Este trabalho tem o propósito de apresentar um recorte da pesquisa em
desenvolvimento no Doutorado em Educação da UFPel cujo problema investigativo são as relações entre Linguística Teórica (LT) e Linguística Aplicada (LA). Dentre os objetivos da pesquisa, destaco a relevância de problematizar as relações entre LT e LA tendo como fundamento as diferentes compreensões acerca do estatuto científico de cada campo de estudo. A partir disso, é salutar discutir sobre o distanciamento de compreensões em relação às diferentes áreas da linguística (teórica e aplicada) e, consequentemente, sobre o paradoxo entre pesquisa teórica e pesquisa aplicada na concepção dos linguistas. Como objetivos específicos, a pesquisa busca resgatar discursos que contribuíram para a constituição dos campos de estudo analisados e, além disso, compreender como essas áreas se constituem e se relacionam atualmente. Tenho, para tanto, duas premissas essenciais: a) os significados atribuídos às coisas se dão por meio dos discursos que as constituem; b) esses discursos socialmente construídos, especialmente aqueles relativos à ciência, fizeram/fazem com que essas áreas de investigação atuassem/atuem de acordo com determinadas construções sociais que abalizam determinadas compreensões de produzir conhecimento em detrimento de outras. Para este trabalho, serão evidenciados apenas os aspectos que tangem à Linguística Aplicada como objeto de estudo. Todavia, os contornos gerais da pesquisa, bem como o referencial teórico-metodológico empregado serão apresentados para melhor elucidação do tema.
2. METODOLOGIA
A metodologia utilizada na pesquisa ora mencionada intenta averiguar as
recorrências discursivas, que contribuem para a construção daquilo que se diz sobre LT e LA, uma vez que procura refletir sobre de que maneira os usos da linguagem resultam em implicações sociais. Dessa forma, significa dizer que a metodologia cumpre a função de problematizar a pesquisa enquanto uma contribuição de entendimento do mundo contemporâneo, bem como o entendimento das produções advindas das práticas discursivas resgatadas. Assim, o objeto deste estudo consiste em livros de linguística (teórica/geral e aplicada), manuais elaborados para disciplinas do Curso de Letras (disponíveis na internet), bem como artigos publicados em revistas e artigos compilados em livros da área. Durante o processo de aprofundamento teórico para balizar o objeto de estudo, percebi a recorrência de conceituações e de termos que atribuem conceitos à área de LA em detrimento à LT – especialmente no que diz respeito à relevância social e acadêmico-científica da linguística (OLIVEIRA, 2007). O método utilizado, conforme apontado por Veiga-Neto (2009, p.84) sobre a teoria e método em Michel Foucault, pode ser entendido como “o caminho que nos leva a algum lugar, para uma abordagem, para um entendimento”. Ademais, se enquadra no viés da pesquisa documental de investigação temática, já que se baseia na indagação e organização e consequente análise e interpretação de dados a respeito do tema escolhido para a pesquisa. Nesse sentido, o trabalho sistemático de leitura, análise, escolha e síntese de informações, produzidas por outros autores, deu origem a uma nova informação – que é, justamente, o problema da pesquisa. Uma vez que as informações utilizadas, primariamente, tenham sido produzidas por outros autores, cabe mencionar que nesse exercício de pesquisa documental são (re)construídos os caminhos já percorridos, dado que são estabelecidas conexões para aprimorar informações e convertê-las em conhecimento. São reconstruídas, portanto, de maneira diferente, a informação produto de outras análises para uma nova análise. Algumas das ferramentas metodológicas do filósofo francês Michel Foucault contribuem nesse percurso para que se possa trabalhar com o conceito de discurso. Já o sociólogo, antropólogo e filósofo da ciência Bruno Latour contribui com a discussão a respeito de ciência, pesquisa e atividade científica. Este trabalho se propõe, assim, a discutir a referida noção tomando como parâmetro de comparação as reflexões gestadas no âmbito dessas duas vertentes teórico-metodológicas. Estabelece-se, portanto, como um estudo de natureza contrastiva não histórica, mas conceitual.
