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Linguagens Híbridas

na prática docente

1
2
Jacob dos Santos Biziak
Jussara Isabel Stockmanns
Kátia Cilene S. S. Conceição
(Organizadores)

Linguagens Híbridas
na prática docente

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Copyright © dos autores

Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida,
transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos dos autores.

Jacob dos Santos Biziak; Jussara Isabel Stockmanns; Kátia Cilene S. S.


Conceição (Orgs.)

Linguagens Híbridas na prática docente. São Carlos: Pedro & João Editores,
2017. 245p.

ISBN. 978-85-7993-423-0

1. Linguagens híbridas. 2. Linguagem na prática docente. 3. Tecnologias


digitais. 4. Gêneros do discurso. I. Título.

CDD – 410

Capa: Hélio Márcio Pajeú. Arte a partir do Mural Etnias e Culturas Formadoras do
Município de Palmas-PR, presente no campus do Instituto Federal do Paraná,
campus Palmas
Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito

Conselho Científico da Pedro & João Editores:


Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/Brasil); Nair F.
Gurgel do Amaral (UNIR/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria
da Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil); Valdemir Miotello
(UFSCar/Brasil)

Pedro & João Editores


www.pedroejoaoeditores.com.br
13568-878 - São Carlos – SP
2017

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SUMÁRIO

1. SABERES DOCENTES NA PERSPECTIVA DE 23


TARDIF, GAUHIER E PAULO FREIRE: PONTOS E
CONTRAPONTOS.
Jussara Isabel Stockmanns

2. O CONHECIMENTO DO CONHECIMENTO: 65
DA NECESSIDADE ÀS POSSIBILIDADES.
Roberto Carlos Bianchi

3. A CUMPLICIDADE ENTRE TEOLOGIA E 83


LITERATURA NAS EXPERIÊNCIAS EXISTENCIAIS
HUMANAS A PARTIR DO SAGRADO.
Filipe Marchioro Pfützenreuter

4.ENTRE O MIMÉTICO E O AMIMÉTICO: A 113


CRÍTICA LITERÁRIA ENQUANTO
POSICIONAMENTO DISCURSIVO E ESCRITURA.
Jacob dos Santos Biziak

5. A LINGUÍSTICA APLICADA E OS GÊNEROS 131


DO DISCURSO NO FAZER DOCENTE: UMA
QUESTÃO DE PRÁTICA.
Kátia Cilene Silva Santos Conceição

6. LITERATURA, CINEMA E PINTURA: UMA 155


ANÁLISE DA LINGUAGEM HÍBRIDA OSTENTADA
NA ADAPTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA DE A
MISSA DO GALO.
Aline Cristina de Oliveira

5
7. O LUGAR DE “O SEGREDO DAS TRANÇAS” 181
NOS ACERVOS DO PNBE (2003-2013).
Carla Francine da Silva Reis

8. TECNOLOGIAS DIGITAIS E NOVAS FORMAS 191


DE ENSINO.
Daiane Padula Paz e Suzete Verginia de Souza
Reiter

9. LITERATURA E IMPRENSA. A CRIAÇÃO 207


LITERÁRIA E O MERCADO DOS BENS
SIMBÓLICOS
Jaison Luis Crestani

6
Não existe ensino sem pesquisa e
pesquisa sem ensino.
Paulo Freire

7
8
PREFÁCIO

DOS CAMINHOS QUE NÃO CONHECEMOS:


LINGUAGENS HÍBRIDAS

Ser convidada para prefaciar um livro que assume, em seu


título, o caráter híbrido das linguagens produziu em mim um efeito
instigante, pois na posição discursiva de quem fará o prefácio, ler
este livro antes da maioria de seus leitores fez-me sentir
privilegiada. Como pensar a linguagem, na contemporaneidade,
sem considerá-la híbrida? Impossível. Por isso, o título do livro
indicia o modo como a linguagem é concebida pelos autores dos
capítulos que se seguem e aguça o desejo de leitura.
Soma-se a isso o momento de publicação deste livro. Saber da
luta que se encerra para a implantação de um Programa de Pós-
Graduação é motivo de celebração, ainda mais quando o Programa
inicia-se com o coroamento da publicação do seu primeiro livro.
Quantos sentidos de vida, de pesquisa, de conquista esperam pelo
leitor nas páginas que se seguem. Importante destacar que os
autores, docentes do Programa de Pós-Graduação do IFPR,
escreveram seus capítulos imaginando alguns leitores especiais,
quais sejam, os discentes do Curso de Pós-Graduação,
Especialização em “Linguagens híbridas e educação” ofertado pelo
IFPR – Campus Palmas, que encontrarão, neste livro, vozes que
lhes ajudarão a caminhar pelos estudos da linguagem, vozes cujos
ecos se cruzam e podem produzir sempre novos sentidos para cada
leitor, para cada pesquisador. Por esses caminhos ainda não
conhecidos, certamente, autores e leitores, docentes e discentes
construirão muitos percursos e muitas interlocuções que
enriquecerão os estudos das linguagens.

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Pela via da linguagem, e não poderia ser por outra, o leitor
refletirá sobre o conhecimento que sustenta uma prática
pedagógica inovadora e democrática, considerando-se a
complexidade de paradigmas na contemporaneidade. Os autores
aqui reunidos preocupam-se com banalização de sentidos sobre o
conhecimento e constroem seus capítulos visando a desconstruir
sentidos corriqueiros sobre conhecimento e Educação. Para deleite
do leitor, o livro traz capítulos que têm a literatura como objeto de
estudo, os quais proporcionam uma leitura crítica em relação ao
conhecimento produzido sobre literatura e as possibilidades de
deslizamento para um novo modo de pensá-la. Por tratar-se de
linguagens híbridas, estudos sobre literatura e cinema e sobre as
tecnologias de comunicação enriquecem os capítulos que se
seguem, “trançando” essa trama híbrida que é o infinito território
da linguagem.
O leitor encontrará um posicionamento político assumido
pelos autores, que tratam de seus objetos de estudo com muito
rigor teórico. Um exemplo disso, dentre outros, pode ser dado com
o capítulo intitulado “O lugar de “O segredo das tranças” nos
acervos do PNE (2013/2013)”, que apresenta uma análise dos dados
relativos à criação da lei 10.639/03, resultante de um longo processo
histórico de revisão do currículo escolar brasileiro, ao incluir a
obrigatoriedade do ensino de história e cultura africanas e afro-
brasileiras.
Como nos diz, lindamente, João Cabral de Melo Neto, um galo
precisará sempre de outro, que com tantos outros construirão um
novo amanhã. E assim os sentidos deste livro lançam um grito dado
pelas vozes de seus autores. São gritos em defesa de uma escola e
de uma Educação mais comprometida com o conhecimento, com
os sujeitos-escolares, sejam eles alunos, professores, auxiliares,
enfim, com sujeitos que passam pela escola e nela têm o direito de
acesso ao saber, às novas tecnologias, à literatura, ao cinema, à
ciência para que dentro e fora da escola eles continuem sendo
sujeitos de suas práticas de linguagem, e não sujeitos às exclusões

10
de uma sociedade que não respeita aqueles cujo direito ao
conhecimento foi negado.
O leitor será envolvido por um livro que se sustenta por um
modo plural de pensar sujeito e linguagem, um livro que não se
constrói segundo uma visão conteudista; ao contrário, a linguagem,
neste livro, é tecido e é tecida tal qual o desejo de Manoel de Barros
quando escreve “Pra meu gosto a palavra não precisa significar – é
só entoar”. Boa leitura.

Soraya Maria Romano Pacífico


Outono de 2017

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12
INTRODUÇÃO

LINGUAGENS HÍBRIDAS E EDUCAÇÃO

O presente livro, intitulado “Linguagens híbridas na prática


docente”, objetiva refletir sobre as linguagens híbridas e a
educação, possibilitando novos horizontes e novas práticas aos
docentes. O mesmo instrumento é um apoio aos discentes do Curso
de Pós-Graduação, Especialização em “Linguagens híbridas e
educação” ofertado pelo IFPR – Campus Palmas, que busca
oferecer educação de qualidade, de forma integrada entre o ensino,
a pesquisa e a extensão.
O aprofundamento teórico aqui apresentado trará ao leitor
condições de transferir para o espaço em que atua
profissionalmente não só conteúdo renovado, mas, também,
condições de repensar problemas típicos da educação
contemporânea e que são totalmente alicerçados pela linguagem.
Sendo assim, partindo de concepções correntes a respeito da
linguagem, percebemos uma pluralização da mesma, uma vez que
uma transversalidade caracteriza a produção e recepção de
discursos na contemporaneidade. Um espaço privilegiado para
sentir os efeitos disso é o escolar, já que, nele, as diferenças
convivem e proporcionam, constantemente, que as representações
das realidades sejam redefinidas. Logo, o cinema, a imprensa, o
conhecimento, as diferenças sociais, as tecnologias, as artes, enfim,
bordeiam tanto a atividade docente quanto o sujeito que vai à
escola buscando algo que lhe falta e, também, dar voz a sua história
e condição social. Dessa feita, propomos o hibridismo entre as
linguagens, como maneira de incitar o ensino como forma de
pensar sobre ele no contexto do contemporâneo.

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Esta obra está organizada a partir da temática linguagens
hibridas e educação. A estruturação da mesma serviu-se da
produção científica dos docentes do Colegiado de Letras do IFPR,
Campus Palmas, abordando os seguintes conteúdos:
1. SABERES DOCENTES NA PERSPECTIVA DE TARDIF,
GAUHIER E PAULO FREIRE: PONTOS E CONTRAPONTOS:
Discute os saberes docentes a partir da sociedade denominada do
conhecimento, exigindo uma prática pedagógica reflexiva,
inovadora, democrática, para dar conta de um novo paradigma
educacional, do qual requer uma formação para a cidadania. Para
tal reflexão, tem como base os teóricos Behrens (2004), Delors
(1998), EYNG (2007), Saviani (1996) e Campelo (2001). Por isso, da
necessidade de se refletir sobre os ‘saberes docentes’ necessários
para a prática pedagógica dos professores com os teóricos de Tardif
(2002), Gauthier (2013) e Paulo Freire (2002) que destacam a
importância dos saberes da formação profissional, saberes
disciplinares, saberes curriculares e os saberes experienciais como
saberes necessários para a prática da docência.
2. O CONHECIMENTO DO CONHECIMENTO: DA
NECESSIDADE ÀS POSSIBILIDADES: Reflete sobre o
conhecimento do conhecimento observando a necessidade e as
possibilidades a partir da construção histórico-social-cultural. Na
atualidade, são comuns afirmações de que nos encontramos na "era
do conhecimento". Percebe-se o uso indiscriminado desta
expressão, porém pouco se questiona o que significa este
"conhecimento" e, menos ainda, interroga-se sobre o conhecimento
do conhecimento, e, se o mesmo é necessário e possível. A busca
por estas reflexões e respostas epistemológicas entende-se de
fundamental importância. Esta construção sobre o assunto não é
tarefa fácil, pois pode ser analisado desde diversos olhares e áreas
diferenciadas do conhecimento. Assentam-se os conceitos em
discussão, em Maturana e Varela (2001), Morin (2003, 2010), Leff
(2005, 2010), Santos (2010, 2013), Kuhn (2013). Os principais
resultados esperados referem-se à identificação da necessidade e
possibilidades do conhecimento do conhecimento e suas relações

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com as formas de produção dos saberes; observar como se dá a
produção e a interpretação dos conhecimentos a partir da
complexidade dos paradigmas na atualidade.
3. A CUMPLICIDADE ENTRE TEOLOGIA E LITERATURA
NAS EXPERIÊNCIAS EXISTENCIAIS HUMANAS A PARTIR DO
SAGRADO: Cristianismo, Islamismo e Judaísmo. O que essas três
religiões de amplitude transcontinental têm em comum é o fato de
fundamentarem sua fé em livros, não é à toa que são popularmente
reconhecidas como As religiões do Livro. Em se tratando do
Cristianismo em particular, o histórico de composição de seu Livro
Sagrado – a Bíblia – demonstra que sua primeira fonte de provisões
foi a Literatura oral, a qual, com o posterior acréscimo de histórias
provenientes de outros contextos, colaborou para que a religião
desenvolvesse uma teologia própria e, a partir dela, se espalhasse
pelo mundo. Se, por um lado, a Literatura serviu de referência para
a Teologia, o mesmo ocorreu da parte desta em relação àquela,
tanto que são inúmeras as obras literárias que versam sobre temas
religiosos ou estabelecem relações intertextuais com a Bíblia e seus
personagens. Sendo assim, por meio de uma pesquisa bibliográfica,
parte da premissa de que Teologia e Literatura são realidades
intrínsecas para analisar o aspecto literário da Bíblia a partir da
história de sua composição, assim como para apresentar o método
da analogia estrutural como uma possibilidade para nortear os
estudos comparados entre Teologia e Literatura. Para tanto, são
tomados como referências principais Luiz José Dietrich (2014), com
seu artigo intitulado A formação do Antigo Testamento, e Karl-Josef
Kuschel (1999), com sua obra Os Escritores e as Escrituras: retratos
teológico-literários. Por fim, pretende-se comprovar que a Bíblia é
uma obra literária complexa, que ela se transformou no grande
seleiro de provisões para toda a Literatura ocidental e que o método
da analogia estrutural se demonstra bastante eficiente para os
estudos em Teopoética ao permitir analisar o aspecto teológico
presente em obras literárias, assim como o aspecto literário
presente na Teologia.

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4. ENTRE O MIMÉTICO E O AMIMÉTICO: A CRÍTICA
LITERÁRIA ENQUANTO POSICIONAMENTO DISCURSIVO E
ESCRITURA: Parte do conceito de ‘mimesis’, amplamente
utilizado pela crítica literária, tendo em vista duas qualidades do
texto analisado: o mimético e o amimético. Alguns tratam tal
diferença como algo do “ponto de vista” que se quer projetar sobre
a obra analisada.No entanto, partindo de elementos da análise do
discurso francesa e da desconstrução derridiana, pensamos que, na
verdade, estamos diante não somente um instrumental de estudo
do texto literário, mas, antes disso, de uma maneira de se
representar e significar a própria crítica. A mimesis não constitui
um consenso dentro da crítica literária; ao contrário, mesmo o
conceito como surge na Arte poética de Aristóteles sofre releituras
diferentes. Com o passar dos anos, em trabalhos como o realizado
por Karlheinz Stierle em A ficção, a mimesis começa, de fato, a ser
interpretada como uma representação do real que constrói suas
próprias regras e suas próprias condições de produção. Nesse
sentido, não haveria o amimético como “mentira”, “falsificação”,
“irrealidade”, “fantasia”, entre outros. Stierle (2006) destaca, por
exemplo, que obras como Dom Quixote, A divina comédia e
Decameron reabilitaram a ficção e a mimesis. Ou seja, estas
passaram a ser entendidas como construção do real em suas mais
diversas possibilidades. Nesse sentido, não existe obra
“amimética”, uma vez que todas são produtos de uma
representação, de uma modelação do real. Em outras palavras, toda
obra artístico-literária é uma recriação, não reprodução de ideias
pré-definidas de realidade e verdade. Sendo assim, partindo de
alguns conceitos definidos por Maingueneau (2008), a criação e o
uso da qualidade “amimética” atribuída a alguns textos (como
parábolas, contos de fadas, contos fantásticos etc) materializa, antes
de uma crítica literária, um posicionamento discursivo sujeito às
coerções históricas, dando dinamismo à significação dos
enunciados. Dessa maneira, pela memória dos discursos – o
interdiscurso – entendemos que o uso de tal termo no estudo da
literatura implica em uma relação problemática com a própria ideia

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de verdade. Aliando tal percepção à perspectiva de Derrida (2013),
tal conceito relaciona-se com uma metafísica da presença incapaz
de compreender a língua enquanto escritura. Ou seja, cria-se uma
crítica topológica da arte e, por derivação, da realidade, como se
algumas representações miméticas estivessem fora da “verdade”
(enquanto presença) que “o real” conteria. No entanto, a própria
crítica literária deve ser lida também como escritura, como uma
mímesis cujo sentido se constrói pelo rastro onde sempre se
imprime uma relação com o outro.
5. A LINGUÍSTICA APLICADA E OS GÊNEROS DO
DISCURSO NO FAZER DOCENTE: UMA QUESTÃO DE PRÁTICA
SOCIAL: Traça uma relação entre os estudos de Linguística Aplicada
e a teoria dos Gêneros do Discurso de Mikhail Bakhtin no intuito de
mostrar como ambos podem contribuir para questões relacionadas ao
trabalho docente enquanto prática social. A Linguística Aplicada em
seu caráter interdisciplinar, bem como os gêneros do discurso na
perspectiva da interação interlocutiva podem promover subsídios
teóricos e práticos para que se possa estabelecer uma visão mais crítica
em relação ao fazer docente. Nesse sentido, o trabalho visa também
oferecer uma breve análise dos gestos docentes de professores em
formação no âmbito do Pibid, subprojeto de Inglês para que se possa
ter um panorama de como os estudos de linguagem podem contribuir
para soluções de problemas referentes à prática docente, bem como
fornecer estratégias visando à conscientização dos docentes sobre sua
prática.
6. LITERATURA, CINEMA E PINTURA: UMA ANÁLISE DA
LINGUAGEM HÍBRIDA OSTENTADA NA ADAPTAÇÃO
CINEMATOGRÁFICA DE A MISSA DO GALO. Apresenta
discussão acerca da transposição do texto literário para o cinema
reúne uma série de equívocos e preconceitos perpetuados ao longo
do tempo. Os amantes da literatura, em geral, condenam as
adaptações cinematográficas de textos clássicos, considerando-as
fatores de simplificação e, por vezes, de redução do caráter artístico
concernente à obra original. Do outro lado dessa polêmica, onde se
encontram os escritores e cineastas, já não há espaço para

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questionamentos dessa natureza, haja vista que com o advento do
Cinema Novo, nascido na década de 50 do século XX, o diálogo entre
o discurso fílmico e o literário deixou de lado a ideia de
fidedignidade entre estas duas instâncias artísticas e passou a
contemplar a adaptação sob uma ótica cada vez mais livre. A
constante aproximação com outras artes e a consideração de que o
contexto de produção fílmico não é o mesmo daquele existente na
literatura levou o cinema a repensar o texto literário, não mais se
limitando a reconstruí-lo sob o jugo da exatidão. O texto passa,
então, por um processo de remodelação que permite ao expectador
atribuir sentidos para além daqueles já experimentados quando do
ato da leitura. Essa perspectiva moderna levou o cineasta brasileiro
Roman Stulbach (1947-2013) a representar cinematograficamente o
célebre conto Missa do Galo, do escritor Machado de Assis. O curta-
metragem de título homônimo foi exibido em 1973, exatamente 84
anos após a primeira publicação do conto em livro. A despeito do
lapso temporal, Stulbach dialoga constantemente com o texto que
lhe serviu de inspiração. Contudo, o enredo fílmico leva o
expectador a uma completa dissolução do enigma perpetrado pelo
autor de Dom Casmurro, que deixou em suspenso a confirmação do
adultério da protagonista Conceição, sugerido no decorrer da
trama. Contrariamente ao que se propôs na obra machadiana, o
curta assume um discurso revelador desde a sua introdução,
momento em que surge na tela, em sobreposição aos nomes dos
atores, alguns dos mais famosos quadros pintados por artistas
brasileiros do terceiro quartel do século XIX e início do século XX.
Com essas pinturas, o cineasta presenteia o expectador atento com
o desfecho que será anunciado apenas nos minutos finais do filme,
num claro diálogo entre o cinema moderno, a literatura oitocentista
e as artes plásticas do mesmo período. Este artigo propõe uma
análise do curta-metragem Missa do galo, tendo em vista as
aproximações e distanciamentos com o texto literário machadiano,
bem como intenta ressaltar o hibridismo de linguagens artísticas
realizado por Roman Stulbach.

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7. O LUGAR DE “O SEGREDO DAS TRANÇAS” NOS
ACERVOS DO PNE (2013/2013): Objetiva empreender uma análise
do conto “O segredo das tranças”, presente no livro O segredo das
tranças e outras histórias africanas (2009), de Rogério Andrade
Barbosa (1947), enquanto obra literária caracterizada por temas
ligados à africanidade. Nessa perspectiva, propõe-se a análise e
sistematização, enquanto literatura infanto-juvenil, dessa obra que
faz parte do Acervo do ano de 2009 do PNBE (Programa Nacional
Biblioteca da Escola). Serão considerados nessa apreciação dados
relativos à criação da lei 10.639/03, que resulta de um longo
processo histórico de revisão do currículo escolar brasileiro, ao
incluir a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africanas e
afro-brasileiras. Por fim, pretende-se analisar a representação que
esse título veicula em relação à cultura africana; os aspectos
estruturais e linguísticos das obras, avaliando-a do ponto de vista
estético de um modo geral.
8. TECNOLOGIAS DIGITAIS E NOVAS FORMAS DE
ENSINO: Trata das tecnologias formam parte de nosso cotidiano,
grande parte da sociedade está conectada à internet 24 horas por
dia através de diversos dispositivos. Denominado como
“renascimento digital” (Jenkins, 2001), esse período de transição e
transformação modificou o mundo e as formas de aprender e de
ensinar. Com a inovação tecnológica os alunos têm acesso a grande
quantidade de informações, entretanto, nem sempre sabem como
utilizá-las; assim, o professor do século XXI passa a exercer a função
de mediador e facilitador do conhecimento, filtrando informações
e auxiliando seus alunos a desenvolver seu potencial máximo para
uma aprendizagem significativa. Na era digital, por possuir uma
sociedade hiperconectada, a escola deve repensar também suas
funções, considerando que o conhecimento pode vir do outro lado
dos muros da escola, desmistificando as crenças de que aluno só
aprende na escola. Este artigo busca oferecer uma reflexão sobre as
novas formas de ensino e de aprendizado que vêm surgindo, já que
as salas de aula estão repletas de professores imigrantes digitais
ensinando (e aprendendo com) nativos digitais (Prensky 2010);

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sendo assim, não cabe mais a discussão sobre inserir ou não as
Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) na educação, é
preciso apropriar-se delas para promover uma efetiva inclusão
digital, e assim contribuir, efetivamente, para um ensino atrativo e
de qualidade. Aborda também algumas possibilidades de
implementação do modelo híbrido de ensino, tendência da escola
moderna, que incorpora características essenciais tanto da sala de
aula tradicional quanto do ensino online, discutindo um dos dos
maiores desafios do cenário educativo nacional: a formação de
docentes habilitados a lidar com o novo contexto escolar, (deveria
ser) permeado por tecnologias e recursos digitais.
9. LITERATURA E IMPRENSA: Aborda como a implantação
e o desenvolvimento da imprensa promoveram a comercialização
da literatura e deram início ao processo de profissionalização do
escritor, que passaria a alcançar, assim, uma relativa autonomia na
sua produção, deixando de se submeter à tutela de um mecenas.
Consequentemente, a instauração de um mercado livre e anônimo
para as manifestações artísticas e culturais teria um efeito duplo
sobre o trabalho do escritor, instituindo o que se poderia
denominar como dialética da liberdade e da alienação. Com a
abertura de um mercado dos bens simbólicos, aciona-se todo um
“sistema de condicionamentos” com os quais o escritor deverá
defrontar-se obrigatoriamente no decurso de sua produção
artística. A introdução de novos meios de produção e de
transmissão da cultura não só estimulam formas de escrita
igualmente renovadas, como também contribuem decisivamente
para a formação de um novo modo de raciocínio e, por conseguinte,
de maneiras inovadoras de se relacionar com os produtos artísticos
a serem assimilados. Assim, o exame crítico das produções
culturais deve considerar a complexidade inerente à sua
composição material que, embora usualmente negligenciada,
também se constitui em formas de expressão. Os meios de
divulgação não são simples instrumento de difusão da virtualidade
do texto literário, mas participam determinantemente da
construção da identidade e do universo de sentido das obras

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publicadas. Portanto, o conhecimento das condições de enunciação
vinculadas a cada contexto de produção define consideravelmente
o percurso da leitura, indicando as normas que presidem ao
consumo da obra. Da confluência entre a constituição material e a
componente textual resultam maneiras particulares de fruição do
objeto escrito, determinadas pelos protocolos de leitura, categorias
de leitores e horizontes de expectativas próprios de cada contexto.
Com base nesses pressupostos, este simpósio pretende promover a
interlocução entre estudos críticos sobre as interações dinâmicas
que se articulam entre a criação artística e os fatores de produção
(instituições culturais, meios de comunicação, concepções
ideológicas, práticas mercadológicas etc.). Com o intuito de
propiciar a reflexão teórica e metodológica sobre a pesquisa em
periódicos, planeja-se ressaltar a importância de jornais e revistas
como fontes primárias fundamentais para o estudo da história
literária e como agentes da atividade intelectual e da renovação
estética, política e cultural do país.

Estes textos reunidos visam, portanto, contribuir para uma


nova mirada sobre o trabalho com as linguagens, principalmente
no espaço escolar, proporcionando maneiras diversas de pensar a
Educação e a prática docente.

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22
SABERES DOCENTES NA PERSPECTIVA DE TARDIF,
GAUHIER E PAULO FREIRE: PONTOS E CONTRAPONTOS

Jussara Isabel Stockmanns

INTRODUÇÃO

A sociedade contemporânea apresenta desafios inovadores


para todas as áreas da ciência, como econômica, social, educacional,
política entre outras, realidade complexa e em constante evolução.
A mesma apresenta novos paradigmas da ciência, que atingem
todos os segmentos da sociedade, e este processo de mutação
interfere diretamente na educação como um todo. Por isto
refletiremos sobre os pontos e contrapontos dos saberes docentes
na ótica dos pesquisadores Tardif (2002), Gauthier (2013) e Freire
(2002). Os profissionais professores em suas práticas pedagógicas
são desafiados a este novo enfrentamento, pois todas as crianças e
jovens passarão pela formação destes, e os mesmos tem a
incumbência de formar cidadãos desta e para esta exigente
sociedade do conhecimento. É preciso urgentemente superar a
abordagem conservadora da prática pedagógica na ótica dos
profissionais da educação, bem como das políticas públicas e das
organizações e propostas pedagógicas institucionais. Behrens
(2004) explica que o paradigma inovador, da produção do
conhecimento, denominado também sistêmico ou da
complexidade, voltado para o ser humano como um ser completo,
interligado, com a visão de totalidade, da ética e da cidadania.
Apoiamos nossa reflexão na proposta da UNESCO, que enfatiza a
necessidade de preparar cidadãos para a vida, num contexto de
totalidade, transformando-o para uma sociedade mais justa e
solidária.

23
A partir desta abordagem, constata-se a necessidade de os
profissionais professores refletirem sobre os saberes docentes que
constituem sua prática pedagógica, visando assim formar homens
íntegros, éticos e também mais preparados para enfrentar a
sociedade do conhecimento.
Dessa forma, é necessário identificar os saberes dos profissionais
professores, ou também denominados de saberes docentes, as
habilidades e competências profissionais que necessitam a
especificidade da ação docente. Neste aprofundamento,
apresentamos as concepções e tipologias sobre os saberes da
docência na perspectiva de três autores: Tardif (2002), Gauthier
(2013) e Freire (2002).
Tardif (2013) apresenta o profissional professor ideal como
alguém que conhece sua matéria, sua disciplina, e seu programa,
além de possuir conhecimentos sobre as ciências da educação e da
pedagogia e aquele que desenvolve um saber prático baseado na
sua experiência. Portanto, este aprofundamento e esta reflexão aqui
proposta objetiva reconhecer que a sistematização dos saberes
docentes contribuirão na construção de uma identidade
profissional dos professores, necessária para a formação inicial e
continuada, contribuindo para o enfrentamento dos desafios da
profissionalização docente.
Perante aos desafios da sociedade e às exigências do campo da
educação Tardif (2002) aponta que a questão do saber dos docentes
não está desvinculada das outras dimensões do ensino, nem
mesmo do estudo do trabalho realizado de forma específica, esta
questão é mais ampla voltando também para as situações de dentro
da escola e da sociedade. Tardif aborda (2002, p.11):

No âmbito dos ofícios e profissões, não creio que se possa falar do


saber sem relacioná-lo com os condicionantes e com o contexto do
trabalho: o saber é sempre o saber de alguém que trabalha alguma
coisa no intuito de realizar um objetivo qualquer.

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O contexto atual apresenta um terreno muito propício para
uma reflexão aprofundada da ação docente e também da sua
formação, visto que a própria exigência externa provoca ou
estimula novos estudos, novas práticas pedagógicas. O contexto
tecnológico também fomentou novas perspectivas pedagógicas,
novos olhares sobre o mundo da educação, mundo visto do ângulo
escolar, do desenvolvimento humano e social, dos desafios
curriculares e das políticas públicas, das concepções da pedagogia.
Gauthier (2013, p. 19) “A ciência do ensino é muito mais uma ideia
a ser guardada no velho baú das utopias educativas do que uma
tarefa já concretizada”.
A questão da temática da formação docente e a reflexão sobre a
prática educativa-progressiva, concepção freireana, visando assim a
autonomia do ser educando no contexto em que está inserido,
concepção teórica de Paulo Freire, está alicerçada na ética, no respeito
à dignidade e à própria autonomia do educando. Ao falar sobre
saberes e o respeito ao educando FREIRE (2002 p. 11) afirma:

Como os demais saberes, este demanda do educador um exercício


permanente. É a convivência amorosa com seus alunos e na postura
curiosa e aberta que assume e, ao mesmo tempo, provoca-os a se
assumirem enquanto sujeitos sócios-históricos-culturais do ato de
conhecer, é que ele pode falar do respeito à dignidade e autonomia do
educando.

Portanto, esta pesquisa apresenta uma tentativa de refletir e


aprofundar o pensamento de Tardif, Gauthier e Freire sobre os
saberes dos profissionais professores e/ou saberes docentes,
buscando observar possíveis pontos e contrapontos das teorias,
mesmo diante das diferentes situações, épocas e contextos em que
os autores trabalharam, assim como as possíveis razões para tal.

25
1. OS SABERES DOCENTES E OS DESAFIOS DA SOCIEDADE
DO CONHECIMENTO

No contexto da sociedade do conhecimento, da era da


Tecnologia da Informação e da Comunicação - TICs, o mundo da
educação permeia uma transição paradigmática que exige o
repensar das concepções, das políticas educacionais, da
infraestrutura e das metodologias do campo da educação. Surgem
desafios e paradigmas em relação à formação inicial e continuada
dos docentes, no sentido de formá-los cidadãos, em constante
transformação, e de que busquem formação permanente
conceitual, pedagógica e, principalmente de visão crítica, reflexiva
e de transformação da sua própria realidade. O contexto da
sociedade atual nos mostra que as práticas educacionais das
abordagens paradigmáticas conservadoras, não dão conta da
formação dos nossas crianças e jovens, egressos da sociedade em
constante transformação. Exigências novas estas, requerem
docentes criativos, conscientes, que saibam redimensionar a função
social da escola na sociedade, visando atender uma educação
voltada às necessidades da sociedade.
Behrens (2004, p.10) explica que a escola: “passa a ser
desafiada a oferecer processos pedagógicos que tenham como foco
a aprendizagem nas suas múltiplas visões e dimensões”, e relata
que os professores percebem essa necessidade, porém, alguns
encontram dificuldades para vias de fato efetivarem essa
transformação no processo ensino e aprendizagem, pois encontram
arraigados nas escolas os paradigmas conservadores, derivados de
um pensamento fragmentado e reducionista que foram úteis em
outros tempos da história.
Nos anos 90 a educação passou a ganhar destaque no cenário
das políticas públicas para a educação, como uma possibilidade de
ampliar na área educacional, consequentemente surgiram vários
desafios para a mesma. Um desses desafios foi o crescimento das
demandas educacionais, o qual gerou análises e discussões da
sociedade como um todo, para o atendimento aos diversos

26
problemas educacionais. Um segundo desafio é o avanço do
contexto tecnológico com os processos do neoliberalismo,
ampliando as demandas da diversidade e as demandas sociais
assim como o desafio da educação não formal, um panorama tão
diversificado e desigual de sociedades e movimentos sociais ativos
exigindo constantemente ações no que tange principalmente à
esfera pública e privada. O Documento “Educação, um tesouro a
descobrir”, escrito por Delors (1998) como relatório para a
UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século
XXI, afirma que,

As tecnologias da informação e da comunicação poderão constituir,


de imediato, para todos, um verdadeiro meio de abertura aos campos
da educação não formal, tornando-se um dos vetores privilegiados
de uma sociedade educativa, na qual os diferentes tempos de
aprendizagem sejam repensados radicalmente. Em particular, o
desenvolvimento destas tecnologias, cujo domínio permite um
enriquecimento contínuo dos saberes, deveria levar a reconsiderar o
lugar e a função dos sistemas educativos, na perspectiva de uma
educação prolongada pela vida afora. A comunicação e a troca de
saberes já não serão apenas um dos polos principais do crescimento
das atividades humanas, mas um fator de desenvolvimento pessoal,
no contexto de novos modos de vida social. (DELORS, 1998, p. 66)

Dentro do contexto mundial, por conta das necessidades


humanas e exigências sociais, se faz mister desenvolver o potencial
humano tanto pela educação formal e não formal. Atualmente com
as novas tecnologias, os ambientes reais e virtuais de aprendizagem
estão postos à sociedade tanto na educação formal e não formal.
Neste processo, a educação passa a ganhar ênfase no Brasil. A
Educação é convidada a transpassar os muros dos ambientes
escolares, para os espaços das famílias, do trabalho, da sociedade
civil organizada e do lazer. Caracteriza-se assim, um novo conceito
da educação, que aborda processos educativos fora dos espaços
escolares, em processos organizativos da sociedade civil,
abrangendo movimentos sociais ou processos educacionais

27
vinculando escola e a comunidade, à organizações sociais e não
governamentais.
Neste contexto, subtende-se que a prática docente
contemporânea é desafiada a percorrer um caminho nunca
percorrido em seus aspectos das concepções educacionais, políticas
e principalmente a encontrar novos processos didático
metodológicos frente às abordagens do novo paradigma,
apresentando um novo significado à ação docente. Segundo
Behrens (2004), a transformação da sociedade está atrelada à opção
paradigmática que cada docente assume em sua prática. Esse
posicionamento vem de encontro ao o que a EYNG (2007, p.115)
afirma:

A ação docente implica a mobilização do tripé professor-aluno-


conhecimento, sendo que este se organiza em função da visão de
homem mundo na qual se apoia. Esses elementos se modificam em
virtude do contexto sócio, histórico e geográfico originando uma
teoria pedagógica. Cada teoria ou paradigma possibilitará a
formação de um tipo de homem (aspecto antropológico) e um tipo
de finalidade (aspecto teológico).

Ao realizar a abordagem sobre a ação docente, Behrens (2004,


p. 11) afirma que “os processos de superação exigem reaproximar
as múltiplas visões que se desdobraram e faz-se necessário retornar
a interligar-se”. Ainda destaca Behrens (2005) que a educação se
responsabiliza por um papel relevante na transição paradigmática,
pois a busca do pensamento complexo ou conhecimento científico
implica buscar caminhos e processos de reaproximação dos
campos do saber. Segundo Behrens (2004, p. 12) “o mundo precisa
ser entendido como um complicado tecido de eventos no qual
conexões de diferentes tipos se alternam, se sobrepõem ou se
combinam na textura do todo”.
Estas são apenas algumas questões que nos remetem a refletir
sobre a necessidade de educar para a cidadania que exige uma
prática pedagógica dos docentes onde priorize a aprendizagem do

28
educando num sentido genérico e específico, abrangendo todas as
dimensões do ser humano. A educação como desafio e proposta
frente à sociedade do conhecimento, nas palavras de Behrens (2004,
p. 13), “precisa interconectar as partes com o todo, exige a
agregação de múltiplas visões que se interpenetram entre si”. Estes
aspectos são corroborados por educadores como Alcantara e
Behrens (2000, apud BEHRENS, 2004, p. 12), que afirmam:

Ao alertar sobre as múltiplas visões que devem ser consideradas nas


práticas pedagógicas, apresentando-as como sendo a: visão de
totalidade; visão de rede, de teia e de conexão; visão de sistemas
integrados; visão de relatividade e movimento; visão de cidadania e
ética; visão coletiva.

Perante aos desafios da sociedade e as exigências do campo da


educação Tardif (2002) aponta que a questão do saber dos docentes
não está desvinculada das outras dimensões do ensino, nem
mesmo do estudo do trabalho realizado de forma específica, mas a
questão é mais ampla voltando também para as situações de dentro
da escola e da sociedade. Tardif aborda (2002, p.11)

No âmbito dos ofícios e profissões, não creio que se possa falar do


saber sem relacioná-lo com os condicionantes e com o contexto do
trabalho: o saber é sempre o saber de alguém que trabalha alguma
coisa no intuito de realizar um objetivo qualquer. Além disso, o saber
não é uma coisa que flutua no espaço: o saber dos professores é o
saber deles e está relacionado com a pessoa e a identidade deles, com
a sua experiência de vida e com a sua história profissional, com as
suas relações com os alunos em sala de aula e com os outros atores
escolares na escola, etc.

Desta forma, segundo o autor é necessário escapar de dois


perigos, ou do mentalismo ou do sociologismo. O mentalismo
segundo Tardif (2002, p.11) “consiste em reduzir o saber,
exclusivamente ou principalmente, a processos mentais cujo
suporte é a atividade cognitiva dos indivíduos”. E o sociologismo

29
segundo Tardif (2002, p. 14) “Tende a eliminar totalmente a
contribuição dos atores da construção concreta do saber, tratando-
o como uma produção social em si mesmo e por si mesmo,
independente do trabalho dos professores”.
O contexto atual apresenta um terreno muito propício para
uma reflexão aprofundada da ação docente e também da sua
formação, visto que a própria exigência externa provoca ou
estimula novos estudos, novas práticas pedagógicas. A partir de
vários questionamentos podemos analisar e refletir a temática dos
saberes docentes. Segundo Gauthier, umas das reflexões que
permearam os estudos desta temática é “Se existe um repertório de
conhecimentos próprios ao ensino, que repertório é esse? De onde
vem e como é construído? Quais são os seus limites e quais as
implicações inerentes à sua utilização?” (GAUTHIER, 2013, p.19).
É a partir destes e outros questionamentos que permearemos a
nossa reflexão e discussão.
A questão da temática da formação docente ao lado da
reflexão sobre a prática educativa-progressiva, visando a
autonomia do ser educando no contexto em que está inserido foi o
olhar de Freire (2002) quando discute, reflete e escreve sobre a
“Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática
educativa”. A Pedagogia deve estar fundada na ética, no respeito à
dignidade e à própria autonomia do educando, ao falar sobre
saberes e o respeito ao educando Freire (2002, p. 11) afirma:

Como os demais saberes, este demanda do educador um exercício


permanente. É a convivência amorosa com seus alunos e na postura
curiosa e aberta que assume e, ao mesmo tempo, provoca-os a se
assumirem enquanto sujeitos sócios-históricos-culturais do ato de
conhecer, é que ele pode falar do respeito à dignidade e autonomia
do educando. A competência técnico científica e o rigor de que o
professor não deve abrir mão do desenvolvimento do seu trabalho,
não são incompatíveis com a amorosidade necessária às relações
educativas. É preciso aprender a ser coerente. De nada adianta o
discurso competente se a ação pedagógica é impermeável à
mudanças.

30
Já para Pimenta (1999) ao abordar a temática da formação dos
professores, faz referência à questão da construção da identidade
profissional, como um processo de construção do sujeito
historicamente situado e que ela se constrói a partir da significação
social da profissão, bem como da avaliação constante dos
significados sociais da profissão, da análise das tradições e da
readequação de práticas consagradas culturalmente e que
permanecem significativas. Também a autora considera a
mobilização dos ‘saberes dos professores’, como ‘saberes da
docência’, como sendo importante para mediar o processo de
construção da identidade profissional dos professores. Entretanto,
as pesquisas mostram que os professores utilizam/mobilizam um
vasto repertório de conhecimentos próprios ao organizar o seu
trabalho pedagógico no seu cotidiano de sala de aula.
Percebe-se que os saberes dos professores adquiridos durante
a formação inicial (componentes curriculares nos cursos de
graduação), irão ser reformulados e se reconstruindo no dia-a-dia
da sala de aula levando em consideração os saberes curriculares e
a experiência, bem como de outros saberes científicos da formação
continuada que vai adquirindo no decorrer de seu
desenvolvimento profissional. Saviani (1996, p.147) afirma sobre
esses saberes que configuram o trabalho do educador:

O ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo


singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente
pelo conjunto dos homens, constitui o trabalho educativo que é
próprio do educador, afirma que sendo o processo educativo um
fenômeno complexo, os saberes nele envolvidos também o são
(Saviani, 1996, p.147).

Esta afirmação de Saviani (1996) contribui para o


posicionamento de que o professor precisa ter uma concepção de
educação, uma visão de mundo, e que essas concepções

31
determinam os tipos de saberes que deverão ser articuladas no
contexto de sala de aula.
Diante dessas reflexões, é necessário discutir no contexto
também escolar sobre os condicionantes que envolvem a própria
prática docente, visando, no entanto, compreender como os
docentes articulam com a complexidade e os desafios dos diversos
saberes docentes que envolvem suas atividades, buscando
identificar quais os aspectos que alicerçam hoje a profissão docente
tão desprestigiada pelos dirigentes e desvalorizada pela sociedade,
e, no entanto, indispensável ao seu crescimento e
desenvolvimento.

2. CONCEPÇÕES E TIPOLOGIAS DOS SABERES DOCENTES

É necessário considerar que um dos aspectos que os estudos


realizados sobre os saberes docentes é a constituição do trabalho
docente, seus aspectos histórico individual e profissional, os
aspectos teórico-metodológicos da prática do professor, as
concepções pedagógicas que envolvem o conhecimento
profissional adquirido, entre outros. Os estudos apontam que o
profissional docente adquire e desenvolve conhecimentos, a partir
de sua prática e no confronto com as condições físicas, humanas,
pedagógicas, sociais da sua profissão. Nesta perspectiva o respeito
pela temática de ‘saberes docentes’ tem alavancado as discussões
nos processos iniciais da formação docente, bem como entre os
profissionais docentes, atribuindo assim um processo de formação
continuada a partir do desenvolvimento e das ações formativas
com abordagem acadêmica, envolvendo dimensões profissionais,
pessoais e organizacionais dos profissionais da educação.
O Documento da UNESCO, que sistematiza um relatório sobre
a Comissão Internacional da Educação para o século XXI (DELORS
et al, 1998, p. 152), afirma que:

A Comissão atribui à educação um papel ambicioso no


desenvolvimento dos indivíduos e das sociedades (pois) encaramos

32
o próximo século como um tempo em que, por toda a parte,
indivíduos e poderes públicos considerarão a busca do
conhecimento, não apenas como meio para alcançar um fim, mas
como fim em si mesmo. (Por isso) todos vão ser encorajados a
aproveitar as ocasiões de aprender que se lhes oferecem ao longo da
vida e terão possibilidade de o fazer.

Nesta ótica, dos profissionais da educação, dos professores


será exigido muito, pois “a contribuição dos professores é crucial
para preparar os jovens, não só para encarar o futuro com
confiança, mas para construí-lo de maneira determinada e
responsável” (DELORS et al, 1998, p. 152). O Relatório também
reconhece que “a importância do papel do professor enquanto
agente de mudança, favorecendo a compreensão mútua e a
tolerância, nunca foi tão patente como hoje em dia (e que) este
papel será ainda mais decisivo no século XXI” (DELORS et al, 1998,
p. 152). Sob este enfoque, tanto a sociedade civil em geral e as
instituições de ensino, enfatizam o papel e o trabalho do professor,
bem como, uma excessiva responsabilidade no sucesso ou no
fracasso da educação nas mãos do professor. Nem sempre se
questionam as condições e possibilidades de efetivarem as funções
a eles atribuídas, muitas vezes atribuições de difícil consecução e,
nem sempre estão bem definidas nos processos políticos
educacionais.
A partir das exigências e da comprovação de que o professor
tem um papel importante e central a desempenhar na educação,
surgem aqui alguns questionamentos, duas em aspectos gerais:
para se ensinar, o que é necessário saber? Que saberes devem ser
construídos/aprendidos pelos docentes em seu processo de
formação inicial e continuada? E uma, com aspecto específico: que
saberes são necessários para os docentes efetivarem práticas
avaliativas que auxiliam na identificação das dificuldades, avanços
e possibilidades para a reconstrução das aprendizagens dos
alunos? São questionamentos que devem conduzir a reflexão sobre
os saberes profissionais dos docentes.

33
Denominados de saberes dos professores ou saberes docentes têm
sido atualmente objeto de reflexões e discussão por muitos autores
internacionais e nacionais, onde destacamos Tardif (2002), Freire
(2002), Saviani (1996), Gauthier (2013), Pimenta (1999), Campelo
(2001), Behrens (2005), autores estes que têm refletido sobre a
importância da formação, desenvolvimento e atuação dos
docentes. O espaço de pesquisa sobre esta temática é amplo e tem
desenvolvido nos últimos vinte anos.
Entende-se que o professor é um profissional que detém
saberes de variadas origens sobre a educação, adquiridas na sua
trajetória acadêmica, na formação inicial e também com a
experiência profissional. Os ‘saberes profissionais’ adquiridos com
a prática e os desafios enfrentados no campo educacional, orienta a
prática pedagógica do professor na multiplicidade própria do
trabalho dos profissionais, que atuam precisando agir muitas vezes
de forma diferenciada frente aos desafios encontrados diariamente,
mobilizando diferentes teorias pedagógicas, metodologias de
ensino e habilidades humanas. Por isso, o ‘saber profissional’ dos
docentes é constituído não por um ‘saber específico’, mas por
vários ‘saberes’ de diferentes origens, aí incluídos, também, o
‘saber-fazer’ e o saber da experiência.
Conforme Campelo (2001) são utilizadas diversas
nomenclaturas para conceituar esses saberes, e, para ele os estudos
sobre essa temática contribuem para:
a) construir e confirmar o reconhecimento da identidade do
profissional docente; e,
b) formar professores qualificados para desenvolverem um
ensino que continuamente seja mais coerente com as finalidades da
educação socialmente estabelecidos.
Desta forma, destacamos que são necessárias algumas
características para manifestar como os saberes dos docentes são
refletidos nas discussões e nas pesquisas, pois sob expressões como
savoir e ou connaissance em francês, knowledge em inglês, são
conhecimentos ou saberes em português. Atualmente diversos
estudos abordando esta temática e explorando a partir de outras

34
categorias, tais como concepções, crenças, competências,
representações, pensamentos e acreditamos que é importante
apresentar algumas reflexões sobre a expressão ‘saber’.
Esta pluridimensionalidade do ‘saber profissional’ dos
docentes é apresentada por Tardif e Gauthier (1996, p. 11),
conceituando “o saber docente é um saber composto de vários
saberes oriundos de fontes diferentes e produzidos em contextos
institucionais e profissionais variados”. É importante perguntar:
por que o ‘saber profissional’ dos professores, os saberes docentes,
são construídos de diferentes ‘saberes’? Percebemos que em suas
atividades pedagógicas diárias, os docentes planejam, executam e
avaliam o planejamento didático, escolhem as metodologias que
julgam adequadas, elaboram as tarefas para os discentes,
administram o cotidiano da sala de aula, mantendo a ordem e a
disciplina e constroem os instrumentos de avaliação. Podemos
refletir que os professores tratam da gestão da área de
conhecimento e da gestão do cotidiano da sala de aula e, por isso,
necessitam utilizar diferentes ‘saberes’ necessários à efetivação dos
objetivos previamente definidos.
Observando a diversidade conceitual e metodológica das
pesquisas sobre saberes docentes, apresentaremos as concepções e
tipologias na perspectiva de três autores: Maurice Tardif, Clermon
Gauthier, e Paulo Freire. Nesta reflexão se propõe pôr em evidência
as contribuições destes estudos para a formação inicial e
continuada de professores, sem a intensão de esgotar o assunto, e,
sim fomentar novos questionamentos e desafios da prática docente.

A) Maurice Tardif, o saber docente como formação


profissional:

A reflexão aqui proposta por Tardif nos propõe a pensar sobre


alguns questionamentos que ele mesmo nos apresenta: ‘Quais são
os saberes que servem de base ao ofício de professor? Qual é a
natureza destes saberes? Trata-se de conhecimentos técnicos, de
saberes da ação, de habilidades de natureza artesã não adquiridas

35
através de uma longa experiência de trabalho? Estes saberes são de
caráter estritamente cognitivo ou de caráter discursivo? Trata-se de
conhecimentos racionais, baseados em argumentos, ou se apoiam
em crenças implícitas, em valores e, em última análise, na
subjetividade dos professores? Qual é o papel e o peso dos saberes
dos professores em relação aos outros conhecimentos que marcam
a atividade educativa e o mundo escolar, como os conhecimentos
científicos e universitários que servem de base às matérias
escolares, os conhecimentos culturais, os conhecimentos
incorporados nos programas escolares, etc.’? Dentre estas, realiza
outros questionamentos, proponho um momento de reflexão.
Em 2002 foi lançado por Maurice Tardif a obra intitulada
“Saberes Docentes e Formação Profissional”, discorre a respeito dos
saberes docentes bem como sua relação com a formação
profissional e a prática da docência. A obra reúne oito ensaios de
Tardif que foram publicados desde 1991 e apresentam diferentes
pesquisas, etapas e reflexões. Em sua obra destaca que o saber
docente é um “saber plural, formado de diversos saberes
provenientes das instituições de formação, da formação
profissional, dos currículos e da prática cotidiana” (TARDIF, 2002,
p.54). A partir da ideia de pluralidade, a autora discute que a
presença de uma classificação dos saberes docentes, ela existe
associada às diferentes fontes de aquisição, às suas origens e às
relações que os professores estabelecem entre os seus saberes. A
compreensão de saberes de um professor para Tardif (2002, p. 16)
expressa:

Os saberes de um professor são uma realidade social materializada


através de uma formação, de programas, de práticas coletivas, de
disciplinas escolares, de uma pedagogia institucionalizada, etc., e são
também, ao mesmo tempo, os saberes dele. Como se pode, então
pensar essa articulação entre ‘o que sabe um atoar em atividade’ e o
fato de o seu próprio saber individual ser, ao mesmo tempo, um
componente de um gigantesco processo social de escolarização que
afeta milhões de indivíduos e envolve milhares de outros

36
trabalhadores que realizam uma tarefa mais ou menos semelhante à
sua?

