Pensar Bem Nos Faz Bem! Vol.3 - Mario Sergio Cortella

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Dados Internacionais de Catalogação na

Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do


Livro, SP, Brasil)
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia 100

Reimpress
ão
Março/20
16
© 2015, Editora Vozes Ltda.
Rua Frei Luís, 100
25689-900 Petrópolis,
RJ www.vozes.com.br
Brasil

Diretor editorial
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Editores
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Carneiro José Maria da
Silva
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Marilac Loraine Oleniki

Secretário executivo
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Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá


ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer
meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou
arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão
escrita da editora.

Editor para autor: Paulo Jebaili


Apoio editorial: Thiago de Christo e Vivi Rowe

Diagramação: Sandra Bretz


Capa: Lilian Queiroz / 2 estúdio gráfico
Foto de capa: Raul
Junior ISBN 978-85-
326-4976-8

Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.


Os textos do livro foram
compilados e adaptados a partir dos
comentários do au- tor na coluna
Academia CBN, apresentados em
rede nacional, de segunda a sexta-
feira, às 6h32, de julho de 2013 a
maio de 2014. As reflexões não
seguem necessariamente a or- dem
em que foram ao ar pela Rádio
CBN e, embora organizadas pelos
temas Fé, Sabedo- ria,
Conhecimento e Formação (neste
volume), não foram agrupadas em
bloco em torno de cada um destes,
de modo a preservar essa
característica que a coluna tem no
cotidiano.
Sumário

Visão crítica, 13

Tempo histórico, 15

Contemporaneidade, 17

Obrigatoriedade da formação religiosa, 19

Simiesco, 21

Caminhada, 23

O perito, 25
Ordem metódica, 27 À flor da pele, 29 Taumaturgia,

31

Autoimagem, 14

Hecatombe, 16

Alienação, 18

Xingamento, 20

Invenção, 22

Simplicidade, 24

Erudição, 26

Distração atenta, 28

Poesia e encantamento, 30
Transigência, 33 Polícia e política, 35 Sacudir as certezas,

37

Formação de caráter, 39 Desvio de foco, 41 Reação

inteligente, 43

Morbidez atraente, 45 Acaso e providência, 47 Imbecil,

49
Idiossincrasia, 51

Frustração, 53

Aparente paradoxo, 55

Independência, 32
Paradoxo, 34

Reflexão, 36

Ponto de vista, 38

Provocar o senso comum, 40

Preferência, 42

Término, 44

Reducionismo mental, 46

Criança, 48

Ilusão das aparências, 50

Originalidade, 52

Inversão desejada, 54
Cautela inteligente, 57

Bisbilhotice, 59

Fingimento sério, 61

Interpretação livre, 63

Tédio informacional, 65

Aspiração sensata, 67

Tagarelice, 69

Conversa empolada, 71

Laconismo, 73
Tecnologia temerária, 75

Assepsia vocabular, 77

Humor inteligente, 79

Respeito encarnado, 56

Injustiça veloz, 58

Ansiedade fértil, 60

Indiferença propositada, 62

Alteridade benéfica, 64

Prevenção, antecipação, 66

Similitude humana, 68 Ciência e propósito, 70

Tédio valioso, 72
A fonte original, 74
Véspera, 76

Existência labiríntica, 78
Perenidade estética, 81

Leveza essencial, 83

Imprecisão semântica, 85

Escrita tocante, 87

Princípio cidadão, 89

Bibliofilia prazeroza, 91

Psicologização excessiva, 93 Autonomia da razão, 95

Errata, 97
Bons tempos, 99
Dormir a granel, 101

A vida como enigma, 80 Prazer passageiro, 82

Política como escolha, 84 Pluralidade idiomática, 86


Retorno avaliativo, 88

Inconstância eventual, 90

Esquecimento útil, 92

Malabarismo vocabular, 94

Ingenuidade analítica, 96

Vaticínio arriscado, 98

Positividade da incompetência urbana, 100


Diferencial biológico, 102
O engano que eleva, 103

Compreensão ampliada, 105

Irritação criativa, 107

Confiança frágil, 109

Retorno perene, 111

Mito histórico, 113


Suavidade afetiva, 104

Fidelidade enganosa, 106

Presença enfadonha, 108

Fonte generacional, 110


Autocrítica superficial, 112

Nacionalidade ambulante, 114

Eloquência manufaturada, 115


Automatismo sedutor,
116

Reciprocidade irada, 117

Estupidez perigosa, 119

A música como desafio, 121

Proveito urgente, 123

Paz ativa, 125

Precocidade aprazível, 118

Perícia volátil, 120

Cansaço interrompível, 122


Insistência honrosa, 124

Recusa à futilidade, 126


Perda multiplicada, 127

Ingestão reveladora, 129


Boa lembrança, 128

Decisão imediata, 130


Visão crítica

É necessário que sejamos capazes de olhar os


fatos, perce- ber o que está acontecendo e não ter
uma avaliação apressada, movida tão somente pelo
calor da situação. Existe uma frase antiga na
Filosofia que gosto sempre de repetir: “Quem
menos sabe da água é o peixe”. Porque o peixe
está mergulhado na- quela circunstância e
precisaria, para enxergar melhor o que está
vivendo, afastar-se um pouco dali para ter uma
percepção mais seletiva e mais crítica. Afinal de
contas, a proximidade dos fatos obscurece bastante
a análise.
Quando nós vivemos algumas situações de
ebulição ou so- mos surpreendidos por alguns fatos
é muito comum surgirem análises apressadas.
Claro que uma análise precisa ser feita, mas
convém ter cautela para impedir que se trabalhe
com o movimento e a emoção apenas daquele
instante.
O escritor francês Charles Péguy (1873-1914),
que se alistou e morreu na Primeira Guerra
Mundial, dizia: “Quando se trata de História
Antiga, não se pode escrever por falta de referên-
cias. Quando se trata de História Moderna, não se
pode escre- ver, por sermos transbordados de
referências”.
Muito interessante. Para escrever sobre História
Antiga, nos faltam, muitas vezes, referências de
análise. Na História Contemporânea, aquela em
que estamos vivendo, é difícil es- crever, porque
nós temos excesso de referências, e elas pertur-
bam a nossa capacidade analítica. Não é que elas
impossibili- tam, mas perturbam.
Nessa hora, é necessário ter objetividade em
relação àqui- lo que se vai analisar, para não perder
a capacidade de exer- cer uma visão crítica.
Autoimagem

Gostamos de nos imaginar, no mais das vezes,


melhor do que de fato somos. Nós gostamos,
também, de inventar algu- mas ideias. Há vários
estudos no campo da Ciência Biológica (não
apenas de natureza psicológica) que apontam na
nossa capacidade neuronal a possibilidade de
inventarmos histórias, inventarmos passados,
inventarmos realidades para justificar de forma
mais veemente o modo como agimos ou o modo
como somos.
Claro que aí se diria que é uma capacidade de
autoengano, e não é isso, porque somos capazes de
inventar sobre nós mes- mos. Isso não é uma
mentira deliberada, é algo que está muito mais no
campo da crença e, ao criar essa crença sobre si
mes- mo, coloca-se a condição de ter de acreditar
naquilo que se diz. O escritor francês Marcel
Jouhandeau (1888-1979) escreveu uma obra muito
curiosa chamada O impostor. Ele dizia que “para
suportar a sua própria história, cada um lhe
acrescenta um pouco de lenda”. E a lenda é aquilo
que não tem compro- vação, que dá um ar meio
mágico, que tem um certo com-
ponente místico em sua suposta explicação.
Como diz uma outra frase, “cada um é o herói
da sua histó- ria”. Nesse sentido, a autoimagem que
fazemos, especialmente quando estamos
conversando com outras pessoas, carrega, sim,
alguma coisa de lenda.
E essa lenda não é obrigatoriamente
inventada.
Tempo histórico

A História pode servir como mestra, como


professora da- quilo que temos de aprender. A
História não serve apenas para fazermos um relato
do que já se foi. Olhar o passado de uma nação, de
uma parte da nossa Humanidade, nos dá identidade
e também nos proporciona uma série de
ensinamentos a partir daqueles acontecimentos.
No nosso país, especialmente, olhar essa
História nos pos- sibilita aprender várias coisas.
Aquilo que precisa ser olhado para evitar que
aconteça de novo e, acima de tudo, nos orienta, nos
norteia. Porque a palavra “orientar”, quando se fala
em História, se refere ao outro lado do nosso
planeta, o oriental; enquanto “nortear” se refere à
parte de cima do planeta. En- tão, na História,
orientar, desorientar, nortear, desnortear são coisas
que a Humanidade já vivenciou.
O escritor espanhol Miguel de Cervantes
(1547-1616), no século XVII, escreveu, na
segunda parte de sua obra magna Dom Quixote,
que “a História é êmula do tempo, repositória de
fatos, testemunha do passado, aviso do presente,
advertência do porvir”.
O estudo da História, o exame daquilo que já
passou, uma possível tendência do que poderá ser,
uma série de ensinamen- tos que precisamos
observar para não incorrermos em equívo- cos e, é
claro, construir aquilo que nos proteja no futuro.
Olhar a História significa a possibilidade de ter
um apren- dizado que nos engrandece.
Hecatombe

Nós usamos demais em português a palavra


“hecatombe” no sentido de algo que é um desastre
imenso. Todas as vezes que algo nos assusta ou
que tem uma grande magnitude, mes- mo a
expressão “grande magnitude” ser quase uma
redun- dância, porque “magno” já é grande, mas
trata-se da grande grandeza, da grande magnitude,
como quando dizemos “a coisa tá feia”.
A palavra “hecatombe” tem origem no grego
arcaico e está ligada à religiosidade. Na Grécia
Arcaica (outros povos também o faziam, mas os
gregos tinham isso como uma prática) era usual
sacrificar animais para poder honrar os deuses, isto
é, aplacar a fúria dos deuses e, ao mesmo tempo,
atrair a simpatia deles. E animais sacrificados eram,
por exemplo, o bode (daí a expressão “bode
expiatório”, de expiar, purificar), a ovelha ou o
cordeiro. Porém, os animais mais sacrificados eram
os bois, que na expressão arcaica é escrito bous, e
hecatom, em grego, é “cem”, por isso, hecatombe
significa, na origem etimológica, cem bois. Quando
havia algo que assustava, que deixava as pessoas
teme- rosas da fúria que se acreditava ser divina, era
necessário correr o sangue de uma centena de bois.
Por isso, quando essa situação acontecia, era o
que se cha- mava de hecatombe. O sangue de uma
centena de bois para lavar a fúria dos deuses.
De vez em quando, a hecatombe chega perto de
nós e nos assustamos.
Contemporaneidad
e

Há uma frase que não podemos deixar de lado,


que pare- ce óbvia num primeiro momento, mas,
quando aprofundada, ganha amplitude, que é dizer
que “todo ser humano viveu na época
contemporânea”. Por isso, a contemporaneidade é
uma característica de quem vivo ou viva está. Nessa
hora, aproveitar o dia é entender o que significa
essa contemporaneidade, não desperdiçar a nossa
existência. Em alguns momentos, gostamos mais de
aproveitar o dia, curtir, uma expressão antiga ligada
à área de couro, mas que serve para refinar a nossa
percepção.
O dramaturgo francês Armand Salacrou (1899-
1989), que foi influenciado e influenciou o
Existencialismo, dentro da Filosofia, e que
partilhou algumas ideias de Jean-Paul Sartre, dizia
em sua obra A Terra é redonda que “a nossa
existência é a soma de dias que se chamam hoje,
todos. Só um dia se chama amanhã; aquele que nós
não conhecemos”. Afinal de contas, nós só
vivemos o dia que chamamos de hoje, o dia que
nós não conhecemos ainda é chamado amanhã.
O dia que já se foi é só uma percepção
extremamente teóri- ca, que é uma ideia de
passado.
Todos nós, sempre, somos e fomos
contemporâneos.
Alienação

A palavra “alienação” é usada por vezes no


campo da pro- priedade. Por exemplo, em um
financiamento de um objeto móvel ou imóvel,
muitas vezes ele vem com o registro de alie-
nação, isto é, a pessoa tem o uso, mas não a posse,
a proprie- dade está alienada. A palavra
“alienação”, inclusive, foi usada até o século XIX
como sinônimo de demência, de doença men- tal
ou, até, como se chamaria mais tarde, de loucura.
Tanto que o especial Machado de Assis (1839-
1908) tem um conto clássico chamado O alienista.
Hospício, como diríamos em por- tuguês, é asilo de
alienados, portanto, a expressão “alienados”
significa aquele que não pertence a si mesmo.
Fala-se, também, em alienação política, em
relação àque- le ou àquela que não toma
consciência do que acontece à sua volta, e, quando
toma, age de acordo com a manada, não tem uma
percepção clara daquilo que precisa fazer, apenas
segue o bando.
O escritor florentino Dante Alighieri (1265-
1321), na última parte de sua obra clássica
Comédia, em que há o Paraíso, bra- dou: “Sede
homem, sim, mas não obtuso gado”.
A obtusidade costuma acompanhar a conduta como
bando.
Obrigatoriedade da
formação
religiosa

Há uma controvérsia formativa: Deve-se ensinar


religião?
Quem o faz? É a família? É a escola que deve
fazê-lo?
No Brasil, a Constituição Federal, em vigor
desde 1988, prevê que o ensino público tenha no
horário regular das aulas uma disciplina chamada
Ensino Religioso. Essa disciplina é obrigatória
para a escola, mas é optativa para o aluno.
Esse é um ponto controverso, porque há países
em que os professores de Ensino Religioso são
remunerados pelo Poder Público, como é o caso no
Brasil. Há países em que o ensino religioso é
confessional, isto é, de uma religião que a família
da criança escolhe para ter como ensino dentro da
escola. Há outros lugares em que não é permitido
que haja o ensino con- fessional. No Brasil, ele é
vedado pela nossa própria legisla- ção. Há ainda
outros países em que não existe essa disciplina no
dia a dia escolar.
A religião não é obrigatória, mas ela tem uma
presença for- te dentro de todas as sociedades.
O escritor católico Paul Claudel (1868-1955),
diplomata e membro da Academia Francesa de
Letras, dizia que “as crian- ças não devem receber
a religião, têm que pegá-la do meio ambiente,
como se pega o sarampo”. Essa é a postura de um
escritor católico muito respeitado na França no
século XX.
Ele queria dizer que não se deve ensinar, é o
ambiente que deve conduzi-las a essa ideia; ainda
assim, o tema ensino reli- gioso é bastante
controverso.
Xingamento

Há vários povos, nós entre eles, que têm uma


certa predileção pelo xingamento. É só observar no
trânsito o quanto que alguns motoristas se
especializam em xingar, por qualquer movimento,
qualquer situação. Há pessoas, inclusive, que só
conseguem di- rigir xingando. Assim como existem
pessoas que só conseguem gerir outras pessoas na
empresa, no trabalho, xingando.
Entre nós, no Brasil, o uso do palavrão entra
em várias ocasiões de maneira corriqueira. É claro
que o uso intenso do palavrão acaba esvaziando o
sentido original que ele carrega e retira até o seu
uso apropriado. Pode-se questionar: “Mas existe
um uso apropriado para o palavrão?” Há
momentos em que o palavrão cabe muito bem, até
como ofensa deliberada. Mas nós no Brasil temos
algumas coisas que alguns povos es- tranham, uma
delas é o uso do palavrão também como elogio.
Muitos estrangeiros acham estranho, porque a
primeira coi- sa que se aprende em outro idioma é
palavrão, coisa feia. Há pessoas que não estão
habituadas, mas, nós, brasileiros, somos um dos
que mais faz isso. Usamos o palavrão como forma
de elogio. Quando se gosta demais de uma coisa,
um palavrão é solto em alto estilo para quem deu
aquele presente.
Quando gostam muito de alguém, as pessoas se
abraçam e xingam usando até a mãe, a progenitora
daquela pessoa, como uma forma de afeto.
Olha só, o palavrão com sua dupla forma de
sentido, como afago, como afeto, como
agradecimento e também como ofen- sa, como má
palabra, como se diz em espanhol, como maneira
de deturpar aquilo que seria o sentido original.
Simiesco

No nosso idioma, a palavra “simiesco” indica


imitação de algo. Alguns dos símios, que são
primatas como nós – só que nós somos
hominídeos, e eles são símios, sejam os grandes
ma- cacos, os chimpanzés, os gorilas, muitas vezes
o sagui –, têm um comportamento chamado de
simiesco, porque ele é capaz de arremedar, de
imitar a pessoa naquilo que ela está fazendo. O
escritor peruano Luis Felipe Angell (1926-2004)
adotou um pseudônimo que lembra os gregos,
Sofocleto, mas é só uma brin- cadeira dele. Ele fazia
críticas sempre. Críticas sociais, críticas de costumes,
sempre em forma de humor; e ele disse, um dia:
“Não
sei se o homem descende do macaco, mas bem que
merece”.
E o cientista britânico Charles Darwin (1809-
1882), dentro do evolucionismo do século XIX
como teoria, nunca disse que o homem descendia
do macaco. O que ele escreveu é que nós e os
macacos tínhamos parentesco, e ascendentes
comuns, não como descendência idêntica, como se
o ser humano viesse do macaco, mas símios e
hominídeos, primatas como somos, viéssemos do
mesmo ascendente.
Ainda assim, no século XIX, Darwin não
escapou de ser vilipendiado com cartuns e
desenhos que o colocavam como macaco. Até
hoje, as pessoas, de maneira equivocada, afir- mam
que o evolucionismo darwinista faz isso, mas, de
vez em quando, achamos que alguns humanos, de
fato, se aproximam desse comportamento
simiesco.
Alguns, até, quando bebem.
Invenção

Nós somos um animal que tem a capacidade de


inventar, de trazer o inédito. Inventar ferramentas,
meios, isto é, não vi- vemos apenas e tão somente
com o que a natureza nos proveu. Nós não somos
mera biologia que nosso corpo já recebe, de
pronto, como alguns outros animais. Nós fazemos
a extensão do nosso corpo. As ferramentas são a
extensão da força da nos- sa mão, um martelo, um
machado. O uso dos óculos, que au- mentam a
nossa visão. Tudo aquilo que os gregos chamavam
de organon, que gerou a expressão “órgão”. Nós
estendemos os nossos órgãos por intermédio
daquilo que é artificial, que é fruto da nossa arte,
por isso, artifício, artesão. Somos, também,
artesãos e artesãs de nós mesmos.
Benjamin Franklin (1706-1790), um especial
inventor, um dos líderes da revolução e da
independência norte-americana, definiu o homem
como “o que faz ferramentas”. Ele diz: “O homem
é um animal que fabrica ferramentas”.
Isso é tão forte que nem sempre se captura o
sentido mais denso que essa ideia carrega. Nós
somos um animal capaz de criar os instrumentos
de criação.
Claro que isso não pode nos colocar em um
patamar de arrogância, na suposição de que somos
superiores, mas não podemos esquecer que ser
capaz de produzir ferramentas é um sinal de
autonomia, inteligência, desgarramento e inde-
pendência com relação à própria natureza.
Não somos o único animal que faz ferramentas.
Até há pouco tempo, e quando Benjamin Franklin
escreveu isso, o éramos. Hoje há outros que se
sabe que o fazem.
Mas nós somos, sim, o principal animal que faz
ferramentas.
Caminhada

