Um Animal Selvagem - Joël Dicker

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Índice

Um animal selvagem

Créditos

Os factos

Prólogo. O dia do assalto – Sábado, 2 de julho de 2022

Primeira Parte – Os dias que antecederam o seu aniversário

Capítulo 1. – 20 dias antes do assalto – Domingo, 12 de junho de

2022

O dia do assalto – 9h31

Capítulo 2. – 19 dias antes do assalto – Segunda-feira, 13 de

junho de 2022

O dia do assalto – 9h33

Capítulo 3. – 18 dias antes do assalto – Terça-feira, 14 de junho

de 2022

15 anos antes – Setembro de 2007 – Saint-Tropez

Capítulo 4. – 17 dias antes do assalto - Quarta-feira, 15 de junho

de 2022

O dia do assalto – 9h34

Capítulo 5. – 16 dias antes do assalto – Quinta-feira, 16 de junho

de 2022

13 anos antes – Maio de 2009 – Paris

Capítulo 6. – 15 dias antes do assalto – Sexta-feira, 17 de junho

de 2022

O dia do assalto – 9h36


10 anos antes – Junho de 2012 – Genebra

Capítulo 7. – 14 dias antes do assalto – Sábado, 18 de junho de

2022 (Fim de semana em Saint-Tropez)

O dia do assalto – 9h36

Capítulo 8. – 13 dias antes do assalto – Domingo, 19 de junho de

2022 (Fim de semana em Saint-Tropez)

7 anos antes – Abril de 2015 – Genebra

Capítulo 9. – 12 dias antes do assalto – Segunda-feira, 20 de

junho de 2022 (Aniversário de Sophie)

Um ano antes – Junho de 2021 – Genebra

Segunda parte – Os dias que antecederam – A descoberta de Greg

Capítulo 10. – 11 dias antes do assalto – Terça-feira, 21 de junho

de 2022

O dia do assalto – Duas horas e 45 minutos antes do assalto

Capítulo 11. – 10 dias antes do assalto – Quarta-feira, 22 de

junho de 2022

O dia do assalto – Duas horas e 15 minutos antes do assalto

16 anos antes – Julho de 2006 – Draguignan, França

Capítulo 12. – 9 dias antes do assalto – Quinta-feira, 23 de junho

de 2022

15 anos antes – 17 de setembro de 2007 – Menton, França

Capítulo 13. – 8 dias antes do assalto – Sexta-feira, 24 de junho

de 2022

O dia do assalto – Duas horas antes do assalto

Capítulo 14. – 7 dias antes do assalto – Sábado, 25 de junho de

2022

O dia do assalto – O início do assalto


Capítulo 15. – 6 dias antes do assalto – Domingo, 26 de junho de

2022 (A descoberta de Greg)

O dia do assalto – Sete minutos após o começo do assalto

Terceira parte – Os dias que antecederam o assalto

Capítulo 16. – 5 dias antes do assalto – Segunda-feira, 27 de

junho de 2022

O dia do assalto – 9h45

Capítulo 17. – 4 dias antes do assalto – Terça-feira, 28 de junho

de 2022

A pantera – Toscana, 1912

Capítulo 18. – 3 dias antes do assalto – Quarta-feira, 29 de

junho de 2022

15 anos antes – Setembro de 2007 – Saint-Tropez

Capítulo 19. – 2 dias antes do assalto – Quinta-feira, 30 de junho

de 2022

15 anos antes – 20 de setembro de 2007 – Brachetto, Toscana

Capítulo 20. – A véspera do assalto – Sexta-feira, 1 de julho de

2022

Capítulo 21. – O dia do assalto – Sábado, 2 de julho de 2022 (O

dia do assalto)

Quatro meses após o assalto – 23 de novembro de 2022

Epílogo. Um ano e meio após o assalto – 31 de dezembro de

2023

Sobre este livro

Sobre o autor
Edição em formato digital: maio de 2024

UM ANIMAL SELVAGEM

Título original: Un Animal Sauvage

© 2024, Joël Dicker

Todos os direitos reservados

© desta edição:

2024, Penguin Random House Grupo Editorial, Unipessoal, Lda.

Proibida a venda no Brasil

Alfaguara é uma chancela de

Penguin Random House Grupo Editorial

Rua Alexandre Herculano, 50, 3.º, 1250-011 Lisboa, Portugal

[email protected]

Penguin Random House Grupo Editorial, Unipessoal, Lda. apoia a proteção do copyright.

Este livro não pode ser reproduzido, no todo ou em parte, por qualquer processo mecânico,

fotográfico, eletrónico ou por meio de gravação, nem ser introduzido numa base de dados,

difundido ou de qualquer forma copiado para uso público ou privado, além do uso legal como

breve citação em artigos e críticas, sem a prévia autorização por escrito do editor.

Editora: Clara Capitão

Tradução: José Mário Silva

Revisão: Maria de Fátima Carmo

Capa: Duarte Lázaro

Composição digital: Simon and Sons ITES Services Private Limited

Composição digital PRHGE: Luís Gomes

ISBN: 978-989-583-003-9

Site: penguinlivros.pt

Twitter: @PenguinLivrosPT
Facebook: alfaguaraeditora

Instagram: penguinlivros
OS FACTOS

No dia 2 de julho de 2022, em Genebra, um espetacular assalto à

mão armada deu que falar.

Este livro conta a história desse roubo.


PRÓLOGO

O dia do assalto

Sábado, 2 de julho de 2022


Nove e meia da manhã, em ponto.

Os dois assaltantes acabavam de entrar ao mesmo tempo na

joalharia, por dois acessos diferentes.

O primeiro, pela entrada principal, como se fosse um cliente comum.

O porte elegante não levantou suspeitas ao segurança, até porque usar

óculos de sol e boné era habitual no mês de julho.

O outro, com um passa-montanhas enfiado na cabeça, passou pela

entrada de serviço, forçando uma funcionária a abrir-lhe a porta, sob a

ameaça de uma caçadeira de canos serrados.

Nada fora deixado ao acaso: tinham conseguido prévio acesso à

planta da loja e aos horários do pessoal.

Uma vez lá dentro, o Encapuçado deixou a empregada amarrada no

fundo da loja e juntou-se rapidamente ao seu cúmplice. O do Boné,

assim que viu o outro chegar, sacou do revólver que trazia escondido à

cintura e gritou: «Isto é um assalto, ninguém se mexa!» Depois tirou um

cronómetro do bolso e acionou-o.

Dispunham de sete minutos, nem mais um segundo.


PRIMEIRA PARTE

Os dias que antecederam o seu

aniversário
CAPÍTULO 1

20 dias antes do assalto

→D OMINGO, 12 DE JUNHO DE 2022

SEGUNDA-FEIRA, 13 DE JUNHO

TERÇA-FEIRA, 14 DE JUNHO

QUARTA-FEIRA, 15 DE JUNHO

QUINTA-FEIRA, 16 DE JUNHO

SEXTA-FEIRA, 17 DE JUNHO

SÁBADO, 18 DE JUNHO (FIM DE SEMANA EM SAINT-T ROPEZ)

DOMINGO, 19 DE JUNHO (FIM DE SEMANA EM SAINT-T ROPEZ)

SEGUNDA-FEIRA, 20 DE JUNHO (ANIVERSÁRIO DE SOPHIE)


Era uma casa moderna. Um cubo enorme, todo em vidro, que se

erguia no meio de um jardim impecável, com piscina e um grande pátio.

A toda a volta da propriedade, floresta. O lugar parecia um oásis, um

pequeno paraíso secreto, escondido dos olhares, ao qual se chegava por

um caminho privado. À imagem da casa, os seus habitantes pareciam

saídos de um sonho: Arpad e Sophie Braun formavam o casal perfeito e

eram os pais muito realizados de duas crianças maravilhosas.

Naquela manhã, Sophie abriu os olhos às seis em ponto. Desde há

uns tempos, acordava sistematicamente à mesma hora. Ao seu lado,

Arpad, o marido, permanecia mergulhado num sono profundo. Por ser

domingo, ela gostaria de dormir mais um pouco. Virou-se na cama, sem

sucesso. Por fim, levantou-se discretamente, vestiu um roupão e desceu à

cozinha para fazer um café. Faltava uma semana para completar

quarenta anos e nunca fora tão bonita.

Da orla do bosque, via-se tudo o que acontecia no interior do cubo

de vidro. Um homem, ciente de que permanecia invisível nas suas

roupas de desporto escuras, estava agachado atrás de um tronco de

árvore, o olhar fixado em Sophie, às voltas na cozinha.

Sophie, pegando na chávena de café, observava o limiar da floresta,

que marcava o limite do seu jardim. Era um ritual de todas as manhãs.

Abarcava com o olhar o seu pequeno reino, sem suspeitar por um

momento que estava a ser espiada.

A alguns quilómetros dali, no centro de Genebra, um Peugeot

cinzento de matrícula francesa circulava por uma avenida deserta. A

claridade matinal não permitia distinguir, através do para-brisas, as

feições do condutor. O veículo chamou a atenção de uma patrulha da

polícia. As luzes rotativas azuis iluminaram as fachadas dos edifícios à

volta. Os agentes procederam ao controlo do Peugeot e do seu condutor.

Estava tudo em ordem. Um dos polícias perguntou ao condutor o que

vinha fazer a Genebra. «Visitar a família», respondeu. Os agentes,

visivelmente satisfeitos, foram-se embora. O condutor felicitou-se por ter


escolhido um automóvel em segunda mão, comprado a muito bom preço

e sobretudo de uma forma legal. Era a melhor maneira de passar

despercebido.

Sophie, à janela, continuava a observar o seu jardim. Por vezes,

surpreendia uma raposa a cirandar pela relva. Chegou até a ver uma

cabra-montesa. Adorava aquela casa, adquirida com o marido um ano

antes. Viviam até então num apartamento bem no centro de Genebra, no

bairro de Champel. Há algum tempo que andavam a pensar numa casa

com jardim, para os filhos poderem brincar. A subida dos preços no

mercado imobiliário permitira-lhes vender o apartamento com uma

excelente mais-valia, abrindo a possibilidade de procurarem uma casa

maior. Quando visitaram esta vivenda de arquiteto, em Cologny, uma

zona abastada, não hesitaram um segundo. Passariam a acordar todas as

manhãs num cenário encantador, que no fim de contas ficava a apenas

quatro quilómetros do centro de Genebra, onde os dois trabalhavam. De

autocarro, o percurso fazia-se com poucas paragens, de automóvel o

trajeto durava só doze minutos, de bicicleta elétrica, uns quinze, e não

era preciso mais nada para transitar entre os dois universos.

O homem, escondido no mato, observava agora Sophie com uns

pequenos binóculos militares. Apreciava o seu corpo esguio, a revelar-se

sob o roupão curto, e deteve-se na parte superior da coxa, onde aparecia

uma tatuagem em forma de pantera.

Algumas dezenas de metros atrás dele, o seu cão aguardava

pacientemente, preso a uma árvore. O animal, deitado sobre um tapete

de folhas, parecia habituado a esta rotina que durava desde há várias

semanas. O dono vinha até aqui todas as manhãs. Ainda de madrugada,

instalava-se e observava Sophie através dos grandes janelões. Os Braun

dormiam com os estores abertos, e ele conseguia ver tudo: ela a levantar-

se, a descer à cozinha para fazer café e a bebê-lo à janela. Era uma

mulher verdadeiramente desejável. Deixava-o deslumbrado. Obcecado.

Bebido o café, Sophie subiu as escadas e regressou ao quarto

conjugal. Despiu-se e deslizou nua para a cama, onde o marido ainda

dormia.
*

Na floresta, o homem espreitava-a com cobiça. Mas logo desceu à

terra. Precisava de sair dali e regressar a casa, antes que Karine e as

crianças acordassem.

Desamarrou o cão e foi-se embora como chegara: a correr. Tomou o

caminho que atravessava a floresta, voltou à estrada principal e chegou

num instante à aldeia de Cologny. Dirigiu-se para um pequeno bloco de

casas geminadas. Um conjunto de residências todas iguais, habitações

acessíveis para famílias de classe média, que provocaram incómodo e

maledicência numa povoação chique, habituada às vivendas de luxo.

Ao entrar em casa, ouviu a mulher chamá-lo:

— Greg? És tu?

Encontrou Karine na sala de estar, a ler enquanto bebia o seu chá. As

crianças ainda dormiam.

— Já de pé, amor? — espantou-se ele, fingindo um tom desprendido.

— Ouvi-te levantar e não consegui voltar a adormecer.

— Desculpa, não queria acordar-te. Fui correr com o cão.

Greg, que só conseguia pensar em Sophie, juntou-se à mulher no

sofá e encostou-se a ela. Mas era nítido que Karine não estava para aí

virada.

— Pára, Greg, os miúdos estão quase a acordar. Deixa-me estar aqui

sossegada. Este é dos poucos momentos em que posso ler um

bocadinho.

Desiludido, Greg subiu as escadas para ir tomar um duche na casa de

banho da suite. Ficou bastante tempo debaixo do jato de água morna. As

suas escapadelas matinais poderiam custar-lhe caro, se fosse descoberto.

Arriscava-se a perder o emprego. E a perder Karine. Ele próprio sentia

uma certa vergonha de espiar daquela forma uma mulher em sua casa.

Mas não conseguia deixar de o fazer. Era esse o problema.

A fascinação que sentia por Sophie começara um mês antes, durante

uma festa que os Braun organizaram. Desde essa noite, não voltara a ser

o mesmo.
***

Um mês antes

Sábado, 14 de maio de 2022

Greg e Karine podiam ter vindo a pé, mas a ameaça de chuva fez

com que optassem pelo automóvel. De uma casa à outra, o trajeto não

durava mais de três minutos. Seguiram pela estrada de La Capite;

depois, seguindo as instruções do GPS, desviaram para o pequeno

caminho privado que atravessava a floresta e ia dar à casa dos Braun.

— É incrível — observou Greg, ao descobrir o trajeto. — Venho

muitas vezes correr para aqui com o cão e nunca me passou pela cabeça

que houvesse uma casa no fim do caminho.

Era a primeira vez que visitavam Sophie e Arpad. O pretexto era

uma festa organizada para celebrar o quadragésimo aniversário de

Arpad. A julgar pelos numerosos automóveis estacionados ao longo do

caminho, já tinha chegado muita gente. Greg aproveitou um dos últimos

espaços livres, junto a um relvado, e dirigiram-se a pé para o portão que

fora deixado aberto e cuja estrutura metálica contrastava com a

vegetação em volta.

Arpad e Greg tinham-se conhecido no clube de futebol local, onde

os respetivos filhos, mais ou menos da mesma idade, jogavam juntos. Os

dois pais de família faziam parte da equipa de voluntários encarregada

de tomar conta do pequeno bar, junto ao campo, um negócio modesto

mas que permitia, nos dias de jogo, reforçar um pouco as finanças do

clube. Simpatizaram logo um com o outro.

Karine, por seu lado, não conhecia os Braun. Por isso, estava um

pouco nervosa. Quando dava por si em terreno desconhecido, tinha

tendência a sentir-se pouco à vontade. Para ultrapassar o embaraço, pôs-

se a falar:

— Foi muito simpático da parte deles, terem-nos convidado.

Greg concordou.

— Convidaram quantas pessoas? — perguntou ela.

— Não faço ideia.

— O Arpad não te disse?


— Não.

— Mas serão… quê? Umas dez pessoas? Trinta? O que devo

esperar?

— Não sei. Não sou eu que organizo a festa.

— O Arpad podia ter mencionado qualquer coisa, a meio de uma

conversa.

— Não, não mencionou nada.

— De que é que vocês falam, quando estão de serviço no bar do

clube?

Greg encolheu os ombros.

— Dos filhos, da vida, de coisas banais… Mas de certeza que não

falamos dos detalhes da sua festa de aniversário.

— De qualquer maneira — disse Karine, para pôr fim àquele diálogo

que não levava a lado nenhum —, foi simpático da parte deles terem-nos

convidado.

Continuaram a caminhar em silêncio. Havia muitos silêncios entre

eles, ultimamente. Karine estava convencida de que a mudança para

Cologny, um ano antes, não lhes fizera nada bem. Até aí, tinham vivido

num apartamento arrendado no centro de Genebra, no bairro de Eaux-

Vives. Uma rua animada, com muitas lojas próximas e o lago Léman

quase em frente. Um apartamento no qual se sentiam bem, talvez um

pouco apertados, por serem uma família de quatro, mas com uma renda

bastante acessível. E além disso haviam recebido uma pequena herança

do lado de Greg (após a morte da sua avó). Desde que recebera esse

dinheiro, Greg começara a falar como um pequeno-burguês. Era preciso

investir, de preferência em imobiliário, mais seguro do que os mercados

bolsistas. E depois os bancos emprestavam oitenta por cento da verba

necessária, com juros historicamente baixos. Começou então a folhear

as páginas dos anúncios de casas e deu com aquele empreendimento em

Cologny: pequenas vivendas geminadas, muito bonitas, à venda ainda

em projeto. Realmente, as imagens faziam sonhar. Uma casa própria,

com um jardinzinho. Uma vida no campo, a poucos minutos da cidade.

Greg afirmava que não havia melhor opção para a família: o mercado

imobiliário não parara de crescer nas últimas décadas. E foi assim que

deram o grande passo. Tudo se desenrolou com muita facilidade. O

banco emprestou o dinheiro, eles assinaram a escritura no notário. E eis


como, há cerca de um ano, chegaram à muito chique comuna de

Cologny. Mas, desde o momento em que se instalaram, Karine sentia-se

deslocada naquele lugar. No início, pareceu-lhe que a casa era mais

pequena do que imaginara: havia uma grande diferença entre o tamanho

das divisões que a planta lhe sugerira e a realidade. Apesar de a área

total ser claramente maior do que a do apartamento, sentia-se apertada.

Acabou por compreender que o seu mal-estar era causado sobretudo

pelo novo ambiente em que a família passou a viver. Porque neste

opulento subúrbio de Genebra a maior parte dos habitantes exibia, com

alguma insolência, o seu sucesso financeiro e social. Havia advogados,

banqueiros, cirurgiões, homens de negócios, donos de empresas. Karine

perguntava-se uma e outra vez o que raio estavam eles a fazer naquele

lugar, sendo ela vendedora numa loja de moda e ele um mero

funcionário. Este sentimento acentuou-se quando, ao ouvir conversas

alheias, se apercebeu de que, entre as propriedades para milionários em

volta, aquele bloco de residências a pensar na classe média era visto

como um mamarracho. Descobrira até, horrorizada, que os habitantes de

Cologny chamavam àquela fileira de casas «Verruga», e que o conselho

comunal se vira obrigado a aprovar, numa sessão extraordinária, um

despacho que impedia a construção futura de empreendimentos daquele

tipo.

Todos os dias, depois de deixar os filhos na escola, num trajeto a pé

de poucos minutos, Karine apanhava o autocarro da linha A, que fazia a

ligação entre o campo e o centro da cidade. Pelo caminho, o autocarro

atravessava o seu antigo bairro de Eaux-Vives. Experimentava nesses

momentos uma pontada de nostalgia. Tocava para descer junto à rotunda

de Rive, e depois enveredava pela rue du Rhône, a rua da loja onde

trabalhava. Fundindo-se na multidão, sentia-se apaziguada.

Greg e Karine entraram finalmente pelo portão e descobriram o

interior da propriedade. Um caminho de acesso pavimentado terminava

na garagem transparente, toda vidros, dentro da qual se podiam ver dois

Porsche. Logo atrás, a casa, também envidraçada e de traça moderna.

— Tratam-se bem! — exclamou Karine. — Afinal o que é que eles

fazem?

— O Arpad trabalha num banco, a Sophie é advogada.


Pararam diante da porta e Greg tocou a campainha. Através dos

janelões, conseguiam ver que a festa já estava muito animada. Homens e

mulheres na casa dos quarenta, de aspeto betinho, saracoteavam-se sem

grandes excessos ao som dos êxitos do momento, com taças de

champanhe nas mãos.

Karine espreitou o seu reflexo numa das vidraças: emanava classe e

elegância, vestida com muito bom gosto, como sempre. No entanto, não

se sentia à altura daquela festa. A sua autoestima atravessava um mau

momento. Tinha quarenta e dois anos e a sensação de que deixara para

trás a juventude. O espelho repetia-lhe isso todas as manhãs.

Depois a porta abriu-se e, logo ali, tanto Greg como Karine foram

varados por uma espécie de eletrochoque, ao descobrirem diante deles

aquele casal extraordinário que os vinha receber: Sophie e Arpad. Um

casal que representava tudo o que já não eram: apaixonados, sorridentes,

bem-dispostos, de braço dado. Uma verdadeira dupla. Dois aliados.

Arpad, esplêndido, ao mesmo tempo elegante e descontraído, vestia

umas calças italianas de corte perfeito e uma camisa de brancura

ofuscante, cujos botões superiores, por fechar, deixavam adivinhar um

torso musculado.

Sophie, por seu lado, trazia um vestido preto divino, curto, muito

sensual, que lhe esculpia o peito firme e dava primazia às magníficas

pernas, compridas, e aos sapatos Yves Saint-Laurent.

Encarar Sophie e Arpad, naquela noite, era como ser fulminado por

um relâmpago.

Karine e Greg foram recebidos com entusiasmo pelos anfitriões,

entre olás e abraços, antes de serem conduzidos ao interior da casa e

apresentados aos outros convivas. Arpad serviu-lhes champanhe, depois

Sophie pegou na mão de Karine para a apresentar às suas amigas.

Karine, aliviada e de súbito completamente à vontade, bebeu de um

trago a sua taça. Sophie encheu-a de imediato. Brindaram juntas.

Karine estava seduzida. Alguns minutos antes, diante da porta de

entrada, condenara desde logo Sophie e Arpad pelo crime de possuírem

aquela casa, aqueles automóveis, aquelas vidas. Fora iludida pelas

aparências. Imaginara-os altivos, arrogantes, insuportáveis. E eles eram

o contrário disso. Transmitiam uma cordialidade e uma bonomia

surpreendentes.
Naquela noite, pela primeira vez desde que chegara a Cologny,

Karine sentiu-se verdadeiramente feliz. Dançou, divertiu-se, achou que

estava bonita. E no lugar certo. Por causa de uma simples festa, voltou a

gostar de si mesma.

Mas este encontro foi na realidade uma colisão. Um choque frontal.

Um acidente cujas consequências ninguém conseguiria antever. Exceto

Greg, por razões evidentes. Desde que entrou naquela casa, os seus

olhos não mais se desviaram de Sophie. Ficou eletrizado. Não era

certamente a primeira vez que a via, mas agora ela revelava-se a uma

nova luz. Junto ao campo de futebol, ou na padaria da aldeia, não se

apercebera da magnitude da sua beleza, da animalidade que se libertava

do seu corpo.

Enquanto Karine se divertia e bebia taças de champanhe umas a

seguir às outras, Greg, absolutamente sóbrio, passou a noite toda a

espiar Sophie. Tudo o que ela fazia o fascinava: a maneira de falar, de

sorrir, de dançar, de tocar no ombro do seu interlocutor. Por volta da

meia-noite, quando chegou o momento de apagar as velas, olhou para o

modo como ela olhava para Arpad e desejou estar no lugar dele. Ela pôs

um braço à volta do pescoço do marido, beijou-o longamente e ajudou-o

a cortar as primeiras fatias do bolo. Depois, à frente de toda a gente,

entregou-lhe um presente. Arpad mostrou-se surpreendido, e mais

surpreendido ficou ao descobrir, sob o papel de embrulho, um estojo da

Rolex. Abriu-o e tirou de lá um relógio de ouro. Ela mesma lho colocou

no pulso. Arpad contemplou o relógio, absolutamente estupefacto.

Depois murmurou qualquer coisa ao ouvido da esposa e beijou-a outra

vez. A cumplicidade deles era evidente.

Perto da uma da manhã, quando a festa estava no auge, Greg deixou

de ver Sophie no meio da pequena multidão de convidados. Foi logo à

procura dela e encontrou-a na cozinha, onde estava a arrumar copos na

máquina de lavar loiça. Quis ajudá-la, mas, com um gesto desajeitado,

derrubou um copo que caiu no chão e se partiu. Precipitou-se para

apanhar os estilhaços e ela agachou-se ao seu lado para fazer a mesma

coisa. Nesse momento, o vestido subiu um pouco, revelando a pantera

que tinha tatuada na coxa. Greg ficou completamente fascinado. Pior do

que isso: acabara de se apaixonar por ela.


— Lamento imenso — desculpou-se ele. — Quis ajudar, e eis o

bonito resultado…

— Não tem mal — assegurou-lhe Sophie, sorrindo.

***

No duche, um mês após a festa de aniversário, Greg voltava a pensar

no que Sophie lhe dissera: «Não tem mal…», mas o mal estava nele. No

dia seguinte à festa, ao passear na floresta com Sandy, um golden

retriever, descobrira que era possível chegar à propriedade dos Braun

através dos bosques. A uma distância segura, poderia ver tudo o que

acontecia no interior do cubo de vidro. Greg não resistiu a espreitar a

família Braun instalada no sala de estar. Regressou um dia depois, muito

cedo, à primeira luz do dia, aproveitando a saída para fazer jogging com

o cão. Vira Sophie de pé, à janela. Depois disso, passara a vir todas as

manhãs.

Terminado o duche, Greg vestiu-se e desceu à cozinha. Entretanto,

os filhos tinham acordado e tomavam o pequeno-almoço. Beijou-os,

sentou-se à mesa e esforçou-se, como no começo de cada dia desde há

um mês, para se convencer de que tudo correria bem e que o seu lugar

era ali, junto da família.

Porém, exatamente vinte dias depois, a sua vida iria ser virada do

avesso.
Sábado, 2 de julho de 2022

O DIA DO ASSALTO

9h31

O Encapuçado empurrou o vendedor e o gerente para o fundo da

loja. O do Boné obrigou o segurança a trancar a porta da rua, antes de,

por sua vez, o levar discretamente para as traseiras. Se alguém passasse

diante da montra, veria apenas uma loja vazia.

Ainda tinham seis minutos.


CAPÍTULO 2

19 dias antes do assalto

Domingo, 12 de junho

→S EGUNDA-FEIRA, 13 DE JUNHO DE 2022

TERÇA-FEIRA, 14 DE JUNHO

QUARTA-FEIRA, 15 DE JUNHO

QUINTA-FEIRA, 16 DE JUNHO

SEXTA-FEIRA, 17 DE JUNHO

SÁBADO, 18 DE JUNHO (FIM DE SEMANA EM SAINT-T ROPEZ)

DOMINGO, 19 DE JUNHO (FIM DE SEMANA EM SAINT-T ROPEZ)

SEGUNDA-FEIRA, 20 DE JUNHO (ANIVERSÁRIO DE SOPHIE)


Sete e meia da manhã, na Casa de Vidro.

Enquanto Sophie acabava de se preparar no andar de cima, Arpad,

junto ao fogão, confecionava uma pilha de panquecas, sob o olhar

divertido dos filhos, sentados ao balcão da cozinha. Visivelmente de

muito bom humor, o pai oferecia-lhes um dos espetáculos em que era

mestre, lançando as panquecas ao ar, de uma frigideira para a outra,

apanhando-as no instante certo, enquanto fazia caretas que

desencadeavam a hilaridade da sua prole.

— Só costumas fazer panquecas ao fim de semana — observou

Isaak, do alto dos seus quase sete anos. — É alguma ocasião especial?

— É uma festa! — entusiasmou-se Léa, de quatro anos.

— A vida é uma festa — rematou Arpad.

Sophie apareceu na cozinha.

— O vosso pai tem razão — disse ela. — A vida é uma festa. Nunca

se esqueçam disso.

Beijou as crianças, depois abraçou o marido, que lhe passou para as

mãos uma chávena de café. Encostada a ele, Sophie contemplava com

alegria o seu pequeno mundo.

— Se a vida é uma festa, então porque é que temos de ir à escola? —

perguntou Isaak.

— Olha, parece que temos um filósofo cá em casa — observou

Arpad, divertido.

— O que é um filósofo? — perguntou Isaak, voltando à carga.

— É algo que só vais descobrir se continuares a ir à escola —

replicou Sophie.

— E quem é que nos leva hoje? — quis saber Léa.

— Eu posso levá-los — propôs o pai.

Arpad vestia roupa desportiva. Ou seja, não podia de todo sair assim

para o banco.

— Foste despedido? — perguntou Sophie, com humor.

Ele desatou a rir.

— Devia ter tomado o pequeno-almoço com um cliente inglês, mas

ele perdeu o voo ontem à noite. Vou aproveitar para fazer um bocadinho

de jogging e chegar um pouco mais tarde — respondeu.


Sophie olhou para as horas.

— Dá-me mesmo jeito que leves os miúdos à escola. Esta manhã

tenho uma reunião importante que ainda preciso de preparar.

Pousou a chávena fumegante no balcão, depois beijou com ternura

cada um dos seus. Seguiu pelo corredor envidraçado que ia dar

diretamente à garagem, entrou no seu automóvel e deixou aquele

pequeno paraíso.

Alguns minutos mais tarde, passava diante da escola primária de

Cologny. Ainda era cedo e as instalações estavam desertas. Abrandou

perto da paragem de autocarro, procurando ver a silhueta de Karine.

Graças ao aniversário de Arpad, as duas mulheres não apenas

começaram a simpatizar uma com a outra, como descobriram que

trabalhavam em lugares muito próximos, na rue du Rhône. A loja de

roupa situava-se a poucas dezenas de metros do edifício onde ficava o

escritório de advocacia de Sophie. Desde o dia da festa, Sophie passara a

dar boleia a Karine, sempre que a encontrava na paragem do autocarro.

A curta viagem oferecia às duas novas amigas uma oportunidade de

partilharem um bom momento de conversa. Sophie apercebeu-se disso

quando, naquela manhã, ao não encontrar Karine no sítio do costume,

sentiu uma pontinha de desilusão. A verdade é que gostava daquela

companhia. Karine era uma mulher direta, franca e nada calculista. As

suas histórias saborosas transformavam o trajeto até ao centro da cidade

numa experiência agradável.

Habitualmente, Sophie deixava o carro no parque subterrâneo do

Monte Branco, no coração de Genebra, onde alugava um lugar ao ano.

As duas mulheres subiam nos elevadores que davam para o cais

Général-Guisan, mesmo em frente ao lago Léman e aos bandos de

gaivotas e de cisnes brancos que os transeuntes iam alimentando.

Caminhavam ainda uns metros juntas, separando-se depois já na rue du

Rhône.

Naquela manhã, no momento em que Sophie estacionava no parque

do Monte Branco, Karine, em Cologny, na cozinha da Verruga, fazia

uma cena a Greg, sob o olhar dos rapazes que comiam os seus cereais. O

motivo da disputa era os novos horários do jogging matinal de Greg: até

agora, ele só corria ocasionalmente de manhã, e, quando era esse o caso,


saía muito cedo e voltava a tempo de ficar pronto antes de as crianças

acordarem. Ora, desde há um mês, não apenas ia correr todas as manhãs

sem exceção, como, sobretudo, prolongava essas saídas, de tal maneira

que Karine dava por si sistematicamente sozinha com os dois filhos,

acabando por chegar atrasada ao trabalho.

— Vais correr demasiado tarde! — apontou ela ao marido.

— Mas hoje eu saí às cinco e quarenta e cinco! — defendeu-se Greg.

— E enquanto Sua Excelência toma o seu duche, se prepara e depois

vem tomar calmamente o pequeno-almoço, eu tenho de gerir tudo o

resto! Porque é que mudaste de horário? Quando saías para correr às

cinco, tudo funcionava na perfeição. E dizias que gostavas disso, de sair

ainda de madrugada.

— Era demasiado cedo e eu ando exausto. Acho que tenho o direito

de dormir um pouco!

— E eu tenho o direito de ter um bocadinho de ajuda!

— Pois, mas é preciso que alguém passeie o cão — objetou Greg.

Sandy, o cão, chegara com a mudança para a nova casa: uma

péssima ideia. O minúsculo jardim da Verruga não tinha espaço

suficiente para ele gastar as suas energias.

— O Sandy não precisa de ir correr para a floresta durante uma hora!

— Mas eu preciso. Preciso de apanhar ar de manhã, antes de toda a

pressão do trabalho.

— Pois bem, apanha ar ao fim do dia, que assim já não fazes com

que toda a gente chegue atrasada! Como hoje, que vou chegar à loja

mesmo em cima da hora. Queres que me despeçam?

Greg esforçou-se por pôr água na fervura:

— Vai andando. Eu trato dos miúdos. Posso chegar um bocadinho

mais tarde ao trabalho.

Karine beijou os seus rapazes, ignorou ostensivamente os lábios do

marido, e saiu porta fora.

O ar fresco fez-lhe bem. Caminhou com passo apressado em direção

à escola e ficou na paragem de autocarro, à espera de que Sophie

chegasse. Gostava da sua faceta cordial e descontraída. Admirava o à-

vontade com que Sophie deslizava pela vida, enquanto ela tinha a

impressão de tropeçar em cada obstáculo. E não era uma questão de

dinheiro, mas de personalidade.


O automóvel de Sophie ainda não aparecera quando o autocarro

chegou. Karine entrou. Sentou-se num dos bancos de trás e tirou da sua

mala um pequeno embrulho, uma coisa sem importância comprada na

véspera para oferecer a Sophie. Desfez o papel e viu o pequeno

recipiente isotérmico para o café, ideal para os trajetos curtos feitos de

automóvel. Sophie dizia que nunca tinha tempo de acabar o seu café

antes de sair de casa. Karine sentiu-se de repente um pouco ridícula,

sentada no autocarro, com aquele presente na mão. Tinha uma tremenda

falta de confiança em si mesma.

Pouco depois da passagem do autocarro, Arpad, ainda vestido com

as roupas desportivas, deixou Léa e Isaak na escola de Cologny. No

momento de dar início ao seu jogging, encontrou Greg, que acabava

também de acompanhar os filhos à sala de aula.

— Tens tempo para um café? — propôs Arpad.

Greg espreitou o relógio, para ter uma ideia do seu atraso, antes de

decidir, com um sorriso malicioso:

— Com todo o prazer. Vamos lá. Pior não fico… Mas não quero

atrapalhar a tua corrida…

— Deixa lá. Posso fazê-la ao fim da tarde.

— A tua mulher deixa-te correr quando te apetece?

— Sim. Porquê?

— Por nada.

Instalaram-se numa casa de chá ali ao lado e mandaram vir dois

expressos. De repente, Greg sentiu-se particularmente bem. Teria a ver

com a presença de Arpad, com a sua descontração, a sua desconcertante

capacidade de planificar um jogging de manhã, num dia de semana, para

depois o trocar por um café. O quotidiano de Greg era, pelo contrário,

todo feito de constrangimentos e decisões rígidas. Entre os filhos e o

trabalho, tinha a impressão de não lhe sobrar tempo para nada. E quando

até podia tirar uns dias de folga, para compensar as horas

extraordinárias, Karine arranjava maneira de o mandar às compras, de

lhe pedir para consertar um móvel ou levar Sandy ao veterinário.

Arpad, entre dois goles de café, falava animadamente com Greg, mas

este não o ouvia, ocupado como estava a observá-lo. Embora à primeira

vista não parecesse, Arpad e Greg eram bastante semelhantes. Ambos


bons pais de família, ambos maridos atenciosos. Mas, para Greg, era

evidente que Arpad tinha mais qualquer coisa. Uma forma de

superioridade natural. E invejava-o por causa disso. Invejava-o sobretudo

por causa de Sophie.

— O que é que tu achas? — perguntou Arpad, trazendo Greg para a

conversa.

Greg não fazia a mínima ideia do que Arpad acabara de dizer. Por

isso respondeu:

— Acho que precisava de ser um pouco mais como tu.

Arpad riu-se.

— Como assim?

— Uma vida com horários mais flexíveis, um trabalho mais bem

pago, isso tudo, sei lá eu!

— Tem calma, que a minha vida também não é propriamente um

mar de rosas — disse Arpad. — Acredita, lá no banco a maior parte dos

meus clientes são uns chatos do caraças, que nunca estão satisfeitos.

Pedem-te para fazeres os investimentos por eles e tu é que ficas com a

responsabilidade toda. Se as coisas correm bem, para eles é o normal;

quando dão para o torto e os mercados afundam, a culpa é toda tua.

— Não me referia só ao trabalho. Também à família…

— Nessa frente também não corre tudo bem. Quem tem filhos, tem

cadilhos. E acontece-me perder a cabeça com a Sophie.

