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O mistério de Hamlet

Maria Ivone Accioly Lins


Psicanalista
Fundadora e membro do “Espaço Winnicott –
Estudos em Psicanálise e Cultura”, Rio de Janeiro
E-mail: [email protected]

Resumo: As interpretações dadas por Freud e por Winnicott à hesi-


tação de Hamlet em vingar o pai, vítima de escandaloso fratricídio,
servem à explicitação da diferença entre dois modelos paradigmáticos.
A análise de alguns textos freudianos põe em evidência o complexo
de Édipo, sua universalidade e importância enquanto fator etiológico
das neuroses histéricas. Após algumas considerações sobre a dificul-
dade de ler Freud na contemporaneidade, a apresentação da teoria
winnicottiana da dissociação entre os elementos femininos e mascu-
linos da personalidade oferece uma nova compreensão da inibição do
agir hamletiano com base em problemas de construção de identida-
de anteriores às experiências edípicas.
Palavras-chave: complexo de Édipo, recalque, histeria, dissociação,
elementos masculinos e femininos puros, identidade, instintualidade,
o Ser, o Fazer.

Abstract: The interpretations provided by Freud and Winnicott


regarding the hesitation of Hamlet to revenge his father, the victim
of scandalous fratricidal murder, serve to make explicit the difference
between these two paradigmatic models. The analysis of various
Freudian texts put in evidence the Oedipal Complex, its universality
and its etiological importance for hysterical neuroses. After various
considerations regarding the difficulty of reading Freud in

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Maria Ivone Accioly Lins

contemporary contexts, the presentation of the theory of Winnicott


regarding the dissociation between feminine and masculine elements
in the personality offers a new understanding of Hamlet’s inhibition
to act in terms of problems with the construction of identity anteri-
or to Oedipal experiences.
Key-words: Oedipal complex, repression, hysteria, dissociation, pure
masculine and feminine elements, identity, instinctual, Being, Doing.

No final do século XIX, a leitura de Shakespeare era comum


entre os intelectuais da Europa central. Os biógrafos de Freud nos infor-
mam que Joseph Breuer recorreu, antes de seu aluno, ao dramaturgo
inglês para falar de sua clínica. Ao referir-se às dificuldades encontradas
para diagnosticar um caso de histeria, Breuer escreveu: “As melhores des-
te tipo são ainda obscuras”, citação retirada de Sonho de uma noite de verão
(Gay 1992, p. 164).
Hanns Sachs, em livro de 1945, recorda que nas muitas con-
versas com Freud sobre literatura, Shakespeare costumava ser o tema
mais freqüente. Trechos de sua obra eram sempre citados por Freud no
original, com pronúncia quase perfeita. Ainda estudante, parafraseou
Macbeth em carta a um amigo, e, mais tarde, no papel de enamorado que
conquista a amada, cita Noite de reis em sua correspondência com Martha
Bernays (Gay 1989).
A tragédia de Hamlet, escrita em 1601, há quatro séculos, foi
objeto de um número incontável de estudos. As interpretações psicanalí-
ticas de seu herói têm uma história tão longa quanto a história da própria
psicanálise. Favorita de Freud dentre as obras shakespearianas, a peça foi
citada por ele em vinte e três textos, se incluirmos a primeira citação, em
carta de 15 de outubro de 1897 a Fliess.
Fato bastante conhecido é a revelação que Freud faz ao amigo e
confidente: “Verifiquei, também no meu caso, a paixão pela mãe e o ciú-
me do pai e agora considero isso como um evento universal do início da

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infância” (1897, v. 1).1 Fato, talvez, menos lembrado é que, nessa mesma
ocasião Freud já lança mão da obra shakespeariana, conferindo à tragédia
de Hamlet um papel importante na apresentação de sua teoria do comple-
xo de Édipo, expressão só utilizada por ele treze anos mais tarde.
Na maioria dos trabalhos psicanalíticos sobre Hamlet encon-
tra-se a questão: qual o motivo da hesitação do príncipe da Dinamarca
em vingar a morte do pai, vítima de escandaloso fratricídio? Como vere-
mos mais adiante, é para o complexo de Édipo que Freud aponta ao dar
sua resposta. Vários discípulos, cada um a seu modo, deram interpreta-
ções seguindo a metapsicologia do mestre: destacamos Ernest Jones, Otto
Rank, Melanie Klein e Lacan que, em 1954, dedicou uma série de semi-
nários ao estudo de Hamlet, reforçando, naquela ocasião, a elaboração de
sua teoria do complexo de Édipo (Lacan 1989). Winnicott apresenta algo
de novo quando, em 1966, recorre à mesma tragédia para apresentar sua
teoria da dissociação entre os elementos masculinos e femininos da perso-
nalidade.
“A psicanálise é uma história – e uma maneira de contar histó-
rias”, diz Adam Phillips na Introdução de Beijos, cócegas e tédio (1996,
p. 17). Passagens da história shakespeariana servirão, aqui, de contraponto
às minhas considerações sobre a utilização feita por Freud e por Winnicott
desse clássico da literatura inglesa, acessível em nosso meio tanto no ori-
ginal como em diferentes traduções, e ainda em representações cinema-
tográficas e cênicas que se repetem periodicamente. Para meu relato do
mistério de Hamlet, escolhi a tradução em estilo coloquial, feita por Millôr
Fernandes, mais próxima da escrita winnicottiana.

1 Carta 71 (a Fliess). As obras de Freud são citadas de acordo com a edição eletrônica
Brasileira de Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago.