Salientamos que Tardif (2002) situa o ‘saber docente’ a partir


de seis fios condutores: a) o primeiro diz respeito ao saber e trabalho
– onde o saber dos professores deve ser compreendido em íntima
relação com o seu trabalho na sala de aula e escola; b) o segundo fio
condutor é a diversidade do saber – onde o saber dos professores é
plural, heterogêneo, porque envolvem, no exercício de seu
trabalho, conhecimentos e um saber-fazer diverso, provenientes de
fontes variadas e também de naturezas diferentes; c) o terceiro fio
condutor é a temporalidade do saber – pois o saber dos professores é
adquirido no contexto de uma história de vida e de uma carreira
profissional, isto significa que ensinar supõe aprender a ensinar, ou
seja, aprender a dominar progressivamente os saberes necessários
à realização do trabalho docente; d) o quarto fio condutor é a
experiência de trabalho enquanto fundamento do saber – a experiência
do trabalho em si gera um saber do trabalho sobre saberes, ou
melhor, espaço de reflexividade, retomada, reprodução, reiteração
daquilo que se sabe naquilo que se sabe fazer, a fim de produzir
sua própria prática profissional; e) o quinto fio condutor é saberes
humanos a respeito de seres humanos – é a ideia de trabalho interativo,
ou melhor, um trabalho onde o trabalhador se relaciona com o seu
objeto de trabalho fundamentalmente através da interação
humana. As características da interação humana marcam os
saberes dos atores que atuam juntos, professores, alunos numa sala
de aula, atores na gestão escolar, a hierarquização de poderes, está
ligada a interrogações relativas à valores, ética e às tecnologias da
iteração; f) o sexto e último fio condutor são os saberes e a formação
de professores - este é decorrente aos anteriores e propõem a
necessidade de repensar, em tempo real, a formação para o
magistério, levando em conta os saberes dos professores e as
realidades específicas de seu trabalho cotidiano.

37
A relação dos saberes não se restringe a uma função de
transmitir conhecimentos já constituídos, Tardif (2002, p. 36)
afirma:

Entretanto a relação dos docentes com os saberes não se reduz a uma


função de transmissão dos conhecimentos já constituídos. Sua prática
integra diferentes saberes, com os quais o corpo docente mantém
diferentes relações. Pode-se definir o saber docente como um saber
plural, formado pelo amálgama, mais ou menos coerente, de saberes
oriundos da formação profissional e de saberes disciplinares,
curriculares e experienciais.

Tardif (2002) no texto acima destaca quatro diferentes tipos de


saberes que implicam na atividade docente: a) os saberes da formação
profissional (das ciências da educação e da ideologia pedagógica); b)
os saberes disciplinares; c) os saberes curriculares; d) os saberes
experienciais. Destacaremos as concepções de cada saber no
quadro a seguir:

Quadro I – Descrição do pluralismo dos saberes docentes segundo Tardif


(2002):
SABER CONCEITUAÇÃO
Os saberes da formação Conjunto de saberes transmitidos pelas
profissional (das ciências da instituições de formação de professores
educação e da ideologia (escolas normais ou faculdades de
pedagógica) ciências da educação). O professor e o
ensino constituem objetos de saber para
as ciências humanas e para as ciências
da educação. A prática docente não é
apenas um objeto de saber das ciências
da educação, ela é também uma
atividade que mobiliza diversos saberes
que podem ser chamados de
pedagógicos. Os saberes pedagógicos
articulam-se com as ciências da
educação. Os saberes pedagógicos
apresentam-se como doutrinas ou

38
concepções provenientes de reflexões
sobre a prática educativa no sentido
amplo do termo, reflexões racionais e
normativas que conduzem a sistemas
mais ou menos coerentes de
representação e de orientação da
atividade educativa. Constituem-se
também num conjunto de saberes da
formação profissional ou
conhecimentos pedagógicos
relacionados às técnicas e métodos de
ensino (saber-fazer), legitimados
cientificamente e igualmente
transmitidos aos professores ao longo
do seu processo de formação.
Os saberes disciplinares Os saberes disciplinares integram-se
igualmente à prática docente através da
formação (inicial e continuada) dos
professores nas diversas disciplinas
oferecidas pela universidade. São
saberes que correspondem aos diversos
campos do conhecimento, aos saberes
de que dispõe a nossa sociedade, tais
como se encontram hoje integrados nas
universidades, sob a forma de
disciplinas. Os saberes das disciplinas
emergem da tradição cultural e dos
grupos sociais produtores de saberes.
Os saberes curriculares Ao longo de suas carreiras, os
professores devem também apropriar-
se de saberes que podemos chamar de
curriculares. Estes saberes
correspondem aos discursos, objetivos,
conteúdos e métodos a partir dos quais
a instituição escolar categoriza e
apresenta os saberes sociais por ela
definidos e selecionados como modelos
da cultura erudita e de formação para a

39
cultura erudita. Apresentam-se
concretamente sob a forma de
programas escolares (objetivos,
conteúdos, métodos, avaliações) que os
professores devem aprender a aplicar.
Os saberes experienciais São os saberes que resultam do próprio
exercício da atividade profissional
docente, os professores no exercício de
suas funções e na prática de sua
profissão, desenvolvem saberes
específicos, baseados em seu trabalho
cotidiano e no conhecimento de seu
meio. Esses saberes brotam da
experiência e são por ela validados. Eles
incorporam-se à experiência individual
e coletiva sob a forma de habitus e de
habilidades, de saber-fazer e de saber-
ser. Podemos chamá-los de saberes
experienciais ou práticos.

As múltiplas articulações entre os saberes e a prática docente


fazem dos professores um grupo social e profissional que, para se
auto afirmarem como profissionais precisam existir e dominar os
saberes, assim como, interagir e mobilizar tais saberes, sendo
condição inata para a prática. Para Tardif (2002, p. 61):

Os saberes profissionais dos professores parecem ser, portanto,


plurais, compósitos, heterogêneos, pois trazem à tona, no próprio
exercício do trabalho, conhecimentos e manifestações do saber-
fazer e do saber-ser bastante diversificados e provenientes de fontes
variadas, as quais podemos supor também que sejam de natureza
diferente.

Tardif (2002) propõe um modelo tipológico para identificar e


classificar os saberes dos professores. Para dar conta do pluralismo
do saber profissional, ele relaciona os saberes dos professores com
os lugares nos quais os profissionais atuam, com as organizações

40
que os formam ou nas quais trabalham, com os seus próprios
instrumentos do trabalho, com a sua experiência de trabalho e,
coloca em evidência as fontes de aquisição do saber docente com os
modos de integração no trabalho docente. Vejamos o quadro a
seguir:

Quadro 2 – Os saberes dos professores (TARDIF, 2002, p.63)


Saberes dos Fontes sociais de Modos de integração
professores aquisição no trabalho docente
Saberes pessoais dos A família, o ambiente Pela história de vida e
professores de vida, a educação no pela socialização
sentido lato, etc. primária.
Saberes A escola primária e Pela formação e pela
provenientes da secundária, os estudos socialização pré-
formação escolar pós-secundários não profissionais.
anterior especializados, etc.
Saberes Os estabelecimentos de Pela formação e pela
provenientes da formação de socialização
formação professores, os profissional nas
profissional para o estágios, os cursos de instituições de
magistério reciclagem, etc. formação de
professores.
Saberes A utilização das Pela utilização das
provenientes dos “ferramentas” dos “ferramentas” de
programas e livros professores: trabalho, sua
didáticos usados no programas, livros adaptação às tarefas.
trabalho. didáticos, cadernos de
exercícios, fichas, etc.
Saberes A prática do ofício na Pela prática do
provenientes de sua escola e na sala de aula, trabalho e pela
própria experiência a experiência dos socialização
na profissão, na sala pares, etc. profissional.
de aula e na escola.

Neste quadro apresentam-se vários fenômenos para Tardif


(2002). Um deles é que todos os saberes nele identificados são
realmente utilizados pelos professores no contexto de sua profissão

41
e da sala de aula. As pesquisas confirmaram que os professores
utilizam constantemente seus conhecimentos pessoais e um saber-
fazer personalizado, trabalham com programas e materiais
didáticos, utilizam-se de saberes as disciplinas, e confiam em sua
experiência profissional. No decorrer de sua obra Tardif enfatiza as
características do saber experiencial e esboça uma ‘epistemologia
da prática docente’, embasada do trabalho que tem como objeto o
ser humano e cujo o processo de realização foi fundamentalmente
interativo. Apresento as características do saber experiencial segundo
Tardif (2002) no quadro abaixo:

Quadro 3 – Características do saber experiencial (Tardif 2002, p. 109 ss)


Características do saber Definição
experiencial
É um saber ligado às É através da realização dessas funções que
funções dos professores ele é mobilizado, modelado, adquirido, tal
como mostram as rotinas, em especial.
É um saber prático Sua utilização depende de sua adequação
às funções, problemas e situações
peculiares ao trabalho.
É um saber interativo Mobilizado e modelado no âmbito de
interações entre o professor e os outros
atores educativos. Por exemplo, ele está
impregnado de normatividade e de
afetividade e recorre a procedimentos de
interpretação de situações rápidas,
instáveis, complexas, etc.
É um saber sincrético e Repousa não sobre um repertório de
plural conhecimentos unificados e coerente, mas
sobre vários conhecimentos e sobre um
saber-fazer que são mobilizados e
utilizados em função dos contextos
variáveis e contingentes da prática
profissional.
É um saber heterogêneo Mobiliza conhecimentos e formas de saber-
fazer diferentes, adquiridos a partir de
fontes diversas, em lugares variados, em

42
momentos diferentes: história de vida,
carreira, experiência de trabalho.
É um saber complexo e Impregna tanto os comportamentos do
não-analítico ator, suas regras e seus hábitos, quanto sua
consciência discursiva.
É um saber aberto, Integra experiências novas, conhecimentos
poroso, permeável adquiridos ao longo do caminho e um
saber-fazer que se remodela em função das
mudanças na prática, nas situações de
trabalho.
É um saber O professor constitui um elemento
personalizado fundamental do processo de trabalho, seu
saber experiencial é personalizado, traz a
marca do trabalhador, aproximando-se
assim do conhecimento do artista ou do
artesão.
É um saber existencial Está ligado não somente à experiência de
trabalho, mas também à história de vida do
professor, ao que ele foi e ao que é, o que
significa que está incorporado à própria
vivência do professor, à sua identidade, ao
seu agir, a sua maneira de ser.
É um saber O saber é experienciado por ser
experienciado experimentado no trabalho, ao mesmo
tempo em que modela a identidade
daquele que trabalha. Este saber não deve
ser confundido com a ideia de
experimentação, nem como ideia de
experiencial, pois o saber experienciado
tem sua natureza especialmente no
trabalho na sala de aula com os alunos.
É um saber temporal, Se transforma e se constrói no âmbito de
evolutivo e dinâmico uma carreira, de uma história de vida
profissional, e implica uma socialização e
uma aprendizagem da profissão.
É um saber social Este saber é construído pelo ator em
interação com diversas fontes sociais de
conhecimento, de competência, de saber-

43
ensinar provenientes da cultura
circundante, da organização escolar, dos
atores educativos, das universidades, etc.
Enquanto saber social, ele leva o ator a
posicionar-se diante dos outros
conhecimentos e a hierarquizá-los em
função de seu trabalho.

As características do saber experiencial, abordado por Tardif


(2002) refletem que o modo de integração dos saberes à prática
profissional dos docentes, na maioria das vezes acontece por
processos de interação social. Os saberes dos professores não são
saberes caracterizados, unicamente por uma construção individual,
acadêmica e sistematizada e, sim os saberes profissionais têm
origens diversas e só podem ser compreendidos se considerados
em todos os seus aspectos. A docência é compreendida, por Tardif
(2002) como uma forma particular de trabalho sobre o humano, ou
melhor dizendo, uma atividade em que o trabalhador se dedica ao
seu objeto de trabalho, que é justamente um outro ser humano, no
modo fundamental da interação humana.
Portanto, a prática pedagógica e os saberes docentes estão
intrinsecamente relacionados, uma vez que é no exercício da
prática docente, uma atividade qualificada, que os conhecimentos
são construídos, reconstruídos e mobilizados pelo professor a
partir de uma ação dinâmica e criativa, ao ensinar. Durante este
processo da ação docente, os professores mobilizam seus saberes
práticos e teóricos.

B) Clermon Gauthier, o ofício construído de saberes:

As reflexões que pretendemos abordar sobre a compreensão


do oficio docente e seus saberes descrita por Clermon Gauthier
(1998) e seus colaboradores pois, realizam estudos das pesquisas
sobre os conhecimentos peculiares ao ensino, conhecimentos da
profissionalização e teorias da ciência da Pedagogia. O desafio de

44
Gauthier (2013, p. 28) permeia a profissionalização no campo do
ensino, como afirma:

O desafio da profissionalização, com o qual, daqui para a frente,


temos de nos defrontar no campo do ensino, obriga-nos a evitar esses
dois erros que são o de um ofício sem saberes e o de saberes sem
ofício. É claro que basear o ensino no conhecimento do conteúdo, no
‘bom senso’, na experiência, na intuição, no talento ou numa vasta
cultura não favorece de modo algum a formalização de saberes e de
habilidades específicos ao exercício do magistério.

O setor da educação, de forma universal está passando por


vários problemas, ou melhor, por complexidades, por um vazio
complexo e real, visto que os saberes próprios ao ensino existem, o
ofício docente é universal, os docentes se auto desafiam para as
mudanças, que todos precisamos nos desafiar a fazer de forma
coletiva, segundo o autor, os saberes isolados corresponderão a
formalização de um ofício que não existe.
A obra “Por uma Teoria da Pedagogia, Pesquisas
Contemporâneas sobre o Saber Docente” de Clermon Gauthier e
seus colaboradores, é fruto de quinze anos de reflexão, pesquisas e
estudos sobre saberes docentes, visto que o ensino é um ofício
universal. Esta obra tem originado num contexto de trabalho na
Província de Quebec, no Canadá, porém as preocupações que
abordam transcendem os limites geográficos. Para o autor a
situação da atualidade apresenta-se propícia para uma reflexão,
discussões e pesquisas profundas a respeito da formação dos
professores e da profissão docente.
Gauthier (2013), compreende os saberes docentes de forma
plural quando aborda que o ensino é como a mobilização de vários
saberes que formam uma espécie de reservatório, pelo qual o
professor se abastece dando sustentação nas exigências e situações
concretas de ensino. Gauthier (2013, p. 28) afirma:

De fato, é muito mais pertinente conceber o ensino como a


mobilização de vários saberes que formam uma espécie de

45
reservatório no qual o professor se abastece para responder a
exigências específicas de sua situação concreta de ensino.

Ao abordar esta afirmação complementa com o quadro a


seguir:

Quadro 4 – O reservatório de saberes (GAUTHIER, 2013, p. 29)


SABERES SABERES SABERE SABERES SABERES SABERES
S
Disciplinare Curriculare Das Da Experiências Da ação
s s ciências tradição pedagógica
da pedagógic (A (O repertorio
(A matéria) (o educação a jurisprudênci de
programa) (O uso) a particular) conhecimento
s do ensino ou
o
jurisprudênci
a pública
validada)

A partir deste quadro faremos a análise por saberes


necessários ao ensino segundo Gauthier (2013), para perceber os
sentidos e as formas de como os professores os mobilizam.
 O saber disciplinar – refere-se aos saberes produzidos ao
longo da história, pelos pesquisadores e cientistas nas diversas
disciplinas científicas, ao conhecimento por ela já produzidos a
respeito do mundo. Para Gauthier (2013, p.29) “ensinar exige um
conhecimento do conteúdo a ser transmitido, visto que,
evidentemente, não se pode ensinar algo cujo conteúdo não se
domine”. Reflete que o saber disciplinar não pode sozinho
representar “O” saber docente, ele faz parte do reservatório de
saberes disponíveis.
 O saber curricular – refere-se aos saberes previstos nos
programas curriculares das nações e os determinados pelas
instituições de ensino. O professor necessita conhecer o programa,
que constitui um outro saber de seu reservatório de conhecimento.
Segundo Gauthier (2013, p. 31) “É de fato, o programa que lhe serve
de guia para planejar, para avaliar”. O autor ainda nos questiona:
“Conhecer o programa significa conhecer o programa oficial, ou o

46
que foi transformado pelas editoras? E que transformação do
programa o próprio professor efetua?”.
 O saber das ciências da educação – refere-se aos saberes dos
fundamentos da educação, aos que dão base ao profissional
docente, como conhecimentos sobre a gestão escolar, o
desenvolvimento humano, a psicologia do desenvolvimento, a
sociologia da educação, a filosofia da educação, dentre outros.
Todos os professores adquiriram estes saberes na sua formação
inicial ou em seu trabalho, estes conhecimentos profissionais,
embora não ajudem diretamente ao ensinar, mas informam o
docente a respeito de várias facetas do cotidiano escolar em seu
ofício ou uma compreensão da educação em geral. Gauthier, (2013,
p.31) afirma:

É um saber profissional específico que não está diretamente


relacionado com a ação pedagógica, mas serve de pano de fundo
tanto para ele quanto para os outros membros de sua categoria
socializados da mesma maneira. Esse tipo de saber permeia a
maneira de o professor existir profissionalmente.

Resumindo, é um conjunto de saberes que dizem respeito a


escola e que é desconhecido por outros cidadãos comuns e por
outras profissões.
 O saber da tradição pedagógica – Refere-se ao processo
histórico da instituição escolar, instalada a partir do século XVII. A
partir deste período estrutura-se uma nova forma de fazer a
‘escola’. O mestre deixa de dar aulas no singular, de ensinar em seu
escritório e passa a praticar o ensino de forma simultânea,
dirigindo-se aos alunos ao mesmo tempo. Esta forma de ministrar
as aulas se cristalizou naquilo que chamamos de ‘tradição
pedagógica’. Gauthier (2013, p.32) afirma: “Essa tradição
pedagógica é o saber dar aulas que transparece numa espécie de
intervalo da consciência. Nesta perspectiva, cada um tem um
representação da escola que o determina antes mesmo de ter
frequentado um curso de formação”.

47
 O saber experiencial – Refere-se aos saberes adquiridos pela
experiência e o hábito no decorrer da profissão docente. Esta
experiência muitas vezes torna-se então a regra a ser repetida e,
assume muitas vezes uma forma de atividade ou rotina. Gauthier
(2013, p. 32) afirma: “Aprender por meio de suas próprias
experiências significa viver um momento particular, momento esse
diferente de tudo o que se encontra habitualmente, sendo
registrado como tal em nosso repertório de saberes”.
 O saber da ação pedagógica – Refere-se aos saberes da prática
pedagógica realizada em sala de aula pelos professores e, a partir
do momento que se torna público e testada, torna-se ciência. No
campo da educação, os saberes da ação pedagógica legitimamente
pesquisada são atualmente o tipo de saber menos desenvolvido no
reservatório de saberes dos docentes e, ao mesmo tempo, o mais
necessário à profissionalização do ensino. Segundo Gauthier (2013,
p. 34) “A profissionalização do ensino tem, desse modo, não
somente uma dimensão epistemológica, no que diz respeito à
natureza dos saberes envolvidos, mas também uma dimensão
política, no que se refere ao êxito de um grupo social em fazer com
que a população aceite a exclusividade dos saberes e das práticas
que ele detém”.
Gauthier (1998) reconhece a existência de um repertório de
conhecimentos que refletem um olhar significativo e ressignificado
para o docente, que passa ser compreendido como um,

[...] profissional, ou seja, como aquele que, munido de saberes e


confrontando a uma situação complexa que resiste à simples
aplicação dos saberes para resolver a situação, deve deliberar, julgar
e decidir com relação à ação a ser adotada, ao gesto a ser feito ou à
palavra a ser pronunciada antes, durante e após o ato pedagógico.
(GAUTHIER, 1998, p. 331).

Porém, determinar um repertório de conhecimentos


específicos ao ensino, mediante a comprovação científica dos
saberes da ação pedagógica, constitui atualmente um desafio e um

48
problema crucial, que merece preocupação e atenção dos
professores e das instituições de ensino.

C) Paulo Freire, os conhecimentos e exigências do ensinar.

Abordaremos a temática dos saberes docentes a partir da ótica


de Paulo Freire (1996), descrita na obra “Pedagogia da Autonomia:
Saberes Necessários à Prática Educativa”, que objetiva refletir sobre a
formação docente em paralelo com a prática educativo progressiva
em benefício da autonomia do ser dos educandos. Esta obra
ultrapassou os limites geográficos nacionais e, concedeu-lhe uma
projeção internacional, o mesmo iniciou o seu trabalho com a
educação de jovens e adultos com abordagens reflexivas,
inovadoras, colocando em questão a inconclusão do ser humano e
de sua inserção num contínuo movimento de procura, de
curiosidade ingênua e a crítica.
Freire (2002, p. 15) reinsiste em dizer: “Em que formar é muito
mais do que puramente treinar o educando no desempenho de
destrezas...” Nesta visão a proposta de reflexão do autor está
voltada à críticas permanentes ao neoliberalismo, ao cinismo desta
ideologia e a persistência a sua ideologia progressiva voltada ao
sonho e à utopia.
Freire (2002) apresenta estratégias didáticas pedagógicas que
sejam profundamente significativas para os educandos, visando
motivá-los, torná-los conscientes de sua condição humana,
enquanto ser social, cidadão, ser com dignidade, ser com deveres e
direitos, tendo em sua concepção educativa como o ato de educar
sendo uma ação humanizadora e conscientizadora. Para Freire
(2002, p.25) ao abordar a relação dos sujeitos da educação, afirma:

Se, na experiência de minha formação, que deve ser permanente,


começo por aceitar que o formador é o sujeito em relação a quem me
considero o objeto, que ele é o sujeito que me forma e eu, o objeto por
ele formado, me considero como um paciente que recebe os

49
conhecimentos-conteúdos-acumulados pelo sujeito que sabe e que
são a mim transferidos.

A educação para Freire (2002) é instrumento, ferramenta que


objetiva tomada de consciência do ser indivíduo, para transformar-
se em ser social, cidadão, inserido numa coletividade e, ser crítico.
O indivíduo sem a educação aliena-se a sua própria condição
humana, inconsciente de sua realidade e de seus problemas e, se
sente incapaz de sonhar, vislumbrar suas potencialidades e de
solucionar conflitos inevitáveis ao ser humano. Desta forma,
entendemos os conceitos freireanos na ótica da libertação e da
autonomia, pois ao educar o sujeito, o indivíduo se libertaria das
amarraduras, das manipulações sociais e psicológicas, pois as quais
as impedem de compreender o seu próprio papel no contexto social
e tornar-se autônomo, capaz de buscar soluções às questões em que
encontrará ao longo de sua própria vida. O ato de educar para
Freire (2002) não é um processo individual, mas o resultado de uma
interação de sujeitos, onde todos os envolvidos aprendem
(professores e alunos), tendo como condição os meios sociais
utilizados para viabilizar esta ação de aprendizagem (currículos,
material didático, instalações físicas, etc.). Este processo vai além
da assimilação de conteúdos, pois exige uma reinterpretação da
realidade e do contexto social onde estamos inseridos. Freire (2002,
p. 25) afirma:

É neste sentido que ensinar não é transferir conhecimentos,


conteúdos nem formar, ação pela qual um sujeito criador dá forma,
estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado. Não há docência
sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das
diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um
do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina
ao aprender. Quem ensina ensina alguma coisa a alguém.

Desta forma, o profissional professor aparece no universo


freireano como um sujeito de ligação entre os sujeitos e o

50
conhecimento, o responsável pela relação entre os saberes
curriculares já institucionalizados e os aprendizes, tornando-os
significativos para a realidade dos alunos, a fim de haver a devida
a aprendizagem. Assim o professor despe-se da vestimenta de
detentor dos saberes e assume a condição de mediador interativo
com os sujeitos aprendizes, os alunos. Neste sentido para Freire
(2002, p.68): ¨Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si
mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”.
Paulo Freire (2002) em sua obra estabelece que o professor
necessita de algumas habilidades e características específicas ao
exercer o papel de docência como intermediário entre o
conhecimento curricular e o conhecimento a ser apreendido de
forma significativa. Em sua obra, aponta características específicas
do docente no ato de ensinar, vejamos no quadro abaixo:

Quadro 5 – Saberes necessários a prática educativa progressiva (2002) a


partir da obra Pedagogia da Autonomia
Saberes Exigências do ensino
Não há docência sem Ensinar exige rigorosidade metódica;
discência Ensinar exige pesquisa;
Ensinar exige respeito aos saberes dos
educandos;
Ensinar exige criticidade;
Ensinar exige estética e ética;
Ensinar exige corporificação das palavras
pelo exemplo;
Ensinar exige risco, aceitação do novo e
rejeição a qualquer forma de discriminação;
Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática;
Ensinar exige o reconhecimento e a assunção
da identidade cultural.
Ensinar não é Ensinar exige consciência do inacabamento;
transferir Ensinar exige o reconhecimento de ser
conhecimento condicionado;
Ensinar exige respeito à autonomia do ser do
educando;
Ensinar exige bom-senso;

51
Ensinar exige humildade, tolerância e luta em
defesa dos direitos dos educadores;
Ensinar exige apreensão da realidade;
Ensinar exige alegria e esperança;
Ensinar exige a convicção de que a mudança
é possível;
Ensinar exige curiosidade.
Ensinar é uma Ensinar exige segurança, competência
especificidade profissional e generosidade;
humana Ensinar exige comprometimento;
Ensinar exige compreender que a educação é
uma forma de intervenção no mundo;
Ensinar exige liberdade e autoridade;
Ensinar exige tomada consciente de decisões;
Ensinar exige saber escutar;
Ensinar exige reconhecer que a educação é
ideológica;
Ensinar exige disponibilidade para o diálogo;
Ensinar exige querer bem aos educandos.

A partir da obra de Freire (2002) Pedagogia da Autonomia:


saberes necessários à prática educativa, percebemos que estrutura sua
reflexão sobre os saberes docentes em três grandes blocos das quais
apresenta os saberes docentes. O profissional professor em suas
reflexões, além de ser um possuidor de saberes sobre a disciplina
específica, deve ter habilidade didático pedagógicas, pois necessita
interagir os conhecimentos com outros professores, visando a
construção dos saberes pelo sujeito. Para Freire (2002),
independentemente da opção política e ideológica do docente estes
saberes descritos em sua obra são demandados pela prática
educativa em si mesma, numa ótica da formação docente e da
prática educativo-crítica. Vejamos a seguir os três blocos conforme
compreensão de Freire (2002):
I - Não há docência sem discência – Neste bloco Freire (2002)
aborda nove exigências do ensinar e, que é necessário uma reflexão
crítica sobre a nossa prática docente e sobre os conteúdos

52
abordados no contexto de sala de aula, afirma Freire (2002, p.24):
“A reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência da relação
Teoria/Prática sem o qual a teoria pode ir virando blábláblá e a
prática, ativismo”. Como o ensinar inexiste sem aprender e vice-
versa, para Freire (2002, p.26) “Aprender precedeu ensinar ou, em
outras palavras ensinar se diluía na experiência realmente
fundante de aprender”, e continua, “Quando vivemos a
autenticidade exigida pela prática de ensinar-aprender
participamos de uma experiência total, diretiva, política,
ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética e ética, em que a
boniteza deve achar-se de mãos dadas com a decência e com a
seriedade”. Nesta ótica, Freire (2002) apresenta nove exigências do
ensinar, como segue:
a) Ensinar exige rigorosidade metódica, como condição que
educadores e educandos sejam criadores, instigadores,
inquietos, rigorosamente curiosos, humildes e persistentes nos
processos de ensino e aprendizagem. Para Freire (2002, p. 29)
“Só assim podemos falar realmente de saber ensinado, em que
o objeto ensinado é apreendido na sua razão de ser e, portanto,
aprendido pelos educandos”.
b) Ensinar exige pesquisa, pois não há ensino sem pesquisa e,
pesquisa sem ensino. O docente necessita ser curioso e também
estimular a curiosidade dos discentes, isto se faz pesquisando,
para Freire (2002, p.32) afirma: “Pesquiso para constatar,
constatando, intervenho, intervindo educo e me educo”. E
ainda continua “A curiosidade ingênua, de que resulta
indiscutivelmente um certo saber, não importa que
metodicamente desrigoroso, é a que caracteriza o senso
comum.”
c) Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos, colocando a
escola e o professor não só respeitando os saberes dos alunos,
mas discutindo com os alunos a razão de ser dos saberes
discentes em relação como o ensino dos conteúdos. Freire
(2002, p. 34) afirma: “A escola tem que ensinar os conteúdos,

53
transferi-los aos alunos. Aprendidos, estes operam por si
mesmos”.
d) Ensinar exige criticidade, pois para Freire (2002, p. 34) “na
diferença e na distância entre ingenuidade e criticidade, entre
o saber de pura experiência feito e o que resulta dos
procedimentos metodicamente rigorosos, uma ruptura, mas
uma superação”. A curiosidade ingênua está ligada ao senso
comum e, a curiosidade com criticidade se forma a partir do
rigor metodológico e com objeto cognitivo se torna curiosidade
epistemológica.
e) Ensinar exige estética e ética, pois não é possível pensar em
seres humanos sem ética, por isso Freire (2002, p. 37), afirma:
“é por isso que transformar a experiência educativa em puro
treinamento técnico é amesquinhar o que há de
fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu
caráter formador”.
f) Ensinar exige a corporeificação das palavras, exige coerência
entre o ser, o pensar e o falar. Freire (2002, p.38) reflete: “quem
pensa certo está cansado de saber que as palavras a que falta a
corporeidade do exemplo pouco ou quase nada valem. Pensar
certo é fazer certo”.
g) Ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de
discriminação, pois faz parte do pensar certo a disponibilidade
para o risco. O novo não pode ser negado e, sim acolhido de
forma reflexiva. Freire (2002, p. 42) afirma: “A tarefa coerente
do educador que pensa certo é, exercendo como ser humano a
irrecusável prática de interligar, desafiar o educando com
quem se comunica e a quem comunica, produzir sua
compreensão do que vem sendo comunicado”.
h) Ensinar exige reflexão critica sobre a prática, pois “a prática
docente crítica, implicante do pensar certo, envolve o
movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre
o fazer” (FREIRE, 2002, p. 43).
i) Ensinar exige o reconhecimento e a assunção da identidade cultural,
do contexto educacional onde estamos inseridos, reconhecer a

54
partir dos sujeitos e desenvolver potenciais reflexivos e críticos
entre os educandos para que eles mesmos potencializem o seu
contexto social. Freire (2002, p.50) afirma que “o que importa
na formação docente, não é a repetição mecânica do gesto, este
ou aquele, mas a compreensão do valor dos sentimentos, das
emoções, do desejo, da insegurança a ser superada pela
segurança”.

II - Ensinar não é transferir conhecimento: Neste bloco Freire


(2002) aborda nove exigências do ensinar possibilitando os
aspectos humanos, psicológicos, pedagógicos, didáticos para que o
professor progressista compreenda, segundo Freire (2002, p.52)
que “Saber que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as
possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção”.
Aprofunda sobre as seguintes exigências do saber ensinar:
a) Ensinar exige consciência do inacabamento, somos seres em
constante transformação e, Freire (2002, p.58) afirma: “Já não
foi possível existir sem assumir o direito e o dever de optar, de
decidir, de lutar, de fazer política. E tudo isto nos traz de novo
a imperiosidade da prática formadora, de natureza
eminentemente ética”.
b) Ensinar exige o reconhecimento de ser condicionado, e, Freire
(2002, 59), sabiamente nos faz entender: “Gosto de ser gente
porque, inacabado, sei que sou um ser condicionado, mas
consciente do inacabamento, sei que posso ir mais além dele”.
Na experiência pedagógica, todos os envolvidos docentes e
discentes convivemos com o inacabado e, portanto reconhecer
o ser condicionado que somos na prática educativo e na
formação docente, pois somos inconclusos assumidos, estamos
em permanente formação.
c) Ensinar exige respeito à autonomia do ser do educando, e que para
Freire (2002,66) “o respeito à autonomia e à dignidade de cada
um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não
conceder uns aos outros”. Por isto esta atitude ética não
compactua com o autoritarismo, e valores frutos desta

55
exigência é o diálogo, respeito ao inacabado, a autonomia e
identidade do aluno.
d) Ensinar exige bom senso, neste sentido segundo Freire (2002, p.
69) “quanto mais pomos em prática de forma metódica a nossa
capacidade de indagar, de comparar, de duvidar, de aferir,
tanto mais eficazmente curiosos nos podemos tornar e mais
críticos se pode fazer o nosso bom senso”. Por isto se faz
necessário a aprendizagem da avaliação crítica da nossa
prática e o respeito ao educando.
e) Ensinar exige humildade, tolerância e luta em defesa dos direitos dos
educadores, esta é uma prática que todos educandos e
educadores necessitamos buscar permanentemente. Freire
(2002, p. 74) afirma: “A luta dos professores em defesa de seus
direitos e de sua dignidade deve ser entendida como um
momento importante de sua prática docente, enquanto prática
e ética. Não é algo que vem fora da atividade docente, mas algo
que dela faz parte”.
f) Ensinar exige apreensão da realidade, um saber docente
fundamental à experiência educativa, é necessário conhecer as
diferentes condições e dimensões do mundo da nossa prática.
Freire (2002, p. 76) afirma: A capacidade de aprender, não
apenas para nos adaptar, mas sobretudo para transformar a
realidade, para nela intervir, recriando-a, fala de nossa
educabilidade a um nível distinto do nível do adestramento
dos outros animais ou do cultivo das plantas”. Somos
humanos e essencialmente capazes de apreender.
g) Ensinar exige alegria e esperança, são virtudes necessárias a
pratica educativa, com o intuito de criar um clima ou atmosfera
no espaço pedagógico favorável para o sonho, para a utopia.
Segundo Freire (2002, p. 80) “Há uma relação entre a alegria
necessária à atividade educativa e a esperança. A esperança de
que professor e alunos juntos podemos aprender, ensinar,
inquietar-nos, produzir e juntos igualmente resistir aos
obstáculos da nossa alegria”.

56
h) Ensinar exige a convicção de que a mudança é possível,
principalmente em realidade desumanas, pois o ‘mundo não
é’ e, sim ‘o mundo está sendo’, amanhã ele poderá ser
diferente. Para Freire (2002, p.94) “programados para aprender
e impossibilitados de viver sem a referência de um amanhã,
onde quer que haja mulheres e homens há sempre o que fazer,
há sempre o que ensinar, há sempre o que aprender”.
i) Ensinar exige curiosidade, exige uma prática pedagógica
questionadora. Somente é curioso quem pergunta e, por isto
nós educadores necessitamos aprender a acolher e
potencializar as conhecimentos científicos, bem como
aprender novos conhecimentos didáticos metodológicos que
auxiliem os alunos a desenvolver a curiosidade. Freire (2002,
p. 95), apresenta este saber docente: “como professor deve
saber que sem a curiosidade que me move, que me inquieta,
que me insere na busca, não aprendo e nem ensino”.

III – Ensinar é uma especificidade humana, neste bloco, Paulo


Freire também apresenta nove exigências do ensinar. Vejamos:
a) Ensinar exige segurança, competência profissional e generosidade,
visto que a segurança gera as outras. Todo profissional
responsável, ético e sério assume primeiramente sua formação
inicial e continuada e, esta gera a segurança. Segundo Freire
(2002, p. 102) “a segurança com que a autoridade docente se
move implica outra, a que se funda na sua competência
profissional. Nenhuma autoridade docente se exerce ausente
desta competência”.
b) Ensinar exige comprometimento, e Freire (2002, p.108) é claro
quando fala: “Outro saber necessário ao professor é de que não
é possível exercer a atividade do magistério como se nada
ocorresse conosco. Como impossível seria sairmos na chuva,
expostos totalmente a ela, sem defesas, e não nos molhar”.
c) Ensinar exige compreender que a educação é uma forma de
intervenção no mundo, e vai muito além do que transmitirmos
conteúdos. Para tanto, Freire (2002, p. 110) afirma: “outro saber

57
de que não posso duvidar um momento sequer da minha
prática educativo-crítica é o de que, como experiência,
especialmente humana, a educação é uma forma de
intervenção no mundo”. E continua, “intervenção que além do
conhecimento dos conteúdos bem ou mal ensinados e/ou
aprendidos implica tanto o esforço de reprodução da ideologia
dominante quanto o seu desmascaramento”.
d) Ensinar exige liberdade e autoridade, características desafiadoras
para o professor efetivar no contexto da sala de aula, pois se
defronta com o aspecto dos limites dos educandos. É o docente
no seu processo de ensinar pela experiência que vai efetivando
ajustes no processo, segundo Freire (2002, p. 118) afirma: “O
grande problema que se coloca ao educador ou à educadora de
opção democrática é como trabalhar no sentido de fazer
possível que a necessidade do limite seja assumida eticamente
pela liberdade”. E continua: “Quanto mais criticamente a
liberdade assuma o limite necessário tanto mais autoridade
tem ela, eticamente falando, para continuar lutando em seu
nome”.
e) Ensinar exige tomada consciente de decisões, fator este
primordial nos saberes docentes críticos, progressistas, pois a
‘educação é uma especificidade humana, como ato de
intervenção no mundo’. Freire (2002, p. 123) reforça isto
quando afirma: “Quando falo em educação como intervenção
me refiro tanto à que aspira a mudanças radicais na sociedade,
no campo da economia, das relações humanas, da
propriedade, do direito ao trabalho, à terra, à educação, à
saúde, quanto `que, pelo contrário, reaccionariamente
pretende imobilizar a história e manter a ordem injusta”.
f) Ensinar exige saber escutar, este é um saber, um conhecimento,
uma competência humana dos que na humildade e na atitude
de acolhimento de democracia sabem fazer. Freire (2002, 127)
afirma: “Se, na verdade, o sonho que nos anima é democrático
e solidário, não é falando aos outros, de cima para baixo,
sobretudo, como se fôssemos os portadores da verdade a ser

58
transmitida aos demais, que aprendemos a escutar, mas é
escutando que aprendemos a falar com eles”.
g) Ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica, pois a ação
educativa é uma ação política que envolve ideologias e, Freire
(2002, p. 141) sabiamente afirma: “Saber fundamental à prática
educativa do professor ou da professora é o que diz respeito à
força, às vezes maior do que pensamos, da ideologia”.
h) Ensinar exige disponibilidade para o diálogo, saber inerente a
ação docente, pois é necessário que o professor aproveite todas
as oportunidades de testemunhar aos alunos a segurança com
que se comporta ao discutir um tema ou analisando um fato,
dentro do contexto de sala de aula. Freire (2002, p. 153) afirma:
“A experiência da abertura como experiência fundante do ser
inacabado que terminou por se saber inacabado. Seria
impossível saber-se inacabado e não se abrir ao mundo e aos
outros à procura de explicação, de resposta a múltiplas
perguntas. O fechamento ao mundo e aos outros se torna
transgressão ao impulso natural da incompletude”.
i) Ensinar exige querer bem aos educandos, um saber que envolve
as relações humanas, a afetividade. Para Freire (2002,159) “Esta
abertura ao querer bem não significa, na verdade, que, porque
professor me obrigo a querer bem a todos os alunos de maneira
igual. Significa, de fato, que a afetividade não se assusta.
Significa esta abertura ao querer bem a maneira que tenho de
autenticamente selar o meu compromisso com os educandos,
numa prática específica do ser humano”.
Assim, pode-se perceber que os saberes do docente freireano
devem apresentar vários princípios, valores e/ou especificidades,
como o professor necessita de um saber profissional de base da sua
área, saberes estes disciplinares, segundo Tardif (2002); saberes da
ciência da educação e da ideologia pedagógica, saberes políticos,
éticos; saberes curriculares saberes estes de base e iniciais do
trabalho docente, da organização, do planejamento, das
metodologias, dos processos avaliativos da prática docente; e os
saberes experienciais que estão constantemente desafiando a ação

59
docente para a humanização e a democratização. Reforço que para
Freire (2002, p.26):

Aprender precedeu ensinar ou, em outras palavras ensinar se diluía


na experiência realmente fundante de aprender. Quando vivemos a
autenticidade exigida pela prática de ensinar-aprender participamos
de uma experiência total, diretiva, politica, ideológica, gnosiológica,
pedagógica, estética e ética, em que a boniteza deve achar-se de mãos
dadas com a decência e com a seriedade.

Portanto, para Freire se faz necessário que o professor e a


professora possuam algumas competências específicas que o
habilitem a exercer a prática pedagógica como ¨ponte” entre o
conhecimento curricular e o conhecimento humano. É evidente que
a função do professor freireano é aprofundar a ciência e de auxiliar
o aprendiz a refletir sobre sua realidade agregando criticamente
novos valores e a transformação social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de uma sociedade complexa, dinâmica e em constante


evolução, é percebido que as práticas pedagógicas dos docentes
devem ser inovadoras. É essencial um processo de formação
continuada, novos paradigmas institucionais, uma crescente
conscientização e novos saberes dos profissionais professores
inserindo práticas pedagógicas inovadoras no intuito de formar
novas gerações com autonomia, conscientes, reflexivos, partícipes
da sociedade, construtores de sua própria vida e sua própria
história.
Nesse contexto, a presente pesquisa sobre saberes docentes,
possibilitou aprofundar a temática e não se esgotou o assunto,
permitindo assim ao leitor buscar novas fontes de
aprofundamento. A elaboração de uma ciência para o ensino, tendo
como referencial os saberes docentes ou também chamados por
alguns autores os saberes profissionais dos professores, mobilizam

60
diversos contextos do trabalho docente em nossa realidade
cotidiana, para tal necessitamos mobilizar, refletir sobre as práticas
docentes sim, mas também sobre as estruturas dos projetos
pedagógicos dos cursos de licenciaturas, também sobre as políticas
públicas para a formação docente. Tardif (2002) ao analisar os
problemas e os resultados gerados das reformas de ensino,
apresenta alguns desafios decorrentes da falta de recursos
financeiros, falta de investimentos públicos e, deficiência das
parcerias entre educação básica e ensino superior. Também
argumenta que os saberes curriculares dos cursos de formação de
professores, continuam organizados em estruturas e concepções
tradicionais de ensino, bem como por estruturas disciplinares e não
por lógicas profissionais.
Percebe-se que os estudos efetivados por Gauthier (2013) e
suas preocupações não se limitam à compreensão, a classificação, a
identificação e a caracterização dos saberes frente a
profissionalização docente. O objeto de estudo principal é perceber
que a profissionalização da docência está estreitamente relacionada
à legitimidade e a institucionalização dos saberes docentes.
Avançar nos estudos de um repertório de conhecimentos sobre a
pedagogia, sobre os processos de ensino, possibilitam enfrentar
dois obstáculos: de um ofício sem saberes e de saberes sem ofício.
Analisar as produções referentes aos saberes docentes, a partir
de perspectivas conceituais e tipológicas de diferentes autores,
permitiu a observação e a análise de que é preciso garantir os
processos de formação inicial e continuada e que aconteçam em
ambientes institucionais de trabalho e, também em instituições de
ensino superior, para garantir a formação científica, cultural,
pedagógica e disciplinar, bem como estejam vinculadas à formação
prática, a experienciais, consolidando assim uma teoria de ensino.
Também é válida a menção de que esta constatação pode ser
vista como mais um ponto positivo a representar a atualidade do
pensamento freireano. Esperamos que este trabalho seja um
contributo à compreensão dos processos de formação e atuação dos
professores, além de mostrar a força e a modernidade do

61
pensamento de Paulo Freire. O autor (2002) propôs uma educação
humanizadora, centrada no diálogo, reduzindo o sofrimento
humano, típico para as camadas da população necessitada,
gerando conflitos, incompreensões desta ciência, num determinado
período da história. Também é válida a menção de que esta
constatação pode ser vista como mais um ponto positivo a
representar a atualidade do pensamento freireano. Esperamos que
este trabalho seja um contributo à compreensão dos processos de
formação e atuação dos professores, além de mostrar a força e a
modernidade do pensamento de Paulo Freire.
Portanto, tanto Freire quanto Tardif e Gauthier são, nomes de
alta consideração na área da Educação, autores que possuem obras
consagradas e que contribuem para o avanço da ciência da
educação. Autores estes, frutos de contextos sociais, geográficos,
históricos diferentes, e foram levados a centrar seu trabalho com
visões e perspectivas diferentes, mas que em muitas vezes não são
divergentes.

REFERÊNCIAS

BEHRENS, M. A. O papel do professor no paradigma da


complexidade: formar e formar-se para a cidadania. In: TORRES,
P. L.; ENS, R. T.; FILIPAK, S. T. Os caminhos da gestão e da docência
na educação. Curitiba: Champagnat, 2004.
BEHRENS, M. A. Paradigma emergente e a prática pedagógica.
Petrópolis: Vozes, 2005.
CAMPELO, Maria Estela Costa H. Alfabetizar crianças – um ofício,
múltiplos saberes. 2001. Tese (Doutorado em Educação) –
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal.
DELORS, Jacques et al. EDUCAÇÃO: um tesouro a descobrir. 2. ed.
São Paulo: Cortez, 1998.
EYNG, A.M. Currículo escolar. Curitiba: IBEPEX, 2007.

62
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática
educativa. 23ª. edição. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
GAUTHIER, C. Por uma teoria da Pedagogia: pesquisas
contemporâneas sobre o saber docente. Ijuí: Unijuí, 1998.
GAUTHIER, C. Por uma teoria da Pedagogia: pesquisas
contemporâneas sobre o saber docente. 3ª Edição. Ijuí: Unijuí,
2013.
PIMENTA, Selma Garrido. Formação de professores: identidade e
saberes da docência. São Paulo: Cortez, 1999.
SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica. 8. ed. Campinas: Autores
associados, 2003.
SAVIANI, Demerval. Os saberes implicados na formação do educador.
In: BICUDO, Maria Aparecida; SILVA JUNIOR, Celestino Alves
(Orgs.). Formação do educador: dever do Estado, tarefa da
Universidade. São Paulo: Unesp, 1996.
TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 2. ed.
Petrópolis: Vozes, 2002.
TARDIF. Maurice. LESSARD, Claude. O Trabalho Docente -
Elementos para uma Teoria da Docência Como Profissão de
Interações Humanas, Petrópolis – RJ: Editora Vozes, 2013.
TARDIF, Maurice; GAUTHIER, Clermont. O saber profissional dos
professores –fundamentos e epistemologia. In: SEMINÁRIO DE
PESQUISA SOBRE O SABER DOCENTE, 1996, Fortaleza. Anais...
Fortaleza: UFCE, 1996.

63
64
O CONHECIMENTO DO CONHECIMENTO:
DA NECESSIDADE ÀS POSSIBILIDADES

Roberto Carlos Bianchi

1. INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é refletir sobre o conhecimento do


conhecimento observando a necessidade e as possibilidades do
conhecimento, a partir da construção histórica-social-cultural.
Certamente, constitui-se um desafio, pois debater e questionar-se
sobre conhecimento é, por si só, um exercício de descoberta
epistemológica.
Desde que viemos ao mundo, e mesmo antes do nascimento,
já havíamos embarcado nesta viagem de conhecimento. A vida
humana tem sentido pela busca do conhecimento em suas mais
diversas formas ou manifestações. Conhecer é um desejo
intrínseco, natural, que potencialmente vai desenvolvendo-se.
Conhecer é instinto!
No entanto, perguntamo-nos se podemos realmente conhecer.
O que conhecemos quando conhecemos? Se o que conhecemos
corresponde ou não ao que percebemos? Onde e como "armazena-
se" o que conhecemos? E assim, poderíamos estender a lista
interminável de perguntas. Porém, poucas vezes nos questionamos
sobre o conhecimento do conhecimento. Seria isso possível e
necessário? É neste sentido que, este artigo pretende refletir,
reforçando a importância da temática no âmbito acadêmico, porém
não exclusivamente.
De acordo com Maturana e Varela (2001), a vida constitui-se
num processo de aprendizagem, e portanto, de conhecimento,
entendendo a necessidade de não só constatar que conhecemos,

65
mas como conhecemos, num processo constante de inter-relações
entre mundo/seres, entre sociedade/natureza.
Nesse desafio de "conhecer o conhecer" não cabem atitudes
passivas que entendam o conhecimento como representacionismo,
como culturalmente construiu-se pelo paradigma epistemológico
predominante, privilegiando e prestigiando o conhecimento
científico, como se fosse a única forma de conhecimento. É preciso
cultivar atitudes de abertura na busca e valorização de outras
formas de conhecimento e de outros tipos de conhecimentos, como
por exemplo, os conhecimentos dos povos autóctones, indígenas,
religiosos, filosóficos, etc. referendando as "epistemologias do sul"1,
propostas por Santos (2010) e a "ecologia de saberes2", proposta por
Leff (2010) e Santos (2013).
Nesta perspectiva, conduz-se à discussão e reflexão sobre o
modo de produzir conhecimento na atualidade, sobretudo, no que
se refere aos modelos ocidentais. Questiona-se sobre as razões que
levaram, nos últimos séculos, ao predomínio de uma epistemologia
que deixou na obscuridade a reflexão epistemológica, assim como,
os contextos culturais e políticos da produção e reprodução do
conhecimento. Para Morin (2003), nos encontramos num período
de crise paradigmática, e portanto, temos urgência em re-pensar as
formas de produzir e reproduzir conhecimento.
Este artigo pretende refletir a partir de duas ideias. Primeiro,
que não há epistemologias neutras, e as que se autodenominam
assim, são as menos neutras, pois para Maturana e Varela (2001),
não é possível incidir nos conhecimentos de forma abstrata, mas
através dos seres e dos impactos nas práticas sociais destes seres,
revelando assim a segunda ideia. O capitalismo além de uma

1 Refere-se aos conhecimentos produzidos pelos povos periféricos aos socialmente


considerados produtores de conhecimento. Segundo Santos, (1995, p. 508), " uma
epistemologia do sul assenta-se em três orientações: aprender que existe o Sul;
aprender a ir para o Sul; aprender a partir e com o Sul".
2 "as ecologias de saberes são conjuntos de práticas que promovem uma nova

convivência ativa de saberes no pressuposto de que todos eles, incluindo o saber


científico, se podem enriquecer nesse diálogo... (SANTOS, 2013, p. 472)

66
"proposta econômica" é também, uma construção epistemológica
que tem proporcionado desigualdades e alienação.
Neste sentido, de acordo com Santos (2010), busca-se a
valorização de uma proposta epistemológica que proporcione
diálogo horizontal entre os conhecimentos, e ao mesmo tempo que
persegue novos conhecimentos, com o intuito de conhecer e re-
conhecer o conhecimento do conhecimento, assim como, sua
necessidade e possibilidades.
O conhecimento do conhecimento nos leva a refletir sobre as
causas da busca do mesmo. Através do conhecimento, os
indivíduos representam-se socialmente e buscam significar sua
existência. Assim, metaforicamente, pode-se afirmar que o
conhecimento é alimento existencial dos indivíduos na
identificação e entendimento na/da coletividade.
Apresenta-se no próximo item a metodologia aplicada na
execução deste artigo.

