Artigo Costa-Hubes 2024

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Artigo original

AS PRÁTICAS DE LINGUAGEM NA AULA DE LÍNGUA


PORTUGUESA NO ENSINO FUNDAMENTAL:
SOBRE O QUE ESTAMOS FALANDO?

Rodrigo Acosta Pereira *


Terezinha da Conceição Costa-Hübes **

▪▪ RESUMO: Diferentes investigações em Linguística Aplicada, no Brasil, têm buscado estudar o


trabalho com as práticas de linguagem nas aulas de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental,
seja à luz de pesquisas de cunho etnográfico, de pesquisa-ação, por exemplo, seja sob panoramas
da análise de documentos e discursos. Dentro dessa abordagem, nosso artigo tem como objetivo
propor uma discussão teórico-metodológica sobre o conceito de ‘práticas de linguagem’ que
orbita em documentos parametrizadores nacionais, a partir da qual procuramos sistematizar um
construto metateórico sobre esse conceito, olhando, mais especificamente, para a disciplina de
Língua Portuguesa no Ensino Fundamental. Para tanto, em termos teóricos, nos situamos nos
preceitos dos Estudos Dialógicos da Linguagem e, em termos metodológicos, nos ancoramos
nos pressupostos da Metateorização e da Análise Documental. Os resultados demonstram que,
nos documentos analisados, reverberam sentidos convergentes/aproximativos em relação às
‘práticas de linguagem’ como usos linguísticos em situações reais e como unidades ou eixos
de ensino e de aprendizagem. A partir dos resultados, o estudo em tela propõe um panorama
metateórico em torno deste conceito, não apenas retomando questões nucleares já demonstradas
na análise documental, como questões outras, que ratifiquem a visão social, ideológica e política
do trabalho com ‘práticas de linguagem’ na escola.

▪▪ PALAVRAS-CHAVE: Aula de Língua Portuguesa; Práticas de linguagem; Análise


documental; Construto metateórico.

Introdução

Diferentes pesquisas em Linguística Aplicada (LA) têm se ocupado do debate em


torno das práticas de linguagem nas aulas de Língua Portuguesa (LP) em contexto
de Educação Básica no Brasil. Contudo, observamos que o debate não se especifica

*
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC, Brasil. Professor de Linguística Aplicada. drigo_
acosta@yahoo.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0148-8725
**
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Cascavel, PR, Brasil. Professora no Programa de Pós-
Graduação em Letras. tehubes@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9063-7982

Alfa, São Paulo, v.68, e18064, 2024 https://doi.org/10.1590/1981-5794-e18064 1

Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.
no próprio sentido do conceito de ‘práticas de linguagem’. Para além das pesquisas,
os mais recentes documentos político-educacionais brasileiros (PCN, Brasil, 1997a,
1997b, 1998a, 1998b BNCC, Brasil, 2018) se ocupam dos termos em várias passagens
das orientações. A partir disso, nos inquietamos com as seguintes questões: o que são
‘práticas de linguagem’? Como poderíamos definir ‘práticas de linguagem’? Como os
documentos político-educacionais definem ‘práticas de linguagem’?
A fim de abrir um debate sobre a questão, nosso objetivo, neste artigo, é propor uma
discussão teórico-metodológica sobre o conceito de ‘práticas de linguagem’ que orbita
em documentos parametrizadores nacionais, a partir da qual procuramos sistematizar
um construto metateórico sobre esse conceito, olhando, mais especificamente, para a
disciplina de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental1.
Para tanto, em termos de referencial balizador, vamos nos ancorar nos estudos
dialógicos da linguagem (Bakhtin, 2003 [1979]; 2008 [1963]; Medviédev, 2012
[1928]; Volochínov, 2013 [1928]; 2017 [1929-1930]). Com isso, nossa proposta segue
o panorama dos estudos linguístico-filosóficos do Círculo dos pensadores russos, o
que já, por conseguinte, elucida o matiz pelo qual e a partir do qual nossa proposta
se delineia.
Metodologicamente, nosso artigo é essencialmente teórico-metodológico à luz
da revisão bibliográfica (Fonseca, 2002; Pádua, 2004; Gil, 2008) e da metateorização
(Talja; Keso; Pietläinem, 1999; Edwards, 2013; Vanderberg, 2013; Bufrem; Freitas,
2015; Hedlung et al., 2015; Garcia, 2018) em diálogo com a análise documental
(Cellard, 2008; Bowen; 2009; Flick, 2009). A partir disso, vamos não apenas revisitar
referenciais teóricos, por meio da bibliografia, mas, em adição, vamos meta-analisar
dois documentos parametrizadores do Ensino Fundamental: os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN) (Brasil, 1997a, 1997b, 1998a, 1998b) e a Base Nacional Comum
Curricular (BNCC) (Brasil, 2018), a fim de construir teorizações outras sobre nosso
objeto conceitual – ‘práticas de linguagem’.
Com o propósito de atendermos ao proposto, organizamos o texto da seguinte forma:
além da introdução e das considerações finais, tecemos, inicialmente, uma breve reflexão
sobre concepção de linguagem e unidades de ensino; em seguida, analisamos o conceito
‘práticas de linguagem’ em dois documentos político-educacionais: PCN e BNCC e, por
fim, apresentamos um construto metateórico sobre o conceito analisado. Acreditamos
na relevância da discussão, ou seja, um delineamento teórico-metodológico sobre o
sentido do conceito de ‘práticas de linguagem’ no âmbito das práticas de ensino e de
aprendizagem da língua portuguesa na escola, não apenas em função de uma possível
contribuição sobre essa questão – o que são práticas de linguagem? – para as pesquisas
em LA no campo da educação em linguagem, mas, sobretudo, para caminhos de (re)
leitura dos documentos político-educacionais brasileiros.

1
Optamos por delimitar o escopo da análise no Ensino Fundamental para fins de exequibilidade da pesquisa e sua
posterior publicação no gênero artigo científico.

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O início da caminhada: concepções de linguagem e unidades básicas

Delinear um caminho de construção de conceitos não é uma tarefa fácil. Demanda


idas e vindas ao conjunto de referenciais teórico-metodológicos, além de uma sistemática
de mobilizar um construto metateórico de análise. Isso só é possível por meio da
metateorização. A metateorização consiste na teoria sobre a teoria, no sentido de se
investigar um construto teórico (conceitos, categorias, etc.) por meio da própria teoria
(do próprio campo teórico), constituindo-se em um movimento de autoconhecimento
de um dado campo científico. Dito de outro modo, consiste na análise de uma teoria já
proposta, uma reflexão de algo que já foi apresentado, buscando reconstruir, ressignificar
e/ou ampliar conhecimentos teóricos sobre dado campo (Talja; Keso; Pietlãinem,
1999; Edwards, 2013; Vanderberg, 2013; Bufrem; Freitas, 2015; Hedlung et al., 2015;
Garcia, 2018).
Sob esse panorama da revisão bibliográfica e da metateorização, nesta seção,
objetivamos propor um debate conceitual sobre ‘práticas de linguagem’ a partir do
panorama teórico-metodológico dos estudos dialógicos. Com isso, nossa proposta
se matiza por essa abordagem linguístico-filosófica, trazendo, por conseguinte,
reverberações ideológico-valorativas desse campo. Todavia, entendemos que a mesma
discussão, sob outro panorama epistemológico, apresentaria outras contribuições e
outro construto conceitual.
Esta seção se organiza em outras duas subseções, nas quais apresentamos um debate
com contribuições teórico-metodológicas que possam, dada nossa proposta, orientar
para a construção de uma arquitetônica conceitual sobre o termo ‘prática de linguagem’.

