Alexandria Warwick - O Vento Norte

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Índice

Capa
Ficha Técnica
PARTE 1 - CASA DE ESPINHOS
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PARTE 2 - A CASA DOS SONHOS
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Epílogo
Agradecimentos
Alexandria Warwick

O Vento Norte
Tradução
Luís Filipe Silva
Ficha Técnica
Título: O Vento Norte
Título original: The North Wind
Autor: Alexandria Warwick
Editora: Marta Ramires
Tradução: Luís Filipe Silva
Revisão: M. Bravo
Design e ilustração da capa: © 2024 Story Wrappers LLC
Adaptação portuguesa da capa: © Memento Design & Criatividade
ISBN: 9789895811366

CASA DAS LETRAS


Uma editora do grupo Leya
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01

© Alexandria Warwick
Publicado com o acordo de Simon & Schuster (Austrália) Pty Limited
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor.
www.leya.com
Para quem ama e quem sonha
1

O céuEmbora
pressagia uma tragédia que se avizinha.
mostre um pálido tom de cinzento, surge uma mancha rubra
sobreposta no horizonte, a leste – evidência do Sol nascente. Espalha-se,
esta mancha, embebendo as nuvens, pingando sobre o Ocidente distante.
Vejo o dia acordar enquanto me escondo, abrigada, no bosque cerrado de
árvores castigadas pela neve, e o meu coração arrepia-se de medo. É um
tom vermelho de carnificina.
Um tom vermelho de vingança.
Previ esta visão há dias. É como dizem as histórias: em primeiro lugar,
nascem os cones floridos do velho cipreste que adorna a praça da povoação.
Três décadas esteve a árvore entorpecida, mas a aparição súbita de novos
botões em flor desencadeou um frenesi louco, histerismo nas mulheres e ar
estoico de funesta derrota nos homens. Os botões, seguidos do amanhecer
sangrento. Pouco posso fazer, neste momento. Se o céu disser a verdade, em
breve, teremos uma visita em Edgewood.
A terra, envolta numa camada branca e gelada, repousa num silêncio
mudo, com a neve macia das tempestades, tão frequentes como os ciclos
lunares. Por enquanto, não pensarei no que está para vir. O meu trabalho é
aqui, nesta parte desabitada do bosque, entre as árvores escuras com
interiores apodrecidos, com a mão enluvada agarrando rigidamente o arco.
Espreitando por detrás de um tronco banhado pela lua, perscruto o que
me rodeia. Faz três dias que deparei, inesperadamente, com um rasto de
caça ainda fresco. Segui-o até este lugar, a vinte e tal quilómetros de casa,
para noroeste, mas não consegui ainda encontrar o alce.
– Onde estás? – sussurro.
Um vento cruel abana os ramos despidos e ossudos. Tento apertar um
pouco mais o casaco feito de retalhos contra o corpo, mas o frio invasor
enfia-se por quaisquer aberturas. Foi o desespero que me empurrou para as
profundezas do bosque, longe daquele minúsculo recanto de civilização –
para norte, onde reluz o Rio Les, onde ninguém se atreve a viver.
Um movimento prende-me a atenção. O animal entra no meu campo de
visão, a coxear, longe da manada. Avança em passo lento e a custo, causado
pela pata dianteira esquerda que está visivelmente torcida. Fico agoniada.
Está em sofrimento, mas não é culpa sua. Essa responsabilidade cabe ao
deus negro no outro lado da Sombra.
Mal me atrevo a respirar, enquanto retiro uma flecha da minha aljava.
Um puxar escorreito, esticado ao máximo, e a mão roça o maxilar, a corda
toca na ponta do nariz, que uso também como ponto de referência. O alce
afasta a neve com a pata à procura de algo verde que prometa esperança,
embora esta jamais chegue.
Não estou sozinha.
Respiro profundamente, e os meus pulmões enchem-se com pedaços de
floresta: gelo e madeira e o cheiro a queimado. É um aviso, e vem do Norte.
Os meus sentidos estão em alerta. Os meus ouvidos esforçam-se por
detetar algum som invulgar. A tensão torce-me os membros em nós, mas
obrigo a mente a descontrair-se, a entender o que sabe, e o que sabe é isto: o
odor é muito ténue. A distância que ainda me separa do caminhante-das-
trevas dá-me tempo suficiente, mas não devo perdê-lo.
Volto a observar o alce, reparando que o animal se afastou tanto que a
probabilidade de lhe acertar no coração diminuiu de forma drástica. Não
posso arriscar-me a chegar mais perto dele. Se ele fugir, não serei capaz de
o capturar, e não me restam mantimentos suficientes para alongar ainda
mais esta viagem. Em casa, o pão vai ficando rijo, tal qual um prego, e da
carne seca só restam migalhas.
Por isso, não falhes.
Ajustando o ângulo do arco, inclino a seta uns centímetros para cima.
Exalo e… abro a mão.
A seta grita ao cortar o ar gelado, enterrando-se profundamente em carne
viva onde bate ainda um coração.
Hoje, eu e a minha irmã viveremos, e assistiremos a um novo dia.
A última das manadas de alces desapareceu há décadas, mas este
espécime acabou por reentrar no nosso reino, desorientado. O coitado está
reduzido a pele velha e ossos deformados, e nem adivinho há quanto tempo
não comerá nada. Poucas plantas florescem no Gris.
Começo de imediato a esfolar o animal com a faca de que nunca me
desfaço. Arranco pedaços de carne fumegante à carcaça, os quais comprimo
no interior da mochila para mais caberem. O sangue satura a pele do alce.
De tempos a tempos, espreito por cima do ombro, atenta ao que me rodeia.
A tonalidade encarnada do céu arrefeceu, mostra-se azul.
O cheiro de uma forja ainda paira sob o fedor a cobre. Enfiando a mão
na cavidade corporal através do estômago aberto, corto mais um pedaço,
que acrescento aos restantes. Banha-me sangue quente da ponta dos dedos
aos cotovelos.
Estou a seccionar o fígado quando se levanta um uivo, eriçando-me os
pelos da cabeça aos pés. Apresso-me a cortar. Tendo esvaziado o abdómen,
dedico-me aos flancos. Trago uma pequena bolsa de sal pendurada no cinto,
mas esta proteção só me defenderá de um caminhante-das-trevas, talvez de
dois, se forem pequenos. O uivo transforma-se num rugido, e o meu corpo
fica hirto, o meu pulso dispara, pairando na crista de uma onda negra.
Acabou-se o tempo.
Com destreza, dispo o casaco pesado do meu corpo encharcado em suor
e retiro as luvas manchadas de sangue. Cerro os dentes ao ser abalada por
um arrepio agonizante. Faz horrivelmente frio. Um frio de matar. Desenrolo
a túnica seca de lã que envolvia o frasco de vinho e enfio-a pela cabeça,
puxando-a com força. Pelos deuses, não arrisquei duas semanas a atravessar
o deserto estéril para morrer assim. Se não regressar com esta comida, Elora
estará fadada ao mesmo destino.
Tendo removido as roupas encharcadas, enfio o conjunto sob a carcaça
sangrenta antes de trepar a árvore mais alta que encontro. A casca
congelada morde-me as palmas das mãos. Subo, subo, até alcançar o ramo
mais distante do solo, que protesta ante o meu peso. Estalam os nós dos
dedos, das mãos que cerro em punhos e aperto contra o calor do meu
estômago esfaimado.
O caminhante-das-trevas entra a cambalear na pequena clareira, embora
não consiga ver nitidamente a sua forma. Pedaços de sombra, paveias que
sangram negro sobre o branco. Investiga o alce caído durante algum tempo,
antes de rondar a zona. Um dorso inclinado e irregular, aquela cauda
ondulante como um chicote. Cerro a mandíbula para impedir que os dentes
batam.
A Sombra – a barreira que separa o Gris das Terras Mortas adjacentes –
devia, supostamente, prender os caminhantes-das-trevas à vida após a
morte. Mas o povo da região conta várias histórias de buracos na barreira,
fissuras por onde as criaturas penetram novamente na terra dos vivos em
busca de almas que as sustentem.
As criaturas não estão vivas, na verdadeira essência da palavra, mas o
caminhante-das-trevas pressentiu a alma recém-partida do alce. Oxalá
consiga distraí-lo da minha presença. Esperava levar a pele para fazer um
novo casaco para Elora, mesmo que o meu esteja cheio de rasgões em todas
as costuras. Mas não há tempo para esfolar o animal.
Por fim, a criatura afasta-se. Dez minutos é o quanto espero, com a
respiração suspensa, até o cheiro a queimado se dissipar. Só então desço da
árvore.
Da carcaça do alce levanta-se vapor. Falta cortar metade da carne –
alimento suficiente para dois meses. Por muito que me custe deixá-la para
trás, não me arrisco com um caminhante-das-trevas por perto. Temos de nos
desenrascar com um mês de comida, e se formos cautelosas, Elora e eu
ainda poderemos esticá-la mais tempo. Talvez surja outro animal, morto de
fome, a cambalear pelas terras.
Depois de vestir o casaco e calçar as luvas, ponho a mochila às costas e
enceto o caminho de regresso a Edgewood, vinte e tal quilómetros
carregando aquele peso. Ao fim do quinto quilómetro, perco a sensibilidade
nos pés, cara e mãos. O vento não amaina, por muito que reze a quantos
deuses me lembre, embora eles possivelmente estejam cientes de que perdi
a fé.
Caminho o dia inteiro. Cai a noite, escurecendo o bosque e matizando-o
de tons violeta. A menos de três quilómetros do fim, ouço-o. O som baixo e
lamurioso de uma corneta de chifre de carneiro sobe por cima do vale e faz
acelerar o meu pulso a um ritmo perigoso. O céu pressagiou uma tragédia
que se avizinhava, e não se enganou.
O Vento Norte acabou de chegar.
2

H ásolomuito tempo, o Gris era conhecido como sendo o Verde. A terra, este
de terra batida era, três séculos antes, uma imagem de vitalidade:
luxuriante e verdejante, com água límpida que cantava por cima das rochas,
e manadas de alces e veados, e aves canoras, tal como a carriça de quem
herdei o nome1. Não se conhecia a fome, pois a ninguém faltava alimento.
As cidades prosperavam, fortuna que se espalhava pelas povoações mais
afastadas. Até os rios fluíam de abundância, rumando a sul para as terras
baixas, a transbordar de trutas e amêijoas de água doce que eram apanhadas
e vendidas pelas suas margens fora.
A mudança não aconteceu de repente, mas ao longo de um ciclo, tal
como a lua: amadureceu, minguou, diminuiu até se extinguir a luz. Com o
passar dos anos, os verões iam ficando mais curtos, o inverno mais extenso
e profundo. O céu escureceu. O solo congelou e tornou-se pedra. O sol
enfiou-se atrás do horizonte e ausentou-se durante meses.
Depois veio a Sombra, como se erguida por mãos fantasmagóricas.
Ninguém lhe conhecia origem nem finalidade. Os caminhantes-das-trevas
materializaram-se, pesadelos incarnados. Afugentámo-los, mas regressaram
em massa, em sombras acumuladas. Por fim, o inverno envolveu a terra, e
nem o próprio sol foi capaz de quebrar a sua pele gelada.
Edgewood e as vilas próximas passaram fome, pois as colheitas
mirraram, os rios ficaram cobertos pelo gelo, o gado pereceu. Ganharam
vida os rumores, naqueles anos funestos. Supostamente, vivia um deus nas
Terras Mortas, para além da Sombra. Designando-se a si mesmo de Bóreas,
o Vento Norte: aquele que invoca as neves, o frio. Mas os habitantes do
Gris conhecem-no por Rei do Gelo.
Entro em Edgewood quando o crepúsculo se adensa em plena escuridão.
Um muro baixo de pedra empilhado com sal rodeia a humilde vila de
telhados de colmo e casas congeladas de lama compacta. Mesmo que haja
caminhantes-das-trevas a rondar na floresta, enquanto estiver dentro da
proteção do anel de sal, estou a salvo.
Não há qualquer movimento no interior da barreira. Cerraram-se
persianas, acenderam-se as lamparinas. As sombras deslizam pelas fendas
da velha estrada de pedra.
Ao passar ao lado de um dos baldes de sal comunitários, pendurado num
poste, reabasteço-me rapidamente. Trilhos estreitos serpenteiam pela neve
que cerca a praça desimpedida, cujo solo está cinzento e molhado das
inúmeras pisadas. A visão dos cones redondos do cipreste faz-me
atravessar, apressada, a zona desértica. Eu e a minha irmã não temos muito
tempo para os preparativos.
A nossa cabana fica no alto de uma colina, protegida por árvores mortas
há longa data. Entro sem demoras, chamando-a em voz alta enquanto fecho
a porta com o pé.
– Elora?
A lareira acesa emana calor que descongela a rigidez do meu rosto. As
tábuas de madeira do soalho gemem sob as minhas botas. Deposito arco e
aljava junto à porta e atravesso o espaço apinhado. A cabana só tem três
divisões, pelo que a busca termina antes de o coração bater dez vezes.
Está vazia, a casa.
Um terror vítreo enraíza os meus pés no chão. O Rei do Gelo não pode
ter já chegado. É demasiado cedo.
Um corno ressoa, avisando que o rei acabou de entrar no Gris. A Sombra
está a meras horas de distância, mesmo a cavalo, e a nossa cabana é a mais
afastada da entrada da vila, a mais pequena e facilmente ignorada. Estarei
equivocada? Se ele levou Elora consigo, fico sem nada.
Arrasto-me para a cozinha, apoio-me na mesa vacilante de três pernas. A
mochila, encharcada de sangue, tomba no chão com um baque húmido.
Se ele tiver escolhido Elora como vítima, em que momento terão
partido? Só podem dirigir-se para norte. Ainda os poderei alcançar em
passo de corrida, embora tenha a alternativa do cavalo de Miss Millie.
Tenho o meu arco. Cinco flechas na aljava. Garganta, coração, barriga. Se
as disparar todas, serão suficientes para matar um deus?
Abre-se então a porta das traseiras e a minha irmã entra, sacudindo a
neve do gorro de lã.
O alívio apaga-me as forças. Sinto os joelhos dobrarem-se, estalando o
soalho.
– Tu… – A palavra perde fôlego. – Não faças isso!
Elora interrompe o ato de fechar a porta, por onde entra o frio, e
pergunta com aquela carinha redonda enrugada numa expressão perplexa.
– Não faço o quê?
– Não desapareças assim!
– Que disparate, Wren. – Funga, sacode os flocos de neve dos ombros.
Uma trança comprida e esgrouviada cai-lhe até ao meio das costas. –
Estamos a ficar sem lenha. Já agora, o machado continua partido.
Pois. Mais uma tarefa para a minha lista. Tem de levar um cabo novo,
mas preciso de um machado que funcione só para cortar o cabo. Como é
natural, Elora jamais tentaria arranjá-lo de livre iniciativa.
Soltando um pesado suspiro, faço um esforço por me endireitar e
espreito o armário. Perante a expressão reprovadora de Elora, desvio o
olhar, embora a minha garganta me peça o contrário.
– Promete-me que não sais de casa sem me dizeres. – Começo a andar de
um lado para o outro. É um hábito, uma forma de sentir que controlo as
coisas. – Pensei que ele te tinha levado. Já planeava roubar um cavalo
algures. Imaginava até a forma mais eficaz de matar um homem que não
pode morrer.
– És tão dramática!
Como se fosse uma insignificância, temer pela vida da minha irmã.
– Não sou dramática. Sou… – Lívida é a expressão que me vem à
cabeça. Segundo a mãe, não vim ao mundo pacificamente. Não, a parteira
viu-se obrigada a arrancar-me do útero porque eu não queria, e debatia-me
contra ela. – Resoluta – arremato de forma escorreita, prendendo uma
madeixa de cabelo atrás da orelha.
Elora faz uma expressão carrancuda. Deve ter aprendido comigo.
Embora tenhamos uma aparência quase idêntica, os nossos corações batem
com ritmos diferentes. Os olhos dela são dois pedaços de carvão negro,
cheios de vida. Os meus são distantes, desconfiados, cautelosos. A pele dela
é imaculada, de um tom umbroso forte, em vincado contraste com a cicatriz
saliente e enrugada que mutila a minha face direita. O cabelo escuro de
Elora é liso como um alfinete, enquanto o meu tem a frustrante mania de
criar caracóis. É minha gémea, mas o oposto de mim em todos os aspetos.
Olhar para Elora é como ver-me ao espelho – daqueles que mostra quem
eu fui, antes de ficarmos órfãs. E agora? Bem. Já derramei sangue mais
vezes do que me apetece admitir. Matei homens, vendi o corpo, roubei
amiúde, tudo por um pouco de comida, ou de calor, ou de moedas, ou pelas
ervas secas que Elora adora usar quando cozinha. Algo tão irrisório, e,
contudo, para ela, tão raro e valioso.
Elora ignora tudo isto. Ela é demasiado mansa para este mundo,
demasiado boa. Jamais sobreviveria nas Terras Mortas.
– A questão é que – afirmo – não podemos continuar aqui. – Pouco
demoraria fazer as malas, pois as nossas posses são parcas.
– O quê? – recua. – Quando é que decidiste isso?
– Agora mesmo. – Viajaremos para sul, oeste, leste. Nunca para norte,
pois é onde ficam as Terras Mortas.
Um sorriso fátuo toca-lhe na boca.
– Só podia ser.
– Vem comigo. – Dou meia-volta, alcançando as suas mãos esguias. –
Abandonaremos este lugar de vez, começaremos noutro lado…
– Wren. – Com calma, Elora desprende os dedos dos meus. Sempre foi a
mais sensata das duas. – Sabes bem que não podemos fazer isso.
As visitas do Vento Norte ocorrem com intervalos de poucas décadas.
Uma mulher, que ele leva consigo para outro lado da Sombra por motivos
desconhecidos. Uma mulher que morre para que as outras vivam. Nesta
vida, há pouco que eu adore, além de Elora, e pergunto-me se me aguarda
ainda mais sofrimento.
Na semana passada, todas as mulheres com idades compreendidas entre
os dezoito e os trinta e cinco anos tiraram à sorte para escolher a que se
ofereceria como sacrifício. Calharam os paus mais curtos a sete delas,
incluindo a minha irmã. Se tentar fugir a este destino, será condenada à
morte. Eis a lei de Edgewood.
– Não quero saber – sibilo, já a sentir lágrimas nos olhos. – Se ele se
apoderar de ti…
O olhar dela suaviza-se.
– Não o fará.
– Se acreditas nisso, és tola. – Elora é a mais adorável de todas as
mulheres da nossa aldeia. Todas as quinzenas, algum homem pede a mão da
minha irmã em casamento. Mas, por razões que desconheço, ela ainda não
aceitou nenhuma das ofertas. A flagrante falta de preocupação com a
ameaça que se avizinha revela o quão diferentes são as nossas prioridades e
reforça os papéis que acabámos por assumir ao fim de tantos anos.
Elora e eu tínhamos uns tenros quinze anos quando, pouco depois de
ficarmos órfãs, descobrimos o verdadeiro fardo da solidão, os temíveis anos
que se apresentavam diante de nós, qual estrada escura sem fim. Foi então
que aprendi a usar o arco. Foi então que chacinei os caminhantes-das-trevas
para que Elora pudesse descansar de consciência imaculada. Era, afinal, o
papel para que tinha sido moldada pelos nossos pais: guardiã, defensora.
Porque se deveria ela preocupar, se eu estava aqui para a proteger? Mas
nem eu sou capaz de enfrentar um deus e sair vencedora.
Elora dirige-se a um dos caixotes encostados à parede. Abrindo a tampa,
revela o escasso conteúdo – carne salgada suficiente para apenas dois dias,
se tanto – e enfia uma tira de carne seca na minha mão.
– Come alguma coisa, por favor. Deves estar esfaimada depois da
viagem.
– Sinto-me agoniada.
– Então, senta-te. Quiçá ajude.
Não é de uma cadeira que preciso. A tensão entranhou-se-me tanto nos
ossos que é impossível separá-la dos próprios. Por isso, lanço mão ao
armário que contém o vinho, tiro uma das garrafas e saco a rolha. Mal a
bebida me beija a língua, o nó emaranhado na base da espinha começa a
desfazer-se, e a minha mente recupera a clareza. Dois outros goles, e sinto-
me mais recomposta.
– Wren.
Aperto com força o gargalo. Volto a beber, dentes expostos enquanto o
ardor se acentua, abrindo um sulco ao deslizar para o meu estômago.
– As tuas censuras, agora, não ajudam em nada. Noutra altura.
– Não é nada saudável.
Fungo de desdém.
– Menos saudável é sacrificar as nossas mulheres a um deus vingativo. O
que tem de ser, tem muita força.
Ela suspira, e eu afasto-me, repondo o vinho no armário. Ignoro-a. Esta é
a conversa que nunca muda. Elora pede aquilo que não lhe posso conceder.
Pede-me demasiado.
Tiro um pedaço de lã dobrada do bolso do peito do casaco.
– Encontrei um comerciante durante a viagem. Disseste que o teu
cachecol estava a ficar gasto.
Os olhos reluziram ao ver o presente. Temos tão poucas posses.
– O que é isto? – Suspira de prazer ao desenrolar o lenço, que mostra a
imagem de ondas grandes formando um enorme mar, embora nunca
tenhamos visto uma extensão de água, salvo o Les congelado, o rio que
separa o Gris das Terras Mortas.
– Isto é lindo – solta ela, enrolando o tecido azul à volta da garganta. –
Que tal me fica?
– Adorável. – Haverá outra palavra que descreva a minha irmã? – É
quente?
– Bastante. – Ajusta o tecido, mas interrompe-se. – O que é isso? –
Aponta para o livro do tamanho da palma de uma mão que espreita do bolso
do meu casaco.
Fico hirta.
– Ah, isto? – Um sorriso ligeiro e casual. – Nada.
Elora puxa-o do bolso, estuda a capa. É tão antigo que as páginas se
mantêm unidas por meros fios.
– A Paixão do Rei. Uma história de amor? – Ela esboça um sorriso. –
Não sabia que gostavas destas coisas.
As minhas faces ficam da cor das rosas.
– Não sei, mas ele ofereceu um preço justo. – É verdade em parte.
– Ah – diz ela, como se fizesse perfeito sentido. Elora que acredite se
quiser. Nunca lhe dei motivos para pensar de forma diferente. Como a
minha irmã raramente lê, é minha a maioria dos livros espalhados pela
nossa cabana. As sólidas capas de pano escondem com eficiência as
histórias enfiadas naquelas páginas. Não quero de modo algum que Elora
descubra A Paixão do Rei, ou qualquer que seja o título da minha atual
leitura.
O corno solta um lamento, sacudindo as paredes da nossa cabana.
Encaro Elora. Ela responde ao olhar.
– Está quase na hora – murmura.
Cerro os punhos para abafar o tremor. No fim da noite, uma mulher a
menos habitará Edgewood. O Rei do Gelo já me tirou muito, e ameaça levar
mais, aquilo que me é mais querido.
– Elora, por favor. – A minha voz falha. – És tudo o que me resta.
Não me ajoelho por ninguém, mas implorarei pela minha irmã, pela vida
dela. Quanto à minha, não me importa. Não faço parte das mulheres que
serão oferecidas ao rei para o sacrifício. Além disso, a cicatriz torna-me
indesejável.
– Vai correr bem. – Contornando a mesa, ela puxa-me para um abraço
cheio de calor. Sálvia, doce e terrosa, perfuma-lhe o cabelo. – Esta noite,
assim que o rei tenha partido, nós as duas faremos um bolo para celebrar.
Que te parece?
Semicerro as pálpebras.
– Como é que fazemos o bolo sem farinha? – E açúcar. Bem, e tudo o
mais que o bolo tipicamente leva. Não se fazem bolos com neve e
pedrinhas.
Elora limita-se a sorrir com ar de segredo.
– Há uma maneira.
Adoro bolos, mas não compensa o meu desconforto. O ar, nesta noite,
tresanda a fedor.
– Não gosto nada disto – resmungo.
O riso de Elora é como um sino de vento.
– Wren, não costumas gostar de nada.
– Isso não é verdade. – Sou apenas seletiva no que toca a exprimir
entusiasmo, só isso.
– Anda. – Puxa-me para a porta de entrada, chapéu na mão, levantando o
meu capuz até me cobrir as orelhas. – Acho que Miss Millie precisará de
quem a ajude nos preparativos finais. Tudo tem de estar perfeito.

O acolhimento do Vento Norte envolve um grande banquete em sua honra.


Em teoria, haverá uma refeição decadente com muitos pratos, como se ser-
se escolhida, sonegada para as Terras Mortas, fosse motivo para celebrar.
Mas a realidade é que Edgewood se desvanecer de ano para ano. Nada
cresce no solo gelado. O gado, aparte algumas cabras subnutridas, morreu
todo.
Portanto, este grande banquete é ligeiramente melhor do que uma
insignificância. Edgewood não dispõe de um vasto salão para receber o rei,
nem leitões assados no espeto e uma extravagante variedade de carnes
cristalizadas ou raízes cortadas em cubos. Pelo contrário, colhem-se duras
bagas de árvores de folha perene, sem caroço, e esmagam-se para formar
um molho ácido da cor do sangue. Há sopa: água salgada que se aromatiza
com ervas murchas. A carne – de bode velho – é o prato menos apetitoso
que conheci na minha vida.
Oxalá o Rei morra engasgado com aquilo.
A comida pode não ser do seu agrado, mas não foi o que o trouxe aqui.
As sete mulheres que tiraram a sorte, encantadoras e imaculadas, todas elas,
estão agora reunidas no salão da vila, onde foi posta uma mesa comprida
para a refeição da noite, com o fogo a aquecer a lareira de pedra. Estão
vestidas a rigor: vestidos de lã cingidos à cintura; cabelo lavado e penteado
e entrançado; meias compridas e grossas e sapatos de cerimónia gastos.
Disfarçaram a pele ressequida do vento com óleos e cremes coloridos.
Sorrio ironicamente. A minha imperfeição não pode ser camuflada com
igual facilidade.
– Como é que eu estou?
Viro-me ao ouvir a voz de Elora. Um vestido azul pelo joelho, que lhe
costurei há anos, acompanha a sua esbelta figura, e meias pretas mostram
pernas sinuosas. Pestanas escuras, enroladas, protegem o olhar virado para
baixo. Aquela boca de cereja contorce-se com os nervos.
Embora tente manter a voz nivelada, soa incerta.
– Pareces a mãe.
O comentário torna-lhe os olhos lacrimejantes. Elora acena com a
cabeça, uma única vez.
Quanto mais tempo fico a olhar para a minha irmã, mais intensas são as
dores de estômago. Ele vai levá-la consigo. É demasiado adorável para
escapar à sua atenção.
Miss Millie, uma mulher de meia-idade que gosta tanto de coscuvilhar
como de se afastar do marido, surge da cozinha, trazendo dois jarros de
madeira. Os olhos raiados de sangue e as bochechas coradas revelam uma
perturbação cada vez maior. A filha mais velha faz parte das sete.
– Copos – pede com rispidez.
Encho os copos com água. Raios, que me tremem as mãos. As mulheres
recolhem-se a um canto como uma manada de veados ao frio. Não
conversam. O que há para falar? No fim da refeição, uma delas será
escolhida, e nunca mais voltará.
O rapaz mais novo de Miss Millie, com doze anos, acende a última das
lamparinas. Do outro lado dos estores corridos das janelas, o povo da vila
aguarda na praça pela chegada do rei. A última visita aconteceu há mais de
trinta anos, antes de termos nascido, eu e a minha irmã. Levou então uma
mulher chamada Ada para além da Sombra. Tinha apenas dezoito anos.
Ponho-me a alisar as rugas da toalha branca de mesa, e ouço – o embate
de cascos sobre a pedra.
As mulheres apertam-se, agarram as mãos umas das outras. Ninguém
solta um único pio. Até a respiração está suspensa. O olhar de Elora
encontra o meu através do espaço.
Seria capaz. Agarrar na minha irmã pela mão, fugir pela cozinha, rezar
para que a neve escondesse o nosso rasto dos aldeões enviados para
capturar Elora e entregá-la à justiça.
– Aos vossos lugares – sibila Miss Millie, fazendo sinal para que as
mulheres ocupem os lugares à mesa. O barulho enche o espaço: cadeiras
deslocadas, panos que sussurram, o temido galope cada vez mais próximo.
Avanço para junto de Elora, mas Miss Millie agarra-me pelo braço. As
unhas enterram-se na carne. Não sou capaz de as soltar.
– Solte-me.
– Demasiado tarde – avisa. Os tufos de cabelo grisalho colam-se-lhe ao
rosto suado, redondo. As rugas nos cantos da boca ficam vincadas.
– Ainda há tempo. Empreste-nos o seu cavalo. Levarei a sua filha
connosco…
Passos.
Miss Millie empurra-me para um canto quando a porta de entrada se
abre. As dobradiças guincham como um animal mutilado. À volta da mesa,
as mulheres retraem-se, encolhendo-se nos assentos, vendo irromper na sala
um vendaval, que apaga metade das lamparinas e mergulha o espaço numa
semipenumbra. Fico hirta contra a parede do fundo, sentindo a boca seca.
Entra então uma figura imponente, traçada a negro contra as sombras.
Com capa e capuz, solitária.
Inclina-se para passar a ombreira, pois as casas têm tetos baixos e
inclinados para conservar o calor. Ao endireitar-se, o cimo da cabeça roça
as vigas, as trevas enovelam-se no interior do capuz, onde brilham dois
pontos luminosos.
Miss Millie, abençoada seja, arrasta-se em frente. Está lívida de terror.
– Meu senhor.
Ele ergue a mão. Ouve-se um arfar de medo.
Mas ele limita-se a baixar o capuz, revelando um semblante de uma
beleza tão aflitiva que não consigo encará-lo por muito tempo antes de
desviar a vista. E, contudo, não passam mais que alguns segundos antes que
a minha atenção ali regresse, atraída por uma compulsão inominável para o
estudar com mais pormenor.
É como se o rosto fosse talhado em alabastro. A luz fraca das lamparinas
ilumina o plano liso da testa, as angulosas maçãs do rosto, o nariz reto,
aquele maxilar cristalino. E a boca… bem, nunca vi uma boca tão feminina
num homem. O tom de carvão do cabelo absorve a luz, preso numa curta
causa na nuca. Os olhos, um azul cintilante e glacial, brilham com uma
intensidade desconcertante.
Aperto com força uma das facas colocadas sobre a mesa. Não me atrevo
a respirar. Nem sei se consigo, dadas as circunstâncias. O Rei do Gelo é o
ser mais belo que já vi, e o mais odioso. Convoco todas as minhas forças
para me impedir de lhe cravar a lâmina no coração. Assumindo que o tenha.
Ele avança um passo, e as mulheres levantam-se num ímpeto. O Rei do
Gelo ainda não se pronunciou. Nem precisa. Tem a atenção delas, e a
minha. Preparámo-nos para este momento.
A julgar pela fria repugnância que lhe contorce o lábio superior, está
descontente com a falta de receção. Luvas pretas apertadas envolvem-lhe as
mãos em cabedal liso. Largos ombros esticam o material pesado da capa,
que então retira, exibindo uma túnica apertada da cor de uma nuvem de
tormenta, botões de prata traçando uma linha em direção ao colarinho que
lhe estrangula o pescoço. Em baixo, traz culotes justas da cor de carvão e
botas gastas do uso. Um punhal prende-se à cintura.
Desvio a atenção para a sua mão direita, que segura a haste de uma lança
com ponta de pedra. Juro que não a trazia há um mero segundo. Mas
desaparece logo a seguir, e várias mulheres suspiram de alívio.
Largo aos poucos a faca, até deixar o utensílio cair no chão. O retinir
metálico desperta Miss Millie. Tira-lhe a capa das mãos, pendura-a num
pregador ao lado da porta, puxa uma cadeira para a cabeceira da mesa, cujas
pernas raspam o chão. O Rei do Gelo senta-se.
As mulheres imitam-no.
– Sejais bem-vindo a Edgewood, meu senhor – diz calmamente Miss
Millie. A atenção dela desliza para a mulher sentada imediatamente à
esquerda dele: a filha. As mulheres também tiraram à sorte para decidir
quem teria o infortúnio de se sentar ao lado do Rei durante a refeição.
Felizmente, Elora ficou na outra ponta da mesa.
– Esperamos que apreciais o repasto que preparámos para vós. – O rei
examina o cardápio, nada impressionado. – Infelizmente, a nossa colheita
tem sido fraca nos últimos anos.
O que ela quer dizer é que não tem havido colheita.
– A sopa é uma das nossas especialidades…
Ele ergue a mão em sinal de silêncio, e a voz de Miss Millie extingue-se,
as papadas abanam ao engolir em seco. Está tudo dito, é o que rei parece ter
decidido.
É o mais demorado e lancinante jantar alguma vez feito. Os copos
tilintam enquanto eu e Miss Mellie voltamos a encher as bebidas,
substituímos guardanapos sujos. Ninguém fala. As mulheres, compreendo:
não querem chamar a atenção do rei. Mas o convidado não tem motivos
para isso. Não vê que lhe oferecemos o pouco alimento que nos resta? Nem
sequer uma palavra de agradecimento?
Elora mal toca na comida. Debruça-se sobre o prato, tentando parecer
mais pequena – sob recomendação minha –, mas não escapa ao olhar do Rei
do Gelo. Pois é na direção dela que o seu olhar se fixa, de tempos a tempos.
Os meus nervos destroçam-me lentamente. Quando a pressão no peito
ameaça esmagar-me os pulmões, refugio-me na cozinha, procuro o cantil
que trago à cintura e dou um trago generoso. Os meus olhos picam com o
ardor que parece um salvamento, uma redenção. Devíamos ter fugido
enquanto podíamos. Agora é demasiado tarde.
Respiro fundo, volto para a sala de jantar. O jantar arrasta-se, e eu
continuo a servir o vinho. As mulheres emborcam o líquido, copo atrás de
copo, gotas vermelhas escorrendo pelos lábios exangues, faces
profundamente coradas. A minha garganta desata a queixar-se com uma
violenta ânsia. A meio da refeição, já tenho o cantil vazio.
O Rei do Gelo mal toca no vinho. Tanto melhor. Não tenciono servi-lo,
de qualquer maneira, forma ou feitio, a não ser que seja para lhe mostrar a
porta.
Infelizmente, Miss Millie não partilha deste sentimento.
– Meu senhor, o vinho não é do vosso agrado? – Aquela demonstração
de interesse agonia-me. Deve julgar que, se o tratar bem, ele poupará a sua
filha e escolherá outra.
Como resposta, ele leva o líquido escarlate à boca e esvazia o copo, com
um olhar baço por cima da borda. É como se as pupilas guardassem uma
réstia luminosa, e não a própria luz.
Sou então obrigada a tratar das suas necessidades. Aproximando-me do
Rei do Gelo, ponho-me a encher-lhe o copo. Mas, no decurso deste
processo, os nossos braços embatem e o vinho derrama-se no colo dele.
Gela o meu sangue, as minhas veias.
O olhar do Rei do Gelo é uma coisa lenta e rastejante que se arrasta da
mancha, entretanto espalhando-se ao longo da túnica, até à garrafa que
ainda seguro e se fixa por fim no meu rosto. Os seus olhos de tom azul-
pálido exalam uma frieza devoradora que desliza pela minha cicatriz
franzida. A pele velha e calejada há muito perdeu a sensibilidade, mas juro
que começou a picar ante o seu escrutínio, como se a sua atenção fosse um
toque físico.
– Pede perdão ao rei! – exige Miss Millie com um guincho.
O que é um pouco de vinho, comparado com a perda de uma vida?
Não, vou guardar esse pedido para mim mesma. Duvido que ele lhe dê
valor.
– Só se o rei pedir perdão por se apoderar das nossas mulheres.
Há quem arfe de espanto. O rei examina-me como se visse um animal
pequeno, mas não sou caça.
– Meu senhor, peço perdão pelo comportamento absolutamente
deplorável dela…
Ele ergue uma mão de dedos compridos, totalmente concentrado em
mim. Miss Mille cala-se.
– Como te chamas?
O título que enverga também se estende à sua voz. É baixa, profunda,
assolada por uma falta de emoção sinistra.
O meu silêncio faz as mulheres remexerem-se, desconfortáveis, nos seus
assentos. A temperatura cai a pique, apesar da lareira. O Vento Norte pode
ser um deus, mas eu não me vergo. Tenho o meu orgulho, mesmo se não
tiver mais nada.
– Estou a ver. – Ele bate na mesa com a ponta do dedo.
– Wren, meu senhor. Ela chama-se Wren! – Elora inclina-se para diante
na cadeira, agarrando os braços desta com força. Um exalar abafado
acompanha aquela reação.
Ranjo os dentes, frustrada, embora sinta o estômago oco. Eis
precisamente o que temia: Elora e o seu coração condoído, uma expressão
que garantidamente vai atrair a atenção do rei.
– Wren – diz ele. Nunca ouvi uma palavra tão elegante. – Como a ave
canora.
Não restam aves canoras no Gris. Ou morreram ou voaram para outras
bandas.
Depois de me examinar demoradamente o rosto, a atenção dele transita
para Elora. Quero arrancar-lhe os olhos pela forma como a devoram.
– Há uma certa parecença entre as duas.
– Sim, meu senhor. – Elora baixa a cabeça num gesto de respeito.
Merecia que lhe desse uma bofetada por isso. – Somos irmãs. Gémeas
idênticas. Chamo-me Elora.
Um inclinar peculiar da cabeça, enquanto nos compara. Sem dúvida que,
em mim, só vê defeitos.
– Levanta-te – exige.
Elora empurra a cabeça para trás, mas a minha voz dispara:
– Senta-te.
Ela detém-se, mãos curvadas sobre a berma da mesa. A atenção salta
entre mim e o Rei do Gelo. Entretanto, Miss Millie está prestes a desmaiar.
Uma luz incerta cintila nas suas pupilas estreitas, como uma vela sob o
peso das trevas. Põe-se de pé num único gesto fluido, sobressaltando-me.
Suponho que ninguém antes se atrevera a desafiar as suas ordens. Ninguém
seria tão insensato.
– Vem – diz numa voz que parece um trovão, e Elora arrasta-se na
direção dele, submissa e débil. Vê-la assim, derrotada, violenta-me da
cabeça aos pés. Como ousa ele? Não somos escravas. Somos pessoas com
corações pulsantes no peito e ar nos pulmões e vidas que conseguimos
arrancar a esta maldita existência gelada.
Elora para diante dele, e o rei levanta-lhe o queixo com o dedo,
proferindo:
– Tu, Elora de Edgewood, foste escolhida, e irás servir-me até ao fim dos
teus dias.

1. Wren, em inglês. (N. do T.)


3

A travesso intempestivamente a sala e empurro Elora para trás de mim.


– Não a podeis ter.
No meu íntimo, sabia que isto seria uma possibilidade. A minha irmã é o
epítome da vida, e vida, para o Rei do Gelo, é o que escasseia no seu reino.
Consegui convencer-me de que haveria uma candidata mais adequada,
talvez Palomina, com os seus olhos de corça e o seu sorriso com falta de
dentes. Ou Bryn, cujo riso ilumina as situações mais negras. Mas não. Ele
acabaria sempre por escolher Elora, a mais bela de todas.
O rei olha-me de cima a baixo, como se eu fosse uma mosca que ainda
não enxotara.
– Não tens escolha na matéria. Ela é o meu prémio. Ela vem comigo.
– Ela não vai a lugar nenhum.
As outras mulheres encolhem-se ainda mais nas cadeiras com o acentuar
do confronto. Por um instante, juro que algo negro deslizou pelo olhar do
rei, apagando momentaneamente os finos aros azuis.
– Wren... – Elora toca-me nas costas. – Não faz mal.
– Não. – A minha voz vacila. – Escolhei outra.
A expressão do Rei do Gelo torna-se ameaçadora. É como se expandisse
de altura, sem se ter mexido. Grita o instinto que eu devia encolher-me,
representar menor ameaça. Uma rajada de vento abre com força as
persianas, e a sala fica cheia de cheiro a cipreste, que expulsa o calor. Pisco
os olhos com ar parvo. A lança dele ressurgiu. A ponta de pedra está virada
para cima, enquanto o outro extremo da haste descansa nas tábuas
empenadas do chão.
– Muita cautela, mortal – avisa ele, em voz baixa –, ou a tua insolência
trará a desgraça a esta vila. Fiz a minha escolha. Não haverá mudanças.
Afasta-te.
– Não o farei.
A sua fisionomia permanece uma ardósia vazia de emoções. Mas a lança
começa a zumbir, a ponta lançando um brilho sinistro. Que poder reside
nesta arma? Que desgraça causará ele, se eu continuar a negar-lhe a
vontade?
– Por cada minuto que atrasares a minha saída – diz –, uma destas
mulheres morrerá.
Leva a mão na direção da filha de Miss Millie, que grita, tentando
afastar-se da cadeira, mas os dedos dele enrolam-se na gola do vestido da
rapariga, deitando-a de costas em cima da mesa. Comida e vinho
conspurcam-lhe o vestido. A cadeira tomba para o lado. A loiça desliza e
parte-se no chão.
– Por favor! – guincha Miss Millie. Os olhos reviram-se com o terror das
presas. – Ela não, por favor! – Pelas janelas abertas, discirno as gentes da
povoação, os seus rostos pálidos como espectros. A filha de Miss Millie
consegue soltar-se, mas ele agarra-lhe logo o braço.
Usando o impulso dela, o rei puxa-a para si, enquanto ergue a lança com
a outra mão. A ponta desta brilha com uma luz cor de pérola.
– Parai! – A voz de Elora ofega de terror. Contorna-me. – Não lhe façais
mal. Eu irei convosco. – Os olhos escuros e arregalados cruzam-se com os
meus, pedindo silenciosamente que eu não me intrometa na decisão.
O Rei do Gelo encara a minha irmã, e depois a mim.
– Virás sem estardalhaço? – Embora a pergunta se dirija a Elora, o olhar
dele nunca abandona o meu rosto.
– Sim. Mas não façais mal a ninguém. – Crédito lhe seja dado, foi capaz
de responder sem se atrapalhar.
– Muito bem. – Ele liberta a sua cativa, que cai enrolada no chão. Miss
Millie acode-lhe, tomando a filha nos braços, e ambas soluçam
histericamente.
O Rei do Gelo estende-lhe a mão.
– Vem.
A tremer, Elora pousa os dedos sobre os dele. O rei começa a puxá-la
para a porta.
Num segundo, estou calma. Logo a seguir, sou consumida por um ódio
tão destruidor que despedaça o que resta do meu sangue-frio. Reajo antes de
ter noção, tirando a faca da mesa e espetando-a contra o tronco do rei. A
lâmina enterra-se no baixo-ventre.
Ouve-se uma exclamação coletiva.
Jorra líquido quente na minha mão. Negro brilha na luz fraca, ao
despejar-se no soalho.
O rosto do Rei do Gelo torna-se mais acutilante. Olha-me fixamente
como… como se nunca tivesse vivido nada parecido. Viera na convicção de
que teria alimento e bons cuidados, antes de partir com o prémio, mas,
afinal, fora esfaqueado com, veja-se só, uma faca de cozinha.
Os meus dedos torcem-se em volta do cabo de madeira. Trata-se do Rei
do Gelo, o Vento Norte, cujo poder chama o inverno à terra, mas espanta-
me o calor que dele emana em ondas de pura e aguçada fúria.
Os dedos dele envolvem os meus, interrompendo-me o pensamento. O
cabedal preto, frio, aperta a minha pele febril, enquanto remove a faca do
corpo, o olhar taciturno e inflexível, e obriga o meu punho a ceder, para que
a arma caia no chão a tilintar. Segundos depois, o sangue coagula e a pele
unifica-se. Uma ferida totalmente sarada.
Um possante estrondo de trovão percorre a sala. Quando o rei volta a
pronunciar-se, é com uma voz que enche o meu espírito com uma presença
indomável.
– Recorda, mortal, que sou um deus. Não posso morrer. – Faz uma
pausa, para a informação assentar. – Mas a tua irmã certamente pode.
Desembainhando a lança, dá um puxão a Elora pela trança, contra si,
descobrindo-lhe a curva da garganta, a pele pálida e imaculada e tão fina
que expõe as veias azuis transluzentes sob a superfície.
– Esperai!
Elora treme. Os meus joelhos embatem um no outro, enquanto o vento
acalma até se calar. Uma das mulheres desmaiou.
– Rogo-vos – digo, a palavra como pedra na garganta. – Rogo-vos, não a
magoeis. Levai-me antes a mim.
Os cantos da boca dele curvam-se ligeiramente.
– Serás talvez a última mulher que eu levaria, pois não és bela nem
obediente.
Coisas que já me disseram no passado. Ainda assim, avanço com pés de
chumbo.
– Dizei-me o que devo fazer. Como me penitenciar.
O Rei do Gelo avalia-me, imperturbável e impassível.
– Ajoelha-te.
Aperto os lábios.
– Desculpai-me?
– Queres o meu perdão? Ajoelha-te. Demonstra o teu arrependimento.
Olho para Elora. Fios do cabelo dela pendem da luva do rei, quais
fragmentos de uma teia de aranha desfeita.
– Wren – murmura Elora, lágrimas molhando-lhe as faces.
A súplica dela desperta uma reação instantânea em mim. O Rei do Gelo
ordena que me ajoelhe, e assim faço. Os meus joelhos tocam no chão. A
raiva incendeia a minha pele num rubor que se espraia e me aquece da
barriga ao rosto. Por Elora. E mais ninguém.
Durante algum tempo, só há silêncio. Depois:
– Vai – rosna ele, empurrando Elora para a porta –, e prepara a tua irmã
para a viagem. Partiremos daqui a uma hora.
Corremos como se os próprios deuses tivessem acendido uma lareira
debaixo de nós. Levantou-se, entretanto, uma tormenta, descendo sobre
Edgewood como um castigo.
Uma vez dentro da nossa cabana, arrasto Elora para a lareira, cravando
os dedos na carne gelada com tal força que lhe deixarei nódoas negras.
– Elora. – Sacudo-a. O choque tornou-lhe os lábios brancos. – Olha para
mim.
Não verificando alterações na expressão, aplico-lhe uma bofetada na
cara.
– Wren... – O choque torna-se confusão e enfim, horror. É terrível de
assistir.
Os olhos negros de Elora trespassam-me como se não estivesse aqui. São
janelas fechadas, sem brilho que as ilumine. Mansamente, faço-a sentar
numa cadeira e pego num cobertor, com o qual lhe cubro os ombros.
Sabia que isto iria acontecer, no meu profundo íntimo. Elora não quis
contemplar o pior resultado desta situação, mas eu ponderara todas as
alternativas. O que faria, se o Rei do Gelo escolhesse a minha irmã, na sua
demanda, como prisioneira?
Tudo. Faria de tudo.
Ponho água a ferver, tiro alfazema seca da despensa, mais um pó fino
chamado manimosto. Assim que a água ferve, deposito a infusão e abro o
frasco com o pó. Uma pequena dose faz dormir durante uma hora, uma dose
grande dura metade do dia.
Use-se então uma colher grande.
Elora não testemunhará os horrores das Terras Mortas, sejam quais
forem. Sonha em casar com um homem que ame, cuidar de um lar, criar
filhos. Se essa possibilidade lhe for tirada, morrerá, sem dúvida.
Mas, e eu? Ninguém se importará com a minha ausência. Talvez seja
preferível para todos se eu ocupar o lugar dela. Elora, livre do vício da irmã,
da mulher cujos dias são marcados pela névoa doce, cujo hálito nunca está
limpo, e cuja utilidade como que diminui, ano após ano.
– Bebe. – Coloco a caneca nas mãos dela, que tremem.
Ela prova, franze o nariz e emborca o resto. Além das paredes da casa, o
vento geme, pontapeando o telhado. Não me resta muito tempo para
remediar a situação, mas o que há, basta.
– Não quero ir, Wren. – Ela treme com tamanha violência que a caneca
lhe escorrega das mãos e se desfaz aos seus pés. – Devia ter-te dado
ouvidos. Desculpa, desculpa. – O rosto desaba. – Agora é demasiado tarde.
Demasiado tarde.
Uma sensação de quente ardor inunda os meus próprios olhos. Há anos
que não choro. Desde a morte dos nossos pais. Aperto-lhe a mão com força.
Tem a pele da temperatura do gelo.
Ela mantém o olhar fixo em diante, lágrimas agarradas às pestanas.
– Viste-o? Que comportamento tão insensível durante o jantar. – Funga
novamente. – Nem sequer agradeceu a Miss Millie pela comida – diz com
ar chocado.
– Que convidado horrível – concordo.
– Nem acredito que o esfaqueaste.
– O homem é um perfeito sacana. Merecia.
Elora escarnece, pálpebras já visivelmente pesadas.
– Sempre foste muito mais imprudente do que eu.
A afirmação magoa-me. Posso ter agido com imprudência, mas foi
apenas para a proteger.
Um líquido transparente escorre-lhe do nariz. Ajoelhando-me diante
dela, uso um pano velho para lhe limpar a cara, como fazia quando éramos
pequenas. Numa voz roufenha, ela sussurra:
– O que me irá acontecer?
Não quero mentir-lhe, mas não posso revelar a minha intenção. Elora
tem de viver, e como mulher livre.
– A ti, nada – digo com voz mansa, ao ver o queixo dela tombar contra o
peito. – Juro.
– Não me abandones. Fica aqui… até chegar a hora.
– Não estás sozinha. – Embora eu tenha partido, a população irá garantir
que será bem cuidada.
– Promete-me – murmura.
– Prometo.
Logo a seguir, já dorme.
Apanho-a quando se inclina para a frente, levantando-a nos braços. A
distância dali à cama, que partilhámos toda a nossa vida, é curta. A forma
do corpo inanimado torna-se uma sombra mais escura ao encontro da
penumbra coletiva. Está viva. A salvo. Quando acordar, já terei partido há
muito. Só lamento que não me possa despedir convenientemente.
– Adoro-te – murmuro à semiescuridão, depositando um beijo leve na
cara dela. – E peço-te perdão.
Sem perder tempo, dispo a minha irmã. Empilho os cobertores em cima
dela, e atiço o lume até expulsar o frio. Enfio o vestido que Elora usava, e o
meu casaco. Enrolo um lenço na metade inferior do rosto, para que tape
tudo, incluindo a cicatriz, menos os olhos. Desde que me mantenha calada,
o Rei do Gelo jamais perceberá a diferença.
Escolho dois punhais, um dos quais guardo na bainha do braço. O
segundo punhal faz companhia à sacola de sal que levo à cintura. Também
tenho o meu cantil, enfiado no bolso do casaco. Deixo para trás o arco.
Atrapalha demasiado e fará mais falta a Elora do que a mim, não obstante a
sua atrapalhação com a arma. Talvez lhe dê outro uso. Como madeira para a
lareira, por exemplo. Nunca cheguei a arranjar o machado partido.
Endireito-me e avanço para a porta. Olho para a minha irmã pela última
vez, e saio para o frio.
Regresso ao salão, apertando com força o casaco. Neve recente estala
quando a piso. O Rei do Gelo aguarda ao lado do corcel, que, depois de
uma inspeção mais atenta, se revela não ser um cavalo. Detenho-me.
O animal é desprovido de pele e pelo. Manifesta-se como uma sombra
semitranslúcida com forma equídea. Um focinho afilado. Um pescoço
arqueado. Buracos em vez de olhos, cujo interior contém nuvens escuras em
movimento.
– Caminhante-das-trevas – sussurro, e o som espalha-se como um
incêndio por entre a multidão reunida. A criatura levanta a cabeça, mirando-
me com um olho arregalado. Bate uma das patas dianteiras no chão, e
apesar da qualidade transparente da forma, o ruído do casco contra a pedra
tem um som nítido.
– Não desperdices sal – informa-me o rei, segurando as rédeas com a
mão.
Paro, reparando que levei a mão à sacola.
Embora não formule a pergunta em viva-voz, ele desenvolve:
– Fáeton está sob a minha proteção, e ninguém lhe consegue fazer mal.
As narinas do animal agitam-se. A criatura possante agita a cabeça,
fazendo recuar rapidamente quem se encontra mais próximo.
O Rei do Gelo observa a minha aparência encurvada com a emoção de
um gancho de cabelo. Aqui, no frio e nas trevas, encontra-se em casa.
– Gostaria de me despedir – peço.
– Muito bem, mas despacha-te.
Acolho Miss Millie nos braços.
– Lamento – murmuro ao encontro do seu ouvido, e a mulher fica tensa
ao perceber que não sou Elora. – Espero que a tua filha se encontre bem.
Cuidem de vocês. E cuida da minha irmã por mim.
Ela anui e afasta-se.
Terei saudades da povoação. A minha garganta enche-se de uma emoção
dolorosa, pois abandono o local em que vivi nos últimos vinte e três anos.
Edgewood pode estar cheia de recordações de agruras e labores, mas são
minhas.
O rei atira-me para cima da sela, como se nada pesasse. Quando monta
atrás de mim, o movimento arrasta-me contra o seu peito, e encaixo o
traseiro nas suas ancas. Fico hirta, inclino-me para a frente, procurando
distanciar os nossos corpos.
O rei indica ao cavalo que ande. A população da terra assiste calada à
nossa partida. Após transpormos o muro, Edgewood com os seus telhados
de colmo desaparecem de vista. Idos num pestanejar de olhos.
Rumamos à noite. Quilómetro após quilómetro, atravessamos um
território impregnado de silêncio. Não falo. O meu captor também não.
Temo vomitar sobre o colo, caso abra a boca. Se vou morrer, que aconteça
com dignidade.
Depois de transpormos outro ribeiro gelado, o Rei do Gelo puxa as
rédeas e a criatura abranda, saímos da floresta.
A Sombra.
Diante de nós, o Les curva-se numa linha reluzente: o limite fronteiriço
das Terras Mortas. Sobre o rio gelado paira um véu opaco com mais de
trinta metros de altura, ocultando o que exista do outro lado.
Uma pulsação espalha-se pela barreira como se, no interior, batesse um
coração. Sou corajosa, mas há limites. A última vez que vi a Sombra, tinha
doze anos, era parvinha e cheia de orgulho, e neguei-me a recusar o desafio
lançado por um dos rapazes da aldeia. Mas não consegui aproximar-me
mais antes de o terror me ter feito voltar a correr para a vila. Ainda agora, a
substância agita-se como um pano encharcado ao sabor do vento. A visão é
tão fantasmagórica que me eriça a pele inteira.
– O que acontece agora? – pergunto, na voz que espero que seja igual ao
tom plácido da minha irmã. – Se é um sacrifício que pretendeis, que seja
rápido. Prefiro pensar que sois um homem misericordioso.
– Não sou um homem. – Segue-se uma pausa. – Sacrifício?
Como se não soubesse a que me refiro.
– Como é que vai ser? A lança pelo olho? Veneno? – A voz falha-me.
Que seja breve a dor que estou prestes a sofrer.
Pressinto a crescente perplexidade do rei.
– Não entendo as tuas palavras.
Virando-me na sela, consigo vislumbrar em parte o rosto do rei, dentro
da sombra criada pela sobra do capuz. A criatura raspa a neve com a pata.
– O povo do Gris sabe perfeitamente que sacrificais as vossas mulheres.
Ele encara-me com frieza.
– Julgas que iria fazer este caminho todo só para matar uma mortal inútil
cuja vida é breve?
Céus, o Rei do Gelo realmente adora proferir insultos. Infelizmente,
faço-me passar por Elora, pelo que não me atrevo a dar um murro na boca
do rei.
– Se não sirvo para sacrificardes, o que faço então aqui? – Será possível
que algo pior me aguarde nas Terras Mortas?
– É do teu sangue que preciso, não da tua morte. Do teu juramento, não
das mentiras. Daqui a um dia, casaremos.
4

C asaremos?
Devo ter percebido mal, certamente.
Não, estou absolutamente certa de que percebi mal. Não é isto o que as
histórias afirmam. O Vento Norte apodera-se de uma mulher e leva-a para o
outro lado da Sombra. Apodera-se do coração dela, do fígado, dos ossos.
Inflige agonias terríveis, agonias inarráveis, à sua vítima. Quanto a casar,
ninguém fala.
O horror contorce-se dentro de mim.
– Brincais.
Ele faz avançar o corcel, cujo bafo se condensa no ar frio.
– Nunca.
– Significa que todas as mulheres que foram levadas em cativeiro se
tornaram vossas esposas?
– Sim.
– Não sacrificais as nossas mulheres?
– Não.
Fala com rigidez, como se lhe custasse proferir tantas palavras num
único fôlego.
Em Edgewood, o matrimónio faz-se acompanhar de certas expetativas.
Uma mulher deve, acima de tudo, ser obediente. Uma mulher deve colocar
o conforto do marido acima do seu. Uma mulher deve aceitar todo e
qualquer castigo que receba. Se me fosse dado a escolher entre casar com o
Rei do Gelo e ser sacrificada… acho que escolheria o sacrifício.
A farsa revela-se.
– Não vos desposarei. – Eu devia agir como Elora, e ser mansa, recatada,
obediente, mas aceitei a morte e não uma vida na prisão.
Ele vira o animal para uma curva do rio.
– Não tens voto na matéria.
A Sombra agiganta-se, uma vastidão de trevas tão potente que me
convenço de que o mundo teve aqui a sua origem. Tal qual o sangue,
coagula na periferia da visão, e o terror aumenta, cravando as garras nas
minhas entranhas. O vento transporta gritos.
Embato no estômago do Rei do Gelo com o cotovelo, uma exalação
suave expele-se ante a pancada inesperada que o apanha de surpresa e me
abre espaço para saltar da sela. Mal os meus pés tocam no chão gelado,
desato a correr.
Na vizinhança da Sombra, as árvores estão em ruínas ou contorcidas em
formas grotescas espiraladas; folhas enegrecidas colam-se teimosamente às
ramagens. Podridão e decomposição permeiam o ar, e o meu estômago
revira-se ao passar pelo que desconfio ser um monte de ossadas. Esforçam-
se as minhas pernas, dispara o meu coração quando as botas embatem na
terra.
Não irei sem luta. Não irei, de modo algum.
Um furioso rugido desfaz o sinistro silêncio das árvores.
Escorregando, deslizo pela encosta gelada, descendo para um vale de
penedos acumulados por um deslize recente. Tropeço numa raiz, e caio,
escapando por um triz ao golpe de vento que explode da sua lança.
Estilhaça-se ao embater numa árvore próxima. Volta a brandir a arma,
enquanto eu me escondo, apressada, atrás das rochas. A pedra estala; o gelo
borrifa-me.
Duas ou três pulsações a seguir, corro disparada para onde o arvoredo é
mais denso. O rei ressurge nas minhas costas, lançando neve mais à frente
para atrasar o meu avanço. Assim que a mão dele começa a fechar-se sobre
o meu capuz, deixo-me cair, enrolando-me nos joelhos. As pontas dos
dedos reais raspam-me no cimo da cabeça; está demasiado alto, montado na
sela, para me agarrar. Um milagre minúsculo.
O impulso condu-lo em diante, e eu já estou de pé, mudo de rumo
enquanto ele tenta orientar o caminhante-das-trevas pelo mato denso.
O terreno irregular é uma ameaça para o corcel, e eu aproveito a
vantagem, seguindo por encostas e penhascos para me manter à frente,
trepando pelas rochas sempre que possível para não deixar rastos. O luar
retalha o chão gelado.
Uma abertura oca na base de uma árvore tombada chama-me a atenção.
Um breve rastejar sobre mãos e joelhos, adentrando-me no buraco escuro e
apertado. Já no interior, enrolo-me e aguardo.
As pisadas dos cascos ecoam no solo gelado. O caminhante-das-trevas
pisa o chão, e para. O rei deteve o corcel.
Tapo a boca para abafar a respiração. O meu corpo treme com tanta
intensidade que podia desconjuntar o esqueleto.
Ele desmonta. A neve estala sob o seu peso.
Não deixei rastos. Garanti-o. Ignoro se o rei é um batedor hábil. Poderá
obrigar-me a sair do esconderijo com os seus poderes?
O silêncio arrasta-se bastante tempo, até o ouvir montar novamente a
cavalo e afastar-se com um murmúrio:
– Raios.
Assim que o som dos cascos diminui, encosto-me à parede atrás de mim,
os dentes a bater. O instinto exige que eu fuja do local, mas obrigo-me a
ficar quieta até garantir que se foi embora.
Não demora muito a ser invadida pelo frio. Admito que não pensei bem
neste plano. Edgewood chama por mim. Elora chama por mim. Mas não
posso voltar. Se eu desaparecer, o Rei do Gelo é capaz de regressar a
Edgewood à procura de outra mulher, e nesse caso poderá escolher Elora –
a verdadeira. Onde é que isso me deixa?
É do teu sangue que preciso, não da tua morte.
É a única pista do meu futuro. Não morrerei hoje. Pelo contrário, estou
destinada a tornar-me prisioneira do Rei do Gelo, vinculada às Terras
Mortas até… o quê? Para que precisa ele do meu sangue?
Possivelmente, não interessa. Se este é o meu destino, que se cumpra.
Tenho tempo – para conspirar e planear. Até lá, preciso de regressar ao rio.
Os músculos estão rígidos e latejam, ao sair da toca a rastejar e abrir
caminho, contornando o mais espesso monte de neve. De quando em vez,
paro e ponho-me à escuta. Só o vento se ouve.
Por fim, avisto o caminhante-das-trevas e respetivo cavaleiro por entre o
arvoredo. O rei elimina a distância que nos separa com passadas possantes,
mas não fugirei.
Ajoelho-me. Inclino a cabeça. Ele para o corcel a um mero passo de
mim.
– Perdoai-me, meu senhor. Estava assustada. É penoso, isto de
abandonar a nossa família. – Respirando fundo, levanto a cabeça. – Mas
agora estou pronta. Consigo ser corajosa.
O seu olhar semicerrado perscruta a minha figura corcunda. Baixo o
olhar para o chão. É o que Elora faria. E ficaria a aguardar, portanto faço
igual. Ele oferece-me uma mão, e não a faca, o que me surpreende, e ajuda-
me a montar, antes de nos conduzir para a direção oposta. Pouco depois,
emergimos da floresta em que a Sombra se agiganta.
O Les espalha-se numa larga extensão gelada pela planície perante mim,
com a terra montanhosa atrás de si, qual coroa. Quando alguém morre, o
espírito transpõe a Sombra através do Les para aguardar o Julgamento. Mas
eu encontro-me bem viva. O que me vai então acontecer?
O meu estômago contorce-se quando ele arremete a criatura para a beira-
rio. O rio cristalizou-se sobre as margens, e a água reluz como vidro sob o
luar. Assim que desmonta, puxa-me da sela.
– É agora que me afogais, certo?
Ele lança-me um olhar desprovido de palavras, como se não estivesse
disposto a responder a uma pergunta tão ridícula.
Ajoelhando-se com uma só perna, toca no gelo com as pontas dos dedos,
e eu assisto, maravilhada, à transformação em líquido, que sibila e cospe e
desliza rio abaixo.
Um barquinho surge da barreira. Franzo o cenho, pois a corrente traz a
baloiçante embarcação até ao nosso pouso.
– Pensei que iríamos no vosso… cavalo? – Como se pudesse assim
designar um caminhante-das-trevas com forma equídea.
– Todos os espíritos devem entrar nas Terras Mortas através do Les. Isso
também te inclui a ti. O Fáeton passará sem nós.
– Mas não sou um espírito.
– Queres sê-lo?
Céus. A paciência dele esgota-se num instante.
– É uma ameaça?
Ele não responde, o que não me arrelia, pois já esperava.
A água lambe o casco de madeira. Mal cabem ali duas pessoas.
– Não sei nadar.
– A não ser que pretendas saltar para a água, não tens de te preocupar.
Na verdade, ponderava essa hipótese. Podia ser uma forma preferível de
partir.
Passo por ele, roçando-o, subo a bordo e seguro-me às bordas do barco
enquanto ele me segue, fazendo o casco pender bruscamente para o lado
direito. Arquejo, agarrando a borda contrária enquanto a embarcação se
estabiliza. O meu coração não se acalma.
– E o cão gigante com três cabeças, está algures por aí?
Ele avalia-me como se tivesse ensandecido de vez. Talvez tenha.
– Não deves acreditar em tudo o que ouves – diz o rei, afastando para
trás o capuz. – Tal criatura não existe.
Engulo em seco, encarando nervosa o véu esvoaçante diante de mim.
– Irei transformar-me num espírito quando entrarmos nas Terras Mortas?
– Não. A minha autoridade sobre a Sombra permite-me conceder a certas
pessoas imunidade contra a influência desta. Continuarás mortal. – Uma
pausa. – Ao atravessarmos a Sombra, é natural que sofras uma série de
sensações, como fome, medo, tristeza. Não acredites nelas. É apenas a
derradeira oportunidade que uma alma tem, ao abandonar o reino dos vivos,
de se recordar do que representava ser humana.
É impossível não acreditar nessas sensações. Sinto fome. Sinto tristeza.
Mas o Rei do Gelo toca novamente na água, e a corrente muda de sentido,
por milagre, e começa a puxar-nos para montante. O véu pulsa como um
batimento cardíaco, faminto e sinistro, à medida que nos acercamos. Sou
corajosa. Raios, sou corajosa.
Trevas. Vazio. Uma mortalha intemporal, informe. A Sombra está viva,
contorce-se, pica, arde…
Abro a boca para soltar um grito que jamais virá.
A agonia invade-me os braços, a base do pescoço, o fundo das costas.
Depois, desaparece. Sou inundada de emoções: angústia, pesar, medo,
fome… uma fome infinita. Sinto cãibras tão fortes no estômago que caio no
chão do barco, enrolada, à espera que passem.
O alívio não vem. Desintegro-me. Grito com toda a minha alma,
procurando respirar. Sinto-me pesada. Sinto-me aflita. Nova chicotada de
dor atinge-me a coluna vertebral, e retraio-me, produzindo um grito sem
voz.
O rio abana o barquinho. O que sucederia, se este frágil pedaço de
madeira se quebrasse ao meio, sem aviso? A embarcação estreme, e eu
estico a mão, à procura de um ponto estável. Esta agarra um tecido esticado
sobre pele quente – uma âncora.
– O que é isto que me está a acontecer? – sussurro. Tenho os olhos
abertos, mas só vejo trevas, trevas, trevas.
Uma voz paira sobre mim, baixa e neutra e distante.
– Isto não é real.
Isto, o quê? O barco? O rio?
Debaixo de mim, a água canta.
Se concentrar a atenção no trinado, o vazio que me cerca começa a
recuar. O Rei do Gelo torna-se nítido, está ao meu lado, existe. Dou-me
conta de que me agarro às suas culotes, e solto-as de imediato. Além da
embarcação, o rio brilha num deslumbrante azul-turquesa, a corrente forma
uma curva, ao longe, com faixas de um azul mais profundo. Vem, sussurra.
Deixa-me oferecer-te um refúgio da escuridão.
Dedos fortes prendem-me o pulso.
– Não toques na água!
Olho para o rei, por cima do ombro. Não consigo manter a atenção, o
rosto desaparece e reaparece, embora o brilho daqueles olhos seja um
estranho ponto de apoio.
– Porquê? – Inclino-me sobre a borda, ofegante. – Vós haveis tocado.
– O Les não te afetaria, se lhe tocasses, mas agora já estamos no
Mnemenos, o rio do Oblívio. Se uma mera gota te tocar na pele, perderás a
noção de ti mesma.
Demora um instante até as palavras dele assentarem. É como se me
esticassem a mente em cinco direções ao mesmo tempo.
– Nunca mais me lembraria de quem eu era?
– Não.
Agarro a borda do casco com força, com a mão esquerda. A água reluz,
um líquido tão brilhante que me fere a vista. Perfeito para nadar nele.
Perfeito para beber.
– Puxai-me – peço, o cântico chama-me cada vez mais alto. – Depressa!
Um forte puxão faz-me cair de costas, sentindo o inesperado calor do
Rei do Gelo contra a espinha. Tremo tão desesperadamente que os dentes
batem. Perder a noção da minha pessoa – nada seria mais absoluto.
Por fim, a Sombra levanta-se, revelando um território esculpido em
rocha e gelo, enlameado de um luar aquoso. Um solitário ulmeiro projeta-se
por cima do rio, oculto numa substância semelhante ao nevoeiro. É o único
ser vivo. Qualquer traço de cor que aqui existisse foi totalmente eliminado.
Só resta a terra cinzenta e faminta.
Um território plano ergue-se ao longe, conduzindo a uma enorme
cidadela lascada numa superfície de granito. Torreões e muralhas e salões
amontoados de pedra negra trespassam o teto do mundo, um feio rasgão no
tecido da meia-noite, quase imaculado.
Demoramos o dia inteiro na viagem. Ao desembarcarmos, o rio volta a
congelar e a criatura que ele designa por Fáeton reaparece. Passamos o resto
do percurso montados na sela. Quando finalmente abandonamos o arvoredo
circundante, tenho os dedos praticamente congelados dentro das luvas.
Nunca me senti tão irrelevante como agora, imersa na sombra desta
imponente parede de pedra, com os seus gigantescos portões de ferro a
impedir-nos a entrada, as extremidades aguçadas como dentes. Abrem-se
num guincho áspero, e avançamos a trote para um amplo pátio de pedra
cinzenta. Numa fortaleza desta magnitude, esperava que houvesse maior
atividade, mas não se vê vivalma.
O rei orienta a criatura por uma escadaria acima, que conduz a portas
duplas de carvalho. Maçanetas de um metal retorcido e complexo soltam
um brilho baço. Ele desmonta e eu imito-o.
– Vem – ordena, como se chamasse uma cadela. Ranjo os dentes,
esforçando-me por me conter e não cometer um disparate, tal como
esfaqueá-lo outra vez. O lenço que tapa o meu rosto é a única proteção do
meu segredo.
Os puxadores rodam sem assistência. O poder do Vento Norte, pelos
vistos, é capaz de moldar o ar conforme a sua vontade, habilidade que usa
para abrir as portas. Uma boca escura, o extenso interior da fortaleza, e eis-
me dentro da garganta da besta, sentindo as mandíbulas fecharem-se atrás
de mim.
Pesadas cortinas cobrem as janelas do vasto átrio. A luz frágil dos
candeeiros proporciona um fraco alívio das sombras.
Estava tão concentrada em poupar Elora deste destino que nem sequer
pensei na residência do Rei do Gelo. É aqui que terei de viver? Neste lugar
opressivo, desolador, estéril?
Ele conduz-me por uma passagem do lado esquerdo. Quando a vista se
ajusta, consigo orientar-me sem tropeçar nos objetos. A pouca mobília
presente está tapada por lençóis que outrora, talvez fossem brancos, mas a
grossa camada de poeira dá-lhes um ar pardacento.
– Viveis aqui sozinho? – Estes corredores desertos e salões abandonados
são uma mera concha. Teria havido vida neste lugar, em tempos, bem como
coisas verdes?
– Sim – responde ele sem se virar –, mas tenho muitos serviçais para
manter a cidadela.
Rapidamente alcançamos uma escadaria larga e curva com corrimão
baço. O pó levanta-se e invade o ar quando as botas entram em contacto
com os degraus. Será possível viver assim? Onde andam os serviçais?
Ainda não encontrei ninguém.
Um comprido corredor no terceiro piso conduz-nos às profundezas do
interior sombrio. Portas atrás de portas enfileiram-se nas paredes. Têm
diferentes alturas e larguras, diferentes decorações e materiais na
composição. Encontro puxadores de prata pura. Maçanetas redondas
cobertas de ferrugem, que devem ter séculos de idade. Uma porta com tinta
branca descascada apresenta uma maçaneta de vidro com o feitio de um
diamante. Dez passos depois, outra está coberta de pequenos azulejos de
várias cores vivas.
– Para que servem estas portas? – Atravessamos uma das mencionadas,
feita de estuque e esculpida num feitio intrincado.
– Conduzem a outros continentes, outros reinos – diz o rei absolutamente
entediado. – Mas não são saídas das Terras Mortas para ti, portanto nem
vale a pena tentares.
Muito intrigante. Sempre tive vontade de saber o que haveria para além
do Gris.
– Estão-me proibidas?
– Não. Podes explorar o que há do outro lado, se assim desejares, mas
nenhuma delas te conduzirá de volta a casa.
Após inúmeras voltas e contravoltas, ele para no final do corredor.
Escuto sons que parecem um grito, mas estão demasiado longe e talvez
sejam produto da minha imaginação.
– A Orla tomará conta de ti – diz, tirando uma chave de bronze e
destrancando a porta. – Estes serão os teus aposentos. Quando te tiveres
instalado, podes andar pela cidadela à vontade, mas não deves passar além
da muralha.
– Não confiais em mim? – Sei bem qual será a resposta. Só quero assistir
à reação dele.
– Não. – Baixa as pestanas, franjas negras sobre maçãs do rosto pálidas.
– Se fugires, não irás longe. A floresta detesta a minha presença. A cidadela
está protegida contra as ameaças exteriores. Este é o lugar mais seguro para
ti.
Arquivo esta informação para futura análise.
– E onde são os vossos aposentos?
– Situam-se na ala norte, na qual não podes entrar.
Hesito ao transpor a ombreira.
– O que acontecerá quando casarmos? Devo partilhar a cama convosco?
– Duvido que ele seja gentil no ato. Recordo aqueles olhos, a emoção
funesta e deslizante que antevi em Edgewood, uma ferocidade subterrânea.
– Não tens de te preocupar com isso. Manteremos quartos separados. –
Com este remate, empurra-me para a frente e fecha a porta.
Os passos dele rapidamente se afastam. Experimento abrir a maçaneta
ornamentada. Nem se mexe.
Estou trancada aqui dentro.
A minha plácida máscara desliza, e eu torno-me selvagem, esmurrando a
barreira com fúria.
– Sacana! – Mas o meu prometido não volta para trás.
Ofegante, afasto-me da porta e examino os aposentos, com os seus tetos
abobadados e paredes distantes. A mobília verga-se sob uma opulência
banal. Uma cama de dossel resplandecente, uma lareira, tapetes, tantos
tapetes, de pelúcia requintada. Portas que conduzem a outros quartos.
Uma súbita onda de cansaço cai sobre mim, e eu tombo no colchão,
esfregando as mãos gretadas no rosto igualmente gretado. Enroscando os
braços em volta do meu estômago contraído, dobro-me, balançando para
trás e para diante.
Estou sozinha, uma mortal no reino do deus das trevas. Sem família, sem
apoio. Ficarei aqui retida durante quarenta, cinquenta, sessenta anos?
Morrerei assim, qual animal enjaulado? Talvez não regresse à anterior vida.
Enquanto o Rei do Gelo estiver vivo, não.
O balançar abranda e encaro as janelas fechadas com ar pensativo. Algo
me compele a aproximar-me. Com um puxão forte, arranco as cortinas dos
varões.
As Terras Mortas são um reino pintado em cambiantes de cinzento.
Avalio o pátio iluminado pela lua, observando os estábulos, o muro espesso
e imponente, os portões negros de ferro, a paisagem árida que se avista
além desta área confinada.
Enquanto o Rei do Gelo viver, não.
Esperava a morte ao vir para cá. Mas jamais fui, jamais serei, fraca.
E, portanto, regresso aos livros. Regresso ao conhecimento. Regresso ao
que sei, informação acumulada ao longo dos anos, as fábulas e as histórias
transmitidas de geração em geração.
Eis o que sei: o Vento Norte é um deus, um dos quatro irmãos que foram
banidos para os confins do nosso mundo. Chamam-lhes Anemoi – os quatro
ventos que trazem consigo as estações. O poder do Vento Norte é ilimitado.
É imortal, viverá para toda a eternidade, invulnerável a doenças, a não ser
que o matem. Mas um deus não morre com uma arma feita por mortais.
Isso explica que tenha sobrevivido à facada na barriga. Só uma arma
tocada por um deus terá o poder de acabar com uma vida imortal. Como a
lança que empunha, o seu estranho e exótico poder. E o punhal na bainha da
anca.
Ele não saberá que libertou uma serpente do seu ninho. Durante anos
sofri, tal como o meu povo, mas agora estou numa posição única para
atacar. Se o Rei do Gelo morrer, com ele desaparecerá o seu frio eterno.
Bem como os caminhantes-das-trevas. E também a Sombra.
Só então serei livre.

Horas depois, batem à porta com pudor.


– Minha senhora, está vestida?
Encontro-me esparramada sobre o enormíssimo leito. Comportaria uma
família de quatro pessoas e é a cama mais confortável em que me deitei na
vida.
Detesto-a.
Apoiando-me nos cotovelos, levanto-me, reparo que o meu casaco sujo
manchou os lençóis lavados e as almofadas. Ao menos, tive a decência de
descalçar as botas antes de me deitar. Embora me sinta exausta da viagem,
não sou capaz de adormecer.
– Sim – digo em voz alta, ajustando o lenço à volta da cara.
A fechadura cai. Uma mulher com ar gorducho e afável entra no quarto.
Usa um avental manchado por cima de um simples vestido de lã da cor das
nuvens carregadas. Há anos que não vejo ninguém com uma figura anafada.
O corpo de quem não conhece a fome. Não consigo desviar a vista.
Os olhos dela imediatamente baixam na minha presença, e faz uma
vénia. Rosto redondo, pele lívida, olhos desbotados, nariz arrebitado e
cabelos grisalhos apanhados num carrapito.
– Bom dia, minha senhora. Sou a Orla, a sua criada. – Encaminha-se
para a lareira e acende o lume. A luz afugenta a insuportável escuridão.
Atiro-me para a beira do colchão e planto os pés no soalho. Pelo menos
os tapetes são quentes.
– Que horas são? – Sinto a garganta seca, preciso de beber. Procuro o
cantil no bolso do casaco e dou um trago que fortalece.
– É quase meio-dia. Tenho de vesti-la e aprontá-la para a cerimónia.
O terror, velho conhecido, regressa.
Acerco-me da janela, observo o pátio em baixo, as cortinas que
arranquei há pouco amontoadas a meus pés. É uma longa queda, e nada a
amorteceria a não ser a rocha.
– Como é que te tornaste criada do Rei do Gelo? – pergunto, virando-me
para trás.
– Minha senhora. A cerimónia.
A cerimónia que dê uma curva. O rei tem a eternidade para si mesmo.
Pode esperar mais uns minutos.
– Embora compreenda que mal nos conhecemos, acabei de ser retirada
da minha casa e obrigada a passar a vida nas Terras Mortas e desposar o
homem cujo maldito inverno matou os meus pais, e exijo respostas. Senta-
te. – Com um pouco de persuasão, consigo manobrá-la em direção a um
cadeirão vazio, e depois ocupo o lugar em frente dela para uma conversa
adequada.
Orla remexe no avental sujo que traz atado à cintura.
– Perdoe-me por dizer isto, mas a senhora é muito insistente.
– Para mim, isso é um elogio.
Ela suspira.
– Já passou muito tempo. O Rei do Gelo fez um acordo com a minha
vila, Neumovos. Foi-nos dada, a alguns de nós, a opção de viver na
fortaleza dele para o servirmos.
Opção? Parece-me que ela não teve voto na matéria.
– Alguma vez tentaste fugir?
Ela esforça-se por manter uma expressão neutra, como se não quisesse
ofender-me.
– Fugir? N-não, minha senhora. Para onde iria?
Para qualquer lado, que não este, pensei.
Orla lança um olhar aos lençóis agora sujos em cima da cama.
– Permite-me? – pergunta.
Não preciso que limpem o que é meu, mas ela parece sofrer com a
situação e encolho os ombros. A mulher atravessa um feixe de fraca luz
solar que ilumina o chão, e a figura desvanece-se. Encontro-me a ver
através do corpo dela. É totalmente transparente. Qual camada de nevoeiro.
– Pelos deuses! – guincho, pondo-me de pé com tal rapidez que prendo o
pé na perna da cadeira, e faço-a tombar no chão. – Estás…
– Morta, minha senhora? – O rosto bondoso de Orla vinca-se de
resignação.
Foi, talvez, uma reação insensível. A mulher não tem culpa de estar
morta.
– Lamento. Assustaste-me, nada mais. – Forçando-me a endireitar,
encavalito-me na beira da almofada, costas direitas, mãos agarradas aos
joelhos. – Assumi… – Não, isto também vai parecer insensível. Não farei
inimigos se puder evitar, particularmente se poderei precisar deles mais
tarde. Jamais falará sem reservas se julgar que os meus motivos são
nefastos.
– Não faz mal, minha senhora. A luz revela o que sou.
– Um espírito.
– Sim. Um espectro.
– Há mais?
– Todos os serviçais. Todos os que vieram de Neumovos.
– Mas… antes, toquei-te, como é que consegui fazer isso? – Quando
empurrei Orla para a cadeira, o corpo dela, a roupa, eram sólidos.
Ela hesita durante um período visível, e responde com uma brevidade
curiosa.
– Porque ainda não passamos para o outro lado. – Puxa com força os
lençóis, retirando-os do colchão. Faz com eles um monte que larga no cesto
a seus pés.
Entendido. Sem os criados, a cidadela do Rei do Gelo não estaria
funcional. São a fundação na qual a fortaleza se ergue, possivelmente a
cuidar do sítio, a cozinhar para o rei, entre outros afazeres.
– Vou fazer mais uma pergunta que talvez seja ofensiva, mas comes?
Dormes?
– Sim, como. Sim, consigo adormecer, e sentir emoções e dor. – Se não
me engano, a sua tez lívida dissipa-se enquanto fala, e o contorno da sua
presença fica mais ténue. Agora que sei que é incorpórea, é impossível
ignorar este facto. – Mas a comida sabe-me a cinzas, o sono é atormentado
por pesadelos, e sou punida com recordações da minha vida passada. É o
mesmo para todos os espectros. Regra geral, quando se morre, perdem-se as
memórias. Mas as pessoas de Neumovos, não.
Porquê causar sofrimento aos serviçais? Queria pedir-lhe que
desenvolvesse a resposta, mas Orla esquiva-se. Por ora, ponho de parte as
perguntas e oriento a conversa para o assunto entre mãos.
– Digamos que não compareço ao meu casamento. Teoricamente, claro.
O que poderá acontecer?
– Não, minha senhora, tem de comparecer à cerimónia. – Com um
trejeito angustiado, vira-se de novo para a lareira, espetando os troncos com
mais força do que precisa. As labaredas lambem a lenha com avidez.
– O que poderá ele fazer-me mais? – digo, pondo-me de pé, mãos
enfiadas nas ancas. – Prender-me? – Já o fez. Retirou-me o que mais amo.
Orla fica silenciosa.
– Não, minha senhora.
O meu olhar aguça-se quando a cabeça da mulher se dobra, tentando
tornar-se pequena e despercebida. É assim que as presas se comportam na
presença do ápice dos predadores.
Ajoelhando-me diante dela, abro-lhe gentilmente os dedos e tiro-lhe o
atiçador da lareira, pousando-o no chão. A memória da minha mãe foi-se
apagando ao longo dos anos, mas Orla parece-se com ela. Mãos ásperas,
coração mole. É limitado, o meu conhecimento sobre o Rei do Gelo.
– O que fará o rei, Orla? Irá bater-te?
Empalidece, baixa o olhar.
– Nunca assentou a mão num criado, mas tem mau génio. É raro zangar-
se, mas, quando acontece, é… assustador.
– Entendo.
A impotência é um sentimento demasiado familiar. Compreendo Orla,
embora mal a conheça. Também ela vive na sombra do Rei do Gelo. Não
quero que outros sejam castigados pela minha desobediência.
Casemo-nos, então.
– Muito bem, Orla. Ganhaste. – Endireito-me, braços esticados para cada
lado. – Faz o que quiseres comigo.
Ela despe-me como a uma louca, antes de me atirar para a banheira
espaçosa atrás da divisória. O calor escaldante devora a porcaria e o sebo
colados à minha pele, e gemo, em bom som e demoradamente.
Esfrego-me da cabeça aos pés – duas vezes. Quando me dou por
terminada, a água do banho está turva, cinzenta, desagradável. Afasto-me
da banheira e seco-me com uma toalha. Nesta fase, o cachecol é inútil, pois
Orla não está a par da minha fraude, e não o coloco.
Quando contorno a barreira, paro.
– O que fazes?
Orla segura as minhas roupas sobre a lareira, como se se preparasse para
as lançar às chamas.
Ela recolhe o braço, vergonha colorindo-lhe as faces.
– Estão imundas, pensei… – O olhar dela salta para a minha cicatriz, e
desvia-se.
– São tudo o que me resta da minha casa.
Os ombros de Orla descaem, e ela anui.
– Trago-as de volta, logo que estiverem lavadas.
Assim se passa o resto da hora, a preparar-me para a cerimónia iminente.
A aia enfia-me um vestido simples pela cabeça. De mangas compridas,
felizmente, e num tom de azul meia-noite que condiz com a minha tez
morena. Assenta-me muito bem. Presumo que tenha sido usado por uma das
anteriores esposas, pensamento algo desanimador, pois esta estará, muito
certamente, morta. Ao menos, não é branco. Estou longe de ser pura.
Chinelas douradas e uma bandolete a condizer completam o conjunto,
cabelo entrançado ao longo das costas, limpo e brilhante. Orla ocupa-se a
alisar as pregas da saia, enquanto eu enfio a bainha do braço que tem o
punhal. Por fim, o véu. Assim que o Rei do Gelo o remover, ficará a
conhecer a minha fraude. Mas, entretanto, terá passado o momento de
continuar escondida.
– Por aqui, minha senhora.
Descemos as escadas para o primeiro piso, onde o ar é tão gelado que os
meus dentes começam a bater. Todas as lareiras estão apagadas, e, contudo,
o suor banha-me o cabelo. Resistir. Sobreviver. Lutar. É o que está ao meu
alcance.
As passagens labirínticas desembocam num salão cavernoso, cravejado
com lamparinas às centenas. O rei e outro homem – um espectro –
aguardam num estrado, no centro do espaço cheio de pó.
O olhar do Vento Norte encontra-me ao deslocar-me para ele, atraída por
uma força inominável. Antigo e imortal, a lisura pálida daquele semblante
não apresenta nenhuma imperfeição. No exterior, parece imaculado.
Fico espantada quando me ajuda a subir para o estrado, luvas pretas de
cabedal tocando-me ao de leve. Ficamos frente a frente: uma mulher mortal
e o Vento Norte imortal. Ele, usando culotes pretas, botas pretas, uma túnica
azul meia-noite e um colarinho de fios dourados. Os nossos trajes
combinam. É bastante pitoresco.
O oficiante começa a falar.
– Hoje, iremos testemunhar esta união…
O som esmorece. O mundo enegrece.
O coração bate-me como um tambor, um pulsar arrastado que me invade
os ouvidos. A pele das costas da minha mão direita eriça-se, e franzo o
cenho, observando-a. Uma marca estranha surge, com a forma de um
círculo de espinhos: uma tatuagem.
– … em tempos de dificuldade, em tempos de necessidade…
A tatuagem vai enegrecendo à medida que as palavras são proferidas.
Nada acontece quando tento limpá-la da pele.
O meu olhar prende-se no do rei.
– O que é isto? – sussurro, indicando a marca. Mas olho novamente, e a
tatuagem desvaneceu-se. A pele ficou limpa.
– A tua promessa – declara.
Deve ser algum vínculo. Afinal, os votos quebram-se. Mas a tatuagem,
que deve conter algum encantamento, garantirá que o casamento é
permanente.
O Rei do Gelo pega-me na mão. Ergo a vista e encaro-o. É perturbadora,
esta intensidade com que me observa. Desde que entrei na sala, não me terá
olhado uma única vez.
O oficiante discorre sobre promessa e compromisso, e depois termina.
Com um lenço branco atado às nossas mãos unidas, o Rei do Gelo e eu
ficamos casados. Torno-me sua esposa. Ele, o meu marido. Juntos pelo
matrimónio, e eu, que jurei tirar-lhe a vida.
– Podeis ver a vossa noiva, meu senhor.
O Rei do Gelo pega na ponta do véu.
Eis que começa.
Cuidadosamente, ele levanta o tecido, revelando a carne brutalizada da
minha face direita, o terreno enrugado da cicatriz antiga, sulcos pálidos
sobre uma pele morena e terrosa.
Emoção. Eis o que falta ao semblante dele. Há um semblante de frio
despiedado, mas também uma fenda, um choque que é incapaz de esconder,
porque eu abri caminho pelo duro exterior, entranhei-me, nem que seja por
um instante.
Uma brisa agita-me o cabelo, pois Bóreas, o Vento Norte, revela os seus
dentes brancos e perfeitos. Porque serei uma mulher de Edgewood, mas não
aquela que escolheu.
– Tu – rosne.
O meu sorriso cresce maliciosamente.
– Surpresa.
5

A boca– Tu.
do Rei do Gelo contorce-se num desprezo intenso.

– Já haveis dito isso – informo, inutilmente.


– Onde está a tua irmã? – Envolve-me os bícepes na manápula, a sua
força dez vezes mais forte do que a minha. Duvido que conseguisse libertar-
me, caso tentasse.
– Deve estar em Edgewood. – E longe de ti, o que é mais importante.
Comprime os lábios com tanta firmeza que desaparecem na sua pele
lívida.
– Sabes o que fizeste?
– Fui mais esperta do que vós?
Ele sibila no tom mais grave e gélido que ouvi na vida.
– Cometeste um erro gravíssimo.
Estamos quase colados, nariz com nariz. São poucas as pessoas que me
fazem sentir pequena, mas apenas lhe chego ao nível do queixo, e o vento
repentino que se levanta nas minhas costas evidencia a rapidez com que o
seu temperamento se manifesta. Traz-me à mente a verdadeira natureza do
Vento Norte: um imortal que já assistiu a mil começos e fins, enquanto eu
não sou mais do que a derradeira folha agarrada ainda ao ramo outonal.
Não quero ter medo dele.
Seria uma tola se não tivesse medo dele.
– Não – sussurro, reduzindo a distância que restava. O calor do seu bafo
roça nos meus lábios frios. – Quem o cometeu, fostes vós.
A tensão alcança um máximo jamais visto. As suas narinas agitam-se,
reagindo ao meu desafio, a manopla que atirei para o chão.
Isto não é um matrimónio.
É guerra.
Ele recua, e o gelo apressa-se a preencher o intervalo entre nós,
expulsando o calor que se formara pela nossa proximidade. O meu coração
dói de bater com tanta força.
Não sou Elora. Não sou mansa. Sou uma criatura que aguçou os dentes
com base no sofrimento e, acima de tudo, sobreviverá.
– Tirem-na da minha frente! – urra.
Dois guardas arrastam-me para fora da sala, levando-me por uma
passagem marcada por portas azuis idênticas. Com um ímpeto de força,
lanço o corpo contra o homem da direita, fazendo-o cambalear. Afrouxa-se
o aperto do meu braço, e eu liberto-me, desatando a correr pelo comprido e
escuro corredor da cidadela descurada.
Os berros dos homens vão-se distanciando enquanto um corredor
desagua no próximo. Portas amarelas e portas de vidro, portas com telas e
portas tortas. Uma destas deve, seguramente, conduzir-me para o exterior.
Escolho uma ao calhas e empurro-a.
A sala tem tanto pó acumulado como o resto da fortaleza. Uma extensa
janela quadrada vigia um terreno agrícola ondulante. Não se vê um único
indício de neve.
– … acho que deve ter vindo por aqui… – A voz dissolve-se no seu
próprio eco.
Abano o vidro da janela, sem resultado. Trancada. Descubro uma cadeira
de madeira ao canto e de imediato a levanto. Fazendo balanço, atiro-a
contra a janela com todas as minhas forças. Os braços estremecem-me com
o impacto, o estrondo é ensurdecedor. Nem um único arranhão no vidro.
Será possível?
– Ouvi um barulho. Por aqui!
Saio sem demoras, viro por outro corredor, atiro-me contra outra porta às
cegas.
Só a rapidez dos meus reflexos me salva de uma morte iminente. Ao
fundo, as ondas chocam contra as paredes da escarpa, em cuja beirinha me
encontro nas pontas dos pés sobre a rocha húmida e solta. Uma nesga do
vasto céu está tão próxima que quase poderia esticar a mão e afagar a sua
superfície debruada de estrelas.
Vento agitado, com sabor a sal, enfia-se no meu cabelo e vestido. Nunca
tinha visto o mar. Nunca tinha visto tanta água, tão vasta, livre da armadilha
gelada do inverno.
Algo se enrosca no meu tornozelo, apertando-o. Um puxão, e sou virada
da cabeça para baixo. As saias caem-me até à cara, relevando a roupa
interior.
– O que é isto? – Debato-me contra o refém invisível.
Entram botas no meu campo de visão.
– Estas portas conduzem a muitos lugares, embora como já te disse, não
te permitirão fugir. E já que falamos nisto, Mnemenos também não te
permitirá, pois só degela quando assim ordeno. Se tentares atravessar a
Sombra sem a minha bênção, serás, na melhor das hipóteses, despojada da
tua alma, e na pior, enviada para o Fosso. – O Rei do Gelo faz uma pausa. –
Daqui não sais. Mais vale começares a habituar-te.
– Desprezo-te – cuspo.
Ele responde com ar calmo, quase apático.
– Não és a primeira, nem serás a última.
A minha fúria tem um sabor vivo, e eu também gostaria que ele a
sentisse, nem que fosse para presenciar uma fratura naquele controlo férreo.
Volto a cruzar a ombreira, e prontamente os dois guardas, de quem me
conseguira livrar há pouco, me agarram pelos braços com tanta força que
seguramente ficarei com marcas na pele. Arrastam-me de costas, passando
por uma porta, e começo a descer, a descer, a descer por um lanço de
escadas.
No subsolo, o silêncio é tão absoluto que me esmaga os tímpanos. Não
se vê uma única vela ou lamparina. Apenas celas, imensas celas. Agora
vazias, mas que espécie de prisoneiros em tempos as ocuparam?
No preciso fim do túnel, os guardas abrem uma das portas gradeadas e
atiram-me para o interior. Tilintam as chaves enquanto a fechadura é
trancada.
– Esperem. – Corro, agarrando-me às grades. – Por favor.
A porta fecha-se com um estrondo e abandonam-me juntamente com a
escuridão.