2. METODOLOGIA

A abordagem metodológica deste texto é de cunho qualitativa,


pretendendo analisar a necessidade e possibilidades do
conhecimento do conhecimento. A justificativa da escolha da
temática dá-se a partir das discussões e observações durante a
experiência profissional como professor do Ensino Médio e
Superior e na caminhada acadêmica do autor, mas sobretudo à
curiosidade epistemológica natural, que leva ao constante
questionamento, afinal como reza a sabedoria popular "o que move
o mundo são as perguntas e não as respostas". Assim, o
conhecimento como a vida, é movimento, ou seja, nos movemos em
todos os sentidos, a partir das novas perguntas, dos novos
questionamentos, num exercício continuo de observação-busca-
aprendizagem-reflexão-ensino-dúvidas, e assim, novamente
iniciar todo o processo.
Entende-se, neste sentido, a necessidade de refletir sobre o
conhecimento do conhecimento a partir das proposições e

67
limitações do espaço de um artigo acadêmico. O intuito não é
"esgotar" a temática, o que seria impossível, mas sobretudo, re-
pensar as formas de conhecimento e da necessidade de uma
postura de re-conhecimento do mundo e do conhecimento, de
acordo com Leff (2005). Busca-se rever os caminhos trilhados pelos
indivíduos, através do conhecimento, da relação e interação com o
mundo e as possibilidades de re-avaliar as relações entre
sociedade/natureza e o papel que o conhecimento exerce nesta
relação.
Apresentar-se-á inicialmente abordagem conceitual referente
à concepção de conhecimento. Assentam-se os conceitos em
discussão, em Maturana e Varela (2001), Morin (2003, 2005), Leff
(2005, 2010), Santos (2010, 2013), Kuhn (2013). Concluir-se-á
referenciando os principais resultados obtidos na reflexão sobre a
temática do conhecimento do conhecimento.

3. COMPLEXIDADE EPISTEMOLÓGICA E PARADIGMA

Pretende-se nesta discussão inicial apresentar os conceitos de


complexidades referenciados por Morin (2003, 2010) e o conceito
de paradigma proposto por Kuhn (2013).
Morin (2003, p. 20), defende a ideia de uma "cabeça bem-feita
e não uma cabeça cheia", na qual se percebe a necessidade de
aprender a lidar com o acúmulo de informações e a possível
superficialidade dos conhecimentos.
O paradigma dominante estabelece-se a partir das certezas
que o método nos proporciona, porém, para Freire, (2011, p. 15),
"...só na verdade, quem pensa certo, mesmo que, às vezes, pense
errado, é quem pode ensinar a pensar certo. E uma das condições
necessárias a pensar certo é não estarmos demasiado certos de
nossas certezas". Assim, torna-se urgente uma revisão de nossas
posturas metodológicas frente ao conhecimento do conhecimento.

68
3.1 Aproximações à discussão sobre paradigma e complexidade

De acordo com Morin (2003), é necessário que se cultive uma


atitude reflexiva e crítica frente ao crescente aumento de
informações, o que nem sempre significa maior conhecimento. É
importante e necessário aprender a lidar com esta situação para
evitar o acúmulo de informações e a superficialidade dos
conhecimentos. É comum, inclusive nos centros acadêmicos,
deparar-se com situações como essas, ou seja, com indivíduos que
possuem ou apropriam-se de informações, porém não modificam,
interferem ou re-significam a prática cotidiana de construção de
conhecimento.
Neste sentido, entende-se a partir do pensamento de Freire
(2011) que, é preciso rever a relação sociedade/natureza/mundo no
que se refere à produção do conhecimento. Para o autor é
necessário "pensar certo", ainda que, isso signifique as vezes pensar
equivocado, pois só assim é possível "ensinar" e aprender nas
relações sociais, sendo condição para "pensar certo" não ter
demasiadas certezas. Observa-se que, nesta perspectiva o
"aprendiz" ou aquele que conhece, efetivará os seus conhecimentos
não a partir do número de certezas que tem, mas sobretudo, na
medida que seja capaz de interrogar-se, perguntar e, acima de tudo,
de duvidar do que conhece. Essas dúvidas, não se tratam de um
niilismo absoluto, mas de uma postura reflexiva em relação ao
conhecimento.
Observa-se desta maneira que, a forma de produção de
conhecimento é perpassada pelas experiências sociais e culturais
dos indivíduos conhecedores. O paradigma dominante na
atualidade, centrou-se no conhecimento científico como único e
exclusivo conhecimento "certo". Em nome da neutralidade e da
cientificidade houve tentativas de esquecer e/ou tornar obsoletos
outros tipos de conhecimento. No entanto, a curiosidade humana,
a sabedoria popular, assim como outras formas de conhecimento,
têm-se revelado importantes na busca de informações para aquilo
que a ciência não dá conta de explicar ou entender, não

69
necessariamente estes "outros" tipos de conhecimentos oferecem as
respostas, porém, surgem como alternativas e possibilidades de
conhecer não só de maneira unilateral e totalizadora pelo viés
científico.
O ser humano apresenta-se como ser racional e por natureza
"curioso". Desde os primórdios observa-se a necessidade e a busca
pelo conhecimento. Ao longo da história da civilização humana
muitos estudiosos dedicaram-se ao entendimento da busca do
conhecimento e também da necessidade e possibilidades do
conhecimento do conhecimento. Este tem sido um grande desafio
para a humanidade, já que ao contrário da "neutralidade"
promulgada pelo método científico, o conhecimento é dinâmico e
em constante mudança, sendo construído e reconstruído a cada
momento, já não de forma passiva, mas ativamente, mudando e
sendo mudado a partir dos indivíduos e condições sócio/culturais
em que são percebidos. Sendo assim, perdem sentido, afirmações
genaralizantes e totalizantes, surgindo a necessidade de se pensar
em um novo paradigma.
Para Kuhn (2013) o paradigma, na atualidade, ganhou
múltiplas significações, tornando-se elemento novo, mas ao mesmo
tempo incompreendido. Nesta perspectiva, Santos (2010) e Morin
(2003) apontam que nos encontramos em um momento de crise
paradigmática. Assim, paradigma, torna-se, de acordo com Kuhn
(2013), significativo em âmbito global e local, ou seja, atualmente
acompanhado do termo "mudança" é um termo embaraçoso e, de
certa forma, está "na moda".
De acordo com Kuhn (2013), a palavra grega "parádeigma", já
estava presente nas teorias Aristotélicas e significava,
essencialmente, "exemplo", "ser exemplar". Em geral, entende-se
como "algo em disputa". Nas abordagens linguísticas o termo
estava ligado às gramáticas, sendo usado preferencialmente no
sentido metafórico. No entanto, observa-se que é a partir dos
escritos de Kuhn na metade do século XX em que o termo passa a
ser usado por diversas áreas do conhecimento, surgindo como algo
problemático presente nas discussões epistemológicas. O vocábulo

70
passa a ser usado pela comunidade científica quase como um
"amuleto" para todas as situações.
É possível perguntar-se sobre o "surgimento ou morte" de um
paradigma. Isto certamente, não seria tarefa fácil. De acordo com
Kuhn (2013, p. 29), "tudo vai bem até que os métodos legitimados
pelo paradigma não conseguem enfrentar o aglomerado de
anomalias; dai resultam e persistem crises até que uma nova
realização redirecione a pesquisa e sirva como novo paradigma".
Isto seria, na visão do autor, um paradigma ou deslocamento de
paradigma como muitos preferem chamar. Assim, infere-se que
paradigma não se resume a "modelos, exemplos", mas muito além
disso, significa novos olhares, posturas e maneiras de perceber,
produzir e reproduzir conhecimento. É nesta perspectiva que
pretende-se focar este texto.
Assim, entende-se que crise e mudança de teoria andam
juntas, entrelaçam-se, tornando as "anomalias" das diferentes
épocas e conhecimentos necessários e complementares para o
surgimento de novas posturas e olhares. Observa-se que, as
exigências de tempos e lugares, de novos olhares instauram a
necessidade de mudanças, que geralmente apresentam-se em
momentos de crises, as quais são geralmente apresentados como
momentos críticos, problemas, porém podem ser encarados como
momentos de incertezas, e portanto, de novos questionamentos,
posturas e encaminhamentos, entendendo que rejeitar um
paradigma, significa decidir simultaneamente na aceitação de
outros olhares em relação ao conhecimento que se tem e que se
almeja, perpassando os processos de transição paradigmática. Para
Kuhn (2013), as crises funcionam como fermento, das quais surgem
novos métodos, novas ideias, novos olhares.
A partir do paradigma vigente nas determinadas épocas da
história humana surgem as concepções de mundo, e portanto, as
concepções de conhecimento, assim como o que devemos e
podemos conhecer. Essas concepções de mundo foram
historicamente reveladas a partir dos conhecimentos concebidos e
apropriados pelos indivíduos. No geral, pode-se afirmar que isso

71
tem ocorrido como imposição, pois sempre há um paradigma
dominante que determina o que e como se conhece. Esta forma de
relacionar-se com o conhecimento, tem anulado em muitos casos as
individualidades, cerceando a iniciativa ou liberdade de conhecer,
gerando na maioria dos casos conhecimentos pretensiosamente
articuladores e alienantes, não permitindo que outros "olhares"
fossem representados a partir de óticas diferentes de análises,
sendo dominados pelo prestigiado conhecimento científico.
Neste sentido, é importante destacar que não se entende a
valorização da multiplicidade como espécie de anarquia
metodológica, ou seja, onde "tudo serve". Se há a consciência da
incomensurabilidade do conhecimento há de haver também a
preocupação com o rigor metodológico na busca do conhecimento
e, portanto, do conhecimento sobre o conhecimento. Assim,
entende-se que o equilíbrio entre o que se conhece e as formas de
conhecer estabelece paradigmas de variação e valorização do
múltiplo, do diferente, na relação como alteridade, predicada por
Santos (2010) e Leff (2010), entendendo que há limites
epistemológicos nessa relação com o conhecimento, por isso, não
podemos negar que existem diferentes formas de conhecer o
conhecimento.
Na possibilidade desta crise paradigmática surge a
necessidade das revoluções. Assim, nega-se necessidade de uma
explicação unilateral e totalizadora, como explicação completa,
objetiva e verdadeira. Neste sentido, entende-se que o
conhecimento do conhecimento leva a reflexões sobre o "fazer do
fazer", intencionando neste sentido, refletir sobre a necessidade de
revolucionar as concepções estagnadas e reducionista. Se aceita-se
que existem "outros olhares" e encaminha-se para posturas
epistemológicas que reavaliam a forma de
produzir/consumir/reproduzir conhecimentos na atualidade,
tornando os processos de aprendizagem/ensino muito mais
significativos, através da criticidade, diversidade e ampliação
metodológica no que se refere ao conhecimento do conhecimento,
fugindo do único e poderoso modelo dominante.

72
Por outro lado, observa-se que o método científico dominante
ainda desfruta de prestígio acadêmico. Observa-se, de acordo com
Morin (2005), que nos encontramos em momentos de crise
paradigmática e que o modelo científico está exaurindo-se. Há, no
entanto, os que acreditam cegamente no modelo científico. Neste
momento histórico, pode-se admitir que o modelo de produção de
conhecimento, que tem no conhecimento científico o "porto seguro"
não pode ser desprezado ou menosprezado, pois ainda é "a forma"
de produção de conhecimento que metodologicamente tem mais
prestígio na atualidade.
As limitações apresentadas pela racionalidade dominante no
tocante ao “ser capaz de dar repostas” aos complexos problemas
humanos e sociais têm levado à interrogações antes insuspeitáveis
para a racionalidade moderna. Nas palavras de Santos (2010), o
conhecimento não pode ser determinístico nem descritivo, mas
precisa re-pensar as possibilidades, as condições de ação humana,
a partir de pluralidades metodológicas. Porém, para esta mudança
é preciso uma transgressão metodológica, e toda mudança gera
resistências e reticências em relação ao próximo passo a ser dado.
Observa-se, na opinião do autor, que a dificuldade de definir
e estabelecer um único método como objeto de conhecimento e
resposta para a análise investigatória da pesquisa científica torna-
se imprudente e incompleto. Para Santos (2010) e Leff (2010), é
preciso um diálogo de saberes e uma multiplicidade de abordagens
para poder observar os problemas desde as mais variadas
perspectivas para aproximar-se à resultados mais satisfatórios.
Nota-se que, “a crise do paradigma dominante é o resultado
interativo de uma pluralidade de condições... o aprofundamento
do conhecimento permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se
funda” (SANTOS, 1988, p. 54). O que é essa ciência que, é ao mesmo
tempo admirada e temida, condenada e glorificada, ou até mesmo
transformada em mito? Um conhecimento para ser aceito como
científico pela comunidade científica, deverá, necessariamente,
satisfazer critérios que justifiquem a sua aceitação.

73
Tradicionalmente, responde-se a essa questão afirmando que
um conhecimento é aceito como científico quando segue o método
científico. Isto pressupõe que deva haver um método, um
procedimento dotado de passos e rotinas específicas que indicam
como a ciência deva ser feita para ser ciência. Esta ideia, linear em
toda sua profundidade, coloca o fazer científico como um
fazer/saber separado da vida do homem, como atividade mecânica,
produto de aplicações independentes, de conjuntos de passos e
regras rotineiras que invariavelmente conduzem a uma solução
única e correta. Porém, os critérios a serem utilizados no fazer
científico, enquanto método, devem ser entendidos como
condicionados historicamente, pois são convenções articuladas no
contexto histórico-cultural e, como tal, permitem a renovação e
progresso das teorias, revelando o caráter dinâmico da ciência e a
historicidade dos princípios epistemológicos do fazer científico.
A produção do conhecimento não pode ser um
empreendimento isolado. Deve ser uma construção coletiva da
comunidade científica e social, um processo continuado de busca,
no qual cada nova investigação se insere, complementando ou
contestando contribuições anteriormente dadas ao estudo em
questão.
Assim, observa-se que o fazer científico é, ou deveria ser, um
constante movimento, repetições, tentativas reflexivas, críticas em
busca de respostas, gerando tensionamentos entre o saber, o viver
e o descobrir, gerando um círculo virtuoso para o conhecimento. O
movimento da assim chamada, "revolução científica", não
conseguiu dar resposta a um "sem número" de problemas e
interrogações. Diante dessa perspectiva de poder/fraqueza, a
questão epistemológica da racionalidade apresenta-se numa
encruzilhada de escolhas sobre os caminhos que devem ser
tomados para propor mudanças no paradigma predominante.
Um dos maiores desafios da epistemologia é responder aos
questionamentos do próprio conhecimento, ou seja, como ocorre a
percepção e a apropriação dos mesmos. Assim, a epistemologia
preocupa-se com a possibilidade de elucidação das curiosidades

74
humanas através daquilo que não é explicado pela simples
experiência da vivência existencial.
O olhar histórico permite observar que as mudanças ocorridas
no mundo ao final do século XX têm levantado questionamentos
sobre o paradigma epistemológico predominante e seu poder de
resolução dos problemas da humanidade. O que se percebe é que
transparecem os limites da ciência em contraposição a uma
sociedade mais complexa e ávida por respostas contundentes. É
evidente que o paradigma hegemônico encontra-se em "profunda
crise", de acordo com Santos (2013), e que a mesma é fruto de
multiplicidade de condições.
O reducionismo científico histórico tem comprometido as
ações de multiplicidade e diversidade de acordo com Morin (2003),
o qual propõe o conceito de complexidade para fazer frente às
concepções de saberes tradicionais. Segundo Morin (2003),
exagerou-se na tentativa de simplificação dos processos
epistemológicos e a fragmentação dos saberes da proposta
cartesiana. Assim, justifica-se a proposição de um paradigma
epistemológico da complexidade, que sirva de elo entre a reflexão
filosófica e ciência, de acordo com Leff (2010).
Surge a necessidade de interpor um novo paradigma que não
pretenda respostas únicas e unívocas. Uma outra racionalidade
exige nova postura epistemológica e esta postura pretende superar
a fragmentação histórica dos conhecimentos, reconhecendo as
limitações da ciência e o sofisma da neutralidade da mesma.
Santos (2013) nos faz refletir sobre a possibilidade do atual
modelo paradigmático ser capaz de vigorar por muito tempo. Uma
mudança de postura clama às nossas portas com a formulação de
novas teses que sirvam de encaminhamentos para o enfrentamento
do problema paradigmático posto. O autor refere-se às crises da
universidade moderna3 como afloramentos da crise paradigmática
da modernidade.

3 Santos (2013) aponta caracteristicamente três crises: Crise de hegemonia, crise de


legitimidade e crise institucional.

75
Estamos num período, conforme Santos (2013) de transição
paradigmática, "Penso hoje que essa transição paradigmática,
longe de se confinar ao domínio epistemológico, ocorre no plano
societal global" (SANTOS, 2013, p.51). Ainda, para Santos (2013), a
modernidade se assenta sobre dois pilares, o da regulação e o da
emancipação. Para o autor isso se dá principalmente pelo poder de
articulação que a mesma comporta. Por isso, exige-se mudança
paradigmática, pois segundo o mesmo, não se trabalha apenas com
a unicidade e a totalidade, mas com infinitas possibilidades.
Para Santos (2010), é mais fácil prever a necessidade de
mudanças no paradigma dominante do que antever o surgimento
de um novo paradigma. Ou seja, as mudanças nem sempre são
perceptíveis ou fáceis de anunciar ou proclamar, já que a
complexidade das relações que se estabelecem hoje entre a
humanidade e, dela com a natureza, que tem a fragmentação e a
dualidade entre ciências naturais e humanas como pressuposto,
tem seu marco histórico na chamada Revolução Científica do
século XVI. Tais pressupostos mostram-se hoje como insuficientes,
principalmente no que se refere à educação formal em que há
necessidade de abordagens que incluam a relação
sociedade/natureza/mundo, bem como, a universidade/escola no
âmbito de seus estudos. Os conhecimentos fragmentados servem
prioritariamente para os usos técnicos não permitindo a articulação
necessária para a auto-reflexão e aproximação às realidades do
cotidiano.
A seguir apresenta-se discussão sobre o conhecimento do
conhecimento, da sua necessidade às possibilidades.

3.2 Conhecimento do conhecimento: da necessidade às


possibilidades

Para Maturana e Varela (2001, p. 7), " a vida é um processo de


conhecimento; assim, se o objetivo é compreendê-la, é necessário
entender como os seres vivos conhecem o mundo". Ressalta-se que
o conhecimento é construído em sintonia com o mundo que nos

76
rodeia e compartilhado como os demais seres vivos, porém não de
maneira solitária, mas com toda forma de existência material. Este
processo de construção, segundo o autor, é incessante e interativo,
sendo um convite à construção, e ao mesmo tempo à assunção da
responsabilidade que dela se desprende.
Nesta perspectiva de análise, infere-se que, de acordo com o
autor o conhecimento não se limita ao processamento de
informações a priori; e que os seres vivos são autônomos ou auto-
produtores no seu processo de conhecimento na interação com o
meio, ou seja, "vivem no conhecimento e conhecem no viver"
(MATURANA e VARELA, 2001, p. 14). Assim, o conhecimento
deixa de ser passivo e constrói-se em suas interações, portanto, toda
experiência de conhecimento inclui aquele que conhece, não
permitindo a tão proclamada neutralidade científica, pois todo
processo de conhecimento inclui aquele que conhece de modo
pessoal, com sua estrutura biológica e social. Por isso, a certeza,
para Maturana e Varela (2001), entende-se como fenômeno
individual cego em relação aos atos cognitivos da alteridade,
referendados por Leff (2010).
Observa-se então, que a reflexão é um processo de conhecer
como conhecemos; É um exercício, o qual deve ser continuo, um
constante voltar-se a si mesmo. Em conformidade com Maturana e
Varela (2001), como oportunidade para superar nossas cegueiras e
rever nossas "certezas", a partir das "certezas" do outro, e perceber
que ambas são tênues e conflitivas, complementando-se.
No livro "A árvore do conhecimento" os autores apresentam
alguns aforismos, que reforçam a necessidade do conhecimento do
conhecimento. Entende-se segundo os autores que, "todo ato de
conhecer faz surgir um mundo" (2001, p. 31-32), e que isso
representa que "todo fazer é um conhecer e todo conhecer é um
fazer" (idem, p. 32), concluindo que "tudo o que é dito é dito por
alguém" (idem, ibdem). Fica claro neste posicionamento dos
autores que o conhecimento não é inato, que não é
representacionismo, nem menos repetição única e exclusivamente
mecânica, sendo portanto, construída socio-culturalmente.

77
Por outro lado, para Morin (2010), reforça que, entramos num
período, em que o fracasso ambicioso de fundamentar a verdade
da ciência, a certeza da ciência e a do pensamento, promoveram o
surgimento de inúmeras perguntas essenciais, como por exemplo a
certeza da objetividade, as pré-concepções, neutralidade científica,
etc. Assim, infere-se que o paradigma não resulta apenas da
observação. O mesmo autor, concordando com Habermas, diz que
existem tipos diferentes de conhecimento científico, pois são
impulsionados por interesses diferentes. Mas, quais seriam esses
interesses? Por exemplo, o interesse técnico, que se refere ao
domínio da natureza; o interesse prático que pretende,
especialmente o controle da sociedade; e o interesse reflexivo,
motivado pela reflexividade para entendermos que somos e o que
fazemos nesta passagem pela vida.
No que tange a ciência é preciso de acordo com Morin (2010),
considerá-la como uma atividade de investigação e pesquisa, mesmo
sendo perpassada pelas relações de poder e interesses; o segundo
pensar que o conhecimento científico é mero representacionismo,
outro aspecto é o de pensá-la impura, sem querer decantá-la; assim
como, a necessidade de "desinsularizar" o conceito de ciência, ou seja,
precisa fazer parte do todo, precisa estar ligado aos outros tipos de
conhecimentos. É preciso, portanto, tomar o cuidado de não tornar a
ciência uma "religião dogmática" ou mesmo fazer dela um hobby,
como o gosto pela leitura ou a música. Neste sentido pretende-se
combater o puritanismo da ciência e aproximá-la de outras formas de
conhecimento, como por exemplo a filosofia. De acordo com o autor,
fica evidente a necessidade de inclusão da reflexividade no âmbito das
discussões científicas.
Na atualidade um dos problemas que mais afetam a sociedade
são os problemas relacionados à crise ambiental. Porém de acordo
com Leff (2010), a crise do risco ecológico é, sobretudo, gerado
pelos questionamentos frente ao conhecimento do mundo e reforça
a necessidade de re-conhecimento do mundo como uma nova
postura epistemológica. Assim, o autor infere que, acima da crise
ambiental o caracteriza é o problema de conhecimento, o que nos

78
faz "repensar o ser do mundo complexo, e entender suas vias de
complexificação, (LEFF, 2010, p. 191).
Neste sentido Leff (2010), nos interpela a conhecer e re-conhecer
o "ambiente" que vivemos, pois nossas crises surgem, essencialmente,
do desconhecimento da lei da entropia, regulamentada pela "mania
de crescimento". Esta problemática intensifica-se e deteriora-se pela
produção sem limites e a distorção epistemológica entre o que se
predica como desenvolvimento econômico e as consequências deste
mesmo crescimento econômico. Não se trata, obviamente, de sermos
contrários ao crescimento, porém o problema está quando se usam os
dois conceitos como sinônimos. Sabe-se que, semanticamente
possuem significados diferentes.
Portanto, uma tentativa unificadora de respostas não criará as
condições necessárias para re-conhecimento do mundo. De acordo
com Leff (2010), a natureza explode em energias de libertação e,
assim, a complexidade emerge com fundamentos epistemológicos
necessários, referenciando o diálogo de saberes como alternativa e
possibilidade de intervenção no mundo, e no conhecimento.
Assim, a ideia de ecologia e sistemas devem perpassar as
discussões epistemológicas no sentido do que é constante, o devir,
a dialética, em busca de um mundo em transformação constante,
da fecundidade do infinito e da outridade, pois é nesta relação com
o outro que nos definimos seres em construção.
Assim, a construção do mundo como uma "totalidade" não
pode, de acordo com, Leff (2010), dar conta de todos os
conhecimentos, por meio da generalização das "coisas", é preciso
pensar a complexidade não como conceito abstrato, "idealista", mas
entendê-lo na sua capacidade onipresente e, para o mesmo autor, a
complexidade do pensamento e do mundo, interpõe a necessidade
de pensar um paradigma novo que inclua inter-relações complexas
nos processos ideológicos e epistemológicos, abrindo novos
debates entre necessidade e liberdade.
Nesta perspectiva, compreende-se que a complexificação do
conhecimento anuncia novos desafios. Entende-se, de acordo com
Leff (2010, p. 207) que, "a crise ambiental é a primeira crise do mundo

79
real produzida pelo desconhecimento do conhecimento". O autor
aponta o (s) paradigma (s) interdisciplinares e transdisciplinares do
conhecimento como antídotos a fragmentação do conhecimento
gestados no paradigma científico moderno, ao mesmo tempo em
que abre-se à perspectiva do diálogo de saberes e hibridização entre
ciências, tecnologias e saberes populares que perpassam os discursos
e políticas de desenvolvimento.
A globalização moderna, como sua hegemonia
homogeneizante, é segundo Leff (2010), vista como razão dos
progressos, mas isso nos parece que tem contribuído para
alavancar políticas desenvolmentistas, com foco principal, e
quando não o único, no desenvolvimento econômico, não
considerando o desenvolvimento humano e social. Porém, não se
pode dispensar este potencial produtivo, no entanto, é possível
pensá-lo na perspectiva da complexidade. Trata-se, neste sentido,
de buscar novos rumos, através de uma educação que permita a
construção de uma nova racionalidade, mas que, de acordo com
Leff (2010), não para uma cultura de "desesperança e alienação",
mas que promova emancipação permitindo novas opções no re-
conhecimento do mundo.
Percebe-se, ao finalizar este texto, o grande desafio
epistemológico que recebemos como legado da modernidade.
Surgem questionamentos e incertezas sobre o acabamento da
humanidade, a "impossibilidade" da totalização do conhecimento,
o "fim " da história, etc, assim somos "chamados" à reconstrução
social do mundo, aprendendo a complexidade como necessidade e
possibilidade do conhecimento do conhecimento. Entende-se que é
preciso, neste sentido, o re-conhecimento do conhecimento, poré
não só, pois esta postura epistemológica deve permear todo o nosso
"viver no mundo".

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao concluir este artigo, infere-se que o conhecimento do


conhecimento é um desafio epistemológico instigante, pois ao

80
mesmo tempo que impõe-se como superação paradigmática
interpõe como construção social de um novo paradigma. Este
desafio, instiga-nos a pensar, re-pensar nossas certezas para re-
conhecer e reconstruir-nos a partir das incertezas e possibilidades
da complexidade.
Observou-se que o paradigma dominante apresenta sinais de
que está em crise, de acordo como Morin (2003), Santos (2010, 2103)
e Leff (2010), sinalizando ainda, que nos encontramos em um
momento de transição paradigmática e que, apesar das incertezas
deste período, é preciso re-conhecer o conhecimento do mundo e
do próprio conhecimento.
No que representa às concepções e tentativas do conhecimento
do conhecimento, infere-se que a complexidade apresenta-se como
panorama para as re-significações sociais, culturais e
epistemológicas na modernidade ou como outros autores ousam
chamar, a pós-modernidade. Neste sentido, o conceito de
paradigma aportado por Kuhn (2013), oferece elementos para
análise epistemológica do conhecimento do conhecimento, já que
um paradigma é sócio-historicamente construído e perpassa o
tempo e, as sociedades precisam, de tempos em tempos,
resignificar-se, reconhecer-se e reconstruir-se.
Conclui-se, de acordo com Maturama e Varela (2001), que todo
conhecimento produz um novo mundo e assim, na sequenciação
de conhecimentos constroem-se novos mundos que dão sentido ao
existir humano, porém, esses conhecimentos sempre partem dos
seres. O que é dito sempre é (está) representado por um ser. Deduz-
se que ser e conhecer não são coisas antagônicas, mas que co-
existem, que complementam-se, que constroem-se.
Finaliza-se afirmando que o trabalho desenvolvido não
pretendeu ser exaustivo e que teve como intuito produzir reflexões
sobre o conhecimento do conhecimento em suas necessidades e
possibilidades, assim como, os desafios frente ao paradigma
dominante e as incertezas frente ao futuro, ratificando que neste
momento histórico em que vivemos, a complexidade
epistemológica nos interpela a re-conhecer o mundo e re-pensar

81
atitudes frente ao conhecimento e sobre as formas de
conhecimento, sendo uma provocação ao diálogo de saberes. Não
basta saber que conhecemos. Precisamos re-pensar, re-conhecer e
refletir sobre o conhecimento do conhecimento.

REFERÊNCIAS

BOURDIER, Pierre. Sobre o poder simbólico. In: BOURDIER,


Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à
prática educativa. 43. ed., São Paulo: Paz e Terra, 2011.
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Trad.
Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. 12 ed. São Paulo:
Perspectiva, 2013.
LEFF, Herique. Epistemologa ambiental. Trad. Sandra Valenzuela,
rev. téc, Paulo Freire Vieira. 5ª ed. São Paulo: Cortez, 2010.
MATURANA, Humberto, VARELA, Francisco J. A àrvore do
conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. trad.
Humberto Mariotti e Lia Diskin. São Paulo: Palas Athena, 2001.
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar
o pensamento. Trad. Eloá Jacobina. 8ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2003.
SANTOS, Boaventura de Sousa Um discurso sobre as Ciências na
transição para uma ciência pós-moderna. Revista Estud.
av. vol.2 n.2 São Paulo May/Aug. 1988, p. 46-71. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
40141988000200007#not57/ acessado 06/08/2014.
_______, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: O social e o
político na pós-modernidade. 14 ed. São Paulo: Cortez, 2013.
_______, Boaventura de Sousa e MENESES, Maria Paula.
Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.

82
A CUMPLICIDADE ENTRE TEOLOGIA E LITERATURA
NAS EXPERIÊNCIAS EXISTENCIAIS HUMANAS A
PARTIR DO SAGRADO

Filipe Marchioro Pfützenreuter

1 INTRODUÇÃO

É inerente ao ser humano a busca por uma explicação para os


fenômenos que o cercam. Mais do que a própria inteligência ou a
linguagem, essa ânsia é o que mais caracteriza a espécie humana,
afinal, a própria ciência já comprovou que, resguardadas as
devidas proporções, animais de outras espécies também
raciocinam e são dotados de linguagem própria. O ser humano, por
sua vez, capaz de discriminar com maior clareza o passado, o
presente e o futuro, busca explicações para o porquê de as coisas
terem ocorrido, por que estão ocorrendo e quais serão os seus
futuros desdobramentos.
A história da humanidade revela que, quando o racionalismo
puro ou a ciência sucumbem na tentativa de explicar um
determinado fenômeno, o ser humano não aceita a derrota para o
inexplicável e, então, busca resposta no sobrenatural. Assim
confirma Júlio de Queiroz (2011, p. 17) em seu artigo Evolução da
compreensão da escatologia no cristianismo. Segundo o autor, com o
desenvolvimento do cérebro humano, surge de imediato a
necessidade de explicar os fenômenos climáticos, o que se fez,
primeiramente, através da atribuição de sentimentos e paixões
humanos, o que repercutiu na criação de seres invisíveis, atuantes
e excepcionalmente poderosos: o animalismo. Da necessidade por
explicações quotidianas, o ser humano passou, então, à busca por

83
explicações sobre sua própria origem e, sucessivamente, à
escatologia.
Essa realidade demonstra que é fundamental promover
discussões que abarquem as relações do homem com o sobre-
humano e a repercussão dessas relações sobre a organização social.
Para tanto, este artigo toma como amostra de pesquisa o
Cristianismo e seu Livro Sagrado – a Bíblia – por compreender que
ambos, mesmo diante do pluralismo religioso existente em tempos
atuais e das facilidades de acesso às diferentes culturas espalhadas
pelo mundo, ainda exercem forte influência sobre o pensamento
mundial, mais especificamente, sobre o Ocidente. Conforme afirma
Rafael Camorlinga Alcaraz (1998, p. 196), “é pacífico afirmar a
relativa unidade existente no que se conhece como ‘Cultura
Ocidental’. Se atualmente a palavra de ordem é ‘globalização’, até
pouco tempo era ‘civilização ocidental’, à qual se acostumava
acrescentar (com evidente conotação ideológica – de direita)
‘cristã’”.
Quanto ao Cristianismo, é possível lembrar rapidamente
alguns exemplos corriqueiros que ratificam a afirmação de que essa
religião ainda exerce forte influência sobre a cultura ocidental e
suas relações sociais: a existência de feriados religiosos, como o Dia
dos Finados e o Natal, na maior parte dos países ocidentais; e o
grande número de pessoas que anualmente fazem turismo para
centros de celebrações religiosas nos dois lados do Atlântico, como
o Vaticano – para citar a Europa, o Santuário de Nossa Senhora do
Guadalupe – na América Central, e o Santuário de Nossa Senhora
Aparecida – na América do Sul.
Para pensar em exemplos mais recentes, vale ressaltar a ampla
repercussão e exposição midiática que envolveu a escolha do novo
papa – Jorge Mario Bergoglio (o Papa Francisco), e o sucesso de
público da 28º Jornada Mundial da Juventude, ambos os eventos
ocorridos no ano de 2013. Em relação ao primeiro, é digno de nota
que as cinco grandes emissoras de canal aberto brasileiras – Globo,
SBT, Bandeirantes, Record e Rede TV – transmitiram ao vivo,
diretamente do Vaticano, o desfecho do conclave e o consequente

84
anúncio da nova autoridade clerical. Quanto ao segundo, foi
contabilizada a participação de 3,7 milhões de pessoas, advindas
de 175 países do mundo, com destaque para Argentina, Estados
Unidos e Brasil, país sede do evento (TEMPESTA, 2013 apud
BRASIL, 2013).
As palavras do Prof. Dr. Ivan Aparecido Manoel, presidente
do II Encontro do GT História das Religiões e das Religiosidades,
no texto de abertura da coletânea de artigos Tolerância e intolerância
nas manifestações religiosas, confirmam a popularidade do
Cristianismo entre as novas gerações:

Os Encontros Mundiais da Juventude com o Papa têm conseguido


congregar milhões de jovens “mochileiros”, que, todos os anos,
atravessam metade do mundo em viagens cansativas em busca de
três dias de reunião onde ouvem as prédicas e recebem as bênçãos
do Sumo Pontífice católico. Jovens universitários, aos milhares se
reúnem nos congressos musicais religiosos como o Hallel e outros
similares, organizados por todas as vertentes das igrejas cristãs.
(MANOEL, 2010, p. 8)

Com as observações referentes ao Cristianismo feitas acima,


importa destacar que não está se objetivando produzir juízos de
valor quanto a essa religião, tampouco reunir argumentos para
inseri-la numa posição hierarquicamente superior em comparação
com outras religiões ao atestar sua persistente e atual
popularidade. O que se almeja, na verdade, é chamar atenção para
o quanto o Cristianismo continua a influenciar nas relações
humanas mesmo diante do atual pluralismo religioso e, em
consequência disso, o quanto seus personagens ainda permanecem
no imaginário popular como formadores de opinião e,
principalmente, balizadores de conduta. Eis a importância de
estudá-los.
No que diz respeito à Bíblia, levando em conta a permanente
influência do Cristianismo no ocidente conforme se pontuou
acima, não é de se admirar que ela seja “um dos livros mais lidos

85
de toda a história da humanidade” (BÍBLIA, 1995, p. 10). Não só
lido, mas interpretado pelo viés religioso. Para a tradição cristã:

Os livros inspirados ensinam a verdade. “Portanto, já que tudo o que


os autores inspirados ou os hagiógrafos afirmam, deve ser tido como
afirmado pelo Espírito Santo, deve-se professar que os livros da
Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que
Deus em vista da nossa salvação quis fosse consignada nas Sagradas
Escrituras” (CATECISMO, 1993, p. 40).

Em suma, para boa parte dos leitores ocidentais, a Bíblia é um


livro sagrado e histórico. Para esses leitores, ela revela a verdade
sobre Deus – entidade real, o criador do céu e da terra (Gn 1,1) – e
seu projeto para a humanidade; projeto esse que prevê a salvação
para aqueles que se submetem aos seus desígnios e a perdição para
aqueles que vivem no pecado, e que foi amplamente difundido por
Jesus Cristo, seu filho, o qual viveu em meio aos homens e morreu
como redentor.
Contudo, o Livro Sagrado dos cristãos é, acima de tudo, uma
obra literária, ao ponto de um vencedor do Prêmio Pulitzer de
Literatura sustentar que a própria religião pode ser considerada
como uma obra literária bem-sucedida. Assim o faz Jack Miles
(2002, p. 15), em God: a biography (Deus: uma biografia), ao afirmar
que a “religião – a religião ocidental em particular – pode ser
considerada como uma obra literária mais bem sucedida do que
qualquer autor ousaria sonhar”.
Assumindo a premissa de que a Bíblia é essencialmente uma
obra literária, o que não implica em ignorar ou menosprezar a sua
função enquanto paradigma da fé para determinadas religiões, este
artigo se propõe a analisar o aspecto literário dessa coletânea de
livros a partir de seu histórico de composição, assim como
apresentar o método da analogia estrutural, apresentado por Karl-
Josef Kuschel (1999), em sua obra Os Escritores e as Escrituras:
retratos teológico-literários, como uma possibilidade para nortear os
estudos comparados entre Teologia e Literatura: a Teopoética.

86
2. DA LITERATURA ORAL À TEOLOGIA CRISTÃ

Em sua obra A face oculta das religiões, José Reis Chaves (2001,
p. 49) afirma que a Bíblia não só é a escritura sagrada mais
respeitada da humanidade, como também conta com mais de um
terço da população mundial seguindo os seus ensinamentos, ainda
que haja divergências de interpretações entre os mais diferentes
grupos que a tomam como base ou dogma da fé, entre os quais
estão: católicos, adeptos da Igreja Ortodoxa Oriental, judeus,
espíritas e protestantes, encontrados em maior número na Europa,
América Latina, América do Norte, Oceania e partes da África e
Ásia.
A divisão mais conhecida e abrangente da Bíblia consiste na
separação de seus livros entre o Velho e o Novo Testamento, sendo
que os integrantes da primeira parte são aqueles que foram escritos
antes do nascimento de Jesus Cristo (a.C); enquanto que os
integrantes da segunda são aqueles que supostamente foram
escritos depois de sua morte (d.C). Assim, a Bíblia católica é
composta por um total de 73 livros, 46 dos quais estão inseridos no
Velho Testamento e 27 dos quais se encontram no Novo.
Chaves (2001, p. 52) estima que a Bíblia tenha sido engendrada
por um total de 42 autores ao longo de um período de aproximados
1600 anos: de 1513 a.C. a 98 d.C. Já Luiz José Dietrich (2014), em seu
artigo intitulado A formação do Antigo Testamento, traz outros
números, demonstrando o quão imprecisos são os registros
históricos acerca da Bíblia, o que indubitavelmente tem relação com
toda a complexidade do seu processo de produção: o número de
autores envolvidos; os diferentes lugares em que os textos que hoje
a integram foram produzidos; os processos de seleção e tradução
de textos; as reformas e concílios; e, por conseguinte, o longo
período de tempo transcorrido entre a seleção dos seus primeiros
textos até se chegar à sua versão atual. Para este autor, o número
de autores bíblicos é inestimável, “foram centenas, talvez
milhares”. Quanto ao tempo necessário à produção da Bíblia,

87
Dietrich estima que tenham transcorrido 1200 anos até se chegar à
versão atual: de 1000 a.C a 200 d.C.
Mas, afinal, como a Bíblia chegou à sua forma atual? Dietrich
(2014) responde a esta pergunta comparando metaforicamente a
Bíblia a uma “casinha que se tornou casarão”, passando, neste
longo processo, por seis grandes reformas. Segundo o autor, a
Bíblia teve início a partir de pequenas histórias orais de libertação,
as quais, aos poucos, passaram a receber registro escrito, como
também a serem contadas e recontadas, com atualizações e
acréscimos de acontecimentos.
Dietrich (2014) conta que a história da Bíblia se inicia com a
história do povo de Israel, por volta do ano 1300 a.C em Canaã.
Nessa época e local, o povo se distribuía entre agrupamentos
urbanos e aldeias camponesas, as quais possuíam um contingente
menor de pessoas. Os dois espaços contavam basicamente com a
mesma cultura: “eram cananeus, e os seus Deuses e Deusas eram
divindades do panteão cananeu: El, Elohim, Asherá, Baal, Astarte,
Anat, entre outros” (DIETRICH, 2014, p.10). Todavia, nos
agrupamentos urbanos, a relação que se estabelecia entre esses
deuses com os reis e faraós era diferente da relação que se
estabelecia entre esses mesmos deuses e os pobres, os quais eram
marginalizados e escravizados por aqueles. Enquanto reis e faraós
eram considerados filhos e representantes de Deus na terra; as
demais pessoas, pelo status que aqueles haviam adquirido,
deveriam referenciá-los e lhes ser obedientes. Nessas relações
desiguais, os cultos aos deuses aconteciam em forma de grandes
celebrações nos templos oficiais, sendo que, para participar delas,
o povo deveria levar tributos e oferendas, além de trabalhar na
construção dos palácios e templos.
A opressão sofrida pela grande massa populacional nos
centros urbanos somada a outros fatores, como a invasão das
cidades-estado pelos Povos do Mar1 e o consequente processo de

1 Em seu artigo intitulado Os Povos do Mar: expansões micênicas e suas estruturas


através de outras fontes, Marcos Davi Duarte da Cunha (s.d., p. 119) explica que

88
resistência à dominação, fizeram com que muitos pobres
migrassem para as aldeias camponesas nas regiões montanhosas
de Canaã, onde a religião estava voltada para os aspectos mais
fundamentais da vida: fertilidade dos campos, saúde dos animais
e das pessoas, veneração aos mortos. Juntamente com a chegada
dos grupos migrantes, Javé também ganhou espaço entre os demais
deuses locais, tendo sido possivelmente cultuado como o deus dos
guerreiros e da guerra, ainda que, nas montanhas, os guerreiros
tivessem basicamente atuação defensiva contra saqueadores. Javé
também era quem ditava o uso compartilhado da terra e a
distribuição do poder em várias tribos das regiões montanhosas;
sendo assim, sua figura também aparece diretamente associada à
luta contra a opressão. Enfim, em meio a esse processo de
povoamento das montanhas por povos de diversas origens e da
incorporação de Javé entre o panteão local, eis que surge o núcleo
inicial de Israel, cujo nome significa “é Deus quem luta”.
Sobre esse período inicial de Israel, Dietrich (2014) ainda
informa que, por aproximadamente 200 anos (1250 a.C – 1050 a.C),
Israel seria um aglomerado de tribos autônomas e independentes,
onde famílias viviam solidariamente, visando a evitar o acúmulo
de riquezas e a centralização do poder. Foi nesse contexto que, a
partir de histórias orais contadas por pastores, hebreus, escravos e
camponeses, começaram a se formar as primeiras histórias que se
incorporariam à Bíblia, as quais, mais tarde, serviriam de base para
a composição dos livros de Gênesis, Êxodo, Juízes e o início do
primeiro livro de Samuel.

