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ENTRE O UNIVERSALISMO E O
NOMINALISMO
Ronald Silva Robson
Mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada (UERJ)
[email protected]
RESUMO ABSTRACT
Os mais recentes manuais de teoria da The most recent manuals in literary theory
literatura tendem o omitir parcial ou até exihibit the trend of overlooking parcial or
integralmente a discussão de uma das even totally the discussion of one of the
questões críticas mais antigas: a dos most antique critic issues: that of literary
gêneros literários. Manuais de mais longa genres. Nevertheless, elder manuals show
data, contudo, levam a ver, por trás das behind the literary genre theory the
teorias dos gêneros, a disputa broader epistemological argument
epistemológica mais ampla entre between universalists and nominalists,
universalistas e nominalistas, oposição argument stressed in a didactic way in the
que se mostra didática nos casos de cases of Ferdinand Brunetière and
Ferdinand Brunetière e Benedetto Croce. Benedetto Croce. The apparent
A aparente impossibilidade de solucionar impossibility of solving this opposition
tal embate pode ser encontrada em outras could be found in another species of
abordagens, como na concepção de Emil treatment, such as the Emil Staiger’s
Staiger dos gêneros como “visões de conception of the genres as “world’s
mundo” e na distinção de Gérard Genette views” and the Gérard Genette distinction
entre “gêneros” e “arquitextos”. between “genres” and “architexts”.
PALAVRAS-CHAVE: Gêneros Literários, KEYWORDS: Literary Genres,
Epistemologia, Nominalismo, Ferdinand Epistemology, Nominalism, Ferdinand
Brunetière, Benedetto Croce. Brunetière, Benedetto Croce.
Para que não nos fiemos em apenas um único tratadista cuja influência tenha sido
não só considerável como também recente, vejamos também o que Jonathan Culler nos
informa a respeito. No capítulo que dedica à retórica, à poética e à poesia em seu manual, o
professor da Cornell University escreve: “O que são os gêneros e qual o seu papel? Termos
como épica e romance são simplesmente maneiras de classificar as obras com base em
semelhanças grosseiras ou eles têm funções para os leitores e escritores?” (CULLER, 1999, p.
75, grifos do autor).
Estes dois manuais recentes, sob esse aspecto, em muito diferem de outros mais
antigos da matéria. Apreciemos em ordem cronológica alguns tratados mais antigos,
portanto, a fim de verificar outras possíveis abordagens.
De 1944, o manual de Antônio Soares Amora, que apesar do seu título de Teoria da
Literatura ainda possui alguns traços de manual de retórica escolar, estrutura-se de acordo
com a própria noção de gênero literário, o que dá a entender que estudar literatura é, em
grande medida, fazer uma anatomia da lírica, da épica e do drama, por exemplo.
Efetivamente, no capítulo quarto, de “Síntese dos elementos da obra literária”, o autor
afirma que uma das principais preocupações da “ciência literária” com respeito aos gêneros
era a investigação de “se os gêneros e as espécies literárias são uma realidade objetiva e
preexistente à atividade criadora” (AMORA, 1965, p. 149). E à frente diz mais ainda:
Mais à frente comentaremos melhor a chamada “questão dos universais”, mas por
ora apenas consideremos um posicionamento sintético de Antônio Soares Amora sobre o
assunto:
Para nós, que defendemos um conceito novo de gênero literário – gênero literário
é a combinação de um tipo de forma, com um tipo de conteúdo e um tipo de
composição – o gênero não é um conceito abstrato sem base na realidade objetiva,
pois qualquer obra é sempre a expressão de determinado gênero literário (IDEM,
1965, p. 151, grifo do autor).
Esta, enfim, é uma posição bastante disseminada nos manuais mais antigos de teoria
da literatura – ou manuais que se pretendiam tanto, como é o caso do livro de Amora.
Também de “ciência literária” e com perfil de análise morfológica e estilística, mas já com
elementos da recém-estabelecida teoria da literatura (a publicação é de 1948), o livro
Análise e Interpretação da Obra Literária, de Wolfgang Kayser, encaminha-se igualmente
nesse sentido. O autor se preocupa, antes de oferecer seu esquema dos gêneros, com
apontar os principais tipos de abordagem da questão ao longo da história, referindo
especialmente a “designação dos grupos” de obras literárias como “princípios de formação
Se não formula o problema de forma tão óbvia quanto Antônio Soares Amora,
Wolfgang Kayser não deixa, contudo, de supô-lo. As suas asserções – inclusive a própria
seleção vocabular – são inequívocas até mesmo acerca da posição que adota frente ao
assunto: ao falar em “princípios de formação” das obras literárias, em “estruturas
determinadas por uma lei de construção imanente e uniforme” e, sobretudo, em “leis
eternas” das obras, Kayser mostra ter consciência de uma questão fundamental ao
problema dos gêneros – sua realidade ou irrealidade lógica – e se revela um defensor da
existência dos gêneros enquanto tais, estes não sendo apenas “códigos” convencionais
(como diria Eagleton) nem apenas “maneiras de classificar as obras” (como diria Culler).
Temos aí uma aproximação direta ao que a essa altura, dada a coerência das
formulações e a relativa autoridade dos formuladores, podemos dizer ser a verdadeira
natureza do problema dos gêneros literários: a “relação entre a classe e os indivíduos”, “o
um e o múltiplo”, a “natureza dos universais”, enfim, o que supõe tanto a postura
nominalista que o estudioso pode ter diante do problema quanto a postura oposta, a saber,
a do universalista.