Estar encarcerada num buraco no chão é uma experiência tão desagradável


como se esperaria. Pior do que o frio, é a sede. A comichão inicial da
garganta torna-se uma ânsia, depois uma feroz agonia. Peço vinho. Trazem-
me água. Pouco demora até estar empapada em suor.
A minha vista adequa-se à escuridão com rapidez. A cela é
pequeníssima, contendo apenas terra amontada e uma porta trancada.
Infelizmente, a fechadura não cede. Tento abri-la com o punhal. Até
experimento arrancar a porta das dobradiças. De todas as vezes, os meus
esforços acabam por falhar.
É como se tivesse abandonado Edgewood há séculos. Elora – minha
querida e doce Elora. Aposto que está furiosa comigo. Poucos são os que
conhecem o mau-humor de Elora, mas é, ai, fabuloso quando o solta. O que
terá pensado ao acordar, desvanecido o efeito do manimosto? Uma cabana
vazia. A irmã, que partiu. O Rei do Gelo, que partiu.
Fiz-lhe uma promessa e incumpri. Mas sem a ameaça do Rei do Gelo,
pode agora seguir os seus sonhos, desimpedida. O pensamento reconforta-
me.
Os dias passam. Deito-me em poças feitas com o meu próprio suor,
enroscada no canto, ao fundo da cela. Mais uma vez, peço vinho. Mais uma
vez me trazem água. O guisado que me servem está frio, a gordura
congelou à superfície. Não o vomito por milagre.
Durmo com pesadelos que rastejam e se passeiam por mim. Carne fria e
enegrecida, e uma voz que sibila e cospe no meu ouvido. Com esforço,
arrasto-me de volta ao mundo dos vivos, e desperto com um sobressalto,
muito ofegante, músculos a contraírem-se descontrolados.
Alguém do outro lado da cela. Uma figura, sombra contra sombra, pouco
mais do que um fantasma. A cada conjunto de momentos, descubro a
silhueta de uma fisionomia desconcertante, ombros largos, antes de se
desvanecer e escurecer.
A minha pele peganhenta fede no ar parado. Cumprimentar o Rei do
Gelo é como se fosse uma derrota, e, portanto, ignoro-o. Que fique ali
especado a ver, até ao fim dos tempos; estou-me a borrifar. Virando-lhe as
costas, recomponho os braços e pernas, cabeça suportada pela dobra do
cotovelo.
– Aprendeste a tua lição? – A profunda voz dele vem a flutuar para fora
do abismo.
– Se queres saber se me arrependo do que fiz, a resposta é negativa.
Trocaria de lugar com a minha irmã, se assim conseguisse afastá-la de ti. És
muito generoso por teres vindo. Se soubesse que me concederias a graça da
tua divina presença, ter-me-ia vestido condignamente. – O bonito vestido
que levei ao casamento está coberto de porcaria e com a bainha rasgada.
É simbólico, diria eu.
– Tu é que causaste este desfecho.
Expiro pausadamente para me recentrar. Encolho-me numa bola mais
apertada, encarando a parede a centímetros do nariz. Nada do que o Rei do
Gelo me possa dizer conseguirá afetar-me.
Ele é o vento, insubstancial e fugaz.
Uma batida no chão, como se desse um passo em diante.
– Se tivesses controlado melhor as tuas emoções, estarias a salvo na
cama, na tua humilde aldeia, neste preciso instante.
Como se soubesse seja o que for a meu respeito.
– Vês, aí é que te enganas. Nada me teria impedido de manter a Elora a
salvo.
– Calares a boca teria mantido a tua irmã a salvo. – Como se pressentisse
a minha perplexidade, continuou: – Não era a minha primeira escolha, mas
chamaste-me a atenção para ela. Foi a tua conduta que te causou este
sofrimento.
Endireito-me, apesar de me doerem os ossos, e aproximo-me da entrada
da cela apertada.
– Não me espanta sequer que digas isso – riposto, apertando as barras de
ferro frias que nos separam. A atenção dele desvia-se para as minhas mãos,
depois para a boca, a minha cicatriz e, por fim, os meus olhos. – Os deuses
culpam os mortais pelos seus infortúnios desde sempre. Estás tão
concentrado nos sintomas, que nem questionas que doença enegrece a pele.
Os dedos dele também apertam as barras, mãos grandes que pousam a
milímetros das minhas.
– És rápida a criticar – sussurra ele. Os aros azuis que circundam aquelas
pupilas são a única cor neste subsolo. – Não sabes nada sobre mim.
– Talvez, mas pelo menos eu não atiro ninguém para as masmorras
sempre que me contrariam! – Agito as barras para dar ênfase. E que ideia,
esta. Quando mais pondero no assunto, mais me pergunto para que servirão
estas celas. Detenção das anteriores esposas? – Porque estás aqui? – Recuo
com o propósito aparente de o examinar de forma mordaz. A bem-dizer,
estar tão próxima dele deixa-me nervosa. – Para te vangloriares?
– Vim libertar-te.
O meu cenho vinca-se.
– É alguma armadilha?
Ele lança-me um olhar insípido antes de destrancar a porta.
– Sabes… – Uma gargalhada solta-se de dentro de mim. Nada nesta
situação tem graça, mas, se não me rir, acredito que me irei abaixo, e
recuso-me a deixar que o homem que arruinou a minha vida presencie esse
momento privado. – Acho que prefiro este isolamento.
A porta abre com um rangido agreste.
– Escolhi a tua irmã para noiva, e não a ti. Se trocaste de lugar com ela,
foi escolha tua.
– Se soubesses o que é amar uma pessoa com todo o teu ser, saberias que
não tive escolha.
Não sei o que muda, efetivamente. Apenas que o ar se agita quando ele
fica descontente, agora responsável por farfalhar a bainha do meu vestido.
A expressão do Rei do Gelo mantém-se neutra, no entanto.
– É obrigatória a tua presença, esta noite, no jantar.
Se ele julga que vou partilhar uma refeição com a pessoa que mais
desprezo neste mundo, tem muito que aprender.
– Infelizmente, estou ocupada – afirmo, com um sorriso que tresanda a
falsa simpatia.
– A fazer o quê?
Faço questão de fingir que pondero a questão.
– Tudo. Qualquer coisa. Tantas possibilidades. Escolhe uma que te
agrade. – Duas passadas e entra na cela, acompanhado pelo odor a cedro. A
dor assola-me com uma onda escaldante, e debato-me para continuar de pé.
Há anos que não passava tanto tempo sem uma gota de álcool. Parece uma
eternidade.
– Podes ser minha esposa – murmura –, mas nada me obriga a dar-te
guarida. Posso bem prender-te na rua, se insistes em comportar-te como um
animal.
Bufo furiosamente.
– Animal?
Ele examina-me calmamente.
– Que ousadia…
Ergue a mão, dedos curvados como se esmagasse um objeto invisível – a
minha garganta, descubro rapidamente. Corta-me o ar, e começo a chiar
quando inspiro.
– Cala. A. Boca. – O hálito fresco e murmurado banha-me o rosto. – Vais
comparecer ao jantar. Se decidires renunciar aos teus deveres, serás
acorrentada no exterior. Parece que é a pior estação do ano para esse fim.
Sinto-me a ficar corada, mas aproximo-me um passo. Ele suaviza a
pressão na minha garganta, talvez espantado, talvez curioso.
– Larga-me – digo, as palavras nítidas, embora a visão comece a ficar
turva – ou castro-te, e não me importa que sejas imortal.
A ponta do meu punhal, escondido até então na bainha do braço, está
agora encostado às suas virilhas.
O Rei do Gelo fica muito quieto.
Intrigada, observo os olhos escurecerem de emoção. Choque? Fica
indeciso, por meio instante.
– Não vou repetir o que disse. – Aproximo a lâmina um pouco, em jeito
de aviso, e ele retrai-se. – Uma eternidade de impotência é muito tempo. Sei
bem que os deuses adoram o sexo.
O Rei do Gelo seria capaz de me desarmar facilmente, mas isto não se
trata de força nem de poder. Respeito. Ele vai respeitar-me. Posso não ser
Elora, mas sou uma pessoa, e não admito maus-tratos.
Por fim, ele recua, e baixa a mão. A pressão no meu pescoço desaparece.
– O jantar começa ao pôr do sol. Não haverá atrasos na comparecência. –
Só quando o eco dos passos se cala é que me deixo cair contra a parede da
cela. Tenho a mão a tremer, enquanto embainho novamente o punhal.
Nunca voltará a estar em vantagem. A partir deste instante, devo usar todas
as armas ao meu dispor. Mente, corpo, lâmina.
O Vento Norte há de amargar o dia em que decidiu meter-se comigo.
6

H orasOsantes do jantar, esta noite, assalto a adega.


guardas, que são uns perfeitos imbecis, indicam-me o caminho
certo, e até ficam contentes. Se terei de aturar uma refeição com o Rei do
Gelo, preciso de ficar suficientemente bêbada.
Trazendo um odre em cada mão, regresso ao quarto e caio na minha
cama ridiculamente excessiva. Oito almofadas para uma pessoa?
Dispensável. Deitando a cabeça para trás, bebo diretamente do recipiente. O
líquido arde-me na garganta, incendeia-me a barriga.
– Não, Marido – murmuro, tragando mais vinho, limpando a boca com
as costas da mão. – Não irei comparecer ao jantar. – Um soluço desprende-
se de mim.
Marido. Engasgo-me com a palavra. O Rei do Gelo não é meu marido.
Sou uma obrigação. Ele é um incómodo. Que eu tenha de viver aqui até ao
fim dos meus dias representa um peso como uma pedra ao pescoço. Oh, hei
de encontrar forma de lhe sonegar a lança. Ou o punhal.
Assim que o matar, recuperarei a liberdade. Um golpe no coração deve
bastar.
Orla descobre-me neste estado horas depois: uma massa desossada
atravessada sobre as almofadas, um odre de vinho vazio, enquanto antevejo
o homicídio do meu marido.
– Minha senhora? – Ela contorna o colchão e debruça-se sobre mim,
preocupada, com os caracóis cinzentos evocando uma nuvem de chuva.
Troco os olhos ao tentar focar o rosto dela. – Sente-se mal?
Demora um pouco, mas lá me endireito, com o segundo odre preso ao
peito.
– O Rei do Gelo é um – arroto – monstro. – Os meus olhos lacrimejam e
a minha respiração fica presa. Que espécie de homem trancaria a esposa
numa cela? Bebo mais um pouco, e novamente. O vinho nunca me desilude.
A aia fita-me como se me tivesse crescido um par de chifres na sua
ausência.
– Orla. – Escorre saliva pelo meu queixo. – Tens de me ajudar. – Uma
vertigem súbita tira-me as forças, e recosto-me à cabeceira da cama. – Ele
disse… – O que disse ele?
– Minha senhora! – O grito estridente faz-me encolher. Não sei ao certo
quando comecei a sentir a cabeça a latejar, mas a pressão atrás dos olhos
golpeia-me fortemente. – Por favor... – Ela arranca-me o odre de vinho da
minha mão, ou tenta, melhor dizendo. Agarro o recipiente como se fosse a
tábua de salvação que realmente é, e Orla tem de descolar os meus dedos,
um a um, do gargalo. Depois avança para a janela aberta e despeja o resto
do líquido para a rua.
– O que fazes? Preciso disso!
– A senhora tem é de aprontar-se. – Levanta-me da cama em peso, e
quase bato de cara no balaústre. Em segundos sou desnudada, enfiada na
banheira, e esfregada até ficar limpa. Enquanto o cabelo seca, Orla escolhe
um vestido cor de marfim, um dos muitos retirados do farto armário, o traje
alterado para servir ao meu preciso tamanho. É bonito, mas estou farta de
vestidos. Quero as minhas calças e roupa larga.
– Não podes inventar uma desculpa? – Orla aperta os cordões do
espartilho contra o meu dorso. A armação prende-me as costelas, e eu
retraio-me. – Diz ao rei que estou agoniada.
– Não posso mentir-lhe, minha senhora.
– Não é uma mentira. Sinto-me mesmo agoniada. – A minha pele agita-
se desconfortavelmente, e tenho o rosto vermelho. Eis a armadilha que me
preparei. Uma gota atinge a minha língua, e a mente esvazia-se de qualquer
pensamento, dando lugar ao instinto. Beber e engolir.
Só no fundo da garrafa é que há clareza.
Orla bufa, exasperada, atando os cordões e virando-me para ela. Tem de
domar o meu cabelo e aplicar-me camadas de cores no rosto até que a
minha expressão taciturna se fixe com maquilhagem seca. Aprecio que não
tenha tentado disfarçar a cicatriz, apenas uniformizando o tom de pele.
– Se não tivesse bebido tanto vinho, não estaria nesta condição –
repreende.
– Se o Rei do Gelo não me tivesse obrigado a casar com ele, não teria
bebido tanto vinho. – Provavelmente.
Ela praticamente empurra-me para fora do quarto.
– Não se esqueça de sorrir.
Os meus chinelos sussurram contra o chão de pedra ao descer as escadas
para o piso inferior, igualmente mal iluminado. As arandelas da parede
proporcionam pequenos focos de luz. Ajudaria ter alguma noção do
caminho. O rei nunca o disse.
– Perdão – abordo um homem que se encontra encostado à parede. – Por
onde…
Ele aponta para um corredor à minha direita, mas não fala. O alto do
crânio – a área mais próxima da chama de uma arandela adjacente – é
transparente.
As portas do corredor são todas feitas de vidro. A passagem conduz-me
a um conjunto de portas duplas ao fundo, abertas como um convite.
A sala é como uma gruta: teto baixo, paredes apertadas, sem janelas.
Apesar da localização triste, contém uma mesa de jantar tão elegante que é
uma surpresa, com dois homens sentados. Copos de cristal refletem a luz
das velas e lançam prismas luminosos nas paredes.
O Rei do Gelo está reluzente no seu assento à cabeceira da mesa. Um
casacão de fio preto e lustroso cobre-lhe o largo tronco, e por baixo, uma
túnica igualmente preta está abotoada até ao queixo. Sem cor. Sem calor.
O convidado, por outro lado, é um contraste direto. O cabelo do homem
é um conjunto de caracóis cor de carvalho, e quando eu percorro a sala,
pousa o olhar em mim com uma dose generosa de intriga. Uma túnica de
tecido áspero da cor da floresta ajusta-se à sua pele ligeiramente bronzeada.
Levanta-se e cruza a sala no mesmo instante, pegando-me na mão como se
tivesse pleno direito. Desloca-se como se dançasse, é o que penso.
Mas é muito bonito. Grossas pestanas emolduram olhos de trevo, e
sardas salpicam a cana do nariz reto como gotas de chuva. Não consigo
desviar o olhar. O rosto dele agrada-me. Acessível.
– Senhora Wren. – Uma voz calorosa e culta. – Que honra.
O homem ao menos é educado.
– Obrigada. – Espero que se apresente, mas ele não reage. – E o senhor
é?…
– A maioria das pessoas chama-me o Mensageiro. – Dedos ágeis pousam
levemente nos meus, suaves como asas de borboleta. Cheira a musgo. –
Mas para si, sou o Zéfiro.
O homem exprime-se como se esperasse que o reconhecesse. O meu
cérebro banhado em vinho bem tenta enquadrá-lo.
– Meu irmão – informa o rei.
O Mensageiro. Então será o Vento Oeste, o Portador da Primavera. Não
admira que seja tão afável.
– Muito prazer, Zéfiro. – É centímetros mais alto do que eu, embora bem
mais baixo do que o irmão.
– O prazer é todo meu. – Um sorriso indulgente curva-lhe a boca… a
boca de um homem que parece adorar o ato de rir. – Quando soube que o
Bóreas tinha encontrado outra esposa, jamais imaginei que fosse tão
adorável.
O Rei do Gelo solta um trejeito de escárnio.
Sinto o rosto quente, e o estômago a remexer-se de desconforto. Nunca
me tinham chamado de adorável. Boa para a queca, mas pouco mais, com
esta cicatriz. Quanto à resposta do rei, ignoro-a.
– Obrigada. – Não sei se acredito neste homem, tendo em conta que nos
acabámos de conhecer, mas recebi mais bondade dele do que do rei, e dou
por mim a simpatizar com a sua presença. Portador da Primavera,
efetivamente.
– A comida arrefece. – O rei fita-nos sem desviar o olhar, as palavras
arrastando-se.
A minha mesquinhez fá-lo-ia esperar, mas Zéfiro oferece-me o braço
com um murmúrio:
– Permite-me?
Algo se transmite entre nós, como se ele entendesse a minha difícil
situação.
A atenção do Rei do Gelo aguça-se quando o irmão me ajuda a sentar,
antes de ocupar o lugar à minha direita. Uma mesa inteira a separar-me do
rei, contudo, a distância não é suficiente. Senta-se com postura rígida na
beira da sua cadeira de espaldar alto. Uma tira de cabedal prende-lhe o
cabelo numa cauda tão apertada que nem um único fio consegue escapar.
A minha atenção recai brevemente sobre a disposição da mesa. Pratos e
taças de prata. Flores frescas – não sei bem onde as teriam encontrado os
criados – brotam de vasos atarracados, trepadeiras verdes que rastejam
sobre a toalha branca da mesa.
– Bem... – Zéfiro ergue o copo de vinho. – Senhora Wren.
Desvio a atenção para o irmão do rei com algum esforço.
– Trate-me por Wren, por favor. – Serei muitas coisas, mas senhora, não.
– Wren. – A sua voz transborda de melodia. – Está a gostar das Terras
Mortas?
– Tanto como imagino que o senhor goste.
O olhar dele praticamente executa uma dança. O Vento Oeste é bonito,
acolhedor, caloroso. Atrai-me sem qualquer impedimento.
– E está a gostar do meu irmão?
Bebo um gole do copo de vinho. O estômago protesta, fazendo-me
recordar de tudo o que bebi anteriormente.
– Assumindo que haja coisas das quais gostar no seu irmão.
O riso dele ecoa no espaço cavernoso.
– Ah, gosto de si. Gosto mesmo de si.
O Rei do Gelo encara-me como se eu tivesse confessado um crime
grave. Se ele não aguenta a verdade, devia ir-se embora. O jantar
melhoraria significativamente.
Entra um rol de criados pela porta lateral, trazendo travessas cheias de
carne, queijo, fruta, pão e verduras. É absurda, a quantidade de comida que
é servida para meras três pessoas. Montanhas de batatas, grossas fatias de
carne banhadas em manteiga, cestos com mais cacetes do que algum de nós
seria capaz de comer. A tigela do molho é tão grande que se poderia banhar
nela um pequeno animal. E a cereja no topo do bolo: um porco assado no
espeto, até a pele ficar estaladiça, com uma maçã na boca.
O cheiro da comida quente dá-me voltas ao estômago. Foram tantas
noites a sonhar com isto: banquetes e gula, o sabor da gordura a derreter-se
na língua. Mas acordava sempre com a barriga vazia. E agora? Esta comida
toda alimentaria uma família de quatro pessoas durante semanas.
Zéfiro e o Rei do Gelo começam a atafulhar os respetivos pratos de
comida. Penso logo em Edgewood. A povoação faminta, pobre, o povo a
desaparecer. Afasto o prato. Não sou capaz de comer, sabendo que Elora
não tem meios para se alimentar devidamente.
O Rei do Gelo encara-me como se visse uma peste, antes de pousar o
garfo.
– Não gostas da comida? – Tem o olhar vazio. Voz, vazia. Todo este
lugar, um vazio.
Semicerro as pálpebras, mas continua esbatida a sua imagem de ombros
largos.
– Acredito que seja bastante apetitosa.
– E, contudo, recusas-te a comer.
– O meu povo passa fome.
– E?
Zéfiro levanta a cabeça, muito interessado, quando eu cuspo:
– Por tua culpa!
O Rei do Gelo pega no garfo, espeta um pedaço de couve e leva-o à
boca.
– Os mortais vivem e depois morrem. Não posso controlar o momento
em que findam. É assim que o mundo funciona, um ciclo ainda mais antigo
do que eu.
– Não consegues controlar o momento em que findam – consigo dizer,
com voz embargada –, mas não há dúvida que contribuis.
– É a minha natureza.
– É uma escolha.
A mão de Zéfiro pousa sobre a minha, e eu sinto que passa uma
comunicação inaudita entre nós. Calma, parece dizer.
Avalio a minha situação: a comida será desperdiçada,
independentemente da minha reação. Mais vale encher a barriga, alimentar
o corpo, aguçar a mente. Tudo o que contribua para a minha missão de
acabar com a existência do Rei do Gelo.
Respirando fundo, começo a encher o prato de comida.
Zéfiro diz:
– Fale-me de si.
– Não há muito a dizer. – Quase solto um gemido à primeira dentada. As
cenouras estão decadentes, ligeiramente doces, embebidas numa cobertura
de mel com especiarias.
– Oh, não diga isso, que não acredito.
Segue-se uma pausa desconfortável. Zéfiro observa-me com paciência, e
sinto o olhar do rei também pousado em mim. A verdade é que nunca houve
um homem que me perguntasse isto. Ninguém mostrou sequer interesse. E
talvez, lá no fundo, eu desejasse que mostrassem.
– Eu… caço. E leio. – Estou a ter dificuldade em falar? Espero que não
pareça um balbuciar.
– Caça? – A atenção dele espevita-se. – Que arma prefere usar?
– O arco.
– Mm... – Olhos que dançam. – E o que gosta de ler?
– Nada de especial – murmuro, sentindo-me tonta. Um romance de
tórrido amor não é propriamente tema de conversa à mesa, e sentir-me-ia
uma tola se lhes contasse sobre a minha preferência por contos de amor e
intimidade… logo aquilo que nunca vivi pessoalmente.
Zéfiro espeta uma fatia de carne de porco com o garfo e enfia-a na boca.
– E como costuma passar aqui o seu tempo?
A pergunta faz-me hesitar. Mas… suponho que é melhor dizer a verdade.
– O seu irmão enfiou-me na masmorra.
A voz do rei atravessa a mesa.
– Enganaste-me.
Enfio a carne e as batatas na boca. O estômago começou a acalmar-se,
agora que começo a enchê-lo de comida, e o vinho continua a jorrar. Não
paro de beber, e que se lixem as consequências.
– Não é culpa minha que não tenhas reparado que eu não era a mesma
pessoa.
Magoa-me a sua rejeição. Não me orgulho de o admitir. Talvez porque
ninguém se tenha preocupado comigo, além da minha irmã, e representa
mais uma evidência de que não sou ninguém neste mundo.
– Trancaste-a na masmorra? Até para ti, é uma atitude muito indigna –
Zéfiro adverte o irmão.
Os dedos do Rei do Gelo contraem-se na base do copo de vinho, e não
responde.
O tempo salta em frente a cada copo de vinho que é servido. Enquanto
Zéfiro se empanturra, o rei remexe no prato. Reparo que as peças de
comidas não se tocam, no seu prato. Carne, legumes, batatas, pão. Quatro
ilhas pequenas em cima da prata. A certa altura, os irmãos entram numa
discussão acesa que não entendo.
Quando a última fatia de pão no meu prato é consumida, e o meu
estômago inchado ameaça fender a armação do espartilho, levanto-me da
cadeira, apoiando-me na mesa. A sala inclina-se perigosamente.
A conversa tem um fim abrupto.
– Com a vossa licença – murmuro. Tenciono abandonar a sala com um
suave farfalhar de saias, e toda a graça e porte de uma nobre de nascença,
mas tropeço na perna da mesa e tombo para a frente, embatendo no chão.
Passos rápidos. Alguém se agacha ao meu lado, uma mão desliza para a
curva das minhas costas. Sinto-me assolada pela sensação, pelos odores da
terra húmida e da vegetação recente, e de um vento quente e manso que
brinca com o meu cabelo colado à pele suada. Um segundo conjunto de
passos, mais pesado e substancial, aproxima-se. Levanto a cabeça a tempo
de presenciar a expressão vazia de emoção do Rei do Gelo distorcer-se num
ar de fúria.
– Afasta as mãos de cima dela – riposta.
Zéfiro recua, mãos levantadas.
Mãos grandes agarram-me os braços e põem-me de pé. O Rei do Gelo
não deve ter notado que estou embriagada, pois quando me solta, o chão
insurge-se ao meu encontro. Ele pragueja, apanhando-me antes que eu caia
por terra.
– Estás bêbada.
Afasto-me dele e encosto-me à parede. A pedra marca um traço frio nas
minhas costas suadas.
– Tremendamente.
Zéfiro adianta-se.
– Oferecer-me-ia para ajudar…
– Eu sou capaz de tratar da minha esposa, irmão.
A resposta dele dissipa momentaneamente o nevoeiro. Claro que se
refere a mim como se fosse propriedade dele, e não uma pessoa com
pensamentos e crenças e emoções.
O Vento Oeste passa os olhos entre nós, evidentemente divertido.
– Já percebi isso, Bóreas. Casado com uma mulher que sente repulsa do
teu toque. Nada mudou, pelos vistos. – Quando sorri, diria que os dentes se
afilaram.
O rei retesa-se.
– Estás dispensado, Zéfiro.
O Vento Oeste faz-me uma vénia.
– Wren, espero que nos cruzemos novamente durante a minha estada. –
Depois, os seus pés silenciosos levam-no da sala de jantar.
Com a partida de Zéfiro, reparo novamente que o Rei do Gelo é enorme,
tanto em altura como em presença, e com um olhar que sonda as
profundezas.
– Consigo ir sozinha para os meus aposentos – declaro, afastando-me da
parede, mas fico descompensada para o lado contrário e tropeço numa
cadeira.
– Orla – vocifera ele.
Passos de corrida.
– Sim, meu senhor?
– Leva a minha esposa para os aposentos dela. Garante que chega lá
inteira.
7

O meuHáprimeiro pensamento consciente, quando acordo, é de que morri.


um latejar em todo o meu corpo. Pancadas na cabeça, sem parar,
sem parar, sem parar. O meu braço treme quando levo a mão à têmpora, de
olhos ainda fechados. As pancadas não desistem. Se não estiver morta, para
lá caminho. A minha boca tem a exata textura do giz.
Aos poucos, levanto-me, apoiando as costas na cabeceira da cama. É um
erro.
O estômago revolve-se com violência, e tenho meros segundos para
pegar na jarra em cima da mesinha de cabeceira, antes de despejar o
conteúdo da ceia da noite passada na base desta. O odor rançoso espoleta
nova onda de enjoo. Vomito até ficar com cãibras no estômago, e depois
deixo-me cair de costas nas almofadas, com a jarra – agora repleta de
vómito – de novo pousada sobre a mesa.
As pancadas tornam-se tão barulhentas que não posso mais ignorá-las,
mas estas não têm origem no interior da minha cabeça.
Alguém bate à porta.
Ainda nem sequer nasceu o dia, a confiar na luz pálida a oriente que se
vê da janela. Que tipo de monstro acordaria alguém a esta hora? Talvez o
rei?
Mal o pensamento se forma, expulso-o por completo. Ele não bateria à
porta. Entraria de rompante, como se fosse seu direito. E Orla é demasiado
atenciosa para me acordar de forma assim cruel.
A próxima pancada faz estremecer a parede, derrubando um dos quadros
pendurados sobre a lareira.
– Pronto – riposto. – Deem-me um segundo.
Só consigo pôr-me minimamente decente, dadas as circunstâncias. Trago
uma camisa de noite, branca e fina – embora não me recorde de a ter
vestido antes de me deitar, mas não vale a pena pensar nisso agora. Enfio o
roupão, ato-o à cintura, arrasto-me até à porta e abro-a com força.
Zéfiro aguarda no outro lado.
A sua boca curva-se num tom brincalhão perante o meu aspeto
amarfanhado. O ombro apoiado na parede dá-lhe um ar descontraído, mas o
olhar perspicaz contraria esta imagem.
– Olá, Wren.
Se eu sou a imagem da morte, ele será a da vida: verde, animado, a
emanar charme. Hoje traz uma túnica dourada até à metade da coxa, culotes
justas e botas com solas maleáveis, bem como um casacão revestido de
pelo.
– O que faz aqui?
Nunca vi um homem adulto que fizesse beicinho, mas Zéfiro não é um
homem. É o Vento Oeste. Provavelmente age como lhe apetecer.
– Queria saber como se sente, hoje.
– E para isso, ia derrubando a minha porta? – riposto com um ar irritado.
Zéfiro examina o meu corpo de forma indolente antes de voltar a atenção
para o meu rosto, passando momentaneamente pela cicatriz. O meu lábio
superior retesa-se num sinal de aviso enquanto aperto ainda mais o roupão.
– Se isso fizer com que finalmente acorde. – Ele ri-se e ri-se. Como o
cantar dos pássaros.
– O que é que você quer, afinal?
– Roubá-la – anuncia dramaticamente, levantando a mão no ar com um
floreado.
Recordo-me do jantar da noite passada. Posso não confiar no Rei do
Gelo, mas se ele não gosta do irmão, haverá um motivo. Que não convém
ignorar.
– Sabe bem que não posso cruzar a Sombra.
– Quem é que falou na Sombra? – Uma emoção indiscernível contrai-lhe
as feições. Avalia o meu quarto com evidente desagrado. Ainda está
bastante escuro, apesar de eu ter aberto as cortinas. – Uma mulher precisa
do vento no rosto, tal como uma flor precisa do sol.
Dito assim, tem certa razão.
– Isso parece-me bem – ouço-me dizer lentamente. Não obstante a
aversão que este encontro me possa transmitir, há uma verdade
inquestionável: preciso de sair do interior deste lugar, esticar as pernas,
ganhar distância da prisão. – Deixe-me vestir alguma coisa antes.
– Precisa de ajuda?
A minha pele eriça-se ante esta proposta inesperada. Esforço-me por
manter um tom neutro na resposta.
– Pedi ajuda?
Os olhos do Mensageiro enrugam-se.
– Céus – murmura –, ofendi-a.
Ofender-me, não. Menosprezou-me.
– Sabe, acho que mudei de ideias. – Recuando, tento fechar a porta.
Zéfiro enfia o pé na ombreira.
– Ria-se, Wren. Era apenas uma brincadeira inocente.
A mãe costumava insistir que eu e Elora devíamos tratar os estranhos
com graciosidade, penso, mas depois recordo-me de que a mãe já faleceu, e
eu sou uma mulher adulta, e este deus ousa testar os meus limites como se
fosse um jogo.
Abrindo mais a porta, pouso a mão aberta contra o peito de Zéfiro e
empurro-o para trás com toda a força. Ele tropeça nos próprios pés,
apanhado de surpresa.
– Se calhar, ontem à noite dei a impressão errada. – Ficamos nariz contra
nariz. O hábito dele cheira a néctar doce. – Deixe-me tornar isto bem claro:
não se meta comigo. Não acabará bem para si.
O seu olhar verde empalidece. Já não acha graça à situação.
– Isso é uma ameaça?
– Interprete como quiser – afirmo, dando um passo atrás. Pode ser
insensato, mas sou quem sou, e não me desculparei por isso.
Contrai a boca em contemplação. Depois, ri-se com gosto.
– O Bóreas não saberá o que fazer consigo, acredite. – Quando o riso se
acalma, diz: – Peço desculpa pelo meu comportamento, Wren. Tem toda a
razão. Adoraria explorar estas terras consigo. Como amigos – acrescenta
com uma vénia encantadora.
– Muito bem. Um momento. – Fecho a porta na cara dele com um
estrondo.
Embora o estômago ainda se revire com as náuseas, acalma-se por fim
quando tomo um gole do odre que escondi na gaveta da cómoda. Um desejo
apaziguado, por ora.
Acabo de lavar a cara e escovar os dentes, enfio culotes grossas e uma
túnica, dois pares de meias de lã, botas forradas a pele e o meu casaco. Terá
os seus remendos, mas é o elo que me resta com o meu lar. Os casacos que
me deram – pele de raposa branca e macia, pelúcia de marta – acumulam pó
na cómoda.
Zéfiro desencosta-se da parede quando saio do quarto.
– Veio suficientemente protegida?
– Sim. Mas você não tem um casaco mais quente? Faz frio lá fora.
– Afinal, não sou o Portador da Primavera? – Ele lança-me um bafo
morno. – Ajuda a afastar o frio, embora o meu poder enfraqueça no reino
do meu irmão.
Faz-me descer um lanço de escadas, e eu pergunto:
– Como é o seu reino? Há neve?
– Não cai neve no meu reino, nem caiu – suspira, e é a primeira vez que
lhe pressinto cansaço sob as várias camadas de afabilidade. Escondeu-o
bem. – Quando o Bóreas foi banido para as Terras Mortas, o poder dele
ficou contido no respetivo reino. Mas ultimamente as coisas têm estado a
mudar. A sua influência espalha-se e agora ameaça o meu reino.
– Lamento. – No exterior, atravessamos um pequeno pátio com bancos
cobertos de neve encostados à curva do muro exterior. Terá sido um jardim
no passado, pois há canteiros elevados, que agora estão vazios, e algumas
árvores, cujos esqueletos ainda persistem. – Porque é que o poder dele
invade as suas terras?
– Os dois reinos são adjacentes. Acho que o autocontrolo de Bóreas está
menos forte, e a sua influência dissemina-se além da fronteira das Terras
Mortas. Com aquilo que ouvi a respeito da Sombra, não me espanta,
embora me intrigue por que motivo não se resolveu ainda. – Arrasta uma
mão pelos caracóis, apertando-os junto à coroa da cabeça por uns instantes.
– Bem, o motivo não me interessa. Quero é que as minhas terras fiquem
livres do gelo dele. Só isso. Foi o que me fez viajar esta distância…
implorar-lhe.
O pouco que conheço do Rei do Gelo faz-me pensar que será improvável
que conceda o desejo ao irmão. Mas o que sabe Zéfiro sobre a Sombra?
Quero fazer-lhe perguntas, mas devo tomar cuidado e não revelar
demasiado da minha pessoa, até estar mais certa do seu carácter, dos riscos
que representa para mim, se os houver.
O pátio desemboca numa praça vazia com pilares partidos. Obviamente
que não se trata da primeira visita de Zéfiro; orienta-se bem pelos trilhos da
cidadela.
Alcançando a entrada, os portões são abertos para nos darem passagem
sem problemas. Atravesso-os, tão alegre com esta aparência de liberdade
que nem a neve me estraga a boa disposição.
Abruptamente, Zéfiro declara:
– Prefere o arco.
– Sim – digo, espantada. – Como sabe?
– Contou-me ontem ao jantar.
Agora que fala nisso, tenho uma vaga – extremamente vaga – recordação
do que conversamos. Uma imagem demasiado escorregadia para poder
agarrá-la.
– A bem-dizer, pouco recordo da noite passada. – Quanto às primeiras
impressões, não foram as melhores. Olhando para trás, não devia ter bebido
tanto, mas é o que normalmente acontece. Nunca aplico controlo, disciplina
ou outro termo que Elora tenha usado no passado. Só penso naquele lugar
remoto que se alcança com mais um gole.
– Entendo. – Desviamo-nos do caminho de neve pisada, desaparecendo
na floresta em redor. – E não a culpo. O Bóreas faria qualquer um começar
a beber. Embora… mesmo que não tivesse falado no arco, eu perceberia.
– Como? – Há neve no meu casaco, nas culotes, nas botas.
– As suas mãos. – Suave como uma pena, as pontas dos dedos, envoltas
nas luvas, tocam nas minhas. – Cheias de calos e esguias. Uma caçadora
nata.
A ironia não me passa ao lado. Aqui, sou eu a presa de um deus.
– Sabe usar o arco?
– Minha senhora. – É como se a beleza deste imortal ficasse
inesperadamente mais acutilante, como um intenso raio de sol. – Não sou
eu o Portador da Primavera? O arco fez-se a pensar em mim.
Subitamente, aparece-lhe o mencionado nas mãos e eu arquejo de
espanto. Tem proporções impecáveis, feito de madeira esculpida de grão
liso, e com marcas que não sei ler. É maior do que os que habitualmente
uso, e a corda suporta uma tensão maior. O meu arco continua em
Edgewood, encostado à porta da nossa cabana. Desconfio que não se terá
mexido desde que parti. – Posso?
Ele passa-o para as minhas mãos. O ácer tem uma flexibilidade excelente
e um bom estalido. Quando puxo a corda, esta emite um zumbido
agradável.
– É lindo – admito, devolvendo-o com relutância. Não há nada melhor
do que a sensação da madeira esculpida. Sem a necessidade de caçar, tenho-
me sentido desligada.
– Gostava de experimentá-lo? – pergunta Zéfiro.
– A sério?
– Claro que sim. – Conduz-nos para leste até alcançarmos uma clareira
ampla. – Porque julga que a convidei? – Perscruta a área em volta. Uma
ligeira camada de neve cobre os ramos negros das árvores atrás de nós. –
Vê aquela rocha? Tente acertar no cepo que está na base.
O cepo é um alvo fácil. Sinto-me quase ofendida.
– E que tal aquela árvore? – pergunto, apontando para uma forma
pequena e torta mais afastada.
Zéfiro encolhe os ombros.
– Se prefere. – Entrega-me uma flecha da aljava que se materializou nas
suas costas a par do arco. Usa penas de ganso para orientar a flecha, tal
como eu.
Com uma corda tão apertada, previra que seria necessário aplicar mais
força para puxar o arco, mas não é esse o caso. É como se a arma de Zéfiro
se ajustasse ao meu tamanho e capacidade. A flecha recua, fluida como
água. Quando a solto, atinge a árvore no local exato.
O Vento Oeste anui, mãos enfiadas nos bolsos.
– Boa pontaria.
O elogio agrada-me.
Passamos a manhã a disparar contra vários alvos. Há muito que não me
divertia tanto. Zéfiro acerta em tudo, e vai contando-me histórias sobre a
sua casa no Ocidente, a sua infância. O sol sobe e empoleira-se no alto da
abóbada celeste.
– Tenho de confessar uma coisa – diz, a certa altura, desprendendo uma
das flechas da árvore. – Não a convidei para este passeio só para podermos
atirar ao alvo.
– Ah, sim?
Ele volta a colocar-se ao meu lado e apresenta-me a flecha. Encaixo-a na
corda, mas não a puxo.
– Vim pedir a sua ajuda.
Fico tão espantada que quase largo o arco.
– Pedir-me ajuda? A mim?
A fadiga que há pouco lhe senti acentua-se, e sou presenteada com um
vislumbre mais profundo, mais uma camada destapada, instalando-se a
gravidade da situação.
– O meu lar está a ser destruído pelo inverno. Ameaça o meu povo, a paz
que tenho incansavelmente mantido. Se nada mudar muito rapidamente,
receio bem que perca o meu lar.
– E não pode dizer isso ao seu irmão? – pergunto de forma
compreensiva.
Uma gargalhada áspera e sem humor.
– O Bóreas formou uma opinião a respeito de mim há muito tempo, e
não creio que a mude.
– Como assim?
– Cometeram-se certos erros, e o passado não pode ser desfeito. – Um
sacudir breve da cabeça. – Bem tentei. Acredite, tentei, mas ele é casmurro.
Se não andasse preocupado com a Sombra, jamais teria permitido agora a
minha presença. Mas a si, ele talvez dê ouvidos.
Está tão equivocado, que se torna absurdo. E, contudo, não entenderei eu
como é fácil o desespero entranhar-se em nós? Ele quer salvar a sua terra.
Porque não o ajudaria?
– Vou tentar – digo. – Mas não sei se ele estará recetivo ao meu pedido.
Quando disse que ele me enfiou na masmorra, falava a sério.
– Nunca pensei que não falasse a sério.
Pergunto-me se haverá mais elementos nesta história. O que realmente
sabe Zéfiro das anteriores esposas do Rei do Gelo?
Uma brisa brinca com as pontas do meu cabelo, e eu estaco de imediato.
Fumo de madeira queimada.
– Wren? Está aí? – Zéfiro agita a mão diante da minha cara. – Para onde
foi?
– Julguei que me cheirara a fogo. – Perante a sua expressão enigmática,
explico: – Os caminhantes-das-trevas. Soltam um cheiro como fumo de
madeira. – O Rei do Gelo referiu que a floresta detestava a presença dele.
Haveria uma ligação entre isso e a existência dos caminhantes-das-trevas? –
Devíamos voltar. Costumam caçar ao cair da noite, mas nem sempre.
Ele não argumenta, e iniciamos o caminho de regresso para a cidadela.
– Tenho uma pergunta para si – digo.
Orientando-nos pelo arvoredo calado, Zéfiro passa as pontas dos dedos
pelas árvores há muito mortas e pelos montinhos de sarça emaranhada.
Rebentos verdes brotam nos pontos de contacto, depois mirram e
enegrecem no ar frio.
– Pergunte à vontade.
Esquivo-me a um par de ramos baixos.
– Sendo o Portador da Primavera, deverei assumir que conhece bem as
artes ervanárias?
Ele lança-me um olhar de soslaio.
– Sim.
Abrando quando contornamos uma dobra no caminho. Como formulo a
pergunta sem despertar suspeitas? Matar o Rei do Gelo com uma arma
tocada por um deus é uma excelente ideia – em teoria. Mas tem de
acontecer num momento de total vulnerabilidade.
– Tenho tido dificuldade em adormecer desde que aqui cheguei. Qual a
melhor erva para me ajudar a ter um sono profundo?
O olhar de Zéfiro brilha com uma luz estranha.
– Há um tónico que faço com as pétalas de uma papoila. – Para e imito-
o. – Acho que nos podemos ajudar mutuamente, Wren.
– Em que sentido? – pergunto, incapaz de disfarçar a cautela, e a
esperança, no tom de voz.
– No sentido de poder dar-lhe o que quer – diz –, em troca de algo que
eu quero. Uma forma de troca.
Algo na voz dele faz-me retesar as costas, levantar o queixo. O que ele
quer terá um preço.
– Não entendo bem o que insinua, Zéfiro. Só procuro um remédio para
me ajudar a dormir.
– Eu entendo, Wren. – O seu olhar aberto e nítido cruza o meu sem
reservas.
Hesito. Seguramente, ele não deduziu a verdade tão facilmente.
– Qual o seu preço? – pergunto-lhe.
Flores brotam debaixo da sola dos pés. Ricas e vivas cores que não
sobrevivem no frio. Morrem ao final de segundos.
– Para si, cunhada? O preço está pago.
– Qual era, então?
– A sua companhia. – Zéfiro agracia-me com o mais encantador sorriso,
uma covinha formando-se em cada face.
Fico corada, e desvio a cara com um murmúrio:
– Oh. – Por um instante, pensei que o preço seria algo horrível, embora
isso não fizesse sentido.
– Bem, isso e o favor que lhe pedi há pouco.
Certo. É justo, presumo.
– Falarei com o seu irmão. Não prometo que ele ouça, mas tentarei.
Um maciço de rosas nasce no local em que ele passa a mão, num tronco
sem casca. Zéfiro puxa um dos botões escarlates e entrega-mo, a boca
tocada por uma súbita melancolia.
– Para quando precisa do tónico?
O alívio assola-me. Vai funcionar. Tem de funcionar.
– O mais depressa possível.
– Verei o que posso fazer.

Mais tarde, quando nos separamos, regresso aos aposentos. O calor da


lareira desgela as minhas faces hirtas do frio. Pela primeira vez nestes
últimos dias, sorrio. Podemos ter começado com o pé esquerdo, eu e Zéfiro,
hoje de manhã, mas à medida que as horas passaram, acabei por conhecer
este deus que era curioso e brincalhão e triste.
– Onde estiveste?
A pergunta ecoa pelo quarto, e rodopio, encontrando o Rei do Gelo
sentado numa das cadeiras ao canto e olhando-me fixamente. Está tão
rígido que é fácil confundi-lo com uma peça de mobília.
O meu bom humor desaparece logo.
– Passeei – digo, desatando o casaco para o pendurar num gancho ao
lado do fogo. É meia mentira.
Aquele escrutínio penetrante abandona o meu rosto, embora seja um
alívio de curta duração.
– Quem te deu esse arco?
Lembro-me de que trago uma arma, que tenho cor nas bochechas e uma
luz no olhar. Quando soube que deixei o meu arco em Edgewood, Zéfiro
oferecera-me o seu.
– Não tens nada que ver com isso – respondo ao rei.
Com um movimento sinuoso, ele endireita-se e eu preparo-me para a
descarga de uma tempestade crescente. Aqueles olhos azuis semicerram-se
sobre o nariz irritantemente retilíneo.
– Zéfiro – sibila.
– Ele deu-me alguns conselhos para atirar melhor – admito,
aproximando-me da lareira para a atiçar. – É uma pessoa que, ao menos,
aprecia a minha companhia.
– Não quero que passes nenhum tempo com ele.
Com o atiçador de ferro na mão, viro-me e espeto a ponta com cinzas no
tapete debaixo dos meus pés.
– E a mim, pouco me importa a tua opinião. – Repondo o atiçador no
gancho, aproximo-me da cama, pousando arco e aljava na colcha. – Porque
o detestas tanto?
– O que aconteceu entre mim e o Zéfiro está além da tua compreensão de
mortal.
Está a desviar o assunto.
– Queres saber o que eu penso?
– Nem por isso.
Era uma pergunta retórica.
– Que tens ciúmes – digo, cruzando os braços e observando-o. As
narinas agitam-se. Retraio um sorriso de triunfo e vou mais fundo. Há
poucas distrações neste lugar, e perturbar a calma do Rei do Gelo tem o seu
fascínio. – Tens ciúmes porque o Zéfiro é afável, simpático…
– Um trapaceiro.
– Ou seja, tem personalidade.
O rei aperta o espaldar da cadeira, dedos brancos da pressão exercida.
Tenho de ser doida para o levar ao extremo, mas quero vê-lo a perder o
controlo.
Embora possa ser educada, quando necessário. Afinal, fiz um acordo
com Zéfiro.
– Ouve – digo, aproximando-me dele. – O Zéfiro está preocupado. O teu
poder infiltra-se no reino dele. Recua. Assim o Zéfiro pode voltar para casa,
e todos ficaremos felizes. – Exceto eu.
O silêncio abarca o quarto. Ele demora tanto a responder que começo a
pensar se terá ouvido.
– Foi isso que ele te disse? Que fez a longa travessia por causa disso?
– Sim – respondo lentamente.
– Nunca pus os pés no reino do Zéfiro. Como saberei se diz a verdade?
– Sei lá. Os irmãos são vocês. – Cansa-me esta desconfiança do rei. –
Pondera fazer-lhe uma visita.
– Deixa-me colocar as coisas de outro modo. Jamais visitei o reino do
Zéfiro, nem tenho intenção de fazê-lo. Se o meu poder lhe corrompe o
reino, devia pensar em reforçar as suas defesas.
Deixo o assunto cair, para já. Talvez noutra ocasião, quando o rei esteja
mais aberto a conversar.
– Se já terminámos – digo, com voz arrastada, desatando os laços nos
pulsos –, podes sair.
O Rei do Gelo fita-me fixamente. Não se mexe.
Bem, foi ele que começou.
Com um rodopio perfeito, viro-lhe as costas e tiro a túnica, deixando-a
cair no chão.
– O que fazes? – As palavras soam com um misto de fúria, confusão e
desconforto. É esta última emoção que me desperta os sentidos.
Espreito por cima do ombro. O seu olhar intenso martela-me com a
intensidade de uma tempestade de granizo.
– Troco de roupa.
– Troca atrás da divisória.
Assim faria, normalmente, mas agora que sei que isto lhe causa
desconforto, é óbvio que me vou aproveitar da situação.
– O quarto é meu – afirmo, virando-me para ele. – A presença indesejada
é a tua. Não te agrada? Podes sair. – Por favor, sai.
Mas ele continua a olhar, embora se fixe agora na minha garganta e
clavícula. A minha pele eriça-se de uma forma estranha ante tal escrutínio.
– Temos de conversar.
– Conversa, então. – Com um sorriso endiabrado, desato as calças e
deixo-as cair.
Desvia o olhar, embaraçado, concentrando-se nos troncos que vão sendo
consumidos pela lareira. É impossível que este homem, com tantas esposas,
nunca tenha visto uma mulher nua. E seja como for, não sou impúdica. Não
tirei a roupa interior nem a cinta peitoral.
– É exigida a tua presença – diz ele através de dentes cerrados.
– Para quê? Mais um jantar insuportável? – Um manancial de túnicas
lavadas, culotes, vestidos, meias, e meias de lã numa variedade de cores
enche até ao cimo todas as gavetas e o armário. Estou com humor negro,
portanto escolho negro. – Dispenso.
– Não se trata do jantar – pigarreia, continua a desviar a vista. – E não
tens escolha.
– Eu conheço o significado da palavra exigida. Mas volto a dizer: passo.
– Logo que visto as roupas lavadas, enfio a suja no cesto que Orla recolhe
pela manhã.
Agora que acabei de me vestir, derrubei a única barreira que impedia o
Rei do Gelo de se aproximar. Ele avança e agarra-me no braço.
– Há um motivo especial para eu tomar uma mulher mortal a cada
conjunto de décadas – diz, pousando aqueles olhos azuis de gelo em mim. –
Hoje, fazemos uma visita à Sombra.
8

P artilhamos a montada. O Rei do Gelo senta-se com os braços curvados


em redor de mim, e segura ao de leve as rédeas do equídeo caminhante-
das-trevas, enquanto o passo agonizante da besta nos faz balançar. Não sigo
num cavalo à parte porque ele não confia em mim. Talvez seja mais esperto
do que eu pensava.
O nosso destino fica a um dia inteiro de viagem para ocidente, e temos
de atravessar um território agreste de vales escarpados, uma zona extensa
das Terras Mortas em que não existe vida alguma. De tempos em tempos,
vislumbro a curva de um rio cintilante, que assumo tratar-se de Mnemenos,
um dos seis rios do reino. Tremem-me as mãos, por isso aperto com força o
punho da sela. A Sombra, esse véu voraz, aguarda-me no fim deste
percurso. Quanto do meu sangue será derramado?
Já a tarde vai a meio quando finalmente as necessidades do meu corpo se
fazem sentir.
– Tenho de urinar.
Começo a familiarizar-me com os silêncios dele. Há o silêncio de és
insuportável. Distinto de o rei sou eu, e deves-me obediência. Mas este em
particular deixa-me perplexa. Talvez seja o silêncio de a minha esposa
pouco melhor é do que um animal.
– Não se passaram muitas horas desde a última vez.
Os meus dedos afagam a crina do cavalo. Parece nevoeiro – um peso
sem substância. Espantosamente, a criatura não parece importar-se. Fáeton,
foi como lhe chamou.
– E agora preciso de fazer novamente.
Pela forma como o peito se incha lentamente nas minhas costas,
pressinto que a irritação cresce. Ele puxa as rédeas e o cavalo para.
– Despacha-te.
Escondo-me atrás de uma árvore, faço o que tenho a fazer, e ao
regressar, ele ajuda-me a subir para a sela. O resto do dia passa sem mais
incidentes. Acumulam-se nuvens no alto, pesadas e cinzentas como ardósia.
Trazem consigo o doce almíscar da tempestade que se avizinha.
– Sabes – começo –, esta viagem passaria muito mais depressa se
tentasses fazer conversa.
– Assumindo que há tema para tal. – Ele vai composto, imperturbável.
Estou num ponto em que aceitaria a ira dele, inclusive uma manifestação
intensa. Uma prova de que tem sentimentos.
– Sabes qual é o teu problema?
– Cala-te.
– Achas que podes tratar as pessoas…
– Para de falar – sibila, fazendo parar o corcel.
Subitamente, noto que o Rei do Gelo ficou hirto, atrás de mim. Sinto a
pele formigar com uma nova perceção. Nenhuma brisa percorre a floresta,
nada agita os ramos sem folhas, e isso preocupa-me, pois raramente falta o
vento na presença deste rei.
Examino o terreno em volta, tentando alcançar o arco nas minhas costas,
mas não o encontro. A dádiva de Zéfiro ficou pendurada no quarto. Inútil.
– Porque é que a floresta detesta a tua presença? – Ronda-nos alguma
coisa. Caminhantes-das-trevas? Não sinto o cheiro do fumo, mas falta-nos
vento para o transportar.
– Não é óbvio? – A lança dele materializa-se, e o rei inclina-a para
diante. – O meu poder matou a floresta. Esta área em particular pertencia ao
Gris. Muitas almas tinham aqui as suas casas, e exterminaram-se famílias.
Aqueles que se lembram não gostam desse facto.
Um respirar tenso une-se ao seguinte. Tenho uma única arma, a lâmina
na bota, mas de pouco vale, pois limitar-se-á a atravessar as formas amorfas
dos espíritos.
Sem a minha sacola de sal, estou indefesa.
– Consegues travá-los?
– Talvez.
Um raminho parte-se. Os meus olhos dardejam na direção do som.
Ele comenta em voz baixa:
– Às vezes, consigo exercer controlo sobre os caminhantes-das-trevas,
mas a vontade deles tem-se tornado maior ultimamente.
O pensamento é totalmente aterrador. Os caminhantes-das-trevas são
bastante inteligentes, e parecem aumentar em número de ano para ano.
– Como é que os paramos?
– Não paramos.
Examino novamente o que nos rodeia. A floresta está muda, vazia.
Por fim, o Rei do Gelo baixa a arma.
– Seguem o nosso rasto, mas não atacarão enquanto for dia. A luz
enfraquece-os. – Ele indica ao corcel que inicie um suave trote, ao seu sinal.
– É melhor apressarmo-nos.
Quando o dia se torna lusco-fusco, já me dói o rabo e as coxas queixam-
se da árdua viagem. Alcançamos a base de uma montanha e iniciamos a
subida. O pouco arvoredo existente desaparece de vez. O vento berra no
cimo do penhasco, sibilando enquanto enreda dedos gelados no meu cabelo.
Algo dentro de mim se cala.
– O que é isto?
Porque, lá em baixo, algo fervilha. Uma massa que se contorce, corpo
sobre corpo, desfocada atrás da Sombra. Uma horda de aldeões reuniu-se,
centenas ou talvez milhares, tendo atravessado a extensão do Gris para se
plantarem à porta do Rei do Gelo. Cobrem a paisagem como uma manta,
escorrem para o vale mais abaixo, os seus corpos esfaimados cobertos de
panos frágeis e peles esfarrapadas.
O ar vibra com os gritos que soltam, ao investirem em ondas contra a
barreira. Não conseguem atravessar a Sombra. Só os mortos o fazem, e
unicamente através do Les.
– Porque é que tentam entrar nas Terras Mortas?
Um som baixo e áspero vibra ao longo da minha espinha. Como um
rosnado.
– Os caminhantes-das-trevas continuam a escapar para o Gris. Os
aldeões culpam-me pela rutura, e procuram acabar com a minha vida, entre
outras coisas.
Uma reprimenda bem merecida. E, contudo, fico curiosa.
– Porque te culpam?
As mãos dele apertam as rédeas. Pressinto que hesita.
– Sabes o que são os caminhantes-das-trevas?
– Abominações que devoram almas? – Além desta informação, nada sei
sobre as criaturas.
– Na transição para a vida após a morte – diz ele –, a alma desprende-se
do corpo físico e funde-se com o Les, aguardando o Julgamento. Algumas
almas, contudo, recusam-se a aceitar este destino. Querendo voltar para as
vidas anteriores. Esta resistência normalmente corrompe a alma.
Isso explica o porquê de os caminhantes-das-trevas se alimentarem dos
vivos. Procuram recuperar uma vida que já não existe, por intermédio da
respiração e alma alheias.
A neve compacta-se sob as minhas botas. Não me lembro de ter
desmontado. Os músculos dão-me pontadas enquanto avanço para o Les
gelado.
Uma mãe com um bebé agarrado ao peito debate-se com a barreira. Esta
flui como água escura, desviando-se do toque dela. O desespero arde no seu
olhar quando encontra o meu. Agora arranha a parede. Agora atira-se contra
o bloqueio, uma vez e outra. Agora grita, e o bebé produz um grito débil, e
ela suplica, solta um lamento. Monstro! Sois um monstro!
O meu estômago torna-se um poço rígido. Há homens com facas e
forquilhas e espadas ferrugentas, tentando espetar o muro futilmente.
Mantenho-me junto ao Rei do Gelo como se fôssemos uma frente unida,
com ânsias de vomitar porque nada seria mais longe da verdade. O que
pensará esta gente de mim?
– Lamento – sussurro. Os punhos golpeiam a barreira, luz faiscando nos
diversos pontos de contacto. – Lamento.
Neve esmaga-se atrás de mim, e chama-me a atenção. O Rei do Gelo
desmontou e agora está nas minhas costas, os olhos mortos pousados na
população que se debate.
– Tens de ajudá-los. – Duas passadas, e encontro-me defronte dele. Enfio
os punhos fechados na sua capa.
Ele pisca os olhos, surpreso.
– É o que queres que faça? Oferecer assistência a quem tem fome de
vingança?
Um riso roufenho liberta-se de mim.
– Não podes morrer. Tu próprio o afirmaste. E se os ajudares, não terão
motivo para te matar!
Pareceu-me realmente, durante um instante, que iria ceder.
– Não.
– Por favor. – Entra neve nas minhas calças, entorpecendo-me a pele. –
Têm fome e frio. Podes agir.
O seu lábio superior contorce-se, uma única vez, como um tique
nervoso.
– Não controlo os caminhantes-das-trevas. Andam por onde querem.
– Mas deve haver um motivo para entrarem pela Sombra.
– Sim, e ao cederes o teu sangue à Sombra, fortalecerás a barreira,
fechando os buracos que se formaram com o tempo.
Abro e fecho a boca estupefacta.
– O quê?
Agarrando-me o braço, ele puxa-me para junto de si. Na outra mão,
segura uma faca.
Sinto o coração acelerar.
– Pensei que não sacrificavas as tuas mulheres.
– E não sacrifico.
A frustração gritante no seu tom de voz surge como surpresa. Arrasta-me
aos poucos para a Sombra, por muito que me debata. A multidão acerca-se,
uma onda de mãos esqueléticas e peles caídas. Sinto a cabeça à roda. De
quanto sangue precisa ele? Uma gota? Um balde? A fronteira entre a vida e
a morte esbate-se.
– Tira a luva – diz.
O tecido escuro da Sombra projeta-se em ondulações. Sobe e enrola-se
em si mesmo, flexível e quente e vivo.
O Rei do Gelo detém-se à distância de um braço da barreira. Não quis
obedecer-lhe, e por isso, retira-me a luva, expondo a minha mão suada ao ar
abrasador. A faca crava-se na minha palma, mas não corta a pele.
Mais rápida do que a reação dele, torço-me sob a sua guarda, e passo a
faca da sua mão para a minha, a ponta afiada beijando-lhe a base do
pescoço.
– Quanta ousadia, a tua. E quanta parvoíce. – Ele avalia-me sem temor,
mas não sem curiosidade. – Pretendes então matar-me? – A voz fica mais
suave, lenta, enrolando-se à minha volta com fios sedutores.
Podia aproveitar. É o punhal dele. Foi tocado por um deus.
Embora espere que a sua morte desencadeie a destruição da Sombra, o
fim do inverno, não sei, ao certo, se acontecerá este desenlace. E se ele
morrer, mas a Sombra continuar? E se os caminhantes-das-trevas
sobreviverem, e ficarem livres para percorrer o Gris? Até ficar certa das
consequências, certa de que conseguirei sair das Terras Mortas sem
obstáculos e retirar o sofrimento ao Gris, preciso dele vivo.
Aos poucos, como se entendesse que não é uma arma mortal a que
empunho, o Rei do Gelo levanta a mão. Passa ao lado do punhal e pousa as
pontas dos dedos no meu queixo, e desliza-os para cima, pela curva da face.
Afrouxo o aperto no cabo, ao sentir o toque inesperado.
Ele mexe-se tão rapidamente que nem o sinto. Agarrando no meu pulso,
faz um corte no meio da palma da mão. Sibilo, sentindo a pele abrir-se e o
sangue jorrar.
– A existência da Sombra requer sangue de um mortal – explica, como
se eu não o tivesse ameaçado com uma faca há meros segundos. – O sangue
de um mortal qualquer servirá, mas se o mortal tiver uma união com um rei
é muito mais potente. Uma doação voluntária é sempre mais forte do que
sangue tirado à força. Escolhe – diz ele. – O teu sangue – inclina a cabeça
para aqueles aprisionados no outro lado da Sombra – ou o deles.
Fúria e impotência enlaçam-se numa amálgama sufocante. Não há
escolha possível. É um veneno que devo engolir e por que dar graças: salvar
aquela gente pelo custo da minha vitalidade.
Questiono-me o que originou esta necessidade. Porque precisará o rei do
meu sangue para fortalecer a Sombra que ele próprio criou. Estará o seu
poder a ficar mais fraco?
– O meu – cuspo. Em breve, nada disto terá importância. Ficarei livre
dele. Ficaremos todos livres, por fim.
Ele aprofunda a incisão. O sangue jorra, quente e espesso, pelo meu
pulso. Com um apertão inabalável, o rei enfia-me a mão no interior da
barreira.
A escuridão incendeia-se. Riscos vermelhos trespassam o tecido,
espalhando-se, percorrendo a Sombra por inteiro. Uma dor torpe sobe-me
pelo braço. O meu grito estala contra o interior dos dentes. Não consigo
soltar-me. Quanto mais sangue rouba às minhas veias, mais opaca a Sombra
se torna. Assim que consome todas as zonas escuras, o tom escarlate apaga-
se. A Sombra cospe a minha mão, o corte já coberto de crostas.
– Anda, esposa. – Ele embainha o punhal. – Temos de voltar.
A barreira, anteriormente um tecido, tornou-se tão densa que esconde o
outro lado.
O que fiz eu?
Atiro-me contra a substância, e a escuridão enrola-se, recua. Uma fugaz
visão– um olho assustado, mãos que procuram agarrar – antes de a negrura
se uniformizar novamente e tapar qualquer vislumbre.
E se me tivesse recusado a fortalecer a Sombra? Poderia a população ter
atravessado a barreira enfraquecida? Teria o rei perdido influência sobre o
Gris? Talvez nunca saiba.
O Rei do Gelo começa a rebocar-me para o corcel, que bate a pata na
neve lamacenta e sacode a cabeça com impaciência.
– Não podemos abandoná-los.
Os dedos contraem-se no meu braço quando tento libertar-me.
– Tem calma, esposa.
Não irei sem luta. Não irei de modo algum.
– Pensa nas crianças – exclamo. – Faz alguma coisa. Ordena ao inverno
que recue. Por favor. – Procuro um ponto de apoio, mas o chão continua
gelado, a terra, escorregadia, e o meu corpo é fraco quando comparado com
a força imortal. Por muito que me debata, não consigo libertar-me.
– Solta-a.
Uma figura sai de detrás dos arbustos, com neve a salpicar-lhe os
caracóis revoltos. O gesto é tão gracioso que não há separação entre deus e
terra. Algo mudou nele. Talvez o olhar. O verde de novas plantas, da vida,
da primavera. Uma cor tão intensa que juro que transborda. Zéfiro
desapareceu. Diante de mim encontra-se o Vento Oeste, e traz um aviso.
Seta a postos no arco. Apontada ao coração do irmão.
O vento sopra, um uivo que afirma, um grito de desafio na voz do Vento
Norte que adquiriu um tom insidioso e assustador.
– Estás a passar dos limites, Zéfiro.
O Vento Oeste avança com passos ligeiros pela neve compacta. Botões
cor-de-rosa frescos florescem ao passar.
– Solta a Wren. – A voz também mudou. Está estranha e etérea.
O Rei do Gelo afrouxa o aperto no meu braço. A outra mão passa pelo
meu ombro e sobe pela espinha. Depois desce, percorrendo a superfície de
cada vértebra, um toque intencional, cada vez mais baixo, até à base da
coluna, à curva no fim das costas. E é aqui que a mão repousa.
A possessividade deste toque desperta-me um arrepio.
– Os meus afazeres não são da tua conta – responde.
– Wren. – Zéfiro ignora o irmão. – Sente-se bem?
– Perfeitamente.
O Vento Oeste parece deslocado, com a túnica de costuras douradas e
tonalidade bronzeada da pele. Este é o reino do Vento Norte. É ele que
sentencia as almas. É ele que invoca a ira do frio. É ele que profere as leis
da terra. É ele que conhece intimamente a morte.
– Não te volto a dizer – afirma Zéfiro, puxando a flecha ainda mais para
si. – Larga a Wren.
– E se não o fizer? – O rei estica o queixo. – O que farás, Zéfiro? –
pergunta baixinho. – Vais matar-me?
– Não vim matar-te, irmão. Mas obrigar-te a ouvir.
A flecha voa numa trajetória reta, que mal consigo acompanhar com os
meus olhos mortais. Trepadeiras brotam da sua ponta e explodem em todas
as direções, abrem túneis no solo e abraçam os troncos enegrecidos das
árvores. Então o ar rompe-se e sou atirada para trás por uma força tão
possante que podia a própria terra ter-se fendido a meus pés.
Embato num banco de neve, afundando no frio macio. Uma nuvem
estridente envolve-nos como um véu, e nem luz nem som nem força
conseguem penetrá-la. A minha pele treme com o crepitar desta potência. O
ar torna-se sólido. Como se duas mãos invisíveis orientassem a sua
correnteza e deslocação.
Uma explosão à minha direita. Deito-me no solo, vendo ramos passarem
por cima de mim e chocarem contra o tronco de outra árvore, partindo-a ao
meio.
– Zéfiro! – brame o Rei do Gelo. – Zéfiro, basta!
– Só quando me deres a oportunidade de me explicar – exclama o irmão.
Pondo-me de joelhos, uma rajada de ar golpeia-me nas costas e volto a
cair no chão. Torna-se difícil respirar.
– Confiei em ti em tempos – cospe o rei. Salta gelo da ponta da sua
lança. – Foi o meu último erro.
Irmão contra irmão, a fúria cresce, dois eternos deuses descontrolados. O
ar brame. Uma rocha próxima parte-se em duas. Tenho de encontrar abrigo,
ou quem se partirá a seguir, serei eu.
Rastejo até à árvore mais próxima e aproveito o tronco maciço,
escudando-me do vento cujos dentes rasgam e açoitam e despedaçam. A
vista enche-se de lágrimas incontroláveis. Há um estalo sonoro, mas o
dilúvio tornou-se tão espesso que nem consigo ver o que foi.
Então, uma vaga e ténue forma chama-me a atenção. Zéfiro subiu,
entretanto, às ramagens mais altas, e salta de árvore em árvore,
imperturbado, como se os ventos violentos fossem meras brisas.
Trepadeiras e folhas brotam de onde pisa, nas cascas desnudas, embora,
poucos momentos depois, a geada consuma o verde que nasceu.
O rei aponta a lança para o alto. Gelo explode da ponta, lançando dardos
de prata na direção de Zéfiro, cujo arco e flecha reaparecem. Outra flecha
voa segundos antes de uma parede de flores se materializar e criar uma
barreira ao redor do seu corpo. O gelo entranha-se na barreira.
Ponho-me de pé, usando a árvore como apoio, e caminho contra a parede
de ar feroz. Passo a passo, um tropeção, uma queda, outro passo, mais um.
O rei lança nova rajada de gelo para Zéfiro, que desaparece dentro de um
emaranhado de trepadeiras, berrando:
– Sou uma pessoa diferente. Mudei.
– Achas que acredito?
Agarro o braço do Rei do Gelo. Aqueles olhos fixam-se nos meus, um
azul tão deslumbrante que se torna inclusive doloroso fitá-lo. É como
encarar o sol. Contorço a manga com os dedos, faço força. Ele examina a
minha mão no seu braço; um trejeito carrancudo ensombra-lhe a boca.
Um movimento atrai o meu olhar por cima do seu ombro. Um par de
trepadeiras arranca a árvore pelas raízes. Depois apanhada e atirada pela
clareira por uma rajada de vento com cheiro a terra.
O mundo abranda e escurece. Apesar de Zéfiro ter mirado nitidamente o
irmão, os ventos selvagens afastam a árvore da rota. Vai esmagar-me o
crânio e fragmentar-me os ossos. Mas será um fim rápido. Uma ínfima
misericórdia.
Fecho os olhos.
Um estilhaço cujo estrondo trespassa o vale. A terra é assolada por
trovões.
Abro os olhos. Encaro as largas costas do Rei do Gelo. À esquerda, está
a árvore, como se o rei se tivesse colocado entre a minha pessoa e o projétil,
para o desviar e poupar-me a um fim prematuro.
Os ventos entrechocam-se: quente e frio, vida e morte. Destruir-se-ão
mutuamente – bem como a mim –, a não ser que dê ao Rei do Gelo aquilo
que ele quer. E o que ele quer é a minha obediência.
O Rei do Gelo lança-se em frente, desferindo um golpe brutal do alto,
com a lança. Raízes irrompem do chão, retaliando, e rolam como grandes
ondas em direção ao Vento Norte, que não se curva, não se ajoelha, não
vacila, não esmorece.
As raízes não chegam a alcançá-lo. De repente, tombam na terra
assolada pela neve, sem vigor, contorcendo-se. Segue-se a paz. Segue-se o
silêncio.
A neve clareia e revela Zéfiro, parcialmente enterrado no gelo, dentes
arreganhados, braços e pernas congelados no ato de atacar. Um espinho de
gelo paira sobre o pescoço dele, e desce lentamente.
– Espera! – avanço aos tropeções. – Eu vou contigo. Liberta-o. –
Liberta-o e ele viverá, e eu terei o meu tónico do sono. Terei a morte do
meu raptor.
Ficarei livre.
– Por favor… Bóreas. – Atrevo-me a pousar a mão no seu antebraço. O
músculo esguio e sinuoso contrai-se ao meu toque, mas ele não se afasta.
– Este assunto não te diz respeito, esposa.
– Se envolve a minha vida, diz-me muito respeito.
Ele murmura, tão baixinho que mal o ouço:
– Ele tirou tanto de mim. Porque não havia de retribuir o favor?
O tom áspero e angustiado comove-me, e dou um passo em frente sem
reparar. São irmãos, e esse laço é eterno. A ferida que possa existir entre
eles não se estancará com vingança.
– Não tem de chegar a este ponto. É tua escolha afastar-te.
– E viro as costas, para que me ataque sem aviso? – murmura,
demasiado discreto para o irmão ouvir. Mas ouço eu. E ouço também o que
não disse.
Um gesto brusco liberta Zéfiro do gelo.
– Vai – brame o Rei do Gelo. – Sai do meu território e não voltes. Irmão
ou não, hei de matar-te se tiver nova oportunidade.
Uma rajada brutal lança-me ao ar e deposita-me no dorso do
caminhante-das-trevas. Momentos depois, o Rei do Gelo instala-se atrás de
mim, e abandonamos a clareira como se a própria morte viesse no nosso
encalce.
9

T rês dias volvidos, desde que entreguei o meu sangue à Sombra. Neste
intervalo, pouco dormi. O meu coração dispara em momentos estranhos,
e não há vinho capaz de atenuar o mal-estar. Sou atormentada pelas
memórias: imagens alarmantes, negras, que se impõem na vista. Não saio
do quarto. Não me sinto capaz. Se há hipótese de acabar acorrentada como
um animal, então estas paredes oferecem-me o meu único refúgio –
distância daquele que reina.
Em vez de matar o Vento Norte, ajudei-o a fortalecer a barreira do reino.
Em vez de cessar o sofrimento do povo, fi-lo continuar. Desiludi
Edgewood. E Elora, mais do que tudo.
Os meus pensamentos transitam inevitavelmente para Zéfiro. Não o
veremos durante algum tempo, é certo. Seja como for, temos um acordo.
Ele prometeu investigar o tónico do sono. Duvido que quebre essa
promessa.
Rebolando na cama, cerro os olhos para que a escuridão fique mais
negra e desapareça tudo, a não ser o vazio deste lado das pálpebras.
A porta abre-se, após algumas batidas.
– Minha senhora?
Não tenho forças para responder, por isso, limito-me a tapar os olhos
com o braço, enquanto uma lamparina se acende, afastando a penumbra que
me cobre como um manto no inverno.
Orla acorre para junto de mim.
– Minha senhora, está doente? – Pousa as costas da mão na minha testa,
tentando sentir indícios de febre.
– Estou bem, Orla. – Suspirando, baixo o braço, e encaro-a. – Que horas
são?
– É quase crepúsculo. O rei solicita a sua presença para o jantar.
Então o Rei do Gelo notou finalmente na minha ausência. Só demorou
três dias.
Forçando-me a endireitar-me, passo os dedos pelo cabelo emaranhado.
– Informa o rei, por favor, de que recuso o convite.
– Minha senhora, não posso fazer isso. Ele insistiu que a senhora usasse
isto – deixa cair um vestido ridiculamente frívolo no meu colo – e que lhe
faça companhia.
Segurando o tecido entre o polegar e o indicador, levanto-o contra a luz.
É hediondo. Estou habituada a feitios simples, vestidos básicos. Esta
monstruosidade esvoaçante envolve camadas e camadas de tecido cor de
bílis, mangas com bolbos, e um colarinho que me estrangularia, se eu
conseguisse enfiar a cabeça através dele.
– Orla – digo, o meu olhar virando-se para ela com tamanha
agressividade que ela tropeça para trás. – Não visto isto. E também não
janto com ele. – Atiro a monstruosidade para o lado e aninho-me nas
almofadas. Há pouco mais que deseje, além de escuridão e paz.
Pegando no vestido com uma espantosa quantidade de frustração, a
minha aia deposita-o na cadeira, antes de me puxar pelo braço. Para uma
morta, tem bastante força.
– Levante-se. – O puxão seguinte aproxima-me da beira da cama. – Pelo
menos, tente fazer conversa.
Os meus pés transpõem a berma da cama, quando ela puxa com mais
força.
Apesar da minha falta de ânimo, nascem-me gargalhadas no fundo da
garganta.
– Orla.
– Alguém tem de olhar por si, minha senhora. – O suor enche-lhe a linha
de cabelo, e ela puxa mais uma vez, a cara corada do esforço. – Se não
comparecer, ele ganha.
Ficamos ambas paradas.
Ele ganha.
Largando-me as mãos, Orla recua, cabeça baixa.
– Não foi minha intenção… – A sua voz treme com medo de ter passado
dos limites.
– Está tudo bem – digo com voz branda. Ela não fez nada de errado.
Disse o que lhe vai na alma. Não sou pessoa de punir a coragem,
independente da forma que assuma.
Ainda assim, está cheia de razão. Se eu continuar encolhida nos
aposentos, a chafurdar-me em pena e desprezo por mim mesma, quem
ganha é o Rei do Gelo.
Lançando as pernas por cima da cama, anuncio:
– Irei jantar com o rei.
O rosto dela desaba do alívio, e o rubor abandona-lhe aos poucos a pele,
que recupera a tonalidade semitransparente.
– Ainda bem. Vou encher-lhe a banheira…
– Não tomarei banho.
Ela para a meio caminho da porta.
– Mas… – O maxilar desprende-se. – Não se lava há dias.
Sim, e emano um fedor de fazer desmaiar as pedras, o que é mais uma
razão para jantar com o meu querido marido.
Nos últimos três dias, usei uma túnica larga cor-de-cadáver e calças de lã
rasgadas pelo joelho. O meu cabelo tem a textura de um ninho de pássaros.
O meu hálito tresanda.
Este homem irá arrepender-se de me ter dado ordens como a uma cadela.
– Lavarei a cara. – E praticamente canto ao seguir para trás da divisória
aos saltinhos. Orla atira o vestido por cima desta, mas eu ignoro a aparição
ofensiva e esfrego as mãos com sabão de alfazema calmante por cima da
pequena bacia.
Ao sair de detrás da divisória, apresento o mesmo traje imundo. Orla
geme de horror.
– Minha senhora, isso não, por favor. – Enfia o vestido nos meus braços,
com uma expressão angustiada. – O vestido. Ponha o vestido. Ficará
magnífico em si.
– Não te incomodes, Orla. – Pouso as mãos nos ombros dela, e dou um
aperto de reconforto. – Não te acontecerá nada de mal. Prometo. Tenho de
fazer isto por mim mesma.
– E não pode fazer o que quer que seja enquanto usa o vestido?
Oh, gosto bastante desta versão mais atrevida da minha aia.
– Não, não posso. – Puxo-a para mim, dou-lhe um abraço apologético e
vou ao encontro do destino.
Desço as escadas, dois degraus de cada vez, estranhamente ansiosa com
este serão. Para acentuar a minha escolha, trago o casaco puído por cima
dos ombros.
Ao entrar na sala de jantar, preparo-me para a ira que irá seguramente
desencadear-se ante esta aparência, mas a cadeira do Rei do Gelo está
desocupada. Faz tanto frio, que o meu bafo congela diante do nariz. Dois
serviçais aguardam contra a parede, prontos a voltar a encher os copos
quando necessário, mas ninguém se lembrou de acender a lareira?
Por milagre, encontro aço e pederneira em cima da cornija da lareira,
cobertos de séculos de pó. A acendalha seca pega fogo de imediato, e as
labaredas projetam-se, obrigando-me a recuar. É uma visão bonita.
– Minha senhora. – Uma das criadas avança, dando um relance nervoso
às chamas. – Não nos é permitido usar as lareiras. O senhor proibiu-nos.
Grande surpresa.
– Acendeste tu o fogo?
– Bem, não – diz ela com ar confuso.
– Então não tens de te preocupar. – O calor lambe-me a pele, expulsando
o frio que é potente e imortal. – Sabes quando é que o rei pretende
aparecer?
– Não, minha senhora.
Tenciona fazer-me esperar por ele? Não espero por ninguém, a fome é
quem manda.
– Mostram-me a cozinha, por favor?
Com evidente relutância, a mulher conduz-me a um acesso, e depois
seguimos por uma escada que desce até a um conjunto de portas duplas no
subsolo. Abro a da direita e entro, cheia de curiosidade.
Bancadas de madeira enquadram o grande espaço, nicadas e queimadas e
manchadas, vítimas de inúmeras facas e derrames. Alho? Um molho
vermelho ferve numa panela em cima de um dos três fogões a lenha. Vai
sendo remexido com a colher por um dos vários espectros que usa avental.
Recordo-me de que Orla não consegue apreciar o sabor da comida. Se o
pessoal da cozinha foi condenado a servir o Rei do Gelo, será que a comida
também lhes sabe a cinzas? Ou ter-lhes-á revogado esse castigo, pois
precisam de palatos que funcionem para garantir o devido tempero?
Além dos fogões, ocupam o espaço pesadões barris cheios até à borda
com vários grãos e raízes, além de um enorme lavatório, no qual balança
uma torre de louça suja em precário equilíbrio. No meio do caos, um
homem corpulento e com barba cinzenta, mas ar simpático, vocifera
instruções. Deve ser o cozinheiro.
– Peço licença.
Os olhos dele esbugalham-se quando se vira.
– Perdão, minha senhora. Não a vi.
– Trata-me por Wren, por favor. E tu és?
O homem tira uma toalha da bancada, seca as mãos.
– Silas, minha senhora.
– Silas, pensava aqui comigo se aceitarias pedidos.
Ele lança um olhar para a comida que ferve e fumega no sortido de
panelas e frigideiras.
– A refeição está quase pronta, mas…
– Não é para o jantar – clarifico –, mas para a sobremesa.
A boca abre-se, e sai um guincho de ar da garganta.
– Sobremesa.
Os funcionários interrompem o que estão a fazer, originando um
desconcertante silêncio no meio do estertor e dos tinidos.
– Sim. – Os meus olhos dardejam para os funcionários, e estes desatam a
trabalhar novamente. – Bolo, para ser mais específica.
– Bolo? – E agora, timidamente: – O senhor pediu bolo?
– Não, mas não faz mal. – Apresento-lhe um sorriso indulgente. – O bolo
é a minha sobremesa favorita, e o meu marido quer garantir que me sinto
feliz. – É bastante simples: o bolo faz-me delirar de felicidade.
Ele afasta a toalha, ponderando.
– Bem – diz –, se o senhor não se importa, minha senhora…
Ergo as sobrancelhas.
– Wren – corrige-se. – É minha honra fazer-lhe um bolo. Tem
preferência por algum sabor em particular?
– Adoraria chocolate. – Com um sorriso reluzente de orelha a orelha,
volto a subir e ocupo o meu lugar à mesa, ainda vazia. Momentos mais
tarde, servem-se terrinas repletas de comida fumegante. Começo a encher o
meu prato com couves assadas, grossas fatias de pão macio, uma codorniz
inteira, cuja pele estaladiça cheira a alecrim, e um molho saboroso que se
mostra espesso e copioso quando o verto. Mal toquei em comida nos
últimos dias. Agora, ataco o prato vingativamente, afastando todos os
pensamentos da população da vila que passa fome. Para poder ajudá-los, e
ajudar Elora, tenho de manter as minhas forças.
Espera-me um copo cheio de vinho. Bebo um gole. É um alívio. É quase
sempre um alívio. Elora nunca entendeu. Vezes sem conta lhe perguntei se
não curaria alguém doente se a cura estivesse ao seu alcance em cima da
mesa, se fosse apenas um líquido vermelho dentro de vidro transparente.
Ela nunca se dignou a responder.
Encontro-me a meio da refeição quando sinto um formigueiro na pele, e
fico subitamente ciente das gavinhas de ar gelado percorrendo com os seus
dedos exploratórios a minha espinha. Os meus próprios dedos contorcem-se
contra o garfo. Obrigo-os a relaxar.
De costas para o rei, não o vejo aproximar-se. Mas ouço-lhe os passos
curtos que ecoam em incrementos constantes. Segundos mais tarde, ele
contorna a mesa, prendendo-me à cadeira com a força daquele olhar
sobrenatural.
Ergo o queixo, não obstante o coração martelar como um doido. O Rei
do Gelo pode ser um perfeito sacana, mas tem um gosto impecável. Um
casacão cinzento-ardósia envolve-lhe os ombros largos e peito, com botões
de prata brilhantes aninhados como estrelas. A lareira emite poços de luz e
sombras contra as maçãs do rosto e a linha do queixo acutilante. Tem o
cabelo húmido, enrolado num rabo-de-cavalo baixo, sugerindo que se
banhou há pouco.
O olhar desmonta-me aos poucos – as minhas vestes imundas, o cabelo
gorduroso, o molho espalhado no queixo – antes de pousar, e se demorar, no
copo de vinho preso entre os dedos. Quando a atenção transita para a lareira
crepitante, o ar carrancudo vinca-se ainda mais.
Continuo a abrir caminho pelo prato, como se a presença dele não me
perturbasse minimamente.
O rei acaba por falar, por fim.
– A Orla levou-te o vestido?
– Sim.
Encara-me como se fosse uma parvinha.
– E porque não o trazes?
Brindando-o com um sorriso cheio de mel, digo:
– Não quis.
O tique do maxilar revela o que queria saber. Não ficou contente.
Esperava a minha cooperação. E a lareira… o olhar dele regressa às chamas
vorazes. Mais uma surpresa.
– Tresandas da cabeça aos pés.
Contorço os lábios. Consigo engolir a gargalhada absurda despertada
pela sensação borbulhante e efervescente que me aquece o físico.
– E tu tens as mãos manchadas com o sangue dos inocentes. E então?
Não finjas nobreza, ambos sabemos que não tens uma única ponta de
nobreza.
O Rei do Gelo solta um trejeito de pura chacota.
– E tu não és nenhuma senhora.
Sorrio sarcasticamente.
– Se querias uma senhora, devias ter desposado a minha irmã.
– Era essa a minha intenção.
E com este dito, ele senta-se, abre um guardanapo com que cobre o colo,
e começa a encher o prato.
Os meus lábios comprimem-se de desagrado. Se ele insiste em
comportar-se rudemente, eu recuso-me a sentir-me mal por causa do meu
aspeto imundo. Eis a minha realidade: casada com um homem que
desprezo, e que também me despreza.
O rei é muito meticuloso com a disposição do prato. Os alimentos não
tocam uns nos outros. Abre um buraco com todos os preceitos nas batatas,
no qual despeja o molho de carne. Fascinada, vejo-o barrar com manteiga
uma fatia de pão, cuidadosamente, até às bordas.
– Falta barrar uma parte.
O olhar dele salta para o meu.
– A manteiga – explico, apontando para o pão que ele segura. – Falta
barrar uma parte.
Ele regressa à tarefa, exímio na arte de me ignorar.
Se não o observasse tão atentamente, nem teria reparado. A ponta da
manga retrai-se, revelando manchas do que aparenta ser terra, e algumas
folhas de relva, no pulso. Pestanejo, e a manga volta ao lugar. Não há terra
fértil num raio de centenas de quilómetros. E, no entanto, são-nos servidos
diariamente legumes e fruta. Existirá por perto uma horta, ou uma quinta.
Não encontro outra explicação.
O Rei do Gelo passa para a codorniz, a qual mastiga lentamente,
aparentemente para saboreá-la. Encho a boca de verduras como se fossem
desaparecer de um momento para o outro.
– O que faço eu aqui – pergunto com a boca cheia –, se insistes em
ignorar-me?
A expressão dele contorce-se com repulsa quase perfeita ao ver a minha
boca cheia de comida mastigada.
– Mantenho-te debaixo de olho – declara, lábios selando-se
perfeitamente sobre o garfo e enfiando um pedaço de cenoura assada entre
os dentes.
– Para onde iria? Estou presa aqui, ou já te esqueceste?
– Não quero que te encontres com o Zéfiro.
Ah. Então o irmão dele continua a ser um problema.
– Expulsaste o teu irmão – lembro-lhe. – Nunca mais o vi.
Ele inclina o queixo, admitindo a minha resposta. Depois: mais silêncio.
Uma vez que o rei se recusa a fazer conversa, aproveito a oportunidade
para o examinar. Até agora, pouco conheço do homem com quem casei. É
reservado e indiferente, irascível e inflexível. Ainda não lhe vi um sorriso
na cara. Nem um riso na garganta. Para acabar com a vida dele, terei de
identificar as suas limitações, explorar as vulnerabilidades. O que será
preciso para que este homem me veja com bons olhos? Tenho de ganhar a
confiança dele, seja como for.
Admito que também é muito bonito. O azul dos olhos ficou mais
profundo na luz escassa, e a pele branca, mais luminosa e lisa como
porcelana. A sua estrutura óssea contém uma impossível simetria. A bem-
dizer, comporta todas as marcas da perfeição.
Que pena ter uma personalidade intolerável.
Como se pressentisse o meu olhar, levanta os olhos ao encontro dos
meus, e uma corrente de choque avassala-me quando pousa por instantes na
cicatriz, a ruga mais fina vincada entre as sobrancelhas negras. Quererá
saber o que me fez olhar para si? Será que sequer lhe interessa?
Acabo a bebida, e um criado reenche o copo pela enésima vez. Ele vê-
me tomar mais um gole com o olhar semicerrado. Tendo o prato quase
limpo, raspo o resto da batata com o garfo. Não será por mim que haverá
comida desperdiçada.
Raspo, raspo, raspo.
O olho esquerdo dele começa a tremer.
Enfio na boca uma fatia de codorniz e mastigo com vigor. Este jantar não
é tão mau como parecia. Se me concentrar em limpar o prato, nem noto na
atmosfera tensa. É como se estivéssemos casados há anos, e não uma
semana. Eis-nos, casal infeliz, fartos da presença mútua, incapazes de um
mínimo de deferência para com o outro.
Elora sentir-se-ia em casa. Ela vive para isto: vestidos, jantares, conversa
fiada sem nexo. Ela amansaria o coração deste homem. Falariam do tempo,
e o rei ficaria encantado com a natureza afável dela.
Talvez a falta de conversa não seja culpa do rei, mas minha.
Raspo, raspo…
O Rei do Gelo esmurra a mesa. Pratos e talheres estremecem.
O meu copo de vinho entorna-se, derramando líquido vermelho na toalha
branca.
Calmamente, questiono:
– Há algum problema?
– Estás a tentar irritar-me propositadamente de todas as maneiras
possíveis. – A voz perdeu a sua frieza calculista. Vibra agora com um
indício de fogo subjacente.
– Sim – digo, finalmente cedendo ao riso. Ele retrai-se perante a visão de
comida semimastigada, da qual cai um pedaço na minha túnica imunda. O
que só me faz rir com mais força. Irritar o Rei do Gelo é a melhor diversão
que tive em todos estes meses. – Está a resultar?
Os traços em volta dos lábios ficam mais vincados com a fúria crescente.
– Estou a meter-me contigo. – Avalio-o com ligeira preocupação. – És
capaz de rir, certo?
Ele espeta nova cenoura na boca, como resposta. Era uma pergunta
retórica. Duvido que seja capaz de rir. O que residirá naqueles olhos
mortiços, a não ser a promessa de uma morte prematura?
O cesto do pão está ao lado do meu cotovelo. A fome far-me-ia tragar
uma carcaça inteira – a bem-dizer, já comi metade –, mas agarro em outras
duas fatias e peço com uma cortesia impressionante:
– Podes passar-me a manteiga?
– Já te serviste de dois pratos inteiros – indica ele.
– E agora sigo para o terceiro. – Quem passou fome a vida inteira nunca
se sente saciado. – Não posso?
O Rei do Gelo entrega-me o prato com movimentos afetados. É tão
desajeitado que até me condói.
Deposito uma mão-cheia de manteiga no pão antes de o enfiar na boca. É
de longe o melhor pão que provei, interior macio com uma côdea
estaladiça.
– Fala-me de ti. Como é que passas os teus dias?
Ele examina-me com um ar apreensivo, segundo me parece.
Desconfiado de que eu planeie algum truque.
Mas não é truque nenhum. Quanto melhor eu conhecer o inimigo, maior
a hipótese de desenterrar uma das suas fraquezas.
– Se vou ficar aqui enfiada até morrer, não seria bom que nos ficássemos
a conhecer?
– Porque terias vontade de me conhecer – diz –, se já sentenciaste o meu
carácter?
Sem dúvida que sentenciei. Mas ele também sentenciou o meu. Escória
da aldeia, pobre e deplorável. Uma mortal feia e fraca.
– Não sei. Talvez me surpreendesses. – Consumida a primeira fatia de
pão, avanço para a segunda, embebendo-a na piscina de molho que tenho
no prato. O lábio do Rei do Gelo enrola-se, vendo-me empanturrar de
comida. Estalo os lábios sonoramente, divertida com o arrepio que lhe
causa.
Sai-lhe a ferros:
– Como sabes, para as Terras Mortas seguem as almas dos defuntos, para
aguardarem o respetivo Julgamento. O qual é da minha responsabilidade.
Mal conheço as Terras Mortas, mas isto faz parte do pouco que sei.
– Como é que isso funciona?
– Duas vezes por mês, na lua cheia e na nova, abro a minha cidadela às
almas que aguardam o Julgamento. São julgadas com base nos atos que
cometeram em vida. É meu dever avaliar com justiça as escolhas que
fizeram.
Que interessante. Nunca presenciei isto, mas ainda não explorei
devidamente a cidadela. Teria muita curiosidade em ver como é que,
exatamente, o Rei do Gelo pune – ou recompensa.
– E as almas condenadas a uma eternidade de castigo? Aprecias
condená-las?
Mal ele acaba de esvaziar o copo de água, um serviçal adianta-se para o
encher novamente.
– Não sou tão horrível como me pintas – afirma, rigidamente.
– Oh? Ou seja, afinal, não me tiraste à força da minha terra, não me
fechaste numa masmorra, não ameaçaste acorrentar-me na rua, não me
obrigaste a derramar sangue para reparar a Sombra, apenas para aumentar o
teu poder? – Cotovelos enfiados sobre a mesa, inclino-me para diante,
espreitando por entre as pestanas. – Continua, por favor.
Ele fita-me por cima do nariz de proporções imaculadamente perfeitas.
– A escolha de ocupares o lugar da tua irmã foi tua.
Rejeito o comentário dele com um gesto.
– Não minto – diz ele.
– Então, prova. Indica uma coisa que tenhas feito em prol de outra
pessoa, em vez da tua.
– Não vale a pena. Não acreditarias se te dissesse. – E não me oferece a
oportunidade.
Pego numa das pernas da codorniz e arranco a carne à dentada, ciente de
que não estou a conseguir que baixe a guarda. As suas muralhas estão bem
erguidas. A pedra é inquebrável.
– Não se trata apenas de mim, entendes. Agiste incorretamente perante
outros. Obrigas estes criados a servir-te? Não vês que é errado?
– Foi isso que a Orla te disse? Que a obriguei, e a toda a criadagem, a
servir-me sem motivos? – Estica o queixo. – Talvez devesses ter nova
conversa com ela sobre as circunstâncias que estiveram na origem do atual
cargo. E desta vez, exige que te conte a verdade.
Endireitando-me na cadeira, avalio esta informação nova. Confio em
Orla, mas o Rei do Gelo ficou verdadeiramente irritado com o assunto.
Poderia haver verdade nas suas palavras? Se sim, que motivo teria Orla para
mentir?
Um dos criados surge pela porta e pousa uma sobremesa magnífica na
mesa com uma curta vénia.
– Minha senhora.
O Rei do Gelo olha para o objeto com ar embasbacado.
– O que é isso?
– Um bolo – E tem um ar soberbo. Três camadas cobertas por um glacé
branco e fofo, e acentuações azuis.
– Eu não pedi bolo – diz, letalmente quieto.
Oh, não ficou contente. Pelo contrário, eu fico delirante.
– Mas pedi eu. O Silas fez-me o favor.
Ao afastar o prato da refeição e puxar a sobremesa, o Rei do Gelo
pergunta:
– O Silas?
– O teu cozinheiro. Devias saber o nome dele – informo, o garfo a pairar
sobre o bolo-esponja. – Não sabes?
– Claro que sei o nome dele – resmunga.
Não sei se acredito nele, mas o doce prende-me a atenção. Enterrando o
garfo no bolo-esponja húmido, levo um pedaço aos lábios. Assim que o
chocolate beija a língua, fico arrebatada. O segundo pedaço é ainda mais
rico do que o primeiro. Devorei, entretanto, quase um quarto do manjar,
quando me lembro do meu parceiro de refeição, cujo olhar é tão frio que
não me espantaria se tudo aquilo para que olha se transformasse em gelo.
– Sim? – pergunto, enquanto vou mastigando.
– Vais consumir sozinha a sobremesa inteira?
– Bem, eu pedi ao Silas que o fizesse para mim.
– Comeste três pratos.
– Mas queres prová-lo? – Até lhe posso dar.
– Não gosto de bolo.
O garfo embate na loiça.
– O quê? Quem é que não gosta de bolo? – Francamente.
Agarrando a faca, corto a fatia mais fina de bolo de que sou capaz – a
espessura de um galho, se tanto – e pouso a dose minúscula diante dele. O
Rei do Gelo observa, carrancudo, a pobre oferta. Depois regresso ao meu
lugar e continuo a devorar o resto do bolo.
Sempre que estalo os lábios, ele salta, repugnado. Sempre que provo o
glacé, retesa o queixo. Vou um pouco mais longe, gemendo quando a
euforia do açúcar me arrebata desta sala horrível, desta companhia
insuportável para o jantar.
– És um animal – rosna.
Sim, e nem faz ideia do que sou capaz, se me encurralarem.
Mas sei ter boas maneiras. Aliás, agiria em interesse próprio, para o
convencer a ditar a informação de que necessito. A qual, neste momento, é
toda.
– Tens três irmãos, certo?
Ele anuiu, retesado, mas não desenvolve.
– E chamam-se…?
– Já conheceste o Zéfiro. – Nome dito com um tom amargo. – Depois há
o Noto e o Euro.
– O Vento Sul e o Este.
Outra confirmação com a cabeça.
Afastando o prato vazio, cruzo os braços sobre a mesa. Esta reação
reprimida revelou mais emoções do que tudo o que a precedeu.
– Não és muito chegado aos teus irmãos.
– Há séculos que não falo com eles.
Os dedos dele remexem-se contra o copo. O que o perturba tanto? Que
não veja os irmãos há séculos, ou que eu tente esmiuçar a sua vida?
– Fala-me deles – peço, a curiosidade levando a melhor. Zéfiro é o
Portador da Primavera. Noto, o Vento Sul, diz-se que comanda as ventanias
quentes do deserto. E o Vento Este, Euro… o poder dele deve ser imenso.
Ele recosta-se, abrindo espaço aos criados para que levantem os seus
pratos.
– O Noto foi sempre calado. O Euro tem mau feitio.
– E vivem em reinos diferentes?
– Sim.
Lugares além do Gris.
– Então, porque foste tu banido para as Terras Mortas, e não os teus
irmãos? Julgar os mortos parece-me ser uma responsabilidade crítica.
Não se manifesta, durante um pouco. Pergunto-me se irá sequer
responder, mas por fim diz:
– Estás certa: julgar os mortos é, deveras, uma grande responsabilidade,
motivo pelo qual sou eu que a carrego. O Zéfiro não é de fiar. O Noto é
muito indeciso. O Euro não respeita a ordem. Na época, as Terras Mortas
estavam em desalinho por negligência dos líderes. O conselho aproveitou o
meu banimento como catalisador para substituir a autoridade anterior.
Fico impressionada, admito-o, embora mantenha uma expressão neutra.
– Quem é o irmão mais velho?
– Sou eu. – Uma corrente subjacente de orgulho acalora a resposta.
Limpo a boca com um guardanapo, e pergunto:
– Só por curiosidade, que idade tens? – Não aparenta mais de trinta anos.
Nem um único cabelo grisalho aviva a cabeça.
– Não me lembro de quando nasci, mas estou vivo há muitos milénios.
Tenho a madrugada como mãe, e o céu do crepúsculo como pai.
– Milénios? – crocito. Céus. Casei com um velho. – E os teus irmãos têm
igual idade?
– Sim.
Corações antigos, ventos antigos. Para ele, sou um grão de poeira, uma
estação passageira. Quando morrer, há de esquecer-se de mim. Um
pensamento que me perturba.
– Costumas visitar os teus irmãos?
– Não – rosna.
– Porque não? – As histórias dizem que os Anemoi foram banidos para
os quatro cantos do mundo. Que territórios terão os outros reclamado? Que
povoações arruinaram com tais conquistas?
Ele diz, com um tom mais frio:
– Tenho aqui tudo de que preciso. – Uma resposta simples. E, contudo,
pergunto-me, o que terá realmente aqui? Porque só vejo uma casa vazia e
um homem que se isola. – Agora, se fosse possível calares-te um pouco,
gostaria de te fazer uma pergunta.
À parte os insultos velados, é a primeira vez que o Rei do Gelo
demonstra interesse em mim, e não apenas no sangue que me percorre as
veias. Isto vai ser bom.
– Porque não casaste?
Sobressalto-me com tanta intensidade que o garfo bate na berma do
prato.
– Mas, marido – respondo –, sou casada.
– Porque não estavas já casada, é o que pergunto. Estás na idade de
casar, ou não?
– Sim – respondo secamente. Tenho vinte e três anos, mas é como se
tivesse sífilis, dada a falta de pretendentes. As pessoas de Edgewood
murmuravam que eu devia ser estéril, ou que abrigava em mim espíritos
funestos. Os homens não gostam de mulheres determinadas, apenas das
mansas, alguém que lhes dê carinho. Eu não me encaixo nesse molde, nem
nunca me encaixei. E não confio em nenhum homem que tente mudar a
minha forma de ser.
É mais fácil manter uma relação puramente física. Assim, o coração
nunca sofre.
Só consigo dizer:
– Acho que nunca conheci ninguém que quisesse desposar.
– Nem uma única pessoa?
A minha garganta contrai-se, ponderando o que contar, e até onde. Ele
não merece as minhas verdades, mas, afinal, revelo-as.
– Como deves ter notado, não sou grande coisa como esposa. A minha
irmã, Elora, é a escolha mais acertada.
Braços cruzados ao peito, ele inclina a cabeça, dedicando-me atenção
plena. Entretive-o, temporariamente, pelo menos.
– Desenvolve.
Percorro a borda do copo de vinho com a ponta do dedo.
– A Elora é simpática e carinhosa. Eu… não sou. – Os homens
consideram-me bruta. E além disso, tenho a cicatriz. Toco na pele em
relevo, e o olhar do Rei do Gelo acompanha os meus dedos. Aceitei ser
quem sou. Os homens não me consideram desejável. É o que é.
Lanço um olhar à lareira, mas por fim a minha atenção regressa ao rosto
do rei, com a sua simetria perfeita e irritante.
– Como é que surgiu a cicatriz? – pergunta.
Deixo cair a mão. Normalmente, esmurraria quem se atrevesse a colocar
uma pergunta tão pessoal, mas uma vez que já desprezo o homem sentado
diante de mim, não preciso de escondê-lo.
– Um caminhante-das-trevas. Uma das minhas primeiras caçadas. Mas
tive sorte. Podia ter-me cortado a garganta. – Os meus lábios contraem-se
ante o olhar insistente. – É falta de educação, olhares-me assim.
O Rei do Gelo afasta a vista, a expressão demasiado complicada para
interpretar.
– Bem – diz, após um momento de silêncio. – Pelo menos, não és
entediante.
10

H áseus
duas semanas que aqui resido, e ainda nem explorei a cidadela mais os
vastos terrenos. Pegando no arco, aljava e casaco, desço as escadas
em busca de um lugar de treino. A fortaleza encontra-se tão negligenciada
que ninguém iria notar, se usasse um quarto vazio para praticar o tiro ao
alvo. Teias de aranha rasgadas lançam um brilho prateado sob a luz da
tocha. As sombras agigantam-se, como gatos encostados nos cantos com as
caudas cheias de pelo.
Explorando um destes quartos, ouço: os passos deliberados de quem me
segue, mas não deseja ser visto.
Sigo em frente como se nada fosse. Por vezes, os passos deixam de se
ouvir, mas depois voltam. Na esquina seguinte, desato a correr, a aljava a
bater-me nas costas. Irrompendo por uma porta lateral, viro para a esquerda
num pátio muralhado, espadas e machados e setas espalhadas ao abandono.
É um campo de treino. Os alvos alinham-se ao lado do que aparenta ser
um pequeno arsenal. O lugar está coberto de trepadeiras mortas e
enoveladas.
Usando um dos alvos junto ao muro para me esconder, encosto-me às
pedras e aguardo o meu perseguidor, mas elas não aguentam o meu peso.
Caio para trás, atravessando a parede, e algo macio e frio penetra nas
minhas calças. Neve. Ponho-me rapidamente de pé, sacudindo as
trepadeiras. É um buraco que dá passagem para o exterior – além da
muralha da cidadela.
O meu coração palpita. Não é uma forma de sair das Terras Mortas, mas
é um começo. Arquivando esta informação, regresso pelo buraco,
rastejando, coloco uma flecha no arco e espero.
Um homem entra no pátio de treino momentos depois, perscrutando a
área. De seguida, o tolo vira-me as costas. Se fosse um caminhante-das-
trevas, estaria morto.
Bato na base do alvo com o pé, agitando a estrutura. Ele vira-se para trás
e encontra uma ponta de seta a poucos centímetros do rosto.
– Quem és? – pergunto.
O homem não pode morrer, pois é um morto, mas apanhar com uma seta
na cara deve doer. Portanto, recua devagarinho, com os braços ao alto.
– Chamo-me Pallas, minha senhora. Sou o capitão da guarda do senhor.
Uma túnica negra e larga encima culotes negras e justas. O cabelo, atado
com uma fita de couro, flutua entre o castanho-claro e o ruivo ardente. Um
truque da luz.
– Porque me segues?
A atenção dele mantém-se fixa nos dedos curvados em volta da corda do
arco, com a seta encaixada a meio.
– O senhor pediu-me que ficasse de olho na senhora.
Há centenas de criados e guardas em constante movimento nesta
fortaleza em ruínas a cada instante. Seria muito difícil conseguir escapar
sem ser observada.
– Por onde anda o rei durante o dia?
Normalmente, parte antes de eu descer para o pequeno-almoço e só o
volto a ver à noite. Ao jantar, sempre que o questiono sobre o seu paradeiro,
responde que não é da minha conta. Ouvi algumas criadas, na coscuvilhice,
afirmarem que viram o senhor delas regressar coberto de sangue, com a
armadura amolgada e manchada com os restos da batalha. Mas eu não
perguntei ao rei se isso é verdade.
– Não sei dizer, minha senhora.
– Não sabes ou não queres?
O queixo estica-se, teimoso.
– Não quero.
Tão cega lealdade para com um rei que não pretende jamais libertá-lo do
serviço, nem a nenhum outro criado.
– Ouve, eu realmente não quero atirar contra ti, mas uma vez que
interrompeste a minha manhã, não me sinto particularmente afável. É do teu
interesse responder à minha pergunta.
Ele não fala, e eu puxo a corda um pouco mais.
– Última oportunidade.
Ele olha para mim e para o arco, como se pesasse a probabilidade de eu
manter a palavra.
– Tem havido uma atividade invulgar dos caminhantes-das-trevas nos
últimos meses. O senhor tenta descobrir a origem desta… mudança.
A minha atenção aguça-se.
– Invulgar em que sentido?
O capitão cruza os braços, semicerrando os olhos.
– Geralmente, os caminhantes-das-trevas não se afastam da floresta, mas
têm surgido vários avistamentos perto da cidadela. É quase como se… –
Franze o sobrolho, abana a cabeça, mas eu percebo.
É quase como se as defesas perdessem a força.
Primeiramente a Sombra. Agora as defesas. Sustenta a minha convicção
de que o rei perde poder aos poucos.
– Poderiam entrar no terreno, se tivessem oportunidade?
– O senhor faz tudo o que pode para garantir a segurança da cidadela. Os
caminhantes-das-trevas têm estado debaixo do seu domínio há muito
tempo. Não vale a pena temer esta mudança de comportamento.
– Podem estar debaixo do domínio dele, mas não do controlo. – Os
caminhantes-das-trevas costumam ir para onde lhes apetece. Não vi o rei
tentar capturá-los nem reverter os efeitos da sua corrupção.
Outro olhar demorado e inquisidor.
– Penso que por hoje basta, minha senhora.
A generosidade dele já acabou, então?
– Que pena.
A seta voa em frente com força imparável, atingindo-lhe o músculo
peitoral e derrubando o capitão para trás.
Enfiando o arco ao ombro, avanço para ele e olho para baixo.
– Diz ao Rei do Gelo que não preciso de ser vigiada. E não voltes a
seguir-me.
O capitão range os dentes. Pergunto-me como será: os espectros podem
sofrer ferimentos, embora não consigam morrer. Precisará de um
curandeiro? Embora não seja problema meu. Enfiou o dedo num ninho de
vespas. Ele é que arranjou esta situação.
– Não encontrará forma de sair da cidadela – resmunga, agarrando a
haste da seta com uma mão trémula. – Perde o seu tempo.
Uma névoa onda de fúria invade-me o sangue. Mas limito-me a agitar a
mão, abandonando o campo de treinos.
– Tal como tu perdes o teu. – Pois, já descobri uma forma de sair, e
pretendo usá-la.

As minhas deambulações conduzem-me às cavalariças; à ala leste; ao salão


de baile, cheio de poeira e abandono; à cozinha, na qual passo uma boa
parte da tarde a ajudar Silas a cortar vegetais; aos pátios, cada qual mais
austero que o anterior. O dia mingua, e eu pondero formas de conseguir
terminar o reinado do Vento Norte.
Encontra-se demasiado guardado. Uma fortaleza protegida dentro de
outra fortaleza, consumida pelo profundo silêncio da pedra. As refeições do
serão continuam constrangedoras, apesar dos meus esforços para que
converse. Ele resguarda tudo aquilo que é, e por vezes pergunto-me o que
temerá que aconteça, se perder essa guarda firme. O que poderei eu
descobrir.
Procuro Orla, e descubro-a em discussões com outra mulher espectro.
Esta tem ar esguio e talvez trinta e poucos anos – a idade com que faleceu
–, e usa óculos grandes e redondos que aumentam o seu rosto estreito.
– Bem te disse – rosna Orla. – Vezes sem conta. É assim tão difícil
lembrares-te de uma cor? – Agarra num dos lados do cesto que a mulher
transporta. – Dá-me os lençóis da cama.
Quase desesperada, a jovem puxa-a de novo para si.
– Espera. Eu resolvo isto…
Os dedos de Orla fraquejam, e o cesto voa na direção da mulher,
vertendo o conteúdo.
A mulher ajoelha-se e apressa-se a recolher os tecidos enquanto lança
olhares de medo para Orla.
– Desculpa. Peço imensa desculpa...
– Orla?
A minha criada vira-se para mim, e depois abate-se contra a parede,
dando palmadinhas no pescoço com um pedaço de pano.
– Peço desculpa, minha senhora. Passei a última hora – baixa a voz – a
tentar corrigir os erros desta.
Franzo o cenho, intrigada.
– Chama-se Thyamine – sussurra-me, as palavras cheias de
agravamento. – Bebeu a água de Mnemenos. Na maior parte dos dias, não
se lembra de nada.
Thyamine olha radiante para a mulher mais velha, e Orla, sendo a pessoa
boa e carinhosa que é, dá-lhe uma palmadinha na cabeça.
– Orla? – A mulher fita-a com olhos arregalados e suplicantes. –
Desculpa, que tarefa é que eu devia fazer agora?
– Esquece. Preciso que me encontres os lençóis azuis. Deixa ficar estes.
Já os apanho.
– Roupa de cama azul. – Tiamina levanta-se e caminha pelo corredor até
ficar desfocada, enquanto vai entoando roupa de cama azul. – Como a
conheço, vai provavelmente trazer-me um cesto de batatas.
Só uma pessoa horrível se riria deste comentário, mas é o que faço.
Os olhos de Orla cintilam, e suspira, começando a recolher o monte que
Thyamine deixou. Ajoelhando-me ao seu lado, dou-lhe uma ajuda, atirando
o tecido branco para dentro do cesto.
– Vendem ervas em Neumovos?
Orla faz uma pausa apenas meio instante, tecido preso na mão.
– Vendem, sim, minha senhora. – Despeja os lençóis no cesto. – Porquê?
– Qual é distância da cidadela à vila?
– Minha senhora, o senhor proibiu-a de abandonar a cidadela. E
Neuvomos… – As rugas ao redor dos olhos ficam mais suaves, tão rígida e
intensa a sua desaprovação. – Não queira conhecer essa vila. Não é um bom
lugar para si.
Ela não faz ideia do que procuro. E nunca fará enquanto houver uma
esperança para matar o rei.
– Eu é que decido o que é bom para mim, ou não. – Cruzo o olhar com o
dela até Orla baixar a vista. – Estás proibida de ir a Neumovos?
– Não, minha senhora. Muitos dos criados podem ir da cidadela à vila, e
vice-versa. Os soldados podem aventurar-se além do reino, mas…
– Por favor – sussurro, agarrando-lhe na mão para que pare de remexer
na beira do vestido. – Isto é importante. De outra forma, não to pediria.
– E se eu recusar?
Um riso suave fervilha no meu peito. Orla, a tranquila e nervosa, mas, de
vez em quando, ousada, atrevida, destemida.
– E pensava eu que podia ser divertido. Já tinha planeado tudo. Uma
fuga ousada da cidadela.
A voz dela fica aguda quando guincha:
– Fuga ousada?
– Não terás um uniforme de criada a mais, por acaso?
11

S ituada a dez quilómetros da cidadela, a vila de Neumovos desponta da


clareira florestal como os fungos a seguir a uma forte chuvada. À
distância, é parecida com Edgewood: casas de barro, uma praça central.
Tudo o que se vê, desde os vazios currais de cabras até às carroças
claudicadas, tem um tom esbatido e está cercado por um muro de pedras
tombadas.
Bebo um gole do meu frasco. Orla segue ao meu lado, esbaforida,
cingindo o casaco contra si com as mãos enluvadas.
– Estamos a chegar, minha senhora – arqueja ela, com o suor a escorrer-
lhe pelas têmporas. À luz do sol, o seu corpo é quase invisível.
Já escapei aos limites da cidadela pela segunda vez sem que o Vento
Norte se dê conta. Disfarcei-me de criada, escondida sob uma capa, e os
guardas do parapeito abriram os portões, convictos de que eu e Orla íamos
apenas reabastecer os armazéns de cereais, a mando do cozinheiro. Imbecis.
Foi demasiado fácil.
Enquanto avançamos, passo as pontas dos dedos por cima dos estranhos
e intrincados entalhes na casca branca e lisa. Nunca vi nada assim.
– Proteções, minha senhora. – Devo ter feito ar perplexo, pois Orla
acrescenta: – Por causa dos caminhantes-das-trevas.
A minha cabeça vira-se repentinamente para ela.
– Mas és um espectro. – Pensava que os caminhantes-das-trevas não
constituíam um perigo para eles.
– As gentes de Neumovos ainda retêm alguma vida. Suficiente para os
caminhantes-das-trevas se alimentarem de nós, caso tenham oportunidade.
Quando entramos no anel de arvoredo protetor, ouço. Um tom oco que
sobe e desce, cheio de melancolia.
– Isto é…?
Os olhos de Orla brilham com lágrimas por derramar.
– Minha senhora…
– Música. – Não me lembro da última vez em que ouvi tocar música.
Amolece o que se encontra endurecido na minha alma.
– Não é o que julga. – Retesa o maxilar com ar condoído. – Quando a
flauta canta, significa que alguém foi condenado a viver em Neumovos.
Hesito nos meus passos
– Alguém foi obrigado a servir o rei?
Ela anui.
Pelo canto do olho, descubro a forma incorpórea de uma mulher que se
desloca em passo rápido por entre as árvores.
– Cometeis um erro! – exclama, debatendo-se contra as forças invisíveis
que a arrastam para a vila. – Não tive alternativa! Por favor, acreditai em
mim!
A mulher desaparece entre duas casas. Atrás dela, resta a serenidade. Ao
meu lado, Orla torce as mãos.
– Orla – murmuro. – Por que razão foste obrigada a servir o rei? – Ela
fica tensa. – E desta vez, diz-me a verdade, por favor.
Preciso que todas as peças, todas as partes, todas as farpas disformes e
incompletas estejam bem definidas. Saber é a minha arma. Saber, o meu
poder.
– Lamento ter-vos dado uma falsa perceção da minha situação –
murmura Orla –, mas não quis desapontar-vos. A senhora é forte e corajosa
e admiro muita coisa em si. – Vira-se, a cabeça curvada com humildade. –
Já tinha dito que aqueles que são condenados a Neumovos não transitaram
completamente. O que devia ter dito é que são impedidos de fazer essa
transição.
Conheço Orla há poucas semanas, mas tem agido corretamente comigo.
É leal e genuína. Uma amiga, se admitir tal luxo.
– Em que sentido?
– É para Neumovos que o senhor despacha aqueles que cometeram
crimes violentos em vida. O nosso castigo é servi-lo para toda a eternidade.
Crimes violentos. Não revejo Orla nessa situação. Uma efemérida
consegue ser mais violenta do que esta mulher.
– O que fizeste?
– Por favor, minha senhora, não aguento mais desiludi-la.
Não estou desiludida, mas abandono o assunto. Talvez tenha sido injusta
para com o rei durante o jantar. É seu dever julgar os mortos, determinar
quem merece uma vida após a morte isenta de punições. Se Orla cometeu
um ato horrível, não teria tomado uma decisão correta?
O som da flauta mal se ouve. É belo, mesmo tendo anunciado um fim
trágico.
– A minha mãe cantava para mim e para a minha irmã quando éramos
novinhas – digo, assinalando que devíamos continuar caminho. – Tinha
uma linda voz.
Orla lança-me um relance interrogador.
– Ela… já partiu?
– Sim. Só me resta a minha irmã. – E já tenho de fazer um esforço para
recordar o som do riso de Elora. Quanto mais tempo passo longe de casa,
mais se desvanecem as memórias. Temo que não demore muito a perdê-las
de vez. – Daria tudo para voltar a vê-la.
O silêncio de Orla chama-me a atenção. Pegando-lhe no braço, faço-a
parar.
– As esposas do Rei do Gelo… nenhuma delas conseguiu escapar das
Terras Mortas, pois não? – Realisticamente, estariam enclausuradas,
envelheceriam e morreriam, sepultadas para sempre nos corredores de
pedra da cidadela.
– É difícil dizer ao certo. – Os nervos fazem o tom de voz dela ficar mais
agudo. Orla, pelos vistos, é uma péssima mentirosa.
– Em que sentido?
Humedece os lábios. Ainda se recusa a olhar-me nos olhos.
– Orla – aviso.
– Minha senhora! – exclama, exasperada. – Porque tem de ser tão… –
agita os braços, caracóis grisalhos a saltar com o gesto – assim como é?
Solto um trejeito irónico.
– Queres insultar-me? Tens ideia do que… – Levanto a mão. – Não
importa. Conta-me o que saibas sobre as esposas do rei. E sobre as portas. –
Porque há uma ligação. Algo que o rei não quer que eu descubra.
Continuamos a caminhar, e em breve alcançamos a vila. Não prestei
muita atenção ao que nos rodeia, até que Orla diz:
– Só uma das esposas do rei é que desapareceu. Chamava-se Magdalena.
Tal como a senhora, as portas enchiam-na de curiosidade, e passava os dias
a explorar o que havia do outro lado. Então, uma noite, ela não desceu para
jantar. Procurámos em toda a parte, mas nunca a encontrámos. Os criados
julgam que uma das portas a levou para outro reino.
O Rei do Gelo disse-me que as portas não conduziam a parte alguma
externa às Terras Mortas.
Mentiu.
Orla repara no fervor da minha expressão.
– Minha senhora, não acredita nessa história, pois não?
– Ah, acredito sim, Orla. – Apressando o passo, avanço intrepidamente
para a aldeia, aos pulinhos de contentamento. A minha tarefa é simples:
garantir uma forma de fugir, uma escapatória quando o Rei do Gelo morrer.
De preferência, que me faça voltar para o Gris. – Acredito piamente.
– Mas há milhares de portas! – exclama, levantando as saias e correndo
atrás de mim.
Convém, portanto, iniciar a minha busca logo que possa.

