Terra Gaúcha

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5 6 unesp

No perpetuo desequilíbrio, entro


o que imaginamos e o que existe, veri-
ficamos, attonitos, que a idealisaçiío mais
afogueada apagam-nol-a os novos qua-
dros da existencia.
Enchjdcs da Cunha — Discurso
LIVROS

lío(|iie Callago : Terra Gaúcha (Scenas da


Vida Rio-grandense) — 1914.
O autor de Terra Gaúcha ó um dos mais admiraveis artistas
da geraçáo nova do Brasil.
O sou estylo fórte, lesto, nervoso, revela bem o filho da
campanha evocadora, batida do sol e do minuano. Veiu da infan-
cia, a vôr, a sentir a terra, a escutar a memória da raça, a altivez
de um passado ainda vibrando na voz dos antigos...
K a sua fôrma o irmana, em phraze e requinte, a Fialho, a
Gonzaga Duque, a Alcides Maya.
Terra Oaúcha tem aspectos de uma descrii)(;ão perfeita, pe-
quenas manchai lindas.
Copio aqui a pagina do Carreieíro, que dá uma idéa do ex-
cellente livro de Roque Callage :

CARRETEIRO

Nasceste na vibrante alvorada de uma manhã de estio, e


nunca mais adormeceste no repouso plácido do rancho, onde dei-
xaste mulher o filho, entregue á luta permanente do .trabalho.
Como o tropeiro, tu és também, o typo representativo de
uma tradiçilo secular.
Vive em ti, velho rebelde da civilisa^;ão, o sonho heroico da
raça, a legenda da luta, do amor, da bravura.
Antes das diligencias, muito antes das vias-ferreas, eras tu
somente o indomável i)almilhador das coxilhas, o tenás triumphador
dos terrenos hostis.
Com essa tua rude viatura de trabalho, enfrentaste o perigo
iniiuinente das refrégas, a cavallaria desenfreada dos entreveiros, na
violência dos choques revolucionários dos patriotas aguerridos.
A carreta e os bois foram sempre os teus melhores amigos,
os teus únicos e leaes companheiros de jornada.
Despresaste, no maior dos desdens, o conforto caricioso da
casa. Tempo máo ou tempo bom, inverno ou verão, do dia ou de
noite, tu partias, tu caminhavas, acompanhando sempre o andar va-
garob» da carreta.
8

Todos to procuravam, todos to queriam, todos to veneravam.


Não havia outra conducção, outro transporte, outro meio mais com-
modo.
A' sombra de algum umbii ramalhudo, nas encostas das res-
tingas com agua, junto ás pastagens verdes, tu, bondoso carretoiro,
descangavas os bois e accendias o fogo bemfazejo para a panela de
feijão com graxa e para a agua do chimarrüo.
Pastado o descanso, seguias viagem depois, novamente atra-
VGz -do grande pam])a silencioso, soffrendo as amarguras das intem-
peries, os perturbadores accidentes dos terrenos onde os «tatús» im-
previstos reclamavam todo o vigor das tuas serenas energias.
E seguias jornada, de aguilliada si mao, curveteando cami-
nhos, idealizando a victoria do outro dia do viagem, esmagando
cora o peso das cargas, com o gemido das rodas, a verde florescên-
cia da tampanha.
Appareciam os primeiros espasmos do dia. LA adiante, o
pouso. De novo desajoujavas os bois, repontando-os para os potrei-
ros o invernadas, 'envoltos na luz esmaecida do luar ou embrulha-
dos na negridão da noite sem brilho.
Então to estiravas cançado na maciez dos pelegos, sob a pro-
tecção da carreta inerte, aió que as primeiras barras do dia to sa-
cudiam, outra vez, para a marcha processional do outro rumo, em
demanda á casa, numa viagem quasi sem fim — afan trabalhoso
mas alegre, contra a rude conquista do terreno...
No maior do todos os sacrifícios, a caminhar sempre como
errante batedor do deserto, passasto (juasi toda a tua existencia, di-
minuindo as distancias; no passo tardo dos condemnados.
Enchotado pela pezada locomotiva moderna, desappareces
hoje, antigo caminhanto do pampa, e, coratigo, desappareoe também
o rapsodo sentimental das horas de sesta, o alegro trovador das
pousadas.
P^s o ultimo perseguido de uma civilisação que se rasga no
teu berço — esmeralda das coxilhas...
«Fon-Fon» — Rio — 01.5

RESENHA DE LIVR05

Roque Callage — Terra Gaúcha, scenas da vida riograndense.


Os moços letrados do Rio Grande do Sul estão fazendo obra
muito meritoria, registrando os costumes, a lingua, as gaúchadas, os
empregos o as aventuras das gentes dos pampas. A civilisação, o
progresso industrial, a immigração estrangeira vão tudo reduzindo
e tudo nivelando, apagando tradições, desfazendo hábitos herdados
e transmittidos, dando um tom uniforme a tudo, espancando super-
stições, illuminando intelligencias, tirando todos os característicos
de populações que já se vão confundindo no vestir, no fallar, no
modo de alimentar-se, de andar o de pensar, á moda dos domina-
9

dores. O cinematographo jii creou, no Rio, o typo da yriseilc, de


inilos lis cadeiras, do jiasso incerto e curto, petulante e sans desfous;
o também dou o modelo do elegante, do moço honilo, de paletot
curto, chapúo enfiado até as orelhas, botas gaspeadas, andar bam-
boleante.
O tango, one-siep, a turlana, abençoada e aconselhada pela
egreja, vão fazendo desapparecer as danças nacionaes; o Scliottisch-
lasqiicado substituo o fand.ütgo... acccso que nem foc/o nas maccyas...
O livro de Itoque Gallage 6 um livro de saudado dos velhos
o Iradicionaes costumes dos pagos, das querencias, dos pampas rio-
grandenses do Sul, costumes, hábitos, o tradições que vão desajipa-
reccndo com o protesto dos antigos guascas. Nesse sentido estão
concebidos quasi todos os capítulos, principalmente os contos: Pessi-
mismo de (judsca, Civilisação, Saiulade, etc.
Paizagista que sabe copiar bem as tonalidades dos crepúscu-
los, as variantes da luz nos diluculos, o escriptor rio-grandonse com-
bina bem'os scenarios e dispõe muito bem a luz nas suas télas, de
modo que as figuras, as personagens, as almas, os sentimentos fi-
cam de accordo com o meio que sobre elles actúa.
São caracteristicos os contos «A victima » e «Na Estancia»,
onde estão registradas scenas de costumes da campanha rio-gran-
dense, em que de futuro os escriptores encontrarão elementos pre-
ciosos para romances de reconstrucção de épocas passadas. Uoque
Callage é um escriptor feito, cujos trabalhos se recommendam pela
originalidade dos nssumptos, inteiramente fora da influencia de au-
tores e livros estrangeiros.
Seus livros, como os de Alcides Maya, para terem o apreço
que merecem, era todo o paiz e fora delle, devem vir acompanha-
dos do um vocabulario do termos fronteiriços, alguns hespanhoes,
outros populares e outros do velho portuguez, já obsoletos e somente
em uso no Rio Grande e em um ou outro Estado do Norte onde
pousou alguma colonia além-tejana.
O volume actual è o começo do pagamento da divida con-
trahida com o publico pelo joven escriptor, cujo primeiro livro já
tão intensamente interessou a critica o os literatos.
FÁBIO LUZ
(Da «Época» do Rio, 19-5-915)

AO AR LIVRE

TERRA GAUCIIA — Esse é o titulo do um livro de contos,


do que ó autor o joven Roque Callage, do Rio Grande do Sul.
Roque Callage, apezar de ser muito joven, não é um estreante.
U seu primeiro livro, intitulado Escombros, era mais do
que uma promessa.
Este, denominado Terra Gaúcha, 6 mais do que um começo
de realisação.
lU

l!o(juü Gallago recebeu a dupla intUiencia de Euclydes da


Cunha o Alcides Maya, dois escriptores totalmente diversos o intei-
ramente semelhantes.
A influencia que recebeu dos dois poetas da prosa, um quo
cantou as misérias do sertSo, outro que celebrou as agonias de raça
dos pampas, nSo destruiu a individualidade de Roque Callage o
foi-lhe benolica.
A sua visão de observador ó segura o precisa. O seu estylo
ó bem articulado, largo o sonoro. O seu livro, sendo um livro re-
gional, nào tem excessos barbarescos.
Mssas paginas denotam um temperamento do artista, uma alma
forte o um grande amor aos themas que o prosador desenvolve.
Com esses dois livros, Escombros e Terra Oaiíclia, Roque
Callage conquistou um posto de honra entre os homens do letras
d.is novas gerações.
LEAL DE SOl'/A
liotafogo, l!)lõ. (Da «Gazeta» do Rio, 21-8-91.')).

TERRA GAUChA

CARTA DE ROCHA POMBO — O grande historiador na-


cional dr. Rocha Pombo, assim se externou, em carta, sobre o li-
vro Terra Oaialiu :
«I Ilustre confrade sr. Roque Callage :
Com muita satisfação recebi o seu explendido livro Terra
(latic/iu ; o só lhe demorei um pouco a leitura completa ))or uma
circumstancia qne nSo esteve em mim evitar. Umas referencias do
muita justiça, feitas pelo meu amigo Xavier Pinheiro no «Correio
da Noite» (de que lhe remette elle um exemplar) explicam tudo :
o Xavier viu-me o livro em müos, e fez questão de dar uma noti-
cia antes quo outros jornaes o fizessem. Abi tem, pois, a excusa
desta tardança em agradecer-lhe o brinde quo me fez, o que vai
ser dos de maior preço entre os que jil figuram no meu escrinio.
Ü mesmo enthusiasmo do Xavier Pinheiro sinto eu pelo seu bello
espirito, revelado nas varias composições que formam o volume, cada
qual com o vigor o o brilho característicos desse forte o ardente
sangue Id do sul.
Deixo me diser-lhe, com toda esta quasi estouvada sinceri-
dade de quem sabe amar os quo se mostram com direito ao dosso
amor : o seu nome, sd por este livro (isto é um milagre muito com-
mum entro os legítimos talentos) posso assegurar-lhe quo se incor-
pora á geração como um novo expoente da mentalidade actual ahi
na gloriosa torra gaúcha.
Não me despedirei sem lamentar que não tenha juntado (co-
mo outros fazem sempre que so trata de trabalhos do caracteriza-
ção local) um vocabulario dos termos da terra ; pois, sem isso, lo-
11

inos ás vezes de passar pelo desgosto de não entender bem uma o


outra coisa de alguns trechos.
Queira acceitar o meu abraço de confrade que sc desvanece
do um encontro previsto o por isso mesmo tão grato.
ROCHA POMBO
Rio, 2õ de Abril 915.

TERRA GAÚCHA — de Roque Callage — E' uma sério


do (juadros, representativos de scenas da vida rio-grandense o reu-
nidos om um elegante e formoso volume de 137 paginas, em primo-
rosa edição de um dos melhores estabelecimentos typographicos do
sul do Urasil. Falta, ó certo, a esses quadros, a nota psychologica
e genuinamente literaria de outros trabalhos congeneres, denuncia-
dora da alma artística dos escriptores de largo pulso, dentre os
quaes se destaca hoje com inteira justiça a personalidade de Alci-
des Jlaya, o mais eminente, a nosso ver, de todos os interpretes da
alma e da natureza das bellas plagas rio-grandenses; mas sobram
ao pincel do sr. Roque Callago o brilho e a intensidade de tintas,
(jue fazem desse escriptor um paysagista de raro merecimento. O
vigor descriptivo de algumas paginas da Terra Oaiícha 6, por ve-
zes, encantador e admiravel, attingindo a um poder suggestivo e
revelador que só se encontram na télas dos' grandes mestres.
São quasi sempre pinceladas largas e syntheticas as que nos
patenteiam as melhores scenas e os formosos quadros da vida rio-
grandense ; mas, essas, traçadas sempre com firmeza e com brilho,
abrem, sobre os trechos esboçados, uma claridade tão forte e pene-
trante, que logo toda a paysagem resalta aos olhos do leitor, exta-
siado, como no effeito mágico de um vasto panorama.
Aqui está, para exemplo, sobre a secca, um pequenino qua-
dro, desses a que em pintura se dá vulgarmente o nome do moscas:
«Os gados abatem-se de magreza, derreados pela sôde, cabi-
dos em meio do campo, á beira dos banhados; as arvores, raras no
campo imnienso, tomam semelhanças esguias de visões paralysadas,
de braços descarnados e erguidos numa prece dolorida — o in ex-
írcmis da vida. E as folhas vôam, rolam depois, aos montes, aos
novellos, em redemoinhos, sob a luz criia do sol, que, na sua ver-
tigem olympica, dardeja no alto do céo exsiccado. O tropeiro que
passa atravez de quebradas e atalhos deixa-se por um momento fi-
car absorto, penalizado, do cabeça baixa, na solidão vazia das es-
tradas, vendo as folhas que fogem a rolar, a rolar, caminho a fora,
inconscientemente, para o nada...
E' esse o tom geral do volume, que se lê sem difficuldade
o com agrado, desde a primeira pagina do Pessimismo de Ouasca
ató h ultima do Resto de Outra Raça.
Ao sou talentoso autor os meus agradecimentos pela gentile-
za com que me distinguiu.
OSORIO DUQUE ESTRADA
(Do «Imparcial» do Rio, 17-5-í)lõ)
12
/>S. -- .

ROQUE CALLAÜE — Terra Oaúcha —


Sconas d.i vida riograndense — Brasil
— líio Grando do Sul.

Ainda uma vez dovo ao nosso (juerido ineitro Kocha Pombo


a grando ventura do conliecer mais um escriptor novo. Ilontom foi
um poeta paranaense, o sr. Clcmcnto Uitb, hoje c o sr. Uoquo Cal-
lago, prosador riograndense.
O livro (Io sr. Uoquo Callago contem paginas da vida rio-
grandense, soenas dü um meio que nflo tem sido divulgadas, talvez
pela dilViculdade do vocabulario proprio que usa o povo.
Conhecemos através da iirosa brilhante do Alcides Maya al-
guma coisa da vida gaúcha, o om Tapera, os esplendidos scenarios
da vida do sul e do empolgante romance líninas riras, ficámos
mais ou menos senhor dos hábitos o costumes dessa brava o que-
rida gente, quo não engana ninguém o quo sabe ser sincera nas
suas expansões do amor e de odio.
Terra OaMia, do Ro(iuc Callage, são encantadoras paginas
do ber^o de Pinheiro Machado — o maior dos nossos patrícios pelo
civismo o pola independencia quo manifesta em todos os seus actos.
Em Terra (laiicha sente-se o sopro quente de uma alma do
poeta quo ama a liberdade, quo vive como um pantheista adorando
a Natureza o deixa, livro do sonhos e do pesadellos, o coraçfto di-
zer o quo sento e o que guarda nos últimos recessos.
Lemos o livro o o estylo forte do prosador empolgou-nos
com a descrip^ão daquollas scenas vivas, copiadas aprés nalurc. i)or
um artista senhor do meio, conhecedor da gbnto que anima os seus
quadros, as suas impres.sões.
As quinze composições (jue formam Terra Gaúcha são uma
contribuição raagnifica para a literatura riograndense e o sr. Uoquo
Callage deve no» dar da sua amada terra outras impressões, outros
trabalhos, porque tem talento, ú um observador criterioso, maneja a
lingua com elegancia e mostra conhecer, como bom gaúcho, o voca-
bulario curioso usado pelo povo e que tanto o caracteriza.
Alma dc ergo, Carneador, Memória... dedicada a Alcides
Maya, Saudade, Resto de outra raça, silo paginas quo fazem um
escriptor o o recommendam á nossa estima.
Terra Oaiicha ficará ao lado dos dois bons livros de Alcides
Maya e o do so esperar quo o sr. Uoquo Callage continue a traba-
lhar para as letras e para o bom nome de sua terra natal, dando-
nos outros livros iguaes ou melhores a esse com que nos deliciou.
Agradecemos n Uocha Pombo ter-nos dado o infinito prazer
de travar conhecimento com tão bello espirito riograndense.
AM VIElt PINHEIRO
(Do «Correio da Noite» do Rio - 915)'
13

TERRA GAÚCHA — par Roque Callage — Scenes do Ia


vie do Rio Grande do Sul. Iraprimó dans les ateliers typographi-
quGS de «LTnstitiU Electro-technique do TEcole des Ingénicurs íi
l'orto-Alegre.
Dans ce livre qu'il vient de publior et a ou Ia gentilloKSo do
nous envoyer, Mr. Roque Callage a dépeint avec un taleiit d'écri-
vain de race, les coutumes des liabitants de Rio Grande que Ton
désigne en général au Brésil sous le nom de Gaúchos, hommes de
Ia campagne, que naissent presque sur le dos d'im cheval, pres de
leur habitation.
Son premier conte «Le Pessimisme du Gaúcho» nous lemonr
tro maudissant Ia civilisation qui a introduit le chemin de fer dans
son Etat natal et qui sVHeint désespéré de le voir ainsi envahi. Le
style de ces contes est rempli d' expressions originales, du tcri-oir.
L'auteur célébre les héros de Rio Grande dans «Le Iléros» oii il
écrit un <5pisode du combat de «Ponche Verde * ofi Ia cavalerie de
Canabarro mit en déroute les (orces légales. «Contrabandista» est
une de ces scònes communes sur les frontiòres do Rio Grande oii
pulullaient jusque derniérement les aventuriers des nations voisines
et du pays; fon rúcit est passionnant. Les autres contes «Carniça»,
«Civilisaçao» et «A Victima» sont pris sur Io vif et placent Tauteur
parmi les bons littérateurs bnísiliens.
(«Le Messager de S. Paulo» — S. Paulo, lO-õ-SilTiJ

TERIIA GAÚCHA, o ultimo livro de Roque Callage, que aca-


bamos de ler, 6 um i)rocioso signal do vasto movimento litterario
nacionalista observável nos meios intellectuaes do interior, do Norte
e do Sul.
Aos aspectos, costumes e typos do sertão, que tantas e t5o
lindas novellas vim fixando, juntas a campanha riograndense, em
numerosas 'paginas recentes, as suas télas originaes do risco, ligura
o colorido.
Roque Callage, que prima pelo estylo sobrio e pela.natura-
lidade dos quadros, ti um profundo conhecedor da vida tumultuaria
da coxilha e do pampa.
Pessimismo Ouasea, Heróe, Contrabandista, Carniça, Secca,
Canieador, Na Estancia, Memória... eis ahi citadas algumas formo-
sas miniaturas, ricas de verdade e belleza, do jovcn escriptor gaú-
cho, que já revelára nos capítulos fortes do seu primeiro volume —
Escombros — raros predicados de novellista.
(Do «Jornal do Commercio» —Rio, (ediçílo da tarde) 11-2-917.
I

