Alexandria Warwick - O Vento Norte
Alexandria Warwick - O Vento Norte
Alexandria Warwick - O Vento Norte
Capa
Ficha Técnica
PARTE 1 - CASA DE ESPINHOS
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PARTE 2 - A CASA DOS SONHOS
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Epílogo
Agradecimentos
Alexandria Warwick
O Vento Norte
Tradução
Luís Filipe Silva
Ficha Técnica
Título: O Vento Norte
Título original: The North Wind
Autor: Alexandria Warwick
Editora: Marta Ramires
Tradução: Luís Filipe Silva
Revisão: M. Bravo
Design e ilustração da capa: © 2024 Story Wrappers LLC
Adaptação portuguesa da capa: © Memento Design & Criatividade
ISBN: 9789895811366
© Alexandria Warwick
Publicado com o acordo de Simon & Schuster (Austrália) Pty Limited
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor.
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Para quem ama e quem sonha
1
O céuEmbora
pressagia uma tragédia que se avizinha.
mostre um pálido tom de cinzento, surge uma mancha rubra
sobreposta no horizonte, a leste – evidência do Sol nascente. Espalha-se,
esta mancha, embebendo as nuvens, pingando sobre o Ocidente distante.
Vejo o dia acordar enquanto me escondo, abrigada, no bosque cerrado de
árvores castigadas pela neve, e o meu coração arrepia-se de medo. É um
tom vermelho de carnificina.
Um tom vermelho de vingança.
Previ esta visão há dias. É como dizem as histórias: em primeiro lugar,
nascem os cones floridos do velho cipreste que adorna a praça da povoação.
Três décadas esteve a árvore entorpecida, mas a aparição súbita de novos
botões em flor desencadeou um frenesi louco, histerismo nas mulheres e ar
estoico de funesta derrota nos homens. Os botões, seguidos do amanhecer
sangrento. Pouco posso fazer, neste momento. Se o céu disser a verdade, em
breve, teremos uma visita em Edgewood.
A terra, envolta numa camada branca e gelada, repousa num silêncio
mudo, com a neve macia das tempestades, tão frequentes como os ciclos
lunares. Por enquanto, não pensarei no que está para vir. O meu trabalho é
aqui, nesta parte desabitada do bosque, entre as árvores escuras com
interiores apodrecidos, com a mão enluvada agarrando rigidamente o arco.
Espreitando por detrás de um tronco banhado pela lua, perscruto o que
me rodeia. Faz três dias que deparei, inesperadamente, com um rasto de
caça ainda fresco. Segui-o até este lugar, a vinte e tal quilómetros de casa,
para noroeste, mas não consegui ainda encontrar o alce.
– Onde estás? – sussurro.
Um vento cruel abana os ramos despidos e ossudos. Tento apertar um
pouco mais o casaco feito de retalhos contra o corpo, mas o frio invasor
enfia-se por quaisquer aberturas. Foi o desespero que me empurrou para as
profundezas do bosque, longe daquele minúsculo recanto de civilização –
para norte, onde reluz o Rio Les, onde ninguém se atreve a viver.
Um movimento prende-me a atenção. O animal entra no meu campo de
visão, a coxear, longe da manada. Avança em passo lento e a custo, causado
pela pata dianteira esquerda que está visivelmente torcida. Fico agoniada.
Está em sofrimento, mas não é culpa sua. Essa responsabilidade cabe ao
deus negro no outro lado da Sombra.
Mal me atrevo a respirar, enquanto retiro uma flecha da minha aljava.
Um puxar escorreito, esticado ao máximo, e a mão roça o maxilar, a corda
toca na ponta do nariz, que uso também como ponto de referência. O alce
afasta a neve com a pata à procura de algo verde que prometa esperança,
embora esta jamais chegue.
Não estou sozinha.
Respiro profundamente, e os meus pulmões enchem-se com pedaços de
floresta: gelo e madeira e o cheiro a queimado. É um aviso, e vem do Norte.
Os meus sentidos estão em alerta. Os meus ouvidos esforçam-se por
detetar algum som invulgar. A tensão torce-me os membros em nós, mas
obrigo a mente a descontrair-se, a entender o que sabe, e o que sabe é isto: o
odor é muito ténue. A distância que ainda me separa do caminhante-das-
trevas dá-me tempo suficiente, mas não devo perdê-lo.
Volto a observar o alce, reparando que o animal se afastou tanto que a
probabilidade de lhe acertar no coração diminuiu de forma drástica. Não
posso arriscar-me a chegar mais perto dele. Se ele fugir, não serei capaz de
o capturar, e não me restam mantimentos suficientes para alongar ainda
mais esta viagem. Em casa, o pão vai ficando rijo, tal qual um prego, e da
carne seca só restam migalhas.
Por isso, não falhes.
Ajustando o ângulo do arco, inclino a seta uns centímetros para cima.
Exalo e… abro a mão.
A seta grita ao cortar o ar gelado, enterrando-se profundamente em carne
viva onde bate ainda um coração.
Hoje, eu e a minha irmã viveremos, e assistiremos a um novo dia.
A última das manadas de alces desapareceu há décadas, mas este
espécime acabou por reentrar no nosso reino, desorientado. O coitado está
reduzido a pele velha e ossos deformados, e nem adivinho há quanto tempo
não comerá nada. Poucas plantas florescem no Gris.
Começo de imediato a esfolar o animal com a faca de que nunca me
desfaço. Arranco pedaços de carne fumegante à carcaça, os quais comprimo
no interior da mochila para mais caberem. O sangue satura a pele do alce.
De tempos a tempos, espreito por cima do ombro, atenta ao que me rodeia.
A tonalidade encarnada do céu arrefeceu, mostra-se azul.
O cheiro de uma forja ainda paira sob o fedor a cobre. Enfiando a mão
na cavidade corporal através do estômago aberto, corto mais um pedaço,
que acrescento aos restantes. Banha-me sangue quente da ponta dos dedos
aos cotovelos.
Estou a seccionar o fígado quando se levanta um uivo, eriçando-me os
pelos da cabeça aos pés. Apresso-me a cortar. Tendo esvaziado o abdómen,
dedico-me aos flancos. Trago uma pequena bolsa de sal pendurada no cinto,
mas esta proteção só me defenderá de um caminhante-das-trevas, talvez de
dois, se forem pequenos. O uivo transforma-se num rugido, e o meu corpo
fica hirto, o meu pulso dispara, pairando na crista de uma onda negra.
Acabou-se o tempo.
Com destreza, dispo o casaco pesado do meu corpo encharcado em suor
e retiro as luvas manchadas de sangue. Cerro os dentes ao ser abalada por
um arrepio agonizante. Faz horrivelmente frio. Um frio de matar. Desenrolo
a túnica seca de lã que envolvia o frasco de vinho e enfio-a pela cabeça,
puxando-a com força. Pelos deuses, não arrisquei duas semanas a atravessar
o deserto estéril para morrer assim. Se não regressar com esta comida, Elora
estará fadada ao mesmo destino.
Tendo removido as roupas encharcadas, enfio o conjunto sob a carcaça
sangrenta antes de trepar a árvore mais alta que encontro. A casca
congelada morde-me as palmas das mãos. Subo, subo, até alcançar o ramo
mais distante do solo, que protesta ante o meu peso. Estalam os nós dos
dedos, das mãos que cerro em punhos e aperto contra o calor do meu
estômago esfaimado.
O caminhante-das-trevas entra a cambalear na pequena clareira, embora
não consiga ver nitidamente a sua forma. Pedaços de sombra, paveias que
sangram negro sobre o branco. Investiga o alce caído durante algum tempo,
antes de rondar a zona. Um dorso inclinado e irregular, aquela cauda
ondulante como um chicote. Cerro a mandíbula para impedir que os dentes
batam.
A Sombra – a barreira que separa o Gris das Terras Mortas adjacentes –
devia, supostamente, prender os caminhantes-das-trevas à vida após a
morte. Mas o povo da região conta várias histórias de buracos na barreira,
fissuras por onde as criaturas penetram novamente na terra dos vivos em
busca de almas que as sustentem.
As criaturas não estão vivas, na verdadeira essência da palavra, mas o
caminhante-das-trevas pressentiu a alma recém-partida do alce. Oxalá
consiga distraí-lo da minha presença. Esperava levar a pele para fazer um
novo casaco para Elora, mesmo que o meu esteja cheio de rasgões em todas
as costuras. Mas não há tempo para esfolar o animal.
Por fim, a criatura afasta-se. Dez minutos é o quanto espero, com a
respiração suspensa, até o cheiro a queimado se dissipar. Só então desço da
árvore.
Da carcaça do alce levanta-se vapor. Falta cortar metade da carne –
alimento suficiente para dois meses. Por muito que me custe deixá-la para
trás, não me arrisco com um caminhante-das-trevas por perto. Temos de nos
desenrascar com um mês de comida, e se formos cautelosas, Elora e eu
ainda poderemos esticá-la mais tempo. Talvez surja outro animal, morto de
fome, a cambalear pelas terras.
Depois de vestir o casaco e calçar as luvas, ponho a mochila às costas e
enceto o caminho de regresso a Edgewood, vinte e tal quilómetros
carregando aquele peso. Ao fim do quinto quilómetro, perco a sensibilidade
nos pés, cara e mãos. O vento não amaina, por muito que reze a quantos
deuses me lembre, embora eles possivelmente estejam cientes de que perdi
a fé.
Caminho o dia inteiro. Cai a noite, escurecendo o bosque e matizando-o
de tons violeta. A menos de três quilómetros do fim, ouço-o. O som baixo e
lamurioso de uma corneta de chifre de carneiro sobe por cima do vale e faz
acelerar o meu pulso a um ritmo perigoso. O céu pressagiou uma tragédia
que se avizinhava, e não se enganou.
O Vento Norte acabou de chegar.
2
H ásolomuito tempo, o Gris era conhecido como sendo o Verde. A terra, este
de terra batida era, três séculos antes, uma imagem de vitalidade:
luxuriante e verdejante, com água límpida que cantava por cima das rochas,
e manadas de alces e veados, e aves canoras, tal como a carriça de quem
herdei o nome1. Não se conhecia a fome, pois a ninguém faltava alimento.
As cidades prosperavam, fortuna que se espalhava pelas povoações mais
afastadas. Até os rios fluíam de abundância, rumando a sul para as terras
baixas, a transbordar de trutas e amêijoas de água doce que eram apanhadas
e vendidas pelas suas margens fora.
A mudança não aconteceu de repente, mas ao longo de um ciclo, tal
como a lua: amadureceu, minguou, diminuiu até se extinguir a luz. Com o
passar dos anos, os verões iam ficando mais curtos, o inverno mais extenso
e profundo. O céu escureceu. O solo congelou e tornou-se pedra. O sol
enfiou-se atrás do horizonte e ausentou-se durante meses.
Depois veio a Sombra, como se erguida por mãos fantasmagóricas.
Ninguém lhe conhecia origem nem finalidade. Os caminhantes-das-trevas
materializaram-se, pesadelos incarnados. Afugentámo-los, mas regressaram
em massa, em sombras acumuladas. Por fim, o inverno envolveu a terra, e
nem o próprio sol foi capaz de quebrar a sua pele gelada.
Edgewood e as vilas próximas passaram fome, pois as colheitas
mirraram, os rios ficaram cobertos pelo gelo, o gado pereceu. Ganharam
vida os rumores, naqueles anos funestos. Supostamente, vivia um deus nas
Terras Mortas, para além da Sombra. Designando-se a si mesmo de Bóreas,
o Vento Norte: aquele que invoca as neves, o frio. Mas os habitantes do
Gris conhecem-no por Rei do Gelo.
Entro em Edgewood quando o crepúsculo se adensa em plena escuridão.
Um muro baixo de pedra empilhado com sal rodeia a humilde vila de
telhados de colmo e casas congeladas de lama compacta. Mesmo que haja
caminhantes-das-trevas a rondar na floresta, enquanto estiver dentro da
proteção do anel de sal, estou a salvo.
Não há qualquer movimento no interior da barreira. Cerraram-se
persianas, acenderam-se as lamparinas. As sombras deslizam pelas fendas
da velha estrada de pedra.
Ao passar ao lado de um dos baldes de sal comunitários, pendurado num
poste, reabasteço-me rapidamente. Trilhos estreitos serpenteiam pela neve
que cerca a praça desimpedida, cujo solo está cinzento e molhado das
inúmeras pisadas. A visão dos cones redondos do cipreste faz-me
atravessar, apressada, a zona desértica. Eu e a minha irmã não temos muito
tempo para os preparativos.
A nossa cabana fica no alto de uma colina, protegida por árvores mortas
há longa data. Entro sem demoras, chamando-a em voz alta enquanto fecho
a porta com o pé.
– Elora?
A lareira acesa emana calor que descongela a rigidez do meu rosto. As
tábuas de madeira do soalho gemem sob as minhas botas. Deposito arco e
aljava junto à porta e atravesso o espaço apinhado. A cabana só tem três
divisões, pelo que a busca termina antes de o coração bater dez vezes.
Está vazia, a casa.
Um terror vítreo enraíza os meus pés no chão. O Rei do Gelo não pode
ter já chegado. É demasiado cedo.
Um corno ressoa, avisando que o rei acabou de entrar no Gris. A Sombra
está a meras horas de distância, mesmo a cavalo, e a nossa cabana é a mais
afastada da entrada da vila, a mais pequena e facilmente ignorada. Estarei
equivocada? Se ele levou Elora consigo, fico sem nada.
Arrasto-me para a cozinha, apoio-me na mesa vacilante de três pernas. A
mochila, encharcada de sangue, tomba no chão com um baque húmido.
Se ele tiver escolhido Elora como vítima, em que momento terão
partido? Só podem dirigir-se para norte. Ainda os poderei alcançar em
passo de corrida, embora tenha a alternativa do cavalo de Miss Millie.
Tenho o meu arco. Cinco flechas na aljava. Garganta, coração, barriga. Se
as disparar todas, serão suficientes para matar um deus?
Abre-se então a porta das traseiras e a minha irmã entra, sacudindo a
neve do gorro de lã.
O alívio apaga-me as forças. Sinto os joelhos dobrarem-se, estalando o
soalho.
– Tu… – A palavra perde fôlego. – Não faças isso!
Elora interrompe o ato de fechar a porta, por onde entra o frio, e
pergunta com aquela carinha redonda enrugada numa expressão perplexa.
– Não faço o quê?
– Não desapareças assim!
– Que disparate, Wren. – Funga, sacode os flocos de neve dos ombros.
Uma trança comprida e esgrouviada cai-lhe até ao meio das costas. –
Estamos a ficar sem lenha. Já agora, o machado continua partido.
Pois. Mais uma tarefa para a minha lista. Tem de levar um cabo novo,
mas preciso de um machado que funcione só para cortar o cabo. Como é
natural, Elora jamais tentaria arranjá-lo de livre iniciativa.
Soltando um pesado suspiro, faço um esforço por me endireitar e
espreito o armário. Perante a expressão reprovadora de Elora, desvio o
olhar, embora a minha garganta me peça o contrário.
– Promete-me que não sais de casa sem me dizeres. – Começo a andar de
um lado para o outro. É um hábito, uma forma de sentir que controlo as
coisas. – Pensei que ele te tinha levado. Já planeava roubar um cavalo
algures. Imaginava até a forma mais eficaz de matar um homem que não
pode morrer.
– És tão dramática!
Como se fosse uma insignificância, temer pela vida da minha irmã.
– Não sou dramática. Sou… – Lívida é a expressão que me vem à
cabeça. Segundo a mãe, não vim ao mundo pacificamente. Não, a parteira
viu-se obrigada a arrancar-me do útero porque eu não queria, e debatia-me
contra ela. – Resoluta – arremato de forma escorreita, prendendo uma
madeixa de cabelo atrás da orelha.
Elora faz uma expressão carrancuda. Deve ter aprendido comigo.
Embora tenhamos uma aparência quase idêntica, os nossos corações batem
com ritmos diferentes. Os olhos dela são dois pedaços de carvão negro,
cheios de vida. Os meus são distantes, desconfiados, cautelosos. A pele dela
é imaculada, de um tom umbroso forte, em vincado contraste com a cicatriz
saliente e enrugada que mutila a minha face direita. O cabelo escuro de
Elora é liso como um alfinete, enquanto o meu tem a frustrante mania de
criar caracóis. É minha gémea, mas o oposto de mim em todos os aspetos.
Olhar para Elora é como ver-me ao espelho – daqueles que mostra quem
eu fui, antes de ficarmos órfãs. E agora? Bem. Já derramei sangue mais
vezes do que me apetece admitir. Matei homens, vendi o corpo, roubei
amiúde, tudo por um pouco de comida, ou de calor, ou de moedas, ou pelas
ervas secas que Elora adora usar quando cozinha. Algo tão irrisório, e,
contudo, para ela, tão raro e valioso.
Elora ignora tudo isto. Ela é demasiado mansa para este mundo,
demasiado boa. Jamais sobreviveria nas Terras Mortas.
– A questão é que – afirmo – não podemos continuar aqui. – Pouco
demoraria fazer as malas, pois as nossas posses são parcas.
– O quê? – recua. – Quando é que decidiste isso?
– Agora mesmo. – Viajaremos para sul, oeste, leste. Nunca para norte,
pois é onde ficam as Terras Mortas.
Um sorriso fátuo toca-lhe na boca.
– Só podia ser.
– Vem comigo. – Dou meia-volta, alcançando as suas mãos esguias. –
Abandonaremos este lugar de vez, começaremos noutro lado…
– Wren. – Com calma, Elora desprende os dedos dos meus. Sempre foi a
mais sensata das duas. – Sabes bem que não podemos fazer isso.
As visitas do Vento Norte ocorrem com intervalos de poucas décadas.
Uma mulher, que ele leva consigo para outro lado da Sombra por motivos
desconhecidos. Uma mulher que morre para que as outras vivam. Nesta
vida, há pouco que eu adore, além de Elora, e pergunto-me se me aguarda
ainda mais sofrimento.
Na semana passada, todas as mulheres com idades compreendidas entre
os dezoito e os trinta e cinco anos tiraram à sorte para escolher a que se
ofereceria como sacrifício. Calharam os paus mais curtos a sete delas,
incluindo a minha irmã. Se tentar fugir a este destino, será condenada à
morte. Eis a lei de Edgewood.
– Não quero saber – sibilo, já a sentir lágrimas nos olhos. – Se ele se
apoderar de ti…
O olhar dela suaviza-se.
– Não o fará.
– Se acreditas nisso, és tola. – Elora é a mais adorável de todas as
mulheres da nossa aldeia. Todas as quinzenas, algum homem pede a mão da
minha irmã em casamento. Mas, por razões que desconheço, ela ainda não
aceitou nenhuma das ofertas. A flagrante falta de preocupação com a
ameaça que se avizinha revela o quão diferentes são as nossas prioridades e
reforça os papéis que acabámos por assumir ao fim de tantos anos.
Elora e eu tínhamos uns tenros quinze anos quando, pouco depois de
ficarmos órfãs, descobrimos o verdadeiro fardo da solidão, os temíveis anos
que se apresentavam diante de nós, qual estrada escura sem fim. Foi então
que aprendi a usar o arco. Foi então que chacinei os caminhantes-das-trevas
para que Elora pudesse descansar de consciência imaculada. Era, afinal, o
papel para que tinha sido moldada pelos nossos pais: guardiã, defensora.
Porque se deveria ela preocupar, se eu estava aqui para a proteger? Mas
nem eu sou capaz de enfrentar um deus e sair vencedora.
Elora dirige-se a um dos caixotes encostados à parede. Abrindo a tampa,
revela o escasso conteúdo – carne salgada suficiente para apenas dois dias,
se tanto – e enfia uma tira de carne seca na minha mão.
– Come alguma coisa, por favor. Deves estar esfaimada depois da
viagem.
– Sinto-me agoniada.
– Então, senta-te. Quiçá ajude.
Não é de uma cadeira que preciso. A tensão entranhou-se-me tanto nos
ossos que é impossível separá-la dos próprios. Por isso, lanço mão ao
armário que contém o vinho, tiro uma das garrafas e saco a rolha. Mal a
bebida me beija a língua, o nó emaranhado na base da espinha começa a
desfazer-se, e a minha mente recupera a clareza. Dois outros goles, e sinto-
me mais recomposta.
– Wren.
Aperto com força o gargalo. Volto a beber, dentes expostos enquanto o
ardor se acentua, abrindo um sulco ao deslizar para o meu estômago.
– As tuas censuras, agora, não ajudam em nada. Noutra altura.
– Não é nada saudável.
Fungo de desdém.
– Menos saudável é sacrificar as nossas mulheres a um deus vingativo. O
que tem de ser, tem muita força.
Ela suspira, e eu afasto-me, repondo o vinho no armário. Ignoro-a. Esta é
a conversa que nunca muda. Elora pede aquilo que não lhe posso conceder.
Pede-me demasiado.
Tiro um pedaço de lã dobrada do bolso do peito do casaco.
– Encontrei um comerciante durante a viagem. Disseste que o teu
cachecol estava a ficar gasto.
Os olhos reluziram ao ver o presente. Temos tão poucas posses.
– O que é isto? – Suspira de prazer ao desenrolar o lenço, que mostra a
imagem de ondas grandes formando um enorme mar, embora nunca
tenhamos visto uma extensão de água, salvo o Les congelado, o rio que
separa o Gris das Terras Mortas.
– Isto é lindo – solta ela, enrolando o tecido azul à volta da garganta. –
Que tal me fica?
– Adorável. – Haverá outra palavra que descreva a minha irmã? – É
quente?
– Bastante. – Ajusta o tecido, mas interrompe-se. – O que é isso? –
Aponta para o livro do tamanho da palma de uma mão que espreita do bolso
do meu casaco.
Fico hirta.
– Ah, isto? – Um sorriso ligeiro e casual. – Nada.
Elora puxa-o do bolso, estuda a capa. É tão antigo que as páginas se
mantêm unidas por meros fios.
– A Paixão do Rei. Uma história de amor? – Ela esboça um sorriso. –
Não sabia que gostavas destas coisas.
As minhas faces ficam da cor das rosas.
– Não sei, mas ele ofereceu um preço justo. – É verdade em parte.
– Ah – diz ela, como se fizesse perfeito sentido. Elora que acredite se
quiser. Nunca lhe dei motivos para pensar de forma diferente. Como a
minha irmã raramente lê, é minha a maioria dos livros espalhados pela
nossa cabana. As sólidas capas de pano escondem com eficiência as
histórias enfiadas naquelas páginas. Não quero de modo algum que Elora
descubra A Paixão do Rei, ou qualquer que seja o título da minha atual
leitura.
O corno solta um lamento, sacudindo as paredes da nossa cabana.
Encaro Elora. Ela responde ao olhar.
– Está quase na hora – murmura.
Cerro os punhos para abafar o tremor. No fim da noite, uma mulher a
menos habitará Edgewood. O Rei do Gelo já me tirou muito, e ameaça levar
mais, aquilo que me é mais querido.
– Elora, por favor. – A minha voz falha. – És tudo o que me resta.
Não me ajoelho por ninguém, mas implorarei pela minha irmã, pela vida
dela. Quanto à minha, não me importa. Não faço parte das mulheres que
serão oferecidas ao rei para o sacrifício. Além disso, a cicatriz torna-me
indesejável.
– Vai correr bem. – Contornando a mesa, ela puxa-me para um abraço
cheio de calor. Sálvia, doce e terrosa, perfuma-lhe o cabelo. – Esta noite,
assim que o rei tenha partido, nós as duas faremos um bolo para celebrar.
Que te parece?
Semicerro as pálpebras.
– Como é que fazemos o bolo sem farinha? – E açúcar. Bem, e tudo o
mais que o bolo tipicamente leva. Não se fazem bolos com neve e
pedrinhas.
Elora limita-se a sorrir com ar de segredo.
– Há uma maneira.
Adoro bolos, mas não compensa o meu desconforto. O ar, nesta noite,
tresanda a fedor.
– Não gosto nada disto – resmungo.
O riso de Elora é como um sino de vento.
– Wren, não costumas gostar de nada.
– Isso não é verdade. – Sou apenas seletiva no que toca a exprimir
entusiasmo, só isso.
– Anda. – Puxa-me para a porta de entrada, chapéu na mão, levantando o
meu capuz até me cobrir as orelhas. – Acho que Miss Millie precisará de
quem a ajude nos preparativos finais. Tudo tem de estar perfeito.
C asaremos?
Devo ter percebido mal, certamente.
Não, estou absolutamente certa de que percebi mal. Não é isto o que as
histórias afirmam. O Vento Norte apodera-se de uma mulher e leva-a para o
outro lado da Sombra. Apodera-se do coração dela, do fígado, dos ossos.
Inflige agonias terríveis, agonias inarráveis, à sua vítima. Quanto a casar,
ninguém fala.
O horror contorce-se dentro de mim.
– Brincais.
Ele faz avançar o corcel, cujo bafo se condensa no ar frio.
– Nunca.
– Significa que todas as mulheres que foram levadas em cativeiro se
tornaram vossas esposas?
– Sim.
– Não sacrificais as nossas mulheres?
– Não.
Fala com rigidez, como se lhe custasse proferir tantas palavras num
único fôlego.
Em Edgewood, o matrimónio faz-se acompanhar de certas expetativas.
Uma mulher deve, acima de tudo, ser obediente. Uma mulher deve colocar
o conforto do marido acima do seu. Uma mulher deve aceitar todo e
qualquer castigo que receba. Se me fosse dado a escolher entre casar com o
Rei do Gelo e ser sacrificada… acho que escolheria o sacrifício.
A farsa revela-se.
– Não vos desposarei. – Eu devia agir como Elora, e ser mansa, recatada,
obediente, mas aceitei a morte e não uma vida na prisão.
Ele vira o animal para uma curva do rio.
– Não tens voto na matéria.
A Sombra agiganta-se, uma vastidão de trevas tão potente que me
convenço de que o mundo teve aqui a sua origem. Tal qual o sangue,
coagula na periferia da visão, e o terror aumenta, cravando as garras nas
minhas entranhas. O vento transporta gritos.
Embato no estômago do Rei do Gelo com o cotovelo, uma exalação
suave expele-se ante a pancada inesperada que o apanha de surpresa e me
abre espaço para saltar da sela. Mal os meus pés tocam no chão gelado,
desato a correr.
Na vizinhança da Sombra, as árvores estão em ruínas ou contorcidas em
formas grotescas espiraladas; folhas enegrecidas colam-se teimosamente às
ramagens. Podridão e decomposição permeiam o ar, e o meu estômago
revira-se ao passar pelo que desconfio ser um monte de ossadas. Esforçam-
se as minhas pernas, dispara o meu coração quando as botas embatem na
terra.
Não irei sem luta. Não irei, de modo algum.
Um furioso rugido desfaz o sinistro silêncio das árvores.
Escorregando, deslizo pela encosta gelada, descendo para um vale de
penedos acumulados por um deslize recente. Tropeço numa raiz, e caio,
escapando por um triz ao golpe de vento que explode da sua lança.
Estilhaça-se ao embater numa árvore próxima. Volta a brandir a arma,
enquanto eu me escondo, apressada, atrás das rochas. A pedra estala; o gelo
borrifa-me.
Duas ou três pulsações a seguir, corro disparada para onde o arvoredo é
mais denso. O rei ressurge nas minhas costas, lançando neve mais à frente
para atrasar o meu avanço. Assim que a mão dele começa a fechar-se sobre
o meu capuz, deixo-me cair, enrolando-me nos joelhos. As pontas dos
dedos reais raspam-me no cimo da cabeça; está demasiado alto, montado na
sela, para me agarrar. Um milagre minúsculo.
O impulso condu-lo em diante, e eu já estou de pé, mudo de rumo
enquanto ele tenta orientar o caminhante-das-trevas pelo mato denso.
O terreno irregular é uma ameaça para o corcel, e eu aproveito a
vantagem, seguindo por encostas e penhascos para me manter à frente,
trepando pelas rochas sempre que possível para não deixar rastos. O luar
retalha o chão gelado.
Uma abertura oca na base de uma árvore tombada chama-me a atenção.
Um breve rastejar sobre mãos e joelhos, adentrando-me no buraco escuro e
apertado. Já no interior, enrolo-me e aguardo.
As pisadas dos cascos ecoam no solo gelado. O caminhante-das-trevas
pisa o chão, e para. O rei deteve o corcel.
Tapo a boca para abafar a respiração. O meu corpo treme com tanta
intensidade que podia desconjuntar o esqueleto.
Ele desmonta. A neve estala sob o seu peso.
Não deixei rastos. Garanti-o. Ignoro se o rei é um batedor hábil. Poderá
obrigar-me a sair do esconderijo com os seus poderes?
O silêncio arrasta-se bastante tempo, até o ouvir montar novamente a
cavalo e afastar-se com um murmúrio:
– Raios.
Assim que o som dos cascos diminui, encosto-me à parede atrás de mim,
os dentes a bater. O instinto exige que eu fuja do local, mas obrigo-me a
ficar quieta até garantir que se foi embora.
Não demora muito a ser invadida pelo frio. Admito que não pensei bem
neste plano. Edgewood chama por mim. Elora chama por mim. Mas não
posso voltar. Se eu desaparecer, o Rei do Gelo é capaz de regressar a
Edgewood à procura de outra mulher, e nesse caso poderá escolher Elora –
a verdadeira. Onde é que isso me deixa?
É do teu sangue que preciso, não da tua morte.
É a única pista do meu futuro. Não morrerei hoje. Pelo contrário, estou
destinada a tornar-me prisioneira do Rei do Gelo, vinculada às Terras
Mortas até… o quê? Para que precisa ele do meu sangue?
Possivelmente, não interessa. Se este é o meu destino, que se cumpra.
Tenho tempo – para conspirar e planear. Até lá, preciso de regressar ao rio.
Os músculos estão rígidos e latejam, ao sair da toca a rastejar e abrir
caminho, contornando o mais espesso monte de neve. De quando em vez,
paro e ponho-me à escuta. Só o vento se ouve.
Por fim, avisto o caminhante-das-trevas e respetivo cavaleiro por entre o
arvoredo. O rei elimina a distância que nos separa com passadas possantes,
mas não fugirei.
Ajoelho-me. Inclino a cabeça. Ele para o corcel a um mero passo de
mim.
– Perdoai-me, meu senhor. Estava assustada. É penoso, isto de
abandonar a nossa família. – Respirando fundo, levanto a cabeça. – Mas
agora estou pronta. Consigo ser corajosa.
O seu olhar semicerrado perscruta a minha figura corcunda. Baixo o
olhar para o chão. É o que Elora faria. E ficaria a aguardar, portanto faço
igual. Ele oferece-me uma mão, e não a faca, o que me surpreende, e ajuda-
me a montar, antes de nos conduzir para a direção oposta. Pouco depois,
emergimos da floresta em que a Sombra se agiganta.
O Les espalha-se numa larga extensão gelada pela planície perante mim,
com a terra montanhosa atrás de si, qual coroa. Quando alguém morre, o
espírito transpõe a Sombra através do Les para aguardar o Julgamento. Mas
eu encontro-me bem viva. O que me vai então acontecer?
O meu estômago contorce-se quando ele arremete a criatura para a beira-
rio. O rio cristalizou-se sobre as margens, e a água reluz como vidro sob o
luar. Assim que desmonta, puxa-me da sela.
– É agora que me afogais, certo?
Ele lança-me um olhar desprovido de palavras, como se não estivesse
disposto a responder a uma pergunta tão ridícula.
Ajoelhando-se com uma só perna, toca no gelo com as pontas dos dedos,
e eu assisto, maravilhada, à transformação em líquido, que sibila e cospe e
desliza rio abaixo.
Um barquinho surge da barreira. Franzo o cenho, pois a corrente traz a
baloiçante embarcação até ao nosso pouso.
– Pensei que iríamos no vosso… cavalo? – Como se pudesse assim
designar um caminhante-das-trevas com forma equídea.
– Todos os espíritos devem entrar nas Terras Mortas através do Les. Isso
também te inclui a ti. O Fáeton passará sem nós.
– Mas não sou um espírito.
– Queres sê-lo?
Céus. A paciência dele esgota-se num instante.
– É uma ameaça?
Ele não responde, o que não me arrelia, pois já esperava.
A água lambe o casco de madeira. Mal cabem ali duas pessoas.
– Não sei nadar.
– A não ser que pretendas saltar para a água, não tens de te preocupar.
Na verdade, ponderava essa hipótese. Podia ser uma forma preferível de
partir.
Passo por ele, roçando-o, subo a bordo e seguro-me às bordas do barco
enquanto ele me segue, fazendo o casco pender bruscamente para o lado
direito. Arquejo, agarrando a borda contrária enquanto a embarcação se
estabiliza. O meu coração não se acalma.
– E o cão gigante com três cabeças, está algures por aí?
Ele avalia-me como se tivesse ensandecido de vez. Talvez tenha.
– Não deves acreditar em tudo o que ouves – diz o rei, afastando para
trás o capuz. – Tal criatura não existe.
Engulo em seco, encarando nervosa o véu esvoaçante diante de mim.
– Irei transformar-me num espírito quando entrarmos nas Terras Mortas?
– Não. A minha autoridade sobre a Sombra permite-me conceder a certas
pessoas imunidade contra a influência desta. Continuarás mortal. – Uma
pausa. – Ao atravessarmos a Sombra, é natural que sofras uma série de
sensações, como fome, medo, tristeza. Não acredites nelas. É apenas a
derradeira oportunidade que uma alma tem, ao abandonar o reino dos vivos,
de se recordar do que representava ser humana.
É impossível não acreditar nessas sensações. Sinto fome. Sinto tristeza.
Mas o Rei do Gelo toca novamente na água, e a corrente muda de sentido,
por milagre, e começa a puxar-nos para montante. O véu pulsa como um
batimento cardíaco, faminto e sinistro, à medida que nos acercamos. Sou
corajosa. Raios, sou corajosa.
Trevas. Vazio. Uma mortalha intemporal, informe. A Sombra está viva,
contorce-se, pica, arde…
Abro a boca para soltar um grito que jamais virá.
A agonia invade-me os braços, a base do pescoço, o fundo das costas.
Depois, desaparece. Sou inundada de emoções: angústia, pesar, medo,
fome… uma fome infinita. Sinto cãibras tão fortes no estômago que caio no
chão do barco, enrolada, à espera que passem.