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Maria Ivone Accioly Lins

1. A tragédia de Hamlet

A peça deixa entender que tudo ia bem com o príncipe da Di-


namarca: querido pelos amigos e idolatrado pelos súditos, era amado pela
adorável Ofélia, filha de Polônio, o conselheiro do Rei. Com a morte do
pai, uma grande mudança se opera nos sentimentos e no comportamento
de Hamlet.
Na esplanada do castelo de Elsinore, o Fantasma do Rei Hamlet
faz suas primeiras aparições para os guardas em sentinela e para Horácio,
o mais fiel dentre os amigos do príncipe. Cláudio, irmão do morto e tio de
Hamlet, ocupa de imediato o lugar do rei, enquanto monarca e agora
esposo de Gertrudes, sua cunhada. Incomodado com o estado de desola-
ção do sobrinho, que passa a ser também enteado, procura, com a coni-
vência da rainha-mãe, dissuadi-lo de sua tristeza: “(...) insistir na ostenta-
ção da mágoa, diz-lhe Cláudio, é teimosia sacrílega; lamento pouco viril
(...) Mente simplória e inculta, (...) Tolice! Ofensa aos céus, ofensa aos
mortos” (Shakespeare 1999 [1601], ato I, cena II, p. 16).
Hamlet responde com ironia às palavras da mãe e do padrasto.
Desesperado com a morte do pai, supostamente vítima da mordida de
uma serpente, e revoltado com o casamento apressado da mãe, expressa
seu repúdio falando consigo mesmo: “Ó tédio, ó nojo. Um pequeno mês,
antes mesmo que gastasse / As sandálias com que acompanhou o corpo
de meu pai. (...) Que pressa infame, correr assim, com tal sofreguidão, ao
leito incestuoso!” (Ibid., p. 18) A Horácio faz um desabafo irônico: “Eco-
nomia, Horácio! Os assados do velório / Puderam ser servidos como frios
na mesa nupcial” (ibid., p. 19).
Laertes, embora amigo de Hamlet, convence a irmã Ofélia a
não levar em conta as manifestações de amor que lhe são dispensadas
pelo príncipe: “Talvez Hamlet te ame, agora, e não haja mácula ou má-
fé (...) [mas] / É um vassalo do seu nascimento. / Não pode, como as
pessoas sem importância, / Escolher a quem deseja” (ibid., cena III,
p. 23). Ofélia passa a evitar Hamlet.

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Levado por Horácio ao lugar das visões, Hamlet testemunhará


nova aparição do Fantasma, tomando, então, conhecimento da verdadei-
ra causa da morte do pai. “Vinga esse desnaturado, infame assassinato”,
diz-lhe o Fantasma. “(...) A serpente, cuja mordida tirou a vida de teu
pai, / Agora usa a nossa coroa. / (...) eu dormia, de tarde, em meu jardim,
/ Como de hábito. / Teu tio entrou furtivamente, trazendo, num frasco /
O suco da ébona maldita / E derramou no pavilhão de meus ouvidos, / A
essência morfética” (ibid., cena V, pp. 31 e 32).
Todos esses acontecimentos causam grande transformação no
príncipe. Ofélia, perplexa, fala com o pai sobre o estado lamentável em
que se encontra Hamlet e a maneira bruta como se dirigiu a ela: “Com o
gibão aberto, / Sem chapéu na cabeça, os cabelos desfeitos, / As meias
sujas, sem ligas, caídas pelos tornozelos, (...) / Me pegou pelo pulso e me
apertou com força. (...) / Por fim, sacudindo meu braço, (...) / Soltou um
suspiro tão doloroso e fundo / Que eu temi pudesse estourar seu corpo”
(ibid., ato II, cena I, p. 40).
Hamlet passará a tratar Ofélia com muito sarcasmo, ironia e
brutalidade. Mais tarde, lhe dirá: “Vai prum convento. Ou preferes ser
geratriz de pecadores? (...) Vai prum conventilho, um bordel” (ibid., ato
III, cena I, p. 65).
As hesitações e auto-reprovações de Hamlet aparecem ao longo
dos quatro primeiros atos. Ao mesmo tempo em que sofre pela demora
em vingar o pai, tenta se justificar, alegando para si mesmo a falta de
provas mais convincentes. Não lhe bastam as revelações feitas por um
Fantasma, de cuja procedência tem dúvidas. Veio do céu ou do inferno?,
indaga-se.
Ao encontrar no castelo os atores itinerantes, conhecidos seus,
Hamlet pede-lhes que encenem uma das peças a que assistira anterior-
mente. Percebendo lágrimas nos olhos da atriz que representa Hécuba
em desespero diante do corpo esquartejado de Príamo, o marido barbara-
mente assassinado, o príncipe dirige a si mesmo uma série de reprova-
ções: “Oh, que ignóbil eu sou, que escravo abjeto! (...) Vivo na lua, insen-

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sível à minha própria causa (...) Sou então um covarde? (...) Fico aqui,
como uma marafona, desafogando minha alma com palavras” (ibid., ato
II, cena II, pp. 59 e 60).
Nesse estado de espírito, planeja fazer os atores representarem,
para toda a corte, uma outra peça em que ocorre um assassinato seme-
lhante ao que lhe contara o Fantasma do pai. A mínima transformação no
rosto do tio confirmaria suas suspeitas e a vingança seria consumada.
Hamlet não só dirige a peça nos mínimos detalhes, mas nela
insere alguns versos de sua autoria. Na cena em que o personagem Luciano
põe veneno no ouvido do rei, diz Hamlet: “Ele envenena o rei no jardim
pra usurpar o Estado. (...) Agora vocês vão ver como o assassino arrebata
o amor da mulher” (ibid., ato III, cena II, p. 76). O rei Cláudio, visivel-
mente perturbado, exige que acendam as luzes, interrompe o espetáculo
e retira-se furioso. A rainha o segue, mandando chamar o filho, com ur-
gência, a seus aposentos.
No caminho ao encontro da mãe, Hamlet, sem ser percebido,
escuta o padrasto proclamar, em tom oratório, seu sentimento de culpa e
sua incapacidade para o arrependimento. O príncipe pensa em matá-lo,
mas novamente hesita e pondera: “(...) ele agora está rezando (...) e assim
ele vai pro céu; (...) Pára, espada, e espera ocasião mais monstruosa! (...)
Quando estiver dormindo bêbado, ou em fúria / Ou no gozo incestuoso
do seu leito” (ibid., cena III, pp. 82 e 83).
Em seus aposentos, a mãe se assusta com as violentas acusações
do filho, e pede socorro. Polônio, que em conluio com o rei e com a anuência
da rainha encontrava-se escondido atrás das cortinas, grita em eco, o que
lhe vale um golpe mortal da espada de Hamlet.
Sob o pretexto de cuidados com a segurança de Hamlet, em
perigo por ter cometido um assassinato, Cláudio o envia à Inglaterra. Em
carta dirigida ao rei, seu fiel tributário, pede a execução sumária do en-
teado, alegando que seu estado alterado põe em risco a vida dos dois
monarcas.