UM cavo e mal pronunciado «té á vista»,


Quincas Pedrozo afastou-se do colono, co-
nhecido de pouco dos pagos, no primeiro
encruzamento da estrada. D'ali por diante eram
atalhos. O estrangeiro cortou á esquerda, em de-
manda do suas terras, na colonia nova, estendida
no fundo sinuoso do campo, e o tropeiro seguiu
ao tranco, para as querencias da Estancia Velha
erguida no topo da coxilha como uma grande
mancha dominando a verdura luminosa.
A tarde findava-se num occaso polychromo,
selvagem, esbatido numa violência de tintas ber-
rantes, dando á paysagem um aspecto estranho
de colorido mal combinado. Cahia sobro as cou-
sas o silencio nocturno do ermo. Desoláva... Quin-
cas Pedrozo fustigou o animal com o seu velho e
trançado «rabo de tatu». Os seus olhos pestanu-
dos e semi-mortos volviam ainda para traz, ob-
servando, numa confusão de linhas, a figura ru-
goza do colono que ia presto, na alegria trium-
phal do uma felicidade perfeita. Surgia flagrante,
entre elle e o novo intruzo dos pagos, novo pro-
prietário e novo senhor, a differenciação latente
da vida. No abandono da tarde, a conjectura sur-
gia. Passáva-lhe pelo espirito, na crise das medi-
16

lações, em tumulto de sombras, um desfilar de fi-


guras errantes, onde elle via a alma avoenga dos
seus immergir, para sempre, no ultimo farrapo da
campanha fronteiri(;a. Desde muito perscrutára a
transformação da terra nativa. Um espectro allu-
cinante bailava á frente da retina: era a grande-
za daquella colonia, absorvendo, aos poucos, a
grandeza daquelle campo... De tempos para cá,
uma vida nova, uma existencia estranha vinha se
abrindo, vinha se rasgando pelos éscampados de
outr'ora, mudados então naquella colonisação es-
trangeira, avançando, ávidamento, pelas terras da
fazenda onde elle nascera, mermando-lhe a vida,
transformando em grandes ruinas silenciosas a
estancia patriarchal que lá adiante se erguia, á
sombra das timbatíbas seculares, onde não mais
poisariam em manhãs estivas ou em tardes de
«rodeios», os hein-fe-vis alegres !... Prolongava-se
a scisma, ao balanço do cavallo, a tróte curto, no
diluculo do dia. Não so conformava com aquellas
bruscas intrujices de elementos alheios naquelle
sóio que era seu pelo amor e pela bravura, pal-
milhado numa longa existencia decorrida em guá-
paa escaramuças aos domingos e insano traba-
lho em épocas de farta safra pastoril. E de quan-
do em quando, justificando a sua revolta, atirava
para tráz, para frente o para os lados, phrases
amargas, pungidas pela tristeza dos que olham
com profundo pezar, a ruina da patria.
— Que vissem no mais, a verdade das cou-
sas, a clareza dos factos. Haviam de se convence
que tudo se acabava... Culpado o governo, sem-
pre mettido na politica, nas inleições, nas trapas-
sas do vóto, e o resultado era só aquillo no mais...
P'raquê tanto mundaréo de gente ? Despois, no
fim das contas, eram os casamentos, a cruza do
sangue dos gringos, mais espertos que redomão,
com o sangue puro das morenas dos pagos... As
coisas mudavam mesmo. Gentes como no seu tem-
po ora bobage campeá. Só havia gente bahiana.
uns sotrêtas quo não sabiam pialar um novilho
magro, nem repontar um bagual... Final de con-
tas, uma disgracia !...
E lógicas conclusões pessimistas Quincas
Pedrozo arrancava do cerebro, de dentro da sua
alma simples, na confusão esfumada da tarde si-
lenciosa. Modificava-se, aos seus olhos, a figura
spartana da raça heróica, producto dum attrito
violento nas lutas da Conquista. Já lião via mais
diante si aquelle typo puro do guasca rehabilitado
acima de todas as falsidades ethnographicas, o
legitimo crioulo do campo, nascido no dorso do
cavallo, á beira do galpão ; aquelle velho typo
sem modificáções e sem mescla, acostumado a emen-
dar o dia e a noite, a aurora e o crepusculo,
sempre prompto, com riso de infinita bondade,
para o" trabalho e o sacrifício de todos os mo-
mentos. Agora, para elle, tudo aquillo se desmo-
ronava. Cada casa que se erguia, cada rancho que
apontava na estrada e cada alambrado que delimi-
tava os campos, derruiam por terra o ideal gaúches-
co. A sua aspiração e o seu instincto pátrio res-
tringiam-se á curta distancia dos seus olhos:
fazer as mesmas, tropas para Pelotas,.metter-so na
faina agitada dos rodeios, matear ao despontar do
dia com a peonada da estancia, vendo esta pros-
l)erar cada vez mais,dilatando-se entre postos e que-
bradas, e ter. sempre, a seu lado, nas horas da sésta,
caricia felina de Chinoca, sentada ao catre, apa-
rando-lhe palhas, espremendo-lhe cravos...
—Mas qual! Tudo estava se acabando... Não
havia mais remedio sinão esperar, como rez pes-
teada pelo carrapato, a hora da morte e, depois,
seu corpo de gauchito limpo ser lançado, como
traste ruim, nas restingas ou nos banhados de
agua-pés, como nos tempos da Revolução... Mas
quo tomassem tento ! Ellé não era tão máula co-
mo pensavam e decerto não havia de ir ansim
no mais...
18 Tkiira Gaúcha

Avançava pouco a pouco para a querencia.


Encolhia atalhos, na scisma dorida de único so-
brevivente d'uma geração que elle i)ão mais tor-
naria a vêr na força, bondade e bravura primi-
tivas, cortando o pampa sob as affrontas do tem-
po, castigado pelo trabalho permanente das estan-
cias. Já ha dois annos que não faziam uma tropa.
Os trens de bois da estrada de ferro roubavam-lhe
a sua melhor taréfa para a linda cidade do SãoGon-
çalo, taréfa que sempre cumpria á risca, sem nunca
perder uma rez, por matreira que fôsse,dando conta
do riscado com pericia e orgulho, batendo coxilhas
de sol a sol na companhia daquelle seu malacara
ainda guápo e prompto para o trabalho do campo.
Além, na Colonia Nova, a primeira que se fun-
d.ára no município, a illuminaçâo scintillava. Aquillo
era uma offensa ao seu antigo orgulho indomá-
vel. Aborreceu, desdenhou, numa ascua do nati-
vista offt-ndido, aquelle prenuncio do civilisação
complicada.
Resmungou, ainda uma vez, guasqueando o
cavallo: «que olhassen"-, que vissem e depois que
lhe dessem razão... Dantes, os campos não tinham
princípios, nâo tinham fim; as fazendas não eram
cortadas nem divididas por alambrados, Agora
não passavam de invernadas mui mixes, mui po-
bres!» E avançando sempre, ao tróto do cavallo
quG se apressava para a sua ração de milho,
(iuincas olhou ainda para as ultimas luzes da
colonia que se perdia á esquerda, entre largas
coxilhas ondulantes. Lá estava ella na sua quie-
tudo pacifica, abrigando, com religioso respeito,
centonares de familias germanicas solidarias, no
seu obscurantismo feliz, com as leis e poderio do
kaiscr longínquo. A estancia próxima repousava
no seu ímmenso silencio do pedra, surgindo in-
certa, entre arvores farfalhantes, como a ruína
de uma grandeza passada. O silencio cahia, pe-
sado, como uma tampa de chumbo. Nenhum cão
latia, nenhum relincho de cavallo, nenhum prisco
19

do gado chucro, no repouso do campo ermo. E


por um momento de grande scisma, aquelle ve-
lho tropeiro, antigo capataz da estancia secular,
fitando a serenidade do céo sem fim, sentindo-se
só, á frente da casa morta, carcomida pelo avan-
ço eterno do tempo, julgou-se o ultimo vestigio
de uma tradição, — a derradeira sombra de uma
raça apagada.

II

Dias depois Quinca Pedrozo ruminava a idéa


de se ir com sua «pontinha» de gado, para os
campos de Matto Grosso.
O grande estado central do Brasil surgia-lhe
ogora ao espirito como o ideal de seus sonhos de
campeiro, semelhante talvez a um Rio Grande —
primitivo, com os mesmos hábitos e costumes, so-
bretudo, com a ampla largueza de seus campos
dobrados, com a visão infinitamente grande que
sua retina já não lograva descortinar.
Quando alguém falava sobre os vastos as-
pectos rudimentares d'aquella immensa região, em
parte desconhecida, o gaúcho se punha logo atten-
to, bebendo, palavra por palavra, as fantasticas
descripções que dahi por diante iam viver no seu
cerebro, atormentando-o, talvez, ainda mais.
Embóra sem conhecer outro territorio que
não fosse o do seu Estado, não deixava de arris-
car por conta própria affirmativas convincentes :
— Aquillo lá é que é vida, seu... Isto aqui
já n3o vale mais nada!
Sua mente escaldava agora num grande de-
sejo de conquista e de pósse. Era a migração do
homem para outras paragens, mais de acordo
com o seu bronco temperamento, mais suas, talvez,
por principioa rte ordem ethnica, mais suas, talvez
mesmo, por todos os outros princípios: o impre-
visto, a selvageria nômade, a immensidade dos
latifúndios abertos á aventura do primeiro intru-
TKURA Íxaúciia

7.0 ousado. Seria então reintegrado no meio em


que se affeiçoára, num ambiente que já possuirá
nas plagas do sul, liberal e amplo, onde emfim a
noçSo da propriedade fosse mais vaga e por isso
mesmo menos complicada... De chegada lá. disse-
ram-lhe, podia comprar campo a conto de reis a
légua... Que maravilha I Dentro de pouco, com
algum trabalho, seria abastado estancioiro, um
♦graíídai;o», respeitado por todos, gozando saúdü
e ccategorias».
O rincão nativo no Rio Grande já não lhe
dava mais nada. A devassa já ia de comarca em
comarca, por toda a campanha, desde a sérra até
as barrancas da fronteira. Diminuía o sólo, dimi-
nuía a propriedade; novos costumes e novos há-
bitos faziam, no pago, a sua entrada triumphal.
Diante de tudo aquillo que elle vinha vendo
e observando, em confronto com os outros tem-
pos, tal como elle entendia, tal como ellé desejava
que ainda fosse, barbaro, grande, gaúchescamente
revél, diante de tudo isso que já não via no pre-
sente teve um recuo natural para o que ainda
devisava no passado. Era a grande voz mj'ste-
riosa do instincto, vibrando dentro daquella forte
armadura de Centauro. Por isso o gaúcho fugia
do velho torrão natal onde agora se rasgavam
grandiosos horizontes de civilisação, em progresso
crescente. Fugia assim em demanda do El-Dorado
que lá estava em Matto Grosso e que estaria em
qualquer outro logar onde elle fosse definitiva-
mente reintegrado no seu único e verdadeiro
meio...
r^TAQUELLA hora de um occaso manchado a
Sangue, no silencio do galpão, entre largas
baforadas de cigarro «crioulo» e lentos chu-
pões do excellente amargo de «barbaquá», Aman-
cio rematava a sua narrativa, olhando, 'evocativa-
mente, o fundo deserto da estrada que lá adian-
te morria entre c<5rtes e atalhos.
— Pois foi ansim, compadre... O homem mor-
reu como um valiente que não se entrega ao pri-
meiro grito ! Na occasião do encontro, os compa-
nheiros já iam longe e o tenente lá ficou sólito,
entregne áquelles bandidos !..
Era uma historia commovedora, passada na
campanha immensa, nos últimos dias da sangren-
ta revolução «farroupilha>.
Terminára-se o combate de «Ponche Verde»,
onde as hostes heróicas da cavaliaria de Cana-
barro, depois de um encontro violento, a cargas
de lança e de fogo, cantaram victoria sobre as
forças legalistas ao mando de Bento Manuel, o
valente guerreiro bandeador que tanta persegui-
ção deitara á republica constituída de Piratiny. '
iíosse dia memorável,, um doç últimos feitos luzi-
dos da longa campanha revolucionaria, Januario
Pedroso, tenente da columna do primeiro, des-
garra-se da grande parte da gente que, forman-
do a retagu&rda da força, marchava, tomando
distancia, quebrando altiva, orgulhosa, embora
oxhausta, um repontão de coxilha, prolongando
22 Teuka Gaúcha

a marcha sem uma direcção determinada, até on-


de podéssem encontrar um pouso pacifico para
acampar, sem o cuidado de emboscadas e assaltos
temerosos. Era o que cumpria fazer, com cautéla,
depois da noticia rapidamente espalhada de que
Caxias mandaria reforço incontinente, para offe-
recer combate decisivo áquella tremenda campa-
nha travada em dez annos de heroismo e loucu-
ra. Mas o guápo tenente, sempre alegre e garbo-
zo, em cima do cavallo ferido, pouco preoccupou-
se da distancia tomada pelos companheiros. Ha-
via tido permissão do commandante em chefe,
para, com o seu cabo ordenança, ficar atraz, afim
de rebanhar cavallos e patriotas estraviados no
Ímpeto formidável da refrega.
Todavia, grande parte dos inimigos não se
disporsára. Passado o momento terrivei, conjuga-
ram-se alguns pelotões de cavallaria. Ao longe já
se ouvia o estampido das garruchas, o estròpito
da cavalhada rebelde, em plena liberdade pam-
peana, na vasta solidão das coxilhas ondulantes,
onde jorrára sangue em meio dia de carnificina.
Era uma força que se agitava, levantando poei-
ra, em ancia de vindicta. A ordenança que acom-
panhava o tenente revolucionário, lembrou-lhe o
perigo, guasqueando o matungo abombado.
— Era bom atropelar, O seu tenente que se
cuidasse, aquillo eram «bichos» na certa...
Mas, o official gracejou contra o máo pre-
nuncio do camarada :
— Ora chô! Aquillo não era nada ; quando
muito alguns guaypégas perdidos... Depois, cora-
gem, caramba ! Que fôsse..
A massa, á distancia, tomava já uma fôrma
definida. Era realmente um esquadrão de lan-
ceiros o clavineiros a trote largo. O entardecer ca-
hia, lento e humido, espalhando, pela solidão uma
brutalidade de inverno carregado de vento e chuva.
As perspectivas sepultavam-se em brumas
densas e o campo todo era uma vasta cerração,
ÍÍerók

diluindo as paizagens e os vultos errantes dos


animaes.
A ordenan(}a demorou ainda para tráz o olhar
ancioso, do uma accentuada timidez! Os «bichos»
se aproximavam em tropél, volteando os lançan-
tes da estrada. Ainda vinham longe. Mas, o ve-
lho soldado de 35 quiz afastar o superior, d'aquellas
frias idéias de descaso e de valente, lembrando-
Ihe o proximo termo da luta, cousas enternecidas
do lar, o riso doce das crianças, a alegria com-
movedora da mulher saudosa, á frente do ran-
cho, de olhos razos d'emoção, com os filhos agar-
rados á saia, esperando o marido de volta dos
campos de combate, são e salvo, carregado de
honras e glorias, livre, talvez para sempre, da
fúria impetuosa dos entreveiros...
— Qual nada ! Isso são coisas... Inda tenho
mostarda para muito tubiano sotrêta — respon-
deu Pedrozo, abrindo um largo sorriso de indif-
ferençá nos seu lábios tostados pelo sol e pelo
fogo.
Acima do tudo estava a liberdade dos pa-
gos, do altivo fogão gaúcho. Todo o seu intimo
mostrava o mesmo ardor de sempre, uma vonta-
de indeclinável de lutar, de encontros decisivos,
engrandecendo-se, cada vez mais, em favor da
causa revolucionaria quo abraçára, desde o dia
em que abandonou, por tempo incerto, a sua es-
tanciola, no município de Bagé. O sangue da re-
volução, o ideal de uma liberdade absoluta, an-
nunciada pelos aráutos gaúchescos, da pago em
pago, de coxilha em coxilha, de sérra em serra,
emancipando o torriio querido da vontade prepo-
.tente do Império quo estendia os seus braços de
ferro até a ultima linha das fronteiras do sul,
alteavam-lho na alma indomável de revél, acham-
ma da revolta, o sonho da conquista, depurando-
se, como resultado de todas as suas energias, um
caudilho submisso, ás ordens de Bento Gonçalves
e Canabarro. Com este ultimo, tomára parte no
24 7!'kur,v Gaúcha

cérco do Rio Pardo, na expedição do Lages, af-


frontando a imminencia dos perigos, rompendo
obstáculos de toda sorte, sempre na vanguarda
das forças, aó lado do volho heróe republicano.
No combate de «Ponche Verde» portára-se, então,
com inexcedivel denodo, até a ultima carga do
lança, contra as hóstes inimigas, estendidas em
linha de fogo cerrado.
O esquadrão de legalistas se aproximava
pouco a pouco, picando os destroços da força
victoriosa que marchava sem ordem, como de volta
de uma derrota. Ello não compreendia os moti-
vos daquella perseguição depois da tamanha tun-
da que levaram.
Procurou com calma verificar a arma que
trazia no coldre, quando ouviu, já proximo, a
primeira detonação das clavinas inimigas. Não
havia mais duvida : eram clles, realmente. Já não
lhe restava mais tempo a perder, tanto fôra o
descuido naquelle resto de dia, á procura do es-
traviados o feridos no meio do campo. Puxou
da sua arma, verificou a carga, a estabilidade do
gatilho o atropelou o cavallo.
Os legalistas já vinham a cem passos, quan-
do muito ; os companheiros haviam so distancia-
do mais de meia légua. O perigo surgia intrans-
ponível. Comtudo, «aquillo não havia de ser nada»,
dizia, o para a retaguarda alvejou duas vozes a
arma. Súbito, as redeas lhe fugiram das mãos,
vorgando-so o corpo com vago gemido, na tçstei-
ra do lombilho aperado. Um ferimento! Era a
consequencia fatal de um descuido. A ordonança,
osporeando o matungo, á redoa solta, so precipi-
tou, á frente, aos gritos do jd se vieram !
Só então, quando so sentiu trahido pela im-
prudência da sua não desmentida coragem foi
que Januario Pedrozo comprehendeu, claramonto,
a seriedade do perigo, O esquadrão se aproxi-
mava em fragor, para cahir sobre aquelle homem
só, abandonado na grande coxilha deserta. Outros
IEekób • 26

tiros dispararam, errando o alvo. Uma bala zu-


niu-lhe pela orelha. Argamassou-se ao cavàllo ;
era um vulto só, correndo, desenfreadamente ; já
não havia mais tempo de carregar a pistola. Uma
resolução brusca fel-o parar subitamente. Sabia
que d'ali não escaparia. Era chegada a occasião;
restava-lhe morrer como homem... A certeza da
morte o convenceu da inutilidade da fuga. Ne-
nhum companheiro tinha ali que corresse em seu
auxilio. O proprio camarada de ordens fugira
em melhor cavallo, diante do primeiro signal da
força que se aproximava. Desembainhou então a
espada com a mão ferida e apeou-se do douradi-
Iho exhausto, seu fiel companheiro-de guerra, tam-
bém, como elle, victima do alvo certeiro das balas.
E foi uma lucta tremenda e encarniçada! Todo
o esquadrão ali estava, cercando-o, num delirio
inaudito.
— Matem-me como homem, bandidos ! — Oru-
sou o ferro com os primeiros que se achegavam,
numa destreza única, que surgia momentanea e
violenta, obrigada pelo instincto da conservação
até os últimos momentos da vida. A espada vi-
brou varias vezes, varias vezes recuou, ferindo,
defendendo-se, com indomável coragem. Conhe-
ciam-lhe o nome valente e respeitado em toda a
campanha revolucionaria. Por isso mesmo cuida-
vam todos os seus passos, até aquelle encontro
cruel, onde o apanharam, já ferido, mas lutando,
lutando sempre, até onde sua força o conduzisse.
— Commigo é isto aqui no mais — gritou
um official, e um tiro certeiro o jogou ao sólo,
num arranco desesperado de vida. Entre bravos
e vivas, um sargento cravou-lhe a lança na pu-
pilla direita,— e de novo seguiram á cata de ou-
tros republicanos desgarrados no esfumado trai-
çoeiro da tardo que morria.
Retorcendo sè em espasmos mortaes, conse-,
quentes da hemorrhagia interna das feridas, o
guapo tenente revolucionário balbuciou ainda um
TEKIIA ííAÚCirA

riva á liberdade, soturno, cavo, quasi indisivel,


sabido do fundo da sua alma de patriota, eleva-
da ás raias dos heróis allucinados.
Uma ancia de desespero arrancou-lhe o sus-
piro finai. Morreu cora o seu sonho, no ermo da
campina, ao lado do seu cavallo espingardeado
tarnbem pela brutalidade das cargas inimigas.