Tudo parte da concepção de linguagem

Abordar uma discussão sobre concepção de linguagem poderia ser conduzido sob
diferentes olhares. Nesta seção, vamos nos basear nas discussões de Volochínov (2013
[1928]) e Volóchinov (2017 [1929-1930]). Para o autor, as tendências linguístico-
filosóficas do início do século XX (mas ainda atuais) recobrem duas grandes abordagens:
(i) uma voltada à objetividade imanente do sistema linguístico e (ii) uma outra ancorada
na subjetividade da criação linguística.
Na tendência objetivista, a linguagem é vista como uma estrutura cujos elementos
constitutivos são voltados a si mesmos sob a regência do sistema. O foco está na forma
e na imanência do sistema. O olhar para a linguagem se fixa na objetividade sistêmica
das formas da língua que se arregimentam numa estrutura inabalável a qualquer força
centrífuga. A visão para a linguagem é homogênea, invariável e abstrata. Dessa maneira,
temos, de forma sintética, as características de uma abordagem objetivista abstrata
da linguagem, segundo Volochínov (2013 [1928]) e Volóchinov (2017 [1929-1930]).
Na visão subjetiva, por sua vez, a linguagem é produto da mente de um sujeito
individual. É um resultado da atividade individual criativa do sujeito, que, ao pensar,

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representa seus pensamentos em linguagem. A linguagem é compreendida de forma a
representar as vontades egocêntricas de um sujeito voltado a si mesmo, ao seu individual.
A visão para linguagem é representacional, produto da criação subjetiva e essencialmente
psicologizante. Nessa perspectiva, temos, de forma sumária, as características de uma
abordagem subjetivista idealista/psicologista, conforme Volochínov (2013 [1928]) e
Volóchinov (2017 [1929-1930]).
Contudo, diferentemente das duas tendências acima postuladas, segundo Volochínov
(2013 [1928]) e Volóchinov (2017 [1929-1930]), ascende uma tendência voltada aos
usos sociais da língua. Na perspectiva sociológica, proposta pelo autor, o centro da
discussão é a constituição social da linguagem nas interações. Em outras palavras,
distante de uma visão objetivista ou subjetivista, a linguagem se constitui e funciona
como meio e material das/nas interações sociais. Todo sujeito, visto como um sujeito
social, histórico e cultural, se engaja em diferentes situações interlocutivas por meio
da linguagem. O uso da linguagem, nessa perspectiva, se realiza concretamente na
forma de enunciados.
Na abordagem sociológica, o enunciado é entendido como uma unidade de
comunicação discursiva (Bakhtin, 2003 [1979]), diferentemente das orações,
compreendidas como unidades convencionais da língua (língua-sistema). O enunciado
está no campo do discurso e é estudado a partir de suas ‘regularidades’ linguístico-
enunciativo-discursivas. A oração, por outro lado, está no campo do sistema e é estudada
a partir de suas ‘repetibilidades’ linguístico-sistêmico-imanentes. Além disso, todo
enunciado é constituído e funciona como unidade mediadora das interações que, por sua
vez, se engendram no interior de diferentes esferas da atividade humana. As orações,
ao contrário, se constituem e funcionam cristalizadas no construto formal do sistema,
totalmente desvinculadas das reverberações sociais. Entretanto, cabe ressaltar que toda
oração se torna enunciado nas interações, ou seja, toda oração, quando matizada pelas
ressonâncias sociais da situação interativa, transmuta-se em enunciado. Assim, como
Bakhtin (2008 [1963]) explica, as relações lógicas (por meio das orações) e as relações
dialógicas (por meio dos enunciados) se interpenetram e se interconstituem, mas não
podem reduzir-se a si mesmas. Estamos no que Volóchinov (2017 [1929-1930]) propõe
como os eixos da ‘significação’ e do ‘sentido’. Ambos se interceptam na constituição
e no funcionamento do enunciado.
Portanto, de forma sumária, podemos entender que há concepções de linguagem
que ora prezam pela objetividade, ora pela subjetividade e, em outro escopo, pela
sociologicidade linguística. Neste artigo, vamos nos endereçar na perspectiva sociológica
da linguagem para construirmos inteligibilidades sobre o conceito de ‘prática de
linguagem’. Contudo, antes deste feito, nos encaminhamos a uma outra questão em
torno do trabalho com as práticas de linguagem na escola, a proposta de Geraldi (2011
[1984]) sobre as ‘unidades básicas’ de ensino nas aulas de Língua Portuguesa, questão
fundacional para a nossa discussão.

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A proposta das unidades básicas de ensino e suas reverberações

Geraldi (2011 [1984]) propõe ‘unidades básicas’ de ensino como um construto para
integrar leitura, produção de textos e análise linguística nas aulas de LP em contexto
de Educação Básica. Para o autor, as unidades básicas precisam estar integradas a fim
de contribuir para a ampliação de conhecimento e compreensão dos usos da língua
na vida social. A partir disso, de acordo com o autor, as unidades básicas precisam
ser mobilizadas sob uma concepção de linguagem como forma de interação, o que
converge com a visão sociológica a partir de Volochínov (2013 [1928]) e Volóchinov
(2017 [1929-1930]).
Conforme Geraldi (2011 [1984]), a prática de leitura pode mobilizar textos de
diferentes extensões e em diferentes níveis de profundidade. Além disso, textos
em diferentes propósitos e com diferentes construções estilístico-composicionais
deveriam estar em diálogo na sala de aula. Ao fim, pontua que os textos, na aula de
leitura, necessitam “[...] exercer sua função de ruptura no processo de compreensão da
realidade” (Geraldi, 2011 [1984], p. 64).
Sobre a produção de textos, Geraldi (2011 [1984]) explica que precisamos
desconstruir a ação de escrever somente ao professor, numa visão de escrita artificial,
objetiva e unidirecional. Os textos precisam trazer um interlocutor em potencial, além
de serem produzidos sob reais condições de interação. Produzir textos reais, concretos,
direcionados a outros sujeitos demarca, dentre outras feições, as características da
produção de textos como unidade básica de ensino de LP, segundo o autor.
Integrada às práticas de leitura e de produção de textos, Geraldi (2011 [1984])
propõe a prática de análise linguística. Segundo o autor, não se trata de uma nova
terminologia para o trabalho com a gramática, mas de uma nova abordagem didático-
pedagógica. Em nota de rodapé, assim esclarece: “a análise linguística inclui tanto o
trabalho sobre questões tradicionais de gramática quanto questões amplas a propósito
do texto [...]” (Geraldi, 2011 [1984], p. 74). Com isso, a prática de análise linguística
é uma atividade que extrapola a mera análise estritamente gramatical.
Com essa discussão sobre unidades básicas proposta por Geraldi, em 1984, podemos
já notar que o autor se utiliza do termo ‘prática’ para adjetivar as atividades com leitura,
produção de textos e análise linguística. Não há uma explicação na referida obra sobre
o uso do termo ‘prática’, de forma mais substanciosa, mas acreditamos que esteja
relacionado à concepção interacionista de linguagem que orienta a sua discussão. Além
disso, podemos já vislumbrar caminhos para nossa compreensão sobre ‘práticas de
linguagem’, quando associamos, a partir do escopo da referida obra, ‘unidades básicas’
com ‘práticas de linguagem’.

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‘Práticas de linguagem’ nos documentos político-educacionais: onde e como esse
conceito aparece?

Sustentados por uma perspectiva sociológica de compreensão da linguagem,


buscamos, nesta seção, construir inteligibilidade sobre o conceito ‘práticas de linguagem’,
garimpando-o nos documentos político-educacionais do Ensino Fundamental,
selecionados para este estudo, quais sejam: PCN (Brasil, 1997a, 1997b, 1998a, 1998b)
e BNCC (Brasil, 2018). Ambos defendem um ensino que propicie reflexões sobre os
usos da língua para que os alunos possam utilizá-la adequadamente.
Na análise, pretendemos responder ao seguinte questionamento: como o objeto
conceitual ‘práticas de linguagem’ se inscreve/reverbera/ecoa nos dois documentos? Por
meio de um exercício de meta-análise, sob o matiz da análise documental, buscaremos
bases mais sólidas para construir teorizações sobre sua(s) compreensão(ões). Iniciemos
pelos PCN para, em seguida, aportarmos na BNCC.

Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)

Ao olharmos, mais especificamente, para os PCN, recorremos aos seguintes


documentos que os representam: Parâmetros Curriculares Nacionais: Introdução
aos Parâmetros Curriculares Nacionais (1ª a 4ª séries) (Brasil, 1997a) Parâmetros
Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa (1ª a 4ª séries) (Brasil, 1997b)2;
Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental:
introdução aos parâmetros curriculares nacionais (Brasil, 1998a), Parâmetros
Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: Língua
Portuguesa (Brasil, 1998b)3.
Para efeitos de garimpagem do objeto conceitual ‘práticas de linguagem’ nos
documentos, recorremos ao recurso de “localizar” disponibilizado pelo Word, o qual
nos permitiu navegar pelos documentos que, conforme informado na nota de rodapé,
encontram-se digitalizados no Portal do Ministério da Educação.
A busca nos quatro documentos nos permitiu visualizar que o objeto conceitual
‘práticas de linguagem’ é empregado somente uma vez e em um deles apenas: os PCN
(Brasil, 1998a) que introduzem as orientações para o terceiro e o quarto ciclos do Ensino
Fundamental. Nesse documento, quando se apresenta a área de conhecimento da LP,
afirma-se que essa área deve dar condições ao aluno de ampliar o domínio da língua
e da linguagem. E, para isso, orienta que a escola organize o ensino para que o aluno
possa desenvolver seus conhecimentos discursivos e linguísticos lendo, escrevendo,
expressando-se apropriadamente e refletindo sobre os fenômenos da linguagem. Nesse

2
Os dois documentos do Ensino Fundamental – anos iniciais – encontram-se disponíveis em: http://portal.mec.gov.br/
component/content/article?id=12640:parametros-curriculares-nacionais-1o-a-4o-series. Acesso em: 26 jun. 2023.
3
Os dois documentos do Ensino Fundamental – anos finais – encontram-se disponíveis em: http://basenacionalcomum.
mec.gov.br/implementacao/biblioteca-de-apoio/pcn-ensino-fundamental-6-ao-9-ano/. Acesso em: 26 jun. 2023.

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âmbito, entende que “[...] as práticas de linguagem são uma totalidade e que o sujeito
expande sua capacidade de uso da linguagem e de reflexão sobre ela em situações
significativas de interlocução” (Brasil, 1998a, p. 59, grifo próprio).
Nessa afirmação, inferimos que o objeto ‘práticas de linguagem’ abarca todas
as formas de uso da linguagem – “a totalidade” –, o que nos parece ancorar-se em
uma base sociológica, uma vez que se volta para os usos e as reflexões da/sobre a
língua, em “situações significativas de interlocução”. Por “situações significativas de
interlocução” compreendemos os usos reais da língua materializada em enunciados
socialmente produzidos para a interação (Volochínov, 2013 [1928]; Volóchinov, 2017
[1929-1930]).
Embora o termo “enunciado” não tenha sido apresentado/explorado/abordado no
documento, entende-se que as práticas de linguagem “devem organizar-se tomando o
texto (oral ou escrito) como unidade básica de trabalho, considerando a diversidade
de textos que circulam socialmente” (Brasil, 1998a, p. 59). O texto, nesse excerto, é
tratado como enunciado, isto é, como uma unidade de comunicação discursiva (Bakhtin,
2003 [1979]), usado para mediar as interações que se organizam em diferentes esferas
de atividade humana.
Nessa mesma direção, ao apresentar as orientações para o ensino de LP nos Anos
Iniciais e Anos Finais do Ensino Fundamental (Brasil, 1997b, 1998b), o documento
defende “o texto como unidade básica de ensino”, em oposição a se tomar a letra, a
sílaba, a palavra e a frase descontextualizadas, como unidades básicas da alfabetização;
ou apenas a dimensão gramatical como categorização preestabelecida para o estudo da
língua. Descarta-se, assim, uma visão homogênea, invariável e abstrata da linguagem,
sustentada na forma e na imanência do sistema, desvinculada das reverberações sociais;
orienta-se para a compreensão da linguagem “como atividade discursiva” (Brasil,
1998b, p. 27) e, consequentemente, o ensino da língua para o desenvolvimento da
“competência discursiva, que é questão central” (Brasil, 1997b, p. 29).
Em tais orientações é possível demarcar um diálogo, mesmo que implícito, com
as unidades básicas de ensino apresentadas por Geraldi (2011 [1984]), quando o autor
defende que o texto deve ser considerado, nas aulas de LP, como unidade básica de
trabalho/de ensino, a partir dos quais as ‘práticas de linguagem’ (oralidade, leitura e
escrita) devem ser exploradas/desenvolvidas.
Após a meta-análise dos documentos, no quadro seguinte, procuramos sintetizar
as reverberações estabelecidas entre o objeto conceitual ‘práticas de linguagem’ e o
referencial teórico-metodológico que apresentamos anteriormente.

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Quadro 1 – O objeto conceitual “práticas de linguagem” nos PCN

Objeto conceitual Relação com a concepção Relação com as unidades


‘práticas de linguagem’ de linguagem básicas de ensino
Compreende-se as ‘práticas Perspectiva sociológica, Reconhece “o texto (oral ou escri-
de linguagem” como toda uma vez que toma as inte- to) como unidade básica de traba-
forma de uso da linguagem. rações como “situações sig- lho, considerando a diversidade de
nificativas de interlocução” textos que circulam socialmente”
(Brasil, 1998a, p. 59). (Brasil, 1998a, p. 59).
Fonte: Elaboração própria

Como o objeto conceitual ‘práticas de linguagem’ despontou apenas uma vez


nos quatro documentos explorados (Brasil, 1997a, 1997b, 1998a, 1998b), sentimos
a necessidade de buscar outro objeto conceitual que, a nosso ver, pudesse ter alguma
correspondência com o objeto de estudo. Assim, no exercício de meta-análise,
percebemos uma relação intrínseca, nos documentos, entre ‘práticas de linguagem’
e ‘uso da linguagem’, sendo este conceito empregado como parte das ‘práticas de
linguagem’.
Em função dessa proximidade, passamos a rastrear, nos referidos documentos, o
emprego/uso do objeto conceitual ‘uso da linguagem’. Essa expressão não foi empregada
no documento que introduz as orientações para os anos iniciais do Ensino Fundamental
(Brasil, 1997a); foi empregada por dez vezes no documento que orienta o ensino de
LP nos Anos Iniciais (Brasil, 1997b); mencionada apenas uma vez no documento que
introduz o terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental (Brasil, 1998a) e citada sete
vezes no documento que orienta o ensino de LP nos Anos Finais do Ensino Fundamental
(Brasil, 1998b).
O que nos pareceu é que, ao se empregar a expressão ‘uso da linguagem’, os
documentos pretendiam garantir a centralidade do ensino de línguas em suas práticas
de uso, de modo que estas passassem a ser tomadas como ponto de partida e de chegada
para o ensino. Nesse sentido, os PCN estabeleceram, como objetivo geral do ensino de
LP nos anos iniciais, “expandir o uso da linguagem em instâncias privadas e utilizá-
la com eficácia em instâncias públicas, sabendo assumir a palavra e produzir textos
— tanto orais como escritos — coerentes, coesos, adequados a seus destinatários,
aos objetivos a que se propõem e aos assuntos tratados” (Brasil, 1997b, p. 33, grifo
próprio). Para os anos finais,

[...] espera-se que o aluno amplie o domínio ativo do discurso nas diversas
situações comunicativas, sobretudo nas instâncias públicas de uso da
linguagem, de modo a possibilitar sua inserção efetiva no mundo da
escrita, ampliando suas possibilidades de participação social no exercício
da cidadania (Brasil, 1998b, p. 32, grifo próprio).

