fruta para colocar na boca.
Não pretendo falar mais por um bom tempo.
— Você o quê? — A pergunta me assusta, porque ela é
feita em português, e nenhum dos meus companheiros de
banda fala português com tanta fluência.
— Ah, bom dia, Alex, eu… — Respiro aliviado diante do
gerente de turnê que Victor, criador do Next Idol e da nossa
banda, escolheu para nos acompanhar enquanto estivermos
no país.
— Você a seguiu de volta. — A fala vem em inglês e
uma veia bizarra pulsando em seu pescoço me deixa em
alerta. — Acabou de jogar no lixo a narrativa de que essa
menina está tentando se reaproximar do ex mundialmente
famoso pra atrair os holofotes ao comeback dela! — O
homem de branco está vermelho e caminha pela cozinha
coçando a têmpora. — Não deveria ter feito isso!
Sua postura deveria me assustar, mas as palavras
sem sentido me fazem limpar a garganta alto o suficiente
para ele parar com o show.
— Você não a conhece, todo mundo sabe que Beatriz
jamais agiria assim.
Chamar atenção com qualquer coisa além do trabalho
sempre foi algo que a Coisinha detestou.
— Você também não a conhece — Alex diz como se eu
estivesse perdido em Marte, e estala os dedos duas vezes
diante do meu rosto. — Pelo que você me disse, não se
falam há mais de três anos. Logo, a gente não sabe por que
ela abriu mão da aposentadoria — joga mais uma verdade
na minha cara, e os meninos se afastam da mesa com seus
respectivos pratos.
— A gente vai terminar o café, pegar a lancha e voltar
para o hotel, esse assunto é de vocês — Richard comunica,
como se tivesse combinado isso com os outros pelo olhar.
— Não sejam ridículos. — Alex espalma a mão na
mesa a mesa se debruçando sobre ela. — A casa do nosso
principezinho aqui tem oito quartos, vocês podem escolher,
mas ninguém sai dessa casa até termos uma história muito
bem arquitetada — ele fala sério, muito sério, apontando o
indicador para o andar de cima, não dando escolha para
ninguém.
Sob o comando dele, os três saem, e eu pego uma
maçã verde pensando no quanto odeio esse apelido. E odeio
ainda mais o quanto esse cara quer mostrar serviço.
— Você tem algo para me dizer, Guilherme? — A
pergunta me faria rir se eu não estivesse me controlando
para não mandá-lo para a casa do cacete.
— Não, Alexandre. Não tenho.
— Pois deveria, garoto. Você pediu três semanas off.
Em menos de duas, sua ex aparece te seguindo, e a gente
tem uma crise para gerenciar — divaga, como se eu não
lembrasse que pedi para descansar nas férias entre uma
turnê e outra. Motivo principal para os meninos estarem em
um apart-hotel, e eu, na casa da ilha.
Cruzo os braços e estreito meus olhos na direção dele.
Se esse Faria Limer acha que pode me pressionar, ele está
muito enganado.
— Alexandre, não fiz nada de errado e não vou ficar te
ouvindo me tratar como se tivesse feito. — Bato a mão
esquerda na mesa e ergo a voz me levantando. — Agora vai
atrás da sua equipe e limpa essa sujeira, porque ainda
tenho dez dias off e quero descansar — digo, com uma
mordida em minha maçã, e ele assente, pegando o celular
enquanto me viro para sair do cômodo.
— Vamos entrar em contato com ela, isso vai ser
resolvido hoje. Mas você não sai dessa casa até termos uma
solução — ele diz, afobado, lembrando de que não é ele a
estrela aqui.
— Temos um acordo. — Paro na saída da cozinha me
virando para ele. — E boa sorte para falar com a Beatriz, vai
precisar — desejo com uma risada sem humor.
Você me paga, Coisinha.
É meu primeiro pensamento enquanto subo as
escadas na sala.
Por que você estava fuçando meu Instagram?
É o segundo, mas, para esse, eu já tenho a resposta.
Pasmei.com.br
Beatriz Lopes, a Princesinha do Brasil, volta às
redes sociais, às telas e ao seu grande amor.
Qualquer pessoa entre vinte e trinta anos sabe que Beatriz
Lopes e Guilherme Almeida foram o casal mais relevante da
TV entre 2017 e 2020. Mas, se você estava em Júpiter, saiba
que os dois se conheceram nos bastidores do nosso último
grande sucesso teen, Geração Z, novela que originou a
banda GenZ composta pelos quatro atores principais.
O nosso casal assumiu um relacionamento publicamente
poucos meses depois do primeiro episódio ir ao ar, no auge
de seus dezesseis anos. O namoro, que nunca foi tão
público quanto gostaríamos, seguia firme e, aparentemente,
inabalável até o final da novela e início da turnê de
despedida da banda.
Contudo, quando a turnê, que deveria ter percorrido todos
os estados do território brasileiro, foi cancelada depois de
poucos shows, por conta da pandemia do covid-19, um
término inesperado pegou a todos de surpresa, levando os
fãs a uma verdadeira histeria e, logo em seguida, ao
questionamento mais apavorante de todos: Seria aquele um
relacionamento de fachada para alavancar a projeção da
banda?

Beatriz nunca deu nenhuma declaração sobre o assunto,


anunciou uma pausa na carreira e desapareceu das redes
sociais até duas semanas atrás, quando retornou com um
perfil completamente novo.

Guilherme, por outro lado, deixou muito claro em


entrevistas e em suas redes o quanto amou a colega e
como foi difícil terminar, revelando assim que o término
partiu dele, relatos que só inflamaram o ódio dos fãs contra
o rapaz.
Quebrando milhões de corações ao mesmo tempo,
Guilherme decidiu se mudar para os Estados Unidos, onde
estudou música em um dos conservatórios mais
importantes de Los Angeles, chegou às finais de um reality
show musical e formou sua banda, a Vicious Bonds, que
virá pela primeira vez ao Brasil em algumas semanas.

O que nos surpreende nesse retorno do rapaz, no entanto, é


que ele se dá ao mesmo tempo que Beatriz volta às telas.
Se tudo isso já estava denunciando uma recaída, o que
dizer agora que ela praticamente oficializou esse
relacionamento seguindo Guilherme, e apenas ele, entre
seus mais de quatrocentos mil seguidores — conquistados
em apenas quinze dias.

Quanto tempo teremos até vermos Beatriz postando alguma


de suas fotos misteriosas com legendas enigmáticas como
costumava fazer, ou até Guilherme dedicar uma música
para ela em um dos shows que fará no Brasil?
Capítulo 2
Ou: De todas as vezes que o mundo acabou, essa
com certeza é a mais absurda.
Beatriz
O sol da manhã que invade o quarto banhando o piso
de madeira e a quietude proporcionada pela janela fechada
dão uma falsa sensação de paz ao ambiente. Em silêncio,
encaro as notícias no celular pelo décimo sétimo minuto,
pedindo apenas mais três minutinhos de calmaria, antes de
ligar para Luana e perguntar o que podemos fazer.
Minha empresária, no entanto, não está disposta a
esperar vinte minutos para que eu tome coragem, porque o
aparelho em minha mão vibra.
— Bom dia, Princesinha do Brasil. — Eu bateria palmas
para o deboche dela se eu não estivesse apavorada. —
Acabei de acordar e descobri que você… tem um namorado.
Como sua empresária, gostaria de saber o que aconteceu
entre dez da noite de ontem e oito da manhã de hoje para
todos os perfis de fofoca do país não falarem em outra
coisa. — Lua exala o ar com urgência.
Espreguiço me sentando no meio do colchão king size
e enrolo os fios de cabelo próximos à nuca entre o indicador
e o polegar antes de responder.
— Mulher, acabei de acordar e ter a mesma surpresa
que você. Não sei exatamente como isso foi acontecer.
Penso na matéria recém-publicada por um site de
índole duvidosa chamado Pasmei.
Há um mês, o mesmo portal estava mais feliz do que
nunca com o meu retorno à TV. Dentre uma série de posts
no Instagram, nos quais tentavam desvendar o mistério do
meu sumiço, eles publicaram uma matéria falando sobre
como o Brasil estava animado com a minha volta. “Quem
não estaria feliz de ver a filha do último grande galã das
nove nas telinhas outra vez?”, ou algo assim.
Agora franzo o cenho diante da constatação absurda
de que uma recaída já era aparente só porque Guilherme
vem para o Brasil e tenho vontade de bater a cabeça na
parede lendo que, se o segui, nós somos, oficialmente, um
casal.
Quê?
— Eu sei que você não usa redes sociais há um bom
tempo, Bia; entendo que tenha ficado tão alheia ao mundo
da fama que esqueceu de como a imprensa é, mas, meu
anjo, eles estão muito piores do que antes.
— Mas eu não segui esse homem, juro. Só estava… —
Minha voz morre enquanto mordo o lábio, assumindo meu
crime.
Porque fiquei um bom tempo no perfil de Guilherme
Almeida vendo postagens e notando a mudança das fases:
de “Bom moço protagonista de série teen” para “Que nerd
gostoso, meninas” e então para “Badboytatuado-
compiercings-líderdebanda”.
Não sei o que senti, ou se senti algo, vendo as
tatuagens tão sugestivas e nossas fotos juntos no perfil
dele. Mas foi interessante de um jeito estranho saber que,
apesar de tudo, há lugar no qual Guilherme escolheu não
nos apagar.
— Ah, você seguiu esse cara! — esfrega na minha
cara, alto o bastante para qualquer pessoa ouvir até sem o
celular grudado à orelha. — A outra opção é você ser uma
maluca stalker que passou horas no perfil dele e o seguiu
sem querer, então, sim, você o seguiu deliberadamente.
— Lua, não foi… — tento falar, mas acredito que
passar duas horas fuxicando cada canto do perfil do ex me
configura como uma stalker.
Voltar para a TV significa voltar para a minha antiga
vida, uma da qual Guilherme fazia parte. Foi impossível não
ficar curiosa depois de tanto tempo evitando tudo sobre ele,
e era natural rolar a tela para baixo várias vezes para ver se
ainda encontraria algo sobre mim naquele perfil além das
tatuagens. Enquanto corria os olhos por todas as fotos,
passeios, gravações e demais coisas que deletei da minha
conta antiga e tentei, sem sucesso, apagar até da memória,
me senti uma grande guerreira por ter demorado duas
semanas inteiras para fazer isso.
Tudo mudou, porém, quando subi o feed para ver os
posts mais recentes.
Foi nesse momento que dei de cara com o post fixado
anunciando a turnê com mais de quinze shows em oito
estados que a Vicious Bonds vai fazer no Brasil, e bloqueei a
tela imediatamente.
Ou achei que bloqueei, porque a primeira coisa que
vejo quando entro no meu Instagram é um único “seguindo”
e eu estou seguindo o vocalista da Vicious Bonds, banda
que sempre fugi das músicas. Então talvez… só talvez, eu
não tenha apenas bloqueado, mas apertado alguma coisa
aleatória na tela antes de desligá-la.
— Bia, a gente vai resolver isso, só fica longe do
celular, tá? — Luana me tranquiliza, como tem feito nos
últimos sete meses, desde que essa loucura de retornar à
TV começou. — Não fala com ninguém, não responde
ninguém, não dá unfollow nele, pelo amor de Deus e…
— Vi que a Olívia Rodrigo fez isso uma vez, ela disse
que foi hackeada, eu posso fazer o mesmo — tento sugerir,
mas Luana gargalha da minha ideia nada brilhante.
— Todo o resto do mundo soube disso, Beatriz,
ninguém vai cair nessa.
— Me perdoa, Lua. De verdade. Você tem feito um
trabalho tão impecável, e acabei dando essa…
— Ele já te mandou mensagem? — questiona, prática
como sempre.
— Não, só me seguiu de volta. — Ajoelho na cama e
me arrasto morosamente para pegar o copo d’água na
mesinha de cabeceira, ouvindo a estática na linha enquanto
ela segue em silêncio.
— Dos males o menor. Mas não precisa pedir
desculpas, Beatriz. Seu trabalho é fazer merda; o meu, é
limpar — Luana traz a pior analogia possível, e eu rio, quase
cuspindo a água. — Relaxa, vai dar certo, só… fica longe
das redes, seu traquejo social foi limado pelos anos de
reclusão.
— Não precisa tripudiar! Mas obrigada — digo com um
último gole.
— Sem obrigada, apenas bônus salariais serão aceitos
— ela diz e desliga em seguida.
Devolvo o copo à mesa, desço da cama e vou até a
escrivaninha, embaixo da janela, para pegar meu fone de
ouvido antes de deixar o quarto.
Como pude ser tão idiota?
Chegando até a porta de vidro que me separa da
sacada, empurro a maçaneta para baixo delicadamente e
respiro fundo, deslizando-a para o lado. Com o celular e o
fone em mãos, me preparo para ligar para a minha mãe.
Se Luana não der um jeito nisso em vinte e quatro
horas, dona Tati vai saber o que fazer.
Antes mesmo que eu coloque o pé do lado de fora, a
brisa da maresia me envolve, me deixando com a certeza
de que o Rio de Janeiro continua sendo o lugar mais
encantador do mundo e, apesar dos pesares, é impossível
não sorrir.
Tem pouco mais de dois meses que voltei de vez para
o Rio, me encantei por um apartamento com vista para a
praia e percebi que o mundo aqui fora não é tão assustador
quanto antes.
Apesar da pandemia, apesar do mundo ter virado de
cabeça para baixo, apesar de eu ter ficado quase quatro
anos sem atuar e ter perdido muito mais do que isso pelo
caminho, o céu daqui ainda é azul o bastante, as ondas vêm
e vão da mesma maneira que o vento derruba os arbustos
na Serra, e as pessoas já não me assustam tanto. Pelo
menos agora a gente já tem vacinas para evitar que elas
transmitam aquela doença invisível e letal capaz de
devastar trabalhos, amizades, vidas e famílias.
Desbloqueio o smartphone de última geração que
ganhei de um patrocinador, bem diferente do meu fiel
escudeiro que já estava comigo há anos, e me preparo para
digitar o número da minha mãe, que ainda sei de cor.
Contudo, um número desconhecido aparece na tela, e
eu decido atender; ninguém além da dona Tati, Luana, Nina,
minha melhor amiga, e Marco, meu diretor, tem esse
número, então mal não vai fazer.
Eu vou, no máximo, precisar explicar para um deles o
escândalo, o que vai acontecer mais cedo ou mais tarde.
— Alô? — atendo, jogando os cachos que o vento
trouxe para o outro lado do meu rosto.
— Bom dia, Beatriz. Aqui é o Alexandre Meirelles,
representante da Vicious Bonds no Brasil — As palavras
fazem meus olhos arregalarem e a voz de Luana voltar aos
meus ouvidos: “Fica longe do celular, tá? Não fala com
ninguém, não responde ninguém”.
Tiro o aparelho da orelha e desligo. Me virando para
dentro do apartamento, o atiro em cima da cama e fecho o
vidro atrás de mim, como se ele pudesse me proteger do
monstro horrível que esse celular se transforma quando não
estou usando-o para jogar Candy Crush.
Capítulo 3
Ou: Beatriz Lopes vai ser minha namorada.
Guilherme
Por que ela tinha que me seguir?
Não era o bastante ficar caçando fotos nossas no meu
feed?
Tenho certeza de que Beatriz fez isso, já que, diferente
dela, não sou um covarde que apagou todas as nossas fotos
antes de sumir das redes sociais.
Respiro fundo jogando a bolinha de Elvis no armário
embutido, brincando sozinho, já que meu cachorro ainda
está descansando. Pego a bolinha na volta, recosto a
cabeça à parede e fecho os olhos evitando encarar meu
reflexo no espelho do armário.
Detesto cada pedaço do que ele retrata.
A imagem ali ainda é de Guilherme Almeida, mas não
o líder da Vicious Bonds e primeiro brasileiro à frente de
uma banda gringa a ser Forbes Under 30. Mas do
adolescente idiota que abriu mão da garota mais incrível do
mundo, no pior momento da vida dela.
— Por que você teve que fazer isso, Coisinha irritante
e perturbada? — murmuro enquanto jogo a bola
novamente, mas permaneço de olhos fechados e não a
pego.
Elvis se move, o sino da coleira retine, e esse é o jeito
dele me dizer que estava prestando atenção e eu não
deveria ter parado.
— O que você acha, Elvis? — Cruzo os braços sobre o
peitoral e observo o labrador de pelo quase dourado se
levantar sobre as patas da frente e latir muito alto três
vezes.
— Não, seu idiota. Você não vai ligar para ela. — A
resposta chega, mas quem a pronuncia não é Elvis, é
Thomas.
— Esqueceu como bate na porta? — Ergo o olhar para
encontrar meu melhor amigo andando pelo quarto.
Depois de duas semanas no Brasil, as roupas de
Thomas já foram adaptadas para o pack: bermuda jeans,
regata e havaianas, que todo carioca médio gosta. Já os
dreads estão presos num coque frouxo como nossas fãs
adoram, e ele curte mais ainda.
Thomas para com os olhos fixos na parede de vidro e
observa o mar da ilha que nos cerca.
— Alexandre está na porta, pendurado no celular —
avisa sobre o ombro como se soubesse que vou precisar de
apoio moral.
— Mas você está certo, o Elvis acha que eu deveria,
você sabe… — coço o cavanhaque antes de continuar —
ligar para ela.
— Ele odiou a ideia. — Tom gargalha, virando de frente
para mim e se apoiando na estante de livros à sua direita.
— Claro que não odiou.
— O cachorro latiu três vezes, eu ouvi! — Os olhos
verdes me encaram incrédulos, porque todo mundo sabe
que Elvis desaprova quando late três vezes.
— Desculpa interromper, mas a gente precisa
conversar — Alexandre fala em inglês, numa tentativa de
fazer Tom se tocar e sair, mas meu amigo dá quatro passos
largos e se joga na minha cama.
— Pode falar, ele é tipo a minha sombra — respondo,
empurrando Thomas para o lado.
— O assunto é particular, Guilherme. — O tom urgente
já diz tudo o que preciso saber: De alguma forma eles
falaram com Beatriz.
— Vou pedir a opinião dele antes de fazer qualquer
coisa. — Dou de ombros. — Me poupar de repetir tudo,
ajudaria todo mundo.
Alexandre intercala o olhar de mim, sentado na ponta
da cama, para Thomas, deitado com as pernas cruzadas e
as mãos atrás da cabeça, e assente.
— Você estava certo, não houve conversa com a
garota. — Ergo a sobrancelha direita quando ele diz “a
garota”, como se ela fosse uma pessoa qualquer. Porém não
digo nada, porque é isso o que ela tem sido por três longos
anos. — Conversei com a empresária dela, que é ótima e
lida muito bem com gestão de crise, não houve atritos. Elas
querem falar com você para alinhar os discursos. —
Alexandre troca o peso de perna como se isso não fosse o
ideal.
E não é. A última coisa que planejei quando briguei
por uma turnê no Brasil foi um caos iminente vindo do meu
falecido namoro com Beatriz.
— Não tem a menor chance de eu ter essa conversa
com ela por telefone — digo alto e afobado demais, e não
sei de onde isso saiu. Ou sei. Ver Beatriz me parece
tentador demais para não arriscar. — Imagina se vazam as
conversas?! — tento amenizar.
— Sem problemas. Ela vem aqui. — O homem pálido e
sem expressão à minha frente simplesmente coloca as
mãos nos bolsos depois de sugerir a coisa mais absurda que
ouvi nos últimos…
Nos últimos noventa minutos, já que faz uma hora e
meia que descobri que estou reatando com Beatriz, mesmo
que não troque uma mísera palavra com ela há anos.
— Ela o quê? — eu e Thomas dizemos em uníssono, e
meu amigo se senta ao meu lado.
— Beatriz vem aqui, vocês precisam resolver isso,
nem que seja para postar uma foto com
#suainfanciatodinha ou #desempreprasempre e deixar
claro que vocês são bons amigos.
— Sei lá, cara, ela segue só você até agora. Vai ser
meio difícil alguém engolir isso — Tom diz para mim. —
Deixa eu dar um follow nela para ver se ela me segue de
volta — ele brinca, mas o olhar de Alex faz parar a mão
dele, que estava a caminho do próprio bolso.
— A Coisinha é boa com palavras e enigmas, nisso ela
vai dar um jeito — garanto, correndo os olhos de Alex para
ele e voltando para o nosso gerente de turnê/babá em
seguida.
— Coisinha? — Alexandre franze o cenho.
— Não chama ela assim, eu a chamo assim, ninguém
mais — digo tão rápido, e com tanta certeza, que Thomas
tosse duas vezes, surpreso, e Alexandre ergue os braços em
rendição e assente.
— Você. — Ele aponta para Thomas. — Avise o resto
da banda que está na hora de ir embora. — Meu amigo pula
do colchão e bate continência com deboche, mas
permanece parado ao lado da cama. — Um helicóptero vai
buscá-la no fim da tarde, esteja apresentável — ele cospe
as palavras e sai, como se eu fosse mesmo ficar o dia
inteiro esperando a Beatriz de regata e samba-canção.
Elvis observa nós dois por alguns instantes e sai do
quarto depois de perceber que não temos mais nada a
declarar.
Mas, para falar a verdade, eu tenho.
— Acho que você está certo, Tom. Ninguém vai
acreditar… — comento, coçando o cavanhaque.
— Que vocês não têm nada? — indaga com vincos se
formando em sua testa, e eu meneio a cabeça.— E o que
você vai fazer?
— O óbvio! — Rio da inocência dele. — Vou fazer
Beatriz Lopes se tornar minha namorada.
Um namoro falso, como achavam que a gente tinha na
adolescência para divulgar a Geração Z, é o caminho para
resolver essa bagunça. Porém, mesmo que eu esteja rindo
enquanto Thomas me zoa, dizendo que estou “me
aproveitando da situação” para tentar reconquistá-la, não
consigo parar de pensar em como seria se as coisas fossem
diferentes, se existisse a mínima possibilidade de Beatriz
fazer parte da minha vida de novo.
@ViciousbondsBrasil
Fofoca a essa hora?
Na última madrugada, inúmeros jornais e páginas de fofoca
têm espalhado a “notícia” de que nosso vocalista estaria
reatando com Beatriz Lopes, atriz brasileira que foi sua
primeira e, até o momento, única namorada. Esses rumores
acabam de ser negados pela assessoria da banda, que
passa férias no Brasil.

Até o momento, tudo o que temos dos dois é apenas uma


troca de “follow” nas redes sociais. Mas nós sabemos o que
famosos trocando follows significa, e estamos apurando isso
a fundo.

Enquanto aguardamos esclarecimentos com a nossa fonte


interna, lembramos vocês de que Gui e Bia compartilharam
mais de três anos de um relacionamento invejável, que
inspirou o amor em fãs no país inteiro e que, feliz ou
infelizmente, fins de relacionamentos não precisam de
culpados.

Não deixem os haters transformarem o cara incrível, de


sorriso fácil e voz doce que vocês conhecem, no vilão da
história por causa de uma fofoca.
Capítulo 4
Ou: Eu detesto Guilherme Almeida, mas AMO o Elvis
Presley.
Beatriz
Meu dia foi um caos, como achei que ainda demoraria
muito tempo para ser. Em partes pelo que aconteceu e em
partes porque nem consegui falar com dona Tati sobre isso.
Ela foi a pessoa que mais me viu sofrer com a partida do
Guilherme, dizer “Oi, mãe, eu segui o Gui no Instagram e
agora todo mundo acha que a gente voltou” com certeza
me faria passar horas ouvindo um sermão, e isso era a
última coisa de que eu precisava.
Por outro lado, precisei conversar com Marco, o
primeiro diretor com o qual trabalhei na TV, e responsável
pelo meu retorno. Confesso que tremi na base ao ligar, mas
meu mentor não foi nada menos que gentil comigo.
Marco me lembrou de que isso não é a minha vida, é
só algo que as pessoas estão falando sobre mim, e me fez
repetir quatro vezes o acordo que firmamos no dia que
aceitei o papel. Meu retorno à televisão só tem uma regra:
Diversão.
Depois de anos longe das telas e do mundo, aceitei
que era hora de voltar. Não só porque o Marco foi
importante para mim, e porque eu devia isso a ele depois
de anos negando seus convites, nem porque estava
cansada de ser uma garota de vinte e três anos morando
numa chácara na Serra do Rio de Janeiro.
Mas porque sinto saudades de atuar. Sinto falta de ser
várias pessoas, de dar vida a alguém que o público ame —
ou ame odiar — de todo coração, mesmo que apenas por
seis meses ou um ano. E me sinto estranha, até pela
metade, sem fazer o que sei que nasci para fazer.
Quando o mundo virou de cabeça para baixo por
causa daquela doença maldita, e a morte do meu pai me
levou direto para o fundo do poço, a reclusão não apenas
fez sentido, como também se tornou a única saída.
Contudo, o fim da pandemia devolveu o sol para uma
vida que, até então, era de um inverno constante e me
permitiu, aos poucos, conseguir sair de casa, reconquistar
uma rotina “normal” e interagir com as pessoas sem que o
pânico que a doença me causou por anos me dominasse.
Só deixei Petrópolis e voltei para o Rio porque tinha
certeza de que era hora de retomar as rédeas da minha vida
e da minha carreira. E, até ontem, eu estava feliz com meu
retorno, feliz e animada. Agora estou sacolejando dentro de
um helicóptero, certa de que preciso convencer alguém que
eu nem conheço mais a me ajudar a mentir para o país
inteiro por causa de uma coisa tão patética quanto uma
“reputação”.
Um clarão à minha direita me assusta, a única coisa
que faltava para esse dia piorar era chuva. Pelo menos já fui
avisada de que vamos começar a descer e avisto a enorme
casa, que toma conta de boa parte da ilha, à minha
esquerda.
Um novo trovão à direita da aeronave faz o meu
coração acelerar ainda mais, e percebo gotículas de chuva
se alojando no vidro da janela. Eu nem sabia que um troço
desses podia voar durante a chuva, por isso volto minha
atenção para o capacete do piloto, repassando minha
proposta na cabeça, e não olho mais para fora.
Trinta e seis minutos depois da decolagem, pousamos
bem no meio da praia. Breno, o educado e simpático senhor
que me trouxe, deixa a aeronave e me ajuda a descer,
mesmo em meio à ventania e à chuva.
— Eu não vou demorar, seu Breno — aviso em alta voz
ao senhor baixinho enquanto meus pés afundam na areia.
— Em no máximo meia hora, tô de volta — asseguro,
recebendo uma onda de chuva no rosto. Ótimo, todo o
esforço empregado em uma hora de maquiagem indo
embora.
— Ah, dona Beatriz, não volto com a senhora — ele
grita como se eu devesse saber disso. — Não tenho
autorização para ficar parado na ilha. — Bate a porta com
um risinho sem jeito.
— De verdade? Posso fazer isso acabar em vinte
minutos se for preciso — garanto, com o cabelo colando no
meu corpo e o creme escorrendo pelos braços junto com a
chuva.
Que delícia é a vida da cacheada.
— Tenho certeza, dona Beatriz — assente com um
sorriso que camufla a pressa de sair da chuva, e eu o deixo
ir.
— Tudo bem, obrigada — grito forçando simpatia e
seguro o vestido longo, puxando-o até acima do joelho para
caminhar até a casa com as sandálias nas mãos, e a
bolsinha em meu ombro quase voando.
A mansão é o que eu achei que seria: Grande, com
paredes de vidro e tão pretensiosa quanto as tatuagens e o
penteado que Guilherme usa hoje em dia. Parece que vou
precisar caminhar um quilômetro até a entrada, mas ainda
não contei nem quinze passos quando o vejo por trás do
vidro. Engulo em seco com o movimento confuso de meu
coração e termino o trajeto jogando minhas sandálias na
madeira da varanda coberta. Ponderando o quão irônico é
que o caos que se instaurou nos últimos minutos reflita
exatamente o que está acontecendo dentro de mim por
causa desse encontro.
Paro na frente do vidro com uma postura perfeita,
como se não fosse a própria figura da humilhação. Ainda
assim, ele não abre a porta. Guilherme me estuda sem
deboche aparente, com seus olhos de açúcar mascavo
sobre mim. As mãos não param quietas até entrarem nos
bolsos, e ele pisca mais vezes do que consigo contar,
umedecendo os lábios, e é possível vê-lo controlando a
respiração, com o peito enchendo tanto que faz volume na
blusa.
O helicóptero decola atrás de mim, e sinto meu
coração disparar no mesmo ritmo das hélices. Tento
entender, pela forma como seus olhos permanecem
vidrados em mim, se esse principezinho irritante sabe como
meu coração reagiu a ele. Mas afasto o pensamento com
um balançar de cabeça, finjo não ver a tatuagem de tulipas
vermelhas em seu braço e desvio os olhos da que tem duas
coroas em seu pescoço.
Ambas contam uma história de amor muito linda, mas
uma história de amor que foi jogada no lixo. Então elas não
são importantes.
A única coisa que importa agora é que precisei
atravessar a cidade porque o príncipe queria privacidade
para lidar com o assunto, e eu que me desbancasse até a
realeza. Se já estava irritada por toda essa situação,
imagine agora que estou molhada e descabelada na
varanda da casa dele, que não tem nem a decência de me
deixar entrar.
Fecho a mão num punho e bato com força duas vezes
na porta.
— Vou conversar daqui de fora, ou você vai me deixar
entrar? — vocifero, com uma paciência de centavos
percorrendo o meu corpo frio.
Ele abre um sorriso e puxa a porta de correr para a
direita.
— Oi, Beatriz, é… Você precisa de um banho e uma
muda de roupas, mas acho que não tenho nada feminino
aqui… — Guilherme balbucia com o olhar perdido na sala e,
para elucidar a minha situação, pego o cabelo e o torço
entre nós dois, molhando ainda mais o piso de propósito,
sabendo que umas gotinhas pegaram nele.
— Guilherme. — Apoio a mão em seu ombro e o afasto
da porta, entrando. — A primeira coisa que preciso é uma
toalha, vou pegar pneumonia e encharcar sua sala se
continuar assim… — Aponto para mim de cima a baixo e,
depois de assentir devagar, ainda me observando, ele
reaprende a falar.
— Sem problemas, eu… vou na lavanderia pegar
toalhas limpas para você — avisa, ainda sem me encarar e
corre escada acima.
Estou abrindo minha bolsa para checar se meu celular
sobreviveu, já que essas coisas mais recentes parecem ser
feitas para quebrar, quando ouço passos. Ou melhor, as
patas de um labrador gigantesco, alegre e saltitante, que
para bem à minha frente e se senta, abanando o rabo e
latindo.
— Oi, garotão — cumprimento-o, nervosa. Labradores
são fofos, mas esse tem uns dentões assustadores e não me
conhece, vai que… — Estou só de visita, tá? Não vim
atrapalhar sua rotina, venho em paz — explico, vendo o
celular inteiro, intacto e com chamadas perdidas apenas da
minha melhor amiga, com quem ainda não tive cabeça para
conversar.
Graças a Deus, nenhum outro escândalo surgiu.
O cachorro volta a latir, dessa vez, pulando nas
minhas pernas e pedindo atenção, fofo demais para eu
ignorar.
— Oi, tudo bom? — Acaricio a cabeça dele, que lambe
minha mão e late animado, e só consigo pensar que esse
cão enorme e peludo pulando em mim numa poça d’água
não vai acabar nada bem.
— Nossa! — Guilherme grita do topo da escada, me
fazendo levantar no mesmo segundo. — Você me deu um
susto.
— Você grita, e eu te dei um susto? — Ergo a
sobrancelha sem entender.
— Não você, o Elvis — corrige me fazendo segurar o
riso com a informação.
— O nome do seu cachorro é Elvis Presley? —
pergunto sem conter a gargalhada.
— Há-ha, muito engraçado mesmo. — Fecha a cara se
aproximando de nós. — E cuidado, o garoto é arredio com
quem não conhece — diz, segurando o cão pela coleira.
— Sério? Porque nós já somos, tipo, melhores amigos.
— Tiro a mão dele da coleira e me sento na poça, Elvis
apoia a pata em minhas pernas e lambe meu rosto,
provando meu ponto.
Seu dono segue incomodado com nossa proximidade
e aposto que não é só receio. Guilherme ficou realmente
desconfortável com o quanto o cachorro gostou de mim.
— Trouxe as toalhas e uma muda de roupa, Coisinha
metida — Guilherme as estende para mim, me chamando
pelo apelido que eu detesto, mas não faço nada além de
sorrir de maneira condescendente, porque ele não me afeta.
— E eu gostaria que você não me chamasse assim,
Principezinho — digo sem olhar para ele, mas me
despedindo de Elvis.
É hora de desmontar meu look abóbora.
— Principezinho? — Incomodado, Guilherme ergue a
sobrancelha direita, com um risquinho típico, e eu assinto.
— Se você pode cultivar apelidos ridículos, eu também
posso — rebato, lembrando-o de que nós dois recebemos os
apelidos na mesma época e que, se ele sabe usá-los, eu
também sei.
Na verdade, nossos personagens em Geração Z eram
a princesinha e o principezinho. Coisinha foi a forma
debochada como a antagonista — minha “rival” nos palcos
fictícios da novela — começou a me chamar depois de um
tempo.
Algo que Guilherme pegou para me irritar, porque eu
detestava naquela época, o que não mudou desde então.
— Você não quer…
— Eu quero saber se, por um acaso, tem uma
secadora na sua lavanderia. — A interrupção e o deboche
intrínseco na pergunta fazem Guilherme cruzar os braços e
trocar o peso de perna.
— Tem sim, no mesmo corredor do banheiro.
— A porta do banheiro é…? — Pego as coisas da mão
dele, mas caminho pela casa antes de me secar.
— Terceira porta à esquerda — responde com a cara
fechada, e Elvis, sentado ao seu lado sobre duas patas, late
para ele, mostrando de qual lado está.
Paro no meio do caminho, me abaixo e estalo os dedos
duas vezes na direção do cachorro, que se levanta e corre
atrás de mim escada acima. Elvis me acompanha até a
porta do banheiro e para se sentando, mostrando que sabe
que esse não é um cômodo no qual ele deva entrar.
O banheiro, diferente do resto da casa, não tem
nenhuma parede transparente. Aqui, a madeira predomina
nas paredes e nos móveis, a base da pia e a banheira
também são feitas desse material.
Na parede de frente para a porta, uma janela expõe a
vista: A praia, e deve ser uma coisa linda quando não tem
uma tempestade lá fora. De frente para o chuveiro, fica a
parede na qual um espelho toma todo o espaço, e eu me
sinto nua diante da grandeza dele, mesmo que ainda esteja
vestida.
Ele mostra o quão bagunçada estou, e essa não é a
minha versão que saiu de casa pronta para ter uma
conversa desagradável com um ex.
Tiro o celular da bolsa e faço a única coisa que posso
fazer: Ligo para Nina, minha melhor amiga.
— Olha aqui, garota, você tem coragem, né? — As
palavras praticamente se atropelam, e eu afasto o celular
da minha orelha molhada, colocando-o no viva-voz.
Ela já fala no 1.5 normalmente, ansiosa como está, só
podia sair tudo enrolado.
— Para de show, tá complicado por aqui, preciso
resolver coisas do trabalho.
— E o Guilherme é parte do trabalho agora? — ela me
alfineta, e quase consigo vê-la com a mão na cintura
piscando numa velocidade tão rápida quanto a fala.
— Quando você é uma figura pública, tudo é parte do
trabalho — digo mais para mim do que para ela, lembrando
que tudo começou porque fui boba e burra. — Falando nisso,
estou, inclusive, no banheiro da casa de Guilherme toda
molhada e descabelada.
— Vestida? — sussurra, e eu fecho os olhos respirando
fundo.
— Claro! Fiquei nesse estado porque peguei chuva,
amiga. E…
— Tudo bem, o que aconteceu? — ela me corta, me
impedindo de enrolá-la ainda mais. — Vocês estão mesmo
juntos?
— Nina, você lembra que ele terminou comigo e foi
embora, né? — Meu choque com a pergunta é tanto que me
apoio na pia, encarando o contador de tempo da chamada.
— Lembra de quando ele fez isso, certo?
— Lembro, palhaça. Mas você não me disse nada o dia
inteiro, estou trabalhando com o que tenho.
Com o celular na pia gigantesca, abaixo o volume o
suficiente para a nossa conversa continuar privada e
começo a contar as coisas desde a noite de ontem
enquanto tiro a roupa.
Depois de me secar e desembaraçar os cabelos com
os dedos, aviso que preciso desligar porque tenho que
tomar um banho.
— Tá, calma. Você foi aí fazer exatamente o quê?
— Conversar e tentar resolver essa situação, não é
óbvio?
— Ah, tá. Você se enfiou num helicóptero para ter uma
conversa que poderia ter tido por telefone, e eu sou um
Oompa Loompa, Beatriz! — O deboche dela toca o meu
coração — Qual é o plano, diga lá.
— Quero que a gente finja que é amigo, que sempre
foi, e isso só não era algo público porque eu tinha escolhido
ficar reclusa.
Explicar meu ponto em voz alta me parece péssimo,
mas espero a reação dela.
— Acorda, Bia. Ninguém vai acreditar que você é
amiga do cara que te deu um pé na bunda um mês depois
de…
— Não preciso que acreditem — interrompo-a, porque
três anos, oito meses e quatorze dias depois essa merda
ainda dói. — Só preciso que parem de chamar isso de
namoro — respondo bufando e encarando meu corpo no
espelho. — Minha novela estreia em um mês, a última coisa
que preciso é de algo além dela marcando meu retorno.
— Vou deixar você tomar banho, mas me mantenha
atualizada. Estarei em oração para você ter juízo. Te amo.
— Eu tenho juízo! E também te amo — digo antes de
desligar e me virar para o chuveiro.
A água quente me acalma, e eu respiro, pensando
positivo e repassando meu planejamento: Vou conseguir
sair daqui sequinha, lavar e secar minhas roupas, descer e
convencer o imbecil lá embaixo a fingir que somos
amiguinhos em segredo, porque não tenho outra opção.

Na muda de roupa enrolada na toalha que Guilherme


me deu estavam um short de praia que até vestiu bem e,
não ironicamente, uma blusa da Vicious Bonds.
Uma blusa da banda dele.
Faço meu coque evitando o espelho, porque estou me
sentindo uma groupie, e abro a porta do banheiro.
— Meu Deus. — Meu corpo inteiro treme no segundo
que dou de cara com Guilherme, escorado na parede do
outro lado do corredor.
Ao que parece, temos dois stalkers nessa história.
— Vamos colocar suas coisas para secar? — Ele me
estende a mão com um sorriso gentil e caminha corredor
adentro sem esperar minha resposta. — Aqui — avisa,
parando depois da quarta porta.
— Preciso lavar, encheu de areia — explico, assim que
ele gira a maçaneta. — E, nossa, quantos cômodos tem essa
casa?
— Muitos. Vou te mostrar logo, logo — diz, acendendo
a luz. — Essa é a lavanderia.
Guilherme faz uma reverência fajuta para o cômodo
perturbadoramente branco. À minha direita está uma
bancada de mármore com algumas peças dobradas; à
esquerda uma versão Transformers de uma tábua de passar.
As prateleiras na parte superior do cômodo estão lotadas
com toalhas e roupões de banho brancos, tiro os olhos
delas, pousando minha roupa cheia de areia no espaço
vazio do mármore.
— Qual delas lava e seca? — Intercalo os olhos entre
as quatro máquinas.
— As da direita lavam e as da esquerda secam.
— Nenhuma faz os dois?
— Não essas — Guilherme diz, pegando minhas
roupas na bancada. — Vamos lavar suas coisas?
— Pode deixar que eu lavo. — Puxo as peças e o
encaro respirando fundo. Quase sem acreditar que, depois
de tudo, nossa primeira longa conversa vai ser sobre lavar
roupas e conhecer a casa. — Onde fica o sabão em pó?
— O sabão é líquido — ele me corrige, puxando uma
porta embaixo do tampo de mármore e tirando uma garrafa
de cinco litros. — Ele já tem amaciante, então é só isso
mesmo. E, se você faz tanta questão de eu não ver sua
roupa encharcada ou sua calcinha bege — implica estalando
a língua —, estarei lá embaixo preparando o chocolate
quente para evitar sua pneumonia.
— Eu diria coisas… — Pego a garrafa da mão dele com
a mão livre. — Mas estou interessada demais no chocolate
para fazer inimigos agora.
Guilherme bate continência, antes de passar por mim
e ir embora. No segundo que ele abre a porta e sai, Elvis
entra.
— E aí, garotão, pronto para me ajudar?
O cachorro late, alto e forte.
Jogo minha roupa na primeira máquina e busco uma
lavagem rápida. Trinta minutos é o suficiente, sabe-se lá
quanto tempo vai demorar para lavar e secar, e eu preciso
ir embora o mais rápido possível. Espero que ele tenha um
guarda-chuva ou uma capa de chuva nesta Mojo Dojo Casa
House do Ken.
Coloco sabão até a marca indicada no compartimento
e fecho a gavetinha, girando o botão e dando início ao
processo de lavagem.
— Será que posso ficar aqui, lavar minha roupa, me
trocar e fugir ou tenho mesmo que sentar lá embaixo e me
humilhar pro cara que terminou comigo no pior momento da
minha vida sem a menor explicação, Elvis? — questiono-o,
acariciando suas costas.
O dó que o cachorro parece sentir por mim é tão
grande que ele nem late, apenas lambe minha mão.
— Vamos descer, garotão, diferente de você, não
estou com a vida ganha e preciso convencer seu dono a
fazer minhas vontades.
Capítulo 5
Ou: Beatriz Lopes é minha namorada de mentira,
mas inundou a minha casa de verdade.
Guilherme
Beatriz Lopes está sentada em uma das cadeiras da
minha cozinha com as pernas cruzadas, tomando o
chocolate quente que preparei para ela, enquanto veste as
minhas roupas. Não é algo que nunca tenha acontecido
antes, dessa vez, porém, parece um sonho.
Não um sonho bom, só algo que não teria como ser
real.
Quando falamos de Beatriz, eu e a verdade entramos
num campo minado, porque a verdade é uma só: Escolhi
partir o coração da garota mais incrível do mundo. Mesmo
que tenha sido para o bem dela, nada vai mudar a dor que
causei.
Justamente por isso, o plano inicial foi: Ir embora do
país, não olhar para trás e nunca mais precisar estar diante
dela. No entanto, com a situação atual, é inevitável
reconhecer que algo em Beatriz mexeu alguma coisa dentro
de mim.
Poderia dizer que foi a forma como Elvis a aceitou, ou
seu jeito passivo-agressivo, ou o sorriso irônico, travesso e
sem humor… Mas seria mentira. O que mexeu comigo foi
perceber que Beatriz ainda é a mesma Coisinha, aquela
pela qual o Guilherme de quinze anos se encantou e se
apaixonou e a qual nunca imaginou perder, exatamente a
mesma garota que arruinou todas as mulheres do mundo
para mim.
Durante os quatro anos do nosso relacionamento,
Beatriz representou tudo o que eu entendia sobre o amor.
Depois da minha partida, ela se tornou as verdades não
ditas sobre minha aflição. Anos depois, em nosso primeiro
reencontro, ela é uma mistura dos dois, e nunca vai saber
disso.
— Então, eu conversei bastante com a Luana e acho
que a gente pode…
— Ei, Coisinha, calma aí — interrompo-a, a postura
ereta e o olhar fixo denunciam que Beatriz quer nos tratar
como “negócios”. — Tu acabou de chegar, não precisamos
falar sobre o que faremos por causa da sua inaptidão com
redes sociais — digo, tentando descontrair, mas ela não
sorri, apenas aperta os olhos na minha direção. — Me conta
como você tá…
— Cansada — ela responde depois de ponderar por
um tempo. — Acordei namorando um cara que não me
dirige a palavra há mais de três anos, tive que dar
satisfação para a minha empresária; pro meu diretor; pra
minha melhor amiga… Passei o dia trancada em casa e sem
contato com o mundo externo porque só podia vir para cá
depois do pôr-do-sol, para ninguém perceber que eu estava
visitando o principezinho; então peguei a merda de um
helicóptero, e o passeio incrível terminou com uma chuva
insuportável! — enumera antes de exalar o ar e encolher os
ombros. — Agora estou aqui, tomando chocolate quente
com um completo desconhecido enquanto minha roupa lava
e seca para eu tentar ir embora menos molhada do que
cheguei, o que parece que não vai acontecer, já que não
para de chover.
— Meu Deus, você só reclama? Pelo menos os trovões
cessaram, e Elvis está em paz.
— Ah, teve o lado bom, eu sobrevoei o Rio de
helicóptero. — Ela força um sorriso que passa bem longe de
se refletir nos olhos. — E esse chocolate até presta —
adiciona com as sobrancelhas inclinadas.
— Eu faço o seu chocolate favorito, Beatriz. Se toca —
rebato, procurando algo para jogar nela, mas desisto.
Não temos essa intimidade.
Não mais.
— Tá aí uma das mil coisas que você não sabe mais
sobre mim — ela me desafia, com um risinho de canto. —
Chocolate ao leite é doce demais para mim, agora me
acostumei a beber o 70% cacau — diz, jogando os cabelos
ainda molhados para trás. Os cachos com os quais eu
amava brincar descem até suas costas em cascata.
— E o que mais eu não sei sobre você, Coisinha?
— Ainda não gosto desse apelido, Principezinho.
— Ah, é, Princesa. — A palavra a faz retesar o corpo, e
seu olhar sobre o meu avisa que esse é um limite que eu
não posso cruzar. — E então, Beatriz, como estão as coisas?
— Forço um sorriso de desculpas, e ela assente, pousando a
caneca na mesa.
Vejo-a se levantar, afastando a cadeira apenas para se
sentar com os joelhos encolhidos, batendo em seu peito.
Antes de me responder, ela os abraça ali, como se pudesse
se proteger de algo. De mim.
— Acho que você não entendeu o que eu vim fazer
aqui, né? — pergunta genuinamente confusa. — É muito
desconfortável pra mim precisar correr atrás do cara que
me deixou como se eu fosse a blusa descartável de uma
banda da qual nem gosta tanto assim. — Dá de ombros
olhando para a blusa da Vicious Bonds que está vestindo. —
É muito estranho sentar aqui com você e te ouvir perguntar
como eu estou, ou o que eu tenho feito, depois de anos de
um completo silêncio.
Ver Beatriz, a garota paciente que gostava de agradar
todo mundo, sendo direta assim me assusta. Pisco três
vezes tentando colocar as ideias no lugar porque, tudo bem,
eu mereço isso.
— Eu sei, só que agora a gente tá aqui, e eu achei…
— Você achou? — Beatriz revira os olhos e ri como se
eu tivesse contado uma piada hilária. — Oh, Deus. Fui eu
quem teve que se adaptar à sua ausência e ao seu silêncio,
não me venha achar que as coisas podem ser como eram
antes.
— Eu senti sua falta, sabia? — cuspo as palavras como
se elas significassem mais do que realmente significam.
Como se pudessem explicar que eu não queria ir, que
nunca quis deixá-la, mas seu cenho franzido deixa claro que
ela não tem interesse nenhum em ler nas entrelinhas
— Me poupe, Guilherme. — Dispensa minhas
desculpas com a mão. — Você nem falaria comigo se eu não
tivesse feito essa confusão. Então vamos resolver o que
temos para resolver, porque eu quero ir embora.
Os olhos incrédulos que me encaram giram a espada
que está cravada constantemente em meu coração. Tenho
um mundo de coisas para dizer, mas nada mudaria o
passado. Dois milhões de justificativas para dar, mas vejo
em seus olhos escuros e perdidos que ela não se importa.
Não mais.
E o rancor em sua voz e a forma que Beatriz desvia o
olhar para engolir em seco denunciam que ela se importou
por muito tempo.
— Beleza. Se é assim que a gente vai fazer as coisas,
ótimo. — Me levanto, colocando a cadeira no lugar. — Qual
é a sua proposta? — pergunto, descansando as costas na
cadeira e disfarçando o ritmo do meu pé batendo no chão
para que ela não perceba.
— Nós terminamos e achamos melhor manter nossa
relação de amizade em off. — Estico o pescoço para a frente
porque não tem a menor chance de eu estar ouvindo
direito. — Temos sido amigos todo esse tempo, mas não
queríamos que as pessoas confundissem as coisas e
preferimos deixar tudo entre nós. — Antes de ela acabar, já
estou pronto para dizer que isso não faz o menor sentido.
— Essa é a pior ideia do mundo — pontuo balançando
a cabeça negativamente, e ela se levanta, respirando fundo,
com as mãos cerradas em punhos.
— Você, por algum acaso, tem uma ideia melhor? —
indaga dois tons acima do necessário
— Na verdade, tenho — rebato, vendo-a dar a volta na
mesa e parar à minha frente. — Nós terminamos porque eu
não soube lidar com o fim da novela, da banda, de tudo e
fugi. Porque fui frouxo. — Eu me levanto, cruzando os
braços com os olhos nos dela, a dois passos de mim.
— Isso não é mentira… — ela analisa, assentindo.
— Entrei em contato com você quando descobri que
passaríamos pelo Brasil com a turnê — volto a falar antes
que ela pise mais em mim. — Nós estamos nos vendo desde
que eu cheguei… — digo, dando um passo na direção dela.
— E temos percebido que talvez a chama que existia no
passado — dou mais um passo, e Beatriz se afasta de mim
com dois passos largos para trás, mais um e ela vai estar
escorada na bancada do armário — ainda existe. Nós
estamos conversando, nos conhecendo novamente, nos
reaproximando. — Eu avanço mais e, com um passo para
trás, ela bate a bunda na bancada, e eu apoio uma mão de
cada lado do seu corpo. — A gente pode até assumir um
namoro de verdade e depois emitir uma nota dizendo que
percebemos que o relacionamento à distância não se
encaixaria nas nossas agendas — declaro o discurso que
ensaiei a tarde inteira, bem melhor do que o dela, para uma
Beatriz completamente curvada para trás que me faria rir
em qualquer outra situação.
Mas, agora, só me faz ver como os lábios dela ainda
são carnudos e convidativos, e o cheiro do meu xampu no
cabelo dela grita que, diferente do que eu sempre pensei,
dividi-lo é algo com o que eu poderia me acostumar.
— Isso é parte do seu show? — Ela aponta para mim,
dos pés à cabeça. — Sua banda faz apresentações no estilo
Magic Mike? — indaga, segurando um riso que parece
honesto e me afastando com o indicador no meu peito.
— Eu perguntaria se você quer me ver rebolando sem
roupa, o que é lindo, e você sabe. — Seu queixo cai, e é
minha vez de me segurar para não rir. — Mas a ofensa de
que você não sabe o que é a minha banda foi muito maior
do que minha vontade de te irritar.
— Ah, desculpa? — diz, meio perguntando ao apoiar
as mãos na bancada atrás de si. — Eu estava curtindo os
piores anos da minha vida, então a última coisa na qual eu
pensava eram os novos artistas em alta — debocha,
completamente seca, e eu meneio a cabeça, porque essa eu
mereci.
— O que você escuta?
— A tríade — diz como se fosse óbvio, e eu sinalizo
para ela elaborar. — Taylor Swift, Beyoncé e Olivia Rodrigo.
— E elas não são artistas em alta? — Arregalo os olhos
com a cara de pau.
— Elas sempre foram, é diferente.
— A menina do High School Musical da Shopee
sempre foi? — desdenho como se não tivesse recebido o
prêmio de artista revelação da última premiação que
participamos das mãos da própria.
— Você era um RBD da Shopee, tá julgando quem? —
rebate saindo pela tangente, e eu meneio a cabeça,
desistindo da discussão.
Se continuo com isso, em menos de dois minutos, ela
vai tá me chamando de caipira desgraçado, como adorava
fazer, e não quero brincar de novela teen agora.
— Tá Beatriz, qual é sua resposta?
— Sobre o quê?
— Meu pedido de namoro. — Abro os braços, porque a
pergunta é óbvia, mas seu queixo cai enquanto ela nega
com a cabeça.
— Claro que não, você enlouqueceu — retruca,
caminhando para perto da parede de vidro e longe de mim.
— É muito mais plausível do que a sua historinha de
amizade.
— E eu não quero ser a coitada que foi largada de
novo. Então vamos arrumar outra história. — Esfrega os
olhos impaciente.
— Você pode terminar dessa vez — sussurro, e ela me
encara como se eu tivesse acabado de xingar a dona Tati,
mas seus olhos caem no chão e ela sorri.
— Ah, o Elvis — anuncia e se agacha, como se meu
cachorro pudesse salvá-la de responder. Mas, no segundo
que ele apoia as patas em seus joelhos, Beatriz se levanta.
— Nossa, ele tá tão cheiroso, e todo molhado.
— Meu cachorro é sempre cheiroso.
— Sério, parece até que ele que tomou banho. — Ela
se levanta, confusa, com um passo para o lado que Elvis
entende como “você fez algo errado”, e reclama inclinando
a cabeça para a direita. Abro a boca para contra-
argumentar, mas a trilha de patinhas dele pelo chão chama
minha atenção.
— Olha, Coisinha, fica aqui, eu já volto. — Não consigo
evitar o apelido ao sair da cozinha correndo até a escada,
mas, antes mesmo de chegar na metade dela, vejo o
corredor do andar superior cheio de água e cheirando a
rosas, como se um jardim tivesse sido plantado na
lavanderia.
Mas não são rosas de verdade. É só água, que desliza
pelo corredor e está quase chegando na escada.
— Beatriz Dias Lopes ! — O nome sai num grito grave,
e eu não acredito que ela inundou minha casa.
Que Coisinha vingativa.
Beatriz corre e pergunta por que estou gritando, mas
escorrega na escada molhada e se segura em mim e no
corrimão.
— Eu tenho certeza de que um vestido e uma calcinha
não podem ter feito isso! — sussurra, subindo a escada e
vendo a água sair da lavanderia.
Com passos lentos ao longo do corredor, chegamos ao
cômodo, e ela se prepara para girar a maçaneta.
— Espera — digo logo atrás dela. — Vai que tem um
monte de água aí!
— Não tem, eu coloquei meia hora, tenho certeza —
garante, puxando a porta e, de fato, não tem mais água
para sair.
O que a faz arregalar os olhos e me obrigar a segurar
o queixo no lugar, no entanto, é a quantidade de espuma
que cobre todo o chão e chega à altura dos nossos joelhos.
— Meu Deus, você colocou quanto sabão para lavar
um vestido, Beatriz?
— Como quanto sabão? — Ri de nervoso, confusa. —
Coloquei até a marca, ué — responde, como a boa
patricinha que é.
— Você colocou sabão até a marca limite de uma
máquina industrial para lavar duas peças de roupa, Beatriz?
— Me equilibro como posso entre as espumas e me lanço
sobre a máquina para desligá-la.
— Guilherme, me diz uma coisa. — Ela vem até mim
segurando na tábua e então numa das máquinas e para,
cruzando os braços com deboche. — Eu tenho cara de quem
conhece o manual de uma lavanderia industrial?
— Tu tá de sacanagem, Beatriz. — Quase argumento
que nenhuma máquina na Terra funcionaria direito com
duas peças de roupa e sabão para lavar o máximo possível,
mas seu olhar de quem acha que está certa me faz fechar
os olhos por alguns segundos.
— Eu achei que era uma máquina normal!
— Como? Eu disse com todas as letras que era indus…
— Respiro fundo, pensando na água escorrendo escada
abaixo e a encaro. — Nossa, tu tinha toda razão. Isso não
vai dar certo, acabou nosso namoro.
— Olha aqui, seu palhaço, eu não aceito que você
termine comigo de nov… — A voz de Beatriz some enquanto
ela se inclina em minha direção sem o menor controle.
Até tento segurá-la, mas o porcelanato escorregadio
me desequilibra e, em segundos, estamos os dois no chão,
perdidos no meio de um monte de espuma cheirando a
rosas, e sinto vontade de espirrar na cara dela.
Mas os olhos de Beatriz são um mar de saudades e
meus braços envolvem sua cintura enquanto seu corpo se
aninha ao meu de maneira perfeita. Movo a mão por sua
cintura quase involuntariamente, com a necessidade de
senti-la só um pouco mais. A garota ofegante em cima de
mim respira com lábios entreabertos a centímetros dos
meus.
O que ela faria se eu levantasse a cabeça só um
pouquinho?
Não preciso pensar muito para chegar a uma resposta:
Ela me mataria.
— Se você for me atacar assim, com frequência, a
gente pode assinar um contrato de namoro falso amanhã —
sussurro, mas ela não diz nada. Parece assustada demais
para qualquer coisa. — E a gente coloca uma cláusula de
que eu não posso terminar nosso namoro de mentirinha.
Beatriz me estuda com o cenho franzido e raiva
fervendo no olhar, mas então começa a rir.
Seu corpo tremendo em cima do meu e a forma como
ela desvia o olhar sem jeito me fazem rir na mesma
intensidade.
— Isso é muito injusto, sabia? — pergunto
ironicamente.
— Você cair, o nosso namoro que acabou em quinze
minutos ou eu estar rindo do quão idiota consigo ser com
serviços domésticos?
— Mas nosso namoro não acabou, Coisinha. — Eu a
aperto contra meu corpo e rolo para a direita, colando suas
costas no chão, sendo mais ousado do que o bom senso me
permitiria. — A gente tá só começando — sussurro, com o
rosto rente ao dela, que me empurra assim que água fria
atinge suas costas.
— Detesto você, Principezinho! — murmura, pegando
espuma e jogando na minha cara.
— Você tem coragem! — Me ajoelho entre suas
pernas, jogando um monte de espuma em cima dela.
— Você não me enterre, seu caipira desgraçado! —
Beatriz grita a ofensa e se senta. Mas eu seguro suas mãos
no ar, antes que ela jogue mais espuma em mim ao mesmo
tempo que desequilibro e caio de bunda no chão.
Nós dois voltamos a rir. Gargalhamos o bastante para
a barriga doer, mas não o suficiente para o riso bater
naquela parte do cérebro que as emoções se misturam e
você começa a chorar.
Mas eu estou quase lá, então paro.
— Meu Deus, o que você arrumou aqui, Coisinha? —
digo, me dando por vencido e sentando de frente para
Beatriz. Um pouco ofegante e irritado por ela ficar linda até
coberta de espuma.
— Acho que eu inundei sua lavanderia — declara o
óbvio, faceira. — E um pouquinho da sua casa. — Beatriz
assopra a espuma em sua mão. — E que você me deve
desculpas — ela decreta, e eu franzo o cenho, confuso.
— Você confessa seus crimes, e eu te devo…
desculpas?
— Você me deixou aqui com uma máquina industrial
sem explicar nada e me tratou super mal porque eu não
soube operar vossa nave espacial — explica com a
sobrancelha direita erguida. — Isso não foi nada legal da
sua parte.
— Me desculpa, Bia. De verdade. É que eu esqueço
que você ainda é só aquela patricinha mimada que
precisava de ajuda para entender a logística dos aeroportos,
porque só tinha viajado de voo privativo até os dezesseis.
— Você é tão imbecil — ela diz, lutando consigo
mesma para não deixar o sorriso tomar seu rosto, cheia de
vergonha.
— Senti tanta falta de te ouvir rir — confesso e quase
me arrependo, mas ela não me repreende.
— Sinto falta de te ouvir cantar. Realmente nunca ouvi
nada da sua banda… — Ela encolhe os ombros sem jeito,
olhando para a blusa que, graças a Deus, é preta e não fica
transparente.
— Devia tentar o show de Toronto, tá no nosso canal
do YouTube, e todas as minhas músicas favoritas estão nele.
— Minha resposta me faz sentir tão vulnerável quanto
nunca achei que ficaria, já que, com “minhas músicas
favoritas”, quero dizer: As músicas que compus para você.
— Vou pensar nisso… Quando tiver um tempo livre.
— E voltamos para a injustiça… — murmuro, batendo
na minha coxa.
— Por quê? — pergunta genuinamente curiosa,
cruzando as pernas em flor de lótus outra vez.
— Você pode me ouvir cantar, mas eu não tenho onde
te ouvir rir…
— A novela começa em dois meses, e eu sou a amiga
divertida da protagonista, então…
— Ah, te deram um papel de amiga da protagonista?
— Ergo a sobrancelha direita, mas ela nega com a cabeça,
dizendo que não é esse tipo de papel.
— Ela é uma professora que acredita em mudar a vida
dos alunos através da leitura. E — ergue o indicador antes
de continuar — a protagonista apaixonada e sonhadora
também é uma mulher negra. Fiquei feliz em muitos níveis
com esse papel — diz com um sorrisinho bobo de canto.
— Deu para perceber e entender o porquê. — Escoro a
cabeça na estrutura da tábua de passar, aproveitando a
descontração do momento. — Já conheceu o elenco todo?
Começaram a gravar? — As perguntas saudosas me
lembram de quando eu acreditava que atuaria a vida
inteira.
Hoje, não sinto mais a menor falta de atuar, mas
lembro da novela com carinho.
— Sim e não. Eu criei o Instagram justamente para a
festa com o elenco, que comemorou o início das gravações,
mas só começo a rodar as minhas cenas na segunda.
— Ah, então essa festa é a culpada pelo nosso
namoro, é?
— A gente não vai fazer isso, Gui. — Ela suspira
incomodada e mira o chão depois de uns instantes em
silêncio. — Eu não conseguiria passar por mais um término
público.
E eu daria qualquer coisa para ela nunca ter passado
pelo primeiro.
Olhar Beatriz nos olhos e dizer “Precisamos ser
realistas, você é a herdeira de um império, eu sou só um
garoto de comunidade que deu sorte, preciso aproveitar a
oportunidade de ir ficar com meu pai nos Estados Unidos e,
quem sabe, me formar em algo por lá e continuar ajudando
minha família” foi a pior coisa que eu fiz a ela, mas também
a mim, e ver Beatriz sem graça com a possibilidade de ser
deixada novamente partiria meu coração, se ele ainda
estivesse inteiro.
— Por mais que você não saiba e que isso nem venha
ao caso, eu tive motivos para terminar muito além de
“ajudar minha família” — pronuncio as palavras que nunca
achei que teria a oportunidade de dizer. — Te deixar foi a
coisa mais difícil que fiz na vida, e eu sofri todos os dias
desde que fui embora. Doeu demais, e eu… — engulo em
seco, tentando fazer a garganta parar de arranhar — nem
imagino o quanto deve ter doído em você.
— Em mim não foi doloroso, Guilherme — Beatriz me
garante com os olhos vagando pelo cômodo e me encara
antes de prosseguir: — Foi devastador. — As palavras não
carregam raiva, rancor ou ódio.
Só a mais completa solidão.
Eu sempre soube, mas ela constatar como se não
fosse nada dói demais.
— Acho que você nunca vai me perdoar… — Suspiro,
encarando-a. — Mas eu tive motivos e estava tão puto com
eles que lidei com isso da pior maneira possível. — Coço a
nuca sob seu olhar atento. — Deixando as pessoas saberem
que eu terminei, indo embora do país e não falando mais
com você.
— Você foi me e deixou sozinha, Guilherme. No auge
do meu sofrimento e no meio de uma pandemia! — ela me
acusa, deixando claro que isso foi ainda pior.
Mas eu não suportaria terminar com ela e continuar
aqui, ir morar fora com meu pai e minha irmã foi a única
coisa que me segurou de pé.
— Colocando assim, fica bem óbvio o porquê de você
não me perdoar. Mas, nem eu me perdoei. — Abaixo os
olhos e a guarda, como não deveria. Como não poderia,
mas estar diante dela nubla meus pensamentos. — E as
pessoas também me odeiam pelo que fiz com você. Muitos
dos fãs da Geração Z me detestam e trazer a Vicious Bonds
para cá, antes de qualquer outro lugar, foi meu jeito de
tentar me desculpar e reconquistar essa parte do público.
Eu jamais, Beatriz, jamais faria algo de ruim com você outra
vez — sussurro a última frase ainda sem olhar em seus
olhos, nenhum de nós esperava que eu a magoasse da
primeira vez, e aqui estamos. Então não é como se ela fosse
confiar em mim só porque eu estou dizendo isso.
— Você veio para cá limpar sua imagem, e eu manchei
isso… — É a conclusão prática à qual ela chega.
— Basicamente.
O silêncio entre nós é palpável, e a respiração dela
cada vez mais tensa, até que Beatriz suspira, e eu subo os
olhos para encará-la.
— Acho que você tem razão. Confirmar esse namoro é
menos pior do que os burburinhos que qualquer justificativa
vai levantar — pondera, me observando. — Se minha saída
para não virar chacota tão pouco tempo antes do
lançamento da minha primeira novela em quatro anos é
fingir que eu voltaria pra você… Vamos fazer isso.
— Sério?
— Uhum, mas a gente precisa de uma data de
validade, e eu não quero nada muito explícito, nada que
afete minha volta à TV.
Nem nos meus sonhos mais loucos, imaginei que
conseguiria convencer Beatriz a namorar comigo de novo
no chão de uma lavanderia, enquanto estamos cobertos de
espuma. Muito menos que esse relacionamento seria falso.
Mas aqui estamos, e preciso pelo menos fingir que estou
bem de verdade com isso.
— Se vamos alegar conflitos de agenda, acho que
pode ser durante a minha turnê, ela começa daqui a 9
semanas, ou no fim dela, em 15 semanas.
— Vamos com as 9! — Beatriz decreta, como se ficar
15 semanas comigo fosse matá-la. — E a gente não vai
assumir nada. Vamos só… — A frase morre, ela respira
fundo e fecha os olhos, ponderando as possibilidades.
— Só? — pergunto depois de quase um minuto inteiro
de silêncio.
— Postar fotos um do outro ou juntos, sair como um
casal, essas coisas — pontua, fazendo círculos na espuma à
sua frente.
— Espero que nossos fãs do passado não sofram de
novo.
— Eles já foram traumatizados uma vez, vão superar
tal qual os fãs de RBD, High School Musical e Camila Cabello
e Shawn Mendes.
— Talvez você esteja certa.
— Eu tô sempre certa. — Bia me joga um pouco de
espuma, que cai antes de chegar em mim, e eu decido
mudar de assunto antes que ela mude de ideia.
— E como foi pra você… receber um convite, voltar a
atuar?
Faço uma pergunta segura, nos mantendo no campo
dos assuntos fáceis.
— Nunca deixei de receber convites para testes — diz
baixinho, como se fosse um segredo. — Quer dizer, durante
a pandemia foi um volume baixo, mas eles existiram. Só
que eu… a morte do papai me quebrou de muitas formas, e
eu preferi não aceitar. — Ela engole em seco e respira fundo
em seguida.
— O que foi diferente dessa vez? — pergunto, mas ela
pisca duas vezes e retesa o corpo. — Se você quiser falar, é
claro.
— Não foi o trabalho… Foi tudo. Ano passado, voltei a
sair de casa sem pensar que o mundo acabaria na esquina
seguinte — Bia responde, jogando o cabelo molhado para
trás, mas ela não está só falando comigo. Sei disso porque
seu olhar se perde pelo cômodo, como se verbalizar essas
palavras tornasse sua coragem palpável. — Comecei a
passear, até viajei com a Nina para a região dos lagos… e
minha mãe e minha antiga psicóloga me ajudaram a ver
que eu podia voltar a viver. Que eu precisava encontrar o
tão falado novo normal. — O canto direito de sua boca se
ergue de maneira quase imperceptível, mas o leve suspiro
de alívio denuncia que essa é uma lembrança muito boa. —
Depois disso, as coisas foram se encaixando no geral. No
meio do ano, almocei com o Marco, ele fez o convite, e me
dei conta de que era hora não só de achar um novo normal,
mas também de voltar para o meu mundo real.
— E isso incluía a atuação… — deduzo.
— Exato. — Abro a boca para fazer mais uma
pergunta, mas ela me interrompe, erguendo a mão, como
se estivesse reerguendo a guarda. — E esse chão, vamo
limpar?
— Claro! — Eu me levanto e, segurando na bancada, a
ajudo a se colocar de pé. — Mas confesso que achei que
seria mais difícil te convencer a… você sabe. Mentir pra
todo mundo — digo, subindo minha bermuda que pesa com
a água.
— Você não me convenceu de nada, Principezinho,
acorda — diz, e sua risada enche o cômodo. — Não era a
minha ideia favorita, mas é um preço mais justo a pagar do
que ter minha volta à TV afetada pela narrativa da ex
maluca, a que não supera, a que quer surfar no hype do
cara que a abandonou…
Assinto, observando-a torcer o cabelo como quando
entrou encharcada na minha sala.
— Já que temos um prazo, deveríamos ter uma
agenda também — sugiro, tentando tirar os olhos dela que,
mesmo molhada e cheirando a flores silvestres, segue linda.
— Duas vezes na semana é ok pra você?
— Eu gravo cinco dias por semana, Guilherme. Tenho,
no máximo, um dia pra te ver. — Tento argumentar que isso
é pouco e não me parece um namoro, mas ela ergue o
indicador. — Não vou me indispor com meu calendário por
você, quando eu puder duas, aviso.
— Uma ou duas vezes na semana, por 9 semanas.
Temos um acordo então. — Estendo a mão para ela.
— Temos. — Beatriz aperta minha mão, e é isso, não
tem mais volta.
— Você quer escrever?
— Não! — rebate como se eu tivesse proposto um
absurdo. — Relacionamento falso com contrato sempre
acaba dando merda, e eu preciso que a gente leve essa
coisa como o que é: Um acordo profissional.
— Dando merda como? — Franzo o cenho sem
entender.
— As pessoas criam um monte de regras e depois
quebram todas elas.
— Medo de se apaixonar de novo, Princesinha? —
provoco com um passo em sua direção, mas ela apoia o
dedo em meu peito, negando com veemência.
— Guilherme, abre as suas mãos — ela pede, e eu
franzo o cenho confuso, mas o faço. — Agora fecha, isso,
segura tua onda.
— Foi mal, exagerei — é o que respondo roçando o
piercing no céu da boca enquanto Beatriz vira de costas,
puxando um par de toalhas da prateleira.
Porque sei que, apesar da curiosidade que ela traz, da
forma como meu coração reage perto dela e do quanto, no
fundo, ainda gosto dessa Coisinha irritante, nós não
podemos ficar juntos.
Não era uma possibilidade antes e é uma muito menor
agora.
Capítulo 6
Ou: 9 semanas. Tudo o que precisamos é de 9
semanas.
Beatriz
Limpar a lavanderia e o corredor com Guilherme
tomou mais tempo do que eu esperava. Pelo menos, ao fim,
tínhamos um andar superior e escadas novos em folha e
minhas roupas secando. O que levaria, mais ou menos,
quarenta minutos quando saímos de lá exaustos, mas ainda
prontos para banhar e secar o Elvis com dois secadores de
cabelo.
Parecia óbvio e lógico que a gente pedisse meu
helicóptero para antes de tomar banho, assim ele já estaria
a caminho ou quase chegando quando saíssemos dos
chuveiros. Mas, para a minha desagradável surpresa, a
chuva que me pegou na chegada só piorou, e os
helicópteros da empresa contratada não voavam durante
tempestades. E, sendo bem sincera, eu também não voaria.
Apesar da outra opção ser ficar trancada com meu ex,
acho que é melhor morrer de ódio do que morrer de
verdade.
No entanto, temos dois pontos positivos nisso tudo. O
primeiro e mais importante: Deus não é fanfiqueiro! Essa
casa tem oito quartos, ou seja, não vou dividir uma cama
com meu namorado de mentira. E o segundo ponto é que os
meninos estão no continente, então não vou precisar
interagir com três desconhecidos que devem ter algum
ranço de mim por quase ter manchado a turnê deles.
Observando dois posts sobre meu namoro — ou seja lá
como as pessoas estão chamando isso — que Nina me
enviou por inbox, recheados de fotos antigas minhas com
Guilherme e montagens atuais, acaricio a cabeça imensa de
Elvis, que se protege dos trovões no meu colo. Mas evito
respondê-la. Foi assim, pegando o celular e abrindo esse
aplicativo inofensivo que acabei namorando, de mentira, o
cara que me deu um pé na bunda de verdade. E é por isso
que estou sentada na sala do indivíduo que desce a escada
com uma blusa com a logo da própria banda e uma samba
canção.
— Cê tá brincando, né? — A pergunta atropela meus
pensamentos.
— O que houve? — Ele pergunta, com o cenho
franzindo, um olhar inocente e os braços erguidos como se
não estivesse a dois degraus de se aproximar demais de
mim sem roupa.
— Cê realmente desceu de samba canção? — indago,
piscando duas vezes para ter certeza de que ele acha que
temos uma intimidade que não temos mais.
— Ela é, literalmente, do tamanho do seu short! — ele
se defende indignado, apontando para o short que me
emprestou.
— Mas você não tá usando nada por baixo — protesto
como se fosse óbvio.
Ele parece ter esquecido as convenções sociais, e
Elvis se põe sentado com as patas da frente apoiadas no
sofá, mostrando que está do meu lado nessa também.
— Sua roupa ainda está secando, então você também
não tá usando nada aí embaixo. — Aponta para minhas
coxas como se me pegasse no pulo.
— É diferente — rebato, desviando o olhar.
— Como? Eu consigo imaginar tu sem calcinha e fingir
que isso não me afeta, por que tu não pode fazer o mesmo?
Uso pelo menos metade das minhas habilidades de
atuação para não demonstrar meu choque antes de sorrir e
rebater:
— Não preciso fingir, você não me afeta.
— Foi só modo de dizer — garante, se dando conta da
péssima escolha de palavras.
— Ótimo, então sobe e coloca alguma coisa para
segurar tuas bolas — digo, e Guilherme se vira pisando forte
em cada um dos degraus.
Elvis late para ele, que olha para nós por cima do
ombro e coça o cavanhaque, semicerrando os olhos em
implicância. Assim que Guilherme volta a caminhar, abraço
o cão e penso no quanto esse estilo é novidade para mim.
Diferente das tatuagens no pescoço e no braço e do
cabelo raspado nas laterais, o cavanhaque não estava nas
fotos do Instagram, e não é que eu esteja reparando, mas
ele deixa Guilherme com mais cara de carioca que não vale
muita coisa.
E nisso preciso tomar cuidado, esse sempre foi meu
tipo favorito de personagem de novelas.
Meu celular vibra mais uma vez, me trazendo de volta
ao presente, e troco de janela porque responder Nina por
WhatsApp, único aplicativo que eu domino, é mais seguro.
Nina: Boa noite, princesinha do Guilherme Almeida.
Começo a escrever contando que nós estamos, de
fato, namorando. Mas apago a mensagem. Ela vai surtar, e
eu não quero lidar com isso agora.
Eu: A gente conversa amanhã, as coisas estão meio
doidas aqui, mas tudo sob controle.
Nina: Já deixei minha agenda pós-culto livre para essa
fofoca.
Leio a mensagem e seguro o riso em seguida.
Eu: Ficar interessada em fofoca não é lá muito cristão
da sua parte.
Nina: É verdade.
Nina diz, mas segue digitando, então espero.
Nina: Já deixei minha agenda pós-culto livre pra você
compartilhar esse motivo de oração comigo.
Fecho os olhos, respirando fundo para não gargalhar e
bloqueio a tela do celular. Essa garota ainda me mata.
— Elvis, você é o único que presta, sabia? Meu ex-
namorado aparece de cueca, e minha melhor amiga age
como se ele não tivesse me arruinado e desaparecido.
— Eu ouvi isso! — Guilherme diz da escada, mas eu
nem me viro, fico aqui com Elvis, que é o mais seguro que
tenho no momento. — Bora pra cozinha? Preciso fazer algo
pra gente comer já que você vai passar a noite comigo no
primeiro encontro — ele implica, e eu me levanto, mas não
rebato sua gracinha porque sei que é o que ele quer.
A casa é ainda maior por dentro do que por fora. Toda
em madeira e vidro, os cômodos são interligados, e a sala
tem espaço suficiente para uma festa com vinte ou trinta
pessoas. E, se a gente contar com a área de jogos em
anexo, cabe mais gente ainda. Mas a cozinha… Ela é o
sonho de qualquer pessoa que ame cozinhar, com suas
duas geladeiras inox enormes, armários e bancadas sob
medida e a mesa para doze cadeiras.
— Não tem como cobrir os vidros? — pergunto, mas
meu tom é de pedido, e Guilherme pega um controle na
bancada de mármore do outro lado do cooktop.
— A chuva tá insuportável, né? — comenta,
apontando para as janelas, e as persianas começam a
fechar. — Veio com você, tô aqui há quase quinze dias, e
não tinha chovido assim — implica, pegando duas panelas
na gaveta embaixo do fogão enquanto eu me sento à direita
dele na mesa e Elvis deita debaixo do móvel. — Tu vai
sentar aí? — Ele me observa por cima do ombro.
— Uhum — respondo, balançando as pernas no ar.
— Não em uma das doze cadeiras, mas na mesa, de
frente para mim? — Se vira, cruzando os braços, e eu
meneio a cabeça devagar.
— Uhum. Bem pertinho do meu namorado — debocho,
batendo o indicador duas vezes no piercing de seu nariz,
outra novidade que odeio admitir, mas adoro.
Guilherme me observa de cima a baixo, com um
risinho meio tímido, meio sem-vergonha, e para o olhar nas
minhas coxas por alguns instantes, antes de balançar a
cabeça negativamente e se virar de frente para o fogão.
— Tu quer é me atrapalhar, isso sim.
— Entendo que minha presença possa ser
desconcertante… Mas me conta, por que você quis ficar
nessa mansão sozinho? — tento descontrair, se tenho que
ficar aqui, vamos fazer isso da maneira mais leve possível.
— Era pra todo mundo ficar aqui na real. Mas os
moleques querem conhecer o Rio, e helicóptero ou lancha
todo dia ficou inviável — explica quando as persianas
fecham por completo e tornam o ambiente um pouco menos
assustador.
— E por que você não ficou com eles? Ou com a sua
família, não sente falta da tia Silvia e da vó Lu?
— Muitas perguntas, Coisinha. Me dá só um minuto —
Guilherme pede, abrindo a geladeira e olhando-a de cima a
baixo.
Depois de um tempo, ele tira dois potes com o que
parece ser macarrão pré-cozido e liga a indução do fogão
antes de colocar uma panela grande com água para ferver.
— Claro que sinto falta delas, mas a gente já se viu,
passei meu primeiro fim de semana com elas em Santos, e
temos outro marcado antes do início da turnê — explica
colocando um fio de azeite na água. — Além disso, eu curto
o Rio no sigilo alguns dias, pra evitar a afobação dos fãs
durante minhas férias. Elas acabam logo, e eu tava
planejando sair em público abertamente em breve, mas
você mudou meus planos.
— Mudei? Como?
— Hoje, por exemplo, era dia de sair, mas minha
namorada me prendeu aqui — pisca se apoiando à bancada,
de frente para mim, e eu reviro os olhos.
— Você é uma perturbação.
— E você é uma Coisinha irritante e alagadora de
casas, mas eu não estou reclamando. — Ele encolhe os
ombros. — Não quis ficar com os meninos no Rio, porque
estou em outro pique. Foram sete meses intensos de turnê,
depois três meses de gravação e regravação, eu estava à
beira da loucura, nem sei como eles não sentem. —
Guilherme tira as porções de molhos da geladeira, branco e
vermelho. — Agora vai posta um story do seu homem
cozinhando para você — fala, parando na frente do fogão,
de costas para mim.
Arregalo os olhos, mas finjo que não ouvi, primeiro
porque deixei o celular no sofá, segundo porque tenho uma
chance de irritá-lo.
— Qual dos molhos é pra você? — pergunto num tom
quase cantado, e ele se vira como se eu tivesse perguntado
o maior dos absurdos.
— O vermelho, claro. Você não gosta de molho
vermelho no macarrão — enfatiza. — Na lasanha e na pizza?
Tudo bem. No macarrão, Deus me livre — ironiza, erguendo
os braços e me mostrando que sim, ele ainda se lembra.
— Para de me julgar! — vocifero quando ele se vira. —
Mas confesso que fico surpresa de você não ter esquecido
— divago, pensando na certeza dele quanto aos sabores, e
Guilherme se volta de frente para mim, apoiando uma mão
de cada lado do meu corpo na mesa.
É a segunda vez que ele se aproxima demais e a
segunda vez que quase esqueço o quanto detesto esse
macho. — Eu lembro de tudo sobre você, Beatriz.
As palavras por si só já me cortariam o suficiente, mas
seus olhos sobre mim são tão intensos que preciso me
lembrar de pensar direito.
Em menos de três segundos, eu o afasto, pulo da
mesa e dou um passo para o lado.
Faço isso desejando que fosse tão fácil assim afastar
as ondas enfurecidas que tomam meu peito toda vez que
Guilherme está perto demais. Não gosto da sensação nova
e incômoda de ter que ficar me lembrando de que deveria
detestá-lo.
— Cê precisa de ajuda? — indago, tentando amenizar
o clima.
— Não, é tudo pré-pronto, a cozinheira vem toda
quarta — responde enquanto abro os armários em busca de
uma lata de leite condensado.
— Posso fazer um brigadeiro pra gente, o que acha? —
proponho, porque não quero ficar sendo servida por ele
como se, de fato, meu homem estivesse cozinhando para
mim como ele sugeriu. Então decido fazer algo também.
— Acho que jantar e depois ver TV comendo
brigadeiro com a minha namorada de mentirinha é um
ótimo jeito de terminar o sábado.
Eu me viro para Guilherme, exalando o ar devagar,
mas não digo nada. Inclusive, forço um sorriso quando ele
aponta o celular para mim e tira uma foto que, muito
provavelmente, será postada em suas redes sociais.
É isso. Eu estou, oficialmente, namorando de mentira.

As pessoas mudam.
Essa frase martela minha mente tentando encontrar
coisas em Guilherme de que eu não goste. Hábitos, palavras
ou manias que eu deteste. Mas elas não estão aqui. Por
mais legal que isso pareça, parte de mim esperava ter “a
nova personalidade dele” como um escudo que eu pudesse
usar para me afastar, ou me defender.
O jantar foi tranquilo. A comida não estava
extraordinária, mas acho que era o melhor que um prato
requentado conseguiria chegar. E o que eu mais gostei, sem
dúvidas, foi que o silêncio entre nós dois não deixou as
coisas estranhas como achei que deixaria.
Na situação que nos enfiamos, cada um tem o
suficiente para pensar. E, mesmo que me incomode admitir,
foi prazeroso me sentar com uma pessoa que fazia parte da
minha vida antiga e comer. Trocar olhares e elogios
esporádicos ao tempero ou à limonada suíça, meu suco
favorito, que ele fez porque também se lembrava disso.
— O story com a sua foto me rendeu noventa
conversas não respondidas no meu celular de trabalho,
milhares de inboxes no Instagram e, nossa, doze chamadas
perdidas, algumas do dono da banda e outras da nossa
babá. — Guilherme me informa, rolando o dedo sobre a tela
enquanto nos jogamos no sofá.
— Quem? — pergunto com medo dele responder que a
banda tem, de fato, uma babá.
— Nosso gerente de turnê.
— Ah. Esse escândalo todo, e eu nem apareço de
fato… — ressalto com o indicador erguido.
A foto é em preto e branco, como eu amo tirar, mostra
só a silhueta de uma mulher, mas todo mundo sabe que sou
eu, eu dentro de roupas que todo mundo sabe que são dele.
Não quebrei a internet brasileira com o meu follow,
mas ele, com certeza, vai quebrar a mundial com esse
story.
— Acho que a gente foi rápido demais nessa coisa da
foto, sabia? Eu meio que não entendo a dimensão da sua
banda, tô com medo de ser agredida quando a gente
terminar — ressalto, e não é brincadeira.
Diferente dele, eu não vou embora do país quando
terminarmos.
— Levando em conta que eu fui no nosso primeiro
término, não me surpreenderia.
— Mas você mereceu as porradas — verbalizo as
palavras que deveriam ficar agarradas na minha garganta.
— Eu me defenderia, mas não tem como — ele diz, e
eu assinto veementemente. — Mas e então, um filme de
Natal ou The Wonders? — Ele me pede para escolher entre
o tipo de filme que eu mais odeio no mundo e nosso filme
favorito da adolescência.
— O que é isso? Cê tá gravando um quadro? “Um
clássico ou filme ruim misterioso”? — pergunto, e Guilherme
abre The Wonders em segundos.
— Pelo menos eu tentei…
— É fevereiro, Principezinho. Pelo amor de Deus —
protesto, colocando a panela, já fria, de brigadeiro entre nós
dois.
— Você só trouxe uma colher mesmo? — Ele observa a
panela com um olhar divertido e o canto direito da boca
levemente curvado.
— Só?! Não tem problema, vou lá buscar outra. — Eu
me levanto de imediato. — Ah, qual é, Coisinha? —
Guilherme segura minha mão, e eu o encaro confusa. —
Somos nós, né? E a gente sempre divide — diz com ternura,
segurando minha mão.
Mas não existe mais “nós”, então me desvencilho de
seu toque, deixando-o surpreso.
— Na real, a gente não vai dividir nada não. Sei lá
onde cê colocou essa boca.
— Beatriz? — Guilherme me chama sem entender.
— Coloca o filme, eu já volto — respondo alto a
caminho da cozinha.

