Casa Vizinha
Casa Vizinha
Casa Vizinha
improvisados com qualquer coisa que pudesse ser empilhada e encostada no muro de difícil
ultrapassagem. Pregos se mesclavam no concreto daquela barreira, tornando quase impossível
para uma criança pular, então, íamos até o fundo de nossas casas quando nossos pais estavam
ocupados brigando ou simplesmente não estando presentes para conversar.
Era tinha cabelos castanhos, lisos e abaixo de seus ombros, poucas e pequenas sardas bem
divididas em seu rosto, dela, lembro-me bem.
Ela não tinha o melhor cheiro do mundo, sua casa era tão desestruturada quanto a minha e
por vezes aparecia imunda ou mal cuidada —éramos apenas crianças.
Era a única pessoa que tinha contato que não me espancava ou gritava comigo por motivos
inexistentes, já que de escola, brincadeiras na rua e contatos com outros familiares senão
meus abusivos pais, eu era privado.
Nossas conversas se baseavam em quem criaria um super-poder primeiro e conseguiria viver a
maior aventura ou a adivinhação de como deveria ser a casa um do outro —os cenários
sempre saíam muito surreais, não pelo fato de ter unicórnios ou monstros morando no
armário, apenas porque uma família feliz que te acolhe e todo dia quando você desce as
escadarias em seu pijama passado e de rosto limpo te dá bom dia parecia muito distante de
nossas realidades.
Quando meus pais descobriram que eu conversava com alguém, temendo por serem
denunciados, ergueram o muro de tal forma que nem todos os móveis que uma criança
pudesse arrastar fossem o suficiente para cobrir sua altura.
Eu lembro da surra que levei naquele dia, meus dentes de leite caindo antes da hora e de
minha sujeira se mesclar com o sangue e mofo das paredes e me lembro de ser botado para
dormir do lado de fora, naquele muro que por não ter reboco ou pintura, o chapisco arranhava
minha pele.
Aquela casa era tão silenciosa na rua, nem mesmo quando haviam pancadarias os vizinhos
ouviam, ou talvez, fingissem que não.
Depois de anos privado da sociedade, já no ápice da minha pré adolescência descobri no sótão
um velho notebook. Eu sabia que na minha casa havia internet, afinal, era a única coisa que
segurava a bunda velha da mamãe no sofá mesmo quando meu pai lhe distribuía socos nas
maçãs de seu rosto enquanto ela mexia calmamente em seu celular, como se aquilo fosse sua
anestesia.
Acessei e de madrugada, na pontinha dos pés não tão mais pequenos e infantis, caminhei até a
sala onde sabia que estava escrito a maldita senha para minha única, única chance de contato
com algo lá fora. No sótão fiquei até amanhecer e voltei para cama apenas quando ouvi o
barulho de meu pai bêbado tentando se levantar no andar debaixo.
Dormi por duas horas o que me rendeu dois pares de olheiras, mas não era minha aparência
que me faria parar.
Novamente de madrugada na internet, resolvi procurar sobre a garota da casa vizinha.
“E-d-i-t-h T-a-r-s-o”, era esse o nome dela, certo?! Havia digitado corretamente? Tanto faz, dei
enter, meus dedos batiam em cima do mouse de meu notebook ansiosos enquanto meus
olhos ficavam estáticos na tela a espera de que terminasse de carregar.
Carregou, com sorte eu havia conseguido pesquisas por localização e em uma delas, uma rede
social se encaixava perfeitamente. Entrei na página e céus, era ela. Não tinha mais as
bochechas sujas de pó ou terra ou aqueles cabelos desgrenhados e mal cuidados, longe disso,
em sua foto de perfil, suas bochechas se encontravam rosadas, talvez por uma maquiagem
aleatória e seus cabelos agora, eram pouco mais compridos, uma franjinha que junto a suas
sardas perfeitamente visíveis agora, destacavam seus olhos cor de mel. Mordi meu lábio
inferior, o decote que ela usava naquela foto deixava perfeitamente a mostra parte de seus
belos par de seios. Fiquei naquela página, travado por poucos instantes, apenas observando
cada elemento daquela foto com cuidado.