Dias depois, os corvos baixavam em bandos,
para o repasto que offerecia aquelle soldado infeliz.
Eram amontoados tumultuosos de sombras negras,
a se precipitarem no cadaver, destruindo, a bicadas,
o corpo que se putrefazia ao sol, sobre a terra que
foi seu berço e seu tumulo. E aquella reunião
de azas sinistras, esvoaçando, ali ao lado, na erma
solidão da campanha, formava, uma estranha ban-
deira negra, cobrindo um heróe anonymo num
adeus derradeiro...
es Sã £3 E3 {S 0

CONTRABANDISTA 4|"
I
O 0 ^ 0 £3 O es

vr^E rasto no presente, como uma vaga proje-


cção do passado, errando na gleba heróica,
sem capanga e sem corcél, o caudilho das es-
caramuças d'antanho, longe de ser uma realidade,
o apenas uma ficção desalinhada, sem um fulgor
de historia, agonizando ao sopro navalhante dos
rninuanos que cortam o sólo, modificado por con-
tínuos attritos de elementos novos.
Mais acertado ainda seria dizer-se que já
não existe aquella figura de aventureiro o revél,
resumbrando o fogo da coragem, enforquilhado
no dorso do cavallo, domando as sinuosidades da
torra, vencendo as próprias incertezas do Desti-
no, proclamando sonhos ardentes de liberdade.
p]sse, dizem, desappareceu.
O que ahi no campo existe a galopar, furti-
vo o timído, perseguido pelas sombras do medo,
fugindo sempre para o sul, para a fronteira Orien-
tal, ou para as ribas protectoras da Argentina,
são por vezes, senão quasi sempre, méras appa-
r.ições de contrabandistas, assassinos a golpes frios,
filhos do latrocínio e do abigeato, predispostos
ao crime, delinqüentes por officio ou por uma im-
prescindível condição de meio. Ha o contraban-
do. Ha a necessidade de o passar. Ha ainda a
audacia perigosa de semelhante empreza, — e ahi
tendes, á sombra das fronteiras, na linha diviso-
28 Tekka (ÍAÚCH-V

ria do torritorio, o contrabandista alcunhado em


caudilho por um imperdoável mal-entendido dos
do fóra...
Corta caminhos arriscados, em demanda do
destinos incertos, conduzindo sua carga, e, para
resguardal-a da avidez aduaneira, espingardeia
o mata.
D'ahi em diante,-a luta e o sobresalto jámais
lhe largam as pègádas ligeiras. No primeiro en-
contro, se não tombar fulminado faz-se novamente
homicida. E' d'ahi que começa o prenuncio som-
brio da carreira, marcando-lhe a directriz infeliz.
Segue então, á socapa, como sombra errante, fu-
gindo á visão correcional que o roubará, para
sempre, do repouso do rancho, da caricia vadia
do catre, da maciez dos pellegôs, dos dulçores das
sóstas que o reforçaram de inércia, subtrahindo-
Ihe a audacia pacifica para o trabalho honesto,
sadio, sem violência, sem temor, sem desfalleci-
mento. E' uma pagina quente de sangue, essa,
que o olvido jámais a sepultará...

Nessas condições, ali andava na barranca do


Quarahy, em negaceios do cobra, a pimponice es-
belta o atrevida de Amancio Silva. Gente do mu-
nicipio ou das bandas de Santo Eugênio resumia
o caso, cruamente, sem delongas nem detalhes.
Oreara-se naquella profissão aventureira.
Quando gury, acompanhára seu pae em jornadas
audaciosas, sentindo de perto a imminencia dos
perigos, sempre de trabuco á cintura, desafiando
os guardas repressores com insolencia do ditos
marotos, apanhados á giria. Longo tempo depois,
em momentos do emboscada, assistiu a morto, á
bala, da anfracta figura paterna, na occasião em
que transpunha a fronteira do íiruguay, com car-
gueiros do contrabando.
Dos d'is30 jurou vingar-se. Aprendeu o cri-
me n'aquolla scena momentanea; a occasião o fez
CoNTRAHANniSTA

delinqüente, e o assassino surgiu num atavico o


estranho conjunto de elementos depressivos. Ma-,
tára, logo depois, na vigiada barranca beira-rio,
o guarda zeloso do fisco, bandido também, féro
trabuqueiro dos encontros á noite, nas picadas
silenciosas da estrada.,,
Assim Amancio Silva se fez bandido, ora por
necessidade, ora por profissão, mas sempre fiél ao
cumprimento dos contractos.
Matou muitas vezes, mas nunca roubou obje-
cto algum dos carregamentos a seu cargo...
Desmentiu costumes communs em outros...
Cavallos e gados, sim ; contrabando, nunca... Os
negociantes fraudulentos, os ávidos pnssadoras do
mercancias occultas, das baiidas de Santo Eugê-
nio, confiança extraordinaria nelle depositavam;
— Queremos o Amancio, diziam. Nesse ne-
gocio é conveniente el homhre, reclamavam,
E o plano contra a esperteza da aduana fi-
cava assim assentado, mediante um aperto de
mão, symbolo vivo, inalteravel, da velha lealdade
gaúcha.

Os guardas ferraram-lhe o olho.
Souberam do plano e d'aquella vez não és- •
caparia livre das balas perseguidoras. Prepara-
ram emboscadas á noite nos caminhos que cortam,
como uma mancha côr do cinza, os verdes e lu-
minosos lençóes da campanha pampeana.
Mas Amancio ainda uma vez cumprira o en-
cargo com successo.
Um dia appareceu-lhe negocio novo o rendo-
so : levaria para o municipio de Alegrete, em es-
conso rancho beira estrada, um cargueiro com
jóias. Fecharam o contracto para a manhã se-
guinte. E trez dias depois de longa viagem, sob
a canicula férrea de Janeiro em brasa, Amancio
apontou na coxilha ondeanto, ao balanço do ca-
vallo altaneiro, fronteando o rancho demarcado
para entrega da carga, Fôra um trajecto perigoso.
í
_^

Por varias vezes, grupos de repressores persegui-


ram-n'o a fórtes tiroteios, íi pata de rnatungos
ruins, nos prainos immensos. Mas tinha dado
«sua palavra» e havia dé levar o contrabando,
custasse o que custasse. Nunca temera perigo,
muito menos disparadas «al pôdro» de pontarias
errôneas.
— Que pellassem o facão, proseava — e ha-
viam de conhecer a força do seu fórro... E assim,
enganando sempre, negaciando restingas, cortando
caminhos estranhos, arrombando alambrados, alve-
jando ás vezes a arma, chegára, emfim, a seu
destino, derreado e salvo.
Bateu ao rancho; explicou o motivo da che-
gada. Mandaram-n'o que se apeasse .e que en-
trasse para o descanço. E na alegria ruidosa da
missão cumprida, livre do embargo das aventu-
ras e dos perigos que sempre surgiam, compli-
cando situações, Amancio enfiou, com o cargueiro
precioso, para o abrigo do rancho patriarchal.

Houve um estampido fórte de tiros, ruido de


armas brancas se cruzando com fragor. Depois,
gemidos de vencido, ancias de agonizante aniqui-
lado pela traição, e aquella altaneira figura de
contrabandista homicida e guápo, não mais sahira
do rancho ermo, alinhado na estrada solitaria,
numa tristeza pungente de tapéra...
«11II irn ri 111 niiiiniiiii i m umi imii ii iiimn 111 >

I CARNIÇA I
' I üiiililililii 1111111 iu I iitiiii 11 iii 111111 riiii 11'

MANCHA NO PAMPA

lj\ 9 solitaria beira daquella restinga, perdida no


ÍlÀ fundo enfezado do campo, diariamente cha-
furdada pelas pontas de gado ou pelas tro-
pilhas e manadas que ali estacionavam, em reiin-
chos, gozando a liberdade nômada, avultava, de
lengo, como um bloco de pedra, uma rez morta.
Cahira ali, dias antes, fulminada pelas bichei-
ras e contagio de epizõotias damninhas; cahira
convencida da hora extrema e não mais se levan-
tára ; cahira, pezadamente, para morrer.
Parado rodeio na estancia, contado a olho e
a dêdo o gado das invernadas mais próximas,
passou despercebida a falta daquelle boi extra-
viado.
No alto, os corvos, rasgando a serenidade
azul, pespontavam o côo de negras manchas er-
rantes. Baixavam, grasnando^ pouco a pouco, ti-
midos e perscrutadores. Eram redemoinhos sinis-
tros, formados de negras espiraes, em gyros de-
morados, circumscrevendo evoluções, esfuziando
azas, olhos voltados para a terra, numa prestes
arremettida ao inimigo inerte, destendido á beira
immunda da sanga solitaria, izolada no deserto,
lí ora timidos, ora velozes, avançando e recuan-
do, solertes, negaciadores, decisivos depois, na im-

cm 1 6 unesp' 10 11 12 13
32 7^:iJtR.y G. A ú
ucri.v

niinento explosão da coragem, em face da luta a


travar-se, os corvos chegavam, uns após outros,
aos saltos, aos priscos, sondando ao derredor, até
pousarem, finalmente, sobro a carniça fétida, ma-
culando o esplendor do ambiente, sobre o alvo-
roto impetuoso dos vórmes e o zum-zum luxu-
riante das varejeiras.
Era um boi môcho, um boi manso, um boi
sinueleiro. Desgarrára-se do rodeio na hora dos
curativos. Conhecia, de longos tempos, aquelles
momentos angustiosos, sob o sol brazio, em que
oram tocados todos, em tropa, para encerra, para
os custeios mensaes, a assobio e a laço, sob o es-
trepito violento da cavalhada a galope. Minados
polo carrapato ou pola «tristeza >, de lombos co-
midos de bicheiras, a mostrarem na baba os sym-
ptomas da aphtosa dizimante, entravam, numa
incursão súbita, pelas mangueiras a dentro, onde
a pionada attenta se distribuía, sacudindo arrea-
dores trançados, derrubando um a um do encon-
tro aos palanques, bois e novilhos, com aquella
mesma presteza dos dias afanosos de marcação.
Era uma luta insana por todas as dependoncias
da estancia, em dias consecutivos de trabalho.
O gado todo estacionava nas largas mangueiras
do pedra. Muitos morriam após os primeiros
effeitos d'aquella veterinaria rude, ficando apenas
como lembrança, a coirama estaqueada ao sol,
vendida depois aos barraqpeiros ambulantes, em
visita aos estabelecimentos, fechando transacções.
Aquella rez inerte, decompondo-se á-luz vi-
brante de um 3oI cáustico, conhecera as medidas
preventivas da pecuaria da estancia a que per-
tencia. Provirá a sina sinistra, aquella inutilidade
de esforços do que fôra, atravéz de annos a fio,
testemunha impassível, sempre na mesma "condi-
ção de guiar gerações inteiras de companheiros
dosapparocidos. Não houve safras quo não fosso
á frente, vozes sem conta, roteando pontas de
vaccas, lotes de novilhos gordos, crioulos o mos-
Carniça 33

tiços, tocados para as tabladas ou para os mata-


douros da cidade... Roteve, por muito tempo, na
memória, a rude psychologia das estancias, sur-
gindo em todas as direcções e horizontes que
o olhar abrange como pontos brancos se .des-
tacando nas verdes coxillias sem termo. Ella
convenceu-se, pacificamente, que devia morrer
sem cuidados, longe da a^oiteira do capatazr, — e
fugiu; fugiu derrubando tronqueiras, -bandeando
banhados, baixando e subindo coxilhões e cha-
padas, rumo incerto, até onde a levasse seu su-
premo esforço physico tombando, afinal, venci-
• tia, longe do olhar resignado das companheiras
de desdita.
Era um caso extranho aquelle, nos annaes das
- criac^ões do Sul.
>k
For sobro a sua morte passaram-se os dias.
O cheiro das carnes se j)utrefazendo ao sol
atrahia, i)ouco a pouco, o olfato dos corvos.
Sentiram (pie a presa os chamava. Houve um
levante do azas ao longe. Voando, um a um,
achegavam-se vagarosamente, junto ao animal
abandonado. Deglutiram-no em partes, com
appetite feroz. Vinha a noite e repousavam de
novo... Sinistras eformidáveis reatavam, pela ma-
nhã, o banquete de. véspera. Eram vinte, trinta,
quarenta, cem bicos vorazes, rasgando a carne in-
flada do sinueleiro extiticto. Havia entre elles
longos attritos tumultuosos, duvidas violentas,
egoismo latente de abutres, o mesmo que entre os
homens... Eram questões dum peclaço melhor,
cada qual procurando a pósse primeiro, emquanto
algum mais timido lá ia avançando, bicando, des-
truindo o bocado litigioso, diante da arenga agi-
tada entre os companheiros veneraveis do atiladas
garras luzidias... Um vulto que passasse, um ca-
valleiro que surgisse, porlongando as costas
do banhado, era lógo uma fuga espavorida de
azas. Voltava o silencio no escampo, na planura
34 Tkhk.V tíAUCHA

erma, e elles, de novo, com a mesma ancia, com


a mesma soffreguidão, retomavam o inimigo in-
defezo, cobrindo-o do negro, amortalhado sobre
o fervor dos vermes e sob o frêmito continuo de
azas agitadas...
E' um banquete commum esse, na vasta so-
lidão pampeana! A victima não tem cova; desfaz-
se á flor da terra ou no charco das restingas,
saciando .a fome bravia dos urubus. Os olhos
desappareceram. Foram as primeiras partes dila-
ceradas. Restavam, apenas, duas orbitas profun-
das e vasias por onde, avidamente, os bicos se
mergulhavam na ancia do desejo e da posse. Os
ossos appareciam descarnados, e da cabeça aos
encontros restava, d'aquella larga conformação
bovina, uma lugubre figura esqueletica, apagando
para sempre a altiva magestade do habitante co*
xilhesco. As costellas destacavam-se limpas, rigi-
das, arqueadas, numa brancura de marfim. Nada
mais restava então d'quelle pacifico andante do
pampa.
O banquete sinistro terminara.
As aves carnivoras começavam por abando-
nal-o pouco a pouco, revoejando, fartas, a crocitar,
em bandos lentos, por sobro o tôpo das arvores
raras, marcando o sitio ermo daquelle silencioso
fundo de estancia. Enpoleiravam-se, preguiçosas,
depois da luta formidável com que enfrentaram o
velho inimigo abandonado...
Cahia no campo, rapidamente, um crepusculo
morno, pezado, a baixar com os primeiros claros
da lua cheia, vermelhando, ao longe, por traz
das coxilhas, num céo sem nuvem, como uma bra-
za suspensa na immensidade infinita dos espaços.
Nem o mais lévo ruido quebrava, agora, aquella
longa tristeza do deserto. E, reduzido a ossos
sómente, o velho sinueleiro já limpo, já desfeito,
• repousou, para sempre, pacificamente, sob o olhar
scintilante dos corvos, cobrindo de negro os ver-
des esgalhos das timbaúbas novas...
• I I I I I I Itlil I I 11 I I t I I I I I I t I l.l I.M I I I I I I I I I M |.| 1|i|

i ALMA DE CÉGO p
r*rI • I I I I I I I n I I I i I I I I I I I I I ! •>. i i ii ini i iiiii i t t i S

FARARA o íi'em no entroncamento de Caee-


quy.
Tiram onze lioras da manhã. O céo limpo
deixava ver um sol' radioso e fórte, quebrando-
se em feixes luminosos sobre a terra verdecente.
Na estação havia um movimento intenso; passa-
geiros entrecrusavanl-se, apressadamente, uns pa-
ra os carros, outros para o almoço ligeiro no res-
taurante Fonseca, emquanto os carrinhos rodavam,
carregando e descarregando malas o saccos, en-
chendo-se assim a gare de um forte rumor de vi-
da G trabalho. Comboios de passageiros e de car-.
gas chegavam silvando e funiegantes, de todos
os pontos do ramal ferro-viario do Estado gaúcho,
e ali estacionavam nos innumeros desvios da li-
nha dormente, á espera dos horários de partida
para novos destinos.
Um xirú fronteiriço, mettido a quebra, na pa-
lavra e no gesto, de chiripã enfiado no corpo
bambo, dardejava olhares curiosos por sobre as
locomotivas soltando vapor, estendidas nos tri-
lhos torcicollosos.
— Bichos cuéras! Oigalé! Mas não respeito..-.
Si duvidassem encostava o baio-sebriino, còla e
luz, laço curto.-.. Inté era bobáge!
fi por sobre as machinas inertes, paradas
na linha, jogava, do quando em vez, outros ditos
36 TERRA (jArciiA

entonados, fazendo a glorificação do seu ca'ollo


marchador que ali estava a cabresto curto, para
saliir em viagem, á noite, para o Saycan.
Na platafórma repleta, os empregados da
estrada zigue-zagueavam espertos, pregando rotu-
los nas bagagens que se destinavam a diversos
pontos do Estado. Uma sineta espancou, monoto-
namente, o rumor da estação, annunciando os
quinze minutos (luo faltavam para a partida do
trem de Santa Maria; este só esperava o comboio
de SanfAnna para de novo seguir viagem. O mo-
vimento de passageiros tornava-se mais denso.
Todos andavam num apuro nervoso, numa ancia
de retomar, novamente, seus logares, nos sujos o
desconjuntados carros (pie ainda trafégam na
linha da fronteira. Mais um outro signal da sine-
ta, o o trem seguiu, rodando, despejando fagii-
llias, num incontido desespero de encurtar córtes
e distancias, com a velocidade maxima de 20
kilometros por hora

De esquecido recanto da platafórma vinham


acordes ásperos de gaita. Outros viajantes acer-
caram-se d'uma exigua figura de caboclo. Velho
e cégo trovador, vivia elle. ha annos, ali, em Ca-
cequy, chamando a attenção de todos, com a do-
lencia amarga de suas trovas o improvisos, ao
som de uma acordeona de duas ordens. Era as-
sim todos os dias, ás mesmas horas, na passagem
dos' trens. Entregava-se todo áquella insana labu-
ta, ageitando a garganta manheira, apparelhando
o instrumento aUpiebrado, na radiosa esperança
do mais uns cobres para a guayaca j)auperrima.
Aquillo era unm necessidade imprescindível; ou
no pampa, ou no rancho, ou na estrada ou ali na
estação férrea, sob o sol ou á chuva, ao rigor
dos minuanos, ou sob as ardentes soalheiras esti-
vaes, havia do arrastar sempre aquella existencia
do desditas, obrigado pela grandesa lyrica da
Ai.>MA »K OKGU 37

alma e pela contingência mesquinha do corpo.


