Algumas Considerações Sobre o Contexto Político-Social Da Internet No Começo Do Século

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Algumas considerações sobre o contexto político-social da internet no começo do século.

O filósofo camaronês Achille Mbembe (1957), escreveu em 2016, um pouco depois da eleição de Donald
Trump, para a presidência dos EUA, um curto artigo 1 onde especula sobre o que esperar dos próximos anos
do século XXI. O artigo traz uma análise precisa do momento. Parece prever a ascensão da extrema direita,
que acontece no EUA e que funcionaria como um protótipo a se espalhar pelo mundo, como vemos hoje no
Reino Unido e no Brasil, por exemplo.

Neste contexto, os empreendedores políticos de maior sucesso serão aqueles que falarem

de maneira convincente aos perdedores, aos homens e mulheres destruídos pela

globalização e pelas suas identidades arruinadas. (MBEMBE, 2016).

Essa é a brecha que não soube ser explorado pelos principais políticos do mainstream até então, sendo
explorado por essas novas figuras como Trump que prometem o retrocesso como se fosse progresso.
Essas personagens esdrúxulas falam diretamente aos perdedores, aqueles que vêm na ampliação dos
feminismos, das lutas antirracistas e LGBTs, o eclipse dos discursos que legitimam suas existências num
lugar privilegiado da representação social tanto simbolicamente como materialmente.

Dado como superada ou despresível, essa parcela (que é considerável) da população era até então
ignorada pelas principais forças políticas. Agora suas mentalidades emergem com força nos debates
políticos, regurgitando diversas formas de neo-arcaísmos (anticomunismo, terraplanismo, supremacismo
branco, etc) e se fazem ouvir nas urnas. Nas palavras de Mbembe:

O capitalismo neoliberal deixou em sua esteira uma multidão de sujeitos destruídos, muitos

dos quais estão profundamente convencidos de que seu futuro imediato será uma

exposição contínua à violência e à ameaça existencial. Eles anseiam genuinamente um

retorno a certo sentimento de certeza – o sagrado, a hierarquia, a religião e a tradição. Eles

acreditam que as nações se transformaram em algo como pântanos que necessitam ser

drenados e que o mundo tal como é deve ser levado ao fim. Para que isto aconteça, tudo

deve ser limpo. Eles estão convencidos de que só podem se salvar em uma luta violenta

para restaurar sua masculinidade, cuja perda atribuem aos mais fracos dentre eles, aos

fracos em que não querem se transformar. (MBEMBE, 2016).

As redes sociais foram o principal mecanismo pelo qual esses empreendedores políticos mobilizaram seu
público, através de dispositivos de marketing setorizado e manipulação comportamental. Bancos de dados

1
Originalmente em 22 de Dezembro de 2016 em: MAIL & GUARDIAN. Site, 2017. Disponível em <>. Acesso 22 Ago. 2019.
Traduzido em 24 de Janeiro de 2017 em: INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS. Site da instituição, 2019. Disponível em <>. Acesso
22 Ago. 2019.
disponibilizados por grandes corporações de informática como Google e Facebook permitiram encontrar
quantidades favoráveis de sujeitos manipuláveis e/ou com predisposições a esses discursos. Esses sujeitos
foram conhecidos por uma coleta de dados, nem sempre legal. Relativamente novas, essas formas de
atuação esperam ainda uma regulamentação que coíba abusos. Esses dispositivos conectados à internet
são capazes de exercer minuciosa vigilância, eles conhecem os hábitos, trajetórias e interesses individuais
e a partir daí podem prever o comportamento de cada indivíduo.

Pierre Musso (1950) filósofo francês que propõe pensar filosoficamente a idéia de rede, coloca:

Internet, rede de redes planetárias, reativa os mitos recorrentes veiculados pela idéia de

rede. Suas duas imagens originais são redescobertas: a que agita seus bajuladores, da

livre circulação generalizada das informações, significando democracia e transparência da

“sociedade da informação”, e a evocada por seus detratores, do controle e da vigilância

generalizada. [...]. Contudo, a sobrecarga simbólica das redes permite a descarga do

político sobre a técnica. [...]. O imaginário da rede é uma simples ideologia, ou seja, uma

maneira de fazer a economia das utopias da transformação social. (MUSSO, 2004, p.35-

37).

