Texto 3B Nito e Realidade Mirceaeliade

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 6

VIII.

GRANDEZA E DECADÊNCIA DOS MITOS

Tornar o Mundo aberto


Nos níveis arcaicos da cultura, a religião mantém a "abertura" para um
Mundo sabre-humano, o mundo dos valores axiológicos. Esses valores são
"transcendentes", tendo sido revelados pelos Entes Divinos ou Ancestrais
míticos. Constituem, portanto, valores absolutos, paradigmas de fadas as
atividades humanas. Como vimos, esses modelos são veiculados pelos mitos, aos
quais compete acima de tudo despertar e manter a consciência de um outro
mundo, do além, — mundo divino ou mundo dos Ancestrais. Esse "outro
mundo" representa um plano sobre-humano, "transcendente", o plano das
realidades absolutas. É através da experiência do sagrado, do encontro com uma
realidade transumana, que nasce a idéia de que alguma coisa existe realmente,
de que existem valores absolutos, capazes de guiar o homem e de conferir uma
significação à existência humana. É através da experiência do sagrado, portanto,
que despontam as idéias de realidade, verdade e significação, que serão
ulteriormente elaboradas e sistematizadas pelas especulações metafísicas.
O valor apodíctico do mito é periodicamente reconfirmado pelos rituais. A
rememoração e a reatualização do evento primordial ajudam o homem
"primitivo" a distinguir e reter o real. Graças à repetição continua de um gesto
paradigmático, algo se revela como fixo e duradouro no fluxo universal. Através
da repetição periódica do que foi feito in illo tempore, impõe-se a certeza de que
algo existe de uma maneira absoluta. Esse "algo" é "sagrado", ou seja,
transumano e transmundano, mas acessível à experiência humana. A "realidade"
se desvenda e se deixa construir a partir de um nível "transcendente", mas de
um "transcendente" que pode ser vivido ritualmente e que acaba por fazer parte
integrante da vida humana.
Esse mundo "transcendente" dos Deuses, dos Heróis e dos Ancestrais
míticos é acessível porque o homem arcaico não aceita a irreversibilidade do
Tempo. Como constatamos por diversas vezes, o ritual abole o Tempo profano,
cronológico, e recupera o Tempo sagrado do mito. Torna o homem
contemporâneo das façanhas que os Deuses efetuaram in illo tempore. A revolta
contra a irreversibilidade do Tempo ajuda o homem a "construir a realidade" e,
por outro lado, liberta-o do peso do Tempo morto, dando-lhe a segurança de
que ele é capaz de abolir o passado, de recomeçar sua vida e recriar o seu
mundo.
A imitação dos gestos paradigmáticos dos Deuses, dos Heróis e Ancestrais
míticos não se traduz numa "eterna repetição da mesma coisa", numa total
imobilidade cultural. A Etnologia não conhece um único povo que não se tenha
modificado no curso dos tempos, que não tenha tido uma "história". A primeira
vista, o homem das sociedades arcaicas parece repetir indefinidamente o
mesmo gesto arquetípico. Na realidade, ele conquista infatigavelmente o
mundo, organiza-o, transforma a paisagem natural em meio cultural. Graças ao
modelo exemplar revelado pelo mito cosmogonico, o homem se torna, por sua
vez, criador. Embora pareçam destinados a paralisar a iniciativa humana, por se
apresentarem como modelos intangíveis, os mitos na realidade incitam o
homem a criar, e abrem continuamente novas perspectivas para o seu espírito
inventivo.