Fala, fala, pensou Greg, eu bem vejo como ela te acorda de manhã.

Arpad prosseguiu:

— Além disso, a Sophie vai fazer quarenta anos dentro de

exatamente uma semana, e ainda não encontrei o presente para lhe

oferecer. Se tiveres sugestões, são bem-vindas.

Greg, apontando para o pulso de Arpad onde brilhava o Rolex de

ouro que ela lhe oferecera, observou:

— Vais ter de igualar o que ela te deu.

Arpad não disse nada.

— Também vão organizar uma festa em vossa casa? — retomou

Greg.

— Não faço ideia. A Sophie finge que o assunto não lhe interessa e

diz que não quer fazer nada de especial. A ideia para já é passarmos o
fim de semana com os pais dela, em Saint-Tropez, para festejar em

família. O resto logo se vê.

Greg, tendo percebido as horas nos ponteiros do Rolex, levantou-se.

— Tenho de ir.

— Eu também — disse Arpad. — Mas vai andando, os cafés ficam

por minha conta.

Depois de pagar, Arpad resolveu ir na mesma correr. A seguir voltou

à Casa de Vidro, tomou um duche, vestiu-se com impecável elegância, e

deixou o seu domicílio ao volante do Porsche. Já há algum tempo que

dava voltas à cabeça por causa dos quarenta anos de Sophie: queria

assinalar o aniversário redondo com um presente marcante, único,

original, cujo simbolismo ultrapassasse o seu valor pecuniário. Mas,

depois do Rolex, começava a pensar que o melhor seria mesmo oferecer

uma joia valiosa a Sophie. Incomodado com este dilema, decidiu dar

uma volta rápida pela rue du Rhône, a artéria de Genebra em que se

concentram todas as joalharias e lojas das marcas de luxo. Talvez se

inspirasse dando uma vista de olhos às montras. Deixou o carro perto da

place Longemalle e subiu a rue du Rhône a pé, esperando não encontrar

Sophie pelo caminho. Ia avançando depressa, mas abrandou diante das

vitrinas dos joalheiros. Uma pulseira? Um colar? Não estava nada

convencido. No expositor da Cartier, viu um anel em forma de cabeça de

pantera, esculpida em ouro e cravejada de diamantes, cujos olhos eram

duas pequenas esmeraldas. Arpad ficou subjugado pela beleza e

perfeição daquele objeto. A pantera, era ela. Entrou imediatamente na

loja. Não podia imaginar, nesse instante, as consequências deste achado.

No fim do dia, ao sair do edifício onde trabalhava, Sophie não

reparou no homem que a vigiava há várias horas. Era o condutor,

chegado na véspera ao volante de um Peugeot cinzento de matrícula

francesa, comprado em segunda mão. Sophie dirigiu-se em passo

apressado para o parque de estacionamento do Monte Branco, onde

tinha o carro. O homem seguiu-a discretamente, qual predador.

A caçada podia começar.


Sábado, 2 de julho de 2022

O DIA DO ASSALTO

9h33

Foi uma coreografia perfeitamente orquestrada.

O Encapuçado mantinha os reféns em sentido apontando-lhes a sua

caçadeira de canos serrados, enquanto o do Boné prendia com fios de

plástico os pulsos e as pernas do segurança e do vendedor. O único a

não passar por estes tormentos foi o gerente da loja. Os assaltantes

sabiam bem o que estavam a fazer.

O do Boné empurrou o gerente da loja até ao cofre principal,

enquanto o Encapuçado vigiava os dois reféns.

Faltavam ainda quatro minutos.


CAPÍTULO 3

18 dias antes do assalto

Domingo, 12 de junho

Segunda-feira, 13 de junho

→T ERÇA-FEIRA, 14 DE JUNHO DE 2022

QUARTA-FEIRA, 15 DE JUNHO

QUINTA-FEIRA, 16 DE JUNHO

SEXTA-FEIRA, 17 DE JUNHO

SÁBADO, 18 DE JUNHO (FIM DE SEMANA EM SAINT-T ROPEZ)

DOMINGO, 19 DE JUNHO (FIM DE SEMANA EM SAINT-T ROPEZ)

SEGUNDA-FEIRA, 20 DE JUNHO (ANIVERSÁRIO DE SOPHIE)


Sete e meia da tarde, em Cologny.

Na paragem que fica no centro da aldeia, o autocarro deixou sair

uma passageira habitual: Karine. Esta caminhou em direção à Verruga,

visivelmente cansada. A jornada fora longa, passada em pé a maior parte

do tempo, a mostrar roupas às clientes, ou de cócoras, a ajudá-las a

calçar sapatos. Doíam-lhe os pés, as costas e a cabeça. Para cúmulo, o

trajeto de regresso a casa tinha sido particularmente desagradável: o

autocarro vinha a abarrotar e ela viu-se esmagada no meio dos outros

passageiros, sacudida pelas travagens e acelerações do motorista.

Quando viviam no apartamento, ela podia perfeitamente voltar a pé para

casa. Eram só quinze minutos a caminhar junto às margens do lago

Léman. Sempre um momento agradável, fosse qual fosse o estado do

tempo. Mas este maldito autocarro… É verdade que Sophie se oferecera

para a levar ao fim do dia, mas ela saía demasiado tarde, uma vez que a

loja só fechava portas às 19 horas.

Ao chegar à Verruga, Karine constatou que o automóvel de Greg

ainda não estava lá: devia ter sido obrigado a fazer horas extraordinárias.

Para não variar… Ou seja, o jantar ainda estava por fazer. Durante um

instante, sentiu o desânimo abater-se sobre ela, diante da porta de casa.

Depois entrou. No caos da sala de estar, os dois rapazes gritavam e

batiam um no outro, sob o olhar impotente de Natalia, a ama.

Natalia, com vinte anos, passava a maior parte do tempo a tirar

selfies. Não arrumava, não limpava, não cozinhava («só estou aqui para

me ocupar das crianças»), mas, como dizia Greg: «É de confiança, e isso

é o mais importante.» Sobretudo, aceitava um pagamento à hora

incrivelmente baixo, para contentamento de todos: Karine e Greg

podiam permitir-se este luxo e Natalia era paga para estar entretida com

o seu telemóvel, enquanto as crianças faziam cabriolas até ao regresso

dos pais.

Karine mandou Natalia embora, disse aos filhos para irem tomar

banho e começou a cozinhar. Depois de inspecionar o frigorífico,

desistiu de tudo o que implicasse descascar legumes e coisas desse tipo,

e optou por lasanhas congeladas. Havia uma garrafa de vinho aberta e

serviu-se de um copo. Já não estava muito bom, mas paciência.


Enquanto o forno pré-aquecia, lavou toda a loiça que se acumulara na

pia (obrigadinha, Natalia). Depois lavou o recipiente isotérmico que

comprara para Sophie e que acabou por ficar para ela. O seu telemóvel

tocou: era precisamente Sophie. Karine atendeu com entusiasmo.

— Não consegui apanhar-te hoje de manhã na paragem do autocarro

— lamentou Sophie.

— É que eu voltei a sair atrasada — suspirou Karine. — Por causa

dos miúdos e isso tudo. Mais o Greg e o raio da sua mania de ir correr…

Karine ouviu música ao fundo e imaginou que Sophie estivesse num

concerto. Talvez na Ópera. Perguntou:

— Não te dá jeito falar?

— Dá, claro que dá. Aliás, fui eu que te liguei — observou Sophie.

— É porque estou a ouvir aí música clássica, e por isso pensei que…

— É o Arpad que nos inflige isto — explicou Sophie, piscando o

olho, divertida, ao marido, que se atarefava à volta das panelas.

Ela saboreava um copo de vinho, estendida no sofá da sala. Arpad,

debruçado no balcão da cozinha, fez questão de lembrar à mulher e à

interlocutora:

— Quem faz o jantar é que escolhe a música!

— O teu marido cozinha? — perguntou Karine.

— Sim. Diz que o descontrai.

— O homem perfeito — declarou Karine.

Enquanto falavam, contemplava a confusão que ia pela casa e as suas

lasanhas industriais. Os rapazes desceram as escadas de roldão e aos

gritos. Ela estava só do outro lado do fio, mas sentia-se num outro

mundo.

— Tenho de desligar — disse Karine. — Há dois rapazinhos quase

nus e muito esfomeados na minha sala de estar.

— Sei o que isso é — comentou Sophie, com um sorriso.

— Duvido muito — respondeu Karine. — Tu tens uma orquestra

sinfónica na tua sala, eu tenho um jardim zoológico.

Sophie desatou a rir.

— Apanho-te amanhã de manhã? — perguntou.

— Se eu estiver pronta a tempo…

— Então vou buscar-te a casa. Buzino quando chegar e só tens de

deixar o Greg a desenrascar-se sozinho. Até amanhã, minha linda.


Sophie chamara-lhe «minha linda». Há muito tempo que ninguém

lhe chamava isso. Karine pegou no recipiente isotérmico e decidiu

embalá-lo outra vez. Já o utilizara, mas podia oferecê-lo na mesma, não

podia?

Nessa noite, na Casa de Vidro, a família Braun jantou a refeição

preparada por Arpad. Depois, Léa e Isaak foram deitar-se e começou o

ritual da noite: as crianças e Sophie juntaram-se muito apertadinhos na

cama de Isaak, e Arpad leu-lhes em tom teatral alguns capítulos do livro

que haviam começado uns dias antes. A leitura à noite era sempre um

momento de grande cumplicidade familiar. Arpad não se cansava de ver

a sua pequena tribo suspensa dos seus lábios. E quanto mais o seu

público ficava enredado na história, mais ele redobrava os seus esforços

dramatúrgicos e os efeitos da sua narração. Era como se o tempo

pudesse parar.

Naquela noite, na Verruga, a família Liégean jantou, muito tarde, as

lasanhas que ficaram demasiado ressequidas. Depois, no momento em

que os filhos estavam por fim prontos para se irem deitar, o mais velho

confessou, a chorar, que não tinha feito os trabalhos de casa e que por

isso iria ter problemas na escola. Foi preciso que o pai o ajudasse com

os exercícios de Matemática. Houve irritações, gritos, e Greg acabou a

fazer, sozinho, os deveres. Depois deste episódio, as crianças ficaram

muito agitadas e o pai precisou de uma enorme dose de paciência para

as meter na cama. Quando finalmente adormeceram, Greg juntou-se a

Karine na cozinha. Ela estava a acabar de lavar a loiça. O silêncio frio

que reinava na divisão era um forte indício do mau humor de Karine.

Para iniciar a conversa, Greg disse:

— Finalmente, já dormem. A Natalia podia pelo menos ter-se

certificado de que faziam os trabalhos de casa.

— Podes tratar tu de lhe dizer — respondeu Karine, com um tom

sarcástico. — A última vez que lhe disse alguma coisa, ficou toda

ofendida.

— Pelo menos, convém verificar os trabalhos de casa antes do jantar

— insistiu Greg.
— Esse «convém» é dirigido a mim? — perguntou Karine, que

mostrava dificuldade em conter a sua irritação. — Convém talvez que tu

também não voltes tão tarde para casa, não achas?

— Mandei-te uma mensagem…

— Deves pensar que tenho tempo para ver as mensagens, com os

miúdos aos berros em cima de mim. Eu nem sequer consigo ir à casa de

banho!

— Lamento — disse Greg, desejando a todo o custo evitar uma nova

discussão. — Da próxima vez, telefono. Precisava mesmo de acabar uns

relatórios. As coisas tornaram-se tão burocráticas que é um cansaço.

Como se já não tivéssemos papelada que chegasse. O próximo que me

disser que os funcionários não arquivam as coisas como deviam, dou-lhe

um sopapo!

Karine, que também queria amenizar a tensão, concordou com o que

ele dizia, para mostrar que se interessava por aqueles comentários

insípidos. Não queria saber para nada das histórias de papelada e das

intrigas de escritório. Queria um pouco mais de sonho na sua vida. No

fundo, não podia dizê-lo ao marido, mas desejava uma vida como a de

Arpad e Sophie. Lavada a loiça, Greg instalou-se na sala de estar, em

frente à televisão.

— Vou tomar um duche rápido — disse Karine. — A seguir,

podemos continuar a ver a nossa série.

Mas quando Karine voltou à sala, de roupão, Greg já não estava no

sofá. Estava junto à porta da rua, a vestir o casaco e a pegar na trela do

cão.

— Onde é que vais? — perguntou, espantada.

— Vou passear o Sandy.

— A estas horas? Ele pode perfeitamente ir fazer xixi no jardim.

— Será que alguém passeou o Sandy desde esta manhã? —

perguntou Greg, sabendo de antemão a resposta.

— Não — concedeu Karine.

— Então alguém terá de o fazer. Se não for eu a passeá-lo, ninguém

o passeia.

— Isso é uma crítica? — questionou Karine, enervada.

— Não. É uma simples constatação.

— Foste tu que quiseste um cão — recordou ela.


— Foram os miúdos que quiseram um cão — esclareceu Greg.

— Os miúdos também querem um pónei. Quererá isso dizer que em

breve teremos um pónei na nossa sala?

Greg encolheu os ombros. Não valia a pena estarem a pegar-se por

causa disto. Assobiou para chamar Sandy e desapareceu com ele na

noite.

Saíra de casa com a ideia de darem uma volta ao quarteirão. Mas deu

por si, um passo atrás do outro, na estrada de la Capite e continuou até

ao caminho privado que levava à Casa de Vidro. Era mais forte do que

ele. Entrou na floresta e esgueirou-se por entre as árvores, como já fizera

nessa mesma manhã. Quando se aproximou da orla, enrolou a trela de

Sandy em volta de um tronco: o cão, habituado à manobra, deitou-se

calmamente sobre um tapete de folhas mortas. Greg avançou pelo meio

da vegetação, guiado pelas luzes da casa. Escondeu-se atrás de uns

ramos para observar o interior do grande cubo, cujos janelões

envidraçados deixavam ver tudo. E que espetáculo estava em curso na

sala de estar! Sophie, nua sobre o sofá, oferecia-se ao marido que, por

trás, imprimia nela o seu movimento.

Greg devorava-os com o olhar. Depois da cena na sala, espiou-os

enquanto se dirigiam para o quarto. Imaginou-os a tomarem um duche,

depois viu-os a passearem-se nus pela divisão, para cá e para lá com

uma escova de dentes na boca, antes de se meterem na cama, muito

encostados um ao outro. Leram um pouco. Quando a luz se apagou,

Greg regressou a casa e deslizou para o leito conjugal, onde Karine já

dormia.

Na Casa de Vidro, assim que Sophie adormeceu, Arpad levantou-se

e foi para a cozinha. Não era capaz de pregar olho. Estava a remoer uma

coisa. Pegou no telemóvel e fez deslizar no ecrã as fotografias que tinha

tirado essa manhã na loja da Cartier. Contemplou longamente aquele

anel em forma de cabeça de pantera. Para o usar, era preciso deslizar o

dedo através da boca do animal. Um trabalho de ourivesaria

extraordinário. Ele estava convencido de que esta pantera era o presente

de aniversário perfeito para Sophie. Mas, ao ver o preço astronómico da

joia, hesitou e disse ao vendedor que voltaria mais tarde.


Sentia-se atormentado. Sabia que era necessário renunciar à joia.

Era tempo de confessar tudo a Sophie. De pôr fim àquela farsa.

Mas não lhe podia fazer isso a uma semana do aniversário.


15 ANOS ANTES

SETEMBRO DE 2007

Saint-Tropez

Nunca mais voltaria a Saint-Tropez.

Teria de deixar para sempre este lugar que tanto amava. Não podia

continuar ali, era demasiado arriscado.

Em poucas horas, Arpad acabara de riscar uma parte da sua vida.

Agora iria desaparecer o mais depressa possível, sem deixar qualquer

rasto.

Começara pelo apartamento. À senhora velhinha que lhe arrendava

um andar mobilado, mesmo por cima do dela, invocou um «imperativo

familiar». Ela não fizera perguntas e sobretudo aceitara rapidamente os

dois meses de renda que Arpad trouxera dentro de um envelope, em jeito

de pré-aviso. Depois esvaziou a casa e enfiou todos os seus pertences no

pequeno automóvel.

De seguida, dirigiu-se ao Béatrice, um dos lugares da moda na noite

de Saint-Tropez, onde trabalhava desde há um ano. Supervisionava toda

a parte de bar e receção deste restaurante sofisticado que se

metamorfoseava em clube noturno mais para o fim da noite. Ao gerente

do estabelecimento, contou que acabara de conseguir um emprego na

área da finança: uma proposta irrecusável. O gerente foi muito

compreensivo. «Arpad, não tens de te desculpar. Estiveste na

universidade durante cinco anos. Nunca me tinha aparecido um

responsável pelo bar licenciado em Finanças. Fico contente por ti. Mas

teria gostado que me dissesses antes que andavas à procura de trabalho,

para que eu pudesse começar logo à procura de um substituto.»

No Béatrice, esperava ver Sophie, mas ela ainda não chegara. Como

não conseguiu telefonar-lhe, deambulou pelas ruas de Saint-Tropez à sua

procura. Em vão. No fundo, era melhor assim: ela não teria engolido
nenhuma das suas mentiras. O melhor talvez fosse mesmo renunciar a

ela para a proteger.

A sua última paragem na região foi numa estação de serviço, onde

atestou o depósito. Enquanto o fazia, copiou para um caderninho dois

números: o de Sophie e o de Patrick Müller, um banqueiro suíço que

conhecera no Béatrice e podia vir a ser-lhe útil. Assim que completou a

tarefa, destruiu o seu cartão SIM e atirou o telemóvel para um caixote do

lixo. Nunca mais poderiam contactá-lo.

Entrou então na autoestrada. Direção: Norte.

Nunca mais voltaria.

Ou assim acreditava.
CAPÍTULO 4

17 dias antes do assalto

Domingo, 12 de junho

Segunda-feira, 13 de junho

Terça-feira, 14 de junho

→Q UARTA-FEIRA, 15 DE JUNHO DE 2022

QUINTA-FEIRA, 16 DE JUNHO

SEXTA-FEIRA, 17 DE JUNHO

SÁBADO, 18 DE JUNHO (FIM DE SEMANA EM SAINT-T ROPEZ)

DOMINGO, 19 DE JUNHO (FIM DE SEMANA EM SAINT-T ROPEZ)

SEGUNDA-FEIRA, 20 DE JUNHO (ANIVERSÁRIO DE SOPHIE)


Um quarto para as seis da manhã, em Cologny.

O campo ainda estava mergulhado na escuridão. Greg corria a bom

ritmo na estrada campestre, com o cão ao seu lado. As duas silhuetas,

que tinham acabado de sair da Verruga, penetraram rapidamente na

floresta. Greg parou no meio da vegetação, amarrou Sandy a uma árvore

e foi instalar-se no sítio do costume, para observar a Casa de Vidro. Não

havia ainda uma única luz acesa.

Greg sentou-se no chão e tirou da mochila uma garrafa térmica com

café. Bebeu um pouco e esperou pelo início do espetáculo. Uma luz

acendeu-se de repente na cozinha. Sophie surgiu ali e preparou o seu

café. Greg arrumou a garrafa e pegou nos binóculos. Reparou que ela era

cada vez mais madrugadora.

Sophie postou-se diante da grande janela, com a chávena na mão.

Vestia uma T-shirt e uns calções. Greg admirou-lhe as pernas,

examinando-as longamente com o auxílio dos binóculos. Foi subindo

dos tornozelos às canelas, depois os joelhos, as coxas, e deteve-se na

tatuagem da pantera. Um toque de telemóvel fez-se ouvir no seu bolso,

quebrando o silêncio absoluto da floresta. «Merda!», murmurou Greg.

Pegou no aparelho e percebeu, pelo número no ecrã, que lhe estavam a

ligar do trabalho. Atendeu — não podia fazer outra coisa — e conversou

com o interlocutor num sussurro, como teria feito se estivesse ainda na

cama, com a mulher a dormir ao lado.

Como ainda estava tudo escuro lá fora, o olhar de Sophie foi

imediatamente atraído pelo breve feixe de luz na orla da floresta. Não

durou mais do que um instante, mas ela conseguiu identificar sem

margem para dúvidas um brilho artificial. Abriu a porta envidraçada e

pareceu-lhe ouvir uma voz masculina. O seu coração deu um pulo no

peito: havia alguém no meio da vegetação, ali mesmo em frente. Lançou

um grito e acendeu as luzes todas.

Greg percebeu que a sua presença fora detetada. Correu até junto do

cão, para o libertar, mas a trela, com os movimentos do animal,


enrolara-se num nó que Greg não conseguia desfazer nem por nada. O

pânico abateu-se sobre ele. Ouvia Sophie a chamar Arpad em seu

auxílio. Acendeu-se a luz do quarto.

Greg tentava a todo o custo soltar a trela. Mas, quanto mais puxava,

mais o nó se apertava. Imbecil do cão! Não tinha uma faca com ele, era

impossível cortar a espessa tira de couro. Virou-se para a Casa de Vidro

e viu Arpad a sair da cozinha para o jardim, gritando: «Quem está aí?»

O nó da trela continuava a resistir. Greg já não sabia o que fazer. Via

a luz de uma lanterna de bolso a aproximar-se perigosamente e ouvia os

gritos de Arpad, que devia estar tão assustado quanto ele. Mais alguns

metros e seria apanhado. Não podendo fazer outra coisa, desprendeu a

trela da coleira do cão e escapou-se a toda a velocidade, com o animal

na sua peugada, deixando a trela presa na árvore. Arpad chegou à orla do

bosque e varreu os troncos com o feixe da lanterna. Viu uma sombra a

fugir.

— Pare! — gritou, o coração a bater forte por causa da adrenalina.

— Pare imediatamente!

Greg corria o mais rápido que conseguia. O medo dava-lhe asas. O

cão quase não conseguia acompanhá-lo. Na estrada, acelerou ainda mais

e tomou a direção da Verruga.

Arpad desistiu de perseguir a silhueta. Voltou para casa e telefonou à

polícia.

Greg, de regresso a casa, abandonou o animal no rés do chão e

entrou de rompante no quarto para avisar Karine.

— Ligaram-me do trabalho, tenho de ir imediatamente.

Ela ainda estava a dormir, mas a frase de Greg fez com que se

soerguesse logo.

— Toma cuidado — disse-lhe com uma voz doce. — Liga-me

quando tiver acabado.

Ele fez que sim com a cabeça e saiu de casa vestido de forma

desportiva. Como estabelecia o protocolo, era obrigatório, em caso de


chamada urgente, chegar ao quartel-general o mais rapidamente possível.

Greg entrou para o seu Audi de serviço, estacionado à frente de casa, e

arrancou com os pneus a chiar. Em plena aceleração, segurando no

volante só com uma das mãos, usou a outra para pegar no pirilampo azul

que estava pousado no chão, do lado do passageiro, e prendeu-o no

tejadilho. Depois ligou as luzes e a sirene da sua viatura

descaracterizada.

Na Casa de Vidro, a agitação acordara Isaak e Léa. Arpad e Sophie

esforçaram-se por desdramatizar o que se passara, para não traumatizar

as duas crianças.

— Não foi nada de grave, meus queridos — assegurou-lhes Sophie.

— Alguém andava a passear no bosque. Eu não estava à espera,

apanhou-me de surpresa.

— Se era só alguém a passear, porque é que chamaram a polícia?

— Quando temos uma dúvida, é melhor verificar, e a polícia existe

para isso mesmo — respondeu Arpad, como se tudo aquilo fosse

absolutamente normal.

Sophie fechou-se com os filhos no quarto do casal e deixou-os a ver

um filme na televisão. Isaak, encantado, perguntou se não podiam

chamar a polícia todos os dias e Léa quis saber se, por causa dos

acontecimentos daquela manhã, a ida à escola fora cancelada.

— É quarta-feira — lembrou Sophie. — Não terias escola de

qualquer maneira, minha querida.

— Podemos tomar o pequeno-almoço na cama? — perguntou a

menina.

— Boa ideia — concordou Sophie.

— E vamos poder ver os polícias? — quis saber Isaak.

— De certeza — confirmou Sophie, que estava com dificuldade em

dissimular a preocupação.

Léa aproveitou a oportunidade:

— Podemos comer bombons ao pequeno-almoço?

— Não — respondeu Sophie, com uma inflexão zangada de que se

arrependeu logo.

O seu tom de voz traía o nervosismo. Tinha um mau pressentimento

em relação àquilo.
No jardim, Arpad percorria o relvado, junto à orla da floresta. Não

havia ali qualquer barreira, nem sequer uma sebe. Era a natureza que

fazia a demarcação do terreno. Esse era, aliás, um dos atrativos daquele

sítio. Ocorreu-lhe que fora talvez um pouco ingénuo julgar que a sua

família estaria completamente segura ali.

Greg, ao volante da sua viatura da polícia, circulava a toda a

velocidade pela rampa de Coligny e rapidamente chegou ao cais na

margem do lago Léman. Os automóveis dos trabalhadores matinais

desviaram-se, para deixar passar o veículo em serviço de urgência, que

foi abrindo caminho até à rotunda de Rive, continuando depois o seu

percurso até ao bairro de Acacias, onde se localizava o quartel-general

da polícia.

Alguns minutos mais tarde, Greg entrava no vestiário do corpo de

intervenção, onde os seus colegas já se equipavam. Como sempre nestas

ocasiões, o ambiente era tenso, mas calmo. Aquele era um momento de

seriedade e concentração. Greg, como os outros polícias, vestiu o

uniforme negro, o colete à prova de bala, e pôs o passa-montanhas na

cabeça, ainda por desenrolar. Depois, enquanto responsável pelo piquete,

fez o briefing geral, com base nas informações recebidas um pouco antes

por telefone:

— Partida para a rue des Pâquis. A brigada criminal quis deter um

indivíduo no domicílio. Grande resistência do tipo, que repeliu os

inspetores e está atualmente barricado. Vamos ter de o tirar de lá.

Saberemos mais coisas no local.

A dezena de polícias entrou em três veículos que partiram em fila

indiana. Atravessaram a cidade, projetando sobre as fachadas dos

prédios as luzes rotativas. Greg, no lugar do passageiro da viatura que

seguia na dianteira, viu com um certo incómodo o seu rosto refletido no

espelho retrovisor. Escapara de boa. Ele, o chefe de equipa do corpo de

intervenção, respeitado e apreciado por toda a gente, não fora apanhado

como um vulgar voyeur por uma unha negra.


Sete da manhã, na Casa de Vidro.

Dois carros-patrulha estavam estacionados diante do portão dos

Braun. No interior da casa, um agente registava o depoimento de Sophie,

enquanto os outros três polícias inspecionavam a orla da floresta,

acompanhados por Arpad. No piso de cima, Léa e Isaak viam televisão.

Na floresta, os polícias já não sabiam onde mais procurar. A sua

busca fora infrutífera. Tinham passado a pente fino a área da

propriedade dos Braun que confinava com o bosque sem encontrar

quaisquer indícios. A não ser aquela trela presa a uma árvore. Mas

também havia, por perto, uma bicicleta de criança completamente

enferrujada, e embalagens de plástico. Mesmo ali, a natureza era

transformada num caixote do lixo.

— E diz que o indivíduo estava escondido atrás deste arbusto? —

perguntou ainda um dos agentes a Arpad, para mostrar que estava a levar

aquilo a sério.

— Sim. Exatamente.

Por descargo de consciência, o polícia agachou-se para observar

mais uma vez o solo, mas na terra seca não se viam quaisquer pegadas.

— Infelizmente, não há grande coisa a fazer — explicou a Arpad. —

Pode ter sido um vagabundo, ou um assaltante a fazer o reconhecimento

do terreno. Se quer que lhe diga, duvido que o indivíduo tivesse a

intenção de vos entrar em casa: os assaltantes nunca penetram num

domicílio à hora em que toda a gente se levanta. Preferem agir quando

os locais estão vazios, ou à noite, quando as pessoas estão a dormir.

— Como se isso nos deixasse mais descansados… — disse Arpad.

— Existe um alarme na propriedade? — perguntou o polícia.

— Não.

— O melhor era instalar um. Hoje em dia, não exige um

investimento assim tão grande.

— Vão chamar uma equipa forense?

— Para quê? Não encontrámos pegadas.

— E não lhes cabe a eles, justamente, encontrar esse tipo de

indícios? — insistiu Arpad. — Há a trela, presa à árvore. É um bocado

estranho estar ali, não?


— Deixe-me ligar aos colegas da brigada que trata dos assaltos para

os informar — pediu então o agente, para dar a entender que se

preocupava com o assunto.

O polícia afastou-se uns metros e telefonou para a central. Pediu para

falar com o inspetor de serviço da brigada dos assaltos, ligada à polícia

judiciária. Duvidava muito que o seu interlocutor lhe desse saída, mas

queria fazer tudo como devia: era melhor não correr riscos com estes

tipos dos bairros finórios que conhecem pessoas influentes e que não

hesitam em queixar-se às altas instâncias quando consideram que não

foram suficientemente levados a sério.

O inspetor atendeu e o agente explicou o que se tinha passado.

— Então, resumindo, tens o quê? — perguntou o inspetor.

— Na prática, só uma trela de cão amarrada a uma árvore, no espaço

público.

— Uma trela presa a uma árvore, a sério? Como é que eles entraram

na casa?

— Não, não, isso não chegou a acontecer — precisou o agente. —

Não houve arrombamento nem entrada forçada. A senhora estava a

beber o seu café e viu alguém, no lado de fora do jardim, que parecia

estar ali à coca, a espiar.

O inspetor riu-se alto, encerrando ao mesmo tempo o caso e a

conversa.

— Eu até vos acho graça, meus amigos — disse —, mas já preciso

de gerir trinta verdadeiros assaltos por dia. Essa senhora assustada só

viu alguém que se passeava na floresta. Olha que história!

***

Oito da manhã.

No centro de Genebra, a rue des Pâquis estava fechada pela polícia.

Um vasto perímetro de segurança mantinha os mirones à distância,

afastados da agitação.

Greg, de rosto oculto pelo passa-montanhas, saiu de um veículo de

comando, no interior do qual acabara de fazer o ponto da situação com a


chefia da polícia. Avançava pelo passeio para se juntar aos seus homens

quando deu de caras com a inspetora Marion Brullier, da brigada

criminal. Ela fazia parte da equipa de polícias que tinha sido repelida, de

madrugada, pelo homem barricado. Greg reparara logo nela quando

chegou. Uma bela mulher. Jovem. Sorriso desarmante. Muitíssimo

atraente.

— Guarda isto só para ti, mas vamos lançar o ataque — disse Greg à

inspetora. — Este circo já durou tempo de mais.

Não devia partilhar este tipo de informações, mesmo com uma

colega, mas não encontrara nada melhor para meter conversa.

— Parece-me boa ideia — sorriu a inspetora.

Tudo o que ela podia ver do seu interlocutor eram os olhos, que

brilhavam atrás do passa-montanhas. Pareceu-lhe um olhar fulgurante.

Este tipo agradava-lhe.

— Como é que te chamas? — perguntou ela.

— Liégean.

— O teu nome mesmo, não o apelido.

— Greg.

— Muito prazer, Greg. Chamo-me Marion.

— Até tirava o passa-montanhas para nos apresentarmos, mas é

proibido.

— Melhor assim — replicou Marion. — É da maneira que guardo a

surpresa para a próxima vez.

Greg percebeu que a inspetora estava a flirtar com ele. Em plena

intervenção policial, era a primeira vez que lhe acontecia. Ficou quase

sem fala. Além do mais, há muito tempo que ninguém se metia com ele.

Já esquecera o quanto um flirt pode ser agradável.

Na Verruga, Karine, visivelmente entusiasmada, preparava-se para ir

trabalhar. Esta manhã, Sophie devia vir buscá-la a casa. Natalia, que se

ocupava das crianças nas manhãs de quarta-feira, chegara a horas. As

coisas não podiam estar a correr melhor.

— Bom trabalho, Natalia — disse Karine, antes de sair. — Não te

esqueças: às dez, os meninos têm…

— … treino de futebol — concluiu Natalia. — Não se preocupe, eu

tenho tudo controlado.


Karine foi-se embora. Ficou de pé diante da Verruga, pegando na

sua mala com uma das mãos e no recipiente isotérmico, reembalado em

papel de embrulho, com a outra. Tencionava oferecê-lo a Sophie.

Passaram alguns minutos. Nada de Sophie. Karine pensou em

telefonar-lhe, mas não queria parecer inoportuna. No fim de contas,

Sophie não era a sua motorista particular e ela talvez se tivesse atrasado

por causa dos filhos. Pôs os óculos de sol, porque achava que isso lhe

dava um ar mais distinto. Continuou à espera. Natalia, que a viu da

janela da cozinha, gritou-lhe:

— Está tudo bem, Karine?

— Sim, sim, tudo bem — respondeu ela, devolvendo, com um gesto

contrariado, Natalia às suas ocupações.

— Os óculos escuros ficam-lhe bem — rematou Natalia, ao fechar a

janela.

Karine tirou-os logo: ainda não havia sol que os justificasse e queria

tudo menos parecer parola. Consultou o relógio, depois decidiu-se a

ligar para Sophie.

— Esqueceste-te de mim, minha linda? — brincou Karine, assim

que Sophie atendeu.

— Oh, caraças! Peço mil desculpas…

Karine soçobrou ao ouvir isto. Sophie tinha-se mesmo esquecido

dela.

— Aconteceu-me uma coisa mesmo estranha esta manhã — tentou

explicar Sophie. — Não posso falar muito agora, mas depois conto-te

tudo.

Karine já nem estava a ouvir, entregue à sua desilusão.

— Não te preocupes com isso — disse apenas, antes de desligar,

envolta em tristeza.

Caminhou até à paragem de autocarro. Pelo caminho, encontrou um

caixote do lixo e, por despeito, atirou o presente embrulhado lá para

dentro.

Não era só Karine que esperava Sophie.

A poucos metros da paragem de autocarro, havia um salão de chá.

No respetivo parque de estacionamento, podia ver-se um Peugeot

cinzento. O seu condutor sentara-se na esplanada, fingindo ler o jornal.


O homem estava atento à passagem de Sophie. Aparentemente, esta

manhã ela atrasara-se.

Começava a conhecer perfeitamente os seus hábitos.

Era bom reencontrá-la.


Na Casa de Vidro, Sophie andava de um lado para o outro na

cozinha.

— Não serve de nada andarmos aqui às voltas — disse-lhe Arpad,

pousando-lhe suavemente as mãos nos ombros. — Porque não vais à

mesma ao escritório e sempre pensas noutras coisas?

— Estou preocupada… Devíamos ir no fim de semana a casa dos

meus pais…

— Vou instalar um alarme — prometeu Arpad. — Ainda esta

manhã, contacto uma empresa de segurança e a instalação fica feita

antes de nos irmos embora.

— Mas quem era o homem que estava ali escondido a olhar para

mim?

— Ouviste o que disseram os polícias — desdramatizou Arpad. —

Não há de ser nada de especial.

— Como assim, nada de especial? Havia um tipo a espiar-nos e tu

dizes que não é nada de especial?

— Soph’, se fosse mesmo um assaltante a reconhecer o terreno,

acredita que já perdeu de certeza a vontade de cá voltar. E além disso

não precisas de ficar nervosa: hoje não vou sair daqui.

Às quartas-feiras, Arpad trabalhava a partir de casa. Isso permitia-

lhe passar algum tempo com os filhos. À exceção do breve período em

que iria pôr e buscar Léa e Isaak às suas atividades, haveria sempre

alguém na propriedade.

Sophie resignou-se à sugestão do marido e foi trabalhar. Mas não

estava descansada.

Este sentimento acompanhou-a durante todo o seu trajeto de

automóvel. Ao sair, a pé, do parque de estacionamento Monte Branco,

para se dirigir ao escritório, teve a impressão de que alguém a seguia.

Virou-se várias vezes, observando os outros transeuntes, nunca

identificando nada de anormal. Estava uma pilha de nervos. Tinha

necessidade de desabafar com uma amiga e a primeira pessoa em que

pensou foi Karine.

Quando Karine viu Sophie entrar na loja, percebeu imediatamente

que alguma coisa se passava.


— O que é que aconteceu, Sophie?

Sophie conteve um soluço.

— Podemos ir beber um café?

— Claro que sim!

A loja dispunha de uma máquina de café para servir os clientes, mas,

tendo em conta a situação, Karine informou as colegas de que teria de se

ausentar brevemente e levou Sophie ao Café des Aviateurs, do outro lado

da rua.

