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Contos Schmid

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.

Q ; ô.
c o n to s .'3 - - -/•^
A DO

cone Gû SGIÎMÏD.<-.
CONTOS
DO

CONEGO SCHMID
TRADUZIDOS

POR

NUNO ALVARES
n o v ís s im a e d iç ã o

prt

II. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR


109, RUA DO OUVIDOR, 109 6 , RUE DES SAINTS-PÈRES, 6
KIO DE JAKEIRO PARIS
CONTOS
DO

GONEGO C. SCHMID

D E OS

Um menino muito piedoso vivia junte


de um idolatra, a quem muitas vezes di­
zia :
— Não ha senão um só Deos poderoso,
que creou o céo e a terra; é elle que faz
brilhar o sol e cahir a chuva; conhece
todas as nossas acções e todos os nossos
pensamentos, e presta ouvidos ás nossas
supplicas. Só elle tem o poder de nos pu­
nir e de nos recompensar, de nos salvar a j-. ->
\
de nos perder. Os idolos que vós adorais
são feitos de barro, não têm a faculdade
CONTOS DE SCHMID.
•*■
'i

— 2 —

de ver e de ouvir, e por esse motivo não


podem fazer nem bem nem mal algum.
O idolatra, porém, se conservava surdo
a essas verdades.
Um dia elle sahio para o campo. O me­
nino aproveitou-se d’esta ausência para
quebrar todos os seus idolos, exceptuando
0 maior, em cujas mãosdepôz um grosso
e nodoso cajado.
Quando voltou o pagão, ardendo em
cólera, bradou enfurecido :
— Quem foi o autor de uma acção tão
infame?
— Como ! lhe disse o menino, não acre­
ditais que o vosso idolo maior tenha que­
brado por suas mãos os outros, que são
muito menores do que elle?
—• Não, lhe replicou o pagão encoleri-
sado, não o creio, porque nunca vi elle fa­
zer um unico movimento. Foste tu, inve­
joso, que quebraste os meus deoses, e conr.
este cajado vou punir a tua perversidade.
— Acalrnai-vos, atalhou o moço com
doçura; se não concedeis ao vosso idolo o
— 3 —

poder de fazer aquillo que eu, sendo uma


simples criança, acal)o de fazer, como po­
derá elle ser tão poderoso que ten ha creado
o céo e a terra ?
O pagão emmudeceu a estas palavras ;
refleclio um instante, e por ultimo quebrou
0 idolo que lhe restava, e, prostrando-se
per terra, adorou pela primeira vez ao
verdadeiro Deos.
Feliz aquelle que, em Deos
Tendo fé sincera e pura,
Póde crer que n’esta vida
Elle é pai da creatura.

II

o BOiM PAI

Négocies importantes retinhão um bom


pai de familia na cidade ; sua esposa e seus
fílhinhos vivião longe d’elle em uma ca­
sinha de campo. Um dia elle enviou aos
meninos uma grande caixa cheia de lin­
dos brinquedos, acompanhados de uma
carta, que assim dizia : cc Meus queridos
filhinhos, sêde sempre bons e piedosos, que
— 4—
eu vos prometlo virdes para a minha com­
panhia. Alegrai-vos, porque ainda con­
servo muitos brinquedos preciosos na
casa que preparei para vós ».
~ Quanto ébom o nosso papai ! dizião
os meninos. Quanta alegria dá elle aos
nossos corações ! Nós também o amamos
mu i t o e , embora náo o possamos ver e
pouco nos lembremos do seu rosto, fare­
mos tudo que elle nos diz na sua carta,
para lhe darmos assim uma viva satisfa­
ção. Oh 1 que prazer teremos de ver ainda •
uma vez o nosso papai!
— Queridos filhinhos, lhes disse sua
mãi, 0 bom Deos faz com os homens o
mesmo que vosso excellente pai faz com-
vosco. Nós não o vemos, é verdade, po­
rém recebemos d^elle mil benefícios pre­
ciosos. Por esse motivo conhecemos o seu
amor : o sol, a lua, a estrellas, as flores,
os fructos 6 Iodas a producções da terra
são d’elle. A Escriptura Santa é uma carta
pela qual nos manifesta a sua vontade e
promette receber-nos um dia no céo ; é alli
— 5 —

que nos esperào ainda dons mais magni?


íicos e prazeres mais puros do que aquelles
que gozamos na terra. Amemos o Creador
com toda a effusão do nosso coração, meus
filhos, façamos sempre a sua vontade, e
nutramos a doce esperança de sermos para
sempre admittidos no céo, onde o veremos
de perto, e onde nossa alegria será inex­
plicável.
%

Se quizermos n’estemundo
Obter a felicidade,
Entreguemos nosso amor
Ao puro Deos de bondade.

III

O I RMA O E A IRMA

Diogo e Anna se achavão sozinhos em


casa. O primeiro disse á irmã :
— Vem comigo, Anna, vamos procurar
alguma comida e nos regalar comella.
— Se puderes me levar a um lugar em
que ninguém nos veja, não duvidarei em
te acompanhar, respondeu Anna.
— Muito bem ! disse Diogo, iremos ao
— 6—
quartinho onde está o leite, e ahi podere­
mos comer o doce de creme.
_ Não, respondeu a irm ã: alli está um
homem rachando madeira na rua, que in-
fallivelmente nos havia de ver.
— N’esse caso, disse Diogo, acompanha-
mé até á cozinha; tiraremos o mel do ar-
mario e faremos um manjar.
Anna replicou ainda:
— Tu bem sabes que a vizinha trabalha
assentada junto da janella, e nosveria com
a maior facilidade.
— Vamos então comer maças no sub*
terraneo, replicou o pequeno glolão; alli
é tão escuro que ninguém poderia nos
décobrir.
— Oh! meu irmão, disse Anna, suppôes
realmente que ninguém poderia nos ver?
Não conheces um olho que penetra atra-
vez dos muros até mesmo na obscuridade ?
Diogo, ferido d’essa observação, corou
e disse á irmã:
^— Tens razão, Deos está presente em
todas as partes, e nunca lhe poderiamos
!I
— 7 —

escapar. Eu já não quero fazer mais o que ^


te propunha ainda agora.
Anna alegrou-se de ver que o irmão
acolhia no coração as suas palavras, e lhe
fez presente de uma bella estampa, onde
se via, entre outras cousas, o olho deDeos
cercado de raios, e em baixo estas pala­
vras :
Possa 0 teu olho divino
Me infundir santo temor,
Me afastando do peccado,
O meu Deos ! meu puro amor I

IV

O BOM T E MP O

— Oh ! quem dera que o sol pudesse


brilhar continuamente ! exclamou Frede­
rica um dia em que a chuva cahia do céo
em torrentes.
Deos a satisfez.
Durante mezes inteiros nem sequer uma
nuvemzinha se via no horizonte. Uma
secca prolongada causou os maiores
damnos bôssiveis. Ató as flores do jardina

.1
— 8 —

de Frederica não tardarão a emmurchecer,


e o linho que lhe promeltia tantas dis­
M
■Ü tracções não cresceu mais do que o ta­
manho de um dedo.
— Vês agora, minha filha, lhe disse sua
mãi, que a chuva é tão necessária como
também o bom tempo. Não seria total­
mente bom para nós outros mortaes ter­
mos sómente dias felizes e tranquillos.
Para alcançarmos a virtude é mister que
nos purifiquemos no cadinho da tristeza e
da amargura.
Deos nos lega a chuva e o vento,
O sol, a luz e as flôres,
Assim como o riso e o canto,
A saudade e os amargores.

A CHUVA

Um mercador voltava um dia da feira;


na garupa do seu cavallo tinha elle a sua
mala cheia de dinheiro. A chuva cahia com
violência, e o bom homem estava molhado
até á medulla dos ossos; maldizia por isso
— 9 —

0 máo tempo, e queixava-se de Deos por


lhe dar uma viagem tão aborrecida.
Passando d’ahi a instantes por uma fio-
resta muito espessa, vio á margem do
caminho um salteador ; sentio um susto
tão grande, que suppôz ser chegada a sua
ultima hora de vida.
O salteador levou a coronha da espin­
garda á altura do rosto e fez-lhe pontaria ;
porém a escorva, estando molhada pela
chuva, falhou fogo, e o mercador, che­
gando as esporas ao animal, escapou feliz­
mente de ser morto.
Depois que se vio livre do perige, disse
comsigo mesmo : — Que mal fiz eu em não
supportar com paciência a chuva como um
beneficio de Deos ! Se o tempo fosse bom,
a esta hora eu estaria morto e os meus
filhos esperarião em vão pela minha volta,
A chuva que eu maldizia foi que salvou me
a vida e a fortuna.
O que ás vezes nos parece mal
Occulta um bem celeste e divinal.

I
,V 1* • • • *1

lu

VI

O ARCO- I . RI S

Depois de uma tempestade que acabava


de purificar o ar e de fecundar os campos,
surgio de repente no horizonte um formoso
arco-iris. O pequeno Henrique estava na
janella, e, apenas avistou o bello pheno-
meno, gritou arrebatado de alegria :
— Oh! nunca meus olhos virão cores
tão lindas e magnificas. É alli em baixo,
perto do velho salgueiro e á margem do
regato, que ellas cahem das nuvens sobre
a terra. Bem vejo que pingão em gottas
de cada uma das folhas do arvoredo. Vou
depressa encher com essas bellas côres
todas as conchas da minha caixinha de
desenho.
O menino correu com todas as suas for­
ças para a arvore; mas, ai ! vio-se isolado
na chuva e não descobrio o menor vestígio
das côres. Tristemente voltou molhado
— 11 —

para casa, e foi se queixar a seu pai da


desgraça que lhe tinha aconlecido.
_ Meu fllho, lhe disse este, nào ha con­
chas n’este mundo que possao recolher as
bellas côres que viste : sãogottasde chuva
que brilhão alguns instantes ao clarão do
sol ; essas tintas tão esplendidas não são
reaes, nem podem durar além de um mo­
mento. Acontece a mesma cousa, meu que­
rido amiguinho, com todas as pompas
d’este mundo ; parecem alguma cousa, po­
rém na realidade não são mais do que uma
luz fascinadora e vã como a do arco-iris.
Não te deixes enlevar na vida
Por um falso e deslumbrante brilho ;
Não mudes em pezar os gozos :
Segue sempre da virtude o trilho !

VII

O ÉCHO

O pequeno Jorge não tinha a menor


idéa do que fosse um écho. Um dia elle
lembrou-se de gritar no meio do prado; —
Oh ! oh ! ■— e ouviu repetirem no bosque
— 12 —

vjzinho as mesmas palavras : Oh ! oh ! --


O menino, admirado, continuou a gritar :
Quem és tu ? — A mesma voz myste-*
.i ! ■
riosa respondeu logo : Quem és tu ?
Jorge ainda continuou : — És um rapaz
muito tolo. Rapaz tolo ! repetio a voz do
fundo do bosque. Jorge ficou desesperado,
redobrou as injurias que enviava ao bos­
que. O écho sempre as repetia fielmente. I
Procurou inutilmente o menimo quô
elle suppunha lhe responder, para se vin­
gar, porém não encontrou pessoa alguma.
Jorge, vendo baldados os seus passos,
correu para casa e foi se queixar a sua
mãi de que um máo rapaz se tinha escom
dido no bosque para injurial-o.
— Vê, meu filho, lhe disse ella, tu te
accusas e te trahes a ti mesmo. Sabe qua
apenas ouviste tuas palavras ; assim como
tens visto teu semblante muitas vezes no
regalo, da mesma sorte acabas de ouvir a
tua voz na floresta. Se houvesses grilado
umapalavradelicada, ouvirias outra iguah
Tudo é assim n’este mundo. A conducta

i
— 13 —

dos outros a nosso respeito é geralmente


0 écho da nossa. Se tratarmos com bene­
volência aos nossos iguaes, elles nos tra­
tarão da mesma maneira; se, porém,
usarmos de grosseria, não poderemos nem
. I
teremos o direito de esperar melhor tra
tamento.
O écho repete sempre
, Nossos gritos na floresta.
1 Seja sempre a nossa voz
Casta, pura e modesta.

VII

A fonte

0 pequeno Guilherme caminhava pelo


meio dos campos, em um dia de estio em
que fazia calor extraordinário. Suas faces
estavão rubras, e o pobre menino morria
de sede. De repente chegou perto de uma
fonte cuja agua crystallina sahia de um
rochedo á sombra de um bello carvalho.
Guilherme precipitou-se para esta agua
fria como o gelo, e, bebendo d’ella, cahio
por terra quasi desfallecido. Assim chegou
r ■
— 14 —

' ni
doente á casa de sens pais, entregue a
uma febre muito perigosa.
— Ah ! dizia suspirando no seu leito,
quem dissera, ao ver aquella agua tão lim-
pida, ' que ella continha um veneno tão
máo?
Seu pai 0 ouvio e lhe disse :
Não é a fonte, cuja agua é tão pura, a
causa dos teus males ; é tua imprudência,
meu filho.

Quantas vezes o prazer mais puro


t• Se rnuda em mágoa acerba e dolorosa,
Se aimprudencianos impelle os passos
Por uma senda alheia e tortuosa 1

I
Em um bello dia de primavera, a pe-
quena Margarida foi passear sózinha nos
prados proximos á aldêa, e se divertia em
colher flores para formar um ramalhete.
Ella vio, junto de uma sebe de espinhos,
uma grande quantidade de lindas violetas.
Transportada de alegria, começou a colhêl-
as sem precauções.
— 16
— Minha filha, lhe disse um velho al- j
deão que por alli passava, afasta-te d’esta
sebe, que é o lugar onde as serpentes se
escondem. ' 1
A menina ficou cheia de terror e parou
por alguns momentos ; porém a cobiça de
possuir as lindas flôres venceu ao receio.
— Só qtiero, disse ella, colher aquella
violeta que apparece entre as hervas : tem
uma cor azul tão formosa que eu a desejo
para o meu ramalhete.
No instante em que ia colhêl-a, uma vi-
bora enroscou-se no seu braço, mordeu-a
e inoculoudhe o seu veneno fatal. A po­
brezinha, a finda Margarida, morreu no
fim de algumas horas.

Feliz aquelle que possue o dom


De saber moderar os seus desejos
Quantas vezes um fatal veneno
Se occulta no estridor dos beijosl
— 17 —

ir
O
i A3 MAÇAS

Uma manhã o pequeno Gregorio vio da


IÇ Bua janella uma quantidade de bellas e
■•í rubicundas maçãs espalhadas sobre a rel­
va no vergei do vizinho.
O menino desceu apressadamente as es­
cadas, e, se arrastando com.a barriga pelo
chão, entrou por um buraco do muro para
0 vergei alheio, e encheu de maçãs as
;i algibeiras da calça e do paletó.
De repente, porém, o vizinho appareceu
na porta do jardim com um cacete na mão.
Gregorio correu com toda a rapidez que
lhe podião prestar as suas pernas, e quiz
sahir como tinha entrado, arraslando-se
pelo chão.
Entretanto o pequeno larapio ficou pre­
so na estreita abertura do muro, porque
tinha as algibeiras complelamente recheia-
das. Vio-se,' pois, na triste necessidade
CONTOS P F SCHMID 5Î
— 18
de restituir as maçãs que roubara e soffrer
0 castigo que tinha merecido.
— Lembra-te, lhe dizia o vizinho : ic
Que a fortuna adquirida injustamente
Póde ser castigada incontinente.

XI

A PERA
J^ü
i
Uma nobre dama coUocou seu fllho i:iii
Adolphe como pagem na côrte de um
♦■ grande monarcha. Cornos olhos banhados
de lagrimas, no momento da partida en­ .L ..

cheu-lhe 0 coração dos mais preciosos í Kr.


tir »

conselhos ;
— Querido filho, lhe disse soluçando,
&
além de tudo que te acabo de recommen- E
dar, nunca esqueças de amar a Deos e de
ï
julgal-o presente a todas as tuas acções.
Respeita ao principe, teu amo, como se
fo sse teu pai, e nunca deixes de estimar
aos teus camaradas como se fossem teus
irmãos ; foge, porém, da golodice, meu 6’
filho, que é esse o teu defeito principal.
— 19 —

Chegando á côrle, foi Adolpho encarre­


gado de servir o principe á mesa. Um dia
elle conduzia em um prato de metal algu­
mas peras cozidas com assucar ; teve a
tentação violenta de comer uma, e, se bem
que não se tivesse esquecido dos conse­
lhos de sua mãi, n’aquelle momento tra­
tou unicamente de saciar o seu desejo.
Pegou em uma das peras, e, antes de che­
Il gar á sala em que se achava o principe, a
engulio precipitada mente ; antes, porém,
!í de collocar o prato sobre a mesa, o infeliz
menino cahio morto : a pera, que estava
extremamente quente, queimou-lhe o gar­
ganta e 0 estomago.
Se não tentas reprimir os teus desejos,
E a vontade que te arrasta desabrida,
De certo perderás a propria honra,
Mil vezes superior á propria vida.

i X II

A NOZ

Dous meninos acharão uma noz debaixo


pj de uma grande arvore perto da sua aldêa.
- 20 —

— Ella é minha, disse Ignacio, fui eu


U *. ' que a vi primeiro.
m -»ï>i , • — Não, respondeu Bernardo, ella me
pertence, porque eu a apanhei.
N’isso empenhüu-se entre elles uma
grave questão.
i'5
,■ v' — Quero restabelecer a paz, disse um
moço que passava n’aquella occasiâo.
Collocou-se entre os dous pequenos
: ^ contendores e lhes fallou d’este modo :
l'î ^>'■ — Uma das conchas da casca pertence
i' ■
a quem a vio e a outra a quem a apa­
f nhou ; quanto á amêndoa, porém, perten­
ce-me como recompensa da sentença que
?! acabo de proferir. É este, accrescentou
ií!
I' al rindo-se, o desenlace habitual da mór i
I

M.