Uma estrada de tijoleira divide ao meio a ninhada de lojas e casinhas, cujos


telhados se vergam sob o peso da neve. As estruturas apagadas evocam
aparições, fantasmas do que outrora era real. A luz do sol trespassa os
edifícios, as carroças, os aldeões que deambulam pelas ruas. Tudo se tinge
de uma palidez desbotada com tom prateado.
Vejo gente a empurrar carroças cheias de caixotes. Ergo as sobrancelhas,
e depois mais um pouco.
– São galinhas? – Uma inspeção mais atenta revela-me que há, de facto,
galinhas naqueles caixotes. Vivas.
– Falou-me em ervas, minha senhora. Há um boticário no final desta rua.
A meio caminho, pressinto uma alteração na multidão. Observam-nos,
mas não se aproximam.
Puxo o capuz de modo a esconder o rosto. Embora traga uma
indumentária de serviçal, preocupa-me que alguém tenha ouvido Orla
tratar-me pelo título. Não sei até que ponto acolheriam a mulher do rei,
tendo em conta que foi ele quem os condenou à servidão eterna.
Subimos um lanço de escadas até entrarmos numa loja com uma porta
amarela brilhante: o boticário. Um sininho toca quando transpomos a
soleira. O interior está pejado de humidade, cujo calor amansa o frio que me
enregelou as bochechas. Sente-se o cheiro a salva, o cheiro do cabelo de
Elora.
Verde. Verde a toda a nossa volta. Nem sei bem para onde olhar. A loja
alberga uma miríade de plantas floridas, trepadeiras, frascos cheios de
ervas, desde o alecrim ao tomilho, e prateleiras inteiras dedicadas às artes
curativas. Os meus olhos, há décadas habituados à ausência de cor,
desconhecem como processar esta visão que se me apresenta. As prateleiras
contêm frascos de bálsamos, taças com pétalas de rosa secas e especiarias
moídas num pó fino de cores preta, laranja, ocre e vermelha. Gordos baldes
de madeira dispõem-se sob as janelas, e deles brotam cachos de compridas
ervas.
– Como é que é isto possível? – O meu sussurro é transportado pela
calmaria verdejante.
– As quintas – diz Orla, seguindo-me através do espaço. – Sei que a
Alba, a curandeira-mor, compra os seus produtos nesta loja.
– E onde estão as quintas? – Não é possível. Nada cresce nas Terras
Mortas. O poder do Rei do Gelo é demasiado forte para que as plantas
medrem.
A minha aia avança até um mostruário de latas com folhas de chá
ressequidas.
– Algumas zonas a oeste daqui não foram tocadas pelo frio. É onde os
nossos homens trabalham a terra.
– Então, nas Terras Mortas há partes que… não estão mortas?
Ela sorri com a minha escolha de palavras.
– Estou proibida de visitar outros lugares, só Neumovos e a cidadela,
mas sim, disseram-me que algumas zonas são muito agradáveis.
Acreditarei quando vir. Por ora, perscruto o vasto manancial de infusões,
muitas das quais já conheço. Planta-batom para a náusea. Flores perenes
defumadas para dores nas articulações.
Uma mulher-espectro materializa-se à minha esquerda. A altura dela faz-
me pensar num carvalho que se esforça por crescer. Tem o cabelo da cor das
chamas.
– Precisa de ajuda?
As folhas da erva diante de mim são macias ao toque. Levo a haste ao
nariz e inalo. Limão e açúcar.
– De onde veio esta erva? – Pergunto, devolvendo a folha cortada ao
cacho. – E as outras? – Porque é a primeira vez que encontro tais plantas.
Tendo passado a maior parte do meu tempo a caçar ou a forragear, conheço
bem a vegetação que resiste à geada. A resposta é: quase nenhuma.
A lojista sorri, mas as rugas à volta da boca revelam tensão.
– Vendem-se em vilas distantes, para lá das Terras Mortas. – Rega um
dos vasos de plantas com uma lata. – Procura algum remédio específico?
– Procuro, efetivamente. Mais concretamente, um tónico à base de
semente de papoila. Para ajudar a adormecer.
– Se tem dificuldade em adormecer, minha senhora, posso juntar
camomila ao seu chá da tarde – oferece Orla, preocupada.
– Não é preciso – apresso-me a responder. – Mas agradeço.
– Papoila. – A mulher franze o sobrolho. – Sim, vendemos um tónico
desses, mas não temos de momento.
Baixando a voz, digo:
– Pergunto porque tenho um amigo com talento para as plantas. Zéfiro, o
Portador da Primavera.
Orla fica rígida. Conforme desconfiava, ela desaprova a minha crescente
relação com o Vento Oeste. Espero que guarde a opinião para si mesma.
Os dedos da mulher estremecem enquanto segura o regador.
– Peço desculpa – diz ela. – Parece que me enganei. Não vendemos
tónicos tendo por base a flor da papoila. – Espreita pela janela, onde várias
pessoas começaram a juntar-se. – Por favor, se precisarem de mais alguma
coisa, é só dizer.
É perfeitamente educada. Simpática, até.
E mente.
Baixo o capuz e revelo o meu rosto, o rubor nas faces onde palpita
sangue quente sob a pele gelada. Os olhos dela arregalam-se ao perceber
que sou uma mortal. A mulher do Vento Norte, a visitante na loja.
– Zéfiro é meu amigo – digo. – Não vai gostar de saber que tentou
esconder-me o produto.
A lojista abre a boca. Levanto a mão antes que possa responder.
– O Rei do Gelo nada saberá deste negócio – acrescento com um relance
na direção de Orla. – Tem a minha palavra.
Contorce a boca, mas acaba por ceder.
– O Zéfiro deve regressar no Dia da Colheita.
Faltam duas semanas para esse evento. Contava que a reunião
acontecesse mais cedo, mas posso esperar. Com um agradecimento
gracioso, eu e Orla saímos da loja e descemos as escadas até à rua.
Antes de termos entrado na loja, a rua principal estava praticamente
vazia. Agora, apinha-se de gente de um lado ao outro. Sinto um formigueiro
na nuca, pois há demasiados olhos a seguir os meus movimentos. O capuz
tapa-me o rosto, mas desconfio que se tenha espalhado a notícia da minha
presença. Apresso o passo, tentando avançar para a floresta enquanto os
corpos se vão apertando à nossa volta.
– Orla. – Procuro a mão dela. – Alguma coisa não está bem.
– Estamos quase a sair da rua. – Ela puxa o capuz para lhe tapar mais o
cabelo e baixa a cabeça. Também o pressente.
Alguém me empurra pelas costas. Vou abrindo caminho, e arrasto Orla à
força. Já me senti como uma presa, vezes demasiadas na vida para ignorar
os sinais.
Um homem puxa-me pelo cotovelo. Enfio as mãos abertas no peito dele
e empurro-o.
– Não se aproximem – grito. Ele solta uma careta e cospe para os meus
pés, antes de ser engolido pela horda.
Forço passagem. Mais adiante, a multidão abre caminho o suficiente
para revelar a linha de arvoredo. Estamos quase lá.
– … a mulher do rei…
Orla choca contra mim. Os meus dedos apertam os dela num mudo
conforto. Acredito que muitos dos condenados a Neumovos devem
considerar que foram injustiçados pelo Rei do Gelo. E eu sou a mulher do
rei, mortal e impotente.
A única abertura na multidão, revelando o nosso meio de fuga, fecha-se
como uma costura. É como se os habitantes da cidade partilhassem o
mesmo cérebro, pois param em uníssono no meio da estrada e viram-se para
mim.
A multidão fica quieta durante um segundo.
Espremo os dedos de Orla com tanta força que sinto os ossos dela
estalarem.
– Minha senhora – sussurra ela, apavorada.
A multidão lança-se contra mim, estendendo mãos em forma de garras.
Reajo de imediato, e tento libertar-me o suficiente para tirar o punhal.
– Abaixo com ela! – berram. – Abaixo com a rainha!
A mão de Orla solta-se da minha, e a mulher desaparece, tragada pela
multidão voraz.
– Parem! – Um murro no estômago faz-me soltar uma exalação longa e
sibilante dos pulmões. – Não é… o que julgam.
Sinto uma dor lancinante no braço. Tapo a ferida com a mão, que está
coberta sangue quando a afasto. Fui esfaqueada.
O golpe seguinte deita-me por terra. Estala um osso e grito, sentindo
puxarem-me a cabeça para trás, e o couro cabeludo arde-me quando uma
mecha de cabelo é arrancada pelas raízes.
– Levante-se, minha senhora!
Orla encara-me com uma expressão aterrorizada. O suor brilha na cova
da sua garganta. Uma mulher tenta desviá-la, mas a minha aia reage com
muito mais agressividade do que alguma vez lhe julguei possível, e ambas
desaparecem na massa em deslocação.
A multidão incha de agressividade, e os golpes abatem-se sobre o meu
corpo como granizo. Eu retalio como nunca o fiz, arranhando e rasgando, e
arranhando e rasgando. Não pararão até me matarem, até terem punido
devidamente o Rei do Gelo por lhes arruinar a vida.
No entanto, a cada ferida que causo, sofro várias. Querem matar-me?
Jamais sem luta. Grito e esmurro um homem na virilha, mas a seguir uma
mulher esbofeteia-me o ouvido com força. A visão fica turva. Algo pequeno
e escuro vem contra mim. A bota bate-me na boca, e a agonia enche-me o
rosto.
– Para trás! – rosna Orla. – Para trás! – Ouço o baque húmido e mudo de
uma lâmina a cortar carne.
Gritos expandem-se como fendas no vidro, um padrão de teias de
aranha. Sangue obstrui-me a garganta e faz-me engasgar, cuspo o sabor
fétido do ferro e do sal. O mundo desvanece-se, bem como os ecos dos
derradeiros pontapés, até que, finalmente, tudo se acalma.
– Minha senhora? Oh, senhora minha. – Uma voz sussurra ao meu
ouvido, trémula e lacrimejante.
O meu corpo mergulhou no gelo. Tento mexer o braço direito, e sinto
uma dor perto do cotovelo. A face cola-se ao solo lamacento. Estou tonta,
mas viva. Quebrada, mas viva.
Orla procura pôr-me de pé. Grito. Algo me corta do umbigo ao esterno.
Ela salta para trás, e larga-me. Tombo por terra, ofegante, a pestanejar para
evitar as lágrimas.
– Vai, Orla! – solto.
– Não a abandono. – A voz dela vacila.
Tola leal.
– E se regressarem?
– Então que regressem. Por favor. Tenho de levá-la para um lugar
seguro.
Pega-me pelo braço com gentileza. Os meus músculos retesados
queixam-se, mas, de alguma forma, consigo levantar-me sem desmaiar.
O progresso é agoniante. As pernas não colaboram, o meu equilíbrio
tomba para um lado e para o outro. Estou grata pelo apoio da Orla. Para
uma mulher tão pequena, é surpreendentemente robusta.
– Orla. – Tenho de respirar pela boca, pois o nariz está demasiado
inchado, e partido, sem dúvida. – Preciso de descansar. – Até falar requer
uma energia de que não disponho.
– Não podemos parar – diz ela, ofegante. – Temos de prosseguir.
– Por favor.
– Não – riposta. – Tem de aguentar até alcançarmos a cidadela. Sei que
vai conseguir.
Suor cobre-me a pele, e tremo, gelada, tão fria que as veias já
congelaram. Os meus dentes batem, descontrolados, as articulações doem-
me a cada tropeção. Mas Orla está a meu lado, cuja voz me orienta através
das trevas de uma agonia infindável.
Estamos quase a chegar, minha senhora.
Só mais uns passos, verá.
A minha visão perde a cor, e o mundo enche-se de sombras.
– Minha senhora. – Orla bate-me suavemente na face, evitando as
nódoas negras. A pele arde por instantes. – Mantenha-se acordada.
Quem me dera…
As pernas cedem-me, e desabo na base de uma árvore próxima. Outro
ímpeto de dor atenuada percorre a minha perna direita, perto do tornozelo.
Fecho os olhos. Não posso mais. Não posso andar mais.
A respiração irregular de Orla alcança-me.
– Não pode adormecer.
– Orla – murmuro. – Estou cansada.
– Bem sei, minha senhora. – diz com voz roufenha. – Sei que está
cansada. – Os seus pés pontuam um ritmo furioso na neve. Começou a
andar a passo, murmurando palavras em surdina. – … não sei o que fazer.
Estamos tão longe… – Depois desata a chorar.
Não chores. Não chores por mim. Mas perco a adesão à consciência, e
fico em queda livre.
– Meu senhor, por favor! A senhora Wren precisa da vossa ajuda! – A
respiração dela fica entrecortada, enquanto anda, e anda, e anda. – Por
favor, ajudai-a. Por favor…
Ar, que sopra ao longo dos meus braços, que varre a linha húmida do
meu cabelo, como o suave apalpar de dedos curiosos. Depois o chão treme.
Os meus ouvidos ecoam com o som de cascos, fortes e vívidos na terra
gelada.
A cavalgada cessa. Alguém desmonta. O pânico trespassa a negrura em
que me afundo. Não consigo mexer-me, nem me defender; sempre que
respiro, é como se fosse rasgada no peito por pedaços de metal.
– O que aconteceu? – O tom frio e impávido só pode pertencer ao Rei do
Gelo.
– A senhora foi atacada, meu senhor! – exclama Orla, quase histérica. –
As pessoas da vila descobriram que era ela e… eles… – O choro da mulher
tem altos e baixos.
– O que fazia ela na vila? Dei uma ordem. Uma única ordem: ela não
pode sair da cidadela.
– Lamento muito. A culpa é minha. Ela quis ir, e eu não fui capaz de
dizer que não e… castigai-me como vos aprouver, mas por favor não a
deixeis morrer.
Passos. O aroma vivo e fresco do cedro desperta-me um pouco a
consciência. Tenho os olhos tão inchados que não consigo ver a expressão
do Rei do Gelo, embora sinta a sua fúria, tão palpável é esta emoção. Fico
tensa, aguardando o desprezo dele.
Mas, em vez de desprezo, é isto que recebo: gentileza.
Pontas dos dedos pousam na minha têmpora. Tracejam as lesões com
muito cuidado, mapeando cada ferida. Um frio profundo e entorpecedor
irradia do seu toque, e alivia o latejar. Um som débil de alívio escapa-se da
minha garganta pisada.
– Vem, esposa – diz, e levanta-me ao colo.
O chão descende, e solto um gemido quando o movimento desencadeia
nova onda de agonia avassaladora no meu corpo. Sinto o punho bater contra
algo sólido. A minha luta recomeça.
Braços fortes apertam-me, e a voz do rei, quando fala, soa como a da
minha mãe.
– Calma – diz. – Agora, estás a salvo.
Acredito nele, o que é impossível. Sou erguida e pousada num cavalo, ou
assim penso. Instantes depois, o Rei do Gelo instala-se atrás de mim.
Encosta-me contra o peito, que está abençoadamente quente. A minha
cabeça cai sobre o ombro dele, inclino o rosto para aquele pescoço. É tudo
de que me recordo.
12

E stou deitada na escuridão do quarto, as cortinas corridas, sombras


veladas como tecido pousado nos meus olhos. As ideias vagueiam pela
minha mente. São poeira que a luz capta para logo se esvair. E, contudo, aos
poucos, recordo.
Falta luz às minhas memórias. Terra húmida, compacta nas costas. Os
ruídos da vila ressoam num tom dissonante, agudo, enquanto a dor abana o
meu crânio. Constante é a voz de Orla – o fio que me conduz à salvação.
Distanciando-me das memórias, presto atenção ao que está presente. Em
particular: a dor, embora abafada. É como se a pele tivesse sido arrancada e
os ossos raspados, e todas as vísceras expurgadas de sujidade. A minha cara
é uma confusão sensível e inchada, mas estou viva.
Estou viva.
Consigo dormitar, não obstante o desconforto, ainda que com
intermitências. Sentindo a corrente de ar frio, viro o olhar para a porta.
Alguém entra sem bater. Uma lamparina acende-se, iluminando um rosto de
ângulos severos, uma boca rígida e séria.
Passos líquidos trazem o Rei do Gelo para as entranhas do quarto, e a
porta fecha-se atrás de si sem ruído. Sombras acompanham a ponta do
comprido roupão sobreposto à roupa de dormir. O rei pode ter a capacidade
emocional de um graveto, mas não posso negar a graciosidade dos seus
movimentos.
Ajoelha-se diante da lareira, atiçando as brasas até começarem a arder,
juntando lenha à chama. Cabelo como a profunda noite tomba em tufos
rebeldes sobre os ombros; terá passado por ele os dedos. Nunca o vi assim,
solto.
Um tronco parte-se com um estalido inesperado. Atiça mais uma vez o
fogo, depois aproxima-se da janela e espreita para fora. Confundir-se-ia
com um pilar, aquela postura exímia.
Por fim, sai do quarto, mas regressa para deixar algo na mesinha de
cabeceira: um copo de água. Algo tão ínfimo, afinal.
Reparou que despertei, porque o olhar procura o meu. A respiração
sustém-se nos meus pulmões, pois vislumbro uma fenda naquele semblante,
um caminho para o interior. Raiva acesa, fumegante à superfície.
Nervosidade na inquietação das narinas. Estar aqui causa-lhe desconforto.
Porque veio, então?
Encaramo-nos um ao outro. Marido e mulher, e, no entanto, estranhos.
Por fim, um de nós tem de ceder.
Pigarreando, digo:
– Trazes-me um copo de vinho, por favor?
As sobrancelhas unem-se por cima do nariz.
– Trouxe-te água. – Aponta para o copo sobre a mesa de cabeceira,
dedos escondidos no couro negro. Por que razão considera necessário usar
luvas dentro de casa, não faço ideia.
– Sim, e agradeço o gesto, mas realmente preferia vinho.
– Passa da meia-noite. Porque queres…
– Porque quero, e mais nada, sim? – Arde-me o rosto. Não há outra
explicação. Preciso de beber tal como preciso de comer e dormir.
Outro olhar inquisidor.
– Muito bem – rosna. Aproximando-se da porta, estica a cabeça para
fora, dirigindo-se ao criado que estará à espera no corredor. Regressa com a
taça de vinho, a qual aceito com gratidão.
– Obrigada – murmuro, levando o copo aos lábios gretados e suspirando
quando o líquido me aquece a partir do interior. – Néctar dos deuses.
Ele inclina o queixo.
– Realmente.
Recordo pouco do ataque, mas lembro-me precisamente disto: a voz
baixa e pacífica que acalmou os meus nervos em franja. Não me abandonou
quando eu mais precisei. Nem sei bem como interpretar aquele ato.
Tomo novo gole antes de pousar o copo.
– Como soubeste que precisávamos de ti? – pergunto, examinando a
reação de perto. Ele desvenda tão pouco… seja a quem for. – Estávamos a
quilómetros da cidadela. Não podias ter ouvido a súplica da Orla.
Ele hesita. Um evento raro, esta incerteza.
– O Les – diz ele – passa junto a Neumovos. Quando os espíritos
ouviram a voz da Orla, informaram-me da vossa localização.
Não me encara quando fala. Observa o fogo, espreita pela janela,
examina as trevas reunidas junto às tábuas do soalho, vira a concentração
implacável para a porta. Por um motivo qualquer, o Rei do Gelo não é
capaz de me encarar nos olhos.
Os meus dedos desenrolam-se dos cobertores e levo-os à cara, para tocar
na minha face marcada. Vivi com esta aparência disforme durante oito anos,
e é tudo o que os outros veem. Talvez seja essa a razão.
Deixo cair a mão. Seja como for, não importa.
– Então, falas com os mortos.
– Com os espíritos deles. O que foram em tempos, quando tinham ar nos
pulmões.
Inesperadamente, aquilo desperta-me a curiosidade.
– Pensei que só os julgavas.
– Apenas em circunstâncias extremas é que falo com eles depois do
Julgamento.
E o meu ataque deve contar como uma dessas circunstâncias.
– Então qual é a diferença entre os espíritos do rio e os que comparecem
ao Julgamento?
Ele mira uma das cadeiras junto à lareira. Que decisão terrível. Se se
sentar, irá condenar-se a ter uma conversa com a esposa, logo quem.
Comprimo os lábios e espero.
O rei senta-se. A cadeira é, de si, extremamente confortável, com
almofadões profundos e fofos, perfeitos para uma tarde de leituras, e,
contudo, o Rei do Gelo encavalita-se na ponta como se fosse composta
pelas tábuas mais duras e rijas da região. Haveria alguma interação social
na sua vida antes de eu aparecer? Imagino-o circunscrito aos seus
aposentos, não se aventurando para além desta ala.
Diz:
– Os espíritos do rio estão numa fase anterior da sua transição. É onde se
libertam de quem foram e se resignam à morte. Um espírito demora o
tempo que for preciso no Les. Para ele, é um lugar seguro, livre de juízos de
valor. Quando se sentir pronto para conhecer o derradeiro repouso,
comparece ao dia do Juízo Final.
– O que dizem esses espíritos?
– Estão mortos – diz rispidamente. – O que interessa o que digam? São
os seus atos que me revelam quem foram.
E num piscar de olhos, quaisquer sentimentos calorosos que nascessem
dentro de mim para com o Rei do Gelo, são apagados. Não creio ter
conhecido ninguém que me enfureça da cabeça aos pés, e sem qualquer
dificuldade.
O tempo, na eternidade, perde o sentido. Haverá sempre outro ano, e
outro, e outro. Mas para os mortais, o medo da morte é muito real. Odeio
pensar que o Vento Norte nem tenta reconfortar os que entram nesta nova
fase da sua existência.
– Talvez pouco importe para ti – afirmo –, pois viverás para sempre, mas
imagino que para eles há de significar alguma coisa falar das suas vidas e
das suas experiências.
– A minha função não é reconfortá-los. Fizeram as suas escolhas, e com
elas morreram. O meu dever é ajuizar como irão passar a eternidade. Nada
mais.
O meu suave trejeito de desdém chega-lhe ao ouvido. Ele não vira a cara
para mim.
– O que foi? – pergunta.
– Nada.
– Não é nada, essa coisa.
– Não estás interessado em ouvir as minhas opiniões – digo com
sarcasmo –, portanto, que interesse tem o que eu possa pensar?
Segue-se um momento de silêncio.
– E se eu estiver interessado no que tens para dizer?
O meu espanto faz-me responder-lhe.
– É pedir muito, que estendas a mão aos que transitam? Se a situação
fosse ao contrário, se tivesses chegado ao fim da vida sem nada saberes do
que existe do outro lado, não gostarias de ter algum reconforto?
Os olhos dardejam os meus. É um olhar tão penetrante, tão invasivo, que
me faz sentir mera pele desnuda. Não são os olhos de um homem
insensível, mas de quem sofreu uma imensa dor. Dor, que tem sido
reprimida, obscurecida, nunca partilhada com outros.
A minha raiva reduz-se até ficar em lume brando, pois raramente
presenciei vulnerabilidade no rei.
– Foste reconfortado – murmuro –, acertei?
Ele endireita-se com tal violência que a cadeira tomba para o lado.
Encara a porta, como se tencionasse fugir do quarto, mas os pés mantêm-se
entrincheirados no tapete que aquece o chão.
– Conta-me o que aconteceu em Neumovos.
Em circunstâncias normais, eu ignoraria as suas exigências. Mas sinto-
me cansada. É como se tivesse percorrido várias vidas durante o frágil
intervalo entre o crepúsculo e a madrugada.
Por isso, conto-lhe. Uma parte – tudo, não. Omito o boticário, como se
nunca tivesse existido. O Rei do Gelo testa-me à procura das inverdades,
mas não me conhece, por isso não nota a facilidade com que minto.
– Isto não pode ficar assim – afirma, quando me calo.
Algo na voz dele arrepia os cabelos do meu braço.
– O que pretendes fazer?
– Retribuir a simpatia com que te receberam, só que a minha será muito
pior.
Endireito-me contra a cabeceira, ao sentir o estômago condoer-se. Ele
vai garantir que tenham um sofrimento eterno.
– Não podes. Só lhes darás mais um motivo para te odiarem, e inclusive,
te atacarem. – Como se me importasse. Se ele investir sobre Neumovos,
assustará a lojista do boticário? E esta avisará Zéfiro para que se mantenha
afastado, ou fuja? Se isso acontecer, perderei todas as oportunidades de
obter o tónico prometido por Zéfiro.
– Atacarem-me? – A boca dele enruga-se. – Não fariam tal coisa. Sou o
rei deles.
– A lealdade tem de ser merecida – afirmo. – Não é uma obrigação.
– Ter-te-iam matado. – Ferve de raiva, lábio superior esticado para
revelar os dentes direitos e brancos.
– Têm medo. Sofrem. – Por muito que me doa o corpo, não consigo
culpá-los. Há que viver, e isso implica sobreviver de todas as formas,
mesmo as detestáveis.
O Rei do Gelo dá um passo para janela.
– Defende-los, mas eles teriam acabado contigo sem pensar duas vezes.
– Cada palavra escorre de desprezo.
Há algo ali, algo que não sou capaz de precisar.
– E isto enraivece-te, que me fizessem mal?
– Fazerem-te mal é minar o meu poder. Um deslize que não posso
ignorar.
Retraindo-me com a violência que envolve aquela afirmação, murmuro,
com temor e desejo ao mesmo tempo:
– O que farás?
Os olhos do Rei do Gelo ardem com a promessa da devastação.
– Irei ensiná-los a não tocar no que é meu.
Uma excitação obscura percorre-me. Eis o deus da escuridão e da morte,
o punho devastador do inverno. As palavras estalam como ossos e repicam
como metal na forja. Vive há milénios, enquanto eu não passo de mero gelo
ao sol do verão. Ficar no caminho dele é ser-se abatido.
Meu. Foi que me chamou. Mas não proveio de um desejo de proteger a
pessoa de quem gosta. Referiu-se a mim como uma posse, uma lança igual
à sua, ou como aquele maldito caminhante-das-trevas que cavalga durante a
guerra. Sou uma pessoa. Só presto contas a mim. A pessoa que eu sou.
Devo ter batido com a cabeça com mais força do que imaginava, para reagir
daquela forma.
– Descansa – recomenda, virando-se para sair. – Bem precisas.
O Rei do Gelo já está na porta quando chamo:
– Espera. – Ele para, dedos pousados no puxador. – Porque não queres
olhar para mim? – A cicatriz ao canto da boca repuxa-se com dor. Vivo com
esta mácula há tanto tempo que já não me define. Mas às vezes sou fraca. –
É o meu rosto? Não consegues olhar para ele?
O Rei do Gelo não se vira, mas diz lentamente:
– Há tantas coisas horríveis neste mundo, esposa. Mas não creio que
sejas uma delas.
Com estas palavras de despedida, deixa-me sozinha no escuro.
13

D emora o seu tempo, mas acabo por recuperar. Semanas de descanso na


cama, muitas horas a ler junto à lareira. A minha pequena sala de estar
aloja uma parede de prateleiras a transbordar de livros. Nunca tive tantas
histórias ao meu dispor. Escapo para mares infestados de piratas, cidades
que flutuam nas nuvens, mansões cujas paredes transpiram de hera. Mas há
um tipo de narrativas cuja ausência se faz notar.
– Orla – comento, uma noite, enquanto ela afaga as almofadas nas
minhas costas. – Há mais livros algures na cidadela, por acaso? – A minha
seleção atual conta a narrativa de um herói de guerra e da sua viagem de
uma década, a seguir à guerra de igual duração. A mulher aguarda em casa,
em Ítaca, tecendo uma mortalha de dia e desfazendo o trabalho de noite
para manter os pretendentes à distância.
– Com certeza. O que quer ler?
Lanço-lhe um sorriso de esguelha.
– Queres realmente saber?
Orla cora.
– Não – responde, insegura.
– Romance.
Ela suspira melancolicamente.
– Amor, minha senhora?
– Sexo, a bem-dizer.
Os olhos dela espetam-se das órbitas, e eu solto uma risada. O que posso
dizer? Gosto de histórias com grandes quantidades de sexo. Particularmente
se este me passa ao lado…
O amor não foi inventado para gente como eu.
Depois de ponderar um pouco, Orla diz:
– Deve haver alguma coisa na biblioteca. Amanhã vejo.
Endireito-me de espanto, e o colchão verga-se ante a mudança de peso.
– Existe uma biblioteca?
– Ah, sim. É esplêndida. O senhor coleciona livros de toda a parte.
Adora ler.
Nunca supus realmente que o Rei do Gelo apreciaria atividades fora dos
deveres reais. Muito curioso. Muito, muito curioso.
Tomo as refeições nos meus aposentos porque, até que a perna sare, não
sou capaz de descer as escadas. Silas faz-me bolos, e nem tenho de pedir.
Alba, a curandeira-mor, conseguiu endireitar-me o nariz, pelo que não fico
mais desfigurada. O Rei do Gelo não voltou a ensombrar a porta do meu
quarto. Orla diz que se encontra ausente há dias. Um mau augúrio? Há
agitação nas Terras Mortas. Coisas negras e selvagens.
Na semana seguinte, quando me sinto com força suficiente para
comparecer ao jantar no piso térreo, Orla informa-me que o rei se sente
indisposto e se recolheu nos seus aposentos. Espanta-me reagir com uma
reviravolta no estômago. Depois de semanas isolada, apetecia-me uma
digladiação verbal.
Como sozinha, sem grande vontade. Tenho saudades de Elora. Saudades
de Edgewood. Existe uma ausência na minha vida, existe há muito tempo.
Nesta fase, nem sei bem o que fazer. O Dia da Colheita chega e vai, e não
pude ver Zéfiro. Ainda tenho de retornar a Neumovos. Ainda tenho de
matar o rei.
Há apenas uma salvação: milhares de portas que ladeiam todos os
corredores empoeirados da fortaleza. E se a história de Orla foi genuína,
uma das viúvas do Rei do Gelo escapou-se através delas da insuportável
prisão.
Nos dias que se seguem, exploro a cidadela, desenhando um mapa da
fortaleza para guardar registo das portas que abri, das terras que investiguei,
em busca de uma forma de voltar para casa. Não sei se a Sombra cairá
depois da morte do Rei do Gelo. Uma porta que me faça regressar ao Gris
continua a ser a melhor opção. Apenas a ala norte, em que o rei vive, se
mantém proibida à minha presença.
Porta um: um campo carbonizado. As botas ficam marcadas de cinzas
macias ao percorrer as ruínas, avançando para o horizonte distante, cujas
bermas são toldadas pelo sol distorcido. Passado algum tempo, a ondulação
solidifica-se. Uma forma negra estende-se de leste a oeste e ondula de
forma familiar: a Sombra. Incapaz de me aventurar mais longe, volto para a
cidadela.
Porta vinte e três: uma sala formada inteiramente por tábuas de madeira
– chão, teto, paredes. Uma cadeira funda de braços, revestida num tecido
escarlate, situa-se ao centro. Por algum motivo, o corpo retrai-se ante a
presença desta cadeira, e eu rapidamente regresso ao corredor, fechando a
porta com força.
Porta noventa e um: a base de uma cascata massiva, ar enevoado
colorido por prismas de luz.
Porta cento e oito: o mármore rachado das ruínas antigas.
Mais uma passagem, mais uma ala, porta atrás de porta atrás de porta,
mas nada. Estes reinos são totalmente independentes. Por mais longe que eu
viaje, há um ponto em que alcanço o muro negro formado pela Sombra, que
se manifesta dentro das mais variadas terras.
Por fim, as minhas deambulações conduzem-me de volta ao centro da
cidadela. Ao transpor uma desinteressante porta de madeira, sou travada por
uma voz masculina.
– Por favor, meu senhor. Garanto-vos que as minhas intenções eram
nobres.
– As tuas intenções – responde uma voz fria, que escorre pelas falhas na
madeira – eram egoístas, motivadas pelo medo e pela ganância dos homens.
– Isso não é verdade.
Deve ser aqui que o rei atribui o seu Julgamento. E pelos vistos, está a
decorrer.
Encosto o ouvido à porta. A madeira vibra sob a minha têmpora com o
ressoar da voz do Rei do Gelo:
– Eis os factos. Entraste na casa do teu irmão enquanto ele dormia.
Roubaste o último dos seus…
– Se me deixardes explicar…
– Lá está ele novamente.
Dou um pulo de espanto com tanto vigor que bato com a cabeça na
porta. Uma forma desfocada ganha forma enquanto contenho as lágrimas. É
a mulher que bebeu a água de Mnemenos.
– Thyamine – murmuro. Encontra-se diretamente debaixo de uma das
tochas. Consigo distinguir a parede atrás dela no seu estômago.
– Minha senhora. – A curva elegante do pescoço da mulher reluz quando
se inclina para diante numa profunda vénia, e ali se mantém até me sentir
desconfortável.
– Não é necessário – murmuro, fazendo-a endireitar-se. – Precisas de
alguma coisa?
O olhar dela tem um ar vidrado, atrás dos óculos que aumentam os
olhos.
– Sim. – O sorriso que lhe suaviza a boca começa a desaparecer. –
Lembrei-me. Desta vez. A Orla pediu uma coisa. Prometi-lhe, e no entanto,
aqui estou eu. Estouvada. Cabeça de vento. – A garganta balança. – Uma
pergunta, ela queria que eu fizesse. Um pedido.
Às vezes, gostava de ser uma pessoa melhor. A paciência sempre foi
virtude de Elora. Nunca a minha.
– Bem, quando souberes, diz-me.
Voltando a prestar atenção à conversa do Rei do Gelo, esqueço-me por
completo de Thyamine até que esta exclama:
– Já me lembrei. A Orla quer saber o que deseja usar esta noite: um
vestido verde ou azul?
Desconfio que Orla terá enviado Thyamine nesta demanda irrelevante
para lhe manter a mente ocupada, mas respondo:
– Pode ser azul, obrigada. – A mulher espectro com os olhos aumentados
e vontade de agradar, sorri-me com adoração. É realmente inócua.
O olhar dela transita para o chão.
– Às vezes entristece-me, ver aquilo em que ele se tornou. Mas acho que
se entende o comportamento dele, depois de tudo o que perdeu.
A minha consciência desperta, e encaro-a.
– O que queres dizer com isso?
Thyamine pestaneja lentamente.
– Desculpe?
– O que acabaste de dizer. Sobre o comportamento do rei.
– O que disse eu, minha senhora?
Solto um suspiro nas minhas mãos. A mulher mal consegue recordar o
próprio nome.
– Não interessa. Está tudo bem. – Não está. – Diz à Orla que quero o
vestido azul, está bem?
– Vestido?
Contorço a boca. Thyamine encolhe-se perante esta reação, depois vira-
se e desata a correr pelo corredor. Esperta. Assim posso voltar a escutar.
– Neste dia, a tua sentença será: Neumovos.
Um lamento agudo espeta o pelo na minha nuca. Ouço um estrondo e os
meus dedos saltam contra o puxador. Alcançam-me sons de luta – um corpo
que embate numa pedra dura, o clique dos saltos de botas. Imagino o rei a
descer uma escada com as mãos cruzadas atrás das costas, o nariz inclinado
para cima e a boca altiva. Terá um trono em cima de um estrado?
– Escoltem este homem para fora deste lugar.
– Por favor, meu senhor. Peço que reconsidereis. O meu pai estava a
morrer. Não tive escolha…
– Escolha há sempre – dispara a resposta, calando com eficiência o
histerismo do homem. – Dá-te por feliz por não seres sentenciado ao Fosso
– entoa, e pergunto-me que terror ali se abrigará.
– Desculpai, desculpai…
Enrijecendo a coluna vertebral, desato a correr pelo corredor, com as
mãos cerradas junto ao corpo. Que grande imbecil. Um coração de gelo,
dizem as histórias. Quanto saberá o Rei do Gelo sobre as almas que
atravessam a Sombra? O que fizeram, as suas fortunas e infortúnios,
mentiras e erros? Como poderá ele descortinar as razões que levaram aos
seus atos? Entenderá o que os motiva – amor, medo, vergonha, simpatia, o
desejo de ser aceite?
Não é da minha conta. Não é da minha conta, porra.
Prossigo na minha busca, mapeando as portas e seus respetivos reinos,
antes de tropeçar na que está pintada de preto lustroso. Duas máscaras
brancas marcam-na, uma carrancuda, outra sorridente, com pinceladas
brilhantes e coloridas embelezando as bochechas e as sobrancelhas. Mal
toco na maçaneta, ouço murmúrios através da porta. Abro-a, animada com a
possibilidade de encontrar pessoas do outro lado.
Há pessoas no outro lado.
Estou ao fundo de uma rua estreita com calçada de pedra. Montras
coloridas e compostas encontram-se coroadas por elegantes molduras de
gesso, cheias de alegria, com as janelas fechadas pintadas de rosa, para
contraste. Homens que trazem laços aprumados e cartola andam de braços
dados com mulheres revestidas de pérolas e sedas, e sapatos de salto alto
que soltam estalidos musicais contra a calçada.
O bater de cascos chama-me a atenção para uma carruagem puxada por
cavalos. Riso rebola para fora das janelas abertas nas quais flores alegres se
debruçam dos caixilhos. Mulheres deslizam de loja em loja, transportando
sacos de compras, guarda-sois abertos encavalitados aos ombros. Cheira a
verão: sal e pedra quente.
A porta atrás de mim mantém-se aberta, revelando o corredor húmido e
frio da cidadela. Fecho-a com um clique suave, garantindo que não me
esqueço da tinta verde do prédio com os seus tapumes brancos, caso queira
regressar.
A estrada flui para uma praça com adoráveis bancos de ferro forjado,
uma fonte circular a jorrar água no centro. A luz do sol aquece as pedras da
calçada.
Ninguém parece ter pressa. Dois homens jogam aos dados. Uma miúda e
a mãe fazem voar um papagaio de papel. Outro grupo de mulheres
empoleirou-se na berma da fonte, ouvindo uma senhora de nariz empinado
retorquir:
– É obvio que não, Darla. Pedi rubis. Como se o meu marido se
lembrasse de quais são as minhas joias favoritas…
Uma morena num vestido cor de alfazema diz:
– Ele trouxe-te safiras, não foi?
Ela abana a cabeça:
– Esmeraldas. Como se eu usasse tal humilhação.
– Que hediondo! – pia uma mulher de cabelo cor de gengibre.
– O Gerald não entendeu quando lhe expliquei que as esmeraldas não
condizem com a minha cor…
Sorrio ao passar pelo grupo. É um alívio saber que este dia pode ser meu.
Que posso regressar sempre que deseje experimentá-lo outra vez.
Do outro lado da praça, há um ajuntamento de gente à volta de um
carrinho pequeno e desinteressante carregado de mini-tartes: maçã, limão,
mirtilo. O perfume do açúcar quente brinca comigo, e o meu estômago
queixa-se. Há quanto tempo ando a passear?
– Olá – digo ao padeiro, um homem idoso com avental. – Custam
quanto, as tartes? Não trago moedas comigo, mas…
O padeiro coloca de lado duas tartes de limão e uma de mirtilo, depois
embrulha-as num papel castanho e ata-as com cordel.
– Olá? – Abano uma mão diante da cara dele. – Senhor?
Ele tira uma mão cheia de moedas de um bolso no avental, larga-as
numa taça que tem outras moedas de ouro e cobre. É então que reparo na
minha própria mão, a que tentava chamá-lo. Está transparente.
O homem não é capaz de me ver. Ninguém me consegue ver ou ouvir. É
como se fosse um fantasma.
O entusiasmo que sentia, julgando que iria socializar com as pessoas,
torna-se amarga desilusão. As portas podem oferecer-me vislumbres dessas
vidas alheias, mas não passarão de meros vislumbres.
Os meus olhos erguem-se para a torre do sino, de onde começou a surgir
um repique sonoro em tom baixo, repercutindo-se pela praça. Quem
vadiava nas vizinhanças acorre para algumas portas à minha direita.
Curiosa, sigo-os para o interior.
Um teto em forma de abóbada assenta, nivelado, sobre colunas de
filigrana. A correria da multidão ecoa pelo espaço enquanto desço a
passagem inclinada que intersecta inúmeras filas de cadeiras, todas
colocadas num declive gradual que termina à frente, na parede curva de um
palco.
É um teatro.
Detenho-me no meio da passagem, mão pousada nas costas almofadadas
de cor escarlate de um assento, e examino a sala em pormenor. Apesar da
dimensão, tem um ar acolhedor. Cortinas douradas derramam-se de alcovas
escondidas ao alto, como se fosse ouro derretido que escorre de urnas.
Fica cheio ao fim de poucos minutos, o teatro. As lamparinas escurecem,
exceto as que iluminam o palco. É uma atitude possivelmente idiota, mas
abro caminho por uma das filas até alcançar um lugar vazio, e sento-me.
O silêncio adquire uma qualidade de concentração, como se o ar se
adensasse à minha volta. Sinto o coração dar um pulo quando as cortinas se
abrem, as roldanas guinchando suavemente para expor o cenário atrás de
um escudo aveludado. Um homem entra em palco, e tem início.
Não sei quanto tempo demora o espetáculo. Há um rei. Uma revolta. Um
deus acorrentado a um rochedo. É como se o tempo não tivesse passado, até
as cortinas se fecharem, as lamparinas ficarem mais brilhantes, e uma
sensação de despertar percorre-me, mansa como o sol que nasce numa fria
manhã.
Aos poucos, regresso à praça da vila, à rua com lojas de cada lado, ao
corredor envolto na escuridão, ao frio da cidadela. Vou tão preocupada que
quase esbarro no Rei do Gelo ao dobrar a esquina.
Há semanas que não lhe punha a vista em cima. Deve estar ainda a
recuperar da doença que o atacou há dias, pois tem a pele cinzenta do
cansaço. Não fazia ideia de que os imortais adoecessem.
– Não compareceste ao jantar – diz ele.
– Que horas são?
– Quase meia-noite.
Estive tanto tempo ausente? Julguei que tivessem passado meras horas.
– Havia uma porta, e uma vila, e um teatro. Nunca entrei num teatro na
vida…
O rei examina-me com uma expressão vazia.
Pouco lhe interessa, certamente.
Virando-me sobre o calcanhar, dou dois passos antes de ser travada por
uma pergunta que não esperava.
– Qual era a peça?
Quando me viro de novo para ele, encontro um interesse genuíno na sua
expressão. Uma interação normal entre marido e mulher. Sim, não a
esperava, mas… não a rejeito. Sinto-me tão sozinha neste local que houve
ocasiões em que desejei ter alguém, até mesmo o rei, para conversar.
– Não sei bem. Era sobre um rei que concedeu aos seres humanos a
dádiva do fogo, e por isso foi castigado. Previu que seria salvo. – Olho para
cima. Por algum motivo, pressinto que o rei poderia levar a mão ao meu
maxilar, à bochecha, para me acariciar. – Mas afinal não foi salvo. O fim
resumiu-se a relâmpagos e vento.
Uma ruga perturba a testa lisa.
– Ele não se salvou… por enquanto. Mas virá o dia em que um homem
com sangue divino o libertará das suas amarras.
– Como sabes? – pergunto, perscrutando-lhe o rosto. – É só uma história.
– E as histórias não revelam verdades ocultas?
Ele tem uma certa razão. Não é por essa razão que gosto de ler? Para ser
arrebatada, ir para outro lugar e descobrir certas verdades a meu respeito?
– Então, viste a peça?
A forma como me examina agora não é a mesma de semanas atrás. Já
não procura motivos para se afastar, mas para ficar, e prolongar a conversa.
– Onde eu vivia, antes de ser banido, havia um teatro. Frequentava-o
sempre que podia. – Deixa cair o olhar por instantes. – Gosto das histórias.
Gosto de conhecer as personagens e as suas sendas, e as escolhas que
fazem.
Esta deve ser a afirmação mais sincera que alguma vez o ouvi dizer.
Uma confissão pessoal que partilhou comigo.
Como é natural, arruíno o momento.
– Então sabes divertir-te, nos intervalos de condenares as pessoas a um
sofrimento eterno.
O Rei do Gelo semicerra os olhos. Uma pergunta, que acaba por não
dizer.
– Escutei por acaso o Julgamento, ontem – explico.
– Portanto, sabes que foi justo.
– Como podes falar de justiça, se não escutaste o motivo de o homem ter
feito aquela escolha?
O lábio superior dele contorce-se.
– Não preciso de conhecer o raciocínio dele. Ajuízo as almas pelos seus
atos. E basta.
As palavras tacanhas de um deus tacanho.
– Que mal terá feito o homem? O que foi tão terrível para merecer
Neumovos como sentença? – E verei a cara deste homem na cidadela, agora
que foi obrigado a servir o rei?
– Roubou dinheiro ao irmão, impedindo-o de comprar medicamentos
quando a mulher adoeceu na semana seguinte. A doença levou-a
rapidamente. Três noites depois estava morta.
Um erro infeliz, certamente.
– Ele não podia saber que a mulher do irmão iria adoecer. Não disse que
o pai estava moribundo?
– Então a justificação dele foi salvar o pai às custas da vida da cunhada?
– Claro que não – riposto. – Mas o raciocínio de uma pessoa é um bom
indicador daquilo que ela é… do seu coração.
– O coração das pessoas não me pode dizer respeito. Demoraria anos a
dissecar todos os motivos.
– E que importa esse tempo para um imortal?
Ele abana a cabeça.
– Não vim à procura de uma discussão. Só queria garantir que não tinhas
colapsado num coma induzido pelo vinho. Tendo encontrado a minha
resposta, partirei. – O olhar varre a minha cara. – Desejo-te uma boa noite.
Inclino a cabeça. É uma melhor alternativa a espetar-lhe um punhal no
olho.
– E para ti também.

Horas depois, continuo incapaz de adormecer.


Deitada na cama com esta ridícula montanha de almofadões, pego no
romance de amor que aguarda na mesa de cabeceira e abro-o no capítulo em
que o parei de ler. Conta a história de uma mulher que se veste como
homem e ingressa num navio destinado a terras longínquas. Começa por se
apaixonar pelo capitão do navio, embora este desconheça o verdadeiro sexo
dela – até que a mulher lhe salva a vida.
Uma corrente de saudade percorre-me. É nítido que o capitão gosta e
talvez inclusive ame a heroína. Eu odeio. Odeio tal fraqueza, tal cruel
emoção…
Um silvo baixo chama a minha atenção para a entrada e fico hirta.
– Quem está aí? – Uma sombra desloca-se pela fenda ao lado da porta.
Pousando o livro na mesa de cabeceira, deslizo para fora da cama e
aproximo-me da porta com cautela e passos rápidos. Agarrando na
maçaneta, encosto a orelha à madeira fresca.
A princípio, nada. Apenas a pulsação entorpecedora do sangue nos
tímpanos. Mas depois silvos baixos e estridentes soam do lado de fora da
porta. Um, dois, três batimentos do coração depois e noto o cheiro: fumo.
Cada poro, cada pelo, cada pedaço de atenção foca-se no fedor que
reconhecerei em qualquer lado.
Recuando lentamente, deixo a mente desenlear-se, mas só por um
instante. Se o caminhante-das-trevas conseguiu penetrar nas defesas da
cidadela, ninguém estará a salvo.
Agarro o arco e a aljava, tirando uma seta e mergulhando a extremidade
na sacola do sal, revestindo assim a ponta de ferro com a única substância
que me impede de encontrar um destino pior do que a morte. Encaixando a
seta, aponto-a à porta. Trata-se apenas de uma criatura, ou outras invadiram
a área? Onde estão os guardas? Onde está o Rei do Gelo? Não saberá que as
proteções falharam, ou aconteceu-lhe algum mal?
Um estrondo arrepia o ar. Preparo-me para o momento em que a madeira
se despedaçará, para o colapsar da entrada. Mas a criatura passa pela minha
porta e afasta-se. Lembro-me dos espectros. Também estarão em perigo. Se
o caminhante-das-trevas encontrar Orla…
Avançando para a porta, abro-a de repente e vejo a criatura contornar
uma esquina, desaparecendo. Persigo-a com andar silencioso, correndo
atrás da impressão fugaz. Trespassar o coração com uma seta. É a única
forma de matar um caminhante-das-trevas, além de lhe cortar a cabeça.
Na curva seguinte, abrando. Uma das portas está entreaberta; à
superfície, um retalho coletivo de vidro colorido.
Forçando a entrada no quarto, paro de repente. Todos os centímetros
deste espaço colossal estão repletos até às vigas com diversas espécies de
pássaros. Mas… não há sinal do caminhante-das-trevas. Só o piar dos
pássaros.
Virando-me para trás, avanço por este corredor, e depois, pelo corredor
principal, viro para a esquerda, paro.
Quatro guardas impedem-me de prosseguir. Pilhares rachados, talhados
em ébano coberto de pó, sustentam o teto em ruínas. Ao longe, o chão
fendeu-se, como se a terra tivesse dado um tremendo impulso e na sua
esteira só restassem ruínas.
A ala norte que me está proibida.
– Onde está? – pergunto, a ofegar. – Onde se meteu? – Suor escorre-me
pela cara, apesar do ar frio.
Observam a minha arma em riste, a minha camisa de noite, como se eu
estivesse louca.
O guarda mais alto pergunta:
– Onde se meteu o quê, minha senhora?
– O caminhante-das-trevas.
Uma muda troca de olhares entre os homens.
– Minha senhora – diz um deles –, na cidadela não há caminhantes-das-
trevas. O senhor defende-a deles.
– Então terão interesse em saber que as defesas foram comprometidas,
porque acabei de o ver. Veio por aqui? Também o viram? – Os caminhantes-
das-trevas têm capacidade de se imiscuír nas sombras e tornar invisíveis
para efeitos práticos, mas eu contava que os castiçais nas paredes emitissem
luz suficiente para impedir este fenómeno.
Não se mostraram preocupados. Mal pareciam estar acordados, a bem-
dizer.
– Minha senhora. A noite vai longa. Terá sido um sonho?
– Há problemas?
Sobressalto-me ao ouvir a voz do Rei do Gelo, e viro-me para o ver
caminhar pelo corredor sombrio que acabei de cruzar. Ele observa a seta, o
sangue a escorrer da palma da minha mão, as minhas pernas desnudas na
curta camisa de noite, e é nestas que o olhar se mantém.
– Há um caminhante-das-trevas – consigo dizer, baixando a arma. – À
solta na cidadela.
A expressão dele torna-se uma lâmina afiada numa pedra de amolar.
– Tens a certeza?
– Sim. Cheirei-o no quarto. Fugiu por este corredor, mas perdi-lhe o
rastro.
Ele parece ficar em conflito – por um lado, acredita em mim, mas por
outro, duvida.
– As proteções são impenetráveis. Nada consegue entrar pelos portões
nem transpor o muro, a não ser que eu permita…
– Cala-te. – Sou dura e algo agressiva. Não tenho pachorra para usar um
tom mais suave. – Não preciso que me digas aquilo em que acreditas ou o
que seja. Só que me ouças. – Neste momento, é o gesto mais importante e
atómico. – És capaz de tal coisa?
Ele retesa-se.
– Só tento…
– Tenta melhor.
O Rei do Gelo olha para a minha mão, branca de tanto apertar a madeira
curva do arco. Pressinto – não pela primeira vez – que ele vê muito, mas diz
pouco.
– Muito bem – concede. – Pedirei aos meus homens que investiguem.
Para tua própria segurança, não saias do quarto durante o resto da noite.
Enviar-te-ei a Orla assim que isto terminar. – Espanta-me que me
acompanhe no regresso ao quarto. O meu sangue, que lhe é bastante
precioso, tem de ser protegido.
Ao alcançarmos os meus aposentos, eu apresso-me com um murmúrio:
– Obrigada.
– Esposa.
Ranjo os dentes, mas cedo-lhe um olhar por cima do ombro.
– O que foi?
Os olhos azuis cintilam com uma emoção que não compreendo.
– Não te esqueças de trancar a porta.
14

N aquela noite, faço o que o Rei do Gelo ordenou: tranco a porta. E volto
a trancar na noite seguinte. E na próxima.
Passam-se os dias, mas não reencontro o caminhante-das-trevas. Os
guardas mantêm-se em estado de alerta, por ordem do rei. Quando
questiono o Rei do Gelo durante o jantar, ele afirma que a investigação
continua, e nada mais. Tanto melhor. Não tenho qualquer vontade de
conversar com ele.
No fim de uma certa manhã, sentada à janela, remendando um buraco na
túnica, vejo movimento lá em baixo.
Uma figura negra caminha aos tropeções pela fileira de árvores que
rodeia a fortaleza. A minha coluna retesa-se, mas… não. Não é um
caminhante-das-trevas. A figura anda direita e em cima de duas pernas.
Deve ser um homem.
Avança lentamente, conquistando com esforço a recente e profunda
camada de neve. Cai, e fica caído o tempo suficiente para me assustar, mas
lá consegue endireitar-se. Assim que alcança os portões, para, oscilando. O
casaco – se assim pudermos chamar o tecido rasgado que lhe pende dos
ombros – agita-se nas suas costas. Um dos braços não se mexe.
Esqueci-me da costura no colo. O homem está evidentemente ferido.
Mas de onde terá vindo? Que distância percorreu para chegar à cidadela?
O homem ergue o braço num gesto suplicante. Espero que os guardas
abram os portões. Pelo contrário, ouve-se um berro e solto uma
exclamação, vendo o homem colapsar de cara na neve.
Debruçando-me, enfio o nariz contra o vidro gelado para olhar mais de
perto. Uma seta projeta-se das costas.
Atiraram contra ele.
Uma calma gelada cobre-me como um manto. Ponho de lado a costura.
Então, é assim que um rei responde a um pedido de socorro?
Pegando no arco e na aljava, desço as escadas a correr, escancaro uma
das portas e atravesso o pátio com passadas lestas.
– Abram os portões! – berro.
Um dos guardas do muro responde:
– Estamos proibidos de abrir os portões, minha senhora. São ordens do
senhor.
Encaixo a seta e estico na totalidade a corda, antes de ele terminar a
frase. Fosse eu menos contida, e a seta já estaria enterrada no seu olho.
– Como vossa rainha – proclamo, a voz retinindo de desdém –, dei-vos
uma ordem. Abrirão os portões, homens, ou o rei será informado da vossa
desobediência. – Há uma pausa. – Já!
O portão ruge, as dobradiças guincham durante a lenta deslocação.
O homem está enterrado na neve. Acorro para junto dele, mas fico tensa.
Não é um espectro. Não há transparência na pele, nem os contornos são
difusos. O homem é humano, feito de carne e sangue.
Impossível.
Sangue mancha-lhe o casaco. O peito sobe e desce em pequenos soluços.
Pele enegrecida cobre extensas áreas desprotegidas das mãos e da cara.
Conheço bem as queimaduras da neve. Quase perdi dois dedos durante uma
caçada particularmente gelada, há vários anos.
Calmamente, endireito-me.
– Vocês, os três. – Aponto para um grupo de guardas que veio investigar.
– Carreguem o homem para a enfermaria, e despachem-se.
Apesar do espanto, obedecem de imediato, transportando-o escadas
acima e pelo corredor da ala oriental. A enfermaria consiste em cinco
catres, uma mesa a transbordar de frascos com unguentos e ervas, e um
fogo de lareira. Tenho vagas recordações deste lugar, nos primeiros dias
após o meu ataque.
Alba e as suas duas aprendizas arquejam ao ver o homem.
– Deitem-no na cama – vocifera Alba, empurrando a mesa de trabalho. A
mulher-espectro é rechonchuda, com ar saudável e olhar bondoso que
endureceu ao presenciar os ferimentos.
– Posso ajudar em alguma coisa? – pergunto. A palidez do homem
assemelha-se à de um cadáver.
Alba entrega-me uma faca.
– Tire-lhe as roupas e tape-o com lençóis. Precisamos que o corpo
aqueça, mas aos poucos, ou o coração pode parar. Vou aquecer água. – Fita-
o com espanto. – Está vivo. Mesmo vivo. Como… – O olhar transita para o
meu antes de se por rapidamente ao trabalho.
Com movimentos utilitários e desapegados, corto as roupas do homem
até à pele. É uma visão medonha: feridas abdominais profundas, coxas
arranhadas que libertam sangue, manchando os lençóis brancos.
Faço pilhas de mantos sobre o corpo dele. As aprendizas de Alba
enchem o fogo de lenha. Esta vai tocando de quando em vez na testa do
homem, e anui para si mesma.
– Está a aquecer. – E depois a atenção concentra-se na seta espetada no
ombro. – Esta seta é dos nossos homens – afirma, prendendo o olhar no
meu.
– Sim.
A máscara calma de Alba desfaz-se com desagrado.
– São uns brutos. Uma vida é uma vida. Segure-o. Se ele acordar
enquanto tento retirar a seta, ainda se enterra mais.
Não tenho força de braços para conter um homem adulto, portanto deito-
me sobre o peito dele, usando o peso para o prender.
O homem é jovem, demasiado jovem para abandonar esta vida. Como
terá ele conseguido atravessar a Sombra? Como noiva do Rei do Gelo, foi-
me concedida imunidade da sua influência. Mas o homem não a teria. Não
devia estar transformado em espectro?
Sangue jorra do buraco enquanto Alba puxa a ponta da seta. Uma
aprendiza aplica pressão com um pano para conter o fluxo, e depois limpa-
lhe a ferida, cosendo-a até a fechar.
Aplico uma ligadura à área, quando um vento frio desce pela minha
coluna e me cria um formigueiro na pele.
– O que se passa? – Um silvo desliza da ombreira.
O meu pulso acelera, não obstante a calma que aparento. Preparando-me
para a batalha que se avizinha, endireito-me lentamente, enviando às
curandeiras um olhar mudo para que fiquem tranquilas, pois eu sou o alvo
da discussão.
A silhueta do Rei do Gelo escurece a entrada. O cabelo dele pende solto
e emaranhado, e muito mais desgrenhado do que lhe vira. Tem a pele
completamente incolor, a não ser duas riscas rosadas ao longo das maçãs do
rosto, afiladas como cristal, e o rico rubor da boca. Sangue mancha a bainha
da túnica, e arranhões marcam o peitoral, como se vindo da guerra. Não se
vê a lança, mas não o torna menos aterrorizador. E ele é deveras
aterrorizador. A fúria cobre-lhe o semblante como uma nuvem de trovoada.
Transporta nele o fedor da morte.
– Olá, marido. – Acercando-me do rei, pego-lhe na mão. – Conversemos.
Ele faz finca-pé. Puxo-o para a frente, e ele segue-me para o corredor,
rosnando baixinho como a porra de um animal.
Mal a porta se cerra, dando-nos privacidade, ele liberta-se.
– Os meus guardas informaram-me que deste abrigo a um homem do
exterior. É verdade?
– É verdade. – Planto as mãos nas ancas. – E então?
– Percebes o que fizeste?
– Salvei a vida de uma pessoa?
As narinas agitam-se. Todos os meus poros tentam recuar desta
proximidade. Está demasiado perto, este predador.
Afirma:
– Convidaste o inimigo para a minha casa.
As palavras fazem-me parar. No curto espaço de tempo em que conheço
o meu marido, aprendi isto: para ele, todos são inimigos.
– Porque dizes que este homem é inimigo? – pergunto.
– Já lhe viste os olhos?
– Não. Estava demasiado ocupada a impedir que sangrasse até à morte.
– Claro que não viste – comenta, como se esperasse o meu descuido.
A minha coluna retesa-se perante esta afronta. Que desplante, o dele!
– Dir-te-ei o que vi. Um homem, ferido e perdido, que se aproximou da
cidadela a pedir ajuda. Contudo, os guardas atiraram sobre ele. – Cada
palavra é expelida num único momento de raiva com ponta de diamante. –
Não se mata um homem desarmado.
– Desarmado, não está. E homem, já não é.
Engulo o meu argumento, por algum motivo. O homem ferido não trazia
armas, mas terei ignorado alguma coisa?
– Não podia ter esta morte na minha consciência. Por isso, agi. Não me
arrependo. – Demasiadas coisas morrem no Gris. Não posso permitir que
outra sofra igual destino.
Os olhos azuis tremeluzem como uma chama fria. Passa-se outro
instante antes de responder:
– Não tinhas autoridade para tomar tal decisão.
– Tenho toda a autoridade – exclamo, espetando o polegar com força no
peito. Ele esfrega o sítio, atónito. – Não sou um casaco que se pendura
quando não se está a usar. Sou a tua esposa. Vivo aqui, como aqui, durmo
aqui. Portanto, sim, se eu decidir salvar este homem, assim farei, e em nada
podes contrariar-me.
– Não sabes quem é este homem – resmunga, infiltrando o meu espaço
pessoal. Embato na parede de costas. O cheiro do cedro envolve-me,
estonteante e límpido sob o sangue que se prende ao uniforme rasgado. –
Ele podia ter vindo com a intenção de me matar, ou a ti. Pode ser uma
armadilha.
Oh, tantas coisas ridículas que já ouvi na vida, mas esta é o máximo.
– Deves ter razão. Perdeu bastante sangue, mas é possível que salte de
um momento para o outro e te tente esfaquear no coração. – Esse coração
frio, insensível, que eu própria esfaquearei em breve.
Um pequeno vinco marca a pele entre as sobrancelhas negras.
– Troças de mim.
– Claro que troço de ti! – exclamo, rindo-me incrédula. – Mesmo se veio
para te matar, não terá sucesso agora. Mal se aguenta vivo!
– Isso é irrelevante – diz em resposta. – Se uma pessoa conseguiu abrir
uma brecha na Sombra, quem se seguirá? Cresce uma força, a qual não
estou certo de conseguir manter afastada muito tempo.
– Não importa o que digas – riposto –, mas jamais virarei as costas a
uma pessoa em apuros, nem mesmo a ti.
A última parte desliza sem intenção.
O Rei do Gelo abre a boca. Depois, como se as minhas palavras
finalmente surtissem efeito, fecha-a. Um silêncio confrangedor abate-se.
Acredito mesmo no que disse? Claro que não. Sinceramente, estou
estupefacta, sem saber por que motivo disse tal coisa.
– Espera – comento. – O homem abriu uma brecha na Sombra? Pensei
que só os mortos eram capazes de entrar nas Terras Mortas.
Ele esfrega a mão enluvada ao longo do queixo, espalhando mais
sujidade.
– Seria verdade, se a Sombra estivesse intacta.
– O quê?
Ele conduz-me de volta à enfermaria. Alba e aprendizes não se veem em
parte alguma, o que deve ser bom. Avançando em passadas largas para o
homem ferido, o rei abre-lhe uma das pálpebras e eu arquejo. O olho –
pupila, íris, escleral – está completamente negro.
– Vês isto? – Aponta para o que eu julgava ser uma queimadura do gelo,
mas ao examinar de perto, noto que as manchas negras na verdade se
situam debaixo da pele. E parecem estar vivas, contorcendo-se e enrolando-
se em formas amorfas.
As entranhas contraem-se-me perante esta evidência de incorreções.
– Parece que está a tornar-se um caminhante-das-trevas.
– É exatamente isso o que está a acontecer.
Está errado. Está errado, errado, errado. Uma mancha mais escura
desabrocha sob o queixo do homem, e depois desaparece.
– O que vais fazer com ele?
– Tem de ser morto. Direi à Alba para lhe administrar beladona. É
veneno, mas não sofrerá.
É mais do que esperava da parte dele.
– Por falar em caminhantes-das-trevas. – Fito-o de lado, expectante,
incapaz de ceder um milímetro. – Notícias do nosso amigo andante que
vagueia pela cidadela? – Passaram-se dias desde que lhe dei caça por este
labirinto, mas não me esquecerei tão depressa.
– Não – afirma o Rei do Gelo. – Nenhuma. – Aperta o cimo do nariz,
olhos cerrados.
– Já aconteceu uma brecha no passado?
– As proteções são as mais fortes que o meu poder permite. Nada entra
sem eu ter conhecimento. Nada.
E, contudo, algo entrou.
A minha atenção desce para o rasgão desagradável no antebraço
esquerdo, na sua manga rasgada. É como se não reparasse no sangue que
escorre.
– Estás ferido.
– Hei de sobreviver.
Claro que sim. E, contudo, descubro-me a dizer:
– Ainda se infeta. Posso limpá-la, se quiseres. – Não sei de onde vêm
estas palavras. No que me importa, a ferida que ganhe pus. E contudo, ele
veio em meu socorro quando estive em perigo, quando podia ter morrido
dos golpes que sofri no ataque, e não me esqueci. – Não demora.
Ele remexe-se. Sem esperar, causei desconforto ao Rei do Gelo.
– Não ficarei a dever-te favores, esposa.
Como se favores me importassem. Passando por ele, falo por cima do
ombro:
– Por aqui. – Tal como o Sol se ergue a leste, sei que me seguirá. O rei
pode negá-lo quanto quiser, mas sente curiosidade a meu respeito. E uma
parte mesquinha e retorcida em mim também sente curiosidade a respeito
dele. – Senta-te. – Aponto para um catre vazio.
Ele senta-se.
Verto água numa tigela, agarro num pano e arrasto um banco. Ele fica
rígido quando lhe puxo o braço para o ver mais de perto, tão tenso como
uma cobra prestes a atacar.
– O que aconteceu? – Um pulso forte e sólido. O cabelo preto cobre-lhe
o antebraço, a pele em que toco é quente e pálida como alabastro.
Ele observa-me enquanto lhe puxo a manga para cima.
– Houve uma batalha. A população conseguiu entrar pela Sombra.
Precisa do teu sangue.
Engulo em seco, pensando que terei de regressar à barreira horrível e
faminta.
– Já? – O que faz enfraquecer o poder do rei? Porque é que se
desvanece? Não tenho respostas. – Porque não sarou a tua pele? Foi o que
aconteceu quando…
– Quando me esfaqueaste?
Pois.
– Sim.
– Não sei bem. – Vou-lhe limpando a ferida enquanto ele fala. – Talvez
as armas deles contenham um poder que anula as capacidades de restauro
do meu corpo. Não desistirão até que me matem.
Seria de esperar. Mesmo a corda mais forte se desfia com a pressão
contínua.
– Onde é que adquirem tais armas?
– Uma pergunta a que ainda tenho de responder.
Regresso à minha tarefa em silêncio. Os nossos joelhos tocam-se, e o
calor que irradia do corpo dele banha-me como ondas que lambem as
margens. Os ombros esticam o tecido da sua túnica suja. Cheira a homem.
– És demasiado meiga – murmura, acompanhando as minhas mãos num
exame cuidado enquanto envolvo o tecido no seu antebraço. A expressão
dele descongelou um pouco, se não me engano.
– Em mim, não há meiguice. – É a única forma de garantir a minha
sobrevivência. Que tipo de ganha-pão seria para Elora se deixasse que as
minhas decisões fossem deturpadas por vulnerabilidades?
As pessoas não querem corações de manteiga. Portanto, tornei o meu de
pedra.
– É o que julgas – diz ele –, mas os teus atos comprovam o contrário.
O rei está enganado, mas não vou perder tempo em discussões.
– Falas como se esta meiguice teórica fosse um bom atributo.
– Mas é, se quiseres proteger-te do mal.
– E como é que faria isso? – contraponho. – Isolando-me do resto do
mundo?
Mais uma vez, o silêncio teimoso.
– É isso que pensas? Que me isolo por escolha minha?
Não sei o que hei de pensar. Não me deu respostas nenhumas.
– Nem toda a gente procura fazer mal. – Corto a ponta do tecido e
começo a atar um nó. Quem te terá ferido, pergunto-me. E porque carregas
tanta desconfiança?
– Não sabes o que vai no coração de um homem. – Ele aponta para o
doente inconsciente. – Quem sabe se não o condenaste a um destino pior?
Experimentei terríveis situações na minha vida. Perdi e sofri. Lutei e
labutei, e ainda assim, escolho procurar a luz, mesmo perante um imortal
que só conhece as trevas.
– E se tivesses sido tu? – pergunto em jeito de desafio. – Ter-te-ia
deixado morrer?
Nitidamente, não sabe como interpretar a minha pergunta, pois recorda-
me, voz cheia de frustração:
– Não posso morrer.
Os nossos olhares cruzam-se. Alguém bate à porta.
– Entra – entoa o Rei do Gelo.
– Meu senhor. – Um soldado observa-nos, mas rapidamente desvia o
olhar. – Mais um buraco na Sombra, a norte. Quais são as vossas ordens?
O rei põe-se de pé. Se a Sombra está a enfraquecer, poderá cair de uma
só vez? Poderei por fim regressar a Edgewood?
– Tratarei da brecha a norte. Vem, esposa.
– Chamo-me Wren. – Ao deslocar-me para atirar a água suja de sangue
pela janela, murmuro: – Não tens de quê.
15

A celeramos, em cima do garanhão preto do rei, pela terra branca.


Debruçada sobre a sela, o Rei do Gelo nas minhas costas, conquistamos
terreno com a rapidez de um trovão.
Algo terrível me aguarda na Sombra. Haverá sangue. Nisso, estou
convicta. Só ignoro em que quantidade.
Fáeton, o caminhante-das-trevas, traça uma rota precária. A terra
ascende continuamente, mais árvores desarraigadas acumulando-se na
subida, vítimas das avalanches, essas maceráveis ventanias. A neve recua
na presença das paredes rochosas.
– Diz-me o que me espera – exclamo, baixando a cara contra o vento
incessante.
O caminhante-das-trevas pula por cima de uma árvore caída,
ultrapassando facilmente o obstáculo. As suas sombras voltam a formar o
traço das quatro patas quando embate no solo.
– Os mortais invadem as minhas terras neste preciso momento. O resto
da minha força chegará em breve. Estão autorizados a matar à vista.
Um riacho congelado reluz entre duas colinas, qual veio de prata
fundida, mas depois passamos por ele, subindo ainda mais, e o brilho
momentâneo desaparece atrás do terreno ascendente.
– Prepara-te para o pior – avisa-me ele.
Fáeton transita para um galope ligeiro, com neve e lama a saltar-lhe dos
cascos. Mais acima, mais acima, e mais acima, além do arvoredo, onde a
terra se estende, ininterrupta. A Sombra obscura. A faixa curva do Les. Há
semanas, tudo isto estava imaculado. Agora, a barreira fendeu-se, as
metades esvoaçam.
A violência chega sem aviso, e só agora descobrirei se a consigo
absorver, se acabarei de pé ou de joelhos. Corpos espalham-se pelo chão. O
metal rasga o ar enquanto os soldados do Rei do Gelo ripostam contra a
população da vila, cujas botas gastas e roupas finas lhes pendem, soltas, dos
corpos emaciados. Alguns mal conseguem levantar uma arma.
E, contudo, desaguam às centenas, desesperados por mudança, por
vingança. Ao discernirem o Rei do Gelo, insurgem-se contra nós, e eu
agarro-me ao braço que me enlaça pela cintura.
Uma mudança perpassa a população. Sombras deslizam como nevoeiro
dos seus membros, e os olhos abrem-se, as pupilas inchando como tumores.
As mãos corrugam-se enquanto os dedos se tornam garras.
Caminhantes-das-trevas.
O meu sangue gela nas veias. As trevas consomem-lhes o limite da pele.
É como se aquelas pessoas, entrando à força nas Terras Mortas, sangrassem
corrupção dos seus corpos mortais.
Quando o primeiro caminhante-das-trevas nos alcança, o Rei do Gelo faz
rodar a espada em arco, que cospe sangue. A criatura tomba, mas outro
mortal corrompido ocupa-lhe o lugar. E outro. E outro.
É uma terra de matança. A neve escorre uma hemorragia, vermelha,
formam-se colinas de corpos. Prepara-te para o pior, disse ele. Jamais teria
concebido algo tão horrendo.
– Terás de alimentar a Sombra com o teu sangue – grita o Rei do Gelo,
desviando uma seta com a lança. Estilhaços de gelo voam da ponta, e os
gritos, às dúzias, são dilacerantes quando o gelo encontra a pele. – É a única
maneira de travar esta intrusão.
A couraça ensanguentada do rei encosta-se, fria, às minhas costas,
arrepiando-me através do tecido. Homens, mulheres, até crianças, levantam
armas ineficazes contra um deus: tábuas com pregos, cordas esfiapadas,
cabos de vassoura e baldes.
E tombam, e tombam, e tombam. Corpos abatidos na neve. Criaturas
enterradas no lamaçal. Carnificina. Pessoas como eu.
– Eu e os meus homens iremos empurrá-los para trás – grunhe,
esquivando-se por um fio a uma facada na perna. – Falta treino a esta gente.
Não será difícil.
O desespero às vezes compensa a falta de treino. Em Edgewood, os
salteadores atacavam ocasionalmente com o avanço dos anos de fome. A
maioria da população da cidade não era capaz de distinguir a ponta da
espada da outra ponta, mas lá nos aguentámos. Agora? Eles já não são
mortais. Têm de ser abatidos.
O braço do rei aperta-me ainda mais.
– Não caias da sela. – Depois berra: – Venham a mim!
Uma unidade de soldados separa-se da luta. Posicionando-se em
formação, flanqueiam o rei enquanto este abre caminho em frente, pelo
meio da turba, um caminho estreito e custoso. O Rei do Gelo está certo. As
pessoas não têm treino. Para onde quer que olhe, caminhantes-das-trevas e
mortais semitransformados são chacinados. Uma espada no peito ou uma
barriga aberta. Em breve, são mais do que nós.
Fáeton dá um coice, atingindo um caminhante-das-trevas na espinha.
Algumas almas corrompidas agarram-me as pernas, e a memória de
Neumovos, das mãos na carne, do meu corpo espezinhado contra o chão,
desperta em mim o medo. Berro e pontapeio um deles na cara. O Rei do
Gelo afasta os restantes com uma parede de vento.
– Corre para a Sombra – rosna ao meu ouvido. Sinto duas mãos nos
pulsos, e levanta-me em peso da sela, pousando-me no chão.
Abre uma faixa pelo meio da zona mais intensa do conflito, usando os
seus ventos para afastar os intrusos. Atacam-me com uma espada. Esquivo-
me e enfio-lhes o meu punhal na barriga. Agarro num arco abandonado,
arranco uma flecha do olho de um morto. Em poucos segundos, a seta está
apontada.
Uma dor rasga-me as costas e solto um grito, virando-me para atirar a
seta às cegas. Atinge um caminhante-das-trevas meio transformado em
cheio no olho. A agonia é tão forte que a minha mão treme com espasmos, e
o arco escorrega-me para o chão.
Mais além, a Sombra pulsa como um coração negro.
Lanço-me em frente. Impedir a entrada de pessoas nas Terras Mortas.
Impedir que os caminhantes-das-trevas se multipliquem. Meros metros me
separam da Sombra. Na periferia da visão, o rei combate contra um grupo
de feras. Os seus olhos encontram os meus do outro lado do campo.
– Faz isso – berra, e juro que o medo fratura a sua voz. – Sem demoras!
Forço o punhal contra a palma da mão. O meu captor não morrerá hoje.
Não posso desperdiçar a minha oportunidade de o matar, não posso
sacrificar o meu plano num instante de ansiosa vingança. O momento
chegará. Em breve.
A dor surge sob o fio da lâmina. O meu sangue banha a Sombra e cria
remoinhos vermelhos por entre o preto. Os buracos selam-se, formando
costuras perfeitas, até que o meu reflexo me devolve o olhar: eis a mulher
de olhos arregalados que falhou a promessa ao seu povo. Mesmo que isto
ajude a travar o ciclo de criação dos caminhantes-das-trevas, não é uma
solução definitiva. Sinto-me enojada com a minha própria impotência. Nada
do que fiz foi suficiente.
– Muito bem. – O Rei do Gelo faz parar o cavalo ao meu lado. Encara-
me do alto com ar aprovador: uma primeira vez. – Num instante de
incerteza, continuaste leal.
Arrasto-me para o arvoredo. A sério que julga que lhe sou leal?
– Esposa.
– Dá-me espaço – rosno.
Recuperando uma Sombra fortalecida, o exército do rei despacha
rapidamente os restantes caminhantes-das-trevas. Do outro lado do campo,
encosto-me a uma árvore à procura de apoio. O tronco é áspero e frio contra
o meu ombro. As minhas costas retalhadas latejam, mas a dor dá-me forças.
Tenho de encontrar o Zéfiro, seja como for.
Um grito faz-me abrir os olhos. O chão estremece – um braço envolve-
me a cintura, agarra-me e pousa-me em cima do cavalo. Não se trata do Rei
do Gelo. Não, este rei – Bóreas – está no campo, a meia distância, olhar
selvagem ao ver o meu raptor cravar os calcanhares nos flancos do cavalo.
Desatamos a correr por entre as árvores e desaparecemos.
Olho para baixo. Uma mão escura e com garras prende-me a cintura com
força férrea, e eu berro, procurando libertar-me enquanto o corcel aderna,
levando-me para as profundezas das Terras Mortas.
O urro do Rei do Gelo sacode a neve das árvores.
Não existe fúria maior no inferno como a de um deus injustiçado.
16

D ebato-me. Não tenho outra escolha. Esperneio, tentando atirar-me da


sela, mas o braço que me envolve é inamovível. Por muito que espete as
unhas no antebraço do meu captor, não lhe furo a pele.
A perseguição conduz-nos para leste, depois para norte. Montanhas
imponentes e vales escarpados, e uma floresta estranhamente insólita. O
cavalo, suportando o peso de uma carga adicional, respira pesadamente
enquanto o homem o orienta por um caminho serpentino, que se curva
traiçoeiramente ao longo de uma saliência instável. Apesar de ter dito a
mim própria que não olharia, espreito para a profunda queda sob mim.
Muito, muito ao fundo, naquele abismo, aguarda um espesso aglomerado de
sombras.
– Cometeu um erro. – Os meus dedos crispam-se na dianteira da sela
quando o cavalo tropeça, lançando pedrinhas dos cascos.
– Calada.
Passámos a saliência, e rumamos a uma descida pouco inclinada.
– Leve-me de volta – exijo.
– Não.
– Então, solte-me. – Arquejo de susto quando deparo com uma árvore à
nossa frente. Desviamo-nos por um triz. – Quando o Vento Norte o apanhar,
desejará estar morto.
Um fio de escuridão enrola-se no meu pescoço, acariciando-o como um
amante.
– O Vento Norte não tentará nada. – A voz do homem é gutural, como se
impedida pelos dentes que lhe enchem a boca. – Pois tenho a mulher dele.
– Ele não se importa comigo. Apenas que tenham roubado propriedade
que lhe pertence. – E fará o que for preciso para me recuperar, pois sou o
seu prémio, o seu instrumento precioso. Não há métodos demasiado
perversos.
O homem não quer ouvir. Cego pela esperança. Subjugado pela
ganância. Escolheu um rumo que só conduz a um destino, e certamente a
uma vida breve.
Apertados entre a terra e um céu cinzento e uniforme, avançamos pela
clareira cheia de neve, enquanto uma nevada fria e húmida nos assola e
retira o mundo da nossa vista. O vento uiva com uma força tão desenfreada
que ameaça arrancar-me da sela – o rei ganha terreno.
Um enorme fragmento de gelo irrompe do chão, a pouca distância do
nosso trajeto. O cavalo relincha, empinando-se, enquanto a neve derrete e
volta a congelar, formando gelo. Os cascos perdem tração. O homem,
praguejando, puxa as rédeas. Quando o cavalo se empina uma segunda vez,
sou atirada para fora da sela.
Aterro de costas no gelo, expulsando o ar dos pulmões, feridas
protestando de agonia.
Ouve-se um berro.
Viro a cabeça para o lado. O homem ajoelha-se por terra, a tremer, mãos
negras em forma de garras, olhos formados apenas por pupilas. Um
pingente de gelo, grosso como o meu antebraço, perfurou-lhe uma coxa.
Dobra-se sobre si, gemendo enquanto o sangue jorra da perna mutilada,
soltando vapor ao cair na neve.
A escuridão fica mais negra.
Do meio da penumbra, materializam-se duas nuvens de vapor… e dois
olhos de obsidiana.
O que emerge só se pode descrever como produto de um pesadelo.
Fáeton sempre assumira uma forma equídea, desde que o conheci, mas a
presente imagem é muito mais selvagem, semelhante às feras que assolam
Edgewood. As suas espáduas assentam disformes sobre um costado torto. A
longa e fina cauda chicoteia para um lado e para o outro, e bifurca-se na
ponta. Por último, os dentes: recortados, como lâminas, pingando sombras
tão espessas como sangue.
O Rei do Gelo, escarranchado em cima da criatura, aponta a lança ao
pequeno homem encolhido. Desmonta com elegância. O olhar salta na
minha direção, avaliando-me brevemente da cabeça aos pés, antes de
regressar ao meu captor.
Um andar lento e decidido aproxima-o, e a temperatura desce a pique.
Isto não é frio. É ausência de calor.
– Por favor – balbucia o homem. – Tende piedade.
– Piedade. – Olhos azuis brilham naquele rosto exangue. – Os próprios
deuses, a mim, não ofereceram piedade.
– Não sabia. Por favor, meu senhor. Não sabia que era vossa esposa!
– Mentes. – Levanta a lança, a ponta espetando-se no estreito peito do
homem.
Sinto o estômago revolver-se de forma doentia. Quando nada temos,
fazemos escolhas erradas. Enlouquecemos, obcecados pela ideia de que
qualquer coisa, qualquer ação, só pode melhorar a nossa vida. O rei estica o
braço para trás e eu esforço-me para me levantar, desato a correr, tão rápida
quanto possível, e coloco-me diretamente no caminho da lança.
Horror e medo arregalam os olhos do Vento Norte. É inconfundível.
– Esposa – vocifera. – Sai da frente.
– Poupa-o. – O homem encolhe-se atrás de mim, a lamuriar suplícios
insanos em surdina. – Ele não sabia o que fazia.
– Sabia precisamente o que fazia. És um prémio do qual me quis privar.
– Muito bem – digo, erguendo os braços. – Talvez seja. Mas pensa que
essa foi a escolha feita pelo caminhante-das-trevas, e não pelo homem que
ele em tempos foi.
O Rei do Gelo mexe-se tão rapidamente que os meus olhos mortais não
conseguem acompanhá-lo. Um piscar de olhos, e o homem morre com um
fragmento de gelo espetado na garganta.
– Estás ferida? – Antes que possa responder, ele avalia-me, com
palmadinhas da cabeça aos pés. Toca-me. O que nunca fez até hoje.
Passa a mão pelas minhas costas e eu encolho-me, sibilando de dor. Ele
para.
– Caminhante-das-trevas. – O meu olhar desvia-se do seu, tão intenso.
Passa a mão pela curva do meu ombro. Ao de leve, com as pontas dos
dedos enluvados. Inclusive, com meiguice.
– Posso ver?
Sem proferir palavras, viro-me, apresentando-lhe o que imagino ser uma
visão horrível. Ele examina-me, calado.
– É muito mau?
– Terás de pedir à Alba que te trate quando voltarmos. Os cortes são
muitos, mas não profundos.
Absorvo esta informação com um temor ainda crescente.
– Deixarão cicatrizes?
O silêncio arrasta-se por mais tempo do que o anterior. Talvez pense na
outra cicatriz que trago.
– Não deviam. Pedirei que use os bálsamos mais fortes que tiver.
Não devia importar, mas… sinto-me grata.
– Obrigado. – Volto a olhar para o morto.
O Rei do Gelo murmura:
– Não era um mortal infiltrado. Era um dos meus. Olha para a pele. –
Aponta para uma área junto à clavícula exposta. É subtil, mas há uma certa
transparência. – Trabalhava na cidadela. Há três dias que não vinha
trabalhar. Bem me perguntava onde é que andaria.
Assobia para chamar Fáeton, que recuperou a forma equídea. O rei
monta antes de me oferecer a mão. Hesito, mas aceito-a. Dedos fortes e
calejados envolvem os meus, e usando a força do braço, levanta-me e
pousa-me na sela.
Não quero perguntar, mas tenho de saber.
– E agora?
– Agora, fazemos uma visita a Neumovos.

Entramos em Neumovos cobertos de sujidade, restos dos mortos que


mancham as nossas roupas e se agarram aos cabelos. A aldeia parece estar
abandonada, a praça vazia. Neve acumula-se nos telhados de colmo.
Apesar da temperatura gélida, cobre-me uma película de suor, por causa
do pesado casacão que vesti. O Rei do Gelo segura a lança na mão
esquerda, as rédeas na direita.
– O que vais fazer? – sussurro, passando a língua pelos lábios gretados.
A resposta dele agita o ar no cimo da minha cabeça.
– Ainda não decidi. Se algum dos meus criados se virou contra mim, é
de esperar que outros tenham feito o mesmo. Se a corrupção se espalhou…
O rei incita Fáeton a andar, e avançamos num trote pela via principal,
cascos a ecoar contra a pedra. Pelo canto do olho, antevejo movimento –
uma cortina que volta ao lugar na janela, talvez porque o ocupante nos
espreitou por breves momentos.
O braço do Rei do Gelo aperta-me a cintura, como se quisesse manter-
me próxima.
– Estás protegida – murmura, e eu solto lentamente uma exalação.
– Povo de Neumovos – vocifera. – Têm uma hora para se reunir na praça
da aldeia ou as vossas vidas serão condenadas ao Fosso.
Aparte a brisa nevada, nada se mexe. Fáeton, como se pressentisse a
frustração do cavaleiro, empina-se.
– Povo de Neumovos – rosne. – Respondam ao vosso rei!
O gelo fustiga uma das portas, arrombando-a. Saem gritos do interior.
Fico enregelada da cabeça aos pés. Uma família de quatro pessoas
arrasta-se até à rua, encolhida nos casacos puídos. O sol do entardecer
banha-lhes os rostos aterrorizados.
Afinal, não é necessário esperar uma hora, pois a praça enche-se ao fim
de minutos. O rei desmonta, a sua altura impressionante impondo-se sobre
os presentes.
– Povo de Neumovos – chama. – Sabem porque vos convoquei?
A multidão remexe-se como ondulações que se deslocam por uma
piscina parada. Ninguém ousa falar.
– Ousaram amotinar-se contra mim – diz sem rodeios. – Ameaçaram a
paz das Terras Mortas e com ela o equilíbrio que tanto me custou alcançar.
Cada palavra tomba como uma pedra afiada, e os aldeões recuam.
Aperto as rédeas com mais força.
– Esta tarde, um de vós tentou raptar a minha esposa, aquela que vós
próprios ieis matando à pancada há poucas semanas. Só por pedido dela é
que não voltei e vos bani para as profundezas do Fosso. – Algumas
exclamações de temor percorrem a multidão. – Mas desta vez não sei se me
resta algum pingo de clemência.
Volta a mencionar o Fosso. Imagino uma enorme jazida no centro das
Terras Mortas, a punição dos piores criminosos. Alguém se lamuria quando
ele levanta a lança. Esta visão faz-me ranger os dentes. Um indivíduo
corrupto não pode incriminar a aldeia inteira. O Rei do Gelo é demasiado
forte, demasiado empanturrado de poder.
– Não fomos nós, meu senhor. Juramos!
O rei mostra o seu desdém.
– É o que dizem.
– Sabemos a quem vos referis – diz um homem, abrindo caminho para a
dianteira. – Chamava-se Oliver. Nas últimas semanas, começou a… mudar.
– O homem baixa a vista, desconfortável. – Não sabemos como nem porque
mudou, meu senhor. Só que já não era o mesmo homem de antigamente.
– Querem que acredite que só um é que me traiu, e que outros não
atentarão contra a minha vida? Contra a minha esposa? Convençam-me a
não destruir esta aldeia de uma vez por todas – berra, olhos cheios de uma
luz aterrorizadora. – Convençam-me a não vos enviar para a escuridão do
Fosso.
Um vento gélido abala a estrutura mais próxima. Ouvem-se gritos
enquanto a poeira assenta na praça. O rei aponta a lança para outra
construção ao fundo da rua, um mero alpendre com paredes tortas.
– Para. – Desmonto, apressada, e agarro-lhe no braço. – Já se
compreendeu o teu ponto de vista.
Lentamente, o seu olhar furioso desce para o meu. No fundo da minha
mente, uma palavra murmura: perigo. Tudo em mim se quer encolher, ficar
minúscula, impotente, inócua. Mas combato a sensação.
– O meu ponto de vista só será compreendido quando esta vila for
arrasada – declara –, e quem me traiu for castigado.
– E depois? – pergunto, apontando para as gentes encolhidas de medo. –
Quem protegerá a tua preciosa cidadela? Quem cozinhará as tuas refeições?
Quem te vestirá, guardará os teus portões, cuidará dos teus cavalos? – Os
olhos dele tremem, evidência de que não ponderara tais questões no
momento de raiva. – Precisas destas pessoas. Desta vila.
– Não preciso – diz – de ninguém.
Ele crê que não precisa de ninguém, mas não me parece que seja
realmente verdade.
– Achas verdadeiramente que esta vila está em conluio com quem ataca
a Sombra? Olha. Nada possuem. – Pois ele próprio já lhes tirara tudo o que
teriam de valor, em particular a autonomia.
– Por favor, meu senhor. – Uma mulher com as faces gretadas prostra-se
por terra. – Juramos que não quebrámos o voto que vos fizemos. Os
espíritos estão cada vez mais esfaimados. A corrupção deles espalha-se.
– Sabes que não estiveram envolvidos no ataque – digo, em tom baixo e
equilibrado. – Só queres culpar alguém.
O Rei do Gelo rosna de frustração. Nesse momento, um idoso adianta-se,
em passos arrastados. Sustém-se numa bengala trémula.
– Meu senhor, se me permitis a ousadia, iremos celebrar a festa do
Solstício de Inverno no fim da semana. Haverá comida e música e… e
dança. – O olhar salta para mim brevemente. – Teríamos a maior honra de
vos receber, a vós e a vossa esposa. Deixai-nos compensar a dor que vos
havemos causado. Começar de novo, por outras palavras.
O Rei do Gelo abre a boca, mas eu passo a mão no braço dele,
impedindo-o de falar.
– Agradecemos o vosso gesto – digo ao homem. – E aceitamos.
17

– E stá Desvio-me
perfeitamente adorável, minha senhora.
do espelho e presenteio Orla com um sorriso apertado,
enquanto ela fecha a porta dos meus aposentos e pousa um cesto de roupa
limpa aos pés da cama.
– Não é nada de mais.
– Que parvoíce. – Gentilmente, faz-me virar de novo para o espelho e
coloca-se ao meu lado. – É mais do que suficiente.
Escolher um vestido não fora a intenção. Se dependesse de mim, enfiaria
calças, o velho casaco de pele, as minhas botas robustas. Mas Orla insistiu
que eu usasse um vestido. A bem-dizer, ameaçou esfolar-me viva se eu
vestisse aqueles trapos, tal como indicou tão eloquentemente.
Lã tingida com a cor da meia-noite anima a minha pele morena. A peça
de manga comprida tem uma forma simples, com um espartilho apertado
por cima do tecido e uma saia larga que me cobre os tornozelos. O corpete é
magnífico, um mapa de fios de prata em espiral. Botas macias espreitam
por debaixo da bainha da saia.
Esta noite, eu e o Rei do Gelo participaremos na festa do Solstício de
Inverno.
Orla demorou três dias a confecionar o vestido, preparando-me para esta
noite. Foram muitas horas a medir, cortar, drapear, coser e, Pelo amor dos
deuses, fique quieta! Ela e duas aias esfregaram-me a pele até reluzir –
tendo o cuidado de não ferir as minhas costas recém-cicatrizadas – e depois
entrançaram-me o cabelo escuro e espesso, envolvendo a trança única numa
fita prateada. Arrancaram-me os pelos rebeldes, escureceram os meus olhos
com kohl, lamentaram as minhas unhas roídas e os meus pés cheios de
bolhas.
Orla tem razão. A mulher no espelho é linda.
Não a reconheço.
Não tem as faces sujas. Não tem sangue seco entranhado nas unhas. Se
não fosse pela cicatriz, confundi-la-ia com Elora.
Tenho as palmas das mãos suadas, as quais limpo na frente do meu
vestido. São os nervos. Cresceram ao longo da noite. Tudo aquilo de dançar
e o aperaltar pertencem ao domínio de Elora, mas ela não está aqui. Se
jogar bem a minha cartada, talvez o rei me deixe visitá-la em breve. Só por
uma noite.
Não acredito que o Rei do Gelo retalie contra Neumovos. Por mais
rígida que seja a sua postura, possui um nível inesperado de honradez.
Preocupa-me mais participarmos os dois nesta festa como marido e mulher,
o que implicará horas na sua companhia, quando eu mal consigo passar um
único dia sem lhe bater ou lançar algum insulto malicioso. Há um limite
para o quanto compreendo este rei; causa-me frustrações sem fim.
– Deixe-me apertá-la mais um pouco. – Orla experimenta dar um puxão
aos cordões do espartilho.
– Já está o mais apertado que podia estar.
– Parvoíce. Mais uns puxões farão toda a diferença. – E, portanto, puxa.
E puxa.
E puxa.
– Quem terá sido o adorador do demónio que concebeu este instrumento
de tortura? – resmungo. Quanto mais ela aperta os laços, mais cor os meus
lábios perdem.
– Contraia o estômago, minha senhora.
– Não consigo mais – respondo de dentes cerrados. O espartilho cinge-
me tanto o tronco que mudou os meus órgãos de lugar.
– Só mais… – Puxão. – Um. – Puxão. – Aperto.
Arquejo, sentindo as costelas cederem e o estômago refugiar-se no meu
esterno.
– Misericórdia, mulher.
– Pronto. – Orla, satisfeita, recua para admirar o seu trabalho. Outro
milagre: agora tenho cintura, mesmo tendo sido necessário criá-la à força. A
bem-dizer, nunca comi tão bem durante tanto tempo. Ganhei peso desde que
cheguei à cidadela.
– Obrigada – murmuro, puxando a minha aia e dando-lhe um abraço. –
Por tudo. Tens sido uma verdadeira amiga desde a minha vinda. – Uma
amiga e, de muitas formas, também uma mãe. – Agradeço tudo o que tens
feito, Orla. – Não lhe digo isto vezes suficientes.
Ela dá-me palmadinhas no ombro antes de se afastar, com um resplendor
na vista.
– Que parvoíce. A senhora merece. – A sua cara redonda brilha de
felicidade. – Aprecie o serão, minha senhora.
Agarrando num casaco de pele do armário, desço até ao enorme hall de
entrada. Acolhe-me um vento seco, mal ponho um pé no exterior. Os saltos
ressoam contra a pedra cinzenta, ao atravessar o pátio em direção às
cavalariças, com o sangue acelerado e o pulso instável por razões que não
sei concretizar.
As cavalariças cheiram a feno, banhadas pela luz dourada das lanternas
montadas nos postes. O Rei do Gelo, atarefado a selar o animal, vira-se
quando nota os meus passos.
O escuro tecido da sua capa abre-se a meio, revelando uma túnica
cinzento-clara por baixo, cor que combina com a da fita que me ata a
cintura. Calças da cor do carvão envolvem as suas compridas pernas, e
aquelas coxas grossas e potentes. O cabelo encaracolado está puxado para
trás, mas um punhado de madeixas conseguiu soltar-se do nó que o prende.
– Tens… bom aspeto. – As palavras deslizam atabalhoadas da minha
boca, um desabafo.
O Rei do Gelo franze o cenho. Talvez esperasse um pontapé nas costelas,
mas recebeu um afago nas orelhas. Olhos frios e nada cooperantes varrem-
me das pontas das botas até aos cachos de cabelo que me enquadram o
rosto. Este desconforto imóvel é uma sensação inédita, porque me sinto
desenquadrada.
– Estás pronta? – pergunta ele.
A pontada de desilusão magoa-me inesperadamente. Não sei o que me
irrita mais: que uma parte insegura, minúscula de mim esperasse outro
elogio como contrapartida, ou que me tivesse convencido de que, esta noite,
as nossas habituais interações intoleráveis se podiam transformar em algo
diferente. Tento fazer um esforço. No mínimo, ele devia corresponder.
O olhar dele estreita-se.
– Se tens algo a dizer, fala.
– Não é importante.
– Mais uma mentira.
Muito bem. Foi ele que pediu.
– Podes elogiar-me, uma vez que seja. Afinal, sou a tua esposa.
Ele fita-me como se lhe tivesse sugerido que se despisse.
– Elogiar?
– Sim, elogiar. Podes dizer: «Estás bonita nesse vestido», ou «Essa cor
condiz com o teu tom de pele». – Uma parte de mim deve ter saudades de
meiguice, mesmo na forma de palavras ocas.
Fáeton bate a pata no chão, enquanto o rei termina de apertar a correia,
endireitando-se com ar constrangido. Parece ter ficado desconfortável, o
que por sua vez me faz sentir desconfortável. Disse algo que o ofendesse?
A minha face cora com a sua falta de resposta.
– Não importa. – Porque é que me dou ao trabalho?
Oferece-me uma ajuda para montar, mas prefiro fazê-lo sozinha. Assim
que acabo de compor as saias em cima da sela, ele coloca-se atrás de mim,
ancas encostadas às minhas, aquelas coxas musculadas comprimindo a
superfície das minhas pernas. Queima-me a pele, onde me toca, por entre a
roupa. É como se estivesse no meio de um fogo.
O rei estala as rédeas, e seguimos a trote, através dos portões que se
fecham com estrondo atrás de nós. Depois surge isto: um céu tingido, a
terra esbranquiçada, as árvores enegrecidas, o mundo.
O casaco de pele proporciona-me um calor adequado, embora o corpo do
Rei do Gelo combata inclusive o frio mais inclemente. Perco a noção do
número de árvores pelas quais passamos, cada qual mais esquelética do que
a anterior. Espanta-me que não aceleremos. Quando mais depressa
chegarmos, mais depressa podemos partir.
– A tua gente celebra o Solstício de Inverno? – pergunta-me.
Viajamos em silêncio há tanto tempo que a voz do rei me sobressalta do
semitorpor. Inclino-me de lado na sela, mas ele agarra-me pela cintura.
Mantém o pesado braço em volta dela.
É quente, portanto não o enxoto.
– Desculpa-me. O que dizias?
– A tua gente, celebram o Solstício de Inverno?
– Sim. – São cinzentos e inóspitos, os dias, mas durante a noite acende-
se a fogueira, nasce o riso, a esperança, a qual é perigosa e esquiva: as
minhas primeiras recordações do Solstício de Inverno envolvem os meus
pais, ainda que sejam turvas e apagadas, e portanto, tenho-lhes grande
estima. – É o dia em que…
– … o véu entre o reino mortal e o imortal adquire a sua mais fina
espessura.
Franzo a cara de espanto.
– Sim. – Ao alto, um céu límpido e salpicado de estrelas cintila pela
abóbada de ramos. – Como é que sabes?
Embora não possa ver a sua expressão, pressinto que esteja perplexo.
– Os nossos mundos podem ser diferentes, mas muitas das nossas
crenças sobrepõem-se. De onde venho, chamamos-lhe Travessia.
– Também é hoje que apelamos ao Vento Oeste – digo – para que traga
abundância às nossas terras durante os próximos meses. – Anunciando a
vinda da primavera.
O rei fica em silêncio. Pois. Ele detesta tudo o que envolva o irmão.
– Espanta-me que as pessoas em Neumovos celebrem o dia – continuo,
procurando desesperadamente expulsar o silêncio. – Considerando que…
bem…
– Que é algo que celebra o meu fim?
– Sim – respondo, com um sorrisinho impertinente –, embora não
pretendesse dizê-lo com tanta delicadeza.
O Rei do Gelo solta um trejeito de troça. O queixo dele roça a minha
cabeça quando se ajeita na sela, aproximando mais as nossas ancas.
– Em tempos, estiveram vivos. Conservam as crenças, as formas de
adoração, mesmo na morte. Quem sou eu para comandar aquilo que em
acreditam?
– Isso é positivamente igualitário da tua parte.
Prosseguimos durante mais algum tempo, até Fáeton emergir do anel
protetor de árvores talhadas com runas que cerca Neumovos. A lua desta
noite é um mero crescente gelado, uma réstia de luz. Ao longe, ouço risos e
música.
Tirando as rédeas ao Rei do Gelo, faço Fáeton parar e deslizo da sela
para o solo, sacudindo a poeira das saias.
O rei fita-me, pestanejando.
– O que fazes?
– Vamos a pé, a partir daqui. Senão, intimidarás o povo, aparecendo
assim em cima de um caminhante-das-trevas assustador, e arruinarás a
celebração antes de sequer começar. – Lanço um olhar ao Fáeton, e o
espírito resfolega como se estivesse melindrado. – Sem ofensa.
O rei reage como se lhe pedisse para cortar o braço.
– Não são meus iguais.
– Comem e dormem e sonham e sofrem, tal como tu.
– Mas eu não posso morrer.
– Por meios mortais, não.
O olhar dele fita-me, acutilante. Terei dito mais do que devia?
– Só esta noite – riposto, já exasperada –, podes fingir que não somos os
vermes que nos consideras ser?
– Não vos considero vermes.
– Então, o que somos para ti?
Ele não responde, desmontando e dando uma pancada à criatura para
perambular por ali. Sempre acreditei que o seu desinteresse fosse uma
teimosia, uma escolha propositada. Agora pergunto-me se me terei
equivocado, se, afinal, não está habituado a que perguntem a sua opinião.
Talvez não saiba comunicar o que pensa.
Uma vez que se recusa a responder, não sou obrigada a ficar parada. Sem
olhar para trás, marcho para a praça ladeada por tochas, necessitando
desesperadamente de uma bebida, e talvez de bolo, mas só se a estrutura
deste espartilho estrangulador me permitir ingerir seja o que for. O Rei do
Gelo segue-me de perto. Não posso crer que as multidões lhe causem
desconforto.
Mas avistam-nos, a atmosfera jovial dissipa-se, como o fumo na
ventania.
Suspeita, prudência, desconfiança – sensações intensas que permeiam a
atmosfera. Há umas boas centenas de pessoas presentes. As mulheres usam
vestidos compridos e botas, os homens, casacos e calças alinhavadas,
formas desbotadas na luz trémula. A miudagem agarra-se às saias das mães.
O Rei do Gelo aproxima-se de mim.
– Diz qualquer coisa – murmura.
Pondero no pedido durante menos de um segundo.
– Não, não me parece que queira dizer. – Dou-lhe uma palmada no braço
sem qualquer empatia. – Boa sorte.
Ele fica hirto como um poste. Oh, que bem me sabe, este gosto da
mesquinha vingança.
– Povo de Neumovos – profere o rei, com ar mais sombrio do que seria
adequado a uma celebração. – De onde venho, o Solstício de Inverno
assinala o dia em que eu e os meus irmãos nos aliámos aos novos deuses
para derrubar os nossos antepassados, aqueles que nos banhavam com fogo.
É uma noite de dissidência, uma noite de traição, uma noite de morte.
Ranjo os dentes, ouvindo um murmúrio espalhar-se pela multidão.
Assustou-os. A infelicidade é que não o fez de propósito; só não percebe o
efeito que causa nas pessoas.
– Isto é uma festa – sibilo, agarrando-lhe o braço – ou um funeral? – Nas
minhas costas, o público remexe-se, nitidamente desconfortável com a
menção da morte. – Deixa-me concluir. E esconde essa coisa – riposto,
apontando para a lança.
Ele mostra-se mais agradecido do que irritado. A arma desaparece, e eu
anuncio:
– Serei breve, pois sei que querem retomar a festa. Em primeiro lugar, eu
e o meu marido – nem sequer gaguejo com o termo – queremos agradecer-
vos o convite para vos acompanharmos nesta noite. É meu desejo que este
dia assinale o início da nova parceria entre nós.
O Rei do Gelo pragueja em surdina. Ignoro-o.
– Comam, bebam, divirtam-se. – Ergo os braços e berro: – Feliz festa do
Solstício de Inverno!
A multidão ecoa:
– Feliz festa do Solstício de Inverno!
A tensão desfaz-se, os tambores começam a soar, e o ambiente torna-se
de júbilo. Os aldeões congregam-se no meio da praça, os corpos
semitransparentes começando a abanar. Alguém solta um viva, e é como se
caísse um relâmpago, libertando correntes de energia pela massa ondulante.
Avisto o fogo cerimonial quase de imediato. A certa altura da noite, as
pessoas irão saltar por cima das chamas, simbolizando o fim da estação fria.
É uma sensação peculiar, ver aqueles que tentaram matar-me a entregar-se à
alegria, à esperança no futuro. Não lhes guardo rancor, apenas compreensão
e uma vaga tristeza no meu íntimo. Bóreas contempla as festividades com
aparente aversão, embora este ar de repulsa seja natural nele, portanto não
posso afirmar que haja diferença.
Estando ele concentrado na dança, encaminho-me para o lado oposto da
praça, onde se reúnem os músicos. Além de tambores, ouve-se um violino
com um som ligeiramente baixo, uma flauta esculpida em madeira e um
outro instrumento de cordas que solta um vibrar irritante quando tocado.
Tento abordar um grupo de espectros, mas viram-me as costas, e o prazer
abate-se, uma secura familiar aperta-me a garganta. Encontro-me aqui, mas
não faço verdadeiramente parte deste mundo. Sou Wren de Edgewood,
mulher mortal e noiva do Vento Norte, e não me enquadro.
Mas onde é que está o vinho?
Deambulo um pouco até encontrar um homem com uma cartola
particularmente adorável, que enche copos com vinho de um barril. Aceito
uma bebida com gratidão e deparo com um pequeno grupo que envolve um
homem mais velho com um arco. As curvas profundas do instrumento e o
seu comprimento hipnotizante evidenciam a perícia da talha.
– É um belo arco – comento. – O senhor caça?
O homem espreita por cima do meu ombro. Procura o Rei do Gelo,
presumo.
– Há muitos anos que não caço – diz, à cautela.
– Permite-me?
O homem hesita. As mãos tremem-lhe com os nervos.
– Claro que sim. – Quando pouso o vinho, ele entrega-me o arco. Quase
não se sente o peso, mas a madeira é forte e maleável, como deve ser.
– Caçais, minha senhora?
– Sim.
Alguém me passa uma flecha e aponta para o alvo pendurado numa
árvore próxima. O olho do alvo baloiça, virado para mim. Nunca houve
alvo cujo centro eu não fosse capaz de atingir; há muitas estações que isso
não acontece. Quero que estas pessoas percebam que estou do lado delas.
Não quero ser temida pela associação com o rei.
– Vamos a apostas? – berro com uma inspiração repentina.
Uma grande exclamação abate-se sobre mim. Os homens agitam os
punhos e batem os pés. As mulheres juntam-se a eles, empurrando os
maridos, irmãos e filhos para ver mais de perto.
– Como vai ser? Virada de costas? Só com uma mão? – Já fiz isto e
muito mais. Depois de perder os meus pais, comecei a praticar na clareira
atrás da nossa cabana. Longas horas de pé, neve até aos joelhos, a corda do
arco criando-me bolhas nos dedos. Cada doloroso fracasso aproximava-me
um pouco mais do tiro perfeito, do dia em que teria comida no estômago.
– Trocar as mãos! – berra uma velha.
– A fazer o pino! – berra outra.
Rio-me. Pela primeira vez em meses, sinto-me livre.
– Peçam, e eu faço!
– Com os olhos fechados.
A minha cabeça vira-se para o lado, ao escutar o comando em surdina, e
a minha pulsação aumenta. Não o encontro em parte alguma. Terá a minha
mente perturbada imaginado a sua voz? A multidão aparta-se nesse instante,
e o Rei do Gelo materializa-se ao meu lado, como se saísse das sombras.
– A não ser – murmura apenas para eu ouvir – que isso esteja além das
tuas capacidades?
O meu sangue ruge, incendiando-se nas veias. Deve ser isto o que sente
um deus, ocorre-me, saber que jamais falhará.
Examino o imortal que é meu marido. Ele perscruta o meu rosto, em
busca de algo que não sei identificar. O vento atira-me o cheiro a pinho.
Aproximo-me mais, pé ante pé, e ele solta uma exclamação de espanto.
– Estás no meu caminho – digo-lhe.
Aperta os lábios. Com um breve aceno de cabeça, o rei desvia-se,
permitindo-me ver o alvo, embora me mantenha ciente de que se colocou
atrás de mim. Concentro-me na tarefa: olhos fechados. Nunca tentei aquele
desafio, mas estou preparada. O meu coração abranda, as pálpebras fecham-
se.
Puxando a flecha para mim, afundo-me na pura sensação. O vento sopra
de oeste, e é suficientemente forte para desviar a minha seta para leste.
Compenso, inclinando-me ligeiramente para a esquerda. Existe o arco,
madeira fresca na minha mão. Existe a flecha, com a ponta de pedra
esculpida e a pena de ganso. Existe o alvo, algures para lá da vista. E eu.
Existo eu.
Exalar e… soltar.
Um clamor rompe o silêncio.
Sorrio, abrindo os olhos. A seta vibra no preciso centro do alvo.
– Então? – gracejo, virando-me para o rei. – Pronuncia-te. – Se ele
tenciona denegrir-me, desato numa discussão.
– Tens boa pontaria – admite, enquanto a multidão se dispersa.
Devolvo o arco ao dono com um agradecimento sentido, depois pego no
vinho.
– E isso espanta-te.
– Em tempos, teria espantado.
– Mas agora, não.
– Não. – A voz fica mais mansa. – Agora, não.
A tensão que emana do corpo do Rei do Gelo é quase palpável. Um
sabor na minha boca. Um bafo no meu rosto. Um compasso de tempo
passa, demorado e ininterrupto, durante o qual me concentro nos casais que
dançam. A certo ponto, Bóreas fala, mas estou demasiado distraída para o
ouvir.
– Desculpa?
– Perguntei se queres um copo de água?
Espreito para o meu copo de vinho – agora vazio. O rei lança-me um
olhar, como se esta conversa confrangedora fosse culpa minha.
– Sim – respondo lentamente, curiosa. – Gostaria de mais uma bebida.
Mas não água: vinho. – Depois acrescento, porque parece ser o mais
correto: – Obrigada.
A sua expressão endurece, mas vai buscar as bebidas, e eu recuo para a
periferia da festa, pretendendo assistir do lado de fora. O baixo e sonoro
pulsar do tambor ecoa nas solas das minhas botas. Empurra e puxa. Um
ritmo que acelera. Os habitantes, com as suas formas fantasmagóricas,
giram e deslocam-se em redor da praça.
Mas uma figura envolta numa capa separa-se das restantes. Algo no
movimento fluido chama-me a atenção. Como a figura está de costas para
mim, não lhe consigo ver o rosto, mas trata-se obviamente de um homem,
pois usa culotes e o tecido da capa encontra-se esticado nos ombros. Tenho
a certeza de que já o vi antes.
Depois o homem vira-se, e o luar banha com palidez o seu rosto,
refletindo o dourado que lhe ilumina os caracóis. Os nossos olhares cruzam-
se à distância na praça.
Ele pisca o olho.
Avanço aos empurrões, afastando cotovelos e desviando-me das crianças
que correm debaixo dos meus pés. Só conheci uma pessoa que tivesse olhos
como folhas verdes e um traço diabólico a condizer.
Quando alcanço finalmente o lugar em que se encontrava Zéfiro, já ele
partiu. Ou foi engolido pela multidão, ou nunca ali esteve.
– Algum problema?
Assusto-me quando o rei surge a meu lado, oferecendo-me o copo de
vinho. Aceito-o, ainda a pensar no que vi. Ou melhor, no que julguei ter
visto.
– Não – respondo rapidamente. – Nada. – Tomo um gole. Um sabor doce
e subtil reveste a minha língua, como o das cerejas. Depois franzo o
sobrolho. Quase não resta líquido no copo. – Provaste o meu vinho?
– Já bebeste muito esta noite – afirma. – Não receias ficar agoniada?
Enrubesço sem demoras.
– Eu bebo o quanto quiser, marido. – Não aguento a noite inteira movida
apenas a água, nem a semana, nem a vida. Aceitei esta vergonhosa
realidade. – Não tens de te preocupar.
O rei observa-me com atenção, como se procurasse a resposta para uma
pergunta que evita formular. E forma-se um buraco no meu estômago, não
sei porquê.
– O que foi que chamaste a isto? Néctar dos deuses?
O copo está a meio caminho da minha boca, mas faço uma pausa.
– Sim – respondo com voz arrastada, julgando que ele não se lembraria.
– Os deuses realmente adoram vinho.
O rei engole a bebida, e vejo a garganta mexer-se. O meu olhar traiçoeiro
permanece naqueles músculos.
– Estás com bom humor – digo. – Planeias matar alguém?
– Podia perguntar-te o mesmo.
Porque é que desconfio que me vasculha a mente, revirando cada pedra,
avaliando cada palavra que trocamos? E porque é que não fico preocupada?
Talvez me sinta tão confiante de ser bem-sucedida nesta tarefa que nem o
considero uma ameaça. Esta forma de pensar preocupa-me. O Rei do Gelo é
a própria definição de ameaça.
Inspecionando-o por cima da beira do copo, pergunto:
– Estou a sentir-me nitidamente menos assassina esta noite. O festival é
assim tão terrível, como julgaste que era?
Hesita. Encara-me, e depois desvia a vista.
– É-me difícil interagir com outras pessoas. Não estou acostumado.
Recordo a ala norte da cidadela, que me está proibida por sua ordem. O
que esconderá? O que teme?
– És mesmo péssimo a fazer conversa de ocasião – afirmo, porque sou
muito prestável.
A sua expressão contrai-se e torna-se desapontamento, e eu engulo uma
onda de culpa inesperada. Pisei no que é obviamente uma área de dor. Eu
podia ser mais gentil com ele, só esta noite.
– Não tem de ser difícil – continuo. – Fazer conversa. Basta fazer
perguntas às pessoas, pô-las a falar de si mesmas. Ajuda a criar um elo entre
as partes.
Ele encara-me.
– E o que devia perguntar?
– Qualquer coisa. E se isso não resultar, comentas o estado do tempo.
Inclina a cabeça para trás para observar a bacia negra e repleta de
estrelas por cima, depois volta a olhar para mim. Ainda nada.
– Podias convidar-me para dançar.
As faces ficam a arder-me. Porque terei dito tal coisa? Tonturas. O
maldito espartilho corta-me o ar para o cérebro.
O rei franze a testa.
– Presumindo que me apeteça dançar.
A resposta dele é uma bofetada na cara. Fico grata. Lembrança de que
não tenho interesse em interagir com o meu marido mais do que o
necessário. Se ele não quer dançar comigo, procurarei divertir-me de outra
forma.
Vários homens agrupam-se no perímetro da praça. Muitos também são
atraentes. Aproximo-me daquele que tem olhos castanhos e bondosos e uma
boca suficientemente macia para declamar poesia. Nem tenho de pedir, a
minha intenção é clara. Pego na mão dele e arrasto-o para o meio da
multidão, e ele agarra-me, conduzindo-me pela cintura, e o meu riso liberta-
se.
Quando os meus pés regressam à terra, levanto as saias. Mais depressa,
mais depressa, mais depressa, os músicos impulsionam a melodia até ao seu
final febril. Tudo à minha volta fica uma mistura de sombras e luzes, os
pulmões debatem-se contra o espartilho. Vamos ao encontro um do outro, o
meu parceiro e eu. Ele ri. Eu rio. Somos um par perfeito.
Na próxima volta, contudo, o homem para.
O Rei do Gelo interpôs-se entre nós.
Olho para ele, ofegante, sem sentir o coração muito firme. A garganta
dele inclina-se, e então aqueles dedos longos e revestidos de couro enrolam-
se à volta dos meus e ele pede:
– Dança comigo.
18

