Novamente Juntos - Vera Lucia Marinzeck de Carvalho

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DADOS DE ODINRIGHT

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NOVAMENTE JUNTOS
Copyright by © Petit Editora e Distribuidora Ltda. 1999
Editoração:
Petit Editora e Distribuidora Ltda.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do
Livro, SP, Brasil)
Carlos, Antônio (Espírito).
Romance do Espírito Antônio Carlos; psicografado pela médium Vera Lúcia
Marinzeck de Carvalho.
São Paulo: Petit, 1999
ISBN 8572532714
1. Espiritismo 2. Psicografia 3. Romance brasileiro espírita
I. Carvalho, Vera Lúcia Marinzeck de II. Título.
índices para catálogo sistemático:
1. Romances espíritas psicografados: Espiritismo
CDD 133.93

Ajustado e convertido em MOBI e EPUB por:


U.E. - Braga – Outubro/Novembro 2021
Sinopse
Ana e Gustavo se apaixonam. Porém, o casal não contava
com a interferência de Gilberto. Ex-marido de Ana,
desencarnado, retorna para impedir o romance. Um relato
de amor e obsessão, no qual descobrimos porque as
pessoas se atraem e entendemos a interferência dos
espíritos em nossa vida.

Será que encontros aparentemente inesperados não são


encontros programados? Até que ponto duas pessoas que
nunca se viram antes podem ter a sensação de que já se
conhecem? Assim foi com Ana e Gustavo. Entre encontros e
desencontros, a protagonista vai precisar entender os
sentimentos que a dividem e angustiam. Nessa relação, eles
terão de aprender sobre o amor e liberdade para seguirem
seus caminhos.
Sumário
1 - Mudança de vida
2 - Anos Difíceis
3 - As Meninas
4 - O Acidente
5 - O Restaurante da Beira da Estrada
6 - A Chácara
7 - A Perseguição de Gilberto
8 - No Centro espírita
9 - Ajudando Gilberto
10 - Minha Querida
11 - Vanessa
12 - Ausência
13 – Novamente Juntos
1 - Mudança de vida
Ventava forte. Ana abotoou o casaco. Esfriava e
certamente logo iria chover. Mas nada disso a interessava,
estava distraída com seus pensamentos. Andava depressa,
descia a ladeira quase a correr, pois não queria chegar
muito tarde em casa, mas já estava bem atrasada. E com
certeza seu pai, preocupado, estava nervoso esperando-a.
Até que Ana o compreendia. Senhor Alberto, seu pai,
desde que a esposa morreu e os outros três filhos se
casaram, tinha por ela, a caçula, redobrada atenção. E isso
a incomodava, afinal, estava com quase vinte e quatro
anos, era adulta, trabalhava e queria ter liberdade para
fazer o que quisesse. Julgava-se incompreendida,
principalmente porque toda a sua família não queria que ela
se encontrasse com Gilberto, seu namorado.
Abriu a porta de casa aliviada, a ventania estava
incomodando-a. E seu pai, como sempre, estava na sala,
sentado na sua poltrona preferida.
— Ana, minha filha, você se atrasou. Onde estava? -
Perguntou.
— Na casa da Carina - mentiu. - Não o avisei no almoço
que ia a casa dela?
— Sim... Bem, vou dormir - disse o senhor Alberto. - Vá
descansar filha, amanhã terá de se levantar cedo. Boa
noite!
Ana foi para o seu quarto. Gostava de sua casa, de seu
quarto. Embora sem luxo, tudo era decorado com gosto.
Suspirou e a lembrança de sua mãe veio à sua mente.
— Mamãe, estou com saudades! - Murmurou.
Dona Rita, sua mãe, falecera havia doze anos. Ana se
lembrava dela com carinho, fora uma pessoa especial,
bondosa, excelente genitora. Talvez por isso o pai nunca
quis se casar novamente. Dona Rita, quando ainda estava
com eles, tentava ajudar a todos. Ana sentia falta dos
conselhos maternos, pensou:
"Será que se mamãe estivesse conosco iria ficar também
contra mim? Ela não gostava de mentiras, iria me recriminar
por estar mentindo. Mas eles estão me obrigando a isso.
Não querem aceitar o Gilberto."
Sentiu remorso. Não gostava de ter de inventar desculpas
todas as vezes que ia se encontrar com o namorado.
Ana tinha três irmãos: Carlos, Lúcio e Maísa. Estavam
todos casados, tinham filhos, problemas, mas ainda tinham
tempo de implicar com ela. Estavam do lado do pai e
interferiam muito em sua vida. Ana pensava assim. Julgava-
se certa e não queria nem analisar os argumentos deles,
nem sequer imaginar que poderiam ter razão. Gostava de
Gilberto e pronto. Não ligava para o que eles falavam do
moço, que não era bom partido.
— Ora - resmungou novamente - eles não entendem que
ele é o homem que amo.
Conversara com a irmã pela manhã e as palavras de
Maísa ressoavam ainda em sua mente:
"Ana, ninguém sabe ao certo quem é esse moço. Talvez
seja até casado! Você não é nenhuma adolescente, já é
adulta para saber o que é errado ou o que é bom para você.
Por favor, minha irmã, escolha um bom moço para se
casar.”
Ela não respondeu, mas pensou com ironia:
"Escolher? Como escolher? Como se fosse possível dar
preferência a alguém nesta cidade! Há tempo que não
tenho namorado, agora que Gilberto está interessado em
mim, eles me pedem para abandoná-lo!"
Lembrou os acontecimentos de sua vida. Não eram muitos
os importantes. Tímida, teve poucas amigas, agora todas
casadas, e alguns namoricos sem importância, nada sério,
ninguém a que devesse dar mais atenção. Gilberto surgiu
na sua vida quando Ana estava carente e achando que ia
ficar solteira. Não se importava com esse fato, mas seus
familiares sim queriam vê-la casada. Só que achava falta de
um companheiro, alguém que a protegesse, lhe desse
atenção. E Gilberto lhe enchia de mimos e carinhos.
"É o homem de minha vida e eles não têm o direito de me
impedir de ficar com ele! Talvez..."
O namorado às vezes parecia esconder algo.
"Será que é casado? Acho que não! Ele vai tão pouco à
sua cidade natal" - pensou.
Ele falava raramente de sua família, dizia que os pais
tinham morrido, os dois irmãos mudaram para uma cidade
grande e nunca mais deram notícias, e que tinha uma irmã
com quem não se dava bem.
Ana achava Gilberto bonito: alto, forte, olhos esverdeados,
cabelos lisos e castanhos e o sorriso um tanto maroto.
"Eu - pensou, observando-se no espelho - não tenho nada
de excepcional, nada mesmo..."
Ana tinha estatura média, cabelos e olhos castanhos,
lábios pequenos, uma pessoa comum.
— Muito comum! - balbuciou. - Não gosto do meu nariz. É
um pouco grande. Perto de Gilberto, sou bem feia. Não sei
por que ele se interessou por mim... Ah, mamãe! Que falta
sinto da senhora! Se estivesse aqui iria me ajudar. Acho que
papai não quer que eu me case para não ficar sozinho, e
meus irmãos, egoístas, para não sobrar para eles cuidarem
de papai, que está adoentado, é isso mesmo!
Ana havia ido encontrar-se com o namorado e estava um
pouco preocupada e até com certo medo. Achava que
estava grávida e não sabia como Gilberto iria receber a
notícia, nem seus familiares. Cansada, acabou dormindo.
Levantou-se cedo como de costume, fez o café, colocou
de molho a roupa que ia lavar e foi para o trabalho. Estava
sempre resmungando. Queixava-se de que além de
trabalhar muito no emprego ainda havia o serviço de casa.
Era vendedora numa loja de tecidos. Ficava de pé o tempo
todo, mas sabia que não iria ter por muito tempo esse
emprego. O dono deixava bem claro que só empregava
moças solteiras.
"Casou, tem de deixar o emprego" - dizia ele.
Antes de ir para casa almoçar, passou no laboratório e
pegou seu exame. Não abriu, colocou-o na bolsa, deixou
para fazê-lo em sua casa. Ao chegar encontrou o almoço
pronto, o pai havia feito; a irmã lavara toda a roupa e a
cunhada limpara a casa.
Almoçou calada, só trocou umas palavras com o pai.
Estava aflita para ver o resultado do exame. Lavou rápido a
louça e foi para o quarto.
"Estou grávida ou não?" - pensou ansiosa.
Abriu o envelope e veio a confirmação: estava grávida.
Não quis chorar, respirou fundo e secou as lágrimas que
teimaram em escorrer pelo rosto.
— Vou ser mãe - murmurou. - Um ser se forma no meu
corpo!
Voltou ao trabalho como se nada tivesse acontecido. A
noite foi ansiosa ao encontro de Gilberto, e assim que o viu,
falou nervosa:
— Gilberto, tenho algo muito sério para dizer a você.
Peguei o resultado do exame e estou grávida...
O moço a abraçou rindo, alegre.
— Ana, que alegria! Nosso filho será lindo como você.
Estou muito contente!
— Gilberto, iremos nos casar, não é? - perguntou a moça,
nervosa.
— Ana, já não tenho como esconder... Fiz muitas coisas
erradas em minha vida... Era bem moço, estava com vinte e
um anos quando engravidei uma namoradinha e tive de me
casar. Nunca a amei e nosso relacionamento não durou
muito. Perdoe-me! Diga Ana, por Deus, que me perdoa! Ao
conhecê-la, me apaixonei e tive medo de que você não me
aceitasse se soubesse que sou casado. Amor adoro você! Se
pelo menos houvesse divórcio! Não queria lhe dar este
desgosto. Meu casamento foi um erro e acabamos por nos
separar. Ana, vamos viver juntos. Por favor... Seremos como
casados e um dia tenho a certeza de que poderemos nos
casar. Prometo a você!
Gilberto falava depressa, Ana escutava, querendo
entender. Por fim balbuciou:
— Você é casado!
— Mas é como se não fosse, não sinto, já falei, foi um erro.
Perdoe-me! Diga que não irá me abandonar que ficará
comigo!
— Sem casar? - perguntou ela, triste.
— O amor deve ser sempre o mais importante. Para mim,
para nós, é como se estivéssemos casados!
— Gilberto, você casou porque a moça estava grávida.
Você tem filhos? - indagou-o olhando nos olhos.
— Duas meninas... - Respondeu ele. - Lívia e Vanessa, são
duas crianças lindas. Eu cuido delas, mando-lhes dinheiro e
quando vou a minha cidade natal é só para vê-las.
— Como chama sua esposa? - perguntou.
— Ana...
— Gilberto, perguntei qual é o nome dela.
— Ela se chama Ana como você. Só que são tão
diferentes! Você é especial, a mulher da minha vida. Fique
morando comigo! Moraremos nesta casa, sei que é simples,
mas devo ter aumento de salário e aí iremos para outra
melhor. Aqui você será a rainha do meu lar, da minha vida.
— Lá em casa eles não irão gostar - disse ela.
— Já não gostam... O que eles não querem é perder você,
a empregadinha... Eles não querem que você seja feliz.
— Gilberto ao saberem que estou grávida perderei meu
emprego.
— Não faz mal, quero você só cuidando da nossa casa, de
mim e do nosso filho.
— Ou filha - corrigiu Ana.
— Claro - falou ele, sorrindo. - Disse filho por força de
expressão. Vamos, vou levar você à sua casa, pegará suas
roupas e essa noite mesmo virá para cá. Você é para mim a
minha esposa, e eu cuidarei com todo o amor e carinho de
você.
Gilberto era entusiasmado, eufórico, decidia tudo com
ímpeto. Tratava Ana como se ela fosse realmente muito
importante para ele. Falou tanto que ela não deu
importância ao fato de ele ser casado. Compreendeu-o. O
moço não deixou que pensasse nem deu tempo para ela dar
atenção a uma voz lá no fundo do seu íntimo, que lhe pedia
para ter cautela e que não deveria magoar seus entes
queridos. Nem lembrou que amava o pai, a família e que
eles iriam sofrer com a sua atitude.
E lá se foram os dois para a casa dela. Ele foi falando o
tempo todo como seriam felizes juntos, do filho maravilhoso
que teriam.
— Esperarei você aqui! - Disse Gilberto.
Ficou aguardando Ana em frente à sua casa. Ela entrou.
Seu irmão Lúcio estava conversando com o pai.
— Ana, estou esperando-a porque preciso conversar com
você - disse o irmão.
— É bom mesmo que esteja aqui, vou pegar minhas
roupas e ir embora com meu noivo.
— Ana... - Disse o senhor Alberto, lamentando, mas os
dois irmãos se olharam enfurecidos, se exaltando, e não
deram atenção ao pai, que ficou pálido.
Lúcio falou:
— E que nunca deixará de ser noivo! Ana, você está
maluca! Descobri que Gilberto é casado. Soube disso hoje e
estava aqui falando sobre isso com papai. Tínhamos razão,
esse sujeito não presta!
— Ana! - Senhor Alberto falou alto. Os filhos olharam
assustados para ele, que passou a falar num tom mais
baixo: - Filha, bem que tentamos avisá-la. Mas parece que
você mentiu para nós, estava se encontrando com ele
escondido. Agora que sabe que ele é casado vai desistir
dele, não vai?
— Não e não! - Gritou Ana. - Vocês estão contra mim, não
querem que eu seja feliz! Os manos não querem que eu me
case porque terão de cuidar do senhor. E o senhor, papai,
não quer perder a empregadinha que sou!
— Cale-se, Ana! Não fale assim com papai! Nada disso é
verdade! Você nunca foi tratada como empregada. E
queremos o papai conosco. O que estamos tentando fazer é
com que você não se dê mal, que não seja infeliz ao lado de
um canalha! Sabemos que Gilberto é má pessoa. Entenda
isso! Ele é casado! - Falou Lúcio, aos gritos.
— Sei disso! - Respondeu Ana, exaltada. - Não podemos
nos casar, mas viveremos como marido e mulher.
— Filha, por favor, não faça isso! - pediu o senhor Alberto.
— Vou e vou! Ninguém irá me impedir!
Ana correu até seu quarto e se pôs a juntar suas roupas,
colocando-as em duas malas. Seu irmão entrou no quarto.
— Ana, não dê esse desgosto ao papai, por favor, vamos
conversar com calma.
— Lúcio, estou grávida e vou morar com Gilberto, doa a
quem doer. Não me impeça! - falou Ana compassadamente.
O irmão a olhou por instantes, procurando se acalmar.
Falou em tom mais baixo.
— Não a estou impedindo, queria apenas que entendesse.
Mas se está grávida, é melhor ir mesmo. Saiu do quarto e
ela, mais rápido, continuou a pegar suas roupas. Ao passar
pela sala, Lúcio estava sentado ao lado do pai.
— Ana, minha filha - disse o senhor Alberto - você agiu
muito errado e, por favor, não erre mais. Confiava em você!
Será para nós uma vergonha sua gravidez, mas se quiser
ficar, daremos um jeito. Porém, se sair, não volte nunca
mais a esta casa.
Ana parou um momento. Olhou para o pai, o sofrimento
estava visível no rosto dele, mas ela não hesitou se
encaminhou para a porta.
— Ana - disse o irmão - nunca mais volte! Você está morta
para nós! Filha ingrata!
Ela saiu rápido, não queria que tivesse acontecido assim,
seria bem melhor que todos a compreendessem. Lágrimas
escorreram pelo seu rosto. Gilberto, ao vê-la, veio ao seu
encontro. Pegou as malas e a beijou no rosto.
— Que foi? Brigou com seu pai?
— Eles não aceitaram...
— Não ligue, agora serei sua família. Amarei você por
todos.
Ana estava triste, mas não ficou assim por muito tempo.
Gilberto, entusiasmado, alegre, falava de planos
maravilhosos, seriam com certeza muito felizes.
— Ana - disse Gilberto, animando-a - assim que nosso filho
nascer, tudo ficará em paz. Verá que seu pai a perdoará.
— Ele é tão firme em suas opiniões...
— Mas se renderá ao nos ver felizes. Depois, se ele não a
perdoar é porque não merece mesmo a filha que tem. Não
fique triste!
Ela enxugou as lágrimas e sorriu para ele. Gilberto devia
ter razão, pensou. O importante era ser feliz com o homem
que a amava.
A casa de Gilberto era simples, num bairro afastado,
ficava situada longe de todos os seus familiares e da casa
de seu pai. Era pequena, desconfortável, mas para ela,
apaixonada, estava tudo bem. Dormiu reconfortada nos
braços dele. No outro dia não se levantou cedo, quando o
fez, limpou alegre o seu lar e só à tarde foi ao seu emprego
e se despediu. As amigas a abraçaram, desejando-lhe
felicidades. Recebeu os cumprimentos um tanto sem jeito.
Sentiu vergonha ao dizer que estava grávida e que não iria
se casar. Ficou encabulada ao dizer onde iria morar.
— É por pouco tempo - desculpou-se. - Logo que Gilberto
tenha aumento, mudaremos, aí voltarei aqui para convidá-
las para ir à minha casa.
Saiu da loja com vontade de chorar, ia sentir saudade,
principalmente das colegas. Percebeu com tristeza que
ultimamente se afastara das amigas, só saía com Gilberto, e
a sua melhor amiga, ou pelo menos a que considerava ser
sua amiga, não gostava de seu namorado. Aconselhou,
insistiu para que Ana se afastasse dele, até parecia que agia
assim a pedido de seu pai. Acabaram brigando e não
conversaram mais.
Reagiu, não queria ficar triste.
"Nada é perfeito" - pensou.
Com o dinheiro que recebera, comprou objetos para a
casa. Procurou se distrair com a arrumação do seu novo lar
e tentou não pensar nos familiares.
Gilberto era encantador, lhe trouxe flores à noite e tudo
fez para alegrá-la e para que esquecesse a briga com a
família.
— Ana, verá que logo eles a procurarão e tudo ficará bem
entre vocês.
— Não sei não, papai é tão irredutível! Nunca o vi voltar
atrás no que diz.
Três dias depois, Ana foi à casa de Carlos, seu irmão, no
horário que sabia que ele não estava para pedir à cunhada
Geni um favor. Elas sempre se deram bem, confiava nela.
— Geni, pegue para mim o restante de minhas roupas.
Estou com receio de ir lá e papai se zangar comigo.
— Ana - disse Geni, olhando-a com carinho - será que
você precisava fazer o que fez? Estamos sentidos com você.
O senhor Alberto está adoentado de tanta tristeza. Acho que
é melhor mesmo você não ir mais lá. Ele está falando para
todos que você morreu para ele e devemos esquecer que
você existe.
— Não tenho culpa, Geni, foram vocês que não aceitaram
Gilberto.
— Você não acha estranho todos acharem uma coisa e só
você outra? - Indagou Geni.
Ana tentou se justificar, falando apressada:
— É porque não conhecem o Gilberto como eu. Se
conhecessem, mudariam de opinião. Mas você vai ou não
me fazer esse favor?
— Vou fazer. Carlos acha que devemos tirar logo tudo que
resta de seu de lá. Ana vamos mudar para a casa de seu pai
no final de semana. Sabe que sempre gostei dele como se
fosse meu pai e não queremos que fique sozinho. Você
estava errada quando dizia que não queríamos que você se
casasse para não ficarmos com ele. Vou mudar para lá e é
com prazer que o faço, tenho a certeza de que ele estará
melhor conosco do que com você, que ultimamente já não
era a boa filha que sempre foi. Ana, Carlos e eu pegaremos
amanhã tudo que é seu e pagaremos um frete para que seja
entregue na sua casa.
— Agradeço Geni - disse Ana. - Acho que você está
querendo me dizer que não é para eu vir mais aqui.
— Como já lhe disse, iremos nos mudar. Carlos, como os
seus outros irmãos, estão magoados pelo que você fez ao
seu pai. O senhor Alberto não quer mais vê-la e nós também
não. Você escolheu e espero que realmente tenha optado
pelo melhor para você.
Ana sorriu sem graça. Sentiu um pouquinho de ciúme. A
casa de seu pai era boa, situada num bairro nobre, tinha
três quartos, era arejada, com um jardim com muitas flores.
Tinha esperança de que o pai os chamasse para morar lá,
mas com a mudança do irmão, teve a certeza de que o
genitor não o faria.
— Obrigada, Geni - disse Ana, nervosa.
Sentindo que a cunhada queria que fosse embora,
despediu-se. Foi para casa pensando:
"Papai estará bem. Com Geni e Carlos morando lá, não
ficará sozinho, não preciso me preocupar com ele nem com
ninguém, minha atenção deve ser para com Gilberto e o
nenê."
Porém, sentiu ter sido substituída tão rápido e por tudo ter
se ajeitado sem ela.
"Será que eu não era tão importante? Ou não fiz por
merecer ser?"
Tentou parecer alegre para Gilberto, tinha que se desligar
da família, que já tinha se esquecido dela.
No outro dia cedo, uma charrete parou à sua porta.
— Dona Ana - disse o charreteiro - sua cunhada Geni
mandou isto para a senhora.
Desceu sacolas e caixas, colocou-as na sala e foi embora.
Ali estava tudo que era dela: alguns livros, objetos, as
roupas todas limpas e passadas, tudo em ordem.
"Parece até que estou vendo papai organizar estes
objetos.” “Tudo arrumado, como sempre gostou.”
Entristeceu-se ao pegar uma blusa, a que ele lhe dera de
presente no seu aniversário. Pegou a peça de roupa,
encostou-a no rosto e veio a imagem de seu pai, triste, com
lágrimas nos olhos, arrumando aquelas caixas. Tentou se
animar e colocar tudo no lugar.
A vida de Ana mudou. Passou a cuidar da casa e de
Gilberto. Não viu mais as amigas e parentas, conversava
raramente com as vizinhas, que estavam sempre
sobrecarregadas de trabalho e problemas. Teve uma
gravidez tranquila, embora tivesse enjoado muito.
Quando o nenê estava para nascer, Ana começou a
perceber algumas mudanças em Gilberto. Chegou a
reclamar com ele, que se defendeu:
— Desculpe-me, Ana, é que estou nervoso, queria lhe dar
mais conforto, melhorar de vida. Ganho pouco e tenho
ainda de dar dinheiro para minhas filhas.
— Entendo isso e não estou lhe cobrando nada, a não ser
que seja carinhoso comigo. Falando em suas filhas, faz
tempo que não vai vê-las.
— É verdade. Vou domingo. Lívia e Vanessa sentem minha
falta. Não é coincidência demais minhas duas mulheres
chamarem Ana? Ela se chama Ana Machado da Silva, e
você, Ana Maria da Silva.
— Você e eu temos o mesmo sobrenome: Silva. Foi por
isso que a vizinha da frente achou que fôssemos casados.
Se casarmos não irei mudar o meu sobrenome, continuarei
com ele.
Riram.
Ana sentiu as primeiras dores e Gilberto a levou para o
hospital. Não foi possível o parto normal, então foi feita uma
cesariana. Nasceu um lindo e sadio menino, que se chamou
Rodrigo.
— Gilberto - pediu ela - vá, por favor, avisar meu pai e
meus irmãos que nosso filho nasceu.
Ele foi contrariado, só para atendê-la. Foi recebido por
Lúcio, que nem o convidou para entrar, apenas escutou-o,
desinteressado. Quando Gilberto calou-se, o irmão de Ana
disse:
— Obrigado. Diga a minha irmã que não nos interessa e
que vocês sejam felizes.
Gilberto ia responder, mas Lúcio bateu a porta, deixando-
o desconcertado. Ele foi embora raivoso e descontou em
Ana seu mau humor. Ela chorou, sentida, ele saiu e só
voltou para casa de madrugada, cheirando a bebida.
Gilberto foi mudando, passou a ir ao bar cada vez mais e
por mais tempo, e já não a tratava como antes, estava
sempre nervoso. Culpava-a pela falta de dinheiro e se
queixava que tinha de dar mesada para as filhas.
Rodrigo não tinha nem um ano quando Ana novamente
ficou grávida. Gilberto alegrou-se:
— Outro menino!
A segunda gravidez foi mais difícil e ela fez de tudo para
evitar brigas com ele, que estava cada vez mais mal-
humorado.
Sentindo dores, foi para o hospital sozinha, porque
Gilberto havia ido passear.
Deixou Rodrigo com a vizinha. Sentiu muitas dores, era
um feriado e não havia médicos no hospital. Só no outro dia
um médico resolveu fazer à cesariana.
— Doutor, por favor, me opere para que não tenha mais
filhos.
E o médico a atendeu: fez-lhe laqueadura após Marcelo
ter nascido, sadio e forte.
Gilberto se alegrou com o filho, mas logo voltou à sua vida
de bares, bebedeira e nervoso em casa. Ana nem tentou
dessa vez avisar a família. Durante todo o tempo decorrido,
só tinha visto de longe um sobrinho com a cunhada. Tinha
saudade e lhe doía o fato de eles não quererem nem ver
seus filhos.
Marcelo tinha três meses quando Ana passou a fazer
quitutes para o dono de um bar perto de sua casa. O
dinheiro que Gilberto lhe dava era suficiente apenas para
comprar alimentos.
Necessitavam de tudo: roupas, remédios, tratamento
dentário, porque nunca mais, desde que viera morar com
ele, fora ao dentista. Passou a trabalhar muito, ele só
pagava o aluguel e o resto ela tinha de bancar com o
dinheiro que recebia fazendo salgados e doces.
"Solteira, reclamava do serviço de casa e eu fazia tão
pouco. Papai me ajudava e tantas vezes encontrei comida já
pronta, até no meu prato. Minha irmã e minhas cunhadas
ajudavam tanto! Meu trabalho na loja era tão leve! Como eu
era feliz e não sabia!"
Começou a pensar muito no seu pai e a ter saudade de
casa, dos irmãos, da vida que tinha. Estava sempre
cansada, trabalhava às vezes até tarde ou se levantava de
madrugada para dar conta de tudo. Gilberto quase não
parava em casa.
— Ana - exigia ele - quero minhas roupas bem lavadas e
passadas. Sabe que tenho de me vestir razoavelmente bem
no trabalho.
— Gilberto, estou trabalhando demais, estou cansada.
Você bem que poderia ficar mais em casa e me ajudar.
Gilberto virou-se e lhe deu um tapa no rosto, que se não
fosse a parede ela teria caído no chão.
— Vagabunda! Não me encha mais ainda! Não aguento
mais essa vida miserável!
Saiu nervoso. Ana ficou atônita, doía o rosto, que
avermelhou, mas interiormente doía mais. Chorou por
horas, sentida.
"Papai tinha razão! Gilberto não presta! Por que fui
entender isso só agora?"
Ficou com mais saudade ainda dos seus parentes. Sabia
pouco deles e resolveu ir visitá-los no domingo. Gilberto,
todo domingo, saía cedo para jogar futebol com os amigos e
só voltava à noitinha. Não falou nada a ele, temendo que a
impedisse ou quisesse ir junto. Pela manhã, Ana se arrumou
da melhor maneira possível e também aos meninos e foi
esperançosa rumo à casa do pai.
Aproximou-se do seu ex-lar com o coração batendo
apressado. Viu Carlos na porta. Ana o chamou, ele a olhou e
veio devagar encontrar com ela.
— Ana! - Exclamou ele.
— Carlos, vim ver papai...
— Papai não quer vê-la. Para ele, para nós, você morreu
quando saiu de casa naquele dia para juntar-se com aquele
canalha. Papai sofreu muito, tivemos medo de que morresse
por sua causa, sofremos também. Mas passou. Agora papai
está tranquilo, não se fala em você aqui em casa. Acho que
não é o momento para você vê-lo.
— Você não quer que eu o veja? - perguntou ela, se
segurando para não chorar.
Carlos abaixou a cabeça, nem olhou direito para os
sobrinhos, respondeu firme e em tom baixo:
— Não sou eu! Na verdade ninguém quer vê-la. Quando
tiver oportunidade perguntarei a papai se ele quer recebê-
la. Se aceitar, irei avisá-la. Você se deu mal? Pelo que sei
daquele homem, deve ser infeliz. Sabemos que ele bebe
que vai muito a bares, tem amantes. Sinceramente, não
queríamos isso para você, mas não posso deixar de lhe
dizer ou lembrá-la que a havíamos prevenido sobre isso.
Como acho também que só se lembrou de nós, de papai,
por estar em dificuldades. é melhor voltar para sua casa.
Você já nos trouxe dissabores demais.
— Carlos, não vim pedir ajuda.
— É melhor mesmo, Ana. Não iríamos ajudá-la. Fez sua
escolha, agora aguente!
Virou-se e voltou para casa. Ana ficou olhando-o por
alguns segundos, segurou a mão de Rodrigo com mais força
e apertou Marcelo nos braços. Por mais que se esforçasse
para não chorar, lágrimas escorreram pelo seu rosto.
Ana, desanimada, pôs-se a caminhar de volta ao seu lar.
— Estou cansado, mamãe - queixou-se Rodrigo.
Pegou os dois, também se sentia cansada e triste. Não
andou muito e encontrou um vizinho que fazia frete com
uma charrete. Ele lhe ofereceu carona. Ana aceitou,
aliviada. Sentia-se muito triste e não estava com vontade
de conversar; o vizinho, pessoa boa, percebeu e começou a
brincar com os meninos, que gostaram do passeio.
Ao chegar, agradeceu lhe, entrou em casa rapidamente e
então chorou muito.
"Devo ter feito meus irmãos e papai sofrerem demais.
Será que por isso estou sendo castigada? Não, acho que
não! O que está me acontecendo é reação de minha
imprudência. Não quis ver a realidade. Gilberto não me
enganou, fui eu que não quis vê-lo como ele é realmente.
Como minha vida mudou! Que mudança de vida!"
À tarde, quando Gilberto chegou, ela comentou com ele a
tentativa de ver o pai.
— Bem-feito para você! Quem mandou ir até lá? Seria
bom se eles nos aceitassem talvez nos ajudassem. Porém,
nenhum deles quer você ou seus filhos. Vê se entende isso e
não os procure mais! Tenha vergonha!
— Gilberto, sofro com o desprezo deles! - queixou-se ela.
— Ora, não me encha você ultimamente só sabe reclamar.
— Separei-me deles por sua causa! - gritou Ana, nervosa.
— Minha não! - gritou ele também. - Você que foi culpada!
Só você! Ficou grávida de propósito para me prender! Se
você tivesse escutado seus familiares teria sido melhor não
só para você, mas para mim também.
Ofendeu-a muito. Ana revidou e acabou levando uma
surra. Doía-lhe o corpo, mas muito mais intimamente.
Nunca pensou que pudesse ser surrada daquele jeito por
alguém que julgou amar e ser amada.
E, a partir desse dia, quando falava algo que Gilberto
achasse ruim, ele a espancava. Ana passou a evitar
aborrecê-lo. Mas, às vezes, nem precisava falar nada; ao
chegar à casa bêbado ele a surrava.
Queria achar uma solução, não sabia como, tinha medo
dele. Pensou até em se separar, mas não tinha como
sobreviver sozinha com os dois filhos, trabalhava muito e
ganhava pouco.
E depois que conversara com Carlos, tinha a certeza de
que sua família não iria ajudá-la. Arrependeu-se.
"Mas - pensava - não se volta no tempo. Não dei valor à
felicidade que tinha, não quis escutar as pessoas que
realmente me queriam bem. Ah, se as tivesse escutado!
Elas tinham razão, eu é que fui boba em acreditar nele! Não
resta outro jeito senão aceitar esta mudança de vida, a que
eu, iludida, escolhi."
E tentou fazer de tudo para viver do melhor modo
possível.
2 - Anos Difíceis
— Ana - disse Délia, sua vizinha e amiga - você precisa
rezar, deve ir à igreja. Quando não rezamos as coisas
pioram.
— É verdade, Ana - falou Antônia, outra vizinha. - Nunca vi
você ir à igreja, acho que só foi no batizado de seus filhos.
Por falar em batizado, cadê os padrinhos desses meninos?
Eles não a ajudam?
— Nada! - respondeu Ana. - Nem os conheço direito, são
colegas de trabalho de Gilberto. Eles, depois do batismo,
não viram mais os afilhados. Gilberto diz que não os convida
para vir aqui porque tem vergonha da casa pobre.
— Bem, voltando ao assunto, você deve rezar - insistiu
Délia.
— Não tenho roupa para ir à igreja - queixou-se Ana.
— Ora, vá em um horário que não tem ninguém. Eu
também tenho vergonha de ir à missa, vai muita gente
chique. Se você quiser ir amanhã à tarde, fico com os
meninos para você - ofereceu Antônia.
— Quero e agradeço, faz tempo que não entro em uma
igreja para rezar.
— Reze com fé - aconselhou Délia - para sua vida
melhorar e para que Gilberto se torne mais humano.
Surrando-a assim, uma hora irá machucá-la muito.
Ana sorriu encabulada. As casas eram todas próximas,
pequenas, não podia esconder o que se passava ali, todos
sabiam o que acontecia. E era comum por ali o marido
espancar a esposa. Ficou envergonhada ao escutar o que
Délia falara, mas compreendeu que ela não fazia por mal.
As vizinhas, principalmente as duas, eram pessoas boas e
uma ajudava a outra no possível. Ana costumava ajudar
Délia na lavagem de roupa e ficava muito com os filhos de
Antônia quando ela tinha de sair. Elas retribuíam, eram
amigas e Ana gostava delas. Ultimamente era só com as
vizinhas que conversava. Não viu mais suas antigas
colegas, encontrou certa vez com a que julgou ser sua
melhor amiga, mas esta fingiu nem conhecê-la. Procurava
ser boa amiga para as vizinhas e elas também gostavam
dela.
No dia seguinte, Ana levantou-se mais cedo, fez menos
salgadinhos e à tarde foi à igreja. Esta era longe de sua casa
teve de andar um bom pedaço. Alegrou-se, havia muito não
saía sozinha e não precisaria preocupar-se com os meninos;
eles ficariam bem com Antônia.
Entrou na igreja, sentou-se num banco e se pôs a observar
tudo. O templo era bonito, sentiu paz e orou... Nunca seguiu
uma religião. A mãe, católica, ia raramente à igreja. O pai,
presbiteriano, também quase não frequentava. Para não
brigar, seus pais não falavam aos filhos de sua religião e
acabaram não deixando para eles uma orientação religiosa.
Realmente, pensou ela, havia muito não rezava. Sentiu-se
bem, como se tivesse recebido um alimento espiritual. De
fato, a oração nos alimenta, fortalece, com ela atraímos
energias benéficas e confortadoras.
Pena que não podia ficar mais tempo. Voltou para casa
alegre. E, desde esse dia, Ana passou a orar em casa
mesmo, por que era difícil sair com as crianças para ir à
igreja, pois tinham de andar muito e elas não aguentavam,
e nem ela conseguia carregá-las. Ana não gostava de
incomodar as vizinhas, pedindo para ficar com seus filhos,
pois elas eram tão ocupadas e tinham tantas dificuldades...
Marcelo adoeceu, amanheceu com febre, diarreia e
vômito. Ana inquietou-se e, a conselho das vizinhas, deu
chás, mas ele foi piorando e logo à tardinha Rodrigo
também começou a se sentir mal. Apavorada, Ana pediu
para o filho de Délia ir chamar Gilberto no bar. Délia veio ver
como estavam os meninos. Preocupada aconselhou-a:
— Leve-os ao médico! Vou com você ao hospital, vamos
levá-los para um pronto-socorro! Eles estão piorando e não
dá para esperar.
— Délia, não tenho dinheiro!
— Nem eu! Daremos um jeito, no hospital eles atendem
os pobres de graça.
— Gilberto pode achar ruim... - Ana lamentou-se.
Délia a abraçou com carinho e falou:
— Vamos, Ana, não devemos ficar esperando por ele, nem
sabemos se virá. A noite tudo complica e já são quase seis
horas da tarde. Vamos!
Délia pegou Rodrigo e Ana, Marcelo, e saíram andando
rápido rumo ao hospital. Délia teve mais iniciativa.
Chegando ao hospital pediu, implorou para que atendessem
os meninos. A enfermeira reclamou da hora, mas as deixou
entrar. Olhou os garotos e disse:
— Vou chamar o médico.
O médico veio e examinou-os.
— Eles ficarão internados, vou medicá-los.
— Por favor, doutor - pediu Ana - nunca me separei deles.
— Não tem outro jeito, senhora - respondeu
bondosamente o médico. - Os dois têm de ficar internados e
tomar os medicamentos. Ficarão na enfermaria, os colocarei
juntos, assim não estranharão. Volte para casa sossegada,
serão bem tratados. Amanhã à tarde poderá vê-los e, se
estiverem bem, poderão ir com a senhora.
Ana os beijou se segurando para não chorar, para não
assustá-los. A moça os levou. Rodrigo chorou, mas Marcelo
estava tão fraco que não se importou; acomodou-se no colo
da enfermeira, que o acalentou. Délia abraçou a jovem mãe
e as duas retornaram aos seus lares. A vizinha, conhecendo
Gilberto, entrou com a amiga em sua casa para defendê-la,
se fosse preciso. Ele estava nervoso, esperando-a. Ao vê-la
gritou:
— Ana, sua vagabunda, onde estava? Onde estão as
crianças? Por que me mandou chamar? Quer levar uma
surra?
— Calma Gilberto - falou Délia com firmeza. - Nós fomos
levar os meninos ao hospital e eles ficaram internados. Eles
não estão bem. Estão passando mal...
— Estão doentes? - gaguejou ele. - Ficaram lá sozinhos?
— Na enfermaria - respondeu Ana, chorando.
— Acho que vou sair e pedir dinheiro emprestado a
amigos e pagar o tratamento deles. É isso! Vou e volto logo
com o dinheiro. Não chore Ana, darei um jeito - falou
Gilberto e saiu.
— Ana, também vou indo - disse Délia.
— Obrigada, Délia, muito obrigada! - Ana se expressou
grata.
— Pelo menos Gilberto não lhe bateu. Não acredito que
ele arrume dinheiro, deve ter ido ver a outra. Canalha!
Procure descansar, amiga, os meninos estão bem. No
hospital serão bem cuidados, tomarão remédios e logo
estarão aqui de novo e sadios.
Ana ainda limpou a casa, lavou roupa. Só depois foi se
deitar. Nunca, até então, sentiu tanto a falta de dinheiro e
de apoio, e teve medo de os filhos morrerem. Sentiu um
aperto no coração, quis ter um ombro amigo para chorar.
Amava muito os filhos, eles eram tudo que ela tinha. Orou
até que o cansaço a venceu e dormiu. Sonhou com sua
mãe. Estavam num lugar bonito, calmo, Ana achou que era
num jardim. Dona Rita lhe afagou os cabelos, disse-lhe
muitas coisas, mas ao acordar ela só se recordou dessas
palavras:
"Calma, minha filha, tudo passa, os meninos ainda ficarão
mais com você.”
Gilberto só chegou de madrugada; cheirando a álcool,
deitou-se e dormiu, nada comentou sobre o dinheiro nem
dos meninos. No outro dia, ao sair para trabalhar, falou:
— Ana, não arrumei o dinheiro, mas meus amigos me
garantiram que no hospital eles serão bem tratados; então
fiquei tranquilo. E você não deve se preocupar.
Ana trabalhou muito. O sonho lhe deu forças, teve-o na
memória o dia todo, parecia que ainda sentia o carinho da
mãe. Teve muita saudade dela, do pai e dos familiares. A
tarde foi ao hospital. A enfermeira levou-a para vê-los.
Marcelo ainda estava tomando soro por via intravenosa,
mas Rodrigo estava melhor, brincava no berço. Eles se
alegraram ao vê-la. Ana, ao saber que os filhos estavam
bem, ficou feliz, os abraçou e beijou.
— Mamãe - disse Rodrigo - tomei injeção igual à do
Marcelo e só chorei um pouquinho. A moça me deu comida,
estava gostosa, tomei todo o leite, não senti frio, estou
quietinho e obediente!
— Você já é mocinho, mamãe está contente com você.
— Dona Ana - disse a enfermeira - o doutor falou que
amanhã a senhora poderá levá-los. E que eles estão
desnutridos, estão precisando se alimentar melhor.
Ana enxugou as lágrimas, a enfermeira observou-a bem e
continuou a falar:
— Conheço algumas senhoras, pessoas boas, que ajudam
famílias pobres, principalmente se têm crianças. Se a
senhora quiser darei seu nome e endereço a elas. Este
grupo doa roupas e alimentos.
— Quero sim, senhora, obrigada!
A enfermeira anotou seu nome e endereço.
"Meu Deus! - pensou. - Precisar da caridade alheia para
que meus filhos sejam mais bem alimentados. Que
situação! Mas ainda bem que existem pessoas boas, que
ajudam. Que Deus a proteja!"
Voltou triste para casa, mas aliviada por saber que eles
estavam bem. Gilberto saiu do trabalho e veio direto para
casa.
— Ana, você foi ver os meninos? Como estão eles? -
Indagou assim que chegou.
— Estão melhor, a enfermeira disse que amanhã poderei
trazê-los para casa. Gilberto, o médico falou que eles
precisam se alimentar melhor.
— Você não lhes dá comida? - perguntou ele.
— Claro que dou, mas temos sempre tão pouco! -
respondeu ela tristemente.
— Vou lhe dar mais dinheiro para que você compre frutas
leite para eles. Já que os meninos não vieram para casa e
estão bem, vou me distrair um pouco, trabalhei muito hoje.
Volto logo. Saiu e Ana se pôs a trabalhar. Queria adiantar
seu serviço para poder se dedicar mais aos filhos no outro
dia. Concluiu triste:
"Gilberto deve ter outra mulher. Meu irmão, Carlos, me
disse naquele dia que ele tinha amantes. Délia deixou
escapar que ele tem outra. Mas isso não me importa. Só
queria que ele me tratasse melhor!"
No outro dia, Délia foi com ela ao hospital para ajudá-la a
trazer as crianças.
Gilberto veio para casa após o trabalho, trouxe leite e
frutas, agradou os filhos e não saiu fato raro. Os meninos
gostaram, sentiram a falta de casa, da mãe, e se distraíram
com as brincadeiras do pai. Mas já no outro dia ele voltou à
rotina.
Dias depois, Ana recebeu a visita de três senhoras.
Conversaram com ela, fizeram perguntas, Ana encabulou-
se, mas respondeu com sinceridade.
— Meu marido e eu trabalhamos, vejam as senhoras, faço
doces e salgados para o dono do bar lá daquela esquina,
mas não dá. É que meu companheiro tem mais duas filhas
com a esposa dele e as sustenta. O ordenado é pouco e...
— Está bem, dona Ana, vamos ajudá-la - disse uma
senhora simpática. - Todo mês traremos alimentos e roupas.
Aqui está a ajuda desse mês.
Ana recebeu a caixa, alegrou-se e agradeceu comovida. O
auxílio era uma bênção, agora poderia alimentar melhor os
filhos. Assim, passou a receber a cesta todo mês, com
alimentos e roupas. Só que ela temia que aquelas senhoras
descobrissem que Gilberto bebia que frequentava bares.
Teve medo de que elas não entendessem sua situação, que
ela tinha medo dele, que era surrada, não queria ser
