Leticia S 4.5 - Lidofranci

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE CIÊNCIAS, FILOSOFIA E LETRAS DE RIBEIRÃO PRETO

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

A IMPORTÂNCIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS NA FORMAÇÃO DO PSICÓLOGO

Disciplina: Introdução às Ciências Sociais

Docente: Profª. Drª. Francirosy Campos Barbosa Ferreira

Discente: Leticia Sousa Fernandes (13734604)

RIBEIRÃO PRETO

2022
A Psicologia é, por natureza, uma ciência no campo das humanidades. Sendo assim, é

necessário realizar reflexões que vão além da discussão biomédica da doença e da cura, já que

a atuação do psicólogo abrange multifacetas e requer um olhar crítico sobre todos os aspectos

que envolvem o paciente, para que haja uma relação terapêutica harmoniosa.

Nesse sentido, um dos pilares que baseiam a sociedade contemporânea é, sem dúvidas,

o sistema capitalista. Nele, as relações interpessoais e intrapessoais são modificadas por um

meio muitas vezes coercitivo, que exige uma conduta de vida específica. Max Weber (1904)

afirma que existe um ethos, ou seja, um conjunto de costumes e hábitos, sejam eles

comportamentais (instituições, afazeres etc.) ou culturais (valores, ideais ou crenças), que são

característicos de um determinado coletivo. O summum bonum dessa “ética” é “ganhar dinheiro

e sempre mais dinheiro, no mais rigoroso resguardo de todo gozo imediato do dinheiro ganho”

(Weber, 1904, p. 46).

A lógica de lucro que rege esse sistema é opressora, tratando o ser humano em função

do ganho como finalidade de vida, e não mais o ganho em função do ser humano como meio

destinado a satisfazer suas necessidades materiais. Isso vai de encontro ao chamado

“tradicionalismo”, que aponta que o ser humano não quer, por natureza, sempre ganhar mais

dinheiro, e sim viver do modo como está habituado, ganhando o necessário para tanto.

A “ética social” da cultura capitalista inserida na sociedade trata a busca pelo lucro

como normal e desejável, influenciando culturas e crenças. Assim, se é esperado e incentivado

que, para ter sucesso na vida, é necessário abdicar de todas as tarefas que não acrescentem ao

ganho monetário, fazendo do indivíduo uma máquina que somente é movida por dinheiro. Tal

situação se mostra problemática a partir do momento em que uma sociedade adoece

lentamente, e quem se mostra afetado por essa lógica é tido como um fracasso. Desse modo,

caso o sucesso – e aqui fala-se de uma ascensão econômica – não for alcançado, a

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culpabilização atinge somente o indivíduo. A saúde psíquica e física é de suma importância

para o pleno funcionamento do organismo, mas, desde o momento em que se negligencia esses

aspectos para focar na lógica e na ética capitalista, há um adoecimento individual e coletivo.

Pregações em redes sociais são muito pautadas no sentimento de meritocracia e merecimento,

apontando que se alguém, em determinada situação, não alcançou um patamar desejado pelas

expectativas alheias, é, portanto, uma falha. Nesse aspecto, a atuação do psicólogo se faz

imprescindível para auxiliar e manejar as dificuldades de cada sujeito, oferecendo acolhimento

e, sobretudo, uma compreensão sobre os aspectos sociais que compõem o indivíduo. Um

psicólogo que sempre teve uma vida abastada, cercada pela lógica do ganho pessoal e da

meritocracia – o fazer por merecer –, não será plenamente capaz de entender as necessidades

de um paciente que tem as dores de um trabalho precarizado. É necessário, assim, formar

profissionais com o olhar crítico sobre as muitas influências sociais que exercem poder sobre

a vida individual.