O mito garante ao homem que o que ele se prepara para fazer já foi feito;
e ajuda-o a eliminar as dúvidas que poderia conceber quanto ao resultado de
seu empreendimento. Por que hesitar ante uma expedição marítima, quando o
Herói mítico já a efetuou num Tempo fabuloso? Basta seguir o seu exemplo. De
modo análogo, por que ter medo de se instalar num território desconhecido e
selvagem, quando se sabe o que é preciso fazer? Basta, simplesmente, repetir o
ritual cosmogonico, e o território desconhecido ( = o "Caos") se transforma em
"Cosmo", torna-se uma imago mundi, uma "habitação" ritualmente legitimada. A
existência de um modelo exemplar não entrava o processo criador. O modelo
mítico presta-se a aplicações ilimitadas.
O homem das sociedades nas quais o mito é uma coisa vivente, vive num
mundo "aberto", embora "cifrado" e misterioso. O Mundo "fala" ao homem e,
para compreender essa linguagem, basta-lhe conhecer os mitos e decifrar os
símbolos. Através dos mitos e dos símbolos da Lua, o homem capta a misteriosa
solidariedade existente entre temporalidade, nascimento, morte e ressurreição,
sexualidade, fertilidade, chuva, vegetação e assim por diante. O Mundo não é
mais uma massa opaca de objetos arbitràriamente reunidos, mas um Cosmo vi-
vente, articulado e significativo. Em última análise, o Mundo se revela enquanto
linguagem. Ele fala ao homem através de seu próprio modo de ser, de suas
estruturas e de seus ritmos.
A existência do Mundo é conseqüência de um ato divino de criação, suas
estruturas e seus ritmos são o produto dos eventos ocorridos no principio dos
Tempos. A Lua tem sua história mítica, mas também o Sol e as Águas, as plantas
e os animais. Todo objeto cósmico tem urna "história". Isso significa que ele é
capaz de "falar" ao homem. E, pelo fato de "falar" de si mesmo, em primeiro
lugar de sua "origem", do evento primordial em conseqüência do qual passou a
existir, o objeto se torna real e significativo. Deixa de ser um "desconhecido", um
objeto opaco, inapreensível e desprovido de significação — em suma, "irreal".
Ele faz parte do mesmo "Mundo" que o homem.
Tal co-participação não só torna o Mundo "familiar" e inteligível, como
também transparente. Através dos objetos deste Mundo, percebem-se os traços
dos Entes e dos poderes de um outro mundo. Eis por que dizíamos
anteriormente que, para o homem arcaico, o Mundo é concomitantemente
"aberto" e misterioso. Ao falar de si mesmo, o Mundo reporta-se aos seus
autores e protetores e conta a sua "história". O homem não se encontra num
mundo inerte e opaco e, por outro lado, ao decifrar a linguagem do Mundo, ele
se confronta com o mistério. Pois a "Natureza" desvenda e camufla,
simultaneamente, o "sobrenatural", e é nisso que reside para o homem arcaico o
mistério fundamental e irredutível do Mundo. Os mitos revelam tudo o que se
passou, desde a cosmogonia até a fundação das instituições sócio-culturais.
Essas revelações, entretanto, não constituem um "conhecimento" no sentido
estrito do termo, elas não exaurem o mistério das realidades cósmicas e
humanas. Não é pelo fato de o aprendizado do mito de sua origem permitir o
domínio de diversas realidades cósmicas (o fogo, as colheitas, as serpentes, etc.),
que elas se transformam em "objetos de conhecimento". Essas realidades
continuam conservando sua densidade ontológica original.