Continuando com Mbembe, nesse novo território ambíguo das redes estaria a origem de um novo ser
humano, em processo de gestação:

O novo ser humano será construído através e dentro das tecnologias digitais e dos novos

meios computacionais.

A era computacional – a era do Facebook, Instagram, Tweetter – é dominada pela idéia de

que há quadros negros limpos no inconsciente. As formas dos novos meios não só

levantaram a tampa que as eras culturais anteriores colocaram sobre o inconsciente, mas

se converteram nas novas infraestruturas do inconsciente. Ontem a sociabilidade humana

consistia em manter os limites sobre o inconsciente. Pois produzir o social significava

exercer vigilância sobre nós mesmos ou delegar a autoridades específicas o direito de fazer

cumprir tal vigilância. A isto se chamava de repressão. (MBEMBE, 2016).

A era marcada pela sociedade disciplinar, que Michel Foucault (1926-1984) descreve em parte de sua obra,
centrada em instituições de vigilância e punição, segundo Mbembe, estaria chegando ao fim, dando lugar a
uma sociedade pós-repressiva.

A principal função da repressão era estabelecer as condições para a sublimação. Nem

todos os desejos podem ser realizados. Nem tudo pode ser dito ou feito. A capacidade de

limitar-se a si mesmo era a essência da própria liberdade e da liberdade de todos. Em parte

graças às formas dos novos meios e à era pós-repressiva que desencadearam, o


inconsciente pode agora vagar livremente. A sublimação já não é mais necessária. A

linguagem se deslocou. O conteúdo está na forma e a forma está além, ou excedendo o

conteúdo. Agora somos levados a acreditar que a mediação já não é necessária.

(MBEMBE, 2016).

É difícil imaginar nossa sociedade como pós-repressiva, da forma que Mbembe anuncia, quando os
mecanismos de vigilância se multiplicam e penetram todos os espaços e as estruturas repressoras como
prisões, fábricas e escolas tradicionais continuam fortemente operantes no contexto. A noção de que todos
os desejos podem ser realizados, que se pode desejar tudo é um triunfo dos simulacros. A mediação,
característica da representação se torna invisível. A representação é substituída pela simulação e a
simulação recobre o real.

O conceito de simulação, desenvolvido especialmente pelo filósofo francês Jean Baudrillard (1929-2007), é
fundamental para entendermos o atual contexto. Baudrillard o introduz em sua obra partindo de uma
metáfora apropriada do escritor Argentino Jorge Luiz Borges (1899-1986), que tem como temas
privilegiados: a informação, a noção de realidade e o labirinto.

No conto de Borges, Do rigor na ciência (2012), o rigor dos cartógrafos em um império imaginário os leva a
construir um mapa que tinha o tamanho exato do próprio império e que representava e coincidia com ele em
todos os pontos. Borges cria uma imagem absurda: o mapa quando aberto por completo cobre todo o
território representado. Depois o mapa se arruína sob a ação das intempéries e os seus restos que ainda
podem ser encontrados nos desertos passa a ser habitado por desgarrados e animais (BORGES, 2012,
p.60-62). A partir deste conto Baudrillard coloca:

Hoje a abstração já não é a do mapa, do duplo, do espelho ou do conceito. A simulação já

não é a simulação de um território, de um ser referencial, de uma substância. É a geração

pelos modelos de um real sem origem nem realidade: hiper-real. O território já não precede

o mapa, nem lhe sobrevive. É agora o mapa que precede o território – precessão dos

simulacros – é ele que engendra o território cujos fragmentos apodrecem lentamente sobre

a extensão do mapa. É o real, e não o mapa, cujos vestígios subsistem aqui e ali, nos

desertos que já não são do Império, mas o nosso. O deserto do próprio real.

De fato, mesmo invertida a fábula é inutilizável. Talvez subsista apenas a alegoria do

Império. Pois é com o mesmo imperialismo que os simuladores atuais tentam fazer coincidir

o real, todo o real, com os seus modelos de simulação. Mas já não se trata de mapa nem

de território. Algo desapareceu: a diferença soberana de um para o outro, que constituía o

encanto da abstração. Pois é na diferença que consiste a poesia do mapa e o encanto do

território, a magia do conceito e o encanto do real. (BAUDRILLARD, 1991, p. 8).