Para nós, vagabundo é o preguiçoso, aquele que


não quer trabalhar, mas, na origem, vagamundo
(que depois gerou para nós a palavra “vagabundo”)
era aquele que saía caminhando, num passeio mais
livre.
Um dia, Mario Quintana (1906-1994) poetou
em uma obra com título ótimo, Sapato florido:
“Ah, não há nada como um pé depois do outro”.
Uma das coisas que nós, humanos, apreciamos
é caminhar. O francês tem uma expressão muito
bonita para isso: prome- nade. Sair para um
passeio, dar uma caminhada, a ideia de poder
andar sem necessidade de se chegar a um destino
es- pecífico. É claro que o caminhar como passeio
é aquele sem necessidade, em que se vai parando,
observando coisas.
É muito agradável poder, em um final de
semana, em uma noite, onde haja segurança, sair
caminhando, parar para ver formiga trabalhar, ver
um pássaro cantar numa árvore, obser- var como
uma flor está crescendo.
Algo extremamente romântico e, nem por isso,
tolo. Ao contrário, a possibilidade do andar um
pouco sem rumo, sem um lugar obrigatório ao qual
se deva chegar, refresca o espíri- to, areja a mente.
Não é só por conta da saúde, da necessidade,
mas do pra- zer, como disse Quintana: “Ah, nada
como um pé depois do outro”, andando, ao léu,
com alegria e refrescamento mental.
Simplicidade

Pessoas, autoridades, lideranças, potentados que


têm algum tipo de poder, de riqueza, de mando
muitas vezes são admira- das pela simplicidade.
Elas vivem de forma simples sem car- regar
qualquer ostentação inútil. Uma das pessoas que
mais tratou do tema da simplicidade, inclusive no
campo da arte, foi Pablo Picasso (1881-1973),
inesquecível pintor espanhol.
Picasso defendia com veemência a percepção
da simplici- dade, inclusive, nas estruturas
geométricas, nas suas grandes produções nas artes
plásticas. É curioso porque, embora tives- se a
pintura como seu veículo para a simplicidade, ele
tinha um nome nada simples: Pablo Diego José
Francisco de Paula Juan Nepomuceno María de los
Remédios Cipriano de la San- tíssima Trinidad
Ruiz y Picasso. Ao adotar Pablo Picasso, ele
clarificou a ideia de simplicidade.
Picasso dizia algo muito inteligente: “Gostaria
de viver como um pobre com um monte de
dinheiro”. Viver como um pobre, isto é, com uma
vida mais simples, mas que ele não tivesse a
miséria, não tivesse carência insolúvel.
Boa a ideia de simplicidade, não ter carências
insolúveis, mas tendo a pobreza como sendo o
ideal também.
O perito

Para designar a pessoa que é especialista em


algum campo de atuação, em português lusitano se
usa o termo “experto”. Em outros idiomas, e
mesmo no Brasil, passou-se a falar mais na
“expertise” de alguém que é um perito.
Nós temos admiração por pessoas que têm
especialidades. Mas é necessário observar que o
especialista não é alguém que nunca se equivocou,
ao contrário.
Nós lembramos muito do físico dinamarquês
Niels Bohr (1885-1962), Nobel de Física de 1922,
que teve ideias muito sé- rias sobre a fissão do
urânio, que foram decisivas para a constru- ção da
bomba atômica. Ele mesmo, embora tenha
participado como teórico e depois como auxiliar de
pesquisa na construção de um armamento atômico,
foi contrário à bomba. Bohr tentou, inclusive,
alertar as autoridades europeias e norte-americanas
durante a Segunda Guerra, para que não se usasse a
fissão do urânio como um armamento. Ainda assim,
isso foi feito.
Niels Bohr dizia que “o perito é uma pessoa
que cometeu todos os erros que podem ser
cometidos num campo muito li- mitado”.
Ser especialista, portanto, não significa que a
pessoa seja imune ao desvio, ao equívoco. Ao
contrário, para ser um espe- cialista também é
necessário saber lidar com os próprios equí- vocos,
deslizes, erros, num campo limitado, pois é isso que
dará essa marca a um especialista.
Erudição

Erudito é aquilo que não tem aresta, que não


tem rudeza. Uma coisa erudita é aquela em que
conseguimos dar um poli- mento e, portanto, tirar
qualquer rugosidade, qualquer tipo de saliência.
Muita gente não imagina que a palavra “erudição”
tenha esse sentido, mas uma pessoa erudita é uma
pessoa que, na origem, seria polida, da qual se
tirou a rudeza.
É claro que uma pessoa polida é também
entendida como educada, escolarizada ou formada
por muita literatura. A erudição, no entanto,
carrega um risco, que é a pessoa ficar pedante. Há
muita gente erudita marcada pela simplicidade,
pela capacidade de comunicação e repartimento,
mas também há muita gente que, pela erudição,
acaba ficando de nariz em- pinado e constrói uma
trajetória orientada pelo pedantismo.
Confúcio (551 a.C.-479 a.C.), inconfundível
pensador do Oriente, escreveu: “Quando a
natureza excede a cultura, nós temos o rústico;
quando a cultura excede a natureza, nós te- mos o
pedante”.
O que ele quer dizer com natureza? Quando a
brutalida- de, isto é, o nosso modo mais animal de
ser, excede a cultura, nós teremos aquilo que é só
rústico, que chamamos de bruto. Quando a cultura
excede a natureza, nós temos o pedante.
Ainda que nos chamemos de animal racional,
vez ou outra, esquecemos que somos um ser da
natureza e continuamos um ser mortal.
Ordem metódica

Método é coisa boa, ajuda a estruturar e a


ordenar as coisas, impede a bagunça e o desvio do
objetivo da atividade que está sendo feita.
Algumas pessoas levam essa ideia da ordem
metódica a algo que ultrapassa a nossa capacidade
de compreensão mais ime- diata. Por exemplo,
pensar, agir, comer, dormir, e alguns defen- dem que
isso seja feito exatamente nessa ordem.
William Blake (1757-1827), um dos maiores
poetas e pintores ingleses, autor de quadros sacros
extremamente impactan- tes, no final do século
XVIII publicou um livro sobre religião, chamado
Matrimônio do céu e do inferno. Nessa obra, ele
es- creveu: “Pensa de manhã, age ao meio-dia,
come à tarde e dorme à noite”.
Pensa de manhã, use a manhã para o
pensamento do traba- lho; come à tarde, após ter
desempenhado todas as tarefas, e dorme à noite.
Algumas pessoas se dedicam apenas e tão
somente a uma delas e não usam ordem alguma.
Outros dormem demais ou pensam demais ou
comem demais ou têm um ativismo, uma ação
contínua.
Bela ordem, pensar, fazer, comer, dormir; não
obrigato- riamente nessa sequência, mas era isso
que defendia William Blake.
Distração atenta

Como é possível distrair-se de maneira atenta?


As duas coi- sas, em si, constituiriam o que em
Língua Portuguesa chama- mos de “oximoro”, a
junção de termos contraditórios, como no caso de
“subir para baixo”.
De fato, distração atenta carrega em si uma
contradição.
No entanto, o poeta carioca Dante Milano
(1899-1991), no livro Poesia e prosa, registrou
uma sentença que considero es- pecial: “Pensador
é quem pensa pensamentos. Inventar pensa-
mentos é uma distração. Embora pareça arte de
filósofos, ser sábio é distrair-se com tudo, é estar
sempre distraído, ou me- lhor, atento. Estar atento
a tudo é a maior distração”.
Isto é, estar atento a tudo nos permite, o tempo
todo, pres- tar atenção, e isso distrai.
Em outras palavras, permite que sejamos
capazes de des- comprimir o peso e a tensão em
nosso cotidiano.
Esse pensamento que, ao ficar atento a todas as
coisas, nos distrai imensamente.
À flor da pele

Quando o final de semana vai chegando, somos


tomados, vez ou outra, pela seguinte sensação:
“Estou cansado, não aguento mais essa cidade, não
suporto o trabalho, não aguen- to o barulho, a
poluição, estou com os nervos à flor da pele”. Essa
reação é epidérmica. Aliás, muita gente tem a pele
como órgão de choque.
Não é incomum que pessoas, submetidas a
algum tipo de tensão muito forte, tenham algum
tipo de reação na pele, al- guma urticária, coceira
ou desenvolvam até algumas doenças autoimunes,
como é o caso da psoríase.
O poeta francês Paul Valéry (1871-1945) tem
uma obra com um ótimo título: Pensamentos
maus e outros; e ele dá uma definição da pele que
eu acho muito densa. “A pele humana separa o
mundo em dois espaços: o lado das cores e o lado
das dores.”
O lado das cores seria o lado externo a nós, e o
lado das dores é o lado interno, dentro de nós.
É a possibilidade da corporeidade nos permitir
fruir o mun- do, dado que o corpo que somos e
temos é o que nos coloca no mundo com as cores
que ali estão. Mas, também, esse mesmo corpo
excede de dores.
Poesia e
encantamento

Alguns padeceriam da ideia de que a poesia é


inutilidade. Mas ela tem uma bela inutilidade, que
é não ter a necessidade de ser útil, pragmática.
Ela não precisa nos servir, a não ser para nos
encantar, para nos iluminar.
O poeta paranaense Eno Teodoro Wanke (1929-
2001) era também engenheiro e atuou por muito
tempo na área de petróleo.
Em 1981, ele publicou uma obra chamada
Reflexões maroti- nhas, em que escreveu algo que
eu gosto de lembrar quando penso em poesia: “É
fácil distinguir entre o verdadeiro e o fal- so
poema. O falso poema permanece escrito ou
impresso na página, o verdadeiro poema salta
palpitante de vida e alma e fica, para sempre,
escrito em nós, morando na gente, lembrado na
memória, sentido no coração”.
Olha que critério bom!
A poesia como encantamento, como aquilo que
nos retira da obviedade, aquilo que nos coloca na
capacidade do espanto e, ao mesmo tempo, nos
agrada.
Taumaturgia

Muitas vezes o substantivo “taumaturgo”


aparece como um nome próprio. Taumaturgo é
aquele que faz milagres, que é prodigioso.
Taumatus, no grego arcaico, é um antepositivo
para a palavra “milagre”.
É muito forte que haja pessoas que aguardam
milagres no dia a dia. Isto é, que o milagre
aconteça no campo da ação pública, na carreira, na
escola. Há um pensamento passível de aceitação
no campo das religiões, de que quem tem fé deseje
uma intervenção e resolva algo de maneira
milagrosa, prodi- giosa. Nós, quando crianças,
quando tínhamos uma prova a fazer, um trabalho
para entregar, sonhávamos com o milagre que
podia ter duas naturezas, ou que o trabalho
aparecesse pronto ou que fôssemos iluminados
durante a prova, mas também outro tipo de milagre
que era a professora faltar ou acontecesse alguma
situação que cancelasse a aula.
Aquelas coisas que são meio milagrosas e que
ficamos de- sejando, não só da crença, também
requerem esforço.
Vários dos nossos antigos diziam: “Quanto
mais você trei- na, mais milagres terá na sua vida”.
Há a compreensão do milagre que algumas
religiões têm como sendo fruto de uma intervenção
sagrada. Ainda assim, no nosso dia a dia, olhar o
milagre como algo que vai resolver sem esforço é
meio estranho.
Independência

Ser livre, não ter amarras, não ser possuído por


algo que nos aprisione é um desejo muito forte.
Vinicius de Moraes (1913-1980), com aquela
capacidade de cantar e encantar, de fazer poesia,
literatura de alto nível, em Antologia poética, dizia:
Mais do que a mais garrida a minha
pátria tem Uma quentura, um querer
bem, um bem
Um Libertas quae sera tamen
Que um dia traduzi num exame
escrito: “Liberta que serás também”.
E repito!
Atualmente, sabemos que a frase Libertas quae
sera tamen significa “Liberdade, mesmo que
tardia”, mas essa versão, que é quase óbvia,
“Liberta que serás também” tem muita força na
poesia de Vinicius.
Eu gosto demais também da terminação da
poesia, em que ele diz: “E repito!”
Isto é, traz de novo, reafirma, marca com muita
alegria que aquele que liberta, aquele que solta as
amarras de si também o faz com os outros.
E, nesse sentido, uma sociedade livre é aquela
em que to- dos e todas o são.
Se alguém não o for, ninguém o será.
Transigência

Elasticidade, a capacidade de ter flexibilidade


naquilo que se faz, naquilo que se pensa, naquilo
que se planeja. Há uma transigência que é muito
ruim, quando nós admitimos afrou- xar as regras
éticas, os comandos que fazem parte do nosso
dever, a disciplina necessária a uma convivência
mais saudá- vel. Há, no entanto, um nível de
elasticidade, um nível de tran- sigência que é
necessário. Quando não conseguimos transigir nos
nossos projetos, é um sinal de perda de
versatilidade na- quilo que será feito.
O escritor latino Publilio Siro (85 a.C.-43 a.C.),
no século I a.C., escreveu nas suas sentenças: “O
plano que não pode ser mu- dado não presta”.
Afinal, um plano é uma antecipação organi- zada,
um planejamento, uma maneira de prever as
condições, situações, adversidades, obstáculos e
facilidades de algo que se deseja fazer.
Mas um plano pode, sim, ser mudado. E, mais
do que po- der, ele tem que conter essa
possibilidade. Seja um plano em relação à família,
à vida em geral, à carreira, ao estudo, ele não pode
ter, de maneira alguma, uma amarração que
constranja.
Um projeto é algo que precisa ter dentro de si a
capacidade de mudança, se assim for necessário
para não engessar.
Se um plano não pode ser mudado não
presta.
Paradoxo

O termo paradoxo é usado para designar aquilo


que parece não fazer sentido. O termo doxa no
grego antigo significa “opi- nião”, e para quer dizer
“lateral”, algo que sai daquilo que vai numa única
direção. Daí a ideia de paradoxo é aquilo que fica
meio lateralizado, algo que aparentemente não faz
sentido.
Mas é preciso pensar na própria ideia de
paradoxo, porque também nos faz avançar, nos faz
crescer, perturba uma visão acostumada com
coisas muito familiares. O paradoxo ajuda a inovar
vários de nossos modos de olhar, de fazer e de
pensar.
O filósofo espanhol Miguel de Unamuno
(1864-1936) lem- brava o que é o paradoxo: “Uma
palavra que os tolos inventa- ram para aplicá-la a
tudo que ouvem pela primeira vez. Para Adão,
tudo seria paradoxo, ou melhor, nada o seria”.
Parece, de fato, paradoxal. Por que nada o seria?
Porque ele não teria referência. O paradoxo exige a
existência de uma ou- tra coisa à qual se possa
compará-lo. Adão, no sentido de ser
simbolicamente o primeiro ser humano, não teria
como fazer de outro modo, afinal, tudo para ele
seria, de fato, a primeira vez. Isso continua dentro
da matemática, dentro da ciência, dentro da religião,
dentro dos afetos, fazendo parte da nossa existência.
O paradoxo nos perturba, às vezes nos ajuda, mas,
sem dú-
vida, consegue nos surpreender.
Polícia e política

As expressões “polícia” e “política” têm a


mesma origem etimológica, ambas estão conectas
ao radical polis, comunida- de, lugar de vida junto.
Para o mundo clássico grego, a política era o modo
como a vida era organizada numa comunidade,
numa polis. E, deste ponto de vista, a polícia era
uma das estruturas da polis para que se pudesse
manter os objetivos daquela comunidade; portanto,
sustentar uma determinada ordem dentro dela.
Nesse sentido, a ideia de polícia, na ori- gem, tem
uma positividade que não pode, de maneira algu-
ma, ser descartada.
O imperador francês Napoleão Bonaparte (1769-
1821), em vários momentos extremamente
ditatorial, que lançou mão da polícia para implantar
a sua política, dizia que “a arte da polícia é não ver o
que é inútil que ela veja”. Isto é, a discrição. A
frase é muito boa, e ela funcionaria muito bem em
uma democracia. Uma sociedade que, vivendo a
partir de uma ordem, de um consenso, só precisasse
da polícia em intervenções pontuais, porque no
restante do tempo a comunidade manteria a própria
ordem. Isto é, o governo de si e dos outros
aconteceria de forma
menos marcada pela ruptura ou pela intervenção da
força.
Por isso, polícia e políticas estão ligadas, às
vezes bem, ou- tras vezes, não.
Reflexão

Fazer voltar sobre si é flexionar.


Reflexão é a ideia de voltar o pensamento sobre
o próprio pensamento; pensar sobre aquilo que
estava sendo pensado de maneira a evitar a
precipitação, a intempestividade, a palavra ou a
ideia que não deva ser exposta.
Alain, um dos pseudônimos adotados pelo
filósofo francês Émile-Auguste Chartier (1868-
1951), ficou conhecido como um grande
especialista em aforismos.
Em sua obra História de meus pensamentos, de
1936, ele es- creveu uma frase muito boa: “A coisa
mais difícil do mundo é dizer pensando o que
todos dizem sem pensar”, ou seja, a capacidade de
meditação, de ser capaz de frear um impulso de se
colocar algumas ideias de forma imediata.
Uma parcela significativa da boa reflexão é
aquela que re- sulta de um pensamento prévio
sobre o próprio pensamento, da capacidade de
pensar aquilo que vai ser proferido e, portan- to, de
evitar um desatamento, uma hemorragia
verborrágica, e sustentar, com densidade, o que se
pretende dizer.
Sacudir as
certezas

Algo que precisa ser feito com relativa frequência


é dar uma limpada nas nossas certezas, sacudir um
pouco aquilo em que acreditamos como invencível
ou, para usar um termo que agora existe no nosso
idioma, imexível, aquilo que se entenderia como
intocável. As nossas certezas só podem se confirmar,
ter mais so- lidez, quando podem ser sacudidas.
Estou usando a expressão sacudir as certezas
porque um dos ditados árabes que eu mais aprecio é
aquele que diz: “Homens são como tapetes, às vezes
precisam ser sacudidos”. Homens so- mos como
tapetes, às vezes precisamos ser sacudidos, tal como
pessoas mais antigas faziam – e ainda se faz hoje em
dia, embora os materiais tenham mudado – quando
os tapetes mais clássicos eram pendurados em um
varal e ali se batia o tapete, se sacudia, para tirar dele
tudo aquilo que não servia mais, que era mero
resíduo.
Evidentemente, por ser uma parte da população
de origem árabe especializada na elaboração de
tapetes, um ditado como esse fica muito mais
apropriado dentro dessa comunidade que,
historicamente, produziu belezas na tapeçaria e sabe
bem o que significa essa percepção. Homens como
tapetes, ao sacudi-los, ser capaz de tirar o que já não
serve mais, a sujeira que se acumulou.
No nosso caso, várias de nossas certezas, como
os tapetes, têm que ser sacudidas vez ou outra.
Sacudir para pensar melhor.
Ponto de vista

Não é incomum que se diga que um ponto de


vista repre- senta a visão de um indivíduo. É
verdade, mas o ponto de vista ajuda a construir um
cenário, uma paisagem de multipli- cidades ou,
para usar uma expressão que eu gosto na poesia,
uma teia de compreensões.
O poeta gaúcho Mario Quintana (1906-1994)
brinca com essa ideia do ponto de vista na obra
Espelho mágico, em um pe- queno poema que diz
o seguinte: “A mosca a debater-se: ‘Não, Deus não
existe! Somente o acaso rege a terrena existência!’
A aranha: ‘Glória a ti, Divina Providência, que
minha humilde teia essa mosca atraísse’”. A teia lá
está, a mosca e a aranha encontram-se em
posições absolutamente diversas de per- cepção,
mas no mesmo lugar.
Isso define o ponto de vista.
Nós costumamos dizer, também, que “o melhor
modo de apreciar o chicote é ter-lhe o cabo na
mão”. Essa é uma frase da literatura até o século
XIX, em que ainda havia o hábito de chicotear. A
chibata como meio de disciplina, felizmente já
retirada.
Por isso, é preciso prestar atenção na
diversidade que o ponto de vista carrega, do lugar
onde se está e qual é a inten- ção que ali se tem.
Formação de caráter