O barulho da porta da sala sendo aberta faz meu


corpo encolher antes mesmo de meus olhos encontrarem o
intruso. Respirando fundo, desvio o olhar do pequeno visor
da Alexa, em cima da estante gigantesca que comporta a
TV, que marca oito e dois, e bato os olhos em um dos
homens que estampa a blusa da Vicious Bonds que estou
vestindo.
Imediatamente procuro uma manta, ou qualquer coisa
nesse sentido para me esconder.
Beatriz Lopes, atriz da nova novela das seis, é
avistada por astro internacional usando uma blusa da banda
dele e um short de praia masculino. Eu poderia me enfiar
num buraco.
— Então você é a garota problema? — ele pergunta,
em inglês, e é assustador como a postura ereta, o peito
aberto, o arrastar das palavras e o risinho de canto,
embalados em confiança, denunciam que ele é um popstar.
Por alguns milésimos de segundo, cogito fingir que
não entendo e não posso responder. Mas, se vou conhecer a
banda com a qual vou interagir — por 9 semanas, e nada
além disso —, preciso tentar.
— Beatriz Lopes, o prazer é todo seu. — Forço um
risinho, deixando claro que não vou aceitar esse desaforo.
— Você é?
O homem branco de uns 1,85 m passa a mão nos
cabelos e caminha até o sofá onde estou com os olhos, tão
azuis quanto o céu de uma manhã de verão, em mim.
— Rick, Richard Parker — completa, sentando-se na
extremidade oposta do sofá. — E você está certa, o
problema é o nosso garoto, ele ainda tá dormindo?
— Não sei. Levantei eram sete e meia e não o vi desde
então. — O que é ótimo.
Por outro lado, sinto falta de Elvis, que dorme com o
dono.
— Ah, vocês não dormiram juntos? — ele pergunta
num espanto fingido, mas eu ainda arregalo os olhos e
balanço a cabeça. — Boa garota.
Eu não conheço esse cara. Não quero conversar com
ele sobre onde ando dormindo ou não, mas ouvi-lo me
chamar de “good girl” tocou em lugares que eu não
esperava.
Engulo em sexo, ops, seco, e volto a prestar atenção
no show acústico que a Vicious Bonds fez em Toronto. Foi
esse que Guilherme me pediu para ver e não errou, é
mesmo ótimo.
Mas ainda é estranho.
Desde a nossa conversa, fiquei pensando em como,
de fato, nunca o ouvi cantar desde o fim da GenZ. Me isolar
do mundo não foi proposital, mas apagar Guilherme
Almeida foi, portanto, eu nem fazia ideia do nome da banda
e, se não estivesse assistindo ao show que ele me
recomendou, não saberia que o cara ao meu lado é o
baterista.
— É o show favorito da banda, de longe… — ele
sussurra, como se quisesse puxar assunto, mas eu tivesse
todo o direito de ignorá-lo.
— Por que é acústico e vocês podem usar todo o
talento de vocês para além dos tanquinhos e piscadinhas?
— implico com algumas fotos que vi no perfil de Guilherme.
Eles gostam de ficar sem camisa, alguns são mais
musculosos, outros mais tatuados… Não que eu tenha
reparado muito, é claro. De qualquer forma é uma bela
vista.
— Claro que não, é ainda mais sexy piscar com um
ritmo mais lento — ele rebate, subindo a perna esquerda
para o sofá e virando de frente para mim. — E as fãs
adoram quando eu troco de camisa no palco…
— Parece apelativo… — Eu me obrigo a não tirar os
olhos da tela, mas sei que ele não gostou do comentário
pela forma audível como limpa a garganta.
— Se fosse proposital, você até poderia dizer isso…
— E não é? — Encaro-o, tentando entender como uma
pessoa trocar de roupa em cima de um palco pode ser um
acidente.
— Eu transpiro demais, minhas blusas ficam
encharcadas e colam na pele. Um dia pedi pra trocar, mas
não tinha tempo de sair do palco, então troquei entre uma
música e outra e, de repente, aquela era a “nossa coisa”. —
Seu sorriso genuinamente terno mostra que isso é algo
especial. E se para ele ficar seminu para adolescentes é tão
legal assim, eu não vou julgar. Pelo menos não em voz alta.
— Hoje em dia, sempre têm as sortudas que levam as
blusas e jogam no palco para eu vestir. — Me conta, como
se fosse um segredo que eu tenho muitos privilégios por
saber.
— E o que tem de diferente nesse show que torna ele
tão especial?
— Só tem músicas do primeiro álbum, nós
compusemos todas. Criamos as músicas, os arranjos… —
explica como se isso dissesse tudo o que preciso saber. —
Algumas até antes do reality acabar, a gente se aproximou
porque éramos “os estrangeiros”.
— Você é inglês! — rebato, porque o sotaque
denuncia.
— Isso não me torna americano, e nem o A.J., que é
canadense.
Eu poderia discutir americano x estadunidense, mas
estou curiosa sobre a banda, então passo esse pano para
ele.
Assim como as carinhas deles, as músicas são ótimas.
A melodia carrega alma, as letras têm dor, paixão, tristeza e
amor. É tudo muito intenso. As músicas não são parecidas,
mas é como se contassem uma mesma história, cada uma
traz outro ponto de vista ou outra parte da história. Cada
vez que o Gui, ou algum dos outros rapazes, abre a boca,
sinto que eles vão declamar outra estrofe de um poema
sobre a angústia que é se apaixonar.
— E o segundo álbum não foi assim? — Inclino o
pescoço para a direita, esperando uma resposta.
— Das dezoito músicas, compusemos sete sozinhos,
quatro com outros compositores e as outras sete foram
encomendadas com base “nos estilos dos caras da banda”.
Então…
— Mas, se o primeiro álbum foi bem, por que eles não
deixaram vocês continuarem? — indago confusa, me
virando de frente para ele e apoiando o braço direito no
encosto do sofá.
— Ele não foi — confessa com o rosto contorcido numa
careta constrangida. — Foi um fiasco, a gente conseguiu
entrar na lista da Billboard Hot 200, mas não no top 100 e…
Isso é bem ruim pra uma banda saída do maior reality show
do mundo, principalmente porque viemos de uma
pandemia, não tinha nenhuma outra banda assim estreando
no mercado em dois anos. — Ele faz uma pausa dramática e
respira fundo. — Fomos engolidos pelo K-pop.
— Eu gosto de K-pop!
— Nós também. — Ele dá um tapa leve e implicante
na minha mão apoiada nas costas do sofá.
— Tá, mas como vocês chegaram a um segundo
álbum sem sucesso?
— Criando sucesso — fala, como se fizesse algum
sentido. — Nos tornamos Instagrammers, Youtubers,
Tiktokers… Até pastas de looks para turnê no Pinterest a
gente criou com a ajuda da Dani. — Ele menciona a irmã de
Guilherme e esfrega o rosto, rindo com a lembrança. —
Assim as músicas começaram a fazer sucesso. Foram virais
e virais e, de repente, cinco meses depois do lançamento do
álbum, a gente tinha nove músicas no top 50 da Billboard e
uma turnê por todos os estados dos EUA. Além de Canadá e
México…
— Nossa, eu me assusto com o poder das redes
sociais às vezes, sério. — Pisco algumas vezes tentando
compreender a dimensão disso. — Compreendo, mas me
assusto.
— É pra se assustar mesmo, elas te deram um
namorado. Pelo menos foi um que compôs um álbum pra
você. — Ele diz, pedindo à Alexa para aumentar o volume
quando os refletores do palco se apagam, deixando apenas
Guilherme em evidência. — Essa é a minha favorita. — Rick
indica a TV com a cabeça.
Quase pergunto do que ele está falando, porque não
faz sentido Guilherme compor músicas tristes de amor para
mim quando foi ele quem terminou, mas não vou render
esse assunto com um desconhecido.
Já me sinto nua demais sabendo que ele julga
conhecer “a verdade” sobre mim e Guilherme por causa de
meia dúzia de músicas de chorar.
Volto minha atenção para a TV e, sentado bem no
meio do palco, num banquinho simples, de olhos fechados e
com o polegar direito alisando a tatuagem de coroas em seu
pescoço, Guilherme sussurra frases curtas, mas intensas,
sobre algo como “a presença da falta” de um amor perdido.
And I never thought you wouldn’t be here
Cuz we’re obviously meant to be
But life is a ruthless bitch, so this I how I get to live
Seeing you around, knowing you’re not there
Smelling your perfume in others everywhere
Wishing you’re single, knowing this ain't right
But you’re everything I had, now all I got are empty
nights[1].
Ele repete a canção inteira, e minha garganta fecha ao
longo das frases, da forma como ele toca a tatuagem de
tulipas vermelhas que sustenta no braço e o jeito como seus
olhos brilham, tristes, vazios e infelizes.
— Ele não fez essa música pra mim. — Engulo em
seco, forçando as lágrimas que querem brotar a
continuarem bem guardadas. — Não sei qual foi a história
que Guilherme contou pra vocês, mas o seu garoto
problema me deu um pé na bunda no pior momento da
minha vida e nunca mais se dignou a falar comigo — digo,
pausando o show no controle.
— Vocês tinham dezenove anos… — Sua voz se
arrasta depois de um suspiro. — Nem tudo é tão a ferro e
fogo assim.
— Não mesmo. Mas uma pessoa que termina o
relacionamento não pode fazer uma música dizendo “Eu
nunca pensei que você não estaria aqui” e achar que eu vou
engolir que ela é sobre mim. — Pego uma das almofadas e
abraço para tentar sufocar as borboletas que se mexem em
meu estômago.
— É, mas…
— Mas se você tá com tanto dó, por que não namora
com ele? — pergunto, cruzando os braços.
— Tudo bem, me fala de você — pede, me
surpreendendo.
— Como assim? — pergunto, sem entender aonde ele
quer chegar.
— Te contei sobre a banda, o Gui, as músicas… Mas
não sei nada sobre você… — Os olhos azuis dele me
escrutinam, e eu me permito reparar o quanto a beleza
desse homem é… magnética.
Ele não parece ter chegado na casa dos trinta, mas
certamente é mais velho que os meninos. Cada traço de seu
rosto é marcante: A boca rosada, a mandíbula angular, os
olhos expressivos, a pele lisa em todos os lugares que sua
barba, cheia e imponente, não toca… Tudo isso,
contrastando com seu risinho de canto fácil e os cabelos
descontraídos, torna a beleza de Rick Parker cativante e
inesquecível.
E não que eu me importe muito com isso, mas ele é
alto, de um jeito sexy, atlético, posturado… É uma beleza
transcendente, como as que a gente só vê em filmes.
Abro a boca para responder.
— E vai continuar sem saber. — Mas a voz que
preenche o ambiente não é minha, e, sim, a de Guilherme.
Ele desce as escadas com o cabelo penteado, uma
bermuda jeans e um blusão do flamengo que me lembram
que homens de filmes não fazem muito o meu tipo, e vem
em minha direção.
— Você tá bem? — Rick pergunta ante o exagero do
carioca à nossa frente.
— Tira as patinhas da minha mulher — ele manda,
entredentes, me puxando do sofá para um abraço, e quase
acredito que somos um casal. — Bom dia, meu amor. Você
dormiu bem? — pergunta, e não consigo lidar com a ironia.
— Não vou conseguir fingir pros seus colegas de
banda que a gente tem um relacionamento, Guilherme,
para de maluquice — digo em português me afastando.
— Boa garota! — Rick se levanta dizendo, também em
português.
O que faz até os pelos do meu sovaco arrepiarem. E
eu nem tenho pelos, porque dizimei todos a laser.
O queixo de Guilherme cai, e ele nega com a cabeça
duas vezes.
— Não fala assim com ela. — Guilherme leva a
conversa de volta para o inglês. Aparentemente, o
português do gringo é limitado. — Ela não é sua garota —
avisa devagar, apoiando a mão no peitoral de Rick.
Meus olhos arregalam com o surto, mas Rick ri de
canto e coça a linha da barba, dando um passo para a
frente e ficando cara a cara com Guilherme, de um jeito que
me faz engolir em seco.
— Também não é como se ela fosse sua, certo? —
rebate, me dando um confere bem descarado.
— E o café da manhã, hein, gente?! — Eu me coloco
entre os dois, que respiram fundo, e Rick meneia a cabeça
para mim, com dois passos para trás, e dá a volta no sofá,
nos deixando sozinhos e se dirigindo à cozinha.
— Ele é um palhaço — Guilherme sussurra, apoiando a
mão em minha cintura enquanto caminhamos até a
cozinha.
— Você também é — rebato, me desvencilhando de
seu toque, querendo que ele pare com essa ceninha besta.
— E a senhorita, hein? Não é porque não somos um
casal de verdade que você pode flertar com meus colegas
de banda. Daqui a pouco os outros chegam, fique longe
deles. — Ele para, bem na divisa da sala com a área de
jogos, e eu pisco, desacreditando que ele mandou essa.
Que babaca!
— Nossa, Gui! — simulo animação, batendo palmas
que ecoam no ambiente. — Você acha que o Rick flertaria
comigo? Será mesmo que eu tenho uma chance?
— Aquela coisa de não terminar com você só é válida
mediante fidelidade, tá? — Guilherme diz, sério, me
encarando como se quisesse me ameaçar, e eu gargalho.
— No seu lugar, eu não brincaria com coisa séria —
digo, me fazendo de ofendida. — Porque eu assisti Menina
Má.com, Guilherme, e sei castrar pessoas — esclareço e
caminho em direção à cozinha, deixando-o em choque com
as mãos na frente das calças e de boca aberta.
@GUIVICIOUS
[2]
Pasmei.com.br
A realeza está de volta!
Quando relatamos em primeira mão a volta da realeza das
5, sendo copiados, inclusive, por veículos tradicionais,
muitos duvidaram de nossas fontes.
Mas, no último sábado, todas as suspeitas de uma volta
entre Guilherme Almeida e Beatriz Lopes foram
confirmadas.
O que você, que era fã dos dois, acha dessa volta?
O amor supera tudo ou a Beatriz foi trouxa?
Capítulo 7
Ou: Eu devia ter feito um contrato, devia ter
colocado: “Proibido se apaixonar” no contrato.
Guilherme
Nem acredito que sobrevivi a esse café da manhã.
Se as coisas já tinham sido tensas apenas com Rick,
no momento que Thomas e A.J. — seguindo a informação de
que a Coisinha ainda estava aqui, jogada por Richard no
grupo da banda — chegaram, a paz entrou de férias. Foram
quase duas horas cerceando perguntas, fingindo não
entender as piadas, e dizendo que os três eram idiotas e
estavam falando besteira quando eles contavam algum
momento da fossa na qual eu me enfiei por causa dela.
Mas, entre mortos e feridos, salvaram-se todos.
Beatriz se despediu de mim e dos meninos logo após
o café, e eles partiram depois dela, rumo à região dos lagos.
Richard até tentou me convencer a ir, foi por esse motivo
que ele apareceu aqui de manhã, na verdade, mas eu não
estava no clima. Deitado numa das espreguiçadeiras da
varanda há quase uma hora, ignoro o quanto a noite
passada mexeu, de verdade, comigo.
Observo o azul do céu pelo tempo que consigo sem
precisar fechar os olhos, mas perco a disputa para o sol e
aproveito algum tempo envolto nos sons, cheiros e
sensações proporcionados pela brisa, maresia e pássaros
que circundam a área. Evito voltar para dentro de casa
porque sei que dessa vez vai ser diferente.
Permaneço assim até meu corpo relaxar o bastante
para quase cochilar, mas meu celular vibra no bolso da
bermuda, e eu desperto num pulo. O nome de Alex aparece
na tela, uma chamada perdida e oito mensagens enviadas
nas últimas duas horas.
Era óbvio que ele ia surtar com a foto e tudo o mais,
eu devia ter avisado, mas Beatriz transformou tudo ao redor
dela num borrão, e não vai ser agora que vou resolver isso.
Jogo o celular no bolso, voltando para dentro da casa,
e o silêncio que se instaura no ambiente ao fechar a porta
atrás de mim é diferente de todos os outros. Escolhi esse
lugar a dedo, ele era meu ideal de férias, descanso, solitude
e calmaria… Agora é só… o lugar onde eu e Beatriz nos
reencontramos.
Antes o que tornava a casa menos silenciosa era a
hiperatividade de A.J., Thomas enchendo meu saco ou Rick
sendo um chato… Agora é como se faltasse uma peça num
quebra-cabeça, e eu não consigo ignorar, porque é aquela
peça que deixa um buraco bem no meio.
Buraco esse que me faz questionar: Quanto tempo um
amor pode fingir que morreu?
Caminho em direção ao sofá, mas paro no meio da
sala e observo a tela onde o show de Toronto, pausado no
minuto quarenta e três, ri da minha cara. De repente, fica
óbvio que escrever músicas para Beatriz não era emular
sentimentos sobre a única namorada que eu tive. Mas, sim,
deixar migalhas pelo caminho. Na esperança de que a única
garota que habitava meus pensamentos pudesse segui-las
até me encontrar, já que eu não podia ter ficado.
Agora, contudo, sinto como se esse término tivesse
sido a pior escolha da minha vida. Meus ombros se curvam
por instinto e minha mão direita chega ao meu coração,
massageando-o como se pudesse levar a sensação de
impotência para longe.
Desligo a TV e esfrego a nuca, percebendo que, desde
a chegada daquela Coisinha perfeita, com seu olhar
enfurecido e a mão esmurrando minha porta, eu nunca tive
a menor chance. Ela conseguiu até transformar sua falta,
algo com que eu achava que já tinha me acostumado, em
uma tortura.
Encarar a televisão me lembra de que Beatriz passou
parte desta manhã ouvindo as músicas que me inspirou a
escrever. O vazio na cozinha, sem ela tagarelando na mesa,
é quase insuportável. E, além disso, subir as escadas e
relembrar momentos, como nós dois correndo
desesperadamente pelas marcas das patas de Elvis,
entrando na lavanderia e caindo um por cima do outro
morrendo de rir, antes de enfim cedermos e conversarmos
como dois adultos… Faz com que essa casa, que era só
mais um lugar, como tantos outros, no qual eu me
hospedaria por algum tempo, se pareça com uma casa de
verdade.
Abro a porta do quarto engolindo em seco apenas
para encontrar Elvis deitado sob o escuro das persianas e
me jogo na cama. Segundos depois o cachorro sobe, me
cheirando pelos braços, peito e pescoço com afinco.
— O que foi, garotão? — Desvio o rosto de sua língua
quando ele pula sobre mim, e sento para evitar um
lambeijo. — Não estou a fim de brincar agora, se quiser ficar
aqui, vai ter que deitar — aviso, acariciando seus pelos. Ele
para, com o que eu chamaria de testa franzida, e late duas
vezes antes de descer. Elvis me encara do meio do cômodo
com um olhar triste, observando a porta em seguida, na
expectativa de mais alguém passar por ela, e eu rio. —
Também acho a casa vazia demais sem a Coisinha, garotão.
Mas o lugar dela não é aqui — explico, tentando convencer
mais a mim mesmo do que o cachorro, que rosna puto,
pulando na cama novamente.
Se ele a conheceu agora e já está em abstinência, não
quero nem imaginar o que vai acontecer comigo quando
precisar me afastar de novo.

A repercussão da presença de Beatriz em minha casa


foi tão grande quanto o anúncio das nossas férias no Brasil.
O ponto positivo é que as fotos dela no meu perfil me
ajudaram a contornar a situação de um modo que fez as
pessoas não me odiarem. E a narrativa criada pela imprensa
de que eu vim para o Brasil antes só para ficar com ela,
mesmo que eu tenha aparecido com minha família algumas
vezes antes de todo o bafafá com Beatriz, fez uns cinquenta
perfis de fã-clube #GuiBia me pedirem para segui-los no
X/twitter.
O único ponto negativo disso tudo até agora é a forma
como alguns perfis de fofoca seguem questionando se ela
não está sendo “otária” por voltar para mim, e isso me
incomoda, mas respiro fundo e lembro que:
1 – Foi por causa de Beatriz que acabamos onde
estamos, e ela quis fingir o namoro.
2 – Nosso relacionamento não é de verdade, mesmo
que as pessoas não saibam, não tem por que ela se sentir
inferior ou usada em algum nível.
Seis dias se passaram desde então.
Ao longo desse tempo, fui ao continente ficar com os
meninos duas vezes, e quis ligar, quis procurá-la, mas eu
estava proibido de fazer isso, pelo menos até nosso primeiro
encontro oficial.
Apesar de odiar a ideia do namoro falso, Alexandre
sabia que não tinha outra forma de limpar minha barra. Do
lado de Beatriz, Luana nem se abalou e foi clara em dizer
que: “Há males que vêm para o bem”. O que Beatriz
traduziu como: “No fundo, todo mundo sabe que nada
supera um romance”.
Vencemos a primeira semana e, em menos de três
horas, faremos nossa primeira aparição “pública”. Um
encontro, no qual as pessoas vão ter todas as confirmações
de que precisam. Alex escolheu o restaurante, e Luana
determinou nossos horários. Ainda assim, isso está me
deixando com um frio na barriga.
Um maior do que um relacionamento falso com uma
garota fora dos limites deveria deixar.
Depois de me barbear e finalizar meus cachos com
uma gelatina, eu me sento na poltrona da sala observando
o pôr do sol com o celular na mão.
Eu: Boa tarde, Coisinha. Tudo certo para hoje
Envio a mensagem e, antes mesmo de bloquear a
🤨 ?

tela, vejo-a digitando.


Talvez Beatriz esteja tão ansiosa quanto eu.
Coisinha: Oi, Principezinho, acabei de sair do estúdio.
Coisinha: Pelo cronograma tenho salão em meia
hora, depois passo em casa para um bom banho e te
encontro às oito e meia.
Eu não deveria odiar o aspecto de “lista de afazeres
da qual quero me livrar” que a fala tem, mas não consigo
evitar. Meu reflexo na TV à minha direita deixa claro o
desconforto.
Eu: Só checando se você não mudou de ideia, se não
apareceu uma gravação de última hora ou algo assim.
Envio, porque não é mentira.
Coisinha: Que tipo de namorada falsa você acha que
eu sou?
A mensagem vem seguida da figurinha de uma
senhora com as mãos na cintura.
Coisinha: Eu avisaria se tivesse que cancelar nosso
encontro.
Eu: Queria eu esses benefícios de trabalhar sem
agenda apertada... É tudo sempre tão corrido para mim.
Coisinha: Primeiro: Você está de férias!
Coisinha: Segundo: Benefícios de não ser a
protagonista.
A terceira mensagem que chega é uma figurinha da
Taylor Swift jogando o cabelo para trás. O reflexo na TV julga
imediatamente o fato de eu estar sorrindo para o celular.
Eu: A audácia! Estou de férias prolongadas porque
trabalhei um ano sem parar, tá?
Coisinha: Independente!
Ela diz a coisa mais carioca do mundo, e eu gargalho,
encarando o celular.
Coisinha: Nossa, que peninha do cara que compôs a
música que fez a banda entrar no hot 50 da Billboard, estou
aos prantos em solidariedade.
Quase respondo que ela foi a inspiração da música,
mas acho que isso seria demais.
Eu: Obrigado por entender. Quer que eu te envie um
lenço?
Sua resposta é apenas uma… criancinha sorridente…
dando dedo, meu Deus?
Eu: Te pego às oito e meia?
Pergunto assustado com a figurinha.
Coisinha: Na verdade, não.
Coisinha: Nossa agenda diz às oito e meia direto no
restaurante, mas você precisa chegar antes, então esteja lá
oito e vinte e cinco, porque eu sou pontual.
Eu: Um tanto quanto machista eu ter de ser o que fica
esperando.
Rebato só porque não quero que o assunto acabe.
Coisinha: A cartilha do feminismo que diz isso é
100% branca, querido.
E tomo um fecho logo em seguida.
Coisinha: Como eu sou escura demais para ser
branca, espero que meu homem esteja no restaurante e se
levante para puxar minha cadeira, sim.
Eu: Afrobege e milituda. Do jeitinho que eu gosto!
Coisinha: Para de ser idiota, Guilherme!
Sinto que ela acabou de gritar comigo, e não tem
motivos para isso, porque eu estou certo.
Eu: Foi você quem me chamou de seu homem!!!
Coisinha: Até às dez e meia você é, lembra? Como
dizem, sorte nos negócios, azar no amor.
Coisinha: Agora me deixe em paz que preciso descer
do Uber.
Eu: Ótimo, você vai de vestido longo, certo?
Coisinha: Eu ia, mas, se você gostar deles, eu vou de
jeans.
Implica descaradamente, e eu não contenho a risada.
Eu: Eu odeio cada um deles, por favor, queime-os.
A criancinha da vez chega revirando os olhos, e eu
levanto para sorrir em outro cômodo antes que a TV me
julgue novamente.

Beatriz Lopes não mentiu sobre a pontualidade. Às


oito e trinta, ela entra no meu campo de visão em um
vestido longo verde-musgo, o cabelo preso num rabo de
cavalo frouxo com duas mechas soltas na frente e um
sorriso aberto que me faz engasgar com a caipirinha.
— Oi, Principezinho! — Os lábios grossos se curvam
com implicância quando ela para ao lado da mesa, mexendo
na alça da bolsa como quem espera algo.
Já recuperado, mas ainda de queixo caído, eu me
levanto e puxo sua cadeira. Entrego o cavalheiro esperado
pela mídia e agradeço mentalmente quando ela me sorri e
beija meu rosto, apoiando a mão em meu peito antes de se
sentar.
A cena é um prato cheio para todo mundo.
— Oi, Beatriz. Você está… — Engulo em seco, voltando
para o meu lugar, e o decote em V me deixa sem palavras
mais uma vez.
— Eu estou? — Franze o cenho em expectativa, se
divertindo com a minha perplexidade.
— Uma Coisinha maravilhosa. — Eu me sento
novamente e observo-a com calma, ainda mais linda.
— Você está ótimo — rebate com a sobrancelha
erguida enquanto me analisa. — Mais Bruno Mars do que
rock and roll, mas eu gosto — diz com uma piscadela que
poderia me matar e pega meu copo, virando o resto da
caipirinha. E poucas vezes na vida vi algo tão sexy. —
Nossa, que delícia. A melhor coisa que eles fizeram foi
mandar a gente para uma churrascaria.
— Sim. — Recupero a habilidade de falar enquanto
estudo a marca de seus lábios na borda do copo e bem,
talvez eu esteja com inveja de um copo. — Sinto muita falta
de comida brasileira, sair pra comer massa e beber vinho no
Rio me mataria.
— Até porque é verão, né? Ninguém merece — Beatriz
comenta conforme o garçom se aproxima.
Peço outra caipirinha de limão para mim, mas ela opta
por uma de morango, sugestão do garçom, que observa seu
sorriso alguns segundos além do necessário depois que Bia
agradece a indicação.
Não dá para julgar o cara.
— Espero gostar, sempre fui na tradicional — comenta
quando o rapaz se afasta.
— Em Petrópolis também?
— Não saía muito lá. Pandemia e tal. Minha última
preocupação eram os drinks. — Beatriz não me encara
como se quisesse me alfinetar, mas o faz mesmo assim.
— E como está a sua mãe? As coisas em Petrópolis
num geral?
— Tá tudo muito bem. — Um sorriso condescendente
preenche o rosto de Beatriz por uns dois segundos. — E
você, como é estar numa banda outra vez? — ela pergunta,
pousando os cotovelos sobre a mesa e unindo as mãos num
V invertido.
— Bom, me diz você — digo, pegando o celular no
bolso e entregando-o a uma Beatriz confusa, mas curiosa.
Thomas: Você sabe, encontros são encontros, mesmo
quando falsos.
A.J.: Cara, ela tem uma beleza de outro mundo, seria
idiota você não aproveitar nem um pouquinho.
Rick: Respeito com a garota seria bem legal, né,
galera?
Rick: Mas todo mundo aqui sabe o quanto a gente já
te ouviu se lamuriar por essa mulher, então não seja a
merda de um frouxo.
Percebo que Beatriz acabou de ler quando ela fecha os
olhos e pressiona os lábios para reprimir uma risada.
— Tudo bem, a gente tem um come quieto, um
piranho e um coach?
— Basicamente, mas eu não colocaria Richard como
coach, só como o “cara responsável”. — Dou um gole em
minha bebida antes de concluir. — Ele tem cinco ou seis
anos a mais que a gente, então se acha a voz da sabedoria
— ironizo, e Beatriz ergue as sobrancelhas surpresa.
— Quantos anos os meninos têm?
— Thomas tem a nossa idade, vinte e três. A.J. vinte e
dois e Richard vinte e oito.
— Gosto do Richard, ele é legal — Bia sussurra as
palavras de um jeito implicante quando avistamos nosso
garçom.
— Ele estava cantando minha mulher na minha casa,
não acho isso legal — rebato baixinho, antes do rapaz alto e
magro de sorriso amarelo parar ao lado da mesa.
— Vocês já estão prontos para pedir? — indaga,
pousando nossas bebidas sobre a mesa.
— Eu ainda nem abri o cardápio. — Beatriz indica o QR
Code, e eu assinto, porque também não tenho ideia do que
quero comer.
— Sua sugestão personalizada é o rodízio, servido até
às onze, ou churrasco na pedra — ele diz, colocando os
copos vazios na bandeja. — O segundo vocês podem pegar
o do cardápio ou escolher sete tipos de carne.
— Nossa, ótimo. A gente vai pensar um pouquinho, cê
pode voltar em alguns minutos? — Beatriz dispensa o rapaz
num tom gentil e se volta para mim. — Não acho que ele
estava me cantando, mas eu não sou sua mulher de
verdade, então… — Ela dá de ombros e beberica seu drink.
— Independente, cara.
— Tá, Guilherme. Tá bom. Qualquer coisa vai me
avisando. — Beatriz revira os olhos, dando um gole em seu
copo, mas ergue o indicador pedindo a palavra. — E você
gosta deles ou é só contrato?
Quase cuspo a bebida.
— Que tipo de pergunta é essa? Eu gosto deles,
Coisinha. — Toco sua mão sobre a mesa, mas, ao ver seus
olhos arregalarem, volto até minha nuca, coçando-a. — Ser
o grupo de estrangeiros no programa fazia muitas gracinhas
surgirem em torno da gente, então nos aproximamos antes
de sermos uma banda, e quando a proposta do Victor
surgiu…
— Foi fácil — Beatriz deduz, assentindo.
— Muito. O Rick ficou morando lá em casa durante os
meses de composição, o A.J. passava muito tempo lá
também, não à toa se tornou o melhor amigo da Dani —
menciono minha irmã, e seu sorriso se abre com
naturalidade, as duas sempre se deram muito bem. — E
tudo foi se encaixando. A gente é diferente, tem uns
arranhões às vezes, mas é sempre para o bem do outro.
— Como irmãos — ela conclui, e eu meneio a cabeça
concordando, porque é isso: Somos como irmãos. — E sua
mãe e sua avó, como estão?
Beatriz emenda a terceira ou quarta pergunta, já perdi
as contas. Percebi que falar sobre Petrópolis e a mãe dela
não a deixa confortável, mas eu também poderia perguntar
sobre outras coisas se ela me desse algum espaço.
— Saudáveis — respondo e dou um gole rápido na
bebida —, que é com o que a gente se preocupa depois dos
cinquenta e cinco. — Beatriz assente com veemência. —
Lindas, carinhosas… O de sempre.
— Se acostumaram com você estar morando fora?
— Não. Minha mãe vive pensando em ir para lá de
vez…
— E a vó Madá? — O carinho que envolve as palavras
de Beatriz me faz sorrir por alguns segundos antes de
suspirar, pensando no quanto minha vó é a senhora sem
limites mais amável do mundo.
— Maravilhosa e com mais disposição que nós dois
juntos. Fizemos uma chamada de vídeo essa semana para
decidir os pratos que não podem faltar no aniversário dela.
— Nossa, é mesmo! O aniversário dela é em pouco
tempo.
— Uma semana antes da turnê começar, para ser
mais exato.
Tomamos um gole de nossas bebidas. Eu logo devolvo
o copo à mesa, mas Bia termina a bebida e mantém o seu
na mão, com os olhos fechados, saboreando o final.
E eu não consigo parar de olhar para ela. A beleza, o
sorriso, o decote…
— Tá todo mundo olhando para a gente. — As palavras
deixam seus lábios receosas e Beatriz me olha arredia. —
Nunca sei se isso é só “pessoas nos reconhecendo” ou
pessoas estranhando negros em lugares muito caros — diz
em tom de confissão, e eu reteso o corpo.
— Calma, Bia. Eu sou, tipo, uma das pessoas mais
famosas do mundo, e você está por todo Instagram. —
Balanço o restinho da minha caipirinha na mão direita.
— Não, eu sei, não quero parecer militante paranoica,
é só… quatro anos em Petrópolis. — A risadinha de nervoso
no final me deixa em alerta.
— As pessoas são racistas assim lá?
— Ano passado saiu uma reportagem num site local
sobre Petrópolis ser a terceira cidade com mais racismo no
estado.
A informação me choca. É óbvio que a vida de uma
pessoa negra nos Estados Unidos é uma grande desgraça,
mas eu tinha me esquecido de que por aqui não é muito
diferente.
— Mas você é clara, não te dão um desconto? —
pergunto, tentando amenizar as coisas para ela, que ri com
ironia.
— O lugar é conhecido como Cidade Imperial,
Guilherme. — Ela me olha como se eu devesse acordar de
algum sonho inocente. — Mas, me conta, quais os planos
para o fim das férias?
— Um minuto. Nosso garçom, o homem mais
atencioso da Terra, se aproxima.
— Para de ser assim, é o trabalho dele — retruca de
cenho franzido e abre o maior dos sorrisos quando o rapaz
se aproxima.
Trazendo uma porção de dados de tapioca, por conta
da casa, segundo ele.
Aproveitamos para fazer o pedido e escolhemos a
pedra segundo o cardápio, que nem abrimos.
— Voltando ao assunto, meus planos para essa
semana estão em fazer mudança. — A informação a
surpreende e Beatriz abre mais os olhos por instinto. — Vou
morar com os meninos numa cobertura na Vieira Souto,
como vou te ver toda semana, seria um caos viver de
helicóptero e lancha… — comento, jogando um dadinho de
tapioca na boca.
— Eu acabei, oficialmente, com as suas férias.
— Ah, tudo bem. Eu já tava no fim das férias, mesmo.
A turnê ainda demora, mas logo começam os programas,
rádios, entrevista direto para o perfil de Instagram, dos
streamings… Essas coisas.
Encolho os ombros e jogo outros dois dadinhos de
uma vez na boca, porque eles estão bons demais.
— Nossa, vocês têm tantos compromissos por aqui
antes da turnê assim?
— Temos. Temos coisa com patrocinadores, com a
distribuidora, podcasts… Até um Pocket Show a gente tem!
— enumero, e ela meneia a cabeça, porque entende dessa
loucura de promover algo grandioso. Mesmo que fosse só
em nível nacional, nossa rotina com a GenZ era
assustadora. — Mas com a questão de ser o primeiro Vicious
Bonds comprometido, vou começar os trabalhos fazendo
uma live amanhã, conversar com as minhas Vagabonders e
falar da gente, da turnê…
— Vaga o quê? — pergunta num grito silencioso, mas
eu gargalho, e o esforço que ela fez para não chamar
atenção vai por água abaixo.
— Em minha defesa, a gente tinha batizado as nossas
fãs de Vicilicous.
— Que também é horrível! — Sua risada cativante
enche o ambiente, e meu coração acelera, mostrando
dificuldade de entender os conceitos de fake dating, namoro
de mentira, algo que não é real e atuação.
— Mas elas mesmas mudaram para Vagabonders,
então… — Inclino as sobrancelhas e bebo um pouco mais do
líquido gelado que desce rasgando.
— Mas qual é o sentido disso? Elas são, tipo,
vagabundas por vocês? — Beatriz sussurra a palavra, e eu
preciso abafar minha risada com as mãos, porque não é
possível.
— Sim e não. Não é com essa conotação, é mais no
sentido de elas seguirem a gente por todo lado, como se
nos apoiar fosse a prioridade delas, sabe? Nossos primeiros
shows foram todos nos EUA, muitas meninas seguiram a
turnê pelo país, rolou uma notícia ironizando esse
“comportamento problemático de fãs” as chamando de
VagaBonders como um trocadilho com Vicious Bonds, e
acabou pegando…
— Nossa, vocês arrastaram tanta gente assim por um
país daquele tamanho a ponto de virar notícia? — ela
pergunta surpresa e, se eu não estiver errado, sua voz
carrega um pouco de orgulho também.
— Uhum. Foi até nessa coisa de algumas estarem
presentes toda semana que o A.J. passou a beijar uma fã em
todo show durante a música One Last Kiss. — digo e o
queixo dela cai.
— Que vagabundo!
— Tá vendo, tudo a ver.
— Gente, eu tô em choque, porque, como sua
namorada, eu sou, tipo, a Vagabonder número um e não sei
se gosto. — Beatriz ri de nervoso com o olhar de quem não
estava preparada para a informação que recebeu.
— Não. Você é a minha Coisinha, e nada vai mudar
isso — brinco, tocando sua mão sobre a mesa, mas essa
brincadeira tem um fundo de verdade.
Beatriz sabe disso, e tira a mão debaixo da minha com
cuidado, depois gira o pescoço buscando a vista para
esconder a cara de deboche.
É meio óbvio que ela não me leva a sério quando falo
sobre nós dois.
— A gente vai fazer um Pocket Show em São Paulo e
talvez a Alê vá — comento, porque preciso resgatar sua
atenção.
— Alê? A nossa Alê? — pergunta, com uma surpresa
gostosa nos olhos e um sorriso sincero nos lábios. Um dos
poucos que consegui hoje.
Alê era nossa companheira de GenZ. Eu, Beatriz, ela e
Pedro — que se mudou com a família para a Austrália logo
que fomos “dispensados” — éramos os casais principais da
novela e formávamos o grupo.
— Sim, a nossa Alê. Ela vai abrir os shows no Brasil.
— Ela ainda canta? — Bia pergunta animada, mas meu
rosto não esconde o choque.
Como assim Beatriz, que mora no Rio e era
extremamente próxima da Alê, não sabe nem que a garota
ainda canta?
Nosso garçom se aproxima da mesa junto com outro
rapaz, um menino negro, baixinho, que carrega a bandeja
de bebidas. Assim que o primeiro coloca nossa comida, não
dá para negar: Churrasco na pedra, arroz branquinho, molho
à campanha e farofa de ovo são uma coisa linda de se ver.
O rapaz com as bebidas as deixa sobre a mesa, abre ambas
as latas e nos serve.
Agradecemos aos dois, e Beatriz começa a servir o
próprio prato apenas com farofa, molho à campanha e
carnes, ignorando o arroz num primeiro momento, como
sempre faz nessas ocasiões.
— Canta sim. Um pop, que mistura com rock em umas
músicas, tem umas pontes em samba em outras, é uma
delícia — digo, depois de alguns segundos tentando ler o
que há por trás da vergonha no rosto de Beatriz. — Não é
indie, é só…
— A Alê — deduz meneando a cabeça, porque ela
conhece a Alessandra. Sabe que a garota era diferente do
padrão. Gostava de pegar as partes das músicas que
ninguém queria cantar e refazer os arranjos… Além de tocar
cavaquinho e pandeiro, por causa das raízes familiares no
samba, e piano, que aprendeu porque sua personagem em
Geração Z tocava. — Ela sempre foi especial demais para a
indústria, fico feliz que esteja ganhando esse espaço com
vocês.
— Eu também, acredito no som dela e quero que mais
pessoas conheçam.
— Muito legal mesmo da sua parte.
— Quando a Alê disse que não tinha notícias suas há
um bom tempo, quase não acreditei, sabia? Vocês eram tão
próximas — divago, tentando arrancar algo de Beatriz, mas
ela mantém os olhos em seu prato e dedica toda a sua
atenção a derramar um pouco mais de molho na farofa, que
já estava encharcada.
— A comida vai esfriar — diz, como se estivesse se
desculpando.
Retiro um pedaço de frango e um de carne bovina da
pedra; divido os dois entre meu prato e o de Beatriz, e ela
geme depois de comê-lo.
O que me faz ignorar a lata de refrigerante aberta à
minha frente e pedir mais uma bebida. Preciso de um pouco
mais de álcool para passar ileso por essa mulher.
Apesar de comentarmos uma coisa ou outra sobre a
qualidade da comida, o silêncio toma conta da mesa. E não
consigo deixar de pensar em como as coisas acabaram
assim. Como, para ela, “processar o luto” significou “ficar
completamente fora de órbita entre 2020 e 2023” a ponto
de não saber nada sobre a vida de alguém que era tão
importante.
Afasto meu prato com um suspiro de satisfação e
observo a rua. As árvores balançando na calçada trazem a
sensação de noite fresca, e o ar-condicionado da
churrascaria corrobora com isso. Estamos numa mesa bem
ao lado do vidro que nos separa da rua. É um lugar
estratégico, precisamos alimentar nossa plateia. Lembrando
disso e sabendo que precisamos dar munição para o
público, inspiro e sorrio para Beatriz, vendo-a terminar de
comer.
No segundo que ela pousa os talheres, toco sua mão
macia e quente, confortável, apenas para senti-la puxando-
a mais uma vez. Mas a seguro e inclino o olhar para a
janela.
— A gente tem um show para fazer, lembra? —
pergunto com duas piscadelas, e ela assente como se
dissesse “entendi”.
— Então você é a garota novata e sem amigos na
indústria... — puxo um assunto seguro desta vez.
— Mais ou menos isso. — Beatriz meneia a cabeça e
vira a palma para cima, acariciando minha mão de volta.
— Como está sua relação com o elenco?
— Boa. Dificilmente preciso regravar cena ou esqueço
fala… Acho que fiquei guardando minhas habilidades em
algum lugar — sussurra curvada sobre a mesa. — Até tive
medo, sabe? Mas… Todo mundo me apoia, e eles gostam do
meu trabalho. Nossas mãos continuam se tocando depois
de ela voltar a se recostar na cadeira. Umedeço os lábios
observando-a, e Beatriz não desvia os olhos dos meus.
Nossos dedos traçam uma dança confortável, elétrica e na
qual nenhum de nós quer arriscar muito.
— E o que te fez voltar?
— Não dava pra ficar escondida no meio do mato para
sempre. E atuar é uma parte muito grande de mim, então…
Meneio a cabeça observando Beatriz. Honesta, livre,
linda… E atriz. Tudo exatamente como era antes, mas
agora, nosso namoro não é mais real. Essa é a única
diferença notável no momento, e me pergunto se ela não é
um pouco injusta.
— Falando em atuar, você podia ir ao nosso Pocket
Show. O que acha de bancar a Vagabonder número um em
duas semanas em São Paulo? — indago com uma piscadela
para o apelido.
Beatriz coloca um guardanapo em cima do prato, e eu
ergo a sobrancelha rindo, porque essa é uma mania antiga.
— Duas semanas? — pergunta, tirando o celular da
bolsa. Depois de arrastar mais telas do que eu consigo
contar, ela volta o olhar para mim. — Segundo meu
calendário compartilhado com Luana, não consigo. — Abro a
boca em surpresa, e ela percebe minha decepção, então
justifica: — Tenho uma publi de spa sábado de manhã.
Pelo que percebi no Instagram dela, Beatriz faz publi
de maquiagens para mulheres “nem tão claras nem tão
escuras” e produtos para cabelos cacheados. Ter um spa
querendo se promover com ela não é surpresa.
— Perfeito — digo, e ela inclina o celular de lado
confusa. — Nós estamos a quarenta minutos de voo de SP, e
o show é no fim da tarde. Você estará ainda mais
maravilhosa.
— Se você me mandar um jatinho — cantarola
piscando para mim —, super topo. E são dez pra hora,
vamos pedir a conta?
— Dez o quê? — Eu a encaro, me perguntando se
escutei errado.
— Mania de Petrópolis, você sabe. — Dispensa meu
comentário com a mão. — A gente não diz “dez pras dez”, a
gente diz, “dez ou quinze, ou vinte pra hora”.
— Ah, é… Vocês assumem que a gente sabe de qual
hora estamos falando e seguem — ironizo, porque isso não
faz o menor sentido, e ela meneia a cabeça segurando o
riso. — Vou chamar o garçom e o meu segurança. — Quase
digo que é cedo ou que o tempo passou rápido demais, em
vez disso apenas ergo a mão para nosso garçom como se
estivesse escrevendo algo no ar e envio uma mensagem
para Machine.
— Tudo bem, um segurança? — ela me encara como
se eu fosse um E.T.
— Alguém precisa fechar o estacionamento por dez
minutos pra gente sair — explico, vendo o garçom se
aproximar. — Lá fora tem mais dois — adiciono, e seus olhos
se arregalam.
— Meu Deus, que famoso — ela diz, rindo, e eu não
julgo.
Beatriz não sabe o quanto as Vagabonders podem
ser… intensas.
Peço a conta enquanto ela checa o celular e, quando o
valor chega numa prancheta de couro, pego a carteira,
retirando um cartão.
— Divide por dois, por favor — ela pede ao garçom,
que assente.
— Você queria que eu puxasse a cadeira e agora quer
dividir conta? Acho que não — debocho com uma piscadela.
— Pode passar tudo aqui, chefe.
Encosto meu cartão na máquina, e ele faz o
pagamento por aproximação.
— Obrigado pela preferência — o rapaz diz antes de se
retirar, e, assim que ele se vira, nós nos levantamos.
— Muito obrigada, senhor cavalheiro — debocha,
afastando a cadeira da mesa.
— Aquele é o Machine. — Indico um homem branco de
uns dois metros e quinze que se levanta na mesa mais
próxima da nossa e meneia a cabeça para mim. — Isso quer
dizer que a gente vai na frente, e ele cuida da retaguarda.
— Claro, senhor popstar, claro. — Beatriz ri
balançando a cabeça. — Meu Deus, isso é tão 2019, a gente
não podia fazer nada em público.
— É exatamente isso! — Fico feliz que ela tenha
entendido o ponto, e caminho pelo salão do restaurante
com a mão apoiada na sua lombar. Machine, logo atrás de
nós, impede qualquer contato de terceiros até que
cheguemos no estacionamento, onde meus outros dois
seguranças nos aguardam na porta.
O estacionamento fica em um parque fechado, mas o
teto é de vidro límpido. Consigo ver o céu lindo lá fora, as
estrelas brilham intensamente ao lado da lua cheia, em
meio à vasta escuridão. Beatriz para e se vira para mim. Ela
também está linda, e tudo que quero é que essa noite não
acabe agora.
— Vocês podem esperar no carro — digo para nenhum
dos dois seguranças em particular.
— Não temos autorização para isso, seu Guilherme —
comunica Rogério, responsável por guiar nossa equipe de
seguranças oficial pelo Rio.
— Eu também não dou autorização para vocês ficarem
a menos de três metros de nós — digo irredutível ao homem
negro, alto e parrudo à minha frente e cruzo os braços.
Os demais seguranças observam Machine e Rogério,
tendo uma conversa com o olhar que eu não compreendo.
— Vocês têm seis minutos — Machine avisa, e eles se
afastam o suficiente para nos dar privacidade.
— Então… Seguranças de verdade — Beatriz fala
correndo a mão pela corda dourada da alça de sua bolsa. —
Esses com terno e tudo. E limite de horário.
— O horário são os dez minutos que o estacionamento
vai ficar isolado para nós dois, ele começou a contar quando
o segurança lá dentro avisou que estávamos saindo. Eles
fecharam tudo, e agora temos… seis minutos para sair
daqui — explico, e Beatriz checa a hora no seu celular.
— Luana não mencionou isso para mim. — Ela franze
o cenho olhando em volta e percebendo que, de fato, só nós
dois e nossos seguranças estamos no ambiente.
— Foi coisa do Alex. Mas, falando sério, daqui para São
Paulo de ônibus são seis horas, acho que vou te mandar
uma passagem dessas… — implico, roçando o piercing em
meu lábio inferior.
— Ah, isso é você falando sério? — Ela fecha os olhos
e segura o riso por uns dois segundos.
— Com certeza. — Aproveito a descontração e coloco
as mãos nos bolsos, porque não posso tocar nela.
— Vou precisar declinar o convite. As coisas caíram de
nível muito rápido. No primeiro encontro, helicóptero; no
terceiro, busão — diz, apoiando a mão direita na cintura
com indignação.
— Pensando bem, eu posso alugar um jatinho. — Me
dou por vencido. — Mas sabia que a tendência de um voo
comercial cair é muito menor do que a de um voo fretado?
— Você vai alugar um que não caia. — Força um
sorriso torto.
— Pode levar alguém se quiser, sabe, no show… —
Encolho os ombros mirando o chão, é estranho dizer para a
minha garota levar alguém no meu show por medo de ela
se sentir desconfortável.
— Minha única amiga mora em Petrópolis e, se eu
convidar, ela vai dizer que não tem nem roupa para isso.
O vento abafado corta o espaço entre nós, lembrando
que estou muito mais longe dela do que gostaria.
— Cê podia mesmo levar a Nina. — Volto a encará-la,
seus olhos de repente surpresos me agradecem por eu me
lembrar da melhor amiga dela também. — O Thomas
precisa de uma namorada.
— O Thomas, o gostoso de dread com a vibe come
quieto? — pergunta, erguendo a sobrancelha direita.
— Não chama ele de gostoso — imploro. — É
desconfortável.
— Eu chamo todos de gostoso! O gostoso de dread, o
gostoso com carinha de labrador e o gostoso da voz rouca
— diz, me provocando, e eu pisco duas vezes, incrédulo.
— Para com isso, eles são meus amigos — peço
agoniado, ela, porém, só dá de ombros e joga o cabelo para
trás.
— Você era o gostoso do meu ex — Beatriz sussurra
com deboche embalando as palavras. — Mas se te
incomoda, posso chamar todo mundo pelo nome…
— Não, não é assim. — Passo a mão esquerda por sua
cintura e a puxo em minha direção. — Você pode continuar.
Mas o único que pode te abraçar assim sou eu, e o único
que pode te beijar também — digo, me inclinando para ela,
que se inclina para trás.
— Tinha droga na sua bebida? — Beatriz pergunta,
olhando para minhas mãos em sua cintura e voltando a me
encarar em busca de respostas.
— A gente acabou de sair de um restaurante, e eu não
vou te levar em casa, o que significa que nossa plateia
precisa, ao menos, de um beijo técnico.
Demora alguns segundos, mas não muitos, para
Beatriz ver ao menos três celulares apontados para nós de
dentro do restaurante. Nenhum deles pertence a uma
adolescente ou jovem que está gritando meu nome, então
não são fãs, são a mídia.
— Técnico? — pergunta espremendo os olhos. Meneio
a cabeça positivamente, trazendo-a para a frente com a
mão na pele macia de suas costas. — Você ainda sabe dar
beijo técnico, ex-ator? — provoca.
— Colar a boca em alguém sem a língua não é tão
difícil, sabia?
— Tudo bem, então. — Ela joga o rabo de cavalo para
trás e respira fundo, como se fosse um grande esforço.
Mas, no momento que meus lábios encontram a sua
pele, um risinho debochado coroa minha frustração.
— Você virou o rosto para mim? — pergunto em
choque segurando seu queixo.
— Ainda não decidi se eu vou ser o tipo de garota que
curte demonstrações de afeto em público, mas gostei do
encontro — debocha, com um sorriso faceiro no rosto.
— Gostei bastante da nossa noite também.
— A comida estava dez de dez e a companhia… seis
de dez. Mas agora eu preciso ir.
Ela indica o sedã à esquerda, do outro lado do
estacionamento, que acabou de ligar, e eu meneio a cabeça
encaixando as mãos no jeans e observando Machine trocar
o peso de perna do outro lado do estacionamento, puto
comigo porque não o deixei fazer seu trabalho direito.
— Até depois — ela diz ao parar no meio do caminho e
se virar para mim.
— Até depois, namorada — devolvo o tchau e vou até
meu carro, na parede de frente para a saída, tentando me
fazer lembrar do que eu tinha na cabeça quando propus
essa ideia de namoro falso.
Uma semana depois, estou aqui puto para um cacete
porque ela não vem para casa comigo e eu não vou poder
vê-la ao amanhecer.
Pasmei.com.br
De seguidora a Namorada, a jornada de Beatriz
Lopes de volta para o amor.
Há uma semana, noticiamos em primeira mão que Beatriz
Lopes e Guilherme Almeida reatavam o relacionamento de
quatro anos — que começou durante o laboratório que os
dois fizeram para participar da Geração Z, novela musical
que em pouco tempo se tornou um fenômeno e ficou três
anos no ar, sendo líder de audiência.
A separação já durava mais de três anos, mas burburinhos
sobre o casal surgiram quando Beatriz seguiu o ex no
Instagram, se intensificaram quando Guilherme postou uma
foto dela cozinhando e se confirmaram quando o cantor
postou uma foto da amada gargalhando numa mesa de café
da manhã cercada pelos quatro integrantes da Vicious
Bonds com a legenda #mypastlife no dia seguinte, frase
que intitula um dos maiores sucessos da banda que relata,
não por acaso, a perda de um amor e dos sonhos uma vez
construídos.
Se havia dúvidas sobre um retorno, elas foram jogadas ao
chão na primeira aparição pública dos dois, que terminou
com um senhor beijo na boca no estacionamento de uma
das churrascarias mais badaladas do Rio de Janeiro, na noite
de ontem. Aparentemente o nosso principezinho errou e foi
moleque, e se a princesinha pode perdoá-lo, quem somos
nós para julgar, né?
Capítulo 8
Ou: 6 semanas. Tudo o que precisamos é de 6
semanas.
Beatriz
“Pare de ler páginas de fofoca!”, foi fácil para Nina
dizer isso, mas parece impossível! Todos os dias, ou quase
todos os dias, um perfil duvidoso do Instagram tem algo
para falar de mim e do Guilherme e, quase nunca, é uma
coisa legal.
Ela também separou as quintas para orar pela minha
saúde emocional. Disse que, com certeza, eu estava
precisando e, bom… Oração nunca é demais, né?
Mas o que me desestabiliza é o lembrete constante de
abandono, como se houvesse alguma possibilidade de eu
me esquecer disso. Até se a nota começa elogiando “o
casal”, “os pombinhos” ou “a realeza”, em algum momento
ela toca na ferida, e isso dói. Mesmo que nosso
relacionamento não seja de verdade. Porque, para as outras
pessoas, ele é.
Entendo minha melhor amiga ficar repetindo o tempo
todo que: “Não devo pensar nas coisas que pessoas
desconhecidas dizem sobre mim”. Mas eu sou atriz, eu vivo
da opinião de pessoas que nem me conhecem, e isso é algo
que ela nunca vai entender. Nem ela e, aparentemente,
nem a dona Tati.
— A mamãe entende o porquê de você estar fazendo
isso, mas quantas vezes te falei que você não precisava
voltar a atuar? — pergunta, bufando em seguida. — Por
mim, você tinha ido fazer faculdade na Europa há anos —
ela me lembra, e eu me seguro para não revirar os olhos.
Eu nem saía de casa direito até 2022, e ela me vem
com essa patacoada de estudar fora. Até Celina, minha
antiga psicóloga, concordou que ela estava passando dos
limites. Penteio a sobrancelha sem olhar para a tela do
celular, apoiado numa das prateleiras à minha direita.
— Mãe. Estou bem ciente do dinheiro que o papai
deixou e de quanta grana a GenZ me rendeu, a questão não
é essa — digo, pausadamente, colocando o rímel incolor na
bancada da pia. — E eu não vou fazer faculdade fora.
Em seguida, enquanto a mulher alta, de nariz
arrebitado e bochechas naturalmente finas atravessa os
corredores da casa com sua xícara de café em mãos, separo
meu cabelo. Quero tentar fazer um penteado que encontrei
nas minhas pesquisas sobre “estilo pop-rock para
cacheadas”, e está dando um trabalho maior do que o
esperado.
— Tudo bem, Beatriz, ótimo — diz, sentando no sofá, e
sei que não está tudo ótimo por eu recusar mais uma vez
essa ideia dela de sair do país. — Contudo, coisa fofa da
mamãe, se você voltou a atuar porque ama sua arte — o
suspense que vem com o gole no café me faz olhar para a
tela —, precisa parar de ficar lendo coisas que você já sabe
que serão ofensivas.
— Mas eu preciso… — tento rebater, soltando o
cabelo, porque não vou conseguir me pentear enquanto falo
com ela.
— Você precisa saber o que seus fãs estão dizendo
sobre você e o que a crítica especializada está falando sobre
seu trabalho. Só isso — adiciona em seu melhor tom de
advogada, antes que eu possa argumentar qualquer coisa.
— Me dá um minuto — peço, porque sei que ela está
certa.
Pego o aparelho e volto ao aconchegante quarto do
hotel no qual eu e o pessoal da banda estamos hospedados
e, antes de me sentar, fecho as cortinas para não precisar
ver o fim de tarde frio que está lá fora.
— Eu só esperava que voltar significasse trabalhar
com o que eu amo. Ser a otária que voltou pro ex-namorado
não estava nos meus planos — confesso, sentando bem na
ponta da cama para não amassar o vestido.
— Bom… — Dona Tati começa. E uma verdade
absoluta sobre minha mãe: Se ela inicia uma fala com
“bom”, as maiores atrocidades do mundo estão prestes a
ser ditas. — São páginas de fofoca, Beatriz. Você estar
namorando o seu ex substituiu a pauta deles sobre um
possível caso com o seu colega de elenco, que é casado.
Então dos males o menor!
Curiosamente, dessa vez, a fala fez sentido e não feriu
a dignidade de ninguém.
— Eu sei…
— E é aquilo, né, minha filha… — Dona Tati sorri de
canto, semicerrando os olhos tão escuros quanto os meus, e
sinto que lá vem. — Agora que todo mundo acredita que
você seria doida a ponto de voltar para esse garoto, pose de
apaixonada e depois termine com ele de um jeito bem
público! — diz, e meu queixo cai.
E aqui está a agressão à minha dignidade.
— Mãe!
— O quê? Ele era meu genro, e eu o amava. Mas isso
não o impediu de se tornar um babaca, então tudo bem
você fazer o mesmo.
Pisco para a tela duas vezes e a encaro por alguns
segundos. Como ela sabe que isso está nos meus planos?
Não faço ideia. Mas me finjo de desentendida.
— Eu acho que a senhora está justiceira demais,
vamos falar disso outra hora. Preciso sair em trinta minutos,
e meu quarto tá um caos — minto, o quarto está ótimo. E
ela tenta voltar a falar, mas a atropelo com minhas
palavras. — Te amo, tchau — grito antes de desligar.
Fui contratada para o meu papel em agosto, mas só
me mudei para o Rio em janeiro, depois das festas de fim de
ano. Meus fãs da época de GenZ estavam animados, e
Luana até me ajudou a fazer dois encontrinhos, um no Rio e
um em BH.
Eu estava radiante por ainda ter gente me apoiando,
depois da maneira brusca como desapareci. Mas fãs são
pessoas que torcem muito por você. Os meus tiveram um
amor puro e intenso o suficiente para me aceitar de volta
sem ficar questionando o que tinha acontecido. Eles só
queriam saber dos novos projetos e me dar amor, por isso
compartilhei tudo com eles.
Eu estava eufórica.
O tempo passou, voltei para o Rio definitivamente, e a
vida estava entrando nos eixos, mas, com o início das
minhas aparições e a criação da bendita conta do
Instagram, os recebidos foram se intensificando e
publicidades aparecendo. O que me surpreendeu. Achei que
demoraria até essas coisas acontecerem, mas eu estava
errada, e Luana estava no céu.
Vivemos na era da nostalgia e, se preciso emular uma
princesinha pedindo comida em aplicativo ou uma princesa
cuidando da própria beleza para ganhar o que eu ganharia
em dois meses na emissora, tudo bem. Eu posso fazer esse
esforço, deixar Luana feliz e minha conta bancária mais
confortável.
Mas o que nem eu, nem Luana — empresária
responsável pela transição de carreira teen para carreira
adulta de todos os artistas que não viraram a Miley Cyrus no
VMA de 2013 no país — esperávamos nesse meu retorno
era a minha vida ser o principal assunto de pelo menos um
dia na semana nas redes sociais. Por isso, esse tem sido um
momento delicado. E, mesmo não querendo falar no
telefone agora que estou quase chegando no centro de
convenções, decido responder sua mensagem.
Luana: Como estão as coisas em SP?
Eu: Por ora, tranquilas.
Digo, mas não é verdade.
Não tem um dia que eu saia na rua agora e não seja
fotografada, as fotos do meu jantar com o Guilherme
estavam ridiculamente nítidas.
Quando fomos ao cinema na última quarta-feira — lê-
se: “Quando Guilherme fechou uma sala de cinema na
última quarta-feira para nós assistirmos a um filme de
super-herói que nenhum dos dois gostou muito”, algo que
ele sempre fazia na nossa adolescência — as Vagabonders
descobriram e ficaram horas do lado de fora esperando por
ele, por nós, na verdade, porque elas são carinhosas comigo
também.
Isso me surpreendeu de uma maneira positiva, na
época da Geração Z nós também recebíamos muito apoio.
Luana: Eu tô perguntando de verdade, Beatriz.
Eu: É a primeira vez que vou comparecer com ele a
um evento profissional, né? É estranho, diferente de jantar
ali e ir cada um para a sua casa.
Luana: Mas ainda é profissional, se você vir assim,
vai conseguir lidar melhor. Eu vou estar por aqui, tá?
Qualquer coisa entra no primeiro carro que puder e vai
embora, eu arrumo qualquer bagunça.
Leio as palavras com um sorriso enorme no rosto, por
essas e outras ela é a melhor.
Eu: Não tenha dúvidas.
Envio a mensagem seguida de uma criancinha
coreana fazendo charme.
Eu: Agora vou descer do carro e interpretar a mulher
que foi abandonada mais resiliente da história.
Envio um tchauzinho, e ela devolve uma mensagem
composta apenas por uma sequência de hahaha, que eu
ignoro e bloqueio a tela.
Por um lado, saber que meu relacionamento com
Guilherme não é real me acalma em todos os níveis. É só
isso, um papel. Por outro, tenho pensado, por mais tempo
do que gostaria de admitir, em como lidaria com o assédio
constante nesse nível se nós fôssemos um casal de
verdade.
Feliz ou infelizmente essa é uma resposta que fica
para depois. O motorista para o carro num estacionamento
pomposo que mais parece um canteiro de plantas, e sei que
chegamos.
É hora do ato “Namorada de mentira — Aparição 4”,
gravando.
Capítulo 9
Ou: Beatriz Lopes ainda vai me matar.
Guilherme
Guilherme Almeida morreu às seis e meia de uma
tarde de verão.
Causa mortis: Os lábios carnudos extremamente
vermelhos, o coturno de salto e o vestido longo com fenda
até o meio da coxa da namorada de mentira dele.
Capítulo 10
Ou: Eu devo ser uma palhaça.
Beatriz
“Amo seus vestidos longos” foi a frase que Guilherme
disse antes do nosso jantar, e também a que me fez
experimentar um jeans com suéter para o evento de hoje.
Só por implicância, só porque ele não elogiou meu jeans
com regata no dia do cinema.
Contudo, seus olhos me escrutinando de cima a baixo
quando passo pela entrada do terraço me dizem que eu sou
a mulher mais bonita do recinto. E, mesmo que esse
namoro seja uma mentira, ainda é uma sensação deliciosa.
Algumas dezenas de pessoas estão entre nós, e A.J. e
Thomas tentam falar com ele. Mesmo assim, os olhos do
principezinho não saem de mim. Me sinto compelida a
sorrir, me odeio por isso, mas sorrio de verdade e começo a
andar sobre meu coturno de salto médio, que coroa meu
estilo “namorada de vocalista de banda”.
Caminhando até Guilherme enquanto ele dedilha um
violão no palco, do outro lado do terraço, respiro fundo, mas
logo me repreendo. Eu não devia precisar me lembrar de
não ficar nervosa por causa de Guilherme Almeida. Mesmo
que seus olhos sobre mim me digam que sou a única coisa
que ele vê. Ignoro o quanto isso mexe comigo e continuo
caminhando até ele, porque Guilherme só está
interpretando.
Todos os patrocinadores, influencers e mídia
credenciada presentes me fazem sentir como se eu
estivesse atravessando um campo minado, e não o terraço
de um hotel chique. Mas finjo não ver as pessoas olhando
para mim, falando sobre mim e até apontando enquanto
atravesso o espaço e foco meus olhos na estrutura de um
palco improvisado. Ele é baixo, quase no mesmo nível da
“plateia”, mas tem pelo menos trinta seguranças aqui,
então ninguém vai se atrever a fazer gracinha.
Guilherme larga o violão no chão, apoiado aos pés do
banco de madeira conforme me aproximo e vem até mim
como se as pessoas não o estivessem cumprimentando,
como se uma das influencers que tietava A.J. não tocasse
seu braço pedindo uma foto, como se Alex não estivesse
gritando que ele precisa ficar no palco.
Guilherme corre em direção a mim com seu piercing
no nariz, jeans baixo, camisa larga e boné, como se eu fosse
a única pessoa presente, apesar do mar de fãs e fotógrafos
à nossa volta.
O vocalista da banda pop mais requisitada do
momento passa as mãos pela minha cintura, colando
nossos corpos e me tirando do chão, enquanto seus dedos
precisos de violonista dançam na pele nua do decote em V
nas minhas costas.
— Que saudade de você, Coisinha — sussurra,
inalando o perfume na curva do meu pescoço, e eu finjo que
meu coração não bateu de um jeito errado duas vezes.
— Nossa, para quem não pensa mais em atuar, tu
ainda é um ótimo ator — ironizo numa brincadeira ácida
enquanto ele me põe no chão.
— Você está maravilhosa nesse vestido — sussurra
todas as palavras, devagar e sem abreviações num segredo
que ninguém mais pode saber, me olhando de cima a baixo
novamente e então segura meu queixo. — Senti sua falta
todos os quatro dias que passamos longe, acho que vamos
precisar espaçar menos nossos encontros — afirma sério,
como se não estivesse interpretando o papel de namorado
apaixonado, como se isso fosse verdade, e vira a aba do
boné da Vicious para trás esperando uma resposta.
Eu me pergunto por que tanta intensidade. Por que ele
está fazendo isso. Nós dois sabemos que não é real, não
têm motivos para Guilherme agir como se fosse, e também
não tem por que meu coração ter esquecido como bater
corretamente nos últimos segundos.
— Obrigada. — Eu me esforço para não gaguejar e
sufoco no fundo da garganta o “também senti sua falta”. —
Você está uma graça. — Pisco para ele, que semicerra os
olhos e balança a cabeça negativamente.
— Eu tenho plena ciência de que esse estilo não tem
apelo pra tu, não precisa mentir.
Guilherme semicerra os olhos numa acusação, e eu
gargalho, chamando ainda mais a atenção de todo mundo,
mas não me importo.
Foi para isso que vim, não foi?
— Na verdade… — coloco uma mecha de cabelo para
trás e corro a língua lentamente pelo lábio inferior, e ele
acompanha o movimento —, essas roupas de maloqueiro,
junto da sua carinha de vagabundo, ficaram ótimas.
Os olhos dele arregalam antes que sua boca diga
qualquer coisa.
— Beatriz? — Me repreende em choque, mas eu só
dou de ombros.
— O que foi? As crianças crescem… — Pisco para ele e
apoio uma das mãos de propósito em seu peitoral enquanto
nos fotografam. — E eu adoro o piercing! — confesso perto
demais de seu rosto.
Com as mãos em volta da minha cintura, Guilherme
me aperta contra seu corpo.
— Não sei se você reparou, mas eu também tenho um
na língua — diz baixinho, roçando os lábios em minha orelha
num tom firme e sugestivo.
Nossa senhora das mulheres em período fértil
desesperadas para lembrar por que não podem beijar a
boca do ex, me acuda.
— Sem gracinhas, Guilherme — é o que consigo
responder, mas, depois de ficar um pouco mole no abraço e
apertar as pernas por dois segundos, nem eu acredito
nessas palavras.
— Tu gosta de se enganar, Beatriz. — Ele estala a
língua se afastando. — Vamos colocar você no seu lugar,
Coisinha linda. — Se vira me guiando pela mão.
Caminhamos no que é um esforço enorme para mim,
desacostumada com o assédio, os comentários e as fotos
enquanto ele sorri para algumas pessoas e acena para
outras, com o peito aberto e a cabeça erguida. Um expert
em ignorar os cochichos e interpretar o cara mais seguro do
espaço.
Ao chegarmos na primeira fila, a uns dois metros do
palco improvisado, o meu namorado falso se vira para mim.
— Você sabe exatamente o que todos eles estão
esperando, certo? — pergunta, acariciando meu rosto e
colando nossos corpos. Até cogito me afastar, mas a mão
enorme e quente dele em minha cintura me impede, e
talvez eu goste disso?
— Não entendi. — Sorrio como se não estivesse a
ponto de sair correndo ao sentir meu coração bater como a
própria bateria da Mangueira depois da paradinha.
— A gente precisa entregar um beijo pra eles hoje, já
é nossa terceira aparição oficial — sussurra no meu ouvido,
balançando meu corpo em seu abraço —, depende de você
se ele será técnico ou não.
Quase consigo enxergar nós dois como todos nos
veem agora: Abraçados, cochichando coisas no ouvido,
agarradinhos e sorridentes, cheirando a sexo como dois
coelhos.
— Você vai conseguir um selinho de mim hoje, Gui.
Nada mais — aviso com firmeza e as sobrancelhas
arqueadas.
Mas, por dentro, mole e manipulável para qualquer
outra coisa que ele queira. Maldito período fértil.
— Você é uma ótima atriz, mas eu te conheço. — Ele ri
em meus lábios, e quase sinto sua barba roçar em meu
rosto e, por Deus, preciso que ela roce. — Agora se prepara
para estar no story do A.J.
Calo a boca dele com um beijo.
Não é um selinho, mas nenhum de nós dois abre a
boca de verdade. Nossos lábios, no entanto, conversam
entre si, dançam juntos, tentam sentir o gosto do outro de
algum jeito e exigem um pouco mais de movimento. Não
parece nada de mais, ainda assim é diferente de um selinho
obrigatório. O puxo de leve em minha direção enquanto as
mãos dele apertam minha cintura e me esforço muito para
não respirar alto demais nem gemer nos lábios do único
cara que eu amei de verdade, porque qualquer uma dessas
reações deixaria tudo ainda pior.
Eu me afasto tentando não fazer cara de nojo por
beijar meu ex e também não gemer com a vontade de
repetir a dose, mas Guilherme me puxa para ele e cola
nossas testas.
— Espero que minha Vagabonder favorita venha a
muitos shows daqui pra frente — joga no ar, me arrancando
um risinho.
— E eu espero que você saiba que isso não vai mais
acontecer.
— Senta aí, já vi você atuar por tempo demais —
provoca, não acreditando nem um pouco em mim. — É sua
hora de me ver trabalhar. — Me joga um beijo e se vira.
Consigo segurar o riso para não perder a compostura
e a moral, mas faço como ele me pede. Em pouco tempo
todos os convidados estão em seus devidos lugares, e eu
encaro a credencial que peguei em meu assento: “A garota
do vocalista”. Mesmo ciente de que é a coisa mais brega e
mais fofa do mundo, coloco no pescoço depois de tirar uma
foto e postar no story.
Alex faz uma breve apresentação da banda, e os
meninos começam os trabalhos com uma música do novo
CD. Durante a apresentação, os olhos de Guilherme não
param de procurar os meus e, em certa altura, eu paro de
tentar evitá-los.
São letras sobre amor, dor e culpa. Cada uma delas
conta os fragmentos de uma história que jurei deixar morta
e enterrada no passado. No entanto, assim como as
borboletas em meu estômago, nada do que ele canta
morreu de verdade. Está apenas adormecido.
E, para o meu bem, preciso que continue assim.

Sete músicas.
Não tenho ideia de como consegui sobreviver a
Guilherme cantando sete músicas sem desviar os olhos dos
meus, mas passei os últimos vinte e um minutos me
recuperando do que quer que tenha significado tudo o que
aconteceu hoje.
Ser a namorada de mentira de alguém desconhecido
deve ser confuso. Você precisa fingir que pensa e sente
coisas que nunca passaram pela sua cabeça e tem de dizer
para você mesma que existem motivos plausíveis para esse
namoro não ser real. Seja lá quais forem.
Mas fingir namorar alguém que você já amou de todo
o coração com certeza é um método de tortura em algum
lugar. Os toques, olhares, as palavras, o sorriso, tudo aquilo
é conhecido e, quando vocês dois são atores, fica ainda
mais difícil perceber o que é verdade e o que é só atuação.
Qual parte de tudo é memória, qual parte é um carinho
pelas lembranças e qual parte é fingimento.
Encaro a Beatriz do espelho sem querer desvendar as
respostas enquanto lavo a mão, sabendo que, se sete
músicas já me deixaram sem chão, não consigo nem me
imaginar em um show de verdade. Além disso, já quero
banir a Vicious Bonds da minha Alexa.
— Você é tão sortuda! — uma garota ruiva de um metro
e meio decreta assim que entra no banheiro, e logo entendo
que não é do meu cabelo em cascata pelas costas que ela
está falando.
A blusa da Vicious Bonds, o boné da Vicious Bonds e
os bottons com a cara dos quatro na alça da mochila me
dizem que ela se referiu ao meu “namoro”.
— Eu?
— Sim. — Ela se aproxima tremendo, e o sorriso é tão
largo que vai dar dor no rosto dela amanhã. — Você foi a
única namorada do Gui e, mesmo depois de todo esse
tempo, vocês ainda se amam tanto… — diz, literalmente
girando seu corpo magérrimo pelo banheiro. — Nossa, não
sei o que eu não daria para estar no seu lugar!
Ah, eu sei. Sua dignidade, seu orgulho, seu senso de
autopreservação, por exemplo… A lista é longa.
— Pois é, quando tem que ser, simplesmente
acontece, né? — Meneio a cabeça sem saber mais o que
falar.
— Cê tira uma foto comigo, Bia? — ela pede, com uma
intimidade maior do que eu pensei que tínhamos. — É pra
postar no perfil da Vicious Bonds Brasil, as meninas vão
surtar quando virem a gente com a namorada do Gui —
explica, como se eu soubesse o que é a Vicious Bonds Brasil
e como se eu fosse o poodle de bolsa do Guilherme. Mas
tudo bem, vamos fazer a garota que queria namorar meu
namorado falso feliz.
Abaixo para ficar da altura dela e sorrio para a tela do
celular. Depois de quatro selfies, a ruivinha consegue uma
na qual está “perfeita”.
Agradeço o momento que ela entra no reservado.
Lavo minha mão sem motivo pela quinta vez e decido entrar
num dos reservados, mesmo que eu não precise usá-lo.
Abro o Instagram para matar os trinta minutos do
meet and greet improvisado dos meninos, que decidiram
atender algumas fãs, mesmo que isso não estivesse no
escopo do evento, e o aplicativo praticamente explode na
minha cara de tanta notificação.
O que me surpreende. Não pelo que acontece, é nosso
primeiro evento como um casal, teria um alarde em torno
dele, com certeza. Mas pelo volume.
Logo que criei a conta, a enxurrada de fãs saudosos
que me recebeu aqueceu meu coração. Depois que eu e
Guilherme “voltamos”, fiquei um tanto receosa quando
montagens de nós dois começaram a ser a maior parte das
minhas marcações, mas ele disse que essas coisas são
normais, e eu acreditei.
Só que ganhar quarenta mil seguidores em uma hora
não me parece normal. Nas minhas marcações só tem
coisas de nós dois: o beijo, sorrisos, ele com o rosto no meu
pescoço ou me observando enquanto cantava.
E quando chego num vídeo no qual estou sorrindo,
cantando alguns dos refrões repetitivos que tinha acabado
de aprender, ou olhando para Guilherme com a mesma
intensidade que ele me olhava, fecho o aplicativo.
Isso foi interpretação, precisamos convencer a todos
e, pelo visto, fizemos isso muito bem.
Sete minutos depois deixo o banheiro, acenando para
os poucos gatos-pingados ainda presentes que tentam me
cumprimentar. Mas ando o mais rápido possível para deixar
claro que estou com pressa. Nenhum dos meninos está pelo
terraço, Alex também não, então caminho até o elevador e
pressiono o andar de baixo, onde fica a sala de reuniões que
eles estão chamando de camarim.
Nem preciso procurar muito, porque três seguranças
de cada lado deixam claro que cheguei à porta que
procurava. Eles até me param na entrada, mas eu os encaro
e, em menos de cinco segundos, sou reconhecida.
— Boa noite, dona Beatriz. A senhora entra, mas o
celular fica — o homem negro alto com um sorriso amarelo
informa.
— O quê? — Rio com o comentário, porque não faz
sentido.
— Na verdade, seu celular fica aqui. — O outro
segurança, um homem branco de cara emburrada, me
indica uma caixa aveludada e com tampa, onde só tem
quatro telefones, provavelmente a caixa da Vicious Bonds.
— Ah, tudo bem. — Tiro o celular da bolsa e, no
mesmo segundo que ele atinge o fundo da caixa, a porta é
aberta.
O ambiente é diferente do que eu imaginava para
uma sala de reuniões. A luz está bem mais baixa do que o
normal, e preciso de dois passos para identificar tudo.
Pôsteres enormes da Vicious Bonds estampam as paredes
dos fundos e da direita, enquanto na esquerda se estende
uma longa mesa de petiscos, frutas e frios.
Alex, a quem fui formalmente apresentada pós-show e
que reconheço pelo terno azul bebê, está nos fundos, no
telefone, aparentemente ele é o único que não pode ficar
sem. Já os meninos estão sentados em roda no meio da
sala, com o staff e algumas garotas, muitas garotas e, no
segundo que encontro Guilherme, sentado na primeira
poltrona da esquerda, com uma lata de cerveja na mão e
uma loira a tiracolo, minha garganta fecha.
A garota não está em cima dele, mas se senta no
braço da poltrona de onde é fácil se insinuar como só uma
groupie fanática com a oportunidade de ouro faria, e ele,
bem, ele não para de sorrir.
Respiro fundo com a certeza de que eu sou mesmo
um acessório. A coisa inconveniente que ele deixa para trás
quando preciso, o poodle de bolsa que ele deixou lá fora e
com o qual pouco se importa de verdade quando está em
“seu habitat”, foi por isso que ele me trocou, não foi?
Nada mais normal do que não se importar agora.
A sala não está exatamente cheia e ninguém reparou
em mim de qualquer jeito, então decido sair por onde entrei
e voltar para o hotel. Já me viram com ele, já fiz aquele
papelão ridículo com o beijo. Ninguém vai duvidar do nosso
relacionamento, a não ser que ele me chifre tão rápido.
Se bem que reza a lenda que todo membro de
boyband é infiel ou gay, então…
Dou os mesmos dois passos para trás, apoio a mão na
maçaneta atrás de mim e a giro, mas, no segundo que a
puxo, ainda de costas para ela com os olhos vidrados nos
risinhos que Guilherme entrega para a moça, uma voz grave
e alta me chama por cima do som ambiente.
— Beatriz! — O tom grave inconfundível me faz parar,
e Guilherme praticamente jogar a garota no chão. — Vem
sentar — Rick me convida, dando dois tapinhas na própria
coxa.
Eu poderia até ir embora ou não fazer isso. Mas sorrio,
caminhando em direção ao gostoso de olhos tempestuosos
e me sento em sua coxa direita como se aquele fosse o
único lugar vago, apoiando minhas pernas entre as dele e
cruzando os braços em torno de seu pescoço.
— Boa garota — ele sussurra em português, pousando
a palma na pele nua deixada pela fenda do meu vestido.
— Adoro quando você fala isso — confesso, porque é
verdade.
— Eu sei — ele responde em inglês.
— Meu amor — Guilherme para diante de nós —, não
vi você chegar. — Ele força um sorriso, e eu consigo vê-lo
suar frio.
— Pois é. Acho que você tava ocupado.
— Para de bobeira, vamos pra lá. — Guilherme me
estende a mão, mas eu nego com a cabeça.
— Agora eu estou ocupada. Depois a gente conversa
— digo, e me viro para Rick, que começa uma conversa
sobre o que eu achei do solo dele. Eu achei sensacional, e o
idiota que estava me fazendo passar por otária se afasta. —
A imprensa não entra aqui, certo? — pergunto apenas para
confirmar se vou precisar lidar com a notícia de que eu, ele
e Guilherme vivemos um trisal.
— Você está com seu celular? — Nego com a cabeça,
e ele assente. — Pois é. Apenas o Alex, e ele não quer mais
escândalos. — Richard pisca, segurando o riso, parecendo
saber de mais coisas passíveis de escândalo do que nossa
ceninha.
— Você me salvou, sabia? — Suspiro aliviada.
— Salvei — Rick assente, tirando a mão da minha
perna e me deixando sentar sobre as dele de maneira mais
confortável agora que Guilherme já fechou a cara e está
entregando apenas sorrisos amarelos para a tal fã. — Não
sei quantas vezes você ainda vai precisar ser salva desse
covarde, mas conte sempre comigo. — Rick diz com os
olhos nos meus, sem malícia, sem segundas intenções, e eu
assinto, porque acho que ainda vou precisar de um crush de
mentira para fazer ciúmes no meu namorado de mentira
muitas vezes.