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E, para que tais objetivos sejam alcançados efetivamente, os documentos orientam
para a centralidade em atividades epilinguísticas, entendendo que estas podem propiciar
ao aluno maior “reflexão sobre a língua em situações de produção e interpretação,
como caminho para tomar consciência e aprimorar o controle sobre a própria produção
lingüística” (Brasil, 1997b, p. 31), expandindo, assim, sua capacidade de monitorar e
analisar criticamente as possibilidades de uso da língua. Para isso, considera-se que
“[...] o lugar natural, na sala de aula, para esse tipo de prática parece ser a reflexão
compartilhada sobre textos reais” (Brasil, 1997b, p. 31).
Como podemos observar, os “textos reais” são reconhecidos como o “lugar natural”
em que os usos da linguagem acontecem e, a partir dos quais, se pode refletir sobre
os modos possíveis de se usar/empregar a língua. Logo, o entendimento é de que “a
língua se realiza no uso, nas práticas sociais” (Brasil, 1997b, p. 35, grifo próprio); ou

É nas práticas sociais, em situações linguisticamente significativas,


que se dá a expansão da capacidade de uso da linguagem e a construção
ativa de novas capacidades que possibilitam o domínio cada vez maior de
diferentes padrões de fala e de escrita (Brasil, 1998b, p. 34, grifo próprio).

Considerar as ‘práticas sociais’ no ensino de LP significa, segundo os documentos,


ensinar por meio de situações significativas para o aluno, contudo, sem deixar de
considerar as relações lógicas e imanentes do sistema linguístico, pois, conforme já
dito, as relações lógicas e dialógicas se interpenetram na constituição de um texto-
enunciado. Os eixos da ‘significação’ e do ‘sentido’, portanto, são contemplados na
proposta, uma vez que se entende que “o ensino de LP deve se dar num espaço em que
as práticas de uso da linguagem sejam compreendidas em sua dimensão histórica e em
que a necessidade de análise e sistematização teórica dos conhecimentos linguísticos
decorra dessas mesmas práticas” (Brasil, 1998b, p. 34).
Entendemos, assim, que o objeto conceitual ‘uso da linguagem’ se ancora, do mesmo
modo que o objeto ‘práticas de linguagem’, em uma abordagem sociológica, uma vez
que é mobilizado sempre em direção a variadas e plurais situações de interlocução.
Além disso, congrega-se, também, a uma prática/“atividade discursiva” (Brasil, 1997b,
p. 35), entendendo que estas se situam em textos orais e escritos “reais”, ou seja,
em uma língua viva (Bakhtin, 2008 [1963]) que se concretiza nas interações. Essas
interações, conforme o documento, se desdobram “em atividades de fala e escrita,
leitura e escuta” (Brasil, 1997b, p. 35). Logo, se é finalidade do ensino de LP expandir,
no aluno, suas possibilidades de uso da linguagem, as capacidades, então, que devem
ser desenvolvidas no aluno são a de falar, escutar, ler e escrever, conforme já defendia
Geraldi (2011 [1984]).
Sustentado por tais considerações, os PCN de LP – anos iniciais (Brasil, 1997b)
apresentam os eixos básicos para “o uso da língua oral e escrita e a análise e reflexão
sobre a língua” (Brasil, 1997b, p. 35, grifo próprio):

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Quadro 2 – Eixos básicos para o ensino de LP

Língua oral: Língua escrita:


usos e formas usos e formas

Análise e reflexão sobre a língua

Fonte: PCN (Brasil, 1997b, p. 35)

Conforme o próprio documento anuncia, os conteúdos “estão organizados em


função do eixo USO - REFLEXÃO - USO. Aparecem, portanto, como “Prática de
leitura”, “Prática de produção de texto” e “Análise e reflexão sobre a língua”
(Brasil, 1997b, p. 35, grifo próprio). Da mesma forma, nos PCN de LP – Anos Finais,
se entende que “os conteúdos de Língua Portuguesa se articulam em torno de dois
eixos básicos: o uso da língua oral e escrita, e a reflexão sobre a língua e a linguagem”
(Brasil, 1998b, p. 34).
Os ‘usos’ dizem respeito às práticas que promovem a interlocução, considerando
seus elementos contextuais, tais como historicidade da linguagem e da língua; o contexto
de produção (sujeitos interlocutores, finalidade, lugar e momento de interlocução); e
as implicações do contexto na organização dos discursos e no processo de significação
(Brasil, 1998b, p. 35). A ‘reflexão’ é orientada sobre os usos da língua, a fim de que
possibilite a “análise do funcionamento da linguagem em situações de interlocução,
na escuta, leitura e produção, privilegiando alguns aspectos linguísticos que possam
ampliar a competência discursiva do sujeito” (Brasil, 1998b, p. 36). Para isso, elenca
os conteúdos que considera como instrumentos que podem ser usados para promover
a reflexão: variação linguística, organização estrutural dos enunciados, léxicos e
redes semânticas, processos de construção de significação, modos de organização dos
discursos.
Na perspectiva de sintetizar a meta-análise até aqui apresentada a respeito do objeto
conceitual ‘uso da linguagem’, na sua relação com a concepção de linguagem e com
as unidades básicas de ensino apresentadas por Geraldi (2011 [1984]), organizamos
o quadro a seguir.

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Quadro 3 – O objeto conceitual ‘uso da linguagem’ nos PCN

Objeto conceitual Relação com a concepção Relação com as unidades


‘uso da linguagem’ de linguagem básicas de ensino
- É parte constituinte das Ancora-se em uma aborda- - Sustenta-se em textos “reais”,
‘práticas de linguagem’; gem sociológica de lingua- considerado o locus do USO -
- É o ponto de partida e de gem, uma vez que é mobi- REFLEXÃO - USO da linguagem;
chegada para o ensino; lizado sempre em direção a - Promove as atividades epilinguís-
- Amplia o domínio ativo do variadas e plurais situações ticas;
discurso nas diversas situa- de interlocução. - Orienta-se em “Prática de leitu-
ções comunicativas; ra”, “Prática de produção de texto”
- Define-se como ‘práticas e “Análise e reflexão sobre a lín-
sociais’. gua” (Brasil, 1997b, p. 35).
Fonte: Elaboração própria

Entendemos, assim, que o objeto conceitual ‘uso da linguagem’ se configura,


nos PCN (Brasil, 1997b, 1998a, 1998b), como parte das ‘práticas de linguagem’,
uma vez que se sustenta em textos que circulam socialmente, o que, neste caso, pode
ser relacionado, também, às práticas enunciativas, pois, conforme Bakhtin (2003
[1979]), os enunciados (textos reais) são unidades vivas e concretas da comunicação
discursiva. Logo, são os ‘usos da linguagem’ que articulam as unidades básicas de
ensino (Geraldi, 2011 [1984]), direcionando as ações com a oralidade, a leitura e a
escrita por meio de reflexões sobre esses usos, pois “se o objetivo é que os alunos
utilizem os conhecimentos adquiridos por meio da prática de reflexão sobre a língua
para melhorar a capacidade de compreensão e expressão, tanto em situações de
comunicação escrita quanto oral, é preciso organizar o trabalho educativo nessa
perspectiva” (Brasil, 1997b, p. 60).

Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

Ao olharmos para a BNCC do Ensino Fundamental (Anos Iniciais e Anos Finais),


recorremos a sua versão oficial, publicada em 2018 e disponibilizada, digitalmente, na
Plataforma do MEC4 (Brasil, 2018), na qual se encontram inseridas as orientações para
a Educação Infantil e para o Ensino Médio. Assim como nos PCN, buscamos o objeto
conceitual ‘práticas de linguagem’ por meio do recurso “localizar” disponibilizado pelo
Word, olhando mais especificamente para a área de Linguagens – Língua Portuguesa.
Ao fazer esse rastreamento, o instrumento de busca indicou que o objeto conceitual
‘práticas de linguagem’ se repete por 126 (centro e vinte e seis) vezes nessa parte do
documento, incluindo sua menção em títulos e nas grades nas quais se indicam os objetos
de conhecimento e habilidades que devem ser exploradas/trabalhadas com os alunos.