Caráter é aquilo que nos marca. No português


lusitano, ainda se usaria o antigo “c” para caracter,
que acentua esse significado. “Característica” é
aquilo que deixa gravada algu- ma coisa. Por isso,
a formação do caráter, aquilo que nos dá
identidade, que nos assinala, é algo que não nasce
pronto, vai sendo construído no nosso dia a dia,
não é algo que venha por mera genética e vai
passando indefinidamente.
Thomas Paine (1737-1809), um político
britânico, que tam- bém colaborou para a
independência norte-americana e para a produção
do tipo de democracia que se construiu a partir do
século XVII, tem uma obra chamada Senso
Comum. Nela, Paine escreveu: “Ao planejarmos
para a posteridade, devería- mos lembrar-nos de
que a virtude não é hereditária”. Não há
hereditariedade na virtude, ela não é herdada, não
é algo que se passa adiante, não faz parte da
genética.
Seja a virtude, seja o vício, não há uma
hereditariedade do ponto de vista de caráter. É
claro que nós podemos falar de hereditariedade do
vício, no que se refere ao campo da Bio- logia,
aquilo que é congênito para alguns e que nasce
como herança para outros. Mas, se estamos
falando em Biologia, já não vale pensar aí em
vício, vale pensar em característica por
nascimento, porque vício, de fato, é uma escolha.
Vez ou outra se fala de vício quando não é. É,
sim, resultan- te de algo que faz parte da natureza
daquela pessoa e que ela tem dificuldade para
escapar.
O vício, como a virtude, resulta de formação e de
escolha.
Provocar o senso
comum

Nós temos muitos ditados populares que soam


como obvie- dades. Um dos mais antigos é: “Pau
que nasce torto morre tor- to”. Essa máxima serve
inclusive para advertir pessoas e para dizer que não
há saída para algumas situações; se é daquele jeito
é daquele jeito.
Poucas vezes se faz um elogio a essa
característica que o peda- ço de madeira pode ter.
O poeta paranaense Eno Teodoro Wanke (1929-
2001) conse- gue nos tirar do senso comum. Ele diz:
“Vejamos o pau que nasce direito. Vira o esteio de
casa. Passa a vida toda sustentando um telhado
qualquer sem descansar um minuto. Só deixa de
traba- lhar quando roído pelo tempo, pelo cupim,
pela podridão ou in- cêndio. Se abate e não serve
mais para nada, a não ser para uma chaminha na
lareira. Pau que nasce torto, não. Pau que nasce
torto é, no mínimo, um lindo enfeite”.
Olha como alguém é capaz de pegar algo que
pareceria abso- lutamente óbvio como a frase: “Pau
que nasce torto morre torto”, sendo uma advertência
de uma coisa negativa, e transformar a ideia,
mostrando que o pau que nasce direito tem apenas
serven- tia e não embeleza, e um dia se tornará
inútil, mas como disse Eno Wanke, pau que nasce
torto pode até virar enfeite.
Claro que a beleza desta construção não está,
evidentemente, no campo da ética, do costume, mas
está na possibilidade de in- ventar em cima da
estética.
Coisa boa.
Desvio de foco

Por vezes, colocamos o olhar fora da referência


que seria mais apropriada, mais evidente. Seria o
caso de preferir a có- pia da flor em vez da própria
flor. A primavera é um período do ano, apreciado
por muitos, em que parte das flores ganha mais
exuberância. Mesmo nas metrópoles, em que o
asfalto e o concreto são dominantes, ainda assim,
há uma expressão mais forte da natureza. É até
curioso que muita gente nem preste atenção a essa
natureza.
O filósofo e matemático francês Blaise Pascal
(1623-1662) escreveu na sua clássica obra
Pensamentos uma frase que nos ajuda a refletir:
“Que vaidade a da pintura que atrai a admiração
pela semelhança com coisas cujos originais não
são admirados”.
Muita gente, de fato, para na frente de um
quadro, que pode ser belo, mas deixa de olhar para
aquilo que é o original. Há pessoas que preferem
observar a beleza de uma planta artificial, de
plástico, do que admirar uma planta real, viva. Há
vários estudos, inclusive no campo da
neurociência, que mos- tram que nosso corpo e
cérebro se acalmam com a capacidade
de fruir a natureza e sair da artificialidade.
Mesmo assim, ainda há quem prefira a cópia da
flor em vez da flor.
E o encanto da pintura talvez venha de atrair
essa admira- ção mais pela cópia do que pela
realidade.
Preferência

Preferir significa recusar outras coisas. A


preferência é sem- pre uma escolha arbitrária, não
porque não haja critérios, mas porque esses critérios
recusam algumas coisas e aceitam outras.
Desse ponto de vista, toda a preferência tem
uma marca do olhar do indivíduo ou de um
pequeno coletivo.
O escritor norte-americano Mark Twain (1835-
1910), autor de grandes obras (entre elas As
aventuras de Tom Sawyer, Huckleberry Finn, que
eu li sempre com muita alegria) tinha uma
preferência que eu não tenho, por isso a escolha é
ar- bitrária.
Ele dizia que preferia o jornalista ao poeta:
“Palavras sobre a guerra de pessoas que estiveram
em uma guerra são sempre interessantes. Palavras
sobre a lua, de um poeta que nunca es- teve na lua,
têm toda a probabilidade de serem enfadonhas”.
Mark Twain preferia um jornalista a um poeta ao
supor que a veracidade procurada pelo jornalista era
muito melhor do que o encantamento almejado pelo
poeta. Falar sobre a lua sem nunca ter estado na lua,
dizia Mark Twain, tem pouco valor. Falar sobre a
guerra nela estando, esse sim, seria um
conhecimento legítimo. As duas coisas são
importantes, mas a escolha, como eu dizia, é
arbitrária. Mark Twain pode até preferir o jornalista
ao poeta.
Algumas pessoas, eu entre elas, preferimos
ambos, cada um ao seu modo, construindo uma
maneira de dizer ao mun- do, uma maneira de
expressar a nossa capacidade humana de olhar com
vários olhares, com várias percepções.
Reação inteligente

Lembro sempre de uma história contada pelo


escritor Érico Veríssimo (1905-1975) na sua obra
Solo de clarineta, sobre Pi- nheiro Machado
(1851-1915), um gaúcho muito influente na
primeira república no Brasil, especialmente nos
governos de Nilo Peçanha e de Hermes da
Fonseca. A história relata que, certa vez, o senador
Pinheiro Machado respondeu ao chofer, que
perguntara se devia levar o automóvel mais
devagar ou mais depressa no meio de uma
multidão que esperava a sua passagem para vaiá-
lo, para protestar contra ele.
Nesse dia, segundo Érico Veríssimo, Pinheiro
Machado disse ao motorista: “Não vá nem tão
depressa, no meio dessa multidão que possam
pensar que eu estou com medo, nem tão devagar
que possa parecer provocação”.
Eu não sei como o Érico Veríssimo registrou
essa percep- ção, provavelmente teria de ser a
partir do motorista, mas, ain- da assim, é de uma
inteligência especial.
É uma reação extremamente bem-humorada e
inteligente a uma circunstância que não era
agradável de ser vivida.
Mas a reação inteligente a algum tipo de
infortúnio sempre agrada.
Término

Quando o ano vai acabando, o mês vai


acabando, vez ou ou- tra, pensamos: “Agora é tarde,
já passou; o que eu posso fazer?” É um modo de
dizer que as coisas se foram, portanto, se trans-
formaram em passado.
Millôr Fernandes (1923-2012) escreveu um dia
no jornal O Pasquim: “O passado é o futuro
usado”.
Ambos são de grande e saudosa memória, tanto
Millôr Fer- nandes quanto o jornal, que foi decisivo
naquilo que se chama- va de contracultura e, ao
mesmo tempo, de oposição ao go- verno ditatorial
no final dos anos de 1960 e boa parte dos anos de
1970, formou gerações, um jornal que juntou uma
parcela grande dos jornalistas, da inteligência, dos
artistas brasileiros daquele momento.
Eu acho que, quando da existência de O
Pasquim, nos anos de 1970, não se imaginaria,
naquele momento de enfrentamen- to de uma
situação mais ditatorial, de ausência de democracia,
que nós pudéssemos ter um futuro que fosse
diferente, mas que agora, de fato, é um passado
usado.
A expressão “já passou” tem, de um lado, um
nível de re- conhecimento do que já foi, por outro
lado, tem um nível de lamentação também. No
entanto, só é possível notar quando é para lamentar
depois que passou.
E o futuro tem que ser pensado antes.
Morbidez atraente

Morbidez é algo ligado à doença, àquilo que é


patológico, o que desvia daquilo que
gostaríamos, mas há uma atração na morbidez.
Tem gente que, quando está na estrada e vê um
grande congestionamento, logo fica imaginando
um aciden- te imenso. E aí começa uma luta
interna, deseja que não seja, mas deseja também
que seja, porque quer passar, olhar, pres- tar
atenção e se passa no local onde o trânsito estava
travado e encontra apenas uma obra sendo feita,
tem alguma frustração. A morbidez nos dá uma
certa ligação com o que é desor-
denado.
O escritor irlandês Oscar Wilde (1854-1900)
dizia: “Perver- sidade é um mito inventado por
gente boa para explicar o que os outros têm de
curiosamente atrativo”.
Por isso, precisamos, sim, cautela, para não
chamar de perverso algo que nos atrai. E é porque
nos atrai que teme- mos que nos atraia, e aí, como
projetivos que podemos ser, acabamos chamando
de perversidade algo que, porque não possuímos,
consideramos fora da ordem, mas que, em grande
medida, pode ser um desejo.
Sem entrar no âmbito da psicanálise, que é um
campo que eu não domino, mas trazendo aquilo que
é uma projeção de algo que não se quer querer, não
se quer querer, mas que se quer.
Nessa hora, há uma morbidez muito forte
chamada de per- versidade.
Reducionismo
mental

Enxergar as coisas por um único ângulo é deixar


de observar a diversidade de possibilidades, ficar
centrado em si mesmo no momento de fazer ciência,
de fazer trabalhos.
O escritor francês Anatole France (1844-1924),
ganhador do Nobel de Literatura em 1921, tem um
livro muito importante, que é O jardim de Epicuro.
Nessa obra, que faz menção ao filósofo grego, ele
dizia: “Chamamos de perigosos os que têm o
espírito feito diferente do nosso e, de imorais, os
que não têm a nossa moral. Chamamos de céticos
os que não têm as nossas próprias ilusões sem
mesmo nos preocuparmos em saber se têm outras”.
Forte essa reflexão porque nos ajuda a entender o
quanto que a perspectiva de observar aquilo que está
na visão de outra pessoa nos ajuda a aclarar a nossa.
“Chamamos de céticos os que não têm as nossas
próprias ilusões...”, e é claro que ele não está
fazendo esta referência à toa, porque, se há uma
coisa que Anatole France conseguiu na sua
literatura, foi ser chamado de
grande escritor do ceticismo.
O cético não é aquele em que nada acredita, mas
aquele que, do ponto de vista da Filosofia, só
acredita naquilo que pode ser provado.
E como acha que nada pode ser completamente
provado, prefere não acreditar.
Acaso e
providência

Coisas que conosco acontecem às vezes são


resultantes de uma simultaneidade ou uma
sincronicidade, como diz uma parte da ciência na
área da Física.
Coisas que aconteceram ao mesmo tempo, que
foram coin- cidentes, situações que vieram
juntamente e que deram a im- pressão de que
houve uma ajuda divina, que acabou cuidando da
situação, isto é o que também chamamos de
coincidência, quando a alternativa dada a alguma
situação, a algum tipo de infortúnio, é marcada por
uma solução que não necessaria- mente se
esperava.
Acaso ou providência?
Nicolas de Chamfort (1741-1794), na sua obra
Máximas e pensamentos, afirmou: “Alguém dizia
que a Providência era o nome de batismo do acaso.
Algum devoto dirá que o acaso é o apelido da
Providência”.
Muita gente entende a Providência, com “P”
maiúsculo, quando alguns escrevem, como um
auxílio de forças que são anteriores e superiores a
nós. Alguns entendem, inclusive, Providência
como uma divindade que pode auxiliar, apoiar,
cuidar e, também, punir.
Desse ponto de vista, quando Chamfort lembra
isso, está colocando duas das possibilidades que,
de um lado, a ciência indica como um caminho e,
por outro lado, a religião sugere como uma
possibilidade de fé na qual as pessoas creem em al-
guma força que é muito maior do que nós, homens
e mulheres. E, portanto, essa pessoa não acredita
em mera coincidência.
A ciência acredita.
Criança

Todos e todas já fomos crianças, alguns


deixamos de sê-lo, outros ainda mantêm algumas
características do mundo da infância, e nem
sempre se presta atenção na própria palavra.
Porque “criança”, “crianção”, “criação” é algo que,
como obje- to de uma síncope da expressão, acaba
gerando a ideia de algo que está se criando, isto é,
aquilo que está juntando forças para um
movimento de geração.
Criança é aquilo que ainda está em nível de
criação, que está sendo criado. E se há uma coisa
que nos emociona é a possibilidade de poder
brincar com uma criança que não tem nenhum
outro compromisso a não ser com o momento,
com o instante que está vivendo, aquela coisa
gostosa de não ter obrigações.
Em vários momentos da nossa vida, quando
estamos sem obrigação, até nos comportamos
como crianças, passamos a brincar em várias
situações e brincar é sinal de inteligência.
O poeta paulista Guilherme de Almeida (1890-
1969), nas- cido na cidade de Campinas, fez um
verso que eu considero absolutamente certeiro
sobre a infância: “Um gosto de amora comida com
sol. A vida chamava-se agora”.
Essa definição da vida como o agora é o que
caracteriza a infância; “um gosto de amora que é
comida com sol”.
Isso nos traz a possibilidade de entendermos o
que signi- fica esse crescer e, ao mesmo tempo,
percebermos os sabores que conosco ficaram.
Imbecil

Chamar alguém de imbecil é um dos


xingamentos predile- tos, inclusive no trânsito, nas
grandes cidades do nosso país. Não é incomum
alguém, ao volante, gritar “seu imbecil”. A ideia
de menosprezo à inteligência de outra pessoa vem,
exa- tamente, da utilização desse tipo de
qualificativo.
A imbecilidade como um estado de redução
mental em que a pessoa se aproxima não da
demência, mas da tolice, da bur- rice. Ou, para
usar um termo da literatura do século XIX, da
“parvoíce”.
Uma pessoa parva é marcada pela redução da
capacidade de raciocínio.
Chamar de imbecil acaba servindo, inclusive,
para um xin- gamento interno, seja no mundo do
trabalho, seja na convi- vência. Muitas vezes não
se fala a palavra, mas se pensa “que imbecil”.
Claro que dá para pensar sobre si mesmo. O
escritor Leon Eliachar (1922-1987) inverteu um
pouco o óbvio ao lembrar que “imbecil é o sujeito
que nunca concorda conosco ou con- corda
sempre”.
A imbecilidade entendida como uma forma de
ofensa é, acima de tudo, algo que pode ser
aplicado tanto quando me refiro a alguém que não
pensa como eu, mas também a al- guém que pense
só como eu, e se eu suponho que também tenho a
capacidade, e o tenho, de ser imbecil, isso me
coloca num patamar de igualdade e de junção.
Ilusão das aparências

Nem sempre as coisas são aquilo que parecem.


Nem sem- pre o caminho mais familiar, o mais
aplainado, o com menor aresta para o pensamento
é o caminho correto. Aquilo que é marcado pela
obviedade e vem à tona como sendo a única
possibilidade, não encontra essa condição nem na
natureza nem na experiência da Humanidade.
Nem sempre aquilo que parece é, de fato, o
que é.
Basta lembrar algo marcante no campo da
natureza. O jor- nalista norte-americano H.L.
Mencken (1880-1956), que, aliás, atravessou a
primeira metade do século XX com uma série de
frases satíricas, dizia que “idealista é quem,
notando que uma rosa cheira melhor do que um
repolho, conclui que ela é tam- bém mais
nutritiva”.
Olha como é perigoso contentar-se apenas com
a aparência. Algumas coisas que exalam não só um
perfume, mas uma sen- sação de conforto, não
obrigatoriamente representam o me- lhor que a
gente consegue e precisa.
Às vezes, também, há uma aparência de
facilidade, em vá- rias circunstâncias, que precisa
ser deixada de lado.
Retomando este pensamento do Mencken, a
rosa pode até ter um aroma melhor do que o do
repolho, mas ela não é mais nutritiva do que ele,
por isso, a facilidade não é o único cami- nho, nem
sempre o prático é o certo.
Muitas vezes, o prático e o óbvio são apenas o
prático e o óbvio, não obrigatoriamente o correto.
Idiossincrasia

Idios, no grego arcaico, significa próprio. Há


muitas pala- vras ligadas a isso, como
“identidade”, “idiopatia” e “idios- sincrasia”, que é
aquilo que é mais particular dentro dos parti-
culares. Em outras palavras, idiossincrasia é aquilo
que só eu sinto do modo que sinto.
Não é incomum encontrar pessoas que são mais
idios- sincráticas ainda, ninguém tem dor de
cabeça como ela tem, ninguém se mata no trabalho
como ela se mata, ninguém tem problema como
ela acaba tendo; portanto, esse tipo de particu-
laridade, de propriedade que está marcada dentro
de cada um e de cada uma, é um termo que se usa
no campo da ciência, da psicologia, da psiquiatria,
da psicanálise e da filosofia.
Aquilo que é uma particularidade que alguns
transformam em exclusividade, ou seja, “só eu sinto
isso, ninguém é como eu sou”. Claro que nós temos
uma identidade que nos diferencia, mas também
temos pontos de contato e de coincidência com
outras pessoas. Ainda assim, a idiossincrasia leva a
que não se
pense desse modo.
Ramón Gómez de la Sierna (1888-1963), escritor
e jornalista espanhol, que durante a ditadura
franquista se exilou em Buenos Aires, cidade na qual
morreu, tem uma frase muito instigante so- bre isso:
“A idiossincrasia é uma enfermidade sem
especialista”.
Afinal de contas, se idiossincrasia é o modo
particular das minhas particularidades, não há
como alguém poder tratar esse tipo de coisa,
porque teria que entender de mim como eu mesmo
me entendo.
Originalidade

Há pessoas que são criativas na cópia, criativas


na capaci- dade de imitação, mas isso, de maneira
alguma, gera autenti- cidade.
Ser original não é impossível, mas é
extremamente difícil. E os campos da arte, da
literatura, da ciência, dos projetos no mundo dos
negócios, exigem de nós a capacidade de criativi-
dade e, especialmente, de originalidade.
O nosso modo próprio, a nossa maneira de
escrever, de pensar, de agir, nos dá uma grande
possibilidade de autenti- cidade.
Quem abordou muito bem esse tema foi o
francês Victor Hugo (1802-1885), um dos mais
originais escritores que já ti- vemos. Na obra
Montão de pedras, ele aconselha: “Não imiteis
nada nem ninguém. Um leão que copia um leão
torna-se um macaco”. Isto é, ele deixa de ser o que
é para ser imitativo e até se diria, simiesco.
Inspirar-se é diferente de copiar. Quando lemos
uma obra, quando penetramos num poema, quando
vemos um projeto feito, quando, por exemplo,
Albert Einstein estuda toda a pro- dução de Isaac
Newton, no século XVII, ele não copia, ele se
inspira, parte dali e confere o seu próprio modo de
ser e pro- duzir.
Isso é autenticidade, é originalidade, o que é
diferente de mera copiação.
Frustração