— Desculpa aparecer assim… — começou Sophie. — As tuas

colegas devem ter pensado que eu sou maluca.

— Nada disso — tranquilizou-a Karine.

Por dentro, Karine fervia de impaciência. Num momento de aflição,

fora a ela que Sophie recorrera. Queria muito saber o que se passava. E

incentivou-a:

— Conta-me tudo, minha linda.

Desde que Sophie lhe chamara minha linda, na véspera, Karine

devolvia-lhe o epíteto sempre que podia, na esperança de também ela

voltar a ouvi-lo.

— Tivemos um intruso na nossa casa, esta manhã — contou Sophie.

— O quê?!

— Enfim, não entrou realmente em casa. Mas foi quase como se

tivesse entrado. Eu estava a beber o meu café, por volta das seis da

manhã, quando reparei que havia um tipo na floresta a espiar-me.

— E depois?

— Acendi as luzes e gritei. O Arpad apareceu logo. Mas o tipo

entretanto fugiu.

Karine pousou a sua mão sobre a de Sophie.

— Oh, lamento muito! — disse. — Deve ter sido uma experiência

assustadora. Chamaram a polícia?

— Obviamente. E veio, mas os agentes inspecionaram a floresta e

não descobriram nada.

— Vão abrir um inquérito?

— Querias! Disseram que não havia grande coisa que pudessem

fazer: não há vestígios, não chegou a haver arrombamento, nada.

Sinceramente, pareceu-me que se estavam um bocado nas tintas para

tudo aquilo.
— Espera, temos mesmo de falar disto ao Greg.

— Achas?

— Claro que sim. De certeza que ele pode fazer alguma coisa —

afirmou Karine, orgulhosa da sua súbita importância. — Ele nunca fala

disso, mas está muito bem colocado na hierarquia.

Karine não revelou mais nada, para não pôr em causa o segredo que

rodeava o cargo do marido. Os Braun sabiam que Greg era polícia, mas,

como a maior parte das pessoas que o conheciam (à exceção de um

círculo mais íntimo), ignoravam tudo sobre as suas funções concretas.

Aos membros do corpo de intervenção exigia-se que fossem

absolutamente discretos, por razões de segurança. Greg, quando lhe

perguntavam, limitava-se a dizer que trabalhava nos serviços de

emergência.

Karine, assumindo a linguagem dos inquéritos, interrogou Sophie:

— Mencionaste um tipo. Conseguiste ver esse homem?

Conseguirias identificá-lo?

— Não, estava demasiado escuro para distinguir fosse o que fosse.

Mas era um homem, disso tenho a certeza. E não se tratava de alguém a

passear nos bosques, ou um vagabundo qualquer como sugeriram os

polícias: ele escondeu-se atrás de um arbusto e estava a observar-me…

Era como se… Não interessa, vais pensar que sou doida…

— De maneira nenhuma — interrompeu logo Karine. — Conta.

— Era como se ele estivesse à minha espera.

— Oh, meu Deus! — exclamou Karine. — Que angústia!

— A quem o dizes! Foi a primeira vez que senti medo na minha

própria casa.

— Vou pedir ao Greg para passar por lá ao fim do dia. Tenho a

certeza de que ele te pode ajudar a esclarecer isso tudo.

— Obrigada, minha linda — sorriu-lhe Sophie.

Ao ouvir isto, Karine iluminou-se.

***

Meio-dia, na loja.
Karine comia uma sanduíche numa sala sem janelas que servia de

armazém. Lia no telemóvel um artigo sobre uma importante operação da

polícia que ocorrera ao nascer do dia no bairro de Pâquis. Um homem

que se barricara tinha sido capturado pelo corpo de intervenção.

Ela ia descobrindo os detalhes da história, mas já estava ao corrente

do essencial há um bom bocado. Greg telefonara-lhe, como fazia sempre

depois de cada operação.

O artigo estava ilustrado com algumas fotografias. Reconheceu Greg

numa delas, apesar do passa-montanhas e do uniforme que o tornava

anónimo entre os outros membros da sua unidade. Há muitos anos que

tinham combinado um pequeno sinal, que só eles conheciam, para que

ela o reconhecesse. Entre as diferentes insígnias presas com velcro ao

equipamento de choque, havia uma com o seu grupo sanguíneo, A+, que

ele colava sistematicamente de pernas para o ar. Ela escrutinou a

imagem, admirando o marido, sempre impressionante na farda de

combate. Aparecia a dar instruções a uma agente da polícia, à paisana,

visível apenas de costas.

A realidade desse instante, captado pela fotografia, era que a

inspetora Marion Brullier viera cumprimentar Greg no fim da

intervenção.

— Obrigada — disse ela, os olhos brilhantes.

— Estamos cá para isto, Marion — respondeu-lhe Greg. — Sabes

onde nos procurar da próxima vez.

Ele esboçou um sorriso que o passa-montanhas escondeu.

Mas Marion apercebeu-se dele pela forma como o maxilar de Greg

se moveu.

— Não me vou esquecer — garantiu ela. — Na verdade, vou

precisar de falar contigo. Tens de me explicar melhor o que se passou

aqui.

Greg voltou a sorrir. Não tinha a certeza de quais seriam os factos

por elucidar a que Marion se referia.


Ao fim da tarde, quando Sophie voltou à Casa de Vidro, encontrou

Arpad e Greg no jardim. Inspecionavam os arbustos, no lugar onde ela

vira aquela assustadora silhueta, nessa mesma manhã.

— Oh, Greg, estou tão contente por te ver aqui!

— Parece que os meus colegas não se quiseram esforçar muito —

lamentou Greg.

Sophie encolheu os ombros.

— Para eles, não aconteceu aqui nada de muito grave — admitiu.

— O que não é desculpa — contrapôs Greg.

Segurava na mão um dos sacos de plástico que a polícia usa para

conservar materiais de prova. Lá dentro, uma trela de cão.

— É a trela que estava presa numa árvore? — perguntou Sophie.

Greg fez que sim com a cabeça. Ao chegar, deixou que Arpad o

levasse até à floresta. Agiu como se estivesse a descobrir aquele lugar. E

quando o dono da casa apontou para a trela amarrada ao tronco de um

carvalho, Greg montou o seu espetáculo: depois de calçar umas luvas de

látex, inspecionou longamente a tira de couro. Agachado na floresta,

desempenhou o papel de especialista da polícia forense. Podia ver-se o

coldre da sua arma de serviço a espreitar, por baixo da camisa. Uma

verdadeira cena de filme. Quando achou que a representação já durara o

suficiente, apropriou-se da trela e guardou-a, por precaução, no saco de

plástico.

— Achas que a trela está relacionada com o homem? — perguntou

Sophie.

— Para vos ser franco, duvido muito — respondeu Greg. — Para

quê uma trela? E por que raio haveria ele de deixar no local um indício

destes? Mas de qualquer maneira vou mandá-la para análise. Nunca se

sabe. Não se deve ignorar nenhuma pista.

— Obrigada — disse-lhe Sophie, agradada por ser finalmente levada

a sério.

Foi a vez de Arpad fazer perguntas:

— O que é que achas que o tipo estaria a fazer aqui? Só há esta

casa… Ele veio por uma razão muito concreta, não?

— Deve ser um ladrão — sugeriu Greg.


— Os polícias disseram que era improvável que um ladrão

arrombasse a casa no momento em que os seus ocupantes estão prestes a

acordar.

— Ele podia estar só a fazer um reconhecimento — observou Greg.

— A observar os vossos hábitos.

— O que devemos fazer? — perguntou Arpad.

Greg saboreava este pequeno momento de superioridade: os Braun

estavam suspensos, à espera do que ele dissesse.

— Nada de nada — declarou. — Sobretudo, não comecem a fazer

filmes!

— Tens razão — concordou Arpad, acenando com a cabeça. — Vem

daí beber um copo.

Reentraram os três na casa. Sophie foi buscar coisas à cozinha.

Despejou nozes numa tacinha e abriu uma garrafa de vinho. Greg, junto

à bancada, observava-a de relance. Via como as suas mãos manejavam o

saca-rolhas, a sobrancelha esquerda ligeiramente franzida, traindo a sua

concentração. O lábio inferior que ela mordia tantas vezes. Reteve a

imagem de Sophie antes de ela acabar de encher um terceiro copo.

— Vou estar em alerta toda a semana — declarou ele. — Acho

preferível contentar-me com um pouco de água.

— Posso propor-te algo um bocadinho mais entusiasmante do que

água. Um sumo? Uma Coca-Cola?

— Pode ser Coca-Cola.

Sophie encheu um copo com cubos de gelo, cortou com desenvoltura

uma rodela de limão, abriu uma garrafa de Coca-Cola e pousou tudo em

frente de Greg, dirigindo-lhe um sorriso. A cena, se tivesse sido filmada,

poderia perfeitamente servir para um anúncio publicitário da bebida.

Greg estava subjugado. Mas Arpad estragou o momento ao aparecer no

seu campo de visão para beijar a mulher no pescoço, antes de pegar nos

copos de vinho e conduzir toda a gente para a sala de estar.

Greg sentou-se no sofá, no preciso lugar onde, na noite da véspera,

Sophie se deixara possuir sob o seu olhar. Discretamente, acariciou o

tecido.

Sophie afundou-se num cadeirão, mesmo em frente a ele.

Descalçou-se, deixando os sapatos pretos caídos no soalho. Greg


admirou aqueles pés com as unhas pintadas de vermelho. Depois

perguntou:

— Estavas onde exatamente, esta manhã, quando viste o tipo

escondido nos arbustos?

— Ali, junto à janela da cozinha — respondeu Sophie, apontando

para o sítio onde ele a vira de madrugada.

Greg levantou-se e foi colocar-se onde ela indicara. Punha-se no

lugar da presa. Era estranho reviver aquela cena invertendo os papéis.

Sobretudo, apercebeu-se de que o arbusto ficava muito mais próximo do

que ele supusera. Com um pouco mais de luminosidade, ela teria sido

capaz de o reconhecer. Pensou no risco imenso a que se expusera. E no

qual nunca mais deveria incorrer.

Arpad explicou que contactara, entretanto, uma empresa de

segurança para instalar um alarme, mas que a marcação mais rápida que

conseguira era para a segunda-feira seguinte.

— Um alarme, muito bem — aprovou Greg. — Mas, como já disse,

duvido que o ladrão regresse nos próximos tempos. Fiquem descansados

e não alterem os vossos hábitos.

— Acho que vou comprar uma pistola — confessou Arpad.

— Uma pistola? — perguntou Greg, num tom desaprovador.

— Estás maluco? — enervou-se Sophie. — Não quero uma arma

dentro desta casa!

— Isso seria um grande disparate — concordou Greg, armado em

moralista. — Não vais querer que aconteça um acidente qualquer com

os miúdos…

Dito isto, regressou ao sofá para terminar a sua Coca-Cola, depois

aproveitou a ocasião para trocar números de telefone com Sophie.

— Se acontecer alguma coisa, seja o que for, liga-me — insistiu ele.

— Não te acanhes. E além disso, se quiserem, até terem um alarme, eu

posso fazer rondas na floresta quando for passear o cão.

— Obrigada, Greg — disse-lhe Sophie, que pareceu aliviada ao

ouvir esta proposta.

No momento em que Greg se preparava para deixar a Casa de Vidro,

Sophie, ao despedir-se, deu-lhe um beijo na cara. Nada de formal, um

verdadeiro gesto espontâneo. Para Greg, foi como que uma investidura.

Concluiu que toda a história do homem que andava a rondar a Casa de


Vidro lhe iria ser benéfica. No fundo, era um meio para se aproximar

ainda mais dela.

No caminho de regresso, viu um caixote do lixo. Atirou lá para

dentro a trela do cão. Diria que as análises não haviam revelado nada.

Nessa noite, Greg, chegada a hora de passear Sandy, evitou a

tentação de se aproximar da Casa de Vidro. No entanto, os Braun

tiveram uma visita.

Aproveitando as sombras da noite, o Peugeot cinzento estacionou

num caminho agrícola, próximo da floresta. O homem que saiu do

automóvel conhecia perfeitamente o chão que pisava. Entrou na floresta

e esgueirou-se até à Casa de Vidro.


Sábado, 2 de julho de 2022

O DIA DO ASSALTO

9h34

O gerente da loja abriu o cofre principal. Logo a seguir, o do Boné

prendeu-lhe as mãos atrás das costas com um fio de plástico e obrigou-o

a deitar-se no chão, de barriga para baixo. Depois abriu, uma a uma, as

gavetas do cofre, sem tocar no seu conteúdo. Procurava algo em concreto

e esboçou um sorriso de triunfo ao encontrá-lo: enormes diamantes cor-

de-rosa.

Pegou num saco de veludo e colocou as pedras preciosas lá dentro.

Estava ali uma fortuna de muitos milhões. Espreitou, nervoso, para o

cronómetro.

Só tinham mais três minutos.


CAPÍTULO 5

16 dias antes do assalto

Domingo, 12 de junho

Segunda-feira, 13 de junho

Terça-feira, 14 de junho

Quarta-feira, 15 de junho

→ Quinta-feira, 16 de junho de 2022


SEXTA-FEIRA, 17 DE JUNHO

SÁBADO, 18 DE JUNHO (FIM DE SEMANA EM SAINT-T ROPEZ)

DOMINGO, 19 DE JUNHO (FIM DE SEMANA EM SAINT-T ROPEZ)

SEGUNDA-FEIRA, 20 DE JUNHO (ANIVERSÁRIO DE SOPHIE)


Oito e vinte da manhã.

Na saída para peões do parque de estacionamento do Monte Branco,

Sophie e Karine surgiram ao cimo das escadas rolantes, em amena

cavaqueira, com evidentes sinais de boa disposição. Ambas se riam às

gargalhadas. E ambas sabiam que era ali que supostamente se

separariam, mas Sophie sugeriu a Karine que prolongassem aquele

momento:

— E se fôssemos beber um café?

— Agora? — perguntou Karine, como se ficasse surpreendida por

alguém apreciar a esse ponto a sua companhia.

— Sim, mas só se não chegares atrasada por causa disso — precisou

Sophie, cautelosa.

— Com todo o prazer — respondeu logo Karine. — Sabes, eu sou

um bocadinho a patroa, naquela loja. Posso fazer o que quiser.

Lançada a mentira, pegou discretamente no telemóvel e enviou uma

mensagem à sua responsável.

Tenho os miúdos doentes. Vou chegar atrasada. Lamento muito.

As duas mulheres instalaram-se no Café des Aviateurs. Karine

escolheu uma mesa ao fundo, para não correr o risco de ser vista por

uma das suas colegas. Conversaram durante um bom bocado. A

cumplicidade era tão evidente que toda a gente diria estarem ali amigas

de longa data. Depois Sophie declarou que era hora de ir andando:

— Tenho de te deixar, minha linda. — (Sorriso vitorioso de Karine.)

— Tenho uma carrada de trabalho em atraso.

Depois de saírem do café, Karine ficou a ver Sophie afastar-se.

Contemplou o modo como ela andava, a sua silhueta, os seus cabelos

que ondulavam de forma perfeita, as suas pernas compridas

impecavelmente bronzeadas, que os sapatos de salto alto ainda

conseguiam realçar mais. Karine perguntou-se então se seria possível

admirar e detestar alguém pelos mesmos motivos: a própria definição de

inveja.
Karine observou Sophie até ela desaparecer pela porta do belo

edifício, em pedra, onde estava sediado o escritório de advogados. No

seu imaginário, a amiga circulava sempre por locais luxuosos, revestidos

a madeiras caras e com sofás de couro. Ao chegar, seria recebida com

deferência por um exército de colaboradores, todos impecavelmente

vestidos, alinhando-se em parada até ao seu imenso gabinete, onde um

janelão lhe ofereceria uma vista majestosa para o lago Léman.

No entanto, se o endereço do escritório de advogados de Sophie era

sem dúvida prestigiante, a realidade nada tinha de grandioso. No último

piso do edifício, quando Sophie empurrou a porta de entrada do seu

local de trabalho, esta bateu com estrondo contra a porta de um armário.

— Desculpa! — gritou Véronique, a colaboradora de Sophie, do seu

gabinete. — Voltei a esquecer-me de fechar a porcaria do armário.

— Não faz mal — respondeu Sophie, afastando o obstáculo com a

mão.

Era um gesto habitual. E não era culpa de Véronique: aquele espaço

fora muito mal concebido. O famoso último andar consistia numa

superestrutura recente, acrescentada ao edifício uns anos antes, e sem

relação com o resto do prédio: as salas eram minúsculas; os tetos,

baixos; as janelas, estreitas. Se alguém quisesse espreitar o lago, teria de

fazer um exercício de contorcionismo. O escritório de advogados

reduzia-se a um corredor, com chão de linóleo, que dava acesso a três

salas: o gabinete de Sophie, o de Véronique, e mais uma sala de

reuniões, raramente utilizada, onde se acumulavam os dossiês, por falta

de espaço. Havia ainda uma cozinha diminuta e uma casa de banho.

Objetivamente, as instalações eram acanhadas e pouco funcionais, mas

Sophie conseguira arrendá-las por um valor vantajoso. Sobretudo,

considerava aquele lugar perfeito para ela. Ficava mesmo no centro da

cidade e com o tempo até introduzira um toque pessoal de bom gosto na

decoração. Sentia-se bem ali, e isso é que importava. Na verdade, não

era necessário mais espaço: o negócio resumia-se a elas as duas, Sophie

e aquela jovem assistente, uma advogada ativa e trabalhadora. Sophie

gostava muito de Véronique, talvez por reconhecer na sua funcionária

algo do que ela própria tinha sido no início da sua vida profissional.

Sophie instalou-se no seu gabinete e ligou o computador. O ecrã

acendeu-se e surgiu logo uma notificação da agenda, lembrando uma


reunião no dia seguinte, de manhã, com um dos seus principais clientes,

Samuel Hennel.

Véronique, fazendo-se ouvir na sala ao lado, perguntou-lhe, sem sair

do seu lugar:

— Estás pronta para amanhã?

— Para o meu encontro com o Samuel Hennel? — perguntou

Sophie.

— Não, para o teu fim de semana em Saint-Tropez!

— Ainda nem sequer fiz as malas. Trato disso logo à noite. Por outro

lado, amanhã não passo aqui de manhã. Vou diretamente de casa para a

reunião com o Hennel. Depois, ponho-me a caminho por volta do meio-

dia, com o Arpad e as crianças, para não chegarmos demasiado tarde.

Por isso, tenho de levar hoje todos os documentos relacionados com o

Hennel.

Véronique, que geralmente se antecipava a preparar tudo, apareceu à

porta com um enorme pacote de papelada. Pousou tudo na mesa de

Sophie.

— Deixei marcadores nas páginas em que o senhor Hennel vai ter de

assinar — explicou Véronique. — Fiz também uma lista a recapitular os

vários documentos necessários. São os formulários habituais do banco.

Tens tudo aí anotado.

Véronique era diabolicamente eficaz.

— Muito obrigada — disse-lhe Sophie, agradecida.

***

Cinco da tarde, na Verruga.

Greg estacionou o carro mesmo em frente da casa.

Gostava muito do sítio onde moravam, ao contrário de Karine, que

se queixava regularmente. A pequena aldeia agradava-lhe. A calma, a

natureza. E depois havia o jardim deles, não muito grande, é verdade,

mas do qual se ocupava com esmero, mantendo até uma pequena horta.

Antes de sair do automóvel, anunciou a sua chegada com uma

sucessão rápida de buzinadelas, o sinal do costume, que os filhos


reconheciam imediatamente. De facto, a porta de entrada abriu-se e os

dois rapazes precipitaram-se para abraçar o pai, seguidos pelo cão Sandy

e por Agnès, a mãe de Karine, que ficava a tomar conta das crianças às

quintas-feiras, depois da escola.

Greg tirou do porta-bagagens os sacos das compras, pesadíssimos, e

um ramo de flores para a sua mulher. O alegre grupo voltou então para

dentro.

— Esta noite, o jantar é piccata de vitela — anunciou Greg,

enquanto pousava as compras em cima da bancada da cozinha e metia as

flores numa jarra com água. — Fica para comer connosco, Agnès?

— Obrigada pelo convite, Greg, mas tenho o meu clube de leitura.

Aliás, tenho de ir andando, para não chegar atrasada.

Agnès beijou os netos. Greg acompanhou-a à porta. Reparou no

rádio-despertador pousado em cima do móvel da entrada.

— Já me ia esquecendo — disse Greg, pegando no objeto para o

entregar à sogra. — Está arranjado. Havia um mau contacto e eu dei-lhe

um jeitinho, com o ferro de solda. Deve aguentar-se.

A senhora sorriu.

— Obrigada, és um anjo.

— Sabe, Agnès, hoje em dia há modelos novos, muito mais

modernos.

— Este já o tenho há quinze anos e ainda funciona perfeitamente,

como se vê. Os vendedores querem sempre que deitemos tudo fora,

mesmo o que ainda pode ser reparado, para nos impingirem as suas

novidades. Na loja, queriam vender-me um modelo com «melhor

performance»! Para quê? Isto é só um rádio-despertador. E como é que

um rádio-despertador pode ter uma «melhor performance»? Será que vai

fazer um cafezinho e lavar os dentes por mim, enquanto ainda estou a

dormir?

Greg riu-se. Agnès foi-se embora, lançando um sorriso cúmplice ao

genro. Adorava-o. Achava que a filha lhe fazia a vida negra sem razão

nenhuma. Segundo ela, os casais das novas gerações não se esforçavam

o suficiente para se entenderem. Ora, as relações só funcionam se os

dois estiverem mesmo empenhados.

Greg instalou os filhos na mesa da cozinha, com os seus cadernos.

Ao mesmo tempo que orientava os trabalhos de casa, começou os


preparativos para a piccata. Passou os pedaços de carne pela farinha e

deixou-os de lado, num prato. Espremeu um limão por cima, cortou um

bocadinho de salsa, e foi buscar alcaparras, para que tudo estivesse

pronto e depois fosse só cozinhar a carne quando Karine chegasse.

Improvisou um molho com natas para a massa tagliatelle. Só começaria

a ferver a água em cima da hora. A massa era fresca e ficaria cozida em

dois minutos. Assim que os rapazes terminaram os deveres, mandou-os

tomar banho e aproveitou para também ele tomar um duche.

Quando Karine entrou em casa, reinava uma atmosfera serena. As

crianças brincavam calmamente e Greg acabava de preparar a refeição.

— O jantar é servido dentro de dois minutos — anunciou ele,

despejando a massa numa panela com água em ebulição.

Karine reparou nas flores sobre a mesa. Sorriu. Greg ativou o

temporizador do seu telemóvel e pousou um escorredor na pia, pronto

para receber a massa dentro de 1’49, 1’48, 1’47… Depois contemplou a

sua pequena família. Se Sophie, na véspera, ao surpreendê-lo na orla do

bosque, tivesse sido capaz de o reconhecer, poderia ter perdido tudo: o

emprego, a mulher, os filhos. Imaginou o pior cenário: a detenção feita

pelos seus colegas polícias, a prisão preventiva e a circunstância

humilhante de ser considerado o «Pervertido de Cologny» pelos

vizinhos e por toda a comunidade. O que é que lhe passara pela cabeça

para ir espiar uma mulher em sua casa? Perguntava-se de onde viria essa

pulsão.

Foi uma noite tranquila, na Verruga.

Deitadas as crianças, Karine e Greg instalaram-se na sala de estar

para verem a sua série televisiva preferida. Quando Karine se levantou,

para fazer um chá, Greg pediu-lhe uma Coca-Cola. Ela trouxe-lhe uma

garrafa, que se limitou a pousar na mesinha de apoio, à frente dele, sem

sequer um copo. Ele voltou a pensar no modo como Sophie lhe

preparara uma bebida, com cubos de gelo e uma rodela de limão. Karine

sentou-se de novo junto a ele. Greg observou os pés da mulher. Não

eram feios, mas não estavam tão bem tratados como os de Sophie.

— Porque é que não pintas as unhas dos pés? — perguntou de

repente.
— Faço isso quando tiver tempo — respondeu Karine, os olhos fixos

no ecrã.

***

Nessa noite, como todas as quintas-feiras, Arpad foi jogar squash no

clube de ténis de Cologny, com Julien Martet, um seu amigo de longa

data. Era o encontro semanal entre eles. Depois do jogo, jantavam juntos

no restaurante do clube. Aproveitavam para fazer o ponto de situação

das respetivas vidas. Enquanto comiam, a conversa derivou para o tema

da carreira. Julien alcançara um lugar de alta responsabilidade num

fundo de investimento. Tivera uma ascensão vertiginosa, e o amigo

admirava-o por isso.

— Como é que vão as coisas lá no banco? — perguntou Julien.

— Vão indo. Mas começo a pensar em fazer outra coisa.

— Diz-me: também na área financeira, certo?

— Claro que sim. Mas aborreço-me um bocado no banco. Não me

vejo a fazer a mesma coisa toda a vida. Imagino-me muito mais a fazer

algo por conta própria.

— Sabes, eu investi num projeto imobiliário na Costa Rica —

confessou então Julien. — Talvez te pudesse interessar, a título pessoal.

Ou eventualmente para alguns dos teus clientes. O que é que achas?

— Acho que sim — concordou Arpad. — Gostava que me

explicasses isso melhor.

— Passa lá por casa no fim de semana. Assim posso partilhar

contigo todas as informações que tenho sobre o assunto.

— Neste fim de semana vamos estar em Saint-Tropez, em casa dos

pais da Sophie.

— Então ligo-te amanhã, quando tiver o dossiê à minha frente.

Arpad voltou para casa por volta das dez da noite.

Encontrou Sophie a ler, na sala de estar. Encheu dois copos de vinho

e conversaram durante um bocado. Escondida na floresta próxima, uma


silhueta espiava-os. O homem do Peugeot cinzento regressara. A coberto

da escuridão, espreitava atentamente o interior do cubo de vidro.

No mesmo instante, na Verruga, Greg e Karine acabavam de ver o

terceiro episódio seguido da sua série. Karine foi para cima, deitar-se.

Greg saiu para ir passear Sandy. Deu alguns passos na noite. O cão

parecia apreciar a ausência da trela, correndo de um lado para o outro,

atrás das pistas olfativas que ia encontrando. Greg, ao ver tanta agitação,

pensou que tinha impreterivelmente de comprar no dia seguinte uma

trela igual à perdida. Antes que Karine começasse a fazer perguntas.

Chegado ao fim da rua, Greg, que saíra apenas para que Sandy

apanhasse um pouco de ar, dirigiu-se de súbito para a Casa de Vidro.

Era mais forte do que ele. Mas, depois dos acontecimentos da véspera,

não podia correr quaisquer riscos. Por isso, enviou uma mensagem a

Sophie:

Vou fazer uma ronda na floresta, com o cão.

Percorreu a estrada e chegou rapidamente à orla da floresta. Foi

avançando entre os troncos, sem fazer barulho. Sandy bisbilhotava lá

para trás, de focinho mergulhado entre as folhas mortas. Como sempre

que se deslocava por ali, Greg sentia a excitação da caçada. Logo

distinguiu os contornos da casa, por trás da vegetação. Mas os estores

estavam todos fechados. Sentiu uma pontinha de deceção: o espetáculo

já tinha acabado. Greg estava prestes a dar meia-volta, quando se

imobilizou. Acabara de se aperceber de uma sombra, a poucas dezenas

de metros. Algo se mexera no limite da floresta. O seu coração disparou

bruscamente.

*
A trinta metros de Greg, o homem, agachado para melhor se

dissimular, continha a respiração. Esforçava-se por se fundir na noite,

mas sentia que fora descoberto.

Greg, com os sentidos em alerta, interrogou a escuridão:

— Está aí alguém?

O homem permaneceu absolutamente imóvel, esperando assim

enganar quem o detetara.

Acendendo a lanterna, Greg começou a varrer os troncos e os

arbustos com o poderoso feixe de luz.

— Quem está aí? — gritou várias vezes.

O homem já não tinha alternativa: saltou do esconderijo, pisando o

arbusto atrás do qual se ocultara, e pôs-se a correr tão depressa quanto

conseguia através da floresta.

Greg sentiu uma descarga de adrenalina. Alguém andava a espiar a

casa dos Braun! A lanterna iluminou a silhueta que se escapava a toda a

velocidade para o interior das trevas.

— Pare! — gritou ele. — Polícia! Pare imediatamente!

Mas a sombra continuou a fuga por entre as árvores.

Acelerando a corrida, Greg lançou-se em sua perseguição.


O homem, ao sair da floresta, constatou que ganhara um certo

avanço em relação ao perseguidor. Continuou através de um campo até

uma pequena estrada deserta, reservada à passagem de tratores. Dirigiu-

se para o seu Peugeot cinzento e atirou-se lá para dentro. As portas

estavam destrancadas e a chave já na ignição. Ele sabia que estas

pequenas precauções poderiam safá-lo em caso de ser perseguido. Ligou

logo o motor e o carro acelerou na noite. Escapara de boa.

O Peugeot cinzento evaporara-se nos campos dos arredores de

Genebra quando os primeiros veículos da polícia irromperam em

Cologny. A central de emergência, alertada por Greg, destacara

patrulhas, bem como uma brigada cinotécnica, com os seus cães, na

esperança de encontrar pistas. Dois inspetores de serviço da polícia

judiciária foram igualmente convocados.

Greg perdera o rasto do suspeito na orla da floresta. Começou então

a caça ao homem. Os veículos de patrulha seguiram por todas as

estradas e caminhos das redondezas, varrendo as vedações, e os prados

por trás delas, com projetores potentes. No interior da floresta, os

treinadores da brigada cinotécnica largaram os seus pastores-alemães.

Um dos canídeos seguiu uma pista olfativa até uma estrada agrícola,

antes de parar de repente.

O treinador chamou Greg e a dupla de inspetores. Depois, explicou-

lhes:

— Tendo em conta como o cão reagiu, penso que o vosso suspeito

terá fugido de carro a partir daqui.

As patrulhas alargaram as buscas às aldeias vizinhas, atrás de um

veículo sobre o qual não se sabia absolutamente nada. Era o mesmo que

procurar uma agulha num palheiro. À meia-noite e meia, o dispositivo

policial foi desmobilizado.

Na Casa de Vidro, quando Greg informou os Braun de que os seus

colegas tinham voltado de mãos a abanar, Sophie sentiu-se

desesperadamente só diante daquela ameaça intangível. A presença de

Greg tranquilizava-a e, para o reter um pouco mais, ofereceu-lhe café e


biscoitos. Sandy, que ficara fechado numa divisão do piso térreo para

não atrapalhar o trabalho dos cães-polícias, regressou à cozinha e veio

encostar o seu focinho húmido à coxa de Sophie. Ela compensou-o com

uma festinha afetuosa.

Arpad, com um ar sério, engoliu o café de um trago e perguntou a

Greg:

— Em teu entender, o que é que se passa?

— Não faço ideia. Havia um homem a vigiar a vossa casa. Falta

saber porquê.

— Seria o ladrão de ontem, que voltou para passar finalmente à

ação? — sugeriu Sophie. — Estava à espera de que nos deitássemos

para agir?

— Não me parece — disse Greg.

— Porque não? — perguntou ela.

Claro que Greg não podia explicar por que razão sabia perfeitamente

que os dois incidentes não estavam relacionados. Limitou-se a

responder:

— Parece-me que se trata de outra coisa…

Greg estava bastante irritado. Qual era a intenção daquele homem

que viera espiar os Braun? Tratar-se-ia, desta vez, de um verdadeiro

assaltante a reconhecer o terreno, cobiçando a casa isolada no meio da

floresta? Ou haveria ali outra história? Virou-se para Arpad:

— Peço desculpa, mas há uma pergunta que tenho de te fazer…

— Força.

— Conheces alguém que possa ter algo contra ti? Tens problemas de

alguma espécie?

— Não — respondeu Arpad, varrendo essa hipótese com um gesto

da mão. — Não tenho inimigos, nem problemas.

Greg continuou pensativo durante uns momentos. Depois concluiu

que a sua introspeção não resultaria em nada de produtivo.

— O melhor é irem deitar-se — sugeriu finalmente ao casal. —

Tentem dormir. Podem ficar descansados, os vossos estores são bastante

sólidos. Esta casa está bem protegida.

Sophie acompanhou Greg à porta.

— Tenho medo — disse-lhe ela. — E se o tipo regressa durante a

noite?
Greg quis tranquilizá-la.

— Ele não volta de certeza. Mas se acontecer seja o que for, tens o

meu número. Telefona-me e eu consigo estar aqui em menos de dois

minutos. Não hesites — disse-lhe.

— Obrigada.

Ela pousou a mão no seu ombro. Greg conseguia sentir a

perturbação de Sophie, e essa perturbação agradava-lhe porque o

colocava numa posição vantajosa.

— Amanhã de manhã, antes das seis, quando for passear o Sandy,

faço uma ronda na floresta — acrescentou.

— A essa hora já estou acordada. Ofereço-te um café.

— Não quero estar a incomodar-te — respondeu ele, fazendo-se

caro.

— Não incomodas nada.

— Então, até amanhã, cedinho.

Quando Sophie fechou a porta atrás dele, Greg, caminhando na noite

com o seu cão, pôde enfim deixar que se desenhasse no seu rosto o

imenso sorriso que tivera de conter uns segundos antes. Conseguira o

convite pelo qual ansiara.

Nesse instante, em Jussy, uma aldeia próxima.

O Peugeot cinzento estava parado diante da casa do caseiro de uma

exploração agrícola. Era ali que o homem tinha o seu Esconderijo, um

pequeno apartamento que arrendara por pouco tempo. Ali, estava ao

abrigo da curiosidade alheia, num sítio onde ninguém se lembraria de o

procurar.

Naquela espécie de toca, o homem passava em revista as fotos que

captara nos últimos dias. A Casa de Vidro, a partir de ângulos

diferentes, bem como cenas da vida quotidiana, conseguidas com

recurso à teleobjetiva. Arpad na cozinha, Arpad com os filhos, Arpad ao

telefone no pátio.

O homem acendeu um cigarro. A chama do isqueiro iluminou-lhe o

rosto: era belo. Devia andar pelos cinquenta anos. A intensidade do seu

olhar dava a entender que se tratava de um ser fora do comum. Muito

alto, de constituição atlética. Emanava dele uma impressão de força e

valentia.
Fumou à janela, espreitando as redondezas. Sempre em alerta.

Sempre à escuta. Uma vigilância permanente que era a razão da sua

longevidade, no trabalho que fazia. Mas então, como é que pudera

deixar-se surpreender, esta noite? Nem parecia coisa dele. E quem seria

aquele tipo na floresta, a gritar «polícia»? Seria mesmo da bófia? De

onde é que ele tinha saído?

O homem chegou à conclusão de que teria de redobrar os cuidados.

Que não podia deixar-se distrair com a excitação de estar em Genebra.

Dentro de quatro dias, ele iria revelar-se.


13 ANOS ANTES

MAIO DE 2007

Paris

Avenue Montaigne, no oitavo bairro de Paris.

Sophie, advogada muito jovem, começava a deixar a sua marca no

escritório Thémard, Tournay & Associados, onde ingressara havia cerca

de um ano.

Para ela, que crescera em Saint-Tropez e estudara Direito na

universidade de Aix-en-Provence, esta nova vida, longe do seu Sul, seria

uma etapa importante. Ela divertia-se na capital e adorava o seu

trabalho. O Thémard, Tournay & Associados era um escritório com

grande prestígio. Sophie juntara-se à equipa do Dr. Thémard, um dos

cinco sócios, um homem altivo e convencido da sua superioridade. Era

preciso tratá-lo sempre por «doutor» ao longo dia, enquanto ele se

permitia chamar os seus colaboradores masculinos pelo apelido, e

presenteava as mulheres com um «minha piquena». Unhas de fome na

altura de pagar, não se coibia de distribuir, sem qualquer parcimónia, as

opiniões mais desagradáveis. Mas Sophie resolvera acomodar-se à

situação, ciente de que, nos escritórios de advocacia mais prestigiados,

os sócios fazem questão de exibir o seu poder diante dos subordinados.

E, depois, o trabalho em si mesmo era apaixonante, ela gostava do

contacto com os clientes e os seus colegas mostravam-se muito

simpáticos. Ela sabia, sobretudo, que se tratava possivelmente do início

do seu caminho para a independência. O seu grande sonho era criar no

futuro um escritório em nome próprio.