tachada de mulher de malandro. Não gostava da vida que
levava, mas não tinha como modificá-la.
"Tempos atrás - pensou - não acreditaria se me dissessem
que alguém poderia aguentar tudo o que tenho passado.
Certamente eu diria que essa pessoa estava assim porque
queria, e que se quisesse realmente mudar daria um jeito.
Mas quando é conosco é que vemos que não é tão fácil
assim. Se sair de casa para onde irei? Quem me dará
emprego com duas crianças? Ou onde deixá-las? Se pelo
menos aqui nessa cidade tivesse locais onde elas pudessem
ficar, como nas metrópoles grandes. Ou se meus familiares
me aceitassem!"
Um dia, logo cedo, bateram à sua porta. Era uma mulher.
— A senhora é Ana Silva?
Ana observou-a, não a conhecia, não era das redondezas.
— Sou sim! - respondeu curiosa.
— Seu irmão Carlos me pagou para procurá-la e lhe dar
um recado. Trabalho no hospital sou faxineira. Seu pai está
internado e quer vê-la.
— Papai! O que meu pai tem? - perguntou, aflita.
— Ele está doente e seu caso é grave. Aqui está o número
do quarto dele. Seu irmão mandou dizer-lhe que pode ir a
qualquer hora e, se possível, para ir hoje. E que ele não está
nada bem - respondeu a mulher.
Ana pegou o papel. Só estava escrito o número do quarto
teve uma ligeira tontura, tentou sorrir e disse baixinho:
— Obrigada!
Ficou com o papel na mão sem saber o que fazer. Lembrou
de Délia e correu até sua casa. Ela estava lavando roupa.
Contou-lhe tudo.
— Délia, que faço?
— Vá ver seu pai - respondeu a amiga.
— Se falar isso a Gilberto, ele não deixará!
— Pois não fale! Apresse seu serviço que apresso o meu.
Vá tarde visitar seu pai e deixe as crianças comigo.
— Vou fazer isso. Obrigada, Délia!
Fez seu trabalho aflita, pensou no pai o tempo todo. Como
estaria ele? Será que iria morrer? O que ele queria com ela?
A tarde foi ao hospital. Na portaria, a atendente pediu que
aguardasse um instante. Foram minutos que lhe pareceram
horas A moça sorriu ao retornar e lhe disse:
— Venha, senhora, a levarei até o quarto.
Com o coração batendo forte, acompanhou a moça.
Tentava inutilmente se acalmar.
— É aqui. Pode entrar, seu pai está aguardando-a.
A moça abriu a porta, ela entrou, seu pai estava sozinho
no quarto. Ana observou-o, teve vontade de chorar, ele
estava pálido e muito magro.
— Papai! - Conseguiu finalmente balbuciar.
Ele abriu os olhos e sorriu.
— Minha filha! Aproxime-se!
Ela o fez timidamente. O pai a olhou bem e lágrimas lhe
escorreram pelo rosto.
— Filha, queria vê-la!
— Como está o senhor? - perguntou ela.
— Mal, acho que irei morrer. Morrer? Não sei! Ana, tenho
sentido muito sua mãe ao meu lado e isso me dá a certeza
de que não morremos. Morrer deve ser só para o corpo; a
alma é eterna, vai viver noutro lugar. Ninguém acredita que
eu sinto sua mãe comigo. Ela quer que a perdoe e tem me
falado em sono. Ontem, ao acordar, até senti suas mãos me
afagando os cabelos. Isso me tem dado muita força; tenho
sentido dores, mal-estar, mas não reclamo. Rita me falou,
não sei explicar como, mas a escuto, que você, filha, é
infeliz, que se arrependeu, mas que ainda ficará bem terá
dias tranquilos. Acredito nela, minha esposa nunca mentiu.
O senhor Alberto cansou, fez muito esforço para falar,
ficou quieto, descansou por minutos. Ana se segurou para
não chorar, ficou ali ao lado do leito sem saber o que fazer,
só o olhando.
— Dê-me sua mão, filha!
Ana segurou a mão do pai com força.
— Papai, me perdoe!
— Perdoo filha! Perdoo-a sim! Também fui intransigente. E
você nunca me procurou. Queria conhecer seus filhos, meus
netos. Eles são bonitos?
— São sim! Posso beijar o senhor?
— Sim! - O senhor Alberto falou, suspirando.
Ana o beijou na testa e recebeu outro beijo no rosto.
Sorriram entre lágrimas.
— Você acredita filha, que eu escuto sua mãe? -
perguntou o senhor Alberto.
— Sim, papai, acredito - respondeu Ana com sinceridade.
— Ela me fala que ficaremos juntos num lugar bonito e
teremos muitas alegrias. Obrigado por ter vindo,
necessitava conversar com você.
— Eu amo o senhor! - Exclamou Ana, comovida.
Bateram de leve na porta e uma enfermeira entrou.
— Hora da injeção! Por favor, senhora, ele terá de dormir.
— Já vou! A bênção, papai! Fique com Deus!
— Deus a abençoe filha! Seja feliz!
Não queria ir, sentiu vontade de ficar mais ao lado do pai,
esse lhe sorria docemente, ela o beijou de novo e saiu
rápido. No corredor viu Lúcio, que lhe virou as costas. Ana
foi embora e as lágrimas teimaram em escorrer pelo rosto.
A reconciliação lhe fez bem, tirou um peso do seu coração,
estar de bem com o próximo nos faz bem.
"Voltarei - pensou. - Depois de amanhã é domingo e virei
vê-lo de novo. Carlos não contou ao papai que fui vê-lo
aquela vez. E melhor que ele não saiba que não me
deixaram visitá-lo.”
Domingo pela manhã, bateram na porta. Ana se assustou,
mas, em seguida, alegrou-se, pois era seu sobrinho. Havia
tempo que não o via, estava moço e bonito
— Romeu, que prazer em vê-lo!
Abriu os braços querendo abraçá-lo, mas ele se esquivou.
— A senhora mora aqui! - Disse o mocinho, espantado.
— Entre! - Convidou ela.
— Não posso tia. Só vim avisá-la que vovô faleceu nessa
madrugada. Está sendo velado na capela do cemitério, o
enterro será às dezessete horas. Estou com pressa, tenho
de avisar os outros parentes. Até logo!
Saiu apressado. Ana ficou olhando-o. Seu sobrinho Romeu
lhe era muito querido, o mais velho e que muito pajeara.
Agora, uma pessoa indiferente, viera ali só para cumprir
uma obrigação, avisá-la da morte do pai. Ao se lembrar de
seu genitor, entristeceu:
"Não fui boa filha! - pensou. - Sempre reclamei de tudo,
exigia, e a vida me ensinou, poderia bem ter aprendido pelo
carinho, amor, a dar valor ao que tinha. Espero ter
aprendido! Vou vê-lo. Não, só irei ver o seu corpo, foi no
hospital que o vi pela última vez."
Gilberto já havia saído e dessa vez recorreu à Antônia, que
ficou com os meninos para ela ir ao cemitério. No caminho
foi pensando nos momentos felizes em que viveu no lar de
seus pais. No seu aniversário era sempre uma festa,
ganhava presentes dos irmãos, os pais faziam uma festinha
para seus amigos. Mesmo depois da morte da mãe, o pai
fez questão de continuar fazendo festa. Não podia dizer que
estava sentindo uma dor que o pai logo ia fazer chás e lhe
dar remédio.
"Estava sempre sendo mimada. Agora tudo é diferente,
até cheguei a esquecer o meu aniversário este ano, nunca
mais ninguém me deu presentes. E se reclamo de alguma
dor para Gilberto, ele reage grosseiramente. Pior são as
agressões. Quanta dificuldades tenho enfrentado! Que anos
difíceis!"
Chegou um tanto encabulada, entrou na capelinha.
Naquela época era costume velar em casa, mas alguns
ficavam na pequena capela do cemitério. Ana não sabia se
foi seu pai que tinha escolhido ou os irmãos. Aproximou-se
do caixão, seu pai parecia dormir. Lembrou o que ele lhe
disse sobre sua mãe.
"Os dois devem estar agora juntos e felizes" - pensou.
Só alguns tios vieram cumprimentá-la. Ana tinha a certeza
de que todos ali presentes deveriam saber de suas
dificuldades Sentiu-se observada, teve vontade de chorar,
esforçou-se e conseguiu segurar as lágrimas. Teve a
sensação de que muitos deviam achar bem-feitos ela ter se
dado mal. Parecia que os pensamentos deles chegavam até
ela:
"Bem-feito! Ana escolheu! Viver com um homem sem ser
casada!"
Sentindo-se deslocada, envergonhada, ficou num canto
quietinha, orou para seu pai com fé, pediu a Deus que ele
fosse acolhido num bom lugar. Sem saber explicar por que,
teve certeza, sentiu que seu querido genitor não estava ali
e que deveria guardar dentro dela os momentos de carinho
da reconciliação.
Achando que não deveria permanecer mais ali, foi embora
antes do que planejara. Ana teve uma sensação estranha,
não ficou com vontade de chorar pela morte do pai, achou
que ele estaria bem e que ele a amava.
Andou depressa e logo chegou a casa.
— Não ficou para o enterro, Ana? - Perguntou Antônia. - Os
meninos estão bem.
— Senti-me deslocada lá, Antônia - respondeu Ana. - Meus
irmãos e sobrinhos nem me olharam.
— Não fique triste por isso. O importante é que seu pai a
perdoou e que fizeram as pazes.
— É! - Exclamou Ana, emocionada. - Sou grata a Deus por
isso, por me ter dado essa oportunidade.
À noite, quando Gilberto chegou, contou a ele, que nada
comentou. Ana se esforçou para não ficar triste, e quando
se lembrava do pai, o fazia com carinho, recordando os
beijos que trocaram.
Cinco dias depois, Gilberto chegou furioso em casa.
— Ana, fui lá em sua casa, a que foi do seu pai. Encontrei
seus irmãos e eles me ameaçaram quase me bateram!
Miseráveis!
— O que você foi fazer lá? - Indagou, espantada.
— Reclamar o que é seu! Espertos! Sabe o que eles
fizeram? Devem ter forçado seu pai a passar em vida tudo
para eles. Você não tem direito a nada! Não vai receber
nem um centavo. Eles me mostraram os documentos, todos
registrados. Para saber se de fato eram verdadeiros aqueles
papéis, perguntei a um funcionário da fábrica que trabalha
no escritório e que entende disso, ele me confirmou. Você
foi deserdada!
Depois de ter xingado muito, foi para o bar. Ana suspirou
aliviada, ainda bem que não lhe bateu.
"Gilberto não deveria ter ido lá - lamentou. - Não queria
mesmo nada deles. Não fiquei magoada por papai ter feito
isso, meus irmãos mereciam.”
Não se falou mais nisso e sua vida continuou do mesmo
jeito. Havia épocas em que Gilberto parecia estar de mais
bom humor, em outras pior, e por qualquer motivo lhe
batia. Era exigente com sua roupa, queria estar sempre com
ela limpa e bem passada.
Um dia, ao ir entregar os doces e salgadinhos no bar, um
homem a olhou atrevidamente.
— Então você é a mulher do Gilberto? O malandro não
sabe dar valor à belezura de mulher que tem. Meu nome é
Miguel, muito prazer!
— Prazer! - Respondeu Ana, virando o rosto e deixando-o
de mão estendida.
— Estou com pressa. Senhor Matias, pegue as bandejas
que tenho de ir embora.
— Que pena! - falou o homem cinicamente. - Poderia ficar
um pouco mais e beber comigo, eu pago!
— Obrigada! Não bebo nem gosto de ficar em bar. Por
favor! Pegou as bandejas e saiu apressada. Logo após ter
passado a porta, chegando à calçada, a toalha caiu e ela
abaixou-se para apanhá-la. As pessoas que estavam dentro
do bar não conseguiam vê-la.
Pensando que ela estava longe, comentaram e Ana
escutou:
— Miguel - disse o dono do bar - dona Ana é mulher
direita, trabalhadeira. Deixe a coitada em paz!
— Ora, será que ela quer paz como você diz? Bem que
poderia não ser tão honesta. O marido a trai está cada dia
com uma! E ainda bate nela! Se ela me desse atenção até
que gostaria de lhe dar uns tabefes. Pelo jeito ela gosta!
Riram...
Ana sentiu o rosto queimar, voltou rápido e triste para
casa. Desconfiava de que falavam dela, mas ter certeza
doeu. Todos pela vizinhança sabiam de seus problemas,
sentiu-se humilhada.
“Sou orgulhosa ainda - pensou - mas orgulho por quê?"
Havia muito tinha percebido que Gilberto, quando tinha
caso com alguém, melhorava seu humor, e estava
preferindo que ele sempre tivesse amante, porque além de
não amá-lo mais, tinha-lhe nojo.
"Amar? - pensou. - Será que algum dia amei Gilberto? Foi
só uma paixão que com o tempo não restou nada...”
Em casa consolou-se, abraçando os filhos. Rodrigo estava
com três anos e Marcelo com quase dois. Eram lindos e ela
os amava muito:
"Ainda bem - pensou - que Gilberto não bate neles.”
Ele não lhes dava atenção, via-os pouco, porque
raramente ficava em casa, vinha para jantar, tomar banho,
chegava tarde saía cedo, horário que os meninos estavam
sempre dormindo.
Às vezes brincava com eles, falava com orgulho:
"Vocês, quando crescerem, vão ser doutores! Vão ser
ricos, o pai irá aconselhá-los."
Ana ajeitou os filhos junto ao coração e beijou-os. Eles
riram alegres. Rogou a Deus:
"Pai, me dê forças para criá-los, para protegê-los!"
3 - As Meninas
O almoço ainda não estava pronto quando Gilberto
chegou nervoso. Ana assustou-se, ele fazia a refeição no
trabalho e nunca viera naquele horário para casa.
— O que aconteceu, Gilberto? - perguntou ela preocupada.
— Recebi na fábrica o recado de que Ana, a minha esposa,
morreu... - respondeu ele, empalidecendo.
— O quê? Mas ela era tão jovem! Estava doente? -
perguntou Ana, preocupada.
— Não sei só me avisaram que ela faleceu. Acho que não
estava doente, não se queixou de nada na última vez em
que a vi. Tenho de ir lá cuidar de tudo, vou logo, no primeiro
horário do trem. Arrume uma sacola com uma troca de
roupa, talvez eu tenha de dormir por lá - respondeu ele.
— E as meninas? O que será delas? - Indagou Ana. -
Devem estar sozinhas e sofrendo!
— Claro! - falou Gilberto, aborrecido. - Perderam a mãe.
Ana foi uma má esposa, não tenho sorte mesmo, duas Anas,
duas pestes. Mas era boa mãe.
— Traga as meninas para cá, Gilberto, você é o pai - disse
Ana com dó delas. - Tão novinhas e sem mãe!
— Não precisa me lembrar de que eu sou o pai. Até que
gostaria de não ser. O que farei com tantas mulheres para
sustentar?
— Eu o ajudo, não reclame! - Falou ela, tentando animá-lo.
— Ajuda? Ganha tão pouco! É melhor eu ir logo, senão
perco o trem.
Ana ficou triste com a notícia. Era a primeira vez que via
Gilberto tão preocupado. Ela sabia pouco sobre as meninas,
ele raramente ia vê-las. Pelo que sabia, elas não tinham
muitos parentes, podiam contar só com a mãe, já que o pai
não se importava com nada. Teve dó delas e orou para que
tudo pudesse se resolver da melhor maneira e pensou:
"Se as meninas vierem para cá, vou agradá-las, tratá-las
bem, vou amá-las..."
Aguardou preocupada a volta de Gilberto. Três dias depois
ele veio com as garotas. Ana as olhou com carinho, eram
muito bonitas, estavam assustadas e tristes.
— Venham conhecer os seus irmãos - disse Gilberto a elas.
- Este é Rodrigo, este é Marcelo. A casa é pequena, mas
mudaremos para outra maior. Acomodaremos vocês esta
noite aqui na sala. Amanhã irei à estação buscar as coisas
de vocês que despachei pelo trem.
Gilberto falava, queria distraí-las, mas elas ficaram
paradas, olhando tudo quietas e temerosas.
Os meninos se aproximaram delas, começaram a
conversar e a fazer perguntas, mas as duas só respondiam
com monossílabos. Gilberto fez um sinal para Ana ir com ele
à cozinha e cochichou:
— A mãe delas morreu de repente, do coração. Sentiu-se
mal, a vizinha chamou o médico, mas quando ele chegou já
estava morta.
Ana tratou de tomar as providências para acomodá-las,
pediu emprestado um colchão a uma vizinha e colocou na
sala para que elas dormissem. Fez uma sopa da melhor
maneira, com o que tinha, porém elas comeram pouco.
Foram dormir. Ana comoveu-se ao vê-las abraçadinhas,
deitadas no colchão. Uma dava força à outra.
No outro dia, Gilberto foi cedo à estação e voltou em uma
charrete com alguns objetos. Ele comentou com Ana:
— Peguei isso da casa delas, tinham pouco, as meninas
têm só o necessário, poucas roupas, duas camas e uma
máquina de costura.
— Era da mamãe - disse Lívia. - Ela costurava para as
freguesas.
— Vou ver se arrumo comprador para esta máquina. Como
aqui ninguém costura, é melhor vender para termos
dinheiro para nos mudar - disse Gilberto.
As meninas trocaram olhares, Ana sentiu que elas
queriam ficar com a máquina, mas nada falaram. Falou com
carinho para elas:
— Lívia e Vanessa, quero que se sintam à vontade, é a
casa de seu pai, é de vocês de agora em diante. Não sintam
medo Sei que é difícil ser órfã de mãe, a minha faleceu
também e compreendo a dor de vocês. Nós nos daremos
bem.
— Será que ela não volta mesmo? - indagou a menor,
Vanessa.
— Não - respondeu Lívia - já nos falaram muito sobre isso
Mamãe foi e não voltará mais!
— Duvido! - exclamou Vanessa. - Mamãe nos ama e dará
um jeitinho de vir nos ver.
Ana saiu da sala, mas escutou Lívia dizer:
— Bem que mamãe achava que esta outra Ana deveria
ser uma boba como ela. São bem pobres, tanto quanto nós,
e ela trabalha muito.
— Sinto falta da mamãe e quero chorar! - falou Vanessa.
— Não chore irmãzinha, cuidarei de você.
— Você é tão pequena quanto eu! - choramingou a menor.
Ana emocionou-se e chorou. Prometeu a si mesmo:
"São tão pequenas e sofrem tanto. Vou ajudá-las! Vou ser
a segunda mãe delas. Coitadinhas!"
Lívia era bem parecida com o pai: cabelos escuros, olhos
verdes, traços delicados, tinha oito anos. Vanessa estava
com seis anos e era bem diferente da irmã; a menor tinha
algo, uma delicadeza que cativava logo a todos, era mais
clara, olhos pretinhos, traços delicados, nariz pequeno e
arrebitado.
"Vanessa deve parecer com a mãe, Ana deve ter sido
muito bonita" - pensou.
A casa era pequena e tornou-se minúscula. Ana tudo fez
para acomodá-las e para que se sentissem à vontade, mas
elas estavam muito tristes.
— Ana - falou alegre Gilberto - arrumei outra casa, agora
ficaremos mais bem acomodados.
No domingo se mudaram. Embora a nova casa fosse
perto, Ana se entristeceu por deixar Délia e Antônia, sua
vizinha e amiga. A casa para a qual se mudaram era maior,
tinha dois quartos. Gilberto vendeu o berço e comprou uma
cama de solteiro.
— Os irmãos juntos! - falou ele. - As crianças, os quatro,
ficam acomodados neste quarto maior. Rodrigo e Marcelo,
que são pequenos, dormirão na mesma cama e as meninas
nas delas.
Ficaram mais bem instalados, embora a casa fosse tão
simples quanto a outra.
Ana foi com Lívia à escola, Gilberto havia trazido sua
transferência. Ao ver os documentos, a moça que fazia a
matrícula disse:
— Dona Ana, sua filha poderá vir na segunda-feira.
Ao saírem, Lívia comentou:
— Por causa do nome, a moça achou que eu era sua filha.
Ana a abraçou e ela não repeliu.
Logo as meninas estavam brincando na rua com as outras
crianças e passaram a ajudá-la cuidando de Rodrigo e
Marcelo.
— Ana, vê se trabalha mais, as despesas aumentaram -
resmungou Gilberto.
— É verdade, aumentaram, mas em compensação
teremos o dinheiro que você mandava para elas e que
agora nos ajudará.
— Hum... - ele resmungou e saiu.
Ana estava na cozinha enrolando doces. Lívia a ajudava
Vanessa brincava com Rodrigo. Quando ele saiu, a pequena
disse:
— Papai quase não pára em casa.
— Escutei o que vocês falaram - falou Lívia.
— Ana, papai não deu dinheiro para nós, nunca deu.
Mamãe, algumas vezes, pediu, mas ele não deu. Minha mãe
trabalhava como você, ela costurava o tempo todo.
Ana sentiu raiva de Gilberto, mas nada comentou, e
pensou:
"Então ele não as ajudava, não dava dinheiro para as
filhas, gastava tudo no bar, com certeza."
As meninas ficaram conversando.
— Não sei se gosto do papai - disse Vanessa.
— Fique quieta, Vanessa - repreendeu Lívia. - é melhor
sermos boazinhas como aconselhou dona Dalva, a nossa
antiga vizinha que era amiga de mamãe. Quando nossa
mãe morreu dona Dalva nos disse:
"É melhor vocês irem com seu pai e serem obedientes
para se dar bem com a madrasta. Vocês não têm escolha!
Se sua tia ficar com vocês..."
Lívia parou de enrolar o doce, ficou quieta, com o olhar
distante.
— Vocês não gostam de sua tia? - Perguntou Ana.
— Não conheço a irmã do papai - respondeu Lívia - só a de
longe. Mamãe não gostava dela. Tenho outros dois tios que
são muito pobres, acho que mais do que nós. Depois tenho
um primo meio louco, bobo, sei lá, que olhava para mim e
para Vanessa de um jeito de que mamãe não gostava, ela
tinha medo de que ele se aproximasse de nós.
"Elas não tinham mesmo com quem ficar - pensou Ana. -
tia, a irmã de Gilberto, é uma prostituta, e pelo que ele fala
dela, é uma pessoa má. Os irmãos da mãe, segundo
Gilberto, um alcoólatra e o outro têm a mulher inválida, são
muito pobres para ficar com elas.”
Ana passou a dar mais atenção, a conversar com as
meninas, tentou cativá-las pela amizade. Contava-lhes
histórias, casos engraçados. Queria que elas gostassem
dali, dos irmãos dela, e não as deixava trabalhar. Quando a
ajudavam era porque queriam.
Não foi difícil: elas, carentes, logo estavam gostando dela
e Ana passou a querê-las muito. Lívia ia à escola, era
inteligente e aprendia rápido. As duas fizeram muitas
amizades, passaram a ser alegres. Comentava muito sobre
a mãe com Ana. Achando que fazia bem às meninas, ela até
as incentivava.
— Mamãe - falava Lívia - trabalhava até tarde da noite.
Quando íamos deitar ela ficava trabalhando e quando nos
levantávamos estava costurando.
— Saía pouco de casa, às vezes ia às casas das freguesas
e eu gostava de ir junto.
— Estou com saudade dela - dizia Vanessa, começando a
chorar.
Sempre que falavam sobre a mãe se emocionavam, e Ana
as abraçava.
Rodrigo e Marcelo passaram a querer bem as irmãs e, se
não fosse por Gilberto, seriam uma família feliz.
— Mamãe também chamava Ana - disse Lívia. - O pai
dela, meu avô, que eu nem conheci, a chamava de Aninha.
"Aninha - pensou Ana. - Será assim que me referirei a ela,
a mãe dessas meninas lindas.”
No dia em que as senhoras trariam a cesta do mês, Ana
ficou atenta; assim que as viu, correu até sua antiga casa.
Após os cumprimentos, explicou:
— Mudei, moramos logo ali. A mulher do meu marido
faleceu as meninas, filhas dele, vieram morar conosco.
— Bem - disse uma senhora - agora que ele não tem de
dar a pensão delas, talvez você não precise da nossa ajuda.
— É que aumentou nossa despesa também. A casa para a
qual mudamos é tão pobre como esta, só tem um quarto a
mais - disse Ana, triste, temendo que elas não a ajudassem
mais.
Mas elas deixaram a cesta e ficaram de resolver se
continuariam ajudando ou não.
À noite, quando Gilberto chegou, Ana estava nervosa e o
acusou:
— Você, Gilberto, é um miserável, me dizia sempre que
ajudava as filhas, que dava dinheiro para o sustento delas,
mas descobri que nunca deu nada a elas. Deve ter gastado
esse dinheiro no bar, com suas amantes.
— Não fale assim! O que pensa que é? Menti sim! Como
você quer que eu viva assim miseravelmente? Se não
fossem meus amigos, o bar iria morrer de tédio! Você está
abusada! Quem é você para me dirigir a palavra nesse tom?
Isso é porque ficaram uns tempos sem apanhar! Toma!
Ana sufocou os gemidos, não queria que as crianças
escutassem, mas não pôde abafar o som das pancadas.
Depois de alguns instantes, Gilberto resolveu deixá-la em
paz, acomodou- se na cama e dormiu. Ana não quis chorar,
temendo acordar as crianças ou Gilberto, porque ele
fatalmente recomeçaria com a agressão. Deixou apenas
lágrimas escorrerem pelo rosto.
Na outro dia ela estava toda dolorida, com muitos
hematomas e uma grande mancha roxa na face direita.
Vanessa, ao vê-la, comentou inocentemente:
— Papai bateu em você, escutamos. Tivemos medo de ele
bater na gente também e ficamos caladinhas.
— Ana - disse Lívia - mamãe dizia que papai também batia
muito nela. Uma vez, quando papai esteve lá em casa, ele
se queixou, reclamou muito de você, depois quis agarrar
mamãe tivemos de gritar e os vizinhos o puseram para fora.
Ela nos disse:
"Pobre desta outra Ana, deve apanhar como eu apanhei."
Ana nada comentou triste, e se pôs a pensar em como
sair daquela situação. Não sabia como fazer para sustentar
as crianças, não tinha para onde ir, ainda mais agora, com
mais duas meninas. Sim, porque ela não iria deixar as
meninas com ele.
À tarde, quando Gilberto chegou em casa, viu Lívia com as
bandejas, voltando do bar.
— Vim trocar de roupa - disse ele - tenho uma festinha
para ir. Lívia, por que você foi ao bar?
— Me ofereci para ir. Todos comentam ao ver Ana com os
ferimentos no rosto - respondeu a menina calmamente.
Gilberto olhou para Ana, sentou-se, coçou a cabeça,
depois disse:
— Ana, não queria machucá-la!
Ela virou-se para ele e Gilberto pediu:
— Sente-se aqui um momento.
Ela ia recusar, estava preparando o jantar, mas querendo
evitar confusão, sentou-se.
— Ana, sei que é honesta, trabalhadeira, trata bem as
meninas. Não sei por que faço isso com você! Não merece!
Ela ficou calada. Ele também ficou quieto um instante
depois disse:
— Bem, vou tomar banho e ir a tal festa. Não prometo,
mas vou tentar não bater mais em você.
Levantou-se e Ana voltou a preparar o jantar. Foi à única
vez que ela percebeu que ele poderia estar arrependido das
agressões que fazia.
Ainda bem que as mulheres bondosas entenderam e
continuaram a lhe trazer o auxílio e roupas para todos.
Uma tarde, ao ir comprar verduras, Ana encontrou uma tia
e esta a observou bem.
— Ana! Como está você?
— Estou bem, e a senhora? - respondeu ela.
— Tudo bem. Alegro-me por você estar bem e por não
precisar da família, porque nenhum de nós iria ajudá-la
depois do que fez. Engravidou, saiu de casa para ir morar
com um safado quase matou seu pai de desgosto. Acho que
ele nunca mais foi feliz e acabou morrendo por isso. Você..
— Até logo, tia. Tenho de ir!
Saiu e não deixou a tia falar mais.
"Será que não tem compaixão? Não fiz nada por mal.
Naquela época achei que amava Gilberto, como também
que era o melhor para mim. Não posso contar com ninguém
da minha família, eles não irão me ajudar em nada, nunca."
Foi para casa, triste.
— Ana - disse Vanessa numa manhã - esta noite sonhei
com a mamãe. Ela estava bonita, linda mesmo, com uma
roupa nova. Ela me beijou e abraçou apertado. Eu falei a
ela:
"Mãe, que vestido lindo! É novo?"
Ela me respondeu:
"Vanessa, eu não ligo para roupas, mas esta é uma que
ganhei para trabalhar.”
"A senhora trabalha? - Perguntei. - Não está
descansando?"
"Não me sinto cansada, estou muito bem. Trabalhar é uma
bênção."
Aí perguntei de novo:
"O que a senhora faz? Costura?"
Ela respondeu:
"Não, filha, ajudo os doentes. Vim aqui para vê-las e dizer
a você e a Lívia que queiram bem a Ana, ela é boa, e que
não se esqueçam de orar como eu as ensinei.”
Me beijou de novo e sumiu, acordei e pareceu que o beijo
foi real, senti seus lábios no meu rosto. Gostei de ter
sonhado e saber dela.
Ana sorriu e pensou:
"Coitada dessa mãe, mesmo se estiver no céu não deve
ter sossego, deixando as filhas com o pai, que ela sabe bem
a peste que é, e com uma madrasta que nem conheceu.
Mas Aninha, se você pode me escutar, fique sossegada,
serei sempre boa para elas.”
— Vanessa, acho que sua mãe tem razão, necessitamos
orar.
— Que tal fazermos como em minha casa, quando mamãe
era viva? Fazíamos assim, todos os dias, antes de irmos
para a cama dormir; rezávamos as três, para o Papai do
Céu, para Nossa Senhora e para nosso Anjo da Guarda.
— Vamos começar hoje - disse Ana. - Rezaremos todos os
dias antes de irmos dormir.
E assim passaram a fazer.
Os meses se passaram, o ano letivo iniciou e Vanessa
também foi para a escola. E todos no grupo escolar
novamente acharam que ela era a mãe das meninas e
ninguém desmentiu. Ana até sentiu uma pontinha de
orgulho ao escutar:
"A senhora tem filhos lindos! Duas meninas educadas e
bonitas e dois garotos maravilhosos!"
Os problemas continuavam os mesmos. A alimentação era
pouca, às vezes não tinham leite nem frutas. Ana temia que
as crianças adoecessem, mas elas cresciam e cada vez
ficavam mais lindas, eram inteligentes. As meninas
ensinavam muitas coisas aos irmãos, elas falavam certo e
estavam sempre corrigindo Rodrigo e Marcelo, que
aprendiam rápido.
Gilberto estava, como sempre, agressivo, estúpido. Ainda
bem, pensava Ana. Que ele não agredia os filhos, mas esses
o temiam, evitava ficar perto dele. Era um alívio quando ele
saía de casa. Para intranquilidade de Ana, ela notou que
Gilberto estava olhando muito para as meninas,
principalmente para Lívia, maiorzinha, com olhares de
cobiça.
"Meu Deus! - pensou. - Que triste! Tomara que eu esteja
errada. Será que Gilberto seria capaz?"
Ficou muito atenta e resolveu não deixar as meninas a sós
com ele.
Numa tarde de domingo, ele veio mais cedo para casa,
conversou com todos bem-humorado, virou para Ana e
disse:
— Ana, vim mais cedo para ficar com as crianças para
você ir à missa.
— Obrigado, Gilberto, não quero ir à missa, não tenho
roupa e me envergonho de ir mal vestida!
— Então vá à casa de Délia, vá se distrair conversando
com ela. Fico com as meninas e você leva os meninos.
— Não - respondeu Ana com firmeza. - Já conversei com
Délia e Antônia hoje.
— Que coisa! - Ele gritou exaltado. - Se queixa de que não
sai, quando me ofereço para ficar com as crianças você não
aceita! Vai e pronto! Saia! Vá para qualquer lugar e leve
seus filhos. Cuido das meninas!
— As meninas não precisam de cuidados - respondeu ela.
Não vou sair! Saia você, volte ao bar que é melhor para
todos
— Não me fale assim! Vou lhe bater! - gritou Gilberto,
ameaçador.
As crianças se aconchegaram com medo. Ana pensou:
"Apanho, mas não o deixo sozinho com as meninas"
Papai - pediu Lívia - por favor, não bata em Ana! Ela não
quer sair. Se ela sair, quero ir junto!
— Eu também! - rogou Vanessa.
— Que família eu tenho! Que horror! Não mereço isso!
Não sei por que não largo todos vocês e sumo! Saiu e todos
suspiraram aliviados.
"Não posso viver assim - pensou Ana - isso não é vida!
Mas o que posso fazer? Talvez eu esteja julgando
erradamente Gilberto, mas já escutei fatos de abusos entre
pai e filhas e tenho medo. Tenho de defender as meninas;
são inocentes e já sofreram muito com a morte da mãe!"
Ao ficar sabendo no outro dia que Gilberto foi visto com
outra se sentiu aliviada.
"Dar-nos-á mais sossego! - pensou. - Tomara que se
esqueça das filhas"
Lívia era mais calada, estava sempre sonhando,
desejando ter coisas.
"Ah! - Dizia. - Se tivesse uma bicicleta! Uma boneca
grande. Queria morar numa casa com jardim, ter um
cachorro.”
Já Vanessa era pacífica, bondosa, tentava sempre
confortar, dar o que tinha para a irmã e para os irmãos.
No Natal as senhoras trouxeram presentes. Vanessa
ganhou uma boneca maior do que a de Lívia.
— Lívia - disse a menina - Gosto mais da sua boneca, quer
trocá-la comigo?
— Quero! - Respondeu Lívia depressa, pegando a boneca
dela.
Ana as observava, não tinha como Vanessa ter gostado
mais da boneca da irmã, a sua era maior e mais bonita.
Vanessa queria que a irmã ficasse contente com o presente
e ficou alegre com a felicidade de Lívia.
"Vanessa é especial - pensou Ana - muito especial!"
Gilberto começou a reclamar demais, era do emprego, do
chefe, e ela ficou apreensiva quando ele comentou:
— Ana, que tal irmos embora para outra cidade, para uma
maior?
— Não sei... - murmurou Ana.
Mas ele nem prestou atenção no que ela disse e continuou
a falar eufórico:
— Gostaria de comprar um automóvel!
— Automóvel? Mas isso é só para ricos! - exclamou Ana,
assustada.
— É para os espertos, não se esqueça. Vou aprender a
dirigir um. Conheço um sujeito que sabe, ele é chofer
particular de um velho rico. Esse meu conhecido irá pegar o
automóvel escondido do seu patrão e irá nos ensinar, eu e
meu amigo, no domingo.
— Escondido? - Perguntou Ana.
— Sim, e daí? Não tem nada demais nisso. Só pedi para
que ele me ensine.
Ana tentou não dar importância, era, sem dúvida, mais
uma brincadeira, um sonho dele. Só que teve medo, se ele
perdesse o emprego, se ficasse sem trabalho e mais tempo
em casa a situação pioraria muito. Esperava que essas
ideias malucas passassem.
As meninas se arrumavam para ir à escola quando Ana
escutou Lívia ralhar com Vanessa. Aproximou-se devagar e
se pôs a escutar.
— Vanessa, já lhe falei para não dizer isso! Ninguém
acredita que você vê mamãe. Dizem que é sua imaginação.
Você sonha somente!
— Mas eu a vejo! - exclamou a garotinha. - Você não
acredita em mim?
— Acho que você não mente! Mas não sei... Mamãe está
morta enterrada. Você não pode vê-la!
— Posso e vejo - choramingou Vanessa.
— Vanessa - disse Ana interrompendo a conversa das
duas - você vê sua mãe?
As duas se assustaram, Vanessa não respondeu e Lívia a
defendeu:
— Não fique brava com ela, Ana. Vanessa é pequena e
não sabe das coisas...
— Não vou ficar brava, Lívia - respondeu Ana. - Não tem
motivo. Mas me conte, Vanessa, você está vendo sua
mãezinha? O que ela fala para você?
— Ela fala sempre que nos ama. Para ter cuidado com
papai, para ficar ao seu lado e que ela cuidará de Rodrigo e
Marcelo.
— Gosto de Aninha, a mãe de vocês - falou Ana,
abraçando as duas. - Gosto mesmo. Creio que se nós duas
tivéssemos nos encontrado, seríamos amigas. Eu acredito
em você, Vanessa. Se sua mãe tem oportunidade lá no céu
de vir ver vocês, ela o fará e tentará ajudá-las. Ela sempre
foi boa mãe e deve continuar sendo!
— Ela me disse que não está no céu - falou Vanessa,
convicta - mas que mora num lugar bonito e que trabalha.
Ana se lembrou do que seu pai lhe disse no hospital e
sorriu.
— Bem, o que importa é que ela cuida de nós. Agora vão
para a escola senão chegarão atrasadas. As duas saíram
correndo e, em seguida, Rodrigo chamou pela mãe, ele
ainda estava deitado e disse:
— Mamãe, eu vi a tal da Aninha!
— Que Aninha? - Perguntou ela.
— A mãe da Lívia e Vanessa, a tal que mora no céu.
— Viu? - Indagou Ana, assustada.
— Falei com ela num campo verdinho e bonito.
— Ah! - Suspirou Ana, aliviada. Você sonhou!
— Ela me disse que irá cuidar de mim e de Marcelo e que
é para a gente não ficar com medo. Ela nos amará como a
senhora ama as meninas.
Rodrigo se distraiu e se pôs a brincar. Ana ficou pensativa.
"Engraçado! Por que será que Aninha disse à Vanessa que
cuidará de Rodrigo e Marcelo e meu filho sonhou com ela
sobre isso? Será que Aninha vem mesmo ver as filhas? Ou
ela imagina tudo isso? Por que será que Rodrigo sonhou
com ela sobre o mesmo assunto?"
Sem respostas às suas indagações, Ana se distraiu com o
trabalho, que era muito. Lembrou que fazia um ano e oito
meses que as meninas estavam com eles.
"Eu as amo quase tanto quanto amo Rodrigo e Marcelo -
pensou. - é tão bom expandir o amor!"
Às vezes, uma delas a chamava de mãe, principalmente
Vanessa, que, ao escutar os meninos chamarem-na,
também o fazia. A primeira vez que a chamou de mãe,
riram.
— Você chamou minha mãe de mamãe! - disse Rodrigo,
gargalhando.
— Não me importo - falou Ana - se quiserem me chamar
de mãe, podem fazer. Vocês duas sabem, lá no fundo do
coração, que sou uma substituta e que Aninha sempre será
a mãezinha de vocês.
— Se a senhora passou a ser mãe delas, quero que Aninha
seja a minha também. Quero duas mães, como elas! -
exclamou Rodrigo, se divertindo.
— Eu também! - falou Marcelo.
Riram de novo.
Ana pensou:
"Criança tem cada uma! Rodrigo quer que Aninha seja a
mãe dele também!"
Levou na brincadeira e esqueceu o fato.
Sem Gilberto em casa, com ele fora, até que a vida deles
não era ruim.
Os cinco se queriam bem, riam por qualquer motivo e as
risadas deles faziam Ana rir.
Ela os amava.
4 - O Acidente
Gilberto chegou mais cedo, eram dezessete horas e as
crianças estavam brincando na rua.
— Chegou mais cedo, Gilberto? - Indagou Ana. - O jantar
não está pronto. Quer que chame as crianças?
— Deixe-as brincar, preciso conversar com você, a sós.
Ana sente aqui um pouco e preste atenção no que vou lhe
falar. Vamos embora esta madrugada, iremos mudar de
cidade.
Ana, espantada, não conseguiu falar nada, arregalou os
olhos e abriu a boca.
Gilberto ficou alguns instantes calado e depois falou mais
devagar.
— Ana, preste atenção, não é difícil entender. Vou
começar pelo início. Recebi uma oferta de trabalho numa
cidade longe daqui. Oferta boa! Vou ganhar bem mais e
trabalhar menos. Coisa garantida! O meu futuro patrão é
concorrente da fábrica onde trabalho, ou melhor, trabalhei,
porque saí há três dias. E nesse período que estive sem
fazer nada, arrumei tudo. Sou genial! Não lhe falei que
estava aprendendo a dirigir?
Pois bem, aprendi. Com o dinheiro que recebi do meu ex-
patrão e outro aí, comprei um automóvel muito bonito.
Decidi que iremos embora e amanhã de madrugada vamos
partir.
— Mas assim, de repente? Temos poucas horas, tenho
muito que fazer, eu... - murmurou Ana.
— Não tem nada! Eu já fiz tudo! Ana, não quero que
resmungue. Obedeça e pronto! Não posso estar alegre e
entusiasmado que você atrapalha.
— É que eu estou assustada... - disse Ana, apreensiva.
— Calma! Deixe-me lhe contar tudo e verá que iremos
embora para melhor, bem melhor! Sai do emprego, recebi o
que tinha direito e enganei um tolo no jogo. Com o dinheiro
comprei um carro para pagar em duas vezes, uma parcela
já paguei, a outra o sujeito nunca verá. Também quem
mandou ele me vender mais caro do que vale? Comprei só
que não, pagarei o resto. - Gilberto riu e continuou a falar
calmamente. – É por isso e por algo mais que tenho de ir
embora escondido.
— Que mais? O que você fez mais, Gilberto? - Perguntou
Ana, temerosa.
Gilberto, continuando a rir, respondeu cinicamente:
— Sou esperto! E muito! Trapaceei no jogo para ganhar de
um tolo rico que mora numa cidadezinha perto, ele vem nos
finais de semana aqui para jogar. Como muitos ficaram
sabendo da minha trapaça, irão contar a ele e certamente o
cara não irá gostar. Eu disse à turma do bar que vou
devolver o dinheiro. Mas não vou, vamos embora. Ana eu fiz
de propósito, não paguei o aluguel da casa, devo três
meses, conversei com o proprietário, combinei com ele
pagar tudo depois de amanhã, falei que ia receber um
dinheiro e o dono desta espelunca está esperando. Também
vendi todos os nossos móveis, se é que podemos chamar
isto que temos de móveis, e o sujeito vem pegá-los amanhã
cedo. Já recebi o dinheiro.
— Gilberto, como pôde fazer isto? - Perguntou Ana, se
esforçando para não chorar.
— Fiz isso tudo escondido de você, porque mulher é muito
faladeira e ia contar para as vizinhas e tudo ia dar errado.
Estou de bom humor, alegre e aviso: não me aborreça e
obedeça! Vamos agir com maturidade, não fique com esta
cara de espanto, faça tudo como nos outros dias. Depois
que colocarmos as crianças para dormir, arrumaremos tudo.
Depois da meia-noite todos por aqui estão dormindo, aí eu
levo para o carro nossas roupas, depois acordaremos as
crianças e iremos embora. Ah, Ana, que gostoso, vamos de
automóvel. Sim, no carro que comprei. Irá ser uma viagem
fenomenal!
Parou de falar. Gilberto estava feliz, ria, pegou na mão de
Ana. Ela estava nervosa, esforçando-se para entender;
Atreveu-se a perguntar
— Onde iremos morar nessa tal cidade? Vamos apenas
com a nossa roupa?
— Não se preocupe - respondeu ele. - Já pensei em tudo.
Lá ficaremos hospedados uns dias no alojamento da fábrica,
até acharmos uma casa para morar, e compraremos tudo
de que necessitarmos.
— Tenho meu trabalho - falou ela. - Não é melhor falar
com o senhor Matias? Faz anos que faço doces e salgados
para ele.
— Ana, você se preocupa muito com os outros. Trabalhou
para ele, recebeu e nada devem um para o outro. Ou...
Riu.
— Que foi Gilberto? O que você fez? Por que está rindo? -
Quis Ana saber.
— Passei no bar do senhor Matias e pedi a ele um
adiantamento. Ele me deu, é pouco, aquele avarento me
adiantou uns trocados. Queria estar perto para ver a cara
daquele sovina quando souber que você o enganou.
— Eu?! - Exclamou Ana, assustada.
— Não é você que trabalha para ele? Recebeu adiantado,
só que não irá mais fazer os doces e salgados. Bem, não
importa; digamos, se isso lhe soar melhor, que fui eu a
enganá-lo. Mas ele irá pensar que foi você.