4
Disponível em http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf. Acesso
em: 28 mar. 2022.

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É importante destacarmos que, tal como empregadas, as “práticas de linguagem”, na
área de Linguagem – LP, correspondem às unidades de ensino indicadas por Geraldi (2011
[1984]) e contempladas nos PCN (Brasil, 1997b, 1998b) como “Prática de leitura”,
“Prática de produção de texto” e “Análise e reflexão sobre a língua” (Brasil, 1997b,
p. 35, grifo próprio). Na BNCC, consta que “[...] os eixos de integração considerados na
BNCC de Língua Portuguesa são aqueles já consagrados nos documentos curriculares da
Área, correspondentes às práticas de linguagem: oralidade, leitura/escuta, produção
(escrita e multissemiótica) e análise linguística/semiótica” (Brasil, 2018, p. 71, grifo
próprio). Ou seja, a BNCC nos permite inferir que com o termo ‘práticas de linguagem’
está retomando os eixos de ensino já consagrados e contemplados em documentos
anteriores. Logo, o termo ‘práticas de linguagem’ corresponde a ‘eixos’ de ensino.
Mas como esse objeto conceitual é apresentado/explorado no documento, uma vez
que ocupa um lugar de destaque? Fomos em busca dessa resposta.
Sua primeira menção, no texto, ocorre na quarta parte do documento, na qual se
apresenta/discute “A etapa do Ensino Fundamental”. O objeto conceitual é mencionado
pela primeira vez no seguinte excerto: “Ao longo do Ensino Fundamental – Anos
Iniciais, a progressão do conhecimento ocorre pela consolidação das aprendizagens
anteriores e pela ampliação das práticas de linguagem e da experiência estética e
intercultural das crianças, considerando tanto seus interesses e suas expectativas quanto
o que ainda precisam aprender” (Brasil, 2018, p. 59).
Como podemos observar, embora o objeto ‘práticas de linguagem’ tenha
sido empregado pela primeira vez no documento, ele é tomado como conhecido/
compartilhado por todos os interlocutores com os quais o documento interage mais
diretamente – professores da Educação Básica – ao informar sobre a “[...] ampliação
das práticas de linguagem”. Tendo constatado essa ocorrência, sentimos a necessidade
de buscar as orientações da Educação Infantil, formação que antecede a esse nível de
ensino, para analisar se/como esse objeto foi lá empregado. Se no Ensino Fundamental –
Anos Iniciais, orienta-se para ampliar as práticas de linguagem, infere-se que para a
Educação Infantil já houve uma orientação/explicação sobre as atividades iniciais com
práticas de linguagem nesse nível de ensino.
Na organização da proposta de ensino para a Educação Infantil, os objetivos de
aprendizagens são distribuídos por “campos de experiências” nos quais são contemplados
os direitos de aprendizagem e desenvolvimento da criança. Segundo a BNCC, “os
campos de experiências constituem um arranjo curricular que acolhe as situações e as
experiências concretas da vida cotidiana das crianças e seus saberes, entrelaçando-os
aos conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural” (Brasil, 2018, p. 40). São
assim denominados estes campos: O eu, o outro e o nós; Corpo, gestos e movimentos;
Traços, sons, cores e formas; Escuta, fala, pensamento e imaginação; Espaços, tempos,
quantidades, relações e transformações. Nessa organização da Educação Infantil, como
é possível ver, o objeto ‘práticas de linguagem’ não é empregado diretamente, mas
entende-se que, “por meio das diferentes linguagens, como a música, a dança, o teatro,
as brincadeiras de faz de conta, elas se comunicam e se expressam no entrelaçamento

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entre corpo, emoção e linguagem” (Brasil, 2018, p. 41). Em outras palavras, o objeto
conceitual ‘práticas de linguagem’ não é usado na Educação Infantil, que recorre a
outros conceitos – como “campo”, por exemplo – para orientar/organizar os objetivos
de aprendizagem e desenvolvimento.
Sendo assim, entendemos que há uma lacuna conceitual na BNCC, pois, como
se trata de “um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e
progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao
longo das etapas e modalidades da Educação Básica” (Brasil, 2018, p. 7), deveria primar
pela clareza, principalmente no que diz respeito a conceitos fundantes/norteadores na
área de conhecimento.
Seguimos, então, no rastreamento do objeto conceitual, procurando visualizar
sua compreensão subjacente. A próxima menção a ‘práticas de linguagem’ ocorre na
apresentação da área de Linguagens, momento em que o documento justifica a finalidade
de incorporar, nesta área, os componentes curriculares de Língua Portuguesa, Arte,
Educação Física, acrescentando, nos Anos Finais do Ensino Fundamental, Língua
Inglesa. Segundo a BNCC, a finalidade desse agrupamento é “possibilitar aos estudantes
participar de práticas de linguagem diversificadas, que lhes permitam ampliar suas
capacidades expressivas em manifestações artísticas, corporais e linguísticas, como
também seus conhecimentos sobre essas linguagens, em continuidade às experiências
vividas na Educação Infantil” (Brasil, 2018, p. 63, grifo próprio).
Nesse excerto, as ‘práticas de linguagem’ são entendidas como condição para o
desenvolvimento das capacidades expressivas do aluno, seja no âmbito linguístico,
artístico ou corporal. Em outras palavras: o documento deixa expresso nas entrelinhas
que as ‘práticas de linguagem’ vão além do linguístico e podem também ser semióticas.
E, mais uma vez, reporta-se à Educação Infantil, ressaltando a importância de se dar
continuidade às experiências vividas naquele nível de ensino.
Todavia, como o foco está no Ensino Fundamental – Anos iniciais, a ‘prática de
linguagem’ enfatizada para os dois primeiros anos deste nível de ensino é a de que o
“processo de alfabetização deve ser o foco da ação pedagógica” (Brasil, 2018, p. 63),
uma vez que se entende que as práticas de leitura e escrita “amplia(m) suas possibilidades
de construir conhecimentos nos diferentes componentes, por sua inserção na cultura
letrada, e de participar com maior autonomia e protagonismo na vida social” (Brasil,
2018, p. 63). Da mesma forma, para os Anos Finais do Ensino Fundamental, entende-se
que se deve ampliar “as práticas de linguagem conquistadas no Ensino Fundamental –
Anos Iniciais, incluindo a aprendizagem de Língua Inglesa” (Brasil, 2018, p. 63), além
de aprofundar as práticas de linguagem artísticas, corporais e linguísticas.
Para a concretização dessas práticas, o documento passa a listar as ‘Competências’
que considera essenciais para o desenvolvimento dos alunos. Dentre as seis apresentadas,
o objeto conceitual aparece apenas em uma delas:

2. Conhecer e explorar diversas práticas de linguagem (artísticas,


corporais e linguísticas) em diferentes campos da atividade humana para

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continuar aprendendo, ampliar suas possibilidades de participação na
vida social e colaborar para a construção de uma sociedade mais justa,
democrática e inclusiva (Brasil, 2018, p. 65, grifo próprio).

