A Linguistica Aplicada e Uma Ciencia

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A Linguística Aplicada é uma ciência?

O que nos dizem os discursos

BIANCA ALVES LEHMANN1; JARBAS SANTOS VIEIRA2


1Universidade Federal de Pelotas – [email protected]
2Universidade Federal de Pelotas – [email protected]

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho tem o propósito de apresentar um recorte da pesquisa em


desenvolvimento no Doutorado em Educação da UFPel cujo problema
investigativo são as relações entre Linguística Teórica (LT) e Linguística Aplicada
(LA). Dentre os objetivos da pesquisa, destaco a relevância de problematizar as
relações entre LT e LA tendo como fundamento as diferentes compreensões
acerca do estatuto científico de cada campo de estudo. A partir disso, é salutar
discutir sobre o distanciamento de compreensões em relação às diferentes áreas
da linguística (teórica e aplicada) e, consequentemente, sobre o paradoxo entre
pesquisa teórica e pesquisa aplicada na concepção dos linguistas. Como
objetivos específicos, a pesquisa busca resgatar discursos que contribuíram para
a constituição dos campos de estudo analisados e, além disso, compreender
como essas áreas se constituem e se relacionam atualmente. Tenho, para tanto,
duas premissas essenciais: a) os significados atribuídos às coisas se dão por
meio dos discursos que as constituem; b) esses discursos socialmente
construídos, especialmente aqueles relativos à ciência, fizeram/fazem com que
essas áreas de investigação atuassem/atuem de acordo com determinadas
construções sociais que abalizam determinadas compreensões de produzir
conhecimento em detrimento de outras.
Para este trabalho, serão evidenciados apenas os aspectos que tangem à
Linguística Aplicada como objeto de estudo. Todavia, os contornos gerais da
pesquisa, bem como o referencial teórico-metodológico empregado serão
apresentados para melhor elucidação do tema.

2. METODOLOGIA

A metodologia utilizada na pesquisa ora mencionada intenta averiguar as


recorrências discursivas, que contribuem para a construção daquilo que se diz
sobre LT e LA, uma vez que procura refletir sobre de que maneira os usos da
linguagem resultam em implicações sociais. Dessa forma, significa dizer que a
metodologia cumpre a função de problematizar a pesquisa enquanto uma
contribuição de entendimento do mundo contemporâneo, bem como o
entendimento das produções advindas das práticas discursivas resgatadas.
Assim, o objeto deste estudo consiste em livros de linguística (teórica/geral e
aplicada), manuais elaborados para disciplinas do Curso de Letras (disponíveis na
internet), bem como artigos publicados em revistas e artigos compilados em livros
da área. Durante o processo de aprofundamento teórico para balizar o objeto de
estudo, percebi a recorrência de conceituações e de termos que atribuem
conceitos à área de LA em detrimento à LT – especialmente no que diz respeito à
relevância social e acadêmico-científica da linguística (OLIVEIRA, 2007).
O método utilizado, conforme apontado por Veiga-Neto (2009, p.84) sobre a
teoria e método em Michel Foucault, pode ser entendido como “o caminho que
nos leva a algum lugar, para uma abordagem, para um entendimento”. Ademais,
se enquadra no viés da pesquisa documental de investigação temática, já que se
baseia na indagação e organização e consequente análise e interpretação de
dados a respeito do tema escolhido para a pesquisa. Nesse sentido, o trabalho
sistemático de leitura, análise, escolha e síntese de informações, produzidas por
outros autores, deu origem a uma nova informação – que é, justamente, o
problema da pesquisa. Uma vez que as informações utilizadas, primariamente,
tenham sido produzidas por outros autores, cabe mencionar que nesse exercício
de pesquisa documental são (re)construídos os caminhos já percorridos, dado
que são estabelecidas conexões para aprimorar informações e convertê-las em
conhecimento. São reconstruídas, portanto, de maneira diferente, a informação
produto de outras análises para uma nova análise.
Algumas das ferramentas metodológicas do filósofo francês Michel
Foucault contribuem nesse percurso para que se possa trabalhar com o conceito
de discurso. Já o sociólogo, antropólogo e filósofo da ciência Bruno Latour
contribui com a discussão a respeito de ciência, pesquisa e atividade científica.
Este trabalho se propõe, assim, a discutir a referida noção tomando como
parâmetro de comparação as reflexões gestadas no âmbito dessas duas
vertentes teórico-metodológicas. Estabelece-se, portanto, como um estudo de
natureza contrastiva não histórica, mas conceitual.