Canaã foi terreno constante de migrações por possuir grande vocação para o
comércio, com destaque para a sua região costeira, que, entre outros itens,
comportava a produção de púrpura, um produto muito desejado no mercado da
época. O mesmo autor ainda informa que “As primeiras aparições dos Povos do
Mar ou Estrangeiros do Mar (denominações egípcias para os grupos micênicos)
nos domínios do Faraó serão registradas pelo séc. XIV a.C. nas cartas de Amarna.
Muitos ali, sob a égide de Ramsés II como os “Sherden” e “Lukkah” aparecem
como mercenários e piratas a serviço do Faraó e serviram na batalha de Kadesh
contra os hititas”. (CUNHA, s.d., p.115)

89
Sendo assim, o que se observa é que essas histórias orais e o
núcleo inicial de Israel representavam analogamente a busca do
povo oprimido por melhores condições de vida. É com essa
proposta que, em forma de Literatura oral, surgem e são cultivadas
as primeiras histórias bíblicas, dando origem àquilo que Dietrich
(2014) chama metaforicamente de Bíblia-casinha; casinha essa que,
a partir de então, ainda seria submetida a seis grandes reformas até
se transformar na Bíblia como ela é conhecida hoje, conforme expõe
o mesmo autor:

1ª) primeira grande reforma (a monarquia) – entre 1050 a.C e


950 a.C, o aumento da população, juntamente com a introdução do
ferro e do boi na agricultura proporcionaram uma ampliação da
população camponesa e, com ela, o acúmulo de poder e riqueza por
parte de alguns grupos. Esta realidade, que começou com Saul e se
consolidou com Davi e Salomão, impulsionou a formação de
alguns núcleos urbanos, regidos por uma elite que concentrava
poder econômico, político e militar, e que instituiu a monarquia.
Para legitimar essa grande transformação a que foi submetida a
sociedade camponesa, os novos grupos dominantes trabalharam
na elaboração de uma religião oficial, provida de uma liturgia que
favorecia o rei e a hierarquia social, além de um templo para
centralizar os cultos em detrimento dos pequenos santuários
utilizados até então pelas pequenas tribos e aldeias. Com tal
propósito em mente, em um primeiro momento, a monarquia de
Davi coloca Javé a seu serviço; posteriormente, vem a monarquia
de Salomão e constrói um templo para louvá-lo, ambas atuando,
assim, em prol do fortalecimento do novo regime. Javé, o deus
libertador, passa, então, a ser utilizado como um instrumento para
subjugar as vilas camponesas e seus respectivos habitantes aos
grandes centros urbanos e suas elites dominantes. Cada nova
dinastia que chegava ao poder decretava um deus oficial (Javé,
Elohim, Baal) e, desse modo, os diversos deuses e deusas que
compunham a fé das famílias camponesas, aos poucos, cediam
espaço para o deus do grupo dominante. Assim, foi-se

90
introduzindo a ideia de um deus único, o qual, na verdade, servia
como um instrumento para a sustentação do regime monárquico;

2ª) segunda grande reforma (os reis Ezequias e Josias) – entre


700 a. C e 600 a. C, a dinastia de Davi, instalada em Judá, deu início
a um movimento para unir as tribos do norte com as do sul. Os reis
Ezequias e, precipuamente, Josias foram os grandes promotores
desse movimento, que dizimou santuários, aboliu imagens e
proibiu os cultos fora de Jerusalém, assim como o culto a qualquer
outra divindade diferente de Javé. Para alcançar seus objetivos,
Josias promoveu a redação principal da história de Israel, que hoje
se encontra distribuída nos livros do Deuteronômio, Josué, Juízes,
primeiro e segundo livros de Samuel, e primeiro e segundo livros
de Reis. Na segunda grande reforma, os diversos deuses e deusas
adorados em Israel não foram apagados por completo, mas os
cultos que lhes eram rendidos passaram a ser tratados como
desvios, até mesmo, pecados (monolatria), como foi registrado em
2 Reis2, por exemplo. Os livros engendrados no tempo de Josias
transmitiam a ideia de que as tribos de Israel correspondiam a um
só povo, agindo em conjunto sob uma única liderança,
direcionando o povo a adorar somente Javé e a ser obediente à
dinastia de Davi. Assim, uma vez mais, o grupo dominante utiliza-
se de sua força para promover o culto a um deus único, dessa vez,
amparado pela redação de textos religiosos oficiais; e esse deus
único, por sua vez, é novamente utilizado como pano de fundo
para o fortalecimento da dinastia e marginalização da grande
massa populacional. Contudo, ainda no tempo da segunda grande
reforma, Josias é assassinado pelo faraó (609 a.C.) e, após a sua
morte, dois acontecimentos promovem um revés na situação
favorável vivenciada pela classe dominante em Jerusalém, capital

2 Então, o rei ordenou ao sumo sacerdote Hilquias, e aos sacerdotes da segunda


ordem, e aos guardas da porta que tirassem do templo do Senhor todos os
utensílios que tinham feito para Baal, e para o poste-ídolo, e para todo o exército
dos céus, e os queimou fora de Jerusalém, nos campos de Cedrom, e levou as
cinzas deles para Betel. (2 Rs 23, 4)

91
de Judá. Primeiramente, Judá é dominada pelo império da
Babilônia (589 a.C.); e, após rebelar-se contra esse império, é
novamente invadida pelos babilônicos em 587 a.C., os quais
saqueiam a cidade e destroem suas muralhas, palácios e templos.
Assim, o tempo da segunda grande reforma termina com uma
parte da classe dominante morta e outra parte exilada na Babilônia,
remanescendo em Judá somente a camada pobre da população,
para a qual são deixados os latifúndios dos poderosos, cujo uso é
regulado através de um sistema de tributação. Com seus palácios e
templos destruídos, os ricos de Judá acabam vivenciando uma
situação semelhante à que impuseram aos seus conterrâneos
pobres no início da segunda grande reforma; ao passo que estes
passam a vivenciar uma situação semelhante à de seus
antepassados tribais e camponeses, tendo inclusive a oportunidade
de resgatar suas antigas teologias e tradições espirituais;

3ª) terceira grande reforma (as palavras proféticas


conquistam espaço) – enquanto, nas reformas anteriores,
prevalecia a voz da classe dominante nos registros escritos que,
mais tarde, comporiam a Bíblia; com a invasão da Assíria (732 a.C.),
a destruição de Samaria (722 a.C.) e, finalmente, a destruição de
Jerusalém (598 a 587 a.C.) – centros do poder de Israel e Judá –, a
voz do povo oprimido finalmente ganha espaço. Mesmo durante
as reformas anteriores, paralelamente à teologia oficial, persistiam
nas vilas camponesas a teologia, a espiritualidade e a ética dos
primeiros tempos de Israel, as quais relacionavam o sagrado, e
Javé, com a defesa da vida. Com a nova realidade consumada pela
invasão babilônica, a forma camponesa de compreender o sagrado
e a vida atinge as cidades através da voz dos profetas, onde passa
a dividir espaço com os textos oficiais, quando também recebe
registro escrito. Ainda que os textos proféticos tenham passado por
releituras para se adequarem à religião oficial, é por meio deles que
o deus da vida ganha espaço na Bíblia. Os livros dos profetas Isaías,
Amós, Oseias, Miqueias, Jeremias e Sofonias são exemplos do legado
da terceira grande reforma;

92
4ª) quarta grande reforma (a resistência dos exilados) – A
quarta grande reforma é aquela que ocorre fora dos espaços
territoriais de Israel e Judá, sendo promovida pela elite de
Jerusalém – mais precisamente, pela parte que passa a trabalhar nas
colônias agrícolas – durante o exílio na Babilônia. No local, essa
antiga elite experimenta uma vida análoga à da grande massa
populacional que ela oprimia em sua terra de origem e, como
consequência, também passa a experimentar uma relação com o
sagrado semelhante à dos pobres, extraindo de suas antigas
tradições aspectos libertadores. Diversos dogmas e sacramentos
que, até hoje, fazem parte de algumas religiões cristãs foram
extraídos das tradições pré-exílicas para serem relidos e
institucionalizados durante o exílio na Babilônia, com a finalidade
de fortalecer a fé em Javé – que tendia ao enfraquecimento diante
da realidade adversa – e também com a finalidade de identificá-lo
com uma possibilidade de libertação. A ratificação do sábado
(Sabbath) como um dia sagrado para o descanso é um exemplo
dessa reforma teológica, servindo tanto para evitar a escravidão,
quanto para se promover encontros com vistas ao fortalecimento
da religião. Outro exemplo é a circuncisão, também relida durante
o exílio. Vivendo em regime de escravidão, a antiga elite de
Jerusalém passa a enxergar sua situação, não como uma derrota de
Javé frente ao deus inimigo, mas sim como uma provação imposta
por aquele como parte de um processo de purificação. Sendo assim,
a circuncisão, que passa a ser obrigatória para todos os meninos
judaítas, serve para marcar os descendentes de Abraão, cuja
genealogia foi escolhida por Deus para a formação de uma aliança
perpétua e única. Devido à opressão, os deuses babilônicos deixam
de ser considerados deuses pelos exilados, que os associam à
promoção da violência e escravidão. Como consequência, uma
concepção monoteísta da fé respaldada em Javé passa a ganhar
espaço entre os exilados em detrimento da monolatria existente
entre eles até então. Contudo, essa reestruturação da teologia oficial
de Israel com base na releitura das tradições pré-exílicas e no
monoteísmo será registrada em textos bíblicos e ganhará força em

93
sua terra de origem somente anos mais tarde, após o rei Ciro da
Pérsia derrotar o império babilônico e conceder liberdade aos
exilados. Então, a partir de 530 a.C., os exilados empreendem
regresso a Jerusalém e, com o envio de Neemias e do sacerdote
Esdras por intermédio de seus apoiadores persas, reconstroem as
muralhas, o Templo e a cidade entre 515 a.C. a 400 a.C. Desse
momento em diante, a teologia libertadora criada no exílio passa a
ser paradoxalmente utilizada pela elite recomposta para, mais uma
vez, promover a marginalização de seus conterrâneos camponeses,
os quais haviam ocupado seus latifúndios durante o tempo de
exílio. Destacando as ideias de que o povo de Deus é composto
somente pelos descendentes puros de Abraão, que profanar o
sábado é um crime gravíssimo e que o pecado é definido pelas leis
da pureza e impureza, é no período da quarta reforma que são
concebidas as formas atuais dos livros integrantes do Pentateuco
(Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio);

5ª) quinta grande reforma (a canonização dos livros proféticos e


sapienciais) – o retorno dos exilados somado ao apoio que lhes fora
concedido pelos persas possibilitam novamente a imposição de uma
teologia oficial em Jerusalém. Ainda assim, paralelamente a essa, a
teologia camponesa de defesa da vida permanece se manifestando ao
longo da quinta grande reforma, sendo a responsável por originar os
livros de Jó, Cântico dos Cânticos e as novelas bíblicas, como a de Rute e
Jonas. Eis que o domínio persa cai por terra com o triunfo de Alexandre,
o Grande, em 333 a.C., quando a Judeia passa então ao domínio dos
gregos. Esse revés contribui para que outros textos motivados pela
teologia camponesa de defesa da vida passem a integrar o cânone
bíblico. Na luta contra a imposição da cultura grega pelos reis
Selêucidas (200 a 142 a.C.), os escritos dos profetas são considerados
sagrados e passam a integrar o cânone oficial ao lado do Pentateuco. Esse
período de luta contra a dominação estrangeira é terreno fértil para se
buscar apoio no deus da vida, sendo que é também no período da
quinta grande reforma que surge, como uma forte corrente política,
teológica e espiritual de resistência, a Apocalíptica. Embora a maior

94
parte de seus textos não tenha sido canonizada, é da Apocalíptica que
se extraem os livros de Daniel e Apocalipse de São João, os quais são
incorporados ao Antigo e ao Novo Testamento respectivamente. Depois
da Apocalíptica, ainda em tempos da quinta grande reforma, também
são considerados sagrados e passam a integrar o cânone bíblico o livro
dos Salmos e os demais livros Sapienciais (Provérbios, Lamentações,
Eclesiastes, Ester). Segundo o Portal Católico (2014), são considerados
livros Sapienciais o livro de Jó, Provérbios, Eclesiastes, Eclesiástico e
Sabedoria, sendo que Salmos e Cântico dos Cânticos também foram
popularmente incorporados à lista. Ainda segundo o portal, os
Sapienciais recebem essa classificação por serem livros que versam sobre
a sabedoria divina, “que o homem vê atuando na criação, mas é incapaz
de perscrutar” e que o atinge a partir da devoção. Com a inclusão dos
Sapienciais, completa-se finalmente o Antigo Testamento, do qual
emergem duas possibilidades de leitura, uma voltada para a
justificação do poder e outra voltada para a defesa e promoção da vida;

6ª) sexta grande reforma (a tradução da Bíblia do hebraico


para o grego) – esta reforma é marcada pelo processo de tradução
dos livros bíblicos do hebraico para o grego, o que se deu por volta
do ano 280 a.C. A primeira versão grega da Bíblia foi denominada
de Septuaginta ou Bíblia dos Setenta (LXX), porque reza a lenda que
ela havia sido engendrada por um grupo de setenta sábios judeus.
Essa versão não se resumiu à tradução dos livros originalmente
escritos em hebraico, mas também acrescentou novos livros,
modificou a ordem em que eles apareciam na Bíblia hebraica e
alterou algumas de suas partes com vistas a uma nova perspectiva
de leitura. Entre os acréscimos, a Septuaginta inseriu sete novos
livros – Judite, Tobias, 1 e 2 Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico e Baruc –
, os quais, posteriormente, seriam incorporados à Vulgata, que se
tornou a Bíblia oficial da Igreja Católica. Quanto ao ordenamento
dos livros, Rute foi reposicionada após Juízes; e Crônicas, Esdras e
Neemias, após Reis. Já com relação às alterações textuais, a
Septuaginta reforçou a santidade, a pureza e o messianismo de Davi,
além de ampliar os livros de Ester e Daniel. Essa Bíblia, que

95
corresponde à sexta e última grande reforma, foi bastante
importante para a ampliação do Cristianismo, pois passou a ser
utilizada por comunidades cristãs primitivas fora da Palestina.
Ainda que em menores proporções quanto à seleção, alteração
e tradução de textos, o surgimento de novas versões bíblicas oficiais
não parou com a Septuaginta. Já no século IV, surge outra versão
bíblica a ser comparada à Bíblia dos Setenta no que tange sua
importância para a propagação do Cristianismo, trata-se da
Vulgata. Enquanto aquela foi escrita em grego; esta, por sua vez, foi
concebida em latim e, devido à abrangência territorial de alcance
desta língua, espalhou-se por toda a Europa. A Vulgata foi
encomendada pelo Papa Damásio I e elaborada por São Jerônimo,
cujo trabalho enfocou a seleção, revisão e tradução de textos
bíblicos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento. A versão
escrita por São Jerônimo permaneceu por muito tempo como sendo
o cânone bíblico oficial da Igreja Católica.
Em última instância, a versão oficial da Bíblia cristã-católica
como a conhecemos hoje foi definida a partir dos concílios
realizados pela Igreja ao longo de sua história. Segundo o jornal
eletrônico Baixada Católica (2001), foram realizados 21 concílios
ecumênicos, os quais tiveram a finalidade principal de definir a
doutrina da religião, sendo eles: 1º) Concílio de Niceia I – 325; 2º)
Concílio de Constantinopla I – 381; 3º) Concílio de Éfeso – 431; 4º)
Concílio de Caldedônia – 451; 5º) Concílio de Constantinopla II –
553; 6º) Concílio de Constantinopla III – 680 a 681; 7º) Concílio de
Niceia II – 787; 8º) Concílio de Constantinopla IV – 869 a 870; 9º)
Concílio de Latrão – 1123; 10º) Concílio de Latrão II – 1139; 11º)
Concílio de Latrão III –1179; 12º) Concílio de Latrão IV – 1215; 13º)
Concílio de Lyon I – 1245; 14º) Concílio de Lyon II – 1274; 15º)
Concílio de Viena/França – 1311 a 1312; 16º) Concílio de Constança
–1418; 17º) Concílio de Basileia/Ferrara/Florença – 1431 a 1442; 18º)
Concílio de Latrão V – 1512 a 1517; 19º) Concílio de Trento – 1545 a
1563; 20º) Concílio Vaticano – 1869 a 1870; 21º) Concílio Vaticano II
– 1962 a 1965.

96
Para maiores informações sobre as decisões tomadas em cada
um dos 21 concílios, recomenda-se acessar o website do mesmo
jornal eletrônico, mais especificamente o texto intitulado Os 21
concílios ecumênicos da igreja, publicado na edição de 7 de novembro
de 2011.
Voltando às seis grandes reformas apontadas por Dietrich
(2014), é possível perceber que, entre as diversas variáveis que
marcaram o processo de composição da Bíblia, esse livro foi
iniciado sob a égide de duas grandes influências antagônicas entre
si: de um lado, a influência tribal e camponesa, que, segundo o
autor, trata-se da essência da Bíblia (a Bíblia-casinha), caracterizada
pelo uso da fé como forma de promover “experiências de libertação
e de resgate da dignidade”; do outro, a influência do opressor, que
se valeu das diversas experiências de fé da região para engendrar
uma versão bíblica oficial (a Bíblia-casarão), a qual, fundamentada
no monoteísmo, serviu aos poderosos como instrumento de
manipulação das massas e opressão.
A história de composição da Bíblia demonstra, portanto,
que ela é um livro de contradições por essência, afinal, ela é fruto
de um longo tempo de produção, das influências de crenças e
literaturas de diferentes regiões e contextos sociais, dos anseios e
ambições dos múltiplos autores que trabalharam em sua versão
escrita, assim como das diferentes religiões que dela se serviram
como paradigma de fé. É justamente nessas contradições e
variáveis relacionadas ao seu processo de produção que reside toda
a riqueza da Bíblia, uma verdadeira biblioteca erudita, que serve de
referência para o estudo das mais diversas áreas do saber, como a
História, a Sociologia, a Filosofia, a Política e, ao interesse deste
artigo em particular, a Literatura e a Teologia.

3. LITERATURA E RELIGIÃO: UMA RELAÇÃO


HISTORICAMENTE TENSA

A relação entre Literatura e religião – cujo denominador


comum é o sagrado, seja para ratificar a fé teológica, para redefini-

97
la ou, até mesmo, para negá-la – sempre se mostrou um tanto hostil.
Essa realidade não se alterou significativamente com o passar dos
anos, mesmo com as inúmeras obras heterodoxas (de ficção ou de
crítica) publicadas em larga escala a partir do século XIX; com a
facilidade de acesso à informação e o intercâmbio cultural
proporcionados, sobretudo, pela rede mundial de computadores a
partir do século XX; ou ainda, em uma visão panorâmica, pelo
pluralismo religioso cada vez mais configurado com o transcorrer
do século XXI.
Reações extremas podem ser vistas partindo dos dois lados.
Da parte da Igreja, um exemplo claro foi o Índice dos Livros Proibidos
(Index Librorum Prohibitorum), cuja primeira versão nasceu do
Concílio de Trento (1545-1563) e foi publicada em 1559. A obra
tinha como finalidade listar e censurar os livros que se
manifestassem contrários à doutrina da Igreja, tendo sido revogada
somente em 1966, no papado de Paulo VI.
Da parte da Literatura, no que diz respeito a manifestações
explicitamente contrárias à ortodoxia religiosa, não há como não se
lembrar de José Saramago e seus romances O Evangelho Segundo
Jesus Cristo (1991) e Caim (2009). Tendo em vista que aquele,
segundo Vanessa Neves Riambau Pinheiro (2007, p. 8), “já foi
dissecado pela crítica de todo o mundo e questionado até mesmo
pelo governo e pela Igreja”, reserva-se espaço aqui para uma breve
apresentação deste.
Caim toma como referência o livro de Gênesis, partindo da
história de Caim (capítulo 4, versículos 1 a 26) em direção à
conhecida história da arca de Noé (capítulos 5 a 9). Se a
interpretação cristã mais convencional limita-se a retratar Caim
como o enciumado filho de Adão que fora condenado por Deus
após matar o próprio irmão e, por essa razão, como alguém digno
de reprovação; na obra de Saramago, ele figura como um
personagem altamente crítico, dotado de coragem e inteligência
suficientes para enfrentar um deus que comete injustiças e que
brinca de guerra com os seres humanos. Rodrigo Corrêa Martins
Machado e Gerson Luiz Roani (2012) afirmam que, diante dessa

98
configuração, Caim mata Abel quando, na verdade, queria matar o
Senhor; e, quando já está na arca enfrentando o dilúvio, mata todos
os tripulantes – exceto Noé, que se suicida – com a intenção de
impedir a sobrevivência da humanidade e, desse modo,
impossibilitar Deus de tornar a desgraçá-la à sua conveniência.
Trabalho predecessor ao de Saramago e que já anunciava o
tom libertino e crítico com o qual a Literatura abordaria a religião
em seu aspecto institucionalizado é o conto O Evangelho Segundo
São Marcos, de Jorge Luis Borges, publicado na coletânea O Informe
de Brodie, de 1970. O enredo trata da história de Baltasar Espinosa,
estudante de Medicina, que acaba isolado no sítio de seu primo,
juntamente com um capataz e sua família, devido ao
transbordamento do rio Salado após um período de chuvas
intensas. O conto de Borges estabelece relação intertextual com
várias passagens bíblicas, das quais se exaltam as histórias de Noé
e sua Arca e de Jesus Cristo. O desfecho do conto é trágico para
Espinosa, o qual, após ler o Evangelho Segundo Marcos para os
empregados, acaba sendo associado por eles ao próprio Cristo e,
portanto, sendo crucificado em prol da salvação deles.
Ainda que menos contundente e direto em suas críticas do que
Saramago, Borges não deixa de aludir ao fanatismo religioso e às
tragédias dele decorrentes. Além da própria crucificação do
protagonista, outra passagem que deixa evidente essa abordagem
crítica dá-se quando, terminada a leitura do Evangelho Segundo
Marcos, Espinosa se oferece para ler outro texto, porém o capataz
manifesta preferência pela releitura do mesmo. Eis uma clara
alusão ao modo como a Igreja insiste na repetição de seus textos,
rituais e celebrações como estratégia pedagógica com vistas à
manutenção da fé dogmática:

Concluído o Evangelho segundo São Marcos, quis ler outro dos três
que faltavam; o pai pediu-lhe que repetisse o que já havia lido, para
entendê-lo bem. Espinosa sentiu que eram como crianças, a quem a
repetição agrada mais que a variação ou a novidade. (BORGES, 2008,
p. 83).

99
Se, por um lado, Borges é crítico em relação à ortodoxia
religiosa, por outro, ele não deixa de reconhecer o valor da Bíblia
em sua dimensão literária. Em consonância com sua famosa
declaração em Harvard3, ele reafirma o imenso potencial literário
da história de Jesus Cristo e, mais do que isso, admite a influência
dela em seu próprio trabalho a partir das reflexões de Espinosa:

Folheou o volume e seus dedos o abriram no começo do Evangelho


segundo São Marcos. Para se exercitar na tradução e talvez para ver
se entendiam algo, decidiu ler para eles aquele texto após o jantar.
Surpreendeu-o que o escutassem com atenção e depois com tácito
interesse. Talvez a presença das letras de ouro na capa lhe desse mais
autoridade. Trazem isso no sangue, pensou. Também lhe ocorreu que os
homens, ao longo do tempo, sempre repetiram duas histórias: a de um barco
perdido que procura pelos mares mediterrâneos uma ilha querida, e a de um
deus que foi crucificado no Gólgota. (BORGES, 2008, p. 82, itálico nosso)

É claro que a relação entre religião e Literatura não se resumiu


e não se resume à censura ou troca de acusações, tampouco
parecem terem sido esses os únicos objetivos de Saramago com
seus romances ou os principais objetivos de Borges com seu conto,
os quais, acima de tudo, visam à arte independentemente do tema
que a ela sirva de inspiração.
Atualmente, a religião tem demonstrado uma postura menos
rígida diante das manifestações literárias e da arte como um todo,
aceitando com que artistas expressem sua fé e experiência com o
divino de modo heterodoxo através de suas obras. Por mais que as
manifestações da Igreja se voltem predominantemente para obras
que não ferem o dogma, pelo menos, não em sua essência, a
instituição tem procurado, ao menos, fazer vista grossa e não

3 Pode-se dizer que, por muitos séculos, essas três histórias – a história de Tróia, a
história de Ulisses, a história de Jesus – têm sido suficientes à humanidade. As
pessoas as têm contado e recontado muitas e muitas vezes; elas foram
musicadas, foram pintadas. As pessoas as contaram inúmeras vezes, porém as
histórias continuam ali, ilimitadas. Pode-se pensar em alguém, em mil ou dez
mil anos, tornando a escrevê-las. (BORGES, 2007, p. 55)

100
censurar abertamente aquelas que o contrariam, tal qual ocorreu
com O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago, no século
passado. Em se tratando de manifestação institucional acerca da
Literatura, pode-se destacar a resenha de Dom Timóteo à obra Com
a Graça de Deus, de Fernando Sabino:

O Cristo vivo e real de Fernando Sabino não é apenas um homem


verdadeiro, reconhecido ao preço da sua divindade. O autor é
extremamente feliz ao começar sua “leitura fiel do Evangelho
inspirado no humor de Jesus” (ele explica também o que vem a ser
isto) com solene texto do Prólogo de São João, onde se enuncia esta
inusitada união dos extremos: o Verbo que era Deus se faz homem
para viver entre nós.
Sem o perceber, talvez, Fernando Sabino é absolutamente fiel às
decisões dos grandes Concílios do século IV, que conseguiram dar, já
com terminologia filosófica e intelectual, uma expressão inteligível
ao mistério do Cristo: duas naturezas, a divina e a humana, numa só
personalidade, que é divina – a Pessoa do Verbo, segunda pessoa da
Santíssima Trindade.
Este é, pois, o livro de um cristão decididamente fiel e ortodoxo e de
um romancista capaz de criar personagens e situações, dando a
verdade evangélica como limite à sua imaginação criadora.
(ANASTÁCIO, 1995, p. 8)

A Literatura, por sua vez, demonstrou-se historicamente mais


tolerante à religião do que esta em relação a ela. Afinal, “ainda mais
antiga que a tradição da crítica estética à religião é a crítica religiosa
à arte, já cultivada de forma veemente pelos Padres da Igreja em
seus primeiros séculos (Tertuliano, Agostinho, Jerônimo)”
(KUSCHEL 1999, p. 23). Embora haja casos de repúdio explícito à
Igreja, tal qual o de José Saramago, ou ainda de inversão completa
de dogmas, como o fez Monteiro Lobato (1995) em seu conto O Bom
Diabo, outros exemplos revelam não uma afronta direta à religião,
mas sim concepções variadas acerca do sagrado e, até mesmo, da
própria Literatura.

101
4. OS PRIMEIROS PASSOS DA TEOPOÉTICA

O abrandamento das tensões envolvendo religião e Teologia


de base dogmática, de um lado, e Literatura, de outro, começou a
ocorrer efetivamente a partir da promoção de diálogos mais
estreitos entre as três religiões do livro – Cristianismo, Judaísmo e
Islamismo – pautados mais em discussões sobre as contribuições
dessas instituições enquanto promotoras de experiências com o
sagrado e menos em discussões sobre seus preceitos particulares
com vistas à legitimação da fé. O primeiro a contribuir nesse
sentido, inclusive em âmbito acadêmico, foi o professor, sacerdote,
teólogo e filósofo suíço Hans Küng.
Küng, que nasceu em 1928 na Suíça e viveu muitos anos na
Alemanha, lecionando na Universidade de Tübingen, foi inclusive
proibido pela Igreja de lecionar em instituições públicas católicas
de Ensino Superior justamente por sua postura liberal –
excessivamente liberal segundo a Igreja – refletida em obras como
Structures of the Church (Estruturas da Igreja – 1966), Why Priests?
(Por que Padres? – 1972) e On Being a Christian (Ser um Cristão – 1977).
Nesta, o então sacerdote e professor dedicou um capítulo exclusivo
para falar da relação dos escritores com Deus, no qual lhes assegura
total liberdade para manifestar suas experiências com o sagrado
através das suas obras.
Tomando como exemplo Jesus Cristo, Küng (1976, p. 143)
sustenta que um escritor não está interessado em uma investigação
histórica e impessoal do personagem, muito pelo contrário, o que
lhe interessa é uma abordagem subjetiva motivada por um tema ou
ponto que ele pretenda investigar. Assim, cabe ao escritor o uso da
liberdade de criação literária no tratamento do personagem e, por
sua vez, é a Teologia que deve se preocupar com a busca pelo
verdadeiro cristo.
Na esteira de Hans Küng, veio aquele que foi seu assistente
científico até 1989, Karl-Josef Kuschel (1948). Inicialmente, Kuschel
deu sequência aos trabalhos de seu mestre visando ao diálogo
interreligioso entre cristãos, judeus e muçulmanos (SOETHE,

102
2008). Contudo, sua contribuição mais peculiar deu-se em sua
segunda esfera de atuação: as relações entre Teologia e Literatura.
A essa linha de pesquisa, o teólogo alemão e vice-presidente da
Fundação Ética Mundial, atualmente com 66 anos de idade,
atribuiu o nome de Teopoética, conceito que foi difundido a partir
de sua pioneira obra Os Escritores e as Escrituras: retratos teológico-
literários.
Segundo Kuschel (1999, p.31), a Teopoética não está à procura
de uma nova Teologia, não pretende substituir o deus de Jesus
Cristo pelos deuses dos poetas. O que ela almeja é discutir a
questão da estilística de um discurso sobre Deus que seja atual e
adequado, investigando “a crítica estético-literária à religião e a
crítica religiosa à estética”. (KUSCHEL, 1999, p. 14)
Em Karl-Josef Kuschel faz 60 anos: teologia em diálogo, O Prof. Dr.
Paulo Astor Sothe (2008), o qual foi inclusive o responsável por
redigir a apresentação de Os Escritores e as Escrituras em sua versão
publicada no Brasil, sustenta que Kuschel não insiste no uso da
Literatura para fins religiosos e, ao mesmo tempo, não ignora nas
produções literárias já consagradas pela história a presença do
elemento religioso; pois, tanto em função de seu caráter livre e
indeterminado, quanto por sua inerente capacidade de representar
a multiplicidade humana, a arte pode proporcionar ao homem um
intenso contato com aquilo que o transcende. Segundo Sothe (2008,
s.p.), Kuschel entende que “as experiências religiosa e estética
preservam cada qual sua especificidade e valor próprio, e
iluminam-se reciprocamente, em uma relação nem sempre pacífica
de afirmação e crítica”.
O interessante desta relação entre Teologia e Literatura está
justamente na complementaridade dessas duas áreas. De um lado,
o sagrado e a própria religião servem de tema para a boa Literatura
por possuírem um riquíssimo repertório de personagens e
histórias, os quais, por estarem vinculados à fé, despertam a
inquietação dos seres humanos. De outro, ao inseri-los no universo
ficcional, a Literatura proporciona, logo de início, duas vantagens:
primeiramente, assegura maior liberdade no tratamento dos temas,

103
por não precisar se subordinar ao dogma e ortodoxia religiosos;
além disso, está menos sujeita à rejeição e, portanto, as histórias e
personagens que resgata podem despertar o interesse dos mais
variados tipos de escritores e leitores, superando a barreira
engendrada pela fé institucionalizada. Küng ressalta esta vantagem
ao falar de Jesus Cristo:

Qual é a atitude típica da literatura contemporânea em relação a Jesus


de Nazaré? Primeiro de tudo, enquanto a religião está sujeita à crítica
e a Igreja é amplamente ignorada e rejeitada, a figura de Jesus é
perceptivelmente “poupada”, com o resultado de que uma rejeição
expressa – como a de Gottfried Benn e, mais tarde, Rainer Maria
Rilke, concebivelmente após a leitura de seu predecessor Nietzsche –
é comparativamente rara. (KÜNG, 1976, p. 138, tradução nossa)4

A relação entre Teologia e Literatura é mais estreita do que


pode parecer à primeira vista. Obras das mais diferentes
nacionalidades atestam o interesse da Literatura e dos leitores por
temas historicamente associados à fé teológica. São exemplos: A
Divina Comédia, do italiano Dante Alighieri; El Evangelio de Lucas
Gavilán, do mexicano Vicente Leñero; e, para lembrar uma
publicação mais recente, O Código da Vinci, do norte-americano Dan
Brown. Este, conforme informa Elaine Cristina Reis (2008, p. 9), em
O Código da Vinci: diálogos e ruídos entre teologia e literatura, vendeu
60 milhões de exemplares e foi citado em inúmeras revistas, jornais,
sites e programas de televisão. Literatura ou subliteratura, o fato é
que o livro de Brown comprova a repercussão que o tema religioso
ainda tem sobre a sociedade moderna.

4 What is typical of the attitude of contemporary literature to Jesus of Nazareth?


First of all, while religion is subjected to criticism and the Church largely ignored
and rejected, the figure of Jesus is conspicuously “spared”, with the result that
an express rejection – as with Gottfried Benn and the later Rainer Maria Rilke,
understandable after reading their predecessor Nietzsche – occurs
comparatively rarely. (KÜNG, 1976, p. 138)

104
Em contrapartida – embora, muitas vezes, passe despercebido
– a religião tem a sua base em um livro (a Bíblia) essencialmente
literário, formando uma simbiose entre Literatura e religião
conforme se observou acima. Salmos e Cântico dos Cânticos, para
citar exemplos mais sobressalentes, são livros bíblicos que
exploram com muita propriedade a função poética da linguagem.
Juntamente com Provérbios, Lamentações, Eclesiastes e Ester, esses
livros compõem o grupo dos livros Sapienciais, que, segundo
Dietrich (2014), recebe esse nome pelo fato de os respectivos livros
discorrerem sobre a sabedoria divina, a qual atinge o homem
através da devoção. Essa relação de cumplicidade entre Teologia e
Literatura também é observada por Alcaraz (1998, p. 198):

Se o universo religioso recorre à criatividade da linguagem para


expressar o indizível, de igual modo a expressão literária encontra no
universo religioso uma mina inexaurível. Na mitologia greco-latina,
religião e literatura formam uma simbiose de tal maneira que é
impossível conceber a existência de uma delas sem a outra. Já nas
religiões monoteístas que se consideram históricas e não mitológicas
a situação é um pouco diferente. (ALCARAZ 1998, p. 198)

A situação diferente em relação às religiões monoteístas a que


Alcaraz se refere acima não está relacionada a uma real ausência de
Literatura nelas, mas sim ao não reconhecimento do elemento
literário por partes delas, o que remete ao histórico conflito entre
Teologia e Literatura. Em outro trecho, o mesmo Alcaraz (1998, p.
198) destaca o elevado grau de literariedade presente nas religiões
monoteístas, mais especificamente, nos livros que compõem a
Bíblia: “Obviamente, há livros nos quais o literário ou poético se
destacam especialmente. Podemos citar como exemplos o livro de
Jó, os Salmos, o profeta Isaías e o Cântico dos Cânticos”.
Se Teologia e Literatura afetam-se mutuamente de um modo
inevitável e recorrente, a pergunta que fica é a seguinte: como se
deve conduzir um estudo que vise a investigar a forma como essas
relações emergem dos textos literários? Tendo em vista que a crítica

105
religiosa à arte é anterior à crítica estética à religião, para responder
a essa pergunta, Kuschel (1999, p. 218-9) apresenta inicialmente os
métodos utilizados na primeira situação, ambos considerados por
ele obsoletos:
a) método confrontativo – considera a crítica dos escritores ao
Cristianismo como algo desfigurado em função de fatores
individual-biográficos. Por esse viés, as visões de mundo dos
escritores são tidas como ecléticas e a compreensão de religião aí
apresentada como subjetiva;
b) método correlativo – a Teologia não é compreendida como
a Teologia da revelação, mas como experimental e dialógica. Nesse
sentido, ela ilumina o mistério da realidade humana, mas sobre o
prisma da revelação cristã.
Para Kuschel, o método confrontativo limita o diálogo entre
Teologia e Literatura à confrontação entre ideologia e verdade,
posto que a Teologia cristã acredita ser a detentora desta. Desse
modo, esse primeiro método acaba impossibilitando a contestação
de preceitos, pois a revelação cristã sempre se apresenta como a
solução para todas as questões. Em sua obra O Anticristo, Friedrich
Nietzche (1997, p. 21) reforça essa tese ao afirmar que o
Cristianismo “é em si de todo indiferente se algo é verdadeiro, mas
é da maior importância enquanto se tomar como verdadeiro.”
O método correlativo, por sua vez, impõe ao diálogo Teologia-
Literatura um esquema de perguntas e respostas, mas acaba
igualmente encontrando na revelação cristã a solução para as coisas
e, portanto, a Literatura é reduzidamente utilizada para fins
teológicos:

A revelação cristã por certo contém muitas respostas, mas a


característica dessas respostas reside justamente não em fazer calar
as perguntas fundamentais da existência humana, mas conduzi-las a
uma perspectiva correta. As perguntas últimas do ser humano não
são suspensas pela revelação, mas formuladas por ela: se Deus é o
criador do mundo, então por que o mundo é como é? (KUSCHEL,
1999, p. 221)

106
Em resposta à pergunta feita anteriormente, Kuschel
apresenta o método da analogia estrutural, considerando-o mais
fértil que seus anteriores por promover um diálogo efetivo entre
Teologia e Literatura, sem que a voz de uma se sobressaia à da
outra; resguardando, assim, suas respectivas propostas e
especificidades.
De um modo geral, o método da analogia estrutural consiste
na constatação de correspondências e discrepâncias entre a fé
teológica, com seus textos canônicos e interpretações autorizadas,
e o que emerge dos textos literários enquanto manifestações
autênticas. Para Kuschel (1999, p. 222), “só se faz jus a essa relação
de tensão, portanto, quando se pensa em correspondências
estruturais, ou seja, em ligações e contradições: quando se
acentuam os traços comuns, sem, contudo, hesitar na formulação
dos traços distintivos”. Desse modo, o método permite considerar
a experiência e a interpretação literária em suas correspondências
com a interpretação da realidade, mesmo quando a Literatura não
tem caráter cristão ou eclesiástico; e, ao mesmo tempo, não deixa
de constatar o que é contraditório na Literatura em relação à
interpretação cristã da realidade.
Em suma, o método da analogia estrutural deve ser entendido
como suprassunção dos métodos confrontativo e correlativo em
três sentidos: a) como negação, porque evita as fraquezas oriundas
da funcionalização da Literatura; b) como afirmação, porque
preserva o momento de verdade dos métodos confrontativo e
correlativo; c) como superação, porque pretende alcançar um novo
tipo de diálogo, o qual só se faz possível se a Literatura for
considerada como testemunho autônomo dos próprios poetas e se
a Teologia não se apresentar como discurso capaz de responder a
todas as questões existenciais. Assim, “com o pensamento em
termos de correspondências, almeja-se a conquista de uma
teopoética, uma estilística do discurso adequado para falar de Deus
nos dias de hoje” (KUSCHEL, 1999, p. 223).

107
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Deu-se início a este artigo considerando que é inerente à


espécie humana buscar explicações para os fenômenos que a
cercam e que essa ânsia por respostas é aquilo que mais a difere das
demais espécies de animais; mais ainda do que a própria
inteligência humana – capaz de discernir com especial clareza o
passado, o presente e o futuro – ou a complexidade de sua
linguagem. Baseado em Queiroz (2011, p. 17), considerou-se
também que, diante da falha do racionalismo puro ou da ciência
para explicar um determinado fenômeno, é comum ao ser humano
buscar respostas no sobrenatural, o que possibilitou afirmar que as
experiências com o sagrado (transcendente) também são inerentes
à espécie. Diante dessa realidade, destacou-se a importância de
discutir tais experiências com vistas a uma melhor compreensão
acerca do ser humano e de suas relações sociais.
Na sequência, sustentou-se que a religião não é o único meio
de possibilitar tais experiências, destacando que as artes, de um
modo geral, e a Literatura, em particular, serviram e servem como
uma alternativa bastante fecunda para promover o contado com o
sagrado; com a vantagem de não serem limitadas pelos ditames
religiosos e, simultaneamente, promoverem outra experiência
igualmente importante para o desenvolvimento e
autoconhecimento humano: a estética.
Recorrendo à história para tomar conhecimento sobre o
processo de composição da Bíblia, pôde-se observar que ela teve
início com o registro, adaptação e incorporação de textos inspirados
em histórias orais provenientes dos diferentes povos que
habitavam as regiões montanhosas de Canaã. Essa Literatura oral
não tinha originalmente compromisso com nenhuma teologia
oficial, até mesmo porque os povos que a disseminavam eram
politeístas e suas experiências religiosas estavam basicamente
voltadas para a defesa e promoção da vida: o ímpeto de promover
uma religião oficial era inexistente naquela época. Segundo
Dietrich (2014), foi somente por volta do ano 1.000 a.C que os textos

108
bíblicos começaram a receber registro escrito, de modo que às
histórias provenientes da Literatura oral foram sendo incorporados
outros textos, engendrados por diferentes autores e em diferentes
lugares, como Palestina, Babilônia, Egito e Ásia Menor. Essa rica
bibliografia passou, a partir de então, por adaptações, traduções,
seleções de texto, tudo isso visando à criação de uma religião
oficial, dotada de uma teologia própria com base na ideia do Deus
único (monoteísmo), a qual surgiu com o propósito inicial de
assegurar a hegemonia das classes mais abastadas de Israel em
detrimento da emancipação da grande massa populacional.
Em suma, o mesmo Dietrich (2014) nos informa que foi
necessário um período de aproximadamente 1.200 anos para que a
Bíblia recebesse a sua forma atual e se consolidasse como o livro
sagrado do Cristianismo; lembrando que parte de seus livros e
personagens também são tomados como paradigma da fé pelo
Judaísmo e Islamismo, outras duas religiões de grande influência
sobre a cultura ocidental.
A história de composição da Bíblia serve, portanto, para
comprovar que essa coletânea de livros é, acima de tudo, uma obra
literária, como confirma Jack Miles (2002, p. 15) ao considerar a
própria religião ocidental como a mais bem-sucedida de todas as
obras literárias. Essa afirmação se justifica pelo fato de a Bíblia ter
sido imprescindível para que o Cristianismo conseguisse
extrapolar os limites de Israel e se tornar uma religião
transcontinental, mesmo efeito que parte de seus livros e
personagens – através da Bíblia hebraica e do Alcorão – tiveram
sobre o Judaísmo e Islamismo.
Sendo assim, a condição da Bíblia enquanto obra literária e, ao
mesmo tempo, paradigma e instrumento disseminador da fé permite
concluir que Teologia e Literatura são realidades intrínsecas. Diante
dessa premissa, surge a necessidade da adoção de um novo método
de pesquisa para investigá-las que supere a compreensão de que a
adesão à Teologia implica necessariamente na negação da Literatura
e das experiências com o sagrado proporcionadas por intermédio
desta; ou o contrário, que experimentar o sagrado através da

109
Literatura corresponde necessariamente em ignorar ou menosprezar
o conhecimento teológico.
Eis que o método da analogia estrutural, desenvolvido por
Kuschel (1999), apresenta-se como uma possibilidade de superação do
impasse supracitado ao analisar as correspondências e discrepâncias
entre a fé teológica, com seus textos canônicos e interpretações
autorizadas, e aquilo que emerge dos textos literários enquanto
manifestações autênticas. Em última instância, esse método possibilita
analisar o aspecto teológico presente em obras literárias, assim como
o aspecto literário presente na Teologia; considerando, portanto,
análogas e complementares as experiências com o sagrado
proporcionadas pela Teologia e pela Literatura, ou melhor, pela
literatura canônica e pela literatura heterodoxa.

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111
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A data 1997 é referente ao texto-fonte para a presente edição
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SOTHE, Paulo. Karl-Josef Kuschel faz 60 anos: teologia em diálogo.
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112
ENTRE O MIMÉTICO E O AMIMÉTICO: A CRÍTICA
LITERÁRIA ENQUANTO POSICIONAMENTO DISCURSIVO
E ESCRITURA1

Jacob dos Santos Biziak

"A tolice consiste em querer concluir." (Flaubert)

A menção da epígrafe acima, neste trabalho, busca trazer as


vozes que ecoam no enunciado citado para dentro de nossas
reflexões, outras e semelhantes ao mesmo tempo. Trata-se de um
pequenino trecho da obra Bouvard e Pécuchet (2007), de Flaubert,
que, segundo Leda Tenório da Motta (2002), é:

Frontispício planejado para compreender o duplo movimento de nossos


dois heróis investigadores aposentados. De um lado, acumulando
conhecimentos o mais gravemente possível. Verdadeiros duplos de seu
criador, Flaubert, nesse sentido, aliás, que eles eram. De outro,
malbaratando esses conhecimentos acumulados, sempre ultrapassados
pela diabólica excitação de ir além, o que explica sua inevitável condição
final de arquivadores passivos. (p. 181)

Dessa maneira, a referida obra de Flaubert traz e representa


questionamentos cujos discursos de origem encontram-se no seio

1 Trabalho apresentado, no formato de comunicação, durante o VI Colóquio e I


Instituto da Associação Latino-Americana de Estudos do Discurso – ALED-
Brasil, na UFSCar, em julho de 2016. Dedico este trabalho aos meus alunos do
curso de Letras do Instituto Federal do Paraná, campus Palmas, que compõem
os encontros do G.E.Di e com quem realizei parte das leituras necessárias a esta
reflexão. Dedico, também, ao amigo e colega de trabalho Dr. Jaison Crestani, cuja
fala, em um evento de nosso Instituto e de nosso curso, me despertou para
começar a pensar o que coloco aqui.

113
da formação discursiva positivista, estabelecendo com ela amplo
diálogo crítico a respeito das condições e possibilidades dos
sujeitos representarem a realidade. Em A cidade e as serras (2011),
Eça de Queirós – que, por seu turno, apresenta vigorosos diálogos
com Flaubert – apresenta, por meio de seu narrador Zé Fernandes,
uma representação e um posicionamento a respeito do contato do
ser humano com a realidade que o cerca. Dessa maneira, os
excessos do sobrado 202, residência de Jacinto, protagonista da
obra, descritos hiperbolicamente, trazem um ar de “ficção
científica” bem no momento em que não só a estética realista
começa a se desgastar, mas também as ideologias positivista e
cientificista, marcadamente francesas, encontram seus
questionadores, uma vez que o projeto evolucionista parece falhar
com suas promessas. Percebemos, então, que os discursos, mesmo
quando se opõem, dentro de um espaço discursivo, se alimentam
de maneira a não existir um dentro e um fora a eles. Ao contrário,
cada um é atravessado e alimentado pelo interdiscurso que lhe
antecede e o compreende, de forma que existam mutuamente,
conforme defende Maingueneau (2008).
Portanto, tanto a obra de Flaubert quanto a de Eça ganham
força crítica a partir, exatamente, do que buscam desconstruir.
Nesse sentido, a diegese de ambos os romances executa o mesmo
movimento que os discursos exercem uns sobre os outros: se
remetendo ao interdiscurso, as relações de identidade e diferença,
alteridade, vão se desenhando por meio dos enunciados, frutos de
condições de produção específicas. As duas ficções romanescas,
então, não somente exercem um novo posicionamento discursivo
em relação à construção da realidade e aos sujeitos, como o fazem
partindo de uma nova maneira de se exercer a escrita. Esta, por sua
vez, deve ser interpretada, à luz de Derrida (1971), enquanto
escritura e suplemento, uma vez que questiona a ideia de essência
e de verdade cartesianas, além de desestabilizar e tornar
indecidível o sentido último dos enunciados, que, agora, só podem
ser lidos em contexto citacional.

114
Ao trazermos tal referência para nosso trabalho, buscamos
dialogar com ele de maneira a apontarmos o nosso objetivo mais
amplo. Nossas reflexões, então, buscam delinear objetivos e
reconhecer as vozes com que constroem uma arquitetônica
discursiva (Bakhtin, 1997a e 1997b). Nessa direção, buscamos
recuperar o nosso próprio interdiscurso, norteado pelas ideias
centrais de representação da realidade (mimesis), literatura,
posicionamento discursivo e escritura. Articulamos, então, essa
base com uma espécie de “crítica da crítica”, praticando uma
análise discursiva de autores e trabalhos da crítica literária
nacional, de forma a executar um exercício de interpretação
desconstrutivista em torna da ideia de mimesis ou de interpretação
da realidade que tal memória discursiva tem trazido sobre o
entendimento do que seria literatura. Nossa perspectiva é a de que
o tratamento enunciativo dado à atualização do discurso sobre a
mimesis revela um posicionamento a respeito do que a realidade
externa à obra seria, bem como sobre a literatura e a verdade.
Aristóteles, em Arte poética (1998), é um dos ícones mais fortes a
respeito do termo “mimesis”. Inclusive, suas ideias são (re)lidas de
maneiras diversas ao longo do tempo. Alguns colocam,
categoricamente, que o pensador teria expressado que a
representação da realidade deve ocorrer respeitando o que é externo
à obra, criando a sensação de verossimilhança. Mais
contemporaneamente, uma outra forma de se interpretar o texto
aristotélico foi apresentada: a verossimilhança não está, de antemão,
dada externamente aos enunciados. Ao contrário, ela é criada,
segundo a necessidade de cada obra, pela própria atualização dos
discursos. Dessa maneira, compreender a mimesis é uma prática,
não uma essência, que deve ser interpretada por meio de um
exercício de decifração semântica global das obras. Ou seja, analisar
a representação da realidade inclui levar em conta não só os
enunciados em si, mas as condições de produção dos mesmos, bem
como a rede dialógica que torna possível a existência deles. Logo, a
prática mimética só pode ser lida dinamicamente, e não a partir de
conceitos fixos que revelam mais um logocentrismo do que a

115
constituição dos diferentes gêneros discursivos (Bakhtin, 2000), cuja
circulação social também determina a escritura e a leitura.
No entanto, o que entendemos é que a atividade crítica da arte,
em especial da literatura, muitas vezes, é exercida ou recebida sem
que se leve em conta o próprio gênero discursivo que permite que
ela exista, bem como suas condições de produção, que,
necessariamente, nascem a partir de elementos históricos, sociais,
epistemológicos e ideológicos que habitam as obras por meio da
enunciação, que nunca é neutra, ainda que assim se deseje (o que
não deixa de ser, na verdade, outro posicionamento discursivo).
Portanto, a crítica literária não é imparcial. Ao contrário, ela
não revela somente juízo sobre a obra em si, mas sobre a realidade,
os sujeitos, os enunciados e, acima de tudo, sobre a maneira como
ela gostaria de ser lida. Daí, acreditamos existir um descompasso:
aplicar um funcionamento discursivo oriundo de uma formação
ideológica positivista e cientificista para enunciados que, muitas
vezes, buscam romper com essa ordem. Com isso, grande parte dos
diálogos que poderiam ser feitos com a literatura acabam se
reduzindo a esquematizações estruturalistas que pouco revelam
sobre a “arqueologia dos saberes” dos enunciados ali postos. Pior,
esse excesso de necessidade de categorizar acaba sendo
transportado para as salas de aulas, espaços onde se deveriam
formar leitores, acabam sendo reduzidos a exercícios
classificatórios de tipologias: de narrador, tempo, espaço,
personagem (o que chamamos “estrutura narrativa”).
Não se pretende, aqui, renegar as conquistas proporcionadas
ao estudo das textualidades tidas como literárias pelo
Estruturalismo. Ao contrário, nosso trabalho, por exemplo,
reconhece esse movimento como componente do interdiscurso que
nos viabiliza; além de que, temos plena convicção disso, a chamada
crítica pós-estruturalista, ao ser assim nomeada, estabelece um
vínculo com o que lhe antecede, com o que dialoga e com o que lhe
pertence. O problema que apontamos são os excessos a que certas
práticas acabam conduzindo e alguns “cegamentos” que acabam

116
por ocorrer ao não se reconhecer que toda busca “científica” possui
sua implicação ideológica que a faz existir pela enunciação.
Pensando nesse desenvolvimento da crítica literária, é de
nosso interesse o foco no caso brasileiro. Para tanto, Leda Tenório
da Motta (2002), em Sobre a crítica literária do último meio século,
realiza um percurso argumentativo e de reflexões que muito nos
interessa. Segundo a autora, é na cidade de São Paulo, acima de
tudo, onde vai se concentrar a atividade crítica que vai influenciar
outros pesquisadores e professores de parte considerável do país.
Nesse sentido, existirá um esforço de criação de uma “inteligência
nacional” no que tange os Estudos Literários significativo, mas que
nem sempre coincidirá no que diz respeito aos seus objetivos e
interesses. Dessa maneira, a formação do crítico literário brasileiro
parece ser muito marcada por valores diferentemente derivados do
“nacionalismo”. Do último meio século anterior (a partir de 1940
em diante) até a atualidade, nossa crítica parece se dividir entre o
sentimento nacionalista, como se algo houvesse sido perdido e não
recuperado, e o entendimento de uma modernidade em que a ideia
de “origem” é questionada, problematizando a relação de nossa
cultura com as demais:

Nada aqui seria verdadeiramente próprio. Ou porque, dizem uns,


lembrando a posição colonial, e batendo na tecla da dependência,
tudo nos é estranho, destituídos de cultura letrada original que
somos, desde sempre. Ou porque, dizem outros, lembrando que o
“infante” (o infans) é o que “não fala”, nunca fomos crianças,
dominamos de saída o código europeu sofisticado, nascemos falando
Barroco. São duas maneiras, parece-nos – uma nostálgica da unidade
perdida, a outra fixada na divisa moderna do eu como outro – de
lidar com o mesmo enquanto duplo. (página 43)

Teríamos, então, adotando o ponto de vista da autora, uma


tendência crítica mais ligada à revista Clima, outra à Noigandres. A
primeira publicação, surgida em 1941, de linha histórico-evolutiva,
é mais sensível à ideia de “formação”. Nela, encontram-se grandes

117
nomes do cenário intelectual brasileiro, como Antonio Candido,
Décio de Almeida Prado, Paulo Emilio Salles Gomes, entre outros,
tomando Mario de Andrade como símbolo. Sem ímpeto rebelde, o
grupo, seus colaboradores (como Sérgio Buarque de Hollanda) e
seus herdeiros (como o caso de Roberto Schwarz) voltam-se, com
frequência, à história nacional, ao passado, percebendo uma
espécie de lacuna a ser preenchida e investigando a possível origem
de nossa arte, de nossa literatura. Dessa maneira, existe uma
pesquisa de respaldo empresarial e universitário na direção de
analisar o que seria o início e a identidade de nossa cultura e de
nossas obras. Não devemos nos esquecer de que a revista nasce no
seio da Universidade de São Paulo, a USP, cuja base de formação é
de modelo francês. Isso não pode ser descartado quando pensamos
em entender o movimento crítico empreendido por Clima.
Por outro lado, a revista Noigandres, sem apoio universitário ou
empresarial, apresenta uma visada mais formalista sobre a arte,
como se tentasse recuperar o ímpeto demolidor da Semana de Arte
Moderna (Motta, 2002, p. 47), o que fica claro na eleição de seu ícone:
Oswald de Andrade. Esse grupo, entre outras características, será
firmado pela desestabilização da construção do conceito de
nacionalismo na crítica literária brasileira. Isso se dará, por exemplo,
por meio do próprio questionamento da ideia de “origem”: ou seja,
é possível a existência de uma “cultura pura”, sem nenhuma relação
de influência, a ponto de se pensar que a brasileira não possui
identidade clara, “original”, própria? Nesse sentido, a maneira de se
colocar a arte nacional em contato com seus diversos outros será
diferente, apontando outras problematizações. Dessa maneira, a
atividade crítica do grupo levará em conta uma outra relação com os
discursos, o que fica nítido pela intensa atividade de traduções
empreendidas pelo grupo, como o fez, por exemplo, Haroldo de
Campos. Assim, um olhar mais sincrônico é trazido para a atividade
do crítico literário, observando, por exemplo, as qualidades da
função poética da obra como elemento importante para a analisar e
lhe oferecer qualidades que não somente a de “produto estrangeiro”
em território brasileiro.