Uma hora depois do ocorrido, atravesso o corredor


monitorado por dois seguranças. Três minutos depois,
Richard faz o mesmo trajeto e, em cinco minutos, nos
encontramos num dos carros disponíveis para a banda.
Sair separados, andar de cabeça baixa e esperar por
ele no banco de trás do carro enquanto ele se senta ao lado
do motorista no banco da frente é mais uma lembrança do
mundo louco onde estou me metendo. Mas isso não tem
relevância agora, a única coisa que importa é que Richard
percebeu o quão chateada ainda estou com toda a situação
da última hora e resolveu me tirar de lá.
Guilherme não me viu saindo, na verdade, acho que
devo ter sido a última coisa que ele notou hoje. Depois da
loira, outras garotas chegaram. E, em determinado ponto,
ele e Thomas até saíram da sala. Aparentemente tinham
muitas fotos, vídeos e autógrafos para dar do lado de fora
para as influencers que se diziam fãs. Mas até Richard
comentou que não deviam saber nem o nome do segundo
CD da banda.
Agradeço pelo hotel que estamos ser tão perto que,
mesmo com o trânsito de São Paulo, não levamos mais do
que vinte minutos até ele, onde, novamente, precisamos
nos separar. Subo por um dos elevadores com um dos
seguranças que estava à nossa espera, e Richard sobe no
elevador da extremidade oposta com outro segurança.
Não sei o que mais me incomoda no segurança, ele
existir ou seu silêncio constante, mas a porta do elevador
abre no nosso andar e caminho até meu quarto, esperando
Richard na porta.
— Você vai ficar bem sozinha, ou quer companhia? —
Rick se aproxima, e é claro que eu vou ficar bem sozinha,
mas talvez ter uma companhia seja melhor e tire Guilherme
Almeida da minha mente.
— Acho que prefiro uma companhia, Rick — comento,
abrindo a porta, e acendo a luz.
Dando espaço para ele que, pelos olhos alarmados, se
surpreende com minha resposta.
— Tudo bem, eu posso ficar por aqui, então. — Ele
encaixa as mãos nos bolsos e passa pela porta, os cabelos
quase raspando no batente de tão alto que é.
— Eu vou me banhar, tem comida e bebida no
frigobar, fique à vontade — digo, e Richard assente, me
observando por uns instantes.
— Você quer que eu peça alguma coisa? — pergunta,
escorado na porta, e eu nego com a cabeça. Mas acho uma
graça que ele seja tão atencioso.
— Não, eu já volto — respondo, deixando meu sapato
no pé da cama, e vou até o armário pegar meu pijama.
Munida do que preciso, viro à esquerda e, ao fechar a
porta do banheiro, me sinto uma idiota, mas não quero ficar
pensando em Guilherme.
Tiro a roupa me perguntando por que me prestei a
esse papel de voar para ver um show que eu nem queria
ver.
Entro no chuveiro pensando em como ele sorriu, me
beijou, me tocou…
E deixo a água um pouco mais quente quando lembro
dos olhos arregalados no segundo em que percebeu que
tinha feito merda, mas a água não queima aquela carinha
linda, ela queima minhas costas, e eu abro o chuveiro um
pouco mais, passando sabonete e sentindo a temperatura
da água cair aos poucos, e me permito esvaziar a mente
pelo menos por tempo o bastante para me banhar.
Um encontro por semana. Se eu tivesse mantido esse
único encontro, nada disso estaria acontecendo.
Se eu respeitasse minhas escolhas e pensasse com a
cabeça e não com os hormônios, eu estaria em casa,
quentinha, dando um like na foto postada pelo perfil oficial
da banda, como se isso fosse o suficiente para provar que
ainda somos um casal.
Ainda que a repercussão esteja sendo positiva, que
mais marcas tenham entrado em contato e que meus fãs
estejam ainda mais ansiosos pela minha volta para a TV, eu
me pergunto se isso vale mesmo a pena, se não estou só
dando munição para o cara que já me destruiu uma vez
fazer o mesmo novamente.
Deixo o banheiro sem respostas e dentro de um
blusão sem estampa alguma e uma calça fina, mas que é
melhor do que um short para enfrentar o frio paulista.
Richard me espera sentado à mesa com duas xícaras
exalando fumaça pelo quarto. Pedido entregue em menos
de dez minutos. É verdade o que dizem, o serviço de quarto
é sempre mais eficaz se você é famoso.
— Nossa, Rick. Muito obrigada. — Eu me sento de
frente para ele, vendo que a bebida é um chá preto e
forçando um sorriso.
— Você tá bem? — ele pergunta, e eu assinto, com a
cara na xícara, mais para me aquecer do que para beber. —
Tá tudo bem com você mesmo?
É uma cena engraçada. Estamos tomando chá ao lado
da janela embaçada no meu quarto de hotel como se
fôssemos dois amigos acostumados um à presença do
outro.
Mas não somos. Dou um gole na bebida quente, que
além de ser horrível arde em minha língua, e então
pergunto:
— Richard, por que você fez aquilo?
— Te oferecer um lugar para sentar? — indaga, rindo
com a testa enrugada, e apenas assinto. — Porque o
Guilherme não fez, e acho que ele precisa acordar.
— Ele me parecia bem desperto… — Devolvo a xícara
à mesa. O inglês que me perdoe, mas não vou beber isso.
— Se ele gosta de você como sempre disse que
gostava, precisa fazer mais. — Fala e bebe um gole, me
olhando sobre a borda da xícara. Sem ter a menor ideia do
quanto isso roda a faca que ainda está presa lá no fundo do
meu coração.
— Queria te pedir pra não ficar falando que Guilherme
gosta de mim, Rick… — Eu me remexo na cadeira,
desconfortável.
— Meus pais me criaram deixando bem claro que eu
estava proibido de mentir — ele ironiza, com um risinho na
voz, e bebe seu chá. — Mas, se vai te deixar melhor, eu não
conto para eles.
— É sério. As coisas entre a gente terminaram mal,
não quero que esse fantasma do amor paire sobre nossas
cabeças porque seria infundado.
— Entendi — Richard concorda tão sereno que é quase
como se quisesse se convencer de que eu estou certa. Ou
só não quer criar mais conflito.
— Nossa, mas sério, que idiota! Teria sido tão pior sem
a sua ajuda!
Rick dispensa meu comentário com a mão, em sinal
de modéstia.
— Ah, pare com isso. Foi um trabalho de equipe. Você
poderia ter negado — ele levanta a hipótese, e eu não
consigo segurar o riso.
Ele não tem muita noção do quanto é gostoso e do
que seu “boa garota” pode fazer com uma mulher.
Literalmente, ganharia milhões oferecendo seu colo para se
sentarem.
— É bom te ver sorrindo. Pelo menos ele já entendeu
que não pode ficar dando bobeira. É você quem está
fazendo o maior favor, ele precisa ter postura.
— E você é o grande defensor das mulheres
abandonadas? — brinco numa voz dramática.
— Eu? Te acho ótima, Beatriz. Mas não fiz aquilo só por
sua causa. — Rick encolhe os ombros, me encarando como
se fosse óbvio. — Guilherme te adora, quer você aceite,
quer não. Mas não vai tomar nenhuma atitude porque acha
que você não quer nada com ele.
— E está certo — rebato sem pestanejar.
A única coisa que quero de Guilherme é distância.
Quando eu quis estar próxima, ele tomou um chá de
sumiço. Agora, estar perto sem nem ao menos saber o que
aconteceu para ele me largar aqui é, no mínimo, insalubre.
— Então pensei que talvez ele confessasse pelo
menos os ciúmes… — Rick ignora minha fala.
— Ele jamais faria isso…
Richard me encara de baixo para cima, pousando sua
xícara vazia na mesa, e tira o celular do bolso da calça. Com
um suspiro profundo, ele me entrega o aparelho.
— Não é o que as nove mensagens dele na nossa
conversa afirmam.
Richard me entrega seu celular, e as três primeiras
seriam censuradas em qualquer programa de TV. Em
seguida, tem uma com menos palavrões, mas bastante
raiva.
GuiVicious: Você comeu merda? Saiu daqui com a
minha garota mesmo?
Três minutos depois, as ameaças começam.
GuiVicious: Eu acho bom você manter suas mãos
longe dela, Richard, ou juro que eu…
GuiVicious: Richard, eu juro por tudo o que há de
mais sagrado, eu te arrebento!
Então escalonam.
Até que ele se cala por oito minutos, e as mensagens
se tornam menores:
GuiVicious: Rick, me diz se ela está com você.
Sem resposta, ele manda outra, e essa eu quase sinto
vontade de responder.
GuiVicious: Rick, por favor, só me diz se…
GuiVicious: Ela tá bem.
— Tão babaquinha, tão territorialista… — digo,
entregando o celular para Richard.
— Ah, ele não é não. — Richard ri com deboche e
balança o cabelo ondulado para trás. — Se eu tivesse visto
minha garota no colo de outro cara, tinha partido ele em
dois, good girl.— As palavras saem com tanta veemência,
que percebo que elas não são só palavras.
— Sua garota, é? — indago, e é a vez de Richard
desviar o olhar, de repente bastante interessado na vista
embaçada dos prédios.
— Quem é? Trabalha na banda? É da equipe de
músicos? Era uma fã? Como vocês se conheceram? —
Richard ergue a mão para calar meu rojão de perguntas, e
eu dou língua para ele, que ri.
— Eu até te falaria sobre ela, mas não sei se temos
tempo.
Richard penteia a sobrancelha direita, limpando a
garganta.
— Tempo? É complicado assim?
— Digamos que eu poderia até ser morto — sussurra,
se inclinando em minha direção, e está falando bem sério.
— Por alguém que eu conheço? — pergunto e faço as
contas de quantas mulheres conhecemos em comum depois
que ele meneia a cabeça.
— Mas acho que você está certa. Tem quase dois anos
que eu amo essa garota e não posso contar para ninguém.
— Suspira, cruzando as pernas e não consigo deixar de
notar o AMO na frase. — Acho que é hora de contar para
você.
— Por quê?
— Eu conheço sua vida amorosa, acho que posso te
contar a minha — diz, meio confuso com meu
questionamento.
— Não é isso. Por que não pode contar para ninguém?
Rick nega com a cabeça algumas vezes.
— Só não posso contar para nenhum dos caras da
banda — explica, e o canto direito da minha boca se ergue
com a possibilidade de falar sobre a vida amorosa
conturbada de alguém que não seja eu.
@ViciousbondsBrasil
O início de uma era!
Há pouco mais de uma hora, nossa ADM, Pietra Severiano,
estava no Pocket Show da Vicious Bonds a convite da
própria banda e pôde, além de curtir as sete músicas
tocadas, fotografar e conversar rapidinho com os meninos.

A recepção e o calor das fãs brasileiras mais uma vez fazem


história. Todos eles estão muito felizes por estarem no
Brasil. E, se Guilherme está amando seu tempo de volta ao
Rio de Janeiro, A.J., Thomas e Richard estão ansiosos para
conhecer a Bahia e Minas Gerais, porque têm certeza de
que vão comer maravilhas por esses lugares.

Para Pietra, os únicos pontos baixos do show foram os fatos


de Richard não ter suado o suficiente para trocar de camisa,
eles não terem tocado One Last Kiss e A.J. não ter escolhido
uma fã para beijar.

Em contrapartida, ela conheceu a Beatriz Lopes, nossa Bia,


e disse que ela é a mulher mais linda que já viu
pessoalmente, além de muito simpática. #mãe

Ou seja, nós apoiamos muito esse romance que está


fazendo nosso vocalista melancólico sorrir como nunca.

Beijinhos,
das suas Vagabonders Favoritas
Capítulo 11
Ou: Atenção: Um namoro de mentira é um namoro
que não é real.
Guilherme
— Vou matar esse miserável. — Pressiono a ponte do
nariz enquanto minha perna direita treme, no que parece
ser um movimento involuntário e imparável.
— Deve ser a décima vez que você fala isso, a gente
já entendeu — A.J. reclama e troca o cabelo de lado no
banco da frente.
— Ah, para, A.J. Numa hora eles estavam lá,
conversando, rindo, e ela toda… Cativada pelos olhos azuis
do Rick, e ele… ele era todo sorrisos para o lado da min… —
engulo o resto da palavra porque o olhar de Thomas,
sentado ao meu lado, me escrutina com julgamento
enquanto ele come um cordão de Fini — da Beatriz. E o Rick
não sorri, nunca.
— Pelo menos no maravilhoso mundo da Internet,
nosso Pocket Show e o seu namoro são um sucesso — A.J.
retruca, me entregando o celular aberto em um fio no
Twitter, cheio de traduções automáticas.
— Estamos entre os assuntos mais falados do mundo.
É isso, chegamos, oficialmente, ao fim das férias — comento
e logo depois rolo a timeline das hashtags #vbpocketshow e
#viciousbondsnobrasil.
— Isso me lembra que precisamos gravar uns vídeos
para o vlog de férias do canal — Thomas pontua, batendo
na parte de trás do banco de A.J., que geme com o que julga
ser a parte mais chata do trabalho.
— Eu filmei bastante coisa da casa da ilha! — eu me
defendo com os vídeos que gravei para mandar para a
minha mãe e minha avó.
— E a gente tem material de fãs e de veículos de
notícia pra puxar vídeos pro vlog, sabe, se não gravarmos
muito. — A.J. encolhe os ombros e sorri para Thomas, me
estendendo a mão e pegando o celular de volta.
— Estou gravando todo o meu guarda-roupa —
Thomas comenta com uma felicidade que me faz roubar um
alcaçuz do pacote dele com o cenho franzido. — É muito
bom não precisar usar calças e jaquetas todos os dias —
pontua, fazendo as coisas terem mais sentido.
— Você e Beatriz tem material? — A.J. indaga,
voltando a ver as postagens por ele mesmo. — A Dani vai
querer material de vocês, na postagem pós-show da
@ViciousBondsBrasil só falam disso — ele avisa, me
lembrando que, apesar de já termos contratado agências
para as redes sociais, quem faz a curadoria do que entra
nos vlogs e prepara a maior parte dos conteúdos “vida
pessoal” nas contas oficiais da Vicious é a minha irmã.
— Depois de hoje, o que não vai faltar é material,
apesar de eu não saber se ainda vai ter eu e Beatriz.
— Para de exagerar — Thomas pede, erguendo a mão
direita. — Ela não gostou do que viu, você não gostou do
que viu, conversem e se resolvam — diz, como se fosse a
coisa mais simples do mundo e pega dois alcaçuzes de uma
vez.
— Ela tava com muita raiva, não imaginei que veria a
minha… — os olhos do meu amigo me julgam mais uma
vez, e eu respiro fundo engolindo o “minha Coisinha” —
namorada de mentira com tanta raiva — rebato, porque ao
menos isso ela é.
A.J. respira fundo e se vira de frente para mim.
— Eu não sei que tanto drama você tá arrumando,
Guilherme — diz com tanta segurança que nem parece que
a pronúncia dele do LH é péssima. — Você não namora ela
de verdade, mas o Rick não quer nada com ela, então
relaxa.
— Mas o Rick parecia…
— Não interessa o que ele parecia, cara — ele me
interrompe antes que eu termine o primeiro raciocínio. —
Vocês são amigos, conversa com ele, nada acima da banda,
cara.
Nada acima da banda.
Quem inventou esse lema patético? Ah, nós quatro.
— Não dá para conversar com o Rick quando ele acha
que tá certo — lembro-o, cruzando as pernas na tentativa
de fazê-las parar de balançar.
— O cara vai assumir aquela postura de quem sabe de
tudo porque é cinco anos mais velho… — Thomas murmura
observando a cidade, e eu assinto.
— O que vai me irritar pra cacete, não tô com essa
paciência hoje.
— Tô conversando com a Dani. — A.J. traz sua melhor
amiga e minha irmã à tona enquanto tecla no celular com
uma velocidade impressionante. — Ela também disse pra
você esquecer essa história porque não tem a menor
chance de o Rick estar dando em cima da sua garota.
— Como ela sabe? — indago, com urgência.
Talvez tenhamos alguma esperança.
— Quer que eu ligue? — A.J. ri, me observando
encolhido no banco como se eu estivesse exagerando
E talvez eu esteja.
— Não, só pergunta.
Tiro meu celular do bolso e checo as mensagens,
muitas coisas de muita gente, inclusive minha querida irmã
confirmando o que A.J. acabou de falar:
Maninha: O Rick com a tua namoradinha de mentira?
Sério? Melhore.
Maninha: E, ciúmes? De uma namorada de mentira?
Maninha: Eu te conheço, Guilherme, você pare de se
enganar!
Maninha: E vocês ficam lindos juntos, sério. Deu até
saudade de chamar ela de cunhada.
Ignoro as mensagens da Dani, porque, neste
momento, não quero lidar com o que as últimas
representam. E, enquanto o carro faz a curva para o
estacionamento, volto a rolar as não lidas.
Nenhuma das mensagens, porém, é de Rick ou
Beatriz. Descruzo as pernas e respiro fundo, vendo o carro
com nossos seguranças pessoais parar ao lado esquerdo do
nosso no subsolo do hotel onde estamos hospedados. Os
três saem e meneiam a cabeça para o motorista.
— Será que eles tão aí? — Thomas pergunta e, pelo
olhar arredio que me lança, sei que está falando de Rick e
Beatriz.
— Pro bem do meu relacionamento de fachada, espero
que minha namorada não tenha ido passear com outro cara
da banda — respondo e pego a última Fini do pacotinho,
vendo A.J. tentar abrir a porta, e o motorista negar com a
cabeça.
— A.J., você precisa esperar — Paul diz em alto e bom
som, mas não rude, porque já está acostumado com a
desatenção do nosso guitarrista.
Nossos seguranças ainda estão fazendo a ronda no
estacionamento para garantir que nenhuma fã se escondeu
por aqui. Quando eles se aproximam do nosso carro, poucos
minutos depois, Paul destrava a porta e diz “agora você
está livre para ir”, e nós agradecemos e saímos em direção
aos elevadores.
— Você deveria conversar com a sua garota, essa sua
reação não é de alguém que está namorando de mentira,
Gui — Thomas diz e dá um tapinha em meu ombro com
pena quando a porta abre no terceiro andar, no qual todos
estamos.
— E se você for atrás do Rick tirar satisfação sobre sua
namorada de mentira, você vai apanhar… — A.J. joga no ar,
se virando para o 305 e abrindo a porta do quarto. — Só não
deixa ele bater na sua cara, a gente tem o Incrível para
gravar em dois dias.
É o Fantástico, mas o deixo entrar no quarto e fechar
a porta sem corrigi-lo.
Christian, o segurança de A.J., para ao lado da porta
do quarto dele. Jones segue Thomas até o 304, e Machine, o
meu segurança, para ao lado direito do corredor, se
juntando a Frank, segurança de Richard.
Sob o olhar indecifrável dos quatro armários em forma
de homem, dou três passos largos até o 302, o apartamento
designado para Beatriz, bem ao lado do 303, o meu.
Esfrego minha testa, coço a cabeça, que já ficou sem
boné há horas porque não faço ideia de onde ele esteja, e
bato na porta duas vezes. Alguns segundos se passam, e eu
não tenho resposta, então bato novamente, porque metade
de mim tem certeza de que ela está no quarto do Rick a
essa hora e, por Deus, eu não consigo nem pensar direito no
que…
Ótimo. A porta abre, mas é o filho da mãe do Richard
que está diante de mim. Passo a mão pelo contorno da
minha barba respirando fundo.
— É ele mesmo, Bia.
Seu olhar me mede dos pés à cabeça, então ele dá um
passo para dentro e só consigo pensar que Richard deu um
apelido para a minha namorada de mentira.
— Você só pode tá de sacanagem. — As palavras
ecoam pelo corredor, e meu amigo me olha com um
desprezo irreconhecível.
Ele sai com a minha mulher e ainda me olha assim! É
muita coragem desse inglês de merda.
— Eu vou embora, qualquer coisa é só bater no 306,
tá? — ele diz com a cabeça inclinada para dentro do quarto
e puxa a porta atrás de si.
— Richard, você pod… — começo a falar, mas ele me
interrompe, apoiando a mão em meu peito.
— Você tirou a garota da casa dela; a fez pegar um
avião depois de passar o dia trabalhando; vir para outro
estado, sabendo que ela grava amanhã a tarde; fez todo
aquele showzinho para ela, ou para a mídia, já não sei. —
Richard se altera, e a mão em meu peito me empurra de
leve, e vejo em seus olhos mergulhados em incredulidade
que, se os seguranças não estivessem aqui, eu estaria
enquadrado numa parede. — Você foi um imbecil, acha que
vai chamar a atenção dessa garota com joguinhos e
ciúmes?
— Richard, eu não estava fazendo iss… — tento falar,
porque, de fato, não era minha intenção, mas ele não me dá
espaço.
— Ah, você não tava fazendo ciúmes? Pior ainda! A
Bia entrou naquela sala só para te ver praticamente
engolindo outra garota, e você vem aqui me dizer que
aquilo foi normal? Que eu só posso estar de sacanagem? —
Richard pronuncia as palavras com uma raiva intrínseca na
voz, me dizendo que eu não só vacilei com a Beatriz, mas
que fui um completo babaca.
Fecho os olhos por alguns segundos e respiro fundo.
— Eu ferrei com tudo, né?
O silêncio do meu amigo me dá a resposta que eu não
queria escutar.
— Obrigada pela companhia, Rick. — Beatriz abre a
porta e se despede de Richard sem nem olhar para mim,
com certeza ciente do que dissemos. — A gente se vê no
café? — pergunta a ele, num pijama de calça e blusão e
com rosto limpo, um tanto abatido pelo cansaço. Rick
assente antes de me lançar um último olhar fulminante e se
vira. Só então Beatriz volta sua atenção para mim. — Pode
entrar, Guilherme — diz em seguida, me dando espaço para
passar, e eu observo seu quarto milimetricamente
arrumado.
— Cê veio aqui conferir se tá tudo em ordem? —
pergunta com desdém.
Mas todos os meus argumentos morreram no sabão
que o Richard me deu, então balanço a cabeça
negativamente e passo a língua pelos lábios para tirar a
sensação de ressecado antes de responder.
— Você pode fazer o que quiser, Beatriz. É só que, pro
namoro falso funcionar, você não pode ficar… — As palavras
morrem em minha garganta, porque eu estava tão puto, tão
preparado para jogar na cara dela que ela estava errada,
mas a verdade é que quem está errado sou eu, assim, não
tenho muito o que dizer. — As pessoas estavam vendo,
Beatriz. — Uso o único argumento que posso.
Ela pisca duas vezes e apoia as mãos na cintura.
— Você tem quinze segundos para retirar tudo o que
disse e reformular sua fala — avisa, andando pelo quarto. —
Nela vai me pedir desculpas por eu ter entrado naquela sala
e visto o meu namorado, aquele pelo qual eu passei por
cima de todas as feridas do passado para estar junto, com a
merda da cara nas tetas de uma influencer loira odonto.
— Ciúmes? — pergunto, me surpreendendo.
Eu estar com raiva era uma coisa, Beatriz estar
possessa por causa de uma fã é uma informação nova para
mim.
— Meu Deus, eu vou te tacar esse sapato! — ela grita,
se abaixando aos pés da cama e pegando o coturno.
— Calma, Bia. Me perdoa, eu fui um babaca — digo,
erguendo os braços. — Nem percebi que a garota estava me
dando mole, porque eu acho que ela nem estava, era só o
jeito dela…
— Ela podia até não estar te dando mole, mas a sua
cara estava querendo se afogar nos peitos dela! — vocifera,
esmagando o cano do calçado e erguendo-o sobre a cabeça
e a postos para jogar em mim. — Isto pode ser mentira,
Guilherme, mas eu exijo que você me respeite! — ela
demanda com os olhos semicerrados, e meu queixo cai.
— Você? A garota que estava sentada no colo do outro
cara da minha banda? — Minha boca é mais rápida que meu
cérebro, e minha próxima ação é me esquivar, porque uma
Beatriz possessa joga o sapato bem onde eu estava. —
Beatriz?
— Sentei no colo do Richard porque foi o único lugar
que sobrou para eu sentar — rebate, abrindo os braços e
ignorando meu choque com sua reação.
— Eu não tava olhando para ela assim, Beatriz, não
tava — digo com os olhos perdidos porque, se ela soubesse,
se ela sequer imaginasse o que se passa na minha cabeça
nas últimas semanas, teria plena certeza de que a única
mulher que eu vejo é ela.
— Guilherme. — Beatriz respira fundo e passa as mãos
pelos cabelos, jogando-os para trás. — Você saiu da sala
com o Thomas e umas cinco meninas, eu fiquei sozinha lá. E
nem adianta culpar o Rick porque eu já tinha saído do colo
dele a essa altura — diz, voltando a andar pelo quarto. —
Então, sim, eu vim embora, porque não ia pagar de otária!
— debocha, com o tom dançando entre a raiva e a
defensiva.
— Nossa, Beatriz. Não sei como você lidaria com as
coisas se a gente namorasse de verdade. — Eu me escoro
na parede atrás de mim, mas não sem antes reparar se ela
está perto do outro coturno. — Elas eram influencers, a
Vicious cresceu assim, tu podia entender, sabe?
— Que bom que eu não sou sua namorada de verdade
então, né? — é a única coisa que ela fala, e eu fecho os
olhos respirando fundo.
Meu cacete, que mulherzinha difícil.
— Não faz assim, Bia. Você sabe que não foi isso o que
eu quis dizer.
Uma risada sem humor atravessa o quarto até mim.
— Na verdade, foi o que você disse.
Bufo, esfregando o rosto, porque isso é a coisa mais
sem sentido do mundo. Estou no quarto com a minha
namorada de mentira, que eu só posso beijar de mentira,
mas com a qual as brigas são bem reais. E meu coração
acelera, mas com medo dela me tacar outra coisa, não
pelos motivos que corações aceleram quando estamos no
quarto da mulher que gostamos.
— A gente vai falar, falar, falar, e não vai chegar a
lugar nenhum — digo por fim e me sento na cama dela me
sentindo um imprestável. — Você não gostou do que viu, eu
não gostei do que vi, e tá tudo bem, a gente não faz mais.
— Engulo em seco e respiro fundo, esperando ela dizer algo,
mas o silêncio toma o quarto, então adiciono: — A gente
não se magoa mais.
Beatriz me encara por alguns instantes, mas vem até
a cama e se senta também. Mais longe do que eu gostaria,
e tudo bem, eu mereço isso.
— Hoje eu tava pensando que talvez fosse melhor se
tivéssemos dado outro jeito.
— Como assim? — Franzo o cenho, confuso,
observando-a, mas seus olhos miram o chão.
— Tu me fez ir à sua casa, me explicou como era
melhor que a gente namorasse, e eu caí nessa. Agora eu
preciso ler notinhas em redes sociais todos os dias sobre
“como eu sou boba por ter voltado com o cara que me
largou para perseguir seus sonhos” — ela praticamente
sussurra, e eu consigo sentir a vergonha nas palavras. —
“Como o vocalista da Vicious Bonds não presta e isso não
vai durar” — ironiza, com uma risadinha, e eu gostaria de
entender por que não presto, nunca tive ninguém desde
que essa banda estreou. — “Como vai ser impossível
manter nossa relação, porque eu trabalho com TV no Brasil,
e você é do mundo e…”
— Beatriz — calo-a, chamando sua atenção, e me
aproximo. Ela até reage, como se fosse se mover, mas
seguro sua mão entre nós. — Por que tá fazendo isso
contigo? Não pode ficar em rede social deixando todo e
qualquer comentário maldoso de páginas de fofoca ou perfis
com foto de anime te colocarem pra baixo. — Toco seu
queixo e o puxo em minha direção com cuidado.
— Rede social é importante, você mesmo só fala disso
desde que entrou aqui…
— Ter redes sociais é importante. Produzir conteúdo
para quem gosta da gente é importante — enfatizo, me
lembrando de tirar a mão do rosto dela antes que as coisas
fiquem estranhas. — Mas nós somos humanos, mesmo que
cem comentários sejam de amor, um de ódio destrói tudo.
Claro que a gente não ignora nossos fãs, mas não gosto de
saber o que perfis de fofoca estão falando. Esse teu período
longe de tudo não te ensinou isso?
— Só essa semana fui diagnosticada por uns três
perfis profissionais de psicólogos como dependente
emocional, também descobri que sou mal-amada, que
tenho daddy issues e, segundo alguns comentários, sou
uma atriz flopada buscando subir na vida através do ex-
namorado popstar.
— Deleta essa merda e vai viver sua vida — peço
chocado com perfis que se dizem profissionais fazendo
essas merdas por like. — Não posso lamentar que estejamos
aqui agora, porque eu gosto de estar aqui com você. —
Deixo meu risinho de canto tomar meu rosto, e Beatriz me
empurra com o ombro. — Mas nada disso teria acontecido
se você não tivesse rede social.
— Eu preciso ter — ela responde chateada. — É meio
contratual.
— Então deixa que a sua empresária, agente, social
media, sei lá, faça suas postagens do computador, você não
precisa ter um app no celular para isso.
— Mas eu gosto do carinho dos fãs — choraminga em
protesto, e eu consigo entender, porque uso minhas redes
pelo trabalho, mas é um lugar escroto para cacete.
— Faz live, posts diários ou fotos enigmáticas e
escreve textões na legenda… Tem muita coisa pra fazer, se
falarem merda no seu perfil, é só desativar os comentários.
Ah, você pode, previamente, configurar o aplicativo para
não mostrar os comentários que contenham algumas
palavras específicas — adiciono o último, porque ele salvou
a saúde mental da banda quando começamos a estourar.
Fãs podem até ser silenciosos, mas os haters nunca serão.
— Não sabia que você era expert em redes sociais. —
Ela me empurra com o ombro de novo, forte dessa vez, e eu
me deixo cair no colchão.
Beatriz inclina a cabeça para dizer algo, mas os lábios
se fecham, e seu olhar correndo pelas minhas tatuagens
denuncia a curiosidade. Cruzo os braços atrás da minha
cabeça, dando espaço para ela observar melhor, e espero
que ela diga mais alguma coisa.
— Gostou delas? — indago, mas Bia não diz nada,
apenas continua me estudando. A dupla de coroas em meu
pescoço e as tulipas em meu braço direito, no entanto,
falam tudo o que ela precisa saber.
— São legais — responde num tom blasé e com a cara
mais sem expressão do mundo. — Mas a gente fala sobre
isso outra hora, precisamos dormir. Eu preciso, pelo menos
— se apressa em dizer e se levanta, parando de frente para
mim.
— Beatriz, me desculpa por hoje, de verdade. — Tento
amenizar as coisas ao me levantar, mas ela sorri, e eu não
entendo.
— Tá tudo bem — diz, como se não fosse nada. Depois
de ter passado quase dez minutos me ameaçando e de ter
me jogado um sapato, mas não reclamo, porque eu mereci.
— Ela era uma gostosa, tinha peitos realmente lindos, eu te
entendo. Fiquei toda me tremendo quando Rick deu dois
tapinhas naquela coxa me chamando para sentar e, quando
me sentei no colo dele e aquele gostoso de dois metros de
altura disse “boa garota”, eu fiquei uns bons segundos
desnorteada. — Ela se abana, como se estar com calor com
a temperatura a vinte e um graus fosse possível para uma
carioca. — Acontece — debocha, me fazendo pegar o ar
antes de responder.
— Não acredito que tô ouvindo isso — digo, segurando
o riso.
— Pois é, eu também não acreditei que tava vendo
aquilo — cantarola com um passo para trás.
— Beatriz, eu já pedi desculpas. — Rio incrédulo, indo
até ela. — A gente pode superar isso, Coisinha?
— Não sou sua namorada, Guilherme. Não precisa se
desculpar. Só não quero ser envergonhada na frente do país
inteiro.
De novo. Ela não diz essa parte, mas está aqui,
pairando sobre nós.
— Você não é minha namorada, mas eu realmente
quis te beijar hoje. — Dou mais um passo em direção a ela,
que se inclina para trás, num reflexo. — Bem mais do que a
gente se beijou.
— Acho que é normal, a gente tem uma história.
A resposta é diferente do fora que eu esperava, então
dou mais um passo e arrisco:
— Eu realmente quero beijar você agora — confesso,
levando a mão direita ao seu rosto, e Beatriz afaga a pele
contra minha mão.
Como se sentisse a mesma eletricidade que eu estou
sentindo. Passo o braço pela sua cintura e a aproximo de
mim.
— Você não cansa, né? — Ela pousa as duas mãos em
meu peito e me empurra, deixando suas costas
encontrarem a parede atrás de si. — Sabe que isso não vai
fazer bem para ninguém. Você vai embora em doze
semanas, e eu vou ficar aqui, deste lado do oceano.
— Você também está contando o tempo pelas
semanas que a gente tem junto?
Minha Coisinha engole em seco, mas ergue o pescoço
em minha direção. Estamos sozinhos nesse quarto e, para
todos os efeitos, somos um casal. E ela é tão linda, mas tão
linda, que nenhuma outra mulher foi tão convidativa para
mim quanto Beatriz Lopes dentro de um pijama duas vezes
seu tamanho encostada na parede de um quarto de hotel é.
— Guilherme, não faz assim — ela pede baixinho, com
o tom de voz de quem confia em mim, mas, ao mesmo
tempo, não confia em nós.
— Você não quer? É só dizer. — Acaricio seu rosto,
descansando a testa na dela. — Mas se eu sair daqui agora
com a dúvida de como as coisas teriam sido se eu
insistisse…
— Você não precisa insistir — Beatriz me interrompe, e
por alguns instantes acredito que ela vai me responder “eu
também quero”, mas seu olhar se perde antes que ela
continue. — É um cara atraente, Guilherme. Temos uma
história, você me conhece como poucas pessoas… Você
quer um beijo meu? Eu posso beijar você — comenta, com
uma simplicidade desconcertante, como se não fosse nada
de mais. — Mas não acho que ser o cara que mexe com a
garota e depois vai embora deixando ela para trás duas
vezes seja o motivo pelo qual você quer ser lembrado pelo
país inteiro, e nem por mim, se eu tiver sorte.
Fecho os olhos, apoiando a mão ao lado da cabeça
dela, seu perfume doce e o xampu cítrico me invadem.
— É, porque eu te abandonei no pior momento da sua
vida. — Jogo a cabeça para trás sem conseguir segurar as
lembranças daquele fatídico dia.
— Pois é.
— Claro, escolhi terminar com você num momento
delicado porque eu sou a pior pessoa do mundo… — cuspo
as palavras com tanto ódio.
De mim.
Dele.
— Você está debochando da minha cara? — Beatriz
me empurra com tanta força que cambaleio.
— Não — garanto coçando a nuca e ignorando a bola
que se forma em minha garganta. — É que ser o cara
bonzinho é um inferno às vezes. Quem me dera eu tivesse
sido um egoísta desgraçado — deixo as palavras escorrerem
dos meus lábios enquanto me dirijo à porta, com passos tão
pesados quanto meu peito está agora.
— Poderia existir um cenário no qual você fosse mais
egoísta? — ela diz pelas minhas costas, e eu olho para trás
por cima do ombro. — Minha imaginação não consegue ir
tão longe.
— Eu entendo. Mas é só porque você não sabe de
tudo.
— O que, exatamente, você quer dizer com isso,
Guilherme? — a pergunta descrente sai com um suspiro,
mas preciso ser firme e esquecer os últimos minutos.
— Que algumas coisas não são tão simples — digo e
saio do quarto, puxando a porta atrás de mim e pensando
que foi ótimo que não tenhamos nos beijado, porque não
importa o quanto eu ainda gosto dela.
Esse é um segredo que eu preciso levar para o
túmulo.
@GUIVICIOUS

[3]
Capítulo 12
Ou: Eu devia ter feito um contrato. Devia ter
colocado “proibido tentar seduzir sua namorada de
mentira” como a cláusula principal do contrato.
Beatriz
A coisa mais inteligente que eu fiz depois de São Paulo
foi dar dois passos para trás em relação a Guilherme.
Mesmo que eu tentasse fingir que as coisas estavam bem e
que só tenhamos tido… um desentendimento, o que é
normal para todo casal, precisei me lembrar que nós não
somos um casal.
Além disso, ele tentou se fazer de coitado com a
situação do nosso término jogando um enigma para cima de
mim. Como se eu fosse cair nesse papinho de “as coisas
não são simples”, anos depois de ele ter me largado aqui
sem mais nem menos.
E o que mais me machucou nisso tudo foi que eu
beijei Guilherme Almeida naquele show. Beijei e quis beijar
ainda mais. Isso precisa parar. Eu não quero que pare, mas
precisa.
Demorei demais para me refazer depois dele para
deixar tudo desmoronar por causa de um reencontro com
data de validade. E não só isso, mas também passei muito
tempo tentando encontrar justificativas para o nosso
término, tentando entender como o cara que amadureceu
do meu lado, em todos os sentidos, pôde terminar comigo
no meio do luto pela morte do meu pai e ir embora sem
nunca mais olhar para trás.
Não tive sucesso em compreender Guilherme naquela
época e não quero que ele acredite que me dizer que eu
não sei tudo sobre o fim do nosso namoro vai fazer alguma
diferença quase quatro anos depois.
Para manter a cabeça no lugar certo, revisito mais
uma vez a lista de motivos pelos quais não devo cair no
papinho daquele maloqueiro miserável:
1 – Ele é problema.
2 – Ele tem muitas fãs peitudas, e você, desprovida de
peitos, teria ciúmes.
3 – Ele não mora no mesmo país que você.
4 – Ele já te abandonou uma vez.
5 – Ele pode ser gostoso, ter lábios macios, dedicar
uma música do RBD pra você com post no feed e ter feito
uma cover nos stories te marcando, saber te pegar como
ninguém e ter um piercing que você está doida para
conhecer, mas, essa atração toda veio do seu período fértil
e, de novo: Ele é problema.
Não ironicamente tenho essa lista no bloco de notas
do meu celular pessoal e do profissional, que comprei para
administrar minha rotina com as redes sociais, como
Guilherme orientou. A única coisa que presta que esse
moleque fez por mim.
E o sexto item da lista é o mais real:
6 – Isso não tem futuro.
Só que, ainda assim, não posso fingir que não sinto
nada, quando a verdade é que, todas as vezes que termino
de ler a lista antes de ir a um dos nossos encontros, uma
voz alta e clara toma minha cabeça dizendo que está tudo
bem ele ser um problema. Afinal, eu sempre fui uma aluna
nota dez em matemática.
Por outro lado, “Você acha que eu sou egoísta porque
você não sabe de tudo, as coisas não são tão simples” é a
junção das últimas coisas que Guilherme me disse naquele
quarto de hotel. Duas coisas que me deixaram sem dormir
por tempo demais, até que eu me convencesse de que, se
ele quisesse me contar, teria contado, e como ele não o fez,
ou quer esconder algo sobre o nosso término de mim ou
talvez isso nem seja real.
Sendo boa em matemática, ou não, encontrar o valor
de X nessa questão não é algo que eu queira fazer.
Esse X já é bem grandinho e pode encontrar seu valor
por si mesmo. Penso, observando o cursor piscar na tela, e
dou enter para adicionar mais uma coisa à lista.
7 – Você só pode voltar para ele.
Não, não tem a menor chance de eu voltar para ele.
Então apago.
7 – Você só pode beijá-lo de novo…
Apago novamente. É uma condição muito extrema
para um beijo.
7 – Você só pode chegar no meio do caminho entre o
beijo e uma volta se, e somente se, ele te contar o que
motivou o término de vocês.
Algo no meio do caminho é uma coisa com a qual eu
consigo lidar.
Capítulo 13
Ou: Apaixonado é uma palavra muito forte (para
assumir).
Guilherme
Tudo o que aconteceu naquele dia em São Paulo
morreu em São Paulo. Nas três semanas seguintes, as
gravações de Beatriz se tornaram mais intensas, e a minha
agenda de compromissos com a Vicious me engoliu, por
isso, comunicamos Luana e Alex que administraríamos
nossos encontros por nós mesmos dali em diante. Nenhum
dos dois gostou muito de tornarmos algo estritamente
profissional em uma coisa casual, mas a palavra final é
nossa, então não criaram caso.
E foram ótimas três semanas. Conseguimos nos
encontrar cinco vezes nesse período, mais do que o
esperado no início, apesar de termos desmarcado um
jantar, a Coisinha ter chegado uma hora atrasada em uma
peça teatral, e nós termos encerrado uma das nossas noites
andando de Uber depois que meu Tesla foi rebocado por
“estacionar em um lugar proibido” — lê-se: Ficar sem
bateria porque a beleza de Beatriz consumiu minha atenção
a ponto de eu ignorar todos os sinais no painel do carro.
Alex e Luana não surtaram.
Esse foi o ponto positivo, mas, ao mesmo tempo, toda
a tensão e as faíscas que aconteceram no show e no quarto
dela em São Paulo desapareceram. Voltamos a ser apenas
um casal de fachada com toques mecânicos, beijos
superficiais e cada movimento pensado para ficar bem nas
fotos.
E por mais que eu gostasse da nossa rotina sendo
mais leve e descontraída, se Beatriz quer se afastar e está
usando o profissionalismo para isso, tudo bem. Apesar dos
nossos encontros e despedidas com selinhos sempre terem
um gosto absurdo de quero mais.
A única coisa que me incomodou nisso tudo foi
perceber que nossas conversas nunca se tornavam mais
profundas do que um pires. Beatriz segue desconversando
no exato segundo que falo sobre o passado e, no nosso
último jantar, quando expliquei a onda de teorias que as fãs
começaram a criar sobre algumas músicas, ela fingiu não
ouvir, bem como respondeu “Viva e saudável” quando
perguntei sobre dona Tati.
É como se ela tivesse alergia a tudo o que vivemos
antes. Ou como se ela tentasse me dizer, mesmo sem
palavras, que não tenho direito a essas perguntas. Que não
posso voltar depois de anos e perguntar sobre ela, a mãe,
ou como a vida delas andou enquanto eu não estava aqui. E
eu entendo. Entendo de verdade. Afinal, Beatriz só sabe o
que eu fiz com ela, não por que tive que fazer.
Ainda assim, é uma tortura estar perto dela, da Minha
Coisinha, e saber que nossas únicas conversas longas serão
sobre mídia, redes sociais, repercussões e “Qual será nosso
comportamento no nosso próximo encontro?”.
— Você vai sair com essa cara de bunda? — Thomas
pergunta, apoiado na porta do meu quarto com os braços
cruzados.
— Eu já fui um ótimo ator, sabia? — respondo, dando
o nó na gravata ridícula que Beatriz me obrigou a usar. —
Vou dar conta de sorrir e parecer apaixonado quando
necessário — respondo entredentes enquanto Thomas
caminha até a cama.
— Parecer? — Ele me encara pelo reflexo do espelho
assim que se senta, com as sobrancelhas erguidas
enquanto afaga os pelos de Elvis. — Às vezes eu acho que
você tá…
— Não viaja. — Forço um sorriso tão falso que até Elvis
me julga pelo reflexo. — Só queria que pudéssemos agir
como dois velhos amigos, não como dois desconhecidos que
mal se suportam em uma relação de mentira. — Eu até
queria acreditar que minha irritação é só por isso, mas o
gosto amargo que está em minha boca desde que neguei
estar apaixonado por ela me impede.
— Mas não é isso o que vocês são?
— Não! — respondo rápido demais, enfiando os pés no
sapato social, quase torcendo o pé esquerdo pela rapidez,
mas só quero acabar aqui e me livrar desse papo. — Eu não
desgosto dela.
— E morre de ciúmes do Rick… — Thomas diz,
encarando o cão ao seu lado, não a mim.
— Não é ciúme. — Eu me levanto e viro de frente para
eles. — Só é estranho ela ser minha namorada e parecer
mais confortável perto dele.
— Eles são amigos. — Thomas ri, como se isso fizesse
algum sentido.
— Desde quando o Rick é amigo de mulher?
— Ele é amigo da Dani… — Ele assobia, como se
estivesse me contando algo que eu não sei.
Meus olhos arregalam, e Elvis late na direção dele.
— Ele não seria maluco. — Eu me viro, traduzindo o
latido de Elvis, que mostra os dentes agora.
— Bom, você tá minando as opções do cara… —
Thomas ri de canto.
— Se elas se resumem à minha mulher e à minha
irmã, estou sim, mas que cacete — vocifero, destruindo meu
cabelo ao passar a mão por ele.
Puto com a insinuação absurda.
— Sua mulher? — Thomas se levanta surpreso, e Elvis
pula da cama, ambos me encarando.
— É isso o que ela é publicamente, não? — digo
abrindo os braços.
— Bom, deixa eu te ajudar. — Meu amigo se aproxima,
alisando a frente do paletó escolhido a dedo pela nossa
estilista. — Esquece o que eu disse, fui um idiota — pede
sem graça, colocando meu cabelo para trás e apertando
meus ombros. — Agora anda, vai lá encontrar a… sua
mulher — ironiza, fazendo meu coração acelerar e me dizer
que lutar contra o que sinto por ela não vai ser nada fácil.
Capítulo 14
Ou: Como já diria Dulce Maria: O calor do meu corpo
se eleva quase sem controle só de ver esse homem
gostoso. Ou alguma coisa assim.
Beatriz
Vinte e um dias. Tinha vinte e um dias que Guilherme
Almeida não me deixava de pernas bambas, e eles foram os
melhores vinte e um dias do mundo. Sendo assim, a última
coisa que eu esperava é que ele voltaria a me dar siricuticos
num dos eventos mais importantes de “As Lembranças que
Perdemos”.
O dia que o elenco está se reunindo para assistir o
início da segunda fase da novela. É um episódio importante,
é nele que a Marcela, a protagonista, e Fabiana, a minha
personagem, trocam o interior pela cidade grande, como
sonharam a adolescência toda, e conhecem seus pares
românticos numa viagem de trem.
Também nos reunimos para assistir ao primeiro
episódio. E não ter levado Guilherme repercutiu
negativamente demais, então decidi trazê-lo hoje para ver
se os sites de fofoca calam a boca. Luana achou a ideia
ótima, já que os críticos especializados amaram a primeira
fase da novela.
Porém, tudo isso é muito conflitante para mim.
Quando aceitei voltar para a TV, eu tinha apenas uma
coisa em mente: Entender se eu ainda dou conta de segurar
uma personagem. Antes da pandemia, eu tinha feito
programas infantis e Geração Z, que tinham públicos
específicos e nada exigentes. Portanto, uma personagem
adulta em uma das novelas regulares da emissora é o que
eu preciso para saber se posso continuar investindo nessa
carreira, ou se preciso estudar outra coisa. Porque minha
psicóloga alugou um triplex na minha cabeça quando olhou
no fundo dos meus olhos e disse:
“Você se vê vivendo em quarentena para sempre, ou
existe uma parte de você que deseja ou imagina uma vida
diferente?”
E, por Deus, o covid tirou muitas coisas de mim, não
tinha a menor chance dele tirar toda a minha vida das
minhas mãos também.
Contudo, meu foco em voltar a atuar era tão grande
que em momento nenhum pensei em me relacionar com
alguém. Só que as coisas se desenrolaram da pior maneira
possível, o que me rendeu um namorado, gerou uma baita
ansiedade com redes sociais e um medo de que as fofocas
ofuscassem meu trabalho. Mas passou. Queira Luana ou
não, foi Guilherme que me ajudou com isso. Apesar de ela
dizer que nossos encontros sem regras podem mais
atrapalhar do que ajudar, sou grata a ele por ter aprendido
a lidar com algo tão importante para qualquer artista.
Outra coisa pela qual eu estava nutrindo profunda
gratidão era o fato de ele ter respeitado meu pedido de se
manter longe. A sucessão descabida de flertes no dia
daquele show não traria bons resultados para nenhum de
nós dois, a gente só não queria assumir. Dali para frente
foram três semanas de paz.
No entanto, tudo desmoronou assim que saí do
elevador e o vi apoiado numa das pilastras no lobby do meu
prédio. Guilherme Almeida tinha as mãos no bolso da calça
social, a sombra de um sorriso no rosto e me olhou de cima
a baixo, roçando a língua em seu lábio inferior de um jeito
que apagou da minha mente a lista de motivos para não dar
espaço a ele, antes mesmo que ele beijasse meu rosto no
cantinho da boca, me obrigando a engolir em seco.
Nem a multidão de fãs, da Vicious e do casal para os
quais acenamos antes de descer para o estacionamento, e
os seis seguranças que fizeram nossa escolta daquele lobby
até o local do evento foram o suficiente para que eu
colocasse a cabeça no lugar.
Eu não devia pensar assim sobre o cara que me
abandonou e que esconde de mim os “motivos reais” para o
nosso término. Mas esse homem com a pele dois tons mais
escuros de marrom por causa do bronzeado das férias;
dentro de um terno preto; com o cabelo ondulado jogado de
lado e um cavanhaque perfeitamente alinhado que só um
carioca consegue transformar em algo obsceno, está
fazendo meu vestido parecer uma prisão sem circulação de
ar.
Guilherme, com seu sorriso largo, o piercing de
bolinha no nariz e a gravata perfeitamente alinhada, não só
é o homem mais bonito da noite, ele é, provavelmente, o
homem mais bonito vivo no dia de hoje, e sua mão em
minhas costas nuas agora não está ajudando em nada, ao
mesmo tempo que parece que ele não está tocando o
suficiente em mim.
— Vamo sentar? — pergunto, depois da sexta foto que
tiramos no painel da novela, bem no meio do salão.
— A gente pode tirar mais fotos se você quiser —
sussurra ao pé do meu ouvido, e o coque alto no qual meu
cabelo está preso revela cada um dos pelos arrepiados que
ele deixa no meu pescoço.
— Acho que já foi o bastante. — Viro o rosto apenas
para encontrá-lo me observando com um risinho sem-
vergonha de canto, sua forma de deixar claro que sabe que
mexeu comigo. — A não ser que a estrelinha do pop
mundial precise tirar mais, eu tô de boa. — Dou de ombros,
o que faz a alça fina do meu vestido escorregar, mas
Guilherme muda de pose e, de uma maneira muito natural,
a coloca no lugar. Rendendo uma enxurrada de flashes que
nos faz segurar o riso.
— Gosto da ideia de ficar sentado com você, então
tudo bem. — Ele dispensa os flashes com tranquilidade e
me acompanha até a primeira fileira, onde nos sentamos na
marcação de nossos nomes, um ao lado do outro. Como
antes.
Como sempre.
E, mesmo agora, é estranho observar esses detalhes
que eu tinha certeza de que nunca veria de novo.
— Sabe, tem quase um mês que a gente tá nessa. —
Me refiro às nossas semanas de paz. — E as coisas estão
fluindo super bem, então sem gracinha, tá? A gente não
precisa disso.
— Tem quase sete semanas que as coisas estão
acontecendo naturalmente, e, se tem algo que estou
fazendo, é me comportar, Coisinha arredia — ele me corrige
quando um garçom para diante de nós, oferecendo uma
taça de frisante.
— Ótimo — digo, pegando uma taça e agradecendo ao
garçom.
— Ótimo — rebate, dispensando gentilmente, porque
está dirigindo.
Sua mão encontra meu ombro direito em seguida,
num abraço teatral. Mas ele brinca com a alça do meu
vestido num tipo estranho de carinho, com movimentos
circulares em meu ombro, e cada pedacinho de pele que
Guilherme toca queima.
Será que a gente só consegue manter distância se
estivermos com roupas comuns? A cada evento juntos, as
faíscas parecem se intensificar.
Pouco tempo depois, uma fila de atores mirins e
adolescentes chega diante de nós pedindo uma foto com
Guilherme, pelo menos eles sabem que isso é um evento
profissional e fazem só uma foto com ele e outra com o
casal, as risadinhas das meninas e o olhar de admiração dos
meninos aquecem meu coração.
Guilherme é muito atencioso com todo mundo e
pergunta seus nomes, bem como afirma que vai seguir os
adolescentes de volta nas redes sociais assim que eles
postarem sua foto com #GuiBia.
Marco acena para nós, mas está ocupado demais para
vir aqui agora. E o pessoal do elenco também nos
cumprimenta de longe, porque, assim que os jovens saem,
o telão à nossa frente abre a contagem regressiva de cinco
minutos. Todo mundo dá gritinhos animados, voltando para
suas mesas ou para as cadeiras deixadas em ambientes
mais abertos, como as que eu e Guilherme estamos
sentados.
— A sua melhor amiga na novela, ela é uma gata, né?
— Guilherme sussurra e indica Maria Luz, que se senta duas
cadeiras à minha esquerda e nos cumprimenta.
— Muito — concordo e dou uma cotovelada na costela
dele, que me encara de boca aberta, de onde sai um leve
gemido de dor. — Mas você é meu namorado. — Seguro seu
queixo e o puxo em minha direção. — Então olhos em mim
— digo, com dois tapinhas no meu colo, e os olhos de
Guilherme param bem no meu decote. Homens são tão
óbvios. — Você está tão engraçadinho hoje… — repreendo-
o, mas seus olhos sobem direto para os meus.
— E você é a mulher mais bonita da noite —
Guilherme joga as palavras no ar, e elas me envolvem,
então ele prossegue, ainda me encarando. — Amo seu
cabelo solto, gosto de como ele emoldura seu rosto e dá
movimento pras suas ações. Mas o coque e o batom
vermelho simplesmente acabam comigo — sussurra, com os
olhos vidrados em meus lábios, e eu me sinto obrigada a
correr a língua ali para umedecê-los. — Talvez eu deva
trocar meu papel de parede da Vicious Bonds por uma foto
sua, Coisinha perfeita.
— Talvez você deva — rebato e, para a minha
surpresa, não estou sendo irônica.
— Quando você me pediu para vir black and tie, eu
não imaginava que você estaria tão maravilhosa. — Sua
mão toca meu rosto de leve, tentando entender se tem ou
não permissão para fazer isso.
E não, ele não deveria ter, então apelo.
— O Rick disse que você adoraria esse vestido, e eu
queria que a gente aparecesse se cadelando em muitas
fotos, então… — Dou de ombros, mas a mão dele já está em
sua perna depois do afago, e seu olhar disperso desde que o
nome de Rick saiu dos meus lábios.
E é melhor assim. Meu coração insiste em me trair
vezes demais quando esse carioca sem-vergonha está por
perto.
— Qual é o lance entre você e ele? — Guilherme
pergunta, cruzando os braços.
— O Rick? — Ele assente, e eu reviro os olhos. — A
gente se entende. Gosto de conversar com ele.
— Que merda significa a gente se entende, Beatriz? —
A pergunta carrega bem mais raiva do que eu achei que
seria possível, e eu quase respondo de uma forma bem
malcriada, mas meu diretor sobe no palco onde o telão
exibirá nosso décimo segundo episódio e começa a
discursar enquanto a contagem chega a dois minutos, e
apenas olho feio pra Guilherme.
Volto meu rosto para a frente e dedico minha atenção
a ele.
Conforme o discurso de Marco termina, e o episódio
começa, não posso deixar de sentir um frio na barriga. É
meu primeiro trabalho depois de quase quatro anos e a
primeira vez que Guilherme está me assistindo bem do meu
lado.
— Você é muito boa. — Ele apoia a mão na minha
coxa trêmula, e diz baixinho, mas longe de meu ouvido.
Como se soubesse das minhas inseguranças. — Nem parece
a pretinha mimada da novelinha teen que todo mundo
desacreditava.
— Você é meu fã ou hater? — pergunto, não
ironicamente, mas ele coça o cavanhaque e se afasta,
escorando na cadeira, sem responder.
O primeiro bloco termina. Nós comemoramos o quão
linda e vibrante está a montagem e a coloração das cenas.
Eu até converso com Maria Luz por alguns instantes, mas o
comercial acaba, e minha atenção volta para a tela.
Ao longo dos blocos, Guilherme se comporta como um
namorado excelente. Tocando minha perna, mãos e rosto
esporadicamente. Dizendo coisas aleatórias, mas sorrindo
com as cenas, e mantendo os olhos nos meus para trazer
veracidade à nossa farsa.
O momento pelo qual meu diretor está ansioso
começa, os últimos dois minutos da novela. Passamos o
episódio acompanhando a quase perda de uma das minhas
malas, o chapéu da personagem de Maria Luz voando — e
nos atrasando a entrar no trem — e, finalmente, o encontro
com nossos pares românticos.
Agora, depois de sentirmos uma profunda conexão,
cada uma com um deles, os personagens chegam ao
destino, a grande cidade do Rio de Janeiro da década de
oitenta. Como jovens emocionados, selamos a promessa de
que nos reencontraremos em breve, mesmo que nenhum
dos quatro saiba o que vai fazer da vida.
Tal promessa é, obviamente, selada com um beijo. E
assim que os casais na tela se beijam, alguns dos casais no
recinto começam a se beijar também.
— Acho que a gente devia… — Guilherme sussurra, e
eu tenho algumas regras para beijos. Mas, no momento que
viro o pescoço em sua direção, Gui já está perto demais
para que eu estabeleça algum limite ou o lembre de que
não podemos passar de encenação.
Seus olhos miram os meus com tanta necessidade,
que minha boca apenas se abre, buscando o ar, enquanto
Guilherme encaixa a mão em minha nuca e me beija.
Seus lábios encontram os meus, tão macios e
quentes; tão ansiosos e calmos; famintos, mas sob controle;
e eu não consigo fazer nada além de cruzar meus braços
atrás de seu pescoço. É um beijo técnico. Seguro e sem
língua. Apenas o show que esperam, como deveria ser.
Ainda assim, acaba rápido demais.
— Acho que exagerei — ele confessa com a testa
descansando na minha.
Mas eu discordo.
— Está tudo bem.
— Tudo bem se eu fizer de novo, então? — ele
pergunta, com desejo ardendo nos olhos, e eu, que ainda
estou com os lábios entreabertos, apenas assinto.
Dessa vez, no entanto, as mãos dele seguram meu
rosto com necessidade e a primeira coisa que Guilherme faz
é enfiar a língua na minha boca.
Meu pensamento grita para que eu me afaste e soque
a cara dele. Tal qual Dulce Maria em RBD La Família, quando
bate no Christopher por ele ter colocado a língua num beijo
que deveria ser técnico. Mas a sensação do piercing gelado
em um beijo tão quente me faz mudar de ideia.
Seu toque em minha cintura, a necessidade com a
qual ele me beija e a forma que brinca com o piercing em
minha boca me levam à porta de entrada do paraíso.
Eu o puxaria ainda mais para perto se pudesse.
O beijaria de novo e de novo se pudesse.
Eu bateria nele se pudesse.
Eu choraria se pudesse.
Mas as palmas e assobios ao nosso redor me trazem
de volta.
— Acho que todo mundo já parou de se beijar, Gui. —
Eu me afasto aos poucos, deixando que a realidade bata
nele tão forte quanto bateu em mim, e vendo seus lábios
manchados, mesmo a marca do batom prometendo que
eles não saíam nem com reza braba.
— Uma pena que eles não tenham fôlego. — Sorri,
passando a ponta do indicador pelo meu lábio inferior. — Eu
faria isso por horas.
Meneio a cabeça e entro na ovação com palmas e
assobios. Mas me viro para ele uma última vez.
— Só que isso nunca mais vai acontecer — aviso,
quase triste.
Mas o olhar de Guilherme me diz que ele tem planos
diferentes.
— Claro. Com certeza. Nunquinha — debocha,
erguendo os braços.
Seguro o riso e dou um tapa nele, que me puxa para
si, num abraço desajeitado e beija o topo da minha cabeça.
Nós dois começamos a rir agora, e me permito ficar aqui por
alguns segundos, só alguns segundos. Sentindo o carinho e
o apoio da pessoa que sempre disse que eu era tão boa,
que seria uma Helena, se o Manoel Carlos ainda escrevesse
novelas.
Mas pouco tempo passa entre os dedos de Guilherme
afagando minha nuca e os gritos do meu nome invadindo o
nosso casulo. É hora do brinde da equipe.
Capítulo 15
Ou: Como diria meu pai, o não eu já tenho.
Guilherme
Beatriz brinda com sua equipe, e eu permaneço
sentado, observando a única garota que já foi — e pelo visto
ainda é — dona do meu coração brilhar. Minha Coisinha está
exatamente onde deveria. E a pergunta “Onde eu estava
com a cabeça quando pensei que conseguiria viver longe
dela para sempre?” não para de rodear meus pensamentos.
Me pergunto se ele sabia, se ele tinha ao menos
alguma noção do quanto a gente se amava, de como
éramos de verdade.
Nos últimos minutos, tirei fotos com a equipe de
apoio, autografei alguns guardanapos e até participei de
uma chamada de vídeo com as filhas gêmeas de um dos
garçons, que não parava de agradecer e me chamar de
“seu Guilherme” mesmo que eu tenha metade da sua idade.
Aproveito que me dão cinco segundos de descanso e
pego o celular no bolso. Gravo a festa, a interação das
pessoas e foco a câmera em Beatriz, dizendo para mim
mesmo que estou coletando material para os vlogs, ou que
estou tirando uma foto dela e postando no Instagram agora
porque as Vagabonders amam quando posto essas coisas,
mas sei que estou fazendo isso porque quero ter
lembranças deste dia.
O dia que demos o nosso segundo primeiro beijo.
Deixo a câmera admirá-la por alguns segundos, posto
um mosaico dela com quatro fotos e inspiro me enchendo
de coragem para colocar Made to Never Break de fundo.
Logo depois vou procurar fotos da nossa noite onde sempre
consigo achar o que nem eu sei que existe: O perfil da
@viciousbondsbrasil.
Fãs brasileiros nunca decepcionam, mas as
Vagabonders daqui estarem nas trincheiras comigo mesmo
depois do meu — merecido — cancelamento me toca
demais. Principalmente porque elas não criaram rivalidades
com as fãs de Beatriz e não agem como se ela tivesse culpa
pela resistência que alguns fãs da época da GenZ têm
comigo. As Vagabonders sabem que fiz merda e também
aceitam que, se estou feliz de reatar com a Bia, não tem por
que elas se oporem.
Corro os olhos pelos stories cheios de fotos nossas
com hashtag #GuiBia e levanto o pescoço para encontrar
Beatriz dando gritinhos junto com Maria Luz enquanto elas
olham um celular, certamente animadas com a repercussão
da novela, e meu coração se aperta no peito da mesma
forma que eu gostaria de abraçá-la agora.
E, mesmo que não tenha a menor chance de Beatriz
voltar para mim, o beijo de hoje destruiu todas as barreiras
que construí. Se é que algum dia construí alguma barreira
além da distância imposta pela minha partida.
Na verdade, eu não construí merda nenhuma. Tudo já
estava perdido desde que ela pousou naquela ilha.
Eu: Acho que vou beijar Beatriz.
Envio para Thomas, precisando que meu melhor
amigo me dê algum motivo muito bom para que eu não
faça isso. Ao mesmo tempo, o resto de batom nos lábios de
Beatriz me convidam para que eu acabe com ele.
Thomas: Você acha que vai? Porque eu vi mais ou
menos doze fotos de vocês se beijando. Sem contar que o
novo viral no TikTok é: “Nível de depressão: Nunca tive
alguém que arrumaria a alça do meu vestido como
#GuiBia”, com várias fotos de você fazendo isso na entrada
do evento.
Meus olhos vão se abrindo um pouco mais ao longo do
texto e no final estão arregalados.
Eu: É um texto meio preocupante. Mas nem pensei
nas fotos no momento, foi um movimento natural.
Envio em choque porque, tudo bem, é a primeira vez
que assumo um namoro, mas não pensei que as coisas
chegariam nesse nível.
A.J.: Temos nossa própria seita, lide com isso. Elas
não deixam passar nada.
A.J.: Já tem vários vídeos sobre a linguagem corporal
de vocês no TikTok, em todos eles comentam que vocês
estavam a ponto de explodir de tesão.
Rick: O Elvis está latindo bastante com a informação,
acho que ele concorda.
Thomas: Inclusive, acabou de uivar, vocês tão no cio?
Leio os remetentes das mensagens de novo e percebo
que não mandei a mensagem para Thomas, mandei no
grupo da banda. Agora é tarde para voltar atrás, e eu tenho
só uma dúvida:
Eu: O Elvis concorda com o TikTok, ou concorda que
eu deveria beijar a Bia?
Thomas: Você já beijou a Bia, Guilherme. Acorda.
Eu: Era encenação.
A.J.: Eu vi as línguas de vocês, nada de desculpinhas,
cara.
Rick: Você tem o aval do Elvis.
Eu: Beleza. Vocês tão onde?
Tento desconversar, porque não vou resolver essa
questão com todos eles, e ninguém tá falando nada que se
aproveite.
Só o Elvis, posso contar com meu garoto para tudo.
Rick: A gente assistiu à novela, os meninos não
entenderam quase nada, mas ficaram lá para dar apoio
moral à nossa garota.
Rick: Agora saímos para beber alguma coisa no bar
de um hotel que o Alex indicou.
Eu partiria a cara do Rick com esse “nossa garota”,
mas já resolvemos essa situação depois que voltamos do
Pocket Show. Além do mais, os três terem apoiado a Beatriz,
mesmo que nosso namoro não seja real e ainda que ela
nem saiba, me lembra de que nós somos irmãos, e não tem
por que desconfiar de Richard.
Beatriz posa para algumas fotos agora, com colegas
de elenco, e identifico pessoas que ainda não apareceram.
Deduzo que sejam personagens dos próximos capítulos da
segunda fase.
Volto o olhar para o telefone, mesmo querendo
continuar passeando pelo ambiente com ela.
A.J.: Se você gosta da garota, acha que ela também
gosta de você, não deixa o passado te impedir.
Volta para o assunto que eu preferia deixar morrer.
Eu: Fácil falar, difícil fazer. O passado pôde me fazer
abandoná-la, mas não vai me impedir de beijá-la?
Rick: Você pelo menos quer contar? Pensa em falar
para ela?
Quero. Contar é o que mais quero. Mas iria destruir a
minha Coisinha, e nessa eu prefiro sofrer sozinho.
Eu: Você sabe que não posso.
O silêncio domina o grupo por alguns instantes, e
Beatriz chama meus olhos, como o canto de uma sereia,
desfilando seu vestido vermelho do outro lado do salão,
conversando, sorrindo, brincando, e eu sorrio mesmo sem
fazer parte da conversa, apenas porque o sorriso dela é
gostoso demais para não ser acompanhado.
Rick: Um beijo entre duas pessoas que se gostam
nunca vai significar só um beijo, mas se é o que você quer…
É a mensagem que volta a acender a tela do meu
celular.
Thomas: É, vai lá e se engana. Cuidado para não
perder seu piercing na boca dela também.
Eu: Vai se ferrar, Thomas. Você é meu melhor amigo,
devia ser melhor do que isso.
Bloqueio a tela do telefone e volto a procurar Beatriz
no meio do elenco, entre a cruz e a espada.
A verdade e a mentira.
Entre fazê-la sofrer só no passado e também fazê-la
sofrer agora.
Nenhum dos cenários é ideal, e eu gostaria que o que
sinto por ela não me consumisse tanto, mas, ao notar o
olhar de Beatriz perdido do outro lado do recinto, como se
tentasse encontrar alguma coisa, só consigo desejar ser
exatamente o que ela está procurando.
Capítulo 16
Ou: Eu te entendo, Olivia Rodrigo, eu também quero
arranhar o carro dele, preparar o almoço pra ele, aí
quero partir o coração dele e ser a pessoa que vai
consertá-lo. Então quero beijar o rosto dele e dar um
soco logo depois. E também quero encontrar a mãe
dele só pra dizer a ela que o filho dela não presta!
Beatriz
Após o brinde, abraço quase todo mundo da equipe;
poso para mais fotos mesmo sem ter certeza de que ainda
estou com a maquiagem no lugar depois do meu batom
manchar a boca de Guilherme; converso com colegas
próximos e atores de outros núcleos; tiro mais fotos com
algumas das garçonetes e me permito comemorar feito
louca a repercussão superpositiva da novela no Twitter.
Eu me sinto feliz. Plena e realizada, ainda assim, meu
olhar se perde na multidão, buscando a ele e sempre ele.
Como se eu quisesse voltar para os braços de Guilherme,
como se o tempo longe dele me deixasse com frio numa
noite de outono carioca, que mais parece uma tarde de
verão de tão quente.
A única coisa que me consola é que, todas as vezes
que meus olhos são puxados até ele como ímãs, Guilherme
também está com o olhar sobre mim. Diferente do que eu
esperava, isso não me incomoda. Porque não são olhares
invasivos, são de admiração. E seria mentira fingir que não
me peguei sorrindo para ele só porque é gostoso fazer isso.
Alguém deveria me dar um tapa.
— A gente já pode ir — aviso assim que me
reaproximo.
Guilherme meneia a cabeça, passando a mão por
minha cintura.
— Hora de deixar a estrela em casa — diz com uma
piscadela, mas, antes que eu me vire, uma voz doce e
conhecida chega aos meus ouvidos.
— Então você é o responsável pelo sorriso no rosto
dessa garota, é?! — Marco se aproxima de nós com sua
careca lustrosa e estende a mão para Guilherme.
— Tenho quase certeza de que nós dois somos,
Capitão — Guilherme o corrige, chamando-o pelo apelido
que usávamos no set de Geração Z e aperta a mão de
Marco. — Minha Coisinha talentosa está feliz pelo trabalho
também. — Ele me olha por uns dois segundos, e eu
assinto, porque é tudo o que posso fazer nessa situação.
E apesar da surpresa, porque eu não esperava que
Marco viesse conversar com ele no fim do evento, o que me
cala é o “minha” empregado na frase de Guilherme.
— Se eu trabalhasse tão bem quanto ela, depois de
anos de férias, também estaria — Marco garante com dois
tapas no ombro do meu principezinho, que está tão
desconfortável quanto eu de mentir para o nosso capitão. —
Como você tá, popstar?
— Pelo amor de Deus, você não, Marco — dispensa o
comentário.
— Tudo bem, me desculpe.
— Para eu desculpar você, vai precisar colocar a
Vicious como trilha sonora da novela — Guilherme brinca,
exagerando no desdém.
— Ah, eu acho que vocês não têm tanto a ver com as
bandas dos anos oitenta, talvez se vocês fossem mais
Menudos… — Marco encolhe os ombros como se não
pudesse fazer nada, e nós três rimos. — Vamos ter de
deixar para a próxima. Mas, como estão as coisas, moleque?
— Bem. Quer dizer, cansativas… — Guilherme faz
charme, o que exige minhas habilidades de atriz para meu
olhar julgador não o denunciar, porque, ultimamente, eu
tenho trabalhado muito mais horas do que ele. — Mas feliz.
E você segue fazendo o que ama, certo?
— A arte de encantar com histórias. — Marco faz meia
reverência, o que nos diverte. Logo em seguida um vento
frio corta o ambiente, e Guilherme me prende mais forte em
seu abraço, beijando o topo da minha cabeça com algumas
risadinhas perdidas.
Quero que isso seja encenação. Mas também não
quero.
E não sei exatamente como lidar com essa antinomia.
— Bom, rapazes, sei que vocês têm muito o que
colocar em dia — interrompo-os, querendo fugir. — Mas a
gente tem horário, Marco. Então vamos ter que dizer tchau.
— Finjo estar chateada e me afasto de Guilherme para
abraçá-lo.
— Não quero segurar você, Bia. Obrigado por ter
vindo. — Marco afaga minhas costas e deixa um beijo em
meu rosto. — Bom te ver garoto.
— Foi muito bom te rever também — Guilherme
responde e, pelo olhar fixo no de Marco, está sendo
honesto.
Meu diretor se vira, e nós damos as mãos para sair,
mas então Marco para, encarando um de cada vez, com um
olhar terno. Logo em seguida o homem coça a careca,
mirando Guilherme.
— Cuida bem dela dessa vez — pede, num tom tão
paternal que meu coração se aperta. — Raios caem duas
vezes no mesmo lugar, estrelas cadentes não — diz e
encaixa as mãos na calça social, mas permanece olhando
para Guilherme como se esse fosse o conselho mais
precioso que pudesse dar a alguém.
Diferente do que eu esperava, Guilherme não retesa e
não sorri sem emoção, ele só passa a mão pela minha
cintura e me segura rente a seu corpo, como se quisesse ter
a certeza de que eu não vou escapar.
— Tô ciente, capitão! E tô tentando. — Guilherme
pisca para Marco, que assente e, dessa vez, se vai de
verdade. — Tô realmente tentando. — Essa parte ele diz
olhando nos meus olhos, e eu não quero entrar nesse
assunto.
— Que tal tentar cuidar de mim me levando para casa,
hein? — proponho, como se não tivesse ouvido o que ele
falou, porque essa carinha de homem sofrido depois de me
beijar daquele jeito só tem um significado: Carência.
E não vou dormir com ele.
— Seu pedido é uma ordem, Princesinha. — Guilherme
segura minha mão direita e, com a mão livre, liga para
Machine, o chefe da segurança, e avisa que estamos indo
para o estacionamento.
Caminhamos até lá de mãos dadas, distribuindo
sorrisos e tchauzinhos aos meus colegas e, assim que
passamos pela porta, somos escoltados por seis
seguranças, que nos deixam no carro de Guilherme e vão
para o SUV estacionado ao nosso lado. Entrando no carro,
colocamos os cintos e nos encaramos em silêncio antes dele
dar a partida.
As coisas estavam amenas antes de Marco chegar,
mas toda aquela conversa mexeu comigo de uma forma
confusa. Meu olhar se perde pela orla e, mesmo sentindo os
olhos de Guilherme em mim, não quero falar com ele. Não
quero pensar que somos alguma coisa, ou lembrar da
ternura no olhar e da súplica em suas palavras, não posso
fazer isso comigo.
— Você se incomoda se eu ligar o rádio? — pergunta
depois de dois sinais vermelhos, e eu nego com a cabeça.
As músicas da Vicious Bonds embalam o trajeto de
treze minutos da praia do Leblon à Copacabana e, assim
que One Last Kiss começa, ele vira na minha rua.
— Oh, meu Deus — o sussurro sai de nós dois.
Fãs. Muitas fãs. Com cartazes, camisas e mais
algumas coisas que a noite nos impossibilita de enxergar.
— Elas não vão embora nunca? — pergunto, mais em
choque do que incomodada.
— Depois que vim te buscar? Acho que não. Elas
provavelmente estão divididas. Metade aqui e metade lá no
meu prédio. Esperando para saber onde vamos dormir, se
vamos dormir juntos…
— Dá a volta no quarteirão, vou avisar o porteiro e
pedir para ele abrir, você me deixa lá embaixo — digo, me
referindo ao estacionamento.
— Tudo bem, vou passar direto, para elas não
desconfiarem de um carro dando a volta no meio da rua, e
pedir aos seguranças para fazerem um muro.
Quando achei que voltaria a viver coisas assim?
Nunca.
Logo que Guilherme desliga a chamada inteligente,
feita direto do carro, vejo os seguranças atrás da gente
reduzirem a velocidade e estacionarem no meio-fio.
Pego meu celular e ligo para a portaria, dando a cor e
a placa do carro dele para evitar a espera no meio do caos.
Assim que chegamos perto do prédio, o portão é aberto e,
quando elas se dão conta de que somos nós dois no carro,
já é tarde demais.
Nós estamos lá dentro e os seis seguranças de
Guilherme as impedem de entrar.
— É sempre assim? — pergunto quando ele desliga o
carro, fazendo One Last Kiss se calar.
— Não desse jeito. — Ele me olha de soslaio. — Isso é
o Brasil, né? Os meninos queriam ficar indo para Shopping
quando a gente chegou, foram duas vezes à praia, o Alex
surtou tanto — diz gargalhando ao estacionar o carro numa
das vagas marcadas como “visitante”.
— Obrigada pela carona, Gui. Deu tudo certo, hoje.
Boa sorte para sair ileso. — Aceno e tiro o cinto, pegando
minha bolsa.
— Gostei de te fazer companhia hoje. — Ele toca
minha mão, e uma corrente elétrica percorre meu corpo
inteiro, lá vamos nós. — E amei te ver no seu habitat
natural. Não que você cante mal, você é maravilhosa com a
música. — Guilherme descansa a cabeça no encosto do
banco e sorri ternamente. — Mas atuar sempre foi o seu
rolê, né?
— Às vezes, sinto falta de me expressar da mesma
maneira que eu conseguia fazer através do canto —
assumo, observando o estacionamento pelo vidro. — É
muito mais fácil quando uma melodia que embala o que
jorra do seu peito fala por você.
— É por isso que tu coloca músicas nas legendas de
todas as nossas fotos? — pergunta depois de limpar a
garganta. Sua mão ainda na minha, as duas suando,
apoiadas no pequeno espaço entre nós. — As músicas são o
que você realmente queria me dizer e não consegue?
Fecho os olhos e seguro o ar por alguns segundos, me
preparando para deixar um rio, que deveria ser só meu,
escorrer pelos lábios.
— Às vezes sim, às vezes não. — Pressiono os olhos
um pouco mais. — Às vezes as músicas são mais sobre
mim, outras sobre como eu quero que o público nos
observe, e às vezes… — Hesito por alguns instantes, mas
abro os olhos por fim. Nossas respirações tensas
embaçando os vidros do carro e os olhos de Guilherme fixos
em mim enquanto ele segue acariciando minha mão me
dizem que não posso mais voltar atrás. — Elas são só
músicas que eu postaria, se pudesse usá-las para legendar
fotos com algum carinha de que eu gosto… — confesso
dando de ombros.
O silêncio preenche o carro mais uma vez, e eu espero
que ele não pergunte, com pena ou surpresa, se nunca tive
ninguém depois dele.
Guilherme toca meu rosto e, quando eu não protesto,
o acaricia. Nos encaramos por alguns instantes, a mão dele
toca minha bochecha, afaga meu cabelo e roça na minha
nuca, me fazendo respirar bem fundo, o que é uma má ideia
porque o desgraçado ainda está cheiroso… Seu olhar, no
entanto, não tem pena. É só… o Guilherme me observando.
— Você é minha namorada de mentira, mas ainda é
minha namorada. Acho que posso ser o carinha que você
gosta por algum tempo. — A malícia dança em seus olhos,
só que a curiosidade presente é maior. — O que você diria
para ele?
Mas eu rio. Acabo com a tensão do momento ao
deixar uma risada histérica escapar.
Por que simplesmente não abro essa porta?
É só abrir e sair que tudo isso acaba.
— Não tem como conversar com ele depois de passar
a noite inteira com você. — Encolho os ombros como se isso
fosse um princípio básico. — E eu beijei você e gostei, e
talvez ele não quisesse saber disso.
E aqui está.
Não saí desse carro ainda porque não quero sair.
Quero ficar e ver aonde os olhos de açúcar mascavo
vidrados em meus lábios podem me levar.
— Ótimo. — Ele tira o cinto e se vira de lado no banco,
ficando de frente para mim. — Conversa comigo então. O
que você me diria se pudesse me falar qualquer coisa?
Você me machucou muito, mas é tão bonito de rosto e
minha cama é de casal, vamos subir?
Reflito por alguns instantes, sem chegar a lugar
nenhum.
— Não… não sei se tem algo que… eu queira falar —
praticamente gaguejo. — Mas acho que a gente precisa
voltar a ter limites. Todo mundo já sabe que a gente tem um
relacionamento, não precisamos mais ficar nos beijando
toda hora — digo me sentindo a mais forte das mulheres.
Mas Guilherme brinca com o piercing em sua língua, me
fazendo engolir em seco e desviar o olhar.
— Entendo. É verdade. Todo mundo comprou a gente,
e faltam poucas semanas pro nosso fim — pondera as
informações em voz alta, tocando meu queixo e me fazendo
encará-lo. — Então a gente se afastar também faria sentido,
né? — pergunta, com os olhos nos meus e num tom tão
irônico que nem consigo assentir. — Com isso, eu queria te
fazer uma proposta — diz se aproximando.
Uma proposta, vinda de Guilherme, não me parece
algo bom ou aceitável nessa altura do campeonato.
Principalmente pela proximidade que ele está de mim
agora.
— Que é? — indago, ainda com a sobrancelha
arqueada.
— Lembra quando você disse que nosso beijo de hoje
não vai se repetir? — Guilherme pergunta, se inclinando um
pouco mais para mim, levando uma das mãos à minha
cintura. E eu assinto sem saber se o empurro ou o trago
para mais perto. — Já que a gente vai parar, acho que pode
fazer um acordo de apagar as últimas horas da nossa mente
e fingir que elas nunca aconteceram, você consegue fazer
isso? — sussurra, sua respiração banha meu rosto e me
sinto quase inebriada por ele.
— Aham. — A palavra sai num quase gemido quando
sua mão encontra o decote do meu vestido nas costas e
sobe, vagarosamente, por ele.
— Me esquecer é fácil assim, é? — Ele ergue as
sobrancelhas surpreso, arrastando a ponta de seu nariz no
meu, e eu assinto mesmo estremecendo. — O Rick está
errado, Coisinha. Você é uma garota má — diz enquanto sua
mão livre toca minha perna esquerda, puxando-a para cima
do banco e me deixando de frente para ele.
Todas as minhas terminações nervosas pulsam. Sinto
que vou morrer com seu toque em todos os lugares e seus
lábios tão perto, mas ainda tão distantes dos meus.
Vou literalmente morrer de tesão.
Triste fim.
— Fala a proposta, Guilherme. — Minha ordem sai bem
mais demorada e trêmula do que eu esperava.
— Queria saber o que você acha de me deixar te
beijar mais uma vez, só mais uma vez, e aí depois a gente
esquece a noite toda… — ele sussurra em meu ouvido,
roçando o piercing gelado pelo meu pescoço em seguida.
— Só mais um último beijo? — É inevitável fazer
alusão à música que tocava no rádio quando chegamos aqui
e que ele usou para legendar uma das nossas fotos.
— One Last Kiss — garante, roçando os lábios nos
meus enquanto sua mão desce pelas minhas costas,
arranhando-a de leve agora.
Arqueio, arrancando um risinho de lado de Guilherme,
que não tira os olhos dos meus.
— Acho que, se eu fosse lembrar disso amanhã, diria
que você está maluco. Mas já que não vou lembrar, tudo
bem, você pode me beijar de novo.
Ele fecha os olhos como se tivesse esperado muito
tempo por isso e me beija. Com muito mais necessidade
dessa vez. As mãos invadem meus cabelos libertando-os do
coque, descem pelas costas sentindo minha pele, apertando
nas curvas certas enquanto sua língua áspera me faz delirar
junto com seus lábios macios e o piercing…
É como um cetro para o príncipe.
Ele se afasta o suficiente para eu conseguir respirar,
mas o faz mordendo meu lábio inferior vagarosamente, até
soltá-lo por completo e acariciar meu rosto. Meu
principezinho me observa como uma câmera, memorizando
cada pedaço, e eu faço o mesmo com ele. Fotografo o
encanto em seus olhos e gravo a paixão em seus lábios, que
só se intensifica quando ele me beija de novo.
Sem medo.
Sem vergonha.
Sem amarras.
Logo em seguida, também sem pudores.
Sua mão direita sobe pela fenda do vestido, e
Guilherme aperta minha coxa como se quisesse garantir
que não vou fugir, e a esquerda me segura firme contra seu
corpo.
O empurro sem pensar e vejo o susto em seus olhos,
mas faço isso apenas para sentar em seu colo. Trago seu
rosto para o meu, sentindo-o sorrir no beijo e, dessa vez, no
momento que esse principezinho gostoso morde os meus
lábios, um gemido alto e claro escapa, fazendo-o apertar
minhas coxas em resposta, e essa é a melhor sensação do
mundo.
— Coisinha deliciosamente irritante — Guilherme
geme, e o desejo em seus olhos me mostra o quanto ele
queria isso. O quanto me queria. — Coisinha gostosa. — Os
lábios chegam ao meu pescoço, exigentes. — Minha
Coisinha fascinante. — Ele enfia a mão direita pelos meus
cabelos, puxando-os e me arrancando mais um gemido. —
Minha Coisinha favorita no mundo — diz, e seus olhos me
contam uma história que eu preferia não escutar. — Eu senti
sua falta, senti tanto sua falta — Guilherme decreta,
espalhando meus cabelos com as duas mãos, fazendo-os
emoldurar meu rosto como ele tinha comentado. — E eu
gosto tanto de você, Beatriz, tanto. Que tá contigo agora e
saber que isso não muda nada é a pior tortura sob a qual já
me coloquei.
Não, Guilherme. Sentimentos aqui não.
— E eu perguntaria “Por que você me deixou?”, “Por
que você foi embora?”, “Por que você nunca ligou?”. Mas
nada disso importa agora, então cala a boca. O mestre
mandou você me beijar, Principezinho idiota — afirmo,
passando os braços pelo seu pescoço.
— O mestre mandou? — O roçar do piercing de
Guilherme no lábio inferior agora demonstra sua surpresa,
mas ela não é, de maneira nenhuma, uma surpresa
negativa.
— Uhum. O mestre mandou — sussurro a centímetros
dos seus lábios, ansiando pelo beijo, mas esperando que ele
cumpra a ordem.
— Você ainda vai acabar comigo — ele rebate,
correndo a mão direita pela lateral do meu corpo e me
puxando para si com a esquerda envolta em meus cabelos.
Me beijando de uma maneira mais intensa e mais profunda.
Meus lábios correm pelo seu pescoço, sua mão aperta
minha perna nua, e eu permaneço sentada sobre ele de
modo desajeitado e confuso.
Ainda assim, eu queria isso.
Mesmo que não assumisse, eu precisava disso.
E é errado, eu não devia deixá-lo entrar. Sei que não
vamos esquecer e não vamos parar. No entanto, a única
coisa que quero é subir. Eu quero entrar no meu
apartamento, deitar na minha cama e quero que Guilherme
esteja comigo.
Mas não posso fazer isso, e ele não deveria estar aqui.
Então mordo seu lábio inferior lentamente, me afastando, e
respiro fundo antes de dar dois tapinhas no rosto dele e
dizer:
— É hora de você ir para casa. — Desço de seu colo, e
seu olhar nublado denuncia a confusão, mas ele não diz
nada. Esse era o acordo desde o princípio. — É hora de a
gente esquecer.
Ou pelo menos fingir.
Guilherme apenas fecha os olhos por alguns segundos
e, quando os abre, a vermelhidão denuncia que tem
lágrimas presas ali. Elas me parecem convidativas, como se
pudessem lavar toda minha dor e justificar o que ele fez,
mas eu não posso me enganar agora.
Então eu faço a única coisa que posso.
Pulo do colo dele e saio do carro sem olhar para trás.
Entro no elevador totalmente descabelada e ajeitando o
vestido no corpo, e me sinto um pouco mais segura quando
a porta se fecha à minha frente e o carro de Guilherme fica
mais distante.
Chegando no meu apartamento, descanso o corpo na
porta, ainda sorrindo, como se não tivesse cometido o pior
dos erros, e pego meu celular, pressionando o botão de
chamada no contato de Nina.
Espero que minha amiga crente me lembre de todos
os motivos pelos quais esse incêndio dentro de mim tem
que morrer.
@QueenBLopes