H:
I■
' I »' parte dos processos.
il
iîà‘
irî’ Ç^'.t
iS ^ri
I
Quem não adora o socego,
i'' E se apraz antes com a luta,
.i
Perde a causa muitas vezes,
E além d’isso paga a custa.
X III

A C ASCA DA NOZ

'A pequenina Liseta achou no jardim


U
uma noz coberta com a sua casca ainda
verde. Elle á tomou por uma maçã, e prin­
cipiou a com'el-a ; apenas, porém, a linha
mordido, alirou-a fóra gritando :
— Oh! quanto éamarga!
Conrado, seu irmãozinho, que era mais
(D
judicioso, apanhou-a immediatamente, e,
descascando-a com os dentes, lhe disse :
— Eu não faço caso do amargor da cas­
ca, porque sei que no interior ha uma
amêndoa cuja doçura apreciarei muito
mais.
Quando um prêmio suave nos alenta
E nos mostra o promettido porto,
Que nos importa os soffrimentos da alma,
Se além achamos perennal conforto ?
h
— 22

XIV
1^
PEREIRA

Frederico era um menino cheio de petu­


lância e de leviandade ; não fazia caso dos
Vl
melhores conselhos que lhe davão e lan­
’ ^'-ir çava tudo ao ridículo.
Um dia elle desceu para o jardim com
sua irmã Sophia. O canteiro d’esla estava
KS' ornado das mais bellas flôres, porém o de
Frederico inculto e cheio das plantas mais
agrestes e damninhas.

í i — Meu irmão, disse Sophia, como pó-
des desprezar a tal ponto o teu jardim
Bem disse mamãi que nunca has de alcan­
í .' çar um alto lugar entre os outros.
Frederico sorrio-se, e, trepando a uma
i Íí'Ví, alta pereira, gritou para sua irmã :
— Oh ! Sophia, olha para cima, vê se
me engano ou não, creio que mè acho em
um lugar bem alto, não te parece ?
rVj Mal acaba de pronunciar estas palavras,
— 23 —
quando ogalho, zás !... q u e b r o U ' S e , e Fre­
derico cahio torcendo o braço.
Quem se ri dos conselhos da prudência
Da sua leviandade recebe a recompensa,

XV

A PLANTA PRECI OSA

Duas criadas, Brigida e Walburge, ião


para uma aldêa vizinha do lugar em que
ellas moravào ; cada uma carregava uma
cesta de fructos extremamente pesada.
Brigida não cessava de se queixar e de
suspirar ; Walburge, ao contrario, ria-se e
caçoava.
— Como pódes rir de tão boa vontade,
lhe disse Brigida, se a tua cesta é lão pe­
sada como a minha e se as nossas forças
são iguaes ?
— Eu, respondeu-lhe Walburge, ajun-
lei á minha carga uma planta que eu co­
nheço : ó ella que me faz achar muito leve
0 peso que carrego; faze como eu e te
acontecerá a mesma cousa.
— 24 —
J — Sem duvida alguma, tornou-lhe Bri
gida, que é uma planta muito preciosa.
Quem me dera ter uma para tornar tam­
r
bém a minha carga mais leve ! Dize-me
m
por favor o seu nome.
— A planta preciosa, respondeu-lhe
P p ?■ Walburge, e tão sómente a unica que tem
m ' \ 0 poder de alliviar todos os fardos, cha­
ma-se a paciencÁa.
IÍP -
,..0 Quem possue a paciência^
Se padece alguma dor,
Se soffre algum desengano,
E menor o seu rigor.

XVI

o NABO

Um pobre jardineiro tinha cultivado no


seu jardim um nabo cuja grossura cau­
sava admiração a todos.
— Eu quero, disse elle, dal-o de mimo
ao Monsenhor, porqne sei quanto elle
aprecia os jardins e os campos bem culti­
vados. Dito isto, levou o seu présente ao
castello. Monsenhor elogiou o seu desvelo
— 25 —
pela industria 6 a sua dalicadeza, man-
üando dar-lhe 1res ducados em recom­
pensa.
üm aldeão, que tanto tinha de rico
quanto de avarento, ouvio contar este facto.
< — Ëu quero, disse comsigo, offerecer
tambem a Monsenhor o m elhor carneiro
'que possuo; se elle deu très moedas de
ouro por um miserável nabo, o que não
dará por um animal tão formoso como
0 meu carneiro ?
Immediatamente levou-o para o castel-
lo, onde supplicou humildemente a Mon­
senhor que 0 aceitasse. Este adivinhou o
motivo que excitava o avarento camponez
a fingir tamanha generosidade.
1 Recusou completamente o presente.
• Tantos protestos fez o camponez, e tanto
pedio a Monsenhor que não lhe roubasse
0 a felicidade de consagrar-lhe aquella
e offerta, que elle aceitou-a emfim, dizendo-
i' lhe :
0 — Pois bem, já que me obrigas, eu
0 consinto em recebel-a ; porém quero mos-

— 26 —

trar-metão generoso como foste comigo :


em troca do teu mimo quero dar-le um que
custou 0 triplo do valor do teu carneiro.
Dito isto, entregou ao aldeão estupe­
facto de admiração o grande nabo que ello
conhecia perfeitamente.
Um coraçao sincero é tao querido
Quão desprezivel um coração fingido I

X V II

A COUVE

Dous'criados, José e Benedicto, alra-


vessando, um a aldêa, passárão um dia por
junto de uma horta.
— Olha, disse José, como são prodi­
giosas aquellas cabeças de couve.
— Não acho, respondeu Benedicto, ne­
nhuma cousa de notável n’ellas. Encontrei
um dia, na minha viagem pela França,
uma muito maior do que a casa do cura
que tu vês alli em baixo.
— Não duvido, respondeu José, que
era caldeireiro; também me recordo de
ter trabalhado em um caldeirão do tama-
— 27 —
nho d’aquella igreja que nos vemos
d’aqui.
_Por Deos! grilou Benediclo, para que
serviria semelhante caldeirão ?
— Para cozinhar a couve que viste, res­
pondeu José.
I __ Perdão, replicou Benediclo, bem
vejo que usaste d’este meio, quando és tão
amigo da verdade, sómente para punir a
minha mentira ; isso me serviró de
emenda.
Quem procura elevar-se mentindo
Vai 6 ÎÏ1 outras mentiras cahincio .
1

X V III.

o s C O G U ME L O S

. Um dia uma boa senhora mandou sua


i filha Catharina colher na floresta cogu-
, meios, de que seu pai muito gostava.
I — Mamãi, bradou a menina entrando
em casa, achei muito bons cogumelos ;
I vêde, disse ella alevanlando a cesta, todos
i elles são vermelhos como escarlate e pa-
) ecem ornados de perolâs. Havia muitos
M
~ 28 —

d’aquelles escuros que vós trouxestes ul-


timamente ; porétn eu não quiz apanhar
nem um só.
— Insensata I bradou a mãi com terror,
estes bellos cogumelos, não obstante a
sua côr e as suas pérolas, contêm um ve­
neno terrível. Quanto aos escuros que des­
prezaste, são justamente os melhores, não
obstante serem tão feios. Assim acontece,
minha filha, com muitas cousas n’esie
mundo : ha virtudes modestas que não
brilhão, e defeitos deslumbrantes que os
parvos admirão. O peccado quasi sempre
»': tenta nos seduzir pelos seus exteriores
agradaveis.
Fugí sempre do peccado
Que promette um vil prazer ;
E veneno sempre occulto
'..-te' <1 Que de dôr nos faz m orrer!

<f.. X IX
•M
A A B O B O R A E A B OL OT A

Um rústico camponez descansava á


sombra de um carvalho, e olhava com at-
^ 29 —
® lenção os filamentos de um pé de abobora
Il que se enroscavâo em uma cerca de es­
pinhos.
î — H u m ! huml disse elle sacudindo a
cabeça, não gosto d’este arbusto tão pe­
quenino e rasteiro dando fructos tamanhos,
emquanto que este carvalho, tão grande e
jmagestoso, dá umas bolotas tão pequeninas.
^Se eu tivesse feito o mundo, seria o car-
gvalho que daria essas bellas aboboras tão
jdouradas e amarellas, que, segundo me
j parece, pesa cada uma pelo menos um
j^quintal.
Mal acabava de pronunciar estas pala-
vras quando uma bolota cahio da arvore
com tal força sobre o seu nariz, que o
sangue esguichou immediatamente.
— Cruz ! gritou o homem aterrado, eis-
ahi a recompensa da minha asneira ! Se a
bolota fosse uma abobora, a esta hora
estaria eu esmagado completameiite.
Não ha nada n’este mundo,
Desde a terra até os céos,
ií Em que não brilhem e fuljào
jjj, As maravilhas de Deos.
r
— âo —

XX

If
O CARVALH. O E O S A L G U E I R O

Depois de uma noite de grande tempes-


ta ie, Ricardo eseu fîlho Anselmo forãoao
campo pela manhã ver os estragos que
ella tinha produzido.
— Meu pai, disse o menino, vede o car­
valho, que parecia tão forte, estendido por
terra, no emlanto que o salgueiro ainda
está em pé na margem do regato. Eu sup- f
puz que acontecesse o contrario, e que o
vento derrubasse antes o salgueiro, que é
mais fraco.
— Meu filho, respondeu o velho, o car­
valho não se dobrou por causa do seu or­
' Il gulho, no emtanto que o salgueiro se abai­
xando e cedendo á impetuosidade do vento,
não lhe aconteceu nenhum mal.

Nunca se lucra em teimar


Por capricho ou sem razão :
Ceda 0 homem francamente
Quando tiver precisão.
XXI

o C A RV A L HO

Um dia comparecêrào diante do tribu­


nal da justiça dous moços, um chamado
5l Edmundo e o outro Oswald.

Edmundo expôz ao juiz que, tendo de


íi fazer uma viagem, havia tres annos, con-
ifiára a Oswald, que suppunha o seu me­
lhor amigo, um annel de diamante para
guardal-o, porém que este negava agora
reslituil-o.
Oswald jurou pela sua honra ser com­
pletamente falso 0 que o outro dizia,
accrescentando que o‘suppunha completa­
mente alienado por isso.
— Edmundo, disse o juiz, pódes apre-
sentra alguma testemunha que te visse
entre2*ar o annel a este moço ?
— infelizmente não, respondeu-lhe
aquelle; não havia ninguém, á excepção
de um velho carvalho que está isolado no
campo, e debaixo de cuja sombra nos des­
pedímos.
^ 32 —
9_
—r E mentira, atalliou Oswald ; não vi
Ocarvalho, assim como não recebi também
&
0 annel.

— Poisbem,disse 'ju iz; fu,Edmundo,


é 'K " vai ao campo buscar um galho do carvalho,!
^Vk I
que eu quero ver; e tu, Oswald, fica co-l
I'
migo até que elle volte. |
Edmundo partio. Depois de alguns mo-í
\ mentos, o magistrado exclamou : I
— Admira que Edmundo tarde tanto.
f I
Onde iria elle? Abre a janella, Oswald, vê
se já apparece. [j(
— Senhor, exclamou este, ainda é cedo :|j
0 carvalho fica distante d’aqui uma légua|
pelo menos. Í
— Miserável mentiroso I exclamou o juiz |\
■! /sr
t| indignado; ainda ha pouco juravas que|]
não conhecias a arvore, assim como não;
tinhas recebido o annel; agora tenho a
certeza de que nem só conheces o carvalho, ! ..

como tens em teu poder a joia de Ed­


mundo.
m'. ^ Oswald foi obrigado a restituir o annel
i-C ■
e publicamente castigado debaixo da ar+ S
J
/
— 33 —
vore que tinha servido de testemunha ao%
deposito’ que lhe fizera Edmundo.
Quasi sempre a iniquidade,
Quando illudir mais aspira,
E castigada em si propria,
Sendo o juiz a mentira.

X X II

o CAMPO

A choupana do pobre Nicoláo estava


cercada de espinhos e de aveleiras. Em um
dia de grande calor, elle descansava dei­
tado debaixo de uma arvore, quando por
alli passou um aldeão puxando a sua car­
roça cheia de magníficos feixes de trigo.
Nicoláo apenas 0 comprimentou com os
olhos, em que se via estampada a inveja.
O aldeão parou e lhe disse :
— Basta que tu cultives um pedaço
d’este terreno, sómenle o espaço que oc-
cupar teu corps, para que no fim do anno
colhas d’elle tanto trigo como o que levo
0
fta minha carroça.
Nicoláo aproveitou o conselho. Come­
çou a arrancar os espinhos e a cultivar a
CONTOS DO 80HMID.
. — 34 —

terra. No fîm do anno tinha elle iima ex­


cellente colheita, que lhe dava para viver
corn sua familia na abastança, sem ao
menos lhe ter custado um unico obolo.
o trabalho nunca deixa
De ser um bem muito puro ;
Só elle dá felicidades
E nos garante um futuro 1
4^
X X III

AS ESPI GAS

. ♦


fr
■í'1'

í\r .j//,

Um camponez foi um dia com o seu fi-


Ihinho Tobias visüar o campo das suas
ulantações.
— 35 —
— Olha, papai, disse aingenuacriança,
como algumas d'estas espigas de trigo es­
tão com a cabeça levantada ; ellas devem
ser muito boas. E estas outras, que estão'
quasi por terra, devem ser muito más;
não é assim, papai ?
O velho, depois de colher algumas es­
pigas, respondeu-lhe :
— Vê, meu filho : a espiga que se er­
guia tão altiva e soberana está comple­
tamente vazia ; entretanto as que se
inclinavão com tanta modéstia estão com­
pletamente cheias de bellos e excellentes
grãos.
Nem sempre aquelle que se ergue altivo,
Querendo dominar a natureza,
Possue os dotes que, ádornando a alma,
São os únicos de real belleza !

XXIV

o POL VI L HO

Um pellotiqueiro obteve permissão de


executar em presença de um principe uma
das pelloticas que elle dizia nunca o mo-
j. r —W
— 36 — j'

narcha ter visto. O homem apresentou-se k


com uma gamella cheia de polvilho des- k
temperado com agua. Pegando em uma
agulha, lançava-lhe o polvilho com lal x
agilidade que esse ficava-lhe suspenso na i
extremidade.
— Meu caro amigo, disse-lheo principe,
tendes certamenle excedido tudo quanto
até hòje lenho visto ; e como aprecio de­
vidamente 0 vosso trabalho, quero recom­
pensar-vos como mereceis.
Fallou depois ao ouvido de um dos seus f
criados, e este voltou no fim de alguns ^{1
minutos com um sacco que parecia muito L
pesado. O pellotiqueiro dava mil parabéns L
á sua boa estrella, suppondo-o cheio de
ouro. - I
Ajuize-se do seu desapontamento quan-rt.
do, mandando 0 principe abrir o sacco,«»
achou-o cheio de polvilho, e ainda mais i,
desapontado ficou quando 0 monarcha lhe jj
disse:
— Como a vossa occupação de pelloti­
queiro não é de utilidade alguma para os||
— 37 —

homens, e receio que elles não gratifiquem


0 vosso trabalho como mereceis, não quero
que vos falte polvilho por não poderdes
compral-o ; por isso é que vos offereço
este sacco.
Nunca tenteis um trabalho
Que não tenha utilidade^
Nem só a vosso respeito
Como a toda a humanidade

XXV

o UNHO

Uma dama muito rica cultivava linho


■íl nes suas terras. Um negociante apresen­

tou-se em sua casa e lhe disse :


uvl — Eu sei que o vosso linho não é de
boa qualidade : dai-me um sacco de se­
mentes d’elle, que vos arranjarei sementes
de outro paiz ; apenas me dareis pela troca
um ducado.
fíl A dama aceitou. O mercador, que era
um consummado velhaco, pensou enganar
a dama trazendo-lhe o mesmo sacco que
ella lhe tinha dado e guardando para si o
it 38
ducado. No caso, porém, da semente falhar
w, elleaUribuiria isso á mudança de clima ou

|w á má qualidade do terreno.

itó :' Dito e feito. Levou d’ahi a dias o sacco.


,i„|^^
. í ’ I ii-l <' ': A dama ficou contentissima e mandou que
despejassem as sementes. Mal cumprião
suas ordens quando luzio uma cousa....
■ ) ti;-.:
era um magnifico annel de ouro. A dama
gritou:
— Eis ahi 0 annel que perdi no outom-
no passado quando dei as sementes do meu
■ .
linho.
E, dirigindo-se ao mercador, continuou
encolerisada :
— Vós sois um miserável, cuja mascara
acaba de cahir agora mesmo ; quizestes
vender-me o meu proprio linho como se
fosse estrangeiro. Em vez de dar-vos um
ducado, vou obrigar-vos a dar-m’o como
castigo da vossa má fé.
Com effeito,o tribunal obrigou*o a isso,
e elle sentio-se tão corrido de vergonha,
que vio-se obrigado a abandonar o com-
mercio.
— 39 —
üin laflrào procura embalde
^ Dar â mentira um verniz :
" Çuando menos elle espera,
É ella mesma o juiz !