Frustração é aquele sentimento de desalento


quando algo desejado não acontece. Ficamos
desalentados, sem inspiração, sem ânimo,
especialmente quando algo poderia ter sido e não o
foi, portanto, fica no campo das possibilidades
perdidas.
Robert Mallet (1810-1881), um geólogo
irlandês, que estu- dou o movimento dos
terremotos, hoje a gente chamaria de sismólogo,
escreveu: “O que mais desespera não é o impos-
sível, porém, o possível não alcançado”.
Aquilo que está no nosso horizonte de
viabilidade, de pos- sibilidade e, ainda assim, não
se realiza.
Aquela clássica frase que muita gente diz, que é
“morrer na praia”, chegar a determinado ponto,
vislumbrar o local onde se conseguiria o êxito e
não atingi-lo. Muito mais, lem- brou Mallet, do
que a impossibilidade, a desesperança vem em
grande medida quando o que poderia ser alcançado
não o é.
E aí gera uma frustração, especialmente porque
o possível não alcançado acaba sendo uma
avaliação, uma forma de au- toconhecimento, algo
que não é só o que não se fez, mas é o que poderia
ter sido feito e, ao não ser feito, diminui a autoima-
gem e a capacidade de quem chegou perto, mas
não realizou seu intento.
Inversão desejada

Trocar de lugar de bom grado nem sempre é


possível. Prin- cipalmente quando outra pessoa está
no lugar que gostaríamos de estar porque lá é muito
bom. Há várias situações na vida em que
desejaríamos a inversão de situações.
Uma delas foi lembrada, de maneira muito
apropriada, por Niceto Alcalá-Zamora (1877-1949),
jurista espanhol, que, aliás, foi o último presidente
da Espanha antes da Guerra Civil, de- flagrada em
1937. Alcalá-Zamora, no seu Pensamentos e
reflexões, escreveu: “Os ataques de inveja são os
únicos em que o agressor preferiria, se pudesse,
fazer o papel de vítima”.
Afinal de contas, ser vitimado pelo ataque de
inveja de al- guém, se esse ataque não é violento,
se não carrega uma agres- sividade que coloque a
integridade física em perigo, se não ameaça o meu
caráter, produz um grande prazer.
E aquele que ataca, sem dúvida, também
preferiria estar no papel da vítima desse ataque. A
inveja é o exagero da admira- ção. Há pessoas que
nos admiram e há outras que nos invejam. Quase
sempre, o invejoso não é aquele que quer ter o que
eu tenho, mas ele quer que eu não tenha. Isso
poderia acalmá-lo dentro de uma circunstância.
Nessa hora, a inveja é uma manifestação não de
admiração, mas de mediocridade.
Aparente
paradoxo

Há um tipo de raciocínio que nos intriga, que


nos tira do evidente, que nos faz pensar além do
óbvio.
Marco Túlio Cícero (106 a.C.-43 a.C.) foi um
filósofo e escri- tor romano, um homem lembrado
como um orador especial, alguém que trouxe boa
parte da filosofia grega, socrática e pós-
-socrática, para o mundo latino e, portanto, um dos
responsá- veis por grandes trabalhos e obras que
acabaram vindo para nós, inclusive nos tempos
contemporâneos. Ele, que, aliás, foi executado por
mando de Marco Antônio, aquele principal general
de César que fez parte do Segundo Triunvirato.
Cícero, um homem muito inteligente, dizia:
“Não me en- vergonho confessar não saber o que
ignoro”.
Não tenho vergonha de dizer que não sei o que
eu não sei. Pode soar uma fala que entraria numa
trilha de ignorância, mas trata-se de uma
manifestação muito forte de inteligência. Isto é, a
capacidade de reconhecer o caminho que ainda não
trilhou, a rota não percorrida e não ter vergonha de
confessar que não sabe o que não sabe.
Não saber o que ignora e saber isso, isto é, que
não sabe, sem que seja um trocadilho, saber que
não sabe é uma de- monstração especial de
inteligência.
Cícero, um homem com uma obra especial na
Antiguidade, sabia da importância de saber o que
não se sabe.
Respeito encarnado

Há necessidade de formarmos as novas


gerações e nos for- marmos com elas, na ideia
central de que toda pessoa merece respeito,
independentemente de condição econômica, de es-
colaridade, de religião, de orientação sexual, de
trabalho que desenvolve, de condição biológica.
Gosto de lembrar uma antiga frase – que muita
gente atri- bui ao escritor colombiano Gabriel
García Márquez (1927- 2014), especialmente nas
redes sociais – porque nos ajuda a entender o que é
respeito recíproco.
A frase é: “Um homem só deve olhar outro
homem de cima para baixo quando for para ajudá-
lo a se levantar”.
Esta ideia foi muito bem encarnada, com o
primeiro artigo da Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão votada na Assembleia
Nacional Constituinte francesa, em outubro de
1789: “Os homens nascem e permanecem livres e
iguais em direitos”.
Algo que agora é muito conhecido, mas,
naquele momento, foi uma inovação brutal.
Um momento na história humana em que se
discutia que todo mundo nasce livre, isto é,
ninguém pode ser dono de ou- tra pessoa e, ao
mesmo tempo, a condição de igualdade em direitos
como sendo forte para a existência.
Cautela inteligente

Existe uma cautela que não é inteligente, aquela


que nos leva à imobilidade. Mas a cautela
inteligente também pode ser entendida como
pensamento estratégico em algumas di- mensões
ou retardar algo do ponto de vista tático; saber res-
guardar-se quando não é adequado ir adiante, ter
uma virtude muito importante em qualquer
atividade, que é a prudência.
O escritor espanhol Miguel de Cervantes
(1547-1616), na primeira parte de Dom Quixote,
fez uma reflexão que nos leva a pensar.
Apesar de imaginarmos Dom Quixote como
alguém intem- pestivo, que saía com seu cavalo e
sua lança enfrentando os moinhos de vento, ainda
assim, há várias falas que Cervantes colocou para
Dom Quixote que são densas nessa questão da
prudência.
Uma delas é: “Retirar-se não é fugir, nem
esperar é cordura, quando é perigo, é maior do que
se esperava”. Retirar-se, nes- se caso, é um sinal de
inteligência.
Diz Cervantes: “É sábio guardar-se de hoje para
amanhã para não se arriscar todo num dia só”.
Desse ponto de vista, muitas vezes o recuo em
uma ação, em um pensamento, em uma discussão,
não é sinal de fuga ou de cordura (isto é, de ser
cordeiro, aquele que se comporta de maneira
acovardada), mas, ao contrário, pode ser uma
mani- festação de inteligência estratégica,
aguardando o momento mais propício do que
aquele que se apresenta.
Injustiça veloz

A justiça que tarda é, por isso, falha. Existe


uma justiça que não tarda e não falha; uma
clássica, que dizemos que “tarda, mas não falha”; e
uma outra que tarda e falha.
Rui Barbosa (1849-1923) é personagem de
várias histórias, algumas delas muito boas, outras
nem tanto.
Afinal, quando ministro, para preservar toda a
história que não se queria mostrar, ele mandou
incinerar os registros da Abolição da Escravatura
formal, com todos os documentos e, portanto, em
nome de uma purificação, acabou tirando boa parte
do registro que garantiria até a reparação, se isso
pudes- se acontecer.
Rui Barbosa, um dos fundadores da Academia
Brasileira de Letras, quando foi paraninfo da
formatura de uma turma de Direito da USP
(como a gente chamaria hoje, na época, em 1920,
Largo de São Francisco de Direito), não pôde
comparecer e mandou a famosa Oração aos
moços, em que dizia: “A justiça atrasada não é
justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”.
Bisbilhotice

A palavra “bisbilhotice” tem origem no italiano


bisbigliare,
que é falar baixinho, meio sussurrado.
Essa expressão é uma onomatopeia, uma
maneira de tra- zer à tona o som produzido em
fonemas. Há uma onomato- peia em italiano que é
bisbisbis, para designar a pessoa que fica no
cantinho falando mais baixo. Esse bisbisbis virou
bisbi- gliare, em italiano, e deu origem a
“bisbilhotar”, “bisbilhotice” em português.
Claro que vários de nós, vez ou outra,
bisbilhotamos, quem não gosta?
Mas vale lembrar uma frase antiga, sem autor
definido, que diz: “Há tanto de bom no pior de nós
e tanto de ruim no me- lhor de nós que mal
convém, a qualquer um de nós, falar mal do resto
de nós”.
Isto é, a bisbilhotice como algo que precisa ser
pensado e refletido para que não se entenda aquilo
que é, no campo do Direito, chamado de injúria ou
difamação e que, no cotidiano é uma fofoca, falar
mal de outra pessoa por mero prazer. Esse
bisbilhotar é uma forma de malefício não só para
quem dele é vítima, mas para quem também o faz.
Em grande medida, é uma perda de tempo,
afinal, nem mal de nós nem bem de nós o tempo
todo pode ser falado.
Ansiedade fértil

A ansiedade, especialmente nos tempos atuais,


é passível de tratamento.
Há uma ansiedade que leva à obsessão, em
alguns momen- tos ao desespero, a ansiedade
como sendo aquele estado de prontidão e
preparação que leva, inclusive, a alterações no
metabolismo, a pessoa fica mais ofegante, o
coração bate mais aceleradamente. Mas há uma
ansiedade fértil, aquela que nos leva a ficar mais
atentos e em estado de prontidão, predispos- tos à
criação de algo.
Lawrence Durrell (1912-1990), poeta britânico
nascido na Índia, dizia: “O poema é o que acontece
quando uma ansieda- de encontra uma técnica”.
Porque é claro que produzir poemas não é
caso apenas da inspiração, exige técnica de
redação, conhecimento do idioma, o manejo
sintático para que aquilo tenha arte e gra- ça,
mas, acima de tudo, ele lembra bem, o poema
nasce de uma ansiedade.
De maneira geral, o poeta, a poeta, a poetisa
como diriam alguns de nós, precisa ter uma
ansiedade, algo que faça o poe- ma sair. Quando a
ansiedade encontra a técnica, o poema pode vir à
tona, não apenas pela inspiração de uma ideia, mas
tam- bém pela predisposição de fazê-lo.
Ansiedade e técnica como fertilidade.
Fingimento sério

Fingimento e seriedade é uma combinação que


pareceria contraditória, mas foi imortalizada no
poema Autopsicografia, de Fernando Pessoa
(1888-1935), que usou a definição clássica do
poeta: “O poeta é um fingidor. Finge tão
completamente que chega a fingir que é dor a dor
que deveras sente”.
Fernando Pessoa, um homem que produziu
coisas maravi- lhosas no nosso idioma.
Mas Guilhermino Cesar, um escritor e político
mineiro que fez carreira no Rio Grande do Sul, e
morreu em 1983, brincou um dia com Fernando
Pessoa. Ele disse: “Esse poeta é um fin- gidor,
finge tão safadamente que chega a ser furta-cor
para ficar coerente. E como a roda da vida não
desenrola ninguém, o poeta continua ausente da
vida que ele não tem”.
É uma grande homenagem a Fernando
Pessoa.
Olha como a arte, especialmente a poesia, a
literatura, é ca- paz de fazer o fingimento sério.
Fazer aquilo que nos encanta exatamente pela
capacidade de sair do familiar e criar alguma
surpresa.
Audácia brincar com Fernando Pessoa, mas
ficou muito bem brincado, especialmente quando
se pensa na vida que não se tem e se finge que
pode ser.
Poesia.
Indiferença
propositada

Escolher ser indiferente é aquilo que chamamos


no dia a dia de atitude estoica. O estoicismo é uma
escola filosófica fundada por Zenão no século III
a.C. Essa escola filosófica su- gere a apatia a tudo
que é externo à pessoa como o caminho da
serenidade.
Quando começamos uma semana, um trabalho,
uma ativi- dade, há uma ansiedade forte com
aquilo que se faz, e um jeito estoico, sugerido
como método por essa escola filosófica, é a apatia,
ficar sereno por meio da indiferença.
O imperador romano Marco Aurélio é
conhecido por mui- tas pessoas por conta do filme
Gladiador (2000), que trata de maneira fantasiosa
uma história que não aconteceu. O gene- ral
Maximus não existiu, mas quem viu o filme se
lembra da figura magnífica interpretada pelo já
falecido Richard Harris. Mas a história de Marco
Aurélio e de Comodo, o filho que lhe sucedeu, é
verdadeira.
Marco Aurélio – além de ser um imperador de
muitas con- quistas no mundo romano, mas
também bastante cruel – ficou conhecido por ser
adepto da concepção estoica na Filosofia.
Ele, que era do século II, escreveu uma série de
pensamen- tos sobre isso com o título de
Meditações. A indiferença propo- sitada, tentar
ficar apático, não se deixar abalar pelo que está em
volta.
Algumas pessoas conseguem fazê-lo, outras, nem
sempre.
Interpretação
livre

A opinião não balizada é aquilo que, de vez em


quando, chamamos de “achologia”: “Eu acho
isso”, “eu acho aquilo”.
Há muita gente que elege a achologia como
modo de enten- der as coisas, isto é, não procura
fundamentar, dar base sólida para o que vai pensar,
refletir e opinar.
Edmond de Goncourt (1822-1896), fonte do
mais desejado prêmio literário da França, que leva
exatamente seu sobreno- me (prêmio criado no
testamento dele, em 1896) escreveu mui- tas obras
com o irmão Jules de Goncourt (1830-1870) e
ambos deixaram um diário, em que anotaram uma
frase bem-humo- rada e verdadeira: “O que mais
besteiras ouve no mundo é, talvez, um quadro de
museu”.
Quantas vezes paramos diante de um quadro e
não só di- zemos besteiras na interpretação desse
quadro, como as ouvi- mos em grande quantidade?
Não é incomum que contemplan- do uma pintura,
um desenho ou uma escultura em um museu, haja
pessoas por perto que, sem nenhum fundamento,
come- çam a interpretar livremente tudo o que o
autor quis dizer.
Seja pela emoção estética, seja pelo direito de
opinar, come- çam “isso é isso, isso é aquilo”. Algo
muito comum em relação, por exemplo, a uma
pintura abstrata.
Aí que as besteiras vêm à tona.
Alteridade
benéfica

Prestar atenção no próximo, em vez de apenas


recolher-se dentro de si, é uma atitude salutar. Ficar
trancafiado dentro de si com as mesmas ideias, com
o mesmo olhar que se debruça so- bre as coisas,
com a mesma conduta o tempo todo não faz cres-
cer. Prestar atenção naquele que não sou eu, e não é
só prestar atenção afetivamente, com o olho da
caridade, da benevolência ou da benemerência.
É um outro tipo de olhar, que ajuda, olhando o
outro, a pres- tar atenção também em si mesmo.
O jornalista e poeta mineiro Wilson Alvarenga
Borges lan- çou, em 1981, um livro chamado Flor
de extremos. E lá tem um poema, quase uma trova,
que diz: “Em ti me escuto para ga- nhar-me, em ti
me vejo para deter-me, em ti me guardo para
sentir-me, em ti me encontro para provar-me, em ti
me instalo para rever-me, em ti me chamo para
escutar-te”.
Veja que ele faz uma modificação ao final,
porque a outra pessoa é outro de mim.
Quando temos a capacidade de prestar atenção,
de abrir a cabeça a quem não é como nós, também
nos escutamos, não apenas ao outro.
Nessa hora, a ideia de próximo ganha sentido.
Tédio
informacional

Quando a notícia relata uma situação que já


aconteceu, para alguns isso significa tédio. Isso é
inerente à informa- ção, não tem como não fazê-lo,
seja no rádio, no jornal, na televisão.
Ainda assim, essa parte do jornalismo traz à
tona uma outra visão em relação ao que é a
informação.
O escritor francês André Gide (1869-1951) foi
Nobel de Literatura em 1947 e lutou pelos direitos
dos homossexuais com uma coragem inédita para a
época. Ele mesmo homos- sexual, teve obras
colocadas em lista de proibições. E escre- veu:
“Chamo de jornalismo a tudo que será menos
interes- sante amanhã do que hoje”.
Aliás, é por isso que chama jornalismo, a ideia
de jour, entendido em francês como “dia”, aquilo
que nos interessa no diário, aquilo que está ali
naquele momento.
Não é um defeito do jornalismo, é uma
condição própria da atividade.
O tédio informacional, aquilo que hoje interessa
e ama- nhã deixa de ser notícia, porque já o foi
colocado, faz parte desta área.
Prevenção,
antecipação

A capacidade de programar-se, isto é, de


projetar-se, “je- tar” de jéte, em francês, ou a ideia
de “jogar” em latim, a noção daquilo que se joga
antes, são conceitos próximos e relacionados com
o que se cria, pensa e organiza a partir de agora.
É claro que existe uma projeção, também, em
relação àquilo que poderá vir como algo negativo.
E, portanto, cria expectativa.
Dante Alighieri (1265-1321), na parte XVII da
sua obra In- ferno, uma das três que compõem a
Comédia, chamada com toda razão de Divina
comédia, escreveu: “O mal previsto vem mais
lentamente”.
Ou seja, quando nós temos a capacidade de
prevenção, de antecipação, de reflexão sobre
caminhos que poderão ser ruins, essa vinda será
mais lenta. Toda vez em que há falta de
prevenção, quando não há previdência, fica muito
difícil impedir a vinda imediata daquilo que é um
mal, um equívo- co, algo que nos vitime. Afinal de
contas, se for inesperado, perde exatamente a
capacidade de ser evitado ou da criação de
salvaguardas.
Isso, que pareceria uma obviedade, é um
pensamento bas- tante profundo. Não é casual que
Dante tenha colocado essa condição em um dos
seus trechos que trata do inferno.
Não é equivocado.
Aspiração
sensata

“Eu quero isso, eu quero aquilo.” Não basta o


querer, não é um mero gosto, um delírio daquilo
que se quer.
É necessário que haja viabilidade, que o desejo
seja factível. Do contrário, o que se produz
primeiro é a impossibilidade de atingir o que se
queria e, em segundo lugar, uma frustração muito
grande.
Eu gosto muito de uma expressão do filósofo
espanhol Orte- ga y Gasset (1883-1955), que viveu
na Espanha e na Argentina, mas é de uma absoluta
influência na Filosofia do Brasil no sé- culo XX.
Ele atribuiu uma frase a Leonardo da Vinci. Não
é compro- vado, não se encontrou essa frase nos
escritos de da Vinci, mas, provavelmente, o Ortega
y Gasset tinha fontes que poderiam ser confiáveis.
A frase seria: “Quem não pode o que quer, queira o
que pode”.
Isso é a aspiração sensata, aquela forma de
desejo que não deixa de existir, mas ganha um
contorno que, na sua factibilida- de, na
possibilidade de existir, vá à concretude em vez de
gerar frustração, desalento, desânimo e chateação
consigo mesmo.
Similitude humana

Parecência. Há uma expressão que o escritor


mineiro Gui- marães Rosa (1908-1967) usava
bastante: “parecença nossa”.
Será que nós, humanos, somos parecidos em
quê? A nossa biologia tem grandes identidades, o
nosso mapeamento gené- tico marca uma
semelhança muito expressiva, mas é na nossa
conduta que seríamos muito parecidos uns com os
outros, isto é, seria possível dizer “todo ser
humano é assim, todas as pes- soas são deste
modo”.
Edmund Burke (1729-1797), filósofo irlandês,
escreveu muito bem sobre estética, que é a área da
Filosofia que trata sobre o belo, sobre o senso de
beleza. Ele, inclusive, teve ideias que
influenciaram demais o pensamento de Denis
Diderot, de Immanuel Kant no século XVIII.
Edmund Burke, um político avesso à Revolução
Francesa, um dos grandes teóricos do que se chama
hoje, ainda, de con- servadorismo, afirmou:
“Queixar-se da época em que se vive, murmurar
contra os detentores do poder, lamentar o passado,
conceber esperanças extravagantes em relação ao
futuro, esses são estados de espírito comuns à maior
parte da Humanidade”. Burke dizia que há coisas
em que somos bastante parecidos.
Temos muitas diferenças, mas se há algo que
nos dá a gran- de parecência, aí está.
Tagarelice