[4]
Capítulo 17
Ou: Quando ela parou de ser a Coisinha e se tornou a
Minha Coisinha?
Guilherme
Eu odeio reuniões.
Quando penso na minha carreira, penso em cantar,
tocar violão, guitarra ou piano, mesmo não sendo expert no
último. Assim, estar sentado numa sala enorme com meus
colegas de banda enquanto o gerente da nossa turnê no
Brasil caminha com as mãos nos bolsos do lado oposto da
mesa e repassa exigências — que já tinham sido entregues
— sobre os camarins dos shows e os traslados — que ora
serão feitos em voos particulares, ora no ônibus da banda,
como já estava acordado — não é o meu ideal de meio de
semana.
Porém, como preciso que todo mundo aqui concorde
com algo fora dos padrões, decidi ficar no sapatinho e não
demonstrar desinteresse, mesmo checando o celular a cada
dez minutos.
O olhar de Alexandre sobre mim agora, no entanto,
me garante que um aceno ou sorriso condescendente não
vai ser o bastante.
— Vamos falar do seu namoro! — Alex anuncia,
estalando o dedo em minha direção, e meneio a cabeça,
porque, bem, essa hora com certeza chegaria.
Nos quase dois meses de namoro falso com Beatriz,
muitas coisas repercutiram tanto em páginas de fofoca
como dentro dos nossos fandoms. Era legal, e às vezes até
engraçadinho. Mas nada, nada no mundo me preparou para
o que aconteceu nas redes sociais depois de sábado.
Diferente do que acreditávamos, pelo menos uma das
Vagabonders conseguiu se infiltrar no estacionamento de
Beatriz e tirou uma foto nossa, com uma nitidez
impressionante demais para um carro com o máximo de
vidro fumê permitido pela lei.
Se antes disso todo mundo achava que éramos um
casal fofo, agora todos esperam que eu componha uma
música com as mais variadas segundas intenções, a
#ChádaBia foi a quarta mais falada do Twitter, e a
quantidade de vezes que li algo sobre “Fic GuiBia Ceo e
Pobre” e “Mafiosos rivais” +18 me assustou.
Mas, se eu der atenção a essas coisas, vou
enlouquecer, porque não faço ideia de como isso afetou
Beatriz, já que ela não me atende ou responde minhas
mensagens desde sábado.
— A gente não precisa falar sobre isso, a Alê… —
tento deixar o assunto enterrado e lembrá-lo do nosso foco
principal na reunião: Apresentar Alessandra aos meninos,
mas ele me ignora.
— Precisamos. Vamos falar do seu relacionamento
lindo e glorioso que está tanto em páginas de fofoca quanto
na mídia tradicional — ironiza. Coço a nuca olhando para
Thomas à minha direita, como se ele pudesse me tirar
daqui, mas meu amigo encolhe os ombros. — Como é que a
gente acaba com esse caos sem explodir a turnê de vocês?
— Ele joga a pilha de papéis na mesa.
— Conforme o combinado… — começo a falar com
todos os olhos da sala focados em mim. — A gente teve
data para começar e tem data para terminar essa parada.
Faltam duas semanas para isso. Você pode ficar calmo.
— Entendo que tivessem um cronograma lá atrás —
diz se sentando. — Mas a última aparição dos dois conta
com vocês quase se comendo dentro de um carro. E, por
algum motivo, a Miss discrição a postou em seu perfil
pessoal com uma legenda nada amigável para um público
tão jovem quanto o de vocês, então… — Alex cruza os
braços, esperando uma resposta.
Me seguro para não rir. Aparentemente, eu tenho
dezessete anos de novo.
Estou sendo repreendido por beijar Beatriz como se
nosso público inteiro fosse composto por Amish de doze
anos.
— Já te avisaram que o A.J. desce do palco e beija uma
fã, na boca, de língua, em todos os shows, né? — Richard,
que está sentado de frente para mim, coloca o indicador na
mesa e pergunta a Alex com as duas sobrancelhas erguidas.
Alexandre abre a boca para dizer alguma coisa, mas Rick o
impede. — Pois é. Cada uma das nossas Vagabonders sabe,
exatamente, o que é um beijo na boca, pode ficar tranquilo.
— A repercussão foi ótima, vocês são quentes… —
A.J., ao lado de Richard, diz com um joinha, e eu devolvo o
movimento sem criar caso, porque sei que meu amigo só
está tentando ajudar.
— Pois é, Alex — tomo a palavra. — Começamos

devagar, evoluímos até uma coisa mais intensa e agora é


hora de entender que: “A gente não cabe mesmo na vida
um do outro, e que a rotina de gravações dela e a minha
rotina com shows vai jogar tudo isso por água abaixo” —
digo, e ele engole em seco, mas me observa ponderando.
— E, convenhamos, foi uma resposta bem melhor do
que tentar negar ou abafar, o que geraria um alarde muito
maior — Thomas pontua.
Nossos olhos estão em Alex, que meneia a cabeça
sem olhar para ninguém em específico.
— E vocês têm certeza de que as coisas vão ser
simples assim? — pergunta, mais preocupado do que
irritado, e eu respiro fundo abaixando a guarda.
— Não vai ter nenhum escândalo, Alex — garanto,
apoiando os cotovelos na mesa e me inclinando sobre ela.
— Só temos mais duas semanas. Conforme a turnê e a
novela caminharem, e a gente não for mais visto juntos, as
coisas vão… Como posso dizer? Voltar a ser como antes. —
Cada uma dessas palavras foi planejada há meses, agora
parecem erradas. Parte de uma mentira que eu não quero
mais contar.
Mesmo sabendo que cogitar uma relação com a minha
Coisinha exigiria destruir muito do que ela pensa sobre o
pai, e aceitar qualquer julgamento que Beatriz faça sobre
mim, talvez eu esteja disposto a deixar ela saber a verdade.
Talvez eu aceite sofrer cada consequência disso se o
resultado for a gente tentar.
— Você vai precisar confiar na gente dessa vez — digo
depois de perceber todos me encarando, e meus três
amigos assentem.
— Eu vou confiar em você, Guilherme — diz com o
indicador direito em riste — Você é o nosso frontman e está
me garantindo que não haverá crise, então vou confiar em
você — Alex diz, passando a mão na mesa, recolhendo os
papéis. Em seguida os ajeita em uma pilha e põe na cadeira
mais próxima. — A última pauta da reunião é a Alê
Saldanha. — Alexandre aperta um botão no telefone no
centro da mesa e pede à sua secretária para conduzir
Alessandra até a sala.
— Tem… — engulo em seco, procurando as palavras
certas — uma coisa que eu não comentei, eu… compus uma
música nova para a turnê… — digo o que me manteve no
sapatinho a reunião toda.
Três pares de olhos se voltam para mim. Bocas
abertas e cenhos franzidos complementam as reações, no
mínimo, assustadas com a possibilidade de uma música
nova entrar na setlist duas semanas antes do primeiro
show.
Já Alex para no caminho entre a mesa e a porta e me
observa por alguns segundos, porém, ouvindo Alê bater
duas vezes na madeira, ele continua o percurso como se
quisesse fingir que eu não disse nada.
Mas compus a música e não abro mão dela nos shows,
porque, ainda que tudo pareça confuso agora, preciso
deixar claro para Beatriz que talvez a gente valha a pena.
Talvez um relacionamento à distância não seja tão
ruim assim.
Talvez ela consiga me perdoar pelo passado e, com o
tempo, voltar a olhar para mim como mais do que o carinha
que ela gostou de beijar num estacionamento e…
Talvez, com muita sorte, ela pudesse ser a minha
Vagabonder número um para sempre.
Afasto esses pensamentos me levantando no
momento que Alê entra no cômodo exatamente como eu
me lembrava. Cachos cheios e esvoaçantes e cores. Uma
calça rosa, uma dessas blusinhas coloridas que mostram a
barriga e bolsa e sapatos marrons.
Ao mesmo tempo, nada que chame atenção, nada
esquisito. Só… cores e acessórios nas pontas do cabelo. Me
dirijo até ela, com os braços abertos, e a recebo num abraço
rápido.
— Oi, Gui. Tudo bom?
— Tudo. — Eu me afasto segurando seus ombros. —
Pronta?
— Pra fazer música? — Ela franze o cenho e sorri
numa careta de desdém. — Tive que nascer pronta, né? —
ironiza me dando a segurança de que preciso.
— Bom, galera, essa é Alê — digo, nos colocando de
frente para eles. — Ela é uma das melhores musicistas que
conheci — garanto ao caminharmos para a mesa.
— Bem-vinda, Alê — Thomas diz, e os outros dois
acenam.
— Bom dia — cumprimenta a todos se jogando na
cadeira ao meu lado, e sua voz melodiosa fica muito bonita
com o sotaque. O que só me anima ainda mais para a
música nova. — Obrigada pelo convite, é uma experiência
diferente, mas que me deixou muito animada. E não se
preocupem: Meu inglês é bem melhor quando canto. — Seu
leve sorrisinho traz descontração.
— Não precisa se desculpar por isso, é normal — Alex
pontua, e nós estamos prontos para assentir, mas ela franze
o cenho confusa e inclina a cabeça para a direita.
— Mas eu não tô me desculpando, eles que tão no
meu país. — Ela ri, tentando conter o desdém intrínseco.
A.J. me dá um chute por baixo da mesa, e me viro
para repreendê-lo, mas seus olhos fixos em Alessandra
deixam claro que ele nem percebeu o movimento.
— De qualquer forma, a gente pode pedir um tradutor
se for mais confortável para você.
— Acho que ela tá tranquila, cara. — A.J. comenta,
prendendo o cabelo longo num coque samurai. — E a gente
consegue alinhar mais um sotaque à nossa mistura —
garante, piscando para Alê, e ela meneia a cabeça sorrindo
sem mostrar os dentes.
— Inglês não é a primeira língua do Gui e do Thomas
— Rick explica no seu português cheio de sotaque. — Então
você pode ficar de boa.
— Obrigada, como o olhos de mel ali disse, eu tô
tranquila. Mas é legal ser bem recebida. — Alê joga os
cabelos por cima do ombro animada.
— A primeira parte da reunião geralmente é dedicada
às introduções e a quebrar o gelo — Alex toma a palavra e,
pelo que conheço dele, está prestes a começar os trabalhos
—, mas já que todo mundo aqui tá muito confortável, vamos
partir para os negócios. Sua empresária vem? — ele
pergunta diretamente para Alê.
— Não. — A garota se remexe na cadeira, menos
confortável com essa pergunta do que com seu inglês. —
Como a gente já assinou todos os contratos, não vi
necessidade.
Alex assente e começa a falar sobre Alê e seu talento
e todas as coisas que nós já sabemos, e tiro meu celular do
bolso, buscando alguma mensagem, chamada perdida, e-
mail ou sinal de fumaça de Bia. Mas, das cento e quinze
conversas esperando resposta, nenhuma é dela, o que me
preocupa, porque temos um encontro hoje à noite, um que
estava marcado desde antes desse caos.
— A Alê foi o ato de abertura indicado por um dos
integrantes, como vocês já sabem. — Alex pesca minha
atenção com esforço, e eu guardo o celular no bolso do
Jeans. — Apesar de a gravadora não ter ficado muito
satisfeita em não colocar alguém da casa, bati o pé por ela
— explica com os olhos em Alê. — Apesar do som dela ser
um pouco diferente do de vocês, a garota tem a cara do
Brasil, o público já conhece pelo contato com o Guilherme,
então não tinha como a gente conseguir trazer a carga de
nostalgia pros fãs antigos de uma maneira melhor.
— Visto que ele já namora a outra integrante da
antiga banda, né? — A.J. pontua o que todos estão
pensando, e eu assinto.
— Fico duplamente feliz por esse namoro então — Alê
brinca com uma piscadela para mim. — Mas, de verdade,
trabalhar com Gui outra vez e estar na frente do público de
vocês mostrando meu trabalho é algo surreal. Muito
obrigada, de verdade, por aceitarem a sugestão do
Guilherme. Por terem me aceitado.
Todos abrimos a boca para tecer comentários
condescendentes, mas A.J. se inclina sobre a mesa, na
frente dela, e semicerra os olhos, lançando um “Tá
brincando?” e, quando ela não responde, ele prossegue:
— Você é sensacional. Como um músico que escutou
mais vezes Glenn Gould do que poderia contar — A.J. cita
um dos maiores pianistas canadenses, e eu pisco duas
vezes tentando entender aonde ele quer chegar —, ver você
tocar piano é muito irado. É como se seus dedos flutuassem
sobre as teclas — conclui, jogando as costas na cadeira
outra vez, e Alê ergue o canto direito da boca em satisfação.
— Sem gracinha, A.J. — Thomas o repreende com dois
tapas rápidos na mesa, mas A.J. nega com a cabeça.
— Nossa, Thomas — diz ofendido, e meu olhar cruza
com o de Rick, que ergue e abaixa as sobrancelhas
rapidamente, concordando com nosso baixista. — Foi só um
elogio — ele diz, como se não se apaixonasse por qualquer
ser humano que respire.
— Eu queria que a Alê falasse um pouco do que está
pensando para o show dela — interrompo o clima estranho
que se formou.
Alessandra joga a bolsa, que ainda estava no ombro,
no chão, e começa a explicar a intenção de trazer
composições dela, mas também cantar alguns covers que
ela popularizou em seu Instagram, bem como as músicas
que ela cantava solo na GenZ.
Todos prestamos atenção. Mas os cotovelos de A.J.
pousados na mesa e seu queixo apoiado sobre as mãos
fazem com que fique muito claro o quanto ele está atento.
Só peço a Deus que esse cara não nos envergonhe de
alguma forma.
Tudo o que Alessandra tem para dizer, além da setlist,
a gente já sabe. Os meninos viram vários vídeos comigo. O
show dela tem muito de piano e violão, mas guitarras e
baterias são bem-vindas.
— E, claro, eu aceito sugestões se vocês tiverem
alguma — finaliza, como a artista versátil que é.
— Comentei com os rapazes antes de você entrar que
tenho uma música nova — digo, e ela me observa pegar o
celular, curiosa. — Foi algo que compus nas últimas
semanas e passei para o Victor como a proposta de a gente
fazer um… “ato de transição” talvez? — Envio o PDF com a
música para ela, que pega o celular na bolsa
imediatamente.
— Ah, você falou com o Victor antes de falar com a
gente? — Thomas cruza os braços ao meu lado.
— Desculpa, cara. É que foi uma coisa que compus de
uma noite para a outra e precisava de uma opinião de fora.
— Coço a nuca com o olho direito fechado tentando me
desculpar. — Queria saber se eu não tava doido.
— Tá, mas como assim “ato de transição”? — Richard
me encara com uma das sobrancelhas tão arqueadas, que
quase me atinge fisicamente.
Dou graças a Deus por A.J. estar tão vidrado na
Alessandra; ao menos um deles não virá para cima de mim.
— A música é um dueto! — Alê responde Richard
animada, correndo o dedo pela tela do celular. Talvez por
querer me ajudar, talvez pela esperança de que, se todo
mundo olhar para ela, o modo como A.J. nem pisca agora a
faça sentir um pouco menos desconfortável. — A ideia seria
uma transição mesmo, a última música do meu show, a
primeira do de vocês.
— E como é a música? — A.J. pergunta rápido e alto.
— É um diálogo em português e em inglês —
respondo, livrando-a da atenção dele — muito intimista,
apesar de ter um estouro no refrão. E eu me sentiria mais
confortável se um dos outros rapazes cantasse. — Dessa
vez, falo diretamente com Alex.
— Mas você é o líder da banda. — Alex ri como se eu
tivesse dito algum absurdo, e minha cara de bunda faz com
que ele adicione: — Querendo ou não, vocalistas sempre
são. Então talvez isso seja um tiro no pé. As meninas podem
passar aquele tempo inteiro esperando para você entrar —
fala com o cenho franzido e as mãos sobre a mesa.
— Em outras bandas, talvez, mas nosso contato com
as Vagabonders faz com que elas abracem a todos nós.
Todo mundo tem seu momento, sua música, seu solo. Talvez
por ter começado num grupo musical com outras pessoas —
aponto para Alê, a prova viva da experiência com a GenZ —,
nunca tive problema em dividir holofote.
— Todo mundo de acordo com uma música nova? —
Alex os observa atento.
A Alê assente, com o olhar de quem gosta de desafios
em mim. E os três se entreolham dando de ombros, mas
confirmam com a cabeça.
— Vai ser legal, vocês vão ver! — garanto, mirando
Alê.
— Ótimo. Meu trabalho com vocês está encerrado por
hoje. Vou pedir à Vanessa para preparar uma sala onde
possam se reunir e decidir como querem fazer isso — Alex
informa. Mesmo a contragosto, ele está cooperando. — Vou
dizer também para ela separar uma sala na gravadora pra
vocês ensaiarem e brincarem com essa música nova o
quanto quiserem nos próximos dias.
— Obrigado por entender, de verdade — digo,
estendendo a mão para ele, que a aperta com uma força
desnecessária e sorri com ironia.
— Eu desaprovo uma música nova. Eu desaprovo um
ato de transição, mas já percebi também que não tenho
poder nenhum sobre esse show. Que vocês e as… — Ele
semicerra os olhos buscando o nome do fandom.
— Vagabonders — a banda responde em uníssono, e o
nome faz Alessandra deixar um risinho escapar.
Quando A.J. sorri olhando para ela, mesmo que nem
perceba, eu, Thomas e Richard bufamos cientes de que a
manhã vai ser longa.
— Fazem o que querem, como querem e, se está
dando dinheiro, não sou eu quem vai reclamar. — Encolhe
os ombros, soltando minha mão finalmente. — Então vamos
começar — Alex diz e volta sua atenção para o telefone.

— Cara, você não era ator? — A.J. questiona no


segundo que entramos na cobertura, e eu o encaro sem
entender. — Podia ao menos fingir que estava interessado
na reunião e no ensaio. Mas toda hora ficava com cara de
paisagem olhando para o nada ou para o celular enquanto
eu e Alê estávamos ensaiando a sua música.
— Essa parte foi meio assustadora, eu diria — Thomas
deixa sua opinião na roda antes de se retirar em direção ao
banheiro do corredor.
— Sorte que metade da reunião foi sobre você, senão
o Alex teria percebido que você nem estava lá. — Rick ri se
recostando à porta, e A.J. se joga no sofá depois de tirar o
tênis.
— Vocês sabem que reunião pra mim e nada é a
mesma coisa. Meu trabalho é compor e cantar, já me
impediram de compor boa parte do último CD, então o
máximo que eu podia fazer por aquela reunião era estar
presente e introduzir a Alê — rebato, tirando os sapatos ao
lado da entrada. — E vocês estão viajando na última parte.
Fiquei super de boa quando fomos ensaiar a música nova
com a Alê. — Trago ela para o assunto, dando um novo
roteiro a A.J. — E você e ela se encaixaram tão fácil, que
preferi nem dar pitacos.
— Além de cantar como um anjo, a emburradinha é
linda demais — A.J. diz, e eu bato em seus pés ainda de
meia, pedindo espaço para sentar. — Não tinha como não
encaixar.
— A Alê é legal. E solteira. — Dou corda.
— Como você sabe? — pergunta, estendendo a mão
para a mesa de centro e pegando o controle, como se
estivesse em casa.
— Comentei que o ato de abertura dos shows na
Europa está com conflito de agendas com a turnê e
perguntei se ela teria interesse. Já que canta em português,
inglês e espanhol — explico, e A.J. meneia a cabeça,
interessado mesmo em quando vou chegar na solteirice. —
Ela aceitou prontamente e brincou que nada a prende aqui.
— Isso é muito bom — A.J. diz pensativo, com os olhos
sendo comprimidos pelo sorriso, e eu nego com a cabeça.
— O apelido dela era “Alê coração de pedra”, cara.
Não faz isso com você — aviso antes que ele se enforque
com a corda que dei.
— Não quero me casar com ela, Guilherme, só beijar
na boca, relaxa… — rebate, me fazendo dar um tapa em
sua perna.
— Mas e você e a menina que você gosta, não vai
rolar mesmo, é?! — Richard pergunta, trocando o peso de
perna e balançando os cabelos.
— Não, Richard. Por que, você tem interesse?
Por mais que tenhamos resolvido esse assunto, a
imagem dele com a mão na perna de Beatriz naquele
Pocket Show dos infernos ainda me assombra.
— Muitas pessoas têm interesse pela Bia — pondera, e
eu poderia arrancar essa palavra da boca dele. — Ela é uma
das pessoas mais bonitas que conheci em toda minha vida.
Por dentro e por fora. Então, talvez, se você for o idiota que
não vai fazer o que tem que ser feito, eu tente. — Inspira
cruzando os braços e me olha como se eu fosse o maior
imbecil da face da terra.
O que quase me faz acreditar que dizer para a garota
que eu abandonei há anos que a quero de volta é
molezinha.
— Ele tem um ponto, sabe, é meio visível que você
gosta da garota, não vai nem tentar? — É Thomas, recém-
saído do banheiro, quem pergunta.
— Foi tudo muito complicado entre nós dois, vocês
sabem.
— Não pode abrir mão da sua vida por causa da
opinião de um cara morto. — Rick caminha em minha
direção cruzando os braços. — Não faz sentido.
— Eu gosto da Beatriz, e ela sabe tudo que sinto,
penso e quero… — digo vagarosamente, lembrando de
quando deixei tudo isso claro no beijo que demos no carro.
— Então depende muito mais dela do que de mim, sabe?
A.J. enfia a cara na TV e aperta o botão de um
streaming, mas joga o controle no sofá e pega o celular do
bolso, provavelmente indo até o perfil de Alessandra.
Thomas coça a nuca desviando o olhar de mim para o chão,
e Richard segura a ponte do nariz com o indicador e o
polegar e respira fundo antes de olhar nos meus olhos e
dizer:
— Morei um ano na tua casa e não tinha percebido
que teus pais tinham criado um frouxo — diz, indo em
direção à cozinha, e eu me levanto, indo atrás dele.
— Richard, você já foi à casa do cacete, hoje? —
pergunto em português e, sem esperar resposta, saio da
sala.
— Não — ele responde, pousando uma garrafa de
vidro e seu copo d’água na ilha, no meio do cômodo —,
mas, se a garota que eu amo estivesse lá, com certeza teria
ido e explicado como as coisas aconteceram no passado.
Contaria a verdade e tentaria fazer a gente dar certo de
alguma forma — debocha e vira sua água em seguida, cada
gole evidenciando seu pomo de adão acentuado, e eu deixo
a sala sem dizer mais nada.
Porque não, meus pais não criaram um frouxo. Então
talvez exista alguma possibilidade do passado não definir o
nosso futuro. Talvez, mesmo que eu ainda não saiba
exatamente como lidar com o quanto gosto dela, ela
mereça saber que eu gosto.
Entro no quarto, e Elvis apenas levanta a cabeça, do
meio da minha cama.
— Levanta, garoto — digo, pegando o celular na mesa
de cabeceira. — Eu vou mandar uma mensagem para ela.
Não é porque ela não me responde há seis dias que não vai
responder hoje, certo?
Elvis late e gira em cima da cama. Então pula sobre
mim, pousando as patas no meu ombro e lambendo meu
rosto.
— Tudo bem, eu vou ligar — digo, mas ele late mais
alto. — Elvis, eu vou ligar para ela — repito, o controlando e
colocando suas patas na cama novamente. — Fique quieto,
vou ligar para ela.
Tento ligar pelo aplicativo de mensagens instantâneas,
mas Beatriz não me atende. O que já era esperado. Porém,
antes que eu devolva o telefone para a cabeceira, Elvis me
lembra, com dois latidos e um rosnado, que posso ligar
diretamente para o número dela. Caminho até a janela à
esquerda da cama e pressiono o botão de chamar.
Depois que o telefone chama pela quinta vez, eu
balanço a cabeça negativamente para Elvis, avisando que
vou desistir, mas ouço o “Oi” dela assim que tiro o aparelho
do ouvido e o levo de volta.
— Oi, Guilherme. Me perdoa o sumiço. De verdade —
ela jorra as palavras tão rápido que eu mal compreendo
todas. — Acabei ficando cheia de trabalho, e apareceu uma
publicidade doida de última hora, precisei viajar para fazer!
E minha mãe quer me matar por causa daquele beijo, ou da
foto, sei lá. Eu não queria te dar ghosting, eu só… — Beatriz
respira fundo duas vezes, e sinto que ela vai voltar a falar,
então o faço primeiro.
— Oi, Coisinha ansiosa. Tudo bom? Como você tá? —
digo calmo, rindo para o Cristo Redentor com seu
nervosismo. — Senti sua falta esses dias.
Ouço-a deixar um riso escapar do outro lado, e
inspirar antes de voltar a falar.
— Ah, oi. Eu tô bem. E talvez eu estivesse, sim, te
dando um ghosting por causa da repercussão da foto —
confessa, manhosa e sem jeito.
— Sua mãe ficou muito brava? — pergunto baixo,
como se isso pudesse amenizar a resposta.
— Ela não ficou feliz, óbvio, mas ficou mais chateada
por ter descoberto que a gente… Você sabe. Por uma foto.
— Foi meio inesperado mesmo você postar.
— Eu sei, mas liguei pra Nina, ela demorou a atender.
Teve o frisante, o beijo também me deixou meio fora de
órbita, e eu tava tão gostosa — ela sussurra, mas se corrige
imediatamente —, nós estávamos! Culpa daquele seu terno,
que raiva.
— O que você me mandou usar? — Ergo a sobrancelha
direita, porque ela só pode estar brincando.
— Uhum. Mas, mudando de assunto, eu ia mesmo te
ligar — ela diz com a voz arrastada, e eu me sento na ponta
da cama ao lado de Elvis. — Você ficaria muito chateado se
a gente não jantasse junto hoje? Eu tô morrendo de cólica!
— Nossa, Bia, que chato — digo, porque ela
geralmente toma remédios de seis em seis horas para
conseguir levar uma vida normal nesse período. — Tá
precisando de alguma coisa? Um remédio? — Minhas
perguntas se atropelam.
— Não, só repouso — fala de novo baixinho, mas,
antes que eu responda, ela volta a falar. — Sei que seria
nosso último encontro antes da turnê, mas a gente pode
fazer alguma coisa em quatro dias!
Passo o braço direito por Elvis, puxando-o para perto
de mim e me deito com ele ao meu lado como se tivesse
tomado um soco no estômago.
— Vou pra casa da minha avó semana que vem, é
aniversário dela. Mas fica de boa. Descansa e repousa. A
gente dá um jeito — digo forçando descontração, mas o nó
em minha garganta me faz engolir em seco e pressionar os
dentes uns contra os outros para não deixar uma lágrima
teimosa cair.
Eu precisava desse jantar. Conversar com ela, mesmo
que a gente não resolvesse nada, ainda que fosse só… vê-
la.
— Ah, a gente pode se ver na turnê! Quero ir num
show, gosto dos meninos e do som de vocês — diz,
animada, apesar da voz se arrastar, e eu esboço um sorriso
orgulhoso. Que bom que ela gosta das nossas músicas,
compus todas para ela. — Eu posso ir ao primeiro, e a gente
começa a se afastar depois dele, o que você acha?
— Acho ótimo — minto, não quero que ela apareça no
meu show para ver os meninos tocando. Quero conversar
com ela, ter tempo, olhar em seus olhos e, se preciso, ouvir
de seus lábios que não tem a menor chance para nós dois.
— Eu consigo uns ingressos vips para minha namorada.
— Muito obrigada por entender. A gente se vê no show
— diz, e não tem muito o que eu possa fazer para manter
uma mulher com dor falando comigo.
— Melhoras, Bia. E eu ainda sou seu namorado e estou
no Rio, então qualquer coisa me grita — digo me levantando
e querendo bater a cabeça na parede.
— Obrigada, Principezinho. Vou desligar e chorar
porque meu chocolate acabou, enquanto troco minha bolsa
de água quente.
— Bolsa de água quente nesse calor infernal do Hell
de Janeiro? — pergunto como se tivesse ouvido errado.
— É bolsa de água quente ou chamego do namorado.
Como meu namorado é de mentira, não tem muito que eu
possa fazer, né?
Tem sim. Ela sabe que tem, mas jamais pediria.
— É verdade, então é isso — digo, indo em direção ao
banheiro do quarto para tomar uma ducha. — Vou te deixar
em paz. Melhoras, tá? Beijos.
— Beijos. E espero que você tenha um tempo incrível
com sua família.
Eu vou ter, Coisinha.
Mas, primeiro, vamos cuidar de você.
Capítulo 18
Ou: Tulipas vermelhas significam amor verdadeiro e
eterno.
Beatriz
Eu tinha quinze anos quando li a pior série de livros de
todos os tempos, não lembro exatamente como cheguei
nela, que foi publicada em 2012, mas lá estava eu, lendo Os
Imortais, Para Sempre entre uma gravação da Geração Z e
outra.
De todas as coisas sem sentido e chatas que li
naquele livro, uma ficou comigo. O significado de uma flor
importante para a história. As tulipas vermelhas. Dividi a
informação com Guilherme por acaso, mas ela acabou se
tornando a “nossa flor”. A que ele me dava todas as vezes
que queria me presentear em datas importantes, ou me
surpreender sem motivos.
Tulipas vermelhas significam amor verdadeiro e
eterno, e não há mulher neste mundo que suporte a
condenação de estar namorando de mentira um cara que
ela poderia, facilmente, namorar de verdade.
Entro no elevador, encarando a Beatriz sorridente do
espelho, segurando uma cesta com seus chocolates
favoritos em uma das mãos e sei que ela sorri e suspira
mais pelo fato de Guilherme ter lembrado quais eram, do
que pelo presente em si. Meus olhos caem até o buquê
carregado junto ao seu peito, e o cheiro das lembranças é
mais forte do que o leve e adocicado aroma das flores. Só
quando a porta abre no quinto andar e volto a respirar um
ar livre das memórias, condeno seu sorriso e tudo o que se
move dentro dela.
Obrigo o motivo do nosso término a ecoar em minha
mente repetidas vezes durante o trajeto até meu
apartamento. Hesito por alguns instantes diante das flores,
relutante em colocá-las num vaso. Sinto a umidade das
minhas mãos contra o embrulho do buquê, enquanto meu
coração aperta no peito, consciente de que Guilherme não
escolheu as tulipas vermelhas por acaso.
Ele escolheu essas flores porque queria me lembrar de
uma coisa: Tulipas vermelhas representam muito mais do
que flores.
Elas representam a verdade que nenhum de nós dois
tem coragem de pronunciar.
A verdade que eu vejo estampada na logo da banda
dele, nas músicas que ele canta e, apesar de saber
exatamente como tudo acabou entre nós dois, às vezes,
tenho quase certeza de que também consigo ver essa
verdade em seu olhar e em todos os nossos novos
momentos juntos.
Mas Nina vai chegar. Minha amiga vem passar uma
semana comigo, e isso vai acabar. Eu estou carente,
solitária e exausta, é só isso. Não é saudade dele, meu
coração não acelera de verdade toda vez que o nome dele
aparece no visor do celular.
Isso não é paixão e muito, muito menos, amor.
É só nostalgia e carência.
Capítulo 19.1
Ou: O pedido é amor, para viagem por favor.
Guilherme
Nossa reserva de hoje era às 20h00, e parte de mim
achou que devia comparecer, afinal, eu ainda precisava
jantar, e os meninos topariam comer comida brasileira sem
o menor esforço. Só teríamos de levar nossa equipe de
segurança inteira e mudar a reserva de duas para quatro
pessoas, o que não seria difícil com o nome da Vicious
envolvido.
Porém, encarando o relógio às 18h05, enquanto o sol
se põe pela janela do meu quarto, afasto essa ideia da
mente. Primeiro porque não parece certo aproveitar a noite
dessa forma enquanto ela fica em casa trancada com uma
caixa de chocolates e suas dores. E, em segundo lugar, mas
não menos importante: Porque eu sinto falta de Beatriz, e a
ideia de não ter mais nenhum momento com ela antes da
turnê, ou seja, nunca mais, me embrulha o estômago de um
jeito agoniante.
Envio uma mensagem pedindo para que eles me
encontrem na sala de estar da cobertura e pulo da cama
para me trocar.
— Aconteceu alguma coisa? — A.J. brota segundos
depois, enfiando a cabeça dentro do meu quarto pela porta
aberta.
— Na verdade, preciso que vocês me ajudem a pensar
numa coisa. — Caminho até o armário embutido de madeira
escura que se encaixa entre paredes brancas e outros
móveis sóbrios demais.
— Sobre a Beatriz? — pergunta, com dois tapinhas no
batente.
— Uhum. Vai tirar os outros do quarto — peço,
pegando uma blusa e um jeans no armário, e A.J. assente
com os olhos brilhando de ansiedade.
— Ela mudou de ideia? — Thomas pergunta com o
cenho franzido, no segundo em que piso na sala.
Os três, sentados no sofá um U que ocupa boa parte
da sala, me encaram com dúvida, ansiedade e julgamento.
— Quero visitar a Beatriz. Fazer algo legal — digo,
caminhando pelo porcelanato frio. — Mas não quero que o
Alex saiba, não quero a segurança envolvida e preciso fazer
isso sem chamar atenção das Vagabonders — enumero
minhas preferências, erguendo os dedos da mão direta, e
Thomas franze o cenho no mesmo momento que A.J. abre a
boca:
— Claro. Então você vai se vestir de entregador de
pizza e levar um pedido para ela. — A.J. diz com desdém,
como se essa fosse a coisa mais absurda do mundo.
Mas eu paro de andar, e Thomas vê no fundo dos
meus olhos que não é.
— A gente tem seis carros e duas motos na garagem,
mas não acho que você possa enganar ninguém vestido
assim. — Ele aponta para meus trajes de cima a baixo e,
realmente, jeans e gola polo não são exatamente o que
alguém que trabalha pilotando no limite da velocidade
optaria por usar.
— Tenho quase certeza de que, se a gente pedir uma
pizza agora e você oferecer alguns milhares de reais pela
roupa do motoqueiro, conseguimos alguma coisa. Temos
tempo para algumas tentativas nesse sentido — Rick diz,
tirando o celular do bolso. — E se a pizza chegar lá fria,
bem…
— Eu não vou levar a pizza — afirmo, agradecendo
essa ideia genial. — Vou ligar no restaurante e pedir o prato
preferido dela para viagem. Era isso que a gente ia comer
hoje a noite — digo com um sorriso de alívio estampando
meu rosto.
— Vou descer com o A.J. e ver qual das motos você
pode usar. — Thomas levanta em segundo, me encarando
com um misto de orgulho e julgamento que eu não entendo
bem, mas relevo.
— Eu estou pedindo a pizza — Richard balança o
celular.
— Muito, muito obrigado mesmo, galera. Não sei como
faria sem vocês.
— A gente sabe, você agradece quando a gente tiver
precisando conquistar alguém — A.J. diz antes de passar
pela porta de saída, e eu faço um positivo para Richard
antes de sair da sala para fazer nosso pedido.
Se a Coisinha não vai até nossa noite perfeita, nossa
noite perfeita vai até ela.

Estaciono a moto de Thomas na calçada da Beatriz e


desço, ciente de que, se tudo der certo, meus amigos vão
levá-la daqui a algum tempo. Tiro as embalagens do
restaurante de dentro do porta-capacetes com uma mão e
deixo o que vim usando ali dentro. Depois disso, observo
minha imagem no pequeno espelho retrovisor: Jogo o boné
por cima da balaclava, que deixa apenas meus olhos
visíveis e consegue manter meu disfarce intacto, e mal
posso contar os minutos para tirar a calça e a jaqueta que
faziam todo sentido enquanto eu pilotava, mas vão me
assar no calor do Rio de Janeiro.
Caminho até a portaria e aperto o interfone.
— Pois não? — O homem dentro da guarita a dois
metros de mim me observa.
— Entrega para Beatriz Lopes — digo, erguendo o
pacote do restaurante e, depois de me olhar por alguns
segundos, ele avisa que vai interfonar.
— Dona Beatriz disse que já vai descer.
— Não precisa. — Eu me apresso, a possibilidade dela
me mandar voltar daqui é enorme, e a última coisa que
quero é que ela desça com a cólica que me relatou mais
cedo. — Pode dizer para dona Beatriz que fui pago para
subir — dou uma desculpa na qual acho que ela vai
acreditar.
— Mesmo? — o homem diz, parecendo surpreso. —
Tudo bem. — O clique no portão se dá juntamente com a
voz rouca do senhor. Entro, cumprimentando-o, e meu
coração acelera, porque sei que Beatriz mora no penúltimo
andar, mas não tenho ideia de em qual número.
Atravesso o caminho de paralelepípedos me
perguntando como o entregador conseguiu entregar as
flores e os chocolates sem o número do apartamento, mas
percebo que ele não precisava saber. Foi só chegar ali
embaixo e dizer “Beatriz Lopes”, ela acabou de voltar para
os holofotes, é claro que o porteiro saberia que a única
Beatriz Lopes a receber flores por aqui seria a atriz.
Entro no elevador, aperto o número cinco e puxo o ar
com um pouco mais de força pela boca por causa do calor.
O elevador para, faz bip, e é como se o céu e o inferno se
encontrassem. Não vou precisar procurar Beatriz em lugar
algum desse andar porque ela está bem à minha frente e,
assim que as portas abrem por completo, ela olha de cima a
baixo com um leve sobressalto, surpresa talvez, e então
semicerra os olhos para mim.
— O que você tá fazendo aqui? — pergunta de pijama,
dentro de um roupão, com o cabelo enrolado na toalha e as
mãos na cintura, e eu não entendo porque ela falaria assim
com alguém que só queria ajudar. — E vestido de
entregador? Você tem algum problema?
Ah. Ela já me reconheceu.
— Só meus olhos estão de fora, como você…?
— Eu já te vi sem roupa e fantasiado de múmia,
Guilherme. — Ela cruza os braços estalando a língua. — Te
reconheceria de qualquer jeito. Agora desembucha, o que tu
tá fazendo aqui?
— Afrobege e revoltada, do jeito que eu gosto —
brinco quando a porta apita para fechar, mas Beatriz passa
as mãos no ar, impedindo-a, e erguendo uma sobrancelha
que me exige explicações. — Como você estava mal demais
para sair, deduzi que, talvez, estivesse mal demais para
cozinhar também. — Encolho os ombros, erguendo as
embalagens.
— Errado você não tava, até pensei que o jantar
pudesse ser obra sua, como os chocolates. Achei atencioso,
mas… — A frase morre e o suspiro desconfortável que ela
solta me alarma.
— Vir até aqui foi uma ideia tão ruim assim? —
pergunto, ainda dentro do elevador, que faz outro bip.
Dessa vez Beatriz apoia as duas mãos nos sensores e ele
para.
— Não foi uma ideia ruim nem uma ideia ótima, só
uma coisa extremamente inesperada. — Bufa, mirando o
chão. — Olha bem pra mim, não estou pronta para receber
visitas.
— Eu mentiria se dissesse que você tá linda agora… —
Seguro o riso, e ela volta a me encarar, seus olhos escuros
como obsidianas me mandam ter cuidado com o que vou
dizer para uma mulher de TPM. — Mas você é a Coisinha
mais linda que eu já vi na vida. Não importa se tá
parecendo a minha avó, ainda é uma gata. — Pisco para ela,
e Beatriz fecha os olhos respirando fundo, sei que está se
esforçando para não rir. — Então se o problema for eu te ver
assim — dou de ombros —, tudo bem, consigo fazer isso
sete dias no mês — ironizo com uma risadinha de canto, e
ela bate em meu peito, agarra minha jaqueta e me puxa
para fora do elevador depois do terceiro bip.
— O que você tem aí? — pergunta, e sei que a minha
permanência nesse prédio depende da minha resposta.
— Arroz branco, fricassé de frango sem azeitona e
com bastante milho e quatro latas de coquinhas bem
geladinhas.
— Tem queijo parmesão? — pergunta desconfiada,
cruzando os braços.
— Não me atreveria a vir para cá sem — digo,
lembrando que exigi um queijo que nem estava incluso no
pedido.
Sua expressão suaviza até se transformar num meio
sorriso. Em seguida ela me dá as costas e começa a andar
me chamando com o indicador.
— Moro no 502, tá? Acho que você ia ficar meio
perdido até chegar lá. Pelo menos só ia bater em uma porta
errada — ironiza o fato de só existirem dois apartamentos
no andar enquanto debocha da minha cara.
Ela abre a porta, me dando passagem.
Bato os sapatos no tapete com “bem-vindo à minha
humilde residência”, que fica logo na entrada, e paro com a
mão dela em meu peito.
— Onde deixo isso? — pergunto, erguendo os pacotes,
e Beatriz os pega de imediato.
— Vou levar para a cozinha enquanto você sai dessa
fantasia e tira esse coturno da minha madeira — ela diz com
uma risadinha, indicando o gancho com algumas bolsas
dela na parede à esquerda da porta.
Tiro os sapatos e a calça e a jaqueta corta-vento,
observando-a caminhar pelo espaço aberto da sala até a
cozinha. Arranco do corpo a jaqueta dois números maiores
que o meu e a penduro no gancho. Depois disso atravesso o
cômodo sobre o piso de madeira aquecida até a janela
enorme do outro lado, que mesmo fechada nos permite ver
boa parte do Rio e a lua brilhando no céu.
À direita da janela, bem de frente para o sofá em L,
está uma estante grande, na única parede que difere do
restante do cômodo. Com seu tom vibrante de laranja, ela
deixa o ambiente um pouco mais aconchegante que todos
os tons pastéis e paredes cor de gelo que ocupam a
cobertura onde estou com os meninos.
A estante é marfim, e chama minha atenção não só
por comportar uma TV de, pelo menos, sessenta polegadas,
mas pela sua enorme coleção de Funkos.
— Todos os High School Musical originais, a Violetta, o
casal de Isa TKM, todos os RBD, a Floribella, os RebeldeS —
identifico alguns dos integrantes das bandas nas quais nos
inspiramos para fazer um bom trabalho com a GenZ na
prateleira acima da TV e sorrio, percebendo que, apesar de
todas as vezes que Beatriz desconversou, a GenZ também
foi importante para ela.
— Gostou? — pergunta da cozinha. — É uma graça,
né?!
— A mulher chorosa no telefone não me pareceu o
tipo de mulher que ia deixar a casa tão arrumada e tão
limpa assim, hein? — Coloco as mãos nos bolsos, vendo-a
caminhar pela cozinha.
Quase consigo vê-la deitada nesse sofá, comendo
pipoca e assistindo aos piores filmes do mundo. Porque é
assim que ela se distrai nesses dias.
— A mulher que inundou sua casa por não saber
manusear uma máquina de lavar com certeza tem uma
diarista. — Beatriz gargalha tirando os copos da parte
superior do armário. — Mas, nossa, nada como chegar de
um dia de trabalho e ter a casa um brinco.
— Nossa, você ainda trabalhou assim?
— Uhum, mas minha personagem levou um tiro, então
a cara de morta veio a calhar — ela brinca, e eu me assusto.
— Você morre? — pergunto com um leve desespero na
voz. — Mas a novela não tá nem na metade!
— Claro que não. — Beatriz me olha de rabo de olho,
tirando um jogo americano de buriti e piaçava do armário.
— Só levei um tiro, vou melhorar.
— Nossa, que susto! — comento e caminho até a
cozinha observando o cômodo. A geladeira fica embutida no
armário principal, no qual Beatriz ainda mexe, à direita. Do
outro lado, o micro-ondas e um forno elétrico dividem o
espaço com uma estação de café. E, na parede de frente
para a entrada, fica um cooktop enorme, cuja coifa é repleta
de ímãs de geladeira.
— Acho que se eu passasse por esse sofrimento todos
os meses, minha casa ia ser um pandemônio nessa época.
— Eu me apoio na meia-parede que divide a sala e a
cozinha enquanto minha Coisinha ajusta o jogo americano e
os guardanapos na mesa.
— Eu não te julgaria. Agora anda, a comida tá na
mesa. Pega os talheres na gaveta do meio. — Beatriz me
indica o armário. — E os pratos na última porta de cima. Já
volto — diz, passando por mim como um furacão.
Faço o que ela pede. A mesa é pequena, tampo de
vidro, quatro lugares. O tipo de mesa boa o bastante para o
anfitrião manter sua atenção no convidado. Observo a
organização feita em poucos minutos e me permito inspirar
o cheiro que sobe da comida, que está divino.
Termino de ajeitar a mesa e puxo uma das cadeiras,
sendo o cavalheiro que ela gosta. Depois disso, paro na
frente do cooktop. Os ímãs parecem presentes, são fotos de
Beatriz com fãs, tem um muito bonito de Minas Gerais
também e…
— Pode servir, você é o chef da noite — ela chama
minha atenção ainda na sala. Sem o hobby e sem a toalha
no cabelo. O pijama também é outro, um todo branco.
Relaxo os ombros e volto à mesa, começando a nos
servir pelo arroz. Mas ainda em choque com o quão pouco
ela precisa para ficar bonita. Talvez Beatriz tenha trocado de
roupa com medo de eu postar alguma coisa nossa com ela
“feia”, só que isso nem passou pela minha cabeça.
Pelo menos hoje, quero guardar cada pedacinho da
noite só para mim.
— Quando você disse que lembrava muitas coisas a
meu respeito, achei que era só uma frase de impacto. —
Beatriz me encara com um meio-sorriso por cima do prato.
— Mas se eu já tinha achado legal você lembrar dos meus
chocolates favoritos, nem sei como te agradecer por trazer
meu prato favorito — pontua e dá uma garfada, seguida de
um gemido.
— Esse foi fácil, vai?! Você sempre pedia a mesma
coisa naquele restaurante que a gente frequentava depois
das gravações — lembro-a com uma garfada e me permito
saborear essa por um pouco mais de tempo, porque o
fricassê está no ponto certo, o creme de milho não rouba o
sabor do frango e o mix de ervas sela o sabor leve que um
prato desses precisa ter.
— É verdade. — Ela arregala os olhos, limpando a
boca com o guardanapo. — Meu Deus, eu era uma chata! —
diz, balançando em seguida o copo com quatro pedras de
gelo para resfriar o refrigerante mais rápido.
— Você só não gostava tanto de PF. — Dou de ombros
como se não fosse nada de mais, mas em seguida prossigo
com um leve deboche: — A princesinha metidinha do papai
e essas coisas.
— Para! — Bia apoia os talheres na mesa e dá um gole
em seu refri. — Mas você tá certo, quando a gente fez o
teste de química, lembro que achei você, a Alê e o Pedro o
máximo, e a única coisa que eu pensava era: Deus, por
favor, que eles gostem de mim. — Ela simula o momento,
com as mãos unidas para a oração. — Eu só queria ficar
famosa, fazer sucesso e ser tão grande quanto meu pai era
na época. Ter pessoas que me odiavam no meu elenco não
era um bom caminho para isso.
— Eu achei que não seria escolhido. — Engulo a
comida junto com o bolo em minha garganta. — Porque
era… você sabe…
— Preto — ela completa. — Pode falar, é um lugar
seguro, ninguém aqui vai te chamar de mimizento — brinca,
erguendo o copo em minha direção para um brinde.
Assinto e deixo meu copo encostar no seu me
sentindo grato. Por ela ter me deixado ficar. Por ter aberto a
porta da sua casa para mim e, apesar de tudo, me dizer que
é um lugar seguro para as minhas inseguranças.
— Isso, então ver você e a Alê me deixou mais aliviado
— confesso, porque apesar de Beatriz ser mais clara do que
Alê e eu, ela ainda era uma garota negra. — E conhecer o
Pedro logo depois fechou tudo com chave de ouro, porque
ele também não era… hum…
— Nepo Baby que nem eu e a Alê — completa,
mostrando que ainda lembra a extensa relação que a
família da Alessandra tem com a música, e eu rio.
Não por ela ter chamado as duas de Nepo Babies. Mas
por ela estar conversando comigo de verdade. De uma
maneira leve e tranquila.
— Isso, então, ter um cara lá, tão fora da zona de
conforto quanto eu, foi o que me fez ficar mais calmo.
— Eu intimidei você? — O queixo de Beatriz cai com
divertimento, e ela dá outra garfada na comida.
— Seu pai era o crush da minha mãe. — Ergo os
braços como se isso fosse o bastante.
Ela mastiga mais rápido e engole, apenas pelo prazer
de rebater.
— E de todas as mulheres do país — desdenha, como
se não fosse motivo suficiente. — Era engraçado, dona Tati
morria de ciúmes. Sempre. Mas ele era realmente um galã,
né?
— Era. — Sorrio, meneando a cabeça para Beatriz,
porque não tem mais nada que eu possa fazer agora.
— E voltar pra TV sozinha foi estranho, não ter mais
ele para dividir as inseguranças e dúvidas da carreira… Eu,
mesmo sabendo que ele não vai mais voltar, sinto falta
dele.
— Tá tudo bem sentir, Bia. — Acaricio sua mão sobre a
mesa. — Ele era seu pai.
— Eu sei, é só… Só consegui entender a profundidade
do que significava nunca mais ter meu pai por perto uns
dois anos de terapia depois. Antes disso era só injusto,
doloroso e infeliz que tivesse ficado doente e sofrido tanto
— explica, alisando minha mão de volta, e é quase curioso
que essa intimidade tenha chegado enquanto nós estamos
aqui falando sobre ele. — Cresci sendo a princesinha do
papai, sendo a garotinha metidinha que sempre tinha um
colo para voltar e hoje…
— Hoje você é a mulher incrível que ele e dona Tati te
criaram para ser.
— Eu chamaria de garota que brinca de adulta, mora
sozinha, não vê a mãe há meses e parece independente…
— Um riso sem graça toma meu rosto. — Porém, mesmo
sabendo que essa é minha vida real, às vezes eu ainda
pergunto como seria se ele estivesse aqui.
— Essa é uma pergunta que eu nunca deixei de me
fazer — confesso, respirando fundo.
— Vamo parar de falar de coisa triste. Conta por que
eu te intimidei… — Não é um pedido que permite recusa,
então solto sua mão com cuidado e volto a atenção para
minha comida.
— Você era a garota que eu via na TV desde criança —
decreto, pegando o garfo na mesa.
— Fazer o quê? — ela se dá por vencida, com outro
longo gole em sua coca. — Eu era uma Nepo Baby muito
habilidosa.
Habilidosa, nunca talentosa. Para Bia, dizer a um
artista que ele tem talento é a maior ofensa que alguém
pode proferir. E nisso a gente concorda. Raros são os casos
que a arte veio do nada, foi feita a partir de uma inspiração
divina.
Não é sobre nascer bom, mas se tornar bom.
Conversamos sobre os primeiros meses de interação;
as aulas de canto; as aulas de dança e o quanto cada um de
nós quatro quis desistir, de qualquer jeito, em algum
momento.
Éramos crianças de quinze anos tentando criar uma
versão nova e reduzida do RBD para funcionar na televisão
brasileira enquanto tentávamos fazer o público dos musicais
adolescentes de streaming nos enxergarem.
Era um desafio, mas o Marco era um excelente
capitão. Sempre nos passou segurança e tratou com
respeito, saber que ele continua cuidando da minha
Coisinha me deixa um pouco mais tranquilo com o retorno
dela.
— O jantar estava ótimo — Beatriz diz, alisando a
barriga. — Só faltou uma sobremesa, sabe?
— A gente pode pedir! — digo prontamente, a mão
indo para o bolso da calça. — Esqueço que minha namorada
é uma formiga — brinco e gelo quando esqueço o “de
mentira”, mas Beatriz parece nem perceber.
— Não precisa. — Sua negativa me faz soltar o
aparelho dentro do bolso. — Tem chocolate para uma
semana no sofá!
— Mas eu dei pra você — rebato, como se ela
estivesse me ofendendo.
— Tá tudo bem, Principezinho. A gente divide. — Ela
me joga um beijinho debochado, e faz meu coração bater
fora do compasso por alguns segundos. — Quer ver um
filme ou uma série? — diz, quebrando o silêncio que deixei
— Tenho vinho, a gente pode beber um pouco.
— Vou dispensar a bebida — digo, porque estou
pilotando. — Mas aceito o filme.
— Ótimo — diz num pulo. — Alguma preferência? —
pergunta, indo até a sala, e eu a sigo. Olhando para mim
por cima do ombro, ela semicerra os olhos, ciente de que só
tem um tipo de filme que eu gosto. — E não. A gente não
vai assistir filme ruim de Natal fora da época do Natal.
— Você perguntou do que eu gosto — rebato,
encolhendo os ombros, e ela bate o pé, ela bate o pé,
revirando os olhos.
— Você tem algum em mente de, tipo, noventa
minutos? É o máximo que consigo suportar um filme desses.
Caminho até a Coisinha irritada no meio do cômodo,
parando ao seu lado.
— Eu, com certeza, assistiria trilogia de filmes da
Vanessa Hudgens com você — sussurro só para implicar, e
ela dá um passo para o lado, como se gostar desses filmes
fosse uma doença contagiosa. — Mas já que você tem
preconceito com filmes de Natal, acho que a gente pode
assistir Tudo Bem no Natal que Vem. Não! — digo, e logo
volto atrás, nada de filmes com morte familiar. — Esse não,
calma, a gente pode assistir… Uma Quedinha de Natal. O
filme da Netflix com a Lindsay Lohan e o cara do Glee.
Beatriz me olha como se eu fosse um esquisito e
aponta o controle para procurar o filme.
— Chega para lá — pede, me enxotando da frente do
sofá.
— Qual foi?
— Na verdade, eu estou debilitada, então você faz o
trabalho pesado — diz, com um sorriso debochado. — Puxa
a base do sofá aqui na frente, ele abre.
— Vou te dar essa moral… chega para lá. — É minha
vez de colocá-la para o lado.
Sigo suas orientações e, em alguns segundos, temos
uma cama de casal bem no meio da sala.
— Obrigada, Principezinho. — Ela passa por mim e se
senta, esticando as pernas. — Tu vai ver o filme em pé? —
pergunta com uma das sobrancelhas erguida, e eu nego,
me jogando do lado oposto ao que ela está.
Logo que o filme começa, Beatriz abre a caixa de
chocolates, na qual só resta a metade, e pega três
bombons. Estendo a mão pegando um só, todos são de
chocolate ao leite, e sei que ela pode precisar deles mais do
que eu.
Tinha esquecido que esse filme é uma sucessão de
cenas absurdas e fico um pouco inseguro com o que Beatriz
vai achar. Mas ela ri quando a protagonista cai de um
penhasco e fica viva. Depois ri ainda mais alto quando o
namorado da protagonista acha uma cabana com um velho.
“Eles vão ser um casal?” me pergunta o que todo mundo
achou que aconteceria.
E ela segue sorrindo, às vezes suspira com o casal e
sofre um pouco com a filha do protagonista, que perdeu a
mãe. O que me deixa ansioso com a reação dela, mas
Beatriz reage com mais identificação do que desconforto,
então eu relaxo. E me sinto vitorioso quando ela até
derrama uma lágrima ou duas nos últimos vinte minutos do
filme, achando que vai dar tudo errado.
Eu finjo que não a vi chorar, mas ela sabe que vi.
Beatriz assistiu ao filme, mas tudo a que assisti foi
Beatriz.
— Beatriz Lopes gostou de um filme de Natal que não
é Klaus?
— Beatriz Lopes, sangrando, gostou de um filme de
Natal que não é Klaus! É diferente. — Ergue o indicador
direito, pronunciando as palavras com uma certeza que me
impede de refutar. — Agora vou ter de escolher um filme
com porrada ou perseguições mirabolantes para apagar
esse tanto de açúcar de dentro de mim.
Gargalho, pegando dois chocolates da caixa entre nós
e me preparo para um próximo filme. Não sou eu quem vai
dizer que preciso ir embora se essa mulher me quer aqui.
— Contanto que você não me obrigue a fazer uma
maratona de filmes do John Wick ou do Velozes e Furiosos,
acho que consigo.
— Não existe tempo suficiente no nosso
relacionamento para você ver todos os filmes de Velozes e
Furiosos comigo, eu trabalhar, e você se preparar para uma
turnê, não mete essa — ela desdenha, jogando um
chocolate na boca.
— Você tá certa, mas e aí, vamos ver o quê?
— Pensando bem… — O tom travesso me deixa em
alerta. — Minhas gravações vão ser bem reduzidas na
próxima semana, visto que tomei um tiro… — explica,
ponderando sobre sua agenda. — Então a gente pode
maratonar Velozes e Furiosos se você quiser! — anuncia,
animada e debochada.
— Beatriz, não vou ver dez filmes sobre bandidos e
família, nem adianta — refuto a oferta, mas fico com a
agenda de trabalho dela reduzida em mente.
— Ai, você é chato! — rebate, me dando língua. E
depois de ter batido o pé mais cedo, lembro de que Beatriz
menstruada se torna uma patricinha mimada e,
curiosamente, eu gosto.
— Escolhe o que você quiser. — Entrego o controle a
ela me dando por vencido.
— Top Gun. A gente vai assistir o segundo filme de Top
Gun — informa como uma ameaça.
— Como pode ser tão inimiga do romance? Meu Deus.
Ela me encara por alguns segundos e depois revira os
olhos procurando o filme em algum streaming para alugar.
Sorridente e animada. Mas, poucos segundos depois, ela se
curva para a frente com um leve gemido.
— Tá tudo bem? — Eu me jogo por cima da caixa do
chocolate que nos separa e chego até ela em segundos.
Beatriz pousa os olhos em mim, ainda na mesma
posição e responde:
— Tá tudo bem, foi só uma pontada. — Ela franze o
cenho, me olhando como se eu devesse voltar para o outro
lado do sofá. — Acho que preciso deitar na minha cama e
tomar um remédio bem forte.
— Tranquilo, eu te ajudo. — Eu me levanto,
estendendo a mão para ela, que ri, mas a toma mesmo
assim.
— Eu não tenho TV no quarto. A gente vai precisar
deixar o filme para outro dia — explica, mas a frase tem
pausas em vários lugares porque sabemos que não teremos
outro dia.
— Nossa, que triste que vamos ter de deixar homens
sem camisa correndo na praia para outro dia — ironizo,
tentando descontrair. — Vamos lá, eu te deixo na cama e
arrumo a bagunça.
Beatriz caminha comigo, indicando a última das três
portas no corredor.
— Eu até diria que não precisa, mas você fez uma
zona na minha casa, então tudo bem, pode limpar.
Capítulo 19.2
Ou: RBD marcou vidas lançando Para Olvidarte de mí.
Guilherme
Com sua mão em meu ombro, caminho com ela até a
cama. A primeira coisa que noto é um violão na parede de
frente para a entrada, a segunda, o buquê. O presente que
eu mandei está no quarto dela, num vaso de vidro. E eu
quase sorrio, mas vejo Beatriz pegar um comprimido na
mesinha de cabeceira e tomar a seco. O que me assusta,
porque ele é grande, então fico olhando para a garrafa que
está bem ali, entre o abajur e o controle do ar-condicionado.
Beatriz me mostra a língua, como se dissesse “Eu
engoli”.
Mas coço o cavanhaque respirando fundo, e ela
finalmente bebe um pouco d’água.
— Não acredito que tu não perdeu essa mania — digo
enquanto ela deita.
— Mas você não pode brigar comigo, porque eu estou
debilitada — ressalta, tentando puxar o lençol para cima de
si com um dos pés, numa briga.
Seguro o tecido no ar e o puxo até seus ombros, ela
me entrega um sorriso travesso, como se estivesse
adorando ser mimada, então pego o edredom do pé da
cama e a cubro também com ele até a cintura, como ela
sempre fazia.
— Cê ainda dorme assim? — pergunto, observando-a
assentir.
— Sabe, obrigada por hoje. — Ela engole em seco
antes de continuar, como se fosse difícil baixar a guarda, e
eu entendo. Entendo de verdade. — Eu provavelmente teria
pedido uma pizza e comido aqui na cama chorando se você
não viesse.
— E ainda estaria parecendo a minha avó, vale
ressaltar — brinco, e ela usa o resto de forças que tem para
me jogar o controle do ar, que eu seguro por reflexo, antes
de bater no meu peito.
— Isso dói, sabia? — digo, mas ela só dá de ombros. —
Precisa parar de me jogar coisas.
Meu trabalho aqui está feito, e eu deveria sair. Mas
tem uma coisa no quarto de Beatriz, uma que chamou
minha atenção no segundo que abri a porta.
— Tá carregado? — Indico o violão, e ela assente. —
Você toca? — Ela nega com a cabeça, e isso é quase um
crime.
Caminho até a parede, tiro o instrumento do suporte e
o observo.
— Um LAVA ME 3? — pergunto só para ter certeza, e
ela responde “Uhum”. — Você comprou um violão de mil e
quinhentos dólares para deixar na parede?
— Sempre digo que vou fazer aulas e tocar pra me
ajudar a manter o hábito de cantar, mas não vou ter tempo
para isso nos próximos meses.
— Você se incomoda se eu tocar?
— Só se você não se incomodar se eu ficar quietinha,
porque estou morrendo de dor.
— Se for um incômodo, eu…
— Não, eu gosto de te ouvir tocar. Vai ser bom —
garante erguendo levemente o canto direito da boca.
E eu gostaria que isso não fosse uma lembrança, mas
é. Ao longo dos anos do nosso namoro, perdi as contas de
quantas vezes nós viramos a noite cantando versões de
nossas músicas favoritas, quantas vezes cantamos juntos
em noites insones de ansiedade pré-show e quantas vezes
toquei para Beatriz dormir.
— Tudo bem, então. — Acendo o abajur e vou até a
entrada do quarto desligar a luz e fechar a porta. Os olhos
dela me observam à meia-luz, e eu me sento à sua frente,
tirando algum som do instrumento. Na tentativa de fingir
que estar sozinho em um quarto com ela não é nada de
mais. — Você vai amar tocar nesse aqui, eles se adaptam a
qualquer temperatura e quase nunca desafinam, é sempre
um prazer — ressalto a maravilha do material. — Quer que
eu toque alguma coisa?
— Toca alguma coisa sua — ela sussurra, se
aconchegando embaixo do edredom. — Gosto de ouvir você
cantar suas músicas.
— Pede outra coisa, sinto falta de cantar em
português.
— Compõe alguma coisa em português então —
rebate rindo, e eu quase canto a música nova, mas não é o
momento.
— Vai dormir, Coisinha chata. — Começo a dedilhar
uma música no violão e sei que ela reconhece de imediato,
porque sua gargalhada não me engana.
Foi a primeira coisa que a gente aprendeu a cantar
como quarteto nas aulas de canto para Geração Z.
— Bem lá no céu uma lua existe, vivendo só no seu
mundo triste. O seu olhar sobre a terra lançou, e veio
procurando por amor — ela começa a cantar, e eu me
surpreendo.
Mas faço a voz do Júnior e a gente leva a música até o
final, de uma maneira engraçada e complicada, porque vira
e mexe ela para de cantar para gemer de dor e, por mais
que eu queira fazer isso passar, não consigo.
— Agora você precisa cantar alguma coisa sua para
mim — demanda, com a voz grossa, e eu não discuto.
Bato os dedos de leve no violão, tentando encontrar a
letra dentro de mim, tentando achar no meu coração tudo o
que eu preciso achar para cantar a primeira música que
compus para a garota que eu gosto, olhando nos olhos dela.
It started like a fire,
Two sticks come together to create something bigger.
It grew like water,
And it wasn't long before we flooded the whole place.
Like the wind, we flew,
Eyes locked, hands tied, hearts in sync.
And just like the Earth, we were strong,
KINDA MADE TO NEVER BREAK.
And I never thought you wouldn’t be here,
Cuz we’re obviously meant to be.
But life is a ruthless bitch, so this I how I get to live,
Seeing you around, knowing you’re not there.
Smelling your perfume in others everywhere.
Wishing you’re single, knowing this ain't right,
But you’re everything I had, now all I got are empty
nights.
Now all I got are empty nights.[5]

— Essa música é muito bonita. Triste, mas bonita.