XXVI
k
O THESOURO

Em um paiz muito longínquo, apresen-


tárão-se dous aldeãos perante um juiz. Um
d’elles lhe disse :
— Senhor, eu comprei um campo ao
meu vizinho, que aqui vedes ; trabalhan­
do n’elle, achei um thesouro que a minha
consciência me obriga a não aceitar, por­
que não possuo nenhum direito sobre elle.
ii — A minha consciência também, respon­
deu 0 outro, me diz que esse thesouro não
é meu. Não fui eu que o enterrei ; além de
que, vendi a terra com tudo que se acha­
va n’ella. Compete a vós, illustrado juiz,
decidirdes a quem pertence o thesouro.
— Disserão-me, respondeu o magistra­
do, que um de vós tem uma filha, e o ou-
Iro um filho, que se desejão casar ; seja,
V. H
— 40 —

pois, O lhesouro de ambos, como dote que


tfi'# lhes dâo seus pais. j
iÉ# i1'
-i' r
Osdous honrados camponezes seguirão
i
1 0 conselho, voltando para- suas casas na
mais completa alegria :
^ i

' r ;i| A virtude é o dom mais pure


Que DOS deu o Creador :
É dos bons o doce enlevo,
>..
E do sabio o puro amor.

Il
•V »

Um estrangeiro que se achava presente


a essa decisão testemunhou a maior admi­
ração.
— Isso se teria decidido de outro modo
no meu paiz, disse elle : o comprador não
poria duvida em dar alguma cousa ao ou­
tro, e por esse motivo se calaria j se assim
não acontecessOj o vendedor o chamaria á
justiça e começava uma demanda que lhes
havia de custar mais que o proprio the-
souro.
O juiz, admirado dressa linguagem, per­
guntou-lhe
— 41 —

__ O vosso paiz é illuminado pelo sol ?


-X Gertamente, respondeu-lhe o estran­
geiro.
_E a chuva cabe lambem sobre oscam-
pos ?
— Sem duvida alguma.
_ É singular! continuou o magistrado.
Dizei-me ainda : Tendes ovelhas e gado ?
_ Em grande quantidade, respondeu o
estrangeiro.
— É por isso, exclamou o juiz, é para
esses innocenles animaes que o sol brilha
s c a chuva cabe, mandados por Deos , vós
j! outros não mereceis certamente esses fa«
vores.
01 Onde reina a boa fé
Habita também a paz;
ill Os lugares que ella deixa
« Nao prosperào nunca mais.
il
XXVII

o MARCO

Ulric habitava uma linda casa cercada


de verde e espaçoso terreno, onde se osten
í)
— 42 —

tavao muitas arvores fructiferas. Esse


{ terreno era contíguo ao prado de um vi­
zinho. Ulric queria augmentar as suas
fîft possessões á custa d’aquelle. Uma noite
recuou para dentro do prado o marco que
servia de limite ás suas propriedades. Al­
gum tempo depois, querendo subir em
uma arvore, collocou junto d’ella uma
escada. Chegando no alto da cerejeira, e
no momento em que deixava o degráo da
escada, esta recuou, e, tendo cahido, Ul-
ric bateu com a nuca no marco e ficou
M

aleijado. Se não tivesse mudado o marco,
cahiria além d’elle sobre a relva e não te-
ria soffrido tanto mal.
Aquelle que se entrega inteiro ao vicio,
Faz d’elle quasi sempre o seu supplicio.
i <
X X V IíI

A PARREIRA

Um jardineiro tinha plantado perto da


sua casa uma parreira, cujas folhas co-
brião toda a parede, e cujas uvas erão de­
liciosas.
— 43 — !
H A parreira excitou a inveja de um vi­
zinho, que de noite cortou os mais bellos
dos seus ramos, julgando matal-a deste
modo.
Muito seaffligio o jardineiro de manhã,
vendo o que lhe tinha acontecido, porque
não sabia quanto a poda desenvolve a par­
reira.
— - Senti correrem-me as lagrimas, dis- ^
H se elle, quando vi este bello arbusto mu­
tilado; noemtanto nunca tive tanta abun-
dancia de uvas e nem mais bellas do que
este anno.
Este incidente despertou-lhe a idéa de
podar a parreira para lornal-a mais fértil.
Ço nosso inimigo, ás vezes, amaldadej
É a origem da nossa felicidade.

X X IX

AS L E N T I L H A S

Outr’ora havia um homem muito rico


que vivia em extrema penúria. Elle só­
mente se sustentava de lentilhas, pela
sua barateza epela nutrição que possuem.
'y' >
•: iíT
— 44 —
Deitava na panella as que erão absoluta­
mente necessárias para não morrer de fo­
me ; porém, antes d’isso, elle as contava
uma a uma diariamente. Entretido n’este
serviço, abandonava os cuidados da casa
e os seus interesses, e, emquanto poupava
I algumas lentilhas, seu criado roubava-lhe
mais de um sacco de grãos.
O homem rico acaba muitas vezes por
ci ser extrema mente pobre.
Nâo empregues o teu tempo
Em pequenas fantasias,
Procura sempre occupar-te
Com cousa demais valias.

XXX
A PA RRE I RA

Quasi na hora da morte, disse ura pal


a seus filhos :
— Meus amados filhos, eu apenas vos
deixo a minha cabana e alguns pés de par­
reira ; porém lembrai-vos que esta ulti­
ma dadiva occulta um thesouro. Cavai a
terra incessantemente o vós o achareis.
Depois de sua morte, os filhos virarão
— 45 —
ô rBvirárão a terra em todos os sentidos 5
não acharão, porém, nem prata nem ouro
algum. Como nunca livessera cultivado
N
:'a lào bem 0 terreno como n’aquelle anno,
:î este produzio uma colheita tão abundan­
te de uvas que todos ficarão sorprendidos. !. K
îr
Só então comprehendêrào qual erà o
thesouro em que lhes fallára seu pai, e
escreverão sobre a porta da choupana es­
tas palavras em grandes caracteres :
O verdadeiro thesouro é um trabalho
[constante
n(
Para aquelle que lhe vota toda nora, todo
[instante,
XXXI
AS AVES

Havia antigamente uma linda aldôa


f cercada de muitos e productivos arbustos
que florescião na primavera, exhalando
os mais deliciosos perfumes; os seus ra­
F mos, assim como os cercados vizinhos,
estavão continuamente ladeados de passa­
rinhos, que entre o trançado dos galhos
fazião os seus ninhos e soltavão os seus
maviosos gorgeios. No outomno, as arvo-
— 46 —

res se debruçavão ao peso das peras e das


I '
ameixas.
No emianto, alguns meninos malévolos
da visinhança tanto fízerão, que as aves
deixárão os seus ninhos, e nunca mais se
lhes ouvio 0 alegre cantar. D’ahi em
m m diante os jardins se tornárão tristes e si«
1*' lenciosos. As lagartas, que ellas consu-
mião outr’ora, se multiplicáráo com rapi­ ct
dez tal, que, devorando as flores e folhas,
as deixavão nuas como se estivessem no
rigor do inverno.
Os malévolos meninos, que tinhão an­
tes d'isso fructos deliciosos e abundantes,
não virão mais nenhum sobre o cume das
arvores.
Creando o céo, a terra, a luz, as flôres,
Deos nos quiz accumular de mil favores.
Respeitemos todos nós a singeleza
Com que quiz adornar a natureza 1

X X X II

o CAN A RI O

Christina ha muito tempo pedia a


mãi que lhe comprassé um canario.
— 47

— Eu te darei um, dizia aquella, se fo­


res sempre boa, docil e diligente.
Christina promettia tudo.
Um dia que a menina voltava da esco­
la, sua mâi lhe disse :
— Eu vou sahir ; deixo em cima d’esta
mesa uma caixinha completamente nova,
em que te recommendo não toques, nem
pegues. Se me obedeceres, eu te promette
teres uma grande satisfação logo que volte.
31! Apenas ella sahio, a curiosa menina
apossoü-se da caixa e principiou a miral-a
por todos os lados.
li
— É bem leve, dizia comsigo ; tem uns
buraquinhos na tampa; para que serião
feitos ? O que terá dentro?
p], pensando que sua mãi não a via, abrio
?í a caixinha, e no mesmo instante escapou
i:
um lindo canario, que começou a adejar
no quarto, soltando alegres trinados.
Christina esforçou-se inutilmente para
apanhar a avezinha e fechal-a na sua pri­
são antes que sua mãi visse a sua deso­
bediência.
^ 48 —
No momento em que, anhelantede can­
saço e corn as faces rubras de fogo, perse­
guia em vão o aligero fugitivo, sua mai
h entrou no quarto e lhe disse :
— Filha curiosa e desobediente, eu ia
te fazer mimo d’este canario ; mas antes
queria saber se eras digna d’elle : vou im*
medialamente entregal-o ao caçador
üm menino obediente
Embora tenha certeza
De seus pais o nào saber,
Cumpre sempre o seu deverc

X X X III

, o ESTORNINHO

Maurício, o velho caçador, tinha no seu


quarto um estorninho que elle tinha cria­
do, e que sabia articular algumas pala­
t r* vras. Quando lhe dizia, por exemplo. —
Estorninho, onde estás ? a ave nunca
deixava de gritar : — Estou aqui !
O menino Carlos, filho do vizinho, gos­
tava muito de ouvil-o e fazia-lhe amiuda­
das visitas. Um dia que chegou á casa do
— 49 —
^ caçador, não o achou no seu quarto. Im-
medialamente apanhou a ave e a inetteu
na algibeira, querendo logo evadir-se com
0 seu furto \ no mesmo instante, porém,
entrou o caçador, que, suppondo agradar
|a o menino, perguntou, como tinha por
:. costume :
I — Estorninho, onde estás?
— Estou aqui ! gritou a ave com toda
a sua força, escondida no bolso do menino,
Por mais que se tente um roubo occultar,
A ’s vezes vem elle por si se mostrar,

XXXIV
I

0 GALLO

r'
t
'

Uma mãi de familia muito diligeníe ti­


nha o coslume de acordar as suas criadas
4
i

— 50 —
ao,cantar do gallo, para cuidarem no ser«
viço.
Aquellas odiavão o pobre animal, e um
dia 0 malárâo, suppondo quó d’ahi en-
diante dorrairião alé mais tarde. A dona
da casa, nào tendo por onde guiar-se,
acordava mais cedo, e algumas vezes
mesmo á meia noite.
Tentando ás vezes arredar um mal
Que nos priva de um gozo desejado^
Vem depois outro mal inesperadol

XXXV

A GALLI NHA

4^
Ü
l

Uma velha tinha uma gallinha que pu­


nha todos os dias um ovo. Eila a engor-
J| ■ — 51 —
ij
dou muito, julgando por esse meio obter
diariamente dous ou Ires ovos : mas o
.! excesso da comida engordou-a de mais, e
. a gallinha nunca mais pôz.
!f|j Contentai-vos com o pouco
Que 0 destino vos legou.
Quem deseja ter de mais
Perde tudo que ganhou !

XXXVI

0 NI N H 0

Um menino muito máo tinha o costume »

de procurar os ninhos dos passarinhos em


todas as partes, para arrancar cora uma
barbara alegria os seus olhos. Sua mãi
lhe dizia muitas vezes ;
— Recorda-te do que eu te previno : se
nfio tentas corrigir-te, Deos te castigará.
O menino zombava d’esses conselhos, e
de dia a dia se comportava peior.
Um domingo, em vez de ir á missa, foi
para o matto praticar novas crueldades.
Vio um grande ninho no cume de um car-
— 52 —
valho elevado. De repente trepou na ar­
vore, arrancou do ninho uma das avese a
ït'i: ,
lançou violentamente no chão ; e ainda ia
apanhar uma outra quando chegárão o
i" pai e a mãi, que erão aves de rapina, e com
os seus bicos vasárão-lhe também os
olhos.
Quem náo attende aos conselhos de seus
pais
: J
Expõe-se a soffrer males mortaes.

X X X V II

AS A B E L H A S

Um dia Alberto entrou no jardim do


vizinho e vio uma bella roseira toda cheia
de flores. Colheu uma rosa e disse :
— É preciso respirar o seu perfume cora
toda a embriasruez.
Apenas tinha chegado ao nariz a flôr
meio aberta, sentio uma dôr aguda e vio­
lenta. Uma abelha, occulta no calice da
rosa, lhe tinha picado a venta, porquanto
— 53 —

0pequeno estúrdio quasi que a tinha es-


«

magado.
Um prazer que não se goza
Com muito comedimento
Se transforma muitas vezes
Em tyranno soffrimento.

II

Alberto, encolerisado completamente,


encheu as mãos de terra, e como um fu­
rioso atirou-a sobre a colmêa. As abelhas,
irritadas por isso, lançárão-se sobre elle,
dando-lhe mais de cem mordidellas vene­
nosas, que 0 lançárão de cama, sendo
ainda muito feliz por escapar da morte e
ter soffrito unicamente um longo curativo.
Soffre teus males com paciência infinda,
Senão os queres augmentar ainda!

X X X V III

AS MOSCAS E AS ARA NHA S

Para que fim Deos creou as moscas e


as aranhas, dizia continuamente um prin­
cipe, se de nenhuma utilidade são ellas
— 54 —
para o homem ? Se eu pudesse, as faria
desapparecer da terra.
Ura dia esse principe vio-se obrigadr
na guerra a fugir adiante do inimigo.
Sentindo-se já muito fatigado, deitou-se
debaixo de uma arvore e adormeceu. Um
soldado inimigo, que o vio, pegou no sa­
bre e deslizou se docemente para assassi-
nal-o. De repente uma mosca pousou-lhe
no rosto, dando-lhe tal ferroada que elle
despertou, e, lançando mão da espada,
perseguio o soldado, que fugio. D’ahi cor­
reu 0 principe a esconder-se em uma gruta.
Durante a noite as aranhas fiárão as suas
teias na entrada. De manhã dous inimigos
que andavão ém procura do principe pas­
sarão por alli.
h' — Olha para a gruta, exclamou um
d’elles : quem sabe se escondeu-se n’ella !
— Não é possivel, respondèu-lhe o ou­
h;
tro, porque então teria quebrado a teia de
J
aranha que está na porta.
No momento em que o principe perce­
beu que elles tinhão partido, exclamou
^ 55 —
îji cheio de emoção e erguendo as mãos para
'o scéo s:
— Oh ! meu Deos, quantas graças não
il le devo! Hontem me salvaste a vida por
meio de uina mosca, ehojeo fizeste nova-
mente servindo-te de uma aranha. Oh !
|i nada iguala a perfeição das tuas obras e ] ■

a sabedoria que preside a todas ellas.


Mesquinho insecto ás vezes, de repente,
Pesta ao homem um serviço omnipotente.

X X X IX

o GR A N D E P E I X E

Um pescador levou todo o dia pescando


em um lago*, porém não apanhou nem um
peixinho. De tarde voltava elle tristemente,
remando para terra.
— Eu creio, murmurou comsigo, ter
Gido tão infeliz hoje porque não implorei
a benção de Deos para meu trabalho ,
prometto, porém, que isso nunca mais me
acontecerá.
De repente um grande peixe, que se via
perseguido por outro, saltou fóra da agua
— 56

e cahio dentro da barquinha, principiando it


9 saltar aos pés do pescador.
0 que nao pódevencer o esforço humano
um so momento faz o Deos soberano. ’

XL

O CÃ02INH0

Uma menina chamada Carolina, indo


passear um dia á borda de um regato, en­
controu alguns rapazes máos que queriâo
afogar um cãozinho. Ella teve dó do ani­
mal, comprou-o, e o levou comsigo para
0 castello. Pouco tardou que elle se acos­
tumasse com a sua dona, e a tal ponto que
nunca a deixava. Uma noite, quando ella
la deitar-se, o cão principiou a latir com
vehemencia.
Carohna pegou em uma luz, e exami­
nando vio escondido debaixo da cama um
bomem de horrivel catadura. Gritou em
altas vozes que acudissem ; prendêrão o
ladrao, que foi entregue á justiça, a quem
declarou no interrogatorio a intenção que
tmha de matar a moça e roubar a casa
5? -
^ menina rendeu mil graças ao ceo por
lèl-a salvado tão milagrosamente, dizendo:
_Quem julgaria que o pobre animal a
quem salvei a vida viria a seu turno sal­
var a minha ?
Se do céo as santas graças
Deseiais ter, ó mortaes l
Sêde sempre compassivos
Com os pobres auimaes !

XLI

AS O V E L H A S

lai
■m

Um joven pastor tinha o costume de


guardar o seu rebanho nas montanhas.