Mais uma vez, as ‘práticas de linguagem’ são circunscritas no âmbito do artístico,


corporal e linguístico, o que consideramos como um aspecto positivo na BNCC, pois
demonstra compreender que essas práticas são amplas e extrapolam a área linguística. Na
produção de um enunciado, nem sempre mobilizamos apenas os recursos linguísticos;
muitas vezes entrelaçamos as linguagens de forma que o verbal se imbrica ao não
verbal, constituindo o todo enunciativo.
Essa constatação é explorada no documento, de forma mais direta, quando se passa
a focar o componente de LP. Ao introduzir as reflexões desse componente, informa-
se que este dialoga com outras orientações curriculares produzidas/divulgadas nas
últimas décadas. Se, conforme explica Bakhtin (2008 [1963]), a orientação dialógica é
orgânica a qualquer discurso (língua viva), não podemos perder de vista que a BNCC
é um discurso vivo, orientado para um fazer pedagógico que, neste caso, demonstra
uma preocupação em atualizar seu discurso em relação aos demais com os quais
diz dialogar. E essa atualização se dá no sentido de incorporar, neste documento, as
“transformações das práticas de linguagem ocorridas neste século, devidas em grande
parte ao desenvolvimento das tecnologias digitais da informação e comunicação
(TDIC)” (Brasil, 2018, p. 67).
Para contemplar também as TDIC dentro das práticas de linguagem, o documento
emprega o termo ‘práticas de linguagem contemporâneas’ que, segundo a BNCC, “não
só envolvem novos gêneros e textos cada vez mais multissemióticos e multimidiáticos,
como também novas formas de produzir, de configurar, de disponibilizar, de replicar e
de interagir” (Brasil, 2018, p. 68). Considerando que os gêneros multimodais estão cada
vez mais presentes em nosso cotidiano devido, especialmente, aos avanços tecnológicos,
é importante que a BNCC dê ênfase às ‘práticas de linguagens contemporâneas’
decorrentes das TDIC, uma vez que se trata de configurações históricas de uso da
linguagem, presentes nas interações. Logo, cabe à escola preparar o aluno para essa
realidade, uma vez que, conforme a BNCC, sem o domínio dessas práticas de linguagem
contemporâneas, “a participação nas esferas da vida pública, do trabalho e pessoal pode
se dar de forma desigual” (Brasil, 2018, p. 67).
Para abarcar essas ‘práticas contemporâneas’ de uso da linguagem, o documento
ressalta a necessidade de mobilizar conhecimentos sobre as diferentes semioses, na
relação com as práticas de leitura e de produção5, entendendo que tal conhecimento
pode ampliar as possibilidades de participação do aluno em diferentes esferas/campo
de atividade humana. Todavia, não basta apenas garantir o domínio das diferentes
práticas de linguagem; nessa direção, a BNCC apresenta mais uma demanda para a
escola: “contemplar de forma crítica essas novas práticas de linguagem e produções,

5
Nesse quesito, o documento não menciona as demais práticas de linguagem (oralidade e análise linguística/semiótica).

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não só na perspectiva de atender às muitas demandas sociais que convergem para
um uso qualificado e ético das TDIC [...], mas de também fomentar o debate e outras
demandas sociais que cercam essas práticas e usos” (Brasil, 2018, p. 69).
Ao se tentar garantir esse olhar crítico para as ‘práticas de linguagem contemporâneas’,
entendemos que o documento se situa em uma abordagem sociológica (Volochínov,
2013 [1928]; Volóchinov, 2017 [1929-1930]), pois demonstra entender que a linguagem
é o meio material mediador das mais variadas situações interlocutivas, o que requer,
do interlocutor, uma atitude crítica para analisar os enunciados com os quais interage.
Depois de situar e defender o trabalho com as ‘práticas de linguagem contemporâneas’,
o documento passa a focar nas “práticas de linguagem: oralidade, leitura/escuta,
produção (escrita e multissemiótica) e análise linguística/semiótica” (Brasil, 2018, p.
71). Ao relacionar diretamente as ‘práticas de linguagem’ com os “Eixos” de leitura,
produção de textos, oralidade e análise linguística/semiótica, assume-se, no documento,
de forma mais direta, a correspondência entre ‘práticas de linguagem’ e ‘eixos’ de ensino
na LP. Essa substituição (mas sem deixar de relacionar) de um conceito pelo outro não
é aleatória; ao contrário, deixa entrever um diálogo com a “perspectiva enunciativo-
discursiva de linguagem” (Brasil, 2018, p. 67) que o documento diz assumir, a partir da
qual se entende, recorrendo aos PCN, que a linguagem é “um processo de interlocução
que se realiza nas práticas sociais existentes numa sociedade, nos distintos momentos de
sua história” (Brasil, 1998, p. 20). Logo, torna-se mais coerente com essa perspectiva
empregar o termo ‘práticas de linguagem’ em vez de ‘eixo’.
Mas, onde as ‘práticas de linguagem’ (de leitura de textos, oralidade, produção de
textos e análise linguística/semiótica) se concretizam? Segundo a BNCC, nos campos
de atuação, definidos como contextos significativos de onde derivam as práticas de
linguagem: os “campos de atuação apontam para a importância da contextualização
do conhecimento escolar, para a ideia de que essas práticas derivam de situações da
vida social e, ao mesmo tempo, precisam ser situadas em contextos significativos para
os estudantes” (Brasil, 2018, p. 84).
Os campos de atuação abarcados pela BNCC são apresentados conforme o Quadro
a seguir:

Quadro 4 – Campos de atuação na BNCC

Anos iniciais Anos finais


Campo da vida cotidiana
Campo artístico-literário Campo artístico-literário
Campo das práticas de estudo e pesquisa Campo das práticas de estudo e pesquisa
Campo da vida pública Campo jornalístico-midiático
Campo de atuação na vida pública
Fonte: BNCC (Brasil, 2018, p. 84).

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A seleção desses campos se justifica, segundo o documento, por contemplarem
dimensões formativas importantes de uso da linguagem, tanto no âmbito escolar
como fora dele, garantindo aos alunos, sujeitos em formação, maiores condições
para que possam atuar em diferentes espaços. Além disso, esses campos contemplam,
nas palavras do documento, a produção do conhecimento e da pesquisa, o exercício
da cidadania e uma formação estética “vinculada à experiência de leitura e escrita
do texto literário e à compreensão e produção de textos artísticos multissemióticos”
(Brasil, 2018, p. 84).
Ao indicar essa relação intrínseca entre ‘práticas de linguagem’ e ‘campos de
atuação’, percebemos um diálogo implícito com o conceito de campos de atividade
humana ou esferas sociais, desenvolvido por Bakhtin (2003 [1979]) no texto Os gêneros
do discurso. Sendo assim, é coerente que a BNCC considere as práticas de linguagem
situadas em seu devido campo, pois é neles que os textos-enunciados são produzidos
na sua relação com o gênero.
Enfim, após a meta-análise do objeto conceitual ‘práticas de linguagem’ na BNCC,
pudemos inferir a seguinte relação com a concepção de linguagem e com as unidades
básicas de ensino:

Quadro 5 – O objeto conceitual ‘práticas de linguagem’


na BNCC – Ensino Fundamental

Objeto conceitual Relação com a concepção Relação com as unidades


‘práticas de linguagem’ de linguagem básicas de ensino
- É empregado para retomar - Ancora-se em uma aborda- - Relaciona-se diretamente
práticas anteriores desenvol- gem sociológica de lingua- com os ‘eixos’: oralidade, lei-
vidas na Educação Infantil; gem, uma vez que se preocupa tura/escuta, produção (escri-
- Relaciona-se às manifesta- em garantir um trabalho com ta e multissemiótica) e análise
ções artísticas, corporais e lin- práticas de linguagem situa- linguística/semiótica” (Brasil,
guísticas; das socialmente. 2018, p. 71).
- Contempla as ‘práticas da
linguagem contemporâneas’,
decorrentes do desenvolvi-
mento das TDIC que se con-
figuram em gêneros e textos
multissemióticos e multimi-
diáticos;
- Demanda uma abordagem
crítica para as ‘práticas de lin-
guagem contemporâneas’;
- Situa-se dentro dos campos
de atuação.
Fonte: Elaboração própria

Após essas explanações teórico-metodológicas, entendemos que a BNCC procura


garantir que as ‘práticas de linguagem’ sugeridas/propostas/defendidas sejam exploradas/

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trabalhadas de forma ampla. Para isso, apresenta os quadros que elencam os Objetos
do Conhecimento e Habilidades que dariam conta de explorá-las. Nesse quesito,
questionamos: os elementos elencados dão conta de explorar as ‘práticas de linguagem’
dentro de um viés sociológico? Esta é uma outra discussão (e muito importante) na
qual não nos enveredamos neste texto. Propomo-nos, na seção seguinte, a apresentar, a
partir das reflexões tecidas até aqui, um construto metateórico para o conceito ‘práticas
de linguagem’ no âmbito do ensino de LP.