— Meu Deus! - disse ela, indignada. - Deus nos ajude!
Porque tudo isso tem uma finalidade: melhorarmos de vida.
Mereço!
— As meninas estão na escola, precisam de transferência
para continuar estudando - disse Ana.
— Precisam! Por isso hoje à tarde fui à escola e peguei
todos os papéis necessários. O que você pensa que não me
preocupo com meus filhos? Já pensei em tudo, resolvi e dará
certo, é só você não atrapalhar. Agora faça o jantar, tome
banho, dê banho nas crianças e não fale nada a elas.
— Queria me despedir de minhas amigas... - Pediu ela.
— Está doida? Não vai nada. Não sairá de casa, ficarei
aqui vigiando você. Quer estragar tudo?
— Não está certo sairmos fugidos...
Gilberto a olhou sério e falou ameaçador:
— Ah, é? Se alguém souber dos meus planos estamos
perdidos. O senhor Matias irá querer o dinheiro que me
adiantou o dono do carro, o restante que lhe devo. E ainda
tem mais, pedi a vários amigos e vizinhos, dinheiro
emprestado e eles irão querer nos matar se souberem que
iremos embora, fugir.
— Fugir... - balbuciou Ana.
— Ou ir embora sem nos despedir... Ajudo você, recolha as
roupas, passe, vamos arrumar tudo.
Ana, atordoada, se pôs a fazer o que ele mandou. Tremia,
procurava raciocinar, coordenar as ideias. Pensou aflita:
"Meu Deus, o que faço? Fugir? Como Gilberto pôde fazer
isso tudo? O que irão pensar Délia e Antônia, amigas de
tanto tempo? E o senhor Matias? E os vizinhos para quem
ele pediu dinheiro em prestado?"
Gilberto aproximou-se dela, levantou seu rosto com a
mão, obrigando-a a olhá-lo e, como que adivinhando seus
pensamentos, falou:
— Ana, tenho sido mau esposo, mas prometo a você que
mudarei. Vou ganhar mais e cuidarei melhor de vocês. Lá
não terei as más companhias, porque são esses meus
amigos que me levam para o mau caminho. E lhe prometo
não ir a nenhum bar e ser um bom esposo. Sabe Ana, para
todos somos casados. Seu nome parecido com o da falecida
ajudou. Meu futuro patrão acha que somos marido e mulher
e que os quatro são nossos filhos. É assim que vai ser. Eu
mudei, pode acreditar, e para melhor. Poderia ir sozinho e
deixar você e as crianças, mas não fiz.
— Seu patrão queria alguém casado e com família para
esse tal emprego? - Perguntou ela.
— Como sabe? - Falou Gilberto, surpreso. - Isso está no
contrato, mas não é por isso que os estou levando. Amo
você! É verdade! Você é boa, trabalhadeira e eu não ia
deixar meus filhos pequenos. Eles um dia se orgulharão do
pai que têm. Ana estou muito feliz! Você deveria estar
também. Já pensou se lhe deixo, se vou embora sozinho? O
que faria com todas essas dívidas? O que faria para viver?
Seria expulsa desta casa e não teria nada para levar, já que
vendi tudo.
Ana sentiu uma forte dor de cabeça, tomou um
comprimido. Chamou as crianças para que elas fossem
tomar banho, serviu o jantar e as colocou na cama. E se pôs
devagar a arrumar tudo que iriam levar. Gilberto até que a
ajudou e ficou observando-a, vigiando-a o tempo todo.
Tinham poucas roupas e tudo doado pelas senhoras. Ao se
lembrar delas, sentiu não poder se despedir, agradecer
mais uma vez.
— Pronto! É isso que levaremos - disse Gilberto. - Daqui a
pouco levo estes dois sacos até o automóvel, ele está
estacionado lá na avenida, não posso trazê-lo aqui, todos
escutariam o barulho. Volto e carregaremos os meninos, eu
Rodrigo e você Marcelo, as meninas irão andando.
Pararemos antes de chegar a uma cidade e comprarei para
vocês algumas roupas. Ficarei envergonhado se chegarem
lá vestidos com esses trapos.
— Lá onde Gilberto? - Indagou Ana. - Você ainda não me
falou para onde iremos.
— Nem falarei. É longe daqui, chegaremos após quatro ou
cinco dias de viagem.
Ninguém deve saber para não irem atrás de nós. Vocês
irão gostar, é uma cidade muito bonita.
Ana não falou mais nada. Passava da meia-noite quando
Gilberto abriu a porta e, certificando-se de que não tinha
ninguém na rua, saiu com os dois sacos de roupas. Ana
pensou em escrever um bilhete para as amigas, mas
desistiu. Délia e Antônia, conhecendo-a bem, entenderiam,
mas ficariam sentidas de qualquer jeito, com bilhete ou não.
"Meu Deus! Estou sendo conivente com Gilberto. Mas o
que posso fazer? Quem me ajudará depois de tudo o que
ele fez?"
Talvez se ele tivesse dito antes ela teria mais tempo para
pensar, achar um meio de evitar, mas ele arrumou, planejou
tudo de um jeito que ela não tinha escolha ou, naquele
momento, não achava outra maneira de agir, só restava
acompanhá-lo nessa aventura.
Gilberto retornou logo e ordenou:
— Acorde as meninas!
Ana foi até o quarto e sacudiu-as, chamando-as baixinho.
Acordaram assustadas.
— Lívia e Vanessa, seu pai resolveu viajar e nos levar com
ele. Vamos, levantem-se logo. Ajudo vocês a trocarem de
roupa.
Elas se levantaram sonolentas. Gilberto pegou Rodrigo e
ela, Marcelo, e saíram de casa. Lágrimas escorreram pelo
rosto de Ana. Foram lágrimas de agonia, de incerteza,
sentia por ter deixado a casa, o bairro em que por anos
viveu, onde deixava muitas amizades. Era bem triste ter de
sair daquele jeito, fugindo.
— Nossa!
— Que beleza! Exclamaram as meninas ao verem o
automóvel. Gilberto sorriu:
— É lindo e meu! Vamos meninas, nos acomodar para
partir logo. Quanto mais depressa melhor!
— Não estou entendendo! Por que estamos saindo assim,
de noite, e parece que escondido? - indagou Lívia.
— Não pergunte nada, menina enxerida. Obedeça e
pronto! - respondeu o pai.
Ana e Gilberto acomodaram os quatro no banco de trás e
ele colocou o automóvel para funcionar. Exclamou alegre:
— Lá vamos nós com a ajuda de Deus!
— É melhor orar - lembrou Vanessa - pedir a Deus que nos
oriente.
Oraram as três, ele ficou calado.
Foram até perto de uma estrada, mas ele manobrou o
carro voltaram.
— Pensei que íamos por ali - disse Ana.
— É isso que quero que pensem - respondeu ele. - Me
envolvi com um pessoal perigoso, trapaceei o chefão do
pedaço. Se nos pegarem... Mas não se preocupe, estou
enganando-os direitinho. Se alguém tiver nos visto, dará
informações erradas.
Os meninos continuaram dormindo e as meninas, apesar
da novidade, acabaram por adormecer. Ele dirigiu por um
tempo, distanciaram-se alguns quilômetros da cidade.
— Vamos parar aqui até o dia clarear. Vou ver se consigo
dormir. Tente descansar você também.
Gilberto se acomodou no banco, fechou os olhos. Ana
estava tensa, procurou relaxar, não tinha sono, se pôs a
orar, acalmou se um pouco, ficou muito tempo acordada. O
luar clareava a noite e ela podia ver que estavam à beira da
estrada, debaixo de uma grande árvore. Acabou dormindo,
e acordou com ele a chamando.
— Acorde! Já está amanhecendo. Olhe que bonito! Faz
tempo que não vejo o nascer do astro-rei! Acorde as
crianças, aqui é um bom lugar para ser usado como
banheiro. Tem até um riacho perto, onde podemos lavar o
rosto.
Ela os acordou. Foi uma festa para eles a novidade.
Falavam todos juntos, indagavam encantados, nunca
haviam entrado num automóvel. Admiraram o carro, era
preto, bonito, parecia novo. O pai, orgulhoso, explicava:
- E possante! Está bem conservado! Já foi de dois donos.
Agora vamos nos alimentar. Trouxe pães e frutas que
comprei ontem. Vamos nos apressar, não quero atrasar a
viagem, quero me distanciar rapidamente desta cidade.
Gilberto se pôs a cantar, as crianças, alegres, cantaram
junto. Ana estava atordoada.
"Sou comparsa dele. Meu Deus, o que faço?"
— Mãe! - chamou Vanessa.
O pai interferiu:
— É isso, Vanessinha, de hoje em diante você e Lívia só
devem chamar Ana de mãe. Na outra cidade ninguém
precisa saber que a mãe de vocês era a outra. E...
— Não quero esquecer minha mãe - choramingou Lívia.
— Não precisa esquecer - falou Ana. - Aninha estará
sempre conosco na lembrança, no coração. Ela será a mãe
de vocês, a que mora lá no céu, e eu sou a que estará
sempre com vocês.
— Bem, se é assim, tudo bem - concordou Lívia.
— Ótimo - disse o pai. - Seremos uma família feliz,
perfeita. Vocês vão ver garotos, que vida boa teremos.
A viagem estava sendo cansativa, ele só parou para
comer e abastecer o veículo queria realmente se distanciar
cada vez mais. Só à noite pararam. Foi um alívio quando ele
disse:
— Aqui é um bom lugar para pararmos. Vamos nos
acomodar e tentar descansar. Amanhã poderemos parar
mais, comeremos em bares nas cidades em que pararmos.
— Não temos mais nada para comer - disse Ana.
— Queria tomar banho - falou Vanessa.
— Não dá filha, amanhã talvez - respondeu o pai.
Ele estava alegre, paciente e carinhoso com todos.
Acomodaram-se da melhor maneira possível no automóvel,
e as crianças dormiram logo.
"Ainda bem que está calor e o tempo limpo" - pensou Ana.
Tentou dormir, estava cansada, mas também com medo e
preocupada. Atenta a todos os barulhos, demorou a
adormecer. No outro dia, logo que clareou, retomaram a
viagem. Logo chegaram a uma cidadezinha, pararam num
bar, usaram o banheiro e se alimentaram. E assim foi mais
um dia. No outro, cedo, Gilberto falou entusiasmado:
— Vamos parar nesta cidade que é maior, procurar uma
loja e comprar duas trocas de roupa para todos vocês. Não
quero chegar com a família mal vestida. Quero-os bonitos!
Pararam numa loja e compraram calçados e roupas para
todos, mas não se trocaram. Perto de chegar procurariam
um lugar para tomar banho e se trocar.
— Pelos meus cálculos falta muito chão para percorrermos
- falou Gilberto.
— Como é longe essa cidade! Estou cansada! - resmungou
Lívia.
— Não reclame! Vocês estão se divertindo. Essa cidade é
longe sim, mas é acolhedora e todos nós iremos gostar dela.
A rodovia agora era mais movimentada e poeirenta.
Estavam cansados, sujos, as crianças começaram a brigar, a
resmungar. Subiu uma serra, a estrada contornava a
montanha.
— Que lugar lindo! - Ana exclamou.
Um homem fez sinal para que parassem e explicou:
— Senhores, por favor, estão consertando a rodovia, terá
de esperar para atravessar. Pare aqui, logo formará fila e
assim que for liberado o senhor passará.
— Serei o primeiro - respondeu Gilberto. - Irá demorar?
— Creio que uns quarenta e cinco minutos. Uma barreira
caiu sobre a pista e estamos consertando. Será liberado
primeiro do que os que estão do outro lado, porque o
caminho está estreito e só poderá passar um veículo de
cada vez.
Gilberto estacionou o carro no local que o moço indicou.
Desceram do automóvel, olharam o lugar. Encantaram-se
com a paisagem.
Ele foi até o local do conserto e voltou comentando:
— Há muitos homens trabalhando, foi um deslizamento
grande, caiu muita terra na pista.
— Estamos perto de um precipício - comentou Ana. - Uns
cinco passos para trás tem um buraco enorme e com muitas
pedras.
— Não deixe as crianças se aproximarem - pediu ele. As
crianças queriam ir ao banheiro e Gilberto levou os meninos
perto de umas árvores. As meninas queriam ir também,
mas, como havia muitos homens por ali, ele recomendou:
— Ana, vá até ali, há uma casa onde eles vendem quitutes
e lá poderão usar o banheiro. Leve as meninas.
Havia uns sete veículos esperando. Gilberto entrou no
carro com os meninos e ela foi com as garotas no local
indicado. Uma senhora as atendeu sorrindo e as levou ao
banheiro. Após agradecer, saíram, e então escutaram
barulho e gritos, assustaram- se.
Ana sentiu um tremor, um pressentimento ruim, uma
aflição, gritou, pegou na mão das meninas e correram.
Parou perto dos carros. Olhou assustada, trêmula, o deles
não estava lá. As pessoas olhavam para o precipício. As
meninas tremiam. Ana ficou parada, sem coragem de se
aproximar mais, não conseguia falar. Um homem, ajudado
por outros, subiu. Ele descera pelas pedras para ver o que
acontecera com os acidentados. Suspirou limpando as mãos
e falou:
— Que desgraça! Três mortos!
Ana largou a mão das meninas, aproximou-se. O homem a
olhou, penalizado.
— Um acidente! O automóvel caiu no precipício e...
Ana deu um grito rouco, sentiu uma dor que pareceu
arrebentá-la toda, tudo lhe parecia rodar, foi amparada,
desmaiou.
Voltou a si com a senhora que antes conversara
esfregando- lhe um líquido gelado no pulso. Estava deitada
numa cama e as meninas ao seu lado a olhando assustadas,
caladas e aflitas.
— O que aconteceu? - indagou ela.
Ninguém lhe respondeu. Olhou para o homem que vira
subir o barranco.
— Estão mortos? Os três? Por favor... - Rogou ela com a
voz enfraquecida, querendo que fosse tudo um pesadelo.
— Sim, senhora - respondeu o homem, sério e com muita
dó.
— A senhora quer vê-los? Tiramos os três de lá, estão à
beira da estrada.
— Vou - respondeu ela se levantando. - Vocês, meninas,
ficam aqui, volto logo.
Caminhou com dificuldade. Foi com o homem até o local
onde minutos antes estavam parados. Não havia mais
carros. Viu os três corpos cobertos com lençóis. O homem
levantou uma ponta, viu o bracinho de Rodrigo sujo de
sangue.
— Por favor! - Pediu ela. - Não quero vê-los, não consigo.
O senhor tem certeza de que estão mortos mesmo?
— É melhor a senhora não ver mesmo. Esteve bom tempo
desmaiada. O automóvel se estraçalhou. Os três morreram
na hora. Não sofreram! O pegamos lá de baixo com tudo
que nos foi possível, os sacos de roupas levei-os para minha
casa.
Toma, aqui está a carteira do seu marido. A senhora vai
ter de decidir como faremos para enterrá-los.
— A polícia! - conseguiu ela balbuciar.
— Por aqui não há delegacia e por isso a polícia demora
muito a chegar. Não podemos deixar os corpos lá no chão.
Se a senhora quiser, me dê algum dinheiro, que vou
enterrá-los.
— Quanto você acha que isso vai custar? - Perguntou
ainda confusa.
O homem falou a quantia. Era todo o dinheiro que ela
tinha na carteira, era pouco, mas tudo o que lhe restava.
— Tome! Por favor, me faça esta caridade, enterre-os por
mim, não tenho condições de resolver esse assunto.
— Eu cuido de tudo para a senhora. Vou enterrá-los
juntos, já que morreram unidos. É melhor não vê-los, estão
desfigurados.
Volte para minha casa, fique lá até que resolva o que
fazer.
Ana voltou andando devagar, as pernas pareciam
pesadas, não conseguia raciocinar, se esforçava para
compreender o que ocorria. Não chorou, porém sentia uma
dor tão forte que não era possível descrevê-la. Ao chegar na
casa, a senhora ofereceu uma cadeira, ela sentou-se no
canto da sala, ficou parada, quieta, alheia. Lívia e Vanessa
ficaram ao lado dela, assustadas e temerosas.
— Venham jantar - disse a dona da casa. - Arrumei o
quarto e vocês poderão dormir esta noite aqui.
Ana sentou-se à mesa e tomou umas colheradas de sopa
junto com as meninas.
O homem, o dono da casa, chegou.
— Pronto, senhora, enterrei os três juntos no cemitério do
povoado. O padre os abençoou. Esta estrada está fazendo
vítimas.
— Obrigada! Deus lhe pague! - Ana balbuciou baixinho.
— Eles morreram mesmo! - exclamou Lívia.
— Sim, menina - respondeu o homem - seu pai e seus
irmãos morreram.
Elas choraram, Ana as abraçou e beijou. Foram para o
quarto, deitaram juntinhas, as meninas logo dormiram. Ana
teve um sono tumultuado, acordava sobressaltada toda
hora. Foi de madrugada, ao escutar os donos da casa se
levantarem, que parece que saiu do torpor e se lembrou de
tudo.
— Meu Deus! - exclamou e chorou.
Que dor cruciante sentimos com a separação causada
pela morte do corpo físico de pessoas que amamos! Ela é
muito profunda, talvez a pior que existe. Sentiu mais pelos
dois filhos, achou que se chorasse todas as lágrimas que
tinha não melhoraria, por nada se sentiria consolada.
As meninas acordaram e choraram junto com ela. A
senhora bateu na porta do quarto e chamou-as:
— Levantem, tomem café, banho. A senhora poderá lavar
as roupas que estão sujas. Se sentirá melhor fazendo algo.
— Obrigada, senhora - respondeu Ana. - Está sendo muito
boa conosco. Deus lhe pague. Como se chama?
— Não precisa agradecer. Chamo-me Vicentina.
Elas se levantaram, tomaram o café oferecido. Ana
observou a casa: era pobre, tinha dois quartos, sala e
cozinha. O casal tinha cinco filhos, todos pequenos. Depois
foi separar as roupas, as delas para lavar, as de Gilberto e
dos meninos deixou num saco.
Vicentina estava observando-a, e Ana então lhe disse:
— Se quiser ficar com estas, umas são novas, nem foram
usadas.
— Não gosto de roupas de defunto - respondeu a dona da
casa. - Pode deixar aí, darei aos pobres do povoado.
Tomaram um banho, se sentiram melhor. Ela lavou as
roupas, fez o que Vicentina lhe mandou, estava apática e
cansada. Passou o dia quieta e à noite dormiram novamente
no mesmo quarto. Pela manhã as meninas foram brincar
com as outras crianças. O dono da casa aproximou-se dela.
— Dona Ana, o que a senhora pretende fazer? Quer avisar
alguém do falecimento de seu esposo e filhos? Vai continuar
a viagem?
— Como eles morreram? - Indagou ela, triste.
— Quando a estrada foi liberada, seu marido era o
primeiro da fila, mas o sujeito que organizava a travessia
deixou um senhor rico passar na frente. Seu marido parecia
nervoso, xingou e tentou impedir que lhe tomassem a
dianteira. Como os carros estavam próximos, ele deu ré
para se distanciar e assim pegar maior velocidade e impedir
o outro de seguir na sua frente. Não sei se ele não sabia
dirigir direito ou não calculou a distância do buraco, o fato é
que ele não conseguiu parar a ré e caíram.
Ela escutou calada e pensou:
"Foi imprudência de Gilberto, deve ter achado desaforo
alguém ter passado à sua frente, morreu por isso e matou
meus dois filhos."
— Dona Ana - disse Vicentina - não me leve a mal, mas a
senhora precisa decidir para onde irá. Não podemos
hospedá-las por mais tempo. A casa é pequena, o quarto
que ocupam é dos meus filhos, somos pobres e...
— Entendo Vicentina, agradeço de coração a
generosidade de vocês. Estou confusa, foi tudo inesperado,
não sei o que farei. Não tenho dinheiro para voltar e...
Estava realmente confusa, não sabia para onde estava
indo. Estavam longe de sua ex-casa, mas também como
voltar para lá depois do que Gilberto fez? Ao vê-la indecisa,
o dono da casa disse:
— Se a senhora arrumasse um emprego para se
sustentarem, poderia juntar dinheiro para voltar para a
cidade de vocês. Lá do outro lado da serra, na beira da
estrada, há um restaurante que está precisando de
empregados.
— Será que conseguirei o emprego? - perguntou ela,
esperançosa
— Se Deus quiser irá conseguir. Deve ir amanhã mesmo -
falou ele.
— Acho uma boa ideia. O senhor Lauro, que mora logo ali,
irá para lá amanhã de charrete, poderá levar vocês três. Vou
conversar com ele. Amanhã, logo cedo, irão embora -
expressou Vicentina.
Ana os olhou agradecida. Compreendia-os, já haviam feito
muito lhes dando abrigo sem sequer conhecê-las. Não
poderiam ficar mais. Chorou, teve medo. Até que Gilberto
lhe fazia falta.
— Não chore dona Ana - disse Vicentina consolando-a. -
Sei que deve estar sendo difícil, perdeu o marido e os dois
filhos, mas ficaram as garotas e elas precisam muito da
senhora.
“Sim, é verdade” - pensou Ana, as meninas necessitavam
dela e ela só tinha Lívia e Vanessa.
5 - O Restaurante da Beira da Estrada
Ana arrumou toda a roupa e logo após o jantar foram se
deitar. Ela demorou para adormecer, ficou pensando em
tudo que lhe aconteceu. Não tinha dinheiro nem para tomar
um café, só possuía aquelas poucas roupas que estavam
nos sacos. O carro se estraçalhou e ela deixou que seu
hospitaleiro, caso conseguisse vender alguma peça, ficasse
com o dinheiro. Sentiu medo, seu futuro parecia um grande
desconhecido e temia muito a incerteza. Não tinha nem
como fazer planos. Rogou a Deus para que conseguisse
arrumar um emprego. Acabou por dormir, acordou cedo e
pôs-se a se arrumar para irem embora.
Tomaram o café.
— Dona Ana, o senhor Lauro chegou - avisou Vicentina.
Despediram-se do casal, das crianças, agradecendo-lhes
com sinceridade.
Acomodaram-se na charrete e o senhor Lauro, um homem
já idoso, foi conversando com as meninas.
— Ainda bem que só teremos de descer a serra. Coitado
do cavalo se tivesse de subir - disse Lívia.
— Ele está acostumado, trato bem dele, é meu
companheiro de jornada. Na volta, à tarde, é só subida, mas
andamos devagar. Vou lá buscar mercadorias para o pessoal
que mora no alto da serra. É o meu trabalho!
Ana falou pouco, olhou triste para a paisagem, lembrou
que a admirou logo que começaram a subir a serra, dias
antes. Lembrou do rostinho dos meninos, sorridentes, sentiu
um aperto no coração, mas se esforçou para não chorar.
Estava preocupada, se não arrumasse emprego, onde
dormiriam como iriam se alimentar? Não queria esmolar,
esperava não ter de fazer isso.
Faltavam poucos minutos para as onze horas quando
chegaram.
- É aqui! - Disse o senhor Lauro. - Vou apresentar a
senhora para o proprietário, mas antes vou conversar com
ele. Se Deus quiser arrumará o emprego.
As três observaram o local. Era uma construção nova,
grande, um posto para abastecer os veículos, um
alojamento que era dividido em vários quartos, um bar e um
restaurante. Elas desceram da charrete, ficaram juntinhas,
quietas com os dois sacos de roupas aos pés. Ana suspirou.
"Meu Deus! Que situação! Pai nos ajude!"
— A vaga ainda não foi preenchida, dona Ana - surgiu
falando o senhor Lauro. - Venha!
Ela o acompanhou, entraram num escritório ao lado do
posto e um senhor a olhou atentamente.
— Quer o emprego? - Perguntou, mas não esperou pela
resposta e continuou falando: - Aqui tem muito trabalho e o
empregado tem de fazer o serviço direito. Está disposta?
— Sim, senhor - respondeu ela encabulada.
— O senhor Lauro me disse que tem duas filhas. Terá
comida para vocês três e um quarto lá nos fundos. Quer
olhar o quarto antes de aceitar o emprego? - Perguntou ele,
depois de informar qual seria o salário de Ana.
— Não, senhor, preciso muito trabalhar, aceito!
— Pois então começa agora. Vou mandar um empregado
acompanhá-la até o quarto, servir o almoço e você irá já
para o restaurante e iniciará o trabalho. Aviso-a, se não fizer
o serviço direito, será mandada embora.
— Sim, senhor - respondeu ela.
Um homem mal-encarado veio para levá-las ao quarto.
— Chamo Cecílio, acompanhem-me. Os quartos dos
empregados ficam lá nos fundos. As três o acompanharam,
os fundos que ele disse era um galpão com várias portas
atrás do restaurante.
— É aqui!
Pegou uma chave e deu para Ana, que abriu a porta. O
quarto tinha um armário pequeno, uma cama de solteiro,
uma mesinha e duas cadeiras.
— O banheiro é ali, são dois para todos os empregados.
Mas são apenas sete os que dormem aqui. Troque de roupa,
dona Ana, e vá para o restaurante - disse Cecílio.
— Sim, obrigada - Ana agradeceu.
Entraram e fecharam a porta.
— Bem - disse Ana - é aqui que moraremos por uns
tempos.
— É bem ruim, vamos dormir as três na mesma cama! -
lamentou Lívia.
— É só por um tempo, Lívia - disse Vanessa. - Daremos um
jeito.
— Vou trocar de roupa e ir trabalhar. Vocês duas fiquem
juntas. Limpem aqui e coloquem as roupas no armário.
— Pode deixar mamãe - disse Vanessa. - Vi um tanque lá
fora, lavaremos as roupas e limparemos tudo.
Bateram na porta, Lívia abriu, era o senhor Cecílio com
uma travessa.
— É o almoço das duas, a senhora almoçará lá.
— Sim, obrigada! - respondeu Ana.
O almoço estava numa travessa com um prato servindo
de tampa e duas colheres. A comida era simples. Ana
abraçou as meninas e disse:
— Repartam, uma usa o prato e a outra a travessa, depois
lavem tudo e levem ao restaurante.
Trocou de roupa, saiu rápido e foi trabalhar. Ao chegar ao
restaurante foi abordada por uma mulher.
— Você é a nova empregada? Ainda bem, estava difícil
sem ajudante. Lave toda esta louça. Chamo-me Ofélia, me
pergunte se tiver dúvida. Você já almoçou?
— Não!
— Sirva-se ali e coma antes de começar a lavar a louça.
Mas ande rápido, preciso logo destes pratos.
Ana percebeu que havia realmente muito serviço e tratou
de fazer tudo rápido e bem-feito. Já eram quase cinco horas
quando Ofélia lhe disse:
— Gostei do seu modo de trabalhar, espero que continue
assim. Vou fazer o prato do jantar de suas filhas, você pode
ir lá levar, mas volte, aí jantará e hoje ficará até às vinte
horas. Seu horário é das sete da manhã até a noite. Terá
folga duas vezes ao mês. Tem que nos compensar, você tem
as meninas que ficarão com você no quarto e estamos
dando alimentos para elas também. Pela manhã elas
poderão vir aqui tomar café.
— Sim, senhora - respondeu Ana.
"Meu Deus, que emprego arrumei! Mas não posso
reclamar! As meninas estão comigo, pelo menos temos o
que comer e onde dormir.”
Ela levou o jantar.
— Veja mamãe, limpamos todo o quarto, ficou tudo limpo,
lavamos as roupas, só que não temos como passá-las. Mas
não faz mal, vamos alisá-las com as mãos - disse Vanessa.
— Trouxe o jantar, tenho de voltar. Vocês fiquem aqui
trancadas, não abram a porta para ninguém, chamo quando
voltar e espero que seja logo.
Ana voltou ao trabalho. Eram vinte horas quando Ofélia a
deixou ir. Tinha pouca claridade no alojamento dos
empregados. Ana as chamou. Lívia abriu a porta e disse:
— Mamãe, o senhor Cecílio veio aqui, bateu na porta, abri
só um pouquinho, não o convidei para entrar, ele queria
saber se estávamos bem. Vanessa ficou com medo e eu
também.
— É melhor só abrir para mim. Respondam quando
baterem sem abrir a porta.
— Está cansada? - Perguntou Lívia.
— Sim, estou, o trabalho é muito. Vou tomar banho.
— Lívia e eu tomamos juntas - disse Vanessa.
Ana foi tomar banho e voltou logo.
— Vou me deitar, estou cansada - disse ela. - A cama é
pequena, vamos nos organizar.
Eu e Vanessa desse lado e Lívia do outro.
— Mãe, temos mesmo que ficar aqui? Não gosto desse
lugar. Vanessa e eu iremos ficar sós nesse quarto?
Poderemos estudar? - perguntou Lívia.
— Lívia e Vanessa, estou tão confusa quanto vocês.
Deixamos a cidade onde morávamos, saímos fugidos, nos
distanciamos bastante e não temos como voltar, porque não
temos dinheiro. Nem como ir para a tal cidade que seu pai
não falou onde era. Mas por que ir para lá? O emprego era
para ele. Voltar? Como seríamos recebidas depois do que
Gilberto fez? Aqui vou ganhar muito pouco, mas estamos
juntas, temos onde ficar e alimentos. Vou procurar outro
emprego assim que receber o primeiro salário.
— Não quero voltar para a cidade onde morávamos - disse
Lívia. - A senhora tem razão, se papai saiu fugido deve ter
aprontado mais coisas que não nos falou. Depois, se nossa
tia descobrir que papai morreu, ela nos tirará da senhora e
eu não quero.
— Nem eu, mamãe! Quero ficar com a senhora – disse
Vanessa.
— Aqui ninguém nos conhece e todos julgam que sou a
mãe de vocês. Vamos fazer um trato: não falar a verdade
para ninguém.
— A senhora tem razão - disse Lívia. - Isso será segredo
nosso. Eu juro que nunca irei falar.
— Também juro, a senhora é nossa mãe! - exclamou
Vanessa.
— Promessa é promessa, que a verdade nunca seja dita -
falou Ana.
Os dias passaram, sempre com muito trabalho. Ana
começava às sete horas da manhã e não tinha hora para
sair. As meninas iam ao banheiro juntas, limpavam o quarto,
lavavam roupa e ficavam a maior parte do tempo presas no
quarto. Elas tinham medo, ali passavam muitas pessoas
estranhas e os próprios empregados eram mal-encarados.
Só se afastavam do alojamento para tomar café da manhã,
iam com Ana ao restaurante e por ali ficavam um
pouquinho, paradas na porta, olhando o movimento.
Dormiam mal, apertadas. Ana às vezes tinha até dores no
corpo, de tão cansada. Com tanto trabalho e problemas,
passava o dia sem muitas lembranças. Mas à noite, a
saudade era mais forte. Ficava recordando os meninos,
imaginava-os dormindo ao seu lado, lembrava de cada
detalhe de seus rostinhos lindos e amados. Às vezes
chorava; outras, para não incomodar mais ainda as
meninas, se esforçavam para não fazê-lo. A dor que sentia
era cruciante.
Lívia às vezes reclamava, mas Vanessa estava sempre
animando:
— Mamãe, no inverno teremos de comprar um cobertor -
disse Lívia.
— Temos de comprar muitas coisas - respondeu Ana.
Ana indagou aos colegas de trabalho o que teria de fazer
para as meninas irem para a escola.
— Aqui - respondeu Ofélia - não se tem este luxo.
Ninguém estuda. A escola fica na cidade, é longe para ir a
pé e não tem como ir de outro modo.
Elas estavam temerosas. Ana trabalhava preocupada e as
meninas só saíam do quarto para ir com ela tomar o café da
manhã, para irem ao banheiro e lavar roupa.
Coitadas, só ficavam trancadas num espaço pequeno sem
ter nada que fazer. Estavam tristes e sofridas. Quando Ana
recebeu seu primeiro ordenado, ela teve de dar uma parte
para o senhor Cecílio, porque ele aproximou-se dela e falou:
— Dona Ana, aqui é perigoso para duas meninas tão
bonitas. Sabe como é os homens as cobiçam. Eu posso olhá-
las, já que sou guarda, mas preciso ser pago para isso. Ela
entendeu que o maior perigo era ele e lhe deu o dinheiro.
Com o resto comprou o que mais precisavam e ainda
guardou um pouquinho.
As folgas a que Ana tinha direito estavam sendo adiadas e
ela trabalhava todos os dias. No terceiro mês, após receber,
avisou Ofélia:
— Tenho de sair amanhã. Vou à cidade com as meninas.
— Está bem - concordou Ofélia, mal-humorada.
Logo cedo, lá foram as três para a cidade. De fato, ficava
distante e tiveram de andar muito. O município era
pequeno. Foram à escola, havia vagas e as meninas
poderiam ser matriculadas. Sentaram-se numa pracinha
para conversar.
— Foi fácil na escola, é só se matricular e vir, mas como?
Estamos tão longe! Não será perigoso nós duas
caminharmos de lá até aqui? - indagou Lívia.
— Não sei se aguentarei andar tanto - disse Vanessa.
— Tenho uma ideia! - Exclamou Ana. - Talvez possamos
morar aqui. Vou procurar um emprego na cidade.
E o fez a manhã toda. Indagou, foi a todos os lugares
indicados. Nada conseguiu. Ninguém tinha emprego para
uma mulher com duas filhas.
— Mamãe, estou cansada e com fome. Ninguém quer dar
emprego à senhora por nossa causa. Se fosse sozinha já
teria arrumado - disse Vanessa.
— Não fale isso, Vanessa, não sou sozinha, tenho vocês.
Vamos voltar para o restaurante, não vou desanimar. Nas
minhas outras folgas insistirei em procurar.
Voltaram caladas. Para ir à cidade, colocaram as melhores
roupas e se arrumaram. Ao chegarem, Ofélia gritou para
Ana:
— Venha rápido aqui, temos um problema!
Ela deu a chave para as meninas e foi para o restaurante.
— Ana - disse Ofélia - José, o garçom, levou um tombo,
tiveram de levá-lo ao médico. Ajude-me a servir as mesas.
Ela se pôs a trabalhar.
— Ana - senhor Cecílio a chamou em tom baixo para um
canto. - Tenho uma proposta a lhe fazer. Está vendo aquele
senhor? Aquele que está naquela mesa no centro? É o
senhor Gustavo, um cliente rico que às vezes pára aqui. Ele
gostou de você, quer que vá ao quarto para um encontro.
— Eu não vou... - balbuciou ela, e o senhor Cecílio não a
deixou terminar.
— Ele lhe ofereceu uma boa quantia para que se encontre
com ele. Não recuse mulher, são vários meses de ordenado
seu. Poderá comprar cobertores, cadernos, algo para as
meninas se distraírem e elas não irão saber.
— Está ganhando por isso, senhor Cecílio?
— Estou, recebi uma gorjeta e se você aceitar ganharei
outra. Deve ir a esse encontro também por mim, afinal, tem
alguns homens mal-intencionados, você trabalha, elas ficam
sozinhas, pode acontecer de eu não ver e aí... Mas se
aceitar, redobro a vigilância, ninguém mexerá com suas
filhas.
Ela sentiu uma tristeza que lhe doeu no peito. Repetiu
baixinho a quantia oferecida. Era tentadora. Com esse
dinheiro poderia alugar um quarto na cidade, colocar as
meninas na escola e arrumar outro emprego por lá.
— Está bem - murmurou.
— Ótimo - disse senhor Cecílio, alegre. Falou algo para
Ofélia aproximou-se de Ana novamente.
— Tudo bem, Ofélia dispensou-a. O senhor Gustavo ficará
no quarto três, ele já está indo e você deverá ir logo após.
Ana foi até o banheiro, lavou o rosto, que parecia brasa.
Segurou-se para não chorar.
"O que faço Meu Deus?"
Não queria pensar, respirou fundo e saiu do restaurante
rumo aos quartos da frente, os melhores que havia.
Caminhou como se fosse para a morte, bateu e entrou no
quarto.
— Entre, Ana - disse o senhor Gustavo gentilmente.
Depois ele lhe deu o dinheiro.
— Aqui está o que combinei. Você não está acostumada a
isso, não é?
— Não, senhor - respondeu ela. - Não sou mulher de
encontros. Eu... preciso...
— Desculpe-me! - pediu ele. - Pode ir!
Ela saiu quase a correr e foi para o quarto. Não falou nada
para as meninas, guardou o dinheiro. No outro dia, disse a
Ofélia:
— Vou precisar do meu dia de folga, preciso ir à cidade.
— Vá na quarta-feira - respondeu ela.
Perguntou às colegas onde poderia alugar um cômodo ou
uma casinha pequena na cidade.
— Não é difícil - respondeu uma delas - mas terá de
comprar pelo menos o essencial para poder se mudar:
fogão, panelas, camas. Terá de fazer mais uns programas.
Ela não respondeu, compreendeu que a colega tinha razão,
só o quarto alugado não resolveria, tinha de ter pelo menos
alguns móveis. E se envergonhou, até sentiu estar
vermelha, todos sabiam do seu encontro. Retornou ao
trabalho.
Na quarta-feira foram à cidade. Viu um quartinho para
alugar com banheiro, nos fundos de uma casa, num lugar
bom. Mas o dinheiro que tinha não dava para comprar os
objetos de que necessitaria para ir morar nele. Compraram
cobertores, pois já estava esfriando e logo seria inverno,
roupas de cama, banho, alguns cadernos, lápis, algumas
balas para agradar as meninas e mais alguns objetos de
que estavam precisando.
Tomaram um lanche e voltaram alegres para o
restaurante.
Dias depois, num sábado, Vanessa, ao acordar, falou:
— Mamãe Ana, vi minha mãe, a Aninha. Ela me disse que
é para você aceitar o que lhe será oferecido e repetiu duas
vezes.
— O que será mamãe? - Indagou Lívia. - O que será que
tem de aceitar? Bem que poderia ser um emprego melhor.
— Será que dará para mudarmos para a cidade? -
perguntou Vanessa.
— Vou fazer de tudo para isto. Tudo...
Ana respondeu e pensou:
"Será que precisarei ter outros encontros? Mas que farei
para ter dinheiro? Como deixar por mais tempo as meninas
trancadas neste quarto?"
Suspirou, olhou para elas com carinho e falou:
— Fazia tempo que Aninha não aparecia para você. Temos
passado tantas dificuldades!
— Mamãe, a senhora lembra que Rodrigo disse que minha
mãe ia ser a mãe dele também? Acho que assim como a
senhora cuida de nós, mamãe também cuida deles - falou
Lívia.
— Tenho certeza de que acontece isso - afirmou Vanessa.
— Sinto tanta falta dos meus filhos! - choramingou Ana. -
Que saudades! Agora entendo muita coisa que antes não
entendia. Quando os meninos ficaram doentes no hospital,
sonhei com minha mãe e ela me disse que não iria perdê-los
daquela vez. Rodrigo também sonhou com Aninha, que lhe
falou que eles iriam morar com ela. Como também sua mãe
disse a você, Vanessa, que iria cuidar deles. E aconteceu,
eles morreram e Aninha deve estar cuidando deles com
todo o carinho.
— Como você cuida de nós! Trabalha muito, se preocupa
conosco. Se estivesse sozinha, ia ser melhor para a senhora
- falou Vanessa.
— Já lhe pedi para não falar mais assim. Vocês são tudo
que tenho, fico triste por não ter como lhes dar nada
melhor. Mas, paciência, vou conseguir. Vocês voltarão a
estudar!
— Se mamãe Aninha disse que é para aceitar o que lhe
será oferecido é porque acontecerá alguma coisa boa - falou
Lívia.
— Vamos para o restaurante tomar café, não quero me
atrasar.
Logo após o almoço, o senhor Cecílio aproximou-se dela e
falou:
— O senhor Gustavo está lhe esperando no banco,
embaixo da grande árvore. Vá logo!
Ana estava suja, com roupas velhas, cabelos
desarrumados. Pensou em se arrumar um pouquinho, mas
não o fez, foi rapidamente para o local indicado. A grande
árvore ficava do lado direito do posto e um banco de
cimento a rodeava. Viu o senhor Gustavo sentado. Ele se
levantou educadamente quando ela chegou.
— Boa tarde, Ana! Como está?
Sentaram-se, ela torcia o avental, respondeu
timidamente:
— Bem, e o senhor?
— Não me chame de senhor, mas sim de Gustavo. Ana
vou direto ao assunto. Tenho uma chácara não muito longe
daqui, perto da cidade, e quero convidá-la para ir morar lá.
Fez uma pausa, olharam-se por um instante, ele
continuou:
— Sou casado, tenho três filhos moços. Minha esposa e eu
moramos na mesma casa, mas estamos separados há muito
tempo. Não nos damos bem, sempre tive aventuras. Gostei
de você, por isso a estou convidando. Poderemos tentar; se
der certo, seremos felizes. Desculpe-me, mas sou objetivo,
não é minha intenção ofendê-la nem enganá-la.
— Tenho duas filhas - falou ela baixinho.
— Sei disso, desculpe-me novamente, mas procurei saber
de você. Se aceitar, poderá levar suas filhas, não é minha
intenção separá-las. Creio que irão gostar da chácara, ela é
grande, bonita, a casa é espaçosa e suas filhas não
necessitam ficar presas, não há perigo por lá. Então, o que
resolve?
Ana abaixou a cabeça e procurou coordenar os
pensamentos.
"Aceite!"
Foi um sussurro, sentiu como se alguém colocasse a mão
no seu ombro e lhe falasse no ouvido. Virou-se, não viu
nada. Olhou para Gustavo, ele estava calmo, também
abaixou a cabeça esperando a resposta. Lembrou-se do que
Vanessa lhe falara de manhã. Aninha lhe pedira para
aceitar. Suspirou e pensou:
"Amante novamente!"
Com seu suspiro, Gustavo a olhou e sorriu, ela o analisou:
Cabelos escuros, mas já grisalho sorriso franco, dentes
perfeitos e os olhos castanhos, olhar sincero e bondoso. Se
realmente podemos conhecer alguém pelo olhar, Gustavo
deveria ser sincero, bom e leal. Não o deixou esperando
pela resposta. Seria difícil ir para um lugar pior do que era
ali e, se Aninha achava que ela deveria aceitar, o faria.
— Aceito, vou com você, só que... Não queria que tivesse
má impressão de mim.
— Compreendo-a - disse ele - você aceitou por não ter
alternativa melhor. Mas não se arrependerá. Vá agora até o
seu quarto, arrume tudo o que é de vocês, estarei
esperando-as aqui. Vou acertar sua demissão com o
proprietário.
Ela se levantou e rumou para o quarto. Ainda estava
indecisa, teve medo. Lívia abriu a porta assustada.
— Aconteceu alguma coisa, mãe?
— Sim, Vanessa tinha razão quando me avisou que eu
receberia uma proposta e, como recomendou, aceitei:
vamos pegar o que é nosso para irmos embora daqui.
— Para onde? - Quis saber Lívia.
— Para uma chácara. Dias atrás conheci um homem,
Gustavo, e ele hoje veio nos convidar para morar na
chácara de sua propriedade. Ajudem-me, vamos trocar de
roupa, colocar as sujas e as molhadas num saco e as limpas
no outro. Vamos logo que ele está nos esperando.
— Mamãe, a senhora falou a ele que não é nossa mãe de
verdade? - indagou Lívia.
— Claro que não! Nunca diremos, prometemos! Ele sabe
de vocês, nunca iria a um lugar a que não pudesse levá-las.
— Irá como empregada? - Perguntou Vanessa, que até
aquele momento estava observando calada.
Ana preferiu dizer a verdade. As meninas, embora com
pouca idade, já haviam visto muitos acontecimentos ali,
naqueles quartos ao lado, que serviam de encontro para
muitos casais. Ela teve de explicar a elas muitas coisas,