Um prazer consolador, talvez, vibrasse na sua
sombria alma de cégo... Quem sabe? De muitas
desgraças se fazem muitas profissões. Trovador
por esthesia ou por necessidade, mas afinal sem-
pre trovador... Havia mesmo uma certa altivez
naquella sina dolente.
— Mesmo ansim, dizia, como vê, nenhum
cuéra me piza no poncho... E os motejos de
uns, a curiosidade de outros envolviam-no horas e
horas, ali na estação, pilheriando, cada qual mais
prompto, sobro a sua vida e a sua musa. Quando
abria o teclado da gaita humilde como um perro
sem dono dezenas de quadras anonymas também
como a sua alma, bailavam, saltavam; fluentes e
limpidas, á flôr dos seus lábios miu'chos. Quasi
sempre, naquellas tróvas singelas, apanhadas da
Chimarríta, Tyranna, . Boi-barroso e Quero - mana
passavam sorrisos flavos de mulher, recuerdos das
taperas do rincão nativo, sonhos de amor, cari-
cias rutilas roubadas á beira do fogão, na hora
das sécas e dos amargos lá na gleba longínqua,
envolta em sombra e saudade...
— Mais coisitas de amor, amigo velho, pedi-
am-lhe. E o alquebrado menestrél repudiava, do-
lentemente, o folie estragado da acordeona, agei-
tando-a ao vigor da garganta remissa.

«Eu amei uma tyranna,


E ella não mo quiz bem !
Agora vou despresal-a,
Vou ser tyranno também !

Com omphase :

«Tyranna feliz Tyranna,


Tyranna vamos embóra,
.luntinhos dc braço dado,
Antos do romper da aurora.!.»
Tkrka (i\vcn\

dom osporaiií^a:

«Tyraiiua bella tyranna,


Tyraiiiia do arvoredo:
Si teu páe te degredar,
Coinmigo seja o degredo!»

. ('oin carinho:

«Tyranna bella Tyranna


Tyranna não chores não;
Não dormirás ao relonto:
Teu leito 6 meu coração!»

líi-am essas, eram outras, uma infinidade


nuiis de trovas populares (lue cantava o cego
rapsodo crioulo. Sempre com entluisiasmo, sali-
vando a cada instante, num desageito de pernas
cruzadas, ainda soltava, no ar, outras cantigas
amorosas do vasto ropertorio do cancioneiro gaú-
cho. K ainda, como ironia mordaz á sua tristis-
sima. noite (Ío' cego, arrancou do peito bronco
mais uma lapidaria bizarra:

«Tão bella flor digo agora,


Tão bella flor quero-mana,
* Quando ou ando neste fado,
A própria sombra mo engana...»

Xum scoptocismo cie ludibriado, declamou


uma quadra do sua lavra:

«(iu'eu amo já tudo sabe,


Digo, repito, não nego.
.Mas o que píklo fazer
O' amor dum pobro cégoV»'
Estacou súbito, interrogando o silencio. Uns
riram; outros se affastaram, indifforentes; um que
outro se enternecia daquellas dores traduzidas
em versos toscos e deixava cahir nas mãos do
bardo infeliz, um nikel de cem róis...
Os últimos trens acabavam de partir para
destinos diversos, despedindo centelhas, num ro-
dar do carros quebrados. O velho trovador, ani-
quillado no mesmo canto, deu ainda, em quatro
versos sentidos, para os que se iam, uma despe-
dida affectuosa:

«Adeus senhores amigos,


Lá dos pagos do rincão;
Não se olvidem deste cego,
Que vos quer de coração.»

Quedou-se assim no immenso vácuo em que


o deixavam só, com a sua gaita e a sua musa me-
lancólica, feita da tristeza expressiva de todos os
poetas. Dáli novamente o seu piasito o levaria
para o rancho mal coberto, a sombra dos umbús
ramalhudos... Continuaria ná faina de sempre, a
preparar a gaita e a garganta esquiva, á espera
de outro dia, á hora dos trens, para pedir esmo-
las, expandir as alegrias, as magoas, as dores, as
saudades, as lembranças perduradoras da sua
juventude morta para sempre, no dorso das coxi-
Ihas gaúchas.
0, Sôcca.

Paizagem estiva

IIDENDO, impotente, ás vibrações de aço das


soalheiras, a terra adusta tem estremeções
selvagens, sentindo-se mortalmente asphyxia-
da. O fantasma da sôcca ét ambem para esta po-
bre terra sulina um aniquilador implacavel; tritu-
ra, arrasa, domina, súbito impolga-a, vencendo-a,
desassombradamente, espasmando-lhe todas as
fibras, destruindo-lhe toda a seiva, sugando-lhe
todos os flancos, em ancia de volúpia e rebeldia,
a crepitar na chamma das requeimas. O especta-
culo apavora pela multiplicidade das scenas que
resaltam aos olhos espantados dos que cruzam a
larga campanha morta. Surgem lances de tragé-
dia ao sói, fugas arromettidas de esperanças,
punhaladas de fogo vibi-adas á natureza vencida
pelos raios ardentes que se escôam, infiltrando,
na alma do homem, a sensação do pavor e do
modo — absoluto, única vez em que o assalta, te-
mendo ficar ali, preso, diante de todos os elemen-
tos que o cercam, como num circulo do inferno
dantesco... E' aterra abandonada, o trabalho para
sempre perdido, a sugestão acabrunhadora da
sède futura, a visão tragica da fome, o cantochão
ululante das entranhas esterilisadas !
Abalada i)or mil cousas que se imaginam,
diante do um scenario ciualquer, ou de uma no-
ticia de longe, sobre uma miséria dolorosa, a
alma do campeiro rude, a grande energia do guàs-
42

ca, energia e alma lendariamenlo heróicas, ani-


quilam-se vencidas, sentindo já sobre si o peso
(ia miséria dos outros. Desaba ainda, por muitos
dias, a cólera canicular. E a existencia do campo
desde as sombras das mangueiras, até a immen-
sidade dos praianos, essa vid.a inteira de cantigas
á liberdade, essa luminosa dogura das coxilhas
ondulantes onde outr'ora rebentaram florações do
enthusiasmo na alma guerreira dos caudilhos,
r(')la entorj)ecida, em desolagão o melancolia. O po-
lychrómo scenai'io do campo, desapparece num
auceio de vida (lue reluta num estremecimento do
coração que dese.-^péra. Todas as forças, todos os
alentos, todas as tenacidades são, de improviso,
annulladas por unui força estranlia, espalhando-se,
mulüplicando-se sinistra,nas grandes esplanadas
da campanha infinita, onde o gênio errante das
velhas tradições agoniza com a terra calcinada.
O cóo é do um azul desbotado e vago, por onde
um nuísmo sol vermelho e grande passeia, mo-
notonamente, doze horas de esterminio cruel. E'
inna existencia paulatina, invariavel, que serve de
espantalho ao homem nativo. Klle se sente venci-
do para sempre; abala-se, reclusa-so dentro da
sua estructura desempenada o altiva,, sem os ar-
(pieados retalhamentos do sertanejo do Norte, g,
ao atravessar as estradas extensivas, contempla
de pupillas rasgadas, de narinas abertas, a tris-
teza impassível dos panoramas, as paizagons
mortas, os occasos violentos desvairados pelo
fumo e pelo fogo. Como ultima esperança vol-o,
ás vezes, a fitar a imi)assibilidade do cóo, procu-
rando vr>r n'algum fiapo de nuvem esgarçada, a
galopar indomável, coleante, em pinchos, um pre-
nuncio da chuva (pie (\spera todos os dias deses-
perando...
— Ah! se viesse, ainda seria a salvação do
"nuiita cousa, tartamudeia.
Mas a chuva não vem, a agua não cáe, e o
proprio sereiio loge. Xas d(')bras de&tendidas do
liorizonte desfigurado, não ha um traço que as-
signale a harmonia da còr ou a suavidade dos
verdes lençóes gramineos, perdidos, confusos, na
deflagração, das distancias. As peíspectivas são
vagas e incertas como a própria chuva. E final-
mente tudo fica entregue á hiz impetuosa do sol
estivo, sol ardente de janeiro, se decompondo em
linguas bravias que pouco a pouco, lentamente,
no fugir vagaroso das horas, assassinam as en-
tranhas da terra infeliz...
No campo a deserção assombra; o abandono
da vida e do trabalho architecta, na mente, o aspecto
sombrio dum deserto senegalesco, sem o encanto,
embora falso, dos imprevistos continuos. O chiar
das carretas, o rodar das diligencias, o trotar das
cavalhadas pelas estradas batidas, deixam atrás
nuvens densas de poeira. O gado, aos repontes,
num instincto de conservação e do luta, em de-
manda das aguadas mortas, fóge, num desespero
bravio, em disparadas furiosas, procurando o li-
(luido bemfazejo noutros sitios da querencia in-
grata, polo fundo dos campos, em logares escon-
sos, até então olvidados.
Ahi, sim, a tragédia é violenta; já não existe
um banhado com agua, embora liquido viscoso
das longas estagnações: ou é lodo ou é barro sèc-
co. Outros animaes, com esperança, lá se vão em
filas, em tropas, em manadas, do ca:beças pendi-
das, procurando a agua. Seguem, marcham para
diante. K' o êxodo das criações de uma fazenda
para os campos de outra fazenda. Nos sitios que
lieiram as linhas ferreas, o fogo começa a cham-
niejar nas macegas, nas touças de maría-môl, por
todas as gramiiieas resequidas e rasteiras. Léguas
e léguas, sol) o mesmo sol, sob o mesmo novelo
denso de fumaça o fogo espraia-se; alastra-se
fulmina, arrasa.
*
Assim ,.é a sècca. O mesmo effeito no norte
como no sul," a mesmissima cousa no Ceará como
44 ' Tekka Gaúcha

no liio Grande. Dois mezes sem chuva, o ahi


surge ella, impondo ao homem e á natureza, uma
contingência mesquinha.
Os gados abatem-se de magreza, deri-eados
pela sede, cahidos em meio do campo, á'beira
dos banliados; as arvores, raras no campo im-
menso, tomam similhanças esguias de visões
paralysadas, de braços descarnados e ei'guidos
n'uma préce dolorida — o in-extremis da vida. E
as folhas voam, rolam depois, aos montes, aos
novelos, em redemoinhos, sob a luz criia do sol
que, na sua vertigem olympica, dardeja no alto
céo exsiccado. O tropeiro que passa através de
quebradas e atalhos deixa-se por um momento
ficar absorto, penalisado, de cabeça baixa, na
solidão vasia das estradas, vendo as folhas que
fogem a rolar, a rolar, caminho a fora, inconscien-
temonto — para o nada...
•^iCARNEADOR^
• »^f/f 1^'* ^ '■■'*—XXX X>C>I»;-V.V V % V N VV X«V ' •

PRESO numa emboscada, Xirú Silveira ali


estava, em mangas de camisa, de bombachas
de riscado nacional, com o chapéo quebrádo
na nüca e a larga faca enfiada em grosseira bai-
nha de couro crü.
A condição supplice em que de continuo se
retraia, apiedava os desconhecidos que passavam,
cortando atalhos, na estrada poeirenta. Quem o
visse de pérto, naquella costumada moleza, naquel-
le expressivo gesto de preguiça inherente a uma.
raça nova, mas já exhausta pela lei imprescindí-
vel do maior esforço, certo não diria ser um te-
mível batedor das coxilhas do Sul, entregue,
como os cangaceiros do Norte, aos imprevistos
violentos da luta... Escondia n'quelle desçonjuncto
' de ossos, a perversidade adréde preparada pelo
meio que o desenvolvera e o repudiára depois.
Uma anomaUa patente justificava um facto notá-
vel: durante doze annos exercitára, nos saladei-
ros, a profissão dizimante de «carneador». Larga
fama conquistàra assim na camaradagem perigo-
sa da «cancha», inflado do orgulho, com dózes
excitantes de álcool, vendo como os companheiros
respeitavam, humildes e vencidos, a agilidade
homicida da sua «carniceira» temperada, brandin-
do de continuo, ao sol ardente das safras. Nunca
perdera «parada», jámais se lhe avantajaram na
destruição permanente de tropas vindas, uma
após outra, repontadas dos municípios pastoris
no afanoso período das matanças. Também fóra
d'ali, na rancharía das chinas, elle se impunha
sempre o mesmo: altivo, audacioso, valentão. Era
para elle, quasi ao ár livre, o carinho lascivo
das comadres. Com outras já velhuscas, tramava
camaradagens perversas. Arranjavam-lhe, a sorrir,
pedindo «cautela», repontes de chinocas novas,
ainda á flor dos annos virgens, ne^íaciadas du-
rante a folga, coin phrases curtas, apanhadas no
calão da campanha, promettendo, num lirismo
canalha, futuros embrulhados de verde, dentro
do rancho quieto, no pó de ouro das tardes esti-
vas... Tudo era, decerto, uma resultante da faca
perversa... Sabia de sobejo como se matava. Fi-
zera-se homem nas pedras ensangüentadas da
«cancha», acompanhando, com vivo interesso, Io-
da a existencia brutal dós «carneadores» tanga-
dos á estopa, a correrem de um lado para outro,
vibrando o aço feroz, com a certeza dos suppli-
ciadores afeitos, desde a infancia, ao exlerminio
da vida.
. Nos duros invernos de minuanos a soi)rar,
rijamente, pelos escaijipos desabrigados, a sauda-
de acordava-lho n'alma o delirio ruidoso dos dias
de sol, ouvindo o estrépido das tropas tocadas
para «encérra», donde horas depois sahiam para
o laço certeiro do «désnucador». A' chegada do
verão, chamando o trabalho das safras, o sangue
engorgitava-se-lhe nas cordoveias tensas, num
alvoroto de luta permanente.
E lá se ia, para a lida, ao despertar alacre
das madrugadas de velludo, espalhando no cam-
po os últimos brilhos somnambulos da alva mys-
teriosa, De sol a sol se agitava, lá dentro do
grande estabelecimento industrial, aquolla vida
inalteravel de trabalho e de morte. Vinha depois
um ligeiro descanço, uma rapida trígua á faina
assassina. O sombrio «carneador» guardava a
mesma posição de madraço, picando fumo, chu-
pando «amargos» de «caúna» sovada, até que, de
novo, a sineta o chamasso para o oxterminio
final do gado «embretádo», abatido e murcho, na
plena certeza do fim trágico que o esperara.
Era-llie indifferente vôr, todos os dias, aquel-
las grandes vidas que caiam fulminadas nas la-
ges humidas, depois do golpe violento do «des-
nucador» enforquilhado entre as varas do bréte...
Nada! Pouco se lhe inportavam aquellas sce-
nas dolorosas e longas. Uma lei de vida como
outra qualquer... «O gado que se agüentasse»,
dizia, «p'ra issso era gado»!
De facto, era uma verdade a grande influ-
encia do meio, no animo nebuloso daquelle ho-
mem. O sangue a cahir, continuamente, em jactos,
em borbotões, numa deliquescencia de vida, apa-
gando-se no perfil turgido da boiada, affastava-o
aos poucos, do todas as delicadezas subtis. A sua
directriz futura planeava-se ali, ao contacto da-
quelle scenario rubro, estendido nos seus pós,
numa larga mancha de sangue coagulado.
O manejo da faca ora sem emoção, quasi
automatico. Mas, ás vezes, i)or qualquer cousa,
por uma duvida (lualquer, emb<3ra ligeira, assu-
mia proporções terriveis, recahindo o seu furor
nas victimas que rodavam na «zorra», cevando
em punhaladas certeiras o odio que brotava em
momentos de intensa epilepsia. Recolhia-se depois
na sua posição habitual, brandindo a «coqueiro»
arqueada, ao compasso (ralguma habaneíra co-
nhecida, com o mesmo interesse, com a mesma des-
treza de sempre, até vôr dias depois, os varaes
todos cobrirem-se, com a carne rosada das mantas
oro ando ao soí.
Dessa influencia de meio, dessa lei phisiolo-
gica do homem, oaltaneiro perverso formou-se, inte-
grando-se, definitivamente, numa pagina de cruel-
dade, diante da immolação permanente da vida...
fmpossivel, depois, seria contol-o. Lá encon-
trariam sempre o mesmo homem, retorcendo com
refinada pericia, na sangria aberta da rez, a Ia.
48 Carneador