A palavra “tagarela”, usada para descrever


alguém que fala sem falar, fala de modo vazio, não
tem uma origem mui- to nítida.
Existe a hipótese de que talvez tenha derivado
de uma ono- matopeia, uma referência à forma de
falar “ta-ta-ta-ta-ta”, e daí veio tagarelice.
O escritor francês François de La
Rochefoucauld (1613- 1680), numa obra chamada
Reflexões, escreveu: “Como é ca- racterístico dos
grandes espíritos fazerem entender em poucas
palavras muitas coisas, os pequenos espíritos, pelo
contrário, têm o dom de muito falar e nada dizer”.
O que é essa tagarelice? É falar com vacuidade,
isto é, falar e não dizer. Uma incapacidade de falar
com clareza, de expres- sar com poucas palavras a
nitidez de uma ideia.
Há muita gente que faz um percurso imenso
para explicar aquilo que pode ser banal.
Claro que ninguém está isento dessa situação.
Mas La Rochefoucauld lembra bem, os grandes
espíritos, em poucas palavras, explicam muitas
coisas; pequenos espíritos, isto é, gente com maior
limitação, tem o dom de falar bastante e nada dizer,
muitas vezes na tentativa de preencher o vácuo
criado pela falta de conteúdo.
Ciência e propósito

Nós não podemos esquecer o sentido das coisas


que faze- mos, usando “sentido” na dupla acepção
da palavra: como di- reção e como significado.
Norbert Wiener (1894-1964), o pai da
cibernética, um ho- mem que, em meados do
século XX, produziu ideias que influenciaram o
mundo digital mais tarde, alguém que se graduou
em Matemática com 14 anos de idade; com 18,
já era doutor em Lógica, escreveu no livro
Cibernética e socieda- de: “Nossos jornais têm
exaltado o know-how norte-americano desde que
tivemos a infelicidade de descobrir a bomba atô-
mica. Existe uma qualidade mais importante do
que o know-
-how, trata-se do know-what, mercê da qual
determinamos não apenas como levar a cabo
nossos propósitos, mas o que deverão ser”.
Em outras palavras, não basta saber o como fazer,
o know-
-how, mas, especialmente, o propósito, o know-
what, a razão, aquilo que está por trás do que se
faz.
Esse pensamento de Norbert Wiener nos alerta
imensa- mente.
E a Ciência continua sendo uma área que não
pode esque- cer seu propósito, isto é, sua
relevância ética, os motivos pelos quais faz aquilo
que faz.
Conversa
empolada

Algumas pessoas utilizam frases pedantes


como recheio de suas falas, com citações em
outros idiomas, em latim, por exemplo.
Eu, inclusive, não sou avesso a algumas
citações, gosto dessa prática na Filosofia, uso
citações de outros idiomas, mas é uma homenagem
àqueles que escreveram originalmente nessa área.
Mas muita gente incha a conversa com termos que
vêm de outros idiomas. E hoje, no mundo do
trabalho, dos negócios, é muito comum que o
inglês apareça em expressões como startup, IPO,
meeting, uma série de termos que já existem no
nosso idioma, mas que acabam fluindo na
conversa como se
fossem gírias.
Não se trata de uma aversão a palavras de
outros idiomas, mas um uso desmesurado.
No século XVII, o escritor espanhol Miguel de
Cervantes (1547-1616) registrou na obra Colóquio
dos cães: “Tanto peca o que diz frases latinas
diante de quem as ignora como o que a diz
ignorando-as”.
Tanto peca quem diz frases latinas diante de
quem as igno- ra, apenas para demonstrar algum
tipo de conhecimento que não tem, como aquele
que as diz sem, de fato, saber o que ela significa,
servindo como mera ostentação, como mera cereja
em algum bolo, que pode nem ter sabor.
Por isso, conversa empolada é um risco.
Tédio valioso

O vazio faz crescer. Quando éramos crianças e


entrávamos em férias, havia uma coisa
absolutamente deliciosa, que era a possibilidade de
enfrentar o tédio. Aquela chateação, aquele enfado,
aquela sensação de não ter nada para fazer...
E aí, sim, por não ter nada para fazer, era
preciso criar, in- ventar, buscar algo interessante e
gratificante para fazer.
Brincávamos inventando coisas, pegando uma
batata, colo- cando nela quatro palitos de fósforo e
criando uma vaquinha, fazendo de uma caixa de
fósforos um instrumento, embru- lhando um pente
com um papel para simular uma gaita,
conseguindo tirar algum som dali.
Não estou querendo trazer uma nostalgia, mas o
lugar do tédio é algo muito importante.
Muita gente hoje impede as crianças de
viverem o tédio. É o tédio que impulsiona a ação,
que impulsiona a criação. Não ter o que fazer, e se
chatear com isso, leva a criar coisas para serem
feitas.
Hoje, há uma coisa inacreditável: famílias que
organizam festas para os seus filhos em lugares
fora de casa, porque é muito mais prático, e
contratam adultos para serem anima- dores das
crianças de 10 anos de idade. Desde quando são
adultos que vão animar as crianças? Muitos de nós
nos animá- vamos na infância quando não havia
um adulto perto e nós es- távamos todos juntos.
Agora se coloca o animador no circuito.
Essa retirada do tédio é perigosa.
Laconismo

Uma pessoa lacônica é aquela que fala pouco,


que respon- de por monossílabos. Não é incomum
encontrar gente a quem você pergunta algo e ela
sempre responde por “sim”, “não”, “quero”.
Pode ser timidez, mas pode ser também uma
escolha deli- berada.
A expressão “lacônico” tem origem na região
do Pelopo- neso, que hoje é a Grécia. Há um lugar
lá chamado Lacônia e, nessa região, a capital foi
Esparta. Alguns dizem, inclusive, que a palavra
“lacônico” se difundiu porque aqueles que vie-
ram da Lacônia eram de poucas palavras.
Como o foi Leônidas, que morreu no confronto
das Termó- pilas, enfrentando Xerxes. Diz a lenda
que Xerxes mandou um emissário com a seguinte
pergunta: “O senhor se renderá ou nós
destruiremos tudo? Se o senhor não se render,
mataremos as mulheres e as crianças. Se matarmos
as mulheres e crianças, logo depois
escravizaremos todos os homens”. E, segundo a
lenda, Leônidas teria respondido a Xerxes com
uma única palavra: “Se”.
Por conta da formulação de Xerxes cheia de
condicionais, isso entrou no campo lendário, mas,
ainda assim, explica, em parte, por que as pessoas
são chamadas de lacônicas quando pouco falam.
A fonte original

O prazer primordial acontece quando temos a


possibili- dade de ler aquilo que o autor escreveu,
em vez de ficarmos apenas com as interpretações,
somente com livros que falam sobre livros.
Há um prazer imenso em ler na fonte original.
Claro que nem sempre conseguimos fazê-lo no
idioma original do autor. Seria muito bom que se
conseguisse ler os escritos de Platão no grego
arcaico. Ou Immanuel Kant, no alemão do século
XVIII. Seria muito bom ler Baudelaire no francês.
Nem sempre conseguimos, mas, ainda assim,
vale demais procurar ler o original; não no idioma
que foi escrito, mas ler, em vez do comentador
apenas, ler alguém que tem um livro que fala de
outro livro.
Ler Machado de Assis, Fernando Pessoa, ler
obras de poe- sia, sem o intermédio de alguém.
Ítalo Calvino (1923-1985), um inesquecível
escritor italiano – na realidade nascido em Cuba –,
foi um opositor do regime fas- cista de Benito
Mussolini (1883-1945).
No livro póstumo Por que ler os clássicos, ele
registra: “A es- cola e a universidade deveriam
servir para fazer entender que nenhum livro que
fala de outro livro diz mais sobre o livro em
questão”. Mas fazem de tudo para acreditarmos no
contrário, ou seja, que o livro que fala sobre o
outro livro é melhor do que aquele livro do qual se
fala.
E isso, a universidade e a escola não podem
incentivar.
Tecnologia
temerária

O mundo da tecnologia nos causa admiração.


Em alguns momentos, até sonhamos ganhar como
presente algumas das novas tecnologias,
especialmente as ligadas à comunicação.
Mas a tecnologia também representa, para nós,
um perigo. Há uma advertência séria feita pelo
cineasta alemão Werner Herzog em relação a
algumas tecnologias que, em nome da
aproximação, acabam por levar ao individualismo,
a fazer com que não haja partilha da conversa, da
música, da convivência. Herzog, há algum tempo,
antes até de termos as platafor- mas digitais
atuais, disse em uma entrevista: “A solidão hu-
mana aumentará em proporção direta ao avanço
nas formas
de comunicação”.
Isso, por incrível que pareça, não vem sendo
incomum. Avançam as formas de comunicação e,
ainda assim, há uma incomunicabilidade entre
muitas pessoas, que ficam reclusas dentro do seu
mundo, reclusas com seus aparelhos.
Aquilo que devia ser um instrumento, um
caminho de co- municação, acaba gerando solidão,
afastamento, isolamento e abandono.
Véspera

A palavra “véspera” está ligada a “Vésper”, que


é um outro nome para a aparição do planeta Vênus,
um pouco antes do poente.
Algumas sociedades contavam o dia a partir do
início da noite anterior. Por exemplo, em
sociedades hebraicas e em muitas sociedades
árabes, o tempo é contado num espaço que para
nós seria seis horas do dia anterior, daí a ideia de
véspera ser tão importante, inclusive em algumas
religiões do mundo oriental.
Quando o planeta Vênus está com brilho
intenso, ele vem um pouquinho antes do poente, é
chamado de Vésper, e quan- do vem um pouco
antes do nascente, é chamado de Estrela d’Alva.
Sabemos que Vênus não é uma estrela, mas,
ainda assim, a forma do planeta ganhou esse
nome. Entre nós, virou até música de carnaval e
tem a ver com véspera.
Tudo isso faz lembrar algo especial, o planeta
Vênus é liga- do a uma divindade pagã, a deusa
romana do amor e da bele- za. Ela entrou na
história para, inclusive, simbolizar algumas
expressões de algumas religiões, para as quais a
percepção de véspera tem a sua importância.
A Estrela d’Alva, que, na prática, é o planeta
Vênus, é Ves- per, o vespertino, aquilo que
antecede e que nos dá até alguma ansiedade.
Assepsia
vocabular

A limpeza de vocábulos se dá pelo esforço em


polir con- ceitos, fazer com que as palavras sejam
mais purificadas e te- nham um sentido mais claro
em relação à própria origem.
Ludwig Wittgenstein (1889-1951), filósofo
austríaco que se naturalizou britânico, foi professor
em Cambridge em meados do século XX e
inspirador do positivismo lógico na área da
Filosofia e da Ciência em geral. Ele disse que:
“Algumas vezes, uma expressão tem de ser retirada
da linguagem e submetida a um processo de
limpeza, só então ela pode ser recolocada em
circulação”.
Essa assepsia vocabular, a gente deveria fazer
com o vocá- bulo “presente”. “É só um
presentinho” traz a ideia de uma lembrança. Em
muitos momentos de confraternização, a ex-
pressão “aqui está o presente, uma lembrancinha”
é uma for- ma de dizer: se lembre de mim e lembre
de mim para que se lembre que eu lembrei de você
e, portanto, eu não te esqueço. A palavra
“lembrança” ou “lembrancinha” era apenas algo
que se dava a outra pessoa para dizer presente, “cá
estou”.
Como a gente na escola respondia à chamada,
“presente”.
E a palavra “presente”, de confraternização, de
festa, assim como “lembrança” ou “lembrancinha”,
deveriam ser mais po- lidas, até tiradas de
circulação, como Wittgenstein lembrava, para
ficarem mais bonitas, mais puras, e, portanto, mais
cheias de verdade.
Apenas uma lembrança.
Existência
labiríntica

As voltas e revoltas da vida às vezes parecem


um labirinto, um emaranhado de entradas e saídas.
Na mitologia, Teseu, que enfrentou o Minotauro, e
também venceu o labirinto, do qual ninguém
conseguia escapar. Muitos parques e jardins têm
verdadeiros labirintos, feitos proposi- tadamente
dessa forma. São parte dos nossos jogos, das nossas
brincadeiras lógicas, mas, também, ajudam a
pensar sobre nós mesmos.
Mario de Sá Carneiro (1890-1916), especial
nome do Mo- dernismo português, que,
infelizmente, cometeu suicídio aos 25 anos, em
Paris, fez um trecho poético em que lembra essa
ideia: “Perdi-me dentro de mim porque eu era
labirinto. E, hoje, quando me sinto, é com
saudades de mim”.
Frase forte. Não é incomum que tenhamos a
sensação, em alguns momentos, de termos dentro
de nós um labirinto, uma série de entradas e saídas
dos lugares que nos levam a impas- ses, momentos
de reflexões em que precisamos meditar para ter
clareza de onde viemos para olharmos com mais
nitidez aonde desejamos ir.
Uma vida labiríntica, uma existência
labiríntica, é aquela em que as pessoas se perdem.
Não é impossível, mas não é bom que assim
seja. Um labi- rinto precisa ter saída.
Humor inteligente

Surpreender pelo silêncio pode propiciar


momentos de ex- trema graça.
Algumas das citações que eu mais apreciei
foram feitas nas conferências do sociólogo e
jornalista Joelmir Beting (1936-2012).
O grande Joelmir tinha um modo surpreendente
de termi- nar as palestras. Ele dizia, até com um ar
mais formal: “Gos- taria de concluir agora,
dizendo que na vida eu aprendi duas coisas. A
primeira delas é nunca contar tudo que eu sei.
Obri- gado”. E ia embora.
Essa ideia demorava um pouco para que a gente
percebesse o que Joelmir Beting houvera
colocado; ficava um certo silên- cio e, aos poucos,
se ia tendo o afluir do riso. Isso produzia impacto
na plateia e esse humor inteligente é extremamente
agradável.
O espírito com inteligência, o humor colocado
de uma ma- neira que encanta, surpreende pelos
silêncios que Joelmir Be- ting deixava nessas falas.
Não é fácil construir isso, exige muita reflexão
para se ter um humor inteligente.
A vida como
enigma

A reflexão é favorecida pela passagem do


tempo. Nós cos- tumamos dizer: “O tempo está
passando mais rápido, olha como este ano já está
no fim e as coisas estão acabando”. Mes- mo
quando estão começando, a impressão é de que já
estão no término.
Essa lógica de uma aceleração do nosso dia a
dia nos leva a uma reflexão, a pensar o próprio
enigma da vida: “O que eu estou fazendo? Qual
a razão daquilo que eu produzo? Por que eu corro
desse modo? Ou por que fui ou sou mais lento?
Afinal, quem sou eu?”
Pode parecer algo que é só ligado ao campo da
Filosofia, o é também, mas traz uma inquietação.
Momentos de passagem, situações de
transição, épocas de mudanças sempre são mais
adequadas para que se possa re- fletir melhor sobre
a própria existência.
O poeta Murilo Mendes (1901-1975), pensador
nascido em Juiz de Fora, disse um dia: “Não pedi
para nascer, não escolhi meus pais, fui imposto a
mim próprio, o enigma permanece”. Olha que
maneira forte para terminar. Murilo Mendes le-
vanta uma questão semelhante a “quem sou eu ou
o que sou eu?” Pode ser um “quê” de coisa, um
“quem” de pessoa, mas
fica ainda um enigma na vida.
Perenidade
estética

O prazer de natureza estética está ligado àquilo


que nos encanta, que nos leva à fruição da beleza,
que nos leva a um gosto imenso pela apreciação do
conteúdo ou da imagem. Mas também que se torna
perene, isto é, que não se esgota no que é
passageiro, naquilo que é momentâneo.
Muitos de nós recebemos livros de presente. E
uma tarefa complexa é escolher um livro para dar de
presente para alguém, porque é preciso pensar se
esse livro será levado adiante como uma boa
lembrança ou se será colocado de lado ou apenas
fo- lheado.
Mas a perenidade estética, que é o presente que
persiste no tempo, não tem o esgotamento dessa
vitalidade.
O escritor e ensaísta britânico John Ruskin
(1819-1900), que foi uma destacada influência no
estudo da história da arte, da arquitetura, escreveu
em Sesame and lilies, uma obra de 1865, uma frase
decisiva: “Todos os livros podem ser divididos em
duas classes: os do momento e os de todos os
tempos”.
Por isso, a perenidade estética, a capacidade de
persistir no tempo sem perder robustez, está ligada
àqueles livros que são de todos os tempos e não
apenas livros do momento, que são
eventualmente superficiais ou ruins, esquecíveis.
Prazer passageiro

A propriedade volátil é a posse de alguma coisa


que nos dá um grande prazer possuir, mas que
passa logo.
O britânico James Montgomery (1771-1854)
tem um poema, cujo título não expressa tanto a sua
grandeza, que é A nuven- zinha. É de 1925, quando
escreveu: “O encantamento da posse não dura, as
alegrias relembradas não passam nunca”.
A propriedade material de algo, o gosto de ser
dono de algo, é um encantamento que não tem
durabilidade. O que tem perenidade são as alegrias
que podem ser relembradas, que permanecem na
nossa memória – ou, para brincar com a impactante
obra de Salvador Dali, a persistência da memória.
Aquela memória gostosa que não é volátil, não é
evanes- cente, não é como uma mera fumaça, que
perde sua forma e desaparece. O encantamento da
posse não dura tanto, é um prazer imediato, muitas
vezes imediatista, traz uma alegria, que é
instantânea, pode até trazer aquilo que chamamos
de euforia, que é uma alegria súbita e muito
intensa, mas não tem
durabilidade.
Já as boas lembranças, as alegrias relembradas,
não passam nunca. Muita gente, ao festejar, acaba
ficando muito mais tem- po com a festa dentro de
si do que de fato aquilo que recebeu na própria
festa.
A boa lembrança, essa sim, encanta por muito
tempo.
Leveza essencial

Nós queremos uma vida que seja mais leve, a


sutileza no ato, no gesto, na ideia, no projeto, no
trabalho. A leveza pre- sente na existência e que,
portanto, nos seja essencial.
É curioso porque algumas pessoas dizem “eu
gostaria de ter a leveza de um pássaro”. Outros
dizem “eu queria ter uma leveza de uma pena, uma
pluma”.
Eu gosto demais de um pensamento do filósofo
e poeta francês, Paul Valéry (1871-1945), capaz de
produzir ideias es- peciais no final do século XIX e
numa parte do século XX. Ele dizia: “É preciso ser
leve como o pássaro e não como a pluma”. Qual a
razão deste pensamento de Paul Valéry? Se se é
leve como um pássaro, a leveza vem de algo em
movimento e não de algo inanimado, algo que
perdeu a capacidade de intenção,
como é o caso da pena ou da pluma.
Ser leve como uma pena ou uma pluma é algo
que não é in- tencional, não existe ali uma razão de
ser. Já ser leve como um pássaro é a leveza no
movimento, na escolha da possibilidade de
caminho, na dinâmica, e não da leveza de uma
estática que se aproxima da inércia.
Por isso, a leveza essencial, no meu entender,
concordando com o Paul Valéry, é aquela que nos
torna leves como um pás- saro, e não leves como
penas de pássaros, que são passivas.
A leveza do pássaro é uma leveza ativa.
Política como
escolha