principalmente para se defender.
— Não, minha filha, não vou como empregada. Ele é um
homem casado, não combina com a esposa, mas parece ser
boa pessoa, me quer como mulher e... Bem, vou tentar,
dificilmente será pior que aqui. Se não der certo,
resolveremos depois. Mas vocês estarão seguras, as
defenderei sempre.
— Está fazendo isso por nós, não é? - indagou Vanessa.
Ana não respondeu e se pôs a pegar e separar o que
levariam. Logo estavam prontas e seguiram rumo ao local
combinado. Querendo se despedir das colegas, pediu para
as meninas esperarem à porta e entrou no restaurante.
Escutou Ofélia dizendo às outras duas empregadas:
— Hoje em dia está muito difícil arrumar quem queira
trabalhar, pessoas direitas.
Vê a Ana, não ficou muito e já arrumou um amante rico.
— Não sei o que aquele homem charmoso viu nela. Ela é
bem esperta! - comentou uma moça.
— Coitada! - disse outra sua colega. - Que Deus a ajude!
Não duvido de que se ela ficasse por mais tempo por aqui,
se tornasse uma prostituta. E quem iria garantir que as
garotas conseguiriam ficar trancadas no quarto por mais
tempo. Logo estariam se engraçando com algum moço e
aí... Isso se não fossem estupradas.
Viram Ana, que preferiu fingir não ter escutado os
comentários, apenas sorriu e falou:
— Só vim dizer adeus! Boa sorte para vocês!
Abraçaram-se.
— Se cuida! - disse Ofélia.
Gustavo as esperava debaixo da árvore. Quando elas se
aproximaram, abriu a porta do seu automóvel novo e
bonito.
— Vocês, meninas, sentem-se aí, me deem isso, vou
colocar aqui. Ficaram envergonhadas de estarem levando
suas roupas dentro de sacos. Mas ele pareceu não
estranhar. As meninas se acomodaram no banco traseiro,
ela na frente.
— Aqui está seu dinheiro, dos dias em que trabalhou.
Vamos embora! - Exclamou Gustavo.
Pegou as notas e guardou no bolso, era mais do que
deveria receber. Observou-o, parecia contente, teve a
certeza de que aquele dinheiro era ele que estava dando.
Deu uma última olhada para o posto, para o restaurante,
suspirou. Não estava levando boas recordações dali. Olhou
para ele novamente, sentiu a esperança renascer no seu
íntimo.
Procurou relaxar.
E a viagem iniciou.
6 - A Chácara
Fizeram o trajeto em silêncio. Ana estava apreensiva e as
meninas, embora estivessem gostando, sentindo-se
aliviadas por terem deixado o minúsculo quarto, estavam
temerosas, atentas, tinham receio de falar.
— É aqui! - Exclamou Gustavo. - A chácara! Um senhor
veio correndo e abriu um portão enorme pintado de azul. O
carro parou em frente a uma casa grande, com uma
agradável varanda com muitas folhagens e flores.
O senhor que abriu o portão ficou de pé perto do
automóvel sorrindo e uma mulher também veio recebê-los.
Gustavo os apresentou.
— Esta é Ana, a nova patroa de vocês, e suas filhas, Lívia
e Vanessa. Ana, este é Nicanor, que zela pelo pomar e pelo
jardim, é um ajudante para trabalhos gerais. Esta é Ruth,
que cuida da casa, faz todos os serviços domésticos.
Cumprimentaram-na sorrindo. Gustavo continuou a falar:
— Entremos, venham conhecer a casa. - Elas ficaram
admiradas. - Temos três quartos, as meninas poderão
escolher quais quiserem. Então, garotas, qual escolhem?
Talvez este para você, Vanessa, este para Lívia. Não?
Querem ficar juntas? Fiquem à vontade.
As duas só moviam a cabeça, preferiam dormir juntas. E
escolheram o maior que dava para a frente da casa.
— Ruth cuidará para que fiquem acomodadas. Venha Ana,
este é o nosso quarto, uma suíte com banheiro. Gostou?
Ótimo! Vamos acomodar seus pertences.
Novamente ela se envergonhou dos sacos, em minutos
guardaram tudo. Lívia sorriu e comentou baixinho:
— Veja mamãe, quantos cobertores, roupas de cama
novas e cheirosas, toalhas macias. Que beleza de casa!
Tomaram banho, Gustavo as chamou para jantar.
Sentaram-se se à mesa, mas ficaram imóveis. Ele falou:
— Gosto de me alimentar acompanhado, as refeições são
mais agradáveis com a família reunida. Não estão com
fome? Podem se servir!
Olhou para Ana, que tratou de explicar:
— Gustavo, creio que não sabemos comer corretamente.
— Ora, podem aprender. é assim...
Explicou como se servia, como usar os talheres.
— Observem como faço e imitem. Não se envergonhem
ninguém nasce sabendo, quando se quer, se aprende.
Elas pouco conversaram, Gustavo falou da chácara,
comentou da comida, que estava deliciosa, e elas acabaram
comendo muito. Depois foram para a sala.
— Ana, aqui as meninas não precisam ficar presas, não há
perigo.
— Posso correr pelo pomar? Pegar frutas? - Indagou Lívia.
— Claro, Lívia - respondeu Gustavo - vocês agora moram
aqui, poderão brincar com as crianças da vizinhança, são
pessoas boas. Irão gostar daqui.
— Já gosto - respondeu Lívia.
Ana e Gustavo foram à varanda, sentaram-se nas
confortáveis cadeiras. Ela estava encabulada, não sabia
como agir. Ele a olhou sorrindo:
— Ana, sinta-se à vontade. Não gostou da casa?
— Gostei muito. O lugar é agradável, a casa é confortável
e bonita.
Conversaram um pouco e foram dormir. O domingo foi
tranquilo, andaram pela chácara e logo após o almoço
Gustavo foi embora, prometendo voltar na quinta-feira, e
recomendou:
— Ana, aqui nessa gaveta tem dinheiro, se precisar de
alguma coisa, peça a Nicanor para ir comprar na cidade.
As três, sem Gustavo em casa, exploraram o lugar.
— Gostei demais daqui mamãe, vamos ficar não é? -
Indagou Lívia.
— Também gostei mamãe, parece que estou sonhando e
tenho medo de acordar naquele antigo quarto - disse
Vanessa.
— Espero ficar - respondeu Ana - farei de tudo para que
isso aconteça.
A casa tinha de tudo, e com fartura. Passaram três dias
passeando pela chácara, brincando com alegria.
Conheceram melhor os dois empregados que trabalhavam
na chácara. Nicanor morava ali perto, era casado, tinha
filhos e netos, era trabalhador, gostava das plantas. Havia
uma charrete que ele usava para ir à cidade.
— A cidade é perto - explicou ele - pode-se ir a pé
tranquila mente, uso a charrete apenas para fazer compras.
A chácara ficava num bairro residencial, por isso havia
casas por perto. A estrada era estreita, de terra, mas eles a
chamavam de rua.
Gostaram também de Ruth. Ela se trajava bem, tinha
roupas bem melhores que as de Ana. Era solteira e morava
na chácara, numa casinha ao lado da casa onde estavam
alojados.
— Ruth, você não tem família? - Indagou Lívia.
— Lívia, minha filha, você não deve ser indiscreta - Ana a
repreendeu.
— Dona Ana, não repreenda a menina, não ligo de falar
sobre isso. Não tenho família, sou órfã, minha mãe morreu
quando eu era nenê, não sei de meu pai, fui criada num
orfanato. Quando tinha dezoito anos, a direção da
instituição me arrumou um emprego, assim vim servir a
dona Eugênia.
— E cadê essa dona Eugênia? - Perguntou Vanessa.
— Faleceu. Quando vim para cá, ela era viúva, tinha dois
filhos e, quando desencarnou, os filhos venderam a chácara
para o senhor Gustavo e continuei aqui.
— Você falou que ela desencarnou. O que é isso? -
Indagou Vanessa, curiosa.
Ruth sorriu e explicou:
— É o mesmo que morrer, desencarnar é o espírito
abandonar o corpo físico que morreu e ir viver noutro lugar.
— Legal! Gostei de desencarnação, prefiro-a a dizer
morrer. Morte dá uma sensação de acabar, e ninguém
acaba - falou Vanessa.
— Você gostava do orfanato? - Quis saber Lívia.
— Sim, lá foi meu lar, gostava só que me sentia sozinha, é
triste ficar sem família.
— Também sou órfã! - Disse Lívia. Ana e Vanessa a
olharam e ela tratou de reparar: - Órfã de pai, e tenho medo
de perder mamãe.
Vanessa aproximou-se de Ruth, abraçou-a e beijou-a.
— Ruth, acho que você poderá ser da nossa família,
somos só nós três. Poderá ser, deixe-me pensar... uma tia.
Gosto de você!
Ruth se emocionou, enxugou uma lágrima e sorriu. Ana
calculou que ela deveria ser de sua idade, ter uns trinta e
poucos anos. Era miúda, clara, cabelos castanhos, quase
louros, mas de olhar triste. Compreendeu que ela deveria se
sentir muito só. Olhou as meninas com carinho, ela nunca ia
se sentir sozinha.
Na quinta-feira cedo, Vanessa achou um cachorrinho
muito sujo, magro, parecia doente.
— Mamãe, posso ficar com ele?
— Não sei Vanessa. Acho que devemos pedir ao Gustavo.
— Vamos cuidar dele - disse Lívia. Daremos comida e
vamos limpá-lo, pois está frio para lhe dar banho.
Logo após o almoço, Gustavo chegou, cumprimentou
todos sorrindo. Vanessa ficou olhando-o fixamente. Ele
percebeu, passou a mão no seu queixinho e indagou:
— Que foi Vanessa? - Nada de ela responder. - Vamos,
fale. O que quer?
— Ficar com o cachorro - disse ela, criando coragem.
— Quer ter um cachorro? Claro, pode ter, a chácara é
grande, boa para ter animais, e gosto deles. Vou arranjar
um para você.
— É que já tenho - respondeu ela. - Bem, achei um
perdido, perguntei pela vizinhança, não tem dono, ninguém
o quer, está só e abandonado, coitadinho. Mamãe disse que
poderíamos ficar com ele se o senhor deixasse.
— Já deixei - respondeu ele e Vanessa sorriu contente. - O
cãozinho agora não está mais só e abandonado, tem dono,
você e Lívia. Podem cuidar do bichinho. Tragam-no aqui
para eu ver.
Elas correram e trouxeram o animalzinho no colo.
— Ele está feio - explicou Lívia - porque passava fome,
mas vamos cuidar dele e ficará bonito.
— Certamente - falou Gustavo - se vocês cuidarem dele
com carinho ficará bonito; tudo que é tratado com amor fica
lindo. Mas como chama o bichinho?
— Zek - respondeu Vanessa.
— É um nome forte para um cachorro valente.
Gustavo foi trabalhar, mas voltou para o jantar. Agora elas
estavam mais descontraídas. Após a refeição, foram para a
varanda conversar.
— Ana, tenho uma fábrica na cidade, uma indústria
pequena perto da grande que possuo, onde minha família
reside. Não gosto de ficar em hotel e como tenho de vir
muito a esta cidade, comprei esta chácara na esperança de
que meus familiares viessem aqui, organizei tudo para isso,
mas nunca quiseram vir. Lorena, minha esposa, não gosta
nem de cidade pequena e muito menos de chácara, e meus
filhos nunca quiseram vir conhecer. Ficava aqui muito
sozinho e quando a conheci, comecei a sonhar em tê-la aqui
comigo.
— Fale de você, Gustavo - pediu Ana.
— Casei-me apaixonado, mas nos enganamos, logo
estávamos apenas nos tolerando. Tivemos três filhos, Paulo
Sérgio, que tem o nome dos avôs, Áurea e Júnior, o caçula.
Paulo Sérgio pensa em se casar logo, trabalha comigo na
outra fábrica, Áurea é uma jovem que só pensa em se
divertir. Já o Júnior é um bom moço, nos damos muito bem.
Desde que meu caçula nasceu, eu e Lorena nos separamos.
Apesar de vivermos na mesma casa, evitamos até de falar
um com o outro. Não pensamos em nos separar, há muito
dinheiro em jogo. Já éramos ricos, unimos as fortunas e
agora é difícil dividi-la. Lorena não sabe fazer nada, só
gastar, e não quer se separar porque sabe que logo iria
perder tudo que caberia a ela. Tive nesses anos aventuras e
ela também. Estranha? Lorena é discreta, mas tem seus
amantes, é fútil, está sempre enfeitada demais. E foi assim
que criamos nossos filhos. Áurea é parecida com a mãe,
Paulo Sérgio é indiferente e o Júnior...
Falou por bastante tempo. Ana o escutava, atenciosa, e
compreendeu que Gustavo era rico, mas tinha muitos
problemas. Falar fez bem a ele, e finalizou:
— Ana, estou gostando demais de tê-la aqui.
— Também estamos gostando, Gustavo - respondeu ela
sorrindo.
De madrugada acordaram com Lívia chamando e
chorando. Ana se levantou aflita, abriu à porta, Lívia estava
encostada nela com as mãozinhas no rosto.
— Que foi filha?
— Dor de dente!
— O quê? - perguntou Gustavo, se levantando. - Dor de
dente? Deixe-me ver.
Nossa, que cárie grande! Você não vai ao dentista?
— Acho que... Nunca foi - respondeu Ana.
— Tratarei disso amanhã - falou ele. - Tente Ana, amenizar
a dor dela.
Voltou para a cama e pensou:
"Puxa, dor de dente! Nunca foi ao dentista. Uma criança
que está morando na mesma casa que eu, com dor de
dente! Deveria ter imaginado, eram pobres, nem roupas
têm. Tenho de cuidar melhor delas."
Ana limpou o dentinho e, quando a dor passou, voltou
cuidadosamente ao quarto. No outro dia, Gustavo falou:
— Ana, conheço um bom dentista, vou conversar com ele.
Quero que as atenda logo cedo. As três irão tratar dos
dentes. Vou mandar um empregado de automóvel buscar
vocês. Volto para o almoço.
— Não fica caro? O dentista não cobra muito? - A indagou.
— Ana, não quero que se preocupe com isso. Vou cuidar
de vocês, das três. Para mim não é caro - sorriu ele.
Gustavo saiu para trabalhar, ela acordou as meninas.
Disse a elas:
— Vamos ao dentista, Gustavo irá mandar um empregado
nos buscar. Vamos colocar essas roupas.
— Que são as melhores - falou Lívia. - Só temos duas
trocas melhorzinhas, o resto está bem ruim. Mamãe tenho
medo do dentista.
— Lívia, é bom tratar dos dentes! Você não terá mais
dores. Não tenha medo, ele é um profissional e deixará nós
três com os dentes sadios. Gustavo pagará tudo.
— Mamãe, gosto do senhor Gustavo, gosto muito, ele é
bom - expressou Vanessa.
Logo após, um moço, empregado da fábrica, veio no
automóvel buscá-las. Era a primeira vez que elas iriam à
cidade. Acharam-na singela, agradável, suas principais ruas
eram calçadas com pedras. Olharam, admiradas, tudo.
Gostaram. O carro parou e o moço disse:
— É aqui, dona Ana. Podem entrar, o dentista está
esperando, vou aguardá-las aqui.
Um senhor simpático as recebeu sorrindo.
— O senhor Gustavo já me explicou, entrem, por favor.
Quem será a primeira?
Ana foi para dar bom exemplo e acabar com o medo das
garotas. Tinham muito que fazer, os dentes estavam muito
estragados e o dentista tratou primeiro do dente dolorido de
Lívia.
— Não irá doer mais. E para terminarmos logo, vamos
marcar muitos horários.
Saíram aliviadas.
— Não vou ter mais medo de dentista - falou Vanessa. -
Ele é um senhor simpático e seu dente, Lívia, não doerá
mais.
Durante o almoço comentaram com Gustavo a aventura
que foi para elas a ida ao dentista. Ele sorriu e falou:
— Ana, hoje só irei à fábrica mais tarde. Logo virá aqui
uma moça que vende roupas, pedi a ela que trouxesse
algumas para vocês experimentarem. Ela é esposa de um
funcionário meu, e a mãe dela é costureira e fará alguns
vestidos para vocês. Essa moça está precisando vender...
Elas nada comentaram. Após uma pausa, ele continuou:
— Estamos em férias escolares, logo começará o segundo
semestre, vou matricular as meninas num estabelecimento
de ensino na cidade perto daqui. Nicanor leva os netos para
a escola de charrete e levará também as duas. Pelo que
você me disse Ana, elas foram poucos dias deste ano às
aulas, mas a diretoria irá aceitar tudo, ajudo muito o Grupo
Escolar e ela ficou contente por me fazer esse favor, as
meninas não perderão o ano. Mas, para não terem muitas
dificuldades, contratei uma professora particular que dará
aulas a elas nesta última semana de férias e continuará
depois que as aulas começarem. Se vocês são mesmo
estudiosas, não sentirão falta das aulas que perderam. Essa
moça, a professora particular, é dona Geni, que leciona num
colégio. Está com a mãe doente, precisando muito de um
ordenado extra. Vocês, meninas, irão gostar dela, virá aqui
logo mais à tarde e dará uma lista de materiais que vocês
precisarão comprar. Na segunda-feira, quando forem ao
dentista, meu empregado comprará para vocês.
As três ficaram quietas escutando. Vanessa até abriu a
boca, os olhos de Lívia se encheram de lágrimas e Ana
pensou:
"Gustavo está nos ajudando da mesma forma que parece
fazer aos outros, creio que ajuda todos. Que homem bom!"
Olhou, queria dizer algo que expressasse o que sentia,
mas só conseguiu balbuciar:
— Gustavo, obrigada! - Senhor Gustavo - exclamou Lívia -
muito obrigada!
— Agradeço muito por não ter mais dor de dente. Sou
estudiosa, gosto muito de aprender e vou estudar muito.
— Senhor Gustavo - expressou Vanessa timidamente - que
Deus o proteja pelo que está fazendo por nós. Gosto do
senhor!
— Bem, vamos acabar de almoçar - disse Gustavo, alegre
- que logo a moça das roupas chegará. E realmente a moça
chegou com grandes sacolas e começou a mostrar as
roupas. Eram boas, deviam ser caras. Ana e as meninas
ficaram indecisas, e Gustavo falou:
— Separe tudo o que serviu, elas ficarão com todas.
— Gustavo - Ana falou baixinho - são muitas e caras, não
precisamos de tantas.
Ele sorriu e lhe falou ao ouvido:
— Deixe-me comprá-las, a moça precisa vender.
Os olhos das meninas brilharam de admiração, nunca
imaginaram ter roupas tão bonitas. A moça, após a venda,
foi embora contente. Elas vestiram roupas novas para
esperar pela professora, que não demorou a chegar, e a
aula começou. Dona Geni fez uma avaliação, marcou
horário para a semana toda à tarde para lhes dar aulas e
deixou a lista do material de que necessitariam na escola.
Quando Gustavo chegou para o jantar, encontrou-as felizes,
com roupas novas, conversando e rindo.
— Que bom vê-las contentes!
— Contentes? - Exclamou Ana. - É pouco, estamos felizes.
— Ana, amanhã à tarde vou embora, volto na quinta ou
sexta-feira. Meu empregado virá buscá-las pela manhã
todos os dias para levá-las ao dentista e na segunda-feira
ele as levará a duas lojas, uma de confecção, onde
comprará roupas íntimas e o que lhes falta; outra é de
sapatos, é de um amigo meu. Quero que compre pelo
menos três calçados para cada uma. Depois irão à papelaria
comprar tudo que dona Geni escreveu na lista e mais
pastas, lancheiras e o que as meninas quiserem. Quero
também que vocês vão a uma cabeleireira, precisam de um
bom corte nos cabelos. Vou pedir para dona Geni levá-las.
E assim foi feito. Nunca tiveram tantas roupas, agasalhos,
cadernos, e uma nova vida começou para elas. Foram ao
salão de beleza, as trataram bem. Ana fez muitas coisas
que as mulheres costumam fazer e o resultado foi muito
bom. Mas não se enfeitou muito, lembrou que Gustavo falou
de sua esposa com reprovação, queria agradá-lo e achou
que o faria com sua simplicidade. Quando ele a viu, ao
retornar, comentou aprovando:
— Ana, você está muito bonita!
Estava tudo muito tranquilo, em paz, e Ana teve medo de
que tudo passasse rápido. As meninas, alegres, estudavam
e aprendiam com facilidade, dona Geni afirmou que não iam
ter problemas para acompanhar os colegas de classe.
Porém, Ana sentia a falta dos filhos, tinha muita saudade e
chorava escondido, a ausência deles lhe doía demais.
Nicanor trouxe a esposa, dois filhos e netos para que Ana
e as meninas conhecessem como também as apresentou às
crianças da vizinhança, e logo fizeram amizade. As aulas
começaram, tinham aulas no período da tarde. Nicanor as
levava de charrete e as buscava, gostavam da escola. Como
iam ao dentista pela manhã, dona Geni vinha à noite,
ajudava-as com as tarefas, ensinando-as o que elas não
sabiam.
O tratamento dentário foi dolorido para Ana. Vanessa
terminou primeiro, depois Lívia e finalmente ela.
Aprenderam a escovar corretamente os dentes e Gustavo
marcou para que elas fossem todas as férias ao consultório
dentário.
Ana não gostava de ficar à toa; ajudava Ruth e as duas se
tornaram amigas. Ruth a ensinou a bordar e ela passou a
fazer toalhas muito bonitas. Também foi aprender a costurar
com uma vizinha. Quis aproveitar a oportunidade para
aprender uma profissão.
Guardou por um tempo as roupas velhas, depois pediu
para Ruth doá-las.
— Perto daqui há umas casinhas onde moram pessoas
muito pobres. Irei até lá levar estas roupas.
Lívia comentou feliz:
— Nem parece que faz três meses que estamos aqui.
Mamãe, por favor, não quero ir embora, não quero sair da
chácara.
— Devemos fazer tudo para ficar - expressou Vanessa. -
Vamos ser sempre boazinhas e agradecidas ao senhor
Gustavo.
E ele estava cada vez mais ficando na chácara, quase
todos os finais de semana. Falava sempre de seus
problemas a Ana, que escutava atenta, dando sugestões e
animando-o. Mas ela pouco falava de si, só contou que não
vivia bem com Gilberto, que este a maltratava.
Preferia falar de sua infância, de seus pais. Narrou a ele a
briga com a família. Falou que Gilberto morreu em um
acidente, mas não disse nada dos filhos, era um assunto
muito doloroso que não conseguia ainda lembrar sem
chorar, e não queria se lamentar para ele, que tanto as
ajudava. Depois, tolamente, temeu contar a ele que as
meninas eram enteadas e não filhas.
Um dia ele viu uns livros na cabeceira da cama.
— Você está lendo-os? - Indagou.
— Gosto de ler - respondeu ela. - Achei estes livros numa
gaveta.
— Vou trazer para você alguns livros de que gosto,
aprende- se muito lendo, é um hábito que devemos cultivar.
Ele trouxe algumas obras e Ana passou a ler muito.
Passaram a ter mais assunto para conversar e era sempre
muito agradável ficarem juntos conversando, às vezes na
sala, outras na varanda. E ele se refazia na chácara, lá tudo
era paz e tranquilidade.
Pela manhã, num sábado, Ana estava na cozinha
ajudando Ruth e Gustavo ficou na varanda. As meninas
jogavam bola, contentes. Ele ficou algum tempo
observando, depois resolveu se aproximar delas:
— Que bola diferente! Deixe-me ver! é de tecido?
— É - respondeu Vanessa. - Mamãe que fez!
Ele pegou e examinou a bola, Ana a tinha feito de papel e
tecido.
— Vocês não têm brinquedos? - perguntou. - Não têm
vontade de tê-los?
— Eu queria ter uma bicicleta e uma boneca grande. Uma
vez ganhei uma boneca, mas ela ficou na outra casa quando
mudamos - expressou Lívia.
— Vamos à cidade, vocês duas e eu. Comprarei alguns
brinquedos para vocês - falou Gustavo.
Lívia aproximou-se do carro, rapidamente. Vanessa
segurou-a pelo braço, olhou para ele e disse:
— Não precisa, senhor Gustavo, o senhor já nos tem dado
tudo de que precisamos, somos gratas.
— Vanessinha, quero comprar uns brinquedos para vocês,
vamos logo, que a loja ainda está aberta. Nicanor avise a
dona Ana que saí com as meninas, mas volto logo.
Quando Nicanor avisou Ana, ela ficou indecisa, sem saber
o que fazer. Temeu, nunca havia deixado as meninas
sozinhas com ninguém. Mas não demoraram a voltar, e ela
se envergonhou por ter duvidado de Gustavo. Elas estavam
tão felizes e gritaram entusiasmadas:
— Mamãe! Mãe! Venha ver o que ganhamos do senhor
Gustavo!
Lívia e Vanessa pulavam, sorriam e falavam ao mesmo
tempo. Desceram do automóvel com duas bicicletas,
bonecas grandes, bolas e mais alguns brinquedos. Ana as
olhava emocionadas. Lívia conseguiu falar com mais calma:
— Mamãe, o senhor Gustavo comprou tudo isso para mim
e para Vanessa e disse mais: que nos dará uma festa de
aniversário! Irei fazer treze anos no mês que vem e é para a
senhora fazer uma grande festa, e outra no aniversário de
Vanessa. Como estou feliz!
Ana se esforçou para falar, estava emocionada:
— Vocês agradeceram?
— Eu falei um milhão de obrigadas! - exclamou Lívia.
— E eu, dois milhões - disse Vanessa.
Ana aproximou-se dele, que as olhava contente, e o beijou
no rosto.
— Obrigada, Gustavo! Deus lhe pague!
— Já pagou com seu beijo - respondeu ele, abraçando-a.
Foram almoçar e deixaram as meninas brincando.
— Deixe-as - disse ele - virão comer quando estiverem
com fome. Estão tão entusiasmadas com os brinquedos!
Fizeram as festas, vieram os coleguinhas da escola, as
crianças da vizinhança. E a chácara agora estava sempre
com a meninada brincando, comendo as frutas, rindo e
gritando. Quando chegaram ali, as meninas pareciam ter
menos idade, eram miúdas, mas elas cresceram naqueles
meses, pareciam outras, estavam sadias, coradas, mais
bonitas, eram felizes.
Dois meses depois, elas não precisaram mais das aulas
particulares e foram aprovadas com boas notas. Nas festas
de final de ano, Gustavo passou com a família. As três
sentiram falta dele, mas entenderam.
As meninas se divertiram muito nas férias, e as aulas
iniciaram. Gustavo dava dinheiro para Ana todo mês, apesar
de mandar Nicanor comprar tudo de que necessitassem na
cidade e pagar depois. Ela não gastava com nada e resolveu
guardar.
— Gustavo - disse ela - você me dá dinheiro e não tenho
gastado, gostaria de guardá-lo, mas com a inflação não vale
a pena.
— Vou abrir uma conta no banco para você.
Trouxe os papéis para ela assinar e todo mês ela passou a
depositar o que ele lhe dava. Sentiu-se mais tranquila; se
precisasse tinha como se manter por uns tempos. Ela
passou a ir frequentemente ao salão de beleza, fazia tudo
para agradá-lo e ele continuava gentil e bondoso.
Naquela tarde estava muito quente. Ana estava só com
Ruth, foi ao jardim, sentou-se num banco de madeira
embaixo de uma árvore. Zek, o cachorro, que agora estava
sadio e muito bonito, a acompanhou. Ele era um animal
dócil, carinhoso, que gostava de estar sempre com ela.
Ficou deitado ao seu lado. Ana parou de bordar, olhou para
suas mãos; não tinha mais calos, estavam macias, as unhas
esmaltadas e bonitas, pensou:
"Tudo tão calmo! Como seria nossa vida se não tivesse
acontecido o acidente? Será que Gilberto teria mudado?
Não, acho que não! E se só ele tivesse morrido? Que bom
seria ter aqui comigo meus dois filhos. Rodrigo e Marcelo
iam gostar muito de morar neste lugar. Mas como seria
naquele tempo no restaurante com mais dois? Não seria
com quatro não teria arrumado o emprego."
De repente, ela sentiu um mal-estar estranho, ficou
arrepiada. Zek ganiu e pulou no seu colo, se escondeu
tremendo na saia dela. Ana olhou para o lado, onde estava
o cãozinho e aí... viu Gilberto com o mesmo olhar cínico e
maldoso. Não o viu nitidamente como se vê um encarnado,
mas o escutou como se as palavras ecoassem dentro dela:
— Ana, vá embora daqui!
7 - A Perseguição de Gilberto
A imagem sumiu. Ana abraçou Zek e correu com ele para
casa. Entrou na sala, ainda estava tremendo, lembrou que
deixou o bordado no jardim, talvez no chão, mas não teve
nenhuma vontade de buscá-lo.
"Devo ter adormecido e sonhado, só pode ser isso!" -
Pensou.
De novo o arrepio, a sensação estranha e aquela voz que
dizia:
— Ana! Pegue as meninas e vá embora daqui! Abandone
Gustavo, eu ordeno! E me obedeça logo, senão você já
sabe!
— Não, não quero ir embora daqui, não quero! - Falou alto,
estranhando mais ainda por estar respondendo àquele
fenômeno.
— Vai e vai porque eu quero!
Escutou não como se ouvem pessoas no plano físico,
sentiu os dizeres na mente e teve a certeza de que era
Gilberto. Balbuciou toda trêmula:
— Meu Jesus, me acode! Deus tenha piedade de mim!
— Vou, mas volto, e pense já como ir daqui com as minhas
filhas!
A sensação acabou. Ana ficou um tempo sentado no sofá
da sala encolhida e com medo, tentou raciocinar:
"Será que vi realmente Gilberto? Se Vanessa vê e fala com
a mãe dela, a Aninha, isso é possível. Mas por que ele quer
que vamos embora? Ciúme? Não, não creio, é por maldade.
Ele não quer nos ver bem. Vou buscar meu bordado."
Voltou ao jardim com receio e Zek, ao seu lado, juntinho
dela estava com medo também. Pegou a toalha, voltou
rápido para casa e a guardou, não estava com vontade de
bordar mais. Também não conseguiu ler. Tentou parecer
tranquila às meninas quando elas chegaram da escola. À
noite, teve medo de ficar no quarto sozinha; pela primeira
vez quase chamou as meninas para dormirem com ela.
"Tudo isso é bobagem - pensou, tentando se convencer.
Deve ter sido o calor, tive uma visão, foi só isso, não vi
nada, não escutei nada.”
Dormiu e sonhou. O que realmente aconteceu foi que Ana,
ao adormecer, se desprendeu do corpo e em perispírito
encontrou-se com Gilberto, que a esperava para conversar.
Ele entrou no seu quarto e se queixou:
— Ana, não estou bem, morrer é muito ruim, é estranho.
Sinto-me como se estivesse vivo, ando sem destino, tenho
dores, sofro. E tudo isso é culpa desse Gustavo, assassino!
— Não fale assim, Gilberto, você não tem o direito de
entrar aqui nem de me atormentar! - disse ela com medo.
— Como você está atrevida! Está precisando apanhar!
Escute aqui, minha cara, sempre mandei em você e vai
continuar me obedecendo, nada vai ser diferente. Você tem
de abandonar o assassino, porque aí ele sofrerá, o safado
idiota ama você de fato. Vou lhe explicar por que tem de
abandoná-lo. Morri por culpa de um ricaço, um miserável
que nos atirou no precipício, e sabe quem é o assassino?
Gustavo! Sim, ele mesmo. Agora entendeu?
— Não acredito! Você mente! - exclamou ela.
— Não minto! Gustavo é o assassino de seus filhos! -
Afirmou Gilberto, sorrindo cinicamente.
— Onde estão Rodrigo e Marcelo? - perguntou Ana.
— Não sei! Foi muito confuso, me lembro pouco daquele
dia, padeci muito. Quando entendi que empacotei, que
morri, estava num lugar estranho, aí fui atrás do assassino e
qual foi meu espanto: encontrei-o aqui com vocês, minha
mulher e filhas.
— Gilberto!
Ouviram e ambos olharam para onde vinha aquela voz
doce e forte, e viram Aninha. Ela aproximou-se, ficou do
lado de Ana e falou de modo calmo, mas firme:
— Saia daqui, Gilberto! Você não tem o direito de cobrar
nada. Não se preocupa com ninguém. Não quis saber dos
meninos, nem de Ana com nossas filhas. Em vez de tentar
ajudar seus familiares ou mesmo querer saber como
estavam, se bem ou mal, como sempre, egoísta, pensou só
em você. Culpa o outro pelo que ele fez de errado, perde
tempo em querer se vingar. Raciocinou por acaso para onde
Ana irá com nossas filhas? Se tiverem onde morar, se
alimentarão, terão frio ou...
— Não se intrometa! Saia daqui você! Ninguém a chamou!
— Tenho duas filhas aqui, amo-as, me preocupo com elas
e não quero que vão embora! Gilberto gritou, Ana se
assustou, correu para o corpo e acordou tremendo, toda
suada. Teve medo, acendeu a luz e começou a orar.
Lembrou-se do sonho com quase todos os detalhes.
Normalmente quando acordamos após esses encontros é
mais fácil recordá-los. Gilberto saiu do quarto dela, foi à
varanda e Aninha foi atrás.
Ele falou debochando:
— Minha digníssima ex-esposa, que todos por aqui a
chamam de Aninha, caiam fora, o assunto não é com você.
— Engana-se, Gilberto, é comigo sim. Tive permissão para
protegê-las e eu não deixarei que você se vingue de um
homem nobre e bom e prejudique-as pela sua insensatez.
— Ele é um assassino! - exclamou ele, nervoso.
— Você sabe que não! Foi seu o erro e é o culpado pela
desencarnação de Rodrigo e Marcelo.
— Hum... desencarnação, parece que esteve
aprendendo... Bem, Aninha, vá embora que o assunto é meu
e não gosto de intromissão. Senão... vou bater em você, vou
surrá-la tanto que se arrependerá de ter vindo se
intrometer.
— Você já não pode me bater - afirmou Aninha
tranquilamente.
— Ah, não?
Ele riu e foi para o lado dela com o pulso fechado. Aninha
ficou passiva e orou por ele. Quando se aproximou mais, foi
jogado longe, caiu e rolou.
— Tudo está diferente, Gilberto - disse ela calmamente. -
Você não poderá mais encostar em mim. Foi repelido pela
energia que me envolve, pela vibração que irradio. E aqui
estarei para proteger minhas filhas.
Gilberto se sentiu humilhado, se levantou resmungando e
saiu.
"Que humilhação! Sempre bati nessas duas! E não
contava com a intromissão de Aninha. Vou ter dificuldades!
Na casa do assassino está Ernesto e aqui, esta outra. Vou
ter de usar mais a inteligência."
Foi à outra cidade, na casa de Gustavo, a que ele morava
com a família. Não entrou, ficou no jardim. Ernesto, logo que
o viu, se aproximou.
— Olhe aqui, dê o fora! Já lhe falei que não o quero por
aqui.
— Só vim conversar! - respondeu Gilberto. - Me responda
o que esse homem lhe fez para que você lhe seja um cão de
guarda?
— Cuidado com a ofensa! Não creio que possa ser
comparado a um cão, esse animal é fiel e eu não sou. Mas
exijo respeito quando falar do senhor Gustavo.
— Respeito! - riu Gilberto. - É um bacana que mora nesta
mansão, tem de tudo, é casado e tem amante.
— O senhor Gustavo é separado da esposa - defendeu
Ernesto. Ele tem um quarto aqui só para ele, só não casa
com a outra porque não pode. Ele é trabalhador, bom pai,
boa pessoa e ótimo patrão.
— Pelo visto - disse Gilberto, ele lhe fez muito. Você
parece devedor.
Sentaram-se na grama no jardim. Ernesto falou:
— Fui empregado do senhor Gustavo por muitos anos. Ele
sempre foi bondoso e justo, me tratava bem. Só que fui
ingrato, o traí, fui um cretino e quero que ele me perdoe.
— Se o senhor Gustavo é tão bom como você fala, por que
ele não lhe perdoa? - perguntou Gilberto.
— Porque ele não sabe o que eu fiz - respondeu Ernesto.
— Não entendo...
— Vou lhe explicar: é que roubei dele uma boa quantia de
dinheiro, disse a todos que ganhei na corrida de cavalos,
todos acreditaram, mas desfrutei do dinheiro só por uns
quinze dias, tive um derrame e "bati as botas", meu corpo
morreu e eu continuei vivo e com remorso.
— A família rica... - ironizou Gilberto.
— Sim, o dinheiro ficou para eles, mas não me importo
com isso. Tenho uma família honesta, esposa direita, que
chorou a minha morte - falou Ernesto tristemente.
— Mas como roubou o cara e ele não percebeu? Que
estranho! Ele é panaca? - Gilberto perguntou curioso.
— Vou lhe contar tudo e aí entenderá. Estava viajando
com o senhor Gustavo. Fomos à outra fábrica, quando ele
recebeu um telefonema da esposa dele, dona Lorena, que
para infernizá-lo exagerou o estado de saúde do filho, o
caçula, Júnior. O rapaz teve uma crise de apendicite e
estava sendo operado. Pelo que ela disse, Júnior estava à
morte. O senhor Gustavo se desesperou, ele adora os filhos.
Saímos apressados, no caminho houve um acidente e o meu
ex-patrão estava com uma quantia grande de dinheiro. Ele
me pediu para ficar no local, me deu esse dinheiro para que
eu pagasse toda a despesa do funeral e amparasse a viúva.
— E você roubou! Safado! - gritou Gilberto. - Onde foi esse
acidente?
— Na serra...
Gilberto esmurrou Ernesto.
— Ladrão miserável! Fui enterrado como indigente,
porque Ana não tinha dinheiro, e foi você que o tirou dela!
Sou eu quem morreu naquele acidente e aqui estou para
me vingar do assassino. Os dois lutaram se esmurraram por
minutos. Machucados, pararam cansados e se deitaram na
grama.
Desencarnados como Ernesto e Gilberto, sem a
compreensão da vida espiritual, que vagam sem orientação,
são muito materializados, sentem os reflexos e as
necessidades como se estivessem no corpo físico. Vemos
muitos agirem como se ainda estivessem encarnados. Lutas
e brigas são comuns nas regiões umbralinas ou quando
estão vagando. Sentem dores nos machucados.
Estremecidos, vemos muitos vingadores torturarem,
castigarem seus desafetos, que sofrem muito.
Ernesto falou após uma pausa:
— Gilberto, sou um ladrão miserável, mas me arrependi e
vou proteger o senhor Gustavo. Ficarei guardando-o como
um cão de guarda, pois agora quero ser fiel, com ele ficarei
até que me perdoe. Sou mais forte que você, não lhe bati
mais porque não quis, só me defendi para ver se sua raiva
passava. E o senhor Gustavo não é assassino! Estava
presente e vi tudo. Foi você o culpado. Ao chegarmos à
serra, vimos que ia demorar muito na fila e não queríamos
perder tempo. Meu ex-patrão deu uma gorjeta ao
funcionário para que nos deixasse passar na frente. Você
que veio por cima de nós, bateu no nosso automóvel, voltou
para dar ré e, como era mau motorista, caiu no precipício.
— E você defende o patrão, é empregadinho até hoje -
ironizou Gilberto.
— Sempre gostei de trabalhar, dava graças a Deus por ter
um emprego e viver dignamente com o ordenado que
recebia, e o senhor Gustavo foi sempre um bom patrão.
— Está bem, até que o entendo - falou Gilberto. - Odeio
você por ter ficado com o dinheiro de Ana, mas admiro sua
esperteza, faria o mesmo no seu lugar. Você não vai deixar
que eu me aproxime dele?
— Não!
Ernesto o olhou e o ameaçou com a mão fechada. Gilberto
levantou-se e foi embora.
"Bem - pensou - se não posso me aproximar desse
assassino, o jeito é fazer com que Ana se vingue por mim."
E ficou na chácara e passou a atormentar Ana. Aninha,
vendo o que acontecia, porque estava lá sempre que lhe era
possível, visitando as três, pediu licença e teve permissão
de vir ajudá-las, mas na condição de auxiliar também o ex-
esposo.
Ana estava inquieta, nervosa, tinha medo de dormir e
sonhar com Gilberto parecia que o via pela casa, sentia sua
presença e ouvia sempre:
"Ana, vá embora desta casa!"
Quando Gustavo chegava, ela se esforçava para parecer
normal. A presença dele lhe dava mais segurança, mas
quando ele ia embora, voltava a inquietar-se. E assim foi por
dois meses; ela não sabia o que fazer, temia que ao contar
a Gustavo este a julgasse louca, desequilibrada. Não
conseguia ter sossego, não lia mais nem bordava. Queria a
proteção de Gustavo. Ernesto, ficando com Gustavo, não
deixava Gilberto se aproximar e este, a contragosto, não
conseguia influenciá-los. Por isso Ana se sentia melhor com
Gustavo. Esse espírito, Ernesto, usava a força para afastar
Gilberto. Já Aninha ajudava Ana, mas queria que ela
procurasse o entendimento, um meio certo, caridoso, que
afastasse Gilberto, em que a amiga aprendesse e achasse
uma religião, a compreendesse e a seguisse como também
encaminhasse as filhas. E pelos acontecimentos, tinha
esperança de que Ana se encontrasse no Espiritismo.
Acompanhava tudo de perto, só interferiria se Gilberto se
excedesse, porque planejava também ajudá-lo. Embora ela
estivesse sempre ali, Gilberto não a via, pois seu padrão
vibratório era mais baixo que o da ex-mulher. Mas, caso
Aninha desejasse ser vista por ele, bastaria baixar sua
vibração para que ele pudesse enxergá-la.
Domingo à tarde Gustavo ia embora e desta vez ia ficar
quinze dias, ia viajar a negócios. Ele a abraçou na
despedida.
— Ana, sinto-a triste.
— É que você irá demorar desta vez...
— Mas voltarei querida.
Ana estava sofrendo e, pior, não sabia o que fazer para
acabar com aquele tormento. Andava pela casa nervosa,
tentando parecer tranquila para as meninas. Estava no
quarto quando sentiu o ex-companheiro novamente ao seu
lado. Falou desesperada:
— Gilberto, pelo amor de Deus, me deixe em paz!
— Não quero prejudicá-la, quero que me obedeça! Mas se
teimar em não me atender, vou deixá-la louca!
— Como tem coragem de fazer isso? Não chega o que me
fez quando vivo? - perguntou Ana.
— Cara Ana, continuo vivo, embora a morte tenha
acabado com meu lindo corpo carnal! E foi esse assassino
que acabou com a vida prazerosa que eu tinha, por isso
tenho de acabar com ele! Estou tendo uma ideia brilhante:
se ele matou a mim e aos seus dois filhos, você deve matá-
lo! Isso mate-o! E logo!
— Nunca! Não sou uma assassina! - ela falou exaltada.
— Mas ele é! Matou-me! E você tem de me vingar! Odeio-
o! - exclamou Gilberto com raiva.
— Matando-o irei para a prisão, e as meninas, não pensa
nelas? O que irá acontecer com suas filhas?
— Irão para um orfanato, sei lá, resolverei isso depois. Há
muitas pessoas boas que gostam de ajudar órfãs... - ele riu
cinicamente.
— Gilberto, como você é imprudente...
Escutaram novamente a voz doce e firme.
— Aninha? Você de novo? Não se intrometa! - gritou
Gilberto.
Ana ajoelhou-se e rogou:
— Aninha, por favor, por suas filhas, me livre do Gilberto...
Ave Maria... Orações sempre têm respostas. Ruth entrou no