3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os diferentes entendimentos sobre pesquisa teórica e pesquisa aplicada
baseiam-se, em grande medida, a meu ver, em virtude das distintas compreensões em relação ao que é tido como ciência e, consequentemente, como pesquisa. Esse aparente paradoxo, entre a ciência feita e a ciência que se está fazendo, ocorre em razão da representação clássica dada à ciência e, por outro lado, do entendimento que se tem sobre a pesquisa fundamental, ou seja, a pesquisa em andamento e, portanto, ainda não finalizada (LATOUR, 1994). Partindo do princípio, como proposto por Latour (1994, p.3), de que “trabalhando sobre a pesquisa científica, nós nos interessamos à ciência que se faz, quer dizer, à prática científica”, podemos entender o continuum que faz da pesquisa a ciência. Quero dizer: para chegar-se ao fato (dado) é necessário que esse fato seja feito (processo). Contudo, a concepção de maior destaque é dada para a ciência pronta, já feita, para o resultado, e não para o processo. Mesmo pesquisadores que sabem e conhecem esse caminho não se identificam nas figuras de representantes dos fatos, já que ainda não chegaram ao famigerado resultado e estão atuando no (necessário) processo. Latour (1994, p.2) adverte que
[...] nem a filosofia das ciências, nem a concepção que o pesquisador
tem de sua própria atividade segue essa evolução. Daí decorreu um divórcio um pouco esquizóide entre a prática e a teoria da prática, divórcio que os cientistas vivem de maneira negativa, como um mal- estar, e de forma alguma de maneira positiva, como uma chance de reinterpretar, de se reapropriar de seus trabalhos de pesquisa. Eles consideram mais ou menos conscientemente que não estão à altura de seus sonhos de cientistas, que são, de alguma forma, falidos da verdadeira ciência, que deve provavelmente existir em algum (outro) lugar.
De maneira geral, a comunidade não científica também se atém mais ao
que já é dado como fato do que ao que está sendo feito, o que amplia ainda mais a concepção de que pesquisa não é (não faz parte do) processo da ciência. Embora, portanto, seja tênue a linha que mantém atreladas ciência e pesquisa, ainda há a compreensão de que a ciência feita é a prova fidedigna e cabal, a verdadeira ciência de um processo que não é pensado – nem considerado. Latour (1994), ademais, faz ver que cientistas não possuem a mítica neutralidade científica e, portanto, envolvem-se e misturam-se com seus objetos de estudo em uma relação praticamente íntima. A atividade científica não está imune às paixões e aos interesses de um pesquisador/cientista, assim como não está imune à poluição dos discursos – estes que, também, não são neutros. De acordo com Foucault (2014), os discursos são controlados, escolhidos e ordenados. Uma das formas de controle se dá por intermédio de instituições (sociedade, livros, laboratórios) que os instauram e/ou reproduzem com o objetivo de dominá-los e conduzi-los para estabelecer uma verdade. De acordo com a visão foucaultiana, é necessário negar a busca pelo sentido último, ou o sentido oculto, das coisas para que discursos sejam analisados. Os discursos não são apenas um conjunto de signos que fazem referência a coisas ou denominam determinados objetos em um esquema linguístico. O discurso carrega em si as relações com o tempo (o que foi construído sobre determinado conceito, por exemplo, com o passar do tempo) e constitui significados. De acordo com essa perspectiva, o discurso não é único em si mesmo, uma vez que é carregado de sentidos, e também atua como produtor de sentidos à medida que constitui práticas sociais. É preciso, portanto, despir-se de teorias que tentem demonstrar ideias totalizantes ou que renegam o passado em razão do presente. O modelo clássico da ciência é uma construção humana e os problemas da ciência são criados pelos regimes do discurso em que, abro um parêntese, o discurso legítimo é o científico. Foucault (2008) alerta que é necessário desalojar aquilo que é tido como verdade nos discursos sem, contudo, atrelar-se a reducionismos. Propõe, desse modo, que sejam potencializadas outras maneiras de olhar que não encerrem outras formas de entendimento, visto que não há um depois que supere o antes. Um dos aspectos para o qual eu chamo a atenção é a relação existente entre os linguistas e as formas como se dão os discursos sobre essa relação. Autores (ALMEIDA FILHO, 1991; CELANI, 1992, para citar somente alguns) têm utilizado o termo complexo de inferioridade para referirem-se aos linguistas aplicados quando em comparação aos linguistas ditos teóricos. A LA tem (ou pode ter, mas não se restringe apenas a) o sentido de aplicação da linguística e, desse modo, linguistas aplicados, por vezes, sentem-se como não pertencentes a esse lugar, conforme expressa Almeida Filho (1991, p.5):
[...] quanto mais lingüista fosse o lingüista aplicado, tanto melhor
aplicador ele seria. Ou por outra, para ser um bom lingüista aplicado, seria necessário e suficiente um forte embasamento teórico em Lingüística. Por esse raciocínio, quando o lingüista aplicado e o lingüista trabalham em uma mesma instituição, próximos um do outro, não seria incomum um sentimento de superioridade acadêmica de parte do lingüista teórico, que detém conhecimento científico primário. Isso se justificaria pelo fato do lingüista aplicado não ser um lingüista igual. A aceitação desse próprio pressuposto pelo lingüista aplicado pode levá-lo a um sentimento de inadequação teórica e, finalmente, a um indisfarçado sentimento de inferioridade.