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os diferentes entendimentos sobre pesquisa teórica e pesquisa aplicada


baseiam-se, em grande medida, a meu ver, em virtude das distintas
compreensões em relação ao que é tido como ciência e, consequentemente,
como pesquisa. Esse aparente paradoxo, entre a ciência feita e a ciência que se
está fazendo, ocorre em razão da representação clássica dada à ciência e, por
outro lado, do entendimento que se tem sobre a pesquisa fundamental, ou seja, a
pesquisa em andamento e, portanto, ainda não finalizada (LATOUR, 1994).
Partindo do princípio, como proposto por Latour (1994, p.3), de que
“trabalhando sobre a pesquisa científica, nós nos interessamos à ciência que se
faz, quer dizer, à prática científica”, podemos entender o continuum que faz da
pesquisa a ciência. Quero dizer: para chegar-se ao fato (dado) é necessário que
esse fato seja feito (processo). Contudo, a concepção de maior destaque é dada
para a ciência pronta, já feita, para o resultado, e não para o processo. Mesmo
pesquisadores que sabem e conhecem esse caminho não se identificam nas
figuras de representantes dos fatos, já que ainda não chegaram ao famigerado
resultado e estão atuando no (necessário) processo. Latour (1994, p.2) adverte
que

[...] nem a filosofia das ciências, nem a concepção que o pesquisador


tem de sua própria atividade segue essa evolução. Daí decorreu um
divórcio um pouco esquizóide entre a prática e a teoria da prática,
divórcio que os cientistas vivem de maneira negativa, como um mal-
estar, e de forma alguma de maneira positiva, como uma chance de
reinterpretar, de se reapropriar de seus trabalhos de pesquisa. Eles
consideram mais ou menos conscientemente que não estão à altura de
seus sonhos de cientistas, que são, de alguma forma, falidos da
verdadeira ciência, que deve provavelmente existir em algum (outro)
lugar.

De maneira geral, a comunidade não científica também se atém mais ao


que já é dado como fato do que ao que está sendo feito, o que amplia ainda mais
a concepção de que pesquisa não é (não faz parte do) processo da ciência.
Embora, portanto, seja tênue a linha que mantém atreladas ciência e pesquisa,
ainda há a compreensão de que a ciência feita é a prova fidedigna e cabal, a
verdadeira ciência de um processo que não é pensado – nem considerado.
Latour (1994), ademais, faz ver que cientistas não possuem a mítica
neutralidade científica e, portanto, envolvem-se e misturam-se com seus objetos
de estudo em uma relação praticamente íntima. A atividade científica não está
imune às paixões e aos interesses de um pesquisador/cientista, assim como não
está imune à poluição dos discursos – estes que, também, não são neutros. De
acordo com Foucault (2014), os discursos são controlados, escolhidos e
ordenados. Uma das formas de controle se dá por intermédio de instituições
(sociedade, livros, laboratórios) que os instauram e/ou reproduzem com o objetivo
de dominá-los e conduzi-los para estabelecer uma verdade.
De acordo com a visão foucaultiana, é necessário negar a busca pelo
sentido último, ou o sentido oculto, das coisas para que discursos sejam
analisados. Os discursos não são apenas um conjunto de signos que fazem
referência a coisas ou denominam determinados objetos em um esquema
linguístico. O discurso carrega em si as relações com o tempo (o que foi
construído sobre determinado conceito, por exemplo, com o passar do tempo) e
constitui significados. De acordo com essa perspectiva, o discurso não é único em
si mesmo, uma vez que é carregado de sentidos, e também atua como produtor
de sentidos à medida que constitui práticas sociais. É preciso, portanto, despir-se
de teorias que tentem demonstrar ideias totalizantes ou que renegam o passado
em razão do presente.
O modelo clássico da ciência é uma construção humana e os problemas da
ciência são criados pelos regimes do discurso em que, abro um parêntese, o
discurso legítimo é o científico. Foucault (2008) alerta que é necessário desalojar
aquilo que é tido como verdade nos discursos sem, contudo, atrelar-se a
reducionismos. Propõe, desse modo, que sejam potencializadas outras maneiras
de olhar que não encerrem outras formas de entendimento, visto que não há um
depois que supere o antes.
Um dos aspectos para o qual eu chamo a atenção é a relação existente
entre os linguistas e as formas como se dão os discursos sobre essa relação.
Autores (ALMEIDA FILHO, 1991; CELANI, 1992, para citar somente alguns) têm
utilizado o termo complexo de inferioridade para referirem-se aos linguistas
aplicados quando em comparação aos linguistas ditos teóricos. A LA tem (ou
pode ter, mas não se restringe apenas a) o sentido de aplicação da linguística e,
desse modo, linguistas aplicados, por vezes, sentem-se como não pertencentes a
esse lugar, conforme expressa Almeida Filho (1991, p.5):