Baudrillard publica este texto na década de 1980, época marcada pela popularização da televisão, que
impacta profundamente a noção de realidade da sociedade. A televisão, instalada no espaço doméstico,
trouxe a esses espaços um fluxo contínuo de imagens que remetem a outros lugares, fundindo o espaço
doméstico com o espaço do mundo simulado pelo aparelho.

Hoje vivemos um momento marcado pelo smartphone, um computador cuja fachada é toda um ecrã, onde a
imagem se torna uma interface interativa pelo toque, capaz de assumir inúmeras operacionalidades.
Levamos esse hardware aonde vamos, e ele registra tudo que fazemos, capturando dados de imagem,
som, localizações via satélite, operações bancárias, etc. Periodicamente ele exige nossa atenção e nos
promete acessar o mundo através de imagens interativas.

Mbembe se refere a esse contexto político social como um momento de transição:

Outro longo e mortal jogo começou. O principal choque da primeira metade do século XXI

não será entre religiões ou civilizações. Será entre a democracia liberal e o capitalismo

neoliberal, entre o governo das finanças e o governo do povo, entre o humanismo e o

niilismo. (MBEMBE, 2016).

O capital financeiro desponta como a instância que determina as regras do jogo e que está
absorvendo,dominando e instrumentalizando os novos meios. Em seu caminho ainda restam as estruturas
das democracias liberais, que esse capital volátil golpeia elegendo (através destes dispositivos) políticos
como Trump, que diminuem a figura da presidência, desmantelam as instituições estatais e desestabilizam
a democracia. Por mais que figuras como Trump pareçam nada mais que a velha mistura de palhaço e
militar do fascismo, o autor alerta:

Chamar esta fase da nossa história de fascista poderia ser enganoso, a menos que por

fascismo estejamos nos referindo à normalização de um estado social da guerra. Tal estado

seria em si mesmo um paradoxo, pois, em todo caso, a guerra leva à dissolução do social.

No entanto, sob as condições do capitalismo neoliberal, a política se converterá em uma

guerra mal sublimada. Esta será uma guerra de classe que nega sua própria natureza: uma

guerra contra os pobres, uma guerra racial contra as minorias, uma guerra de gênero contra

as mulheres, uma guerra religiosa contra os muçulmanos, uma guerra contra os deficientes.

(MBEMBE, 2016).

As grandes corporações ligadas aos novos meios, representadas principalmente pelo Google e Facebook,
foram aparelhadas rapidamente pelo capital financeiro. Também faz parte desse eixo o velho poder militar
que acaba impondo uma espécie de militarização das redes sociais, conforme casos como os delatados por
Edward Snowden 2 em 2013 mostram.
2
Refiro-me aqui ao caso que aconteceu em 2013 onde Edward Snowden, ex agente da CIA e da NSA, revela através de diversos
documentos como o governo dos EUA espionaram, principalmente, a população norteamericana mas também pessoas e governos
de vários lugares do mundo, incluindo o Brasil. Essa espionagem foi permitida através de programas desenvolvidos pelo governo
que acessavam bancos de dados de grandes corporações de informática como o Google, o Facebook e a Apple, como mostra o
documentário da jornalista americana Laura Poitras: LAURA POITRAS. Citizenfour. Estados Unidos. Praxis Films/Participant
Media/HBO Documentary Films, 2014.
Apoiado pelo poder tecnológico e militar, o capital financeiro conseguiu sua hegemonia
sobre o mundo mediante a anexação do núcleo dos desejos humanos e, no processo,
transformando-se ele mesmo na primeira teologia secular global. […]. Em seu núcleo, a
democracia liberal não é compatível com a lógica interna do capitalismo financeiro. É
provável que o choque entre estas duas ideias e princípios seja o acontecimento mais
significativo da paisagem política da primeira metade do século XXI, uma paisagem
formada menos pela regra da razão do que pela liberação geral de paixões, emoções e
afetos. (MBEMBE, 2016).