H omem e mulher, deus e mortal, entreolhamo-nos, vinculados pelo dever,


obrigação e engano.
– Marido.
O olhar do Rei do Gelo torna-se pesado. Dá-me um toque na curva das
costas, fazendo-me aproximar um passo, a distância entre nós reduzida a
uma réstia de ar.
– Esposa.
Inspiro, e os meus peitos roçam no dele. Não desvio o olhar, apesar da
súbita vontade de fugir, para longe, muito depressa.
– As pessoas estão a ver – murmuro.
Faz descer a boca até ao meu ouvido. Ar quente e vibrante provoca a
concha da minha orelha, e o meu corpo fica tenso. O vinho, penso,
atordoada. A culpa é do vinho.
– Então, vamos dar-lhes um bom espetáculo.
Afasto a cabeça, examinando-lhe o rosto.
– Quem és tu? – pergunto. – O que fizeste ao Rei do Gelo? – Pois o deus
negro que governa as Terras Mortas jamais chamaria a atenção para a sua
pessoa. Prefere as sombras, a solidão.
– Estou aqui – diz, sustendo o olhar no meu. – Dança – incita-me, e o
meu tolo, teimoso orgulho não é capaz de ignorar o desafio.
As nossas mãos erguem-se e juntam-se, palma contra palma. A mão
esquerda dele alisa-me as costas, depois desce, pousando sobre a curva do
meu traseiro. Assento a mão no músculo inabalável do seu ombro. Ele
conduz-me num arco que atravessa a praça e obriga a multidão a recuar.
Para um homem que se desloca com tanta graciosidade, aqueles pés ligeiros
não constituem surpresa. É como se o próprio vento sustentasse os seus
gestos.
A mãe ensinou-nos, a mim e a Elora, a dançar quando éramos novas,
mas o rei domina a forma perfeita. Um-dois-três, um-dois-três. No seguinte
conjunto de rodopios, começo a sentir-me tonta. Estou à beira de um
penhasco, e a queda entoa uma melodia demasiado apelativa.
– Mais devagar – consigo dizer, ofegante.
– Porquê? – Ele encara-me, e eu faço um esforço por me lembrar do meu
raciocínio. Que loucura é esta, sentir-me tão repelida quanto compelida pelo
homem que me fez mal?
– Porque – digo entredentes, a prolongar propositadamente os passos
para que ele se atrapalhe – estás a pôr-me tonta.
O calcanhar dele esmaga os dedos do meu pé direito.
– Não me consegues acompanhar, é isso?
– Estás a fazer de propósito.
Os seus olhos dançam e dançam.
– Não entendo nada do que estás a dizer.
Ele faz-me dar voltas, e quase caio para o lado, ao prender a bota numa
das fendas da pedra, mas a mão na minha cintura estabiliza-me. Mais uma
volta. Estou sem fôlego, cambaleio. Agarro-me à capa que ele usa, para
manter o equilíbrio. O tecido, quente do seu corpo, enrola-se na minha mão
húmida.
– Que raios, abranda.
– Bem te avisei do excesso de vinho – ele guia-nos pela praça, mas reduz
a velocidade. A multidão abre-se e volta a fechar-se à nossa passagem.
– Já devias saber que dou pouco valor à tua opinião.
Ele refila. Não estou convencido de que seja uma gargalhada, mas sugere
que tem sentido de humor.
– Estou bem ciente. – A mão pousada nas minhas costas desce para a
anca e aí se instala, moldando a curva definida por este maldito espartilho. –
Se tiveres de vomitar – comenta sem rodeios –, por favor não me sujes as
botas.
Duvido que eu sobreviva a essa humilhação.
– Danças bem. – Admiti-lo requer muito de mim.
Contorce a boca. Dou por mim à espera do momento em que um sorriso
se liberta, mas nunca surge.
– E isso espanta-te.
– Sim. – Faz-me rodopiar antes de me puxar de novo para si, e eu cedo
sem resistência, demasiado embrenhada no movimento para perceber que
baixei a guarda.
– No local em que nasci, havia muitas celebrações como esta. A Cidade
dos Deuses, é o nome dessa terra. Os meus irmãos e eu éramos amados,
venerados, adorados. Levávamos uma vida feliz, embora vazia.
A amargura da voz revela uma emoção mais profunda.
– Vazia, porquê?
Ele olha fixamente por cima do meu ombro, mas é como se não visse
absolutamente nada.
– As pessoas gostam de nós pelo que lhes podemos dar – diz ele. – Se eu
ou os meus irmãos não controlássemos a mudança das estações, desejariam
as pessoas ainda a nossa presença?
Fico tão atordoada com esta intuição, que perco o ritmo dos passos.
Demoro um pouco a recuperá-los. Entendo perfeitamente o que ele quis
dizer.
Continuamos a dar voltas à praça, mas os nossos passos estão mais
lentos.
– A nossa família reinava sobre tudo – continua ele –, mas com o passar
do tempo, os nossos pais, os nossos avós, tornaram-se corruptos, e
esmagavam os seres menores debaixo de um domínio tirânico. Surgiu um
deus que desencadeava relâmpagos com a ponta dos dedos, e teve uma
visão. Acreditei que eu e os meus irmãos seríamos acolhidos por este novo
regime. Afinal de contas, ajudáramos o novo deus relâmpago a ocupar o
poder, depois de dez anos de guerra. Em vez disso, fomos banidos.
Proibidos de regressar à nossa terra.
Conheço mal a história sobre o exílio dos Anemoi. Supostamente, cada
um dos irmãos foi remetido para um canto diferente do reino. No entanto, a
preocupação de Zéfiro acerca da infiltração crescente do Vento Norte surge-
me na memória por breves instantes.
– Procuraste derrubar os teus pais… porque eram corruptos? – E,
contudo, o Vento Norte em nada se preocupa com todas as vidas que
arruinou, com o sofrimento que causou, com as Terras Cinzentas destruídas
pelo gelo.
– Porque destruíram a minha terra.
Tal como ele destruiu a minha.
– No entanto, por causa do que fizeste, jamais voltarás a vê-la, por isso,
vale a pena importares-te?
– As encenações dos deuses são complexas. Não entenderias.
– Entendo que deitaste tudo a perder em troca de poder. Agora, nem tens
família nem casa. – Qual é o fascínio de uma vida imortal se os dias estão
vazios?
O rei lança-me um olhar antes de desviar a vista. Talvez não seja capaz
de encarar esta verdade.
– Sem poder – diz em voz baixa –, nada me resta.
O que ganhamos com o poder? Não cuida das nossas enfermidades. Não
nos faz rir. É algo frio, rígido, desprovido de afeto, estéril.
A luz das tochas esbate-se, arrepia-se numa súbita rajada de vento.
– Queria perguntar-te uma coisa – diz ele, hesitante. Faz-me rodar, traz-
me de volta aos seus braços. A pressão daquela mão pousada na minha
coluna vertebral atravessa o tecido que visto.
Baixo a mão do ombro dele, deslocando-a para o coração, que bate forte.
– Pergunta.
– Porque trocaste de lugar com a tua irmã?
Terá esta dúvida ocupado a sua mente desde então?
– Mas isso tem algum interesse? – pergunto, porque é mais fácil do que
dizer: Porque perguntas? – Porque a adoro. Porque ela merece uma vida
melhor. Uma vida livre.
– E tu, não?
Abro a boca, mas fecho-a para ponderar melhor. Se os deuses são
complexos, mais o será o coração feminino. Não entenderia.
– O que eu mereço ou deixo de merecer não interessa. Ela não teria
sobrevivido à tua pessoa. – Disto, tenho a certeza.
– Poucas pessoas conseguem sobreviver-me.
– Eu consegui.
– Sim – responde lentamente, como se cedesse. – Tens saudades dela.
Considerando as presentes circunstâncias, prefiro não falar da família.
Mas a dança continua e começo a sentir o corpo pesado. Respiro menos,
esmagada pelo derrubar das minhas defesas.
– Sim.
– Lamento. – O polegar roça a curva da minha coluna.
Que se tenha desculpado, não faz diferença. As palavras não passam de
pressão e ar, afinal, embora contenham muito peso.
– Não digamos coisas que não sentimos, marido.
– A mentirosa és tu, esposa, e não eu.
Sim, e tenho mentido a mim mesma durante toda a noite. Como se
pudéssemos dançar e conversar e encontrar um meio termo; como se me
esquecesse das circunstâncias, daquele com quem casei.
– Desculpa-me – digo, afastando-me.
Espera-me a solidão à saída da aldeia, na zona das árvores entalhadas.
Acumula-se suor no meu lábio superior; limpo-o com uma mão trémula.
Não sei bem o que me deu, apenas que não me sinto particularmente
combativa esta noite. E quanto ao pedido de desculpas de Bóreas? Pareceu-
me genuíno. Jamais imaginei que se preocupasse com o meu bem-estar.
Dou passos à volta do perímetro, avançando lentamente para que as
tonturas não se agravem. O espartilho aperta-me tanto o abdómen que causa
dor. Tento desapertar os laços, mas bebi demasiado e os dedos só
conseguem emaranhar-se no tecido.
O Rei do Gelo encontra-me, encostada a um poste ao lado da fogueira
cerimonial.
– Aproxima-se uma tempestade – diz. – Passaremos aqui a noite.
Conduz-me pelo trilho até uma casa solitária empoleirada numa colina,
com a porta pintada de azul-pálido, como um ovo de tordo. É pequeno, o
interior, mas limpo, com uma fogueira a crepitar na grelha e uma divisória a
separar a zona de banho do resto do espaço. Alguém deve ter cedido a casa
para pernoitarmos. Por isso, só há uma cama.
É tudo o que vejo. A estrutura de madeira comporta um pequeníssimo
colchão, tapado com uma manta de retalhos coloridos.
O Rei do Gelo prepara-se para transpor a ombreira, quando lhe agarro no
braço.
– Espera. – A ordem sai num silvo. – Não podemos ficar noutro lado?
– Porquê?
Se lhe explico que se deve ahaver uma única cama, rir-se-á de mim.
Afinal, somos casados. Embora o casamento nunca tenha sido consumado.
– Tem um cheiro desagradável.
Observa-me com ar perplexo. Não creio que ele entenda facilmente, uma
vez que não passámos muito tempo juntos além das refeições. Embora
comece a percebê-lo mais facilmente, semana após semana.
– Estás bem?
Já que pergunta, sinto-me quase a perder os sentidos.
– Acho que vou desmaiar.
Os olhos dele incendeiam-se de alarme.
– O meu espartilho… está a estrangular-me. Tens de o desapertar. –
Agarro-me à ombreira, entranhando os dedos na superfície áspera. – Nas
costas. Depressa – arquejo. Sinto os lábios dormentes da falta de ar, e já
vejo sombras negras.
– Malditos laços – resmunga nas minhas costas. Puxa-os sem resultado.
– Corta-o. – Curvo-me para a frente. – Ao espartilho – riposto quando os
dedos dele param. – Corta-o!
Agarra os meus braços, o Rei do Gelo, e faz-me rodar, encostando-me
contra a parede exterior da cabana. O punhal dele brilha. Faz um corte
profundo na parte da frente, seccionando as nervuras do espartilho, e então
a minha visão escurece.
– Esposa? Wren!
Descerro as pálpebras com grande esforço. O rosto de Bóreas paira a
poucos centímetros do meu, vincos de preocupação em redor da boca.
Encontro-me semideitada no seu colo, sustentada nos seus braços.
– Desmaiei?
– Sim.
Só faltava esta. Enxotando as mãos dele, ponho-me atabalhoadamente de
pé. Pelo menos, a prensa que me apertava o corpo desapareceu.
Ele mostra-me os resquícios do espartilho e pergunta:
– O que é isto?
Faço um trejeito irónico.
– Um instrumento de tortura. – Pego no espartilho e lanço-o para a neve
com satisfação. Que apodreça na terra para toda a eternidade. – Continuo a
achar que devíamos regressar à cidadela. – Porque o problema agora é a
cama de solteiro no interior, acocorada como um sapo feio.
– Até os deuses precisam de dormir. – E com esta afirmação, enfia-me
dentro de casa e fecha a porta.
O som do ferrolho a correr faz-me disparar as pulsações. Uma única
cama para duas pessoas que não se podem ver. Os deuses devem odiar-me.
Avanço para o leito com mais confiança que a que sinto, atiro uma
almofada para a cara dele, que o rei agarra.
– Podes dormir no chão.
Cruzo os braços, para vincar a minha posição e não julgar que faço bluff.
O Rei do Gelo baixa a almofada, perscrutando-me com ar aparentemente
divertido. Não pode ser. Duvido que a boca dele seja capaz de sorrir.
– Há espaço suficiente para dois.
Não há. A cama é estreita como tudo.
– Já disse – repito lentamente porque tenho a língua inchada como uma
melancia – que podes dormir no chão.
– Estamos casados, esposa. Não devia ser um problema partilharmos a
cama. É a norma.
– Não me interessa. – Não me sinto preparada, particularmente com o
conflito entre mente e corpo. – A lareira vai manter-te quente. – Seja como
for, não se pode dizer que corra risco de hipotermia. O filho da mãe não
pode morrer.
A sua falta de resposta é de suspeitar, mas nem considero a possibilidade
quando começo a desmanchar a cama. Ouço o ruído de tecido a mexer, atrás
de mim. Um baque abafado, como roupa que cai no chão. Fico imóvel. Ele
não se atreveria…
Viro-me, devagar.
– O que estás a fazer? – guincho.
Bóreas interrompe o ato de se despir. Capa e túnica já se amontam no
soalho.
A luz proveniente da lareira doura aquele tronco. Pele branca e elegante
agarra-se a um corpo de músculos salientes e ondulantes. Tem ombros
largos, uma cintura sólida. Os meus olhos descem. Uma mancha de pelos
pretos salpica o intervalo entre os mamilos, segue até ao umbigo e
desaparece no interior da cintura solta das calças.
Já vi um bom conjunto de peitos e abdómens. Já fui para a cama com
mais homens do que me recordo, embora não recentemente. O Rei do Gelo
é uma estirpe muito própria de virilidade masculina.
Anuncia:
– Preparo-me para me deitar. – Como se fosse óbvio.
Lá consigo arrancar o olhar da imensidão daquele peito. É
ofensivamente perfeito.
– Podes preparar-te para te deitar sem despir a roupa.
– Não durmo vestido.
Teria eu necessidade de saber que o Rei do Gelo se deita tal como veio
ao mundo?
Virando-lhe as costas, continuo a afagar as almofadas. Dou palmadas no
tecido com agressividade.
– Vais dormir no chão, na mesma.
– Portanto, não tens problemas em me devorar com o olhar, mas não
posso partilhar a cama contigo?
Fico com a cara a arder. A minha boca esquece-se de funcionar
devidamente.
– Não estava a devorar-te, apenas…
– A devorar – conclui, com ar muito contente. Não me lembro se alguma
vez o vi assim contente.
Negarei a minha reação até morrer.
– Não dormirei no chão – continua. – Se queres, podes dormir tu. És
jovem. Tenho milhares de anos. Doem-me as costas.
– Doem-te, uma treta! – exclamo, virando-me. Se lhe doem as costas,
então sou um caracol. Mas reparo na curvatura ligeira dos lábios. – Isso foi
uma piada?
Ele encara-me fixamente. Aguardo que o sorriso desapareça, mas
mantém-se. Está completamente desenquadrado, este pormenor tão suave
num homem tão severo.
– Partilharemos a cama. – Neste ponto, não cede. Vê-se nos braços
cruzados, nas pernas afastadas, no inamovível maxilar retesado. A postura
de um homem que vinca a sua vontade.
– Algum decoro, por favor – peço, com desespero crescente. – Não
queres que a tua esposa se sinta desconfortável, pois não? Porque está
assustada e… e é tímida e…
Bóreas funga de desdém.
– Referes-te a outras pessoas, certamente, pois não me parece que a
minha esposa tenha medo de nada.
As palavras dele fazem-me hesitar. Lisonjeio ou verdade? Digo a mim
mesma que não me deixarei persuadir, mas a ideia de este imortal me julgar
destemida é tentadora.
– Está bem – digo. – Mas… não tires as calças.
Bóreas anui, concordando. Mas quando se vira para atiçar o fogo, reparo
nas suas costas desnudas. O meu coração para.
A pálida lisura é interrompida por marcas de profundas cicatrizes,
vergões que escorrem e se espalham pela coluna abaixo como cera de uma
vela. É uma pele antiga, rugosa.
Como se adivinhasse o que vejo, o Rei do Gelo fica tenso.
Virando-me, afofo de novo as almofadas para manter as mãos ocupadas.
Mas sinto a sua atenção em mim, no intervalo entre as minhas omoplatas,
na curva do meu pescoço, mais abaixo. A saliva inunda-me a boca. Sinto-
me agoniada.
Com tantas capacidades avançadas de cura, julgava que os deuses não
sofriam nem traziam cicatrizes, mas equivoquei-me. O destroço daquelas
costas é prova suficiente.
Alguém o feriu. Não sei por que motivo isto me incomoda.
As solas das botas ecoam nas tábuas do soalho. Calor nas minhas costas,
e depois ele passa por mim, desaparecendo atrás da divisória da casa de
banho.
Enquanto o Rei do Gelo se lava, descalço os sapatos e enfio-me na cama,
totalmente vestida. Tresando a vinho e suor. Talvez o fedor o esmoreça.
Decorrido algum tempo, ele contorna a divisória, tronco desnudo,
vestido apenas com as calças. Madeixas pretas e húmidas enrolam-se na
nuca. Faz uma pausa, e deita-se no outro lado da cama. O colchão verga-se
ao seu peso, e fico tensa.
– Descansa, esposa, que não te toco.
O tom de voz sugere que não tem vontade de me tocar, o que não me
devia perturbar, mas as palavras magoam-me.
– Chamo-me Wren.
– Sei bem.
– Porque me tratas por «esposa», então?
Ele vira-se de lado para podermos ficar frente a frente.
– Podia perguntar-te o mesmo.
– Alguma vez te tratei por «esposa»?
– Sabes do que falo.
Apenas o tratei pelo nome uma vez, e foram vezes a mais.
Enquanto for o Vento Norte, será o meu inimigo.
– Não vais retirar as luvas? – pergunto.
Fá-lo, depois de uma pequena hesitação. Não sei o que esperava. As
mãos parecem perfeitamente normais. Pousa as luvas sobre a mesinha de
cabeceira e aproxima-se um centímetro de mim. Eu recuo um centímetro.
Ele repete, e mais uma vez, até que fico empoleirada na borda flácida do
colchão, agarrando-me à estrutura de madeira para não cair. Estando tão
próximo de mim, a lareira ficou esquecida. A sua pele emana calor.
– Podias ceder-me mais espaço – resmungo. – Estou a cair da cama.
– Quem sabe, se não agisses como se eu tivesse uma doença incurável,
não estarias nesse desconforto. – Mas afasta-se, concedendo-me o colchão
como território cedido em batalha.
Aperto a manta à volta do corpo, cingindo a minha pobre defesa para que
não se infiltre nenhum ar.
– Mantém-te do teu lado da cama – murmuro – e eu mantenho-me no
meu. Toca-me e espeto-te uma faca.
Ele observa-me com um olhar fendido.
– E se fores tu a tocar-me?
Um calor lento sobe-me pelo peito e desce pelas costas.
– Não toco. – Como se fosse acontecer.
O Rei do Gelo vê-me agarrar a manta, olhar azul muito acutilante.
– Como queiras… Wren.
19

P elaEstou
primeira vez no meu passado recente, estou quente quando acordo.
tão desacostumada desta sensação, que nem abro
imediatamente os olhos. Calor genuíno, aquela sensação de pele irrigada e
articulações soltas, há anos que não o sinto. Pairando neste estado de
semitorpor, fico vagamente ciente de um som remoto, um pulsar baixo,
constante. Tenho um peso à cintura, uma pressão acalorada. Com o aroma
do cedro.
Cedro. Não pode ser, mas… olho para baixo, pálpebras mal abertas
contra o sol matinal que entra pela janela. O objeto que me comprime a
cintura é um braço masculino, cingindo-me, dedos enfiados no espaço entre
o meu corpo e o colchão.
O Rei do Gelo tem o sono ferrado. Não se manteve no seu lado da cama.
Rolou para o meu lado, invadiu o meu espaço pessoal, o peito formando um
muro de calor nas minhas costas.
Ranjo os dentes quando ele se remexe contra mim.
– Bóreas.
O seu bafo levanta-me o cabelo. A sensação desperta-me arrepios na
pele.
Passou-se muito tempo desde que fui íntima de um homem. Rir-me-ia
com a ironia se não estivesse com falta de ar da nossa posição interligada, o
que me desperta de imediato, recordando-me com quem partilho o leito.
– Bóreas.
Nem se mexe. Tento livrar-me daquele aperto, mas o braço comprime-se
ainda mais contra o meu estômago. A minha inquietude apenas resultou na
maior aproximação dos nossos corpos.
– Bóreas! – riposto, com o rosto enrubescido.
Uma coisa comprida e dura encosta-se ao meu traseiro e é quando
arregalo os olhos. Contrai-me os músculos uma energia tensa e vibrante.
Ficam tensos ao ponto de estalar, e de seguida descontraem-se em conjunto.
O meu pobre corpo, sedento de sexo, não quer saber em que braços me
encontro. Tudo o que conhece é a solidez atrás de mim, a respiração sobre o
meu pescoço, a zona onde Bóreas enterrou o rosto no meu cabelo. E então –
oh, deuses – as suas ancas rebolam lentamente, despertando uma onda de
calor pelo meu tronco, e eu quase pulo até ao teto. Com um grito dramático,
liberto-me daquele abraço, escorregando da cama para o chão.
O rei dá a volta à cama, lança na mão. Tem o cabelo desgrenhado e um
ar estremunhado, resultado de uma possível ação noturna, embora nenhuma
tenha, efetivamente, existido.
– O que aconteceu? – fala com um tom roufenho, baixo.
Viro a cabeça para o outro lado, soltando um estranho suspiro sem ar. As
calças dele estão tão descaídas que o aspeto é muito indecente.
– Nada. – A beleza do Rei do Gelo é estonteante, é certo, mas ele tem a
personalidade de uma pústula. – Disse que ficasses no teu lado da cama.
Noto a sua incerteza, o que, por sua vez, me faz sentir indecisa.
– Disseste que tinhas frio.
– Não disse nada! – exclamo, endireitando-me num pulo. Porque se
fosse verdade, lembrar-me-ia.
Encolhe os ombros, indiferente à minha reação dramática.
– Porque havia de mentir? – Há algo no seu olhar que se aguça ao pousar
em mim, e o meu coração pula em resposta. – Da primeira vez que me
pediste para me aproximar, recordei-te do limite que tinhas imposto.
Se houve uma primeira vez, foi porque pedi mais vezes. Não quero
saber. Preciso de saber.
– E o que respondi?
– Que ignorasse isso.
Estaria a delirar, sem dúvida. Com hipotermia limítrofe.
– Devias ter respeitado o meu pedido inicial.
– És a minha esposa. Se tinhas frio, era meu dever dar-te conforto.
Aquilo é… inesperadamente querido da parte dele. Oxalá pudesse culpar
o vinho pelos meus pensamentos contraditórios, mas acordei sem
enxaqueca. A minha língua, no entanto, tem aquela textura de papel
inconfundível. Precisarei de beber, mal regressemos à cidadela.
– Então… – Fecho a boca e engulo. – Obrigado.
Se não estou equivocada, a boca dele forma uma delicada curva
ascendente.
Basta. Passando ao lado dele a correr, agarro no casaco e visto-o. Dá-me
maior sensação de segurança.
– Vou dar um passeio.
O sorriso desvanece-se.
– Espera. – Contorna a cama quando já estou a chegar à porta.
– Se me vais pedir para ficar contigo – respondo, agarrando a maçaneta
com energia furiosa –, não te incomodes.
– Da última vez que andaste por Neumovos, quase te mataram à
pancada.
A voz dele, normalmente suave como o vidro, ondula com uma corrente
subtil de fúria. Encara-me com tanta intensidade que o meu olhar desce para
o seu peito à procura de um alívio. Aquele peito injustamente cinzelado.
– Não se atreveriam desta vez – respondo calmamente. – Estás aqui.
Com uma concentração demasiado acutilante para o meu gosto, ele
informa:
– Partimos dentro de uma hora.
– Encontramo-nos na praça. – Espero que aquilo que procuro não
demore a encontrar. – E veste-te – gracejo.
Não me sinto à vontade até a porta se fechar atrás de mim,
interrompendo-lhe o olhar.

Se eu fosse o Vento Oeste, onde me esconderia?


O bosque, é o que me ocorre. Sair da vila implica abandonar o círculo
protetor das árvores com runas entalhadas, mas é plena manhã e os
caminhantes-das-trevas raramente se passeiam à luz do dia. Escolho um
trilho ao acaso e acompanho a curva até as casas de colmo desaparecerem
de vista. Não me posso demorar.
As árvores parecem ossos quebradiços e enegrecidos. O céu límpido e
azul forma um contraste cruel. Quando vejo que o trilho conduz a um beco
sem saída, volto para trás e escolho outro caminho assinalado. Tendo
percorrido mais de um quilómetro, entro numa clareira salpicada de neve, e
neve amontoada na base das árvores.
– Wren, bonita como sempre.
A minha pulsação dispara, mas obrigo-me a dar meia volta lentamente
como se não me assustasse com a presença súbita do Vento Oeste.
– Zéfiro.
– O próprio. – Os dentes pontiagudos brilham como um demónio, e os
seus olhos verdes reluzem do jogo que parece sempre em curso.
– Procurei por si – digo-lhe.
– Eu sei – suspira dramaticamente e encosta um ombro magro a uma
árvore. Enverga os trajes habituais: uma túnica pesada de lã, botas de couro
castanho e culotes. Zéfiro e Bóreas são completos opostos. O emaranhado
de caracóis misturado com folhas e trepadeiras sugere que Zéfiro faz os
impossíveis por impressionar, o carisma praticamente emana da sua pele,
enquanto Bóreas se contém com uma precisão implacável. – A Jeline, a
dona do boticário, disse-me que passou por lá.
– Oh? – É interessante que ele não me tenha procurado. – E contou que
quase me mataram à pancada?
O sorriso desvanece-se.
– Contou. – Nunca o vi tão sério. – Lamento o que aconteceu, mas não
fiquei totalmente espantado. O povo atacou-a por causa da sua relação com
o Bóreas. Porque ele os condenou a uma eternidade de servidão, e eles estão
zangados, com razão. Ele devia saber que não podia enviá-la à vila.
Mas não me enviou – aliás, proibiu-o. Eu é que decidi vir, apesar dos
avisos de Orla.
– Foi o Bóreas quem me salvou.
– Era inocente – continua ele. – Uma vítima.
Não sei bem o que pensar. Eu e o Zéfiro não somos amigos, mas pensava
que éramos, no mínimo, amistosos. Há algo neste encontro que me põe os
cabelos em pé. Ele é um deus: tece fios e monta armadilhas. Acima de tudo,
procura o poder. Nunca me devo esquecer disso.
– Onde tem andado? – pergunto.
– Oh, aqui e acolá. Eu curo-me depressa. De qualquer forma, não é a
primeira vez que o Bóreas ameaça matar-me. – Sente-se claramente
divertido com a noção de fratricídio.
– Contei-lhe das suas preocupações – digo –, mas não foi recetivo. – O
que disse ele? Se o meu poder lhe corrompe o reino, devia pensar em
reforçar as suas defesas.
– O que não me espanta. Seja como for, valeu a pena tentar. – Encolhe os
ombros. – Mas assumo que não tenha vindo para ouvir as minhas histórias
de infortúnio fraterno. – Dizendo isso, acerca-se um pouco, e o cheiro da
terra húmida sobrepõe-se à neve e ao frio. Retira algo do bolso e exibe-o na
palma da mão.
Engulo em seco, fitando o frasco de líquido transparente: a resposta à
minha liberdade. Sempre me pareceu um sonho, poder regressar a casa, mas
agora sei que o sonho é tangível. Tem forma e substância.
– Obteve-o.
Os seus dedos roçam os meus ao pousar o tónico na minha mão.
– Não é bem o que queria, mas é o melhor que consigo dar. É um tónico
à base de raiz de valeriana. Não é suficientemente potente para o fazer
adormecer.
Ficamos ambos imóveis ao mesmo tempo.
O.
Não contei a Zéfiro o verdadeiro motivo de querer o tónico. Desculpei-
me com a minha dificuldade em adormecer. Jamais referi o nome de
Bóreas.
Um temor aguça-se dentro de mim. Ele sabe. O que irei fazer?
– Wren – Zéfiro explica num tom suave. – Não contarei a ninguém. Juro.
O que pretende fazer é admirável. Pense em toda a gente que irá salvar.
Aquela sua apatia perante a ideia da morte do irmão não me devia
incomodar, mas incomoda-me. E não faz sentido, considerando que sou eu
quem quer acabar com a vida do Rei do Gelo.
Enrolo os dedos no frasco.
– Se não o põe a dormir, como é…
– Se quiser garantir que ele adormece verdadeiramente, vai precisar de
flores da papoila. Infelizmente, desapareceu o vendedor a quem costumo
comprá-las. Consigo arranjar-lhe as flores, mas não sozinho. – Lança-me
um olhar expetante.
– O que terei de fazer?
– Há uma caverna onde a luz do sol e a da lua não penetram. Nessa
caverna cresce o Jardim do Sono, cuidado por… bem, tecnicamente é um
parente distante meu, mas para si, representa o Sono. Tem poderes
excecionalmente fortes. Irei precisar de ajuda para colher as flores, na
eventualidade de que eu sucumba à influência do Sono.
– E eu não estaria também em risco? – Presumo que este ser
poderosíssimo seja um deus.
– Normalmente, sim, mas encontra-se sob a proteção do meu irmão e os
poderes do Sono não a afetam. Poderá ter de combater alguma sonolência,
mas não a suficiente para a derrubar. Os poderes dele são mais intensos
noutros imortais. Uma forma de defesa, por assim dizer, para que não nos
possamos atacar entre nós com toda a nossa força.
Zéfiro toma uma das minhas mãos nas suas. Os dedos dele são muito
mais finos do que os do irmão, elegantes e refinados.
– Wren – diz o meu nome, acompanhado de um sorriso suave, quase
dorido. – Jamais lhe pediria tal coisa, se não fosse a única opção.
– Entendo. – É a decisão certa. Tem de ser.
– Não se sinta mal – diz ele, como se pressentisse a minha angústia. – O
meu irmão teve bastantes oportunidades para banir o inverno, mas só o
domina com mais força. Nunca cederá. Enquanto o inverno persistir, o
nosso mundo vai definhar.
É verdade. Só o desaparecimento do Vento Norte trará a vida.
– Wren? – A voz de Bóreas chama-me de um lugar próximo,
transportada pelo vento.
Zéfiro aperta-me a mão com força antes que eu me possa afastar.
– Estou impedido de entrar na fortaleza. Consegue arranjar maneira de se
encontrar comigo, quilómetro e meio para norte, perto de Mnemenos?
O Rio do Oblívio. Lembro-me vagamente do local.
– Quando?
– Amanhã. Não, espere. – Inclina a cabeça. – De hoje a três dias. Ao
nascer do sol. Espero por si.
Bóreas volta a chamar-me.
– Não deixe que ele a intimide – sussurra Zéfiro com urgência. –
Lembre-se de quem é. Lembre-se do que ele lhe tirou… e ao mundo. – Dito
isto, solta-me, mas o fantasma do seu toque permanece muito depois da sua
ida.
20

O frioVento,
é tão intenso que se entranha na pele.
há pouco, mas a geada cristaliza-se no canto dos meus olhos,
revestindo-me as narinas de um branco que estala a cada expiração.
Enrolada nas peles, encontro-me bem protegida, mas os pulmões e o ventre
enrijecem do frio, absorvendo este gelo que é eterno.
Zéfiro ainda não apareceu. Escapei-me porta fora antes que Orla me
acordasse para o pequeno-almoço. O meu querido marido terá de comer
sozinho, embora ignore se irá comparecer. Passaram-se três dias desde que
regressámos de Neumovos e não voltei a vê-lo. Orla diz que ele tem andado
indisposto, e que, por tal, se mantém nos aposentos.
Esta afirmação não bate certo. O rei não pode morrer, e não pode
adoecer. Porquê estas mentiras? O que me esconderá ele?
Um ramo parte-se à minha direita. Quando Zéfiro emerge da mata um
segundo depois, sinto os ombros relaxarem. Terá feito de propósito, para me
alertar da sua presença, pois é normalmente silencioso.
Sorri, radiante ao ver-me, dentes brancos sobre pele dourada. O casaco
cola-se à sua figura esquálida.
– Wren. Tão bonita que está, hoje.
Sinto-me corar com o elogio.
– Perguntava-me se viria.
– Duvidou de mim? – Faz beicinho, mas os olhos verdes cintilam. – Mas
havia de tratar mal a minha cunhada? Venha. Não temos tempo a perder.
– A respeito disso… – Puxo-lhe a manga para lhe chamar a atenção. –
Não vim sozinha.
– Desculpe?
Thyamine surge na pequena clareira. A transparência sinistra da sua
forma permite-lhe esconder-se sem dificuldade naquele espaço. Traz óculos
redondos e desalinhados sobre o nariz atrevido.
Algo endurece no olhar de Zéfiro, e ele encara-me com o sobrolho
arqueado.
– Há algum motivo para ter trazido companhia?
– Minha senhora? – Thyamine aproxima-se de mim, ofegante de tanto
caminhar. Deparando com Zéfiro, o nariz enruga-se de concentração, como
se tentasse identificar as suas feições. É inútil. Momentos depois de sair da
cidadela, perguntou-me como me chamava. A pobre mulher não tem
remédio. – Quem é o senhor?
– Thyamine, este é o Zéfiro. – Não há necessidade de informá-la de que
se trata do irmão do Vento Norte, pois foi tecnicamente banido das Terras
Mortas. E jamais se recordaria de tal pormenor.
– Encontrou-me quando eu tentava sair – murmuro a Zéfiro. – Não tive
grande escolha. Ou a convidava ou arriscava que os guardas me vissem.
– Isto não vai ser um problema, pois não? – pergunta ele. – Não
podemos ter distrações assim que chegarmos à caverna.
– Ela prometeu que cumpriria as minhas ordens. Certo, Thyamine?
– Sim, minha senhora. – Novo relance a Zéfiro. – Pode repetir as suas
ordens?
O Vento Oeste mostra-se contrariado com esta companhia adicional, mas
encolhe os ombros e indica-nos que o sigamos.
– Como conseguiu sair da cidadela sem que ninguém reparasse? –
pergunta-me, curioso.
– O muro exterior tem uma abertura no terreno de treino – indico,
abrindo caminho por entre as raízes das árvores cobertas de lodo. O ar
parece mais húmido, hoje, por algum motivo, como se fizesse mais calor.
Ele lança-me um sorriso, exibindo os seus caninos afilados.
– A minha cunhada é esperta.
A superfície vítrea de Mnemenos manifesta-se de repente. Quanto mais
andamos, seguindo o rio até à foz, mais se esticam as árvores para o céu, e
mais diminui a luz, fazendo-nos entrar na obscuridade.
– Tem de saber isto, Wren, antes de chegarmos à caverna do Sono. – Dá
um pulo leve e gracioso por cima de uma árvore caída, pousando sem ruído,
mas eu vejo-me obrigada a trepar. Thyamine atravessa-o sem dificuldade,
com uma expressão de curiosidade infantil enquanto observa a paisagem.
Zéfiro vira-se então para mim, com um rosto pesaroso.
– Se adormecer no reino dos vivos, faz apenas uma rápida visita ao
domínio do Sono. Contudo, se sucumbir ao poder do Sono nas Terras
Mortas, é bem possível que nunca mais volte a acordar…
– Tinha-me dito que o poder do deus pouco me afetaria – lembro-lhe,
uma inquietação nascendo-me no estômago.
– Assim será, mas há que estar alerta.
Que bonito da parte dele, informar-me desse pormenor quando estamos a
meio caminho.
– Porque não me contou, antes? – riposto.
Pelo menos parece arrependido, embora não sirva como desculpa.
– Teria concordado em vir, caso soubesse?
Ponderando no assunto, concluo que sim, possivelmente teria
concordado. Por estar desesperada. Por não haver outra opção. Agora,
sinto-me desviada deste propósito.
– Desculpe-me, o que estamos a fazer aqui?
Viro-me para Thyamine, que me observa como estivesse dentro de um
nevoeiro cerrado. Parece estar muito confusa, e não a censuro. Começo a
perguntar-me se esta excursão não será um erro.
Talvez pressentindo a minha inquietação, Zéfiro aborda-me, sacudindo a
neve do meu casaco, cheio de sorrisos e garantias.
– O plano é o seguinte. Convido-a a entrar na humilde morada do meu
primo. Enquanto eu o distraio, você procura o jardim e colhe as flores de
papoila. Basta uma mão-cheia. Não demorará mais de uma hora.
Embora me apeteça desistir, talvez não tenha outra hipótese. Preciso do
tónico.
– Como é que encontrarei o jardim? E como conseguirei orientar-me?
Disse-me que não era iluminado.
– Tome. – Entrega-me uma esfera de vidro do tamanho da minha mão.
Emite uma luz pálida e rosada, e aquece-me a pele através da luva como um
sol pequenino.
Thyamine debruça-se, um lento piscar de olhos da sua vista ampliada.
– O que é isso?
– Isto – diz Zéfiro – chama-se luz-da-rosa. – Toca no vidro com a unha,
e este reluz com um brilho incandescente. – No meu reino, as rosas são
colhidas pelas suas pétalas. Extrai-se o líquido e transforma-se numa
substância de pura luz. – Parece orgulhoso deste feito. É realmente
maravilhoso. – Bem, o jardim situa-se no meio da caverna, que encontrará
seguindo o rio. – Perscruta o meu olhar. – Combinado?
O que será a vida sem algum risco? Anuo, com o queixo esticado.
Thyamine diz:
– Vamos fazer uma viagem, minha senhora?
– Vamos. – Dou uma palmada reconfortante no braço da coitada. – Mas
tens de ficar calada todo o tempo, como se dormisses. És capaz de fazer
isso?
Ela acena com a cabeça com entusiasmo.
– Sim, sou capaz. Gosto de dormir, embora nunca sonhe. Ou nunca me
lembre dos sonhos. – O rosto dela enruga-se numa expressão de extrema
perplexidade.
Zéfiro murmura um comentário sobre demência antes de avançar.
Percorremos outro quilómetro, e Mnemenos divide-se. Um braço segue em
frente, enquanto o outro faz uma curva para leste. Thyamine solta uma
exclamação, e eu também me sinto incrédula, ao deparar com a súbita
visão.
Dois colossais arcos, com o triplo da altura das árvores em redor,
transpõem cada um dos braços do rio, quais portões separados. Não consigo
identificar o material em que foram esculpidos. Um deles brilha com um
fulgor branco. O outro, igualmente descorado, carece de brilho, como se
estivesse coberto de pó.
– O que é aquilo? – Aproximo-me da água com curiosidade, tendo
cuidado de manter uma saudável distância da margem traiçoeira.
– Os portões de marfim e de chifre – responde Zéfiro. – É por onde os
sonhos atravessam e são transportados por Mnemenos para o reino dos
mortais.
Aponta para o braço de leste, sobre o qual se curva o arco liso e lustroso,
com aspeto recém-polido.
– Os verdadeiros sonhos passam por baixo do portão de chifre. Os falsos
sonhos, destinados a enganar – ele aponta para o gémeo desbotado –,
passam sob o portão de marfim.
– A minha senhora sonha?
Sorrio com a pergunta de Thyamine, embora a alegria não suba aos meus
olhos.
– Às vezes – respondo.
– Com o quê?
Sonho com o que Elora sempre sonhou, embora nunca tenha
mencionado o meu íntimo desejo de encontrar amor e segurança, um lar
com um homem. Claro que não preciso dessas coisas, penso, mas seria
agradável tê-las.
Thyamine espera uma resposta. Só consigo dizer:
– Não interessa.
Tendo passado os portões de marfim e chifre, Zéfiro não demora a
levantar a mão, sinal para pararmos.
Além da curva, avisto a caverna, cuja entrada é atravessada pelo rio.
Incorpora uma estrutura muito maior, esculpida no próprio penhasco. Um
edifício maciço não muito diferente da cidadela do Rei do Gelo. Torres lisas
e colunatas suspensas.
– Disse que o Sono vivia numa caverna – comento com Zéfiro,
desconfiada.
– Tecnicamente, é uma caverna. – Solta uma exalação. – Eu, por
exemplo, nunca entenderei como é que o Sono e o irmão dele, o Exício, não
enlouqueceram à conta dela. – Perante o meu olhar interrogativo, elabora: –
À conta da escuridão.
De facto, um véu envolve a caverna, ocultando-a praticamente toda..
– Daqui em diante – diz ele –, não podemos fazer nenhum som. O Sono
não deve sentir a sua presença. – Fixa Thyamine com um olhar brilhante e
esverdeado. – Wren, venha comigo. A sua criada terá de ficar para trás.
Mantenha a luz-da-rosa apagada até eu o ter distraído. – Toca no globo, e a
luz desvanece-se. – Uma vez lá dentro, siga o rio até chegar ao jardim.
Quantas vezes terá o Zéfiro visitado esta caverna? As vezes suficientes,
para saber o que me espera. As vezes suficientes para me deixar
preocupada. As vezes suficientes para também me deixar tranquila.
Aceno concordando, e sigo-o através das rochas lisas e elevadas que se
estendem até à margem gelada de Mnemenos. Ele salta graciosamente por
entre as pedras escorregadias e cobertas de gelo, aterrando nas pontas dos
pés, antes de pular para mais longe.
– Espere, minha senhora. – Thyamine não é particularmente forte, por
isso a ferocidade do seu aperto no meu braço espanta-me. A respiração dela
enfraquece, olhando em frente, atenta a Zéfiro, cuja forma se esbate
enquanto abre caminho pela escuridão que se adensa em volta da caverna. –
Algo me diz que isto é uma má ideia.
– Eu sei bem que é uma má ideia. – Tento libertar-me dos dedos, mas
contraem-se até me causar dor.
– Há mais uma coisa. Algo… – Interrompe-se com um trejeito de
frustração. Tem os olhos brilhantes. – Se ao menos me conseguisse
recordar.
Dou uma palmadinha na mão dela e, por milagre, os dedos soltam-me o
braço.
– Está tudo bem. O Zéfiro avisou-me dos perigos. Tenho de fazer isto.
Tenho de voltar para a minha irmã, para a minha vida em Edgewood.
– Mas tem aqui uma vida. – A expressão dela é de uma doce confusão.
– É uma vida, mas não a minha. – A confusão dela aprofunda-se. Abano
a cabeça, é inútil tentar explicar, pois amanhã não se vai recordar do que
conversámos. – Ou seja, não a escolhi.
Thyamine olha na direção de Zéfiro. Ele parou na entrada da caverna e
chama-me com gestos.
– Mas, e o festival do Solstício de Inverno?
– O que tem?
– O senhor disse que gostou bastante. E que achava que a senhora
também teria gostado.
Embora levante a mão em resposta a Zéfiro, os meus pensamentos
digerem esta informação. Sim, diverti-me, mas não pensei que o rei tivesse
reparado. Julgava que ele seria imune a tais observações.
– Quando é que ele disse isso?
– Ontem, minha senhora. Que a senhora sorriu. Também referiu isso.
E observa demais para o meu gosto. De futuro, terei de resguardar-me do
que lhe digo, e de como reajo. Mas… reparou no meu sorriso.
– Ficarás a salvo, aqui – digo à criada, forçando-me a concentrar-me na
situação presente. – Não te afastes, e mantém-te atenta a qualquer coisa que
possa surgir.
– Coisas como os caminhantes-das-trevas, minha senhora?
Oxalá, muito sinceramente, que não haja caminhantes-das-trevas nas
redondezas.
– Esconde-te e mantém-te calada. – Aperto-lhe o ombro e acorro para
junto de Zéfiro, com a luz-da-rosa a vibrar suavemente no meu punho
fechado. Agarrando-me na mão, ele orienta-nos para o interior das trevas
nas quais vive o Sono.
Momentos depois, paramos. Zéfiro empurra-me para um recanto e diz-
me baixinho:
– Não saia daqui até que a venha buscar. – Ouço uma pancada numa
porta e o correr do rio à minha direita. Nem mesmo a tonalidade viva da
água penetra neste sítio vazio de luz.
O som de uma porta que se abre. E mantém-se, este abismo de noite
eterna.
– Primo! – A saudação calorosa de Zéfiro ecoa. Não lhe vejo o sorriso,
mas consigo imaginar, um esgar branco e faminto encimado por risonhos
olhos de trevo.
– A que devo este prazer, Zéfiro? – diz uma voz tão ressonante que os
meus ouvidos vibram. O Sono, a divindade que domina metade das vidas
dos mortais.
– Não pode um deus visitar os seus parentes? Tenho saudades, S.
Um momento de silêncio.
– Já te pedi para não me tratares assim.
– Bem, sim, a minha memória já teve os seus dias. Posso entrar? Preferia
conversar onde consigo ver, percebes.
– Não te demores.
Passos arrastados, como se o Sono se desviasse para permitir a entrada
de Zéfiro. Os passos pesados desvanecem-se, ficando distantes, e eu
assusto-me quando Zéfiro regressa, agarrando-me na mão com um
murmúrio:
– Depressa.
Sigo-o em silêncio, tendo o cuidado de levantar os pés para não tropeçar
em fendas ou pedras caídas.
– Prefiro falar contigo do que com o teu irmão, como sabes – diz o Vento
Oeste ao primo.
O Sono resmunga:
– Hei de contar-lhe isso.
A porta fecha-se e Zéfiro larga-me a mão, a voz dele vai desaparecendo
ao conduzir o primo para outra parte da caverna. Espero até que o som se
desvaneça por completo, antes de levantar a luz da rosa, mas dou-me conta
de que não faço ideia de como a acender.
– Ah… acende?
Nem sequer uma centelha. Esforço os olhos, abro os meus sentidos ao
ambiente, embora jure que a escuridão também pareça engolir o som.
– Por favor?
O vidro aquece na minha mão, como se pressentisse o desespero. E
depois começa a brilhar, emanando uma luz rosa suave contra as
redondezas.
Isto não é uma caverna. É uma fortaleza, uma mansão talhada no quartzo
negro e reluzente da montanha. Mnemenos curva-se através da rocha numa
faixa plana de ébano. À minha volta, encontro grandes arcos pontiagudos
recortados nas paredes, túneis que conduzem às profundezas distantes.
Zéfiro disse para seguir o rio, e é o que faço, levantando bem alto a luz-da-
rosa para desvendar o caminho. De vez em quando, uma gota de água pinga
de um algures invisível e desencadeia ecos, ondas de som pouco profundas.
Acelero o passo; quanto mais depressa encontrar o jardim, mais depressa
saio.
Depois de um período indeterminado, noto que a escuridão diante de
mim se transmuta. O túnel alarga-se. O luar penetra por uma abertura no
teto da caverna, expondo uma miríade de plantas que crescem num solo
fértil. Papoilas vermelhas brilham como pequenas bocas famintas com
centros escuros. Sinto um ar mais quente, nesta zona, como se o poder do
Rei do Gelo não entrasse por completo na morada do Sono.
Passos ligeiros levam-me à periferia do jardim. Embora as papoilas
sejam as mais abundantes, também encontro camomila e alfazema, entre
outras flores. Agacho-me, colho uma mão-cheia de papoilas e meto-as no
bolso.
O ar parece ficar mais espesso, contrariando os meus movimentos, como
se despertasse com a intrusão. Os meus ouvidos aguçam-se, num silêncio
que, subitamente, se agita, e, na escuridão, uma voz treme nas paredes.
– Quem ousa colher do Jardim do Torpor?
21

A luz-da-rosa apaga-se como uma estrela moribunda. Sacudo a esfera


enquanto os tremores ecoam na rocha, espaçados como passos que se
aproximam. A luz não se reanima.
A escuridão desponta perante mim. Embora levante a mão, não a
consigo ver. E quanto mais tempo fico sem luz, maior é o meu pânico,
entrando em descontrolo. O que terá sucedido a Zéfiro? Como é que
conseguirei orientar-me nestes túneis? Volto a abanar o copo furiosamente.
– Acende-te – sussurro. – Por favor.
Mas mantém-se teimosamente apagada.
Tremem-me as mãos. Aperto a esfera com força como se fosse uma
âncora. Se não resultar, terei de encontrar outra forma de sair. A minha
visão pode estar inutilizada, mas restam-me os sons, o cheiro e o tato para
me guiarem.
O Sono volta a pronunciar-se, e soa como a essência do mundo, anterior
à escuridão, anterior ao próprio tempo.
– Porque tocas no que não te pertence?
Cambaleio na direção da parede – para me afastar de Mnemenos, cuja
água causa o esquecimento. Apoiada na parede da gruta, e com o rio à
minha esquerda, refaço os meus passos.
É um progresso lento. Sem ver, obrigo-me a levantar os pés mais alto do
que o habitual para não tropeçar nas fendas do chão. Também sinto uma
crescente sonolência, a minha mente lança-se à deriva neste útero escuro.
Zéfiro, penso. Tenho de encontrar Zéfiro.
À medida que me afasto do jardim, o nevoeiro começa a desvanecer-se
aos poucos. A minha luz-de-rosa cintila. Esforço as pernas a acelerar. Em
breve, a luz-da-rosa intensifica-se e força as trevas a recuar. Talvez a luz
também tenha sido silenciada pelo poder do Sono.
Por fim, não preciso de encontrar Zéfiro, porque é ele quem me encontra
primeiramente. Assim que alcanço a grande câmara de entrada, tropeço em
algo no chão. O Vento Oeste, inconsciente.
– Zéfiro. – Abano-o com força. A cabeça dele pende de lado. É
escusado. Até uma bofetada na cara não produz resultados, e a vontade de
rir contrai-me os pulmões com tanta força que esta vontade só se desfaz por
saber que estou sozinha na morada do Sono. São poucas, as opções ao meu
dispor: salvar-me ou arrastar Zéfiro para um lugar seguro, arriscando a vida.
Algo se agita na profunda e negra garganta da caverna.
Sinto formigueiro nos dedos enluvados, no local em que agarram a
manga de Zéfiro e, por alguma razão, não consigo concentrar-me o
suficiente para agarrar o tecido. Escorrega-me continuamente das mãos. A
sensação de formigueiro espalha-se pelos braços, peito e rosto. Não
recupero o fôlego.
– Zéfiro.
Dorme, canta o ar. Um descanso profundo e restaurador, numa boca
escura rodeada de pétalas vermelhas. Aquilo que sangra, aquilo que cresce.
O sono invade a minha consciência, e o mundo começa a apagar-se.

Dormito um pouco, e sonho. Coisas disparatadas, na sua maioria. Mas


depois abro os olhos de repente, e as trevas invadem-me a vista,
escondendo tudo o que existe.
Será um sonho?
– Minha senhora? – Um sussurro faz cócegas na minha orelha.
Não é um sonho. Escuto a voz de Thyamine, mas não a consigo ver, nem
nada mais.
Seixos cravam-se na minha coluna vertebral.
– Onde é que estou? O que é que aconteceu? – Percebo que estou deitada
com os braços e as pernas amarrados. Porque é que está tão escuro?
O Sono.
Esta é a sua caverna, o seu domínio. Deve estar por perto, e se me
verguei ao poder dele uma vez, é bem possível que volte a acontecer.
Luz rosa brilhante acende-se ao fundo, e semicerro as pálpebras contra a
intensidade. Thyamine encontra-se sobre mim, a luz-da-rosa brilhando na
sua mão transparente, lábios tão fortemente contraídos que quase não se
notam. Olhos esbugalhados de pavor fitam-me por detrás daqueles óculos.
Leva um dedo aos meus lábios, indicando-me que fique calada.
– Por favor, minha senhora. Não deve falar. – Ela espreita por cima do
ombro com ar vigilante.
Pouco a pouco, o rugido na minha cabeça dissolve-se, e faço um esforço
para escutar qualquer som – o rio, passos, seixos que batem. Mas o silêncio
impera enquanto Thyamine pousa a lamparina e começa a mexer nos nós
que prendem os meus pulsos e tornozelos.
– Fiquei preocupada quando não voltou – diz num tom inquieto. – Disse-
me para não sair do lugar, eu sei. Peço desculpa por ter desobedecido.
– Não, fizeste bem. – O que me teria acontecido se ela não tivesse
vindo? Tornar-se-ia esta a minha nova prisão? Notaria o Rei do Gelo sequer
a minha ausência?
Ela estremece.
– Encontrei-a caída no chão. Tentei acordá-la, mas apareceu o Sono.
Fugi. Escondi-me. Ele arrastou-a para longe, mas eu fui atrás. Não podia
deixá-lo levá-la sem mais nem menos.
Nunca fiquei tão grata que Thyamine se recusasse a seguir ordens.
– Onde está o Zéfiro?
– Quem? – A expressão dela é de uma doce perplexidade.
Abano a cabeça.
– Não importa. – Talvez o Sono nos tenha separado. O que era muito
provável. Afinal, Zéfiro enganou-o. Que castigo receberá?
– Não deve andar longe – sussurro, esfregando a pele irritada dos pulsos
e dos tornozelos, assim que a corda se liberta. Contudo, quando procuro as
papoilas nos bolsos, encontro-os vazios. O meu estômago revira-se. O Sono
deve tê-las levado.
É desconsolador, mas não me posso preocupar com isso, agora: a nossa
segurança, antes de mais.
– Temos de encontrar o Zéfiro antes que o Sono regresse.
– Minha senhora não entendo. Quem é o Zéfi…
– Concentra-te, Thyamine. – Agarro-a pelo braço, o meu olhar neutro e
frio. – Não sei onde está o meu amigo. Precisamos de encontrá-lo.
Ela hesita, depois inclina o queixo, sinal de que compreende.
– Separamo-nos, minha senhora? Cobriremos mais terreno.
A bem-dizer, é uma ideia inteligente. Posso tê-la subestimado.
– Diria que sim, mas não quero que nenhuma de nós se perca e não
consiga encontrar a outra. Não te afastes.
O contorno espetral de Thyamine solta um brilho branco na obscuridade.
O túnel estreita-se e alarga-se e contorce-se sobre si mesmo à medida que
nos adentramos, mas logo alcançamos uma sala que parece ampla e vazia,
exceto por Mnemenos que irrompe pela rocha. Esta câmara ramifica-se em
dois corredores, cujas entradas apresentam arcos marcados com símbolos.
A passagem da esquerda leva-nos de volta à câmara anterior. O túnel da
direita conduz a um beco sem saída.
– Regressemos para o local em que me encontraste. Tentaremos um
outro rumo.
Mais becos sem saída e caminhos cruzados levam-nos, por fim, a uma
cela com grades, uma das muitas que revestem este túnel em particular.
Levanto a luz-da-rosa para que o brilho ilumine o interior esculpido. Zéfiro,
inconsciente. Não tem os braços e as pernas amarrados como os meus
estavam. Talvez as plantas indutoras de sono causem nele um maior efeito?
Sinto o sono a rondar o limite da minha consciência, mas, desde que me
dedique à tarefa entre mãos, consigo negar a vontade de fechar os olhos.
Sussurro através das grades:
– Zéfiro.
Ele não acorda. Suspiro.
– Minha senhora, permite-me? – E Thyamine dá um passo em frente,
tirando uma pequena ferramenta do bolso, que introduz na fechadura.
Demora alguns minutos a mexer na fechadura, até que esta se abre com um
estrondo.
Abro a boca de assombro.
– Como foi que conseguiste? – murmuro.
A mulher espectro franze o sobrolho.
– Não sei bem. Lembrei-me de repente da ferramenta de arrombar
fechaduras que tenho no bolso. Trago-a sempre comigo, embora não saiba
porquê.
Não é a primeira vez que me interrogo quem terá sido Thyamine na sua
vida passada, bem como as circunstâncias que provocaram a sua morte.
Abro a porta da cela e acorro para Zéfiro. Se eu tivesse uma natureza
gentil, acordá-lo-ia aos poucos, calmamente. Mas não há tempo para
delicadezas. Thyamine solta um arfar quando o apunhalo no meio da palma
da mão, usando uma pedra afiada, e fazendo sangue.
O Vento Oeste endireita-se num pulo, com os dentes à mostra, antes de
eu lhe tapar a boca com a mão.
– Sou eu – As unhas dele cravam-se nos tendões interiores do meu pulso
e as lágrimas assomam-me aos olhos com a dor. Enterro ainda mais a pedra
na palma da mão dele com um rosnado: – Solta.
Afrouxa o aperto. Pestaneja uma vez, devagar.
– Wren? – A voz está abafada.
– Não dispomos de muito tempo. Consegue levantar-se?
Três batimentos cardíacos antes de anuir, soltando-me.
– Não sei sair deste local – revelo. Mnemenos poderia orientar-nos, mas
afastei-me do rio há algum tempo. Nem consigo ouvir ao longe a corrente
borbulhante.
Zéfiro cerra os olhos com força, esfrega uma mancha na testa.
– Ele sabia. Conseguiu senti-la no jardim. E então, proferiu uma palavra
poderosa, e eu adormeci. – Suspira. – Sei como sair daqui. Mas ainda estou
tonto, por isso vou precisar de ajuda.
Envolvendo o braço à volta da cintura dele, sustento-lhe o peso enquanto
nos encaminhamos para a entrada, com Thyamine no encalço.
– Estamos quase lá – murmura Zéfiro.
Um estrondo potente faz-me estremecer os ossos, os dentes.
Rodo a cabeça para trás. O túnel parece contrair-se, e um clarão de luz
revela que as paredes não são feitas de rocha, tal como supunha, mas de um
tecido formado por uma variedade de plantas, flores e ervas, pendentes do
teto.
Espera por mim, entoa a escuridão.
Sinto o coração abrandar e os membros estremecer, porque aquela voz é
a minha salvação, o meu descanso eterno. Começo a virar-me, atraída pela
promessa de refúgio, de paz eterna.
Zephyrus belisca-me o flanco.
– Ignora-o – vocifera, e desperta, semiarrastando-me em direção ao
brilho da entrada.
Zéfiro. Um canto lento. Porque foges?
– Mais depressa – arqueja o Vento Oeste.
O ar torna-se mais espesso, com uma neblina, mas continuamos a
avançar, e apressamos os passos.
– Minha senhora – lamenta-se Thyamine.
Dor, como um dardo, desce-me pelas costas, com o esforço de suportar o
peso de Zéfiro. Não consigo enfrentar um deus. Nem Thyamine.
Só um deus será capaz de enfrentar outro.
– Tem poderes – riposto para Zéfiro. – Use-os!
Um pensamento letal estreita-lhe o olhar. Afastando-me, diz:
– Siga para a entrada. Eu já vou.
Nem precisa de insistir. Eu e Thyamine acorremos para um lugar seguro
enquanto a pedra se quebra com a força do grito vindo de um além. Espreito
por cima do meu ombro e descubro Zéfiro com o arco, a flecha soltando um
brilho esmeralda. Dispara, e a flecha atinge uma figura volumosa e sombria.
Um rugido abala a caverna.
O Vento Oeste envia uma brisa quente para os meus calcanhares,
fazendo-me avançar, fugir ao alcance da ira do deus primordial. Saímos a
correr da caverna e acompanhamos a forma serpentina de Mnemenos para
sul, onde as Terras Mortas se tornam rasas.
Por fim, Zéfiro diz, ofegante:
– Estamos a salvo. Ele não sai da caverna enquanto for dia.
Os meus joelhos batem no chão, e o suor escorrega-me pelas têmporas.
– Eu não fiquei com as papoilas – sussurro. – Desculpe. Guardei-as no
bolso, mas quando acordei já não estavam lá.
Zéfiro abana a cabeça. A tensão à volta da boca dele aprofunda-se.
– A culpa não é sua. Eu devia ter tido mais cuidado com o Sono.
Subestimei a rapidez com que reagiria.
E agora? Sem as papoilas, Zéfiro não conseguirá produzir o tónico do
sono. Estou impedida de prosseguir. Não poderemos regressar à caverna.
Talvez ele consiga obter as papoilas por outros meios, mas sem garantias.
– Minha senhora? – As pernas de Thyamine, resguardadas com meias,
entram no meu campo de visão.
Olho para cima. Abrindo a mão, ela revela as vermelhas pétalas
esmagadas das flores de papoila, com sorriso largo e vivaz.
O alívio é tremendo! Sei que os meus joelhos cederiam, se isso não
tivesse já acontecido…
– Mas como…?
– Vi o Sono tirá-las do seu bolso. Não sei bem para que servem, mas
pareciam importantes, por isso colhi outras flores do jardim antes de ir à sua
procura.
Fico sinceramente desprovida de palavras.
– Conseguiste, Thyamine. Obrigada. – Nunca mais te chamarei
incompetente.
– Muito agradecido. – Zéfiro arranca as pétalas da mão dela e enfia-as no
bolso do casaco. – Precisarei de algumas semanas a preparar o tónico.
Quando estiver pronto, vou ao seu encontro, e, juntos, poderemos
finalmente acabar com o inverno.
22

N ovecentas e quarenta e oito portas.


A ala sul contém novecentas e quarenta e oito portas, e já as explorei
todas.
Há três semanas que busco, mapeio, questiono, anseio. Nadei em lagoas
quentes de águas límpidas. Visitei cidades esplendorosas, com coloridos
lenços e bandeiras pendurados em cordas entrelaçadas entre os edifícios.
Passei serões encavalitada no cimo das montanhas, tendo apenas as estrelas
como testemunha. Regressei às calçadas da cidade para visitar o teatro, não
uma, mas três vezes. E, no entanto, nenhuma porta me levou de volta ao
Gris. A liberdade, como sempre, esquiva-se de mim.
– Paciência – murmuro, e descontraio os dedos que seguram com força o
mapa.
As quatro alas da cidadela convergem para o centro, o cruzamento em
que agora me encontro. Alguns soldados guardam a ala norte, mas eu
ignoro-os enquanto atravesso para a ala este, guardando o mapa no bolso do
meu casaco. Espera-me mais um longo dia, mas ainda é cedo. Começo pela
porta ao fundo do corredor. Um empurrão na maçaneta esculpida, a porta
abre-se e eu entro.
A porta fecha-se de imediato, envolvendo-me numa completa mansidão.
É uma biblioteca.
Um lugar para me sentar. Um lugar para ler e descansar. Um lugar para
pensar, um lugar para aprender, um lugar para entrar em mim mesma. Há
muito tempo, quando o reino ainda era conhecido como o Verde, contavam-
se histórias de grandes cidades cujas bibliotecas abrigavam vastos
repositórios de conhecimento, disponíveis a quem as visitasse.
Esta biblioteca contém três níveis de estantes que abarcam paredes
curvas, uma maravilha arquitetónica fluida. Escadotes com rodinhas servem
de acesso às prateleiras mais altas, e à minha direita, uma escada em espiral
conduz ao piso superior.
Percorrendo o espaço, observo o fogo aceso na lareira, as poltronas
almofadadas e começo a percorrer a coleção. Há uma boa seleção de
mistérios, bem como de romances de aventura. Um homem abandonado
numa ilha. Uma deusa que é raptada para o submundo, pobrezinha.
O livro seguinte é pequeno e fino, cabendo-me na palma da mão. Uma
inscrição marca o interior da capa.
Para o meu querido Calais. Que encontres sempre o teu caminho.
Interessante. Volto a colocá-lo na prateleira e continuo a analisar.
Jardinagem para Principiantes. Remédios e Infusões com Ervas. Franzo o
sobrolho. Tenho estes próprios títulos na minha estante de casa. E depois
vejo a lombada de um livro que me é bastante familiar. O Guia Completo
da Caça ao Alce. Uma capa vermelha desbotada com letras douradas. Não
me sinto completamente firme, quando puxo o volume e abro a página de
rosto, observando a pequena marca de lápis no canto superior direito.
Quatro letras. Wren.
O pensamento esvazia-se. Será possível? O livro devia encontrar-se em
Edgewood, a repousar na estante ao lado da lareira, exatamente onde o
deixei. A não ser que o rei tenha regressado ao Gris para… trazer os meus
livros?
A ideia é tão absurda que troço dela. O Rei do Gelo não atravessa o Gris,
exceto para escolher noivas. Haverá uma explicação diferente para a sua
presença. Afinal, os encantamentos da cidadela funcionam de formas
inexplicáveis, cujas portas conduzem a reinos maravilhosos.
Com o livro na mão, instalo-me num dos cadeirões ao lado de uma
janela com vista para o jardim. Estou tão absorta na história que não reparo
imediatamente no som da porta que se abre, nem ouço os passos que se
aproximam.
– Esposa.
Sobressalto-me com tanta intensidade que o livro choca contra o meu
nariz.
– Merda. – Rodo a cabeça para o centro da biblioteca, descobrindo
Bóreas com as mãos enfiadas nos bolsos das culotes. Uma túnica violeta
cai-lhe pela frente, ligeiramente amarrotada. Hoje não usa luvas.
– O que fazes aqui? E já te disse que me chamo Wren.
Ele avança para uma das estantes na minha periferia.
– A casa é minha.
Engraçadinho.
– A Orla disse que não te sentias bem, outra vez. – Uma estranheza
contínua para a qual não encontrei explicação.
– Já recuperei.
Pois.
O rei faz deslizar a mão pelas lombadas dos livros, dizendo:
– Perguntava-me quando é que encontrarias finalmente este lugar. A Orla
disse-me que gostas de ler.
Que mais lhe terá dito, pergunto-me?
– E teria encontrado muito mais depressa, se te tivesses oferecido para
me mostrar. – Lá começo novamente, atirando as minhas respostas como
facas afiadas. Com esforço, amanso a minha natureza irritadiça. – Encontrei
os meus livros na tua coleção.
– Encontraste? – Não me encara.
Semicerro os olhos, desconfiada. Muito bem. Decido encaminhar a
conversa num rumo diferente.
– Sabes para onde conduz uma destas portas?
– Espero bem que sim – afirma –, tendo em conta que fui eu que construi
a cidadela, e tudo o que nela existe.
Então, foi ele quem criou as portas. Julguei que antecediam o seu
reinado.
– Porque há tantas?
Ele baixa a vista, e afasta-se da estante. Como um gesto constrangido.
– Às vezes, desejo ver outros reinos, lugares além das Terras Mortas.
– Oh – reajo, porque é mais fácil do que dizer, compreendo.
– Gostas? – Faço um ar confuso e ele esclarece: – Da biblioteca.
Inclino-me e pego no meu livro e pouso-o no colo.
– Gosto. A minha mãe ensinou-nos, a mim e à minha irmã, a ler, mas
havia poucos livros na nossa casa durante a nossa juventude. – O pouco
dinheiro dos nossos pais não era gasto em escritos. – A Orla disse que
colecionas livros de outras terras.
– Sim, quando consigo ter um momento para mim – seleciona um
pergaminho amarrado com cordel. – Reinos antigos, línguas desaparecidas,
a periferia da sociedade. Gosto de conhecer estas histórias. Eu… – mostra-
se hesitante. – Quero perceber de onde vêm as pessoas e porque é que
tomam certas escolhas. – Repõe o pergaminho no lugar, enfia-se noutra fila
e regressa com um tomo do tamanho da minha cabeça. – Eis um dos meus
favoritos. – Pousa-o na mesa ao lado da minha cadeira.
Franzo o sobrolho. Não entendo o título, encontra-se numa língua
completamente diferente.
– O que é?
– A história completa dos corsários marítimos.
– Piratas? – Recosto-me na cadeira com um sorriso irónico. – Nunca
imaginei que gostasses de tais coisas.
Retorce a boca.
– Para alguém eterno, o único mistério que lhe resta é o conhecimento
por adquirir. – Aproxima-se da janela. Não sei dizer em que lugar se
encontra esta biblioteca, mas decido torná-la a minha sala favorita na
cidadela, quanto mais não seja pela vista. – Agora que conheces alguns dos
meus gostos literários, admito que não sei nada sobre os teus.
O meu estúpido coração acorda. Mentalmente, atiro-o para um canto e
aponto para o livro que tenho na mão.
– Este é um dos meus favoritos. Queres ouvir uma passagem?
Ele vira-se, as mãos cruzadas atrás das costas, e repara na capa, que tem
o contorno de um alce cosido na frente.
– Um manual de caça?
– É bastante estimulante – digo com um sorriso inocente.
Ele surpreende-me, pois acomoda-se na cadeira junto à minha, com
tornozelos cruzados e olhar azul nivelado com o meu. Se eu deslocasse o
meu pé alguns centímetros para a direita, os nossos sapatos tocar-se-iam.
– «Assim que a porta do quarto se fechou» – leio em voz alta –, «a
mulher virou-se para o amante. Ombros amplos, um peito largo e olhar
cinzento, pétreo. Ela inspirou fundo, sentindo o almíscar da pele masculina
entranhar-se nos seus pulmões. As mãos grandes do homem curvaram-se
sobre as costas dela, e a sumarenta boca ficou mole, abrindo-se para a
língua que ele lhe oferecia».
O Rei do Gelo fica hirto. Vira-se para mim, ainda sentado.
– Isso não é um manual de caça.
Oh, quem diria? Não é.
Em tempos idos, envolvi a capa de um manual de caça por cima deste
romance erótico para que Elora não se sentisse inclinada a folheá-lo. Ele
que espere até chegarmos ao capítulo vinte. É totalmente indecente.
– «O beijo tornava-se mais profundo. A língua do homem atiçava a dela,
provocando aquela boca macia. O sexo da mulher latejava, antecipando o
enlace. Já sentia a extensão dele completa, esticando-a…»
– Para. – A exigência interrompe-me ferozmente.
Arrasto lentamente os meus olhos até aos dele, acesos com uma emoção
brilhante e cortante, o azul tão vívido que reluz como estrelas recém-
nascidas.
Viro a página e prossigo, contendo um sorriso.
– «Apertando contra ele, fez deslizar a mão para o interior das culotes, e
enrolou os dedos à volta da pila saliente…»
Arrancam-me o livro das mãos.
O Rei do Gelo está de pé, ao meu lado, a segurar o livro, as faces pálidas
cobertas de cor. O peito arfa e eu trago o olhar para sul, atraída pela parte da
frente das culotes.
Está com tesão.
Todos os pensamentos se esvaem da minha cabeça. A ereção é
inconfundível. Projeta-se contra o tecido macio, uma crista bem-dotada, e a
minha barriga revira-se em resposta.
Com algum esforço, desvio a vista da prova do seu desejo.
– Ah…
– Olha para mim.
Não consigo. Porque, quando o fizer, lembrar-me-ei de acordar na curva
do seu corpo quente e seguro. Lembrar-me-ei da rede de cicatrizes que
marca a bela pele das suas costas. Lembrar-me-ei daquela sensação de estar
em casa, uma sensação traiçoeira e fugaz.
Duas pontas de dedos calejadas agarram a ponta do meu maxilar,
virando-o para si. Depois, abre o livro e começa a falar.
– «O homem inclinou a cabeça da amante para trás, expondo-lhe o
pescoço» – rosna. – «Ocorreu-lhe, por instantes, que aquilo só podia
terminar na cama dele. Explorou, com o calor húmido da boca, a curva da
nuca, os seios como colinas». – Os olhos de Bóreas transitam para os meus,
como se quisesse verificar se eu ainda estava atenta. – «E foi descendo».
Para meu grande horror, sinto as faces corarem.
– «Ele atirou-a para cima do colchão e abriu-lhe as pernas.» – Segue-se
uma pausa, durante a qual o rei lambe os lábios. – «Posicionado por cima
dela, viu-lhe o sexo, rosado e inchado, reluzente».
O pergaminho sibila ao virar-se a página.
– «O desejo do homem endureceu-o. O doce aroma do perfume da
amante provocou-lhe os sentidos, e ele retesou os joelhos para se manter de
pé, pois desejava ajoelhar-se diante dela, tomar aquele sexo na boca…»
Os meus mamilos acordam, ao ouvirem as palavras sexo e boca na voz
suave e profunda do Vento Norte.
– «… e brincar com as pregas húmidas.»
Pelos deuses, não estarei muito longe da loucura. Aperto as pernas com
muita força, mas sou assolada por outro impulso de prazer. E aqui se
encontra o Rei do Gelo, imperturbável, plácido como um lago gelado. Eu é
que lancei as peças do jogo, mas ele reorganizou-as enquanto estava
distraída.
Com passos lentos e vagarosos, contorna a cadeira em que me sento e
fica atrás de mim.
– «Começou aos poucos. Roçando suavemente a ponta da língua, que
deslizava, muito suave, ao longo da pele escorregadia. Quanto mais
aumentava a paixão, mais pressão fazia, embora contornasse o botão
latejante». – O queixo dele roça-me a orelha, e uma corrente de ar quente
eriça-me a pele. – «Ela contorcia-se, e ao pedir mais e mais, ele puxou para
baixo as suas ancas e chupou a carne intumescida…»
O meu ser contrai-se, penosamente. Sinto a pele retesar-se de um calor
insuportável. Aquela voz rouca, o calor do hálito com cheiro a pinho, serão
a minha ruína.
De repente, um calor húmido desliza pelo meu pescoço exposto, e um
gemido escapa-se-me da boca. Arregalo os olhos. A língua dele…
Pulo da cadeira, atiro-me pela sala, atravesso a porta aberta e desço o
corredor, correndo, sem olhar para trás, sem me atrever a olhar para trás.
Subo as escadas para o terceiro piso, viro à direita e novamente à direita.
Abro a porta dos meus aposentos, entro, fecho-a com estrondo e tranco-a,
antes de fazer algo de que certamente me vou arrepender.
Não saio dos aposentos até ao fim do dia. Não quero correr o risco de me
cruzar com Bóreas depois de… bem. Ainda estou a digerir o que aconteceu.
Falto ao jantar, mas Orla tem a amabilidade de me trazer algo da
cozinha. Estou a meio de uma leitura junto à lareira quando ela entra,
pousando um tabuleiro na mesinha ao meu lado. Quando se vira para sair,
pergunto-lhe:
– Explica-me porque foste condenada a Neumovos?
A mulher espectro faz uma pausa, com uma mão a caminho do puxador.
Desejo saber, mas não o suficiente para insistir. Se ela não se sentir à
vontade para se abrir comigo, é livre de se ir embora.
Orla vira-se para mim. A expressão recolhe-se, a pele do rosto abana à
volta da papada.
– Fiz uma escolha… Não me orgulho dela. Mas se tivesse de repetir,
voltaria a fazer o mesmo. – Engole em seco. – Matei o meu marido. Um
golpe no peito com uma faca de talho.
Mantenho uma fachada neutra, sem revelar a minha angústia, curiosa por
saber o que teria levado a doce Orla a cometer esse ato de violência.
– Porquê?
– Tem interesse?
– Claro que sim. – Depois entendo. – Ele nunca te perguntou o motivo,
pois não? Refiro-me ao rei. – Porque o Vento Norte não se importa com os
motivos das pessoas. A seu ver, uma escolha é uma escolha. As razões
subjacentes são irrelevantes.
O peito de Orla sobe e desce. Aperta as mãos, descontrai-as.
– O meu marido batia-me, minha senhora. Deixava marcas onde não se
visse. E violou-me duas vezes.
A raiva sobe-me à garganta. Orla é das pessoas mais gentis que conheço.
Só um monstro lhe faria mal.
– Lamento imenso, Orla. – É uma realidade partilhada por muitas
mulheres. Mulheres que conheci. Que foram minhas amigas, em tempos.
Ela encolhe os ombros de tristeza.
– Somos tão maltratadas durante tanto tempo, que começamos a achar
que merecemos aquele tratamento.
– Não – rosno. – Os maus-tratos nunca têm desculpa. Nunca. E não
foram culpa tua.
– Agora sei disso. – Um breve e manso aceno de cabeça. – Ninguém na
minha aldeia descobriu que tinha sido eu a matá-lo. Sempre julgaram que se
tinha metido com o homem errado. Ele ia a caminho dos trinta anos. Eu só
tinha dezoito. – Desdobra o guardanapo no meu tabuleiro, retirando o anel
de prata. – Não voltei a casar, mas vivi uma vida longa. Mais longa do que
seria, se o meu marido tivesse sobrevivido.
Pousando o livro, pergunto:
– Sabes para onde foi enviado o teu marido, quando morreu?
– Não sei, minha senhora. Nunca perguntei. – Orla pigarreia. – Não é
assim tão mau servir o senhor. Sou livre de uma forma que nunca fui em
vida. Aqui, as pessoas são minhas amigas. – Cala-se. – Se não precisa de
mais nada, tenho de regressar à sala de jantar. – Virando-se, dirige-se para a
porta.
– Obrigada – murmuro à sua figura de costas, que se afasta – por me
teres confiado a tua história.
Ouço o sorriso hesitante na voz dela.
– Obrigada por se ter interessado em saber.

Quando o céu fica escuro como o vinho, encaminho-me finalmente para a


cama. Com a intenção de dormir, obviamente – foi um dia longo. E
contudo, a minha pele ressente-se particularmente do roçar dos cobertores.
A curva do meu pescoço arrepia-se como se recordasse a boca de Bóreas.
Afastando os cobertores com os pés, vasculho a cómoda onde escondi o
frasco e tomo um demorado gole. Pende-me a minha cabeça, tremem-me as
mãos. Um último gole. Não: dois. Dois goles, e depois volto a escondê-lo
no meio da roupa de cama e volto para a cama. Durante toda a noite,
remexo-me e viro-me, e depois acorda a manhã, o amanhecer pousa na
cúspide do mundo.
Os meus membros vibram com energia desaproveitada; preciso de fazer
alguma coisa. Já esgotei o meu interesse em explorar as portas, mas há o
campo de treinos.
A cidadela ainda dorme quando me esgueiro pela porta, vestida com
umas calças justas e uma túnica de mangas compridas, protegida do frio
possível com o meu casaco quente. Arco na mão, aljava a bater nas costas,
atravesso o pátio até à zona dos muros onde os alvos me esperam.
Empunhar arco, puxar, soltar, entro no ritmo da caçada.
Uma camada de suor cobre-me a pele quando o som de passos chama a
minha atenção para a zona de entrada do campo de treinos. Encontro aí o
Rei do Gelo, travado pela minha presença, com a lança na mão.
Baixando o arco, inclino a cabeça em sinal de reconhecimento.
– Bom dia. – Um cumprimento sereno, embora o meu estômago dê
voltas de nervosismo, e dou por mim a fitar a boca dele.
Ele atravessa a área muralhada.
– Bom dia. – Igualmente sereno. Observa os alvos e as setas espetadas. –
Não sabia que usavas este campo.
– E não usava, até hoje. – Permito-me somente uma avaliação rápida. É
um momento de pausa. – Algum problema? – Marcas negras escurecem a
pele sob os seus olhos, que perderam o vigor.
Ele esfrega o maxilar numa rara mostra de frustração.
– Surgiu um novo rasgão na Sombra.
– Outra vez? – Assento o arco no chão.
– Por ora, está contido, mas poderei precisar da tua ajuda se piorar. Os
caminhantes-das-trevas multiplicam-se a um ritmo preocupante.
– É só o que sabes fazer? Derramar sangue? – É um golpe baixo. Vê-lo a
retrair-se não me satisfaz.
– Sou um deus – afirma. – A guerra é o nosso idioma nativo.
Talvez o rei se tenha tornado insensível à violência, a ponto de esquecer
que usá-la não passa de uma escolha.
– Experimenta ajudar as pessoas – comento –, e talvez não se infiltrem
nas Terras Mortas. Nem tentariam matar-te. Se retirasses a tua influência do
Gris, e deixasses a terra aquecer…
– Já falámos no assunto.
– Não falámos. Apresentei-te as minhas preocupações. Tu ignora-las ou
não fazes caso. Para mim, isso não é falar.
O silêncio é mais eloquente do que as palavras. Ele diz baixinho:
– Nunca vou mudar.
Não espero que ele mude. Tudo o que peço é que olhe para mim, que me
ouça. Às vezes penso que o faz, nos raros momentos em que baixa a guarda.
– Não quero que vás contra a tua natureza, mas que tentes abrir o
espírito.
– Em que sentido? – responde com aspereza, como se a pergunta lhe
causasse desconforto.
– Gozas comigo, ou queres realmente saber?
Ele franze o sobrolho. Desloca as mãos para o cabo da arma.
– Disseste uma vez que perguntar é uma forma de compreender melhor
as pessoas.
– E queres compreender-me melhor?
As faces dele coram, ou é imaginação minha?
– Nem por isso.
– Ah! – Espeto o dedo no peito dele. – Era gozo, afinal.
– Não se trata disso. – A resposta sucinta impregna-se de uma
quantidade invulgar de exasperação. Talvez ele não esteja a gozar comigo.
Se quer compreender-me melhor, não sou totalmente a desfavor.
Recuo, preciso de espaço. Mas, sobretudo, preciso de ar que não saiba
nem cheire a pinho.
– Este campo é suficientemente espaçoso para os dois – digo eu. –
Podemos fazer os nossos respetivos exercícios, se a companhia não te
incomodar.
– Obrigado. – Vê-me afastar, depois vira-se e marcha para um banco.
Deixo-o entregue aos treinos enquanto me concentro em acertar nos
alvos. Falho um em cada dez tiros certeiros na muche. Não é bom. Nem de
perto, sabendo que um único disparo falhado pode significar a minha morte.
Arranco as flechas dos alvos de madeira, viro-me e vislumbro Bóreas no
outro lado do campo.
Alto, musculado, largo. Nu acima das culotes, com o cabelo apanhado
num nó, move-se como o ar, ou a água, ou uma combinação de ambos. Um
ciclone mortal e sinuoso de cortes e golpes precisos.
A pele pálida do tronco resplandece como o orvalho ao sol, enquanto
segue um conjunto de exercícios intensos, rodando, cortando o ar com a
lança. O suor escorrega por todos os traços vincados do seu rosto.
Em todos os meus anos, nunca vi uma forma mais perfeita. Um punhado
de cabelo escuro desce pelo abdómen liso e recortado. As costas ondulam
de potência. Os braços… engulo em seco. Como são notáveis, aqueles
braços, lindamente encorpados, magros, em perfeita proporção.
Assim que completa a atual sequência, o Rei do Gelo baixa a lança,
encarando-me como se estivesse ciente da minha curiosidade. O choque dos
seus olhos azuis nos meus é suficiente para me fazer avançar. Será que me
esqueci de mim mesma, diante de uma forma musculada? Terei esquecido
de onde venho, de quem amo? Nunca.
– Gostava de ver a minha irmã. – Paro a poucos metros, obrigando a
minha atenção a manter-se acima do queixo dele.
Um traço de suor cai-lhe pela têmpora, que limpa com o antebraço.
– A resposta é negativa.
– Porquê?
Os dedos dele agitam-se em volta da lança. A ponta bruta tem um ar
suficientemente aguçado para empalar uma pessoa através da coluna.
– A floresta está pejada de caminhantes-das-trevas. Não é seguro.
– Não uses os caminhantes-das-trevas como desculpa. Recusas, porque
se eu partisse, terias menos uma pessoa sob o teu controlo.
Fica carrancudo.
– Estou aqui retida há dois meses e não faço ideia em que estado se
encontra Elora, se está doente ou de boa saúde. – O Solstício de Inverno
plantou-me a ideia de lhe fazer uma visita, e agora coloco a minha
exigência.
– A resposta continua a ser não.
Não que me espante, mas… pronto. Tentemos uma abordagem diferente.
– Porque não resolvemos o assunto com uma aposta?
Aqueles olhos semicerrados piscam de incredulidade.
– A não ser – acrescento, espicaçando-o – que tenhas medo de perder…
Se não estivesse convicta de que o rei detesta a minha presença, quase
pensaria que ele se estava a divertir.
– Em que termos? – pergunta naquele tom baixo, e suave.
– Se eu vencer, tens de me deixar fazer uma visita à minha irmã…
sozinha.
Ele avalia-me com atenção, como se procurasse um engodo.
– E se eu vencer?
– Não vencerás. – Irei garanti-lo. Nada me manterá afastada de Elora.
Nada.
Ele solta um bafo, e a sua lança desaparece no éter.
– Se eu vencer, quero algo em troca.
– Já tens o meu sangue. Que mais posso dar?
– Um jantar. Local e hora à minha escolha.
Encaro-o, confusa.
– Mas já jantamos todas as noites juntos. – Como vasta melhoria em
relação às nossas refeições anteriores, o jantar agora inclui uma troca de
palavras ocasional.
– É a minha condição.
Encolho os ombros.
– Tudo bem. – Um pedido fácil de satisfazer, se eu perder. O que não
acontecerá.
Transitando para as armas penduradas na parede, o Rei do Gelo escolhe
um enorme arco de madeira de cedro, juntamente com flechas de penas de
ganso. Nunca vi Bóreas usar um arco. Ele segura a lança como se fosse uma
extensão do braço. Quanto ao arco… nem por isso.
Posicionamo-nos diante do alvo.
– Dispara primeiro – digo eu. – Três tentativas para cada um. Aquele
cuja seta acertar mais perto do centro, vence.
O Rei do Gelo puxa a flecha. Os músculos do braço incham ao debater-
se contra a tensão do arco e o liberta. A flecha acerta na beira do alvo. Nada
mau, mas não o suficiente.
Já armei o meu arco. Ao exalar, largo-o. A flecha acerta no interior da
muche.
– Adequada.
O meu olhar dirige-se para o dele e semicerra-se. Ele suaviza os cantos
da boca. Não é bem um sorriso, mas quase.
A segunda flecha dele fica ainda mais perto do alvo, ultrapassando o
meu tiro, e o rei mostra-se satisfeito. A minha pulsação acelera como
resposta ao desafio. Coloco a flecha, armo, largo. Este segundo tiro fica à
distância de um fio de cabelo do centro.
– Foi perto – murmura com uma possível aprovação.
Foi perto, mas não o suficiente.
O rei prepara o seu último tiro. Mas em vez de mirar o alvo, olha para
mim. Humedeço os lábios, atraindo a atenção para eles. Sentindo o olhar
fixo na minha boca, surge-me uma vontade inegável de me aproximar; o
meu pescoço arde com a memória da sua língua.
– Queres desistir? – sussurro.
– Jamais – exala ele.
A flecha atinge precisamente o centro, vibrando com a força do impacto.
Atingiu o âmago do alvo.
– Foi uma tentativa válida – afirma ele –, mas lamento dizer que isto
encerra a competição – O Rei do Gelo lança-me um olhar de comiseração
antes de encostar o arco a um banco próximo. Julga que ganhou.
Resta uma flecha. Tiro-a da aljava, passo a ponta dos dedos sobre a
haste. Quem sou eu? Wren de Edgewood. Provedora, irmã, sobrevivente. O
meu mundo reduz-se à flecha que sobressai do centro do alvo, e um
sentimento de retidão atravessa-me. A minha respiração desenrola-se.
Agora, penso e largo.
A flecha traça um arco, qual estrela-cadente, seccionando ao meio a
haste da seta ali espetada, a cabeça enterrando-se tão profundamente no
alvo que desaparece da vista.
23

– L evarás o Fáeton.
Encontramo-nos nas cavalariças, eu e o Rei do Gelo. As
lamparinas foram extintas, pois o dia encontra-se luminoso e desprovido de
nuvens, as portas abrem-se para o sol – um bom presságio.
Fáeton, o monstro, arqueia o comprido e fumegante pescoço por cima da
baia, farejando-me as calças à procura de guloseimas. Afasto a cabeça da
criatura, recusando admitir que possa ter personalidade.
– Irei a pé.
O rei contrai os dedos que seguram as rédeas, o couro esmagado na sua
mão enluvada. Tem olhos tão escuros que parecem negros, não se
distinguindo a pupila da íris. Observou-me desta forma, há dias, na
biblioteca, nitidamente excitado. Eu não soube como reagir. Ainda não sei.
– Levarás o Fáeton, ou não irás. A escolha é tua.
– Pronto. – Sem a aprovação do Rei do Gelo, estou impedida de cruzar a
Sombra e entrar no Gris. E preciso disto. Como de pão para a boca.
Ele abre a baia e conduz Fáeton para o exterior. Noto pela primeira vez:
o pelo escuro como carvão do animal tem o exato tom do cabelo do rei.
– Regressarás ao pôr do sol.
– Passo lá a noite.
Ele abre a boca para responder, mas levanto a mão, cortando-lhe a
palavra.
– Eu passo lá a noite – repito, sem deixar margem para negociações. –
Não vejo a minha irmã há meses. Regresso amanhã de manhã. – Malditas
sejam as suas tendências controladoras.
Bóreas parece pronto a discutir. Contudo…
– Amanhã de manhã – cede.
Ajuda-me a subir para a sela, embora eu seja perfeitamente capaz de
montar sozinha. Já me pôs ao corrente das consequências se eu permanecer
mais tempo do que o necessário: o sangue de Edgewood para alimentar a
Sombra. É uma ameaça que levo a sério.
O rei conduz Fáeton até aos portões, e entrega-me as rédeas.
– Amanhã de manhã – repete, olhar penetrando o meu.
Anuo.
– Dou-te a minha palavra.
O portão começa a deslocar-se. Assim que a abertura fica
suficientemente larga, enfio os calcanhares no flanco do caminhante-das-
trevas.
Entramos no vento e no frio. Forço a criatura a acelerar, e ela
corresponde ao meu desafio, sacudindo a cabeça e serpenteando pela
floresta, pulando sobre árvores tombadas e ribeiros cintilantes. Percorremos
quilómetros e quilómetros na profunda quietude. Quando o rio se torna
visível, faço abrandar o animal, parando de correr, e depois desmonto junto
à margem.
O barco continua congelado no mesmo lugar da minha vinda. No
entanto, e após uma inspeção mais atenta, reparo em fissuras muito finas
que interrompem o fluxo ininterrupto do rio e, em certas partes, há manchas
turvas no gelo, indicando áreas mais fracas em que começou a derreter.
– Não tens de esperar por mim – digo a Fáeton.
Os seus olhos cavernosos encontram os meus. Depois abana a cabeça e
desaparece no arvoredo.
Assim que subo para o barco e me encavalito no banco, o gelo derrete e
Mnemenos transporta-me rio abaixo.
A viagem dura o dia inteiro. Espuma branca derrama-se por cima de
pedras lisas, e a água embate no casco curvo enquanto Mnemenos se
transforma no Les. À minha frente, a Sombra espreita, deslizando friamente
pela minha pele enquanto a atravesso. Abro os olhos: regressei finalmente a
casa.
Como se fosse guiado pelo poder do Rei do Gelo, o barco deposita-me
numa curva do rio, que se congela assim que desembarco. Apresso-me,
sentindo a escuridão a aproximar-se. É como se todo o meu corpo se
inclinasse para a frente, avançando com esforço para o que me espera do
outro lado do bosque, e em breve encontro-me a correr, a chocar contra
arbustos mortos, atravessando o muro baixo de pedra que envolve a cidade.
Vejo finalmente a nossa casinha, empoleirada no cimo do pequeno
monte.
– Elora! – Estou tão contente que não reparo imediatamente nos sinais. –
Elora, cheguei a casa!
Uma camada profunda de neve obstrui o caminho que conduz à entrada.
Com a mão na maçaneta, atravesso o limiar num tropeção. Esperava uma
lareira acesa, o rosto doce da minha irmã a tricotar um dos seus adorados
chapéus de lã.
Pelo contrário, eis o que encontro: um espaço vazio, uma lareira fria,
uma cadeira derrubada.
Avanço para o interior sem me preocupar em fechar a porta. O pó tinge o
ar como se a casa estivesse encerrada há meses.
– Elora? – Outro passo hesitante nas tábuas do soalho que rangem. O
meu nervosismo aumenta à medida que me aproximo da cama. Colchão nu,
sem cobertores. Abro as gavetas da cómoda: vazias. A despensa da cozinha:
vazia. Os outros armazéns: vazios.
A morte não me é estranha; tem acompanhado Edgewood durante a
maior parte da minha vida. Uma casa só fica vazia quando não resta
ninguém que ocupe o espaço.
As pernas fraquejam-me, os joelhos chocam contra o chão. Algo se parte
dentro de mim, uma rutura limpa e silenciosa. Elora é o meu coração e a
minha alegria. Não pode ter morrido.
Quanto tempo decorreu? A carne de alce que lhe deixei deve ter durado
meses. Não morreu de fome. Terá sido roubada? É raro isso acontecer, mas
com o passar dos anos, o desespero aumenta. Sem comida e sem meios para
caçar, ela definharia lentamente.
– Wren?
Atordoada, viro-me. Miss Millie encontra-se à porta, com o capuz
revestido de gelo. Um rosto desgastado, ossos salientes sob olhos
lacrimejantes. É como se eu tivesse partido há anos, não há meses. Está
mais magra. Um fantasma.
– Há quanto tempo? – murmuro, desalentada. – Há quanto tempo
morreu?
– Morreu? – Miss Millie encara-me com perplexidade. – A Elora não
morreu. Casou-se. Ela e o marido vivem do outro lado da vila.
– Casou-se? – O que significa… – Está viva?
– Claro que está viva. – Miss Millie acerca-se de mim com cautela. –
Não esperávamos que voltasses. É tão bom voltar a ver-te, Wren. – Sorri,
mas é um daqueles sorrisos educados, nada mais. Não confia em mim. Fui
levada como sacrifico do Vento Norte, mas, eis-me aqui, muito vivinha.
Pergunta para o silêncio:
– Onde está o Rei do Gelo?
Por algum motivo, a desconfiança dela aviva a minha irritação.
– Não tens de te preocupar. Não veio. Deu-me autorização para fazer
uma visita.
– Ele deixa-te sair? – Está chocada.
– Por um curto período, sim. Onde está a Elora?
Uma hesitação.
– Miss Millie – repito com voz de ferro. – Onde está a minha irmã?
A mulher cede.
– Vem. – Aponta para fora. – Levo-te até ela.
Chegamos a uma casinha robusta, situada quase na orla da floresta
envolvente. Desponta fumo da chaminé torta, e o cheiro a lenha queimada
transporta-me de volta à infância, encostada a Elora junto à lareira com o
estômago a doer de fome, e a exaustão encobrindo todas as imagens e sons.
Miss Millie bate à porta. O meu coração bate com uma emoção não
muito distinta do medo.
A porta abre-se, e eis a minha irmã. Adorável, suave, segura. Mesmo
após tantos meses, Elora continua a rivalizar com o sol.
O choque fratura-lhe a expressão. Os braços pendem junto ao corpo, mas
dá um passo em frente, levanta a mão como se quisesse tocar-me, como se
questionasse se serei uma aparição.
– Wren? – Esta voz roufenha em que o meu nome ganha forma é o
melhor som que ouço há meses.
A minha garganta incha. Torna-se difícil engolir.
– Elora. – Envolvo-a nos meus braços, nesta versão mais magra e
desvanecida de mim. É tão frágil… demasiado frágil. Um soluço estala no
ar, e não sei quem realmente cede primeiro. Estamos juntas, mesmo que
seja por curto tempo. Digo a mim própria que é suficiente.
– Julguei que… – Elora afasta-se, os fios de cabelo caídos em redor da
cara como tiras de lã encharcadas. O luar brilha na humidade que lhe cobre
as faces. – Julguei que tu…
– Eu sei. – Encaixo-lhe uma madeixa de cabelo atrás da orelha. –
Também eu.
Elora recusa-me o seu rosto, encarando a paisagem gelada com uma
expressão perturbada. Miss Millie já partiu. Não sei se teria preferido a sua
presença, porque o ar alterou-se, moldando-se em volta dos pensamentos de
Elora. Como uma armadura.
– Porquê? – murmura.
Uma palavra, proferida como um palavrão. Encara-me diretamente no
rosto. Elora, a doce Elora, nunca permite que tais emoções mais duras a
sobrecarreguem. Mas os seus olhos brilham como uma lâmina, e dou por
mim a recuar um passo para não me ferir naquela ponta.
– Porque estou aqui? – pergunto. – Queria ver-te…
– Abandonaste-me – rosna, e eu recuo. Envolve a ombreira com uma
mão, as unhas incrustadas de sujidade roídas até ao sabugo. – Tu…
drogaste-me e foste-te embora, e quando acordei, tinhas desaparecido.
Pensei que tinhas morrido. Pensei…
– Elora.
– Não! – Bate com a palma da mão na madeira. Permaneço em silêncio,
a coluna rígida. Elora nunca levanta a voz. Nunca. Vejo-me, de repente,
num lugar em que nunca estive.
Pois foi, menti. Pois foi, droguei-a sem o seu consentimento. Entendo
aquela amargura, o modo como se pode alojar e fazer um nó que nos aperta
a garganta. Assumo a responsabilidade pelo erro. Mas ser descrita de forma
tão vil, ser considerada a causa da dor, fúria e ressentimento da minha irmã,
ignorar o sacrifício que fiz em seu nome… por isso eu não esperava.
O que esperava eu? Que Elora me acolhesse de volta à minha antiga
vida. Que se tivesse mantido uma presença familiar, inalterada. Agora,
olha-me como se não me reconhecesse… E todos os dias pensei nela. Sem
desistir de tentar regressar.
– Lamento a mágoa que te causei – murmuro. – Gostaria de explicar.
– É um pouco tarde para isso, Wren. Devias ter-me contado o que
planeavas. Fazes ideia do que senti quando acordei numa casa vazia,
descobrindo que a minha única irmã partira com o Rei do Gelo para servir
de sacrifício?
– Não havia tempo – digo. – Fiz o que julgava ser melhor.
– Para quem?
Que raio de questão é aquela?
– Para ti. Achas que o deixaria levar-te? – consigo dizer, os molares tão
apertados que me magoam o maxilar.
– Não me deste hipótese.
– Estás a dizer que preferias que eu não tivesse feito nada? Que preferias
a tortura e o sacrifício?
– Tu estás vivinha da silva – comenta.
Forma-se um poço no meu estômago com o desenrolar desta conversa.
Eu não sabia que o Rei do Gelo pouparia a minha vida quando saí de
Edgewood. Preparara-me para morrer, tudo para que Elora vivesse.
– Ajuda-me a perceber. Preferias que eu estivesse morta, para que o meu
truque não tivesse sido em vão?
– Não, claro que não. – Ela cruza os braços, apertando aquela boca de
botão de rosa.
– Então, o que queres dizer?
– Quero dizer – sibila – que tinhas de te armar em heroína. Não fazes
mais nada.
A minha ira sobe ao nível da dela.
– Tentava proteger-te.
– Foi um gesto egoísta!
A palavra tomba como uma foice sobre o meu pescoço. Sinto os
pulmões encolher, a revolta no estômago crescer, a inquietação tornando-se
finalmente um tumulto, uma descrença enjoada. Voltei na esperança de
encontrar euforia, alegria pelo meu regresso. Agora, pergunto-me se a
minha presença será sequer bem-vinda. Tenho as ideias paralisadas,
entaladas algures entre a negação e a descrença. E pergunto-me: quem é que
mudou?
– Elora?
Um homem entra em cena, colocando uma mão protetora na anca de
Elora. Shaw. Recordo-me de quando era um rapaz com demasiadas sardas e
pouco senso comum, mas, entretanto, tornou-se homem, ganhou uma
constituição forte, com ombros grossos como um touro e uma barba bem
aparada. Sabia que era carpinteiro e tinha um bom negócio. E agora é o
marido de Elora.
– Wren? – Pisca lentamente os olhos. – Voltaste.
– Apenas para uma curta visita – asseguro-lhe com um sorriso tenso.
É tão estranha, esta situação. Ver Elora numa casa que não é a nossa,
com um homem que mal conheço. O frio agride-me as costas. Não me
convidaram a entrar. Será que Elora não entende que tudo o que fiz foi para
bem dela, para que pudesse viver, continuar viva, morrer de velhice?
Egoísta. A minha garganta arde com as lágrimas acumuladas. Só à força
é que as impeço de sair. Que mais terei feito, e que se considerasse
egoísmo? Sofrer queimaduras do frio e feridas de cicatrização lenta para
garantir uma boa caça? Gastar dinheiro para que lhe tecessem um novo
vestido, apesar de ter as minhas calças esfarrapadas e cheias de buracos?
Faltar a inúmeras festas para cortar lenha e reparar o telhado, enquanto ela
dançava até lhe doerem os pés? Perdemos os nossos pais há anos, mas as
identidades que nos atribuíram perduraram. Eu, a protetora. Elora, a
protegida. Eu, a sombra, imprópria para ter segurança. Elora, a acolhida.
Elora, a abrigada.
Nunca me quis separar dela. Tomei uma decisão muito difícil. Eu.
Sempre tomei eu as decisões difíceis, sempre coloquei o conforto dela
acima das minhas dificuldades, a felicidade dela acima da minha mágoa.
Justificando a mim mesma que as minhas necessidades não tinham
importância. Que não era digna de tais coisas.
Caso estivessem os nossos papéis invertidos, ter-se-ia ela sacrificado
para me salvar do Rei do Gelo? Teria posto as minhas necessidades, sonhos
e futuro à frente dos seus?
A verdade tem arestas afiadas. No fundo do meu coração, sei bem qual é
a resposta.
Shaw saltita o olhar entre mim e a esposa, com o cenho vincado. Talvez
estranhando ela não me ter convidado a entrar.
Uma fenda fere-me o coração e eu recuo. Se é isto que ela sente, então
devo respeitá-la. Mas raios me partam se ficará a saber o quanto me
magoou.
– Não me posso demorar.
Virando-me, começo a descer os degraus quando Elora me chama.
– Espera.
Paro no último degrau.
– Entra – pede. Uma pausa demorada e indecisa. – Ceia connosco.
Como não consigo ver a expressão de Elora, sou forçada a interpretar a
inflexão do tom de voz. Fúria, tristeza, relutância. Sempre tive intenção de
protegê-la, e ela afirma que as minhas ações foram egoístas? Não sei se
consigo perdoar isso tão facilmente.
E, contudo, foi uma longa travessia. O mínimo que posso fazer é passar
algum tempo com a pessoa que mais adoro neste mundo. Com um último
olhar à paisagem escura, subo as escadas e entro na nova casa da minha
irmã.