Rolei a página para baixo, a cidade onde eu morava estava colocada como “lugares onde já
morou”, senti um súbito ódio tomar conta de mim e apenas por ainda ter uma gota de vestígio
de consciência não soquei o notebook, pensando em me manter a salvo de meu pai. Ela não
morava ali, não mais. Maldito muro.
Continuei descendo a página, foto após foto, meus dedos se sentiam ansiosos a cada foto que
se passava e meus olhos continham apenas o brilho refletido do visor daquele pequeno
computador. Em apenas uma noite, eu já sabia quais seus melhores amigos e que redes sociais
ela tinha.
Fui dormir, tinha consciência de que minhas olheiras deveriam estar crescendo.
Na segunda noite, eu descobri com quantas pessoas ela havia brigado desde que criou suas
redes sociais e que fora morar com seus “abençoados” tios em outra cidade e agora levava
uma perfeita vida, desde que seus pais foram presos por maltrates — Edith havia tido mais
ódio que eu.
Com todo cuidado do mundo, desliguei tudo e voltei ao meu quarto, temendo que meus pais
me descobrissem. Círculos em tons amarronzados começaram a se tornar mais visíveis perto
da linha d’água de meus olhos.
Na terceira noite eu já sabia seus gostos, sua idade e os horários que fazia as coisas na outra
cidade, comecei a anotar tudo em um bloco de notas que tinha no meu quarto. Abrindo um
mapa virtual, localizei cada cenário de fundo de suas fotos e descobri a estrutura e endereço
do local onde trabalhava em meio período — uma lanchonete em um bairro universitário, que
diga-se de passagem, era o bairro onde ela agora, feliz e com sua perfeita vida, estudava.
Fui dormir mais tarde do que o habitual, quase cruzei com meu pai no corredor. Botei o bloco
de notas debaixo de meu braço e corri para meu quarto.
Na quarta noite, meu olho direito tinha adquirido um tom arroxeado, devido à uma briga que
tive com meu pai, por pura sorte, não havia acabado morto, não entendi minha coragem ou
comportamento violento naquela manhã, apenas havia sido impulso, não que eles não
houvessem merecido. No sótão, eu havia levado papéis e lápis, eu tinha que me lembrar de
tudo dela. Não era um sentimento de importância ou felicidade, eu apenas precisava daquela
vida. Aquela vida era minha, não era? Era pra ter sido minha, não era? Eu sofri mais do que ela,
não? Eu não me importo com ela, mas, preciso dela, preciso a arrastar. Eu já havia descoberto
o nome das pessoas com quem ela convivia agora, ao menos, as mais importantes. Mas não
era o suficiente. Desenhei cada local que ela passava diariamente e seu rosto, seu sorridente
rosto.
Na manhã seguinte a quarta noite, eu escondi os papéis debaixo de minha cama e em cima do
meu velho roupeiro, olhei pela janela enquanto papai saia para beber durante a tarde e
mamãe ficava sozinha em casa. Como um animal esguio, caminhei até a cozinha onde ela fazia
suas coisas. Velha, as maçãs do rosto tão rígidas que parecia ser feita apenas de osso, o rosto
cansado com os pés de galinha bem destacados enquanto seus cachos loiros recaíam
emaranhados sob seu ombro direito. Me lembro perfeitamente de como estava naquela
manhã, o roupão surrado expondo seu corpo magro e caído, quase esquelético em sua busca
ideal pela magreza, talvez as drogas houvessem a ajudado nesse processo de emagrecimento
sem dieta. Tirava mais um tabaco do maço e levava a boca, o cheiro do cigarro invadia aquele
cômodo. Mamãe era linda, tinha uma beleza mórbida. Seu único defeito era mesmo com toda
aquela fumaça invadindo seus pulmões, ainda respirar. Sorrateiramente toquei parte de suas
costas, e ela, por reflexo de um trauma, virou-se e com uma faca na mão, cortou-me do meio
de minhas sobrancelhas, contornando com uma habilidade quase artística meu olho e
terminando na metade de minha bochecha esquerda. Me pergunto se foi acidental — não que
hoje em dia importe. Porém, foi a primeira vez em muito anos que minha mãe cuidou de uma
machucado meu, ela realmente parecia arrependida. Um olho roxo e um olho agora
contornado por uma eterna cicatriz, minha aparência melhorava a cada dia. Ela havia
percebido as olheiras, mas não as comentou.