Além disso, entender as muitas violências cotidianas, especialmente as vivenciadas pelo

gênero feminino, e como elas se dão são de extrema importância para a inclusão de uma visão

humanizada para o paciente. Segundo Veena Das:

A formação do sujeito como sujeito com gênero é então moldada através de transações
complexas entre a violência como momento originário e a violência que se infiltra nas
relações correntes e se torna uma espécie de atmosfera que não pode ser expelida para
“fora”. (Das, 2011, p. 15).

Neste trecho, a relação entre a violência originária e a violência cotidiana é estabelecida.

De acordo com a autora, as duas estão interligadas e formam o sujeito do gênero feminino, que

tem suas vivências pautadas nessas violências recorrentes, cotidianas. Os acontecimentos

passados, por mais que não façam parte do contexto atual vivido, ainda são constantemente

mediados pelo modo em que o mundo está organizado. É como se o passado cercasse o presente

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como uma atmosfera. Consoante a isso, as violências de gênero podem ser sentidas por muitas

mulheres, ainda que não as sofram diretamente. Veena Das (2011) afirma que uma forma de

enfrentar essa intersecção, chamada de conhecimento venenoso, é pelo conhecimento através

do sofrimento.

É fato que os paradigmas culturais dominantes constroem o eu feminino. Nessa

perspectiva, “as vidas individuais são definidas pelo contexto, mas são também geradoras de

novos contextos” (Das, 2011, p. 18). Sendo assim, é possível utilizar o mesmo exemplo do

psicólogo abastado para ilustrar a importância do contexto em que a relação terapeuta-paciente

é estabelecida. As dores femininas, em específico as de mulheres negras, não serão

compreendidas pelo profissional, ainda que do gênero feminino, se o contexto de criação diferir

muito. A subjetividade das experiências vividas de acordo com a conjuntura em que se está

inserido é substancialmente determinadora das percepções de vida de cada um. A compreensão

dos problemas e dores do outro vai para além da empatia; é preciso apreender e racionalizar as

implicações do contexto cultural, social e econômico que o indivíduo está inserido. Dessa

forma, o estudo das Ciências Sociais é imprescindível para obter uma visão de diferentes

perspectivas, podendo, assim, formar profissionais de saúde mental mais capacitados para lidar

com diferentes realidades e contextos, tornando a experiência terapêutica mais favorável a

melhoras.

Seguindo esse raciocínio, pode-se entender que a tríade gênero, classe e raça também

se conectam. A autora Helena Hirata (2014) faz a definição de dois conceitos para explicar a

relação entre gênero e trabalho: interseccionalidade e consubstancialidade. A

interseccionalidade se refere às múltiplas origens da identidade, explicitando como diferentes

marcadores sociais se sobrepõem e como eles influenciam a experiência de vida na sociedade

e nas relações interpessoais. O termo é dividido em duas categorias, estas são: estrutural e

política. A interseccionalidade estrutural é a intersecção entre raça e gênero e suas

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consequências para mulheres pretas. A interseccionalidade política, por sua vez, consiste nas

políticas feministas e antirracistas que, no fim, marginalizam e ignoram as violências sofridas

por mulheres negras.

O conceito de consubstancialidade articula o sexo com a classe social, tentando

entender como a divisão social do trabalho ocorre em três dimensões: classe, gênero e origem.

Hirata (2014), a partir de estudos sobre os trabalhos de cuidado no Brasil, França e Japão,

conclui que as cuidadoras são, em grande maioria, pobres, imigrantes e menos qualificadas.

Esse resultado reforça a ideia de que o contexto se relaciona com as vivências, e ambos são

dotados de subjetividade.

Dito isso, é importante frisar a necessidade de uma formação que apoie os profissionais

de psicologia com o intuito de incluir todas as pessoas no processo terapêutico, para que sejam

compreendidas em sua totalidade. Lucas Veiga (2019) discorre sobre a psicologia e como é

necessário se atentar para as demandas da população negra nesse contexto:

A subjetividade negra é ignorada na grande maioria das graduações em psicologia, e


um dos efeitos diretos disso são pacientes negros serem vítimas de racismo pelos
profissionais que deveriam acolhê-los e, ao mesmo tempo, sentirem que não estão sendo
compreendidos em suas questões e nem escutados como pertencentes a um povo que
durante mais de 300 anos foi escravizado e que só há 130 anos foi liberto. (Veiga, 2019,
p. 245).