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Rosencrantz e Guildenstern, cortesãos amigos do príncipe, são


designados para acompanhá-lo à Inglaterra. No segundo dia de viagem,
o barco é invadido por piratas. Hamlet os enfrenta saltando para o navio
dos inimigos que, sob promessa de pagamento, são clementes para com
ele. Antes de deixar o barco, porém, ele encontrara a carta em que Cláu-
dio pede sua execução. Dessa feita, o Príncipe não hesita: troca-a por
outra carta, escrita com esmero e bem lacrada, diferente da primeira ape-
nas pela troca de nomes; no lugar do seu, escreve Rosencrantz e
Guildenstern. Vendo-se livres do perigo, os infelizes dão prosseguimento
à viagem para a Inglaterra, levando a carta em sua nova versão.

2. Freud e a histeria de Hamlet

Tratemos agora de uma outra carta, daquela em que, usando o


método socrático, Freud comunica a Fliess sua grande descoberta. Eis as
perguntas dirigidas ao amigo:

Como é que ele [Hamlet] consegue explicar sua hesitação em vin-


gar o pai assassinado através do seu tio? De que outro modo poderia
justificar-se melhor do que mediante o tormento de que padece com
a obscura lembrança de que ele próprio planejou perpetrar a mesma
ação contra seu pai, por causa da paixão pela mãe? (...) Sua consciên-
cia moral, conclui Freud, é seu sentimento inconsciente de culpa.
(Freud 1897)

Freud parece não ter dúvidas quanto ao diagnóstico da doença


do príncipe. Para ele, Hamlet, portador de distúrbio neurótico, é o exem-
plo perfeito de um histérico.

Como é que o histérico Hamlet consegue justificar suas palavras:


“Assim a consciência nos torna a todos covardes”? (...) e não será seu
afastamento sexual, na conversa com Ofélia, tipicamente histérico? e
sua rejeição do instinto que visa a procriar filhos? Que dizer de ter ele

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transferido a ação de seu pai para o de Ofélia? (...) Como é que ele
consegue explicar sua hesitação em vingar o pai assassinado através
do seu tio – ele, o homem que, sem nenhum escrúpulo, envia à morte
seus cortesãos e efetivamente se precipita ao matar Laertes? (Ibid.)

Na peça, como vimos, a vítima da impetuosidade de Hamlet é


Polônio, o pai de Laertes. O engano de Freud foi considerado pelos seus
seguidores como ato falho ligado a seu próprio conflito edipiano.
N’A interpretação dos sonhos (1900), Freud recorre, novamente, à
tragédia de Hamlet ao indagar: “O que é, então, que impede Hamlet de
cumprir a tarefa imposta pelo fantasma do pai?” (Freud 1900).
E ainda nesse texto, tendo em mente a morte de Rosencrants e
Guildenstern, afirma:

Hamlet é capaz de fazer qualquer coisa – salvo vingar-se do homem


que eliminou seu pai e tomou o lugar deste junto a sua mãe, o ho-
mem que lhe mostra os desejos recalcados de sua própria infância,
realizados. Desse modo, o ódio que deveria impeli-lo à vingança é
nele substituído por auto-recriminações, por escrúpulos de consciên-
cia que o fazem lembrar que ele próprio, literalmente, não é melhor
do que o pecador a quem deve punir. (Ibid.)

Embora Freud igualasse Hamlet a Édipo, no que diz respeito à


trama edipiana, a diferença do tratamento dado a uma mesma matéria
por Sófocles e por Shakespeare não lhe passou despercebida. É o que
mostra sua afirmação:

No Oedipus, a fantasia infantil imaginária que subjaz ao texto é aber-


tamente exposta e realizada, como o seria num sonho. Em Hamlet,
ela permanece recalcada e – tal como no caso de uma neurose – só
ficamos cientes de sua existência através de suas conseqüências
inibidoras. (Ibid.)

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A causa dessa divergência é atribuída, por Freud, ao progresso


do recalcamento na vida mental de indivíduos vivendo em épocas da civi-
lização separadas por mais de dois mil anos (415 a.C./1601).
Em seu texto Sobre a psicoterapia (1905), Freud defende a técnica
psicanalítica do uso indevido feito por aqueles que a consideram fácil e
evidente. Depois de afirmar que “o instrumento anímico não é assim tão
fácil de tocar”, faz referência às tentativas feitas por Rosencrantz e
Guildenstern para arrancar de Hamlet seu segredo, ou seja, seus senti-
mentos edípicos recalcados.

(...) não posso deixar de pensar nas palavras de um neurótico mun-


dialmente famoso. Refiro-me a Hamlet, Príncipe da Dinamarca. O
Rei enviara dois cortesãos, Rosencrantz e Guildenstern, para sondá-
lo e arrancar dele o segredo de seu desgosto. Ele os repele; aparecem
então algumas flautas no palco. Tomando uma delas, Hamlet pede a
um de seus algozes que a toque, o que seria tão fácil quanto mentir.
O cortesão se recusa, pois não conhece o manejo do instrumento e,
não conseguindo persuadi-lo a tentar, Hamlet finalmente explode:
“Pois vede agora em que mísera coisa me transformais! Quereis to-
car-me; (…) quereis arrancar o cerne de meu mistério; pretendeis
extrair-me sons, de minha nota mais grave até o topo de meu diapasão;
e embora haja muita música, excelente voz neste pequenino instru-
mento, não podeis fazê-lo falar. Pelo sangue de Cristo, julgais que
sou mais fácil de tocar do que uma flauta? Chamai-me do instru-
mento que quiserdes, pois se podeis desafinar-me, ainda assim não
me podeis tocar” (ato III, cena 2). (Freud 1905 [1904])

Bela passagem, que nos faz pensar na teoria winnicottiana de


um self inviolável, oculto, incomunicável, mais próxima da interpretação
do mistério de Hamlet dada por Goethe. Escreve Freud: “Segundo a vi-
são que se originou em Goethe e é ainda hoje predominante, Hamlet
representa o tipo de homem cujo poder de ação direta é paralisado por
um desenvolvimento excessivo do intelecto. (Ele está ‘amarelecido, com
a palidez do pensamento’)” (ibid.).