mina voluptuosa da faca. A arma assassina re-


luzia, coleante, como uma vibora, engolfando-se,
súbito, até o cabo, no orgão delicado, torcend.o-se
vagarosa, a escorchar, numa agitação de caricia
feroz, indo ao extremo sensivel do coração, reta-
Ihando-o barbaramente, até sahir, de novo, tinta
de sangue quente a cahir em golfadas, com o
ultimo arranco da rez estendida na «cancha», en-
tre a acre fedentina dos resíduos espalhados por
toda parte... O homem desapparecia' o voltava,—
ensopado em sangue dos pés aos braços, como si
fosse elle proprio a victima, sangrando por todo
o corpo, numa demorada, hemorrliagia.
Tropas successivas iam das suas para as
mãos de outros «carneadores» entregues á mesma
lida, na mesma labuta constante, cantando, cada
um, a seu modo, numa alegria cruel, toadas me-
lancólicas do velhos menestreis crioulos que ha
tanto se sepultaram no pampa, á sombra anony-
ma (Palgum sonho do amor...
Annos de vida assim bastariam para proge-
ctar na estrada ou no balcão perigoso das vendas
o mesmo homem que se agitava lá dentro, entre
a «cancha» e o brke. A' minima cousa explodia,
tal qual era, no odio violento dos nevrosados,
tendentes ao crime, promptos ao primeiro impulso.
Lembrava isso, aquelles momentos, embora raros,
em que errava a faca no coração da victima e
desferia segundo golpe, — nova punhalada, des-
vairado pela violência da raiva. Era positivamente
máo. O meio assim o fizéra. Só se retraia num
cansáço de bandido, quando via, de olhos semi-
cerrados, o sangue «coloriar» na i)onta do «ferro»
Despontava em flagrante, naquella vida, o typo
anormal do delinqüente, esbatido numa sombra
de pavor, polo ambiente rubro da xarqueada...
Certa voz, vasando odio, arremeçou-se contra
a pionada da salga. Chamou-lho a contas o capa-
taz zeloso. Reagio. Expulsaram-no da «cancha»,
sem trabalho. Foi-se então pelos pagos, em cor-
49 Terra Gaúcha

rerias, assaltando estancias, roubando o matando


á arma branca, na estrada ou na coxilha, apa-
(Irinhado pela dcxtroza da faca. Ora aqui, ora
ali, errrante, como bandoleiro perseguido, acobar-
(lòu:se depois, ante as continuas espéras dos ca-
pangas assalariados para a vingança premeditada.
Seguiram-se então dias monotonos de ocio. O seu
olhar faiscantè banliou-se em espasmos de sangue,
envolveu-se de perduradora saudade pelas horas
truculentas da «cancha», ao longe, presa ao mes-
mo fervor do trabalho até o fim exhaustivo da
safra. Impunha-se, como inalteravel necessidade,
a tarefa longa da carnificina onde fruira os me-
lhores (lias da existencia brutal e incerta... Outra
vida e outro meio, ao contragosto de ennunciadas
theorias, ser-lhe-hiam, como de facto o. foram,
uma brecha na sua predisposta tendencia do ma-
tador. O primeiro crime na estrada ficou envolvi-
do na mysteriosa sombra dos crimes communs.
.0 segundo, num duplo aspecto de roubo e morte,
chamou, para um rancho a cahir, o olhar escan-
cellado dos inspectores do fisco e da ordem,
amarrados parazitariamente nos districtos inde-
fesos.
Surgio o criminoso, a figura óssea de Xirú
Silveira. Não houve a mudar um único aspecto...
Era ò mesmo homem de bombaehas de riscado na-
cional, de chapéu sempre quebrado na nuca, na
insolohte attitiide dos bandidos, com a larga faca
enfiada, numa grosseira bainha de couro crú...
i4 fVMirtT (1

• *
obiii-.lcfd ') (>l)i Uiiliiyi ,fíi!riit»;t''''f>l>ni;ilij f';i! , -.lU I ' I
,i:illi/n') i:^ ii'> !;l»r.'l II^')
;n lin i:"
^') l:" ciinw -I-
cm ii i<» .f/if.l i;l> iiN'>(i .( nhf.lltli i|<
.iji;
.Im; >l^i
.(;!)i'.hW'iiii')'ii| iiviiiüíiiiV i; ii:
M cU) .tli-to 'il» >;l il' •>-. (n/riiiií-.-i
'»!) ffi » MH-uni!in:ii*i(ii > .ú'I .

or. .•1'íiiol (Hi /r*l')nivt- j.n - í;Iii'>Iii >inl *


iih o7ÍI>!iii;fiz*) (Itil a '>tn cti 'invi-H om
(uiiom .-I--r.iltiniH;; 1
-'>rfi X» iiiítnl 'liiiio -ctii iiliii.ii;-! isl» íiuitni rh'iiil r.
'nlr.hnd > i:l) *
*>1) oi; «fili)'» '• itliw/
nl icl '>i) on!'vi . üi ig^iit
-i:ni 'tli i:lrt()HKÍIi'i-|<i riM cfi i-ti citni.,
iio'>iV im -imi-rt (vii-)mi i<i t > .'lolu;!
.(•iiiyiiirio ) XMfiih') üolc t-ii <)(••
.'il iofii (mIjkvi 'ih j; fiiriM .mIiHíí-»'»; U.
Iinifí» <» I: ui!'i(MVf niii iiSkm .iionfril i
.ítl'iíi'I() C.li ') oi' ^i>lt oiii:!!')! .
-')inii >tni yliiM((ii:rti!IÍM:'i!;ii rohi.Cn.iin:

íi-ft/. yf) r,9HHo iniiyil r, .oífofiiinir) o i>Í!4iiiH


<))hnj mu •inl)iJfii is oA/. .cijovliH
-<iii oh»;of,h-«ib KKil')B<Iian(l '>li mninoil onwníi o «jH
i:ff j;!i olMiid-jiij) "ii liiiioi )
•tv)ut r. iiio-) ,sol)tlfní;iT koI) 'íí^uIíMi:
...iVi!» (>'tni)'t •>!> r.iltU'i<' «kuimi j;itnil(cr
£0M o noA'o ramal da Viação Ferrea, cortando
agora larga extensão do município, em deman-
da das novas linhas qiio partiam para a fronteira
sulina, numa ancia do curvas e cotejos de força, o
conhecido «maioral» da diligencia de Sodré para o
Kósàrio, ali andava, na mistura das «pulperias,» va-
sando inércia e tristeza, sem trabalho esem dinhei-
ro) a''inercô dos acasos o imprevistos.
Jíi ha seis mezes que parára, por falta abso-
luta do passageiros, a sua conhecida diligencia do
passo das «jMoças velhas», absorvida bruscamente
pelá ancia ofeganto das locomotivas, cruzando li-
nha, a cada passo, em atropelos selvagens. A' som-
bra da ramada esgalhada e sêcca, o «break» dor-
mia, impassível, o somno da inutilidade... Depois
do'tantos serviços prestados no desafogo das via-
gens, id caminho dos pagos, em direcção da villa o
vice-versa, permanecia agora sem coberta e sem ró-
dás,'como uma desoladora lembrança do passado
ditòso, morta, emfim, pela victoria de outra condu-
cçílo màis niodorna, debruando os pr-ainos num ras-
tro do fogo. Do tudo o que fora, na lida de tantos
ànnós, apenas restava a sua armadura em farra-
poS;, a sua madeira o corriames já podres...
■ 'I '"Ünih ascua do odio ou talvez do inveja, bri-
lhava, no olhar tardo do «maioral»,^na hora em
quó fí locoínbtiva passava, irisolentemente, arrastan-
(íd loiiga fila do caiTos, conduzindo e matando pas-
sageiros quo so destinavam á villa, onde ello trez
Terra Gaúcha 52

vezes por semana ia o trez vezes por semana vi-


nha,sempre de «break» carregado ate o «pescante»
Naqiielle tempo, então nunca andava de guaya-
ca vasia ; não havia festa aU no passo, ou nos
arredores do Rosário em que não tomasse parto
com sua viola ou a gaita, nas altaneiras cruzadas
do repentismo. Aos domingos, por ganchadas e fa-
ceirice, ensilliava o «doradilho», com apeiros de
|)rata velha, de cóla atada, o dó lenço branco ru-
I laudo, de holeadeiras á garupa, de sombreiro que-
brado com desdem, sahia, impávido, entoimdo, ve-
Ihaqueando o i)ôtro, pela campanha, em visitas
compach-escas, acariciando miragens, ao sopro fór-
te dos ventos... Era de ver aquellas ganchadas
atrevidas, a sua audacia e certeza em saccudir as
bolas, roi)ontando bagoaos na invernada, com ar-
rogancias e gritos.
Depois que começou a vertigem dos trens foi
um abandono de tudo, um grande baque, no sou
incerto ideal do grandeza futura... Apenas rovia
os bellos tempos perdidos, a mocidado que fugira,
viagens o viagens sepultadas numa viva recorda-
ção do abandono, morrendo, com o passado, a sua
profissão alegro o tumultuaria quo o fazia erguer-
se, na indecisão das madrugadas, para ropontar a
cavalhada das «postas», conduzir para os varaos
do carro, receber bagagens e passageiros, partindo,
em seguida, naquella insana jornada, quer do in-
verno ou vorão, ao sol ou á chuva, ao calor ou
ao frio, só doscançando ás horas do sesteada, á
beira do rancho dos posteiros, para depois marchar,
novamente, até o ponto final da chegada, ú. porta
do hotel da villa, ou sobro os barrancos, na frente
da hospedaria do Vieira...
Foi assim no de(*orror dos annos, levando a
mesma oxistencia rude do trabalho, na nobre mis-
são de encurtar as distancias, cantando versos nes-
sa adormecida toada gancha, morosa o dolente,
sahindo da garganta em ais trêmulos e chorosos, co-
mo suspiro.s pungidos do romântico sonhador, sob
o esbater do sol, na estrada ou sob a caricia ma-
cia do luar, á noite, nas postas de diligencia, in-
dagando os passageiros donde eram e que negocios
os arrastavam n'aquella vida accídentada das via-
gens... O seu modo de inquerir não aborrecia, agra-
dava. Procurava, naquellas intimidades, suavisar
os viandantes abatidos pelo rodar monotono da di-
ligencia, nas intermináveis estradas o corredores,
cortando chapadas e coxilhas, com o desejo de che-
gar presto, ao seu destino, para voltar na manhã
seguinte, ainda embrulhada de nevoa, sob o bri-
lho esmaecido da alva...
Muitos annos passaram-se naquella faina te-
naz, até que, um dia, a turma dos engenheiros apon-
tou com teodolythos em mira, divisando perspeti-
vas, estudando o terreno, medindo e demarcando
valos e banhados, com filas enormes de peães. Lo-
go depois os trabalhos foram encetados, os aterros
aj)pareceram, os trilhos de ferro foram assentados
sobre dormentes já podres,' nas curvas longas e
vergonhosas, coleantes o continuas, e o primeiro
trem trafegou, espantando, matando, triturando ga-
do, á beira aberta da linha...
Ao principio, ainda conduzia passageiros, ain-
da apparecia algum serviço, embora escasso, de
transporte; mas, depois, com o trafegar diário das
locomotivas passando pela villa, tudo finalmente;
desastradamente, desappareceu... Nada mais teve
a fazer senão guardar o carro, vender os cavallos
que arribavam, pouco a pouco, na verde pastagem
(ia quorencia, emquanto, todos os dias, ás mesmas
horas, quér de manhã ou á tarde, os trens cru-
zavam, diante do rancho, silvando, fumegantes, co-
mo violentas provocaçoes ao «breack» inerte...
Era a mesma cousa todos os dias, na occasião
da passagem das machinas arrastando carros cheios,
atopetados, lunn agglomero voraz «que nem uru-
bu na carniça», como gemia o caboclo, caricaturan-
do um gesto de repulsa silenciosa, olhando o com-
boio sumir-se além, nas grandes oscillações do cam-
54 Tekk\ Gaúcha

po resequido, queimado pelas fagúllias dovàslado-


ras que fugiam aos novellos das ehainiiicg negras,
ao sol ardente.
Passou mezes o mozes numa preguiça de va-
(lio, sem coragem para outra profissão que não fos-
se aquella onde se croára, desde a séiTa ato ali,
sempre aspirando progredir, dilatar a sua activi-
dade, numa linha completa de diligencia que par-
tisse-pelos pontos culminantes do município até
se confundir com outras, na fronteira. ^las aquella
nova rede do viação, unida agora ás outras ra-
mificações do Estado nativo, eí?broou-llie o lindo
sonho audacioso. Tinha que se-conformar em vêr
dormir na i*amada, á sombra das timbaúbas, o seu
carro inerte, destituído da morosa funcção de t!on-
duzir passageiros através de estradas o coxílhas
atlormecidas, mas sem nunca matar, sem nunca des-
truir como os trens homicidas d'aquella via ferrea
estrangeira que chegara até ali, num instincto do
civilsação e ambição...
» 'i ■'I-fj . / •
N ■ v|.;,
■ ■ ■ ■ !''<V (/ .1,
■t'-' ' 'r.yi ■. ■
i:''l •'! ; I . ;li' ' .I> .. i;.

Divertidos

* ^

FESTEJAVA-SE, áquella hora de lusco-fusco,


a inauguração do novos galpões e ramadas da
. venda da tia Chica. ,
A pulpcra era uma velhusca paraguaya, re-
pimpoua o viuva, de quem diziam, sem resguardo,
que tinha uma panella de dinheiro enterrada e ha-
via posto a perder, com viajantes a escoteiro, a
troco de patacões do Império, as duas filhas do
agregado da estancia em cujos campos morava ali
nos «Banhados».
Desses arreglos reuniu alguma plata e installou,
ha annos, no districto, a sua venda, sob o ruflar
da bandeirola branca, erguida ao vento na ponta
d'um bambu. Dia e noite enchia-se a casa-depio-
nada das estancias pi'Oximas e de viandantes que
ali estacionavam, horas a fio, matando o bicho, con-
tando historias de carreiras, do rinhas e peleias,
misturadas com episodios românticos de amor e
lances heroicos da revolução de 93. Muitas vezes
se travavam lá dentro, discussões violentas, termi-
nando, quasi sempre, por «cruzas de ferro» eaggres-
sões a facão.
Do quando em quando,' principalmente aos
sabbados, um bailo. A venda tomava, então, ou-
tro aspecto, outra animação, outro proscênio rui-
doso. Affluiam conhecidos e compadres de todos
os recantos do districto.
56 Terra CIaúcii.v

• A'quclla tarde, o fandango ia tomar um ca-


racter de grande festa, com a presença do china-
redo visinho, muchachas experimentadas nos balaios
do sul, nos rasgados o requebros dos volteios aphro-
disiacos, de que Chica era perita, apezar de velha.
Aos presentes não faltariam assados com couro,
bebidas, doces e outras iguarias preparadas de
vespera, numa agitação por todas as dependencias
dá casa. Chegavam aos grupos, de todos os lados,
a cavallo ou a pé, o, á maneira que paravam na
frente, entre as mangueiras e ramadas iam apeian-
do-se, soltando cáallos, recolhendo arreios, sob as
attenções de Chica, a correr de um lado para ou-
tro, dando'ordens, determinando serviço, emquan-
to alguns pares enlaçados, esperavam os i)rimeiros
compassos musicaes da viola ou da gaita.
— Vão-se achegando no mais, moçada guápa!
Nada do cerimonias!...
E todos alegres entravam, um a um, para a
larga varanda nos fundos da venda, dubiamonto
illuniinada por um sujo lampeão «belga».
Jóca, um dos convivas, ao avistar o compa-
nheiro que esperava, bradou, jócundo, á porta:
— Cutí-pucha! Apeie-se o largue o fléte, que
o fandango está acceso que nem fogo nas macé-
gas... Vancê, pelos módos, ia perdendo b festo!...
— Que culpasse o caállo. Estava jnaceta do
duas patas. Um estrupicio!... .
Boleou-se logo o Zeferino, cabloco novo e
baixo que ha tempos estivéra envolvido cm um en-
treveiro com os inspectores do quarteirão, sahindo
incólume. l)esd'issü começaram a respeital-o como
«valiente». Kra tido como trabüzana para uns, em-
quanto outros o chamavam de «sotrôta». Do facto,
Zeferino tinha, ú beira do mostradoi- da venda, um
extenso cadastro do «peleias» o altanerias violen-
tas. Tia Chica olhava-o submissa, com verdadeiro
respeito o temor, não o recusando aunca nos bai-
lados, embóra soubesse da tlisposição que elle ti-
nha para armar «tempestades» o acabar com os
Divertimos ■ 57

— «prazoros das brincadeiras» — como sempre di-


zia ella para os de casa. Elle proprio se tinha na
conta de «xirii quebra no férro» e atirava, de quan-
do. em quando, facecias de alarde, em quadrinhas
anonymas:
Eu sou um quebra largado,
— Por Deus o um patacão!
10 se duvidam perguntem
A' moçada do rincão!

— Ahi caboclo! Não afloxa o garrão!...

Ser monarcha da coxilha,


Foi sempre o meu galardão;*
E quando alguém mo duvida
Descasco lógo o facão!

(Risos, cochichos, dichotes e chufas).