118
Logo, segundo Motta (2002), é nessa relação de tensão e
diálogo entre essas duas correntes de pensamento que será
formado o crítico literário brasileiro, mesmo na atualidade,
oscilando entre um “interminável drama da identidade, que dá
impressão de que o Brasil nunca é perto do Brasil” (p. 28) e o
“enredo metafísico” do nacionalismo em que a “cultura” é
amarrada “à palavra refratada da tradução – a tradução mais do
que a tradição!”, colocando-a “numa rede intertextual, ou
‘palimpsestuosa’” (p. 29). Tal “intriga” somente nos revela o
melhor: as infinitas possibilidades da literatura, que, se bem
aproveitadas, podem lançar entendimentos novos sobre o mesmo
conjunto de obras de um autor, como é o caso de Machado de Assis
e de Carlos Drummond de Andrade, ainda segundo Motta. Os dois
autores, constantemente, são lidos e pensados na relação entre
tradição e modernidade, nacionalismo e universalidade. Tal
diálogo serve, em perspectiva ampla, para alimentar e
potencializar o entendimento sobre as relação entre linguagem,
arte, as realidades e os sujeitos.
Na verdade, pensando com a ajuda de Freud, em Luto e
melancolia (2012), podemos tecer considerações a serem
acrescentadas ao que já foi proposto até aqui. Nessa obra, o
psicanalista mostra sua preocupação em delinear aspectos capazes
de diferenciar os fenômenos que dão título ao seu trabalho. Em
nosso caso, nos interessa o conceito delineado sobre a melancolia:
ela não se confunde com a tristeza. Na verdade, ela remete a um
objeto perdido e, por extensão, odiado, na mais remota infância do
indivíduo, de maneira que não se sabe do que ele trata, qual sua
identidade, sabe-se somente que é faltoso. Temos um objeto que cai
sobre o eu, instaurando um processo queixoso e de auto-
depreciação, como se a ferida da falta permanecesse
indefinidamente aberta, instaurando uma consciência moral que
atormenta o sujeito, já que parte das pulsões não conseguem se
ligar ao objeto, uma vez que perdido.
Sendo assim, pensando no desenvolvimento da atividade da
crítica literária no Brasil, percebemos, por analogia, que existe uma

119
espécie de “ferida aberta” causada por algum objeto, em nossa
cultura, que se julga perdido. É com isso que nossa crítica parece se
debater em diversos de seus melhores momentos. Por um lado,
desenvolver-se-á uma tendência mais melancólica em nossa crítica,
uma vez que se acredita que, de fato, algo falta em nossa história, o
que remeteria à ideia de início, de começo de nossa cultura,
instaurando uma angústia da influência e de um Brasil longe de si.
Por outro lado, outra crítica parece que vai entender tal falta como
inerente a tudo que envolve a linguagem, o que acarretaria a
necessidade de ela se pensar o tempo todo, se traduzindo
indefinidamente. Uma falta objetal, portanto, que pode nutrir todo
tipo de busca, instaurando um desejo de uma cultura que se irmana
às outras justamente porque em falta consigo mesma.
Acreditando nisso que acabamos de considerar, pensamos que
a crítica literária, então, necessariamente, se constrói ao redor do
vazio, já que sua matéria-prima, a linguagem, é feita disso. Nesse
sentido, nosso trabalho se alinha a uma perspectiva que busca
reconsiderar conceitos que, para alguns analistas, parecem
consolidados, quando isso, na verdade, acaba se revelando um
engodo perigoso para a construção dos enunciados críticos. A
“mimesis”, portanto, acaba se revelando um termo cujo uso deve
ser, especialmente, problematizado para que o crítico não seja
tragado pela ilusão de uma escrita crítica fechada. Assim, o que se
revelou preocupante a nós é o uso de um termo: amimético. O
prefixo “a”, aí, utilizado revelaria, então, uma negação da
qualidade “mimética”. No entanto, em que medida é possível uma
arte amimética? Ao redor do que ela se constituiria? Qual centro ou
qual medida permite que se destaque isso? Essas questões nos
levam por veredas que, mais uma vez, parecem reconduzir a crítica
ao encontro com algo perdido e que pode ser conquistado por
termos e métodos que, na verdade, quando pensados com mais
vagar, revelam toda uma problemática da crítica literária. Na
verdade, o emprego de certos termos acabam desvelando, mais que
revelando, intenções segundas da atividade crítica.

120
Alguns críticos, quando empregam o termo “amimético”,
estão se referindo a uma prática de representação da realidade que
não seria de base cartesiana, pautada, por sua vez, em uma ideia de
verdade permanente, que pode ser buscada pela linguagem. Nesse
sentido, devemos entender que, talvez, devamos considerar a
mimesis como prática e não como característica, a ponto de ser
tornar um adjetivo. O termo “mimético” não carrega uma ação,
mas um valor que está atrelado a uma categorização da realidade,
instaurando o externa à obra como perene. Na verdade, ao usarmos
o termo “mimético”, um adjetivo, estamos ignorando algumas
características das realidades que não devem ser colocadas em
segundo plano. Isso ocorre, por exemplo, com a própria realidade
externa à obra: toma-la como “fotográfica” é uma concepção, não
uma característica estável. Diante disso, toda representação do real
é mimética porque só pode ser interpretada já que atravessada pela
realidade que se acredita estar de “fora” da obra. Mesmo quando
pensamos em uma narrativa maravilhosa, como os contos de fadas,
por exemplo, o sentido só pode ser apreendido uma vez que
dialoga com a realidade externa à narrativa. Considerar uma
diegese como essa enquanto “amimética”, de maneira adjetiva,
seria classifica-la sem levar em conta que ela cria a sua própria
realidade, seu próprio diálogo com os vazios da linguagem. Por
consequência, podemos pensar o mesmo de fábulas, parábolas,
narrativas fantásticas, contemporâneas etc.
O que estamos tentando discutir é a transformação pela crítica
literária de uma prática – a “mimesis” – em um adjetivo
“(a)mimético”. Isso não nos parece algo de menor importância, ao
contrário, revela posicionamentos discursivos. Marcos Antônio
Domingues Sant’anna (2010), em seu estudo sobre a parábola,
constrói uma enunciação em que usa o termo “amimética”,
buscando caracterizar o gênero discursivo com que opera. Em tal
estudo, remete a Anatol Rosenfeld (2009) como uma das fontes de
seu trabalho, já que em “Reflexões sobre o romance moderno”, o
autor faria uso do termo “desrealização”, o que, então, daria

121
margem ao emprego do termo “amimético”. Vejamos como
Rosenfeld emprega o termo:

Estas considerações sobre o romance moderno não visam a uma


apresentação sistemática ou histórica, por mais rudimentar que seja,
de um vasto setor da literatura atual. O que propomos, nestas
páginas, é um jogo de reflexões, espécie de diálogo lúdico com o
leitor, baseado numa série de hipóteses possivelmente fecundas.
A hipótese básica em que nos apoiamos é a suposição de que em cada
fase histórica exista certo Zeitgeist, um espírito unificador que se
comunica a todas as manifestações de culturas em contato,
naturalmente com variações nacionais. (...)
A segunda hipótese sugere que se deva considerar, no campo das
artes, como de excepcional importância o fenômeno da
“desrealização” que se observa na pintura e que, há mais de meio
século, vem suscitando reações pouco amáveis no grande público.
(2009, p. 76, grifo nosso)

Em um primeiro momento, nos parece complicada a ideia de


um Zeitgeist, dado que, para alguns, ela pode remeter a essência,
verdade organizadora de certa época ou estética. Com
Maingueneau (2008), acreditamos que seja melhor propor uma
prática intersemiótica – por exemplo, ao se considerar
comparativamente pintura e literatura, como faz Rosenfeld – de
maneira que a coexistência de enunciados pertencentes a gêneros
discursivos diferentes não é algo livre, mas sujeito a restrições de
contexto histórico e de função social (p. 139). Daí, ser melhor
propor isso nos termos de uma “competência discursiva”
responsável por certa unidade em um mesmo sistema semântico
em diversas práticas semióticas. Percebamos que o foco é pensar
nosso objeto de análise, aqui, não como discurso apenas, mas como
prática discursiva, em que o sujeito da enunciação pode ocupar
diversas posições (p. 136).
Em um segundo instante, é importante perceber que, no texto
de Rosenfeld, há referência à “desrealização” (colocando o termo
entre significativas aspas) como fenômeno, não como adjetivo,

122
elemento de natureza determinante na atualização dos discursos
em enunciados. Sendo assim, cremos estar diante de um uso que
revela não um detalhe, mas um posicionamento discursivo, um uso
específico do interdiscurso com que lida. Ao empregar o termo
“fenômeno”, o enunciador criado no texto crítico de Rosenfeld,
parece estar mais próximo de descrever a representação da
realidade como prática de atualização, não como essência. Além
disso, ao longo do artigo, o enunciador demonstra cuidado ao
construir sua rede argumentativa. Isso fica nítido, por exemplo,
quando usa expressões como “realidade empírica”. Termos como
esse vão revelando uma maneira de lidar com o discurso artístico
em que se preserva a característica múltipla do real, que é
(re)construído constantemente, e não só no texto artístico, mas na
própria crítica.
O que estamos tentando descrever, anteriormente, não é
somente tal ou qual escolha empreendida na escrita, mas uma
relação diante do interdiscurso ao qual o enunciador se reporta
para elaborar seus enunciados. Acreditamos, então, que, no texto
de Rosenfeld, ao qual Sant’anna faz menção como fonte, a
enunciação instaura uma polifonia com as vozes que recupera de
maneira a materializar discursivamente a mimesis como uma
prática. Recorrendo aos discursos da realidade e da verdade, por
exemplo, os usos de aspas e do termo “fenômeno” contribuem para
estabelecer a representação da realidade como algo dinâmico, que,
dentro de cada competência discursiva e de cada condição de
produção específica, margeia-se o dizível e o legível. Logo, a
enunciação coloca a mimesis como um processo que dialoga com a
“realidade empírica”, que, então, por seu turno, deixa de ser tão
externa à obra artística, mas a compondo. Mesmo porque, ao longo
do restante do artigo, é patente a questão da “perspectiva” em arte
e como ela vai, paulatinamente, se tornando autônoma em relação
ao “sensível”.
Esse posicionamento presente na atualização discursiva
acima, no caso, ainda, da crítica literária brasileira, existe na obra
de Luiz Costa Lima (1984 e 2000). O trajeto teórico construído pelo

123
autor baseia-se na reconsideração não só da mimesis artística, mas
da própria possibilidade de existir uma crítica literária que não se
interrogue sobre questões básicas a respeito do entendimento sobre
realidade e sujeito, por exemplo.
Lima, por sua vez, tem parte de seu trabalho apoiado em
Karlheinz Stierle (2006). Este autor recupera uma problematização
a respeito do termo “ficção”, que, apesar de ter sido, por muito
tempo (e ainda é por alguns), considerado como sinônimo de
“mentira”, remonta a “fictio”, espécie de “barro moldável”. Tal
recurso argumentativo revela uma enunciação preocupada em se
alinhar a uma crítica que vê a ficção como criação da realidade.
Assim, a arte, a literatura, não copiam o real, mas criam o seu
próprio, e isso é algo que só pode – como já dito aqui – ser
percebido e analisado globalmente, inclusive pelos diálogos que o
enunciado convoca para poder existir. Por extensão, a própria
atividade da crítica literária revela-se uma prática ficcional, à
medida que precisa criar seu real, mediado pelos termos
empregados e pelas formas de uso destes, para ser possível. Logo,
os conceitos não estão “prontos”, mas são relidos pelo exercício da
enunciação que quer ser lida como crítica, ainda que de maneira
que fuja ao controle consciente do que se entende por autor.
Vejamos, agora, um trecho do texto de Marcos Antônio
Domingues Sant’anna, com vistas a uma comparação que nos ajude
a localizar nossas reflexões:

Iniciamos esta seção explicando que o termo amimética, predicativo


da narrativa parabólica, é inspirado na obra Texto/contexto (…), mais
especificamente no capítulo “Reflexões sobre o romance moderno”,
em que o autor trabalha baseado em duas hipóteses fundamentais. A
primeira prevê a existência de certo Zeitgeist, um espírito unificador
de todas as manifestações de cultura em contato. Com isso ele quer
indicar certa correspondência entre as profundas alterações
ocorridas no universo das expressões artísticas modernas, dando um
destaque especial àquelas observadas na literatura, em específico no
romance. A segunda hipótese é a sugestão de que se deva considerar
como de excepcional importância o denominado fenômeno da

124
desrealização observado na pintura, referindo-se ao fato de que essa
forma de expressão artística deixou de ser mimética, ao recusar a
função de reproduzir ou copiar a realidade empírica, sensível.
É com base nessas considerações de Rosenfeld que dizemos ser a
parábola uma narrativa amimética já que, a seu modo, e respeitadas
as grandes diferenças históricas de contexto de produção, essa
modalidade literária também faz a sua opção por representar
especificamente os personagens, o tempo e o espaço, não de forma
mimética, mas conforme princípios que serão apontados e discutidos
a seguir. (2010, p. 167-168, grifos nossos)2

Vemos, então, que a referência feita a Rosenfeld respeita, em


uma primeira leitura, a maneira como o enunciador deste coloca a
questão da mimesis como “fenômeno”, logo, como prática, como
algo dinâmico. Em seguida, dá-se início a algumas estratégias que
revelam um posicionamento discursivo diferente daquele proposto
como “fenômeno”. A comparação entre o que Rosenfeld coloca
como “fenômeno” e a representação da realidade empreendida
pela narrativa parabólica não nos parece adequada. O enunciador
de “Reflexões sobre o romance moderno” convoca como modelo de
“desrealização” as pinturas impressionistas e vanguardistas,
apontando, nelas, o ganho de uma autonomia em relação ao que
ele denomina “realidade empírica”. Dessa forma, tais
manifestações artísticas representam uma mudança de paradigma
na formação discursiva e, portanto, uma nova postura dentro da
formação ideológica que a pressupõe. Portanto, implica um
funcionamento discursivo – que arregimenta planos históricos,
sociais e ideológicos – que não são os mesmos do gênero discursivo
parábola, que deve ser identificado não somente pela ideia de
“estrutura”, de “tipologia textual”, mas de circulação social e de
funcionamento discursivo, implicando sujeitos de uma maneira

2 Como nosso interesse central, neste artigo, é discutir implicações discursivas dos
termos “(a)mimético”, escolhemos pequenos recortes para exemplificar nosso
ponto de vista. Logo, não é de nosso interesse analisar exaustivamente as obras
dos dois estudiosos citados.

125
que a pintura de vanguarda e o romance contemporâneo – alvos da
comparação no artigo de Rosenfeld – o fazem.
Ainda que o enunciador do texto de Sant’anna argumente
respeitar as diferenças “históricas de contexto de produção”, elas
vão além do histórico, uma vez que, como vimos, implicam
diferenças de posicionamento que vão ocorrendo ao longo da
atualização discursiva. Então, dentro do espaço discursivo da
representação da realidade, este enunciador opera uma mudança
de uma prática – expressa pelo termo “fenômeno” e pelo conjunto
global do artigo de Rosenfeld – para um adjetivo, transformando a
relação estabelecida pela arte em relação aos “reais” em uma
qualidade que pode ser negada pela presença de preposição “a”.
Entender a mimesis como prática e não como qualidade dos
enunciados significa compreender que a relação criadora de/com a
realidade está presente em qualquer atualização discursiva,
inclusive nos gêneros que pretendem ser lidos como “crítica de
arte”. Formular o “(a)mimético” parece retirar a relação de alguns
enunciados com a chamada “realidade empírica”. Como já citamos,
mesmo um conto de fadas seria “mimético” porque sua relação
discursiva de representação da realidade empírica ocorre
conjuntamente com a criação de uma outra, que busca funcionar
como artística. Uma alimenta a outra, tanto que uma permite a
interpretação da outra.
Tal parece ser o equívoco, ao nosso ver, que cometem alguns
críticos ao fazerem a análise de certas diegeses de Hoffman, Poe e,
mesmo no Brasil, Machado de Assis. Seria, por exemplo, Memórias
póstumas de Brás Cubas um conjunto de enunciados amiméticos? Ou
a consolidação de uma nova prática discursiva para construção de
uma realidade artística que estabelece um novo paralelo com a
“realidade empírica”? O defunto-autor é suficiente para
“qualificar” enunciados como “(a)miméticos” ou se revela um
trunfo no engodo em que a própria crítica literária se joga quando
não reflete sobre os princípios que norteiam suas escolhas
enunciativas?

126
Inclusive porque, segundo o que já propomos anteriormente,
a linguagem se articula ao redor de um vazio. Ou seja, o binarimo
saussuriano significante/significado não consegue resolver os
imbróglios do sentido. Pensando com Freud, em A Interpretação de
Sonhos (2001), propõe-se que é da natureza da linguagem
constituir-se por metáforas e metonímias – concentrações e
deslocamentos – como tentativas de se traduzir aspectos que o
sujeito julga ser de alguma realidade. Logo, uma narrativa
permeada por “animais que falam”, “defuntos-autores”,
“elementos mágicos”, por exemplo, não pode ser tida como
“(a)mimética”, mas é , sim, prática discursiva para dar conta de
tornar algo que se quer legível, ligando-o ao outro que buscamos
como enunciatário.
Concordando com a metodologia proposta por Foucault
(2008), a análise dos enunciados – no nosso caso, a respeito da
mimesis – só pode ser feita por camadas. Ou seja, a superfície dos
gêneros discursivos pouco revela, de fato, sobre a implicação
ideológica dos mesmos, de seu respaldo institucional que os torna
possíveis. Nesse sentido, uma atualização discursiva que construa
o “(a)mimético” só é possível porque existem instituições – como
parte da ala acadêmica, pautada, por sua vez, ainda, em modelos
racionalistas, positivistas e cientificistas – que lhe permite dizer o
que diz, tornando legível seu posicionamento discursivo.
De maneira análoga com Derrida (1997), o termo “mimesis”
acaba revelando-se como um “phármakon”: permanecendo
indecidível entre o “remédio” e o “veneno”. Em outras palavras, os
enunciados devem ser lidos enquanto escritura, ou seja, como algo
a ser decifrado dentro de uma rede interminável de relação com
outros discursos, outros enunciados. Nesse sentido, a “mimesis”
deveria ser lida não enquanto conceito fechado, mas como prática
escritural que se constrói na própria performance dos enunciados.
Ou seja, a enunciação não só traz a representação da realidade,
como é a encenação da própria “mimesis”, que revela aos poucos,
por sobreposições de sentidos, por camadas de enunciados, por

127
diálogos intermináveis com outros discursos; enfim, como
posicionamento e criação do real.
Pensando ainda com Derrida (1971 e 2004), entender a prática
da crítica literária como escritura significa reconhecer esta
atividade como suplemento em relação a todo o arquivo. Ou seja, a
crítica se performatiza enquanto algo não que completa o já-dito, o
interdiscurso, mas que desestabiliza toda a memória discursiva
sobre a “mimesis”: isso é ser suplemento, reconhecendo o direito à
(re)interpretação, propondo o sentido como algo indecidível, já que
traz algo e seu contrário, por exemplo, concomitantemente. Nesse
sentido, mesmo quando se faz menção à “mimesis” enquanto
“prática discursiva”, isso, em certa medida, continua mantendo
relação com um sentido outro, o de “qualidade”, mesmo que para
o negar. Sabendo com que sentidos outros lidamos, construímos
toda a cadeia citacional na qual a nossa escritura que se quer crítica
é realizada. Mais uma vez, então, percebemos que a enunciação
sobre a mimesis – e mesmo a que não busca falar sobre ela – só pode
e é possível porque recria a performance da prática de
representação da realidade. Portanto, não há o amimético porque a
mimesis é pressuposto da atividade do enunciador, seja ele qual for
e qual posição ocupe.
Dessa forma, ao estabelecer o binarismo
“mimético/amimético”, o crítico literário propõe uma decisão que,
não raro, o próprio enunciado artístico vai relativizar, incorporar
de maneira crítica, estabelecendo um posicionamento discursivo,
uma postura escritural, que pode fugir à recepção. Mais que isso,
categorizando dessa forma o que é uma prática simulacro de si
mesma, o crítico acaba estabelecendo uma relação de “dentro” e
“fora” com a(s) realidade(s); quando, na verdade, conforme vimos,
o fenômeno de representação da realidade incorpora um como
constituinte do outro, à medida que se permitem existência mútua,
sendo impensável o sentido sem menção ao outro que lhe habita.
Por fim, insistir no binarismo – algo que Rosenfeld (2009), por
exemplo, não realiza em sua desrealização – significa travar relação
com os conceitos de verdade e de razão, logocentrismo. Dessa

128
forma, acreditar-se-ia na possibilidade da crítica estabelecer pacto
com uma verdade que se quer perene, atrelando a crítica de arte a
uma busca institucionalmente arraigada em algumas práticas
universitárias, acadêmicas, que querem ser interpretadas como
“lanterna dos afogados” dos sentidos das obras. Ao contrário, é a
enunciação uma atividade humana possibilitada pelo recurso
incessante a vozes outras, zona de combate entre forças
(Guimarães, 2005), o que nos revela que qualquer posicionamento
discursivo é, também, político, temporalizando significados que,
necessariamente, constroem e agem na realidade que designam.
Assim como esse trabalho se encerra, tentando reconhecer sua
posição enunciativa e política, tendo se iniciado com um diálogo
com Flaubert e se encerrando com uma abertura futura, pela voz
do mesmo narrador criado pelo escritor francês (trazendo e
reconhecendo, para perto de nós, nosso lugar no grande espaço
enunciativo da arte e suas possibilidades de enunciação): “Somos
uma linha e queremos saber a trama” (Flaubert, 2007, p. 180).

Referências

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1998.
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Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1997a.
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DERRIDA, Jacques. A Escritura e a Diferença. São Paulo:
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______. A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 1997
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129
FLAUBERT, Gustave. Bouvard e Pécuchet. São Paulo: Estação
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FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense
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LIMA, L.C. O controle do imaginário: razão e imaginação no Ocidente.
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______. Mimesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização
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MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. São Paulo:
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MOTTA, Leda Tenório da. Sobre a crítica literária brasileira do último
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QUEIRÓS, Eça de. A cidade e as serras. São Paulo: Ateliê, 2011.
ROSENFELD, A. Texto/contexto I. São Paulo: Perspectiva, 2009.
Sant'anna, Marco Antônio Domingues. O gênero da parábola. São
Paulo : UNESP, 2010.
STIERLE, Karlheinz. A ficção. Tradução: Luiz Costa Lima. Rio de
Janeiro: Caetés, 2006.

130
A LINGUÍSTICA APLICADA E OS GÊNEROS DO DISCURSO
NO FAZER DOCENTE: UMA QUESTÃO DE PRÁTICA
SOCIAL

Kátia Cilene S. S. Conceição

Este artigo deriva da pesquisa desenvolvida a partir dos


processos desencadeados no Curso de Licenciatura Letras/Inglês
do IFPR-Câmpus Palmas pelo Programa Institucional de Bolsa de
Iniciação à Docência, PIBID, da CAPES – Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Como
coordenadora de área do Subprojeto Pibid de Língua Inglesa na
instituição, tenho acompanhado as reflexões que o programa tem
estimulado acerca da formação docente e da prática educativa,
gerando um conjunto de ações por parte dos envolvidos nos
subprojetos (professores e pesquisadores do ensino superior,
professores do ensino básico e discentes do Campus).
O Programa está no IFPR-Palmas apenas na sua terceira edição
(2016), mas em tão pouco tempo já promoveu transformações
consideráveis na postura dos docentes, dos discentes dos cursos de
licenciaturas, nas equipes das escolas que participam dos projetos
e, principalmente, nos alunos da rede Estadual e Municipal da
região. Isso revela que as ações implementadas estão sendo
responsáveis por profundos questionamentos que vão desde a
forma como os cursos de licenciatura estão sendo conduzidos, na
sua relação de teoria e prática, quanto na postura dos gestores e
docentes das escolas, que tinham com o Instituto uma relação de
distanciamento no que tange os saberes produzidos em ambos, o
que colocava estas instituições de ensino, muitas vezes, em
posições antagônicas, reforçando equivocadas hierarquias do
saber.

131
Assim, uma das contribuições que se destacam no Programa
de incentivo à docência trata da conscientização dos envolvidos no
processo ensino/aprendizagem sobre a necessidade de se adequar
os conteúdos trabalhados nos cursos de licenciatura à realidade
escolar, de forma a que estes não se tornem uma cisão entre o
ensino superior e o ensino básico. Outra contribuição refere-se aos
bolsistas, que também percebem o distanciamento entre teoria e
prática, que, muitas vezes, impede que o seu futuro ambiente de
trabalho seja reconhecido nas disciplinas cursadas, iniciando um
processo de conscientização da importância da busca por esta
aproximação. Além disso, os professores das escolas que atuam
como co-formadores dos futuros docentes também têm a
oportunidade de revisar e atualizar suas práticas. Com as ações do
PIBID, o objeto de trabalho aproxima-se da teorização, realizada
nas salas de aula da graduação, oferecendo um exercício de
conscientização e reflexão a todos sobre a atividade docente.
Entendemos, por outro lado, que a busca pela aproximação
destas realidades não pode significar uma redução do pensar
científico e analítico nas licenciaturas, mas, principalmente, deve
reforçar a responsabilidade social que assumimos ao nos
comprometermos com a educação e de fato sermos geradores de
transformações, a partir de nossas ações pedagógicas. Para tanto,
torna-se fundamental que todos os envolvidos no projeto
compreendam que o trabalho docente também deriva de ações
cientificamente embasadas e, portanto, a necessidade de se munir
destes saberes para não tornar a prática intuitiva.
As atividades realizadas dentro do programa PIBID, de
imediato, propiciam um repensar da(s) metodologia(s) de ensino
utilizadas, tanto nas aulas dos cursos de licenciatura quanto na
escola, e agregam esforços de ambas as partes na busca de soluções
conjuntas para a formação docente e a prática educativa. Essa
movimentação é de extrema importância para todos, pois ressalta
a relevância de se associar o mais rápido possível a teoria à prática,
pois, como ressalta Paulo Freire: “a reflexão crítica sobre a prática
se torna uma exigência da relação Teoria/Prática sem a qual pode

132
ir virando blablablá e a prática, ativismo” (FREIRE, 2000, p. 24).
Desta forma, todos os envolvidos no projeto têm a oportunidade de
se conscientizar da complexidade do trabalho docente, o que serve
também como aprendizado para todos no sentido de viabilizar
ações, cientificamente embasadas, para dar suporte às propostas de
trabalho desenvolvidas pelos bolsistas dentro da escola.
Sendo assim, a pesquisa consistiu-se primeiramente em
investigar as metodologias do ensino de língua inglesa utilizadas
nas escolas pelos professores regentes, onde o Subprojeto PIBID de
Inglês atuava na época. Na sequência, foi proposta outra
abordagem de ensino de inglês e promovido o estudo sobre o
processo de formação inicial dos discentes do curso de licenciatura
de Letras Português/Inglês que estão inseridos no programa,
entendendo o papel do PIBID enquanto mediador das etapas da
formação para aproximar a teoria da formação docente à prática
pedagógica, no âmbito do trabalho prescrito e do realizado
presente nas metodologias e abordagens de ensino de línguas
desenvolvidas pelos docentes em formação.
O primeiro ganho vislumbrou-se na possibilidade de
entendermos que o ensino, conforme Paulo Freire, não está
dissociado da pesquisa, o que contribui para reforçar a importância
da pesquisa de sala de aula na prática docente, oportunizando,
assim, uma atuação mais consciente no ensino de Língua Inglesa.
Além disso, a pesquisa propicia, de imediato, um diagnóstico das
dificuldades e desafios que encontramos para trabalhar o idioma
com os alunos na escola básica, mas também propicia condições de
pensarmos propostas de intervenção nas práticas educacionais,
visando a seu aprimoramento no sentido de beneficiar o
aprendizado dos estudantes.
Os documentos das Diretrizes Curriculares da Educação
Básica de Língua Estrangeira Moderna destacam que “As
propostas curriculares e os métodos de ensino são instigados a
atender às expectativas e demandas sociais contemporâneas e a
propiciar a aprendizagem dos conhecimentos historicamente
produzidos às novas gerações” (DCE’s Paraná, p. 38). Nesse

133
sentido, entendemos que o principal foco a ser priorizado no ensino
e aprendizagem, neste caso, de Língua Inglesa, é a comunicação
compreendida para além da função instrumental do idioma. Ou
seja, o estudo do idioma deve propiciar a formação intelectual do
aprendiz, o acesso ao conhecimento, o estímulo à reflexão sobre
questões culturais que envolvem o conhecimento de um idioma e,
principalmente, a interação e o intercâmbio sociais.
Para tanto, segundo as DCE’s, as metodologias de ensino de
língua inglesa na escola deveriam contemplar esta visão de prática
discursiva, possibilitando ao aluno uma aprendizagem que o torne
apto a interagir no idioma, tanto por meio da leitura e da escrita,
quanto por meio da comunicação oral. Nessa perspectiva, a
concepção de comunicação contemplada nas DCE’s é a de prática
social, fundamentada nos estudos bakhtinianos dos gêneros
discursivos, com uso dos gêneros textuais colocando em foco todas
as relações dialógicas que permeiam esta abordagem e que
concebem a língua como discurso. Privilegia-se o sentido em
detrimento da estrutura e propõe-se a interação efetiva, através do
enunciado, no lugar apenas da decodificação de um sistema
linguístico isolado.
Todavia, nas atividades realizadas pelo PIBID de Língua
Inglesa nas escolas, temos percebido que o ensino de língua inglesa
continua focado no método tradicional de tradução e gramática e
que, mesmo nas propostas de leitura e interpretação textual, ou
seja, o inglês instrumental, pouco se avança no aprimoramento das
habilidades linguísticas dos alunos da Educação Básica e de sua
capacidade reflexiva, indo na contramão de uma pedagogia
dialítica e crítica, que tem como intuito formar um cidadão
pensante e atuante socialmente.
Esta problemática, como pudemos observar nas práticas
didáticas, vai além das limitações do conhecimento linguístico do
professor de línguas, o que, muitas vezes, se julgou ser a principal
justificativa para que os alunos não aprendessem o idioma. O que
nos parece, em primeira análise, é que as dificuldades do ensino de
inglês, na perspectiva proposta pelas DCEs, estão relacionadas

134
tanto ao “O que fazer”, isto é, ao conhecimento das propostas para
o ensino de inglês para a educação básica, mas, principalmente, ao
“Como fazer”: encontrar meios que atendam às propostas,
considerando também a realidade e as possibilidades em que o
ensino e aprendizagem se dão efetivamente.
Desta forma, a pesquisa realizada no âmbito do Pibid de
Inglês, em um primeiro momento, nos municiou dos
conhecimentos acerca das propostas de metodologias e abordagens
sugeridas pelos documentos oficiais para o ensino de inglês. Em
um segundo momento, nos coube analisar os níveis de coerência
das sugestões de abordagens de ensino da DCEs com as
possibilidades e expectativas da escola; identificando, na prática
docente escolar, a utilização das mesmas e as estratégias que os
professores desenvolviam nas suas práticas pedagógicas para
atingirem os objetivos sugeridos pelas DCEs, conforme seguem
abaixo elencados (DCEs P. 56):
 usar a língua em situações de comunicação oral e escrita;
 vivenciar, na aula de Língua Estrangeira, formas de
participação que lhe possibilitem estabelecer relações entre
ações individuais e coletivas;
 compreender que os significados são sociais e historicamente
construídos e, portanto, passíveis de transformação na prática
social;
 ter maior consciência sobre o papel das línguas na sociedade;
 reconhecer e compreender a diversidade linguística e cultural,
bem como seus benefícios para o desenvolvimento cultural do
país.
Para o desenvolvimento deste estudo, foi adotada a
metodologia desenvolvimental e o método da autoconfrontação
simples e cruzada (FAITÁ e CLOT, 2000), na tríplice perspectiva
dos estudos da atividade humana (Clot, 2010), desenvolvimento da
linguagem (Vygotski, 1989) e dialogismo (Bakhtin, 2003),
fundamentada na orientação argumentativa do discurso que estas
perspectivas provocam.

135
O objetivo das sessões de autoconfrontação consiste em propiciar que
cada professor tenha uma visão privilegiada de si mesmo e a
oportunidade de observar o desenvolvimento de sua atividade
docente, descrever e explicar suas decisões e posturas durante o
trecho escolhido, bem como durante as sessões de autoconfrontação
cruzada, refletir e dialogar com sua dupla a respeito do que
evidenciaram na sua atuação docente, argumentando sobre suas
escolhas durante a realização da aula (LIMA, 2016).

Desta forma, foram necessários diversos procedimentos que


englobaram algumas 1etapas e procedimentos éticos e técnicos
antes e depois da realização das sessões de autoconfrontação
simples e cruzada. Estes procedimentos são enumerados a seguir
de forma resumida para que o leitor possa ter uma visão, mesmo
que panorâmica, do desenvolvimento dessas etapas da pesquisa.
Foram elas: formação de duplas de professores em formação
(Pibidianos integrantes do grupo de trabalho do subprojeto PIBID
de inglês), que aceitaram que suas aulas fossem filmadas; coleta das
assinaturas nos documentos de autorização de veiculação de
imagem e construção de parceria de trabalho com todos os
envolvidos na pesquisa (professores, professores em formação,
alunos da escola e todos os participantes voluntários e
colaboradores do projeto); observação e registro por escrito de uma
aula da dupla de professores em formação; sessão dialógica com a
dupla de professores voluntários para auxiliar na análise e na
problematização da aula observada; registro audiovisual de uma
aula da dupla de professores com fins a ampliar a análise da
problematização identificada na aula observada e registrada por
escrito; sessões dialogadas e filmadas (autoconfrontação simples)
com cada professor da dupla para análise e problematização dos
trechos que cada um escolheu e indicou para a sessão; sessões
dialogadas e filmadas (autoconfrontação cruzada) com a dupla de

1 Disponível em: https://formacaoesaudedoprofessor.com/2016/04/06/


autoconfrontacao-simples-ecruzada-como-metodo-clinico-de-promocao-da-
formacao-continuada-e-da-saude-do-professor/- acesso em.

136
professores para que cada um pudesse se pronunciar a respeito da
atuação do outro durante a realização da aula; produção de
vídeodocumentário com trechos da aula filmada e trechos das
problematizações durante as sessões de Autoconfrontação Simples e
Cruzada; sessões filmadas da devolutiva, compartilhamento,
análise e problematização do videodocumentário com todo o
coletivo do subprojeto PIBID de inglês e demais voluntários e
participantes da pesquisa conduzidas pelo próprio coletivo e
mediada pelo idealizador da pesquisa – nesse caso o coordenador
do projeto e um segundo mediador colaborador que faz parte do
grupo de pesquisa LAD’Humano –; Sessões de reflexão junto ao
coletivo do subprojeto sobre as questões identificadas no
vídeodocumentário acerca da formação inicial dos professores e o
papel de cada um envolvido com o objetivo de promover ações
didático-pedagógicas para sanar os problemas identificados;
registro em atas de uma síntese da análise e da problematização
dos vídeodocumentários, bem como das providências didático-
pedagógicas sugeridas; divulgação dos resultados da pesquisa ao
conhecimento dos gestores educacionais apoiadores da iniciativa
por meio dos vídeodocumentários e das atas das reuniões
pedagógicas; promoção, pelo coletivo do projeto e demais
envolvidos na pesquisa, de ações didático-pedagógicas para a
intervenção educacional; por fim, submissão dos resultados do
estudo à revista especializada.
Além disso, outras atividades paralelas ao do trabalho com o
método da autoconfrontação foram realizadas:
- Acompanhamento e registro, por meio de observação e
filmagem das aulas, do passo a passo da ação pedagógica de
dois professores em formação de Língua Inglesa que atuam no
Subprojeto de Língua Inglesa do PIBID do Câmpus Palmas;
- Produção de dados e análises a partir da metodologia da
Clínica da Atividade e da Análise do Discurso bakhtiniana;
- Identificação e avaliação das metodologias de ensino da língua
inglesa aplicadas nas aulas, comparação com as propostas
sugeridas pelas DCE’s e confrontadas com as análises e os

137
resultados obtidos com os discursos dos docentes e bolsistas
que ministraram as aulas nas escolas selecionadas;
- Criação de espaços para mediar a construção de estratégias que
propiciem a conscientização dos participantes do projeto
concernente às suas ações didáticas e também aos elementos
que (in)viabilizam o atendimento do que é prescrito pelas
DCE’s em suas aulas, no sentido de buscar alternativas para
minimizar as dificuldades de realização do trabalho docente;
- Produção de meios de análise dos resultados do programa
PIBID de Inglês do IFPR-Palmas de associar a teoria estudada
no curso de licenciatura à prática escolar, com o intuito de
ampliar as perspectivas para a formação docente, como
incentivo à intervenção nas ações de ensino e aprendizagem do
ensino de inglês;
A pesquisa foi norteada pelos conceitos científicos da
Linguística Aplicada ao ensino de línguas e Estudos da Linguagem,
numa perspectiva da Análise do Discurso da vertente russa
bakhtiniana.

Ciência de caráter interdisciplinar voltada para a resolução de


problemas de uso da linguagem em diversos contextos, escolares ou
não; focaliza o processo de uso da linguagem em situação de
interação oral ou escrita; Faz a mediação entre o conhecimento de
diversas disciplinas tais como a Psicologia, a Educação, a Linguística,
etc. e o uso da linguagem que busca estudar; desenvolve modelos
próprios no campo da Linguística ou de outras ciências às quais
tenha recorrido no exame de um problema; emprega métodos de
pesquisa positivista e/ou interpretativistas. (LIMA, 2010)

A Linguística Aplicada, como ciência, está empenhada em


criar meios práticos para solucionar problemas que possam derivar
de situações do uso da linguagem. Para os estudos de ensino de
línguas, a Linguística Aplicada tem sido uma ciência de extrema
importância, principalmente devido à sua característica
interdisciplinar, propiciando ao pesquisador valer-se de seus

138
procedimentos teórico-metodológicos de pesquisa que promovem
a utilização de diversas outras disciplinas para encontrar maneiras
práticas e funcionais de solucionar o problema diagnosticado.
Outra funcionalidade da Linguística Aplicada diz respeito ao
fato de ela possibilitar, por meio da pesquisa interpretativa, incluir
o pesquisado como parceiro da investigação, ou mesmo permitir
que o investigador seja objeto de sua própria pesquisa. Nos casos
das pesquisas de sala de aula, por exemplo, o professor pode fazer
uso de sua própria prática como produção de dados de estudo,
análise dos processos de desenvolvimento e transformações em sua
prática e busca de formas de intervenção.
É nesse sentido que esta pesquisa valeu-se dos pressupostos
científicos da Linguística Aplicada, já que ela possibilita certo
rompimento com as tradicionais hierarquias entre pesquisador e
pesquisado, coleta e produção de dados, diagnóstico e prescrição e
diagnóstico e intervenção, pois, como advoga Paulo Freire, (2002)
não há como construir autonomia sem integração, não há como nos
conscientizarmos sem nos fazermos sujeitos da procura.
Para Bakhtin, “Todos os campos da atividade humana estão
ligados ao uso da linguagem (...) mas cada campo de utilização da
língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais
denominamos gêneros do discurso. (BAKHTIN, 2003). Assim, a
Linguística Aplicada nos permite lançar mão da teoria bakhtiniana
dos Gêneros do Discurso, entendendo a atividade docente como
um gênero da atividade humana, para identificar seus elementos
constitutivos, dos quais os docentes lançam mão para realizar suas
atividades, porém, tendo como parceiro nessa investigação, o
próprio docente.
Ainda nessa linha da integração do outro na pesquisa de si, a
pesquisa foi desenvolvida à luz da Análise do Discurso de Mikhail
Bakhtin, no que tange o Dialogismo, os Gêneros do Discurso e os
elementos que o constituem, uma vez que estes nos permitem ver
todos os integrantes da pesquisa como partícipes da construção de
discursos sobre a prática docente, o problema identificado em

139
relação à sua eficácia e às propostas de intervenção, o que contribui
para o desenvolvimento do sujeito em sua atividade humana.
Os conceitos de diálogo descritos por Bakhtin ressaltam como
os discursos dos sujeitos são revelados na relação dialógica,
quando entram em interação. A importância dessa abordagem
implica na consideração de todos os discursos, na responsividade
que requisitam e produzem, fazendo dessa maneira com que, ao se
encontrarem, estes sujeitos, sejam geradores de mudanças e
também sejam mudados, num processo de reciprocidade onde não
há um protagonista, mas todos possam protagonizar seus próprios
discursos.
Portanto, nessa lógica, é nos embates dessas interações que
será possível a produção dos discursos dialógicos, as dissonâncias
e, por consequência, apreender, nessas relações interlocutivas da
composição destes discursos e na forma como foram elaborados e
arquitetados, a construção do discurso.
Assim, para entender as escolhas das ações docentes, o
desempenho destas e seus resultados junto aos alunos, como cada
um destes sujeitos está articulado e integrado, bem como o nível de
consciência deles nestas ações, torna-se primordial uma realização
de pesquisa que vise não apenas aos produtos, mas se atenha ao
processo dessas relações; e que o pesquisador não seja apenas quem
irá descrever estas problemáticas, mas também faça parte delas
para que todos os envolvidos possam de fato, verbalizar suas ideias
a respeito das hipóteses do problema.
Como os gêneros do discurso correspondem às formas
relativamente estáveis de enunciados, a visão bakhtiniana nos
possibilita perceber nos discursos, tanto dos docentes da escola,
quanto dos professores em fomação, parceiros da pesquisa, o
diálogo, as assonâncias e as dissonâncias dos discursos, além de
nos indicar que poder legitima estes discursos, uma vez que, para
Bakhtin (2003), toda construção do discurso passa por um processo
de reposta a enunciados, anteriores e posteriores aos produzidos
pelo falante.

140
Ainda na perspectiva do diálogo, foi possível a utilização dos
conceitos bakhtinianos de alteridade e cronotopo, pois acreditamos
que as propostas da autoconfrontação possibilitam o encontro do
sujeito consigo mesmo, num tempo e espaço apreendidos pelas
câmeras, e que pode restituir aos sujeitos envolvidos a
possibilidade de olhar para si na perspectiva de um olhar que é dele
mesmo, mas que já não o é, pois o olhar anteriormente plasmado
em si, no ato do desenvolvimento da ação, no momento da
autoconfrontação é de um outro que se flagra e, portanto, se analisa
e busca explicar suas ações a si mesmo e para o outro, fundamental
para a potencialização da consciência de si.
Esta perspectiva de estudo também agrega as anteriores, uma
vez que a autonomia e a possibilidade de dialogismo estão
diretamente ligadas à consciência que temos de nós mesmos e da
maneira como concebemos a existência do outro para darmos conta
das nossas escolhas e discursos numa dinâmica de responsividade
e sempre em função de um destinatário ou interlocutor. Munidos
da consciência de que somos parte de um todo e não uma
totalidade encerrada em nós, nos percebemos como parte do
mundo, em que o olhar do outro é essencial para que o eu se
encontre em si. Com esta consciência da alteridade, também
conseguimos escapar da vitimização, da tomada de atitude de
autodefesa e resistência às críticas, uma vez que elas derivam, não
mais de outro de fora de nós sobre nossa postura, mas de um outro
que somos nós mesmos, e entender que embora algumas situações
pareçam impostas, a escolha de as seguir ou burlar serão sempre
nossas, e dessa maneira com todas as seus ônus e bônus.
Yves Clot (2010), no seu estudo sobre a atividade humana, foi
fundamental para o desenvolvimento da pesquisa sobre o trabalho
desenvolvido pelos professores em formação no âmbito do PIBID,
pois trata da relação entre prescrição e realização do trabalho,
conforme podemos identificar na citação abaixo:

Toda profissão possui quatro dimensões indissoluvelmente ligadas,


a saber: a impessoal, a pessoal, a interpessoal e a transpessoal. A

141
dimensão “impessoal” corresponde à atividade prescrita, seja de
maneira oficial, seja de maneira oficiosa. A dimensão “pessoal”
corresponde a uma apropriação da dimensão impessoal pelo sujeito
em atividade na relação com os outros, o que vem a constituir a
dimensão “interpessoal” da atividade: a atividade humana não existe
sem destinatários. Finalmente, a dimensão “transpessoal”
corresponde às maneiras comuns de se fazer algo em um coletivo,
partilhadas pelos sujeitos em dado meio, isto é, corresponde aos
gêneros de atividade, que – por sua vez –, paradoxalmente,
englobam e são englobados pelos gêneros de discurso, em um
amálgama indissolúvel (LIMA, 2014, p. 11)

Portanto, a investigação do material produzido a partir das


práticas observadas seguiu as fundamentações teórico-
metodológicas que conformam a abordagem da Clínica da
Atividade, na perspectiva dessa Dinâmica das Dimensões das
Profissões. Isto é, esta dá suporte a uma investigação sobre os
processos de formação docente e como os participantes da
pesquisa, seja dos docentes já atuantes, como dos bolsistas em
formação docente, entendem o processo pelo qual estão passando,
concebendo as DCEs como o material de prescrição e a ação
docente como a busca de realização das propostas nela contidas.
Com essa abordagem, pudemos levantar subsídios para
identificar os conhecimentos que o docente tem de sua profissão,
dos quais deveria lançar mão, os projetos discursivos, seu
engajamento para executá-los, as adaptações e reelaborações que
realizam nessa execução, suas padronizações e/ou liberdades e
criatividades e o que este (não) saber e escolhas implicam, uma vez
que, como enfatiza Vygotsky, o trabalhador tem sempre um duplo
papel no mundo do trabalho, o de organizador e de administrador
da produção e o de peça de sua própria máquina. (LIMA, 2010)
Sendo assim, esta pesquisa contou com a parceria de 10
bolsistas de iniciação à docência, um acadêmico colaborador,
proveniente do curso de Letras, com formação em Pedagogia, um
colaborador com formação em Letras Português/Literatura e pós-
graduação em Psicopedagogia, dois professores da rede pública de

142
ensino básico da cidade de Palmas, com formação em Letras
Português/Inglês, a colaboração de uma professora de língua
inglesa do curso de Letras do IFPR-Palmas.
Para que a pesquisa fosse concretizada, uma dupla de
professores em formação que participam do PIBID de Inglês e
ministram aulas no projeto foram convidados a colaborarem com a
pesquisa sobre a prática docente. Foram explicados a eles os
procedimentos básicos da pesquisa, isto é, que seria realizada a
observação de uma de suas aulas, com dia previamente acordado
com todos pela coordenação do projeto. A observação das aulas foi
registrada em relatórios e também por meio de filmagens das aulas,
procedimentos advindos do método da auto-confrontação simples
e cruzada e dos procedimentos teórico-metodológicos da análise de
atividades de trabalho registradas em audiovisual, como
explicitado anteriormente.
Após a observação das aulas destes parceiros da pesquisa,
registro e estudos dos dados na perspectiva teórica utilizada na
pesquisa, os docentes foram convidados, primeiramente em
sessões individuais com a pesquisadora, para observar um trecho
da filmagem de sua aula, quando deverão, de maneira reflexiva,
seguir três etapas de pronunciamento: observar, descrever e
explicar o trecho observado; enquanto a pesquisadora, no papel de
mediadora, faz alguns questionamentos a respeito das
considerações dos docentes sobre o que assistem.
Na sequência, foram solicitadas duas sessões de
autoconfrontação cruzada, desta vez com as duplas de bolsistas,
professores em formação, participantes da pesquisa. Nessa etapa,
um professor teve a oportunidade de assistir ao trecho de vídeo de
cinco minutos da aula do outro professor. Nessas sessões de
confrontação cruzada, os participantes foram convidados a
descrever e comentar a ação um do outro, manifestando seus
pontos de vista acerca das práticas visualizadas. Esse procedimento
cumpre quatro etapas: a observação do vídeo na presença do
mediador; a descrição e explicação da ação do outro; o diálogo e a
reflexão acerca dos pontos de vista dos procedimentos realizados;

143
a coordenação e reflexão do diálogo por parte do pesquisador
mediador.
Essas sessões também foram filmadas (assim como todos os
encontros para debates) e, a partir delas, foram produzidos
documentários em vídeo para posteriores sessões de reflexão com
todos os participantes do projeto PIBID de Inglês, análise,
elaboração de propostas de intervenções, divulgação e socialização
dos resultados do estudo. Além disso, os resultados da pesquisa
serão divulgados em revistas científicas da área e mídias, com a
devida autorização de seus participantes, cumprindo a etapa de
socialização dos resultados da pesquisa como ferramenta de
análise das contribuições do programa da CAPES para a formação
docente inicial.
A abordagem de ensino proposta pela coordenação do projeto
para as atividades desenvolvidas pelos bolsistas foi a abordagem
comunicativa ao ensino de línguas, como contraponto às
abordagens mais tradicionais observadas nas aulas dos docentes
que atuam em língua inglesa. O objetivo da aplicação de tal
abordagem consistiu em verificar os níveis de desafios e
dificuldades de se propor ações inovadoras para o ensino de
línguas, verificar as resistências tanto dos docentes, quanto dos
alunos e as medidas didático-pedagógicas que são tomadas para
superar os desafios.
A finalidade, portanto, foi contribuir para o aprimoramento
das ações desenvolvidas pelo programa PIBID e colaborar para as
práticas de ensino-aprendizagem e os processos de formação inicial
e continuada no âmbito dos cursos de Licenciatura do IFPR-
Palmas, promovendo a conscientização e o diálogo entre as partes
interessadas, construindo instrumentos para que isto ocorra da
forma mais dialógica possível, não somente de forma paliativa,
impositiva, como já acontecem com tantos outros programas, mas
beneficiando a todos com o potencial de transformação que o PIBID
possui cumprindo os princípios da prática social.
Muitas vezes, o licenciando não consegue visualizar as práticas
de seu futuro ambiente de trabalho a partir das discussões teóricas

144
realizadas na sala de aula do curso, mesmo com as diversas
possibilidades de simulação desse ambiente nas aulas mais
práticas. Entendemos que o PIBID, além de propiciar a
aproximação com esta realidade, antecipa uma etapa significativa
para o acadêmico que é o Estágio Curricular Supervisionado, em
que o futuro docente terá que mostrar essa aproximação,
preparando-o de maneiras mais efetiva para suas futuras ações no
ambiente escolar e enquanto mediador do ensino-aprendizagem de
seus futuros alunos.
Passamos, agora, para a apresentação de um dos problemas
levantados pelos professores em formação durante as sessões de
autoconfrontação sobre sua prática docente e para uma breve
análise desses dados como amostra das possíveis contribuições da
metodologia da Clínica da Atividade e do Método da
Autoconfrontação, na perspectiva da Linguística Aplicada e
Gêneros do Discurso para o desenvolvimento do fazer docente.
O trecho de aula analisado trata de uma aula ministrada para
o sexto Ano de uma escola pública da cidade de Palmas, onde o
subprojeto de inglês atua. Os docentes em formação, participantes
que cederam sua aula, atuavam juntos em sala, sendo cada um, na
aula em questão, responsável por ministrar uma parte da aula. O
tema da aula tratava de “Favorite Activities”, quando os alunos
precisavam responder a pergunta em inglês, utilizando o
vocabulário e estruturas trabalhados pela dupla de professores.
Foram apresentadas e contextualizadas algumas atividades em
inglês como: jogar futebol, soltar pipa, andar de skate, jogar vídeo
game, brincar de boneca, entre outras.
Para a apresentação, os professores em formação prepararam
alguns slides com as imagens a serem mostradas juntamente com
o vocabulário em inglês. Como a abordagem utilizada no projeto
previu o uso da língua alvo, as imagens auxiliariam na
apresentação do vocabulário sem o recurso da tradução, o que já
era rotina para os alunos devido à recorrência à abordagem. Além
do uso do recurso do Datashow, foi previsto um exercício impresso
para que os alunos relacionassem figuras às atividades aprendidas,

145
e ao final da atividade pudessem identificar e expressar suas
preferências.
Para a análise dos dados orais, foram realizadas transcrições
com base na metodologia de transcrições de textos orais, de Dino
Pretti (2001) sinalizando: ( ) incompreensão de palavras ou
segmentos; / truncamento; MAIÚSCULA entonação enfática;
prolongamento de vogal e consoante; - silabação; ? interrogação; ...
qualquer pausa; (( )) comentários descritivos do transcritor; [
sobreposição ou simultaneidade de vozes.
Ademais, por questões éticas, os docentes em formação serão
identificados como professor A e professor B. Além disso, ainda
temos a identificação da professora P1, pesquisadora mediadora do
diálogo, coordenadora de área do subprojeto Pibid de Inglês e
coordenadora do projeto de pesquisa.
Para esta breve análise foi feito um recorte do trecho da sessão
de autoconfrontação simples do docente A, que inicia a aula. No
recorte do trecho da aula escolhido por A, apontaremos as questões
referentes à mudança do planejamento e às estratégias utilizadas
pela docente para superar as dificuldades imprevistas derivadas da
alteração realizada no plano de aula.
Segue trecho da Autoconfrontação Simples:

P1: de acordo com seu planejamento... esse início está de acordo com
o planejamento ou você mudou alguma estratégia?
A1: não, o início aconteceu da forma que foi planejado... a: a... nós
tínhamos a/vocabulário apresentar um/fazer a: apresentar o tópico
(fazer exercícios simples apresentar a lição)... então... eu agora na
verdade, assim, na verdade nós tínhamos previsto uma atividade
com/sem o uso do like “I like to” a:: éh:: “what is your favorite activity?”
e aí “my favorite activity is::”, aí a gente conversando com o professor
supervisor, também, né? Que o ideal seria usar “I like to”, por conta
da estrutura gramatical mesmo, para não éh:: apresentar um tópico
numa forma, depois de outra forma pra não causar éh::... confusão
mesmo pra eles “óh de um jeito de outro jeito, qual é o jeito que é na
verdade?”