Paixões, emoções e afetos capturados, computados, controlados e emparelhados por tecnologias


algorítmicas são colocados á disposição do poder financeiro. É vital para que isso se realize a conexão de
toda a sociedade aos computadores e à internet. Extremamente sedutores, operam através de uma oferta,
aparentemente infinita, de imagens. As redes capturam as relações sociais, se conectar é um imperativo
nos dias de hoje. O jornalista Inglês Nick Coldry (1958) constrói o termo colonialismo de dados para se
referir a essa corrida pela extração de dados em todas as partes do mundo que se assemelha, segundo ele,
à corrida pelo ouro e outros recursos naturais durante a primeira colonização da América pela Europa
(PACHECO, 2019).
Nesta nova paisagem, o conhecimento será definido como conhecimento para o mercado.

O próprio mercado será re-imaginado como o mecanismo principal para a validação da

verdade. Como os mercados estão se transformando cada vez mais em estruturas e

tecnologias algorítmicas, o único conhecimento útil será algorítmico. Em vez de pessoas

com corpo, história e carne, inferências estatísticas serão tudo o que conta. As estatísticas

e outros dados importantes serão derivados principalmente da computação. Como

resultado da confusão de conhecimento, tecnologia e mercados, o desprezo se estenderá a

qualquer pessoa que não tiver nada para vender. (MBEMBE, 2016).

Os algorítmos distribuem à população uma versão da realidade customizada (variabilidade) e


consequentemente mais alienante, de forma muito mais eficaz que a televisão 3. Ao automatizar essas
relações para dar velocidade ao capital e aos ganhos, são atribuídos aos algoritmos também a
responsabilidade de tomar decisões. Como a aleatoriedade também faz parte do funcionamento desses
mecanismos, o universo definido pelo algoritmo é naturalmente caótico (PARISI, 2015). No império dos
algoritmos temos a sensação que somos partículas navegando nas correntezas de oceanos de dados.

É importante ater ao que Mbembe coloca, que o único conhecimento que importa será algorítmico. Assim o
conhecimento sobre o funcionamento dessas estruturas será determinante para qualquer poder ou
resistência que poderá surgir. O conhecimento algorítmico será vital. Estar fora das redes será uma espécie
de exílio.

3
Sobre isso ver o documentário: JEHANE NOUJAIM; KARIM AMER. The Great Hack. Estados Unidos. NETFLIX, 2019.
As relações de trabalho já começam a ser mediadas por dispositivos algorítmicos. O modelo do aplicativo
de transporte particular Uber se apresenta como paradigma possível, fala-se em uberização do trabalho
(ANDRADA, 2019). Uma realidade em que mercados de trabalho inteiros sejam estabelecidos por interfaces
computacionais algorítmicas a serviço da otimização do lucro se coloca como mais uma distopia no
horizonte.

Mbembe coloca essa transição que vivemos também em termos de uma oposição entre o humanismo que
termina e um niilismo que o substitui. Um pessimismo melancólico parece perpassar o artigo de Mbembe.
Não sei precisar ao certo o que Mbembe chama de humanismo, vamos considerar como humanismo aquele
pensamento nascido na Florença renascentista que persiste através da modernidade, centrado no humano
e no desenvolvimento das potencialidades do humano. Seria esse declínio um fator negativo?

O filósofo francês Michel Maffesoli (1944) também enxerga um declínio do humanismo que ele vai analizar
sem juízos de valores. Talvez a noção de sujeito construída pelo humanismo tenha se acabado. Esse
sujeito baseado na identidade é substituído por outro baseado na identificação, em identificações
sucessivas pra ser mais preciso, o qual culmina na experiência fluida de fazer parte da massa.

Uma das características da massa é a exacerbação da potencialidade de cada indivíduo em

metamorfosear-se. A metamorfose é essencialmente a possibilidade de <<transformar-se

em todas as coisas>>. Atitude mágica, especialmente pertinente para compreender as

diversas metáforas operadas quando das aglomerações esportivas, musicais, religiosas ou

políticas. (MAFFESOLI, 2005, p.164).