;i
I
•")
A — 58 —
Um dia, estando assentado sobre o pe­
daço de uma rocha á sombra de um sal­
gueiro, principiou a cochillar. Como sua
cabeça oscillasse de diante para trás, o
carneiro que passou perto d’alli suppôz l!
que elle o estivesse desafiando, e, arre-
_ messando-se de longe, bateu-lhe rude­ '■■i
mente com as pontas. O dorminhoco,
acordando enfurecido de um somno tào
agradavel, agarrou no carneiro e atirou-o
no fundo de um abysmo. As ovelhas, logo
que 0 virão sumir, saltarão todas no mes­
mo lugar e morrerão sem escapar uma só. ha
, O pastor arrancou os cabellos de deses­
pero, gritando : i
Desgraçado é sempre o hoínem íi
Que não reprime o furor.
Cava sempre novo abysmo, li
Augmentandoa suadôr ! 11“
itíi
II

1 A historia do infeliz rebanho espalhou-


se por toda a aldea, e um velho camponez,
que tanto tinha de honesto como de probo,
fez d’ella uma feliz aDoIicação.
— 59 -
Seus filhos e filhas desejavão ir á cidade
em um dia de feira, em que também ha­
via dansa.
_fqgo quero, disse o velho : passão-se
alli muilas cousas com que não concordo
e nem gosto. Eduquei a todos vós na inno-
cencia e na virtude, e com muita facili­
dade podeis perder ambas.
_ Porém, disserão os meninos, comoé
que muita gente não tem receio de irlá ?
— Muitos-vâo, respondeu o pai, porém
voltão cheios de doença e sem a sua inno-
cencia e virtude. Porventura quereis imi­
tar as ovelhas, meus filhos, que, se uma
salta no abysmo, as outras saltão tam­
bém? É por isso que vós as chamais de
an im aesp ois bem, o que será o homem
que se lança no precipicio porque outros
também se lançarão? Não terá elle mais
reflexão do que as ovelhas ?
Se o niáo se perde, se arrojando ao vicio.
Temei de acompanhal-o ao precipício.
— 60

X L II

O C AVAL L O ROUBADO

Durante a noite roubárão da estrebaria


de um aldeão o seu mais bello cavallo
No dia seguinte partie elle para o met.
cado vizinho, a quinze léguas de distan-
cia, para comprar um outro animal. Cal-
cule-se a sua admiração, conhecendo o
seu entre os que se achavão expostos á
venda. Pegou-o immediatamente pela re-
dea, gritando :
- Este cavallo é meu ; fazem très dias
que m o roubárão.
- Enganai-vos, meu amigo, lhe disse
pohdamenteo sujeito que o queria vender-
pode ser parecido com o vosso, porém eu
ja 0 tenho ha um anno.
0 aldeão tapou com as duas mãos os
olhos do cavallo, e perguntou ao vende­
dor de qual dos dous olhos elle é cego.
- Se 0 animal é vosso, deveis sabêl u
O outro, que era realmerite o ladrão do
— 61 —

cavallo, flcou atrapalhado, porque não o


tinha examinado detalhadamente; entre­
tanto respondeu ao acaso :
— É do olho esquerdo.
— Não, senhor, respondeu-lhe o cam-
s ponez, não é o olho esquerdo que lhe falta.
— Ah ! gritou o ladrão, eu me enganei;
-1 queria dizer o olho direito.
O aldeão descobrio os olhos do animal,
dizendo ao fingido dono :
— É évidente que sois um mentiroso e
um ladrão. Vêde todos c sêde testemunhas
de que o cavallo não é cego ; foi um meio
de que me servi para descobrir a ver­
dade.
Uma risada geral applaudio o enge­
nhoso estratagema do aldeão. O ladrão
îi
restituio o cavallo, e, sendo preso, soffreu
0 castigo que lhe impôz a justiça.
Por mais finorio que um velhaco seja,
Acha seu mestre quando o não deseja
— 62 —

s2 S T .7

Um pai entrelinha um dia seus filhos


sobre a perfeição que se póde adquirir
em qualquer cousa com o habito e o exer-
cicio.
Eu quero, disse elle, citar-vos utn
exemplo notável. Contárão-me que exislio
entigamente um homem que vajava por
diversos paizes com um boi. Carregava
esse animal ás costas, á vista de todos os
espectadores, o que lhe valia muito di-
nheiro que lhe davão. Perguntando-lhe
alguém como adquirira uma força tão
prodigiosa, elle respondeu ; « Quando este
boi era pequenino, eu o carregava todos os
dias no meu quintal durante algumas ho­
ras ; é certo que foi crescendo; porém as
minhas forças cresciâo na mesma pro­
porção, de sorte que o peso de um boi nâo
me póde esmagar agora.
Esta historia, falsa ou verdadeira, ajun-.
lava o velho pai, me faz lembrar o valor
que tem o velho rifào :
Nada é tao util á vida,
Como o exercicio e a comida.

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X LIV
1
(l . ^ 0 ASNO

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Il ' Eps-— >

Um jardineiro, querendo ir á cidade ^


' i vizinha, carregou de legumes o seu ani­
mal, de tal sorte que apenas se lhe via |
a cabeça e a cauda. I';
Atravessando o caminho pelo meio de
uma matta, cortou algumas achas de le- ^
nha, e, pondo-as sobre o asno, disse :
— Um peso tão ligeiro não póde faze^ i
mal nenhum. . i
— 65 —

Mais adiante, colheu'algumas varinhas


para estacar as flores, dizendo ainda :
— São tão leves que o animal nem sen­
tirá.
Quando o sol tornou-se a prumo no
céo, dardejando com mais força os seus
raios, tirou o seu capote e o lançou por
cima do fardo.
— Não estou longe da aldêa, disse elle,
e 0 capote, que eu alevanto com um dedo,
não augmentará a^carga do animal.
Apenas pronunciara estas palavras, o
asno esbarrou em uma pedra e não se er­
gueu mais, esmagado debaixo de um peso ^ ■

f' •
tão considerável. IrV- ' •
S .
— Ah ! bem tarde vejo eu, exclamou Vâ.
•4

tristemente, que nunca se deve impôr


aos homons nem aos animaes uma carga
superior ás suas forças.

XLV
O MACHO

Dous ladrões, tendo roubado um ma­


cho, 0 esc^ndêrào em uma floresta. En-'
5
— 66 —

trando no ajuste do preço por que o ven-


’i- 'il • I deriâo, eda parte que caberia a cada um,
ii'-.' ' :
nâo chegârâo a um accorde, e finalmente
tentârâo resolver a questão por meio dos
socos.
. .a : ; ,
Eis que no meio da luta, e quando
mais renhida andava ella, chega um ter­
ceiro ladrão, monta no macho, e foge sem
ser visto pelos dous, que só muito depois
descobrirão 0 logro.
— Podemos fazer, disse um d’elles
uma bella applicação do provérbio: «Que
tI
0 mel não é para a boca de quem o colhe,
sim para aquelle que o engole y>

h' ■
!j í *
' 'i .
Um macaco entrou por uma janella
para o quarto de um rico muito avarento
que nunca dava um real de esmola aos
pobres. Elle não estava em casa n’essa
occasião. O macaco,, achando uma caixi­
nha cheia de peças de ouro, principiou a
lançal~as pela janella fóra.
Logo a multidão reunio-se na rua, dis­
putando 0 dinlieiro a socos. Quando a
caixa estava quasi vazia, chegou o avaro.
Ajuize-se da sua cólera ! Ameaçapdo ma-
— 68 —

tar o animal, chamou-o de imbecil entre


outros nomes,
w
— E verdade, disse um vizinho, que é
pouco sensato lançar dinheiro pela janel-
la, como fez este macaco ; porém não é
mais sensato conserval-o aferrolhado,
como vós, sem fazer nenhum uso d’elle.
/
Feliz aquelle que, tendo
Ajuntado cabedae.s,
Faz a sua felicidade
E a felicidade dos mais^

lí í'.’'
X LV II

I' < O URSO 1 ..

-II <

Dous jovens caçadores, Huberto e Eus-


taquio, andavâo viajando, quando ouvirão
— 69 -

fallar ein um urso de extraordinário ta­


manho que estava acoutado em um bos­
que muito espesso na vizinhança.
— Nós 0 mataremos certamente, dis-
serão elles.
Desde esse dia nunca mais deixarão de
fazer esperas ao urso, e á noite voltavão
para a hospedaria, onde bebião do me­
lhor vinho que havia ; e, como não tives­
sem dinheiro, contavão pagar as despezas
com a pelle do ursó.
Um dia que percorrião a floresta, esse
approximou-se d’elles, soltando um terrí­
vel e espantoso berro. Iluberto atirou*,
mas 0 medo fez com que a bala resva­
lasse, o que tendo observado, o caçador
trepou rapidamente em uma arvore. Eus-
laquio, cuja espingarda ficou inerte, dei­
tou-se no chão, fingindo-se morto. O urso
cheirou-lhe a boca, os ouvidos e o nariz ;
♦lepois afastou-se, porque elles não co
inem os defuntos. Então Huberto desceu
Ja arvore, e perguntou ao companheiro,
'gracejando:
— 70 —
t — Fazes-me o favor de repetir o que te
disse 0 urso ?
— Elle me disse, replicou Eustaquio,
que para o futuro não vendessemos a
pelle do urso antes de têl-o estandido, no
chão.
Em négocies não tenhas confiança
Fiado tão sómente na esperança.

rl

5"3í.tT


T.Tíw-''

Um rapazinho muito mentiroso, cha­


mado José, pastoreava seus carneiros
[orto de uma grande floresta. Um dia
gritou por caçoada :
~ O lobo ! 0 lobo !
A esses gritos os camponios da aldea
vizinha corrêrâo armados de facas e cace­
tes; porém, não vendo nada, vollárão para
casa, sendo ainda em cima apupados pelo
menino.
No dia seguinte elle repetio a mesma
scena ; porém nãovierão todos os campo­
nios ; os que apparecêrão, sendo illudidos
de novo, voltárão despeitados para suas
casas. No terceiro dia o lobo veio com toda
a audacia. José principiou a bradar por soc-
corro; porém ninguém appareceu para
1 acudir-lhe. O rebanho correu todo para
a aldêaporém o pobre José, que não era
dos mais ageis, ou tão agil como os car­
neiros, foi pilhado e comido pelo lobo.
Falle embora o mentiroso uma verdade,
Que parece fallar sempre debalde !
É l 'i

Um pobre escravo, que linha fugido da


casa de seu senhor, foi condemnado á
morte; metlêrão-o em um grande páteo
cercado de muralhas, e contra elle arre-
messárão um terrível leão. Milhares de
pessoas assistião a este espectáculo. 0
leão furioso lançou-se repentinamente
sobre o homem; porém de súbito recuou,
e voltou novamente, sacudindo a cauda e
lambendo-lhe as mãos. Foi geral a admi­
ração dos espectadores, e, sendo interro­
gado 0 escravo, contou a seguinte histo­
ria :
' _ 73 —

« Tendo fugido um dia da casa do meu


senhor, eu me escondi em uma caverna
no meio do deserto. N’isso entrou um
leão apresentando-me a patae soltando
lugubres gemidos. Tirei-lhe compassiva-
rnente um espinho que o martyrisava, e
desde esse dia em diante tornámo-nos
1amigos, sendo elle quem fornecia a caça
para o meu alimento. Fomos separados
ultimamente por occasião de uma grande
caçada que fizerào no deserto; o meu po­
bre amigo, reconhecendo-me agora, ale-
I grou-se, como vistes com o nosso encon­
tro. y>
O povo, enthusiasmado de tanto reco­
nhecimento em um animal de tal feroci­
dade, grilou em uma só voz : — Conceda-
se a vida ao escravo e de”Se lhe o leao
reconhecido.
O escravo obteve a sua liberdade e ri­
cos presentes ao mesmo tempo.
O leão 0 seguia tão timidamente como
um cãozinho, sem nunca causar o menor
damno a pessoa alguma.
Se o proprio bruto 60 curva
Ante a lei da gratidão,
Como póde ser ingrato
Quem possue uma razáo ?

o OU RO %

Os dous irmãos Gustavo e Luiz atra­


vessarão o mar e forão em longinquos
paizes tentar fortuna.
Gustavo alcançou um pedaço de terra
inculta, que em pouco tempo reduzio «
um bello campo que lhe forneceu pâo
em abundancia. Luiz embrenhou-se pelas
florestas, e foi no cume das montanhas
ver se colhia alguns grãos de ouro.
Depois de uma vida amargurada, e du­
rante a qual sómente se sustentava de
raizes e cascas de arvores, voltou para
casa de seu irmão com um sacco cheio de
ouro.
— Olha, irmão, disse elle, que boa for­
tuna fiz eu ! Todo esse ouro me pertence;
porém dá-me alguma cousa para comer^
porque estou cansado e cheio de fome.
— 75 —

__ Dou-te, respondeu-lhe Gustavo, mas


imponho que pagues a comida a peso de

0 irmão não gostou nada da propost ,


porém não teve outro remedio, porque
não tinha forças para continuar a jorna a.
À
Alguns dias depois, vendo-se Gustavo
de posse de todo o ouro do irmao, lhe

__ Meu bom amigo, eis-ahi o teu the-


fi souro; não sou tão barbaro que roubasse
aquillo que te pertence ; sómente queria
convencer-te de que a riqueza nao da fehu-
3. dade. e de que o trabalho é preferível ao
ouro.
i Quando o trabalho yos dá
Honesta subsistência
i?5 inveieis nunca o ouro,
Sem ^esV en dor da opulência.

LI
AS PÉROLAS

X
Um viajante, perdido em um d’esses
vastos e arenosos desertos que se percor
“I - >'t»
— 76 —

rem em longos dias sem divulgar-se uma


cabana, sentia-se já exhauslo de forçaae
quasi morto de fome. Doce alegria foi a
sua quando ao longe descobrio palmeira
csbelta e graciosa, e limpida fonte aos
seus pés. Junto a esses dons vio elle um
sacco contendo um volumoso embrulho.
— Graças, meu Deos ! exclamou arre­
batado de alegria; abençoados sejâo os
pomos que me envias para eu acabar
t
com a fome.

(í Dizendo isso, abrio o sacco ; mas ai!


qual não foi o seu desespero achando só
pérolas.

I
Mais que o dinheiro, talvez,
(Nào padece isso questão)
le m a comida o valor
Que nos indica a razão.
I .

A n
0 pobre homem ia morrer de fome ao
lado das pérolas, que valião milhões do
escudos! Ergueu os olhos para o céo e
implorou a piedade divina. De repente
appareceu um Mouro ao seu lado, que
— 77 —

orno elle também atravessava o deserto.


1 que voltava appressadamente para esse
ugar, onde estivera. O sacco era seu, e
,ão feliz se achou de encontral-o, que deu
10 infeliz viajante pão e fructos delicio­
sos, levando-o além d’isso na garupa do
seu dromedário.
_Vêde, disse ao seu companheiro, co­
mo a Providencia é justa e milagrosa,
como são grandes as suas maravilhas ! Eu
julgava-me o mais desgraçado de todos
os homens por ter perdido as minhas
pérolas, no emtanto que não podia acon
tecer-me maior felicidade : se assim não
fosse, eu não teria voltado a este lugar, e
não vos teria salvado a vida.
Por um meio muitas vezes apparente,
Deos aos salva a existência de repente.

LII
AS PEDRAS PRE CI OSAS

Uma dama encommendou a um ouri


ves um rico adereço e deu-lhe as pedra
necessárias para fazêl-o.
Um dos aprendizes do ourives, cha-
njado Roberto, gostava de admirar essas
pedras tão lindas e de cores tão variadas.
Levava ás vezes muito tempo em miral-as.
De repente o mestre vio que lhe falta-
vão duas das mais bellas; suspeitou iin-
I .<
mediatamente do aprendiz e passou uma
revista no seu quarto. Depois de muito
trabalho, achou ambas escondidas em
cima de uma caixa dependurada na parede.
Roberto soffreu^ além de um duro casti­
go, a humiliação de ser despedido da
It '
loja. Embalde protestou a sua innocencia;
as provas erâo todas contra elle. No dia
seguinte á sua partida, faltou uma outra
pedra; o mestre achou-a no mesmo lugar
era que estiverâo as duas primeiras. Não
podendo atinar cora o autor de seme­
! ' If,- lhante gracejo, espreitou cuidadosamente,
e vio uma pega, que Roberto linha cria­
do, voar para as pedras, pegar em uma
com o bico e deital-a em cima da mesma- fO ^
caixa.
O ourives afHigio-se muito com a injuô-
^ 79 —
(iça com que tinha tratado o pobre Ro­
berto ; chamou-o novamente para casa,
onchendo-o de ricos presentes, e cuidando
de fazer-lhe esquecer as suas faltas.
Nunca suspeites na vida
Contra a honra de ning;uem>
Quantas vezes a suspeita
Uma intamia não contém !