— Foi a primeira música que eu compus. — O “pra
você” morre em minha garganta, mas o modo como seus
olhos ficaram me estudavam denuncia que ela sabe de
onde essa canção nasceu. — Agora eu vou cantar outra
coisa.
— Não precisa — diz com certo desconforto
arranhando sua voz. Eu assinto e coloco o violão no chão e
me preparo para me levantar. — Quer dizer, você tem que ir
embora, não tem? — pergunta, o tom nervoso e ansioso me
diz que ela sabe. Os olhos mirando todas as partes escuras
do quarto e nunca a mim revelam que Beatriz não quer de
verdade que eu vá, ela só entendeu sobre o que é a música.
— Mas você tá melhor? — sussurro me aproximando
da cama.
— Não, mas eu vou ficar. Tá tudo bem, de verdade —
sussurra a última parte enquanto acaricio seu rosto.
Ela não negar meu toque ou se afastar gentilmente
me faz sentir como se esse fosse mais do que um lugar
seguro para mim, mas um lugar seguro para nós.
— Quando a gente tava no telefone, você disse que
chamego de um namorado podia funcionar. Acho que talvez,
só talvez, eu devesse ficar, deitar do seu lado e fazer
cafuné, ou cantar, ou fazer qualquer coisa que te deixe um
pouquinho melhor — ofereço, percebendo que o escuro me
deixa mais corajoso.
— Mas você não é meu namorado de verdade. — A
frase vem embalada em angústia e tristeza, e não sei se são
as dela ou as minhas.
— Eu sei, só que sua cólica é de verdade, e eu quero
fazê-la passar.
A risada de Beatriz enche o quarto, como se fosse a
coisa mais absurda do mundo.
— Guilherme, é sério, a gente não é um casal. Você já
trouxe chocolate para mim, trouxe minha comida favorita,
ficou comigo e fez até uma serenata menstrual para mim.
Você foi incrível, mas a gente não pode…
— Para de falar sobre o que a gente pode ou não
pode. Somos adultos, a gente pode fazer o que quiser.
— Mas talvez eu não queira que você fique, porque
não quero fazer o que você quer — rebate se sentando na
cama. — Pra começo de conversa, nem te convidei.
Meu queixo cai e eu pisco duas vezes, encarando-a
confuso.
— E o que tu acha que eu quero, Beatriz? — pergunto
indignado, mas ela não responde. — Acha que trouxe o
jantar e fiquei aqui com uma garota que tá praticamente
acamada, porque quero transar com ela enquanto ela morre
de dor? — pergunto me levantando ainda sem entender o
que ela quis dizer.
— Eu sei lá, você é homem — diz, cruzando os braços
enquanto eu penduro o violão no suporte, em choque.
— Você me conhece mais do que isso, Beatriz, sério —
deixo claro pelo meu tom que me senti, sim, ofendido, e ela
se joga no colchão novamente, segurando um travesseiro
no rosto e gritando, o que me assusta, mas também me faz
rir, porque ela é inacreditável.
— Não acredito que eu tô discutindo com um cara
porque ele quer cuidar de mim enquanto eu tô de TPM — diz
me jogando o travesseiro. — Deita aqui, anda, mas, se
tentar me agarrar, eu arranco o seu…
— Beatriz, pelo amor de Deus! — rebato, tirando a
blusa e o cinto.
— Ah, você quer deitar comigo pelado? — implica, e
eu olho feio para ela.
— Sabia que tá calor para um cacete? — Aponto para
o ar-condicionado que está em vinte e cinco graus, ela dá
de ombros se dando por vencida. — Você está friorenta, o
resto do Rio continua um forno.
Eu me deito e abro os braços para que ela descanse
sobre mim, envolvendo-a pela cintura assim que Bia se
aconchega. Faço cafuné em seus cabelos enquanto minha
Coisinha me abraça um pouco mais apertado e respira
fundo.
Beatriz Lopes, deitada em meu peito, fazendo círculos
nele com a ponta dos dedos me lembra de uma Beatriz
Lopes que fazia isso sempre, todas as vezes que a gente
tinha oportunidade de passar a noite juntos. Então acho que
posso fazer algo que era normal naquela época também.
Cantar nossa música favorita.
— En cualquier momento a la orilla de algún beso vas
a tropezar conmigo sin quererlo para descubrir de nuevo
oue no hay nadie que te llene los recuerdos…
Beatriz bate dois dedos, no ritmo da música, em meu
peito e, no momento da segunda estrofe, sinto-a respirar
fundo para cantar, e sua voz doce e timbre suave ainda me
aquecem por inteiro:
— Tarde que temprano sin saber cómo ni cuándo una
lágrima te hará extrañar, despacio la ternura de un abrazo
el suspiro de mi nombre entre tus labios.
— Para olvidarte de mí, para olvidarte de mí tendrías
que renunciar a tanto amor que te di.[6]
Quando o refrão começa, por outro lado, canto
sozinho e, antes mesmo que ele termine, sou interrompido
por Beatriz:
— Eu sei que te pedi para ir embora, mas obrigada por
ter ficado. Você realmente melhorou minha noite — ela diz
baixo, deixando claro que, apesar de estar preparada para
dividir esse momento comigo, ainda não consegue ir até o
final dessa música e cantar tudo o que a última parte
representa.
Inspiro o cheiro cítrico de seu cabelo e beijo o topo de
sua cabeça.
Beatriz se vira de costas para mim em seguida, eu a
abraço numa conchinha, e ela abraça um travesseiro junto à
barriga.
— Sempre soube que os benefícios de um fake dating
te fariam bem — sussurro, mas ela não responde. Só me dá
uma cotovelada, e eu inspiro em seus cabelos antes de me
deixar dormir junto da mulher que eu amo.
E essa é a verdade. Eu amo essa mulher, ou melhor,
ainda a amo, de um jeito que nunca vai mudar. Só queria ter
percebido isso antes. Queria saber há quatro anos o que sei
agora: Que um amor como o nosso é algo que nem o
tempo, a distância, ou tudo o que o pai dela fazia comigo
poderia apagar.
Capítulo 20
Ou: Minha vida é uma fanfic, e o escritor me odeia.
Beatriz
Homens sensíveis são perigosos, eles cuidam de você,
cantam para você e aí, pronto, você dorme agarrada neles.
Mais especificamente, sendo a parte de dentro da
conchinha.
Isso deveria me surpreender, deixar arredia ou até
desconfortável. Mas a verdade é que dormir com Guilherme
era uma das minhas coisas favoritas no mundo. Mesmo que
tudo fosse novidade naquela época, que estivéssemos
conhecendo nossos corpos e tivéssemos… bem, os
hormônios de dois adolescentes, essa era a minha parte
favorita: Estar dentro do abraço do cara que eu amava.
Ao lado de Guilherme, com um de seus braços em
volta de mim e o peito se movendo contra minhas costas,
sentia que qualquer coisa no mundo poderia acontecer, o
mundo poderia inclusive acabar, mas eu ainda estaria
segura.
Só que esse mundo colapsou.
Portanto, acordar assim depois de uma noite nada
normal para um casal de amigos, nem mesmo para um
casal de namorados de mentira, poderia me assustar. Mas o
som baixo e distante do interfone me leva a
compartimentar os surtos e cuidar dele primeiro.
Não faço ideia do que pode ser. Já que o único cara
que me manda coisas está deitado bem aqui, fazendo
minha cama mais quente e confortável e dormindo como se
o barulho não o afetasse nem um pouco.
Me esforço para deixar o abraço dele tentando não
acordá-lo e saio do quarto, correndo na ponta dos pés até o
interfone, ao lado da porta.
— Bom dia, Serginho. Outra entrega para mim? —
brinco coçando os olhos fechados pela claridade do dia.
— Na verdade, não, dona Beatriz. É visita, e parece
que veio pra ficar, viu? — Me alerta numa brincadeira
sussurrada que me faz rir ao fim de um bocejo. — É Nina o
nome. Nina Freitas.
Fecho os olhos, mas meu coração já está
descontrolado desde que ele mencionou a palavra visita.
Nina está lá embaixo.
Minha melhor amiga está aqui, e o Guilherme
também. Só meu bom senso que não sei onde está.
Apoio a testa na parede. É óbvio que a Nina está aqui,
eu a convidei para ficar comigo essa semana já que minha
personagem está acamada e quase não tenho que
trabalhar.
— Pede para ela subir, Serginho. Bom dia e bom
trabalho. — Desligo poucos segundos depois dele me
desejar bom dia de volta e respiro fundo.
Não tem a menor chance de eu sair disso viva.
Minha sala está uma bagunça, o sofá ainda está
aberto, tem louça na mesa de centro, a cozinha também
não está nada arrumada… não tenho nem uma desculpa
para oferecer a ela.
Apenas a verdade.
Seguro a porta entreaberta, com medo da campainha
acordar Guilherme, e, ao ouvir o bip do elevador, abro a
porta e forço o maior dos sorrisos.
Nina não muda, aí vem ela com um jeans de cintura
alta, tênis branquíssimos depois de quatro horas de viagem
e um cropped com manga.
Nesse calor.
— Nossa, amiga, meu Deus! Que Saudade! — Ela joga
os braços em torno de mim, deixando a mala e uma ecobag
caírem no chão antes mesmo de estarmos perto o suficiente
para isso.
Mal tenho tempo de dizer que ela está linda com luzes
no cabelo ou que não acredito que ela se maquiou só para
vir me ver, seus braços largos me guardam num abraço do
qual sinto muita falta.
— Você está linda! — ela diz se afastando. — Bem
menos bege — implica, comparando nossos tons, e a minha
pele não parece mais tão clara em relação à dela —, tem ido
à praia?
— Não, mas acho que morar em Copa, depois de três
anos em Petrópolis quase sem sair de casa, ajudaria
qualquer um — brinco, e nós rimos, mas Nina não está mais
olhando para mim.
Minha amiga observa tudo à sua volta, encantada com
a casa, que ela só viu quando ajudou a escolher, ainda sem
mobília, e dá duas voltinhas, indo até a janela e abrindo a
cortina para deixar o sol das dez da manhã invadir o espaço
ainda mais. O que me faz pressionar os olhos de novo. Dou
dois passos para a frente pegando as coisas dela e, quando
volto, a encontro com os braços cruzados e a sobrancelha
erguida.
— Eu diria que sua casa ficou incrível e que estou
morrendo de orgulho por você ter conseguido ficar esse
tempo todo sozinha aqui, mas você não tá sozinha! — Ela
corre até mim de queixo caído, com o tênis friccionando no
chão, soltando um barulho que me dá agonia. — Tem um
homem nesta casa?
— Nina, tira o sapato e coloca a pantufa. Isso foi ideia
sua, lembra? — Apoio as mãos na cintura para ganhar
tempo enquanto encaro a caixa de chocolates no sofá e o
cartão da floricultura na estante.
— Pronto. Nada de sapatos na sua madeira. — Ela
apoia os tênis na parede, bem ao lado do de Guilherme. —
Agora fala — ela pede cruzando os braços na minha frente.
— Eu quero saber quem é o dono daqueles tênis, me conta,
é alguém do seu elenco? — exige, animada e sorridente.
— Não é muito cristão da sua parte ficar animada
sabendo que um homem dormiu na minha casa, sabia? —
Semicerro os olhos.
— A crente aqui sou eu. Quem não pode ficar
dormindo com macho por aí, sou eu. Então anda, minha
filha, desembucha. Quem dormiu aqui? — pergunta com as
mãos na cintura.
— Calma, eu vou falar, mas… — Começo a formular a
história na minha cabeça, mas o som da porta do meu
quarto abrindo me cala, nós duas olhamos em direção ao
pequeno corredor.
— Desde quando você fala sozinha de manhã? —
Guilherme resmunga, chegando à sala e se espreguiçando
com cabelo desgrenhado e sem blusa.
Me fazendo observar suas tatuagens e cada um dos
gominhos em seu abdômen. O que me deixa quase
arrependida de ter traçado limites ontem a noite.
Quase.
Mas se só os beijos já complicaram tudo, passar dos
limites me deixaria doida.
— Deus de misericórdia! — O queixo de Nina cai
imediatamente. — Você dormiu aqui? — pergunta para
Guilherme, mas joga os olhos em mim. — Vocês estão
fazendo sexo de mentirinha também? — sussurra a
pergunta, e Guilherme cai na gargalhada, deixando a sala
se encher com o som rouco e gostoso de quem acabou de
acordar.
Reviro os olhos para eles e respondo:
— Tu pode parar de ser ridícula, pelo amor de Deus?
— Não precisa falar assim com a garota, Bia. —
Guilherme vem até mim com um sorriso sem-vergonha na
cara amassada, segura meu queixo, e me dá um selinho. —
Você sabe que ontem à noite foi especial.
— Guilherme, eu vou arrebentar a tua cara se você
não parar de gracinha, tá? — vocifero, mas não me movo,
então ele corre a língua pelo lábio inferior e ri de canto.
— Eu gosto de apanhar de mulher bonita, e você sabe
— rebate com outro selinho, que quase vira um beijo de
verdade, e eu me afasto dessa vez, encarando Nina com um
pedido de socorro. Mas vejo em seus olhos que não vai
adiantar, ela está gostando do show desse palhaço.
— Ah, não. Eu sou sua melhor amiga, lembra? Você
devia me contar as coisas.
— Mas eu conto!
Ela ergue a mão para que eu me cale.
— Fala você então — Nina se volta pra Guilherme. —
Desde quando isso tá acontecendo? O que vocês têm
afinal? — pergunta com as mãos apoiadas na cintura.
— Ah, você sabe, você vê os jornais. — Guilherme vai
até o sofá e joga um chocolate na boca. — Os beijos
pararam de ser técnicos há um tempo e ontem… bem,
ontem foi quente — ele diz, olhando para mim com
deboche.
Guilherme, de fato, reclamou de calor algumas vezes.
Mas nunca pensei que ele seria tão cara de pau assim.
— Parem com isso os dois! — grito e bato duas
palmas, interrompendo a palhaçada. — Você sabe que
houve aquele deslize, e o beijo não foi técnico! — lembro a
Nina, que se encolhe. Passamos um bom tempo no telefone
depois do evento da novela, e ela me colocou na parede
com coisas que preferi esquecer. — E você, como é sonso!
— digo para Guilherme.
Ele me joga um beijo que não deveria, mas faz minhas
pernas bambearem e todos os pelos do meu pescoço
acordarem.
— Ah, sim, é você que não me conta que ele te manda
flores, faz visitas, vocês dormem juntos e nossa… — Nina
para, levando a mão ao coração —, fica aqui dizendo que
gosta de apanhar de você, mas ele que é o sonso? —
ironiza, caindo na pilha de Guilherme.
— Nina, chega!
— Mas eu gosto — Guilherme debocha, e vou até o
sofá, pegando uma almofada pra jogar na cara dele.
— Olha só, Principezinho, para ou vou te tacar essa
coisa — ameaço, e ele quase se engasga com o segundo
chocolate que joga na boca.
— É, Nina. É tudo mentira — Guilherme ironiza com a
sobrancelha direita erguida. — A gente não dormiu de
conchinha, eu não sou perdidamente apaixonado por essa
garota, e ela não disse que eu melhorei a cólica dela ontem
a noite. — Revira os olhos, passando por trás do sofá
enquanto meu coração descompassa, e o queixo de Nina
cai.
— Olha, Guilherme, vou dar atenção para a minha
amiga, e tu vai lavar a louça e arrumar a zona que fez na
minha casa — aviso com o dedo em riste para um
Guilherme que já chegou na cozinha a essa altura.
— Tudo bem, Coisinha estressada — rebate olhando
bem no fundo dos meus olhos, com um sorrisinho
debochado no rosto.
— Alexa, volume dez — peço para que ele não consiga
nos ouvir nem se tentar. — Alexa, toca minhas músicas do
Spotify — digo assim que o som alto apita e arrasto Nina
pelo corredor enquanto ouço os primeiros acordes de Texas
Hold’em.
— Tchau, viu?! — ela grita para Guilherme,
intercalando o olhar entre nós dois. Como se avisasse que
está de olho na gente.
— Anda, mexe essa raba enorme — digo com um tapa
na bunda dela, que me olha feio.
— Eu não gosto de apanhar de mulher bonita, sabia?
— ironiza com um olhar divertido, e eu abro a porta do
quarto ignorando a fala.
Pronta para me sentir segura, é só o meu quarto,
como todos os outros dias. No entanto, as flores sobre a
escrivaninha, a cama bagunçada e o violão recentemente
tocado jogam a segurança no chão, e tudo o que visualizo
aqui somos eu, Guilherme, a música e as memórias.
— Você é muito sem-vergonha, meu Deus! — Nina me
encara com a mão livre tapando a boca assim que bato a
porta atrás de nós.
— Eu sei. Eu sei. Mas não é o que você tá pensando —
digo com a cara mais lavada do mundo. — A gente não fez
nada ontem, a gente nem se beijou, só dormimos mesmo.
— Não pode fazer isso, sua ridícula, sou sua melhor
amiga. — Me dá um tapa no braço em protesto, sussurrando
a ofensa. Olho feio para ela e corro até a cama. — Agora
anda, está me escondendo mais o quê? Um primeiro beijo
de verdade? Uns amassos além daquele surto no carro
talvez?
Me arranca uma gargalhada se sentando de frente
para mim. Abro a boca pra dizer “ok, vamos lá”, mas a
fecho logo em seguida.
— Queria ter horas de coisas para dizer, Nina. Mas não
tenho. O que aconteceu ontem, isso dele me mandar
presentinhos e vir pra cá, nunca tinha acontecido antes. Ele
dizer abertamente que é “perdidamente apaixonado” por
mim também é novidade. E isso me deixa confusa, porque…
— Encolho os ombros tentando amenizar a pontada no meu
coração. — Ele foi embora, Nina, e nunca me ofereceu a
menor explicação, e eu não sei o que sinto por ele ou por
que esqueço tudo o que aconteceu quando estou com ele…
Sempre achei que a gente nunca mais ia se falar, e que ele
não voltaria, ou que eu não sentiria nada, mas tudo isso tá
acontecendo, e eu não sei o que significa.
— Você gosta dele — Nina diz, e não é uma pergunta,
mas me sinto obrigada a responder mesmo assim.
— Me sinto atraída pelo Guilherme, e ele mexe
comigo, mas não sei se gosto dele.
— Vocês chegaram a… — O olhar faz todas as
perguntas que ela não quer verbalizar.
— Não, Nina. — Rejeito a pergunta de imediato. — E
chega de falar de mim, vai. Conta como estão as coisas em
Petrópolis, sua pós-graduação, tudo! — peço, enrolando os
fios de cabelo próximos à nuca entre o indicador e o
polegar.
— Você é uma grande estraga-prazeres, sabia? — Ela
me dá língua numa careta. — Mas, tudo bem, eu conto —
diz, colocando um cacho fujão atrás da minha orelha.
Nina começa a falar sobre os planos da mãe de
vender quentinhas, o que eu acho sensacional, porque o
tempero de tia Débora é ótimo e inconfundível; o fato do
pai, que voltou a trabalhar CLT depois da pandemia,
finalmente ter conseguido um pastor auxiliar. O que me
deixa feliz, porque seu Cristóvão não dava conta de tudo
sozinho há tempos, mas é teimoso feito uma porta. Então
ela deita a cabeça em meu colo e me fala sobre como
minha mãe continua sendo a advogada mais requisitada da
região serrana; conta da igreja e do último semestre da pós-
graduação em tradução.
Amo ver Nina falar sobre as coisas de que gosta,
porque ela fala de tudo com muita paixão. Tem um ditado
que diz “Só há duas maneiras de viver a vida: A primeira é
vivê-la como se os milagres não existissem. A segunda é
vivê-la como se tudo fosse um milagre”. Minha melhor
amiga vive da segunda e, vindo dela, eu acredito. Porque
Nina é uma das pessoas mais importantes da minha vida.
Conheci Nina aos seis anos. A família da minha mãe é
de Petrópolis e, quando meu pai estava trabalhando muito,
eu e dona Tati passávamos os fins de semana e, às vezes,
até minhas férias escolares lá.
Foi num desses momentos que a encontrei. Eu estava
muito triste numa sorveteria do centro, porque ela tinha
acabado de pedir a última bola de chocolate, e eu ainda
demoraria muito para voltar e poder comer meu sorvete
favorito outra vez.
Naquele dia, dividimos o sorvete, porque nós duas
concordamos que uma semana era muito tempo.
Entre sorvetes, os parques da cidade e os cultos de
domingo de manhã — que minha vó não perdia um, e a
Nina, no cargo de filha do pastor, também não —, acabamos
nos tornando “amiguinhas” de verdade.
Quando a adolescência chegou, o WhatsApp nos
aproximou ainda mais, e começamos a sonhar em casar no
mesmo mês, engravidar juntas e colocar nomes
combinando nos nossos bebês. Algo como Bruna e Bianca
ou João e Júlio. Na nossa cabeça não tinha a menor chance
de as crianças nascerem com gêneros diferentes. E era
óbvio que nossos futuros maridos seriam grandes amigos,
como a gente.
Aos doze anos, comecei a participar de comercias e
programas de TV, e muita gente disse que era só por causa
do meu pai, que eu não daria em nada. Mas ela esteve lá e
disse que, se eu não fosse boa nisso, seria em outra coisa, e
a gente ia descobrir em que.
Quando minha avó morreu, Nina percebeu o quanto
me privei de chorar no velório e no enterro. Todo mundo
parecia muito feliz pela partida de dona Déia para um lugar
melhor. Mas Nina fez questão de deixar claro que não era
porque ela tinha certeza de que vovó era salva e estava
com Jesus, que eu não tinha o direito de sofrer e chorar.
Quando a Geração Z estreou com seus quatro
protagonistas negros, arrancando suspiros de raiva da
massa preconceituosa, e eu pensei em desistir, a Nina
estava lá. Ela olhou no fundo dos meus olhos e disse: Você é
minha pessoa favorita no mundo, e esse é meu programa
favorito na TV, então é melhor você parar de gracinha.
Assim, seco, sem um abraço.
E ela permaneceu lá enquanto eu rodava o país com a
banda da novela e tinha menos tempo ainda para a nossa
amizade, que sempre foi à distância.
Mas o que mais me fez amar a Nina como uma irmã
de alma foi o quanto ela segurou as pontas na minha casa
depois que meu pai morreu e eu enlouqueci por causa do
covid. Mesmo com a terapia, viver o luto, ver minha mãe
viúva aos quarenta e dois anos, o escândalo das vacinas,
tanta gente morrendo e as notícias horríveis que brotavam
na TV dia e noite me fizeram ficar paranoica.
Quando a Pandemia atingiu o pico mais alto, eu
cheguei no subsolo do fundo do poço. Minha mãe não
conseguia lidar comigo, e era óbvio que não conseguiria,
tinha perdido o amor da vida dela no auge da sua saúde
para uma doença incompreensível. Dona Tati só queria viver
o luto; ter uma filha paranoica e obcecada não estava
ajudando.
Então a Nina deixou a casa dela, os pais dela e os
cargos na igreja — que funcionava por lives nesse período
— para ficar comigo. Minha melhor amiga ficou do meu lado
quando eu não tocava em pessoas, não saía de casa nem
para ir ao supermercado e higienizava toda e qualquer coisa
que passasse pela porta com álcool em gel.
Enfrentei a dor da perda do meu pai segurando a mão
da Nina e, mesmo que eu nunca vá conseguir agradecer o
suficiente, sei que não estaria aqui se não fosse por ela.
E todas essas pequenas grandes coisas fazem da
minha amiga o meu xodó, aquilo que me traz esperança na
humanidade.
Nina foi a primeira pessoa a saber da minha proposta
para voltar à TV e também a mais empolgada com a
novidade. O que fez toda a diferença do mundo para mim.
Eu sabia que voltar para o Rio não estava nos planos de
dona Tati, portanto contei com minha amiga para resolver
os trâmites da mudança. Foi a Nina quem me ajudou a
escolher o apartamento, os móveis e até a entender qual
seria a melhor cor de parede, além, é claro, de proibir
calçados na minha madeira.
Tudo em mim tem um pouquinho dela, e estar bem,
na minha casa, com a minha melhor amiga, ouvindo-a falar
sobre o quanto ama o mundo da tradução interiorizada, e
como é importante entender diferentes culturas e contextos
para fazer bem esse trabalho, só me dá mais vontade de
retribuir tudo o que ela fez por mim.
— E seu foco é trabalhar com o que nesse sentido? Já
que, né, tem uma infinidade de coisas… — pergunto como
quem não quer nada, com os olhos pidões e apertando as
dobras de sua barriguinha exposta pelo cropped, e ela se
contorce com as cócegas.
— Tá com medo de eu dizer igreja e ficar pra sempre
em Petrópolis, traduzindo missionários e pastores, é, garota
Rio de Janeiro? — Nina implica, e eu abro a boca para
protestar, mas meu telefone vibrando com o nome
“principezinho” na mesa de cabeceira me cala.
— É o Gui. Acho que ele acabou.
— O Gui, é? — Nina debocha, mas eu corro até a porta
dando língua para ela.
Saio do quarto, mas ele não está por aqui, então peço
à Alexa para desligar e atendo.
— Cadê você? — pergunto, mas o barulho de buzinas
denuncia que ele já está no trânsito.
— Oi, Bia. Eu tinha um compromisso com a banda e
tive que sair, os meninos passaram para me pegar. Mas
deixei a casa um brinco! — enfatiza, e eu olho em volta
comprovando.
Nina me observa curiosa apoiada na entrada da sala.
— Ah, achei que…
— Desculpa ter saído sem me despedir. — Guilherme
fica em silêncio por alguns instantes, ouvindo Richard falar
alguma coisa em inglês, mas não entendo o que por causa
das vozes dos outros meninos. Na cozinha, percebo que
esse homem deixou tudo ainda mais arrumado do que
estava quando chegou aqui, o que me arranca um
sorrisinho. — Mas a verdade é que eu não queria que fosse
uma despedida, não ainda — sussurra com dificuldade, e eu
travo entre a mesa e a geladeira.
— Obrigada por ontem, foi muito bacana da sua parte.
Por mais que eu esteja aqui há um tempo, ainda não
consegui me abrir, fazer muitas amizades… Enfim. Eu teria
ficado sozinha — confesso, voltando até a sala e
debruçando no parapeito da janela na tentativa de respirar
melhor. — E foi legal ter alguém.
— Você me falou metade dessas coisas ontem, pode
ser honesta, fala o que você está fingindo que não quer
dizer — ele pede, como se soubesse da briga entre meu
coração e meu cérebro.
— Foi legal ter você, Guilherme, eu estava com
saudades. — Fecho os olhos como se isso pudesse amenizar
o que acabei de fazer e sinto a brisa quente do Rio aquecer
meu rosto e o olhar de Nina queimar minhas costas.
— Eu também, muita mesmo. E ontem foi a primeira
vez que a gente conversou de verdade, então…
— Como assim? — Franzo o cenho, encarando o mar
de Copacabana, azul, enorme e imponente.
— Ah, sobre a gente, o passado, a novela, a banda….
Fiquei feliz por ter ido.
O silêncio toma conta da linha por algum tempo,
quase pergunto se ele ainda está aqui, mas eu sei que está
e respiro fundo tentando chamar sua atenção.
— Escuta, é… Minha semana tá meio cheia com
alguns compromissos da banda e eu vou pra Santos na
sexta, mas se você tiver tempo livre até lá, queria me
despedir…
— Nossa, eu tenho bastante até. — Minha boca é mais
rápida que meu cérebro.
— Como assim?
— Essa semana eu tô tranquila com as gravações, só
vou no estúdio segunda e terça de manhã. Por isso que eu
chamei a Nina, muito tempo livre.
— Ah, é verdade! Sua personagem levou um tiro por
causa da palmitagem dela. — Ele me zoa, porque Fabiana
acabou assim por causa do par romântico, que é branco,
mas…
— Você assiste a minha novela?
— Eu não perderia sua novela por nada, Coisinha —
ele afirma, e eu morro, sufocando um gritinho
inconveniente. — Já que tu tá livre, o que acha de a gente
fazer alguma coisa? Juro que não te roubo da Nina por muito
tempo.
Sorrio igual uma idiota para a paisagem deliciosa do
Rio de Janeiro e olho por cima do ombro antes de falar:
— Ela não vai te odiar se eu passar uma tarde contigo
— digo, pelo olhar fulminante, ela vai sim, mas quero passar
uma tarde com ele, então assumo o risco.
— Perfeito. Uma tarde inteira, eu consigo quinta, e
podemos almoçar nos outros dias também… — Guilherme
me pega de surpresa e percebe, porque demoro para
responder, e ele volta a falar. — Um dos outros dias, claro.
— Ouço mais uma onda de buzinas e um palavrão em inglês
me diz que um dos meninos não curte a pressa do trânsito
carioca.
— A gente se vê então. Beijos — digo de maneira
descontraída, me afastando da janela e vendo Nina dar
pulinhos enquanto ri de orelha a orelha.
— Não quero beijos assim, Beatriz — o sussurro
sôfrego me faz engolir em seco. — Guarda pra quando a
gente se encontrar.
— É uma ordem? — pergunto, achando a voz, seca e
firme, engraçada.
— É sim, o mestre mandou você esperar — Guilherme
sussurra contra o microfone do celular e todas as
terminações nervosas do meu corpo reagem a essa
brincadeirinha nada inocente que a gente desenvolveu
durante a última turnê.
Antes que eu me traia de alguma forma ainda mais
irreversível, pulo no sofá desligando a chamada e jogo o
celular do outro lado do móvel, fechando os olhos em
seguida.
— Eu quero detalhes — Nina demanda, com dois
tapinhas na minha perna, e eu as levanto para que ela se
sente. — Desembucha, Beatriz. O que ele disse?
— Ele disse que quer me beijar — digo, ainda sentindo
o impacto das palavras sobre mim — quando a gente se
encontrar.
— E por que você está tão… estranha. — Nina
pergunta, acariciando meu pé, mas eu puxo as pernas, me
sentando de frente para ela e inclino a cabeça em sua
direção antes de sussurrar:
— Porque eu acho que eu gosto dele.
— Ah, você acha?
— Nina, eu não podia fazer isso. Quem me dera as
coisas fossem mais fáceis, mais simples. Queria poder
gostar de Guilherme e lutar para fazer dar certo. — afirmo,
mais para mim do que para ela. — Mas a partida dele
quebrou alguma coisa no meu coração, e deixá-lo entrar de
novo desse jeito é injusto com a Beatriz que ele abandonou.
Nina assente, buscando minha mão com a sua em
seguida. Ela entrelaça nossos dedos, me observando e,
depois de alguns segundos, pisca e começa a falar:
— E talvez, não o deixar entrar seja injusto com todo o
resto da sua vida, Beatriz.
Nina coloca as coisas numa perspectiva ainda mais
incômoda, porque sei que cada parte surrada do meu
coração ainda bate por Guilherme.
Ela bate no ritmo da música que ele cantou ontem, a
que, segundo Richard, meu principezinho irritante fez para
mim. E isso me perturba, porque é exatamente como diz a
letra: Nós éramos fortes, feitos para nunca quebrar. E a
única coisa que nos mantém longe é eu não saber porque
nós quebramos.
Capítulo 21
Ou: 0-0-11, todo mundo pro ataque.
Guilherme
Uma antinomia é o conflito entre duas ideias, ou
princípios contraditórios, no qual ambos se revelam
verdadeiros. Como exemplo, posso citar meu término com a
Beatriz, ela tem certeza de que parti seu coração, e é
verdade.
Mas posso garantir que aquele foi o pior dia da minha
vida.
Coço a cabeça de Elvis, estirado ao meu lado sobre o
sofá, enquanto peso todas as coisas que aconteceram entre
mim e Beatriz e, uma vez que Thomas e Richard saíram
para um ensaio fotográfico, e A.J. está preparando a versão
de estúdio de I Still Love You com a Alessandra na
gravadora, aproveito para colocar a cabeça no lugar e
tentar encontrar um resultado lógico para o que está
acontecendo.
Mas no amor os resultados lógicos raramente existem.
É por isso que sou um cara da arte, porque, se fosse para
depender de lógica, eu estava fodido e mal pago.
— Vamos lá, garotão. — Eu me ajeito no sofá
encarando-o pela tela da TV. — Um latido para não, dois
para sim. Três para não faço ideia, entendido? — pergunto
me levantando, e Elvis late duas vezes.
— Vamos começar com o simples — digo, e ele fica
sobre as patas dianteiras, me observando com atenção. —
Eu deveria estar apaixonado pela Coisinha?
Um único latido, muito alto e claro, quase me ofende,
mas prossigo:
— Tenho medo de investir e quebrar a minha cara?
Rio com a rapidez que ele dispara os dois latidos,
esses até mais altos.
— Tenho alguma intenção de contar a ela o que fez
com que a gente se separasse?
Ele nega, me conhecendo mais do que qualquer
pessoa, mas rosna no final, em julgamento.
— Você é muito inteligente, Elvis. — Me aproximo,
abraçando meu parceiro. — No entanto, preciso fazer isso
valer a pena e, se der errado, tudo bem. — Encolho os
ombros, e Elvis inclina a cabeça para a direita. — Não vai
ser a primeira vez que eu parto meu coração por ela —
explico, deixando o cachorro nas almofadas, e me levanto.
Espreguiço de frente para a porta de correr e vou até
a varanda da cobertura, de onde vejo o mar. Observando as
ondas indo e vindo, num movimento aparentemente
ordenado, mas, ao mesmo tempo, irrefreável, me dou conta
do quanto a gente acha que sabe sobre o mar quando não
estamos dentro de um enfurecido.
É fácil falar sobre mar, como é fácil falar sobre amor.
Já ouvi que o amor é um sentimento, é o encontro de
dois acasos, é uma escolha, mas a verdade é que o amor é
exatamente como o mar: Uma força, irrefreável e
impiedosa, que lança nossas certezas por terra e acaba com
cada plano que temos para contê-lo; amar alguém é incrível
na mesma medida que perigoso.
Essa verdade é a cereja de um bolo muito maior do
que eu.
Terminar com a Beatriz me machucou profundamente
e me fez perder tudo o que importava naquele momento: a
mulher que eu amava, uma carreira promissora e o convívio
com a minha mãe e minha avó, que lutaram tanto por mim.
Ir embora do país foi meu jeito de tentar esquecer a Bia,
apagar o que vivemos e começar de novo.
Preferi começar do zero a ficar aqui e ver o que não
poderia ter nunca mais.
E as coisas estavam bem. Estavam ótimas, na
verdade, até eu precisar voltar. Até eu a reencontrar e
perceber como cada pedaço meu pertence a ela. Quando
Beatriz caiu em cima de mim na lavanderia, milésimos de
segundos foram o bastante para me mostrar que ainda a
amava tanto quanto no dia que parti. Toquei sua pele quase
abraçando-a, quis beijá-la e a prender no meu abraço para
nunca mais soltar.
Mas aquilo era impossível, então ignorei o sentimento.
Dados os fatos, fui ótimo em me conter. Mas quase
escorreguei e falei pelo menos parte da verdade na nossa
briga depois do show, tive um belo escorregão na festa da
novela, e a beijei como se pudesse ousar desejá-la, e,
quando a levei em casa, não fui forte o bastante para conter
as palavras “Eu gosto muito de você”, mas essa é a
verdade, e ela sabe.
Tudo em Beatriz é feito para eu gostar. O olhar de
brava, o sorriso sapeca, a respiração profunda de quando
ela está com raiva, os cabelos, o beijo, o sabor, o cheiro…
Tudo nela é mais do que convidativo para mim, é também
nostálgico.
E tudo o que consigo pensar agora é que era quase
fácil fingir que eu não amava essa mulher quando estava
longe dela. Era como se Beatriz fosse algo de uma outra
vida, e tudo bem eu nunca amar mais ninguém, os anos que
vivi com ela me fizeram feliz.
Mas tentar fazer isso olhando para ela? Tentar fingir
que você não quer ser feliz quando tudo o que precisa está
a dois passos?
É impossível.
Cada dia que passa, eu penso mais em como
terminamos, em quando fui embora e nos motivos que tive
para isso. Às vezes, à noite, abraçado com Elvis, quase me
permito entender o meu lado, quase aceito que eu era só
um garoto periférico recém-saído da adolescência sendo
convencido de que não tinha escolha.
Nesses momentos acredito que o amor pode ser maior
do que toda a dor. Mas a verdade é que algumas coisas
simplesmente não podem ser esquecidas.
Jogo a cabeça para trás, sentindo a brisa quente e
pensando que, se ela conseguisse me perdoar, a gente
poderia viver o que sente, porque sei, pelos seus olhares
evasivos, sorrisos contidos e pelo modo como me beijou,
que Beatriz gosta de mim tanto quanto gosto dela.
Só que, para me perdoar, ela vai querer saber o
motivo da minha partida, e eu não consigo nem pensar em
quebrar a imagem de superpai que Beatriz sustentou a vida
inteira.
Capítulo 22
Ou: Eu só o vejo como amigo! Essa é a maior mentira
que já contei.
Beatriz
Às vezes, tudo que você precisa é de uma pessoa que
ame de todo o coração bebendo água de coco na orla com
você, depois de uma manhã de trabalho. E, às vezes, tudo o
que o outro merece é o melhor de você depois de tanto
tempo encarando apenas o pior e decidindo ficar.
— Amiga, você gostou do seu quarto? — pergunto,
pousando meu coco na mesa do quiosque enquanto o vento
faz do meu cabelo o que quer.
— O de hóspedes? — Nina pergunta, abaixando os
óculos escuros até a ponta do nariz, e eu assinto, me
virando de frente para ela. — Adorei. É a minha cara,
então…
— É a sua cara porque você escolheu tudo, sem-
vergonha! — rebato com um tapa na mesa, e minha amiga
me olha feio, mas gargalha.
Rio junto, porque é muito melhor ouvir ao vivo do que
por um áudio do WhatsApp.
— Você me disse pra fazer isso!
— E tu sabe o porquê!
— Porque você é doida de pedra. — Nina vira a cara
em direção à praia, tentando fugir, com o nervoso sempre
presente quando tocamos nesse assunto.
— Seus pais sabem que, quando sua pós acabar, tu
vem para cá, Nina.
— Claro. Esse ano você está nas notícias como: Atriz
retoma as atividades na indústria e no campo amoroso. Ano
que vem vai estar com: Atriz sequestra filha de pastor de
cidade serrana e é presa.
— Então é isso, você vai se formar e ser uma grande
tradutora simultânea para… os negócios locais? — ironizo,
porque não faz o menor sentido. — As pregações gringas
sazonais? — indago, tirando os cabelos das argolas
enquanto Nina ergue os óculos e bufa.
— Às vezes, só às vezes, eu penso em ficar lá no meu
fim de mundo, trabalhar na igreja com meus pais e me fingir
de morta pro resto — afirma. Os olhos perdidos enquanto
ela bebe um pouco mais da água pelo canudo de plástico
quase me fazem rir.
É evidente que não é nada disso que ela quer.
Prendo o cabelo num coque antes de voltar a falar.
— Nina, você tá se ouvindo? A igreja não consegue
pagar um salário decente nem pro seu pai! — lembro-a de
como as novas demandas de doações e cestas básicas pós-
covid e, obviamente, “pós-catástrofes-anuais-de-Petrópolis-
que-nunca-são-resolvidas”, mudaram a configuração das
coisas. — E não pode ficar lá só pra se esconder.
— Eu sei… é só… — Ela respira fundo, olhando nos
meus olhos — Eu não sou você, amiga. Você é linda, rica,
famosa, tem uma luz toda sua, se comunica bem… Eu sou
só… eu. — Ela encolhe os ombros, e eu não tenho ideia de
onde saiu essa insegurança.
— Nina, quê?
— Não tô falando isso pra você ter pena de mim, sou
muito feliz sendo só eu — ela se apressa em dizer, e eu
balanço a cabeça dispensando o comentário.
— Você é a Nina Magalhães, melhor aluna na escola,
oradora da turma da faculdade, a filha que não deu
trabalho, a amiga que salvou minha vida, a melhor anfitriã
de toda a Petrópolis…Tu tem um futuro brilhante.
— Eu tenho tanto medo daqui, do mundo… Me dá um
frio gostoso na barriga, mas não anula o medo.
— Para com isso, Nina. Você é incrível. É a pessoa
mais incrível que eu conheço. Também é linda, tem uma luz
toda sua, e eu sei que talvez você não tivesse feito
exatamente o mesmo que fez por mim por qualquer pessoa.
Mas teria feito algo muito próximo, porque você é preciosa.
Entendeu direitinho o que Jesus mandou. E merece demais
ser feliz, crescer, conhecer o mundo… Você tem uma
essência, Nina, ela é única. E não vai ser uma mudança de
cidade que vai fazer você se perder. Eu te proíbo tanto de
ficar lá quanto de se perder aqui, aliás — digo, fazendo-a rir,
e pego meu coco para finalizar a água antes que esquente.
— Mas eu quero tanta coisa. — Ela engole em seco
com os olhos brilhando.
— E isso é pecado? — pergunto, genuinamente
confusa.
— Não. Eu só não quero que essas coisas falem mais
alto, sabe? Não num sentido de eu abandonar a minha fé ou
qualquer coisa, não tem a menor chance de isso acontecer.
É mais… Eu domino os meus quereres, hoje. E tenho medo
deles me dominarem quando eu não tiver mais… a vida
regradinha e pacata de “sim senhor” e “sim senhora”,
sabe? — ela diz e respira fundo, e eu sorrio.
— Minha criança viveu a vida inteira como a filha
perfeita e agora tem medo de não saber viver como adulta
no mundo real… — digo, como quem não quer nada,
esperando a reação dela, que dispensa meu comentário.
— Seu almoço com o Guilherme não era hoje? —
pergunta observando a hora no relógio.
Já passa das duas.
— Era, mas acabei precisando ficar até mais tarde no
estúdio, então deixamos pra fazer tudo na quinta.
— Tudo? — minha amiga pergunta segurando o riso e
arregalando os olhos.
— Nina, você está impos…
— Bia Lopes! — A voz seguida de um gritinho histérico
me faz não só olhar para trás de mim, na direção da
calçada, como levantar.
— Oi, tudo bom? — Sorrio para a garota com roupa de
corrida, viseira e suporte para celular no braço tremendo
diante de mim.
— Ah, meu Deus, eu te amo tanto — diz, balançando
as mãos com os olhos brilhantes de lágrimas.
— Qual é o seu nome? — pergunto, segurando suas
mãos na tentativa de acalmá-la.
— Marcela. Eu me chamo Marcela, e eu tenho uma
tatuagem da Geração Z, olha! — Ela se vira, me mostrando
o coração alado com a sigla GenZ no cóccix e, meu Deus,
não tem nada mais anos 2010 que tatuagem no cóccix.
— É linda. E tá tão bem cuidada.
— Retoco sempre que precisa, vocês me salvaram
muitas vezes — diz, acariciando minha mão. — E eu tô no
céu com seu namoro com o Guilherme, sério, vocês são tão
lindos, tão lindos.
— Obrigada, de verdade — digo, enxugando seu olho
esquerdo. — O Gui é alguém especial.
— Posso tirar uma foto contigo?
— Claro. — A menina estica o braço trêmulo, mas Nina
logo se levanta.
— Quer que eu bata? — pergunta se aproximando. —
Não estou nos meus melhores dias de paparazzo, mas
prometo me esforçar.
— Nossa, por favor. — A menina me abraça, com os
olhos marejando de novo, e eu entrego todo o carinho que
tenho pelas pessoas que amam meu trabalho aqui, nesse
abraço.
— Muito obrigada — sussurro acariciando seu ombro.
— Obrigada de verdade — digo quando ela se afasta.
— Eu que agradeço, Bia. Você tava aí com a sua
amiga, desculpa o surto, é que eu corro aqui sempre, e foi
uma surpresa.
— Que legal, quero vir mais aqui, quem sabe a gente
não bebe algo juntas qualquer dia?
— Eu ia morrer, mas ia amar, e pedir spoilers da
novela — ela brinca nervosa, e nós três gargalhamos. Mas
em seguida ela se vai, caminhando de costas e me dando
vários “tchau” antes de se virar.
— Nossa, como você tá famosa… de novo.
— Eu tô, e ela toda fofinha. — Balanço as mãos na
frente do rosto para impedir as lágrimas de rolarem, mas
essas seriam de felicidade. — Ela tinha uma tatuagem, e
falando de mim e do Gui…
— Ao que parece, nem todo fã da Geração Z odeia o
Guilherme.
— Tá na hora delas superarem. — Espreguiço, olhando
o movimento agitado demais para uma tarde de terça na
praia. — Nem eu odeio mais aquele principezinho irritante
— digo voltando a me sentar.
— É mesmo? E como você tá com tudo? — Ela coloca
o coco de lado e se debruça na mesa, tentando arrancar
algo sobre ele, como tem feito há dias, e eu tenho ignorado.
— Com saudades. — Desisto de me fazer de forte e
me abro com minha amiga, sem lágrimas, sem peso na
consciência, só com a verdade. — Você tá aqui, e isso me
impede de passar o dia inteiro pensando no quanto sinto
falta dele me irritando, me pentelhando…
— Te agarrando… — implica, achando que eu vou ficar
sem jeito, mas eu apenas meneio a cabeça.
— Demais! Ele tem um piercing, sabe? Um piercing na
língua, é tipo… — Respiro fundo e desisto de me fazer de
maluca. — O beijo, o toque, o cheiro desse homem. —
Semicerro os olhos, pensando em como eu tentei, no quanto
me esforcei para que tudo fosse mentira, e nossa, eu nunca
tive a menor chance com aquele carioca sem-vergonha. —
Gente, eu fui muito forte, muito tempo — concluo, batendo
na mesa com as duas mãos, e Nina joga a cabeça para trás
gargalhando.
Começo a dar detalhes sobre nossos momentos a uma
feliz e atenta Nina Magalhães. Narro cada pelo do meu
corpo que esse homem arrepiou, cada borboleta saliente
que ele fez voar dentro de mim e sorrio igual uma besta
pensando que, assim como Nina mencionou, as pessoas não
o odeiam, e também não me veem mais como uma idiota
por ter dado outra chance a ele.
Sem contar que as Vagabonders me amam, então eu
não poderia estar mais encantada com esse faz de conta.
— Amiga, você gosta muito dele — ela diz, acariciando
minha mão sobre a mesa enquanto a brisa joga seu cabelo
para trás. — Talvez ele devesse saber.
— Talvez. Mas tem o passado, Nina. E eu não consigo
fingir que ele não existe.
— Lembra quando você me ligou depois de ter
montado nesse homem? — Nina diz me deixando roxa de
vergonha. Apenas assinto. — Você nem cogita o perdão?
Tipo, pode ser só isso que te separa de viver o que você
realmente quer.
— Ah, Nina, nem vem com esse papo de perdão. —
Balanço a cabeça com tanta veemência que meu coque se
desfaz. — Cara, não dá. Ele terminou comigo e foi embora
um mês depois que eu enterrei meu pai, tu tem noção?
— Amiga, nem é questão de perdão… — Ela pensa por
um tempo e cruza os braços me encarando. — Eu não
namoro, nunca encontrei alguém de quem eu gostasse e
que se encaixasse na minha vida, mas se eu achasse essa
pessoa… — Nina respira fundo, como se buscasse as
palavras. — Jamais deixaria algo manchar isso. Você gosta
dele, não precisa dizer que ele gosta de você, porque tá na
cara. Vocês não ficam juntos, por quê? Por algo que
aconteceu quando vocês tinham dezenove anos?
— Não foi “algo”. — Cruzo os braços, encarando-a em
choque. — Ele me deixou sozinha! Meu pai tinha a-ca-ba-do
de morrer, e ele terminou comigo dizendo que ia embora.
Do dia pra noite, sem nenhum motivo.
— Amiga, ele não ter falado os motivos, não significa
que eles não exis… — ela tenta dizer, mas a interrompo.
— Nina, eu não consigo perdoar, não adianta. —
Engulo em seco com toda a dor, raiva, nervoso, confusão
que verbalizar isso me causa. — Ele podia ter ido embora e
se feito presente pelo menos por algum tempo, mesmo que
ele não gostasse de mim, devia ter tido a consideração —
digo, me controlando para não chorar em público. — Nunca
fui nada além de leal com o Guilherme, amiga. Todo mundo
sabe disso! Ninguém me queria com ele, porque ele era
“favelado”, até meu pai ficou arredio no começo, e eu
enfrentei o mundo por amor, pra quê? Pra ele me descartar
na primeira oportunidade, no meio da pior coisa da minha
vida?
— Poxa, eu sinto muito pelo seu orgulho ferido —
minha amiga me interrompe com as sobrancelhas erguidas.
— Mas repetir três vezes na frente do espelho que “ele te
abandonou no pior momento da sua vida” quando tá longe
não faz a magia acontecer se, quando ele tá por perto, você
nem lembra que um dia Guilherme Almeida te machucou. —
Arregalo os olhos e abro a boca para perguntar de que lado
ela está, mas Nina nem me deixa falar. — Você tá triste, tá
mal, mas, se ele brotar aqui do lado, vai ser como se nada
tivesse acontecido. Eu vi vocês juntos, Beatriz, não adianta
mentir pra mim; quer dizer, mentir pra você.
— Se eu soubesse que você ia tirar o dia pra me
humilhar, tinha ficado em casa.
— Para. Você sabe que eu não fiz isso. — Nina se
levanta e puxa a cadeira para o meu lado, se sentando
perto de mim e puxando minha cabeça para seu ombro em
seguida.
— Acho que tenho me permitido viver essas coisas
com o Guilherme só porque ele vai embora — sussurro sem
jeito. — Nossas vidas são diferentes, e eu não sei se eu vou
conseguir perdoar, de verdade, algum dia. — Meus olhos
marejam novamente, dessa vez, com medo e ansiedade. —
É fácil esquecer por algumas horas, mas não sei como seria
a vida toda.
— Isso eu também não sei, amiga. — Nina apoia a
mão em meu joelho. — Mas já tem quase quatro anos que
ele foi embora e vocês não pararam de se gostar. Olha para
você, estava aqui há cinco minutos falando do quanto sente
falta dele. Olhar para vocês naquela sala foi como voltar no
tempo. Ele é o engraçadinho, você a estressadinha. Vocês
exalam amor e, não é por nada não — Nina inclina o rosto
para me encarar, com o canto direito da boca curvado num
meio sorriso —, mas você brilhou quando ele te roubou um
selinho.
— Eu tô tão confusa, Nina — confesso, aconchegando
a cabeça no ombro dela enquanto sua mão direita acaricia
meu cabelo.
— Eu sei. E o perdão… bem, ele é uma decisão, você
pode escolher perdoar ou não, cê tá certa nesse ponto. Só
que manter na sua cabeça a necessidade de não perdoar
não manteve esse homem longe dos seus pensamentos, da
sua boquinha linda, nem da sua cama!
— Nina! — grito em choque.
— Só manteve longe da calcinha por falta de
oportunidade! — ela rebate muito certa do que está
dizendo, e meu queixo cai.
— Meu Deus, você está impossível! — Eu me levanto,
ficando o mais longe possível desse monstro da sinceridade,
mas ela se levanta me abraçando.
— Você dorme com o seu namorado de mentira, e eu
estou impossível? — sussurra no meu ouvido, e fujo de seu
abraço.
— Vamos pra casa, Nina. Vou te colocar de castigo lá
no seu quarto!
— Não ligo, se você não lembra, ele é bem mais
confortável que o da minha casa — debocha me dando
língua, e eu reviro os olhos.
— Você parece o Richard, sabia? Desaforada e
respondona. — Bato o indicador no nariz arredondado dela
enquanto caminhamos pela orla.
— O gostoso da bateria? — pergunta, me dando o
braço e me forçando a andar mais rápido.
O olhar inconstante se movendo em todas as direções
denuncia que Nina está levemente incomodada com as
pessoas nos olhando, fotografando e dando tchauzinho, mas
sem se aproximar e, de fato, falar comigo.
— Respeita ele! — Semicerro os olhos para ela. — Mas
sim, o gostoso da bateria.
— Ele é solteiro?
— Todos eles são. — Ergo a sobrancelha. — Se bem
que o Rick é um solteiro calado, sincerão, não gosta de
noitada… Bem seu tipo — digo, como se ela tivesse um tipo.
— Mas é um solteiro gostoso assim, de Jesus?
— Eu sei lá — respondo, lembrando do dia que eu
estava sentada no colo dele e apago o pensamento da
minha mente, porque não foi nada de mais, ele só queria
me ajudar.
— Então descubra. Ele é bonito demais — exige
quando paramos no sinal. — Como você disse, eu também
sou linda, imagina nossos filhos. — Ela começa a andar, mas
seguro seu braço, porque o sinal está verde, mas ainda tem
dois carros em alta velocidade.
— Por favor, não se mate.
— Deus me livre de morrer BV. — Ela se vira pra mim,
segurando o coração. — Amiga, imagina segurar a boquinha
e não beijar ninguém vinte e três anos, pra perder o BV pra
um homem DAQUELE! Eu fico até fraca. Acho que, mesmo
se ele num for crente, mas quiser me beijar, eu abro até
uma exceção. — Começamos a atravessar, mas ela olha
para o céu no caminho. — Brincadeira, Deus. Brincadeira.
— Garota, Deus não tá nem aí pra quem tu tá beijando
ou não — alerto enquanto caminhamos até a entrada do
prédio.
— Olha, amiga — ela pega a chave extra do prédio no
bolso e abre o portão —, não preciso de um Deus que só me
vê em partes. — Ri, dando de ombros enquanto entramos.
— A beleza da minha vida com Jesus é que ele se importa
com absolutamente tudo.
— Não precisa me jogar um lacre gospel. — Dou uma
cotovelada nela enquanto andamos até o elevador. — É que
é uma coisa tão pequena — sussurro, e Nina assente, mas
fica em silêncio.
Ela segue me observando, mas ainda em silêncio.
Quando entramos no meu apartamento, ela suspira com
aquele olhar de crente que está prestes a dizer algo muito
profundo sobre uma coisa muito simples, e eu me atento.
— Amiga, com o tempo você vai aprender que as
coisas só são grandes ou pequenas pra gente. Pra Deus elas
são só coisas — diz, e eu não entendo, mas meu telefone
vibra no bolso. Assim que o pego, o visor me mostra o nome
de Guilherme.
Uma ligação entrando com seis mensagens não
respondidas.
Eu queria não ansiar por atender. Queria que Nina não
tivesse razão, queria não desejar ouvir a voz dele com todo
o meu ser. Mas essa não é a verdade.
— É o Gui! — digo olhando para ela no corredor,
parada entre a sala e meu quarto, sem me mover.
— Amiga, espero que essa ligação traga algo que, pra
Deus, é só uma coisa. Mas que, pra você, seja algo bem
grande! — Nina diz, me fazendo sorrir antes de me
empurrar gentilmente até meu quarto e fechar a porta me
dando privacidade.
— Oi, não aguentou esperar até quinta para ouvir
minha voz? — ironizo, porque fazer graça é minha melhor
saída para acalmar as borboletas no meu estômago.
— Oi, Coisinha difícil de encontrar! Tô tentando falar
com você há horas! — ele me cumprimenta com um
suspiro, parecendo aliviado em conseguir falar comigo.
— Aconteceu alguma coisa? Tá tudo bem? Cancelaram
a gente? — Minha voz treme entre a curiosidade e o
nervosismo.
— Não, tá tudo ótimo! — garante, percebendo que me
alarmou. — É só que, lembra que eu tinha comentado que ia
para a minha avó esse fim de semana?
— Uhum.
— A gente fez uma chamada de vídeo ontem, e ela
tem certeza de que nós ainda somos um casal. Então,
Coisinha, eu meio que preciso muito de um favor, e tudo
bem se você não quiser, mas eu espero muito que você
queira…
Capítulo 23
Ou: Ela me ama? Ela me odeia? Acho que são altos e
baixos…
Guilherme
Nossa cobertura fica a vinte e cinco minutos a pé do
prédio de Beatriz, só que a ideia de caminhar com os caras
da banda e, pelo menos, mais doze seguranças me parece
um esforço desnecessário demais para passear na beira da
praia, por mais que eu sinta saudades disso.
Assim, deixo os seguranças para trás e mato as
saudades da orla cheia de Copacabana, dirigindo a Porsche
que aluguei com os vidros meio abertos. Para o desespero
dos gringos, já que o Rio segue mantendo o padrão de um
sol para cada um e quarenta e dois graus. Felizmente, o
trajeto dura menos que duas músicas do Seu Jorge, e às
10h30 estaciono o carro na garagem de Beatriz e seco no
tecido da bermuda o suor das mãos, que não sei se é de
ansiedade ou calor.
— Nervoso? — Thomas, sentado ao meu lado, me dá
um tapinha nas costas.
— Fica calmo, cara. — A.J., sentado bem atrás de
Thomas, chama minha atenção antes que eu responda, e o
observo pelo retrovisor. — Vocês já até dormiram juntos.
Pensa na minha situação, a Alê mal sabe que eu existo.
— Ela sabe que você existe, A.J — eu, Thomas e
Richard dizemos pela décima vez em menos de uma
semana, dessa vez, em uníssono. — Só não está interessada
— Richard complementa.
— Você fere meus sentimentos assim. — A.J. o encara
enquanto leva a mão ao peito e faz carinho em si mesmo.
— Acredito que dois convites para “estender depois da
gravadora” recusados deixaram claro que ela não está
interessada, guitarrista. — Richard pisa na ferida mais uma
vez com um risinho sem humor no rosto.
— Ou ela só não quer se envolver em fofocas com um
dos caras da banda com a qual ela quer trabalhar, baterista
— Thomas defende nosso caçula e tenta falar mais alguma
coisa sobre A.J. usar a turnê a favor dele, mas Beatriz entra
no meu campo de visão, e eu saio do carro.
Com olhos arregalados em direção a Nina, Bia ri de
algo que a amiga fala enquanto elas saem do elevador.
Pisco duas vezes e respiro fundo, sentindo um sorriso se
formar só de olhar para ela, quando os meninos batem as
portas do carro e me seguem.
— Olha só, cara. — Meu baterista mal-encarado bate
no meu ombro com o braço. — Vê se aproveita essa viagem
para ser um pouquinho, mas só um pouquinho, mais
homem, beleza? — A frase não é uma orientação, é um
pedido, e eu me pergunto o quanto Richard sabe sobre
Beatriz, o quanto ela falou com ele sobre nós e se eles, de
fato, conversaram sobre a gente ou isso é só o Richard
sendo o Richard. — Tenho certeza de que vai te ajudar.
— Não quero que ela ache que a convidei pra transar
— respondo me virando em sua direção.
— Então não transa com ela — diz, e sei que ele está
revirando os olhos por trás dos óculos escuros. — Da última
vez que chequei, a gente conseguia deixar sentimentos
claros com discursos.
— Você é tão velho, cara. — A.J. balança a cabeça ao
lado dele. — As garotas hoje em dia gostam de gestos, não
de discursos.
— Tudo bem, elas estão chegando. Se comportem!
Observo Beatriz puxando sua mala de rodinhas com
um tênis nos pés, um short mais curto que o de Nina e uma
blusa com gola polo para “enfrentar São Paulo”, como ela
gosta de dizer. Mesmo que minha família more no litoral.
Numa distância de cinco minutos da praia.
Elas param bem à nossa frente. O cabelo de Beatriz
preso num rabo de cavalo alto e os óculos escuros
completam minha visão do paraíso.
— Bom dia, gente — Beatriz nos cumprimenta em
inglês, antes que cheguemos a uma distância confortável.
— Bom dia, Bia — respondo alto, seguido do
cumprimento dos meninos.
— Essa é minha amiga: Nina Magalhães. — Indica a
garota sem jeito e desviando o olhar ao seu lado.
O olhar de Beatriz revela que ela está tentando ser
prudente, mas os olhos semicerrados de Nina me dizem
para ter cuidado.
— Vergonha? — pergunto em português, estreitando
os olhos de volta para ela.
— Claro, eu moro no meio do mato — ela rebate, e
Richard tosse, num engasgo.
— É só modo de falar, Rick — aviso, e o rosto dela se
torce em confusão. — Ele arranha no português, não fale
mal da gente esse fim de semana ou ele vai me contar —
sussurro uma ameaça vazia, e ela se esforça para não rir.
— Olha, Thomas. Um dia lindo. — A.J. abre os braços e
aponta o teto do estacionamento, chamando minha
atenção.
— Ah, eles não falam português, não entendem nada,
na verdade — pontuo para Nina, que vai passar o dia com
eles.
Já que roubei a amiga dela, nada mais justo do que
oferecer os meus.
— Ah, sem problema. Vocês podem falar com a Nina
em português, inglês, espanhol, alemão e um pouquinho de
holandês — Beatriz enumera, em inglês, com a mão direita
erguida.
— Quantos anos você tem e como estudou isso tudo?
— A.J. se aproxima, joga os cabelos longos para trás e a
observa genuinamente curioso.
— Estudei na escola “Filha de pastor que recebe
missionários em casa” desde os dois anos de idade — ela
rebate de maneira divertida, a mão segurando na alça de
uma pequena mochila. — Antes dos quinze já tinha o inglês,
o espanhol e o alemão.
— Você é filha de pastor? — Richard abaixa os óculos
até a ponta do nariz e a olha de cima a baixo.
— Filha de pastor num calor de quarenta graus, sim. —
Nina ergue a sobrancelha com uma das mãos na cintura,
como se Richard estivesse julgando a bermuda que revela
metade de sua coxa e a blusa de alças finas que molda os
seios fartos.
— Não. Não é a roupa, é… — se apressa em dizer,
tirando os óculos de vez e ficando vermelho, mas sem
concluir sua fala.
— É? — Nina pisca, esperando uma resposta.
Ver os olhos de águia dela em outra pessoa me relaxa.
E ver Richard, uma pedra sem emoções, procurando
palavras para falar com uma baixinha abusada está sendo
reconfortante.
— Minha ideia de crente é… uma garota sorrindo e
rodando num campo de trigo, carregando flores, com
vestidos até o pé e você… é normal, é bonita — diz, dando
de ombros, e Nina gargalha.
— Você consumiu bastante página de feminilidade
bíblica — comenta, fazendo Richard rir com os ombros
menos tensos. E ela também parece mais descontraída
agora.
— Wow, sua garota não vai curtir isso, cara. — A.J.
pousa a mão no ombro de Richard, com um leve deboche.
Rick inclina a cabeça na direção dele, e o olhar azul da
cor da morte o faz se encolher.
— Muito obrigada, tá? — Nina sorri para Richard, só
pelo elogio, sem nenhuma segunda intenção no olhar. — E
você, não seja fofoqueiro — diz para A.J., fazendo todo
mundo rir.
— Bom, namorada. — Limpo a garganta e estendo a
mão para Beatriz. — A gente tem sete horas de estrada pela
frente, e eles vão cuidar da sua garota. — A puxo para mim
e nós dois rimos. — Podemos ir? — pergunto, beijando sua
bochecha, e ela não se afasta.
— Pode ir tranquila, a gente vai cuidar dela — Thomas
garante enquanto A.J. se coloca ao lado de Nina.
— Eu sou o seu favorito? — pergunta, virando o boné
para trás. — Se eu for, posso esquecer o segredo sobre o
elogio de Richard e te fazer ainda mais feliz nesses dias.
— Meu favorito? — ela pergunta de cenho franzido,
encolhendo os ombros e A.J. assente. — Eu nem ligo muito
pra banda de vocês. — Dá de ombros, como se conseguisse
mentir.
— Eu vou levar minha mulher embora daqui antes que
vocês façam a Nina mudar de ideia — digo e começo a
caminhar.
Beatriz, porém, continua parada, com os olhos
imóveis, mas tão profundos que poderiam falar.
Ela abre a boca para dizer alguma coisa, mas se cala e
balança a cabeça.
— Tchau, meninos, cuidem bem da minha garota.
— Você sabe que eu sempre cuido das boas garotas,
Bia — Rick rebate com uma piscadela, e nós dois reviramos
os olhos.
Quando seguro a mão de Beatriz com mais firmeza e a
levo em direção ao carro, dessa vez, ela não demonstra
resistência. Abro a porta para minha garota e corro,
deixando sua bagagem no porta-malas. Assim que entro no
carro, Beatriz respira fundo.
— Isso foi uma péssima ideia, eles vão deixá-la
maluca. — Ri de um jeito sapeca que me dá toda a
liberdade de que preciso.
— Espero fazer o mesmo com você. De um jeito
diferente, claro — completo, e ela segura o riso,
semicerrando os olhos para mim ao encaixar o cinto de
segurança. — Lembra do que a gente conversou no
telefone?
— A gente conversou muitas coisas no telefone… —
sussurra me olhando de lado e morde o lábio inferior em
seguida.
— Teve uma bem específica, um dia depois que eu
dormi na sua cama… — sussurro de volta, me aproximando.
— Ah, você quer um beijo, é? Acho que pode ser um
beijo técnico, eles tão olhando pra gente — implica, me
fazendo implorar.
— Acho que eu não esperei esse tempo todo por um
beijo técnico — digo rente à sua boca, com os olhos nos
dela.
— Você vai realmente destruir cada pedacinho da
minha sanidade, né? — indaga, correndo a língua pelo lábio
inferior.
— E você vai adorar — respondo, roçando os lábios
nos dela.
Uma batida no vidro da minha janela nos faz pular,
como se pegos no flagra. Mesmo que, para todos os efeitos,
estejamos juntos há dois meses, e todo mundo saiba que
fizemos coisas piores nesse mesmo carro.
Me viro dando de cara com Nina. Que bate
novamente, então abro o vidro.
— Esqueceu sua mochila, Princesinha — debocha,
segurando a pequena bolsa rosa e trocando olhares com
Beatriz que, certamente, falam muito mais do que consigo
entender. — E você, Principezinho, traga minha amiga de
volta e inteira, tá? Você a machuca de novo, um pouquinho
que seja, eu arranco sua cabeça. — A ameaça é muito,
muito honesta.
— Não vou machucar — respondo, me encolhendo no
banco.
Mas eu já prometi isso a ela uma vez, e as coisas
acabaram como acabaram, então talvez ela não acredite
tanto assim.
— Isso é uma promessa? — pergunta com olhos tão
vidrados que apenas assinto. — Então se a quebrar, tenho o
direito de arrancar as duas cabeças!
— Nina! — Beatriz grita com os olhos arregalados. —
Que boca suja é essa?
— Foi por uma causa maior. E eu treinei isso por uns
quinze minutos no espelho. Precisava falar — a garota diz,
risonha e corando, como se essa fosse a coisa mais errada
que ela fez nos últimos vinte e três anos, e eu deixo um riso
divertido escapar enquanto Beatriz lista recomendações.
— E, ah, se esses meninos te enlouquecerem, pede
pro Rick te trazer em casa!
— Eu ainda sei pegar um Uber, amiga. Te amo. Beije
muito na boca — sussurra a última parte, e eu mordo o lábio
inferior para não rir.
— Adeus, Nina. — Ela joga o corpo sobre o meu,
alcançando o botão do vidro e apertando-o para subir.
Enquanto o vidro fecha, a garota se afasta, e eu peço
aos céus para esses meninos darem um fim de semana
divertido a ela.
Beatriz tenta voltar para o seu lugar, mas encaixo a
mão em sua nuca e a puxo para perto.
— Você ouviu sua amiga — sussurro, e os lábios dela
desgrudam. — A gente precisa beijar muito na boca. —
Beatriz respira fundo tocando meu rosto por alguns
segundos, depois deixa o canto direito da boca se curvar
num meio sorriso e enrosca os dedos na minha camisa, me
puxando para si.
Beijar na boca é gostoso. Beijar alguém por quem
você se atrai é uma delícia. Mas nada se compara a beijar a
única mulher pela qual você sempre foi apaixonado.
O gosto, o toque, as respirações entrecortadas e os
gemidos tímidos se unem num calor que estouraria
qualquer termômetro. Mas, tão logo o beijo começa, ele
acaba sob os gritos constrangedores dos nossos amigos, e
Beatriz se afasta, sorrindo, com meu lábio inferior entre os
dentes.
— Vambora, Principezinho. Quero beijar você em
algum lugar que não tenha plateia.
Assinto, vendo o sorriso sem-vergonha deixar seu
rosto, coloco o cinto e dou partida no carro, encontrando o
sol e a maresia lá fora.
— Eles voltam como? — Bia pergunta confusa quando
subimos a rampa de acesso até a saída.
— Seguranças. Estão me esperando ir embora para
chamar. — Era isso ou eu ter alguns deles na minha cola, a
última coisa de que eu preciso para esse fim de semana. —
Quer ouvir alguma coisa? — pergunto pronto para ligar o
rádio assim que passamos pela saída do prédio.
— Por ora não. — Beatriz tira os sapatos e joga-os no
chão atrás de seu banco. — Sete horas sentada e de sapato
fechado? Ninguém merece — explica diante do meu cenho
franzido, e eu meneio a cabeça.
— Eu sei que a gente queria mesmo se ver — e se
pegar loucamente —, mas ainda te devo alguns “muito
obrigado” — pontuo com os olhos na pista enquanto o carro
atinge a velocidade máxima permitida.
— Por que eu topei ser sua namorada de mentira no
aniversário da sua avó? — pergunta, se fazendo de
desentendida.
— Porque você topou viajar comigo, ir de carro e ser
minha namorada lá — explico, sem a menor coragem de
pronunciar o “fingir”, porque nós dois sabemos que não
estamos mais fingindo há um bom tempo.
— Deve sim, mas sua mãe vai pagar todos eles com
as comidas maravilhosas dela — assente animada, e eu fico
feliz por ela querer estar com minha família nesse
momento.
Beatriz poderia ter dito não, eu culparia o trabalho, e
vida que segue. Mas ela quis vir, e isso fala muito sobre o
quão errado eu estava quando a deixei.
— Sabe, no ruim de tudo, nosso… Esse… — Olho para
ela e tomo coragem para deixar claro o quanto eu queria
isso. — Acho que não podia ter um jeito melhor de encerrar
nosso tempo do que passando esse fim de semana com
vo…
— Você acabou de passar no sinal vermelho,
Principezinho — ela me interrompe, atenta ao trânsito como
uma boa copiloto, como se não estivesse me ignorando. —
Melhor cê ficar na tua — indica, virando o rosto para a
janela ao seu lado.
— Tudo bem, eu só… — aperto as mãos no volante,
sabendo que os pontos que vou tomar na carteira não são
nada diante dos que posso tomar no coração. — Só pensei
que talvez a gente devesse combinar nossas histórias…
— Acho que não precisa ter história, a gente ainda se
ama e voltou a ficar junto. Êeee! — diz e balança as mãos
sem animação.
Um humor bem diferente do que entrou no carro, e eu
tenho certeza absoluta de que meu “não podia ter um jeito
melhor de encerrar nosso tempo do que passando esse fim
de semana com você” é o motivo.
Ligo o som do carro, tentando diminuir o espaço entre
nós numa playlist aleatória. No entanto, depois de duas
músicas, Bia pede para escolher alguma coisa, e eu lhe
entrego meu celular. Em segundos uma música do nosso
primeiro CD começa a tocar pelo carro.
— Você gosta?
— O que tem para não gostar? — A pergunta ranzinza
me atinge.
— Beatriz — eu a chamo pelo nome, e ela me devolve
um “hum?”, mas não é o bastante. — Coisinha… — chamo
novamente, e seu olhar pousa sobre o meu, os braços
cruzados firmes sobre o peito. — Você sabe que eu não
quero que esse seja o nosso fim, não sabe? — pergunto,
tocando sua perna com a mão que, num carro convencional,
estaria na marcha.
— Me desculpa. Você está certo. — Suas palavras se
embolam, e ela se vira para mim, tirando minha mão da sua
perna. — Não vou dizer que não pensei em você depois do
nosso dia lá em casa, ou nos beijos, só que… A gente não
tem outra opção, né?! — afirma encolhendo os ombros, mas
o olhar perdido e a voz sussurrada deixam claro que ela não
está satisfeita com o fim.
— Querer fazer isso dar certo é uma opção.
— Uhum — responde com desdém. — Mas você está
certo. Precisamos de uma história convincente para dizer
para a sua avó.
Paro o carro no sinal laranja à minha frente e viro o
rosto para observá-la. Não é possível que ela nem cogite
tentar. Essa mulher acabou de me beijar, sabe que virou
meu mundo de cabeça para baixo, de novo, e eu sei que ela
gosta de mim. Isso não faz sentido.
Mas balanço a cabeça, tirando esses pensamentos
daqui. Caso essa DR não saia do jeito certo, vamos só
estragar o fim de semana. Então deixo esse assunto para
depois.
— A gente pode fazer o clássico dos filmes de Natal!
— digo como se fosse óbvio, mas seu olhar de julgamento
me lembra que ela não assiste a muitos desses filmes. —
Quando um dos personagens precisa voltar para a
cidadezinha de onde veio, mas não tem um relacionamento
e leva uma namorada de mentira — explico, e seus olhos
arregalam como se nada nessa frase fizesse sentido. — Aí a
gente conta que começamos mentindo por algum motivo,
não precisa ser o real, e que, depois de um tempo, algo fez
a gente perceber que era tudo verdade.
— Isso não é um filme, Guilherme! — ela me
repreende, rindo da minha animação. — A gente pode dizer
que voltou a se encontrar por acaso, e as coisas foram
evoluindo, o que acha? — pergunta depois de ponderar por
alguns segundos. — Meio estranho dizer para uma pessoa
de setenta anos que a gente estava namorando de
mentirinha.
Gargalho assentindo.
— Isso é. Mas qual foi o momento exato? — pergunto,
dando a partida diante do sinal verde.
— Como assim?
— O que fez a gente ver que estava apaixonado.
— Você tem alguma ideia? — pergunta, como se eu
devesse responder algo genérico e vazio, mesmo depois do
que vivemos nesses meses.
— Não sei quando você se deu conta que não me
esqueceu, Beatriz. Nem quando percebeu que nossos anos
longe não afetaram em nada o que sentimos um pelo outro
— digo, num tom firme. — Sei que, para mim, isso
aconteceu no exato segundo que você caiu em cima de
mim na lavanderia.
— Ah, sim. Comigo foi diferente — ela sussurra,
desviando o olhar, e mira a janela fingindo observar a
paisagem.
E eu daria qualquer coisa para entender o que isso
significa: Se as coisas nunca mudaram para ela ou se
mudaram em algum momento diferente daquele.
Capítulo 24
Ou: Você prefere uma verdade que te magoe ou dois
reais?
Beatriz
Eu vou levar minha mulher embora daqui.
Tudo o que foi dito depois disso ficou meio confuso na
minha cabeça. Até ser lembrada por Guilherme de que
esses são nossos últimos momentos juntos.
Eu poderia dizer que não. Queria contar que gosto
dele, que, apesar de ter uma mágoa gigantesca pelo
passado, tenho medo de nunca mais amar alguém,
conhecer ou pertencer, porque ele sempre vai estar aqui,
mas não consigo.
Do que adianta dizer que quero ficar com ele até o fim
da turnê, que estou disposta a tentar, que sempre achei
fofos os relacionamentos de ponte aérea entre famosos que
vivem em turnês ou gravações em lugares diferentes no
mundo, mas ainda assim lutam para fazer dar certo, se ele
nem tem a decência de pedir perdão ou se desculpar?
Quarenta e cinco minutos de viagem se passam, e nós
ainda estamos em silêncio. O carro corta a Avenida Brasil
como se pudesse voar, e eu começo a me sentir pequena.
Menor. Toda a sensação de abandono e dor que senti sem
ele ferve em meu estômago, e, mesmo colocando os pés
em cima do banco e abraçando meus joelhos, o fogo não
apaga. Ele também não queima.
Só arde e, quanto mais arde, mais dói.
— Cansada? — ele quebra o silêncio, mas prefiro
negar com a cabeça. — Tá passando mal? — Nego
novamente, e vejo-o buscar outra pergunta para fazer, mas
sou mais rápida.
— Acho que é só… fome — minto, sem saber o que
dizer. — Vou pegar um biscoito na mochila, quer?
— Em menos de vinte minutos a gente almoça, então
acho melhor você se segurar também.
— Almoça? — Franzo o cenho curvada para o banco de
trás, e ele assente.
— Não achou que eu ia te tirar de casa e te deixar o
dia inteiro à base de biscoitos, né?
— Na verdade, não pensei nisso assim, era só… Vir. E
como são horas e horas de estrada porque você, sei lá, não
queria voar, achei melhor assim.
— Em primeiro lugar, gosto de dirigir longas distâncias
e ainda não tinha conseguido fazer isso desde que cheguei
aqui — ele pontua com o indicador erguido, mesmo que no
volante. — E em segundo lugar, minha namorada não é a
maior fã de fãs histéricos recebendo-a em aeroportos — diz
como se não fosse nada, e eu sorrio com o coração
quentinho.
Amo meus fãs. Todos eles. Mas lidar com uma
multidão de Vagabonders me levaria de novo para os
dezenove anos e o lado que eu menos gosto na fama: O
caos.
— Sério que você fez isso por mim? — pergunto
tocando sua bochecha, e ele se aproveita, esfregando o
rosto em minha mão.
— Você fez isso por mim. — Ri descontraído, com um
beijo na palma. — Tu não tinha obrigação nenhuma de vir.
— Pensando por esse lado, não fez mais que a sua
obrigação — ironizo, puxando a mão de volta, e o queixo
dele cai.
— Tudo bem, Coisinha sem-vergonha, então cê já sabe
onde a gente vai comer, certo? — ele pergunta, me olhando
de rabo de olho e segurando o riso, e eu assinto.
Menos de dez minutos depois, Guilherme tira um pack
de disfarce do banco traseiro. Colocamos óculos escuros
grandes e bonés de aba curva antes de deixarmos o carro e
entrarmos na “Casa do Alemão”.
O restaurante é alto, grande, claro, e o telhado no
estilo colonial completa o visual que, como o nome sugere,
remonta à arquitetura tradicional alemã. Ainda assim é um
restaurante de beira de estrada — o meu favorito —,
portanto não costuma receber famílias ou jovens meio-dia
de uma sexta-feira, mas concordo com Guilherme, ao
menos um disfarce básico precisamos usar, vai que…
— Podemos sentar o mais afastado possível das
janelas? — Ouço Guilherme perguntar ao garçom enquanto
admiro o espaço, tentando lembrar da última vez que vim
aqui.
A Casa do Alemão é um point recorrente para quem
fez o trajeto Rio X Petrópolis tantas vezes na vida, mas
desde a pandemia… Parar no trajeto nem passou pela
minha cabeça. Com uma atmosfera acolhedora e rústica,
muitos quadros contam as histórias, tanto do restaurante,
quanto do país de referência, e eu gosto do quão agradável
esse lugar é por dentro.
Somos guiados entre mesas e cadeiras até o canto
esquerdo e, assim que chegamos à mesa, ele dispensa o
garçom e puxa a cadeira para mim.
— Pode sentar, Princesinha. — Ele indica a cadeira
com um movimento de pescoço, mas eu nego com a
cabeça, tomando sua mão ao lembrar exatamente do dia
que pisei aqui pela última vez.
— Vem cá — digo, mas já estou puxando a mão dele
entre garçom, clientes do balcão e olhos curiosos com
minha pressa. — Quero te mostrar uma coisa — aviso pouco
antes de pararmos numa parede com quadros em cima e
um mural de fotos embaixo. — Aqui! — Aponto para uma
foto minha no mural.
O uniforme da Geração Z chama sua atenção primeiro,
Guilherme abre um sorriso enorme olhando para mim, mas
em seguida seu sorriso fecha, e ele retesa, se afastando do
quadro como se a peça pudesse mordê-lo.
— É o seu pai? — pergunta, pondo o dedo no rosto de
seu Rodolfo.
— Você tá vendo que é. — Rio confusa e lembro de
soltar a mão dele, sentindo-a começar a suar. — Aconteceu
alguma coisa?
— Não, eu só… — Ele engole em seco, coçando o
cavanhaque antes de falar. — Só não esperava ver seu pai
aqui.
— Numa foto?
— Não, aqui nesse restaurante — diz, dando de
ombros e olhando em volta. — Não fazia muito o estilo dele.
— Ah, para! — Eu o empurro com o ombro. — O papai
também sabia apreciar o bom da vida em lugares simples.
Vejo Guilherme suspirar.
— Mas quando foi isso, no final da novela, né? Seu
cabelo tá enorme.
— No início das gravações da última temporada —
respondo sem saber exatamente o que fazer com a reação
esquisita dele. — A gente tava indo pro aniversário da Nina.
— Sorrio, lembrando de sair correndo no fim da tarde para
encontrar seu Rodolfo, que estava gravando em outro
estúdio. — Se não corrêssemos, não conseguiríamos lanchar
aqui e voltar para a estrada a tempo de chegar na festa.
— Vocês pareciam felizes — Guilherme comenta,
semicerrando os olhos e aproximando o rosto do mural.
— Ele tava feliz por mim. “Pela experiência”, dizia.
Sempre a experiência, nunca minha carreira. — Rio com o
senso de preservação de seu Rodolfo. — Meu pai achava
que eu deixaria as telas alguma hora, teria uma vida mais
tranquila…
— Eu sei. A gente falou sobre isso algumas vezes.
— Sério? — pergunto, e ele só meneia a cabeça,
coçando a ponte do nariz. — Por que você não disse nada?
— Não era algo que eu queria pensar, a gente tinha
dezesseis, dezessete, dezoito, dezenove anos. Para mim, a
gente ia fazer novela junto pra sempre.
E aí as coisas ficaram difíceis, e você foi embora.
Engulo as palavras observando meu pai. Alto, forte,
com um sorriso maior que o mundo e a barba grisalha
encontrando o cabelo, pretinho na parte superior e claro em
volta.
Toco a foto vendo cada detalhe, cada pedacinho dele,
para conferir se não esqueci de nada, pedindo aos céus que
ele nunca se apague por completo, que eu sempre lembre
das sobrancelhas assimétricas, do sorriso que conquistava
qualquer pessoa e das mãos, grandes e fortes, que me
confortaram tantas vezes.
Mas pensar no meu pai sempre me leva para o fato de
que o homem mais bonito, inteligente e forte que conheci
foi derrubado por uma doença maldita, e eu respiro fundo,
porque é muito injusto. Muito injusto que eu tenha perdido
meu pai tão nova sem ter nem o que fazer para evitar.
— Vem cá, minha Princesa. — Guilherme tira meus
óculos e me abraça, puxando o boné e beijando minha
cabeça. Eu poderia deixar o queixo cair em choque e dizer
que ele perdeu o direito de me chamar assim quando me
deixou, mas percebo que Guilherme está acariciando
minhas costas e beijando meus cabelos agora porque estou
chorando e, por mais que eu não quisesse abraçá-lo de
volta, me sinto segura aqui. — Se você não quiser ficar, a
gente pode comprar alguma coisa e comer no carro.
Nego com a cabeça e o abraço um pouco mais
apertado, a tristeza se misturando à vergonha pela
necessidade desse cuidado.
— É sério, a gente pode ir — ele repete baixinho, e eu
nego de novo.
— Tá tudo bem por aqui? — Uma voz desconhecida
chega aos meus ouvidos algum tempo depois, me fazendo
esconder ainda mais o rosto no peito de Guilherme, que me
aperta contra seu corpo.
— Tudo tranquilo, chefia, ela só está um pouco
emocionada.
— Moça, a senhora tá bem? — uma voz feminina
pergunta dessa vez, e eu meneio a cabeça me afastando de
Guilherme e enxugando o rosto. Assim que me vê, a menina
de cabelos loiros escondidos pela toca dá um pulo e
arregala os olhos claros. — Meu Deus, me perdoa dona
Beatriz. Você precisa de alguma coisa, água com açúcar? —
pergunta, bem mais nervosa que eu.
— Não, Luciana — digo o nome em seu crachá e
fungo, forçando um sorriso. — Muito obrigada.
— A gente vai sentar, se você puder não falar que a
gente…
— Jamais, seu Guilherme — ela responde, também o
reconhecendo, e o senhor de cabelos brancos e barriga
saliente ao seu lado a encara confuso. — Podem sentar, a
gente atende vocês logo — a jovem assegura ainda sem
jeito, e eu pego os óculos e o boné da mão de Guilherme,
agradecendo por esse canto estar vazio, e ninguém ter visto
a cena que acabei de fazer.
Damos a volta no salão em direção à nossa mesa de
mãos dadas, Guilherme acariciando meus dedos dentro dos
dele, e eu de cabeça baixa. Dos poucos clientes nas mesas,
dois homens de meia-idade até desviam o olhar para a
gente, mas ninguém diz nada.
Assim que chegamos à mesa, antes mesmo de nos
sentarmos, um garçom dispõe uma garrafa d’água e um
potinho com açúcar junto de dois copos.
— Muito obrigada — digo me sentando.
— Por nada. Se precisarem de qualquer coisa, é só
chamar — ele diz honestamente e se afasta.
— Bia, tá tudo bem? — Guilherme pergunta baixinho,
apoiando as mãos sobre a mesa.
— Você me chamou de Princesa, sabia? — pergunto,
erguendo os olhos, e as sobrancelhas dele se levantam
além dos óculos escuros.
— Desculpa, eu não percebi.
— Mas eu gostei, então acho que está tudo bem —
confesso, encolhendo os ombros, e as mãos dele se
aproximam das minhas. — A última vez que vim aqui eu
estava com o papai, naquele dia da foto. Pronta para a
última temporada da novela que mudou minha vida, me
pergunto o que ele diria se ainda estivesse aqui, se
soubesse que eu voltei pra TV.
— Ele estaria puto, mas acho que o importante
mesmo é o quanto você tá feliz de ter voltado. Então ele
teria de lidar com isso.
— E eu tô muito feliz. — Respiro fundo e exalo o ar
devagar, lembrando que quarta-feira que vem minhas
gravações voltarão a todo vapor, e eu preciso continuar
estudando minhas falas. — Feliz de verdade — concluo
quando os dedos dele se entrelaçam aos meus.
— Cê já sabe o que vai comer? — Guilherme muda de
assunto do nada, mas talvez meu estômago roncando
concorde com ele, devemos pedir.

Como esperado, a comida estava ótima. Um


sanduíche de lagarto defumado para Guilherme, um de
lombinho defumado para mim e porções muito generosas
de linguiça calabresa e frios para nós dois.
Não tocamos mais no assunto do meu pai, e eu me
sinto melhor assim. Na maior parte do tempo, é mais fácil
quando eu finjo que ele está viajando e tendo uma boa vida
em algum lugar.
— Acho que a gente deu uma exagerada — Guilherme
diz assim que Luciana, a garçonete, se afasta depois de
pagarmos a conta. Com nossos autógrafos nas mãos, mas
sem fotos; precisamos nos manter discretos.
— Teremos cinco horas pela estrada, Gui. — Levanto
espreguiçando, completamente satisfeita. — Acho que a
gente pode se dar esse luxo — brinco vendo-o se levantar.
Caminhamos até o carro juntos, de mãos dadas,
porém, em silêncio.
É bom estar com ele.
É bom sermos só nós dois, comendo uma coisa
comum, saindo de um restaurante de beira de estrada,
passeando de mãos dadas, e não a atriz e o cantor.
— Como conseguiu dispensa dos seguranças? —
pergunto quando ele se senta ao meu lado e bate a porta do
carro.
— Fazendo eles esperarem a gente no aeroporto. — As
palavras me assustam, mas deixo que ele prossiga. —
Comuniquei ao Alexandre que viajaria para São Paulo, e
todo o esquema em torno da minha viagem foi feito no
Santos Dumont.
— Vo-você os deixou lá? — gaguejo, vendo um sorriso
travesso se abrir em seu rosto.
— Queria um tempo sozinho e um tempo com você. —
Encolhe os ombros como se não fosse nada de mais. — Sem
cantada. Só nós dois fazendo algo normal pra variar.
— Eu tava pensando nisso. — Tento respirar fundo e
seguir em frente, apesar do choque. — Em como isso aqui é
legal. Comum. Sem histeria e câmeras e performance.
— Provavelmente terão fotos.
— Só de eu não perceber que elas estão sendo
tiradas, tá bom… — brinco. — Mas não é melhor avisar
que…
— A gente deveria voar uma e meia, vou avisar
quando derem falta, porque senão ele manda segurança
atrás da gente agora, e quero ter cruzado o pedágio em
Paracambi primeiro.
— Justo. Não posso dizer que não gosto, porque seria
mentira — brinco, colocando meu cinto, e ele faz o mesmo
antes de dar a partida no carro. — Mas eles não vão até a
casa da sua avó?
— Só se for à paisana, se ninguém souber que estou
lá, não tem por que ele gerar esse alarde.
— Faz sentido — digo, tirando os óculos e boné de
Guilherme e jogando no banco traseiro junto com os meus.
Desbloqueio o celular. Nenhuma mensagem de Nina
ainda, mas várias de dona Tati.
Mãezinha: Sua sogra e sua avó postiça me
chamaram para essa patacoada de vocês, sabia? Queriam
fazer surpresa para você.
Mãezinha: Mas eu não ia me sentir bem de mentir
para elas, então dei desculpa.
Mãezinha: Vê se se comporta, tá, minha filha?
Mãezinha: Mamãe te ama.
Todas enviadas pouco depois das onze.
Mãezinha: E aí, já se beijaram?
Essa foi enviada cinco para o meio-dia. Minha risada
enche o carro e pouso os olhos em Guilherme, que franze o
cenho. “Dona Tati” explico, e é o suficiente para ele
entender que minha mãe está aprontando algo.
Mas me choca ela saber que a essa altura um beijo já
teria rolado.
Eu: Eu ficaria feliz se você tivesse vindo. Estou com
muita saudade.
Envio com uma criancinha coreana chorando e
coçando o olho direito, e a palavra “digitando” aparece em
seguida.
Mãezinha: Não parece. Já que na primeira folga longa
escolheu ficar com seu namorado “de mentira”.
Mãezinha: Apesar de todas as fotos provarem o
contrário.
Gargalho, assustando Guilherme.
— Desculpa — digo fazendo beicinho, e ele ergue a
mão direita me negando.
Eu: É complicado. Mas a próxima é sua, eu juro!
Mãezinha: Tudo bem, vai ficar com ele. De mentira
ou não, namorado nenhum merece ser ignorado por um
celular.
Bloqueio a tela ainda rindo.
— Como ela tá? — Gui pergunta, desviando o olhar
para mim por alguns segundos enquanto passamos por
depósitos, casas e postos de gasolina como flashes.
— Cheia de assunto, engraçadinha e quer que eu vá
para casa por uns dias… Sabe, dona Tati ficou enciumada
quando contei que ia pra Santos com você…
— Ela não aprova? — pergunta arredio. — Tá tudo bem
se não aprovar, eu sei que é uma situação complicada.
— Minha mãe não tem uma posição. Na verdade, ela
não disse com essas palavras, mas acho que para dona Tati
tudo bem se eu te der uns pegas enquanto você tá aqui e te
esquecer depois.
— Então ela devia estar orgulhosa, você tá seguindo
isso direitinho. — Ele corre a língua pelo lábio inferior, e eu
cruzo as pernas engolindo em seco. — Mas, por que ela
ficou enciumada se ela não desaprova?
— Charme de mãe. — Dou de ombros. — Acho que
saber que as coisas eram reais pela foto que eu republiquei
montada em você não deixou meu saldo positivo.
— Claro. — Guilherme sorri para mim, me observando
por dois segundos antes de balançar a cabeça, e eu não
gosto do quão vazios seus olhos ficam. — Vou te fazer uma
pergunta agora, e não precisa responder se não quiser, só…
me diz como você está… com a gente…
Deixo as palavras entrarem. Permito que elas voem
dentro de mim como um pássaro com saudade da natureza.
Desde o meu passeio de helicóptero até a casa da ilha, com
a inundação e a foto postada por ele. Então sinto-o mudar
de direção e ir até nossos jantares, ao show, ao evento da
novela… Observando o rosto confuso, mas esperançoso, de
Guilherme um pouco mais antes de responder, sou levada
até nosso beijo no carro, a ele cantando para amenizar a
minha cólica e, quando o pássaro pousa, ele fixa os pés no
meu coração ensandecido com a pergunta, porque bem,
como eu estou?
Eu estou apaixonada.
Eu estou uma bagunça.
Eu estou sedenta.
— Confusa — é o único adjetivo que consigo dizer sem
ferir minha dignidade. — Isso tudo parecia uma ideia muito
boa quando começou. Depois ficou estranha, nublada e
perigosa.
— Quando?
— Quando perdemos o limite.
— Quando rolou aquele negócio no Show… — ele
deduz, e eu não nego.
Mas não foi no show. Foi antes, bem antes.
Quando eu caí em cima dele na lavanderia, quando
entrei naquela casa, quando o vi do outro lado do vidro e
senti a performance de um mestre-sala e uma porta-
bandeira tomar vida dentro de mim. Todas essas vezes.
— Mas sabe o que machuca? — pergunto, e ele me
olha de rabo de olho, assustado e curioso, mas eu desvio o
olhar para a janela ao meu lado. — Eu tô aqui, contigo. Você
mesmo disse que eu não tinha obrigação, e eu sou a pessoa
abandonada, Guilherme, e você nunca me pediu perdão. —
As palavras se arrastam pela minha língua com dificuldade.
— Você nem se desculpa e quer me perguntar como eu tô
com a gente? Tipo, sério?
Ele engole em seco, e o barulho é tão alto que quase
me faz virar para observá-lo. Quase. Mas mantenho meus
olhos na janela. São João de Meriti fica para trás, a entrada
de um lugar chamado Belford Roxo também, passamos pela
fábrica da Granfino, e já estamos parados numa pequena
contenção, no pedágio, meia-hora depois, quando
Guilherme decide falar:
— Beatriz, minha Coisinha, minha Princesa… — Ouço-
o me chamar e inclino o rosto. Guilherme sorri sem humor,
estuda cada pedacinho do meu rosto e acaricia minha
bochecha, deixando a mão cair em seguida. — Tudo o que
aconteceu no passado teve um motivo. Hoje não sei se fui
tão nobre, na real, penso que fui um imbecil. — Ele apoia a
mão direita na minha perna, acariciando minha pele por
alguns instantes. — Mas, mesmo naquela época, se eu
sonhasse que aquilo machucaria você como machucou, eu
jamais teria feito — assegura, sem desviar os olhos dos
meus nem por um segundo.
— Que motivo foi esse, Guilherme? Tu não acha que
eu mereço saber por que passei o luto pela morte do meu
pai sozinha depois de você me jurar que nunca me deixaria?
Minha pergunta o corta em dois. Vejo direitinho
quando ela o atinge, porque seu corpo se inclina para a
frente, e ele engole em seco.
— Você merece toda a verdade, mas eu ainda não
consigo fazer isso.
— Claro que não consegue, nem se desculpar você foi
capaz — ironizo enquanto ele acelera o carro apenas o
suficiente para seguir o fluxo.
— Não vou te pedir perdão, porque não mereço o seu
perdão — Guilherme rebate, num tom firme e rouco. — Mas
posso te jurar que eu morreria cem vezes antes de te
machucar de novo — garante num sussurro sôfrego, e sua
mão deixa minha perna e vai até meu rosto. — Porque, você
sabe, Princesa. Eu te…
— Não faz isso. — Guilherme tira a mão do meu rosto
num sobressalto, como se só pela minha recusa se desse
conta de que passou de todos os limites. — Não diz essas
palavras quando você nem consegue se desculpar. Não
quero como prêmio de consolação.
O carro à nossa frente acelera, então ele precisa
acelerar também, e não há nada que eu possa dizer agora.
Pego o celular no meu bolso e viro de costas para ele
digitando uma mensagem.
Eu: Por que eu não podia odiar homens como você?
Envio a mensagem no único lugar seguro o suficiente
para falar sobre isso e encaro o aparelho esperando uma
resposta.
Percebi que meu coração ainda batia mais forte por
Guilherme no mesmo dia que ele, naquela lavanderia. Mas
não quando ele caiu em cima de mim. Foi algum tempo
depois.
Eu disse a ele que “achava” que tinha inundado sua
lavanderia e um pouquinho de sua casa. Eu disse as
palavras meio sem graça, meio sem jeito, mas achando a
situação engraçada e divertida. Quando ele não ficou puto,
assoprei espuma em sua direção, a única coisa que eu podia
fazer para amenizar tudo, e ele me entregou um sorriso
sincero enquanto a espuma soterrava a gente.
Um sorriso que me fez sorrir de volta.
Foi ali, bem ali, que percebi que não importava nada
do que tinha acontecido. Eu ainda queria sorrir com
Guilherme. Ainda era apaixonada por ele. Tão apaixonada
quanto no dia que ele foi embora e, tão rápido quanto me
dei conta disso, enterrei o sentimento.
Nina: Para de ser ridícula, eu não odeio homens!
Nina: Ele não pediu perdão?
As mensagens chegam me fazendo dar um pulo. Mas
exalo o ar com calma e pisco três vezes.
Eu: Ele disse que não merece meu perdão.
Nina: Mas, gente???
Nina: Não existe ninguém no mundo que vai ferir
você e “merecer” ser perdoado. A gente perdoa porque o
rancor só faz mal para a gente, ou porque quer a pessoa de
volta na nossa vida, ou os dois.
Eu: Mas e se ele estiver certo? E se for demais?
Nina: Não pensa no quanto ele merece ou não, pensa
no quanto você sofreu detestando-o e vai sofrer sem ele.
Eu: Não sei se consigo fazer isso.
Nina: Tudo bem, mas se ele não pedir, não fica com
ele. Dormir com uma garota que ele machucou sem pedir
perdão quer dizer que ele acha que vocês serem algo de
uma noite ou um FDS é plausível.
Começo a digitar que talvez ele só tenha vergonha,
talvez a gente esteja confuso com tudo e que talvez… Mas
não importa, porque a próxima mensagem de Nina chega, e
ela diz tudo o que eu não queria dizer.
Nina: E você gosta dele, ele gosta de você, então
não. Não é plausível.
Bloqueio a tela e jogo o celular no banco de trás como
se ele não fosse uma coisa frágil.
— Bia. — O som da voz de Guilherme embargada me
atinge quando me inclino para trás, arrependida do
arremesso, tentando deixar meu celular seguro em algum
bolso de mochila, e eu subo o olhar para ele, voltando para
o meu lugar.
— Eu gosto de você. Não importa o quanto você
queira que eu diga que não gosto, eu gosto e estou feliz que
tu esteja aqui agora, porque você é a garota que eu quero,
e eu vou falar a verdade, eu vou te contar todas as coisas e
vou implorar o seu perdão. Só não dá pra fazer isso aqui,
agora.
— Então quando?
— Antes da gente ir embora? — propõe, e eu assinto.
Mas jogo a cabeça no encosto do carro me sentindo
fraca por amar alguém que me fez sofrer tanto.
Capítulo 25
Ou: Eu pedi duas camas, senhor. Sinto muito, só
temos uma disponível.
Guilherme
Estaciono no quintal da vovó às cinco e meia da tarde,
o portão automático se fecha atrás de nós, nos separando
da rua do condomínio de casas. Desligo o carro e tiro o
cinto, jogando a cabeça para trás. As coisas com certeza
saíram diferentes do que eu pensava, mas talvez a gente já
seja maduro o suficiente para lidar com as consequências
das minhas escolhas. Talvez contar o que aconteceu não
destrua tudo no fim das contas.
E, apesar da montanha-russa que foi essa viagem, e
as coisas estarem confusas e estranhas entre a gente, sinto
que vamos conseguir fazer isso dar certo.
Por outro lado, agradeço pelas horas que Beatriz
dormiu no trajeto, porque seu rosto sereno em nada reflete
a ansiedade dentro de mim. O conflito crescente entre os
motivos que me levaram a terminar com ela e o fato de que
terminar tem se mostrado a pior decisão que já tomei na
vida está batendo cada vez com mais força na porta do meu
coração, e eu tento não me torturar, tento aceitar que eu
era um moleque, tive minha confiança abalada e aceitei,
sem nem questionar, um padrão estúpido e uma decisão
tomada por outra pessoa.
Uma que dizia que eu não era bom o bastante para
ela, ou melhor, que nada do que eu fizesse me tornaria
digno o suficiente da garota que eu amava.
Estalo o pescoço e estico as costas respirando fundo.
— Aparentemente viajar de carro não é a mesma coisa
que rodar no ônibus da banda com cama de casal e cadeira
de massagem disponível — Beatriz implica, com a voz
arrastada, ao me ver esticando as costas e tentando erguer
os braços para me espreguiçar dentro do carro, sem
sucesso.
— Não mesmo, eu sentia saudades de dirigir, não de
ficar travado.
— Se tivesse me falado, eu podia ter dirigido também.
— Não… Você estava tão bonita, aí, mexendo no
celular, ou cantando minhas músicas, ou dormindo. Não
quis incomodar.
— Você não existe, Guilherme.
— Ah, existo sim — sussurro, deitando meu corpo
sobre suas pernas, de frente para ela.
Encosto a cabeça na janela ao seu lado e mantenho
minha boca a centímetros da sua, à espera de algum sinal.
Nossos olhos se estudam, as respirações
descompassadas entram em sincronia, e eu engulo em seco
no mesmo momento que ela pisca por um período longo
demais. E, sem fazer nenhuma menção de abrir os olhos,
Beatriz passa a mão direita pela minha nuca me
aproximando.
Nossos lábios se tocam com saudade. Eles se
cumprimentam primeiro, de maneira lenta. E então se
sentem livres para avançar em profundidade e velocidade,
numa conversa fervorosa de como nós temos sido injustos
deixando-os longe por tantas horas. Nossas línguas se
sentam à mesa e gritam o quanto se desejam e como
odeiam precisar se separar, como gostariam de continuar
ali, juntas, nos fazendo ofegar, gemer e sentir, por um
momento que, não importa o quanto dure, sempre será
pequeno demais.
Eu sou maluco por essa mulher. Ela gosta de mim. E
isso devia ser o suficiente.
— Posso te pedir uma coisa? — digo, quando ela me
afasta com gentileza e respira tão fundo que seu peito sobe
e desce de maneira perceptível.
— Pode. — Bia dá aquela risadinha que mexe comigo,
mordendo o lábio que já quero beijar de novo. — Não sei se
vou fazer, mas pode.
— Namora comigo de verdade — imploro o que pensei
durante toda a viagem. Eu quero essa mulher, eu preciso
dela, sabendo que tudo vai ser de verdade, mas meu pedido
a surpreende tanto que ela se encolhe.
— Guilherme? — Beatriz sussurra meu nome como se
eu tivesse dito algo incompreensível.
— Aqui. Só aqui. — Volto ao meu banco, mas acaricio
o rosto dela. — A gente tem… três dias. Eu gosto de você, é
mais do que isso, só que você não me deixa dizer. — Beatriz
estala a língua se preparando para me interromper, mas sou
mais rápido. — E você gosta de mim. Então vamos agir
como se fosse o suficiente, só por esses dias.
— Guilherme, por que você tá fazendo isso comigo? —
pergunta e, mesmo tendo todo o direito de ser ríspida com
a oferta, afasta minha mão com calma. — Dói, sabia? Dói
muito — diz, desviando o olhar para as plantas que minha
avó tem em volta do quintal.
— Eu sei, Bia. — Meneio a cabeça acariciando seu
ombro por cima da blusa. — Tem doído em mim por três
anos e nove meses.
— Então por quê? — ela rebate de imediato, voltando
a me encarar. — Se gosta tanto de mim, por que me largou
aqui sozinha, Guilherme?
— Na época, eu achei que não tinha escolha.
— Você fez uma escolha — Beatriz diz e engole em
seco, a lembrança tortura a nós dois.
— Cê acha que não penso nisso todos os dias? — a
pergunta não passa de um sussurro. — Que escrever as
músicas que escrevi foi uma brincadeira? Que marcar você
na minha pele ciente da possibilidade de a gente nunca
mais se falar foi um ato impulsivo? Eu era um…
— Não faço ideia do que se passa na sua cabeça,
Guilherme. Mas, tudo bem. Namoro você, se me contar o
que aconteceu — barganha com os olhos nos meus.
— Você quer namorar comigo de verdade? —
pergunto, tocando seu rosto. — Quer parar de fingir que a
gente não se gosta? Porque não é uma chantagem, eu vou
te contar de qualquer jeito — garanto, e meu peito bate
mais leve sem as amarras de um segredo que só me
corroeu. — Mas acho que a gente merece pelo menos três
dias de honestidade com nossos sentimentos.
— Três dias, Guilherme — ela diz entredentes, sem
afirmar que me quer ou que gosta de mim, mas a aceitação
diz tudo o que eu preciso.
— Eu te conto depois da festa, na noite de domingo —
digo, porque eu amo essa mulher, quero ela de volta e
talvez a verdade e um pedido de perdão possam fazê-la
pelo menos cogitar me dar uma chance. — Te coloco num
avião segunda de manhã, o que você acha?
Bia deveria voar domingo à noite, mas não tem a
menor chance de conversarmos sobre isso depois da festa,
e eu deixá-la ir embora em seguida.
Só Deus sabe como ela vai reagir.
— Acho que você tem uma namorada agora. — Dá de
ombros, fingindo não ligar.
— Obrigado, de verdade. Pela confiança e por aceitar.
— Seguro seu rosto com as duas mãos, trazendo-o para
mim.
— Mas os quartos ainda serão separados, não vou
transar com você! — afirma tocando meu peito com a testa
franzida, e eu não consigo conter o sorriso debochado que
se forma em meu rosto, mas continuo trazendo o dela para
perto.
— Só não vou te fazer implorar, Coisinha… — sussurro
em sua boca sob seus olhos atentos —, porque você fica
mais bonita obedecendo do que implorando. — Mordo seu
lábio inferior, sentindo seu rosto esquentar.
— Um namoro de setenta e duas horas é a coisa mais
maluca que eu já fiz na minha vida.
Rio meneando a cabeça e quase a puxo para outro
beijo. Mas nosso momento mágico é quebrado pela porta da
casa se abrindo.
Minha avó nos encara com as mãos na cintura, e o sol
intenso, banhando seus cabelos cinza e a pele preta,
aquece o corpo que meu abraço gostaria de envolver.
Pisco para a Bia e saio do carro, correndo até o abraço
da minha velha.
— Eu morri de saudade, dona Madá. — Eu a aperto em
meus braços, tirando-a do chão.
— Achei que ia morrer e não ia te ver de novo. — Ela
me repreende se afastando e observa meu rosto,
acariciando-o com a mão direita. — Você está lindo demais,
meu filho. Só pode ser o amor. — Ela dá um passo para trás,
afaga meus cabelos e logo descansa as mãos na cintura,
com os olhos amendoados em Beatriz, que caminha até
nós.
— Achou que não me veria mais porque quis, tentei
levar você para me visitar quatro vezes, velha teimosa —
implico e espero a correção.
Que chega com um tapa em meu braço.
— Você diria que eu tenho setenta anos, minha linda?
— Seu olhar desvia até Bia, que está parando ao meu lado.
Antes mesmo da resposta, vovó a puxa para um abraço.
— Dentro de um jeans, com joias tão brilhantes e esse
decote, dona Madalena? — pergunta enquanto minha avó
acaricia suas costas. — Jamais! — assegura, e nós rimos.
— Vamos entrar? Sua mãe e seus tios estão ansiosos
para ver vocês! — vovó avisa, já se virando.
— Os tios já chegaram? — pergunto ao entrar na casa.
— Chegamos de manhã! — Tio Sérgio, o mais velho,
sai do corredor dos quartos e do banheiro e estende a mão
para mim. — Branca tá no banho — ele cita a esposa —, e
sua mãe e sua tia estão providenciando o café da tarde —
diz, vindo em minha direção para um abraço. — Como você
tá, ô, pela saco?
— Tudo em cima. Então a tia Rita já chegou também?
— pergunto pela sua irmã, fazendo as contas de quartos
extras disponíveis. Mas a resposta não vem dele.
— Claro que cheguei, pequeno. — A voz vem da
cozinha, e corro até lá na esperança de ver minha mãe.
A encontro na beira do fogão com seus cabelos
crespos na altura do ombro e os olhos castanhos doces. Tia
Rita, de pé na pia ao lado da porta que dá para a área de
serviço, separa alguns frios. Pisco para ela e abro os braços
para receber minha mãe, mas só consigo pensar como as
duas mulheres são tão parecidas que poderiam ser gêmeas.
— Então você estava beijando na boca lá fora? —
Dona Solange me encara com as mãos na cintura enquanto
o motivo da minha demora passa pela entrada da cozinha.
— Oi. — Beatriz entra no cômodo, e minha mãe me
joga de lado, indo até ela.
Abraço tia Rita para não me sentir tão esnobado.
— Minha filha, quanto tempo! — Ouço mamãe
cumprimentar Beatriz, antes de abraçá-la.
— Oi, tia. Você está maravilhosa. — O risinho na voz
deixa claro que não é um elogio vazio.
— Você está beijando a boca do meu filho, Beatriz!
Nada de tia — mamãe diz olhando para mim, e eu caminho
até elas. — Para você é sogra! — Dona Solange ergue o
indicador, e eu abraço minha namorada por trás.
— Tudo bem, sogrinha. — Beatriz segura o riso com a
repreensão.
— Você está tão linda, Beatriz. — Ela diz, alisando o
cabelo da minha Coisinha e erguendo seu rosto. — Uma
moça, crescida e linda. Meu filho não poderia ter tomado
decisão melhor quando soube que estava voltando para o
Brasil.
E a fala dela não poderia me deixar com um bolo
maior na garganta. Eu não escolhi tê-la de volta porque
vinha ao Brasil, agora não consigo pensar em ir embora sem
estar com ela.
— Assim você me deixa sem graça, tia. — Bia
consegue desviar a tempo do tapa que minha mãe daria em
seu braço como repreensão, me fazendo rir e soltá-la para
não apanhar também. — Sogra. Eu quis dizer sogra.
— Vocês querem desfazer as malas agora, ou
podemos comer primeiro? — tia Rita pergunta, jogando um
beijo para a Bia.
— Comer! — Beatriz diz com as duas mãos na barriga,
e eu entendo, paramos para comer há mais de quatro
horas.