Antes definido como sujeito da ação, com objetivos localizados no futuro, agora se localiza em um
permanente presente, cuja resistência muitas vezes se encontra no não agir: “Hedonismo difuso e
envolvente que, em oposição ao progresso, enfatiza a involução, o <<regresso>>, e dedica-se a parar o
tempo a fim de gozar as múltiplas pequenas ocasiões ou ocorrências sociais ou pessoais.” (MAFFESOLI,
2005, p.136). Mas o maior deslocamento estaria na relação entre o sujeito e o mundo:

Sub-repticiamente, portanto, o objeto toma lugar do sujeito. Não se trata de simples


provocação, mas antes de uma constatação, particularmente evidente no consumo, onde o
<<uso>> transformado em <<signo>>, tende a acabar na ausência de freios, não tendo
mais o objeto nenhuma referência, servindo apenas de encantação mágica, de laço
fetichista com a matéria; consumo que faz da vida social um imenso <<potlach>>, pelo qual
o desperdício absoluto traduz o secreto desejo de morte que atormenta o corpo social. Sem
ir muito além, direi que se vive numa ambiência <<objetal>>, responsável pelo fato de o
indivíduo não ser mais o <<eu>> poderoso e solitário mas um objeto entre outros,
intercambiável à vontade; pode haver nisso uma forma de gozo, geradora dessa ambiência
erótica, um pouco perversa, na qual a pornografia, o desenvolvimento do sadomasoquismo
ou a recrudescência da escravidão sexual são apenas os aspectos mais visíveis.
(MAFFESOLI, 2005, p.154).
O francês ao contrário de Mbembe nos fala que a política não é desacreditada por uma epidemia de niilismo
expressado por um conformismo adesista, consumismo compulsivo e/ou cinismo aceleracionista. A política
se transfigura, não mais acredita nas macro estruturas como o estado-administrativo nem em utopias
distantes no tempo como estados ideais ou transcendências religiosas, promessas essas que marcaram a
modernidade: “Ao poder centralizado, opõe-se assim o que chamei de potência difusa.” (MAFFESOLI,
2005, p.59). A política muda de figura e se encarrega do aqui agora, se expressa mais: no cuidado de si, no
estar junto, no cotidiano, na tribalização, na ecologia. O seguinte trecho resume o pensamento de Maffesoli
sobre essa questão trabalhada no livro A tranfiguração da política (2005):

Tentei mostrar ao longo desse livro, que o interesse e o desafio estão em outro lugar. De
minha parte vejo-os na instalação progressiva, de uma solidariedade orgânica, feita de
atracões e de repulsões, de identificações afetuais ou de emoções partilhadas em todos
domínios. Tudo isso nada mais tem a ver com a política. Para os espíritos atentos, é
surpreendente observar que, para desespero das autoridades de todas as cores, as lutas
recentes ou os conflitos fazem-se, como assinala o filósofo Giorgio Agamben, sem
conteúdo reivindicativo preciso, a democracia ou a liberdade sendo no caso <<emoções
vagas e genéricas para constituírem objeto real de conflito>>. De fato, a luta ou o conflito
existe, mas dá-se entre o <<Estado e não-Estado>> ou ainda, entre a instituição regulada
contratualmente, o político racional, e o <<nós>> fusional de reações totalmente
imprevisíveis. A ordem que parece desenhar-se é a de um conjunto de comunidades nem
positivas nem unanimistas, mas precárias e submetidas à versatilidade da emoção. Mais do
que uma união plena, uma união do projeto, a solidariedade nascente origina-se de uma
união na falta no vazio; comunhão de solidões que, pontualmente, vivem o trágico da fusão,
onde, de maneira orgânica, a <<pequena morte>> e a vitalidade são vividas no dia a dia.
(MAFFESOLI, 2005, p.211-212).

Neste livro Maffesoli aparenta um certo otimismo em relação ao mundo marcado pelas redes, mas esse
otimismo pode ser sintomático de um período anterior a 2013. Percebo 2013 como um marco divisor,
quando a visão sobre as novas mídias, passa de um otimismo para um pessimismo. O ano de 2013 foi
marcado por grandes protestos que se valeram de redes sociais para se configurarem, reivindicando
mudanças profundas e com muitas pautas marcadamente à esquerda. Essas mobilizações foram
capturadas pela direita conservadora antidemocática que manipulava todo o processo operando dentro da
invisibilidade permitida por estes aparatos. Esses processos acabam desistabilizando as democracias e são
sucedidos por uma contra reação ultra conservadora, como exemplo podemos colocar a chamada
primavera árabe, principalmente o caso do Egito 4, ou as chamadas jornadas de junho 5 no Brasil.