O alívio não vem. Desintegro-me. Grito com toda a minha alma,
procurando respirar. Sinto-me pesada. Sinto-me aflita. Nova chicotada de
dor atinge-me a coluna vertebral, e retraio-me, produzindo um grito sem
voz.
O rio abana o barquinho. O que sucederia, se este frágil pedaço de
madeira se quebrasse ao meio, sem aviso? A embarcação estreme, e eu
estico a mão, à procura de um ponto estável. Esta agarra um tecido esticado
sobre pele quente – uma âncora.
– O que é isto que me está a acontecer? – sussurro. Tenho os olhos
abertos, mas só vejo trevas, trevas, trevas.
Uma voz paira sobre mim, baixa e neutra e distante.
– Isto não é real.
Isto, o quê? O barco? O rio?
Debaixo de mim, a água canta.
Se concentrar a atenção no trinado, o vazio que me cerca começa a
recuar. O Rei do Gelo torna-se nítido, está ao meu lado, existe. Dou-me
conta de que me agarro às suas culotes, e solto-as de imediato. Além da
embarcação, o rio brilha num deslumbrante azul-turquesa, a corrente forma
uma curva, ao longe, com faixas de um azul mais profundo. Vem, sussurra.
Deixa-me oferecer-te um refúgio da escuridão.
Dedos fortes prendem-me o pulso.
– Não toques na água!
Olho para o rei, por cima do ombro. Não consigo manter a atenção, o
rosto desaparece e reaparece, embora o brilho daqueles olhos seja um
estranho ponto de apoio.
– Porquê? – Inclino-me sobre a borda, ofegante. – Vós haveis tocado.
– O Les não te afetaria, se lhe tocasses, mas agora já estamos no
Mnemenos, o rio do Oblívio. Se uma mera gota te tocar na pele, perderás a
noção de ti mesma.
Demora um instante até as palavras dele assentarem. É como se me
esticassem a mente em cinco direções ao mesmo tempo.
– Nunca mais me lembraria de quem eu era?
– Não.
Agarro a borda do casco com força, com a mão esquerda. A água reluz,
um líquido tão brilhante que me fere a vista. Perfeito para nadar nele.
Perfeito para beber.
– Puxai-me – peço, o cântico chama-me cada vez mais alto. – Depressa!
Um forte puxão faz-me cair de costas, sentindo o inesperado calor do
Rei do Gelo contra a espinha. Tremo tão desesperadamente que os dentes
batem. Perder a noção da minha pessoa – nada seria mais absoluto.
Por fim, a Sombra levanta-se, revelando um território esculpido em
rocha e gelo, enlameado de um luar aquoso. Um solitário ulmeiro projeta-se
por cima do rio, oculto numa substância semelhante ao nevoeiro. É o único
ser vivo. Qualquer traço de cor que aqui existisse foi totalmente eliminado.
Só resta a terra cinzenta e faminta.
Um território plano ergue-se ao longe, conduzindo a uma enorme
cidadela lascada numa superfície de granito. Torreões e muralhas e salões
amontoados de pedra negra trespassam o teto do mundo, um feio rasgão no
tecido da meia-noite, quase imaculado.
Demoramos o dia inteiro na viagem. Ao desembarcarmos, o rio volta a
congelar e a criatura que ele designa por Fáeton reaparece. Passamos o resto
do percurso montados na sela. Quando finalmente abandonamos o arvoredo
circundante, tenho os dedos praticamente congelados dentro das luvas.
Nunca me senti tão irrelevante como agora, imersa na sombra desta
imponente parede de pedra, com os seus gigantescos portões de ferro a
impedir-nos a entrada, as extremidades aguçadas como dentes. Abrem-se
num guincho áspero, e avançamos a trote para um amplo pátio de pedra
cinzenta. Numa fortaleza desta magnitude, esperava que houvesse maior
atividade, mas não se vê vivalma.
O rei orienta a criatura por uma escadaria acima, que conduz a portas
duplas de carvalho. Maçanetas de um metal retorcido e complexo soltam
um brilho baço. Ele desmonta e eu imito-o.
– Vem – ordena, como se chamasse uma cadela. Ranjo os dentes,
esforçando-me por me conter e não cometer um disparate, tal como
esfaqueá-lo outra vez. O lenço que tapa o meu rosto é a única proteção do
meu segredo.
Os puxadores rodam sem assistência. O poder do Vento Norte, pelos
vistos, é capaz de moldar o ar conforme a sua vontade, habilidade que usa
para abrir as portas. Uma boca escura, o extenso interior da fortaleza, e eis-
me dentro da garganta da besta, sentindo as mandíbulas fecharem-se atrás
de mim.
Pesadas cortinas cobrem as janelas do vasto átrio. A luz frágil dos
candeeiros proporciona um fraco alívio das sombras.
Estava tão concentrada em poupar Elora deste destino que nem sequer
pensei na residência do Rei do Gelo. É aqui que terei de viver? Neste lugar
opressivo, desolador, estéril?
Ele conduz-me por uma passagem do lado esquerdo. Quando a vista se
ajusta, consigo orientar-me sem tropeçar nos objetos. A pouca mobília
presente está tapada por lençóis que outrora, talvez fossem brancos, mas a
grossa camada de poeira dá-lhes um ar pardacento.
– Viveis aqui sozinho? – Estes corredores desertos e salões abandonados
são uma mera concha. Teria havido vida neste lugar, em tempos, bem como
coisas verdes?
– Sim – responde ele sem se virar –, mas tenho muitos serviçais para
manter a cidadela.
Rapidamente alcançamos uma escadaria larga e curva com corrimão
baço. O pó levanta-se e invade o ar quando as botas entram em contacto
com os degraus. Será possível viver assim? Onde andam os serviçais?
Ainda não encontrei ninguém.
Um comprido corredor no terceiro piso conduz-nos às profundezas do
interior sombrio. Portas atrás de portas enfileiram-se nas paredes. Têm
diferentes alturas e larguras, diferentes decorações e materiais na
composição. Encontro puxadores de prata pura. Maçanetas redondas
cobertas de ferrugem, que devem ter séculos de idade. Uma porta com tinta
branca descascada apresenta uma maçaneta de vidro com o feitio de um
diamante. Dez passos depois, outra está coberta de pequenos azulejos de
várias cores vivas.
– Para que servem estas portas? – Atravessamos uma das mencionadas,
feita de estuque e esculpida num feitio intrincado.
– Conduzem a outros continentes, outros reinos – diz o rei absolutamente
entediado. – Mas não são saídas das Terras Mortas para ti, portanto nem
vale a pena tentares.
Muito intrigante. Sempre tive vontade de saber o que haveria para além
do Gris.
– Estão-me proibidas?
– Não. Podes explorar o que há do outro lado, se assim desejares, mas
nenhuma delas te conduzirá de volta a casa.
Após inúmeras voltas e contravoltas, ele para no final do corredor.
Escuto sons que parecem um grito, mas estão demasiado longe e talvez
sejam produto da minha imaginação.
– A Orla tomará conta de ti – diz, tirando uma chave de bronze e
destrancando a porta. – Estes serão os teus aposentos. Quando te tiveres
instalado, podes andar pela cidadela à vontade, mas não deves passar além
da muralha.
– Não confiais em mim? – Sei bem qual será a resposta. Só quero assistir
à reação dele.
– Não. – Baixa as pestanas, franjas negras sobre maçãs do rosto pálidas.
– Se fugires, não irás longe. A floresta detesta a minha presença. A cidadela
está protegida contra as ameaças exteriores. Este é o lugar mais seguro para
ti.
Arquivo esta informação para futura análise.
– E onde são os vossos aposentos?
– Situam-se na ala norte, na qual não podes entrar.
Hesito ao transpor a ombreira.
– O que acontecerá quando casarmos? Devo partilhar a cama convosco?
– Duvido que ele seja gentil no ato. Recordo aqueles olhos, a emoção
funesta e deslizante que antevi em Edgewood, uma ferocidade subterrânea.
– Não tens de te preocupar com isso. Manteremos quartos separados. –
Com este remate, empurra-me para a frente e fecha a porta.
Os passos dele rapidamente se afastam. Experimento abrir a maçaneta
ornamentada. Nem se mexe.
Estou trancada aqui dentro.
A minha plácida máscara desliza, e eu torno-me selvagem, esmurrando a
barreira com fúria.
– Sacana! – Mas o meu prometido não volta para trás.
Ofegante, afasto-me da porta e examino os aposentos, com os seus tetos
abobadados e paredes distantes. A mobília verga-se sob uma opulência
banal. Uma cama de dossel resplandecente, uma lareira, tapetes, tantos
tapetes, de pelúcia requintada. Portas que conduzem a outros quartos.
Uma súbita onda de cansaço cai sobre mim, e eu tombo no colchão,
esfregando as mãos gretadas no rosto igualmente gretado. Enroscando os
braços em volta do meu estômago contraído, dobro-me, balançando para
trás e para diante.
Estou sozinha, uma mortal no reino do deus das trevas. Sem família, sem
apoio. Ficarei aqui retida durante quarenta, cinquenta, sessenta anos?
Morrerei assim, qual animal enjaulado? Talvez não regresse à anterior vida.
Enquanto o Rei do Gelo estiver vivo, não.
O balançar abranda e encaro as janelas fechadas com ar pensativo. Algo
me compele a aproximar-me. Com um puxão forte, arranco as cortinas dos
varões.
As Terras Mortas são um reino pintado em cambiantes de cinzento.
Avalio o pátio iluminado pela lua, observando os estábulos, o muro espesso
e imponente, os portões negros de ferro, a paisagem árida que se avista
além desta área confinada.
Enquanto o Rei do Gelo viver, não.
Esperava a morte ao vir para cá. Mas jamais fui, jamais serei, fraca.
E, portanto, regresso aos livros. Regresso ao conhecimento. Regresso ao
que sei, informação acumulada ao longo dos anos, as fábulas e as histórias
transmitidas de geração em geração.
Eis o que sei: o Vento Norte é um deus, um dos quatro irmãos que foram
banidos para os confins do nosso mundo. Chamam-lhes Anemoi – os quatro
ventos que trazem consigo as estações. O poder do Vento Norte é ilimitado.
É imortal, viverá para toda a eternidade, invulnerável a doenças, a não ser
que o matem. Mas um deus não morre com uma arma feita por mortais.
Isso explica que tenha sobrevivido à facada na barriga. Só uma arma
tocada por um deus terá o poder de acabar com uma vida imortal. Como a
lança que empunha, o seu estranho e exótico poder. E o punhal na bainha da
anca.
Ele não saberá que libertou uma serpente do seu ninho. Durante anos
sofri, tal como o meu povo, mas agora estou numa posição única para
atacar. Se o Rei do Gelo morrer, com ele desaparecerá o seu frio eterno.
Bem como os caminhantes-das-trevas. E também a Sombra.
Só então serei livre.
A boca– Tu.
do Rei do Gelo contorce-se num desprezo intenso.
T rês dias volvidos, desde que entreguei o meu sangue à Sombra. Neste
intervalo, pouco dormi. O meu coração dispara em momentos estranhos,
e não há vinho capaz de atenuar o mal-estar. Sou atormentada pelas
memórias: imagens alarmantes, negras, que se impõem na vista. Não saio
do quarto. Não me sinto capaz. Se há hipótese de acabar acorrentada como
um animal, então estas paredes oferecem-me o meu único refúgio –
distância daquele que reina.
Em vez de matar o Vento Norte, ajudei-o a fortalecer a barreira do reino.
Em vez de cessar o sofrimento do povo, fi-lo continuar. Desiludi
Edgewood. E Elora, mais do que tudo.
Os meus pensamentos transitam inevitavelmente para Zéfiro. Não o
veremos durante algum tempo, é certo. Seja como for, temos um acordo.
Ele prometeu investigar o tónico do sono. Duvido que quebre essa
promessa.
Rebolando na cama, cerro os olhos para que a escuridão fique mais
negra e desapareça tudo, a não ser o vazio deste lado das pálpebras.
A porta abre-se, após algumas batidas.
– Minha senhora?
Não tenho forças para responder, por isso, limito-me a tapar os olhos
com o braço, enquanto uma lamparina se acende, afastando a penumbra que
me cobre como um manto no inverno.
Orla acorre para junto de mim.
– Minha senhora, está doente? – Pousa as costas da mão na minha testa,
tentando sentir indícios de febre.
– Estou bem, Orla. – Suspirando, baixo o braço, e encaro-a. – Que horas
são?
– É quase crepúsculo. O rei solicita a sua presença para o jantar.
Então o Rei do Gelo notou finalmente na minha ausência. Só demorou
três dias.
Forçando-me a endireitar-me, passo os dedos pelo cabelo emaranhado.
– Informa o rei, por favor, de que recuso o convite.
– Minha senhora, não posso fazer isso. Ele insistiu que a senhora usasse
isto – deixa cair um vestido ridiculamente frívolo no meu colo – e que lhe
faça companhia.
Segurando o tecido entre o polegar e o indicador, levanto-o contra a luz.
É hediondo. Estou habituada a feitios simples, vestidos básicos. Esta
monstruosidade esvoaçante envolve camadas e camadas de tecido cor de
bílis, mangas com bolbos, e um colarinho que me estrangularia, se eu
conseguisse enfiar a cabeça através dele.
– Orla – digo, o meu olhar virando-se para ela com tamanha
agressividade que ela tropeça para trás. – Não visto isto. E também não
janto com ele. – Atiro a monstruosidade para o lado e aninho-me nas
almofadas. Há pouco mais que deseje, além de escuridão e paz.
Pegando no vestido com uma espantosa quantidade de frustração, a
minha aia deposita-o na cadeira, antes de me puxar pelo braço. Para uma
morta, tem bastante força.
– Levante-se. – O puxão seguinte aproxima-me da beira da cama. – Pelo
menos, tente fazer conversa.
Os meus pés transpõem a berma da cama, quando ela puxa com mais
força.
Apesar da minha falta de ânimo, nascem-me gargalhadas no fundo da
garganta.
– Orla.
– Alguém tem de olhar por si, minha senhora. – O suor enche-lhe a linha
de cabelo, e ela puxa mais uma vez, a cara corada do esforço. – Se não
comparecer, ele ganha.
Ficamos ambas paradas.
Ele ganha.
Largando-me as mãos, Orla recua, cabeça baixa.
– Não foi minha intenção… – A sua voz treme com medo de ter passado
dos limites.
– Está tudo bem – digo com voz branda. Ela não fez nada de errado.
Disse o que lhe vai na alma. Não sou pessoa de punir a coragem,
independente da forma que assuma.
Ainda assim, está cheia de razão. Se eu continuar encolhida nos
aposentos, a chafurdar-me em pena e desprezo por mim mesma, quem
ganha é o Rei do Gelo.
Lançando as pernas por cima da cama, anuncio:
– Irei jantar com o rei.
O rosto dela desaba do alívio, e o rubor abandona-lhe aos poucos a pele,
que recupera a tonalidade semitransparente.
– Ainda bem. Vou encher-lhe a banheira…
– Não tomarei banho.
Ela para a meio caminho da porta.
– Mas… – O maxilar desprende-se. – Não se lava há dias.
Sim, e emano um fedor de fazer desmaiar as pedras, o que é mais uma
razão para jantar com o meu querido marido.
Nos últimos três dias, usei uma túnica larga cor-de-cadáver e calças de lã
rasgadas pelo joelho. O meu cabelo tem a textura de um ninho de pássaros.
O meu hálito tresanda.
Este homem irá arrepender-se de me ter dado ordens como a uma cadela.
– Lavarei a cara. – E praticamente canto ao seguir para trás da divisória
aos saltinhos. Orla atira o vestido por cima desta, mas eu ignoro a aparição
ofensiva e esfrego as mãos com sabão de alfazema calmante por cima da
pequena bacia.
Ao sair de detrás da divisória, apresento o mesmo traje imundo. Orla
geme de horror.
– Minha senhora, isso não, por favor. – Enfia o vestido nos meus braços,
com uma expressão angustiada. – O vestido. Ponha o vestido. Ficará
magnífico em si.
– Não te incomodes, Orla. – Pouso as mãos nos ombros dela, e dou um
aperto de reconforto. – Não te acontecerá nada de mal. Prometo. Tenho de
fazer isto por mim mesma.
– E não pode fazer o que quer que seja enquanto usa o vestido?
Oh, gosto bastante desta versão mais atrevida da minha aia.
– Não, não posso. – Puxo-a para mim, dou-lhe um abraço apologético e
vou ao encontro do destino.
Desço as escadas, dois degraus de cada vez, estranhamente ansiosa com
este serão. Para acentuar a minha escolha, trago o casaco puído por cima
dos ombros.
Ao entrar na sala de jantar, preparo-me para a ira que irá seguramente
desencadear-se ante esta aparência, mas a cadeira do Rei do Gelo está
desocupada. Faz tanto frio, que o meu bafo congela diante do nariz. Dois
serviçais aguardam contra a parede, prontos a voltar a encher os copos
quando necessário, mas ninguém se lembrou de acender a lareira?
Por milagre, encontro aço e pederneira em cima da cornija da lareira,
cobertos de séculos de pó. A acendalha seca pega fogo de imediato, e as
labaredas projetam-se, obrigando-me a recuar. É uma visão bonita.
– Minha senhora. – Uma das criadas avança, dando um relance nervoso
às chamas. – Não nos é permitido usar as lareiras. O senhor proibiu-nos.
Grande surpresa.
– Acendeste tu o fogo?
– Bem, não – diz ela com ar confuso.
– Então não tens de te preocupar. – O calor lambe-me a pele, expulsando
o frio que é potente e imortal. – Sabes quando é que o rei pretende
aparecer?
– Não, minha senhora.
Tenciona fazer-me esperar por ele? Não espero por ninguém, a fome é
quem manda.
– Mostram-me a cozinha, por favor?
Com evidente relutância, a mulher conduz-me a um acesso, e depois
seguimos por uma escada que desce até a um conjunto de portas duplas no
subsolo. Abro a da direita e entro, cheia de curiosidade.
Bancadas de madeira enquadram o grande espaço, nicadas e queimadas e
manchadas, vítimas de inúmeras facas e derrames. Alho? Um molho
vermelho ferve numa panela em cima de um dos três fogões a lenha. Vai
sendo remexido com a colher por um dos vários espectros que usa avental.
Recordo-me de que Orla não consegue apreciar o sabor da comida. Se o
pessoal da cozinha foi condenado a servir o Rei do Gelo, será que a comida
também lhes sabe a cinzas? Ou ter-lhes-á revogado esse castigo, pois
precisam de palatos que funcionem para garantir o devido tempero?
Além dos fogões, ocupam o espaço pesadões barris cheios até à borda
com vários grãos e raízes, além de um enorme lavatório, no qual balança
uma torre de louça suja em precário equilíbrio. No meio do caos, um
homem corpulento e com barba cinzenta, mas ar simpático, vocifera
instruções. Deve ser o cozinheiro.
– Peço licença.
Os olhos dele esbugalham-se quando se vira.
– Perdão, minha senhora. Não a vi.
– Trata-me por Wren, por favor. E tu és?
O homem tira uma toalha da bancada, seca as mãos.
– Silas, minha senhora.
– Silas, pensava aqui comigo se aceitarias pedidos.
Ele lança um olhar para a comida que ferve e fumega no sortido de
panelas e frigideiras.
– A refeição está quase pronta, mas…
– Não é para o jantar – clarifico –, mas para a sobremesa.
A boca abre-se, e sai um guincho de ar da garganta.
– Sobremesa.
Os funcionários interrompem o que estão a fazer, originando um
desconcertante silêncio no meio do estertor e dos tinidos.
– Sim. – Os meus olhos dardejam para os funcionários, e estes desatam a
trabalhar novamente. – Bolo, para ser mais específica.
– Bolo? – E agora, timidamente: – O senhor pediu bolo?
– Não, mas não faz mal. – Apresento-lhe um sorriso indulgente. – O bolo
é a minha sobremesa favorita, e o meu marido quer garantir que me sinto
feliz. – É bastante simples: o bolo faz-me delirar de felicidade.
Ele afasta a toalha, ponderando.
– Bem – diz –, se o senhor não se importa, minha senhora…
Ergo as sobrancelhas.
– Wren – corrige-se. – É minha honra fazer-lhe um bolo. Tem
preferência por algum sabor em particular?
– Adoraria chocolate. – Com um sorriso reluzente de orelha a orelha,
volto a subir e ocupo o meu lugar à mesa, ainda vazia. Momentos mais
tarde, servem-se terrinas repletas de comida fumegante. Começo a encher o
meu prato com couves assadas, grossas fatias de pão macio, uma codorniz
inteira, cuja pele estaladiça cheira a alecrim, e um molho saboroso que se
mostra espesso e copioso quando o verto. Mal toquei em comida nos
últimos dias. Agora, ataco o prato vingativamente, afastando todos os
pensamentos da população da vila que passa fome. Para poder ajudá-los, e
ajudar Elora, tenho de manter as minhas forças.
Espera-me um copo cheio de vinho. Bebo um gole. É um alívio. É quase
sempre um alívio. Elora nunca entendeu. Vezes sem conta lhe perguntei se
não curaria alguém doente se a cura estivesse ao seu alcance em cima da
mesa, se fosse apenas um líquido vermelho dentro de vidro transparente.
Ela nunca se dignou a responder.
Encontro-me a meio da refeição quando sinto um formigueiro na pele, e
fico subitamente ciente das gavinhas de ar gelado percorrendo com os seus
dedos exploratórios a minha espinha. Os meus próprios dedos contorcem-se
contra o garfo. Obrigo-os a relaxar.
De costas para o rei, não o vejo aproximar-se. Mas ouço-lhe os passos
curtos que ecoam em incrementos constantes. Segundos mais tarde, ele
contorna a mesa, prendendo-me à cadeira com a força daquele olhar
sobrenatural.
Ergo o queixo, não obstante o coração martelar como um doido. O Rei
do Gelo pode ser um perfeito sacana, mas tem um gosto impecável. Um
casacão cinzento-ardósia envolve-lhe os ombros largos e peito, com botões
de prata brilhantes aninhados como estrelas. A lareira emite poços de luz e
sombras contra as maçãs do rosto e a linha do queixo acutilante. Tem o
cabelo húmido, enrolado num rabo-de-cavalo baixo, sugerindo que se
banhou há pouco.
O olhar desmonta-me aos poucos – as minhas vestes imundas, o cabelo
gorduroso, o molho espalhado no queixo – antes de pousar, e se demorar, no
copo de vinho preso entre os dedos. Quando a atenção transita para a lareira
crepitante, o ar carrancudo vinca-se ainda mais.
Continuo a abrir caminho pelo prato, como se a presença dele não me
perturbasse minimamente.
O rei acaba por falar, por fim.
– A Orla levou-te o vestido?
– Sim.
Encara-me como se fosse uma parvinha.
– E porque não o trazes?
Brindando-o com um sorriso cheio de mel, digo:
– Não quis.
O tique do maxilar revela o que queria saber. Não ficou contente.
Esperava a minha cooperação. E a lareira… o olhar dele regressa às chamas
vorazes. Mais uma surpresa.
– Tresandas da cabeça aos pés.
Contorço os lábios. Consigo engolir a gargalhada absurda despertada
pela sensação borbulhante e efervescente que me aquece o físico.
– E tu tens as mãos manchadas com o sangue dos inocentes. E então?
Não finjas nobreza, ambos sabemos que não tens uma única ponta de
nobreza.
O Rei do Gelo solta um trejeito de pura chacota.
– E tu não és nenhuma senhora.
Sorrio sarcasticamente.
– Se querias uma senhora, devias ter desposado a minha irmã.
– Era essa a minha intenção.
E com este dito, ele senta-se, abre um guardanapo com que cobre o colo,
e começa a encher o prato.
Os meus lábios comprimem-se de desagrado. Se ele insiste em
comportar-se rudemente, eu recuso-me a sentir-me mal por causa do meu
aspeto imundo. Eis a minha realidade: casada com um homem que
desprezo, e que também me despreza.
O rei é muito meticuloso com a disposição do prato. Os alimentos não
tocam uns nos outros. Abre um buraco com todos os preceitos nas batatas,
no qual despeja o molho de carne. Fascinada, vejo-o barrar com manteiga
uma fatia de pão, cuidadosamente, até às bordas.
– Falta barrar uma parte.
O olhar dele salta para o meu.
– A manteiga – explico, apontando para o pão que ele segura. – Falta
barrar uma parte.
Ele regressa à tarefa, exímio na arte de me ignorar.
Se não o observasse tão atentamente, nem teria reparado. A ponta da
manga retrai-se, revelando manchas do que aparenta ser terra, e algumas
folhas de relva, no pulso. Pestanejo, e a manga volta ao lugar. Não há terra
fértil num raio de centenas de quilómetros. E, no entanto, são-nos servidos
diariamente legumes e fruta. Existirá por perto uma horta, ou uma quinta.
Não encontro outra explicação.
O Rei do Gelo passa para a codorniz, a qual mastiga lentamente,
aparentemente para saboreá-la. Encho a boca de verduras como se fossem
desaparecer de um momento para o outro.
– O que faço eu aqui – pergunto com a boca cheia –, se insistes em
ignorar-me?
A expressão dele contorce-se com repulsa quase perfeita ao ver a minha
boca cheia de comida mastigada.
– Mantenho-te debaixo de olho – declara, lábios selando-se
perfeitamente sobre o garfo e enfiando um pedaço de cenoura assada entre
os dentes.
– Para onde iria? Estou presa aqui, ou já te esqueceste?
– Não quero que te encontres com o Zéfiro.
Ah. Então o irmão dele continua a ser um problema.
– Expulsaste o teu irmão – lembro-lhe. – Nunca mais o vi.
Ele inclina o queixo, admitindo a minha resposta. Depois: mais silêncio.
Uma vez que o rei se recusa a fazer conversa, aproveito a oportunidade
para o examinar. Até agora, pouco conheço do homem com quem casei. É
reservado e indiferente, irascível e inflexível. Ainda não lhe vi um sorriso
na cara. Nem um riso na garganta. Para acabar com a vida dele, terei de
identificar as suas limitações, explorar as vulnerabilidades. O que será
preciso para que este homem me veja com bons olhos? Tenho de ganhar a
confiança dele, seja como for.
Admito que também é muito bonito. O azul dos olhos ficou mais
profundo na luz escassa, e a pele branca, mais luminosa e lisa como
porcelana. A sua estrutura óssea contém uma impossível simetria. A bem-
dizer, comporta todas as marcas da perfeição.
Que pena ter uma personalidade intolerável.
Como se pressentisse o meu olhar, levanta os olhos ao encontro dos
meus, e uma corrente de choque avassala-me quando pousa por instantes na
cicatriz, a ruga mais fina vincada entre as sobrancelhas negras. Quererá
saber o que me fez olhar para si? Será que sequer lhe interessa?
Acabo a bebida, e um criado reenche o copo pela enésima vez. Ele vê-
me tomar mais um gole com o olhar semicerrado. Tendo o prato quase
limpo, raspo o resto da batata com o garfo. Não será por mim que haverá
comida desperdiçada.
Raspo, raspo, raspo.
O olho esquerdo dele começa a tremer.
Enfio na boca uma fatia de codorniz e mastigo com vigor. Este jantar não
é tão mau como parecia. Se me concentrar em limpar o prato, nem noto na
atmosfera tensa. É como se estivéssemos casados há anos, e não uma
semana. Eis-nos, casal infeliz, fartos da presença mútua, incapazes de um
mínimo de deferência para com o outro.
Elora sentir-se-ia em casa. Ela vive para isto: vestidos, jantares, conversa
fiada sem nexo. Ela amansaria o coração deste homem. Falariam do tempo,
e o rei ficaria encantado com a natureza afável dela.
Talvez a falta de conversa não seja culpa do rei, mas minha.
Raspo, raspo…
O Rei do Gelo esmurra a mesa. Pratos e talheres estremecem.
O meu copo de vinho entorna-se, derramando líquido vermelho na toalha
branca.
Calmamente, questiono:
– Há algum problema?
– Estás a tentar irritar-me propositadamente de todas as maneiras
possíveis. – A voz perdeu a sua frieza calculista. Vibra agora com um
indício de fogo subjacente.
– Sim – digo, finalmente cedendo ao riso. Ele retrai-se perante a visão de
comida semimastigada, da qual cai um pedaço na minha túnica imunda. O
que só me faz rir com mais força. Irritar o Rei do Gelo é a melhor diversão
que tive em todos estes meses. – Está a resultar?
Os traços em volta dos lábios ficam mais vincados com a fúria crescente.
– Estou a meter-me contigo. – Avalio-o com ligeira preocupação. – És
capaz de rir, certo?
Ele espeta nova cenoura na boca, como resposta. Era uma pergunta
retórica. Duvido que seja capaz de rir. O que residirá naqueles olhos
mortiços, a não ser a promessa de uma morte prematura?
O cesto do pão está ao lado do meu cotovelo. A fome far-me-ia tragar
uma carcaça inteira – a bem-dizer, já comi metade –, mas agarro em outras
duas fatias e peço com uma cortesia impressionante:
– Podes passar-me a manteiga?
– Já te serviste de dois pratos inteiros – indica ele.
– E agora sigo para o terceiro. – Quem passou fome a vida inteira nunca
se sente saciado. – Não posso?
O Rei do Gelo entrega-me o prato com movimentos afetados. É tão
desajeitado que até me condói.
Deposito uma mão-cheia de manteiga no pão antes de o enfiar na boca. É
de longe o melhor pão que provei, interior macio com uma côdea
estaladiça.
– Fala-me de ti. Como é que passas os teus dias?
Ele examina-me com um ar apreensivo, segundo me parece.
Desconfiado de que eu planeie algum truque.
Mas não é truque nenhum. Quanto melhor eu conhecer o inimigo, maior
a hipótese de desenterrar uma das suas fraquezas.
– Se vou ficar aqui enfiada até morrer, não seria bom que nos ficássemos
a conhecer?
– Porque terias vontade de me conhecer – diz –, se já sentenciaste o meu
carácter?
Sem dúvida que sentenciei. Mas ele também sentenciou o meu. Escória
da aldeia, pobre e deplorável. Uma mortal feia e fraca.
– Não sei. Talvez me surpreendesses. – Consumida a primeira fatia de
pão, avanço para a segunda, embebendo-a na piscina de molho que tenho
no prato. O lábio do Rei do Gelo enrola-se, vendo-me empanturrar de
comida. Estalo os lábios sonoramente, divertida com o arrepio que lhe
causa.
Sai-lhe a ferros:
– Como sabes, para as Terras Mortas seguem as almas dos defuntos, para
aguardarem o respetivo Julgamento. O qual é da minha responsabilidade.
Mal conheço as Terras Mortas, mas isto faz parte do pouco que sei.
– Como é que isso funciona?
– Duas vezes por mês, na lua cheia e na nova, abro a minha cidadela às
almas que aguardam o Julgamento. São julgadas com base nos atos que
cometeram em vida. É meu dever avaliar com justiça as escolhas que
fizeram.
Que interessante. Nunca presenciei isto, mas ainda não explorei
devidamente a cidadela. Teria muita curiosidade em ver como é que,
exatamente, o Rei do Gelo pune – ou recompensa.
– E as almas condenadas a uma eternidade de castigo? Aprecias
condená-las?
Mal ele acaba de esvaziar o copo de água, um serviçal adianta-se para o
encher novamente.
– Não sou tão horrível como me pintas – afirma, rigidamente.
– Oh? Ou seja, afinal, não me tiraste à força da minha terra, não me
fechaste numa masmorra, não ameaçaste acorrentar-me na rua, não me
obrigaste a derramar sangue para reparar a Sombra, apenas para aumentar o
teu poder? – Cotovelos enfiados sobre a mesa, inclino-me para diante,
espreitando por entre as pestanas. – Continua, por favor.
Ele fita-me por cima do nariz de proporções imaculadamente perfeitas.
– A escolha de ocupares o lugar da tua irmã foi tua.
Rejeito o comentário dele com um gesto.
– Não minto – diz ele.
– Então, prova. Indica uma coisa que tenhas feito em prol de outra
pessoa, em vez da tua.
– Não vale a pena. Não acreditarias se te dissesse. – E não me oferece a
oportunidade.
Pego numa das pernas da codorniz e arranco a carne à dentada, ciente de
que não estou a conseguir que baixe a guarda. As suas muralhas estão bem
erguidas. A pedra é inquebrável.
– Não se trata apenas de mim, entendes. Agiste incorretamente perante
outros. Obrigas estes criados a servir-te? Não vês que é errado?
– Foi isso que a Orla te disse? Que a obriguei, e a toda a criadagem, a
servir-me sem motivos? – Estica o queixo. – Talvez devesses ter nova
conversa com ela sobre as circunstâncias que estiveram na origem do atual
cargo. E desta vez, exige que te conte a verdade.
Endireitando-me na cadeira, avalio esta informação nova. Confio em
Orla, mas o Rei do Gelo ficou verdadeiramente irritado com o assunto.
Poderia haver verdade nas suas palavras? Se sim, que motivo teria Orla para
mentir?
Um dos criados surge pela porta e pousa uma sobremesa magnífica na
mesa com uma curta vénia.
– Minha senhora.
O Rei do Gelo olha para o objeto com ar embasbacado.
– O que é isso?
– Um bolo – E tem um ar soberbo. Três camadas cobertas por um glacé
branco e fofo, e acentuações azuis.
– Eu não pedi bolo – diz, letalmente quieto.
Oh, não ficou contente. Pelo contrário, eu fico delirante.
– Mas pedi eu. O Silas fez-me o favor.
Ao afastar o prato da refeição e puxar a sobremesa, o Rei do Gelo
pergunta:
– O Silas?
– O teu cozinheiro. Devias saber o nome dele – informo, o garfo a pairar
sobre o bolo-esponja. – Não sabes?
– Claro que sei o nome dele – resmunga.
Não sei se acredito nele, mas o doce prende-me a atenção. Enterrando o
garfo no bolo-esponja húmido, levo um pedaço aos lábios. Assim que o
chocolate beija a língua, fico arrebatada. O segundo pedaço é ainda mais
rico do que o primeiro. Devorei, entretanto, quase um quarto do manjar,
quando me lembro do meu parceiro de refeição, cujo olhar é tão frio que
não me espantaria se tudo aquilo para que olha se transformasse em gelo.