Julgara, com plena certeza, de que nada seria mais insuportável do que
partilhar a mesa de jantar com o Rei do Gelo.
Isto é pior.
Ninguém fala. Os utensílios chocam contra a louça de barro rachada.
Elora e Shaw sentam-se num lado da mesa, e eu no outro. A minha irmã
atarefa-se a cortar a lebre. A carne é fibrosa, pois o animal tem pouca
gordura. Habituei-me, entretanto, às ricas refeições servidas na cidadela, e
devo ser uma pessoa realmente horrível para torcer o nariz ao que me é
oferecido, pois sobrevivi durante tanto tempo com iguais alimentos.
– Está muito apetitoso – adianto.
Elora pigarreia, anui com a cabeça, agradecendo.
Felizmente, Shaw tenta estabelecer conversa. Fala sobre o casamento
deles, descrevendo o dia feliz. Se eu não tivesse partido, talvez Elora não
tivesse encontrado alguém com quem partilhar a vida. Talvez a minha
ausência tenha sido uma vantagem.
– Fico feliz por ti – digo, tentando sorrir. Pois se não sorrir, chorarei, e
isso não pode acontecer. – A sério.
Elora vê-me emborcar o vinho por cima da borda do seu próprio copo.
Pousa-o e depois olha de relance para Shaw.
– Há novidades, Wren.
– Oh? – Sinto um latejar na cabeça. Quanto tempo devo aguardar até ser
correto ir-me embora?
– Vamos ter um bebé.
O pedaço de carne na minha boca derrete-se até formar um pedaço de
cinzas. Forço-me a engolir. O único som que se ouve é o do vento, um
lamento triste que faz estremecer as paredes da casa, e o da minha
respiração suave e intermitente. A minha irmã vai ser mãe.
– Mas isso é… – Tremem-me os dedos da mão que segura o garfo. Elora
sempre quis ter uma família, mas este desejo chegou antes do que eu
esperava. Primeiro, casou-se. Agora, está grávida. E eu… encontro-me
presa num casamento sem amor com um homem que não suporta a minha
companhia. Sinto as vias respiratórias obstruírem-se, ao perceber que fui
substituída. Elora gosta de Shaw, não de mim. Abandonou a casa, a nossa
antiga vida.
Requer um esforço deveras corajoso, suavizar a minha expressão.
– Isso é maravilhoso, Elora. Deves estar radiante.
Ela pega no guardanapo de pano que tem no colo, olhos descaídos.
– Sim.
Serei tia, mas não estarei presente para oferecer apoio. Ela tem o Shaw, a
vila. Terá quem tome conta de si. É o que eu sempre desejei que lhe
acontecesse.
– Já escolheram o nome?
– Micah se for rapaz – diz Shaw, apertando a mão da minha irmã sobre a
mesa. – E Iliana se for rapariga.
Iliana era o nome da nossa mãe.
– São nomes maravilhosos – Levo o copo à boca, e só então percebo que
está vazio. Elora fica a observar-me enquanto o encho novamente, mas não
comenta. Pouco me importa. O seu olhar desiludido diz tudo.
Já me tinha resignado a terminar a refeição em silêncio, quando ela
pergunta:
– Wren, porque é que ainda estás viva? Julgava que o Rei do Gelo
sacrificava as mulheres que levava consigo.
Quase perdera a esperança de que Elora fizesse perguntas sobre a minha
vida. Mais vale tarde do que nunca.
– É um engano. Não há sacrifícios.
– Então és prisioneira dele?
– A bem-dizer… – Cá vamos nós. – Sou esposa.
– O quê? – Endireita-se na cadeira, horrorizada. – Diz-me que não é
verdade.
Sinto-me invadir pela vergonha, que me queima a pele do rosto.
– Wren. – A palavra é dita como um chicote. – Como foste capaz de
casar com esse homem? Foi ele que nos trouxe esta miséria!
– Achas que não sei? Não tive propriamente alternativa.
Ela baixa a cabeça, devidamente repreendida.
– Nem tudo é mau – explico num tom mais suave. – Estou sozinha a
maior parte dos dias. Ando à vontade por ali. – Desde que não saia para a
rua. – E ele não é tão cruel como eu pensava. – Estranho, estar a defendê-lo
perante a minha irmã, sendo ele um imortal que me retirou à força de casa.
– Então, deixou-te visitar Edgewood?
– Sim.
– E não tem medo de que fujas?
Não sei porque minto. Para não parecer um fracasso de pessoa? Para
extinguir aqueles olhares de pena?
– Ele confia em mim.
Os olhos de Elora arregalam-se.
– Oh. Isso é… isso é bom. – Lança um olhar hesitante a Shaw –
Compreendes que é uma situação inesperada, certo? Quero acreditar em ti,
mas como é que sabemos se a tua chegada não fará parte de uma
conspiração horrível para levar outra das nossas mulheres?
O meu rubor intensifica-se. Como se atreve ela a pensar que eu alguma
vez a colocaria em perigo?
– Vais ter de confiar em mim. – As palavras são feitas de vidro quando
as profiro.
– Como é que ele é? – pergunta Shaw. Tal como grande parte dos
habitantes de Edgewood, sente curiosidade sobre o Vento Norte… e terror.
– Frio. – Ou talvez distante seja uma descrição mais adequada do seu
carácter. Querendo manter-se isolado, tem dificuldade em ligar-se aos
outros. Não é a primeira vez que me pergunto qual será o motivo.
– Bem – diz Elora –, ele é o Rei do Gelo. A não ser que use outro nome?
– Bóreas. – O som torna-se agradável na minha boca, um som de curvas
deslizantes. Que estranho, pensar nele deste modo. Como um homem, e não
um mito.
Espero que a minha irmã queira saber mais sobre a minha vida. Como
passo o tempo, se fiz alguma amiga. Se estarei bem. Mas ela regressa ao ato
de comer, assinalando o fim da conversa.
É o que é.
24

P assam várias horas da meia-noite quando regresso ao Les gelado, tendo a


temperatura descido a pique desde que o sol se pôs. O casaco que trago
aquece-me o suficiente, mas mal noto, mal reparo nas sombras negras que
se vão infiltrando na periferia da visão. Atravesso o território como fumo,
frágil e à deriva. Os pensamentos fazem círculos infindáveis dentro de mim.
Assim que me acomodo no barco, o gelo derrete e a corrente leva-me de
volta através da Sombra, ao lugar em que me aguarda Fáeton. O animal
cumprimenta-me à chegada, e eu monto-o sem demoras, enrolando os
dedos rígidos nas rédeas. Ele não se queixa. Limita-se a dar meia-volta e
seguir caminho através das Terras Mortas, enquanto eu me aconchego na
sela, perguntando-me que erro terá desencadeado este desfecho.
Deixei Elora com pouco mais do que uma tépida despedida. Um aceno,
um sorriso ferido, e parti. Era evidente que me encontrava já a mais.
Alcançando os portões da fortaleza, um guarda assinala da guarita:
– Dizei o vosso nome e finalidade.
Mantendo uma mão nas rédeas, baixo o capuz.
O silêncio é tão profundo, que ouço o som do homem a endireitar-se.
– Minha senhora – gagueja ele. – O senhor disse que só voltaria amanhã.
– Abram os portões, por favor.
– Com certeza, minha senhora. Avisarei o senhor do seu regresso.
– Não será preciso. – Foi uma noite comprida e árdua, e o meu coração
tem o peso das pedras. As minhas defesas estão demasiado fracas para
sobreviver à presença do rei.
– Sim, minha senhora.
O portão abre-se e Fáeton atravessa-o, com os cascos a bater contra a
rocha. Alcançando as cavalariças, desmonto e conduzo-o para o interior,
tirando-lhe a sela e o travão à luz bruxuleante das lamparinas. O
caminhante-das-trevas encosta o focinho ao meu ombro em sinal de afeto.
Esfrego-lhe o nariz macio, observando com fascínio a forma como as
sombras se aproximam da minha mão, quais ondas.
– Afinal, és um animal pouco bruto – sussurro-lhe, aqueles olhos negros
observando-me com uma inteligência surpreendente.
Pendurado na porta da baia está um balde com escovas de cavalgaduras.
Escolho uma almofaça e começo a deslizá-la em círculos sobre a pele
sombria de Fáeton. Que utilidade terá numa criatura sem pelo, pergunto-me,
mas ele parece apreciar o movimento, mantendo a cabeça baixa de
contentamento, portanto prossigo, avançando gradualmente em direção ao
flanco.
Estou quase a terminar quando o cheiro a cedro me alcança. Não dou
logo a conhecer ao Rei do Gelo que estou ciente da sua presença. Continuo
a escovar Fáeton como se nada fosse. No entanto, o tempo passa e ele
mantém-se calado.
– Vais ficar aí parado a noite toda? – pergunto.
As botas ressoam ao aproximar-se. Junto o rosto ao focinho do
caminhante-das-trevas e continuo a escovar.
– Como sabias que era eu?
Relaxo lentamente os ombros. Talvez a presença do Rei do Gelo não seja
totalmente indesejável depois do desastre que foi a minha visita a
Edgewood. Pelo menos, dele, sei o que esperar. Por estranho que pareça, é
terreno estável.
– O teu cheiro.
– O meu cheiro?
– Ninguém te disse que cheiras a inverno?
Sou capaz de sentir a mente dele a examinar as minhas palavras, vendo-
as deste lado e daquele, numa análise cuidadosa.
– Para ti, que cheiro tem o inverno?
Cheira a coisas afiadas. Ar crepitante e um frio tão intrusivo que temos a
certeza de que nos matará.
– A cedro – explico-lhe. Fáeton resfolega contra o meu pescoço. – Há
uma árvore de cedro em Edgewood que floresce quando chega a época de
tomares uma noiva. Dizem que as árvores simbolizam resiliência e força.
– Ouvi dizer o mesmo – comenta ele, virando-se para o outro lado da
baia, onde a luz se acumula.
A capa encontra-se aberta ao nível do peito, revelando calças largas e
uma camisola comprida de dormir. Todos os sinais do habitual traje cintado
estão ausentes.
– Julguei que passarias a noite com a tua irmã.
– Mudei de ideias.
Ele não pede uma explicação. Limita-se a escolher uma escova elegante
do balde e junta-se a mim para tratar do Fáeton, mantendo as portas do
estábulo abertas para acolher os sons da noite.
– Porque escovas o Fáeton se ele tem a forma de um espírito? –
pergunto. – Não tem pelo.
– Pode já não ser um cavalo, mas continua a gostar do processo.
– Ficará para sempre um caminhante-das-trevas?
Pressinto a sua cautela, embora não mostre sinais exteriores.
– Não tenho a certeza. Nas primeiras décadas, manteve este aspeto de
cavalo, mas com o tempo, a alma dele corrompeu-se. Presumo que, a menos
que regresse à Cidade dos Deuses, continuará a ser um caminhante-das-
trevas. Felizmente, o elo que criámos antes da transformação permanece
intacto. Ele é o único caminhante-das-trevas que aceita a minha autoridade.
– Bóreas encara-me fixamente, vendo os meus olhos vidrados, esquecida a
escova. – E gosta de ti.
– Só podia gostar.
As suas sobrancelhas erguem-se como se concedesse esse ponto. Atira a
escova para dentro o balde e diz:
– Quero mostrar-te uma coisa.
Apetecia-me regressar aos meus aposentos, mas não sinto mais sono
agora do que sentia há horas. Talvez o que me queira mostrar me ajude a
desviar o pensamento de Elora.
– Muito bem.
Aparentemente, passaram-me despercebidos alguns locais ao realizar a
minha investigação da área, pois o Rei do Gelo para numa porta oculta num
corredor em que eu não tinha reparado.
– Era capaz de jurar que esta porta não existia antes.
– Tens razão – diz, empurrando-a. – Só alguns a conseguem ver.
Hesitando por um mero segundo, sigo atrás dele ao longo de um
conjunto de degraus de pedra húmidos que formam uma espiral e descem
até uma toca subterrânea. Chegados ao fundo, um túnel conduz-nos a um
segundo conjunto de escadas, que subimos, contornando um pilar grosso de
pedra. No cimo, há outra porta. O Rei do Gelo abre-a e o meu suspiro
quebra o silêncio.
Verde.
A cor é tão intensamente vívida que desvio a vista. Cheira a terra, a
musgo húmido e a lodo, e o frio nos meus ossos começa a descongelar no
calor abençoado.
É uma estufa.
Uma câmara de vidro encerra uma área que terá o dobro do tamanho da
praça central de Edgewood. O luar penetra através dos vidros geométricos,
banhando o espaço em tons de branco e prateado. Encontro árvores – belas,
extensas, imponentes – e trepadeiras espessas, e plantas floridas enfiadas
em vasos, que cobrem várias mesas e prateleiras, que se distribuem pelo
chão. Tudo se debate por um pouco de espaço, deixando apenas um
caminho muito estreito pelo verde luxuriante.
Pasmada, dirijo-me a uma roseira em plena flor. As flores, gordas como
a minha mão, libertam um aroma açucarado. Vermelho, cor-de-rosa,
amarelo, branco. Presencio tonalidades e matizes que nunca tinha visto.
Os meus pés vagueiam pelo caminho iluminado pelo luar, e pouco tempo
depois, a porta já desapareceu atrás da densidade de folhagem entrelaçada.
– Lírios – digo, estupefacta. Lindas flores brancas em forma de trombeta,
que só vi nos livros. Um ribeiro raso salta divertido à minha direita,
correndo paralelo ao trilho. Os fetos acumulam-se nas margens,
desenrolando as suas longas línguas estriadas para saborear o luar que
escorre como cera de vela. – Isto são…?
– Amoras – diz o rei, atrás de mim.
Imagine-se. Percorro levemente a pele escura e rugosa da fruta. Não é
real. Não pode ser real. A terra não é mais do que madeira frágil e gelada,
mas aqui bate um coração envolto em vidro, quente, pulsante e verde.
– Como é que isto consegue existir? – pergunto, afoita.
Esticando o braço por cima do meu ombro, Bóreas colhe uma das
amoras e oferece-me. O sumo mancha de violeta as pontas dos seus dedos.
O meu olhar ergue-se ao encontro do dele. Uma nova intensidade entra
naquele olhar. Uma oferta. Irei aceitá-la?
Isto não significa nada, explico a mim própria, mesmo quando arranco a
baga das mãos dele e a enfio nos lábios. A doçura explode na minha língua,
e a minha garganta aperta-se. É o sabor de todas as coisas boas que nunca
tive a oportunidade de experimentar.
O Rei do Gelo agarra numa pequena lata metálica e começa a regar as
plantas.
– O meu poder funciona de duas maneiras. Posso chamar o inverno e os
ventos, ou posso bani-los. Estabeleci limites para que eles não entrem neste
espaço.
Duas pulsações depois, a amora, na minha boca, perde o sabor. Conheço
bem o semblante do rei. Conheço o seu coração, ou a falta dele. Sei que ele
não se importa com ninguém. O poder é o seu conforto. O poder é o seu
escudo. O poder é a sua obsessão.
A estufa conseguiu seduzir-me e despertar uma sensação de falsa
segurança, mas agora entendo o que representam verdadeiramente estas
paredes de vidro: uma prisão.
– Estás zangada. – Parece perplexo.
– E tu estás sempre a afirmar o óbvio.
Seguindo o caminho, ando até o perder de vista. É uma bolsa de
tranquilidade, mas ninguém consegue aceder-lhe. O Rei do Gelo esconde
esta estufa como se fosse o segredo vergonhoso que realmente parece ser.
Na próxima curva, o rei aparece, braços cruzados sobre o peito,
obstruindo-me a passagem.
– Porque estás zangada comigo?
– Já pensaste como seria o mundo se eliminasses de vez o inverno?
O silêncio altera-se. Assume uma forma distinta que perde a dureza e
fica mole por dentro.
– Não mudarei de ideias – diz ele –, mas gostava de conhecer a tua
opinião sobre o assunto.
Que esteja disposto a dar-me ouvidos é mais marcante do que um ato.
– És um deus. Como tal, sempre estiveste numa posição de poder.
Mesmo aqui, banido para longe da tua gente, reinas sobre este mundo. Seja
decisão tua, ou não, que o inverno exista para sempre, és tu que decides
quem vive e quem morre.
Deixando cair os braços, avança alguns passos para mim, impelido pela
curiosidade, compelido talvez, tal como eu, por uma atração inexplicável.
– Consideras-me frio e tacanho.
Boa descrição.
– Sim.
– Eu considero-te impetuosa e imprudente.
Encolho os ombros, deixando que os ferrões desses pensamentos
escorram pelas minhas costas.
– Tens direito à tua opinião.
– Não pedi para me tornar num deus. Nasci imortal, e foram-me
concedidos força e poder. É o que sei.
– Não – corrijo-o. – É o que te permites saber.
Os lábios dele abrem-se para retaliar, mas já o deixei para trás, avanço
pela estufa. O trilho divide-se. Escolho o ramal da direita, cruzando uma
pequena ponte pedonal que faz um arco sobre o ribeiro saltitante.
– Se sou obrigado a sofrer – exclama o Rei do Gelo nas minhas costas –,
outros também terão de sofrer.
Um rei que só fala de sofrimento. É mesmo curioso.
Fico tão enojada com a sua falta de autoconhecimento que pondero
estrangulá-lo com uma destas videiras. Pelo menos, ver-me-ia livre desta
emoção que me assola, deste turbilhão que se recusa a abrandar na sua
presença e que apenas se transforma em algo assustador e irreconhecível.
Algo negro e corroído.
Virando-me para trás, cuspo:
– És o deus mais egoísta, tacanho e insensível que tive a infelicidade de
conhecer! Falas de sofrimento, mas a comida acumula-se em montes na tua
mesa, tens roupas feitas das peles mais grossas, vives numa fortaleza capaz
de albergar milhares de pessoas e a doença não destroça o teu corpo. – Dou
um passo em direção a ele, e o rei recua, chocando contra uma das plantas
suspensas. – Viver não é um fardo para ti.
As narinas dele agitam-se de impaciência. É uma vitória. Quanto mais
fendas na sua armadura, mais humano ele se torna. Procuro o que existe
debaixo do exterior endurecido. Procuro a verdade.
– Pensa o que quiseres de mim…
– Pois penso.
– … mas fica a saber que o sofrimento de um mortal termina quando
morre. O de um deus persiste para sempre.
Recordo as cicatrizes que lhe cobrem as costas. Refere-se a isso? Terá
outras cicatrizes, internas, tal como as minhas? Já vislumbrei nele, dor,
ainda que fugaz.
– Conta-me – peço. – Conta-me o que te fez sofrer. – Para que eu não
deteste a presença do meu marido todos os dias.
– Sofri – diz – mais do que alguma vez poderás imaginar. Mas não é o
meu sofrimento que te aflige. Não é o que te ofusca o espírito. – A garganta
dele move-se quando engole em seco. – Vais contar-me o que aconteceu na
tua aldeia?
Não sei o que me choca mais: que ele reconheça a minha dor ou que
procure remediá-la.
– Mas dás-lhe alguma importância? – sussurro. O meu bem-estar é
irrelevante para si. Enquanto eu estiver viva, usará o meu sangue para
fortificar a Sombra. Sou a ferramenta dele, que afia à sua vontade.
– És a minha esposa – diz, como se fosse a única explicação necessária.
Colhe uma rosa de uma planta próxima e coloca-a na minha mão. – Conta-
me.
Eu quero contar-lhe. Não lhe quero contar. Quero estar sozinha. Quero
companhia – qualquer companhia, mesmo a dele. Deu-me uma ordem, mas
com suavidade, como uma pergunta. É por essa razão que revelo esta
semente negra e podre que ganhou raiz dentro de mim.
– A minha irmã está casada. A nossa casa encontra-se vazia. – Embora
eu não tenha estado presente no casamento, Elora deve ter sido uma noiva
encantadora. Sonhava usar fitas douradas no cabelo. – Convidou-me para
jantar com o marido, o Shaw. – Um aroma doce e açucarado sobe-me às
narinas e reparo que esmaguei a flor na mão. As pétalas vermelhas e
mutiladas flutuam para o solo.
Bóreas faz um gesto de quem tenciona falar, mas presenteia-me com o
silêncio, para que possa continuar a minha história.
– O Shaw é um bom homem. Fiável, leal e dedicado. E, contudo, à mesa
de jantar, não reconheci aquela mulher que estava sentada à minha frente.
Não há nada que eu não fizesse pela minha irmã. Sempre procurei
garantir que se sentisse segura e amada. Ergui as paredes das nossas vidas,
o telhado, a porta. Não perceberá ela que todos os meus sacrifícios foram
para seu bem?
– E porque não a reconheceste?
– Naquela noite em que veste a Edgewood, prometi que não a
abandonaria. Mas quebrei a promessa quando lhe dei uma poção para
dormir e ocupei o lugar dela sem o seu conhecimento. Ela ficou zangada
comigo. Disse que…
Não. Não posso dizer, não o direi. Em frente dele, não.
– O que disse ela? – pergunta gentilmente.
Sinto a minha vontade ceder. E pergunto-me que seria assim tão terrível
se eu parasse de remendar os buracos. Se deixasse que as peças caíssem.
Fosse suficientemente corajosa para tal.
– Ela foi cruel. – Foram rebarbas com intenção de magoar, e
conseguiram magoar. – Disse que as minhas ações foram egoístas.
– E magoou-te – afirma, como se compreendesse, mas como é que
poderá compreender-me se não me conhece?
E mágoa? É uma emoção demasiado superficial. Fiquei desolada.
Ofendida. Ela não fez perguntas sobre o meu bem-estar, como se isso não
lhe importasse. Não verificou se eu estava ferida, na mente, no corpo ou na
alma. Procurei a minha irmã gémea de braços abertos, e ela tratou-me como
uma intrusa, uma estranha.
Colho outra flor, absorta.
– Dediquei a vida a cuidar da Elora, mesmo quando éramos crianças.
Dei-lhe comida, roupa, calor, um lar.
Quando o Rei do Gelo se pronuncia, tem uma voz suave, qual murmúrio
de um ribeiro.
– Não acredito que tenhas feito nada egoísta. Pelo contrário, acredito que
foste muito altruísta.
O meu olhar transita para o seu, com espanto. Falta na sua expressão a
indiferença habitual, embora se mantenha, sem dúvida, resguardado.
– Obrigada – digo, tensa, e falo a sério.
Ele desvia o olhar.
– As pessoas nem sempre dizem o que sentem. É possível que a tua irmã
tivesse saudades tuas.
Tal como é possível a uma árvore dar à luz um leitão. O sentimento de
Elora em relação a mim foi bastante claro.
– Estou certa de que não. Ela disse mais. O comentário egoísta nem
sequer foi o pior.
– Não tens de continuar, se te causar dor.
Mostra-se estranhamente compreensivo. É exatamente por isso que não
acredito nele, como é óbvio.
– Podemos não gostar um do outro – digo-lhe com rispidez –, mas não
tens de ser cruel. Não precisas de fingir que te importas. – Prefiro a
natureza insensível do Rei do Gelo a esta compaixão fabricada.
As sobrancelhas dele arqueiam-se lentamente.
– Achas que estou a mentir?
Achava. Agora não tenho a certeza.
– Porque quereria fazer-te mal?
Por ser precisamente isso o que fez – com ou sem intenção – durante
toda a minha vida? Que ganhará em saber? Pontos fracos para explorar? A
desconfiança é a única armadura que me resta.
Um passo fá-lo aproximar-se. As trepadeiras agitam-se nas minhas
costas, e eu arquejo com a sensação de uma delas a descer pela minha
espinha, com um toque provocador, enrolando-se levemente à volta do meu
pulso em jeito de pulseira. Olho para baixo. Está coberta de pequenas flores
brancas com os centros pálidos e soalheiros.
– Como é que fazes isto? Julgava que só o Zéfiro controlava as plantas.
– Estás certa. Só manipulo o ar à volta da trepadeira. – As pálpebras
descaem, recortando o olhar azul subjacente. – Não respondeste à minha
pergunta.
Porque tenho pavor das portas que a resposta possa abrir.
– A vida de Elora está preenchida – sussurro, cheia de dor. – Não precisa
mais de mim. – E não sei o que restará de mim se não for a cuidadora dela.
Se não precisarem da minha pessoa, ainda fará sentido a minha existência?
Se não precisarem da minha pessoa, que razão tem ela, ou outrem, para me
escolher?
O Rei do Gelo avalia a resposta, inclinando a cabeça. É um alívio não
encontrar nenhuma sentença no seu olhar.
– Como é que sabes que ela não precisa de ti?
Ele procura-me com a mão e eu fico hirta, pensando que fará um gesto
imprudente como tocar-me na cara. Mas a mão passa por cima do meu
ombro e, quando recua, traz uma flor azul, quase engolida pelos seus dedos.
– Como é que sabes que ela não precisa de ti? – insiste, com a voz mais
profunda.
A minha pele fica arrepiada com aquela proximidade. É o frio que
sempre o acompanha, digo a mim própria. Nada mais.
– Porque não mo disse.
– Lá por não te ter dito explicitamente – comenta o rei –, não significa
que não precise de ti.
Refere-se à minha irmã ou a outra pessoa?
– Não interessa. – Estico a língua para humedecer os lábios. Encontra-se
demasiado próximo para me deixar confortável, mas não tenho coragem de
o empurrar para trás. – A Elora tem a vida que quer, e eu estou… sozinha.
Está feito. Dei finalmente voz a este medo, mas não me sinto melhor por
isso. Apenas revelei mais outra fraqueza.
– Tens a Orla – salienta. – O cozinheiro Silas.
Um nó de emoção aloja-se na minha garganta.
– Não é nada isso. – Se fosse assim tão fácil.
Algo se acentua no seu olhar como se tivesse finalmente entendido.
– Então o que é?
O que quero eu? Livrar-me desta vergonha? Ligar-me ao homem que é o
meu marido, independentemente do que sinta em relação a ele?
Seja qual for o motivo, não me retraio.
– Estou sozinha, aqui dentro – digo, levando a mão ao coração.
Os vincos que rodeiam os olhos de Bóreas suavizam-se com uma
solenidade inesperada. Encolho-me. Não acredito que tenha confessado esta
horrível verdade perante ele. O rei não se interessa. Sou uma tola.
Mas depois, ele baixa a cabeça, e a minha mão levanta-se para pousar
em cima do seu coração. Para o afastar, digo a mim própria, mesmo vendo
os dedos enroscar-se no tecido do traje de dormir aquecido pelo seu corpo.
A mão dele molda a curva da minha anca antes de deslizar para as minhas
costas, e sinto o coração bater com força, começando a subir.
– Por favor – murmura.
A minha língua recusa-se a cooperar. Sinto o coração disparar, rumo a
um destino desconhecido, enquanto o espaço entre os nossos corpos se
encolhe até desaparecer. As suas coxas roçam nas minhas, mantendo a mão
no meu dorso, ardente como um ferrete.
– Por favor… o quê?
– Por favor, não me esfaqueies por causa disto.
É a última vez que lhe vejo os olhos, porque o Rei do Gelo encurta a
distância, encaixando a sua boca na minha.
Os seus lábios estão secos, mas quentes. Abre-me a boca com uma
ligeira pressão, mas não se aprofunda. Tem um hálito frio, o qual me inunda
a boca como a mais gelada das brisas.
O beijo dura meros batimentos cardíacos. Quando se afasta, tenho a
cabeça à roda, e ele retira-se sem demoras.
– Espera.
Os passos dele abrandam e param. Eu apoio-me na parede atrás de mim
para não cair.
– Porque me beijaste?
Bóreas hesita, depois vira-se para mim.
– Também sei o que é estar sozinho. – Ergue os olhos, azul tão puro e
desprotegido que sinto como se o visse pela primeira vez. – Talvez
possamos fazer companhia um ao outro, na nossa solidão.
25

T alvezNãopossamos fazer companhia um ao outro, na nossa solidão.


consegui pensar em mais nada nos últimos três dias. A memória
perdura como uma nuvem de ar quente. Reside em mim, circulando, até
cobrir a minha língua: o sabor dele, potente, doce e divino.
Passei a tarde a investigar a cidadela. As minhas explorações
conduziram-me a este lugar, ao interior amplo de uma catedral de pedra, as
colunas como costelas, o teto abobadado como pulmões que a respiração
não agita. Longos e retangulares vitrais animam o interior envolto na luz
das velas, com filas de bancos virados para o altar recoberto com um pano.
Empoleirada num dos bancos, cerro os olhos, deixando que os hinos
distantes me percorram enquanto reexamino cada gesto, cada olhar que
trocámos desde aquela noite. Algo aconteceu naquela estufa, algo
assustadoramente muito semelhante a uma verdade. O que eu e Bóreas
partilhámos dificilmente se consideraria um beijo, mas abalou-me até às
solas dos pés.
Não julgava o Rei do Gelo capaz de compaixão. Porquê dar-se ao
trabalho de me confortar, a mim, mortal e sua esposa, por quem ele já
mostrou vezes sem conta não ter qualquer interesse? Algo mudou nele,
ficou mais manso.
Não sei bem como seguir em frente. Estando a planta da papoila na
posse de Zéfiro, em breve terei o tónico, o meio para terminar a minha
sentença. Mas questiono se este caminho se mantém inalterado, ou se o meu
destino começou a divergir.
Levantando-me, refaço os passos e volto ao corredor, fechando a porta
atrás de mim. Percorro a cidadela à procura de Orla, que encontro a limpar
as teias de aranha num dos grandes salões de baile desocupados. Outros
criados limpam o pó das chaminés da lareira. Parece um esforço inútil,
considerando que a sala está vazia. De facto, é uma pena. Daria um
magnífico espaço de convívio.
Aguardo até que ela desça do escadote.
– Orla?
Uma mancha de pó escurece a cana do nariz dela.
– Sim, minha senhora?
– Estava a pensar… – As palavras ficam presas nos dentes. Precisam de
um empurrãozinho. – Há alguma coisa que o Bóreas goste de fazer? Tem
algum passatempo?
Orla, limpando as mãos nas saias, fita-me com um ar estranho.
– Porque pergunta, minha senhora?
Não pretendo divulgar os pormenores da minha calamitosa visita a
Edgewood, por isso limito-me a uma verdade mais básica.
– Ele ajudou-me, e eu gostaria de lhe retribuir.
Ele não me criticou. Não ignorou os meus medos. Não me abandonou.
Escolheu ficar ao meu lado, e tenho medo do que isso signifique.
Orla faz um ar pensativo.
– O senhor tem gosto pela leitura.
Ler. Bem sabia. E depois lembro-me de um certo encontro casual, depois
de eu ter passado a noite a vaguear pelas ruas calcetadas, quando discutimos
o seu apreço pelas histórias. Talvez o convide para me acompanhar ao
teatro.
A ideia tem mérito. Com um agradecimento apressado, vou à procura de
Bóreas. Subo as escadas para o terceiro andar e paro. A entrada da ala sul
encontra-se à minha esquerda. A entrada da ala norte encontra-se à minha
direita, e tem um ar abandonado.
Não vejo guardas.
Bóreas destacou a maior parte do exército para a Sombra, numa tentativa
de impedir a infiltração nas Terras Mortas. Hoje, ninguém irá impedir a
entrada nesta ala proibida. Penso naquele beijo e pergunto-me. Quem é o
Vento Norte? Que cicatrizes carregará, que eu não consigo ver?
É insensato, mas avanço para a ala norte. Encostando as pontas dos
dedos contra uma porta parcialmente aberta, empurro. Abre-se sem ruído.
Recebem-me paredes amarelo-pálidas; em tempos, podem ter sido
vivaças, mas na penumbra têm um aspeto doentio. O espaço é muito mais
exíguo do que esperava. O chão reveste-se de um tapete azul desfiado. Um
grande urso de peluche senta-se a um canto, com os olhos pretos de botão a
encarar o vazio.
É um quarto de criança, com uma cama de criança, cobertores retorcidos
em cima do colchão, como se alguém tivesse dormido neles recentemente,
embora o ar se sinta estagnado e abafado. Há pó por toda a parte, uma
camada espessa. Quem possa ter dormido neste quarto já partiu há muito
tempo.
Os meus pés conduzem-me ao fundo do quarto. Junto aos pés da cama,
encontra-se uma arca de madeira. No interior, há uma coleção de objetos
aparentemente aleatórios, incluindo uma pequena caixa com ilustrações de
figuras de pau. O coração bate descontrolado no meu peito, pois alguns
desenhos contêm um homem com uma
lança. Tem cabelo preto, olhos azuis. A avaliar pela data, foram feitos há
mais de trezentos anos.
Repondo os desenhos na caixa, fecho a arca e afasto-me, com a garganta
demasiado constrangida.
Nunca me passou pela cabeça que Bóreas fosse pai. Talvez o tenha sido,
em tempos? E agora que aqui me encontro, cercada por memórias que não
são minhas, pergunto-me: onde está esta criança agora? Onde está a mãe
desta criança?
Uma pilha de livros empoeirados repousa sobre a mesa de cabeceira,
bem como um pedaço de madeira esculpido com a forma de um pássaro. O
brinquedo cabe perfeitamente na minha mão.
– O que estás a fazer?
Rodopio, e deparo com Bóreas à porta, numa pose enregelada, a sua
silhueta iluminada pelos castiçais do corredor. A fúria nos seus olhos faz-
me recuar um passo.
– Bóreas. – Embato com a anca na coluna da cama.
Dando três passos, ele alcança-me, arranca-me a estatueta da mão e,
gentilmente, repõe-na na mesinha de cabeceira. A visão daqueles dedos
grandes curvados sobre o pequeno objeto desperta em mim uma onda de
tristeza confusa.
– Quem te disse que podias entrar neste quarto? – sibila.
A minha atenção transita para o seu rosto. Ele dá outro passo ameaçador
na minha direção, e é como se a situação da sua vinda a Edgewood se
repetisse: o buraco no meu estômago, o medo que percorre a minha pele e
desperta arrepios. Pode partir-me ao meio tão facilmente.
– Os guardas… – a minha boca está tão seca que preciso de várias
tentativas para falar – disseram que eu podia passar…
O gelo rasteja dos seus pés e cobre o chão e as paredes. As suas mãos
enluvadas contorcem-se.
– Não há guardas alguns – rosna ele. – Mentes. Estás sempre a mentir.
Contorno lentamente a cama, sem me atrever a desviar a atenção do deus
cujos olhos se escurecem com um poder indescritível.
– Tens razão – apresso-me a dizer. – Não havia guardas, mas vi que a
porta estava aberta…
– Então, decidiste entrar numa sala que não te dizia respeito.
– Não. Bem, sim, mas não foi com a intenção de te incomodar. –
Magoar-te. Pois não é a raiva, o botão da flor, e a mágoa e a traição, as suas
raízes? – Eu não sabia – arquejo.
Um chocalhar invade-me o peito quando ele dá mais um passo em
frente, e as minhas pernas embatem numa mesa, na pressa de manter a
distância. O ar desloca-se e agita-se. Fios de cabelo flutuam à volta da
minha cabeça quando a brisa se levanta, crepitando com uma ira como
nunca lhe vi antes.
– Bóreas! – Retraio-me quando um vaso se estilhaça. – Bóreas, acalma-
te!
Uma rajada de vento fustiga a sala, atirando objetos e peças de
mobiliário por todo o lado. Encolho-me para evitar um pequeno projétil. Os
livros são arrancados às prateleiras. Os cobertores que cobrem a cama
descolam-se como pele morta, e o quarto vai-se deteriorando pedaço a
pedaço, e eis o Vento Norte, no meio da tempestade.
– Enganas-me desde o momento em que te tirei de Edgewood – berra. A
sua voz é o ar, e o ar é um trovão. – Fizeste tudo ao teu alcance para minar o
meu comando. Mas hoje, isso termina.
Na palavra termina, fico gelada. O rosto dele parece transmutar-se.
Sempre que respiro, sinto uma vontade de fugir, mas o terror fez os meus
pés ganharem raízes no chão.
A primeira coluna desmorona-se, com uma fenda limpa a meio. Um
queixume sinistro chama a minha atenção para o alto. As fissuras traçam
um mapa no teto, e expandem-se, criando fendas. De repente, a pedra cede
numa chuva de pedregulhos e poeira, e eu atiro-me para o lado, evitando os
destroços que atingem o local em que me encontrava.
Tenho os olhos lacrimejantes quando encontram o Rei do Gelo, detrás da
nuvem de detritos que se adensa.
– Sinto muito – eu sussurro. – Eu não pensava…
– Nunca pensas. – O casaco dele agita-se contra si, e o branco dos seus
olhos sucumbe finalmente à sombra. – Só pensas naquilo que podes ganhar,
nunca nos outros.
Não é verdade. Só penso nos outros, nunca em mim… certo?
Mas tem razão. Eu quis saber o que havia do outro lado da porta, apesar
da insistência de Bóreas para que eu não entrasse na ala norte. Nunca, nem
uma vez, tomei em consideração o seu desejo. Não achei que merecesse
esse respeito, e a constatação chegou tarde demais.
– Eu posso explicar.
– Julgas que não sei quão profunda é a tua aversão? – rosna ele com um
tom gutural. – Pensas que ignoro as facas que trazes contigo, o teu desejo
de as cravar no meu coração tenebroso? – Um riso sinistro desliza da sua
boca.
– Não é nada disso – desculpo-me. – Foi um erro. Não tinha intenção…
Um grito débil foge da minha boca quando as suas luvas se rasgam, e
unhas longas e curvas perfuram o tecido, revelando garras grotescas que
escorrem sombras. Desloco o olhar para o pescoço dele. Desapareceu a
palidez da pele de Bóreas, agora dominada por gavinhas negras que se
contorcem.
Bóreas é um caminhante-das-trevas.
Recuo tão depressa que tropeço nos meus próprios pés e caio no chão. A
sua forma imponente curva-se para a frente, a coluna vertebral e os
membros reorganizam-se. Não é real, não é real, não é…
Solta um rugido com uma força estrondosa.
– Sai! – Desfoca-se enquanto as sombras imundas se reúnem numa
nuvem giratória, lacerando as paredes com um vento mais frio, mais duro e
mais invasivo.
Corro em direção à porta. O vento fustiga-me os calcanhares enquanto
fujo pelo corredor, escalando as escadas dois degraus de cada vez. No piso
térreo, agarro o corrimão da escada e aproveito o meu impulso para me
lançar para o hall de entrada.
– Minha senhora!
A voz estridente de Orla penetra na minha mente apavorada, mas não
consigo parar. A adrenalina acelera-me o sangue nas veias, e eu irrompo
pela porta de entrada, as botas a bater na pedra.
O portão abre-se e eu atravesso-o, escapando para os bosques cobertos
de neve que rodeiam a cidadela, rezando aos deuses que possam existir para
que a minha vida não tenha chegado ao fim.
26

V ou Evitei
morrer.
encarar esta verdade nos olhos durante muito tempo. É
demasiado assustadora. Mas aceitar tem uma vantagem. A dor diminui, e eu
deixo-me ir e há paz.
Desde a minha angustiante fuga da cidadela, o crepúsculo e o amanhecer
têm chegado e partido em rápida sucessão. Os primeiros dois dias estão
difusos na memória. Mergulhei cada vez mais profundamente no território
desolado das Terras Mortas, sem qualquer destino em mente. O rei exigiu
que partisse, e portanto, parti, incitada pelo medo da represália, daqueles
olhos enegrecidos e unhas alongadas.
A doença atingiu-me ao fim do segundo dia.
Apareceu com uma sensação dilacerante no estômago. Cambaleei e caí
curvada, choramingando enquanto a dor me inundava por todo o lado.
Estava tonta, já não tinha a certeza de que rumo tomava. Diante de mim,
uma visão vacilante, cheia de neve, e frio, um frio terrível. Por milagre,
tropecei numa toca abandonada. Foi aí que desmaiei, e aí permaneço,
passados vários dias.
Os meus pensamentos circulam sem destino. Lábios gretados e boca
ressequida, a aspereza da língua dentro da cabeça. A febre é tão profunda
que me derrete os ossos. O coração bate como se fizesse esforço para
continuar.
Não tenho capa, nem luvas, nem capuz. Fugi da cidadela trazendo
apenas o meu vestido – pouco me aquece. Dói-me a garganta. Anseio por
beber, mas tenho as mãos vazias. Quanto mais tempo passar sem vinho,
mais rápido será o meu declínio.
Sinto tanto frio que também já sinto calor.
Mais uma cãibra no abdómen. O estômago revira-se e vomito, expelindo
a bílis aquosa da pequena quantidade de neve ingerida, a minha única
refeição desde que fugi da cidadela. Encolho-me numa bola mais apertada,
com um grito frágil.
– Elora – sussurro.
Mas Elora não está comigo. Encontra-se longe, a salvo, em casa com o
marido. Não poderei despedir-me dela.
É este pensamento mais nítido, estando turvos todos os demais, que
anima algo em mim. Sou bastante orgulhosa, mas serei assim tão orgulhosa
que não regresse ao Rei do Gelo e implore pela minha vida?
Eis as minhas mentiras: Elora precisa de mim. O Rei do Gelo é meu
inimigo. Nada me pode quebrar.
Eis as minhas verdades: Elora escolheu Shaw em vez de mim. O Rei do
Gelo é meu marido. Eu já estou quebrada.
Desconfio que quebrei há muito. Tenho vivido com este buraco no peito
durante tanto tempo que me tornei insensível a ele. Adaptei-me por falta de
alternativa. O que era importante? Elora, sempre Elora. A sua saúde e
segurança, conforto e prosperidade. Ela, a filha preferida, doce e dócil, a
estrela que brilhava mais. Se os meus pais davam prioridade ao seu bem-
estar em detrimento do meu, é porque era merecedora, digna, amada. Wren,
não. Nunca Wren. Qualquer indício de tristeza, medo, infelicidade –
enterrava-o bem fundo, no escuro. Disse a mim própria que os meus
sentimentos não importavam.
E então o Vento Norte chegou a Edgewood e tomei a decisão de que a
minha vida não tinha importância. Esta decisão: sacrificar-me. Pode ter sido
precipitada e insensata, mas, se tivesse de reviver aquele momento, acredito
que não escolheria de forma diferente.
Jurei então matar o Rei do Gelo, pôr fim ao meu sofrimento e regressar a
casa. Mas ao longo dos meses, algo mudou. Aprendi que Bóreas não era tão
rígido ou insensível como parecia à primeira vista. À medida que íamos
convivendo, ele oferecia-me vislumbres de si, e eu aceitava-os com a única
intenção de os transformar em lâminas, as quais espetaria em todas as zonas
vulneráveis do seu corpo. Mas foram presentes que me deu, esses
vislumbres. E isso mudou as coisas. Mudou tudo.
Tola como sou, fui levada a esquecer quem e o que ele era. O todo-
poderoso Rei do Gelo enviou-me para a morte, e eu fui, porque
desaprendera a arte de lutar.
Causa-me vergonha. Sempre lutei. Nunca desisti. Sempre combati a
escuridão e o frio, procurando um fogo que não consigo ver. Porque é que
parei? Porque é que acabo sempre pequena, inferior?
Se tiver de morrer, que seja ao meu modo. De pé, e não de joelhos. E
prefiro deixar este mundo sabendo que levei o Rei do Gelo comigo.
– Levanta-te, Wren. – É a minha voz. – Levanta-te.
Doem-me as articulações e sinto picadas na pele vergastada pelo vento,
mas acabo por rastejar para fora da toca e pôr-me de pé, apoiando-me numa
árvore tombada. Depois de ter passado dias enrolada em mim mesma, dói-
me ficar direita.
No entanto, existe uma chama viva em mim. Força-me a tropeçar, depois
a andar, e assim continuo, refazendo o caminho anterior, trepando por cima
de árvores caídas e acompanhando as mudanças de elevação.
Quando avisto a cidadela, já se fez escuro. As torres contorcem-se contra
a montanha, preto sobreposto ao preto. A muralha aumenta de altura à
medida que me aproximo. É um lugar frio, implacável e pouco acolhedor.
Nunca, nem uma única vez, me senti em casa.
Ocultando-me nas sombras, procuro o buraco na parede exterior perto do
campo de treinos e rastejo de mãos e joelhos. Transposto, dirijo-me para a
ala norte com as pernas a tremer, localizando o terceiro andar, segunda
janela à direita. Ao início, Orla indicou-me alegremente o quarto do rei. Por
sorte, uma árvore morta está encostada à parede da cidadela, e é
suficientemente alta para me permitir alcançar a janela que procuro.
Uma fenda na base do tronco serve-me de ponto de apoio. Sustendo-me
num dos ramos mais baixos, ergo-me para o ramo superior, apesar do meu
cansaço, lutando contra a náusea que se contorce na minha barriga. As
sombras protegem-me dos guardas que patrulham a muralha e dos que
fazem as suas rondas lá em baixo.
Procurando o apoio seguinte, arrasto-me para cima. Para cima, para
cima, até me equilibrar no ramo mais alto, com a cara a centímetros da
janela. O luar embate no vidro, e devolve-me o reflexo.
Não reconheço aquela mulher. As nódoas negras, em forma de crescente,
envolvem olhos raiados de sangue. O cabelo cai-lhe em tufos oleosos, com
falta de escova e limpeza. A cicatriz, no entanto, é uma visão familiar: uma
marca selvagem no rosto dela, uma lembrança de que o passado nunca
desaparece por completo.
Um leve empurrão contra a vidraça e esta abre-se, generosamente
destrancada. Bóreas nunca pensou que a sua esposa entrasse pela janela
com intenção de o matar.
Os aposentos do rei têm o triplo do tamanho dos meus, e contêm várias
portas que conduzem a salas fora do alcance da vista. O próprio rei consiste
numa forma escura, depositada na cama. Dorme de lado, com os cabelos
negros espalhados sobre as almofadas brancas, o cobertor enrolado à volta
da cintura. A largura das suas costas – pele pálida e cicatrizes ainda mais
pálidas – quase brilha.
Com firmeza, aproximo-me do leito. Nas sombras desfocadas, poderia
convencer-me de que ele é um homem, mortal, se não tivesse aquele rosto
esculpido na perfeição. Finalmente, detenho poder, e irei conseguir a
liberdade – a minha e do meu povo.
A lança não está visível, mas seria de esperar. O punhal dele, no entanto,
repousa sobre a mesa de cabeceira. O punho da arma arrefece-me a palma
quente e suada. Tem a firmeza que me falta.
Num único gesto ininterrupto, faço deslizar a arma, retirando-a da
bainha, a ponta beijando-lhe já a base da garganta.
Os olhos abrem-se de rompante.
Azuis, azuis, azuis…
A clareza demora meio segundo a afastar o torpor do olhar. Instala-se
espanto nos traços da expressão assombrosamente bela.
– Esposa – murmura.
A minha mão vacila.
– Não me chames isso.
O queixo dele levanta-se um pouco enquanto perscruta o meu rosto.
– Mas é o que tu és. A minha esposa – Como de costume, mantém uma
reação cuidadosamente resguardada, embora o vinco entre as suas
sobrancelhas revele a perplexidade que sente. – Pensei que te tinha
mandado partir.
Debruço-me para ele, com o joelho assente no colchão para apoio.
– Vais precisar de algo mais forte do que aquele ventinho para me
impedires de acabar a minha tarefa.
– A que tarefa te referes? – Calmo. Assustadoramente calmo. Desde que
abriu os olhos, não pestanejou uma única vez.
– Acho que sabes.
Um pequeno aceno, como se concedesse um ponto.
– Matares-me.
Exponho os dentes, sentindo o estômago a avisar-me. Rezo para não
vomitar.
– Não pareces surpreendido.
– Que tenhas decidido matar-me? – Inspira lenta e profundamente. –
Sabia que o tentarias. Tens-me muito rancor. Um dia, este sentimento
tomaria conta de ti.
– Se sabias – pergunto –, porque não tentaste impedir-me?
As escuras pestanas decaem, protegendo o seu olhar do meu.
– Estás aqui contra a tua vontade. Tirei-te essa escolha, mas não quis
tirar-te a autonomia.
O meu coração acelera o batimento lento. Não devia acreditar nele, mas
acredito. Nada perde em dizer a verdade.
– Sou a primeira mulher que tenta matar-te?
– Não. Mas és a primeira que acho que talvez consiga.
Aproximo-me ainda mais.
– Mandaste-me embora. Para que morresse ao frio. Matar-te seria um ato
de misericórdia.
– Já te disse que sou um deus…
– Não és deus nenhum! – rosno. – És um caminhante-das-trevas.
Ele fica hirto. O meu joelho acerca-se da sua coxa. Não me lembro de ter
mudado de posição, mas agora fiquei sobre ele.
– Negas?
Ele desvia o olhar.
– Não.
Liberta-se um estertor de riso incrédulo.
– Passaste o tempo a avisar-me que não me aventurasse além dos
portões, e afinal um caminhante-das-trevas andava por estes precisos
corredores. – A ironia consegue ser cruel. – Mais alguém sabe?
– Não. – Uma pausa antes de prosseguir. – A transformação tem sido
gradual. Ainda não alcancei o ponto do qual não há retorno.
Não importa. Mentiu. Pôs a minha vida, as vidas dos criados, em risco.
Não pode viver.
– Instalei medidas protetoras. Se eu começar a perder o controlo…
– Cala. Essa. Boca – sibilo, através das minas vias respiratórias
comprimidas. – Tiraste-me tudo o que tinha. A minha mãe, o meu pai, a
minha irmã. Não fazes ideia dos inúmeros sofrimentos que me causaste.
Isto vai ter um fim. O meu sofrimento acabará. Não quero saber se
precisarei de te matar mil vezes para o inverno finalmente acabar. – Faço
mais pressão com a faca. Homens, já matei. Deuses, nunca.
Que a sua morte represente um símbolo. Morte à minha dor. Morte ao
meu tormento. Morte ao poder. Morte à escuridão que envolve os meus
pensamentos.
E, no entanto, não me mexo.
– Fizeste todo este percurso – diz ele, estranhamente intenso, enquanto o
punhal fende a pele vulnerável do seu pescoço. Uma gota de sangue desliza
pela curva, acumulando-se na cavidade da sua garganta. – Porque não vais
até ao fim?
De facto.
Ele adianta-se, e o punhal enterra-se mais um pouco.
– Mata-me.
Os dedos que seguram o punhal começam a tremer. Engulo em seco.
Devia ser um gesto simples, um ato sem qualquer esforço. Não é
assassinato. É vingança. Retribuição. O Vento Norte não possui um coração
verdadeiro, a bem-dizer, nem amor, a não ser ao poder. Então, porque é que
sinto que cometerei um erro?
Ardem-me os olhos, enquanto uma pressão se acumula no meu crânio.
Tudo o que sou, tornei-me insensível, mas, e se o rei encontrou um caminho
através desta armadura? Já presenciou o mecanismo que anima o meu
coração, vulnerabilidades que não revelei a mais ninguém. E não se afastou.
Há que ter isso em conta.
– Mata-me – pede Bóreas. – Despacha isso.
Tremendo, gaguejo.
– Não sou capaz.
Ele fita-me com ar desconfiado.
– Porque não?
– Se soubesse – digo, com a voz hesitante –, achas que estaria neste
dilema? – Se eu tivesse sabido o que se encontrava do outro lado daquela
porta na ala norte, jamais a teria aberto. Porque era a dor que habitava
aquele quarto, que maculava a cama vazia, os livros infantis cheios de
poeira. Abri-lhe uma ferida, e ele sofreu, o que me devia satisfazer, mas não
estou satisfeita nem entendo o motivo.
Soluços emanam de uma profundeza negra dentro de mim.
– Eu odeio-te – cuspo, um som distorcido e miserável sufocado pela
minha própria vergonha. – Odeio-te tanto. – A raiva desvanece-se. – E sinto
muito, sinto muito pelo quarto. Eu não sabia…
A minha cabeça descai. Lágrimas e suor escorrem-me pelo nariz,
salpicando o peito nu do Rei do Gelo. Se eu tivesse tomado esta decisão há
meses, a lâmina perfuraria já aquele coração. Mas esperei. Primeiro, esperei
pelo momento oportuno. Depois esperei, porque ele começou a tratar-me
com simpatia, e agora, quando preciso desesperadamente de agir, hesito.
Falhei na execução desta tarefa. Será que isso faz de mim uma mulher
fraca? Terá a cobardia habitado, escondida, o meu coração? Mesmo que
mate o Rei do Gelo, a minha situação não mudará. Continuarei presa a este
local, sem meios para sair das Terras Mortas. Insuportavelmente sozinha.
– Não tenho para onde ir. – Voz rouca, forçada pela confissão. Não posso
regressar a Edgewood. O que é que me aguarda lá, senão os restos de uma
vida antiga?
Se não pertenço a Edgewood, nem pertenço às Terras Mortas, qual,
então, é o meu lugar? Onde fica a minha casa?
– Sei que me disseste para partir – murmuro.
Ele continua tão quieto que o coração bate visivelmente contra o esterno.
– De que precisas? – murmura Bóreas.
O meu queixo treme, pois não me tinha dado conta do quanto desejava
ouvir aquelas palavras.
– Preciso de… – Conforto. Compaixão. Paciência e compreensão. Saber
que alguém neste mundo também precisa de mim. Bóreas não precisa, eu
sei. A noção é ridícula. Embora me tenha beijado. Dizendo que estava
sozinho, tal como eu. Será assim tão mau dizer-lhe isto em voz alta? – P-
preciso…
A mão dele envolve a minha, sinto aquela pele áspera, mas quente – o
primeiro verdadeiro toque de compaixão que recebo há meses. Choro com
mais força, porque não reparei na ânsia que me preenchia. A última pessoa
com quem contava para me mostrar alguma bondade é ele – o meu marido,
o homem que eu descubro não poder matar.
Sem desviar os olhos dos meus, Bóreas retira o punhal aos meus dedos
trémulos e atira-o para o chão.
– Wren – diz. – Agora, estás a salvo.
Sinto-me demasiado perturbada para me poder mexer. Correu tudo tão
mal, mas acalmo-me, ao sentir aqueles braços envolverem-me, colando o
meu corpo ao seu peito quente e sólido. Agitada pela fúria de uma tormenta,
encontro uma réstia de calma.
O mundo transforma-se em sensações: pele quente contra a minha
bochecha, a lenta respiração contra a minha testa, o roçar das suas mãos
calejadas sobre os meus braços.
Depois: suavidade nas minhas costas. Bóreas paira por cima de mim,
enrolando o cobertor à volta do meu corpo, que se tornou rígido e gelado.
Encontro-me nos meus aposentos, aninhada por uma panóplia de
almofadas. O clarão de uma lamparina ilumina o seu tronco nu.
Inclinando-se para a frente, o rei encaixa uma madeixa de cabelo atrás da
minha orelha, e franze ligeiramente o sobrolho. E é a última coisa de que
me lembro desta noite.
27

A manhã acolhe-me com uma fria bofetada.


A luz do sol entra pela janela, banindo qualquer escuridão
remanescente. A minha cabeça lateja como se fosse esmurrada por alguém
a tentar entrar.
Viro-me de lado. Uma decisão horrível, descubro de imediato. O
estômago vazio ressente-se com uma dor intensa, e nos cantos dos olhos
acumulou-se poeira. Não demora muito para que as recordações se
manifestem. E quando isso acontece, nada mais desejo do que o
esquecimento obscuro do sono.
Que recordações são essas?
Recordo o grão suave da ave de madeira esculpida na minha mão.
Recordo o barulho do primeiro pilar a ruir. Recordo, Mentes. Estás sempre
a mentir. Recordo a escuridão no olhar de Bóreas. Recordo um frio
entorpecedor, a vergonha, o tumulto assim que percebi o meu erro. Recordo
ter fugido, ter-me escondido, ter morrido, a ânsia tão forte pelo vinho que
me tornou num animal irracional, a garganta seca e a barriga vazia. Recordo
o meu regresso à cidadela, a lâmina reluzente apontada à garganta de
Bóreas. E então…
Wren. A voz dele, profunda e apelativa, enterrando-se na minha alma.
Agora, estás a salvo.
Entrei no quarto do Rei do Gelo na calada da noite para o matar, e ele
reconfortou-me.
A noite passada não decorreu como eu imaginava. Por algum motivo, no
momento da verdade, não fui capaz de espetar a lâmina no coração do meu
marido.
Um momento de fraqueza, nada mais. Cheia de culpa, exausta. Mesmo
se o tivesse matado, não teria feito diferença. Ainda não encontrei a porta
que me leva para fora das Terras Mortas. E já não sou bem-vinda em
Edgewood. Quer goste quer não, aqui, onde resido, encontra-se o meu único
santuário.
Os braços tremem-me quando me apoio neles para me sentar, e os
cobertores deslizam até à cintura. Mas que raios… A camisa de dormir
cola-se-me ao peito, completamente encharcada.
– Minha senhora? – Orla bate suavemente à porta, e depois abre-a. Olha
para mim e suspira. – Já acordou! – Sorrindo radiante de orelha a orelha,
corre para a minha cabeceira e toma uma das minhas mãos húmidas nas
suas. – Fico contente por se encontrar bem.
Deparar com o rosto familiar e bondoso de Orla nunca deixa de acalmar
a incerteza.
– Só foi uma noite.
Ela levanta as sobrancelhas.
– Já passou mais tempo do que isso. Está a dormir há uma semana,
minha senhora.
– Uma semana? – Não é possível.
Orla fica séria.
– Estava bastante doente quando voltou. O senhor pediu à Alba para lhe
dar um tónico para um sono profundo e revigorante. A senhora não estava
em si.
Um arrepio de pânico faz-me comichão na pele. Apalpo a camisa de
noite encharcada de suor, como se isso explicasse a trepidação que me
invade.
– Claro que não estava em mim. Ele expulsou-me da cidadela. Quase
morri de hipotermia. Já delirava.
Orla une as mãos, mexendo no avental.
– Fartou-se de falar durante o sono, minha senhora. Pedia vinho, sempre
vinho. Ele ordenou que não lhe desse nada.
O meu sangue enregela-se. Passo as pernas por cima da beira da cama e
dirijo-me ao armário no fundo do quarto, abro as portas e vasculho a pilha
de roupa guardada. Há meses, escondi ali dois odres de vinho, mas não os
encontro.
Alarmada, corro para a minha cómoda e abro a gaveta de baixo. O frasco
que ali ocultei também desapareceu.
Por mais que tente controlar a minha respiração, ela solta-se do peito em
exalações ofegantes. Isto não pode estar a acontecer. Levantando-me, dirijo-
me para as estantes da minha sala de estar, examinando a quarta prateleira a
contar de baixo. Arrasto para fora todos os livros, deixando-os
amontoarem-se no chão, revelando o espaço atrás deles. Não há vinho.
Apenas pó.
Atordoada, volto a colocar os livros na prateleira com a mão a tremer.
Não terei alívio para esta sede?
– Orla. – Olho fixamente para as lombadas entalhadas. – Não andaste a
vasculhar os meus pertences enquanto eu estive doente, pois não?
– Não, minha senhora.
Sinto o corpo começar a perder a energia. Forço a coluna vertebral a
ficar rija como aço. Se o meu esconderijo foi confiscado, hei de recuperá-lo,
e, desta vez, escolherei melhores esconderijos. Afinal de contas, tenho
milhares de portas à minha disposição.
Atravesso o quarto, tencionando pôr mãos à obra, quando deparo com o
reflexo no espelho de corpo inteiro pendurado na parede. A visão é tão
horrível que recuo fisicamente.
Olhos inchados, lábios gretados, e uma tez abatida. Que maravilha. Levo
as mãos às bochechas gretadas. A camisa de noite, que me tapa até ao
joelho, cola-se à minha estrutura encurvada.
Orla manifesta-se ao meu lado.
– Tiremos-lhe essas roupas húmidas.
Estou suficientemente lúcida para compreender que o tónico, esse véu
abençoado do sono, me protegeu dos piores sintomas de abstinência. A
necessidade de humedecer a língua, contudo, não diminuiu. A ânsia
entranha-se na minha pele.
Como se eu tivesse cinco anos, a minha criada descola-me o tecido
húmido e substitui-o por uma túnica limpa e seca. Para meu horror,
lágrimas picam-me os olhos.
Orla faz uma pausa, ajudando-me a vestir um par de calças limpas.
– Minha senhora.
– Orla, já te disse para me tratares por Wren.
– Sim, minha senhora.
Odeio chorar. Como se não tivesse purgado o suficiente ontem à noite.
Ou melhor, na semana passada. Os últimos sete dias não existem para mim.
– E se… – As palavras quedam-se na minha garganta. – Orla, e se o que
acreditasses ser verdade não fosse realmente verdade, e se o que não era
verdade seja verdade, ou pelo menos em parte? – Farei sentido? – E se
cometeste um erro, mas não sabes como corrigi-lo, nem se pode sequer ser
corrigido?
Ela observa-me com atenção, e a sua natural simpatia envolve-nos a
ambas. Ela sabe. Claro que sabe.
– O que aconteceu entre a senhora e o senhor?
– Entrei num quarto em que não devia ter entrado. Fica no terceiro piso,
na ala norte. Um quarto de criança.
Orla não consegue esconder a sua surpresa.
– De quem era aquele quarto? – pergunto.
Ela contorce o avental, uma ruga profunda vincando-lhe o cenho.
– Não me compete a mim dizer, minha senhora.
– Por favor. – Tomo ambas as suas mãos nas minhas. – É mesmo
importante.
Há semanas, ela teria recusado, afastando-se, desaparecido pela porta
com a desculpa de que tinha de dobrar a roupa. Agora, dirige-se para a
cama, esticando os lençóis com força sobre o colchão.
– Há muito tempo, o senhor era casado.
Disto eu sei. Afinal, não sou a primeira das esposas.
– E… tiveram um filho.
Presumi que estivesse envolvida uma criança. Mas ouvi-lo, saber que
tinha um filho, um rapazinho, a avaliar pelo conteúdo do quarto, solta em
mim uma onda premonitória.
– O que aconteceu?
Enrola os dedos contra os cobertores. Depois, ataca a roupa de cama com
força.
– Um homem horrível, horrível, levou-os – sussurra com aspereza. –
Roubou a esposa e o filho do senhor.
Lentamente, contorno a cama para poder observar o rosto de Orla.
Mostra uma expressão abalada, e o meu peito aperta-se em resposta.
– Foram feitos prisioneiros – continua – do outro lado das montanhas a
ocidente, numa zona conhecida por ataques de bandidos. Morreram no meio
de fogo cruzado.
– Quando é que isso aconteceu?
– Diria que há trezentos anos.
Um tempo antes do Gris, quando tudo era verde. Mas o inverno cercou-
nos, e nunca mais desapareceu. O Rei do Gelo deve ter ficado sozinho,
encerrado nesta cidadela, a lamentar aqueles que amou e perdeu.
– Orla – murmuro –, como se chamava o filho dele?
– Calais, minha senhora. Chamava-se Calais.

Quando chega o meio-dia, as dores da fome forçam-me a descer as escadas


até à sala de jantar. A mesa está posta para a nossa típica refeição excessiva,
mas a sala encontra-se vazia, sombria e fria. Observo a lareira vazia e penso
em acender o lume, mas depois mudo de ideias. É melhor não incomodar
ainda mais o Rei do Gelo.
Por isso, sento-me. Deito comida no prato: salsicha, arroz, pão e fruta.
Bastam algumas dentadas para sentir dores no estômago, mas obrigo-me a
comer metade daquilo. Normalmente, Bóreas aparece a seu bel-prazer, pelo
que aprendi a não esperar por ele. Hoje, no entanto, fico a olhar para a porta
à espera da forma imponente. O coração pulsa em mim com uma mistura
confusa de antecipação e nervosismo. Desde esta manhã que não tiro o filho
do rei do pensamento, paralisada por uma dor profunda que não sabia ser
capaz de sentir. Fechada no meu quarto, andei de um lado para o outro.
Sentei-me à janela, com a mão pousada no vidro gelado. Berrei à minha
roupa de cama e perguntei-me que monstro esmagaria uma flor antes de ela
ter tido oportunidade de desabrochar. Calais, apenas um rapaz. Que se foi.
– Perdão? – pergunto à criada. – Reparei que não há vinho na mesa. Por
que motivo?
– Infelizmente, esgotou-se, minha senhora.
Claro. Os meus dedos tamborilam sobre o tampo.
– Sabes se o rei irá acompanhar-me ao jantar?
– Ele não disse, minha senhora. – Lança-me um olhar apologético antes
de levantar a mesa.
Agarro no prato dele antes que ela o possa recolher. Depois encho-o com
um monte de comida – garantindo que as porções individuais não se tocam
entre si – e vou à procura do Rei do Gelo.
Não se encontra nos seus aposentos. Não se encontra na biblioteca. Não
se encontra nas cavalariças. Percorro a cidadela durante tanto tempo que a
comida arrefece. E é quando me lembro da estufa.
A porta do recinto está entreaberta um tudo-nada. Empurro-a para se
abrir por completo, e penetro no dia claro, no brilho da luz contra o vidro. A
mesa à minha esquerda contém vários vasinhos com violetas, além de uma
planta de hortelã que parece desenquadrada. O ar espesso e vaporoso
reveste-me o fundo da garganta quando inspiro: pinho esmagado, açúcar
perfumado, citrinos.
Descubro Bóreas de imediato. Oculto em parte por uma roseira,
aparentemente dedicado a replantar flores. Nem nota a minha presença.
Ele enfia as mãos enluvadas no solo. Terra escura cobre-lhe os pulsos e
os antebraços. Enverga uma túnica branca e fina, cujas mangas compridas
foram arregaçadas à pressa, e tem o cabelo apanhado numa cauda baixa,
com pedaços de folhas emaranhados nas madeixas.
Aqui, Bóreas adquire um ar humilde. Está ligado à terra. Mesmo de
costas para mim, sinto a intensidade nele, na forma como se concentra
totalmente na tarefa, não retendo nada. Ele trabalha a terra como um
lavrador, não como um deus.
Quase me arrependo de o interromper, mas há mais de uma hora que
carrego este prato de comida. Preparando-me para o que quer que aconteça,
pouso o prato numa mesa próxima.
O Rei do Gelo fica imóvel. Lentamente, afasta-se do vaso e começa a
limpar a terra das mãos com um trapo. Sem se virar, fala naquele tom gélido
que me arrepia a pele e acelera o coração.
– O que fazes aqui?
– Oferta de paz – digo, recusando tentativas de intimidação.
Ele lança um relance ao prato.
– Tem veneno?
Abro a boca, e depois fecho-a.
– Se tivesse – resmungo –, creio que não te diria.
Os ombros dele estremecem um pouco como se libertasse uma exalação.
Mas ele não responde, e respiro fundo. Vim fazer as pazes, mas se ele
não mostra interesse, não faz mal.
– Onde está o meu vinho?
Ele inclina a cabeça.
– O teu vinho?
– O que estava no meu quarto.
– Diria que é o meu vinho.
– Não sou tua mulher? – digo. – Não somos parceiros iguais nesta união
de farsa? O vinho é tanto meu como teu, mas não interessa quem reclame a
propriedade sobre ele, não tinhas o direito de mexer nos meus pertences.
Isso é uma invasão de privacidade.
– Queres realmente dar-me uma lição sobre invasão de privacidade? –
Ele mostra-se friamente divertido.
Parte da minha ira abate-se ao recordar o que aconteceu na semana
passada. Num tom impressionantemente equilibrado, começo:
– Ouve…
– Não. – Bóreas vira-se por fim. Perscruta-me dos pés ao couro
cabeludo. A sujidade mancha a pele pálida da sua face. – Ouve com
atenção, Wren, porque não repito. A partir deste momento, acabou-se a
bebida. Já me livrei de todo o vinho da cidadela.
O pânico que tenho tentado suprimir desde que acordei, vergasta-me.
– Não acredito em ti. Há uma adega no subsolo. Centenas de garrafas.
Séculos a colecionar. Não as deitarias fora.
– Foi-se tudo. Até à última gota.
Só pode haver uma explicação. Procura castigar-me. Não aceitarei.
– Passou-te pela cabeça que bebo por ter sido retirada da minha casa,
obrigada a casar contra vontade?
– Já bebias antes de teres vindo.
Os meus lábios apertam-se, comprimem-se até formar um traço muito
fino e branco. Ele tem razão. Eu bebia muito antes de pôr os pés nas Terras
Mortas. Tem sido a minha maior necessidade, a minha maior vergonha.
– Não é assim tão mau – argumento, embora alguma da minha urgência
se tenha desvanecido. – Consigo controlar-me. Não passo propriamente o
dia inteiro a beber até cair para o lado.
– Então só bebes até caíres para o lado nas noites em que és obrigada a
jantar comigo, é isso?
Nas primeiras vezes, era verdade. Agora limito-me… a beber. A minha
mão procura o copo antes de a mente se dar conta do que fez. Um gesto
completamente involuntário.
– Não entendes. – Nem Elora entendia.
– Estás doente – murmura Bóreas, embora não use um tom antipático. –
Não vês como a bebida devasta o teu corpo? Acreditas que te dá força e
clareza, mas enfraquece-te, gota atrás de gota. O vinho é o mentiroso. O
vinho é o ladrão.
Cruzo os braços sobre o estômago, dedos enrolando-se no tecido da
túnica.
– Não estou…
Assim que ele pousa as palmas das mãos nos meus ombros, obrigo-me a
morder o interior da bochecha para travar a enchente de emoções. Mal me
toca, contra a minha vontade, amoleço.
– Só mais um copo – murmuro. – Mais um. Será a última vez. Prometo.
– Wren. – Tem a voz gentil. – Não posso deixar que o faças. Acredites
ou não, estou a tentar ajudar-te.
Uma inalação intensa força o ar para o fundo dos meus pulmões, embora
me sinta a sufocar.
– Os piores sintomas de abstinência já passaram – diz ele. – Falei com a
Alba e ela concordou em ajudar-te nos próximos meses. Há formas de
controlar o desejo.
– E eu não tenho uma palavra a dizer? – Um comentário contundente.
– Não.
Ser-me negada a única coisa sem a qual não posso viver? Não posso
aceitar. Tenho de aceitar. Está convencido de que isto me irá ajudar. Não sei
se acredito nele.
– Usava esta solução algumas vezes – sussurro – para lidar com a morte
dos meus pais. Não era muito frequente. Talvez com poucas semanas de
intervalo, quando a dor se tornava demasiado intensa. Bebia para passar o
tempo. Bebia para me sentir viva de novo. Bebia porque, se não o fizesse,
tinha medo de desesperar. – Deu-me clareza. Curou-me, as dores e tudo o
resto. Curou tudo aquilo que eu odiava em mim.
A ironia é que, quanto mais bebia, mais envergonhada me sentia pelo
meu comportamento destrutivo, pela minha incapacidade de proporcionar
estabilidade emocional a Elora. Era um terrível ciclo contínuo. Não
consegui libertar-me dele.
Bóreas pigarreia.
– Bem, isolar-me também não será o mecanismo mais saudável para
lidar com a situação. – Ele não refere o motivo de tanto isolamento, mas eu
sei. – Será um caminho difícil. Mas és forte. – E dizendo isso, retira as
mãos dos meus ombros, dando-me espaço.
A dor na minha garganta não desiste. Discordo dele, mas… talvez seja
altura de mudar. A sobriedade trará liberdade, conforto, simplicidade à
minha vida. Isso eu sei. Anseio desesperadamente por ela, recebo-a de mãos
estendidas. Mas tenho medo de falhar e de entrar numa espiral descendente
de escuridão, pois o desprezo que sinto por mim mesma tornou-se um peso
demasiado grande para se descartar facilmente. Bóreas considera-me forte?
Veremos o quão forte serei nas próximas semanas.
Afasto uma cadeira da mesa, sento-me e então reúno coragem. Afinal de
contas, foi este o motivo pelo qual o procurei.
– Peço desculpa. Por tudo. Por… te ter magoado.
Bóreas não interrompe, mas ouve, atento.
– Não fazia ideia de que tivesses um filho – sussurro. Manter o contacto
visual requer todas as minhas forças, mas ele merece-o. – Não era da minha
conta. Devia ter respeitado a tua privacidade. As minhas ações foram
egoístas, rudes e completamente inaceitáveis. Prometo que não voltará a
acontecer.
O rei demora o seu tempo a limpar o resto da terra das palmas das mãos.
Depois atira o pano para dentro de um balde e olha para o vidro.
– Foi a Orla quem te contou.
– Não a culpes, por favor. Supliquei-lhe que me contasse.
Ele abana a cabeça.
– Consegues ser especialmente persuasiva quando queres.
Terei detetado um vestígio de relutante admiração naquele tom de voz?
– Obrigado pelo pedido de desculpas. – Ele não olha para mim enquanto
fala, embora eu prefira que o fizesse. Sinto-me como se tivesse estragado
algo, mas nem sei bem o que era.
Decorre muito tempo, até me sentir desconfortável e ter de o preencher.
– Estou mesmo arrependida. A sério. Estou absolutamente estarrecida
pelo meu comportamento e…
– Wren. – Dirige a atenção para o meu rosto, e a minha enchente
emocional seca. Tem um ar cansado. Suponho que a culpa também seja
minha. – Não há problema nenhum.
O meu coração condói-se com a gentileza inesperada, porque eu
esperava bastante pior. Talvez esteja errada ao presumir características suas,
quando não sei sequer metade do que julguei saber.
Nesse instante, a sua atenção regressa ao prato de comida que pousei na
mesa.
Enrubesço.
– Julguei que estarias com fome. Não almoçaste.
– Foi muito simpático da tua parte. – Examina a comida, desconfiado.
– Disse-te que não tem veneno. Tens de confiar na minha palavra,
mesmo que não lhe dês valor. – Se o quisesse matar, teria concluído a
minha investida quando tive oportunidade. A dada altura, hei de enfrentar o
que será o meu futuro, o que isto significa para mim, mas não agora.
Enfiando-se na cadeira desocupada, o rei pega no garfo, leva um pedaço
de salsicha à boca. Quando o seu olhar se fixa no meu, viro-me para o lado.
– Também peço desculpa – diz, após algum tempo – pelas minhas ações
no outro dia. Eu… Às vezes, perco controlo do meu temperamento. Não era
minha intenção expulsar-te da cidadela, mas isso não é desculpa. Peço
desculpa pela dor que te causei.
Se, ao perder a calma, se transforma num caminhante-das-trevas, não
admira que contenha as emoções ao máximo.
– Não faz mal.
– Mas faz – limita-se a dizer. E eu agradeço. Embora esperasse, do Rei
do Gelo, um ataque de raiva, certamente não esperava um pedido de
desculpas, nem a sua compreensão.
– Entendo o que significa perder alguém que se ama – murmuro,
estudando-o de perto. Este momento não é como os outros. Há uma
franqueza, uma facilidade em respirar, uma estranha falta de medo em
divulgar assuntos tão pessoais para mim. – Perdi os meus pais quando tinha
apenas quinze anos.
Ele corta outro pedaço de carne com o garfo, e os olhos erguem-se ao
encontro dos meus.
– Por minha causa.
Algo na minha voz deve ter denunciado esta informação.
– Sim.
Ele encara o prato. Pousa os talheres.
– Lamento.
Mais uma vez, o pedido de desculpas é imprevisto. Não lhe contei para
receber esta reação, mas não posso negar que aqueles remorsos ajudam a
sarar a ferida. Não estou aqui para o castigar. Estou simplesmente aqui. Para
o confortar, acho eu. E para me confortar também.
– Consigo sentir a tua curiosidade – declara. – E podes fazer a pergunta.
E eu penso, Caminhante-das-trevas.
– Não imaginei aquela coisa de as tuas mãos se transformarem em
garras, pois não? – Admito a possibilidade, tendo em conta o delírio em que
me encontrava.
– Não. – A resposta exala amargura.
A minha atenção recai sobre as suas mãos. Enluvadas. Sem sinal das
sombras.
– É por isso que usas luvas?
A boca dele contrai-se. Anui.
– Podes tirá-las, por favor? Queria ver.
Remove as luvas e atira-as para cima da mesa. Sem elas, posso examinar
as mãos expostas do meu marido – o que nunca fiz. As unhas são
pontiagudas, mas parecem bem limadas. As sombras esbatem-se sob a pele
e recuam, como clarões. Não parecem tão monstruosas como na outra noite.
– Quando a Orla dizia que estavas doente…
– Não era capaz de controlar a transformação – suspira, batendo com as
unhas pontiagudas na mesa e produzindo leves estalidos. – Geralmente,
antecipo-a antes que ocorra, mas, em certas semanas, é particularmente
difícil.
– Porquê? O que provoca isso?
– Frustração. Exaustão, quer de corpo quer de mente. – E num tom mais
baixo: – Confusão.
– E o sal? Enfraquece-te? – Não imagino que seja possível, tendo em
conta o que come, o sangue que pulsa nas suas veias.
– Quanto mais me aproximo da mudança, mais vulnerável me torno –
suspira. – O sal puro não me pode matar como mataria um caminhante-das-
trevas normal. Afinal de contas, não deixo de ser imortal. Mas, se for
exposto ao sal na forma de um caminhante-das-trevas, ficarei com um
poder muito enfraquecido.
Absorvo esta informação e guardo-a na memória para a examinar mais
tarde.
– Os teus serviçais sabem? É por isso que usas as luvas, para esconderes
deles a prova da mudança?
– Sabem, mas as luvas servem para tranquilizar a minha alma. Não gosto
de recordar aquilo em que me estou a tornar. Prefiro não ver as marcas na
pele.
Compreendo o sentimento. É por isso que evito espelhos e superfícies
com reflexos.
– E o teu cheiro? Não devias cheirar como os caminhantes-das-trevas, a
metal e madeira queimada?
– A essência do meu ser está irmanada com o inverno. Não consigo
separar-me dela com essa facilidade.
Parece fazer sentido.
– Há quanto tempo estás assim?
– A mudança começou a manifestar-se após a morte da minha mulher e
do meu filho. Tem piorado nas últimas décadas. – A sua garganta sobe e
desce. – Não imaginas o estado em que fiquei quando morreram. Raiva,
desespero, tristeza… mudou-me, como uma mancha na minha alma.
Pelo contrário, sei bem o que a morte nos causa. Como nos lança à
mercê da vida, e não voltamos a ficar inteiros.
– Caí num poço tão vasto que nem tenho esperança de rever a lua. Desde
então que permaneço ali dentro, debatendo-me contra os meus instintos
mais básicos.
Volto a concentrar-me nas sombras que se movem sob a sua pele. De vez
em quando, uma mancha manifesta-se na zona do pescoço e depois
desaparece.
– Tens medo de mim?
Fixo o olhar no dele, e mantenho-o. Consigo ver: uma janela aberta,
aquele interior suave e vulnerável à mostra. E afirmo, com total
honestidade:
– Não mais do que tinha dantes.
Acena com a cabeça após algum tempo e volta a sentar-se na cadeira.
Gotas de suor salpicam-lhe o lábio superior.
– Plantaste tudo isto aqui na estufa?
– Sim.
– Reconforta-te, este lugar. Plantar coisas.
Olha para as mãos, esquecido do prato de comida.
– Sempre tive inveja do poder do Zéfiro. Dar vida em vez de morte. Isto
– toca na folha fibrosa de uma planta próxima – não é fácil para mim.
– Se gostas tanto, porque insistes em prolongar o inverno? Podias ter
plantas em todo o lado, e não apenas na estufa.
– Porque insististe em voltar para casa quando é óbvio que a tua irmã
nunca deu valor a nada do que fizeste por ela?
Aquelas palavras ferem-me. Significa que contêm alguma verdade.
– Mas, marido – resmungo –, falamos de ti.
– Falávamos – corrige.
– Não acredito que ela não dê valor.
– Alguma vez te agradeceu? – pergunta. – Alguma vez se ofereceu para
te aliviar o fardo?
Por mais que rebusque nas memórias, não me consigo recordar de uma
época em que o tenha feito. Eram os papéis que nos cabiam.
– Não era responsabilidade dela.
Espalma a mão contra a mesa, assustando-me.
– Não. A responsabilidade dela era cuidar de ti, tal como tu cuidavas
dela. Compreendo que quisesse que carregasses o fardo quando as duas
eram crianças, mas agora não é desculpa. A tua irmã é uma mulher adulta.
Optou conscientemente por sacrificar o teu bem-estar.
Os meus olhos enchem-se de água. Lágrimas, outra vez? Começa a
tornar-se um hábito terrível.
– Estou lentamente a tomar consciência desse facto, mas é a única
família que me resta.
O rei afasta o prato, e apoia os cotovelos na mesa.
– E ainda tens vontade de voltar para Edgewood? – pergunta com
prudência.
– Não sei. – Mais uma verdade. Elora tratou-me tão mal. De um modo
imperdoável. Algumas noites, fico acordada, imaginando formas de a
magoar tal como ela me magoou.
Bóreas diz:
– Agarramo-nos ao que nos é familiar. E normalmente, o medo impede-
nos de ultrapassar esse limite.
As pontas dos meus dedos deslizam pelo prato de comida. Pego numa
amora antes que me falte a coragem.
– O que é que um deus pode temer? – pergunto-lhe.
– Aparentemente, bastantes coisas.
– A morte?
– Não. – Arqueia uma sobrancelha negra. – Lamento desiludir-te.
– Então, ainda bem que não te matei – digo, numa tentativa de aliviar o
ambiente.
A boca dele perde um pouco da dureza.
– Mas bem querias. – Retira uma uva do prato e mastiga pensativamente.
Eu escolho o mirtilo. – Porque não foste avante? Tiveste todas as
oportunidades.
– Não faço ideia. – No momento em questão, não consegui ir até ao fim.
Algo me impediu. – Mas não creio que sejas o vilão que te pintam os outros
– À medida que vou conhecendo o Vento Norte, compenetro-me de que
carrega muitas mágoas, feridas encapsuladas numa armadura endurecida.
Não somos assim tão diferentes, nós os dois.
Pega num pedaço de queijo do prato. No entanto, em vez de o levar à
boca, oferece-mo. Aceito-o com espanto. A seguir, ele empurra o prato para
o outro lado da mesa, para que possamos partilhar a refeição.
– Julgo que, com o tempo, podemos tornar-nos amigos – digo.
– Amigos. – A intensidade daquele olhar apanha-me desprevenida. – É o
que queres?
Não posso ter o que quero, ou melhor, já não existe. A minha aldeia, a
minha irmã, os meus pais novamente vivos. E sim, uma parte de mim
anseia por ter uma amizade, de qualquer tipo, mesmo com um imortal,
mesmo com o meu captor. Existe tão pouca interação na minha vida. É um
desejo totalmente egoísta.
– Sim, é o que quero.
– Nunca tive amigos.
Não consigo evitar: rio-me.
– O que foi? – Parece ter ficado afrontado, aquelas sobrancelhas escuras
desenhadas sobre a testa. O Rei do Gelo é lamentavelmente desprovido de
capacidades sociais.
– Nada. – O meu riso acalma-se quando ele pega noutra fatia de queijo. –
Isso não me surpreende minimamente.
O ar carrancudo apodera-se por completo do rosto dele. Fungo de troça,
e enfio uma mão-cheia de bagas na boca. Juntos, limpamos o prato.
O Rei do Gelo bate com um dedo na mesa. Vira a cabeça para observar a
terra árida ao fundo.
– Então, o que é que os amigos costumam fazer?
Ele parece nervoso. O que é bastante ternurento.
– Conversam. Ouvem-se uns aos outros. Passam tempo juntos.
– Queres dizer que conversarias comigo de bom grado? – As rugas à
volta dos seus olhos aprofundam-se e reparo que ele se ri de mim, à sua
maneira.
Cruzo os braços.
– Posso tentar.
A ideia causa-lhe desconforto, mas…
– Bem, também posso tentar.
E é assim que o deixo.
Não como verdadeiros amigos. Mas, talvez, já não sendo inimigos.
28

H ojeOmarca o surgimento da nova lua: dia do Julgamento.


Vento Norte já se encerrou no salão onde, do nascer ao pôr do sol,
avalia as vidas passadas dos que se reúnem ali, prontos a enfrentar a
eternidade. Informou, muito claramente, que não deve ser incomodado.
Ergo o punho e bato à porta. O estrondo ecoa no corredor coberto de
teias de aranha e desvanece-se, deixando um silêncio esganiçado no seu
rasto.
Uma voz baixa e assustadora sibila:
– Quem ousa interromper-me?
A tranca cai e a porta abre-se. Penetro no interior, contorno uma das
colunas e lanço um sorriso ao Rei do Gelo.
– A tua esposa.
Ele fica despojado de palavras enquanto eu atravesso o vasto espaço,
ladeado de pilares, cumprimentando os recém-falecidos que aguardam
sentença. Um tapete comprido e gasto liga a entrada ao trono de pedra
escura em que se senta o rei. Aquelas maçãs do rosto pálidas e afiladas
ficam mais vincadas, e a boca contorce-se numa expressão de total aversão.
O meu sorriso expande-se. Ao menos, o rei é previsível.
Muitos dos espectros fazem vénias quando passo, para minha surpresa.
Só depois de me ter instalado na cadeira vaga à esquerda dele é que Bóreas
pergunta calmamente:
– O que fazes aqui?
– És um homem inteligente – murmuro em resposta, observando a sala.
Talvez vinte espectros aguardem o Julgamento. Um enorme candelabro
agarra-se ao teto abobadado por uma pesada corrente, a única luz no interior
sombrio. – Vê se percebes.
– Um deus – corrige-me. Mas perscruta-me num estudo atento. – Não
tens bom ar.
– Agradeço a tua franqueza – respondo secamente. Quando ele continua
o seu exame, esfrego os olhos que me ardem e inclino-me para a frente,
permitindo que a máscara se desprenda. – Dormi mal. – Lençóis
emaranhados e pele encharcada de suor descrevem as minhas noites. Sonho
com vinho, sempre com vinho. Apesar da luta, o meu compromisso com a
sobriedade mantém-se firme.
Já decorreram doze dias desde a minha última bebida. Não é fácil. Está
muito longe de ser fácil. Mas este é o meu calvário.
– A Alba sabe? – pergunta Bóreas. Se não estou equivocada, a sua voz
suavizou-se ao compreender.
– Está ciente. – Um pequeno suspiro. – Ela deu-me um tónico para
dormir. Ajuda um pouco. – Quando me lembro de o tomar. Presenteio-o
com um sorriso tenso. – Não te preocupes, marido. Isto também há de
passar.
O braço da cadeira crava-se no meu flanco. Mudo para uma posição
mais confortável, só depois percebo que não existe. O assento do trono –
uma versão mais pequena do de Bóreas – parece compor-se de facas.
– Como é que aguentas sentar-te nisto?
– Se estás incomodada, podes sair.
– Dá-me a tua capa.
A atenção dele vira-se para os espectros que aguardam, que rapidamente
desviam a vista.
– Porquê?
– Dá-me e não faças perguntas. – Mexo os meus dedos, expetante. Não é
como se o frio o afetasse. Só consigo sentir-me verdadeiramente quente, na
cidadela, quando estou no quarto e tenho a lareira acesa.
Soltando certos murmúrios, ele retira os braços das mangas, revelando
uma túnica de ardósia debruada a branco, e entrega-me a capa enrolada.
Enfio o tecido pesado sobre as costas, para me proteger da borda afiada do
braço da cadeira. Muito melhor.
Reparando que ele continua a olhar fixamente para mim, aponto para os
seus súbditos.
– Podes continuar.
– Não interromperás mais?
Desde a nossa conversa amigável de há uns dias, estabelecemos uma
trégua provisória mútua. Ele até começou a cumprimentar-me quando nos
cruzamos nos corredores, e nem sequer sob ameaça.
A bem-dizer, estou curiosa em ver como funciona o seu reinado das
Terras Mortas. Para estas almas, ele é rei. E eu questiono como esse rei
governa.
– Tens a minha palavra – fungo.
Ele regressa aos seus afazeres.
– Como te chamas?
Um homem maltrapilho, de joelhos na dianteira da fila, levanta a vista.
– Adamo de Rockthorn, meu senhor.
– Adamo de Rockthorn. – Os olhos do rei desfocam-se, e eu assusto-me
ao ver uma agitação no ar que o separa do espectro. Eventualmente, o ar
ondulante dissipa-se, tal como a vista de Bóreas. O homem acobarda-se sob
o olhar gelado.
– Adamo de Rockthorn – diz. – Marido, irmão, pai. Sobrevivem-te a tua
mulher e os teus três filhos, a tua mãe e a tua irmã. Ganhavas a vida como
comerciante de lã. Quando tinhas cinco anos, empurraste a tua irmã para
dentro de um lago gelado, quase a afogando. Quando tinhas nove anos,
espancaste e mataste um rafeiro da aldeia que se atreveu a pedir migalhas.
O meu ofegar é quase inaudível, mas Bóreas fita-me pelo canto do olho.
Ao fundo da fila, as almas juntam-se mais, como se temessem chamar a
atenção do rei.
– Por favor, meu senhor. – A ponta do nariz do homem roça o tapete
gasto em que se ajoelha. – Sei que fiz más escolhas na vida, mas eu era
apenas criança…
– Aos dezasseis anos – continua Bóreas –, atraíste uma rapariga da tua
aldeia para o celeiro e violaste-a. Novamente, aos dezassete anos, mas com
uma vítima diferente. Tens forma de te defender destes atos?
– Foi uma altura complicada – afirma, sem fôlego –, meu senhor. O meu
pai morrera recentemente. Eu andava zangado, confuso. Precisava de sentir
que ainda controlava alguma coisa.
– E por causa disso, agrediste estas mulheres? – Há uma pausa. – Olha
para mim. – O homem levanta a cabeça. As lágrimas brilham-lhe nas faces
deslavadas. Recordo a história do passado de Orla, e a repulsa aumenta de
tal forma que bloqueia as minhas vias respiratórias. Percebo que avaliei mal
Bóreas em mais do que um aspeto. Parti do princípio de que ele não se
preocupava em julgar os mortos de forma justa, que não analisava os
pormenores dos seus passados. Qualquer que seja o castigo que este homem
receba, será justo.
– A tua esposa tem noção do quão depravados são os teus pensamentos?
De como, apesar dos teus votos matrimoniais, atraíste, não uma, mas duas
mulheres para o bosque, onde as violaste?
– Não, meu senhor – arqueja, tremendo tanto que cai de lado. – Ela está
cega pelo seu amor por mim.
– Erraste – diz o Vento Norte. – Erraste muito, e durante muito tempo.
– Por favor, meu senhor. Os meus filhos. Eu amo os meus filhos.
– O amor por um filho não basta. Compreendes que as tuas ações
tiveram consequências duradouras? Infligiste feridas a estas mulheres que
sobreviverão à tua morte. – O frio no seu tom cristaliza-se, e juro que o
sinto raspar na minha pele. – És condenado ao Fosso pela violação de cinco
mulheres durante a tua vida, incluindo a tua esposa. A partir de agora, em
cada lua nova, serás castrado e o teu apêndice voltará a crescer até ao
próximo ciclo lunar. Que o teu sofrimento seja eterno.
O homem lamuriento desaparece, deixando vazio o espaço em que se
ajoelhou. A tensão aumenta quanto mais dura o silêncio. Na minha visão
periférica, vejo Bóreas inspirar e depois expirar lentamente. Esta
responsabilidade é-lhe pesada.
– O próximo da fila, dê um passo em frente.
Uma mulher junto ao início da fila desvia-se e revela um rapazinho, que
terá os seus oito anos. Incita-o, e ele avança e ajoelha-se. Coitadinho. O
cabelo escuro, que terá sido preto em vida, pende-lhe sobre as orelhas,
coberto de terra.
– Como te chamas?
– Nolan de Ashwing – murmura. – Meu senhor.
O ar reluz enquanto o Rei do Gelo investiga o passado do rapaz.
Algumas pulsações depois, ele solta a ligação.
– Nolan de Ashwing. Sobrevivem-te a tua irmã mais velha e os teus pais.
Está correto?
Um aceno de cabeça lento e sombrio.
– Adoeci, meu senhor. A mamã disse que eu ia melhorar, mas não podia
pagar os medicamentos.
Bóreas ameniza-se na presença da criança. Um vislumbre de quem ele
teria sido com o filho.
– Vejo que empurraste a tua irmã no ano passado. Ela roubou-te o
brinquedo?
– Eu não quis magoá-la. A mamã disse-me para pedir desculpa, e eu
pedi. – O rapaz funga, e o meu coração aperta-se. – Vai mandar-me para um
sítio mau?
O rei senta-se novamente na cadeira, a avaliar a situação.
– Não, Nolan, não te vou mandar para um sítio mau. Vou mandar-te para
um lugar que tem mais crianças, onde poderás brincar o dia inteiro. Terás
sempre o suficiente para comer e nunca ficarás doente. Há uma mulher que
tomará conta de ti. Parece-te bem?
O rapaz levanta o olhar lacrimejante.
– A mamã também estará lá?
– Infelizmente, vai demorar a chegar. Mas terás muitas histórias para lhe
contar quando ela aparecer, seja lá quando for.
O rapaz, mais tranquilo por não ser castigado, acalma-se. Irradia da sua
cara gorducha uma paz como nunca vi em ninguém.
Confiança plena no Vento Norte.
Bóreas levanta a mão. Surge um relâmpago e o rapaz desaparece.
O rei não chama logo o próximo espectro, como se precisasse de tempo
para acalmar as emoções complicadas que lhe dançam nos olhos.
Virando-me para ele na cadeira, murmuro:
– Foi muito bondoso da tua parte tranquilizares o rapaz. – Ele não
responde e eu pergunto: – Olhar para o passado de uma pessoa, como é a
sensação?
Ele fixa o olhar em frente e não pestaneja.
– É como se uma onda se abatesse em cima de mim. Sou invadido por
imagens e sons, o culminar da vida de alguém, e cabe-me separar os fios,
encontrar a linha do tempo desde o início e segui-la até ao fim. É mais fácil
com as crianças. Têm motivos simples, mais relacionados com a emoção do
que com o intelecto. Não devo ter mandado mais que uma mão-cheia de
crianças para Neumovos, mas eram mais velhas.
– E o Fosso?
– Nunca enviei uma criança para o Fosso.
Abro a boca para lhe fazer mais perguntas, mas então batem à porta.
Bóreas fica hirto, as mãos enluvadas agarram os braços do trono. Cai um
silêncio pesado.
– Entra – exclamo.
A porta range, abrindo-se lentamente. Os espectros viram-se para ver
quem é a outra pessoa suficientemente tola para interromper o Julgamento
do Rei do Gelo.
– Aqui, Thyamine. – Aceno para a criada, cujos olhos parecem enormes
por detrás dos óculos. Ela vem a correr na minha direção com um prato
pequeno e coberto. Pelo canto do olho, o lábio superior de Bóreas contorce-
se, as suas sobrancelhas estão tão juntas que formam uma linha contínua. É
digno de louvor que não rosne ante a aproximação dela.
Ela faz uma reverência, de cabeça baixa.
– Senhora Wren – diz ela, lançando um olhar assustado ao rei, que se
eriça. Depois de entregar o prato, afasta-se. Bóreas continua a furar um
buraco na minha face com o olhar semicerrado.
Aponto para os súbditos que aguardam.
– Continua, por favor.
– Esta foi a última vez que interrompeste ou devo esperar outra ridícula
aparição?
– Depende. Que outras ridículas aparições tens em mente?
O rosto franze-se, mas no fim digna-se a responder com outra pergunta:
– O que te trouxe ela?
– Não tens um Julgamento para conduzir?
Ele lança um olhar para a fila de espectros curiosos.
– Pode esperar.
Sinto uma surpresa agradável por ele ter suspendido o seu dever, embora
temporariamente, tendo em conta que entrei aqui sem ser convidada.
– Bolo de baunilha e framboesa – anuncio, retirando a cobertura redonda
de prata que cobre o prato para expor a fatia perfeita.
A minha boca enche-se de água ao levar um pedaço à boca, soltando um
pequeno gemido. Silas nunca falha.
Ofereço o garfo a Bóreas, com as bochechas inchadas.
– Bolo? – Caem migalhas no meu colo. Olho para a porcaria que fiz e
depois para Bóreas, que me fita com uma sobrancelha arqueada, os olhos
frios, frios mostrando um raro divertimento.
– Não, obrigado.
Ainda não me convenci de que detesta bolo. Ninguém detesta bolo.
– Vamos. Uma dentadinha? – Seguro o garfo virado para ele, e ele afasta
a cara, desconfiado. – Por favor? – Faço beicinho. – Os amigos partilham a
sobremesa, sabes.
Ele encara a minha boca o tempo suficiente para sentir as bochechas a
aquecer. Nunca fui de recuar, por isso mantenho a posição, lutando contra o
desejo de humedecer os lábios, perguntando-me se o seu olhar ficaria
profundo e intenso ante tal gesto.
– Se eu provar – pergunta –, ficas calada até ao final da sessão?
– Sim. – Talvez.
Ele vira-se para a fatia de bolo. A curva da sua garganta chama a minha
atenção, e o breve aceno de cabeça dá-me a oportunidade de lhe levar o
garfo à boca.
Separa os lábios, que se fecham à volta dos dentes do garfo. Quando o
retiro, o doce escorrega, contido na boca cujo hálito é frio, mas cujos lábios,
neste momento, parecem macios e quentes.
– É bom?
Encolhe os ombros, mastiga. Denuncia-o a curva da boca.
– Gostaste. – Agito o garfo. – Admite.
– Não gostei nada. – Mas faz um gesto para o prato e eu entrego-lhe o
garfo para que possa enfiar outro pedaço na boca.
Pigarreando, recosto-me, vendo-o comer metade da sobremesa em
poucas dentadas. Não consigo evitar o sorriso que se espalha pela minha
cara.
O Vento Norte gosta de bolo.
Bem sabia.
– Próximo da fila, avance – diz a voz de Bóreas, profunda e ressonante,
enchendo o espaço amplo e cheio de ecos.
Uma mulher tímida avança aos passinhos, curvada debaixo de um xaile
grosso.
– Como te…
O rei endurece. Põe-se de pé, num movimento sinuoso tão lesto que os
meus olhos mortais não acompanham, enquanto as portas do salão se abrem
com tanta força que são arrancadas das dobradiças.
O ar grita enquanto uma escuridão envolvente transpõe o limiar e entra
na câmara. A lança materializa-se na mão de Bóreas, crepitando de poder. O
gelo irrompe da ponta da lança, disparando contra o turbilhão da cor da
noite mais profunda.
Um por um, os espectros tombam.
Agarro-me aos braços da minha cadeira, hirta. Uma mulher cai no chão
com os braços esticados. Depois um homem, fustigado na face pela própria
trança ao tombar em frente. O frio morde as minhas mãos nuas, o meu
pescoço nu, as nuvens acumulam-se nas vigas curvas do teto. Começa a
nevar, num manto – um meio de defesa contra a infiltração. A força negra
recua ligeiramente.
– O que está a acontecer? – A minha voz perde-se no vento, os olhos
lacrimejando incontroláveis. – Caminhantes-das-trevas?
Ao meu lado, Bóreas range os dentes.
– Não – cospe a palavra. – É só mais um parente afastado.
Ele coloca-se à minha frente e uma substância fria desliza sobre a minha
pele. Espreito por entre aqueles ombros, incapaz de desviar o olhar dos
espectros cadavéricos. Os mortos não podem morrer de novo. Então, a que
poder terão sucumbido?
Da neblina, uma voz pergunta.
– Quem se atreve a colher do Jardim do Torpor?
O meu coração para.
Lentamente, viro a cabeça para a direita. Encontro uma figura gigantesca
contra a luz que emana das janelas atrás de si. Deve ter dois metros e meio,
ou mais, com ombros tão largos que se assemelham a montanhas.
Volto a olhar para as formas quietas dos espectros. Adormeceram. Pois o
deus que encara o Rei do Gelo é o Sono em pessoa.
Na cave, era uma mera voz no vazio. Mas agora está aqui, uma entidade
com forma. Embora só me consiga concentrar nos olhos.
Quando procuro entender aquele rosto, os trajes que enverga, a imagem
desvia-se.
– Bóreas – diz o deus que representa o Sono.
Passado um instante, Bóreas baixa a arma e inclina a cabeça.
– Faz algum tempo, primo.
– Alguns séculos, mais ou menos.
O Rei do Gelo abarca os espectros inconscientes, a boca franzida de
desagrado.
– Interrompeste uma ocasião crítica para estas almas. Não me agradam
visitas inesperadas.
A forma escura e indefinida avança um passo.
– Eu também posso falar de visitas inesperadas. – O olhar sem fundo do
Sono fixa o meu, parcialmente atrás da proteção de Bóreas – E atrevo-me a
dizer que a tua mulher também pode.
O pelo da minha nuca eriça-se, sentindo a atmosfera em redor agitar-se
com um frio indescritível.
– Já se conheceram. – Não é uma pergunta.
– Pode dizer-se que sim – indica o deus.
O rei pergunta-me.
– Ele diz a verdade? Conheces o Sono?
Hesito, e cavo a minha sepultura. Não posso perder a confiança de
Bóreas, agora, quando comecei a sentir esta mudança entre nós, um
entendimento mútuo com potencial para mais.
– Wren. – Não acredita no primo, mas não tem provas para refutá-lo.
Terei de usar uma verdade seletiva.
– Conheci o Sono – digo.
Bóreas fica tenso. O próprio ar, ao que parece, fica tenso. Quero
desesperadamente olhar para o rosto do homem que tem estado tão distante,
tão afastado de mim, mas cujas emoções mais profundas tinham começado
a degelar. Receio o que possa encontrar ali. Desilusão? Tudo que não seja
aceitação magoar-me-á.
Recuando um passo, coloca-se atrás de mim, negando-me a sua
expressão.
– Explica.
Há uma fronteira ténue entre a mentira e a verdade. Não tenho de contar
todos os pormenores. Apenas o suficiente para responder ao pedido.
– Acompanhei o Zéfiro à caverna do Sono. O teu irmão precisava de
uma planta para fazer um tónico especial. Enquanto o Zéfiro o distraía,
colhi as ervas de que ele precisava.
A mão enluvada do Vento Norte agarra-me pela nuca, e sinto o frio do
couro na minha pele corada.
– Eu disse-te para te manteres afastada dele – rosna por entre dentes
cerrados.
– E desde quando faço o que pedes? – O nó na garganta aumenta. Lá
consigo engoli-lo. – Tentava ajudar um amigo.
Ele funga de desdém.
– O meu irmão não é teu amigo.
Dói-me o peito, a temperatura cai a pique e o ar à volta das minhas
narinas cristaliza. Não há nada mais assustador do que o temperamento do
Vento Norte, a sombra negra que brota da sua pele.
– Controla-te – sibilo. – Lamento se fui contra o que pediste, mas não
podes esperar que fique trancada neste local para o resto da vida.
Ele passa por mim.
– Conversarmos depois, esposa.
– Voltámos a este tratamento? – Pior do que a sua reação, é saber que me
meti nesta alhada por minha própria culpa.
Ele ignora-me, virando-se para o parente.
– O que pretendes, primo?
– Só quero que me devolvam o que me foi tirado. – Um olhar expectante
e ponderado.
Mesmo se eu quisesse devolver as flores, não posso.
– Não as tenho. O Zéfiro ficou com elas. Não sei para onde foi. – Tudo
verdades.
O Sono agita o tronco num gesto que parece um encolher de ombros.
– Então exijo compensação pelas plantas que retiraste.
Bóreas fica muito tenso ao meu lado.
– Quanto? – coaxo. Não tenho vintém.
Uma gargalhada, áspera e plena, desperta uma corrente esquisita no meu
corpo.
– Não me interessa o teu dinheiro. Interessam-me os teus sonhos.
Pisco os olhos com ar parvo. Os meus sonhos?
– Estás a abusar – interrompe Bóreas.
– Será? Sabes quanto tempo demora uma flor de papoila a crescer? Sete
anos. Ela colheu seis flores, o que representa a perda de quarenta e dois
anos. Creio que um sonho, algo de que ela já não se lembrará, é um preço
justo.
Tecnicamente, só colhi três flores. Mas Thyamine também colheu outras
três.
– Que necessidade tens de sonhos? – pergunta Bóreas. – O mundo
onírico não faz parte do teu reino, mas do Tecelão dos Sonhos.
Ouço o sorriso na voz de Sono quando ele responde:
– Respeitei os limites que acordámos há muito tempo. Até hoje, não pus
os pés dentro da tua alta muralha de pedra. Não tirei nada que fosse tua
posse. A tua mulher não ter conhecimento do nosso acordo deve-se à tua
falta de supervisão, não à minha. Ela abusou, e eu espero ser compensado
pelo que perdi.
Faz-se uma pausa. Convenço-me de que Bóreas atacaria o primo, a
indicar pelo seu rosnar.
– E a respeito do meu irmão e do seu castigo? Também esteve envolvido
no roubo das papoilas.
– Lidarei em devida altura com o Vento Oeste.
– Deixa o sono levar um dos meus sonhos – digo a Bóreas. – Não faz
mal.
– Não.
– Que importância tem?
– Porque embora o Tecelão de Sonhos governe o reino onírico, não tem
qualquer controlo sobre o que se passa na mente dos indivíduos. – Bóreas
encara o primo com repugnância. – Ao presenteá-lo com um sonho,
concedes-lhe acesso aos teus pensamentos, ao funcionamento íntimo da tua
consciência. A influência do Tecelão de Sonhos pode deturpar as tuas
crenças e opiniões, e até potencialmente as tuas ações. Quem serás tu, se
estas não te pertencerem?
Estou subitamente grata por Bóreas intervir antes que se aproveitassem
de mim.
– Embora isto seja verdade – indica o Sono –, não contraria que preciso
de algo com igual valor para compensar as plantas que perdi.
Um raciocínio frio e calculista do rei.
– Tens uma dívida para com o Tecelão de Sonhos, é isso? Então leva um
dos meus sonhos e dá-o ao teu filho. Que este assunto fique resolvido.
A escuridão pulsa, e o Sono torna-se mais nítido. Vê-se um queixo,
firme e anguloso, e um nariz bulboso.
– Estás a falar a sério?
– Não tens de fazer isso – protesto, agarrando o braço de Bóreas. – O
castigo é meu. Que seja eu a pagá-lo.
– E eu devo proteger-te, por isso deixa-me escudar-te disto.
Os meus lábios separam-se, mas nenhum som se escapa da garganta
apertada.
– Mesmo sendo culpa minha?
Ele afaga o meu queixo com o polegar.
– Mesmo assim.
Já desce as escadas antes de eu notar que se foi embora. Encontra o Sono
a meio do salão, enquanto eu permaneço de pé no cimo do estrado, assolada
pelos nervos, e pela culpa, o animal que me morde os calcanhares, que
consegue sempre farejar-me.
Se não tivesse acompanhado Zéfiro à caverna do Sono, o rei não se
encontraria nesta situação. Bóreas, o meu marido, que absorve os golpes
que me são destinados. Uma pontada no peito desperta nova onda de
remorsos. Nunca ninguém se deu a tanto trabalho para me proteger. Ele
continua cego e enganado, pois o motivo também importa saber. Bóreas não
pode descobrir que entrei na caverna do Sono e roubei as papoilas, porque
queria acabar com a sua vida imortal.
Duas mãos difusas levantam-se e pousam sobre as têmporas do rei.
Decorrem poucos segundos até que o Sono recue.
– Agora, pisga-te – riposta Bóreas.
Com a retirada do deus, os espectros acordam, sentando-se e olhando em
redor em estado de confusão. Bóreas regressa ao seu trono, com um
músculo agitado no maxilar. Sento-me à beira da cadeira, cautelosa.
– O Tecelão de Sonhos passa agora a controlar os teus sonhos?
– O Tecelão de Sonhos – murmura – não conhece os sonhos dos divinos.
Assim, o seu poder não nos afeta na mesma medida que aos mortais. Um
sonho meu é uma bênção para ele, mas não, ele não será capaz de se
infiltrar nos meus sonhos ou pensamentos. Ele levou um único sonho, cujo
poder pode extrair para aplicar no seu reino. Não me importa.
Não acredito inteiramente no seu ar descontraído.
– Desculpa – murmuro. – Queres que saia?
Ele lança-me um olhar demorado e inquisidor.
– Eu pedi-te para saíres?
Fico com as faces coradas. Não é da minha conta, mas quero saber:
– Que sonho lhe deste?
Bóreas debruça-se no trono, um sorrisinho curvando-lhe a boca.
O que responde é:
– Passa-me o bolo.
29

C omo se tem tornado hábito, acordo antes do sol. Do outro lado da janela,
existe um céu macerado, o tom da meia-noite tornando-se, aos poucos,
cinzento. Hoje, o cenário invernoso não me causa uma aceitação resignada.
O mundo é frio, mas também belo, adorável, puro.
Foi uma semana estranha, pois Bóreas e eu continuamos a navegar pelas
dores do crescimento da nossa relação que se desenvolve. As refeições têm
sido momentos agradáveis e ninguém ficou mais espantado do que eu ao
descobrir que o rei é afinal um bom conversador quando está para aí virado.
Uma vez, quase o fiz rir.
Saltando da cama, apronto-me para iniciar o dia. Tenho uma ideia. Uma
ideia arrojada, brilhante e luminosa que não pode esperar. Arrasto o pente
pelo cabelo e faço uma trança nas costas. Quando finalmente estou vestida e
preparada para saudar a manhã, o Sol já nasceu e pontilha as mais altas
ramagens de um dourado reluzente.
Estou a sair pela porta quando algo sobre a secretária me chama a
atenção. Franzo a testa ao pegar num envelope selado que me é dirigido
numa caligrafia elegante. Quebrando o selo de cera, desdobro o pergaminho
e leio.
Wren, o tónico está pronto. Responde por favor com a indicação de hora
e data para nos encontrarmos. Deixa a tua resposta no buraco junto ao
muro do pátio.
O tónico para dormir. Não me teria dado ao trabalho de pilhar o Jardim
do Torpor se não desejasse a morte do rei, mas muitas semanas decorreram
desde então, e já não tenho por certo o meu caminho. Talvez devesse pensar
nisto mais tarde, quando não me sentir tão dividida.
– Orla! – chamo, enfiando o casaco de inverno e escondendo a
mensagem no bolso do peito.
Ela faz uma pausa enquanto reúne a roupa suja.
– Sim, minha senhora?
– Precisarei de ajuda dos criados, hoje. Quero limpar o salão de baile sul,
de cima a baixo. E também falar com o Silas.
A boca dela abre-se, depois encerra-se, perplexa.
– Posso perguntar o motivo?
Lanço-lhe um sorriso ao sair pela porta.
– Vou organizar uma festa.