Sophie vivia num apartamento do quarto bairro, pequeno mas muito

confortável, na rue Saint-Paul, a dois passos do Sena, no qual acolhia

regularmente as amigas de passagem por Paris. Naquela primavera,

recebeu a visita de uma amiga que não via há muito tempo: Céline, que
se mudara para Montreal dois anos antes, com o objetivo de terminar os

estudos, e que estava agora de regresso a França. As duas jovens tinham

crescido juntas em Saint-Tropez. Haviam passado os verões a trabalhar

nos restaurantes do pai de Sophie. Céline fora rececionista no Béatrice

até partir para o Québec, momento em que Sophie a substituiu.

Na noite em que Céline chegou a Paris, as duas amigas saíram «só

para beber um copo» às oito da noite, mas regressaram ao apartamento

apenas às quatro da manhã. Espojaram-se no sofá, conversaram um

pouco, depois Sophie foi dormir no seu quarto, deixando o sofá para a

amiga. Céline entreabriu um olho às sete da manhã. Estava de rastos,

com uma ressaca daquelas. Entretanto, apareceu Sophie, fresca e

repousada. Saída do duche, envolta num toalhão de banho.

— Não sei como é que consegues — disse-lhe Céline. — Eu estou

morta, e tu aí toda pronta para ires trabalhar.

Sophie sorriu, divertida.

— Vai para a minha cama — sugeriu. — Ficas muito mais à

vontade.

Céline não se fez rogada e foi logo enroscar-se na cama da amiga.

Sophie levou-lhe uma caneca de café, depois abriu o guarda-fatos, para

escolher a roupa. Ao atirar para o lado o toalhão de banho, expondo a

nudez, Céline reparou na enorme pantera desenhada na sua coxa.

— Fizeste uma tatuagem?

— Sim, como podes ver — respondeu Sophie, evasiva.

— Quando?

— Há dois anos.

Céline admirou o desenho.

— Porquê uma pantera?

— Na verdade, foi um impulso.

— Não te vais arrepender?

— Talvez — admitiu Sophie. — Sei lá. Espero que não. Detesto os

arrependimentos, são uma traição que fazemos a nós mesmas.

— Estou a ver que és uma boa advogada — sorriu Céline.

Sophie vestiu uma saia. A pantera desapareceu por baixo do tecido.

Céline observava a transformação da sua amiga. Algumas horas antes,

exibia calças de cabedal numa discoteca, depois revelou aquela

surpreendente tatuagem ao desnudar-se por completo, e agora aparecia


vestida como uma perfeita advogada: eis um camaleão, cujas

metamorfoses ela não podia deixar de admirar.

— Tenho de ir — disse Sophie, alisando a blusa. — Vê se dormes

um bocadinho. Quero-te em forma logo à noite.

— Logo à noite? Nem penses. Vai ser uma sopa e meter-me na cama

às oito! — declarou Céline.

Nesse dia, a meio da manhã, o Dr. Thémard entrou de rompante no

gabinete de Sophie.

— Minha piquena, o Samuel Hennel deve vir cá esta manhã. Uma

vez que a sua colega Jessica está, por assim dizer, doente, preciso que

me preencha esta papelada toda prestissimo.

Samuel Hennel era um negociante de arte muito rico, que se

instalara recentemente em Genebra por razões fiscais. Sophie não o

conhecia, nunca trabalhara no seu dossiê, mas sabia que Thémard se

queixava dele muitas vezes. Criticava o facto de lhe telefonar amiúde, de

exigir a presença dele em Genebra, de impor a sua presença no gabinete

dele de cada vez que vinha a Paris.

Sophie contemplou a pilha de documentos que Thémard acabara de

lhe passar para as mãos.

— Vou já tratar disso — assegurou ela, sem pestanejar.

Thémard olhou-a fixamente: agradava-lhe aquela eficiência.

Sophie, espreitando as primeiras folhas do grande monte de papel,

constatou que se tratava de formulários administrativos que era preciso

preencher por causa de um óbito.

— Morreu alguém no círculo próximo do senhor Hennel?

— A mulher — respondeu Thémard. — Há três meses.

— Pobre homem! — exclamou Sophie, condoída.

— Para começar, ele está longe de ser pobre — vituperou Thémard.

— E depois já faz três meses que ela foi para o céu. A certa altura, é

preciso saber virar a página. Resumindo, posso contar consigo, minha

piquena?

— Obviamente — respondeu Sophie. — Fique descansado, eu

ocupo-me do assunto.

Era evidente que Sophie tinha bastante futuro na advocacia.

Thémard decidiu desafiá-la.


— Faça-me mais um favor, pode ser?

— Claro.

— Receba-o. Ao Hennel. Sozinha. A vinda dele não estava prevista e

eu já tenho outro compromisso a que não posso faltar. Ele estará aqui às

onze horas.

— Isso é daqui a uma hora — fez-lhe ver Sophie.

— Eu sei. Algum problema com isso?

— Nenhum — assegurou Sophie, com um tom de voz perfeitamente

calmo.

— Magnifico! — entusiasmou-se Thémard, antes de dar meia-volta

e proferir um grazie mille.

Quando estava bem-disposto, Thémard tinha a mania irritante de

espalhar expressões italianas pelas suas frases.

Uma hora mais tarde, Sophie recebia Samuel Hennel numa das

amplas salas do escritório destinadas a receber clientes especiais. Era

um homem que já ultrapassara os setenta e cinco anos, muito elegante e

com uma volumosa cabeleira grisalha.

— Onde é que está o Thémard? — perguntou sem mais delongas, ao

ver que só se encontrava na sala aquela jovem advogada que não

conhecia.

— Ficou retido por causa de uma situação urgente — explicou

Sophie. — Pediu-me para o substituir.

O visitante pareceu contrariado.

— Precisava mesmo de falar com ele. Regresso esta noite a Genebra,

tenho um montão de documentos dos quais ele ficou de tratar e…

Sophie acalmou-o logo.

— Tenho aqui os seus documentos, senhor Hennel. Está tudo em

ordem. Não precisa de se enervar. Os meus pêsames pela sua mulher.

Hennel sentou-se em frente à grande mesa de trabalho e Sophie

apresentou, um a um, os documentos já devidamente preenchidos, que

apenas faltava assinar. O velho senhor parecia triste. Como que apagado.

Rubricava em silêncio. Na sala, só se ouvia o ruído da caneta a deslizar

no papel. À força de fazer tantas assinaturas, reabriu-se uma pequena

ferida que fizera no dedo indicador. Algumas gotas de sangue

macularam o documento. Ele puxou de um lenço, pressionou-o no dedo


durante alguns instantes, depois recomeçou a assinar. Sophie

interrompeu-o.

— Deixe-me ir buscar qualquer coisa para lhe fazer um curativo.

Samuel Hennel recusou.

— Isto não é nada. Cortei-me ontem.

— Não diga isso — objetou Sophie. — Está a sangrar.

Sem esperar resposta, ela ausentou-se uns minutos e voltou com a

caixa de primeiros socorros do escritório. Desinfetou o golpe e aplicou

um penso rápido. Ele deixou-a tratar do assunto. Quando terminou,

Sophie fingiu que repreendia o seu cliente.

— Tem de se cuidar melhor, senhor Hennel.

— Para quê? Era a Ludmila que cuidava de mim.

Sophie, por ter preenchido os formulários do óbito, sabia que

Ludmila era a esposa defunta.

— Pois bem — disse ela —, tenho a certeza de que a senhora

Ludmila não teria querido que andasse a perder sangue por causa de um

estúpido golpe no dedo.

Samuel Hennel sorriu.

Sophie pegou então noutra pequena pilha de formulários.

— De onde é que isso saiu? — perguntou Hennel, com um tom

subitamente desconfiado. — Não me recordo de lhe ter passado esses

documentos…

O ambiente, que se desanuviara brevemente, voltara a carregar-se.

Sophie empalideceu, imaginando que Samuel Hennel não deixaria de

queixar-se a Thémard, que depois se atiraria a ela.

— Fui eu que os acrescentei — admitiu.

— Bem me parecia que o doutor Thémard nunca faria isso.

Sophie tentou justificar-se.

— São documentos sobre a sua esposa que a administração lhe

pedirá para preencher, mais tarde ou mais cedo. Pensei que facilitaria os

trâmites, ao juntá-los ao processo. Quis apenas simplificar-lhe a vida…

Lamento muito…

Ao ouvir estas palavras, o olhar do interlocutor mudou.

— Porque haveria você de me pedir desculpa? — perguntou Hennel,

observando-a com ostensiva curiosidade. — Pelo contrário, aprecio

infinitamente a sua iniciativa, doutora. Esse malandro do Thémard sabe


sempre onde me encontrar quando se trata de pedir dinheiro pelos seus

serviços. Mas quando se trata de me dar uma ajudinha, normalmente

nunca está disponível!

Sophie, subitamente inspirada, imitou a elocução pedante de

Thémard:

— Hai voluto la bicicletta, adesso pedala!

Samuel Hennel começou a rir às gargalhadas, satisfeito. O seu rosto

iluminou-se.

— Há muito tempo que ninguém me fazia rir. Será que posso

convidá-la para almoçar?

***

Cerca de um ano mais tarde, no verão de 2010, a administração

francesa decidiu submeter a expatriação fiscal de Samuel Hennel a um

controlo rigoroso. Devido a uma recente operação à anca, que o impedia

temporariamente de viajar, Hennel devia gerir a situação a partir de

Genebra. Telefonava ao doutor Thémard várias vezes por semana, mas

este geralmente passava a chamada a Sophie, que fazia tudo para o

tranquilizar. Quando as conversas telefónicas com Sophie deixaram de

ser suficientes, Hennel, que em Genebra se sentia como um leão

enjaulado, exigiu que Thémard o fosse visitar à Suíça. Sophie transmitiu

o pedido ao patrão.

— Depois de me ter chateado tanto para o visitar em Genebra, agora

passou a massacrá-la a si! — vociferou Thémard.

— O coitado não pode sair de casa — lembrou Sophie.

— Mas o que é que interessa se ele pode ou não sair de casa? Já lhe

expliquei dez vezes ao telefone que entregámos ao fisco todas as

informações necessárias.

— Esta situação deixa-o bastante angustiado. Acho que o facto de o

ver pessoalmente iria fazer-lhe bem.

Thémard lançou a Sophie um olhar indagador.

— Mas quem é que você é, no fundo? A porta-voz dele? —

perguntou.

É
— Nem tudo se pode resolver por telefone. É preciso saber cuidar

um pouco dos clientes.

Sophie tinha razão e Thémard sabia-o. Por isso, capitulou:

— Muito bem. Eu vou. Organize-me isso tudo, pode ser? E já que

insiste tanto neste encontro, o melhor é vir comigo.

A viagem à Suíça aconteceu na semana seguinte. Sophie e Thémard

optaram por ir e vir no mesmo dia, de comboio. Saindo cedo da gare de

Lyon, chegaram a Genebra ao fim da manhã. Apanharam um táxi e

dirigiram-se diretamente a casa de Samuel Hennel, que esperava por eles

para o almoço. Este morava numa mansão, rodeada por uma

impressionante propriedade na margem do lago, na comuna de

Collonge-Bellerive.

Thémard aproveitou a refeição para despachar os assuntos, passando

rapidamente em revista os diferentes elementos do dossiê que

preocupavam o cliente. Hennel esmerara-se no banquete que ofereceu

aos convidados, mas Thémard estava tão contrariado que nem se dignou

a apreciar todas aquelas atenções. Recusou a sobremesa, aceitou sem

grande vontade um café, e apressou as despedidas. No táxi que os levava

de volta ao centro da cidade, disse a Sophie:

— Como pôde constatar, nem sequer valia a pena ter vindo visitá-lo.

Só conversa de circunstância.

O almoço fora tão rápido que Thémard e Sophie dispunham de três

horas livres até à partida do comboio. O tempo estava bom e Sophie

pensou que podia dar uma voltinha pela cidade. Mas Thémard, do alto

do seu mau humor, disse-lhe, quando saíram do táxi: — Faça-me um

favor: vá comprar uns chocolates para o Hennel. E leve-lhos

pessoalmente. Aprenderá que são as pequenas atenções o que mais conta

neste ofício. Ele adora chocolates com licor de cereja, sabe, aquelas

coisinhas com recheio.

Sophie pôs-se em campo. Entrou em duas chocolatarias, mas sem

ficar convencida com o que lá havia. Ela procurava algo mais simbólico.
Talvez uma planta? Numa florista, encontrou um magnífico bonsai.

Samuel Hennel confiara-lhe um dia que a esposa cultivava, com paixão,

estas miniaturas japonesas de árvores.

Sophie comprou o bonsai, apanhou um táxi e voltou a Collonge-

Bellerive. Quando chegou ao palacete, pediu ao motorista para aguardar

um pouco, enquanto ela entregava o presente. Confiou a minúscula

árvore à empregada que abriu a porta e voltou a correr para o carro. Mas

quando já seguiam pelo caminho de acesso, de gravilha, a empregada

saiu e pôs-se a esbracejar.

— Espere! — disse ela a Sophie, esbaforida depois de correr umas

dezenas de metros, enfiando a cabeça pela janela. — O senhor Hennel

quer falar consigo.

O táxi deu meia-volta e, uns minutos mais tarde, Sophie encontrava-

se diante do dono da mansão, que lhe lançava um olhar inquisidor.

— Foi o doutor Thémard que lhe pediu para comprar isto? —

perguntou.

— Sim, ele pensou que esta piscadela de olho lhe agradaria.

— Está a mentir — disse Hennel, de olhar fixo em Sophie. — Não

acredito no que me está a dizer.

— Desculpe? — ofendeu-se Sophie.

— Há anos e anos que Thémard insiste em oferecer-me uns horríveis

bombons com recheio. Além disso, a ele nunca lhe falei dos bonsais…

Como Sophie não dissesse nada, ele prosseguiu:

— Tem algum tempo disponível, agora?

— Nem por isso. O meu comboio parte às cinco.

— Então tem algum tempo — cortou Hennel. Em seguida virou-se

para a empregada: — Pague o táxi e mande-o embora, por favor. Nós

mesmos acompanharemos a menina Sophie à gare. — E depois,

virando-se novamente para Sophie: — Posso oferecer-lhe um café?

— Com todo o prazer.

***
Depois do verão, as chatices de Samuel Hennel com o fisco francês

levaram a um contencioso com o banco de Genebra onde ele tinha

depositado o seu dinheiro. Era necessário alguém deslocar-se à sede

para discutir diretamente com os responsáveis do banco. Thémard

convocou Sophie ao seu gabinete.

— Quero que vá a Genebra tratar deste assunto — ordenou

Thémard, visivelmente aborrecido.

— Sozinha? — espantou-se Sophie.

— Pois. Veja lá isto: o senhor Hennel insistiu na sua presença. Sem

mim. Devo dizer-lhe que até me dá jeito, porque não posso passar o meu

tempo em viagens à Suíça. Não sei o que você lhe fez, mas ele só tem

olhos para si.

— Limitei-me a fazer o meu trabalho — replicou Sophie. — Pelos

vistos, ele apreciou-o.

Thémard olhou-a de lado.

— Sabe uma coisa, minha piquena? Não é obrigada a responder a

tudo o que lhe digo.

— E o senhor não é obrigado a dirigir-me comentários

desagradáveis.

Thémard ficou em brasa.

— Muito cuidadinho com a maneira como me fala, minha piquena.

Não lhe permito… Talvez convenha recordar-lhe que sou o seu patrão.

— Precisamente por isso, devia dar o exemplo.

Thémard, como fazia sempre que se enervava, ajeitou com o dedo os

óculos pendurados na ponta do nariz:

— Basta! Não cuspa na mão que lhe dá de comer! Veja lá por onde é

que está a ir, Sophie! O melhor é resolver o mais rápido possível essa

história com o banco suíço. É o seu emprego que está em jogo!

Dois dias mais tarde, Sophie chegava a Genebra. Um motorista

esperava-a quando se apeou do comboio e escoltou-a até um automóvel

preto, de alta cilindrada, em cujo banco traseiro estava sentado Samuel

Hennel. Dirigiram-se de imediato ao banco.

Durante o trajeto, Samuel recapitulou com Sophie a situação, sobre a

qual ela já sabia tudo.


— Não deixa de ser incrível — disse ele — que os franceses queiram

reter o meu dinheiro e que o banco suíço esteja disposto a colaborar com

eles.

— Tudo se vai resolver — assegurou Sophie.

— Não duvido minimamente do seu talento — elogiou-a Hennel.

Chegados ao banco, Sophie e Samuel foram conduzidos a uma sala

de acolhimento. Ao entrar naquele espaço, Sophie ficou estupefacta ao

perceber quem era o banqueiro que os esperava. O homem pareceu tão

incrédulo quanto ela.

— Sophie? — articulou.

— Arpad? — espantou-se ela.

Ficaram um instante a olhar um para o outro, em silêncio.

— Já se conhecem? — perguntou por fim Samuel, testemunha que

se divertia com a surpresa deles.

— Sim. Conhecemo-nos de Saint-Tropez — admitiu Sophie.

Nesse dia, ao sair do banco, Sophie não resistiu a virar-se para trás,

para observar a fachada do edifício. Arpad estava à janela do terceiro

andar.

Os olhares deles cruzaram-se. Sorriram um para o outro.

Samuel Hennel apercebeu-se dessa breve comunhão.

— Isto até parece uma cena de filme — disse, num tom divertido.

— Foi só simpático reencontrá-lo — desvalorizou Sophie. — Há

muitos anos que não nos víamos.

— O que houve entre vocês foi sério?

— Saímos juntos durante uns tempos. Ele trabalhava para o meu pai,

naquela altura.

— O seu pai tem um banco?

— Não. Tem vários restaurantes.

— É tranquilizador, saber que o meu banqueiro se formou num

restaurante — disse Samuel, jocoso.

— Depois de conseguir o diploma em Londres, o Arpad cumpriu

uma breve etapa em Saint-Tropez. Para financiar a estadia, encontrou

emprego num dos restaurantes do meu pai, onde eu também trabalhava,

enquanto concluía o meu curso de Direito.

— Não me respondeu. O que havia entre vocês era sério?


— Digamos que gostávamos muito um do outro.

— Porque é que a relação terminou?

— Vejam lá isto — amofinou-se Sophie, com um sorriso —, temos

aqui uma comadre bisbilhoteira!

Ele riu-se. Sophie prosseguiu.

— Imagine só que este cretino desapareceu de circulação de um dia

para o outro.

— Seja como for, este cretino não a deixa indiferente…

Antes de ela apanhar o comboio de regresso a Paris, Sophie e

Samuel almoçaram no restaurante italiano do Hôtel des Bergues.

— Devo-lhe um pedido de desculpas — disse ele. — Sabia

perfeitamente, ao insistir com Thémard para que fosse você a vir hoje,

que o ia irritar muitíssimo. Mas foi uma proposta interesseira… Queria

vê-la em ação, sozinha. Queria ter a certeza de a minha decisão ser

mesmo a mais correta…

Sophie olhou o seu interlocutor com perplexidade.

— Que decisão? — perguntou.

Samuel Hennel esperou que ela fizesse aquela pergunta para

responder de chofre:

— A decisão de lhe propor que venha trabalhar para mim. Por sua

conta.

— Que me torne a sua advogada? — A voz de Sophie saiu-lhe algo

estrangulada, porque não estava mesmo nada à espera de uma proposta

daquelas. Quando soubesse, Thémard iria ficar furioso…

Ele sorriu.

— Isso quer dizer que aceita?

— Nem sei o que dizer. Implicaria uma mudança enorme.

— Acredito que está preparada para agarrar o seu destino. Há uma

oportunidade para si, em Genebra.

— Eu viria viver para cá?

Ele acenou afirmativamente com a cabeça.

— A regra principal, quando nos lançamos por conta própria, é ter

vários clientes, ou seja, várias fontes de rendimento — disse ele. — Eu

já sou velho, por isso convém que tenha outras fontes de rendimento

para além de mim, para não ficar descalça no dia em que eu já não

estiver por cá. E para conseguir isso, eu posso ajudá-la.


— Como?

— Existe, em Genebra, toda uma comunidade de franceses ricos que

adorariam recorrer aos serviços de uma advogada do seu estilo.

— Tenho a certeza de que cada um deles já deve ter o seu advogado.

— Verdade, sim, senhora. Mas isso é porque ainda não a

conheceram.

***

Após uma semana de reflexão, Sophie aceitou a proposta de Samuel

Hennel e demitiu-se do escritório de advocacia Thémard, Tournay &

Associados.

Foi o começo de uma nova vida para ela, em Genebra. Samuel

Hennel apresentou-a aos seus amigos e à sua rede de contactos, no

essencial franceses abastados como ele, atraídos pela tranquilidade da

Suíça e por um muito agradável panorama fiscal. O escritório de

advogados de Sophie ainda não existia oficialmente e ela já tinha vários

clientes. Inscreveu-se na Ordem dos Advogados Estrangeiros e

encontrou, graças a Samuel Hennel, instalações não muito caras, num

endereço que por si só emanava prestígio: a rue du Rhône. E assim

acabou por instalar-se no último piso de um belo edifício de pedra.

Mas, para lá das perspetivas profissionais, a decisão de Sophie de se

mudar para Genebra estava sobretudo ligada a Arpad. Finalmente,

reencontrara-o! Aquele que desaparecera de circulação três anos antes,

deixando-a com o coração partido.

Arpad era o homem da vida dela. E isto era de tal maneira óbvio que

ela nem sequer fingiu andar à procura de um sítio para ficar: mudou-se

logo para casa dele, num apartamento do bairro Florissant.

Quem os visse juntos, perguntar-se-ia como é que tinha sido possível

não saberem um do outro durante três anos. Quando falaram sobre isso,

eles próprios tiveram dificuldade em entender o que se passara.

— Desde que saí de Saint-Tropez, tentei muitas vezes telefonar-te —

assegurou-lhe Arpad. — Mas as chamadas não passavam. Liguei para o


Béatrice, cheguei até a deixar mensagens. Acabaram por me dizer que

tinhas ido de férias, para Itália. Pensei que já não me querias ver mais.

— Que eu já não queria ver-te mais? Mas eu era louca por ti! Eu é

que deixei de conseguir ligar-te para o telemóvel. Era como se o teu

número tivesse deixado de existir.

— Roubaram-mo — mentiu Arpad.

— Quanto à Itália — explicou Sophie —, eu estava um bocadinho

deprimida com o teu desaparecimento, e acompanhei uma amiga numa

volta pela Toscana, para arejar as ideias. Ninguém me transmitiu as tuas

mensagens, quando voltei ao Béatrice.

Na altura, Sophie sentiu-se culpada por causa dessa ausência. Se

tivesse ficado em Saint-Tropez, não o teria perdido.

— Foi a tristeza que te levou a fazer essa tatuagem de uma pantera

na coxa? — brincou Arpad.

Sophie sorriu.

— A tatuagem foi uma coisa de impulso. Não gostas dela?

— Gosto muito!

Estavam tão felizes por se terem reencontrado que os dois decidiram

atribuir aquele parêntesis de três anos a uma mera conjugação infeliz de

circunstâncias.

Mas as circunstâncias estão muitas vezes envoltas em aparências.

E é preciso desconfiar sempre das aparências.


CAPÍTULO 6

15 dias antes do assalto

Domingo, 12 de junho

Segunda-feira, 13 de junho

Terça-feira, 14 de junho

Quarta-feira, 15 de junho

Quinta-feira, 16 de junho

→S EXTA-FEIRA, 17 DE JUNHO DE 2022

SÁBADO, 18 DE JUNHO (FIM DE SEMANA EM SAINT-T ROPEZ)

DOMINGO, 19 DE JUNHO (FIM DE SEMANA EM SAINT-T ROPEZ)

SEGUNDA-FEIRA, 20 DE JUNHO (ANIVERSÁRIO DE SOPHIE)


Cinco da manhã, Casa de Vidro.

Sophie abriu os olhos. A noite fora curta. Ela não parava de pensar

nos acontecimentos da véspera e naquele intruso que Greg perseguira.

Ao seu lado, na cama, Arpad dormia um sono profundo, como sempre.

Desceu à cozinha. Não ousou abrir os estores. Pela primeira vez, sentia

medo dentro de sua casa. De repente, o telemóvel apitou. Era uma

mensagem de Greg: «Estou a fazer uma ronda pela floresta. O convite

para um café mantém-se?»

Às seis da manhã, quando Arpad se levantou, deu com Greg na

cozinha, em conversa animada com Sophie. Supostamente, os Braun

iriam passar o fim de semana a Saint-Tropez, mas Sophie inquietava-se

com a ideia de deixar a casa vazia durante dois dias.

— Não sei se podemos sair, nestas condições — desabafou ela, ao

ver Arpad.

— Mas, Soph’, a ideia é festejar o teu aniversário! A tua família vai

estar lá toda…

— O meu aniversário é só na segunda-feira. Podíamos passar a festa

para o fim de semana seguinte.

— A tua irmã vem de propósito e de certeza que o teu pai já deve ter

organizado todo um programa.

— E se aquele homem voltar durante o fim de semana?

— Olha, digo-te uma coisa: se alguém decidir assaltar-nos, prefiro

que o faça quando não estivermos cá.

Sophie sabia que Arpad tinha razão. Além disso, era de facto

ridículo anular o fim de semana em Saint-Tropez. Estava toda a gente

feliz com o reencontro, e ela acima de todos.

— Fico só preocupada por deixar a casa sem vigilância — disse. —

Se ao menos já tivéssemos instalado o sistema de alarme…

— Isso na segunda-feira fica resolvido — garantiu Arpad. — Um

alarme ligado a um serviço de intervenção rápida e câmaras no jardim.

Poderemos até gerir tudo à distância, com uma aplicação no telemóvel.

Isto ficará mais seguro do que o Fort Knox. E sabes uma coisa? Até lá
vou contratar uma empresa de segurança para fazer algumas rondas na

nossa ausência.

Greg interveio:

— Poupa o teu dinheiro. Tenho uma ideia melhor: posso vir eu

verificar como estão as coisas por aqui.

— Tens a certeza de que isso não é uma grande maçada para ti? —

perguntou Arpad.

— Moro mesmo aqui ao lado, não há problema nenhum. Fechem os

estores e sigam viagem descansados. Eu andarei por aqui.

Às sete da manhã, Léa e Isaak acordaram. Os acontecimentos da

noite não haviam perturbado de maneira nenhuma o seu sono e eles

ignoravam completamente o que se tinha passado. O pequeno-almoço

decorreu numa atmosfera de bom humor. As crianças estavam muito

entusiasmadas com a perspetiva do fim de semana em Saint-Tropez.

— A que horas é que partimos? — perguntou Isaak ao pai. —

Vamos faltar à escola?

— Partimos por volta do meio-dia — respondeu Arpad. — Vamos

buscar-vos à escola e fazemo-nos logo à estrada.

— O que é que vamos comer? — quis saber Léa.

— Um piquenique dentro do carro! — anunciou Arpad.

As crianças adoraram a ideia.

— Quer dizer que faltamos à escola da parte da tarde? — insistiu

Isaak.

— Sim — confirmou o pai. — As vossas professoras já estão

avisadas.

Ouviram-se gritinhos de entusiasmo. Mas Léa reparou que a mãe

não parecia muito satisfeita.

— Está tudo bem, mamã?

— Sim, está tudo bem, querida — descansou-a Sophie, forçando-se

a sorrir. — Estou só um bocadinho cansada esta manhã.

Arpad mudou de assunto:

— Meus queridos, se já acabaram de comer, toca a preparar as

coisas para a escola.

Os miúdos subiram alegremente ao primeiro piso para se vestirem.

— Estás mesmo bem? — perguntou Arpad.


— Sim, sim, não te preocupes.

— Eu sei que esta partida para Saint-Tropez te angustia, mas a

verdade é que nos vai fazer bem. A todos.

Ela concordou.

— Se algum dia me passou pela cabeça que te veria a insistir na

ideia de um fim de semana com os meus pais…

— Glória àqueles que te fizeram.

Ela voltou a sorrir. Ele beijou-a.

— Meu amor, preciso de me ir já embora, tenho uma reunião muito

cedo, lá no banco…

— Sim, sem problema, disseste-me ontem.

— Mas não gosto nada de te deixar sozinha…

— Está tudo bem, pisga-te.

— Tens a certeza?

— Vá lá, andor, desaparece! Sobretudo não chegues atrasado.

Voltaram a beijar-se.

Arpad, elegantíssimo no seu fato-e-gravata, saiu de casa, entrou no

Porsche e conduziu em direção ao centro da cidade. Não reparou, à

saída do caminho privado, no Peugeot cinzento escondido atrás de uns

arbustos. O condutor viu Arpad a afastar-se. Não era ele que lhe

interessava. Estava à espera de Sophie.

Esta apareceu meia hora mais tarde, ao volante do seu automóvel. O

homem começou a segui-la discretamente. Ela deixou os filhos na

escola, em seguida parou para beber um café na casa de chá de Cologny.

Sentou-se na esplanada. O homem observou-a a partir do parque de

estacionamento. Depois, às nove e um quarto, Sophie dirigiu-se à

comuna vizinha de Collonge-Bellerive, onde desapareceu atrás do

portão de uma imponente propriedade na margem do lago Léman.

Um pouco mais tarde, o Peugeot cinzento deteve-se junto do portão.

O condutor saiu para ler o nome por baixo da campainha eletrónica. A

Internet explicou-lhe que o dono daquela propriedade era um residente

francês, idoso e rico: um cliente de Sophie, pensou logo. Nada de muito

interessante. Por isso, foi-se embora.

No momento em que o Peugeot cinzento desaparecia de vista,

Sophie estacionava o seu automóvel diante da mansão que dominava o


extensíssimo parque. Uma empregada da casa veio recebê-la com

deferência e escoltou-a até ao terraço onde Samuel Hennel a esperava.

— Sophie! — exclamou, ao ver a sua advogada chegar. — Já estava

uma bela manhã, e mais bela ainda ficou, agora que a vejo!

Levantou-se de um pulo e beijou-lhe a mão, com desenvoltura e

elegância. Ela riu-se com o teatro do costume.

— O Samuel nunca perde o sentido do exagero. Como é que vai?

— Bem. Acho eu. Posso oferecer-lhe alguma coisa para beber?

— Aceito um café.

Samuel virou-se para a empregada, que ficara a uns metros de

distância, e ela fez-lhe um sinal com a cabeça. Sophie sentou-se à mesa

e admirou o panorama. Aquele lugar impunha-se pela sua beleza.

Samuel sentou-se à frente da advogada e não perdeu tempo.

— Viu a correspondência enviada pelo fisco? Devo preocupar-me?

— perguntou.

— O senhor passa muito tempo em França. Eles têm sempre por

onde pegar.

— Mas vai conseguir dar a volta a isso, não vai?

— Claro que sim — disse Sophie, para o tranquilizar.

Samuel entregou à advogada um apanhado minucioso das suas

passagens por França. Quatro meses no total, em dois anos.

— Acha que devo renunciar ao meu chalé em Megève? E comprar

alguma coisa na Suíça para o substituir?

— A verdade é que seria melhor — admitiu Sophie.

Quando a viu tirar, da sua pasta em couro, os documentos

preparados por Véronique, fez um esgar de horror fingido.

— Mas que papelada vem a ser essa?

— São documentos diversos. Passei tudo a pente fino, só precisa de

assinar onde está indicado.

Samuel suspirou dramaticamente. Não tinha muitas distrações na sua

vida e as visitas da advogada alegravam-no.

— Misericórdia, Sophie! Ofereça-me, antes disso, uma pequena

pausa e o prazer de uma conversa descontraída consigo. Já trataremos

disso tudo.

Sophie lançou uma das suas gargalhadas solares, de que ele gostava

tanto. E viu uma cigarreira pousada na mesa.


— Posso tirar um? — perguntou.

— Evidentemente! — respondeu Samuel, abrindo o objeto metálico

para lhe apresentar uma fileira de cigarros.

Sophie pegou num. Samuel apressou-se a fazer uma chama com o

seu isqueiro, aproximando-se dela.

— Obrigada — disse Sophie, exalando uma voluta branca.

— É raro vê-la fumar. Há alguma coisa que a preocupe?

Ela apercebeu-se de que o seu cliente a conhecia bem. Esteve quase

a falar-lhe do incidente da noite anterior, mas acabou por não dizer nada.

Preferiu disfarçar e orientar a conversa para um tema mais anódino.


Onze e meia, na Casa de Vidro.

A partida para Saint-Tropez estava muito próxima. Na altura em que

metia as malas no porta-bagagens do automóvel, Arpad recebeu uma

chamada de Julien Martet, o seu amigo e companheiro de squash.

— O projeto da Costa Rica vai concretizar-se mais depressa do que

eu tinha previsto — explicou-lhe Julien, antes de fazer um resumo dos

elementos essenciais e de avançar com alguns números.

— Acho que posso ter alguns clientes interessados — replicou

Arpad. — Hoje não vou ao escritório. Posso ligar-te na segunda-feira?

— Sem problema. Tenho documentação que te posso enviar por e-

mail, se quiseres.

— Agradeço, mas manda para o meu endereço pessoal. É melhor.

Os dois homens desligaram e, alguns instantes mais tarde, Arpad

recebeu de Julien um e-mail com a brochura oficial que detalhava o

projeto imobiliário. Uma imagem virtual mostrava os futuros edifícios,

virados para o mar. Um texto introdutório, destinado aos investidores

estrangeiros, gabava os méritos e os encantos da Costa Rica.

Arpad imaginou-se de repente ali: sol todo o ano, as tardes passadas

na praia com os filhos. Já há algum tempo que sentia uma vontade de

mudança. Uma necessidade de se reinventar. Poderia aplicar o seu

próprio dinheiro neste projeto. Um investimento que lhe permitiria

talvez mudar de vida. Ele e a sua família mais próxima, instalados à

beira-mar na Costa Rica. A ideia deixou-o num estado sonhador. O que

é que a Sophie diria?

Sophie, justamente, acabava de chegar a casa, arrancando Arpad aos

seus pensamentos.

— Está tudo bem? — perguntou ela com um tom divertido, ao sair

do automóvel. — Parecias estar mergulhado numa grande reflexão…

Ele beijou-a e abraçou-a, puxando-a para si.

— Estava em pleno devaneio — explicou ele.

— Devaneio de que tipo?

— Devaneio sobre as nossas próximas férias.

— Oh, muito bem. Em que destino?

— Estava a pensar na Costa Rica.


— La pura vida! Nada mal, não, senhor.

Arpad decidiu ficar-se por ali, no que dizia respeito à Costa Rica.

Não valia a pena desestabilizar Sophie com as suas ideias de um

recomeço noutro lado.

— As malas já estão todas no porta-bagagens — disse ele. —

Estamos prontos para arrancar.

Depois de se instalarem no carro de Arpad, só lhes faltava apanhar

os miúdos na escola e fazerem-se à estrada, em direção ao sul de França.

Sophie agarrou a mão do marido. Sentia-se em segurança com ele. Este

fim de semana ia fazer-lhes bem.

***

Cinco da tarde.

O automóvel dos Braun acelerava através da Provença. Ainda faltava

uma hora de viagem, à vontade, até chegarem a Saint-Tropez.

Em Genebra, nas instalações do corpo de intervenção, Greg e a sua

equipa despiam o equipamento pesado. Tinham passado o dia a garantir

a segurança de um chefe de Estado que chegara à Suíça para uma

conferência internacional. Haviam assegurado a proteção da comitiva do

dignitário, desde a aterragem do avião no aeroporto de Genebra, de onde

o escoltaram até às Nações Unidas e, depois, até ao hotel

InterContinental, cujas imediações ficaram inacessíveis. Greg, que

coordenara todas as operações, distinguira-se particularmente pelas suas

qualidades de comandante. Sentia-se até que poderia ser um bom

substituto para o chefe do corpo de intervenção, a quem faltava apenas

um ano para passar à reforma.

Quando Greg se preparava para ir embora, informaram-no de uma

visita. Uma inspetora da polícia judiciária queria que ele assinasse um

relatório de intervenção. Era Marion Brullier. Greg falou com ela

enquanto caminhavam no grande átrio do quartel-general da polícia.

— Então, esse relatório? — perguntou Greg.

— Isso depende de ti — respondeu Marion.


Ela fixou os olhos nos dele e Greg quase ficou desestabilizado.