Esqueci-me de naquela noite vasculhar a internet em busca de Edith, estava planejando algo
melhor.
Por dois longos anos me afastei das redes sociais.
Voltei quando a casa tornou-se silenciosa e as brigas pararam.
Agora minha voracidade em saber de Edith era forte, talvez o único sentimento de intensidade
que eu viesse a ter. Arrumei minhas coisas, estava no auge de meus quinze anos.
Juntei todos meus desenhos, mapas e informações sobre ela.
Peguei o velho carro de meu pai e dirigi por quinze horas seguidas até a cidade que Edith se
encontrava.
Parei quando achei a casa de seu tio, onde ela ainda estava.
Por três anos então, acompanhei sua vida, agora de perto, cada dia mais linda, cada dia mais
feliz, cada dia melhor sua vida. Não havia mais uma tela separando eu e minha doce Edith.
Minha roupa preferida para nossos encontros era meu moletom preto, não tinha segurança
sobre nosso relacionamento ainda! O que ela iria achar de minhas tatuagens ou de meus
piercings? Eu não havia avisado ela sobre quando os coloquei.
Mas não é como se ela fosse a pessoa que mais se importava no momento com roupas, às
vezes, ela estava em seu quarto, de pijama, mexendo em seu tablet, o único vidro que nos
separava agora, era o de sua janela, mas eu ficava satisfeito dela me dar um lugar para sentar
no galho da árvore que me dava mais visão de si.
Tinha vezes que ela me irritava, sabe? Quando ia lá fora durante a noite tentando me ver,
ainda não era a hora! Nosso relacionamento não havia se estabilizado o suficiente pra isso.
Ela tinha mesmo que se importar apenas com um barulho descuidado?!
Vinte e quatro horas eu a olhava, de vez em quando, eu acordava antes dela, lia seu jornal
tedioso que ela insistia em perder meia hora lendo minuciosamente. Em alguns dias ela se
perguntava porque o jornal estava mais amassado do que o comum, mas, não tenho culpa se
aquilo era chato e me dava raiva o suficiente pra o amassar sem querer.
Edith ficava linda dormindo, por isso, eu a filmava todo dia, para a ver pela manhã.
Eu não entendia porque ela insistia em pegar o caminho mais comprido para a faculdade,
sendo que a outra rua era mais curta. Eu sabia mais da cidade dela do que ela mesma?!
Nos fins de semana, eu a acompanhava em seus programas, quero dizer, em algumas vezes eu
não podia entrar nos lugares que ela entrava, então a esperava em um beco.
Depois de um tempo, me senti finalmente seguro para dar mais um passo no nosso
relacionamento. Valeu a pena esperar tanto tempo por ela, entende? Deu um pouco de
trabalho para a fazer dormir, mas, agora que ela acordou, posso ter certeza que ela me ama.
Mesmo com as amarras em torno de seu corpo e uma pano branco a impedindo de falar isso,
eu sei que ela o queria dizer. Só está um pouco fora de controle, sabe? Mas, em alguns meses,
vai virar a casa dela. Tudo bem que não tem janela e já se passaram algumas semanas. Mas ela
não precisa disso, precisa de mim. Já disse que ela fica mais linda com suas olheiras
combinando com as minhas? Somos parecidos.
Pelo menos, agora, não há muro nos separando.