O salão de baile sul é um espaço longo e retangular, envolto em escuridão e


negligência. O ar encontra-se tão repleto de pó que sinto as partículas
depositarem-se no fundo da minha garganta. Há enormes e frias lareiras de
pedra em cada ponta, e cortinados revestem toda a parede ocidental.
Reavivar esta sala não vai ser fácil. Mas anseio pelo desafio.
Antes de mais, há que trocar os cortinados.
– Orla.
A minha aia entra com duas outras criadas, mais um jovem que arrasta
consigo um escadote.
– Preciso de ferramentas. E podem acender as lareiras, por favor? – Está
na hora de lhes dar uso.
Os criados dispersam-se. Ao fim de poucos minutos, labaredas iluminam
as lareiras, devorando pilhas de lenha cortada e seca. Usando o escadote,
retiro um dos varões dos cortinados, por cima das janelas, inclinando-o para
o chão de modo que o pano se solte. O baque do tecido nas tábuas do chão é
estranhamente satisfatório, embora a nuvem de pó resultante me cause
tosse.
– Minha senhora. – Orla agita-se sob mim, nervosa, com o olhar a
transitar dos cortinados para a janela desobstruída. A luz do sol brilhante e
cintilante inunda o espaço, tão intensa que os meus olhos lacrimejam. –
Tem a certeza de que o senhor não se vai importar com isto?
– Absoluta. – Desço a escada e pulo de cima dos últimos degraus.
Agarrando uma das pontas do cortinado, arrasto-o em toda a extensão para
a lareira. Sorrio enquanto atiro o enorme pedaço de tecido para a grelha e o
vejo arder.
– Minha senhora! – Um gemido angustiado segue-se à exclamação de
Orla. Passos rápidos ecoam nas minhas costas. – Não pode queimar os
cortinados!
– Eram uma ofensa pessoal. Tinham de ir.
Mais um som esganiçado. Adoro a Orla, inclusive estas tendências
ansiosas. Sobretudo as tendências ansiosas. Com algumas palavrinhas de
apaziguamento, mando-a dar uma ajuda na cozinha.
Demoro uma hora a desmontar – e a destruir – os cortinados. Outra para
limpar as teias de aranha das traves. Duas horas para remover a poeira
secular que cobre o chão. Um pouco de sabão, um pouco de verniz, e as
tábuas do soalho começam a brilhar.
Ao longo da manhã, vou consultando Silas. Ele está desejoso de servir
um grande festim. Nada demasiado extravagante, insisto. Alce, se houver.
Talvez um guisado farto.
Uma hora após o meio-dia, estou atarefada a pendurar faixas de tecido
transparente por cima de uma chaminé, quando as portas ao fundo do
corredor se escancaram com estrondo, e se levanta um vento uivante e
ameaçador que extingue o fogo em fumo e a memória da luz.
Franzo os lábios, irritada.
As botas do Rei do Gelo esmagam o chão recentemente polido, cada
passo singular e preciso. Era de esperar, a sua presença. Tenho-me
preparado para este momento toda a manhã: o que eu poderei dizer, o que
ele poderá responder. Afinal, é meu direito, estar aqui. É meu direito,
desenvolver alguma felicidade na minha vida.
– O que significa tudo isto? – pergunta o rei.
Continuo a instalar o tecido azul-claro até ficar satisfeita com o
resultado. Só então me viro para Bóreas. Culotes apertadas e botas até ao
joelho, um sobretudo de marta-zibelina salpicado de neve. Todos os botões
redondos e dourados brilham, e tem o colarinho aberto para revelar as
reentrâncias sombrias das clavículas.
– Tens de ser um pouco mais específico, marido.
Indica a parede a oeste, com as suas inúmeras janelas, agora poupadas ao
peso insuportável das camadas de tecido.
– O que é que aconteceu aos cortinados?
Afasto-me para examinar o meu trabalho. Os vidros encontram-se tão
limpos que enganam a mente, como nem os houvesse, apenas arcos abertos
que mostram a vista desobstruída do pátio. Uma grande melhoria
relativamente à escuridão prévia, no que me diz respeito.
Virando-me com um encolher de ombros, respondo:
– Queimei-os.
Os olhos dele ficam esbugalhados.
– Queimaste-os?
– Sim. – O aroma do cedro incita os meus sentidos, quando passo por
ele. – Não havia problema, pois não?
Ele persegue os meus calcanhares, dando passadas tão desagradáveis
com aquelas botas que fico contente por termos limpado o chão antes da sua
vinda, caso contrário seria obrigada a encontrar caminho por um território
de sujidade.
– Há problema, sim senhora – rosna. – Destruíste o que era meu!
– Sim, bem, está feito. E para de falar assim comigo. Assustas a
criadagem.
Os visados encolhem-se num monte à volta de uma das mesas
destapadas, com as mãos emaranhadas em fitas, olhos a transitar nervosos,
de mim para o rei. Ele lança-lhes um relance antes de se virar furioso, para
mim.
– Eu não assusto…
– Assustas, sim – respondo, arrancando outro pedaço de gaze do monte
ao canto. – Sai-me do caminho.
As suas narinas inflamam-se, mas ele desvia-se. Dirijo-me para a lareira
no outro lado do salão. Bóreas segue-me, ainda a fumegar.
– Não organizarás nada sem a minha autorização – sibila. – Proíbo-o.
Solto um riso curto e espantado. Oh, ele tem graça.
– É demasiado tarde para cancelar. – Atiro-lhe um sorriso largo e
radiante por cima do ombro. – Vá, segura aqui.
Ele fita o tecido nas mãos, como se ter aparecido de repente na sua posse
o confundisse.
– Demasiado tarde? – Uma veia lateja-lhe na têmpora. – Explica!
Que homem, este.
– É muito simples – digo eu, compondo uma ponta da gaze azul por
cima da lareira. – Dentro de três dias, haverá uma celebração. Eu fiz um
convite ao povo de Neumovos na esperança de estabelecer uma aliança
entre nós. – Dando um passo atrás, examino o meu talento. A ponta
esquerda do tecido precisa de ser um pouco mais alta, mas eu não chego ali.
– Uma parceria? – pergunta, incrédulo. – Com Neumovos?
– Bóreas, importas-te de ajustar o tecido para ficar centrado?
Ele franze o sobrolho, mas faz o que lhe peço. O casaco estica-se nas
suas costas quando levanta os braços para mexer no posicionamento do
tecido.
– Nem são nossos aliados, nem nossos iguais.
– É o que tu pensas.
– Sou um deus. Eu sei. Foram a julgamento e agora servem-me. Este é o
castigo deles. Foram mortais insensatos…
– Tal como eu – respondo, porque a sua insolência começa a irritar-me. –
Chega de viver no passado, Bóreas. Não podes passar o resto da tua
imortalidade trancado nesta cidadela, porque eu recuso-me a viver assim.
Ele fica hirto, rosto parcialmente virado para o lado, e um buraco
começa a crescer no meu estômago. Ele põe-se a caminhar em direção à
porta, mas eu agarro-o pelo braço, fazendo-o parar.
– Espera. – Os meus dedos pressionam o músculo retesado, e suspiro. –
Peço desculpa. Foi insensível da minha parte. – Culpei-o por algo que não
compreendo, pois ainda não consegui formar uma imagem clara da
situação. Não pedi respostas, em parte porque esperava que ele as
oferecesse livremente.
Duas pulsações decorrem antes de dizer:
– Um pedido de desculpas, vindo de ti? Mas o mundo vai acabar?
– Imbecil – murmuro, e ele solta um trejeito de escárnio, libertando
tensão da sua postura. Fico aliviada por não ter arruinado o momento por
completo.
Passados poucos segundos, solto-o, vagamente ciente dos criados que
continuam a decorar o salão.
– Porque sentes um ódio tão grande pelos mortais?
Responde, calmamente:
– Os bandidos.
Obviamente.
– Lamento a tua perda. Nem consigo imaginar a dor que sentiste –
hesito, depois decido insistir. Tem de ser dito. – Sei que não deve ser o que
queres ouvir, mas nem todos os humanos são iguais. As pessoas podem
surpreender-te.
– Tal como tu?
Ultimamente, tenho-me questionado em que medida poderia ser
diferente a minha vida se me conformasse com as circunstâncias. Debato-
me porque é aquilo que costumo fazer, mas sinto-me cansada e sofro,
embora também julgue que esteja a ficar curada. A ânsia nunca desaparece
por completo, mas a necessidade de beber diminui com o tempo. Sem a
garrafa, sinto a cabeça finalmente limpa, apesar das dores crescentes.
Não estou a desistir, apenas a… por a missão em pausa, a minha vontade
de regressar a Edgewood em espera. Escolho um rumo totalmente distinto
para mim.
– Talvez seja hora de nos afastarmos das trevas – digo, acercando-me
dele –, e caminhar para a luz.
– O que me pode a luz oferecer? Tenho tudo de que necessito.
Teme-a, à luz. E porque não havia de temer, depois do que perdeu? É
uma força poderosa de iluminação.
– Não é assim tão mau – digo, baixinho – se não fizeres o caminho
sozinho.
Bóreas vira-se para mim. O rosto de um rei cruel, mas que não se resume
a arestas afiadas. Da última vez que estivemos assim próximos, as paredes
geométricas de vidro da estufa encerravam-nos. Revelei as minhas
inseguranças e ele não me criticou. Espera que eu faça o mesmo.
Há um estrondo na cozinha. Pigarreando, afasto-me para avaliar as
nossas tarefas.
– O tecido ainda está torto. – Rodopiando sobre o calcanhar, encaminho-
me para a mesa comprida encostada à parede em largas passadas. Se
mantiver um ritmo descontraído, nem parece que estou a fugir.
– Wren!
Suspiro, virando-me para ele.
– Sim?
– Não permitirei que as pessoas de Neumovos se infiltrem em minha
casa…
– Não infiltrarão. Foram convidadas.
– Seja como for, não são bem-vindas. Vais cancelar esta festa estúpida. –
O Vento Norte, um deus cuja existência abarca milénios, amuou.
Uma pilha de grinaldas terminadas aguarda a sua colocação. Agarrando
na que está no topo, subo a escada e penduro-a num dos pregos que martelei
previamente. Bóreas mantém a escada estável enquanto posiciono a coroa.
Ainda não reparou que, embora queira impedir os meus planos, continua a
ajudar.
– És a minha esposa – continua –, e a minha palavra é lei.
Mordo o interior da bochecha para não me desfazer em gargalhadas. A
sério, ele é bastante inofensivo. Parece um gatinho.
– Bem – digo, mal me recomponho –, hoje, és o meu marido, e eu é que
mando. Vou seguir em frente com isto. Podes tentar impedir-me, mas o tiro
vai sair-te pela culatra. Agora, passa-me esse martelo.
O seu olhar carrancudo embate no meu. Julga que cederei, antes dele.
Será que não me conhece minimamente?
Bóreas, por fim, entrega-me o martelo. E não volta a queixar-se até ao
fim do dia.

Três dias. É menos tempo do que o necessário para avivar esta cidadela em
ruínas e abandonada, mas eu nunca recusei um desafio. Assim que vejo o
salão de baile transformado, e todas as superfícies a reluzir do polimento, o
espaço artisticamente arranjado com mesas, cadeiras e tecidos a cobri-las,
transito o meu foco para o resto da fortaleza. O Rei do Gelo observa a
transformação da casa com hostilidade, oscilando entre o horror e a raiva.
Quando a oportunidade se me apresenta, atribuo-lhe algumas tarefas, pois
ajuda-o a distrair-se da mudança.
Bóreas pendura uma tapeçaria que retirei de um baú no corredor de
entrada. O martelo bate com um som abafado, como se chocasse contra
uma superfície macia. Ele desce do escadote, a praguejar em surdina.
– Deixa-me ver – peço.
Ele aperta a mão contra o peito com um olhar desconfiado.
Suspiro, exasperada.
– Só quero garantir que não há nada partido.
– Quem me diz que não me torces os dedos para ganhar a discussão?
– Terás de confiar em mim.
Mal as palavras saem, tenho vontade de as recuperar. Os olhos de Bóreas
escurecem de emoção.
Confiar em mim.
Uma brisa empurra-me para a frente, contra o corpo imponente do rei, e
um objeto pesado pousa na curva das minhas costas – a mão dele, apoiada
na parte inferior das minhas costas.
– Sabes que podes – murmuro – confiar em mim. – Não soa a mentira. Já
se passaram semanas desde que estive com Zéfiro. Nem me lembro do
motivo por que precisava do tónico de dormir.
– Esposa…
– Wren – corrijo, embora com afeto.
Percorre as vértebras inferiores da minha coluna com o polegar,
apertando a pele macia.
– Wren. Não me dou bem com interações sociais. – A voz é pouco mais
alta que um sussurro. Não consigo desviar o olhar da sua boca.
– Comigo, não tens problema – suspiro.
Toca-me no queixo, empurrando-o para baixo, fazendo os meus lábios
separem-se, expor os dentes, aquele movimento estranho e hipnotizante, tal
como a carícia deliberada ao longo das minhas costas.
– És diferente.
– Em que sentido?
A mão nas minhas costas volta a deslizar para baixo, parando
imediatamente antes do traseiro.
Sinto a pele arrepiar-se, enquanto se acumula calor no meu baixo-ventre.
– És determinada.
Fungo.
– Sabes mesmo como seduzir uma mulher com palavras…
– Era um elogio.
– Se o dizes.
– Determinada, destemida e corajosa. Nunca conheci ninguém como tu.
– Os olhos dele ardem com uma intensidade que me assusta, ao mesmo
tempo que um pedaço de mim, aquele que não se considera digno de tais
palavras, se ameniza. – Nunca conheci quem me desafiasse a conhecer o
que se encontra além da minha experiência. Nunca conheci alguém que se
entranhasse tão facilmente na minha pele. – Inspira profundamente, como
se atraísse o meu cheiro para os seus pulmões.
Determinada. Talvez seja, afinal, um elogio.
Deixando cair as mãos, Bóreas recua e diz:
– Ouviste falar em Makarios?
Abano a cabeça. Espaço. Distância. Digo a mim mesma que é um sinal
positivo.
– As Terras Mortas são um reino complexo. Neumovos é apenas uma
faceta de todo este lugar. Há também os Prados, para onde são enviadas as
almas que não cometeram crimes nem realizaram atos dignos. É uma vida
após a morte pacífica, ainda que um pouco aborrecida. Depois há o Fosso,
para onde são enviados apenas os verdadeiros corruptos, incluindo os meus
antepassados.
– Já falaste disso, mas não entendo bem o que seja.
– É um vazio. Um abismo. Uma cratera na terra. – Arrasta o polegar e o
indicador pelos lados da boca. – Tecnicamente, encontra-se debaixo das
Terras Mortas. É onde os deuses e os homens recebem o castigo eterno,
caso os seus atos os condenem a tal destino.
– Porque não estás lá? Não ajudaste a derrubar os teus pais?
Enquanto se instala o silêncio, acalmo esta necessidade vincada de
querer que responda mais rapidamente. Se as nossas posições estivessem
trocadas, e eu tivesse de derrubar as paredes que erguera à minha volta,
quereria saber se podia prosseguir em segurança.
– Eu e os meus irmãos fomos poupados – diz Bóreas por fim –, pois
contribuímos para o sucesso da tomada de poder. Mas os novos deuses não
confiaram na nossa lealdade. Portanto, baniram-nos.
– E mandaram-te para aqui?
– Tirámos à sorte. Fui o azarado que herdou as Terras Mortas.
– E Makarios? De que se trata? – pergunto, ansiosa por saber.
– Não sei bem explicar o que é Makarios. Só experimentando. – E agora
hesita, a respiração contida no peito. – Gostaria de te mostrar que as Terras
Mortas, apesar da sua negrura, também têm um grande potencial para a luz.
E nada brilha com maior intensidade do que Makarios.
30

M akarios fica a três dias de viagem da cidadela, se formos no cavalo,


mas poucas horas, pelo rio. Aproximando-se da margem gelada de
Mnemenos, Bóreas derrete o gelo com um toque, e o bote com forma de
seta desliza pela corrente a montante até embater no solo.
Protegida pelo grosso casaco de inverno, espanto-me por sentir suor
debaixo das camadas pesadas. Livro-me rapidamente do peso a mais.
– Está mais quente – comento. Olhando para Bóreas, reparo no vinco
pequeno entre as sobrancelhas. – Não sentes?
– Não.
Então devo estar maluca. Ou então, doente. Recordando as últimas
semanas, no entanto, convenço-me de que o clima começou a aquecer. A
neve transforma-se em lama aos poucos. Outro efeito secundário do
enfraquecimento da influência do Vento Norte?
Assim que nos instalamos na pequena embarcação, a corrente leva-nos
rio acima, através de planícies rochosas e de planícies austeras. Alcançando
uma separação do rio, viramos à direita. Embora vá apreciando a paisagem,
não deixo de sentir o olhar do rei colado ao meu rosto. Talvez ele esteja
curioso sobre a minha reação ao que nos rodeia. A areia transforma-se em
solo, depois em erva, depois em árvores, abundantes e florescentes,
soltando o cheiro da terra molhada após uma chuva forte.
O meu coração não pulsa de forma estável quando o barquinho embate
na margem do rio e Bóreas me ajuda a desembarcar. O lodo e a lama
sugam-me as botas. Além da margem, há uma terra intocada.
– Makarios – murmura ele.
É um sonho, ou o sonho de um sonho. Por algum motivo, o inverno não
alcançou esta zona. Entalados entre o horizonte oriental e o ocidental, os
campos relvados estendem-se em suaves ondulações, e flores silvestres
radiantes espalham-se por toda a parte. O céu é uma extensão límpida e
curva e azul, salpicada por nuvens mansas que se desvanecem ao longe. Os
odores são mais doces, as cores mais vivas e o ar praticamente canta.
Pegando-me pela mão, Bóreas conduz-me pela encosta acima. Relva
macia abre-se à nossa passagem.
– É aqui que repousam as almas de origem divina, bem como pessoas de
grande virtude. Aqueles que merecem uma vida cheia de paz após a morte.
Poucos momentos depois, solta-me a mão, e quase me entristece este
gesto.
– É frequente, esse destino? – pergunto.
– Não. Ser-se considerado merecedor desta eternidade é a maior das
honras.
Os meus pais não teriam sido enterrados aqui. É mais provável que
estejam no Prado. Nem cometeram crimes, nem realizaram atos dignos.
Eram pessoas simples.
Os meus passos não fazem ruído, ao seguir na esteira de Bóreas. Ele
caminha lentamente, como se não tivesse destino fixo e ficasse contente só
por passear.
O perímetro do campo é marcado por ciprestes e choupos brancos, uma
copa coroada por folhas prateadas. As colinas tornam-se menos profundas,
e vislumbro ribeiros cintilantes nas ravinas e nos sulcos. É um lugar tão
pacífico que tenho medo de falar, um silêncio que permanecerá intacto por
toda a eternidade.
Pouco mais adiante, o rio surge à vista. Alguns espectros curvam-se na
margem a encher baldes.
– Em Makarios – informa o rei –, não neva nem há tempestades ou
chuva. Aqui, as almas não sentem mágoas. Têm tudo de que precisam.
Um dos homens, vestido com roupas simples, recolhe a água nas mãos
em concha e leva-a à boca. Dou um passo em frente, alarmada.
– Ele está a beber a água. Não vai perder a memória?
– Aquele rio não é o Mnemenos.
Oh. Lembro-me então da divisão na corrente.
– Por que rio navegámos? – A água tem a cor azul forte e infinda de uma
joia.
– Não tem nome. Nasce em Makarios, no alto das montanhas. – Aponta
para oeste, onde a terra rochosa recorta um pedaço de céu. – Quando
alcança o fim das Terras Mortas, tomba, tornando-se neblina.
– Os habitantes de Makarios mantêm as memórias?
– Não – diz ele. – Ao longo dos anos, descobri que as recordações
costumam dar azo a divergências nas pessoas. Um terreno fértil para que
surjam invejas, ciúmes, ganância. Mais vale começar-se do nada.
– E as famílias? Parentes?
– As famílias são uma exceção. Se duas ou mais pessoas da mesma
família chegam a Makarios, mantêm as relações entre si. Mas perdem as
memórias das suas vidas anteriores.
Por mais que deteste a ideia de perder as memórias da minha vida atual,
acabo por concordar com ele. A vida acaba, tal como começa. Não gostaria
de ter obstáculos que me impedissem de alcançar o meu potencial no pós-
vida. Começar de novo.
Do outro lado dos choupos, as almas reúnem-se numa grande clareira no
interior de um círculo formado por tendas. Estão a dançar. Vestidos soltos e
fluidos para as mulheres e calças para os homens, as suas formas
transparentes aparecem e desaparecem, intermitentes, trespassadas pela luz
do sol.
– Têm um ar feliz – comento com espanto.
– Estão felizes.
Olho de relance para Bóreas. Ele fica a ver os espectros – muitos deles,
crianças – trocarem de parceiros. Tem uma expressão suave. De
contentamento.
– Vem. – Puxa-me em frente pela mão. – Quero apresentar-te a todos
eles.
A todos, literalmente. Aos tios, e filhas, e primos, e amigos, e pais, e
vizinhos. Uma mulher com o rosto vincado por dobras profundas aproxima-
se de nós. Estende o braço, pega nas mãos de Bóreas.
– O calado – diz ela. As palavras, mais sopro do que substância, são
agradáveis ao ouvido.
Que ele deixe outra pessoa entrar no seu espaço pessoal é motivo de
choque, mas permitir o toque? E sem receio?
– Esta é a minha esposa, Wren. – Pousa uma mão no meu ombro. – É a
primeira visita dela a Makarios.
As rugas engolem os olhos sorridentes da anciã, e ela anui, libertando as
mãos dele para agarrar nas minhas. Há quanto tempo é que ela se encontra
aqui? Décadas? Séculos? Como será esta existência, nunca conhecer a
tristeza ou o desgosto?
– Boa rapariga – anuncia a mulher. Dá-me palmadinhas na mão. – Boa
parceira. Leal e forte.
Bóreas é arrastado para uma breve conversa sobre a colheita, e eu
aproveito o tempo para observar as festividades. Assim que ela nos deixa,
eu viro-me para Bóreas com uma súbita revelação.
– Eles conhecem-te.
– Claro que me conhecem.
– Quero dizer que eles te conhecem a sério. – Este nível de familiaridade
não surge num único encontro, num julgamento aplicado nos vastos salões
da sua cidadela, mas da exposição ao longo do tempo. Visitas frequentes, se
a minha avaliação estiver correta. – Com que frequência visitas Makarios?
O rei aceita uma grinalda de flores de uma jovem, mas evita o meu olhar.
Pensará que eu o critico por visitar estas almas? Ele concedeu-lhes um lugar
para repousar livre de inquietações, uma oportunidade de acordarem cientes
de que um dia tem um potencial infinito para tudo o que seja bom.
– Um dos meus deveres como Vento Norte é visitar as várias partes das
Terras Mortas, para garantir que funcionam bem. – Coloca a guirlanda, com
rosas e íris florescentes, ao meu pescoço. – Mas passo mais tempo em
Makarios sempre que posso. As pessoas são gentis e merecem esta vida.
– Tens razão. – Jamais imaginei que tais palavras saíssem dos meus
lábios, mas as coisas mudaram. Eu mudei. – Este local é lindo. – Um
refúgio, a salvo do frio envolvente.
Ele poderia ter-me mostrado Makarios em qualquer ocasião, mas não
faria qualquer diferença. A ideia que fazia dele não teria mudado, pois
ainda não estava preparada para aceitar a verdade. Só agora é que ele me
deixou entrar, me deixou ver.
E, portanto, aqui estamos, no campo onde a paz se instalou, os espíritos
dançam de mãos dadas, e eu faço ao meu marido uma pergunta que há
muito me perturba.
– O que aconteceu ao marido da Orla?
As pontas dos seus dedos expostos roçam a casca de uma árvore
próxima, garras negras curvas raspam a textura áspera. Desde a nossa
conversa na estufa, Bóreas começou a dispensar as luvas ocasionalmente.
– Admito que te trouxe para te mostrar que existe um outro lado das
Terras Mortas.
Entendo o que não diz: trouxe-te para te mostrar que existe outro lado
nas Terras Mortas, e em mim.
Tivesse ele dito as três últimas palavras, sentir-me-ia tentada a
concordar. O Vento Norte não é gelado, plano e entediante e
unidimensional. Ele é como os flocos de neve que convoca, cada qual
multifacetado e singularmente forjado.
– Mas temo – continua – que, se te contar os horrores que o marido da
Orla sofre atualmente, recuperarás a tua anterior opinião das Terras Mortas.
– E que opinião seria essa?
– Que as Terras Mortas, e tudo o que nelas existe, é abominável.
Creio que, em dado momento, disse que Bóreas era um deus egoísta,
tacanho e insensível. Pensei que merecia isso, e mais.
Aproximo-me um pouco, o meu braço roça o dele, o tecido das nossas
mangas prende-se.
– Disseste-me que tentas avaliar cada alma com a devida justiça. Por
isso, acredito que a sentença que escolheste para o marido dela terá uma
justificação.
Ele deixa cair a mão que roça a árvore contra o flanco. Há sombras nos
nós dos dedos.
– A Orla foi uma das primeiras almas que condenei a Neumovos.
Julguei-a apenas com base no homicídio do marido, mas não aprofundei a
análise. Não me importava, então, e a culpa foi minha.
Ele respira fundo.
– Na verdade, foi a minha falecida mulher que me contou o motivo de
Orla ter matado o marido.
– Como se chamava ela?
O rosto dele suaviza-se, e o meu coração estremece com uma dor súbita
e imprevista.
– Lyra.
A ideia de Bóreas nutrir ainda sentimentos pela falecida esposa irrita-me,
mas a sua expressão endurece e a fúria que brilha nas suas pupilas torna-se
tão forte que quase dou um passo atrás.
– Percebi que julgara mal a Orla. Não fizera a devida diligência para
descobrir a verdade que motivou as suas ações. Quanto ao marido dela,
mandei-o para o Fosso. Pela violência, negligência e violação da esposa,
castiguei-o a ser despedaçado por cães selvagens, dia após dia. Arrancam-
lhe as unhas com pregos enferrujados, e depois voltam a crescer, e o corpo
esfomeado está sempre à beira do colapso.
Pelos deuses, que imagem horrenda. Mas… merecida. Absolutamente
merecida.
Estudo-o com atenção.
– Alguma vez te pareceu um fardo? És a única voz que decide tantas
eternidades.
– Constantemente. Mas fazer um Julgamento objetivo da vida das
pessoas nem sempre é possível. – Dá-me uma cotovelada com o ombro, um
gesto alegre, tão impróprio dele. – Foste tu que me ensinaste.
– Queres dizer que consideras o meu ponto de vista? – Com gestos, finjo
que limpo uma lágrima.
Bóreas solta um suspiro, mais bem descrito como longânimo.
– Retiro o que disse.
Tento combater um sorriso, a sério, mas os meus dentes assomam-se por
instantes quando cruzamos o olhar.
Ele abana a cabeça, encara o campo pacífico com as suas compridas
hastes de erva ondulante. Podia perfeitamente deixar que a conversa
terminasse neste ponto, mas não me parece correto, considerando o quanto
progredimos, que somos capazes de estar juntos num silêncio sociável sem
querer causar mal ao outro.
– Obrigada – murmuro.
Do cimo da sua altura, ele olha para mim.
– Por?
– Pelo que fizeste pela Orla. E – continuo, antes de perder a coragem –
pelo que, acredito, farias por mim.
Partimos de Makarios a meio da tarde, quando faz suficiente calor para me
despertar o desejo de roupas de algodão em vez de lã. A coroa de flores
encavalitada na cabeça – uma prenda dos aldeões – tem pequenas flores
brancas, e vou dando palmadinhas no cabelo enquanto desço o rio em paz,
sentada lado a lado com Bóreas. Aprenderia facilmente a gostar disto, noto.
Ficar apenas… sentada. Respirar. Aqui, com ele.
– Há mais um lugar que gostaria de te mostrar. – A baixa repercussão da
sua voz transpõe a distância em que se cruzam os nossos braços.
– Um rei, um deus banido e… um guia benevolente? – A minha boca
curva-se na brincadeira.
– Estás interessada? Devias gostar. – O sorriso dele trepa até aos olhos, e
ali enruga a pele. Por uma vez na vida, Bóreas parece estar totalmente
descontraído. Bem merece. – Servem bolo.
Porque é que ele não disse logo?
– Vai à frente.
De volta à cidadela, Bóreas orienta-me para a ala norte. Esta parte da
fortaleza encontra-se em mau estado, uma caverna delapidada deixada ao
abandono. Já não é um lar, mas tê-lo-ia sido em tempos? Poderia voltar a
ser?
As tapeçarias e as cortinas penduram-se, esfarrapadas, das paredes, e o
chão de pedra é uma confusão de pedaços, lajes de rocha cinzenta cobertas
de velhas raízes retorcidas. As portas que ladeiam estes corredores são
meros pedaços de madeira ou metal colocados sobre buracos nas paredes, e
não conduzem a lado nenhum.
Ao contornarmos a esquina seguinte, deparo com a maior tapeçaria do
lugar, ilustrando uma imagem de quatro homens em cima de uma falésia,
enquanto o mundo atrás deles se enche de luz dourada.
Os Anemoi.
Reconheço Bóreas, a lança que usa, o seu comprido casacão negro. Eis
Zéfiro com o arco e o manancial de caracóis. O terceiro irmão segura uma
espada curva e polida. É o mais pequeno dos quatro, e, no entanto, peito e
braços retesam-se cheios de músculos, a sua pele de um profundo castanho
a reluzir no sol feroz. Aposto que é Noto, o Vento Sul.
Resta apenas a última figura: Euro, o Vento Este. Um homem alto numa
capa com amplos ombros, o rosto envolto na sombra do capuz.
– As parecenças na família não são vincadas – afirmo. Bóreas tem pele
clara. Zéfiro, loiro e beijado pelo sol. Olhos negros e cabelo negro para
Noto. E fico muito curiosa em conhecer a aparência de Euro debaixo do
capuz.
Bóreas não comenta. O que verá, quando observa os irmãos?
Vira-se bruscamente, avançando pelo corredor. Apresso-me para o
apanhar, pulando por cima de mobílias partidas e pilares de pedra
mutilados. As paredes estão pejadas de buracos como se tivessem sido
rasgadas ao meio por mãos num descontrolo de raiva.
– Há meses mais complicados do que outros. – Não vira a cara para
mim.
– É mais difícil controlar a mudança, à medida que progride.
Obviamente.
– A tua alma está a ficar corrompida?
– Se soubesse, achas que estaria nesta situação?
Refreio a réplica que me sobe à língua. Não se combate fogo com mais
fogo. Só a água, suave e curativa, amortece uma raiva fervente.
– Posso não ter uma alma corrompida, mas entendo a escuridão. Entendo
que, enquanto te culpares pelos erros do passado, jamais seguirás em frente.
O passo dele acelera. Entredentes, consegue expelir:
– Não percebo realmente o que queres dizer.
Não entenderá?
– Culpas-te pela morte da tua esposa e do teu filho – declaro, correndo
atrás dele. Portas fragmentadas passam por nós. – Diz-me que estou errada.
A mão dele corta o ar, mágoa vincando todos os traços do rosto.
– Sofri e amarguei, mas não esqueci. Não sei se serei jamais capaz de
esquecer.
– Talvez o problema não seja esquecer – digo, fazendo-o parar. – Talvez
o problema seja não conseguires perdoar-te por algo sobre que não tiveste
qualquer controlo.
Encontramo-nos peito contra peito, e inclino a cabeça para trás de modo
que consiga observar-lhe o rosto por inteiro.
– Era meu dever proteger a minha esposa e o meu filho, e falhei.
– Era teu dever protegê-los, ou amá-los?
Um músculo pulsa na bochecha dele.
– Ambos.
Anuo a minha concordância. Proteger, providenciar, defender. Também
compreendo bem estes deveres.
– E a tua vida vai resumir-se a isto? Encerrado neste ciclo de
responsabilização e culpa, sem encontrar redenção? – Numa voz mais
calma, pergunto: – Não pode um deus merecer o perdão, mesmo tendo sido
banido?
Não sei bem quanto tempo ficamos a encarar-nos, mas sinto-me a cair.
Ou tenho estado a cair, e o meu único desejo é de me manter nesta queda,
para descobrir o que me aguarda no fundo.
O Vento Norte pergunta:
– Mereço isso?
– Não sei – contraponho. – Será que mereces?
– Não – afirma-o com a convicção de quem teve de responder à mesma
pergunta no passado. – Não mereço.
O meu coração condói-se dele. Como é que é capaz de se ter em tão má
consideração? Como é que posso eu ter-me em tão má consideração?
– E se eu achar que mereces? – desafio-o. – O que fazes?
O rei pega-me numa madeixa do cabelo e enfia-a atrás da minha orelha,
as pontas dos seus dedos roçando o arco sensível. O toque dele desliza para
a curva do meu maxilar, e hesita. Mas continua a subir até à minha
bochecha, e passa ao longo da minha cicatriz, e eu luto contra a necessidade
de inclinar a cabeça ao encontro da carícia, assolada por uma onda de
arrepios.
– És absolutamente diferente – afirma – daquilo que eu esperava.
E agora estamos em terreno desconhecido. Uma estrada cujo piso se
enche de sulcos. Olho fixamente para o trecho à minha frente, perguntando-
me se valerá a pena arriscar um tornozelo partido.
– Querias mostrar-me uma coisa? – recordo-lhe.
Bóreas anui, recua um passo. Um ligeiro retorcer do estômago, mas… é
pelo melhor.
Conduz-me a uma porta de ouro forjado no fim do corredor, de cujos
painéis de vidro jorra a luz do sol. Roda a maçaneta.
– Bem-vinda – diz – à Cidade dos Deuses.
31

O uro, luz e mármore. Pátios abertos e molduras com filigranas. Fontes e o


almíscar de azeitonas prensadas. As glicínias trepadeiras e o verão
montado na brisa.
Eu e Bóreas encontramo-nos no centro de uma praça marcada por uma
fonte incrivelmente decorada. Cortinas abanam nas janelas abertas de
prédios com vários andares. Alcovas cheias de plantas ocupam o espaço
entre as varandas, de onde pendem tecidos tingidos do branco da neve e do
azul do mar mais profundo. O jato húmido da fonte dispara prismas de luz
colorida sobre o chão, o qual é composto por ouro puro e martelado. O ar é
peculiar. Há aqui uma presença que não identifico.
Pressentindo o olhar de Bóreas fixo em mim, digo, em tom de pergunta:
– Foi aqui que cresceste.
Ele avalia um pouco a nossa perspetiva.
– Tecnicamente, cresci nos arredores. – Aponta para um prédio muito
para lá dos telhados, aninhado entre as montanhas que cercam o vale. – Mas
a minha família vinha à cidade de tempos a tempos. Era aqui que as
divindades do mundo tinham as suas moradias.
Bóreas em criança. Imagino-o a chapinhar nas fontes e a jogar ao
berlinde nas ruas. É um pensamento estranhamente reconfortante.
– Tens saudades?
– Há muitos anos que não vinha aqui. – Começa a desabotoar o casaco.
De facto, o ar encontra-se muito mais quente. Sigo rapidamente o exemplo
e pouso o casaco ao lado do seu, num banco vazio. – É difícil sentir-se
saudades de um sítio em que já não somos desejados.
Acompanho-lhe o passo ao virarmos para outra rua feita de pedras
brancas irregulares. Um punhado de deuses e deusas passa por nós. Não
notam na nossa presença.
– Alguém nos consegue ver?
– Não. – A palavra reveste-se de amargura, vil e acerba. – O meu
nome… assim como o dos meus irmãos… foi riscado dos livros após
sermos banidos. Os laços que tínhamos com esta terra foram cortados. Se
uma divindade encarar o meu rosto, o olhar deslizará por mim sem me
reconhecer. Foi este o castigo do Concílio dos Deuses. Quanto a ti, mortal,
estás tão abaixo deles que a tua presença física nem é notada.
O que me tranquiliza, embora os deuses sejam vaidosos e pretensiosos.
Bóreas aponta para uma avenida ladeada por bancas de vendedores e
carrinhos de mão. Sigo por ela com entusiasmo. É um prazer penetrar na
azáfama da vida deste novo lugar. Os divinos deslocam-se entre barracas e
mesas e carroças, investigando as mercadorias: baldes de madeira com os
mais doces e maduros alperces; molhos de flores recém-colhidas; mobília;
esculturas de mármore de homens e mulheres nus («Os divinos são
notoriamente narcisistas», murmura Bóreas), pássaros em gaiolas; tecidos
diversos; sandálias de couro; tomos e pergaminhos.
Uma das bancas prende-me a atenção no fim da rua. O vendedor vende
vinho – bastantes garrafas. Neste instante, encontra-se absorto numa
conversa com uma deusa que traz um vestido comprido e fluido e uma
coruja encavalitada ao ombro.
Embora nenhum dos clientes repare na nossa presença, a coruja vira a
cabeça, fitando-me sem pestanejar por cima das suas asas dobradas. O
cabelo amarelo do vendedor brilha no contorno dos ombros expostos. O
homem ri-se com abandono, e o som jorra enquanto oferece um copo de
vinho à deusa. Mesmo à distância, juro que sinto o aroma floral. O meu
estômago revira-se de desejo.
– Aquele é o Taberneiro – murmura Bóreas com ar pesado. – Ou está
envolvido numa farra depravada, ou tem a pila enfiada num corpo
disponível. Imbecil bêbado.
Afasto-me da dor involuntária daquele insulto. Já estive na mesma
situação inúmeras vezes, mais do que as que recordo. Não me devia
importar. Não me devia importar minimamente com o que ele pensa de
mim.
O rei detém-me, pousando uma mão no meu braço. Com meiguice, faz-
me virar para si. Todos os traços impressos na sua aparência imaculada
revelam uma gravidade que não lhe via há muitos dias.
– Desculpa-me – pede. – Não me referia a ti.
– Mas aplica-se a mim. – Tenho a cara a arder.
Ele aproxima-se, baixando a voz. O seu odor, o seu calor, a sua pele e o
seu hálito envolvem-me com demasiada facilidade.
– Tenho de ter mais cuidado com o que digo daqui para a frente. Estou
habituado a falar sem pensar nos outros. – Um pequeno vinco enruga a
curva suave da sua testa. – Não te considero nem bêbada nem imbecil, se
me permites. Expulsar os vícios da nossa vida requer muita coragem.
Admiro o empenho que aplicas na tua recuperação.
O elogio é tão incomum como desconfortável. Aceito-o com um
murmúrio:
– Obrigada.
– Como é que te sentes?
Encolho os ombros. Ele ainda não abriu espaço entre nós.
– Há dias bons e dias maus. – A noite passada foi especialmente
complicada. Chamei Orla ao meu quarto, implorando por uma garrafa, um
copo, uma gota. Ela ficou sentada ao meu lado enquanto eu me revirava nos
cobertores encharcados de suor, que foram trocados por lençóis limpos ao
amanhecer.
Afastando-me dele, continuo a avançar pela estrada estreita, e Bóreas
acompanha-me, evitando facilmente a multidão crescente com graciosidade.
– Beber não será o mecanismo mais saudável para lidar com os
problemas – afirma por cima do barulho e do ruído –, mas é preferível à
forma como lidei com a minha dor.
Assim que saímos do mercado, o rei conduz-me a um jardim – mais
calmo, repleto de plantas floridas, um trilho de passeio enfiado entre a
folhagem larga e plana.
– Como assim?
O rei vai tocando ao de leve na vegetação ao passar por ela, embora
desconfie que nem repare que o faz, pois tem o olhar encoberto por uma
névoa.
– Quando perdi a minha mulher e o meu filho – diz –, a linha entre a
vida e a morte esbateu-se a ponto de ter deixado de viver. Se não podia
proteger a vida das pessoas que amava, pensei eu, então talvez não
merecesse ter a minha própria vida.
Algo na forma como o diz desperta-me uma inesperada angústia.
Decerto que não se refere ao que julgo que seja… mas que outra
interpretação devo tirar?
– Voltei aqui, à cidade, e dirigi-me ao templo em que se reúne o Concílio
dos Deuses. – Faz uma pausa. – Pedi-lhes que me retirassem a vida.
O choque enraíza os meus pés no meio do caminho. Bóreas para poucos
passos à frente, ainda de costas para mim, mas acaba por se virar, e a
emoção que se agita nos seus olhos escurece com uma dor indescritível.
Mesmo no meu pior, jamais ponderei acabar com a vida. Obviamente,
havia que cuidar de Elora, mas se a minha irmã não existisse, não está na
minha natureza considerar essa opção.
– Mas recusaram?
– Mandaram-me embora. – Retoma o andar, empurrando as vinhas
compridas e suspensas. – Era uma opção que nem eu próprio podia tomar.
Quando fomos banidos, eu e os meus irmãos, o Concílio dos Deuses
garantiu que jamais escaparíamos ao nosso sofrimento eterno. Impediram-
nos de acabar com as nossas vidas, mesmo usando uma arma tocada por um
deus. Assim, o sofrimento tornou-se a minha sentença, e eu regressei à
cidadela, com as suas salas vazias, as suas memórias.
Onde tem estado desde então.
Vamos andando na direção de uma praça mais pequena, a oeste, onde se
veem faixas de luz dourada a iluminar os pálidos edifícios de pedra. Deuses
de todas as cores, tamanhos e trajes passam por nós, completamente alheios
a um dos seus ter regressado. Uma deusa desliza por entre a multidão
acompanhada de um veado e trazendo um arco às costas. Alguns
quarteirões adiante, um deus desfila pelas ruas em cima de uma carruagem
resplandecente, manchada de sangue e vísceras.
Sabia que o Vento Norte sentira a perda, mas jamais entendera o quanto
o tinha perturbado. Que inclusive procurara um fim permanente.
– Será talvez esse o fardo de uma vida mortal – digo. A estrada faz uma
curva, revelando uma horta em socalcos à esquerda, outra fonte à direita. –
Um dia, as nossas vidas terminam, e seguimos em frente, mesmo que quem
deixámos para trás já não nos acompanhe.
A nossa incursão conduz-nos a uma pequena área de lazer ao ar livre com
vista para um parque. Enquanto me acomodo num banco à sombra, Bóreas
desaparece e regressa com dois copos de cristal.
O meu coração reage.
– Vinho? – E desprezo a rapidez com que a ânsia surge na minha
garganta, ainda que seja breve. Não estava à espera de que Bóreas me
colocasse numa posição comprometedora, e logo aquela que me faria
retomar a triste e lamentável pessoa que só encontrava paz e conforto no
fundo da garrafa.
– Néctar. – Entrega-me a bebida e senta-se. A substância espessa de cor
intensa agarra-se à parede do copo como ouro líquido.
Descontraio-me com esforço. É néctar, e não vinho. Tomo um gole,
deixo-o assentar na língua, e espanto-me quando o sabor se torna evidente.
– Sabe a bolo de chocolate com recheio de cereja e cobertura de
caramelo. – Observo a bebida com perplexidade. – Que feitiçaria é esta?
Os cantos da boca de Bóreas curvam-se quando ele leva o copo à boca.
– O néctar tem o sabor da tua comida preferida. – Os músculos da
garganta dele fletem ao engolir. Não consigo deixar de olhar para ele.
Bebo mais um gole, porque há muito tempo que não saboreio o bolo de
chocolate com cereja da minha mãe. Já tentei reproduzi-lo, mas o sabor
nunca é o mesmo.
– A que é que te sabe?
– A maçãs douradas. – Perante o meu ar intrigado, ele explica: – O fruto
não existe no teu reino. Cresce num jardim guardado por uma enorme
serpente.
A minha mente regressa a outro jardim escondido no véu ameaçador de
uma caverna. Um jardim que infetaria esta tarde imaculada se eu lhe desse
espaço para florescer.
Recostada na cadeira, vejo os cidadãos passearem pelo parque.
– Que lugar tão pacífico. – As encostas das montanhas ancoram o céu
além da cidade, com as suas linhas limpas e elegantes, as suas varandas de
hera e os seus pilares de mármore.
– Compara-se com a imagem que tinhas deste local?
A verdade é que nunca me dediquei a pensar no local em que Bóreas
nasceu.
– É mais sossegado do que eu pensava, mas não menos encantador. –
Uma ligeira hesitação antes de beber mais um gole. – Sempre quis viajar.
Ver o mundo, sabendo, no entanto, que dificilmente iria conseguir.
O rei examina-me antes de abarcar o cenário com o braço.
– Felizmente, temos tempo – diz ele. – Que mais gostarias de ver? Há
teatros, sinfonias, galerias de arte, bibliotecas, a universidade, livrarias,
balé…
– Livrarias. – Acabo de beber o néctar, pouso o copo no banco. – E
depois o balé. Ah, e talvez na volta possamos comprar aqueles doces que vi
na montra da pastelaria…

Muitas horas depois, vejo-me ao espelho no meu quarto, questionando se a


minha roupa será exagerada, demasiado… vulnerável. Está a tornar-se um
hábito: olhar para o espelho. Devia parti-lo, mas já não tenho medo do meu
reflexo, como antigamente, o que constitui uma vitória.
A cicatriz da cara não me marca como indesejável. É apenas uma
memória envolta numa pele velha e dura. Bóreas nunca demonstrou repulsa
por ela, mas afinal, o que é que vê quando olha para mim? Não devia ser
motivo de interesse, e eu não me devia interessar. Mas interessa, e eu
interesso-me.
– Adorável como sempre, minha senhora.
Orla surge ao nível do meu ombro esquerdo, no reflexo. O vestido, de
tecido creme com um remate verde-floresta, é um pouco largo, o que me
permite mexer sem entraves. Soltei o cabelo negro, que cai em ondas
suaves por cima dos ombros. Os meus olhos estão escuros, conhecedores,
mudados.
Demorámos horas na Cidade dos Deuses, Bóreas e eu, passeando até cair
o dia, até as lojas fecharem. Demasiado rápido para o meu gosto. Depois de
vasculhar a livraria, assistimos ao balé, empanturrámo-nos de bolos
enquanto percorríamos a vasta coleção da biblioteca da universidade. E, no
entanto, não me sinto cansada, nem um bocadinho.
– Deseja-me sorte.
– Desejaria – diz Orla com um sorriso secreto –, mas a senhora não
precisará.
Preciso, sim.
Respira.
Suam-me as mãos ao descer as escadas para a sala de jantar. Para minha
surpresa, Bóreas já chegou, com a túnica desabotoada no pescoço, o cabelo
preto solto e enrolado contra a cara. Levanta-se quando me vê entrar, e eu
encaminho-me para o lugar habitual, do outro lado da mesa, antes de
reparar que os pratos não estão postos. Viro-me para ele, confusa, com uma
sensação de pânico a percorrer-me a espinha.
Sem dizer nada, ele aponta para a cadeira à sua direita. O meu lugar foi
transferido.
Hesito só um pouco, antes de ocupar aquele assento.
– Então – digo, tomando um golo de água. – O que temos hoje no menu?
Ele ergue a mão, e os criados colocam seis pratos cobertos na mesa. As
tampas em cúpula, prateadas, derramam a luz das velas sobre as superfícies
curvas.
– Na Cidade dos Deuses – começa Bóreas – uma refeição é um
acontecimento comunitário. Os divinos adoram acima de tudo conectar-se
às suas naturezas gulosas. – Destapa o prato mais pequeno. Uma fruta
vermelha e redonda ocupa o centro do prato prateado.
– O propósito de uma refeição é despertar os sentidos – continua. – Uma
procura tátil. Assim, damos de comer a quem esteja à nossa direita.
Pisco os olhos com ar atordoado, convicta de ter ouvido mal.
– Damos de comer?
O olhar está carregado. Os anéis gelados que lhe contornam as pupilas
encontram-se tão finos que quase não existem.
Os meus pulmões expandem-se até que a dor das minhas costelas me
obriga a expirar. Será uma dança, suponho. Bóreas oferece-me a sua mão, e
eu tenho de decidir se a aceito ou se a recuso. Não sou cobarde. Posso nadar
fora de pé, mas não sou a única que esta noite correrá riscos. É um conforto
estranho, embora perverso.
– Mostra-me – peço.
Ele mexe-se sem pressa. Como um escultor, perante o cuidado e
dedicação com que se empenha, descascando a fruta em pedaços,
arrancando o caroço. O nó no meu estômago contrai-me.
Ao terminar, inclina-se por cima do braço da cadeira, com o rosto a
centímetros do meu. Agito as narinas. O odor dele encontra-se mais forte,
esta noite, rico de intensidade.
– Tens de abrir a boca – murmura.
Certo. Isso ajudaria.
Os meus lábios separam-se e o fruto desliza para o interior, um doce
almíscar. Bóreas afasta-se, mas permanece no meu espaço pessoal, vendo-
me mastigar e engolir. Uma gota de sumo escorre-me pelo canto da boca. O
rei observa o percurso sinuoso que esta faz pelo meu queixo com o olhar
atento e o maxilar tenso. Limpo-a com as costas da mão.
– Agora, tu. – Um tom roufenho, profundo.
Os meus dedos contorcem-se contra as coxas, e o meu olhar pousa na
boca dele. Sempre a considerei como a sua parte mais macia.
– Assustada? – entoa, as pontas dos seus caninos pronunciadas.
Os meus olhos dardejam para os seus, semicerrando-se.
– Palerma.
Ele ri-se. E devo sonhar, porque aquele som é tão raro que mal o
reconheço.
Consigo fazer isto. Irei fazer isto.
Preparando-me, corto uma parte do fruto e inclino-me para ele. Os seus
dedos agarram-me o pulso, entretanto, com demasiada força da qual não me
consigo libertar. Cresce um calor entre as minhas pernas, enquanto os
nossos olhos se fixam e os meus lábios se separam, e ele, lentamente,
conduz o fruto, e os meus dedos, para a sua boca.
Deixo de conseguir raciocinar. A sucção quente e húmida daqueles
lábios prende-se aos meus dedos, e ele puxa superficialmente, a garganta
remexe-se para ingerir o sumo de fruta. Não consigo respirar, não consigo
respirar, não consigo respirar…
Ele dá outra chupadela, recolhendo o resto do sumo antes de o engolir.
Um rubor inflama-se sob a minha pele, queimando-me da cabeça aos pés.
Espero que Bóreas se afaste, mas não o faz. Um som baixo emana do fundo
do seu peito, e vibrações agudas sobem-me pelo braço. O meu tronco
contrai-se, reagindo a esse som tal como o faria um animal, numa armadilha
de loucura e desejo.
A ponta da sua língua brinca com as pontas dos meus dedos antes de
deslizar pelo espaço entre o indicador e o dedo médio. Os meus seios ficam
pesados, enquanto a sua língua me lambe a pele sem esquecer nenhuma
zona.
Ele sustém o meu olhar com um desafio atrevido e explícito. Imagino
aquela língua noutra parte do meu corpo. Entre os meus seios. Entre as
minhas pernas.
Quando Bóreas finalmente se afasta, baixo o olhar para a sua boca, para
aqueles lábios a brilhar de humidade. Reparo que nos inclinámos um para o
outro, instintivamente, pois reparo nas estrias azuis, quais fraturas
luminosas, nas suas íris.
Como se não tivesse abalado o meu mundo, ele levanta a tampa de outro
prato ligeiramente maior. Trata-se da pequena taça com o que aparenta ser
um caldo a fumegar.
– Isto é caldo de osso da elimna manchada, que é semelhante ao galo
silvestre. É uma iguaria para o meu povo. – A voz dele é suave, culta,
digna. Quase me sinto ofendida. Aquela demonstração tê-lo-á afetado
minimamente?
Requer algum esforço, mas por fim a minha pulsação desacelera. Se o rei
insiste em manter a compostura, também o farei.
– Provas um pouco, e depois imito-te? – sugiro.
– Eu provo um pouco – diz calmamente – e depois passo-te a ti. –
Perante o meu olhar sem expressão, explica: – Para a tua boca.
– A minha boca?
– É como se faz na Cidade dos Deuses.
Mas será realmente? Quer convencer-me de que todos os deuses se
envolvem neste costume carregado de sensualidade, inclusive entre
familiares chegados?
– Caso não tenhas notado – faço notar –, já não nos encontramos na
cidade. Mas nas Terras Mortas. – A boca dele sobre a minha… já me
ocorreu. Não sou um cadáver. Já recordei aquele beijo na estufa um número
vergonhoso de vezes.
– Ah! – As suas curtas garras batem na mesa. – Então é medo.
O rei aprendeu a tocar exatamente todos os meus pontos fracos e
sensíveis.
Se é um desafio que procura, é um desafio para o qual me erguerei à
altura.
– Força.
Sou louca, sou louca, totalmente louca…
Provando um pouco do caldo, inclina-se em diante, e agarra na minha
cabeça com as duas mãos.
O meu coração estremece, e humedeço os lábios ao antecipar o beijo.
Curvo as mãos à volta dos pulsos dele. Para me estabilizar. E para o manter
próximo.
Ouve-se um corno, destroçando o silêncio.
Bóreas fica muito quieto.
O som atinge o ápice, depois vacila e cala-se. Mantemo-nos parados, a
meio do gesto, e eu murmuro:
– O que foi aquilo?
Ele inclina-se para trás, distanciando-nos. Não decifro a expressão do
seu rosto.
– Os meus homens pedem ajuda. – As mãos dele caem. – Tenho de ir.
As palavras uivam na minha mente, cheias de dor. Não há pensamento,
apenas ação, o desejo de manter-me junto a ele mais tempo do que o dia que
nos foi dado. Ponho-me de pé.
– Acompanho-te.
32

E uFáeton
e Bóreas encontramo-nos nas cavalariças, que cheiram a feno e couro.
está irrequieto na baía, como se pressentisse o ajuntamento do
outro lado das paredes, os corpos repletos de armas, o ruído metálico das
armaduras. Centenas de homens a quem as batalhas enrijeceram.
O amanhecer, com os seus dedos cor-de-rosa, começa a colorir as
árvores mortas. Bóreas aperta a sela de Fáeton, e eu empoleiro-me num
fardo de feno depois de ter trocado de roupa para trajes menos frios,
esfregando as mãos para me aquecer. Presumo que irei cavalgar com
Bóreas, mas ele surpreende-me ao dizer:
– Gostava de te mostrar uma coisa. – Parece inseguro.
– Muito bem – respondo à cautela. O rei nunca está inseguro.
Com um inclinar de cabeça, indica-me que entremos mais no local.
Cavalos-espectro espreitam pelas baias com interesse. Ao fundo, o local
está vazio – exceto uma das baias.
É uma égua deslumbrante, com patas longas, cabeça elegante e
delineada, e um pescoço orgulhoso e arqueado. O pelo semitransparente
faz-me lembrar a erva do trigo, uma cor sombreada entre o leite da lua cheia
e o castanho da terra ressequida. Uma estrela branca marca-lhe a testa.
Esticando o braço, apresento-lhe a mão para que a cheire. Um bafo
quente perpassa a minha palma, e ela mordisca os meus dedos com
curiosidade.
– É linda – digo. Talvez o cavalo mais bonito que já vi, mesmo sendo um
espírito. – Que guarda tiveste de subornar para me emprestar este cavalo? –
E por subornar quero dizer ameaçar.
O Rei do Gelo não responde. De repente, reparo no silêncio – os seus
homens devem ter-se afastado em algum momento – e então viro-me para
ele. Tem os braços pendurados desajeitadamente contra os flancos. Algo se
altera entre nós. Algo cresce por detrás dos meus olhos como se se abrissem
pela primeira vez.
– Este cavalo pertence a um dos teus soldados – pergunto –, correto?
– É tua.
Enfio os dedos na crina do cavalo, que sinto como nevoeiro e luz
interligados.
– Compraste-me um cavalo?
Bóreas evita o meu olhar.
– Comprei-a a um treinador de Neumovos. Fez-me um bom preço. Não é
nada.
Não podia ser mais o oposto de «nada».
A possibilidade de cavalgar pelo seu território à vontade. Um sinal de
que confia em mim, acredita que não vou fugir. Bóreas oferece-me algo
que, pela primeira vez na minha vida, será totalmente meu.
Um nó duro de emoção cresce-me na garganta. Sinto uma mudança a
acontecer dentro de mim. Uma alteração suave que conquista a dureza que
sofri.
– Obrigada – murmuro, levantando o olhar para ele. – Irei cuidar dela até
ao fim dos meus dias.
Ele contempla-me demoradamente, talvez indeciso. Depois transpõe a
distância que nos separa, enfiando-se na baia ao meu lado.
– Que nome lhe darás? – pergunta, assentando a mão aberta no pescoço
musculado da égua.
A ponta do dedo mindinho encontra-se separado pelo intervalo de um
cabelo do meu. Por algum motivo, fixo ali o olhar.
– Iliana – respondo. – O nome da minha mãe.
– Iliana. – Bóreas acompanha a minha mão, que alisa o focinho da égua.
– Adequa-se a ela. Escolhe a baia que preferires. E isto é teu – diz,
apontando para os arreios dela: sela, manta, rédeas, cabresto. – O estribeiro
tomará conta dela, se quiseres.
– Não será preciso. Serei eu a cuidar dela. – Não que desconfie do
estribeiro, o qual é excelente com os animais, mas considero importante
cimentar o laço entre cavalo e cavaleiro desde início.
A sela de Iliana já se encontra posta, e só tenho de encaminhá-la para o
exterior. Fáeton resfolega, aprumando-se na presença de uma fêmea. Os
soldados reúnem-se para lá dos portões. Estão estoicos e concentrados,
reservados e irrestritos. É quando percebo o que me aguarda no fim do
percurso; os longos quilómetros, as muitas horas que demorará.
– É assim tão difícil? – pergunto, ao ver Bóreas montar, encaminhando
Fáeton para junto de mim.
Ele ergue a mão para o capitão, assinalando a partida. O olhar de Pallas
cruza o meu por um instante. Não esqueci o nosso primeiro encontro no
campo de treinos há meses, e ele também não. Desde que ele mantenha a
distância, não terei motivos para lhe cravar mais uma seta no peito.
– De acordo com os meus homens, o novo rasgão aumentou durante a
noite
– Então iremos fechá-lo – digo. Remendar todos aqueles buracos,
impedir os humanos de entrar nas Terras Mortas.
– Não faremos nada disso. – Encara-me do alto da sua montada. – O
risco para a tua vida é demasiado grande.
Por um brevíssimo momento, pressinto em Bóreas um traço de medo.
– Isso nunca te travou.
– Foi no passado.
Puxando as rédeas de Iliana para a direita, avanço para os portões.
– Então, por que motivo te acompanho?
– Diz-me tu. – Está ligeiramente divertido. – Ofereceste-te para vir.
– Não me impediste.
– Não consigo contrariar a tua vontade. Já aprendi essa lição.
Ele tem razão.
– Estamos em guerra, não estamos? E na guerra, há sempre um dever a
cumprir. – Presumo que haverá muito para fazer quando alcançarmos o
acampamento.
O rei inclina a cabeça em aprovação.
– Sem dúvida.
A jornada ocupa o dia. Bóreas e eu encabeçamos a campanha: duas
colunas exatas, cujas caudas, de quase um quilómetro, se prolongam atrás
de nós. Estou satisfeita por caminharmos em silêncio, ouvindo os risos dos
soldados e os repiques mútuos, mas Bóreas e eu, de tempos a tempos,
trocamos uma conversa banal, e já não me dá vontade de arrancar os
cabelos.
Alcançamos o acampamento horas antes do anoitecer. As tendas,
organizadas em fileiras, pontilham a clareira entre os montes de neve, telas
brancas esticadas ao máximo e atadas a estacas no solo. O ar ecoa com os
ruídos do metal e dos cascos pesados. Soldados empurram carrinhas cheias
de mantimentos pelos trilhos lamacentos, ou trazem lenha da floresta
próxima, ou cavam latrinas. Ninguém se ri. Poucos falam. A tensão e a
incerteza embebem o solo semigelado.
Muitos dos soldados e dos criados observam-me, apesar do capuz que
me cobre o rosto. Inclino o queixo em jeito de saudação. Não importa que
opinião tenham a meu respeito, estou aqui para ajudar.
Tendo entregado as nossas montadas a um soldado, o Rei do Gelo
encaminha-nos para uma tenda volumosa situada no extremo norte do
acampamento. Dispensa os guardas e segura a aba da tenda para eu passar.
No interior, paro de imediato. Claro que há apenas um único leito.
O Rei do Gelo quebra o encantamento, avançando decisivamente.
Agarrando numa almofada em cima do colchão, atira-a para mim.
– Podes dormir no chão. – Começa então a puxar os cobertores para trás,
de costas para mim.
Olho-o, embasbacada, apertando a almofada entre as mãos, o comentário
dele agitando-me no meu pensamento. Iguais palavras foram as que lhe
atirei na festa do Solstício de Inverno.
– Filho da mãe. – Atiro a almofada contra a sua nuca. Atinge-o e cai
inócua no piso. – Não durmo nada no chão.
O rei solta um trejeito baixo. Penso, de início, que é um escarnecer, mas
os ombros tremem-lhe, a cabeça cai para a frente, o cabelo tapa-lhe a cara.
Depois vira-se, e fico sem palavras.
O Vento Norte está a rir.
E é absolutamente devastador.
Tem dentes perfeitos, direitos e luminosos. Os traços da boca esticam-se
e os olhos enrugam-se de alegria. Transformam-lhe por completo o rosto.
Naquele instante, não é o imortal desapegado que conheci. É o meu marido.
Uma pulsação de prazer faz-me acelerar o sangue. Contra a minha
vontade, a minha boca retesa-se. Solto um trejeito de ironia, ante a ideia
absurda de atirar uma almofada a um deus num instante de irritação.
– Iremos partilhar a cama como na última vez – afirmo.
Bóreas sorri, desimpedido.
– Como queiras… Wren.

Quando a luz se apaga a ocidente, uma campainha ressoa pelo


acampamento. Bóreas levanta-se do seu lugar à secretária, onde lia
documentos, e calça as botas.
– Jantar – anuncia.
Endireito-me na cadeira, pousando o lápis enquanto ele ata os atacadores
à barriga da perna.
– Os criados não te trarão a comida? – Assumi que era esse o motivo de
Orla e um punhado de aias nos terem acompanhado.
– Todos comem na tenda da messe. – Olha com curiosidade para o
desenho que passei as últimas horas a fazer. As sobrancelhas curvam-se
para cima. – Bolo?
– O quê? – Escondo o desenho da sobremesa requintadamente decorada
contra o peito. – Tencionas partilhar o jantar com os não-divinos?
– Os soldados esforçam-se por proteger o meu reino – diz, como se fosse
resposta suficiente. Abre as abas da tenda. – Vens?
Sempre que penso que consigo entender Bóreas, ele dá-me a volta.
Condenou os homens a uma submissão eterna, mas, se pegarem em armas,
passa a respeitá-los. Será que entende que isto é uma gaiola para eles? Uma
vida de servidão ao rei, qualquer que seja a forma que assuma.
Não tenho forças para questionar o acordo, por isso desisto de
argumentar. A extensa jornada deu-me fome e dores nos músculos, e tirou-
me a vontade de iniciar discussões combativas.
O Rei do Gelo conduz-me para uma tenda comprida e retangular,
localizada no outro lado do acampamento. No interior, os soldados sentam-
se em mesas de tábuas irregulares. O meu nariz enruga-se. Milhares de
corpos sujos num espaço exíguo? É um fedor. O meu odor também deve ser
pouco agradável depois de um dia inteiro a cavalo.
Bóreas disse-me que os novos recrutas descansariam durante a noite
antes de avançarem para a batalha ao amanhecer, revigorados e lúcidos,
substituindo os camaradas exaustos. Ocupamos os nossos lugares na fila
para comer, e a conversa barulhenta extingue-se. A madeira range, enquanto
os homens se remexem nos assentos para nos ver melhor.
– Estão todos a olhar – murmuro, irritada.
– Sim – diz. – Para ti.
Tem razão. É para mim que olham, não para o rei. Apesar de trazer
túnica e calças, sou uma mulher num mundo de homens, as botas
afundando-se num solo que em breve se encharcará de sangue. A minha
atenção fixa-se num soldado que me encara de soslaio.
– O que foi? – rosno. – Nunca viste um par de mamas?
Bóreas suspira. O homem desvia a vista. Esperto.
Depois disso, a fila acelera. Quando chegamos à frente, um homem
oferece-me uma tigela de guisado quente e um pedaço de pão estaladiço
com um murmúrio:
– Minha senhora.
Agradeço-lhe e sigo o Rei do Gelo até uma mesa vazia. Os homens
retomam finalmente a refeição, apesar de não conseguirem saborear nada.
Eu concentro-me na comida. É um prato simples, mas eu engulo com
avidez. O sabor faz-me lembrar a minha casa.
– Bóreas. – Um jovem com cabelo escuro e pestanas longas e
encaracoladas senta-se no banco do lado oposto da mesa. – Ainda bem que
vieste.
Bóreas? Ninguém na cidadela se dirige ao rei com tanta informalidade.
O homem examina-me com curiosidade. A sua atenção não se detém na
minha cicatriz, para meu agrado. Ele próprio deve ter um bom sortido delas.
Dou um pontapé a Bóreas debaixo da mesa.
– Não nos apresentas?
Ele murmura certas palavras que eu opto por ignorar.
– Gideon, esta é a minha mulher, Wren. E antes de dizeres alguma coisa,
aconselho-te a ter cuidado com a língua.
– Ela é demasiado sensível? – brinca Gideon.
– A bem-dizer – responde Bóreas com secura –, tu é que corres perigo.
A minha boca contrai-se ao ver a expressão perplexa do homem, e sinto
uma súbita onda de afeto pelo meu marido.
– Wren – diz Bóreas, a mão afagando-me as costas–, este é o Gideon, um
dos meus comandantes de unidade.
O respeito no tom de voz de Bóreas diz-me que ele tem este homem em
elevada consideração.
– Muito prazer.
Ele inclina a cabeça.
– Minha senhora.
– Trate-me por Wren, por favor. – Continuo a comer o guisado. – Então,
há quanto tempo conhece o Bóreas?
Antes que me possa responder, dois outros homens juntam-se à nossa
mesa. O primeiro é Pallas. O capitão não me presta atenção e eu não sei se
devo sentir-me aliviada ou irritada. O segundo é um brutamontes feio, com
um nariz hediondo e protuberante. Oferece-me um sorriso de soslaio cheio
de dentes partidos. Viro-me para Pallas.
– Não me cumprimenta?
– Já se conhecem? – pergunta o rei.
– Já. – Fito o capitão por cima do nariz. – Ele ouviu umas… opiniões
minhas.
O brutamontes rosna:
– Se a sua mulher está aqui, meu senhor, quem é que lhe aquece a cama
na sua ausência?
A minha mão mantém-se firme enquanto encho a boca de guisado.
– Quem disse que sou eu que aqueço a cama?
O Rei do Gelo fica tenso. Pouso a mão na sua coxa por baixo da mesa,
pedindo-lhe silenciosamente que não se manifeste. Mas o músculo sob os
meus dedos flete-se, reparo que aquela pele se encontra quente através do
tecido das calças, e retiro rapidamente a mão.
O sapo feio enrola o lábio superior. Ele olha para o seu rei e depois para
mim.
– Quem aquece é sempre a mulher. Por exemplo, tenho três megeras à
minha espera em casa.
Acabo de mastigar um pedaço de carne. Há muito tempo que não coloco
um homem no devido lugar. Quase tenho saudades.
Assentando os cotovelos na mesa, inclino-me para a frente, olhando
fixamente para o homem. Já conheci pessoas daquele género. O lugar das
mulheres é na cozinha, e se não estão na cozinha, devem estar de costas no
quarto.
– Sabe o que se diz dos homens que falam de mais?
O olhar do homem estreita-se como uma víbora.
– O quê?
Levando a tigela de sopa à boca, sorvo com o mais irritante ruído
possível. Mastigo e depois engulo, porque é indelicado falar com a boca
cheia quando se trocam insultos.
– Fodem de menos – digo muito sucintamente.
Os soldados ao alcance da minha voz começam a uivar e a bater sobre as
mesas com as palmas das mãos. Pallas abana a cabeça, com a boca curvada.
Até Bóreas se ri. O único que não se ri é a minha vítima.
Felizmente, o brutamontes decide que a conversa chegou ao fim e
desaparece com um sopro, livrando-nos da sua companhia desagradável.
Terminada a refeição, os homens regressam às respetivas tendas. Bóreas
e eu entramos na nossa.
Acenderam uma fogueira na nossa ausência. Terá sido Orla,
provavelmente. Aqueço as minhas mãos contra as chamas enquanto o rei
descalça as botas. Há um pequeno posto de lavagem ao fundo, e as nossas
roupas foram desempacotadas e organizadas numa pequena cómoda.
Quando o som de roupa que cai me alcança os ouvidos, paro.
Já estive nesta situação.
Virando-me, abarco a visão diante de mim.
– O que fazes?
O Rei do Gelo hesita enquanto remove a túnica. Já se desfez do casaco.
– Acho que é óbvio – diz ele enquanto outro botão passa pela abertura,
expondo mais um pedaço de pele. – Nunca viste um homem nu?
Terei detetado um espicaçar?
– Imensos – respondo sem hesitar. – Quem viu uma pila, viu-as todas.
Retesa os lábios, e o tempo estende-se num silêncio.
– Estou a ver.
Num gesto fluido, retira a túnica por cima da cabeça e lança-a para o
lado.
Inspiro com tanta força que quase engulo a língua.
A estria que divide o abdómen sulcado traça linhas de vincos
sombreados através do músculo, e o pelo preto forma caracóis que descem
até ao cós das calças. Os ombros largos e poderosos estreitam-se até formar
uma cintura fina. O meu olhar percorre cada pedaço de pele exposta, desde
os mamilos achatados e escuros, às clavículas elevadas, à cavidade na base
da garganta.
– Estás a olhar fixamente.
Lá consigo desviar o olhar da impressionante exibição.
– E daí? – Cruzo os braços sobre o peito. – Não posso olhar para o meu
marido?
– Podes. – O olhar fica carregado. – Desde que eu possa retribuir.
A minha pele contrai-se até me doerem os ossos. Não quero pensar na
berma que se desmorona a meus pés. Seria demasiado fácil dar um passo
em frente e saudar aquele abismo.
– Vou lavar-me – anuncio, pegando na mala e esgueirando-me para trás
da divisória onde se esconde a banheira. – E tu não estás convidado.
Tendo Bóreas tão perto, não perco tempo a lavar-me. Mais rapidamente
do que demora a selar um cavalo, fico limpa e embrulhada na minha roupa
de dormir.
Surjo de trás da divisória, e Bóreas já vestiu umas calças largas. O peito
continua à mostra. Tal como os pés. A visão dos dedos dos pés enerva-me
tanto como da primeira vez. Examinamo-nos mutuamente de cada lado da
tenda, sentindo a minha pele a tremer, o meu sangue a ferver de
antecipação. Engulo para trazer humidade à boca.
Fazendo um esforço, avanço para o meu lado da cama e enfio-me
debaixo dos cobertores. Bóreas apaga os candeeiros e imita-me. Mantemos
um intervalo decente entre nós. Deve bastar.
Só que, assim que os cobertores se acomodam, torna-se imediatamente
evidente que pouco farão para combater o frio da noite que se aprofunda.
Viro-me de lado, fecho os olhos e enterro-me no colchão irregular.
– Iremos aquecer-nos melhor se partilharmos o calor dos nossos corpos.
– A voz do rei aparece a flutuar pela negrura pontilhada de laranja.
– Basta-nos a lareira.
– O fogo vai extinguir-se.
– E então? Já estarei a dormir. – Assim espero.
O fogo tem um fim extremamente lesto, transformando troncos em
carvão em pouco menos de uma hora. O frio da noite infiltra-se na tenda e
desliza para dentro dos cobertores. Encolho-me numa bola apertada, a
tremer.
Algo roça na minha perna e eu levanto-me, respirando com dificuldade.
– Nada de tocar. – Os meus dentes começam a bater.
– Não fui eu que iniciei o primeiro toque da última vez.
Ele é mesmo descarado.
– Não foi isso que aconteceu. Acordei com o teu braço em volta da
minha cintura e a tua…
O Rei do Gelo ergue uma sobrancelha ao encontro do cabelo, rosto
manchado na luz ténue.
– A minha…?
Enrubesço. Como se ele não soubesse.
– A tua pila encostada ao meu rabo.
Os seus lábios curvam-se um tudo-nada. Está mesmo a rever o momento.
Devasso.
– Foste tu que te viraste para mim a meio da noite.
O mesmo argumento, novamente.
– Não estava a pensar bem, portanto, vê se não me tocas com esses
braços. – Apesar de serem espetaculares.
Ele suspira.
– Pronto. Fica desse lado, se queres morrer de frio. – Vira-me as costas.
As horas arrastam-se com horrível crueldade. Sinto os músculos
contraírem-se em erupções esporádicas. Os meus olhos ardem de exaustão e
a minha mente acolhe pensamentos sombrios, que logo expulsa, acordando-
me assim que começo a adormecer. O acampamento já se acalmou e só o
ronco ocasional de um soldado quebra a noite tranquila. Viro-me da posição
deitada de lado para a posição deitada de costas. Minutos depois, volto a
virar-me.
– Wren.
Olho para a escuridão.
– Sim?
– Não consigo adormecer se não paras de rebolar. – Bóreas vira-se de
lado para mim. A sua estrutura óssea é um esboço de sombras, a sua boca é
a única suavidade. – Partilhar o calor do corpo não tem de ser sexual. Os
meus homens fazem-no no campo para conservar o calor. É uma forma de
sobrevivência, nada mais.
Tem razão no que diz. Elora e eu partilhámos uma cama durante grande
parte das nossas vidas. Tal como a maioria das pessoas em Edgewood, uma
vez que as nossas casas não tinham espaço para quartos adicionais.
Pressentirá talvez a minha relutância, porque a sua voz adquire um tom
persuasivo que ainda não lhe conhecia.
– Minha frustrante e teimosa esposa. Por favor. Só esta noite.
– Só esta noite – concedo.
Os cobertores farfalham quando me viro para o outro lado e lhe
apresento as minhas costas. Bóreas aproxima-se, o colchão cede sob o
nosso peso combinado. De repente, sinto calor contra a minha coluna, dos
ombros às costas. Tremo ante o contacto, mordendo o lábio para abafar o
gemido embaraçoso que ameaça libertar-se.
Um dos seus braços desliza sob o meu pescoço. O outro pousa na minha
cintura, com os dedos espalmados ao encontro do meu estômago. A sombra
dele aconchega-se na minha sombra.
– Está melhor assim? – Os lábios roçam a minha orelha, e eu abafo outro
arrepio.
– Sim – sussurro. – Obrigada. – Não sei bem onde pôr as mãos, por isso
enfio-as debaixo da face. Os meus pobres pés, no entanto, continuam
dormentes de frio. Deslizo-os para trás até tocarem na pele quente.
Bóreas sibila.
– O que foi? – Estou tão exausta que já sinto a voz embargada. Aquele
abençoado calor arrasta-me para as profundezas do sono.
– Tens os pés gelados.
– Lamento.
Não lamento nada. Detesto pés gelados.

Pela segunda vez em muitas semanas, acordo nos braços do Rei do Gelo.
Representa um calor sólido nas minhas costas e um coração a bater contra a
pele. Quando Elora e eu éramos crianças, também acordei muitas vezes
daquela forma: reconfortada, sabendo que não estava sozinha.
Talvez o rei tivesse razão. Talvez eu me tenha virado para ele na noite do
Solstício de Inverno. Será demasiado terrível receber o abraço do rei, após
os meus atos, após a minha intenção de o matar? Se eu ficar aqui deitada, se
me deixar sentir em vez de pensar, mudará alguma coisa?
Quererei que mude?
Bóreas remexe-se. Uma das suas pernas envolve a minha, prendendo-
me.
– Acordaste. – O seu hálito faz-me cócegas na orelha.
Os meus olhos fecham-se.
– Sim. – É mais fácil responder sem ver. É mais fácil fingir que a minha
resposta pertence a outra pessoa.
Mexe-se novamente, e um objeto duro bate nas minhas costas: a forma
inconfundível da sua ereção.
Os meus olhos abrem-se com um suspiro e viro-me para o encarar. O
cobertor caiu-lhe para a cintura e as rugas da almofada marcam-lhe a face.
– Fizeste de propósito!
Encara-me com um olhar atordoado e um pouco perplexo.
– Fiz o quê?
Claro que sabe o que fez. Claro. A menos que a insanidade seja um
efeito colateral infeliz de estar casada com um deus.
– Não importa – murmuro.
Uma barba rala cobre-lhe o maxilar e o queixo. Está áspera quando ele
passa os dedos, olhando-me com uma frustrante falta de emoção.
– Meu senhor?
O Rei do Gelo atira as pernas por cima da cama. Felizmente, usa calças.
– Entra.
– O quê? – guincho. – Não estou vestida.
– Tens roupa dos pés à cabeça, e estás tapada pelos cobertores. Não me
parece que estejas nua.
Pallas entra, e o olhar arregala-se por instantes. Mantenho uma expressão
neutra. Ele não antecipava a minha presença.
– Pallas – riposta o rei.
O homem desvia o olhar, pigarreia.
– Meu senhor, o dia amanhece. Quais são as suas ordens?
– Prepara os cavalos. Partiremos de imediato.
Pallas desaparece enquanto Bóreas veste a sua túnica e pega na
armadura. Sento-me na cama com o cobertor cingido ao peito, embora saiba
que é inútil, uma vez que estou completamente vestida.
O rei prepara-se para partir, de forma rápida e eficiente. Armadura
afivelada, correias apertadas, botas puxadas, lança na mão. O Vento Norte é
uma força inexorável, e quando se envolve em metal reluzente ainda mais
parece.
– Não saias do acampamento – diz, enquanto ajusta as manoplas. – É
onde estarás mais segura. – Depois acrescenta, como se fosse uma reflexão
tardia: – Nada de disparates.
Escarneço.
– Mas eu faço disparates?
Ele fica a olhar-me, sem dizer nada.
Tem razão.
Abre as abas da tenda quando eu o chamo:
– Bóreas. – Ele para, mas não se vira. – Tem cuidado contigo.
E então fico sozinha, o colchão ainda quente do corpo do meu marido.
33

B óreasTalvez
não regressou.
lhe tenham espetado uma lâmina no peito. Seria bem-feito,
depois de todo o mal que causou. No entanto, o dia alonga-se e o meu
coração não abranda o ritmo frenético. Imortal ou não, pode estar
gravemente ferido. Os meus pés conduzem-me de uma ponta à outra da
tenda, uma e outra vez, até que as lâmpadas se apagam, e o espaço se
reveste mais de sombras do que de luz.
Não me devia importar.
Mas importo-me.
Porra.
Poucos segundos demoro a vestir o casacão grosso e a pôr o arco e a
aljava ao ombro. Ao sair da tenda, sou acolhida pelos preparativos para a
batalha. O relinchar dos cavalos e o tilintar das armaduras. O estalar da
lona. Ninguém repara em mim, esgueirando-me pela parte de trás da tenda,
onde Iliana pasta na relva castanha e gelada.
A égua saúda-me, afagando-me o ombro com afeto. A estrela branca no
focinho brilha nesta noite.
– Minha senhora.
Suspiro. Claro que não podia ser tão fácil.
Montar na sela coloca-me em vantagem de altura, por isso é o que faço.
– Sim? – digo, olhando para Pallas.
Sob a luz ofuscante, o vermelho do seu cabelo coincide com o do fogo.
Uma ligadura envolve-lhe a coxa. Quando recuperar, sem dúvida o capitão
voltará ao combate. Ele observa o meu traje, ter montado Iliana, e franze a
testa.
– Ordenaram-lhe que não saísse do acampamento até o rei voltar.
– Os planos mudaram. – Presenteio-o com o meu sorriso mais afável. –
O Bóreas pediu-me para ir ao encontro dele no campo de batalha. –
Endireitando-me na sela, inclino o queixo num ângulo elevado. – Apenas
cumpro os meus deveres de esposa.
Pallas agarra as rédeas, interrompendo o meu avanço. A sua armadura
faz barulho com o movimento.
– Não posso permitir. As minhas ordens foram claras.
A égua sacode a cabeça, agitando-se sob mim, ansiosa por correr. O
sorriso desapareceu.
– Eu vou levar a Iliana, e não me vais impedir. Solta o cavalo ou eu
obrigo-te. Já te esqueceste do nosso último encontro? – Dou uma palmada
no arco, caso precise de avivar a memória.
Pallas aperta os lábios, mas, entretanto, começámos a andar. Ele pula
para trás, para evitar ser esmagado pelos cascos de Iliana. Não tem de se
preocupar. Será uma curta visita ao campo, só para garantir que Bóreas não
está caído algures, esvaindo-se em sangue. Estarei de volta antes que o meu
marido perceba que saí.
Uma vez alcançada a periferia do acampamento, Iliana desata a correr. O
trilho deixado pelos batalhões de Bóreas conduz-me para as profundezas da
floresta. Algum tempo depois, diminuímos a velocidade para um trote, e
depois para ritmo de passeio até sairmos da floresta.
Deparo com um terreno de sangue.
Milhares jazem mortos sob o sol ardente. Vapor emana da carnificina
que alcança o horizonte. Engasgo-me, tapando nariz e boca com as costas
da mão. Corpos amontoados. Colinas e picos de carne enegrecida e rasgada
pelas sombras. Desce uma névoa carmim, ocultando o solo marcado e
arruinado.
Ao longe, a Sombra estremece, as gentes invadem as Terras Mortas,
empunhando espadas e machados enferrujados e forquilhas. Em poucos
minutos, os seus olhos projetam-se, os dentes contraem-se. O exército do
rei tenta, a todo o custo, travar a invasão da Sombra, mas é impossível deter
o fluxo que se escorre pelas fendas. Embora os espectros já estejam mortos,
é como se morressem de novo, pois sangue cobre as suas armaduras, feridas
abertas expondo os ossos e tendões no interior.
Iliana tenta avançar, mas eu puxo-a para detrás de uma árvore,
procurando abrigo. Perscruto a loucura que se espalha como uma
inundação. Não há sinal dele. Nem um sinal…
Ei-lo.
É a mancha escura, o vento frio, o rio enegrecido, a veia que separa o
dilúvio da batalha.
O Vento Norte rasga o inimigo com uma lança cuja ponta brilha com luz
branca. Novo golpe, e tombam outros sete caminhantes-das-trevas. Ele deve
ter-se livrado de Fáeton, pois não vejo o corcel. Bóreas percorre o campo a
pé, a capa negra esvoaçando nas suas costas.
O flanco direito do exército cede sob uma nova onda de infiltração, e
Bóreas acorre a ajudar a margem enfraquecida, com os soldados a separar-
se e reagrupar-se à sua volta. Os caminhantes-das-trevas caem, embora
repostos por muitos outros. De costas, ele não repara que a força inimiga
altera a forma de modo que permita a passagem de uma única figura. Não
repara no homem, com a corrupção a enegrecer-lhe os olhos, que rompe a
barreira de corpos endurecidos pela guerra e vai encurtando a distância.
Esvaziam-se, os meus pulmões. Para de bater, o meu coração.
Desloco-me, arco na mão, madeira fria e firme. A corda, totalmente
puxada, vibra com um tom agudo e metálico. Aponto, acompanhando com
a seta o avanço do homem.
O homem ergue a espada, a boca aberta num grito que se perde no
tumulto, traçando um arco descendente e fatal contra as costas
desprotegidas do rei.
Atiro.
A seta grita, estridente, traçando um rumo direto até se enterrar no peito
do homem.
Bóreas faz meia-volta, e depara com o seu perseguidor tombado na lama,
espada ainda na mão. Com um puxão forte, ele arranca a flecha do tronco
do homem e segura-a contra a luz durante um longo e demorado momento.
Põe-se imediatamente de pé, examinando a área, mas encontro-me
demasiado protegida pela vegetação para que me vejam. Com um grito de
urgência, viro Iliana, e, juntas, regressamos a galope para o acampamento.
Horas depois, já sentada na tenda, a remendar um buraco no casaco,
entra Bóreas pelas abas. A sua aparência horrível assusta-me e faz-me
largar a peça de roupa.
Tem no olhar duas brasas azuis como o coração de uma chama.
Arranhões vivos marcam-lhe o rosto. A túnica suja, a armadura amolgada,
as calças rasgadas, a couraça coberta de sangue. O cheiro da morte invade
rapidamente o espaço.
– O que é isto? – pergunta.
A minha atenção passa rapidamente pelo objeto nas suas mãos. Voltando
calmamente à costura, respondo:
– Parece ser uma seta.
– Disparada por ti.
A minha boca fecha-se em contemplação.
– Não sei como é que isso seria possível, se não saí do acampamento.
– Mentes.
Com uma fungadela arrogante, levanto o queixo.
– Prova.
Se os sorrisos desenvolvessem presas, o dele tê-las-ia. Percorre-me uma
emoção excitante quando noto, embora não tenha a certeza se será medo ou
algo mais… carnal.
– O Pallas informou-me da tua saída a meio do dia.
– O Pallas é um parvalhão.
– Penas de ganso? São a tua marca própria. – Levanta a haste da flecha,
pressiona a madeira contra o nariz e inala. A sua voz torna-se mais
profunda. – Alfazema. – O cheiro do meu sabonete para as mãos.
Homem inteligente. Nesse caso, não vale a pena manter a palhaçada.
– E daí, que eu tenha atirado contra aquele homem? Tens sorte de me
encontrar ali, senão ele tinha-te cortado às postas.
– Disse-te para não saíres deste local, para tua própria segurança.
– Disseste-me para não sair deste local, porque gostas de ter as coisas
arrumadinhas.
– Mulher irritante – rosna ele. – Eu sabia que eras imprudente, mas não
pensei que fosses parva.
Enteso a espinha, e o esforço de morder a resposta contrai-me os
músculos, tensos por natureza. Se ele consegue magoar-me, significa então
que me tornei muito mais vulnerável do que pretendia. É preocupante.
– Porque é que isso não me espanta? – berro. – Atreves-te a insultar-me,
quando fui eu que te salvei?
– Sou um deus. Não posso morrer.
Sim, e aquele incomodativo hábito de me recordar constantemente não
me permite esquecer tal facto.
– Só tentei ajudar.
– Da próxima vez, ajuda-me obedecendo às minhas ordens.
A raiva aperta-me o peito. Sem gratidão, sem palavras de apreço. Devia
tê-lo deixado ser cortado ao meio pelo aldeão, só por despeito.
Bóreas afasta-se, mas reparo então numa mancha escura que se espalha
pelo seu abdómen. O sangue fresco brilha.
– Estás ferido – digo, agarrando-lhe no braço. – Mostra-me.
Tenta escapar-se às minhas mãos.
– Estou bem – rosne, exasperado.
– Não estás.
– Esposa…
– Senta-te – sibilo, empurrando-o para uma cadeira. Encara-me com
perplexidade enquanto eu desprendo a couraça, largo o metal manchado de
sangue no chão e lhe retiro a túnica, expondo um corte feio por cima da
anca direita. Inspiro com força. Parece profundo.
– Não é nada – afirma Bóreas. – Mal o sinto.
Sem tirar os olhos da ferida, chamo:
– Orla!
A aia entra de rompante na tenda, a ofegar.
– Sim, minha senhora? – Os olhos transitam entre mim e o rei com
nervosismo.
– Preciso de água quente, ligaduras e vinho. – Um relance de um
aparente medo cinge a expressão de Bóreas. – Muito vinho.
– Não – vocifera. – Vinho, não.
Fico tensa, reconhecendo o que não é dito.
– Não vou bebê-lo. É para desinfetar a ferida.
– Não quero saber…
– Já disse que não vou bebê-lo – riposto. – Ou confias na minha palavra,
ou não confias. Como vai ser? – As faces ardem-me de humilhação, por
supor que eu fraquejaria logo agora. Já aconteceu no passado. Estive sóbria
por duas vezes, nos últimos oito anos, mas nunca durou mais de seis
semanas. Passaram-se quatro semanas desde que acordei daquela
experiência em que quase morri. Cada dia parece um ano, mas beber é
aquilo que menos me apetece neste momento.
Os lábios dele retorcem-se, mas anui ligeiramente.
Orla sai da tenda. Entretanto, Bóreas observa-me atentamente, como se
eu segurasse um objeto particularmente afiado.
– Vou examinar a tua ferida – digo, olhando para ele. – Ficas aí sentado e
quieto. Se te mexeres, ainda te magoo.
Como resposta, recosta-se na cadeira, resmungando coisas sobre
mulheres e o pendor delas para a vingança.
Estudo o corte com atenção.
– A tua ferida já devia ter sarado. – Mas parece tão fresca como eu
imagino que estivesse há horas, pele vermelha e inflamada, as bordas
despolpadas.
Ele resmunga algo sem se comprometer.
Orla regressa, trazendo os materiais necessários. Recebo da minha aia o
balde de água quente, as ligaduras de pano e o vinho. Ela retira-se
apressadamente quando o rei a repreende por se ter aproximado demasiado.
Belisco-lhe a coxa.
Os olhos dele viram-se para os meus.
– Porque fizeste isso?
– Não assustes a Orla. Só tenta ajudar, meu pagão ingrato.
Ele remexe-se na cadeira, a atenção transitando para o balde e o vinho.
– Estás com medo de uma dorzinha? – pergunto com doçura, batendo as
pestanas. Acho que vou gostar disto.
Ao humedecer o pano, a mão dele projeta-se, dedos fortes prendem-me o
pulso. O seu peito nu sobe e desce de forma instável.
– Sabes fazer curativos?
Reteso os lábios.
– Sei o que é preciso saber. – Passa-se um momento. – Tens de me soltar
o pulso.
– É apenas um arranhão.
– Um arranhão que já devia estar fechado, mas não se fechou. – Seria
também consequência do seu poder enfraquecido?
Enxotando-lhe a mão, começo a limpar suavemente o sangue e a
sujidade da sua pele. Concluído este passo, pego no vinho. O meu estômago
revira-se, recordando a sensação do líquido a deslizar pela minha garganta,
mas fiz uma promessa. Quero ser uma pessoa melhor. Mereço mais do que
viver pela metade, e a minha mente nunca esteve tão desimpedida.
– Isto vai doer.
O músculo do maxilar estremece-lhe.
– Despacha-te.
Sobe ao meu nariz o odor a uvas esmagadas, e o meu corpo contrai-se de
desejo, assim que o vinho se derrama na ferida aberta. Bóreas retesa-se,
cuspindo palavrões. Os lábios afastam-se dos dentes, que começaram a
alongar-se, crescendo sombras na pele como manchas, mãos crispadas nos
braços da cadeira.
Escolho um dos panos limpos, molho-o na água quente e começo a dar
palmadinhas na área em redor da ferida. O rei contrai o abdómen, soltando
outro veemente praguejo.
– Cala-te.
Um tremor assola a sua pele pálida, convocando mais sombras. Os olhos
ficam negros e a sua voz torna-se um rosnado animalesco.
– Estás a matar-me.
A minha boca seca-se ao presenciar a sua luta contra a influência do
caminhante-das-trevas. Unhas curtas, de ébano, alongam as pontas dos seus
dedos.
– Já tentei matar-te – digo sem um pingo de remorso. – Várias vezes.
Não funcionou. Fica quieto.
– Várias vezes? Como… – Expele um gemido angustiado enquanto eu
banho a sua carne com o resto do vinho, extinguindo quaisquer possíveis
infeções.
– Da próxima vez – comento –, traz a Alba. Não sei porque não
insististe. É a tua melhor curandeira.
– A Alba é mais prestável a vigiar a saúde da criadagem e da minha… –
interrompe-se.
A minha atenção desvia-se do seu estômago.
– Ias dizer minha esposa, não ias? – Haverá algo de errado em mim, para
me sentir acarinhada com a ideia.
– E se fosse dizer? – O olhar azul inquisidor cruza-se com o meu, com
uma intensidade que afasta o ar dos meus pulmões. – A tua saúde é
importante para mim.
– Mm... – Falho por completo a tentativa de ocultar o sorriso. Céus,
estou doente.
Demoro dez minutos a limpar e a fazer um penso na ferida. Felizmente,
o ferimento não é suficientemente profundo e não precisa de levar pontos.
Deitado na cadeira, Bóreas observa-me com olhos semicerrados enquanto
eu enrolo o pano à volta do abdómen, dando um nó junto à anca.
Por fim, recuo.
– Devias descansar.
– Tenho de regressar para junto dos meus homens. – Mas não se mexe.
Entender o quanto se sente exausto suaviza algo dentro de mim.
– O que é que acontece aos espectros se morrerem? Quer dizer,
tecnicamente já estão mortos, apenas não passaram para o outro lado, é
assim?
– Regressarão ao Les para aguardar um segundo Julgamento. –
Respondendo a uma pergunta não pronunciada, informa: – Sentem dor, tal
como os vivos. A dor física pode durar muito tempo depois de uma ferida
estar curada. – Não menciona a dor emocional, e eu não questiono.
– Descansa – digo. – Se alguém aparecer à tua procura, aviso-te.
O Rei do Gelo fecha os olhos com um suspiro cansado. Adormece ao
fim de minutos.
Enquanto descansa, lavo o sangue da túnica e da armadura, que estão
imundas. As roupas precisam de ser limpas, e estou disponível. É uma
forma de passar o tempo.
Terminada a tarefa, troco de roupa, escolhendo um traje limpo. Atiço as
chamas. Deposito um cobertor sobre o tronco dele, e descalço-lhe as botas.
O ar adensa-se com um calor indolente.
Sentada na beira do colchão, vigio o homem com quem casei.
Bóreas dorme profundamente, as compridas pernas estendidas, aquela
boca carnuda suavemente entreaberta. O fundo do tronco equilibra-se na
borda da cadeira, demasiado pequena para acomodar confortavelmente a
sua grande estrutura. Embora não concorde com a decisão do rei de enterrar
o Gris no gelo, compreendo que queira proteger o reino dos invasores.
Tenho refletido sobre estes assuntos. As Terras Mortas, tal como Bóreas,
não são constituídas apenas por desolações sombrias. Há Makarios, o seu
astro mais brilhante. Nestes últimos dias, mostrou ser menos indiferente do
que julgava, encarado pelos soldados com grande respeito e cujos afetos
escassos podem florescer sob o toque certo.
Levantando o cobertor, avalio a ligadura branca enrolada à volta do
estômago, o peito que sobe de forma constante. Percorro com a ponta dos
dedos a berma do pano, testando a temperatura da pele. Fria, sem
inflamação. Não infetou.
Quando ergo a vista, descubro que o Rei do Gelo me observa com olhos
entreabertos.
O meu coração afunda-se, e endireito-me devagar, pois nas suas pupilas
castanhas ferve um calor inesperado.
– Procurava sinais de infeção na ferida – solto –, mas está limpa.
Uma das mãos dele enrola-se no braço da cadeira.
– Agradeço. – Ainda não pestanejou uma única vez. – Estive a dormir
muito tempo?
– Poucas horas. Não apareceu ninguém. Nem mensagens…
Levanta-se num gesto fluido. O cobertor escorrega dos seus ombros.
Quase me esquecera de como é alto, e avassalador.
Dá um passo em frente.
Dou um passo atrás.
– O que estás a fazer? – pergunto, com a voz estridente, recuando diante
da sua aproximação. Um, dois, três passos. Embato de costas na coluna da
cama. As suas pernas poderosas devoram o resto da distância e, num
momento de pânico, empurro-lhe os ombros para o impedir de avançar. Não
há mais nenhum sítio para onde ir.
Tremem-me os braços. A pele dele – quente e macia – cola-se às minhas
mãos. Tenho a cabeça vazia de ideias, assustadoramente vazia.
Encosta-se ao meu toque, e os meus braços cedem com o peso adicional,
sentindo aquela forma encaixa-se totalmente na minha. Um zumbido surdo
desperta-me o sangue.
Ele diz:
– Matar-me-ás por causa disto?
O zumbido ganha nova intensidade. Olhando-o nos olhos, percebo que
não se trata de uma encenação. O seu coração abriu-se para mim.
– Bem devia – digo.
O rei baixa a cabeça, roçando o nariz no meu num gesto de
surpreendente afeto.
– Pede-me para parar. – As palavras vaporizam-se entre nós.
Não sou capaz.
– Queres algo de mim? – murmuro, rouca. – Tens de ser tu a tomá-la.
Enrolando o meu cabelo no punho, Bóreas puxa gentilmente a minha
cabeça para trás, expondo-me a garganta à sua boca. Um longo suspiro
emana dos meus lábios. A posição une o fundo do meu tronco ao dele, a
crista longa e grossa da sua excitação pressiona-me a anca.
Calor rápido e ligeiro atrás da minha orelha, sob o maxilar e o queixo,
percorrendo o arco do meu pescoço. Regressa ao local onde o meu pulso
bate, um golpe da sua língua quente no batimento ritmado.
Estou ofegante. Se não estivesse tão concentrada na pulsação entre as
minhas pernas, até me esbofeteava de vergonha. Os meus dedos cravam-se
com mais força naqueles ombros e um ruído suave projeta-se de mim. A
sua outra mão agarra-me o fundo das costas, prendendo-me.
As pontas ásperas daqueles dedos provocam a bainha da minha túnica
antes de mergulharem na pele. É tão pequeno, aquele toque, mas assemelha-
se a uma flecha disparada após três meses de antecipação.
Endireito-me e as nossas bocas alinham-se. O seu hálito flutua sobre a
minha língua, sabendo a tudo o que é proibido. Fecho os olhos. Um convite,
se ele for suficientemente ousado para o aceitar.
E ele aceita. Sem pressas, sem a necessidade de se despachar. A língua
dele estica-se, lambe-me os cantos da boca, brinca com o meu lábio inferior,
e desliza para o interior quando lhe concedo a entrada. Os nossos narizes
roçam-se, com uma delicadeza que se confunde com a ânsia. O beijo
demora e demora, uma exploração preguiçosa que se dissemina como
nuvens pelo meu corpo.
Uma mão agarra-me por reflexo a anca. A minha sobe para o seu peito,
os dedos abrem-se sobre o músculo quente e a pele lustrosa, a coluna da
cama cravando-se na minha espinha. Sentir a língua dele enrolar-se na
minha, faz-me soltar um som de impotente vontade da garganta. Aproximo-
me mais, atrás da sensação rodopiante.
O desejo incendeia-se, e eu penso, Mais. Quero que este corpo se una ao
meu. Quero levá-lo aos confins da insanidade para vê-lo quebrar-se.
Quero que Bóreas perca o controlo.
Entrelaçando os dedos no cabelo dele, dou um puxão, incitando-o a
aproximar-se. Agora surgem os dentes. Agora surge uma respiração
acelerada e ofegante enquanto o beijo se transforma em fome insaciável. As
nossas línguas travam um duelo pelo domínio, as minhas mãos percorrem a
carne que está ao meu alcance.
Nunca senti tamanha vontade. Como se residisse o caos no meu corpo,
como se a pele fosse a mais insubstancial das barreiras.
O Rei do Gelo morde-me possessivamente a boca, e eu acompanho esta
carnalidade, tremendo com a deliciosa abrasividade das suas faces, aquela
língua que mergulha mais fundo em mim. É como se as veias se abrissem.
Somos marido e mulher, mas este caso tem um travo ilícito e proibido.
Percorro os seus ombros com o meu toque, dedos cravando-se nos
músculos fletidos. A curva do pescoço atrai-me a atenção, a seguir os
sulcos do cimo das costas, as omoplatas. Ponho-me na ponta dos pés,
curvando o corpo contra o dele, como a corda de um arco, e permito-me o
prazer de tocar no meu marido pela primeira vez.
– Wren. – Um profundo gemido, agoniante.
Ele devora-me a boca, e a doçura daquele hálito invade-me a garganta,
enquanto as suas mãos, aquelas mãos grandes e capazes, deslizam pelas
minhas costas até ao traseiro, onde os dedos se afundam na carne mole.
Uma coxa comprida e sólida enfia-se entre as minhas pernas, encostando-se
às minhas pregas. Solto um gemido e afasto a boca, ofegante.
Bóreas examina-me com os olhos semicerrados enquanto desloca a
perna num subtil movimento para a frente e para trás. As mãos tremem-me
ao mergulhar no seu cabelo.
– Com mais força – peço, roufenha.
Responde, aliviando a pressão contra o meu sexo, desacelerando o
movimento.
– Marido – alerto-o.
Os olhos dele enrugam-se com um divertimento suprimido.
– Esposa.
– Queres morrer?
– Pensei que já tínhamos falado no assunto. – Inclinando-se para a
frente, roça o nariz no arco da minha orelha, produzindo uma exalação
trémula da minha parte. – Não posso morrer.
Os meus dedos encontram o mamilo dele, que torcem – com força.
Ele retrai-se com um palavrão, mas eu mantenho o aperto, e intensifico-
o.
– Não subestimes uma mulher excitada.
O seu riso desperta como a mais bela canção.
– Jamais. – A emoção nos olhos dele, nítida como um dia reluzente, faz
palpitar confortavelmente o meu coração. – O que queres, Wren, diz-me.
Acabaram-se os segredos. Acabaram-se as mentiras.
Vou em frente?
Vou em frente.
– Quero que enfies os dedos em mim – digo, com a respiração ofegante
–, o mais fundo que puderes. E depois, quero que me fodas com eles. Com
força.
A ânsia cria ondas na sua expressão.
– Tens uma boca imunda – murmura, baixando a cabeça para me
mordiscar os lábios. Com os dedos cravados no meu traseiro, puxa-me ao
encontro da coxa… rápido, com força, castigador, uma pressão demarcada
pela dor. Esfrego-me irrefletidamente na coxa, pouco mais do que uma
cadela com cio. O prazer floresce dentro de mim, e sigo atrás da sensação
enquanto posso.
– É bom? – pergunta.
– Sim – ofego. – Não pares.
Enquanto lhe monto a perna, ele agarra-me no cabelo e puxa-me a
cabeça para o lado. Sou uma mariposa, fixada na luz branca. O Rei do Gelo
raspa os dentes pela minha nuca. Suaviza a dor com toques de língua,
despertando a sensibilidade daquela zona até que começo a debater-me
contra o seu domínio.
Da vez seguinte em que me chupa com força, encosta-se ao meu âmago.
Explodem estrelas na minha vista, e gemo, procurando acelerar a fricção.
Aumenta a ânsia da minha pélvis.
– Agarra-te a mim – murmura, e começa a desatar os cordões da minha
túnica.
Será esta a sua intenção? Prolongar o meu desejo até que eu seja um
mero farrapo nas suas mãos? O rei acaricia-me a pele com uma expressão
que raia o espanto. Agarra os meus seios debaixo da faixa de tecido que os
sustêm, apertando a carne dolorida. E então, desnuda-me da túnica,
puxando para baixo as pesadas faixas. Os meus mamilos espetam-se no ar
frio.
Tenho de lutar contra a vontade de esfregar a cara nele, como uma gata.
Aquele perfume é incrivelmente potente. Neve e cedro, sal e terra, suor e
almíscar, e homem. Passo a língua ao longo do suor que reluz no seu
pescoço. Bóreas geme e enterra o rosto no meu cabelo, a tremer.
Poder. Existe aqui, capaz de por um deus de joelhos enquanto decorre
uma guerra, e é todo meu.
Beijos doces e mordazes humedecem-me o queixo. Traça com a boca a
curva em que o meu pescoço e ombro se unem, antes de descer,
acompanhando a curva do peito, deixando um rastro de humidade.
– És perfeitamente… – Envolve um mamilo com a boca, brinca com a
ponta sensível, passando nele a língua.
– Menos conversa – ofego –, mais… – Ele enfia a coxa contra o meu
âmago latejante com força, e um gemido meloso escapa-se de mim. – Isso.
Mais isso.
A pila faz pressão contra o meu abdômen. Sempre que a ereção sente o
meu toque, ele grunhe, e o som trespassa-me enquanto esmaga os lábios nos
meus, desencadeando um ataque agressivo, de boca aberta, que golpeia
todas as minhas terminações nervosas. Tendo despertado a minha
curiosidade, percorro-o com os dedos, da base à ponta.
Ele fica quieto. Volto a tocar-lhe ao de leve, mais promessa do que
concretização. Bóreas recua, observando-me como se eu pretendesse matá-
lo. Mal sabe que tentei.
Eis a minha verdade: quero enterrar-me no seu fervor, quero entranhar-
me na sua pele, quero que a sua própria respiração se torne a minha, e todo
o ar que me roubou, quero devolvê-lo. Quero destruir Bóreas do mesmo
modo que ele me destruiu: lentamente, derrubando pedra atrás de pedra.
Abruptamente, agarra-me na mão, e afasta-a da sua ereção.
– Paciência – murmura, e então enfia a mão nas minhas calças.
Ele sonda a pele macia do interior das minhas coxas, e sinto o sangue
corresponder àquele toque. As pernas começam a tremer-me ao subir e a
palma da mão roçar a minha vasta humidade com um toque que me sabe tão
bem que até reviro os olhos para a nuca. Tenho de me mexer, tenho de me
esfregar contra a mão dele até que a ânsia se estilhace, mas…
Paciência.
Quero dar-lhe prazer.
Dedos bruscos roçam nos meus curtos caracóis. Amplio a minha postura
para lhe conceder um melhor acesso, e ele anui, aprovando sem palavras.
Regressa à minha coxa, o toque dele, e ascende até a junção. O calor
torna a pele macia, e os dedos deslizam por ela, acumulando humidade.
Aqueles olhos azuis ardem de intensidade. Oh, céus, não consigo respirar.
Deus me perdoe, mas eu desejo este homem. E se isso significa que vou
para o inferno, que assim seja.
– Então, tu podes tocar-me – arquejo, enquanto ele me acaricia entre as
pernas –, mas, a ti, não me deixas?
Uma pausa momentânea, antes de prosseguir esta exploração indulgente.
– Incomoda-te assim tanto que me concentre no teu prazer?
– Não. – Ranjo os dentes. O meu âmago lateja ferozmente. – A menos
que tenhas por objetivo enlouquecer-me de desejo.
Um sorriso fátuo percorre-lhe a boca.
– Wren – diz. – É precisamente isso que pretendo.
E ao passar os dedos pelas minhas pregas molhadas, gemo. Gemo tão
alto que tenho certeza de que metade do acampamento ouviu, um som que
emana do fundo do meu ser, extraído de um núcleo de veracidade.
Brinca comigo a seu bel-prazer. Esfrego-me ao encontro daquela mão,
choramingando, a minha boca cravando-se no pescoço dele. Quero magoá-
lo, quero saber que fui eu quem o marcou.
Ele contorna a zona latejante e eu traço com a língua um caminho que
sobe pelo pescoço e depois desce, desviando para o declive do ombro e da
clavícula, antes de regressar à sua boca. Beijamo-nos com uma urgência
cada vez maior e, por um momento, juro que nossas almas se tocam.
Está tão concentrado no beijo que não nota os meus dedos enquanto
percorrem a sua pele tensa e quente. Descendo, descendo, acompanhando o
abdômen até à saliência que se ergue com orgulho. E quando os meus dedos
mergulham na cintura, e envolvem a ereção, Bóreas emite um som como se
o fôlego escapasse do seu corpo.
Ah, como é grande. O pénis estica-lhe as culotes, o formato da ampla
cabeça visível sob o tecido áspero. A minha boca fica seca com a visão.
Passou-se muito tempo desde que levei um homem para a cama. Sinto falta
de certas coisas: o peso e a força do corpo de um homem que me prenda ao
colchão, a plenitude de quando nos unimos. O sexo é selvagem, mas
também pode ser terno, com o parceiro certo.
– Creio – digo com voz arrastada, pressionando o polegar na fenda,
chamando as suas ancas ao meu encontro – que tens o tamanho adequado.
Um olhar azul vítreo fixa-se no meu, estreitando-se de descrença.
– Não estás satisfeita? – Palavras deliciosamente ásperas, básicas. Um
rubor tinge de vermelho a pele ártica.
Encolho os ombros. Na verdade, não importa o tamanho da pila, mas o
que um homem faz com ela. Embora a de Bóreas seja provavelmente a
maior que encontrei.
Uma mudança assola-o. Parece quase satisfeito.
– Wren – sussurra –, porque és tão mentirosa? – E faz deslizar
lentamente um dedo para dentro de mim, as paredes do meu sexo
envolvendo a intrusão.
Os meus dedos entranham-me nos ombros dele, e gemo, esticada em
pontas dos pés para que ele possa enfiar ainda mais profundamente o dedo,
o meu corpo incitando-o até ao fundo.
Ele sai, e volta a entrar, mas apenas até meio. Não é suficientemente
fundo, e tem noção disso.
Uns poucos puxões bem dados, e as calças dele alargam-se, expondo-o
ao meu olhar. Ao de leve, aperto-lhe a haste grossa e escassa de pelos.
Contorce-se quando a agarro.
– Anda, vá – provoco. Desafio o Rei do Gelo a fazermos esta corrida,
determinarmos quem será o primeiro a vir-se… o que é totalmente ridículo,
mas manipulo-o, arrastando a mão da base à ponta, demorando-me em volta
da cabeça carnuda antes de mergulhar com a mão já húmida da sua semente
precoce.
A minha mão voa, cada vez mais rápida. Bóreas esfrega-se contra o meu
quadril, encostando-me as costas à cabeceira da cama, enquanto brinca com
as minhas pregas. Os dedos dele mergulham no meu âmago, numa contínua
e insistente foda que contrai as minhas paredes internas e, pelos deuses,
sinto-me prestes a explodir. E quando ele traça provocadores círculos com o
polegar em volta do ponto inchado que encima a minha entrada, a minha
mão vacila, assolada por picos de prazer e faíscas que rebentam dentro das
minhas pálpebras.
– Não me desafies – diz com um sorriso indolente –, se não tiveres
capacidade de ganhar.
Pretendo ganhar.
– A questão é esta – crocito, abafando novo gemido quando ele insere
outro dedo. – Quem aguentar mais tempo…
– Tem direito a fazer um pedido à sua escolha – conclui por mim,
emitindo um som baixo e gutural enquanto lhe aperto suavemente os
testículos.
Demora um pouco para a neblina se dispersar. Um pedido? O que eu
faria com isso.
– Muito bem.
Incitamo-nos mutuamente a continuar, numa espiral que progride e se
acerca e se intensifica. A respiração de Bóreas fica mais profunda, à medida
que alcança picos de prazer, mas a onda não rebenta. Pelo contrário, rebola
sobre si, sobre mim, num manto contínuo de calor florescente. Aqueles
dedos grossos no meu interior são divinais. O seu polegar manipula o
botãozinho espetado, dando voltas e voltas até que os meus pés se levantam
do chão, até a minha pélvis sofrer cãibras do êxtase.
Mas ele também está quase. Os seus gemidos inarticulados dizem-me
que tem uma especial sensibilidade na parte inferior da haste. Arrasto por
ali as unhas, até ele tremer na minha mão com um rouco:
– Wren.
Ele expele a palavra por dentes cerrados.
– És perfeitamente…
– Maravilhosa?
– Diabólica.
Rio-me desalmadamente, e dou-lhe um beijo molhado na boca. O calor
cola-se à minha pele como uma chuva impossivelmente quente. Ele fode-
me com a mão e eu estou quase a atingir o pico, levanto-me ainda mais, à
medida que o meu corpo se contrai…
– Meu senhor? – chama Pallas do lado de fora das abas da tenda.
O Rei do Gelo separa a boca da minha, com o peito a arfar. O nevoeiro
dissipa-se do olhar, e toco na minha boca tenra e inchada, atordoada.
Estamos colados um ao outro, a perna em volta da sua coxa, as mãos dele
enfiadas nas minhas calças.
– Sim? – responde, fundindo aquele olhar ardente com o meu.
– Os homens regressam ao campo. Apareceu nova onda de caminhantes-
das-trevas – pigarreia. – L-lamento a interrupção.
Batalha. Já me esquecera por completo disso, no meu torpor de luxúria.
Bóreas começa a afastar-se, mas lanço a mão para lhe agarrar o braço e
puxá-lo para mim.
– Não me vais deixar neste estado. – Dói-me o âmago com a pressão
frustrada, com esta falta de atingir a plenitude, tal como a sua excitação
insatisfeita pressiona a minha barriga. Não quero parar.
Quero levar esta insanidade até ao fim.
Com a respiração pesada, ele retira a mão do interior das minhas pernas,
e pousa-a na curva da minha anca.
– Tem de ser. – A humidade transmite-se dos seus dedos para a minha
pele, e aí arrefece.
O meu estômago fica combalido de mágoa. Na minha mente, ele fez uma
escolha. E não me escolheu a mim.
O ar entre nós arrefece.
– Muito bem. – Encontro-me completamente calma, e afasto-me para
ajustar as calças e a faixa do peito, como se não estivesse quase a alcançar o
clímax com os dedos do Rei do Gelo dentro do meu âmago. Já tomei muitas
más opções na minha vida, mas esta é uma das piores.
– Wren.
Viro-lhe as costas, atiçando o lume para esconder a evidência das minhas
mãos trémulas. Fui mesmo parva. Fui sempre muito parva.
– Vai – digo. – Eles estão à espera.
Aguardo, mas não o ouço partir. Um olhar por cima do meu ombro
revela que Bóreas me examina, roupas já compostas, a testa franzida numa
interrogação.
– Toma cuidado com a ferida – digo. – Não podes perder mais sangue.
O olhar dele pousa na minha boca e aí permanece.
– Ficarei bem. – E dizendo isto, parte.
34

– M inhaFaço
senhora? Está vestida?
uma pausa. Estou a cortar tecidos para fazer ligaduras, e
ouço a voz deste homem no exterior da tenda. Orla encontra-se sentada ao
meu lado, lavando roupa numa panela de água quente aquecida ao lume.
– Podes entrar.
Pallas irrompe pela tenda.
Orla solta uma exclamação. Ponho-me imediatamente de pé, esquecida
das ligaduras. O homem pende para o lado, e agarro-o pelo braço. Tem um
extenso e medonho rasgão a verter líquidos. A túnica, manchada com o
produto da terrível ferida, cede quando se afunda contra mim, a couraça fria
contra a minha pele.
– Orla – vocifero, alarmada. – Vinho.
A minha aia obedece prontamente enquanto oriento Pallas para uma
cadeira. Afunda-se nela com um grunhido de dor, o queixo tombado contra
o peito como se lhe custasse levantar a cabeça.
A ferida parece grave, e obviamente que Alba está na cidadela, onde não
nos pode ajudar. Não há mais curandeiras?
– Não morras – ordeno a Pallas.
Ele faz um sorriso, e afunda-se mais na cadeira.
– Não tenciono morrer, minha senhora. Pelo menos… grunhe. – Hoje,
não.
Ainda bem. Apetece-me pouco cavar uma sepultura.
Encontra-se tão translúcido que temo que se dissolva pela cadeira
abaixo. No exterior, o acampamento enche-se subitamente de ruídos,
quebrando o silêncio que se sentia até então.
– Venho – chia Pallas – entregar uma mensagem.
O fedor da batalha infiltra-se no espaço: fumo e ferro. Põe-me a cabeça
tonta.
– O que aconteceu? – Faz horas que Bóreas saiu da tenda. O que lhe terá
acontecido?
Pallas arranca o odre da mão de Orla, inclina a abertura e despeja o
conteúdo na boca, nada preocupado com desperdiçar metade do líquido
sobre a couraça. O vinho destinava-se às suas feridas, mas assim também
resulta. Gentilmente, solto-lhe os dedos do recipiente e ponho a bebida de
lado antes que me sinta tentada também a beber.
– A mensagem? – recordo-lhe.
Pallas encara o vinho, respira levemente e estremece. Percebo então que
é bastante jovem. Teria mais ou menos a minha idade quando morreu.
– O senhor tentava fazer recuar um ataque quando uma nova vaga de
caminhantes-das-trevas surgiu por trás. Era como se estivessem
organizados, mas sem nenhum líder que conseguíssemos identificar. –
Tosse, com um hálito húmido saindo do peito. – Não estávamos preparados.
Se foram apanhados desprevenidos, quantos morreram?
E de repente, percebo: Pallas regressou ao acampamento sozinho. Sem a
fanfarra da chegada das tropas.
– Onde estão os outros soldados?
Quando cruza o olhar com o meu, o meu estômago revira-se.
– O senhor quer que regresse à cidadela o mais depressa possível, minha
senhora.
Não me respondeu à pergunta. Porque não me respondeu à pergunta?
– Pallas.
Os seus tremores intensificam-se. Novo olhar torturado para o vinho. Faz
um ar tão patético que lho dou. A bebida confere-lhe um pouco de cor ao
rosto, e perde aquela possibilidade de se desfazer em pleno ar.
– Trouxe doze homens comigo, os mais feridos. Não queria vir, não
queria deixar os meus camaradas, mas o senhor obrigou-me. Ele queria que
eu a avisasse, dar-lhe tempo de fugir antes que o inimigo chegue ao
acampamento.
– E o Bóreas, onde está?
– Quando parti, dizia aos homens para recuar. Não sei bem. Lamento.
O interior do meu peito mirra. Anuo, sem entender o que estou realmente
a anuir.
– Tem de partir, minha senhora. Antes que seja tarde demais.
Porque é que o Bóreas não me pediu para fortificar a Sombra? Consigo
fechar os rasgões. Podia impedir a entrada dos humanos transformados em
caminhantes-das-trevas, pelo menos temporariamente. Sugiro isso a Pallas,
mas o capitão abana a cabeça com veemência.
– Ele não a quer na zona da batalha. É demasiado perigoso.
Isso nunca me impediu. Poderia voltar para a Sombra, sejam quais forem
as consequências. Mas se Bóreas me enviou Pallas, a situação deve ser
realmente terrível. Os caminhantes-das-trevas devem encontrar-se com um
veloz avanço.
– Então precisamos de reunir o que for possível. Orla, avisa os criados
de que partimos daqui a uma hora…
– O senhor solicitou apenas a sua segurança, minha senhora. Os guardas
irão acompanhá-la.
– E os criados? – Ao contrário dos soldados, não têm treino de combate.
E também se encontram vulneráveis aos caminhantes-das-trevas. Orla
contou que, se a alma de um espectro for levada, desaparece para sempre, e
nada resta que transite para a vida após a morte.
– Só cumpro ordens, minha senhora.
– Talvez não tenhas pena de abandonar os teus próprios homens – digo,
irritada –, mas eu não deixo para trás quem não sabe lutar para servir de
alimento a criaturas abomináveis.
O rosto exangue de Pallas contorce-se, mas ele não procura defender-se.
A minha raiva esvai-se tão depressa como se inflamou. A culpa não é dele.
De facto, não é de ninguém.
– Minha senhora – sussurra Orla, agarrando-me no braço. – Se o senhor
a quer a salvo, isso tem prioridade.
– Não. – Muitas destas pessoas tornaram-se minhas amigas. Não as
posso abandonar. – Se eu for, vamos todos. Estaremos seguros atrás das
muralhas da cidadela.
Pallas tenta sentar-se, mas a minha aia empurra-o para trás.
– Há centenas de pessoas neste acampamento – diz. – Demorarão horas a
reunir os pertences.
– Traremos apenas o que podermos transportar. Armas e as roupas no
corpo. O resto, que fique. – O peso adicional atrasaria o nosso avanço. –
Sentes-te suficientemente bem para liderar? – pergunto.
E, sem mais nem menos, o que resta da sua determinação desmorona-se.
Se me enfrentar, acabará por perder, e sabe disso.
– Sim, minha senhora.
– Então temos de nos despachar.