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Maria Ivone Accioly Lins

Freud se mostrou em desacordo com a interpretação de Goethe.


Mais tarde escreverá a Ernest Jones: “Quando escrevi o que me pareceu
ser a solução do mistério, eu não havia empreendido nenhuma pesquisa
especial sobre a literatura acerca de Hamlet, mas sabia quais eram os
resultados de nossos escritores alemães e vi que o próprio Goethe tinha
errado o alvo” (Gay 1989, p. 292). Segundo Jones, Freud considera o fato
de ter sobrepujado até mesmo o grande Goethe uma fonte de satisfação,
difícil de ser avaliada por um estrangeiro.
Os textos apresentados resumem o essencial da interpretação
freudiana. Dentre outros textos sobre a origem edipiana da hesitação de
Hamlet, destaco Personagens psicopáticos no palco,2 de 1905, Luto e melanco-

2 “Somente no neurótico persiste uma luta como a que pode ser tema desse tipo de
drama; nem mesmo nele, porém, o dramaturgo provocará apenas um gozo pela
liberação, mas despertará também uma resistência. O primeiro desses dramas mo-
dernos é Hamlet. Seu tema é a maneira como um homem até então normal torna-se
neurótico devido à natureza particular da tarefa com que se defronta, ou seja, um
homem em quem uma moção até ali recalcada com êxito esforça-se por se impor.
Hamlet distingue-se por três características que parecem importantes para a questão
de que estamos tratando: (1) O herói não é um psicopata, transformando-se em tal
apenas no decorrer da ação. (2) A moção recalcada figura entre as que são igual-
mente recalcadas em todos nós; seu recalcamento faz parte das bases de nosso de-
senvolvimento pessoal, e é justamente ele que a situação [da peça] vem contestar.
Essas duas características facilitam que nos reconheçamos no herói; somos susceptí-
veis ao mesmo conflito que ele, pois ‘quem não perde a razão em certas circunstâncias não
tem nenhuma razão a perder’. (3) Mas parece precondição desse modelo artístico que a
moção que luta por chegar à consciência, por mais notória que se revele, não seja
chamada por seu próprio nome; assim, o processo consuma-se de novo no especta-
dor, com sua atenção distraída, e ele se torna presa de sentimentos, em vez de se
aperceber do que está acontecendo. Poupa-se desse modo, sem dúvida, uma certa
dose de resistência, tal como a que encontramos no trabalho analítico, onde os
retornos do recalcado, por provocarem uma resistência menor, chegam à consciên-
cia, ao passo que o próprio recalcado não consegue fazê-lo. Em Hamlet, de fato, o
conflito está tão oculto que coube a mim desvendá-lo. É possível que, por se
desconsiderarem essas três precondições, muitos outros personagens psicopáticos
sejam tão sem serventia no palco quanto o são na vida real.”

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O mistério de Hamlet

lia,3 de 1917, Estudo autobiográfico,4 de 1925, Dostoiévski e o parricídio,5 de


1928 e, finalmente, O Moisés de Michelângelo,6 escrito em 1939, ano da
morte de Freud.

3 “O melancólico exibe ainda uma outra coisa que está ausente no luto – uma dimi-
nuição extraordinária de sua auto-estima, um empobrecimento de seu ego em grande
escala. (...) Seria igualmente infrutífero, de um ponto de vista científico e terapêutico,
contradizer um paciente que faz tais acusações contra seu ego. Certamente, de al-
guma forma, ele deve estar com a razão, e descreve algo que é como lhe parece ser.
Devemos, portanto, confirmar de imediato, e sem reservas, algumas de suas decla-
rações. Ele se encontra, de fato, tão desinteressado e tão incapaz de amor e de
realização quanto afirma. Mas isso, como sabemos, é secundário; trata-se do efeito
do trabalho interno que lhe consome o ego – trabalho que, nos sendo desconhecido,
é, porém, comparável ao do luto. O paciente também nos parece justificado em
fazer outras auto-acusações; apenas, ele dispõe de uma visão mais penetrante da
verdade do que outras pessoas, que não são melancólicas. Quando, em sua exacer-
bada autocrítica, ele se descreve como mesquinho, egoísta, desonesto, carente de
independência, alguém cujo único objetivo tem sido ocultar as fraquezas de sua
própria natureza, pode ser, até onde sabemos, que tenha chegado bem perto de se
compreender a si mesmo; ficamos imaginando, tão-somente, por que um homem
precisa adoecer para ter acesso a uma verdade dessa espécie. Com efeito, não pode
haver dúvida de que todo aquele que sustenta e comunica a outros uma opinião de
si mesmo como esta (opinião que Hamlet tinha a respeito tanto de si quanto de
todo mundo) está doente, quer fale a verdade, quer se mostre mais ou menos injusto
para consigo mesmo. Tampouco é difícil ver que, até onde podemos julgar, não há
correspondência entre o grau de autodegradação e sua real justificação.”
4 “Grande número de sugestões me ocorreu a partir do complexo de Édipo, cuja
ubiqüidade gradativamente comecei a compreender. (...) A partir da compreensão
dessa tragédia do destino só restava um passo para compreender uma tregédia de
caráter – Hamlet, objeto de admiração por trezentos anos, sem que seu significado
tivesse sido descoberto ou os motivos de seu autor adivinhados. Mal poderia haver
a possibilidade de que essa criação neurótica do poeta viesse a malograr, como seus
inúmeros companheiros da vida real, sobre o complexo de Édipo, pois Hamlet viu-
se defrontado com a tarefa de tirar vingança de outro pelos dois feitos que são o
tema dos desejos de Édipo; e diante daquela tarefa seu braço ficou paralisado pelo
seu próprio obscuro sentimento de culpa.”
5 “Embora Hamlet devesse vingar esse crime, de modo bastante estranho descobre-
se incapaz de fazê-lo. Seu sentimento de culpa, tal como acontece com os neuróticos,
é deslocado para a percepção de sua inaptidão em cumprir sua missão.”
6 “Só a partir do momento em que a origem do material da peça foi remontada pela
psicanálise ao tema edipiano, o mistério de seu efeito foi por fim explicado. (...) que

