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DISCURSO DE POSSE ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS- 24
março 2022 Betty Milan
Confreiras e confrades, familiares e amigos me sinto tão honrada quanto
emocionada por falar hoje, ter sido eleita para a cadeira que foi do historiador Célio Debes – ela será a minha enquanto eu aqui estiver.
Quem se torna «imortal» ocupa a vaga de um outro que já não está e é
obrigado a se confrontar com o próprio fim, o que é uma vantagem, pois, como diz Montaigne: «Não sabemos onde a morte nos espera. Melhor esperá-la onde quer que estejamos» (1). O lugar de Célio Debes é o que melhor conviria a uma escritora de formação psicanalítica. Porque tanto o historiador quanto o psicanalista têm a responsabilidade de iluminar os fatos, explicando a razão dos mesmos.
Célio Debes se formou em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de
Direito do Largo de São Francisco (1950) e se tornou mestre em História pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP (1975). Foi advogado, procurador do Estado e integrou o corpo jurídico da Companhia Paulista de Estradas de Ferro. Nesta posição, ele escreveu um texto da maior atualidade, A Caminho do Oeste (1968), no qual mostra que foi um erro privilegiar a rodovia – com o uso de combustíveis fósseis –, e não o trem. Não é preciso mais para enfatizar a importância do trabalho dele. Grande conhecedor da História de São Paulo, ele se notabilizou pela biografia de Washington Luís Pereira de Souza, o último presidente da Primeira República. Consagrou 23 anos a esta biografia. Além dela, publicou outros livros, artigos na grande imprensa e na revista da Academia Paulista de Letras. Sobre esta casa, ele nos legou um texto que começa com uma observação de grande importância : “A vida das Associações, qualquer que seja sua natureza, está sujeita a perturbações da harmonia entre seus integrantes, requisito básico para sua sobrevivência” (2). Deu a entender com a observação que toda luta de prestígio precisa ser evitada.
Me reconheço no espírito do meu antecessor e também no de Joaquim José
de Carvalho, o fundador da cadeira. Era médico e, em 1909, fundou a Academia Paulista de Letras, inscrevendo-se na tradição dos médicos para os quais a literatura é fundamental. Entre eles, Sigmund Freud, que recebeu, em 1930, o Prêmio Goethe de literatura. Ninguém menos do que José de Anchieta é o patrono da cadeira. Nasceu em 1534 nas Ilhas Canárias e, aos 17 anos, ingressou na Companhia de Jesus, em Portugal. Neste mesmo ano, teve uma tuberculose óssea que deu origem a uma grave escoliose(3), a corcunda que pode ser vista na capa de uma biografia escrita sobre ele. Apesar da doença ou talvez por causa dela, em 1553, Anchieta embarcou para o Brasil com a missão de catequisar. Um ano depois, em 25 de janeiro de 1554, fundou, com Manoel da Nóbrega, o colégio de Piratininga, em torno do qual se formou o povoado que deu origem à nossa cidade. Daqui, ele foi enviado para São Vicente, onde exerceu a sua missão e aprendeu o tupi, cuja gramática foi objeto do livro escrito, dois anos antes da sua morte, Arte da gramática da língua mais usada na costa do Brasil. Anchieta escrevia na sua língua materna, o espanhol. Só depois traduzia para o português e o tupi. Morreu no Espirito Santo, em 1597, e foi canonizado em 2014 pelo papa Francisco, também jesuíta.O que me chama a atenção na história de Anchieta é a sua resiliência e a sua escuta. Teve uma deformação na coluna que o dobrou em dois. A escoliose dói e é possível que a tuberculose óssea tenha deixado sequelas para as quais, na época, não havia tratamento algum. Anchieta teve a doença quando jovem e, portanto, resistiu à dor ao longo da vida. Me perguntei como isso foi possível e encontrei a resposta no texto de um contemporâneo dele, Montaigne, que sofreu as dores atrozes do cálculo renal.