Aquillo é só compadrada — disse Manduca, com
desprezo, arrancando as primeiras notas da gaita.
O bailo lá dentro reanimava-se, pouco a pouco.
1'iStrugia na nova varanda de páo-a-pique, a gar-
galhada feliz dos convivas. Formavam todos uma
inescla compacta do brancos, caboclos e chinas, en-
laçados na violência lasciva das havaneiras e pol-
kas, em saracótes destros e leves, com requebros de
rins, balanço oscilante de quadris, ao arrastar mo-
nolono das chilenas marcando compasso. Na rama-
(la contigua a gaita gemia dolenciosos acordes nas
mãos do Manduca, emquanto Chico Viola, cxhausto,
estirado de bruço, doscançava, no vfcrdeio da gra-
ma, sob os rom()ques faníarronicos da moçada..
— Ora chò mico! Este flaco não quê vê...
Arriò mesmo a mochila, que nem petiço abomba-
do!...
Outros ditos ])ilhoricos choviam sobre o ve-
lho guúsca, dormindo,- profundamente, sob a cari-
cia esmaecida do plenilúnio. A noite se cxtendia
num cicio brando de aragem, numa maciez tepida
de velludo, envolvendo o pampa, os aclives e de-
58 • Terua Gaúcha ' ^

divos (Ias coxilhas, em largo abraço silencioso, que-


brado (Io (luaiulo eni quando pelo despertar dos
«quoi'o-queros®, aununciando o viandaiito que se
xipi"0xiinava, ao tranco, molodiando para si na do-
loncia da noito, alguma toada crioula, aprendida,
decerto, na auroa infancia longinqua, á sombra
nostalgica do rancho... Nada mais na solidão, no
ermo sagrado do campo adormecido. Apenas lá
dentro da venda, em todas as suas dependencias,
continuava o mesmo ruido, misturado ao zoar da
gaita rofenha, destribuindo cadência aos pares agi-
tados. Chinócas, de risos á flôr dos lábios, avan-
çavam nos «guáscas quebras», aos abraços a pulos,
agoniadas pelos primeiros vapores oroticos das be-
bidas. Succodiam-so, animadas, as contradanças. Ro-
dopios, sapateios, agacliadas felinas, ora breves,
ora demoradas, mas sempre na cadência da musi-
ca amorosa, todos, a um teini)o só, entrecortando
ais o suspiros, perdiam-se, voavam, no largo va-
randão da pulperia, na langue eífervoscencia dos
bailados. Homens, uns om mangas do camisa, ou-
tros do- ponchos atirados para as costas, do soni-
breiros do aba larga enterrados na cabeça, outros
ainda do largos tiradores do. couro do lontra, ao
ruflar. constante dos lenços colorados, om plena li-
berdade, como so estivessem om seus ranchos ou
nos galpões das fazendas, iam e vinham, ágeis ou
coloantos, em jjrocura do par perdido proposital-
monte, no meio da casa envolta cm densa poeira.
Variavam também as mulheres, do unia a outra,
no arreglo dos trajos. Fitas de mil côres, còres vivas
o berrantes, pendiam em grandes túpes das blusas
do cassa, das gandólas do «gormania» de 320, dei-
xando vòr nas crespas cabolloiras negras, amarra-
ilas em cuques, com franjas na testa, galhos espe-
tados do arrúcia, alecrim o mangoricão miúdo. Os
acordes da musica ovaporavam-so na alegria da
noito clara. Poucos intorvullos tinha do descanso a
acordeona do ^landuca; o fóle arfava com desespe-
ro, em largo fologo do váe-vem, abi*angendo toda
í)*v'KHrn)05{ ' '59

a iiitcnsiflado das escalas, luini cresccndo brusco,


continuo, som surdinas nom ■ ésmorzamontos, om-
quanto as oitavas e as décimas borboleteavam á flor
'da bocca dos trovadoros, cm toadas, ora sentimen-
tacs, melodiando o desprezo das íyrannas, ora ale-
gres e entluisiasticas, «íemendo audacias o valentias
dos obscuros gaúchos d'antanho, velhos patriotas -
herojcos imi)Iantando, á pata de cavallo, no verdor
accidentado do teri-eno, a conquista ardente da li-
berdade... Era uma poesia que surgia, sempre no-
va, crystalina e vibrante, entre sonhos cavalheires-
cos de uma edade do ouro, lyricamente sentimen-
tal, cujo cabedal intrinseco vao se transmittindo e
passando ás geragões (pie despontam, guardando a
mesma tradição de amor e de bravura. A rapsódia
gauchesca encerra -toda a historia aventureira da
raÇa. Nella se encontra a formação dessa alma sem-
I)re proinpta a nobres dospi'endimentos que des-
cambam por vezes até ao sacrifício da própria vi-
da instável, volúvel, audaciosa, do homem palmi-
lhando o sólo nativo, alegre o bellicoso, como um
cavallciro das Cruzadas, á mercê dos imprevistos
que surjem a cada passo, na campanha incerta.

Ao la(io da ramada, dois piasinhos attentos,


assavam, nas valetas, outra novilha gorda, carnea-
da, momento antes, para regalo dos novos convi-
vas (jue c.hegavam. ("orriam de mão em mão, as
cuias de cabeça de porongo, com o delicioso «amar-
go» de herva nova. De vez, para variar a «canguá-
ra», lá vinha para as «morochas» altaneiras, unui
garrafa de licor do i)ecego. Surgiam tonuúos de
plirasíes ambiguas, nesse calão ([ue não pertence á
simplicidad(í pairiarchal das estancias, nias que é
o reflexo do elementos extranhos, toldando a femoa
no sou intimo do singeleza natural.
Despachadas, arrogantes, dianted'ollas nenhum
máula ficava som riDsposla. — (íuo se agüentassem;
ora toma lá o da cá — diziam. Só temiam o Zefe-
rino, que não ora de «seca». Mercê de suas ama-
í'0 Tkkka Gaúcha

bilidades, refugavam, desconfiadas, o carinho do ca-


bloco. Affastavam-se, fugiam; atiravam-no ao des-
prezo, producto mais do temor, que da repulsa.
No campo, a claridade do luar destacava nas
macégas do «maria-mól», vultos a se rebolcarem
acossados polo cio, pela rebeldia om fo^o da car-
ne. Sahiam aos })aros, uns para frente, outros pa-
ra os fundos da venda, protestando cansaço...
Voltavam depois e ò bailo proseguia .na mesma
animação do começo, com igual alegria o ruído.
Zoferino, lá dentro, acocorado a um canto, fu-
mando um ci'ioulo, não perdia «vasa» para dispa-
rar motejos. -lóca acompanhava-o no mesmo pala-
vreado chispanto contra o mulherio (lue do sobejo
conhecia a força atrevida daquelles «sem-modos»
(luo só serviam para estragar as «brincadeiras»...
— Oigalô, oguada linda!... chasquoava o Jóca,
contemplando, perversamente, o roíiuebro das «mo-
renas» apinhadas pelos cantos «(pio nem carrapato
no gado».
— Chô: bombeia a cara daquolla potranca baia
passarinheira, — atirou Zeforino. Inté pareço estra-
viada da manada...
— Veja, no mais o tróte dosta outra bichinha
que ahi vem se bombiando... Quo tal Io parócoV
— Mui micho, —respondeu o outro.
Os companheiros, sentados, riam-se do i)hra-
sear desaforado dos dois.
— Tem esprito osso cuóra!
— E osta quo ahi vem com uns modos do po-
1 rança rabona!...
A rapariguinha, offondida, voltou-so rispida:
— Quo sêjo, sou cara do torneiro manião...
— Ilavonios do vò... saiba no mais que chino-
quinhas flacas, sem caracii, não formam om fostasl
— O quo não fôrma ó gurupy som topete—
adiantou, prompta, Antonia (jorda.
Zoferino não gostou. Resmungou para sí, ontro
dontes, — «(lue por uma daquellas o outras Io mar-
caria napaleta».
61 ,

Os pares cruzavam-se em entreveiros cerrados,


entro gritos delirantes, ontlmsiasticos, prociu^ando
cada um, do per si, marcar o compasso a seu mo-
do, com a palma das mãos, com a dura pancada
das botas no chão sêcco. Era a mesma luta, o mesmo
«avança» até o final do cada marca. Ninguém can- .
sava naquella faina doudejante do homens e mu-
lheres, jungidos pela cintura, tranfiguradòs pelo ex-
cesso.
Chica, enthusiasmada, não so continha:
— Ahi moçada! Ansim me gusta... Nada do
cerimonias neste rancho!...
Depois do um Schottisch-lasqneado, poães
da fronteira resolveram cahir no airoso pericon,
aprendido nos dias alegres de Corrientes. (3hico Vio-
la, já estava de pé, do instrumento em punho, de-
dilhando «recuerdos» do seu tompo «quebra» do
moço, quando «ninguém lhe pisava no poncho».
— Tempos lincíos moçada! Havóra de vô...
Nunca encontrei tonaiito que me quebrasse!....
Agora não; sou um flaco; matungo pestiado; intó
dá pena!...
E nos seus olhos fundos, num clarão de fogo»
brilhou a saudade do tempo decorrido, a saudado
melancólica do passado de que uma velhice de se-
tent < annos, podia attestar naquella venoranda fi-
gura de veterano do Paraguay, caldeada aó fogo
(ias guerrilhas.
Desdo a primeira mocidado, empenhado no pe-
rigo da guerra, aprendera arrancar das cordas da
viola o da garganta viril de patriota, aladas nos-
talgias da l\atria distante, de quem voluntariamen-
te 30 apartará, embóra amordaçado pela idéa si-
nistra do nunca mais tornar a vôl a na grandeza
verdejanto de suas campanhas sem tôrmo... Foi, o
voltou!
Erá ainda o mesmo gaúcho desprendido, o
mesmo Chico Viola, semi)ro rogado com sympathia,
para todos os fandangos e divertimentos dos pagos.
02

Os paros agitavam-so em tumulto. Iam agora


daiisar. ao ar livro, no gramado verde, ú frente da
venda. De quando em vez, entre elles, cortando a
oadeneia das passadas, apparecia tia Chica, pedin-
do «p er m i c i o», offorecendo um amargo ou um tra-
go de cana de legitima como olla affirmava, garan-
tindo a especialidade do artigo.
/eferino, repellido pela Jose])lui do «Posto»,
andava pelos cantos, a fallar em valcntias, e «(j[uo
não agüentava carona dura». Contentava-se em ati-
rar dichotes. Principalmente ás que o recusavam.
Negaciava o momento opportuno e vingnva-sq com
impropérios forinos. ('onlieciam-lhe as manhas'o, izo-
lavam-no «sem nmis seca».
Depois de horas inteiras a tentar, uma a ;ima
sem resultado, voltou-se para a Antonia Gorda, de-
cisivo:
— (iue visse bom... A manada estava refugan-
do pastor, mas ella era sua, havéra d(? vè... ' '
Antonia repusou-se som delongas:
— Que ultiinamontos não podia; que olle se co-
nhecesso permoro; (jne se oncliergasse; (pu; não fos-
so offricido...
Aquillo ora uma insoloncia frente a frente.,
Zeferino não se conteve: jugulou-a pelo braço, num
Ímpeto do raiva, trazondo-a á fronte do Jóca.
— Olha bom, resmungou, colérico. Nunca fui
xiríí do tricas; que pensava uma china roúna, que
dormia com os bahianos na cidade... Se duvidasse,
o rabo de tatií estava aili mesmo, p'ra uma vacca
som marca, craquollas qualidades! Era homem, vissç
bom, o não se mottosse o não,se i)assa>'so!... TJm
refugo! Um traste destes...
Ella, num esfon.'o violento, (lesf)r(>iuUHi-sq das
mãos' possantes do caboclo e, instiuctivamente, os
olhos a saltarem-lhe,das orbitas ,soml)rias, virou a
mão fechada na cara de Zeferino, numa expressão
de pudor, offondido que nasceu ali mesmo, bi'usco,
>ibrant(', tempostuo.^o. Ello não reagiu. Não, tev^^
gelto; olhou-a murcho, sob esse disfarce de certas
reacções que não vão além dum sorriso «amarello»,
dizendo «que estava caçoando, que aquillo era um
brinquedo...»
As outras companheiras e que delle também
eram victimas, applaudiam, estrepitosas, a audacia
da Antonia.
— Era isso mesmo que elle andava querendo,
comadre Nica... Foi bem feito!
Antonia deu as costas, desdenliosa:
— Commigo ó ansim no mais... Não sou brin-
quedo do bagual... (Juebrei o coiincho desse maü-
la!...

Ainda no outro dia, lá estavam os pares ale-


gres, nos mesmos reqüebros, na vertiginosidade das
contradansas, nos sapateios cadenciosos dos pcrícons,
illuminados e transfigurados pelos primeiros raios
do grande sol pampeano, devassando, pouco a pou-
co, a immensidade diaphana do céu azul.
E no meio daquelle quadro tumultuario, irrom-
pendo á luz, destacava-se, com a sua incarquilha-
da velhice, sobraçando a viola, a figura barbara
do .Chico, o veterano da sangrenta campanha pa-
raguaya.
ERECTA o firme, de braços "abertos, erguida
no pampa, na planura deserta dos escampa-
dos, aquella cruz de páu tosco ha muitos an-
nos assignalava ali a existencia silenciosa de um
tumulo.
Permanecera fiel o hirta, sempre emocionante e
negra, na sua magestade sem pompa, mostrando
aos olhos dos tropeiros indiferentes, aos viandan-
tes óm marcha, o seu symbolo de luto e de dôr.
A sua historia breve e tragica começára numa
tarde do neblina, esfumada pelas explosões das
garruchas.
Era então na revolução de 93. Quando a lu-
ta accesa das escaramuças campeara pelas que-
bradas e prainos do verdoengo deserto da terra
natal; quando a faina brava dos entreveiros re-
crudescia de furor nas allucinações da victoria;
quando o sangue fraterno manchou, á pata de
cavallo, a grandeza generosa do torrão altivo;
quando, emfim, a alma cavalheiresca dos gaúchos
elevára-se, ardente, no fogo da peleja transfigu-
rada por ideaes de conquista e liberdade, des-
d'esse. dia, então, de triste memória fatidica, a cruz
'so ergueu como uma préce o lá ficou com toda
aquella triste serenidade religiosa, assignalando
o tumulo anonymo e sósinho dum grupo de bra-
vos que cahira vencido e mutilado pelo fragor
das lanças, sobre a immensidade do pampa...
Teuk.i Gaúcha

Ali esteve ella como uma memória e um prei-


to de saudade. Pela sua frente a vida nunca ces-
sou, o trabalho das estancias nunca esmoreceu.
Passaram auroras e occasos, velhos campeiros
queimados pelas soalheiras adustas, viajantes
marchando para os «postos» de diligencia, carre-
tas gemendo sob o peso das cargas, tyrannas mo-
renas e lindas, trauteando quadras de amor,
cousas enternecidas da alma longínqua dos tro-
vodores crioulos, e ella, a velha cruz sem nome,
sempre de p6, do braços abertos para um ample-
xo paterno, lá estava, perfilada como uma senti-
nella, negra e só, na vastidão glauca da campina,
fazpndo-se venerada pelos gados que passavam
repontados aos priscos, {)ara os rodeios, i)ara as
querencias distantes, ató o farto engoníe da pri-
mavera, d'onde depois certo saliiriam, a nuigir,
para as xai-queadas assassinas...
Quantos mortos ella resguardava? (Juantas
vidas apagadas sob a sua imagem protectora o
bemfazejaV Eram muitas decerto... Tinidos todos,
fraternisados no aniquilamento, restos de cadave-
res, com brancas carcassas íl luz, maragatos e re-
publicanos, ali estavam, ali dormiam resguardados
por ella. Todos os que passavam descobriam-se,
reverentes, ante aquella tumba á flôr da terra
virgem, na desolada planura silenciosa. Se vi-
nham descuidados, nos afazeres do trabalho, com
a lembrança dos negocios, sobresaltavam-se logo,
recordativamente, evocando a imagem do um ami-
go, de um companheiro, de uma pessôa de affecto
que tamdem fizéra parte das innumeras victimas
do heroismo ou da emboscada, apanhadas em fla-
grante, nos retesamentos da luta, pela cólera in-
flammada das carabinas, pela lamina scintilante
das adagas degoladoras. Uma comtemplação sua-
ve, uma saudade imperecivel na expressão clara
dum olharj e, de novo, seguiam, cortando atalhos
sinuosos, despontando caminhos, (luebrando rin-
cões. Outros mais passavam, outros mais ali esta-
cionavam, destribuindo-se o mesmo respeito, a
mesma magoa, a mesma lembrança dolorida. E
aniios a dentro aquella cruz veio se mostrando a
todos os olhares, ao rigor dos minuanos e das
chuvas, sempre na mesma contingência funérea...
Um dia desappareceu, e, com ella, a memória
dos mortos que por tanto tempo velou no seu
silencio tocante.
Pelos homens erguida, o tempo te venceu, ó
velha cruz sem nome e sem historia! E agora,
que perdeste, para sempre, esse teu symbolo ta-
lhado em madeira tosca e feito" para a veneração
o para a saudade, já nem os tropeiros te recor-
dam, tumulo ermo, sem esplendor, som alma, sem
legenda, apagado no pampa!...
[í^ KALIZAVAj\I-SE, iiaquelle domingo, no
^ «Passo da Divisa», varias carreiras do
desafio.
Entro essas, uma chamava a attenção do vi-
sindario da estancia dos «Coqueiros». Era a do
«Zaino», de propriedade do Jango Silva, dono da
estancia, com o cavallo «Requeimado», de Nico
Justino, também estancieiro dos pagos.
Já no alvorar da manliã, ás primeiras horas
do dia, despontando em filigranas d'oiro, na ma-
ciez vellutinea do céo amplamente aberto, come-
çavam a bater estrada carretas e carretilhas, con-
duzindo famílias e quitandas para aquellas carei-
ras commentadas o discutidas, com calor, pelos
interessados e curiosos do rincão da «Divisa». E
até ás tres horas da tarde, grupos alegres de ca-
valleirianos, em çalifornia, a galópe, pela larga
estrada rendada de grama verde, passavam, chas-
queando, fallando da parada macota, da guapa
esperteza do «Zaíno», do apparente flaco do «Re-
queimado» que, segundo diziam, — «não dava
nem p'ra sahida». Assim seguiam grupos interes-
sados, atirando ditos pilhericos, enfiadas de phra-
ses sem fól, aos dois «pingos» mestiços, que se
iam encontrar, pela primeira vez na cancha do
«Generoso». Eram elles da «Divisa», pionada mo-
ça das estancias visinhas, quasi todos sympathicos
ao «Zaino», e por isso faziam jogos, pequenas pa-
radas, salarios dum mez, contra todos os que pe-
ga\a\\\ no potrilho do Justino.
Lá adiante, a çancha surgia, na varzea sòcca,
numa recta cie doze quadras de ponta á ponta
no corredor aramado. Por todos os lados, sitian-
do, o laço de. partida e de chegada apinhava-se
gente, na maioria, de cavallos aperados, vestindo
largas bombachas campoiras, de lenços brancos o
colorados, ruflando como bandeiras liasteadas" ao
sopro do vento norte. Na frente, carretas innume-
ras alinhavam-se, como fios simétricos de ranchos
do soldadesca em torno de quartéis. 1'elas rama-
das, ainda com folhas verdes, erguidas de vespe-
ra, velhos e moços, mulheres e crianças, mistura-
vam-se, numa ruidosa alegria de festa, uns beben-
do, outros trovando, em desafios, outros mais ge-
mendo gaitas, dedilhando violas pelos cantos, á
esi)ora da hora daquella carreira atrevida. •
Os «bolichos» atopetavam-se. O «trago» an-
dava de mão, em mão, em deferencias amistosas.
Momentos depois apontava no alto da coxilha a
comitiva do Jango Silva, composta da familia, do
«compositor» e dos peães. O «Zaino» vinha a ca-
bresto, coberto com larga capa de riscado novo,
onde se destacava, bordado á linha encarnada, o
nome do guerra do parelheiro. A' chegada do ca-
vallo acercaram-se os jogadores, contra a vontade
do «jochey». O animal era realmente de uma lin-
da estampa; faceiro, luzidio, de pello fino o limpo,
de formas delgadas, linhas abraçadas cm curvas,
arqueando-lhe as ancas e o pescoço longo, numa
correcção geometrica, impecável. Demasiado agil,
demasiado esperto, a sua i)resença, sempre de ca-
beça levantada, dominava o adversario (pie ia
enfrentar no fragor das quatro patas. Já tinha
corrido varias vezes em desafio, vencendo sempre,
e aquella, decerto, seria mais uma victoria nas
canchas da querencia.
Jango Silva, transbordando do orgulho, dizia
convencidamente em palestra:
— Com o mesmo sauguo c a mesma idade,
não respeito caállo nas redondezas «da «-Divisa!»
A VnCTIMl 71