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Maria Ivone Accioly Lins

Como ler Freud, hoje? Em texto de 1972, ao referir-se à dificul-


dade que encontramos na leitura de Freud, Masud Khan cita um artigo
de lord Snow. Esse distingue dois tipos de compreensão ou duas culturas.
A primeira delas é o que a tradição chama ciência: “uma busca, e busca
bem-sucedida, de entendimento; uma cultura cumulativa que mantém
uma relação orgânica e indissolúvel com seu próprio passado” (Khan 1976,
p. 149). Assinala Snow que nenhum homem de ciência tem necessidade
de ler uma obra original do passado; os físicos da atualidade não pensam
em estudar os trabalhos escritos há cinqüenta anos pelos grandes mes-
tres. O que é substancial nessas matérias está incorporado nos manuais,
nos artigos contemporâneos, na vida atual.
A segunda cultura tem uma relação mais longa e diversificada
com o passado. Denominando essa cultura “humanista”, Snow diz que, tal
como as obras de arte, ela não está destinada a ser incorporada ao presente.
Enquanto o homem ler inglês ou russo, as obras de Shakespeare e Tolstói
devem ser lidas como foram escritas. Por estarem, porém, parcialmente
fora do tempo, elas devem ser objetos de uma dupla interpretação, de modo
a que possamos perceber o que significavam no seu tempo e o que signifi-
cam no nosso. Prossegue Snow: “Seria imbecilidade dizer que qualquer
homem vivo pode compreender a experiência shakespeareana melhor do
que Shakespeare. Ao passo que qualquer estudante de física de dezoito
anos, que se preze, sabe mais física do que Newton” (ibid., p. 151).
Para Masud Khan se, por um lado, Freud se situa na tradição de
Shakespeare e Tolstói, no sentido de que as contribuições dos analistas ao
progresso da psicanálise não substituem a leitura dos escritos freudianos,
por outro lado, todas as pesquisas realizadas depois de Freud modificam a
leitura do que ele escreveu. Diz Khan: “Hoje, Freud só pode ser lido
volume de esforços interpretativos diferentes e contraditórios, que variedade de
opiniões sobre o caráter do herói e as intenções do dramaturgo! Pede Shakespeare a
nossa simpatia para um homem doente, um alfenim fracassado ou um idealista que
simplesmente é bom demais para o mundo real? (...) E no entanto, esses próprios
esforços não revelam a necessidade que sentimos de descobrir nela alguma fonte de
poder além desses?”

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O mistério de Hamlet

criativamente, no contexto da pesquisa contemporânea. (...) [os textos


freudianos] fazem mais do que informar-nos: evocam em nós as possibili-
dades de novo pensamento e esforço clínico”. E acrescenta Khan: “(...) o
mesmo se aplica à obra criativa de qualquer analista, seja um Hartmann,
uma Melanie Klein, ou um Winnicott” (ibid., p. 152).

3. Winnicott: elementos masculinos e femininos puros

Interessado na história mais primitiva da constituição do ser


humano, Winnicott recorre à tragédia de Hamlet para elaborar sua teo-
ria da dissociação entre os elementos masculinos e femininos da persona-
lidade. Tais noções comportam um deslocamento importante em relação
às idéias de Freud sobre masculino e feminino.
A concepção winnicottiana de uma relação puramente femini-
na ao seio dá-se no prolongamento da reflexão freudiana sobre o narcisismo
primário; já a oposição entre os elementos masculinos puros e femininos puros
diz respeito à complementaridade entre dois tipos de relação, em que
apenas o primeiro comporta um elemento instintual. Essa oposição nada
tem a ver com a oposição entre predicados do sujeito (fálico/castrado) ou
entre tipos de comportamento (ativo/passivo).
Winnicott não está falando de gêneros, mas de elementos da
personalidade. Elementos puros, diz o autor, só existem na teoria. Na
prática clínica, e é isso o que mais lhe interessa, o importante é conhecer
o maior ou menor grau de comunicação entre tais elementos.
O elemento masculino puro diz respeito ao erotismo ligado a zonas.
Quando fala dele, Winnicott se refere ao “impulso instintivo na relação
do bebê com o seio e com o amamentar e, subseqüentemente, em relação
com todas as experiências que envolvem as principais zonas erógenas e
em relação a impulsos e satisfações subsidiárias” (1971va [1966], p. 113).7

7 As obras de Winnicott são citadas de acordo com a bibliografia estabelecida por


Knud Hjulmand, publicada no v. 1, n. 2 de Natureza humana.

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Maria Ivone Accioly Lins

As relações do elemento masculino puro podem ser ativas ou


passivas. Ativa e passiva são, portanto, duas faces de uma mesma moeda.
Através do elemento masculino, instintual, o indivíduo, em relação, faz
(excita, agride, satisfaz ou frustra), e deixa que ajam sobre ele (se deixa exci-
tar, agredir, satisfazer ou frustrar).
A noção de elemento feminino puro é uma aplicação do conceito de
objeto subjetivo, desenvolvido por Winnicott a partir dos anos 1960. Para
compreender essa noção, vejamos, inicialmente, a palestra proferida por
ele numa Associação de Escolas Maternais, em 16 de fevereiro de 1966.
Em estilo coloquial, próprio de suas comunicações para médicos, partei-
ras e enfermeiras, Winnicott descreve a história das primeiras relações
entre a mãe e o bebê, embora não se expresse aqui em termos de elemen-
to feminino da personalidade.