LIII

' os SEI XOS

O joven Floriano, criado de um lavra­


dor, soífria de uma moléstia perigosa, pelo
habito que tinha contrahido de beber
aguardente.
— Se não deixardes de beber esse licor,
disse-lhe o medico, morrereis sem duvida
alguma, pois que é elle um veneno para a
mocidade.
_Já não posso deixar de bebêl-o, res-
j pondeu-lhe o doente, pelo costume em que
estou 5 não ha dia nenhum em que não
bcba aquella garratinha que alli vedes.
— 80 —

■— Veremos, disse o medico, se encon­


trarei algum outro meio.
No dia seguinte levou-lhe uma linda cai-
xinha cheia de pequenos seixos muito deli.
cados.
— Lançai, disse a Floriano, cada dia um
d’esses seixos dentro da garrafa ; porém
nenhum d’elles tirareis para fóra ; d’esse
modo a aguardente não vos fará mal algum.
O doente julgou que os seixos tinhão a
virtude de neulralisar a propriedade malé­
fica da aguardente, e cumprio exactamente
a recommendaçãodo medico. Assim, bebia
todos os dias'algumas gottas de menos i(í
sempercebêl-o, e quandoa garrafa encheu-
i
ií'■ • se de seixos, perdeu elle também o fun$''^(o
íI ■ habito de beber.
<
Procura sempre te tornar mais puro:
i 'I Melhor sorte terás lá no futuro.
Ti I'
K • (

{f LIV
■ í«* A P E DRA
:^ '
i^ Um homem rico, tendo uma questão
I/;
com um pobre trabalhador, atirou-lhe
4
— 81 —

com uma pedra, que este apanhou e met-


teu na algibeira, dizendo :
Dia virá em que eu te restituirei ao
meu inimigo.
O rico, reduzido á mendicidade pela sua
prodigalidade e orgulho, passou um dia,
coberto de andrajos, pela porta do pobre.
Este foi procurar a pedra para atirar ao
infeliz; porém repentinamente parou, ex­
clamando :
— Eu vejo que nunca nos devemos vin­
gar de ninguém : se o nosso inimigo é ri­
co e poderoso, a prudência nos avisa que
devemos respeital-o ; se é infeliz, seria
commetter entáo uma crueldade, além de
que a vingança é indigna de um homem
honrado e de um christão.
Nunca procures vingança
Das injurias que sofíreres.
Deos protege as almas nobres:
Confia nos seus poderes.

LV
Ü S A CCO DE T E R R A

Um homem muito rico, qu<^rendo aug-


— 82 —
mentar a extensão de seu jardim, expellio 1*
uma viuva do unico pedaço de terra que
possuia. Passeando uma manhã pelos
seus domínios, vio elle chegar a pobre
velha com um sacco vazio na mão.
— Venho pedir-vos, disse ella, que me
deixeis levar da minha herança paterna
sómente a quantidade de terra que este
sacco puder conter.
— Consinto, respondeu o rico, não obs­
tante achar que é uma asneira.
A viuva ench eu o sacco, e lhe disse :
— Ainda tenho-um pedido a fazer-vos :
desejo que me ajudeis a pôr nas costas
este sacco.
O rico, acostumado á vida indolente e
preguiçosa, recusou formalmente; porém
tanto instou a velha que por fim consentie
em ajudal-a. Querendo levantal-o, não
pôde ; então gritou para a velha :
— Não posso : o sacco é muito pesado!
•— Como ! respondeu esta, achais pesa­
do um punhado de terra ? E o que será a
eternidade do peso que tereis de carregar
— 83 —
de um campo que contém mais de mil sac-
cos iguaes a este?
O rico espoliador da velha comprehen-
deu a sua injustiça e lhe restituio o seu
campo.
A fortuna adquirida pela usura
Enche a vida do homem de amargura.

LVI

A QUINTA

O velho Wilibald procurava questões


com todo 0 mundo e passava a vida em
« demandas. Vio um dia furando-se a parede
do vizinho para abrir-se uma janella que
deitava para a sua quinta. Wilibald quiz
oppôr-se, ameaçando o vizinho de cha-
mal-o á justiça. Muitos dos seus amigos o
aconselhárão que não fizesse tal, dizendo-
lhe que perdería a demanda; longe, po­
rém, de seguir esse conselho, ficou enfu­
recido, e, batendo rijamente um soco na
mesa, gritou :
— Hei de ganhar a demanda, e juro que
— 84

0 meu vizinho nunca mais verá a minha


quinta,
Com efíeito, começado o processo, elle |
o perdeu com todas as custas, vendo-se h
forçado a vender a propria quinta para
pagar o dinheiro que tinha pedido em­
-•f
prestado.
Miguel, 0 filho de um lavrador abastado, >
comprou-a, o que deu lugar a alguns vi- ^
zinhos de Wilibald dizerem ; g
_Vós ganhastes o processo e obtives­
tes 0 que desejáveis. Não é mais a vossa $
^ quinta que o vizinho vê da janella, é a '
quinta de Miguel.
Quem se mette em demandar.
Ganhe ou perca muito embora.
Vem chorar!

LVII

A MURAL HA MA R A V I L H O S A

Durante uma guerra os habitantes de


certa herdade vírão-se em grande agonia;
uma noite sobretudo foi horrivel para sei
elles : o inimigo percorria o paiz e as-
85 —
signalava a sua passagem incendiando e
devastando tudo; só se ouvia continua-
inente o ruido terrível do canhão ; de mais
a mais era no inverno, e o tempo frio e
nebuloso. Todos receiavão a cada instante
ser expellidos de casa em estação tão ri­
gorosa. Os velhos e os meninos passavão
acordados toda a noite reunidos no mesmo
!l!
quarto, nunca cessando de implorar a pro-
ecção divina. Uma noite uma das velhas
lia em voz alta a reza intitulada; Supplica
po.ra 0 teriipo de guevrcí, que dizia assim :
« F’ossa Deos elevar uma muralha protec-
lora que defenda este tecto hospitaleiro
do furor dos inimigos! » Umjoven aldeão,
quo a tinha ouvido, não pôde deixar de
dizer que era muita exigencia pedir a
Deos que fizesse uma muralha.
Entretanto passou a noite sem que ap-
parecesse um unico soldado inimigo. De
manhã, quando os habitantes se animá-
rüo asahir, qual 1..10 foi a admiração que
sentirão vendo que a neve tinha sido ele­
vada pelo vento a uma altura prodigiosa,

86 —
*

occuTtando por. esse modo ao inimlgo a


herdade em que se achavâo reunidos.
Toda a familia dirigio suas vozes de gra­
tidão para o céo. I

— Vêde, disse a velha que tinha lido a


reza, como Deos elevou a muralha para
nos defender do inimigo.
Depôr aos pés de Deos a confiança,
E ter no coração uma esperança. ít

L V III

O PAO

Em uma época de completa carestia,


um homem muito rico reunio nã sua casa i;
li os meninos mais pobres da aldêa.
lî ’ — Ahi tendes n’esta cesta, disse elle,
ï l i um pão para cada um de vós, e, em-
quanto Deos não tiver piedade de nós,
tereis todos os dias um pão como esse.
Os meninos lanção-se sobre a cesla.
a disputarem quem teria o melhor; í.
fim se retirarão sem darem os agradec?
mentos ao seu bemfeitor. id
Sómente Fanny, uma pequena menina,
— 87 —
cujos vestidos, se bem que pobrezinhos,
comtudo estavão muito asseiados, só­
mente ella ficou de parte, e por ultimo
pegou no pãozinho que os outros Iho
ünhão deixado; e antes de retirar-se bei­
jou as mãos do rico com viva expressão
de reconhecimento.
No dia seguinte os meninos não se mos-
Irárão mais discretos, e a pobre Fanny
teve um pão ainda menor que os mais.
Quando chegou á casa de sua mãi, quo
eslava doente, ella partio o pãozinho, e
de dentro cahírão muitas moedas de prata.
A mãi ficou estupefacta e lhe disse :
_ Vai depresss levar esse dinheiro ao
seu dono ; elle não é nosso, e só por des­
cuido é que 0 meltêrão no pão.
A menina obedeceu immediatamente ;
porem 0 homem beneficente recusou acei-
fíH
tal-o, dizendo :
— Leva esse dinheiro, minha filha ;e 11o
te pertence : não foi por descuido que o
achaste dentro do pão ; fui eu que do
proposilo 0 fiz para te recompensar. Fi'
— 88 —

sempre boa e facil de contentar como és:


Wi
aquelle que prefere um pãozinho antes do
Vã: '* »
ifi que a disputa deve por força merecer as

bênçãos do céo.
Quem se contenta com pouco
Tem segura felicidade; I
Goza a paz da consciência
E 0 amor da divindade.
ji
L IX
O PEDAÇO DE C A R N E

Dous criados de um aldeão, Nicoláo e


Jorge, conduzião para casa de seu amo*
algumas carroças de cargas, quando, de^‘
f
pois de deixal-as, forão logo á cozinha. *
Mal linha o cozinheiro voltado as costas
para ir ver um cangirâo de cerveja que
o astuto Nicoláo roubou um pedaço de
carne do caldeirão e metteu na algibeira
. t
de Jorge.
— Quando o mestre cozinheiro voltar e
perguntar pela carne, disse elle ao seu
companheiro, jurarei que não a tenho, e
tu farás o mesmo ; d’esse modo o engana­ II
remos.
— 89 —
Logo que o cozinheiro entrou, conheceu
a falta que havia da carne, e, olhando com
intenção, perguntou aos dous:
— Que fim levou um pedaço de carne
que falta n’este caldeirão ?
Ambos respondêrão como tinhão con­
vencionado; 0 cozinheiro, porém, conti
nuou :
— Tu, Nicoláo, roubaste a carne da pa
nella, porque tens o punho da camisa
cheia de ferragem, e tu, Jorge, a escon­
deste no bolso, porque ainda pinga-te a
gordura d’ella. Envergonhai-vos da vossa
culpa e tremei pela vossa má fé ; quando
mesmo não fosse descoberta a vossa astú­
cia, Deos a conheceria ; nada ha que elle
não saiba, e nunca deixa ficar impune o
vicio.
Os dous larapios restituirão o roubo, c
forão, além d’isso, castigados como mere-
cião.
Se aos homens pódes occultar um erro,
Nunca pódes occultar ao Eterno.
— 90 —
LX
OS T E WP E R Ò S

Um principe, sendo sorprendidona caça


'1 por uma tempestade, abrigou-se na cabana
mais próxima que encontrou. Vio assen­
tados em roda de uma mesa muitos meni­
nos que comião com o maior appetite um
caldo que fervia ainda na escudella : todos
elles tinhão as faces purpureas e frescas
como a rosa.
— Como é possível, disse o principe á
11
mâi dos meninos, que se possa comer com
tanto appetite comida tão grosseira, e se
i'-
possa conservar côres tão lindas e gozar tão
boa saude?
• I

— Eu vos digo, senhor, respondeu ella.


Ea 1res especies de temperos com (jue eu
arranjo a comida : o primeiro é o trabalho
com que meus filhos ganhâo seu pão ; o
segundo, a regrade nunca comerem outras
glotonices; e finalmente o preceito de se
contentarem com o que possuem.
O trabalho nos alegra o corpo e a vida
E é o melhor dos temperos na com ida.'
r
— 91

LXl
0 MANJ AR E X T R A O R D I N Á R I O

Um mercador convidou seus amigos a


jantarem em uma casa de campo situada
á borda do mar, promettendo dar-lhes

I
Ú
lampreias e outros peixes muito raros.
Servida a mesa e findos alguns pratos,
i:|.
trouxcrào um maior que todos, completa-
mente coberto, que, na supposição dos
convivas, era o que encerrava as lam­
preias ; qual não foi, porém, o pasmo de
lodos, quando, descoberto, virão algumas
peças de ouro sómente.
— Meus amigos, disse-lhes o mercador,
as lampreias que vos offeree! estão este
anno por um valor exorbitante. Lembrei-
me haver n’esta aldêa um trabalhador
muito doente, e que experimenta com seus
filhos os rigores da fome. Elles viverião
pelo menos seis mezes abrigados da pe­
núria com 0 dinheiro, que custarião as
lampreias; se vós consentirdes, eu lhes
darei esse dinheiro em vosso nome; se
Ui
92
preferis, poréto, os peixes, eu os manda­
rei vir e preparar quanto antes.
Todos os convivas appiaudirão a propo­
‘ \ sição de dar-se o dinheiro ao doente, ajun­
tando cada um uma peça de ouro ás que
estavão no prato, e o pobre indigente
vio-se assim livre da miséria por mais de
um anno.
Nào gasteis nunca um ceitil de cobre
Tnutilmente; dail-o antes ao pobre.

X LII
A FERRADURA

Um lavrador, andando um dia pelo cam­


po com seu filho Thomaz, lhe disse de
repente :
— Vês alli no chão aquella ferradura ?
apanha-a e guarda-a na algibeira.
— Qual! disse Thomaz, não vale a pena
abaixar-me para apanhar isso.
O velho não respondeu-lhe, apanhou o
ferro e guardou-o no bolso. Mais adiante
0 vendeu a um ferrador e comprou cere­
jas. Continuarão a caminhar.
— 93 —
0 sol estava abrasador, não havia nem
uma casa, nem sombra. Thomaz morria de
Il sêde e já difficilmente acompanhava seu
pai. Esse deixou cahir uma cereja como
por acaso. Thomaz apanhou-a com tanta
avidez como se fosse ouro, e levou-a im-
mediatamente á boca. A alguns passos
maiscahioouLracereja. Thomaz apanhou-a
com a mesma sofreguidão, e assim as foi
l'I
apanhando até que se acabárão. Então o
velho lhe disse sorrindo : •
— Vês agora que se te houvesses abai­
xado uma só vez para apanhar a ferradura,
não 0 farias mais de cem vezes pelas cere­
jas.
Quantas vezes nosso peito
Se curva a dura agonia,
Por nm bem que abandonamos,
Nunca lhe dando valia 1
t
J
L X III
o PREGO

Um aldeão sellou um dia seu cavallo


U*
para ir á aldêa vizinha ; antes de montar,
vio que lhe faltava um prego na ferradura.
I
— 94 —

— Um prego de mais ou de menos, nân


I
faz mal, disse elle.
Depois de andar algum tempo, vio o |t
•cavallo manquejar.
— Se tivesse por aqui um ferrador, eu
I

I-
0 mandaria ferrar; porém já agora elle
irá com os très pregos que lhe restãò, I»
como iria se tivesse mais um.
Entretanto o cavallo ferio-se e pouco f'
podia andar. De repente dous ladrões ap-
parecem, querendo despojar ao pobre hos b
U
mem. Elle nada podia fazer. Roubárão*
lhe 0 cavallo, a sella, e até a mala que
levava na garupa. Vendo-se obrigado a f-
voltar a pé para casa, dizia elle triste­
(,
mente :
— Oh ! nunca julguei que pela falta de
um prego perderia o meu cavallo.
Este conto tem grande applicação a
muitos factos da vida d’este mundo, e tam­
bém aos da vida eterna.
Nunca deixes para logo
O que pódes fazer já.
Quantas vezes um minuto
Mágoas pungentes nos dá I
^ 95 —
liXIV
f
0 ANZOL DE O U R O

Um principe teve desejos de pescar :


raandou que lhe fizessem um anzol de
ouro, com o seu competente caniço e a
linha. Chegando á borda do mar, lançou
0 anzol elogo apanhou um peixinho; lan­

it çou-o novamente, e um peixe maior ar­


rebentou 0 fio de seda e carregou o anzol.
— Como ! disse o principe, perdi o meu
anzol de ouro em troco de um peixinho
a tão miserável ! Quero agora um anzol de
ferro, porque é bem louco quem arrisca
muito com a esperança de ganhar pouco.
As palavras do principe são hoje um
provérbio que se applica a todos os jogos,
principal mente aos de loteria.
A’s vezes um rico e immenso thesouro
Ao dono só serve de escarneo e des-
[douro.
LXV
A FRAUTA
üm rei tinha na sua corte um thesou-
reiro que de simples pastor se havia ele-
— 96 —
vado a essa alta posição. Calumniado pelos
cortezãos, disserâo ao monarcha que elle
tinha muitos thesouros da corôa escondi­
dos em uma caverna fechada com uma
porta de ferro. O rei foi visitar o thesou-
reiro, correu todo o seu palacio, e, che­
gando junto da porta denunciada, mandoa
que a abrissem immediatamente. Qual foi
a sua sorpresa, porém, vendo entre as
quatro paredes uma mesa rústica, e sobre
eila uma frauta, um cajado e um pandei­
ro I A janella do quarto dava sobre ura
prado florido e sobre montanhas cobertas
de espessos arvoredos.
— Durante a minha juventude, disse o
thesoureiro, guardei rebanhos. Foste tu,
ó grande rei, que me chamaste para a cor­
te. Nunca se passou um dia sem que eu
viesse estar uma hora n’este lugar ; aqui
is:
vinhão-me á reminiscência todos os pra­
zeres que gozei nos primeiros dias da
minha existência, e repetia as canções
que outr’ora entoei em louvor do Creador
quando pastorava o meu rebanho. Deixa­
— 97 —
me voltar para os campos que herdei de
meus pais : mais doce será a minha felici­
dade n'aquelle retiro do que no esplendor
de tua corte, ó rei 1 ^
Omonarcha, justamente indignado con­
il tra aquelles que tinhão calumniado um
homem tão honrado, abraçou-o com emo­
ção, pedindo-lhe que nunca o abandonasse.
No mundo não queiras sómente a opulen-
[cia:
Felizes nos torna sómente a innocencia.