Agora que a via fora do seu papel de investigadora da polícia, Greg disse

para si mesmo que Marion lhe parecia muito jovem. Não que isso lhe

desagradasse. Que idade poderia ela ter? Nem sequer trinta anos. Tudo

naquela mulher era um apelo ao desejo: o seu corpo tão firme, o seu

espírito fresco, a sua liberdade. Ele despia-a com o olhar e via tudo

aquilo que Karine já não era aos seus olhos.

— Queres ir beber um copo? — propôs Marion.

Greg olhou para o relógio.

— Adorava. Mas tenho de me ir embora.

— Então fica para depois — disse Marion. — Podes dar-me o teu

número de telefone. Para o caso de…

— Para o caso de… o quê? — perguntou Greg.

— Para o caso de precisar de falar contigo por causa do relatório.

Ele ditou-lhe o seu número. Antes de se ir embora, Marion ainda lhe

disse:

— Confirmo que ficas muito melhor sem o passa-montanhas.

Greg sabia perfeitamente que se encontrava em terreno escorregadio.

E não apenas com Marion.

Antes de voltar a casa, fez um desvio pela Casa de Vidro, da qual

Arpad lhe confiara um duplicado das chaves. Os Braun já tinham

partido, estava completamente à vontade.

Sabia muitíssimo bem o que iria fazer ali durante o fim de semana.
Sábado, 2 de julho de 2022

O DIA DO ASSALTO

9h36

Uma vez recolhidos todos os diamantes do cofre, o do Boné

precipitou-se para a sala das traseiras da joalharia, onde estavam retidos

os três reféns.

— Estamos prontos para ir embora — disse com uma voz muito

calma ao seu comparsa. — Vou verificar se temos o caminho

desimpedido.

O Encapuçado fez que sim com um movimento da cabeça. O do

Boné foi discretamente espreitar a rua pela montra.

A tensão estava prestes a aumentar ainda mais.

A saída da joalharia e a fuga eram os momentos mais perigosos do

assalto.
10 ANOS ANTES

JUNHO DE 2012

Genebra

Seis e meia da manhã.

Arpad e Sophie chegavam ao fim do seu jogging matinal através do

parque Bertrand, no bairro de Champel. De regresso ao apartamento que

partilhavam, na avenue Eugène-Pittard, prepararam-se para o dia de

trabalho que tinham pela frente. Um dia que se assemelhava a todos os

outros. E no entanto… Pela primeira vez em cinco anos, desde que

fugira de Saint-Tropez, Arpad iria ser obrigado a enfrentar o seu destino.

Naquela manhã, caminharam até ao centro histórico, ali perto, e

tomaram o pequeno-almoço num estaminé da place du Bourg-de-Four.

A conversa girou em torno das férias que vinham aí. Era verão e eles

ainda não tinham planeado nada. Os hotéis estavam a atingir o limite das

reservas e era preciso decidir depressa.

— Onde é que te imaginas? — perguntou Sophie.

— Numa praia — respondeu Arpad. — Algures junto ao

Mediterrâneo.

— Mas onde, ao certo? Na Sardenha? Em Espanha?

— Francamente, tanto me faz.

— Pois bem, tem o dia inteiro para pensar, senhor Braun. Esta noite,

decidimos isso.

Levantaram-se da mesa. Arpad reparou que os empregados e os

outros clientes os observavam. Eles formavam um casal que atraía os

olhares. Como se tivessem qualquer coisa de irresistível.

Cada um deles tomou o seu caminho para o trabalho.

Sophie desceu a rue de la Fontaine até à rue du Rhône, onde

instalara o seu escritório de advocacia. Arpad ficou a vê-la afastar-se.

Constatou que os transeuntes não resistiam a contemplá-la. Sabia


perfeitamente que não era o casal em si que despertava tanto interesse:

era ela. Era nela que toda a gente reparava, era ela que toda a gente

reconhecia.

Sophie possuía um magnetismo, uma aura, um brilho que ele não

tinha. Em todas as relações anteriores, Arpad estivera sempre na ribalta.

Mas ela, ela conseguia eclipsá-lo. Ao ponto de sentir por vezes

dificuldade de manter o lugar ao seu lado. O único consolo — e

detestava-se por pensar nisso — era saber que ganhava claramente mais

do que a sua companheira. Sophie ainda estava na fase de arranque do

seu negócio, enquanto ele, no banco, entre o salário, o prémio de

desempenho e o bónus anual, conhecia o significado da palavra

opulência. Mas sempre que fazia girar o cartão de crédito entre os

dedos, não sabia ao certo se o fazia para lhe dar prazer a ela, ou para se

sentir melhor consigo mesmo.

Dirigiu-se a pé para o banco privado onde trabalhava, na rue de la

Corraterie. Gostava deste belo edifício carregado de história e do seu

interior luxuoso. Chegado ao terceiro andar, onde ficava o departamento

Clientes de França, Bélgica e Luxemburgo a que pertencia,

cumprimentou o patrão, Patrick Müller, e seguiu para o seu gabinete.

Quando chegara à Suíça, cinco anos antes, em setembro de 2007,

Arpad riscara duas grandes etapas da sua vida. A primeira acontecera

em Londres, onde nascera e crescera, entre um pai inglês e uma mãe

suíça, ele um piloto comercial na British Airways, ela empregada numa

grande empresa farmacêutica. A segunda etapa, mais breve, tivera como

cenário Saint-Tropez.

O passado encontrava-se reconstituído no gabinete de Arpad, sob a

forma de duas fotos emolduradas. A primeira datava de vinte anos antes

e fora captada no aeroporto de Heathrow. Via-se Arpad em criança, ao

lado do pai vestido com o uniforme de comandante, os dois em pose à

frente de um Boeing 747. O pai de Arpad estava agora reformado. A

mãe também. Os dois aproveitavam para passar uma parte do ano a

viajar.

A outra foto, desenterrada por Sophie, datava de há seis anos. Nela

via-se Arpad diante do Béatrice, em Saint-Tropez, com os companheiros

de trabalho daquela época.


De Londres, Arpad guardava na memória a sua infância feliz nos

arredores bem cuidados da capital. As saídas até ao centro da cidade

durante a adolescência. Os seus estudos de Finanças na prestigiada

London School of Economics. O clube privado e ultrasseleto onde

aprendera o ofício de barman. No verão de 2006, logo depois da

obtenção do diploma, conseguira até emprego num dos bancos mais

conhecidos da City. Depois acontecera o acidente que virou tudo do

avesso. E a decisão de riscar Londres do seu mapa pessoal.

Na época, quando Arpad anunciou aos pais a decisão de se

estabelecer em Saint-Tropez para trabalhar no Béatrice, a mãe ficou

horrorizada.

— És diplomado por uma universidade de prestígio e vais enfiar-te

num clube noturno de uma cidadezinha que fica sabe-se lá onde? —

disse-lhe ela.

— É um restaurante, mamã. Um restaurante muito chique, se queres

saber. Enfim, um restaurante da moda. E depois Saint-Tropez não é

propriamente uma cidadezinha qualquer. Não compreendo porque é que

estás a reagir assim.

A resposta de Arpad só servia para tentar salvar a face. Porque a mãe

pusera o dedo na ferida.

— Sabes bem o que eu quero dizer, Arpad — insistiu ela. — É o

motivo da tua decisão que me preocupa.

— O motivo? É preciso um motivo para uma pessoa ir viver à beira

do Mediterrâneo, num dos lugares mais bonitos da Côte D’Azur?

— Não precisas de te armar em esperto connosco, Arpad. Tens

vergonha do que fizeste. Tens vergonha e por isso não ousas regressar. Já

vai sendo tempo de virares a página, Arpad.

— Não é assim tão simples — respondera Arpad, baixando a

guarda. — Achas que vou encontrar trabalho num banco, depois do que

se passou? O senhor Stankowitz vai dar cabo da minha vida, vá eu para

onde for.

— Nós reembolsámo-lo — lembrou a mãe.

— Eu sei, e tenho vergonha disso.

— Não tenhas. Toda a gente faz disparates pelo menos uma vez na

vida. Tens é de reentrar nos eixos, aceitar os teus erros e seguir em

frente.

É
— É o que eu estou a fazer.

— Não, o que estás a fazer, ao ir trabalhar para Saint-Tropez num

restaurante, é só uma coisa: esconderes-te.

A mãe tinha razão.

E depois da fuga de Londres, acontecera a fuga de Saint-Tropez. Em

setembro de 2007. Quando Arpad, instintivamente, se pôs a caminho de

Genebra.

***

Cinco anos antes

Setembro de 2007

Uma terça-feira de manhã, ao chegar ao banco, Patrick Müller

recebeu no seu telemóvel uma chamada de um número desconhecido.

— Bom dia, senhor Müller — cumprimentou o interlocutor. — Fala-

lhe Arpad Braun, do restaurante Béatrice, em Saint-Tropez. Não sei se

por acaso se lembra de mim…

Claro que Patrick Müller se lembrava dele. Passara uma parte do seu

mês de julho — como todos os anos — em Saint-Tropez. No Béatrice,

onde era cliente regular há muito tempo, dera imediatamente pela

presença daquele novo empregado, atrás do bar. Ao ver como se

comportava e interagia com os clientes, Patrick Müller compreendera

logo que Arpad não pertencia ao mundo da vida noturna. Os dois

homens simpatizaram um com o outro, e uma noite Patrick Müller

perguntou-lhe:

— O que é que está aqui a fazer?

— Trabalho aqui — respondeu Arpad, sem perceber muito bem o

sentido da pergunta.

— Nunca vi um barman com a sua maneira de ser… Você é

diferente. Tem qualquer coisa, uma aura… Na verdade, é um ator, certo?

E só trabalha aqui enquanto espera pelo papel da sua vida. É isso?

Arpad sorriu.
— Estudei Finanças. O meu sonho é tornar-me banqueiro. E espero

aqui o cargo da minha vida — respondeu.

Patrick Müller pousara o seu cartão de visita sobre o balcão.

— Se algum dia passar por Genebra, telefone-me. Ando à procura de

pessoas como você para a minha equipa.

Dois meses mais tarde, eis que Arpad lhe telefonava. Estava naquele

momento em Genebra e procurava um emprego. Patrick Müller

encontrou-se com ele nessa mesma tarde. Arpad ainda não tinha

experiência, mas possuía um certo carisma e Patrick Müller necessitava,

para a sua equipa, precisamente de um vendedor capaz de convencer até

os clientes mais difíceis. Por ter visto Arpad em ação no Béatrice, não

teve quaisquer dúvidas de que ele faria maravilhas. Quinze dias mais

tarde, Arpad dava início à sua nova vida no banco.

A mudança precipitada de Arpad para Genebra voltou a provocar

inquietação nos seus pais. É certo que a ligação à Suíça era forte: uma

parte da família do lado da mãe vivia em Lausana. Em criança, Arpad

passara lá muitas vezes as férias, em casa da avó ou de um tio. Mas os

pais de Arpad sentiam que alguma coisa não batia certo. Durante muito

tempo, mesmo depois de ter sido recrutado para o banco, a mãe voltava

a interrogá-lo sobre o assunto:

— Arpad, o que é que se passou em Saint-Tropez?

— Nada. Porquê?

— Tenho a impressão de que fugiste.

Conteve-se para não dizer «mais uma vez».

— Não se passou nada, mamã. Apareceu a oportunidade de ir

trabalhar para um banco e eu aproveitei.

Arpad não podia revelar-lhe a verdade. Nem a ela, nem a Sophie.

***

Cinco anos mais tarde, Arpad, no conforto do banco, acreditava ter

conseguido fugir de Saint-Tropez definitivamente. Mas naquele dia,


depois do trabalho, Sophie voltou à carga com o assunto das férias,

diante de um copo de vinho rosé. Arpad elencou então as suas sugestões.

— Podíamos ir à Grécia. Visitar as ilhas Cíclades — disse.

— Aí há demasiada gente.

— Então e a Sicília? Uma volta pelas ilhas Eólias e, depois,

Taormina.

— Isso implica andar muito de barco — disse Sophie, que não

parecia muito convencida.

— E se fôssemos de carro até à costa amalfitana? E daí dávamos um

salto a Capri.

— Muito tempo a andar na estrada…

Arpad não percebia a razão de Sophie ter lançado para cima da mesa

o tema das férias, se claramente não sabia ainda o que queria fazer.

Então passou-lhe a bola.

— Ou muito me engano, Soph’, ou já deve haver para aí um plano

para as férias. Porque é que não desembuchas?

Ela nem hesitou.

— Onde quero mesmo ir é a Saint-Tropez. Para te apresentar aos

meus pais — confessou.

— Saint-Tropez? — embatucou Arpad.

De repente, ficou muito pálido, algo que não escapou ao olhar atento

de Sophie.

— É a ideia de conheceres os meus pais que te põe nesse estado?

Ele esforçou-se para recuperar a compostura.

— Pelo contrário, estou desejoso de os conhecer — assegurou.

Mas Sophie não era parva.

— Deixa-te de tretas. É óbvio que não te sentes à vontade com isto.

Há algum problema com Saint-Tropez?

Arpad compreendeu que devia inventar rapidamente uma história

plausível e enterrar o assunto.

— Receio que o teu pai não me perdoe por ter abandonado o

restaurante sem pré-aviso — disse então.

A mentira funcionou.

— Atribuis-te demasiada importância, meu querido — lançou-lhe

Sophie. — O meu pai não tem qualquer memória da tua passagem.

— Como é que sabes?


— Já lhe perguntei. Tu não ficaste tempo suficiente no lugar e a tua

partida passou quase despercebida. Lamento desiludir-te. E depois,

sabes, os gerentes dos vários restaurantes têm o hábito de fazer uma

grande rotação dos funcionários e para isso mantêm uma espécie de

viveiro de candidatos que partilham uns com os outros. Empregados que

se despedem na restauração é coisa banal.

Nessa noite, Arpad teve dificuldade em adormecer. Sophie queria

muito ir a Saint-Tropez. Não havia forma de a impedir. O passado estava

prestes a apanhá-lo.

***

A viagem até Saint-Tropez aconteceu mesmo no fim do mês de

julho.

Passaram uma semana com os pais de Sophie, Jacqueline e Bernard,

que moravam numa casa magnífica, no meio de um pinhal, com vista

para o mar.

Para Sophie, a estadia decorreu maravilhosamente bem. O charme

de Arpad cativou logo os pais dela, que não pouparam elogios ao

namorado da filha.

Para Arpad, o reencontro com Saint-Tropez começou por ser um

sinónimo de angústia. Temia que o encontrassem. Mas acabou por se dar

conta de que o tempo havia feito o seu trabalho.

Os anos iriam passar.

Aconteceriam outras visitas a Saint-Tropez.

Aos poucos, Arpad iria baixando a guarda.

A sua vida confortável em Genebra tornara-o mais negligente.

Agora, a maior preocupação era Sophie. O casal que formavam, o

projeto de casamento. Mas também, e sobretudo, a necessidade que ele

sentia de brilhar ao lado dela, esse ser para o qual todos os olhos se

viravam.

Com o tempo, Sophie foi-se destacando cada vez mais. E quanto

mais ela se tornava deslumbrante, mais eclipsava Arpad. Ele também


queria ser visto, também queria existir. Felizmente, o seu trabalho no

banco permitia-lhe um certo tipo de afirmação pessoal. Conseguira subir

bastante na hierarquia, até adquirir o estatuto de braço-direito de Patrick

Müller. Continuava a ganhar bem mais do que Sophie, o que era

importante para o seu amor-próprio. Considerava, aliás, que isso era

essencial para a sobrevivência da relação entre os dois. Uma vez que ela

o ultrapassava em tudo o resto, as coisas só correriam bem enquanto ele

mantivesse um predomínio financeiro.

Mas Bernard, o pai de Sophie, estava prestes a estragar tudo.


CAPÍTULO 7

14 dias antes do assalto

Domingo, 12 de junho

Segunda-feira, 13 de junho

Terça-feira, 14 de junho

Quarta-feira, 15 de junho

Quinta-feira, 16 de junho

Sexta-feira, 17 de junho

→SÁBADO, 18 DE JUNHO DE 2022 (FIM DE SEMANA EM SAINT-

TROPEZ)

DOMINGO, 19 DE JUNHO (FIM DE SEMANA EM SAINT-T ROPEZ)

SEGUNDA-FEIRA, 20 DE JUNHO (ANIVERSÁRIO DE SOPHIE)


A manhã erguia-se sobre Saint-Tropez.

Arpad terminava o seu jogging junto à baía, entre os rochedos e o

mar. Vinha de percorrer uns bons quinze quilómetros naquela paisagem

belíssima. Era tempo de voltar à realidade dos seus sogros.

Ao ver surgir a casa dos pais de Sophie, abrandou e percorreu a

última centena de metros a andar, de forma a recuperar o fôlego.

A grande vivenda estava como que suspensa sobre o Mediterrâneo.

O enquadramento era idílico, mas a arquitetura correspondia à

ostentação de mau gosto dos anos oitenta. A casa era o grande orgulho

de Bernard, pai de Sophie. Ele adorava relembrar a quem o ouvisse que

fora construída por ele, como se a tivesse erguido com as próprias mãos.

Quantas vezes Arpad não se vira encurralado no terraço por Bernard,

que lhe contava sempre as mesmas histórias.

— Uma vista como esta já não se encontra em Saint-Tropez. Quando

eu construí esta casa, podíamos fazer o que quiséssemos. Não nos

vinham impingir autorizações e licenças, nem todas essas papeladas

ridículas! — Enquanto dizia isto, Bernard obstruía com o seu corpo

volumoso a porta de acesso ao terraço, privando o interlocutor de

qualquer possibilidade de fuga. Só com a intervenção de Sophie é que

Arpad conseguia escapar. Ela aparecia no terraço e repreendia o pai:

— Papá, não me digas que estavas outra vez a aborrecer o Arpad

com as tuas histórias sobre a construção da casa!

O orgulhoso Bernard transformava-se de repente num rapazinho

apanhado em flagrante com o dedo dentro do frasco de compota. Aquele

homem robusto e imponente, carismático, com o ar duro e sarcástico

típico dos donos de estabelecimentos noturnos, que gostava de dar

ordens, de dominar, de fazer as coisas à sua maneira, e cujo mantra era

«quem paga, manda», parecia encolher diante da filha. Tanto assim que

Arpad se sentia obrigado a sair em defesa do sogro.

— Olha que eu gosto muito de ouvir estas histórias — assegurava à

sua mulher.

Por alinhar tão bem com a maneira de ser da família dela, Sophie

dirigia ao marido um olhar cúmplice, significando que em breve ela lhe

demonstraria o seu reconhecimento. Quanto a Bernard, exultava:


— Vês, ele até gosta!

Arpad entrou em casa.

O silêncio era total. Os ocupantes ainda estavam a dormir, incluindo

Sophie. Pelos vistos, aqui conseguia pôr o sono em dia. Ainda bem. Mas

a tranquilidade de Arpad durou pouco: ainda mal tivera tempo de fazer

um café e já a sogra, Jacqueline, entrava na cozinha, toda animada com a

ideia de não faltar muito para ter a família toda reunida. A irmã de

Sophie, Alice, chegaria ao fim da manhã, com o marido.

— Já a pé, Arpad? — perguntou Jacqueline, que gostava muito de

constatar as evidências.

— É verdade — concordou Arpad, sem saber muito bem o que

responder.

— Que tempo maravilhoso! — acrescentou Jacqueline.

— Temos mesmo muita sorte — disse Arpad, visivelmente aflito

para alimentar a conversa.

Jacqueline iniciara entretanto um monólogo. A sua especialidade. O

único capaz de a calar era o marido. Quando se fartava de a ouvir,

Bernard dizia-lhe: «Mas tu não te calas, minha Jaja?» E a Jaja calava-se

logo.

Bernard, justamente, entrava por sua vez na cozinha, interrompendo

a mulher para assumir o controlo da conversa.

— Explica-nos lá, Arpad, essa história do tipo que vos andava a

espiar… Não quis estar a falar disso ontem à noite, em frente dos

meninos…

— Fez bem — atalhou logo Arpad, com esperança de mudar de

assunto o mais depressa possível.

Mas Bernard prosseguiu, impassível.

— Pensava que as coisas na Suíça fossem mais calmas.

— E são.

— Pelos vistos, nem por isso.

— Tem razão, Bernard.

Bernard adorava ter a última palavra sobre tudo, e Arpad não se

importava de lhe conceder esse privilégio. Mas, desta vez, Bernard

preferiria não ter razão.

É
— É bonito quereres dar-me razão, Arpad, mas confesso-te que isso

não me descansa. Preocupo-me com a minha filha e os meus netos. E

contigo também, claro. Há algo nessa história que me inquieta.

— Bernard, como já lhe disse, tudo leva a crer que se tratou de uma

operação de reconhecimento, tendo em vista um assalto. E, na minha

opinião, o tipo tão depressa não se vai arriscar, depois de quase ter sido

apanhado duas vezes.

— Olha que há ladrões capazes de entrar em tua casa mesmo quando

tu estás lá dentro, e depois amordaçam-te e prendem-te mãos e pés! —

argumentou Bernard.

— Os polícias já descartaram essa hipótese. Aparentemente, os tipos

que se dedicam a isso não perdem muito tempo a fazer o

reconhecimento. E não se preocupe, eu estou a levar o caso muito a

sério. Pedi até a um vizinho nosso, que é polícia, para fazer umas

quantas rondas e estar de olho na nossa casa. Olhe, nem de propósito, é

justamente ele que me está a mandar uma mensagem.

Arpad enviara uma SMS a Greg uns minutos antes, para saber

novidades. E Greg acabara de responder:

Está tudo bem. Estou neste momento a fazer uma ronda.

A seiscentos quilómetros de Saint-Tropez, Greg guardou o telemóvel

no bolso. Estava diante da Casa de Vidro. O seu automóvel encontrava-

se estacionado dentro do perímetro da propriedade. O cão Sandy,

pretexto que deu a Karine para sair, permanecia deitado no porta-

bagagens e ali iria ficar durante um bocado. Greg introduziu a chave na

fechadura. O momento por que tanto esperara. Entrou na casa como

num templo. Levava consigo uma mala feita de plástico reforçado e uma

caixa de ferramentas.

Todos os estores estavam fechados, pelo que neste momento se

tornara invisível dentro da fortaleza. Passeou-se pelo rés do chão.

Inspecionou a cozinha, depois a sala. Estava sobretudo curioso para

descobrir as divisões que não conhecia. Visitou longamente a que servia

de escritório a Arpad, bisbilhotando avidamente as gavetas. Não

encontrou ali nada de interessante.


Subiu ao primeiro andar. Não dedicou mais do que uma rápida

espreitadela aos quartos dos miúdos. Depois acedeu ao quarto conjugal.

Quando finalmente entrou ali, como que se emocionou. A divisão era

muito diferente do que ele conseguira entrever, desde o seu posto de

observação, lá em baixo, no meio dos arbustos. Era maior, mais bem

organizada. Observou com inveja a grande cama, cuja cabeceira era em

madeira esculpida. Aventurou-se de seguida no closet, onde passou em

revista as roupas. Escolhendo peças ao acaso, acariciou-as e cheirou-as.

Depois passou aos sapatos. Encontrou os que ela usara na noite do

aniversário de Arpad e admirou-os. Na casa de banho, estudou os

produtos de beleza. Encontrou um frasco de perfume e permitiu-se dar

um borrifo: ao aspirar aquele eflúvio, reencontrou-a. A ela.

De regresso ao quarto, interessou-se finalmente pela mesa de

cabeceira. Identificando sem dificuldade a de Sophie, abriu as respetivas

gavetas com volúpia. Mergulhou nelas o olhar, e depois as mãos, à

procura dos tesouros da intimidade de Sophie. Encontrou uma

embalagem de lubrificante, um vibrador e um par de algemas. Ficou

espantado, e um pouco desiludido, que este equipamento não fosse

completado por uma palmatória ou uma chibata. Mas agora queria muito

saber quem ficava preso à cabeceira da cama durante as brincadeiras

eróticas deles: Arpad ou Sophie?

Para lá do prazer, havia razões concretas para esta inspeção do

quarto. Greg levara até ali a caixa de ferramentas e a mala de plástico.

Depois de estudar o local, fixou a sua atenção num dos armários. Como

precisava de ficar mais alto, foi buscar uma cadeira ao quarto de um dos

miúdos e colocou-a em frente ao armário.

Agora podia começar.

No mesmo momento, sentado numa esplanada, o homem do Peugeot

cinzento bebia uma água mineral, indistinguível dos restantes clientes.

Sem dar nas vistas, ia observando com atenção tudo à sua volta. Teria de

conhecer como a palma das mãos os lugares em que se movia. Aos

sábados, havia um fluxo ininterrupto de pessoas a andar na rua. O que

lhe seria favorável. A poucos metros, ficava a joalharia.

O homem visualizava já tudo o que se iria passar dentro de

exatamente duas semanas.


O plano parecia-lhe perfeito.
A noite caía sobre Saint-Tropez.

Num restaurante da praia de Pampelonne, Bernard pontificava no

seio da família, fazendo sinais aos empregados para que trouxessem

mais champanhe e caviar. Enquanto incitava os convidados a servirem-

se à vontade, Bernard ia avisando:

— Guardem um espacinho para o jantar, isto são só os aperitivos!

Há semanas que esperava por este momento: a celebração dos

quarenta anos de Sophie. A sua tribo reunira-se em peso para a ocasião.

Alice, a irmã de Sophie, e o seu marido, Mark, tinham chegado de

Cannes durante o dia. Esta festa era da filha, mas também era a sua

festa. Planeara tudo até ao mais ínfimo detalhe.

Mark, o genro perfeito, um americano de Nova Iorque, cirurgião

estético numa clínica privada em Cannes, sentara-se ao lado de Bernard,

como sempre, para desempenhar o seu papel de cãozinho dócil.

Confessava que o que mais queria era oferecer-lhe netos (em vez de

admitir o desejo de se tornar pai, preferia falar em dar netos, como se o

fizesse para Bernard). Alice, por seu lado, começara a perorar sobre as

fecundações in vitro falhadas, mas garantia que a próxima iria

certamente resultar. Ela pressentia-o. Depois acrescentou, muito senhora

do seu nariz, que a sua ideia era falar em francês com os filhos,

enquanto Mark só comunicaria com eles em inglês, «porque assim eles

ficarão automaticamente bilingues».

Arpad, regressado de uma breve caminhada na praia, permanecia

afastado das conversas, limitando-se a observar as pessoas à volta da

mesa. Sentiu de repente que alguém se encostava a ele. Era Sophie.

Estava com um ar satisfeito, e isso era o principal. Inclinou-se para o

ouvido dela e imitou Alice:

— Se tivermos filhos, o Mark vai falar com eles em inglês e eu em

francês, porque assim eles ficarão automaticamente umas bestas

quadradas.

Sophie reagiu com uma gargalhada. E nunca ficava tão bela como

quando se desmanchava a rir.


Em Genebra, Greg, a mulher e os filhos tinham ido jantar a casa dos

pais de Karine, que moravam num apartamento no bairro de Malagnou.

Em volta da mesa redonda da sala de jantar falava-se em roda-livre de

leituras, política municipal e dos grandes temas da atualidade.

Começavam a comer a perna de carneiro, quando Greg sentiu o

telemóvel vibrar no bolso. Espreitou discretamente para o ecrã: era uma

mensagem de Marion Brullier.

Estás sozinho?

«Não», respondeu Greg. Digitara as três letras com o polegar,

escondendo o telemóvel debaixo da mesa. Não tanto por discrição, mas

por lhe parecer indelicado responder a mensagens naquelas

circunstâncias. E ainda bem que o fez, porque a mensagem seguinte era

uma fotografia de Marion em tronco nu.

Greg, em pânico com a ideia de ser apanhado em flagrante, guardou

imediatamente o telemóvel no bolso. Karine apercebeu-se do gesto

brusco.

— Está tudo bem? — perguntou.

— Coisas do trabalho — respondeu ele.

— Mas já não estás de piquete — observou Karine.

— São coisas dos colegas, nada que me diga respeito. Temos um

grupo de mensagens com os outros oficiais.

No bolso, Greg sentia o telemóvel vibrar. Uma e outra vez. Marion

insistia. Era a primeira vez que alguém lhe enviava este tipo de imagens.

Em Saint-Tropez, a festa de aniversário prosseguia. A família

avançara para o jantar. Bernard não quisera definir o menu

antecipadamente. Queria que cada pessoa pudesse escolher, mesmo se

no fim de contas acabasse por ser ele a definir o que iria ser o prato de

cada um. Enquanto o empregado anotava os pedidos, interpelava os seus

convidados:

— Mark, Mark, não me digas que vais passar ao lado de uma bela

lagosta? E tu, Arpad, porque é que não vais para o entrecosto com

trufas? Dizem que a dose é para duas pessoas, mas na verdade não é

assim tão grande.


Em Genebra, na casa dos pais de Karine, a refeição terminara. As

crianças estavam a ver um filme na sala de estar, enquanto os adultos,

ainda à mesa, bebiam um chá. Greg só queria fazer uma coisa: consultar

as mensagens de Marion. Não aguentando mais, levantou-se, com o

pretexto de ir espreitar as crianças, e foi fechar-se na casa de banho. O

ecrã anunciava, triunfalmente, sete mensagens de Marion.

Mensagem 1: Gostas?

Mensagem 2: Porque é que não respondes?

Mensagem 3: Quero-te.

Mensagem 4: Estás amuado?

Mensagem 5: Fotografia de Marion, completamente nua

Mensagem 6: Outra fotografia de Marion completamente nua, em

pose lasciva

Mensagem 7: Boa noite, meu querido. Espero que estejas bem.

As fotografias eram de boa qualidade. Greg viu cada uma delas

várias vezes. Depois começou uma resposta:

Desculpa, estava…

Interrompeu-se. Estava com quem?, ponderou. Com a minha

mulher? Em casa dos meus sogros? Todas as respostas lhe pareciam

idiotas. Na verdade, não sabia muito bem o que escrever. Nunca fizera

uma coisa destas. Nunca fizera o quê, ao certo? Trocar mensagens

marotas ou enganar Karine? As duas coisas. Depois de refletir, e de

algumas hesitações, decidiu responder às imagens com uma imagem e

oferecer a Marion uma fotografia do seu corpo. Acabava de se despir

quando se apercebeu de que estava a ser observado. Seis rostos fixavam

a sua atenção nele. Ali, mesmo por cima do lavatório, numa pequena

prateleira de vidro, ao lado de um tubo de creme para as mãos e de um

monte de toalhetes de turco, havia uma fotografia emoldurada. Greg

nunca reparara naquele retrato de grupo, captado nas últimas férias de

esqui. Além dos sogros, estavam ele e Karine, mais os filhos. Todos a

sorrir alegremente.
O efeito foi radical. Greg compôs-se, apagou as mensagens de

Marion e voltou para junto da família.

Meia-noite em Saint-Tropez.

Na praia de Pampelonne, o jantar culminou com um enorme bolo de

aniversário, coberto por uma miríade de velinhas e velas mágicas.

Sophie soprou as velas, ajudada pelos filhos. Depois, Bernard e

Jacqueline ofereceram a Sophie um presente que vinha dentro de um

pequeno estojo de veludo: um par de brincos revestidos de diamantes.

Ao verem as joias, Sophie e Alice soltaram exclamações, mas estas não

exprimiam os mesmos sentimentos.

Arpad observou o modo como a sua mulher punha os diamantes nas

orelhas. As joias ficavam-lhe a matar. Bernard tinha bom gosto. Ou

então era Sophie que tornava tudo melhor. Mas o que preocupava Arpad

naquele momento era a vontade de superar o presente de Bernard. A

data exata do aniversário de Sophie era segunda-feira, dentro de dois

dias. Segunda-feira, a sua intenção era voltar à loja da Cartier para

comprar aquele anel em forma de cabeça de pantera. E nem queria saber

do preço.

Nos altifalantes do restaurante, já não se ouvia a horrível música de

aniversário que acompanhara o bolo, mas Only You, dos Platters. Sophie

agarrou Arpad pela cintura e improvisaram uns passos de dança. Ela

beijou-o, apertando os dois corpos com o máximo de força de que foi

capaz. Era impressionante o quanto ela o amava. Os dois pombinhos

foram interrompidos pelos gritos de Bernard, a anunciar uma grande

surpresa. Pediu aos convidados que se virassem na direção da praia. Lá

fora, era noite cerrada, o mar confundia-se com o céu. Depois, de

repente, a partir de uma barcaça, a algumas dezenas de metros da praia,

um fogo de artifício iluminou a escuridão.

As crianças gritaram de alegria. Uma boa parte dos clientes

levantou-se das mesas para vir admirar o deslumbrante espetáculo. Até

os empregados interromperam o que estavam a fazer, para aproveitar

aquele momento. Enquanto todos os olhares convergiam para o céu, por

cima do mar, Bernard virava costas ao fogo de artifício e contemplava a

pequena multidão que acabara de impressionar com a sua surpresa. Para

Bernard, o espetáculo eram os outros.


Já era bastante tarde quando o pequeno grupo regressou a casa. Toda

a gente queria ir dormir, menos Bernard, que pediu aos genros que lhe

fizessem companhia. Instalaram-se então os três no terraço, onde

Bernard lhes ofereceu bebidas alcoólicas fortes e charutos. Mark aceitou

sem hesitar a grappa e o Cohiba que o sogro lhe passou para as mãos.

Arpad, por seu lado, não se sentia lá muito tentado pela ideia de fumar,

mas Bernard enfiou-lhe na boca um enorme charuto, enquanto o

admoestava: «Meu pequeno Arpad, não vais dizer que não a esta

maravilha!»

Houve um momento, bem-vindo, de calma e silêncio. A noite

ressoava com o estridular dos grilos. Os charutos iam ardendo na

escuridão, as bocas exalavam espessas volutas, os copos esvaziavam-se

rapidamente, antes de Bernard os encher num abrir e fechar de olhos.

Contemplando os genros com afeto, o patriarca disse:

— Não estavam mesmo nada à espera do fogo de artifício, pois não?

Arpad respondeu-lhe o que ele queria ouvir:

— Apanhou-nos completamente de surpresa.

— Custou-me os olhos da cara. Mas valeu cada cêntimo. Viram o

espanto das pessoas, quando aquilo começou?

A conversa foi então deslizando lentamente para o tema do dinheiro.

Não sendo de todo um assunto tabu para os americanos, Mark alimentou

o debate de bom grado, falando sem problemas sobre os seus

rendimentos. Foi então que, sem dúvida com a ajuda do álcool, decidiu

revelar a prática mais ou menos questionável a que o seu consultório se

dedicava: traficâncias com os clientes que lhe pagavam em dinheiro

vivo. Fosse por implantes mamários ou simplesmente por injeções de

Botox, havia sempre pacientes dispostos a pagar em notas, em troca de

um desconto no valor final. Mark omitia esses rendimentos ao fisco,

recebendo-os limpos, livres de impostos.

Arpad ficou estupefacto.

— Tu fazes dinheiro ao estilo do mercado negro? — perguntou,

incrédulo. — Tu, Mark, o cirurgião acima de quaisquer suspeitas?

Bernard, pelo contrário, estava encantado com a esperteza do genro

americano.

— Bravo, meu rapaz! — exclamou, com um certo entusiasmo.

Mark sorriu, triunfante.

É
— É importante termos um dinheiro só nosso — explicou Bernard.

— Só nosso quer dizer o quê? Não declarado? — perguntou Arpad.

— Quer dizer não tributado — precisou Bernard. — Claro que

temos de partilhar uma parte com o Estado, mas sem exageros. Também

não precisa de ser assim tanto.

— Dinheiro da economia paralela é coisa de outros tempos — disse

Arpad.

— Não te armes em santinho — provocou-o Bernard. — Vocês, os

banqueiros suíços, sempre foram os campeões do dinheiro escondido,

até serem obrigados a baixar as calças aos gringos. No offense, Mark.

— No worries — descansou-o Mark.

— O que eu queria dizer — retomou Arpad — é que se tornou

muito complicado, se não impossível, ter dinheiro não declarado.

Bernard encolheu os ombros em sinal de desacordo.

— Os tansos que se deixam apanhar são os idiotas que declaram o

salário mínimo e depois se passeiam de Ferrari — disse. — Eu, com os

meus restaurantes, passei a maior parte da vida a meter dinheiro ao

bolso sem o declarar, e nunca ninguém me impediu. Não é assim tão

difícil. Basta estar bem organizado, perceber um bocadinho de

contabilidade e, sobretudo, ser muito discreto.