Não há nada de místico nisso, alerta Winnicott. A mãe tem um tipo


de identificação muito sofisticada com o bebê, na qual ela se sente
muito identificada com ele, embora, naturalmente, permaneça adul-
ta. O bebê, por outro lado, identifica-se com a mãe nos momentos
calmos de contato, o que é menos uma realização do bebê do que um
resultado do relacionamento possibilitado pela mãe. Do ponto de
vista do bebê, nada existe além dele próprio; a mãe é, portanto, ini-
cialmente, parte dele. (...) Isso é o começo de tudo e confere sentido a
uma palavra muito simples como ser. (1987 [1966], p. 9)

Para Winnicott, o erotismo existe desde o início da vida, não,


porém, como sensações experimentadas em zonas corporais específicas,
mas como expressão da sensorialidade dos músculos e tecidos, em suma,
como expressão do estar vivo. A sensorialidade, assim como a motilidade
que lhe é concomitante, são manifestações de uma força vital, presente
desde a vida intra-uterina.
Na mesma palestra, Winnicott afirmava que, sob a condição de
um apoio materno, partículas e fragmentos de motilidade e sensações
começam a congregar-se em determinados períodos, permitindo ao re-

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O mistério de Hamlet

cém-nascido momentos de integração, em que ele passa a ser uma unida-


de. É a fase do eu sou. Acrescenta Winnicott: “O importante é que eu sou
não significa nada, a não ser que, inicialmente, eu seja juntamente com
outro ser humano ainda não diferenciado de mim” (idem).
A experiência primordial de ser e a afirmação eu sou dão ao indi-
víduo a capacidade de, mais tarde, experimentar o sentimento de um si-
mesmo singular e de um eu que tem continuidade no tempo e no espaço.
Duas semanas antes da referida palestra, Winnicott apresenta-
ra, pela primeira vez, desta feita na Sociedade Britânica de Psicanálise,
sua teoria dos elementos masculinos e femininos da personalidade.8 O
tema foi introduzido por relato clínico no qual conta que, durante sessão
de análise, teve experiência singular: deu-se conta de que uma identifica-
ção de qualidade especial com o cliente permitiu-lhe colocar-se na pele
dele e compreendê-lo de modo inteiramente novo; modo que o remeteu
às relações mais arcaicas, nas quais o bebê é a mãe e a mãe é o bebê. A
compreensão que teve do que lhe disse o paciente não provinha das pala-
vras por ele proferidas, nem de qualquer elemento sensível por ele ex-
presso, além do fato de o tema em questão ser freqüente naquela análise.
A esse tipo de relação Winnicott chama de relação do elemento
feminino puro, uma relação que se apóia na experiência de ser o objeto, em
oposição às relações do elemento masculino puro, que, baseadas nos im-
pulsos instintuais, buscam satisfação no objeto. Para Winnicott, quando
falamos de elemento feminino, não estamos nos referindo a experiências
de satisfação ou frustração, e, sim, a experiências de integração ou muti-
lação. O elemento feminino é. Para Winnicott, é a partir da experiência de
ser e da experiência do eu sou que podemos falar de uma identidade pesso-
al – quem eu sou, como me defino, como sou visto e quando deixo de ser eu mesmo.

8 Texto que será, cinco anos mais tarde, anexado com muita propriedade ao artigo “A
criatividade e suas origens”, publicado em O brincar e a realidade.

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4. Dissociação e patologias do ser

Qual o sentido mais geral da utilização da história de Hamlet,


feita por Winnicott?
Lembro que a psicanálise tem sua origem na clínica: tudo co-
meçou quando Freud, no tratamento das pacientes histéricas, descobriu
nelas uma dissociação entre o consciente e o inconsciente. Em psicanálise
e, de modo especial em Winnicott, o valor das teorias está em sua
operacionalidade. Segundo ele, seu maior interesse e satisfação era acom-
panhar os processos de integração do paciente. É aqui que algumas con-
siderações sobre a comunicação entre os elementos masculinos e femini-
nos da personalidade, e sua relação com as patologias do ser, impõem-se.
A falta da mais simples experiência de ser é vivida sob a forma das
chamadas angústias inomináveis: a angústia de aniquilamento ou o senti-
mento de despedaçar-se em queda vertiginosa e infindável, experiências
vividas na psicose, nos pesadelos e em momentos psicóticos por que pas-
sam pessoas normais. Winnicott nos fala também da perda da integração
entre a psique e o soma, expressa por meio do sentimento de despersona-
lização (experiência delirante de não habitar seu próprio corpo) ou de
distúrbios psicossomáticos.
A ausência da experiência eu sou (sou uma unidade, minhas di-
versas partes me pertencem, tenho uma membrana que demarca meu
interior daquilo que a mim é externo) leva o indivíduo a comunicar-se
através de identificações projetivas, que o fazem atribuir a outros inten-
ções, sentimentos ou desejos que são seus.
Temos, finalmente, aqueles cuja dissociação separa um funcio-
namento mental excessivo das experiências somáticas e afetivas, privan-
do-os da experiência de um si-mesmo singular, movido pela espontanei-
dade do seu próprio gesto; neles predomina o sentimento de vazio, inca-
pazes que são de corresponder a qualquer expectativa; suas realizações,
por não estarem baseadas no sentimento de uma identidade pessoal, vêm
acompanhadas de sentimentos de futilidade e inutilidade.

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O mistério de Hamlet

5. Winnicott e a dissociação do príncipe da Dinamarca

A postura de Winnicott em relação à obra de Shakespeare não é


a de revelador do que estava destinado a permanecer oculto; ao contrário,
ele se dá conta de que o poeta, de algum modo, já havia expresso, através
da arte, o que ele encontrara na clínica.
Winnicott não se baseia em especulações sobre as relações in-
fantis de Hamlet com seus pais, relações de caráter universal, que geram
conflitos e exigem o recalcamento de representantes da pulsão. Ou seja,
ele não segue a trilha da metapsicologia freudiana; ele procura se limitar
aos fatos expressos na obra. Quando, em determinado momento da pa-
lestra, infere que até a morte do pai os elementos masculinos e femininos
coexistiam harmoniosamente em Hamlet, dá-se conta de estar falando
do herói como se se tratasse de uma pessoa e não de um personagem.
“Como fazer de outra maneira?”, lamenta Winnicott, voltando a insistir
sobre os dados fornecidos pela peça.
Depois de expor sua teoria da dissociação entre os elementos
masculinos e femininos puros para os colegas da Sociedade Britânica, diz
Winnicott: “Isso faz me lembrar a pergunta: qual é a natureza da comu-
nicação que Shakespeare oferece em seu esboço da personalidade e cará-
ter de Hamlet?” (ibid., 1971va [1966], p. 118). Como se descobrisse o
que estava lá, pronto para ser encontrado, afirma: (...) a tragédia versa
principalmente sobre “o terrível dilema em que Hamlet se encontrou,
sem que houvesse solução, devido à dissociação que nele se processava,
como mecanismo de defesa” (idem).
Os primeiros versos do terceiro solilóquio, o maior dos sete so-
lilóquios de Hamlet, encaixam-se muito bem na teoria da dissociação
entre os elementos masculinos e femininos. É sobre eles que Winnicott se
detém.
Situemos essa passagem: Polônio tenta convencer Cláudio e
Gertrudes de que a causa do comportamento desvairado de Hamlet é sua
paixão não mais correspondida por Ofélia. Juntos, os três planejam uma