— Está tudo tão gostoso, Rita — Beatriz fala, com a


cabeça jogada para trás, de olhos fechados depois de
terminar o segundo pedaço do bolo de milho.
— Está sim, mamãe. Você foi ótima de novo —
Manoela, minha priminha de nove anos, adiciona.
Assim tia Rita começa a dizer que não foi nada de
mais e compartilhar as receitas, enquanto vovó a lembra
que uma delas veio da família, e as crianças ignoram a
conversa e focam no pedaço generoso de bolo de chocolate,
feito pela minha mãe, que foram, excepcionalmente,
autorizadas a comer.
Beatriz pousa a mão em cima da minha, que descansa
na mesa, antes que eu coma mais uma rodada de pães de
queijo, e sorri levando seus olhos para passear com os meus
pelas pessoas sentadas à mesa.
Ela sabe que eu estou feliz. Que amo estar em casa e
poder compartilhar esses momentos. Acaricio a mão dela de
volta, a seguro entre meus dedos e levo à boca, deixando
um beijo casto. Agradecendo por ela estar aqui, por estar
comigo, num momento tão especial. Mas, principalmente,
por nunca os tratar diferente, mesmo com todas as
discrepâncias sociais que existiam e ainda existem.
Minha família é grande e unida.
Acho que isso é quase normal para pessoas de origem
humilde. A gente se apega a quem está com a gente no dia
a dia. Não temos muitos amigos de fora, porque não são
muitos os amigos que estão dispostos a passar pelas
dificuldades com você, menos ainda são os que suportam
ver sua vitória. Então as famílias mais pobres sempre
acabam se unindo, porque são o ponto de apoio uns dos
outros.
Mesmo com brigas esporádicas por política, terreno e
até guarda compartilhada de cachorro, a gente se resolve.
Minha infância foi passada numa comunidade carente
e cheia de operações policiais com e sem data e hora
marcada, e também pelo desaparecimento ou afastamento
de amigos que se envolviam com o tráfico com ou sem o
conhecimento dos pais.
Me destacar no projeto social que me manteve longe
de coisa errada e entrar para um programa de TV que me
levou ao estrelato foi a minha forma de crescer. Mas não
apenas isso, foi o jeito que eu encontrei de transformar o
bar do tio Sérgio em uma adega; pagar os cursos de inglês
e a escola das filhas da tia Rita, mesmo que ela sempre
tenha tido bons empregos e estudado muito.
Eles, assim como minha avó, para quem eu dei essa
casa num condomínio fechado no “bairro de velhos” que ela
tanto queria; minha mãe, que tem uma mesada maior do
que o salário que ganhava no ano inteiro sendo
recepcionista de posto de saúde; e meu pai e minha irmã,
que não são obrigados a trabalhar para ter a vida
confortável que têm hoje nos Estados Unidos, nunca me
pediram nada. Eu quis ajudá-los.
E isso é parte de nascer pobre.
Você simplesmente não consegue crescer sozinho.
Precisa que seus irmãos e primos tenham uma infância
melhor que a sua. E faz de tudo para que o fardo pesado
que os mais velhos carregaram a vida inteira fique um
pouco mais leve.
Volto a comer e respiro fundo, evitando as lágrimas.
É bom, é simplesmente bom saber que pessoas pretas
e periféricas também conseguem realizar sonhos.
— Eles estão muito felizes com você aqui — Beatriz
sussurra no meu ouvido.
— Queria que o papai e a Dani também estivessem
aqui para eu ter tudo o que realmente importa. — Passo o
braço pelos ombros dela e a encaro, como se isso fosse
normal.
Porque dividir esse momento com a Beatriz é o certo.
— Tudo? — pergunta sem jeito, e eu assinto, jogando
meu último pão de queijo na boca.
— Mas e os meninos?
— Eu estou sempre com eles — digo, encolhendo os
ombros. — É bom ter duas famílias, mas essa aqui eu
sempre vou amar mais.
— O que vocês tanto cochicham, hein? — Tio Sérgio
bate na mesa, e Maria Júlia, minha prima de seis anos, dá
um pulo em seu colo, assustada. — E esse namoro aí, como
vai ficar quando cê for embora? — ele joga a pergunta que
ninguém quer ouvir na mesa, e tia Branca, que é branca
sim, mas tem esse nome na certidão, o repreende com o
olhar.
— Esquece seu tio, menino — pede, sorrindo para
mim. — O que eu, sua mãe e Ritinha realmente queremos
saber é como começou esse namoro…
— Eu também quero saber, mas depois — minha avó,
na ponta da mesa, diz num tom mais alto que o necessário,
e eu amo como minha velhinha é esperta. — Agora as
crianças vão tomar um banho e descansar, a noite vai ser
longa, e eles vieram de carro — decreta e, antes mesmo
que ela termine, eu já estou de pé estendendo a mão para
Beatriz.
— Até mais, gente. — Bia dá um tchauzinho tímido, e
nós seguimos a vovó até a saída da cozinha.
Vou até o carro com Beatriz para pegarmos as malas
e, assim que entramos na sala outra vez, dona Madá apoia
a mão na cintura.
— O café estava bom, crianças?
— Nossa, vó, tava divino! — digo, seguindo-a até o
corredor.
— Não foi pra você a pergunta… — Sou repreendido
enquanto passamos pelo primeiro de dois quartos de
hóspedes.
— Muito — Beatriz garante, passando pelo quarto da
minha mãe. — Gostei de tudo, mas o bolo de milho e o café
trufado estavam mesmo divinos — acrescenta quando
deixamos o quarto da minha vó para trás.
— Bom, vocês ficam aqui. — Ela se vira com um
sorrisinho materno quando pararmos entre o meu quarto e o
segundo quarto de hóspedes.
E mesmo que Beatriz não fale nada, dá para eu ver o
pavor em seu rosto.
— A gente vai ficar… nos dois? — pergunto ciente de
que não, porque meus tios precisam dormir em algum lugar.
— A família está nos outros quartos, mas não
precisam tentar esconder as modernidades. — A mulher à
nossa frente apoia as mãos na cintura. — É lógico que vocês
querem passar todo o tempo juntinhos.
— A senhora tem razão, dona Madá. — Bia entrega o
sorriso do coringa e passa por nós dois. — O importante
para mim agora é tomar um banho, trocar de roupa e
descansar um pouco — diz do meio do quarto, olhando para
a janela e provavelmente calculando como me jogar de lá.
— Então estamos resolvidas. — Minha avó pisca para
mim de um jeito nada inocente. — E tem banheiro aí, esse
vocês não vão precisar dividir com a família toda como nos
tempos do morro. — Até mais tarde.
— A senhora sabe que não ligo para essas coisas —
Bia garante, se virando de frente para nós, mas minha avó
só assente e se vai. — É sério? — Beatriz me fulmina com o
olhar assim que fecho a porta.
— Bia, eu não sabia e… — digo, tentando me
aproximar. Mas ela me interrompe com dois passos para
trás.
— Você devia dormir no chão! Eu disse que não ia
transar com você.
— É uma cama king size, não precisa nem encostar
em mim se não quiser.
— Ótimo, porque eu não quero — Beatriz rebate,
pegando sua mochila e indo para o banheiro.
Como se fosse culpa minha que a gente vai precisar
dividir uma cama.
Não é. É culpa do destino. E a gente não pode brigar
com o destino; eu já tentei, não dá certo.

Apesar de estar morrendo de cansaço por conta da


direção, deixo o quarto para ela e só volto quando a hora do
jantar chega. Abro a porta com cuidado, e ali está minha
Princesa, jogada no meio da cama com suas falas e um
tablet nas mãos, linda demais toda concentrada.
Toco sua panturrilha e acaricio sua pele lentamente,
ainda de pé, e ela dá um pulo.
— Meu Deus, esqueceu meu nome, é? — diz com a
mão no coração.
— Hora do jantar, vamos? — pergunto, mas seu
estômago responde antes dela.
— Que saudade de um churrasco caseiro! — diz, se
levantando. — O cheiro está tão maravilhoso!
— E o tio Sérgio é um ótimo churrasqueiro — garanto,
e era tudo o que ela precisava para guardar os papéis numa
pasta e jogar na mochila junto com o tablet.
— Prontinha. — Bia caminha até mim, eu passo a mão
por sua cintura e a beijo. O que a faz retesar um pouco,
então me afasto de imediato. — Posso beijar minha
namorada? — pergunto ressabiado.
Sua resposta é um beijo bem mais elaborado do que
eu queria, mas não sou eu quem vai reclamar.
Deixamos o quarto com risinhos fáceis no rosto, mas,
quando chegamos na parte do corredor decorada por um
mosaico da família, Beatriz para, observando as fotos. Em
uma delas, bem no canto direito, tem uma foto do nosso
último ano novo aqui. Apesar dos quartos separados, nos
divertimos tanto que ninguém poderia imaginar que 2019
para 2020 também seria nossa última virada de ano juntos.
Percebo quando ela mira o chão, evitando as
lembranças de tudo o que aconteceu em 2020, mas passo o
braço pelas suas costas quando voltamos a andar, para que
saiba que não está sozinha, ao menos não mais.
— O pessoal tá lá atrás. — Beijo o topo de sua cabeça.
— Vamos lá — convido e a guio até a saída da cozinha.
Passamos pela área de serviço ainda em silêncio, mas
um sorriso sincero de Beatriz acalma meu coração assim
que a noite estrelada de Santos nos recebe na varanda.
No quintal, enquanto tio Sérgio reclama de calor na
churrasqueira, os demais adultos estão sentados à mesa
redonda com oito lugares à esquerda, e crianças se
refrescam na parte rasa da piscina na frente deles.
— Sempre fico feliz quando vejo o quanto você mudou
a vida deles. — Beatriz suspira, tirando o chinelo e dando
um passo para a frente, deixando os pés serem abraçados
pelo gramado que nos cerca.
— Achei que me arrependeria de ter investido o
primeiro ano de trabalho praticamente todo nessa casa,
parecia muito esforço para uma coisa só. — Coço a nuca
com a mão livre e suspiro, observando meus parentes
gargalharem de algum absurdo dito por tio Sérgio. — Mas é
só pisar aqui que um filme passa na minha cabeça, e tudo
faz sentido — digo, e Bia afaga minha mão.
— Foi uma escolha muito sábia pra um menino de
dezessete… — Beatriz comenta, me puxando em direção à
mesa, e eu meneio a cabeça, ainda acariciando a mão dela.
A brisa da noite toca nossos corpos, e eu a trago para
um abraço quando vejo sua pele arrepiar. Bia se aconchega
em meu peito, e eu beijo o topo de sua cabeça,
compartilhando um momento que poderia durar para
sempre.
— Descansou, minha filha? — dona Sol pergunta, nos
tirando da bolha de conforto que estabelecemos por
segundos, e Beatriz assente enquanto caminhamos até eles.
— O Gui que não descansou nada, né? — comenta,
semicerrando os olhos e me dando uma cotovelada.
— Foi bom que ele ficou com a gente e nos atualizou
de tudo… — dona Madá dispensa o comentário.
— Agora que a realeza chegou — Tio Sérgio implica,
vindo até nós dois com a bandeja de carnes quase vivas,
como é certo, e linguiças bem passadas. — Podemos jantar?
— pergunta, e Beatriz assente jogando dois pedaços de
carne na boca.
Dois lugares, um ao lado do outro, são arrumados
para nós dois. As crianças convidadas a se retirar da
piscina, e os pratos de arroz, farofa, molho campanha e
afins brotam das mãos da minha mãe, tia Rita e tia Branca,
a esposa de tio Sérgio.
Começamos a comer, falando sobre o sabor e as
estrelas, mas logicamente a pergunta sobre “Como
voltamos?” chega em algum momento. Mas, diferente do
constrangimento que achei que seria, vejo Beatriz afastar o
prato vazio e dissertar sobre como tudo começou.
Entre refrigerante, cervejas e rostos confusos com
“Por que a gente DEVIA namorar para abafar uma fofoca
sem pé nem cabeça?”, e pescoços assentindo diante da
argumentação, Beatriz consegue explicar em detalhes toda
a confusão, mas poupa todo mundo da lavanderia inundada,
e eu me empertigo quando ela olha para mim, me pedindo
para seguir com a parte da farsa.
— Então vocês só fingiram que namoravam? — Minha
avó espreme os olhos, sem entender nada, então lembra de
puxar os óculos pendurados em seu pescoço para o rosto.
— Foi a melhor saída, juro — Bia nos defende dos
olhares inquisidores.
— E namoro de mentirinha vai, namoro de mentirinha
vem… — Encolho os ombros.
— O agarramento sempre pareceu bem real — mamãe
pontua, intercalando os olhos entre nós, se demorando mais
em mim, porque ela sabe o filho que tem.
— Porque era, para mim sempre foi — digo,
acariciando a perna de Beatriz por cima do vestido. —
Descobri que estava apaixonado pela Bia aos quinze anos,
no teste de química[7] que fizemos para o elenco da Geração
Z. — Deixo escapar, e ela me encara porque essa
informação é nova. — Nós nem seríamos um casal na
novela, os pares foram trocados depois disso — comento e,
apesar de Bia saber que é a verdade, seu queixo ainda cai
com a surpresa. — E eu senti falta dela todos os dias longe.
Então mesmo depois do término, mesmo depois de tudo, no
segundo que o helicóptero pousou na praia, e eu bati os
olhos nela, já sabia que precisava tê-la de volta.
— Também senti sua falta — Beatriz fala tão baixo,
que sinto que só eu escutei exatamente o que ela quis dizer
com isso.
— Isso foi intenso. — Tia Branca pega seu copo da
mesa e intercala o olhar entre nós por mais alguns
segundos.
— Meu garoto! — tio Sérgio diz. — A-ta-can-te!
Minha mão esquerda dança nas costas de Bia, e ela
olha para mim. O olhar resignado mostra que ela falou mais
do que queria, então beijo sua testa e depois sua bochecha.
— Você está segura aqui — sussurro em seu ouvido
antes de me afastar.
Mas ela não diz nada. Apenas sorri.
— Nossa, tenho muitas perguntas sobre fingir um
namoro — Tia Rita diz, ainda perdida em pensamentos. —
Mais perguntas ainda sobre conseguir fazer parecer tão real.
— Já falamos demais, e vocês, como estão? —
pergunto e percebo o corpo de Beatriz relaxar, mas minha
mãe gargalha, de maneira divertida, encarando dona Madá.
— Isso, mamãe, conta as últimas para o seu neto —
dona Solange diz num tom travesso que faz meus tios
olharem para ela da mesma maneira que eu estou olhando:
desconfiados. — Fala sobre sua paquera com seu personal
quarenta anos mais novo — minha mãe brinca.
Metade da mesa fica em choque e a outra metade
começa a dizer que só pode ser mentira, mas, entre uns e
outros, tem nós dois, que agradecemos a bomba e a troca
de foco — já estávamos ficando sufocados de falar só sobre
nosso namoro.
Capítulo 26
O tesão de cinco Olivias Rodrigo performando Get
Him Back.
Beatriz
Por mais nobre que tenha sido vir como namorada do
Guilherme para Santos, isso era muito mais sobre minha
vontade de ter mais tempo com ele do que sobre deixar
dona Madá feliz com nosso relacionamento.
Agora estamos namorando de verdade, e não consigo
diferenciar o que é parte dos hábitos que adquirimos
enquanto estávamos fingindo e o que é real.
Os toques gentis, os sorrisos, os selinhos durante o
jantar e o tempo que passei com a cabeça no ombro dele,
enquanto descansávamos da comida tomando uma
cervejinha com todo mundo, parecem tão reais, mas tão
reais, que é como se quase quatro anos nem tivessem
passado e nós ainda fôssemos um casal de adolescentes
apaixonados.
— Se-se você… não se sentir confortável… —
Guilherme briga com as palavras no segundo que fecha a
porta do quarto atrás de si. — Eu posso dormir no chão, tá?
— Ele encolhe os ombros, com honestidade, e eu quase
acho bonitinha a preocupação em seu olhar.
— Cê tava dormindo na minha cama semana passada,
Guilherme. — Bato as mãos nas coxas e as encaixo no bolso
do jeans em seguida, desistindo de criar alguma barreira
entre nós porque nenhuma das que tentei até aqui
funcionou. — Eu só não esperava que elas fossem estar de
boa com isso.
— Nem eu. E não só porque eu não sabia que meus
tios viriam antes do domingo — confessa, se recostando à
porta. — Mas porque a gente namorou anos e mal podia
ficar sozinho, agora nos dão um quarto! — diz indignado,
mas baixo o suficiente para ninguém ouvir.
— Tava até me perguntando por que a gente passava
tão pouco tempo aqui. — rio, abaixando o rosto com
vergonha. — Mas já lembrei. — Subo os olhos apenas para
encontrar seu olhar sem vergonha e carregado de
lembranças.
— Pois é, a gente gostava de ficar sozinho. — Ele
inclina o canto direito da boca como se as lembranças das
nossas noites na minha casa no Rio — das quais meus pais
jamais poderiam saber — e nas turnês o invadissem
enquanto vem em minha direção.
— O que foi, o mestre vai me mandar beijar você
agora? — pergunto quando suas mãos chegam à minha
cintura, e o rosto se encaixa em meu pescoço, inalando meu
cheiro.
É constrangedor o quanto eu gosto de ser tocada por
ele. Agora mais do que antes. Seus braços me juntam ao
seu corpo, e eu pisco por uns dois segundos e meio.
— Não, vou perguntar se você quer ser beijada —
Guilherme sussurra, e dou graças a Deus que ele esteja me
sustentando de pé, porque minhas pernas ficaram bambas.
— Agora não — rebato, deixando-o sem saber onde
enfiar a cara. Mas resolvo não ser malvada. — Preciso
escovar meus dentes, a gente comeu churrasco, sabe? —
justifico, e ele me deixa ir, mas dá um tapa na minha
bunda.
Deixo o queixo cair numa incredulidade fingida, mas
corro até o banheiro quando ele ameaça vir atrás de mim e
fecho a porta.
Tiro a roupa, observando a necessaire e o pijama que
ocupam “meu lado” do banheiro e jogo uma água me
perguntando onde eu estava com a cabeça quando aceitei o
pedido de namoro temporário dele.
Mas sei a resposta.
Eu quero esse homem, cada pedacinho do meu corpo
grita por ele, tudo o que temos vivido nos últimos tempos
me faz feliz. Na verdade, o amor que vejo em seus olhos
todas as vezes que ele olha para mim é o mais perto que
cheguei do meu coração explodir em anos.
Saio do box de vidro, coloco o pijama e escovo os
dentes, ciente de que as coisas já estavam indo por esse
caminho, mas ouvir Guilherme falando que se apaixonou
por mim na primeira vez que nos vimos só potencializou
tudo. É com essa certeza sobrevoando minha mente que
trocamos de lugar depois de um selinho.
Vou até a cama pensando que deveria conversar com
ele, perguntar se tudo o que disse no jantar é verdade, mas
eu sei que é, os olhos de Guilherme não o deixariam mentir
nem se ele quisesse.
Minha outra opção é contar como me sinto, ser
honesta com ele, mas não consigo. Então me deito e me
preparo para ser a pessoa mais covarde do mundo: A que
finge que está dormindo quando o outro chega. Uso o lençol
para me cobrir e, só quando o chuveiro abre, me sinto
segura o bastante para tirar meu celular do carregador.
Abrindo a conversa com Nina, vejo várias fotos dela
com os meninos. Numa mesa de café da manhã gigantesca;
dentro de uma lancha; numa praia deserta; e, até um vídeo
deles cantando em uma rodinha na sala da cobertura,
recebo.
Nina: Amiga, eles são uns fofos???
Nina: Tudo bem, numa escala de fofura o A.J. ganha,
então vem o Thomas e só depois o Rick, porque ele é meio
sisudo.
Nina: Mas de forma alguma isso é uma crítica.
Nina: Estou em casa, amanhã saio só com o Thomas
e o Richard, porque o A.J. tem um almoço com a Alê, ou
emburradinha, como ele chama…
Essas mensagens chegaram mais cedo, e fico feliz por
ela ter se dado bem com os meninos, mas nem cogito abrir
as redes sociais para ver o que estão falando sobre ela. Já
estou vacinada dessa praga.
No entanto, não posso deixar de rir quando leio sobre
o almoço, porque a Alê não namora. Pelo menos, não
namorava e sempre dizia que se casaria com a carreira. Ver
o A.J. tentando algo ali vai ser engraçado.
Nina: Espero que esteja tudo bem. Amo você.
Essa chegou há pouco mais de duas horas, e eu sorrio
sabendo que ela nem imagina o quanto e quase respondo,
mas hoje não quero falar sobre um namoro com prazo de
validade.
Deixo o celular na mesa de cabeceira onde o peguei,
viro em direção à parede azul-escura e fecho os olhos.
Deitada nessa cama, lembro de quando ele dormiu na
minha casa. Cheirei o travesseiro com o qual Guilherme
dormiu por uns dois dias e me arrependi de não tê-lo
beijado por um período bem maior.
Algum tempo depois, Guilherme sai do banheiro, anda
pelo quarto e em poucos segundos apaga a luz. Sinto sua
proximidade conforme ele caminha até a cama e se deita ao
meu lado, tentando não me incomodar. Em seguida, usa o
lençol para se cobrir, mas ele está de costas para mim, e eu
poderia entender o sinal. Deveria perceber que ele está me
respeitando, ou aceitá-lo sendo um cavalheiro, e ficar na
minha.
Mas ignoro que o ar-condicionado ainda não gelou o
quarto tanto assim e me aproximo um pouco, apenas um
pouco de seu corpo, o suficiente para saber que ele está
sem camisa, e respiro fundo contra sua pele.
O cheiro ainda é o mesmo que ele deixou na minha
cama: conforto e saudade.
— Boa noite, Gui — digo, deixando um beijo em suas
costas nuas e o abraçando dentro de uma conchinha.
— Boa noite, Coisinha perfeita — ele responde,
segurando minha mão próximo a seu peito, que bate tão
rápido quanto o meu.
E por hoje, só por hoje, isso é o bastante.
Desperto pela manhã e percebo que não estou mais
abraçada com Guilherme e, de uma forma constrangedora,
eu sinto falta dele.
Queria odiar essa sensação. Queria detestá-lo,
lembrar o tempo inteiro que ele foi embora e como foi, mas
é o que Nina me disse: Não consigo. Não adianta. Quando
estou perto de Guilherme, eu só quero… ficar ainda mais
perto e, agora que ele está disposto a me dizer por que
terminou comigo, sinto como se a ferida aberta se tornasse
uma cicatriz com casquinha, já curada e, em breve, apenas
uma lembrança distante do tanto que doeu.
Abro os olhos espreguiçando, pronta para ser cegada
pelo sol que aquece o quarto. No entanto, a primeira coisa
que vejo é o sorriso de Guilherme. Que está sentado sobre o
colchão, me observando. E a forma como meu coração
acelera me faz ter certeza de que, onde quer que eu vá, tê-
lo comigo sempre vai parecer certo.
— Bom dia, Coisinha linda. — Ele bate com o indicador
na ponta do meu nariz. — Dormiu bem?
— Não — sussurro me espreguiçando, sentindo os
músculos das costas estalarem um pouco. — Tinha um
homem forte e tatuado roubando meu espaço na cama.
— Ah, é? — Ele ri, correndo a mão pelos próprios
cachinhos, agora um pouco maiores. — Acredita que uma
tarada me agarrou durante a noite? Pois é. Tentei levantar
para fazer xixi e não consegui, porque ela não me soltava —
implica, voltando a se deitar ao meu lado. Guilherme apoia
a mão embaixo da cabeça para lhe servir de travesseiro e
joga seu olhar doce sobre o meu.
— Amo essa tatuagem — tomo coragem para
verbalizar enquanto corro os dedos pela tinta que fecha seu
braço. Com certeza já vi homens com o braço fechado com
rosas inúmeras vezes, mas Guilherme tem tulipas.
Tulipas vermelhas.
— Fiz essa pra você — responde com um sorriso
pequenininho, sem jeito. Quase envergonhado.
Eu sei.
— Só essa? — semicerro os olhos, com os dedos
correndo para seu pescoço, onde duas coroas se encontram,
a de princesa, mais delicada, sobre a de príncipe, robusta.
Quando caí em cima de Guilherme naquela
lavanderia, elas foram tudo o que vi, mesmo que eu tenha
fingido que elas não existiam. Naquele segundo, parecia
uma afronta uma tatuagem dessa depois de tudo, agora ela
deixa meu coração um pouco mais mole.
— Você sabe que as coroas também. — Guilherme
exala o ar, tomando coragem para me tocar, enquanto
minha mão resvala no pé de sua nuca.
Deixo-o acariciar meu rosto, minha nuca, afagar meus
cabelos, enquanto faço o mesmo, e a gente se aproxima,
pouco a pouco, um do outro. A única coisa entre nós dois,
por alguns instantes, é o silêncio.
Nós estamos calados, a casa permanece quieta, o
mundo inteiro lá fora não passa de um ruído branco e, ainda
assim, meu coração acelera quando os olhos de Guilherme
nos meus fazem perguntas que eu não posso responder,
apesar de querer.
O homem sem camisa e com o olhar transbordando
em dúvidas se aproxima de mim, acariciando meu rosto e
observando minhas reações.
— Acho que eu quero beijar você — é o que ele diz,
subindo em meu corpo, e me seguro para não voar em seus
lábios.
— Agora? Não sei… Eu até estou morrendo de
saudades do seu beijo, do seu toque, do seu piercing, mas
sua avó está a dois quartos daqui, sabe? Melhor não
fazermos isso — cantarolo a frase, enrolando uma mecha de
cabelo no indicador direito.
— Aqui está você de novo. — Seus braços firmes
pairam dos dois lados do meu corpo e as palavras ditas num
sussurro rouco me fazem respirar com dificuldade. — A
parte má da boa garota… — Assinto, roçando a língua em
meu lábio inferior, porque não quero ser uma boa garota
com ele. — Mas você é minha namorada agora — ele diz,
levando meus braços acima da cabeça, e prendendo-os ali.
— Será que alguém seria contra eu beijar a minha
namorada?
Minha namorada.
Quem diria não para o cara mais cobiçado do mundo,
quando ele está pairando em cima de você, com um risinho
de canto nada inocente enquanto te observa e espera uma
resposta para ele fazer o que sabe de melhor: Te
enlouquecer?
— Me beija antes que eu mude de ideia. — Apago
qualquer coisa que não seja ele da minha mente e sinto
meu coração bater descontroladamente quando Guilherme
descansa o corpo sobre mim.
Minhas mãos tentam se mover para abraçá-lo, mas
ele segue as segurando. Mordo meu lábio inferior, me
controlando para não gemer.
— Principezinho irritante — reclamo, respirando com
dificuldade.
— Princesinha deliciosa. — Guilherme solta minhas
mãos apenas para apertar minhas coxas e se encaixar entre
minhas pernas, e um leve gemido foge da minha garganta.
— Quietinha, Princesa — ordena, a voz baixa e rouca me
tirando do sério e toma minha boca com a sua, exigente.
Eu tinha certeza de que estava pronta para esse beijo.
Nos beijamos algumas vezes ao longo dos últimos meses,
dormimos juntos duas noites nos últimos dez dias, mas eu
estava errada.
Nada me preparou para beijar Guilherme sabendo o
quanto gosto dele, sentindo em seus lábios o quanto ele me
ama. Seu beijo é calmo e lento, seu toque é preciso, mas
leve, como se Guilherme estivesse conhecendo meu corpo
novamente, e tudo nisso me inebria. Meu coração não
acelera, mas parece bater muito mais forte.
Vivo esse beijo em cada pedacinho de mim e a única
coisa em que consigo pensar enquanto o desejo reverbera é
no quanto gosto desse homem. Quando ele se afasta,
nossos olhares ainda ficam um no outro por um tempo, e,
mesmo que eu esteja fingindo que isso é sobre prazer, nós
dois sabemos que não é.
— Meu Deus, Guilherme, o que a gente tá fazendo? —
a pergunta voa dos meus lábios, mesmo que eu tenha
tentado segurá-la.
— Me diz você, Princesa. — Guilherme segura a ponta
do meu queixo, me fazendo encará-lo. — O que a gente tá
fazendo?
— Acho que não pensando direito…
— Por quê? Se você pensar, a gente não brinca de “O
mestre mandou” mais tarde? — indaga, me deixando
ansiosa e sem jeito ao mesmo tempo.
— Você tá realmente pensando em brincar de “O
mestre mandou” na casa da sua avó? — pergunto rindo,
mas em choque.
— A gente só tem mais alguns dias juntos, Beatriz —
ele me lembra, inclinando meu pescoço para o lado, deixa
um beijo forte o suficiente para marcar ali, e arfo enquanto
ele afasta os lábios. — E você também quer. Aliás… — Ele
roça os lábios na minha orelha direita. — Tu tá doidinha para
isso — sussurra, brincando com o piercing gelado em minha
orelha, e eu engulo em seco, me sentando. — Desde o
nosso primeiro beijo no carro.
— E você tá fantasiando coisas… — desdenho, e
Guilherme me encara com o queixo caído.
— Mal posso esperar por essa noite… — ele me
desafia, e eu saio de seu abraço, dando um pulo nada sutil
para fora da cama.
— Vou escovar meu dente e trocar de roupa que eu
ganho mais — murmuro, rebolando até o banheiro.
— Quer ajuda? — Coça o cavanhaque, cruzando os
braços.
— Para escovar os dentes?
— Para trocar de roupa.
— Não, brigada — garanto, mas permaneço parada
com a porta aberta, e ele vem em minha direção. No
momento que Guilherme chega perto demais, entro no
banheiro e tranco a porta por dentro, dando uma risada.
— Cê sabe que isso não se faz, né? — ele diz,
provavelmente com a cabeça encostada na madeira, e eu
continuo rindo.
— Não estou fazendo nada, Principezinho… — rebato
me preparando para tirar a roupa e só consigo pensar no
momento que vou estar sem roupa perto dele sem uma
parede ou porta entre nós.

Deixamos o quarto poucos minutos depois, e a


energia que pulsa de Guilherme para mim me persegue por
todo o corredor, mesmo que não tenhamos falado mais
nada depois que saí do banheiro. Ao entrarmos na cozinha,
vemos apenas duas pessoas ali e uma mesa com várias
opções, mas em quantidades bem menores do que no dia
anterior.
Tia Solange e dona Madá avisam que a família foi para
a praia, “como se não morassem no Rio de Janeiro e
pudessem escolher as melhores a dedo”. Mas logo pontuam
que é melhor que eles tenham saído, porque nós podemos
tomar café com calma e, depois disso, ir à feira comprar o
que falta para o almoço do dia seguinte.
Ao que parece, vamos precisar arrumar bonés, óculos
e muita sorte para que as pessoas não nos reconheçam, ou
o caos vai ser instaurado em Santos.

Ao longo dos meus, segundo o Google, 52.600


minutos de vida, quatorze horas nunca demoraram tanto
para passar.
Foram duas na feira. Mais uma fazendo almoço. Outra
hora almoçando.
Nos sentamos para um cafezinho pós-almoço e
escutamos dona Madá falar sobre as adversidades de
caminhar na praia em dias de tempestade de areia e a
necessidade de ter um personal gostoso para os dias que
você está cansada da vida por quase uma hora.
Passei outras duas horas dentro da piscina ouvindo
Guilherme contar sobre a vida nos Estados Unidos com
Carlos, seu pai, e Dani, e nem a água fria aplacou minha
necessidade de ter Guilherme.
Às sete, o jantar foi finalmente servido, e eu tentei ser
sociável. Mas mal consegui me concentrar em qualquer
coisa que não fosse o fato de que eu e Guilherme
passaremos a noite inteira brincando de “O mestre
mandou” hoje.
Contudo, assim que terminamos de comer, minha
sogra anuncia que veremos o primeiro Top Gun, filme
favorito de Madá.
Um filme.
— É hora de ir para a cama, crianças! — Rita avisa as
filhas, que chiam por algum tempo, mas por fim entendem
que não podem ficar porque o filme é para adultos.
— Por aqui também é hora de o neném ir pra cama. —
Sérgio se levanta, espreguiçando, e Branca apoia a mão na
cintura, olhando-o de cima a baixo.
— Que neném, homem de Deus?
— Eu — rebate de imediato, fazendo todo mundo
gargalhar.
— Sente, sente aqui. — Branca o faz voltar ao assento
com um olhar. — Vamos ver o filme com a sua mãe, depois
o neném dorme — ela diz, e ele até resmunga, mas a beija
em seguida.
E eu respiro fundo tão alto que Guilherme me puxa
para seu colo, preocupado:
— O que foi, minha Coisinha emburrada? — sussurra
ao pé do meu ouvido.
Jogo a cabeça em seu peito para responder:
— Preciso deitar.
— Tá cansada? — a pergunta carrega medo; se eu
dormir, não brincaremos de nada, então nego com a
cabeça.
— É só meu tesão de cinco crentes que escolheram
esperar — choramingo, e Guilherme leva uma das mãos à
boca para conter a risada.
— Acho que a gente ir pro quarto agora vai chamar
atenção demais… — sussurra acariciando minhas pernas, e
eu assinto. — Pelo menos a gente vai poder ver o segundo
Top Gun com o primeiro fresquinho — ele diz, me lembrando
que abandonamos e segundo por causa da minha cólica, e
falando como se fôssemos durar mais do que quarenta e
oito horas.
Beijo seu pescoço e descanso em seu colo, a
proximidade e o conforto parecem bons e certos demais
para eu voltar para o sofá.
Os créditos sobem quando Madá já está dormindo.
Nos despedimos de Branca e Solange e seguimos em
direção ao quarto depois de Guilherme deixar um beijo na
testa enrugada da matriarca.
No segundo que Guilherme fecha a porta, sabemos
que estamos fazendo uma escolha sem volta.
Sem trocar palavras, seguimos para o banheiro,
escovamos os dentes e o nervosismo e a tensão são
palpáveis. Quase não nos olhamos e, quando fazemos,
acabamos rindo sem jeito. Guilherme é o primeiro a
terminar, ele se coloca atrás de mim e me abraça pela
cintura, com um sorrisinho bobo.
Como se me observar escovar os dentes fosse a coisa
mais incrível do mundo. É até engraçado ouvi-lo respirar
fundo quando me inclino para a frente para lavar a boca, e
eu poderia jurar que ele retesa quando o encaro pelo
espelho antes de ficar ereta de novo.
— Aonde você vai? — ele pergunta assim que saímos
do banheiro.
Abro um sorriso irônico e o deixo me levar para seus
braços.
— Lugar nenhum, ao que parece… — respondo
enquanto ele nos vira, me encostando na porta, e abre um
sorriso insuportavelmente gostoso.
— Isso mesmo. — Sua mão corre em meu pescoço,
jogando minha cabeça para o lado direito. — Lugar —
pontua com um leve beijo no pé do meu ouvido — nenhum
— conclui, beijando meu pescoço. — Ao menos antes de
dizer que você vai ser minha namorada de verdade, e que
nós teremos essa noite, e a próxima e todas as outras que
forem possíveis, pelo menos até eu ir embora do país. —
Guilherme engancha as mãos na minha blusa e passa pela
minha cabeça enquanto estou processando o pedido.
Não é mais só aqui. Não é pelo fim de semana. E, por
mais que isso devesse me assustar, não assusta.
— E se eu não quiser parar quando você for embora?
— pergunto, tirando a camiseta de seu corpo e jogando-a no
chão.
— A gente não precisa. — Ele passa as duas mãos ao
meu redor, acredito que ele está me puxando para si, mas
Guilherme está abrindo meu sutiã. — Porque eu não quero
parar — diz, colando minhas costas incendiadas por ele na
porta fria, o que me faz retesar.
— Então eu acho que temos um sim — sussurro em
sua boca, que quase toca a minha.
— Que bom — ele resvala o nariz no meu —, porque
eu acordaria a casa inteira, mas arrancaria um sim da sua
garganta essa noite se você tentasse se enganar.
O puxo para mim pelos cabelos, cada parte do meu
corpo respondendo ao calor dessas palavras. Guilherme
leva a mão direita até minha nuca, segurando meus cachos
com firmeza e me encara, pressionando o corpo contra
mim. Seu olhar se diverte encontrando o desejo nos meus
olhos, e sinto vontade de dizer alguma gracinha, fazer uma
piada ou implicar, mas Guilherme não me dá tempo.
Meu principezinho irritante toma meus lábios
enquanto puxa meus cabelos, guiando o beijo, e sua
respiração alta me faz gemer. Subo minhas mãos pelas
costas dele e desço-as arranhando a pele da qual eu tanto
sinto falta.
— Acho que a gente precisa ir para a cama.
— Calma, Princesa… — debocha, rindo de canto com
os olhos nos meus.
— Eu estou calma há três meses. — Trago-o para
perto pela nuca e dou um impulso para cruzar minhas
pernas ao redor dele, que me segura pela bunda.
— E agora está subindo pelas paredes? — O riso de
canto de Guilherme me mostra que tudo o que aconteceu
nessa manhã tinha o intuito de me deixar assim: Maluca por
ele.
— Por todas elas… — confesso, desesperada.
— Então você me queria desde sempre… — Ele morde
meu lábio inferior, dizimando o resto da minha sanidade.
— Não sei se desde sempre. Mas agora eu sinto que
perdemos tempo demais.
— Demais! Você foi uma garota muito má, sabia? —
ele me repreende, apertando minhas coxas e voltando a me
beijar.
Suas mãos me acariciam novamente, dessa vez, com
paciência e devoção. A fome que estava em seus lábios há
minutos se esvai, e ele me beija, me permitindo sorver cada
gota do carinho que o momento me entrega, cada pedaço
da paixão que sua língua derrama sobre a minha e,
principalmente, cada fragmento de um amor secreto e
tímido que ele tem para me oferecer.
E, curiosamente, eu gosto.
Mas ainda preciso de mais, e ele sabe disso, porque ri
afastando a boca da minha.
Eu o trago para mais perto pela nuca, e Guilherme
geme baixinho, como um segredo, e para de me beijar, com
o olhar mais sombrio que já vi na vida e me tira do seu colo
como se quisesse apenas me observar.
— Crise de consciência a essa hora, namorado? — Rio,
porque não é possível que ele vai fazer isso comigo.
— Claro que não, namorada — diz, erguendo a mão
para mim e me levando até o meio do quarto. — Você está
exatamente onde deveria estar.
— Então o que foi? — pergunto confusa.
Guilherme coça o cavanhaque e roça a língua no lábio
inferior antes de suspirar.
— O mestre mandou você ajoelhar. — A ordem chega
aos meus ouvidos numa voz rouca, e Guilherme me entrega
um sorriso lascivo ao ouvir meus joelhos baterem no chão.
— Boa garota — sussurra diante de mim e, se algum dia na
minha vida eu achei sexy qualquer outro homem dizendo
essas palavras, eu estava louca.
Capítulo 27
Ou: O problema com os segredos é que, com o
tempo, eles se tornam fantasmas.
Guilherme
Eu amo você.
Me perdoa por ter ido.
Eu nunca quis te abandonar.
Sempre foi você.
Quero que a gente dê um jeito.
Quero fazer funcionar.
Me perdoa.
Todas essas palavras me arranham a garganta depois
da noite mais incrível da minha vida. Em contrapartida, a
mulher deitada confiante nos meus braços, com os cabelos
espalhados sobre mim, dorme tão calma, tão linda, tão
doce, que não faço ideia de como vou contar a ela os
motivos que me fizeram ir embora, mesmo quando tudo o
que eu queria era ficar.
Tenho medo da reação de Beatriz, de contar tudo, e
isso deixar as coisas entre a gente ainda piores ou de, no
fim das contas, ela só ficar mais machucada. Mas ainda
temos o hoje, então ignoro essas ideias e aperto Beatriz em
meu abraço, beijando o topo de sua cabeça como se ela
fosse a última flor da primavera.
— Já acordou? — murmura em meu peito.
— Se tu me quiser dormindo, não — falo baixinho, e
ela deposita um beijo em meu peitoral.
— Ah, querer você eu quero de qualquer jeito —
Beatriz comenta, me observando com olhos preguiçosos
enquanto pequenos feixes de luz atravessam a persiana. —
Mas é que ainda estou cansada, daí pensei em dormir até
mais tarde, pelo menos um pouquinho — minha Coisinha
manhosa praticamente murmura as palavras.
— Sem condições. A festa é hoje. — Corro a mão por
suas costas nuas, e ela geme em reclamação. — Elas vão
precisar da gente.
— Nossa, por que você fez isso comigo? — indaga, me
mordendo em seguida.
— Ai, Beatriz. — Pulo para o lado com o susto. — O
que eu fiz?
— Me chamou pra brincar de “O mestre mandou”,
sabendo que eu não ia ter tempo de me recuperar de você!
— sussurra faceira, escalando meu corpo e me fazendo
engolir em seco ao ver o lençol branco deslizar pela pele
marrom tão convidativa.
— Eu só chamei. Foi você quem aceitou. — Semicerro
os olhos para ela. — E adorou. Nada de jogar essa culpa
toda em mim.
— Só não vou dizer que você é um convencido, porque
está certo! — murmura, descendo o rosto sobre o meu. —
Mas acho que tenho direito pelo menos a um café na cama
— diz baixinho em meu ouvido, me fazendo apoiar as mãos
na cintura dela.
— Eu tenho direito a um café na cama. E ele vai ser
você!
— Nada disso — protesta, apertando a minha
bochecha, brincalhona, como se não estivesse nua em cima
de mim. — Você acabou comigo e minhas pernas estão
doendo! — Faz charme, como se eu fosse o único
descontrolado ontem. — Vou demorar para ficar
apresentável, então nem sonhe.
— Ah, claro. Sou eu quem vai precisar ficar de camisa
o tempo inteiro — acaricio seu rosto, segurando o riso —,
mesmo numa casa com piscina, por causa dos rasgos que
você deixou nas minhas costas, e eu acabei com você?
— O lado bom, Principezinho… é que você tem até de
noite para se recuperar, né?
Ter Beatriz segura e confortável, em cima de mim,
enquanto seus cabelos escorrem entre nós, com um sorriso
sapeca e sincero tomando seu rosto, transforma todas as
coisas externas em algo tão, mas tão pequeno, que eu mal
consigo lidar com a possibilidade disso ser passageiro.
— O estrago que tu está fazendo na minha cabeça,
nem All Too Well fez na cabeça de adolescentes de quinze
anos, tá?
— Por quê? — Beatriz pergunta genuinamente curiosa,
passeando pelo meu rosto com a ponta do indicador,
enquanto um sorriso tranquilo toma seu rosto.
— Por causa do que falamos ontem.
— Falamos muita coisa ontem.
— Sobre termos um depois — vou direto ao ponto, e
seu olhar desvia na mesma hora. Pressiono os braços ao seu
redor para que ela nem cogite sair daqui. — Sei que o
desejo pode nublar nossas mentes, e a gente acabar se
precipitando, mas eu não me precipitei, Beatriz. Eu
realmente quero um depois.
— Gosto de você, Guilherme — ela diz como se não
fosse o suficiente. — Eu estou feliz por estarmos aqui. Mas…
— Por que precisa ter um “mas”?
— Porque eu também quero um depois, só que não
posso prometer um antes de conversarmos sobre… você
sabe, o antes.
— Queria que você me perdoasse por tudo, por ter
ido, ter sumido, ter te deixado. Quero poder falar o que eu
sinto por você Beatriz, porque eu te…
— Então pede perdão. — Ela me impede de dizer que
a amo mais uma vez, como se eu estivesse proibido de
fazer isso até que nos resolvamos. E ela não está errada,
nem um pouco. — Mesmo que as coisas não acabem como
tu espera, acho que é importante.
— Você quer um depois? — pergunto, mas ela não
responde, nem esboça reação. Então prossigo: — Porque pra
eu te pedir perdão, preciso ser muito claro com tudo o que
aconteceu e não quero mexer naquilo se tu não me quiser
de volta.
— Isso é injusto, Guilherme. — Seu olhar no meu
agora é duro e distante. — Eu nem sei o que aconteceu,
como eu posso dizer que vou perdoar ou vou ficar?
— Você está certa, eu fui otário. — Dou impulso para
colar suas costas no colchão. — Mas se a gente tem até o
fim do dia, vamos viver até o fim do dia — peço, observando
seu semblante, que não está mais tão alegre, mas também
não se nega a viver o agora.
— Tu é um fujão, sabia? — ela rebate, perdida entre rir
para mim e me chutar.
— Coisinha — digo, rente aos seus lábios, correndo a
mão direita pelo seu tronco.
— O que foi? — indaga, levantando o pescoço para
aproximar os lábios dos meus um pouco mais.
— O mestre mandou você me beijar.
— O mestre anda muito mandão… — Ela finge
indignação me puxando para um beijo e por agora, só por
agora, eu deixo o futuro para depois.

— Bom dia, dorminhoco — dona Madalena me


cumprimenta assim que entro na cozinha.
— Cadê sua namorada? — mamãe pergunta, passando
requeijão numa fatia de pão.
— Bom dia, meus amores — digo, indo pedir a benção
a elas. — Cadê todo mundo? — indago, mas, antes que elas
respondam, ouço o barulho de alguém pulando na piscina e
assinto.
— O último dia numa casa com piscina tem efeitos até
nos adultos — minha avó comenta, me fazendo rir. — Cadê
sua namorada?
— Bia tá na cama com preguiça, acreditam? Vou levar
café na cama para ela — digo depois de beijar as mãos de
ambas.
Passo a informação da maneira mais clara e simples
possível, para que nenhuma das duas reclame. Ficamos
toda a tarde de ontem juntos, então um café não vai matar
ninguém.
— Cansada, é? — Ela ri de canto, me olhando como se
a palavra “transamos” estivesse na minha testa.
Dona Solange, sentada na ponta esquerda, me
defende:
— Mamãe! Deixa as crianças.
— Crianças, sei. — Dona Madá ri tanto que seu corpo
balança sobre a cadeira, e eu arregalo os olhos em
constrangimento. — O pão de queijo está quase pronto, em
menos de cinco minutos ele apita.
— Tem morango e uva também. — Minha mãe aponta
para as vasilhas na mesa, e eu assinto, tirando o celular do
bolso.
— Perfeito. Vou ver como estão as coisas no mundo
real — aviso, balançando o celular, e me recosto na pia,
atrás da mesa, com um olho no celular e o outro no forno
elétrico.
Meu primeiro grupo fixado, o dos shows no Brasil, tem
várias mensagens, então é ele que abro.
Alex: O soundcheck de vocês na sexta-feira é às
duas.
Tom: Duas? A gente vai passar o som duas horas da
tarde no sol de um estádio de futebol?
Rick: Existe alguma possibilidade de ser quando o sol
parar de ferver? O show é 23h.
A.J.: Eu ainda não acredito que mudamos nosso show
para um estádio. É nossa primeira turnê aqui, parece
maluquice.
Rio com a mensagem de A.J., é a cara dele ver apenas
o lado bom das coisas nesses casos. Ninguém é mais feliz
por estar numa banda do que esse cara então, dessa vez,
como minha banda está no meu país, vou ficar do lado dele.
Alex: Agradeçam ao fanatismo do brasileiro, ao
namoro relâmpago do @GuiVicious e às férias de vocês no
Brasil.
Alex: Uma coisa que brasileiro gosta é de ser
valorizado.
Rick: A gente agradece. Foi uma ideia muito boa
passar as férias aqui mesmo.
Tom: Mas, de novo, duas da tarde?
Alex: O público entra no estádio às sete, galera. Sem
condições de adiar.
Tom: E se a gente quiser dar o soundcheck de brinde?
Podemos começar às 18, pelo menos?
Alex: Sem chance, ou vocês vão precisar fazer isso no
país inteiro.
Rick: Realmente, as Vagabonders dos próximos shows
ficariam chateadas.
O argumento de Richard impossibilita qualquer
resposta que não seja “ok”, porque nossas fãs são o ponto
mais importante, e é o que os meninos respondem. Mas a
verdade é que fazer um show no Maracanã é algo que nem
a Taylor Swift em pessoa conseguiu. Se conseguimos esse
direito, preciso motivar minha banda.
Eu: É só sol, galera. A gente se hidrata muito, deixa
blusas de reserva como o Rick sempre faz e se besunta de
protetor.
Eu: Vai ser o maior show da nossa vida!
Já tocamos no Madison Square Garden? Sim. Isso é
gigante, mas nenhum deles tem noção do que é um estádio
lotado de brasileiros cantando com você, então envio as
mensagens com segurança, porque, caramba, vai ser um
dos maiores momentos das nossas vidas e bloqueio a tela
do celular.
— Trabalho? — dona Sol pergunta me olhando de rabo
de olho.
— Não, mas sim. A gente acabou mudando a abertura
dos shows para o Maraca, né? — digo com um sorriso tão
largo que elas sorriem também. — Então vamos precisar
ensaiar no sol, e aqueles moleques de países friorentos
estavam com medo de derreter.
— Ah, meu filho. Normal. Depois que me acostumei
com o calor daqui, ir ao Rio me faz sentir um frango de
padaria — minha avó comenta, me fazendo rir com ela se
abanando.
— Estou muito orgulhosa de você — dona Solange diz,
com os olhos vermelhos e a voz embargada. — Lembro de
quando a gente parou de conseguir pagar ingresso pra ver o
Mengão jogar, e, agora, o meu menino vai fazer um show lá.
O forno apita, e eu corro até ela, deixando um beijo
em sua bochecha, mas sem dizer nada, porque, se eu falar
algo, ela vai danar a chorar. E volto até o forno, abrindo-o
com cuidado para não queimar meus dedos e deixando o
calor sair.
— Mas com os preços dos ingressos para ver um jogo
eu não sei se teria coragem de pagar nem hoje em dia —
brinco, na tentativa de fazê-la se sentir menos mal por ela e
o papai não poderem pagar quinhentos reais, que era quase
nossa compra para duas semanas quando eu era criança,
em uma meia e uma inteira. — Transformaram futebol em
coisa de milionário.
— Vocês estão muito melosos hoje. — Minha avó se
levanta com os olhos marejados. — Vou ver como estão os
outros lá na piscina — diz, saindo da cozinha com lágrimas
rolando, como se nós não soubéssemos que ela é quem
mais mudou de vida desde que entrei para a TV.
— Mas eu sou sua mãe e posso ficar assim. — Dona
Sol se levanta e me ajuda a preparar um prato com frutas e
um pirex com pães de queijo.
— Eu te amo, sabia? — sussurro assim que ela para na
frente da pia, ao meu lado.
— Sabia — diz e, ficando na ponta dos pés, beija meu
rosto. — E sou orgulhosa demais de ser tua mãe.
Colocamos tudo numa bandeja, e eu beijo sua testa
numa despedida rápida. Em seguida, caminho
ansiosamente até o quarto onde minha Coisinha espera.
Abro a porta com dificuldade apenas para encontrar
Beatriz sentada na minha cama, com uma blusa minha,
mexendo no celular — ainda parece um sonho dizer isso.
— Ai que cheirinho bom de pão de queijo!
— É meu café favorito quando tô no Brasil. — Bato a
porta, empurrando-a com o pé.
— Aconteceu alguma coisa? Cê demorou tanto que
tive que falar para a Nina que tenho um namorado por mais
algumas horas, sabe? — ela diz, colando as costas na
cabeceira e dando espaço para colocar a bandeja e sentar.
— E o que ela disse? — ignoro o restante da pergunta.
— Nada, ainda não respondeu. O Rick mandou umas
fotos deles passeando em Santa Teresa, ela deve estar no
céu — diz, jogando um pão de queijo na boca. — Adora
conhecer lugares novos.
— Será que ela e o Rick?
— Não viaja, o Rick tem alguém — rebate como se
tivesse ouvido algum absurdo. — Mas, hein, por que a
demora?
— Os pães de queijo estavam terminando de assar.
Aproveitei para me atualizar dos meninos. Sentiu minha
falta?
— Eu vou ser muito boiolinha se disser que sim?
— Vai. Mas eu não consigo parar de sorrir, então acho
que seremos dois boiolas.
— Senti bastante — rebate sem pestanejar, me
puxando pela camisa para um beijo.
— Você anda tão violenta…
O queixo dela cai, mas, diferente do que imaginei,
Beatriz não joga algo em mim e se faz de desentendida
como no passado. Ela simplesmente tira a bandeja da cama,
apoiando-a no chão sem derramar uma gota de café, e se
senta no meu colo.
— O mestre mandou… — Bia cruza as pernas atrás de
mim, e eu a abraço pela cintura, apenas para notar que
minha blusa é a única peça de roupa que está vestindo —
você não contar para ninguém — sussurra em meus lábios
antes de me beijar.

Por mais chocante que possa ter sido a notícia de que


precisaríamos ficar no mesmo quarto, dormir com Beatriz foi
sensacional. Amo tanto essa mulher que chega a ser
ridícula a forma como meu peito ficou leve quando ela me
chamou de namorado. Não de mentirinha, não falso, só
namorado.
E agora, vendo-a dançar Made to Never Break no meio
da sala com minhas primas enquanto checo fotos e vídeos
de Elvis, que me foram enviadas por Thomas, fecho a
conversa e abro a câmera para filmar esse momento, não
só porque quero Beatriz no vlog de férias da banda, mas
porque, quando penso no futuro, é isso o que eu quero.
Dividir a vida com Beatriz. Quero ver fotos do meu
cachorro ou afagar o pelo dele, enquanto ela dança minhas
músicas com nossas filhas no meio da sala.
Capítulo 28
Ou: Me diga, Taylor, por quanto tempo poderíamos
ser uma música triste?
Beatriz
Festas em família sempre me emocionam.
Não só porque, mesmo sendo filha única de dois filhos
únicos, eu amasse as festas em família com meus pais e
meus avós maternos. Mas também porque, ao chegar no
mundo de maneira silenciosa e devastadora, o covid as
roubou de nós juntamente com a vida de milhões de
pessoas, e centenas de outras coisas banais e cotidianas
das quais nunca imaginamos sentir falta, porque jamais
consideramos a possibilidade de serem tiradas de nós. Dois
anos se passaram desde o fim do caos, mas alguns de nós
vão ter sequelas para sempre.
No entanto, mesmo que eu carregue cicatrizes, sair de
Petrópolis, voltar a trabalhar e, ainda que eu receie admitir,
reencontrar Guilherme, têm me feito perceber duas coisas:
1 - Não posso ficar triste para sempre;
2 - Não dá para viver me lamentando pelos instantes
de felicidade que nunca mais vou poder viver como
gostaria.
Por isso, aproveito o dia de hoje pelo que ele é: Um
momento para celebrar a vida.
Danço com as primas de Guilherme, ajudo na cozinha
refogando a couve — não que eu saiba fazer isso, mas
Solange e Rita são ótimas em ensinar —, levo as crianças
para a piscina e as distraio até a hora do almoço e dou uma
escapada, de tempos em tempos, para dar um beijo no
meu… namorado, que passa boa parte do tempo livre entre
arrastar mesas, cadeiras, freezers e equipamentos de som.
Mas, sempre que para, está com a câmera do celular em
mim.
O almoço é servido às 13h em ponto, e eu sentia tanta
falta de comer uma boa feijoada, com farofa fresca e couve,
que nem me forço a rir das piadas sem graça de Sérgio, na
verdade, não me desconcentro de comer e trocar carinhos
com Guilherme nem para rir das engraçadas.
Há um ano, eu ainda tinha certeza de que o mundo
tinha acabado. Agora, estar sentada no colo do cara que eu
gosto, comendo o bolo de aniversário de setenta anos da
avó dele numa tarde ensolarada enquanto Só pra Contrariar
toca nas caixas de som, me prova que eu estava errada.
A vida é maior. Maior que a dor, a insegurança, a
reclusão e o rancor.
Engulo a emoção, observando a família de Guilherme
reunida em volta da mesa, comendo, sorrindo e…
simplesmente vivendo. Em seguida me viro, deixando um
beijo estralado em seu rosto.
— Que foi que cê tá quietinha, hein, Princesa? —
Guilherme pergunta, inalando o cheiro dos meus cabelos,
recém-lavados depois da piscina, e o maior sorriso do
mundo toma meu rosto.
Princesa. Não Coisinha, nem Princesinha. Só Princesa,
como ele me chamava quando ninguém estava olhando e
como deveria ter sido sempre.
— Nada, meu amor — rebato, faceira. Guilherme me
encara com intensidade e reage à ênfase, apertando as
mãos na minha cintura. — Só pensando em como a vida é
linda, e eu estou feliz de voltar a viver. — Inclino o pescoço
para trás na intenção de sussurrar em seu ouvido: — É bom
demais viver do seu lado, sabia?
— Assim você me quebra, Beatriz — Guilherme
sussurra de volta, engolindo em seco.
— Para de ser bobo — digo, beijando sua testa.
— Tava gostoso, Beatriz? — dona Madá pergunta.
De pé na ponta da mesa, com seu vestido rodado
vinho e os fios brancos ondulados com bobs dançando na
brisa, a senhorinha me sorri.
— A feijoada ou o bolo? — pergunto, “Tudo”, ela
completa. — A feijoada estava divina! — elogio o almoço
feito por Solange, Rita e Branca. Depois coloco um
pedacinho de bolo na boca, saboreando a sobremesa feita
por ela. — Mas o bolo está maravilhoso também.
— Tá mesmo, vó! — Maria Júlia, uma das primas de
Guilherme, sentada em sua cadeira alta para alcançar a
mesa, responde. — Só faltou um brigadeiro. — O resmungo
coroado com um biquinho é fofo demais.
— Ah, lindinha, é que churrasco não combina com
brigadeiro — minha sogra responde, acariciando os cachos
da sobrinha ao seu lado.
— Mas é tão gostoso! — Manoela se une à irmã no
protesto, e os adultos logo começam a explicar a uma
criança de seis anos e outra de nove porque elas deveriam
comer o bolo e ficar quietas.
— Eu posso fazer. — Os olhares de todos caem sobre
mim como se eu tivesse dito algum absurdo, mas as
crianças sorriem.
— Na moral, ela pode. — Guilherme me segura junto
de si e se levanta sem aviso. — O brigadeiro dessa mulher é
fora de série. — Para de pé, e eu me afasto depois de
levantarmos totalmente desengonçados.
— Tudo bem? — Branca pergunta, rindo com o cenho
franzido, e eu assinto dando um tapa no braço de
Guilherme.
— Comam o bolo e fiquem na contenção — Guilherme
diz às primas, sério. — A gente já volta.
— Isso mesmo — digo, porque não vou falar para duas
crianças que meu namorado é doido. — Sejam boazinhas —
peço, deixando a mesa de mãos dadas com Guilherme.
— Obrigado por topar, estava com saudade de ficar
sozinho com você — ele sussurra assim que entramos na
casa.
— Isso é sério? — pergunto chocada, e ele meneia a
cabeça, passando a mão pela minha cintura e me puxando
para si. — Fez essa cena para ficar sozinho comigo? —
indago semicerrando os olhos, e ele assente, correndo a
mão pelas minhas costas seminuas pela fenda traseira do
vestido.
— Também fiz porque elas merecem o brigadeiro,
claro — diz, se inclinando para me beijar. — Estão
comportadinhas para um evento onde elas são as únicas
crianças — sussurra em meus lábios, e eu deveria afastá-lo
por medo de uma das meninas entrarem, mas não sou tão
forte assim.
Deixo que Guilherme acaricie minha nuca e me beije
por mais tempo do que seria aceitável e só então tomo a
distância necessária para respirar e pensar direito.
— Você pode pegar os ingredientes para mim? — peço
com dois passos para trás, e ele assente. Eu me viro para
pegar uma panela embaixo da pia e, ao me levantar, meu
amor me sorri com duas barras de chocolate e duas latas de
leite condensado nas mãos.
— Prontinho. — Gui me entrega as coisas e liga a
indução do fogão. — Faça sua mágica.
— Seja um bom assistente e me ajude. — Indico uma
das barras para que ele a quebre na panela porque dois
trabalham mais rápido que um. — Amei o almoço, sabia?
Gostinho de comida caseira.
— Estava tudo muito gostoso, do jeito que a minha vó
merece. — Ele sorri sem jeito, e eu assinto abaixando o fogo
e abrindo os leite condensados. — Achei você cuidando das
minhas primas hoje uma graça, sabia? — Guilherme indaga
me abraçando por trás. — Deu uma vontade enorme de ser
pai de três filhos — comenta como se estivesse falando do
tempo, e eu quase derramo mais leite condensado no fogão
do que na panela. — Você quer ser mãe?
— Não penso muito sobre isso, Guilherme — minto. —
Por quê?
Quando parei de brincar de bonecas, comecei a
trabalhar sendo amada por crianças do país inteiro. Via em
cada um daqueles olhinhos o amor mais puro do mundo.
Portanto, soube bem cedo o quanto queria as minhas.
— Também não penso muito nisso, mas eu teria filhos
com você — explica pausadamente, deixando claro que não
é uma hipótese, é uma vontade.
— Tenho vinte e três, lembra? — Eu me encolho em
seu abraço, mexendo a panela enquanto o conteúdo vai se
tornando uniforme.
— Vinte e quatro em cinco meses.
— O que não muda muita coisa. E meu Implanon
ainda tem um ano e meio de validade.
— Tudo bem, se você não quer ter meus três filhos, eu
posso imaginar uma vida para nós dois sem eles — brinca,
mas sei que não é só isso.
Guilherme está falando muito sério. Como se
fôssemos um casal que namora desde a adolescência, como
se nosso relacionamento não tivesse acabado há quase
quatro anos, como se o tempo não tivesse passado, e nosso
namoro atual não estivesse sendo construído em cima de
um castelo de areia, bem na beira da praia.
— Três filhos é muito — digo baixinho, e ele beija meu
ombro, inalando meu perfume com ternura. — Mas a gente
ainda nem sabe como vão ser nossos dias aqui no Brasil, e
você já quer fazer planos para daqui a dez anos?
— Esse é seu jeito fofo de me dizer que eu ainda vou
esperar dez anos para ser pai? — a pergunta vem num tom
divertido.
Porém, ouvir vou esperar dez anos para ser pai e não
vou esperar dez anos para ser pai dos seus filhos, enfatiza
que a única mãe que Guilherme quer para os filhos dele sou
eu, e isso me faz pensar no quanto precisamos resolver
todas as nossas pendências para eu poder ouvi-lo dizendo
que me ama. Porque, por Deus, eu o amo tanto.
— Também, mas estou realmente pensando em como
vai ser agora que… — Começo a dizer, mas Gui pega a
colher de pau da minha mão com gentileza e me vira de
frente para ele.
— Agora que é real? — pergunta, e eu assinto
segurando um risinho bobo. — As coisas vão ser como a
gente decidir. Não tem mais Alex, Luana, horários…
— Preciso mexer o brigadeiro, Guilherme, já tá
soltando do fundo da panela — resmungo, doida para
continuar aqui, olhando para o cara que eu amo. Mas ele
me dá espaço, e eu me viro. — Só que as coisas já são
assim há um tempo, né?
— Uhum. — Gui descansa a cabeça em meu ombro. —
E estou feliz que sejam. Sei que estou proibido de falar que
te amo, mas meu coração nunca seria feliz longe de você,
Princesa — ele diz se afastando e, quando viro o rosto para
entender o porquê, Guilherme aponta o celular para mim.
Reviro os olhos e então faço uma pose.
— Não é uma foto.
— Por que cê tá me filmando?
— Dani tem reclamado que fiquei low profile agora
que tô namorando. E como precisamos de conteúdos para
os vlogs da turnê, quero colocar a minha namorada neles. —
Dá de ombros com uma piscadela, e eu quase seguro o
coração no “minha namorada”.
— A Dani tá uma moça, tô morrendo de saudades dela
— desconverso, como se não estivesse mexida.
— Vai poder vê-la quando for me visitar no fim das
gravações — Gui diz com naturalidade, e eu rio, desligando
o fogão e afastando a panela da boca quente antes dele me
puxar para um beijo.
— Mas, nem se engane! — alerto, com o indicador em
seus lábios. — Vou querer direitos de imagem pra estar
nesse vídeo, e direitos ainda mais caros por esse beijo estar
nele.
— Você não precisa de direitos, vamos nos casar com
comunhão total de bens; o que é meu é seu.
— Eca! — O grito infantil faz Guilherme pular para
longe, e eu gargalho no segundo que vejo Maria Júlia me
encarando com as mãos na cintura.
— Você pode pegar um prato para mim, meu amor? —
peço a Guilherme, que assente. — Oi, Maria. Seu brigadeiro
está pronto.
—Tô venu — ela rebate, jogando os cachinhos por
cima do ombro, e se vira para sair da cozinha.
— Acho que a gente precisa tomar cuidado com as
crianças.
— Por mais três horas, Princesa. — Ele volta até mim e
me rouba um selinho. — Três horas no máximo, depois disso
todo mundo vai embora, e nós vamos ter a casa só pra
gente. — Guilherme me passa uma travessa e, em seguida,
me ajuda a organizar todas as colheres em volta para
ninguém ficar sem brigadeiro, mesmo que tenham
protestado contra o docinho das meninas.
Começo a andar com a travessa quente na mão, mas
ele passa por mim e para à minha frente.
— Princesa.
— O que foi, meu amor?
— É muito bom voltar a viver do seu lado — diz, me
fazendo segurar um sorriso bobo antes de passar pela
porta.