Um construto metateórico para o conceito de ‘prática de linguagem’ em contexto


de ensino e de aprendizagem de Língua Portuguesa na escola de Educação Básica

Nesta seção, apresentamos nossa proposta de construto metateórico acerca do


conceito de ‘práticas de linguagem’, após analisá-lo à luz dos estudos dialógicos
da linguagem. Para tanto, nos baseamos nos resultados da revisão bibliográfica de
referenciais sobre estudos dialógicos e ensino e aprendizagem de LP no Brasil (conforme
seções anteriores), dos preceitos da metateorização como abordagem metodológica
e da análise documental de dois documentos político-educacionais brasileiros, PCN
(Brasil, 1998) e BNCC (Brasil, 2018) (cf. seções anteriores). Nessa perspectiva,
sistematizamos, nos próximos parágrafos, alguns construtos teóricos sobre o conceito
‘práticas de linguagem’, buscando reconstruí-lo, ressignificá-lo e/ou ampliá-lo, dentro
de uma base dialógica.
A partir de toda a análise efetuada dos dois documentos, podemos entender:

(i) ‘Práticas de linguagem’ como práticas sociológicas: baseados em Volochínov


(2013 [1928]) e Volóchinov (2017 [1929-1930]), distante de uma concepção
objetivista-imanente-abstrata e de uma subjetivista-idealista-psicologizante,
referendamos a abordagem sociologizante da linguagem como âncora basilar
da concepção de ‘práticas de linguagem’. Isso implica que estamos situados
na interação social e a linguagem como meio e material mediador das mais
variadas e plurais situações interlocutivas. Por conseguinte, não temos
como mobilizar o trabalho com as práticas de linguagem na escola sob um
viés estrutural, formal ou essencialmente psicológico. Um trabalho teórico-
metodológico e didático-pedagógico com as práticas de linguagem só se
realiza sob as lentes de uma abordagem sociológica de linguagem.
(ii) ‘Práticas de linguagem’ como práticas discursivas: segundo Bakhtin (2008
[1963]), toda língua viva, na sua concretude nas/das/com as interações, só
se realiza no discurso. Sob um viés sociológico de abordagem dialógica, o
discurso é a arquitetônica viva e concreta da linguagem. Engendrado nas
amplitudes espaço-temporais do cronotopo e nos modos sociais de apreender
e compreender a realidade social da ideologia e da valoração (Medviédev,
2012 [1928]), todo discurso matiza a linguagem em sua organicidade viva

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no tempo-espaço axiológico do social. Um trabalho teórico-metodológico e
didático-pedagógico com as práticas de linguagem só se realiza sob o matiz
da linguagem como discurso.
(iii) ‘Práticas de linguagem’ como práticas enunciativas: para Bakhtin (1998
[1975]), todo discurso se realiza materialmente e concretamente na forma de
enunciados. Os enunciados, segundo Bakhtin (2003 [1979]), são unidades
vivas e concretas da comunicação discursiva. Diferentemente das unidades
convencionais da língua-sistema, as orações, os enunciados se constituem e
funcionam sob a égide da língua-discurso. Todo enunciado se constrói nas
interações, por meio do entrelaçamento de horizontes temporais, espaciais,
temáticos e valorativos (Volochínov, 2013 [1926]) e pela intercepção entre
a alternância de sujeitos na comunicação, expressividade avaliativa e pela
conclusibilidade enunciativo-discursiva do conteúdo semântico, do projeto
de dizer e das formas tipificadas da enunciação – os gêneros discursivos
(Bakhtin, 2003 [1979]). Um trabalho teórico-metodológico e didático-
pedagógico com as práticas de linguagem só se realiza sob a materialidade
concreta e viva dos enunciados e de suas formas típicas relativamente
estabilizadas nas interações sociais.
(iv) ‘Práticas de linguagem’ como práticas de uso da língua: como vimos, sob
um panorama sociológico de base dialógica, todo uso social da língua se
realiza na forma discursiva concreta dos enunciados. Os enunciados são
unidades discursivas constituídas por elementos linguísticos que respondem
às reverberações da situação de interação social. Com isso, os recursos da
materialidade linguística da enunciação (recursos lexicais, gramaticais,
textuais) responde axiologicamente às demandas da interação. Não é
estudado separado, abstraído do social, como propõem as visões objetivista
e subjetivista da língua, mas sempre integrado à interação. Dessa forma,
a unidade de análise linguística passa a ser o enunciado, estudado como
unidade que orquestra elementos da língua (em todos os seus extratos) a
partir das demandas das interlocuções. Um trabalho teórico-metodológico
e didático-pedagógico com as práticas de linguagem só se orienta sob o
escopo da língua como interação, isto é, do estudo dos elementos da língua
a partir das demandas das interações sociais.
(v) ‘Práticas de linguagem’ como unidades básicas de ensino: com base em
Geraldi (2011 [1984]), podemos afirmar que as práticas de linguagem
correspondem às unidades básicas de ensino: práticas de leitura, de produção
textual e de análise linguística. Dessa forma, ler, falar, ouvir, produzir
textos, refletir sobre/com a língua e se utilizar de outras formas semióticas
e paralinguísticas para interagir passam a integrar, de forma orgânica (viva,
concreta e dialógica), as práticas de linguagem na escola. Toda aula precisa
integrar e balizar o trabalho a partir das práticas de linguagem, unidades
básicas que operacionalizam, mobilizam, potencializam e significam o ensino

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e a aprendizagem em sala. Um trabalho teórico-metodológico e didático-
pedagógico com as práticas de linguagem só pode ser ancorado nas práticas
de linguagem como unidades básicas de ensino: práticas de leitura, de
produção de textos, práticas orais e práticas de análise linguística/semiótica,
todas integradas e inter-relacionadas, de forma dialógica.
(vi) ‘Práticas de linguagem’ como práticas operacionais e reflexivas: baseados
em Britto (1997) e nos PCN (Brasil, 1998), compreendemos que as práticas
de linguagem, como unidades básicas de ensino, movimentam dois eixos –
o do uso e o da reflexão (Brasil, 1998) ou, conforme Britto (1997), eixos
do operacional e do reflexivo. No eixo do operacional/uso envolvem-se
as práticas de leitura, oralidade e produção de textos. É usar a língua nas
diferentes situações de interação na vida social. Por outro lado, no eixo da
reflexivo/reflexão, encontra-se a prática de análise linguística/semiótica
que objetiva refletir sobre/com a língua em suas diferentes manifestações
semióticas. Os eixos trabalham de forma integrada e não podem ser restritivos
nem fragmentados. Um trabalho teórico-metodológico e didático-pedagógico
com as práticas de linguagem só se mobiliza a partir do trabalho integrativo
dos eixos do operacional/uso e do reflexivo/reflexão em relação aos usos
da língua.
(vii) Práticas de linguagem’ são práticas de ensinagem: ‘ensinagem’ é o termo
cunhado por Anastasiou (1998) para se referir a uma prática social, crítica,
reflexiva e em educação entre professor e estudante, englobando tanto a ação
de ensinar quanto a de apreender, dentro ou fora da sala de aula. Trata-se
de um processo dialógico e participativo, ancorado em Paulo Freire. Sob
essa perspectiva, entendemos que o trabalho com a leitura, produção de
textos, oralidade e análise linguística/semiótica precisa estar vinculado a
uma abordagem crítica, reflexiva, participativa e dialógica, incluindo o
estudante como interlocutor ativo das práticas mobilizadas. Usar textos
reais, concretos e em circulação social, além de possibilitar que o estudante
se engaje em situações reais de uso da língua, de forma que não apenas
amplie seu repertório de usos de textos, mas que, por conseguinte, amplie sua
participação no mundo, é um exemplo de práticas de ensinagem. Um trabalho
teórico-metodológico e didático-pedagógico com práticas de linguagem só
se potencializa socialmente quando envolto de práticas de ensinagem, em
que/quando ensinar e aprender caminham juntos.
(viii) ‘Práticas de linguagem’ como práticas linguístico-ideológicas: as ideologias
linguísticas nascem das constrições políticas, culturais e econômicas. São
as formas de ver e compreender a linguagem na vida social. São crenças,
sentimentos, avaliações de como a linguagem funciona em sociedade
(Kroskrity, 2004; Moita Lopes, 2013; Woolard, 1998). Com base nisso,
podemos afirmar que a escolha de trabalho com as práticas de linguagem na
escola é uma postura linguístico-ideológica, é uma forma de ver, apreender,