LXYI
»lí
O ALFORGE

Melchior caminhava para o campo, car­


regando sobre as costas um alforge muito
cheio. Ao seu lado ia Casimiro. Melchior
não fallava senão dos defeitos alheios, sem
nuncar tocar nos seus.
— Segundo me parece, lhe disse Casi­
miro, vos tendes os defeitos alheios adian­
te do vosso alforge, porque os tendes sem­
pre de vista para censurar, ao passo que
lançais os vossos para as costas, afim de
— 98 —

não os verdes. Ora pois, voltai o sacco, que


tereis muito maior proveito com isso.

LX V II £
r I
AS S E T E B E N G A L A S

Um aldeão tinha sete filhos que não vi- aí


vião em harmonia, perdendo em longas s(
disputas 0 tempo que poderião aproveitar k
com mais utilidade. Alguns individuos Ï
aprazião-se em augmenter a discórdia en­ SI

tre elles^ com o fito de aproveitarem-se da


sua herança depois da morte do pai. Este,
conhecendo o engodo que armavão a seus 'fíí

filhos, chamou-os um dia, e na sua pre­


sença atou sete bengalas em um feixe, di­
zendo-lhes :
— Aquelle de vós que puder quebrar
este feixe receberá immediatamente das
i' 'i
minhas mãos cem esciidos. k
; ». Embalde tentárão vãos esforços, e íinal-
mente disserão ao pai :
— Isto não é possivel.
O velho desatou o feixe e com facilidade
quebrou as bengalas uma a uma.
— Na verdade, disserãoos rapazes, as­
sim não ha nada mais facil ; até uma
criança seria capaz de fazer a mesma
CO usa.

— Queridos filhos, replicou-lhes o pai,


comvosco acontecerá o mesmo que acon­
tece com estas bengalas : emquanto esti­
í verdes reunidos e vos ajudardes recipro­
lïl camente, ninguém poderá opprimir-vos ;
mas desde que os laços da boa intelligen-
cia romperem-se, aconlecer-vos-ha o mes­
mo que a estas bengalas, partidas e dis­
persas pelo chão.
% Horrivel desgraça persegue o casal
Onde a união não é bem real.
a
LXVIII
O ESPELHO

Antonio e sua irmã Paulina virão um i >í

dia na janella o espelho de sua mãi e cor-


rêrão a rnirar-se n’elle. Antonio era muito
formoso e sorria-se com docecomplacen-
ciaá sua imagem. Paulina, a quem a bexiga
linha desfigurado o rosto, chorou amar-
— 100
gamente vendo seu semblante. Cîiegando
a mãi n’esse momento, exclamou :
— Meu querido Antonio, não te enchas
de orgulho por uma belleza passageira, e
toma cuidado em não deslruil-a antes do
tempo com paixões culpadas. Tu, minha
Paulina, consola-te pensando que ha al­
guma cousa superior á belleza do corpo,
e procura substituil-a pela belleza da alma.
Beai como no campo a flôr se desfolha
Lastrando por terra seus lindos fulgores,
Assim a belleza também se desbota
Se á alma não une seus meigos odores.

L X IX

O RETRATO

Morreu ha muitos séculos, em uma f


grande cidade, um mercador que deixou ¥
bens consideráveis. Sabia-se 1er elle um -
nnico filho, porém ninguém o conhecia.
Passados alguns annos, apparecêràolres
moços, pretendendo cada qual ser o vef-
dadeiro herdeiro e o unico filho do mer­
cador. O juiz mandou que lhe trouxessem
- 101 -

um retrato do defunto, muito parecido, e


disse aos très :
— A herança pertence áquelle que ferir
El
com uma flecha o alvo que eu vou fazer
no coração d’este retrato.
O primeiro atirou quasi no ponto ; o se­
1-:
gundo approximou-se ainda mais ; o ter­
'I ceiro fez a pontaria ; porém, tremulo e
com as lagrimas nos olhos, atirou para
longe de si as flechas, exclamando :
— Oh ! não ! mil vezes, perca seme­
lhante herança do que ferir o coração de
meu pai!
— Nobre mancebo, disse o juiz, tu és o
verdadeiro fllho e o legitimo herdeiro. Os
dous que atirarão com tanta perfeição são
t
J merïmente uns impostores. Ainda mesmo
em pintura, um filho não deve ferir o
coração de seu pai.
il
Nada mais bello na vida
Do que o amor filial.
Tudo mais desapparece;
Só elle vive e é real.
Il
102 -

LXX
• *

m
O MAI S BELLO O R N A ME N T O

Um mercador de sedas chegou ao cas-


/
telloem que morava a menina Isabel. Sua
mài deu-lhe licença para escolher a seda
que quizesse para um vestido. Indecisa,
porém, na cor, ella disse á m ã i:
— Querida mamãi, dize-me qual das
cores assenta-me melhor, a verde, a azul
ou a amarella?
— Minha íilha, respondeu ella sorrindo,
■ j eu acho que é a cor branca, porque é a
cor da innocencia, e a carmesim, que é a
cor da modéstia.
i, i Da virgem formosa e casta
A virtude e a singeleza
Bào as vestes preciosas
Que mais realçâo a belleza.
•r‘1
1
— 103 —

LXXl

A BOCET A DE O U R O ^

Um coronel mostrou a alguns oíficiaes


que janlavão na sua casa, uma boceta de
ouro que tinha comprado n aquelle dia.
Alguns momentos depois, querendo to­
mar uma pilada, procurou-a no bolso e
não a encontrou.
— Senhores, disse aos convivas, tende
a condescendência de ver se por acaso al­
gum de vós a guardaria distrahidanaente.
f Todos se erguêrão logo, remexendo os
bolsos, sem que apparecesse a boceta.
Um alferes, cujo embaraço era visivel,
foi 0 unico a conservar-se assentado e a
não querer remexer o bolso. ' i*
— Dou a minha palavra de honra, disse
elle, que não a tenho; isto é bastante.
Entretanto seus camaradas não o acre-
ditárão, e se separárão duvidosos.
No dia seguinte muito cedo o coronel
mandou chamar o alferes e lhe disse :
— 104 —
\ V

— Achei a boceta, que tinha cahido en-


Ve as dobras da minha roupa. Por que
motivo deixastes hontem de mostrar a
algibeira, quando os outros não recusá-
rão!
Senhor coronel, respondeu o moço,
0 motivo, sómenle vos direi em confiança!
Sendo meus pais muito pobres, eu lhes r
dou a metade do meu soldo e por isso lí
nunca posso ter um bom jantar. Quando
me fizestes a honra de convidar, eu já t;
tinha o.meu jantar no bolso. Julgai da
minha confusão se fizesse cahir uma sal-
chicha e um pedaço de pão de rala !'
— Vós sois um excellente filho, disse»,
lhe 0 coronel enternecido por essa confi­
r dencia. De hoje em diante, para que con­
ft!' I
tinueis a ajudar vossa familia, e possais
viver mais commodamente, todos os dias
comereis comigo.
!í ' Dizendo isso, acompanhou-o á sala do
jantar, e, em presença de todos os officiaes,
deu-lhe a boceta de ouro como uma prova t
de estima.
— 105 —

Um filho por seus pais sempre extremoso


Nunca póde deixar de ser ditoso.

L X X II
O RE L OGI O DE P RA T A

Um pobre estudante, chamado Ernesto,


dormia no banco de um moinho, que lhe
servia de leito. Acordando á meia-noite,
ouvio um pequeno ruido na parede junto
Isi
do banco. Lançou os olhos e vio dependu­
rado um relogio de prata.
Sentio um desejo irresistível de roubal-o
e fugir depois pela janella. Sua consciên­
íl'
cia entretanto lhe disse que se conservasse
sem aquella macula. A tentação quasi que
0 lançava no caminho do mal. Ernesto
fugio de casa espavorido; mas, depois de
dar alguns passos, arrependeu-se de não
ter tirado o relogio e quiz voltar ; pela
segunda vez a consciência predominou á
tentação.
Errou assim muito tempo pelo meio do
campo, alé que,exhausto de cansaço, ador­
meceu sobre um pequeno outeiro.
— 106 —

Ainda era muito cedo quando despertou *


ouvindo gritos horriveis, e grande foi o í
seu terrorabrindo os olhos. Elle tinha ador­ í:
mecido debaixo de um cadaver: acima de
sua cabeça estava enforcado um ladrão, li-
em forno do qual esvoaçavão os abutres.
Uma voz intima parecia dizer-lhe :
« Vê qual seria o teu íim sete deixasses is
seduzir pelo roubo. »
Cheio de terror, e convencido de que
Deos sómente o livrara d’aquelle perigo,
Ernesto prostrou-se de joelhos e rendeu- |j|
lhe rnil graças.
Faz, meuDeos, com que minh’ alma !1'
Colha sempre da virtude a palma.

L X X III
tl
A BOL S A

Norberto, o filho de um pobre carvoeiro,


chorava amargamente, assentado debaixo '!}
de uma arvore. Um fidalgo, vestido de
verde e com uma estrella de ouro sobre o
peito, caçava justamente no mesmo lugar.
' — 107 —

Quando vio o menino, perguntou-lhe


porque chorava tanto. Este respondeu-
lhe :
— Ohl senhor, ha muito tempo que
minha mãi acha-se doente, e meu pai en­
viou-me á cidade para pagar o boticário;
por minha desgraça perdi no caminho a
bolsa eo dinheiro que ella continha.
— Será esta? disse o caçador fazendo
um signal ao criado que o acompanhava,
e que apresentou ao menino uma bella
malha cheia de ouro.
— Não, senhor : a minha não continha
tanto ouro como esta ; tinha pouco valor.
— Será então esta, replicou o caçador
mostrando-lhe uma outra bolsa muito
velha.
— O h ! sim ! bradou o menino trans­
portado de alegria; é ella mesma 1
— Meu filho, lhe disse o caçador; eu te
faço presente d’esta outra, com o dinheiro
que ella contém, como uma recompensa da
I :

tua confiança em Deos e da tua probi­


dade.

( ,
— 108 —

Assim coÆo a reza consola os tormentos


Nos dá a virtude suaves momentos.

Il

Uni outro rapaz, chamado Estevão,


ouvio contar este caso. Logo que o caça­
dor, que era um principe, voltou á tloresta,
0 velhaquete principiou a gritar dolorosa*
mente.
~ A minha bolsa ! a minha bolsa ! eu
perdi a minha bolsa !
O principe se approximou d'elle, e mos­
trando-lhe uma cheia de ouro, perguntou-
lhe :
Í. — Será esta ?
— Sim ! exclamou, é ella ! é ella mesma I
E estendia as mãos para apanhal-a.
O criado, que estava ao lado do prin-
cipe, disse-lhe encolerisado :
Descarado ! como ousas enganar as­
sim 0 meu principe ? Espera, que te dou
uma recompensa diversa da que esperavas.
E, cortando uma vara de avelleira, deu-
lhe o castigo que justamente merecia.
0 ESCUDO

Um piedoso lavrador, chamado Frido


lin, tinha um criado que muito facilmente
se encolerisava, tratando todos com a
maior grosseria. Seu amo pedia-lhe mui­
tas vezes que se corrigisse.
— Nõo é possivel, respondia-lhe elle,
eu lenho muita raiva dos homens e dos
animaes.
Uma manhã Fridolih lhe disse i
— Tu vês, Matheus, este escudo tão bel-
il
lo e tão novo ; se durante todo o dia to
mostrares bom e paciente, não deixando
r
escapar de tua boca uma expressão colé­
rica, eu te darei elle á noite.
ft
O criado aceitou a proposta.
i' Os seus camaradas ajuslárão-se para
fazêl-o perder o escudo ; porém debalde
esgotárào todos os meios para zangal-o.
— 110 -

A noite Frídolin lhe entregou o escudo,


dizendo :
— Não coras, Matheus, por venceres ot
tua cólera com a ambição de uma miserá­
vel recompensa, no emtanto que o não tens
feito até hoje pelo amor de Deos e do bem?
Malheus compenetrou-se d’esta admoes­
i I tação, e d’ahi em diante mostrou-se tão
calmo e paciente comooutr’ora arrebatado
tÍ Í • e colérico.

Nada é impossível na vida


è î Se temos fé no Senhor,
Se a virtude nos alenta
Com 0 seu balo animador.

LXXV

A MAI P I E D O S A E SEUS DOUS F I L HOS

Uma viuva pobre e enferma via-se ha


muito tempo privada de assistir ao culto
divino, sentindo duplamente essa falta pela
pureza com que amava tão celesteceremo-
nia. Muitas vezes nos domingos ella dizia
a seus filhos :
— 111 —

— Como eu seria feliz se pudesse assis­


tir á missa ! É muito longe o templo, e
li) não tenho forças para caminhar.
II
I
Depois d’essas palavras tornava-se tris­
I
íii ' te, porque dava o verdadeiro valor ás
reuniões da igreja.
i1[. Seus filhos, a quem tinha educado no
■ éI

santo amor da religião, e que procuravão


I todos os meios de mostrar-lhe o seu amor,
resolverão causar-lhe uma doce sorpresa.
Fizerão co'm algumas taboas e uma ca­
deira uma especie de liteira, onde collo-
cárão sua velha mãi, e assim a leváráo á
igreja, distante uma légua da herdade em
que moraváo, situada no declive de uma
montanha.
Todos sentírão-se commovidos pela de­
dicação filial d’esses meninos, e semeárão
flores pelo caminho quetinhão de seguir,
e essas flôres tornárào-se a imagem das
bênçãos que Deos derramava sobre esta
f
interessante familia.

tudes e a fonte da verdadeira felicidade :


— 112 —

exercendo-a, é que os pais dispõem seus


filhos para a verdadeira sabedoria, e que
, os filhos achão meios de se lhes mostra­
rem reconhecidos.

AS L AGART A

Vendo um fazendeiro algumas lagartas f


sobre uma folha, ordenou a seu filho que
as extinguisse antes de darem fructos os
arvoredos. Este, em vez de obedecer im- \.y-
mediatamente a seu pai, deixou para o
l: dia seguinte o trabalho ; e assim do ura
dia para o outro, até que, indo ao jardim,
as vio multiplicadas por todas as arvores,
e perdida a esperança de darem fructos
n’aquelle anno.
Existem hábitos e defeitos tão pernicio­
sos como os insectos maléficos. Se eni-
quanto é cedo se tenta extirpal-os, é facil
obter a sua cura; porém, uma vez enrai­
zados, é baldada a esperança.
Despem a alma das suas boas qualida- íiç
F7
_ 113 —

des, e a tornâo incapaz de frucliflcar a vir­


tude e a sabedoria.

LX.XVII
CAIXINHA MA R A V I L H O S A

Uma boa mãi de farailia soffria todos os


dias muitas perdas em casa, e a sua for­
tuna de anno a anno desapparecia, quando
deliberou-se consultar um solitário que
morava na floresta. Depois de ouvil-a, o
solitário relirou-se por instantes, e, depon­
do nas suas mâos uma caixinha fechada,
lhe disse :
~ Durante um anno deveis levar esta
caixinha á vossa cozinha, á despensa e á
estrebaria quatro vezes de dia e outras
quatro de noite no fim do anno vós m’a
restituireis.
A boa mulher, que tinha fé na myste-
riosa caixinha, seguio os conselhos do so­
litário. Indo pela manhã á despensa, sor-
prendeu um criado roubando-lhe um
cangirão de cerveja. Apresentando-se á
meia noite na cozinha, achou os criados
8
em uma grande festança. Nas estrebarias
eslavãò as vaccas quasi que enterradas no
esterco, e os cavalloSj em vez de avêaj
tinhão unicamente feno ; o criado não os
tinha almofaçado. D’essa maneira ella
corrigia diariamente novos abusos. No fim
do anno voltou á casa do solitário com a
caixinha, pedindo que a deixasse mais
tempo nas suas mãos,' porque encerrava
um remedio muito precioso. O eremita
disse-lhe rindo :
, I

í
— Não posso dar-vos a caixinha ; po­
rém não ponho duvida em dar-vos o reme­
dio que ella contém.
E abrindo-a immediatamente, tirou de
dentro um papel que continha as seguin­
tes palavras :
Nunca deixes com teus olhos
De cuidar nos teus haveres ;
Só assim talvez tu possas
Alcançar melhores teres.