146
Nesse trecho da sessão de autoconfrontação simples realizada
com a docente em formação A, destacamos a preocupação da
mesma com a mudança no planejamento da aula e a dificuldade
em conciliar as atividades planejadas com as que deveriam ser
realizadas por conta da mudança no plano de aula. O vocábulo
“ideal”, utilizado para se referir à estrutura gramatical, também
aponta para uma preocupação com o ter de ajustar a estrutura do
idioma a sua função comunicativa, ou seja, de uso da língua. Assim,
revela nas suas preocupações a tentativa de encontrar no ato da
realização do planejado, o “jeito” certo de ensinar, e, que ao ensinar
o idioma, pelo menos dois cuidados devem ser tomados, o de
precisão gramatical e fluência.
Além disso, nota-se, em A, a preocupação com o processo
ensino-aprendizagem, isto é, o que uma abordagem equivocada
pode gerar futuramente para o aluno em termos de dificuldades
com o idioma, uma vez que pode confundi-lo ao apresentar uma
estrutura mal formulada. Esse cuidado denota o zelo pelo trabalho
realizado e o comprometimento com a atividade docente.
Há aqui uma questão ainda relevante sobre as características
do docente em formação que deve ser destacado. Embora A já seja
formada em Pedagogia, e talvez por isso, também, sua reflexão
pontual sobre o que está ensinando, notamos nos trechos acima,
que há uma oscilação, uma dúvida quanto às escolhas para que de
fato o aprendizado ocorra de maneira eficaz. Isso revela o processo
de desenvolvimento da atividade que está sendo construída, o
processo de construção do próprio entendimento do ser professor
em desdobramento. A entende que há um procedimento mais
adequado, mas ainda não tem o processo acabado, indicando que
está em processo formativo sobre o ser professor, os procedimentos
da aula e como mediar o aprendizado dos alunos.
No trecho a seguir da sessão de autoconfrontação, dialogando
com a mediadora sobre a situação verificada por ela ao rever o
trecho de aula, A pontua seu esforço em provocar o aprendizado
da estrutura nova que não havia planejado como ensinar e sua
dificuldade em conciliar a abordagem de ensino com o imprevisto.

147
A: tentei sempre usar o I like ((faz o sinal de positivo))
[
M:1: vocês acham que eles compreendiam quando você
sinalizava que o like é gostar?
A: eu acho que eles compreendiam, acho que eles compreendiam
mas,
[
M1: o I don’t like
[
A: I don’t like, aí que
fiquei na hora “I like, I don’t like, não, vou enfatizar no I like” ((faz o
sinal de positivo))
M1: uhn

Fica evidente a dificuldade de A em organizar as estratégias de


ensino, uma vez que o objetivo era ministrar a aula na língua alvo
e não havia antecipado uma abordagem de ensino para apresentar
uma estrutura nova sem recursos que evitassem a tradução. Sua
decisão imediata foi o recurso da mímica, da sinalização de gestos
que culturalmente remeteriam os alunos à compreensão, sem a
necessidade da tradução.
Mais uma vez, A indica sua preocupação em manter a
metodologia e abordagem de ensino, mas também garantir que os
alunos compreendessem o que estava sendo ensinado,
demonstrando, assim, mais uma vez, seu comprometimento com a
atividade docente.
Tratando do objetivo da aula e de seus resultados, A reflete
sobre o aprendizado de seus alunos, concluindo que, apesar das
dificuldades e do desafio de manter a abordagem comunicativa,
teve êxito no elemento principal da sua atividade docente que é a
aprendizagem dos alunos. Mostra, também, a importância em se
manter uma sequência didática e principalmente a coerência do
trabalho realizado em sala de aula em prol dos alunos, para que
estes, de fato, tenham um bom aproveitamento do que lhes é
apresentado. Assim, A consegue conciliar as estratégias de ensino,

148
sem comprometer demasiadamente a aprendizagem, podendo
refletir sobre a necessidade de futuramente retomar a atividade de
maneira mais elaborada.

A: eu acho que naquela aula eles estavam mais, éh, o que, que foi
mais atrativo foi o vocabulário
M1: Uhn, é o foco, não é o I like to
[
A: porque: porque o vocabulário eram as atividades em
si ( )
M1: se fosse em uma outra situação você tiraria esse I like to e se
concentraria somente nas activities? Igual eu tinha feito, igual eu tinha
pedido?
A: provavelmente eu não usaria o I like to, eu usaria éh:: como já era,
como já antes estava previsto anteriormente favorite activity
[
M1: uhn
A: what is your favorite activity?
M1: uhn
A: que é até porque éh:: dando seguimento ao que a gente já estava
trabalhando
[
M1: uhn
A: favorite activities, favorite school subject, favorite toy, então éh: não
fugia do que eles, que a gente/já era conhecido deles
M1: uhn
[
A: partindo, partir do que eles já estava éh:: habituados já conheciam
a: adicionando o vocabulário novo então...

No trecho de autoconfrontação cruzada, dialogando com seu


par de trabalho, A retoma a questão da apresentação do tópico
verbal e de sua dificuldade em adequar o planejado com o
realizado.

A: éh na verdade éh:: além do vocabulário novo foi uma, uma forma,


foi uma apresentação do verbo uma estrutura nova, então isso não

149
éh:: não estava previsto (que nós não tínhamos estudado) outra que
dentro da abordagem que a gente estava trabalhando né? éh:: essa
estrutura do verbo é, que a gente estava trabalhando mais com:: o
lik,e nós não tínhamos nem apresentado o like ainda
[
B: eu acho que até faltou nós
[
A: a gente estava trabalhando
com... pode continuar

B: acho que faltou... acho que até faltou nós contextualizarmos pra
eles o like
[
A: é::
B: talvez ficou meio sem sentido
[
A: é, na hora pensei “meu Deus esse like”
aí, pensei, “vou fazer um contraste entre like e don’t like aí é
outra/mais uma estrutura nova” aí eu tentava usar o like né?
[
B: você chegou a pensar isso na aula?
A: eu pensei de colocar o I don’t like e aí... não que eu não pudesse...
mas pensei, “ah aí vai ficar muito” mas além de like colocar mais
uma: uma forma negativa aí é muita informação nova... aí eu tentava
usar né? como a gente sempre tenta usar o máximo de gesto de: de
mímica de então eu usava o: positivo pra eles perceberem que era
algo que é legal que gostam.

Embora A retome as questões para dialogar com B, fica nítida


a maneira mais refletida e descontraída com que trata o ocorrido
em aula, mostrando, inclusive, o contentamento com o viés lúdico
que tomou a aula ao utilizar-se da mímica. Evidencia-se, no seu
discurso, que tomou as decisões mais cabíveis no momento e não
prejudicou o processo ensino-aprendizagem, não se cobrando
demasiadamente pelo ocorrido, apesar de não perder a visão crítica
de sua atuação.

150
O diálogo com a dupla é fundamental para que A também
perceba que havia uma parceria na aula, que não estava sozinha e
que suas angústias também eram as de seu colega, professor em
formação. As suas dificuldades e percepções também foram as dele
e que por isso mesmo poderiam repensar juntos sua prática e
buscar aprimorá-la.
O mais importante desta metodologia de trabalho é que ambos
chegam a esta conclusão sozinhos. Isto é, não há uma imposição,
alguém de fora apontando o que fizeram e o que deveriam ter feito
em sua atividade. Ao terem a oportunidade de se assistir em
atividade, puderam também, refletir, dialogar e deliberar sobre
suas futuras práticas em busca de um meio termo para conciliar da
melhor forma possível o planejado com o realizado em sala de aula,
tendo em mente a importância do planejar para antecipar, não
como fórmula e engessamento da prática, mas como maneira de
solucionar problemas.
Para Lima, “o ensino-aprendizagem ou capacitação
profissional [...] se dá [...] por meio de atividades reguladoras, num
processo de desenvolvimento e apropriação do gênero de atividade
em situação” (LIMA, 2010, p. 257). Nesse sentido, destacamos a
importância da função reguladora dessa atividade presente no
discurso dos professores em formação que, futuramente, terão que
tomar decisões ao desenvolverem sua atividade docente.
Concluímos esta apresentação da Linguística Aplicada e dos
Gêneros do Discurso como mediadores da pesquisa sobre a
atividade docente, bem como esta breve amostragem de como
podemos utilizar estes conhecimentos para promover
desenvolvimento humano nas atividades de trabalho, com a
expectativa de termos despertado, senão o interesse, mas pelo
menos a curiosidade de outros docentes participarem da
experiência de avaliarem suas práticas a partir de si mesmos. Se
assim for, teremos cumprindo pelo menos parcialmente o papel do
pesquisador como prática social, fazendo do pesquisando partícipe
dessa prática, não somente como observador dela, uma vez que é

151
na relação com o coletivo da realização do trabalho que está a
individualidade do trabalhador.

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153
154
LITERATURA, CINEMA E PINTURA: UMA ANÁLISE DA
LINGUAGEM HÍBRIDA OSTENTADA NA ADAPTAÇÃO
CINEMATOGRÁFICA DE A MISSA DO GALO

Aline Cristina de Oliveira

Quando se trata de discutir as narrativas curtas do escritor


Machado de Assis (1839-1908), o célebre conto Missa do galo está
sempre entre os mais lidos e mais apreciados. Nesse conto, escrito
em 1894 e incluso na primeira edição de Páginas recolhidas, em 1899,
se concentram algumas das principais características do autor,
como o narrador pouco confiável, a mulher enigmática e a
participação do leitor na interpretação do enredo cuja trama resgata
situações da vida comum. A ação dessa narrativa é bastante
simples e revela as mazelas da vida burguesa oitocentista,
passando pelo manifesto adultério masculino explicitado nas
primeiras linhas, bem como por uma possível sedução sofrida por
um mancebo de dezessete anos pela esposa traída.
Toda a narração se dá através das memórias do narrador
Nogueira, um homem maduro cuja situação vivida na juventude
vem à tona através do recurso narrativo da analepse, ou seja, a
personagem volta no tempo para contar a experiência vivida em
casa de Menezes, um escrivão que fora casado com uma prima de
Nogueira e que certa vez lhe havia hospedado para que pudesse
estudar. Todo o relato do narrador se concentra na conversação
travada entre ele e a esposa de Menezes, Conceição, numa véspera
de natal, quando o jovem estudante esperava dar a hora de ir à
missa do galo.
Estando Menezes fora de casa nesta noite devido a uma
relação extraconjugal que, como todas as outras, era metafórica e

155
eufemisticamente tratada pela família como “idas ao teatro”,
Nogueira se vê sozinho na sala da família, tendo como companhia
a leitura de um romance, pelo qual está completamente absorto.
Como ainda não davam horas de acordar o vizinho que o
acompanharia à missa, a leitura progride até que o jovem percebe
a presença de Conceição, que adentra a sala em trajes de alcova e
lhe retira de seu mundo ficcional. Temeroso de ter acordado a
mulher de Menezes, Nogueira se apressa em desculpar-se quando
Conceição senta-se e inicia uma longa conversa com o rapaz. O
diálogo entre os dois ganha um tom bastante íntimo e só termina
quando o vizinho os interrompe, chamando Nogueira para a missa.
O narrador, estando temporalmente distante dos acontecimentos,
revela não ter certeza do que acontecera naquela noite – fato que
por si só já torna seu testemunho ilegítimo – mas dá todos os
indícios de que Conceição o seduzira.
A construção engendrada por Machado de Assis nesse conto
deixa pelo menos duas possibilidades de interpretação sobre aquilo
que é narrado por Nogueira. Na primeira, o leitor é cúmplice no
relato um tanto contraditório do narrador e confirma a sedução
sofrida pelo jovem mancebo. Essa é, sem dúvida, uma
interpretação rápida, alicerçada no discurso de um narrador que se
diz confuso sobre os acontecimentos, que não consegue sequer
precisar o ano em que a situação ocorreu, mas que, ao mesmo
tempo, é capaz de lembrar que vira a perna direita da mulher
cruzar-se sobre a esquerda. A segunda interpretação, mais
condizente com o relato de Nogueira, é embasada na capacidade
imaginativa de um menino de dezessete anos, que se vê em
companhia de uma mulher madura, à noite, durante uma
conversação nada habitual. É possível que as impressões do rapaz
não passassem de uma fértil imaginação pueril alimentada pela
leitura de romances românticos – cujos enredos eram carregados
de sentimentalidade – ou, até mesmo, que a vida real tenha sido
tragada pelo mundo fictício num breve espaço de tempo, uma vez
que ele estava lendo um desses livros no exato momento em que a
mulher adentra o recinto.

156
Tinha comigo um romance, Os três mosqueteiros, velha tradução,
creio, do Jornal do Comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro
da sala, e à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa
dormia, trepei ainda uma vez missa do galo ao cavalo magro de
D’Artagnan e fui-me às aventuras. (ASSIS, 2008, p.562).

Há, no enredo engendrado por Machado, uma clara intenção


de criticar os hábitos de leitura da diminuta classe letrada
burguesa, porquanto havia uma preferência por livros recheados
de idealizações e aventuras que muito contribuíam para a evasão
da vida real, objeto de análise tão caro ao projeto literário
machadiano. Todavia, também fazia parte da ideologia do autor
uma construção artística da linguagem por meio da qual caberiam
diferentes pontos de vista acerca do mesmo objeto, sem que um
fosse menos verossímil do que o outro. Por isso, a desconstrução
de uma das possibilidades seria, por consequência, a ruína de uma
faceta importantíssima de seu legado, a ironia. Com tal recurso,
Machado mantinha, ao mesmo tempo, sua visão particular de
mundo e o respeito à individualidade do leitor.
Qualquer que seja a interpretação sobre a conversa noturna,
fato é que no dia seguinte Nogueira e Conceição se reencontram no
café da manhã e ela se comporta como de costume, sem qualquer
indício de que na noite anterior houvera qualquer envolvimento
amoroso entre os dois. Não se pode esquecer, no entanto, que o
marido também estava à mesa, o que talvez explique a posição
recatada da esposa frente ao jovem hóspede.
A construção, pelo narrador, da personagem Conceição,
também é muito contraditória, pois a mesma mulher que o havia
seduzido na noite anterior lhe parecera, até então, como uma
“santa”. Teria Conceição um caráter dissimulado ou a ela nada
acontecera senão uma conversa no espaço de uma insônia? A
narração, embora a coloque como adúltera, faz crer que Nogueira,
analogamente ao célebre personagem Bentinho, de Dom Casmurro,
elabora seu discurso a fim de atribuir culpa à mulher. Contudo,

157
analisando o conto e o romance pela ótica desses dois narradores,
tem-se, em Conceição, uma personagem complexa, cujas intenções
e caráter não são conhecidos pelo leitor, fato que a coloca no rol de
perfis femininos machadianos de maior observação por parte da
crítica, ao lado de Capitu.
A ambiguidade engendrada por Machado nesse conto é, sem
dúvida, uma das grandes peculiaridades dessa narrativa literária.
Quando, porém, a obra foi adaptada para o cinema num curta-
metragem gravado em 1973 com título homônimo ao conto, tal
ambiguidade foi completamente subvertida, uma vez que o filme
não deixa dúvidas sobre o que, de fato, ocorrera naquela véspera
de natal. É essa a grande diferença entre a narrativa de origem e a
adaptada: enquanto o conto chama a atenção para o caráter aberto
da ficção literária machadiana, a aclimatação para o cinema, livre
das amarras de fidedignidade e valendo-se de uma linguagem
própria, opta por uma trama de interpretação unívoca. Vale dizer,
pois, que literatura e cinema são instâncias artísticas
completamente diferentes e autônomas quanto às suas
especificidades, não sendo, portanto, o objetivo dessa análise o de
impor um juízo de valor a qualquer uma das obras.
O roteirista e diretor de Missa do Galo, Roman Stulbach (1947-
2013), não pensou simplesmente na transposição da obra literária
para o cinema, antes, deixou de lado a ideia, já ultrapassada, de que
o filme deve ser completamente fiel ao livro e que, portanto, deve
se aproximar o mais fidedignamente da obra de referência. A
atenção de Stulbach volta-se, sobretudo, para um diálogo
intertextual com o conto machadiano e, tal como a conversação
entre os protagonistas do conto revisitado no curta-metragem,
pode-se dizer que o diálogo travado entre as duas obras em questão
é também bastante íntima.
Apesar de subverter as intenções originais da obra quanto às
indagações e reflexões do leitor mais compromissado, o diretor do
curta mantém grande parte do seu roteiro extremamente atado à
obra de origem, conservando os diálogos e as recordações do
narrador e trazendo para a cena quase sempre o mesmo texto que

158
se encontra nas páginas do conto homônimo. Apesar do
distanciamento temporal de quase um século entre as duas obras,
o que legitimaria uma adaptação linguística, o curta acomoda a
narração machadiana também no que concerne a linguagem.
Enquanto o fator tempo não é determinante na elaboração do
roteiro, visto que nem a linguagem, nem os costumes do século XIX
sofrem quaisquer alterações significativas na proposta do cineasta,
a ideia de propiciar ao expectador uma experiência completamente
nova daquela provocada pela leitura é o que sustenta o filme e
revela que a intenção não fora a de reprodução, mas a de
ressignificação.
A liberdade para criar um roteiro cujo enredo não seja uma
proposta de aclimatação cinematográfica que se quer fiel ao texto
de origem foi bastante profícua durante o desenvolvimento do
Cinema Novo, produzido a partir da década de 50. As produções
dessa época preferiram entender a obra literária como ponto de
partida para a realização do discurso fílmico, nunca como ponto de
chegada.

Livro e filme estão distanciados no tempo; escritor e cineasta não têm


exatamente a mesma sensibilidade e perspectiva, sendo, portanto, de
esperar, que a adaptação dialogue não só com o texto de origem, mas
com seu próprio contexto, inclusive atualizando a pauta do livro
(XAVIER, 2003, p. 62).

O conto machadiano e o curta de Roman Stulbach mantêm


semelhanças e diferenças. A intertextualidade é notória e um olhar
menos atento poderia mesmo dizer que só o clímax separa as duas
obras. Mas existem algumas sutis diferenças que trazem à baila a
singularidade da linguagem literária e cinematográfica e que se faz
necessário explicitar.
Para além da manipulação da obra literária machadiana, o
diretor Roman Stulbach se utiliza também das artes plásticas para
fornecer ao expectador a possibilidade de se aproximar da época
em que a ação se passa, pois a maioria das telas apresentadas

159
durante a ação remete ao século XIX. A escolha dos quadros parece
ter sido bastante minuciosa, posto que onze das doze obras de arte
que compõem o plano de fundo dos créditos iniciais pertencem a
artistas brasileiros. É possível que todos os doze sejam nacionais,
no entanto um dos quadros não pôde ter sua autoria detectada
devido ao fato de o curta não mencionar qualquer indicação sobre
os pintores ou mesmo sobre os nomes das telas. Como agravante à
falta dos créditos em relação às obras, algumas das telas têm
somente a filmagem de um detalhe da cena retratada. Assim, o
trabalho de pesquisa sobre a nada casual aparição dessas pinturas
resultou em um trabalho árduo, de resultados parciais.
Com exceção da tela Primeiros sons do hino da Independência, de
Augusto Bracet (1881-1960), pintada em 1922 em favor da
comemoração do centenário da Independência brasileira, e de
Dame à La rose, de Belmiro de Almeida (1858-1935), datada de 1905,
as demais pertencem à segunda metade do século XIX e refletem o
gosto realista também nas artes plásticas. Até mesmo a obra de
Bracet, do século XX, remonta a um modo de vida oitocentista,
onde o piano e mulheres vestidas “à europeia” perfazem o cenário
em cujo centro observa-se a figura de D. Pedro I.
A escolha de telas que retratassem a vida burguesa do século
XIX já seria um ensejo bastante interessante se o objetivo fosse
simplesmente o de transportar o expectador do século XX para o
tempo em que o enredo se desenrola. Contudo, um olhar mais
atento percebe que esse intuito é muito óbvio e esconde intenções
que só um expectador-leitor pode supor. Assim, as pistas deixadas
antes mesmo do início do filme sobre qual seria seu clímax
aparecem antes mesmo da ação propriamente dita. Destarte, as
pinturas não soam apenas como ornamento dos créditos se aquele
que assiste for o mesmo que outrora lera o conto de Machado de
Assis, o que significa dizer que um expectador sem a prévia leitura
não admite uma conexão das telas com o ápice narrativo.
Num primeiro contato com o filme, principalmente pelo fato
dos quadros estarem em segundo plano em relação aos créditos –
numa possível tentativa do discurso fílmico de sugerir suas

160
intenções – o expectador pode não notar a importância desses
elementos para a compreensão do sentido do curta. Porém, longe
de ser apenas um adorno para os nomes do diretor, roteirista e
personagens, as pinturas têm uma significação que, por si só,
antecipam muito daquilo que o filme busca retratar e, em se
pensando em adaptação literária, podem até mesmo contribuir
para uma possível interpretação do conto.
É interessante notar o trabalho da câmera em relação aos
quadros. Eles não surgem de maneira estática, tampouco estão
emoldurados e pendurados. Ao contrário, a câmera passeia sobre
os detalhes da pintura, como se estas fossem também parte de uma
cena. Para o expectador que tenha lido a obra de origem, a pintura
Arrufos, de Belmiro de Almeida, funciona como visualização
daquilo que seria o casamento de Conceição e Menezes.
Como a literatura, a pintura da época dedicava-se ao retrato
da vida doméstica burguesa. Assim, o quadro em questão reproduz
um cenário muito parecido com aquele que se imagina ao ler o
conto machadiano: um casal burguês numa sala de decoração
decadente onde a mulher, ajoelhada ao chão, parece chorar ao
mesmo tempo em que esconde o rosto nos braços apoiados no sofá.
Do outro lado da sala, o homem, sentado em uma confortável
cadeira, segura um cigarro e demonstra um ar de superioridade e
indiferença à comoção da esposa. Trata-se, claramente, de uma
briga de casal, como sugere o título da tela. O detalhamento da obra
permite inferir a condição da mulher burguesa no século XIX, cuja
voz era abafada por uma sociedade patriarcal.
Embora a personagem Conceição seja caracterizada, tanto no
conto como no filme, como uma mulher resignada com as
constantes traições do marido e, talvez por isso, a mulher retratada
em Arrufos não se assemelhe com a personagem machadiana, o que
chama a atenção do expectador no quadro e garante a imediata
comparação com a obra literária e a obra fílmica é a frieza do
marido para com a esposa e o machismo declarado em uma postura
de superioridade e desdém. A indiscrição de Menezes no adultério

161
demonstra o quão afinados estavam, à época do oitocentos, os
artistas do realismo.
Outro quadro importante na composição do curta-metragem
é Moça lendo em Itu, de José Ferraz de Almeida Júnior (1850-1899),
no qual uma bela mulher lê tranquilamente durante uma tarde de
sol, tendo uma bela paisagem ao fundo. Nessa obra, a preocupação
também foi a de retratar os costumes da burguesia oitocentista e o
tema escolhido por Almeida Júnior foi pintado por outros tantos
artistas de sua época. A leitura, um dos poucos prazeres permitidos
às mulheres, servia como uma espécie de válvula de escape para os
dissabores de um papel social circunscrito à vida doméstica. Como
o casal burguês de Missa do Galo não tinha filhos, até mesmo a
maternidade fora negada à Conceição, que parecia encontrar
algum conforto nos romances românticos, conforme as narrativas
do conto e do filme revelam.
A crítica realista ao costume burguês de leitura romântica
baseava-se na ideia de que as aventuras amorosas idealizadas
incentivavam o adultério feminino, uma vez que as mulheres
poderiam criar um mundo imaginário onde o amor fosse o pilar
responsável pela sustentação da felicidade. Esse pensamento
romântico contrariava as bases do casamento oitocentista,
convenientemente negociado.
Das sutis diferenças entre o conto e o curta está justamente a
questão da leitura, pois no conto machadiano Conceição, ao entrar
na sala onde Nogueira espera o momento de ir à missa, deseja saber
o nome do livro que o rapaz está a ler quando este lhe responde
que se trata de Os três mosqueteiros, de Alexandre Dumas (1802-
1870). Ela então indaga se ele já havia lido A moreninha, de Joaquim
Manuel de Macedo (1820-1882) ao que ele responde positivamente.
A conversa sobre o gosto pela leitura de ambos termina quando
Conceição pergunta sobre quais romances Nogueira vinha lendo.
No conto, por se tratar de uma narração digressiva, Machado optou
por não explicitar todo o diálogo dos personagens, ficando muito
do que foi dito entre eles apenas nas memórias de Nogueira. Assim,
como resposta à pergunta de Conceição, o conto revela apenas que

162
o rapaz citou alguns títulos. Contudo, no filme, em que o diálogo é
favorecido, ambos vão citando seus livros favoritos. Entre os
romances lidos por Nogueira está O visconde de Bragelonne (1850) e
O Conde de Monte Cristo (1844), ambos de Dumas; O moço loiro
(1845), de Joaquim Manuel de Macedo; Paulo e Virgínia (1787), de
Bernardin de Saint-Pierre e A princesa Magalona1. Em comum, todos
os romances tratam, em maior ou menor grau, da idealização do
amor, dos encontros e desencontros de casais apaixonados que
enfrentam as desventuras da vida em prol de um sentimento
fremente e indelével.
Os roteiristas do curta-metragem certamente optaram por
inserir essa parte da conversação para aproximar os mundos – tão
distantes – dos personagens. Ela, uma mulher casada, madura, com
uma vida doméstica pacata e insossa. Ele, um jovem mancebo
recém-chegado à corte, desejoso de conhecer o modo de vida
urbano. As acentuadas diferenças explicam por que, apesar de já
estar hospedado há algum tempo na casa de Menezes, a noite da
missa foi a primeira na qual Nogueira e Conceição tiveram uma
conversa que fugisse do trivial. Assim, é pertinente supor que a
inserção de um momento do diálogo em que ambos estivessem
sintonizados revelaria que, a despeito do distanciamento social, os
personagens eram bastante parecidos.
A leitura romântica mutuamente apreciada pelos personagens
revela um caráter histórico da literatura oitocentista: um público
leitor feminino ou estudantil ávido por tramas sentimentais
arrebatadoras.

1 De origem medieval, a história desse romance surgiu na Espanha e, através da


oralidade, ganhou outros países europeus, como Portugal. O romance, que trata
de uma história de amor entre uma princesa e um cavaleiro medieval, foi um
dos primeiros títulos publicados no Brasil pela Imprensa Régia e, durante todo
o século XIX, garantiu o sucesso de vendagem de várias editoras. (ver
HALLEWELL, Laurence. O Livro no Brasil – sua história. São Paulo: Edusp, 2ª
edição revista e ampliada, 2005, pg.60).

163
Se a parte mais numerosa do público era constituída pelas moças
casadouras e por estudantes, e o tema literário por excelência devia
ser, por isso mesmo, o do casamento, misturado um pouco com o
velho motivo do amor, a imprensa e a literatura, casadas
estreitamente então, seriam levadas a atender a essa solicitação
premente. (SODRÉ, 1999, p. 198).

Na contramão da emotividade amorosa das leituras


compartilhadas por Nogueira e Conceição, a literatura realista
trouxe uma visão social do século XIX que punha a leitura de
romances românticos como prejudiciais ao casamento. Algumas
mulheres da ficção realista cometeram adultério devido ao fato de
estarem tão demasiadamente absorvidas por leituras românticas ao
ponto de não conseguirem mais suportar o matrimônio e sua
realidade rotineiramente isenta de emoções. Em obras como
Madame Bovary (1856), de Gustave Flaubert e O primo Basílio (1878),
de Eça de Queirós, por exemplo, vê-se que, enquanto os romances
românticos preenchiam o ócio e, por consequência, o tédio das
personagens casadas, instauravam nelas também um desejo velado
de serem a heroína dessas histórias, de poderem vivenciar um
amor romântico como aquele dos livros.

Quando o marido deixa de ser o amante e o amor dá lugar ao ciúme


ou à vaidade, o que restará a essa mulher cuja educação fixou-se nas
artimanhas da conquista, da coqueteria? Ao se deixarem envolver
pelo romantismo, as mulheres perdem suas vidas imaginando quão
felizes teriam sido com um marido que as amaria com férvida e
crescente paixão todo o dia, todos os dias de suas vidas.
(WOLLSTONECRAFT, 2001 apud MORAES, 2009, p.22).

Em termos de análise da inserção, no conto machadiano, de


um diálogo travado entre Conceição e Nogueira em que ambos se
mostram leitores assíduos de romances, já se imagina que entre a
mulher de Menezes e o jovem rapaz poderia acontecer um
envolvimento amoroso. Em se tratando do curta-metragem essa
hipótese ganha ainda mais força, pois ao enumerar os romances

164
que costumava ler, Nogueira apresenta um gosto pelos dramalhões
emocionais, o que inspira Conceição a revelar que alguns títulos
também faziam parte de suas leituras. A intimidade que se instala
entre os dois através do gosto romanesco é sinalizada também por
meio da interpretação da atriz Fernanda Montenegro (1929), que
representa uma Conceição embevecida com as palavras de
Nogueira, interpretado por Rodrigo Santiago (1943-1999). De fato,
o que se observa nesse momento do filme é uma sedução mútua,
intencional da parte de Conceição e certamente involuntária no que
diz respeito à Nogueira.
Conforme sugere Nogueira, o narrador do conto Missa do Galo,
na noite da conversação ele teria sido seduzido por Conceição. No
entanto, embora ele tente convencer o leitor através de memórias
vagas, nada comprova um envolvimento factual entre o casal. No
curta, lançado quase cem anos depois do conto, o envolvimento é
comprovado e não há espaço para a incerteza sobre aquilo que é
narrado.
O cinema, ao tentar encontrar meios de transpor narrações
literárias em primeira pessoa, acomoda de outras formas a
presença de um ponto de vista análogo ao campo literário. Embora,
na atualidade, haja meios inovadores para contar uma história cujo
foco narrativo esteja num personagem, o curta de Roman Stulbach
preferiu o modelo clássico, no qual o narrador se ausenta e têm-se
a impressão de que a história evolui por si mesma.

O cinema clássico, com suas regras de transparência e ilusionismo,


privilegiou o primeiro tipo, a história deve correr sem interferências.
E chamamos de naturalista esse efeito e eclipsar os meios de
representação e dirigir o expectador para uma identificação “direta”
com o mundo ficcional. (XAVIER, 2003, p.70)

Enquanto toda a imprecisão machadiana ficou respaldada por


um narrador cujas memórias não são confiáveis, a história contada
por Stulbach negligencia, após uma breve introdução, a presença
desse narrador, de modo que não reste dúvida sobre a veracidade

165
dos acontecimentos. Esse é o ponto nuclear da adaptação, que
subverte toda a ambiguidade machadiana acerca da personagem
Conceição, bem como da dúvida que pairava sobre o desfecho do
conto. Até mesmo a pouca idade do narrador da obra literária, que
lhe conferia ares fantasiosos de adolescente, é retirado da obra
fílmica. O breve momento em que há a presença do narrador se dá
quando a voz do ator começa a contar a história. Suas palavras são
idênticas as do conto, com algumas supressões importantes, como
a primeira frase da narrativa machadiana:

Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há


muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal.
Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não
dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite. (ASSIS, 2008,
p.562)

Além de ignorar a adolescência de Nogueira, o filme conta


com mais um recurso que omite esse dado, qual seja a fisionomia
do ator Rodrigo Santiago, à época, com trinta anos. Apesar da
aparência de um adolescente do século XIX ser muito mais madura
do que a de um jovem do século XX, o ator não convence como um
mancebo oitocentista. Talvez não fosse o intuito do filme a
manutenção dessa característica do personagem, uma vez que a
pouca idade de Nogueira, no conto, permite que o leitor duvide da
autenticidade dos relatos.
Ainda que o Nogueira da adaptação cinematográfica não
tivesse a mesma inocência juvenil daquele do conto, o filme mostra
um jovem sendo seduzido por uma mulher mais velha. O
envolvimento físico entre os dois, simbolizado por um beijo que
Conceição lhe dá, ao qual ele retribui resignadamente, só se dá no
décimo minuto do filme, cuja duração é de quinze minutos2.
Contudo, o adultério já poderia ser previsto desde os créditos,

2 O tempo do filme, segundo o site www.imagemtempo.com/machadodeassis é de


10 minutos. Porém aqui foram contabilizados os minutos dedicados aos créditos,
por se entender que eles fazem, de certo modo, parte do filme.

166
quando há uma presença maciça de pinturas que remetem ao
adultério, à nudez do corpo feminino e, em alguns, fica
subentendido a questão do prazer sexual.
Quatro das doze obras de arte que compõem os minutos
iniciais do filme retratam mulheres nuas ou seminuas, deitadas de
maneira a se fazer supor um estado de extremo relaxamento. Duas
dessas obras podem ter uma interpretação ainda mais intrigante,
pois o relaxamento das posições associado à satisfação sexual pode
ser visto como um profundo abandono do corpo, algo de
inanimado, semelhante ao estado de morte. Os títulos dos quadros
ressaltam essa interpretação: Desdêmona, de Rodolpho Amoedo
(1857-1941) e Messalina, de Henrique Bernardelli3 (1857-1936).
Trata-se de duas mulheres igualmente famosas, sendo a primeira
uma personagem literária e a segunda uma figura histórica, ambas
assassinadas por seus maridos devido ao adultério. Em Desdêmona,
têm-se uma clara referência à peça Otelo, de Shakespeare (1564-
1616), em que a personagem homônima é acusada injustamente de
traição e tem sua vida usurpada pelo marido ensandecido de
ciúme. Já Messalina refere-se à imperatriz romana Valéria
Messalina, segunda esposa do imperador Cláudio (40 d.C),
conhecida por sua reputação promíscua. Ao ser transportada para
o século XIX, Messalina aparece simbolizando a mulher fatal, um
tipo feminino que só se preocupa com o prazer sexual e ignora os
laços familiares.
Os outros dois quadros, Estudo de mulher, também de
Rodolpho Amoedo e Mulher nua com véu, de Eliseu Visconti (1866-
1944) também apostam na ideia da exposição do corpo feminino e,
embora não mantenham laços históricos ou literários com o
adultério, não podem ser desconsideradas dentro do contexto
fílmico. Em se pensando somente na obra de origem, o conto – no
qual não se pode garantir que tenha havido uma sedução
propriamente dita – a recorrência dessas pinturas vão na direção

3 Entre as obras mais famosas do pintor está o retrato de Machado de Assis, feito
em 1905.

167
contrária da descrição inicial de Conceição, feita pelo próprio
narrador, que a coloca como uma santa. Ora, uma mulher cujo
comportamento servia como exemplo da discrição matrimonial no
século XIX não poderia, em hipótese alguma, estar relacionada com
os quadros supracitados. Neles não se tem apenas a nudez, mas a
nudez num contexto de luxúria. Em Estudo de mulher, o cenário
reforça a ideia de que ali houvera um envolvimento amoroso, pois
a mulher está deitada de bruços, levemente inclinada para a direita,
com a cabeça recostada em uma almofada enquanto o braço
esquerdo segura um leque e se deixa cair ao chão, encostando
levemente num tapete muito felpudo, sobre o qual repousa boa
parte do lençol que outrora estivera na cama. Já o quadro de Eliseu
Visconti tem um cenário muito menos detalhado, mas chama a
atenção o fato da mulher ter sido pintada sob uma perspectiva
quase frontal, em que os seios e os pelos pubianos ficam aparentes.
O véu, que faz parte do título da obra de arte, cobre apenas os
tornozelos e os pés da mulher.
É consenso que véu faz lembrar a castidade e, mais ainda, a
santidade. É muito instigante a escolha desse quadro no curta-
metragem, pois ele remonta a duas situações do conto e do filme.
A primeira refere-se a alcunha de santa criada pelo narrador ao
caracterizar Conceição. A segunda é o fato de Conceição, em dado
momento, deixar os pés a mostra. Sabe-se que o pé feminino era um
fetiche no século XIX, posto que o corpo da mulher ficava tão
absolutamente coberto pelos vestidos que, vez ou outra, era
possível avistar os pés ou os tornozelos. Tanto no conto quanto no
filme a lembrança de ter visto os pés de Conceição é muito nítida
para o narrador já muito distanciado do momento da narrativa. Na
pintura, no entanto, revela-se tudo, exceto os pés e tornozelos da
mulher.
Há ainda outras quatro pinturas que, apesar de fugirem do
tema da nudez, remontam à personagem Conceição, bem como às
personagens femininas machadianas. A observação da mulher
através da literatura, ainda que não tenha mudado a esfera social a
qual elas pertenciam, favoreceu a compreensão de um universo

168
muito particular a que estava subjugado o sexo feminino durante
todo o século XIX.
As pinturas mostram situações as mais variadas envolvendo a
figura feminina. Em Más notícias, de Rodolpho Amoedo, a modelo
é Maria, irmã de Adelaide Amoedo, esposa do artista. O quadro
explora a expressão de uma mulher burguesa diante do
recebimento de uma carta, a qual ela comprime fortemente entre os
dedos. Pelo título dado à obra, certamente as notícias contidas na
carta não eram boas. Chama atenção a obstinação do olhar
feminino frente ao seu expectador. O olhar é tão forte e tão
demasiadamente atraente que faz lembrar Capitu, de Dom
Casmurro (1899). O tema da má notícia permite imaginar um
contexto narrativo para o quadro, no qual se faça saber o que a carta
significava para aquela mulher. O olhar consternado pouco sugere
em termos de perda de algum ente querido, parecendo se tratar de
algum problema iminente. Seria a revelação do adultério do
marido? Ou uma decepção amorosa? Ou ainda a descoberta de seu
próprio adultério?
Há ainda outros dois quadros pintados por Rodolpho
Amoedo em que a cunhada Maria serve de modelo. Trata-se de
Maria Moraes aos quinze anos e Meditação. No primeiro a irmã de
Adelaide Amoedo está sentada em uma cadeira tendo uma
sombrinha fechada nas mãos. Ela veste um belo, mas singelo
vestido em tons de rosa e, na cabeça, usa um chapéu. O cenário é
bastante simples. Além da cadeira, há apenas um papel de parede
ao fundo, decorado com flores. Aqui, novamente, o olhar é a tônica
do retrato. Maria é apenas uma menina, mas, através de um olhar
doce e ao mesmo tempo intenso, demonstra a segurança e a força
de uma mulher. O segundo quadro revela uma Maria mais
madura, cujos traços fortes são os mesmos de Más notícias, de 1895.
Embora nenhum dos dois quadros revele a data da pintura, é
possível que Meditação e Más notícias sejam da mesma época,
quando Maria devia ter cerca de trinta anos. Nesse quadro não se
repete o olhar fixo e atraente, ao contrário, tem-se uma mulher de
perfil em uma atitude de tamanha indiferença que parece não

169
perceber estar sendo retratada. A ideia parece ter sido a de captar
um momento de devaneio, de reflexão.
Rodolpho Amoedo retratou, por várias vezes, sua esposa,
Adelaide. Contudo, nenhum dos seus retratos aparece no filme.
Comparando Adelaide e sua irmã Maria, pode-se inferir que o
motivo esteja no distanciamento expressivo existente entre as duas.
Adelaide ostenta um semblante recatado e um olhar fugidio,
enquanto Maria possui uma fisionomia ensimesmada e uma
expressão resoluta. Além disso, Maria acabou ficando mais famosa,
artisticamente, que Adelaide, em função do quadro Más notícias,
para o qual serviu como modelo.
Ainda contemplando o tema do retrato feminino, há um
último quadro, de Belmiro de Almeida, cujo título está em francês:
Dame à la rose. Na pintura, a mulher foi retratada num perfil de
corpo inteiro, no qual se deixa ver, através da vestimenta refinada,
as curvas sedutoras. O fato de o quadro pertencer ao século XX
revela uma mulher mais moderna, tanto no modo de vestir quanto
na postura social. A modelo traja duas peças escuras e longilíneas
ao invés de um vestido claro e bufante. Mas a principal diferença
em relação às demais mulheres retratadas nos quadros é a presença
do sorriso e de um possível prazer em se deixar pintar. A posição
da modelo transparece uma atitude desenvolta e a feminilidade
também é exaltada pela presença de uma rosa vermelha que a
mulher segura com uma das mãos. De todos os quadros, esse é o
que mais se assemelha a uma fotografia, tamanho é o realismo das
pinceladas.
Tarefa interessante é a de pensar na escolha desses quadros
para o filme. A intenção seria a de mostrar a passagem do tempo
para a mulher? Ou a condição feminina de ser várias mulheres em
uma? Sendo Conceição uma das principais personagens da galeria
feminina machadiana, a opção de incluir tais obras no filme pode
ter sido apenas para ressaltar que, também na adaptação
cinematográfica, o personagem mais intrigante, porquanto se
mantêm sob uma atmosfera no mínimo enigmática, é uma mulher.

170
A inserção das pinturas no início do filme, ainda que tenham
uma participação inquestionável para a interpretação do modo de
narrar escolhido pelo cineasta, não pode ser desvinculada da obra
de origem, o conto. Nele há também a presença de quadros, que
funcionam como ornamentos da casa de Menezes, mas, sobretudo,
como indicativo da tensão conjugal que se abatia sobre o casal. Em
dado momento do diálogo entre Conceição e Nogueira, a mulher
afirma que não aprecia as pinturas que estão na parede, que
preferia a imagem de santas. Ela chega mesmo a dizer que são
impróprias para uma casa de família. “– Bonitos são; mas estão
manchados. E depois francamente, eu preferia duas imagens, duas
santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro”.
(ASSIS, 2008, p.562) Nogueira, embora achasse aquelas pinturas
muito vulgares, não as considerava feias e achava que
exemplificavam bem o “negócio” predileto do Menezes: mulheres.
Um dos quadros representava a figura de Cleópatra, rainha do
Egito, conhecida historicamente por seu poder de sedução e pela
variedade de amantes que colecionou. O conto não se abstém de
nomear a mulher que figurava num dos quadros da sala de
Conceição. No curta, a câmera mostra os detalhes da decoração
decadente daquela família burguesa e ali também aparece um
quadro que, provavelmente, seria o de Cleópatra. Vale lembrar que
esse quadro, sobre o qual a câmera se demora um pouco, aparece
emoldurado e pendurado na parede. Tal representação da rainha
do Egito não figura entre pinturas de artistas renomados, sendo
possível, portanto, que a escolha desse artigo cenográfico tenha
contemplado uma ilustração sem valor artístico, de modo a
enfatizar a presença do kitsch4 na residência de Meneses. É
importante ressaltar que, apesar de aparecer nos minutos iniciais
do filme e de, em certo momento, fazer parte da conversa entre

4 É um termo de origem alemã de significado e aplicação controversos.


Usualmente é empregado nos estudos de estética para designar uma categoria
de objetos vulgares, baratos, de mau gosto, sentimentais, que copiam referências
da cultura erudita sem critério e sem atingirem o nível de qualidade de seus
modelos, e que se destinam ao consumo de massa.

171
Nogueira e Conceição, não há qualquer menção à Cleópatra, de
modo que só um expectador-leitor pode inferir uma interpretação
a respeito do quadro.
A sedução e a dissimulação feminina são recorrentes no
espólio machadiano. Na adaptação em questão ambas as
características fazem parte da composição da personagem
Conceição e convergem do clímax para o desfecho da trama. No
conto, o ato de sentar-se à mesa do almoço, ignorando
completamente a conversação da noite anterior pode ser
interpretada como dissimulação ou simplesmente como a
compreensão íntima de uma consciência tranquila. No curta-
metragem, ao contrário, o comportamento alheio de Conceição em
relação a Nogueira no dia que sucede o beijo entre os dois não deixa
margem para a dualidade interpretativa. Conceição seduziu e é
dissimulada. O episódio noturno não abala as estruturas do seu
casamento e o sentimentalismo buscado nas leituras românticas
não parece estar presente na personagem naquele momento, pois
ela se mantém impassível diante do marido e do, então, amante. O
jogo de sedução perpetrado na noite anterior desaparece no dia
seguinte, quando a personagem se reveste de sua condição de
mulher casada.
Na última cena, em que todos estão à mesa depois do almoço
de natal, o silêncio nada faz lembrar uma data que já era
comemorada no século XIX. Ao contrário, das poucas palavras
proferidas na ocasião, chama a atenção o fato de Meneses, a
despeito do que acontece no conto, ter uma participação efetiva.
Nesse momento do filme, Meneses, interpretado pelo esposo da
atriz Fernanda Montenegro, Fernando Torres (1954-2008) está
sentado na ponta da mesa e passa a reclamar de seu escrevente,
dizendo que ele não fazia as coisas corretamente e que merecia uma
surra. No exato momento em que Meneses diz que irá bater de pau
no rapaz, uma escrava da casa está a servir o café. A cena sugere
muito da sociedade patriarcal e escravocrata do oitocentos.
O leitor de Machado de Assis sabe que, no final do conto,
Nogueira diz ter se ausentado do Rio de Janeiro por alguns meses

172
e que, ao retornar, ficou sabendo da morte de Meneses e das novas
núpcias de Conceição com o escrevente do marido, o mesmo que,
no filme, aparece através do discurso do próprio Meneses. Tal
estratégia do cineasta deixa ainda mais aparente o caráter
dissimulado de Conceição, pois sugere que ela conhecia o
escrevente do marido. O pouco tempo de luto guardado por
Conceição pode sugerir que já havia um envolvimento entre ela e o
escrevente antes da morte de Meneses.
O filme inicia e termina com a voz no narrador. Ambos os
momentos são muito rápidos, deixando a maior parte da trama
contar-se por si mesma. Para conseguir inserir o narrador nos
segundos finais do curta, o diretor optou em colocar Meneses
indagando a Nogueira sobre como fora a missa do galo. A resposta
demora a ser articulada devido ao fato de Nogueira estar absorto
em seus pensamentos, certamente relembrando o beijo da noite
anterior. Quando Nogueira responde a pergunta, o narrador
invade a cena e reproduz as últimas palavras do conto.

...falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar a


curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre,
natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da
véspera. Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio
de Janeiro, em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia.
Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a
encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado
do marido. (ASSIS, 2008, p.563)

Nesse mesmo momento a câmera, até então em uma posição


que privilegiava todos à mesa, se desloca para trás do ator que
interpreta o jovem rapaz, de modo a focar na figura de Conceição,
que lhe entrega uma xícara de café. A técnica da câmera lenta faz
com que se perceba o olhar ambíguo e um tímido sorriso da mulher
em direção ao rapaz.

173
REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 2008.


v.2. Conto. p.562.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. 4ª ed. Rio
de Janeiro: Editora Mauad, 1999.
XAVIER, Ismail. Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção
do olhar no cinema. In: PELLEGRINI, Tânia [et al]. Literatura,
cinema e televisão. São Paulo: Ed. Senac São Paulo; Instituto Itaú
Cultural, 2003. p.61-89.
WOLLSTONECRAFT, Mary. A vindication of the rights of woman.
In: MORAES, Rita Mara Neto de. A condição feminina no matrimônio,
delineada pela ficção. Florianópolis: Universidade Federal de Santa
Catarina, 2009. (Tese de doutorado)

FILMOGRAFIA

Missa do galo. Roman Stulbach. Brasil, 1973, DVD.