– Sim? – pergunto, enquanto vou mastigando.
– Vais consumir sozinha a sobremesa inteira?
– Bem, eu pedi ao Silas que o fizesse para mim.
– Comeste três pratos.
– Mas queres prová-lo? – Até lhe posso dar.
– Não gosto de bolo.
O garfo embate na loiça.
– O quê? Quem é que não gosta de bolo? – Francamente.
Agarrando a faca, corto a fatia mais fina de bolo de que sou capaz – a
espessura de um galho, se tanto – e pouso a dose minúscula diante dele. O
Rei do Gelo observa, carrancudo, a pobre oferta. Depois regresso ao meu
lugar e continuo a devorar o resto do bolo.
Sempre que estalo os lábios, ele salta, repugnado. Sempre que provo o
glacé, retesa o queixo. Vou um pouco mais longe, gemendo quando a
euforia do açúcar me arrebata desta sala horrível, desta companhia
insuportável para o jantar.
– És um animal – rosna.
Sim, e nem faz ideia do que sou capaz, se me encurralarem.
Mas sei ter boas maneiras. Aliás, agiria em interesse próprio, para o
convencer a ditar a informação de que necessito. A qual, neste momento, é
toda.
– Tens três irmãos, certo?
Ele anuiu, retesado, mas não desenvolve.
– E chamam-se…?
– Já conheceste o Zéfiro. – Nome dito com um tom amargo. – Depois há
o Noto e o Euro.
– O Vento Sul e o Este.
Outra confirmação com a cabeça.
Afastando o prato vazio, cruzo os braços sobre a mesa. Esta reação
reprimida revelou mais emoções do que tudo o que a precedeu.
– Não és muito chegado aos teus irmãos.
– Há séculos que não falo com eles.
Os dedos dele remexem-se contra o copo. O que o perturba tanto? Que
não veja os irmãos há séculos, ou que eu tente esmiuçar a sua vida?
– Fala-me deles – peço, a curiosidade levando a melhor. Zéfiro é o
Portador da Primavera. Noto, o Vento Sul, diz-se que comanda as ventanias
quentes do deserto. E o Vento Este, Euro… o poder dele deve ser imenso.
Ele recosta-se, abrindo espaço aos criados para que levantem os seus
pratos.
– O Noto foi sempre calado. O Euro tem mau feitio.
– E vivem em reinos diferentes?
– Sim.
Lugares além do Gris.
– Então, porque foste tu banido para as Terras Mortas, e não os teus
irmãos? Julgar os mortos parece-me ser uma responsabilidade crítica.
Não se manifesta, durante um pouco. Pergunto-me se irá sequer
responder, mas por fim diz:
– Estás certa: julgar os mortos é, deveras, uma grande responsabilidade,
motivo pelo qual sou eu que a carrego. O Zéfiro não é de fiar. O Noto é
muito indeciso. O Euro não respeita a ordem. Na época, as Terras Mortas
estavam em desalinho por negligência dos líderes. O conselho aproveitou o
meu banimento como catalisador para substituir a autoridade anterior.
Fico impressionada, admito-o, embora mantenha uma expressão neutra.
– Quem é o irmão mais velho?
– Sou eu. – Uma corrente subjacente de orgulho acalora a resposta.
Limpo a boca com um guardanapo, e pergunto:
– Só por curiosidade, que idade tens? – Não aparenta mais de trinta anos.
Nem um único cabelo grisalho aviva a cabeça.
– Não me lembro de quando nasci, mas estou vivo há muitos milénios.
Tenho a madrugada como mãe, e o céu do crepúsculo como pai.
– Milénios? – crocito. Céus. Casei com um velho. – E os teus irmãos têm
igual idade?
– Sim.
Corações antigos, ventos antigos. Para ele, sou um grão de poeira, uma
estação passageira. Quando morrer, há de esquecer-se de mim. Um
pensamento que me perturba.
– Costumas visitar os teus irmãos?
– Não – rosna.
– Porque não? – As histórias dizem que os Anemoi foram banidos para
os quatro cantos do mundo. Que territórios terão os outros reclamado? Que
povoações arruinaram com tais conquistas?
Ele diz, com um tom mais frio:
– Tenho aqui tudo de que preciso. – Uma resposta simples. E, contudo,
pergunto-me, o que terá realmente aqui? Porque só vejo uma casa vazia e
um homem que se isola. – Agora, se fosse possível calares-te um pouco,
gostaria de te fazer uma pergunta.
À parte os insultos velados, é a primeira vez que o Rei do Gelo
demonstra interesse em mim, e não apenas no sangue que me percorre as
veias. Isto vai ser bom.
– Porque não casaste?
Sobressalto-me com tanta intensidade que o garfo bate na berma do
prato.
– Mas, marido – respondo –, sou casada.
– Porque não estavas já casada, é o que pergunto. Estás na idade de
casar, ou não?
– Sim – respondo secamente. Tenho vinte e três anos, mas é como se
tivesse sífilis, dada a falta de pretendentes. As pessoas de Edgewood
murmuravam que eu devia ser estéril, ou que abrigava em mim espíritos
funestos. Os homens não gostam de mulheres determinadas, apenas das
mansas, alguém que lhes dê carinho. Eu não me encaixo nesse molde, nem
nunca me encaixei. E não confio em nenhum homem que tente mudar a
minha forma de ser.
É mais fácil manter uma relação puramente física. Assim, o coração
nunca sofre.
Só consigo dizer:
– Acho que nunca conheci ninguém que quisesse desposar.
– Nem uma única pessoa?
A minha garganta contrai-se, ponderando o que contar, e até onde. Ele
não merece as minhas verdades, mas, afinal, revelo-as.
– Como deves ter notado, não sou grande coisa como esposa. A minha
irmã, Elora, é a escolha mais acertada.
Braços cruzados ao peito, ele inclina a cabeça, dedicando-me atenção
plena. Entretive-o, temporariamente, pelo menos.
– Desenvolve.
Percorro a borda do copo de vinho com a ponta do dedo.
– A Elora é simpática e carinhosa. Eu… não sou. – Os homens
consideram-me bruta. E além disso, tenho a cicatriz. Toco na pele em
relevo, e o olhar do Rei do Gelo acompanha os meus dedos. Aceitei ser
quem sou. Os homens não me consideram desejável. É o que é.
Lanço um olhar à lareira, mas por fim a minha atenção regressa ao rosto
do rei, com a sua simetria perfeita e irritante.
– Como é que surgiu a cicatriz? – pergunta.
Deixo cair a mão. Normalmente, esmurraria quem se atrevesse a colocar
uma pergunta tão pessoal, mas uma vez que já desprezo o homem sentado
diante de mim, não preciso de escondê-lo.
– Um caminhante-das-trevas. Uma das minhas primeiras caçadas. Mas
tive sorte. Podia ter-me cortado a garganta. – Os meus lábios contraem-se
ante o olhar insistente. – É falta de educação, olhares-me assim.
O Rei do Gelo afasta a vista, a expressão demasiado complicada para
interpretar.
– Bem – diz, após um momento de silêncio. – Pelo menos, não és
entediante.
10
H áseus
duas semanas que aqui resido, e ainda nem explorei a cidadela mais os
vastos terrenos. Pegando no arco, aljava e casaco, desço as escadas
em busca de um lugar de treino. A fortaleza encontra-se tão negligenciada
que ninguém iria notar, se usasse um quarto vazio para praticar o tiro ao
alvo. Teias de aranha rasgadas lançam um brilho prateado sob a luz da
tocha. As sombras agigantam-se, como gatos encostados nos cantos com as
caudas cheias de pelo.
Explorando um destes quartos, ouço: os passos deliberados de quem me
segue, mas não deseja ser visto.
Sigo em frente como se nada fosse. Por vezes, os passos deixam de se
ouvir, mas depois voltam. Na esquina seguinte, desato a correr, a aljava a
bater-me nas costas. Irrompendo por uma porta lateral, viro para a esquerda
num pátio muralhado, espadas e machados e setas espalhadas ao abandono.
É um campo de treino. Os alvos alinham-se ao lado do que aparenta ser
um pequeno arsenal. O lugar está coberto de trepadeiras mortas e
enoveladas.
Usando um dos alvos junto ao muro para me esconder, encosto-me às
pedras e aguardo o meu perseguidor, mas elas não aguentam o meu peso.
Caio para trás, atravessando a parede, e algo macio e frio penetra nas
minhas calças. Neve. Ponho-me rapidamente de pé, sacudindo as
trepadeiras. É um buraco que dá passagem para o exterior – além da
muralha da cidadela.
O meu coração palpita. Não é uma forma de sair das Terras Mortas, mas
é um começo. Arquivando esta informação, regresso pelo buraco,
rastejando, coloco uma flecha no arco e espero.
Um homem entra no pátio de treino momentos depois, perscrutando a
área. De seguida, o tolo vira-me as costas. Se fosse um caminhante-das-
trevas, estaria morto.
Bato na base do alvo com o pé, agitando a estrutura. Ele vira-se para trás
e encontra uma ponta de seta a poucos centímetros do rosto.
– Quem és? – pergunto.
O homem não pode morrer, pois é um morto, mas apanhar com uma seta
na cara deve doer. Portanto, recua devagarinho, com os braços ao alto.
– Chamo-me Pallas, minha senhora. Sou o capitão da guarda do senhor.
Uma túnica negra e larga encima culotes negras e justas. O cabelo, atado
com uma fita de couro, flutua entre o castanho-claro e o ruivo ardente. Um
truque da luz.
– Porque me segues?
A atenção dele mantém-se fixa nos dedos curvados em volta da corda do
arco, com a seta encaixada a meio.
– O senhor pediu-me que ficasse de olho na senhora.
Há centenas de criados e guardas em constante movimento nesta
fortaleza em ruínas a cada instante. Seria muito difícil conseguir escapar
sem ser observada.
– Por onde anda o rei durante o dia?
Normalmente, parte antes de eu descer para o pequeno-almoço e só o
volto a ver à noite. Ao jantar, sempre que o questiono sobre o seu paradeiro,
responde que não é da minha conta. Ouvi algumas criadas, na coscuvilhice,
afirmarem que viram o senhor delas regressar coberto de sangue, com a
armadura amolgada e manchada com os restos da batalha. Mas eu não
perguntei ao rei se isso é verdade.
– Não sei dizer, minha senhora.
– Não sabes ou não queres?
O queixo estica-se, teimoso.
– Não quero.
Tão cega lealdade para com um rei que não pretende jamais libertá-lo do
serviço, nem a nenhum outro criado.
– Ouve, eu realmente não quero atirar contra ti, mas uma vez que
interrompeste a minha manhã, não me sinto particularmente afável. É do teu
interesse responder à minha pergunta.
Ele não fala, e eu puxo a corda um pouco mais.
– Última oportunidade.
Ele olha para mim e para o arco, como se pesasse a probabilidade de eu
manter a palavra.
– Tem havido uma atividade invulgar dos caminhantes-das-trevas nos
últimos meses. O senhor tenta descobrir a origem desta… mudança.
A minha atenção aguça-se.
– Invulgar em que sentido?
O capitão cruza os braços, semicerrando os olhos.
– Geralmente, os caminhantes-das-trevas não se afastam da floresta, mas
têm surgido vários avistamentos perto da cidadela. É quase como se… –
Franze o sobrolho, abana a cabeça, mas eu percebo.
É quase como se as defesas perdessem a força.
Primeiramente a Sombra. Agora as defesas. Sustenta a minha convicção
de que o rei perde poder aos poucos.
– Poderiam entrar no terreno, se tivessem oportunidade?
– O senhor faz tudo o que pode para garantir a segurança da cidadela. Os
caminhantes-das-trevas têm estado debaixo do seu domínio há muito
tempo. Não vale a pena temer esta mudança de comportamento.
– Podem estar debaixo do domínio dele, mas não do controlo. – Os
caminhantes-das-trevas costumam ir para onde lhes apetece. Não vi o rei
tentar capturá-los nem reverter os efeitos da sua corrupção.
Outro olhar demorado e inquisidor.
– Penso que por hoje basta, minha senhora.
A generosidade dele já acabou, então?
– Que pena.
A seta voa em frente com força imparável, atingindo-lhe o músculo
peitoral e derrubando o capitão para trás.
Enfiando o arco ao ombro, avanço para ele e olho para baixo.
– Diz ao Rei do Gelo que não preciso de ser vigiada. E não voltes a
seguir-me.
O capitão range os dentes. Pergunto-me como será: os espectros podem
sofrer ferimentos, embora não consigam morrer. Precisará de um
curandeiro? Embora não seja problema meu. Enfiou o dedo num ninho de
vespas. Ele é que arranjou esta situação.
– Não encontrará forma de sair da cidadela – resmunga, agarrando a
haste da seta com uma mão trémula. – Perde o seu tempo.
Uma névoa onda de fúria invade-me o sangue. Mas limito-me a agitar a
mão, abandonando o campo de treinos.
– Tal como tu perdes o teu. – Pois, já descobri uma forma de sair, e
pretendo usá-la.
N aquela noite, faço o que o Rei do Gelo ordenou: tranco a porta. E volto
a trancar na noite seguinte. E na próxima.
Passam-se os dias, mas não reencontro o caminhante-das-trevas. Os
guardas mantêm-se em estado de alerta, por ordem do rei. Quando
questiono o Rei do Gelo durante o jantar, ele afirma que a investigação
continua, e nada mais. Tanto melhor. Não tenho qualquer vontade de
conversar com ele.
No fim de uma certa manhã, sentada à janela, remendando um buraco na
túnica, vejo movimento lá em baixo.
Uma figura negra caminha aos tropeções pela fileira de árvores que
rodeia a fortaleza. A minha coluna retesa-se, mas… não. Não é um
caminhante-das-trevas. A figura anda direita e em cima de duas pernas.
Deve ser um homem.
Avança lentamente, conquistando com esforço a recente e profunda
camada de neve. Cai, e fica caído o tempo suficiente para me assustar, mas
lá consegue endireitar-se. Assim que alcança os portões, para, oscilando. O
casaco – se assim pudermos chamar o tecido rasgado que lhe pende dos
ombros – agita-se nas suas costas. Um dos braços não se mexe.
Esqueci-me da costura no colo. O homem está evidentemente ferido.
Mas de onde terá vindo? Que distância percorreu para chegar à cidadela?
O homem ergue o braço num gesto suplicante. Espero que os guardas
abram os portões. Pelo contrário, ouve-se um berro e solto uma
exclamação, vendo o homem colapsar de cara na neve.
Debruçando-me, enfio o nariz contra o vidro gelado para olhar mais de
perto. Uma seta projeta-se das costas.
Atiraram contra ele.
Uma calma gelada cobre-me como um manto. Ponho de lado a costura.
Então, é assim que um rei responde a um pedido de socorro?
Pegando no arco e na aljava, desço as escadas a correr, escancaro uma
das portas e atravesso o pátio com passadas lestas.
– Abram os portões! – berro.
Um dos guardas do muro responde:
– Estamos proibidos de abrir os portões, minha senhora. São ordens do
senhor.
Encaixo a seta e estico na totalidade a corda, antes de ele terminar a
frase. Fosse eu menos contida, e a seta já estaria enterrada no seu olho.
– Como vossa rainha – proclamo, a voz retinindo de desdém –, dei-vos
uma ordem. Abrirão os portões, homens, ou o rei será informado da vossa
desobediência. – Há uma pausa. – Já!
O portão ruge, as dobradiças guincham durante a lenta deslocação.
O homem está enterrado na neve. Acorro para junto dele, mas fico tensa.
Não é um espectro. Não há transparência na pele, nem os contornos são
difusos. O homem é humano, feito de carne e sangue.
Impossível.
Sangue mancha-lhe o casaco. O peito sobe e desce em pequenos soluços.
Pele enegrecida cobre extensas áreas desprotegidas das mãos e da cara.
Conheço bem as queimaduras da neve. Quase perdi dois dedos durante uma
caçada particularmente gelada, há vários anos.
Calmamente, endireito-me.
– Vocês, os três. – Aponto para um grupo de guardas que veio investigar.
– Carreguem o homem para a enfermaria, e despachem-se.
Apesar do espanto, obedecem de imediato, transportando-o escadas
acima e pelo corredor da ala oriental. A enfermaria consiste em cinco
catres, uma mesa a transbordar de frascos com unguentos e ervas, e um
fogo de lareira. Tenho vagas recordações deste lugar, nos primeiros dias
após o meu ataque.
Alba e as suas duas aprendizas arquejam ao ver o homem.
– Deitem-no na cama – vocifera Alba, empurrando a mesa de trabalho. A
mulher-espectro é rechonchuda, com ar saudável e olhar bondoso que
endureceu ao presenciar os ferimentos.
– Posso ajudar em alguma coisa? – pergunto. A palidez do homem
assemelha-se à de um cadáver.
Alba entrega-me uma faca.
– Tire-lhe as roupas e tape-o com lençóis. Precisamos que o corpo
aqueça, mas aos poucos, ou o coração pode parar. Vou aquecer água. – Fita-
o com espanto. – Está vivo. Mesmo vivo. Como… – O olhar transita para o
meu antes de se por rapidamente ao trabalho.
Com movimentos utilitários e desapegados, corto as roupas do homem
até à pele. É uma visão medonha: feridas abdominais profundas, coxas
arranhadas que libertam sangue, manchando os lençóis brancos.
Faço pilhas de mantos sobre o corpo dele. As aprendizas de Alba
enchem o fogo de lenha. Esta vai tocando de quando em vez na testa do
homem, e anui para si mesma.
– Está a aquecer. – E depois a atenção concentra-se na seta espetada no
ombro. – Esta seta é dos nossos homens – afirma, prendendo o olhar no
meu.
– Sim.
A máscara calma de Alba desfaz-se com desagrado.
– São uns brutos. Uma vida é uma vida. Segure-o. Se ele acordar
enquanto tento retirar a seta, ainda se enterra mais.
Não tenho força de braços para conter um homem adulto, portanto deito-
me sobre o peito dele, usando o peso para o prender.
O homem é jovem, demasiado jovem para abandonar esta vida. Como
terá ele conseguido atravessar a Sombra? Como noiva do Rei do Gelo, foi-
me concedida imunidade da sua influência. Mas o homem não a teria. Não
devia estar transformado em espectro?
Sangue jorra do buraco enquanto Alba puxa a ponta da seta. Uma
aprendiza aplica pressão com um pano para conter o fluxo, e depois limpa-
lhe a ferida, cosendo-a até a fechar.
Aplico uma ligadura à área, quando um vento frio desce pela minha
coluna e me cria um formigueiro na pele.
– O que se passa? – Um silvo desliza da ombreira.
O meu pulso acelera, não obstante a calma que aparento. Preparando-me
para a batalha que se avizinha, endireito-me lentamente, enviando às
curandeiras um olhar mudo para que fiquem tranquilas, pois eu sou o alvo
da discussão.
A silhueta do Rei do Gelo escurece a entrada. O cabelo dele pende solto
e emaranhado, e muito mais desgrenhado do que lhe vira. Tem a pele
completamente incolor, a não ser duas riscas rosadas ao longo das maçãs do
rosto, afiladas como cristal, e o rico rubor da boca. Sangue mancha a bainha
da túnica, e arranhões marcam o peitoral, como se vindo da guerra. Não se
vê a lança, mas não o torna menos aterrorizador. E ele é deveras
aterrorizador. A fúria cobre-lhe o semblante como uma nuvem de trovoada.
Transporta nele o fedor da morte.
– Olá, marido. – Acercando-me do rei, pego-lhe na mão. – Conversemos.
Ele faz finca-pé. Puxo-o para a frente, e ele segue-me para o corredor,
rosnando baixinho como a porra de um animal.
Mal a porta se cerra, dando-nos privacidade, ele liberta-se.
– Os meus guardas informaram-me que deste abrigo a um homem do
exterior. É verdade?
– É verdade. – Planto as mãos nas ancas. – E então?
– Percebes o que fizeste?
– Salvei a vida de uma pessoa?
As narinas agitam-se. Todos os meus poros tentam recuar desta
proximidade. Está demasiado perto, este predador.
Afirma:
– Convidaste o inimigo para a minha casa.
As palavras fazem-me parar. No curto espaço de tempo em que conheço
o meu marido, aprendi isto: para ele, todos são inimigos.
– Porque dizes que este homem é inimigo? – pergunto.
– Já lhe viste os olhos?
– Não. Estava demasiado ocupada a impedir que sangrasse até à morte.
– Claro que não viste – comenta, como se esperasse o meu descuido.
A minha coluna retesa-se perante esta afronta. Que desplante, o dele!
– Dir-te-ei o que vi. Um homem, ferido e perdido, que se aproximou da
cidadela a pedir ajuda. Contudo, os guardas atiraram sobre ele. – Cada
palavra é expelida num único momento de raiva com ponta de diamante. –
Não se mata um homem desarmado.
– Desarmado, não está. E homem, já não é.
Engulo o meu argumento, por algum motivo. O homem ferido não trazia
armas, mas terei ignorado alguma coisa?
– Não podia ter esta morte na minha consciência. Por isso, agi. Não me
arrependo. – Demasiadas coisas morrem no Gris. Não posso permitir que
outra sofra igual destino.
Os olhos azuis tremeluzem como uma chama fria. Passa-se outro
instante antes de responder:
– Não tinhas autoridade para tomar tal decisão.
– Tenho toda a autoridade – exclamo, espetando o polegar com força no
peito. Ele esfrega o sítio, atónito. – Não sou um casaco que se pendura
quando não se está a usar. Sou a tua esposa. Vivo aqui, como aqui, durmo
aqui. Portanto, sim, se eu decidir salvar este homem, assim farei, e em nada
podes contrariar-me.
– Não sabes quem é este homem – resmunga, infiltrando o meu espaço
pessoal. Embato na parede de costas. O cheiro do cedro envolve-me,
estonteante e límpido sob o sangue que se prende ao uniforme rasgado. –
Ele podia ter vindo com a intenção de me matar, ou a ti. Pode ser uma
armadilha.
Oh, tantas coisas ridículas que já ouvi na vida, mas esta é o máximo.
– Deves ter razão. Perdeu bastante sangue, mas é possível que salte de
um momento para o outro e te tente esfaquear no coração. – Esse coração
frio, insensível, que eu própria esfaquearei em breve.
Um pequeno vinco marca a pele entre as sobrancelhas negras.
– Troças de mim.
– Claro que troço de ti! – exclamo, rindo-me incrédula. – Mesmo se veio
para te matar, não terá sucesso agora. Mal se aguenta vivo!
– Isso é irrelevante – diz em resposta. – Se uma pessoa conseguiu abrir
uma brecha na Sombra, quem se seguirá? Cresce uma força, a qual não
estou certo de conseguir manter afastada muito tempo.
– Não importa o que digas – riposto –, mas jamais virarei as costas a
uma pessoa em apuros, nem mesmo a ti.
A última parte desliza sem intenção.
O Rei do Gelo abre a boca. Depois, como se as minhas palavras
finalmente surtissem efeito, fecha-a. Um silêncio confrangedor abate-se.
Acredito mesmo no que disse? Claro que não. Sinceramente, estou
estupefacta, sem saber por que motivo disse tal coisa.
– Espera – comento. – O homem abriu uma brecha na Sombra? Pensei
que só os mortos eram capazes de entrar nas Terras Mortas.
Ele esfrega a mão enluvada ao longo do queixo, espalhando mais
sujidade.
– Seria verdade, se a Sombra estivesse intacta.
– O quê?
Ele conduz-me de volta à enfermaria. Alba e aprendizes não se veem em
parte alguma, o que deve ser bom. Avançando em passadas largas para o
homem ferido, o rei abre-lhe uma das pálpebras e eu arquejo. O olho –
pupila, íris, escleral – está completamente negro.
– Vês isto? – Aponta para o que eu julgava ser uma queimadura do gelo,
mas ao examinar de perto, noto que as manchas negras na verdade se
situam debaixo da pele. E parecem estar vivas, contorcendo-se e enrolando-
se em formas amorfas.
As entranhas contraem-se-me perante esta evidência de incorreções.
– Parece que está a tornar-se um caminhante-das-trevas.
– É exatamente isso o que está a acontecer.
Está errado. Está errado, errado, errado. Uma mancha mais escura
desabrocha sob o queixo do homem, e depois desaparece.
– O que vais fazer com ele?
– Tem de ser morto. Direi à Alba para lhe administrar beladona. É
veneno, mas não sofrerá.
É mais do que esperava da parte dele.
– Por falar em caminhantes-das-trevas. – Fito-o de lado, expectante,
incapaz de ceder um milímetro. – Notícias do nosso amigo andante que
vagueia pela cidadela? – Passaram-se dias desde que lhe dei caça por este
labirinto, mas não me esquecerei tão depressa.
– Não – afirma o Rei do Gelo. – Nenhuma. – Aperta o cimo do nariz,
olhos cerrados.
– Já aconteceu uma brecha no passado?
– As proteções são as mais fortes que o meu poder permite. Nada entra
sem eu ter conhecimento. Nada.
E, contudo, algo entrou.
A minha atenção desce para o rasgão desagradável no antebraço
esquerdo, na sua manga rasgada. É como se não reparasse no sangue que
escorre.
– Estás ferido.
– Hei de sobreviver.
Claro que sim. E, contudo, descubro-me a dizer:
– Ainda se infeta. Posso limpá-la, se quiseres. – Não sei de onde vêm
estas palavras. No que me importa, a ferida que ganhe pus. E contudo, ele
veio em meu socorro quando estive em perigo, quando podia ter morrido
dos golpes que sofri no ataque, e não me esqueci. – Não demora.
Ele remexe-se. Sem esperar, causei desconforto ao Rei do Gelo.
– Não ficarei a dever-te favores, esposa.
Como se favores me importassem. Passando por ele, falo por cima do
ombro:
– Por aqui. – Tal como o Sol se ergue a leste, sei que me seguirá. O rei
pode negá-lo quanto quiser, mas sente curiosidade a meu respeito. E uma
parte mesquinha e retorcida em mim também sente curiosidade a respeito
dele. – Senta-te. – Aponto para um catre vazio.
Ele senta-se.
Verto água numa tigela, agarro num pano e arrasto um banco. Ele fica
rígido quando lhe puxo o braço para o ver mais de perto, tão tenso como
uma cobra prestes a atacar.
– O que aconteceu? – Um pulso forte e sólido. O cabelo preto cobre-lhe
o antebraço, a pele em que toco é quente e pálida como alabastro.
Ele observa-me enquanto lhe puxo a manga para cima.
– Houve uma batalha. A população conseguiu entrar pela Sombra.
Precisa do teu sangue.
Engulo em seco, pensando que terei de regressar à barreira horrível e
faminta.
– Já? – O que faz enfraquecer o poder do rei? Porque é que se
desvanece? Não tenho respostas. – Porque não sarou a tua pele? Foi o que
aconteceu quando…
– Quando me esfaqueaste?
Pois.
– Sim.
– Não sei bem. – Vou-lhe limpando a ferida enquanto ele fala. – Talvez
as armas deles contenham um poder que anula as capacidades de restauro
do meu corpo. Não desistirão até que me matem.
Seria de esperar. Mesmo a corda mais forte se desfia com a pressão
contínua.
– Onde é que adquirem tais armas?
– Uma pergunta a que ainda tenho de responder.
Regresso à minha tarefa em silêncio. Os nossos joelhos tocam-se, e o
calor que irradia do corpo dele banha-me como ondas que lambem as
margens. Os ombros esticam o tecido da sua túnica suja. Cheira a homem.
– És demasiado meiga – murmura, acompanhando as minhas mãos num
exame cuidado enquanto envolvo o tecido no seu antebraço. A expressão
dele descongelou um pouco, se não me engano.
– Em mim, não há meiguice. – É a única forma de garantir a minha
sobrevivência. Que tipo de ganha-pão seria para Elora se deixasse que as
minhas decisões fossem deturpadas por vulnerabilidades?
As pessoas não querem corações de manteiga. Portanto, tornei o meu de
pedra.
– É o que julgas – diz ele –, mas os teus atos comprovam o contrário.
O rei está enganado, mas não vou perder tempo em discussões.
– Falas como se esta meiguice teórica fosse um bom atributo.
– Mas é, se quiseres proteger-te do mal.
– E como é que faria isso? – contraponho. – Isolando-me do resto do
mundo?
Mais uma vez, o silêncio teimoso.
– É isso que pensas? Que me isolo por escolha minha?
Não sei o que hei de pensar. Não me deu respostas nenhumas.
– Nem toda a gente procura fazer mal. – Corto a ponta do tecido e
começo a atar um nó. Quem te terá ferido, pergunto-me. E porque carregas
tanta desconfiança?
– Não sabes o que vai no coração de um homem. – Ele aponta para o
doente inconsciente. – Quem sabe se não o condenaste a um destino pior?
Experimentei terríveis situações na minha vida. Perdi e sofri. Lutei e
labutei, e ainda assim, escolho procurar a luz, mesmo perante um imortal
que só conhece as trevas.
– E se tivesses sido tu? – pergunto em jeito de desafio. – Ter-te-ia
deixado morrer?
Nitidamente, não sabe como interpretar a minha pergunta, pois recorda-
me, voz cheia de frustração:
– Não posso morrer.
Os nossos olhares cruzam-se. Alguém bate à porta.
– Entra – entoa o Rei do Gelo.
– Meu senhor. – Um soldado observa-nos, mas rapidamente desvia o
olhar. – Mais um buraco na Sombra, a norte. Quais são as vossas ordens?
O rei põe-se de pé. Se a Sombra está a enfraquecer, poderá cair de uma
só vez? Poderei por fim regressar a Edgewood?
– Tratarei da brecha a norte. Vem, esposa.
– Chamo-me Wren. – Ao deslocar-me para atirar a água suja de sangue
pela janela, murmuro: – Não tens de quê.
15
– E stá Desvio-me
perfeitamente adorável, minha senhora.
do espelho e presenteio Orla com um sorriso apertado,
enquanto ela fecha a porta dos meus aposentos e pousa um cesto de roupa
limpa aos pés da cama.
– Não é nada de mais.
– Que parvoíce. – Gentilmente, faz-me virar de novo para o espelho e
coloca-se ao meu lado. – É mais do que suficiente.
Escolher um vestido não fora a intenção. Se dependesse de mim, enfiaria
calças, o velho casaco de pele, as minhas botas robustas. Mas Orla insistiu
que eu usasse um vestido. A bem-dizer, ameaçou esfolar-me viva se eu
vestisse aqueles trapos, tal como indicou tão eloquentemente.
Lã tingida com a cor da meia-noite anima a minha pele morena. A peça
de manga comprida tem uma forma simples, com um espartilho apertado
por cima do tecido e uma saia larga que me cobre os tornozelos. O corpete é
magnífico, um mapa de fios de prata em espiral. Botas macias espreitam
por debaixo da bainha da saia.
Esta noite, eu e o Rei do Gelo participaremos na festa do Solstício de
Inverno.
Orla demorou três dias a confecionar o vestido, preparando-me para esta
noite. Foram muitas horas a medir, cortar, drapear, coser e, Pelo amor dos
deuses, fique quieta! Ela e duas aias esfregaram-me a pele até reluzir –
tendo o cuidado de não ferir as minhas costas recém-cicatrizadas – e depois
entrançaram-me o cabelo escuro e espesso, envolvendo a trança única numa
fita prateada. Arrancaram-me os pelos rebeldes, escureceram os meus olhos
com kohl, lamentaram as minhas unhas roídas e os meus pés cheios de
bolhas.
Orla tem razão. A mulher no espelho é linda.
Não a reconheço.
Não tem as faces sujas. Não tem sangue seco entranhado nas unhas. Se
não fosse pela cicatriz, confundi-la-ia com Elora.
Tenho as palmas das mãos suadas, as quais limpo na frente do meu
vestido. São os nervos. Cresceram ao longo da noite. Tudo aquilo de dançar
e o aperaltar pertencem ao domínio de Elora, mas ela não está aqui. Se
jogar bem a minha cartada, talvez o rei me deixe visitá-la em breve. Só por
uma noite.
Não acredito que o Rei do Gelo retalie contra Neumovos. Por mais
rígida que seja a sua postura, possui um nível inesperado de honradez.
Preocupa-me mais participarmos os dois nesta festa como marido e mulher,
o que implicará horas na sua companhia, quando eu mal consigo passar um
único dia sem lhe bater ou lançar algum insulto malicioso. Há um limite
para o quanto compreendo este rei; causa-me frustrações sem fim.
– Deixe-me apertá-la mais um pouco. – Orla experimenta dar um puxão
aos cordões do espartilho.
– Já está o mais apertado que podia estar.
– Parvoíce. Mais uns puxões farão toda a diferença. – E, portanto, puxa.
E puxa.
E puxa.
– Quem terá sido o adorador do demónio que concebeu este instrumento
de tortura? – resmungo. Quanto mais ela aperta os laços, mais cor os meus
lábios perdem.
– Contraia o estômago, minha senhora.
– Não consigo mais – respondo de dentes cerrados. O espartilho cinge-
me tanto o tronco que mudou os meus órgãos de lugar.
– Só mais… – Puxão. – Um. – Puxão. – Aperto.
Arquejo, sentindo as costelas cederem e o estômago refugiar-se no meu
esterno.
– Misericórdia, mulher.
– Pronto. – Orla, satisfeita, recua para admirar o seu trabalho. Outro
milagre: agora tenho cintura, mesmo tendo sido necessário criá-la à força. A
bem-dizer, nunca comi tão bem durante tanto tempo. Ganhei peso desde que
cheguei à cidadela.
– Obrigada – murmuro, puxando a minha aia e dando-lhe um abraço. –
Por tudo. Tens sido uma verdadeira amiga desde a minha vinda. – Uma
amiga e, de muitas formas, também uma mãe. – Agradeço tudo o que tens
feito, Orla. – Não lhe digo isto vezes suficientes.
Ela dá-me palmadinhas no ombro antes de se afastar, com um resplendor
na vista.
– Que parvoíce. A senhora merece. – A sua cara redonda brilha de
felicidade. – Aprecie o serão, minha senhora.
Agarrando num casaco de pele do armário, desço até ao enorme hall de
entrada. Acolhe-me um vento seco, mal ponho um pé no exterior. Os saltos
ressoam contra a pedra cinzenta, ao atravessar o pátio em direção às
cavalariças, com o sangue acelerado e o pulso instável por razões que não
sei concretizar.