Aproxima-se uma tempestade, uma grande tempestade. Sinto comichão na


pele enquanto as nuvens baixas se agitam ao longe. Transferimos os feridos
para macas, apagamos as fogueiras, distribuímos armas. Como não temos
cavalos suficientes para toda a gente, há quem tenha de seguir a pé. São
vinte quilómetros de caminhada através da neve.
Quando estamos prontos para partir, já o sol desapareceu. Ergue-se a lua
como uma pústula inchada, palpitando por entre um ninho de estrelas
dispersas. O meu estômago afunda-se com a visão. A noite é o domínio dos
caminhantes-das-trevas, e iremos fazer o trajeto com muitos feridos.
Iliana bate o casco, espevita as orelhas. O vento da tormenta que se
acerca traz o frio intenso. Ela pressente, tal como eu: algo nos aguarda do
outro lado do véu.
– Minha senhora – murmura Orla. Senta-se atrás de mim na sela. – E os
caminhantes-das-trevas?
O meu olhar passa de sombra em sombra. Tensa como estou, tudo se
assemelha às criaturas grotescas e espinhosas, embora ainda não tenha
sentido o cheiro do fumo, prova da sua presença.
– Correrá tudo bem, Orla. – Tenho um punhal pendurado à anca. Trago o
arco no colo, uma aljava cheia de flechas com pontas de sal. – Tomarei
conta de ti.
Os braços dela apertam-me a minha cintura.
– Obrigado, minha senhora.
Dou-lhe uma palmadinha na mão para a confortar.
Gideon, o guarda que conheci ao jantar, dirige o seu enorme cavalo baio
para a frente. A sua armadura reluz ao luar, tal como as dos dez guardas que
nos flanqueiam.
– O caminho está livre.
Cruzo o olhar com Pallas, que encabeceia a campanha. Quatrocentos
fugitivos, incluindo os feridos, mas só há sessenta soldados em condições
de lutar. A maioria são ferreiros, cozinheiros, hospedeiros, jornaleiros e
curandeiros, destacados para a guerra há muitas semanas.
Ante o meu sinal, Pallas levanta o braço, indicando a partida.
Abandonamos o acampamento, perseguidos pela tormenta.
Progredimos lentamente, embora eu tente minimizar a minha
preocupação, para o bem de Orla. Passamos muitas horas no frio e no
escuro que nunca se dissipa, e no granizo que, primeiramente pinga, mas
depois fustiga o nosso grupo com uma força terrível. De tempos a tempos,
Pallas levanta a mão e a fação abranda, à escuta. Espreito pela neve que cai,
com os dentes a bater e os lábios enregelados.
Iliana desloca-se para o lado quando algo choca connosco, à direita.
Levanto o arco, a flecha com ponta de sal já apontada para uma área de
escuridão que parece latejar com um frio primordial.
Alguém, ou algo, grita.
Viro Iliana com força. Os cavalos pisam o chão, paralisados, incapazes
de se mexer.
– Minha senhora…
– Cala-te, Orla.
Ela silencia-se.
Aspiro outra rajada de vento. Frio e granizo. A tempestade poderia
mascarar o cheiro, mas não me cheira a cinzas. Nem um vestígio.
As nuvens escurecem a lua. À nossa direita, a floresta densa atua como
uma parede de vegetação impenetrável; à nossa esquerda, um ribeiro gelado
acompanha paralelamente o caminho. Aguço os sentidos ao vasculhar a
área, atenta a movimentos. Temos de avançar, mas receio tirar os olhos da
escuridão envolvente.
Algo me toca no braço. Rodo na sela, apontando a seta diretamente ao
intervalo entre os olhos de Pallas.
– Merda – sibilo, baixando o arco. O meu coração bate, desenfreado.
Não me espantaria se parasse de repente. – Podia ter-te matado!
– Minha senhora. – As rédeas estalam nas suas mãos. – Há árvores em
frente. Temos de dar a volta.
Sair da estrada. Que bom.
– Não ouviste? – Tento espreitar a obscuridade por cima do ombro dele,
enquanto Iliana se remexe sob mim.
– Ouvir o quê?
– O grito. – Limpo a água gelada dos olhos com o antebraço. – Veio lá
de trás.
Um dos soldados emerge do vazio, avançando na minha direção. O rosto
pálido e semitranslúcido brilha sob o granizo.
– É o Gideon, minha senhora – exala bruscamente. – Perdemo-lo.
Um arrepio percorre-me a espinha gelada. As criaturas devem estar
próximas, mas não lhes sinto o cheiro do fogo e do enxofre por entre a neve
aquosa.
Outra exclamação faz-me rodar para o som.
Um caminhante-das-trevas projeta-se das sombras.
O grupo dispersa-se na presença da criatura. Viro-me ao ouvir novo grito
lancinante irromper do grupo.
– Não! – vocifero, furiosa. – Não dispersem.
Três criados fogem para a floresta.
Depois, outros dois.
Pallas manobra o corcel para a frente, colocando-se entre mim e a
criatura. A sua espada solta-se da bainha com um gemido de arrepiar os
cabelos.
O pescoço longo e sinuoso da criatura enrola-se como uma víbora e
depois ataca. Pallas, embora ferido, consegue desviar o cavalo daqueles
dentes irregulares. Orla geme, aflita, presenciando o combate. Aponto uma
seta para o caminhante-das-trevas, mas tenho medo de atingir
acidentalmente o capitão.
Os soldados soltam ordens, cavalgando pelas filas para tentarem
encurralar os criados assustados.
– Deixem-nos! – berro, com os olhos fixos na criatura. Os que fugiram
estão perdidos. Preciso de todas as espadas. Preciso de ordem. Preciso de
chegar à cidadela.
Pallas continua a desferir golpes contra o caminhante-das-trevas, e eu
percebo que tenta desviá-lo do grupo. As sombras da floresta começam a
distorcer-se. As árvores abanam, embora o vento já tenha morrido há muito
tempo. Lembro-me de Bóreas ter mencionado em tempos que a floresta não
gostava da sua presença, mas, e o seu povo?
Mais um grito. Orla começa a rezar em voz baixa.
O soldado que me informou do desaparecimento de Gideon vocifera
ordens aos camaradas.
Diz:
– Minha senhora.
Diz:
– O que fazemos, minha senhora?
Diz:
– Aproximam-se. Minha senhora, por favor!
– Envia todos os homens que tenham arcos para o perímetro – respondo.
– Tu… – Aponto para o soldado barbudo na frente da linha. – Conduz o
grupo em volta das árvores tombadas e avancem para a cidadela. – Não
podemos estar distantes. Viajámos grande parte da noite. – Orla, aguenta-te.
– Não sei se aguento muito mais – guincha nas minhas costas.
Enquanto o grupo foge para a cidadela, deposito Orla ao lado da estrada.
Os homens de Pallas distribuem-se em intervalos iguais, arcos a postos,
como o meu. Uns poucos que tinham espadas ou punhais, acompanharam o
grupo adiantado.
Agora que a tormenta passou por cima das nossas cabeças, o fedor das
cinzas atinge-nos com força. Estão aqui. Chegaram.
– Mostrem-se – sibilo.
Uma criatura avança da floresta.
É maior do que a minha casinha em Edgewood. Olhos vermelhos,
fendidos, encaram-me por cima de uma boca esmagada, cheia de presas
dentadas que pingam fluido negro.
O soldado à minha direita:
– Preparar.
O ar desdobra-se em sussurros, convocando outro espécime, e mais um.
Um fluxo de caminhantes-das-trevas inunda o intervalo entre a nossa
unidade e as árvores
– Apontar.
Cinco, seis, sete juntam-se. Depois oito. Doze.
– Disparar!
Gritos ecoam pela floresta. Explodem, os atingidos pelas flechas com
sal, pingando ícore.
Dois homens, de costas um para o outro, defendem-se de três atacantes
ao mesmo tempo. Um guarda a cavalo pula contra uma criatura que se
aproxima, retalhando-a do pescoço à virilha. A carne separa-se, e uma
flecha no peito acaba com o caminhante-das-trevas.
Mas surgem mais. Derrete-se um, materializa-se logo outro para tomar o
seu lugar. Sacar, armar, soltar. Cabeça, olho, peito. Eles caem, e não se
levantam.
É penoso manter Iliana quieta. Os soldados lutam, lutam com valentia,
mas quanto mais homens perdermos, mais difícil se tornará chegarmos
vivos aos portões.
– É escusado! – grito a Pallas. – Não conseguimos aguentá-los!
– Retirar! – Pallas encosta a mão na boca. – Retirar para a cidadela!
E então o ar ressoa com o som do trovão, lama congelada a saltar dos
cascos dos cavalos. Os caminhantes-das-trevas perseguem-nos. Falta-lhes
visão aguçada, mas são lestos, e aproveitam a escuridão envolvente para se
camuflar. No caos da debandada, um homem tropeça na própria fuga
desesperada, e encolhe-se para se proteger do caminhante-das-trevas que se
acerca dele.
Enfiando os calcanhares no flanco de Iliana, aperto as coxas contra o
animal, fazendo-a pular contra a vítima da criatura. Puxo o arco e deixo a
flecha voar.
Enterra-se no meio do peito da criatura. Veias escarlates tracejam-se pelo
fumo antes de se desfazer num borrifo de noite.
O homem está boquiaberto quando lhe dou ordem para se levantar.
– Mexe-te!
Seguimos em frente, em passo rápido. Uma brecha nas árvores revela a
cidadela, a erupção de pedra negra contra a montanha coberta de neve nas
suas costas, a promessa de salvação.
– Abram os portões! – berro.
Separam-se com um guincho trémulo. Uma onda de homens e cavalos
avança em direção à segurança do pátio.
– Vai! – Dou uma palmada nos quadris de um cavalo próximo, e ele
transpõe o limiar. O resto do grupo avança em diante, acelerado. Quando o
último soldado passa por mim, conduzo Iliana pelos portões, os quais se
cerram com um estrondo retumbante.
35

A vilaÉinteira de Neumovos aglomera-se dentro dos portões.


um caos. O pátio está tão cheio de gente que nem consigo ver as
pedras cinzentas debaixo dos pés. Até o mais pequeno espaço está ocupado,
seja por uma criança indisciplinada, por um marido preocupado a tentar
acalmar a família, por um cavalo ou uma cabra, ou por uma carroça frágil
cheia de bens sentimentais. Os soldados, com os seus corpos marcados pela
batalha e as armaduras encharcadas de sangue, só aumentam a angústia.
Abrindo caminho por entre a multidão, informo:
– Quem precisar de comida, dirija-se às cavalariças. Se precisarem de
roupa quente, vão para o pátio oriental.
– Minha senhora. – Uma jovem mãe aperta-me o braço com a mão,
impedindo-me de avançar. – Alguém sabe alguma coisa sobre os soldados
desaparecidos?
Não é a primeira a perguntar. Apresento-lhe a mesma resposta que dei à
mulher que a precedeu, e ao homem que precedeu esta última.
– Lamento, mas não saberei nada até que o rei apareça.
Com os olhos molhados, ela anui, soltando-me o braço. Mas sinto que
me persegue com o olhar enquanto oriento um casal idoso para Orla, que
está ocupada a distribuir meias de lã.
Decorreram demasiadas horas e ainda não há sinal de Bóreas. Preocupo-
me com ele, um sentimento que é novo e desconfortável. Quando
Neumovos soube que poderiam ser atacados, reuniram os pertences e
vieram para aqui, para a cidadela. Três mil espectros, sem mantimentos,
muitos deles parcialmente vestidos, desesperados e cheios de medo. Não os
podia recusar.
Bóreas ficará furioso quando descobrir o que fiz.
Quando o último cobertor acaba de ser distribuído e se instalam os
últimos salões e salas de baile, retiro-me para o interior dos vastos salões de
pedra. É de madrugada. Doze horas sem dormir, que passaram num piscar
de olhos.
Sinto o corpo tão exausto que fico tentada a enroscar-me ali mesmo, no
chão, mas subo as longas escadas. Em vez de virar à direita, onde o
corredor se divide em dois, viro à esquerda, onde quatro guardas me
bloqueiam a entrada na ala norte.
– Desejo ver os aposentos do meu marido – declaro.
– Ninguém pode passar, a não ser o próprio rei, minha senhora – é dito
pelo maior dos soldados presentes.
– Visto que sou esposa dele – afirmo –, acredito que a restrição não se
aplica à minha pessoa.
– Deixem-na passar. – Pallas manifesta-se ao fundo do corredor, irritável
e cansado. – Ordens do senhor.
Os homens desviam-se e o caminho fica desimpedido, permitindo-me
acesso a um conjunto de portas duplas e robustas ao fundo do corredor. Os
meus dedos enrolam-se nos puxadores de madeira fria que empurro.
Escuridão. E dessa escuridão chega a geada, um frio absoluto que
transpira da porta obscurecida. Um trinado agudo ressoa nos meus ouvidos,
em jeito de aviso. É uma caverna, uma cratera, uma cavidade, um poço. O
covil de um caminhante-das-trevas. E, por algum motivo, pondero entrar.
Duvido seriamente que Bóreas preparasse algum tipo de armadilha.
Afinal de contas, os criados têm de entrar para limpar. Ou melhor, Orla.
Mas nunca me disse com que frequência, e…
Os meus dentes rangem. Não sou cobarde. Não é a primeira vez que
entro nos aposentos dele, embora seja a primeira vez que o faço pela porta e
não pela janela. Não vejo razão para que haja algo diferente.
Penetro então no quarto, trancando a porta atrás de mim.
Depois de alguma atrapalhação, acendo a lareira e as candeias. Os
aposentos do rei são vastos, mas não tive oportunidade de os examinar da
última vez que aqui estive. O espaço é muito menos funcional do que
pensei, pontuado por pequenos toques de humanidade como um cobertor
colocado em cima de um dos cadeirões do espaço de lazer. A sala principal
desemboca num compartimento circular rodeado de estantes altas, com
cortinas a cobrir as janelas. Atrás de outra porta, encontra-se uma zona de
banho.
Oscilo, tomada pela incerteza. O que terá sucedido a Bóreas? Não sei de
nada. Estou surda e cega quanto ao seu paradeiro, falta-me conforto,
segurança. A clareza evade-me, e dou por mim a remexer na sua secretária,
a espreitar por detrás das estantes, a vasculhar o quarto na esperança de
encontrar um esconderijo de vinho, mas não existe. O meu coração afunda-
se com a desilusão, mas também com o alívio. Ele não mentiu quando disse
que se tinha livrado da sua coleção.
Viro-me e deparo com o leito dele: uma panóplia de cobertores tingidos
da cor do vinho e uma cabeceira reluzente do tamanho de um cavalo.
A minha curiosidade leva a melhor. Lanço-me para o colchão, caindo
entre almofadas macias e afundadas e cobertores de penas. Oh, isto é bom.
Muito bom. O meu corpo suspira com o contacto e afunda-se…
Não me lembro de ter adormecido, mas algo me desperta – um som
estranho. O fogo tornou-se cinzas e fumo, mas ainda ardem algumas brasas.
O puxador da porta abana-se. Alguém pragueja do outro lado da porta.
Pois. Tranquei-a.
Saltando da cama, abro o ferrolho e escancaro a porta, no exato
momento em que o peso de Bóreas atinge o meu peito. Tombamos no chão,
o meu corpo esmagado sob o dele.
Ele geme, com a cara encostada ao meu pescoço.
– Bóreas. – Empurro-lhe os ombros. Ele não se mexe. – Estás a esmagar-
me.
– Wren?
A pergunta tartamudeada põe-me alerta. Onde estão os guardas?
– Levanta-te – resmungo, e consigo retirá-lo de cima de mim com um
empurrão forte. Ele cai de costas e não se mexe.
– Bóreas? – Ajoelhando-me a seu lado, examino-o da cabeça aos dedos
dos pés. Há imenso sangue. Tanto que, se fosse mortal, ficaria preocupada.
Confundir-se-ia com um cadáver, pela forma como tombou. Fluido oleoso
de cor negra encharca-lhe as pernas.
Não pode morrer, recordo a mim mesma. Mas este facto em pouco
suaviza a minha preocupação.
– Não é meu, o sangue – diz arrastadamente, com os olhos fechados.
Sabê-lo dá-me um enormíssimo alívio, o que me espanta.
– Bóreas. – Espeto o dedo na bochecha da cara. – Levanta-te. Tens de
lavar o sangue.
– Não dá. Demasiado cansado.
Mãos nas ancas, avalio-o, suspirando. Bem, está vivo. É só isso que me
interessa. Se quiser dormir no chão, então que seja. Mas primeiro, precisa
de um banho.
– Orla! – Não deve andar longe, a minha aia. Aliás, se a chamasse do
lado oposto da fortaleza, acredito que seria capaz de me ouvir.
Um minuto depois, o eco dos seus passos rápidos alcança-me os
ouvidos.
– Sim, minha senhora? – Transpõe a soleira da porta, rosto vermelho do
esforço, e quase tropeça em Bóreas. Segue-se uma exclamação de susto. –
Meu senhor?
– Ele está bem. Só cansado. – Ou melhor, exausto. – Podes chamar
alguém para lhe preparar o banho, por favor?
Ela arranca a vista da forma tombada de Bóreas.
– É para já.
Para uma mulher de meia-idade, Orla é extremamente ágil quando a
situação o exige. Parece que decorrem meros segundos antes de um grupo
de criados entrar com baldes de água fumegantes, imediatamente
despejados na banheira de madeira até ficar cheia. Os criados partem com a
mesma rapidez com que chegaram.
– Obrigado. – Agradeço-lhes, embora já se encontrem em retirada,
fechando a porta ao sair. Depois viro-me, cruzo os braços e examino o rei.
Terá sofrido um traumatismo craniano?
Dou-lhe um pontapé na perna, embora seja mais uma pancadinha. Ele
resmunga, o rosto contorce-se.
– Esposa – rosna.
– Sim? – respondo com paciência.
As pálpebras acabam por se abrir. Vira-se para mim com os olhos
semicerrados.
– Devia saber que não me deixarias dormir em paz.
– Tens noção de que estás deitado no chão, certo? – Não havendo
resposta, acrescento: – Precisas de tomar banho. Tresandas.
– Faz sentido, tendo em conta que matei muitos caminhantes-das-trevas
hoje. – As palavras escorrem-lhe da boca, lentas de cansaço. Um arrepio
assola-o, esticando-lhe os tendões do pescoço.
O primeiro rasgo de inquietação percorre-me.
– De certeza que não estás ferido? – Terá sofrido algum golpe de que não
tivesse noção no frenesi da batalha?
– De certeza.
Continua a não se mexer.
– E então? – riposto.
– Eu… – Ele passa os olhos pelo quarto, dedos a contorcer-se.
– O que foi? Desembucha.
– Preciso que me ajudes a ficar de pé.
Para admitir esta necessidade, deve sentir-se realmente esgotado.
Examino-o com mais atenção. Tem uma pele sempre pálida, mas desta vez
adquiriu um tom feio; cobre-a uma fina camada de suor. Sob a vista
enevoada, encontro nódoas negras vincadas. O Rei do Gelo não adoece.
Não pode morrer. E afirma que não está ferido. Então, porque terá este
aspeto tão terrível?
– Esgotei o meu poder. – Tenta explicar a minha perplexidade. – A dor e
a fadiga são efeitos secundários disso.
Não tinha noção de que isso fosse possível. Mas, pensando bem, o que
sei eu desse poder, das suas capacidades e extensão? Muito pouco.
Erguer um homem adulto até ficar em pé não é tarefa fácil, mas lá me
arranjo. Juntos, avançamos para a divisão do banho. Ele senta-se num
banco, ao lado da banheira de madeira, e encara-me com ar sonolento.
Recordo um beijo desesperado e apegado no interior da lona da tenda,
línguas quentes e ávidas, uma lareira a arder ao lado.
Se não tivéssemos sido interrompidos, eu teria atingido o clímax ao
redor dos seus dedos, e imagino que o mesmo aconteceria com a minha
mão em volta da sua rígida ereção. Antes do rei, nunca me haviam tocado
com um desejo tão evidente.
Sinto que a minha pulsação começa a tremer e afasto o pensamento da
mente. Noto que Bóreas me observa, como se também ele recordasse.
– Não te vou despir.
Ele solta um trejeito de desdém, cujo som é mais vibração do que som.
– Não contava que o fizesses. A minha sorte não costuma ser tão boa.
Sorte? Agora, fiquei convicta de que tem um traumatismo.
– Tens razão – fungo. – A tua sorte nem sequer chega às tuas unhas.
Lava-te, depois ajudo-te a deitar na cama. – Porque, por algum motivo,
pensar que Bóreas se arrastaria para a cama sem ajuda entristece-me.
Enquanto ele esfrega o sangue e a imundície da pele, eu atiço o fogo até
crepitar. O calor aquece-me as articulações tensas e doridas, enquanto
ocupo um dos cadeirões, mãos entrelaçadas e pernas a tremelicar.
Do outro lado da parede, ouço a água chapinhar, seguido de um baque e
de um palavrão.
– Sentes-te bem? – Estou já de pé, atravessando o quarto. – Bóreas? –
Coloco a mão na porta.
O suspiro dele alcança-me os ouvidos. Não preciso de mais respostas.
Pensando bem, devia ter-me preparado para o que me esperava do outro
lado da porta, pois imaginar Bóreas a lavar-se é muito diferente de
testemunhá-lo. O seu corpo é tão largo que ocupa a banheira inteira. A água
leitosa com aroma a rosas esconde a área abaixo da cintura. Um olhar
rápido revela que ele não está ferido, apenas vastamente frustrado.
Murmura:
– Não consigo chegar às minhas costas. – Sim, é um grande problema.
Uma brisa fresca afaga-me a face, brincalhona, e digo, sem estar
totalmente ciente:
– Se quiseres, dou-te uma ajuda.
Não se mostra muito entusiasmado com esta oferta. Entretanto, tento
manter os olhos, com esforço, acima do peito dele.
A resposta não surge, e eu suspiro.
– Pronto. Contorce-te como um peixe, estou-me a borrifar.
– Espera.
Contraindo a boca, viro-me lentamente e encaro-o. Com evidente
relutância, Bóreas apresenta-me uma barra de sabão. Faz um ar tão infeliz
que contenho um sorriso. Ele não quer a minha ajuda, mas acaba por pedi-
la.
Puxando um banco que repousava no canto, coloco-me atrás dele e
agarro no sabão. Ele dobra-se, e só lhe vejo os ombros e o pescoço. Ombros
largos, muito largos, com marcas de batalha.
Ao primeiro toque, o rei fica tenso. O suor e a sujidade desprendem-se
da sua forma corpulenta e escurecem ainda mais a água. Imagino que lavo
uma velha feia. Alguém cuja presença não alterará o ritmo do meu coração.
Mas rapidamente descubro que todas essas visualizações são fúteis. A pele
dele sob os meus dedos, o deslizar da água com sabão, é muito sensual.
Um ligeiro chapinhar soa quando recuo.
– Inclina-te para a frente, por favor.
Bóreas está tão rígido como um tijolo endurecido. Resisto à vontade de
verificar a sua expressão, temendo o que possa encontrar. Aversão?
Acredito que o meu toque não o repugne. Ele beijou-me com a sofreguidão
de um faminto.
Descolando os dedos da berma da banheira, inclina-se para a frente,
exibindo-me o arco da coluna – e todas as cicatrizes que lhe marcam as
costas.
Fico muito quieta. Já lhe tinha visto as cicatrizes, mas nunca tão perto.
Aquela pele nem sequer parece pele, mas um amontoado de erupções, como
se os golpes se abrissem novamente sempre que ficam curados. Nem
consigo imaginar a extensão do seu sofrimento.
Com a maior delicadeza, passo as mãos ensaboadas por cima da área
cicatrizada e irregular. A respiração dele fica entrecortada, depois
estremece. Inclina a cabeça para a frente, num sinal de confiança que me
constringe a garganta.
– Fui eu que tive a ideia de nos juntarmos à resistência que derrubou os
velhos deuses – conta-me. – Estava convencido de que esta nova vida, sob
um novo governo, nos daria maior liberdade e influência. – Engole em seco,
e continua. – Estava errado. Os novos deuses usaram-nos como exemplo,
para mostrar o que acontecia a quem conspirasse contra eles. Eu e os meus
irmãos seríamos chicoteados como sentença.
Eu estremeço, mas calo a língua, e deixo-o terminar a história.
– Pedi para me darem as chicotadas que estavam destinadas aos meus
irmãos. O Concílio dos Deuses concordou com este castigo agravado, e
abrandou as capacidades naturais de regeneração do meu corpo para ficar
marcado com estas cicatrizes, e assim recordar-me permanentemente do
meu fracasso.
Digiro a informação, encaixando-a nas lacunas entre o que conheço do
rei e o que julgava conhecer.
– Dói? – pergunto, depositando água nas mãos para retirar a espuma, que
escorre pelos sulcos ao longo da sua coluna.
– As cicatrizes incomodam-me de tempos a tempos, e as costas ficam a
doer-me se não fizer alongamentos antes de um exercício intenso. – A
última palavra é quase inaudível. Está quase a adormecer no banho.
– Bóreas. – Aperto-lhe o ombro. – Deixa-me ajudar-te a ir para a cama,
para que descanses devidamente. Está a dormir em pé.
– Não posso descansar. – Endireita-se, virando a cabeça para mim. – Há
demasiadas coias para fazer, demasiados feridos, demasiadas mortes. – E
acrescenta: – Tenho de fortificar a barreira que cerca a cidadela, mas
primeiro preciso de restaurar o meu poder. – Faz um esforço para se
levantar, mas está tão esgotado que só consegue entornar água por cima da
borda da banheira.
Se o Rei do Gelo não me dá ouvidos, então tenho de o induzir a dormir.
Um corpo demasiado cansado com a adrenalina, uma mente que anda
incessantemente às voltas? Sei bem de que precisa.
– Estás demasiado tenso – sussurro, percorrendo as pontas dos dedos
pelos ombros inclinados. Fica vigilante, enquanto encosto o banco à
banheira, para ter acesso à parte da frente. – Posso dar uma sugestão?
Pressentindo uma transição do ambiente, as suas pálpebras cedem,
deixando cair o olhar azul subjacente, um brilho de cor apesar do cansaço.
– Continua.
– O corpo descontrai-se, depois de uma descarga.
Os lábios dele afastam-se de espanto.
– Sexo?
O sussurro profundo desperta uma emoção no fundo da minha pélvis.
Baixando o olhar para a água turva onde se abrem as suas pernas, reparo no
contorno ténue da ereção encostada ao abdómen, a sua ligeira curva
ascendente.
– Não é sexo. – São ásperas, as palavras. Pelos deuses, preciso de uma
bebida. – Eu concentrar-me-ia apenas no teu prazer. – Se vou arder no
inferno, caso exista, quero que Bóreas arda comigo.
O silêncio prolonga-se. Encaramo-nos fixamente, e questiono-me se ele
reconhece que esta sugestão provém do meu desejo egoísta. Quero tocar-
lhe, sentir o seu corpo ganhar vida, vê-lo desfazer-se, e não medir as
consequências.
Cauteloso, responde:
– Como é que faríamos isso?
Não recusa. É um sinal positivo.
– Não tens de fazer nada. Fica aí quietinho, enquanto eu te toco.
Bóreas perscruta-me a expressão, como se previsse uma armadilha. Se
for uma armadilha, terá sido montada por mim.
– E o teu prazer? Esperas que eu não retribua? – Franze o sobrolho.
Atrevo-me a dizer, é cativante. – Eu dou-te prazer, se me permitires.
A minha garganta contrai-se, recordando o encontro no acampamento, e
o fim prematuro.
– Agradeço – crocito –, mas quero dar-te prazer desta forma, se
consentires.
Inclina-se finalmente para trás, cauteloso na sua rendição. Um brilho
tenso surge no olhar dele, logo abafado.
Deixo-o assentar, e passo os dedos da mão pela superfície da água. Com
os joelhos dobrados e as pernas abertas, define-se como rei em cada aresta
forjada na guerra, em cada curva inesperada.
Roço as pontas dos meus dedos pelo abdómen dele, e contrações
espalham-se pela sua carne, em sintonia com o toque. A minha boca fica
dolorosamente seca enquanto continuo a seguir o trilho, subindo pelo
abdómen enrugado, atravessando o peito escultural, descendo, e terminando
com a mão enrolada à volta da dura e saliente haste.
Bóreas geme, e o corpo recolhe-se, impotente, contra a minha mão.
O raciocínio abranda, peneirado pela minha mente. É tal qual recordo,
senti-lo assim. Um calor palpitante, compacto, sob a carne exposta. Afago
devagar, à experiência, da base à ponta e regressando. As ancas do rei
contorcem-se, apesar de inchar nos meus dedos, e a sua excitação corta o ar,
roubando-me o resto da sanidade.
Vejo a minha mão manipulá-lo sob a superfície da água cheia de sabão.
Ele, por sua vez, fita o meu rosto, um sibilar escapando sempre que dou um
pouco mais de atenção à cabeça.
– É bom? – pergunto, chamando-lhe a atenção.
Não. Mais devagar.
As sombras alongaram os seus dedos, transformando-os em garras.
Quando as minhas carícias se tornam insuficientes, começa a agitar as
ancas, balançando-as deliberadamente, empurrando a haste através da
abertura formada pela minha mão. A água chapinha, um som distante. Sinto
o meu corpo arder. Alcançando a base do pénis, Bóreas interrompe-me com
um praguejo ofegante.
– Assim? – repito o gesto.
Uma das mãos dele solta a berma da banheira e envolve o meu pulso, as
sombras despertam cócegas na minha pele morena. Orienta a minha mão,
alarga as pernas, inclina a pélvis, atira a cabeça para trás. Um movimento
lento e ondulante. De novo, mas mais rápido. A mão dele cai sobre a coxa,
o punho cerra-se.
– Sim – respira ele, com os olhos a fechar-se.
O vermelho tinge-lhe a elevação das faces e aprofunda o tom dos seus
lábios, que coram. Uma gota de água, ou talvez de suor, escorre-lhe pelo
maxilar. Inclino-me para a frente para a lamber.
É extremamente erótico conduzir Bóreas até ao fio da navalha. Ver a
compulsão – o sexo – anular toda a razão. Ele é a força indomável que reina
sobre tantas vidas, um martelo para moldar o metal fundido, mas esta noite,
talvez o veja quebrar.
Os gestos rápidos da minha mão causam salpicos do banho. Aumento a
aderência quando puxo para cima, mas afrouxo os dedos ao envolver a
cabeça larga. Percorro a fenda com o dedo e empurro suavemente, e corpo
dele arqueia-se num gesto maravilhoso, o maxilar retesado revela a rapidez
com que se desfaz o seu controlo.
Quanto mais avança para a conclusão, mais contrario os meus próprios
impulsos. De entrar na banheira e abrir as pernas, sentando-me no seu colo.
Esfregar-me contra a sua extensão até que o meu próprio corpo se estilhace.
Poderia fazê-lo. Ele, provavelmente, não me impediria. Mas quero cumprir
o que prometi: isto é apenas para o prazer dele, e o sono, o sono ténue,
aguarda-o no final.
Cada vez mais ousada, brinco gentilmente com os testículos. Bóreas
estremece com um cruel praguejar.
– Wren. – Boca parcialmente aberta, lábios vermelhos, vermelhos,
vermelhos.
Acelero o movimento da mão. Ele agita-se contra mim, o pénis
emergindo da água enquanto produz um gemido prolongado, roufenho e
gutural. Agarra-se à berma da banheira, os nós dos dedos muito brancos, e
pousa a outra mão no meu braço.
– Mais – murmura. Os meus dedos separam-se em resposta à sua
lascívia, à fome que incha, negra, nas pupilas, que aperta o meu estômago
num ardor sem fim. Assim que as suas ancas começam a tremer, aperto
levemente a haste e Bóreas explode na minha mão com um grito rouco, a
semente humedecendo a minha pele, investidas irracionais procurando o
limite do prazer, expulsando as gotas até ao fim.
As minhas carícias abrandam enquanto ele se afunda na água, totalmente
consumido. O aperto no meu braço afrouxa e ele acaricia-me a pele por um
breve instante antes de me soltar.
Lavo a mão, satisfeita com a imagem das suas pálpebras caídas. Dormirá
repousadamente esta noite. Quanto a mim, sinto uma ânsia e um latejar nos
lugares mais secretos, mas obrigo-me a ficar de pé e a estender a mão.
– Sai.
O Rei do Gelo encontra-se quase inconsciente quando tomo uma toalha e
a enrolo à sua cintura. Encostando corpo com corpo, empurro-o para a
cama, o odor do sabonete ascende da sua pele e desperta-me os sentidos.
– Obrigado – diz Bóreas.
– Por?
Aponta para a lareira.
– Oh... – Porque agradeceria a lareira acesa? O quarto estava frio.
Qualquer pessoa teria feito o mesmo. – Não tens de quê.
A atenção dele desloca-se para a minha direita, e o olhar aguça-se com
uma nova consciência. Por algum motivo, tenho medo de olhar, como se,
inconscientemente, soubesse no que se concentrou.
Viro-me. Olha para a cama. Mais especificamente, para a reentrância no
meio do colchão, prova inegável de que ali se deitou um corpo.
Pergunta, com muita cautela:
– Estavas a dormir na minha cama?
Fico imediatamente corada.
– Estava… a testar a estrutura.
– Estou a ver. E quanto a isto? – Como se a depressão não fosse de si,
constrangedora, aponta para a enorme mancha de saliva seca sobre um dos
travesseiros.
– Isso – digo com a réstia de dignidade que ainda tenho – é um engano.
– Mm.
– Deita-te, Bóreas. – Empurro-o para o colchão, no qual desaba com um
gemido de exaustão profunda. A toalha mantém-se na zona da cintura por
mera vontade.
– Não tens de ficar – consegue dizer. – Sei que preferias estar noutro
lugar qualquer.
Presume atitudes minhas que nem sei se continuam verdadeiras. Que
pense o que quiser. É mais fácil manter a distância. É mais fácil esquecer
aquilo que desvendou a meu respeito sem esforço, aquilo que me retirou
sem eu saber se lhe quereria dar.
Estico os cobertores por cima dele. Adormece profundamente em poucos
segundos. E uma vez que deixa de haver motivos para a minha presença,
regresso aos meus aposentos. Bóreas tinha razão. Eu não tinha de ficar ali.
Mas ficaria, se ele me tivesse pedido.

Bóreas não comparece ao pequeno-almoço do dia seguinte. Ou me tenta


evitar depois do nosso último encontro sexual, ou tem razões para não estar
presente. Respirava quando saí dos seus aposentos e não encontrei nenhuma
ferida aberta no seu corpo, mas ignoro quais serão as consequências de
drenar o poder de um deus.
Em todo o caso, terá fome. Por isso, escolho um prato de comida e levo-
o para o seu quarto, enquanto os criados se atarefam a distribuir refeições
aos nossos inúmeros hóspedes. Desta vez, entro na ala norte sem incidentes.
Ao levantar a mão para bater à porta, esta abre-se. Bóreas, envergando uma
túnica da cor do mar no inverno e calças largas, para de surpresa.
– Olá. – Mostro o prato, de modo que a sua atenção se volte para a
comida e não para o rubor que me aquece as faces. – Não compareceste ao
pequeno-almoço, portanto trouxe-te isto. Para o caso de teres fome. – Que
outra finalidade teria um prato de comida? Estúpida. Seja como for, a saúde
dele parece ter melhorado muito.
Bóreas encara a comida, depois a minha pessoa, e regressa à comida.
– Há gente na minha cidadela.
Ergo um sobrolho.
– Pois há.
– Se não me engano, Neumovos em peso.
– Não estás enganado.
Um olhar sombrio exige que eu me explique. Passando por ele, pouso o
prato numa mesa de apoio e digo:
– Não tive escolha. Pediram refúgio e eu não podia mandá-los embora.
Perante esta resposta, Bóreas anui como se a sua decisão tivesse sido
igual, e tira uma torrada do prato.
– Os caminhantes-das-trevas encontram-se dispersos neste momento.
Não sei quanto tempo falta para retaliarem.
– Queria falar-te desse assunto, na verdade.
– Sim?
– Gostava de levar a festa avante.
Faz uma pausa, ainda com a torrada a caminho da boca.
– Sabes que se aproxima uma batalha, não sabes? Não nos podemos dar
ao luxo de ter distrações.
– Os caminhantes-das-trevas demorarão muito a reorganizar-se?
Ele mastiga, pensativo.
– É difícil dizer. Alguém ou alguma coisa os controla, mas ainda não sei
o quê nem quem. Não podemos baixar a guarda, nem por um segundo.
Temos de nos preparar para quando contra-atacarem.
Cruzando os braços, examino-o com a confiança de quem sabe o que
está a fazer. Às vezes funciona. Outras vezes não.
– Porque é que não podemos fazer ambas as coisas?
Bóreas oferece-me uma fatia de melão. Já comi, mas aceito a oferta, pois
sinto-me particularmente simpática esta manhã. Ele observa-me enquanto
mastigo, e o olhar é tão intenso que tenho de desviar o meu.
A minha atenção recai, obviamente, em cima da cama e dos cobertores
amarrotados. Olho para o lado, mas as narinas de Bóreas agitam-se como se
sentissem o pico da minha excitação, embora isso seja impossível.
– A pensar em algum assunto? – murmura, intencionalmente.
– Não.
Aproxima-se.
– Estás corada.
O meu olhar recai no seu peito, e desce, até à inconfundível ereção
limitada pela costura das calças. Se quisesse, podia tocar-lhe. Mas seria uma
péssima ideia. Provavelmente.
Encaro-o, pigarreando. Os dedos de Bóreas aproximam-se do meu rosto
e ele encaixa uma madeixa de cabelo na minha orelha, um gesto terno e, ao
que parece, sentido.
– Estás a pensar na noite passada? – pergunta em voz baixa.
– Claro que não – riposto, queixo projetado para a frente. – Sou uma flor
delicada.
O riso caloroso ajuda a afastar o frio da sala.
– Nunca ouvi afirmação tão longe da verdade.
– Olha, eu sei o que pensas desta festa. Que não queres gente no teu
espaço, mas os teus homens estão cansados. O povo da vila está assustado.
Uma celebração ajudaria a levantar os ânimos. Podemos fazê-la amanhã. As
decorações ainda estão no sítio, e há comida suficiente. De certeza que os
caminhantes-das-trevas não se conseguem reagrupar tão depressa depois de
tantas perdas…
Suspira.
– Wren.
– … e acho mesmo que ajudaria a levantar o moral, e sejamos francos,
este inverno eterno já é suficientemente duro sem este interior mal
decorado…
– Wren.
– … e apesar de estares zangado comigo por ter organizado esta festa e
não te contar que convidei a cidade inteira…
– Wren.
– O quê? – reajo.
– A resposta é sim.
– Tu… oh! – Deixo cair os braços. – A sério?
Ele inclina o queixo.
– Com uma condição.
Claro que não seria assim tão fácil.
– E qual é?
– Tens de convidar a tua irmã.
36

– N ão.É a minha resposta. Não requer mais explicações.


Bóreas observa-me a dar voltas ao quarto dele.
– Mas podias explicar?
De todos os pedidos que julgava receber do Vento Norte, este foi o
menos esperado.
– Sabes o motivo. – Após a humilhação da minha primeira visita, não
estou nada interessada em repeti-la. Rastejei de volta para as Terras Mortas
com o rabo entre as pernas, lambi as minhas feridas e sofri em silêncio. Ser
tratada com tanta frieza pela minha própria irmã… quebrou-me o espírito.
Passos quase silenciosos aproximam-se de mim. O calor e a amplitude
do corpo do rei tapam-me a espinha, permitindo-me a liberdade de me
recostar a ele, de solicitar forças adicionais neste momento, se o quiser.
Bóreas suspira.
– Wren.
– A Elora não me quer na sua vida – respondo, com a voz vacilando na
última palavra. – Deixou-o bem claro. – Afinal, eu só existia para satisfazer
as necessidades dela, certo? Comida na mesa, um teto. Doces, quando eu
amealhava o suficiente, e isto geralmente envolvia dormir com o cruel
sobrinho do tecelão. Nunca tais sacrifícios mancharam as suas mãos
imaculadas.
Dirijo-me para a cama, para a janela, de novo para a cama e depois para
a lareira.
– Não importa. A Elora tem o seu amado Shaw, um bebé a crescer na
barriga. Não precisa de mim, tal como não preciso dela… nem de ninguém.
– Sustenho-me à lareira de madeira. – Deves pensar que sou uma irmã
terrível.
– Não disse tal coisa.
– Mas pensaste-o – respondi, virando-me. Pela minha garganta, pela
minha boca, pelos meus olhos… esta fúria consome-me a uma velocidade
estonteante. – Devia sentir-me feliz por ela. A verdade é que queria que a
Elora sentisse o mesmo que eu. Sentisse a minha mágoa e a minha traição.
E que o fardo que tive de carregar em nome da nossa família passasse para
os ombros dela, e que lhe quebrasse a espinha.
O rei observa-me com firmeza, sem críticas. É a única razão que não me
faz calar.
– Às vezes penso em regressar a Edgewood e estragar-lhe a comida
guardada, ou fazer-lhe buracos nos chapéus e casacos. Mas sobretudo –
digo com uma gargalhada meio tresloucada –, pergunto-me se a culpa foi
minha, por me ter em tão pouca conta, e durante tanto tempo, que
desperdicei a vida a servir alguém que não agradecia.
E quando as lágrimas irrompem, quando o meu rosto cede, levanto as
mãos para esconder a expressão de Bóreas, a dor que me esforço por
apagar.
– A culpa é toda tua, sabias? – afirmo num tom vacilante. – Fingir que te
preocupas com os meus sentimentos – Desprezá-lo como o fiz em tempos já
não é uma opção. Tornou-se, de facto, impossível.
As suas manápulas pousam nos meus ombros. Um puxão, e a minha
testa encosta-se ao seu peito sem resistir. Respiro fundo, e o aroma de
inverno enche-me os pulmões, o que me faz atrasar a expiração tanto
quanto possível para não perder um único pedaço.
– Não finjo nada, Wren. Preocupo-me verdadeiramente.
Uma vez que o Vento Norte não mente, só pode ser verdade.
A vida era muito mais fácil quando nos odiávamos mutuamente.
– Tens de por um ponto final no assunto – diz. – Esta visita dar-te-á isso.
No meu íntimo, sei que havia de chegar a este momento. Mas não sei se
estou preparada.
– Acompanhar-me-ás?
Ele aperta-me a nuca.
– Bastava-te pedir.
Vinda a noite, encontramo-nos, Bóreas e eu, à entrada de Edgewood, com
as botas a pisar a linha de sal que circunda a cidade. Parece muito mais
pequena do que me lembro. Agora que vi o mundo, a minha mente abriu-se,
expandi o meu conhecimento. E, no entanto, este é o sítio em que nasci.
Representa tudo o que fui.
– Sinto-me maldisposta – murmuro, fitando a praça ao fundo. Comi uma
fatia de bolo antes de partirmos, para ganhar coragem.
A maior parte da população já se deitou, mas algumas janelas mostram
luz das lamparinas acesas. As casas parecem tão cansadas… O pouco gado
sobrevivente junta-se nos currais, pele velha e ossos frágeis que
possivelmente não resistirão aos próximos meses. Entristece-me.
– Se tiveres de vomitar – responde o Rei do Gelo, perscrutando a vila –,
tenta evitar as minhas botas.
– Não prometo nada.
Vira-se para mim.
– Não és obrigada a falar com ela agora. Podemos regressar quando te
sentires preparada. A escolha será sempre tua.
Mas a festa decorrerá amanhã, e por muito que me apeteça evitar este
encontro, não posso. É por mim mesma que o faço.
Transpondo a barreira de sal, percorro a rua deserta e atravesso a praça,
até ao caminho estreito de neve calcorreada que conduz à casa de Elora e
Shaw. Entretanto, a nossa antiga casinha está vazia.
A dúvida começa a entranhar-se. Eis-me aqui, aparecendo sem avisar a
meio da noite com o Rei do Gelo a reboque. Lanço-lhe um olhar,
confirmando que tem um aspeto tão perigoso como na sua anterior visita,
abrigado na comprida capa, feições cruéis esculpidas por uma mão precisa.
– Achas que podes tornar-se um pouco mais afável e menos… isto? –
Aponto para o ar sério.
– É a minha cara – constata.
– Certo. Pois. – Tento sorrir, mas não resulta.
Bóreas aperta-me a nuca com carinho. Com um leve empurrão, empurra-
me para a casa de Elora.
O meu coração bate a uma velocidade doentia.
– Não faças cara feia – peço. – Não faça gestos bruscos… ainda os
assustas. – E o que mais? – Esconde a tua lança. Garante que mastigas com
a boca fechada.
– Eu mastigo sempre com a boca fechada – diz ele. – Tu é que devias
seguir o teu próprio conselho.
Ignoro-o.
– Não descalces as luvas. E não…
– Wren. – Faz-me calar antes de alcançarmos o alpendre, com um aperto
seguro, mas gentil. É uma combinação que comecei a apreciar nele. – Não
temos de mudar nada. A Elora, ou aceita as circunstâncias, ou não. Não vais
conseguir controlar isso.
– Se ela me mandar embora… – Não consigo concluir o pensamento. É
demasiado doloroso.
A expressão dele suaviza-se.
– Então, iremos os dois. – Ele conduz a minha mão ao seu peito. Sinto o
coração bater, e o ritmo ancora-me. – Mas, pelo menos, porás um ponto
final no assunto. Terás tentado. Lutaste por ela, embora ela não tenha lutado
por ti.
Também tu, quase digo. Também lutaste por mim.
Como chegámos a esta situação, a este lugar, jamais entenderei. Mas de
uma coisa estou certa.
– Estou contente por estares aqui.
Bóreas aperta-me a mão, e depois solta-a.
– Também eu.
Uma onda de renovada coragem fortalece-me a espinha. Subo as escadas
até ao alpendre. Levantando o punho, bato duas vezes e espero.
Elora, vestida com um simples vestido bege e com o cabelo castanho-
escuro preso num carrapito, assusta-se ao abrir a porta.
– Wren?
Depois repara em Bóreas. O rosto perde a cor tão rapidamente que ela
vacila, e eu estendo a mão para a suster.
Retrai-se do meu toque, e cambaleia para trás. A anca embate numa
pequena mesa, e derruba o vaso em cima dela, partindo-se no chão.
– Elora? – Ecoam passos apressados que vêm das traseiras da casa. Para
mérito de Shaw, não se mostra intimidado ao ver o Vento Norte à sua porta.
No entanto, age com cautela.
– O que queres? – ladra Shaw, intrometendo-se entre mim e a esposa.
Não o culpo, pois mal o conheço. Contudo, Elora não tenta impedi-lo, e isso
é o que magoa.
Esticando o queixo, afirmo:
– Quero falar com a minha irmã.
– A meio da noite? É bastante inconveniente. – Outro relance a Bóreas,
que se retesa atrás de mim.
– Mas querias que enviasse uma carta através da Sombra? – respondo
com falsa doçura. Já estou a reconsiderar a regra de não mostrar a lança.
Um pouco de medo é sempre motivador. – Não te preocupes. O Bóreas não
quer outra noiva. Dou-lhe trabalho que chegue – E seja como for, não estou
interessada em partilhá-lo.
Um bafo agita o cimo da minha cabeça. Parece riso.
Elora espreita por cima dos ombros do marido. As suas mãos suaves e
esguias apertam o tecido da túnica de Shaw, com os nós dos dedos brancos.
Pequena, tímida, fraca de coração. Uma sensação untuosa assola-me a
espinha, porque já fui assim. Já encarei o Rei do Gelo com igual expressão,
havendo apenas espaço para o terror.
– Podemos entrar? – pergunto.
Ela lança-me uma olhadela e depois ao rei.
– O que querem?
– Falar contigo cara a cara. – A resposta sai-me. – Pela primeira vez na
tua vida, Elora, deixa de ser cobarde.
– Estás a abusar – grita, com as mãos à volta da barriga redonda. Aos
olhos dela, traí a sua confiança. Trouxe o perigo até à sua porta. É mais um
punhal no coração. – Convidei-te para vires a minha casa da última vez,
mas estavas sozinha. – Engole em seco. – Já não és bem-vinda aqui.
Lamento, Wren, mas não posso arriscar o bebé.
Da última vez, olhei para olhos com a mesma cor e forma dos meus,
perguntando-me o que teria mudado. Agora é-me óbvio.
– Achas realmente que eu faria mal ao teu filho? Ao teu marido? A quem
quer que seja importante para ti? – Fico vermelha da raiva. Nem mesmo a
presença tranquilizadora de Bóreas me acalma. – Como é que és capaz de
pensar isso?
– Olha – começa Shaw.
– Não falei contigo – cuspo-lhe. A minha atenção regressa a Elora. – E
então?
A minha irmã observa Bóreas, como se dele temesse um ataque
inesperado. Entreabre os lábios, trémulos, mas depois diz com firmeza:
– Não sou obrigada a explicar-te nada. Esta é a minha casa, e eu… eu
decido o que é aceitável ou não. Mantenho o meu argumento. Portanto, vai-
te embora, por favor. – Começa a fechar a porta quando Bóreas se mexe.
Um grito projeta-se de Elora quando a forma dele preenche a entrada,
aquela graça imortal com que se desloca no intervalo de um pestanejar,
como a sombra e o vento. Enfia a bota contra o batente, e abarca a entrada
com a sua altura e largura. Elora embate contra o peito de Shaw. Os braços
do marido envolvem-na, mãos cruzadas sobre a barriga, protegendo-a.
Bóreas diz, lenta e friamente:
– Não entro em casa, se assim pretender, mas irá falar com a Wren.
Como irmã dela, vai dar-lhe a cortesia e o respeito que ela merece.
Elora fica com ar de desmaio. E eu sinto uma vontade ridícula de desatar
à gargalhada até os meus pulmões mirrarem.
Pouso uma mão nas costas do rei e ele recua, cedendo-me espaço para
dar um passo em frente e recuperar o controlo da situação.
– Caso queiras saber – digo a Elora –, não tens voto na matéria. Não
parto enquanto não ouvires o que tenho para dizer.
– Muito bem. – Ela sopra pelas narinas, tendo recuperado alguma
dignidade. – Wren, tu podes entrar. Falemos daquilo que queiras falar.
– Se achas que o meu marido vai ficar na rua ao frio…
– Mas é o Rei do Gelo…
– Não quero saber! – vocifero, vibrando com a ferocidade que me
percorre as veias.
Elora esbugalha a vista. Tem medo de mim. Não me reconhece. Há
muito tempo que vivo com estas arestas afiadas. Era muito básica, muito
atrevida, pouco gentil, pouco obediente, pouco simpática, pouco doce. Era a
mulher com o rosto marcado e o corpo disponível. Contentei-me com a
sombra, enquanto Elora se banhava ao sol.
– Mudaste – murmura.
Terei mudado? Ou estou finalmente livre?
– Toda a minha vida cuidei de ti – sussurro à minha gémea. – Era o meu
maior orgulho, cuidar de ti. Não havia nada que eu não fizesse por ti. Nada.
Vendi o meu corpo por dinheiro, arrisquei a vida e a integridade física a
lutar contra os caminhantes-das-trevas, calcorreei centenas de quilómetros à
procura de comida. E nunca me queixei, nem uma única vez, durante tantos
e difíceis anos. – A minha voz embarga-se. Pelos deuses, não irei chorar. Só
quando estiver bem longe, e tiver dito tudo o que vim dizer.
» Chamaste-me egoísta – continuo. – Logo tu, que não ergueste o dedo
em toda a tua vida, atreves-te a chamar-me egoísta?
Um vislumbre de culpa perpassa-lhe pelos olhos, e pergunto-me se Elora
terá tomado conscientemente a decisão de se manter à parte e ignorante das
minhas escolhas, pois assim evitaria partilhar o fardo. Não teria acreditado,
anteriormente, mas agora tenho a certeza de que é verdade.
– Estares aqui e criticares-me por ter feito uma escolha… a escolha de te
proteger… revela a fraqueza do teu carácter. Sim, menti-te. Sim, fui-me
embora sem me despedir. Mas estava disposta a morrer para que pudesses
viver, porque te adorava mais do que a tudo no mundo. Podes dizer o
mesmo?
Elora desembaraça-se dos braços de Shaw.
– Eu tentei, Wren. A sério que tentei. Mas, com o passar dos anos, o
problema da bebida foi piorando…
O meu estômago tomba. Bóreas rosna nas minhas costas.
– … e cuidares de mim punha-te mais estável…
– Não. – A minha mão corta o ar. – Não me vais envergonhar. Não
usarás as minhas fraquezas como bode expiatório do teu egoísmo e inação.
Refleti sobre o meu antigo comportamento e, embora compreenda que te
tenha causado dor, a verdade é que te recusas a assumir a responsabilidade
pelos teus atos, e foi por isso que vim.
Bóreas desloca-se para ficar ao meu lado: calado, contido, leal,
inamovível. A boca de Elora treme, e ela morde o lábio inferior.
– Tens razão – diz ela. – O meu comentário foi inapropriado. Se desejas
fazer as pazes, conversemos.
– Não vim fazer as pazes. – Já ultrapassei em muito este estágio. – Tens
uma escolha. Se não és capaz de aceitar o motivo do que fiz, aceitar-me a
mim, então não vejo razão para continuarmos ligadas. Vive a tua vida com a
culpa de teres rejeitado a única pessoa que sempre te adorou. Contudo, se
pretendes manter-me na tua vida, aceitarás o nosso convite para participar
na nossa festa, amanhã à noite.
Elora engole em seco.
– Nas Terras Mortas?
– Sim. O Shaw está obviamente convidado, também.
Trocam um olhar sem palavras. Shaw pergunta:
– Como é que isso funciona?
– Um barco irá ao vosso encontro, junto ao Les. Quando atravessarem a
Sombra, ser-vos-ão fornecidos cavalos que vos levarão à cidadela. Não se
preocupem com o vosso bem-estar, ou com o bem-estar do vosso filho.
Enquanto meus convidados, ser-vos-ão concedidas as mais altas proteções.
Se decidirem não comparecer – digo –, então já não temos nada a dizer uma
à outra. – E isso será mais um fardo que terei de carregar na vida, mais um
lamento eterno.
A expressão de Elora cede.
– Wren…
– Desejo que tenhas uma vida feliz. Foi tudo o que sempre desejei para
ti. Só gostaria que me desejasses o mesmo.
A mulher que saiu de Edgewood, rumo às Terras Mortas nas costas de
um caminhante-das-trevas, não é a mesma mulher que agora parte, parceira
do Vento Norte. Com um derradeiro olhar para a minha irmã, viro-me e
desço as escadas. Bóreas pousa um braço à volta dos meus ombros, e puxa-
me contra si enquanto avançamos pela praça deserta.
– Tenho orgulho em ti – murmura, a boca encostada ao meu ouvido.
Por um instante, permito-me ficar encostada a ele. Algumas lágrimas
deslizam pelas minhas faces, quentes contra a minha pele gelada.
– Fico feliz por não ter vomitado.
Ele solta um riso. Apesar da dor que me rasga o peito, também me
consigo rir.
– Como te sentes?
As nossas botas ecoam ao pisar as pedras da calçada iluminadas pela lua.
Fáeton e Iliana encontram-se junto às árvores, e eu mal posso esperar por
regressar aos meus aposentos, onde imagino que me aguarde um banho
quente.
– Sinto-me triste, mas ficarei bem.
É dela, a escolha. Se Elora quiser consertar a nossa relação, terá de ser
ela a demonstrá-lo, e não eu. Chegou o momento de fazer um esforço. E
embora não me tenha dado apoio, houve alguém que o fez.
Com uma respiração trémula, digo:
– Obrigada por esta noite. Não sei se teria tido a coragem de enfrentar a
Elora sem ti.
Bóreas aperta-me novamente contra si.
– Terias, sim. – Uma confiança inabalável. – Vamos para casa.
Encaro-o, espantada, mas ele limita-se a sorrir-me.
– Para casa – concordo, e dou-lhe a mão.
Mudaste, afirmou Elora, e tinha razão. Há meses, escolhi a minha irmã.
Agora, é a mim que escolho.
37

O Vento Norte anda para um lado e para o outro, como um cão


acorrentado. O seu olhar estreita-se a cada criado que passa, a cada
criança que corre debaixo dos seus pés, a cada casal que circula, a cada
copo que tilinta. Os seus olhos tremem ante os risos descontrolados e
embriagados, a felicidade efervescente e ebuliente da festa. O lábio superior
enrola-se sempre que alguém se atreve a aproximar-se dele.
O rei é, pura e simplesmente, um terror.
Ao lado dele, junto a uma das janelas largas e arqueadas, suspiro.
– Já voltou o ar carrancudo.
Torna-se ainda mais vincado. A contrariedade fá-lo cerrar os punhos, que
enfia nos bolsos do sobretudo preto, com a gola alta a aumentar a sua
aparência reservada. No brilho da luz suave da lamparina, os traços do rosto
parecem arestas aguçadas.
O salão de baile foi redecorado para o acontecimento. Faixas de tecido
branco e azul cobrem as paredes, as janelas, cujas dobras ondulam como
um regato límpido de montanha. O centro do salão está desimpedido para
os dançarinos, e a dança surgiu, graças ao pequeno grupo de música de
câmara – cortesia de músicos voluntários de Neumovos. Uma melodia
trilada saltita pelo contínuo e profundo baixo e, ocasionalmente, a
ressonância da harpa entrelaça-se com a de uma flauta.
Beberico alegremente um copo de sumo de fruta, apesar da quantidade
de vinho disponível. Tenho de evitar o álcool, mas não significa que o povo
não se possa divertir, embora tenha pesado longa e arduamente a decisão
antes de pedir que se trouxesse o vinho.
– Tens a certeza? – perguntou-me Bóreas há meras horas.
– Absolutamente.
Aceitou sem qualquer argumento, e veja-se, o vinho fluia.
Observo-o pelo canto do olho. Bóreas tirou as mãos dos bolsos e bate-as
contra a coxa.
– Se apertares o maxilar com mais força – observo –, ainda partes um
dente.
– Há de sarar. – O tamborilar acelera até que lhe agarro nos dedos. O
rosto dele vira-se para mim com espanto.
– Tranquilo – digo com voz calmante. – Há muito por que estar grato. –
Os espectros estão vestidos com o que conseguiram transportar na fuga de
Neumovos. A maioria usa calças e túnicas, mas algumas mulheres
envergam os seus melhores vestidos. Apesar dos trajes desencontrados, não
hesitaram em mergulhar de cabeça nas festividades.
Estico a cabeça, à procura de certa pessoa.
– Sinais dela? – pergunta Bóreas.
Uma mágoa junto ao coração. Ignoro-a.
– Não.
Elora não se encontra entre a multidão. Sem comentários. Fico
desiludida, mas, acima disso, fico cansada. Cansada de lutar por alguém que
se recusa a lutar por mim.
– Minha senhora? – Aproxima-se um criado com uma bandeja contendo
bolinhos de fruta. Rodelas de creme doce decoram as sobremesas em
miniatura.
Agarro em dois.
– Obrigada.
– E para si, meu senhor?
Bóreas encara-o fixamente. O homem estremece, recua um passo e
afasta-se, como se o rei disparasse gelo da ponta dos dedos.
Enfio o primeiro bolo na boca.
– És incorrigível. Porque é tão difícil para ti deixares-te ir? Afinal,
concordaste em fazer a festa.
– E como lamentei a decisão.
Isso é evidente.
– Porquê? – Talvez pela primeira vez, o povo de Neumovos não
considere o seu rei como inimigo. Afinal, concedeu-lhes refúgio dos
caminhantes-das-trevas.
Antes que ele possa responder, um grupo de pessoas aproxima-se de nós.
Bóreas fica tenso. Estamos pertinho um do outro, e o calor daquele corpo
aquece-me. Recordo a forma como se mexeu, comandado pela minha mão,
os sons indefesos que soltou quando o levei ao clímax.
– Meu senhor. – O homem mais alto dá um passo em frente e faz uma
vénia pronunciada, primeiro ao meu marido, depois a mim, com um suave:
– Minha senhora.
Faço-lhe um sorriso. Bóreas, não.
Enfio rapidamente o cotovelo nas suas costelas, despertando um
palavrão em surdina.
– Não sejas rude – murmuro.
Ele resmunga, mas produz um sorriso que é apenas metade do que eu
esperava. Terá de ser trabalhado.
– Obrigado por nos abrirem a vossa casa. – Os olhos do cavalheiro
brilham para o Rei do Gelo com um calor raro. – Admito que ficámos
espantados quando disseram que queriam começar a sarar as feridas entre
nós.
– Isso porque não foi minha ideia…
Enfio o calcanhar na ponta da sua bota. Ele grunhe, com os dentes
cerrados, e lança-me um olhar irritado. Ostento um sorriso tão sereno como
o mais plácido dos lagos, mas os meus olhos brilham com um aviso. Não
me contraries.
– Divirtam-se, por favor – digo ao grupo, antes de puxar o meu marido
para um canto escondido.
– Bebe – peço, tirando um copo de sumo de uva da bandeja de um criado
que passou e enfiando-o na mão dele. Ele examina-o como se estivesse
envenenado. – Bóreas – suspiro. – Apenas desta vez… deixa-te ir. Come,
dança, aproveita as festividades. Esta noite, não és um rei. És um homem…
– Deus – corrige-me, bebendo um gole.
– Deus – concedo, vendo o líquido traçar-lhe o lábio superior. – Podes
descontrair-te durante uma noite.
– Vão vandalizar-me a propriedade.
Desato a rir, pois sei que ele falou com real preocupação.
– Mas julgas que estas pessoas são animais? – As formas espirituais do
povo oscilam entre diferentes tons opacos enquanto dançam, e namoriscam
e se misturam, mas imagino que Bóreas sempre os verá como os mortais de
outrora. – Ninguém vai vandalizar nada. Eu prometo.
– Vês aquela mulher? – aponta. É uma idosa, encurvada, que atualmente
atiça o fogo numa das lareiras. Observa-a como se a sua existência fosse
uma afronta pessoal. – Há de incendiar-me a casa.
A mulher mal tem força para levantar o atiçador e é muito mais provável
que esfaqueie alguém acidentalmente com ele.
– Dá-lhe uma palavrinha.
– Obrigado, mas não. – Ouço as palavras que não são ditas: preferia ser
pendurado pelas minhas entranhas e esvaziar-me em sangue.
Suspiro, pousando o copo numa mesinha próxima, e coloco uma mão na
curva das suas costas.
Bóreas fica tenso imediatamente.
– O que fazes? – As palavras saem estranguladas.
– Distraio-te. – Lanço-lhe um sorriso manhoso e desço a mão para a
curva do traseiro. O meu coração pulsa, mas mantenho ali a mão, como se
tivesse todo o direito de lhe tocar como me aprouver. – Resulta?
Os dedos dele contorcem-se sobre a haste do copo. A língua projeta-se
para humedecer os lábios.
– Convida-me para dançar – urjo.
Algo na sua expressão se suaviza. Depois, a mão, áspera e larga, curva-
se sobre a minha nuca, o polegar levanta-me suavemente o queixo.
– Vais pisar-me os dedos dos pés como da última vez?
O afeto da sua voz traz-me calor ao rosto.
– Só se me deres um motivo.
– Muito bem. – Larga o copo e conduz-me para a pista de dança, com
uma gargalhada de prazer a escapar-me do movimento suave e rápido.
Unimo-nos; pouso uma mão no seu ombro, a outra enfiada na dele, que é
muito maior.
A música enrola-se nos casais emparelhados e, durante algum tempo,
finjo que isto me pertence. Que posso ter esta dança. Posso ter esta sensação
de pertencer. Posso ter este homem e esta noite. Bailamos ao ritmo de uma
batida criada por nós, enquanto o farfalhar das saias envolve o ar à nossa
volta. O meu nariz roça o seu peito e inalo aquele aroma fresco,
desencadeando um turbilhão nos meus pensamentos.
Bóreas aconchega-me e eu agradeço. Não sei se alguma vez tive tanto
medo do que me cresce no peito. Não quero examiná-la de perto. Mas não
posso ignorar. Na maior parte dos dias, reconheço a sua existência por
pouco tempo, antes de cerrar fileiras e calar os sentimentos atrás do escudo
inflexível. Mas o toque suave do rei enfraquece essa barreira.
– Não fizeste comentários sobre a minha roupa – afirmo, recuando um
pouco para lhe observar a cara. Orla passou dias a coser o vestido, já para
não falar das horas dedicadas ao meu cabelo e maquilhagem. A única
indicação de agrado do meu marido foi a forma como as suas pupilas
dilataram quando me viu entrar na sala. Depois disso, nada.
– Foi por temer as consequências de ultrapassar as tuas fronteiras.
– Um deus, com medo de mim? – Curvo os lábios ante a ideia
perfeitamente ridícula.
– Subestimas o poder da tua ira, esposa.
A sua face roça na minha, e os meus olhos fecham-se pelo prazer do
contacto da pele com pele.
– Talvez eu apenas goste de te torturar.
A minha respiração prende-se quando a sua boca traça o contorno do
meu pescoço.
– És perfeita nisso – reconhece. Dois passos para a frente, dois passos
para a direita, até completarmos um pequeno círculo. Deixo-o guiar
enquanto a música cresce nos meus ouvidos, um som tão bonito que sei que
nunca esquecerei esta noite, nem que seja pela música.
– Pensava eu – sussurro, pousando a cabeça no seu peito. – Há muitas
portas que ainda não explorei. Podias mostrar-me as mais interessantes.
Embora não lhe veja o rosto, pressinto o seu espanto, e, mais
timidamente, o seu prazer.
– Adoraria.
Dançamos e dançamos, e não paramos. Em tempos pensei que o coração
dele seria um objeto rígido e frio, sem capacidade para amar. Mas bate tão
firmemente como o meu, e acelera quando a sua mão se enrola na minha
anca. Quanto ao meu próprio coração… foi mudando de ritmo por causa
dele, com o tempo. Só agora é que tomei consciência disso.
– Diz-me que isto é verdadeiro.
A voz é a minha, mas não lhe reconheço a esperança trémula, o travo do
receio de poder perder tudo, de um momento para o outro.
– Meu senhor?
Bóreas pragueja em surdina, mas afasta-se e lança um olhar contrariado
ao guarda que nos interrompeu.
– Sim?
Para mérito do homem, não recua.
– Um casal encontra-se junto aos portões. Mortais.
Mortais.
Arquejo.
– Elora! – A excitação cresce-me até recear que expluda. Mas com a
excitação vem uma emoção mais pesada, e eu mordo o lábio para a conter.
– Não pensei que viesse.
Ele informa o guarda:
– Iremos recebê-los à entrada.
Agarrando-lhe na mão, conduzo-o pelos degraus da frente e atravesso o
pátio, vendo os portões abertos, duas silhuetas recortadas como tecido
escuro contra o pano de fundo do luar. Elora e Shaw trazem capas pesadas,
e têm as mãos entrelaçadas. Olhando para a minha irmã gémea, não consigo
evitar o sorriso que se espalha pelo meu rosto.
– Vieste.
Olhos castanhos, realçados por compridas e espessas pestanas, erguem-
se e encontram os meus. Os músculos delicados da sua garganta mexem-se
e Elora lambe os lábios pintados de vermelho.
– Espero que não seja demasiado tarde.
Que ela tenha decidido vir… temi que Elora não desse valor à nossa
relação nem quisesse remendá-la.
Mas ela enfrentou a Sombra, as Terras Mortas, por mim. Não esquecerei
isso tão cedo.
– Agora estás aqui – sussurro roucamente. – Nada mais importa. –
Depois de um instante, estendo a mão e aperto o braço dela timidamente. –
Deixa-me mostrar-te o salão de baile.
– Espera. – Levanta a mão. Treme. – Tenho de dizer isto.
Com a presença sólida de Bóreas atrás de mim, espero que Elora
prossiga.
– Desculpa-me. – A voz dela fica rouca. – Tinhas razão. Fui egoísta e
desatenciosa. E tenho sido há muito tempo. – Engole em seco, inclina a
cabeça. – Quando éramos jovens, as coisas eram fáceis. Eu não entendia
que a mamã e o papá incutiam em ti a expectativa de que me protegesses.
Não compreendia que isso penalizava as tuas próprias necessidades. Depois
de eles morrerem, tornou-se mais fácil.
– Mais fácil para quem?
Elora vacila. Para seu mérito, corrige-se:
– Egoisticamente, desejei que nada mudasse. Tinha medo de perder a
felicidade que me fora oferecida. Passaste tantos anos a cuidar de mim,
preferindo o meu conforto ao teu. Nunca mexi um dedo, e por isso, sinto-
me envergonhada.
É estranho, sentir o meu próprio rosto a desmoronar-se, lágrimas a
escorrer por uma bochecha sem cicatrizes. Não posso ir ao seu encontro.
Não posso aliviar-lhe este fardo. E já não o quero fazer.
– A mamã e o papá ficariam desapontados pela forma como te tratei…
– Abaixo de cão?
Elora fica lívida ante a minha resposta, mas funga, e anui.
– Sim. Avaliei-te mal. Eu conheço o teu coração, Wren.
– E o que diz o meu coração?
Elora fita Shaw, que anui encorajadoramente.
– O teu coração – responde – é mais forte do que o meu foi ou poderá
ser. Tomas decisões difíceis. Sempre tomaste. Permiti que o medo
distorcesse a minha perceção de ti, e arrependo-me de não ter percebido
isso antes. Quando partiste, compreendi o que perdera e não consigo
suportar não te ter na minha vida, na vida dos meus filhos. Por isso, peço
desculpa. Estou profunda e sinceramente arrependida. Se puderes aceitar
que tenho, obviamente, de crescer muito, talvez possamos começar de
novo.
Não quero nada mais do que dar-lhe um grande abraço, mas isso
demorará o seu tempo. Que ela tenha decidido vir… é um passo.
– Elora – digo –, gostava de te apresentar o meu marido, Bóreas. Bóreas,
esta é a minha irmã, Elora, e o marido, Shaw.
Os seus olhos arregalam-se ante a visão do Vento Norte, que veste uma
túnica de prata pálida, desabotoada na garganta. O ar agita-se quando ele
pega nos dedos delicados e cobertos de luvas com a sua enorme mão.
– Muito gosto – diz ele.
Ela estremece com o poder frio e fluido da sua voz.
De seguida, aperta a mão de Shaw. O marido de Elora encara o Rei do
Gelo com uma expressão retraída antes de se afastar.
Seguem-nos até aos degraus da frente, onde tenho o prazer absurdo de
ver a boca da minha irmã escancarar-se perante o vasto hall de entrada, com
as suas tapeçarias coloridas e lamparinas brilhantes. Diga-se que é uma
versão melhorada, livre das teias de aranha e do ar abafado de outrora, mas
nem por isso menos fabulosa.
– Fizeram boa viagem? – pergunto. Pallas terá ido ao encontro deles, na
margem do rio, para os conduzir pela região florestal a cavalo em
segurança. – Têm fome? Querem beber alguma coisa? Deem-me os vossos
casacos.
– Obrigada. – Elora vê-me pendurar o casaco no armário do hall de
entrada. Bóreas agarra no de Shaw. – Foi boa, obrigada. Comemos antes de
chegar, mas eu bebo um copo, se me acompanharem.
– Claro que sim. Shaw?
– Vinho, por favor.
Viro-me para Bóreas.
– Podes ir buscar vinho para os nossos convidados, por favor? E para
mim, sumo.
Quando ficamos a sós, Elora perscruta-me como se não me conhecesse.
– Não vais beber álcool?
Um rubor lento e rastejante espalha-se sob a minha pele, mas não baixo
os olhos. A vergonha, a minha velha inimiga, bate à porta. E eu fecho-lhe a
porta na cara.
– Já não bebo.
– Há quanto tempo estás sóbria?
Não lhe diz respeito, mas orgulho-me dos meus feitos.
– Trinta e três dias.
Os olhos da minha irmã brilham e ela agarra-me nas mãos. Sinto os nós
dos dedos queixarem-se da força do aperto.
– Estou feliz por ti, Wren. E orgulhosa. Muito, muito orgulhosa.
– Obrigada. Fico muito agradecida. – Depois de um instante, liberto-me
dos seus dedos. – Vou mostrar-vos a casa. – Passamos pela grande escadaria
em espiral, com fitas azuis entrelaçadas no corrimão de carvalho reluzente.
– Ao fundo do corredor fica o salão leste e a sala de estar. Por aquela porta,
é um dos estúdios.
– Quantos estúdios há? – pergunta Elora.
– Contei trinta até agora. Não os devo ter encontrado todos.
– Trinta! – Ela parece escandalizada.
Shaw segue-nos até à entrada do salão de baile, e as magníficas portas
douradas abrem-se de par em par. A minha irmã respira fundo ao presenciar
o interior. O orgulho faz-me exibir.
– É lindo – diz ela. Depois pára. – Os convidados. Consigo ver através
deles…
Shaw tenta puxar Elora para si, mas ela ignora-o, observando os pares
em rodopio com crescente desconforto.
– São espectros – explico calmamente, como se ver um bando de
espíritos a dançar não fosse nada de extraordinário.
Ela baixa a voz, antes de falar:
– Mortos?
– Sim, mas ainda não morreram completamente. Comem e dormem
como nós, e os seus corpos são sólidos, apesar da transparência.
A minha irmã franze o sobrolho em desagrado. Aproveito para mudar
rapidamente de assunto.
– A cidadela tem milhares de portas que conduzem a outros reinos. Já
descobri tanta coisa: cidades, parques, teatros e montanhas. Uma porta
levou-me a uma enseada isolada cheia de piscinas formadas pela maré.
Nunca vira nada assim.
Elora vira-se, devagar, encarando-me com uma intensidade igual à de
Bóreas. Cruzo os braços em cima da barriga, subitamente desconfortável.
– O que foi?
– Pareces feliz.
Não sei bem como responder a isso. Sinto-me certamente mais leve. Mas
feliz? Estou tão desacostumada dessa sensação de felicidade que nunca
realmente a ponderei.
– Ele trata-te bem? – pergunta baixinho. Perante o meu olhar de
reprovação, Elora explica: – Faria a mesma pergunta a respeito de qualquer
homem com quem casasses.
Ele prendeu-me na masmorra. Mas isso foi antes de… bem, de tudo.
Mas Elora não tem de saber isso.
– Trata – garanto-lhe.
– Ótimo. Caso contrário, teria de lhe dizer das boas. – Um sorriso
irónico. – O teu marido também parece feliz – acrescenta. – Embora, neste
preciso momento, talvez não esteja.
Acompanho a direção do gesto. Bóreas encontra-se parado junto a uma
das mesas de comida, bebida na mão, expressão transformada num interesse
educado enquanto um homem lhe fala de um assunto que muito
provavelmente não lhe interessa. Faço um trejeito irónico.
– Acho que tenho de o salvar. Aproveitem para dar uma vista de olhos,
tu e o Shaw. Eu irei ao vosso encontro quando acabar.
Assim que partem, viro-me e esbarro com alguém.
– Peço per…
A incredulidade é como uma bofetada. O rosto que me espreita sob
capuz da capa verde é-me familiar.
– Zéfiro? O que fazes aqui?
– Podia perguntar-te o mesmo – diz num tom estranho. Não mostra a
simpatia acolhedora que esperaria de si. Os olhos verdes brilham, pálidos e
distantes.
– Não sei se entendi. – Observo-o com crescente inquietude. – Vivo
aqui.
Zéfiro suspira, um som de completa desilusão que consegue desanimar-
me.
– Porque não respondeste à minha mensagem?
A mensagem que trago no bolso há bastante tempo. A mensagem que
leio todas as noites antes de me deitar, travando uma batalha interna que
não sei se consigo vencer.
– Tenho andado ocupada.
– Ocupada. Pois.
Fito Bóreas pelo canto do olho. Continua retido pela conversa, mas se
descobre a presença do irmão, receio que o mate.
– Desperdiças a tua oportunidade, Wren. Podes não ter outra.
Exato. Para matar o meu marido.
– As circunstâncias mudaram.
Casais rodopiam à nossa volta, obrigando-nos a ficar mais próximos,
Zéfiro e eu. Sob o capuz, a boca dele enrola-se de desagrado.
– Desde que nos conhecemos, que tento ajudar-te. Arrisquei muito ao
entrar sorrateiramente na caverna do Sono…
– Tal como eu.
Ele ignora-me.
– Há semanas que me dedico ao tónico. E agora afirmas que não o
queres? Isso é bastante egoísta da tua parte, Wren.
A palavra começa a incomodar-me. Egoísta. Não é verdade. Sei bem que
não é, no íntimo.
– O Bóreas não é como tu julgas. Não é vingativo. – Aliás, é bastante
querido. Distante, sim, e definitivamente estranho, mas afeiçoei-me a ele de
uma forma que jamais imaginaria. E pensar que tive de me embebedar para
suportar o nosso primeiro jantar; a memória desperta-me um sorriso.
– Oh, Wren. Não. – O Vento Oeste abana a cabeça, mão encostada à
testa. – Ama-lo.
O comentário faz-me retesar a espinha.
– Não! – grito, para meu próprio espanto. – Quero dizer… – Será que o
amo? Será que isso é possível? – É o meu marido. Sim, gosto dele. Mas… –
Amor? Desvio o olhar. – Mesmo que prossiga com o plano, mesmo que
volte para Edgewood, não seria bem-vinda lá. A minha irmã foi demasiado
fria comigo quando a visitei. Estamos a tentar ultrapassar isso, mas ela
agora tem uma família. Eu só iria atrapalhar.
– Já pensaste por que motivo foi tão fria contigo? Enquanto tiveres uma
ligação com este lugar, a tua irmã e as pessoas de Edgewood nunca te
reconhecerão como alguém igual a elas.
Zéfiro dá um passo na minha direção, e a vontade de terminar a
conversa, de me refugiar nos braços de Bóreas, vibra em mim. O Portador
da Primavera não é uma ameaça. Tenho noção disso. Então porque é que eu
sinto que algo entre nós mudou?
– Olha para ali. – Aponta para onde Elora e Shaw se refugiaram num dos
cantos, o mais longe possível dos espectros. – Este não é o mundo dela.
Mete-lhe medo. E enquanto sentir esse medo, sentirá medo de ti.
– A minha irmã não tem medo de mim.
– Como é que sabes se realmente veio fazer as pazes contigo, e não foi
por medo da reação do meu irmão, se se recusasse?
– A Elosa não foi obrigada a vir – digo. – Fez uma escolha. Quer-me na
vida dela. Foi o que me disse.
– Tens a certeza?
Mantenho-me calada, enquanto o estômago dá voltas à medida que
palavras se encaixam. Ele tem razão. Elora veio, sim, mas motivada pelo
medo do que poderá perder. E isso é… aceitável. É algo que eu e a minha
irmã resolveremos, a seu tempo.
– Wren. – A voz dele fica mais suave. – Esta pode representar a única
oportunidade de voltares à tua vida antiga. Consegues viver contigo mesma,
sabendo que escolheste o teu captor em vez da tua família?
Ele passa algo para a minha mão: um pequeno frasco de vidro com um
líquido escarlate – a essência da flor da papoila.
– A última coisa que te desejo – sussurra Zéfiro ao meu ouvido – é que
te arrependas. – Desviando-se, examina-me o rosto, depois acena com a
cabeça e afasta-se, desaparecendo por um corredor sombrio antes que o
possa chamar de volta.
O vidro cobre-se de suor da minha mão. Olho para Elora e Shaw,
recolhidos a um canto e afastados dos presentes. Olho para Bóreas, ainda
embrenhado numa conversa forçada, e lembro-me de como me senti ao vê-
lo pela primeira vez, assolada pelo terror funesto.
Aquela promessa de matar o Vento Norte? Fi-la há meses. E se Zéfiro
tiver razão? E se Elora regressar a Edgewood e eu nunca mais a vir?
Arriscar esta hipótese de regressar a Edgewood valerá a dor que causarei a
mim mesma, e a Bóreas, caso descubra o meu engodo?
Não sei. Mas se não tomar esta opção com um esforço consciente,
sabendo o que deito a perder, terá a opção sido realmente minha?
Os meus pés mexem-se por vontade própria. Atravessam o hall, sobem
as escadas. Calma. Estou calma.
O alarido da festa esvai-se atrás das paredes de pedra. O meu peito
contrai-se, como se os meus pés me enviassem para um lado e o meu
coração para outro, rasgando uma cavidade através de mim. A escolha que
me foi oferecida na ponta de uma faca.
– Pallas. – Os guardas atribuídos à ala norte fazem uma vénia na minha
presença. – Deixei uma coisa nos aposentos do Bóreas.
– De que se trata, minha senhora? Eu trago-a. Não quero que perca a
festa. – Desde que cuidei dele no campo de guerra, ficou muito mais amável
para comigo.
– Não me parece que seja uma boa ideia. – Arrasto visivelmente os pés,
sinal de uma mulher constrangida. – O que eu deixei é, bem… – Tapando a
boca de lado, sussurro: – A minha roupa interior.
Ele cora, as bochechas pálidas escurecem com o rubor.
– Oh. – Encara os outros guardas, que são exímios em ignorar a nossa
conversa. – Neste caso, sim, é melhor ir buscá-la, minha senhora. Mas
despache-se, que a festa aguarda. – E sem mais delongas, atravesso a última
barreira.
Entro no quarto e selo o meu destino.
38

A escuridão não encobre os aposentos do rei, o que é inesperado.


Uma lareira arde em lume brando, banhando as paredes com um tom
de âmbar profundo, e o luar entra pelas janelas, pela abertura dos cortinados
atados, oferecendo um vislumbre da paisagem noturna. Nesta temperatura
quente, muita da neve derreteu, revelando manchas de terra e relva morta.
As Terras Mortas estão a mudar – talvez para melhor.
A porta fecha-se atrás de mim e dirijo-me para a chaleira do rei, que
aguarda que a coloquem a aquecer ao lado da lareira. A cabeça lateja-me
como se estivesse doente, e o frasco de vidro cola-se-me à mão suada.
Quando conheci o Rei do Gelo, sabia apenas que era um deus banido,
cuja crueldade congelava tudo em que tocava. Mas Bóreas é um homem
que perdeu bastante na vida, e agarra-se ao poder porque este representa
uma armadura que protege a sua alma ferida, vincada pela dor. Se ingerir o
tónico, cairá num sono sem fundo, oferecendo-me a oportunidade de enfiar
uma faca no seu coração. E ficarei livre.
Livre. Uma palavra que já não tem o apelo de outrora.
O que mudou? Posso ser uma cobarde em alguns aspetos, mas aprendi,
acima de tudo, a ser sincera comigo mesma. A olhar para o meu coração e
ver.
Tinha como plano regressar a casa. Regressaria sempre a casa – mas esta
deixou de o ser. Elora casou, espera um filho. Tem Shaw, uma vida nova,
arrancada da casca da antiga. Doeu, mas acabei por aceitar as escolhas que
ela fez. Deixei-a ir.
Mas a maré regressa sempre. Desta vez, trouxe Zéfiro, uma forma de
reavivar a esperança sufocada. Uma nova oportunidade, se estiver disposta
a cumprir a promessa inicial. Contudo, Edgewood desvaneceu-se, como
tudo se desvanece, dada a distância e tempo suficientes.
Eis as minhas mentiras: Bóreas é meu inimigo. Elora está em primeiro
lugar. Quero voltar para casa.
Eis as minhas verdades: Bóreas é meu marido. As minhas necessidades
estão em primeiro lugar. Já estou em casa.
Eu não escolhi esta vida. Foi-me imposta. Mas acabei por compreender o
meu lugar aqui, este sentimento de pertença. Aprendi que sou corajosa e
precipitada, e altruísta e compulsiva, e zangada e traumatizada, e não sinto
vergonha de quem sou. Não penso no que me falta, como antigamente. Pelo
contrário, reconheço o que encontrei nestes corredores abandonados:
companheirismo, paixão, confiança. E, sim, até o amor.
Posso não ter escolhido esta vida no início, mas, e se foi ela que me
escolheu?
– Porque hesitas?
Arquejo, virando-me enquanto a lareira se transforma em cinzas.
Aos poucos, uma forma refina-se e fica mais nítida, com ombros largos e
bem torneados. As sombras afastam-se e reagrupam-se ao seu redor. Vejo a
curva de uma coxa, a subida de uma maçã do rosto pálida e, por fim, o
brilho de um único e inabalável olho azul.
O coração bate duas vezes, irregular, antes de me sentir capaz de falar.
– Há quanto tempo estavas aí?
Bóreas avança para o foco de luz.
– Há tempo suficiente.
Um tom vermelho incendeia as pontas do seu cabelo preto. As pontas
dos caninos sobressaem, afundando-se no lábio inferior, e a pele lisa das
suas mãos despidas de luvas escurece.
– Estava…
– A planear a minha morte?
Bóreas contorna o sofá baixo. Quase me alcança antes que o meu corpo
se lembre de reagir ao perigo de um predador que se acerca. Dou uma volta,
contornando a enorme cama com a multidão de travesseiros. As minhas
costas batem na parede, o ar aperta-se entre nós com uma atração inegável.
– Minha esposa – diz friamente, a boca a um fio de cabelo da minha. – A
mentirosa.
Não consigo justificar a minha presença no quarto dele. Ele sabe. Basta a
evidência de não estar surpreso.
– Perguntarei novamente – diz. – Porque hesitaste?
Não sou capaz de responder. Recuso-me. Quem se afoga agarra-se a
qualquer tábua de salvação.
Bóreas levanta a mão. Estou tão tensa que evoco a primeira memória,
quando o conheci, o gemer da porta de madeira, abrindo-se quando
apareceu em Edgewood, e retraio-me.
Ele fica imóvel, os dedos tão próximos da minha cara que lhes sinto o
calor.
– Vai ser assim? – pergunta calmamente. – Temeres-me?
A minha garganta contrai-se ao sentir uma vergonha intensa. Já o temi,
sim.
– Não – murmuro. – Sei que não me farias mal.
– Pensei o mesmo.
O olhar dele recai sobre o frasco na minha mão. Abre-me os dedos, um
por um, para revelar o líquido escarlate contido no vidro. Nada mais do que
rebentos e folhas, uma forma de acabar com a sua vida. A ideia enraizou-se
dentro de mim. Tentei sufocá-la, mas ela reavivou-se.
Declara, num tom carregado de fadiga:
– Zéfiro.
Se ele sabe, não vale a pena negá-lo. Podia culpar o irmão dele pela
situação, mas devo assumir a responsabilidade pelos meus atos. Fui eu que
pedi a Zéfiro que preparasse um tónico para dormir. Só eu.
– Afirmaste que o Zéfiro precisava de ervas do Jardim do Torpor – diz
Bóreas –, mas faltou-te explicar a quem se destinava o tónico. – Olha-me
fixamente. – Quem é que precisaria desta mistela tão desesperadamente
para arriscares a própria vida ao entrares no território do Sono e roubares as
plantas?
É difícil respirar. A forma como ele olha para mim, com tanta
desconfiança. Mas já menti o suficiente. A ele, e a mim mesma.
– Precisava eu.
Decorre outro momento mudo. O silêncio esfrega-se na minha pele.
– Eu sabia que o meu irmão ia tentar colocar-te contra mim. Soube disso,
desde o primeiro momento em que o conheceste. Fez o mesmo com a
minha falecida esposa, a Lyra.
A que foi morta pelos bandidos. A mãe do filho dele.
– És parecida com ela – afirma.
Ergo imediatamente a cabeça. Os nossos olhos encontram-se, e fico
surpreendida com o afeto que descubro nos dele. Só pode ser imaginação
minha.
– Porque era precipitada? – Vacila a minha voz.
– Porque era leal e corajosa – diz – e tinha o coração de uma leoa.
Será realmente o que pensa de mim?
– A Lyra também não tinha medo de mim.
– O que te faz pensar que não tenho medo?
– E tens? – pergunta, sobrancelhas erguidas.
– A princípio, sim, claro. Aterrorizavas-me com a tua postura fria e a tua
lança. Considerei-te cruel.
– Ah! – A pele à volta dos seus olhos vinca-se como pregas num tecido.
– Escondeste-o bem.
Dito isso, Bóreas larga-me a mão, avança para a cadeira diante das
chamas reavivadas, e pega nela, observando a lenha escurecer e desfazer-se
em brasas.
– Quando nos conhecemos, pela primeira vez, ela chamou-me de
presunçoso. – Escapa-se-lhe um trejeito dos lábios. É irregular, sem se
perceber o significado: um riso, uma ironia. – Soube então que não podia
ignorar a presença dela, ao contrário das anteriores esposas.
É absolutamente patético da minha parte ter ciúmes de uma morta. Mas
percebo o quanto a amava, e como perdê-la, e ao filho, destruiu o pouco
fragmento de humanidade que ainda lhe restaria. Terá julgado que eu
preencheria esse vazio. Imbecil.
– A Sombra precisava do sangue dela, obviamente. Ela lutou como uma
gata brava, ameaçou cortar a minha masculinidade. – Lança-me um olhar de
soslaio. – Outra parecença.
Pigarreio.
– Eram bons tempos.
As sombras nos seus olhos, no rosto, começam a virar-se para dentro.
– Raro era que uma mulher despertasse em mim tamanha emoção. Não
soube o que fazer com ela. E ela também pouco saberia o que fazer comigo.
– Um abanar de cabeça. – Nos primeiros dois anos, tentou envenenar-me a
torto e direito. Fugiu mais vezes do que me lembro. Só queria causar o meu
fim, e não a culpo por isso.
» Passados cinco anos da sua vinda para as Terras Mortas, ficou
gravemente doente. A Alba tentou de tudo, mas a doença, fosse qual fosse,
não cedia aos remédios que lhe ministrava.
– E a Sombra? – pergunto. – Obrigaste a tua esposa a dar sangue durante
esse período?
– Claro que não. – Endireita-se rigidamente, as omoplatas retesadas
contra o casaco. – A barreira enfraqueceu, mas espantosamente manteve-se
firme. Um golpe de sorte inesperado.
Há uma pausa antes de Bóreas se recompor.
– Passei vários meses junto à cabeceira da Lyra. Lá recuperou, depois de
algum tempo, e então, criámos uma espécie de amizade provisória. E então
essa amizade foi crescendo – diz, com a voz mais suave –, e eu acabei por
amar uma mortal.
O coração bate com tanta força contra o meu esterno que acredito que se
ouça. Jamais pensei ouvir tal palavra da boca do Vento Norte: amar.
Obviamente, será capaz de amar, tal como é capaz de compaixão, de
bondade. Percebi isso quase tarde demais.
– A minha vida mudou novamente, ao descobrir que ela estava grávida.
Não pensei que houvesse alguém mais feliz do que eu. Há tanto tempo que
não tinha uma família – sussurra ele –, e íamos construí-la juntos.
A vontade de reconfortá-lo é tão intensa que sou obrigada a travar-me
fisicamente. Reside na sua voz, esta dor. Na voz e na postura, e na pele
esticada do rosto, na pressão branca dos lábios. Porque sei como é que esta
história acaba.
– O Zéfiro fazia visitas de tempos a tempos – continua. – Como é
natural, fazia companhia à minha esposa nas minhas ausências. Não
desconfiava de nada. Não tinha razão para tal.
Os cabelos eriçam-se-me na nuca. Não sabia que Zéfiro conhecera a
antiga mulher de Bóreas. Ele nunca referiu isso.
Os dedos do rei envolvem a cadeira. Uma respiração dura e constrangida
perpassa-lhe pelos dentes.
– Eu devia ter previsto que ele não tinha boas intenções. No fundo, não
passa de um trapaceiro, motivado pelo ciúme e pela ganância. A Lyra
afastou-se de mim após o nascimento do nosso filho, Calais. Até hoje, não
sei porquê. Até que, um dia, descobri que ela tinha desaparecido. Fora
sequestrada, ao que parece. E o nosso filho… – A garganta dele treme.
A descrença assola-me. Não é possível…
– Houve uma emboscada. Bandidos nas montanhas. Quando os alcancei,
já era demasiado tarde. Eles tinham desaparecido, e Zéfiro não se
encontrava em parte alguma.
Fitei-o, horrorizada.
– O Zéfiro raptou a tua mulher e o teu filho?
– Sim.
Sinto-me prestes a expelir bílis pela garganta.
– Porquê?
– Quem me dera saber.
Tenho sido usada por Zéfiro. Nunca quis ser meu amigo. Só queria que
visse Bóreas como um vilão. E caí como uma tola.
– Peço muita desculpa – digo baixinho. O meu coração condói-se dele,
porque também eu sei o que significa perder aqueles a quem mais
queremos.
Os dedos dele apertam-se mais, enterrando-se no estofo das costas da
cadeira.
– Como vês – prossegue, como se eu não tivesse dito nada –, é por este
motivo que não posso confiar no meu irmão, que não posso confiar em ti
completamente. Desde o início, receei que ele te virasse contra mim. Parece
que tinha razão.
A sua atenção desvia-se para o fogo antes de se voltar para mim.
Esgotou-se a frieza daquele olhar. Resta apenas calor e o núcleo ardente do
desejo.
– Conta-me o que aconteceria se tivesses levado a cabo o teu plano.
A verdade incha e tapa-me a garganta. Mas tem de ser dita.
– Teria despejado o tónico na tua chaleira.
Bóreas anui. Afinal, já entendeu o que teria ocorrido.
– Continua.
– Olha, não temos de fazer isto…
– Continua. – Um pedido férreo e inquebrável, um murro no estômago
bem visado.
Num murmúrio roufenho, digo:
– Depois, teria voltado para a festa.
– E teríamos dançado.
Sim, suponho que dançaríamos. Eu pisaria os pés dele, e ele os meus, e
talvez partilhássemos um momento de riso entre nós.
– Depois, retiravas-te para os teus aposentos e prepararias uma chávena
de chá. Assim que o tónico fizesse efeito, eu entraria sorrateiramente pela
janela. – A única forma de entrar, tendo em conta os guardas colocados à
porta do quarto.
– Estaria a dormir – acrescenta Bóreas, acercando-se de mim. – E não
ouviria.
– Sim. – Engulo em seco. Aquela proximidade, aquele calor, põe-me
tonta. Afastar-me confere-me espaço, confere-me tempo para unir todas as
meadas soltas e entrelaçá-las num vislumbre de pensamento completo e
ininterrupto. – Pegaria no teu punhal – sussurro, virando-me para a janela.
– E depois?
Esta terra, apesar de fria, é linda. Percebi isso tarde de mais.
– Depois teria… – A dor dilacera-me as entranhas ao pensar no passo
seguinte. – C-cravado o punhal no teu coração.
Segue-se um demorado silêncio.
– Percebo.
Desiludi-o. Arruinei esta coisa verdejante que se desenvolvia entre nós.
Os olhos brilham-me enquanto sou percorrida por um terror imenso.
– E quando estivesse morto? – murmura Bóreas. – O que farias então?
Obviamente, não poderia ficar aqui. Quando os guardas descobrissem
que o rei estava morto, teria de fugir.
– Voltaria para Edgewood. – Levanto um pouco o queixo. É pura
fanfarronice, considerando que eu nunca encontrei a porta da saída das
Terras Mortas, e parei de procurar há muito tempo. – Retomaria a minha
vida.
– Porque sempre foi essa a tua intenção – diz, examinando-me de perto.
O ar tem um toque frágil – demasiado frágil.
– Sim, foi.
Esta pausa é tremendamente torturante. Um único trecho interminável
resultado da falta de som.
– É isso que queres? Voltar para Edgewood?
– Era a minha intenção.
– Não respondeste à pergunta. É regressar a Edgewood o que queres
agora? – Sem me dar hipótese de responder, ele contorna-me, afastando
uma pesada tapeçaria pendurada na parede para revelar uma porta de
madeira simples. Eu pestanejo, surpresa. – Sei que procuras uma forma de
sair das Terras Mortas. – Embora o rei não olhe para mim, sinto o peso da
sua tristeza. – Esta porta é o meu prémio. Podes viajar para qualquer reino
que procures, apenas com o pensamento. Pode depositar-te do outro lado da
Sombra, poucos quilómetros a oeste de tua casa. – Roda a maçaneta, abre a
porta para revelar um campo carregado de neve. – Vai.
Contemplo aquele campo. Branco, cintilante, imaculado. Inspiro a rajada
de ar gelado que entra pela porta, vislumbro o riacho gelado que se aninha
nas colinas. Mas não me mexo.
– Não é o que queres? – rosna. – A tua liberdade?
Ele deixa-me partir?
– Sem mais nem menos?
Um assentir breve.
– Não irei à tua procura.
Em vez de me dirigir para a porta, encaminho-me para a janela.
– Não sei o que quero – sussurro, encostando a mão aberta contra o vidro
gelado. A minha pele retrai-se do contacto, mas isto ajuda-me a desanuviar
a cabeça, ajuda-me a ficar no momento presente. Foi aqui que consegui, de
certa forma, montar uma vida da qual me orgulho. As Terras Mortas, apesar
das reticências, tornaram-se a minha casa.
A porta fecha-se com um estalido surdo, e a tapeçaria volta a descer.
– Acho que sabes. – Bóreas fica atrás de mim. – Mas o medo diz-te o
contrário.
Mas ele tornou-se, de repente, perito no que temo? Referi algumas
coisas, de passagem, mas requer normalmente uma grande introspeção.
Contudo, temo que Bóreas tenha percebido aquilo que me esforcei para
esconder. Ele entende que Edgewood foi o meu lar, mas ali nunca consegui
florescer. Por mais ridículo que possa parecer, foi quando fiquei presa nesta
cidadela, sem ter obrigações para com minha irmã, que finalmente entendi
as minhas necessidades, pela primeira vez em vinte e três anos.
Mas quem é que gosta de discutir as suas fraquezas? Ninguém. E assim,
estico o queixo preparando-me para esta conversa.
– Tu sabes, não é? – Viro-me. – Agora compreendo-te. Porque é que te
fechas nestas paredes com as cortinas fechadas. Porque é que tens uma
estufa cheia de coisas que crescem, quando todo o mundo fica devastado
pelo frio. Tens medo.
Ele recua. O golpe aterra precisamente onde quero.
– Tens medo de deixar os outros aproximarem-se de ti. Tens medo de te
magoar novamente. É por isso que controlar tudo e todos, é tão importante
para ti. É por este motivo que o poder é tão importante para ti.
E, contudo, a terra modifica-se porque Bóreas se modifica. À medida
que aprende a confiar nos outros, o coração dele desgela.
O olhar azul mantém-se firme no meu. Mexemo-nos, e agora estamos
frente a frente. Apoia-se contra a janela, a mão ao lado da minha cabeça.
– E tu? – pergunta. – Tu, que temes a fraqueza, que temes ser indigna.
Não tens também medo?
Ele tem razão; tenho medo. Mas não dele. Temo o que sinto por ele.
A minha voz endurece.
– Não quis isto. – Não quero, corrijo-me. Não quero isto.
– Isto – diz ele, mostrando o punhal que desembainhou. – Isto é o que tu
queres.
Fito a arma. As luzes das chamas traçam o fio da navalha tocada por um
deus.
Pegando-me na mão, o Rei do Gelo fecha-a em volta do cabo. O couro
enruga-se sob a minha mão suada enquanto ele encosta a ponta ao seu peito.
O meu coração, que subiu para a minha boca, bate no limite das forças.
Sinto-me mal – pior do que mal. A minha mão treme sob a dele, mas ele
não me larga, por mais que eu puxe.
– Não foste até ao fim, da primeira vez. – Bóreas avança, forçando a
ponta contra a sua pele. A cabeça dele desce, e, quando fala, o hálito frio
entra na minha boca entreaberta. – Tiveste tantas oportunidades. Com esta
lâmina, talvez não, mas com o arco que meu irmão te deu.
O arco. Nunca pensei em usá-lo, mesmo sabendo que fora tocado por um
deus.
– Mas eis-te aqui, nesta situação. O que vais fazer?
Tudo mudou. Se enfiar o punhal no coração dele, Bóreas morrerá.
Estaria vingada. E verdadeiramente sozinha.
– Agora… – O meu estômago revira-se ao sentir as mentiras subirem
com maior exigência. – Agora…
– Sê sincera, Wren. Por uma vez na tua vida.
Nunca é fácil abandonar o passado. Mas é o que devo fazer. Elora e eu
seremos sempre irmãs. Eu sempre irei adorá-la. Sempre desejarei que seja
feliz. Mas agora conheço o meu lugar, e o meu lugar é aqui, nas Terras
Mortas, ao lado do deus renitente que as governa, o homem que amo.
– Não quero ir. – Engasgo-me com a emoção. – Não quero voltar para
Edgewood. – Há semanas que não quero isso.
Ele ergue a mão, afagando-me com ternura a face cicatrizada.
– Então, o que queres?
Porque têm as perguntas mais simples as respostas mais difíceis? Dei ao
Vento Norte tudo o que tinha, exceto o meu coração, e agora dou-lho
também.
– A ti – murmuro, roufenha. – Quero-te a ti.
39

B óreas encosta a
carinhosamente.
testa à minha, os nossos narizes roçam-se

– Então, aqui me tens.