NOTAS:

174
Ii

Iii

Iv

175
V

Vi

176
Vii

Viii

177
Ix

178
Xi

179
180
O LUGAR DE “O SEGREDO DAS TRANÇAS” NOS
ACERVOS DO PNBE (2003-2013)

Carla Francine da Silva Reis

Inclusão

A palavra do século, das leis, da TV e também da escola ─ em


que medida aspectos de “O Segredo das Tranças”, conto que abre
o livro O segredo das tranças e outras histórias africanas (2009), título
selecionado e distribuído pelo “Programa Nacional Biblioteca da
Escola” (PNBE) em 2009, contribui para uma representação da
cultura africana que seja consonante ao proposto pelas leis
10.639/03 e 11645/11?
A obra em questão, de autoria do escritor paranaense Rogério
de Andrade Barbosa (1951), em parceria com a ilustradora Thais
Linhares (1970), evoca imagens que convidam o leitor a conhecer
um pouco mais sobre cinco países localizados em pontos distantes
da África e oportuniza, desde a seleção dos contos, uma visão mais
ampla a respeito do continente africano por meio da seleção de
cinco histórias de países que foram colônias de Portugal até por
volta de 1970.
Nesse sentido, esse título merece atenção, entre outros
motivos, pelo fato de trazer à tona algumas possíveis considerações
a respeito da noção de literaturas infantojuvenil africana e afro-
brasileira, sua representação, adaptação e tradução em nosso país,
haja vista as relações literárias entre África e Brasil e o fato dos
reflexos desses vínculos permanecerem por muito tempo
segregados, tidos como referências menores.
Diante dessa realidade, a preservação da memória e sua
interligação com a história pode ser vista como uma oportunidade

181
para disseminação e conhecimento de aspectos negligenciados por
certa visão deturpada em relação à África ainda persistente em
nossa cultura, pois um grande percentual da população brasileira
desconhece a pluralidade desse continente, as diversas marcas da
sua oralidade, dos mitos, de suas tradições, religiões e línguas.
O conto em questão apresenta uma das versões recolhidas da
tradição Angolana, narrada provavelmente pelos griots1, idosos a
quem é legada a função de aconselhar e preservar a memória social.
Esse modelo de narração contribui para a manutenção dos
costumes em decorrência da preservação do passado com vistas à
reflexão sobre o futuro, como podemos observar no papel
concedido a katchiungo. Um homem que pode ser visto como
alguém bastante experiente.
Esse protagonista enquadra-se perfeitamente na
representação da figura masculina, fundamental a essa sociedade
patriarcal, marcada pela gerontocracia, que atribui a administração
da família aos anciãos. A destinação de tarefas domésticas às
mulheres, conforme descreve o conto, também está em plena
consonância com as práticas do povo ali retratado. Assim como as
imposições decorrentes do casamento, que fazem Naué querer
partir junto ao seu marido, levando com eles seu filho, com objetivo
de não seguir costumes de sua comunidade, segundo os quais
deveria obedecer não somente ao Ancião, mas também às esposas
mais velhas.
A partida, ocorrida durante a madrugada, mostra uma das
principais características do povo angolano, que consiste no
respeito a natureza. As experiências vividas durante trajeto
intensificam a relação dos personagens com o cosmos.
Principalmente durante a fuga, que mescla descrição e poesia,
desde a forma como “a sombra da noite os encobriu”, até o medo
sentido a partir do momento em que embrenharam-se na mata,
frente à possibilidade de encontro com seres mitológicos, como Di

1 Contadores de histórias africanos.

182
- Kishi (monstro aterrador de duas cabeças) e Kianda (o ser que
comanda águas).
Durante a chegada à clareira isolada, escolhida como nova
moradia, são descritos os papéis sociais, as formas de trabalho
relacionadas à agricultura de subsistência e a organização familiar
angolana. O marido desempenha trabalhos que exigem força, entre
os quais é destacado o corte de arbustos e galhos necessários à
construção da nova cabana. Enquanto isso, a esposa prepara o
terreno para a lavoura de milho, atribuição comum ao cotidiano da
mulher moradora de áreas rurais angolanas. Nesse ambiente
percebemos indícios cultura “bantu” que marcam a identidade de
grande parte dos negros africanos, escravizados, trazidos para o
Brasil.
A atribuição de papéis sexuais nesse contexto conta também
com ritos de passagem, que encontram representação na obra,
quando o narrador faz menção a uma celebração, denominada
Mukanga, a qual Mutenga, já quase adulto, deveria se submeter. O
período de iniciação faz com que a família volte para a aldeia natal.
Essa decisão é apoiada pela esposa, que com a passar dos tempos,
mostra-se mais sensata. Katchiungo, também passara por algumas
transformações, mas mantém-se, “forte, ágil, e acima de tudo cheio
de mistérios”, pois o maior símbolo da personalidade enigmática
do ancião continuava sendo, desde a juventude, suas quatro
tranças.
O cabelo do protagonista pode ser interpretado como
materialização de todo seu conhecimento. Ele carrega consigo
mensagens. Pois, de acordo com Regina Claro (2009) em “O
trançado das histórias”, texto anexo ao próprio livro de Rogério
Andrade Barbosa, o corpo pode contar histórias, pelo fato de
carregar diversas mensagens. Essa constatação torna-se notória,
segundo a autora, desde os primeiros contatos de angolanos com
os povos europeus, que ficaram intrigados com as várias
combinações de conchas, contas e fitas, ornamentos combinados a
diversos cortes e tamanhos de cabelos encontrados no Continente
Africano. Ainda a respeito dos colonizadores, a autora salienta:

183
O que eles não entendiam era que o cabelo funcionava como um
condutor de mensagens. Em diferentes culturas africanas o cabelo é
parte integrante de um complexo sistemas de linguagens. O estilo do
cabelo é usado para identificar o estado civil, a origem geográfica, a
idade, a religião, a identidade étnica, a riqueza e a posição social das
pessoas. Em algumas culturas, o sobrenome de uma pessoa pode ser
descoberto simplesmente pelo exame do cabelo, pois cada clã tem seu
próprio e único estilo. (CLARO, 2009, p. 52)

A apreciação da diversidade como aspecto em relação à


cultura afro incentiva o abandono de uma visão unilateral no
tocante ao conhecimento de não uma, mas duas Áfricas: A
“Saariana”, que abarca desde o Norte do atual Egito até Marrocos e
a “Subsaariana”, centrada entre o Saara e o Cabo da Boa Esperança. A
valorização da sabedoria desses povos relaciona-se à perspicácia,
traço marcante da personalidade do protagonista. Seu saber,
conforme veremos, será responsável pelo desfecho do conto e por
seu consequente livramento, que ocorre logo depois que a família
decide fazer uma fogueira para preparar um prato de mukunza
(canjica de milho cozida).
Nesse momento, são surpreendidos, acabam presos e levados
pelos guerreiros de um importante soba que reinava sobre toda
aquela região. Logo na entrada da Mbanza (Tribunal do Soba),
Mutenga demonstra uma grande ingratidão para com o chefe da
família. O rapaz justifica que a culpa de estarem ali era de
Katchiungo, ao chamá-lo de velho teimoso. A esposa também
mostra-se individualista ao usar da velhice do marido, como
justificativa para terem descansado naquele reino. Mesmo assim,
ela adverte o líder dizendo que, se estava pensando em matá-lo, era
preciso ter cuidado com suas quatro tranças e com os segredo
guardado por elas. Curioso, o soba propõe ao velho que lhe revele
o enigma a fim de salvar sua vida. Sem saída, o homem pôs-se a
revelar:
“- A trança do lado esquerdo da minha cabeça chama-se “Não
diga tudo aos conhecidos. A do lado direito é “O filho dos outros

184
não é teu filho”. E as que ficam atrás são “O mais velho é igual ao
seu mais velho”. ( p. 13)
Questionado pelo inquisidor, que lhe pede para explicar de
forma mais clara o segredo da primeira trança, ele afirma: “Não
diga tudo aos seus conhecidos, porque se você conta seus segredos,
como contei para minha mulher, as pessoas acabam contando para
os outros.” ( p.14). Com essa lição, o velho demonstra seu
arrependimento em seguir a mulher e abandonar os preceitos de
sua comunidade, o que é reafirmado pelo soba, quando ele conclui
“[...] Alguns indivíduos são como os sapos, que vivem repetindo
tudo. ” (p.14)
Na sequência, Katchiungo demostra decepção em relação ao
enteado e ressalta a dor de sentir-se traído, abandonado, por
alguém a quem tanto ajudou. Ele esclarece o que simboliza a trança
do lado oposto, que se chamava “O filho dos outros não é teu filho”,
ao dizer: “Este rapaz, que acabou de me desdenhar, não tem
coração” [...] “eu o criei com toda atenção, como se fosse sangue das
minhas veias. Viu como ele me tratou quando precisei de seu
apoio? ”(p. 14)
Logo depois, o ancião define o significado da terceira trança
“O mais velho é igual ao seu mais velho”, mencionando a forma
como fora tratado pelos jovens que lhe prenderam:

Se seus homens, antes de me arrastarem, tivessem olhado com mais


atenção, perceberiam que eu tenho idade para ser pai deles. Portanto,
deveriam ter mais consideração e respeito por um idoso. E lhes
poupariam aborrecimentos, e você não estaria perdendo seu tempo
comigo. ( p. 15)

Finalmente, Katchiungo, antes de partir sozinho para casa,


com a certeza de que nunca deveria ter saído de sua cabana, reforça
a importância do papel dos conselhos do ancião. Ele afirma que o
nome da última trança é “o soba não usa de justiça” e explica que
qualquer chefe, por mais poderosos que seja, teria de ouvi-lo, antes
de fazer alguma acusação. O que resulta na preservação de sua

185
vida. Matar o sábio não seria prudente, uma vez que, sua voz, suas
lembranças são essenciais para que o presente e o futuro possam
ser compreendidos.
Esse respeito à tradição oral, responsável pelo desfecho da
história, mobiliza também a definição de diretrizes para nossa
atualidade, quando a instituição escolar recebe a incumbência de
contribuir para a sociabilidade, ao incentivar o desenvolvimento do
educando, não só por meio da escrita, mas também pela oralidade
e leitura. Contudo, a compreensão de sua atuação na construção
da identidade e da subjetividade do leitor deve ser interpretada a
partir de um redimensionamento de seu papel social enquanto
instituição consciente das transformações socioeconômicas
decorrentes da globalização.
Fenômeno que traz à tona conceitos e valores relativos à
democracia, dando origem a marcos educacionais, entre os quais se
insere a criação da lei 10.639/032, que resulta de um processo
histórico de revisão do currículo escolar ao incluir a
obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Africana e Afro-
brasileira, bem como o ensino de literatura dessas matrizes
culturais, conforme analisam Márcia Moreira Pereira e Maurício
Silva (2012):

A referida lei não foi sancionada de um dia para o outro. Ao


contrário, antes de ser sancionada, passou por diversos estágios,
resultando dos movimentos negros da década de 1970 e do esforço
de simpatizantes da causa negra na década de 1980, quando diversos
pesquisadores alertaram para a evasão e para o déficit de alunos
negros nas escolas, em razão, entre outras causas, da ausência de
conteúdos afrocêntricos que valorizassem a cultura negra de forma
abrangente e positiva. Na década de 1990, ocorrem movimentos
intensos em todo Brasil a favor da afirmação da identidade negra,
com destaque para a célebre Marcha Zumbi dos Palmares [...]. Diante

2 Importa ressaltar que a lei 10.639/03, assinada pelo Presidente Luiz Inácio Lula
da Silva, foi posteriormente alterada pela lei 11.645/08, que inclui a mesma
orientação ao abranger também a temática indígena.

186
de muitas lutas e de alguns resultados conquistados, a causa negra
adquire mais força a partir dos anos 2000, finalizando com a
promulgação, em 2003, da referida lei (PEREIRA; SILVA, 2012, p. 02).

Promulgada essa lei, as instituições de ensino, tanto no âmbito


da Educação Básica quanto nas universidades, depararam-se com
a necessidade de uma adaptação para atendimento do que lhes fora
proposto. No entanto, é possível verificar, por diversas vezes, que
a prática em sala de aula tem-se voltado apenas para o ensino de
História, já que muitas instituições de ensino desconsideram a
importância da Literatura Africana e seu contexto cultural. É o que
afirma Adelmir Fiabani (2011):

Com a Lei em vigor, as escolas, universidades, editoras e professores


tiveram que se adaptar à nova realidade. No entanto, a norma não foi
cumprida em significativa parte dos estabelecimentos de ensino.
Pesquisas apontam para a inoperância da Lei nos diversos níveis do
sistema educacional. Entre os vários fatores que colaboram para a
não efetivação da Lei, está a formação deficitária dos professores. Em
praticamente todo o Brasil, os cursos de História foram constituídos
com currículos que não comportavam a cadeira de História da África.
No antigo modelo de universidade, os conhecimentos sobre o
continente africano eram apresentados juntamente com os demais
conteúdos, muitas vezes, de forma equivocada ou estereotipada. Por
muito tempo, a África foi representada como o lugar dos escravos,
da fome, dos conflitos étnicos, da pobreza (FIABANI, 2011, p. 02-03).

O índice de professores formados ou em formação que


desconhecem a História da África ainda é alarmante. Poucas são as
disciplinas ofertadas nos cursos de especialização que apresentam
em suas ementas conteúdo específico sobre a História desse
continente. Em vista desse déficit, ações governamentais que visam
à formação continuada dos docentes, pedagogos, diretores e
bibliotecários mostram-se cada vez mais relevantes, já que alguns
livros didáticos ainda apresentam um conceito empobrecido sobre
essa temática.

187
O despreparo pedagógico também pode ser observado,
principalmente quando as atividades propostas com a finalidade
de atender ao que fora estipulado pela lei são centralizadas em
apenas um momento do ano letivo. A restrição de oportunidades
de conhecimento e a divulgação destas produções culturais
somente durante os dias da “semana da cultura negra” e mostras
culturais nas escolas impedem uma profícua prática de valorização
do legado africano.
Em meio a tais fatos, percebemos a necessidade de uma análise
vertical de acervos de literatura infantojuvenil africana ou de
temática africana comuns à maioria das escolas estaduais e
municipais de nosso país, que nos permita contribuir para o
trabalho com literatura por meio da produção de textos de apoio,
materiais que possam ser explorados pelos professores durante o
preparo de duas aulas. Entre os pesquisadores que despertaram
nosso interesse por esse modelo de pesquisa, destacam-se
Aparecida Paiva e Magda Soares, pesquisadoras estreitamente
ligadas ao PNBE e organizadoras de Literatura infantil - Políticas e
concepções (2008).
Nesse livro, Aracy Martins e Rildo Cosson explicitam no
capítulo intitulado “Representação e identidade: política e estética
étnico-racial na literatura infantil e juvenil” alguns resultados de
análises empreendidas a respeito da distribuição de obras pelo
Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE-2008). Os escritores
supracitados pontuam que a inclusão dessas temáticas é
consonante às demandas dos movimentos sociais pelo fato de
atender aos princípios de uma educação multicultural e
democrática estabelecidos pela lei 10639/03:

Esses grupos revelam a abertura do espaço democrático para a


questão étnico- racial na circulação literária contemporânea e a
diversidade de perspectivas com que ela é tratada, mesmo que nesse
esforço de representar e constituir a identidade não deixe de pesar as
exigências legais citadas anteriormente (MARTINS; COSSON, 2008,
p. 65).

188
Essas reflexões os levam a afirmar que a Literatura
Infantojuvenil Afro-Brasileira contemplada por esse programa
deve ser visualizada em quatro grupos, que, a nosso ver, podem
ser resumidos da seguinte forma: Textos de base cultural que
consistem no registro da literatura oral em lendas, fábulas e outras
narrativas tradicionais; Biografias de personagens históricas; Denúncia
social e racismo; e, por fim, Livros de afirmação de identidade negra.
Seguindo essa proposta de Martins e Cosson, buscamos dar
continuidade à análise do acervo, inserindo o conto “O Segredo das
tranças” entre os “textos de base cultural”, partindo do modelo
proposto pelos pesquisadores sobrescritos, ao considerar que a
obra em questão propicia o envolvimento do leitor com o universo
dessas terras e povos, trazendo consigo o reconhecimento de nossa
herança africana por meio da compreensão desse arcabouço
cultural de maneira não estereotipada, o que contribui para um
processo de mitigação de variados estigmas persistentes, algo
extremamente necessário, conforme evidencia Joseph Ki-Zerbo
(1922-2006), um dos cientistas responsáveis pela elaboração dos
oito volumes da coleção História Geral da África, publicação
encomendada pelos países africanos a UNESCO em 1964 e que foi
traduzida para a Língua Portuguesa em 2010:

Outra exigência imperativa é de que a história (e a cultura) da África


devem pelo menos ser vistas de dentro, não sendo medidas por
réguas de valores estranhos... Mas essas conexões têm que ser
analisadas nos termos de trocas mútuas, e influências multilaterais
em que algo seja ouvido da contribuição africana para o
desenvolvimento da espécie humana (J. KI-ZERBO, HISTÓRIA
GERAL DA ÁFRICA, vol. I, 2010 p. VII).

Afirmações semelhantes a essa demonstram que, mesmo com


grandes avanços, uma ótica predeterminada em relação à África
subsiste em nossa cultura, uma vez que a totalidade da cultura dos
povos africanos ainda é desconhecida pela população brasileira.
Nessa perspectiva, o incentivo à leitura e o acesso à literatura

189
constituem fatores indispensáveis para a transformação dessa
realidade hodierna. Contudo, a realização desse escopo pressupõe
a valorização de atividades relacionadas à formação do leitor, que
ultrapassem a mera perspectiva historicista ou biográfica e que
propiciem fruições artísticas e literárias, as quais, segundo Antonio
Candido, em O direito à literatura (2004), conduzem a
“humanização”.

Referências

BARBOSA, Rogério Andrade. (Org.). O Segredo das tranças e


outras histórias africanas. 1º ed. São Paulo: Editora Scipione, 2007
CANDIDO, Antônio. O direito à literatura. In: Vários Escritos. Rio
de Janeiro: Duas cidades, 2004.
CLARO, Regina. O trançado das histórias. In: BARBOSA, Rogério
Andrade. (Org.). O Segredo das tranças e outras histórias
africanas. 1º ed. São Paulo: Editora Scipione, 2007, v. 01, p. 49-71.
FIABANI, Adelmir. A África na sala de aula: formação de
professores através da extensão. In: 5º CBEU. Porto Alegre, 2011.
Joseph Ki-Zerbo (Editor). História Geral da África – Volume I.
Comitê Científico Internacional da UNESCO para Redação da
História Geral da África. 2 º ed. rev. Brasília: UNESCO, 2010 .
MARTINS, Aracy e COSSON, Rildo. Representação e identidade:
política e estética étnico-racial na literatura infantil e juvenil. In
PAIVA, Aparecida; SOARES, Magda. (Org.). Literatura infantil:
políticas e concepções. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.
PEREIRA, Marcia Moreira; SILVA Mauricio. PERCURSO DA LEI
10639/03: ANTECEDENTES E DESDOBRAMENTOS. In
Linguagem e cidadania, ano 14, n. 1, jan – dez, 2012. Disponível em:
http://jararaca.ufsm.br/websites/l&c/2126aa06463930747e9d0d25a
df1ac82.htm. Acesso em 28 de janeiro de 2015.

190
TECNOLOGIAS DIGITAIS E NOVAS FORMAS DE ENSINO

Daiane Padula Paz


Suzete Verginia de Souza Reiter

1. Introdução

As tecnologias estão cada vez mais presentes em todas as


esferas da sociedade. Muitas vezes nem percebemos quão rodeados
(e até dependentes) estamos desses recursos que servem, em sua
maioria, para facilitar a vida das pessoas. Há pouco tempo,
precisávamos de vários dispositivos para desempenhar as mais
diversas funções: câmera fotográfica, filmadora, gravador de voz,
telefone entre outros; atualmente, apenas um smartphone consegue
dar conta dessas e de muitas outras funções através dos mais
diversos aplicativos. Tudo isso já está tão incorporado à nossa
rotina, que essas mídias são consideradas como extensões do
homem (McLuhan, 1964), pois ilustram a relação do sujeito
contemporâneo com as novas tecnologias de informação e
comunicação.
Como era de se esperar, as tecnologias têm ganhado espaço
também nas instituições de ensino e vêm gerando as metodologias
ativas que consideram o uso de Tecnologias Digitais de Informação
e Comunicação (TDICs) em práticas docentes, tendência crescente
do século XXI, que considera o aluno como autônomo e capaz de
gerenciar seu conhecimento.
Denominado como “renascimento digital” (Jenkins, 2001),
esse período de transição e transformação modificou o mundo e as
formas de aprender e ensinar. Com a inovação tecnológica, os
jovens têm acesso a grande quantidade de informações, entretanto
nem sempre sabem como utilizá-las. Nesse sentido, Moran (2006)

191
nos lembra que aprender depende também do aluno. É preciso
estar maduro para incorporar a real significação da informação que
recebe para que esta faça parte do seu contexto pessoal, intelectual
e emocional, pois, a partir daí, ocorre a experiência de aprender.
Assim, o professor da era digital passa a exercer a função de
mediador e facilitador do conhecimento, filtrando informações e
auxiliando o estudante a desenvolver seu potencial para uma
aprendizagem significativa.
Prensky (2008) chama atenção para a importância de conhecer
o aluno e faz a seguinte analogia: no mundo corporativo, as
empresas gastam dezenas de milhões pesquisando o que seus
consumidores querem, enquanto que, na educação, não se faz
questão de conhecer a opinião dos estudantes sobre o que eles
aprendem. O grande desafio do professor deste século é investigar
seus estudantes, conhecer suas paixões, saber dos seus interesses,
fraquezas, dificuldades e oferecer insumo de modo a contemplar
todos esses pontos ou, pelo menos, chegar o mais próximo disso.
Na era digital, a escola deve repensar suas funções e entender que
o conhecimento não está restrito às paredes escolares, pois também
fora dela muitos jovens aprendem e compartilham com colegas e
amigos conteúdos atuais e relevantes que resultam em
aprendizado, desmistificando, assim, a crença que só se aprende na
escola.
Por outro lado, também vale considerar o papel da instituição
escolar ao disseminar e propiciar a inclusão digital. Numa
sociedade economicamente desigual como a nossa, onde, muitas
vezes, a escola é a única fonte de acesso e contato com as TDICs, ela
é (ou deveria ser) facilitadora no processo de inserção do cidadão
às tecnologias. Neste sentido, Prensky (2010) nos chama atenção
para o “novo mundo” no qual estamos inseridos, onde é preciso
ensinar os alunos a respeitar o passado e também ensiná-los a viver
no futuro.
O uso das TDICs no ensino vem sendo objeto de estudo e
investigações nos últimos anos, com resultados cada vez mais
positivos. Assim, este artigo pretende: i) refletir sobre a forma de

192
ensino e aprendizagem de nativos digitais e suas diferenças em
relação aos imigrantes digitais; ii) destacar a expansão das TDICs
com ênfase em sua incorporação no ensino, fazendo um breve
relato do surgimento da web até os dias atuais; iii) apresentar o
modelo híbrido de ensino como metodologia inovadora adequada
às necessidades dos nativos digitais.
Espera-se, por fim, que nossos leitores percebam a importância
de uma renovação metodológica nas aulas de qualquer
componente curricular e que considerem o uso das TDICs como
uma prática constante em prol de um ensino atualizado e
motivador.

2. Nativos Digitais x Imigrantes Digitais: A questão do ensino /


aprendizagem

Com o surgimento da Internet, em 1997, observou-se uma


grande mudança com relação às expectativas e parâmetros no
ensino. A inovação veio pra ficar e impactou severamente a
sociedade mundial, trazendo consigo uma nova geração: os
“Nativos Digitais”, termo este cunhado por Marc Prensky (2001)
para referir-se aos jovens nascidos a partir da segunda metade da
década de 80. Tapscott (1999), na obra “Geração Digital”, comenta
que os jovens têm mais facilidade que os adultos para lidar com as
novas tecnologias, uma vez que já nascem em contato com elas,
como se fosse uma parte de seu ambiente, ou algo natural, o que
Mattar (2010) define como falantes nativos da linguagem digital.
Essa geração, familiarizada com o mundo das tecnologias,
apresenta maior facilidade e agilidade no acesso e uso de
informações, e começa a transformar as instituições da vida
moderna, desse modo, substitui uma cultura de controle por uma
cultura de capacitação (CECCHETTINI 2011 p. 2). Os nativos
digitais conseguem executar várias tarefas ao mesmo tempo, ou
seja, são capazes de realizar atividades escolares, baixar conteúdos
da internet, ouvir músicas, compartilhar informações pessoais na
rede, e se comunicar com amigos reais e virtuais ao mesmo tempo.

193
No geral, sentem-se confortáveis tanto on-line quanto off-line, e
tomam a tecnologia como uma prática social natural de sua
condição.
Na prática escolar, os nativos digitais recebem informações
mais rapidamente do que seus professores imigrantes, comunicam-
se e se coordenam de maneira diferente (Mattar, 2010; Prensky,
2005). Percebem, portanto, uma barreira de linguagem com os
imigrantes digitais, que interagem de forma diferente, com
pensamento pré-digital. Por esse motivo, é preciso que o professor
da geração da era digital molde-se, atualize-se e se reconstrua
constantemente para poder aproximar-se de sua realidade, afinal,
“as crianças nascem em uma cultura que clica e é responsabilidade
dos professores entrarem no universo de seus alunos.” (PATRICK
MENDELSOHN apud PERRENOUD, 2000, p. 125)
Diferente dos “nativos”, os “imigrantes” digitais são aqueles
nascidos entre os anos 60 e 80 – na denominada era analógica –,
assim migrando para o mundo digital durante a juventude ou, até
mesmo, na vida adulta. Desse modo, de acordo com Mattar (2010),
essas duas gerações pensam e processam as informações de modo
diferente. Os imigrantes digitais apreciam o contato com as
tecnologias, adaptam-se e fazem uso delas, mas sempre
apresentarão características de imigrantes digitais, como, por
exemplo, a necessidade de um livro físico, a impressão de textos
para leitura, anotações pessoais em cadernos ou bloco de notas,
enfim, apesar de fazerem uso das mais diversas mídias, seus
antigos comportamentos estarão sempre enraizados.
Vale ressaltar, portanto, que o perfil de aprendizes abordado
neste artigo não se adequa às metodologias do professor que
“ensina” da mesma forma como aprendeu, pois os estudantes do
século XXI não têm paciência e nem se sentem motivados a serem
apenas ouvintes na escola. Ainda assim, essa descrição de
aprendizado autônomo não implica na “expulsão” do professor da
escola, ao contrário, ele será responsável por organizar currículos
flexíveis e orientar o aluno no percurso da aquisição do
conhecimento (Mattar, 2010).

194
Infelizmente, as escolas avançam lentamente em relação à
incorporação das TDICS, grande parte ainda permanece nos
moldes antigos, com alunos dispostos em filas, ouvindo e
recebendo passivamente informações, sem poder, muitas vezes,
participar ativamente no processo de ensino e aprendizagem. Isso
se dá por diversos motivos que não serão abordados neste artigo,
entre eles, a falta de prioridade e investimento no sistema de ensino
em ações de políticas públicas.
Através das novas mídias, deixamos de ser apenas
consumidores. Somos prosumers, (termo que define o novo perfil do
internauta na web 2.0, que vem da união das palavras produtor e
consumidor) e, portanto, temos autonomia de produção. Nesse
sentido, a escola deve abandonar o molde de educação bancária e
incentivar que os estudantes sejam autônomos também no
processo de construção do conhecimento. É preciso trabalhar com
a perspectiva de preparar cidadãos autônomos o suficiente para
atuar numa sociedade em constante transformação, considerando
que, na nova escola, o conhecimento é produto de uma constante
construção, das interações e de enriquecimentos mútuos de alunos
e professores (MORAIS, 2000). Sob essa perspectiva, as formas de
ensino devem ser/estar adequadas às necessidades da nova geração
de aprendizes.

3. Tecnologias digitais e novas formas de ensino

Os alunos que compõem as salas de aula da atualidade


acessam constantemente os mais diversos recursos digitais, quer
seja para se comunicarem, quer seja na busca por novas fontes de
conhecimento, que consideram mais atrativas do que as
tradicionais formas de ensino. Pois bem, se esses recursos atraem
tanto nossos discentes, porque não os utilizamos como aliados em
nossa prática pedagógica? Não é possível promover um ensino de
qualidade e atrativo ao mesmo tempo? Sim, mas, para que isso
aconteça, é fundamental que o professor, juntamente com a sua
instituição de ensino, esteja disposto a fazer uso das TDICs em seu

195
planejamento de aulas e, pouco a pouco, a incorporá-las em sua
prática docente.
Existem diversas definições para o termo tecnologia
educacional; segundo Newby et al (1996), tecnologia educacional é
um meio pelo qual se conecta o professor, a experiência pedagógica
e o estudante para aprimorar o ensino. Desse ponto de vista,
percebemos a tecnologia como um meio, não um fim, como
aprimoramento do processo de ensino-aprendizagem. Nesse
sentido, Chaves (1999) relata que sempre se deu mais valor à
tecnologia do que à educação e, por isso, prefere usar o termo
“Educação Mediada pela Tecnologia”, uma vez que o professor é
peça fundamental do processo de ensino e aprendizagem, e a
tecnologia fica em segundo plano.
Nas últimas décadas, com o advindo da Internet, surgiu um
verdadeiro dilúvio de informações, gerando um aumento
considerável nos conhecimentos de qualquer pessoa que a ela
tenha acesso. Desde então, temos a possibilidade de integrar
rapidez e criatividade a todos os tipos de mídias, formando um tipo
de texto muito diferente do tradicional texto impresso; surge,
então, um texto mesclado com signos e dados, chamado hipertexto
digital, o qual culmina em um sistema maior, denominado World
Wide Web (conhecido como Web). Como a natureza humana evolui,
a rede mundial de computadores também. A web já apresentou, até
hoje, três versões: web 1.0, web 2.0 e web 3.0, sendo esta última uma
evolução da 2,0 que gera debate entre os estudiosos da área e, por
isso, não será abordada neste artigo.
A web 1.0 surgiu nos anos 60 de forma bem básica. Continha
apenas navegadores de texto, mas logo surgiu o Hyper Text Markup
Language (HTML), que tornou as páginas mais agradáveis para
leitura. Por ser um formato bastante simples, a web 1.0 não
permitia interação com o conteúdo da página (não era possível
fazer comentários, respostas, etc.), sendo, portanto, bastante
limitada.
A web 2.0 é a segunda geração de serviços online, caracterizada
pela predominância de formas de publicação e por ampliar os

196
espaços interativos (Primo, 2007). Não se trata somente de um
conjunto de técnicas informáticas, mas, também, um novo período
tecnológico que se traduz em novas formas de comunicação
mediada pelo computador. O termo web 2.0 foi utilizado pela
primeira vez em 2005, durante algumas jornadas organizadas por
Tim O’Reilly, referindo-se ao agrupamento de todas as aplicações
tecnológicas da internet que se modificam a partir da participação
social. Não é fácil defini-la, porque não se trata de um “lugar”
específico, mas sim uma maneira de entender a participação coletiva
podendo ser utilizada na construção do conhecimento.

Web 2.0 é a rede como plataforma, abarcando todos os dispositivos


conectados. As aplicações Web 2.0 são aquelas que produzem a
maioria das vantagens intrínsecas de tal plataforma: distribuem o
software como um serviço de atualização contínuo que se torna
melhor quanto mais pessoas o utilizam, consomem e transformam os
dados de múltiplas fontes - inclusive de usuários individuais -
enquanto fornecem seus próprios dados e serviços, de maneira a
permitir modificações por outros usuários, criando efeitos de rede
através de uma ‘arquitetura participativa’ e superando a metáfora de
página da Web 1.0 para proporcionar ricas experiências aos usuários.
(O’REILLY, 2005B).

O grande potencial da web 2.0 está na interação grupal a partir


da variedade de ferramentas ou aplicações disponíveis - como
wikis, blogs, chats, entre outros - possibilitando o acesso, a criação
e a difusão da informação de forma extremamente rápida, além de
permitir interações sincrônicas facilitando muito a comunicação.
Díaz e Ramírez (2009) destacam três importantes características da
web 2.0:
- possibilita a interação entre indivíduos em um amplo
espectro, o qual abrange desde as mensagens instantâneas
aos espaços de grupos de trabalho colaborativo assíncronos;
- permite ao grupo dispor das contribuições individuais;
- apoia a criação e gestão de redes sociais, ao favorecer as
relações pessoais em um ambiente digital.

197
Com a web 2.0, desenvolve-se também a ideia de um software
não estar preso a um único dispositivo, e sim a diversos (Mattar,
2013), a tendência é o uso de multidispositivos interligados por
ferramentas de “nuvem”, como Dropbox, Google Drive, One Drive,
entre outros. Também, por seu caráter colaborativo, a web 2.0 é
considerada um software social. Na vastidão de recursos
disponíveis, demonstrados na figura 1, é possível que o professor
utilize em sala de aula aqueles que considere interessantes para
seus objetivos, levando em conta a realidade escolar e dos
estudantes.

Figura 1 - Recursos disponíveis na web 2.0

Fonte: Herrero (2017)

Podemos perceber que a web 2.0 ampliou as potencialidades


que a rede pode oferecer como ferramentas didáticas, oferecendo
novas possibilidades de uso e permitindo que docentes e alunos
sejam os protagonistas na construção do conhecimento autônomo,
que é, ao mesmo tempo, colaborativo e inovador, palavras-chave
na metodologia de ensino dos dias atuais. Sabemos, portanto, que
uma prática pedagógica que incorpore as TDICs é um desafio a
qualquer professor, quer seja pela dificuldade de encontrar uma
teoria de aprendizagem que dê suporte à educação 2.0, quer seja
pelo contexto escolar, o qual, muitas vezes, não propicia uma sala
de aula inovadora.

198
Há quase um consenso na literatura de que o uso de ferramentas da
web 2.0 e redes sociais em educação implica, de maneira geral,
mudanças das teorias pedagógicas centradas no professor para
teorias mais participativas, colaborativas, sociais e centradas no
aluno. (Mattar, 2013, p.30)

Cabe observar ainda que o processo de ensino e aprendizagem


é de movimento, assim, o professor e os alunos devem encontrar
formas para colocar em prática aquilo que está delimitado na
teoria. Nesse sentido, a implementação efetiva das TDICs tem
muito a contribuir para uma prática docente inovadora e, ao
mesmo tempo, engajadora, resultando em um ensino híbrido,
tendência da pedagogia moderna.

4 Ensino Híbrido

O mais recente desafio dos educadores de todos os níveis é a


personalização do ensino de modo que contemple as necessidades
e especificidades de todos os estudantes. Com a implementação das
TDICs na educação, muitas alternativas surgiram para facilitar o
processo ou, talvez, viabilizar formas diferenciadas de ensino.
Nesse contexto, está o modelo híbrido de ensino, o qual, em seu
conceito, apresenta a ideia de educação híbrida, em que não existe
uma forma única de aprender e na qual a aprendizagem é um
processo contínuo, que ocorre de diferentes formas, em diferentes
espaços (Bacich, Tanzi Neto & Trevisani, 2015).
Híbrido significa misturado, mesclado, blended (Morán,
2015a). Há muito tempo, a educação vem requerendo modificações
significativas, certamente com metodologias, atividades e espaços
mesclados para ensinar e aprender de diversas formas. A educação
é terreno promissor para o hibridismo, pois nela é possível integrar
áreas, conhecimentos, recursos e finalidades para um formato
personalizado e fluído de aprendizagem.
Por ser uma proposta e nomenclatura relativamente recente, o
termo tem sido utilizado de maneira “extremista” em diversas

199
instituições de ensino; isso porque algumas o utilizam de forma
absolutamente ampla, referindo-se a todos os usos de tecnologias
na educação, conhecidas como Educational Technology (EdTech),
confundindo com ensino enriquecido por tecnologias – e outras, de
forma reducionista, indicando apenas os tipos de aprendizagem
que combinam o formato on-line e o presencial. Horn e Staker
(2015) definem o ensino híbrido como programa de educação
formal, no qual o estudante aprende, ao menos em parte, de forma
on-line, exercendo algum tipo de controle em relação ao tempo, ao
lugar, ao caminho e/ou ao ritmo.
Com o fácil acesso à informação e conteúdo, o professor torna-
se, cada vez mais, um gestor e orientador de caminhos coletivos e
individuais, onde o aprender e o ensinar ocorrem em uma
interligação simbiótica entre o físico e o digital (Moran, 2015a). Um
bom professor pode enriquecer materiais prontos com
metodologias ativas: pesquisa, aula invertida, integração sala de
aula e atividades online, projetos integradores e jogos (Moran,
2015b).
Ainda, nesse processo de transformação do ensino, é preciso
pensar no ambiente físico da sala de aula ou da escola, espaço que
deve permitir uma integração e concepção mais ativa para que o
ensino não seja centrado no professor, mas sim no aluno, que será
ativo em todo o processo. Sabe-se também que a realidade
brasileira apresenta importantes limitações quanto à
disponibilidade de tecnologias digitais, especialmente nas escolas
públicas; fator que prejudica na incorporação de metodologias
ativas, atualmente incrementadas, de forma intensa, em países
desenvolvidos e/ou aqueles que priorizam o sistema de ensino.
De todas as formas, apesar da carência material que acomete
muitas escolas e as adversidades que surgem, sabe-se que grande
parte dos professores sente necessidade de replanejar sua prática
pedagógica, e é nesse momento que a utilização de modelos de
ensino híbrido pode ser uma boa alternativa. A próxima seção
descreve, brevemente, modelos de ensino híbrido que podem ser

200
aplicados para modificar o cenário monótono de muitas escolas e
propor um ensino personalizado.

4.1 Modelos de Ensino Híbrido

Na obra Blended: usando a inovação disruptiva para aprimorar


a educação, Horn e Staker (2015) propõem quatro modelos híbridos
de ensino (figura 2). No geral, o mais conhecido e aplicado no Brasil
tem sido o modelo de sala de aula invertida. Entretanto, há outras
propostas tão interessantes quanto essa, as quais, em um formato
construtivista ou socioconstrutivista, apoiam-se na importância de
aprender com o outro, considerando-se que o aprendizado é algo
que se constrói coletivamente.

Figura 2 - Modelos híbridos de ensino

Fonte: Elaborado pelas autoras.

O primeiro modelo disposto no quadro é o Modelo de


Rotação, no qual os alunos revezam as atividades conforme o
horário ou orientação do professor. As atividades podem ser
discussões com ou sem a presença do professor, leituras, produções
e, necessariamente, alguma atividade on-line. Este modelo
subdivide-se da seguinte forma:

201
– Rotação por estações: cada grupo realiza uma tarefa
conforme objetivos estabelecidos. As atividades não precisam ser
sequenciais, podendo ser independentes dentro dos grupos, mas
serão integradas ao final da proposta. De forma rotativa, todos os
grupos terão acesso aos mesmos conteúdos e/ou atividades;
– Laboratório rotacional: semelhante ao anterior, esta proposta
utiliza laboratório de informática para a promoção de ensino on-
line integrando o tempo no computador com o tempo de sala de
aula;
– Sala de aula invertida: mais conhecido que os demais, este
modelo inverte a função normal de sala de aula. Em uma proposta
realmente “invertida”, ou seja, o que era feito na sala de aula
(explicação do conteúdo) é agora feito em casa e, o que era feito em
casa (aplicação, atividades sobre o conteúdo), é agora feito em sala
de aula (Bacich, 2016). Com essa proposta, os estudantes pesquisam
antes de ir para a sala de aula e, posteriormente, discutem e
aprofundam conhecimentos de forma mais ativa e coletiva;
- Rotação individual – este quarto modelo de rotação
possibilita que os estudantes se alternem em um esquema
individual, não seguindo necessariamente as estações ou
modalidades, eles rotacionam conforme suas necessidades, com
tempo livre.
O segundo modelo proposto é o Modelo Flex, através do qual
os alunos têm uma lista de tarefas com ênfase na aprendizagem on-
line. Requer modificação na estrutura da organização dos
estudantes e todos aprendem de forma colaborativa, sendo o
docente apenas mediador do conhecimento.
O terceiro modelo, denominado A La Carte, dá mais
autonomia ao estudante, pois ele será responsável pela organização
de seus estudos. Inclui qualquer curso ou disciplina que o
estudante faça totalmente on-line enquanto frequenta uma escola
física tradicional. Diferente do modelo Flex, no qual o professor
tutor é o professor presencial, nesse modelo o professor tutor é o
professor on-line.

202
O quarto e último modelo, chamado Modelo Virtual
Enriquecido, é uma experiência realizada por toda a escola, na qual
os alunos dividem, em cada curso, seu tempo entre a aprendizagem
on-line e a presencial. Assim, os alunos podem se apresentar,
presencialmente, na escola, apenas uma vez por semana (Bacich,
2016).
Considerando-se todos os modelos de ensino híbrido
apresentados, destacamos como palavra-chave a “personalização”.
A ideia central da proposta híbrida é promover um ensino com
enfoque no aluno, de maneira personalizada, no qual cada um
possa construir seu conhecimento conforme sua necessidade e
ritmo. O professor não será o “detentor” do conhecimento, mas sim
o mediador de todo o processo, orientando e avaliando a
aprendizagem de cada um.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É preciso que cada instituição de ensino, a partir de suas


peculiaridades, busque uma identidade e identifique
verdadeiramente o seu papel na sociedade, considerando que, a
partir delas, formar-se-ão cidadãos capacitados para a realização
de novas descobertas, não apenas para repetir o que as gerações
anteriores fizeram. A escola do século XXI deve ser aberta, criativa
e inovadora, capaz de utilizar-se dos benefícios da era digital e
promover um ensino ilimitado, ou seja, sem as restrições que o
modelo tradicional impunha.
O processo de ensino e aprendizagem da contemporaneidade,
quando mediado por tecnologias, modifica o papel principal do
professor. Sua função deixa de ser de “transmissor” e passa a ser
de “orientador”, ou seja, ele conduz o estudante na interpretação
do conhecimento, levando-o a fazer relação e contextualização do
mesmo com o mundo real para uma aprendizagem significativa
(Morin 2006). Consideramos importante ressaltar aqui que ensinar
e aprender não depende só de tecnologias, pois, conforme destaca

203
Moran (2006 p. 12), ensinar e aprender são os maiores desafios que
enfrentamos em todas as épocas.
Este artigo buscou oferecer uma reflexão sobre as tecnologias
e novas formas de ensino, pois entendemos não ser mais possível
continuar ensinando apenas através das velhas práticas, as quais já
não atendem a necessidade dos nativos digitais. É preciso, através
de ações experienciais, vincular conteúdos a saberes em uma
prática de inovação disruptiva, que garanta o sucesso no processo
de ensino e aprendizagem das gerações atuais. Para tanto, faz-se
necessário analisar a práxis docente e, sempre que possível,
utilizar-se de metodologias de ensino inovadoras e
contextualizadas para atingir os interesses dos alunos, e, então,
oferecer uma educação transformadora e de qualidade, uma
educação para o Século XXI.

REFERÊNCIAS

BACICH, Lilian, Ensino Híbrido: Proposta de formação de


professores para uso Integrado das tecnologias digitais nas ações
de ensino e aprendizagem. V Congresso Brasileiro de Informática
na Educação e Anais do XXII Workshop de Informática na Escola,
2016. Disponível em: http://www.br-ie.org/pub/index.php/wie/
article/view/6875/4753. Acesso em: 05 mar 2017.
BACICH, Lilian; NETO, Adolfo Tanzi; TREVISANI, Fernando de
Mello. Ensino híbrido: personalização e tecnologia na educação.
Penso Editora, 2015.
CECCHETTINI, Eliane. Introdução. In: VERAS, Marcelo (Org.).
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206
LITERATURA E IMPRENSA:
A CRIAÇÃO LITERÁRIA E O MERCADO DOS
BENS SIMBÓLICOS

Jaison Luís Crestani

A implantação e o desenvolvimento da imprensa promoveram


a comercialização da literatura e deram início ao processo de
profissionalização do escritor, que passaria a alcançar, assim, uma
relativa autonomia na sua produção, deixando de se submeter à
tutela de um mecenas. Consequentemente, a instauração de um
mercado livre e anônimo para as manifestações artísticas e
culturais teria um efeito duplo sobre o trabalho do escritor,
instituindo o que se poderia denominar como “dialética da
liberdade e da alienação”. Com a abertura de um mercado dos bens
simbólicos, aciona-se todo um “sistema de condicionamentos” com
os quais o escritor deverá defrontar-se obrigatoriamente no
decurso de sua produção artística. A introdução de novos meios de
produção e de transmissão da cultura não só estimulam formas de
escrita igualmente renovadas, como também contribuem
decisivamente para a formação de um novo modo de raciocínio e,
por conseguinte, de maneiras inovadoras de se relacionar com os
produtos artísticos a serem assimilados. Desse modo, este ensaio
propõe um estudo das confluências dinâmicas entre as
manifestações criativas e os mecanismos de produção e difusão
cultural. Dispensando dicotomias simplistas, prioriza-se uma
abordagem dialética das contradições inerentes à simbiose entre
literatura e imprensa, fundamentada na combinação da apreciação
de soluções estético-literárias com a análise da materialidade das
obras e com a historicidade das práticas de escrita e de leitura.
Assim, o exame crítico das produções culturais deve considerar a

207
complexidade inerente à sua composição material que, embora
usualmente negligenciada, também se constitui em formas de
expressão. Nesse sentido, os meios de divulgação não são simples
instrumento de difusão da virtualidade do texto literário, mas
participam determinantemente da construção da identidade e do
universo de sentido das obras publicadas. Portanto, o
conhecimento das condições de enunciação vinculadas a cada
contexto de produção define consideravelmente o percurso da
leitura, indicando as normas que presidem ao consumo da obra. Da
confluência entre a constituição material e a componente textual
resultam maneiras particulares de fruição do objeto escrito,
determinadas pelos protocolos de leitura, categorias de leitores e
horizontes de expectativas próprios de cada contexto. Com base
nesses pressupostos, pretende-se promover uma apreciação das
interações dinâmicas que se articulam entre a criação artística e os
fatores de produção (instituições culturais, meios de comunicação,
concepções ideológicas, práticas mercadológicas etc.). Com o
intuito de propiciar a reflexão teórica e metodológica sobre a
pesquisa em periódicos, planeja-se ressaltar a importância de
jornais e revistas como fontes primárias fundamentais para o
estudo da história literária e como agentes da atividade intelectual
e da renovação estética, política e cultural do país.

Imprensa no Brasil: implantação tardia

Em função da censura monárquica que proibia qualquer


atividade gráfica na colônia, a imprensa no Brasil teve uma
implantação tardia. Seu surgimento ocorre somente em 1808, com
a chegada da Corte de Dom João VI ao Rio de Janeiro. Com o
objetivo de organizar a máquina administrativa para as atividades
da Coroa Portuguesa, até então muito precária na colônia
americana, foi tomada uma série de medidas, entre elas a criação
da Imprensa Régia. Segundo o Decreto de 13 de maio de 1808, a
nova instituição deveria executar os serviços da administração real,
tais como a impressão de toda a legislação e de papéis

208
diplomáticos. D. João decretou que a Imprensa Régia poderia
também imprimir outras obras, mas a liberdade de imprensa era
praticamente nula, sofrendo a forte censura da Corte Real.
No ano de 1808, surgiram os dois primeiros jornais brasileiros:
a Gazeta do Rio de Janeiro, publicação oficial da administração
portuguesa editada pela Imprensa Régia, e o Correio Braziliense,
editado e impresso em Londres pelo exilado Hipólito José da Costa,
circulando clandestinamente no Brasil em sua fase inicial (Cf.
SODRÉ, 1999, p. 20-22).
Até 1822, a Imprensa Régia detinha “o monopólio de imprimir
no Rio de Janeiro” (HALLEWELL, 1985, p. 36). Com a
Independência, foi abolida a censura e extinto o monopólio da
impressão. Nessa primeira fase, a agitação política em função das
lutas pela consolidação da independência brasileira dominava as
publicações jornalísticas, marcadas por uma tendência virulenta,
com ataques pesados entre adversários políticos.
Nessa fase inicial, a imprensa expandia-se vagarosamente,
evidenciando os reflexos da precariedade infraestrutura da jovem
nação. Nesse sentido, destaca-se a dificuldade de distribuição dos
jornais, que dependia da escassa rede de comunicações terrestres e
marítimas e do precário serviço dos Correios que, somente a partir
de 1825, daria início à ampliação do serviço postal para o interior
do país. Além dessas questões infraestruturais, havia também
problemas socioculturais como a predominância do analfabetismo,
a ausência de urbanização, a incipiência das atividades comerciais
e industriais. Outras deficiências também são apontadas por Lajolo
& Zilberman que assinalam, em A leitura rarefeita, a falta de
medidas complementares que pudessem consolidar a ampliação
do nível cultural do país:
Além de tardia, a implantação da imprensa na então colônia
lusitana constituiu uma medida isolada, não tendo sido secundada
pela criação e consolidação de instituições e instrumentos
necessários à difusão dos produtos impressos. Continuavam
faltando escolas, bibliotecas, gabinetes de leitura, livrarias, jornais,

209
editoras. Tais ausências tornavam quase inexpressiva a mudança
(LAJOLO & ZILBERMAN, 2002, p. 108).
A partir do final da década de 1830 e início da década de 1840,
a imprensa começaria a entrar numa nova fase, marcada pela forte
presença da literatura no jornal. De acordo com Marlyse Meyer
(1996, p. 283), é nesse período, mais especificamente no ano de
1838, que aparecem os primeiros romances-folhetins no Brasil, os
quais passariam, a partir de então, a constituir “fatias cotidianas”
dos rodapés dos jornais. Desse modo, ao final da década de 1850, a
imprensa adquiria maior maturidade e se encaminhava para uma
fase em que o tom virulento cedia espaço a assuntos mais
“amenos”, como a moda, a utilidade doméstica e a literatura.

Jornal: a “locomotiva intelectual”

O desenvolvimento tecnológico do processo de composição e


de impressão do texto jornalístico propiciaria uma ampliação da
venda em massa. Esse processo de massificação promovido pela
imprensa pode ser considerado a partir de uma dupla perspectiva:
a) o desenvolvimento cultural e o começo de uma história
democrática, onde o corpo coletivo teria cada vez mais acesso às
informações e bens culturais; b) a banalização da cultura
transmitida e o condicionamento dos intelectuais às estratégias de
mercado.
Considerando, por ora, apenas o primeiro polo desse processo
dialético da massificação, pode-se observar o entusiasmo eufórico
dos escritores da época com a revolução democrática que vinha
sendo promovida pela atuação cultural da imprensa. Nesse
sentido, convém salientar o depoimento do jovem Machado de
Assis que, em dois textos do final da década de 1850, “O jornal e o
livro” (Correio Mercantil, 10 e 12 jan. 1859) e “A reforma pelo jornal”
(O Espelho, 23 out. 1859), manifesta a sua expectativa em relação à
promissora regeneração democrática da humanidade que a
expansão do jornal deixava entrever.