As cavalariças cheiram a feno, banhadas pela luz dourada das lanternas
montadas nos postes. O Rei do Gelo, atarefado a selar o animal, vira-se
quando nota os meus passos.
O escuro tecido da sua capa abre-se a meio, revelando uma túnica
cinzento-clara por baixo, cor que combina com a da fita que me ata a
cintura. Calças da cor do carvão envolvem as suas compridas pernas, e
aquelas coxas grossas e potentes. O cabelo encaracolado está puxado para
trás, mas um punhado de madeixas conseguiu soltar-se do nó que o prende.
– Tens… bom aspeto. – As palavras deslizam atabalhoadas da minha
boca, um desabafo.
O Rei do Gelo franze o cenho. Talvez esperasse um pontapé nas costelas,
mas recebeu um afago nas orelhas. Olhos frios e nada cooperantes varrem-
me das pontas das botas até aos cachos de cabelo que me enquadram o
rosto. Este desconforto imóvel é uma sensação inédita, porque me sinto
desenquadrada.
– Estás pronta? – pergunta ele.
A pontada de desilusão magoa-me inesperadamente. Não sei o que me
irrita mais: que uma parte insegura, minúscula de mim esperasse outro
elogio como contrapartida, ou que me tivesse convencido de que, esta noite,
as nossas habituais interações intoleráveis se podiam transformar em algo
diferente. Tento fazer um esforço. No mínimo, ele devia corresponder.
O olhar dele estreita-se.
– Se tens algo a dizer, fala.
– Não é importante.
– Mais uma mentira.
Muito bem. Foi ele que pediu.
– Podes elogiar-me, uma vez que seja. Afinal, sou a tua esposa.
Ele fita-me como se lhe tivesse sugerido que se despisse.
– Elogiar?
– Sim, elogiar. Podes dizer: «Estás bonita nesse vestido», ou «Essa cor
condiz com o teu tom de pele». – Uma parte de mim deve ter saudades de
meiguice, mesmo na forma de palavras ocas.
Fáeton bate a pata no chão, enquanto o rei termina de apertar a correia,
endireitando-se com ar constrangido. Parece ter ficado desconfortável, o
que por sua vez me faz sentir desconfortável. Disse algo que o ofendesse?
A minha face cora com a sua falta de resposta.
– Não importa. – Porque é que me dou ao trabalho?
Oferece-me uma ajuda para montar, mas prefiro fazê-lo sozinha. Assim
que acabo de compor as saias em cima da sela, ele coloca-se atrás de mim,
ancas encostadas às minhas, aquelas coxas musculadas comprimindo a
superfície das minhas pernas. Queima-me a pele, onde me toca, por entre a
roupa. É como se estivesse no meio de um fogo.
O rei estala as rédeas, e seguimos a trote, através dos portões que se
fecham com estrondo atrás de nós. Depois surge isto: um céu tingido, a
terra esbranquiçada, as árvores enegrecidas, o mundo.
O casaco de pele proporciona-me um calor adequado, embora o corpo do
Rei do Gelo combata inclusive o frio mais inclemente. Perco a noção do
número de árvores pelas quais passamos, cada qual mais esquelética do que
a anterior. Espanta-me que não aceleremos. Quando mais depressa
chegarmos, mais depressa podemos partir.
– A tua gente celebra o Solstício de Inverno? – pergunta-me.
Viajamos em silêncio há tanto tempo que a voz do rei me sobressalta do
semitorpor. Inclino-me de lado na sela, mas ele agarra-me pela cintura.
Mantém o pesado braço em volta dela.
É quente, portanto não o enxoto.
– Desculpa-me. O que dizias?
– A tua gente, celebram o Solstício de Inverno?
– Sim. – São cinzentos e inóspitos, os dias, mas durante a noite acende-
se a fogueira, nasce o riso, a esperança, a qual é perigosa e esquiva: as
minhas primeiras recordações do Solstício de Inverno envolvem os meus
pais, ainda que sejam turvas e apagadas, e portanto, tenho-lhes grande
estima. – É o dia em que…
– … o véu entre o reino mortal e o imortal adquire a sua mais fina
espessura.
Franzo a cara de espanto.
– Sim. – Ao alto, um céu límpido e salpicado de estrelas cintila pela
abóbada de ramos. – Como é que sabes?
Embora não possa ver a sua expressão, pressinto que esteja perplexo.
– Os nossos mundos podem ser diferentes, mas muitas das nossas
crenças sobrepõem-se. De onde venho, chamamos-lhe Travessia.
– Também é hoje que apelamos ao Vento Oeste – digo – para que traga
abundância às nossas terras durante os próximos meses. – Anunciando a
vinda da primavera.
O rei fica em silêncio. Pois. Ele detesta tudo o que envolva o irmão.
– Espanta-me que as pessoas em Neumovos celebrem o dia – continuo,
procurando desesperadamente expulsar o silêncio. – Considerando que…
bem…
– Que é algo que celebra o meu fim?
– Sim – respondo, com um sorrisinho impertinente –, embora não
pretendesse dizê-lo com tanta delicadeza.
O Rei do Gelo solta um trejeito de troça. O queixo dele roça a minha
cabeça quando se ajeita na sela, aproximando mais as nossas ancas.
– Em tempos, estiveram vivos. Conservam as crenças, as formas de
adoração, mesmo na morte. Quem sou eu para comandar aquilo que em
acreditam?
– Isso é positivamente igualitário da tua parte.
Prosseguimos durante mais algum tempo, até Fáeton emergir do anel
protetor de árvores talhadas com runas que cerca Neumovos. A lua desta
noite é um mero crescente gelado, uma réstia de luz. Ao longe, ouço risos e
música.
Tirando as rédeas ao Rei do Gelo, faço Fáeton parar e deslizo da sela
para o solo, sacudindo a poeira das saias.
O rei fita-me, pestanejando.
– O que fazes?
– Vamos a pé, a partir daqui. Senão, intimidarás o povo, aparecendo
assim em cima de um caminhante-das-trevas assustador, e arruinarás a
celebração antes de sequer começar. – Lanço um olhar ao Fáeton, e o
espírito resfolega como se estivesse melindrado. – Sem ofensa.
O rei reage como se lhe pedisse para cortar o braço.
– Não são meus iguais.
– Comem e dormem e sonham e sofrem, tal como tu.
– Mas eu não posso morrer.
– Por meios mortais, não.
O olhar dele fita-me, acutilante. Terei dito mais do que devia?
– Só esta noite – riposto, já exasperada –, podes fingir que não somos os
vermes que nos consideras ser?
– Não vos considero vermes.
– Então, o que somos para ti?
Ele não responde, desmontando e dando uma pancada à criatura para
perambular por ali. Sempre acreditei que o seu desinteresse fosse uma
teimosia, uma escolha propositada. Agora pergunto-me se me terei
equivocado, se, afinal, não está habituado a que perguntem a sua opinião.
Talvez não saiba comunicar o que pensa.
Uma vez que se recusa a responder, não sou obrigada a ficar parada. Sem
olhar para trás, marcho para a praça ladeada por tochas, necessitando
desesperadamente de uma bebida, e talvez de bolo, mas só se a estrutura
deste espartilho estrangulador me permitir ingerir seja o que for. O Rei do
Gelo segue-me de perto. Não posso crer que as multidões lhe causem
desconforto.
Mas avistam-nos, a atmosfera jovial dissipa-se, como o fumo na
ventania.
Suspeita, prudência, desconfiança – sensações intensas que permeiam a
atmosfera. Há umas boas centenas de pessoas presentes. As mulheres usam
vestidos compridos e botas, os homens, casacos e calças alinhavadas,
formas desbotadas na luz trémula. A miudagem agarra-se às saias das mães.
O Rei do Gelo aproxima-se de mim.
– Diz qualquer coisa – murmura.
Pondero no pedido durante menos de um segundo.
– Não, não me parece que queira dizer. – Dou-lhe uma palmada no braço
sem qualquer empatia. – Boa sorte.
Ele fica hirto como um poste. Oh, que bem me sabe, este gosto da
mesquinha vingança.
– Povo de Neumovos – profere o rei, com ar mais sombrio do que seria
adequado a uma celebração. – De onde venho, o Solstício de Inverno
assinala o dia em que eu e os meus irmãos nos aliámos aos novos deuses
para derrubar os nossos antepassados, aqueles que nos banhavam com fogo.
É uma noite de dissidência, uma noite de traição, uma noite de morte.
Ranjo os dentes, ouvindo um murmúrio espalhar-se pela multidão.
Assustou-os. A infelicidade é que não o fez de propósito; só não percebe o
efeito que causa nas pessoas.
– Isto é uma festa – sibilo, agarrando-lhe o braço – ou um funeral? – Nas
minhas costas, o público remexe-se, nitidamente desconfortável com a
menção da morte. – Deixa-me concluir. E esconde essa coisa – riposto,
apontando para a lança.
Ele mostra-se mais agradecido do que irritado. A arma desaparece, e eu
anuncio:
– Serei breve, pois sei que querem retomar a festa. Em primeiro lugar, eu
e o meu marido – nem sequer gaguejo com o termo – queremos agradecer-
vos o convite para vos acompanharmos nesta noite. É meu desejo que este
dia assinale o início da nova parceria entre nós.
O Rei do Gelo pragueja em surdina. Ignoro-o.
– Comam, bebam, divirtam-se. – Ergo os braços e berro: – Feliz festa do
Solstício de Inverno!
A multidão ecoa:
– Feliz festa do Solstício de Inverno!
A tensão desfaz-se, os tambores começam a soar, e o ambiente torna-se
de júbilo. Os aldeões congregam-se no meio da praça, os corpos
semitransparentes começando a abanar. Alguém solta um viva, e é como se
caísse um relâmpago, libertando correntes de energia pela massa ondulante.
Avisto o fogo cerimonial quase de imediato. A certa altura da noite, as
pessoas irão saltar por cima das chamas, simbolizando o fim da estação fria.
É uma sensação peculiar, ver aqueles que tentaram matar-me a entregar-se à
alegria, à esperança no futuro. Não lhes guardo rancor, apenas compreensão
e uma vaga tristeza no meu íntimo. Bóreas contempla as festividades com
aparente aversão, embora este ar de repulsa seja natural nele, portanto não
posso afirmar que haja diferença.
Estando ele concentrado na dança, encaminho-me para o lado oposto da
praça, onde se reúnem os músicos. Além de tambores, ouve-se um violino
com um som ligeiramente baixo, uma flauta esculpida em madeira e um
outro instrumento de cordas que solta um vibrar irritante quando tocado.
Tento abordar um grupo de espectros, mas viram-me as costas, e o prazer
abate-se, uma secura familiar aperta-me a garganta. Encontro-me aqui, mas
não faço verdadeiramente parte deste mundo. Sou Wren de Edgewood,
mulher mortal e noiva do Vento Norte, e não me enquadro.
Mas onde é que está o vinho?
Deambulo um pouco até encontrar um homem com uma cartola
particularmente adorável, que enche copos com vinho de um barril. Aceito
uma bebida com gratidão e deparo com um pequeno grupo que envolve um
homem mais velho com um arco. As curvas profundas do instrumento e o
seu comprimento hipnotizante evidenciam a perícia da talha.
– É um belo arco – comento. – O senhor caça?
O homem espreita por cima do meu ombro. Procura o Rei do Gelo,
presumo.
– Há muitos anos que não caço – diz, à cautela.
– Permite-me?
O homem hesita. As mãos tremem-lhe com os nervos.
– Claro que sim. – Quando pouso o vinho, ele entrega-me o arco. Quase
não se sente o peso, mas a madeira é forte e maleável, como deve ser.
– Caçais, minha senhora?
– Sim.
Alguém me passa uma flecha e aponta para o alvo pendurado numa
árvore próxima. O olho do alvo baloiça, virado para mim. Nunca houve
alvo cujo centro eu não fosse capaz de atingir; há muitas estações que isso
não acontece. Quero que estas pessoas percebam que estou do lado delas.
Não quero ser temida pela associação com o rei.
– Vamos a apostas? – berro com uma inspiração repentina.
Uma grande exclamação abate-se sobre mim. Os homens agitam os
punhos e batem os pés. As mulheres juntam-se a eles, empurrando os
maridos, irmãos e filhos para ver mais de perto.
– Como vai ser? Virada de costas? Só com uma mão? – Já fiz isto e
muito mais. Depois de perder os meus pais, comecei a praticar na clareira
atrás da nossa cabana. Longas horas de pé, neve até aos joelhos, a corda do
arco criando-me bolhas nos dedos. Cada doloroso fracasso aproximava-me
um pouco mais do tiro perfeito, do dia em que teria comida no estômago.
– Trocar as mãos! – berra uma velha.
– A fazer o pino! – berra outra.
Rio-me. Pela primeira vez em meses, sinto-me livre.
– Peçam, e eu faço!
– Com os olhos fechados.
A minha cabeça vira-se para o lado, ao escutar o comando em surdina, e
a minha pulsação aumenta. Não o encontro em parte alguma. Terá a minha
mente perturbada imaginado a sua voz? A multidão aparta-se nesse instante,
e o Rei do Gelo materializa-se ao meu lado, como se saísse das sombras.
– A não ser – murmura apenas para eu ouvir – que isso esteja além das
tuas capacidades?
O meu sangue ruge, incendiando-se nas veias. Deve ser isto o que sente
um deus, ocorre-me, saber que jamais falhará.
Examino o imortal que é meu marido. Ele perscruta o meu rosto, em
busca de algo que não sei identificar. O vento atira-me o cheiro a pinho.
Aproximo-me mais, pé ante pé, e ele solta uma exclamação de espanto.
– Estás no meu caminho – digo-lhe.
Aperta os lábios. Com um breve aceno de cabeça, o rei desvia-se,
permitindo-me ver o alvo, embora me mantenha ciente de que se colocou
atrás de mim. Concentro-me na tarefa: olhos fechados. Nunca tentei aquele
desafio, mas estou preparada. O meu coração abranda, as pálpebras fecham-
se.
Puxando a flecha para mim, afundo-me na pura sensação. O vento sopra
de oeste, e é suficientemente forte para desviar a minha seta para leste.
Compenso, inclinando-me ligeiramente para a esquerda. Existe o arco,
madeira fresca na minha mão. Existe a flecha, com a ponta de pedra
esculpida e a pena de ganso. Existe o alvo, algures para lá da vista. E eu.
Existo eu.
Exalar e… soltar.
Um clamor rompe o silêncio.
Sorrio, abrindo os olhos. A seta vibra no preciso centro do alvo.
– Então? – gracejo, virando-me para o rei. – Pronuncia-te. – Se ele
tenciona denegrir-me, desato numa discussão.
– Tens boa pontaria – admite, enquanto a multidão se dispersa.
Devolvo o arco ao dono com um agradecimento sentido, depois pego no
vinho.
– E isso espanta-te.
– Em tempos, teria espantado.
– Mas agora, não.
– Não. – A voz fica mais mansa. – Agora, não.
A tensão que emana do corpo do Rei do Gelo é quase palpável. Um
sabor na minha boca. Um bafo no meu rosto. Um compasso de tempo
passa, demorado e ininterrupto, durante o qual me concentro nos casais que
dançam. A certo ponto, Bóreas fala, mas estou demasiado distraída para o
ouvir.
– Desculpa?
– Perguntei se queres um copo de água?
Espreito para o meu copo de vinho – agora vazio. O rei lança-me um
olhar, como se esta conversa confrangedora fosse culpa minha.
– Sim – respondo lentamente, curiosa. – Gostaria de mais uma bebida.
Mas não água: vinho. – Depois acrescento, porque parece ser o mais
correto: – Obrigada.
A sua expressão endurece, mas vai buscar as bebidas, e eu recuo para a
periferia da festa, pretendendo assistir do lado de fora. O baixo e sonoro
pulsar do tambor ecoa nas solas das minhas botas. Empurra e puxa. Um
ritmo que acelera. Os habitantes, com as suas formas fantasmagóricas,
giram e deslocam-se em redor da praça.
Mas uma figura envolta numa capa separa-se das restantes. Algo no
movimento fluido chama-me a atenção. Como a figura está de costas para
mim, não lhe consigo ver o rosto, mas trata-se obviamente de um homem,
pois usa culotes e o tecido da capa encontra-se esticado nos ombros. Tenho
a certeza de que já o vi antes.
Depois o homem vira-se, e o luar banha com palidez o seu rosto,
refletindo o dourado que lhe ilumina os caracóis. Os nossos olhares cruzam-
se à distância na praça.
Ele pisca o olho.
Avanço aos empurrões, afastando cotovelos e desviando-me das crianças
que correm debaixo dos meus pés. Só conheci uma pessoa que tivesse olhos
como folhas verdes e um traço diabólico a condizer.
Quando alcanço finalmente o lugar em que se encontrava Zéfiro, já ele
partiu. Ou foi engolido pela multidão, ou nunca ali esteve.
– Algum problema?
Assusto-me quando o rei surge a meu lado, oferecendo-me o copo de
vinho. Aceito-o, ainda a pensar no que vi. Ou melhor, no que julguei ter
visto.
– Não – respondo rapidamente. – Nada. – Tomo um gole. Um sabor doce
e subtil reveste a minha língua, como o das cerejas. Depois franzo o
sobrolho. Quase não resta líquido no copo. – Provaste o meu vinho?
– Já bebeste muito esta noite – afirma. – Não receias ficar agoniada?
Enrubesço sem demoras.
– Eu bebo o quanto quiser, marido. – Não aguento a noite inteira movida
apenas a água, nem a semana, nem a vida. Aceitei esta vergonhosa
realidade. – Não tens de te preocupar.
O rei observa-me com atenção, como se procurasse a resposta para uma
pergunta que evita formular. E forma-se um buraco no meu estômago, não
sei porquê.
– O que foi que chamaste a isto? Néctar dos deuses?
O copo está a meio caminho da minha boca, mas faço uma pausa.
– Sim – respondo com voz arrastada, julgando que ele não se lembraria.
– Os deuses realmente adoram vinho.
O rei engole a bebida, e vejo a garganta mexer-se. O meu olhar traiçoeiro
permanece naqueles músculos.
– Estás com bom humor – digo. – Planeias matar alguém?
– Podia perguntar-te o mesmo.
Porque é que desconfio que me vasculha a mente, revirando cada pedra,
avaliando cada palavra que trocamos? E porque é que não fico preocupada?
Talvez me sinta tão confiante de ser bem-sucedida nesta tarefa que nem o
considero uma ameaça. Esta forma de pensar preocupa-me. O Rei do Gelo é
a própria definição de ameaça.
Inspecionando-o por cima da beira do copo, pergunto:
– Estou a sentir-me nitidamente menos assassina esta noite. O festival é
assim tão terrível, como julgaste que era?
Hesita. Encara-me, e depois desvia a vista.
– É-me difícil interagir com outras pessoas. Não estou acostumado.
Recordo a ala norte da cidadela, que me está proibida por sua ordem. O
que esconderá? O que teme?
– És mesmo péssimo a fazer conversa de ocasião – afirmo, porque sou
muito prestável.
A sua expressão contrai-se e torna-se desapontamento, e eu engulo uma
onda de culpa inesperada. Pisei no que é obviamente uma área de dor. Eu
podia ser mais gentil com ele, só esta noite.
– Não tem de ser difícil – continuo. – Fazer conversa. Basta fazer
perguntas às pessoas, pô-las a falar de si mesmas. Ajuda a criar um elo entre
as partes.
Ele encara-me.
– E o que devia perguntar?
– Qualquer coisa. E se isso não resultar, comentas o estado do tempo.
Inclina a cabeça para trás para observar a bacia negra e repleta de
estrelas por cima, depois volta a olhar para mim. Ainda nada.
– Podias convidar-me para dançar.
As faces ficam a arder-me. Porque terei dito tal coisa? Tonturas. O
maldito espartilho corta-me o ar para o cérebro.
O rei franze a testa.
– Presumindo que me apeteça dançar.
A resposta dele é uma bofetada na cara. Fico grata. Lembrança de que
não tenho interesse em interagir com o meu marido mais do que o
necessário. Se ele não quer dançar comigo, procurarei divertir-me de outra
forma.
Vários homens agrupam-se no perímetro da praça. Muitos também são
atraentes. Aproximo-me daquele que tem olhos castanhos e bondosos e uma
boca suficientemente macia para declamar poesia. Nem tenho de pedir, a
minha intenção é clara. Pego na mão dele e arrasto-o para o meio da
multidão, e ele agarra-me, conduzindo-me pela cintura, e o meu riso liberta-
se.
Quando os meus pés regressam à terra, levanto as saias. Mais depressa,
mais depressa, mais depressa, os músicos impulsionam a melodia até ao seu
final febril. Tudo à minha volta fica uma mistura de sombras e luzes, os
pulmões debatem-se contra o espartilho. Vamos ao encontro um do outro, o
meu parceiro e eu. Ele ri. Eu rio. Somos um par perfeito.
Na próxima volta, contudo, o homem para.
O Rei do Gelo interpôs-se entre nós.
Olho para ele, ofegante, sem sentir o coração muito firme. A garganta
dele inclina-se, e então aqueles dedos longos e revestidos de couro enrolam-
se à volta dos meus e ele pede:
– Dança comigo.
18
P elaEstou
primeira vez no meu passado recente, estou quente quando acordo.
tão desacostumada desta sensação, que nem abro
imediatamente os olhos. Calor genuíno, aquela sensação de pele irrigada e
articulações soltas, há anos que não o sinto. Pairando neste estado de
semitorpor, fico vagamente ciente de um som remoto, um pulsar baixo,
constante. Tenho um peso à cintura, uma pressão acalorada. Com o aroma
do cedro.
Cedro. Não pode ser, mas… olho para baixo, pálpebras mal abertas
contra o sol matinal que entra pela janela. O objeto que me comprime a
cintura é um braço masculino, cingindo-me, dedos enfiados no espaço entre
o meu corpo e o colchão.
O Rei do Gelo tem o sono ferrado. Não se manteve no seu lado da cama.
Rolou para o meu lado, invadiu o meu espaço pessoal, o peito formando um
muro de calor nas minhas costas.
Ranjo os dentes quando ele se remexe contra mim.
– Bóreas.
O seu bafo levanta-me o cabelo. A sensação desperta-me arrepios na
pele.
Passou-se muito tempo desde que fui íntima de um homem. Rir-me-ia
com a ironia se não estivesse com falta de ar da nossa posição interligada, o
que me desperta de imediato, recordando-me com quem partilho o leito.
– Bóreas.
Nem se mexe. Tento livrar-me daquele aperto, mas o braço comprime-se
ainda mais contra o meu estômago. A minha inquietude apenas resultou na
maior aproximação dos nossos corpos.
– Bóreas! – riposto, com o rosto enrubescido.
Uma coisa comprida e dura encosta-se ao meu traseiro e é quando
arregalo os olhos. Contrai-me os músculos uma energia tensa e vibrante.
Ficam tensos ao ponto de estalar, e de seguida descontraem-se em conjunto.
O meu pobre corpo, sedento de sexo, não quer saber em que braços me
encontro. Tudo o que conhece é a solidez atrás de mim, a respiração sobre o
meu pescoço, a zona onde Bóreas enterrou o rosto no meu cabelo. E então –
oh, deuses – as suas ancas rebolam lentamente, despertando uma onda de
calor pelo meu tronco, e eu quase pulo até ao teto. Com um grito dramático,
liberto-me daquele abraço, escorregando da cama para o chão.
O rei dá a volta à cama, lança na mão. Tem o cabelo desgrenhado e um
ar estremunhado, resultado de uma possível ação noturna, embora nenhuma
tenha, efetivamente, existido.
– O que aconteceu? – fala com um tom roufenho, baixo.
Viro a cabeça para o outro lado, soltando um estranho suspiro sem ar. As
calças dele estão tão descaídas que o aspeto é muito indecente.
– Nada. – A beleza do Rei do Gelo é estonteante, é certo, mas ele tem a
personalidade de uma pústula. – Disse que ficasses no teu lado da cama.
Noto a sua incerteza, o que, por sua vez, me faz sentir indecisa.
– Disseste que tinhas frio.
– Não disse nada! – exclamo, endireitando-me num pulo. Porque se
fosse verdade, lembrar-me-ia.
Encolhe os ombros, indiferente à minha reação dramática.
– Porque havia de mentir? – Há algo no seu olhar que se aguça ao pousar
em mim, e o meu coração pula em resposta. – Da primeira vez que me
pediste para me aproximar, recordei-te do limite que tinhas imposto.
Se houve uma primeira vez, foi porque pedi mais vezes. Não quero
saber. Preciso de saber.
– E o que respondi?
– Que ignorasse isso.
Estaria a delirar, sem dúvida. Com hipotermia limítrofe.
– Devias ter respeitado o meu pedido inicial.
– És a minha esposa. Se tinhas frio, era meu dever dar-te conforto.
Aquilo é… inesperadamente querido da parte dele. Oxalá pudesse culpar
o vinho pelos meus pensamentos contraditórios, mas acordei sem
enxaqueca. A minha língua, no entanto, tem aquela textura de papel
inconfundível. Precisarei de beber, mal regressemos à cidadela.
– Então… – Fecho a boca e engulo. – Obrigado.
Se não estou equivocada, a boca dele forma uma delicada curva
ascendente.
Basta. Passando ao lado dele a correr, agarro no casaco e visto-o. Dá-me
maior sensação de segurança.
– Vou dar um passeio.
O sorriso desvanece-se.
– Espera. – Contorna a cama quando já estou a chegar à porta.
– Se me vais pedir para ficar contigo – respondo, agarrando a maçaneta
com energia furiosa –, não te incomodes.
– Da última vez que andaste por Neumovos, quase te mataram à
pancada.
A voz dele, normalmente suave como o vidro, ondula com uma corrente
subtil de fúria. Encara-me com tanta intensidade que o meu olhar desce para
o seu peito à procura de um alívio. Aquele peito injustamente cinzelado.
– Não se atreveriam desta vez – respondo calmamente. – Estás aqui.
Com uma concentração demasiado acutilante para o meu gosto, ele
informa:
– Partimos dentro de uma hora.
– Encontramo-nos na praça. – Espero que aquilo que procuro não
demore a encontrar. – E veste-te – gracejo.
Não me sinto à vontade até a porta se fechar atrás de mim,
interrompendo-lhe o olhar.
O frioVento,
é tão intenso que se entranha na pele.
há pouco, mas a geada cristaliza-se no canto dos meus olhos,
revestindo-me as narinas de um branco que estala a cada expiração.
Enrolada nas peles, encontro-me bem protegida, mas os pulmões e o ventre
enrijecem do frio, absorvendo este gelo que é eterno.
Zéfiro ainda não apareceu. Escapei-me porta fora antes que Orla me
acordasse para o pequeno-almoço. O meu querido marido terá de comer
sozinho, embora ignore se irá comparecer. Passaram-se três dias desde que
regressámos de Neumovos e não voltei a vê-lo. Orla diz que ele tem andado
indisposto, e que, por tal, se mantém nos aposentos.
Esta afirmação não bate certo. O rei não pode morrer, e não pode
adoecer. Porquê estas mentiras? O que me esconderá ele?
Um ramo parte-se à minha direita. Quando Zéfiro emerge da mata um
segundo depois, sinto os ombros relaxarem. Terá feito de propósito, para me
alertar da sua presença, pois é normalmente silencioso.
Sorri, radiante ao ver-me, dentes brancos sobre pele dourada. O casaco
cola-se à sua figura esquálida.
– Wren. Tão bonita que está, hoje.
Sinto-me corar com o elogio.
– Perguntava-me se viria.
– Duvidou de mim? – Faz beicinho, mas os olhos verdes cintilam. – Mas
havia de tratar mal a minha cunhada? Venha. Não temos tempo a perder.
– A respeito disso… – Puxo-lhe a manga para lhe chamar a atenção. –
Não vim sozinha.
– Desculpe?
Thyamine surge na pequena clareira. A transparência sinistra da sua
forma permite-lhe esconder-se sem dificuldade naquele espaço. Traz óculos
redondos e desalinhados sobre o nariz atrevido.
Algo endurece no olhar de Zéfiro, e ele encara-me com o sobrolho
arqueado.
– Há algum motivo para ter trazido companhia?
– Minha senhora? – Thyamine aproxima-se de mim, ofegante de tanto
caminhar. Deparando com Zéfiro, o nariz enruga-se de concentração, como
se tentasse identificar as suas feições. É inútil. Momentos depois de sair da
cidadela, perguntou-me como me chamava. A pobre mulher não tem
remédio. – Quem é o senhor?
– Thyamine, este é o Zéfiro. – Não há necessidade de informá-la de que
se trata do irmão do Vento Norte, pois foi tecnicamente banido das Terras
Mortas. E jamais se recordaria de tal pormenor.
– Encontrou-me quando eu tentava sair – murmuro a Zéfiro. – Não tive
grande escolha. Ou a convidava ou arriscava que os guardas me vissem.
– Isto não vai ser um problema, pois não? – pergunta ele. – Não
podemos ter distrações assim que chegarmos à caverna.
– Ela prometeu que cumpriria as minhas ordens. Certo, Thyamine?
– Sim, minha senhora. – Novo relance a Zéfiro. – Pode repetir as suas
ordens?
O Vento Oeste mostra-se contrariado com esta companhia adicional, mas
encolhe os ombros e indica-nos que o sigamos.
– Como conseguiu sair da cidadela sem que ninguém reparasse? –
pergunta-me, curioso.
– O muro exterior tem uma abertura no terreno de treino – indico,
abrindo caminho por entre as raízes das árvores cobertas de lodo. O ar
parece mais húmido, hoje, por algum motivo, como se fizesse mais calor.
Ele lança-me um sorriso, exibindo os seus caninos afilados.
– A minha cunhada é esperta.
A superfície vítrea de Mnemenos manifesta-se de repente. Quanto mais
andamos, seguindo o rio até à foz, mais se esticam as árvores para o céu, e
mais diminui a luz, fazendo-nos entrar na obscuridade.
– Tem de saber isto, Wren, antes de chegarmos à caverna do Sono. – Dá
um pulo leve e gracioso por cima de uma árvore caída, pousando sem ruído,
mas eu vejo-me obrigada a trepar. Thyamine atravessa-o sem dificuldade,
com uma expressão de curiosidade infantil enquanto observa a paisagem.
Zéfiro vira-se então para mim, com um rosto pesaroso.
– Se adormecer no reino dos vivos, faz apenas uma rápida visita ao
domínio do Sono. Contudo, se sucumbir ao poder do Sono nas Terras
Mortas, é bem possível que nunca mais volte a acordar…
– Tinha-me dito que o poder do deus pouco me afetaria – lembro-lhe,
uma inquietação nascendo-me no estômago.
– Assim será, mas há que estar alerta.
Que bonito da parte dele, informar-me desse pormenor quando estamos a
meio caminho.
– Porque não me contou, antes? – riposto.
Pelo menos parece arrependido, embora não sirva como desculpa.
– Teria concordado em vir, caso soubesse?
Ponderando no assunto, concluo que sim, possivelmente teria
concordado. Por estar desesperada. Por não haver outra opção. Agora,
sinto-me desviada deste propósito.
– Desculpe-me, o que estamos a fazer aqui?
Viro-me para Thyamine, que me observa como estivesse dentro de um
nevoeiro cerrado. Parece estar muito confusa, e não a censuro. Começo a
perguntar-me se esta excursão não será um erro.
Talvez pressentindo a minha inquietação, Zéfiro aborda-me, sacudindo a
neve do meu casaco, cheio de sorrisos e garantias.
– O plano é o seguinte. Convido-a a entrar na humilde morada do meu
primo. Enquanto eu o distraio, você procura o jardim e colhe as flores de
papoila. Basta uma mão-cheia. Não demorará mais de uma hora.
Embora me apeteça desistir, talvez não tenha outra hipótese. Preciso do
tónico.
– Como é que encontrarei o jardim? E como conseguirei orientar-me?
Disse-me que não era iluminado.
– Tome. – Entrega-me uma esfera de vidro do tamanho da minha mão.
Emite uma luz pálida e rosada, e aquece-me a pele através da luva como um
sol pequenino.
Thyamine debruça-se, um lento piscar de olhos da sua vista ampliada.
– O que é isso?
– Isto – diz Zéfiro – chama-se luz-da-rosa. – Toca no vidro com a unha,
e este reluz com um brilho incandescente. – No meu reino, as rosas são
colhidas pelas suas pétalas. Extrai-se o líquido e transforma-se numa
substância de pura luz. – Parece orgulhoso deste feito. É realmente
maravilhoso. – Bem, o jardim situa-se no meio da caverna, que encontrará
seguindo o rio. – Perscruta o meu olhar. – Combinado?
O que será a vida sem algum risco? Anuo, com o queixo esticado.
Thyamine diz:
– Vamos fazer uma viagem, minha senhora?
– Vamos. – Dou uma palmada reconfortante no braço da coitada. – Mas
tens de ficar calada todo o tempo, como se dormisses. És capaz de fazer
isso?
Ela acena com a cabeça com entusiasmo.
– Sim, sou capaz. Gosto de dormir, embora nunca sonhe. Ou nunca me
lembre dos sonhos. – O rosto dela enruga-se numa expressão de extrema
perplexidade.
Zéfiro murmura um comentário sobre demência antes de avançar.
Percorremos outro quilómetro, e Mnemenos divide-se. Um braço segue em
frente, enquanto o outro faz uma curva para leste. Thyamine solta uma
exclamação, e eu também me sinto incrédula, ao deparar com a súbita
visão.
Dois colossais arcos, com o triplo da altura das árvores em redor,
transpõem cada um dos braços do rio, quais portões separados. Não consigo
identificar o material em que foram esculpidos. Um deles brilha com um
fulgor branco. O outro, igualmente descorado, carece de brilho, como se
estivesse coberto de pó.
– O que é aquilo? – Aproximo-me da água com curiosidade, tendo
cuidado de manter uma saudável distância da margem traiçoeira.
– Os portões de marfim e de chifre – responde Zéfiro. – É por onde os
sonhos atravessam e são transportados por Mnemenos para o reino dos
mortais.
Aponta para o braço de leste, sobre o qual se curva o arco liso e lustroso,
com aspeto recém-polido.