Eu amo você.
Eu te perdoo por ter ido.
Eu sei que você nunca me abandonaria sem motivos.
Eu amo você.
Quero que a gente dê um jeito.
Quero fazer funcionar.
Eu te perdoo.
Todas essas palavras me arranham a garganta depois
do dia mais incrível dos meus últimos meses, se for
honesta, anos. Em contrapartida, o cara secando o cabelo
do outro lado do quarto, jogando a toalha no cesto,
caminhando em minha direção e se deitando sobre mim
com cheiro refrescante de loção pós-barba, me beija tão
calmo, tão lindo, tão doce, que não sei se eu conseguiria
fazer isso.
Não sei se eu poderia seguir com Guilherme, o único
homem que amei, sem que conversemos sobre o que
precisa ser conversado.
— Você… hum… lembra que tínhamos um combinado?
— pergunto assim que nossos lábios se afastam. Guilherme
fecha os olhos respirando fundo. — Você tá me fazendo
parecer uma chata obsessiva, sabia?
— Eu sei. Só… — As palavras morrem em sua
garganta.
— Qual é a sua ideia? A gente voltar, não conversar e
empurrar tudo com a barriga até parar de funcionar?
— Não, Bia, eu…
— Você quer ser o pai dos meus filhos, mas não
consegue conversar comigo…
— Me desculpa. — As palavras saem de Guilherme
como se o estivessem rasgando. — Estou mesmo fugindo e
te fazendo pagar de doida. Me perdoa. A gente vai
conversar.
— Hoje? — pergunto muito mais pelo silêncio e
calmaria da noite do que por pressa.
— Hoje, só não agora. — Ele sai de cima de mim e se
senta na cama, me dando a mão para que eu me sente
também.
— Algum motivo especial? — indago confusa.
— Quero cantar com você — ele diz simplesmente, e
as borboletas no meu coração voam como se nunca
tivessem conhecido a liberdade.
Ele já cantou para mim. Nós até cantamos juntos no
dia que ele dormiu lá em casa, mas agora é diferente. Agora
nós somos um casal, como na época da Geração Z. Quando
rodávamos o país e nos beijávamos em cima dos palcos,
para dar à plateia o que ela queria, e atrás dos palcos, para
lembrarmos um ao outro que nunca seria só encenação.
Estudando a forma como Guilherme espera minha
resposta agora, com esperança no olhar e estalando os
dedos em ansiedade, percebo que fomos inocentes com
essa história de namoro falso.
Nunca seríamos só personagens. Nem antes, nem
agora.
— O que cê quer cantar? — digo por fim, chegando
um pouco mais perto dele.
— Tem uma música que a gente nunca cantou junto —
ele se apressa em dizer. — Mas que me lembra muito de
você — explica, secando o suor das mãos na boxer.
Além de compor para mim e ter tatuagens sobre nós,
Guilherme ainda fica me buscando em canções que ele não
criou… Eu só queria resolver o que pulsa entre nós para
dizer que sou louca por ele, que o amo mesmo sem querer e
que se o nosso amor superou esse tempo todo longe, vai
superar o que quer que tenha acontecido também.
— E eu conheço? — pergunto, empurrando essas
necessidades para longe.
— Todo mundo conhece!
— E qual é?
— Me espera. Aquela da Sandy com o Tiago Iorc.
— Talvez eu erre algumas coisas, tem tanto tempo que
não escuto. — Encolho os ombros fazendo charme. Mas é
Sandy, a gente nunca esquece uma música da Sandy.
— Relaxa. A gente vai cantar junto. — Guilherme se
recosta na cabeceira e me estende a mão. — Senta aqui. —
Convida, e me sento ao lado dele com os pés esticados
sobre a cama.
Meu amor começa a batucar algo que eu não consigo
entender se é a introdução da música ou ele tentando
acalmar a ansiedade agredindo a própria perna, mas depois
de um tempo, abre a boca com a primeira frase da música:
Eu ainda estou aqui, perdido em mil versões irreais de
mim…
Com a frase vem também o compasso da música. Ele
bate nas coxas enquanto eu estalo os dedos no mesmo
ritmo, conforme começo a cantar.
E é impressionante o quanto, antes mesmo do refrão,
essa música já me bateu forte. Durante o refrão, minha voz
embarga, e os olhos de Guilherme marejam. Mas não
desistimos. Seguimos cantando a música de maneira
catártica, mas baixo. Não porque temos medo de incomodar
os outros, mas porque não queremos que ninguém participe
desse momento.
Ele diz “Não me esqueci de quem eu sou e o quanto
devo a você”, olhando em meus olhos e acaricia meu rosto
com a ponta dos dedos.
Quando eu canto o refrão, “Tenta me reconhecer no
temporal, me espera. Tenta não se acostumar, eu volto já,
me espera” peço para que ele encontre em mim a garota
que o amava tanto. Apesar de quem eu sou hoje, apesar da
bagunça e do passado.
E quando ele implora, me pegando pela cintura e
sentando em seu colo para que eu não me acostume com
sua ausência, lágrimas escorrem dos olhos de nós dois.
Nós sabemos.
Temos completa certeza de que o passado vai nos
destruir.
Mas queremos nos enganar um pouco mais.
Desço minha testa sobre a dele, e cantamos, como
uma jura de amor eterno feita sob um raio de sol no fim do
arco-íris:
Mesmo quando me descuido (me desloco), me
deslumbro (perco o foco) perco o chão (e perco o ar) me
reconheço em teu olhar (que é o fio pra me guiar) de volta,
de volta.
— Beatriz, eu preciso muito que você me perdoe, mas
a verdade é que eu… — Guilherme começa a falar em meio
às lágrimas, mas eu o interrompo com um beijo voraz e tiro
a blusa do pijama enquanto ele me deita no colchão como
se tivesse tanta certeza quanto eu de que essa é a última
vez.
Capítulo 29
Ou: Existem coisas que só Deus pode perdoar.
Guilherme
Há duas noites eu e Beatriz transamos. Sem amarras,
pudores ou limites. Nossos corpos estavam morrendo de
saudades. Poderíamos fazer aquilo de novo, e de novo,
quantas vezes fossem necessárias para aplacar a saudade e
o desejo.
Ontem, por outro lado, fizemos amor. Derramando
nossos sentimentos e medos um no outro, como nunca
tínhamos feito.
Havia carinho, ternura, saudade, paixão e o para
sempre.
Mas também tinha dor, raiva, rancor, tristeza e o fim.
Tudo de uma vez só, tudo junto.
Quando terminamos, não houve palavras. Fiquei ao
lado dela e a prendi numa conchinha como se aquele
pequeno casulo pudesse fazer todo o resto passar.
Como se abrir a boca e expor as minhas feridas mais
profundas e manchar a imagem da pessoa que ela mais
idolatra no mundo não fosse acabar com a gente.
Dormir foi impossível e as horas, graças a Deus,
passaram devagar. Os pequenos feixes de luz da persiana
mostraram a lua se movendo e, tempos depois, o sol
nascendo. Permaneci abraçado à mulher que amo, sentindo
o cheiro cítrico de seu cabelo, o aroma doce e convidativo
de sua pele macia, que por três dias eu pude fazer de casa.
Mas o sol da manhã chega, iluminando o quarto com
um pouco mais de intensidade, fazendo Beatriz sair do meu
abraço cedo demais. Pelo menos ela se vira para mim, com
os olhos nos meus. Acaricio seu rosto em silêncio,
estudando cada pedacinho de sua pele marrom; seus lábios,
quase sempre vermelhos, agora pálidos, e o cílios enormes,
através dos quais ela me estuda. Sorrio quando Bia fecha os
olhos ao me sentir arrastar o indicador de sua testa até a
ponta do nariz arrebitado.
Minha Coisinha, minha Princesa. A mulher da minha
vida.
— Bom dia, cê dormiu bem? — pergunto, observando
seus cabelos espalhados sobre a cama. Bia assente, mas
não diz nada, então continuo. — Independente do que
aconteça depois que a gente conversar, quero que saiba
que eu te amo — confesso com uma tranquilidade estranha
para o momento, e ela arregala os olhos, como se eu
estivesse proibido de dizer isso, e se senta num pulo. Mas
nego com a cabeça, deixando claro que não vou parar
dessa vez, e me sento de frente para ela antes de continuar.
— Que pisar no Brasil de novo depois de anos e saber que
nós não éramos mais um do outro foi o pior vazio que senti
na vida. E que tudo o que aconteceu entre nós dois
aconteceu pelo meu coração. Minha cabeça jamais
permitiria isso.
— E qual é a origem dessa guerra entre razão e
emoção…? — Bia indaga com a sobrancelha direita erguida.
— A lembrança do que me fez terminar. — Encolho os
ombros. — Dói em mim todos os dias, e eu não queria que
doesse em você.
— Por isso não queria falar… — deduz, jogando o
cabelo de lado me observando, e eu tento encontrar um
jeito menos doloroso, tanto para mim quanto para ela, de
começar a contar a verdade, mas Bia é mais rápida: — Sabe
Guilherme, eu menti — afirma com os olhos nos meus. —
Não dormi por muito tempo essa noite. Preferi ficar
acordada, sentindo sua respiração nas minhas costas, seu
toque em minha pele, mantendo seu braço o mais rente a
mim possível, porque eu sei que você me ama. E depois de
tudo o que aconteceu, isso é o que mais dói, sabia?
— Como assim?
— Preferia que meu “follow” aquele dia fosse um
problema para nós. Que as coisas entre a gente fossem só
uma confusão de sentimentos. Queria que tivéssemos
“tentado de novo” e percebido que não era mais a mesma
coisa — enumera, me deixando confuso, e fazendo meu
coração bater cada vez mais devagar, como uma morte
lenta. — No fim das contas, ser a garota abandonada por
um cara que nem gostava dela tanto assim de novo seria
mais fácil do que aceitar que o seu amor por mim seja tão
fraco, tão frágil e tão chinfrim — Beatriz cospe os adjetivos
— que tu preferiu fugir a enfrentar o que quer que tenha
acontecido do meu lado.
— Talvez você esteja certa — digo simplesmente,
percebendo que essa conversa vai ser muito, muito pior do
que imaginei. — Talvez o que aconteceu no passado tenha
me sufocado tanto que impediu até meu amor de respirar,
que me impediu de ficar…
— Mas e agora, Guilherme, seu amor já consegue
respirar? Seu amor vai ser honesto e parar de me torturar?
Ela olha para cima, tentando impedir as lágrimas de
caírem, e eu quase ergo a mão, querendo muito tocá-la e
oferecer algum conforto, mas esse não seria o melhor
momento. Suspiro resignado e abro o jogo.
— Vamos começar do início: Namorar a menina pela
qual me apaixonei à primeira vista parecia impossível. —
Encolho os ombros e jogo o tronco para a frente, apoiando
os cotovelos nos joelhos e esfregando os olhos, a noite
insone cobrando seu preço. — Durante meses, todo mundo
na minha casa dizia que você era metida a besta, filha de
ricaço e que investir em algo contigo nunca funcionaria —
pontuo informações não muito legais, mas que não a
abalam, porque ela sabe dessa parte sombria da história. —
Até que um dia minha mãe me buscou no fim de um
ensaio…
— E eu perguntei se podia ir comer no podrão com
vocês, porque eu só fazia isso com a Nina, já que meus pais
nunca pisariam num pé sujo — ela me interrompe.
Lembrando com riqueza de detalhes porque passamos
aquela noite trocando mensagens românticas em códigos e
nos beijamos pela primeira vez no dia seguinte. —
Guilherme, que caralhas essa história tem a ver com você
me abandonando?
— Tudo. Você vai entender, só… me deixa explicar —
peço, e ela assente, cruzando as pernas e prendendo o
cabelo num coque. — Perceber que você era metidinha, mas
não esnobe, abriu um mundo de possibilidades para mim.
Só que eu fui tão inocente, que nem parei para pensar em
como a sua família me veria.
— Ah, Guilherme. Não mete essa, meus pais te
adoravam.
— Pois é, sua mãe sempre me tratou como alguém
importante para ela — concordo, porque, apesar de ser uma
ótima madame, dona Tati sempre se importou mais com o
modo como eu tratava sua filha do que com a conta
bancária dos meus pais. — E, quando falamos de conselhos
e incentivos, Rodolfo foi um mentor para mim mais vezes do
que sou capaz de admitir. — Coço a ponta do nariz antes de
confessar algo que não era tão difícil no passado.
— Porque ele amava você, Guilherme, para onde a
gente tá indo? — a pergunta irritada pula dos lábios de
Beatriz, que me olha com uma ansiedade tão grande que
me sinto mal de ainda ter tanto para falar antes de dizer o
que realmente aconteceu.
— Não posso negar que, como um menino que saiu da
favela e mudou a vida da família, Rodolfo me admirava e
respeitava muito — pondero, porque é a verdade. — Mas
como seu companheiro de vida? Seu pai no máximo me
tolerava, Beatriz — digo sem olhar para ela e me levanto,
dando espaço para ela processar as informações.
Seu riso incrédulo enche o quarto, e Beatriz se
levanta, vindo em minha direção.
— Enfiar um homem morto nas tuas mentiras é algo
que eu nunca pensei que tu pudesse fazer, Guilherme. —
Ela se controla para não gritar e acordar a casa. — Seria
melhor não dizer nada, por que você só não assume que
não queria uma namorada enlutada e deprimida?
— Porque eu queria você — falo mais alto do que
esperava, mas seguro seus braços com gentileza e a encaro
antes de continuar: — De todas as formas. Todos os dias.
Mas seu pai começou a deixar muito claro que ele gostava
da ideia de um pobre metafórico que saiu do nada e
conquistou uma vida melhor para a família, isso ele
respeitava. Mas, quando era a minha vida com você, o
assunto sempre foi diferente.
— Guilherme, todo mundo achou estranho no início,
você sabe. Família, amigos, imprensa… Mas meu pai foi
quem sossegou mais rápido!
— Sim, Bia. Quando a gente era criança e namorava
como criança — digo, porque ele mesmo me falou isso. —
Mas depois que a gente cresceu e as coisas ficaram mais
sérias…
— Ele passou a te odiar? — pergunta com desdém.
— Não. Mas passou a fazer de tudo pra que eu
entendesse que seria melhor pra mim se a gente se
afastasse, porque eu não pertencia ao seu mundo. — Sou o
mais sincero que consigo, e ela ergue as duas sobrancelhas.
— Ele começou a perguntar como eu me sentia usando
determinados tipos de roupa; como era, pra mim, levar
minha família a lugares menos ralé; uma vez me elogiou por
levar meus pais e a Dani num restaurante mesmo que eles
fossem incapazes de usar os talheres na ordem certa ou as
taças de maneira correta e…
— Para Guilherme. — Ela ergue a mão direita de cenho
franzido. — Meu pai era um quarentão, branco, rico, e daí?
Você terminou comigo porque ele fez comentários
desnecessários? — pergunta, e eu nego com a cabeça, me
afastando para respirar, porque não é possível que isso seja
só “desnecessário” para ela.
— Desnecessário?
— Elitista, Guilherme. Idiota, preconceituoso, o que
você quiser dizer. O que eu ainda não entendi, é o
abandono, porque você namorava comigo, não com ele.
— Você não entende, Beatriz. — Esfrego o rosto,
pensando em como isso doía em mim. — Era fácil falar com
seu pai sobre qualquer assunto, menos sobre você. Ele me
incentivava e achava honrado tudo o que eu fazia pela
minha família, mas vivia dizendo que uma hora a gente
acordaria para o fato de que éramos muito diferentes,
assim, como quem não quer nada. Lembro de quando… —
Engulo em seco sob seus olhos atentos. — Quando eu não
sabia exatamente o que fazer pela Dani, e ele me ajudou a
encontrar a agência ideal para mandar meu pai e ela para
os Estados Unidos de maneira legal para que ela estudasse
lá e tivesse uma vida melhor que a minha.
— Eu sei, Guilherme, ele só falava de como dava gosto
ver que você não tava torrando seu dinheiro, que seus pais
deviam ter muito orgulho de você.
— Mas, ao mesmo tempo, ele dizia que, se eu te
amasse de verdade, Beatriz, entenderia que a imagem da
filha dele subindo o Morro do Alemão para o aniversário de
um dos meus parentes não era o que ele sonhava para você
— digo, me afastando.
— Se isso for verdade, Guilherme — ela diz, vindo em
minha direção. — Nesse momento, a única coisa que eu
quero é morrer — ela vocifera, baixo, mas com ódio
fervendo no olhar, espalmando as mãos em meu peito. —
Quero literalmente me matar na sua frente, porque, como
você acabou de falar, nós éramos novos, mas éramos um
do outro. — Sua voz embarga, e eu seguro as mãos em meu
peito, com o corpo doendo de vontade de abraçá-la. Mas Bia
escapa do toque e vai até minha cama, se sentando com
ambas as pernas tremendo em ansiedade ou raiva, não sei
dizer. — Não entra na minha cabeça que você terminou
comigo por isso sem nunca ter me falado que meu pai te
fazia sentir assim.
— Para pessoas como eu, sonhos não se realizam com
muita facilidade. E, àquela altura, eu tinha uma conta
bancária com sete dígitos, já tinha mudado a vida de todas
as pessoas que estão dormindo nesta casa, a gente tinha a
turnê de despedida que passaria pelos vinte e sete estados
do país. Saber que eu não era digno da mulher que eu
amava porque eu não nasci com os mesmos privilégios que
ela era como se fosse a vida me dizendo: “Você não pode
ter tudo”.
— Eu fiz você se sentir assim? — ela pergunta
confusa, tentando entender se tem alguma parcela de culpa
nas lágrimas que dançam em meus olhos agora.
— Nunca. E apesar da pressão psicológica
devastadora que era estar no mesmo ambiente que seu pai,
eu gostava. Porque eram as minhas oportunidades de
demonstrar que você era importante para mim. Eu tinha
certeza de que uma hora ele veria que todas essas questões
de riqueza, berço, origem… eram pequenas. Rodolfo só
precisava perceber o quanto eu te amava e como faria
qualquer coisa por você para me aceitar — digo enquanto
caminho até a cama.
— E aí você terminou comigo porque meu pai, que já
estava morto, não gostava do fato de você ter nascido
pobre. — Uma risada irônica e amarga enche o quarto
enquanto me sento a uma distância segura. — Uhum, faz
todo sentido.
Ignoro o sarcasmo e sigo na linha de raciocínio que
planejei durante a noite em claro.
— Depois que seu pai testou positivo para covid, ele
me ligou pra agradecer por eu cuidar tão bem de você, por
ter sido o primeiro a dizer que a turnê precisava ser
cancelada e evitar um caos maior de propagação do vírus, e
principalmente por eu te amar de um jeito tão honesto. —
Respiro fundo, engolindo o choro, e o olhar de Beatriz me
encontra com expectativa, e eu desvio o rosto. — E eu achei
que era isso: A possibilidade de perder tudo o que
importava tinha feito ele mudar de ideia — explico, sentindo
seu olhar sobre mim, mas não consigo olhar para ela. — Só
que Rodolfo concluiu o raciocínio dizendo que a gente
precisava ser sincero. Você contava seu dinheiro em dólar, e
eu, em merréis, então, apesar dos sentimentos, era para eu
lembrar que nós dois não poderíamos viver no mesmo
mundo para sempre.
— É mentira — ela rebate, sem nem pensar.
— Eu queria que fosse. Queria não lembrar que não
era bom o suficiente para você a cada respiração. Queria
não pensar que você já tinha viajado o mundo, e o lugar
mais distante que eu tinha ido, sem ser a trabalho, era a
sua casa de Petrópolis. Mas não era possível. — Apoio as
mãos na cintura, expirando e colocando as ideias no lugar.
— Só que, Beatriz, mesmo com toda essa coisa do seu pai
pra cima de mim, eu estava lá quando ele ficou mal de
verdade; estava lá quando esperamos três dias para que
seu Rodolfo fosse, finalmente, internado; e estava lá quando
começamos a pensar que as coisas não dariam certo. —
Engulo em seco, porque aqueles foram tempos sombrios
para mim também.
— Guilherme, por favor, para de me enrolar, eu não
aguento mais — ela implora com os olhos marejados, e eu
não aguento mais também, então deixo as lágrimas presas
na minha garganta rolarem.
— Eu estava lá quando demos um celular para que ele
pudesse mandar mensagens e, Beatriz — digo, fungando. —
Eu estava exatamente assim. Sentado na beira da sua cama
enquanto seu olhar triste me observava, quando a tela do
meu telefone acendeu. Era uma mensagem dele.
— Do meu pai?
Assinto.
— Eu abri a mensagem achando que ela poderia ser
para você. Pensei que o seu celular só não estivesse por
perto.
— Tá vendo como isso é mentira, Guilherme? Você
nunca me falou sobre mensagens do meu pai no seu celular.
— Porque não era com você que ele queria falar. Era
comigo — explico, deixando seu olhar em alerta pela
primeira vez. — Foi bem naquele dia que ele melhorou. Que
vocês começaram a se preparar para buscá-lo, no dia…
— No dia que ele morreu, Guilherme — ela cospe as
palavras, como se já as tivesse dito tantas vezes que nem
dói mais.
— Esse dia. — Respiro fundo e exalo o ar como um
assobio. — A mensagem dele dizia que aquilo não era uma
melhora permanente, mas era a melhora da morte. — Cada
uma das palavras arranha minha garganta agora. — “Todo
doente tem isso, você melhora para ter um tempo de maior
qualidade com as pessoas que ama”, ele disse. Sabendo
que morreria.
— Guilherme, que brincadeira é essa? Por que você
nunca me falou sobre isso? — ela pergunta, se levantando.
— Porque eu achei que a próxima mensagem dele
seria “Cuida da minha filha”, mas não foi. — Eu me levanto,
tirando o celular do bolso e, depois de abrir a conversa,
entrego o celular a ela, que lê as mensagens andando de
um lado para o outro no quarto.
Não preciso olhar a tela para entender por que ela
começa a chorar.
Sei cada uma das mensagens de cor. Elas ficaram
comigo, ano após ano, em cada backup, a cada troca de
celular, lembrando que eu não podia parar.
Que eu nunca poderia parar, ou seria só o moleque
favelado para sempre, e eu precisava ser mais do que isso,
precisava nunca mais ouvir do de alguém que eu não era
bom o suficiente.
— Isso aqui é brincadeira, Guilherme — ela diz, rindo
enquanto as lágrimas escorrem pelo seu rosto.
Enquanto Beatriz segura o celular, mas olha
diretamente para mim, implorando por qualquer coisa
diferente do que está escrito, tento falar, mas minha voz
não passa de um sussurro:
— Não é, Bia.
— Você não fez isso com a gente. — As palavras me
surpreendem. Imaginei dezenas de falas para Beatriz após
ler as mensagens, mas essa não era uma delas. — Você não
faria isso comigo, você me amava…
— Saber que o último pedido do pai da garota que
você ama é que você se afaste porque não é bom o
suficiente para ela mexe com uma pessoa, Beatriz — digo,
me levantando, mas ela dá dois passos largos para trás,
deixando claro que quer manter a distância.
— Meu pai não faria isso comigo, Guilherme. — Ela ri,
em meio às lágrimas. — Isso não pode ser o motivo real.
Tem outra coisa, me diz o que aconteceu. — Ela balança a
cabeça em negativa freneticamente, tentando se agarrar a
alguma esperança de seu herói não ser esse tipo de pessoa.
— Seu pai não faria o quê? Não escreveria pro seu
namorado favelado implorando para ele não te pedir em
casamento? — pergunto, parafraseando uma das
mensagens que ela acabou de ler. — A minha parte favorita
é quando ele explica que você precisava de alguém como
você, não de um cara como eu, que vinha com bagagem e
precisaria sustentar um mundo de gente pelo resto da vida.
— Mordo a língua para não chorar.
— Vo-você foi embora, me largou aqui, por… orgulho?
— ela cospe a palavra, desorientada e confusa, mas não foi
só isso.
— Cê leu a última mensagem? — pergunto, e Beatriz
arrasta o dedo sobre a tela afoita. — Espero que você
entenda que é um ótimo rapaz. Mas não é bom o suficiente
para uma garota como a Bia. Por favor, deixa ela viver, você
a prendeu com dezesseis anos, ela não conhece nada da
vida. Se você ama a minha filha, deixe-a livre. Esse é meu
último pedido, no meu leito de morte, de homem para
homem — repito as palavras que já memorizei, ao mesmo
tempo que Beatriz lê, e lágrimas rolam pelo seu rosto. —
Depois disso, eu passei um mês do seu lado tentando
segurar você de pé, mas, ao mesmo tempo, vendo o quanto
nós ainda éramos, e sempre seríamos, diferentes.
— Você foi embora por isso?
Nego com a cabeça antes de juntar coragem para
falar.
— Não. Eu terminei por isso. — Respiro fundo,
engolindo o choro. — Mas a ideia de estar no mesmo país
que você, no mesmo estado, a três ou quatro horas de
distância, me sufocou de um jeito inexplicável. Eu te amava
demais para ficar aqui e ver tudo o que eu nunca poderia
ser pra você, por isso decidi ir embora.
— E aí você só… terminou comigo do dia pra noite e
me abandonou? Sem me dar o menor direito de opinar?
— Eu fiz a única coisa que minha cabeça de moleque
de dezenove anos que já tava cansado de falar sobre suas
origens humildes achou que eu poderia. — Encolho os
ombros. — Fui embora e trabalhei até que as pessoas
esquecessem de me perguntar como era ter crescido como
o filho da atendente do postinho no morro, até que elas nem
lembrassem que um dia eu fui pobre e parassem de me
olhar como seu pai olhava. — Respiro fundo, sem um pingo
de orgulho das coisas que fiz movido pelo rancor.
Eu sou um moleque favelado. Meus pais me criaram
com muita dificuldade. E hoje me orgulho muito das minhas
origens, mas naquela época só queria apagá-las.
— Você… Você acha que você é algum tipo de vítima,
Guilherme? — ela vocifera, tacando meu celular na minha
direção, e eu só tenho tempo de desviar e vê-lo cair na
cama. — Você me deixou sozinha no pior momento da
minha vida, no pior momento da vida do mundo todo, nas
últimas décadas.
— Beatriz, eu…
— Eu não vou ter pena de você!
— Não quero sua pena, Beatriz. Sei exatamente o que
eu fiz, do que abri mão, e do quanto estava errado —
confesso. — Ou tu acha que eu não quis voltar assim que
cheguei lá? Que não me dei conta de que ter as origens que
tenho jamais deveria me envergonhar? Que amar uma
garota incrível que me amava de volta não passou a ser o
bastante no segundo que o peso do olhar do seu pai parou
de nublar minha mente? — pergunto, mas, a essa altura, ela
só me encara incrédula.
— E nem assim você foi capaz de mandar uma
mensagem. — Ela ri, incrédula ou apática, já não consigo
decifrar.
— Você queria que eu fizesse o quê? Voltasse e
jogasse tudo o que aconteceu em cima de você com o corpo
do seu pai ainda fresco? — Ela não responde, só desvia o
olhar, se abraçando. — Eu só compunha pra você! Sobre
você! O tempo todo — digo, e uma onda de lágrimas
escorre pelo meu rosto. — Te marquei na minha pele, eu te
amei todos esses…
— Quem ama não faz o que você fez comigo.
— Beatriz, que tipo de pessoa ignora um pedido em
um leito de morte?
— Uma pessoa que tinha um compromisso com quem
tá vivo, Guilherme! — Beatriz diz com raiva borbulhando em
seus olhos, e seca o rosto em seguida. — Eu era sua
namorada, sua amiga e você simplesmente foi embora. Sem
me falar nada.
— Beatriz, por favor, calma. — Tento abraçá-la, mas
ela estremece em meus braços e me empurra. — Vamos
conversar.
— Me acalmar? O mundo entrou em colapso, a banda
acabou depois de quatro shows de uma turnê de quase
cinquenta, o papai morreu e você foi embora num espaço
de… um mês. — Ela engole em seco, se forçando a controlar
o tom e a emoção. — Meu pai definhou sozinho num
hospital até morrer por dias. Quando enterrei seu Rodolfo
Lopes, o maior galã das nove, nenhum dos amigos ou fãs
dele pôde estar presente. Então, apesar da sua partida ser o
menor dos meus problemas, eu ainda precisava de você.
— Eu tinha dezenove anos, Beatriz. Eu não fazia ideia
de como lidar com aquilo, eu não conseguia falar pra minha
mãe o que tava acontecendo porque eu tinha vergonha de
ter nascido pobre. Quando uma vida pobre, mas digna, foi
tudo o que ela teve pra me oferecer. Meu pai jamais pode
saber dessa história, ele já se culpava o suficiente por eu ter
“começado a trabalhar e ficado responsável pela casa tão
cedo”. — Fungo, coçando a ponta do nariz. — Eu não sabia
como lidar com isso, eu tava sozinho Beatriz. E talvez eu
devesse ter falado com alguém, conversado com você, mas,
de novo, eu era um menino favelado namorando uma
herdeira e sendo constantemente lembrado de que eu
nunca seria bom o suficiente para ela.
— Você devia mesmo ter falado comigo… Mas
entendo que tenha sido mais fácil ir embora.
Fácil. Eu riria se não estivesse segurando as lágrimas.
— Larguei minha mãe e minha avó aqui, porque era
insuportável pensar em estar no mesmo país que você e
não poder te ver, te tocar, te amar como eu queria… Eu sei
que isso devastou você, Beatriz. Mas eu jamais teria tomado
essa decisão se eu soubesse antes as coisas que sei agora.
E talvez, você não consiga perceber que está vendo tudo
pela pior ótica, mas é um direito seu.
— Claro que é. Eu tô mal, triste e chateada pelo que
você fez. E ótimo, eu já sabia que isso aconteceria. — Ela
controla a respiração e caminha até a mala, tirando tudo de
dentro dela. — Mas eu esperava qualquer coisa, qualquer
outra coisa, eu tava pronta pra perdoar um chifre,
Guilherme! Mas isso… — Ela ri, puxando um vestido e
jogando por cima da camisola.
— Bia, pelo amor de Deus, eu jamais trairia você. Eu
só achei… era o último pedido do seu pai. Eu estava
morrendo de ódio, e meu orgulho estava em frangalhos,
mas, ainda assim, fiz o que achei que era melhor para você.
— Não, Guilherme, não foi isso o que aconteceu.
— Quê? — Não é possível que eu não tenha sido claro
o suficiente.
— Você, de fato, me traiu — ela diz, alto e claro. Pura
e simplesmente. — Você me escondeu que se sentia
desconfortável perto do meu pai, não me deu a chance de
deixar claro para ele que eu era uma mulher emancipada e
independente desde os dezesseis anos, e ele não tinha nada
a ver com minhas escolhas amorosas. — Ela respira fundo,
com a mão no coração. — Você leu uma mensagem e
decidiu que você e meu pai sabiam o que era melhor pra
mim, como se eu não fosse uma pessoa. Eu não tive o
direito de argumentar no nosso término, Guilherme, porque
eu não sabia o que estava acontecendo. Você e outro
homem decidiram a minha vida — ela estala os dedos —
como se eu não fosse nada.
— Beatriz, por favor, tenta ver as coisas pelos meus
olhos.
— Você tá sofrendo, é claro que está, mas eu não
posso fazer nada. Eu fui arrancada da sua vida sem o direito
a uma palavra, Guilherme. Nós éramos um casal, a gente
não tava junto há três meses, não era um namorinho
adolescente. A gente sabia o que estava fazendo e o que
queria.
— Ele estava morrendo.
— Ele morreu! Tá? Ele morreu — ela grita como se eu
não soubesse. — Eu não tenho mais pai. Rodolfo Lopes
agora é só alguém que eu luto todos os dias para não
esquecer, Guilherme. E foi bem no pior momento da minha
vida que você me deixou sozinha — Beatriz diz e explode
em lágrimas.
— Bia, por favor. — Vou até ela e a puxo para um
abraço, ela reluta, me afastando com a mão em meu peito,
e seu olhar sobre mim é fulminante por trás das lágrimas.
Como se ela não suportasse a ideia de sentir meu
toque.
— Precisei do seu abraço quatro anos atrás. Agora eu
não preciso mais. E, cara, eu teria peitado meu pai por nós
dois. — Ela bate o indicador no meu peito a cada palavra. —
Teria lidado com a desaprovação ou qualquer coisa ao longo
do namoro, Guilherme. Se tu tivesse me contado da
mensagem, eu ficaria puta! Mas juraria que a gente
terminou, pra ele morrer em paz, teria tentado contornar
isso de todo jeito. Ou talvez, não, talvez a dor da perda teria
me feito terminar com você, como se isso pudesse salvá-lo
de algum jeito… — ela diz, e eu tenho certeza de que cada
uma de suas palavras é verdade. E isso só me faz sentir
pior. — Mas tinha que ter sido escolha minha, e nada disso
foi. — Ela pisca, derramando mais duas lágrimas silenciosas.
— Você me traiu da pior forma que alguém pode trair outra
pessoa: Jurando que era pro meu bem.
— Princesa, se você me der uma chance…
— Não me chama assim! — ela ordena, baixo, com o
indicador em riste. — Eu poderia perdoar qualquer coisa
externa, Guilherme, qualquer erro, vacilo, deslize,
imaturidade… Mas olhar pra você agora, ciente do quanto
eu amava você e ainda amo, sabendo que foi você quem
roubou os últimos quatro anos da gente por causa de uma
rinha de quem mija mais longe? Isso eu não consigo
perdoar.
— Bia, Bia, por favor. — Tento segurar sua mão, seu
rosto, fazê-la olhar para mim, mas ela para e olha no fundo
dos meus olhos. — Pensa no que a gente viveu aqui, pensa
na gente…
— Engraçado você falar sobre isso, já que não pensou
na gente por um segundo sequer, né? — Ela abaixa,
pegando sua mochila, e a coloca sobre o ombro.
— Foi por isso que eu não te dei a verdade antes,
porque tu não saberia lidar, e me enganei de achar que ia
conseguir entender agora.
— A verdade, a única verdade aqui, é que essa é a
segunda vez que, olhando nos meus olhos e dizendo que
me ama, você destrói minha alma, Guilherme. — Beatriz
segura a alça da mochila com mais força e sai do quarto.
Depois de ter me dado os melhores dias, vejo-a sair
da minha vida para sempre.
E não posso fazer nada sobre isso.
Porque a culpa é minha.
Capítulo 30
Ou: Gabriella Montez pode até não ser a mocinha que
High School Musical nos fez crer que ela era, mas a
gata estava certa: às vezes a gente precisa seguir
nosso próprio caminho.
Beatriz
Celebridades não choram no banco de trás do Uber,
mesmo que o peito doa a ponto de tornar difícil respirar.
Celebridades não choram durante o trajeto de duas horas
entre Santos e Guarulhos, nem depois de enviar um textão
para a melhor amiga falando sobre como foi burra e
estúpida.
Pelo menos não quando o motorista te reconheceu e
pediu um autógrafo para as filhas tão logo você se sentou.
Celebridades também não choram no saguão de um
aeroporto. Elas entram no banheiro, se permitem derramar
algumas lágrimas, mas sem gritar ou soluçar, ainda que
precisem muito fazer os dois.
Celebridades passam as três horas de espera pelo seu
voo — superfaturado e comprado em cima da hora —
tirando fotos com todas as pessoas que se aproximam.
Autografando blusas, braços e até mesmo guardanapos.
E, é claro: Uma celebridade, definitivamente, não
chora quando finalmente encosta a sua cabeça na poltrona
do avião.
Como celebridade, mesmo que a música do garoto
que quebrou seu coração duas vezes esteja tocando no seu
fone de ouvido porque… você ama se torturar e a vista do
céu te traga paz o suficiente para se permitir sentir, você
não chora. Só come o almoço oferecido pela companhia
aérea e engole as lágrimas junto com a comida.
Porque você é uma celebridade e, assim como seus
amores, suas dores também são públicas.
Mas a vontade de me esvair em lágrimas está lá.
Principalmente quando ele canta:
I wasn't trying to hurt you and, to be honest, I always
wanted you to be mine. But there are things bigger than us,
and if I’m allowed to say something, I ask you to swear you
are fine. Tell me you love your life and I was just an
outlander, and promise me that you will be happy, even if I
am not by your side.[8]
Por Deus, como ele pôde?
Não deixo de me perguntar nem por um segundo
como Guilherme pôde fazer o que fez comigo, mas, no
fundo, ouvindo cada uma das músicas infelizes, dolorosas e
altruístas do primeiro CD da Vicious Bonds, que só agora
tenho coragem de ouvir inteiro, não consigo não me
perguntar como Guilherme pôde fazer isso com ele.
Cada música carrega um pouco de dor, mas é
impossível não pensar em como elas doem em mim, em
como acabamos desse jeito pelas escolhas dele. Então
busco por 16 CARRIAGES, da Beyoncé, porque não quero
pensar nisso, afinal, celebridades também não choram
quando o avião pousa.

Ser famosa me assombrou por anos, ainda hoje me


tira dos eixos algumas vezes, mas, ao abrir a porta de casa,
me lembro porque ainda insisto. Não é só porque amo o que
faço ou pelo fato de atuar ser importante para mim, é
também porque essa vida caótica só existe na rua.
Aqui, no meu apartamento, os olhos curiosos e
questionamentos inconvenientes não podem me atingir. Na
minha casa, encontro o conforto de que até as celebridades
têm mães e melhores amigas.
Antes que eu feche a porta, Nina já está vindo na
minha direção, e minha mãe, com seu semblante
preocupado, se põe de pé.
— Que bom que você chegou em casa — Nina diz,
acariciando minhas costas num abraço apertado, como se
ela pudesse, de alguma forma, aliviar o fardo da minha dor.
Me afasto, forçando um sorriso de gratidão, e abro a
boca para dizer alguma coisa enquanto ela tira a mochila do
meu ombro, mas nada sai. Meus olhos marejam, minha
visão turva, e eu engulo em seco, abrindo a boca
novamente para cumprimentá-la de volta ou agradecer por
ela ter tido a sensibilidade de ligar para a minha mãe em
meio a esse caos, mas não consigo.
As lágrimas que se acumulam em meus olhos e a dor
lancinante em meu peito só me permitem abrir a boca para
fazer uma coisa: Gritar. E só quando as palavras rasgam
meu peito percebo que não é um grito de dor, é um uivo de
dúvida.
— Por que ele fez isso comigo!? — pergunto às duas,
mas para nenhuma delas em específico, e pressiono as
palmas das mãos nos olhos quando a resposta não chega.
A imagem de Guilherme chorando naquele quarto
invade minha mente, mas a do meu pai saindo de casa para
ser internado também, e não faço ideia a qual dos dois
estou me referindo.
— Queria ter essa resposta para te dar, minha filha. —
A voz baixa e terna da minha mãe chega aos meus ouvidos
no mesmo passo que sinto os braços roliços e curtos de
Nina me deixarem. — Mas eu também não sei. — Dona Tati
apoia minha cabeça em seu peito, me envolvendo com seu
amor e seu cheiro de casa.
Como se soubessem que estamos num lugar seguro
agora, as lágrimas rolam livremente. Cada gota que não
pôde escorrer, ao longo das quase sete horas que passei
entre a casa de Guilherme e a minha, decide sair. Seguro
minha mãe com mais força e deixo que a dor, que explode
como uma represa rompendo sem aviso em meio à calmaria
de um fim de tarde, encontre seu caminho.
— Mãe, como ele pôde fazer isso comigo? — pergunto
em seu abraço, soluçando e ciente de que é ela quem me
sustenta agora.
— Não vou te pedir para ficar calma, porque acho que
isso não é possível agora, mas preciso que você se permita
chorar e pense nisso depois, minha filha — ela me
aconselha, acariciando meus cabelos.
Mas essa não é uma boa resposta, então respiro fundo
e deixo seu abraço, caminhando até Nina, de pé ao lado do
sofá, com os olhos cheios d’água.
— Amiga, por quê? — pergunto, buscando a resposta
nos olhos da pessoa que mais entende os outros no mundo.
Mas, dessa vez, não tem nada ali.
Dessa vez, a única coisa que minha melhor amiga faz
por mim é forçar um sorriso enquanto deixa uma lágrima
solitária rolar.
— Às vezes, as pessoas acham que sabem o que estão
fazendo quando, na verdade, não têm a menor ideia —
Minha tenta encontrar uma explicação plausível, mas nego
com a cabeça. Porque não é sobre compreender o que foi
feito, mas por que eles fizeram isso.
— Mas ele não tinha esse direito, Nina. — Fungo,
tentando controlar as lágrimas, a voz e o coração, que bate
desesperado.
— Eu sei. — Ela se aproxima, acariciando meu rosto.
— Ele não tinha, amiga. — Nina me observa por alguns
segundos. Os olhos nos meus escrutinam a verdade que
nenhuma de nós quer perguntar: De quem eu estou falando
quando digo “ele”? — Vou guardar suas coisas — Nina me
avisa, mas está olhando por cima do meu ombro. — Eu amo
você — adiciona, olhando em meus olhos dessa vez, e
passa por mim, em direção ao corredor, com minha mochila
nas costas.
Antes mesmo que minha mãe se aproxime, uma nova
onda de lágrimas me invade.
— Oh, Bia…
— Mãe, eu… — Engulo em seco, abraçando meu
próprio corpo, como se fosse impossível colocar em
palavras a dor da traição. Ela me abraça, e eu até tento
cruzar os braços em torno dela, mas minhas pernas
enfraquecem por alguns instantes, me fazendo sentar no
sofá.
Em casa, meu corpo sabe que pode chorar, então,
com um soluço alto e amargo, eu liberto muito mais do que
a raiva.
Sinto a dor da garota abandonada que passou anos se
perguntando o que tinha acontecido; a dor da menina que
odiava ter sido trocada por uma carreira internacional e a da
garota que passou três anos sem ouvir uma música cantada
pela sua voz favorita no mundo, porque não queria assumir
que sentia saudades dele.
Minha mãe se senta ao meu lado, me ajuda a deitar,
colocando minha cabeça em seu colo, e acaricia meus
cabelos, me falando coisas que eu não consigo ouvir agora,
porque meu peito dói e minha alma grita, me fazendo
perder as forças por completo.
Meu corpo se encolhe numa concha, na tentativa de
amenizar a dor em meu peito, e só resta a dona Tati
continuar se esforçando para limpar lágrimas, que são
repostas no segundo em que ela as seca. Depois de um
tempo, eu viro de barriga para cima, na esperança de
conseguir dizer algo, mas a dor também está no olhar dela.
Queria poder perguntar por que ela está sofrendo. O
quanto Nina contou a ela. Até onde ela sabe, mas não sei se
aguentaria questionar nada sobre meu pai agora.
Meu pai, minha pessoa favorita no mundo, que me
roubou anos de amor incrível, sem nem ao menos me
questionar, apenas porque achou que podia.
— Chora, meu amor, coloca isso para fora — sussurra,
acariciando meu rosto, num tom que me aquece a alma. —
Sua mãe tá aqui.
Minha mãe está aqui, e eu me agarro a ela um pouco
mais calma. E mesmo sem querer, também choro pelo
menino que partiu, achando que era obrigado a ir embora.
Pelo garoto que escreveu tantas músicas sobre ausência.
Pelo homem que canta sobre como as coisas deveriam ter
acontecido, para tentar lidar com a realidade pela qual ele,
em partes, é responsável.
Sinto o toque da minha mãe e sincronizo minha
respiração com a dela. Consigo deixar suas palavras suaves
de amor e carinho me acalmarem o suficiente para calar
meu choro.
Até para que, ao menos por um alguns minutos, eu
me esqueça de odiar.
Mas nem o cuidado me faz parar de refletir.
Respirando fundo, dou o impulso necessário para me sentar
e passo as mãos pelo rosto, secando algumas lágrimas.
Observo o olhar curioso de dona Tati e, engolindo em
seco, tomo a coragem necessária para verbalizar a minha
maior dúvida:
— Oi. — Nina nos interrompe, de volta à sala com toda
sua bagagem, e eu me assusto. — Separei um pijama, tá no
seu banheiro e deixei sua mochila no chão perto da cama.
Ah, também coloquei seu celular para carregar — ela
enumera, como se não quisesse esquecer de nada. — E sua
mala está no quarto de hóspedes, tia Tati.
— Você vai embora? — Me levanto como se ela tivesse
me ofendido e, se tivesse algum espaço no meu coração
que não estivesse doendo, ele iria começar a latejar agora.
— Eu preciso ir, amiga — diz, indicando dona Tati
antes de continuar. — É hora de você ficar com a sua mãe.
— Mas eu preciso da minha melhor amiga também —
digo, como se fosse óbvio, e até rio por ela pensar algo
diferente disso.
— E a gente vai fazer uma chamada de vídeo mais
tarde… — Sua voz mantém a cadência entre o terno e o
paciente. — Mas eu preciso ir.
Penso em questionar se ela não quer ficar, se não
pode ir embora amanhã ou depois, mas me dou conta de
que Nina não pode viver em função de cuidar de mim para
sempre.
— E você tem uma vida, né! — Forço um sorriso sem
mostrar os dentes, puxando-a para um abraço bem
apertado. — Quero saber como foram as coisas aqui! Nem
só de tristezas vive uma amizade — digo, genuinamente
curiosa.
— Vou contar tudo. Foi muito legal, os meninos são
ótimos — afirma, os olhos brilhando pela novidade em meio
à sua vida pacata, e meu sorriso dessa vez é genuíno. —
Agora vou deixar você com a sua mãe, meu ônibus sai em
uma hora e meia.
— Vai lá, te ligo assim que tudo se assentar. — Pisco
para ela com meus olhos inchados, e Nina deixa um beijo na
minha bochecha antes de se afastar de mim.
— Já disse que te adotaria se seus pais não fossem tão
maravilhosos, Nina — Mamãe diz, abrindo os braços para
recebê-la.
— Um milhão de vezes. Mas, se a senhora não contar
que eu tenho uma segunda mãe, eu não conto — ela
sussurra em seu abraço.
As duas se despedem, e minha amiga passa pela
porta me dando um último tchauzinho. E assim que a porta
fecha, talvez por ter pensado que Nina ficaria aqui, talvez
porque eu só não chorei tudo o que tinha para chorar, meu
queixo começa a tremer, e as lágrimas voltam a rolar.
Minha mãe se aproxima, mas não me abraça, ela
segura minha mão e me guia pelo corredor até o banheiro.
Me ajuda a tirar o vestido e até se surpreende quando
encontra o pijama embaixo dele, mas não diz nada.
Nenhuma de nós duas diz. Porque não há o que falar.
O que eu vou dizer a ela? Que Guilherme me amava,
mas não o bastante para conversar comigo? Que meu pai
era um elitista patético e, no leito de morte, intimidou um
garoto de dezenove anos?
Pior, e se eu contar para ela e perceber que dona Tati
já sabia disso?
Opto pelo silêncio e observo-a entrar no box, abrir o
chuveiro e voltar até mim, tomando minha mão e me
levando com ela. Entro debaixo do chuveiro e mamãe me
vira de costas, desamarrando meu coque; a água que entra
pelos meus fios e bate em meu rosto e peito não me arrepia
a espinha por estar fria, nem queima minha pele.
Ela está morna.
Apática, como eu.
Algum minutos se passam, mas não tenho ideia do
quanto até que ela me ajuda a sair do box e me entrega a
toalha, procurando algo para prender meu cabelo no topo
da cabeça como fazia quando eu era criança.
Termino de vestir o pijama separado por Nina e
enxugo o cabelo, observando os olhos atentos de dona Tati
em mim.
— Mãe, por que você está fazendo isso?
— Porque você precisa dormir.
— Mas eu não tô com sono, a gente precisa conversar.
— Mesmo? — Ela ergue as sobrancelhas e apoia a
mão direita na cintura, jogando seu olhar de advogada de
acusação sobre mim, o que nunca me permitiria mentir. —
Por que a Nina me tirou da cama às oito da manhã e me fez
dirigir até aqui só pra te receber nesse estado? — ela
pergunta séria, firme e ainda distante, então acho que
posso responder da mesma maneira.
— Porque o meu pai… — digo, e é o máximo que
consigo falar antes de ficar sem ar e voltar a chorar.
— É por isso que a senhorita vai para a cama — ela diz
segurando meu rosto com as duas mãos, e encaro os meus
olhos no rosto dela, mais sábios e sérios. — Prende esse
cabelo e escova os dentes, eu te encontro no quarto —
ordena e sai do banheiro, me deixando sozinha com minha
dor, meu pijama, o cabelo molhado e um espelho.
Escovo os dentes e prendo o cabelo com os olhos
focados na roupa suja sobre o piso branco, porque não tem
a menor chance de eu me encarar nesse estado. Pego um
remédio para dor de cabeça na farmacinha e saio do
banheiro.
Ao entrar no meu quarto, dou de cara com dona Tati
dentro de um pijama de seda, o ar-condicionado em
dezessete graus e um copo d’água bem cheio na minha
mesa de cabeceira.
— Mãe, são três da tarde.
— Deita, Beatriz. A gente come alguma coisa e
conversa quando você acordar. — Nada em seu tom ou na
expressão séria que forma duas rugas entre as sobrancelhas
me deixaria negociar, então jogo o comprimido na boca e
dou um gole na água para engoli-lo.
Dona Tati se deita ao meu lado, me dando o colo para
eu me aconchegar e fecho os olhos, ciente de que, mesmo
que essa dor amenize depois de um bom banho e uma
soneca tranquila, ela nunca vai passar.
Capítulo 31
Ou: De volta à estaca zero.
Guilherme
Até ontem, a única família que conhecia o motivo do
meu término com Beatriz era a Vicious Bonds. Não que eu
quisesse ter contado, mas eles sacaram metade da história
durante a composição do álbum, e a única coisa que
precisei fazer foi explicar a motivação e a ordem dos
acontecimentos.
Precisar falar para a minha mãe e minha avó o que
tinha acontecido foi, além de triste, humilhante. Como eu
sempre soube que seria. Mas depois que Beatriz e eu
passamos a manhã de segunda-feira vociferando os
acontecimentos pelo quarto e, consequentemente, pela
casa, não tinha a menor possibilidade de eu não contar.
Dona Madá e dona Sol entraram pouco depois de
Beatriz sair e não perguntaram nada diretamente. Com os
olhos e os toques gentis, com os quais secaram minhas
lágrimas, no entanto, elas tentavam entender o que estava
acontecendo, e não tinha mais por que esconder.
Mas contar também me mostrou que não tinha mais
por que eu ficar ali, voltei para o Rio depois do almoço,
ainda enviei meia dúzia de mensagens para Beatriz no
caminho, mas no fundo eu sabia que as respostas nunca
iriam chegar.
Agora, tenho tentado focar na banda, nas
Vagabonders e nos shows.
Mas minha Princesa continua em todo lugar. Na minha
pele, nas minhas músicas, nos meus sonhos, na minha
mente. Então, depois que todo mundo vai dormir já de
madrugada, por conta da nossa ansiedade pré-shows, e a
insônia me ataca, pego o violão e caminho até a sacada da
cobertura, seguido por Elvis, que também não consegue
dormir.
Me sentando em uma das espreguiçadeiras de
madeira, dedilho os primeiros acordes de Made to Never
Break e aqui estou eu de novo, chorando em cada uma das
frases dessa música, porque o amor que tinha sido feito
para durar para sempre teve que morrer.
Outra vez.
Sob o olhar de pena do cachorro que divide a
espreguiçadeira comigo, sussurro o refrão da música para
as estrelas repetidas vezes. Pedindo para esquecer,
implorando para esquecer, mas sei que ela não vai me
libertar.
Beatriz vai seguir pelo resto da minha vida agarrada
em lugares que, mesmo que eu tenha fingido que não,
sempre foram só dela para habitar. E eu queria conseguir
debater, queria que Bia me deixasse explicar, até que me
lembro de que já fiz tudo isso, só não mudou nada.
Sentado sob o lençol de estrelas que, com certeza,
cobre Beatriz a poucos minutos daqui, não consigo deixar
de lembrar da minha avó acariciando meu rosto e me
pedindo para esperar, porque o tempo cura tudo.
Acho que, de todos os conselhos que já me foram
dados por dona Madá, esse é o único que vai ser ignorado.
Não porque tenho algo a fazer além de esperar. Mas porque
os últimos anos longe de Beatriz me mostraram que é uma
mentira, o tempo não cura tudo.
Na verdade, o tempo não cura nada.
Capítulo 32
Ou: Algumas coisas, só Deus pode perdoar.
Beatriz
Na segunda-feira eu e minha mãe não conversamos.
Pelo menos não sobre o que tinha acontecido neste fim de
semana, nem antes. Ontem, acordamos cedo, tomamos
café numa das padarias do bairro, fomos à praia e
passamos a manhã torrando no sol, mesmo com todas as
contraindicações de especialistas sobre o sol das dez. Mas
eu precisava disso, precisava do mar, da brisa, de gente,
precisava viver.
E ela sabia.
Na volta, pedimos comida e passamos a tarde vendo
os episódios favoritos dela de As Lembranças que Perdemos
no streaming da emissora. Foi um bom dia. Um dia calmo e
normal, como eu precisava viver depois de tudo.
Mas, agora, dona Tati me observa de canto enquanto
termino de lavar a louça do café e já me perguntou duas
vezes se estou segura para voltar a trabalhar e como estou
me sentindo “em relação a Santos”, então, mesmo que
ainda doa, sei que está na hora de falar.
Fecho a torneira e seco a mão no pano de prato em
meu ombro. Vou até a mesa, onde ela está sentada, e toco
na tela do celular. Seis e quarenta e dois. Preciso de mais do
que duas horas para explicar tudo o que está acontecendo
aqui dentro, mas acho que, pelo menos para iniciar essa
conversa, nós temos tempo.
— O quanto a senhora sabe? — indago, me sentando
de frente para ela, que passa a mão pelos fios curtinhos,
mas colocados no lugar com mousse o suficiente para
aguentar o apocalipse, e cruza os braços se recostando na
cadeira.
— Toda segunda de manhã eu tenho salão, e estava
pronta para sair de casa quando a Nina me ligou dizendo
que você não estava nada bem e precisava de mim. Falei
pra ela que desceria a Serra à tarde e ficaria com você uns
dias. — Dona Tati cruza as mãos sobre a mesa. — Mas ela
falou que talvez isso não fosse o bastante, então fiz uma
mala, joguei no carro e desci a Serra. — Mamãe respira
fundo e desvia levemente o olhar antes de continuar: —
Quando cheguei, disse que não teria como te ajudar se não
soubesse o que aconteceu. Mas era a Nina, né? — Mamãe ri
com a lealdade da minha amiga. — Só falou que seu pai fez
“alguma coisa” que levou Guilherme a terminar com você
anos atrás. Entendi ali que o resto você teria de me dizer e
estou esperando desde então.
— Pois ela já explicou, papai fez Guilherme terminar
comigo. — Encolho os ombros sem ter muito o que
adicionar.
— Vou precisar de mais que isso. Mas se preferir
esperar a noite, eu entendo. Não sei se você sairia daqui em
condições de gravar depois de falar sobre o assunto…
— Eu estou — confirmo, com uma gargalhada
histérica. — Eu tive que viver essas coisas, falar sobre elas é
o de menos.
Minha mãe está certa, no entanto, não tenho a menor
condição. O que não me impede de explicar como eu e
Guilherme nos reaproximamos, o que me faz, mesmo
querendo chorar, contar sobre a noite na casa dele; a
manhã vendo-o cantar; o primeiro jantar ainda planejado
pelos nossos representantes; o show e a briga, que faz um
sorriso bobo escapar; então deixo algumas lágrimas rolarem
quando falo sobre a festa da novela e a postura paterna de
Marco, que me quebrou naquele momento, mas agora ela
me quebra muito mais do que eu poderia imaginar.
— Você não precisa me contar tudo agora, Bia. —
Minha mãe se levanta e vem até mim, secando meu rosto.
— Preciso. Porque, se eu não contar, não tem como
explicar o que aconteceu, e eu preciso que a senhora saiba,
porque não vou conseguir entender os motivos disso sem
você. — Tiro as mãos dela do meu rosto e engulo o choro,
voltando a falar enquanto ela se senta ao meu lado.
Dessa vez, conto sobre como Guilherme me fez odiá-lo
ao agir como se nada tivesse acontecido no início; sobre
como ele me fez voltar a amá-lo como se só um dia tivesse
passado desde a sua partida e tudo o que aconteceu não
fosse nada além de um mal-entendido; e, principalmente,
sobre como agora eu entendo que ele tratasse o passado
com tanta negação; não era doloroso só para mim, era uma
tortura para ele também.
Por fim, respiro fundo e inclino o corpo para a frente,
tentando aplacar o incômodo em meu coração, porque
preciso falar do final. Então explico como o cara que eu
mais amei na vida partiu meu coração certo de que estava
fazendo a melhor escolha que podia.
— E como você está agora? — ela pergunta
simplesmente, como uma boa advogada, ela só volta a falar
depois do meu depoimento. Apenas para me questionar
mais uma vez.
Como se existisse alguma resposta além de
“despedaçada”.
— Bem — minto mais para mim do que para ela, sem
enganar nenhuma de nós. — Tô em casa, minha mãe tá aqui
e eu não preciso mais fingir um namoro… — digo, dando de
ombros, e ela cruza os braços me observando.
— Bem, Beatriz? — indaga erguendo as sobrancelhas,
e eu me levanto da mesa.
— Ué, mãe. O que a senhora quer que eu fale?
Obviamente estou me sentindo traída, pelos dois. — A frase
sai um tom acima do planejado. — Eles não tinham o direito
e… — Minha visão turva com algumas lágrimas insistentes,
e meu coração dói.
— Acho importante você pensar que seu pai não
estava bem — ela sussurra, engolindo em seco. Como a boa
esposa que é, como aquela que nunca mais olhou para
outro homem desde a partida do marido.
Caminho até a sala, sendo seguida por ela, e observo
as ondas do mar de Copacabana, quase desistindo de falar
e mantendo a memória dele imaculada para pelo menos
uma de nós.
Mas não posso deixá-la morar nesse castelo de cartas,
portanto volto a falar:
— Não foi a doença, mãe, o Guilherme deixou claro
que as coisas começaram bem antes dela. Ele não te disse
nada? — Tiro o olhar da praia e pouso sobre ela, a reação
assustada e ofendida em seu semblante de testa franzida e
olhos arregalados é a resposta de que preciso.
— Seu pai nunca teria meu apoio numa coisa dessas,
Beatriz! — Exala o ar como se minha pergunta fosse tão
descabida que ela não precisa nem alterar o tom de voz. —
Bagunçar a cabeça de um moleque e a vida de vocês por
algo tão patético quanto elitismo besta? De jeito nenhum.
Se o Guilherme não tivesse onde cair morto e estivesse
visivelmente sugando seu dinheiro, eu seria a primeira a
mandar ele caçar um rumo, mas isso não faz nem sentido.
— Ela tenta controlar o tom, não quer demonstrar emoções,
porque esse é o meu momento de sofrer.
Mas a forma como ela conclui, batendo as duas mãos
no parapeito e inspirando o ar com dificuldade, mostra
como a notícia também a perturbou.
— Então, é isso o que eu não consigo entender — digo
virando de costas para o sol que machuca minha vista. —
Não entra na minha cabeça que o endereço de nascimento
do Guilherme o incomodasse tanto assim.
— Até acredito que seu pai tenha sido um imbecil,
você sabe, seus avós não queriam que ele tivesse se casado
com uma advogadazinha e moram fora desde antes de você
nascer, se te viram cinco vezes foi muito. — Minha mãe se
afasta da janela e vai até o sofá, se sentando de frente para
mim. — Então, não duvido que essa coisa do berço ou do
sangue não tenha passado ilesa. Mas num cenário que seu
pai estivesse aqui, não tinha como ele levar isso por muito
mais tempo e ninguém perceber. Quer dizer, você e
Guilherme queriam ir embora juntos, isso é como casar… —
Ela encolhe os ombros enquanto eu caminho até o sofá e só
volta a falar depois que me sento. — Acho que o fim da vida
se aproximando mexeu com a cabeça dele… — Minha mãe
lamenta, de verdade dessa vez, se permitindo até respirar
fundo e jogar a cabeça para trás por alguns segundos para
controlar o choro.
— Acho que usar o argumento de que ele estava
doente ou de que o fruto não cai longe da árvore torna ele
ter destruído a minha vida por algo tão sem sentido algo
muito simplório, mãe.
— Eu sei, e não estou dizendo que ele não fez uma
coisa horrível — ela se apressa em dizer, sem o menor
resquício de lágrimas nos olhos. — Eu não sei se o odeio, se
sinto pena de Guilherme, se abraço você e não solto nunca
mais. Mas o passado não é um lugar no qual a gente possa
mexer…
— Respeito muito que você pense assim, mas eu não
quero ver as coisas dessa forma. — Puxo as pernas para
perto do meu corpo e a encaro. — Porque, toda vez que
penso nisso, começo a entender que, apesar de ter feito
uma coisa horrível, o papai só queria o melhor para mim, e
sinto pena do Guilherme por causa do que ele passou.
— Então, minha fil… — Dona Tati ergue a mão em
direção a mim, mas a interrompo.
— Mas eu não quero sentir essas coisas. — Desvio de
seu toque antes que ela me diga que eles não queriam me
machucar ou que está tudo bem, porque não está. — Eles
não tinham esse direito. Eles roubaram anos da minha vida,
além de terem tirado meu amor, meu apoio. Todas as vezes
que fecho os olhos fico pensando como teria sido se o
Guilherme nunca tivesse ido — confesso, me sentindo ainda
mais estúpida. — Será que era só um namoro bobo de
adolescente? Será que viajaríamos e construiríamos
memórias fora do país, será que com o covid a gente teria,
sei lá, entrado pra igreja da Nina e casado em seis meses?
Será que teríamos feito outros papéis juntos na TV? Será
que eu teria ficado tão desesperada, tão desamparada se
ele ainda estivesse aqui? — Lágrimas rolam contra a minha
vontade, mas essas não são de dor, e sim de ódio.
— Será que vocês teriam amadurecido se tivessem
ficado juntos? Será que vocês teriam certeza de que o amor
de vocês pode resistir até a uma separação de quatro anos?
Será que ele teria a banda dele? Será que você teria
respeitado seu tempo de luto?
Ela coloca tudo em perspectiva como se o término
tivesse sido a melhor coisa que poderia ter acontecido, e eu
simplesmente odeio que ela faça isso.
— Mãe, não compara essas coisas.
Obviamente não queria imaginar Guilherme sem mim,
mas hoje é impossível imaginar aquele principezinho
irritante sem a Vicious Bonds.
— Não é uma comparação, estou cooperando com seu
castelo de areia. — Ela sobe os pés para o sofá e vira o
corpo de frente para mim. — Colocando mais alguns “e se”
que nunca terão respostas em cima de um monte de outros
bem na beira do mar. Uma hora a onda vai levar todos eles,
e só a verdade vai ficar.
— E o que você quer dizer com isso?
— Que você precisa saber qual é a verdade, ou vai
perder muito mais do que já perdeu até aqui, não só o
Rodolfo ou o seu namorado.
— A verdade é que o Guilherme me machucou muito,
mas ele fez tudo aquilo sem nunca me deixar saber que o
meu pai era esse tipo de pessoa. Ele nunca maculou a
imagem do cara que eu tinha como um herói, e isso cobrou
muito dele — pondero, e minha mãe assente.
— Um fardo bem grande para alguém tão jovem…
— O papai, por outro lado… em vez de me aconselhar
a tomar as melhores decisões para a minha vida, se
intrometeu entre mim e o Guilherme. Como se nós
estivéssemos em 1850, e ele pudesse escolher um homem
melhor para mim. — Abro a boca e sinto as palavras
escorrerem: diretas e amargas, mas ainda implorando para
ver a luz do sol. — A verdade é que não quero esquecer,
não quero apagar, não quero perdoar. Eu tive anos e anos
da minha vida roubados, fiquei sozinha, fui obrigada a fazer
terapia duas vezes por semana por dois anos tentando
parar de ser pedaços de uma pessoa e ficar inteira de novo
por causa da morte de um deles e do vazio deixado pela
falta do outro. Então não me pede pra manter o passado no
passado, como se cada ferida que ele deixou não fosse
presente.
— E o que isso quer dizer?
— Que talvez, amanhã, semana que vem, ou daqui
não sei quanto tempo, eu possa me sentar nesse sofá e
sorrir, pensando nos outros e achando lindo que eles
tenham decidido o que era melhor para mim. — Enxugo
minhas lágrimas e me levanto. — Hoje eu só quero voltar a
trabalhar e ser consumida pela raiva desse processo
covarde.
Essa é a minha verdade e, pelo menos por hoje, quero
ter direito a ela.

De quem é a culpa?
Essa é a única coisa na qual consegui pensar nos
últimos dias.
Minha, por ter aceitado o término sem questionar
Guilherme de verdade, sem ter feito um escândalo e dizer
que ele estava partindo, não só o meu coração, mas
também a minha alma ao ir embora? Do meu pai por ter
feito uma chantagem emocional tão pesada, no leito de
morte, depois de tanto tempo de tratamento passivo-
agressivo contra o Gui? Do Guilherme por ter acatado uma
ordem do meu pai e nunca ter tentado conversar comigo?
Quando cheguei em casa, segunda, eu não tinha a
resposta para essa pergunta. Parando o carro no
estacionamento do estúdio, percebo que, talvez, nunca vou
ter. Talvez não exista culpa, talvez as coisas tenham
acontecido como deveriam e foi uma sucessão de equívocos
que nos trouxe até aqui.
Saio do carro pronta para voltar à minha vida real. A
que eu deveria ter vivido não fosse todo o caos de ter
seguido Guilherme meses atrás. A vida na qual eu sou uma
atriz de volta às telas, apaixonada pelo meu papel e
sedenta por trilhar novamente meu caminho através da
arte.
Caminho até o camarim para fazer cabelo e
maquiagem que, numa novela de época, demoram um
tempo considerável para serem feitos, ciente de que,
mesmo tentando ser a mais compreensiva das criaturas,
nada muda os fatos ocorridos.
Embora eu consiga perdoar um homem moribundo e
um adolescente machucado, isso não apaga a dor causada
por eles.
Perdoar, nunca vai significar esquecer.
E essa era a única coisa que poderia colocar tudo no
lugar agora:
Esquecer.

Nove da manhã de quinta-feira o interfone toca. E,


falhando mais uma vez na minha missão de esquecer, meu
coração dá um pulo dentro do peito, como se Guilherme
pudesse passar por aquela porta a qualquer momento.
Mas é minha mãe quem abre a porta do quarto.
— Minha filha, seu porteiro no interfone — ela diz com
uma escumadeira na mão, e eu sinto o cheiro de bolinho de
chuva se infiltrar pelo quarto.
— Sabe quem tá lá embaixo? — pergunto, ansiosa e
confusa. Sem saber o que dizer ou fazer se for…
— Richard, um tal de Richard. — A resposta me
acalma mais do que ela poderia imaginar.
— Pode pedir pra ele subir? Vou escovar os dentes e
trocar de roupa.
— Não sei se conheço esse Richard… — Dona Tati diz
num tom sugestivo, e eu faço cara de vômito.
— Não mãe, nossa. Não.
Rindo de mim, dona Tati assente e sai puxando a
porta.
Checo o celular para saber o que ele está fazendo
aqui, mas não vejo nenhuma mensagem ou chamada
perdida dele e, na conversa de Guilherme, as seis
mensagens ainda são as mesmas:
Principezinho: Bia, me deixa conversar com você?
Principezinho: Explicar de um jeito que você vai
entender.
Principezinho: Eu sei que tu sentiu tudo o que senti,
Beatriz. Não finge que não.
Principezinho: Tu sabe o quanto eu gosto de você,
Beatriz, por favor, só me escuta, só conversa comigo.
Todas elas enviadas na segunda, ao longo da manhã.
Principezinho: Desculpa, não devia ter pedido isso.
Eu errei, falhei com você, com a gente, e não tem volta.
Principezinho: Espero que tu fique bem logo e viva a
vida linda que tenho certeza que você nasceu pra viver.
Essas chegaram terça à noite e, se eu já estava
chorando pelos cantos antes delas, depois foi ainda pior.
Mas é hora de me ajeitar e… saber o que essa visita
inesperada veio fazer aqui.
Deixo o quarto de rosto lavado, dentes escovados e
roupa trocada três minutos depois. Um tempo recorde, eu
diria. Mas foram anos trocando de roupa no palco, então
posso me considerar expert nisso.
Não deixo de pensar, no entanto, no que será que
Richard veio fazer aqui:
Será que veio me ver ou a pedido de Guilherme?
— Que cheiro bom. — Inspiro o ar, entrando na sala.
— Fiz para o nosso café, mas agora você tem visita. —
Ela encolhe os ombros.
— Eu faço um bolo pra gente à tarde — digo para
mamãe no segundo que a campainha toca.
Corro até a porta e giro a chave para abri-la.
— Foi a senhorita que esqueceu essa mala? —
Richard, parado com o cotovelo na porta, faz a pergunta
toda em português, e eu sorrio de verdade, pela primeira
vez em três dias.
— Rick, que bom te ver. — O abraço pela cintura, e ele
me abraça de volta, me apertando, como sabe que eu
preciso, e me tirando do chão, apenas para ser exibido. — E
Elvis, meu único amor verdadeiro, que saudade. — Coço sua
cabeça assim que Richard me solta, e me abaixo, tendo a
cara lambida por ele.
Ao me ver levantar, Elvis late bem alto, duas vezes, a
língua para fora e o rabo balançando, aquecendo meu
coração.
— O garoto sentiu sua falta — comenta, entrando
enquanto eu fecho a porta. — Aqui você é visita, se
comporte — diz para o cachorro em inglês e, não entendo o
porquê, Elvis com certeza é bilíngue.
— Mãe, esse é o Richard — apresento; ele segue meu
olhar e, encontrando dona Tati do outro lado da bancada,
acena para ela.
— De onde você conhece esse menino, Bia? — minha
mãe pergunta entre os dentes, fingindo um sorriso. —
Menino não, né… Esse homão.
— Ele é da banda do Gui — explico, e ela o observa de
cima a baixo e pisca duas vezes como se lembrasse que
conhece esse rosto de algum lugar. — E entende português,
então segura sua marimba.
— Veio interceder pelo amigo? — ela caminha até a
bancada e pergunta para mim, mas os olhos estão em Rick.
— Na verdade, só trazer a mala. — O sotaque se
arrasta tanto nos R’s que eu sou obrigada a rir. — Pare com
o bullying — ele pede em inglês com a testa franzida, e eu
cerro os lábios. — Vim conversar com você também.
— Ah, tudo bem. A gente vai ficar no meu quarto, mãe
— aviso, pegando a mala de rodinhas da mão de Richard e
tirando-a da minha madeira, pensando em meios de me
desfazer de tudo o que tem aqui, incluindo a mala, sem
deixar tão na cara o quanto um mísero fim de semana
mexeu comigo. — Qualquer coisa bate lá, tudo bem?
— Ótimo, levo uns bolinhos pra vocês daqui a pouco.
Meneio a cabeça e pisco para ela, mas Elvis late, um
pouco mais baixo dessa vez e abana o rabo.
— Não tem comida de cachorro aqui, hein. Vocês vão
ter de ter cuidado com os farelos! — ela nos repreende,
acho que Richard não entende “farelos”, mas assinto, então
ele faz o mesmo.
— Vamos, Elvis. Vem conhecer meu quarto. — Estalo
os dedos da mão direita para ele, que nos segue.
— Tudo bem. — Richard começa em inglês e entendo
que esse será o idioma da conversa. — Como você
esqueceu uma mala? — diz, se jogando no chão do meu
quarto de bermuda jeans e blusa regata, nem um pouco
parecido com o cara soturno de roupas pretas quase sempre
presente.
— Acho que tendo um surto generalizado.
Me sento de frente para ele, com as costas apoiadas à
cama, e Elvis deita no chão, apoiando a cabeça em meu
colo.
— O Guilherme disse que te contou… — ele entra no
assunto e, curiosamente, eu não quero desconversar.
É bom falar sobre isso com alguém que já sabe do que
estamos falando, para variar.
— Sim, contou — comento como se não fosse nada,
acariciando os pelos do labrador, tentando ignorar que até o
cheiro dele me lembra o seu dono. — Depois de a gente ter
descido toda a montanha do amor e da safadeza.
— Depois, Beatriz?
— Eu tava carente e dormindo com o cara que eu
amo, eu ia fazer o quê? — rebato em minha defesa.
— O cara que você ama é? — ele enfatiza o presente,
e eu desvio o olhar, mas acabo parando-o no meu violão.
O mesmo que quero jogar fora, porque toda vez que
olho para ele, lembro de Guilherme e de tudo o que senti no
dia que dormimos juntos aqui.
— Eu sempre soube que a gente não devia se
reaproximar. — Volto o olhar para a cabeça de Elvis, por
onde corro minha mão, ciente de que talvez essa seja a
última vez que o carinha que sujou a casa de Guilherme
depois que eu a inundei estará tão perto de mim. — Eu
gosto dele, mas ele me machucou. Essa red flag deveria ser
o suficiente, mas não foi. — Encolho os ombros.
— E acha que não tem volta mesmo, vocês dois? — A
pergunta é baixa e rouca, como se ele soubesse que não
deveria fazer isso.
— Ele disse alguma coisa? — respondo com outra
pergunta.
— Dizer? — Richard não contém um riso irônico. — Ele
mal come e não dorme há dias, Beatriz, e nosso primeiro
show é amanhã!
— Disse ou não?
Se Richard quer que eu tenha pena de Guilherme, está
perdendo seu tempo.
— Disse que acabou e estava tudo bem, porque ele
sempre soube que acabaria. Na manhã seguinte se enfiou
na casa da ilha com o Elvis e não quer que a gente vá lá —
confidencia, visivelmente irritado, e eu olho para o cachorro
em meu colo sem entender como ele foi parar ali. — Eu vou
porque ele não manda em mim. Daí ontem ele me pediu pra
trazer o Elvis, porque talvez essa seja a última vez que
vocês vão se ver.
— Então ele que te pediu pra trazer a mala e o Elvis?
— Uhum. Quando fui obrigar ele a jantar. Ah,
Guilherme também pediu pra te lembrar que o primeiro
show da banda é amanhã — Rick comenta, como se
precisasse, tirando duas pulseiras de camarote do bolso e
duas credenciais de staff. — Você e Nina podem usar o que
preferirem.
— A gente não vai, Rick. Quer dizer, a Nina eu não sei,
posso perguntar.
— Acho que ela não iria sem você, passar o dia com a
gente é diferente de ir ao nosso show e ficar sozinha — ele
pondera, guardando as pulseiras e as credenciais no bolso
do jeans novamente. — Vamos deixar para a próxima. E, ah,
o Guilherme não me pediu pra perguntar, mas sei que ele
queria conversar com você antes da gente ir embora, será
que tem alguma chance? — Rick pede, os olhos fixos em
mim, e a profundidade do olhar quase me convencendo de
que eu deveria dizer sim.
— Eu sei que ele é seu amigo, sei que não teve culpa
no que aconteceu e blá, blá, blá, mas é tudo muito recente,
Rick. — É o que consigo dizer sem ser rude.
— Licença! — Minha mãe me salva, entrando com
uma bandeja com duas xícaras de café e um prato de
bolinhos de chuva. — Trouxe o café, mas não sei se o gringo
vai gostar — ela avisa, me entregando a bandeja, e eu a
pouso no chão, entre nós dois.
— Eu amo comida brasileira, não se preocupe — ele
responde no idioma nativo, e minha mãe sorri.
— Vou estar trabalhando nuns processos na casa da
Barbie que você montou para a Nina, tá? Se precisar,
manda mensagem, talvez eu entre em reunião com meus
estagiários — avisa no segundo que Richard joga uma das
bolas envoltas em açúcar e canela na boca.
— Bolinho de chuva? — ele indaga, e eu assinto. — Eu
adoro! A Dani sempre faz pra mim.
— A Dani, irmãzinha do Guilherme? — Minha mãe para
diante da porta e pousa a mão na maçaneta.
— Ela não é mais irmãzinha, mãe. A Dani tá com uns
dezenove anos.
— Vinte — Richard me corrige com os olhos
arregalados.
— E ela cozinha pra você? — Minha mãe ri, erguendo
as sobrancelhas, deixando Richard perdido entre ficar
desconfortável e não entender aonde ela quer chegar, mas
ele apenas assente. — E o Guilherme sabe? — ela indaga, e
ele assente uma vez mais. — O irmão e o corno são sempre
os últimos a saber, né? Vou deixar vocês em paz. Tchau. —
Ela sai, puxando a porta do quarto atrás de si, e eu gargalho
enquanto Richard dá tchau para ela, seu semblante
transmite o mais absoluto choque.
— O que ela quer dizer com isso?
— Que ela sabe que vocês têm alguma coisa.
— Porque eu disse que ela fez bolinhos pra mim? Ela
faz pra banda toda!
— Pelo seu tom de voz, Richard. Não se faz de burro,
nem combina com você. — Pego um dos bolinhos e o
encaro. — Mas você e a Dani, como começou?
— Era bobeira, ela tinha um crush, coisa de
adolescente, desde a época do reality show, e eu fingia não
ligar. — Ele dá um gole no café, e eu jogo um bolinho na
boca. — Até que eu fui morar com eles, a gente ficou
próximo, nos tornamos amigos e as coisas aconteceram. —
Richard sorri. Ele sorri de canto com as bochechas
vermelhas e o olhar batendo em qualquer coisa neste
quarto, menos nos meus olhos. O Bad boy está realmente
apaixonado. — Ainda é bobeira, a gente jura que vai parar…
— Por que parar? — pergunto confusa, a doçura na
voz desse homem garante que ele não quer parar de jeito
nenhum.
— Ela é mais nova e é irmã de um dos meus melhores
amigos. Nós dois sabemos que vai dar merda, dizemos que
vamos parar quando estou longe, só que é ela chegar perto
e pronto, me desmonta… É complicado, e o Guilherme me
mataria — ele refuta, rindo antes de jogar outro bolinho de
chuva na boca. — Mas ainda tenho dois meses e meio até
juramos pela vigésima vez que “essa vai ser última”
novamente. Então vamos voltar para vocês! — Richard vira
o café e pega mais um bolinho. — Mesmo que as coisas
entre vocês já tenham acabado, quero saber como foram os
dias lá.
— Você está maluco que eu vou ficar falando disso!
Você é que vai me contar… como estão os preparativos
para os shows, já que não quer falar da Dani — digo,
pegando dois bolinhos, dando um longo gole em meu café
e, mesmo que não possa falar que estou feliz agora, estou
distraída, o que é muito melhor do que tudo o que eu tenho
vivido nos últimos dias.
Capítulo 33
Ou: When you think of me, I hope it ruins rock 'n' roll.
Guilherme
O amor é a linha invisível que nos liga à lucidez.
Dentro do caos, da dor e dos pensamentos
autodestrutivos, o amor é como a rosa que surge em meio
aos limites rochosos. Por isso, pela terceira semana seguida,
fecho os olhos e respiro fundo diante da sensação de ser
amado.
O frio na barriga, os dedos tendo espasmos no ritmo
da voz do outro, o suor chegando à testa e o coração
disparado.
O amor é a força invisível que nos impulsiona a seguir.
Ainda na lateral do palco, abro os olhos observando a
plateia e sinto o amor que cada uma das pessoas presentes
nessa noite derrama sobre o A.J. e a Alê. Meus olhos viajam
por todos os cantos que conseguem atingir agora, e vejo-os
receber de volta todo o amor que a letra lhes entrega.
Ser um homem que canta sobre amor junto com
outros homens faz com que as pessoas questionem nossa
capacidade de compor, nossa orientação sexual, nossa
sinceridade. Mas tudo fica pequeno demais quando percebo
aonde chegamos única e exclusivamente por causa do amor
das nossas fãs.
Nós somos bons, muito bons. Mas milhares de outras
pessoas também são e o que nos separa de uma banda
incrível que ainda não estourou são as nossas Vagabonders,
que nos seguem onde quer que estejamos e transformaram
o sonho de quatro imigrantes, que tinham tudo para ser
chacota no maior reality show do mundo, em realidade.
— Você entra em noventa segundos — alguém da
produção diz por cima do meu ombro, e eu apenas assinto,
porque a ponte da música está chegando e nem nos meus
melhores sonhos imaginei que Alê e A.J. teriam tanto
carinho e respeito por essa canção quanto têm
demonstrado.
Todas as luzes do palco se apagam, e apenas o
refletor em cima do piano acende novamente. Alê está ali,
sozinha, de cabeça baixa, confessando:
Porque não há um manual do que fazer
Quando o amor persiste, mas a confiança é quebrada.
Quando a saudade é intensa, mas a presença apenas
tolerada.
Quando minhas cicatrizes são tão reais, e suas
desculpas quase banais.
Dessa vez, amar você talvez não seja suficiente para
me fazer permanecer.
Meu coração foge do compasso quando a plateia
inteira berra a música a plenos pulmões, no nosso décimo
show. Apenas três semanas depois do lançamento surpresa,
que fizemos no show de abertura da turnê no Rio.
Minhas mãos suam ao ver A.J. se sentar ao lado da Alê
e cantar, não olhando para o público, mas para ela:
I messed up and hurt you, but is it worth it to be a
“maybe” forever?
Maybe I was just too young, too naive, too scared.
Maybe I didn't realize how much I hurt you.
Por milésimos de segundo, A.J. tira a mão direita do
piano e acaricia o rosto da Alê, levando a plateia à loucura,
enquanto repetem a frase: Maybe I didn't realize how much
I hurt you.
Maybe I wasn't who you needed me to be.
But now I'm here, ready to fight for us.
Is there any chance we can rebuild what I broke?
Alê se afasta, observando-o a uma distância segura,
enquanto a plateia pergunta outra vez: Rebuild what I
broke?
Maybe, if you give me one chance,
I can make things work.
A.J. garante, trazendo-a para perto novamente, e a
plateia não teria como gritar mais alto quando ele apoia a
testa na da Alê e finaliza:
Make us work![9]
O refletor se apaga, e apenas as luzes de marcação na
frente do palco se acendem, tão discretas que só podem ser
vistas aqui de cima. A produção entra antes, levando o
piano para fora de cena sob os gritos das nossas
Vagabonders. Enquanto isso, A.J. se despede da Alê, e eu
corro até o meu lugar, no meio do palco. Vejo quando a
silhueta de A.J. para na marcação à esquerda do palco e
conto mentalmente até três.
Pernas distantes, mão direita apoiada no suporte à
frente da minha boca e a respiração longe da cabeça do
microfone.
Ao primeiro acorde de Made to Never Break, as luzes
se acendem, e eu estava errado quando achei que as
nossas meninas não podiam gritar mais alto, porque elas
podiam sim. Só precisavam de um descanso.
It started like a fire…
Canto a primeira frase da música e sou inundado de
um amor tão ardente, que sorrio antes de continuar e quase
perco o tempo da segunda frase. Mas elas me perdoariam,
já deixei claro em um dos vlogs que gravamos na estrada,
entre um estado e outro, que “ainda estou tentando me
acostumar com o quão intenso o Brasil consegue ser”.
Apesar de ter vivido isso com a GenZ, era diferente, e
o público brasileiro era tudo o que eu conhecia na época.
Agora, depois de cantar por mais de trinta estados nos
Estados Unidos, passar pelos lugares mais estratégicos do
Canadá e fazer cinco shows no México…
Não tem como comparar o que vivíamos lá com o que
temos vivido no Rio, São Paulo, Minas e agora no Espírito
Santo. Nosso último fim de semana de shows no Sudeste
não poderia ser mais incrível e não tem como escolher uma
plateia melhor. É como se fosse sempre “a de hoje”.
Cada rosto aqui ama esse momento, ama essa
música, ama o que nós fazemos e o que entregamos a elas.
As lágrimas, os gritos, as faixas, bandanas e blusas e
bandeiras com a logo circular com tulipas infinitas e a faixa
escrito Vagabonders bem no meio… É algo gigante demais!
Porque esse é o meu país, e eu precisava saber que
poderia ser amado por ele outra vez. Mas também por estar
dividindo, com os irmãos mais incríveis que a vida poderia
ter me dado, o tesouro raro e precioso que é o público
brasileiro.
A.J. e Richard deixam suas posições e se aproximam
conforme nos preparamos para o ápice da música. Assim
que eles chegam perto o bastante, explodimos:
Kinda made to never break.
E todo mundo enlouquece junto.
E é aqui que sou feliz. Esse é o meu lugar.
Independente do quanto essa música me machuque e de
tudo o que tem acontecido no último mês. Em cima de um
palco, com meus irmãos de alma, eu ainda existo.
Capítulo 34
Ou: O show tem que continuar.
Beatriz
Salto alto, mas nada extravagante.
Metade dos cabelos presos e metade solta.
Um vestido longo preto e os lábios vermelhos.
— Eu tô me sentindo tão gata — comento com a Nina,
que me estuda pela câmera do celular enquanto me preparo
para finalizar a maquiagem e colocar os acessórios
escolhidos a dedo.
— Então está sentindo as coisas certas, se eu não
soubesse que você vai jantar com a tia, teria minhas
dúvidas…
— Nina… — Ergo a mão com o colar para ela parar, e
ela revira os olhos me fazendo rir.
— Mas, tu acha que tá preparada, sabe, para sair
sozinha? — pergunta tão baixo que é quase um sussurro,
que só consigo ouvir porque o viva-voz tá no máximo.
— Tenho saído com o pessoal da novela, amiga —
lembro-a, pois decidi ser mais sociável e aceitar convites
que antes eu ignorava com a desculpa de decorar meu
texto. — E nunca deu em nada, então…
— Mas é diferente você estar num happy hour com
uma galera e sozinha com a sua mãe, né? — indaga,
coçando o braço por cima do casaco, e é quase
inacreditável que Petrópolis esteja beirando os vinte e três
graus quando o mais baixo que tive no Rio hoje foi trinta e
três.
— Amiga, tem mais de um mês, sabe? Todo mundo já
entendeu que acabou. — Jogo o cabelo para trás
observando o pingente de gota em meu colo. — E minha
mãe vai embora amanhã, tenho o direito de me divertir com
ela ao menos um pouco.
— E como você está? Eu sei, eu sei que eu estou
proibida de fazer essa pergunta, mas você só precisa
responder se quiser — comenta depois de fazer a pergunta
que eu passei as últimas cinco semanas me esquivando de
responder.
Para a minha surpresa, agora é só uma pergunta, e eu
estou confortável em respondê-la.
— Acho que minha mãe ficar aqui por um mês fez
toda a diferença. — Me recosto na cadeira e respiro fundo.
— Querendo ou não, eu tava acostumada a ter alguém,
estar acompanhada, e acho que teria sentido muito mais
falta dele sem ela aqui. Além disso, acabei me permitindo
sair mais, com o pessoal do elenco, da produção…
— Eu não sei como você vive sem terapia, eu já teria
ido de Vanessa Lopes — ela diz, rindo, mas sendo muito
honesta.
— Você vai ser cancelada por esse comentário, sabia?
— Nossa, meus 873 seguidores vão chorar muito meu
cancelamento! — ironiza.
— Mas eu tenho pensado mesmo em voltar pra Fabíola
— comento apenas para ver sua reação.
— Ah, por aqui glorificamos a Deus pela vida da
Fabíola desde 2021 — brinca ao mesmo tempo que fala
sério, e eu meneio a cabeça concordando.
Terapia é uma benção.
Tem seis meses que parei, e nada deu certo desde
então.
— É, pensando agora, eu deveria ter procurado a
Fabíola quando o escândalo do “follow” aconteceu, ela teria
me ajudado a pensar racionalmente, não só
profissionalmente — comento, passando corretivo na zona
das olheiras que, apesar de estarem bem melhores, ainda
existem. O furacão pós-Guilherme me trouxe uma rotina
alinhada e um cansaço que me derruba, então estou
dormindo bem melhor. Nos dias com sorte, penso pouco
nele e adormeço rápido. — Mas optei por andar com minhas
próprias pernas, e isso não deu tão certo quanto eu pensei.
— Pois, é. Mas não adianta chorar pelo leite
derramado.
— Mas, e você, não vai mesmo no show extra da
Vicious Bonds?
— O de encerramento no Rio? — pergunta, e assinto,
fechando o corretivo e colocando na bancada. — Não tem
cabimento eu ir sem você, então não.
— O A.J. vai ficar muito sentido — uso o mesmo
argumento que Richard usou para tentar me convencer.
— Pelas performances que ele vem fazendo com a Alê,
minha filha, ele vai sobreviver.
— Nina! É só atuação.
— Uhum. Claro. O único namorado da minha melhor
amiga nem era colega dela de banda…
— Nossa, como você é ridícula! — Saio do banheiro e
volto até meu quarto carregando o celular comigo.
— Sou sim. E você está linda, a tia provavelmente
está uma gostosa, mas tenho uma aula de escola bíblica
para revisar, e já são vinte pra hora, nos falamos amanhã?
— Nina me dispensa, mas eu nego a última parte de pronto.
— Segunda! Domingos são cheios demais para minha
filha de pastor favorita.
— Obrigada por entender — ela faz um coração com a
ponta dos dedos. — Te amo, amiga.
— Te amo. Fica com Deus.
— Vai com ele — ela deseja antes de desligar.