210
No primeiro texto, Machado discute a relação entre os dois
itens constantes no título e profetiza o “aniquilamento” do livro.
Em comparação com o jornal, Machado assinala que o livro
constitui a “ideia de um homem”, carecendo de “movimento” e
encerrando “alguma coisa de limitado e de estreito”. O jornal, por
sua vez, representaria a “ideia popular”, a “discussão”, o
“movimento”, a “liberdade”, a “democracia prática da
inteligência”, a “república do pensamento”; seria, enfim, a
“locomotiva intelectual em viagem para mundos desconhecidos”
(ASSIS, 1979, v. 3, p. 946-8).
No segundo texto, o autor retoma as ideias do primeiro,
amenizando, em parte, a euforia e analisando a questão de modo
mais lúcido. Machado estabelece novamente uma oposição entre o
jornal e o livro. Nesse contraste, o livro, assim como a tribuna,
aparece como um instrumento ligado à aristocracia, figurando
como um “monólogo”. Em contrapartida, o jornal apresenta-se
como o “escolho das aristocracias modernas”, como um invento
que haveria de rasgar “largo horizonte às aspirações cívicas, às
inteligências populares” (ASSIS, 1979, v. 3, p. 964).
Nesses ensaios, apesar da sua euforia juvenil, Machado de
Assis apreende a modernidade desse novo veículo de difusão
cultural que, finalmente, começava a adquirir maturidade e solidez
em nosso meio. O jovem escritor vislumbrava no jornal um
instrumento promissor de transformação do engessado corpo
social, econômico e cultural do país. No campo da literatura, o
jornal parece configurar o despontar do processo de
profissionalização do homem de letras, conforme se depreende da
afirmação: “o jornalismo não é senão um grande banco intelectual,
grande monetização da idéia” (ASSIS, 1979, v. 3, p. 947, grifos do
autor).
Desse modo, através da imprensa, o trabalho do escritor
começaria a receber certo amparo institucional, embora ainda
predominasse, nessa fase inicial, uma “confusão” na distribuição
das tarefas da vida literária. Conforme registra Nelson Werneck
Sodré, eram os escritores que “faziam as peças, faziam os jornais,

211
faziam a política, faziam versos, faziam razões de defesa, faziam
discursos, faziam tudo” (SODRÉ, 1982, p, 212).
Se os escritores precisavam desdobrar-se nas mais diversas
tarefas, também não era diferente a atuação da imprensa num
ambiente marcado pela carência de instituições de amparo ao
trabalho intelectual, conforme aponta Sodré:

A influência exercida pela imprensa foi de caráter diverso, sem


dúvida, e mais ampla, no tempo e no espaço. Foi, em primeiro lugar,
uma influência técnica, material: a imprensa possibilitou o livro em
seu estágio nacional primário. Foram as oficinas de jornais, no seu
rudimentarismo técnico, que se fizeram, impressoras de livros, e até
distribuidoras, dentro de certos limites, numa acumulação de
funções que denuncia uma etapa inicial. Nas oficinas do Correio
Mercantil, do Diário do Rio de Janeiro, da Marmota, é que foram feitos
os livros dos nossos escritores, quase sempre depois de ter o jornal
publicado os mesmos em folhetins (SODRÉ, 1982, p. 321).

A despeito das precariedades infraestruturas da jovem nação,


o desenvolvimento da imprensa, confirmando as expectativas
eufóricas do jovem Machado de Assis, modificaria
fundamentalmente a história da leitura. Nesse sentido, em A leitura
rarefeita, Lajolo e Zilberman consideram que a imprensa foi a
“pedra fundamental” para a “literatura ter condições de constituir
porção significativa do patrimônio brasileiro” (LAJOLO &
ZILBERMAN, 2002, p. 107). O jornal contribuiria para promover a
instrução e a elevação do nível cultural da população, diminuindo
o analfabetismo e assegurando um público-leitor para a literatura.
Além da conquista, ampliação e formação de um público-leitor
para a literatura, o meio jornalístico proporcionaria um espaço
favorável para a aprendizagem e o aperfeiçoamento literário dos
escritores. A imprensa constitui, por excelência, o lugar das
experimentações e do desenvolvimento das técnicas de criação
literária. Nessa linha, Luiza Lobo (1992) considera que a expansão
da imprensa dissolveria os condicionamentos da leitura como um
“exercício para uma elite erudita” e como “uma atividade

212
exclusivamente masculina”. Apoiada pela difusão do ensino
escolar, a imprensa promoveria uma “revolução” no contexto da
recepção da literatura; o leitor deixaria de ser visto numa posição
passiva, tornando-se “parte integrante do ato da leitura, não apenas
como polo questionador, mas também como elemento de impulso
reestruturante na escrita da obra pelo autor” (LOBO, 1992, p. 232).
Desse modo, considerando que o desenvolvimento da
imprensa operou, conforme a indicação de Pierre Bourdieu (1996,
p. 70), uma “expansão sem precedente do mercado dos bens
culturais”, a escrita literária difundida no meio jornalístico,
consequentemente, passou a orientar-se cada vez mais pelo
horizonte de expectativas do leitor, desenvolvendo estratégias
destinadas a atrair a atenção e a prender o interesse do público pelo
texto.
Uma das técnicas mais bem sucedidas dessa busca pela
ampliação do público seria a seriação das histórias publicadas,
desenvolvida pelo romance-folhetim. O sucesso da fórmula, no
entanto, ocasionaria o condicionamento do escritor a essas
estruturas testadas do folhetim, que garantiam a venda do jornal.
A consequência imediata disso seria a banalização desses
procedimentos narrativos e a degradação da cultura transmitida –
efeitos que nos levam ao outro polo da dialética da massificação
promovida pela imprensa. Nessa dinâmica, é preciso reconsiderar
o próprio sentido da democratização operada pelo jornal.
Conforme a expressão de Jeana L. da Cunha Santos, em Experiências
pioneiras de Machado de Assis sobre o jornal, “as tendências
democráticas do jornalismo são produzidas por seus interesses
comerciais”. Sob essa orientação comercial, a imprensa “almeja a
inteligibilidade, única mercadoria vendável e acessível a um maior
número possível de consumidores” (SANTOS, 2002, p. 32).
Dessa forma, constituindo o meio mais acessível de difusão da
literatura no século XIX, a imprensa periódica condicionaria os
escritores a se adequarem às estruturas testadas da produção
comercial. Essa dinâmica entre atração e subordinação colocaria os
escritores em meio às duas forças que, segundo Bourdieu,

213
organizam o campo literário: a “produção pura” e a “produção
comercial”. De acordo com o teórico, a produção pura seria
destinada, inicialmente, a um “mercado restrito aos produtores”,
constituindo um investimento arriscado e a “longo prazo”,
pautado na “economia da denegação do lucro material” e na
“acumulação de capital simbólico”. Por outro lado, o polo da
“produção comercial”, preocupado com a rentabilidade, recorre a
“formas preestabelecidas” que não assumem risco, ou seja,
concebidas segundo “receitas seguras e confirmadas”, que visam
ao “sucesso imediato” e “a curto prazo”, obtido a partir da
adequação às “demandas preexistentes” e da satisfação das
expectativas do grande público (Cf. BOURDIEU, 1996, p. 163).

Das condições de produção literária na imprensa periódica do


século XIX

A discussão sobre as condições de produção literária em jornal


remete, imediatamente, ao fato de que cada texto de imprensa
passa por diferentes restrições estilístico-temáticas impostas pela
direção do periódico ou pela própria seção em que se inscreve,
decorrendo daí algumas decisões quanto a sua forma de
estruturação. Esse tipo de atividade artística é geralmente
permeado por fatores de mercado que, conforme a indicação de
José Alcides Ribeiro, em Imprensa e ficção no século XIX,
“condicionam a formação de um padrão de criação ficcional com o
qual o escritor defronta-se obrigatoriamente no processo de
elaboração de sua obra” (RIBEIRO, 1996, p. 11). A padronização
imposta por esses fatores externos atua como delimitador da
autonomia da escrita e da liberdade de expressão. Sobre essa
questão, Nicolau Sevcenko, em Literatura como missão, ressalta a
ação negativa do jornalismo sobre a criação literária, no sentido de
ocasionar o sufocamento da originalidade e a banalização da
linguagem literária:

214
O jornalismo, impondo uma vigorosa padronização à linguagem [...],
acabou necessariamente exercendo um efeito geral negativo sobre a
criação literária. Tendendo ao sufocamento da originalidade dos
autores e contribuindo em definitivo para o processo de banalização
da linguagem literária, suas baixas remunerações exigiam ainda uma
facúndia e prolixidade tal dos escritores, que impediam qualquer
preocupação com o apuro da expressão ou do estilo (SEVCENKO,
1995, p. 100).

Dos comentários de Sevcenko, depreende-se também que a


prolixidade das produções literárias publicadas em jornal está
intimamente ligada à remuneração dos colaboradores e ao ritmo de
produção exigido pela imprensa. A respeito disso, Ribeiro comenta
que o pagamento dos escritores da época era calculado segundo as
linhas escritas, de modo que estes se sentiam pressionados a
alongar ao máximo suas composições artísticas. Neste caso, o
diálogo tornava-se uma das formas mais eficazes de se alcançar
esse alongamento, porque a cada frase – às vezes, a cada palavra –
há espaços em branco e se ganha uma linha (Cf. RIBEIRO, 1996, p.
28).
Essa atuação dos fatores de mercado no condicionamento das
produções literárias à prolixidade é reafirmada por Antonio
Candido, no ensaio “Da vingança”. Na opinião do crítico, a
produção seriada exige uma “multiplicação de incidentes”, já que
autor, editor e leitor estariam “todos os três interessados
diretamente em que a história fosse o mais longa possível: o
primeiro, pela remuneração, o segundo, pela venda, o terceiro, pelo
prolongamento da emoção” (CANDIDO, 1964, p. 15-6).
Nesse processo de padronização da matéria literária publicada
na imprensa, evidencia-se também a atuação marcante dos efeitos
pretendidos sobre o leitor e da imagem que dele se faz. Pautada por
critérios comerciais, a produção jornalística está permanentemente
atenta às expectativas de sua clientela. As preferências e o gosto do
público-alvo influenciam decisivamente na definição do perfil do
periódico e no enfoque dado às matérias publicadas. Numa época

215
em que os jornais eram mantidos por assinantes, não contando com
as vantagens financeiras que seriam posteriormente obtidas com os
anúncios publicitários, a relação estabelecida com o leitor pautava-
se na empatia, já que o público de jornal era muito menos tolerante
às afrontas aos seus gostos e convicções do que o seleto público
consumidor de livros.1
Atenta às demandas do público, a imprensa periódica
encontrou nas narrativas folhetinescas um dos recursos mais
eficientes de atração do público-leitor. Conforme a indicação de
Tânia Rebelo Costa Serra, a iniciativa teria sido tomada pelo
jornalista francês Émile Girardin em 1836:

Em Paris, o jornalista Émile Girardin tem uma ideia que se provará


genial: a fim de aumentar a vendagem de seu jornal, La Presse, pede
a alguns romancistas que publiquem, em capítulos, no seu periódico.
Sua intuição prova-se correta: em um ano, a tiragem do jornal pula
de 70.000 para 200.000 exemplares (SERRA, 1997, p. 19).

Dentre as estratégias provenientes do romance-folhetim


empregadas pelos escritores para atrair e manter o interesse dos
leitores destacam-se os títulos atraentes e inícios impressionantes
das histórias, a opção por tramas extraordinárias e casos singulares,
narrados a partir de um discurso fortemente sensacionalista, o
investimento na ação e na multiplicidade dos incidentes, a prática
do corte sistemático e a devida valorização do suspense, a
exploração da curiosidade e das expectativas do leitor por meio de
anúncios e antecipações de informações, a busca pela identificação
do leitor com a obra a partir da projeção do universo social e
psicológico do público no interior das narrativas.1
Nessa perspectiva, Umberto Eco (1970), no capítulo “Retórica
e ideologia em Os mistérios de Paris de Eugène Sue”, ressalta que o
autor de romance popular ou de romance-folhetim jamais encara
problemas de criação em termos puramente estruturais, mas
orienta-se também em termos ideológicos e de psicologia social,
prestando-se à exigência de despertar o interesse tanto das

216
camadas populares quanto das classes abastadas. Dessa forma, na
tentativa de satisfazer a expectativa das diversas categorias de
público existentes, essas narrativas folhetinescas tendem a adotar,
de acordo com Eco, uma ideologia consoladora e mistificadora em
relação às contradições e antagonismos sociais e aos problemas
existenciais, ainda que as soluções consolatórias apresentadas
permaneçam apenas no plano da fantasia e da imaginação (Cf.
ECO, 1970, p. 190-206).
Outro recurso empregado de modo recorrente pelas narrativas
folhetinescas para prender a atenção do leitor, destacado por
Umberto Eco em relação ao romance Os mistérios de Paris, de
Eugène Sue, é a estrutura sinusoidal da intriga, que consiste na
“dialética tensão-desenlace” (ECO, 1970, p. 194). Na opinião do
autor, “estabelece-se uma dialética entre a procura de mercado e a
estrutura do enredo, a tal ponto que o autor chega a transgredir
certas exigências fundamentais da narrativa” (Idem, p. 194). Em
vez de seguir a estrutura narrativa tradicional, em que diversos
elementos do enredo são acumulados até criar a tensão máxima
que o desfecho fará explodir, a narrativa folhetinesca tende a adotar
uma estrutura sinusoidal, que consiste na sequência contínua entre
tensão, distensão, nova tensão, nova distensão, etc. Desse modo, a
adequação às vontades do público conduz o escritor à germinação
de episódios sucessivos, incorrendo, em certas ocasiões, na
produção de falsas tensões e de falsos desenlaces. O resultado disso
é o entrecruzamento de vários enredos no interior da narrativa e a
multiplicação dos pontos de interesse. Consequentemente, os
desfechos tendem a ser inconsistentes, devido à profusão de
acontecimentos e pontos de interesse explorados e seguidamente
abandonados no decurso das narrativas.
A despeito da inconsistência percebida nos desfechos dessas
produções, o público consumidor de romances-folhetins, sendo
geralmente desprovido de senso crítico e preocupado
exclusivamente com o entretenimento, tende a aceitar
passivamente essas e outras incongruências do gênero. Conforme
a indicação de Serra, o estilo do romance-folhetim “não tem

217
qualquer compromisso com as formas literárias conhecidas e
regulamentadas pelas poéticas da época”; daí o seu prosaísmo e
popularidade, cumprindo satisfatoriamente a sua função
primordial de “divertimento coletivo” (SERRA, 1997, p. 23).
Ajustando-se a essas considerações, Marlyse Meyer comenta
que a adequação dessas narrativas folhetinescas às estratégias
comerciais da imprensa conduz a novas formulações estruturais e
a uma simplificação das personagens representadas:

A almejada adequação ao grande público, a necessidade do corte


sistemático num momento que deixe a atenção em “suspense” levam
não só a novas concepções de estrutura [...] como a uma simplificação
na caracterização dos personagens, muito romântica na sua
distribuição maniqueísta, assim como uma série de cacoetes
estilísticos. Verifica-se, além disso, genial adaptação à técnica do
“suspense” e ao rápido e amplo ritmo folhetinesco dos grandes temas
românticos: o herói vingador ou purificador, a jovem deflorada e
pura, os terríveis homens do mal, os grandes mitos modernos da
cidade devoradora, a História e as histórias fabulosas, etc. (MEYER,
1996, p. 31).

Desse modo, adequando-se ao ritmo ágil e à inteligibilidade


que configuram a leitura jornalística, a personalidade interior das
personagens é pouco explorada, dispensando a utilização de
recursos próprios da análise psicológica. Privilegiando a
representação maniqueísta e o envolvimento emocional com a
história narrada, o romance-folhetim tende a desconsiderar o senso
crítico e reflexivo do leitor, conforme indicam as palavras de Tânia
Rebelo Costa Serra:

[...] o público de folhetim, tanto aqui, quanto na França, vai ser aquele
de quem não é requerido muito raciocínio; que, deparado com uma
situação mirabolante e/ou patética, vai procurar a solução dos
conflitos no próprio texto, que não lhe propõe qualquer reflexão. Se,
por causa das exigências da escola romântica, o romance-folhetim
traz embutida uma crítica moral e uma proposta idealizante de

218
solução dos problemas sociais, estas nunca são apresentadas,
requerendo a reflexão do leitor, senão a sua empatia pelo caso
(SERRA, 1997, p. 23).

O sucesso da fórmula folhetinesca seria confirmado no Brasil,


conforme registrou Marlyse Meyer: “apesar da escassez de dados
sobre tiragens e publicações, não faltam indícios da correlação
entre a prosperidade do jornal e o folhetim” (MEYER, 1996, p. 294).
Os resultados positivos da importação do folhetim francês pelos
periódicos brasileiros também são apontados por Jean-Michel
Massa: “O folhetim, freqüentemente traduzido do francês, era de
tal maneira apreciado pelos leitores que se tornava difícil deixar de
publicá-lo por muito tempo. Sabe-se que o rodapé fez e foi a fortuna
de inúmeros escritores do século XIX” (MASSA, 1971, p. 252).
Devido ao êxito estrondoso dessas narrativas seriadas, os
escritores locais foram impelidos a incorporar o padrão narrativo
do romance-folhetim de origem francesa. Marlyse Meyer destaca,
inclusive, as influências do folhetim à francesa na formação do
romance “oficial” brasileiro. Essas influências podem ser
percebidas desde as opções “temáticas”, como é o caso, por
exemplo, dos romances O moço loiro e Os dois amores, de Joaquim
Manuel de Macedo, “até o senso do corte dos capítulos, que
Alencar conseguiu com tanto brio em O guarani, sabendo manter
acesa a atenção diária do público. E, no mesmo O guarani, a
elaboração do herói ou do vilão Loredano é tão folhetinesca quanto
são folhetinescas as relações de lealdade e traição” (MEYER, 1996,
p. 331). Ainda sobre o romance de Alencar, Meyer comenta que,
com Minas de prata, Alencar enveredaria pelo “folhetim de capa e
espada” – romance “cinematográfico até, com extraordinário senso
de movimento e corte” (Idem, p. 312).
O romance-folhetim se ajustaria plenamente ao meio brasileiro
que, nas palavras de Antonio Candido, seria marcado pela
“oralidade”, pela “pobreza cultural” e pela “esmagadora maioria
de iletrados”, que impediriam a “formação de uma literatura
complexa, de qualidade rara, salvo as exceções” (CANDIDO, 1965,

219
p. 101). Nesse ambiente em que predominavam as leituras coletivas
em voz alta, a simplificação da narrativa folhetinesca e a
banalização das suas formas de estruturação facilitariam o
consumo oral por parte dos analfabetos que presenciavam os
habituais serões de leitura. Essas circunstâncias trariam
consequências agravantes para a formação da literatura nacional,
conforme a indicação de Antonio Candido:

[…] formou-se, dispensando o intermédio da página impressa, um


público de auditores, [...] requerendo no escritor certas características
de facilidade e ênfase, certo ritmo oratório que passou a timbre de
boa literatura e prejudicou entre nós a formação dum estilo
realmente escrito para ser lido. A grande maioria dos nossos
escritores, em prosa e verso, fala de pena em punho e prefigura um
leitor que ouve o som da sua voz brotar a cada passo por entre as
linhas (CANDIDO, 1965, p. 96, grifos do autor).

Reforçando essas considerações, Luiz Costa Lima, no ensaio


“Da existência precária: o sistema intelectual brasileiro”, assinala
que essa tradição auditiva afetaria não só o desenvolvimento das
produções literárias, como também dificultaria a formação de uma
recepção reflexiva e crítica das obras produzidas. De acordo com o
crítico, a existência de uma cultura de dominância oral numa
civilização da escrita significa que “a palavra é escolhida e a frase
composta de maneira a suscitar um efeito que se quer o mais
imediato possível, […] um efeito de impacto sobre o receptor, sem
que este se confunda com uma recepção propriamente intelectual”
(LIMA, 1981, p. 16).
Desse modo, o sistema intelectual brasileiro, pautado no
“retoricismo” da palavra oralizada, dispensaria a “paciência da
decifração” e a “criticidade”, próprias da escrita. Considerando
essa “tradição acrítica do nosso pensamento”, o escritor brasileiro
do século XIX empenhava-se em proporcionar uma “leitura fácil,
fluente, embalada pela ritmicidade”, esforçando-se para “não
cansar seu leitor, pois doutro modo as revistas e jornais da família,

220
consumidas pelo público feminino e pelos jovens ainda não
iniciados, não se interessariam por suas crônicas e folhetins. A
forma escrita da literatura fazia-se a sucursal de uma circulação
permanentemente oral” (LIMA, 1981, p. 7). Assim, convertendo a
página escrita em forma oral, o intelectual brasileiro atuaria não
como “agente de ideias e de aprofundamento da linguagem, mas
enquanto especialista no verbo fácil, na palavra comovente e, daí,
enquanto orientador de caminhos” (LIMA, 1981, p. 8).
Luiz Costa Lima ainda considera que essa tendência militante
estimularia “o nativismo romanticamente insuflado, a tradição do
palco e da tribuna, o verbalismo inflamado, o tom moralista”. Essas
considerações ajustam-se às palavras de Antonio Candido, também
citadas pelo crítico: “Esta literatura militante chegou ao grande
público como sermão, artigo, panfleto, ode cívica; e o grande público
aprendeu a esperar dos intelectuais palavras de ordem ou incentivo,
com referência aos problemas da jovem nação que surgia”
(CANDIDO, 1965, p. 94). Além disso, Candido afirma que o
desenvolvimento dessa tendência literária patriótica receberia o
respaldo do poder imperial, que vinculava os literatos à
administração pública e legitimava a dignidade da função literária
junto ao público, decorrendo daí o “conformismo de forma e de
fundo” que se evidencia em nossa literatura oitocentista (Idem, p. 99).
Antonio Candido assinala também que outras tendências
literárias seriam impulsionadas a buscar no patriotismo a sua razão
de ser, como ocorre exemplarmente com o sentimentalismo. Essa
“vocação patriótico-sentimental” não só legitimaria a posição do
escritor no âmbito cultural brasileiro, como também passaria a
critério de aceitação e de aprovação das produções literárias por
parte do público; daí a premente requisição pela cor local e pelo
pitoresco descritivo.
Considerando essa tendência acrítica e pouco reflexiva do
público-leitor brasileiro, o romance-folhetim, por sua natureza,
atenderia perfeitamente às condições e expectativas do público
local disponível, conforme se depreende da seguinte definição de
Tânia Serra: “O romance-folhetim, retrato idealizado do cotidiano,

221
é […] já no século XIX, um gênero popular, por atender mais à
necessidade de divertimento do leitor do que à sua reflexão
filosófico-metafísica” (SERRA, 1997, p. 25). De acordo com a autora,
prazer e bem-estar são “as palavras mágicas que estão por detrás
do conceito de evasão e, portanto, do de romance-folhetim” (Idem,
p. 12). Dessa forma, o ajustamento do patriotismo local com as
formas evasivas e consolatórias do folhetim à francesa resultaria,
conforme a expressão de Célia Pedrosa em “Nacionalismo
literário”, na “cristalização de uma imagem da nacionalidade que
sublima diferenças e conflitos internos” (PEDROSA, 1992, p. 288).
À maneira do romance-folhetim, a moda viria a constituir uma
estratégia eficiente dos periódicos familiares de atrair a atenção e o
interesse do público feminino. Sob o signo da insatisfação
permanente, os figurinos de moda constituiriam outras “fatias
cotidianas” que não poderiam faltar nas revistas femininas.
De acordo com Dulcília Buitoni (1990), a imprensa feminina, a
princípio essencialmente literária, direcionaria a atenção dos
editores para o aprimoramento do aspecto visual dos órgãos de
imprensa, com a reprodução de gravuras, ilustrações, moldes e
figurinos, que fizeram da moda a característica determinante dos
periódicos femininos. Paralelamente à moda e à literatura, abria-se
espaço também aos direitos femininos e variedades de gênero
utilitário:

[…] a imprensa feminina nasceu sob o signo da literatura, logo depois


acompanhado pelo da moda. Nos primeiros tempos, moda e
literatura dividiam as atenções. Os direitos femininos entraram em
cena nos séculos XVIII e XIX, às vezes como dominantes.
Paralelamente, os signos da utilidade iam-se introduzindo e
ganhando espaço: trabalhos manuais, conselhos de saúde, de
economia doméstica... (BUITONI, 1990, p. 22).

Sustentando-se no eixo moda-literatura-utilidade, a imprensa


feminina seria marcada por uma nítida tendência moralista e

222
conservadora, como demonstram as considerações de Dulcília
Buitoni:

Sintomaticamente, sustentar-se no eixo moda-literatura significava


adotar uma linha conservadora em relação à imagem da mulher,
enfatizando suas virtudes domésticas. Tais veículos desaprovavam
qualquer ideia mais progressista; no máximo diziam que a educação
beneficiava a mulher (BUITONI, 1990, p. 41).

No que compete às produções literárias destinadas ao público


feminino, a autora assinala, além do moralismo, a presença
constante do sentimentalismo. Mulher e amor, moda e literatura
sentimental constituíam “uma união que atraiu e vendeu sempre,
até hoje”. Como se percebe, os desejos femininos são
meticulosamente explorados pelo senso mercadológico da
imprensa feminina, que seguia as regras da economia capitalista.
Com base nesse contexto, escritores pouco afeitos às
tendências folhetinescas e aos expedientes romântico-sentimentais
dos periódicos femininos eram obrigados, muitas vezes, a atender
às demandas do mercado. Nessas circunstâncias, o apelo aos
pseudônimos, prática usual do contexto jornalístico, apresentava-
se como uma alternativa recorrente dos escritores de corresponder
às exigências comerciais da imprensa, sem macular a sua imagem
e sem comprometer o programa literário ao qual estavam
vinculados. Um caso expressivo dessas situações é registrado por
Brito Broca em relação ao escritor naturalista Aluísio de Azevedo
que, no meio jornalístico, foi forçado, muitas vezes, a perpetuar a
tradição romântica:

[...] como autor de romances-folhetins, Aluísio não podia deixar de


fazer romantismo, cultivando um tipo de arte que a sua obra
naturalista negava. Daí a conveniência do pseudônimo para aqueles
romances. E sob a assinatura de Victor Leal, procurando tornar a
mistificação ainda mais completa, não hesita ele em atacar o
Naturalismo. “[...] irei sempre caminhando para diante, malgrado os
emperrados naturalistas que pretendem anular a única e sincera

223
comoção que existe no mundo artístico: a comoção romântica. [...] O
Naturalismo, clamem quanto quiser, não nos convém nem nunca nos
convirá” (BROCA, 1993, p. 173).

Essa sujeição dos escritores às demandas de mercado das


revistas e jornais familiares também é registrada por Antonio
Candido, que assinala o papel desses órgãos no sentido de habituar
os autores a escreverem para uma categoria de público
previamente determinada:

Como traço importante, devido ao desenvolvimento social do


Segundo Reinado, mencionemos o papel das revistas e jornais
familiares, que habituaram os autores a escrever para um público de
leitores, ou para os serões onde se lia em voz alta. Daí um
amaneiramento bastante acentuado que pegou em muito estilo; um
tom de crônica, de fácil humorismo, de pieguice, que está presente
em Macedo, Alencar e até Machado de Assis. Poucas literaturas terão
sofrido, tanto quanto a nossa, em seus melhores níveis, esta
influência caseira e dengosa, que leva o escritor a prefigurar um
público de mulheres e a ele se ajustar (CANDIDO, 1965, p. 100).

Com base nessas questões, observa-se que as condições de


produção literária oferecidas pela imprensa periódica do século
XIX podem implicar transformações e ajustamentos que vão desde
aspectos aparentemente triviais, como a extensão das histórias
(prolongamento artificial das narrativas com a explícita intenção de
fazer a matéria render), até critérios ideológicos (tendência
moralizante, consolatória e conformista), temáticos (“vocação
patriótico-sentimental”) e de qualidade literária (adequação aos
gêneros de entretenimento, impedindo a formação de uma
literatura complexa e de uma recepção crítica e reflexiva). Como se
percebe pelas condições apontadas, a formação do sistema
intelectual brasileiro seria marcada pela atuação de fatores
contraditórios, tais como a tendência nacionalista e a absorção de
formas literárias próprias do romance-folhetim de origem francesa.
De igual modo, o próprio jornal, expoente de uma técnica moderna

224
e cosmopolita, não poderia se aclimatar totalmente num Brasil
marcado pelo atraso industrial, pelo analfabetismo e pela
escravidão.

Literatura e mercado: a dialética da liberdade e da alienação

Em “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”,


Walter Benjamin recupera e desenvolve a ideia de Paul Valéry de
que “existe, em todas as artes, uma parte física” e de que as
inovações tecnológicas “transformam toda a técnica das artes”,
modificando, inclusive, “a própria noção de arte, de modo
admirável” (VALÉRY apud BENJAMIN, 1983, p. 3).
De acordo com Benjamin, o desenvolvimento das técnicas de
reprodução criaria condições novas para a obra de arte, uma vez
que a multiplicação das cópias transformaria o evento produzido
apenas uma vez em um “fenômeno das massas” (BENJAMIN, 1983,
p. 8). Nesse sentido, as inovações tecnológicas permitiram não só
uma inédita democratização cultural, como também a abertura de
um processo de profissionalização do artista a partir da instauração
de um “mercado dos bens simbólicos”.
Além disso, cumpre assinalar que essas transformações das
técnicas de reprodução artística promoveriam, consequentemente,
expressivas modificações no modo de percepção e de fruição das
obras. A reprodução atinge a aura da obra de arte e, desse modo,
“faz desaparecer a atitude passiva e devota para possibilitar a
posição crítica” (WELLERSHOFF, 1973, p. 1).
Com base nessas considerações, pode-se observar que, com o
desenvolvimento das técnicas de reprodução, fatores externos à
criação artística passariam a ter uma atuação cada vez mais
decisiva sobre as manifestações culturais. A crescente intervenção
desses fatores acentuaria progressivamente as contradições básicas
inerentes a esse processo de expansão técnica e cultural, conforme
se depreende das considerações de Robert Alter (1998), no livro Em
espelho crítico:

225
O artista, de posse de novos meios de disseminação e novos veículos
de implementação, podia imaginar novas e imensas possibilidades
de poder no exercício de sua arte. Ao mesmo tempo, as condições de
reprodução mecânica fizeram com que o artista individual nadasse
necessariamente contra um vasto fluxo de entulho literário,
desproporcional a tudo o que existira antes na história cultural, e o
próprio objeto de arte reproduzido, em sua acessibilidade universal,
podia ser barateado, banalizado, privado de sua unicidade,
despojado de quaisquer pretensões que pudesse ter de ser uma
norma de valor ou uma fonte de verdade (ALTER, 1998, p. 105).

Desse modo, o vínculo entre criação artística e indústria


cultural resulta, conforme a acepção empregada por Edgar Morin
(1997, p. 28), na dialética “invenção-padronização” que é a
“contradição dinâmica da cultura de massa”. Com as inovações
técnicas promovidas, “a criação tende a se tornar produção” (p. 29,
grifo do autor). Desse modo, a arte industrial instituiu a “divisão
do trabalho”, os “planejamentos de produção” e de “distribuição”
que, por sua vez, exigem a padronização, impondo ao produto
cultural uma série de condicionamentos (extensão, estilo, fórmulas
etc.), que limitam a autonomia criativa do escritor.
Numa proposição similar, Wellershoff defende que a
instauração de um mercado livre e anônimo para a literatura e as
demais manifestações culturais tem um efeito duplo sobre o
trabalho do escritor. Se, por um lado, “o mercado anônimo é
condição da liberdade do escritor, pois ele […] deixa de ter uma
entidade tutelar [mecenas] que lhe estabelece as normas válidas,
que representa padrões, de cujo favor depende”, por outro lado, “o
mercado é uma estrutura do alheamento” (WELLERSHOFF, 1973,
p. 2 e 3), que desenvolve estratégias de controle para manipular os
escritores de acordo com interesses próprios. Dessa maneira, o
mercado cultural configura-se, conforme a tese de Wellershoff, a
partir da dialética da liberdade e da alienação.
Portanto, se o mercado apresenta uma configuração dinâmica,
a análise das manifestações artísticas deve, consequentemente,
assumir uma perspectiva dialética que considere o

226
desenvolvimento cultural promovido pela expansão tecnológica e
examine criticamente a repercussão dos condicionamentos e
fatores de mercado sobre a criação artística. Dessa forma, um
exame pertinente da questão deve dispensar dicotomias simplistas
e privilegiar a apreciação das contradições inerentes a essa
imbricação entre arte e mercado, as quais permitem compreender,
segundo Morin, a existência de uma “zona de criação e de talento no
seio do conformismo padronizado” e de “uma certa liberdade no seio
de estruturas rígidas” (MORIN, 1997, p. 28 e 29, grifo do autor).
Um exemplo expressivo de inovação tecnológica que afetaria
radicalmente o modo de produção artística seria o surgimento da
imprensa. O desenvolvimento da atividade jornalística asseguraria
a comercialização da literatura e dariam início ao processo de
profissionalização do escritor, que alcançaria, assim, uma relativa
autonomia na sua produção e deixaria de se submeter à tutela de
um mecenas.
Por outro lado, Umberto Eco demonstraria que o surgimento
da imprensa tornou ainda mais incisiva a relação entre
condicionamentos externos e fato cultural, conforme se constata
pela definição de jornal traçada em seu livro Apocalípticos e
integrados:

[…] o que é um jornal, se não um produto, formado de um número


fixo de páginas, obrigado a sair uma vez por dia, e no qual as coisas
ditas não serão mais unicamente determinadas pelas coisas a dizer
(segundo uma necessidade absolutamente interior), mas pelo fato de
que, uma vez por dia, se deverá dizer o tanto necessário para
preencher tantas páginas? Nesse ponto, estamos já em plena
indústria cultural. Que surge, portanto, como um sistema de
condicionamentos, aos quais todo operador de cultura deverá prestar
contas, se quiser comunicar-se com seus semelhantes. Isto é, se quiser
comunicar-se com os homens, porque agora todos os homens estão
preparados para tornarem-se seus semelhantes, e o operador de
cultura deixou de ser funcionário de um comitente para ser o
‘funcionário da humanidade’. Colocar-se em relação dialética, ativa
e consciente com os condicionamentos da indústria cultural tornou-

227
se para o operador de cultura o único caminho para cumprir sua
função (ECO, 1970, p. 14).

Das considerações de Umberto Eco, depreende-se que com a


implantação da imprensa instaura-se o mercado cultural e entra em
vigor todo um “sistema de condicionamentos” com os quais o
escritor se defrontará obrigatoriamente no decurso de sua
produção artística. A estratégia indicada pelo autor para lidar de
maneira eficiente com esses fatores de mercado é manter uma
“relação dialética, ativa e consciente” com os mecanismos de
controle engendrados pela indústria cultural. Numa proposição
similar, Horkheimer e Adorno (2000, p. 205) sugerem que o escritor
deve acolher, e não ocultar, a contradição entre mercado e
autonomia a fim de “superar esteticamente” esse dilema no interior
das manifestações artísticas.
A introdução de novos meios de produção e de transmissão
da cultura não só estimularia formas de escrita igualmente
renovadas, como também contribuiria decisivamente para a
formação de um novo modo de raciocínio e, consequentemente, de
inovadoras maneiras de se relacionar com os produtos artísticos a
serem assimilados. Nesse sentido, Flora Süssekind (1987, p. 93)
demonstrou como o contato e a convivência dos escritores com os
modernos meios de reprodução, impressão e circulação dos bens
culturais firmaram “na técnica e na sensibilidade literária, novas
formas de compreender o tempo, o personagem, a narração, a
subjetividade”.
Portanto, para uma compreensão consistente das confluências
entre as operações criativas e os mecanismos de produção e difusão
cultural, a apreciação das soluções estético-literárias deve ser
combinada com uma análise da materialidade das obras e da
historicidade das práticas de escrita e de leitura. O estudo das
implicações das condições materiais sobre a enunciação literária
encontra referências-chave no conceito de “arqueologia do saber”,
de Michel Foucault, e no método analítico de Erich Auerbach.
Visando a entender cada enunciado dentro de seu espaço de

228
enunciação, de circulação e de recepção, a proposta de Foucault
rompe, por um lado, com as tendências do estruturalismo ao ligar
o discurso com instituições externas a ele, mas, por outro lado,
apresenta uma continuidade com o movimento, já que as regras
dessas instituições só podem ser conhecidas a partir da análise do
enunciado. Numa proposição similar, Auerbach investe na
concepção de que “um dado material ilumina determinada
operação mental e, por sua vez, ambos supõem e informam uma
arqueologia minuciosa de uma particular circunstância histórica”
(AUERBACH apud ROCHA, 1998, p. 14).
Fundamentado nesses autores, João Cezar de Castro Rocha
demonstra que a análise das condições técnicas da enunciação
literária reivindica

a reconstrução da materialidade específica mediante a qual os


valores de uma cultura são, de um lado, produzidos e, de outro,
transmitidos. Tal materialidade envolve tanto o meio de
comunicação quanto as instituições responsáveis pela reprodução da
cultura e, num sentido amplo, inclui as relações entre meio de
comunicação, instituições e hábitos mentais de uma época
determinada (ROCHA, 1998, p. 14-5).

Dessa forma, a análise das produções culturais deve


considerar a complexidade inerente à sua disposição material que,
embora usualmente negligenciada, também se constitui em formas
de expressão (Cf. ROCHA, 1998, p. 17). Nessa linha, pode-se
mencionar, finalmente, as considerações teóricas de Dominique
Maingueneau (1995; 1996), para quem os gêneros literários e os
meios de divulgação apresentam-se como instituições da
comunicação literária, confundindo-se com a elaboração do sentido
das obras: “Gênero e posicionamento não constituem ‘contextos’,
confundem-se com a construção da identidade das obras. O veículo
não é simples ‘meio’ de expressão ou de difusão, participa do
universo de sentido instaurado pela obra” (MAINGUENEAU,
1995, p. 189). Portanto, o conhecimento das condições de

229
enunciação vinculadas a cada gênero e a cada contexto de
produção define consideravelmente o percurso da leitura,
indicando as normas que presidem ao consumo da obra.

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Humboldt. Hamburgo, nº. 22, p. 44-48, 1973.

232
Sobre os autores

Aline Cristina de Oliveira

Possui graduação em Letras Português/Francês pela Universidade


Estadual Paulista – UNESP – concluída em 2007 e mestrado em
Letras, na área de literatura e vida social, concluído em 2013 na
mesma instituição, com a apresentação da dissertação intitulada
Machado de Assis: cronista d’ O Futuro (1862-1863). Atualmente está
em fase de conclusão de doutoramento, prevista para janeiro de
2017, quando defenderá, na UNESP, a tese Conexões transatlânticas
franco-luso-brasileiras nas páginas d’ O Futuro (1862-1863). Trabalha
como docente desde 2007, atuando nas áreas de redação e literatura
para o ensino médio e cursos pré-vestibulares. Atualmente é
servidora pública do IFPR do campus Palmas- PR, onde leciona
para o ensino médio e superior desde 2016.
Linhas de Pesquisa: Machado de Assis; Crônica; Imprensa
oitocentista; Transferências culturais.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5079927063795801
E-mail: [email protected]

233
Carla Francine da Silva Reis

Professora do Instituto Federal do Paraná (Colegiado e Curso de


Letras), campus Palmas, tendo já atuado como Professora Efetiva
da SEED- Secretaria de Estado da Educação Paraná, desde 2009.
Cursa Doutorado na Universidade Estadual Paulista -Júlio de
Mesquita Filho- UNESP de Assis. Concluiu Mestrado (2014) em
Literatura e Vida Social na UNESP de Assis (Bolsa FAPESP). Possui
graduação em Letras, pela Faculdade Estadual de Filosofia
Ciências Letras de Cornélio Procópio (2007). Tem experiência na
área de Letras, atuando principalmente nos seguintes
temas:Literatura Infanto Juvenil, O Menino Poeta, Henriqueta
Lisboa. Participa do grupo de Pesquisa Crítica e recepção Literária
(CRELIT)- UENP. Colaboradora no Projeto de Extensão Teste de
Proficiência (IFPR -Palmas) e também Projeto Pesquisa O humor
nas narrativas bíblicas (IFPR -Palmas).
Linhas de pesquisa: Literatura infanto-juvenil.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3277568263788222
E-mail: [email protected]

234
Daiane Padula Paz

Mestre em Ensino de Espanhol como língua Estrangeira,


Universidad de Cantabria , Espanha (2012). Está cursando
Mestrado de Informática na Educação (IFRS - POA). Possui Pós
graduação Lato Sensu em Espanhol e Uso de Novas Tecnologias,
UGF (2014), Tecnologias e Educação à Distância, UBM (2014) e
Tradução de Espanhol, UGF (2012). Graduação em Licenciatura
Letras - Português/ Espanhol pela UNISINOS, (2009). É professora
acreditada para aplicação dos exames DELE e da plataforma AVE
do Instituto Cervantes, possuindo certificação como Tutora Virtual.
Tradutora Pública Juramentada e Intérprete Comercial registrada
na Junta Comercial do Estado do Rio Grande do Sul (JUCERGS).
Presidente do Conselho Rio-grandense de Professores de Espanhol
(CORPE) - Biênio 2014-2016. Possui duas certificações
internacionais de conhecimento de Língua Espanhola: Diploma de
Español como Lengua Extranjera (DELE), nivel Superior (C2) -
Instituto Cervantes, Espanha. e Certificado de Espanhol Lengua y
Uso (CELU), nivel avançado - Ministerio da Educação e
Chancelaria Argentina, Argentina.Tem experiência docente
comprovada na área de Letras, com ênfase na Língua Espanhola.

235
Atua como professora do Colegiado de Letras no IFPR Campus
Palmas.
Linhas de Pesquisa: Ensino de Línguas e uso de Novas
Tecnologias; Estudos de Tradução; Literatura Hispanoamericana.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8623418812641501
E-mail: [email protected]

Filipe Marchioro Pfützenreuter

Possui graduação em Letras (Licenciatura) com habilitação em


Português e Inglês pela Universidade do Extremo Sul Catarinense
- UNESC (2007). É Doutor (2014) e Mestre (2010) em Literatura pela
Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, onde, atualmente,
desenvolve seu estágio de Pós-Doutorado. É professor do
Colegiado de Letras do Instituto Federal do Paraná - IFPR (Campus
Palmas), em regime de trabalho de 40 horas semanais com
dedicação exclusiva. Além da docência, dedica-se à pesquisa na
área dos Estudos Comparados entre Teologia e Literatura
(Teopoética). É membro do Núcleo de Estudos Comparados entre
Teologia e Literatura - NUTEL, com sede na UFSC, e coordenador
do Grupo de Pesquisa em Confluências Textuais entre Teologia e

236
Literatura - TEOLITE, com sede no IFPR (Campus Palmas).
Paralelamente à carreira acadêmica, também é escritor de ficção e
membro da Academia Orleanense de Letras – a 2ª academia mais
antiga do estado –, na qual ocupa a cadeira de número dois. Sua
mais recente produção literária é “Histórias de um universitário”
(2016), uma coletânea de contos publicada pela Editora
Fragmentos.
Linha de pesquisa: Estudos Comparados entre Teologia e
Literatura (Teopoética); Ensino-aprendizagem de Inglês;
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0750423953276748
E-mail: filipe.pfü[email protected]

Jacob dos Santos Biziak

Possui graduação em Letras (bacharelado e licenciatura) pela


Universidade Estadual Paulista - Campus de Araraquara (2006),
mestrado em Estudos Literários pela Universidade Estadual
Paulista - Campus de Araraquara (2009) e doutorado pela mesma
instituição. Atualmente, é professor do Instituto Federal do Paraná
(Colegiado e curso de Letras), campus Palmas, tendo já atuado

237
como docente também no curso de Letras da Universidade
Estadual Paulista - Campus de Araraquara. Tem experiência na
área de Letras, com ênfase em Literatura e Produção Textual.
Atualmente, realiza pesquisa de pós-doutorado sobre angústia e
gêneros sexuais na literatura contemporânea, com ênfase em
Saramago; trabalhando com mais detalhes em psicanálise e
filosofia como instrumentos de análise transversal do texto
literário. Coordena o grupo de estudos "Gêneros sexuais e
discursos", na FFLCH da USP de Ribeirão Preto, e o G.E.Di ("Grupo
de Estudos do Discurso"), no IFPR do campus Palmas. Integra,
também, o Grupo de Pesquisa GEDISME (Discurso e memória: nos
movimentos do sujeito), da Universidade de São Paulo,
coordenado pela Professora Doutora Lucília Maria Abrahão e
Sousa.
Linhas de Pesquisa: Literatura, filosofia e psicanálise; Crítica
literária e pós-estruturalismo; Literatura portuguesa; Literatura
contemporânea; Gêneros sexuais e discurso; Aproximações entre
Linguística e Estudos Literários; Estudos do discurso.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3325013688415322
E-mail: [email protected]

238
Jaison Luís Crestani

Graduado em Letras, com habilitação em Língua Portuguesa,


Inglês e Espanhol. É mestre e doutor em Letras pela UNESP
(Universidade Estadual Paulista) e pós-doutor pelo Centro de
Jornalismo e Editoração da ECA-USP. Atualmente, é professor do
Colegiado de Letras do IFPR – Instituto Federal do Paraná. É
também autor dos livros Machado de Assis no Jornal das Famílias
(São Paulo: Edusp/Nankin, 2009); Machado de Assis e o processo de
criação literária (São Paulo: Edusp/Nankin, 2014) e de diversos
artigos e capítulos de livros sobre a obra de Machado de Assis e a
imprensa periódica do século XIX.
Linhas de Pesquisa: Literatura Brasileira (com ênfase na obra de
Machado de Assis); Imprensa periódica do século XIX; Estudos
literários da Bíblia (com ênfase no gênero da parábola); Leitura e
produção de textos; Literatura infanto-juvenil.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4495190660784265
E-mail: [email protected]

239
Jussara Isabel Stockmanns

Possui graduação em Pedagogia pela Faculdade Estadual de


Filosofia Ciências e Letras de Jacarezinho (1986), Especialização em
Informática na Educação (PUCPR), Metodologia do Ensino
Religioso (PUCPR), Psicopedagogia Clínica e Institucional
(FACINTER), Tutoria em Educação a Distância (FACINTER),
Gestão Pública, Gestão de Pessoas (IFPR) e mestrado em
Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa
Catarina (2001). Atua como Docente no Instituto Federal do Paraná,
Campus Palmas/PR. Atua também como avaliadora de curso
presencial e EAD no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira. Tem experiência na área de
Educação Básica e Ensino superior. Participa dos Grupos de
Pesquisa: “Educação: saberes, linguagem e multiculturalidade”,
pela UNICENTRO/IRATI, “GEEAD – Grupo de Estudos em
Educação a Distância”, pela UNICENTRO/GUARAPUAVA,
“Didática e Formação Docente – NAPE”, pela UDESC, e “Trabalho,

240
Educação e Formação Profissional”, pelo IFPR, Campus
Palmas/PR.
Linhas de Pesquisa: Formação permanente; ensino religioso
escolar; avaliação; organização do trabalho pedagógico; educação
à distância.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8459691081200533
E-mail: [email protected]

Kátia Cilene Silva Santos Conceição

Graduada em Letras Português/ Inglês pela Fundação


Universidade Federal do Rio Grande (2002), com especialização em
educação Brasileira (Furg- 2004), mestrado em Letras pela
Fundação Universidade Federal do Rio Grande (2007) e Doutorado
em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense -
RJ (2013), sob orientação do Professor Dr. Paulo Azevedo Bezerra.
Atualmente realiza estágio de Pós-doutorado na linha de pesquisa
Linguagem, Educação e Trabalho, na Universidade Tecnológica
Federal do Paraná, Pato Branco, sob a supervisão do professor Dr.
Anselmo Pereira de Lima. Membro do Grupo de Pesquisa CNPq
Linguagem, Atividade e Desenvolvimento Humano
(LAD´Humano), UTFPR-Pato Branco. Tem experiência nas áreas

241
de ensino e aprendizagem de língua inglesa e literaturas
correspondentes no ensino Superior, ensinos Fundamental e
Médio, formação de professores, estágio supervisionado e inglês
instrumental. Professora assistente do Colegiado de Letras/Inglês
do Instituto Federal do Paraná, Câmpus Palmas, onde ministra as
disciplinas de Língua e Literatura Inglesa e Universal no Curso de
Licenciatura em Letras-Português/Inglês. Criou e coordena o
Núcleo de Estudo, Ensino e Pesquisa em Língua e Literatura do
IFPR-Palmas – NEPLLI e o projeto Teste de Proficiência (IFPR-
Palmas). Colabora no projeto CELIF (Centro de ensino de línguas
do Instituto Federal) e Coordena de área do Sub-Projeto PIBID
Letras-Inglê/IFPR-Palmas.
Linhas de Pesquisa: Linguística Aplicada ao Ensino de Línguas e
Literaturas;
Literatura e Sociedade, com questões referentes à representação da
mulher, família e casamento; Gêneros do Discurso (M. Bakhtin);
Formação de professores: diálogo docente.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5873404260080377
E-mail: [email protected]

242
Suzete Verginia de Souza Reiter

Licenciada em Letras pelas Faculdades Integradas Católicas de


Palmas – FACIPAL, especialista em Ensino de Língua Inglesa pela
Faculdades Integradas de Palmas. Docente do Colegiado de Letras
do IFPR, Campus Palmas, ministra Língua Inglesa no Ensino
Básico, Técnico e Tecnológico, e é coordenadora do PIBID –
Subprojeto Português.
Linhas de pesquisa: Ensino de Língua Inglesa; Formação de
Professores; Tecnologias na Educação.
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/1605033033341815
Email: [email protected]

243
Roberto Carlos Biachi

Possui graduação em Letras Português/Espanhol pelo Centro


Universitário Diocesano do Sudoeste do Paraná - UNICS (2004),
Especialização em Ensino de Línguas (2007), mestrado em
Desenvolvimento Regional pela Universidade Tecnológica Federal
do Paraná (2016) e mestrado em Ciências da Educação pela
Universidade Metropolitana de Assunção (2010). Atualmente é
professor EBTT com dedicação exclusiva no IFPR - Instituto
Federal do Paraná; Foi Coordenador de Gestão em Assuntos
Educacionais do PIBD e atualmente é coordenador de área Pibid -
Letras português; membro do NDE do Curso de Letras do Instituto
Federal do Paraná; Coordenador de Ensino do IFPR- Campus
Palmas; Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Letras,
atuando principalmente nos seguintes temas: formação de
professores, PIBID, conhecimento, língua, educação e ensino de
língua Espanhola. Realizou estudos no Chile, Espanha, Colômbia,
Itália.
Linhas de Pesquisa: Ensino e Formação de professores; Relação
Universidade-Escola ; PIBID - como política pública de educação;
Linguagem e sociedade; Linguística.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9992771065946873
E-mail: [email protected]

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