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armadilha para testar tal hipótese. Cláudio e Polônio se põem à espreita,


enquanto Ofélia, fingindo ler um breviário, coloca-se, estrategicamente,
em local por onde Hamlet costuma passar. Sem se dar conta de Ofélia,
Hamlet fala consigo próprio: “Ser ou não ser – eis a questão” (Shakespeare
1999 [1601], p. 63). Hamlet, diz Winnicott, parece estar em busca de
uma alternativa para o ser. Busca vã, pois, em estado de dissociação de-
fensiva, ocorre-lhe apenas o não ser como uma oposição banal.
O fazer surge logo nos versos seguintes, primeiramente em sua
forma passiva, e, em seguida, na forma ativa. Indaga-se Hamlet: “Será
mais nobre sofrer na alma / Pedradas e flechadas do destino feroz / Ou
pegar em armas contra o mar de angústias / E, combatendo-o, dar-lhe
fim?” (idem). Para Winnicott, essa segunda questão, reveladora de uma
relação instintual sadomasoquista, também não conduz Hamlet a parte
alguma. Ele prossegue ao longo da peça buscando uma alternativa à idéia
de ser.
As interpretações mais próximas do pensamento de Winnicott,
não as encontrei em textos escritos pelos psicanalistas da teoria do Édipo
e da castração, mas, especialmente, em Harold Bloom, crítico literário
norte-americano, especialista em estudos sobre Shakespeare.
Em Shakespeare: a invenção do humano, de 1998, Bloom afirma
que a realização mais impressionante de Shakespeare é ter posto à nossa
disposição, em Hamlet, um paradigma universal do nosso desejo de iden-
tidade. Discordando da interpretação freudiana, insiste o escritor: “Hamlet
gostaria de ser Édipo ou Orestes, mas (data venia Freud) a eles nada tem
de semelhante”. (2000, p. 511).
Para Bloom, dificilmente poderemos refletir sobre nós mesmos,
sobre nossas identidades distintas, sem pensar em Hamlet. Nas palavras
do escritor, “a questão em Hamlet (a obra) será sempre o próprio Hamlet”
(ibid., p. 483). E mais adiante: “Hamlet não é um simples apêndice de
uma tragédia de vingança” (ibid., p. 485). “Habituado a questionar tudo,
pouco questiona a vingança, mesmo sentindo-se tão desestimulado a levá-
la a termo” (ibid. p. 501).

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O mistério de Hamlet

Se Winnicott coloca as experiências primordiais do bebê na base


do sentimento de ser, Shakespeare, segundo Bloom, “nos convence de
que conhecemos o que há de melhor e mais íntimo em Hamlet, algo
natural que remonta a um período anterior às nossas primeiras lembran-
ças” (ibid., p. 530).

6. Segunda transformação de Hamlet

Em seu mais recente livro, Como e por que ler, publicado em 2000,
Harold Bloom assinala uma segunda transformação em Hamlet. No quin-
to ato, Hamlet parece ter dez anos mais do que aparentava no final do
quarto ato. “O Hamlet do quinto ato, diz o crítico americano, ressuscitou
do ‘eu’ morto do Hamlet anterior” (2001, p. 193).
Seguindo a trilha aberta por Bloom, eu diria que uma cura da
dissociação entre os elementos masculinos puros e femininos puros tem
lugar na personalidade do príncipe após sua viagem à Inglaterra. O esta-
do, ou simulação, de loucura que ostentava desaparece, assim como a
hesitação quanto ao seu dever de vingar o pai.
No final do IV ato, quando se vê livre dos piratas, Hamlet en-
via, estrategicamente, uma carta ao padrasto. Nela pede perdão e pro-
mete que lhe explicará o motivo de seu retorno. Cláudio, com o firme
propósito de livrar-se do enteado, lança mão de novo estratagema: um
duelo entre o sobrinho e Laertes, exímio esgrimista. Esse aceita o desafio
e garante seu êxito, pois colocará um veneno muito poderoso na ponta de
sua espada. Cláudio, para garantir o sucesso do plano, arquiteta mais
uma manobra: caso falhe o ardil planejado, oferecerá a Hamlet, no calor
da disputa, um cálice de vinho envenenado, fatal ao mínimo toque dos
lábios.
O IV ato termina com a rainha, aflita, contando ao rei e a Laertes
que Ofélia acabara de suicidar-se: enfeitada de estranhas grinaldas de
flores, tombara do galho de um salgueiro, morrendo afogada ao cair num
riacho.

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Maria Ivone Accioly Lins

No V e último Ato, de volta a Elsinore, Hamlet encontra Horácio


no cemitério. Enquanto conversam, são surpreendidos com a chegada de
um cortejo: o rei, a rainha, Laertes, padres e fidalgos acompanham o
enterro de Ofélia. A rainha exclama: “Pensava adornar o teu leito de
noiva, doce criança, não florir tua sepultura” (Shakespeare 1999 [1601],
cena I, p. 124).
Laertes, depois de amaldiçoar o culpado pela loucura de Ofélia,
salta na sepultura e pede: “Cubram agora de pó o vivo e a morta” (idem).
Hamlet o segue e, de dentro da sepultura, exclama:

Por esta causa eu lutarei com ele/ Até que minhas pálpebras parem
de pestanejar. (...) Eu amava Ofélia. Quarenta mil irmãos / Não po-
deriam, somando seu amor, / Equipará-lo ao meu (...) Que farás tu
por ela? Vais chorar? Vais lutar? Jejuar? Fazer-te em pedaços? Beber
um rio? Comer um crocodilo? Eu farei isso. Mandem que te enterrem
vivo junto com ela e eu farei o mesmo. (Ibid., p. 125)

Os dois lutam, sendo separados por cortesões presentes.