Almeida Filho (1991) traz à tona, eu considero, a mais complexa das
relações possíveis entre LT e LA, aquela que se dá entre os sujeitos pertencentes a este ou àquele campo de estudo. Há, nesse embate, disputas pelo poder, disputas pelo saber: quem, ou qual dos linguistas, é o mais notável no meio acadêmico ou detém conhecimento científico? Ainda sobre essa questão, Celani (1992, p.21) afirma que a área de LA e, consequentemente, os linguistas aplicados, somente ganharão forças enquanto área de pesquisa se, por ventura, “se dispuserem a fazer LA sem o injustificável complexo de inferioridade, ao invés de fazerem aplicação da Linguística”. É necessário contextualizar a ideia de Celani, que fez essa menção no início da década de 90. Contudo, passados mais de vinte anos, embora em menor escala, tal complexo ainda ronda linguistas aplicados, conforme expressam Rocha e Daher (2015, p.127): “o complexo de inferioridade a que se faz referência – e que [...] (ainda) é excessivamente presente na academia – tem por base uma compreensão não necessariamente adequada da relação entre teoria e prática”.
4. CONCLUSÕES
Tendo como proposta essa analítica, a problematização desta pesquisa
constituirá na contextualização dos discursos resgatados valorizando a multiplicidade de vozes que os constituem, sem, contudo, aplicar generalizações. O discurso aqui, portanto, deve ser entendido de acordo com a proposta de Foucault (2008, 2014): como práticas organizadoras da realidade (ainda que sejam, evidentemente, constituído de signos), cujo cerne está no papel que exerce nas práticas saciais, bem como nas relações entre indivíduos – e, acrescento, entre os objetos de estudo, ou seja, a LT e LA.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA FILHO, J. C. P. de. Maneiras de compreender Lingüística Aplicada.
Letras. Santa Maria, n. 2, pp.1-17, jul./dez., 1991.
CELANI, M. A. A. Afinal, o que é Lingüística Aplicada? In: ____. (Orgs.).
Lingüística Aplicada: Da Aplicação da Lingüística à Lingüística Transdisciplinar. São Paulo: EDUC/PUC-SP, 1992.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 7 Ed.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula inaugural no College de France,
pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. 24 Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
LATOUR, B. A profissão de pesquisador: olhar de um antropólogo. In:
Conferência-Debate no Instituto Nacional da Pesquisa Agronómica (INRA). Paris: 1994. 36p.
OLIVEIRA, G. M. de. A “virada político-linguística” e a relevância social da
lingüística e dos lingüistas. In: CORREIA, Djane Antonucci (Org.). A relevância social da Linguística: linguagem, teoria e ensino. São Paulo: Parábola Editorial; Ponta Grossa, PR: UEPG, 2007.
VEIGA-NETO, A. Teoria e Método em Michel Foucault: (im)possibilidades.
Cadernos de Educação. Faculdade de Educação/UFPel. Ano 18, n.34, set./dez., 2009. Ed. Universitária: Pelotas.