– Os verdadeiros sonhos passam por baixo do portão de chifre. Os falsos
sonhos, destinados a enganar – ele aponta para o gémeo desbotado –,
passam sob o portão de marfim.
– A minha senhora sonha?
Sorrio com a pergunta de Thyamine, embora a alegria não suba aos meus
olhos.
– Às vezes – respondo.
– Com o quê?
Sonho com o que Elora sempre sonhou, embora nunca tenha
mencionado o meu íntimo desejo de encontrar amor e segurança, um lar
com um homem. Claro que não preciso dessas coisas, penso, mas seria
agradável tê-las.
Thyamine espera uma resposta. Só consigo dizer:
– Não interessa.
Tendo passado os portões de marfim e chifre, Zéfiro não demora a
levantar a mão, sinal para pararmos.
Além da curva, avisto a caverna, cuja entrada é atravessada pelo rio.
Incorpora uma estrutura muito maior, esculpida no próprio penhasco. Um
edifício maciço não muito diferente da cidadela do Rei do Gelo. Torres lisas
e colunatas suspensas.
– Disse que o Sono vivia numa caverna – comento com Zéfiro,
desconfiada.
– Tecnicamente, é uma caverna. – Solta uma exalação. – Eu, por
exemplo, nunca entenderei como é que o Sono e o irmão dele, o Exício, não
enlouqueceram à conta dela. – Perante o meu olhar interrogativo, elabora: –
À conta da escuridão.
De facto, um véu envolve a caverna, ocultando-a praticamente toda..
– Daqui em diante – diz ele –, não podemos fazer nenhum som. O Sono
não deve sentir a sua presença. – Fixa Thyamine com um olhar brilhante e
esverdeado. – Wren, venha comigo. A sua criada terá de ficar para trás.
Mantenha a luz-da-rosa apagada até eu o ter distraído. – Toca no globo, e a
luz desvanece-se. – Uma vez lá dentro, siga o rio até chegar ao jardim.
Quantas vezes terá o Zéfiro visitado esta caverna? As vezes suficientes,
para saber o que me espera. As vezes suficientes para me deixar
preocupada. As vezes suficientes para também me deixar tranquila.
Aceno concordando, e sigo-o através das rochas lisas e elevadas que se
estendem até à margem gelada de Mnemenos. Ele salta graciosamente por
entre as pedras escorregadias e cobertas de gelo, aterrando nas pontas dos
pés, antes de pular para mais longe.
– Espere, minha senhora. – Thyamine não é particularmente forte, por
isso a ferocidade do seu aperto no meu braço espanta-me. A respiração dela
enfraquece, olhando em frente, atenta a Zéfiro, cuja forma se esbate
enquanto abre caminho pela escuridão que se adensa em volta da caverna. –
Algo me diz que isto é uma má ideia.
– Eu sei bem que é uma má ideia. – Tento libertar-me dos dedos, mas
contraem-se até me causar dor.
– Há mais uma coisa. Algo… – Interrompe-se com um trejeito de
frustração. Tem os olhos brilhantes. – Se ao menos me conseguisse
recordar.
Dou uma palmadinha na mão dela e, por milagre, os dedos soltam-me o
braço.
– Está tudo bem. O Zéfiro avisou-me dos perigos. Tenho de fazer isto.
Tenho de voltar para a minha irmã, para a minha vida em Edgewood.
– Mas tem aqui uma vida. – A expressão dela é de uma doce confusão.
– É uma vida, mas não a minha. – A confusão dela aprofunda-se. Abano
a cabeça, é inútil tentar explicar, pois amanhã não se vai recordar do que
conversámos. – Ou seja, não a escolhi.
Thyamine olha na direção de Zéfiro. Ele parou na entrada da caverna e
chama-me com gestos.
– Mas, e o festival do Solstício de Inverno?
– O que tem?
– O senhor disse que gostou bastante. E que achava que a senhora
também teria gostado.
Embora levante a mão em resposta a Zéfiro, os meus pensamentos
digerem esta informação. Sim, diverti-me, mas não pensei que o rei tivesse
reparado. Julgava que ele seria imune a tais observações.
– Quando é que ele disse isso?
– Ontem, minha senhora. Que a senhora sorriu. Também referiu isso.
E observa demais para o meu gosto. De futuro, terei de resguardar-me do
que lhe digo, e de como reajo. Mas… reparou no meu sorriso.
– Ficarás a salvo, aqui – digo à criada, forçando-me a concentrar-me na
situação presente. – Não te afastes, e mantém-te atenta a qualquer coisa que
possa surgir.
– Coisas como os caminhantes-das-trevas, minha senhora?
Oxalá, muito sinceramente, que não haja caminhantes-das-trevas nas
redondezas.
– Esconde-te e mantém-te calada. – Aperto-lhe o ombro e acorro para
junto de Zéfiro, com a luz-da-rosa a vibrar suavemente no meu punho
fechado. Agarrando-me na mão, ele orienta-nos para o interior das trevas
nas quais vive o Sono.
Momentos depois, paramos. Zéfiro empurra-me para um recanto e diz-
me baixinho:
– Não saia daqui até que a venha buscar. – Ouço uma pancada numa
porta e o correr do rio à minha direita. Nem mesmo a tonalidade viva da
água penetra neste sítio vazio de luz.
O som de uma porta que se abre. E mantém-se, este abismo de noite
eterna.
– Primo! – A saudação calorosa de Zéfiro ecoa. Não lhe vejo o sorriso,
mas consigo imaginar, um esgar branco e faminto encimado por risonhos
olhos de trevo.
– A que devo este prazer, Zéfiro? – diz uma voz tão ressonante que os
meus ouvidos vibram. O Sono, a divindade que domina metade das vidas
dos mortais.
– Não pode um deus visitar os seus parentes? Tenho saudades, S.
Um momento de silêncio.
– Já te pedi para não me tratares assim.
– Bem, sim, a minha memória já teve os seus dias. Posso entrar? Preferia
conversar onde consigo ver, percebes.
– Não te demores.
Passos arrastados, como se o Sono se desviasse para permitir a entrada
de Zéfiro. Os passos pesados desvanecem-se, ficando distantes, e eu
assusto-me quando Zéfiro regressa, agarrando-me na mão com um
murmúrio:
– Depressa.
Sigo-o em silêncio, tendo o cuidado de levantar os pés para não tropeçar
em fendas ou pedras caídas.
– Prefiro falar contigo do que com o teu irmão, como sabes – diz o Vento
Oeste ao primo.
O Sono resmunga:
– Hei de contar-lhe isso.
A porta fecha-se e Zéfiro larga-me a mão, a voz dele vai desaparecendo
ao conduzir o primo para outra parte da caverna. Espero até que o som se
desvaneça por completo, antes de levantar a luz da rosa, mas dou-me conta
de que não faço ideia de como a acender.
– Ah… acende?
Nem sequer uma centelha. Esforço os olhos, abro os meus sentidos ao
ambiente, embora jure que a escuridão também pareça engolir o som.
– Por favor?
O vidro aquece na minha mão, como se pressentisse o desespero. E
depois começa a brilhar, emanando uma luz rosa suave contra as
redondezas.
Isto não é uma caverna. É uma fortaleza, uma mansão talhada no quartzo
negro e reluzente da montanha. Mnemenos curva-se através da rocha numa
faixa plana de ébano. À minha volta, encontro grandes arcos pontiagudos
recortados nas paredes, túneis que conduzem às profundezas distantes.
Zéfiro disse para seguir o rio, e é o que faço, levantando bem alto a luz-da-
rosa para desvendar o caminho. De vez em quando, uma gota de água pinga
de um algures invisível e desencadeia ecos, ondas de som pouco profundas.
Acelero o passo; quanto mais depressa encontrar o jardim, mais depressa
saio.
Depois de um período indeterminado, noto que a escuridão diante de
mim se transmuta. O túnel alarga-se. O luar penetra por uma abertura no
teto da caverna, expondo uma miríade de plantas que crescem num solo
fértil. Papoilas vermelhas brilham como pequenas bocas famintas com
centros escuros. Sinto um ar mais quente, nesta zona, como se o poder do
Rei do Gelo não entrasse por completo na morada do Sono.
Passos ligeiros levam-me à periferia do jardim. Embora as papoilas
sejam as mais abundantes, também encontro camomila e alfazema, entre
outras flores. Agacho-me, colho uma mão-cheia de papoilas e meto-as no
bolso.
O ar parece ficar mais espesso, contrariando os meus movimentos, como
se despertasse com a intrusão. Os meus ouvidos aguçam-se, num silêncio
que, subitamente, se agita, e, na escuridão, uma voz treme nas paredes.
– Quem ousa colher do Jardim do Torpor?
21
– L evarás o Fáeton.
Encontramo-nos nas cavalariças, eu e o Rei do Gelo. As
lamparinas foram extintas, pois o dia encontra-se luminoso e desprovido de
nuvens, as portas abrem-se para o sol – um bom presságio.
Fáeton, o monstro, arqueia o comprido e fumegante pescoço por cima da
baia, farejando-me as calças à procura de guloseimas. Afasto a cabeça da
criatura, recusando admitir que possa ter personalidade.
– Irei a pé.
O rei contrai os dedos que seguram as rédeas, o couro esmagado na sua
mão enluvada. Tem olhos tão escuros que parecem negros, não se
distinguindo a pupila da íris. Observou-me desta forma, há dias, na
biblioteca, nitidamente excitado. Eu não soube como reagir. Ainda não sei.
– Levarás o Fáeton, ou não irás. A escolha é tua.
– Pronto. – Sem a aprovação do Rei do Gelo, estou impedida de cruzar a
Sombra e entrar no Gris. E preciso disto. Como de pão para a boca.
Ele abre a baia e conduz Fáeton para o exterior. Noto pela primeira vez:
o pelo escuro como carvão do animal tem o exato tom do cabelo do rei.
– Regressarás ao pôr do sol.
– Passo lá a noite.
Ele abre a boca para responder, mas levanto a mão, cortando-lhe a
palavra.
– Eu passo lá a noite – repito, sem deixar margem para negociações. –
Não vejo a minha irmã há meses. Regresso amanhã de manhã. – Malditas
sejam as suas tendências controladoras.
Bóreas parece pronto a discutir. Contudo…
– Amanhã de manhã – cede.
Ajuda-me a subir para a sela, embora eu seja perfeitamente capaz de
montar sozinha. Já me pôs ao corrente das consequências se eu permanecer
mais tempo do que o necessário: o sangue de Edgewood para alimentar a
Sombra. É uma ameaça que levo a sério.
O rei conduz Fáeton até aos portões, e entrega-me as rédeas.
– Amanhã de manhã – repete, olhar penetrando o meu.
Anuo.
– Dou-te a minha palavra.
O portão começa a deslocar-se. Assim que a abertura fica
suficientemente larga, enfio os calcanhares no flanco do caminhante-das-
trevas.
Entramos no vento e no frio. Forço a criatura a acelerar, e ela
corresponde ao meu desafio, sacudindo a cabeça e serpenteando pela
floresta, pulando sobre árvores tombadas e ribeiros cintilantes. Percorremos
quilómetros e quilómetros na profunda quietude. Quando o rio se torna
visível, faço abrandar o animal, parando de correr, e depois desmonto junto
à margem.
O barco continua congelado no mesmo lugar da minha vinda. No
entanto, e após uma inspeção mais atenta, reparo em fissuras muito finas
que interrompem o fluxo ininterrupto do rio e, em certas partes, há manchas
turvas no gelo, indicando áreas mais fracas em que começou a derreter.
– Não tens de esperar por mim – digo a Fáeton.
Os seus olhos cavernosos encontram os meus. Depois abana a cabeça e
desaparece no arvoredo.
Assim que subo para o barco e me encavalito no banco, o gelo derrete e
Mnemenos transporta-me rio abaixo.
A viagem dura o dia inteiro. Espuma branca derrama-se por cima de
pedras lisas, e a água embate no casco curvo enquanto Mnemenos se
transforma no Les. À minha frente, a Sombra espreita, deslizando friamente
pela minha pele enquanto a atravesso. Abro os olhos: regressei finalmente a
casa.
Como se fosse guiado pelo poder do Rei do Gelo, o barco deposita-me
numa curva do rio, que se congela assim que desembarco. Apresso-me,
sentindo a escuridão a aproximar-se. É como se todo o meu corpo se
inclinasse para a frente, avançando com esforço para o que me espera do
outro lado do bosque, e em breve encontro-me a correr, a chocar contra
arbustos mortos, atravessando o muro baixo de pedra que envolve a cidade.
Vejo finalmente a nossa casinha, empoleirada no cimo do pequeno
monte.
– Elora! – Estou tão contente que não reparo imediatamente nos sinais. –
Elora, cheguei a casa!
Uma camada profunda de neve obstrui o caminho que conduz à entrada.
Com a mão na maçaneta, atravesso o limiar num tropeção. Esperava uma
lareira acesa, o rosto doce da minha irmã a tricotar um dos seus adorados
chapéus de lã.
Pelo contrário, eis o que encontro: um espaço vazio, uma lareira fria,
uma cadeira derrubada.
Avanço para o interior sem me preocupar em fechar a porta. O pó tinge o
ar como se a casa estivesse encerrada há meses.
– Elora? – Outro passo hesitante nas tábuas do soalho que rangem. O
meu nervosismo aumenta à medida que me aproximo da cama. Colchão nu,
sem cobertores. Abro as gavetas da cómoda: vazias. A despensa da cozinha:
vazia. Os outros armazéns: vazios.
A morte não me é estranha; tem acompanhado Edgewood durante a
maior parte da minha vida. Uma casa só fica vazia quando não resta
ninguém que ocupe o espaço.
As pernas fraquejam-me, os joelhos chocam contra o chão. Algo se parte
dentro de mim, uma rutura limpa e silenciosa. Elora é o meu coração e a
minha alegria. Não pode ter morrido.
Quanto tempo decorreu? A carne de alce que lhe deixei deve ter durado
meses. Não morreu de fome. Terá sido roubada? É raro isso acontecer, mas
com o passar dos anos, o desespero aumenta. Sem comida e sem meios para
caçar, ela definharia lentamente.
– Wren?
Atordoada, viro-me. Miss Millie encontra-se à porta, com o capuz
revestido de gelo. Um rosto desgastado, ossos salientes sob olhos
lacrimejantes. É como se eu tivesse partido há anos, não há meses. Está
mais magra. Um fantasma.
– Há quanto tempo? – murmuro, desalentada. – Há quanto tempo
morreu?
– Morreu? – Miss Millie encara-me com perplexidade. – A Elora não
morreu. Casou-se. Ela e o marido vivem do outro lado da vila.
– Casou-se? – O que significa… – Está viva?
– Claro que está viva. – Miss Millie acerca-se de mim com cautela. –
Não esperávamos que voltasses. É tão bom voltar a ver-te, Wren. – Sorri,
mas é um daqueles sorrisos educados, nada mais. Não confia em mim. Fui
levada como sacrifico do Vento Norte, mas, eis-me aqui, muito vivinha.
Pergunta para o silêncio:
– Onde está o Rei do Gelo?
Por algum motivo, a desconfiança dela aviva a minha irritação.
– Não tens de te preocupar. Não veio. Deu-me autorização para fazer
uma visita.
– Ele deixa-te sair? – Está chocada.
– Por um curto período, sim. Onde está a Elora?
Uma hesitação.
– Miss Millie – repito com voz de ferro. – Onde está a minha irmã?
A mulher cede.
– Vem. – Aponta para fora. – Levo-te até ela.
Chegamos a uma casinha robusta, situada quase na orla da floresta
envolvente. Desponta fumo da chaminé torta, e o cheiro a lenha queimada
transporta-me de volta à infância, encostada a Elora junto à lareira com o
estômago a doer de fome, e a exaustão encobrindo todas as imagens e sons.
Miss Millie bate à porta. O meu coração bate com uma emoção não
muito distinta do medo.
A porta abre-se, e eis a minha irmã. Adorável, suave, segura. Mesmo
após tantos meses, Elora continua a rivalizar com o sol.
O choque fratura-lhe a expressão. Os braços pendem junto ao corpo, mas
dá um passo em frente, levanta a mão como se quisesse tocar-me, como se
questionasse se serei uma aparição.
– Wren? – Esta voz roufenha em que o meu nome ganha forma é o
melhor som que ouço há meses.
A minha garganta incha. Torna-se difícil engolir.
– Elora. – Envolvo-a nos meus braços, nesta versão mais magra e
desvanecida de mim. É tão frágil… demasiado frágil. Um soluço estala no
ar, e não sei quem realmente cede primeiro. Estamos juntas, mesmo que
seja por curto tempo. Digo a mim própria que é suficiente.
– Julguei que… – Elora afasta-se, os fios de cabelo caídos em redor da
cara como tiras de lã encharcadas. O luar brilha na humidade que lhe cobre
as faces. – Julguei que tu…
– Eu sei. – Encaixo-lhe uma madeixa de cabelo atrás da orelha. –
Também eu.
Elora recusa-me o seu rosto, encarando a paisagem gelada com uma
expressão perturbada. Miss Millie já partiu. Não sei se teria preferido a sua
presença, porque o ar alterou-se, moldando-se em volta dos pensamentos de
Elora. Como uma armadura.
– Porquê? – murmura.
Uma palavra, proferida como um palavrão. Encara-me diretamente no
rosto. Elora, a doce Elora, nunca permite que tais emoções mais duras a
sobrecarreguem. Mas os seus olhos brilham como uma lâmina, e dou por
mim a recuar um passo para não me ferir naquela ponta.
– Porque estou aqui? – pergunto. – Queria ver-te…
– Abandonaste-me – rosna, e eu recuo. Envolve a ombreira com uma
mão, as unhas incrustadas de sujidade roídas até ao sabugo. – Tu…
drogaste-me e foste-te embora, e quando acordei, tinhas desaparecido.
Pensei que tinhas morrido. Pensei…
– Elora.
– Não! – Bate com a palma da mão na madeira. Permaneço em silêncio,
a coluna rígida. Elora nunca levanta a voz. Nunca. Vejo-me, de repente,
num lugar em que nunca estive.
Pois foi, menti. Pois foi, droguei-a sem o seu consentimento. Entendo
aquela amargura, o modo como se pode alojar e fazer um nó que nos aperta
a garganta. Assumo a responsabilidade pelo erro. Mas ser descrita de forma
tão vil, ser considerada a causa da dor, fúria e ressentimento da minha irmã,
ignorar o sacrifício que fiz em seu nome… por isso eu não esperava.
O que esperava eu? Que Elora me acolhesse de volta à minha antiga
vida. Que se tivesse mantido uma presença familiar, inalterada. Agora,
olha-me como se não me reconhecesse… E todos os dias pensei nela. Sem
desistir de tentar regressar.
– Lamento a mágoa que te causei – murmuro. – Gostaria de explicar.
– É um pouco tarde para isso, Wren. Devias ter-me contado o que
planeavas. Fazes ideia do que senti quando acordei numa casa vazia,
descobrindo que a minha única irmã partira com o Rei do Gelo para servir
de sacrifício?
– Não havia tempo – digo. – Fiz o que julgava ser melhor.
– Para quem?
Que raio de questão é aquela?
– Para ti. Achas que o deixaria levar-te? – consigo dizer, os molares tão
apertados que me magoam o maxilar.
– Não me deste hipótese.
– Estás a dizer que preferias que eu não tivesse feito nada? Que preferias
a tortura e o sacrifício?
– Tu estás vivinha da silva – comenta.
Forma-se um poço no meu estômago com o desenrolar desta conversa.
Eu não sabia que o Rei do Gelo pouparia a minha vida quando saí de
Edgewood. Preparara-me para morrer, tudo para que Elora vivesse.
– Ajuda-me a perceber. Preferias que eu estivesse morta, para que o meu
truque não tivesse sido em vão?
– Não, claro que não. – Ela cruza os braços, apertando aquela boca de
botão de rosa.
– Então, o que queres dizer?
– Quero dizer – sibila – que tinhas de te armar em heroína. Não fazes
mais nada.
A minha ira sobe ao nível da dela.
– Tentava proteger-te.
– Foi um gesto egoísta!
A palavra tomba como uma foice sobre o meu pescoço. Sinto os
pulmões encolher, a revolta no estômago crescer, a inquietação tornando-se
finalmente um tumulto, uma descrença enjoada. Voltei na esperança de
encontrar euforia, alegria pelo meu regresso. Agora, pergunto-me se a
minha presença será sequer bem-vinda. Tenho as ideias paralisadas,
entaladas algures entre a negação e a descrença. E pergunto-me: quem é que
mudou?
– Elora?
Um homem entra em cena, colocando uma mão protetora na anca de
Elora. Shaw. Recordo-me de quando era um rapaz com demasiadas sardas e
pouco senso comum, mas, entretanto, tornou-se homem, ganhou uma
constituição forte, com ombros grossos como um touro e uma barba bem
aparada. Sabia que era carpinteiro e tinha um bom negócio. E agora é o
marido de Elora.
– Wren? – Pisca lentamente os olhos. – Voltaste.
– Apenas para uma curta visita – asseguro-lhe com um sorriso tenso.
É tão estranha, esta situação. Ver Elora numa casa que não é a nossa,
com um homem que mal conheço. O frio agride-me as costas. Não me
convidaram a entrar. Será que Elora não entende que tudo o que fiz foi para
bem dela, para que pudesse viver, continuar viva, morrer de velhice?
Egoísta. A minha garganta arde com as lágrimas acumuladas. Só à força
é que as impeço de sair. Que mais terei feito, e que se considerasse
egoísmo? Sofrer queimaduras do frio e feridas de cicatrização lenta para
garantir uma boa caça? Gastar dinheiro para que lhe tecessem um novo
vestido, apesar de ter as minhas calças esfarrapadas e cheias de buracos?
Faltar a inúmeras festas para cortar lenha e reparar o telhado, enquanto ela
dançava até lhe doerem os pés? Perdemos os nossos pais há anos, mas as
identidades que nos atribuíram perduraram. Eu, a protetora. Elora, a
protegida. Eu, a sombra, imprópria para ter segurança. Elora, a acolhida.
Elora, a abrigada.
Nunca me quis separar dela. Tomei uma decisão muito difícil. Eu.
Sempre tomei eu as decisões difíceis, sempre coloquei o conforto dela
acima das minhas dificuldades, a felicidade dela acima da minha mágoa.
Justificando a mim mesma que as minhas necessidades não tinham
importância. Que não era digna de tais coisas.
Caso estivessem os nossos papéis invertidos, ter-se-ia ela sacrificado
para me salvar do Rei do Gelo? Teria posto as minhas necessidades, sonhos
e futuro à frente dos seus?
A verdade tem arestas afiadas. No fundo do meu coração, sei bem qual é
a resposta.
Shaw saltita o olhar entre mim e a esposa, com o cenho vincado. Talvez
estranhando ela não me ter convidado a entrar.
Uma fenda fere-me o coração e eu recuo. Se é isto que ela sente, então
devo respeitá-la. Mas raios me partam se ficará a saber o quanto me
magoou.
– Não me posso demorar.
Virando-me, começo a descer os degraus quando Elora me chama.
– Espera.
Paro no último degrau.
– Entra – pede. Uma pausa demorada e indecisa. – Ceia connosco.
Como não consigo ver a expressão de Elora, sou forçada a interpretar a
inflexão do tom de voz. Fúria, tristeza, relutância. Sempre tive intenção de
protegê-la, e ela afirma que as minhas ações foram egoístas? Não sei se
consigo perdoar isso tão facilmente.
E, contudo, foi uma longa travessia. O mínimo que posso fazer é passar
algum tempo com a pessoa que mais adoro neste mundo. Com um último
olhar à paisagem escura, subo as escadas e entro na nova casa da minha
irmã.
Julgara, com plena certeza, de que nada seria mais insuportável do que
partilhar a mesa de jantar com o Rei do Gelo.
Isto é pior.
Ninguém fala. Os utensílios chocam contra a louça de barro rachada.
Elora e Shaw sentam-se num lado da mesa, e eu no outro. A minha irmã
atarefa-se a cortar a lebre. A carne é fibrosa, pois o animal tem pouca
gordura. Habituei-me, entretanto, às ricas refeições servidas na cidadela, e
devo ser uma pessoa realmente horrível para torcer o nariz ao que me é
oferecido, pois sobrevivi durante tanto tempo com iguais alimentos.
– Está muito apetitoso – adianto.
Elora pigarreia, anui com a cabeça, agradecendo.
Felizmente, Shaw tenta estabelecer conversa. Fala sobre o casamento
deles, descrevendo o dia feliz. Se eu não tivesse partido, talvez Elora não
tivesse encontrado alguém com quem partilhar a vida. Talvez a minha
ausência tenha sido uma vantagem.
– Fico feliz por ti – digo, tentando sorrir. Pois se não sorrir, chorarei, e
isso não pode acontecer. – A sério.
Elora vê-me emborcar o vinho por cima da borda do seu próprio copo.
Pousa-o e depois olha de relance para Shaw.
– Há novidades, Wren.
– Oh? – Sinto um latejar na cabeça. Quanto tempo devo aguardar até ser
correto ir-me embora?
– Vamos ter um bebé.
O pedaço de carne na minha boca derrete-se até formar um pedaço de
cinzas. Forço-me a engolir. O único som que se ouve é o do vento, um
lamento triste que faz estremecer as paredes da casa, e o da minha
respiração suave e intermitente. A minha irmã vai ser mãe.
– Mas isso é… – Tremem-me os dedos da mão que segura o garfo. Elora
sempre quis ter uma família, mas este desejo chegou antes do que eu
esperava. Primeiro, casou-se. Agora, está grávida. E eu… encontro-me
presa num casamento sem amor com um homem que não suporta a minha
companhia. Sinto as vias respiratórias obstruírem-se, ao perceber que fui
substituída. Elora gosta de Shaw, não de mim. Abandonou a casa, a nossa
antiga vida.
Requer um esforço deveras corajoso, suavizar a minha expressão.
– Isso é maravilhoso, Elora. Deves estar radiante.
Ela pega no guardanapo de pano que tem no colo, olhos descaídos.
– Sim.
Serei tia, mas não estarei presente para oferecer apoio. Ela tem o Shaw, a
vila. Terá quem tome conta de si. É o que eu sempre desejei que lhe
acontecesse.
– Já escolheram o nome?
– Micah se for rapaz – diz Shaw, apertando a mão da minha irmã sobre a
mesa. – E Iliana se for rapariga.
Iliana era o nome da nossa mãe.
– São nomes maravilhosos – Levo o copo à boca, e só então percebo que
está vazio. Elora fica a observar-me enquanto o encho novamente, mas não
comenta. Pouco me importa. O seu olhar desiludido diz tudo.
Já me tinha resignado a terminar a refeição em silêncio, quando ela
pergunta:
– Wren, porque é que ainda estás viva? Julgava que o Rei do Gelo
sacrificava as mulheres que levava consigo.
Quase perdera a esperança de que Elora fizesse perguntas sobre a minha
vida. Mais vale tarde do que nunca.
– É um engano. Não há sacrifícios.
– Então és prisioneira dele?
– A bem-dizer… – Cá vamos nós. – Sou esposa.
– O quê? – Endireita-se na cadeira, horrorizada. – Diz-me que não é
verdade.
Sinto-me invadir pela vergonha, que me queima a pele do rosto.
– Wren. – A palavra é dita como um chicote. – Como foste capaz de
casar com esse homem? Foi ele que nos trouxe esta miséria!
– Achas que não sei? Não tive propriamente alternativa.
Ela baixa a cabeça, devidamente repreendida.
– Nem tudo é mau – explico num tom mais suave. – Estou sozinha a
maior parte dos dias. Ando à vontade por ali. – Desde que não saia para a
rua. – E ele não é tão cruel como eu pensava. – Estranho, estar a defendê-lo
perante a minha irmã, sendo ele um imortal que me retirou à força de casa.
– Então, deixou-te visitar Edgewood?
– Sim.
– E não tem medo de que fujas?
Não sei porque minto. Para não parecer um fracasso de pessoa? Para
extinguir aqueles olhares de pena?
– Ele confia em mim.
Os olhos de Elora arregalam-se.
– Oh. Isso é… isso é bom. – Lança um olhar hesitante a Shaw –
Compreendes que é uma situação inesperada, certo? Quero acreditar em ti,
mas como é que sabemos se a tua chegada não fará parte de uma
conspiração horrível para levar outra das nossas mulheres?
O meu rubor intensifica-se. Como se atreve ela a pensar que eu alguma
vez a colocaria em perigo?
– Vais ter de confiar em mim. – As palavras são feitas de vidro quando
as profiro.
– Como é que ele é? – pergunta Shaw. Tal como grande parte dos
habitantes de Edgewood, sente curiosidade sobre o Vento Norte… e terror.
– Frio. – Ou talvez distante seja uma descrição mais adequada do seu
carácter. Querendo manter-se isolado, tem dificuldade em ligar-se aos
outros. Não é a primeira vez que me pergunto qual será o motivo.
– Bem – diz Elora –, ele é o Rei do Gelo. A não ser que use outro nome?
– Bóreas. – O som torna-se agradável na minha boca, um som de curvas
deslizantes. Que estranho, pensar nele deste modo. Como um homem, e não
um mito.
Espero que a minha irmã queira saber mais sobre a minha vida. Como
passo o tempo, se fiz alguma amiga. Se estarei bem. Mas ela regressa ao ato
de comer, assinalando o fim da conversa.
É o que é.
24
V ou Evitei
morrer.
encarar esta verdade nos olhos durante muito tempo. É
demasiado assustadora. Mas aceitar tem uma vantagem. A dor diminui, e eu
deixo-me ir e há paz.
Desde a minha angustiante fuga da cidadela, o crepúsculo e o amanhecer
têm chegado e partido em rápida sucessão. Os primeiros dois dias estão
difusos na memória. Mergulhei cada vez mais profundamente no território
desolado das Terras Mortas, sem qualquer destino em mente. O rei exigiu
que partisse, e portanto, parti, incitada pelo medo da represália, daqueles
olhos enegrecidos e unhas alongadas.
A doença atingiu-me ao fim do segundo dia.
Apareceu com uma sensação dilacerante no estômago. Cambaleei e caí
curvada, choramingando enquanto a dor me inundava por todo o lado.
Estava tonta, já não tinha a certeza de que rumo tomava. Diante de mim,
uma visão vacilante, cheia de neve, e frio, um frio terrível. Por milagre,
tropecei numa toca abandonada. Foi aí que desmaiei, e aí permaneço,
passados vários dias.
Os meus pensamentos circulam sem destino. Lábios gretados e boca
ressequida, a aspereza da língua dentro da cabeça. A febre é tão profunda
que me derrete os ossos. O coração bate como se fizesse esforço para
continuar.
Não tenho capa, nem luvas, nem capuz. Fugi da cidadela trazendo
apenas o meu vestido – pouco me aquece. Dói-me a garganta. Anseio por
beber, mas tenho as mãos vazias. Quanto mais tempo passar sem vinho,
mais rápido será o meu declínio.
Sinto tanto frio que também já sinto calor.
Mais uma cãibra no abdómen. O estômago revira-se e vomito, expelindo
a bílis aquosa da pequena quantidade de neve ingerida, a minha única
refeição desde que fugi da cidadela. Encolho-me numa bola mais apertada,
com um grito frágil.
– Elora – sussurro.
Mas Elora não está comigo. Encontra-se longe, a salvo, em casa com o
marido. Não poderei despedir-me dela.
É este pensamento mais nítido, estando turvos todos os demais, que
anima algo em mim. Sou bastante orgulhosa, mas serei assim tão orgulhosa
que não regresse ao Rei do Gelo e implore pela minha vida?
Eis as minhas mentiras: Elora precisa de mim. O Rei do Gelo é meu
inimigo. Nada me pode quebrar.
Eis as minhas verdades: Elora escolheu Shaw em vez de mim. O Rei do
Gelo é meu marido. Eu já estou quebrada.
Desconfio que quebrei há muito. Tenho vivido com este buraco no peito
durante tanto tempo que me tornei insensível a ele. Adaptei-me por falta de
alternativa. O que era importante? Elora, sempre Elora. A sua saúde e
segurança, conforto e prosperidade. Ela, a filha preferida, doce e dócil, a
estrela que brilhava mais. Se os meus pais davam prioridade ao seu bem-
estar em detrimento do meu, é porque era merecedora, digna, amada. Wren,
não. Nunca Wren. Qualquer indício de tristeza, medo, infelicidade –
enterrava-o bem fundo, no escuro. Disse a mim própria que os meus
sentimentos não importavam.
E então o Vento Norte chegou a Edgewood e tomei a decisão de que a
minha vida não tinha importância. Esta decisão: sacrificar-me. Pode ter sido
precipitada e insensata, mas, se tivesse de reviver aquele momento, acredito
que não escolheria de forma diferente.
Jurei então matar o Rei do Gelo, pôr fim ao meu sofrimento e regressar a
casa. Mas ao longo dos meses, algo mudou. Aprendi que Bóreas não era tão
rígido ou insensível como parecia à primeira vista. À medida que íamos
convivendo, ele oferecia-me vislumbres de si, e eu aceitava-os com a única
intenção de os transformar em lâminas, as quais espetaria em todas as zonas
vulneráveis do seu corpo. Mas foram presentes que me deu, esses
vislumbres. E isso mudou as coisas. Mudou tudo.
Tola como sou, fui levada a esquecer quem e o que ele era. O todo-
poderoso Rei do Gelo enviou-me para a morte, e eu fui, porque
desaprendera a arte de lutar.
Causa-me vergonha. Sempre lutei. Nunca desisti. Sempre combati a
escuridão e o frio, procurando um fogo que não consigo ver. Porque é que
parei? Porque é que acabo sempre pequena, inferior?
Se tiver de morrer, que seja ao meu modo. De pé, e não de joelhos. E
prefiro deixar este mundo sabendo que levei o Rei do Gelo comigo.
– Levanta-te, Wren. – É a minha voz. – Levanta-te.
Doem-me as articulações e sinto picadas na pele vergastada pelo vento,
mas acabo por rastejar para fora da toca e pôr-me de pé, apoiando-me numa
árvore tombada. Depois de ter passado dias enrolada em mim mesma, dói-
me ficar direita.