quarto para limpá-lo, viu a patroa ajoelhada, aproximou-se e
falou timidamente:
— Dona Ana, está acontecendo alguma coisa? Está
doente? Emagreceu, quase não come, está nervosa,
abatida. Se eu puder ajudar...
Ia responder que não, tudo estava certo, mas sentiu
Aninha ao seu lado, que a motivou, e falou:
— Ruth, o pai das meninas, meu ex-esposo, o que
morreu... É que o tenho visto, ouvido, não sei explicar. Isso
está me fazendo mal, tenho medo, ele quer que eu vá
embora.
— Dona Ana, sou espírita, frequento um Centro Espírita
pequeno, humilde, logo ali, perto da curva que leva à
cidade. Entendo perfeitamente a senhora, sei que isso é
possível. Eu também tenho sentido algo estranho, tenho
visto dois vultos, um escuro, de fluidos ruins, e outro
iluminado. Por isso acredito na senhora, porque esse fato
tem explicação na Doutrina Espírita. Quando o corpo morre,
somos levados a viver com um corpo espiritual, o
perispírito, e pode-se ir a muitos lugares. Os bons, que têm
merecimentos, para lugares lindos, tranquilos; os
imprudentes podem ir ao Umbral, um lugar que
temporariamente os abriga, ou podem vagar nos lugares
em que viveram encarnados ou perto de seus familiares.
Pelo que a senhora disse, Gilberto era um imprudente, creio
que vaga e quer atormentá-la talvez por ciúme não a queira
perto do senhor Gustavo.
— Acredito no que você está dizendo, Ruth. - expressou
Ana. - Mas quem poderá me ajudar? Gustavo voltará daqui a
três dias e eu estou confusa, não sei o que fazer.
— A senhora não quer ir à casa do senhor João? E um
senhor espírita que trabalha no Centro Espírita que eu
frequento, ele mora ao lado do Centro. Pedirei para ele lhe
dar um passe, que lhe fortalecerá. Pediremos ajuda a ele e
aos bons espíritos, que nos auxiliarão, orientando-nos.
— Quero ir, sim! - Respondeu Ana, esperançosa.
E foram. O senhor João as atendeu gentilmente, deu-lhe
um passe, colocou as mãos acima de sua cabeça e orou
baixinho.
Ana sentiu-se em paz, mais tranquila. Ele falou:
— Dona Ana, está conosco uma senhora, um espírito, uma
desencarnada que me diz que a ama muito, está lhe
pedindo para voltar mais vezes aqui e que está, dentro do
possível, ajudando e que é para a senhora repartir com as
meninas os problemas.
Lágrimas escorreram dos olhos de Ana, que falou
emocionada:
— Por favor, senhor João, pergunte a ela dos meninos.
O senhor espírita aquietou-se por um instante e
respondeu:
— Ela está me dizendo que os meninos, filhos dela, estão
muito bem, que ela é mãe dedicada. Eles são muito felizes.
Ana entendeu. Aninha dizia que era mãe deles, como ela
era das meninas. Sentiu saudades, vontade de abraçar os
filhos, olhou para aquele senhor de olhar meigo, confiou
nele, e ele disse tranquilamente:
— Para mãe, para aquele que ama, o importante é saber
que o ser amado está bem.
Entendeu o recado, agradeceu mentalmente a Deus e
verbalmente a ele e saíram. Ela se sentiu bem, como há
muito não se sentia, desde que Gilberto começou a
persegui-la.
— Ruth, agradeço por ter me trazido aqui. Senti muita paz
e quero voltar.
— Dona Ana, segunda-feira à noite temos trabalhos de
passes e leitura do Evangelho. Se quiser, venha comigo.
— Virei sim!
As meninas faziam lição na sala quando ela chegou. Ruth
foi para a cozinha e Ana decidiu conversar com elas à noite,
após o jantar.
Gilberto não foi com elas ao Centro, continuava com raiva.
Ernesto estava atento, muitas vezes vinha à chácara
observar o que Gilberto fazia. Ali estava quando Ana e Ruth
chegaram e os dois viram Aninha acompanhando-as. O ex-
companheiro de Ana falou exaltado:
— Bandida! Você, Aninha, jogou baixo, tanto fez que levou
a idiota da Ana naquele lugar. E agora não consigo me
aproximar dela com esta energia que aquele senhor colocou
à sua volta. Mas há mal que vem para bem, ela irá falar com
as meninas e minhas filhas irão querer ir embora quando
souberem que Gustavo assassinou a mim e aos meninos!
Gilberto virou para Ernesto e falou confiante:
— Ernesto, fique para escutar a conversa que Ana terá
com minhas filhas e verá sua derrota. Seu querido patrão
ficará sem a mulher amada. Gostar de Ana, que mau gosto!
— Está bem, se você ficar, posso também, pois não quero
perder você de vista - respondeu Ernesto.
— E você ficará, Aninha? - perguntou Gilberto, rindo.
— Vou e lhe aviso, não vamos interferir, ficaremos só
escutando. Não vou deixar você fazer nada com as
meninas.
— Não tenho feito nada com elas. Tenho a certeza de que
elas irão embora. Não é a vingança que sonhei, queria
mesmo que Ana o matasse, mas sei que não conseguirei
fazer esta "mosca morta" matar o cara. Já sei, Aninha, não
precisa repetir. É difícil quase impossível obrigar alguém que
não tem má índole a fazer algo que não quer. Esta bobinha
não tem instinto assassino, não mata nem um rato. Disso já
desisti, mas não de fazê-la ir embora.
Gilberto concluiu acertadamente.
— E muito difícil obrigar um encarnado a fazer algo que
ele repele que lhe é totalmente contrário. Todos nós
podemos ouvir sugestões, mas fazer ou não o sugerido
depende de cada um.
Gilberto desistiu sem tentar fazer da ex-companheira uma
criminosa. Muitos tentam por anos; se conseguem ou não,
irá depender de quem vencer. Os encarnados têm tudo para
vencer, basta ser persistente, se melhorarem e procurarem
ajuda que sempre encontram. Essa atitude facilita muito.
Não é fácil, mas se muitos conseguem, todos podem. É bem
mais fácil o desencarnado perturbar, tendo como objetivo
as fraquezas daqueles que querem prejudicar. Se Ana
tivesse o vício de roubar, seria fácil fazê-la ladra; instinto
assassino fazê-la matar.
Gilberto, percebendo que Ana seria incapaz de matar, que
preferiria antes morrer que tornar-se assassina, desistiu
desse intuito, mas via a possibilidade de ela ir embora e
passou a usar de todos os seus recursos para que isso
acontecesse.
Quando Ruth foi para sua casa à noite, Ana reuniu as
meninas na sala; o trio desencarnado estava presente e
prometeram que só escutariam.
— Mãe, o que a senhora tem? Tem estado abatida. Está
doente? - indagou Vanessa.
— Não, filha, não estou doente. Tenho algo importante a
dizer para vocês. Prestem atenção. Vocês se lembram do
acidente na serra?
— Ah, mamãe, por favor, devemos esquecer aqueles fatos
tristes, já passou - expressou Lívia.
— Lívia, deixe mamãe falar - pediu Vanessa.
Ana pediu que elas se aproximassem. As três se sentaram
juntinhas e ela falou:
— É que tenho visto, sentido, sei lá o que é, o pai de
vocês. Gilberto tem me atormentado, exige que vamos
embora daqui porque, segundo ele, foi Gustavo que dirigia o
outro automóvel. Ele o chama de assassino.
Ficaram caladas por instantes. Lívia quebrou o silêncio,
falando devagar, depois mais exaltada e acabou chorando:
— Por favor, mamãe, pense bem no que irá fazer. A
senhora acredita naquele homem? Meu pai foi um bandido,
mau, nunca se importou conosco, nem vivo nem agora,
morto. Nunca estive tão bem como agora. Coisas materiais?
Sim, nunca tive tanto como agora, tudo o que eu nem
ousava pensar. Mas também tenho segurança. Na escola os
amigos me respeitam.
"Olha - escuto - esta é Lívia, a enteada do senhor
Gustavo.”
Será que meu pai não vê tudo isso? Não passamos mais
fome nem frio, não estamos presas àquele quartinho
enquanto a senhora trabalhava triplicado. Ele não tem o
direito de nos pedir isso! Não tem! Não quero ir embora,
mamãe, por favor, por Deus. O senhor Gustavo é tão bom!
Queria que ele fosse meu pai... Depois, quem é meu pai
para nos pedir isso? Pensa que não entendia os olhares dele
para mim? Eram os mesmos de meu primo, aquele que
mamãe Aninha temia e não deixava que ficássemos perto
dele. Eu entendia, a senhora percebeu e não deixava que
ficássemos a sós com papai, até foi ameaçada de ser
surrada. Entendo muito sobre isso, a vida me ensinou meu
primo, em casa com meu pai, no restaurante. Sinto-me
segura com o senhor Gustavo, com ele fico sozinha, ele
nunca me olhou com cobiça, é uma pessoa honesta e boa.
Não quero ir embora daqui! Não quero!
Abraçaram Ana e choraram. Vanessa falou meigamente:
— Calma Lívia! Primeiro temos de saber se o que nosso
pai fala é verdade. Infelizmente ele não é confiável! Depois,
lembro-as de que quem teve culpa no acidente foi ele, que
foi imprudente, exaltado, morreu por sua própria culpa e
causou a morte de Rodrigo e Marcelo. Se no outro carro
estava mesmo o senhor Gustavo, esse não foi culpado.
Escutei os comentários das pessoas por lá. Também não
quero ir embora daqui. Mas quero ficar com a senhora e
acatarei o que decidir. Mas por que a senhora não pergunta
ao senhor Gustavo? Ele lhe dirá a verdade. Se era ele quem
dirigia o outro carro, para mim não será diferente, gosto
dele, sou grata por tudo que nos tem feito.
— Quando Gustavo chegar, depois de amanhã,
conversarei com ele - falou Ana, decidida.
Foram dormir. Os três desencarnados ficaram calados,
saíram para a varanda.
Ernesto disse a Gilberto:
— Puxa, que peste você foi e ainda é! Incrível como você
é mau...
— Quem é você para me criticar? - indagou Gilberto,
nervoso - Não se esqueça de que é um ladrão.
— Você também roubou, trapaceou não pode me
comparar com você, eu sempre fui bom pai. Fiquei até
arrepiado de ouvir o relato de sua filha. Tarado, você a
desejava, e se não fosse esta Ana, você teria abusado da
garota. Você disse que elas iam querer ir embora, mas
parece que elas gostam mais do senhor Gustavo.
— Ordinário!
Partiu para cima dele, deu uns socos e recebeu muitos
outros. Ernesto voltou para perto de Gustavo e Gilberto foi
para um canto da chácara. Aninha se pôs a orar Ana dormiu
melhor, protegida pelas energias que o senhor João
transmitiu a ela.
Gilberto não conseguiu aproximar-se. Ficou resmungando:
"Devo ter paciência, essa energia irá sumir, tenho que
impedi-la de voltar àquele lugar. Se eu pudesse com essa
Ruth que a levou! Mas ela também é protegida, está sempre
orando, pensando no bem e em ajudar. Vou ser persistente!
Que ingratidão! Minhas filhas ficaram do lado dele, do
assassino!"
Ana decidiu, iria continuar indo ao Centro Espírita e contar
tudo ao Gustavo assim que ele chegasse. Novamente o trio
desencarnado decidiu ouvir a conversa sem interferir, e
Ernesto avisou Gilberto:
— Se você se intrometer, vou lhe bater tanto que se
arrependerá. Você merece ser surrado, bateu em
mulheres...
Ana esperou Gustavo com ansiedade. Quando ouviu o
barulho do carro seu coração bateu descompassadamente,
foi à varanda, tentou sorrir ao vê-lo alegre descer do
automóvel. As meninas cumprimentaram-no, foram para a
sala e ficaram aguardando. Vanessa disse:
— Lívia, vamos rezar?
Ajoelharam-se, ficaram orando e fluidos de paz
envolveram casa toda. Gustavo, ao ver Ana, notou que
estava apreensiva.
— O que você tem minha querida? Aconteceu algo
enquanto eu viajava?
— Gustavo, preciso conversar com você. Vamos ao nosso
quarto.
Ele se sentou na cama e esperou que ela falasse. Ana não
sabia como começar, tinha ensaiado tanto, preferiu ser
sincera e falou a ele toda a verdade.
— Gustavo, tenho algo do meu passado que você não
sabe. Não menti para você, apenas não lhe falei tudo. Lívia
e Vanessa não são minhas filhas, são enteadas. E contou
tudo. Ao falar do acidente, Gustavo ficou branco, arregalou
os olhos.
— Foi você, Gustavo, que dirigia aquele automóvel?
Ele abaixou a cabeça.
— Me perdoe Ana. Fui eu sim. Naquele dia, estava aqui na
fábrica quando recebi um telefonema de Lorena. Ela estava
desesperada, chorando me disse que Júnior estava no
hospital sendo operado de uma apendicite aguda e que
corria risco de vida. Levei comigo Ernesto, um empregado
de confiança, e parti aflito, queria chegar logo e saber de
Júnior, temia que ele morresse. Ao ver a fila na serra, me
desesperei, dei uma gorjeta ao funcionário para passar na
frente. Não entendi o porquê daquele homem vir para cima
de mim, do meu carro. Não tive culpa, sei que não deveria
ter tentado passar à frente; se não fosse por estar ansioso,
não teria feito isso. Ele caiu no precipício. Apavorei-me
quando um senhor me disse: "Morreram, o motorista
morreu! O senhor não teve culpa!" Apesar de ter distribuído
algumas gorjetas, ainda levava comigo uma grande quantia
em dinheiro para depositar no banco, pois não tive tempo
de fazer isso aqui. Pedi ao Ernesto: "Fique aqui e cuide de
tudo, do enterro, da viúva, dê todo esse dinheiro a ela, só
depois de tudo acertado vá embora.”
Gustavo fez uma pausa, passou a mão no rosto e voltou a
falar:
— Mas, pelo visto, Ernesto não fez isso. Quando ele voltou,
três dias depois, afirmou que tudo tinha sido feito e que só
havia falecido o motorista. E Lorena exagerou. Júnior passou
pela cirurgia, mas tudo estava bem. Não esqueci esse
episódio, me aborreci muito, mas não tive culpa, como
também achei que tinha amparado a família do morto. Ana,
por favor, me perdoe! Sei que deve ter sofrido muito com
tudo isso. Sabe, quando a vi chegando ao restaurante com
as meninas, senti algo diferente, como se conhecesse as
três, como se precisasse protegê-las. Naquele dia, achei que
era uma atração, mas você se tornou importante para mim.
Amo você! Queria que entendesse e ficasse comigo.
Ana estava de pé, aproximou-se dele, sentou-se ao seu
lado na cama, olhou-o. Lívia tinha razão, Gustavo era bom,
um homem íntegro.
— Claro que o perdoo, Gustavo. Perdoo você! Entendo que
não teve culpa. Realmente, esse seu empregado não me
deu o dinheiro...
— Ele, tempo depois, contou a todos que ganhou uma
quantia em aposta de corrida de cavalos. Acreditei sem
desconfiar, ele era um empregado de confiança.
— Você o perdoa, Gustavo? - perguntou Ana num ímpeto.
— Como não fazê-lo, Ana? Se agora mesmo pedi perdão a
você e me perdoou. Foi você a maior prejudicada. Perdeu
dois filhos... Sim, perdoo Ernesto. Sabe Ana, hoje cedo abri
ao acaso o Evangelho e sabe o que li? A parábola do senhor
que perdoou o servo que lhe devia dinheiro, e esse servo
não perdoou o companheiro que lhe devia uma pequena
quantia. Quem não está carente de perdão para não
perdoar? Ernesto morreu e quero que ele esteja em paz.
Não sabia que ele fez isso. Sabendo agora, o perdoo.
Ernesto chorou de soluçar. Aninha alegrou-se. Gilberto,
mal-humorado, ficou impassível, conforme o combinado,
não por que tinha dado a palavra, mas temeu a reação de
Ernesto.
Ana escutou Gustavo emocionada e falou a ele
calmamente:
— Gustavo, vamos esquecer tudo isso. As meninas são
como filhas, eu as amo, peço-lhe não dizer nada a ninguém.
Aninha a mãe delas, cuida dos meus filhos como mãe. Sabe,
Gustavo, esses dias foram difíceis, Ruth me levou para
tomar passe num Centro Espírita aqui perto, queria lhe
pedir permissão para frequentar esse local de orações.
— Você não tem religião, não é, Ana? Pois faz falta. Não
precisa pedir, pode ir. E você tem razão, vamos esquecer
esse acontecimento infeliz. Admiro-a mais ainda, minha
querida. Nunca mais falaremos sobre esse assunto, e que
isso não interfira na vida tranquila que estamos tendo.
Ela sorriu e o abraçou.
— Vou tomar meu banho, estou cansado - disse ele.
Entrou no banheiro e ela correu até as meninas.
Emocionou-se ao vê-las ajoelhadas orando.
— E aí, mamãe, é mentira? - Indagou Lívia.
— Não, Lívia, é verdade...
Contou a elas toda a conversa e finalizou:
— Gustavo e eu resolvemos esquecer esse fato triste. Ele
não teve culpa e não vamos embora daqui por isso.
— Aí, graças a Deus! Mil vezes obrigada, Nossa Senhora!
Está certa, mamãe, vamos esquecer. Mas o senhor Gustavo,
sabendo agora que não somos suas filhas, nos tratará
diferente? Irá nos querer aqui? - indagou Lívia, preocupada.
— Lívia, para Gustavo, será como sempre. E eu sou mãe
de vocês! - expressou Ana. - Devemos ser ainda mais gratas
a ele! - expressou Vanessa.
— Agiu certo, mamãe. Não só por nós, mas pela senhora.
O senhor Gustavo a trata como merece. Eu a amo e gosto
muito dele. Vamos esquecer esse assunto!
Gustavo saiu do banho, olhou para as meninas e falou
contente:
— Trouxe presentes!
Abriu a mala com os pacotes. Vanessa, com os olhinhos
lacrimosos, aproximou-se dele e falou emocionada:
— Senhor Gustavo, obrigada, muito agradecida. Gosto do
senhor!
E o beijou no rosto. Sorriram alegres e abriram os
presentes.
Os três desencarnados foram para a varanda.
— Está contente agora, não é, Aninha? Perguntou Gilberto.
— Acho que foi o certo, Gilberto - respondeu ela.
— Bem, Ernesto, adeus! Você vai embora agora, não é? -
perguntou Gilberto.
Ernesto estava emocionado, ainda tinha lágrimas no rosto,
mas respondeu enérgico:
— Eu?! Claro que não!
— Como não? Você deu sua palavra que ia embora assim
que o senhor Gustavo lhe perdoasse. Isso já aconteceu e
você vai fazer o que prometeu.
— Não vou, meu caro - respondeu Ernesto. - Não vou
enquanto estiver por aqui querendo fazer mal a este
homem honrado e maravilhoso.
— Você deu sua palavra! - insistiu Gilberto.
— E um ladrão indigno tem palavra? Não vou e agora
tenho mais motivação para defender o senhor Gustavo com
minha vida... Bem, não estou vivo, mas defendo-o com
todas as minhas forças - expressou Ernesto com convicção.
Gilberto retirou-se para seu canto, resmungando:
"Não vou desistir, não vou...”
8 - No Centro espírita
Ernesto redobrou a vigilância enquanto Gustavo estava na
chácara. Passaram três dias tranquilos. Gilberto ficou de
longe, observando com raiva.
— Fale de seus filhos, Ana. Você deve sentir muita falta
deles - pediu Gustavo.
Estavam sentados na varanda, ela não queria mais tocar
no assunto, porém sentia vontade de falar dos filhos a ele,
contou do tempo em que os meninos estiveram ao seu lado,
como eram bonitos, alegres, como ela cuidava deles.
Terminou dizendo:
— Eu os amo, serão sempre meus filhinhos queridos, creio
que vivem em outro lugar bom, lindo, e que tem Aninha por
mãe, estão felizes e isso me basta. A vida não é sempre
como queremos, mas podemos viver bem com o que temos.
Passei por tempos difíceis, fui irresponsável brigando com
meu pai para ficar com Gilberto, sofri muito. O período em
que estive naquele restaurante foi muito ruim, trabalhava
tensa, com medo de que alguém mexesse com as meninas.
Estou feliz aqui, tenho paz e elas estão tão bem! Quero
agradecê-lo, devo-lhe isso.
— Preferiria ouvir que você me ama, mas tenho paciência,
um dia dirá. As meninas estão chegando. Gosto delas, são
educadas e boazinhas, vou ajudá-la e orientá-las na vida.
Gustavo foi embora na segunda-feira cedo e Ana não via a
hora de ir ao Centro Espírita. Foi antes do horário, sentou-se
e orou. Aquele lugar lhe dava calma, sentia-se bem. Viu
algumas pessoas pegarem livros para ler numa estante e
Ruth explicou:
— Podemos pegar livros emprestados, é só marcar no
caderno; é permitido ficar com o livro por até vinte dias.
— Quero pegar um - disse Ana. - Qual devo pegar para
entender o que se passa comigo?
— O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec. É ótimo, mas
talvez a senhora não o entenda.
— Vou pegar este; se não entender perguntarei a você.
Assim o fez. No horário marcado o trabalho começou com
uma palestra. A convidada da noite foi Antonina, que falou
sobre um texto do Evangelho, e após as pessoas
necessitadas foram à sala de passes. Ruth disse a Ana
baixinho:
— Cada semana é uma pessoa que estuda um tema e fala
sempre tentando ser clara e simples. Depois temos o
tratamento pelo passe, mas esse deve ser usado como
remédio, só quando for necessário.
Achando que estava precisando, Ana foi receber um passe
como da outra vez, sentiu-se muito bem. Naquela noite
começou a ler o livro e achou-o muito interessante. No outro
dia, perguntou a Ruth:
— Ruth só há o trabalho de segunda-feira no Centro?
— Não, senhora, há muitas atividades. Na quarta-feira há
o grupo de estudo; estamos estudando O Livro dos Médiuns,
de Allan Kardec; na quinta-feira temos um trabalho de
orientação a desencarnados, de desobsessão; no domingo
tem evangelização infantil e encontro de jovens para
estudar a Doutrina. Também nos reunimos aos sábados à
tarde para costurar e ajudar famílias carentes.
— Posso ir? - perguntou Ana.
— Será bem-vinda. Só aconselhamos a não ir aos
trabalhos de desobsessões sem um preparo. Venha comigo
às quartas-feiras, a senhora gostará de conhecer nosso
estudo.
Ana resolveu ler e estudar O Livro dos Espíritos e o fez em
todo seu tempo disponível. Pôs-se a meditar já na primeira
página sobre os dizeres:
"Contendo os princípios da Doutrina Espírita sobre a
imortalidade da alma, a natureza dos Espíritos e suas
relações com os homens, as leis morais, a vida presente, a
vida futura e o futuro da humanidade segundo o
ensinamento dado pelos espíritos superiores com a ajuda de
diversos médiuns. Compilados e ordenados por Allan
Kardec."
— Acho - Ana falou baixinho - que é isso que necessito
saber para resolver meus problemas e ajudar Vanessa, que
sempre ouviu e viu Aninha que é uma desencarnada.
Quem não gostou foi Gilberto, que resmungou:
— Que chato! Ana só fica lendo esse livro e não me dá
atenção. Se fico perto dela, escuto-a ler; acho que terei de
dar uma pausa, devo ter paciência...
— Gilberto! - Chamou Aninha.
— Você de novo? - respondeu ele. - O que quer?
— É bom você cultivar a paciência.
— Não me amole! Não me ridicularize, acharei um jeito de
Ana fazer o que quero. Nunca tive muita paciência...
— Não quer saber o que Ana está lendo com tanto
interesse? Você não tem curiosidade de conhecer as muitas
formas de viver sem o corpo físico? Você sabe tão pouco
sobre isso. Aqui está o livro que Ana lê, dou a você para que
faça o mesmo.
Aninha deu a ele O Livro dos Espíritos; ele pegou e riu.
— Muito grosso! Acha mesmo que vou ler isso? Nunca me
interessei por livros... Li alguns pornográficos...
— Perdeu oportunidade de se instruir quando estava
encarnado, não a recuse agora - falou Aninha com
tranquilidade.
— Como conseguiu este livro? É igual ao que Ana lê, mas
tem algo diferente. Como ele foi feito? - perguntou Gilberto,
curioso, examinando o livro.
Aninha sorriu e respondeu, elucidando:
— Você não está vestido? Também tenho roupas. São
plasmadas, pode-se fazer muito com a força da mente, pela
vontade. Aprenderá isso e muito mais lendo...
Gilberto pareceu interessado, mas inesperadamente jogou
o livro fora, no chão do jardim. - Não o quero e não me
amole...
Foi para seu canto, Aninha pegou o livro e pensou.
"Você ainda irá ler, Gilberto, irá sim!"
Gilberto pensava em Ana e recebia seus pensamentos, o
que lia no livro.
"Que chato! Não aguento mais essa baboseira!"
Quis ir embora por uns tempos, pensou e não achou para
onde ir. Resolveu esperar o entusiasmo de Ana passar, esse
certamente passaria, e se pôs a observar Ruth; ela não
deveria ser tão certinha como parecia ser. Ana chegou ao
capítulo 9 - "Intervenção dos Espíritos no Mundo Corporal.”
Na resposta da pergunta 474 leu muitas vezes o trecho:
"Mas saiba que essa dominação não se faz jamais sem a
participação daquele que a suporta, seja por sua fraqueza,
seja por seu desejo."
"É isso que acontece - pensou - tenho deixado Gilberto
interferir na minha vida, o tenho escutado. Que coisa! Estou
descobrindo um mundo novo e estou gostando!"
Na quarta-feira foi com Ruth ao Centro Espírita. Esta a
apresentou ao grupo:
— É minha patroa, dona Ana, que está atravessando um
período difícil e quer frequentar o grupo de estudo para que
possa entender o que se passa com ela.
— Seja bem-vinda!
Após uma oração, foi aberto O Livro dos Médiuns e o
senhor João explicou:
— Estamos estudando o livro de Kardec sobre
mediunidade.
Ana resolveu não atrapalhar; mesmo que não entendesse,
não perguntaria nada.
Segundo Ruth, era lido um texto e faziam comentários.
Mas antes de começar a leitura, uma senhora indagou:
— Senhor João, é mesmo necessário o médium estudar?
Conhecer a Doutrina? Não é preferível ele ter boa vontade e
trabalhar?
— É importante ter boa vontade e trabalhar, não adianta
nada só ter conhecimento. Aquele que só conhece e nada
faz com o que sabe a meu ver, é como aquela figueira da
qual Jesus falava aos seus discípulos, que não dava frutos.
Mas também vejo um médium que não quer estudar como
alguém que quer fazer um farto jantar e não entende nada
de culinária. Só entrar na cozinha (Centro Espírita) e ser
cozinheiro (médium) não fará com que o jantar saia a gosto.
Muitos médiuns que não estudam põe a culpa das bobagens
que fazem nos desencarnados que recebem. Há muitos
desencarnados sem conhecimentos, mas também, como
muitos encarnados não querem estudar, o trabalho que
fazem poderia ser bem melhor. E muitos desencarnados não
conseguem passar o que sabem ao médium por este não
ter conhecimento. Agora, se unir os fatores, conhecimento,
vontade e disposição, o trabalho sairá do melhor modo
possível; e se unir o amor aos ingredientes, aí sim,
estaremos seguindo o exemplo de Jesus, dos espíritos
superiores. Agora vamos abrir o livro no capítulo 23 e
continuar onde paramos: ler as questões 242 e 243.
Ana escutava fascinada, e um senhor fez uma pergunta:
— O desencarnado que persegue um encarnado tem
consciência de que ocupa seu tempo indevidamente? Por
que existem tantos a obsediar?
Senhor João respondeu, elucidando:
— Como já vimos e veremos no decorrer deste capitulo,
desencarnados obsediam por muitos motivos. Poderia
responder simplesmente: pela falta de perdão. Isso
resumiria tudo. Porém, o assunto é mais abrangente. Há
desencarnados que se iludem, querendo continuar vivendo
como encarnados e para isso têm de vampirizar, roubar
energias alheias para se sentirem alimentados, porque não
sabem tirar das fontes naturais energias para si. Essas
obsessões são simples de resolver, principalmente para os
encarnados que nos procuram; aos desencarnados é
oferecida ajuda; tendo o livre-arbítrio, podem aceitar ou ir
procurar outro encarnado para vampirizar. Há obsessões
pelo amor sem compreensão, o desencarnado quer ficar
perto de seu afeto e às vezes pensa até que o ajuda. Mas
ninguém faz sem saber, sem poder. Esses também são
quase sempre de fácil solução, por que o desencarnado, ao
compreender que está errado, querendo bem o ser amado,
aceita aprender a ser útil para ajudar mais tarde. Os que
não perdoaram perseguem com rancor, necessitam ambos,
desencarnado e encarnado, compreender a necessidade de
perdoar e fazer o bem.
O senhor João fez uma pequena pausa e continuou:
— Estou me lembrando agora de uma historinha que há
tempo li e adaptarei para melhor ilustrar esse fato.
"Um homem, vamos chamá-lo de José, andando pelo
campo, chegou à margem de um riacho. Embora não fosse
fundo, era largo. Viu um senhor idoso e tudo indicava que
queria atravessar. José aproximou-se e ofereceu:
"Precisa de ajuda, senhor?”
"Bom jovem, queria atravessar este rio, porém estou
doente e não posso me molhar.”
"Sou forte, se o senhor quiser posso carregá-lo até o outro
lado.”
"O senhor aceitou sorrindo e José o colocou nos ombros e
o levou ao outro lado.”
"Obrigado, meu caro - agradeceu o velho. - Você acaba de
ser testado por mim, um gênio, o senhor do destino dos
homens.”
"José se assustou ao ver aquele velho se transformar e
teve diante de si um homem bem-vestido, alto e forte.”
"José, não se assuste. Por ter me prestado um favor, lhe
farei outro. Levarei você até a gruta onde está o livro do
destino. Vou deixá-lo lá por três minutos e poderá escrever
nele o que quiser.”
"E José foi transportado rapidamente pelo gênio até a
gruta. Foi tão rápido que não deu tempo de ele saber onde
ficava tão famoso lugar.”
"Aqui está o livro, uma caneta e lembre-se, tem três
minutos! - Disse o gênio e se retirou, deixando José
sozinho.”
"E José abriu o enorme livro e logo achou a página em que
estava escrito o seu nome. Mas pensou: 'Tenho uma ótima
oportunidade de me vingar dos meus inimigos'. Eram três
os seus desafetos.”
"Rápido, procurou o nome do primeiro, achou a página
dele e escreveu: 'vai ficar cego'. Procurou o segundo e,
achando, anotou: 'vai ficar na miséria'. E assim fez com o
terceiro, e determinou: 'vai morrer só e abandonado'.
Quando ia procurar seu nome novamente, surgiu o gênio e
lhe disse:”
"Seu tempo acabou!”
"E José se viu transportado como um raio novamente para
a margem do rio.”
"E sabem o que aconteceu com o José dessa singular
história?”
“Foi abandonado pela esposa e filhos, ficou só, na miséria
e cego. E pior, se lastimando, porque se ele não tivesse
perdido tempo com seus inimigos, certamente teria uma
vida diferente.”
Certamente que o livro do destino não existe como é
narrado nesse conto, mas existe o que fazemos com as
nossas ações. Tantos como José passam a existência
preocupados com os desafetos, esquecendo de fazer algo
de bom para si, e pior, continuam após a desencarnação a
se preocupar com aqueles que julgam serem seus inimigos.
Se esquecermos os desafetos e nada fizermos para
prejudicá-los, não teremos do que nos lastimar, como José,
que poderia ter prestado mais atenção nos afetos e não
seria abandonado, ter se dedicado mais ao trabalho e não
acabaria na miséria, vibrar melhor no amor e não ter
adoecido. Se o desencarnado, em vez de querer se vingar,
tivesse procurado o bem, iria ter a saúde proveniente do
equilíbrio espiritual, teria o merecimento de ser abrigado
numa Colônia e desfrutaria das belezas que nenhuma
riqueza material pode lhe dar. Deveria ter feito amigos e
prestado mais atenção neles, porque possuir amigos, é
nunca estar só ou se sentir abandonado. O tempo passa e
não tem retorno. Temos visto muitas pessoas desperdiçá-lo
em magoar os outros, em se vingar, sendo que poderia
estar fazendo algo de bom para si mesmo. Entenderá um
dia, como José, que não vale a pena alimentar mágoas,
porque o que desejamos aos outros é o que atraímos para
nós."
A aula, o estudo da noite terminou. Ana achou que passou
rápido e pensou:
"Quero me ver livre de Gilberto, mas não pensei em ajudá-
lo. Creio que tenho de mudar esse meu modo de agir, devo
auxiliá-lo, não sei como, mas irei aprender. Afastando-o,
resolverei o meu problema, mas o dele não; porém, se
orientá-lo, ajudando-o, aí sim, solucionaremos a questão.”
— Ruth, queria ler o livro que estudam. Logo acabarei de
ler O Livro dos Espíritos e creio que terei de fazê-lo muitas
vezes até que assimile o que está escrito nele. Mas esse
assunto, obsessão, me fascina, quero ler para na próxima
aula ter alguns conhecimentos e entendê-la melhor.
— Tenho um exemplar em casa, emprestarei à senhora.
No trabalho de desobsessão na quinta-feira, Aninha
conversou com os trabalhadores desencarnados do grupo.
— Peço-lhes, se possível, para orientar pela incorporação
Ernesto e Gilberto.
— Aninha, já havíamos marcado para atendê-los -
respondeu um dos orientadores.
— Quando dona Ana aqui veio, percebemos a necessidade
de orientá-los. Logo mais os traremos.
Faltavam alguns minutos para iniciar o trabalho, alguns
encarnados haviam chegado inclusive Ruth. Os
trabalhadores desencarnados da casa foram até Ernesto e o
trouxeram. Ele estava junto de Gustavo; sem entender
como, sentiu como se voasse e se viu no Centro Espírita,
naquela sala simples com bancos, uma mesa e cadeiras.
Olhou tudo assustado, e um trabalhador da equipe o
acalmou:
— Senhor Ernesto, não tenha medo, aqui estamos
reunidos pelo amor de Cristo para ajudar todos os
necessitados. Sou desencarnado como você, o trouxemos
aqui para que receba uma orientação.
— Como vim parar aqui?
— Dois amigos foram buscá-lo. Você não os viu porque
com sua atitude e pensamentos vibra diferente, e eles
assim preferiram para que viesse rápido. Agora nos vê
porque estamos preparados para isso, para melhor ajudá-lo.
Esses dois companheiros o pegaram pelo braço e o
conduziram volitando até aqui. Volitar é se locomover pela
força do pensamento. E como voar pelo espaço. Não se
sente bem?
— Tenho medo! - exclamou Ernesto.
— Não precisa temer, está entre amigos.
O orientador afastou-se. Ernesto viu muitas pessoas
orando e se pôs a orar também. Como o exemplo é
importante! Os encarnados esperavam o início em preces,
levando muitos desencarnados a orar também, e tudo é
facilitado com os fluidos da oração. O medo de Ernesto
passou e ele ficou quieto, aguardando.
Buscaram também Gilberto, este se encontrava na
chácara. Agiram do mesmo modo, pois esse processo é
bastante usado. Para evitar discussões ou tentativa de
agressão por parte dos socorridos, os socorristas não se
fazem visíveis, pegam aquele que vieram buscar e volitam
com ele, que não entende como foi de um lugar para outro
tão rápido. Gilberto até tentou reagir, não conseguiu e
rapidamente estava no Centro.
Então viu dois senhores ao seu lado e começou a gritar
espernear, tentou agredir e foi imobilizado. Dessa forma o
desencarnado se sente amarrado, não pode se mexer. Tenho
visto em alguns lugares que esses rebeldes são realmente
amarrados por cordas, correntes, materiais plasmados pelos
trabalhadores locais. Porém, isso não é preciso, a força de
pensamento de quem sabe utilizá-la imobiliza o socorrido
para que ele não tumultue o ambiente. E Gilberto foi
impedido até de falar para que não xingasse, ficou apenas
ouvindo e enxergando.
— Senhor Gilberto - explicou um orientador - ficará assim
até que se comporte, não queremos machucá-lo nem que
nos machuque. Aqui é um lugar de orações e exigimos
respeito. Trouxemo-lo aqui na tentativa de ajudá-lo para que
tenha uma vida melhor.
Gilberto ficou tenso, observou tudo e pensou:
"Estou no meio de carolas que só rezam.”
O desencarnado escalado para receber orientação por um
intercâmbio se aproxima de um médium, essa aproximação
é de vinte a oitenta centímetros, embora varie muito, mas
não há necessidade de o desencarnado se aproximar muito
do encarnado. Este incorpora só as sensações e transmitem
os pensamentos, ele fala e o médium repete o sentido ou,
às vezes, palavra por palavra, Gilberto ficou atento.
Observou Ruth que, sentada numa cadeira à mesa,
repetia o que um desencarnado falava. Foi a vez de Ernesto,
que respondeu ao cumprimento do dirigente encarnado e
foi sincero.
— Gostei daqui!
— Que bom! - respondeu o orientador. - Convido-o a ficar
conosco.
— Não posso! Tenho algo importante a fazer. Aqui teria
sossego, aprenderia, talvez fosse até feliz. Mas errei e tenho
de alguma forma, de reparar o que fiz para ser digno desse
benefício. Peço-lhes, suplico que me recebam depois. Se
aquele ali que quer prejudicar a quem tanto devo ficar e não
fizer mais o mal, eu fico. Caso ele não fique, deixe-me ir e
proteger meu benfeitor.
— Você sabe fazer isso? - indagou o orientador.
— Pensava que sim, mas agora tenho dúvidas.
— Entendemos você. Terá nosso auxílio. Um amigo da
casa o ajudará.
— Eu agradeço! Deus lhe pague!
Foi a vez de Gilberto. Aproximou-se de um senhor e,
quando pôde falar, xingou. Mas o médium ficou quieto.
— Por que ele não repete? Fez com os outros!
Aí o médium repetiu e o orientador explicou:
— Se você agredir será imobilizado novamente. O médium
é esclarecido, educado nas suas faculdades e não tem por
que repetir suas palavras agressivas. Seja educado!
Respeite o lugar em que está!
— Não vim aqui porque quis! Não quero estar neste local
que me incomoda.
— Você está incomodando os outros! Desperdiça seu
tempo, poderia usá-lo para o seu bem-estar.
— Não tenho nada que fazer... - expressou Gilberto.
— Todos nós temos, não quer aprender a viver de outro
modo? Conhecer lugares próprios para os desencarnados?
A conversa durou alguns minutos e Gilberto estava
irredutível. Foi afastado do médium e ficou imobilizado
numa parte própria. Com uma bonita oração encerraram os
trabalhos. Gilberto foi solto e voltou para a chácara.
"Tenho muito que aprender. Esses desencarnados são
sabidos, gostaria de voar como eles; mas uma coisa
aprendi, a falar por meio de um encarnado. E aquela Ruth é
um deles. Agora ela verá o que acontece com quem se
intromete nos meus planos."
Ana pegou de Ruth O Livro dos Médiuns e já na primeira
página leu e releu o texto:
"Contém o ensino especial dos Espíritos sobre a teoria de
todos os gêneros de manifestações, os meios de
comunicação com o mundo invisível, o desenvolvimento da
mediunidade, as dificuldades e os tropeços que se podem
encontrar na prática do Espiritismo."
— São livros para serem estudados, lidos muitas vezes, e
eu o farei! - exclamou decidida.
Gilberto estava inquieto, andava pela chácara, se pôs a
pensar:
"Preciso achar algo para fazer já, senão serei derrotado.
Mas o quê?"
Pela manhã o jardineiro, senhor Nicanor, que era
realmente uma pessoa boa, honesta, trabalhadora e que
gostava muito dos patrões, chegou nervoso, e Gilberto logo
se aproximou. Tinha brigado com a esposa e estava
aborrecido, insatisfeito, e isso bastou para que o ex-
companheiro de Ana pudesse influenciá-lo.
"Brigue mesmo! - Disse Gilberto ao senhor Nicanor. -
Mulher tem de apanhar para ficar obediente! Você trabalha
tanto para quê? Elas não dão valor!"
Senhor Nicanor captou alguma coisa e suspirou. Sentia
realmente isso, então se afinou com Gilberto, que se
deliciou. Mas não lhe importavam as brigas dele, e teve
uma ideia.
"Nicanor, tudo que está acontecendo é porque a Ruth vai
naquele lugar horrível que mexe com o diabo e ele anda à
solta por aqui atrapalhando todos! Está até levando a
patroa. Você tem de abrir os olhos dela! Tem! É empregado
de confiança do senhor Gustavo. Dona Ana é boa e tem de
ser alertada. Tudo isso é por causa do demônio!”
Senhor Nicanor pensou, parou de trabalhar e concluiu:
"Tudo estava bem até dona Ana ir ao Centro Espírita. É
meu dever de empregado avisá-la, a coitadinha não deve
saber do perigo que corre."
Nisso Ana sentou-se à varanda. Gilberto insistiu:
"Vá lá, Nicanor, e fale com ela!"
Incentivado por Gilberto, o jardineiro foi impulsivamente
conversar com sua patroa, querendo ajudá-la. Não era do
temperamento dele se intrometer, mas achou que deveria
alertá-la. Cumprimentou-a, tímido, e foi logo falando para
não perder a coragem:
— Dona Ana, a senhora é pessoa boa, gosto muito do
senhor Gustavo e me vejo na obrigação de avisá-la. Não
deve ir àquele lugar, lá no tal do Centro Espírita. Os
espíritas mexem com o demônio. É sim! Eles falam com o
diabo! Eu... bem... desculpe-me, mas tive de falar para a
senhora não ser enganada. Vou indo!
Senhor Nicanor afastou-se e se pôs a pensar:
"Se é o demônio que me está fazendo eu brigar com
minha esposa é porque o escutei e atendi. Vou lá em casa
pedir desculpa, dizer para Maria acender uma vela para
Nossa Senhora e vou trabalhar orando."
E Gilberto foi repelido.
"Que coisa difícil é mexer com pessoas boas! Que coisa!" -
resmungou ele.
Mas Ana ficou pensando no que o jardineiro lhe disse e
Gilberto ficou contente.
Ela foi à procura de Ruth, que estava lavando roupa, e
indagou:
— Ruth, é verdade que os espíritas mexem com o diabo?
Ruth sorriu, achando graça, e respondeu:
— Dona Ana, será que precisamos mexer com o diabo?
Não é ele que nos tenta? Vou explicar à senhora para que