Segundo Montaigne (3), o que atormenta os homens não são as coisas, e
sim as opiniões que eles têm das coisas. Graças ao julgamento, nós temos o poder de transformar o mal que nos afeta num bem. Se o que nós chamamos de mal não é um mal em si e, se a qualidade de bem ou mal é conferida às coisas pela nossa imaginação, nós podemos mudar a qualidade das coisas – e seríamos loucos de valorizar o que nos atormenta. Anchieta foi capaz de se valer da dor para se superar. A sua história é exemplar por isso, porém não só. Para exercer a sua missão de catequisador, ele primeiro escutou o índio, ou seja, se dispôs a aprender para ensinar. Além de ter aprendido o tupi-guarani, se valeu do aprendizado para legar uma gramática à língua dos índios, fazendo dela uma língua transmissível para as gerações futuras. Só cumpriu a sua missão, valorizando a cultura do outro. Isso não aconteceu por acaso, mas porque Anchieta foi repetidamente o outro. Anchieta foi quase sempre o estrangeiro. Nasceu na Espanha, fez a sua formação em Portugal e se radicou no Brasil. Tendo sido privado da sua língua materna, o espanhol, no qual primeiro escrevia os seus textos, Anchieta sabia da falta que a língua materna faz para o indivíduo. Sentiu na pele o drama do índio, drama que se expressa no terceiro aforismo do Manifesto Antropofágico de Oswald : tupi or not tupi, that is the question.
Anchieta indicou o caminho para os modernistas. O que queriam eles senão
celebrar o nosso multiculturalismo? Absorver a cultura do outro, degluti-la para dar origem ao que é nosso. Se Mário de Andrade quis que a nossa língua escrita fosse atrelada à língua oral, é porque ele sabia da importância do tupi e das línguas africanas na formação do português do Brasil, que é o nosso, mas também o dos outros lusófonos, como é nossa a língua deles. Vale lembrar que o português é a quinta língua mais falada no mundo. Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Principe, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Timor-Leste...
A língua portuguesa do Brasil aconteceu, segundo Mário de Andrade,
quando a língua de Portugal atravessou o mar e provou a mandioca e o azeite de dendê. Por isso, num dos seus poemas, ele fala da sua alma crivada de raças (4). Na tradição de José de Anchieta, que conhecia o latim, o espanhol, o português e o tupi, Mário de Andrade se interessou pelas falas de todas as raças, amou a língua de São Paulo, que tem mil e uma línguas. Nunca me conformei com o fato de não falar a língua dos meus ancestrais, o árabe, que eu não aprendi porque o imigrante frequentemente considera que o esquecimento favorece a integração. Trata-se de uma negação das origens, tema do Lacan ainda, um livro que eu escrevi para fazer jus ao meu mestre e porque a psicanálise é tão necessária hoje quanto no tempo de Freud, graças a quem os doentes deixaram de ser tratados só com medicamentos e enviados aos sanatórios. Isso porque o fundador da Psicanálise deu à escuta uma dignidade que ela não tinha, oferecendo-nos a arma mais poderosa para conquistar a paz, cuja duração requer um empenho contínuo pois a pulsão de morte existe e nós tendemos a nos repetir. Tanto a psicanálise quanto a literatura existem para defender os valores da dignidade humana. A importância das mulheres nestes dois campos do saber é notória. Como não posso falar de todas, vou falar de uma que poderia encabeçar a lista das mulheres impressionantes: Svetlana Alexievitch, Prêmio Nobel de Literatura e autora de Vozes de Tchernobil. Por que falar de Svetlana? Pela importância que ela dá à escuta para revelar a história subjetiva do mundo contemporâneo, a história subterrânea de Belarus, onde as autoridades procuraram dissimular a verdade sobre Tchernobil.
Svetlana subverteu a literatura, dizendo que, no mundo surreal em que
vivemos, não se pode escrever como Flaubert e é preciso ouvir as vozes das vítimas das calamidades que poderiam ter sido evitadas e das outras calamidades que virão se a política não se tornar ecológica e se a geopolítica não integrar o saber da Psicanálise para evitar a guerra. A obra de Svetlana convida o escritor a lutar contra a ideologia do ódio e o negacionismo. Um convite que pode fecundar a nossa literatura, dando origem aos relatos mais pungentes sobre o Brasil. Para terminar, preciso dizer que o homem não é feito só de desespero; ele também é feito de fé e esperança, da sede de viver e de se alegrar. Conforme lembra o Eclesiastes: Há um momento para tudo e um tempo para cada coisa na terra/ Um tempo para chorar e um tempo para rir/ Um tempo para o luto e um tempo para dançar. Na trilha do Eclesiastes, quero ainda dizer que o vinho nos espera para celebrar o encontro e eu concluo lembrando o que diz um outro latino- americano, Ernesto Sábato : «não são nem as paredes, nem o teto, nem o solo que dão a uma casa a sua personalidade, e sim os seres que aí vivem, com as suas conversas e os seus risos, suas raivas e seus amores» (5). ObrigadA a todos pela presença 1. Montaigne, Ensaios, Capítulo XX.
2. Célio Debes, Revista APL 113.
3. Montaigne, Ensaios, Capítulo XIV.
4. Mário de Andrade, poema «Improviso do Mal da América», em Remate de males.