No entanto, existe uma chama viva em mim. Força-me a tropeçar, depois
a andar, e assim continuo, refazendo o caminho anterior, trepando por cima
de árvores caídas e acompanhando as mudanças de elevação.
Quando avisto a cidadela, já se fez escuro. As torres contorcem-se contra
a montanha, preto sobreposto ao preto. A muralha aumenta de altura à
medida que me aproximo. É um lugar frio, implacável e pouco acolhedor.
Nunca, nem uma única vez, me senti em casa.
Ocultando-me nas sombras, procuro o buraco na parede exterior perto do
campo de treinos e rastejo de mãos e joelhos. Transposto, dirijo-me para a
ala norte com as pernas a tremer, localizando o terceiro andar, segunda
janela à direita. Ao início, Orla indicou-me alegremente o quarto do rei. Por
sorte, uma árvore morta está encostada à parede da cidadela, e é
suficientemente alta para me permitir alcançar a janela que procuro.
Uma fenda na base do tronco serve-me de ponto de apoio. Sustendo-me
num dos ramos mais baixos, ergo-me para o ramo superior, apesar do meu
cansaço, lutando contra a náusea que se contorce na minha barriga. As
sombras protegem-me dos guardas que patrulham a muralha e dos que
fazem as suas rondas lá em baixo.
Procurando o apoio seguinte, arrasto-me para cima. Para cima, para
cima, até me equilibrar no ramo mais alto, com a cara a centímetros da
janela. O luar embate no vidro, e devolve-me o reflexo.
Não reconheço aquela mulher. As nódoas negras, em forma de crescente,
envolvem olhos raiados de sangue. O cabelo cai-lhe em tufos oleosos, com
falta de escova e limpeza. A cicatriz, no entanto, é uma visão familiar: uma
marca selvagem no rosto dela, uma lembrança de que o passado nunca
desaparece por completo.
Um leve empurrão contra a vidraça e esta abre-se, generosamente
destrancada. Bóreas nunca pensou que a sua esposa entrasse pela janela
com intenção de o matar.
Os aposentos do rei têm o triplo do tamanho dos meus, e contêm várias
portas que conduzem a salas fora do alcance da vista. O próprio rei consiste
numa forma escura, depositada na cama. Dorme de lado, com os cabelos
negros espalhados sobre as almofadas brancas, o cobertor enrolado à volta
da cintura. A largura das suas costas – pele pálida e cicatrizes ainda mais
pálidas – quase brilha.
Com firmeza, aproximo-me do leito. Nas sombras desfocadas, poderia
convencer-me de que ele é um homem, mortal, se não tivesse aquele rosto
esculpido na perfeição. Finalmente, detenho poder, e irei conseguir a
liberdade – a minha e do meu povo.
A lança não está visível, mas seria de esperar. O punhal dele, no entanto,
repousa sobre a mesa de cabeceira. O punho da arma arrefece-me a palma
quente e suada. Tem a firmeza que me falta.
Num único gesto ininterrupto, faço deslizar a arma, retirando-a da
bainha, a ponta beijando-lhe já a base da garganta.
Os olhos abrem-se de rompante.
Azuis, azuis, azuis…
A clareza demora meio segundo a afastar o torpor do olhar. Instala-se
espanto nos traços da expressão assombrosamente bela.
– Esposa – murmura.
A minha mão vacila.
– Não me chames isso.
O queixo dele levanta-se um pouco enquanto perscruta o meu rosto.
– Mas é o que tu és. A minha esposa – Como de costume, mantém uma
reação cuidadosamente resguardada, embora o vinco entre as suas
sobrancelhas revele a perplexidade que sente. – Pensei que te tinha
mandado partir.
Debruço-me para ele, com o joelho assente no colchão para apoio.
– Vais precisar de algo mais forte do que aquele ventinho para me
impedires de acabar a minha tarefa.
– A que tarefa te referes? – Calmo. Assustadoramente calmo. Desde que
abriu os olhos, não pestanejou uma única vez.
– Acho que sabes.
Um pequeno aceno, como se concedesse um ponto.
– Matares-me.
Exponho os dentes, sentindo o estômago a avisar-me. Rezo para não
vomitar.
– Não pareces surpreendido.
– Que tenhas decidido matar-me? – Inspira lenta e profundamente. –
Sabia que o tentarias. Tens-me muito rancor. Um dia, este sentimento
tomaria conta de ti.
– Se sabias – pergunto –, porque não tentaste impedir-me?
As escuras pestanas decaem, protegendo o seu olhar do meu.
– Estás aqui contra a tua vontade. Tirei-te essa escolha, mas não quis
tirar-te a autonomia.
O meu coração acelera o batimento lento. Não devia acreditar nele, mas
acredito. Nada perde em dizer a verdade.
– Sou a primeira mulher que tenta matar-te?
– Não. Mas és a primeira que acho que talvez consiga.
Aproximo-me ainda mais.
– Mandaste-me embora. Para que morresse ao frio. Matar-te seria um ato
de misericórdia.
– Já te disse que sou um deus…
– Não és deus nenhum! – rosno. – És um caminhante-das-trevas.
Ele fica hirto. O meu joelho acerca-se da sua coxa. Não me lembro de ter
mudado de posição, mas agora fiquei sobre ele.
– Negas?
Ele desvia o olhar.
– Não.
Liberta-se um estertor de riso incrédulo.
– Passaste o tempo a avisar-me que não me aventurasse além dos
portões, e afinal um caminhante-das-trevas andava por estes precisos
corredores. – A ironia consegue ser cruel. – Mais alguém sabe?
– Não. – Uma pausa antes de prosseguir. – A transformação tem sido
gradual. Ainda não alcancei o ponto do qual não há retorno.
Não importa. Mentiu. Pôs a minha vida, as vidas dos criados, em risco.
Não pode viver.
– Instalei medidas protetoras. Se eu começar a perder o controlo…
– Cala. Essa. Boca – sibilo, através das minas vias respiratórias
comprimidas. – Tiraste-me tudo o que tinha. A minha mãe, o meu pai, a
minha irmã. Não fazes ideia dos inúmeros sofrimentos que me causaste.
Isto vai ter um fim. O meu sofrimento acabará. Não quero saber se
precisarei de te matar mil vezes para o inverno finalmente acabar. – Faço
mais pressão com a faca. Homens, já matei. Deuses, nunca.
Que a sua morte represente um símbolo. Morte à minha dor. Morte ao
meu tormento. Morte ao poder. Morte à escuridão que envolve os meus
pensamentos.
E, no entanto, não me mexo.
– Fizeste todo este percurso – diz ele, estranhamente intenso, enquanto o
punhal fende a pele vulnerável do seu pescoço. Uma gota de sangue desliza
pela curva, acumulando-se na cavidade da sua garganta. – Porque não vais
até ao fim?
De facto.
Ele adianta-se, e o punhal enterra-se mais um pouco.
– Mata-me.
Os dedos que seguram o punhal começam a tremer. Engulo em seco.
Devia ser um gesto simples, um ato sem qualquer esforço. Não é
assassinato. É vingança. Retribuição. O Vento Norte não possui um coração
verdadeiro, a bem-dizer, nem amor, a não ser ao poder. Então, porque é que
sinto que cometerei um erro?
Ardem-me os olhos, enquanto uma pressão se acumula no meu crânio.
Tudo o que sou, tornei-me insensível, mas, e se o rei encontrou um caminho
através desta armadura? Já presenciou o mecanismo que anima o meu
coração, vulnerabilidades que não revelei a mais ninguém. E não se afastou.
Há que ter isso em conta.
– Mata-me – pede Bóreas. – Despacha isso.
Tremendo, gaguejo.
– Não sou capaz.
Ele fita-me com ar desconfiado.
– Porque não?
– Se soubesse – digo, com a voz hesitante –, achas que estaria neste
dilema? – Se eu tivesse sabido o que se encontrava do outro lado daquela
porta na ala norte, jamais a teria aberto. Porque era a dor que habitava
aquele quarto, que maculava a cama vazia, os livros infantis cheios de
poeira. Abri-lhe uma ferida, e ele sofreu, o que me devia satisfazer, mas não
estou satisfeita nem entendo o motivo.
Soluços emanam de uma profundeza negra dentro de mim.
– Eu odeio-te – cuspo, um som distorcido e miserável sufocado pela
minha própria vergonha. – Odeio-te tanto. – A raiva desvanece-se. – E sinto
muito, sinto muito pelo quarto. Eu não sabia…
A minha cabeça descai. Lágrimas e suor escorrem-me pelo nariz,
salpicando o peito nu do Rei do Gelo. Se eu tivesse tomado esta decisão há
meses, a lâmina perfuraria já aquele coração. Mas esperei. Primeiro, esperei
pelo momento oportuno. Depois esperei, porque ele começou a tratar-me
com simpatia, e agora, quando preciso desesperadamente de agir, hesito.
Falhei na execução desta tarefa. Será que isso faz de mim uma mulher
fraca? Terá a cobardia habitado, escondida, o meu coração? Mesmo que
mate o Rei do Gelo, a minha situação não mudará. Continuarei presa a este
local, sem meios para sair das Terras Mortas. Insuportavelmente sozinha.
– Não tenho para onde ir. – Voz rouca, forçada pela confissão. Não posso
regressar a Edgewood. O que é que me aguarda lá, senão os restos de uma
vida antiga?
Se não pertenço a Edgewood, nem pertenço às Terras Mortas, qual,
então, é o meu lugar? Onde fica a minha casa?
– Sei que me disseste para partir – murmuro.
Ele continua tão quieto que o coração bate visivelmente contra o esterno.
– De que precisas? – murmura Bóreas.
O meu queixo treme, pois não me tinha dado conta do quanto desejava
ouvir aquelas palavras.
– Preciso de… – Conforto. Compaixão. Paciência e compreensão. Saber
que alguém neste mundo também precisa de mim. Bóreas não precisa, eu
sei. A noção é ridícula. Embora me tenha beijado. Dizendo que estava
sozinho, tal como eu. Será assim tão mau dizer-lhe isto em voz alta? – P-
preciso…
A mão dele envolve a minha, sinto aquela pele áspera, mas quente – o
primeiro verdadeiro toque de compaixão que recebo há meses. Choro com
mais força, porque não reparei na ânsia que me preenchia. A última pessoa
com quem contava para me mostrar alguma bondade é ele – o meu marido,
o homem que eu descubro não poder matar.
Sem desviar os olhos dos meus, Bóreas retira o punhal aos meus dedos
trémulos e atira-o para o chão.
– Wren – diz. – Agora, estás a salvo.
Sinto-me demasiado perturbada para me poder mexer. Correu tudo tão
mal, mas acalmo-me, ao sentir aqueles braços envolverem-me, colando o
meu corpo ao seu peito quente e sólido. Agitada pela fúria de uma tormenta,
encontro uma réstia de calma.
O mundo transforma-se em sensações: pele quente contra a minha
bochecha, a lenta respiração contra a minha testa, o roçar das suas mãos
calejadas sobre os meus braços.
Depois: suavidade nas minhas costas. Bóreas paira por cima de mim,
enrolando o cobertor à volta do meu corpo, que se tornou rígido e gelado.
Encontro-me nos meus aposentos, aninhada por uma panóplia de
almofadas. O clarão de uma lamparina ilumina o seu tronco nu.
Inclinando-se para a frente, o rei encaixa uma madeixa de cabelo atrás da
minha orelha, e franze ligeiramente o sobrolho. E é a última coisa de que
me lembro desta noite.
27
C omo se tem tornado hábito, acordo antes do sol. Do outro lado da janela,
existe um céu macerado, o tom da meia-noite tornando-se, aos poucos,
cinzento. Hoje, o cenário invernoso não me causa uma aceitação resignada.
O mundo é frio, mas também belo, adorável, puro.
Foi uma semana estranha, pois Bóreas e eu continuamos a navegar pelas
dores do crescimento da nossa relação que se desenvolve. As refeições têm
sido momentos agradáveis e ninguém ficou mais espantado do que eu ao
descobrir que o rei é afinal um bom conversador quando está para aí virado.
Uma vez, quase o fiz rir.
Saltando da cama, apronto-me para iniciar o dia. Tenho uma ideia. Uma
ideia arrojada, brilhante e luminosa que não pode esperar. Arrasto o pente
pelo cabelo e faço uma trança nas costas. Quando finalmente estou vestida e
preparada para saudar a manhã, o Sol já nasceu e pontilha as mais altas
ramagens de um dourado reluzente.
Estou a sair pela porta quando algo sobre a secretária me chama a
atenção. Franzo a testa ao pegar num envelope selado que me é dirigido
numa caligrafia elegante. Quebrando o selo de cera, desdobro o pergaminho
e leio.
Wren, o tónico está pronto. Responde por favor com a indicação de hora
e data para nos encontrarmos. Deixa a tua resposta no buraco junto ao
muro do pátio.
O tónico para dormir. Não me teria dado ao trabalho de pilhar o Jardim
do Torpor se não desejasse a morte do rei, mas muitas semanas decorreram
desde então, e já não tenho por certo o meu caminho. Talvez devesse pensar
nisto mais tarde, quando não me sentir tão dividida.
– Orla! – chamo, enfiando o casaco de inverno e escondendo a
mensagem no bolso do peito.
Ela faz uma pausa enquanto reúne a roupa suja.
– Sim, minha senhora?
– Precisarei de ajuda dos criados, hoje. Quero limpar o salão de baile sul,
de cima a baixo. E também falar com o Silas.
A boca dela abre-se, depois encerra-se, perplexa.
– Posso perguntar o motivo?
Lanço-lhe um sorriso ao sair pela porta.
– Vou organizar uma festa.
Três dias. É menos tempo do que o necessário para avivar esta cidadela em
ruínas e abandonada, mas eu nunca recusei um desafio. Assim que vejo o
salão de baile transformado, e todas as superfícies a reluzir do polimento, o
espaço artisticamente arranjado com mesas, cadeiras e tecidos a cobri-las,
transito o meu foco para o resto da fortaleza. O Rei do Gelo observa a
transformação da casa com hostilidade, oscilando entre o horror e a raiva.
Quando a oportunidade se me apresenta, atribuo-lhe algumas tarefas, pois
ajuda-o a distrair-se da mudança.
Bóreas pendura uma tapeçaria que retirei de um baú no corredor de
entrada. O martelo bate com um som abafado, como se chocasse contra
uma superfície macia. Ele desce do escadote, a praguejar em surdina.
– Deixa-me ver – peço.
Ele aperta a mão contra o peito com um olhar desconfiado.
Suspiro, exasperada.
– Só quero garantir que não há nada partido.
– Quem me diz que não me torces os dedos para ganhar a discussão?
– Terás de confiar em mim.
Mal as palavras saem, tenho vontade de as recuperar. Os olhos de Bóreas
escurecem de emoção.
Confiar em mim.
Uma brisa empurra-me para a frente, contra o corpo imponente do rei, e
um objeto pesado pousa na curva das minhas costas – a mão dele, apoiada
na parte inferior das minhas costas.
– Sabes que podes – murmuro – confiar em mim. – Não soa a mentira. Já
se passaram semanas desde que estive com Zéfiro. Nem me lembro do
motivo por que precisava do tónico de dormir.
– Esposa…
– Wren – corrijo, embora com afeto.
Percorre as vértebras inferiores da minha coluna com o polegar,
apertando a pele macia.
– Wren. Não me dou bem com interações sociais. – A voz é pouco mais
alta que um sussurro. Não consigo desviar o olhar da sua boca.
– Comigo, não tens problema – suspiro.
Toca-me no queixo, empurrando-o para baixo, fazendo os meus lábios
separem-se, expor os dentes, aquele movimento estranho e hipnotizante, tal
como a carícia deliberada ao longo das minhas costas.
– És diferente.
– Em que sentido?
A mão nas minhas costas volta a deslizar para baixo, parando
imediatamente antes do traseiro.
Sinto a pele arrepiar-se, enquanto se acumula calor no meu baixo-ventre.
– És determinada.
Fungo.
– Sabes mesmo como seduzir uma mulher com palavras…
– Era um elogio.
– Se o dizes.
– Determinada, destemida e corajosa. Nunca conheci ninguém como tu.
– Os olhos dele ardem com uma intensidade que me assusta, ao mesmo
tempo que um pedaço de mim, aquele que não se considera digno de tais
palavras, se ameniza. – Nunca conheci quem me desafiasse a conhecer o
que se encontra além da minha experiência. Nunca conheci alguém que se
entranhasse tão facilmente na minha pele. – Inspira profundamente, como
se atraísse o meu cheiro para os seus pulmões.
Determinada. Talvez seja, afinal, um elogio.
Deixando cair as mãos, Bóreas recua e diz:
– Ouviste falar em Makarios?
Abano a cabeça. Espaço. Distância. Digo a mim mesma que é um sinal
positivo.
– As Terras Mortas são um reino complexo. Neumovos é apenas uma
faceta de todo este lugar. Há também os Prados, para onde são enviadas as
almas que não cometeram crimes nem realizaram atos dignos. É uma vida
após a morte pacífica, ainda que um pouco aborrecida. Depois há o Fosso,
para onde são enviados apenas os verdadeiros corruptos, incluindo os meus
antepassados.
– Já falaste disso, mas não entendo bem o que seja.
– É um vazio. Um abismo. Uma cratera na terra. – Arrasta o polegar e o
indicador pelos lados da boca. – Tecnicamente, encontra-se debaixo das
Terras Mortas. É onde os deuses e os homens recebem o castigo eterno,
caso os seus atos os condenem a tal destino.
– Porque não estás lá? Não ajudaste a derrubar os teus pais?
Enquanto se instala o silêncio, acalmo esta necessidade vincada de
querer que responda mais rapidamente. Se as nossas posições estivessem
trocadas, e eu tivesse de derrubar as paredes que erguera à minha volta,
quereria saber se podia prosseguir em segurança.
– Eu e os meus irmãos fomos poupados – diz Bóreas por fim –, pois
contribuímos para o sucesso da tomada de poder. Mas os novos deuses não
confiaram na nossa lealdade. Portanto, baniram-nos.
– E mandaram-te para aqui?
– Tirámos à sorte. Fui o azarado que herdou as Terras Mortas.
– E Makarios? De que se trata? – pergunto, ansiosa por saber.
– Não sei bem explicar o que é Makarios. Só experimentando. – E agora
hesita, a respiração contida no peito. – Gostaria de te mostrar que as Terras
Mortas, apesar da sua negrura, também têm um grande potencial para a luz.
E nada brilha com maior intensidade do que Makarios.
30
E uFáeton
e Bóreas encontramo-nos nas cavalariças, que cheiram a feno e couro.
está irrequieto na baía, como se pressentisse o ajuntamento do
outro lado das paredes, os corpos repletos de armas, o ruído metálico das
armaduras. Centenas de homens a quem as batalhas enrijeceram.
O amanhecer, com os seus dedos cor-de-rosa, começa a colorir as
árvores mortas. Bóreas aperta a sela de Fáeton, e eu empoleiro-me num
fardo de feno depois de ter trocado de roupa para trajes menos frios,
esfregando as mãos para me aquecer. Presumo que irei cavalgar com
Bóreas, mas ele surpreende-me ao dizer:
– Gostava de te mostrar uma coisa. – Parece inseguro.
– Muito bem – respondo à cautela. O rei nunca está inseguro.
Com um inclinar de cabeça, indica-me que entremos mais no local.
Cavalos-espectro espreitam pelas baias com interesse. Ao fundo, o local
está vazio – exceto uma das baias.
É uma égua deslumbrante, com patas longas, cabeça elegante e
delineada, e um pescoço orgulhoso e arqueado. O pelo semitransparente
faz-me lembrar a erva do trigo, uma cor sombreada entre o leite da lua cheia
e o castanho da terra ressequida. Uma estrela branca marca-lhe a testa.
Esticando o braço, apresento-lhe a mão para que a cheire. Um bafo
quente perpassa a minha palma, e ela mordisca os meus dedos com
curiosidade.
– É linda – digo. Talvez o cavalo mais bonito que já vi, mesmo sendo um
espírito. – Que guarda tiveste de subornar para me emprestar este cavalo? –
E por subornar quero dizer ameaçar.
O Rei do Gelo não responde. De repente, reparo no silêncio – os seus
homens devem ter-se afastado em algum momento – e então viro-me para
ele. Tem os braços pendurados desajeitadamente contra os flancos. Algo se
altera entre nós. Algo cresce por detrás dos meus olhos como se se abrissem
pela primeira vez.
– Este cavalo pertence a um dos teus soldados – pergunto –, correto?
– É tua.
Enfio os dedos na crina do cavalo, que sinto como nevoeiro e luz
interligados.
– Compraste-me um cavalo?
Bóreas evita o meu olhar.
– Comprei-a a um treinador de Neumovos. Fez-me um bom preço. Não é
nada.
Não podia ser mais o oposto de «nada».
A possibilidade de cavalgar pelo seu território à vontade. Um sinal de
que confia em mim, acredita que não vou fugir. Bóreas oferece-me algo
que, pela primeira vez na minha vida, será totalmente meu.
Um nó duro de emoção cresce-me na garganta. Sinto uma mudança a
acontecer dentro de mim. Uma alteração suave que conquista a dureza que
sofri.
– Obrigada – murmuro, levantando o olhar para ele. – Irei cuidar dela até
ao fim dos meus dias.
Ele contempla-me demoradamente, talvez indeciso. Depois transpõe a
distância que nos separa, enfiando-se na baia ao meu lado.
– Que nome lhe darás? – pergunta, assentando a mão aberta no pescoço
musculado da égua.
A ponta do dedo mindinho encontra-se separado pelo intervalo de um
cabelo do meu. Por algum motivo, fixo ali o olhar.
– Iliana – respondo. – O nome da minha mãe.
– Iliana. – Bóreas acompanha a minha mão, que alisa o focinho da égua.
– Adequa-se a ela. Escolhe a baia que preferires. E isto é teu – diz,
apontando para os arreios dela: sela, manta, rédeas, cabresto. – O estribeiro
tomará conta dela, se quiseres.
– Não será preciso. Serei eu a cuidar dela. – Não que desconfie do
estribeiro, o qual é excelente com os animais, mas considero importante
cimentar o laço entre cavalo e cavaleiro desde início.
A sela de Iliana já se encontra posta, e só tenho de encaminhá-la para o
exterior. Fáeton resfolega, aprumando-se na presença de uma fêmea. Os
soldados reúnem-se para lá dos portões. Estão estoicos e concentrados,
reservados e irrestritos. É quando percebo o que me aguarda no fim do
percurso; os longos quilómetros, as muitas horas que demorará.
– É assim tão difícil? – pergunto, ao ver Bóreas montar, encaminhando
Fáeton para junto de mim.
Ele ergue a mão para o capitão, assinalando a partida. O olhar de Pallas
cruza o meu por um instante. Não esqueci o nosso primeiro encontro no
campo de treinos há meses, e ele também não. Desde que ele mantenha a
distância, não terei motivos para lhe cravar mais uma seta no peito.
– De acordo com os meus homens, o novo rasgão aumentou durante a
noite
– Então iremos fechá-lo – digo. Remendar todos aqueles buracos,
impedir os humanos de entrar nas Terras Mortas.
– Não faremos nada disso. – Encara-me do alto da sua montada. – O
risco para a tua vida é demasiado grande.
Por um brevíssimo momento, pressinto em Bóreas um traço de medo.
– Isso nunca te travou.
– Foi no passado.
Puxando as rédeas de Iliana para a direita, avanço para os portões.
– Então, por que motivo te acompanho?
– Diz-me tu. – Está ligeiramente divertido. – Ofereceste-te para vir.
– Não me impediste.
– Não consigo contrariar a tua vontade. Já aprendi essa lição.
Ele tem razão.
– Estamos em guerra, não estamos? E na guerra, há sempre um dever a
cumprir. – Presumo que haverá muito para fazer quando alcançarmos o
acampamento.
O rei inclina a cabeça em aprovação.
– Sem dúvida.
A jornada ocupa o dia. Bóreas e eu encabeçamos a campanha: duas
colunas exatas, cujas caudas, de quase um quilómetro, se prolongam atrás
de nós. Estou satisfeita por caminharmos em silêncio, ouvindo os risos dos
soldados e os repiques mútuos, mas Bóreas e eu, de tempos a tempos,
trocamos uma conversa banal, e já não me dá vontade de arrancar os
cabelos.
Alcançamos o acampamento horas antes do anoitecer. As tendas,
organizadas em fileiras, pontilham a clareira entre os montes de neve, telas
brancas esticadas ao máximo e atadas a estacas no solo. O ar ecoa com os
ruídos do metal e dos cascos pesados. Soldados empurram carrinhas cheias
de mantimentos pelos trilhos lamacentos, ou trazem lenha da floresta
próxima, ou cavam latrinas. Ninguém se ri. Poucos falam. A tensão e a
incerteza embebem o solo semigelado.
Muitos dos soldados e dos criados observam-me, apesar do capuz que
me cobre o rosto. Inclino o queixo em jeito de saudação. Não importa que
opinião tenham a meu respeito, estou aqui para ajudar.
Tendo entregado as nossas montadas a um soldado, o Rei do Gelo
encaminha-nos para uma tenda volumosa situada no extremo norte do
acampamento. Dispensa os guardas e segura a aba da tenda para eu passar.
No interior, paro de imediato. Claro que há apenas um único leito.
O Rei do Gelo quebra o encantamento, avançando decisivamente.
Agarrando numa almofada em cima do colchão, atira-a para mim.
– Podes dormir no chão. – Começa então a puxar os cobertores para trás,
de costas para mim.
Olho-o, embasbacada, apertando a almofada entre as mãos, o comentário
dele agitando-me no meu pensamento. Iguais palavras foram as que lhe
atirei na festa do Solstício de Inverno.
– Filho da mãe. – Atiro a almofada contra a sua nuca. Atinge-o e cai
inócua no piso. – Não durmo nada no chão.
O rei solta um trejeito baixo. Penso, de início, que é um escarnecer, mas
os ombros tremem-lhe, a cabeça cai para a frente, o cabelo tapa-lhe a cara.
Depois vira-se, e fico sem palavras.
O Vento Norte está a rir.
E é absolutamente devastador.
Tem dentes perfeitos, direitos e luminosos. Os traços da boca esticam-se
e os olhos enrugam-se de alegria. Transformam-lhe por completo o rosto.
Naquele instante, não é o imortal desapegado que conheci. É o meu marido.
Uma pulsação de prazer faz-me acelerar o sangue. Contra a minha
vontade, a minha boca retesa-se. Solto um trejeito de ironia, ante a ideia
absurda de atirar uma almofada a um deus num instante de irritação.
– Iremos partilhar a cama como na última vez – afirmo.
Bóreas sorri, desimpedido.
– Como queiras… Wren.
Pela segunda vez em muitas semanas, acordo nos braços do Rei do Gelo.
Representa um calor sólido nas minhas costas e um coração a bater contra a
pele. Quando Elora e eu éramos crianças, também acordei muitas vezes
daquela forma: reconfortada, sabendo que não estava sozinha.
Talvez o rei tivesse razão. Talvez eu me tenha virado para ele na noite do
Solstício de Inverno. Será demasiado terrível receber o abraço do rei, após
os meus atos, após a minha intenção de o matar? Se eu ficar aqui deitada, se
me deixar sentir em vez de pensar, mudará alguma coisa?
Quererei que mude?
Bóreas remexe-se. Uma das suas pernas envolve a minha, prendendo-
me.
– Acordaste. – O seu hálito faz-me cócegas na orelha.
Os meus olhos fecham-se.
– Sim. – É mais fácil responder sem ver. É mais fácil fingir que a minha
resposta pertence a outra pessoa.
Mexe-se novamente, e um objeto duro bate nas minhas costas: a forma
inconfundível da sua ereção.
Os meus olhos abrem-se com um suspiro e viro-me para o encarar. O
cobertor caiu-lhe para a cintura e as rugas da almofada marcam-lhe a face.
– Fizeste de propósito!
Encara-me com um olhar atordoado e um pouco perplexo.
– Fiz o quê?
Claro que sabe o que fez. Claro. A menos que a insanidade seja um
efeito colateral infeliz de estar casada com um deus.
– Não importa – murmuro.
Uma barba rala cobre-lhe o maxilar e o queixo. Está áspera quando ele
passa os dedos, olhando-me com uma frustrante falta de emoção.
– Meu senhor?
O Rei do Gelo atira as pernas por cima da cama. Felizmente, usa calças.
– Entra.
– O quê? – guincho. – Não estou vestida.
– Tens roupa dos pés à cabeça, e estás tapada pelos cobertores. Não me
parece que estejas nua.
Pallas entra, e o olhar arregala-se por instantes. Mantenho uma expressão
neutra. Ele não antecipava a minha presença.
– Pallas – riposta o rei.
O homem desvia o olhar, pigarreia.
– Meu senhor, o dia amanhece. Quais são as suas ordens?
– Prepara os cavalos. Partiremos de imediato.
Pallas desaparece enquanto Bóreas veste a sua túnica e pega na
armadura. Sento-me na cama com o cobertor cingido ao peito, embora saiba
que é inútil, uma vez que estou completamente vestida.
O rei prepara-se para partir, de forma rápida e eficiente. Armadura
afivelada, correias apertadas, botas puxadas, lança na mão. O Vento Norte é
uma força inexorável, e quando se envolve em metal reluzente ainda mais
parece.
– Não saias do acampamento – diz, enquanto ajusta as manoplas. – É
onde estarás mais segura. – Depois acrescenta, como se fosse uma reflexão
tardia: – Nada de disparates.
Escarneço.
– Mas eu faço disparates?
Ele fica a olhar-me, sem dizer nada.
Tem razão.
Abre as abas da tenda quando eu o chamo:
– Bóreas. – Ele para, mas não se vira. – Tem cuidado contigo.
E então fico sozinha, o colchão ainda quente do corpo do meu marido.
33
B óreasTalvez
não regressou.
lhe tenham espetado uma lâmina no peito. Seria bem-feito,
depois de todo o mal que causou. No entanto, o dia alonga-se e o meu
coração não abranda o ritmo frenético. Imortal ou não, pode estar
gravemente ferido. Os meus pés conduzem-me de uma ponta à outra da
tenda, uma e outra vez, até que as lâmpadas se apagam, e o espaço se
reveste mais de sombras do que de luz.
Não me devia importar.
Mas importo-me.
Porra.
Poucos segundos demoro a vestir o casacão grosso e a pôr o arco e a
aljava ao ombro. Ao sair da tenda, sou acolhida pelos preparativos para a
batalha. O relinchar dos cavalos e o tilintar das armaduras. O estalar da
lona. Ninguém repara em mim, esgueirando-me pela parte de trás da tenda,
onde Iliana pasta na relva castanha e gelada.
A égua saúda-me, afagando-me o ombro com afeto. A estrela branca no
focinho brilha nesta noite.
– Minha senhora.
Suspiro. Claro que não podia ser tão fácil.
Montar na sela coloca-me em vantagem de altura, por isso é o que faço.
– Sim? – digo, olhando para Pallas.
Sob a luz ofuscante, o vermelho do seu cabelo coincide com o do fogo.
Uma ligadura envolve-lhe a coxa. Quando recuperar, sem dúvida o capitão
voltará ao combate. Ele observa o meu traje, ter montado Iliana, e franze a
testa.
– Ordenaram-lhe que não saísse do acampamento até o rei voltar.
– Os planos mudaram. – Presenteio-o com o meu sorriso mais afável. –
O Bóreas pediu-me para ir ao encontro dele no campo de batalha. –
Endireitando-me na sela, inclino o queixo num ângulo elevado. – Apenas
cumpro os meus deveres de esposa.
Pallas agarra as rédeas, interrompendo o meu avanço. A sua armadura
faz barulho com o movimento.
– Não posso permitir. As minhas ordens foram claras.
A égua sacode a cabeça, agitando-se sob mim, ansiosa por correr. O
sorriso desapareceu.
– Eu vou levar a Iliana, e não me vais impedir. Solta o cavalo ou eu
obrigo-te. Já te esqueceste do nosso último encontro? – Dou uma palmada
no arco, caso precise de avivar a memória.
Pallas aperta os lábios, mas, entretanto, começámos a andar. Ele pula
para trás, para evitar ser esmagado pelos cascos de Iliana. Não tem de se
preocupar. Será uma curta visita ao campo, só para garantir que Bóreas não
está caído algures, esvaindo-se em sangue. Estarei de volta antes que o meu
marido perceba que saí.
Uma vez alcançada a periferia do acampamento, Iliana desata a correr. O
trilho deixado pelos batalhões de Bóreas conduz-me para as profundezas da
floresta. Algum tempo depois, diminuímos a velocidade para um trote, e
depois para ritmo de passeio até sairmos da floresta.
Deparo com um terreno de sangue.
Milhares jazem mortos sob o sol ardente. Vapor emana da carnificina
que alcança o horizonte. Engasgo-me, tapando nariz e boca com as costas
da mão. Corpos amontoados. Colinas e picos de carne enegrecida e rasgada
pelas sombras. Desce uma névoa carmim, ocultando o solo marcado e
arruinado.
Ao longe, a Sombra estremece, as gentes invadem as Terras Mortas,
empunhando espadas e machados enferrujados e forquilhas. Em poucos
minutos, os seus olhos projetam-se, os dentes contraem-se. O exército do
rei tenta, a todo o custo, travar a invasão da Sombra, mas é impossível deter
o fluxo que se escorre pelas fendas. Embora os espectros já estejam mortos,
é como se morressem de novo, pois sangue cobre as suas armaduras, feridas
abertas expondo os ossos e tendões no interior.
Iliana tenta avançar, mas eu puxo-a para detrás de uma árvore,
procurando abrigo. Perscruto a loucura que se espalha como uma
inundação. Não há sinal dele. Nem um sinal…
Ei-lo.
É a mancha escura, o vento frio, o rio enegrecido, a veia que separa o
dilúvio da batalha.
O Vento Norte rasga o inimigo com uma lança cuja ponta brilha com luz
branca. Novo golpe, e tombam outros sete caminhantes-das-trevas. Ele deve
ter-se livrado de Fáeton, pois não vejo o corcel. Bóreas percorre o campo a
pé, a capa negra esvoaçando nas suas costas.