não tenha medo. Todos os espíritos rebeldes às Leis Divinas
são imprudentes que seguem por algum tempo o caminho
do mal. São os opositores, é certo que entre eles a alguns
muito maus, que são tachados de diabo, demônio e tantos
outros nomes. Existem médiuns, pessoas com mediunidade,
que usam dessa faculdade para prejudicar outros ou em
benefício próprio, podendo invocar esses espíritos. Mas não
é nosso caso. O que a senhora viu ali? Um lugar cristão, de
estudo evangélico e que só faz o bem. Dona Ana, há
religiões que também fazem esse intercâmbio, só que
desencarnados bons são chamados de espírito santo; os
que ainda não tiveram orientação e os maus, denominados
de demônio. E muitos desses espíritos, tachados de diabos
e outros nomes, basta receberem uma orientação, serem
encaminhados, para deixar de praticar o mal. É isso que
tentamos fazer, orientar, encaminhar espíritos que vagam,
imprudentes e trevosos, e os Centros Espíritas sérios o
fazem. Instruir irmãos a seguir o bom caminho é uma
grande caridade.
Ana entendeu e se deu por satisfeita, mas Gilberto ficou
furioso.
— Que coisa! Nada dá certo! Vou observar bem essa Ruth.
Vou incorporar. Palavra estranha dá impressão que se pode
entrar no seu corpo, mas isso não acontece. Vou fazer como
no Centro Espírita!
Aproximou-se de Ruth, que o sentiu. Médium estudiosa,
ela sentiu a vibração desconfortável de Gilberto e
reconheceu ser um desencarnado mal-intencionado. Por isso
e por outros motivos é aconselhado àqueles que têm mais
sensibilidade estudar (desenvolver), aprender a lidar com
essa faculdade para melhor ajudar e para defender-se. E
devemos conhecer desencarnados pelos fluidos, que não
são modificáveis, porque muitos desses desencarnados
imprudentes sabem modificar a aparência perispiritual e
podem tomar a forma, a semelhança do que quiserem. Mas
as vibrações, essas não enganam. Bons espíritos
transmitem tranquilidade, bem-estar; maus, transmitem
desconforto. Mas é só com a experiência que se consegue
realmente distinguir.
Ruth pensou no seu protetor e esse, em instantes, estava
ao seu lado. Gilberto franziu a testa e tentou explicar:
— Só queria incorporar, ela faz isso lá no Centro Espírita.
— Disse bem, meu amigo, no Centro Espírita e em horário
próprio, o que não é o caso agora.
— Pensei que poderia fazer isso a qualquer hora - disse
ele, dando um risinho.
O protetor desencarnado de Ruth sorriu tranquilamente.
Olhando de maneira serena, mas com autoridade, elucidou-
o:
— Quando um médium faz jus a uma proteção, isto é,
trabalha com sua mediunidade para o bem, tem um
companheiro desencarnado que o protege. No caso de Ruth,
trabalhadora assídua, me tem como protetor amigo de
trabalho, e eu não vamos permitir que você a prejudique!
— Você é babá de encarnado? Belo trabalho! - zombou
Gilberto, rindo cinicamente.
— Não - amigo, não sou babá, sou companheiro e não fico
o tempo todo ao lado dela. Tenho meu trabalho, mas estou
ligado a ela para atender a qualquer chamado e protegê-la.
Fico com ela nas situações difíceis e de perigo como amigo
e colega. Faço um trabalho em que posso me ausentar e
atendê-la em instantes.
Gilberto se afastou, irritado. Ruth se tranquilizou, sentindo
a presença de seu protetor, e esse trabalhador
desencarnado, depois de tudo acertado, afastou-se, tinha
muito que fazer.
Um desencarnado para ser protetor, guia orientador de
um encarnado, precisa se preparar para isso, e mesmo com
essa preparação só protegem encarnados se estes fizerem
por merecer, isto é, se forem úteis trabalhando com sua
mediunidade. Porém, os orientadores não ficam vinte e
quatro horas à disposição, a não ser que o médium atenda
muitas pessoas por dia, como o senhor João fazia, ou em
ocasiões especiais de um ataque de espíritos trevosos. No
caso de Ruth, médium que frequentava um Centro Espírita
para trabalhar em horário fixo, seu protetor trabalhava
também em outro local, num posto de socorro, mas estava
ligado a ela para atendê-la quando precisasse. Quando o
médium trabalhador se ausenta do trabalho útil, se for por
motivo justo, por doença, a proteção continua. Mas se o
médium se afasta sem motivo, a proteção termina, porque o
desencarnado tem trabalho a fazer e não lhe é permitido
proteger alguém que não faz por merecer. O desencarnado
preparado para esse trabalho sabe bem como agir e não
está lá para facilitar ou fazer o que é tarefa do encarnado.
Só age como esse amigo de Ruth, não deixando que abusos
aconteçam. Mas muitas vezes o protetor tem dificuldades
porque o encarnado afina com o desencarnado mal-
intencionado. Mas médiuns estudiosos, trabalhadores, só
passam por esses apertos para aprender, porque é
necessário se tornarem autossuficientes para serem
realmente úteis. Há também, conheço muitos, protetores
não preparados que ajudam, mas, sem o conhecimento
necessário, deixam de fazer muita coisa ou fazem
incorretamente. Ninguém fica sem proteção, principalmente
quem faz e conserva amigos. Às vezes o protetor não faz,
mas outro que ama faz, protege mais. Quem tem amigos
tem mais coisas do que imagina.
Também tenho visto desencarnados familiares auxiliarem
muito. Nessa história, vimos Aninha ajudando, só que,
espírito esclarecido, pediu permissão e ajudou com
sabedoria, deixando Ana procurar auxílio para aprender,
mas ficou atenta para que Gilberto não se excedesse. Os
médiuns não devem por qualquer motivo pedir a
intervenção do seu mentor, não incomodar tanto o
desencarnado que os protege. Espíritos laboriosos têm
sempre o que fazer. Gilberto ironizou chamando o protetor
de Ruth de babá. Não são.
Os mentores devem ser vistos e tratados como
companheiros, amigos, e respeitados pelo muito que fazem.
Gilberto foi para seu canto preocupado, a coisa para ele
não estavam saindo bem e resmungou:
— Malditos espíritas!
9 - Ajudando Gilberto
O final de semana transcorreu tranquilo. Gustavo chegou
e Ana estava como antes. Conversaram alegres, trocaram
ideias; as meninas entenderam que para ele não fez
diferença saber a verdade e isso as tranquilizou.
Na segunda-feira Ana foi com Ruth ao Centro Espírita,
continuou a ler os livros de Kardec, agora com mais
atenção, meditando sobre os ensinamentos. Um orientador
desencarnado do grupo passou a se encontrar com Ernesto,
a conversar com ele.
— Ernesto - elucidou - não deve ficar tão perto do senhor
Gustavo, ore mais, aproveite o tempo para ler esses livros.
— Obrigado, farei direitinho o que você diz - respondeu
com sinceridade o ex-empregado de Gustavo.
— Ernesto, ficarei vigiando para você; vá ao Centro
Espírita, teremos hoje uma palestra interessante para
desencarnados.
Ele passou a ir sempre que convidado, estava gostando de
participar das reuniões, entendeu que deveria ser bom
demais poder ficar com aqueles novos amigos,
compreendeu que necessitava ajudar Gilberto, porque se
este desistisse de se vingar, ele poderia ir embora e viver
dignamente a vida desencarnada.
Centros Espíritas laboriosos não têm só atividades para
encarnados, o trabalho abrange desencarnados, há socorro
médico, palestras educativas, normalmente um pronto-
socorro vinte e quatro horas por dia para os necessitados.
Gilberto passou a observar Ruth mais atentamente. Um
dia a viu olhando as meninas brincarem no jardim, elas riam
e cantavam alegres. Ele escutou seus pensamentos:
"Meu filho teria quase a idade delas, como me arrependo
por ter feito aquilo!"
"Aquilo o quê? - indagou Gilberto, olhando-a fixamente. -
Vamos, pense! Quero saber! Teve um filho?"
Ruth lembrou e Gilberto escutou:
“Era tão sonhadora, amei, fiquei grávida, me desesperei e
abortei...”
"Ah! Não é tão certinha assim! É "abortadeira"! Não sabe
que é pecado? Errou e dá uma de santinha! Trabalha lá em
nome do Senhor! Imprestável! Não é digna e dá uma de
honesta!"
Ruth recebeu de forma confusa os pensamentos de
Gilberto e infelizmente deu ouvidos a ele; se segurou para
não chorar. Aninha observou a cena, intuiu Ana a ir até ela
e, ao vê-la quieta olhando as meninas, sentiu que Ruth
estava triste, angustiada, aproximou- se:
— Ruth, o que tem? Está se sentindo mal?
A interpelada não respondeu, abaixou a cabeça. Ana
preocupou-se. Ruth era tão prestativa, trabalhadeira e
bondosa. Descuidou-se, esqueceu que a ajudante dos
serviços de casa poderia ter problemas.
— Se eu puder ajudá-la... Nos sentemos aqui. Não quer
conversar, contar o que se passa? Está doente? Vou levá-la
ao médico. Quer uns dias de folga?
Ruth sentou-se ao lado de Ana e falou baixinho. Gilberto
ficou atento, Aninha também, só que ele não a viu.
— Dona Ana, estava olhando as meninas e me emocionei.
Obrigada, não estou doente nem quero folga. É que me
lembrei de fatos passados e fiquei triste. Sabe, poderia ter
um filho ou filha para alegrar minha vida, talvez estivesse
brincando agora com as meninas, seria da mesma idade.
— Você teve um filho? - perguntou Ana.
— Não o tive, não o deixei nascer, matei-o! - Ruth
respondeu segurando o choro.
Quietaram-se por instantes.
— Abortou? Conte-me, Ruth. Fará bem a você falar.
— Não menti quando falei de mim. Dava-me bem com
minha ex-patroa, ela tinha um filho casado que vinha
sempre visitá-la. Amei-o! Ele percebeu e começou a me dar
mais atenção e nos tornamos amantes. Porém, deixou claro
que não ia abandonar a esposa. Creio que ele nunca me
amou. Fiquei grávida, me apavorei, ele disse que até me
ajudava financeiramente, mas deveria jurar que não falaria
a ninguém que o filho era dele. Sabendo de uma mulher
que fazia aborto, fiz. Arrependi-me muito. Dona Eugênia,
minha patroa, não ia me desamparar; eu passaria por
dificuldades, mas quem não passa? Se tivesse agora ele ou
ela comigo, teria alguém meu para me preocupar, amparar,
uma pessoa a me chamar de mãe, que me daria um beijo
carinhoso. Arrependo-me tanto! Cometi um erro grave e
pago por ele. Um filho é uma bênção e seria minha alegria...
— Você ainda é jovem, Ruth, poderá ter outros filhos... -
falou Ana, animando-a.
— Não teria um filho só por ter e, além disso, não posso
mais tê-los. Dona Ana, o aborto foi malfeito, ficaram
sequelas e eu não posso mais ser mãe... Se vier a encontrar
alguém, falarei a ele do meu problema.
Gilberto ironizou:
— Então a santinha do pau oco abortou! E fica aí dando
lições de moral! Hipócrita!
Ruth começou a chorar.
— Dona Ana, acho que não vou mais trabalhar no Centro
Espírita. Sou indigna! Não presto para nada. No Espiritismo
é ensinado que não devemos praticar aborto. Impedi um
espírito de reencarnar. Já pedi muitas vezes perdão a Deus e
a esse espírito.
— Ruth, você sabe que moro aqui com Gustavo sem ser
casada e que também não o fui com o pai das meninas.
Creio que é difícil encontrar alguém que não tenha errado.
Compreendo você, deve ter passado por um período difícil e
se desesperou.
Escutaram bater, palmas.
— Posso entrar? Ó de casa!
— É o senhor João - disse Ruth se levantando.
Ele aproximou-se, cumprimentou as duas. Ana o convidou:
— Entre, senhor João, sente-se conosco um pouquinho.
Que agradável surpresa!
— Fui fazer uma visita aqui perto e me deu uma vontade
de passar aqui...
— Pelo pouco que sei, acho que não foi por acaso. Ruth
estava me dizendo que acha que não vai mais trabalhar no
Centro Espírita porque se acha indigna e eu estou pensando
que também sou.
— O Espiritismo não quer pessoas perfeitas, mas sim as
que têm vontade de melhorar. Também me acho imperfeito,
e se remoemos os erros do passado podemos nos achar
indignos de trabalhar no bem. Mas não devemos nos
esquecer da misericórdia, da bondade de Deus, que nos dá
oportunidade de corrigir nossos erros, trocar vícios por
virtudes, progredir, e para isso temos o próximo para
ajudar, porque auxiliando é que temos a grande
oportunidade de aprender. Lembro a vocês que Jesus não
condenou a mulher adúltera, só pediu a ela para que não
voltasse a pecar. Madalena, a mulher pecadora narrada no
Evangelho, tornou-se discípula de Jesus e amou muito pelo
muito que errou. Temos muitos exemplos, basta ler os
Evangelhos. Sábios, prudentes são aqueles que reparam
seus erros com trabalho edificante. Não devemos nos julgar
piores pelos erros do passado, e que esses sejam lições
para não errarmos mais e acertar no presente. Você, Ruth, é
uma boa colaboradora. Acha-se indigna? Não creio, não a
julgo.
Pense se errou, muito tem de amar, o amor anula erros. E
a senhora, dona Ana, será sempre bem-vinda à nossa casa,
não se prive de aprender.
— Obrigada, senhor João - expressou Ruth, emocionada. -
O senhor tem razão, não sei por que tive esses
pensamentos. Vou lhe fazer um cafezinho.
— A mim?! Incrível! - disse Gilberto, rindo.
O visitante ficou mais alguns minutos conversando e foi
embora.
— Que homem bondoso! - Exclamou Ana.
— É sim, senhora, muito bondoso - concordou Ruth. - E ele
tem razão, não vou me achar mais indigna e não vou perder
a oportunidade de continuar a ir ao Centro Espírita para
trabalhar e aprender. Só que agora o farei com mais amor e
não vou julgar as pessoas que erraram ou erram, porque a
vida, às vezes, nos coloca no lugar da mulher que ia ser
apedrejada; outras, com pedras na mão, e aí não devemos
esquecer que já estivemos errados e jogá-las no chão. Não
devemos participar do erro, mas querer bem a pessoa
errada e tentar entendê-la. Obrigada, dona Ana, por ter me
escutado. Pago caro por meu erro, se tivesse deixado meu
filho nascer, seria uma criança adorável, eu teria alguém
para amar, por companhia...
— Mãe! Mãeê! - gritou Lívia, e Ruth disse baixinho:
— A me chamar de mãe...
Ana abraçou Lívia, que tinha apanhado uma linda goiaba e
veio lhe trazer.
Pensou:
"Às vezes recusamos presentes. Quer tesouro maior aqui
na Terra, quando estamos encarnados, do que filhos?"
Gilberto ficou furioso:
— Nada que faço dá certo! Que coisa! Esses espíritas
parecem que têm saída para tudo.
Ernesto veio visitá-lo.
— Oi, Gilberto! Como está passando?
— Não acredito! Você perguntando como tenho passado?
Que faz aqui? Deixou-o sozinho? Desistiu de ser cão de
guarda?
— Não - respondeu Ernesto, tranquilo - continuo vigiando
o senhor Gustavo, só vim aqui para ver você. Está tão
sozinho! Gilberto tenho pensado muito no que aqueles
senhores espíritas nos disseram. Morremos, estamos vivos e
continuamos errados.
— É fácil, Ernesto, vá lá e peça abrigo. Esses bonzinhos
sempre acodem os pedintes.
— Você não quer vir também? - indagou Ernesto,
esperançoso.
— Não! - respondeu Gilberto, mal-humorado.
— Então não vou!
— Seria bom demais se você fosse! Ultimamente só me
acontecem coisas ruins, por instantes pensei que você ia
abandonar o posto e deixar o campo livre para mim - falou
Gilberto.
— Impedindo-o de se vingar faço bem a você - afirmou -
Impeço-o de fazer o mal porque, meu caro, pagamos
sempre pelo mal que fazemos.
— Você, Ernesto, está estranho. Mesmo não tendo com
quem conversar não quero continuar papeando com você.
Saiu. Ernesto resolveu conquistar a amizade de Gilberto.
Só que não deixaria o senhor Gustavo à mercê dele, isso
não!
Gilberto ficava muito num canto da chácara e Zek, o
cachorro, não se aproximava dele. Existem animais que
percebem a presença de desencarnados, sem, entretanto,
entender o que seja. E algo diferente do habitual. Gilberto
não gostava do cão, este tinha receio dele. Não era
agradável ao cãozinho sua aproximação. E Zek estava
atento, querendo a companhia de Ana e das meninas.
Na aula de quarta-feira, Ana compareceu entusiasmada.
Cláudia leu um texto continuando o estudo do capítulo 23
de O Livro dos Médiuns, chamado "Da obsessão.”
Após, começaram a comentar sobre o assunto. Eva
exclamou triste:
— Devo ser muito ruim para ter sido obsediada!
— Não, dona Eva - explicou senhor João - todos nós temos
defeitos a serem substituídos por virtudes. Somos ainda
muito necessitados de aprender, melhorar, temos ainda
falhas. Não é preciso ser mau para ser perturbado pelos
desencarnados que nos querem prejudicar. E nem devemos
achar que todos os desencarnados que obsediam são
também maus. Certo que há os maus, mas muitos são como
nós, escravos das ilusões materiais, orgulhosos para não
perdoar, ou os que ainda não conseguiram compreender o
que seja viver sendo útil no outro plano. Anos participando
deste trabalho de orientação, compreendo que não se muda
com a morte do corpo físico: encarnado imprudente,
desencarnado perturbado. Recomenda-se muito melhorar
nossas vibrações com atitudes boas, viver dignamente, ter
bons pensamentos, vigiar as palavras, orar; agindo assim,
perturbadores do além não nos atingem. Quando tentamos
fazer isso, estamos agindo certo, aprenderemos para
sermos um dia bom, mas no caminho se pode tropeçar, isto
é natural, só tropeça aquele que caminha. O importante,
mesmo que o tropeço resulte num tombo, é levantar-se e
caminhar. As dificuldades diárias nos fazem baixar a
vibração, são preocupações com finanças, problemas de
doenças conosco ou na família, tristeza, etc. Para manter
uma boa vibração vinte e quatro horas por dia é necessário
treino, perseverança, muito esforço, mas se muitos
conseguem, todos nós podemos. Não se menospreze, dona
Eva, deve ficar atenta aos tropeções e se recompor o mais
depressa possível. Passamos aqui na Terra por um período
de transformação e toda mudança nos parece complicada e
difícil. Penso que nós, encarnados, estamos num mar de
vibrações heterogêneas, que são como ondas a nos atingir.
Afinamos com algumas ondas, mas isso não impede de
recebermos as chicotadas de outras. E às vezes não nos
damos conta de que saímos de uma para entrar em outra.
— Isso me deu um alívio, senhor João. Vou prestar mais
atenção, me policiar para ficar numa boa onda - disse dona
Eva, e todos sorriram.
Ana queria entender o que aconteceu com ela, temia
perguntar e sua questão ser primária, mas arriscou:
— Senhor João, nunca tinha visto almas penadas, digo,
desencarnadas, nunca os escutei, até que um dia também
fui perturbada por um deles, cheguei a vê-lo, ouvi-lo. Tenho
mediunidade em potencial para trabalhar com ela ou foi só
um período? Desde que comecei a frequentar aqui não senti
mais nada.
— Todos nós temos sensibilidade, que pode aumentar
diante de alguns fatos. Creio dona Ana, que a senhora não
tem mediunidade em potencial para trabalhar como
médium. Tenho presenciado muito esse fato. Por razões
diversas muitas pessoas, por determinado tempo, ficam
mais sensíveis, podendo ver, ou vir espíritos e depois
voltam ao normal. Isso ocorre muito em casos de vingança,
quando o desencarnado se vale de sua vontade para que o
encarnado possa senti-lo. Também sei de espíritos que
fazem as pessoas recordarem partes de outras existências
para perturbar. Há certos locais de energias muito
concentradas que podem fazer a sensibilidade aumentar e
pessoas que nunca tiveram nenhuma percepção do plano
espiritual chegar a ver ou ouvir algo.
— Senhor João, eu sou médium. Sou pior que os outros, ou
melhor? - perguntou o senhor Custódio.
— Nem uma coisa nem outra! - respondeu o interpelado. -
Não acho certo muitos dizerem que são médiuns porque são
piores, porque muito erraram. Errar todos nós, que estamos
encarnados na Terra, exceto alguns, já o fizeram e
continuam fazendo, uns mais, outros menos. Mediunidade é
um fator orgânico, inerente a todos nós e que se pode usar
para o bem ou para o mal, conforme nosso livre-arbítrio. Há
pessoas que se preparam na erraticidade, que é o período
em que se vive no plano espiritual, para se dedicar ao
trabalho do bem; achando que aprenderão muito tendo
mediunidade, pedem para tê-la; outras acham que
repararão erros. Infelizmente esquecem isso no plano físico
e algumas repelem essa faculdade, que pode ser branda ou
mais acentuada. Vaidosos são os médiuns que pensam ser
melhores que os outros. Somos todos convidados a crescer
espiritualmente e prudentes são aqueles médiuns ou não,
que participam dessa oportunidade. Sou médium e trabalho
há quarenta anos com minha faculdade já lutei com a
vaidade, e não pensem que a venci; tenho estado sempre
atento para que ela não surja forte e a tenho sob vigilância,
mas também passei períodos em que me julguei inferior, e
isso não me fez bem. Concluí que sou como todos, nem
pior, nem melhor. Sou o João, um homem que tenta ser
decente, trabalhador, honesto, como também aproveito
para aprender, ser útil, e agradeço a Deus a oportunidade e
a mediunidade, reparo erros e mais, aprendo muito. Sou
feliz por ser médium, amo essa faculdade e quero
aproveitar esta encarnação para dar largos passos e, quanto
mais caminho, mais me sinto agradecido e nem pior nem
melhor.
A aula foi muito proveitosa.
Gustavo, naquele final de semana, pegou curioso, O Livro
dos Espíritos e começou a folheá-lo, depois a ler
atentamente.
— Ana, posso levar este livro para ler? Estou achando
interessante. Aqui fala de Deus como penso que seja o Pai
Celeste.
— Não é meu, Gustavo, peguei-o emprestado na
biblioteca do Centro Espírita, mas tenho ainda uma semana
para devolvê-lo. Leve-o! Gustavo estou só começando a ler
os livros espíritas e creio que você é espírita e ainda não
sabe.
— Como? - riu ele.
— Você tem atitudes espíritas.
— Cristãs? - indagou Gustavo.
— Sim - respondeu Ana - o espírita, antes de tudo, é
cristão.
No outro final de semana, Gustavo chegou e deu um
pacote para Ana.
— Querida, gostei muito desse livro de Allan Kardec e
comprei os outros que encontrei numa livraria e também
alguns de mensagens, romances, todos espíritas.
Ana agradeceu, comovida.
Na segunda-feira as meninas foram ao Centro Espírita
com ela e Ruth. Vanessa se entusiasmou:
— Mamãe, gostei muito, posso voltar? Posso ir aos
domingos na reunião de jovens e crianças?
— Pode!
— Eu também quero ir! - expressou Lívia.
— Mamãe, tenho pensado no papai, ele ainda não desistiu
de se vingar, não é? Está perdendo um tempo precioso
tentando nos prejudicar - suspirou Vanessa.
— Escutei do senhor João uma historinha interessante.
Contou a elas a história do homem que perdeu tempo
prejudicando seus inimigos e nada fez para si.
— Papai está agindo assim! - exclamou Vanessa. Que
pena! Vou pensar num modo de ajudá-lo!
— Eu não quero saber dele! - expressou Lívia. - Quero-o
longe de nós. Nada tenho de agradável para lembrar-me
dele. Não lhe tenho rancor nem lhe desejo mal. Quero-o
longe!
Naquela noite, Vanessa orou com fé, pediu a Deus, a
Jesus, se tivesse com ela, para ajudar o pai, que a
orientasse para que pudesse fazê-lo.
"Entre nós ele é o maior necessitado! Como seria bom
encaminhá-lo, despertá-lo para o bem!"
Adormeceu. Aninha ajudou-a, mas não se tornou visível.
Vanessa desprendeu-se do corpo, saiu em perispírito,
ficando presa ao corpo físico por um cordão também
invisível, caminhou tranquilamente e foi à varanda, onde
Gilberto estava aborrecido.
— Papai!
— Vanessa!
Ela aproximou-se dele e sentou-se ao seu lado.
— Como está o senhor? - indagou.
— Não estou nada bem. Abandonado e triste! Minhas
filhas e minha mulher preferem esse assassino - lamentou
Gilberto.
— Papai, amo o senhor. Sou sua filha! Não prefiro
ninguém. Ana encontrou o senhor Gustavo e os dois se
amam. Ele a trata bem. Lívia e eu temos somente mamãe
Ana e ela nos ama como verdadeira mãe, o senhor Gustavo
é bom - Vanessa falou meigamente.
— Estou cansado de ouvir: "O senhor Gustavo é bom, é
isto e aquilo", e eu não! - exclamou Gilberto, sentido.
— Papai, a vida é bonita e podemos aproveitá-la para
aprender, para orar. Não está cansado de não fazer nada?
— Nunca gostei muito de trabalhar, fazia quando
encarnado porque não tinha outro jeito. Mas essa vidinha
aqui na chácara tem me cansado. Mas não tenho para onde
ir...
Vanessa olhou-o nos olhos, continuou a falar com
meiguice:
— Papai, queria vê-lo feliz e acho que só o será quando
tiver paz e deixar os outros em paz.
— Acha que não devo atormentar o assassino?
— Papai, tente entender o que houve de fato. Não julgo
ninguém, porém acho que o senhor Gustavo não é
assassino. Por que tenta enganar a si mesmo? Colocar a
culpa de sua imprudência no outro. Foi uma fatalidade!
— Vanessa, sinto que é sincera. Por que me ama?
— O senhor é meu pai!
— Isso é um fato - disse Gilberto.
— Amo-o porquê, lá no fundo, o senhor é bom!
— Nunca lhe fiz um agrado...
— Pode fazer agora - pediu Vanessa.
— Não tem medo? Posso abraçá-la?
Ela o abraçou e ele chorou emocionado.
— Filha! Filhinha! Você me ama de verdade?
— Amo-o e quero que fique bem. Que seja feliz!
— Você ficará alegre sabendo que eu estou bem? -
indagou Gilberto.
— Sim, ficarei! É isso que quero! - afirmou a menina com
convicção.
— Sei... Devo ficar alegre sabendo que vocês estão bem...
Sei...
Vanessa o beijou na testa e afastou-se. Aninha sorriu. Ela
a instruiu bem. A menina acordou sentindo-se leve e
tranquila, passou a orar muito para o pai. Ana também
passou a fazê-lo e Gilberto inquietou-se, já não tinha mais
certeza se queria se vingar e não sabia o que fazer. Pegara
o livro que Aninha lhe deu, leu alguns trechos, às vezes
orava com Vanessa e concluiu:
"Se nunca ajudei minhas filhas, devo fazer agora,
deixando-as com Ana na chácara. Elas estão bem como o
senhor Gustavo, que, pensando bem, não é assassino!"
Na quinta-feira ficou atento e pensativo:
"O pessoal do Centro Espírita não veio mais me buscar!
Será que devo ir lá?"
Quando o início do trabalho estava próximo, ele se pôs a
andar na rua entre a chácara e o Centro sem saber se ia ou
não.
— Boa noite, senhor Gilberto! Convido-o a entrar! - disse
um trabalhador do Centro a ele, que só esperava por isso,
mas respondeu:
— Posso ir, mas saio quando quiser!
Recebeu orientação novamente, mas dessa vez estava
receptivo, ouviu com atenção e teve vontade de ir com eles
para longe dali.
Ninguém muda de repente. Com a desencarnação a
pessoa não se transforma de imediato. Vanessa contribuiu
com sua atitude amorosa para a mudança dele. Gilberto
tinha muito que aprender para realmente melhorar. Foi
levado para um posto de socorro, onde iria ter lições numa
escola própria de Evangelho e moral, como também teria
um trabalho, uma tarefa. Para muitos o trabalho é distração,
mas muito benéfico. Quando trabalhamos deixamos a
ociosidade, que é o berço de muitos vícios, O trabalhador
não tem tempo a perder e quando fazemos o bem aos
outros pelo trabalho é dignificante.
Ruth, no outro dia, contou a Ana e às meninas o que
aconteceu na reunião, que Gilberto fora socorrido.
— Graças a Deus! - exclamou Ana. - Gilberto agora
deixará de sofrer.
— Que bom para nós, nos deixará em paz! - exclamou
Lívia.
— Que bom para ele! - alegrou-se Vanessa. - Não perderá
mais tempo querendo nos prejudicar. Vou orar para que ele
fique onde foi levado. Transmitirei a ele, por pensamentos,
mensagens de amor, de otimismo. Papai será feliz!
Assim o fez. Ana também passou a orar por ele desejando
que estivesse bem.
E Gilberto recebia as boas vibrações enviadas por elas. Às
vezes sentia falta das farras, da ociosidade ou mesmo
desejo de prejudicar Gustavo. Mas recebia...
"Papai, estou orgulhosa do senhor! Cuide-se! Aproveite
para aprender, conhecer os lugares bonitos que tem aí. Faça
amigos! Amo o senhor! Estou alegre sabendo que está bem!
Fique aí, aceite o que os orientadores estão a oferecer..."
"Gilberto - Ana dizia a ele em oração - mude para melhor,
quero-o bem, vejo-o entre pessoas boas que o respeitam,
que o orientam. Trabalhe e sinta a tranquilidade do lugar,
não desanime..."
Ele recebia a visita de Aninha, que o incentivava:
— Gilberto, você se acostumará logo aqui, seja útil, é tão
bom ser autossuficiente. Você pode, você deve, se esforce e
será.
— Lívia se esqueceu de mim - queixava-se ele. - Não
recebo nada dela. Mas a compreendo, só queria que me
perdoasse e me aceitasse...
— A vida nos oferece essas oportunidades... - Aninha o
animava.
Ela o levou algumas vezes para ver os meninos. Rodrigo e
Marcelo estavam felizes no educandário de uma colônia.
Aninha explicou a Gilberto:
— Eles logo irão reencarnar na cidade onde residiram,
serão crianças saudáveis em lares honestos.
— Eles merecem bons pais, o que não fui para eles - falou
Gilberto, sentido.
Na época, Aninha foi por um intercâmbio avisar Ana, que
no momento ficou sentida, eles teriam outros pais, outra
mãe... Mas entendeu que a vida continua e o amor deve ser
ampliado; uma vez amado, sempre amado. E afetos se
reencontram...
Ana, na primeira oportunidade, na aula de quarta-feira,
agradeceu:
— Aqui vim desesperada em busca de auxílio porque
estava sendo perturbada por um desencarnado. Fomos
orientados e ajudados. Queria agradecê-los e continuar a
frequentar as reuniões, gosto muito daqui, de todos, quero
aprender!
— Até que foi fácil - disse Eva. - Seu ex-companheiro
acabou entendendo, há casos muito mais difíceis. Muitos
desencarnados se unem a outros maus para se vingar.
— É! - exclamou Ana, curiosa.
O senhor João elucidou:
— Muitos desencarnados, querendo se vingar se unem a
outros. No Umbral há grupos de vingadores, há até locais
denominados escolas para ensinar imprudentes a se vingar.
Estes, na ânsia de prejudicar, se envolvem em situações e
às vezes se tornam até escravos do grupo, têm de obedecer
sob pena de serem castigados, e não se livra fácil deles. No
Umbral não se faz favor sem trocas.
— Ainda bem que Gilberto não se uniu a esses
desencarnados - expressou Ana. - Mas se tivesse o que
aconteceria?
— Teríamos mais trabalho! - falou calmamente o senhor
João. Já nos defrontamos muitas vezes com desencarnados
vingadores que se julgam justiceiros e orientamos a muitos.
Outros, não querendo confronto conosco, desistem. Muitos
perseverantes perseguem implacáveis, e só conseguimos
resultado com força moral, paciência, e durante o período
em que tentamos orientá-los recebemos as vibrações
contrárias. Como Emanuel diz: "Não se socorre o náufrago
sem receber chicotadas das ondas.” Quando se consegue
ajudá-los, uma alegria imensa nos invade. E orientando a
outros, encarnados e desencarnados, que solidamos o que
aprendemos.
— Senhor João, Alaíde não quer mais frequentar nosso
Centro Espírita. Disse que não concorda com alguns
espíritas. Acho que ficou desgostosa por aquele
desentendimento sobre assistência social. É pena! - Falou
Isabel.
— Quando nos reunimos para fazer algo, devemos
entender que somos diferentes e que pode, no grupo, haver
opiniões diversas. E para vivermos bem com outro é preciso
ser tolerante para ser tolerado, compreender para ser
compreendido. E deixar de frequentar um local como uma
instituição religiosa por isso, quase sempre é desculpa para
si mesmo, que não é levada em conta na espiritualidade.
Para viver bem na sociedade temos de aprender a ceder,
entender e não nos melindrar. Não houve intenção de
ofender e quem se ofende fácil é orgulhoso. Depois, uma
instituição como a nossa não pertence a ninguém, é de
todos. Tudo passa e o ensinamento religioso permanece.
As aulas eram muito interessantes, Ana gostava muito e
tornou-se espírita convicta; passou, com afinco, a estudar a
Doutrina.
10 - Minha Querida
Gustavo foi ficando cada vez mais na chácara. Os filhos,
Paulo Sérgio e Áurea, casaram-se e trabalhavam na fábrica
maior. Lívia e Vanessa cresciam, já estavam mocinhas,
continuavam estudando e não davam preocupações. Ana se
orgulhava delas.
Um dia, Gustavo disse a Ana:
— Querida, vou morar aqui definitivamente. Nem para
manter as aparências fico com Lorena. Conversei com ela,
acabamos discutindo.
— Ela deve me odiar - expressou Ana.
— Lorena odeia a muitos. Não menti a você, minha
querida, estamos separados há tempo, não vamos legalizar
um desquite não resolveria. Mas temos de repartir nossos
bens. Vou deixar tudo que temos na outra cidade para ela,
Paulo Sérgio e Áurea. O que tenho aqui ficará para Júnior,
que deverá vir trabalhar comigo.
— Júnior não será prejudicado? - Indagou Ana.
— Meu caçula é parecido comigo, não só fisicamente
como também no gênio, modo de agir e pensar. Vou reuni-
los e comunicar a eles. A parte de Lorena ficará para os dois
filhos mais velhos e a parte aqui, que me toca, para Júnior.
Conversarei com ele, entenderá. Paulo Sérgio já trabalha
comigo há tempo, Áurea está indecisa, mas está na hora de
ela assumir o trabalho. Lorena me recrimina por estar com
você e diz que se sente envergonhada pelos comentários.
Não quero humilhá-la. Separar legalmente sairia caro e me
impediria de fazer o que quero. Abrirei mão de muito, ficarei
nessa divisão com bem menos. Mas não me importo. Para
todos seremos separados e minha mulher é você.
— Seus filhos não devem gostar de mim - expressou Ana.
— Os dois mais velhos são muito parecidos com a mãe,
acham que você é interesseira. Júnior gostará de você
quando a conhecer. Ele virá para cá. Aprenderá comigo e
terá essa fábrica só para ele. Um dia me agradecerá,
herdará menos em dinheiro, mas terá a tranquilidade de
não ter sócios. Certamente que terei de acudi-los muitas
vezes, farei com prazer, eles sabem disso. Tenho algum
dinheiro guardado, comprarei uma casa boa para cada uma
das meninas, vou passar esta chácara para o seu nome e
mais duas casas. Não quero deixá-la desamparada se eu
vier a desencarnar primeiro.
— Você disse desencarnar, Gustavo - riu Ana.
— Acho o termo certo. Vou começar a ir ao Centro Espírita
com você.
— Gustavo, não quero nada seu, já me deu tanto!
— Já decidi Ana, é o que vou fazer.
— Gustavo, não quero nada no meu nome, não sou mãe
das meninas. Se desencarnar elas poderão herdar o que é
meu?
— Já pensei nisso. Porei no nome delas com usufruto seu.
É seu até que venha a falecer.
— Se eu desencarnar primeiro ficará sem esta chácara de
que tanto gosta - falou Ana.
— Não quero ser cativo de lugar, terei um dia de deixar
esta chácara. Lembranças que guardo no coração. Aqui tive
paz, ou será que foi você, querida, que me deu essa paz? -
falou ele, rindo.
Quando Gustavo foi à reunião, Ana ficou orando para que
tudo desse certo. Ele voltou abatido.
— Foi difícil, Ana. Discutimos por horas. Fiquei só com uma
parte dessa fábrica, tendo Júnior por sócio. Meus filhos são
egoístas. Doeu-me quando a reunião terminou, Júnior
chegou perto de mim e perguntou: "Papai, por que me
prejudicou?" Respondi: "Amo você, filho, compreenderá
mais tarde que eu o estou protegendo. Nem tudo na vida é
dinheiro. Não ouviu aqui tantas reclamações? Livro-o disso!"
Ele me olhou e se afastou sem falar mais nada. Roguei a
Deus para que ele me entenda. Júnior virá para cá, não quer
vir para a chácara, ficará no hotel, comprarei para ele uma
casa grande, logo se casará, morará nesta cidade. Vou me
empenhar para que essa fábrica cresça e prospere.
— Ele irá entender não se preocupe - disse Ana,
animando-o.
— Lorena, Paulo Sérgio e Áurea acabarão por se entender.
Júnior iria sofrer junto deles, seria prejudicado; comigo não.
Ana estou livre até das aparências, agora estou realmente
separado. Pena que não posso me casar com você.
— Isso não me importa! - expressou ela
— Somos companheiros, Ana, casados por afeto.
Júnior veio para a cidade, ficou hospedado no hotel,
viajava nos finais de semana para ver a noiva. Um dia, após
o trabalho, veio para a chácara com o pai; os dois chegaram
conversando, animados. Ana foi recebê-los; timidamente
sorriu para ele, que observava a casa.
— O senhor mora aqui?!
— Sim e gosto. O que esperava, um luxo frio como a outra
casa? - respondeu Gustavo.
— Não, é que... - balbuciou Júnior.
— Meu filho - apresentou Gustavo - esta é minha
companheira, a mulher que compartilha comigo esta casa.
— Boa noite!
Júnior a observava e Ana ficou vermelha.
— O jantar está pronto. Janta conosco, Júnior?
— Se não for incômodo...
Ficou para o jantar, conheceu as meninas e acabou
ficando à vontade. Júnior pensava que a mulher que morava
com o pai fosse ambiciosa, estranhou a casa simples e ela
também. Percebeu que os dois se entendiam e que ela fazia
seu genitor feliz.
Passou a frequentar a chácara e logo se tornou amigo
delas. Convidou-as para seu casamento, mas Ana preferiu
não ir, não queria ser motivo de comentários ou desagrado
para Lorena.
Luciana, a esposa de Júnior, era uma moça muito bonita,
simpática. Tornou-se amiga de Ana e das garotas e vinham
almoçar todos os domingos na chácara. Moravam numa
casa grande, bonita. Júnior começou a se interessar pelo
trabalho, preparando-se para administrar a fábrica.
Muitas vezes Gustavo tinha de ir até os outros filhos
resolver problemas e atritos. Paulo Sérgio se queixava do
desinteresse de Áurea, que por sua vez reclamava do irmão,
que queria que ela trabalhasse, e ambos criticavam a mãe,
que gastava demais. E as dificuldades maiores da fábrica
era Gustavo quem resolvia.
Reuniram-se na chácara para um almoço num domingo
chuvoso em que Gustavo voltara na véspera, fora tentar
resolver mais uma briga. Ele se queixou:
— Júnior, sua mãe quer ir novamente à Europa. Paulo
Sérgio não deseja lhe dar o dinheiro. Estamos atravessando
um período em que precisamos ter cautela com gastos.
Lorena não quer saber, quer viajar.
— O que fez o senhor? - indagou Júnior.
— Fiz um novo contrato e depois de os três assinarem, o
registrei. Agora só pode haver retirada da fábrica duas
vezes por ano e uma quantia certa e igual para os três. E
quem trabalha tem um ordenado, isso obrigará Áurea a
produzir. Sua mãe me xingou, disse que venderia bens, e
quando falei a ela que não podia, ela quase me agrediu com
socos. Paulo Sérgio teve de interferir. Prevendo isso, porque
Lorena sempre gastou muito, registrei tudo e fiz bem feito.
Nem eu, nem ela podemos vender nada; na verdade, não
somos mais donos, é tudo de vocês. Lorena não irá mais
viajar e para cortar despesas se mudará para um
apartamento, deixando a casa para Paulo Sérgio morar com
a família.
— Agiu certo, senhor Gustavo - disse Luciana. Conhecendo
seus filhos, Júnior iria sofrer muito com toda essa confusão.
Paulo Sérgio é ambicioso, ninguém lhe tirará a presidência e
se, ele puder, ficará com tudo. Desculpe-me, são seus filhos.
Agradeço ao senhor pelo que fez, aqui estamos bem!
— Luciana sempre me advertiu sobre isso e parece que
vocês dois tinham razão - falou Júnior.
Gustavo olhou com carinho para o filho e comentou:
— Paulo Sérgio e Áurea começam a entender que não fui o
maior culpado de o casamento com sua mãe não ter dado
certo. Agora estão sentindo mais os devaneios dela.
— É que agora isso lhes dói no bolso - disse Luciana.
Espero que eles se entendam e que o senhor não precise
interferir tanto.
Iria haver uma festa na fábrica pelos seus trinta anos de
existência, que seriam comemorados com muita alegria.
Gustavo e Júnior prepararam tudo. A festa começaria à
tarde e todos os familiares dos empregados foram
convidados.
— Ana - disse Gustavo - você irá comigo, quero que faça
um lindo vestido para você e para as meninas.
O dia esperado chegou e Ana se arrumou toda.
— Está linda, querida! - exclamou ele.
A festa foi num galpão, havia mesas espalhadas por todo
o local, que estava enfeitado de bandeirinhas; havia comida