A capacidade de tomar decisão diz respeito


àquilo que se quer e àquilo que não se quer. Uma
escolha, embora não pare- ça, às vezes é uma não
escolha. Isto é, não escolher, recusar-se a
participar, a ter alguma ação na comunidade.
É sempre necessário lembrar que a palavra
“política” sig- nifica ação dentro de uma
comunidade, seja essa comunidade uma família,
um bairro, um prédio, uma cidade, um país, um
planeta.
Por isso, o termo polis como comunidade nos
traz a ideia de liberdade de escolha, a
possibilidade de ter algo que já se chamou em
Filosofia de servidão voluntária.
Pareceria até uma contradição, mas ela faz
sentido. Ma- quiavel (1469-1527), intelectual do
século XVI, é muito conhe- cido por sua obra O
príncipe, mas ele tem outros livros que são
clássicos. Um deles é o Discursos sobre a primeira
década de Tito Lívio, em que diz algo para
pensarmos: “Porque é tão difícil querer libertar um
povo disposto a viver escravo como reduzir à
servidão um povo que queira viver livre”.
Não é uma reflexão só do Maquiavel. Ele diz
que é tão di- fícil fazer um povo deixar de ser
escravo quanto escravizar outro que luta para ser
livre.
Política como escolha.
Imprecisão
semântica

Por vezes, o sentido de uma palavra, de um


conceito, de uma ideia, fica impreciso, seja por
parte de quem emitiu a mensagem, seja por parte
de quem a recebeu.
Uma questão antiga na Filosofia é “o que é
precisão”. O que torna algo absolutamente
correto?
Mario Quintana (1906-1994), em seu livro
Caderno H (obra resultante de textos produzidos
para jornais do Rio Grande do Sul), escreveu: “A
gente pensa uma coisa, acaba escrevendo outra e o
leitor entende uma terceira coisa e, enquanto se
passa tudo isso, a coisa propriamente dita começa
a desconfiar de que não foi propriamente dita”. É
sempre humorada e inteli- gente a escrita de Mario
Quintana.
Essa imprecisão semântica oferece alguma
vacuidade ou discordância em relação àquilo que
se escreve.
Mas pode também conferir uma certa leveza,
porque abre a possibilidade de um texto ou um
poema ser interpretado de outro modo.
Essa condição faz com que a coisa possa ir
além de si mes- ma. E isso encanta na poesia e na
literatura.
Pluralidade
idiomática

Há pessoas que têm grande capacidade de falar,


entender e expressar-se em vários idiomas. Em
alguns períodos da nos- sa História, a pluralidade
de idiomas emerge, especialmente quando se tem
grandes eventos internacionais.
Nesses momentos, aumenta a necessidade de
entender e receber bem o estrangeiro, aprender um
pouco de outros idio- mas para que a comunicação
possa fluir melhor.
De certa maneira, nós temos no Brasil, vez ou
outra, uma sensação meio envergonhada de que
não falamos bem outros idiomas. Isso nos assoma
como um defeito nosso. Mas nem todos os autores
pensam assim.
O escritor e teólogo alemão Johann von Herder
(1744-1803) produziu uma frase que pode acalmar
algumas pessoas: “O estado de espírito encontra
sua melhor expressão na língua materna. Eu não
me envergonho de confessar que, durante toda a
minha vida, não fui capaz de dominar
perfeitamente mais do que um idioma”.
Evidentemente, nós alimentamos o desejo de
ter maior ca- pacidade idiomática, mas conhecer
bem o próprio idioma é uma grande vantagem.
Escrita tocante

Existe um tipo de texto que nos pega, nos


captura, nos al- cança. Alguns livros, textos, ideias
que ouvimos ou lemos, aca- bam se enganchando
em nós.
A sensação nessas ocasiões é de que o escritor
está “escre- vendo para mim”; que eu, leitor, sou o
destinatário daquelas palavras ou que aquilo está
dentro de mim. E para o escritor ou escritora é algo
extremamente gratificante.
Esse é um dos momentos mais fortes na
atividade da es- crita, quando alguém que nos lê e
diz: “Olha, aquilo que você fez no livro tal foi
diretamente para mim. Foi exatamente isso que eu
pensava, era isso que eu tinha que ouvir, parece até
que você estava lendo a minha cabeça”. É
absolutamente prazero- so pensar deste modo.
O filósofo norte-americano Ralph Waldo
Emerson (1803- 1882), na sua obra Sociedade e
solidão, registrou: “É o bom leitor que faz o bom
livro”.
Em cada livro ele encontra trechos que parecem
confidên- cias ou apartes ocultos para qualquer
outro e destinado ao seu ouvido. O proveito dos
livros depende da sensibilidade do leitor.
A grande capacidade de escrita de um autor é
quando ele consegue fazer com que quem o leia se
sinta tocado pessoal- mente, tenha um
enganchamento com a sensibilidade, com a
reflexão.
É, de fato, contar a aldeia para falar do mundo,
falar do geral e falar a cada um.
Retorno avaliativo

Voltar a um lugar, voltar a conversar com uma


pessoa, vol- tar a uma atividade de maneira
voluntária são situações que permitem uma nova
avaliação.
Muitas vezes, ela é positiva. Essa ideia de um
retorno ava- liativo é muito marcante no campo da
literatura.
Lêdo Ivo (1924-2012), nosso especial poeta,
tem uma obra decisiva, e eu gosto sempre de
mencioná-la, que é Confissões de um poeta. Nela,
ele registrou uma máxima forte: “O meu leitor não
é o que me lê, é o que me relê (caso exista). Um
autor lido uma única vez não tem leitores, por mais
retumbante que seja o seu sucesso”.
Essa frase do Lêdo Ivo contém uma expressão
de humilda- de que, no caso dele, não era fingida.
Ele colocou entre parên- teses “caso exista”.
Está sugerindo que ninguém o faria, o que não
é verdade, porque Lêdo Ivo não só merece ser lido,
relido, trilido, se a palavra pode ser criada, mas, de
fato, ele indica aí um cami- nho muito forte para
avaliar a qualidade de uma produção literária.
Princípio cidadão

Princípio de cidadania é aquilo que cada um e


cada uma de nós deve ter como ação dentro de uma
comunidade, dentro da sociedade.
Quem nos ajuda a pensar nessa questão é
Voltaire (1694- 1778), iluminista francês que
inspirou imensamente a Revolu- ção Francesa de
1789, mas ele mesmo não chegou a vivenciá-la,
porque morreu antes deste fato.
Voltaire, um homem instigante, que tem muitas
coisas que chegam até a insolência em vários
momentos; autor de um di- cionário filosófico
extremamente provocativo, no Discurso in- verso
sobre o homem pôs uma ideia que é um princípio
de cida- dania. “Se o homem nasceu livre, deve
governar-se; se ele tem tiranos, deve destroná-los.”
Século XVIII, monarquia na França e em vários
outros lu- gares do mundo, o absolutismo ainda
com fôlego em toda a Europa, e lá vem Voltaire
com uma frase que vai muito além do seu tempo.
A ideia de governar a si mesmo, da liberdade,
que não é de maneira alguma uma ausência de
regras, mas a capacidade de participar da
construção coletiva das regras e, se houver tirania,
a capacidade, e até o dever, diria Voltaire, de
destro- nar o tirano.
Fazer com que a vida livre, de cada um e cada
uma, em mundo coletivo, tenha presença.
Inconstância
eventual

Algumas pessoas nos encontram e dizem: “Mas


você não é mais o mesmo”.
Nem sempre isso deve ser entendido como uma
ofensa. Vez ou outra pode ser olhado como elogio,
afinal de contas, a constância, o mesmo modo de
ser, de pensar, de agir, não necessariamente é um
indicador de coerência.
Pode ser um indicador de inflexibilidade, de
bitolamento, de incapacidade de pensar de outro
modo.
Desse ponto de vista, há uma inconstância
eventual que nos ajuda a criar, a reinventar, a
refazer.
Essa capacidade foi um dia reconhecida por
Aldous Hux- ley (1894-1963), um britânico que
produziu a magnífica obra, uma espécie de
distopia e utopia negativa, que foi Admirável
mundo novo, disse: “A constância é contrária à
natureza, con- trária à vida. As únicas pessoas
completamente constantes são os mortos”.
Frase forte, mas com um polo de reflexão. Não
se trata de simplesmente alterar o modo como se
pensa ou se faz algo só porque o vento bate em
outra direção, mas de não ser constan- te numa
única direção, porque pode ser um sinal de
inflexibi- lidade mental, e isso não é bom.
Bibliofilia
prazerosa

Muitos se dedicam à especial tarefa de serem


bibliófilos, aqueles que guardam livros, que os
colecionam e o fazem por um prazer imenso.
No nosso país especialmente, José Mindlin
(1914-2010) foi um homem que cultivou uma
impressionante biblioteca, com milhares e
milhares de exemplares – inclusive com obras
raras. Significativa parcela dessa coleção se
encontra na Uni- versidade de São Paulo, na
Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, criada
em 2005.
O escritor francês Marcel Proust (1871-1922)
disse que “a leitura é uma amizade”.
A própria ideia de amizade pode ser expressa
usando uma parcela do grego antigo do idioma,
como filia. Como falamos de filiação, de conexão,
esta ideia que cria entre nós algum tipo de liame.
E, se a leitura é uma amizade, ela leva à
apreciação, à ca- pacidade de querer cuidar, de
querer guardar, de apreciar e, acima de tudo, de ter
encontro.
Nosso amigo, nossa amiga são aquelas pessoas
com as quais nós gostamos de nos encontrar.
Nessa hora, Proust indica com muita precisão a
bibliofilia, a amizade pelo livro. A leitura é uma
amizade, ela é uma for- ma de se querer o
encontro, de se desejar a presença, de se buscar
com alegria.
Esquecimento útil

Uma das grandes capacidades humanas é a de


memorizar. Ela não é a principal habilidade da
inteligência, afinal de con- tas, até algumas
máquinas são capazes de ter simulação de
memória, mas, ainda assim, a memória nos auxilia
imensa- mente a existir.
Cada um de nós tem na memória modos de não
cometer mais equívocos, de encontrar aquilo de
que se precisa, mas há, sim, uma importância no
esquecimento.
Se a nossa memória nos fosse contínua, isto é,
se nós tivés- semos de suportar tudo o que
vivemos, todas as situações que percorremos,
todas as experiências, inclusive as que nos são
dolorosas, tristes, isso nos seria insuportável.
O jornalista francês Maurice Martin du Gard
(1896-1970), tem um livro chamado Pequena
sequência de máximas e carac- teres, em que
escreveu: “A vida seria impossível se a gente a
relembrasse. Tudo está em escolher o que se deve
esquecer”.
Fazer também um exercício que alguns, no
campo do re- lacionamento, chamam de perdão, no
campo da ciência é o abandono daquilo que já não
serve; no campo da vida, aquilo que, embora
possa, não precisa mais ser relembrado.
Escolher o que se deve esquecer. É o esquecimento
útil.
Psicologização
excessiva

Existe o chamado “filosofismo”, inclusive


algumas pessoas dizem “ah, isso é Filosofia”. Há
pessoas que filosofam em ex- cesso, transformam
tudo numa filosofização, um termo que, se não
existe, a gente vai inventando.
Do mesmo modo, há a psicologização. O que é
isso? É transformar todo tipo de atitude, todo tipo
de interpretação, de avaliação, como algo oriundo
do campo da Psicologia.
De maneira inteligente e humorada, Luis
Fernando Verís- simo, na obra O sexo na cabeça,
fez uma análise sobre o lobo mau, de uma
perspectiva da Psicologia exagerada, que pode- ria
até ser a Filosofia exagerada, que seria também
extrema- mente pertinente.
Ele diz: “Nem são tão maus como dizem. As
pessoas não pa- ram para pensar que, muitas vezes, o
lobo mau pode ser um lobo problematizado, um lobo
com traumas de infância, um produto do meio;
nenhum lobo nasce mau, o mundo os fez assim”.
Esse modo de brincar do Veríssimo em relação
ao lobo mau serve para pensarmos uma das coisas
mais comuns no nosso cotidiano que é achar
justificativa para tudo. E até dizer “se o lobo não é
mau, nem o lobo nasce mau, foi o meio que o fez
desse modo”, e quase que se diria, trazendo à tona
uma antiga frase, que “depois da Filosofia, da
Psicologia, da Sociologia, parece que não existe
mais crime”. Isto é, a maldade teria a sua
justificativa.
Quero lembrar que tudo isso, até a maldade do
lobo vin- do do meio, como brincou Veríssimo,
não é uma justificativa, quando muito, ela é uma
explicação. Ela explica, mas não tor- na justo.
Malabarismo
vocabular

Se há um brasileiro que conseguiu brincar com


as pala- vras com muita maestria foi o poeta
paranaense Eno Teodoro Wanke (1929-2001).
No livro Reflexões marotinhas, ele registrou
algo para quem inicia uma jornada, uma atividade
ou período de tempo, de uma forma malabarista:
“Um relógio que atrasa, evidente- mente não
adianta, mas pior ainda é um relógio que adian- ta,
porque também ele não adianta, porque um relógio
que adianta é um atraso e o que atrasa também. O
que adianta mesmo é um relógio que não atrasa
nem adianta”.
Olha que coisa genial a possibilidade de brincar
com os vocábulos, de lidar com o nosso idioma de
maneira inteligen- te, de estimular a reflexão, de
usar os diferentes sentidos das palavras e ainda
falar sobre algo que é nossa obsessão pelo tempo.
É muito interessante ser capaz de fazer com que
a palavra “adiantar” tenha tanto o sentido de servir
quanto de anteci- par. E esse duplo modo também
aplicado ao termo “atrasar”.
Isso é um bom malabarismo.
Autonomia da
razão

Marquês de Maricá foi um título recebido pelo


carioca Ma- riano José Pereira da Fonseca (1773-
1848), doutor em Filosofia, que foi ministro da
Fazenda no início do Império no Brasil, no século
XIX.
Em suas máximas, anotou: “A razão é escrava
quando a fé e a autoridade são senhoras”.
O que quer ele dizer com isso? Que a razão
precisa ter pri- mazia sobre a fé e a autoridade, no
sentido do uso cotidiano.
Para o nosso dia a dia, quando a razão submete
a fé, é sinal de que ela perde parte da
fundamentação de uma convivência mais
consensual e objeto de um acerto mais coletivo.
Do outro lado, a razão não deve se subordinar
ao argumen- to de autoridade. O que é um
argumento de autoridade? É quando se obedece
porque foi o chefe que disse ou aceita-se porque
foi o professor que falou ou quando alguém acata
algo apenas porque alguém disse: “Estou falando,
se eu estou fa- lando, acabou, é assim”.
Esse argumento de autoridade, que é também
trazido pela ciência, quando alguém diz: “Não, eu
sou o professor e eu sei”, “eu sou o médico, eu
sei”, “eu sou o economista, você não é da área”.
Esse argumento de autoridade, tal como o que é
usado como fundamento a partir da fé, pode
escravizar a racionalidade.
Nessa hora, o que vale para o pensamento
racional são os fun- damentos lógicos que tragam a
possibilidade de um consenso.
Tanto a autoridade quanto a fé são parciais em
relação à convivência das pessoas.
Ingenuidade
analítica

A ideia de que algo pode ser resolvido a partir


de um olhar numa única direção conduz à
ingenuidade.
O escritor inglês John Ruskin (1819-1900)
ajudou a propagar uma crença frágil, muito repetida,
inclusive no nosso país, de que “mais escolas
significam menos prisões”. Esse chavão vem de
uma frase de Ruskin, que dizia: “Reformemos
nossas escolas e não teremos que reformar grande
coisa em nossas prisões”.
Qual a ingenuidade por trás dessa ideia? Toda vez
que se diz “mais escolas, menos prisões”, há uma
suposição de que a ilegali- dade, a criminalidade, se
deva à ausência de escolarização, o que não se dá
obrigatoriamente desse modo.
Uma das causas da criminalidade, sem dúvida,
é a in- suficiência de formação, seja no campo da
capacitação técnica, seja em relação a alguns valores.
Mas não ter escolaridade não direciona uma pessoa
para a criminalidade. Assim como ter uma
escolaridade, inclusive elevada, não torna alguém
imune à possi- bilidade do ilícito.
Em grande medida, claro que mais escolas
significam uma so- ciedade mais sólida, mais
desenvolvida, com maior capacidade de proteção,
com uma rede social de cuidados a seus homens e
mulheres. Não há, entretanto, uma relação direta
entre construir mais escolas e diminuir
automaticamente o número de prisões.
Insisto: a Educação escolar ajuda muito, mas ela
não tem o po- der mágico de solução. É preciso tirar
essa ingenuidade e colocar os focos também em
outros lugares.
Errata

“Errata” é uma palavra de origem italiana. No


latim, erra- ta é plural de erratum. Mesmo plural,
errata se incorporou no nosso idioma e em outros.
E o que é uma errata? É corrigir ou corrigir-se.
Em tempos anteriores, se colocava, após a
impressão de um livro, uma folha com indicação
de onde havia sido cometido algum equívoco.
Machado de Assis (1839-1908), em Memórias
póstumas de Brás Cubas, no capítulo XXVII,
lembrou algo muito importan- te: “Deixa lá dizer
Pascal [o filósofo Blaise Pascal] que o homem é
um caniço pensante. Não; o homem é uma errata
pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma
edição, que corrige a anterior, e que será corrigida
também, até a edição definitiva, que o editor dá de
graça aos vermes”.
Viver por erratas. Nós vivemos, de fato, nos
corrigindo e criando novas edições de nós
mesmos. E isso é um pensamen- to que Machado
de Assis capturou com a sua agudeza extre-
mamente manifesta.
Viver por erratas é, assim, fazer nova edição,
corrigir-se.
Vaticínio arriscado

Um de nossos maiores escritores, Fernando


Sabino (1923- 2004), nascido em Belo Horizonte,
foi locutor de rádio quan- do era adolescente. Num
livro de crônicas de que eu gosto muito, de 1973,
chamado Deixa o Alfredo falar!, fez uma equi-
vocada profecia.
O genial Fernando Sabino, como qualquer um
de nós, é ca- paz de equivocar-se. Ele dizia
naquela ocasião: “Rádio é mes- mo uma coisa
misteriosa, começou fazendo sucesso na sala de
visitas e acabou na cozinha. Cedeu lugar à
televisão e essa já vai pelo mesmo caminho.
Ninguém que se preze, além das cozinheiras e dos
motoristas de caminhão, tem coragem de se dizer
ouvinte de rádio – a não ser de pilha, colado ao
ouvido, quando apanhado na rua em dia de
futebol”.
Há mais de 40 anos, Fernando Sabino fez um
prognóstico que não se confirmou, isto é, que o
rádio iria ficar cada vez mais escondido.
Ao contrário, não só ele é um veículo de
comunicação que faz par com outros modos de
comunicação no nosso dia a dia, como ele nos
acompanha, não escondido na cozinha, como já foi
num determinado momento ou num cantinho da
sala, ou apenas, como brincou Sabino, com as
cozinheiras e os moto- ristas de caminhão.
O rádio está conosco no carro, nas novas
plataformas pela internet, pelo celular, em vários
modos do nosso cotidiano.
Genial Fernando Sabino, mas, nesse caso, ainda
bem, não estava certo.
Bons tempos

Frase muito dita por gente com mais idade:


“Ah, no meu tempo é que era bom”.
Existe essa ideia do tempo que já foi ser um
tempo para- disíaco, um tempo de perfeição, de
vida mais sossegada, de maior gostosura. Não
necessariamente.
Pedro Nava (1903-1984), memorialista
mineiro, escreveu em Balão cativo algo para
meditarmos: “Para quem escreve me- mórias, onde
acaba a lembrança, onde começa a ficção? Talvez
sejam inseparáveis”.
Dizendo de outro modo: Quando estou
lembrando de algo, aquilo de que lembro é de fato
o que era ou eu também ficcio- no um pouco, isto
é, invento?
É muito provável que alguns de nós, aqueles
que temos mais idade, ao dizermos “ah, no meu
tempo, aqui era melhor”, estejamos trazendo à tona
lembranças de algumas coisas boas, mas pode
também ser uma invenção. Pode ser um desejo de
que antes tenha sido melhor do que hoje é. E esse
território da memória não é tão nítido assim.
O que é uma memória que eu desejo que seja
boa porque a inventei e o que é uma memória
que de fato era daquele modo? Nós guardamos
algumas coisas da infância que podem ser muito
boas e outras, muito ruins, e uma parcela disso
pode ser fruto da nossa própria ficção.
Por isso, a nostalgia pode nos fazer bem quando
temos clare- za de que não é uma mera invenção,
embora a ficção nos ajude.
Positividade
da incompetência
urbana