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reconhecer e valorar o mundo. Diferentemente de um currículo voltado aos
extratos gramaticais do sistema, engessado a uma postura objetivista de
língua, um currículo pensado a partir das práticas de linguagem possibilita
uma escola voltada a uma visão social, crítica, histórica e cultural da
linguagem. Um trabalho teórico-metodológico e didático-pedagógico com
práticas de linguagem é sempre orientado/balizado por uma ideologia
linguística.
(ix) ‘Práticas de linguagem’ como práticas político-educacionais: como vimos
nas seções anteriores, os documentos político-educacionais brasileiros
textualizam com frequência o termo ‘práticas de linguagem’. Os documentos
parametrizadores são sempre políticas educacionais, isto é, ações políticas
que orientam, regimentam, regularizam e legitimam o trabalho educativo.
Para tanto, trazem orientações, proposições e determinadas escolhas. Essas
escolhas não são aleatórias, mas sempre trazem consigo uma avaliação
social (Medviédev, 2012 [1928]). O documento mais recente, a BNCC
(Brasil, 2018), traz com recorrência o termo (como vimos neste artigo);
com isso, engendra todo o texto documental em uma visão de linguagem,
no caso das ‘práticas de linguagem’, em uma visão social. Uma política
educacional sempre reflete e refrata uma realidade, seja com discursos
concordantes, seja com conflitantes, contraditórios. É sempre uma arena
de forças de estratificação (Bakhtin, 1998 [1975]). Assim, um trabalho
teórico-metodológico e didático-pedagógico com práticas de linguagem se
caracteriza como uma prática político-educacional.
(x) ‘Práticas de linguagem’ como práticas políticas: toda ação com a linguagem
é uma ação política. Viver é politizar. A educação é política (Freire, 2003a;
2003b). Trabalhar com as práticas de linguagem não seria diferente. Com
a escolha de trabalho em sala com as práticas de linguagem, ao invés
de um ensino essencialmente gramatical, a sala se transforma em espaço
sociopolítico. Ler, escrever, ouvir, falar, analisar a língua, refletir sobre as
semioses se transforma em atos políticos, de enfrentamento, de resistência.
Passam-se a mobilizar ações de desnaturalização, desvelamento em que
discursos centrífugos duelam com discursos centrípetos, autoritários,
distorcidos. Trabalhar com as práticas de linguagem é transformar o mundo
(Freire, 2003a, 2003b). A partir disso, um trabalho com as práticas de
linguagem é sempre um ato político.

É claro que aqui não ficam enumerados todos os matizes conceituais em torno da
definição/conceptualização do termo ‘prática de linguagem’ quando usada em contexto
de ensino de língua portuguesa na esfera escolar da Educação Básica. Nossa proposta
de construto metateórico traz resultados iniciais. A partir de um trabalho metodológico
de revisão bibliográfica, metateorização e análise documental, muitos outros achados
foram encontrados, problematizados e redesenhados (e virão em pesquisas futuras).

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Contudo, todos estes resultados vão sempre ao encontro de uma questão em comum: o
trabalho com as ‘práticas de linguagem’ não apenas duela ideológico-axiologicamente
com o ‘ensino de gramática na escola’, mas explicita sempre uma visão de mundo, de
sujeito, de escola, de linguagem, enfim, de vida.

Conclusão

A discussão que move este artigo nasce da inquietação sobre o conceito de


práticas de linguagem que, sob diferentes panoramas teórico-metodológicos e didático-
pedagógicos, orbita em torno das orientações político-educacionais de ensino de LP no
Brasil. Iniciamos retomando como tal conceito é matizado por uma dada concepção
de linguagem que não apenas referencia linguístico-filosoficamente a conceituação
(no âmbito dos estudos e dos campos teóricos), como, por conseguinte, baliza um
tom ideológico-valorativo para tal conceito. Dessa forma, no escopo deste artigo,
compreendemos que o conceito de ‘práticas de linguagem’ traz sempre consigo uma
concepção de linguagem ancorada numa dada postura ideológico-axiológica.
Em um segundo momento, revozeamos a discussão sobre como ‘práticas de
linguagem’ passa a ser entendida, nos percursos de estudos do ensino de LP no Brasil,
como equivalente a ‘unidades básicas de ensino’ ou ‘eixos de ensino’. As práticas
de leitura, oralidade, produção de textos e análise linguística/semiótica passam a ser
mobilizadas como práticas de linguagem potencializadoras nas aulas de LP na escola
de Educação Básica, seguindo (e ressignificando), em grande parte, as orientações de
Geraldi em sua obra seminal de 1984.
À luz da análise documental, nossa discussão também problematiza como os
documentos político-educacionais vigentes no Brasil se referenciam quanto ao termo/
conceito de ‘práticas de linguagem’. Ora entendido como ‘usos de linguagem’, nos
PCN, ora como ‘práticas de linguagem contemporâneas’, na BNCC, o conceito se volta,
em ambos os documentos, aos usos da língua nos eixos de ensino: leitura, oralidade,
produção de textos e análise linguística/semiótica, ratificando uma postura sociológica
de linguagem para o trabalho com a língua portuguesa na escola.
Ao fim, nos propomos a construir um construto metateórico que possa orientar
teórico-metodologicamente o trabalho com as ‘práticas de linguagem’ em contexto de
ensino de linguagem na escola de Educação Básica. Acreditamos que o docente, de
posse desse construto, tenha maior autonomia para gerir as ações com a linguagem na
sala de aula, opondo-se a uma visão de linguagem ideológico-axiologicamente marcada
de trabalho com a língua na escola dentro de uma visão tradicional. Trata-se, assim,
de mais um estudo contemporâneo, em LA e Educação, envolto ao panorama social,
dialógico e político, que procura reiterar a postura de um trabalho com a linguagem,
na escola, que se volte e responda às exigências da vida social.

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PEREIRA, Rodrigo Acosta; COSTA-HÜBES, Terezinha da Conceição. Language practices
in portuguese language classes in elementary education: what are we talking about? Alfa, São
Paulo, v. 68, 2024.

■■ ABSTRACT: Different research studies in Applied Linguistics, in Brazil, have sought to


examine the work with language practices in Portuguese language classes in Elementary
Education. These studies have employed ethnographic research, action research, and
analyses of documents and discourses. Within this approach, our article aims to propose a
theoretical-methodological discussion about the concept of ‘language practices’ present in
national parameterizing documents. Through this, we aim to systematize a metatheoretical
construct concerning this concept, focusing specifically on the discipline of Portuguese
Language in Elementary Education. Theoretically, we ground our work in the principles of
Dialogical Studies of Language, and, methodologically, we align with the assumptions of
Metatheorization and Document Analysis. The results demonstrate that the analyzed documents
reflect convergent/approximate meanings regarding ‘language practices’ as linguistic usages
in real situations and as teaching and learning units or axes. Based on these results, this study
proposes a metatheoretical overview of this concept, not only revisiting core issues already
demonstrated in document analysis but also addressing other aspects that reaffirm the social,
ideological, and political aspects of working with ‘language practices’ in schools.

■■ KEYWORDS: Portuguese Language Classes; Language practices; Document analysis;


Metatheoretical construct.

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Recebido em 7 de junho de 2023

Aprovado em 30 de outubro de 2023

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