O flanco direito do exército cede sob uma nova onda de infiltração, e
Bóreas acorre a ajudar a margem enfraquecida, com os soldados a separar-
se e reagrupar-se à sua volta. Os caminhantes-das-trevas caem, embora
repostos por muitos outros. De costas, ele não repara que a força inimiga
altera a forma de modo que permita a passagem de uma única figura. Não
repara no homem, com a corrupção a enegrecer-lhe os olhos, que rompe a
barreira de corpos endurecidos pela guerra e vai encurtando a distância.
Esvaziam-se, os meus pulmões. Para de bater, o meu coração.
Desloco-me, arco na mão, madeira fria e firme. A corda, totalmente
puxada, vibra com um tom agudo e metálico. Aponto, acompanhando com
a seta o avanço do homem.
O homem ergue a espada, a boca aberta num grito que se perde no
tumulto, traçando um arco descendente e fatal contra as costas
desprotegidas do rei.
Atiro.
A seta grita, estridente, traçando um rumo direto até se enterrar no peito
do homem.
Bóreas faz meia-volta, e depara com o seu perseguidor tombado na lama,
espada ainda na mão. Com um puxão forte, ele arranca a flecha do tronco
do homem e segura-a contra a luz durante um longo e demorado momento.
Põe-se imediatamente de pé, examinando a área, mas encontro-me
demasiado protegida pela vegetação para que me vejam. Com um grito de
urgência, viro Iliana, e, juntas, regressamos a galope para o acampamento.
Horas depois, já sentada na tenda, a remendar um buraco no casaco,
entra Bóreas pelas abas. A sua aparência horrível assusta-me e faz-me
largar a peça de roupa.
Tem no olhar duas brasas azuis como o coração de uma chama.
Arranhões vivos marcam-lhe o rosto. A túnica suja, a armadura amolgada,
as calças rasgadas, a couraça coberta de sangue. O cheiro da morte invade
rapidamente o espaço.
– O que é isto? – pergunta.
A minha atenção passa rapidamente pelo objeto nas suas mãos. Voltando
calmamente à costura, respondo:
– Parece ser uma seta.
– Disparada por ti.
A minha boca fecha-se em contemplação.
– Não sei como é que isso seria possível, se não saí do acampamento.
– Mentes.
Com uma fungadela arrogante, levanto o queixo.
– Prova.
Se os sorrisos desenvolvessem presas, o dele tê-las-ia. Percorre-me uma
emoção excitante quando noto, embora não tenha a certeza se será medo ou
algo mais… carnal.
– O Pallas informou-me da tua saída a meio do dia.
– O Pallas é um parvalhão.
– Penas de ganso? São a tua marca própria. – Levanta a haste da flecha,
pressiona a madeira contra o nariz e inala. A sua voz torna-se mais
profunda. – Alfazema. – O cheiro do meu sabonete para as mãos.
Homem inteligente. Nesse caso, não vale a pena manter a palhaçada.
– E daí, que eu tenha atirado contra aquele homem? Tens sorte de me
encontrar ali, senão ele tinha-te cortado às postas.
– Disse-te para não saíres deste local, para tua própria segurança.
– Disseste-me para não sair deste local, porque gostas de ter as coisas
arrumadinhas.
– Mulher irritante – rosna ele. – Eu sabia que eras imprudente, mas não
pensei que fosses parva.
Enteso a espinha, e o esforço de morder a resposta contrai-me os
músculos, tensos por natureza. Se ele consegue magoar-me, significa então
que me tornei muito mais vulnerável do que pretendia. É preocupante.
– Porque é que isso não me espanta? – berro. – Atreves-te a insultar-me,
quando fui eu que te salvei?
– Sou um deus. Não posso morrer.
Sim, e aquele incomodativo hábito de me recordar constantemente não
me permite esquecer tal facto.
– Só tentei ajudar.
– Da próxima vez, ajuda-me obedecendo às minhas ordens.
A raiva aperta-me o peito. Sem gratidão, sem palavras de apreço. Devia
tê-lo deixado ser cortado ao meio pelo aldeão, só por despeito.
Bóreas afasta-se, mas reparo então numa mancha escura que se espalha
pelo seu abdómen. O sangue fresco brilha.
– Estás ferido – digo, agarrando-lhe no braço. – Mostra-me.
Tenta escapar-se às minhas mãos.
– Estou bem – rosne, exasperado.
– Não estás.
– Esposa…
– Senta-te – sibilo, empurrando-o para uma cadeira. Encara-me com
perplexidade enquanto eu desprendo a couraça, largo o metal manchado de
sangue no chão e lhe retiro a túnica, expondo um corte feio por cima da
anca direita. Inspiro com força. Parece profundo.
– Não é nada – afirma Bóreas. – Mal o sinto.
Sem tirar os olhos da ferida, chamo:
– Orla!
A aia entra de rompante na tenda, a ofegar.
– Sim, minha senhora? – Os olhos transitam entre mim e o rei com
nervosismo.
– Preciso de água quente, ligaduras e vinho. – Um relance de um
aparente medo cinge a expressão de Bóreas. – Muito vinho.
– Não – vocifera. – Vinho, não.
Fico tensa, reconhecendo o que não é dito.
– Não vou bebê-lo. É para desinfetar a ferida.
– Não quero saber…
– Já disse que não vou bebê-lo – riposto. – Ou confias na minha palavra,
ou não confias. Como vai ser? – As faces ardem-me de humilhação, por
supor que eu fraquejaria logo agora. Já aconteceu no passado. Estive sóbria
por duas vezes, nos últimos oito anos, mas nunca durou mais de seis
semanas. Passaram-se quatro semanas desde que acordei daquela
experiência em que quase morri. Cada dia parece um ano, mas beber é
aquilo que menos me apetece neste momento.
Os lábios dele retorcem-se, mas anui ligeiramente.
Orla sai da tenda. Entretanto, Bóreas observa-me atentamente, como se
eu segurasse um objeto particularmente afiado.
– Vou examinar a tua ferida – digo, olhando para ele. – Ficas aí sentado e
quieto. Se te mexeres, ainda te magoo.
Como resposta, recosta-se na cadeira, resmungando coisas sobre
mulheres e o pendor delas para a vingança.
Estudo o corte com atenção.
– A tua ferida já devia ter sarado. – Mas parece tão fresca como eu
imagino que estivesse há horas, pele vermelha e inflamada, as bordas
despolpadas.
Ele resmunga algo sem se comprometer.
Orla regressa, trazendo os materiais necessários. Recebo da minha aia o
balde de água quente, as ligaduras de pano e o vinho. Ela retira-se
apressadamente quando o rei a repreende por se ter aproximado demasiado.
Belisco-lhe a coxa.
Os olhos dele viram-se para os meus.
– Porque fizeste isso?
– Não assustes a Orla. Só tenta ajudar, meu pagão ingrato.
Ele remexe-se na cadeira, a atenção transitando para o balde e o vinho.
– Estás com medo de uma dorzinha? – pergunto com doçura, batendo as
pestanas. Acho que vou gostar disto.
Ao humedecer o pano, a mão dele projeta-se, dedos fortes prendem-me o
pulso. O seu peito nu sobe e desce de forma instável.
– Sabes fazer curativos?
Reteso os lábios.
– Sei o que é preciso saber. – Passa-se um momento. – Tens de me soltar
o pulso.
– É apenas um arranhão.
– Um arranhão que já devia estar fechado, mas não se fechou. – Seria
também consequência do seu poder enfraquecido?
Enxotando-lhe a mão, começo a limpar suavemente o sangue e a
sujidade da sua pele. Concluído este passo, pego no vinho. O meu estômago
revira-se, recordando a sensação do líquido a deslizar pela minha garganta,
mas fiz uma promessa. Quero ser uma pessoa melhor. Mereço mais do que
viver pela metade, e a minha mente nunca esteve tão desimpedida.
– Isto vai doer.
O músculo do maxilar estremece-lhe.
– Despacha-te.
Sobe ao meu nariz o odor a uvas esmagadas, e o meu corpo contrai-se de
desejo, assim que o vinho se derrama na ferida aberta. Bóreas retesa-se,
cuspindo palavrões. Os lábios afastam-se dos dentes, que começaram a
alongar-se, crescendo sombras na pele como manchas, mãos crispadas nos
braços da cadeira.
Escolho um dos panos limpos, molho-o na água quente e começo a dar
palmadinhas na área em redor da ferida. O rei contrai o abdómen, soltando
outro veemente praguejo.
– Cala-te.
Um tremor assola a sua pele pálida, convocando mais sombras. Os olhos
ficam negros e a sua voz torna-se um rosnado animalesco.
– Estás a matar-me.
A minha boca seca-se ao presenciar a sua luta contra a influência do
caminhante-das-trevas. Unhas curtas, de ébano, alongam as pontas dos seus
dedos.
– Já tentei matar-te – digo sem um pingo de remorso. – Várias vezes.
Não funcionou. Fica quieto.
– Várias vezes? Como… – Expele um gemido angustiado enquanto eu
banho a sua carne com o resto do vinho, extinguindo quaisquer possíveis
infeções.
– Da próxima vez – comento –, traz a Alba. Não sei porque não
insististe. É a tua melhor curandeira.
– A Alba é mais prestável a vigiar a saúde da criadagem e da minha… –
interrompe-se.
A minha atenção desvia-se do seu estômago.
– Ias dizer minha esposa, não ias? – Haverá algo de errado em mim, para
me sentir acarinhada com a ideia.
– E se fosse dizer? – O olhar azul inquisidor cruza-se com o meu, com
uma intensidade que afasta o ar dos meus pulmões. – A tua saúde é
importante para mim.
– Mm... – Falho por completo a tentativa de ocultar o sorriso. Céus,
estou doente.
Demoro dez minutos a limpar e a fazer um penso na ferida. Felizmente,
o ferimento não é suficientemente profundo e não precisa de levar pontos.
Deitado na cadeira, Bóreas observa-me com olhos semicerrados enquanto
eu enrolo o pano à volta do abdómen, dando um nó junto à anca.
Por fim, recuo.
– Devias descansar.
– Tenho de regressar para junto dos meus homens. – Mas não se mexe.
Entender o quanto se sente exausto suaviza algo dentro de mim.
– O que é que acontece aos espectros se morrerem? Quer dizer,
tecnicamente já estão mortos, apenas não passaram para o outro lado, é
assim?
– Regressarão ao Les para aguardar um segundo Julgamento. –
Respondendo a uma pergunta não pronunciada, informa: – Sentem dor, tal
como os vivos. A dor física pode durar muito tempo depois de uma ferida
estar curada. – Não menciona a dor emocional, e eu não questiono.
– Descansa – digo. – Se alguém aparecer à tua procura, aviso-te.
O Rei do Gelo fecha os olhos com um suspiro cansado. Adormece ao
fim de minutos.
Enquanto descansa, lavo o sangue da túnica e da armadura, que estão
imundas. As roupas precisam de ser limpas, e estou disponível. É uma
forma de passar o tempo.
Terminada a tarefa, troco de roupa, escolhendo um traje limpo. Atiço as
chamas. Deposito um cobertor sobre o tronco dele, e descalço-lhe as botas.
O ar adensa-se com um calor indolente.
Sentada na beira do colchão, vigio o homem com quem casei.
Bóreas dorme profundamente, as compridas pernas estendidas, aquela
boca carnuda suavemente entreaberta. O fundo do tronco equilibra-se na
borda da cadeira, demasiado pequena para acomodar confortavelmente a
sua grande estrutura. Embora não concorde com a decisão do rei de enterrar
o Gris no gelo, compreendo que queira proteger o reino dos invasores.
Tenho refletido sobre estes assuntos. As Terras Mortas, tal como Bóreas,
não são constituídas apenas por desolações sombrias. Há Makarios, o seu
astro mais brilhante. Nestes últimos dias, mostrou ser menos indiferente do
que julgava, encarado pelos soldados com grande respeito e cujos afetos
escassos podem florescer sob o toque certo.
Levantando o cobertor, avalio a ligadura branca enrolada à volta do
estômago, o peito que sobe de forma constante. Percorro com a ponta dos
dedos a berma do pano, testando a temperatura da pele. Fria, sem
inflamação. Não infetou.
Quando ergo a vista, descubro que o Rei do Gelo me observa com olhos
entreabertos.
O meu coração afunda-se, e endireito-me devagar, pois nas suas pupilas
castanhas ferve um calor inesperado.
– Procurava sinais de infeção na ferida – solto –, mas está limpa.
Uma das mãos dele enrola-se no braço da cadeira.
– Agradeço. – Ainda não pestanejou uma única vez. – Estive a dormir
muito tempo?
– Poucas horas. Não apareceu ninguém. Nem mensagens…
Levanta-se num gesto fluido. O cobertor escorrega dos seus ombros.
Quase me esquecera de como é alto, e avassalador.
Dá um passo em frente.
Dou um passo atrás.
– O que estás a fazer? – pergunto, com a voz estridente, recuando diante
da sua aproximação. Um, dois, três passos. Embato de costas na coluna da
cama. As suas pernas poderosas devoram o resto da distância e, num
momento de pânico, empurro-lhe os ombros para o impedir de avançar. Não
há mais nenhum sítio para onde ir.
Tremem-me os braços. A pele dele – quente e macia – cola-se às minhas
mãos. Tenho a cabeça vazia de ideias, assustadoramente vazia.
Encosta-se ao meu toque, e os meus braços cedem com o peso adicional,
sentindo aquela forma encaixa-se totalmente na minha. Um zumbido surdo
desperta-me o sangue.
Ele diz:
– Matar-me-ás por causa disto?
O zumbido ganha nova intensidade. Olhando-o nos olhos, percebo que
não se trata de uma encenação. O seu coração abriu-se para mim.
– Bem devia – digo.
O rei baixa a cabeça, roçando o nariz no meu num gesto de
surpreendente afeto.
– Pede-me para parar. – As palavras vaporizam-se entre nós.
Não sou capaz.
– Queres algo de mim? – murmuro, rouca. – Tens de ser tu a tomá-la.
Enrolando o meu cabelo no punho, Bóreas puxa gentilmente a minha
cabeça para trás, expondo-me a garganta à sua boca. Um longo suspiro
emana dos meus lábios. A posição une o fundo do meu tronco ao dele, a
crista longa e grossa da sua excitação pressiona-me a anca.
Calor rápido e ligeiro atrás da minha orelha, sob o maxilar e o queixo,
percorrendo o arco do meu pescoço. Regressa ao local onde o meu pulso
bate, um golpe da sua língua quente no batimento ritmado.
Estou ofegante. Se não estivesse tão concentrada na pulsação entre as
minhas pernas, até me esbofeteava de vergonha. Os meus dedos cravam-se
com mais força naqueles ombros e um ruído suave projeta-se de mim. A
sua outra mão agarra-me o fundo das costas, prendendo-me.
As pontas ásperas daqueles dedos provocam a bainha da minha túnica
antes de mergulharem na pele. É tão pequeno, aquele toque, mas assemelha-
se a uma flecha disparada após três meses de antecipação.
Endireito-me e as nossas bocas alinham-se. O seu hálito flutua sobre a
minha língua, sabendo a tudo o que é proibido. Fecho os olhos. Um convite,
se ele for suficientemente ousado para o aceitar.
E ele aceita. Sem pressas, sem a necessidade de se despachar. A língua
dele estica-se, lambe-me os cantos da boca, brinca com o meu lábio inferior,
e desliza para o interior quando lhe concedo a entrada. Os nossos narizes
roçam-se, com uma delicadeza que se confunde com a ânsia. O beijo
demora e demora, uma exploração preguiçosa que se dissemina como
nuvens pelo meu corpo.
Uma mão agarra-me por reflexo a anca. A minha sobe para o seu peito,
os dedos abrem-se sobre o músculo quente e a pele lustrosa, a coluna da
cama cravando-se na minha espinha. Sentir a língua dele enrolar-se na
minha, faz-me soltar um som de impotente vontade da garganta. Aproximo-
me mais, atrás da sensação rodopiante.
O desejo incendeia-se, e eu penso, Mais. Quero que este corpo se una ao
meu. Quero levá-lo aos confins da insanidade para vê-lo quebrar-se.
Quero que Bóreas perca o controlo.
Entrelaçando os dedos no cabelo dele, dou um puxão, incitando-o a
aproximar-se. Agora surgem os dentes. Agora surge uma respiração
acelerada e ofegante enquanto o beijo se transforma em fome insaciável. As
nossas línguas travam um duelo pelo domínio, as minhas mãos percorrem a
carne que está ao meu alcance.
Nunca senti tamanha vontade. Como se residisse o caos no meu corpo,
como se a pele fosse a mais insubstancial das barreiras.
O Rei do Gelo morde-me possessivamente a boca, e eu acompanho esta
carnalidade, tremendo com a deliciosa abrasividade das suas faces, aquela
língua que mergulha mais fundo em mim. É como se as veias se abrissem.
Somos marido e mulher, mas este caso tem um travo ilícito e proibido.
Percorro os seus ombros com o meu toque, dedos cravando-se nos
músculos fletidos. A curva do pescoço atrai-me a atenção, a seguir os
sulcos do cimo das costas, as omoplatas. Ponho-me na ponta dos pés,
curvando o corpo contra o dele, como a corda de um arco, e permito-me o
prazer de tocar no meu marido pela primeira vez.
– Wren. – Um profundo gemido, agoniante.
Ele devora-me a boca, e a doçura daquele hálito invade-me a garganta,
enquanto as suas mãos, aquelas mãos grandes e capazes, deslizam pelas
minhas costas até ao traseiro, onde os dedos se afundam na carne mole.
Uma coxa comprida e sólida enfia-se entre as minhas pernas, encostando-se
às minhas pregas. Solto um gemido e afasto a boca, ofegante.
Bóreas examina-me com os olhos semicerrados enquanto desloca a
perna num subtil movimento para a frente e para trás. As mãos tremem-me
ao mergulhar no seu cabelo.
– Com mais força – peço, roufenha.
Responde, aliviando a pressão contra o meu sexo, desacelerando o
movimento.
– Marido – alerto-o.
Os olhos dele enrugam-se com um divertimento suprimido.
– Esposa.
– Queres morrer?
– Pensei que já tínhamos falado no assunto. – Inclinando-se para a
frente, roça o nariz no arco da minha orelha, produzindo uma exalação
trémula da minha parte. – Não posso morrer.
Os meus dedos encontram o mamilo dele, que torcem – com força.
Ele retrai-se com um palavrão, mas eu mantenho o aperto, e intensifico-
o.
– Não subestimes uma mulher excitada.
O seu riso desperta como a mais bela canção.
– Jamais. – A emoção nos olhos dele, nítida como um dia reluzente, faz
palpitar confortavelmente o meu coração. – O que queres, Wren, diz-me.
Acabaram-se os segredos. Acabaram-se as mentiras.
Vou em frente?
Vou em frente.
– Quero que enfies os dedos em mim – digo, com a respiração ofegante
–, o mais fundo que puderes. E depois, quero que me fodas com eles. Com
força.
A ânsia cria ondas na sua expressão.
– Tens uma boca imunda – murmura, baixando a cabeça para me
mordiscar os lábios. Com os dedos cravados no meu traseiro, puxa-me ao
encontro da coxa… rápido, com força, castigador, uma pressão demarcada
pela dor. Esfrego-me irrefletidamente na coxa, pouco mais do que uma
cadela com cio. O prazer floresce dentro de mim, e sigo atrás da sensação
enquanto posso.
– É bom? – pergunta.
– Sim – ofego. – Não pares.
Enquanto lhe monto a perna, ele agarra-me no cabelo e puxa-me a
cabeça para o lado. Sou uma mariposa, fixada na luz branca. O Rei do Gelo
raspa os dentes pela minha nuca. Suaviza a dor com toques de língua,
despertando a sensibilidade daquela zona até que começo a debater-me
contra o seu domínio.
Da vez seguinte em que me chupa com força, encosta-se ao meu âmago.
Explodem estrelas na minha vista, e gemo, procurando acelerar a fricção.
Aumenta a ânsia da minha pélvis.
– Agarra-te a mim – murmura, e começa a desatar os cordões da minha
túnica.
Será esta a sua intenção? Prolongar o meu desejo até que eu seja um
mero farrapo nas suas mãos? O rei acaricia-me a pele com uma expressão
que raia o espanto. Agarra os meus seios debaixo da faixa de tecido que os
sustêm, apertando a carne dolorida. E então, desnuda-me da túnica,
puxando para baixo as pesadas faixas. Os meus mamilos espetam-se no ar
frio.
Tenho de lutar contra a vontade de esfregar a cara nele, como uma gata.
Aquele perfume é incrivelmente potente. Neve e cedro, sal e terra, suor e
almíscar, e homem. Passo a língua ao longo do suor que reluz no seu
pescoço. Bóreas geme e enterra o rosto no meu cabelo, a tremer.
Poder. Existe aqui, capaz de por um deus de joelhos enquanto decorre
uma guerra, e é todo meu.
Beijos doces e mordazes humedecem-me o queixo. Traça com a boca a
curva em que o meu pescoço e ombro se unem, antes de descer,
acompanhando a curva do peito, deixando um rastro de humidade.
– És perfeitamente… – Envolve um mamilo com a boca, brinca com a
ponta sensível, passando nele a língua.
– Menos conversa – ofego –, mais… – Ele enfia a coxa contra o meu
âmago latejante com força, e um gemido meloso escapa-se de mim. – Isso.
Mais isso.
A pila faz pressão contra o meu abdômen. Sempre que a ereção sente o
meu toque, ele grunhe, e o som trespassa-me enquanto esmaga os lábios nos
meus, desencadeando um ataque agressivo, de boca aberta, que golpeia
todas as minhas terminações nervosas. Tendo despertado a minha
curiosidade, percorro-o com os dedos, da base à ponta.
Ele fica quieto. Volto a tocar-lhe ao de leve, mais promessa do que
concretização. Bóreas recua, observando-me como se eu pretendesse matá-
lo. Mal sabe que tentei.
Eis a minha verdade: quero enterrar-me no seu fervor, quero entranhar-
me na sua pele, quero que a sua própria respiração se torne a minha, e todo
o ar que me roubou, quero devolvê-lo. Quero destruir Bóreas do mesmo
modo que ele me destruiu: lentamente, derrubando pedra atrás de pedra.
Abruptamente, agarra-me na mão, e afasta-a da sua ereção.
– Paciência – murmura, e então enfia a mão nas minhas calças.
Ele sonda a pele macia do interior das minhas coxas, e sinto o sangue
corresponder àquele toque. As pernas começam a tremer-me ao subir e a
palma da mão roçar a minha vasta humidade com um toque que me sabe tão
bem que até reviro os olhos para a nuca. Tenho de me mexer, tenho de me
esfregar contra a mão dele até que a ânsia se estilhace, mas…
Paciência.
Quero dar-lhe prazer.
Dedos bruscos roçam nos meus curtos caracóis. Amplio a minha postura
para lhe conceder um melhor acesso, e ele anui, aprovando sem palavras.
Regressa à minha coxa, o toque dele, e ascende até a junção. O calor
torna a pele macia, e os dedos deslizam por ela, acumulando humidade.
Aqueles olhos azuis ardem de intensidade. Oh, céus, não consigo respirar.
Deus me perdoe, mas eu desejo este homem. E se isso significa que vou
para o inferno, que assim seja.
– Então, tu podes tocar-me – arquejo, enquanto ele me acaricia entre as
pernas –, mas, a ti, não me deixas?
Uma pausa momentânea, antes de prosseguir esta exploração indulgente.
– Incomoda-te assim tanto que me concentre no teu prazer?
– Não. – Ranjo os dentes. O meu âmago lateja ferozmente. – A menos
que tenhas por objetivo enlouquecer-me de desejo.
Um sorriso fátuo percorre-lhe a boca.
– Wren – diz. – É precisamente isso que pretendo.
E ao passar os dedos pelas minhas pregas molhadas, gemo. Gemo tão
alto que tenho certeza de que metade do acampamento ouviu, um som que
emana do fundo do meu ser, extraído de um núcleo de veracidade.
Brinca comigo a seu bel-prazer. Esfrego-me ao encontro daquela mão,
choramingando, a minha boca cravando-se no pescoço dele. Quero magoá-
lo, quero saber que fui eu quem o marcou.
Ele contorna a zona latejante e eu traço com a língua um caminho que
sobe pelo pescoço e depois desce, desviando para o declive do ombro e da
clavícula, antes de regressar à sua boca. Beijamo-nos com uma urgência
cada vez maior e, por um momento, juro que nossas almas se tocam.
Está tão concentrado no beijo que não nota os meus dedos enquanto
percorrem a sua pele tensa e quente. Descendo, descendo, acompanhando o
abdômen até à saliência que se ergue com orgulho. E quando os meus dedos
mergulham na cintura, e envolvem a ereção, Bóreas emite um som como se
o fôlego escapasse do seu corpo.
Ah, como é grande. O pénis estica-lhe as culotes, o formato da ampla
cabeça visível sob o tecido áspero. A minha boca fica seca com a visão.
Passou-se muito tempo desde que levei um homem para a cama. Sinto falta
de certas coisas: o peso e a força do corpo de um homem que me prenda ao
colchão, a plenitude de quando nos unimos. O sexo é selvagem, mas
também pode ser terno, com o parceiro certo.
– Creio – digo com voz arrastada, pressionando o polegar na fenda,
chamando as suas ancas ao meu encontro – que tens o tamanho adequado.
Um olhar azul vítreo fixa-se no meu, estreitando-se de descrença.
– Não estás satisfeita? – Palavras deliciosamente ásperas, básicas. Um
rubor tinge de vermelho a pele ártica.
Encolho os ombros. Na verdade, não importa o tamanho da pila, mas o
que um homem faz com ela. Embora a de Bóreas seja provavelmente a
maior que encontrei.
Uma mudança assola-o. Parece quase satisfeito.
– Wren – sussurra –, porque és tão mentirosa? – E faz deslizar
lentamente um dedo para dentro de mim, as paredes do meu sexo
envolvendo a intrusão.
Os meus dedos entranham-me nos ombros dele, e gemo, esticada em
pontas dos pés para que ele possa enfiar ainda mais profundamente o dedo,
o meu corpo incitando-o até ao fundo.
Ele sai, e volta a entrar, mas apenas até meio. Não é suficientemente
fundo, e tem noção disso.
Uns poucos puxões bem dados, e as calças dele alargam-se, expondo-o
ao meu olhar. Ao de leve, aperto-lhe a haste grossa e escassa de pelos.
Contorce-se quando a agarro.
– Anda, vá – provoco. Desafio o Rei do Gelo a fazermos esta corrida,
determinarmos quem será o primeiro a vir-se… o que é totalmente ridículo,
mas manipulo-o, arrastando a mão da base à ponta, demorando-me em volta
da cabeça carnuda antes de mergulhar com a mão já húmida da sua semente
precoce.
A minha mão voa, cada vez mais rápida. Bóreas esfrega-se contra o meu
quadril, encostando-me as costas à cabeceira da cama, enquanto brinca com
as minhas pregas. Os dedos dele mergulham no meu âmago, numa contínua
e insistente foda que contrai as minhas paredes internas e, pelos deuses,
sinto-me prestes a explodir. E quando ele traça provocadores círculos com o
polegar em volta do ponto inchado que encima a minha entrada, a minha
mão vacila, assolada por picos de prazer e faíscas que rebentam dentro das
minhas pálpebras.
– Não me desafies – diz com um sorriso indolente –, se não tiveres
capacidade de ganhar.
Pretendo ganhar.
– A questão é esta – crocito, abafando novo gemido quando ele insere
outro dedo. – Quem aguentar mais tempo…
– Tem direito a fazer um pedido à sua escolha – conclui por mim,
emitindo um som baixo e gutural enquanto lhe aperto suavemente os
testículos.
Demora um pouco para a neblina se dispersar. Um pedido? O que eu
faria com isso.
– Muito bem.
Incitamo-nos mutuamente a continuar, numa espiral que progride e se
acerca e se intensifica. A respiração de Bóreas fica mais profunda, à medida
que alcança picos de prazer, mas a onda não rebenta. Pelo contrário, rebola
sobre si, sobre mim, num manto contínuo de calor florescente. Aqueles
dedos grossos no meu interior são divinais. O seu polegar manipula o
botãozinho espetado, dando voltas e voltas até que os meus pés se levantam
do chão, até a minha pélvis sofrer cãibras do êxtase.
Mas ele também está quase. Os seus gemidos inarticulados dizem-me
que tem uma especial sensibilidade na parte inferior da haste. Arrasto por
ali as unhas, até ele tremer na minha mão com um rouco:
– Wren.
Ele expele a palavra por dentes cerrados.
– És perfeitamente…
– Maravilhosa?
– Diabólica.
Rio-me desalmadamente, e dou-lhe um beijo molhado na boca. O calor
cola-se à minha pele como uma chuva impossivelmente quente. Ele fode-
me com a mão e eu estou quase a atingir o pico, levanto-me ainda mais, à
medida que o meu corpo se contrai…
– Meu senhor? – chama Pallas do lado de fora das abas da tenda.
O Rei do Gelo separa a boca da minha, com o peito a arfar. O nevoeiro
dissipa-se do olhar, e toco na minha boca tenra e inchada, atordoada.
Estamos colados um ao outro, a perna em volta da sua coxa, as mãos dele
enfiadas nas minhas calças.
– Sim? – responde, fundindo aquele olhar ardente com o meu.
– Os homens regressam ao campo. Apareceu nova onda de caminhantes-
das-trevas – pigarreia. – L-lamento a interrupção.
Batalha. Já me esquecera por completo disso, no meu torpor de luxúria.
Bóreas começa a afastar-se, mas lanço a mão para lhe agarrar o braço e
puxá-lo para mim.
– Não me vais deixar neste estado. – Dói-me o âmago com a pressão
frustrada, com esta falta de atingir a plenitude, tal como a sua excitação
insatisfeita pressiona a minha barriga. Não quero parar.
Quero levar esta insanidade até ao fim.
Com a respiração pesada, ele retira a mão do interior das minhas pernas,
e pousa-a na curva da minha anca.
– Tem de ser. – A humidade transmite-se dos seus dedos para a minha
pele, e aí arrefece.
O meu estômago fica combalido de mágoa. Na minha mente, ele fez uma
escolha. E não me escolheu a mim.
O ar entre nós arrefece.
– Muito bem. – Encontro-me completamente calma, e afasto-me para
ajustar as calças e a faixa do peito, como se não estivesse quase a alcançar o
clímax com os dedos do Rei do Gelo dentro do meu âmago. Já tomei muitas
más opções na minha vida, mas esta é uma das piores.
– Wren.
Viro-lhe as costas, atiçando o lume para esconder a evidência das minhas
mãos trémulas. Fui mesmo parva. Fui sempre muito parva.
– Vai – digo. – Eles estão à espera.
Aguardo, mas não o ouço partir. Um olhar por cima do meu ombro
revela que Bóreas me examina, roupas já compostas, a testa franzida numa
interrogação.
– Toma cuidado com a ferida – digo. – Não podes perder mais sangue.
O olhar dele pousa na minha boca e aí permanece.
– Ficarei bem. – E dizendo isto, parte.
34
– M inhaFaço
senhora? Está vestida?
uma pausa. Estou a cortar tecidos para fazer ligaduras, e
ouço a voz deste homem no exterior da tenda. Orla encontra-se sentada ao
meu lado, lavando roupa numa panela de água quente aquecida ao lume.
– Podes entrar.
Pallas irrompe pela tenda.
Orla solta uma exclamação. Ponho-me imediatamente de pé, esquecida
das ligaduras. O homem pende para o lado, e agarro-o pelo braço. Tem um
extenso e medonho rasgão a verter líquidos. A túnica, manchada com o
produto da terrível ferida, cede quando se afunda contra mim, a couraça fria
contra a minha pele.
– Orla – vocifero, alarmada. – Vinho.
A minha aia obedece prontamente enquanto oriento Pallas para uma
cadeira. Afunda-se nela com um grunhido de dor, o queixo tombado contra
o peito como se lhe custasse levantar a cabeça.
A ferida parece grave, e obviamente que Alba está na cidadela, onde não
nos pode ajudar. Não há mais curandeiras?
– Não morras – ordeno a Pallas.
Ele faz um sorriso, e afunda-se mais na cadeira.
– Não tenciono morrer, minha senhora. Pelo menos… grunhe. – Hoje,
não.
Ainda bem. Apetece-me pouco cavar uma sepultura.
Encontra-se tão translúcido que temo que se dissolva pela cadeira
abaixo. No exterior, o acampamento enche-se subitamente de ruídos,
quebrando o silêncio que se sentia até então.
– Venho – chia Pallas – entregar uma mensagem.
O fedor da batalha infiltra-se no espaço: fumo e ferro. Põe-me a cabeça
tonta.
– O que aconteceu? – Faz horas que Bóreas saiu da tenda. O que lhe terá
acontecido?
Pallas arranca o odre da mão de Orla, inclina a abertura e despeja o
conteúdo na boca, nada preocupado com desperdiçar metade do líquido
sobre a couraça. O vinho destinava-se às suas feridas, mas assim também
resulta. Gentilmente, solto-lhe os dedos do recipiente e ponho a bebida de
lado antes que me sinta tentada também a beber.
– A mensagem? – recordo-lhe.
Pallas encara o vinho, respira levemente e estremece. Percebo então que
é bastante jovem. Teria mais ou menos a minha idade quando morreu.
– O senhor tentava fazer recuar um ataque quando uma nova vaga de
caminhantes-das-trevas surgiu por trás. Era como se estivessem
organizados, mas sem nenhum líder que conseguíssemos identificar. –
Tosse, com um hálito húmido saindo do peito. – Não estávamos preparados.
Se foram apanhados desprevenidos, quantos morreram?
E de repente, percebo: Pallas regressou ao acampamento sozinho. Sem a
fanfarra da chegada das tropas.
– Onde estão os outros soldados?
Quando cruza o olhar com o meu, o meu estômago revira-se.
– O senhor quer que regresse à cidadela o mais depressa possível, minha
senhora.
Não me respondeu à pergunta. Porque não me respondeu à pergunta?
– Pallas.
Os seus tremores intensificam-se. Novo olhar torturado para o vinho. Faz
um ar tão patético que lho dou. A bebida confere-lhe um pouco de cor ao
rosto, e perde aquela possibilidade de se desfazer em pleno ar.
– Trouxe doze homens comigo, os mais feridos. Não queria vir, não
queria deixar os meus camaradas, mas o senhor obrigou-me. Ele queria que
eu a avisasse, dar-lhe tempo de fugir antes que o inimigo chegue ao
acampamento.