Nós, homens e mulheres, vez ou outra, não


conseguimos anular nas cidades aquilo que elas
têm de mais especial, aquilo que elas têm de mais
bonito. Portanto, há uma incompetência urbana da
nossa parte que, em vários momentos, é positiva.
Por exemplo, quando o Rio de Janeiro fica em
evidência, em algumas épocas do ano, lembramos de
Paul Claudel (1868-1955), escritor e diplomata
francês que serviu também como ministro
plenipotenciário no Brasil durante a Primeira
Grande Guerra.
Ele escreveu: “O Rio de Janeiro é a única
grande cidade das que conheço que não conseguiu
expulsar a natureza”.
De fato, quando vamos ao Rio de Janeiro, ou
vemos cenas da cidade, percebemos que essa
incompetência para expulsar a natureza daquele
lugar foi extremamente benéfica e trouxe um
encantamento grande.
Não é à toa que tenha Paul Claudel por isso se
encantado. Quando ele estava no Rio de Janeiro,
que era a capital federal, fez vários textos com
uma leitura mais poética da cidade. Mas o que eu
acho mais apreciável é essa postura de ele
identificar com uma expressão muito forte que é
“expulsar a natureza”, o que não conseguimos. E
disse ele que, das grandes cidades, foi a única em
que isso se deu.
Essa preservação distraída, porque ficamos
desatentos, é boa demais.
Dormir a granel

Toda vez em que temos um momento de


repouso, dá um gosto imenso esticar o tempo de
sono. Algumas pessoas são capazes até de dizer:
“Eu vou passar dois, três dias dormin- do, eu
quero aproveitar”.
É claro que há muitas maneiras de aproveitar
essa pausa, uma delas pode ser de fato dormir a
granel. Esse período em que temos chance de dar
uma parada, um momento de pau- sa nas
atividades cotidianas, é chamado pelos judeus
de “sabático” – apesar de muita gente entender
sabático como um período de sete dias, não é isso,
essa expressão significa interrupção do trabalho.
Quando estamos num período assim, dormir
com mais extensidade pode ser algo agradável, em
vários momentos, como escolha.
O escritor espanhol Ramón Gómez de la Serna
(1888-1963) diz que: “Roncar é tomar
ruidosamente uma sopa de sonho”. Parece um
pouco alguns dos poemas feitos pelo nosso
poeta Mario Quintana (1906-1994), por conta, até,
do modo bem-humorado de colocar o ronco de
forma poética, gosto- sa. Um olhar extremamente
aprazível de algo que é muito perturbador, e que
pode até ser indício de uma patologia,
quando vem acompanhado de apneia.
Mas quando se vai descansar, tirar um cochilo,
“roncar é tomar ruidosamente uma sopa de
sonho”.
Há épocas em que desejamos nos ensopar desse
sonho.
Diferencial
biológico

Temos a vantagem ferramental sobre outros


animais. Nós não temos todas as vantagens, mas
temos várias delas que, aliás, permitiram que nós,
um animal frágil do ponto de vista da evolução
biológica, que há 3 milhões de anos competia com
muita dificuldade com as outras espécies,
conseguiu ter um desenvolvimento mais
proeminente (ainda que eventualmen- te
destrutivo) em relação à presença no planeta.
O poeta norte-americano Ezra Pound (1885-
1972) escreveu: “É sabido que a grande diferença
do homem consiste em criar ferramentas
separadas, recuperáveis. Ou seja, se o inseto car-
rega uma serra, carrega-a continuamente”.
Quando Ezra Pound coloca isso no texto, ele
não tinha ain- da noção de algo que temos
estudado na última década, que é o fato de outros
animais, especialmente primatas, também serem
capazes de usar ferramentas que são externas aos
cor- pos deles. Mas à época em que Pound fez essa
formulação, era claro que essa era uma grande
vantagem para nós humanos.
Nós, na evolução, conseguimos fazer a
extensão do nos- so corpo por meio de um
martelo, uma faca, uma clava, uma lança, uma
serra, coisas que não fazem parte do nosso corpo,
portanto, elas podem ser refeitas, reinventadas,
recuperadas.
Essa é uma vantagem competitiva fortíssima,
embora tenha levado a algumas desvantagens,
ligadas à nossa capacidade destrutiva.
Mas olhando do ponto de vista construtivo, um
inseto, se carrega uma serra, carrega para sempre;
nós não, nós somos capazes de nos separar da
ferramenta, aperfeiçoá-la, mudá-la, repará-la,
deixá-la.
O engano que
eleva

Às vezes, um percalço pode identificar mais


uma qualida- de do que um defeito.
O britânico Hesketh Pearson (1887-1964), um
dos mais importantes biógrafos da passagem do
século XIX para o sé- culo XX, nos intrigou com
uma reflexão: “O homem muito lido nunca cita
com precisão. A citação errada é o orgulho e o
privilégio da pessoa culta”.
Parece estranho, mas carrega, sim, uma
possibilidade ver- dadeira. Afinal de contas,
alguém que lê demais, já leu muito, nem sempre
cita com toda precisão porque o faz de cabeça.
Alguns dos intelectuais mais brilhantes que
conheço são capazes de dizer: “Se não me engano,
disse tal pessoa”. E, às vezes, se enganam.
Nessa hora, vale lembrar que o deslize, no caso,
identifica mais alguém que lê bastante e que é
capaz de errar, tal o acú- mulo de conhecimento
que tem, do que aquela pessoa que, lendo pouco,
cita com absoluta precisão e sem erro.
Suavidade afetiva

Theodor Adorno, um dos imensos pensadores


do século XX, integrou com Horkheimer,
Habermas, Marcuse a famosa Escola de Frankfurt.
O pensamento contemporâneo não consegue
ser identifi- cado, melhorado e refletido sem o
trabalho de Filosofia feito por Theodor Adorno
(1903-1969). Ele tem uma obra, de 1945, chamada
Minima moralia, em que, lembrando que a
Segunda Guerra estava terminando, ensinou:
“Serás amado apenas quando puderes mostrar sua
fraqueza sem provocar nenhu- ma força”.
Pensamento profundo, porque quando
mostramos fraque- za, por vezes a pessoa do outro
lado usa essa condição para vir contra nós e não se
aproximar de maneira acolhedora. Nessa hora,
claro que o amor se ausenta.
A própria possibilidade de ser amado ou ser
amada, nesse campo da Filosofia de Adorno, traz
uma conduta ética.
Essa suavidade afetiva é a expressão de uma
amorosidade que não se beneficia, não leva
vantagem quando alguém de- monstra fraqueza, ao
contrário, essa fraqueza aparece como
transparência, eventualmente, como necessidade
de ajuda, porém, jamais, como uma ocasião de
pressionar o outro.
Compreensão
ampliada

Os latinos têm uma expressão que, em


português, não é tão usada no dia a dia, embora no
campo mais acadêmico ela venha à tona, que é
“ubiquação”. Ela significa o lugar certo de algo.
Ubicar é achar um lugar, colocar em um lugar.
Várias coisas precisam ser melhor ubicadas, uma
delas é a que se refere ao que é belo e ao que é feio
na vida.
O poeta francês Pierre Gringoire (1475-1538)
disse que “não existem amores feios nem prisões
belas”.
Isso, sim, é colocar as coisas no lugar. Não há
amor feio, pode ser que alguém que olhe
externamente possa até dar a identidade de feiura a
algo que é amorosidade, mas, sem ser piegas, todo
amor tem a sua beleza, assim como toda prisão
tem a sua feiura.
A ideia de algo que retém, constrange e
inferniza mesmo aqueles que merecem, ainda
assim, não há possibilidade de se identificar ali
alguma beleza.
A amorosidade sempre é bela, a prisão sempre
é feia, e isso vai construindo o lugar que
precisamos ter como compreen- são das coisas.
Fidelidade enganosa

Não é incomum que se diga que alguém tem


“fidelidade canina”. O cão é um animal que
conosco vive há alguns mi- lhares de anos e, nesse
tempo, identificamos nele a fidelidade. Mas não é
sempre assim que se deve pensar.
O pensador austríaco Karl Kraus (1874-1936),
no livro Ditos e desditos, desmonta um pouco essa
percepção de fidelidade canina. Nos tempos atuais,
seria algo equivalente a “fidelida- de a quem, cara
pálida?” Kraus disse: “Não há dúvida, o cão é fiel!
E por isso devemos tomá-lo como exemplo? No
fundo, é fiel ao homem, não ao cão”.
É bom para refletir.
No fundo, o cão é fiel ao homem, e não ao cão;
portanto, quase que se lembraria “que fidelidade é
essa que se dá fora do seu grupo, no caso, entre
animais fora da sua espécie?”
É fiel a nós, portanto nos interessa, mas, com
relação a outros cães, não é fiel obrigatoriamente.
Nós temos relatos de cães que são fiéis a outros
cães, mas a nossa lógica cotidiana é sempre
imaginar esse cão fiel a nós humanos e infiel a
outro cão.
Nesse momento, a fidelidade fica muito parcial
e, portanto, precária.
Irritação criativa

Às vezes, somos acometidos por uma


perturbação, aquela coceira interna que nos leva a
criar, a ir adiante, a partir em busca do novo e não
ficar apenas na repetição.
Érico Veríssimo (1905-1975), que fez trabalhos
fora do Bra- sil, registrou experiências quando
esteve no México, país que virou título de um livro
publicado em 1957. Nele, anotou: “Um japonês
descobriu que, provocando uma irritação em certa
parte anatômica da ostra, pode-se pôr o bicharoco
a produzir uma secreção que, com o tempo,
florescerá numa pérola. Pois creio que o romance é
o produto da irritação do romancista. Mas tem de
ser um tipo especial de irritação”.
Alguns escritores e escritoras identificam onde
é que, se fazendo a coceira, provocando a irritação,
o romance vem à tona. Esses são os grandes.
Outros não conseguem, a irritação se torna
mera chateação, resmungo, rabugice.
Érico Veríssimo, sem dúvida, foi um desses
com irritação criativa, tal como ele lembrou:
quando feita na ostra mais tar- de se torna pérola.
É muito expressivo que o romancista produza
uma obra por- que ele tem uma coceira interna, e
essa irritação só acalma e sossega com a produção
de algo que nos alegra e nos encanta.
Presença
enfadonha

Existem pessoas com quem convivemos, mas


desejaríamos que ficassem mais distantes. Uma
distância almejada, que nos gera algo gostoso ter
de vez em quando, que é saudade, im- possível
quando da presença contínua.
Há pessoas que ficam o tempo todo grudadas,
com um “comportamento chiclete”. Não te deixa,
não te larga. Há mo- mentos em que é agradável,
mas nem sempre o é.
Por incrível que pareça, isso desde o mundo
latino vem gerando preocupações. Propércio (43
a.C.-17), poeta do sé- culo I a.C., escreveu:
“Quando um amante está distante, mais quente se
faz o desejo. O hábito deixa o amado fastidioso”.
Fica enfadonha a presença quando ela é muito
contínua. Isso não vale apenas no campo do amor.
Fazendo uma refle- xão que pode parecer banal,
mas tem uma conexão com isso: “a fome é o
melhor tempero”. A ausência de alimento faz cres-
cer o apetite.
Até quando se sai num final de semana, com as
mesmas pessoas, do mesmo modo, com gente que
não te larga, fica fas- tidioso. Quando um parente
vem te visitar (e às vezes a gente é esse parente) e
fica na casa três dias, já começa a ficar meio
estranha a relação.
Por isso, há uma distância almejada, que é
aquela que gera saudade.
Vá, que eu vou querer que você volte.
Confiança frágil

Há algumas crenças, seja de natureza científica


ou religio- sa, que não têm fundamentação.
É muito curioso que muitas pessoas, lendo o
jornal, ouvin- do o rádio, vendo a tevê sejam
capazes de duvidar da pre- visão do tempo, mas
acreditem no horóscopo. Há pessoas que
consideram a previsão do tempo um campo sem
credibilidade, mas utilizam o horóscopo como
fonte de referência ou até pau- tam a conduta
naquele dia por aquilo que os signos anunciam.
Claro que há uma possibilidade de crença nisso,
mas há uma diferença forte entre astrologia e
meteorologia. O tipo de fundamento, de
conhecimento que se usa, de raciocínio, de va-
riáveis que são estudadas (sem desprezar quem tem
alguma crença na astrologia) confere à
meteorologia um embasamen-
to muito mais sólido. Isso, no entanto, não é
consenso.
Por exemplo, Ramón Gómez de la Serna (1888-
1963), jorna- lista espanhol que escreveu o livro
Greguerías, em 1917, defi- niu meteorologia como
“mentirologia”. Ele viveu até meados do século
XX, época em que não havia tanto embasamento
na previsão do clima. Mas a meteorologia, desde
que apareceu, tem um nível muito maior de
precisão, de fundamentação do que a astrologia.
Ainda assim, há pessoas que acreditam em
horóscopo, mas duvidam da previsão do tempo.
Fonte generacional

Na sua inesquecível obra Memórias póstumas


de Brás Cubas, Machado de Assis (1839-1908),
intitulou um dos capítulos, que é mais uma frase do
que um título em si: “O menino é o pai do
homem”.
Afinal de contas, um jovem tem a paternidade
em relação àquilo que se tornará no futuro.
O filósofo espanhol Miguel de Unamuno
(1864-1936), que morreu em prisão domiciliar, era
um opositor à ditadura do General Franco, em
Ensaios, redigiu: “Quase sempre me vi tra- tado de
menino velho, o que me consola, pois creio que é o
melhor caminho para chegar a velho menino”.
Interessante essa percepção de Unamuno, tal
como a de Machado de Assis. Embora tenha
morrido aprisionado, o es- panhol viveu o
suficiente para produzir uma obra cheia de vi-
talidade.
Essa fonte em que o menino gera o homem e,
portanto, é seu pai no sentido de geração, aparece
também em relação ao velho menino, lembrada
por Unamuno.
Retorno perene

Uma renovação persistente é o que faz com que


as coisas não sejam o tempo todo do mesmo modo.
Nem em nós, nem no mundo à nossa volta, nem a
nossa presença no mundo.
Há uma constância na realidade que é a sua
forma contínua de mudança.
Retoma-se aí a famosa frase do filósofo
Heráclito (aprox. 535 a.C.-475 a.C.), que no século
VI a.C. produziu a máxima: “A única coisa
permanente é a mudança”.
Há algo aí que nos remete àquele que é o maior
exemplo de recomeço: o mar.
O simbolista francês Paul Valéry (1871-1945)
tem, entre seus poemas, um estupendo chamado O
cemitério marinho, que tem o verso: “O mar,
sempre recomeçar”.
Quem já esteve na beira do mar sabe que uma
das coisas que mais impressiona é exatamente a
renovação, o recomeço, as ondas que chegam,
fazem o seu volteio na areia e voltam. O mar como
sendo um movimento contínuo de alteração.
Quando se olha de fora a imagem do nosso
planeta, quase que a totalidade dele é composta de
água, que está em cons- tante movimento. Não é
estranho que a ciência aponte a pos- sibilidade de
que a própria vida tenha vindo do mar, de um
caldo primal e depois rumou em direção à terra.
Nós, terráqueos, no duplo sentido da palavra,
temos de lembrar esse exemplo do mar e sempre
recomeçar.
Autocrítica
superficial

Certas pessoas são capazes de criticarem a si


mesmas em relação a determinados aspectos, mas
deixam de lado aquilo que seria objeto de uma
autocrítica mais densa. O que significa uma forma,
ainda que leve, de arrogância, por supor que não
existem coisas relevantes a serem criticadas, o que
não deixa de ser um movimento de aprovação.
Não é verdade. François de La Rochefoucauld
(1613-1680), um moralista francês, escreveu em
sua obra de 1664, chama- da Reflexões: “Todos se
queixam da própria memória, mas do próprio juízo
ninguém se queixa”.
Não é incomum encontrar pessoas que falam:
“Olha, estou ficando com a memória fraca, estou
perdendo a capacidade de lembrar de coisas, já não
recordo mais de tudo como era, acho que é a
idade”.
Olha que coisa: reconhece algum tipo de desvio
ou de equí- voco no campo da memória, mas não
critica do mesmo modo aquilo que é o juízo, o
julgamento, a própria sanidade. É inte- ressante
como a memória é entendida como sinal de
inteligên- cia e, portanto, de sanidade.
E ela é só uma das habilidades da inteligência
humana. Não é exclusiva, nem a principal.
Embora, sem dúvida, seja importante. Mais
importante para nós que a memória em si é a
capacidade de estar no seu juízo, de fazer bons
discernimen- tos, boas avaliações.
Mas a memória parece imperar.
Mito histórico

Em alguns momentos da história de um país, de


uma so- ciedade, até de uma família se constrói
toda uma mitologia. Não há nitidez para saber se
algo de fato aconteceu ou foi imaginado.
A suspeita não descarta a possibilidade de
haver nessa crença alguma verdade.
O pensador francês Diderot (1713-1784), autor
de A en- ciclopédia, obra decisiva no século XVIII,
publicada em 28 volumes entre 1750 e 1772, foi o
mais enfático defensor da antimonarquia e da
anticlericalidade. Se havia algo que o ir- ritava era
o estado monárquico e o estado clerical, isto é, a
Igreja Católica na época.
Sempre sagaz, Diderot dizia: “Todos os povos
têm desses fatos aos quais para serem
maravilhosos só falta serem verda- deiros, com os
quais tudo se demonstra, mas não se prova; os
quais ninguém ousa negar sem passar por herege e
nos quais ninguém ousa acreditar sem passar por
imbecil”.
É forte.
Nacionalidade
ambulante

Apesar de a ideia de nação estar vinculada a um


território determinado, com as suas fronteiras, com
a sua geografia de base material, a nacionalidade é
algo que anda com a pessoa.
Quem mais deixou isso claro foi Thomas Mann
(1875-1955), estupendo escritor alemão, Nobel de
Literatura em 1929.
Durante o governo nazista, ele perdeu a
cidadania alemã e foi viver na Suíça, depois nos
Estados Unidos, onde lecionou na Universidade de
Princeton. Perseguido pelo macarthismo, aquele
que acusava as pessoas de comunistas, teve de sair
de novo e retornou à Suíça, país em que morreu.
Thomas Mann dizia: “Onde eu estou é
Alemanha”.
Claro que ele não está sendo patriota no sentido
torto do termo. Ele está dizendo que o alemão,
estando onde estiver, a Alemanha estará com ele.
Evidentemente ele não era só Ale- manha, mas era
onde estavam as raízes dele.
Aquilo que Fernando Pessoa (1888-1935)
também deixou claro em relação a contar a aldeia e
contar o mundo, em relação ao Tejo, o seu rio de
infância. Isso vale também para Thomas Mann, a
ideia de uma nacionalidade que vai com a pessoa.
Onde eu estiver, está a minha raiz, o país onde
nasci, a mi- nha história.
Por isso, uma nação se move junto com pessoas
que passam por outras nações sem perder a
identidade e a característica.
Eloquência
manufaturada

As mãos falam também.