— Olhe, sou Jango — intervinlia a sua mulher


— il.Maruca, não ó bom se fiá... Um dia elle afro-
xa o garrão...
— Que afroxasse c'os diabo! Queria vê pri-
meiro. Aquillo até nem era carreira... Inda tinha
mais trinta libras p'ra jo^o, e dava luz no primeiro
laço. Que appareça no mais algum tonante?...
Justino, achegando-se ao grupo, aparou, o de-
safio:
—: E' commigo, compadre Jango... Eu tam-
bém tenho muita esperança no meu matungo
choégoa... Que diabo! Isso não dá ainda p'ra
gente corcoviá!...
— Ilatemos de vê, dizia Jango, exaltando-se.
Si esta carreira não fòr do «Zaino» em todo la-
ço, le juro, polo meu nome, que acabo aqui no
mais com a casca do caállo, com o chumbo desta
bicha...
E mostrou para o outro a pistola que trazia
preza á cinta da larga bombacha campeira. O
Justino, arredando-so, miu'murou:
— Ora não diga coisas, compadre. Deixe o
cíiállo quieto; perdeu, perdeu, ganhou, ganhou.
Não bula.com promessas...
— E' p'ra vancô, vê. Elle que Io perca e ve-
rá como o faço testavilhar aqui mesmo...
Afastaram-se. A parada já andava em seis
contos e ainda se fazia jogo por fora, o que
apparecosse:",dinheiro por dinheiro, vacca porvacca,
boi i)or boi. l*h'a o que viesse. Acceitavam tudo,
os contondores onthusiasmados; cada um tinha
plena certeza da victoria do seu cavallo.
— Dez mil réis, contra cinco, no cavallo
«Zaino», gritou um pião dos «Coqueiros.» compas-
sadamente.
— Tópo, respondeu outro.
— Tem cincoenta mil réis o parelheiro. «Re-
queimado», declamou o capataz do Justino.
— E' banca, retrucou Silvano. . .
72 Tkrka Gaúcha

Casaram logo a parada iia mão do um tor-


cciro. E o mesmo zum-zum, o mosmo movimcMito
o 0í5 mesmos gritos, ora em falseio, ora fanhosos,
ora entonados o vibrantes perdiam-se, no ar íino
da tardo, na confusão tumultuosa d'aquolla can-
cha, alinhada como uma grande vibora, na varzoa
verde. Faziam paradas do todo o geito, a favor
do cavallo «Zaino». Si ello perdesse grande seria
o abalo nas guayacas dos que aventuravam com
dosassombro, convencidos da derrota que. ia sof-
fror o pingo contrario. Um peão da estancia fal-
iava altivo com certo rompante ironico:
— E' ganha na certa... Inté nem ó jogo...
— Ta bom; não so fio muito, primo Zóca...
Olho que o outro pingo não é tão máula como
vancü pensa...
— Qual se fiá, qual nadn! Ganha o «Zaino»
de rebonquito erguido! Esporo um tonto o o pri-
mo vao vô...
— Ta bom, vá so fiando...

Para o «partidor» acabavam de entrar os


dois altivos animaes, depois de serem onfronados
polo juiz que ia julgar a carreira. Eram quatro
horas da tarde o o domingo morria numa lassa
preguiça cariciosa do primavera, deslumbrante em
luz, illuminando os campos e o vasio soturno das
" coxilhas. A um signal do juiz do partida, os ca-
vallos entraram em forma. Um nogacíando o ou-
tro, começaram, assim, ambos em priscos ligeiros,
assentadas bruscas, outras demoradas, cabo<.ías
erguidas com altivez, a so olharem do osguollia,
resfolegando com violência, sob o governo o os
sofrenaços das rédeas leves. Um quarto de hora
decorreu som resultado. Novamente em forma,
ato que se emparelharam. O juiz aproveitando a
boa occasião dou o grito do ílarga»! Foi um ar-
ranco immediato, brusco, vertiginoso o os dois ca-.
vallos partiram, roçando orellias, ao esfuziar dos
robenques, sentindo cada um com mais anoia,
com mais vigor, as rozetas das esporas ferirem
as barrigueiras".delgadas. A corrida era vertigi-
nosa, antevendo-se a seriedade da disputa.
Uma nuvem de pó ennovella-se, densamente
Jio caminho ])ercorrido. Passaram o primeiro laço
juntos, orelhando-se, sem differença de um dedo.
Depois' «llequeimado» entrou na frente, de cabe-
ça, até o segundo laço e dahi em diante começou
a tirar distancia até o ponto final, nas quatro
quadras. Jango Silva o Nico Justino esperavam
o resultado na chegada, quando o juiz de sen-
tença espalhou arrastadamente, com emphase, o
resultado da carreira:
— Caállo «llequeimado», nfl ponta!... Ganhou
o caállo «llequeimado», de paleta e meia!
O éco repercutiu ao longe, nas quebradas.
A surpreza do resultado envolveu de tristeza cen-
tenares do jogadores, que contavam na certa com
a victoria do «Zaino». O parelheiro de Nico Jus-
tino ganhára deveras nos dois laços finaes. Foi
um desapontamento geral. E o estancieiro victo-
rioso sorriu, com desdem, jjara ,o adversario aba-
tido :
— Então, não le dizia, compadre JangoV...
O velho estancieiro encarou o seu oontendor
numa exprcíssão de profunda magoa. Olhando o
esbelto parelheiro (lue lhe trahira, que lhe menti-
ra, diante do tanto povo, do tanta esperança, de
tanta certeza, lembrando-se ainda da jura que fi-
zera, invocando o seu nome e sua palavra lhana
o leal, de tempera inamolgavel, jámais desmenti-
da, respondeu, eivado de (íòr o de remorso, dian-
te do sacrifício a cumprir:
— A(iui está a resposta, compadre...
E arrancando da velha pistola que ha tan-
tos annos dormia, em socego, no seu coldre, des-
fechou, os dois canos, contra o «Zaino» que arfa-
va ainda pela violência audaz da refrega.
74 Terra Gaíicha

— Palavra é Palavra...
O animal ergueu as patas em pinotes deses-
perados num relincho feroz. De bocca a espumar,
narinas dilatadas, com os olhos em cliamma, a sal-
tarem das grandes orbitas viscósas, estremeceu o
corpo luzidio, humido de suor, num estertor de
agonia, cahindo por terra vencido, tinto de san-
gue...

S
*• •■ti|i>»<«l * lig■
4 I I |J|'|||.|.|.|.|>|I| |i| ül llHUI ||| |||'||| I I I |.|:|.|<l I l.|.t.l:|'li|i|il l:l>ll'l.|:|

MINA ESTANCIAH !
'• K l l>AI I I Imil IM IM IttlklM I III l<l lil l 1|:| i<l III liIlMii liiil Iliilil lllill •I IIM||
r I '1' i.,i.-«»»ai»i-.|.i|. i i»4i ií«i iiii i»>iii>Hii>i4iiiuii».i.>iiMii»i»<ti»<i^n»HiKt..Mr ii I -i"! i'*'i I i • '! I I i' ri'ri>i 'i

n RMA' «marcação» ó sempre uma ruidosa e alvi-


çareira novidade para a vida afanosa da es-
taiida. Não .ha festa que tão fielmente caracte-
riso a alliança do individuo com o solo e com os
elementos que o estreitam num grande amplexo de
solidariedade. E' um facto digno de nota esse. O
gaúcho tem nesses dias que decorrem céleres, o
mesmo que o homem da . cidade tem no Carnaval:
a maior somma do actividade e liberdade, dentro da
nuüor sonuiuv de alegria, proporcionada por mil o
um factoç e peripecias nesse trabalho annual de to-
das as estancias. Desata-se a sua alma da clausura
em que se encerrou durante um anuo de lutas im-
petuosas no dorso tio companheiro inseparavel. Vi-
bra intensamente; intensamente se expande. Perde
. aquelle ligeii'o lustro adquirido em algumas horas
de convivência, na cidade. Torna-se o campeiro de
outr'ora, do pósse dos mesmos habilos, dos mesmos
costumes perduradoros. E' ò gaúcho lal qual o fo-
ram os lembrados uvoongos rudes; o mesmo typo
dos])rendido o nobre, activo o audacioso. Sáe do
seu espirito um lampejo de requintada doçura; vem
á tona um hiimour (!X(iuisito; ri e brinca; não des-
confia. Dcsapparecem as difficuldades; tudo se lhe
torna facilimo, o a sua desempenada armadura de
(/'olYtauro reintegra-se no lombo do cavallo.
Ha um dolirio do festa no succodor das horas,
desde o alvor tias madrugadas, até a agonia lassa
76 » Tkkua Gaúcha

do i)00iite. As coxilhas são batidas do canto a can-


to, cm galopadas desenfreadas polo capataz o pon-
teiros, percorrendo (luerencias onde as criações es-
tacionam, mczes e niezes, longe do enibrctamento
das mangueiras.
As marcações duram sempre de trez para (lua-
tro dias. Durante esse ligeiro tempo, a velha estan-
cia como que resurgo do seu passado de grandeza
e do domínio. I.á (íentro, a familia inteira se des-
dobra em occupações da toda ordem. í/á fora, nos
galpões, corre um susurro de intima jovialidade.
E' a peonada composta de moços e velhos se dis-
tribuindo a cavallo e a pó, de boloadeiras na mão,
de laços armados, ])rompta a percorrer o campo,
«bombiaudp» as invernadas (legado, tirando tor-
neiros dos atoleiros das restingas.
Formam-se, então, entre ellcs, diversões tradi-
cionacs. Jogam pealos.a cigarros, a tragos úa can-
guára e levam, em cada tiro, a certeza (Ia parada
ganha. Déxtros laçadores rebuscam-se assim «da
obrigação dos vicios», sem uma S(5 voz falhar a
ítrmadilha do laço. .(guando o não acertam na parte
determinada previamente, roboam, em i)ilherias, as
Vaias inoffensivas, enuiuanto lá um (lue outro man-
ga com as, rodilhas nud armadas.
Outros exigem com desdem:
— Pealos de cucharra não se agüenta. Tom
(lue sè do todo hiço.
— Ksto aiiula não iirosta, ernulo... õ pealo d"
sobro lombo.
De novo, então, o laço osfiizia nas mãos i)Os-
santes do poaiador o, lá adiante, o torneiro a cor-
rer cáo, preso pelas patas.
— Ausiin mo venha,.parcero.
E em outras mil proesas começa, desse modo.
o intenso poriodo das marcações. O gado todq es-
taciona nos mangaeirõos de pedra, á sombra dos
umbus e cinaniomos. Dahi para o transcurral sáom
presos, um a um, os orelhanos a sorem marcados.
Na Estancia 77

Permanece ainda em quasi todas as estancias


o mesmo costume antigo. Forma-se todo o pessoal,
inclusive os visinhos e agregados que vão também
prestar seus ajiitorios. O capataz escolhe quatro la-
çadores, e, para cada um, dois «apertadores» ágeis.
Junto ao tronco 6 conduzida então a terneirada
que vae receber no couro novo a inicial do nome
do estancieiro. A's vezes, com difficuldade, a cria
6 derrubada. Um dito qualquer desaponta o tento
que trabalha para subjugal-a:
— Que flacos!.... Andam mesmo que zorros pen-
durados na cola dos terneiros...
Um outro arremeda:
— Quá-quá!...
E' o guaraxaym, o zorro. Para elles é o sym-
l)olo da fraqueza, da cobardia, o quando o campei-
ro se enquadra nessa comparação humilhante, por
qualquer um acto que denóta timidez, os outros o
sitiam em chufas (leprimentes, em risos escarninhos,
ao borboletear do satyras e phrases ambíguas.
De cuia na mão, chupando o amargo, o estan-
cieiro intervém, ante a morosidade do serviço :
— Que andassem, c'os diabo! Que não fossem
lérdos, estavam maçando o animal...
Depois do terneiro estendido no chão, a mar-
ca em braza assenta sobro o quarto direito, quei-
mando pGIlo o couro. Um cheiro do carne tostada
recende no ar, estimulando o appetite para o chur-
rasco do meio dia.
Marcado assim o terneiro, recebe elle na ore-
lha, com ligeiro corte de faca, um outro signal im-
perecivel. E' o registo, a confirmação, a garantia
do primeiro. Alguns fazendeiros uzam marcar a
roz na paleta. São raros. O que permanece em vo-
ga é o costume primitivo, de uzo quasi geral nas
estancias centenarias. E nesses dias então recrudes-
ce em todas as mangueiras, a mesma actividade,
o mesmo afan de manhã á tarde.
Por todos os lados os apertadores gritam:
— Chega a marca, niarqiieiro!... — Ao quo es-
to logo respondo:
— Aperta manheiro...
E assim, siiccessivameiito, cem, cinzentas, tre-
zentas cabeças de crias novas, soffrom a mesma
operação, em fins de Agosto a princípios de.Setem-
bro, qnando a safra ó optima o a producção abun-
• d ante.
Com o mesmo entluiziasmo segnem-so depois
a domação de potros, a tosa da eguada, a marca-
ção do potrilhos o de gado cluicro, a pega de ba-
giiaes venenosos, a capação de touros, tudo isso sob
uma agitação borborinliante, nuiltiplicando-so to-
dos om energia, actividado o audacia.
*
Emendam-so dessa maneira os dias, apenas
com intervallo das noites om que o capataz, peãos
e visinhos reunem-se, no largo galpão aberto, ao
lado da estancia, acocorados í\ beira do fogo.
(Jorre de mão em mão o saboroso amargo,
dosopilando cada qual com o lado ridiculo dal-
gum facto do dia. E contam-so aventuras o arris-
cadas — audacias cavalheirescas da alma campe- .
zina, profundamente sentimental e heróica.
Outros arranjam torneios, provocações para
carreiras o pealos, a par do ditos picantes, de m-
piilhações atrevidas, facecias o mordacidados dos
mais espertos sobro os menos cautos. Os- reconhe-
cidamente dispostos o quebras armam-se do viola
ou do gaita, improvisando fandangos, largados e
desafios do onde sáe sonora, rica, inexgottavel, a
fluonto poesia do repontismo, — arma formidável
com que costumam fulminar a fama do adversa-
do trovador. Muitas vezes so vão noite a dentro',
inconciliáveis, sem submissão, promptos nas res-
postas om rimas, apanhando cada um o ultimo ver-
so da quadra improvisada. E' uma luta tremenda.
Após a derrota do um dos contondores, o vence-
dor ostribilha dosdonhoso:
Na Estncia. 79
.- -V

— Levou buçal do couro fresco... Não se met-


tosse, mo(jo...

Em tons de ouro surgem as primeiras bar-


ras do dia. Termina ahi o ultimto somno repara-
dor. Tóca todos, d e novo, a despertar, a enfrenar
cavallos para o mesmo serviço do campo. Já com •
o pé no estribo, chupam o chimarrão na cuia de
porongo sccco, até á hora em que a luta resurge
na impetuosa manisfestação dos assobios e gritos,
por todo o escampo embrulliado na nóvoa indeci-
sa das madrugadas, nas neblinas das manhãs hy-
bernaes. Nas mangueiras, a terneirada berra na
ausência do ubere materno. Potros o redomoes se
agitam, insofregos, de largas narinas abertas. Um
pastor em relinchos, se precipita, indomável, so-
bre a eguada subjugada logo pelo porte viril do
macho audacioso.
Escorre de tudo a seiva perpetua da vida,
palpitando nos espasmos violentos dos animaes
pompeando, rasgando-se immensa, em todos os re-
cantos do estabelecimento pastoril que, no alto do
campo, empolga o imprevisto dos longos horizon-
tes. E assim até o morrer da tarde, a estancia fre-
me na época intensa das marcações em que as
crias novas do gado recebem", no quarto, «no lado
de laçar», a cicatriz hieroglyphica da posse e do
dominio. São elementos novos, são novas existên-
cias errantes que passam a ser futuras fontes de
riqueza nas vastas sesmarias verdecentes, abrin-
do-se, amplas á seiva fecunda de primaveras eter-
nas.
SAUDADE te

'^ELA manhã, ao dealbar incerto do dia, os tro-


^ peiros abandonavam o pouso, entro aquellas
minas esquecidas na planura immensa, carco-
midas pelo eterno avanço do tempo. De laços pre-
sos á cindia, ponchos resguardando o corpo, no-
vamente seguiam para os pagos,, para a labuta
das tropas, de volta das xarqueadas do município.
Pernoitaram alli em intima camaradagem, gastan-
do na fanfarronice das secas, o resto da cevadura
de caúna que traziam para o descanso, na viagem.
A trote largo, ao compasso de trovas dichotescas,
retomavam, caminho a estancia, cortando o sere-
no da campanha embrulhada em sombras, envol-
ta ainda na soturna nielancholia da noite humida,
atalhando caminhos, bandeando campos, sob o as-
sobio navalhante dos minuanos.
Izidro, apenas, ficara, i)ara tomar outro ru-
mo, em direcção ao rancho, depois dumas «bom-
biadas» no sitio ermigio d'aquelle escampo nativo.
Levantou-se lerdo dos pellegos destendidos á bei-
ra do fogo extincto. A claridade do'dia.continua-
va a romper, aos poucos, num collorido (le rosa,
ao longe. Quantos annos decorreram, quanto tem-
j)0 havia que elle alli estivéra, que alli morara?...
A affirmativa vacillava no seu espirito nebuloso.
Um i)ouso, um sitio, uma tapéra onde a sua alma
errava numa pungitiva angustia de olvido... Mas,
82 Terra Gaúcha

alli fora outr'ora a fazenda em que nascera, em


quo se fizera homem e donde, mais tarde, parti-
ra, aventurando a sorte... Ha quantos annos tudo
aquillo se dóraV Tão longe o ao mesmo tempo tão
perto!... Um infinito anceio, uma evocação longi-
qua, ligava o passado ao presente. Começou en-
tão a caminhar por sobre aquelle montão esclara-
vado de cousas. As «chilenas» arrastavam subtis.
Fronteiro ás portas abertas, as reminiscencias sal-
tavam mais vivas, como si tudo aquillo fossem pa-
ginas abertas dum grande livro... Era uma estan-
cia morta no meio desolado do campo, sob a fron-
de veneravel das figueiras esgalhadas. Toda ella
começava abalar-se profundamente, lluinas o es-
combros!. . Cortava-lhe o coração a lembrança da
infancia distante, sepultada entre aquelles exi-
cios... Um ultimo adeus, lun ultimo soffrimento,
derradeira hora de agonia, tinham aquellas qua-
tro paredes, comidas de limó, cheias de silencio
e mysterio, onde um gênio bomfazejo pontilhava
longas imagens do saudade!...
Izidro estacava ponsativo. K uma a uma des-
filavam as ruinas da casa paterna, da ostancin
sob cujo abrigo se desenvolvera o fizéra-so ho-
mem. Como tudo estava mudado!,.. Eram os pri-
meiros recantos quo se abatiam; fraqucavam de-
pois os esteios, do pilo roliço, desenervados, ven-
cidos na lucta duma velha existencia, apagando-
se, perdendo-se, extinguindo-se, Uma destruição
lenta vinha, lado a lado, vencendo, consumindo
os recantos da morada sombria o erma, soergui-
da timidamende, no campo, na solidão vasia das
estradas... E .todo um espirito errante, na disper-
são dos átomos, na subtileza das cousas, pungia
torturado, na ancia extrema da seiva que se váe.
Nem mais alegria, nom mais vida, nem mais na-
da, naquelles destroços esquecidos o tetricos co-
mo o piar dos (iu6ro-qu6ros á hora nostalgica
do crepusculo. Havia do tudo uma ti'ansmissão
de dores o soffrimontos, para o coração commo-
SaúdaBE 83