O Homem e o Mundo
Num Mundo como esse, o homem não se sente enclausurado em seu
próprio modo de existir. Também ele é "aberto". Ele se comunica com o Mundo
porque utiliza a mesma linguagem: o símbolo. Se o Mundo lhe fala através de
suas estrelas, suas plantas e seus animais, seus rios e suas pedras, suas estações
e suas noites, o homem lhe responde por meio de seus sonhos e de sua vida
imaginativa, de seus Ancestrais ou de seus totens (concomitantemente
"Natureza", sobrenatural e seres humanos), de sua capacidade de morrer e
ressuscitar ritualmente nas cerimônias de iniciação (nem mais nem menos do
que a Lua e a vegetação), de seu poder de encarnar um espírito ao cobrir-se com
uma máscara etc. Se o Mundo é transparente para o homem arcaico, este sente
que também é "olhado" e compreendido pelo Mundo. O animal de caça olha-o e
o compreende (o animal, muitas vezes, deixa-se capturar porque sabe que o
homem está faminto), mas também o rochedo ou a árvore ou o rio. Cada qual
tem sua "história" a lhe contar, um conselho a lhe dar.
Apesar de saber que é um ser humano e de se aceitar como tal, o homem
das sociedades arcaicas sabe que também é algo mais. Sabe, por exemplo, que
seu Ancestral foi um animal, ou que ele pode morrer e retornar à vida (iniciação,
transe xamânico), que pode influenciar as colheitas com as suas orgias (que ele é
capaz de se comportar com sua esposa como o Céu com a Terra, ou que pode
desempanhar o papel da enxada e sua mulher o do sulco). Nas culturas mais
complexas, o homem sabe que suas respirações são Ventos, que seus ossos são
como montanhas, que um fogo arde em seu estômago, que seu umbigo pode
tornar-se um "Centro do Mundo", etc.
Seria errôneo supor que essa "abertura" para o Mundo se traduz numa
concepção bucólica da existência. Os mitos dos "primitivos e os rituais
decorrentes desses mitos não nos revelam uma Arcádia arcaica. Os
paleocultivadores, como vimos, ao assumir a responsabilidade de fazer
prosperar o mundo vegetal, aceitaram igualmente a tortura de vítimas em
beneficio das colheitas, a orgia sexual, o canibalismo, a caça às cabeças. Essa é
uma concepção trágica da existência, resultado da valorização religiosa da
tortura e da morte violenta. Um mito como de Hainuwele, e todo o complexo
sócio-religioso que ele articula e justifica, força o homem a assumir sua condição
de ser mortal e sexuado, condenado a matar e a trabalhar para poder nutrir-se.
O mundo vegetal e animal "fala-lhe" de sua origem, isto é, em última análise, de
Hainuwele; o paleocultivador compreende essa linguagem e, ao fazê-lo,
descobre uma significação religiosa em tudo o que o cerca e em tudo o que faz.
Isso, porém, obriga-o a aceitar a crueldade e a morte como parte integrante de
seu modo de ser. Evidentemente, a crueldade, a tortura e a morte não são
condutas específicas e exclusivas dos "primitivos". Podem ser encontradas em
todo o curso da História, algumas vezes com um paroxismo jamais atingido pelas
sociedades arcaicas. A diferença consiste sobretudo no fato de que, para os
primitivos, essa conduta violenta tem um valor religioso e é calcada em modelos
transumanos. Essa concepção sobreviveu até tarde na História; os extermínios
maciços de um Ungis Khan, por exemplo, ainda encontravam uma justificação
religiosa.
O mito, em si mesmo, não é uma garantia de "bondade" nem de moral.
Sua função consiste em revelar os modelos e fornecer assim uma significação ao
Mundo e à existência humana. Daí seu imenso papel na constituição do homem.
Graças ao mito, como já dissemos, despontam lentamente as idéias de
realidade, de valor, de transcendência. Graças ao mito, o Mundo pode ser
discernido como Cosmo perfeitamente articulado, inteligível e significativo. Ao
narrar como as coisas foram feitas, os mitos revelam por quem e por que o
foram, e em quais circunstâncias. Todas essas "revelações" engajam o homem
mais ou menos diretamente, pois constituem uma "história sagrada".
Imaginação e criatividade
Os mitos, em suma, recordam continuamente que, eventos grandiosos
tiveram lugar sare a Terra, e que esse "passado glorioso" é em parte
recuperável. A imitação dos gestos paradigmáticos tem igualmente um aspecto
positivo: o rito força o homem a transcender os seus limites, obriga-o a situar-se
ao lado dos Deuses e dos Heróis míticos, a fim de poder realizar os atos deles.
Direta ou indiretamente, o mito "eleva" o homem. Isso surge ainda mais
claramente quando temos em mente que, nas sociedades arcaicas, a recitação
das tradições mitológicas é apanágio de alguns poucos indivíduos. Em algumas
sociedades, os recitadores são recrutados entre os xamãs e os médicos-
feiticeiros, ou entre os membros das confrarias secretas. Em todo caso, aquele
que recita os mitos deve ter dado provas de sua vocação e ter sido instruído
pelos velhos mestres. Ele é sempre alguém que se distingue, quer por sua
capacidade mnemônica, quer pela imaginação ou o talento literário.
A recitação não é necessàriamente estereotipada. Algumas vezes, as
variantes se afastam sensivelmente do protótipo. Evidentemente, os etnólogos e
folcloristas de nossos dias não podem pretender haver desvendado, com suas
investigações, o processo da criação mitológica. Eles puderam registrar as
variantes de um mito ou de um tema folclórico, mas não a invenção de um novo
mito. Os mitos registrados são sempre modificações mais ou menos sensíveis de
um texto preexistente.
Essas pesquisas, entretanto, trouxeram à luz o papel dos indivíduos
criadores na elaboração e na transmissão dos mitos. É muito provável que esse
papel tenha sido ainda mais importante no passado, quando a "criatividade
poética", como se diria hoje, era vinculada a uma experiência extática e dela
dependente. Ora, pode-se adivinhar quais as "fontes de inspiração" de uma tal
personalidade criadora dentro de uma sociedade arcaica: são as "crises", os
"encontros", as "revelações", em suma, as experiências religiosas privilegiadas,
acompanhadas e enriquecidas por um enxame de imagens e de enredos
particularmente viventes e dramáticos. São os especialistas do êxtase, os
familiares de universos fantásticos que nutrem, acrescem e elaboram os motivos
mitológicos tradicionais.
Em última análise, é uma criatividade no plano da imaginação religiosa
que renova a matéria mitológica tradicional. Isso significa que o papel das
personalidades criadoras deve ter sido maior do que se supõe. Os diferentes
especialistas do sagrado, desde os xamãs até os bardos, finalmente conseguiram
impor ao menos algumas de suas visões imaginárias às respectivas coletividades.
Não há dúvida de que o "sucesso" de tais visões dependia dos esquemas já

Você também pode gostar