[...] quanto mais lingüista fosse o lingüista aplicado, tanto melhor


aplicador ele seria. Ou por outra, para ser um bom lingüista aplicado,
seria necessário e suficiente um forte embasamento teórico em
Lingüística. Por esse raciocínio, quando o lingüista aplicado e o lingüista
trabalham em uma mesma instituição, próximos um do outro, não seria
incomum um sentimento de superioridade acadêmica de parte do
lingüista teórico, que detém conhecimento científico primário. Isso se
justificaria pelo fato do lingüista aplicado não ser um lingüista igual. A
aceitação desse próprio pressuposto pelo lingüista aplicado pode levá-lo
a um sentimento de inadequação teórica e, finalmente, a um indisfarçado
sentimento de inferioridade.

Almeida Filho (1991) traz à tona, eu considero, a mais complexa das


relações possíveis entre LT e LA, aquela que se dá entre os sujeitos pertencentes
a este ou àquele campo de estudo. Há, nesse embate, disputas pelo poder,
disputas pelo saber: quem, ou qual dos linguistas, é o mais notável no meio
acadêmico ou detém conhecimento científico? Ainda sobre essa questão, Celani
(1992, p.21) afirma que a área de LA e, consequentemente, os linguistas
aplicados, somente ganharão forças enquanto área de pesquisa se, por ventura,
“se dispuserem a fazer LA sem o injustificável complexo de inferioridade, ao invés
de fazerem aplicação da Linguística”. É necessário contextualizar a ideia de
Celani, que fez essa menção no início da década de 90. Contudo, passados mais
de vinte anos, embora em menor escala, tal complexo ainda ronda linguistas
aplicados, conforme expressam Rocha e Daher (2015, p.127): “o complexo de
inferioridade a que se faz referência – e que [...] (ainda) é excessivamente
presente na academia – tem por base uma compreensão não necessariamente
adequada da relação entre teoria e prática”.

4. CONCLUSÕES

Tendo como proposta essa analítica, a problematização desta pesquisa


constituirá na contextualização dos discursos resgatados valorizando a
multiplicidade de vozes que os constituem, sem, contudo, aplicar generalizações.
O discurso aqui, portanto, deve ser entendido de acordo com a proposta de
Foucault (2008, 2014): como práticas organizadoras da realidade (ainda que
sejam, evidentemente, constituído de signos), cujo cerne está no papel que
exerce nas práticas saciais, bem como nas relações entre indivíduos – e,
acrescento, entre os objetos de estudo, ou seja, a LT e LA.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA FILHO, J. C. P. de. Maneiras de compreender Lingüística Aplicada.


Letras. Santa Maria, n. 2, pp.1-17, jul./dez., 1991.

CELANI, M. A. A. Afinal, o que é Lingüística Aplicada? In: ____. (Orgs.).


Lingüística Aplicada: Da Aplicação da Lingüística à Lingüística Transdisciplinar.
São Paulo: EDUC/PUC-SP, 1992.

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 7 Ed.


Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula inaugural no College de France,


pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio.
24 Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014.

LATOUR, B. A profissão de pesquisador: olhar de um antropólogo. In:


Conferência-Debate no Instituto Nacional da Pesquisa Agronómica (INRA).
Paris: 1994. 36p.

OLIVEIRA, G. M. de. A “virada político-linguística” e a relevância social da


lingüística e dos lingüistas. In: CORREIA, Djane Antonucci (Org.). A relevância
social da Linguística: linguagem, teoria e ensino. São Paulo: Parábola Editorial;
Ponta Grossa, PR: UEPG, 2007.

VEIGA-NETO, A. Teoria e Método em Michel Foucault: (im)possibilidades.


Cadernos de Educação. Faculdade de Educação/UFPel. Ano 18, n.34, set./dez.,
2009. Ed. Universitária: Pelotas.

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