– E o Bóreas, onde está?
– Quando parti, dizia aos homens para recuar. Não sei bem. Lamento.
O interior do meu peito mirra. Anuo, sem entender o que estou realmente
a anuir.
– Tem de partir, minha senhora. Antes que seja tarde demais.
Porque é que o Bóreas não me pediu para fortificar a Sombra? Consigo
fechar os rasgões. Podia impedir a entrada dos humanos transformados em
caminhantes-das-trevas, pelo menos temporariamente. Sugiro isso a Pallas,
mas o capitão abana a cabeça com veemência.
– Ele não a quer na zona da batalha. É demasiado perigoso.
Isso nunca me impediu. Poderia voltar para a Sombra, sejam quais forem
as consequências. Mas se Bóreas me enviou Pallas, a situação deve ser
realmente terrível. Os caminhantes-das-trevas devem encontrar-se com um
veloz avanço.
– Então precisamos de reunir o que for possível. Orla, avisa os criados
de que partimos daqui a uma hora…
– O senhor solicitou apenas a sua segurança, minha senhora. Os guardas
irão acompanhá-la.
– E os criados? – Ao contrário dos soldados, não têm treino de combate.
E também se encontram vulneráveis aos caminhantes-das-trevas. Orla
contou que, se a alma de um espectro for levada, desaparece para sempre, e
nada resta que transite para a vida após a morte.
– Só cumpro ordens, minha senhora.
– Talvez não tenhas pena de abandonar os teus próprios homens – digo,
irritada –, mas eu não deixo para trás quem não sabe lutar para servir de
alimento a criaturas abomináveis.
O rosto exangue de Pallas contorce-se, mas ele não procura defender-se.
A minha raiva esvai-se tão depressa como se inflamou. A culpa não é dele.
De facto, não é de ninguém.
– Minha senhora – sussurra Orla, agarrando-me no braço. – Se o senhor
a quer a salvo, isso tem prioridade.
– Não. – Muitas destas pessoas tornaram-se minhas amigas. Não as
posso abandonar. – Se eu for, vamos todos. Estaremos seguros atrás das
muralhas da cidadela.
Pallas tenta sentar-se, mas a minha aia empurra-o para trás.
– Há centenas de pessoas neste acampamento – diz. – Demorarão horas a
reunir os pertences.
– Traremos apenas o que podermos transportar. Armas e as roupas no
corpo. O resto, que fique. – O peso adicional atrasaria o nosso avanço. –
Sentes-te suficientemente bem para liderar? – pergunto.
E, sem mais nem menos, o que resta da sua determinação desmorona-se.
Se me enfrentar, acabará por perder, e sabe disso.
– Sim, minha senhora.
– Então temos de nos despachar.
B óreas encosta a
carinhosamente.
testa à minha, os nossos narizes roçam-se
D esperto com uma mão quente na minha coxa. Bóreas debruça-se sobre
mim, com o cabelo escuro desalinhado, os olhos azuis semicerrados,
mas intensos. Encosta um dedo aos meus lábios para indicar silêncio.
Com os sentidos alerta, sento-me lentamente, tentando ver na escuridão.
A lareira há muito que se extinguiu. Adormecemos horas antes, depois de
mais uma ronda de amor intenso, os nossos corpos saciados e unidos o mais
possível.
– Os guardas fizeram soar o corno – informa, a voz baixa no meu
ouvido.
A primeira onda de alarme invade-me e encosto-me ao seu peito. A
cidadela foi invadida.
– Caminhantes-das-trevas?
Ele acena com a cabeça.
– Como é que passaram pela barreira?
Ele passa dois dedos pela minha face.
– Não sei. – O vinco entre as sobrancelhas aprofunda-se. Já me disse
várias vezes que a barreira não pode ser enfraquecida, pois encontra-se
selada em todas as pedras da alta muralha.
A minha atenção dirige-se para a janela. Temos uma vista do pátio e de
quem guarda a muralha. Uma perspetiva do alto pode ajudar-nos a perceber
como é que os caminhantes-das-trevas se conseguiram infiltrar, da
dimensão do inimigo. Se for parecido com o banho de sangue da última
batalha…
– Não – diz, percebendo a minha intenção. – Não lhes dês a conhecer a
tua localização. Tens de manter-te escondida. – Começa a afastar-se. – Fica
aqui.
Como se fosse possível.
– Vou contigo. – Lanço as pernas por cima do colchão.
– Não – interrompe-me com uma mão no braço. Nunca o vi tão sério. –
Virei buscar-te quando for seguro.
O ar frio percorre-me a espinha. Tremo, agarrada à mão do meu marido.
Bóreas é imortal. Não pode morrer com uma arma feita por um mortal.
Tanto quanto sei, também não pode ser morto pelos caminhantes-das-trevas,
considerando que ele próprio é um deles. Mas no último golpe que sofreu,
não foi capaz de se curar sem ajuda. Algo o impediu de o fazer.
– E se te levarem? – murmuro.
Aperta-me os dedos com meiguice.
– Não é a minha vida que me preocupa.
O meu coração, já frágil à partida, desintegra-se por completo com estas
palavras.
Bóreas desliza da cama e coloca a roupa de que se tinha desfeito.
– Tranca a porta quando eu sair. Há uma passagem escondida no
escritório, atrás da tapeçaria. Vai levar-te para o pátio do estábulo. Pega na
Iliana e foge para o norte, para o mais longe que puderes. Vou ao teu
encontro assim que for seguro.
Eu lanço-me em frente, prendendo-lhe o pulso. Ele vira-se. O rosto
perdeu-se na sombra, mas os seus olhos brilham com uma determinação
feroz. Ele não pode ir. Há tanto que preciso de lhe dizer. A emoção cresce
entre nós, temerosa e nova.
Ele diz, num tom calmo:
– Wren, por favor.
– Mas…
Cala-me com um beijo, lábios entrechocando-se.
– Fica. – E depois parte.
Esperará que fique sentada, aguardando o seu regresso? Com o perigo à
solta, não pretendo lutar contra os caminhantes-das-trevas em camisa de
noite. Penso em Elora, no filho por nascer. Preciso de uma arma. E de
calças. Os meus aposentos, no entanto, ficam do outro lado da fortaleza. E
sem o meu arco, sou um alvo fácil.
Treme-me a mão, ao agarrar no puxador e abrir a porta devagarinho.
Um corredor escuro e deserto, com os castiçais de parede apagados. Não
há guardas. Devem ter abandonado os postos para suster os caminhantes-
das-trevas que se infiltraram.
Desato a correr. Sem parar. A minha camisa de noite esvoaça contra as
minhas pernas, e mantenho os ouvidos atentos a qualquer som estranho.
Aninhados nos muitos salões de baile, salões e salas de jantar, os habitantes
de Neumovos começam a acordar. Alcançando os meus aposentos, coloco o
traje de inverno, pego no meu punhal, arco, aljava e bolsa de sal. Doze
flechas. Farei com que cada uma conte.
Um estrondo vindo de um dos pisos inferiores põe fim ao silêncio: abre-
se uma porta com estrondo e gritos, gritos terríveis.
O sangue palpita ao ritmo do meu coração acelerado. Quantos são? Com
que rapidez se movem? Um rugido animalesco ecoa como se o próprio ar se
desfizesse em pedaços, e gritos de gelar o sangue conduzem-me em direção
à porta. Tenho de encontrar Elora.
Deparo com uma ala sul em completa desordem, portas arrancadas das
dobradiças, espectros a correr para todo o lado. O ar tresanda a cinzas. Um
fluxo de pessoas desesperadas atravanca a passagem e impede a fuga. Só
por pura vontade é que consigo espremer-me por entre a multidão de
corpos.
No fim do corredor, uma silhueta maciça surge ao virar da esquina, com
metade de um tronco dependurado na enorme mandíbula. Homens e
mulheres em diversos estados de nudez pulam do seu caminho,
aterrorizados.
Agarro uma mulher pelo braço.
– Viu a minha irmã? – Mas ela solta-se, a soluçar, e cambaleia para a
frente com o fluxo de pessoas. A multidão empurra-me na sua pressa de
fugir do caminhante-das-trevas. Aponto a flecha para o chão, para não
empalar alguém acidentalmente, quando um homem gigante me empurra
contra a parede. O meu crânio estala contra a pedra. Deixo cair o arco com
um grito de susto, a mão voa-me para a nuca. Os dedos ficam cobertos de
sangue.
Apalpando o chão, à procura do arco, encontro-o e agarro-o, e à flecha
caída, e volto a tentar, aproximando-me da parede para evitar o pior da
correria. O caminhante-das-trevas deixa cair a comida, o corpo
transformado em casca sem alma, e solta outro rugido de estalar os ossos.
Com os olhos postos na fera, mergulho a flecha na bolsa de sal à cintura.
Um dos guardas aparece para me ajudar, mas eu não lhe dou atenção
enquanto monto e atiro a flecha. Acerto no centro do peito do caminhante-
das-trevas e a besta explode num jato de icor.
Rodando sobre os calcanhares, atiro a segunda seta para o olho de outro
caminhante-das-trevas. Uma mulher, levantando as saias com as mãos,
passa apressadamente por mim num cego terror.
O caminhante-das-trevas cambaleia. Outra seta espeta-se no outro olho.
– Mata-o! – berro ao guarda. Ele lança-se em frente, espeta a espada no
coração do caminhante-das-trevas. Dois abatidos, mas agora apareceram
outros três.
– Wren!
Viro a cabeça.
– Elora?
Não recebo resposta. Apenas os gritos dos que são espezinhados,
mutilados, cuja carne é arrancada. Terá a voz dela vindo da frente ou de
trás?
Junto-me à corrente que se encaminha para as escadas, procurando a
minha irmã gémea no meio do caos. Vislumbro uma cabeça de cabelo
escuro ao longe e, ao seu lado, um homem grande que só pode ser Shaw.
– Aqui! – grito, acenando enquanto os tento alcançar aos empurrões.
– Wren! – Os olhos aterrorizados da minha irmã encontram os meus.
Não vejo sangue em parte nenhuma, apenas o ar amarrotado de quem teve
de se vestir à pressa. Graças aos deuses que se encontra bem.
– O que está a acontecer? Os caminhantes-das-trevas…
– Vem comigo. – Agarrando-lhe a mão, arrasto-a na direção dos
aposentos do rei, com Shaw na retaguarda. Uma força oscilante sacode a
fortaleza, e tropeço contra a parede enquanto uma nova onda de gritos se
agita e despenha em baixo.
Assim que entramos nos aposentos de Bóreas, tranco a porta com força,
rasgo a tapeçaria que esconde a saída que conduz ao Gris. Elora pousa uma
mão trémula sobre a barriga redonda. Shaw segura-a pelos ombros
enquanto eles olham para o que a porta revela: o bafo gelado do mundo.
– Isto conduz-vos de volta a Edgewood – apresso-me a dizer. – Veem o
ribeiro ao longe? – Aponto para um vislumbre de gelo por entre as árvores.
– Sigam-no para leste até chegar à vila. Lá ficarão a salvo.
A minha irmã vira ligeiramente a cabeça, perscrutando-me.
– E tu, Wren?
– O meu lugar é aqui, com o meu marido. – Cruzo o olhar com Shaw, e
reparo que entendeu. – Vão. Não têm muito tempo.
– Espera! – Elora agarra-me a mão. Durante tanto tempo, representou o
meu único propósito na vida, mas agora tenho outro: eu própria. – Promete-
me que ficarás a salvo.
Não posso prometer isso. As Terras Mortas nunca foram seguras, mas eu
escolho o Vento Norte. Eu escolho as criaturas, a neve e a rocha inerte. A
vida dele agora é a minha.
– Elora. – A voz profunda de Shaw é quase abafada por um novo grito
que rasga o ar. – Estamos a perder tempo.
Treme-me a garganta, e eu encaixo Elora no primeiro abraço verdadeiro
que partilhamos em meses. Se, por qualquer razão, não sair ilesa desta
noite, quero que a última lembrança minha seja de amor.
– Ver-nos-emos em breve.
Não me larga, tal como quando éramos crianças, partilhando cobertores
para evitar o frio. Espero um momento e solto-a.
Depois de terem transposto o limiar, fecho a porta e corro para o
escritório, para a tapeçaria, para mais uma porta escondida.
Corro pela passagem. Lama fresca e compactada conduz-me ao ventre
da terra. Os sons da batalha tornam-se mais fracos e acabam por
desaparecer. Apenas a minha respiração, a entrar e a sair dos pulmões que
ardem, o terror que cresce diante dos meus olhos.
Ao alcançar a saída – uma velha porta de pedra – cobre-me o corpo uma
camada de suor. Pica-me a pele o ar invernoso, eriçam-se os pelos dos meus
braços, procurando um pouco de calor. Abro a porta enviesada e espreito
pela fresta para o pátio do estábulo.
É um massacre. Estou protegida atrás de um monte de pedras onde o
túnel termina, mas a batalha avança, espalha-se. Em breve, alcançará este
refúgio provisório.
Os caminhantes-das-trevas uniram-se. A horda de criaturas dilacera os
guardas armados, cujas ordens são de não ceder, não ceder, dar tempo aos
cidadãos de Neumovos de alcançar um lugar seguro.
Mas as ordens recebidas condenaram-nos a horrores indescritíveis. Eles
assistem à derrota dos camaradas até os próprios corpos ficarem esmagados
por enormes mandíbulas, com um líquido negro e fétido a escorrer das
feridas abertas.
Onde estará Bóreas? Julgara que se encontraria no cerne mais intenso da
luta, onde a necessidade é mais premente. Uma das janelas da torre
estilhaça-se, e vidros partidos caem do alto como chuva, enquanto uma
criada salta do quarto andar, um caminhante-das-trevas procurando atacá-la
através da janela aberta. O corpo dela despedaça-se no chão.
– Verifiquem a ala sul. Vasculhem tudo.
Fico completamente imóvel, procurando a origem da voz. O luar satura a
neve para lá dos portões abertos. Nada. Apenas soldados que tentam
freneticamente estancar os caminhantes-das-trevas que trepam pela muralha
exterior.
Uma figura, no entanto, não se move como as demais. A luz capta a
cabeça de caracóis e recorta a curva do seu arco enquanto ele examina a
área circundante a partir do posto junto às portas das cavalariças,
presenciando o massacre com um olhar frio.
Há algo que me atormenta o estômago. Acabo de perceber como é que
os caminhantes-das-trevas conseguiram entrar na cidadela sem ser vistos:
contei a Zéfiro que havia um buraco na parede. Quando eu era uma pessoa
diferente que não sentia nada pelo Rei do Gelo. Quando a minha única
missão era removê-lo desta terra para que a humanidade vivesse em paz,
livre do punho devastador do inverno. Quando eu era solitária e negava as
minhas necessidades.
– Zéfiro! – O clamor soa, rouco de raiva. – Zéfiro!
O medo aperta-me a garganta com um nó. Não vejo nada, absolutamente
nada. Mas então um caminhante-das-trevas penetra na luz, carregando uma
figura esmagada nas garras da mão.
Arquejo. As mãos e os tornozelos de Bóreas estão atados, e um saco
cobre-lhe a cabeça. Como terão conseguido capturá-lo tão cedo? E porque é
que ele não recorre aos poderes para lutar?
– Acalma-te, irmão. – O Vento Oeste observa Bóreas debater-se com ar
entediado. – Em breve, tudo terminará.
Zéfiro e o caminhante-das-trevas contornam os estábulos. Eu sigo-os,
mantendo-me baixa e calada, movendo-me por entre as sombras. Se ele
fizer mal a um só cabelo do meu marido…
– Leva-o para norte – diz Zéfiro. – Irei ao teu encontro quando me tiver
despachado.
A criatura galopa através dos portões da frente, adentrando-se na floresta
escura, carregando Bóreas nas garras. Vejo-o partir, e o meu coração segue
com ele. Nunca serei capaz de os alcançar a pé.
Preciso de um cavalo.
Estando o Vento Oeste atento ao lado oposto, o caminho para as
cavalariças encontra-se desimpedido. Abro a porta e penetro no espaço
iluminado, correndo para o estábulo onde se encontra Iliana.
O inconfundível zunido do puxar da corda de um arco alcança-me, e
também eu levanto a minha arma. Com a minha própria flecha montada,
viro-me, apontando para o peito de Zéfiro, tal como a sua flecha aponta
para o meu.
Os nossos olhares cruzam-se por entre a obscuridade. Sinto o coração
acelerar, enquanto um relampejo frio me envolve.
– Olá, Wren.
As suas íris apresentam o verde brilhante de um novo rebento, cortadas
como frias pedras preciosas. A lama mancha a sua túnica normalmente
imaculada, as calças rasgadas no joelho.
– Cometeste um erro quando vieste – digo-lhe, com um tom de voz
firme. Ele levou-me o marido. Mentiu e mentiu, e disse essas mentiras com
uma doçura irresistível. Ações que não podem ficar impunes.
– Erro? – responde. – O meu único erro foi não ter vindo mais cedo.
Zéfiro acerca-se. Os dedos dele contorcem-se à volta da corda. Noto a
ironia de poder matar o deus que me ofereceu esta arma. A prenda, ao que
parece, não significava nada. Era apenas uma forma de ganhar a minha
confiança, um elo conspurcado desde o seu início enganador.
– Mais um passo – aviso – e disparo.
Quer o arco quer as setas foram tocados por um deus. E raramente erro o
alvo.
Ele franze a testa, mas para.
– É justo, acho eu.
– Devia ter dado ouvidos ao Bóreas. Não acreditava…
– Que sou tão depravado como ele afirma? – Um sorriso sem alegria. –
Apesar do que o Bóreas pensa, não quero que morra. Só quero a lança dele.
O poder dele tem crescido sem limites e começa a afetar o meu reino, como
bem percebeste. Poderia eu ficar quieto enquanto as minhas pessoas
morrem?
– Há outras formas. Opções que não tirem a vida a inocentes.
– Muitas das minhas pessoas já morreram.
– Como tu morrerás, se não me deres as respostas que eu quero. Foi por
isso que mataste a mulher e o filho dele? Porque sentiste que o seu poder
crescia sem controlo?
– Tecnicamente, foram os bandidos que os mataram.
Só os anos de disciplina é que mantêm a firmeza dos meus dedos na
corda.
– És assim tão insensível?
– Wren – suspira, como se tivesse já tido igual conversa, e estivesse farto
do assunto. – Não era minha intenção.
– Basta de mentiras. Envenenaste a mulher do Bóreas contra ele.
Aproveitaste-te dela, traíste a confiança do teu irmão. – E a minha, penso
com um pico de fúria. Traíste-me.
– Não tenho culpa de que ela fosse infeliz – responde ele com um
encolher de ombros displicente. – Ofereci-lhe uma saída, tal como a ti, e ela
aproveitou-a.
– Ela não era infeliz. Amava-o. – Mas Zéfiro, com a sua mente traiçoeira
e astuta, conseguiu infiltrar-se na mente daquela mulher, transformou-a
numa ferramenta que usou contra o marido. Como quase fez comigo. –
Porque é que não acreditas nisso?
– Talvez ela o tivesse amado em tempos, mas o amor é cruel e não dura
para sempre – afirma, com a expressão a contorcer-se de raiva e mágoa
súbitas. – Remove-nos uma parte da alma, e quando essa pessoa se vai,
ficamos para sempre com um buraco no coração. Eu nunca quis que isto
acontecesse, sabes. Tinha esperança de convencer o Bóreas, de defender a
sobrevivência do meu reino, mas duvido que te interesse.
Lanço-lhe um olhar furioso.
– Tens razão. Não me interessa.
Mas não penso em Zéfiro. Estranhamente, recordo-me da doce
Thyamine, Thyamine desmiolada, Thyamine esquecida. Ela pressentiu que
havia algum problema durante o trajeto até à gruta do Sono. Pensei que
temesse pela minha segurança, mas é possível que a minha suposição
estivesse errada. Nunca cheguei a saber porque é que ela bebeu do Rio do
Oblívio.
– Thyamine – digo eu. – Interferiste nas memórias dela? Testemunhou
alguma coisa que não deveria?
O Vento Oeste revira os olhos.
– A mulher era demasiado intrometida. Percebeu que eu começava a
passar demasiado tempo com a mulher do meu irmão e receei que ela
dissesse alguma coisa. E, portanto, tratei do problema.
Sacana. Sacana egoísta.
Zéfiro oferece-me a mão.
– Seja como for, gosto de ti, Wren, por isso vou dar-te esta oportunidade.
Se te renderes calmamente, não te farei mal.
Sinto a ameaça de um sorriso fátuo. Ele julga que me pode usar como
bem de troca?
Não creio.
– Zéfiro – respondo –, nunca fiz nada na vida com calma.
Solto a flecha. Penetra-lhe profundamente no ombro. Ele grita, deixa cair
o arco enquanto eu abro a porta do estábulo e monto Iliana. Não tenho
tempo para colocar rédeas nem sela. O corpo debaixo de mim, puro, poder
inexplorado, dispara, e nós saltamos pela porta aberta, galopando para fora
das cavalariças em direção à noite.
41
B óreasE porque
nunca tinha feito um bolo.
o faria? Ele era um deus. Era, é a palavra pertinente.
Durante cinco milénios, vivera para uma única tarefa: invocar as neves, os
ventos, o frio. Mas só nos últimos três anos é que aprendeu o que
significava viver como um mortal e amar – como nunca tinha amado antes
– uma mulher com um espírito vivaz, cujo coração nunca vacilou.
A questão é que, enquanto deus, não precisava de cozinhar. Silas
cozinhava. A criadagem cuidava da cidadela e dos terrenos. Os estribeiros
cuidavam dos cavalos. Esta era a ordem natural das coisas.
Mas o dia de hoje era especial. Era o aniversário de Wren. Bóreas
deixara a mulher a dormir na cama, enquanto o amanhecer aquecia os
campos ricos de relva. O inverno libertara o jugo implacável sobre o Gris.
A neve degelara, o ar perdera o travo frio. Fizera uma escolha, aquele deus:
ou o poder ou o amor. Morte eterna ou uma vida breve, mas gratificante.
Temia tanto a perda de controlo, mas não precisava de se preocupar.
Partilhar uma vida com Wren era suficiente. Mais do que suficiente.
Levantara-se cedo porque precisava do dia. A esta hora, a cozinha estava
deserta, o ar tingido de fermento. A luz do sol espalhava um tom dourado
sobre as bancadas de madeira.
Há poucos dias, quando abordara Silas e lhe explicara as suas intenções,
este explicara-lhe calmamente o processo em pormenor. De seguida, reunira
os ingredientes necessários: farinha, ovos, manteiga, leite, açúcar, fermento,
baunilha, sal.
Bóreas encarara os ingredientes como se fossem os seus inimigos da
guerra.
Primeiro passo: juntar duas chávenas de farinha. Silas terá indicado que
chávena medidora devia utilizar, mas não se lembrava, raios o partam. No
final, escolheu a maior das quatro disponíveis, que tinha, mais ou menos, o
tamanho de uma maçã. Parecia ser a quantidade adequada.
No entanto, quando a farinha caiu na tigela de vidro, transbordou,
colorindo o ar e cobrindo a parte da frente das suas roupas. Bóreas olhou de
soslaio para a porcaria que fizera.
– Meu senhor, posso oferecer algumas sugestões?
Levantou a cabeça. Silas encontrava-se junto à entrada, encarando o
resultado com preocupação. Desde que a primavera se tornara uma presença
semipermanente nas Terras Mortas, a maioria do pessoal trocara as pesadas
calças de lã por meias finas e túnicas leves. Tentando ser progressista, ele
revogara a sentença que obrigava a criadagem a servi-lo. Muitos haviam
regressado a Neumovos para viver, em contentamento, uma vida após a
morte, mas, espantosamente, outros permaneceram, incluindo Orla e Silas,
alegando que, sem uma ocupação, ficariam entediados.
Notou o que o cozinheiro trazia nas mãos: um avental.
– Não preciso disso – afirmou sem dúvidas.
– Meu senhor, sugiro fortemente…
– Silas.
O homem pendurou o avental num gancho de parede próximo, com os
lábios cerrados.
– Precisa de ajuda?
Bóreas esfregou as mãos cobertas de farinha nas calças.
– Sou perfeitamente capaz de conquistar este bolo.
Silas observou a superfície da bancada, cheia de farinha, com uma
expressão condoída.
– Meu senhor, não sei se um bolo pode ser, digamos… conquistado.
– Tenho tudo sob controlo, Silas. Este bolo há de render-se a mim. Vais
ver.
O homem ofereceu-lhe um sorriso trémulo.
– Claro, meu senhor. Se tem a certeza. – Virou-se para partir.
– Espera.
Silas aguardou à entrada.
– Quantos ovos devo usar?
– Meu senhor…
– Quantos?
Ele suspirou.
– Dois. E não bata as claras em excesso. – Pegou numa maçã quando ia a
sair, deixando Bóreas a pensar no que significava «bater em excesso».
Silas também lhe mostrara isto: como partir um ovo. Foi por isso que,
com gestos descontraídos, embateu com o ovo contra a tigela, e este se
estilhaçou na sua mão. Pedaços de casca deslizaram para dentro das gemas
amarelas, troçando da sua falta de jeito.
A manhã passou demasiado depressa para Bóreas. Depois de deitar a
massa irregular numa forma, colocou-a no forno. Wren já devia estar
acordada, mas o filho mantinha-a ocupada durante as manhãs. E jamais se
lembraria de o procurar na cozinha.
Passado algum tempo, o ar começou a soltar um aroma quase agradável.
Quando o sino tocou, Bóreas tirou o bolo do forno.
O seu estômago contraiu-se. Parecia uma cabeça queimada, cheia de
grumos. Partindo um pedaço do bolo amarelo e quente, enfiou-o boca e
cuspiu-o de imediato. Não era comestível. Porque é que lhe sabia a sal? Ele
tinha adicionado duas chávenas de açúcar, tal como a receita pedia.
Tinha de começar de novo.
A sua segunda tentativa ia incendiando a cozinha. Silas apareceu à porta,
respirando com dificuldade. Apreciou a cena: o fumo a sair do forno, a
farinha espalhada pelas bancadas, pelo chão, pelas paredes, até por partes
do teto, o cabelo preto de Bóreas já cheio de cinzas. Com uma voz tímida,
perguntou:
– Meu senhor?
Bóreas espreitou pela janela, da sua posição junto ao lava-loiça.
– Não te preocupes, Silas. – Havia de conquistar este bolo nem que fosse
a última coisa que fizesse.
Pela terceira vez, misturou os ingredientes – de forma bastante agressiva
– e despejou a massa numa forma, colocando-a no forno, com o lume
brando. Verificou o bolo de dez em dez minutos, mais ou menos, até o ar
cheirar ligeiramente a doce.
Retirando o tacho do forno, Bóreas examinou a comida quente, parecida
com pão, apalpando a textura esponjosa. Parecia mesmo um bolo. Não era
nem de longe tão encaroçado como o seu antecessor, nem tão queimado.
A tensão em redor da vista e da boca suavizou-se num alívio. Demorara
o dia inteiro, mas conseguira. Ele, Bóreas, o Vento Norte, fizera um bolo. A
doce mistura fora uma adversária à altura, mas, no final, foi ele o vencedor.
Agora era só decorar.
As flores frescas dispostas num vaso próximo chamaram-lhe a atenção.
Perfeitas. Bóreas arrancou as pétalas brancas dos caules, e espalhou-as por
cima do prato. Pronto. Wren gostava de flores. Portanto, ela iria gostar deste
bolo.
– Orla – chamou.
Esta manifestou-se à entrada da porta.
– Sim, meu senhor.
– Informa por favor os criados que a Wren e eu iremos começar o jantar
em breve. E por favor, coloca este bolo na mesa.
A velhota encarou-o com curiosidade, enquanto levantava o prato com o
bolo decorado.
– Meu senhor, fez isto para a senhora Wren?
– Fiz, mas queria que fosse uma surpresa.
– Com certeza. – O olhar dela cintilou, desaparecendo no corredor num
farfalhar de saias.
Como se aproximava a hora de jantar, não teve tempo de se compor. Foi,
portanto, à procura da esposa.
Encontrou Wren a descer a escadaria central, com o filho nos braços. Ela
usava um vestido verde simples, e os brincos de pérolas que ele lhe
oferecera aquando do aniversário de casamento no mês passado. O verde
complementava o calor da sua pele morena, do cabelo negro e dos olhos
escuros. Era linda. Uma joia. Não havia uma única parte dela que Bóreas
não amasse com todo o coração.
Ela arfou ao reparar na aparência horrível dele.
– Bóreas? Mas que raio… – Ela piscou os olhos enquanto ele subia as
escadas, até ficar dois degraus abaixo dela, os olhos de ambos nivelados. –
Tens farinha no cabelo? – Tocou numa madeixa empalidecida pelo pó da
farinha.
O bebé debateu-se entre eles, procurando o pai. O sorriso de Bóreas
surgiu ao aconchegar o filho contra o peito.
– Já dormiu?
– Dormiu bastante bem. – A ironia fez-lhe covinhas na face.
Inclinando-se, beijou a boca da mulher, pousando uma mão na sua
barriga inchada, onde crescia o próximo filho de ambos. Depois, porque
tinha todo o direito de o fazer, aprofundou o beijo até deixar Wren a arfar,
com as faces coradas e os olhos brilhantes.
– Onde tens estado? – perguntou Wren. – Pensei que voltarias para a
cama.
– Andei ocupado.
Ela fez um esgar. Bóreas riu-se. Estava tudo bem no seu mundo.
– Vem. – Com o filho pousado na anca, Bóreas encaminhou Wren para a
sala de jantar. As lareiras estavam vazias, mas no outono, quando o ar
começasse a arrefecer, seriam acesas. Várias obras de arte decoravam as
paredes de pedra fria, e tapetes com padrões animavam o espaço. Na
semana passada, Elora visitara-os, juntamente com o marido e a filha, e as
duas irmãs tinham passado o dia a reorganizar a mobília. Depois dos
problemas que Wren atravessara com a irmã, Bóreas sentia-se contente por
ver que continuavam chegadas, fazendo ocasionais visitas uma à outra.
– O que é isto?
Wren estava ao lado da cadeira, com a atenção voltada para o bolo no
centro da mesa. Ela pestanejou, claramente perplexa com a visão.
– Pensei que o Silas tirara o dia de folga.
É claro que iria supor que Silas o tinha cozinhado.
– Tirou – disse ele, e algo no tom de voz terá revelado a verdade.
Levantando o olhar para ele, Wren perguntou, muito cautelosamente:
– Fizeste tu este bolo?
– Fiz.
A boca dela abriu-se, depois fechou-se. O olhar dela voltou para o doce.
– É muito… floral.
O peito dele encheu-se de orgulho.
– Efetivamente. – O epítome da primavera. A esposa passava todos os
momentos livres na estufa, muitas vezes com o filho às costas, enquanto
cuidava do jardim de flores que se expandia ano após ano.
– Nem acredito nisto. Ninguém fez um bolo para mim em toda a minha
vida.
Não era inteiramente verdade. Wren pedira a Silas para lhe fazer um
bolo, no segundo jantar, quando já eram marido e mulher. Um bolo que ela
devorara por inteiro. Uma proeza terrível, mas impressionante.
– Bem, tu nunca fizeste um bolo para mim, é o que devia ter dito –
corrigiu-se.
O olhar dele acalentou-se. A sua mão curvou-se sobre as costas de Wren
e começou a divagar. Ela arqueou uma sobrancelha, fitando o bebé pelo
canto do olho.
Com algum esforço, ele retirou a mão e depositou um beijo na testa de
Wren.
– Queres provar?
Ela sentou-se. O filho, entre os dois, espalmava as mãos gorduchas sobre
tampo da mesa. Tinha a cor de pele da mãe, mas, Bóreas notou com
orgulho, os olhos do pai. Dali a quatro meses, a família cresceria mais um
pouco.
Bóreas esperava que a segunda criança fosse menina.
– Qual é o sabor? – perguntou ela.
– Baunilha.
Wren espetou o garfo e enfiou um bocado na boca, mastigando devagar.
Bóreas deu por si empoleirado na borda da cadeira.
– É… – Ela pousou o garfo. – Interessante.
Ele endireitou-se. Interessante. Significava que era bom, certo?
– Mm. – Ela tossiu e bebeu um pouco de água. – Muito. – Sorriu.
O peito de Bóreas inchou de satisfação. Conseguira. Preparara um bolo
para a sua esposa, e ela gostava. Tinha de provar a obra-prima.
Pegando no garfo, cravou os dentes na sobremesa, levou um pedaço à
boca e engasgou-se.
Sabia a estrume.
Os olhos de Wren reluziram de gozo, e a sua boca começou a contorcer-
se. Quanto mais ele mastigava, mais forte era a vontade de vomitar. Mas
Bóreas aguentou. Depois de passar tantas horas enfiado na cozinha, este
alimento pavoroso não iria levar a sua avante. Por isso, mastigou, mastigou
e mastigou mais um pouco, formando uma pasta sobre a língua.
Quando já não conseguia suportar mais o sabor repugnante, Bóreas
cuspiu a sobremesa ofensiva para o guardanapo, enquanto o riso uivante de
Wren subia até às vigas do teto.
A mulher riu-se tanto e durante tanto tempo que as lágrimas lhe
escorreram pela cara. Bóreas não conseguiu conter-se. Também se riu. Até
o filho deles se riu, guinchando e abanando as mãos na cadeira de bebé.
– Desculpa – disse ela, sentindo o riso diminuir. Limpou os olhos
lacrimejantes, com a cor a subir-lhe às bochechas. – Tinhas um ar tão
esperançoso, e deves ter passado o dia inteiro nisto. Não queria ferir os teus
sentimentos. – Uma pausa. – Mesmo que seja o pior bolo que eu provei na
vida.
Empurrando a cadeira para trás, ajoelhou-se ao lado de Wren. Por vezes,
lembrava-se de que esta mulher o amava, que ele a amava e que a amaria
até ao fim dos seus dias. Tinham construído uma bela vida juntos. Ele
nunca mais se sentiria só.
– Nunca os feririas. – Bóreas juntou a mulher e o filho nos braços… a
sua família. – Feliz aniversário, Wren.
Agradecimentos
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