LX X V III
ij
0 príncipe piedoso I;

Um principe, vendo-se obrigado a fugir


_ 115 —

dorante a guerra, andava acompanhado


de um unico criado já velho, ambos vesti­
dos com muita pobreza para não serem
conhecidos.
Uma noite chegárão muito tarde a uma
il fazenda situada nas montanhas, onde pe­
dirão agasalho. O principe não pôde dor­
mir, cheio de temores de ser descoberto
pelo inimigo, e vendo-se exhaurido de di­
nheiro. Ergueu-se do leito, e, prostrado
de joelhos, exclamou no excesso da dôr :
« Meu Deos! tem piedade de um principe
tão desgraçado ! »
Estas palavras forâo ouvidas pelo fazen­
deiro, que de manhã disse ao criado :
— Eu sei que vosso amo é um principe;
dizei-me a causa da sua melancolia e das
suas desgraças.
0 criado confessou a verdade, pedindo-
lhe encarecidamente que os não trahisse.
No instante em que o principe dispunha-
se a partir, o fazendeiro entrou respeito-
samenle no quarto e lhe disse :
— Principe, a vossa supplica esta noite
— 116 —

revelou-me o vosso segredo e a vossa


triste situação; permittí que vos oífereça
r • estas vinte peças de ouro, até que vossa
fortuna mude de face; também vos guia­
rei por um caminho onde sem risco algum
podereis chegar ao vosso destino.
O principe, vivamente penhorado, agra­
deceu tantos favores, e rendeu mil gra­
ças ao Creador, que tão piedosamente
attendeu ás suas supplicas.
Chegou sem difficuldades á casa de um
dos seus parentes, d’onde recompensou
h
com magnificência o honrado lavrador.
Quando soffreres, implora
Que te alente o Creador:
Sentirás no peito allivio tc:
E menos pungir-te a dor!
r*
L X X IX *

o PASTOR PI EDOSO

Em uma formosa tarde do mez de Maio,


quando tudo se orna de verduras e de flo­
res, 0 joven Wandelin pastorava o see
rebanho. Tristemente corriào-lhe as la­
grimas pelas faces, parado junto de uma
— 117 — -

cerca de espinhos entrelaçada de flores. O


pequeno Luiz, sahindo da floresta onde
andava caçando, perguntou-lhe porque
chorava.
— Ah ! exclamou elle, eu acabo de
ver um horrível sapo deitado n’aquelle
charco.
— Como ! exclamou o outro, tu choras
por uma cousa tão insignificante ?
— Escuta, lhe disse Wandelin : vendo
à
esse animal'tão horrível e repugnante,
arrastando-se penivelmente por terra, sem
nunca ter uma idéa do Creador, e vivendo
constantemente perseguido pelos homens,
passando a mór parte da vida nas covas
escuras e na lama, até que um dia morra,
eu reflectia comigo :
« Tu, que tens a eleganoia e altivez do
homem, que possues a faculdade de ob­
servar, que pódes considerar o céo e as
flores, que conheces a immorlalidade de
tua alma, dize-rae porque nunca rendeste
graças ao Creador pelos dons que te fa­
cultou ? » Reflectindo d’esie modo, e pen-
— 118 —
sando na minha ingratidão, não pude re­
ter as lagrimas.
Luiz, commovido por essas palavras,
nunca mais as esqueceu na sua vida; na
velhice ainda as repetia a seus filhos, e
accrescentava : « Quando mesmo os ani-
maes os mais repugnantes não tivessem
nenhuma utilidade, possuem uma de quo
sempre nos podemos aproveitar. São elles
que nos ensinão a apreciar melhor os pri­
vilégios concedidos ao homem, privilégios
esses com que Deos collocou-o no mundo
em uma posição superior a todos os seres
com que elle povoou a terra.
Quem não lança aos pés de Deos
Sua inteira adoração,
Não merece ser um homem,
Não lhe pulsa o coração.

LXXX

«O P E Q U E N O CESTEIRO

Ojoven Eduardo tinha parentes muilo


ricos, e, confiado na fortuna, nunco qub
dedicar-se ao trabalho ; Diogo, ao contra-
riOí filho de um dos seus vizinhos, era
— 119 —

muito laborioso e aprendeu com um gran­


de desvelo a fazer cestas. Um dia que
Eduardo pescava por distracção á borda
do lago, e Diogo voltava para casa com um
feixe de ramos de salgueiro, foráo sor-
prendidos por corsários, que os levárão
para um navio, afim de vendêl-os como
escravos. O navio, impellido por forte tem­
poral, bateu de encontro a uma ilha e sos-
sobrou *, sómente os dous meninos pude-
rào salvar-se; a ilha era habitada por
Mouros cruéis, em cujo poder elles ca-
hirào.
iill
Diogo lembrou-se de mostrar a sua in­
dustria, e, afinando com o seu cutello
alguns ramos de salgueiro, fez uma linda
cesta, que offereceu ao chefe dos Mouros.
Era grande o concurso de homens, meni­
nos e mulheres, que se reunião para vel-o
trabalhar, desejando cada qual possuir
um cestinha d’aquellas. Derão a Diogo
uma bella choupana sombreada de arvo­
redos cheios de fructos. Pedirão depois a
Eduardo que fizesse, como seu compa-
— 120 —

nheiro, um trabalho d’aquelles ; e como


vissem a sua ignorância, martyrisárão-o
de pancadas, e têl-o-hião morto se Diogo
não se interessasse por sua sorte, náo
podendo comtudo privar que lhe despis-
sem os seus finos trajos por outros gro?.
seiros, e o obrigassem a servir-lhes como
criado.
No mais longínquo paiz
Quem trabalha é mui feliz.

LXXXT

os PEQUENOS BATELEIROS

Valentim, menino de um caracter mui-


0 leviano, conduzio seu irmãozinho Fe-
ippe á borda de um rio, entrou com elle
em um barquinho e deixou a margem. A
correnteza do rio impellio rapidamente a
embarcação contra os rochedos, onde ella
partio-se inteiramente. Valentim nadou
com esforço em roda do penhasco, porém
debalde : não pôde alcançal-o. Felippe foi
arrastado pela agua.
t
— 121 —

Um pescador, que ouvio os gritos dos


flous innocentes meninos, atirou-se ao
rio, e com perigo de sua vida teve a inex-
primivel fortuna de salvar ao pequeno
Felippe. '
Quem tem no seio a virtude
Nunca receia morrer ;
Pelos outros sacrifica
A sua vida e o seu ter.

II
--n
No emtanto que seu irmão se salvava,
Valentim se afogava desgraçadamente. As
pessoas que presenciárão tudo, e que se
Linhào agrupado na margem do rio, per-
guntárào ao pescador, por que motivo,
l.endo elle podido salvar a ambos os me­
â ninos, linha arriscado sua vida sómente
por Felippe. O pescador respondeu :
— O pequeno e máo Valentim roubou
muitas vezes o meu peixe e os meus ca­
ranguejos, tendo outras tantas a maldade
íí de estragar as minhas redes. O bom Fe­
lippe, ao contrario, muitas vezes repartie
comigo a sua merenda, e deu-me algum

^ y/
— 122 —

dinheiro quando estive doente e não


podia gahhar a minha vida. Dizei-me,
pois, não lerieis, como eu, salvado em
primeiro lugar a vida d’este menino?
Sempre o vicio e a virtude
Se conservao em opposiçao;
Um recebe o castigo,
Tem a outra o galardao.

LX X X II

O CEGO

André, o joven cego, voltava um dia da


igreja, caminhando com muito vagar e
precaução, sondando o terreno por onde
passava com o seu bordão. Lucas, cam..
ponez astucioso e malévolo, principiou a
mofar d’elle, grilando-lhe :
— Apostemos dez escudos como eu
chego primeiro do que vós !
— Aceito, disse-lhe o cego^se me dei­
xardes a escolha do lugar eda hora.
Lucas aceitou sorrindo-se, e lomou
todos os assistentes como testemunhas.
Pois bem, replicou André, hoje á
— 123 —

meia-noile veremos qual dos dous chega


primeiro á cidade.
Exaclamente a essa hora puzerão-se am­
bos a caminho. O tempo era tempestuoso
e profunda a escuridão. O caminho atra­
vessava uma espessa floresta. André, para
quem as noites e os dias erão iguaes,
chegou antes de raiar a aurora á cidade.
)( Lucas no emtanto perdeu-se na floresta,
ora batendo a fronte de encontro ás arvo-
res, ora cahindo emmaranhado nas raizes
e nos mattos rasteiros e cipoaes. Chegou
á cidade quando o sol já alto se erguia
w
acima do horizonte.
Assim pagou elle os dez escudos da sua
Ci
aposta. Maior devia ser, diziáo todos, a
punição que merecia pela sua fatuidade.
Nunca zombes dos defeitos
E das desgraças de.alguém :
Pódes soffrer um castigo
i Que muitos males contem.-
— 124 —

LX X X III

OS DOUS V I A J A N T E S

flt
i%c7-:
M i3 i

tP l ’-

ui-

Dous viajantes, Albertoe Bruno, seguiào


socegadamenle o seu caminho. O primeiro
achou na estrada uma bolsa cheia de
ouro.
— Camarada, lhe disse Bruno, divida­
mos amigavelmente o achado,
— Deos me livre ! disse Alberto. Fui
eu que achei, e por conseguinte ella me
pertence.
Dizendo isto, metteu o dinheiro no bol­
so, rindo-se de contente, emquanlo Bruno
seguia melancólico ao seu lado. De re­
pente appareceu um ladrão com a espada
nua na mão. Alberto empallideceu como
I
;

um cadaver.
t- _ Camarada, bradou elle, defendamo-
I nos mutuamente ; um homem não poderá
I
facilmente contra dous ; puxai a espada
ÍÜ
k como eu.
'“TI;
— Deos me livre ! respondeu-lhe Bru­
no. Eu não tenho nada que cobice o la­
drão. Guardastes o dinheiro para vós só ;
assim defendei-vos sózinho.
Vencido pelo ladrão, Alberto ficou sem
a bolsa, e ainda peior, cora algumas feri­
1)1 das de mais.
Nao recuses fazer bem,
Se 0 desejas também.

L xxxrv r
o CARVOEI RO E O LAVADEIRO
H
Um carvoeiro disse a um lavadeiro que
procurava quarto para alugar :
I • — 126 -

— Vinde morar na minha casa : ella é


bastante commoda para guardar as vos­
sas e as minhas mercadorias.
— Nãoé possivel, respondeu o lavadei­ r
ro : vossos carvões ennegrecerião a roupa
(jue me deu tanto trabalho para alvejar
— Tendes razào, disse rindo-se o car­ ói<
voeiro, 0 branco e o negro não se unem
bem. O que acontece com o carvão que
ennegrece o branco acontece com as al­
mas puras em contacto com as más.
Se queres conservar tua pureza,
Foge sempre do máo e da baixeza.

LX X X V

0 MO L E I R O E O ASNO

Um moleiro e seu filho acompanhavão


a pé um asno que ião vender na estala­
gem vizinha. Encontrarão um sujeito que
lhes disse :
Sois parvos de certo ! deixais o asno
ir á vontade, no emtanto que um de vós
podia ir montado e o outro a pé ?
O filho montou immediatamente.
— 127 —

Um outro sujeito, por quem passárão,


exclamou aposlrophando:
— 0’ maroto! não tens vergonha de
*"I ver teu pai a pé emquanto vais ahi tão á
ií vontade ?
iftÉl 0 menino desceu e o velho tomou o
iiiH

lugar.
f
ÍK Um camponez, que passava com uma
cesta de fructos, gritou para o compa­
nheiro :
— Vê aquelle velho, como vai repim-
pado no asno, emquanto seu filhinho
aguenta a maçada de acompanhal-o, su«
jando-se de lama I
0 menino montou na garupa do asno.
— Ah! pobre animal! bradou um pas­
É tor que guardava rebanhos. Vós sois bem
dcshumanos!
Ambos se apeárão,e o menino, cheio .
de despeito, disse ao p ai:
— 0 que faremos nós para satisfazer­
mos o mundo?Carregaremos0 asno amar­
rado em um páo, ou deveremos ir aíogal-o
alli em baixo na ribeira.
— 128 —

— Agora vejo, meu filho, respondeu o ‘lí


velho, que não se póde satisfazer a todos,
e nada é mais sabio do que este con-
selho ;
N^o te importe um fallar que illude;
Segue sempre o caminho da virtude.

LXXXVI

O CAÇADOR E SEU CAO

M:
‘1^

Um caçador, perseguindo uma lebre,


excitava o seu cào contra ella, gritando :
A p a n h a / E o cào tanto fez, que
a p a n h a ! íí
— m —
por fim apanhou-a e prendeu-a com os
dentes. Chegando o caçador, pegou na le­
bre e disse ao cão : Solta ! solta ! Este dei-
xou-a logo, e elle a metteu no sacco da
caça.
Muitas pessoas da aldêa assistião á ca­
çada, e entre ellas um velho camponez,
que disse ás outras :
— O avarento se parece com o cão. A
avareza lhe brada : Apanha! apanha! e o
homem fascinado não sabe o que deva fa­
zer, e corre com todas as suas forças atrás
dos bens terrestres. A Morte vem por fim
e diz : Solta! solta! e o pobre homem
abandona, sem 1er gozado, os bens que
tanto trabalho lhe derão por adquirir.
Seja a. nossa fortuna de tal sorte,
Que só d^ella nos separe a morte.^

LX X X V II

A ORGULHOSA

Uma moça, chamada Gertrudes, habi­


tava sumptuoso castello, e tinha orgúlho t
excessivo e desmedido da sua nobreza.
9
I
— 130 —

Maria, a filha de um pobre pedreiro


procurou-a e lhe disse :
— Meu pai se acha ás portas da morte
e vos pede encarecidameiite para ir á sua
casa, pois tem grandes e valiosos segredos
a communicar-vos.
— Ajuizo que cousas serão essas e o
que terá um pobre diabo como elle para
dizer-me 1 Eu nunca entrarei em uma ca­
bana tão miserável. Pòde retirar-se.
Alguns instantes depois, Maria voltou a ÆI
correr, gritando : <I
— Vinde, senhora, vinde rapidamente! 'k
'fi
Durante a guerra vossa fallecida mãi en­ Î
terrou em um dos muros do castello unia
grande quantidade de ouro e de prata.
Ella pedio a meu pai que sómente vos
revelasse este segredo quando tivesseis
vinte e seis annos ; porém a morte se
approxima e elle não póde esperar mais
tempo.
Gertrudes correu com todas as suas
forças para a cabana ; porém no momento
de entrar no quarto do bom homem elle
— 131 —

actibava de expirar. Ellaquasi que enlou­


queceu de cólera e de despeito. Mandoú
deitar abaixo grande numero de paredes ;
mas debalde : nâo descobrio o thesouro.
Toda a sua vida arrependeu-se de ter
perturbado os últimos instantes do pobre
pedreiro, e de ter por suas próprias mãos
destruido tão grandes riquezas.
Do orgulho vão te afastes com terro,
Pois de muitas desgraças é o autor.

LX X X V III

j A ME N D I GA

Em tempo de extrema penúria, uma


estrangeira percorria certa aldêa, implo­
rando esmolas. Se bem que vestida com
muita pobreza, suas roupas erão asseadas.
Em muitas casas foi duramente repelli-
da, e em outras derão-lhe muito pouco;
sómente um pobre aldeão fêl-a entrai^
para a sua cabana, afim de aquecer-se, pois
que 0 frio era extremamente rigoroso.^
i Sua mulher, tão caridosa como elle, deu-j
— 132 —

lhe um bom pedaço do bolo que n’aquelle


momento tirava do forno.
No dia seguinte todas as pessoas em cu­
jas casas a estrangeira tinha estado forão
convidadas a jantarem no caslello vizinho.
Ao entrarem na sala de jantar, virào
uma pequena mesa coberta dos mais deli­
cados e deliciosos manjares, e uma outra,
muito maior, contendo alguns pedaços de
pão negro, algumas batatas e punhados
de sal. Quasi todos os outros pratos esla-
vão vazios.
— Era eu a pobre mendiga de hontem,
disse em altas vozes a dona do castello.
Disfarcei-me assim para conhecer a cari­
dade de todos em um tempo de tanta mi­
séria para os pobres. Essa boa familia,
accrescentou mostrando o camponez esua
mulher, foi a unica que me tratou do
melhor modo possivel; por isso eu a es­
colhi para jantar hoje comigo, e para es­
tabelecer-lhe uma pensão; quanto a vós,
contentai‘Vos com o que vêdes n'esses
pratos, pois foi justamente o que hontem
— 133 —

me déstes, e lembrai-vos de que assim


sereis um dia tratados no outro mundo.
Semêa na terra o bem,
E nunca olhes a quem,

L X X X IX

O L A D R Ã O DE P O R C O

Dous conductores de um urso chegárao


certa noite em uma aldêa e forào pernoi­
tar em uma hospedaria. 0 dono, que n’a-
quelle dia tinha vendido o seu porco, fe­
chou 0 urso no chiqueiro, que estava va­
zio. A meia-noite um ladrão, suppondo o
porco ainda alli, entrou mansamente em
casa, e, abrindo a porta do chiqueiro,
apanhou na escuridão o urso ; este lançou-
se de um pulo sobre o ladrão, e fincou-
lhe as unhas de tal maneira, que, corren­
do toda a gente de casa aos seus gritos, foi
com extrema difficuldade que os donos do
urso 0 livrarão das garras doterrivel ani­
mal, para entregal-o á justiça.
Muitas vezes o máo recebe o prêmio
Do mal immenso que causou também;

/■ /
‘ -ir''
— 134 —

Nunca póde, sobranceiro o vicio,


Da virtude zombar com vão desdemi

XO

o s T RE S L A D R Õ E S

Très ladrões assassinárão e despojárâo


um mercador que atravessava o bosque
com grande quantidade de prata e de ob-
jectos preciosos. Transportarão para sua
caverna o thesouro tão mal adquirido, e
mandarão o mais moço d’elles comprar
viveres na cidade vizinha. Apenas partio,
disserão os dous :
— Para o que havemos de dar metade
d’essa riqueza áquelle tolo? Vamos ma-
tal-o apenas chegue, e a sua parte nos to­
cará.
O outro, emquanlo caminhava para a
cidade, dizia comsigo : « Que fortuna se
toda aquella riqueza fosse minha ! » E,
apenas comprou os viveres, lançou veneno
no vinho e voltou para a caverna.
Mal tinha dado dous passos dentro d’ella,
quando cahiaapunhalado pelos dous, que
— 135 —

poucas horas depois expirárão lambem no


meio de dôres horriveis, depois de ban-
p quetearem**se e de beberem o vinho enve-
nenado.
Alguém achou os tres cadaveres circum-
)/ dados do thesouro tão iiifamemente amon*
J. toado.
A eterna justiça do Senhor
Castiga com o mal ao proprio autor.