Com isso, cremos ter elementos suficientes para afirmar que, embora o problema dos
gêneros possa levantar uma série de outras questões – como a da “existência ou inexistência
de regras”, a dos “códigos” convencionais de recepção e a do ordenamento metodológico da
produção literária para fins de estudo –, sua natureza primeira reside nas “relações do
individual e do universal”, historicamente situável na contenda entre universalistas e
nominalistas.
A esta altura, podemos retomar a questão dos universais de que falou Antônio Soares
Amora, a fim de aclará-la, e passamos logo a fazê-lo recordando uma pergunta eloquente de
um crítico: “Que é Os Sertões?”.
O que a pergunta tem de lacônica tem também de instigante, e ao ensaio que abre
com essa indagação o crítico Franklin de Oliveira deu o título de “Um problema de ontologia
literária” (OLIVEIRA, 1983, p. 13). A adequação desse título e sua perspicácia, o autor logo as
garante nesta passagem que, se um tanto longa, é entretanto de leitura relevante para o
nosso assunto:
Como este trabalho não é de escopo filosófico, mas pretende apenas sumariar um
conjunto de elementos em torno da natureza do problema dos gêneros, é-nos suficiente
tomar esta formulação sucinta que Julián Marías oferece da questão dos universais grosso
modo:
uma posição nominalista). Esta, aliás, é manifestamente a visão que Emil Staiger tem do
assunto (STAIGER, 1997, p. 15).
O fato de que uma visão complexa do assunto desautorize posturas simples e radicais
– a do puro universalista, a do puro nominalista – não significa que uma compreensão mais
aguda do problema possa prescindir de reflexões que, porque muito radicais, chegam a ser
didáticas. Finalizemos, pois, com breve notícia de uma contenda entre dois “radicais”.
Brunetière afirma que “um gênero nasce, cresce, atinge sua perfeição, declina e,
enfim, morre!” (BRUNETIÈRE, 2011, p. 382). Ele o toma, à imagem dos objetos das ciências
naturais, como um organismo vivo e que remanesce substantivamente de maneira quase
que a-histórica. E, mesmo quando situa um determinado gênero no decorrer histórico, a
ponto de apontar até mesmo sua “morte”, ele está a descrever as atualizações de notas que
constavam potencialmente no gênero substantivo enquanto tal. Daí, por exemplo, ele falar
do “romance”, que primeiro assume a forma da “epopeia” ou da “canção de gesta”, como
vindo a tomar a feição das “memórias” e “crônicas”, em seguida a dos romances fabulares
da linha de Tristão e Isolda, para depois chegar ao “romance épico” (IDEM, 2011, p. 379). A
visão substancialista e quase biológica dos gêneros, na visão do autor, propiciaria até uma
investigação de caráter científico e da maior exatidão: “depois das relações genealógicas ou
estéticas entre essas formas, quais são, se há, suas relações científicas?”. E pergunta ainda:
“há leis que governam essa sucessão? E, essas leis, de onde podemos tirá-las?” (IDEM, 2011,
p. 380).
Por fim, cabe observar que esses polos extremos de posicionamento crítico com
relação à natureza do problema dos gêneros – de um lado, um universalismo irredutível; do
outro, um nominalismo igualmente irredutível – não só podem ser aproximados e a tensão
entre eles, se não aplacada, pelo menos atenuada (como no caso de Emil Staiger), como há
também a possibilidade de propor o problema em outra clave: os gêneros historicamente
formados teriam sua conformação orientada de acordo com preceptísticas ou outros
elementos que, em si mesmos, nada possuiriam de universais e, ao contrário, seriam
produtos desta ou daquela época; contudo, as possibilidades de arranjo dos elementos mais
básicos de uma obra literária seriam regidas por princípios de ordem diversa, os quais –
estes, sim – teriam alguma universalidade na medida em que seriam inescapáveis ao
homem.
Ou seja: trata-se do projeto de investigar não os gêneros, mas o que torna possível a
emergência do que, bem ou mal, chamamos de gêneros. É a passagem do estudo do texto
ao estudo do “arquitexto”, termo cunhado por Gérard Genette (GENETTE, 1986, p. 157).
“Mimése” (princípio de representação e presentificação de uma obra) e “diégese” (princípio
de distanciamento e de orientação narrativa) seriam mais importantes ao estudo do
“arquitexto”; ou, ainda, de igual importância seriam as relações entre os tipos de enunciado
do autor em uma obra e as modalidades de relação temporal que instauram entre homem e
mundo, como em associações como lírico/presente, épico/passado e drama/futuro (IDEM,
1986, p. 128).
REFERÊNCIAS
AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1976.
AMORA, Antônio Soares. Teoria da Literatura. São Paulo: Editora Clássico-Científica, 1965.
CULLER, Jonathan. Teoria Literária: uma introdução. São Paulo: Beca, 1999.
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
GENETTE, Gérard. “Introduction à l’architexte”. In: GENETTE, Gérard et al. Théorie des
genres. Paris: Éditions du Seuil, 1986.
MARÍAS, Julián. História da Filosofia. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins
Fontes, 2004.
OLIVEIRA, Franklin de. Euclydes: a espada e a letra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
STAIGER, Emil. Conceitos Fundamentais da Poética. Tradução de Celeste Aída Galeão. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
WELLEK, René; WARREN, Austin. Theory of Literature. Great Britain: Penguin Books, 1976.