A questão racial deve ser uma pauta presente nos debates sobre a psicologia, já que esta

nasceu em um contexto europeu, tendo como percursores homens brancos. A violência vivida

diariamente pela população negra, decorrente de séculos de escravatura e políticas que ainda

perpetuam o racismo institucionalizado, gera feridas que, apenas com a empatia pelo próximo,

não serão curadas. É certo que o papel do psicólogo nesse âmbito não irá mudar a realidade em

que pessoas negras estão inseridas, mas, ao entender e compartilhar de vivências semelhantes

as do paciente, o profissional terá recursos mais apropriados para lidar com as demandas,

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verdadeiramente acolhendo o indivíduo. A psicologia, por si só, ainda é bastante elitizada e por

muito tempo lidou apenas com demandas de uma classe específica: pessoas brancas e ricas.

Entender o corpo negro nunca foi uma necessidade vista, e os efeitos dessa realidade

reverberam no cotidiano de pessoas que tiveram que lidar com seus problemas de forma omissa

e escondida. Neusa Souza (1983) fala sobre a relação do negro com o próprio corpo e no efeito

que isso gera:

A partir do momento em que o negro toma consciência do racismo, seu psiquismo é


marcado com o selo da perseguição pelo corpo-próprio. Daí por diante, o sujeito vai
controlar, observar, vigiar este corpo que se opõe à construção da identidade branca que
ele foi coagido a desejar. A amargura, desespero ou revolta resultantes da diferença em
relação ao branco vão traduzir-se em ódio ao corpo negro. (Souza, 1983, p. 6).

Ainda nesse aspecto, um fato importante para frisar é que “a maioria dos psicólogos e

pesquisadores brasileiros são brancos e têm dificuldades de se reconhecerem como

racializados” (Schucman, 2014). Assim, é nítida a dificuldade que a psicologia, bem como a

ciência em um geral, tem para incluir corpos pertencentes a minorias, tanto no contexto de

psicólogo quanto de paciente.

Perante todas as reflexões realizadas neste trabalho, conclui-se que os indivíduos são

afetados por múltiplos fatores e precisam lidar com dores que são semelhantes em um aspecto

macro, mas que possuem subjetividades e sutilezas do humano. Portanto, é necessário que os

graduados em psicologia tenham conhecimento sobre essas questões, que vão além do

indivíduo, para oferecerem o melhor acompanhamento possível àqueles que precisam de

acolhimento. Para tal, o conhecimento das Ciências Sociais é imprescindível para que reflexões

sejam feitas e, assim, a psicologia alcance esferas mais complexas e seja capaz de lidar com

demandas sistematicamente ignoradas, tendo um currículo pautado na decolonialidade e no

multiculturalismo (Barbosa, 2022).

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Referências

Das, V. (2011). O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade. Cadernos Pagu, 37,
9–41. https://doi.org/10.1590/S0104-83332011000200002
Hirata, H. (2014). Gênero, classe e raça: Interseccionalidade e consubstancialidade das
relações sociais. Tempo Social, 26, 61–73. https://doi.org/10.1590/S0103-
20702014000100005
Veiga, L. M. (2019). Descolonizando a psicologia: notas para uma Psicologia Preta. Fractal:
Revista de Psicologia, 31, 244–248. https://doi.org/10.22409/1984-
0292/V31I_ESP/29000
Weber, M. (2004). A ética protestante e o espírito do capitalismo. In: O “espírito do
capitalismo” (pp. 41-69). Companhia das Letras.
Barbosa, F. C., Molina, A. M. R., do Prado, P. S., Pasqualin, F. A. (2022). Islam,
decolonialidade e(m) diálogos plurais. Ambigrama.

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