4
Sobre a primavera árabe, ver: JEHANE NOUJAIM. The Square. Egito; Estados Unidos. Noujaim Films; Worldview entertaiment,
2013.

5
Sobre a importância das redes em 2013 ver: BBC NEWS BRASIL. Site da Agência, 2013. Disponível em <>. Acesso 24 Ago 2019.
A ambiguidade do imaginário da rede, que Musso coloca, pende agora para o lado que a percebe como
controle generalizado. A prisão de Julian Assange 6, em 2019, parece ser a última pá de terra sobre a
esperança na internet como espaços livres, construídos por uma cultura da transparência,
compartilhamento e conexão horizontal. A prisão de Assange soa como um aviso que impera: A internet
pertence ao Capital e ao Exército.

Bibliografia:

ANDRADA, Alexandre. Chineses, robôs e a uberização das relações de trabalho: diga adeus às férias
e ao 13°. In: THE INTERCEPT_ BRASIL. Site do canal, 2019. Disponível em
<https://theintercept.com/2019/04/08/uberizacao-das-relacoes-de-trabalho/ >. Acesso 25 Ago. 2019.
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio D’água, 1991.
BBC NEWS BRASIL. Site da agência, 2019. Disponível em < https://www.bbc.com/portuguese/internacional-
47895584> Acesso 24 Ago. 2019.
BBC NEWS BRASIL. Site da Agência, 2013. Disponível em
<https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2013/07/130628_protestos_redes_personagens_cc >. Acesso 24
Ago 2019.
BORGES, Jorge Luis. História universal da infâmia. São Paulo: Companhia das Letras,
2012.

JEHANE NOUJAIM. The Square. Egito/Estados Unidos. Noujaim Films/Worldview entertaiment, 2013.
JEHANE NOUJAIM; KARIM AMER. The Great Hack. Estados Unidos. IMDB PRO; NETFLIX, 2019.
LAURA POITRAS. Citizenfour. Estados Unidos. Praxis Films;Participant Media;HBO Documentary Films,
2014.
MAFFESOLI, Michel. A transfiguração do político: atribalização do mundo. Porto Alegre: Editora Sulina,
2005.
MBEMBE, Achile. A era do humanismo está acabando. In: INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS. Site da
intituição, 2016. Disponível em <http://www.ihu.unisinos.br/186- noticias/noticias-2017/564255-achille-
mbembe-a-era-do-humanismo-esta-terminando> Acesso 22 Ago. 2019.
MBEMBE, Achile. The age of humanism is ending. In: MAIL & GUARDIAN. Site, 2017. Disponível em
<https://mg.co.za/article/2016-12-22-00-the-age-of-humanism-is-ending >. Acesso 22 Ago. 2019.
MUSSO, Pierre. A filosofia da rede. In: PARENTE, André. Tramas da rede: novas dimensões filosóficas.
Porto Alegre: Sulina, 2004.
PACHECO, Denis. Novo colonialismo não explora apenas riquezas apenas, explora nossos dados. In:
JORNAL DA USP. Site do Jornal, 2019. Disponível em< https://jornal.usp.br/universidade/novo-colonialismo-
nao-explora-apenas-riquezas-naturais-explora-nossos-dados/ >. Acesso 25 Ago. 2019.

6
A prisão de Assange teve forte motivação política, a meu ver representa um marco no cerceamento das liberdades na internet.
Julian Assage é fundador do Wiki Leaks site na internet que se propõe a revelar e disponibilizar na internet documentos de
interesse público, principalmente aqueles que denunciam os abusos dos Estados e contrariam as narrativas oficiais, conforme
apresentado nessa reportagem da BBC: BBC NEWS BRASIL. Site da agência, 2019. Disponível em <>. Acesso 24 Ago. 2019.
PARISI, Luciana. Instrumental reason, algorithmic capitalism, and the incomputable. In: PASQUINELLi,
Matteo. Alleys of your mind: Augmented intelligence and its traumas, 125-137. Lüneburg:meson press,
2015.

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