Apesar de um pequeno trânsito no caminho, eu e


mamãe chegamos no restaurante a tempo da reserva.
Escolhi trazê-la na mesma churrascaria que tinha vindo com
Guilherme e ficar no mesmo lugar. Uma mesa reservada no
canto, próxima à janela, mas distante do restante das
mesas e longe do caminho dos garçons.
— É lindo aqui. — Dona Tati observa o espaço amplo,
moderno e que mistura tons de azul e verde ao branco à
sua volta, e eu não tiro os olhos dela até que se sente.
— Cachos finalizados, macacão ressaltando seus
pontos fortes e batom marrom café? A senhora que está
linda.
— Estou, né? Não é todo dia que eu apareço ao lado
da minha filha pelas ruas do Rio de Janeiro — ela ironiza
com uma piscadela. — E as coisas mudaram muito. Eu e seu
pai saíamos juntos todo fim de semana antes de você
nascer e se tornar o centro do nosso universo — diz,
provocando um leve sorriso em meu rosto. — E o máximo
que acontecia era virar notícia em um ou dois jornais e ser
capa do caderno de TV se ele tivesse no ar com alguma
novela, agora…
— As pessoas têm um celular para documentar cada
segundo…
— Isso. Existia uma distância maior, não de um jeito
“não quero esse povo perto de mim”, só… mais privacidade
mesmo.
— Tá com algum paquerinha, dona Tati? — sussurro a
pergunta, mas o queixo dela cai mesmo assim.
— Meu último namorado traumatizou minha filha,
acho que não quero saber de homem tão cedo… — ela
brinca, e eu não consigo conter uma risada. — Mas me fala,
quais as expectativas para voltar a morar sozinha?
— Ah, mãe. Não sei se tenho alguma. A gente tá indo
pros últimos três meses de gravação, então devo focar
nisso. — Sorrio pensando que enfrentar essa cidade
completamente sozinha agora não vai ser a coisa mais fácil
do mundo. Mas meu lugar é aqui, minha casa é aqui, e eu
preciso colar meu coração partido de alguma forma, que
seja com trabalho. — E, claro, a Luana tá com alguns
contratos de publicidade para eu analisar, devo sentar com
ela essa semana.
— Hum… Entendi. Baixar um aplicativo de namoro e
afins não está nos seus planos?
— Dona Tati! Claro que não. Serei uma mulher
dedicada ao meu trabalho por ora — repreendo-a baixinho
enquanto um garçom sorridente se aproxima.
— Boa noite, meu nome é Júnior, primeira vez na
casa? — pergunta, ajustando a armação dos óculos com a
ponta do indicador.
— Minha sim, dela não — minha mãe diz, e o garçom
volta sua atenção para ela, explicando como funcionam as
coisas.
Tiro o celular da bolsa checando a repercussão de uma
publi que postei ontem nas minhas redes sociais, mas não
consigo entender o que é notificação sobre o meu reels e o
que é marcação em coisas sobre Guilherme.
— Vamos pedir o rodízio, filha?
— Claro, mãe, é ótimo — respondo sem nem ouvir
direito.
A primeira coisa que faço é arquivar meu post fixado:
O famoso “Quem sou eu?” com uma pequena apresentação
e uma música da Vicious Bonds como trilha sonora. Tem
cinco semanas que isso acabou e, mesmo que eu quisesse
deixar claro que o término aconteceu apenas depois de
Guilherme sair do Brasil — para evitar o burburinho —, meu
senso de autopreservação grita mais alto.
Depois volto e quase apago nossos posts, mas decido
arquivá-los. Um após o outro, eles vão desaparecendo do
meu feed e, por fim, meu último trabalho é ativar a opção
de aprovar minhas marcações.
Enquanto minha mãe acerta as bebidas com o
garçom, envio uma mensagem para Luana. Peço que ela
informe à equipe de mídias sociais que posts que
mencionem Guilherme ou a Vicious Bonds devem ter a
marcação reprovada a partir de agora.
— Aparentemente eu vim para cá ficar fazendo nada,
né? — Minha mãe apoia o queixo na mão esquerda sobre a
mesa e me estuda com um biquinho metido.
— Não. Eu tava só… — Respiro fundo antes de dizer:
— Apagando minhas coisas com Guilherme das minhas
redes sociais — confesso e olho para ela.
— E como você está com isso?
— Em apagar as fotos?
— Não. — Ela ri, como se eu estivesse sendo ingênua.
— Com não estar com a pessoa que você ama.
Ama.
Ela bate, e bate para doer.
— Eu não amo o Guilherme, mãe. — As palavras saem
tão amargas, que bebo um gole da água da casa.
— Não? Porque, sabe, eu estive pensando… — Dona
Tati passa a mão acima da orelha por hábito, esquecendo-se
de que não tem mais cabelos compridos. — Entendo que
doa, que você tenha se sentido traída e morrido de raiva —
pontua no maior estilo “isso tudo é mentira, estou apenas
preparando terreno” que toda mãe carrega dentro de si. —
Então, o rancor é compreensível. Mas o que exatamente te
fez desabar no choro diante de mim, tanto que nem
conseguia ficar de pé, sendo que o que seu pai fez acabou
apenas com seu namorinho adolescente para o qual você
nem liga mais? — Seus olhos nos meus não permitem fuga.
Nem mentiras, então eu respiro fundo.
— Acho que ter vivido um fim de semana tão incrível
com o Gui e a família dele — digo, dando de ombros e
devolvendo o copo à mesa. — Ou tudo o que a gente viveu
de verdade em meio à mentira — confesso, e o canto direito
da boca dela se curva num meio sorriso.
O garçom chega com nossas entradas e duas cocas.
Agradecemos, e ele se vai, e eu quase tenho esperanças de
mudar de assunto, mas mamãe dispara:
— Então “a gente” teve verdades? — Ela finge
surpresa e, sob a sobrancelha erguida de dona Tati, me
preparo para contar tudo de novo.
Agora, sem a cortina do ódio e do rancor, porque,
mesmo que tenha acabado, foi bonito em alguns
momentos, foi especial.
Então sorrio com as lembranças, desde a casa na
praia até a forma como me senti quando caí em cima de
Guilherme e quando ele sorriu para mim. Falo sobre nossa
conversa, a foto que ele postou e meu primeiro café com os
meninos, sem esquecer de mencionar a cena de ciúmes
dele com o Rick dessa vez!
Depois conto o quanto eu tentei fingir. Mentir para
mim mesma, dizer que não sentia nada e levar nossos
jantares, cinemas, encontros num geral como algo
profissional. Afinal, é a mídia, a grande maioria dos casais
favoritos de todo mundo nem existe de verdade, nós
seríamos apenas mais um relacionamento de contrato para
um fim: A manutenção das nossas imagens.
Só que sem o contrato.
Olhando para trás, penso que talvez um contrato teria
nos dado limites.
Mas acho que nenhum de nós dois queria limites,
então conto o nosso primeiro beijo de verdade, e até me
exponho para ela falando sobre ter montado em Guilherme
e tê-lo beijado como se fosse morrer no fim da noite, porque
bem, é a verdade.
Dona Tati me observa por alguns instantes e diz que
esse tipo de fingimento está fadado a se tornar realidade na
grande maioria das vezes e que, só de ver minhas fotos
com Guilherme no dia do show, já tinha começado a se
preparar para o pior. “Tava na cara que vocês não
conseguiriam só fingir.” Por fim, ela menciona que ficou
passada quando viu a foto, o sinal de que os medos dela
tinham se tornado reais.
Mas depois de algum tempo percebeu que era só
inveja “Quem me dera um pretinho gostoso para montar de
vez em quando”, ela fala me chocando, então volto para o
meu pretinho gostoso.
Assim, chego no meu momento favorito. Nosso dia na
minha casa, o filme, o carinho, o cuidado, e ele dormindo
comigo, todo preocupado com a minha cólica e depois… A
ligação e eu percebendo o quanto ainda gostava dele, a
viagem de carro, ele me consolando por causa do papai e
me chamando de Princesa pela primeira vez novamente, e
todas as coisas que ele fez no meu coração naquele fim de
semana.
Todas as formas que me ensinou a voar, que me fez
sentir como se o mundo fosse um lugar que nos coubesse,
mas aí…
— Sem “mas” Beatriz, vamos segmentar o assunto. —
Ela me interrompe erguendo a mão e limpando os lábios no
guardanapo depois de beliscar umas bolinhas de camarão.
— Por que você não me disse nada disso antes?
— Porque eu sabia que você não aprovava e tinha
certeza de que era coisa de momento — rebato de pronto,
bebendo metade da coca em seguida. Pode não ser uma
caipirinha, mas o gelo e o limão combatem o calor do
mesmo jeito. — Me permiti ir dando sempre um passo a
mais porque não tinha como durar; ele vai embora, e isso
era como minha linha de segurança.
— Segurança contra o amor? — minha mãe pergunta
e ri, sua gargalhada bem no meio da minha cara. — Minha
filha, se você ama esse garoto, o que te faz pensar que ele
ir embora é a melhor coisa que pode acontecer com você?
— Ele já foi uma vez, e eu sobrevivi, não seria a coisa
mais absurda, sabe? — Coloco dois dados de tapioca na
boca de uma vez. Como se isso pudesse me impedir de
falar.
— Entendi. Realmente, entregar seu coração para um
cara que já te magoou e esperar ele ir embora para você
ficar… magoada de novo. — Ela abre um sorriso enorme,
que só não é maior do que a sua ironia. — Faz muito
sentido.
— Mãe, por favor, tem uns cinco dias que eu consigo
falar disso sem chorar. Foi difícil para mim, demais, olhar
para ele naquele quarto, ver o quanto ele sofreu, sentir o
maior dó do mundo e querer abraçá-lo e dizer que estava
tudo bem, porque ele era novo e não sabia exatamente o
que estava fazendo.
— E o que te impediu? Orgulho?
— Não. Seria muito fácil falar isso para ele se eu não
fosse a outra parte interessada. — Dou de ombros, com
mais um gole em minha coca. — A questão é que não
importa qual caminho eu decido tomar, o lugar que chego é
sempre o mesmo: Ele teve uma escolha, e eu não. — Coloco
o último dos dadinhos na boca.
Falei e falei, e minha mãe comeu e comeu.
— E você acha que nunca vai perdoá-lo?
— Se tem uma coisa que eu percebi nos últimos
tempos é que é perfeitamente possível você perdoar uma
pessoa e amar essa pessoa, de todo o seu coração, e, ainda
assim, não conseguir ignorar toda a dor que ela te faz
sentir.
— Acho que existem casos e casos. — Mamãe afasta o
corpo da mesa ao avistar outro garçom se aproximando, nos
oferecendo um contrafilé lindíssimo com um dedo de
gordura. Quando o homem se vai, dona Tati corta um
pedaço da carne e para com ela entre o prato e a boca. — É
um tanto quanto triste condenar um rapaz a nunca estar
com a pessoa que ele ama, por causa de um erro. E porque,
sei lá, eu escolhi o marido errado…
— Mãe!
— Mas, é um direito seu, a vida é sua. — Me ignora,
comendo seu pedaço de bife e gemendo com o gosto. Me
apresso em fazer o mesmo, e me agradeço por isso, está
uma delícia e no mal passado, o único ponto certo. — No
entanto, é muito mais triste se condenar a perder um amor.
— Então, pela senhora, eu largo tudo aqui, vou para
Bahia e invado o palco para dizer que o amo e o quero de
volta apesar de tudo?
— A gente ama as pessoas apesar das coisas, não por
causa das coisas, Beatriz — ela diz, com um suspiro, falando
sério e sem deboche ou ironia pela primeira vez na noite. —
Eu estou com ódio do seu pai, mas ainda o amo. E eu o amo
apesar dele ser um branquelo elitista safado, não porque
ele era um.
— Eu sei — sussurro, porque sinto o mesmo, e ainda é
complicado demais lidar com isso.
— Então, também sabe que eu não quero que você
faça ou deixe de fazer algo baseado no que eu estou
falando, minha filha. — Mamãe passa outro pedaço de bife
pela farofa. — Só estou dizendo que se tu está sentada num
restaurante com a tua mãe, mais de um mês depois de ter
visto esse garoto pela última vez, mas sabe exatamente
onde ele está e sabe o que faria se fosse atrás dele… — Ela
se cala, erguendo as sobrancelhas e joga a carne na boca.
— A única coisa que você faz se mantendo longe desse
garoto é sua esperança de tomar veneno querendo que ele
morra.
— Eita, como tá filósofa — resmungo, abrindo espaço
para dois garçons que se aproximam e nos servem. Carne
de cupim e linguiça toscana dessa vez. — Mas a senhora
está certa. Eu gosto dele — confesso, vendo os garçons
irem embora. — Só que ainda dói, não posso querer
controlar as coisas e encaixar no prazo de duas semanas
uma loucura desse tamanho. — Menciono o prazo que eles
ainda têm no Brasil. — Se eu me arrepender depois, entro
num avião e vou, hum… a Portugal atrás dele — digo com
um risinho sem graça, porque sei que dona Tati vai me zoar
por eu conhecer a agenda da Vicious Bonds tão a fundo.
— É, agora é esperar que o “tempo” de vocês na avó
dele tenha sido bom o bastante para ele te esperar por mais
quatro anos — ela conclui, e eu entendo o tempo entre
aspas.
— Meu Deus, Mãe. — Solto os garfos, levando as mãos
à boca, e ela começa a gargalhar. — Vamos só comer, foi
isso o que a gente veio fazer aqui, lembra?
— Claro que lembro, e está tudo divino, você acertou
na escolha.
— Eu sei. Vim aqui com o Guilherme — respondo, e ela
faz menção de dizer alguma gracinha. Mas enfio minha cara
no prato e finjo não ouvir quando ela faz comentários
engraçadinhos e proibidos para menores.
A noite está agradável, é bom conversar com a minha
mãe honestamente e deixar claro, tanto para ela quanto
para mim, que sei o que sinto por Guilherme.
Em contrapartida, também foi necessário arquivar
aquelas fotos e me permitir me desconectar dele e de tudo
o que fomos. Se algum dia as coisas mudarem e eu pensar
em tentar outra vez, quero que seja de verdade, não parte
de algum plano megalomaníaco de limpeza de imagem para
nós dois.
E é justamente por isso que, quando uma fã pergunta,
no estacionamento do restaurante, onde está o meu
namorado, a única resposta que posso dar a ela nesse
momento é a verdade:
— Acho que sei sobre quem você está falando, mas
não tenho uma resposta pra te dar. Porque eu não tenho
mais um namorado — digo, e sorrio, dando um tchauzinho
para ela antes de entrar no carro com a minha mãe e deixar
essa parte confusa da minha vida para trás.
Pasmei.com.br
Fim do conto de fadas 2.0?
O relacionamento de Beatriz Lopes e Guilherme
Almeida, casal sensação no início dos anos 2020, que teve
seu retorno visto por toda a internet nos últimos meses,
chegou ao fim.
Se não pudemos contar com nenhuma declaração que
assumisse esse relacionamento no início — apesar de beijos
e demonstrações de afeto em público —, na noite do último
sábado, Beatriz deixou claro, com todas as letras, que esse
relacionamento chegou ao fim.
Resta saber o que o líder da boyband que está
arrastando o público brasileiro por todos os estados que
passa fez dessa vez.
Será que seria possível, para um público que já se
decepcionou com o astro, resgatar o amor por ele, caso
Guilherme tenha partido o coração de Beatriz outra vez?
Capítulo 35
Ou: Você nunca vai ser minha, mas eu sou para
sempre seu.
Guilherme
“Porque eu não tenho mais um namorado.”
Duas semanas.
Custava ela esperar duas semanas antes de dizer para
todo mundo que não somos nada?
Como ela pode oficializar quando nem me deu uma
chance de consertar as coisas?
Como teve coragem de fazer uma coisa dessas?
Mas eu já tenho a resposta para todas essas
perguntas.
A Bia simplesmente não podia se enganar, se trair ou
se despedaçar mais.
Talvez eu nunca vá conseguir colocar em palavras o
quanto me arrependo de ter magoado minha Coisinha, mas
ler as palavras dela foi a última pá de areia no meu coração,
que já tinha ficado abalado antes de subir neste mesmo
palco na noite de ontem, quando ela deletou, novamente,
todos os nossos posts juntos.
É difícil ficar sem quem a gente ama.
Dói ser esquecido.
Mas pior do que todas essas coisas é o fato de que eu
sei que a culpa é minha.
Eu poderia ter evitado, poderia ter transformado
aquele último pedido em uma conversa, em qualquer coisa
que não fosse eu decidindo a vida da garota que eu amava
da pior maneira possível.
— E agora… — A voz de Richard invade meus ouvidos,
em português, e, como acontece todas as vezes que ele fala
nosso idioma, a plateia vai à loucura. Mas o que chama
minha atenção, no entanto, são as fãs na frente do palco
me observando com os rostos confusos. — Apresento, a
vocês, a nossa banda! — Richard grita, e eu o encaro sem
entender, já que quem faz essa parte do show sou eu. Mas
meu baterista encolhe os ombros como se tentasse me
dizer algo.
— Tudo bem, cara? — Thomas puxa o retorno no meu
ouvido direito e grita.
— Por que não estaria?
— Cê parou de cantar no meio da música. O A.J.
finalizou.
— Quê?
— Você não tá bem mesmo hoje, né?
Desvio o olhar antes de responder. Observo o mar de
gente vibrando até que eu os perca de vista. Cores, gritos e
rostos chorosos ou extremamente felizes me fazem deixar
um riso bobo escapar.
Pego uma garrafinha d'água, bebo metade e molho o
rosto com o que sobra, o calor é insustentável, e acho que
posso tentar me enganar com isso.
— Tá muito quente hoje, minha cabeça não tá
funcionando direito — grito para Thomas, que assente me
olhando de cima a baixo pela mentira, mas viro o rosto para
Richard.
O baterista pede para que a plateia dê ao menos um
pouquinho do amor que reservaram para a gente para
nossos músicos de apoio, que nos seguram o batente para
que entreguemos um show perfeito. E, em seguida, pede
palmas para o time de backing vocals.
— Não estou nada bem. — Me volto para Thomas. —
Ainda bem que é domingo, e eu vou ter a semana inteira
para me recuperar — digo e, antes que ele possa rebater
que não vou me recuperar de nada, e que ficar trancado
com o Elvis não é vida, Rick se aproxima de nós.
— Mais um pouco de noise para a nossa magnífica
banda. — Richard não diz a palavra barulho em português
porque o LH é um problema para ele, e sacode o cabelo
vindo em nossa direção. — Aqui temos o maior baixista da
geração, o cara que abriu mão da guitarra e do violão cedo
demais, mesmo sabendo que eles davam mais grana. —
Rick joga a mão nos ombros de Thomas enquanto A.J. se
aproxima me dizendo com o olhar que precisamos
conversar. — Posso ouvir vocês gritando pelo homem dos
dreads de ouro? — Rick berra no microfone e dá um passo
para trás, deixando Thomas ser ovacionado. Em seguida, se
vira e anda na direção de A.J. — Toda banda tem o seu
membro mais velho e mais responsável, e toda banda tem o
seu… — Rick vira o microfone na direção do público.
— Gostoso! Gostoso! Gostoso! — elas gritam, e
Richard se abaixa no palco, jogando o cabelo para trás e
pondo o microfone no chão.
Ele tira a blusa, jogando-a na plateia, e Thomas joga
os braços nos meus ombros e nos de A.J., colocando o rosto
no meio de nós.
— Ele é sempre exibido assim? — Meu melhor amigo
grita no microfone.
— Só quando está perto de mulheres bonitas — eu
respondo no microfone de A.J.
— Lindo! Tesão! Bonito e Gostosão!
— Opa, calma aí! — Richard, que já sabe o que essas
coisas significam e sabe que elas brincam assim por ele ser
o idoso do grupo, retoma o microfone e se levanta. — Vou
pedir o silêncio de vocês, calma, Vagabonders, já vou fazer
vocês gritarem de novo — ele diz, num tom sugestivo e nem
seu sotaque deixa a frase menos atrativa para o público. —
Erro meu, já vou deixar vocês gritarem outra vez — finge se
corrigir. — Mas, agora, silêncio. — Rick espera
pacientemente até que elas se calem, o que leva mais de
um minuto. — Vim apresentar vocês ao nosso membro mais
jovem. E vocês gritaram “gostoso” para ele. Mas de repente
começaram a gritar várias outras coisas, era para ele ainda,
ou para mim? — Rick provoca e os poucos momentos de
silêncio que tivemos são completamente engolidos por
gritos alucinados.
Ele nos encara rindo.
— Bom, eu vou aceitar que os elogios são para mim e
apresentar vocês ao nosso Golden retriever, A.J Fortin — ele
diz, e A.J. faz uma reverência para o público, indo para trás
de mim em seguida. — Agora, por último, mas não menos
importante. O solteiro mais cobiçado do mundo, pessoal! —
Ele grita, e eu gostaria de me sentar atrás do palco e chorar.
Mas não posso, então só jogo beijo para as meninas e faço
meia reverência.
Antes que eu termine de me levantar, a plateia grita
por Richard, que não foi apresentado.
— Faltou alguém? — A.J. pergunta para Thomas, e as
meninas seguem gritando, e eu coloco a mão no ouvido
como se ela me ajudasse a escutar melhor.
— Um velho ranzinza muito gostoso? — pergunto, e
elas voltam a chamá-lo de Lindo, Tesão, Bonito e Gostosão.
— Richard Parker, VagaBonders, da Vicious Bonds, para
vocês! — grito, como se não tivesse ficado parado diante de
todo mundo há alguns minutos.
— Obrigado, Salvador — A.J. se atropela com um
simples “al” e também no “or”. Mas as meninas adoram
quando falamos o idioma local, então ele corre até o outro
lado do palco e dá boa noite novamente.
Pode parecer repetitivo fazer isso três vezes por
semana, todas as semanas, durante quase cinco meses,
mas a gente ama.
Os gritos nos energizam, os choros mostram que
estamos no caminho certo e a reação delas a cada novidade
é o gás que sempre precisamos para continuar.
A.J. para bem no meio do palco e entendemos nossa
deixa para ir até ele.
— Nos vemos na próxima turnê, Bahia. A Vicious
Bonds não poderia sair daqui mais feliz! — Thomas diz em
inglês e, olhando para nós, finaliza: — Vocês foram a plateia
que sempre sonhamos que vocês seriam! — Ele desliga o
microfone e joga-o no chão.
Parados um ao lado do outro, damos as mãos e
fazemos três reverências antes de deixar o palco.
Quando saímos, as frases “Eu não tenho um
namorado” dita por Beatriz e “Solteiro mais cobiçado do
mundo” ainda ecoam em minha mente.
Enquanto corremos até os camarins, paro na porta de
Richard e seguro a maçaneta, impedindo-o de entrar.
— Perdeu alguma coisa lá dentro? — ele me pergunta,
limpando o suor da testa com a mão.
— A gente precisa de um estúdio.
Os olhos do meu baterista se iluminam no segundo
que ele ouve as palavras.
— Música nova? — O sorriso em seu rosto não
esconde a adrenalina.
— Música nova — confirmo assentindo, e seu sorriso
se alarga como se essa fosse a melhor notícia que eu
poderia dar.
— Vamo comer alguma coisa e se hidratar enquanto
Alex e a equipe arrumam um estúdio pra gente — Rick diz,
empurrando a porta quando tiro minha mão da maçaneta.
Entro no camarim do meu parceiro de composição na
penúltima semana de turnê, sabendo que, pela primeira vez
em três anos, tenho algo além de meias verdades para
compor.
Capítulo 36
Ou: Me diz, Taylor Swift, se a história acabou,
por que ele ainda está escrevendo?
Beatriz
Eu tinha certeza de que fazer uma declaração pública
sobre o “término” com Guilherme me traria paz; estava
ciente, é claro, de como as pessoas lidariam com a
informação — monetizariam ou a transformariam na maior
notícia do fim de semana — mas, ainda assim, precisava
fazê-la.
Foi um movimento planejado. Saí de casa com dois
propósitos: Expor nosso término e deixar claro que nada de
ruim tinha acontecido, as coisas só… acabaram, da maneira
mais amigável possível. Ainda assim, eu sabia que
tentariam distorcer minhas palavras, mas era meu papel
terminar dessa vez e, apesar do mundo ter se transformado
em um caos, eu fiquei em paz.
Principalmente porque eu e Luana já tínhamos
preparado uma nota amigável e respeitosa enfatizando o
conflito de agenda como motivação principal do
afastamento. E, em vez de simplesmente torná-la pública,
esperamos a reação da imprensa ao meu comentário para
liberá-la. Assim, ficou quase impossível tentar distorcer as
coisas.
Confesso que passei dois ou três dias esperando
algum retorno de Guilherme. Alguma mensagem, qualquer
coisa, mas nada veio. Acho que teria retornado dessa vez.
Ou respondido e deixado claro que não o odeio, só não tinha
mais sentido seguir com a farsa.
Contudo, nada disso aconteceu.
Durante toda a primeira semana, precisei me reajustar
a uma rotina sem minha mãe. Decidi ignorar as redes
sociais e qualquer contato com o mundo externo, as únicas
exceções seriam Nina, Luana e Guilherme. Afinal, mesmo
começando como uma mentira, aquilo era um fim de
namoro real, e eu estava na fossa. Merecia um pouco de
privacidade.
Mas o contato dele nunca chegou, e foi melhor assim.
Na semana passada, abri mão da rotina “de casa para
o trabalho, do trabalho para casa”, e isso facilitou o início da
minha adaptação a uma vida sem encontros com Guilherme
ou a companhia constante de dona Tati.
E, diferente do que minhas ansiedades me diziam, não
foi a coisa mais difícil do mundo.
Na segunda-feira, por medo do que as páginas de
fofoca diriam, tranquei o celular no quarto e fui trabalhar
sem ele. Ao chegar, tomei um banho, fiz o jantar e comi
assistindo séries velhas do Disney Channel no streaming.
Na terça, finalmente parei para dar atenção às redes
sociais. Postei stories de boa noite direto da janela da minha
casa e uma foto dos bastidores da novela comemorando os
dois meses dela no ar, no feed.
A quarta-feira chegou, e eu continuei não consumindo
redes sociais, apenas atualizando a minha e aceitei que a
ignorância é uma benção. Gravei pela manhã, tive uma
reunião com a Luana no fim da tarde e assinei três dos
quatro contratos de publicidade que ela tinha para mim.
Quinta-feira decidi responder alguns comentários na
foto dos bastidores e nada sobre meu término ou Guilherme
estava com destaque na postagem. Claro que esses
comentários existiam, e eu agradeci à minha equipe de
social media por os ter banido do meu feed, assim como
estarem filtrando minhas marcações.
Foi uma semana boa, pacífica e calma. Consegui
manter a cabeça no lugar, saí com alguns colegas de
trabalho na sexta e descansei ontem o dia inteiro, já que as
gravações estão mais intensas do que nunca. Minha
personagem quase morreu, mas, quando voltou, veio com
tudo.
Depois de um sábado de preguiça com filmes de ação,
pipoca, chocolate e grandes performances de atuação
baseadas na minha playlist, bati na cama ontem, uma da
manhã, certa de que as coisas estavam entrando nos eixos.
No fim das contas, quinze dias se passaram desde a minha
declaração, outro escândalo no mundinho dos famosos ou
das subcelebridades já aconteceu, e ninguém, além dos
nossos fandoms, lembra mais do nosso namoro nunca
assumido.
Justamente por isso, quando me deitei para dormir, o
fiz com a certeza de que tudo estava bem.
Mas, se está tudo bem, porque eu tenho mais de
sessenta chamadas perdidas, duzentas e nove mensagens
para responder no WhatsApp e meu nome é a coisa mais
falada do Twitter, seguida por um #GuiBia?
Me levanto com a mão no peito na tentativa de
acalmar o ardor angustiante, e todas as piores coisas do
mundo passam pela minha cabeça. Começo a questionar,
inclusive, vazamento de nudes, e eu nem tiro fotos sem
roupa!
Ando pelo quarto enquanto minha mente vai à única
coisa que pode ter acontecido de verdade: Guilherme falou
sobre nós.
Deixou claro que, dessa vez, fui eu quem terminou e
foi embora.
Por mais que ele tenha o direito de fazer isso, preferia
que ele tivesse falado comigo primeiro. Mas o que está
feito, está feito.
Respiro fundo, pegando a garrafa d’água que está
sempre na minha cabeceira e me sento na cama
novamente. Desbloqueio a tela do celular e corro os dedos
pela tela rolando as conversas até a única que vai me
ajudar.
Quando a abro, no entanto, vejo uma mensagem.
Uma única mensagem que faz meu peito parar por
alguns segundos.
Principezinho: Bia, eu juro para você, por tudo o que
há de mais sagrado, que não publiquei essa música.
Fecho os olhos imediatamente, pensando no que
acabei de ler.
Existe uma música.
Uma que virou o mundo de cabeça para baixo.
E Guilherme quer me convencer de que não foi ele
quem a trouxe a público.
Abro a conversa de Nina e tem tantas mensagens,
figurinhas e surtos que nem sei como começar a ler, então a
fecho. A conversa com dona Tati tem nove mensagens, e
acho melhor nem abrir.
Observo a barra de notificações por um tempo, tantas
que mal é possível contar.
Quase bloqueio a tela, mas não o faço.
Quase ligo para Guilherme, porém me seguro.
Por mais que eu tente me enganar, sei que quero
saber o que o Twitter está dizendo, o que a página oficial da
Vicious Bonds declarou e o que diz essa bendita música.
Paro os dedos a uma distância segura da tela, será
que ele escreveria uma música ruim sobre nós? De ódio?
Rancor? Mas o “não” chega rápido à minha mente. As
mensagens de Nina teriam um tom muito diferente das que
meus olhos percorreram.
Jogo a cabeça para trás me deitando na cama e faço a
única coisa que posso fazer: Pesquiso a música no Twitter.

Hey there, I hear your words, your anger's fierce.


Your heart is stinging, I'm not this dumb, I know what
I've made
And Even though I've been silent, now I'm kneeling
It wasn't my fault, That was bigger than us
Please, tell me we're not done.

I'm sorry for the tears you've shed


For the nights alone in your bed, I'm sorry for the
silence
that broke us apart
But deep in my soul, you're still in my heart

I never meant to hurt you like I did


My silence just made everything worse
But now I'm here, baring my soul
Hoping against hope to make us whole
Cause I still love you.

So take my hand, give me one more chance


Cause, Princess, you're my universe
And you know you love me just the same

I never meant to hurt you like I did


My silence just made everything worse
But now I'm here, baring my soul
Hoping against hope to make us whole
Cause I still love you.[10]

A letra, a melodia, a voz… Tudo arde em minha


garganta.
Deixar essa música vazar é, sem dúvida, a pior coisa
que Guilherme poderia ter feito agora. Fecho os olhos,
pressionando-os tanto que um brilho intenso reflete por trás
das pálpebras.
A voz de Guilherme, bem mais cansada que de
costume, denuncia a bateria de shows que a banda está
fazendo. Ainda assim, é uma canção tão sincera, honesta e
dolorosa, que eu ainda não tinha chegado no refrão quando
meus olhos arderam. Antes mesmo que ele acabasse, meu
peito doía tanto que minhas lágrimas transbordaram e, nas
duas vezes que ele falou “Hoping against hope”, as lágrimas
silenciosas ganharam a companhia de um soluço.
Porque Hoping against hope significa mais do que o
literal “Esperando contra a esperança”, significa nunca
desistir, mesmo quando as probabilidades estão contra
você, ou esperar por algo, mesmo quando for
definitivamente improvável.
Suspiro algumas vezes, tentando controlar a
respiração e segurar a cascata de lágrimas que desce dos
meus olhos. Por mais que eu tente, parece impossível tirar
de dentro de mim tudo o que ele disse na letra. É como uma
gota de sangue que cai na água, manchando-a para
sempre.
Ouvir a voz sôfrega e desesperada de Guilherme,
dizendo que ainda me ama, traz mais esperança do que
medo ou repulsa, e eu me odeio por isso.
Já odiava o quanto sinto falta dele nos meus dias e
odiava cada pedacinho de mim que fugia da internet, não
para não ver coisas sobre mim, mas para não ver nada
sobre ele.
Odeio que o passado não impeça o que ainda sinto por
ele de me inundar.
Odeio o fato de não ter permitido que Guilherme
dissesse que me amava todas as vezes que sentiu vontade
quando estávamos juntos na dona Madalena.
Odeio como, de tudo o que eu odeio sobre ele, a
forma como o amo com todo o meu coração, fraco,
quebrado e remendado, é a coisa mais verdadeira que já
senti.
Mas, mesmo que eu tente, não consigo fingir que as
coisas que aconteceram, simplesmente, não aconteceram.
Com os olhos ardendo em lágrimas, fecho a página da
música, abro o discador do celular e faço a única coisa que
eu poderia fazer agora:
— Você já viu? — Nina atende no primeiro toque.
— O que eu faço com isso, amiga? — pergunto,
sentindo outra lágrima escorrer e abraçando meus joelhos
com ainda mais força porque, dessa vez, quando meu
coração dói, ele não sofre por dor, raiva ou rancor.
Ele só sente saudades.
@ViciousBondsBrasil
This is música!
Sabíamos que o relacionamento entre o nosso líder e
sua princesinha era uma história que valia a pena ser
ouvida.
Mesmo quando todos ainda estavam contra ele, antes
da V.B. vir para o Brasil, nós, fãs que lutávamos com
Guilherme Almeida nas trincheiras desde o fim da GenZ,
tínhamos certeza de duas coisas:
1 – Toda história tem três lados: A verdade, a mentira
e o que as pessoas se convencem de que é verdade para
escolher a quem culpar.
2 – Não é porque um relacionamento acabou que
precisa ter um culpado na história.
Gui e Bia viveram três anos de um relacionamento
invejável no início e agora, com o revival, ficou ainda mais
claro que o que os fez terminar não foi nenhum tipo de
traição da parte dele. Nem mesmo o abandono que todo
mundo alegava, alguma coisa aconteceu.
O que aconteceu? Não cabe a nós questionarmos
neste momento.
Eles sabem, e isso é o suficiente.
O importante agora é lembrar de quando a Bia falou
que eles tinham terminado, na ocasião ela não deixou
nenhum sentimento ruim à mostra, nenhuma das análises
comportamentais feitas nos canais de YouTube sobre o
assunto indicaram que ela estava com raiva do Gui ou algo
do gênero. E a nota da assessoria dela deixava claro que
eles não tinham brigado, além, é claro, de ela continuar
seguindo nosso vocalista no IG.
Com o vazamento da música, que a gente escolheu
chamar de “I Still Love You”, podemos ter certeza de que a
história desses dois, contada nos dois CDs da Vicious Bonds,
ainda vai ter um terceiro ato no V.B. 3 e, talvez lá, a gente
consiga identificar porque nosso menino carrega tanta culpa
se o término aconteceu por algo maior que eles.
Beijinhos,
das suas Vagabonders Favoritas
Capítulo 37
Ou: Vou matar meu baterista.
Guilherme
Alex: Quando seu gerente de turnê te pedir pra deixá-
lo resolver as coisas na Europa, escuta o cara. Vai ser
melhor pra todo mundo.
Alex: Não dá entrevista, não posta nada, não faz o
mínimo movimento, pelo amor de Deus, ou sua irmãzinha e
a equipe de relações-públicas vão dar um escândalo.
— Ótimo, mensagem do Alex, tudo o que eu precisava
agora. — Coço a testa, levantando do sofá e entregando o
celular a Thomas, que lê as mensagens enviadas por Alex
no meu privado.
A.J., apoiado na parede que divide a sala e a cozinha,
tosse, chamando minha atenção.
— Cara, tá tudo estranho nesse último fim de semana
de shows — A.J. coça a garganta enquanto passo por ele. —
Me traz um copo d’água?
— Cê tá doente? — pergunto entrando na cozinha do
flat.
— Não doente, tem algo na minha garganta. Falei com
Alex logo que acordei, e ele já chamou um médico, eles
devem chegar juntos — tenta me tranquilizar por cima do
ombro, mas a tosse no final dificulta sua performance.
— Ótimo!— Respiro fundo, servindo água direto do
filtro para nós dois. — A última coisa que a gente precisa é
começar o show sem o dueto. — Entrego o copo a ele, que o
bebe de uma vez.
— Ela falou alguma coisa? — Thomas pergunta,
sentado na poltrona à esquerda do sofá, de frente para a
porta de entrada, e eu nego.
Mas pego o celular de sua mão e passo o olho pelo
aplicativo de conversa, das centenas de mensagens que
recebi, nenhuma é da Minha Coisinha.
Atualizo o perfil de Beatriz no Instagram atrás de
alguma notificação, mas Beatriz segue em silêncio. E leio e
releio a postagem da @ViciousBondsBrasil. Eu poderia pedir
às meninas para a retirarem do ar. Mas é tarde demais. A
música foi postada no YouTube às quatro da manhã e, antes
das nove, já tem sete milhões de views.
Perdi as contas de quantas pessoas chorando
gravaram os próprios rostos e jogaram sua teoria sobre
nosso término em vídeos no TikTok, mas o contador da
plataforma diz que mais de oitenta mil vídeos foram feitos.
Compus essa música com Richard, na madrugada do
último sábado, depois do show. Eu, ele, um teclado e um
violão. Passamos menos de duas horas num estudiozinho
básico. Ninguém sabia da existência dessa música, então
pensar que ela vazou me faz querer processar o estúdio em
três instâncias diferentes.
— Cara, eu tô tão puto. — Respiro fundo e me jogo no
sofá. — É nossa última semana no Brasil, última. Tinha dado
tudo certo até aqui, as Vagabonders realmente abraçaram a
gente, tudo saiu muito melhor do que a gente esperava, e
nem o término fez as pessoas voltarem a me odiar. Agora
isso acontece, não é possível!
— É só uma música. — Thomas prende o cabelo em
um coque, tentando amenizar as coisas, mas todo mundo
nessa sala sabe que as fãs acampadas na frente do prédio
não querem uma foto nossa, elas querem ouvir de mim o
que aconteceu. — Talvez a sua melhor até agora, mas um
dia as pessoas vão esquecer.
— Uma música cheia de coitadismo, não quero
manchar minha carreira, mas também não quero atrapalhar
a da Bia — verbalizo meu maior medo.
Não quero que isso afete Beatriz de jeito nenhum, mas
principalmente de maneira profissional. Não compus a
música para pagar de sofrido e colocá-la no mundo, não
quero que as pessoas joguem hate nela, como jogaram em
mim no passado.
— Calma, as meninas da V.B. Brasil já fizeram uma
postagem boa o suficiente para contornar a situação. — A.J.
limpa a garganta ao meu lado, e eu inclino o pescoço em
sua direção erguendo a sobrancelha.
— A.J., era uma coisa pessoal! Nem o Thomas, que é
meu melhor amigo, sabia da existência dessa música. Ela
era minha e só minha. Não existe uma situação aqui, existe
o fato de que eu e Rick usamos um estúdio, e a música foi
vazada.
A.J. desvia o olhar, e Thomas limpa a garganta se
inclinando para a frente.
— O Rick, aquele que é amigo da sua garota e queria
muito que vocês ficassem juntos… estava com você
gravando a música que foi vazada? — meu amigo pergunta,
apoiando os cotovelos nos joelhos.
— Estava, Thomas — digo irritado e me perguntando
onde Richard está. Mandei mensagem no grupo da banda
quando essa bomba estourou, e até agora nada. — Você
sabe que a gente compõe junto.
— O Rick não… vazaria a música, né? — Thomas
pergunta no segundo que nosso baterista abre a porta do
meu apartamento, e eu respiro aliviado por ele chegar aqui
antes de Alex.
— É claro que nã…
— Eu tive que vazar a música. — Rick entra na sala, e
eu largo o celular no sofá.
Voando para cima dele em seguida.
— Quer me fuder, me beija, Richard — grito com a
visão turva de raiva. Ele desvia de um soco sem entender o
que eu disse, e segura minha esquerda no ar. Thomas, A.J. e
até Elvis, que estava no quarto, aparecem para me afastar
dele.
— Por que você fez isso, cara? — Tento me soltar das
mãos de A.J. e Thomas, sem sucesso.
— Eu precisava, ou vocês nunca conversariam como
dois adultos. — Ele se recosta à porta se justificando, com a
pachorra de me encarar.
— Dá pra me soltar? — pergunto, ciente de que não
posso quebrar o nariz desse imbecil, e nossos amigos dão
um passo para trás e me deixam livre. — Não queria que as
coisas fossem assim, ia mandar a música para ela no
momento certo!
— Para! Você tá se ouvindo? — Rick pergunta, alto o
suficiente para fazer Elvis latir e pular em sua perna. —
Calma, garoto. — Ele afaga a cabeça do labrador quando as
patas batem em sua cintura. — Que momento certo?
Quando a gente tivesse ido embora?
— Elvis, pra cima! — digo ao me sentar, tentando
conter o tremor nas mãos, de tanta raiva.
— Elvis. — Thomas e A.J. gritam, deixando o cachorro
assustado, e Richard semicerra os olhos para mim como se
eu estivesse louco.
Mas Elvis é como o A.J., agitado e brincalhão, ele não
faria nenhum mal.
— Vem cá, garoto — digo a contragosto, e o labrador
se afasta do traidor.
— Guilherme, você precisa entender…
— Eu preciso entender?! Essa mulher já não olha na
minha cara, agora que você jogou no mundo um pedido de
perdão, uma música na qual eu deixo claro que algo, maior
do que nós, foi responsável pelo nosso término, ela vai me
matar — explico a ele como as coisas funcionam no mundo
real. — E eu não quero nem pensar no que os sites de
fofoca vão falar sobre ela. Eu vou te matar, Rick. — Tento
me levantar, mas A.J. e Thomas me seguram. De novo. E me
jogam no sofá, sentando cada um de um lado.
— Você gosta dela de verdade? — Richard pergunta.
Com o corpo relaxado contra a porta, as mãos nos bolsos da
bermuda e uma jogada de cabelo para a direita.
Como se não pudesse estar mais confortável.
— Que pergunta é essa?
— Gosta ou não gosta, cacete? — ele grita, Thomas e
A.J. intercalam os olhos de mim para ele agora.
— Gosto.
— Pois bem, a Beatriz também ama você.
— Ela te disse isso? — pergunto, buscando alguma
confirmação nos olhos dele.
Richard exala o ar, me encarando e dá um sorrisinho.
— Notei isso no jeito que ela te olha quando acha que
ninguém está vendo; me surpreendi com o quanto os olhos
dela brilhavam enquanto você cantava naquele Pocket
Show e a forma como ela saiu daqui feliz com você naquela
sexta-feira para ir ver a sua família, cara… eu não preciso
ouvir ela falar as palavras. E, se você precisa, é burro.
— Mas você ouviu? — pergunto, buscando algum fio
de esperança.
— Isso não importa. O que interessa é que essa
mulher te ama, que ela está aqui agora e está machucada
— responde como se eu não soubesse, e meu semblante
mostra tudo o que estou pensando agora. — Se você sabe,
faz alguma coisa. Cuida dela, toma uma atitude… Ir embora
e mandar uma música daqui a seis meses pode não ser o
bastante.
Coço a testa, processando tudo o que ele me diz, e
jogo o corpo para a frente.
— Cara, o Rick tá certo. — A.J. toca meu joelho. —
Vocês já ficaram anos separados, vão ficar mais quanto
tempo?
— Eu já tentei, tá legal? — repito o que ele já sabe. O
que todos eles já sabem. — Quando voltei de Santos, e até
hoje, quando a música saiu, ela só não responde.
— Ela quer conversar com você. — A voz de Rick corta
a sala como um trovão, e ergo a cabeça tão rápido que
poderia ter deslocado o pescoço. — Depois do show —
adiciona.
— Ela o quê? — Thomas pergunta em meu lugar,
porque estou em choque demais para isso.
— A Nina me ligou, disse que a Beatriz quer que vocês
“encerrem esse capítulo de um modo justo” depois do show.
— Como ela está?
— Querendo conversar com você — é a única coisa
que Richard fala. — De nada por ter vazado a música — diz,
batendo continência.
— Richard, não vou te agradecer por ter feito isso.
— Perfeito. — Ele desgruda da porta e bate uma
palma. — Vou usar como crédito de amizade então. Quando
eu vacilar contigo, vou te lembrar que eu fui o responsável
por você reconquistar sua mulher, e a gente fica no zero a
zero.
— Ah, claro. Com certeza.
— Você tem planos de revelar algum vacilo? —
Thomas pergunta numa provocação que trava a mandíbula
de Richard.
— Tudo bem, a gente ainda tem um show hoje. — A.J.
se levanta, tentando amenizar a situação. — Espero que
Alex não torre nossa paciência, a gente vai embora em três
dias.
— E temos o início da turnê espanhola em cinco! —
Thomas salta do sofá, puxando a blusa branca para baixo
quando ela sobe em seu corpo.
— Meu Deus, eu preciso chegar na Espanha inteiro. —
A.J. balança os fios longos. — Quem inventou essa história
de show extra?
Nós três o encaramos com o cenho franzido, mas é
Richard quem fala:
— Como eu fui o único que votou contra shows extras,
porque a gente tinha dez dias para descansar e agora só vai
ter três — Richard dá um tapa na cabeça de A.J., que se
encolhe —, acho que posso fazer isso. Agora vamos deixar o
Guilherme a sós para receber o Alex, a gente precisa chegar
na casa de shows às seis.
— Vou estar no meu quarto. — Thomas espreguiça. —
Se cuida cara, e boa sorte hoje a noite — diz, caminhando
em direção ao corredor que leva aos quartos.
— Richard, eu quero falar com você.
A.J. e Thomas acenam seguindo, e Rick volta até mim,
se sentando no sofá.
— Por que você vazou a música? — pergunto sem
entender como ele poderia ter tanta certeza de que isso
valia arriscar a reputação da banda no nosso último fim de
semana no Brasil.
Richard me estuda por alguns segundos e coça a
barba por fazer com as duas mãos antes de responder.
— Eu te conheço há anos, Guilherme. Te ouço compor
pra essa garota há anos. Sei o quanto você gosta dela,
então te ver ir embora, sem nem tentar, não fazia sentido.
— Seu rosto se contorce, como se as palavras estivessem
erradas. — Penso que, se fosse eu no seu lugar, apaixonado
por uma mulher sem saber direito como chegar nela,
gostaria que qualquer um de vocês fizesse o necessário
para me ajudar a enxergar a verdade.
— Qual verdade?
— A de que a vida pode ser boa de muitos jeitos, mas
não vale a pena sem amor — ele diz, negando com a
cabeça como se essa fosse a pior das opções e batendo
duas vezes em minha coxa antes de se levantar. — Usa a
jaqueta da banda hoje, sei que é calor, mas sua Coisinha
pode gostar dela. — Ele pisca para mim e se vira,
caminhando até a porta, e me deixa aqui sozinho pensando.
— Então a vida não vale a pena sem amor? —
pergunto para o meu cachorro velando a porta, e seus dois
latidos de negação deixam claro o que eu fingia não saber.
Capítulo 38
Ou: Sim, Taylor Swift, se me chamarem de vadia
dessa vez, vai ter valido a pena.
Beatriz
Namorei Guilherme pelos três melhores e mais
incríveis anos da minha vida.
Passei pelo inferno longe dele.
Vivi três meses de um namoro mentiroso com esse
homem.
E um de verdade por três dias.
Hoje ele se prepara para o último show no Brasil, a
terceira noite de uma semana de Shows extras no Rio, e
diferente do que eu pensei esse tempo todo:
Eu vou estar lá.
Capítulo 39
Ou: Para sempre minha garota.
Guilherme
Faltam duas horas e meia para a minha conversa com
Beatriz.
Só essa informação já seria o suficiente para fazer
minhas pernas tremerem.
Mas, além disso, em quinze minutos daremos início ao
encerramento da primeira parte “internacional” da nossa
turnê.
O último show no Brasil, é também o último show na
minha casa, e estou grato por tudo ter dado tão certo com a
Vicious Bonds aqui.
Sentado de frente para o espelho do camarim, bebo
dois longos goles d’água e sorrio enquanto vejo fotos e
vídeos das Vagabonders que estão nos esperando lá fora.
Corro o polegar pelas postagens da hashtag
#madetoneverbreakworldtour e deixo likes — que vão fazê-
las surtar — em alguns dos vídeos.
Há oito meses, decidimos que o Brasil seria nosso
primeiro destino. Ao planejarmos uma turnê longa, o
objetivo era levar os shows para além do Sudeste e cativar
mais fãs com nossa dedicação ao país. O máximo que eu
esperava era lotar os menores shows e fazer com que essa
turnê nos trouxesse público suficiente para tornar a próxima
maior.
Esse planejamento foi feito com o Victor, a gravadora,
nossa equipe de marketing e a Dani, minha irmã —
estouramos por causa da insistência dela com as redes
sociais, por isso não damos um passo sem sua opinião.
Assim que Daniele deu o aval para uma megaturnê no
Brasil, embarcamos de cabeça no projeto.
Mas nunca pensei que nosso show de abertura seria
transferido para o Maracanã, e nem em sonhos imaginei
que estaria me preparando para o nosso terceiro show
extra, que vai acontecer por demanda popular.
Arrastar multidões por onde passa é o sonho de todo
artista. Depois de um flop colossal, nós finalmente
conseguimos. Provamos para a gravadora que nossas
músicas não eram apenas canções que tocam nossas fãs,
mas que as deixam obcecadas.
Compomos o tipo mais importante de música para a
indústria: Aquele que faz as pessoas escutarem nosso
álbum de novo e de novo. Por tantas vezes que, ainda na
metade do ano, elas já sabiam: “Essa vai ser minha música
mais ouvida na retrospectiva do Spotify”.
Mas tudo isso aconteceu lá fora. Onde surgimos, com
fãs que nos acompanharam num reality semanalmente ou
que nos conheceram através das redes sociais. Ninguém
sabia quem nós éramos, o que significa que ninguém sabia
quem eu era ou do meu passado. Nenhuma das minhas
Vagabonders gringas tinha motivo para me odiar.
As brasileiras, por outro lado, tinham todos os motivos
do mundo. Portanto, ter uma agenda, que já era longa,
expandida logo no início e adicionar um fim de semana
inteiro de shows extras é muito mais do que eu esperava.
Muito mais do que meu coração medroso e afoito
ousou sonhar.
Uma batida na porta me faz parar de rolar o feed da
hashtag da turnê e erguer o rosto para o espelho à minha
frente, onde vejo a figura de Thomas entrar pela porta atrás
de mim.
— Aconteceu mais alguma coisa? — pergunto,
preocupado com a resposta; já me basta a manhã ouvindo o
esporro de Alex, a garganta de A.J. que o tirou do dueto de
abertura e a minha conversa com Beatriz de mais tarde.
Nosso labrador humano precisa de alguns dias de
descanso. Assim, vou fazer o ato de transição com a Alê e
todos os outros solos dele no show de hoje.
— Não, cara. Tudo limpo — Thomas responde,
ajustando sua gravata borboleta, e a forma como ele está
sempre vestido para o evento do ano nos nossos shows
mostra o quanto meu amigo gosta de alta costura e de se
vestir bem. — Mas, antes de tudo, eu queria saber. —
Thomas se joga no meu sofá de descanso, à direita,
cruzando as pernas em seguida. — Como você tá?
De todas as coisas que eu esperava para hoje, essa
pergunta não é uma delas.
Mas, curiosamente, não existe nada que eu queira
responder além de:
— Bem — digo, e um piano de cauda sai das minhas
costas tão rapidamente que me empertigo e giro a cadeira
para ficar de frente para ele. — Depois de muito tempo
achando que as coisas estavam bem como estavam, hoje
posso dizer, de verdade, que estou bem — confesso,
engolindo em seco o gosto amargo que ainda fica em minha
garganta quando toco nesse assunto. — A Bia sabe. Ela
pode não me perdoar, odiar minhas músicas, me detestar.
Mas agora ela sabe a verdade. — Thomas assente, mas
percebo que ainda não acabei. — Ir embora não foi a
escolha mais fácil do mundo. Sei que eu tinha opção, e optei
por desrespeitar a mulher que eu amava em vez de fingir
que aquilo nunca tinha acontecido. — Faço uma pausa para
respirar e coço as coxas, correndo as mãos para cima e para
baixo com a ansiedade que, apesar de não me consumir,
começa a dar as caras. — E, se esse erro nos custar tudo,
que seja, eu já não a tinha mais mesmo. Esse era o trato,
aliás. Mas estou feliz de poder conversar com ela
abertamente antes de ir embora.
— Então o encontro de vocês era tudo o que você
queria? — ele pergunta com um suspiro, e eu assinto. — E
você jamais admitiria isso para o Richard… — Ele não
pergunta, apenas deduz.
— Ja-mais. Mas ele não precisa saber disso, não é?
— Cinco minutos para a banda entrar no palco —
alguém da produção grita pela porta entreaberta, e nós nos
levantamos da cadeira num pulo.
— Vamos colocar o Rio de Janeiro abaixo? — pergunto
para Thomas, abrindo a porta, mas ele passa em silêncio,
negando com a cabeça, e para diante de mim:
— Vamos deixar que ele acabe com a gente hoje —
propõe, e eu acho incrível. — Esse vai ser o melhor
encerramento de turnê de todos os tempos — sussurra
enquanto caminhamos de encontro a A.J. e Richard, nos
camarins à esquerda do meu e mais perto da entrada do
palco.
— Tem certeza de que consegue tocar, A.J.? —
pergunto, orando para ouvir um “sim”, seria horrível fazer o
último show sem ele.
— Claro que consigo. — Ele me empurra com o ombro
batendo no meu. — Estou triste por não poder cantar com a
Alê, mas satisfeito porque é você quem vai fazer isso, não
estraga tudo.
A produção se junta a nós. Instalando microfones,
retornos e as pulseiras pelas quais solicitamos mais baldes
de água para enfrentar o calor infernal do Rio. Como
sempre, instalar o retorno do Rick é uma luta, porque meu
parceiro tem 1,87 m de altura. Mas temos tempo o
suficiente para ficar prontos e, se corrermos, ainda
conseguiremos acompanhar a última música da Alê.
— E, ah, a gente vai ter uma mudancinha na
iluminação do palco, coisa pouca, mas o pessoal da
produção pediu para a gente ficar atento — é Rick quem diz
com sua voz rouca e risinho de canto costumeiros, me
encarando com seus olhos verdes. Em seguida, ele me
lança uma piscadela e balança o cabelo por cima da jaqueta
de couro, e eu meio que entendo todas as mulheres do
mundo.
Também ficaria alucinado por ele se gostasse de
homens.
— Minha marcação estando no lugar, tudo certo —
consigo falar quando ele para de achar que está num
comercial de perfume em preto e branco.
— Esse é o ponto. As marcações vão ser ligadas
depois, você e a Alê vão ter refletores em vocês quando
cantarem. É coisa do Victor, ele quer testar assim para a
Europa — Richard rebate antes de rompermos as cortinas
que separam nossa área de descanso da área em que a
diversão começa.
Não entendo por que Victor quer se meter nessa
história agora, mas tudo bem. Observo Alê no meio do
palco, com seu piano e um vestido longo, como uma
boneca. Ela merece estar ali, merece dar voz à música que
ela gosta e acredita tanto quanto qualquer um de nós. Por
isso, saber que ela vai seguir com a gente para a Europa me
deixa mais do que feliz, me deixa orgulhoso da garota que
não buscou um caminho mais fácil na música.
Enquanto aquele metro e meio de pessoa arrasta a
multidão com piano, voz e violão, numa versão de Girassóis
de Van Gogh mais depressiva do que romântica, que todo
mundo parece gostar, observo A.J. Aparentemente ele gosta
mais dessa versão do que toda a plateia, e ele nem está
entendendo o que ela canta.
— Tudo bem? — grito para seu riso bobo, mas acho
que ele entende lendo meu lábio.
— Eu vou me casar com essa mulher.
— Boa sorte — rebato mais alto desta vez. — Você vai
precisar.
Alê permanece sentada ao piano, joga o cabelo crespo
de lado, encarando a multidão que aparentemente a deixa
extasiada tanto quanto a gente e, em meio ao sorriso dela,
as luzes do palco se apagam.
— Eu gosto de desafios. — Ele dá de ombros, virando
a aba do boné para trás com uma piscadela.
Com o palco escuro e em silêncio, a plateia grita por
A.J. Mas hoje elas vão precisar se contentar comigo.
As primeiras notas da música são tocadas, e o público
vai à loucura, como tem sido todas as vezes que essa
música, que o fandom brasileiro acredita que foi feita
apenas para eles — e nós jamais desmentiremos —,
começa.
Um refletor se acende à minha frente, do lado direito
do palco, e eu canto caminhando até ele devagar.
Deixo que ouçam minha voz e depois que me vejam.
São dois momentos de impacto, e não consigo segurar o
sorriso pela resposta positiva dos surtos à minha frente.
Nem enquanto a letra mais desesperada da minha vida
escorre pelos meus lábios.
Canto minhas estrofes, tento não me emocionar tanto
com elas, mas cada uma me lembra Beatriz de um jeito que
eu não aguento mais esperar. Luto comigo mesmo, com
minhas lágrimas e com a dor e a ansiedade até chegarmos
ao refrão. Deixo “Maybe, if you give me one chance, I can
make things work” romper meu peito com os olhos
fechados, como se os abrir agora tornasse tudo real demais.
Quando me calo, no entanto, a voz de Alê não invade
meus ouvidos como deveria, e eu abro os olhos, confuso
porque ela não está tocando nossa música. Alê leva a
plateia ao completo delírio enquanto me deixa sem chão,
porque os acordes tocados não são os de Maybe, são os de I
Still Love You. A nova música favorita das Vagabonders e a
que eu quero esquecer.
Como vou tentar cantar isso em público?
Me preparo para jogar uma palestra sobre contrato e
responsabilidade em Alê assim que o show acabar, mas
quando o refletor se acende, ele não o faz sobre a Alê. A luz
me revela o outro lado do palco, onde, diante da haste de
um microfone, está Beatriz, com o cabelo caindo em
camadas sobre um vestido vermelho perfeito, e, no segundo
que ela abre a boca, sou transportado para o passado, num
universo de duetos só nosso, num mundo onde nós
cantávamos um para o outro, um com o outro, na frente de
milhares de pessoas que amam não só o príncipe e a
princesinha de uma novela, mas nós dois.
Meu coração dispara com a simples constatação de
que Beatriz está cantando a minha música. A música que fiz
para ela, na qual derramei todo o amor que não achava que
poderia lhe dar.
As pernas desobedecem e a voz não sai nem quando
tento cantar pela terceira vez, mas engulo tudo o que estou
sentindo e me esforço para puxar minha perna e dar um
passo depois do outro, não é tão difícil.
Beatriz segue cantando para as minhas fãs, seus
olhos, porém, estão em mim, me contando que ela acredita
na letra, que sabe o quanto ela significa e que quer estar
aqui agora.
Me aproximo aos poucos, tanto por não conseguir
andar tão rápido, quanto por querer observar seu sorriso
por trás da música, o cabelo meio preso e o vestido
vermelho com uma fenda imensa.
No segundo que Bia apoia a mão direita no microfone,
me coloco atrás dela, seguro o microfone com a esquerda
tocando seus dedos e, enquanto Beatriz canta para a
plateia, eu canto em seu ouvido, para ela e apenas ela, que
deveria ter sido a única pessoa a ouvir essa música:
I never meant to hurt you like I did
My silence just made everything worse
But now I'm here, baring my soul
Hoping against hope to make us whole
Cause I still love you.
Ela canta a última frase me observando por cima do
ombro, e posso afirmar, com toda certeza do mundo, que
essa é a plateia mais barulhenta, emocionada, surtada e
feliz que eu já vi.
Mas nada disso aqui é sobre eles, então saio de trás
de Bia e puxo o microfone para que ele fique entre nós dois,
para cantar essa ponte da única maneira possível: Olhando
nos olhos dela.
So take my hand, give me one more chance.
Estendo a mão direita para ela, quase com medo de
ela não a pegar, mas Beatriz sorri e a toca.
Cause, Princess, you're my universe.
Digo com toda a honestidade que cabe em meu peito.
Mas antes que eu cante a última linha, ela puxa o
microfone, tirando-o da haste, e me puxa para si.
And you know I love you just the same.
Ela canta, com todas as palavras, e meu coração
desmaia, e então volta a bater quando ela me encara com
os lábios entreabertos, e eu a beijo.
As mãos de Beatriz me puxam para ela pela cintura
enquanto as minhas passam pelo seu rosto e a trazem para
mim pelos cabelos macios, quase tão macios quanto seus
lábios e, por mais que a música ainda esteja tocando, os
gritos da plateia me impedem de ouvi-la, e ainda que as fãs
estejam berrando, as batidas do meu coração são mais
altas.
Beatriz está aqui, ela sabe o que essa música significa
e veio cantar comigo.
— Eu senti tanto a sua falta! — grito no segundo que a
música acaba, e os berros invadem o palco estourando
nossa bolha. Mas ela se afasta, sorrindo e me dando um
tchauzinho enquanto os acordes de Made to Never Break
começam, a luz é ligada sobre mim e a haste do microfone
ao meu lado me lembra de que estou aqui para fazer um
show.
Não consigo entrar na música, não no tempo certo,
mas A.J. começa a cantar. Então Thomas, que deveria estar
do outro lado do palco, segura meu braço.
— O que cê tá fazendo? Vai atrás da sua mulher! —
grita, tapando meu microfone.
— Eu… eu…
— Guilherme, vai — é A.J. quem fala, dessa vez no
microfone, e a próxima coisa que escuto é o silêncio dos
músicos, olhando para trás, Richard me encara de braços
cruzados na bateria.
Entendo que todos os músicos pararam de tocar a
pedido dele.
E então tem as fãs, que também então caladas, pela
primeira vez desde que essa turnê começou, e não é a
pedido de Richard. Meu coração dispara com tanta
violência, que consigo senti-lo bombear na minha garganta.
Mas tomo coragem, limpo a garganta e seguro o microfone.
— Desculpa, meninas, mas acho que eu preciso ir
atrás da mulher da minha vida — digo no microfone e, em
vez de qualquer reprimenda, o público começa a gritar o
refrão de Maybe, “Talvez eu não tenha sido quem você
precisava que eu fosse. Mas agora estou aqui, pronto para
lutar por nós. Existe alguma chance de reconstruirmos o
que quebrei?”, me lembrando que era isso o que eu estava
esperando todo esse tempo: Uma chance.
Abraço Thomas como se pudesse abraçar a todos e
atravesso o palco correndo. Passo pela produção na lateral
esquerda do palco olhando em volta, mas Beatriz não está
aqui. Tropeço em Alessandra a caminho dos camarins, e
toco seu ombro.
— Cê viu a Bia?
— Desculpa, Gui. Mas não.
— Sem problemas, se você a vir, pede pra ela me
esperar no meu camarim? — peço, e Alessandra assente,
mas não sei se ela diz mais alguma coisa porque sigo até o
fim do corredor, olhando para todos os lados possíveis.
Chego ao corredor e não a vejo por todo o trajeto, onde
essa mulher foi?
Apalpo minhas roupas, mas não levei o celular para o
palco, eu nunca levo. Minha última saída é procurar alguém
da produção.
Volto pelo mesmo caminho e, no segundo que um
membro da equipe passa por mim, eu seguro seu braço.
— Meu chapa, você viu a garota que tava no palco
comigo há uns cinco minutos? — O rapaz branco de
estatura média nega com a cabeça, confuso. — Ela é
provavelmente a pessoa mais bonita que você já viu na sua
vida, está com um vestido vermelho e o batom da mesma
cor desenha a boca dela de forma perfeita e…
— Cê tá me procurando? — Viro o corpo, dando de
cara com Beatriz, e gargalho. Ela está segurando uma porta
aberta e me convidando para entrar onde ela está.
No meu camarim.
— Nem acredito que te achei — digo, indo em direção
a ela, que abre a porta me dando passagem e a fecha em
seguida. Se esquivando de mim nas duas vezes.
Paro no meio do camarim para dar o espaço que ela
parece precisar enquanto os meninos iniciam A Good Guy
for You do lado de fora.
— Quem te achou fui eu, Principezinho — ela diz,
vindo em minha direção e me beija. Um selinho rápido.
— Desculpa pela forma que você ouviu a música, era
algo nosso, eu não queria que tivesse vazado. E… Por tudo,
sabe.
— Guilherme. Eu não quero falar do passado — ela
avisa, com o indicador em meus lábios, me calando.
— Como não, Bia? Como a gente vai seguir sem
resolver as coisas.
— As coisas estão resolvidas. — Beatriz abaixa a mão,
engolindo em seco. — Passei dias, semanas, meses
sofrendo, mas acabou. Tudo de ruim ou triste que eu senti
não era pequeno, mas o amor é maior.
— O amor é maior? — pergunto, apenas para vê-la
assentir. — E o amor vai me perdoar?
— Vocês estão perdoados. Mas não vim aqui bancar a
filha compreensiva ou voltar a ser sua namorada — Beatriz
explica, mas o sorriso apaixonado em seu rosto e o modo
como acaricia meu cabelo me deixam confuso.
— Não?
— De jeito nenhum.
— Então, o que…? — Nem consigo terminar a frase.
— Estou aqui como a garota pela qual você se
apaixonou na primeira vez que viu, para te dizer que eu não
te amei à primeira vista, mas que você me encantou todos
os dias. Que tenho muito orgulho do que você construiu e
que estou grata por você ter voltado. E, como a garota para
a qual você dedicou todas as suas músicas e para quem fez
todas as suas tatuagens, quero te dar o direito de me pedir
para ser sua namorada — ela diz com um sorriso faceiro e
os olhos nos meus. — Quero que a gente comece de novo,
daqui, sem fantasmas…
— Bia, a gente tem uma história.
Envolvo meus braços em sua cintura, aproximando-a
de mim.
— Esse tempo longe me mostrou que nada vai mudar
o passado, Guilherme, nada. E ele me deixou muito triste.
Então eu pensei: Talvez esteja tudo bem a gente aceitar que
nossa história foi linda, mas também dolorosa, imatura e
acabou — pontua séria e certa do que está dizendo. — Mas,
agora que nós somos adultos e nem o tempo e a distância
puderam matar o amor que sentimos um pelo outro, talvez
a gente possa escrever uma coisa nova, algo só nosso. Com
amor, cumplicidade, verdade — enumera, e eu entendo
aonde ela quer chegar. — E, claro, com ponte aérea, fãs
malucas, agendas pateticamente incompatíveis — nós dois
gargalhamos, e eu beijo a ponta de seu nariz —, mas uma
história pela qual eu vou querer lutar todos os dias.
— Você tem certeza, Bia? Porque eu não vou
conseguir te perder pela terceira vez, tipo, não tem a menor
chance de eu sair vivo disso.
— Absoluta. E eu quero ver o meu namorado tocando
com a banda dele, então acho que você deveria fazer o
pedido pra gente voltar pro palco.
— Pedido, é?
— Uhum — ela diz, e eu assinto me ajoelhando, o que
a surpreende, mas não a ponto de fazer alguma objeção.
— Cê quer deixar de ser só a única mulher que eu
amei na vida e passar a ser minha Vagabonder número um,
para sempre? — peço, e sua risada enche a sala enquanto
ela se ajoelha na minha frente.
— Eu até diria que sim para um pedido de namoro —
ela pondera, encolhendo os ombros —, mas nesse caso a
resposta é um sonoro com certeza — ela grita e, antes de
dizer qualquer outra coisa, a beijo.
Beijo Beatriz Lopes como a minha Vagabonder número
um para sempre e como minha namorada até que
estejamos prontos para dar outro passo.
— Eu te amo tanto, Bia. Estou feliz demais que você
esteja aqui.
— Eu te amo muito. Também estou feliz de estar aqui
— ela diz, cruzando os braços atrás do meu pescoço
segundos antes de me beijar de novo. — Agora levanta,
quero te ver cantar as últimas músicas tristes que fez pra
mim! — Ela se põe de pé bem mais rápido que eu e me
puxa pela mão.
Corremos da saída da sala até a entrada do palco,
onde ela para de correr por conta do salto, e eu a ajudo a
subir. Passamos pelas cortinas de mãos dadas, e eu encaixo
a boca em seu ouvido.
— Nem acredito que você vai ver um show meu!
— Eu que não acredito que você vai cantar minhas
músicas pra mim… — Bia me puxa pela camisa, me
beijando com um pouco mais de intensidade dessa vez e
me joga dentro do palco. Ciente de que um beijo desses no
camarim teria feito com que não saíssemos de lá nem tão
cedo.
As meninas gritam ainda mais alto ao me verem;
Thomas para ao meu lado, me abraçando e beijando minha
cabeça antes de assumir seu posto; Richard pisca para mim
lá de cima, com sua bateria, e A.J. ergue a sobrancelha
cantando o fim da música.
Corro até ele cantando a última estrofe de Dangerous
Woman, e o abraço, grato por ele ter cedido seu momento
com a garota de quem está afim para que eu tivesse o
melhor dia da minha vida.
Os acordes de One Last Kiss entram em ação, mas,
antes de começar a cantar, ergo o braço chamando a
atenção da plateia.
— Luzes mais baixas, por favor. Mais baixas.
Vagabonders cariocas… — Antes que eu termine de falar,
fica impossível me ouvir. As fãs que presenciaram o
momento mais insano da minha vida berram para mim de
volta. — Tenho um anúncio importante para vocês — digo, e
elas começam a gritar o nome de Beatriz, que gargalha no
canto do palco. — Hoje, quando vocês virem na internet que
eu estou namorando… Cês podem acreditar.
— Acho que você deveria dar um passo à frente, Bia
— Richard diz com sua voz rouca, e as meninas vão à
loucura, mas Beatriz não se mexe.
Ela olha para mim com expectativa, eu ergo o
indicador chamando-a, e ela vem como um ímã.
— Olá, Vagabonders — Beatriz grita no microfone. —
Eu pediria desculpas por atrapalhar o show de hoje, mas
acho que vocês adoraram. — O público delira, e Bia me
encara assustada e animada. — Elas gritam muito alto —
diz para mim, sem emitir nenhum som. — Vou parar de
atrapalhar, e deixar os meninos cantarem. Obrigada pelo
carinho! — Beatriz se esgoela por cima do grito da plateia,
mas eu a puxo de volta para o meu abraço, negando sua
partida com a cabeça e faço a contagem:
— 5,6,7 e 8. — One Last Kiss explode no estádio, e eu
posso finalmente cantar, olhando em seus olhos, a música
que ficou na minha cabeça no nosso reencontro, enquanto
eu pairava sobre ela naquela lavanderia.
Eu e A.J. intercalamos os solos, mas Beatriz participa
cantando uma frase ou outra comigo, o que faz com que as
meninas surtem ainda mais e me surpreende, não sabia que
ela tinha tanto conhecimento das letras da Vicious. E, no
meio da música, quando A.J. desce do palco para beijar a fã
escolhida da noite, eu seguro o queixo de Beatriz e beijo
minha namorada, ansioso não só pelo fim do show, mas
pelo que o futuro vai nos trazer.
Epílogo
Ou: Made To Never Break
Beatriz
O amor é maior.
O polegar de Guilherme afaga meu braço direito, por
cima de um casaco enorme, enquanto o gingado do balanço
nos faz flutuar sob a brisa do outono estadunidense, e tudo
o que consigo pensar é nessa frase.
A frase que me fez correr até o homem que eu amo,
invadir seu último show no Brasil e dizer que, mesmo com a
distância, as fãs ensandecidas, nossas rotinas
completamente diferentes e os fusos horários mais malucos
sob os quais pudéssemos estar, eu estava pronta para ele,
como a música que Guilherme tinha composto me mostrava
que ele estava pronto para mim.
Cinco meses, seis encontros de no máximo três dias,
uma novela e uma turnê depois, tenho certeza de que
acreditar no amor foi a melhor coisa que fiz na minha vida.
Porque eu e Guilherme éramos completamente
diferentes, mas ainda assim nos encaixamos. Tudo sobre
nós dois parecia contraditório e clichê ao mesmo tempo, e,
no que ele gosta de chamar de “nossa primeira temporada”,
passamos anos orbitando um em volta do outro diante de
todo o país. Aprendemos a ser a Terra e Sol em meio a um
vasto universo e, mesmo que fôssemos jovens, eu já sabia
desde os dezesseis tudo aquilo que ele cantou anos depois:
Tínhamos sido feitos para nunca quebrar.
Não acho que todas as pessoas no mundo só amem
de verdade uma vez na vida, mas acredito em almas
gêmeas. Acredito que a gente pode demorar o tempo que
for, que talvez o amor da vida de alguém viva sempre em
outra estação, outro fuso, outro continente, mas que um dia
eles vão se encontrar e tudo o que veio antes perderá o
sentido.
No nosso caso, fomos o primeiro encontro. O primeiro
amor. O primeiro beijo e todas as primeiras experiências.
Por um lado, isso foi a melhor coisa que poderia ter
acontecido, por outro, nos condenou cedo demais a uma
vida de solidão quando ficamos um longe do outro.
Me aconchego no abraço do meu amor, feliz pelo
nosso reencontro ter acontecido tão logo eu estivesse
pronta para ele.
— Tá pensando em quê?
Guilherme beija o lado direito da minha cabeça, me
trazendo de volta para a Terra.
— Em nós dois — digo, virando o rosto e encontrando
seus olhos cor de mel, que são lindos sempre, mas, com o
entardecer alaranjado de Boston de fundo, se tornam uma
pintura que nunca vou cansar de admirar.
— Na calmaria pós ponte aérea e fim das gravações?
— pergunta, e seus pés agitam o balanço, como se
houvesse alguma chance de o vento do outono deixar a
gente parado.
— Em tudo, na verdade. Em como chegamos até aqui,
no quanto sou grata por termos conseguido… nossa
segunda temporada — conto, encolhendo os ombros, e ele
para o balanço com os pés, me abraçando, como tem feito a
cada cinco minutos desde ontem, quando cheguei.
— Você é a minha pessoa favorita no mundo, Princesa
— diz, afagando meu cabelo. — Quando você propôs uma
segunda temporada em vez de só continuar a primeira, eu
achei estranho, mas você estava certa.
— Eu geralmente estou — brinco, saindo do abraço e
pulando do balanço.
Guilherme semicerra os olhos, fingindo estar ofendido.
Mas vem atrás de mim e me tira do chão assim que me viro
de frente para ele.
— Cada vez que eu te abraço um pouco mais
apertado, te puxando para mim, como se não acreditasse
que você tá aqui, ou como se qualquer vento de outono
americano pudesse te desmontar, eu fico repetindo para
mim mesmo que é só cuidado, porque eu te amo — diz,
baixinho, com os olhos nos meus, me pondo no chão e
alisando meu rosto.
— Mas é saudade — interrompo-o, assentindo, porque
sinto a mesma coisa.
— Foram meses longe. Meses de um namoro à
distância, a gente conversando por vídeo na madrugada ou
no meio dos intervalos das suas gravações. A gente se viu
tão pouco nesse tempo, e parecia que meu coração ia
explodir… Mas não era só essa saudade, Bia. É a saudade
de uma vida, de quatro anos, de cada dia que eu passei
sem você…
— Estou feliz que tenhamos encontrado nosso
caminho de volta, meu amor, porque viver sem você não foi
nada bom. Tentar amar alguém que não fosse você…
— Por isso que eu nem tentei amar alguém além de
você. — Guilherme dá de ombros, e eu me sinto a mulher
mais gostosa e amada do mundo, como todas as vezes que
ele fala que nunca nem beijou outra menina. — No início eu
achava que era culpa, que era minha obrigação sofrer longe
de você ou qualquer coisa assim, depois eu só entendi que
não queria perder meu tempo nem empatar a vida de
ninguém, não tinha porque me enganar; você é o amor da
minha vida.
— São coisas como essas que você fala e nossos
momentos juntinhos que me deixam com o coração a ponto
de explodir, sabia?
Guilherme assente, passando os braços pela minha
cintura.
— E eu estou feliz de te ter de volta, e de ter esses
três meses inteiros contigo — ele diz, me dando um selinho,
e eu estremeço de frio em seu abraço, mas quero continuar
aqui.
— Na verdade… — Pisco duas vezes, com uma carinha
nada inocente enquanto o cenho dele franze. — Seis
meses…
— Seis?
Os olhos de Guilherme se arregalam tanto que quase
estico as mãos para segurá-los, caso caiam.
— Uhum. Eu preciso estar no Brasil algumas vezes,
compromissos publicitários e um especial de verão de uma
série do streaming da emissora — aviso com as
sobrancelhas erguidas —, mas quero aproveitar suas férias
com você o máximo possível. E depois…
— Depois?
— Vou me dividir entre ser sua Vagabonder número 1
nos shows da turnê doméstica e estudar naquele cursinho
de musicais que eu tinha comentado — digo como se não
fosse nada de mais.
Os olhos de Guilherme, no entanto, brilham para mim
com alegria por nosso tempo juntos ser maior. E por mim,
porque ele sabe que amo atuar e cantar e o teatro musical é
uma forma de unir música e atuação num mesmo pacote
com um conjunto de fãs menos intensos.
— Mas o curso não era de um ano?
— O da universidade de Nova York, esse é como se
fosse um curso mais livre, em Los Angeles. Como acabei de
retomar a carreira, vou fazer esse primeiro. Se eu gostar,
quem sabe não volto depois da minha próxima novela?
— E aí eu vou pedir um ano sabático pra banda,
porque vou querer ficar o máximo de tempo possível com
você.
— Para de ser bobo! — grito entre gargalhadas e
empurro seu ombro. — A gente devia entrar, tá bem frio
agora.
— Às vezes eu nem acredito que você está aqui,
sabia? — Guilherme sussurra no pé do meu ouvido e beija
minha bochecha enquanto caminhamos pelo quintal em
direção às portas de madeira de três metros e meio da
entrada da mansão.
— Sabia. Porque eu também não acredito — digo,
puxando-o para um beijo, mas seu celular vibrando em
minha coxa nos para. — Quem liga para alguém em 2024?
— Provável que seja um dos meninos que tá me
mandando mensagem, mas como eu tô ignorando… — Ele
encolhe os ombros, pegando o celular. — É o A.J., mas não
tem mensagens, só a ligação, deve ser importante.
Ele leva o celular ao ouvido.
— O A.J.? Aconteceu alguma coisa? — pergunto
confusa, e Guilherme repete a pergunta para o amigo logo
depois do “Alô”.
Meu amor me aproxima num abraço, tentando me
aquecer, mas solta um palavrão logo depois de atender, e
eu me assusto, porque ele deve ser o carioca menos
palavrudo que eu conheço.
— São duas da tarde, vocês acordaram agora?
O vocês não me passa despercebido.
— A.J., como é possível vocês não saberem se
transaram ou não? — ele diz, abaixando a cabeça como se
não tivesse ouvido direito, e eu me afasto, com os olhos
arregalados e o queixo caído com a fofoca quentinha.
— Se vocês não sabem se algo aconteceu, finjam que
nada aconteceu — Guilherme diz simplesmente, e eu fico
sem entender como a amizade dele e da Alê chegou…
nesse ponto. — Pois é, desculpa não ter as respostas certas.
Nesse caso, talvez sua melhor amiga te ajude mais mesmo
— diz e desliga, segurando o riso.
— O que aconteceu? — pergunto com um tapa.
— Ele e a Alê dormiram juntos, acordaram com roupas
comprometedoras, mas nenhum dos dois sabe se aconteceu
alguma coisa.
— Como assim? — pergunto ainda em choque.
— Bebida. Por isso evito, as pessoas fazem coisas
loucas quando bebem — ele diz simplesmente.
Mas diante de um novo escândalo iminente, penso
que talvez eu possa ser uma namorada menos contida e
com menos medo de paparazzo ou fãs doidas.
— Pois é, na última vez que bebi, por exemplo, na
festa de encerramento das gravações… — Guilherme me
observa com a sobrancelha direita erguida, e eu continuo:
—, acordei de ressaca e decidi fazer uma tatuagem — digo
como quem não quer nada.
— Você? Uma tatuagem? — Ele joga o braço sobre
meus ombros e se vira, caminhando comigo em direção à
varanda, e eu assinto sem entender o movimento brusco. —
Vamos subir direto para o meu quarto, porque passei a noite
muito atento a cada parte do seu corpo e não encontrei
nada. Então ela deve estar bem escondida… — diz afobado,
correndo pelos últimos dois degraus da pequena escada, e
eu gargalho, parando e fazendo-o ficar de frente para mim
na varanda.
— Acho que você não estava tão atento a algumas
partes de que você não estava com tanta saudade…
— Calúnia, eu senti falta de você inteira! — diz, me
puxando para si e inspirando em meu pescoço.
— Bem… — Dou um passo para trás e subo a manga
do casaco apenas para tirar a luva do pulso. — Acho que é
oficial agora. — Estico o braço para ele e mostro o pequeno
carimbo de quatro centímetros de largura por dois de altura.
— Bia! — Guilherme me observa de queixo caído e
pisca duas vezes, tentando afastar as lágrimas nos olhos. —
Você realmente tatuou Vagabonder Número 1?
— Eu sei, é um pouco cadelinha demais, né? Mas eu
tava de ressaca e viajava para te ver em algumas semanas,
então achei que talvez, já que você tem tanto de nós em
você, eu devia…
— Você não devia, mas foi perfeita. Eu te amo tanto,
Coisinha tatuada — Guilherme diz e beija minha tatuagem
recém-cicatrizada.
— Odeio o quanto eu amo quando você me chama de
Coisinha, sabia? — resmungo, escondendo o rosto no
peitoral dele.
— Claro que ama, você sabe que implicância sempre
foi nossa linguagem do amor favorita. — Guilherme ri e toca
minha nuca, me puxando para um beijo, e eu me sinto
completa.
Alguns anos, um segredo, algumas discussões e um
namoro de mentira depois, posso afirmar com certeza que
eu e Guilherme não somos perfeitos. Mas nos braços do
meu principezinho irritante posso descansar e lembrar que
o amor não precisa ser perfeito. Só precisa ser verdadeiro e,
como ele sempre canta, feito para nunca quebrar.
Clichês em Pop-Rock #02

Prólogo
Regra número 1 dos colegas de apartamento: Nunca
tome um porre com a pessoa que você não quer
dormir.
Alê
Dormir com o cara errado pode destruir sua vida. Essa
é uma frase clichê, nem me lembro quantas vezes já a
escutei. Mas os últimos meses me mostraram que dormir
com o cara certo também pode destruir a sua vida, os seus
sonhos e todos os seus planos.
Pelo menos no meu caso.
Conheci A.J. Fortin quando fui convidada para abrir os
shows da Vicious Bonds — a boyband mais famosa do
mundo — no Brasil, há sete meses, e se eu pudesse definir
o A.J. em uma palavra seria: legal.
Ele é um cara tão legal que, quando a turnê saiu do
Brasil e foi para Portugal, nós nos aproximamos apesar das
investidas descabidas dele; ao chegarmos na Espanha,
éramos parceiros de videogame e, quando saímos da França
em direção à Inglaterra e Irlanda, já éramos amigos.
Parceirinhos, como se ele nunca tivesse tentado ficar
comigo, e quase nem lembrávamos mais do fato de que ele
me cantou no dia que nos conhecemos.
Quando deixamos a Irlanda em direção às férias nos
Estados Unidos, ele me ofereceu um quarto em seu
apartamento até eu me estabelecer e, naquele dia, eu não
vi o menor problema. Afinal, nós éramos amigos.
Mas, se nós somos amigos, e apenas amigos, porque a
luz do sol me acordou no sofá da sala com a mão direita
entrelaçada à dele, que dorme no chão ao meu lado, um dia
depois do maior porre da minha vida?
Solto sua mão, permitindo que os dedos escorreguem
para o chão e me levanto com cuidado porque, bem,
ninguém precisa do drama.
Principalmente nós, que funcionamos muito bem
como amigos.
Apoio a mão no braço do sofá de couro e apoio o pé
esquerdo entre as pernas dele, dou um leve impulso no sofá
para colocar o pé direito um pouco mais distante,
conseguindo me apoiar na mesa de centro.
O leve barulho causado pela fricção do pé de metal da
mesinha na madeira do chão me faz apertar os olhos por
alguns segundos, mas suspiro trazendo meu pé para longe
dele e apoio as mãos à cintura, tentando enviar sustentação
da minha cabeça ainda zonza para meu corpo dolorido.
A.J. respira de maneira profunda e esfrega os fios
longos de cabelo na almofada, ainda perdido no reino dos
sonhos. Abaixo a cabeça sorrindo, pensando que, apesar de
não lembrar de nada da noite anterior, ainda sou grata por
ele ter resolvido beber comigo para amenizar meus surtos.
E é então que vejo seu corpo por completo.
Cueca boxer.
Essa é a única coisa que ele está vestindo, uma cueca
boxer.
Minhas mãos correm para o meu corpo
instintivamente enquanto flashbacks de nós dois rindo,
bebendo, gargalhando, brincando de mímica, de verdade ou
desafio e rolando no chão juntos passam pela minha mente.
Blusa, é o que eu apalpo. Uma longa e confortável
blusa. Suspiro dando dois passos para longe, mas paro na
frente da TV que temos do outro lado da sala, e meu reflexo
me faz ficar sóbria e piscar quatro vezes.
A cara dele está na minha blusa e, por baixo dela, eu
estou de calcinha.
Apenas uma pequena calcinha.
— Bom dia? — A voz sussurrada me faz dar um pulo, e
meu pescoço segue o som para encontrar A.J. Fortin em
toda a sua glória.
Com seu tanquinho de fora e cabelos castanho-claros
reluzentes no sol.
Ele sorri para mim com a cara amassada como se
estivesse alheio a todas as informações que reuni nos
últimos segundos.
— Quanto a gente bebeu ontem, A.J.? — indago
mesmo ciente de que ele não sabe essa resposta, porque
nós temos garrafas de cerveja, tequila e sidra na mesa de
centro, e alguns copos jogados ali e no chão também.
— Acho que muito. — Ele se senta, espreguiçando, e
eu passo a mão nos meus cachos emaranhados como se
isso amenizasse alguma coisa. — Por que cê tá com essa
roupa?
— Por que eu tô com essa roupa? Por que você tá sem
roupa? — enfatizo, como se fosse culpa dele. Como se, de
alguma forma, jogar essa responsabilidade em cima de
outra pessoa apagasse o fato de que eu perdi o controle.
— Não sei. — Ele me percebe arredia e rebate: — Você
quer me contar alguma coisa?
— Eu te contar? — Gargalho, cruzando os braços; essa
é, com certeza, a coisa mais ridícula que eu já vi na vida. —
Você que disse que a gente devia beber e espairecer, e
agora…
— Você acha que a gente…? — A pergunta morre,
porque eu não consigo nem pensar nisso sem ter meu
estômago embrulhado como o papel amassado de um
presente de Natal.
— Você acha? — pergunto, e ele se levanta num pulo.
Com um suspiro exasperado e o olhar embebido em
deboche, A.J. segura o cós da cueca, afastando-o para
analisar o conteúdo interno.
— Ele parece cansado… — Dá de ombros, e minha
boca forma um “O” perfeito com meu choque. — Mas não
sei se é o cansaço do dia a dia ou se ele se divertiu.
— Cala a boca, Anthony — grito, erguendo a mão
direita. — Falei que era fraca para bebidas e agora acordo
pelada na sala do cara que disse: “Vai ficar tudo bem, eu
vou cuidar de você”. Grande ajuda — vocifero na direção
dele.
— Cara, calma. Provavelmente não aconteceu nada. —
Ele joga os cabelos para trás, com a voz mansa implorando
para que eu não surte. — A gente lembraria. Eu, com
certeza, lembraria se tivesse dormido com a garota mais
incrível que já conheci — complementa, vindo em minha
direção na tentativa de me acalmar com seus olhos de
cachorro precisando de carinho.
Mas isso não é uma brincadeira para mim, não é um
jogo.
— Hoje não, A.J., hoje não. — Paro-o com a mão em
seu peitoral e dou um passo para trás.
Não acredito que fui tão estúpida e deixei outra
pessoa tirar meu foco, agora estamos aqui. Os dois de
ressaca, sem memória e, mesmo que a gente não saiba,
mesmo que não se lembre, tenho certeza de que nada,
nunca mais, será como antes.
Clichês em Pop-Rock #02, em Fevereiro de
2025, na Amazon.
Agradecimetos
Esse livro foi escrito durante um longo período de tempo. Depois de escrever
seis livros em um espaço de no máximo três meses cada, levar sete meses no
processo de "Um Fake Dating com Benefícios" foi a minha morte. Mas deu certo.
Graças a pessoas muito importantes e especiais.
Cada pessoa que trabalhou nesse livro, o betou ou se tornou minha parceira é
importante demais. Desde a minha capista, ao meu gestor de tráfego, passando
pelas amigas que aturaram meus surtos, minha leitora crítica que me impediu
de desistir e minha equipe de revisão que não está revisando esses
agradecimentos porque eu esqueci de escrevê-los a tempo.
Se tu teve o mínimo contato com esse livro antes do lançamento, saiba que eu
sou grata por você.
E para vocês, minhas mais novas Vagabonders, que chegaram até aqui,
OBRIGADA por embarcarem no meu primeiro esquema de pirâmides.
Ano que vem tem mais <3

[1]
E eu nunca pensei que você não estaria aqui
porque fomos destinados um para o outro
Mas a vida é uma vadia impiedosa, então é assim que vou viver
Vendo você por aí, sabendo que você não está lá de verdade
Cheirando seu perfume em outras por todos os lugares
Desejando que você esteja solteira, mesmo sabendo que não é o certo
Mas você era tudo que eu tinha, agora tudo o que tenho são noites vazias.
[2]
Se eu pudesse te beijar de novo, acho que nunca pararia. Seu sorriso, seus
lábios e seu sabor permanecem dentro de mim, em mim, em todos os lugares.
Se eu pudesse te beijar mais uma vez, sempre teria o mesmo sabor: aquele que
me diz que sempre precisarei de outro “último beijo” com você.
[3]
Em qualquer momento a beira de algum beijo vai esbarrar em mim sem
querer, para descobrir de novo que não há ninguém para preencher suas
memórias.
[4]
Sim, sei que ele é o meu ex, mas duas pessoas não podem se reconectar?
“Só vejo ele como um amigo”: A maior mentira que já contei.
Oh, sim, sei que ele é o meu ex, mas duas pessoas não podem se reconectar?
Só vejo ele como um amigo... Simplesmente tropecei e caí na cama dele

[5]
Começou como um incêndio
dois gravetos se unem para criar algo maior.
Cresceu como água
E não demorou muito para inundarmos todo o lugar.
Como o vento, voamos,
olhos fechados, mãos atadas, corações em sincronia
E assim como a Terra, éramos fortes,
Feitos para nunca quebrar.
E eu nunca pensei que você não estaria aqui
Porque obviamente estamos destinados a ser
Mas a vida é uma cadela impiedosa, então é assim que vou viver
Vendo você por aí, sabendo que você não está lá
Cheirando seu perfume em outras pessoas em todos os lugares
Desejando que você esteja solteira, sabendo que isso não está certo
Mas você era tudo que eu tinha, agora tudo que tenho são noites vazias
Agora tudo que tenho são noites vazias.

[6]
Em qualquer momento a beira de algum beijo vai esbarrar em mim sem
querer para descobrir de novo que não há ninguém para preencher suas
memórias.
Cedo ou tarde sem saber como nem quando uma lágrima te fará sentir saudade,
lentamente da ternura de um abraço o suspiro de meu nome entre seus lábios…
Para se esquecer de mim, para se esquecer de mim terias que renunciar a todo
o amor que te dei.

[7]
Um teste de química entre atores é uma prática comum na indústria do
entretenimento, especialmente em cinema e televisão, para avaliar a dinâmica
entre dois ou mais atores em cena. Este tipo de teste é crucial para determinar
se os atores têm uma boa química em termos de atuação e se suas interações
são críveis e envolventes para o público.
[8]
Eu não estava tentando machucar você e, para ser sincero, sempre quis que
você fosse minha. Mas há coisas maiores do que nós, e se eu puder dizer
alguma coisa, peço que jure que está bem. Diga-me que você ama sua vida e eu
era apenas um estrangeiro, e me prometa que será feliz, mesmo que eu não
esteja ao seu lado.
[9]
Eu errei e machuquei você, mas vale a pena ser um “talvez” para sempre?
Talvez eu fosse muito jovem, muito ingênuo, muito assustado.
Talvez eu não tenha percebido o quanto te machuquei.

Talvez eu não tenha percebido o quanto te machuquei.


Talvez eu não fosse quem você precisava que eu fosse.
Mas agora estou aqui, pronto para lutar por nós.
Existe alguma chance de reconstruirmos o que quebrei?

Reconstruir o que quebrei?


Talvez, se você me der uma chance,
Posso fazer as coisas funcionarem.
Faça-nos funcionar!
[10]
Olá, eu ouço suas palavras, sua raiva é feroz, seu coração está doendo, eu
não sou tão burro, eu sei o que fiz. E mesmo que eu tenha ficado em silêncio,
agora estou ajoelhado, não foi minha culpa, isso foi maior que nós.
Por favor, diga-me que ainda não terminamos.
Sinto muito pelas lágrimas que você derramou, pelas noites sozinha na sua
cama, sinto muito pelo silêncio que nos separou, mas, no fundo da minha alma,
você ainda está no meu coração.
Eu nunca quis te machucar como fiz, meu silêncio só piorou tudo, mas agora
estou aqui, expondo minha alma esperando contra a esperança que voltemos a
ser uma coisa só, porque ainda te amo.

Então pegue minha mão, me dê mais uma chance porque, Princesa, você é meu
universo e você sabe que me ama do mesmo jeito.

Eu nunca quis te machucar como fiz, meu silêncio só piorou tudo, mas agora
estou aqui, expondo minha alma esperando contra a esperança de que
voltemos a ser uma coisa só, porque ainda te amo.

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