vido do tropeiro. Diante do passado que surgia


em farrapos, o presente era como uma densa som-
bra repercutindo o eco da existencia d'antanho. De
tudo o que fora a abastada fazenda gaúcha res-
tavam, apenas, fragmentos informes de constru-
cções abaladas.
Cresciam hervas por dentro, multiplicava-se
uma vegetação luxuriante, cheia do vigor fecun-
do de terras abandonadas pelo tempo e pelos ho-
mens... Velhos umbus solitários, arvores da nos-
talgia e da dor marcavam alli o ponto das pou-
sadas amigas, refugio dos campeiros cansados pe-
lo extenuar cias safras. As cinzas mortas -dos fo-
gões se espalhavam por todos os cantos, sacudi-
das pela inclemencia dos ventos, como dispersões
elegiacás de punhados de terra que cobrissem um
cadaver num adeus estremecido...
Uma saudade pungia em cada queda da ha-
bitação moribunda. Izidro deixou-se ficar, preso,
demoradamente, no seio anonymo d'aquellas ruí-
nas, fallando com ellas, vivendo pelo reatamento
das lembranças, na mesma dôr, no mesmo abalo
doloroso. Invocava as noites, as auroras tintas de
sangue, as longas madrugadas hybernaes, as pou-
sadas pacificas daquelles destroços infelizes, fallan-
do da felicidade ou da desgraça dos que alli vi-
veram e morreram,,. Reappareciam, resurgiam do
longa distancia as eras mortas, as illusões passa-
das, as venturas perdidas, toda a belleza simples
dum mundo desentranhado de tetricos esquecimen-
tos: violas a gemer, amores ao luar, venturas ao
sol de maio, sombras indecisas de tropeiros tos-
tados, velhos camaradas da infancia cruzando cam-
pinas, ao relincho das egoadas errantes e bravias,
e tudo emfim que a memória guarda, vinham ago-
ra do desmoronamento daquella fazenda solitaria,
abandonada no praino soturno, á frente de lar-
gas coxilhas vestidas de verde, banhadas de luz,
. na eterna glorificação da existencia pampeana...
<84 Terra Gaúck\

IIumo(leciam-so-Iho os olhos anto a resurroi-


(,'ão (Io pasaado, ao contacto daquello inundo do
segredos sepultos fallando á sua memória. O sol
jit ia alto quando elle accordou daquello traspor-
to mystorioso. «lá nada mais tinha que fazer ali. En-
cilhou o cavallo o tocou para diante, a caminho
do rancho no fundo da estancia, onde o laço e ro-
deio esperavam os seus braços queimados polo
fogo 'dos mormaços de dezembro.
E ali ficou a velha tapéra, apagada visão de
uma estancia derruida, surgindo como um oásis
na coxilha sem termo, ponto pacifico das pousa-
das, sitio frondoso das sustas, nas grandes estira-
das para a fronteira...'
CARRETEIRO

rx ASCJPiSTE na vibrante alvorada de uma nia-


|\| nhã do estio, e nunca mais adormecesto no ro-
I pouso plácido do rancho, onde deixaste mu-
lher e filho, entregues á luta permanente do traba-
lho. Como o tropeiro, tu és também, o typo re-
presentativo de uma tradição secular.
Vive em ti, velho rebelde da civilisação, o
sopro heroico da raça, a legenda da luta, do amor,
da bravura.
Antes das diligencias, muito antes das vias-
ferreas, eras tu, somente tu o indomável palmillia-
dor das coxilhas, o tenás triumphadoi; dos terre-
nos hostis.
Com essa tua rude viatura de trabalho, en-
frenlaste o perigo imminento das refregas, a ca-
vallaria desenfreada dos entreveiros, na violência
dos choques revolucionários entre patriotas
aguerridos.
A carreta o os bois foram sempre os teus
melhores amigos, os teus únicos e leaes compa-
nheirós de jornada.
Despresaste, com maior dos desdens, o con-
forto caricioso da casa. Tempo mao ou tempo
i)om, inverno ou verão, de dia ou do noite, tu
■ partias, tu caminhavas, acompanhando sempre o
andar vagaroso da carreia.
8(5 Tkkua Gaúcha
. -'VN^ .✓v-^ .✓vAs.

Todos te procuravam, todos to queriam, to-


dos te veneravam. Não havia outra conducyão,
outro transporte, outro meio mais commodo.
A' sombra de algum umbu ramalhudo, nas
encostas das restingas com agua, junto ás pas-
tagens verdes, tu, bondoso carreteiro, descanga-
vas os bois e accendias o fogo bemfazejo para a
panela de feijão com graxa e para agua do chi-
marrão.
Passado o descanso, seguias viagem nova-
mente através do grande pampa silencioso, sof-
frendo as amarguras das intempéries, os pertur-
badores accidentes dos terrenos onde os «tatus»
imprevistos, reclamavam todo o vigor das tuas
serenas energias inquebrantaveis.
E seguias jornada, de aguilhada á mão, cur-
vcteando caminhos, idealizando a victorla de ou-
tro dia do viagem, esmagando com o peso das
cargas, com o gemido tias rodas, a verde flores-
cência da campanha.
Appareciam os primeiros espasmos do dia.
Lá adiante, o pouso. Do novo desajoujavas os
bois, repontando-os para os j)Otreiros e inverna-
das, envoltos na luz esmaecida do luar ou embru-
lhados na negridão da noite tempestuosa.
Então to estiravas cançado na maciez dos
pelegos, sob a protoc(.'ão da carreta inerte, alô
quo as i)rimoiras barras do dia te sacudiam, ou-
tra vez, para a marcha processional do outro ru-
mo, em demanda á casa, numa viagem quasi sem
fim—afan trabalhoso mas alegro, contra a rudo
conquista do terreno...
No maior do todos os sacrifícios, a caminhar
sempre como errante batedor do deserto, passas-
te quasi toda a tua oxistonoia, diminuindo as dis-
tancias, encurtando caminho no passo tardo dos
condemnados. ■
Enxotado pela i)esada locomotiva moderna,
desapparecos hoje, antigo caminhante do pampa,
o, comtigo, desapparcce também, o rapsodo senti-
Cauueteiko 87

mental das horas de sesta, o alegre trovador das


pousadas.
E's o ultimo perseguido de uma civilisação
que se rasga no teu berço-esmeralda das coxi-
llias...
Resto de outra raçai i

Tia Florinda encerra na sua existeucia secular,


uma pagina integrante da nossa própria his-
toria.
Nascida n'algum recanto sem nome da Áfri-
ca adusta e selvagem, para aqui veio, para os
pagos, criança ainda, tocada pela veniaga, ao se-
nhorio desconhecido. Preta como seus paes, como
a gente da sua terra nativa, o sol do sul tisnou-
Ihe, ainda mais, a epiderme, e o trabalho da fa-
zenda pastoril crestou, para sempre, a sua moci-
dade obscura.
Dentro da sua patria, a terra longinqua pa-
ra onde iria acenava-lhe com grandezas descon-
hecidas, illudindo-lhe o espirito bronco. Começava
então no seu cerebro infantil a germinar, através
de conthuias indecisões, um grande sonho lumi-
noso, alguma cousa extranha á sua condição de
infeliz. IS^is i)upilas dilatadas brilhou a chamma
do Desconhecido, a persi)ectiva nevoenta do uma
felicidade rasgando-se além, mares afóra, no seio
virgem de terras moças, mergulhadas ainda numa
geologia som estudo. Mas só compreendera a fal-
sa trama do espirito, quando o seu primeiro pas-
so na fazejida, naquella eterna estancia de pedra,
fura i)ara o palanque, para as caricias mordentes
90

do maneador... A miragem enganadora se dissi-


pou. Foi lun sonho! O soffrimento sem nome que-
brou-lhe para sempre o idealismo, para sempre
lhe despertou a realidade cruel: era escrava co-
mo outros, como os jovens companheiros de des-
dita que juntos vieram, no porão do mesmo na-
vio, para o sol nebuloso do captivciro! Desde en-
tão a sua vida hrrastou-se entre dòres e misérias
naquella humilde coutingencia servil. Setenta
annos sem tréguas — uma existencia centenaria
do sacrifícios — assistiu a todas os desvarios da
sua época, sempre dócil e timida, sem que uma
só queixa fugisse de seus lábios grossos, abertos
num respeito contricto, para murmurar o louvado,
senhor, beijando, apostolicamente, todos os dias,
nas primeiras horas da manhã, as mãos possan-
tes daquella sombra feudál de estancieiro, repri-
mida dentro da jaqueta o da bombaclia gauches-
ca. O seu trabalho o o seu esforço tenaz, desde
as primeiras barras do dia até ao cahir das gran-
des noites do ermo, eram dum rendoso lucro pa-
ra a estancia. Trabalhava como os bois do car-
gas ajoujados as carretas; o nas curtas horas do
descanso, o alimento para o seu equilíbrio physi-
co vinha em rações, sob o olhar sempre duro do
inclemente proprietário de negros. Nesse Ínterim
elle comprara novo lote de crioulos novos, esco-
lhidos para a urdua azafama do campo, emquan-
to a velha preta ficava om casa, nos galpões, nas
mangueiras, curando torneiros ou gxtondondo car-
ne nos varaes, se iluplicando numa destreza som
I)ar om todos os mistéros (]Uo roclaniavam a sua
iorça. A estancia, ontão, como todas as estancias,
só ])rosperava polo braço submisso do captivo.
(.'quliocida a musculatura de aço da volha africa-
na, a energia daíiuollo pulso sem repouso foi do-
l)0Ís sinistramonto aproveitada para uma ompreza
terrivol: amarrava os companheiros do sina, jun-
gia-os nos palan(iuos o, á primeira ordenação do
senhor, vorgava-os a rolho trançado, até leval-os
ao banho frio da salmoura... Ai si não o fizesse!
A (lesobodiencia era crime previsto pelo férro em
braza das marcas...

Trabalhou muito; luctou bastante; soffreu


ainda mais. Não adoecia porque o escravo não
tinha esse direito, e, como o soldado, era superior
aos rigores do tempo e ao contagio das moléstias.
Durante a süa vida de captiveiro, ella nunca re-
clamou um dia, somente, de repouso para o seu
corpo alquebracio. Resignava-se, vendo também os
outros que soffriam, occultando dores infindas
sobre os disfarces trahidores da saúde.-
Assim passou toda uma existencia de tenaci-
dade, ntnn pernmnente attrito com a sorte ingra-
ta, semi)re na mesma contingência, boa, dócil, sub-
missa, até que um dia, num grande dia de gloria,
lhe chegou aos ouvidos um novo cântico de liber-
dade, florescido com a lei paranhos, proclamado
ás auras ila patria, pelas gargantas de ouro de
Patrocinio e Nabuco, Estava forra depois de se-
tenta annos de martyrios... Um mundo completa-
mente estranho se abriu a seus pós. O seu es-
pirito desorganisou-se. Ganhái'a a liberdade sem
compreeudel-a, sem nunca tel-a conhecido. Aterro-
rison-se com aquelle vocábulo do ouro, com aquel-
la senten(;a libertadora — e, como escrava (lue
era, sentiu-se mais escrava ainda, deixando-se fi-
car na posse do mesmo senhor rigido e barbaro,
entregue ao mesmo trabalho, apanhando as mesmas
vergastas i)or dias sem conta... Voluntariamente,
dentro da sua negra armadura, prolongou a sua
sina, assistindo pouco a pouco, no decornu' dos
aiuios, a lenta destruição da familia senhorial que
por tanto tempo servira com extrema dedicação e
extrema bondade.

*
92 7!'kkka (í-vrcirA

Ali, sob aquollc velho tocto cm ruiua, osca-


lavraclo, sem linlias, sem traves, a diluir-se, pouco
a pouco 110 coiiflicto do tempo, numa tapera sem
nome, a velha Florinda remata a sua existencia
quasi secular, a desfazer-se em ruinas também... Sen-
tada á frente da antif^a estancia d'antanho, conversa
com os viandantes, com os batedores de coxilhas,
contando, na sua meia linííua, longas historias do
sou tempo de captiva, nostal<?icas recordações de
seus comi)anheiros de sorte. São cousas sempre
tristes onde vivem gritos desesperados de dor, lan-
ces do tragédias c angustias, desenrolados á luz
dos occasos sem termo. Ila um certo respeito em
ouvil-a naquellas digressões ao passado sepulto.
IClla tem nesses momentos, a grandeza scenica do
gosto, uma escala do norvosidados artisticas. Se al-
guém, inquiro de sua vida de outr'ora, os olhos
inundam-se de clarões oxtranhos, de brilhos que
aclaram nas névoas do corebro, rominiconcias de
soffrimeiito profundo.
— Oh! sinliò moço — exclama — era de vê;
nosso sinliò não perdoava nègo... Maneado e cou-
ro crú batia todo santo dia do Deus! — E ou-
tras cousas ella diz na sna lingua barbara, obs-
curocida pela ignorancia o pelos annos. Muitas ve-
zes, 110 meio de suas historias dolentes, as lagri-
mas saltam dos olhos pizados pelos tormeiitos da
velhice.
Talvez saudade do passado, saudade do ca-
ptivciro, saudade do senhor que serviu, saudade
(his cousas (luo não voltam mais!...
^X.N-NS
_ \ K XNX,VNV«*'!«Í«Í^V^X"V W<!XX.X-.X'^^sV>V^ViV!V.V:V!5«S«í'•W

i íS-uperstiçõesi ••!
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(LEMDA DO 'TOGO-MORTO")

r^OU varias vezes, notei em continuas e estafaii-


^ tes viagens pelos recantos mais afastados do
Ivio (irande um facto que pela sua extranha
singularidade me preoccupara vivamente a atten-
(íção: carreteiros e «maioraes» de diligencia, toma-
dos de um terror su])ersticioso evitavam, sempre,
fazer o seu fogo no mesmo logar (lue tivesse sig-
naes de um fogão anterior. De sorte que á beira
dos capões o restingas, sitios apropriados e pro-
feridos pelos viandantes da campanha para asses-
tas o pousos, depois de longas marchas por estra-
das accidentadas, era commum encontrarem-se um
som numero de fogões extinctos, sem que um só, ja-
mais, fosse feito no logar que tivesse vestígio do
outro.
Tomado de natural curiosidade inquiri, de
uma feita, sobre o caso o i)eão que mo conduzia
caminho da Soledade, justamente na occasião em
(jue olle iniciava o fogo para o chimarrão apete-
cido.
— Qual o motivo, amigo desse oxquisito es-
crupuloV...
A' minha pergunta, o gailcho encarou-mo com
esearniuho sorriso.
94 Terra Gaúcha

— U6 gente!... Então o patrãosinho não sa-


1)0 V Cliama-so a historia do «fogo-morto», muito
conhecida por este e outros pagos...
Acocorado depois na rólva, sob a ramagem
de um salso, contou-me então, a lenda de que dou
a(iui em desfigurado resumo, um apanhado tiél,
respeitando a tocante singeleza do sou entrecho o
a rústica simplicidade do seu estylo.
E o gaúcho começou:
Pois foi uma vez, ha muito tempo, lá i)r'aR
l)an(his da fronteira, em caminho de Alegrete pa-
i'a (iuarahy. Um carreteiro rico, muito rico, quo
tiidia de seu além do campo e dinheiro, mais de
com juntas de bois invernados, foi fazer uma via-
gem longe, muito longe do rincão da querencia.
l)oi)ois do ter andado quasi o dia todo resolveu,
á tai'dinha, já mesmo no momento em que o sol
entrava, fazer pouso no costado do uma restinga,
perto da estrada geral.
Tocou para lá a carreta o com auxilio do
peãosinho que levava desajojou os l)0is, soltando-
os para o campo. Km seguida mandou trazer le-
nha do matto para preparar o fogo afim de as-
sar o churrasco o requentar a panella do feijão
com xarque. Ao lado, quasi junto da carreta, en-
controu os vestigios do fogão de algum carretei-
ro (juo ali também pousára ou sesteára na vespe-
ra, Com isso se livrou o homem de trabalho mais
longo, Approveitou a lenha e os gravetos quo so
conservavam ainda accezos, entre a cinza, o, no
mesmo logar, ein cima do outro fogo, iniciou o seu
que lógo vingou em grossas labaredas ao lado da
carreta.
' — Mas para que se metteu o carreteiro em
aproveitar o alheioV...
A desgraça começou n'aquella hora!...
— As labaredas cre.scoram em linguas de fo-
go; as linguas de fogo começaram a lamber a caí'-
rota; a carreta ardia em chammas; as chanuruis
sobiam cada vez mais devorando tudo. C) peãosi-
Superstições 95

nho e o carreteiro corriam que nem veado, para
o arroio, trazendo agua e atirando no fogo. Mas
este crescia mais violento ainda, sem que toda a
agua do arroio desse para apagal-o. Só quando o
arroio seccou foi que o fogo também se extinguiu,
depois de ter reduzido sua presa a um grande
monte de cinzas. O rico carreteiro sahiu como lou-
co, campo fóra. A desgraça, porém, não parou nis-
so: desde esse dia malfadado, os bois começaram
a pestear e a morrer; o dinheiro desappareceu da
casa, roubado; a mulher sumiu-se sem que até ho-
je se saiba nóvas de seu paradeiro. E o homem
que fora rico, muito rico, morreu pobre, muito po-
bre, perseguido á hora da agonia por apavoran-
tes visões transfoi'madas em linguas de fogo, lam-
bendo-lhe o corpo todo.
Dizem os antigos que desde esse dia então,
todos os carreteii'Os que tiveram noticia do triste
facto acontecido nunca mais fizeram fogo no lo-
gar em que foi o fogão de outro...
índice
-»»x««-

Pag.
Enxotado li)
llerúe — 21
Contrabandista .. 27
Carniça 31
Alma de 35
Sêeca. . 41
Carneador 4r)
Civilisação 51
Divertidos 55
-Memória 05
A Vietima 09
Na Estancia 75
Saudade 81
Carretei ro .... 85
Uosto do outra rara '
Superstições (.\ lenda do «fogomorto') 5)3
cm

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