Tomemos a ideia de eloquente como aquele ou
aquela ca- paz de falar bem ou manifestar-se
bastante na fala oral ou com as mãos. Vários de
nós, especialmente os latinos, temos o hábi- to de
movimentar as mãos quando falamos.
No entanto, há um outro modo dessa
eloquência das mãos. William Shakespeare, um
homem que não é lembrado somente pela
literatura especial que produziu, mas porque é
uma das poucas pessoas famosas que nasceu e
morreu no mesmo dia do mês: nascido em 23 de
abril de 1564 e falecido no dia 23 de abril em
1616, nos ilumina nesse ponto das mãos. No
terceiro ato da tragédia Júlio César, colocou na
boca de Casca, um dos assassinos do ditador
romano, uma expressão
curta e densa: “Falai mãos por mim”.
Sabe-se que Júlio César foi assassinado a
punhaladas den- tro do senado romano. Por isso,
quando Casca, na tragédia escrita por Shakespeare,
enuncia essa expressão é a eloquência
manufaturada.
As mãos que vão tornar possível aquilo que a
mente está desejando e procurando. Com uma
frase extremamente sinté- tica, Shakespeare
consegue capturar o desejo, que várias vezes se
tem, de fazer as mãos operarem aquilo que é a
nossa subje- tividade.
Automatismo
sedutor

Às vezes, há uma tendência à perda da


sensibilidade para aquilo que é mais natural em
relação à nossa convivência, ao nosso consumo, ao
nosso meio ambiente.
Não é só o natural idealizado, romantizado,
porque nem sempre isso pode ser trazido como um
momento elevado. Doenças podem ser naturais,
catástrofes podem vir de manei- ra natural. Então
não se trata de romantizar a natureza. Mas existe,
sim, aquilo que é mais voltado para a
espontaneidade e menos pela artificialidade.
George Bernanos (1888-1948) foi um jornalista
francês que viveu exilado no Brasil durante a
ocupação nazista. A cidade em que ele mais morou
aqui foi Barbacena, em Minas Gerais, embora
tenha vivido também em outras localidades.
Ele tem uma obra, cujo título é O caminho de
Cruz das Al- mas, que fica na Bahia. Nela
escreveu: “O perigo não está na multiplicação das
máquinas, e sim no número cada vez maior de
pessoas habituadas desde a infância a só desejar o
que as máquinas podem lhes dar”.
Ele escreve isso nos anos de 1940!
Hoje teria um impacto e uma importância
muito maiores. Essa sedução do artificial, esse
enlevo que temos em muitos momentos com o que
nos tira de conexão com aquilo que é produção
nossa, e não obrigatoriamente plastificado, marca
uma perda de sensibilidade.
Reciprocidade
irada

Existe reciprocidade quando alguém de quem


não gosta- mos de nós também não gosta. Não é
incomum encontrarmos uma pessoa que se
especializa em falar mal de nós. E essa pes- soa
acaba também não sendo por nós gostada.
Gente com quem até podemos ter uma relação
hipócrita, conforme denominavam os gregos.
Essa palavra vem do teatro. “Hipócrita” é aquele
que fala por baixo, aquele que tem um texto
escondido. No teatro, era a personagem que fi-
cava nos bastidores, não deixando claro qual era o
papel que estava desempenhando.
Sacha Guitry (1885-1957), ator russo que
adquiriu naciona- lidade francesa, fez muitas obras
no cinema francês e algumas poucas no cinema
norte-americano. Um dia, Guitry disse: “Se os que
falam de mim soubessem exatamente o que penso
de- les, falariam ainda pior”.
Isso é dar razão, com toda alegria, inclusive, a
quem fala mal de nós, porque a avaliação daquela
pessoa é tão ruim que se ela soubesse como é
avaliada, como é rejeitada, como ela é desgostada,
essa pessoa que fala mal falaria pior ainda.
Precocidade
aprazível

Algumas pessoas morrem numa idade bastante


jovem. O que por vezes chamamos de idade
precoce. Afinal, ninguém deseja que as pessoas
não tenham longevidade, essa precoci- dade
sempre nos surpreende.
Quando a finalização da vida se dá de maneira
precoce, sendo a pessoa pública, considerada
heroica, isso potencializa imensamente a
admiração, pois se imagina o que essa pessoa seria
capaz de fazer se viva continuasse.
Muita gente no nosso dia a dia acaba sendo
objeto de imen- sa admiração porque não teve
chance, dada a sua partida precoce, de errar mais
ou de errar em algum momento ou de desprovar
aquilo que houvera provado.
Plauto (aprox. 254 a.C.-184 a.C.), dramaturgo
romano do século III a.C., com obras de grande
influência no teatro oci- dental, escreveu nas
Bacantes: “Aquele a quem os deuses esti- mam
morre jovem”.
Por quê? Porque a morte precoce de alguém por
quem se tem algum tipo de admiração faz com que
a pessoa ganhe ares de mais herói, às vezes até de
santidade.
Estupidez
perigosa

Uma das coisas mais arriscadas da vida é a


pessoa que tem poder e influência ser marcada
pelo comportamento estúpido. Ninguém está
isento de atos de estupidez; no entanto, a maneira
tola de agir, o modo idiota de pensar, quando
acome- te alguém que tem influência ou poder, que
tem capacidade de gestão, que tem autoridade
sobre outro, ela se coloca num
patamar muito mais perigoso e se torna, portanto,
temerária.
Frase das mais horrorosas que já li e que gosto
de meditar sobre ela para que a gente não caia
nessa armadilha é de Adolf Hitler (1889-1945),
pouco admirável em sua trajetória.
Sua obra principal, Minha luta, ajudou a criar
algumas das bases teóricas do que foi depois o
nazifascismo na Europa e ainda hoje influencia
algumas pessoas. Nela, Hitler escreveu: “Temos de
ser cruéis, temos de recuperar a consciência tran-
quila para sermos cruéis”.
Parece, à primeira vista, uma oposição entre
consciência tranquila e crueldade. O exercício da
crueldade como sendo possível, a partir de uma
consciência que não se envergonha da crueldade
praticada.
É aí que eu coloco essa perspectiva da
estupidez perigo- sa. Relacionar tranquilidade da
consciência para a prática da crueldade é
absolutamente estúpido.
E Hitler também o foi.
Perícia volátil

Amplidão restrita é uma expressão que


pareceria fora de propósito. Mas ela acontece em
várias atividades. Vários de nós, à medida que
vamos progredindo nas nossas habi- lidades e
competências, nas nossas perícias, vamos ficando
mais especializados e, portanto, perdendo essa
amplidão que o tempo de prática até admitiria.
Vale especialmente para o campo da arte, mais
ainda para o cinema, no teatro, na área da
interpretação.
Quem trabalhou bem essa perspectiva foi o
romancista bri- tânico William Somerset
Maugham (1874-1965), que, embora nascido em
Paris, estava na embaixada britânica de propósito,
o pai dele assim o desejou, ganhou a cidadania
britânica. E ele é mais conhecido por um livro que
virou filme, O fio da navalha. Teve várias obras
adaptadas para o cinema, mas esta ganhou pelo
menos quatro versões diferentes no século XX.
Somerset Maugham escreveu um dia: “Quando
um ator finalmente aprende a interpretar todos os
tipos de papéis, geralmente está velho demais para
eles e só pode interpretar alguns poucos”.
Essa é a ideia da amplidão restrita.
À medida que se consegue ter a capacidade de
ampliar o leque de competências e habilidades,
isso pode limitar a nossa demanda, a capacidade de
nos procurarem para fazer apenas algumas coisas
nas quais nos consideram peritos, embora até, tal
como o ator, fôssemos capazes de interpretar
outros papéis.
Mas aí, só nos restam alguns poucos.
A música como
desafio

A criação humana, uma das coisas mais


intrigantes da nos- sa espécie, é a nossa
possibilidade de inventarmos o que não é
imediatamente útil. De criarmos o que não tem uma
finalidade de base ideológica. A música é uma delas,
tal como a poesia – ou a Filosofia, como diriam
alguns.
Não se faz música ou poesia porque isso nos
permite nadar melhor ou que fiquemos mais
protegidos em relação às intem- péries da natureza
ou que nos permita plantar mais alimentos. Há uma
capacidade de produzir algo que ultrapassa a
própria natureza e que não é útil apenas para a
nossa sobrevivência.
O filósofo alemão Walter Kaufmann (1921-
1980), na obra A vida nos seus limites, tem uma
frase longa, mas que vale a reflexão: “Se a música
é uma rejeição triunfante do mundo em que
nascemos, um não à natureza, um corajoso desafio
a Deus e aos deuses e a toda espécie de poderes
não humanos e que se pensa em moldar o
cosmos, é um mundo rival feito pelo homem”.
O nosso mundo, o mundo da natureza, aquilo
que já tí- nhamos quando aqui chegamos e
evoluímos como espécie, ele tem os seus sons, os
seus ruídos, mas a música é o nosso mundo rival.
É a nossa maneira de criar algo que não é um
espelho em si da natureza, mas é criação humana
e, portanto, expressa tam- bém um desafio de
absoluta criatividade e nos coloca na frui- ção, no
aproveitamento do que ultrapassa o imediato.
Cansaço
interrompível

Várias vezes se deseja descansar e alguns


identificam na nossa finitude, na nossa morte a
ideia de descanso. Tanto que existem expressões
como “descanse em paz” e “nessa vida de labuta,
uma hora eu terei o descanso eterno”.
Encarar a morte como sendo solidária, em vez
de encará-la como ameaça é algo muito presente
na Literatura, na poesia, na Filosofia. Afinal, a vida
produz, sim, um certo cansaço, que, para alguns,
seria interrompido pela nossa mortalidade; por-
tanto, se olharia a morte como uma bênção, e não
um defeito da nossa formação biológica.
O escritor norte-americano Mark Twain (1835-
1910) disse: “Quem viveu bastante para descobrir o
que é a vida, sabe que dívida de profunda gratidão
devemos a Adão, primeiro grande benfeitor de
nossa raça. Foi quem trouxe a morte ao mundo”.
Claro que Mark Twain faz referência a uma das
narrativas do judaísmo, que o cristianismo e o
islamismo absorveram, que é a ideia de que Adão e
Eva, supostos primeiros humanos, ao
desobedecerem a Divindade, tiveram como
condenação a expulsão do Paraíso, e, como
consequência, a mortalidade. Portanto, se diz que
foi Adão simbolicamente quem trouxe para o
mundo a morte.
Como diz Mark Twain, nós temos uma
profunda gratidão, uma dívida com Adão, que foi
nosso grande benfeitor ao in- troduzir a
interrupção da labuta.
Proveito urgente

A clássica expressão “do mundo nada se leva”


é entendida por alguns como um elogio ao
“aproveite o dia”, o famoso car- pe diem, dos
romanos antigos. A perspectiva de não se deixar a
vida escorrer.
É claro que há momentos em que essa ideia de
aproveitar a vida, dado que “do mundo nada se
leva”, ganha uma contor- ção de algo mais urgente.
No entanto, essa ideia de “do mun- do nada se
leva” pode ser pensada numa outra perspectiva.
O escritor carioca Millôr Fernandes (1923-
2012), no Dicioná- rio de ideias imediatas,
registrou: “Deste, nada se leva, dos ou- tros se traz
apenas pedras para exame de laboratório”.
Millôr está se referindo a algo muito
interessante, que foi a chegada dos primeiros
artefatos humanos a outros mundos, entendidos
assim como a lua ou o planeta Marte. Aquilo que
nos encanta nas últimas décadas, que é a
possibilidade de en- contrar não só vida como
outros mundos, outros satélites, e de lá termos
algum tipo de compreensão sobre a nossa própria
origem.
Ainda assim, brinca Millôr, e nos traz uma
outra questão: “Para que ir até outros mundos se
este tem tantos problemas no dia a dia?”
Evidentemente, essa visão é um pouco redu- zida,
à medida que a ciência avança, busca aquilo que
nos permite compreender melhor a nossa origem e
o mundo em que estamos.
Mas vale pensar.
Insistência honrosa

A luta gloriosa é marcada pela capacidade de não


desistir, de insistir, de não deixar de lado aquilo que
tem de ser feito. Algu- mas pessoas carregam a
perspectiva de que precisamos evitar alguns tipos de
combate.
É necessário lembrar que a insistência, a
persistência, a resis- tência são decisivas para que
sejamos capazes de fazer aquilo que precisa
emergir.
O escritor e diplomata sergipano Gilberto
Amado (1887- 1969), em Depois da política,
afirmou: “É preciso, em certas oca- siões, dar
murros em ponta de faca”.
Essa expressão em nosso idioma tem sempre o
sentido de ficar socando aquilo que vai nos
machucar. Portanto, seria a ex- pressão da
inutilidade. Seria aquilo que não deve ser feito, por-
que não se chega a lugar nenhum, apenas machuca
quem o faz. No entanto, no campo da ação, daquilo
que é honrado, que faz com que haja uma decisão,
vale retomar o sentido da frase de Gilberto Amado.
Quando se tem um projeto, uma defesa de algo
decente, quando é necessário enfrentar estruturas
que degradem a convivência coletiva, quando é
preciso lutar para que a injustiça não ganhe terreno,
aí, sim, dar murro em ponta
de faca é muito honroso.
Paz ativa

Ser pacífico não significa de modo algum ser


passivo. Gandhi (1869-1948), que morreu
assassinado, escreveu em
Cartas a Ashram: “A não violência completa é a
ausência com- pleta de má-fé para com tudo o que
vi. A não violência sob uma forma ativa é a boa
vontade para com tudo que vi. Ela é amor
perfeito”.
O que é esse amor perfeito? A não violência na
forma ativa.
A ideia de não se ter má-fé em relação a tudo que existe.
Essa percepção de Gandhi – não por acaso
chamado de Mahatma Gandhi, o homem mais
elevado, mais abençoado – expressa que a não
violência é a ausência completa de má-fé para com
tudo que vive.
Essa concepção envolve, já nos anos de 1940, a
ideia de eco- logia, de meio ambiente, no qual nós
tenhamos a capacidade de existir sem degradar, de
uma sociedade que não esgote a sua capacidade de
convivência e de vivência. Portanto, uma paz
ativa.
Recusa à futilidade

Há muitos homens e mulheres que passam por


uma exis- tência superficial, rasa, epidérmica, em
que se ocupam apenas das próprias questões,
angústias e problemas.
Claro que ninguém advoga que se deva ficar
vivendo ape- nas em função de outras situações. O
próprio indivíduo, ao olhar para aquilo de que
necessita, também demonstra a capa- cidade de
cuidado.
Mas fazer só isso, esse modo narcísico de
existir, de ter uma superficialidade no trato com as
outras pessoas e com o mun- do ao seu redor, em
geral, acaba levando a uma vida infértil.
Ralph Waldo Emerson (1803-1882), filósofo
norte-ame- ricano, tem uma obra chamada A
conduta para a vida, que contém uma sentença de
muita profundidade: “Torna-te ne- cessário a
alguém”.
Em outras palavras, a capacidade de não ser
inútil. Ele aponta um caminho para que a nossa
existência, em suas múl- tiplas dimensões, não seja
marcada pelo vazio, pela futilidade.
Tornar-se necessário também para a outra
pessoa, e não apenas para si mesmo, é algo que
engrandece.
Perda multiplicada

Na história individual e coletiva, lidamos com a


morte de pessoas. Embora a possibilidade de
deixar de viver seja parte da própria existência, a
clássica ideia de que “para morrer bas- ta estar
vivo” carrega a ideia de deixar de existir.
Mas a nossa morte não se dá apenas e tão
somente no mo- mento em que as funções vitais se
encerram. Existem morte cotidianas, mesmo que
continuemos vivos.
Há a morte da esperança, a morte dos valores
que se deva defender, a morte da expectativa, a
decepção também é um tipo de morte.
Publilio Siro (85 a.C.-43 a.C.), escritor latino no
século I, em seu Sentenças, fez uma reflexão sobre a
perda de pessoas: “O ho- mem morre tantas vezes
quantas vezes perde os seus”. A perda de outras
pessoas nos leva a ter a vivência dessas mortes.
A ideia de luto não deve persistir sem término,
porque aí se transforma numa tristeza que cai no
território da depressão e acaba sendo
extremamente maléfica.
Mas não devemos deixar de lado a perspectiva
de que, quando alguns dos nossos morrem, nós
também morremos um pouco.
Boa lembrança

Eu tenho algo que ativa a reinvenção do desejo,


da lem- brança boa, todas as vezes que ouço uma
canção do Zé Keti (1921-1999), a marcha-rancho
que venceu o carnaval de 1967, chamada Máscara
negra.
Sempre que eu ouço essa música ou que lembro
a letra, reinvento o desejo do carnaval que eu curti
em alguns mo- mentos, do encontro com algumas
pessoas. E aí a música aca- ba sendo veículo da
minha própria história, mesmo que não fosse como
eu gostaria que tivesse sido, ainda assim o foi de
um modo bom.
Só para pegar um trecho da letra da Máscara
negra: “Foi bom te ver outra vez/Tá fazendo um
ano/Foi no carnaval que passou/Eu sou aquele
pierrô/Que te abraçou e te beijou, meu amor”. A
necessidade de se apresentar de novo, essa música
traz a possibilidade da recordação.
Recordar significa fazer passar de novo pelo
coração. Re- cordação, aquela que aviva a boa
lembrança.
Por isso, mesmo que não se saia mais para baile
de carnaval como já se saiu, ouvir Máscara negra
traz boas lembranças.
Ingestão
reveladora

Num período de descanso, muitos de nós


saímos para con- versar, para comemorar e, alguns,
para bebericar.
Quando a pessoa abusa da bebida alcoólica,
diz-se que ela “ficou fora de si”. E cabe aí uma
questão: Ficou fora de si ou ficou dentro de si? O
consumo eventual de álcool por algumas pessoas
faz com que ela se esconda ou se revele? Quando
se diz que “ela ficou fora de si”, se quer dizer que
ela saiu de dentro para fora ou que ela não é mais
aquela pessoa que en- xergávamos antes? Ou essa
pessoa, ao se descontrolar, revela o que de fato
pode ser?
O ensaísta britânico Thomas de Quincey (1785-
1859) escre- veu: “É absurdo dizer, conforme a
linguagem popular, que al- guém se esconde na
bebida. Ao contrário, a maioria se esconde na
sobriedade”.
A ideia de estar sóbrio, em vários momentos,
faz com que alguns dissimulem aquilo que podem
dizer, pensar, praticar, fazer. E, como lembrou De
Quincey, essa pessoa quando bebe se expõe, em
vez de se esconder.
A sobriedade, portanto, é que seria o lugar em
que nós bai- xamos a cortina. Para muita gente, a
não sobriedade é que é reveladora.
Decisão imediata

O protagonismo decisivo se origina da ideia de


não adiar, não procrastinar, não deixar de tomar
uma decisão que precisa ser imediata. São aquelas
situações que nos obrigam a fazer uma escolha que
não pode demorar.
Há uma frase clássica que William Shakespeare
(1564-1616) colocou na fala de Hotspur, na peça
Henrique IV, um cavaleiro inglês do começo do
século XV: “Ou afundar ou nadar”.
Em inglês, faz mais sentido pelo trocadilho: Or
sink or swim. Esta é uma ideia de uma escolha que
não pode ser demo- rada. Ou espera, aguarda,
adia e afunda, ou nada, vai atrás, procura
enfrentar, busca. Há momentos na nossa vida em
que essa expressão faz muito sentido. Ou “levanta,
sacode a poeira e dá a volta por cima”, que seria o
outro modo, como lembrou
Paulo Vanzolini em sua música Volta por cima.
E, mais do que tudo, a ideia de iniciativa, de
um protago- nismo que não admita o retardamento
da decisão.
Ou afundar ou nadar.

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