Bernard, que nunca abordara este assunto com os genros, disse tudo

isto em tom de confidência. Mas Arpad estava ao corrente das suas

práticas desde há muito tempo. Sophie contara-lhe tudo.

Quando Arpad foi ter com Sophie ao quarto, ela já adormecera.

Acordou ao sentir o marido a deslizar para dentro da cama.

— O que é que estiveram a fazer até estas horas? — perguntou.

— O teu pai deu-nos uma palestra sobre o seu dinheiro não

declarado — respondeu Arpad.

— Oh, pelo amor de Deus, outra vez isso! — suspirou Sophie.

— Ah, pois!

Ela inquietou-se:

— Não disseste ao meu pai que te contei tudo sobre as falcatruas

dele…

— Claro que não.

Sophie encostou-se toda a ele.


— Soph’, é óbvio que eu tenho um presente para ti, mas só to vou

dar na segunda-feira, que é mesmo o teu aniversário. Não queria que o

abrisses à frente de toda a gente.

Ela fixou os seus olhos nos dele e segurou-lhe no rosto com as duas

mãos.

— Meu amor, tu até podes oferecer-me um colar de massinhas, que

eu fico contente na mesma — declarou.

Sophie sorriu-lhe e começou a beijá-lo no pescoço. Sentia desejo,

mas Arpad não estava para aí virado. Então ela desistiu da ideia e

acariciou-lhe o cabelo até ele adormecer. Pareceu-lhe notar uma

inquietude no rosto do marido, logo apagada quando este se deixou

vencer pelo sono.

Em Genebra, no seu Esconderijo de Jussy, o homem do Peugeot

cinzento não dormia. Contemplava as fotos da família Braun. O toque

do telemóvel quebrou o silêncio. A uma hora daquelas, só podia ser o

Estónio.

— O cliente começa a ficar impaciente — disse o Estónio.

— Estou a tratar do assunto — respondeu o homem.

— Em Genebra?

— Sim. Está previsto para daqui a exatamente duas semanas.

Em circunstâncias normais, o homem nunca entrava em detalhes,

menos ainda por telefone. Mas este era um caso especial: ainda não

conseguira cumprir o combinado e precisava de tranquilizar o Estónio.

Sendo um profissional muito respeitado no meio, não podia pôr em

causa a sua reputação.

— Nunca demoraste tanto tempo a executar um serviço — assinalou

o Estónio.

— Este é diferente — explicou o homem.

O Estónio pareceu ficar divertido com esta resposta. Depois disse:

— No fundo, és um sentimentalão.

Ao desligar, o Estónio estava satisfeito porque sabia que a tarefa

encomendada seria cumprida em breve.

O homem, no Esconderijo, pegou numa das fotografias de Sophie e

beijou-a.
Sábado, 2 de julho de 2022

O DIA DO ASSALTO

9h36

A rue du Rhône, onde ficava a loja da Cartier, parecia muito calma.

Na verdade, aquele estabelecimento comercial estava completamente

cercado pela polícia. Os operacionais do corpo de intervenção,

escondidos nos seus veículos, esperavam pelo sinal para desferirem o

ataque e apanharem os assaltantes em flagrante delito.

Numa carrinha Audi, estacionada na esquina do quai du Général-

Guisan com a place du Lac, Greg e o seu companheiro de equipa, com

os bancos reclinados, espiavam a vitrina da loja. Greg, recorrendo aos

binóculos, inspecionava o interior. Reparou na silhueta de Arpad, com o

boné enterrado na cabeça, a olhar para a rua através da vitrina.

Fora há seis dias que Greg descobrira tudo.

Seis dias à espera deste momento.

Apanhar o Arpad.

Até que enfim!


CAPÍTULO 8

13 dias antes do assalto

Domingo, 12 de junho

Segunda-feira, 13 de junho

Terça-feira, 14 de junho

Quarta-feira, 15 de junho

Quinta-feira, 16 de junho

Sexta-feira, 17 de junho

Sábado, 18 de junho (Fim de semana em Saint-Tropez)

→DOMINGO, 19 DE JUNHO DE 2022 (FIM DE SEMANA EM SAINT-

TROPEZ)

SEGUNDA-FEIRA, 20 DE JUNHO (ANIVERSÁRIO DE SOPHIE)


Domingo de manhã, na Verruga.

Karine emergia suavemente do sono. A luz entrava no quarto,

filtrada pelas persianas. Tudo estava calmo. Ela estendeu maquinalmente

a mão para o lado de Greg, à espera de encontrar apenas uma ausência.

Mas, para sua grande surpresa, tocou no corpo do marido. Estava ali, ao

seu lado, ainda a dormir. Karine sentiu-se feliz e rolou devagarinho para

se encostar toda a ele. Há já várias semanas — incluindo os sábados e os

domingos — que ela não o encontrava na cama ao acordar. Semanas em

que ele saía de madrugada para correr — a sua nova mania.

Karine, aninhada contra as costas musculadas do marido, sentia-se

bem. As crianças já se tinham levantado: ouvia, vindos da sala de estar,

os risos dos rapazes e as vozes nasaladas dos desenhos animados que

eles estavam a ver na televisão.

Greg abriu um olho. Sentiu o enlace de Karine. E gostou, era

agradável. Virou-se para ela, sorriu-lhe, beijou-a. Começou a ficar

excitado. Mostrava-se simultaneamente terno e atrevido, mas ela recusou

o convite.

— Espera — murmurou ela. — Os miúdos já acordaram…

Houve um momento de silêncio. Greg apercebeu-se por sua vez do

ruído do televisor, no piso térreo.

— Eles estão lá em baixo — disse ele, antes de enfiar a cabeça entre

os seios da mulher.

Ela afastou-o delicadamente.

— Ouve-se tudo. Não fico à vontade — disse.

A recusa de Karine criou um impasse. Impasse a que ela pôs fim ao

passar a outra coisa.

— Não te mexas — disse a Greg, enquanto se levantava. — Vou

fazer café.

Vestiu um roupão e desceu ao piso inferior. Beijou os filhos, que

devoravam a sua tigela de cereais de chocolate em frente ao televisor.

Arrependia-se de ter rechaçado os avanços de Greg. Quando voltou ao

quarto, com as canecas de café na mão, estava decidida a fazer amor

com ele. Mas encontrou a cama vazia. Greg estava na casa de banho, a

tomar duche. Ainda pensou em juntar-se a ele debaixo da água quente,


hesitou um pouco, mas depois decidiu regressar à cozinha e preparar o

pequeno-almoço.

— Estamos a precisar de passar mais tempo juntos — declarou

Karine ao marido.

— É verdade — concordou Greg.

Como ele não desenvolvia a conversa, ela disse:

— Os Braun estão a passar o fim de semana em Saint-Tropez.

Devíamos também fazer uma coisa assim, de vez em quando.

— Eles foram visitar os pais da Sophie — precisou Greg.

— Talvez. Mas vai dar ao mesmo, porque estão em Saint-Tropez,

enquanto nós continuamos aqui.

— Se os teus pais vivessem em Saint-Tropez, também iríamos.

Karine irritou-se com a falta de capacidade de encaixe do marido.

Devia estar ainda um pouco amuado por causa da sua recusa.

— Não te estou a falar dos meus pais, Greg. Estou a falar de

fazermos qualquer coisa só nós os dois, sem as crianças. Podíamos

procurar um hotelzinho simpático e passar uns dias longe da rotina. Eu

gostava…

Karine interrompeu-se, hesitando em terminar a frase. Greg

encorajou-a a dizer o que estava a pensar.

— Tu gostavas do quê?

E então, merda, pensou Karine, porque não hei de dizer aquilo que

me vai na alma?

— Gostava que fôssemos mais parecidos com os Braun —

desabafou.

— Olha, eu também não pedia mais nada.

A resposta do marido surpreendeu Karine. Houve um silêncio

incómodo. Depois, Karine disse:

— A propósito dos Braun, eles voltam hoje. Podíamos convidá-los

para jantar na pizaria, logo à noite.

Greg aprovou a ideia. Karine pegou logo no telemóvel e escreveu

uma mensagem a Sophie.

A centenas de quilómetros, um Porsche com matrícula de Genebra

acelerava na autoestrada em direção a Lyon. Arpad ia ao volante, os


olhos fixos no asfalto mas o espírito noutro lado. Silêncio total no

habitáculo. As paisagens da Provença tinham encantado e depois

embalado as crianças, que dormiam profundamente no banco de trás.

No lugar do morto, Sophie também passava pelas brasas. Um breve

estremeção do carro acordou-a. Agarrou a mão do marido.

— Obrigada — disse ela.

— Obrigada porquê? — espantou-se Arpad.

— Por te teres sacrificado em mais um fim de semana na casa dos

meus pais.

— Entre o fogo de artifício e os diamantes, nem nos safámos muito

mal. Podia ter sido bem pior.

Era riu-se. Mas sabia que Arpad se escondia atrás dos comentários

jocosos. Suspeitava que a falta de interesse sexual da véspera estivesse

ligada a qualquer coisa que se passara durante o fim de semana. Decidiu

por isso lidar com o problema frontalmente.

— O que é que aconteceu ontem à noite?

Arpad desconversou.

— Nada. Estava cansado.

— O cansaço não costuma deter-te.

Ele apreciou o elogio. Sophie insistiu:

— O que é que te preocupa, meu amor? E não me respondas que não

é nada…

Após uma hesitação, Arpad desabafou:

— Os números do primeiro semestre, lá no banco, vão ser muito

merdosos.

— Como os de todos os bancos — observou Sophie. — Os

mercados financeiros estão no vermelho desde o princípio do ano.

— É verdade. Mas os chefões deram a entender, a todos os serviços,

que os bónus de final de ano podem ficar na gaveta.

Sophie apertou a mão do marido.

— É isso que te deixa inquieto?

— O que me preocupa é que, com as nossas despesas, não consigo

poupar grande coisa. Conto sempre com o bónus. Ontem à noite, o teu

pai e o Mark gabaram-se dos seus ganhos ocultos. Isso fez-me perceber

que eu próprio não tenho um pé-de-meia secreto. Acho que me senti um

pouco… inferiorizado.
— Arpad, meu amor, promete-me que nunca te vais angustiar por

questões de dinheiro. E nem precisas de te preocupar assim tanto, o meu

escritório está de boa saúde, e além disso…

Sophie interrompeu-se. Arpad sabia que ela ia mencionar o dinheiro

do pai. Sophie prosseguiu:

— E além disso estamos juntos, que é o que importa. Não há nada

mais importante do que estarmos juntos. Se fosse preciso, era capaz de

ir viver contigo para debaixo de uma ponte.

Arpad esboçou um sorriso.

— É a ponte que te diverte? — perguntou ela.

— Na sexta-feira, recebi um telefonema do Julien.

— Do Julien Martet?

— Sim. Queria falar-me de um investimento na Costa Rica. Quando

vi a brochura… Fiquei mesmo tentado.

— Tentado a investir?

— Tentado a ir viver para lá.

Sophie não conseguiu esconder o seu espanto. Não esperava de todo

uma tal declaração de intenções.

— E imaginas-te a viver na Costa Rica? — sondou ela.

— Queres a verdade? Acho que sim. Gostava de ter uma vida mais

simples, sem obrigações, sem clientes que me dão cabo da cabeça, sem

depender das flutuações do mercado. Uma vida longe dos olhares dos

outros, das expectativas, dos compromissos. Só nós os quatro.

— Estás a falar a sério? — perguntou Sophie, visivelmente apanhada

de surpresa. — Estavas disposto a abdicar de tudo o que temos aqui?

— E porque não? Gosto da nossa vida, não me interpretes mal. Mas

o que é que nos prende a estas existências que passamos fechados em

escritórios, à espera de uns diazinhos de férias aqui e ali, a mendigar um

aumento, quando podíamos passar o ano inteiro ao sol e ir à praia todas

as tardes? No fundo, acho que preferia ganhar menos, contentar-me com

menos, mas ser mais livre.

Sophie não soube o que responder. Claro que a vida parecia mais

agradável num país onde o tempo era sempre bom e quente todo o ano.

Mas aquilo que eles tinham construído em Genebra não era de somenos.

Ela não pensava sequer na grande casa, nem no estilo de vida deles, mas
sim no equilíbrio da família. Achava que era um equilíbrio harmonioso.

Valeria a pena pôr isso em risco?

Arpad apercebeu-se de que as suas ideias sobre a Costa Rica haviam

perturbado Sophie.

— Amo-te — disse ele. — Sou feliz contigo, nada mais importa.

Sophie sorriu-lhe e apertou-lhe a mão com força.

— Eu também te amo. E amo-te precisamente porque não te deitas à

sombra do que já conseguiste.

O telemóvel de Sophie apitou, anunciando uma nova mensagem. Ela

abriu-a e leu logo.

— É da Karine Liégean — explicou. — A convidar-nos para irmos

jantar com eles à pizaria, logo à noite.

***

Sete da tarde na Casa de Vidro.

Em vez de irem ao restaurante, Sophie convidou os Liégean a virem

comer piza a casa deles, o que lhes permitiria aproveitar a piscina.

Apesar da hora, a tarde ainda estava muitíssimo quente e abafada. Antes

do jantar, toda a gente se atirou à água. Greg exibiu com orgulho o seu

corpo bem esculpido. Sophie ficou impressionada. E disse-lhe: «Estás

em grande forma.» Ele armara-se em modesto. Tivera dificuldade em

desviar os olhos dela, tão perfeita no seu biquíni. E aquela pantera na

coxa…

Devoradas as pizas, os miúdos ficaram a brincar no jardim, enquanto

os adultos conversavam à mesa. Arpad abriu uma segunda garrafa de

vinho.

— Antes que me esqueça… — disse Greg, pousando na mesa o

duplicado das chaves que lhe tinha sido confiado.

— Obrigada — disse Sophie. — Permitiste que fôssemos de viagem

descansados.

— Na verdade, não fiz grande coisa. Algumas rondas, quando saía

para passear o cão. Sabem, acho que aquele tipo era só um assaltante de
casas pouco esperto, que veio reconhecer o terreno e tão depressa não

volta a correr os riscos que correu.

Greg tinha acabado por se convencer de que o bisbilhoteiro de

quinta-feira não era mais do que um tarado qualquer de passagem.

— E a trela? — perguntou Arpad. — Tiveste novidades?

— Recebi os resultados do laboratório na sexta — mentiu Greg. —

Não encontraram nada. Como me tinha parecido, devia estar ali há

bastante tempo. Coisa de miúdos, de certeza.

Ao dizer isto, reparou na maneira como Sophie o ouvia, quando ele

falava na sua qualidade de polícia. Greg sentiu-se importante. Por

momentos, teve o impulso de explicar que não era um polícia qualquer,

mas sim um membro da unidade de elite, ou seja, um desses

operacionais que usam passa-montanhas e armas pesadas, um dos tipos

duros que são chamados quando as coisas correm mesmo mal. E que em

breve se tornaria chefe da unidade. Estava no limiar da confidência

quando Arpad disse:

— Felizmente, o alarme será instalado já amanhã. A partir daí,

vamos poder ficar descansados.

De repente, Karine mudou completamente de assunto.

— Quais são os vossos planos para as férias? — perguntou.

— Vamos para Saint-Tropez, como todos os anos — respondeu

Sophie. — Tínhamos também pensado em ir durante uma semana à

Grécia, mas ainda não reservámos nada. E vocês?

— Nós alugamos uma casa na Provença, com os meus pais. Mas

também queríamos passar um fim de semana romântico, só eu e o Greg.

Deixar as crianças com alguém e ficarmos só nós os dois.

— Um fim de semana romântico! Que bela ideia! — aprovou

Sophie, cuja reação encheu Karine de orgulho. — Há muito tempo que

não temos um desses, eu e o Arpad. Estão a pensar ir para onde?

— Ainda não decidimos. Tens alguma sugestão?

— Madrid é uma cidade incrível. Ou, por exemplo, Milão. Dá para ir

de carro, é muito prático.

Nessa noite, na Verruga, Karine, ao desmaquilhar-se na casa de

banho, voltou a pensar na sugestão de Sophie.


— Nada má, a ideia de Milão — disse ela a Greg, que estava no

quarto. — Podíamos mandar os miúdos para casa dos meus pais,

enquanto viajávamos em Itália. À vinda, podíamos ir ter com eles.

Greg ouvia-a distraidamente. Era muito evidente o efeito que Sophie

provocava na sua mulher. Karine ficava sempre entusiasmada, quando

falava da nova amiga. E ele não podia criticá-la por isso, porque Sophie

tinha o mesmíssimo efeito nele. Como não reagiu à sua proposta, Karine

espreitou da porta e ficou espantada de o ver ainda vestido.

— Não te vens deitar?

— Já vou. Ainda tenho de ir passear o Sandy.

Na Casa de Vidro, Sophie acabava de se deitar no leito conjugal,

onde Arpad aproveitava para ler um pouco. Ela tirou-lhe o livro das

mãos e começou a beijá-lo.

Sentiu nele uma hesitação que já antecipara: um encolhimento

apreensivo, por causa do problema da véspera.

Para resolver um problema, é preciso primeiro conhecer a sua causa,

e ela compreendera qual era exatamente essa causa. Horas antes,

enquanto vinham na estrada, a regressar de Saint-Tropez, ele falara da

questão do bónus no banco, que o mais certo era não ser pago. Este ano,

feitas as contas, ele ganharia provavelmente menos dinheiro do que ela,

e o seu orgulho masculino ressentia-se. Ele precisava de retomar o

poder. De a dominar de uma maneira ou de outra.

Guiada pela sua intuição, Sophie abriu a gaveta da mesinha de

cabeceira, pegou nas algemas e prendeu-se à cabeceira da cama.

Murmurou-lhe ao ouvido:

— Força, meu amor.

Com um gesto animal, ele levantou-lhe a camisa de dormir, baixou-

lhe as cuecas e penetrou-a. Sophie sorriu: a reparação do orgulho

masculino estava em marcha.

Mas os Braun não estavam sozinhos no quarto.


A poucas centenas de metros da Casa de Vidro, um automóvel estava

parado num caminho rural. No porta-bagagens, Sandy esperava,

paciente. No lugar do condutor, Greg tinha os olhos colados a um ecrã

ligado a um recetor.

O emissor encontrava-se no quarto dos Braun, junto à minúscula

câmara escondida que Greg instalara, na véspera, na estrutura do

armário. Este material altamente sofisticado pertencia ao corpo de

intervenção. Era utilizado em missões de observação sensíveis. A

brigada possuía uns vinte conjuntos. Ninguém, pensou ele, daria pela

falta de uma única câmara.

Greg contemplava agora a imagem e o som do quarto dos Braun. Viu

Sophie presa com algemas à cabeceira da cama. Ficou ao mesmo tempo

maravilhado e hipnotizado, diante daquele espetáculo.


7 ANOS ANTES

ABRIL DE 2015

Genebra

Era uma tarde quente de primavera.

O parque Bertrand estava a abarrotar de pessoas a passear e a correr,

de crianças frenéticas a descer pelos escorregas e de namorados

estendidos na relva.

Um casal instalara-se num banco, a meio de uma alameda com

castanheiros, diante de uma grande caixa de areia. Ela, grávida, estava

sentada e folheava um jornal com anúncios imobiliários. Ele deitara-se

com a cabeça pousada na coxa esquerda da sua companheira, enquanto

lia O Mestre e Margarita. Eram Sophie e Arpad.

Sophie, prestes a fazer trinta e três anos, esperava o primeiro filho,

com o parto previsto para setembro. Uma ecografia recente revelara o

sexo do bebé: um rapaz. Já tinham escolhido um nome para ele: Isaak.

Mas, por superstição, mantiveram-no em segredo até ao nascimento.

Arpad e Sophie estavam casados há um ano. Uniram-se civilmente

na câmara municipal de Genebra, mas a verdadeira celebração

aconteceu em Saint-Tropez — uma concessão de Arpad a Bernard,

porque o seu sogro ficaria doente caso não lhe dessem a oportunidade de

organizar, nos seus domínios, o copo-d’água da sua filha querida.

A etapa seguinte seria mudar de casa: o apartamento da avenue

Eugène-Pittard seria pequeno para os três. Sophie, que preferia

claramente fazer a mudança ainda durante a gravidez, e não com um

recém-nascido para cuidar, procurava ativamente um lugar para o futuro

ninho. Até àquele momento, as visitas feitas eram pouco convincentes,

mas tinham-lhes permitido circunscrever o âmbito da procura: os dois

gostavam muito do bairro de Champel, justamente por causa da

proximidade do parque em que se encontravam agora. A prospeção de


Sophie orientava-se em função desta premissa. Ela encontrara já o lugar

em que acreditava poder ser feliz, mas ainda não ousara falar dele a

Arpad. O apartamento correspondia em todos os aspetos ao que

sonhavam. E ela sabia isso porque o visitara, sem dizer nada ao marido.

Era um apartamento à antiga, grande, com tetos altos, que lembrava um

pouco o estilo dos edifícios erguidos por Haussmann em Paris. Situava-

se na avenue Bertrand, uma das artérias que ladeavam o parque. Ali,

tudo era perfeito, exceto o preço, razão pela qual ainda nada dissera a

Arpad. Aguardava o momento certo, e sentia que esse momento tinha

chegado.

Embora ocupados nas suas leituras, eles iam conversando. Sophie

agitava as páginas do jornal que já conhecia de cor, à força de tanto as

ler e reler. Comentava os anúncios como se os estivesse a ver pela

primeira vez, algo que fazia parte do seu estratagema.

— Há um que tem muito bom ar, mas fica noutro bairro.

— Eu prefiro que seja aqui, em Champel — respondeu Arpad, sem

largar o seu livro.

— De qualquer maneira, não tem elevador. Não é para nós.

— Não é para nós — repetiu Arpad, como uma máquina.

Sophie foi virando as páginas do jornal e teve de repente como que

uma revelação.

— Acho que encontrei qualquer coisa! — exclamou ela com uma

voz tão convencida e determinada que Arpad se ergueu para ver o

anúncio.

Sophie apontou com o dedo para uma imagem que tinha por cima o

logótipo de uma bem conhecida agência imobiliária de luxo. E leu:

— «Apartamento na avenue Bernard, com vista para o parque…

Quatro quartos, cozinha moderna, sala de jantar, salas de estar

adjacentes…» Tem um aspeto incrível!

Na descrição, figurava o preço de venda.

— Não está para arrendar, meu amor — observou Arpad, com um

tom ligeiramente pedante.

Até ao momento, nas conversas com Sophie, nunca se pusera sequer

a hipótese de eles se tornarem proprietários. Foi então que ela lhe disse:

— E se comprássemos? Assim, seria mesmo a nossa casa.

Sentindo que Arpad não a levava a sério, acrescentou:


— Em vez de pagarmos uma renda, porque é que não investimos?

— Meu amor, eu ganho bastante bem, mas não tenho dinheiro de

lado que nos permita comprar um apartamento desse nível. Viste bem o

preço?

— Eu tenho algum dinheiro em poupanças — disse então Sophie.

De início, Arpad pensou que ela estava a ser ingénua: estava a par do

seu património, que era modesto. Ou, pelo menos, era o que Arpad

julgava. Porque Sophie decidiu-se, enfim, a revelar-lhe um dos seus

segredos.

No dia seguinte a esta conversa, Sophie marcou um encontro com

Arpad na place Bel-Air, ao meio-dia. Como aquele sítio ficava a meio

caminho entre o escritório de Sophie e o banco onde trabalhava, Arpad

deduziu que iriam almoçar juntos. Ou dar um pulo a uma loja de

mobiliário infantil, como na semana anterior. Porém, quando se

encontraram à hora combinada, Sophie entrou com Arpad no Crédit

Suisse, cujo edifício se situava na mesma praça.

— Onde é que vamos? — perguntou Arpad, desconcertado.

— Tenho de te falar de uma coisa.

Sophie deu o seu nome num balcão, atrás do qual um funcionário

assentia com um ar entendido. Depois, atravessou o átrio até um

elevador. Pela forma como se movimentava, dir-se-ia que ela conhecia

perfeitamente os cantos à casa. Os dois desceram à cave e dirigiram-se à

sala dos cofres. Ali, foram recebidos por um outro funcionário que

parecia conhecer Sophie. Como exigia o protocolo, ela identificou-se,

depois o homem acionou a abertura de uma porta blindada e levou-os

até uma sala enorme, cujas paredes estavam cravejadas de cofres de

tamanhos diferentes.

Arpad seguia a mulher num estado de crescente perplexidade. O

funcionário parou diante de um cofre e introduziu uma chave numa de

duas fechaduras, antes de se retirar discretamente. Sophie retirou uma


chave do bolso e fê-la girar na segunda fechadura. Depois abriu a porta

do cofre e afastou-se, para que Arpad pudesse ver o que havia lá dentro.

Ele ficou completamente estupefacto.

***

— Vais ter de me explicar o que acabei de ver — disse Arpad,

sentando-se pesadamente numa cadeira.

Estavam agora no gabinete de Sophie. Sozinhos e ao abrigo de

ouvidos indiscretos, podiam enfim falar. Não haviam trocado uma

palavra sequer desde o momento em que saíram do banco, dez minutos

antes. Era como se tivessem permanecido em apneia, ao percorrerem as

poucas centenas de metros que separavam o Crédit Suisse do escritório

de advocacia. O silêncio traía ao mesmo tempo o choque de Arpad e a

extensão do segredo da sua mulher.

Sophie pousou os tabuleiros de sushi na mesa, como se nada fosse.

Mas Arpad não tinha vontade nenhuma de comer. Porque só conseguia

pensar no que vira dentro do cofre: maços e maços de notas. Centenas

de milhares de euros, talvez mesmo um milhão, se não mais.

Compreendendo que era tempo de se explicar, Sophie sentou-se ao lado

de Arpad e pegou-lhe na mão.

— O meu pai fez muito dinheiro por fora — começou por dizer. —

Tanto nos restaurantes como nas operações imobiliárias. Eu já

suspeitava, porque sempre o vi a pagar tudo com dinheiro vivo. Alguma

vez o viste usar um cartão de crédito?

— Não — admitiu Arpad, que reviu logo, mentalmente, as imagens

de Bernard tirando notas dos bolsos como se estes não tivessem fundo.

Sophie retomou:

— Tinha dúvidas, mas nunca questionei. Até ao nosso casamento.

No dia a seguir à festa, o meu pai falou comigo, a sós.

— Eu lembro-me — disse Arpad. — Vocês saíram os dois, para

jantar.

Sophie acenou com a cabeça.


— Ele explicou-me que tinha vontade de nos oferecer um belo

presente, para nos ajudar, a ti e a mim, no começo de vida em comum,

mas que não tinha na verdade assim tanta liquidez nas suas contas. Por

outro lado, acumulara muito dinheiro escondido. Pediu-me para arranjar

um cofre num banco, assim que regressasse a Genebra. Foi o que fiz.

Depois, algumas semanas mais tarde, ele e a minha mãe passaram por

Genebra, para nos virem visitar.

— Fomos passar o dia a Gruyères — lembrou-se Arpad.

— Essa visita foi só um pretexto. Era para me darem o dinheiro. O

meu pai quis mesmo trazê-lo consigo até à Suíça, para evitar que fosse

eu a passar a fronteira com uma tal soma.

— E então?

— E então esse dinheiro está guardado naquele cofre há mais de um

ano, sem que eu saiba o que fazer com ele.

— Porque é que não me contaste logo? — perguntou Arpad,

magoado por ela ter mantido o segredo todo aquele tempo.

— Sei lá. Não sabia como é que tu reagirias. Não queria que

julgasses o meu pai. E depois, temia por ti. Pelo teu emprego. Isto é

dinheiro não declarado, não queria que estivesses envolvido nisto, que

poderia comprometer a tua carreira no banco.

Arpad ficou abalado com a revelação. Não sabia, porém, se aquilo

que o perturbava era o segredo propriamente dito ou a descoberta de que

a mulher o superava muitíssimo em termos financeiros. Sophie, por seu

lado, sentia-se aliviada pela confissão, mas nervosa com o modo como o

marido estava a reagir.

— Se calhar o melhor é devolver o dinheiro — disse ela, de lágrimas

nos olhos. — Não quero que esta fortuna enorme estrague alguma coisa

entre nós. E além disso sou advogada, convém lembrar! Posso ser

expulsa da Ordem.

Arpad, retomando o seu papel de marido protetor, começou a dirigir

a conversa.

— Seria estúpido devolver o dinheiro. O teu pai levaria a mal, e

depois, o que faria com ele? Enquanto para nós… para nós poderia ser

um belo empurrão…

— Concordo contigo. Daí a minha ideia de comprarmos um

apartamento.
Arpad afastou logo essa ideia.

— Temos de ser muito discretos. Usar o dinheiro nas nossas

despesas correntes. No supermercado, no restaurante. Nas compras do

dia a dia. Mas não num apartamento, isso ia logo levantar suspeitas.

— Mas aquele apartamento na avenue Bertrand é perfeito! —

desesperou Sophie, que não queria desistir da casa com que sonhava. —

Consigo imaginar-nos lá dentro… É mesmo feito à nossa medida!

Quando o vires, vais ficar imediatamente convencido!

— Já o visitaste?

Ela fez um ar culpado.

— Queria ter a certeza do que estava a fazer antes de te falar de tudo

isto. Há já algum tempo que ando a visitar apartamentos, até encontrar o

melhor de todos. E é este, juro. Confia em mim. Vamos ser tão felizes

ali!

Sophie sabia escolher os momentos. Como acabava de ficar provado,

amadurecera longamente a questão do apartamento e do dinheiro do pai.

Fora por isso que levara tanto tempo a falar-lhe do assunto. Arpad queria

encontrar uma solução. Não tanto por desejo de confiar no instinto da

mulher, mas sobretudo porque desejava brilhar aos olhos dela. Era a

oportunidade de lhe provar do que era capaz. De a espantar.

Uma semana mais tarde, quando Sophie voltava do trabalho,

encontrou Arpad à sua espera na sala de estar. Era relativamente cedo e

ela ficou espantada de o encontrar já em casa.

— Está tudo bem? — perguntou.

Não obteve resposta, mas Arpad parecia de muito bom humor.

Colocara uma garrafa de sumo de laranja num balde cheio de gelo e

serviu-o numa flute, como se fosse champanhe.

— Por causa da gravidez, celebraremos com sumo de laranja.

Ela ficou a olhar para ele, intrigada.

— Estamos a celebrar exatamente o quê?

— Acho que encontrei.

Sophie não compreendeu logo aonde é que ele queria chegar.

— Encontraste o quê?

— Uma maneira de comprar o apartamento.


Arpad deu início à sua explicação. Estava muito entusiasmado e

Sophie adorava vê-lo assim.

— Para justificar a compra de um apartamento como aquele, temos

de aumentar os nossos rendimentos. Iremos por isso usar a tua atividade

enquanto advogada para injetar dinheiro do teu pai no circuito oficial.

— Como?

— Graças a esse maravilhoso meio de pagamento de que dispõe a

Suíça: os vales postais !

Sophie mostrou-se cética e Arpad recordou-lhe o funcionamento dos

vales postais. Criados nos primeiros anos do século xx pelo poderoso

banco postal suíço, os vales postais eram na altura uma forma de

pagamento que permitia a entrega de dinheiro a um particular ou a uma

empresa, na Suíça. No documento, só aparecia a identidade do

beneficiário, uma vez que a do pagador não era indispensável para

proceder ao pagamento. Bastava uma pessoa apresentar-se no balcão dos

correios com o vale e a soma correspondente em numerário. A transação

era efetuada sem que se perguntasse mais nada. À exceção do destino

final do dinheiro, o seu fluxo era impossível de rastrear.

— Vais criar faturas falsas — prosseguiu Arpad — em nome de

clientes reais, que existem, mas na realidade essas verbas que eles

deveriam pagar serão enviadas por ti, em dinheiro vivo, de uma estação

de correios, em vales postais. Depois integrarás essas faturas na tua

contabilidade e elas entrarão no teu volume de negócios. Ninguém irá

verificar se essas faturas foram realmente passadas aos ditos clientes.

Não podes é introduzir no esquema somas demasiado avultadas, tens de

continuar com os montantes habituais. Vai aumentando o número de

faturas aos poucos. Tem de ser tudo feito progressivamente.

— Mas eu faturo em francos suíços — alertou Sophie. — Relembro-

te que o dinheiro do meu pai está todo em euros.

— Para substituir os euros por francos suíços, utilizaremos o câmbio

regularmente, em diferentes agências — explicou Arpad. — Ninguém se

espantará de nos ver com frequência: há dezenas de milhares de pessoas

que circulam entre os dois lados da fronteira, que trabalham na Suíça e

vivem em França, e essas pessoas utilizam o câmbio, todos os meses,

para converter a totalidade do seu salário.


Arpad estava absolutamente seguro do que dizia. Tinha um lado de

bad boy que atraía tremendamente Sophie. No entanto, havia um

problema.

— Há qualquer coisa que não me parece funcionar na tua estratégia.

Se, para nos mantermos discretos, vamos integrando lentamente no

circuito oficial o dinheiro não declarado, teremos de esperar muito antes

de conseguirmos comprar o apartamento na avenue Bertrand. E assim

ele vai escapar-se-nos por entre os dedos!

— A não ser que paguemos por ele muito menos do que o preço

anunciado. E esse valor se situe dentro daquilo que podemos pagar

agora. Assim não se levantaria suspeitas.

— E por que raio haveriam de nos vender a um preço

substancialmente mais baixo? — perguntou Sophie.

— Porque temos uma sorte do caraças! — exclamou Arpad. —

Imagina só que falei ao agente responsável por esta venda. Também eu

sou capaz de estabelecer os meus contactos. E descobri uma coisa sobre

o proprietário do apartamento.

— O que é que descobriste?

— Logo verás. Temos encontro marcado com ele às seis da tarde.

— Encontro? — repetiu Sophie, incrédula.

O apartamento dos seus sonhos estava prestes a tornar-se realidade.

Duas horas mais tarde, Arpad e Sophie atravessavam o parque

Bertrand, de mão dada, desembocando orgulhosamente na avenida com

o mesmo nome, que consistia, na verdade, numa ruela encantadora e

calma, de sentido único, com largura para um único automóvel. De um

lado, os renques de árvores centenárias do parque. Do outro, um edifício

antigo, de pedra lavrada, no qual entraram.

O apartamento ficava no quinto andar. Ainda lá morava o seu

proprietário, Edward Wallon, um homem de uns cinquenta anos que

recebeu calorosamente os visitantes.


Começaram por dar uma volta à casa. Arpad partilhou logo o

entusiasmo de Sophie. O apartamento era magnífico, espaçoso, bem

distribuído. Havia nele um agradável contraste de épocas: soalhos em

madeira, tetos trabalhados, mas cozinha e casas de banho

ultramodernas. No fim da ronda, instalaram-se na sala de estar para

conversarem. Como Sophie elogiou o tecido do sofá, Wallon disse-lhe

em tom de brincadeira:

— O mobiliário não está incluído, mas podemos sempre negociar.

Arpad aproveitou a oportunidade para abordar o verdadeiro motivo

da visita.

— Justamente, senhor Wallon, nós não viemos aqui apenas para ver

o apartamento.

— Sim, eu sei. O agente disse que pretendiam fazer-me uma

proposta direta. Sou todo ouvidos.

— Senhor Wallon, espero que não se ofenda com o que vou dizer.

— Fale à vontade.

— Julgo saber que pôs à venda o apartamento porque está neste

momento num processo de divórcio.

Uma sombra passou pelo rosto de Edward Wallon.

— É verdade, sim. Mas o que é que isso tem a ver com o nosso

negócio?

Imperturbável, Arpad continuou:

— Sei também que é o único proprietário do apartamento.

— Estou diante de um polícia, senhor Braun?

— Limitei-me a consultar o registo predial, senhor Wallon. Todas

estas informações são públicas…

A atmosfera na sala, tão descontraída ainda há poucos minutos,

tornou-se pesada. Sophie não compreendia o que se estava a passar.

Wallon teve dificuldade em esconder a sua irritação:

— Agradecia que fosse direto ao assunto, senhor Braun, em vez de

andar às voltas, sem se descoser.

— Senhor Wallon, eu sei que o seu divórcio é daqueles mais

complicados. E que a sua futura ex-mulher vai quase de certeza reclamar

uma boa parte da verba conseguida com a venda deste apartamento.