X C I

o ANTHROPOPHAGO
\

Dons meninos da cidade perdêrão-se


em um bosque muito escuro e horrivel, e
passarão a noite em uma hospedaria isolada
ede apparencia desagradavel. Seria meia-
noite quando ouvirão fallar baixo no quarto
visinho. Ambos, querendo escutar, collá-
rão os ouvidos ao buraco da fechadura, e
ouvirão distinctamente estas palavras;
— Minha mulher, limpa bem a panella
pela manhã, porque quero matar os dous
tolinhos que vierão da cidade.
— 136 —

Os pobres meninos sentirão uma agonia


mortal.
0 ’ céos! exclamárão baixinho, este ho­
mem é um anthropophago !
E pularão pela janella a fugir ; magoa­
rão, porém, os pés, e isso privou-os de an­
dar, além de acharem fechada a porta do
páteo. N’esta collisão, entrarão sorratei­
ramente pelo chiqueiro, e, escondidos en­
tre os porcos, alli passarão a noite. De
manhã muito cedo o estalajadeiro abrio a
porta do chiqueiro e principiou a amolar a
faca, gritando:
— Vamos, tolos, sahi, que a vossa ulti­
ma hora é chegada. ‘lí
Os dous meninos soltárão gritos lasti­
mosos e supplicavão de joelhos que os
não matasse. O bom homem, admirado de
achal-os alli, perguntou o motivo por que
0 tomavão por um anthropophago.
I !
— Nós ouvimos a noite passada dizer­
des que a vossa intenção era matar-nos
esta manhã.
— Insensatos ! exclamou o homem, não
— 137 —

se tratava de vós. Os dous tolinhos da ci­


dade a quein eu me referia erão dous lei­
tões que comprei lá. Vêde o que acontece a
quem tem o costume de escutar pelas por­
tas. Lembrai-vos bem d’estes versos :
Nas portas nunca queiras escutar,
Que pódes muito bem vir a corar 1

XGII

0 CHARLATÃO

Um viajante muito bem vestido entrou


certa noite em uma casa de pasto, onde
pedio um frango assado e uma garrafa do
melhor vinho. Apenas tinha mellido na
boca o primeiro bocado, que principiou a
gemer, dizendo soffrer ha mais de quinze
dias de uma dor de dentes insupportavel.
Todas as pessoas que alli se achavão lhe
testemunhárâo grande compaixão.
Alguns instantes depois entrou um em-
pirico, que, se assentando na sala, pedio
um copo de aguardente. Depois de infor­
mado do estado do estrangeiro, aífirmou
“I c
— 138 —

que 0 poria bom com um remedio que


tinha. Tirou da sua caixinha de viagem
um papel dobrado com todo o cuidado,
abrio-o e disse ao estrangeiro :
— Molhai a ponta do dedo, e depois
applicai este pó no dente.
O estrangeiro fez exactamente isto e ex­
clamou logo :
— Meu Deos ! que allivio sinto ! a dôr
desappareceu !
Chamou o empirico, convidou-o a jan­
tar, e deu-lhe em recompensa um escudo
il .
de ouro.
Todas as pessoas que se achavão na
casa de pasto, e quasi todos os moradores
I
da aldêa, se apressarão em comprar o pó
precioso, e o charlatão vendeu cem papéis
d’elle a doze soidos cada um. Muitas pes­
soas applicárâo-o depois para as dôres, e
I 1 nunca produzio effeito algum. Um dia
finalmente descobrirão a impostura dos
dous viajantes,/
que se tinhão combinado
para enganar a simplicidade dos aldeãos,
vendendo-lhes cal com o antidoto contra
— 139 —

^as dôres de dente. Forão ambos, no fim


i de alguns dias, expiar em uma prisão
!j essa e outras espertezas do mesmo genero
^ que já linhão feito.
Dos charlatães tende medo,
< Que tentão sempre enganar.
N’um homem que illude sempre
Ninguém se deve fiar.

. XGIII

0 D E S C O B R I D O R DE T H E S O U R O

Certa noite, um homem vestido de ma­


neira muito singular, e trazendo debaixo
do braço um grande livro e na mão di­
reita uma varinha branca, procurou o
camponez Leonardo para communicar-lhe
um importante segredo.
Existe nos vossos campos um grande
thesouro enterrado : se prometteis di-
vidil-o comigo, eu o desenterrarei e vós
sereis millionario.
Aceita a proposta, forão ambos para o
campo, munidos de enxadas e alviões.
Depois de cavarem um buraco muito
— 140 —

fundo, acharão uma grande caixa, quefo-


lizmente puderão conduzir para a casa do
aldeão. Apenas chegarão, o desconhecido
examinou escrupulosamente a caixa, to­
cando-a em diversos lugares com a sua
varinha, e lendo no livro palavras inin-
lelligiveis.
— Se não quizermos, disse ao campo-
nez, queeste ouro se transforme em car­
vão devemos empregar algumas drogas
que eu conheço antes deabrir-se o caixão.
Ninguém as possue senão um boticário
que mora a dez léguas d’aqui. Supponho
que não custarão mais de vinte ducados.
O aldeão que n’aquelle dia tinha ven-
didoo seucavalloe recebido aquella quan­
tia, deu-a immediatamcnte aomagico, que
se pôz a Cfminho para nunca mais voltar.
O aldeão esperou muito tempo que vol­
tasse, porém debalde; e quando sedecidio
a abrir o caixão, em vez de ouro ou prata,
ou mesmo carvão, apenas encontrou pe­
daços de pedra e umpapel com estas pala-
— 141 —

Quem, folheando a terra, procura um thesou-


[ro,
Acha sempre mais pedra do que ouro.

XCIV
0 ESPECTRO
Martinho, tendo-se introduzido durante
a noite no jardim de um castello, encheu
dous saccos de fructos. Tentou« carregar
um primeiramente. Quando se deslizava
junto do muro do jardim, soou meia-
noite, e vio de repente um homem negro
que carregava também outro sacco. Lan­
çou um grito de medo e correu com todas
as forças; o homem também atirou o sac­
co no chão, e correu na mesma direcção,
acompanhando-o sempre até á extremi­
dade do muro, onde desappareceu. De
manhã Martinho contou a todo mundo a
historia do fantasma, sem dizer uma pa­
lavra sobre o roubo que commetteu, O
juiz de paz mandou-o chamar e lhe disse:
— Esta noite roubaste fructos no jardim
do castello: os saccos te trahírão, pois
que ambos estão com a tua marca : por
isso vou mandar recolher-te á prisão.
Quanto ao fantasma negro que viste, era a
tua sombra, que se projectava sobre o
muro caiado de novo, á claridade da
lua que se erguia no horizonte. n
A mesma cousa acontece sempre com il
aquelles que fazem mal: o ruido de uma
folha que se agita é bastante para aterral-
os efazel-os fugir de medo.
Se tens a consciência livre,
Não te curves a um temor pueril.
Sómente treme receioso e foge
Quem na alma tem um sentimento vil.

xcv
0 PEREGRI NO
líJJ' Um rico cavalleiro habitava outr’ora um
magnifico castello, com cujo embelleza-
mento gastava grandes sommas, semnun­
ca beneficiar com ellas a ninguém. Che­
gando um pobre peregrino, pedio pousada
e descanso por uma noite. O cavalleiro
recusou, dizendo que o seu palacio não
era hospedaria.
- - 143 —

— Consentí^ disse-lhe o peregrino, que


vos faça sómenle très perguntas, e depois
continuarei a minha jornada.
— Com todo 0 gosto, respondeu o ca-
valleiro, e basta isso para que eu vos res­
ponda.
— Dizei-me, disse-lhe o velho, quem
habitava este castello antes de vós ?
— Era meu pai.
— E antes d’elle ?
— Meu avô.
— E depois de vós quem será ?
— .Certamente meu filho, se fôrda von­
tade de Deos.
— Muito bem, respondeu o peregrino ;
se este castello é habitado successivamen-
te, se uns deixão seus lugares para os
outros, é evidente que elle é apenas uma
hospedaria. Sêdes pois mais prudente :
não embellezeis tanto o que não vos per­
tence; antes tende mais caridade para com
os pobres, e assim obtereis no céo uma
habitação eterna.
O cavalleiro seguio os conselhos do
a — 144 —

velho peregrino, deu-lhe pousada, e d'ahi


em diante foi mais caridos o com os po­
bres.
Risos, pompas e vaidades^
Tudo desce á sepultura;
Só a virtude é dos bens
O que na terra perdura.

XCVI

0 EREMI TA

Um principe orgulhoso pela sua belleza,


assim como pela sua posição e fortuna, foi
caçar um dia em lugares desertos e mon­
tanhosos. Vio um velho eremita assentado
em frente da sua cellula, considerando
attentamente uma caveira que tinha entre
as mãos. Approximando-se do velho, disse
0 principe com zombaria :
— Porque consideras com tanta atten- •3
ção esta caveira, e o que pretendes desco­
brir n’ella?
O eremita respondeu-lhe com uma es<
tranha severidade :
Eu quizera saberse éocraneo de um
— 145 - -

mendigo ou de um principe ; porém nào


posso distinguir de quemseja.
Se queres conhecer o valor d’esta vida,
Contempla a morte em uma face esculpida.

XCVII m
ÜMA PE S S OA E N T E R R A D A VI VA

Uma moça morreu na flor dos annos,


na quadra mimosa da sua primavera. Ves­
tida de branco, entrelaçadas de finas pé­
rolas suas madeixas, parecia antes uma
noiva, refulgindo no dedo rico annel de
brilhante. Seus pais quizerão que a enter­
rassem com os seus mais ricos adornos.
Durante a noite o coveiro penetrou no
íi cemiterio com uma lanterna, e, abrindo a
cova, quiz despir o cadaver dos seus or-
natus ; este ergueu-se, porem, e, olhando
fixamente o ladrão, perguntou-lhe com
voz sepulcral:
— O que quereis de mim ?
Cheio de terror, elle fugio rapidamente.
A moça, que suppunliâo morta, porém
10
lU
— 146 —

que só tivera um ataque, sahio do cemi­


tério, apanhou a lanterna do coveiro, e
voltou para sua casa. No momento em que
ella entrou, seus pais sentirão-se gelados
de terror, que bem rápido se mudou na
mais doce e inexprimivel felicidade.

XCVIII

A HERANÇA

Um rico mercador distribuio toda a sua


fortuna com seus filhos, com a condição
de velarem pelas suas necessidades em
quanto fosse vivo.
No começo foi bem tratado ; porém
pouco a pouco o forão abandonando, até
que recusavão-lhe roupa para seu uso.
O pobre velho maldizia-se da sorte,
quando de repente um negociante, que
lhe devia 20,000 escudos, os restituio.
Immediatamente guardou-os em uma
burra de ferro. Os filhos começárào a
%
tratai-o bem novameote, com a cobiça do
dinheiro ; e, se bem que não désse
— 147 —

n’aquella occasiâo, tinhão esperança de


oblêl-o pela sua morte.
O velho nunca lhes disse uma palavra a
esse respeito.
No dia em que falleceu, os filhos corre­
rão ao cofre, para dividirem o dinheiro ;
porém já linha sido secretamenle offere-
cido á casa dos engeilados pelo velho, e
no seu lugar achárão um papel concebido
n’estes ternaos :
A fortuna quasi sempre.
FJarã um filho ingrato e impuro,
É o presagio da desgraça
Que lhe sorri no futuro.

XCIX

o S ORRI S O DO M O R I B U N D O

Um piedoso velho, já no leilo da ago­


nia, e proximo a soltar o ultimo suspiro,
tinha todos os seus filhos e netos reuni­
dos em roda do seu leito. Très vezes du­
rante 0 somno um sorriso agradavel Linha
roçado seus lábios ; depois que desper-
— 148 —

tou, um dos meninos perguntou-lhe o


motivo.
— A primeira vez, disse elle, eu sonhei
que revia na imaginação as horas de feli­
cidade que' gozei na minha vida ; ri-me
então da cegueira dos homems, que se
deixão fascinar poressas bolhas de sabão,
a que ligão no emtanto uma louca impor­
tância. A segunda vez, lembrei-mc de
todas as mágoas da minha vida, e alegrei-
me lembrando-me de que em breve colhe­
rei as rosas, em vez dos espinhos que
i ..
deixo. A terceira vez, reflectia sobre a
morte; sorri de piedade pensando no terror
que inspira aos homens esse anjo de Deos,
enviado para acabar todos os seus soffri-
mentos e os conduzir para a mansão das
alegrias eternas. •
Quem na terra fôr senpre piedoso
Tem no céo um lugar venturoso.
— 149 —

os AMI GOS DE POI S DA MO R T E

llm pai contou uin dia a seguiule histo­


ria a sous filhos :
_ Sendo o governador de uma ilha cha­
mado pelo monarcha para dar conlas da
sua administração, os amigos em quem
depositava a sua maior confiança abando-
náião-o lolalmente ; alguns outros o acom-
panháião até o navio ; no emtanto aquelles
de quem menos ou nada esperava seguí
rão-o até o throno do rei, onde fallárão
tanto em seu favor que o monarch a tomou-
o sob a sua protecção.
, — O homem, continuou o pai. possue
1res sortes de
amigos n’este mundo; elle,
porém, não os conhece perleitamente se­
não quando e chamado poi Deos a près-
lar conta das suas acções n este mundm
Os primeiros d’estes amigos sao o dinheuo
e os bens terrestres, que o deixao total-
mente na hora oa morte. Os segundos sao
— 150 —

os parentes e os amigos que o acompanhao


até 0 sepulcro. Os terceiros sáo as suas
boas obras; são ellas que o seguem na
viagem eterna, e aos pés do Creador pedem
para elle a sua graça e misericórdia divina.
— O h ! quão insensato é o homem que
despreza amigos tão fieis e dedicados!

Na hora extrema da vida


Tudo nos deixa e se esvahe;
Só os nossos benefícios
Sobre nossa alma recahem!

FIM
NAS MESMAS LIVRAEIAS
ílA Biblia sagrada, traduzida em portuguez se­
ll çundo a vulgata latina, illustrada com pre­
fações por Antonio Pereira de Figueiredo,
official que foi das cartas latinas da secretaria
d''estado e deputado da real mesa da commis-
Sclo geral sobre o exame e censura dos livros,
seguida de notas pelo Bev. conego Delaunay,
cura de Saint-Etienne-du-Mont, em Pariz,
de um diccionario explicativo dos nomes he-
' braicos, chaldaicos, syriacos e gregos, e de um
diccionario geographico e historico, e appro-
vada por mandamento de S. Ex. Bev“ ®o
Arcebispo da Bahia, 2® edição illustrada com
gravuras sobre aço, abertas por Ed. Wilmann,
segundo Raphael, Leonardo de Vinci, Ticia-
no, Poussin, Horacio Vernet, Murillo, Van-
loo, etc. 2 bellos volumes ricamente encader­
nados em Pariz.................................. 40j$f000
3 Cânticos espirituaes, colligidos pelos padres
dacongregaçcão da missão brazileira, impressos
com a approvação do Ex“ ° Sr Bispo de Ma­
rianna. 2» edição. Ivol. em-8°............... 55000
í Catechismo da doutrina christã, com­
posto peloconegoDrJ. C. Fernandes Pinheiro,
adoptado pelo conselho director da instrucção
primaria e secundaria do município da côrte
e pela presidência da província de Rio de Ja­
neiro ; nova edição consideravelmente me­
lhorada. 1 vol. em-8®. IgOOO
Compendio de metrologia para uso das es­
c o l a s primarias, pelo Dr J . de Lossio, mandado
i adoptar no Rio de Janeiro pelo Governo Im-
! perial. 1 vol. com cst........................ í 640
1 I
•I < Episodios da historia patria, contados á
mfancia pelo conego Dr J. G. Fernandes Pi­
nheiro, professor de rhetorica e poética do im­
perial collegio de Pedro II; obraadoptada pelo
Conselho Director da Instrucção publica ; nova
ediçAo melhorada. 1 vol. em-8o..........2^000
Historia Sagrada Illustrada, para uso da
intancia, seg'uida de um appendice contendo :
lo urna relação analytica dos livros do Antigo e
Aovo Testamento ; 2o uma tabella chronologica
dos principaes acontecimentos; 3o um voca­
bulário geographico explicativo dos nomes
dos povos e paizes mencionados na mesma
historia ; composta pelo conego Dr J. C. Fer-
naiides Pinheiro; novaedição, correcta e
T
i( melhorada. 1 vol. em-8®.........................3^000
Vil‘
Thesouro do Ghristào, dedicado aos alum-
nos dos serninarios do Tmperio do Brazil.
Segunda edição, corrigida eaugmentada.
1 volume em-12.................................... 2^500
«Cisco de Salles. — Intioduccao á
\ ida Devota. Em-8o enc.......................... 2i‘000

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