e bebida à vontade. A criançada gritava contente, todos
estavam alegres. Gustavo conduziu Ana pelo braço até uma
mesa à frente, sentaram-se lado a lado. Contente, ele
cumprimentava os convidados, ela se sentia protegida ao
lado dele e sorria para todos.
No meio da festa, um funcionário pediu silêncio e todos
quietaram. Fez um breve discurso do porquê da festa, a
importância da fábrica na vida de todos e finalizou:
— Senhor Gustavo, nosso presidente, poderia nos alegrar
com alguns dizeres.
Isso não estava no programa. Gustavo se levantou
sorrindo e falou:
— Não sou de discursar; porém, se meu caro funcionário
me passou a palavra, não devo perder a oportunidade de
dizer que hoje estou muito contente por estar realizando um
sonho: de esta fábrica ser ativa e produtiva, O trabalho
dignifica o homem, trabalhamos aqui juntos, somos
companheiros que temos por objetivo ser úteis e melhorar
cada vez mais. Um lugar de trabalho honesto é abençoado
por Deus e a Ele rogo proteção a todos nós. Vamos brindar!
A nossa fábrica, a nossa união, a amizade! E creio que cada
um tem algo particular para dedicar este brinde. Peço
licença a vocês para fazer em voz alta o meu. - Com o copo
na mão, virou-se para Ana. - A minha companheira, a
pessoa que me tem dado alegria, apoio e carinho, à Ana,
minha mulher...
Ana levantou-se sem saber o que fazer, pegou seu copo,
cruzaram os braços, ela tremia emocionada, e ele disse
baixinho, antes de colocar o copo nos lábios.
— Eu a amo...
Palmas e todos brindaram. A festa continuou animada.
Ana falou a ele:
— Gustavo, você me emocionou, eu agradeço.
— Por que você me agradece? É verdade, minha querida,
você me fez sentir vontade de viver.
Ela pensou, comovida:
"Gustavo é tão bom, talvez eu não o mereça, nunca
pensei que ele fizesse isso na frente de todos. Como não ser
agradecida? - olhou para ele, sorriu feliz. - Creio que devo
continuar agindo como sempre, é disso que ele gosta em
mim.”
As meninas, que agora eram mocinhas, estavam
radiantes. Vanessa chegou a chorar com a homenagem. E a
festa foi um sucesso.
No outro dia, Lívia e Vanessa comentaram com a mãe
sobre os acontecimentos. A mais velha falou toda contente:
— Mamãe, sabe o que ouvi? Que o senhor Gustavo, antes
de conhecer a senhora, teve algumas amantes, saía com
mulheres e que depois ninguém nem o viu olhar para outra.
— Também já ouvi comentários assim - afirmou Vanessa. -
Estou tão feliz! Bendito dia em que o senhor Gustavo nos
viu.
— Sim - exclamou a mãe - bendito dia!
Ana se pôs a pensar:
"Ontem quase disse a ele que também o amo. Por que
não consigo? Sinto que, se eu me declarar, ele irá embora.
Esquisito! Tenho medo de falar, um receio estranho, como
se ao dizer, o perderei.”
Gustavo e Ana pouco saíam, ela o esperava chegar à
casa, sempre tranquila, risonha, tentava adivinhar o que o
companheiro queria e fazia tudo para agradá-lo, e ele
correspondia, era caseiro, educado. Quando saíam tinha a
satisfação de agradá-la mais ainda perto dos outros e se a
apresentava a alguém era como esposa.
Ana pensava sempre nos irmãos, nos amigos da cidade
onde nasceu, tinha saudade. Comentou isso com Gustavo.
— Ana, se você sabe o endereço de seus irmãos, por que
não escreve para eles?
Ela o fez e recebeu resposta. Carlos, seu irmão, respondeu
que ficaram felizes por saber que ela se encontrava bem,
que também tinham saudade, mas lastimava que a vida
estivesse difícil para todos, dinheiro pouco, etc.
Ela leu e releu a carta muitas vezes. Comentou com
Gustavo:
— Acho que eles estão em dificuldades financeiras. Tenho
dinheiro guardado, o que você sempre me deu. Queria ir lá
vê-los e, se possível, ajudá-los.
— Ana, eles não quiseram saber de você quando precisou.
- Gustavo falara sem pensar.
Ao se dar conta, sorriu:
— Tem razão, minha querida, devemos ir lá.
— Você iria comigo? Já viaja tanto...
— Vou com você - decidiu Gustavo. - Me organizarei para
tirar uns dias de folga, se as meninas quiserem, poderão ir
conosco. Vamos de carro.
— Gustavo, tive duas amigas que quero visitar e ajudar,
como também pagar algumas dívidas que Gilberto fez.
— Muito justo. Se seu dinheiro não der, lhe darei mais.
— Obrigada, Gustavo!
As meninas não quiseram ir.
— Não quero perder aulas - disse Lívia. - Além disso, não
tenho ninguém para rever. E ainda tenho medo de minha
tia. Será que ela pode nos tirar da senhora?
— Nunca! - exclamou Ana. - Ela que tente!
— Mamãe, também não quero ir- expressou Vanessa. -A
senhora tem os irmãos, sobrinhos, eu não, nem me lembro
das amigas.
No dia marcado os dois partiram em viagem. Foi
cansativo, ficava em outro estado, era distante e foram
parando para descansar. Ana estava ansiosa. Quando
chegaram, se pôs a observar tudo. A cidade estava
diferente. Comentou com ele, que lhe respondeu:
— Claro querida, o tempo passa, modificando tudo.
Hospedaram-se num hotel e Ana quis ir à casa da irmã
porque achou que a encontraria em casa.
— Ana! - espantou-se Maísa. - Entre! Abraçaram-se. Eles
entraram e Gustavo se apresentou:
— Sou o esposo de Ana, Gustavo. Prazer!
Sentaram-se e ficaram em silêncio. Ana disse:
— Como estão todos?
Maísa deu notícias dos familiares, ela ouviu, atenta. Um
sobrinho chegou.
— Tia Ana! Que surpresa!
— Rogério! Como você cresceu! Está lindo! - Exclamou
Ana, abraçando-o.
— Tia, o carro que está lá fora é da senhora? - indagou o
sobrinho.
Ana ia responder, mas Gustavo adiantou.
— É nosso! Como está, meu rapaz?
Conversaram uns minutos. Pelas roupas, pelo carro, logo
perceberam que Ana se dera bem. O sobrinho, gentil,
convidou:
— Titia, vou reunir a família toda hoje à noite na casa do
tio Carlos, que é maior, para que veja todos e para que
possamos matar a saudade que tínhamos da senhora.
— Agradeço! Bem, agora vamos, estamos cansados. Às
oito horas, está bem?
Foram descansar, à noite reviu todos, abraçaram-se, quis
saber das novidades, conversaram muito e foram embora
tarde.
Ficou combinado novo encontro na noite do dia seguinte.
Voltaram para o hotel.
Ana ficou calada, ele respeitou seu silêncio. No outro dia,
cedo, ela pediu:
— Me leve onde morei, quero ver os amigos.
Foram rever o bairro, as casas pobres a emocionaram.
— É aqui que morei, depois ali. Nesta casa morava
Antônia. Vamos lá.
Bateu na porta e uma moça abriu. Ana a reconheceu.
— Renata! Você não é a filha de Antônia? Que bom vê-la.
Como está sua mãe?
— A senhora é Ana? Amiga de mamãe? Não quer entrar?
Mamãe morreu... Já faz algum tempo.
— Sinto muito... - lastimou Ana. - Volto aqui depois. Você
sabe de Délia?
— Mora ainda na mesma casa - respondeu a mocinha.
Ana foi até lá. Délia, ao vê-la, gritou alegre e veio
encontrá-la.
Abraçaram-se comovidas.
— Puxa, que roupa chique!
Conversaram animadas, Délia estava como sempre, os
filhos crescidos e muitos problemas.
— Ana - disse ela - pensei até que você havia morrido.
Soubemos do acidente, a polícia foi atrás de Gilberto, não
entendemos bem o que houve.
— No acidente faleceram Gilberto e os meninos, fiquei
com as meninas, são nossas filhas e...
Contou o que se passou, omitindo que era Gustavo quem
dirigia o outro automóvel.
— Délia, me diga, para quem Gilberto ficou devendo?
Ela falou e completou a afirmação.
— O automóvel que Gilberto comprou e pagou só a
entrada era roubado.
— Vou pagar nossos antigos vizinhos, depois volto aqui.
Saiu com Gustavo, que estava quieto, acompanhou-a,
protegendo-a. Ana foi à casa de todos que Délia citou e
pagou as dívidas. Calculou o que compraria naquele tempo
com o dinheiro e acrescentou mais um pouco. Não era
muito, ninguém por ali tinha para emprestar. O espanto foi
total.
— Dona Ana! A senhora não morreu? Pagar a dívida?
Mas ficaram contentes. O antigo dono do bar onde ela
trabalhava agora aposentado estava lá conversando, se
espantou, mas recebeu o dinheiro e indagou:
— Dona Ana, sempre quis saber, foi a senhora ou Gilberto
que me deu o golpe?
— Ele... Bem, o que importa é que não lhe devemos mais
nada e agradeço o senhor...
— Este dinheiro fará mais fartura agora do que se tivesse
recebido naquele tempo. Minha esposa está doente, é a
quantia certa para os exames. Obrigado, dona Ana. É digno
de sua parte pagar dívidas do falecido.
Voltaram à casa dos filhos de Antônia.
— Renata, devia para sua mãe e quero deixar este
dinheiro para vocês. Por favor, reparta com seus irmãos.
— É muito! Depois, não me lembro de a senhora ter ficado
devendo a mamãe, ela comentava sempre que para nós
Gilberto não pediu nada - falou a mocinha.
— Dívida de amizade não tem preço. Por favor...
Renata pegou, Ana despediu-se e voltou à casa de Délia,
que os esperava com um cafezinho.
— Délia, minha amiga, paguei todos por aqui, só não
quitei as dívidas com os amigos de Gilberto que eram
bandidos.
— Por que fez isso? - Indagou Délia.
— Primeiro, porque posso; segundo, por Gilberto, ele se
sentirá bem ao saber que quitei seus débitos com as
pessoas honestas que ele enganou. Aqui está algo que
quero lhe dar. Não abra, deixe para depois que eu sair.
— O que é? - perguntou Délia.
— Um mimo a uma amiga que me ajudou quando
necessitei - falou Ana, carinhosamente.
— Você também me ajudou.
— Quero lhe dar um presente.
Abraçaram-se na despedida.
— Voltará? - Délia quis saber.
— Não, Délia, partirei desta vez para sempre. Cuide-se! -
respondeu Ana, emocionada.
Entraram no carro.
— Vamos para o hotel, Gustavo.
No quarto, Ana falou para ele:
— Vamos embora. Estou com saudade da chácara,
vontade de estar no nosso lar.
— Ana, você deu todo o seu dinheiro...
— Desculpe-me se dei o dinheiro sem consultá-lo.
— Querida, não precisa se desculpar, o dinheiro era seu.
Só queria entender, pensei que daria aos seus familiares.
Temos um encontro hoje à noite...
— Gustavo, quando Carlos me escreveu, afirmou que
passavam por dificuldades. Aqui, compreendi que não era
verdade. Todos estão bem, não ricos, como você, mas
ninguém precisa de auxílio. Mentiram, e sabe por quê?
Medo de que eu pedisse dinheiro a eles. Trataram-nos bem
porque souberam que nos hospedamos no melhor hotel da
cidade, pelo carro que tem, pelas roupas que vestimos. Ouvi
indagarem a você o que faz o que tem. Vim disposta a
ajudá-los, mas não precisam. Vivi anos naquele bairro, senti
que deveria quitar as dívidas que Gilberto fez enganando
pessoas que têm pouco, que emprestavam para ajudar.
Antônia foi minha grande amiga, ela desencarnou, ficará
contente pelo que dei aos seus filhos. E esse dinheiro
ajudará Délia.
— Minha querida, não fique triste, devemos ter nossos
familiares, as pessoas que amamos. As meninas não são
nossas consanguíneas e as amamos tanto!
— Por que me chama de querida?
— Querida é algo muito apreciável, indivíduo estimado. É
isso que sinto em relação a você. E quando digo minha não
é por posse, é meu afeto. Se quiser, vamos embora. Mas, e
o encontro de hoje à noite?
— Escreva para mim um cartão se desculpando e peça na
portaria do hotel para que seja entregue logo.
Gustavo escreveu e meia hora depois foram embora. Ana
olhou pela última vez a cidade onde nasceu, recordou dos
filhos, a saudade apertou o peito, teve vontade de chorar,
não o fez.
"Como minha vida mudou quando fui embora daqui! Se
não tivesse ido, como seria? Talvez estivesse com os dois,
mas não conheceria Gustavo. Eles teriam desencarnado se
não tivesse me aventurado com Gilberto? Se? Se? Como nos
atrapalha esta indagação."
Lembrou com detalhes dos rostinhos dos filhos, pareciam
sorrir para ela. O amor continuava. Não quis que ele
percebesse, seu companheiro sentia muito por estar
envolvido, mesmo sem ter culpa na desencarnação deles.
Da outra vez que partiu dali foi com medo e incerteza;
agora era diferente, ao lado dele tinha segurança. Olhou
para aquele homem bondoso, que fazia tudo por ela, sorriu,
teve vontade de dizer que o amava, mas não conseguiu. Ele
respeitou seu silêncio, compreendendo-a.
Ana alegrou-se ao chegar na chácara.
— Não viajo mais! Como nosso lar é gostoso!
Ele sorriu e suspirou aliviado, concordava. As mocinhas
quiseram saber por que voltaram tão rápido.
— Fiz o que há muito queria, revi todos e compreendi que
minha família está aqui.
Gilberto, que de tempos em tempos vinha visitá-los,
quando soube o que Ana fez, ajoelhou-se e pediu:
"Perdão Ana! Perdão!"
E foi tão forte seu apelo que ela, sem entender bem por
que, respondeu em pensamento:
"Perdoo você, Gilberto, perdoo!"
E ele chorou aliviado e agradecido.
Para melhor comodidade, Gustavo instalou um telefone na
chácara, ele estava sempre precisando usá-lo para seus
negócios. Lívia teve alguns namorados e firmou com
Cláudio, um mocinho bom e educado. No começo Ana
preocupou-se, a família dele podia se opor, mas tudo deu
certo. Planejaram se casar. Gustavo disse:
— Lívia, vou reformar a casa que sua mãe lhe deu, será
meu presente de casamento.
— Obrigada, senhor Gustavo!
As três se reuniram.
— Não vejo por que contar ao Cláudio que não sou sua
filha - falou Lívia.
— Minha irmã - expressou Vanessa - não é certo esconder
esse fato de seu futuro marido.
— Prometemos não falar a ninguém - disse Lívia.
— Tem medo? Por quê? - indagou Ana.
— A senhora é tratada como esposa do senhor Gustavo.
Talvez seja por isso que a família de Cláudio tenha me
aceitado. Amo-o e não quero perdê-lo!
— Filha - Ana suspirou, abraçando-a - sua irmã tem razão.
Se ao saber a verdade Cláudio mudar, é porque não a
merece. Conte só a ele, a família dele não precisa saber.
Casar-se-á no cartório, terá de aceitar os documentos, não
dá para esconder.
— Vou perguntar ao senhor Gustavo como é feito tudo
isso. Gustavo verificou os documentos, teve uma surpresa e
chegou à casa com a notícia,
— Vocês não sabem o que Gilberto fez. Deve ter enrolado
o cartório, fez o atestado de óbito no seu nome e deixou
como viva Aninha. Você, Ana, tem os documentos da mãe
das meninas. Quando passei a chácara e as casas para o
seu nome, o M foi abreviado, não prestei atenção se M era
de Maria ou Machado. Se você quiser legalizar, teremos de
contratar um bom advogado, será um processo longo,
teremos de ir muitas vezes às duas cidades, ter
testemunhas, e com Gilberto falecido é mais difícil.
— Deixemos como está. Não faz diferença - disse Ana,
achando graça.
— Por que será que papai fez isso? - indagou Lívia.
— Ele demorou a legalizar esses papéis - lembrou Ana. -
Disse na época que não tinha dinheiro e quando o fez deve
ter preferido continuar casado ou porque no seu emprego
não podia ser solteiro. Deve ter achado mais fácil.
— Bem, vamos esquecer então. Lívia pode casar-se sem
medo. Sua mãe, até no papel, é Ana. Zek, o cachorro,
morreu de velhice. Todos entristeceram. Lívia e Vanessa o
enterraram no jardim. Ana sentiu falta dele, estava sempre
com o cão, que a acompanhava por toda a chácara. Era um
animal querido. Lívia, pressionada por Vanessa, contou ao
noivo o que prometera não falar a ninguém.
Cláudio comentou:
— Que mulher fabulosa é a dona Ana!
O casamento foi marcado e Lívia queria pedir algo ao
Gustavo e não sabia como, ele percebeu e indagou:
— O que se passa menina?
— É que... - encabulou-se.
— Senhor Gustavo, ela quer lhe pedir algo e está
envergonhada - interferiu Vanessa.
Ele sorriu e a olhou com carinho.
— Queria que o senhor entrasse comigo na igreja. Devo-
lhe tanto, é como um pai para mim, o único que tive, não
sei se o senhor aceita... - pediu Lívia.
— Será um prazer! Entrarei com você na igreja com muito
orgulho. Obrigado por me comparar a um pai - ele se
emocionou.
E organizou uma grande festa, a recepção seria na
chácara.
O casamento foi lindo, Lívia ficou maravilhosa, Gustavo
entrou com ela na igreja. A festa foi um sucesso e Ana ficou
muito feliz.
Aninha e Gilberto assistiram, ela comentou:
— Logo, Gilberto, você voltará ao plano físico tendo nossa
filha por mãe.
A festa terminou tudo saiu a contento. Gustavo e Ana
ficaram um pouco na varanda, comentando sobre os
acontecimentos. Aninha e Gilberto se aproximaram deles.
Gustavo afirmou:
— Ana, não sei por que, mas acho que Gilberto e Aninha
vieram assistir ao casamento de Lívia, sinto-os contentes.
— Foi tudo tão lindo! Obrigada, querido!
— Obrigado, senhor Gustavo! - agradeceu Aninha.
— Deus lhe pague! - disse emocionado Gilberto.
Os pais biológicos de Lívia choraram emocionados. E o
companheiro de Ana sentia paz, recebeu as vibrações de
gratidão e também que era sincero o agradecimento de um
antigo desafeto.
E como isso faz bem!
11 - Vanessa
Vanessa sempre foi um encanto, estudiosa, aplicada,
delicada, amorosa. Fazia magistério, queria ser professora,
era seu sonho. Tinha muitas amigas a quem estava sempre
ajudando.
Frequentava o Centro Espírita com assiduidade, fazia
parte da mocidade e de um curso para evangelizar crianças.
Ganhou de Gustavo, quando fez dezesseis anos, um bonito
cavalo de raça e ela deu-lhe o nome de Astro; os dois se
entendiam. Ela o tratava com carinho e Astro era obediente.
Era difícil o dia em que não saíam para passear pelas
redondezas.
Vanessa começou a se interessar por um moço, Vinícius,
alto, forte, moreno, mais velho que ela uns quatro anos. Ele
não lhe dava atenção, era namorador, tinha muitas garotas
atrás dele. Mas a filha de Aninha não era de desistir
facilmente; pensou, pensou e resolveu lutar, queria-o,
achava que estava apaixonada. Começou a ir onde ele
estava, a olhá-lo, e todos perceberam. As amigas até que
tentaram aconselhá-la.
— Vanessa, Vinícius é namorador, mais velho, sai com as
garotas mais bonitas da cidade.
— Não insista - disse outra - ele nem percebe que você
existe.
— Acho que tenho de lutar pelo que quero! - Falou ela,
convicta.
Havia um clube na cidade onde a moçada ia muito,
Gustavo era sócio e Vanessa sempre estava lá com as
amigas. Numa tarde, vendo-o sozinho no bar do clube,
aproximou-se.
— Oi, está quente hoje, não?
— É... - respondeu ele, olhando para ela.
— Está sozinho? - indagou Vanessa, sabendo que era uma
pergunta tola, mas não sabia o que dizer.
— É óbvio! Vanessa, você é uma criança e não gosto de
meninas, prefiro mulheres feitas. Não estou a fim de
namorar sério e não quero complicações com o senhor
Gustavo. Por isso, menininha, largue do meu pé. Certo?
Saiu e ela ficou parada, como se tivesse tomado um
choque. Respirou fundo, olhou para os lados e sentiu alívio,
não tinha ninguém perto. Ofendida e com vontade de
chorar, foi ao banheiro, depois saiu para avisar as amigas
que ia embora. Voltou para casa aborrecida, sofria, amava-
o, ou melhor, pensava que estava enamorada. Foi só
trancada no seu quarto que chorou até dormir. Tinha amor-
próprio e resolveu não fazer mais nada para conquistá-lo,
não iria nem olhar mais para ele. Mas, disfarçadamente,
olhava-o. Vinícius estava sempre rindo ao lado de moças,
tinha muitos amigos.
Doze dias depois que isso aconteceu, numa tarde de
domingo, suas amigas foram ao clube. Como o almoço de
família ia atrasar, Vanessa combinou encontrar com elas lá.
Chegou e suas amigas não estavam no local combinado.
Escutando vozes na sala de jogos, foi para lá. Encontrou
Vinícius mais três amigos, e ele falou alto para os colegas.
— Lá vem o grude! Essa garota não se manca, está
sempre atrás de mim. Será que não percebe que eu não a
quero que a acho feia e sem graça? Que foi, garota?
Procurando-me?
Vanessa não respondeu, por um instante ficou parada,
virou as costas e ainda ouviu o comentário de um dos
mocinhos:
— Vinícius, por que a trata assim? Você não é grosseiro.
Nunca o vi tratar alguém desse jeito.
— Ora, ela me enerva...
Ela foi embora. No caminho da chácara lágrimas
escorreram pelo seu rosto.
Chegando, as enxugou, não queria que ninguém notasse
ou soubesse, disfarçou, tinha vontade de chorar, desabafar,
mas ali não tinha jeito. Todos, ao vê-la, quiseram saber por
que voltara cedo e ela falou:
— Minhas amigas devem ter ido a outro lugar, não
estavam no clube. Vou dar uma volta com Astro.
Cavalgando pôde chorar, estava humilhada, ferida; ele a
achava feia, sem graça, e isso lhe doía, ainda mais por ter
falado perto de outros. Naquele dia mesmo todos os amigos
saberiam e ririam dela.
Lívia e ela tinham muitos amigos, mas sabiam que o
preconceito existia. Sua mãe não era casada, embora o
senhor Gustavo a tratasse como esposa e a elas como
filhas, sabiam dos comentários:
"Não serve para esposa, a mãe não é casada..."
Talvez seja por isso que ele não a queria, mas podia ser
também por que a achasse feia. Sentiu muita raiva e
naquele momento resolveu que um dia iria dar o troco para
Vinícius. Iria de algum modo fazê-lo se apaixonar por ela e
depois iria desprezá-lo.
Tomou o rumo que ia para o campo, a estrada,
continuação da rua da chácara, que ia até uma cidadezinha
próxima e dava em muitas fazendas. Foi cavalgando
devagar, chorando e se afastando.
"Pronto! - resmungou. - Já chorei demais por aquele idiota,
que não perde por esperar!"
Continuou indo para frente, foi quando ela viu um moço
parado embaixo de uma árvore com o cavalo ao lado.
— Ei, Vanessa!
— Ernane! Que surpresa!
Apeou e foi cumprimentá-lo.
— Como você está bonita! - exclamou ele, gentilmente. -
Mas o que tem nos olhos?
— Acho que foi a poeira...
— Deve ter sido um motivo forte. Veio de longe! Não quer
ir lá em casa? Minhas tias ficariam contentes em vê-la -
convidou Ernane.
Montaram em seus cavalos e foram. Vanessa não estava
com vontade de voltar à chácara e conhecia as tias de
Ernane, eram amigas de sua mãe, espíritas, senhoras
bondosas que moravam numa casa grande nos arredores da
cidade vizinha. Eram as duas, Olga e Tereza, solteiras e
tinham pelo sobrinho um amor imenso. Ouviu comentário
de sua mãe que Ernane estava doente e que viera passar
uma temporada com as tias.
Foi recebida com alegria. Tomaram café.
— Vanessa - disse tia Olga - você avisou em casa que
vinha para cá?
— Não, é que fui cavalgando e... - respondeu a garota.
— Já viu que horas são? Sua mãe ficará preocupada.
Chegará lá de noite - falou tia Tereza.
Vanessa olhou as horas e levou um susto, se distraíra no
seu resmungo. Ernane teve uma ideia:
— Vanessa, telefone para sua mãe, diga que está aqui,
que se distraiu, e fique para dormir. Amanhã irá embora.
Não podemos deixá-la ir, ficará escuro logo.
— Faça isso, querida! - pediu tia Olga.
A mocinha telefonou.
— Mamãe, me distraí e tia Tereza e tia Olga querem que
eu durma aqui... A aula de amanhã não é importante. Está
bem!
Desligou o telefone e disse contente:
— Mamãe deixou! Fico! Não vou incomodar mesmo?
Conversaram animados e a mocinha esqueceu a mágoa.
Prestou atenção em Ernane: era loiro, bonito, olhar calmo e
muito educado. Mas estava magro e pálido.
— Vanessa - disse ele - se quiser, é claro, a ensinarei a
cavalgar com elegância.
— Queria ser uma pessoa fina, uma mulher interessante -
respondeu, pensando que se fosse daria em Vinicius a lição
que tanto queria.
— Poderei ensiná-la! Sabe jogar xadrez? Não? Dançar?
Pois eu a ensinarei. Não deve sentar-se assim, fique reta na
cadeira, cruze as pernas. Isso! Perfeito!
Ela gostou, seria de agora para frente diferente,
aprenderia ser uma mulher como Vinicius gostava e aí ele
iria ver só.
Já no outro dia aprendeu muitas coisas. Ernane deu a ela
uma lista de livros que deveria ler. Foi embora à tarde,
prometendo voltar no sábado para passar o final de
semana. O motorista a levou e foi buscá-la no domingo à
noite. Por sete finais de semana fez isso e nas férias de
julho passou na casa das tias de Ernane, que passaram a
serem tias dela também.
Ana soube por Lívia o que acontecera com a filha e
Vinícius, achou que era bom para ela ver pessoas
diferentes. Depois conhecia Olga e Tereza do Espiritismo,
eram amigas, e estas a convenceram a deixá-la com elas;
isso estava fazendo bem à mocinha.
Vanessa voltou das férias mudada, andando com
elegância, com roupas modernas e bonitas, cortou os
cabelos, aprendeu a maquiar-se, jogava xadrez, leu todos os
livros que Ernane recomendou, gostou, sempre teve muito
prazer em ler, aprendeu a dançar, a gostar de ver as
estrelas, sabia o nome das principais e qual a sua
localização no firmamento.
As amigas admiraram o novo visual.
— Como você está bem!
Viu Vinícius e nem olhou, virou mesmo as costas. Ele a
fitou, ela levantou a cabeça, nunca mais deixaria que a
humilhasse. Estava entusiasmada com o que Ernane lhe
ensinara, passou a sentar-se como ele aconselhara, usar o
perfume indicado.
— Campeonato de xadrez! - Comentou a turma eufórica.
O clube estava promovendo um campeonato e Vanessa se
inscreveu, Ernane a ensinara e ela aprendeu rápido. E
grande foi sua surpresa ao encontrar Vinícius, que também
se inscrevera. Houve o primeiro jogo, ela ganhou fácil. Havia
pessoas de todas as idades, mais homens; enquanto
esperava o término, colocaram música e um senhor,
conhecido como excelente dançarino, desafiou as mulheres:
— Quem sabe dançar para ser meu par?
Riram. Vanessa sempre gostou de dançar, e depois que
Ernane a ensinara o fazia bem. Levantou-se.
— Danço com o senhor!
E se saiu muito bem. A turma bateu palmas e o senhor
comentou:
— Puxa, menina, você dança mesmo!
— Estou só acompanhando o senhor, gosto de dançar -
respondeu ela.
Depois de umas três músicas, Vinícius aproximou-se do
casal e disse:
— Senhor, vou lhe tomar a garota! Permite?
Vanessa trocou de par, Vinicius dançava bem, foi fácil
acompanhá-lo. Mas não olhou para ele, ficou o tempo todo
de cabeça erguida, nariz para o alto. Quando terminou a
música, voltou para perto das amigas, que vieram para a
competição.
— Então, acabaram? Vamos embora?
Vinicius comentou:
— Não sabia que jogava bem xadrez nem que dançava...
— Por que tinha de saber? - falou calmamente.
— Virá ao baile sábado? - Perguntou ele.
— Não, tenho outro compromisso - respondeu, virando-se
para o outro lado.
No final de semana foi à casa das tias de Ernane, este
estava enfermo e ela lhe fez companhia.
— Vanessa - disse ele - tenho câncer, não tem cura, meu
pai quer que eu vá para os Estados Unidos, não quero. Pedi
a ele para ficar aqui com minhas tias, que desde que minha
mãe desencarnou são tudo para mim.
A mocinha queria-o bem, era um grande amigo, talvez
viesse a amá-lo, mas ele sempre com delicadeza cortou
qualquer aproximação nesse sentido. Ela ficou triste.
— Por que está triste? Não sabe que todos nós vamos
desencarnar? Não tenho medo dessa mudança! Tenho a
certeza de que ficarei bem no Plano Espiritual. Depois,
estaremos unidos pela nossa amizade. Não quero que sofra
por mim, não quero ser motivo de tristeza para ninguém -
falou ele tranquilamente.
— Desculpe-me, amigo! Você tem razão, a desencarnação
é para todos nós...
No terceiro jogo de xadrez, ganhou novamente e ficaram
no final comentando sobre as estrelas. Era o assunto
preferido de Ernane e por isso ela conhecia bem e
espontaneamente comentou sobre constelações, cometas e
quando se deu conta ela e Vinícius conversavam
animadamente. Ele entendia bem do assunto.
Vanessa saía pouco e nos finais de semana ia para a casa
das tias. Passou um mês e Ernane partiu com o pai para os
Estados Unidos, ia tentar um tratamento. As tias choraram e
ela ficou apreensiva e chorou também.
O campeonato estava em fase final. Vanessa ficou como
finalista, Vinícius também. Jogaram e empataram. Novos
jogos, ele tirou o primeiro lugar e ela, o segundo. Houve
festas, dançaram e ele começou a se interessar pela filha de
Ana, principalmente após um curso de psicologia, tinham as
mesmas ideias. Comentaram sobre o curso, quando falavam
sobre livros, nova coincidência: gostavam liam os mesmos
autores.
A mocinha o evitava e isso despertou mais seu interesse,
começou a cortejá-la.
— Você virá ao baile neste sábado? Não a entendo, gosta
tanto de dançar e não vem aos bailes - disse ele.
— Não sei, não estou com vontade - respondeu ela com
desdém.
E não foi, preferiu visitar as tias Olga e Tereza, elas
sentiam muito a ausência do sobrinho. Escreviam sempre. O
tratamento não deu certo e ele voltou para o Brasil, ficou na
casa do pai no Rio de Janeiro e as tias foram para lá.
Vanessa quis ir visitá-lo, mas ele pediu que não fosse,
estava muito doente. Ela entendeu.
Recebeu a notícia de sua desencarnação e chorou. Ana a
consolou:
— Minha filha, não deve agir assim. Entendemos bem
esse acontecimento. Vamos orar por Ernane, tenho a
certeza de que ele está agora com a mãe, ele tinha
conhecimentos e merecimentos, ficará bem no Plano
Espiritual. E lá, para os bons, é bem melhor do que aqui.
Pense nele tranquilo, feliz e sadio.
Vanessa se esforçou, e por insistência da mãe passou a
sair mais, também porque as tias estavam ainda no Rio de
Janeiro e não podia ir à casa delas. Encontrava com Vinicius
e ignorava-o. Foi a um baile, ele a convidou para dançar e a
elogiou:
— Você está bonita!
— Muda de opinião depressa ou costuma mentir? Há
pouco tempo me achava feia.
— Creio que não reparei bem. Você é linda!
Semanas depois ele pediu para namorá-la, ela disse que
não, o moço insistiu.
Vanessa costumava cavalgar por ali, só que agora se
vestia como uma amazona usava botas, chapéu, calças
compridas, roupas que ganhara de Ernane. Corria pelo
campo, Astro pulava obstáculos. Estava distraída e como de
costume parou, subiu no arreio, ficando de pé para alcançar
umas goiabas, colheu-as e se pôs a comer, sentando-se
novamente no arreio.
— Vanessa!
Ela virou e se defrontou com Vinícius observando-a. Ele
parara a caminhonete na estrada e viera até a cerca. Falou
preocupado:
— Que perigo! Você pode cair!
— Mas não caio, depois, se acontecer, do chão não passo!
- respondeu ela calmamente.
— Malcriada! Por que fez isso? Ficar de pé em cima do
cavalo! Exibida! - falou ele exaltado.
— Para quê? Para quem? Ora, Vinícius, vá encher outro!
Se quisesse me exibir daria um show para uma plateia e
cobraria ingresso. Nem sabia que estava aí me olhando.
Galopou em sentido contrário. Ele estava com um amigo,
que riu.
— Você, meu caro, deu uma mancada, Vanessa anda
muito bem a cavalo.
— Poderia ter caído, que imprudência! - exclamou Vinícius.
— Cuidado! Parece apaixonado! Ela esteve interessada em
você e a esnobou, agora é o contrário - comentou o amigo.
Ele nem respondeu.
Tiveram algumas discussões, mas acabaram por namorar.
Só que Vinicius era ciumento, às vezes agia com grosseria,
e os amigos não entendiam, e era assim só com ela. Se
Vanessa revidava, brigavam. Ele não gostava que a
namorada cavalgasse então ela diminuiu seus passeios a
cavalo para evitar desavenças, e quando o fazia ia
escondido dele.
Tias Olga e Tereza voltaram da viagem e Vanessa foi
visitá-las. Vinícius se aborreceu:
— Nunca fiquei sabendo por que você gosta tanto de ir lá.
— Gosto das duas, somos amigas.
A mocinha foi no sábado cedo, voltaria no domingo à
tarde. Mas, no sábado à tarde, Vinícius apareceu por lá. Foi
recebido bem, e gentilmente conversou com as duas
senhoras. De repente, ele viu o retrato de Ernane.
— Grande amigo! Sinto sua morte!
— Você o conhecia? - indagou Vanessa, espantada.
— Estudamos juntos, moramos na mesma república,
éramos confidentes, aprendi a jogar xadrez com Ernane -
respondeu ele, suspirando.
— Ele esteve aqui doente. Você não veio vê-lo?
— Claro que sim! Nas terças-feiras vinha jogar com ele; só
não vim nas férias de julho porque ele me pediu que não
viesse.
Vinicius se emocionou com as lembranças e ela ficou
pasmada. Tia Olga o chamou para ir à cozinha.
Compreendeu tudo. Ernane sabia de seu amor por Vinicius e
resolveu ajudá-la, até o perfume indicado era o preferido
dele, danças, xadrez, livros.
Ernane, conhecendo o amigo, sabendo do que ele
gostava, fez com que ela aprendesse a gostar das mesmas
coisas para conquistá-lo. Ele foi convidado a pernoitar,
aceitou, e no domingo foram embora.
Namoraram por meses, brigaram muito. Ele paquerava
outras garotas e às vezes até perto dela. No final do ano, a
escola de Vanessa organizou uma excursão, iriam passar
oito dias no litoral. Gustavo pagou tudo e ela estava
radiante.
— Você não vai! - afirmou Vinícius.
— Claro que vou! Não conheço o mar, sonho com essa
viagem.
— Um dia, quando nos casarmos, levarei você à praia.
Com sua turma você não vai!
Discutiram por dias e ele deu um ultimato:
— Se você for, o namoro está terminado.
Ela ficou indecisa, mas já estava tudo acertado, senhor
Gustavo lhe dera tudo com prazer, Ana estava contente por
ela ir viajar. As amigas opinaram:
— Não entendo por que Vinícius age assim com você.
Todos gostam dele como amigo.
— Você deve ir, brigam, depois voltam.
Vanessa foi, esqueceu as brigas e aproveitou a viagem,
que foi maravilhosa. Quando chegou, surpresa, ele estava
com outra namorada. A filha de Ana chegou à conclusão de
que foi o melhor e que deveria esquecê-lo.
Dias depois, cavalgando por ali, perto da chácara,
encontrou com Adriano. Conhecia-o, ele estudava em outra
cidade, estava no último ano de direito, morava num sítio ali
perto. As amigas diziam que ele estava interessado nela,
mas, como só tinha olhos para Vinícius, não lhe deu
atenção. Observou o rapaz, não era bonito, mas inteligente,
educado e, como ela, gostava de animais. Conversaram
muito, combinaram cavalgar no dia seguinte. E o fizeram
por toda a semana. Gustavo os encontrou, parou,
cumprimentou Adriano. Quando Vanessa retornou a casa,
ele perguntou:
— Você está namorando Adriano?
— Não senhor, nos encontramos para cavalgar -
respondeu a mocinha.
— Gosto dele! Quando ele se formar vou convidá-lo para
trabalhar na fábrica. Ele parece interessado em você.
Adriano é ouro enquanto o outro é lata.
E saiu.
Ana, que escutava, completou:
— Gustavo não gosta de Vinícius. Ele tem a estranha
mania de olhar para os olhos das pessoas e sentir quem
elas são.
As fofocas eram muitas. As amigas comentavam, Vinícius
falava dela, que era bobinha, indecisa, que só pensava em
namorá-la novamente se ela pedisse desculpas etc.
— Nem vou me desculpar, como não aceito as desculpas
dele - afirmou.
Com raiva, Vanessa aceitou namorar Adriano, logo viu a
diferença, ele a tratava como se fosse alguém muito
importante. Com o retorno às aulas, ele foi estudar e voltou
na Semana Santa. Cavalgaram juntos a tarde toda. À noite,
quando ele veio buscá-la, estava com o rosto marcado.
— O que aconteceu? - perguntou ela.
— Acho que você vai saber mesmo. Vinicius e eu
brigamos.
Vanessa ficou revoltada. Adriano era de estatura média;
Vinícius era alto, forte e certamente deu uma de valentão
querendo resolver na força uma frustração, nunca pensou
que ela iria namorar outro.
— Ele me agrediu e... - falou Adriano, querendo explicar.
Resolveram esquecer o incidente desagradável. Adriano
voltou para estudar.
Vinícius começou assediá-la, queria voltar a namorá-la.
Uma noite, foi à chácara, sentaram-se na varanda,
começaram a discutir e ele acabou por gritar. Gustavo
interferiu:
— Olhe aqui, mocinho, não quero que trate Vanessa
assim. Vá gritar na sua casa.
Ela está namorando outro. Pare de assediá-la.
Ele não respondeu e foi embora. Quando ela entrou,
escutou Gustavo falando com o pai de Vinícius ao telefone:
— Seu filho está se tornando inconveniente. Está
perseguindo minha enteada e gostaria que o aconselhasse
a parar.
Depois que desligou, falou à mocinha:
— Sabe o que o pai dele me respondeu? Que pensava que
era você que ficava atrás do filho. Mas disse que vai falar
com ele. Vanessa, não quero interferir, mas aconselho:
pense bem! Será que esse moço grosseiro é o melhor para
você?
Ela foi para o quarto. Aquela noite teve um sonho tão real
que pareceu verdadeiro. Era casada com Vinícius, tinha
medo dele, conheceu Ernane e apaixonou-se, traiu o
marido, que descobriu e foi matar seu amante, que acabou
assassinando seu esposo. Ernane foi preso. Ela já tinha dois
filhos do esposo, esperava um do amante. Foi desprezada,
teria passado fome se não fosse pela ajuda de Adriano, um
jovem professor. Depois de um tempo, ele se declarou,
levou-a para morar com ele e a ajudou a criar os filhos como
se fossem dele.
Acordou aflita e chorou muito.
"O que faço?" E viu Aninha ao lado de sua cama lhe
sorrindo.
"Minha filha, aconselhe-se com Ana."
Não dormiu mais, ficou pensando, levantou-se cedo,
queria conversar com a mãe, mas foi só após o almoço que
conseguiu. Contou-lhe todo o sonho. Ana escutou com
atenção, pensou um pouco e aconselhou:
— Vanessa, sonhos têm muitos significados. Pode ser que
este seja uma recordação do passado. Mas nem sempre
estivemos envolvidos com pessoas que encontramos nesta
encarnação. Pode ser que por esses problemas tenha
sonhado, confundindo tudo, romanceando ou fazendo uma
história para os três. Minha filha temos oportunidade pela
reencarnação de recomeçar, certo de que esse recomeço
pode ser como reparação, reconciliação, mas antes de tudo
é um aprendizado. Temos por obrigação aprender, melhorar
progredir e aproveitar essa oportunidade para estarmos
bem e sermos felizes.
Conheci nesta encarnação dois opostos. Gilberto me
lembra Vinicius na agressividade e Adriano, Gustavo. Não
sei se já estive junto de Gilberto em outras encarnações. Se
estive ou se deveria fazer algo para ele, nada adiantou, não
consegui mudá-lo. Talvez na minha passividade permiti que
ele continuasse agindo errado. Você disse que no seu sonho
você temia o esposo, talvez porque ele era agressivo e mau.
Jovem, sonhadora, não resistiu à paixão e acabou tendo
amante. Ernane nesta vida desencarnou jovem, talvez
porque tenha matado na outra. Mas se isso aconteceu, os
dois se reconciliaram, tornando-se amigos.
— Mamãe, se traí Vinícius, talvez deva ficar com ele...
— Será, filha, que não irá traí-lo de novo? Aguentará se
ele a trair, agredir, humilhá-la como ele tem feito? Vinícius
não é mau, só que não é par para você. Afinamos com
algumas pessoas e com outras não. Gustavo não deu certo
com Lorena e comigo sim. Você será feliz com alguém que
lhe dê segurança, amor e que combine para viver sem
brigas. Não pense, se iludindo, que poderá mudar Vinícius. E
difícil mudar alguém, é melhor se entrosar com um que
combine com seu jeito de ser. Muitas pessoas vivem bem
com brigas e ciúmes, você não, gosta de harmonia. Adriano
a ama, sim, basta olhar para ele para perceber. E se seu
sonho foi real, ele não teve nada com as desavenças,
ajudou-a e veio enamorar-se de você, ofereceu um lar
honesto e criou seus filhos. Agora, novamente a ama...
— Será que Ernane queria que eu ficasse com Vinícius? -
Perguntou a mocinha.
— Ele só pensou em ajudá-la ao saber que era apaixonada
por ele - respondeu Ana.
— Estou dividida!
— Que não seja pelo passado. Este ficou para trás.
Escolhemos nosso futuro com as decisões do presente.
Pense bem, filha, com quem você gostaria de viver até a
velhice e quem seria bom pai para seus filhos.
Dias depois, tia Olga telefonou para que Vanessa fosse lá.
Estavam alegres, receberam pela psicografia uma
mensagem de Ernane.
Vanessa leu contente; o amigo contava onde estava,
descreveu uma linda colônia. Junto da mãe estava sadio e
feliz.
— Esta é para você - disse tia Tereza, entregando-lhe um
papel. Era um bilhete:

"Querida amiga Vanessa. Seu sonho mostrou parte de


uma encarnação que tivemos juntos. Erramos, sofremos e
pagamos por isso. Suas mães Ana têm razão, o afeto
sincero de Adriano lhe fará feliz. Vinicius nos perdoou, mas
no fundo ainda tem mágoas, não as alimente. Ele
encontrará o seu verdadeiro amor.”
Seja feliz!
Ernane

— Veja Vanessa, o médium se enganou no plural: suas


mães - observou tia Olga.
— É linda! Que mensagem verdadeira! - exclamou a
mocinha, compreendendo bem, não era engano.
E decidiu, ficaria com Adriano. Telefonou para Vinícius
encontrar com ela e foi clara:
— Vinicius, amo o Adriano, quero continuar com ele, como
também quero ser sua amiga. Ele virou as costas e a deixou
sozinha. Mas, namorador como era logo estava com outra.
Realmente Vanessa amava Adriano; conhecendo-o
melhor, teve certeza de que ele era seu par ideal;
combinavam, respeitavam-se e ele a amava muito.
Firmaram o namoro; no final do ano, ambos se formaram:
ela professora e ele advogado, e ele foi trabalhar na fábrica
e tornou-se grande amigo de Júnior. Ficaram noivos.
A mocinha foi lecionar, realizando seu sonho, como
também dava o curso de Evangelização Infantil. Adriano
tinha outra religião, mas, como era curioso, foi indagando
sobre o Espiritismo, lendo livros, e a convite dela foi
algumas vezes ao Centro Espírita, tornando-se por opção
espírita. Marcaram o casamento; a filha de Ana contou toda
a sua história ao noivo.
— Por isso que Ernane pôs no plural: suas mães. Que sorte
a sua de ter duas mães maravilhosas.
Os dois reuniram amigos do Centro Espírita na véspera do
casamento para uma oração. Foi muito bonito, leu-se um
texto do Evangelho e receberam vibrações de carinho de
encarnados e desencarnados.
O casamento foi na chácara. Gustavo encaminhou-a até a
mesa do juiz; casaram-se só no civil, eles não quiseram
tomar a bênção de uma igreja que não frequentavam.
A noiva estava linda, Ana chorou emocionada. E os dois
viveram bem, tiveram uma união feliz e três filhos.
12 - Ausência
A chácara estava sempre animada. As crianças adoravam
ir lá e domingo era sagrado: chegavam cedo e só iam
embora à noitinha. Davam-se bem, os filhos de Júnior
chamavam Ana de vovó, assim como os de Lívia e Vanessa
tratavam Gustavo de vovô.
Os donos da chácara nunca mais viajaram. Ela recebeu
algumas cartas de familiares, que respondeu
educadamente, ignorando as indiretas para visitá-los. E as
notícias acabaram escasseando.
Ana não quis mais juntar dinheiro, gastava-o todo com os
netos. Gustavo passou a ir com ela ao Centro Espírita,
gostava de estudar e ajudava muito, contribuindo com
dinheiro para assistência social. Ela costurava, bordava para
o bazar, que vendia as peças para arrecadar dinheiro e
convertê-lo em alimentos; visitava famílias, ajudando em
casos de doença. Viviam tranquilos. Raramente discutiam, e
quando isso acontecia era por bobagens, e acabavam rindo.
Luciana, Lívia e Vanessa se tornaram grandes amigas.
Frequentavam muito a casa uma da outra, as crianças se
davam bem. Júnior e a esposa começaram a se interessar
pelo Espiritismo, começando por ler alguns livros e depois a
frequentar o Centro Espírita. A nora de Gustavo era uma
pessoa especial, delicada, sincera, de família rica, mas
simples e prestativa.
— Quero trabalhar também! - disse ela a Júnior, que no
começo era contra. - Lívia ajuda Cláudio, Vanessa leciona.
As crianças - que eram três - já estão grandinhas, posso
bem sair de casa para trabalhar.
— Vá ao Centro Espírita com Vanessa - disse Júnior.
— Mas já estou indo...
— Por que não começa a fazer algo na fábrica? Aprenda
pelas tarefas simples para depois fazer com conhecimento
algo lá dentro de que goste - opinou Ana.
— Quero! Posso ir, Júnior? - pediu Luciana.
— Luciana - disse Gustavo - um casal, para trabalhar no
mesmo local, precisa estar consciente de que não é fácil
mais essa convivência. No trabalho há muitos problemas e
um pode se doer pelo outro ou discordar indevidamente por
ser mais íntimo. Depois, ficarão todo o tempo juntos, pense
bem.
— Senhor Gustavo - falou Lívia - Cláudio e eu trabalhamos
juntos desde que nos casamos, embora eu dedique ao
trabalho somente a parte da tarde, quando as crianças
estão na escola. O senhor tem razão. Muitas vezes Cláudio
não foi tão delicado e eu, por outras, já impliquei com o
modo de ele proceder. Após algumas discussões, preferimos
o diálogo franco e entramos num acordo.
— Estou pensando em colocar uma pessoa para ajudar o
pessoal, nossos empregados, nos problemas diários, como
também alguém de confiança para dirigir nossa creche -
falou Gustavo.
— Aceito qualquer um! - entusiasmou-se Luciana.
— Papai - falou Júnior - estava pensando em contratar
alguém formado em assistência social para atender os
funcionários. Eles não estariam à vontade com Luciana. E na
creche tem dona Isaura e...
— Isaura deve se aposentar. Há queixas contra ela, é
muito rígida, quer muita ordem e a garotada precisa de
disciplina, mas não tanto - comentou Gustavo.
— Gosto de crianças - falou Luciana - talvez não seja bem
isso que queira.
— Não cuidará só de crianças - expressou Gustavo. -
Tomará conta de tudo e pode crer, minha nora, os
empregados da creche lhe darão mais trabalho. Depois,
quero que desenvolva um trabalho junto aos empregados
para que todos mantenham os filhos na escola. E aproveito
para convidar Vanessa para que juntas abram um curso
para alfabetizar adultos, escola para nossos empregados.
Não quero analfabetos na fábrica.
— Que bonito! Gustavo, você é o máximo! - exclamou Ana
em voz alta.
Todos riram.
Vanessa deixou a escola onde lecionava e, com Luciana,
organizou o projeto na fábrica. Não só deram o curso para
os empregados, mas para todos aqueles que queriam.
As salas de aulas encheram, novos professores foram
contratados e tudo custeado pela fábrica. Vanessa ficou
radiante.
— André Luiz, se desobedecer ficará de castigo - advertiu
Lívia.
— Pode deixar que tomo conta dele - disse Ana.
— Mamãe - falou Lívia - Cláudio e eu decidimos ser firmes
na educação de André Luiz. Juliana é tão meiga, mas ele
necessita de mais pulso.
Lívia trouxera os dois filhos, iriam ela e o marido sair. Isto
acontecia sempre, as três costumavam deixar os filhos na
chácara para passear e eles gostavam muito. Ana
reconheceu que a filha tinha razão, o garoto era um tanto
rebelde. André Luiz recebeu esse nome em homenagem ao
escritor desencarnado espírita, que já editara os primeiros
livros e dos quais todos eram fãs.
A filha saiu. Ana sentou-se na varanda e pensava no
assunto, quando o menino aproximou-se.
— Vovó, a senhora está triste? Alguém lhe bateu?
— Me bater? De onde tirou essa ideia, André Luiz?
— Bem... é que esta noite sonhei que um homem batia na
senhora. E parecia que era eu, mas não era, foi um homem.
Acordei aborrecido. Resolvi defendê-la, se alguém lhe bater,
esmurro com força. Não deixo, vovó! Não mesmo!
Ana abraçou o neto. André Luiz era muito parecido
fisicamente com Lívia, mas ela se assemelhava com
Gilberto. Também já percebera que ele era arisco com
Gustavo.
Ficava sempre a olhá-lo, enquanto os outros netos corriam
para abraçar o avô, que fazia de tudo para agradá-los.
Gustavo tinha que chamá-lo, aí ele se alegrava e ia
correndo.
— Obrigada, meu neto querido, é bom saber que tenho
você para me defender. Vovó o ama. Esqueça esse sonho!
Sonhos podem não ter significado e só uns, raros, têm
alguma ligação com nosso passado.
André Luiz fora Gilberto e quando ele estava no Plano
Espiritual, socorrido, sentira muito por ter tratado as duas
Anas tão mal. Isso o marcou e desejou ser bom para ela,
que seria sua avó. E realmente era o neto que estava
sempre ao seu lado e perguntava sempre:
"Precisa de algo, vovó? Está triste? Não deixo ninguém lhe
bater!"
Riam ao escutar esta última frase.
"Ninguém bate na vovó, André Luiz. Por que diz isso?"
"Bem, respondia, podem querer bater, mas eu não deixo!"
Ana o compreendia.
Gustavo raramente viajava, quando fazia era para
apaziguar os filhos com a ex-esposa ou para ajudá-los nos
negócios.
Estavam reunidos na sala, era noite, estava muito frio, as
crianças foram para o quarto de brinquedos. Vieram ver
Gustavo, que regressara pela tarde, fora ver os filhos e
desta vez demorou mais dias.
— Papai, mamãe me ligou, conversou comigo por tempo.
Quer dinheiro.
— Senhor Gustavo - interferiu Luciana - não quero que
Júnior dê dinheiro à mãe. Por favor, convença-o!
— Papai - continuou Júnior - mamãe me pediu uma
quantia razoável e me disse que é pouco. Queixou-se do
senhor, que a enganou, impedindo por documentos de
vender os bens. Xingou Paulo Sérgio por não lhe dar o que
deve como também reclamou de Áurea, que não a defende.
Gustavo passou a mão no queixo, todos na sala o
olhavam, suspirou:
— Júnior, meu filho, você está bem casado. Luciana
sempre foi sensata e deve prestar mais atenção em sua
opinião. Já recebeu alguma visita de seus irmãos ou de sua
mãe nesse tempo em que mora aqui?
— Não, senhor - respondeu. - Eles dizem que sou louco
por morar numa cidade pequena. Não vieram.
— Sua mãe já lhe telefonou para saber se estava bem?
— Não, uma vez ela me disse que o senhor tomaria conta
de mim.
— Filho, para todos, até para alguns amigos, eu o
prejudiquei quando reparti nossas finanças. Mesmo sendo
só sua essa fábrica, ficou com menos que os outros dois.
Injustiça? Lorena é uma pessoa inteligente, entendeu isso. O
que ela fez para defendê-lo? Nada! Meu filho estive esses
dias na fábrica, com eles, as finanças estão bem, mas estão
com muitos problemas. Paulo Sérgio só dá à sua mãe o que
ela tem direito. Ele me disse que não é como eu, que
sempre fui bobo e dei tudo que ela queria que a acostumei
mal. Lorena gasta muito, é com extravagâncias, festas,
viagens, etc. Se ela precisasse de dinheiro por motivos
justos, não iria pedir a você, porque eu a acudiria. Você,
filho, tem se esforçado, trabalha muito, eu tenho orgulho
disso, irá ser o melhor presidente dessa fábrica. Não duvido!
Se você atender sua mãe uma vez, ela, insaciável, irá
querer sempre. Sua mãe não tem limites. Atenda sua
esposa, diga a ela que não e deixe claro que tem de viver
com o que recebe que sabemos ser muito.
Gustavo fez uma pausa, suspirou triste e continuou:
— Paulo Sérgio está roubando sua irmã e sua mãe. Ele é
trabalhador, esperto, inteligente, mas não tem vocação
para trabalhar para os outros. Vi isso conversei com ele,
argumentou:
"Papai, Áurea só vem aqui para me arrumar confusão,
mamãe é uma devassa que só pensa em gastar. Ainda bem
que o senhor fez tudo bem feito, se não ela já teria vendido
tudo e estaria na miséria. Papai estou cansado disso,
mamãe só vem aqui para me pedir dinheiro, não é como o
senhor, que vem nos ajudar. Só estou pegando o que é
justo.
“Em algumas transações separo o meu.”
Tentei ainda persuadi-lo a agir com honestidade, aí ele me
colocou no meu lugar, eu não era mais nada ali dentro.
Procurei Áurea, nada adiantou, ela está brigando muito com
o marido. Insisti com ela para que trabalhasse, cuidasse do
que era dela, e sabem vocês o que minha filha me
respondeu?
"Papai, eu trabalhar? Nunca, meu marido é rico, tenho o
esperto do meu irmão para fazê-lo por mim. Que ele
trabalhe e eu receba!"
Gustavo parou de falar, o silêncio na sala era total. Ana
pegou sua mão. Júnior perguntou a ela:
— Dona Ana, o que a senhora acha disso tudo?
— Acho Júnior, que seu pai é o homem mais maravilhoso
que existe e que ele o ama muito. E se sua mãe vier
realmente a precisar, você deve ajudá-la, mas agora
auxiliará muito mais negando.
— Senhor Gustavo, eu gosto muito do senhor e o admiro -
disse Vanessa, levantando-se do seu lugar e o abraçando.
— Eu - exclamou Luciana - tenho o melhor sogro do
mundo. Somos, sou feliz aqui nesta cidade pequena, tendo
vocês por amigos. Só discordo senhor Gustavo, de uma
coisa: antes podia ser que Júnior tenha ficado com menos,
mas agora creio que não, a fábrica cresceu muito.
— Papai, hoje o compreendo e sou grato. Conhece bem
seus filhos. Deu a cada um o que lhe era devido. Obrigado!
– falou Júnior, emocionado.
— Sinto que é sincero e me alegro. Você, filho, terá logo a
igualdade financeira de seus irmãos e mais paz e sossego.
Tempos depois Gustavo se queixou de dores. Estava tendo
má digestão, foi ao médico, que lhe pediu para consultar
um especialista. Júnior foi com ele à capital e uma cirurgia
foi marcada. Ana foi com ele, operaram-no. Ela ficou o
tempo todo ao seu lado. Disseram que era um tumor no
intestino e que ele ficaria bem. Ela desconfiou e pediu que
Júnior dissesse a verdade.
— Papai tem câncer, está em estado avançado.
— Ele vai morrer... - balbuciou trêmula.
— Todos nós vamos...
Voltaram para casa, ele se sentiu melhor, chamou a
companheira e o filho.
— O que tenho? Podem dizer! É grave?
— Não, papai, claro que não! Ficará bom e...
— Está bem, não precisam dizer mais nada. Filho acho que
não vou mais à fábrica, vou me aposentar. Se tiver alguma
dúvida quanto à administração, tire logo. Cuide de tudo!
Os dois entenderam que ele sabia, preferiu fingir que
acreditava neles. E não se tocou mais no assunto.
— Dona Ana - disse Júnior - vou arrumar outra empregada,
Ruth poderá ajudá-la a cuidar de papai.
Assim o fez, arrumou outra empregada e logo depois mais
outra para ir no domingo, folga desta. Ruth passou a ajudá-
la com muita dedicação. Gustavo piorou. O grupo espírita
que visitava doentes vinha sempre vê-lo, ele gostava, orava
junto e recebia o passe.
Um dia, com todos reunidos ele pediu:
— Quero pedir a vocês um imenso favor. Não quero voltar
ao hospital. Quero ficar aqui...
— Mas papai...
— Por favor, filho, faça isso por mim.
— Faço! - afirmou Júnior.
— Obrigado!
Júnior contratou um enfermeiro, depois mais outro. O
quarto transformou-se, havia de tudo para atendê-lo. Ana
deixou a cama só para ele, comprou outra para ela, que foi
colocada ao lado da dele. Já não trocava de roupa para
deitar-se, só descansava quando ele dormia.
A enfermidade piorou e ele passou a sentir muitas dores.
Ana sofria por ele, ficava ao seu lado o tempo todo.
— Ana - disse ele - você sempre me agradeceu, agora sou
eu a agradecê-la. Está fazendo muito por mim. Não sei se
faz só por gratidão, você nunca me disse que me ama. Não
sei por que, minha querida, mas meu coração quer acreditar
que sou amado.
Ela carinhosamente segurou sua mão, pensou:
"Sempre temi dizer a ele que o amo. Um medo bobo me
impede de falar, é um temor que parece que, se eu disser,
ele me abandonará. E agora? Irá ele me abandonar ao
desencarnar? Não! Tenho a certeza de que só se ausentará."
— Gustavo...
— Dona Ana! - Ruth entrou no quarto afobada e sem bater
na porta. - Os filhos do senhor Gustavo chegaram...
Ela tinha ouvido barulho de carro, reconheceu ser o de
Júnior, mas este estava sempre na chácara; também tinha
ouvido barulho de outros veículos, mas não deu atenção.
— Meus filhos?! - indagou Gustavo, alegre.
— Sim, senhor - respondeu Ruth. - O filho, a filha e os
netos.
— Vou recebê-los e acompanhá-los até aqui - disse Ana.
Ela foi à sala e escutou:
— E inacreditável! - exclamou Paulo Sérgio. - Papai mora
aqui!
— Vou acabar acreditando em Júnior, que essa dona Ana
não é interesseira - falou Áurea.
— Boa tarde! - disse a anfitriã. - Sejam bem-vindos ao
nosso lar. - Ia dizer humilde, mas não o era para ela nem
para Gustavo. Simples, talvez, mas para eles era um lar, e
isso era importante e se orgulhavam disso.
Cumprimentaram-na polidamente. Áurea observou-a bem.
Um dos garotos, já rapazinho, disse:
— Queria ver meu avô.
— Claro, por favor...
O doente alegrou-se, abraçaram-se, conversaram...
— Papai - disse Paulo Sérgio - estou com uma dificuldade
e...
Júnior o olhou advertindo, mas o pai respondeu:
— Paulo Sérgio é só fazer isso... - finalizou dizendo: -
Quando você tiver dúvida, peça a opinião de Júnior. Duas
cabeças pensam melhor que uma. Vocês devem ser mais
amigos e trocar ideias.
Ana ficou ao lado dele quieta. Depois de algum tempo de
conversa, ofereceu para hospedá-los.
— Obrigada, dona Ana - respondeu Áurea - já nos
hospedamos na casa de Júnior. Amanhã iremos embora.
— Vamos então tomar um café - convidou-os.
Foram, sentaram-se à mesa e saborearam o café que Ruth
tinha preparado. Paulo Sérgio comentou com o irmão:
— Júnior, papai está mal, deveria ter nos avisado.
— Mais ainda? - respondeu com uma pergunta, deixando-
o sem graça.
— É triste vê-lo assim. Não seria melhor levá-lo ao
hospital? - Indagou Áurea.
— Já lhes expliquei que papai não quer - respondeu Júnior.
Voltaram ao quarto, ficaram até perceber que o pai estava
cansado. Voltaram no outro dia, almoçaram na chácara.
Paulo Sérgio, ao se despedir de Ana, falou:
— Tinha ideia de levar papai para um hospital, mas mudei
de opinião, ele está bem tratado aqui.
Voltaram mais vezes, não juntos. Gustavo se alegrava
com as visitas, mas piorava e as dores eram alucinantes. O
médico os advertiu de que ele estava em fase terminal. Ana
só saía de perto dele para ir ao banheiro.
— Quero Ana, que depois você se cuide - pediu o enfermo.
Piorou tanto que quase não conseguia mais falar, se
tranquilizou um pouquinho, se esforçou, olhou para ela e
disse:
— Minha querida...
Não falou mais e horas depois desencarnou.
Os amigos espíritas vieram e oraram por ele, levaram-no
para a fábrica, foi velado lá. Ana não deixou colocar velas e
não quis flores, mas muitas pessoas as levaram e o
ambiente ficou florido. Muita gente compareceu,
empregados, familiares, todos orando, sentiram realmente a
perda daquele homem justo e bondoso.
Ana sentou-se ao lado do caixão, não chorou se esforçava
tentando ajudar Gustavo pedia aos bons espíritos para
socorrê-lo e que ele dormisse. Não queria chorar para não
perturbá-lo. Ele estava se ausentando. Sabia que a ausência
dói, a falta física é dolorosa, mas pior é achar que a morte
do corpo é separação. Tinha a certeza de que se
reencontrariam.
Os familiares de Gustavo chegaram, cumprimentaram-na.
Viu Lorena, estava vestida luxuosamente, chegou perto do
caixão, tirou um lenço e enxugou umas lágrimas. Disse a
Paulo Sérgio:
— Tire esta mulher daqui, sou a esposa legítima.
— Mamãe, por favor, não crie confusão, a senhora é a ex!
- pediu Paulo Sérgio.
— Mamãe, a senhora prometeu. Por favor, comporte-se! -
Júnior disse com firmeza.
Ana escutou, nada respondeu, continuou ali a receber os
pêsames. Após o enterro, os familiares dele voltaram para a
cidade onde moravam, nem passaram na casa de Júnior,
que acompanhou Ana até a chácara. Ela estava cansada, o
enteado lhe deu um calmante e ela dormiu por horas.
Acordou e ouviu Ruth na cozinha, foi para lá.
— Ruth, temos de nos organizar. A vida continua, embora
tenha mudado. Nada mais será como antes. Sentirei muito a
falta de Gustavo, mas temos de ajudá-lo. Vou hoje à reunião
do Centro Espírita, quero agradecer aos amigos e pedir que
o ajudem a adaptar-se no plano espiritual.
Agradecer o auxílio que recebemos é gratificante. A
gratidão tem fluidos balsâmicos que envolvem
beneficiadores e beneficiados.
No outro dia, Ana reuniu todos na chácara.
— Júnior, quero que cuide da demissão dos enfermeiros,
não iremos mais precisar deles.
— Vou fazer isso hoje mesmo - respondeu o moço. - Vou
indenizá-los. Quero também a opinião da senhora sobre um
assunto. Queria que Félix, o filho de Nicanor, viesse morar
na casa de Ruth, vou aumentá-la, e também que a outra
empregada continuasse aqui. Ruth poderá ter um quarto
aqui, ficaremos mais tranquilos com vocês duas juntas.
Bem, a não ser que a senhora venha morar com um de
nós...
— Você me conhece, Júnior, disse primeiro a alternativa
que eu escolheria. Sim, aceito sua opinião. Félix substitui
senhor Nicanor desde que ele se aposentou. Mora numa
casa simples ficará contente de residir aqui, é um bom
empregado. Pode aumentar a casa. Ruth já estava dormindo
aqui desde que Gustavo piorou, agora deve ficar
definitivamente. Vamos aproveitar que estamos aqui
reunidos para resolvermos o que fazer com os pertences do
meu querido companheiro. Vou hoje mesmo modificar o
quarto, mandarei os remédios, tudo que usamos na
enfermidade dele para o hospital.
Separaram todos os objetos dele. Júnior levou muitas
coisas para a fábrica, o resto seria doado, ficando só com
alguns como lembrança. Foram livros, relógio, discos, pouca
coisa, mas de significado carinhoso.
No outro dia tudo estava modificado. Ana recebeu muitas
visitas e veio, a saber, o tanto que seu companheiro
ajudava financeiramente a muitas entidades filantrópicas.
Ela às vezes chorava, a saudade doía, mas orava pedindo
ao Pai forças e consolo, queria que Gustavo a sentisse bem
e conformada. Incentivava-o com pensamentos otimistas:
"Fique bem! Alegre-se, aceite o que lhe é oferecido!"
Embora a ausência doesse, se consolava pensando que
um dia iria desencarnar e esperaria esse acontecimento
com paciência, e então estariam novamente juntos.
— Dona Ana - disse Ruth - a senhora está se esforçando
bastante. A senhora é espírita! Ana sorriu, era para ela o
maior elogio que recebera. Respondeu:
— Obrigada, Ruth!
Compreendeu que muitos se dizem espíritas, mas será
que são realmente? E ter escutado isso de Ruth, seguidora
da Doutrina há tantos anos, a motivou. Entendeu que são
nas provas difíceis que demonstramos ser o que nos
propomos. Era espírita, e como isso lhe fazia bem!
Ela e Ruth decidiram que a outra empregada viria aos
sábados, domingos e às segundas-feiras; ela aceitou
contente, teria mais tempo para a casa. Trabalharia quando
a casa estivesse com visitas, pois todos continuavam a vir
nos finais de semana. Félix mudou, tinha muitos filhos, e a
chácara continuou sendo alegrada por muitas crianças e
jovens. Todas as festas da família eram lá, como também
era ponto de excursão de creches e de escolas: iam à
chácara e eram recebidos com doces e bolos. A criançada
da vizinhança estava sempre por lá a brincar e saborear as
frutas do bem cuidado pomar.
— Ruth - disse Júnior - estive pensando que vocês duas
precisam descansar, viajar...
— Uns amigos vão numa excursão visitar, conhecer o
Chico Xavier, queria ir... - respondeu Ruth, contente.
— Pois vão! Está decidido! Organize tudo - afirmou Júnior.
— Obrigada, Júnior, mas não quero ir. Ruth irá, mas prefiro
ficar aqui, não gosto de viajar - disse Ana.
Insistiram, mas ela não queria. Júnior então disse a Ruth:
— Vá você, pago tudo!
— Mas eu tenho dinheiro.
— Compre com ele roupas novas, quero que viaje bem
vestida - falou o moço sorrindo.
E Ruth foi realizar seu sonho de conhecer Chico Xavier,
que despontava como médium dentro do Espiritismo no
Brasil.
Ana sempre sentiu muita saudade de Gustavo. Mas
sempre teve o cuidado de não perturbá-lo com seu lamento,
queria-o bem.
Quando queremos bem uma pessoa, desejamos que seja
feliz. Devemos compreender que o desespero só a prejudica
e nos esforçar para nos mantermos em equilíbrio, com bons
pensamentos. Depois, ela passou a se dedicar a outros que
sofriam.
Quando fazemos isso, nosso fardo fica leve, o tempo
passa mais rápido, suavizando dores, porque nos
esquecemos das nossas quando acudimos os outros, tudo
fica mais fácil. É uma terapia muito boa auxiliar o próximo.
Ana passou a se dedicar mais ainda à Doutrina,
trabalhando muito na assistência social.
Júnior passou a cuidar das finanças, pagava os
empregados da chácara a dava à madrasta dinheiro para as
despesas. Ela, quando se aposentou, disse a ele:
— Não precisa me dar mais dinheiro!
— Dona Ana, farei isso todo mês, gaste com o que quiser.
A senhora dá tantos presentes aos netos.
— Você tem notícias de seus irmãos? - perguntou Ana.
— Estão bem, têm lá os seus problemas, conversamos por
telefone às vezes, as reclamações são as mesmas, mamãe
continua com seus gastos excessivos. Minha família está
aqui!
E era uma família unida em que um podia contar com o
outro.
Queriam-se bem!
13 – Novamente Juntos
Gustavo acordou sentindo-se melhor, sem dores, voltou a
dormir. Depois da terceira vez que acordou foi que retomou
a consciência. Observou o lugar onde se encontrava e
pensou:
"Minha melhora no plano físico seria impossível, não tenho
dores e não é pela injeção. Estou numa enfermaria de
hospital. Então, devo ter desencarnado e estou no plano
espiritual e socorrido."
— Graças a Deus! - murmurou.
Um companheiro de quarto o olhou e comentou:
— Dormiu muito...
— E acordei disposto. Quando foi que desencarnei?
— Ora... Outro com essa história... Acordou perturbado... -
falou o homem, fazendo uma careta.
Gustavo sorriu e indagou:
— Como faço para chamar alguém?
— Logo um encarregado virá aqui.
Minutos depois entrou na enfermaria um moço bonito e
agradável, que sorriu para todos. Outro interno, que
ocupava o mesmo quarto, o chamou:
— Por favor, Juliano, necessito de notícias!
O moço, que naquele momento Gustavo soube se chamar
Juliano aproximou-se do leito e conversou com a pessoa que
o solicitara, depois veio até ele.
— Como se sente?
— Bem melhor. Queria lhe perguntar como devo agir.
Posso me levantar?
— Creio que sua melhora será rápida, Gustavo. Vou avisar
alguns amigos que você acordou. Acho que é melhor ficar
ainda um pouco no leito.
Ele ficou deitado olhando tudo. O senhor ao seu lado
estava muito aborrecido. Não queria ter morrido e se
queixou:
— Não sei se acredito ou não que morri. É estranho!
— Toda mudança pode parecer estranha se não a
entendemos. A morte do corpo nos leva a viver de outro
modo, é uma grande mudança. E nosso querer não influi. É
melhor aceitar, amigo!
— Gostava de minha casa, de minhas coisas, sinto falta de
implicar com os filhos e netos. Você está dizendo isso
porque certamente não tinha nada - resmungou o
companheiro de quarto.
— Tem razão, não tinha nada! De que somos donos
realmente? Do corpo? Este morre independentemente da
nossa vontade. De alguma casa? Deixamo-la um dia,
querendo ou não. De afetos? De alguém? Não fomos donos
de ninguém nem pertencemos a outrem. O senhor se
engana, fui, na Terra, encarnado, um homem de posses,
tenho uma esposa linda, boa e nos amamos, tenho filhos e
netos. Só que, pensando bem, uso o termo "tenho"
indevidamente. Mas como dizer? Não sei. Não perdi os
afetos, o amor é como a vida, continua.
Uma senhora entrou no quarto, veio com uma linda flor e
entregou a Gustavo. Este a reconheceu, era parecida com
Vanessa.
— Aninha? - perguntou ele.
— Gustavo, seja bem-vindo!
— Então não é para ter dúvidas, desencarnei mesmo -
sorriu ele.
— Sim e espero que se recupere logo.
— Quero me recuperar e espero saber como fazê-lo, e o
mais rápido possível.
— Gustavo, vim convidá-lo para morar comigo, resido
nesta colônia numa casa bonita, lembra a chácara. Moro
com sete amigos e estamos esperando-o.
— Obrigado, Aninha. Já começava a me preocupar como e
o que ia fazer ao sair daqui. Foi você que me trouxe para a
colônia?
— Não, você foi desligado e encaminhado para cá pela
equipe de amigos, trabalhadores desencarnados do Centro
Espírita que frequentava.
— Amigos! Que bom! Quero agradecê-los! - exclamou
Gustavo.
— Terá oportunidade - falou Aninha. - Agora eu que quero
agradecê-lo. Você foi muito bom para minhas filhas. Elas o
amam como pai porque você agiu como se fosse. Obrigada!
Ele não respondeu, sorriu, e Aninha lhe deu notícias de
todos, ficou aliviado por saber que estavam bem e pensou:
"Não quero que sofram por mim."
— É impossível - disse Aninha, lendo seus pensamentos -
eles sentem sua falta. Mas como compreendem, estão
fazendo de tudo para não atrapalhá-lo. E você está aqui
porque fez por merecer. Venho buscá-lo amanhã. Até logo!
Aninha saiu e o senhor, que ficou atento à toda a
conversa, comentou:
— Você chegou há pouco e já está indo. Não tem medo do
que encontrará fora destas paredes?
— Amigo, é melhor aceitar o que nos está sendo
oferecido. Aqui é maravilhoso...
O senhor interferiu:
— Como sabe?
— Sou espírita, segui uma religião que nos esclarece
nesse sentido. Existem, amigo, lugares horríveis onde um
desencarnado pode ir. Pensava muito, quando encarnado,
na desencarnação. Estou bem e vou ficar melhor, não quero
ser por mais tempo motivo de trabalho para os outros.
— Trabalho para os outros? - perguntou o senhor,
estranhando.
— Você não é servido? Então, dá trabalho aos outros. Não
pensou nisso? - indagou Gustavo.
— É...
— Pois não quero ser servido, quero ser autossuficiente e
útil. Sempre fui trabalhador e quero continuar sendo.
— Você não sente falta dos seus familiares? Não tem
vontade de estar na sua casa? - interrogou o senhor.
— Claro! E deverei sentir mais ainda, sei disso e estou
preparado. Quanto mais depressa me adaptar aqui, melhor
será para mim. Desencarnei e não tem volta, por isso, siga
meu conselho, aceite e tudo será mais fácil.
— Sabe disso tudo só porque era espírita? - quis saber seu
companheiro, curioso.
— Sim e porque acreditava. Como vê, facilitei aprendendo
antes.
O senhor quietou e Gustavo ficou pensando.
Compreendeu que fora socorrido por misericórdia, talvez
porque a usou para com o próximo. Cometera erros,
arrependeu-se, se voltasse no tempo não os faria
novamente. Mas tentou acertar e fez amigos, tanto que
trabalhadores desencarnados do Centro Espírita o ajudaram.
Era grato por isso. Não queria ser dependente, necessitado,
mas fazer por merecer continuar abrigado. Estar socorrido
era uma grande graça.
No outro dia, Aninha veio buscá-lo. Ele gostou muito da
casa dela e de seus amigos. Quando se quer, quando se
almeja, se consegue, e isso é um fator importante no plano
espiritual. Gustavo logo adquiriu conhecimentos para viver
bem na colônia e passou a ser útil.
Estava tranquilo, fez muitos amigos, gostava do trabalho,
admirava a organização e a ordem da colônia, e mais, era
grato por estar vivendo ali, e quando somos gratos temos
de fazer com que a gratidão dê frutos.
No começo sabia de seus entes queridos pelas notícias
que Aninha lhe dava. Quando se sentiu seguro, teve
autorização para visitá-los. E como foi para ele gratificante
vê-los! Estava presente nas lembranças de todos de forma
carinhosa. No começo, Aninha o acompanhava. Certa vez
ele comentou com ela:
— Não entendo como muitos desencarnados acham ruim
ver seus familiares refazendo suas vidas.
— É egoísmo - esclareceu sua cicerone. - Muitos, ao fazer
esta mudança, querem que seus familiares sofram por eles,
e, se isso acontece, eles se perturbam com as vibrações
aflitivas que recebem. Como o entendimento faz falta! Ao
entender que nada acaba, a vida não pára, continuamos
com nossa individualidade, continuamos a amar e
compreendemos que certamente estaremos juntos de novo,
tudo fica mais fácil, e não há motivo para tanto sofrimento,
O desencarnado deve orar, desejar com sinceridade que os
familiares fiquem bem no plano físico; e os encarnados, por
sua vez, desejar que o ente querido que partiu pela morte
física esteja tranquilo para fazer essa mudança, que para
muitos é difícil devido à falta de compreensão.
E Gustavo ficou aguardando o retorno de sua
companheira. Queria que quando ela viesse até ele
estivesse bem para recebê-la. Dedicou-se ao trabalho e ao
estudo com muito carinho. Mas foi uma neta que retornou
primeiro, a filha de Áurea. A mocinha tinha dezoito anos,
sofreu um acidente e veio a desencarnar. Um orientador da
colônia em que Gustavo estava o chamou:
— Sua neta, Elenice, desencarnou. Você tem permissão de
ir até lá e ajudar a equipe socorrista.
— Como ela está? - indagou, preocupado.
— Está em processo de desligamento.
Gustavo foi até eles. Desespero, agonia, tristeza e até
revolta. Elenice estava sendo preparada para o velório por
encarnados e uma equipe de desencarnados desligava seu
espírito do corpo morto. O avô aproximou-se, ela se debatia,
estava perturbada, sem saber o que ocorrera, não queria
dormir, tinha medo.
— Minha neta!
Abraçou seu perispírito e o beijou.
Gustavo não teve muito contato com os netos, filhos de
Áurea e Paulo Sérgio. Mas queria-os bem e quis, naquele
instante, ajudá-la, protegê-la e deixou o amor envolver.
Esforçou-se para não se deixar abranger pelas vibrações
confusas dos familiares. O corpo dela estava machucado,
teve fraturas, cortes, mas ela não sentia dor. Foi um
acidente de carro em que viajava com amigos, só ela
desencarnou, os outros ficaram feridos.
Elenice quietou-se um pouco e o olhou, apavorada:
— Vovô, vovô... - balbuciou baixinho.
— Neta querida! Acalme-se! Vovô protege você!
Foi conversando com ela, a mocinha se acalmou, ficou
sonolenta e os trabalhadores puderam desligar seu espírito
do corpo morto. O desligamento é feito de muitos modos.
Alguns são feitos por socorristas, outros por amigos e
parentes. Em caso de morte violenta, o desligamento é feito
rapidamente, mas nos casos de imprudentes que muito
erraram e de suicidas, demora dias, meses, até anos para
ser efetuado. Para os bons este processo é sempre mais
fácil. Este desligamento é a saída definitiva do espírito da
matéria.
E lá ficou o corpo, sendo ajeitado por trabalhadores
encarnados. Gustavo a tinha no colo, com a cabeça dela
junto ao seu peito. Um socorrista explicou:
— Somos trabalhadores de um pronto-socorro junto à
rodovia. Elenice é boa menina, poderíamos tê-la desligado
no local do acidente, mas ela ficou muito apavorada e não
conseguimos fazê-la dormir. Temos de levá-la ao posto de
socorro.
— Agradeço aos senhores. Tenho permissão para
acompanhá-la.
Acomodaram-na num leito, Gustavo ficou ao seu lado. A
mocinha não conseguia dormir nem ficar tranquila. Gritos,
choros dos familiares a faziam sacudir, ficava aflita e
murmurava:
— Não! Mamãe! Não chore! Vou! Estou viva! Dormir, não!
Parem com isso!
O avô ficou com ela. Eles lembravam acontecimentos e
ela também vira tudo. Elenice sempre foi boa pessoa, amiga
leal, as colegas choravam, mas muitas oravam, e foram
essas orações que ajudaram a acalmá-la por momentos.
Mas o desespero dos familiares sacudia a garota no leito.
Ela era boa filha, estudiosa, pacificadora, estava sempre
tentando fazer com que os pais parassem de brigar, ajudava
a mãe com conselhos e carinhos e também a avó.
Lorena sentiu; era a primeira vez que Gustavo viu a ex-
esposa sofrer realmente. Ela gostava muito dessa neta.
Depois do enterro, com calmantes, quietaram, e Elenice
pôde ficar mais tranquila. Ela pediu:
— Vovô! Não me deixe dormir! Não quero adormecer! Por
Deus!
— Calma, querida, estou aqui com você. Acalme-se! -
disse ele, abraçando-a carinhosamente.
Então ele compreendeu. A neta era religiosa, tinha a ideia
errônea de que a morte era um sono do qual não acordaria
antes do Juízo Final. E ela não queria dormir, ter a bênção
do sono reparador.
O médico do posto de socorro veio conversar com ela.
— Não me importo de ter morrido, mas não quero dormir.
Não me deixe dormir, vovô - pediu ela.
— Não deixarei querida. Não vou sair do seu lado.
Ela ficou treze dias no posto e Gustavo não saiu do seu
lado, e ela não dormiu. Se o cansaço a fazia cochilar, pulava
aflita tentando ficar desperta. E os familiares não ajudavam,
era revolta, desespero e dó dela, que chorava ao senti-los.
Só ficava mais tranquila quando recebia orações de amigas,
de Júnior, Luciana, e foram muitas as de Ana. Foi
providenciada sua remoção para a colônia, para o hospital
na ala de jovens, O avô a acompanhou.
Na colônia recebia menos vibrações dos familiares. Além
disso, Júnior e Luciana chamaram a atenção deles com
rigor, deram-lhes livros espíritas. Os primeiros foram lidos
por curiosidade; os demais, com interesse, e fizeram bem a
eles, consolaram- nos. Foi um chacoalhão para eles essa
dor. Áurea e o esposo se uniram no sofrimento, mudaram
alguns conceitos, até Lorena começou a pensar que
também iria morrer um dia, teve medo e começou a refletir
sobre sua vida, passou a ir mais à igreja, a orar e até a fazer
caridade.
Elenice ficou internada muitos meses, fez tratamento, e só
depois de oito meses que dormiu tranquila, perdeu seu
medo de adormecer. Foi aos poucos se entrosando com
outros jovens. Quando saiu do hospital, foi morar no
alojamento com outras mocinhas. Gustavo ficou todo o
tempo de que dispunha ao lado dela.
— Obrigada, vovô - agradeceu a garota. - Sabia que o
senhor era bom, mas não calculava o tanto. Agora o senhor
não precisa mais ficar muito comigo, estou bem, tranquila e
tenho certeza de que serei muito feliz aqui. Nunca pensei
que fosse tão simples a desencarnação. Fiz um drama à toa.
E o avô só se tranquilizou em relação a ela quando a viu
adaptada no plano espiritual.
A primeira vez que Gustavo foi a uma excursão ao Umbral
para conhecer em estudo, voltou apreensivo pelo que viu.
Ele visitou um local perto do posto de socorro. Um
orientador, vendo-o triste, conversou com ele:
— Gustavo, por que está assim?
— É que vi tantos sofredores! Reconheci lá um senhor que
desencarnou com câncer como eu e não pôde ser socorrido.
— Meu caro, há formas diversas de sofrer, uns se revoltam
e esse sofrimento não lhes serve para nada, outros se
conformam, agem certo e isso lhes dá merecimento para
receber ajuda. E alguns, como você, se regeneram devido à
dor, entendem o sofrimento, vibram melhor com ele, que é
motivo de reflexão para progredir.
— Muitos pediam socorro...
— Gustavo - continuou a esclarecer - para ser socorrista
no Umbral é preciso aprender a distinguir um pedinte que
quer alívio de outro que quer se melhorar. Existe o errado
gozador, que erra por prazer, e quando vem a reação, a dor,
se torna errado sofredor, mas continua sendo errado. Para
ser socorrido é necessário, para o bem dele e do local onde
será abrigado, que se arrependa e queira melhorar.
Ninguém muda só com a desencarnação, mas sim quando
compreende e quer a mudança, transformando-se para o
bem. Não basta só pedir socorro; antes, é preciso querer
essa melhora, converter-se de sua maldade e imprudência e
não só almejar o fim de seu sofrimento.
Gustavo entendeu.
Há formas diversas de arrependimento, nuns o remorso é
destrutivo, odeiam seu erro e pelo desespero cometem
outros, como aconteceu com Judas Iscariotes, que se
arrependeu da traição que fez ao mestre Jesus e se
suicidou, cometendo outro grande erro. O arrependimento
deve ser construtivo, devemos querer reparar com
sinceridade a ação indevida. Eu, Antônio Carlos, tenho ido
muito ao Umbral e de fato vemos muito isso, pedidos aflitos,
desesperados de ajuda, mas infelizmente, em muitos, é
somente para o alívio de seus padecimentos; uns até
querem ficar sem as dores para se vingar, outros pensam
em voltar aos seus prazeres mundanos. São poucos que
despertam para a mudança, para o querer melhorar-se, por
causa do sofrimento. E ele pode ser visto de diversas
maneiras: como castigo, oportunidade para mudar, se
regenerar ou aprendizado para o progresso. Muitas vezes,
no começo, o desencarnado que sofre no Umbral pede
alívio; não tendo, se revolta e a dor persistente o leva a
pensar diferente. Então é socorrido e essa vontade de
mudar pode passar com as dificuldades e ele voltar aos
antigos erros; não mudou, ficou só no querer.
Mas os socorristas auxiliam também os que querem alívio;
sempre é dada uma oportunidade para os pedintes
mudarem. Dificilmente essa chance é dada aos revoltados,
aos que se julgam injustiçados e aos que querem vingança.
É um equívoco achar que basta pedir socorro para ser
auxiliado. Muitas vezes dar alívio antes do tempo é privar a
pessoa de aprender. Isso não acontece só com os
desencarnados. Todos nós queremos nos livrar das reações
que nos trazem sofrimento e nem sempre abdicar das ações
erradas. Somos livres para pedir alívio, mas normalmente
quem socorre deve entender que quando o amor não
consegue ensinar, a dor tenta, e que o sofrimento pode
levar à transformação. Felizes os que entendem e mudam
para melhor pela compreensão.
Gustavo começou a ter algumas lembranças de vidas
passadas e teve a certeza de que ele e Ana já haviam
estado juntos. Procurou o departamento na colônia que
orienta sobre essas recordações e recebeu muitas
informações, leu bastante sobre o assunto.
Compreendeu que lembrar erros pode ser doloroso, mas
nossas ações, tanto as boas quanto as más, nos pertencem.
"E bom recordar preparado" - pensou ele.
E assim que se sentiu apto, recordou. Foram muitas
existências, lembrou os fatos mais importantes. Uma,
porém, o marcou mais. Normalmente a encarnação que nos
fez sentir mais remorso ou aquela em que aprendemos
muito entre afetos queridos é a que mais deixa marcas. E
esta ele lembrou com detalhes. Renascera num país
europeu, fora camponês, seus pais viviam com dificuldades,
embora fossem donos de um pequeno sítio; mas eram
unidos e se queriam bem. Seu pai uma vez prestou um
favor a um monsenhor e o convidou para batizá-lo, era
então recém-nascido. E combinaram que ele seria padre,
quando ficasse moço iria para um convento. Cresceu
sabendo disso e assim desejava. Seus pais lhe falavam
sempre da possibilidade de ser importante dentro da Igreja
e até ajudar a família. O padrinho, o monsenhor, mandava
dinheiro todo ano para que pudesse estudar e ele o fazia
com dedicação. Esperava ansioso a ida para o convento.
Certamente as pessoas que participavam desses fatos
tinham outros nomes, mas o que é um nome? Designação
para uma encarnação? Vamos continuar chamando-os como
na última existência para facilitar o entendimento. Ana era
vizinha de Gustavo, viam-se sempre. Um dia se aproximou
dele.
— Será que você poderia me ensinar a ler? Queria muito
aprender. Não o incomodarei, qualquer hora que puder
estará bem para mim.
Ele fazia serviços leves, estava vigiando o rebanho e
atendeu ao apelo, ensinava-a enquanto vigiava os animais.
Envolveram-se, eram jovens, sadios, bonitos e tornaram-
se amantes.
— Ana - disse ele, com sinceridade - não lhe prometo
nada. Sabe que vou para o convento assim que meu
padrinho ordenar. Não é certo o que fazemos, é melhor nos
separarmos, não venha mais aqui, por favor.
— Sempre soube que vai ser padre e não me importo.
— Não me ame, Ana, não faça isso. Se souber que está
gostando de mim, não a verei mais. Entendeu? Não me
ame, não ficarei com você. Vou para o convento. Serei
padre!
— Por que, Gustavo? - indagou ela.
— Porque foi decidido desde o meu batismo. Meu padrinho
custeou meus estudos. Nessa época difícil é privilégio ter
um sacerdote na família. Depois, está traçado, não tem
volta. Se desistir os meus pais poderão sofrer, creio que
meu padrinho não me perdoará.
— Sei disso e compreendo seu medo.
— Ana, eu também quero isso, entendeu? Eu quero!
Sempre quis. Por isso, não me ame. Mas ela já o amava
havia tempo, estudar foi um pretexto para ficar perto dele.
Compreendia-o, todos temiam a Igreja, que tinha poderes,
e a Inquisição prendia e matava muitas pessoas. O padrinho
de Gustavo era um monsenhor temido. Sentiu também que
ele era sincero, queria ser padre, tinha vocação.
Aí, Ana descobriu que estava grávida. Naquela tarde disse
a ele:
— Gustavo, eu o amo!
— Eu lhe pedi para não deixar isso acontecer, eu lhe
roguei!
— Não se manda nos sentimentos - disse ela, chorando.
Ele não falou mais nada, saiu aborrecido de perto dela.
Ana decidiu que falaria da gravidez no outro dia.
Mas não o viu mais. Gustavo resolveu partir no dia
seguinte sem se despedir de ninguém; foi visitar seu
padrinho e pedir a ele para entrar imediatamente para o
convento. Viajou de madrugada, dois dias depois estava na
frente do monsenhor.
— Padrinho - disse ele - me desculpe se vim sem ser
chamado, é que estava ansioso para conversar com o
senhor e começar meus estudos para ser um sacerdote.
— Está desculpado! Gosto de sua ansiedade. Irá se tornar
um bom padre. Pode ficar!
Gustavo ficou no convento.
Ana chorava muito e reclamava:
"Por que disse a ele que o amava? Por quê? Foi por isso
que ele foi embora antes do previsto. Não deveria ter dito a
ele meus sentimentos. Se tivesse ficado calada, ele não
teria partido. Talvez quando soubesse da minha gravidez
mudasse de ideia. Foi embora, o perdi porque disse que
gostava dele.”
Isso a martirizava. Escondeu a gravidez até passar o
período que pudesse abortar. Teve medo de que a família
não a deixasse ter o filho. Ali perto, havia uma mulher que
fazia chás com ervas para abortar e muitas recorriam a ela,
principalmente as mulheres solteiras. Ana queria o filho,
seria um pedacinho de Gustavo para ficar com ela.
Quando falou, disse toda a verdade, sua família achou
ruim, mas, como pessoas bondosas, resolveram apoiá-la.
Seu pai contou ao pai de Gustavo e resolveram que o
melhor era esconder o fato. Ana ficou em sua casa, seus
pais cuidaram dela e dos bebês.
Ela teve gêmeas, duas encantadoras meninas, Lívia e
Vanessa. Eram sadias e ninguém ficou sabendo quem era o
pai.
Os pais de Gustavo foram à sua ordenação e contaram a
ele. Sentiu por Ana e pelas meninas e pensou em ajudá-las.
Gustavo tentou ser bom padre. Como o monsenhor, seu
padrinho, trabalhava para o Santo Ofício, ele não quis ficar
com seu benfeitor, pois ficara horrorizado com a Inquisição,
pediu para cuidar de uma paróquia, foi mandado para um
lugar distante, uma cidade pequena. Gostou e se dedicou
ao seu trabalho. Só que passou a mandar dinheiro a Ana
para que ela criasse as meninas. Nunca as viu, mas sempre
as auxiliou com o dinheiro que recebia da Igreja. Protegeu
como pôde os perseguidos da Igreja, da política e uma vez
quase foi preso. Seu padrinho, agora cardeal, o salvou. Mas
começou a incomodar algumas pessoas, foi envenenado e
sua morte foi tida como natural.
Ana sempre amou Gustavo, criou as filhas com muito
amor e o dinheiro que recebia era como um bálsamo ao seu
coração acreditava que ele as amava. As meninas
estudaram e cresceram sem problemas, casaram e nunca
ficaram sabendo quem era o pai delas; receberam dinheiro
até que ele faleceu. Ana teve tuberculose e desencarnou
aos trinta e seis anos. Encontraram-se no plano espiritual
para uma conversa. Gustavo estava preocupado com a
Inquisição, trabalhava tentando ajudar desencarnados que
odiavam a Igreja. Ana estava preocupada com as filhas,
trabalhava numa equipe que auxiliava encarnados. Não
tinham rancor. Ele lhe pediu perdão e ela o perdoou de
coração.
— Você não me enganou. Fui tola em amá-lo. Nunca
deveria lhe dito que estava amando você...
Separaram-se. Tiveram outras encarnações.
Gustavo, ao lembrar-se dessa sua encarnação, pensou:
"Quando as vi naquele restaurante senti algo estranho,
confundi meus sentimentos. Foi um reencontro!"
Compreendeu a bondade de Deus, reencontrou-as e
cuidou delas.
"Não fiz a coisa certa, deveria ter oferecido emprego,
trazido as três para a chácara. Mas creio que amei Ana
assim que a vi. Tive vontade de ajudá-las e agora sei o
porquê. Devia isso a elas. E ainda bem que agi assim. Lívia
e Vanessa foram minhas filhas no passado e eu não as criei,
não dei proteção, carinho e agora estiveram comigo como
filhas de outro. Acho que nesta fui o que deveria ter sido no
passado. Pai, obrigado, Deus, por esta oportunidade.
Obrigado!"
Entendeu também o porquê de Ana nunca lhe ter dito que
o amava. Já se passaram seis anos que ele desencarnara.
Aninha veio visitá-lo.
— Gustavo, Ana deverá se reunir logo a nós!
— Ela está doente? - Perguntou ele, preocupado.
— Está só adoentada, terá um derrame cerebral fatal. Não
se preocupe, quando isso ocorrer os amigos do Centro
Espírita a trarão até nós.
Aguardou ansioso esse tempo todo para estarem e agora
que isso não demoraria sentiu uma grata alegria, mas ficou
inquieto com a proximidade do reencontro.
Um orientador o aconselhou:
— Calma Gustavo!
— Luís, é que eu quero ficar para sempre com ela, mas
será que minha companheira irá querer?
— Claro que sim! - respondeu o orientador, animando-o.
— Mas e depois? Teremos de reencarnar, será que nos
separaremos?
— Gustavo, você não deve se preocupar tanto com o
futuro. Vocês deverão ficar muito tempo no plano espiritual,
irão morar juntos. Embora devam fazer tarefas diferentes,
terão muito tempo para estar um ao lado do outro. Vocês
aproveitaram bem esta encarnação, fizeram por merecer
socorro, estar juntos e planejar se reencontrar quando
chegar o tempo de reencarnar. Afetos se acham.
— Entes queridos sempre se encontram no plano
espiritual?
— Normalmente sim, aqueles que se unem pelo amor
acabam juntos, a não ser que, imprudentes, queiram
abreviar o tempo de ausência e se matem.
— Os suicidas não encontram seus afetos? - Quis saber
Gustavo.
— Leia as questões 944 a 952 de O Livro dos Espíritos, de
Allan Kardec - recomendou Luís.
Após ter agradecido, Gustavo foi para casa e leu e releu
as questões, principalmente a 956, que diz:
"Os que, não podendo suportar a perda de pessoas que
lhe são queridas, se matam na esperança de ir reencontrá-
las, atingem seu objetivo?"
"O resultado, para eles, é diferente do que esperam, e em
lugar de estarem reunidos ao objeto de sua afeição, dele se
distanciam por maior tempo, porque Deus não pode
recompensar um ato de covardia e o insulto que lhe é feito,
duvidando de sua providência. Eles pagarão esse instante
de loucura com desgostos maiores que aqueles que
acreditavam abreviar e não terão para compensá-los a
satisfação que esperavam."
Leu também a questão 934 e se pôs a meditar:
"Ainda bem que Ana nunca pensou nesse ato tresloucado.
Irá desencarnar logo e poderemos estar juntos. Quem o
pratica é por falta de fé. E que decepção, morrer pensando
em ficar junto e estar separado realmente."
Suicídio é triste! É obrigação dos que entendem ajudar de
alguma forma os que têm tendências a cometer esse ato
imprudente. O amor deve ser um sentimento que dá força
para viver, tanto encarnado quanto desencarnado. E se
sofrem pela ausência, pela morte física, devem ter
esperança, porque antecipar é prolongar essa separação.
Há tanto a fazer no período de ausência! Como Gustavo,
que foi por merecimento a uma colônia e lá procurou se
adaptar, estudar e trabalhar, e Ana, que procurou consolo
nas lágrimas que enxugou, fazendo o bem. E creio que a
desencarnação de filhos seja mais dolorida, afetos, entes
queridos são todos os que amamos. A vida continua e não é
querendo colocar um final num período que resolveremos a
situação. A esperança deve ser cultivada porque, se agirem
de maneira correta, estarão com certeza novamente juntos.
Ana estava adoentada, foi ao médico, a pressão arterial
estava alta. Fez os exames que o médico pediu. Fez
repouso, regime alimentar, tomou os remédios e
resmungou:
— Ruth, só acho ruim ficar sem ir ao Centro Espírita.
— É só por uns dias, dona Ana. As meninas estão
preocupadas com a senhora.
— Meninas? Elas já têm filhos grandes - disse Ana, rindo.
A chácara era ainda ponto de encontro da família. Os
netos gostavam muito dela, era a avó com a qual podiam
contar sempre.
Tempos antes Ana pediu às filhas, pois a chácara era
delas, que se ela morresse Ruth continuaria ali até que
também fizesse sua passagem para o plano espiritual. Elas
prometeram e Ana ficou tranquila; não queria que Ruth, a
amiga de tantos anos, ficasse desamparada. Com sua
doença, os netos vinham vê-la com mais frequência.
— Vovó, a senhora tem saudade do vovô? - quis saber
Eleonora, filha de Júnior
— Claro! Tenho muita. Mas um dia nos encontraremos de
novo e ficaremos juntinhos.
— Vovó, o que a senhora irá falar para ele quando o vir?
— Algo que sempre quis falar e não consegui. Umas
palavrinhas muito importantes.
— Já sei - disse a sabida garota - que a senhora gosta
dele.
Ana sorriu, a mocinha afastou-se e ela ficou pensando
como seria maravilhoso estar com ele de novo.
Os exames iriam ficar prontos na quinta-feira e Ana
desencarnou na terça-feira de manhãzinha. Acordou, sentiu-
se mal, chamou Ruth, que ligou para Lívia, Vanessa, Júnior e
para o médico. Voltou para a cama e sentiu tontura, perdeu
os sentidos, dormiu e acordou num leito diferente. Observou
por instantes o local, estava certamente num hospital,
numa enfermaria. Havia muitos leitos, alguns ocupados por
outras mulheres.
"Estou num hospital, mas onde? De encarnados ou
desencarnados?"
Não sentiu nada diferente, resolveu esperar, estava muito
bem.
De repente, viu Aninha. Na verdade, sentiu que era ela,
pois nunca a vira antes, mas teve a certeza quando notou
que ela trazia algumas flores. Sorriram.
— Ana, como está?
— Bem, Aninha.
— Me reconhece? - indagou a visita.
— Sinto que é Aninha. Acho que afetos não se estranham -
respondeu a recém-desencarnada.
— Ana, quer alguma coisa? Posso fazer algo por você?
— Onde estou? - indagou Ana.
— Numa colônia. Amigos do Centro Espírita a trouxeram -
respondeu Aninha.
— Que bom!
— Ana, queria agradecê-la.
— Também tenho de lhe agradecer.
Sorriram. Entenderam que amigos sempre têm de
agradecer um ao outro.
— Ana, tem alguém aqui ansioso para vê-la - falou Aninha.
— Gustavo?! - exclamou Ana.
— Sim!
"Gustavo - pensou ela - amor de minha vida, não tenho
mais medo de perdê-lo, estivemos separados, mas unidos
em pensamento e, agora, novamente juntos.”
— Como estou? Bem? - Ana passou as mãos pelos
cabelos, ajeitando-os.
— Está muito bonita! - respondeu Aninha.
Afastou-se, Gustavo entrou no quarto, aproximou-se
devagar. Comovido, sentou-se numa cadeira ao lado de seu
leito e pegou a sua mão; ela apertou a dele.
— Ana, minha querida...
— Gustavo, eu o amo!
Emocionados, sorriram felizes.

Ao terminar a leitura deste livro, talvez você tenha ficado


com algumas dúvidas e perguntas a fazer, o que é um bom
sinal. Sinal de que está em busca de explicações para a
vida. Todas as respostas que você precisa estão nas Obras
Básicas de Allan Kardec.

Se você gostou deste livro, o que acha de fazer com que


outras pessoas venham a conhecê-lo também? Poderia
comentá-lo com aquelas do seu relacionamento, dar de
presente a alguém que talvez esteja precisando ou até
mesmo emprestar àquele que não tem condições de
comprá-lo. O importante é a divulgação da boa leitura,
principalmente a literatura espírita. Entre nessa corrente!

FIM

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