Wallon fervia por dentro, chamando nomes em silêncio ao tagarela

do agente imobiliário, que tinha claramente revelado pormenores da sua


vida privada à primeira pessoa que lhe surgira pela frente. Permitiu,

ainda assim, que Arpad prosseguisse. E este chegou por fim à proposta

que pretendia fazer.

— O que diria de baixar o preço de venda oficial? Nós pagaríamos a

diferença em dinheiro vivo.

Houve um silêncio. Depois, Wallon perguntou:

— Estamos a falar de quanto?

Arpad teve de conter um sorriso.

— Um terço do preço — propôs. — Vende-nos o apartamento um

terço mais barato. Claro que depois receberá o montante total que está a

pedir neste momento, mas ninguém o saberá. E quando a sua ex-mulher

reclamar uma parte desta venda, só poderá ter pretensões sobre o valor

que pagou oficialmente.

Wallon não parecia muito convencido.

— Ela vai dizer que há um esquema para a prejudicar. Apontará,

evidentemente, para a diferença entre o preço a que o apartamento foi

posto à venda e o preço final.

— O senhor é livre de vender o seu imóvel ao preço que lhe

apetecer. É aquilo a que chamamos, na Suíça, liberdade económica.

Nenhuma lei o impede de vender ao desbarato, só para prejudicar a sua

futura ex-mulher. E, depois, o agente pode perfeitamente testemunhar

que o apartamento tem imensos problemas. Precisa de obras, de refazer

a canalização, a parte elétrica, e coisas desse tipo. Já que falamos do

agente, eu assumiria, claro está, a totalidade da comissão.

Wallon percebeu que o agente também estava envolvido no esquema.

Olhou para Arpad durante algum tempo. Depois, de súbito, exclamou:

— Negócio fechado!

Os dois homens selaram o acordo com um longo aperto de mão.

— Champanhe! — anunciou Wallon, levantando-se do seu cadeirão.

Quando saiu da sala, Arpad, com um grande sorriso estampado no

rosto, virou-se finalmente para Sophie. Imaginava que estaria orgulhosa

do que ele conseguira, mas em vez disso ela lançou-lhe um olhar

furioso.

— Como é que te atreves a fazer uma coisa destas? — barafustou

ela.

Arpad não compreendia aquela reação.


— Ficámos com o apartamento! Qual é o problema?

— Estamos a lixar completamente a mulher dele. É esse o problema!

Ela vai ficar nas lonas por nossa causa.

— Quem é que te diz que ela vai ficar nas lonas? Se calhar, até foi

ela que se quis ir embora… Às tantas, trocou o pobre Edward por um

tipo qualquer e agora vai fazer tudo para sugar o máximo ao futuro ex-

marido.

— Oh, pára com isso, Arpad! A conversa machista não te fica nada

bem.

— Enfim, Sophie, és tu que costumas dizer que é preciso aproveitar

as oportunidades quando elas surgem. E se isto te choca assim tanto, o

melhor é não ficarmos com este apartamento. Devolvemos o dinheiro ao

teu pai e ponto final, já que fazes tanta questão de manter os teus

princípios!

***

Dois meses mais tarde, no princípio do mês de julho, Arpad e

Sophie mudaram-se de armas e bagagens para o seu novo apartamento,

na avenue Bertrand. Sophie, cuja barriga se arredondara ainda mais,

dirigia as manobras dos homens das mudanças. Arpad carregava

caixotes.

Era o começo de uma nova vida.


CAPÍTULO 9

12 dias antes do assalto

Domingo, 12 de junho

Segunda-feira, 13 de junho

Terça-feira, 14 de junho

Quarta-feira, 15 de junho

Quinta-feira, 16 de junho

Sexta-feira, 17 de junho

Sábado, 18 de junho (Fim de semana em Saint-Tropez)

Domingo, 19 de junho (Fim de semana em Saint-Tropez)

→S EGUNDA-FEIRA, 20 DE JUNHO DE 2022 (ANIVERSÁRIO DE

SOPHIE)
Sophie abriu um olho.

No quarto, a luz do dia filtrava-se pelos interstícios dos estores. Ela

virou-se maquinalmente para a mesinha de cabeceira, onde o

despertador indicava que eram seis e meia da manhã. Dormira mais do

que o habitual. O seu sono estava a melhorar.

Sentiu de repente o dedo de Arpad a acariciar-lhe a nuca e a descer

ao longo das suas costas nuas.

— Parabéns! — murmurou-lhe o marido.

Ela sorriu e virou-se para ele.

Seis horas e cinquenta minutos.

Greg desligou o ecrã e pousou-o no lugar do passageiro. Depois, pôs

o motor do carro a funcionar e zarpou. Estava atrasado, o mais certo era

levar uma ensaboadela da mulher, e nem sequer dera oportunidade a

Sandy de urinar, como era suposto. O Sandy que se lixasse. Ele

precisava de um álibi: passou rapidamente pela padaria e comprou

croissants. Excelente ideia. De regresso à Verruga, encontrou Karine de

péssimo humor. As crianças estavam insuportáveis e recusavam-se a ir

para a mesa tomar o pequeno-almoço.

— Aonde é que foste? — perguntou ela, cortante. — Levaste o

carro?

— Croissants! — anunciou Greg, erguendo o saco da padaria.

As crianças berraram, alegres. A tensão diminuiu um pouco. Greg

aproveitou a oportunidade para desarmadilhar a cólera da mulher.

— Esta manhã, tomo eu conta deles. Vou pô-los à escola… Assim,

podes ir calmamente para o trabalho.

Karine apreciou o gesto. Não queria perder a boleia de Sophie no dia

do aniversário dela.

Sete horas e quarenta e cinco minutos.

Na Casa de Vidro, Sophie soprava uma vela com os filhos, à mesa do

pequeno-almoço. Foram interrompidos pelos técnicos da empresa de

segurança que, como combinado, vinham instalar o sistema de alarme

na casa.
— Eu ocupo-me destes senhores — sugeriu Arpad a Sophie. —

Podes levar os miúdos à escola?

— Claro que sim. Mas tens a certeza que não é complicado ficares

aqui? Eu posso organizar-me, ou até…

— Não te preocupes, de qualquer maneira eu já tinha avisado no

banco que estaria ausente até ao início da tarde.

Oito horas e dez minutos.

Karine batia com o pé no chão, junto à paragem do autocarro. Nada

de Sophie. Chegou um autocarro e Karine, desiludida, resignou-se a

entrar nele no último segundo. Não podia esperar mais, caso contrário

chegaria atrasada. Mas quando já tinha um pé dentro do autocarro, ouviu

uma buzina. Era Sophie, ao volante do seu carro. Karine aproximou-se

da janela aberta.

— Foi a senhora que chamou um táxi? — perguntou Sophie,

sorrindo.

— Parabéns! — disse Karine, devolvendo-lhe o sorriso.

— Obrigada. Entra!

Ela nem hesitou e abriu logo a porta do lado direito.

— Calha bem teres passado por aqui — disse Karine. — Tenho uma

prendinha para ti.

— Um presente? Não era preciso.

— É só uma lembrança — minimizou Karine, tirando da mala um

saquinho em seda, que Sophie abriu quando parou num semáforo.

Era uma pulseira feita com um fio azul e ornamentada por uma

pequena pedra de um azul muito escuro.

— É um amuleto — explicou Karine.

— Lindo! — entusiasmou-se Sophie, enquanto prendia o objeto em

volta do pulso.

— O que é que vais fazer logo à noite?

— O Arpad vai levar-me a jantar fora, no restaurante japonês do

Hôtel des Bergues.

— É ótimo — disse Karine, com ar aprovador, dando a entender que

conhecia o sítio, quando na verdade nunca lá pusera os pés.

— Eu nunca fui lá — confessou Sophie. — Para ser franca, preferia

comer uma massa num restaurantezinho italiano. Mas sabes como é o


Arpad, pensa sempre tudo em grande.

— Mas também, caramba, são quarenta anos — contrapôs Karine.

— É caso para celebrar a sério. Estás a pensar fazer uma festa?

— Ainda não sei. Será que me apetece juntar muita gente? Não

tenho a certeza. Gosto de estar sossegada, com os meus filhos e o meu

marido.

Karine invejou-a por dizer aquilo, bem mais do que a invejava pela

sua casa, pelo seu automóvel, ou pelo seu estilo de vida. Não queria isto

dizer que ela não gostasse dos seus filhos e de Greg, mas o tempo

passado com eles, ultimamente, acabava quase sempre por ser sinónimo

de tédio e de chatices. Teve vontade de confessar isso à amiga. Teve

vontade de dizer: «Quando não falamos dos filhos, eu e o Greg não

falamos de nada.» Mas não teve coragem. Tudo o que saiu da sua boca

foi apenas um reflexo da admiração que sentia pelos Braun:

— Qual é o vosso segredo? — perguntou.

— O nosso segredo?

— O vosso segredo, teu e do Arpad. Têm sempre um ar tão feliz.

O segredo deles? O verdadeiro segredo deles encontrava-se na cave

do Crédit Suisse, na place Bel-Air. A poucos passos do banco privado

em que Arpad trabalhava. Bem escondido, num cofre anónimo entre

centenas de outros, cujo número de identificação só Sophie e Arpad

conheciam. Cofre número 521.

Foi até lá que Arpad se dirigiu, assim que a instalação do alarme

ficou concluída. Depois de lhe ter revelado a existência do dinheiro, sete

anos antes, Sophie registara o nome do marido no banco e dissera-lhe

onde guardava a chave. Arpad devia poder aceder ao cofre, no caso de

acontecer alguma coisa a Sophie. De qualquer maneira, ele jurara diante

dela nunca utilizar o dinheiro sem primeiro lhe dizer que o faria.

Primeiro, fizera também o juramento a si próprio. E gostaria muito de

ter sido capaz de manter a palavra.

Arpad contemplou as pilhas de notas. Ao longo dos anos, o cofre

esvaziara-se consideravelmente. E depois, de forma misteriosa, enchera-

se de novo. A primeira vez que Arpad contara as notas, no momento da

revelação de Sophie, havia ali vários milhões de euros. Arpad

compreendeu então que Bernard era não apenas muito mais rico do que
ele imaginara, mas sobretudo que devia estar seriamente preocupado,

para se ver livre de uma verba daquela magnitude. Talvez se sentisse na

mira do fisco francês. O essencial daqueles fundos fora utilizado para

comprar o apartamento de Champel. Arpad pedira a Sophie para não

dizer ao pai que tinham comprado a nova casa com o dinheiro dele,

temendo que Bernard lhe pedisse para o ajudar na lavagem de mais

dinheiro não declarado.

— Não digas sequer ao teu pai que eu sei do cofre — recomendara

Arpad. — Quero ficar fora de tudo isso. E se ele te falar do assunto, diz

que vais gastando calmamente o dinheiro em viagens e restaurantes.

Sophie entendia que era uma questão muito séria.

— Não te preocupes. Ele não vai saber de nada — afiançou.

— E não aceites mais dinheiro vindo dele, por favor. Não quero ser

ainda mais cúmplice das suas trafulhices.

— Está prometido.

Mas Sophie mentira. Porque aceitara novamente o dinheiro do pai. E

Arpad apanhara-a em flagrante.

***

Três anos antes

Fevereiro de 2019

No belo apartamento da avenue Bertrand, onde a família Braun se ia

expandindo, reinava o caos: Isaak, três anos, e Léa, um ano, estavam aos

gritos na sala de estar. Sophie e Arpad, já de casacos vestidos, junto à

porta de entrada, não conseguiam disfarçar o nervosismo. No meio da

desordem e da tensão, duas figuras apaziguadoras: Bernard e Jacqueline,

os pais de Sophie.

— Vá, pirem-se — disse Bernard. — Nós tomamos conta disto.

— Podem ir, meus queridos — acrescentou Jacqueline. — Olhem

que ainda perdem o voo.

Arpad e Sophie pegaram nas malas e saíram do apartamento. Um

táxi esperava-os na rua. Dirigiam-se juntos para o aeroporto, mas não


iam apanhar o mesmo avião. Arpad partia para Montreal, onde passaria

alguns dias na sucursal do banco no Québec. Sophie, pelo seu lado,

deslocava-se a Londres com Samuel Hennel. Este cliente acabava de

vender uma parte da sua coleção de arte a um comprador inglês, e havia

ainda alguns detalhes a limar. Para compensar a ausência dos dois

progenitores, Bernard e Jacqueline tinham vindo instalar-se no

apartamento de Champel, para tomar conta dos netos.

Duas ou três semanas mais tarde, Arpad foi até ao cofre do Crédit

Suisse retirar dinheiro para pagar o aluguer de um chalé em Verbier.

Graças, também aqui, ao milagre do dinheiro não declarado, eles

alugavam todos os anos, para as férias de inverno, um chalé

impressionante e luxuoso, que se tornou o seu ninho durante os fins de

semana e os períodos de descanso.

Ao abrir o cofre, Arpad decidiu contar o dinheiro. Só para ter uma

estimativa de quanto sobrava. Foi ao fazer este ponto de situação que se

apercebeu de que o valor guardado no cofre aumentara. Teve logo ali

uma certeza: Sophie aceitara dinheiro do pai. Arpad confrontou-a com a

mentira naquela mesma noite. O que provocou uma discussão.

— O teu pai aproveitou a vinda à Suíça para te entregar mais

dinheiro do dele! — empolgou-se Arpad.

Ela começou por se armar em ingénua.

— Não, de forma nenhuma!

— Pára de me tratar como se eu fosse estúpido! Há centenas de

milhares de euros a mais no cofre.

Ela ficou estupefacta ao ouvir isto. Não podia continuar a negar.

— Não sabia que contavas o dinheiro — replicou.

— É para ter a certeza de que não o gastas à maluca!

Ele arrependeu-se imediatamente desta escaramuça inútil. Sophie

fuzilou-o com o olhar.

— Esse é um comentário verdadeiramente lamentável, Arpad.

— Desculpa… Saiu-me… Mas promete-me que isto não volta a

acontecer, Sophie. Não aceites mais dinheiro do Bernard. Ainda nos

vamos lixar por causa disto.

***
Três anos mais tarde, diante do cofre do qual iria retirar as notas

para comprar o presente de aniversário para Sophie, Arpad constatou

que as únicas desavenças graves durante o seu casamento haviam estado

sempre relacionadas com questões de dinheiro.

Sophie obedecera às ordens de Arpad. Depois do episódio de 2019,

nunca mais acrescentara dinheiro à reserva que tinham no cofre. E,

pouco a pouco, o dispendioso estilo de vida deles fora consumindo,

avidamente, o tesouro.

Arpad agarrou num maço de notas e retirou o montante de que

necessitava para ir comprar o anel à loja da Cartier. Servira-se

regularmente do dinheiro nos últimos meses. E começava a temer que

Sophie se apercebesse destas sucessivas subtrações. Precisava

rapidamente de repor o dinheiro no cofre.


Cinco e meia da tarde, no quartel-general da polícia de Genebra.

Greg terminara o seu dia de trabalho. Nos vestiários do corpo de

intervenção, acabara de trocar o uniforme pela sua roupa civil, quando

lhe vieram anunciar uma visita.

— Uma inspetora da brigada criminal quer falar contigo por causa de

um caso que está a investigar.

Greg adivinhou logo de quem se tratava. Encontrou Marion Brullier

lá fora, junto à entrada para as instalações da unidade de elite. Estava

toda produzida. Minissaia de cabedal e sapatos de salto alto. De certeza

que não ia trabalhar assim vestida.

— Queres beber um copo? — propôs ela.

Claro que ele queria beber um copo.

Havia vários bares ali perto, mas ele levou-a a um estabelecimento

um pouco mais distante e discreto, onde não correria o risco de se

cruzar com colegas seus que conhecessem Karine.

— Não respondeste às minhas mensagens — queixou-se Marion,

quando se sentaram à mesa.

— Lamento muito…

— Eu é que lamento. Confirmei que não estás interessado. Eu

tinha… Eu tinha percebido mal. E humilhei-me com aquelas fotografias

estúpidas. Não volta a acontecer.

Ele pegou-lhe na mão.

— Eu adorei as tuas fotos. E agradas-me muitíssimo… Posso ser

completamente franco contigo?

— Claro.

Esteve quase a falar da mulher e dos filhos, mas teve a presença de

espírito de não ir por aí. Em vez disso, confessou:

— Sou capaz de abater um homem a trezentos metros de distância,

mas ainda não sei como tirar uma fotografia a mim mesmo.

Ela exibiu um sorriso esquivo.

— Posso ensinar-te.

Greg entrou no jogo.

— Ai é?
— Sim. Não sou apenas uma boa polícia, sabes… A minha guitarra

tem muitas cordas.

— Interessante. E que tipo de cordas? — perguntou Greg, a quem

ocorreu de repente a imagem de Sophie algemada à cama, oferecendo-se

nua a Arpad.

— Ah, então é disso que tu gostas, meu maroto? — murmurou ela.

Ao ouvir isto, Greg ficou muitíssimo excitado. Imaginou-a presa à

sua frente, cativa, imaginou que ela era Sophie. Tinha a cabeça a andar à

roda, aproximando-o do perigo, enquanto outros problemas se

anunciavam no horizonte próximo. Porque a poucas centenas de metros

dali, nas instalações do corpo de intervenção, o responsável pelo

equipamento contava e recontava, mais uma vez, as câmaras de

vigilância. Havia uma em falta.

No mesmo instante, o homem do Peugeot cinzento andava para cá e

para lá, na rue du Rhône, junto ao edifício onde ficava o escritório de

Sophie. Era o grande dia. Chegara a Genebra há quase uma semana. E

passara essa semana à espera deste momento.

Sophie encontrava-se no átrio do edifício. Ao telefone, a falar com

Arpad.

— Voltas a que horas? — perguntou-lhe ele. — Estou em casa, já

abri o champanhe, os miúdos estão com a baby-sitter. Só faltas tu.

Ela mentiu:

— Estou presa no escritório e vou ter de ficar aqui ainda mais um

bocado. Preciso mesmo de acabar de escrever uma informação para um

cliente. Mas estou a despachar-me.

— Não faltes à tua própria festa! — provocou-a Arpad.

— Claro que não, ora essa!

— Vê lá, olha que depois eu bebo o champanhe com a baby-sitter e

fujo com ela.

— Espera é por mim, ó parvalhão!


Riram-se os dois. Ela desligou. Depois, empurrando a pesada porta

do edifício, saiu para a rua banhada de sol.

Quando a viu, o homem dirigiu-se logo para ela.

— Parabéns, Sophie!

Sophie virou-se e o seu rosto como que se iluminou. Agarrou-se a

ele.

— Fera! — exclamou. — Fera!

Ficaram muito tempo abraçados.

Ele estava feliz com o reencontro. Há três anos que não a via. Agora

que podia admirá-la mais de perto, constatava que não mudara nada.

Pelo contrário: o tempo tornara-a ainda mais bela, se é que isso era

possível.

Ele próprio resplandecia. Sophie ficou impressionada com a beleza

dele. De alguma maneira, parecia imune à passagem do tempo. Tinha o

rosto bronzeado e a T-shirt deixava adivinhar um corpo que se mantinha

atlético.

— Vamos — disse Sophie. — Reservei uma mesa num lugar muito

simpático, mesmo à beira da água. Excelentes cocktails, boa música.

A esplanada ficava ali perto. Era um lugar na moda e de início o Fera

ficou um pouco intimidado com a clientela: temia que a sua vestimenta

não estivesse à altura de um sítio daqueles. Devia talvez ter comprado

uma camisa. Não queria fazer má figura. Mas Sophie, como sempre,

deixou-o logo completamente à vontade.

— De onde é que vieste? — perguntou ela. — O que é que te traz

aqui? Vais ficar quanto tempo?

— Uma pergunta de cada vez — disse o Fera, sorrindo. — Acabo de

chegar a Genebra. Antes, estive em França, mas tu sabes isso, se

recebeste as minhas últimas cartas.

— Guardo sempre todas as tuas cartas. Como coisas preciosas.

— Como é que vai o Arpad?

— Vai bem. Tudo nos corre bem.

— É o que parece. Estás com um aspeto magnífico. Nunca te vi tão

bonita.

Ela estava habituada a elogios, mas, ao ouvir este, quase corou.

— Obrigada — disse baixinho.

— E os filhotes?

Ó
— Ótimos. Mas crescem demasiado depressa. Olha…

Sophie mostrou-lhe o telemóvel, onde ia passando as fotos da

família. Mas o Fera olhava para ela, muito mais do que para o ecrã.

— Não disseste ainda o que te traz a Genebra — retomou Sophie.

Ele sorriu muito e depois respondeu, como se fosse óbvio:

— Tu. Unicamente tu. Precisava de te voltar a ver. San Remo não

podia ser a nossa última vez.

***

Três anos antes

Fevereiro de 2019

San Remo

Depois de três dias passados juntos, faltava uma hora para se

deixarem. As separações eram sempre momentos difíceis para o Fera.

Mas, desta vez, era mais doloroso ainda: Sophie acabara de lhe dizer que

a relação deles não podia continuar. Era tempo de pôr um ponto final.

Ela não podia trair mais o marido e os filhos. Contra eles, o Fera sabia

que não tinha argumentos, nenhuma forma de lutar.

A seu pedido, deram um passeio pela praia. Apesar das aparências,

era um homem tímido. Ousou finalmente dar-lhe a mão e ela deixou.

Caminharam em silêncio. Quando chegou o momento de se separarem,

ela chorou. O Fera gostou de ver essas lágrimas. Significavam que ele

fora importante para Sophie.

De San Remo, Sophie regressou, no carro alugado, a Nice, onde

devia apanhar o voo para Genebra. Telefonou a Arpad antes de chegar ao

aeroporto.

— Então Londres? — perguntou-lhe ele.

— Correu tudo bem. Acho que o Samuel ficou contente. Estou

exausta, só quero chegar a casa o mais depressa possível.

***
Na esplanada, o Fera voltou a dizer a Sophie:

— San Remo não podia ser a nossa última vez!

Ela não disse nada. O Fera entregou-lhe então um pequeno cartão.

Um desses cartões de aniversário com imagens, que se vendem nos

hipermercados. Arrependia-se de não o ter metido num envelope. Seria

mais elegante. Mas ela estava-se completamente nas tintas para isso.

Abriu o cartão e, ao ler as palavras que o Fera lhe escrevera, sentiu o

coração disparar.

Minha Pantera,

Não foste feita para essa vida numa jaula. Talvez te tenhas

habituado a ela, como um animal no jardim zoológico. Mas a

tua rotina e o teu dia a dia são as grades que te prendem. A tua

felicidade é uma ilusão.

Não esqueças o aviso tão certeiro do Viscontini. Vem

comigo, ainda te quero dar a provar o sabor da liberdade.

Amo-te.

O teu,

Fera

— Feliz aniversário! — disse-lhe então o Fera. — Vim a Genebra

para te rever e para te oferecer o presente que mereces.

***

Era uma noite quente em Genebra.

Na esplanada do restaurante japonês do Hôtel des Bergues, de onde

se via a cidade inteira e o lago Léman, Sophie soprava uma vela

enterrada num soufflé de chocolate.

— Feliz aniversário, meu amor — murmurou-lhe Arpad.

Ela agarrou a mão dele, em cima da mesa.

— Obrigada. Obrigada por tudo.

— Não me agradeças ainda. Falta veres o presente que tenho para ti.

Se calhar, não vais gostar.

Ela sorriu.
— Tonto, o meu presente és tu.

Ele mergulhou a mão no bolso interior do casaco e tirou de lá um

pequeno estojo. Ela abriu-o e encontrou lá dentro um colar feito de

massinhas, que ele próprio fizera: uma piscadela de olho à conversa que

tinham tido em Saint-Tropez. Ele usara um cordel elástico em que fora

enfiando macarrões de diversos tamanhos, pintados de cor-de-rosa e

azul.

Ela prendeu o colar ao pescoço. Um rio de diamantes não a teria

tornado mais bela.

Depois, Arpad entregou um segundo estojo a Sophie, que logo o

abriu. Ao ver a cabeça de pantera coberta de cintilantes pedras

preciosas, ficou em choque. Enfiou-a no dedo e levantou-se da mesa

para beijar o marido.

— Tu és a minha pantera — disse-lhe Arpad.

— Para sempre — prometeu Sophie.

Voltou a beijar o marido. Depois observou longamente a joia no seu

dedo, com uma admiração fingida. Sentia-se completamente perturbada.

Aquele era sem dúvida o mais sumptuoso presente que alguma vez

alguém lhe tinha oferecido.

Mas nada valia ao pé do presente que o Fera lhe dera, umas horas

antes.
Um ano antes

JUNHO DE 2021

Genebra

No gabinete do notário, Sophie, e depois Arpad, inscreveram as

respetivas assinaturas na escritura de venda. O notário exibiu o seu

sorriso de circunstância.

— Senhora e senhor Braun, a partir de agora são os legítimos

proprietários desta casa.

Sophie e Arpad, entusiasmados, beijaram-se. A Casa de Vidro era

deles! De seguida, apertaram protocolarmente a mão ao vendedor. Este

último, um arquiteto conhecido na região, desenhara ele mesmo e

mandara construir a casa uns anos antes. Uma casa moderna, toda em

vidro, rodeada por um magnífico jardim, um conjunto que se aninhava

no seio de uma floresta. Morara ali brevemente com a sua família, mas

os filhos, já crescidos, tinham ido às suas vidas e o edifício tornara-se

demasiado grande só para ele e a mulher.

Para Arpad e Sophie, a aventura desta casa começara cerca de um

ano antes.

Sophie sentira vontade de trocar o apartamento da avenue Bertrand

por uma casa com jardim. Ela gostava muito da sua vida urbana e do

bairro de Champel, mas, uma vez que Genebra oferecia o luxo de se

poder morar no campo, a quinze minutos do centro da cidade, parecia-

lhe um desperdício não aproveitar essa benesse. Tanto mais que o

mercado imobiliário não parava de bater recordes: o apartamento deles

valorizara-se imenso. Sophie sentia que era uma boa oportunidade.

Arpad também, mas por razões mais práticas: a venda do apartamento

permitiria recuperar a integralidade da fortuna de Bernard, totalmente

lavada. Poderia depois utilizar esse dinheiro como se o tivesse obtido de

forma honesta.
Encontrou-se rapidamente um comprador para o apartamento. A

venda foi concluída num intervalo de poucas semanas, só o tempo de

Sophie e Arpad encontrarem uma casa que arrendaram provisoriamente,

no mesmo bairro, e para onde se mudaram, até encontrarem o novo

poiso. E a nova aquisição surgia sob os melhores auspícios: juntando o

dinheiro acumulado, e a partir de agora oficial, às taxas de juro

historicamente baixas, eles podiam apontar lá muito para cima. Quando

os dois, depois de visitarem uma série de vivendas, descobriram a Casa

de Vidro em Cologny, foi tiro e queda, amor à primeira vista.

Arpad sentiu que a sua vida estava prestes a mudar.


SEGUNDA PARTE

Os dias que antecederam a

descoberta de Greg
CAPÍTULO 10

11 dias antes do assalto

Segunda-feira, 20 de junho (Aniversário de Sophie)

→T ERÇA-FEIRA, 21 DE JUNHO DE 2022

QUARTA-FEIRA, 22 DE JUNHO

QUINTA-FEIRA, 23 DE JUNHO

SEXTA-FEIRA, 24 DE JUNHO

SÁBADO, 25 DE JUNHO

DOMINGO, 26 DE JUNHO (A DESCOBERTA DE GREG)


Sete da tarde, em Cologny.

Karine abriu a porta de casa na Verruga, extenuada depois de um dia

de trabalho na loja. Como já esperava, os rapazes estavam a implicar um

com o outro, na sala de estar, enquanto a ama se espojava no sofá.

Karine tirou o jantar do congelador e acendeu o forno. Pôs a mesa

para três.

— O papá não vem? — perguntou o mais velho, constatando que

não havia prato para ele.

— Ficou retido no trabalho — explicou Karine.

Greg, diante da porta do apartamento de Marion, releu a mensagem

que acabara de enviar a Karine.

Intervenção urgente. Desculpa. Vou voltar tarde.

A mensagem era tão frouxa quanto as suas ideias. Espelhava a sua

hesitação. Reparou que escrevera desculpa, quando na verdade nunca

costumava dizê-lo quando tinha verdadeiramente uma intervenção ou

uma emergência relacionada com o trabalho. Ele não pedia desculpa por

voltar tarde, ele pedia desculpa pelo que estava prestes a fazer.

Marion vivia em Carouge. Um apartamento no nono andar de uma

torre. Greg tocou a campainha. Marion abriu, grande sorriso e pouca

roupa. As luzes suaves, os estores para baixo, velas acesas. Greg pensou

que há muito tempo que Karine deixara de o receber assim.

— Tens uma casa muito simpática — disse ele, sentando-se no sofá.

Ela sorriu ao ouvir este comentário idiota que traía o nervosismo do

visitante. Decidiu tomar a iniciativa. Sentou-se ao colo dele e beijou-o.

— Quero-te já — murmurou Greg.

Ela levantou-se para o levar até ao quarto. Nunca imaginara que as

coisas avançassem tão rapidamente, mas porque não? Greg fez-lhe sinal

para que parasse. Notara que o pé do armário, na sala, servia

perfeitamente para o efeito.

— Quero fazê-lo aqui — disse, retirando um par de algemas do

bolso de trás das calças.


***

Eram quase sete e meia da tarde quando Arpad chegou à Casa de

Vidro. Ele nunca voltava tão tarde. Reparou num Peugeot cinzento, com

matrícula francesa, junto ao portão. Perguntou-se de quem seria. Abriu a

porta de entrada, exausto. Sophie, que o vira chegar, esperava-o com um

copo de vinho.

— Desculpa — disse ele, ao pousar a mala de couro no chão. —

Tive um dia de merda no banco. Os mercados vieram por aí abaixo e

ficámos duas horas numa reunião de crise. Amanhã, vou ter de dizer a

quatro pessoas da minha equipa que estão despedidas.

— Au! — disse Sophie, condoída, enquanto lhe passava um copo de

bordéus.

— Obrigado. De quem é o carro que está lá fora?

— Temos uma visita-surpresa. Acho que vais ficar logo mais bem-

disposto.

Um brilho de curiosidade iluminou o rosto contrariado de Arpad.

— Quem é?

— Adivinha.

— Dá-me uma pista — pediu Arpad, entrando no jogo.

— Saint-Tropez — respondeu Sophie.

— Se for o teu pai, não é de todo uma boa surpresa — murmurou

Arpad, que parecia ter recuperado o bom humor.

Sophie desatou a rir-se.

— Refiro-me à Saint-Tropez dos bons velhos tempos.

— Tem a ver com o Béatrice? — perguntou Arpad.

— Nem mais.

Arpad pensou durante um instante. Um instante demasiado longo

para Sophie, que lhe pegou numa das mãos e o levou para a sala de estar.

Ele ficou atordoado.

O fantasma estava de volta.


Sábado, 2 de julho de 2022

O DIA DO ASSALTO

Duas horas e 45 minutos antes do assalto

Um quarto para as sete da manhã, no quartel-general da polícia.

Greg ficava sempre nervoso antes de uma operação. Considerava que

isso era essencial para se manter vivo, caso as coisas dessem para o

torto. Mas desta vez, mesmo se não o quisesse admitir, era diferente:

sentia-se especialmente agitado. Dormira pouco e mal.

Foi o primeiro agente a chegar às instalações do corpo de

intervenção. Preparou-se, sozinho no vestiário. Envergou, de forma

quase ritual, o uniforme negro. O seu equipamento de choque. Esperaria

pelo fim do briefing para vestir o colete à prova de bala, enfiar o passa-

montanhas e, por cima, o capacete tático.

Observou-se demoradamente no espelho. Até que começaram a

chegar os primeiros colegas. Enquanto os outros se equipavam, ele

deslocou-se para a sala do briefing.

Hoje seria o dia do confronto.


CAPÍTULO 11

10 dias antes do assalto

Segunda-feira, 20 de junho (Aniversário de Sophie)

Terça-feira, 21 de junho

→Q UARTA-FEIRA, 22 DE JUNHO DE 2022

QUINTA-FEIRA, 23 DE JUNHO

SEXTA-FEIRA, 24 DE JUNHO

SÁBADO, 25 DE JUNHO

DOMINGO, 26 DE JUNHO (A DESCOBERTA DE GREG)


Seis e meia da manhã, na Casa de Vidro.

— Foi bom voltar a ver o Fera, não achas?

Na cozinha dos Braun, as perguntas de Sophie caíam em saco roto.

Ela girava à volta de Arpad, que bebia o seu café em silêncio.

Pela primeira vez desde há muito tempo, foi Arpad que acordou

antes de toda a gente. Sophie abriu um olho no momento em que ele saía

do quarto e decidiu levantar-se logo de seguida. Sentia que qualquer

coisa não estava bem. E era por causa do Fera. Sophie intuía que o jantar

não tinha sido boa ideia, mas o Fera insistira. Queria conhecer a vida

familiar dela, ver onde é que ela morava, voltar a ver Arpad. Ela não

conseguira dizer-lhe que não. Ela nunca soube dizer-lhe que não.

Arpad não tinha vontade nenhuma de falar. Ainda assim, esforçou-se

por articular algumas palavras.

— Sim, foi bom rever o Fera — disse, sem convicção nenhuma. —

Cruzaste-te com ele na cidade, assim do nada?

— Sim. Encontrei-o à saída do escritório. Quis logo saber como é

que estavas. Tinha muita vontade de te ver novamente.

Arpad duvidava de que o Fera tivesse aparecido em Genebra por

mero acaso. A história toda criava-lhe um muito mau pressentimento.

— Parecias algo distraído durante o jantar — comentou Sophie.

Estava arrependidíssima de ter feito aquele estúpido jantar. O mais

certo era Arpad ficar com uma pulga atrás da orelha. Tudo poderia ter

sido tão mais simples, mas agora ela precisava de gerir a situação

complicada e redobrar esforços para atenuar a vigilância do marido.

— É por causa das pessoas que vou despedir hoje — mentiu Arpad.

— São um peso na minha consciência.

Os despedimentos! Ela esquecera completamente essa questão.

Estava aí decerto a causa do ar macambúzio do marido, e não na

presença do Fera. Não havia motivos para se preocupar. Além disso, o

jantar até acabara por ser muitíssimo agradável.

Era quarta-feira e as crianças não tinham escola. Em princípio,

Arpad trabalhava de casa nestes dias e encarregava-se de levar Isaak ao

seu treino de futebol e Léa à aula de ténis.


— Importas-te de tratar dos miúdos esta manhã? — perguntou

Arpad. — Queria chegar ao banco antes das pessoas que tenho de

despedir, para evitar os diálogos de circunstância no elevador, que

terminariam com um «daqui a nada, vai ter comigo, tenho uma má

notícia para te dar».

— Vai — respondeu-lhe Sophie. — Eu trato dos miúdos. Não tenho

nada marcado de especial para esta manhã. O que é que eu posso fazer

para te animar? Queres ir jantar fora logo à noite? Podíamos convidar o

Julien e a Rebecca para virem connosco.

— E porque não só nós dois? Um restaurante italiano. Mandamos vir

pratos de massa e um bom vinho.

— Parece-me um plano perfeito — sorriu Sophie.

Ele beijou-a e foi-se embora.

Dentro do seu automóvel, Arpad passou pelo portão da Casa de

Vidro e desceu o pequeno caminho até a estrada de Capite. Ao entrar

nesta via, não reparou no Peugeot cinzento que esperava por ele, perto

do cruzamento.

O Fera, atrás do volante, ao ver Arpad passar, ligou o motor. Estava

surpreendido de o ver sair tão cedo, ao contrário do que era habitual.

Pouco importava, e ele sentiu que tinha feito bem em vir àquela hora.

Seguiu-o. Direção: centro de Genebra.


Mesma manhã, na Verruga.

Karine, ao levantar-se, teve a surpresa de encontrar Greg na cozinha,

a preparar o pequeno-almoço. Ele recebeu-a com um cappuccino.

— Não foste correr? — espantou-se Karine.

— Tive vontade de me dedicar à minha pequena família — disse

Greg.

Acordara eufórico, depois do serão passado com Marion. Nem

sequer sentira a necessidade de ir espreitar o que se passava na casa dos

Braun. Ao ver Karine, ali à frente dele, sentia-se quase culpado de não

se sentir culpado. Era um sentimento estranho: sempre desprezara os

pais de família infiéis, e agora que dera esse passo não tinha sequer a

impressão de estar a trair Karine. Ele fora simplesmente procurar algo

que ela não podia oferecer-lhe.