Agarrando-me pela cintura, puxa-me contra si, e é um grande alívio
passar as mãos por aqueles ombros, enrolá-las sobre aquela nuca e enfiar os
dedos nas madeixas sedosas daquele cabelo. Ele encosta o rosto à curva do
meu pescoço, e inspira profundamente. As manápulas percorrem as minhas
costas, traçando cada vértebra da minha coluna vertebral.
Calor húmido sobre a minha clavícula. Outro beijo marca a
protuberância do meu ombro através do tecido do vestido. Como se
provasse a mais fina das sedas, Bóreas traça a curva da minha cintura, as
minhas omoplatas, antes de se desviar novamente para sul. Quando procuro
a sua boca, ele afasta o rosto, negando-me esse prazer.
– Sacana.
Riso caloroso banha-me.
– Tem paciência, esposa.
Paciência é para quem não sabe o que quer. É o que lhe digo.
A boca dele contrai-se, os olhos brilham com a luz das estrelas
moribundas. Lutei contra isto durante tanto tempo, mas não consigo
continuar a lutar. O coração terá aquilo que deseja.
Bóreas abre caminho até à minha orelha com a língua, suga o lóbulo.
– Vai valer a pena esperar – sussurra. – Garanto-te.
– Não me abandonarás, se algum dos teus guardas bater à porta?
Ele recua, a sua expressão cuidadosamente vazia. Foi um golpe baixo,
mas não quero começar nada, a não ser que ambos sigamos até ao fim.
Segurando-me o rosto nas mãos, encaixa o polegar sob o meu maxilar,
inclinando-o para cima, para me obrigar a ver o seu olhar apologético.
– Arrependi-me tanto de te ter abandonado naquela noite, e todas as
noites me arrependo desde então. A minha mão é uma má substituta.
Um arrepio pesado percorre-me, ao imaginar, e inclino-me para ele.
– Tocavas-te enquanto pensavas em mim? Com que frequência?
– Não tens nada que ver com isso – diz ele.
Imagino um Bóreas seminu na cama, na banheira, a bater uma punheta
até se vir.
– Mas…
Ele crava os dentes no meu pescoço, arrancando-me um gemido. O ardor
percorre-me a espinha, e inclino a cabeça para lhe permitir um melhor
acesso, sentindo o torpor daquela maravilhosa boca quente, da língua
inteligente, dos dentes rombos.
– É este o teu plano? – sussurro ao encontro da sua pele. – Provocar-me
o mais que puderes? Ver quanto tempo demora até eu quebrar?
– Desde que chegaste que me provocas. É justo que eu retribua o favor.
De repente, roça o meu traseiro com a palma da mão, levantando-me a
perna e prendendo-a à sua cintura, com saias e tudo. Ele afunda as ancas
nas minhas, e a crista da sua excitação pressiona a parte de mim que quer.
– Pelos deuses – ofego. O calor estala nas minhas veias, e o ar,
perfumado com o nosso suor, fica espesso. – Raios te partam, beija-me. –
Envolvendo-lhe a cabeça com as mãos, puxo-a para a minha, esticando-me
na ponta dos pés para ir ao seu encontro. Bóreas ri-se. Desconfio que nunca
me vou habituar ao som.
Mas o meu beijo erra o alvo, e roça o queixo dele em vez da boca. Antes
que eu possa remediar isso, ele traça um caminho lento até ao espaço por
detrás da minha orelha, e morde-me ali. A breve dor suaviza-se ante o roçar
dos seus lábios.
Encaixo as mãos no espaço que nos separa, agarrando-lhe a ereção.
– Beija-me – peço. – Senão… – Aperto com força para vincar a
intenção.
Ele fica ofegante quando começo a traçar a sua forma, rodeando a
cabeça, à volta, e à volta, e à volta, sentindo a humidade infiltrar-se através
do tecido áspero. No curto apertão seguinte, Bóreas balança as ancas.
– Tu, Wren – cada palavra um argumento acutilante –, és o demónio.
Finjo que limpo uma lágrima imaginária.
– Deve ser o elogio mais simpático que já me disseste. – Depois ponho-
me a acariciá-lo, devagar, sem pressas. – Não altera o que eu quero. – Os
lábios dele nos meus, a língua dele na minha boca… e noutros sítios.
Um ronco áspero enche-lhe o peito, um som de desejo inalterado, de
angústia, necessidade e fome. Envolvendo a sua mão na minha, Bóreas
começa a guiar os meus movimentos, mostrando-me o ritmo e a pressão que
prefere. Demoro-me à volta da cabeça, fazendo movimentos circulares com
a palma da mão ao encontro da carne, até que, com um rosnado feroz, ele
solta a mão e esmaga os lábios contra os meus.
Aquela boca, impulsionada por uma pressão ardente, uma língua
acelerada, arranca-me um gemido da garganta. Colo-me a ele. Cada aresta
afiada molda-se contra as curvas subtis. A minha mão afasta-se e agarra o
seu cabelo, o seu pescoço, tudo o que consegue alcançar. Persigo a sua
língua com a minha e, quando estas se chocam com um impulso selvagem,
ele aprofunda o beijo até que as nossas bocas se unem a ponto de ficar tonta
com a falta de ar.
Bóreas recua para uma breve pausa.
– Como é que se desata esta coisa? – rosna, dando puxões aos cordões
que se entrecruzam nas minhas costas.
– Eu faço. – Um pequeno puxão, e os cordões soltam-se, permitindo que
Bóreas puxe a roupa pela minha cabeça. Ele vê-me: peitoral, cuecas, pele
nua e morena aquecida por um rubor. Uma fome profunda escurece o azul
dos seus olhos.
– Incrível – comenta.
Os homens já me chamaram muitas coisas. Mas incrível, nunca.
– Está a dizer isso para eu te conceder favores.
– Wren – sorri, afagando-me a barriga. – Acho que já mos concedes.
Durante algum tempo, as suas mãos calejadas percorrem a minha pele
exposta, a sensação provoca arrepios nos meus braços e pernas. Tocando
nas curvas do meu traseiro, ele enfia os polegares na minha roupa interior.
Duas batidas de coração depois, já não a tenho.
As narinas dele agitam-se ao ver-me, mas eu aproximo-me novamente,
agarrando na manga do seu casaco.
– É a minha vez.
Despir Bóreas é uma alegria que eu não antecipava. Tem de ser
saboreada. O tecido rígido do casaco abre-se no seu peito. Um leve puxão, e
desliza-lhe dos ombros. A seguir, a túnica, ainda quente da sua pele.
Inclino-me para lhe tirar as botas e as meias antes de lhe desapertar os
cordões das calças. Os meus dedos roçam a sua pila rija, e sorrio-lhe
docemente. Um pouco de tortura nunca fez mal a ninguém.
Fica então nu, diante de mim. É, sinceramente, magnífico. Um corpo de
pura força bruta: magro, músculos salientes polvilhados de pelos negros.
Encosto as mãos aos seus peitorais, passo-as por baixo do abdómen.
Depois, volto-o de costas para observar as cicatrizes. Se pudesse, tirar-lhe-
ia todas as feridas. Mas só posso beijar suavemente a pior das cicatrizes
entrecruzadas, sentindo os músculos ficarem tensos sob a minha boca.
Bóreas agarra-me o braço e traz-me de volta para a sua frente. O rosto,
aqueles olhos azuis; tudo se abre para mim. A vulnerabilidade fervilha no
meio do calor, e o afeto, e algo mais forte, algo demasiado assustador para
nomear.
Agarrando-me pela cintura, atira-me para cima da cama.
O colchão afunda-se sob o meu peso enquanto eu observo cada
centímetro da sua magnífica forma. Os músculos das coxas poderosas
contraem-se a cada passo desta aproximação. Um tufo de caracóis densos
repousa na base da pila saliente.
Pondo-me de joelhos, rastejo até à beira da cama e coloco uma mão à
volta do seu corpo. Bóreas estremece e enreda os dedos no meu cabelo,
puxando-o suavemente, fazendo arrepios percorrerem o meu couro
cabeludo. Olho para a gota de líquido nacarado que escorre da cabeça, e
passo o polegar por ela, delineando um pequeno círculo.
Ele desprende um fôlego lento.
– Wren.
Enterro a cara nas virilhas dele e inspiro. Parte suor, parte almíscar, parte
cedro crocante. As pontas dos dedos de Bóreas pressionam a base do meu
crânio, e uma onda de paz combate o zumbido incessante que me percorre a
pele. Passo a língua ao longo da cabeça, experimentalmente. A carne cede à
pressão da minha língua, e eu repito o movimento, simplesmente pelo
prazer de o provar.
Aquelas pernas robustas fecham-se, os músculos flexionam-se enquanto
ele solta um suspiro curto e sibilante. O entalhe debaixo da cabeça do pénis
chama-me a atenção, e eu afago a pequena reentrância, adorando a forma
como incha sob o peso da minha língua errante. Observo-o por entre as
pestanas, espero até que os seus olhos se fixem nos meus. Depois chupo-o
até à raiz.
Enrijece, e a sua voz estala num gemido. Palavras imundas jorram-lhe da
boca, cada uma mais porca que a anterior.
Todo o meu corpo se ilumina de prazer. Ele quer mexer-se, o seu corpo
anseia por isso, mas não devia ter permitido que eu lhe tocasse, porque
agora vou desfazê-lo, pedaço a pedaço, com uma lentidão agoniante.
As suas pernas começam a tremer. Lambo o cimo do cetro, enrolando a
minha língua languidamente, extraindo outro som de dor do fundo do seu
peito.
– Basta – rosna ele, tentando libertar-se, mas eu agarro-lhe as coxas,
abrandando os meus movimentos. A sua semente precoce corre pela minha
língua como o vinho mais doce.
– Wren – grunhe. As mãos enredam-se no meu cabelo e puxam-no.
Ignoro-o.
– Wren.
Um pequeno estalido quando me afasto.
– Paciência – entoo com um lampejo de dentes.
Um deslizar lento da minha língua e junto a minha mão à dança, para
que nenhuma parte da ereção fique intocada. No movimento ascendente,
um som de puro tormento enche a sala, e quebra-se. Os dedos emaranhados
no meu cabelo apertam-se, mantendo-me no lugar, uma dor bem-vinda.
Uma breve imagem cintila nos recantos escuros da minha mente. Uma
fantasia, a bem-dizer. Em que eu exigiria que me fodesse a boca com toda a
força e profundidade do seu ser, impulso após impulso, até destruir a minha
garganta.
– Pede-me para parar e eu paro – murmuro, encostada à sua cintura.
Olhando para cima através das pestanas, encontro o negro ardente do seu
olhar. – Isto é, se conseguires resistir.
Ele fica quieto.
– Demónio. – Agarrando-me pelos sovacos, puxa-me para cima, para
que eu fique apoiada nos joelhos. A sua boca entra na minha, roubando-me
o fôlego. Ele toma e toma, e quando estou exausta, tonta por falta de ar,
com os meus membros flexíveis e os meus seios macios, ele orienta um dos
meus mamilos para a sua boca.
Grito, forçando-me contra ele. Bóreas dedica-se então ao outro seio,
cobrindo-o com a mão e dando ao mamilo carícias húmidas e lânguidas. O
meu âmago pulsa com impaciência.
– Mais força – gemo.
Tem de ser mais forte. Ainda nem lá chegou. Sempre que me inclino
para ele, Bóreas leva a boca à pele do mamilo e traça as curvas das minhas
ancas com as mãos. Entretanto, aquela pulsação torpe e insistente começa a
ascender.
Afastando-me com um resmungar frustrado, atraio-o para a cama.
Supunha que Bóreas se precipitaria para a conclusão, mas ele parece gostar
dos toques que são mais reconfortantes do que sexuais, um abraço por trás,
um doce afago no seu pescoço. Lembro-me dos séculos que ele passou
nesta cidadela, sofrendo. Quando foi a última vez que recebeu um toque de
compaixão, de afeto?
Quando a minha boca roça o canto da sua, afasto-me, sustendo-lhe o
maxilar com a mão, e aprecio-o.
– Disfarças bem – murmuro –, mas, como homem, não és assim tão frio.
Virando a cabeça, ele roça os lábios na minha mão.
– Não sou homem – responde, no mesmo tom –, mas um deus.
E então, mexe-se. Para baixo, para baixo, um rasto de beijos que se
encaminham para sul. Quando Bóreas encaixa os ombros entre as minhas
pernas, passando as mãos ásperas pela planície do meu estômago, olho para
o teto escuro, perguntando-me como é que vim parar à cama do Rei do
Gelo. Foi uma queda lenta e relutante. Mesmo agora, pergunto-me como é
que me foi escolher – uma mulher mortal, magricela, com cicatrizes –
quando podia ter escolhido qualquer outra.
Agarro no cobertor que se encontra debaixo de mim, necessitando
proteger-me.
– O meu peito é pequeno. Sou ossuda. E a minha cicatriz…
Ele levanta a cabeça. Os nossos olhos encontram-se, os seus estão
suavizados pela ternura.
– Gosto de a tua pele não ser perfeitamente lisa. Gosto da forma do teu
corpo. Gosto de tudo em ti, Wren.
– Não sou perfeita.
– A perfeição é uma expetativa impossível. As minhas cicatrizes não te
afugentaram. Porque haveria eu de fugir das tuas?
Tenho os lábios a tremer. Deito-me nos cobertores, liberto a respiração e
deixo-me sentir.
Uma das mãos aperta-me a anca, estende a outra e cobre-me um dos
seios. O polegar brinca com o mamilo: a ponta vermelha, dolorosamente
sensível. Um beliscão suave faz com que um calor formigante me assole
braços e pernas.
E então, a sua boca encontra-se entre as minhas pernas, molhada,
chupando o calor, arrancando-me um gemido. Agarro numa almofada e
enfio-a na cara para calar os ruídos embaraçosos. Outro puxão das minhas
pregas encharcadas, e eu solto um grito entrecortado, as ancas movendo-se
instintivamente para prolongar o prazer crescente.
De repente, fico sem almofada.
– O quê? – Pestanejo, confundida, para baixo, onde ele se ajoelha aos
pés da cama.
– Não te escondas de mim. – Aquele olhar invernal prende-me contra a
cabeceira da cama. – Depois de tudo o que passámos.
Tudo. Como uma ida e volta ao inferno. Embora não seja totalmente
errado.
– Sim – murmuro, a cabeça pendendo para trás, as pálpebras cerrando-
se.
A boca dele regressa às suas cruéis atenções. Enquanto os lábios se
selam com calor sobre aquele pequeno e tenro botão, ele enfia dois dedos
em mim, pressionando-os contra a parede frontal. Atiro-me contra a sua
boca com uma súplica gaguejada, delirando com o prazer que me queima as
veias. Bóreas produz um som indulgente enquanto lambe a minha pele, e eu
contraio-me contra aqueles dedos, tentando puxá-los para o fundo. Mal
reparo nas palavras que saem da minha boca. Mais. Por favor. Mais rápido.
Sim, aí. A minha pele arde, à medida que a tensão aumenta e, com uma
última sucção, desfaço-me.
Um grito selvagem assola-me, enquanto as minhas costas se curvam e as
ancas se erguem, e eu caio em espiral, esfregando-me contra a sua boca
enquanto ele se banqueteia, dedilhando todos os meus nervos. Sinto os
dedos dos pés enrolarem-se e os calcanhares cravam-se no colchão, e eu
agarro-me ao cabelo de Bóreas, impelida pelo latejar de um prazer belo, que
me altera a vida e me destrói, levada para longe pela onda, até esta perder o
ímpeto e me depositar em terra.
Encaro o teto, saciada, com a pele a escaldar de suor. O rei beija
suavemente o interior da minha coxa antes de subir pelo meu corpo,
acariciando as zonas quentes e macias. Beija a curva subtil do meu peito, a
humidade suada do meu pescoço, a minha têmpora e, finalmente, a minha
boca. Este beijo é o melhor de todos. É terno e faminto.
– Quase me matas – murmuro ao afastarmo-nos.
Os cantos dos olhos dele enchem-se de rugas.
– Mas ainda estás viva. Quer dizer que falhei?
– Quero dizer que ainda temos muito pela frente.
O tempo passa a correr. Fundindo as bocas, com carícias das nossas
mãos, os dedos beliscam a carne flexível e, juntos, começamos a subir.
Muito, muito depois, Bóreas posiciona-se junto à minha entrada. O olhar
dele encontra o meu, e mantém-se aí.
– Não te quero magoar.
Já me deitei com homens que me trataram mal, mas não acredito que
Bóreas faça o mesmo. Confio nele.
– Não me magoarás – digo.
Ele baixa o queixo.
– Está bem.
– Espera. – Encosto a mão ao seu peito antes que ele entre em mim. – E
se ficar grávida? Não tenho tónicos para evitar isso. – Não me sinto pronta
para trazer uma criança ao mundo. E não sei se Bóreas quereria um filho,
depois da morte do primeiro. Nunca falámos sobre isso.
Ele puxa uma madeixa do meu cabelo, passa o polegar pelo meu maxilar.
– Não te preocupes. A Alba pode dar-te um tónico amanhã de manhã. –
A preocupação no seu olhar é substituída por outra. – Queres ter filhos?
Não agora, mas um dia?
Vejo: a esperança e o medo.
Nunca pensei em ter filhos, porque nunca me vi em posição de os criar.
Toda a minha atenção se virava para a sobrevivência. No entanto, sou capaz
de antever um futuro com Bóreas, claramente. Imagino que ele seria um
ótimo pai. Prospera quando tem algo ou alguém de quem cuidar.
Mas não pode ser assim tão simples. Um dia, envelhecerei. Bóreas
viverá mais do que eu. E as crianças? Também serão imortais?
– Não sei – sussurro com sinceridade. – Acho que nunca vi os filhos
como uma opção na minha vida. As coisas nunca me pareceram
suficientemente estáveis. – Mordo o interior da minha bochecha. – O teu
filho era imortal?
– Calais era mortal, mas possuía traços que revelavam o sangue divino
que lhe corria nas veias. Era muito forte para uma criança. – O seu sorriso
desvanece-se. – Preocupa-te o tempo de vida da criança?
– Um dia, hei de morrer – murmuro, tocando-lhe no canto da boca. – Se
a criança também for mortal, o que acontecerá quando ela morrer? – Não
quero que Bóreas sofra sozinho. E a ideia de ele ter outra mulher depois de
mim… Debato-me contra uma onda de ciúmes.
Ele pondera. É difícil perceber o que pensa.
– Não digo que não, mas gostaria de ter tempo para considerar as
implicações. – Será que ainda me vai querer quando a minha pele começar
a descair? Quando os meus dentes apodrecerem? É demasiado desagradável
pensar nisso. – Mas deves saber que se eu quisesse ter e criar um filho com
alguém… seria contigo.
O imortal que roubou o meu coração.
Reduz o espaço entre nós, encosta a boca à minha demoradamente. Sinto
o seu sorriso e isso, por sua vez, faz-me sorrir.
Com uma mão apoiada na cabeceira da cama, ao lado minha cabeça, ele
usa a outra para se posicionar dentro de mim, balançando as ancas para a
frente pouco a pouco, afundando-se cada vez mais à medida que o meu
corpo se alonga para o acomodar. Quando entra por completo, comento:
– És bastante grande.
Bóreas amua, como se nunca tivesse considerado que isso fosse um
problema.
– E isso desagrada-te?
Como é que eu nunca reparei no seu humor? Eu solto uma exclamação, e
envolvo os meus braços à volta do seu pescoço.
– Nem um bocadinho. – Beijamo-nos. É um beijo breve, doce, e
rapidamente esquecido no calor da cópula.
O Vento Norte sai e volta a afundar-se com uma facilidade lânguida. O
suor escorre da ponta do seu nariz e salpica o meu peito, que ele lambe com
a língua.
A cidadela cai num silêncio profundo à nossa volta. Bóreas aumenta o
ritmo, apoiado nos joelhos, as minhas pernas abertas contra as suas coxas
duras, antes de ele as levantar e as envolver à volta da sua cintura, para
ficarmos entrelaçados. Espetando os dedos nas minhas ancas, ergue-me,
inclina a pila e enfia-se num deslize perfeito.
Os nossos corpos afundam-se e sobem em harmonia, e movemo-nos em
conjunto como se o tivéssemos feito durante toda a nossa vida. Ele
impulsiona-se com força, prolongando o meu prazer até que os nossos
odores se fundem e não há princípio nem fim, apenas o meu nome na sua
boca, o seu sabor na minha língua, a união.
Este homem, que presenciou a criatura ferida e chicoteada no meu
coração, que a fez sair do esconderijo, que me elogiou pelo que eu era, e
não pelo que eu não era, que não recuou perante as minhas arestas afiadas,
consegue ver-me por inteiro. O meu captor, o meu marido, o meu inimigo, o
meu amante, o meu amigo.
Um sonho que não me atrevi a sonhar.
Todo meu.
Bóreas sussurra o meu nome. Aperto as mãos no seu cabelo enquanto os
nossos corpos se movem em sincronia, um prazer tão agudo que sobe em
espiral, contraindo-se, perfurando as profundezas, incendiando o meu
sangue.
Fico ofegante, enquanto o prazer aumenta e, de repente, sinto-me quase.
Estou no limiar, e Bóreas impulsiona-se contra mim com abandono, a boca
aberta, e eu estou mesmo ali com ele, a pisar o limite.
– Wren – grunhe e chupa com força a curva do meu pescoço.
– O que quer que faças agora – peço –, não pares.
Bóreas engasga-se de riso. Eu não consigo rir. Estou demasiado ocupada
a tentar lembrar-me de como se respira, enquanto, de mãos dadas, nos
conduzimos mutuamente às alturas, a um lugar exclusivamente nosso. E
depois desfaço-me.
Com um grito roufenho, curvo-me para cima, consumida pelo fogo que
me fende a pele, rasgando o meu âmago e as minhas entranhas profundas.
Abruptamente, Bóreas endurece. A emoção acutilante explode nas suas
pupilas escuras, e ele força-me de costas, fodendo-me como um animal, a
pele contra pele e o almíscar da nossa excitação a pousar como um nevoeiro
na minha cabeça. E continua, e continua, até que as suas ancas estremecem
contra as minhas e ele desaba sobre o meu peito.
O peso dele força-me contra os cobertores. Tal como ele, sinto-me
completamente exausta, completamente desossada. Nem me conseguiria
mexer, se quisesse.
– Estás a esmagar-me os pulmões – murmuro-lhe ao pescoço.
Ele solta uma gargalhada e rola de lado, aconchegando-me na curva do
seu corpo. Ali nos quedamos, enquanto os nossos corações abrandam e os
nossos corpos arrefecem.
A lareira apagou-se por completo. Bóreas percorre com o dedo a curva
da minha anca.
Viro-me para ele. Bóreas enverga a máscara de pedra, aquela a que se
agarra tão ferozmente, mas que de pouco serve agora. Reparo nas fissuras.
Inclinando-se para a frente, roça no meu nariz com o seu. As minhas
mãos levantam-se para lhe traçar o maxilar, os meus polegares afagam-lhe
as faces.
– Gosto de ficar assim juntinho a ti – diz Bóreas, calmamente, com
emoção.
A minha garganta aperta-se. Consigo ter isto, descubro, se for
suficientemente corajosa para o aceitar.
– Também eu – sussurro, depois inclino-me para a frente e beijo a boca
do meu marido.
40

D esperto com uma mão quente na minha coxa. Bóreas debruça-se sobre
mim, com o cabelo escuro desalinhado, os olhos azuis semicerrados,
mas intensos. Encosta um dedo aos meus lábios para indicar silêncio.
Com os sentidos alerta, sento-me lentamente, tentando ver na escuridão.
A lareira há muito que se extinguiu. Adormecemos horas antes, depois de
mais uma ronda de amor intenso, os nossos corpos saciados e unidos o mais
possível.
– Os guardas fizeram soar o corno – informa, a voz baixa no meu
ouvido.
A primeira onda de alarme invade-me e encosto-me ao seu peito. A
cidadela foi invadida.
– Caminhantes-das-trevas?
Ele acena com a cabeça.
– Como é que passaram pela barreira?
Ele passa dois dedos pela minha face.
– Não sei. – O vinco entre as sobrancelhas aprofunda-se. Já me disse
várias vezes que a barreira não pode ser enfraquecida, pois encontra-se
selada em todas as pedras da alta muralha.
A minha atenção dirige-se para a janela. Temos uma vista do pátio e de
quem guarda a muralha. Uma perspetiva do alto pode ajudar-nos a perceber
como é que os caminhantes-das-trevas se conseguiram infiltrar, da
dimensão do inimigo. Se for parecido com o banho de sangue da última
batalha…
– Não – diz, percebendo a minha intenção. – Não lhes dês a conhecer a
tua localização. Tens de manter-te escondida. – Começa a afastar-se. – Fica
aqui.
Como se fosse possível.
– Vou contigo. – Lanço as pernas por cima do colchão.
– Não – interrompe-me com uma mão no braço. Nunca o vi tão sério. –
Virei buscar-te quando for seguro.
O ar frio percorre-me a espinha. Tremo, agarrada à mão do meu marido.
Bóreas é imortal. Não pode morrer com uma arma feita por um mortal.
Tanto quanto sei, também não pode ser morto pelos caminhantes-das-trevas,
considerando que ele próprio é um deles. Mas no último golpe que sofreu,
não foi capaz de se curar sem ajuda. Algo o impediu de o fazer.
– E se te levarem? – murmuro.
Aperta-me os dedos com meiguice.
– Não é a minha vida que me preocupa.
O meu coração, já frágil à partida, desintegra-se por completo com estas
palavras.
Bóreas desliza da cama e coloca a roupa de que se tinha desfeito.
– Tranca a porta quando eu sair. Há uma passagem escondida no
escritório, atrás da tapeçaria. Vai levar-te para o pátio do estábulo. Pega na
Iliana e foge para o norte, para o mais longe que puderes. Vou ao teu
encontro assim que for seguro.
Eu lanço-me em frente, prendendo-lhe o pulso. Ele vira-se. O rosto
perdeu-se na sombra, mas os seus olhos brilham com uma determinação
feroz. Ele não pode ir. Há tanto que preciso de lhe dizer. A emoção cresce
entre nós, temerosa e nova.
Ele diz, num tom calmo:
– Wren, por favor.
– Mas…
Cala-me com um beijo, lábios entrechocando-se.
– Fica. – E depois parte.
Esperará que fique sentada, aguardando o seu regresso? Com o perigo à
solta, não pretendo lutar contra os caminhantes-das-trevas em camisa de
noite. Penso em Elora, no filho por nascer. Preciso de uma arma. E de
calças. Os meus aposentos, no entanto, ficam do outro lado da fortaleza. E
sem o meu arco, sou um alvo fácil.
Treme-me a mão, ao agarrar no puxador e abrir a porta devagarinho.
Um corredor escuro e deserto, com os castiçais de parede apagados. Não
há guardas. Devem ter abandonado os postos para suster os caminhantes-
das-trevas que se infiltraram.
Desato a correr. Sem parar. A minha camisa de noite esvoaça contra as
minhas pernas, e mantenho os ouvidos atentos a qualquer som estranho.
Aninhados nos muitos salões de baile, salões e salas de jantar, os habitantes
de Neumovos começam a acordar. Alcançando os meus aposentos, coloco o
traje de inverno, pego no meu punhal, arco, aljava e bolsa de sal. Doze
flechas. Farei com que cada uma conte.
Um estrondo vindo de um dos pisos inferiores põe fim ao silêncio: abre-
se uma porta com estrondo e gritos, gritos terríveis.
O sangue palpita ao ritmo do meu coração acelerado. Quantos são? Com
que rapidez se movem? Um rugido animalesco ecoa como se o próprio ar se
desfizesse em pedaços, e gritos de gelar o sangue conduzem-me em direção
à porta. Tenho de encontrar Elora.
Deparo com uma ala sul em completa desordem, portas arrancadas das
dobradiças, espectros a correr para todo o lado. O ar tresanda a cinzas. Um
fluxo de pessoas desesperadas atravanca a passagem e impede a fuga. Só
por pura vontade é que consigo espremer-me por entre a multidão de
corpos.
No fim do corredor, uma silhueta maciça surge ao virar da esquina, com
metade de um tronco dependurado na enorme mandíbula. Homens e
mulheres em diversos estados de nudez pulam do seu caminho,
aterrorizados.
Agarro uma mulher pelo braço.
– Viu a minha irmã? – Mas ela solta-se, a soluçar, e cambaleia para a
frente com o fluxo de pessoas. A multidão empurra-me na sua pressa de
fugir do caminhante-das-trevas. Aponto a flecha para o chão, para não
empalar alguém acidentalmente, quando um homem gigante me empurra
contra a parede. O meu crânio estala contra a pedra. Deixo cair o arco com
um grito de susto, a mão voa-me para a nuca. Os dedos ficam cobertos de
sangue.
Apalpando o chão, à procura do arco, encontro-o e agarro-o, e à flecha
caída, e volto a tentar, aproximando-me da parede para evitar o pior da
correria. O caminhante-das-trevas deixa cair a comida, o corpo
transformado em casca sem alma, e solta outro rugido de estalar os ossos.
Com os olhos postos na fera, mergulho a flecha na bolsa de sal à cintura.
Um dos guardas aparece para me ajudar, mas eu não lhe dou atenção
enquanto monto e atiro a flecha. Acerto no centro do peito do caminhante-
das-trevas e a besta explode num jato de icor.
Rodando sobre os calcanhares, atiro a segunda seta para o olho de outro
caminhante-das-trevas. Uma mulher, levantando as saias com as mãos,
passa apressadamente por mim num cego terror.
O caminhante-das-trevas cambaleia. Outra seta espeta-se no outro olho.
– Mata-o! – berro ao guarda. Ele lança-se em frente, espeta a espada no
coração do caminhante-das-trevas. Dois abatidos, mas agora apareceram
outros três.
– Wren!
Viro a cabeça.
– Elora?
Não recebo resposta. Apenas os gritos dos que são espezinhados,
mutilados, cuja carne é arrancada. Terá a voz dela vindo da frente ou de
trás?
Junto-me à corrente que se encaminha para as escadas, procurando a
minha irmã gémea no meio do caos. Vislumbro uma cabeça de cabelo
escuro ao longe e, ao seu lado, um homem grande que só pode ser Shaw.
– Aqui! – grito, acenando enquanto os tento alcançar aos empurrões.
– Wren! – Os olhos aterrorizados da minha irmã encontram os meus.
Não vejo sangue em parte nenhuma, apenas o ar amarrotado de quem teve
de se vestir à pressa. Graças aos deuses que se encontra bem.
– O que está a acontecer? Os caminhantes-das-trevas…
– Vem comigo. – Agarrando-lhe a mão, arrasto-a na direção dos
aposentos do rei, com Shaw na retaguarda. Uma força oscilante sacode a
fortaleza, e tropeço contra a parede enquanto uma nova onda de gritos se
agita e despenha em baixo.
Assim que entramos nos aposentos de Bóreas, tranco a porta com força,
rasgo a tapeçaria que esconde a saída que conduz ao Gris. Elora pousa uma
mão trémula sobre a barriga redonda. Shaw segura-a pelos ombros
enquanto eles olham para o que a porta revela: o bafo gelado do mundo.
– Isto conduz-vos de volta a Edgewood – apresso-me a dizer. – Veem o
ribeiro ao longe? – Aponto para um vislumbre de gelo por entre as árvores.
– Sigam-no para leste até chegar à vila. Lá ficarão a salvo.
A minha irmã vira ligeiramente a cabeça, perscrutando-me.
– E tu, Wren?
– O meu lugar é aqui, com o meu marido. – Cruzo o olhar com Shaw, e
reparo que entendeu. – Vão. Não têm muito tempo.
– Espera! – Elora agarra-me a mão. Durante tanto tempo, representou o
meu único propósito na vida, mas agora tenho outro: eu própria. – Promete-
me que ficarás a salvo.
Não posso prometer isso. As Terras Mortas nunca foram seguras, mas eu
escolho o Vento Norte. Eu escolho as criaturas, a neve e a rocha inerte. A
vida dele agora é a minha.
– Elora. – A voz profunda de Shaw é quase abafada por um novo grito
que rasga o ar. – Estamos a perder tempo.
Treme-me a garganta, e eu encaixo Elora no primeiro abraço verdadeiro
que partilhamos em meses. Se, por qualquer razão, não sair ilesa desta
noite, quero que a última lembrança minha seja de amor.
– Ver-nos-emos em breve.
Não me larga, tal como quando éramos crianças, partilhando cobertores
para evitar o frio. Espero um momento e solto-a.
Depois de terem transposto o limiar, fecho a porta e corro para o
escritório, para a tapeçaria, para mais uma porta escondida.
Corro pela passagem. Lama fresca e compactada conduz-me ao ventre
da terra. Os sons da batalha tornam-se mais fracos e acabam por
desaparecer. Apenas a minha respiração, a entrar e a sair dos pulmões que
ardem, o terror que cresce diante dos meus olhos.
Ao alcançar a saída – uma velha porta de pedra – cobre-me o corpo uma
camada de suor. Pica-me a pele o ar invernoso, eriçam-se os pelos dos meus
braços, procurando um pouco de calor. Abro a porta enviesada e espreito
pela fresta para o pátio do estábulo.
É um massacre. Estou protegida atrás de um monte de pedras onde o
túnel termina, mas a batalha avança, espalha-se. Em breve, alcançará este
refúgio provisório.
Os caminhantes-das-trevas uniram-se. A horda de criaturas dilacera os
guardas armados, cujas ordens são de não ceder, não ceder, dar tempo aos
cidadãos de Neumovos de alcançar um lugar seguro.
Mas as ordens recebidas condenaram-nos a horrores indescritíveis. Eles
assistem à derrota dos camaradas até os próprios corpos ficarem esmagados
por enormes mandíbulas, com um líquido negro e fétido a escorrer das
feridas abertas.
Onde estará Bóreas? Julgara que se encontraria no cerne mais intenso da
luta, onde a necessidade é mais premente. Uma das janelas da torre
estilhaça-se, e vidros partidos caem do alto como chuva, enquanto uma
criada salta do quarto andar, um caminhante-das-trevas procurando atacá-la
através da janela aberta. O corpo dela despedaça-se no chão.
– Verifiquem a ala sul. Vasculhem tudo.
Fico completamente imóvel, procurando a origem da voz. O luar satura a
neve para lá dos portões abertos. Nada. Apenas soldados que tentam
freneticamente estancar os caminhantes-das-trevas que trepam pela muralha
exterior.
Uma figura, no entanto, não se move como as demais. A luz capta a
cabeça de caracóis e recorta a curva do seu arco enquanto ele examina a
área circundante a partir do posto junto às portas das cavalariças,
presenciando o massacre com um olhar frio.
Há algo que me atormenta o estômago. Acabo de perceber como é que
os caminhantes-das-trevas conseguiram entrar na cidadela sem ser vistos:
contei a Zéfiro que havia um buraco na parede. Quando eu era uma pessoa
diferente que não sentia nada pelo Rei do Gelo. Quando a minha única
missão era removê-lo desta terra para que a humanidade vivesse em paz,
livre do punho devastador do inverno. Quando eu era solitária e negava as
minhas necessidades.
– Zéfiro! – O clamor soa, rouco de raiva. – Zéfiro!
O medo aperta-me a garganta com um nó. Não vejo nada, absolutamente
nada. Mas então um caminhante-das-trevas penetra na luz, carregando uma
figura esmagada nas garras da mão.
Arquejo. As mãos e os tornozelos de Bóreas estão atados, e um saco
cobre-lhe a cabeça. Como terão conseguido capturá-lo tão cedo? E porque é
que ele não recorre aos poderes para lutar?
– Acalma-te, irmão. – O Vento Oeste observa Bóreas debater-se com ar
entediado. – Em breve, tudo terminará.
Zéfiro e o caminhante-das-trevas contornam os estábulos. Eu sigo-os,
mantendo-me baixa e calada, movendo-me por entre as sombras. Se ele
fizer mal a um só cabelo do meu marido…
– Leva-o para norte – diz Zéfiro. – Irei ao teu encontro quando me tiver
despachado.
A criatura galopa através dos portões da frente, adentrando-se na floresta
escura, carregando Bóreas nas garras. Vejo-o partir, e o meu coração segue
com ele. Nunca serei capaz de os alcançar a pé.
Preciso de um cavalo.
Estando o Vento Oeste atento ao lado oposto, o caminho para as
cavalariças encontra-se desimpedido. Abro a porta e penetro no espaço
iluminado, correndo para o estábulo onde se encontra Iliana.
O inconfundível zunido do puxar da corda de um arco alcança-me, e
também eu levanto a minha arma. Com a minha própria flecha montada,
viro-me, apontando para o peito de Zéfiro, tal como a sua flecha aponta
para o meu.
Os nossos olhares cruzam-se por entre a obscuridade. Sinto o coração
acelerar, enquanto um relampejo frio me envolve.
– Olá, Wren.
As suas íris apresentam o verde brilhante de um novo rebento, cortadas
como frias pedras preciosas. A lama mancha a sua túnica normalmente
imaculada, as calças rasgadas no joelho.
– Cometeste um erro quando vieste – digo-lhe, com um tom de voz
firme. Ele levou-me o marido. Mentiu e mentiu, e disse essas mentiras com
uma doçura irresistível. Ações que não podem ficar impunes.
– Erro? – responde. – O meu único erro foi não ter vindo mais cedo.
Zéfiro acerca-se. Os dedos dele contorcem-se à volta da corda. Noto a
ironia de poder matar o deus que me ofereceu esta arma. A prenda, ao que
parece, não significava nada. Era apenas uma forma de ganhar a minha
confiança, um elo conspurcado desde o seu início enganador.
– Mais um passo – aviso – e disparo.
Quer o arco quer as setas foram tocados por um deus. E raramente erro o
alvo.
Ele franze a testa, mas para.
– É justo, acho eu.
– Devia ter dado ouvidos ao Bóreas. Não acreditava…
– Que sou tão depravado como ele afirma? – Um sorriso sem alegria. –
Apesar do que o Bóreas pensa, não quero que morra. Só quero a lança dele.
O poder dele tem crescido sem limites e começa a afetar o meu reino, como
bem percebeste. Poderia eu ficar quieto enquanto as minhas pessoas
morrem?
– Há outras formas. Opções que não tirem a vida a inocentes.
– Muitas das minhas pessoas já morreram.
– Como tu morrerás, se não me deres as respostas que eu quero. Foi por
isso que mataste a mulher e o filho dele? Porque sentiste que o seu poder
crescia sem controlo?
– Tecnicamente, foram os bandidos que os mataram.
Só os anos de disciplina é que mantêm a firmeza dos meus dedos na
corda.
– És assim tão insensível?
– Wren – suspira, como se tivesse já tido igual conversa, e estivesse farto
do assunto. – Não era minha intenção.
– Basta de mentiras. Envenenaste a mulher do Bóreas contra ele.
Aproveitaste-te dela, traíste a confiança do teu irmão. – E a minha, penso
com um pico de fúria. Traíste-me.
– Não tenho culpa de que ela fosse infeliz – responde ele com um
encolher de ombros displicente. – Ofereci-lhe uma saída, tal como a ti, e ela
aproveitou-a.
– Ela não era infeliz. Amava-o. – Mas Zéfiro, com a sua mente traiçoeira
e astuta, conseguiu infiltrar-se na mente daquela mulher, transformou-a
numa ferramenta que usou contra o marido. Como quase fez comigo. –
Porque é que não acreditas nisso?
– Talvez ela o tivesse amado em tempos, mas o amor é cruel e não dura
para sempre – afirma, com a expressão a contorcer-se de raiva e mágoa
súbitas. – Remove-nos uma parte da alma, e quando essa pessoa se vai,
ficamos para sempre com um buraco no coração. Eu nunca quis que isto
acontecesse, sabes. Tinha esperança de convencer o Bóreas, de defender a
sobrevivência do meu reino, mas duvido que te interesse.
Lanço-lhe um olhar furioso.
– Tens razão. Não me interessa.
Mas não penso em Zéfiro. Estranhamente, recordo-me da doce
Thyamine, Thyamine desmiolada, Thyamine esquecida. Ela pressentiu que
havia algum problema durante o trajeto até à gruta do Sono. Pensei que
temesse pela minha segurança, mas é possível que a minha suposição
estivesse errada. Nunca cheguei a saber porque é que ela bebeu do Rio do
Oblívio.
– Thyamine – digo eu. – Interferiste nas memórias dela? Testemunhou
alguma coisa que não deveria?
O Vento Oeste revira os olhos.
– A mulher era demasiado intrometida. Percebeu que eu começava a
passar demasiado tempo com a mulher do meu irmão e receei que ela
dissesse alguma coisa. E, portanto, tratei do problema.
Sacana. Sacana egoísta.
Zéfiro oferece-me a mão.
– Seja como for, gosto de ti, Wren, por isso vou dar-te esta oportunidade.
Se te renderes calmamente, não te farei mal.
Sinto a ameaça de um sorriso fátuo. Ele julga que me pode usar como
bem de troca?
Não creio.
– Zéfiro – respondo –, nunca fiz nada na vida com calma.
Solto a flecha. Penetra-lhe profundamente no ombro. Ele grita, deixa cair
o arco enquanto eu abro a porta do estábulo e monto Iliana. Não tenho
tempo para colocar rédeas nem sela. O corpo debaixo de mim, puro, poder
inexplorado, dispara, e nós saltamos pela porta aberta, galopando para fora
das cavalariças em direção à noite.
41

A aljava de flechas embate-me nas costas. Voamos como nunca voámos,


cortando a neve derretida e a lama cinzenta. A terra troveja com o soar
dos cascos, aparentemente meia dúzia de cavalos perseguem-nos. Não me
atrevo a olhar para trás. Se me distrair do que tenho pela frente, perderemos
o nosso rumo.
– Depressa, Iliana. – Ela galopa o mais depressa que consegue, mas não
será capaz de manter este ritmo indefinidamente. Enquanto isso, tento
raciocinar: o caminhante-das-trevas que carregava Bóreas ia na frente. Em
breve, alcançará Mnemenos. Tentará atravessá-lo, ou seguirá o rio para
oeste? Será essa a intenção de Zéfiro? Levar Bóreas através da Sombra para
o seu próprio território? Pode ser um traidor, mas não é tolo. Vai querer
regressar a casa em segurança, onde quer que esta esteja.
Não, a tola fui eu. O meu preconceito acerca de Bóreas cegou-me diante
da verdade. O Vento Oeste: uma víbora, uma fraude, um ladrão. Rezo para
não ser tarde de mais.
Uma flecha passa junto ao meu ouvido. Desvio Iliana para a esquerda,
saindo do trilho assinalado, entrando mais na floresta. Curvada sobre o
pescoço equídeo, o vento frio seca-me as lágrimas dos olhos, e concentro-
me no terreno que nos aguarda.
Mas, por fim, Iliana começa a desacelerar. A velocidade reduz-se a um
trote. O fedor de cinzas do caminhante-das-trevas enfraqueceu, o que me
preocupa. Rezo, implorando a deuses que há muito abandonei, para que
guardem Bóreas. Despejo toda a minha alma num único pedido, um desejo
que o vento leve até ele: aguenta-te.
Quilómetros depois, alcançamos um rio. Não se trata de Mnemenos. A
cor está diferente – vermelho e cor-de-rosa, em vez de azul. Espreitando por
cima do meu ombro, descubro várias figuras a cavalo transpondo
rapidamente o intervalo de meio quilómetro que nos separa. Preocupa-me
tocar na água quando não conheço as suas propriedades, mas não tenho
hipótese. Terei de atravessar.
– Vamos, miúda.
Desmonto quando chegamos à margem oposta. As minhas pernas
vacilam. Apetece-me mexer, pois parada torno-me uma presa fácil, mas
preciso de me concentrar. Primeiro, trato dos meus perseguidores. Depois,
encontro o meu marido. E arraso o mundo, se chegar a esse ponto.
Orientando Iliana com estalidos suaves da minha língua, coloco-a em
segurança no arvoredo. Depois, agacho-me atrás de um dos troncos mais
largos e monto uma flecha no arco.
Ergue-se uma brisa, transportando vozes, altas e baixas e de várias
sonoridades. Tolos. Morrerão por causa da sua idiotice. Pelo menos cinco
homens avançam, talvez seis. Ainda tenho sete flechas na minha aljava.
O primeiro homem alcança o topo da colina, montado num cavalo
espectral. Ajusto de imediato o alvo. A corda geme quando a puxo para
trás, mirando o peito dele.
Mas quando o cavalo desce a encosta, a névoa de adrenalina esbate-se.
É Pallas.
Os meus joelhos tremem de alívio e eu agarro-me ao ramo mais baixo da
árvore para não tombar de cara no solo. O capitão e eu tivemos as nossas
contendas, mas eu jamais duvidei da sua lealdade a Bóreas.
Arrasto-me para fora do abrigo.
– Pallas.
O capitão sobressalta-se. Examina-me da cabeça aos pés.
– Minha senhora. Está ferida? – Orienta o cavalo baio para o fundo da
colina.
– Estou bem. – Quando ele se aproxima, assusto-me e adianto-me um
passo. – Mas o capitão não está com bom ar. – Para não dizer pior.
– Oh! – Encara o sangue que lhe mancha a couraça. Pedaços de pele,
salpicos de líquido negro. Os caminhantes-das-trevas deixam sempre a sua
marca. – Não é meu.
Alcança a margem contrária quando outros soldados surgem no cimo da
colina. Seis, sem ferimentos numa primeira análise, mas exaustos, abatidos
com a derrota. Fortemente armados – espadas, punhais, machados, arcos.
Examinam a área com cautela.
– Tão poucos? – pergunto, perscrutando o rosto de Pallas. Deve haver
um motivo para serem apenas sete.
– Minha senhora. – Tem uma expressão assustadoramente séria. – Nunca
vi tantos caminhantes-das-trevas. Fomos rapidamente subjugados.
– E a cidadela? – A minha voz torna-se um murmúrio.
Pallas olha para um soldado de bigode preto, que baixa a cabeça.
– Perdemo-la, minha senhora. Os caminhantes-das-trevas ocupam-na
agora.
A cidadela é a minha casa, agora. Pensar que não a poderei habitar…
– E os convidados? Os criados?
– Conseguimos extrair a maior parte da população. Bem como os
criados.
Então, Orla estará a salvo, e afastada do massacre, e Silas, e Thyamine.
Suspiro de alívio.
– Só restam vocês, do exército?
Pallas anui com ar sombrio.
– Além dos que ajudaram a levar as gentes para um lugar seguro. Os
membros da patrulha fronteiriça encontram-se demasiado longe para os
chamarmos de volta. Não saberemos quantos sobreviveram até se fazer uma
contagem geral.
Tão poucos para lutar contra Zéfiro. É difícil não cair no desespero
quando a esperança nos escapa continuamente por entre os dedos.
– Um caminhante-das-trevas capturou o Bóreas. Não o consegui alcançar
a tempo. – Fracasso. Que sensação horrível e incapacitante. – Ia a caminho
de Mnemenos para o procurar. Imagino que também tenham perdido o rasto
deles?
– Não procurávamos o rei – afirma o homem de bigode. – Tínhamos
ordens para ficar consigo.
Os outros soldados anuem em concordância.
Obviamente, Bóreas não se preocuparia com a sua própria segurança.
Que imortal tão frustrante.
Mas isto dá-me uma maior vantagem. Sete soldados, armados, desejando
vingança. Conhecem o território. Estão bem familiarizados com o inimigo.
Precisarei de todas as armas de que possa dispor, lâminas afiadas e
brilhantes.
– Foi o Vento Oeste que levou o Bóreas – informo, fitando cada soldado
nos olhos. – Quero ir atrás dele, mas não consigo fazê-lo sem ajuda.
– Minha senhora. – Pallas faz um sorriso, embora sem alegria. – A nossa
função é servir.

Os homens montam uma fogueira. Eu, Pallas e os seus camaradas reunimo-


nos à volta das chamas vermelhas crepitantes para discutir a nossa
estratégia. Não temos o tempo como aliado. Posso ser uma exímia
atiradora, mas da guerra sei pouco. O vasto conhecimento dos guardas a
respeito do assunto mostra-se inestimável. Esta noite, sou uma aluna ávida.
– A experiência mostra-nos que os caminhantes-das-trevas se reúnem em
pequenos bandos – informa o soldado de bigode enquanto atira mais paus
para as chamas. – Cinco, seis, às vezes dez num grupo. Mais do que isso e
há lutas internas.
– Então, onde quer que o Bóreas esteja – digo, fazendo a dedução –,
iremos ter um grupo de caminhantes-das-trevas.
– Sim, minha senhora.
É escusado dizer que isto não é nada animador.
Segundo os guardas, há alguns sítios onde Zéfiro pode ter escondido
Bóreas. Grutas a leste; um desfiladeiro a sudoeste; e depois os recantos
mais profundos da floresta, que se encontram a um dia de viagem para
norte. Enviaram dois batedores há horas, um para as cavernas, outro para o
desfiladeiro. Se voltarem de mãos vazias, viajaremos para norte.
Um dos soldados mais jovens, atarracado e com um rosto quadrado,
pergunta:
– Quanto tempo julga que Zéfiro consegue controlar os caminhante-das-
trevas? – Espreita-me de soslaio, depois baixa os olhos. – Com todo o
respeito, minha senhora, mas se o senhor está nas mãos deles, quem é que
pode dizer que serão capazes de conter os instintos antes de o conseguirmos
resgatar?
O meu estômago revira-se. O instinto de um caminhante-das-trevas é
beber almas vivas. Os espectros podem aguçar o apetite deles, mas o Vento
Norte é um imortal de sangue puro, incomensuravelmente poderoso.
– Ele não está morto – afirma Pallas, mexendo num fio solto das calças.
Exprime-se com convicção, aliviando a angústia que me invade. Tendo a
concordar com ele. Zéfiro pode ter um sentido de justiça deturpado, mas
não faria mal ao irmão. Para já, pelo menos. Enquanto Bóreas estiver vivo,
Zéfiro tem uma vantagem que pode usar contra mim.
O Vento Oeste precisa da lança do irmão para anular o frio, embora me
questione se ele já terá notado que a atmosfera está mais quente. Seja como
for, Bóreas jamais renunciará à arma. Qual dos Anemoi possui a vontade
mais forte? O que reinará, no final? O amor ou a vingança? O inverno ou a
primavera?
A lua afunda-se à medida que a noite se aprofunda, e o meu pânico
transforma-se em cenários arrepiantes sobre como Zéfiro pode castigar o
irmão. Decorreram quase três horas desde que fugi da cidadela, e temo que
seja demasiado tarde.
Devia ter matado Zéfiro enquanto tive oportunidade.
– Que abordagem utilizaremos? – pergunto ao capitão.
– É difícil dizer, sem sabermos o que vamos enfrentar. – Atiça o fogo. –
Já lidei com Zéfiro no passado. É uma pessoa complicada. E com todos
aqueles caminhantes-das-trevas a apoiá-lo… – Abana a cabeça. – Somos
apenas oito. Não podemos lutar contra a horda inteira. Os caminhantes-das-
trevas procuram a orientação de Zéfiro, mas ele conseguiu ganhar controlo
sobre eles. Retirando Zéfiro da situação, cortaremos a cabeça da serpente.
O que disse desperta-me a atenção.
– Em que sentido é que lidaste com Zéfiro no passado?
A luz nos seus olhos cintila e depois apaga-se.
– Acompanhei o senhor até às montanhas quando a mulher e o filho
foram raptados.
Um dos homens comenta:
– Quando Zéfiro estiver morto, o que acontecerá aos caminhantes-das-
trevas? Voltarão a ser como eram antes, corruptos, mas desprovidos de
inteligência? E o que acontecerá à Sombra?
A pergunta faz-me parar. Os homens não sabem que Bóreas é um
caminhante-das-trevas. Sabem que a Sombra e o poder do senhor
enfraqueceram, mas não conhecem o motivo.
O grunhido indiferente do capitão demonstra que não faz a menor ideia.
Ninguém faz.
Mas lembro-me do que li em tempos num livro. Uma flor, incapaz de
florescer, muitas vezes murcha. Será que a estagnação do Rei do Gelo, na
sua dor, causou a própria queda? Recordo a Sombra rasgada, a multidão de
almas corrompidas. Talvez o amor, a confiança, a pertença tenham aquecido
a terra, atuando como um bálsamo para restaurar o equilíbrio e curar as
feridas de Bóreas.
O som de passos que se aproximam desperta a atenção do grupo.
Um batedor irrompe das sombras e entra no anel de luz.
Neve enlameada ensopa-lhe as culotes abaixo do joelho.
– Encontrei-o – diz, ofegante. – Encontrei o rei.
42

A gachamo-nos nas profundas sombras à beira da clareira – eu e os


homens. Deixámos os cavalos amarrados quilómetro e meio para leste e
percorremos o resto da distância a pé. Diante de nós fica a caverna,
recortada numa colina inclinada e nevada. Caminhantes-das-trevas rondam
a entrada, pelo menos uma vintena. Quem sabe quantos estarão no interior.
– Minha senhora. – Um dos guardas ajoelha-se a meu lado, após
inspecionar a área. – Existe outra entrada na parte de trás da caverna. É
pequena, mas a senhora deve conseguir passar por ali.
Cruzo o olhar com o de Pallas. Ele anui. Enquanto os homens enfrentam
os caminhantes-das-trevas, entrarei sozinha na caverna.
– Entendido.
– Tem a certeza de que não deseja que a acompanhe? – murmura o
capitão.
Se ele me acompanhar, muito provavelmente acabará morto. Zéfiro pode
hesitar em acabar com a minha vida, mas não com a de um espectro.
– Sim, tenho. Se eu não regressar ao fim de uma hora, pegue nos seus
homens e fujam. – Ou saio da caverna com Bóreas, ou não saio de todo.
– Não a abandonaremos, minha senhora.
– Sou a vossa rainha, e esta é a minha derradeira ordem, capitão.
Estamos a perder tempo.
A expressão de Pallas mostra descontentamento, mas dá o sinal. Vamos
avançar.
Rastejo pela orla da floresta, resguardada pela escuridão, até avistar a
traseira da gruta. Aguardo. Antes de alcançar aquele sítio, esvaziei a minha
aljava de flechas, abatendo todos os caminhantes-das-trevas que se
atravessaram no caminho. Felizmente, um dos homens emprestou-me o seu
punhal. Não sou tão hábil com lâminas como sou com um arco, mas é
melhor do que entrar naquele antro de mãos vazias.
Não demora. O silêncio é profundo, mas estilhaça-se num único instante.
Seis, sete, oito gritos lancinantes cortam o ar. Outro grito faz eriçar os
pelos dos meus braços, um som agudo e estridente que contém violência. O
berro de Pallas perde-se no ruído do combate. Conto para trás a partir de
dez na minha mente, e depois parto.
Passo as mãos ao longo da superfície lisa da rocha em busca de qualquer
abertura que possa encontrar. Um baque surdo à minha direita. Uma seta
que não acertou no alvo. Sigo em frente, apalpando em baixo e em cima, até
que sinto um vazio – uma fissura na parede.
Forço-me a entrar no comprido e estreito espaço. Raspo ombros e costas
contra a pedra. Outro empurrão forte, e uma fenda de escuridão mais
profunda pulsa à frente. Esticando o braço, fico aliviada ao ver que a
abertura conduz a uma grande câmara. Há uma luz a piscar à frente, talvez
uma lamparina ou uma tocha.
Encostando os dedos enluvados à parede fresca e húmida, acompanho o
túnel numa descida pouco profunda. O meu coração acelera à medida que
as minhas passadas suaves ecoam no espaço. O caminho torna-se mais
íngreme. Desce numa espiral sem fim.
Vem-me ao pensamento sangue, ossos partidos e olhar vazio, Bóreas ido,
Bóreas morto, Bóreas desmembrado, Bóreas em sofrimento. A bílis sobe-
me à garganta. Os meus pés começam a arrastar-se, e tenho de parar e
respirar até os tremores passarem, esfregando o suor que me escorre pelo
cabelo.
Mas a luz chama-me e o ar investe contra mim, assinalando uma
abertura que existirá além da vista. Apresso o passo, viro uma esquina e
entro num pequeno recinto iluminado por uma tocha tremeluzente.
Está um corpo prostrado no chão.
Bóreas: olhos fechados, pele baça. O cabelo emaranhado, coberto de
sangue. A sua pobre cara, quase irreconhecível. Nada mais do que uma pele
inchada e inflamada, escurecida pelo sangue e pelas sombras.
Nem sequer é o pior. Arquejo ao presenciar as múltiplas flechas que se
projetam do seu corpo. Tem os dedos dobrados em ângulos estranhos, como
se cada um deles tivesse sido quebrado individualmente.
Não se mexe.
Os meus joelhos soçobram, desmorona-se um pedaço do meu peito. A
minha visão escurece. Ele não pode estar morto.
– Bóreas... – Vacila a minha voz enquanto os olhos ficam húmidos. – Por
favor, acorda. Por favor. – Afago a face inchada com um toque gentil, beijo-
lhe os lábios fracos. Respiração na minha boca… a dele.
Está vivo.
Pedaços de mim desfazem-se e caem, mas eu não me quebro. O que
tenho de fazer? Fugir. Matar Zéfiro. Como é que se derrota um deus?
– Wren? – Entreabre um olho. Está integralmente negro.
– Estou aqui – sussurro, afastando os cabelos ensanguentados que se
colam à sua cara. Tremem-me as mãos. Faço-as acalmar-se. – Vou tirar-te
daqui.
– Não. – Agarra-me na mão, apesar de ter os dedos partidos, apertando-a
com tanta força que me surpreende que os meus próprios ossos não se
quebrem. As pontas das suas garras curvas espetam-se na minha pele. –
Tens de te ir embora. O Zéfiro está aqui. Ele pode… fazer-te mal.
Zéfiro já me fez mal da única forma que me magoa.
– Não te abandono.
– Tens de ir.
– Não farei nada disso. Para de discutir comigo. Já devias saber que é
uma empreitada fútil.
– Mulher casmurra – solta, cada palavra dita com um som dilacerante.
– Tu é que casaste comigo.
– Sim. – Temporariamente, o torpor abandona-lhe a vista. – E não me
arrependi nem um segundo.
Não é o momento de me desfazer numa poça de sentimentos. Que ele
seja capaz de admitir esta verdade… é a maior dádiva que podia receber da
pessoa sem a qual não terei uma vida.
– Consegues pôr-te de pé? – Estou demasiado exausta para o carregar,
mas se conseguir apoiar-se na parede, encontraremos a saída.
– Wren, ouve-me. O Zéfiro não pode deitar-te as mãos. Foge. Afasta-te
para longe, o mais rápido que consigas. Quando isto acabar, vou à tua
procura. Juro. Mas preciso de saber que estás a salvo.
Calmamente, limpo-lhe o maxilar sujo, embora nunca tenha sentido tanta
vontade de bater em alguém tão idiota.
– Acreditas mesmo que te vou abandonar, marido? Se calhar, sempre foi
esse o teu plano.
– Raios te partam, mulher. Não vês como te amo? Isto não te chega para
satisfazer o meu pedido? – Procura sentar-se, mas a sua expressão contrai-
se de dor. O tom negro dos seus olhos brilha sobre o rosto pálido. – Por
favor. Pela minha própria sanidade.
Afasto a mão, com a boca aberta.
– Não podes falar assim quando estou a tentar salvar-te a pele. –
Pergunto-me se ele fala a sério. Deve estar a delirar. Provavelmente, é
resultado de uma grande perda de sangue. – Não discutamos. Levanta-te.
Vamos embora. – Puxo-lhe o braço.
– Um sentimento realmente adorável – diz uma voz vinda da escuridão
–, mas é tarde de mais, Wren.
O Vento Oeste desgarra-se das sombras. Nunca o vi tão bem arranjado,
mas aqui, agora, parece que alguém lhe esmurrou a cara com gosto.
Aqueles caracóis rebeldes caem flácidos e cheios de suor. Uma nódoa
negra cobre-lhe a maçã da cara como uma mazela, tem o olho direito
inchado e fechado. Quanto à túnica, encontra-se rasgada, e a pele exposta
apresenta-se cheia de crostas e sangue.
Coloco-me à frente do meu marido, apesar do praguejar estremunhado
de Bóreas, com a mão enrolada no punhal. Se Zéfiro quer atacar o irmão,
terá de me arrancar daqui. As minhas mãos contorcem-se, ansiosas pela
luta.
– Ainda podes mudar de ideias – rosno. – Tomar a opção acertada.
Deixar-nos partir sem problemas. Já causaste imensos estragos esta noite.
Não sei porque imaginei que o Vento Oeste fosse bonito. Está podre até
ao âmago. Tem um coração negro, imundo. Como é que não percebi isso?
Estava tão cega, tão cega.
– Não tínhamos de chegar a este ponto – responde. – Abordei o Bóreas
com um pedido razoável. Se ele tivesse concordado em banir o inverno que
se intromete nas minhas terras, não nos encontraríamos nesta situação.
– Duvido. Os egoístas nunca se dão por satisfeitos.
Zéfiro remexe-se, pousando os dedos descontraidamente sobre o punhal
que traz à cintura. Onde está o arco que nunca o abandona? Talvez o seu
poder se tenha esgotado, impedindo-o de invocar a arma.
– Tudo foi sempre tão fácil para o meu irmão. Bóreas, o Vento Norte, o
mais velho dos filhos do nosso pai. – Os dentes reluzem com um brilho
branco. – Não deveria ser punido por não assumir a responsabilidade dos
seus atos?
– Isso dá-te justificação para arruinar a vida dele? Ele… – Não. Não
descreverei a forma como Bóreas foi destruído por essa perda. Zéfiro não
merece tal explicação, e provavelmente nem sequer se importa. – És um
mero sacana mimado, mesquinho e ciumento. Pelos deuses, espero que um
dia experimentes o que ele sofre em igual medida. E espero que isso te
destrua.
Ele traça o contorno do cabo do punhal com a ponta do dedo.
– Que coisa encantadora de se dizer. – Mas não se mostra incomodado
pelo meu tom de voz.
– Deixa-nos ir – peço – e prometo que o teu reino será restaurado, tal
como estava. – Enquanto falo, a minha mente já segue em frente, medindo
possíveis soluções. Conseguiríamos passar por ele? Não me devia ter
livrado de Pallas e dos seus homens. Mas não queria a morte deles nas
minhas mãos.
– Lamento, mas a oportunidade de reconciliação já passou. – Enrola a
mão no punho da faca. – Entrega a tua lança, Bóreas, e a tua mulher sairá
daqui intocada.
– Não lha dês – riposto, o meu olhar nunca se afastando do Vento Oeste.
Zéfiro ignora-me. Mantém-se atento ao irmão, prostrado a seus pés.
– Como é que fazemos? O teu poder é tão importante que sacrificarias a
segurança da tua esposa?
– Não lhe dês ouvidos. Sou capaz de me proteger.
Faz um ar triste perante a minha relutância em cooperar.
– Fizeste a tua escolha, então.
Uma trepadeira verde estica-se, enrola-se à volta da minha garganta e
puxa-me contra a parede.
Bóreas ruge, lutando para se sentar. O rosto fica branco com o
movimento, e cambaleia, tombando de costas, ofegante. As garras nas
pontas dos seus dedos quebrados alongam-se e enrolam-se. Ao enfraquecer,
o caminhante-das-trevas dentro de si começa a manifestar-se.
O Vento Oeste vê-o debater-se com uma expressão fria.
– A tua lança ou a vida da tua esposa. Escolhe, ou farei a escolha por ti.
– És desprezível – cuspo. Lágrimas quentes e furiosas turvam-me a
visão. Seria a mais cruel ironia. Morrer assim, depois de ter descoberto uma
vida que valia a pena ter.
– Espera.
Um sibilar fraco e rasteiro, onde Bóreas jaz.
Algo começa a formar-se-lhe no peito: uma haste de madeira lisa com
ponta de pedra.
– Toma – diz o Rei do Gelo, engasgado. Agarra na lança com os dedos
rachados e estende-a, respiração húmida e irregular, mão a contorcer-se de
dor. – Pega. Solta a Wren.
– Não. – Debato-me contra as amarras, mas outra trepadeira envolve-me
o pulso e prende-me ali. – Vai matar-te!
Zéfiro lança o olhar ao alto.
– Quantas vezes tenho de dizer? – murmura. – Não desejo a morte do
meu irmão. Só quero restabelecer o equilíbrio neste mundo. Restará um
pouco do poder de Bóreas, não tenhas receio.
Fico quieta.
– Como assim?
O Vento Oeste encara o Vento Norte com expetativa. Mas Bóreas
contorce-se quando a criatura começa a emergir e as sombras crescem,
escurecendo a pele pálida. Ergue-se do chão com um grito furioso.
Presencio a transformação com desânimo amargurado.
– Bóreas – murmuro. Se se transformar por completo, receio que jamais
reverta, fraco como está.
Tomba no chão, dentes cerrados, olhos negros esbugalhados.
Sempre atento ao irmão, Zéfiro explica:
– O nosso poder está ligado à nossa imortalidade. Abdicar do nosso
poder é escolher uma vida mortal.
Tento, mas sou incapaz de conceber esta informação. Sempre pensei que
o poder e a imortalidade estavam separados. Se estiverem ligados…
Não vejo medo no olhar dele, quando Bóreas oferece a lança, o
repositório do seu poder, a fonte da sua imortalidade, a Zéfiro. Ele odiará
uma existência mundana e mortal. A que é que se irá agarrar, quando ficar
sem esse poder?
– Não – suplico. – Pensa… pensa no que estás a fazer.
A voz, quando se pronuncia, é gutural.
– A escolha é minha, Wren. Estou convicto do que faço.
– Mas causará um desequilíbrio geral. – A terra precisa do inverno, tal
como precisa da primavera. Se ele perder este poder, quem é que controlará
a neve, o frio intenso?
– Não te preocupes, Wren – diz Zéfiro, com os olhos postos na arma. –
A terra é mais velha do que os mais antigos deuses, tendo concedido as suas
dádivas aos divinos há muito tempo. As estações do ano retomarão o ciclo
normal no teu reino: um breve inverno, e depois um descanso, um novo
crescimento.
O Vento Oeste está tão concentrado na lança que não repara que libertou
as amarras que me prendem. As trepadeiras ficaram soltas. Os meus pés
deslizam para o chão enquanto a ponta da lança brilha com intensidade
crescente.
O caminhante-das-trevas que invade Bóreas começa a desvanecer-se, as
sombras a afastar-se gradualmente da sua pele. Os olhos do meu marido,
que recuperaram um puro azul, observam-me quando Zéfiro pega na arma,
as defesas caídas. E eu percebo o que ele quer que eu faça.
Assim que Zéfiro fecha a mão à volta da lança, esta desaparece e
reaparece aos meus pés. Eu agarro-a. Um impulso elétrico percorre o meu
corpo, inundando os meus ossos, rasgando as minhas veias. A ponta de
pedra ilumina-se, e os olhos de Zéfiro arregalam-se. Arreganho os meus
dentes num rosnar intenso.
– Tu, Zéfiro do Ocidente – cuspo –, és uma besta.
A luz flamejante inunda o pequeno espaço enquanto, com um poderoso
impulso, faço oscilar a arma crepitante num arco largo.
O gelo dispara-se da ponta, mirando o peito de Zéfiro. Ele voa para trás
ante o impacto, e choca contra a parede com tal força que esta se parte.
Outro tremor abala a caverna. O chão abana, enquanto a lança se desintegra
nas minhas mãos. Todo aquele poder torna-se mera poeira. E quando o
primeiro pedaço de rocha cai do alto, lanço-me em direção a Bóreas,
protegendo-lhe o corpo com o meu, e sustenho o peso da caverna que
desaba sobre mim.
43

A mor (subst.): um afeto profundamente terno e apaixonado por outra


pessoa. Uma atração que envolve desejo sexual. Aquele que se ama de
forma romântica. Dedicação eterna.
44

S oa uma batida na minha porta, um toc-toc rápido, agudo e urgente.


– Minha senhora?
Sento-me enrolada na cadeira, cabeça encostada à janela, a assistir ao
dissipar das nuvens ante o nascer do sol. Tenho passado assim as últimas
manhãs. O meu bafo mancha o vidro fosco. Condensação quente, que se
espalha, que se evapora em poucos instantes, porque nada dura – incluindo
os muros que ergui à volta do meu coração.
Três dias se passaram desde que encontrei Bóreas naquela cave, e ainda
não lhe fiz uma visita.
A memória daquele lugar sombrio assombra-me. Bóreas, rosto e corpo
feridos e espancados. E o braço e a clavícula partidos, e as lacerações na
pele, e o horror das suas mãos, e as flechas cravadas nas coxas, nos braços.
E depois, a presença de Zéfiro, a expressão fria enquanto o observava.
Irmão, mentiroso, traidor.
O meu estômago revolta-se, perigosamente. Fecho os olhos até que a
tontura passe e encosto a testa ao vidro gelado.
Sou uma cobarde.
Um toque no braço desperta-me a atenção para a mão ali pousada. Diz
Orla, com os olhos raiados de preocupação:
– Minha senhora? Ouviu-me chamar?
– Desculpa, Orla. O que queres?
A minha amiga sustém a minha mão entre as suas, como se a quisesse
abrigar, o calor da sua pele translúcida aquecendo o frio da minha.
– Está triste.
É verdade. Uma parte do meu coração morreu naquela cave.
– Orla – murmuro. – Preciso de ajuda.
– Claro que precisa – diz, bondosamente, como se antecipasse desde
sempre este pedido. – Não há vergonha nenhuma em pedir.
– Não sei o que faça. Estou confusa.
Após o desmoronamento da gruta, Pallas e os seus homens tiraram-nos,
a mim, Bóreas e Zéfiro, dos destroços. Levaram-me até Alba, que me curou
a perna e o pulso partidos. A Zéfiro, atiraram-no para as celas subterrâneas
da cidadela. Ontem, Orla informou-me que Bóreas libertou o irmão, por
algum motivo. A meu ver, devia ter posto um fim à vida do miserável.
As coisas que Zéfiro fez a Bóreas naquela caverna… Os horrores não
desaparecerão. Sempre que fecho os olhos, revivo aquele sofrimento, a
escolha que fez: o seu poder ou a minha vida. E ele escolheu-me a mim.
Nem sequer hesitou.
Orla limpa-me a cara com um lenço.
– Ama o senhor.
As palavras dela quase me interrompem o coração. Mas não posso negá-
lo.
– Sim.
– Bem – pronuncia-se como uma mãe e, mesmo na minha angústia, sinto
uma onda de carinho passar por mim. – Então tem de lhe dizer.
A mera ideia faz-me querer tomar uma atitude precipitada, como, oh,
atirar-me da janela.
– Não posso dizer nada.
– E porque não?
– Porque eu sou a razão pela qual perdeu o seu poder. – Nem vou pensar
na declaração que me fez na caverna. Bóreas teria dito aquilo que julgava
que eu precisava de ouvir, só para que eu partisse. E eu teria feito o mesmo,
se estivesse no lugar dele.
– Tenho de discordar da senhora. Conheço o senhor há muito tempo. –
Sorri, e é tão gentil que quase choro. – Desde que a senhora apareceu, vi-o
ganhar vida novamente. Pode ser homem de poucas palavras, mas o que ele
sente por si é evidente.
– Talvez me tenha amado em tempos, mas agora… – A ideia golpeia-me
como um murro no coração.
Ela solta um bafo. Desconfio que seja uma gargalhada.
– Orla – riposto. – Isto não tem graça.
– Lamento. – Embora não se mostre apologética, nem um pouco. – Mas
a senhora consegue ser teimosa. E cega. Teimosa e cega. – Escapa-se um
suspiro melancólico da sua boca. – Lembra-se de quando fugiu da cidadela?
– Claro que sim. – Enquanto viva, jamais me esquecerei dessa noite.
– Quando voltou, estava muito doente. Os seus sintomas de abstinência
eram bastante graves, mas nunca vi o senhor tão dedicado. Lavava-lhe a
pele enquanto a febre subia. Dava-lhe água a beber continuamente. Não
abandonou a sua cabeceira uma única vez.
Abano a cabeça, demasiado abatida para considerar a verdade das
palavras de Orla. Bóreas não me ama. É impossível. Só lhe causei
frustração, tristezas e problemas desde que cheguei.
Queimei-lhe os cortinados.
– A senhora merece ser amada, sabia – murmura a minha aia.
A minha garganta contrai-se sobre o nó de comiseração que ali se aloja.
Sou uma lástima, sempre fui. As minhas emoções encontram-se demasiado
enoveladas, as minhas arestas demasiado ásperas. Particularmente quando
estou sóbria.
– Tentei matá-lo – saliento. – Várias vezes.
Orla nem parece reagir a esta confissão. Terá percebido deste o início?
– E?
Faço uma expressão perplexa.
– Diria que é um problema, parece-me. – Claro que é um problema. E se
eu tivesse conseguido? E se eu não tivesse percebido a tempo o erro do meu
preconceito? Teria matado o único homem que amei e…
– Respire, minha senhora. – A mão quente e suave de Orla assenta nas
minhas costas. A minha respiração vacila, quando tento acalmá-la. – As
pessoas demonstram o amor de diferentes maneiras. Acredito que, se
dissesse ao senhor o que sente, ele retribuiria em igual medida. Os vossos
corações estão unidos.
E se não o fizer? Seria humilhante.
– Falas como se o amor fosse um conceito simples. Pelo contrário, não
consigo pensar em nada mais complicado.
– Talvez seja complicado entregarmo-nos ao amor, mas o sentimento
tem de ser simples. Pense na sua irmã. Não a adora?
Sim, é verdade. Felizmente, está a salvo em Edgewood, onde
permanecerá até ter a criança – uma ocasião que não perderia por nada.
– Não é a mesma coisa.
– Não é? – contrapõe Orla. – Quer ficar escondida nos seus aposentos até
ao fim da vida?
Podia tentar.
– Minha senhora – admoesta.
Lentamente, desenrolo a minha coluna vertebral e endireito-me no
assento, lançando um olhar à minha criada, cujos olhos brilham com
sabedoria.
– Vá – murmura. – O senhor espera por si.
Essas palavras dão-me coragem para me levantar e sacudir as rugas do
meu vestido. Orla tem razão. Não me posso esconder neste quarto para
sempre. Não posso – não vou – esconder-me de todo.
A quantidade de sentinelas que guardam a ala norte aumentou para dez.
Depois da brecha, imagino que estejam relutantes em deixar o rei tão
exposto.
Pallas não está presente. Um homem mais novo, com uma barba
desgrenhada, tomou o seu lugar e informa:
– O senhor não recebe visitas a esta hora.
– Ainda bem que não sou uma visita – digo-lhe sem rodeios. – Agora
sai-me da frente antes que eu te espete com um garfo. Prometo que irá doer.
Os homens trocam um olhar de preocupação, como se se interrogassem
se estaria muito perturbada após tantos dias encerrada no quarto. Sim, estou
muito perturbada.
Desviam-se, dando-me passagem. Duas pulsações, é a hesitação que me
permito.
Morte ao medo.
Dominando os nervos, avanço para os aposentos do rei.
Bóreas põe-se de pé num pulo.
– O que significa isto…
Pisca os olhos, e desvanece-se a fúria que lhe franzia a expressão. Um
livro escorrega das suas mãos para a poltrona que ele acabou de desocupar.
– Wren.
A luz laranja pode suavizar-lhe as feições, mas não apaga a visão
horrível que tenho diante de mim. Agora, é um homem, e não um deus. As
nódoas negras e o inchaço no seu rosto, a palidez cinzenta da sua pele
tornada mortal, recordam o quanto sofreu para garantir a minha segurança,
e eu não posso fingir indiferença. O que fiz eu? Eu sou a parva que se
apaixonou pelo meu inimigo.
O Rei do Gelo não tem coração de gelo nem coração de pedra. Bate
como qualquer outro. Pode estar ferido e cansado, mas prefiro pensar que
sara. Prefiro pensar que sou a razão dessa cura.
Bóreas pigarreia. Usa culotes e uma camisola branca larga que lhe cai até
meio da coxa.
– Sentas-te? – Faz um gesto desajeitado para uma poltrona vazia.
Como se conseguisse sentar-me numa situação destas.
– Fico de pé.
Avança um passo na minha direção, mas para. Os tufos de cabelo
espetam-se em todas as direções, que tenta alisar numa rara demonstração
de vergonha.
– Como estás?
– Bem. – Uma mentira de proporções gigantescas. Senti a falta do meu
marido nestes últimos três dias. Agora estou aqui. Então, porque é que
ainda sinto a falta dele?
Fica calado. A pensar, talvez, numa forma de transpor a nossa separação.
Falamos em simultâneo.
– Será que tu…
– Estive a pensar…
Cruzo os braços ao peito, arrepiada apesar do calor da lareira.
– Começa tu.
– Não – pede ele. – Tu, primeiro.
É sempre generoso para comigo. Cheio de consideração e simpatia.
– Isto foi um erro. – Acorro para a porta. – Desculpa ter-te incomodado.
Assim que toco no puxador da porta, Bóreas interceta-me, envolve a
minha mão na sua.
– Por favor. – A agonia naquela voz traz-me lágrimas aos olhos. – Não te
vás embora.
Mas o que quer dizer é: não me abandones.
Olho fixamente para as nossas mãos. Não vejo sombras a escurecer a sua
pele, e as suas unhas são rombas, humanas. O toque – terno, firme – desliza
sobre mim como água transportada pela correnteza.
Acumula-se uma pressão atrás dos meus olhos, um ardor quente. Tenho
sido forte toda a minha vida, mas não consigo ser forte agora. Nunca
ninguém pôs as minhas necessidades à frente das suas, como se eu fosse
digna de tal coisa.
– Sinto muito. – Um soluço escapa-se de mim, um som fraturante que
rapidamente se transforma em histeria. – Eu queria ver-te. Não podia…
Pensei…
Bóreas aperta-me os dedos. Sinto-lhe a vontade de me puxar contra si.
Gostava que o fizesse, raios o partam.
Fitando-o por entre pestanas húmidas, sussurro:
– Magoaram-te. – Mas é mais do que isso, não é? Eu magoei-o. Zéfiro
descobriu uma forma de entrar na cidadela por minha causa. Fui eu quem o
informou do buraco na parede. Fui eu quem lhe pediu o tónico para dormir.
Fui eu quem colheu as papoilas. Eu. Sempre o fiz, desde o início.
A visão daquele olho direito lesionado desperta-me nova onda de
vergonha e lágrimas correm-me pelo rosto.
– Os ossos saram – sussurra Bóreas. – Os hematomas vão desaparecer.
Os remédios da Alba são fortes, especialmente para mortais.
E as feridas internas?
– Quem me dera matar Zéfiro pelo que fez.
Ele declara, com uma calma contenção:
– Isso não será necessário. Já tratei do meu irmão. Regressou ao seu
reino e está impedido de entrar nas Terras Mortas e no Gris para todo o
sempre. Posso já não ser um deus, mas uns velhos conhecidos ficaram
felizes em fazer-me um favor. Logo aprenderá as consequências dos seus
atos. – Um pequeno sorriso satisfeito desperta a minha curiosidade.
– O que pretendes fazer? – digo, afoita.
– Digamos que o Zéfiro passará um período interessante a ambientar-se à
sua nova pele.
Não faço ideia do que isso possa significar, mas seja qual for a maldição
que lançou sobre o irmão, é bem merecida.
– E quanto à Sombra? Aos caminhantes-das-trevas? – Como é que o
sacrifício dele afetará quem se liga a esta terra? – E tu? Quero dizer, eras
um caminhante-das-trevas, e agora…
Anui, como se aguardasse estas perguntas.
– A Sombra foi restaurada ao seu equilíbrio natural. Já não precisará de
sangue mortal para manter a sua força. Quanto aos caminhantes-das-trevas,
foram purificados, e as suas almas regressaram ao Les numa forma pura.
Quanto a mim… – A sua garganta treme. – Pelo que sei, a minha alma foi
purgada quando escolhi um futuro contigo. Quando me expurguei de toda a
angústia e tristeza.
– Mas… – Não pode ser assim tão fácil. E os efeitos desta mudança?
Haverá um grande cataclismo? Serei eu abatida pelos deuses? – Tem de
haver algo mais, algo mais…
A sua expressão suaviza-se e fica preocupada.
– Wren.
Os meus joelhos vacilam ao ouvir o meu nome nos seus lábios,
pronunciados com tanto carinho.
– É culpa minha. Não me perdoo.
– Não tens de te perdoar. – Puxa-me contra o seu peito, depois pousa as
mãos nas minhas ancas, fixando-me ali. – Eu é que te perdoo. O que quer
que tenhas feito, eu perdoo-te.
– Não. – Abano a cabeça e afasto-me dele. – Isto está errado. Tu…
abdicaste da tua imortalidade. Por uma pessoa como eu? – Porque é que não
consigo recuperar o fôlego? – Zéfiro podia ter-te matado. Não tinhas
proteção, nem meios para te defenderes. – O meu sangue fica gelado ao
contemplar as devastadoras hipóteses. O que poderia ter acontecido.
– Wren. – Bóreas levanta a minha mão e encosta-a à sua face inchada,
com os olhos fechados, trespassado por uma expressão de agonia silenciosa.
– Eu faria tudo novamente, desistiria de tudo, só para passar mais um dia na
tua companhia.
É oficial: o Vento Norte endoideceu.
– Não sabes do que estás a falar. Estás com um traumatismo craniano. –
Sim, isso explica tudo. – O teu poder desvaneceu-se. Não vai voltar. – Bem
como a eternidade que lhe foi prometida pelo seu sangue imortal. –
Desististe dele como se não fosse nada.
– Para que preciso eu de poder, quando tenho uma vida recheada? Tu
significas tudo para mim – sussurra roucamente. – A minha linda, teimosa e
atenciosa mulher, que eu amo.
– O quê? – Ofego à procura de ar. – Não podes…
Ele acerca-se mais um pouco.
– Para de falar, que mulher frustrante. – Encosta o polegar ao meu
queixo, inclinando-o para cima, para me obrigar a ir ao encontro do seu
olhar. – Achas que te menti, ali na cave?
– Sim, acho que sim.
Ele ri-se de forma carinhosa.
– Não acreditas em mim? Faz sentido.
– Há uma hipótese de revertermos isto, certo? Se apelasses ao Concílio
dos Deuses para ter o poder de volta, talvez to devolvessem. – Se o poder
dele decorre do ciclo da natureza, não pode ter desaparecido realmente. –
Podemos ir agora mesmo…
Os lábios dele roçam os meus, e arrebatam-me o fim da frase. Estou já a
arquear-me para o seu toque, envolvo os braços no pescoço dele, faminta
por aquele sabor enquanto a sua língua me saqueia a boca. Finalmente, o
beijo dissolve-se numa dança lenta, terna e doce, e o seu abraço afrouxa o
suficiente para me cobrir o rosto com as manápulas. Bóreas interrompe o
beijo, embora os nossos lábios se colem momentaneamente.
– Qual é o teu plano? – murmuro, perscrutando-lhe o olhar. – Beijares-
me tanto que eu esqueça a questão do teu poder?
– Funcionou?
O meu peito contrai-se.
– Bóreas.
– Preciso que me dês ouvidos, Wren. És capaz de fazer isso?
Ele pede com tanta gentileza… aceno, sombriamente.
– Tu – diz, agarrando-me no queixo antes que eu possa desviar o olhar –
és a pessoa mais importante da minha vida. Não há nada que eu não faça
por ti. Conquistaria cidades em teu nome. Arrasaria o mundo e depositaria
todos os maiores tesouros a teus pés. Atravessaria reinos, derrubaria
impérios e alteraria o tempo, tudo pela promessa de uma eternidade passada
ao teu lado.
Uma lágrima escorrega pelo meu rosto, que ele limpa com a ponta do
polegar.
– Não quero o meu poder. – Aquele tom de voz não admite
contrariedades. – Quero-te a ti. E nada mais. Uma vida contigo, uma vida
inteira, não apenas um piscar de olho na eternidade. A tua mente, o teu
corpo, a tua confiança, o teu riso, o teu coração cuidadosamente guardado.
Eu quero tudo. Não aceitarei nada menos que isso.
Ao ouvir isto, a minha garganta estremece. Não temerei o que ele me
oferece sem preço. Não temerei o coração dele, tal como não temerei o
meu.
– Parece que estás convencido de que te darei tudo isso.
– Não darás? – Ao ver-me franzir as sobrancelhas, o seu riso quente e
profundo enrola-se nos meus ossos, e ele abraça-me, enterrando a mão no
meu cabelo, envolvendo a outra na minha cintura. O azul dos seus olhos
deslumbra-me.
– Diz – murmura ele. – Não tenhas receio.
– E se eu não quiser?
– Terei de te convencer do contrário. – A mão pousada na minha cintura
desliza para a curva do meu traseiro, e aperta-o de forma brincalhona. –
Aceitarias uma fatia de bolo?
Ele conhece-me demasiado bem.
– Está bem, que se lixe. Sim, eu amo-te – sibilo. – Era o que querias
ouvir? Já estás contente? Como te atreves, fazer-me apaixonar por ti? –
Esmurro o ombro dele. Ele agarra na minha mão, leva-a aos lábios e beija
os nós dos dedos, depois a minha têmpora, a minha face, a minha boca. Aí
chegado, afunda-se, provocando a minha língua com uma facilidade
lânguida.
Quando nos separamos, enterro o meu rosto naquele peito, com os olhos
fechados.
– Amo-te. – Algo se desprende dentro de mim ao pronunciar estas
palavras, por isso volto a dizê-las. – Amo-te. Assusta-me o quanto te amo. –
Bóreas é um fogo na lareira, um calor na minha alma, uma paz finalmente
encontrada.
É o meu lar. O meu lar.
– Pronto – murmura contra a minha orelha. – Foi assim tão difícil?
Que sacana insuportável.
– Ainda te posso apunhalar – aviso. Mas aproximo-me mais dele. Não
aceitarei novamente que haja sequer um pequeno intervalo entre nós. – O
que é que isto significa?
– Significa – diz, acariciando-me o pescoço – que um dia envelhecerás,
tal como eu. Significa que as estações vão mudar, que o inverno vai passar e
que os rios vão voltar a correr. Significa que podemos construir uma vida
juntos, e acarinhá-la até ao fim dos nossos dias.
– Pensei que já estávamos a construir uma vida. – Encaro-o com um
sorriso de viés, aquecida pela adoração no seu olhar, pela ternura. Ele já não
é imortal, mas para mim, Bóreas será sempre o Vento Norte, o Rei do Gelo,
o homem que amo e de quem jamais me separarei.
Epílogo
(No qual o Vento Norte tenta fazer um bolo)

B óreasE porque
nunca tinha feito um bolo.
o faria? Ele era um deus. Era, é a palavra pertinente.
Durante cinco milénios, vivera para uma única tarefa: invocar as neves, os
ventos, o frio. Mas só nos últimos três anos é que aprendeu o que
significava viver como um mortal e amar – como nunca tinha amado antes
– uma mulher com um espírito vivaz, cujo coração nunca vacilou.
A questão é que, enquanto deus, não precisava de cozinhar. Silas
cozinhava. A criadagem cuidava da cidadela e dos terrenos. Os estribeiros
cuidavam dos cavalos. Esta era a ordem natural das coisas.
Mas o dia de hoje era especial. Era o aniversário de Wren. Bóreas
deixara a mulher a dormir na cama, enquanto o amanhecer aquecia os
campos ricos de relva. O inverno libertara o jugo implacável sobre o Gris.
A neve degelara, o ar perdera o travo frio. Fizera uma escolha, aquele deus:
ou o poder ou o amor. Morte eterna ou uma vida breve, mas gratificante.
Temia tanto a perda de controlo, mas não precisava de se preocupar.
Partilhar uma vida com Wren era suficiente. Mais do que suficiente.
Levantara-se cedo porque precisava do dia. A esta hora, a cozinha estava
deserta, o ar tingido de fermento. A luz do sol espalhava um tom dourado
sobre as bancadas de madeira.
Há poucos dias, quando abordara Silas e lhe explicara as suas intenções,
este explicara-lhe calmamente o processo em pormenor. De seguida, reunira
os ingredientes necessários: farinha, ovos, manteiga, leite, açúcar, fermento,
baunilha, sal.
Bóreas encarara os ingredientes como se fossem os seus inimigos da
guerra.
Primeiro passo: juntar duas chávenas de farinha. Silas terá indicado que
chávena medidora devia utilizar, mas não se lembrava, raios o partam. No
final, escolheu a maior das quatro disponíveis, que tinha, mais ou menos, o
tamanho de uma maçã. Parecia ser a quantidade adequada.
No entanto, quando a farinha caiu na tigela de vidro, transbordou,
colorindo o ar e cobrindo a parte da frente das suas roupas. Bóreas olhou de
soslaio para a porcaria que fizera.
– Meu senhor, posso oferecer algumas sugestões?
Levantou a cabeça. Silas encontrava-se junto à entrada, encarando o
resultado com preocupação. Desde que a primavera se tornara uma presença
semipermanente nas Terras Mortas, a maioria do pessoal trocara as pesadas
calças de lã por meias finas e túnicas leves. Tentando ser progressista, ele
revogara a sentença que obrigava a criadagem a servi-lo. Muitos haviam
regressado a Neumovos para viver, em contentamento, uma vida após a
morte, mas, espantosamente, outros permaneceram, incluindo Orla e Silas,
alegando que, sem uma ocupação, ficariam entediados.
Notou o que o cozinheiro trazia nas mãos: um avental.
– Não preciso disso – afirmou sem dúvidas.
– Meu senhor, sugiro fortemente…
– Silas.
O homem pendurou o avental num gancho de parede próximo, com os
lábios cerrados.
– Precisa de ajuda?
Bóreas esfregou as mãos cobertas de farinha nas calças.
– Sou perfeitamente capaz de conquistar este bolo.
Silas observou a superfície da bancada, cheia de farinha, com uma
expressão condoída.
– Meu senhor, não sei se um bolo pode ser, digamos… conquistado.
– Tenho tudo sob controlo, Silas. Este bolo há de render-se a mim. Vais
ver.
O homem ofereceu-lhe um sorriso trémulo.
– Claro, meu senhor. Se tem a certeza. – Virou-se para partir.
– Espera.
Silas aguardou à entrada.
– Quantos ovos devo usar?
– Meu senhor…
– Quantos?
Ele suspirou.
– Dois. E não bata as claras em excesso. – Pegou numa maçã quando ia a
sair, deixando Bóreas a pensar no que significava «bater em excesso».
Silas também lhe mostrara isto: como partir um ovo. Foi por isso que,
com gestos descontraídos, embateu com o ovo contra a tigela, e este se
estilhaçou na sua mão. Pedaços de casca deslizaram para dentro das gemas
amarelas, troçando da sua falta de jeito.
A manhã passou demasiado depressa para Bóreas. Depois de deitar a
massa irregular numa forma, colocou-a no forno. Wren já devia estar
acordada, mas o filho mantinha-a ocupada durante as manhãs. E jamais se
lembraria de o procurar na cozinha.
Passado algum tempo, o ar começou a soltar um aroma quase agradável.
Quando o sino tocou, Bóreas tirou o bolo do forno.
O seu estômago contraiu-se. Parecia uma cabeça queimada, cheia de
grumos. Partindo um pedaço do bolo amarelo e quente, enfiou-o boca e
cuspiu-o de imediato. Não era comestível. Porque é que lhe sabia a sal? Ele
tinha adicionado duas chávenas de açúcar, tal como a receita pedia.
Tinha de começar de novo.
A sua segunda tentativa ia incendiando a cozinha. Silas apareceu à porta,
respirando com dificuldade. Apreciou a cena: o fumo a sair do forno, a
farinha espalhada pelas bancadas, pelo chão, pelas paredes, até por partes
do teto, o cabelo preto de Bóreas já cheio de cinzas. Com uma voz tímida,
perguntou:
– Meu senhor?
Bóreas espreitou pela janela, da sua posição junto ao lava-loiça.
– Não te preocupes, Silas. – Havia de conquistar este bolo nem que fosse
a última coisa que fizesse.
Pela terceira vez, misturou os ingredientes – de forma bastante agressiva
– e despejou a massa numa forma, colocando-a no forno, com o lume
brando. Verificou o bolo de dez em dez minutos, mais ou menos, até o ar
cheirar ligeiramente a doce.
Retirando o tacho do forno, Bóreas examinou a comida quente, parecida
com pão, apalpando a textura esponjosa. Parecia mesmo um bolo. Não era
nem de longe tão encaroçado como o seu antecessor, nem tão queimado.
A tensão em redor da vista e da boca suavizou-se num alívio. Demorara
o dia inteiro, mas conseguira. Ele, Bóreas, o Vento Norte, fizera um bolo. A
doce mistura fora uma adversária à altura, mas, no final, foi ele o vencedor.
Agora era só decorar.
As flores frescas dispostas num vaso próximo chamaram-lhe a atenção.
Perfeitas. Bóreas arrancou as pétalas brancas dos caules, e espalhou-as por
cima do prato. Pronto. Wren gostava de flores. Portanto, ela iria gostar deste
bolo.
– Orla – chamou.
Esta manifestou-se à entrada da porta.
– Sim, meu senhor.
– Informa por favor os criados que a Wren e eu iremos começar o jantar
em breve. E por favor, coloca este bolo na mesa.
A velhota encarou-o com curiosidade, enquanto levantava o prato com o
bolo decorado.
– Meu senhor, fez isto para a senhora Wren?
– Fiz, mas queria que fosse uma surpresa.
– Com certeza. – O olhar dela cintilou, desaparecendo no corredor num
farfalhar de saias.
Como se aproximava a hora de jantar, não teve tempo de se compor. Foi,
portanto, à procura da esposa.
Encontrou Wren a descer a escadaria central, com o filho nos braços. Ela
usava um vestido verde simples, e os brincos de pérolas que ele lhe
oferecera aquando do aniversário de casamento no mês passado. O verde
complementava o calor da sua pele morena, do cabelo negro e dos olhos
escuros. Era linda. Uma joia. Não havia uma única parte dela que Bóreas
não amasse com todo o coração.
Ela arfou ao reparar na aparência horrível dele.
– Bóreas? Mas que raio… – Ela piscou os olhos enquanto ele subia as
escadas, até ficar dois degraus abaixo dela, os olhos de ambos nivelados. –
Tens farinha no cabelo? – Tocou numa madeixa empalidecida pelo pó da
farinha.
O bebé debateu-se entre eles, procurando o pai. O sorriso de Bóreas
surgiu ao aconchegar o filho contra o peito.
– Já dormiu?
– Dormiu bastante bem. – A ironia fez-lhe covinhas na face.
Inclinando-se, beijou a boca da mulher, pousando uma mão na sua
barriga inchada, onde crescia o próximo filho de ambos. Depois, porque
tinha todo o direito de o fazer, aprofundou o beijo até deixar Wren a arfar,
com as faces coradas e os olhos brilhantes.
– Onde tens estado? – perguntou Wren. – Pensei que voltarias para a
cama.
– Andei ocupado.
Ela fez um esgar. Bóreas riu-se. Estava tudo bem no seu mundo.
– Vem. – Com o filho pousado na anca, Bóreas encaminhou Wren para a
sala de jantar. As lareiras estavam vazias, mas no outono, quando o ar
começasse a arrefecer, seriam acesas. Várias obras de arte decoravam as
paredes de pedra fria, e tapetes com padrões animavam o espaço. Na
semana passada, Elora visitara-os, juntamente com o marido e a filha, e as
duas irmãs tinham passado o dia a reorganizar a mobília. Depois dos
problemas que Wren atravessara com a irmã, Bóreas sentia-se contente por
ver que continuavam chegadas, fazendo ocasionais visitas uma à outra.
– O que é isto?
Wren estava ao lado da cadeira, com a atenção voltada para o bolo no
centro da mesa. Ela pestanejou, claramente perplexa com a visão.
– Pensei que o Silas tirara o dia de folga.
É claro que iria supor que Silas o tinha cozinhado.
– Tirou – disse ele, e algo no tom de voz terá revelado a verdade.
Levantando o olhar para ele, Wren perguntou, muito cautelosamente:
– Fizeste tu este bolo?
– Fiz.
A boca dela abriu-se, depois fechou-se. O olhar dela voltou para o doce.
– É muito… floral.
O peito dele encheu-se de orgulho.
– Efetivamente. – O epítome da primavera. A esposa passava todos os
momentos livres na estufa, muitas vezes com o filho às costas, enquanto
cuidava do jardim de flores que se expandia ano após ano.
– Nem acredito nisto. Ninguém fez um bolo para mim em toda a minha
vida.
Não era inteiramente verdade. Wren pedira a Silas para lhe fazer um
bolo, no segundo jantar, quando já eram marido e mulher. Um bolo que ela
devorara por inteiro. Uma proeza terrível, mas impressionante.
– Bem, tu nunca fizeste um bolo para mim, é o que devia ter dito –
corrigiu-se.
O olhar dele acalentou-se. A sua mão curvou-se sobre as costas de Wren
e começou a divagar. Ela arqueou uma sobrancelha, fitando o bebé pelo
canto do olho.
Com algum esforço, ele retirou a mão e depositou um beijo na testa de
Wren.
– Queres provar?
Ela sentou-se. O filho, entre os dois, espalmava as mãos gorduchas sobre
tampo da mesa. Tinha a cor de pele da mãe, mas, Bóreas notou com
orgulho, os olhos do pai. Dali a quatro meses, a família cresceria mais um
pouco.
Bóreas esperava que a segunda criança fosse menina.
– Qual é o sabor? – perguntou ela.
– Baunilha.
Wren espetou o garfo e enfiou um bocado na boca, mastigando devagar.
Bóreas deu por si empoleirado na borda da cadeira.
– É… – Ela pousou o garfo. – Interessante.
Ele endireitou-se. Interessante. Significava que era bom, certo?
– Mm. – Ela tossiu e bebeu um pouco de água. – Muito. – Sorriu.
O peito de Bóreas inchou de satisfação. Conseguira. Preparara um bolo
para a sua esposa, e ela gostava. Tinha de provar a obra-prima.
Pegando no garfo, cravou os dentes na sobremesa, levou um pedaço à
boca e engasgou-se.
Sabia a estrume.
Os olhos de Wren reluziram de gozo, e a sua boca começou a contorcer-
se. Quanto mais ele mastigava, mais forte era a vontade de vomitar. Mas
Bóreas aguentou. Depois de passar tantas horas enfiado na cozinha, este
alimento pavoroso não iria levar a sua avante. Por isso, mastigou, mastigou
e mastigou mais um pouco, formando uma pasta sobre a língua.
Quando já não conseguia suportar mais o sabor repugnante, Bóreas
cuspiu a sobremesa ofensiva para o guardanapo, enquanto o riso uivante de
Wren subia até às vigas do teto.
A mulher riu-se tanto e durante tanto tempo que as lágrimas lhe
escorreram pela cara. Bóreas não conseguiu conter-se. Também se riu. Até
o filho deles se riu, guinchando e abanando as mãos na cadeira de bebé.
– Desculpa – disse ela, sentindo o riso diminuir. Limpou os olhos
lacrimejantes, com a cor a subir-lhe às bochechas. – Tinhas um ar tão
esperançoso, e deves ter passado o dia inteiro nisto. Não queria ferir os teus
sentimentos. – Uma pausa. – Mesmo que seja o pior bolo que eu provei na
vida.
Empurrando a cadeira para trás, ajoelhou-se ao lado de Wren. Por vezes,
lembrava-se de que esta mulher o amava, que ele a amava e que a amaria
até ao fim dos seus dias. Tinham construído uma bela vida juntos. Ele
nunca mais se sentiria só.
– Nunca os feririas. – Bóreas juntou a mulher e o filho nos braços… a
sua família. – Feliz aniversário, Wren.
Agradecimentos

Entre a primeira edição independente de O Vento Norte e uma reedição


apoiada na força e no prestígio da Simon & Schuster, tem sido uma
maravilhosa experiência trabalhar com uma equipa tão dedicada. A minha
sincera gratidão a cada um de vocês.
Um agradecimento muito especial a Anthea por ter defendido esta série,
indo além do dever como editora, apaixonando-se por Wren e Bóreas tal
como eu desejava. É uma grande honra poder trabalhar com uma pessoa tão
entusiasta das minhas histórias, e estou imensamente ansiosa por
continuarmos esta senda!
A Charlotte e Jéla, pela orientação editorial que fez esta história brilhar o
mais possível: obrigada, obrigada, obrigada! Quero muito que
mantenhamos a nossa parceria.
Obrigado a Lizzie, pelos olhos de lince durante a revisão das provas,
tornando esta a mais brilhante e polida versão da narrativa.
Um enorme (ENORME!) aplauso pelo árduo esforço de Amy e Ben para
vender os direitos da série Quatro Ventos para o estrangeiro. Sempre sonhei
em ser publicada pelo mundo inteiro, e estou delirante por ver este sonho
concretizado. Muito obrigada a ambos.
Pela fabulosa capa de O Vento Norte, um agradecimento caloroso a K. D.
da Story Wrappers. Mal posso esperar por ver as capas dos próximos livros!
Obrigada, Kelly e Gabby, pela dedicação em colocar O Vento Norte no
mapa literário.
Muito obrigada a Kate, leitora-beta de uma versão preliminar, por me
proporcionar comentários muito pertinentes sobre a irmã de Wren.
Obrigada a Beth, a minha crítica pessoal, pelos comentários fantásticos,
fantásticos, como sempre.
Obrigada à minha família, pelo seu amor e apoio.
A Jon: muito obrigada por me apoiares sempre. Obrigada por me
encorajares, ajudares e incitares a continuar. Amo-te.
Por último, às minhas primeiras leitoras, que descobriram O Vento Norte
nos idos de 2022. Foi por vossa causa que tive a oportunidade de que este
livro encontrasse uma casa editorial de renome. Do fundo do coração, um
profundo obrigada pelo entusiasmo e apoio incansáveis. Estou tão grata
pela oportunidade de ganhar a vida a escrever histórias, algo que nunca
darei por garantido. São as melhores das melhores!
Table of Contents
1. Capa
2. Ficha Técnica
3. Parte 1 - Casa de Espinhos
1. 1
2. 2
3. 3
4. 4
5. 5
6. 6
7. 7
8. 8
9. 9
10. 10
11. 11
12. 12
13. 13
14. 14
15. 15
16. 16
17. 17
18. 18
19. 19
20. 20
21. 21
22. 22
23. 23
24. 24
25. 25
26. 26
4. Parte 2 - A Casa dos Sonhos
1. 27
2. 28
3. 29
4. 30
5. 31
6. 32
7. 33
8. 34
9. 35
10. 36
11. 37
12. 38
13. 39
14. 40
15. 41
16. 42
17. 43
18. 44
5. Epílogo
6. Agradecimentos

Landmarks
1. Cover
2. Title-Page
3. Table of Contents

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