Já no castelo, tudo parece muito claro para Hamlet. Em forma
de pergunta, comunica a Horácio sua decisão:

(...) não achas que é meu dever agora – com esse que matou o meu
pai e prostituiu minha mãe; Que se interpôs entre as eleições ao tro-
no e as minhas esperanças; que lançou o anzol da infâmia pra pescar
minha própria vida – Não é meu dever de consciência abatê-lo com
suas próprias armas? E não seria criminoso deixar que essa pústula da
natureza / Continuasse a disseminar sua virulência? (Ibid., cena II, p.
129)

Hamlet é capaz de identificar-se com Laertes e reconhecer seu


descontrole. A Horácio, faz um desabafo: [Mas] “Estou muito triste,
Horacio, / Por ter me excedido com Laertes; / (...) Vou cortejar sua amiza-
de. / Porém, com franqueza, sua ostentação da dor / Me deixou numa
fúria incontrolável” (ibid. p. 129).

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O mistério de Hamlet

Osrico, um cortesão bajulador, transmite a Hamlet a proposta


de duelo feita pelo rei e aceita por Laertes. Levando em conta que Laertes
vinha, ultimamente, aperfeiçoando-se na luta, Cláudio teria, hipocrita-
mente, reclamado vantagens para Hamlet: em doze assaltos, Laertes de-
veria acertar nove.
Horácio tenta dissuadir Hamlet da luta. Hamlet não hesita: “Se
ninguém é dono de nada do que deixa, que importa a hora de deixá-lo?
Seja lá o que for!” (ibid., p. 133).
Na abertura do duelo, Cláudio põe a mão de Laertes na de
Hamlet. “Dá-me teu perdão, senhor”, diz Hamlet ao amigo de infância.

Eu te ofendi.(...) tu mesmo deves ter ouvido, que fui atacado / Por


cruel insânia (...) / Se Hamlet foi posto fora de si / E com Hamlet fora
de si ofendeu Laertes, / Não é Hamlet quem ofende (...) / Quem
ofende então? / Sua loucura (...) / Hamlet está na parte ofendida. / A
loucura também é sua inimiga. (Ibid., pp. 133 e 134)

Cláudio anuncia que, se Hamlet der o primeiro ou o segundo


toque, ou devolver o toque no terceiro assalto, ele o brindará jogando na
taça de vinho uma pérola única, de imenso valor. Hamlet dá o primeiro
toque. O rei brinda-o, oferecendo-lhe a taça depois de nela colocar a pé-
rola e, sem ser percebido, o veneno. Hamlet aceita bebê-la, mas só depois
do segundo assalto. Ao vê-lo tocar Laertes no segundo assalto, a rainha,
inocente da trama montada, desconsidera a tentativa do rei de dissuadi-
la de seu gesto e brinda o filho tomando o vinho envenenado. Não há
toque no terceiro assalto. No quarto, Laertes fere Hamlet, porém, na
violência da luta, as armas são trocadas e Hamlet fere Laertes com a mes-
ma arma com que foi ferido.
A rainha, agonizante, diz a Hamlet que foi envenenada pela
bebida. Laertes, percebendo que foi presa de sua própria armadilha, ex-
plica ao príncipe que os três estão envenenados e aponta Cláudio como o
culpado. Hamlet fere, mortalmente, o rei com a espada de Laertes, en-

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quanto exclama: “Então veneno, termina tua obra! (...) / Incestuoso dina-
marquês acaba tua porção! (...) / Engole tua pérola. / Segue minha mãe”
(ibid., p. 137).
Finalmente, como assinala Harold Bloom, o Hamlet ressuscita-
do não é o Hamlet do “Ser ou não ser”. Ao fazer seu último pedido a
Horácio, diz: “Seja tudo como for. Explica a mim e a minha causa, fiel-
mente, àqueles que (dela) duvidem” (ibid., p. 138).
A tragédia de Hamlet tem sido objeto, ao longo dos séculos,
das mais diversas interpretações. Basear minhas idéias em textos de
Winnicott e de Bloom não me exime da responsabilidade e dos riscos de
minha própria interpretação.

7. Conclusão

Como compreender as transformações de Hamlet? Seguindo a


trilha traçada por Winnicott, podemos dizer que, depois do trauma sofri-
do pelo assassinato do pai e, mais ainda, depois da revelação feita pelo
Fantasma, Hamlet transforma-se em conseqüência de uma dissociação
defensiva: a perda da comunicação entre os elementos masculinos e femi-
ninos de sua personalidade. A rejeição do elemento feminino o privara
não só da experiência de uma identidade pessoal, mas também da capaci-
dade de identificar-se com o outro, pois é sobre o elemento feminino,
como nos ensina Winnicott, que se fundamentam todas as identificações.
Na crueldade de Hamlet em relação a Ofélia, Winnicott vê a
imagem da rejeição do elemento feminino do príncipe. Diria que tal cruel-
dade em relação à mulher amada resulta da impossibilidade em que se
encontra Hamlet de identificar-se com ela em sua singularidade. Ao olhá-
la, Hamlet vê a infidelidade feminina, a mentira, a vaidade, a dissimula-
ção. Afinal de contas, para ele, tudo está podre no reino da Dinamarca.
No final do texto sobre a dissociação entre os elementos mascu-
linos e femininos, encontra-se a explicação winnicottiana para a hesitação

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O mistério de Hamlet

de Hamlet. Não estava ao alcance do príncipe experimentar aquele pro-


cesso que Winnicott descreve: “Depois de ser, fazer e deixar que ajam
sobre você. Mas, primeiro, ser” (Winnicott 1971va [1966], p. 120).
Para encerrar, diria que o Príncipe exprime o motivo de sua
dissociação na “peça-armadilha” do III ato. Do poema que Hamlet escre-
ve para o ator-rei, destaco os versos:

Mas, para terminar como o começo


Cada fato é à idéia tão avesso
Que os planos ficam sempre insatisfeitos;
As idéias são nossas, não os feitos.9

No V ato, tendo recobrado sua identidade perdida, Hamlet tra-


duz em atos suas indagações e em fatos, suas idéias.

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9 Cito a tradução feita por Harold Bloom em Shakespeare: a invenção do humano,


p. 527.

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Recebido em 20 de novembro de 2001.


Aprovado em 15 de abril de 2002.

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