Greg sabia muito bem o que Karine lhe diria se ele sacasse de um

par de algemas para a prender. Faria um ar enojado: «Que raio de coisa é

essa?» Ele bem tentara, no passado, apimentar um pouco a vida sexual

deles, mas Karine nunca estivera pelos ajustes, exigindo-lhe «fazer amor

normalmente». Acabavam invariavelmente por se ficar pela posição do

missionário. E Greg aborrecia-se. No fundo, não pedia nada de especial,

só que ela também tivesse em atenção os desejos dele.

— Voltaste a que horas, ontem à noite? — perguntou Karine. —

Nem sequer te ouvi chegar.

— Muito tarde — respondeu Greg. — Tivemos uma intervenção que

nunca mais acabava.

— O que é que aconteceu?

— Chamaram-nos para uma rusga ao covil de um bando de

assaltantes considerados muito violentos. Era preciso esperar que eles

estivessem todos juntos, e isso levou uma eternidade.

Greg tinha na cabeça a imagem de Marion, presa, oferecendo-se.

Vulnerável. Tinha de pensar noutra coisa. Karine facilitou-lhe a tarefa.

— Achas que podes fazer as compras, quando voltares do trabalho?

Fiz-te uma lista.

— Sem problema, hoje estou de folga — lembrou-lhe Greg.


Ela esquecera-se, embora estivesse assinalado no calendário familiar.

Ele tinha de levar Sandy ao veterinário.

— Se me lembrar de mais qualquer coisa de que precisemos, digo-te.

Greg compreendeu que Karine não vira que era o seu dia de folga e

que iria, agora, fazer de tudo para lhe arranjar coisas para fazer. Por isso,

antecipou-se:

— Vou aproveitar para ir à loja de bricolagem de La Praille, para

comprar umas tábuas e reparar o telhado da arrecadação no jardim.

Posso deixar-te na loja. Queres?

Karine teria preferido a boleia de Sophie, mas, por uma vez que

Greg tomava uma iniciativa deste género, achou melhor aceitar. Escreveu

uma SMS a Sophie para lhe propor que se encontrassem no Café des

Aviateurs.

Depois de largar Karine no centro da cidade, Greg, acompanhado do

seu fiel Sandy, seguiu caminho em direção a Carouge. Como a consulta

no veterinário era só às dez e meia, teria mais do que tempo para ir à

loja de bricolagem. O cão ficaria à espera dentro do carro.

No interior da loja, Greg deambulou um pouco. Ao passar diante das

correntes e dos cadeados, pensou em Marion. Decidiu enviar-lhe uma

mensagem.

Muita vontade de estar contigo. Tenho um pequeno presente para

ti.

Estava a tornar-se imprudente.


Quando Karine se encontrou com Sophie no Café des Aviateurs,

reparou logo na pantera coberta de diamantes que ela trazia no dedo.

— É o teu presente de aniversário? — perguntou.

— Sim — sorriu Sophie.

Tirou o anel do dedo anelar e entregou-o a Karine, que o examinou

como se fosse uma especialista.

— Os detalhes são incríveis. Estes olhos… É tudo absolutamente

perfeito…

— Estragaram-me com mimos — admitiu Sophie.

Karine lembrou-se de que Greg lhe oferecera, pelo seu aniversário:

um livro. Devolveu o anel a Sophie e perguntou:

— No sábado à tarde os rapazes vão ter o seu jogo de futebol… Tu

vais?

— Claro. Não posso perder isso por nada. Há dez dias que o Isaak

não me fala de outra coisa.

Era uma partida decisiva: a jornada final da liga, que determinaria a

equipa campeã. O jogo ia ser em Cologny. Aliás, Arpad e Greg estariam

encarregados do pequeno bar.

— Estava a pensar — retomou Karine, quase a medo — que

podíamos encontrar-nos depois do jogo para uma churrascada, lá em

casa…

Temia uma recusa, mas Sophie mostrou-se logo entusiasmada.

— Com muito prazer! Ainda por cima, parece que o tempo vai estar

ótimo!

Karine ficou ao mesmo tempo excitada e nervosa. Era preciso

mostrarem-se dignos dos Braun. A mesa lá fora, com velas, e um

excelente vinho. Pequenos pratos com entradas, para começar. E se, em

vez da habitual salada que murcha ao sol, ela preparasse uma travessa

com marisco? Encomendaria um sortido de ostras, caranguejos e

sapateiras à Brasserie Lipp, que tinha boa fama. Com um champanhe

bem fresquinho a acompanhar. Karine sentia que o planeado barbecue

lhe causaria um pouco de ansiedade durante os dias seguintes, mas

valeria a pena. E se a patuscada corresse bem, iria propor aos Braun

passarem férias todos juntos, em outubro.


***

Arpad sentara-se na esplanada do café do parque des Bastions. Há

mais de uma hora, e dois expressos, que ele estava ali imóvel, a pensar.

Acabava de pagar a despesa e preparava-se para ir embora quando o

Fera, que não cessara de o observar, decidiu passar à ação. Vindo sabe-

se lá de onde, sentou-se na mesa que Arpad ocupara.

— Fera? — perguntou Arpad, contendo com dificuldade a sua

surpresa e o seu desconforto. — O que fazes por aqui?

— Preciso de falar contigo.

O desconforto de Arpad aumentou. Decidiu pôr todas as cartas em

cima da mesa.

— Olha, eu não sei o que te trouxe a Genebra, nem faço ideia do que

podes pensar. Mas eu não disse nada. A ninguém. Deixei Saint-Tropez

de um dia para o outro, instalei-me aqui, ninguém nunca veio com

perguntas de nenhum tipo. Só quero que nos deixes em paz, à minha

família e a mim.

— Calma, meu amigo. Isso foi há quinze anos.

Arpad quis escapar dali para fora.

— Desculpa — disse enquanto se levantava —, tenho de ir para o

banco, já estou atrasado.

O Fera apontou-lhe então um dedo ameaçador.

— Senta-te, Arpad. E oferece-me um café, meu amigo. Tu tens todo

o tempo do mundo. Eu sei que não tens trabalho nenhum. Foste

despedido do banco há quase seis meses.


Onze horas, na mesma manhã de quarta-feira.

Ao sair do veterinário, Greg sentiu o seu telemóvel a vibrar no bolso,

anunciando-lhe uma nova mensagem. Pensou que pudesse ser uma

resposta de Marion, mas era apenas Karine.

Ainda estás na loja de bricolagem?

Não.

A resposta de Greg valeu-lhe logo uma chamada da mulher. Ele

sabia, ao atender, que ela lhe ia pedir para voltar lá. Não se enganou.

— Barbecue em nossa casa, com os Braun, no sábado à noite —

anunciou Karine. — Compra uma botija de gás e o que for preciso para

o churrasco. E já agora procura umas grinaldas com luzinhas.

— Grinaldas com luzinhas?

— Para iluminarmos o jardim como deve ser.

— Já temos a luz do terraço.

— Isso não é luz que se apresente, mais parece um projetor daqueles

das prisões. Precisamos de uma coisa um bocadinho menos lúgubre.

— Muito bem, vou ver o que consigo encontrar.

Karine abordou também a questão da carne. Em geral, compravam a

carne no supermercado, mas para esta ocasião era melhor recorrerem ao

talho. Enquanto ela falava, Greg recebeu uma mensagem de Marion, que

leu imediatamente, afastando o aparelho do ouvido.

Marion: Aperitivo em minha casa?

Greg: OK. A que horas?

Marion: Às cinco?

— Ir ao talho parece-me uma excelente ideia — disse então Greg à

sua mulher. — Regresso à loja por voltas das cinco, para comprar a

botija de gás e as grinaldas. Se te lembrares de mais coisas, diz-me.

***
Cinco da tarde, no apartamento de Marion.

Tudo estava pronto para receber Greg. Ela colocara, sobre uma

ardósia, carne seca dos Grisões, junto a uma tábua de queijos. Uma

garrafa de litro e meio de rosé esperava no frigorífico. Instalaram-se

ambos na varanda. O prédio era feio, mas muito alto, oferecendo uma

belíssima vista desimpedida até às montanhas do Jura, que fechavam o

horizonte. Estavam muito bem ali, os dois sozinhos. Depois do aperitivo,

podiam ficar em casa ou ir jantar fora.

Ela estava ávida de voltar a vê-lo. Adorara o serão da véspera.

Exceto o início: aquela história das algemas não lhe agradara de todo.

Não tinha quaisquer tabus, mas aquilo, aquilo não era nada a onda dela.

Ultrapassado esse momento estranho, a cumplicidade entre os dois fora

evidente. Tinham cozinhado massa e bebido vinho tinto. Tinham rido.

Tinham falado muito. Sobretudo ela. Fizera muitas confidências, ele

ouviu-a. Era agradável estar com um homem que a ouvia, uma mudança

em relação aos tipos que só sabiam falar deles mesmos. Ela queria muito

saber mais sobre Greg. No seio da polícia, ganhara já uma grande

reputação enquanto agente de elite, mas ela queria conhecer o homem

por baixo do equipamento de choque. Quem era verdadeiramente Greg

Liégean? Não usava aliança, não mencionara mulher nem filhos, por

isso deduzira que ele seria solteiro. Marion sonhava com uma relação

séria e sentia que ele era diferente dos tipos que costumava encontrar

nas aplicações de encontros. O único defeito que lhe encontrava era a

idade: tinha pelo menos uns doze ou quinze anos a mais do que ela.

Mas, no fim de contas, estava em muito melhor forma física do que a

maioria dos seus últimos amantes. E ainda era suficientemente novo

para lhe fazer filhos.

A campainha da porta tocou. Era ele.

Atrás da porta, Greg ardia de desejo por Marion. Na sua mensagem,

ela falara de «aperitivo». Ele interpretara a palavra sobretudo como uma

indicação horária. Sem dúvida que lhe ofereceria um copo. Que ele

aceitaria por delicadeza. Mas não se podiam esticar muito, ele poderia

ficar no máximo uma hora. Tinha de ir render a ama às seis da tarde.


Marion abriu a porta e saltou para o pescoço de Greg, para o beijar

langorosamente. Greg, consciente dos seus constrangimentos horários,

ergueu logo no ar o seu saco da loja de bricolagem.

— Trouxe brinquedos! — exclamou ele triunfalmente, retirando do

saco as correntes que comprara pouco antes.

Marion empalideceu e reagiu de pronto.

— Ah, não! Outra vez essa porcaria?

Greg encolheu-se.

— Eu achava que… — balbuciou.

— Tu achavas o quê ? Convidei-te para vires beber um aperitivo, não

para repetirmos essa tua cena. Que eu detestei! De-tes-tei!

Greg olhou para Marion com desprezo. A reação dela acabara de

extinguir todo o seu ardor. Sentiu-se, ainda assim, obrigado a justificar-

se.

— Pensei que o aperitivo era uma maneira de dizer.

Ela começou a gritar.

— Um aperitivo é um aperitivo! E quando nos convidam para um

aperitivo, espera-se que apareçamos com uma garrafa de vinho, não com

correntes para prender as pessoas!

Quanto mais ela vociferava, mais Greg perdia a vontade de estar ali.

Discretamente, ia espreitando o relógio. Como é que poderia escapar

daquela situação?

***

Sete e meia, na esplanada do encantador restaurantezinho italiano,

bem no centro de Cologny.

A tarde estava agradável, pairava uma atmosfera de leveza. Nos dias

do solstício, a noite demorava a chegar.

À mesa, Sophie falava pelos dois. Parecia contente, de bom humor.

Como se nada a pudesse atingir. Estava particularmente bonita, apesar

de não se ter produzido por aí além. Era uma mulher deslumbrante.

Diante dela, Arpad mantinha-se calado. Ausente. O rosto fechado.

Sophie sabia que ele tivera um dia muito duro no banco e que se devia
mostrar atenciosa. Mas estava demasiado entusiasmada, demasiado

excitada pela irrupção do Fera na sua vida tão arrumadinha. Fez, porém,

um esforço para se interessar pelo marido e pelas preocupações dele no

trabalho.

— Pobrezinho, estás com um ar mesmo arrasado.

— Já vi melhores dias — concedeu Arpad.

— Como é que correram as coisas lá no banco?

— Tão mal como eu temia. Um deles, gajo duríssimo, pôs-se a

chorar como uma criança. A situação está má em todos os bancos, por

isso estas pessoas despedidas vão ter muita dificuldade em encontrar um

emprego equivalente. E mesmo que encontrem alguma coisa, podem

desde já esquecer os bónus e os prémios de antiguidade. Nunca mais

poderão ter o estilo de vida a que se habituaram no tempo das vacas

gordas. Mas nem por isso renunciarão às coisas que já possuem. E terão

de continuar a pagar as prestações da bela vivenda, as escolas privadas

dos filhos e os presentes para a senhora lá de casa, que não se contentará

com uma vida em saldos. Estão condenados a tornarem-se esquemas

Ponzi ambulantes.

— Estás a exagerar — contrapôs Sophie, para fazer conversa.

Mas Arpad não exagerava absolutamente nada. Sabia muito bem do

que estava a falar. Acabara de contar a Sophie a sua própria experiência.

Tudo acontecera no início do mês de janeiro. No dia em que regressava

das férias de Natal, passadas num hotel de luxo na ilha Maurícia, fora

convocado pela direção. Entrara na sala de reuniões com um ar pedante,

exibindo o seu sorriso satisfeito e um bronzeado insolente, pelo

contraste estabelecido com o inverno genebrino. Estava de tal maneira

cego e centrado em si que se convenceu de que lhe iriam oferecer uma

promoção: o responsável pela gestão de fortunas global do banco fora

despedido umas semanas antes e Arpad considerava-se a pessoa ideal

para o cargo.

Mas a reunião foi noutro sentido: explicaram-lhe que o apreciavam

muitíssimo, mas que os tempos estavam difíceis. O banco teria de

«emagrecer». As performances de Arpad, como as da sua equipa, não

eram suficientemente rentáveis e seria necessário proceder a

«ajustamentos». Um novo responsável estava prestes a chegar, vindo de

um banco germânico, para levar a cabo a reestruturação. Quanto a


Arpad, como exigia o protocolo de segurança (era sobretudo um meio ao

dispor do banco para impedir os empregados despedidos de levarem

consigo os seus clientes), o acesso informático foi logo suspenso, o

cartão de funcionário desativado e ele passou a estar liberto, com efeito

imediato, da sua obrigação de trabalhar.

Depois da reunião, saiu do banco em estado de choque. Pensou em

avisar imediatamente Sophie, mas depois desistiu da ideia, porque

precisava de algum tempo para digerir a notícia. À noite, deitou-se ao

lado dela sem ainda lhe ter dito nada. E no dia seguinte, de manhã,

fingiu a rotina habitual da ida para o trabalho. Dera assim início à

engrenagem de uma farsa que haveria de durar vários meses. Apressara-

se, evidentemente, a tentar a sorte junto de outros bancos, mas as portas

estavam fechadas. Toda a gente despedia, ninguém contratava. E quanto

mais adiava dizer a Sophie o que acontecera, menos se sentia capaz de

enfrentar a verdade. Aos poucos, emparedara-se na mentira.

À mesa do restaurante italiano, Arpad olhava para Sophie,

descontraída, a saborear a massa e a fazer conversa. Um casal feliz.

Apaixonado. Um casal perfeito. Na aparência.

Arpad voltou a pensar no que o Fera lhe explicara nessa mesma

manhã, no café do parque des Bastions:

— Como é que descobri que tinhas sido despedido? Porque passei

no banco, para te ver. Mas disseram-me que tu já não trabalhas lá desde

janeiro. E como tive oportunidade de te seguir um pouco durante os teus

dias passados a deambular por aqui e por ali, percebi rapidamente o que

se estava a passar.

Arpad indignou-se.

— Tu andaste a seguir-me?

O Fera contra-atacou logo.

— Imagino que a Sophie não esteja ao corrente…

Arpad olhou para o Fera, zangadíssimo. O Fera insistiu.

— A Sophie não sabe de nada, pois não?

— Não, ela não sabe de nada — admitiu Arpad.

O Fera tinha-o na mão. O que iria ele exigir em troca do seu

silêncio?

— Não te preocupes — garantiu-lhe o Fera, com uma voz

falsamente amigável. — Comigo, o teu segredo está bem guardado. E


depois, segredos é cá connosco, certo?

Arpad, intuindo uma ameaça no tom do Fera, agarrara-o pelo

colarinho do polo.

— Ouve-me bem, Fera, deixa-te de merdas! O que é que vieste fazer

a Genebra?

O Fera abriu um grande sorriso.

— Adoro quando te enervas. Reconheço o Arpad de outros tempos.

Existe um tipo duro por baixo do fato de banqueiro. Queres saber o que

me trouxe a Genebra? Há um assalto em preparação, e preciso de uma

ajudinha…
Sábado, 2 de julho de 2022

O DIA DO ASSALTO

Duas horas e 15 minutos antes do assalto

Sete e quinze da manhã.

Na cozinha da Casa de Vidro, Arpad bebia um último café. Estava à

janela, perscrutando o exterior, como tantas vezes fazia Sophie.

Temera a chegada deste dia. Agora que o dia chegara, sentia-se quase

aliviado. O Fera prometera desaparecer da sua vista a partir do dia

seguinte. Um último assalto. O último golpe dos dois, juntos. E depois,

um ponto final. Arpad perguntava-se se o Fera iria mesmo cumprir a

promessa.

Releu uma derradeira vez as instruções que anotara num pedaço de

papel, queimando-o em seguida no lava-loiça para que não sobrasse dele

qualquer rasto.
16 ANOS ANTES

JULHO DE 2006

Draguignan, França

Draguignan, a cinquenta quilómetros de Saint-Tropez.

A carrinha celular parou no recinto da prisão. Um grupo de novos

detidos acabava de chegar. Os homens, obedecendo às ordens dos

guardas, desceram do veículo em fila indiana e dirigiram-se para o

edifício central. Arpad era o último. Olhava à sua volta, em busca de

referências. Encandeado pelo sol, só conseguia ouvir ruídos e gritos.

Estava aterrorizado.

Arpad, 24 anos, vestia um fato elegante, mas perdera toda a soberba.

Procedeu-se ao seu registo no estabelecimento prisional. Atribuíram-lhe

um número e guardaram os seus objetos pessoais. Tinha sido detido

pelos polícias com bastante dinheiro líquido em sua posse. A verba foi-

lhe creditada na conta da cantina. O que lhe permitiria melhorar a vida

quotidiana. E consolidar as amizades. Teve de mudar de roupa, depois

recebeu o «pacote» regulamentar, contendo lençóis, um cobertor, louça

e uma bolsa com produtos de higiene.

Um vigilante conduziu-o então à sua cela. Avançaram pelos

corredores da prisão. Ruídos de grades a fecharem-se. Os gritos dos

detidos. Os cheiros intensos. Os olhares. Arpad, angustiado, sentia um

nó no estômago. Chegaram por fim ao destino. O vigilante rodou a chave

na fechadura e abriu a porta pesada. Arpad deu alguns passos no interior

da cela. Havia duas camas. Uma delas estava ocupada por um tipo

corpulento e com cara de poucos amigos. Arpad perguntou-se se o

melhor seria cumprimentá-lo ou continuar calado. Mas o homem

recebeu-o de forma quase simpática.

— Olá. Instala-te — disse.


Arpad pousou o seu pacote no colchão e pegou nos lençóis. O

homem disse-lhe então, sem tirar os olhos do televisor:

— Podes usar a mesa e uma das prateleiras. Eu ocupei isto tudo, mas

vou deixar espaço livre para ti.

Arpad arrumou os seus parcos haveres aqui e ali, sem saber se estava

a marcar território ou simplesmente a obedecer àquele homem que tanto

o impressionara logo ao primeiro contacto.

O companheiro de cela de Arpad chamava-se Philippe, mas na

prisão toda a gente o tratava por «Fera». Cerca de trinta e cinco anos,

cabeça rapada, um físico impressionante e cara de mau. Emanava dele

uma força serena. A prisão era o seu reino: no centro penitenciário, o

Fera era respeitado por todos. Os outros detidos contavam-lhe tudo o

que acontecia e ele tinha também a confiança dos guardas. Muitas vezes,

era ele que arbitrava as quezílias, os diferendos. À sua maneira,

contribuía para manter uma espécie de paz no seio daquele

estabelecimento.

Uma das regras, na prisão, era nunca falar dos motivos que levaram à

detenção. Mas, em geral, a reputação dos prisioneiros precedia-os. O

Fera era um assaltante experimentado. Estava a cumprir o último ano da

sua pena e o bom comportamento valera-lhe ser transferido para

Draguignan, onde o regime carcerário era menos estrito.

Desde o primeiro dia, o Fera mantivera Arpad debaixo da sua asa.

«Se andares sempre comigo, não vais ter problemas», dissera-lhe. E

como Arpad era bastante simpático, o Fera travara rapidamente amizade

com aquele jovem, filho de boas famílias, dez anos mais novo, e

perguntava-se por que raio teria ele ido ali parar. Acabou por abordá-lo

sem rodeios.

— O vigilante diz que estás em preventiva… — começou.

— Sim.

— O que é que fizeste?

— Uma estupidez.

O Fera achou graça à resposta.

— Como todos nós aqui dentro — replicou.

— Quis impressionar uma rapariga — precisou Arpad.

— Como todos nós aqui dentro.


Arpad sorriu. Depois contou o que se passara uma semana antes.

***

Uma semana antes

Saint-Tropez

Arpad circulava pela costa mediterrânica num Aston Martin com

matrícula inglesa. Ao fim do dia, a baía de Saint-Tropez abria-se,

majestosa, à sua frente. Ao volante do descapotável, ele ia apreciando o

calor agradável e o aroma inebriante dos pinheiros. Deixara Londres

naquele mesmo dia, às quatro da madrugada. Chegava finalmente ao

destino.

Já estava perto de Saint-Tropez e prosseguiu até à povoação. Devia

seguir diretamente para um determinado endereço, mas a verdade é que

desejava aproveitar um pouco mais o automóvel. Ainda lhe sobrava

algum tempo, porque chegara antes do previsto. Conduzira sempre muito

depressa e sem fazer qualquer paragem.

O automóvel atravessou uma Saint-Tropez invadida por turistas do

período estival. As esplanadas estavam a abarrotar de gente; os

restaurantes, cheios. Arpad acelerou o motor, em ponto morto, pelo

simples prazer de atrair os olhares. Era já o quarto verão que vinha a

Saint-Tropez. Com as estadias sucessivas, ajudado pelo seu charme e

pela sua insolência, conseguira tornar-se conhecido nos lugares da

moda.

Chegou ao Béatrice e parou mesmo à frente do restaurante, deixando

o Aston Martin aos cuidados de um empregado que o iria estacionar

num sítio próprio. No passeio, os clientes faziam fila atrás de um cordão,

à espera de que um segurança musculoso os autorizasse a aproximarem-

se. Alguns valiam-se da reserva feita antecipadamente. Outros estavam

destinados a ficar à porta. Ele dirigiu-se diretamente a Céline, a

rececionista, que o cumprimentou com entusiasmo.

— Arpad! Estás de volta?

— Só por dois dias.

É
— É pouco.

— Preciso de voltar a Londres. Tenho um lugar à minha espera num

banco. As coisas vão começar a fiar mais fino.

— Oh, o senhor banqueiro! Será que é melhor tratar-te por my lord?

— Já faltou mais — sorriu Arpad. — Arranjas lugar para mim no

bar?

— Para si, sempre, my lord.

Ela conduziu-o ao interior do Béatrice e sentou-o no bar, onde

jantou massa com trufas. Na segunda parte do serão, quando o

restaurante se transformava em clube noturno, um grupo de trintões

chamou-lhe a atenção. Elegantes, animados e a gastar dinheiro como se

não houvesse amanhã. As garrafas de champanhe eram mato. Arpad

simpatizou com um deles e foi convidado a juntar-se à mesa para beber

um copo. Foi nesse momento que reparou numa morena deslumbrante

que o comia com os olhos.

Arpad largou os seus amigos de circunstância para ir flirtar com ela.

Deram um pulo à pista de dança. Beijaram-se. Depois ela anunciou que

era hora de se retirar.

— Queres que te leve a casa? — propôs Arpad.

— Vais abandonar os teus amigos?

Ela pensou que ele fizesse parte daquele grupo.

— Não te preocupes com eles. Mais tarde ou mais cedo, encontram-

me.

Devolveram-lhe o Aston Martin em frente ao restaurante e ele abriu-

lhe a porta.

— Que belo carro! — exclamou a rapariga.

— Não me posso queixar — respondeu Arpad, que preferiu não

explicar que o automóvel não lhe pertencia. — Queres almoçar amanhã?

Conheço um restaurante incrível mesmo no alto das falésias.

Ela só lhe respondeu quando Arpad a deixou em frente a casa.

— Vem buscar-me aqui ao meio-dia — disse, então.

Ao deixá-la, Arpad tinha um sorriso nos lábios. Enviou uma

mensagem ao senhor Stankowitz, o dono do Aston Martin, para lhe dizer

que acabara de chegar a Saint-Tropez. Viagem mais longa do que o

previsto. Depois dirigiu-se ao que devia ser o seu poiso durante as


próximas quarenta e oito horas: uma vivenda junto ao mar, que também

pertencia ao senhor Stankowitz.

O senhor Stankowitz, por seu turno, encontrava-se a 1400

quilómetros de distância, em Londres. Era um banqueiro da City, que

passaria o seu verão em Saint-Tropez, a partir do final daquela semana.

Stankowitz, na casa dos sessenta, duas vezes divorciado, era um homem

jovial que, como toda a gente, sucumbira à simpatia de Arpad. Os dois

homens tinham-se encontrado em Londres, no clube privado de

Kensington onde Arpad trabalhava como barman, ao mesmo tempo que

fazia os seus estudos na área financeira. Naquele círculo, reunia-se a

elite dos banqueiros, dos advogados e dos homens de negócios da

capital. Ali, Arpad sentia-se no seu elemento. Imaginava que no futuro

pudesse vir a estar do outro lado do balcão. E, enquanto esse dia não

chegava, ia trabalhando no duro para ganhar o respeito daqueles homens.

Ao fazê-lo, rapidamente se tornou uma espécie de mascote. Arpad sabia

agradar. As pessoas procuravam a sua companhia. Arpad cultivava a

atenção desses senhores que só bebiam uísques difíceis de encontrar,

fazia conversa com eles e ouvia as suas confidências. Stankowitz

apreciava particularmente este jovem cheio de iniciativa e ambição, a

quem prometera um emprego no seu banco assim que obtivesse o

diploma.

Nos últimos dois anos, Stankowitz confiara a Arpad até a missão de

levar o seu Aston Martin de Londres a Saint-Tropez, para que o pudesse

utilizar ali. Junto com a chave, Arpad recebia um envelope cheio de

dinheiro e a autorização para passar duas noites na vivenda do

banqueiro. Depois, regressava a Londres de avião.

Nesta noite de julho, quando Arpad estacionou o carro na garagem

da propriedade, não podia imaginar que se tratava da última vez que

estaria naquele lugar. Como sempre, foi recebido por Mathilde, a

empregada interna da casa.

— Peço desculpa por chegar tão tarde — disse-lhe Arpad. — A

viagem foi longa.

— Não faz mal — descansou-o Mathilde. — Jantaste? Guardei-te

um bocadinho de pernil.

— Estou bem, obrigado — declinou Arpad. — Fui comendo pelo

caminho. Quero é ir dormir, que mal me tenho nas pernas.


Mathilde gostava deste jovem bem-educado e trabalhador, sempre

disponível para a ajudar. De manhã, ele fazia a sua cama e tinha o hábito

de lavar a loiça. Um rapaz respeitador, não daqueles que acham que toda

a gente tem de os servir. O senhor Stankowitz considerava-o digno da

mais alta estima — e ele sabia avaliar as pessoas.

No dia seguinte de manhã, Arpad acordou muito cedo para

aproveitar a casa. Utilizou o ginásio, antes de ir tomar pequeno-almoço à

beira da piscina. Ao meio-dia devia apanhar a bela morena que

conhecera na noite da véspera, no Béatrice, e levá-la a almoçar. Mas

havia um problema: da primeira vez, aparecera ao volante do Aston

Martin, e não queria que ela o visse agora a chegar de táxi. Contudo, a

sorte parecia estar do seu lado: durante a manhã, Mathilde foi ter com

ele à piscina para o informar de que se ausentaria durante umas horas

para ir ver a irmã, a Cannes. Assim que Mathilde se foi embora, a via

ficou aberta. Arpad tirou o Aston Martin da garagem e pôs-se a

caminho, para o seu encontro. Voltaria diretamente, depois do almoço,

antes do regresso de Mathilde. E era como se nada se tivesse passado.

Por segurança, impôs-se um limite. Teria de regressar por volta das duas

da tarde.

Três da tarde.

Na esplanada do restaurante, Arpad e a sua conquista daquele dia

ainda estavam à mesa, a almoçar. Ela extasiava-se com a vista sobre a

baía e com o que tinham acabado de comer. Ele, de olho no relógio,

escondia mal o seu nervosismo. A refeição arrastara-se. Culpa dela, que

quisera beber umas taças de champanhe antes de passar à mesa. Ele

fingira beber. Não podia correr o risco de conduzir embriagado. Quando

chegou a hora de escolher, ela não se coibiu de apontar para os pratos

mais caros: burrata com caviar, seguida de spaghetti com lagosta. E para

beber? «Um bom champanhe», pediu ela, «a vida é demasiado curta

para andarmos a beber vinhos manhosos.» O escanção sugeriu uma

garrafa que custava 500 euros. O nome do vinho provocou um surto de

entusiasmo na rapariga e um vento de pânico em Arpad, que fez

rapidamente as contas de cabeça: o seu cartão de crédito devia aguentar


o abalo. Felizmente, trazia consigo o dinheiro em notas que Stankowitz

lhe entregara.

***

Na cela, o Fera, atentíssimo a tudo o que Arpad contava, não conteve

o riso.

— Essa história é absolutamente genial!

— Calma, que a continuação ainda é melhor! — avisou Arpad.

— Conta, conta, conta!

— O almoço parecia interminável. Quando por fim os nossos pratos

chegaram, ela começou a comer o maldito esparguete com lagosta, e

depois o empregado veio perguntar se queríamos sobremesa. Eu disse

logo que não, obrigado, como é óbvio. Só tinha uma preocupação: estar

de volta à vivenda antes de Mathilde. Mas a rapariga disse logo «porque

não?» e mandou vir a ementa, olhou bem para tudo e, por fim, pediu um

soufflé de chocolate. O empregado disse-nos: «O soufflé é uma excelente

escolha, mas devo avisar desde já que terão de esperar cerca de vinte

minutos.»

— Não me digas que mandaram vir o soufflé !

— Claro que mandámos vir o soufflé !

As gargalhadas do Fera ressoaram nas paredes da cela.

— Que imbecil! Mas que perfeito imbecil! Tanta coisa só porque

quiseste saltar para cima de uma rapariga qualquer…

Arpad, contente com o efeito conseguido pela sua história,

proclamou de forma teatral:

— Saltar para cima? Se ao menos lhe tivesse saltado para cima!

Enquanto esperávamos pelo maldito soufflé, virámos a garrafa de

champanhe. Quer dizer, virou-a ela, porque eu quase não lhe toquei. Foi

então que percebi que ela estava completamente bêbeda, e o sol a dar de

chapa nas nossas cabeças também não ajudava. E eis que se põe a falar

do seu namorado. Confessa-me que anda com um tipo há três anos, um

gajo qualquer que vivia em Berlim, e que não o queria enganar. De

repente, começa a chorar e a soluçar: «Não posso fazer isso ao Eric!»


***

— Não posso fazer isso ao Eric! — repetiu a rapariga, em lágrimas.

Os soluços atraíram os olhares dos outros clientes. Arpad,

incomodadíssimo, só desejava que houvesse um buraco onde se pudesse

esconder.

— Não és obrigada a nada — tranquilizou-a ele, estendendo-lhe um

lenço. — Se calhar o melhor é irmos andando…

— Não — recusou ela, enquanto secava os olhos. — Quero provar o

soufflé.

Arpad, paralisado pelo rumo que os acontecimentos estavam a

tomar, nem sentiu o telemóvel que vibrava, em vão, no seu bolso.

Do outro lado, Mathilde, já de regresso à vivenda de Stankowitz,

desligou e virou-se para os polícias que inspecionavam a garagem vazia.

— Ele continua a não atender. Mas já vos disse, de certeza que não

foi ele a levar o carro. Não faz de todo o seu género.

Comido o soufflé e paga a conta, Arpad meteu a rapariga no Aston

Martin e guiou a toda a velocidade em direção a Saint-Tropez. No

habitáculo reinava um silêncio de morte. Arpad vira que Mathilde

tentara ligar-lhe e tencionava devolver a chamada quando chegasse à

casa. A prioridade era deixar o carro na garagem.

Mas, pouco depois, teve de parar num engarrafamento. Arpad, sem

tempo a perder, decidiu ultrapassar a fila de veículos imobilizados. Era

uma manobra bastante arriscada, mas com uma boa aceleração ele

conseguiria chegar ao cruzamento seguinte em poucos segundos.

O Aston Martin arrancou em contramão. Arpad carregou a fundo no

acelerador, a rapariga assustou-se e gritou. O carro disparou como uma

flecha. Deviam ir a uns 120 quilómetros por hora quando a roda da

frente do lado direito acertou em cheio num buraco da estrada. Arpad,

surpreendido pelo impacto, perdeu o controlo do veículo, que se

despistou, terminando a sua corrida de encontro a uns rochedos, a

poucos metros da esplanada de um restaurante.

Arpad e a rapariga conseguiram sair do automóvel pelo seu pé.

Estavam aturdidos, mas sem ferimentos. Nem uma arranhadela. O carro,


pelo contrário, estava reduzido a um monte de metal retorcido, pronto a

ser despachado para a sucata. Testemunhas do acidente acorreram para

ajudar. Alguns minutos mais tarde, apareceram os serviços de

emergência. E assim começaram os problemas de Arpad.

Os polícias, depois de tomarem nota da ocorrência, levaram Arpad

para a esquadra. Ele julgou que se tratasse de um procedimento habitual

em situações deste tipo, nada de muito demorado. É claro que teria

contas a prestar ao senhor Stankowitz e não se iria furtar às suas

responsabilidades. Mas quanto ao resto, tudo não passara de um

acidente. Ninguém ficara ferido. Ele não bebera nada antes, nem se

drogara. No entanto, na esquadra, a situação agravou-se muito

rapidamente. Entre outros motivos, por causa do senhor Stankowitz que,

a partir de Londres, anunciou a intenção de apresentar queixa. Arpad

encontrava-se detido. Recorreu então a um advogado de Saint-Tropez,

seu conhecido. O advogado assegurou a Arpad que seria imediatamente

libertado. Mas a detenção prolongou-se até ao momento em que foi

apresentado a um juiz de instrução.

— Existe perigo de fuga — declarou este. — O arguido reside em

Londres, pelo que tem todas as razões para nunca mais voltar aqui.

Determino a prisão preventiva, em vista do processo.

— Mas isso não faz sentido — protestou o advogado. — Não se põe

uma pessoa na prisão por causa de um simples acidente rodoviário!

— Um furto de automóvel — retificou o juiz. — Que podia

perfeitamente ter matado alguém. Havia uma esplanada cheia de gente a

poucos metros do local de impacto. O seu constituinte esteve à beira de

provocar uma verdadeira carnificina!

— O meu constituinte não roubou ninguém, apenas tomou um carro

de empréstimo!

— Não é essa a opinião do legítimo proprietário do automóvel em

causa. Essa história não convence ninguém, a não ser o senhor.

— Este jovem acaba de concluir uma licenciatura — evocou o

advogado. — Tem um emprego à espera em Londres. A sua detenção vai

pôr tudo em causa.

— Então devia ter pensado nisso antes de fazer este disparate.

Arpad juntou a sua voz à do advogado.


— Senhor juiz, não vai mesmo mandar-me para a prisão, pois não?

— implorou.

Mas as súplicas foram em vão. Ouviu-se um tilintar de algemas.

Ficou fechado numa sala do tribunal. Depois, a carrinha celular. E a

chegada ao estabelecimento prisional em Draguignan.

***

— Isso tudo por causa do champanhe a 500 euros e de um soufflé de

chocolate — resumiu o Fera.

— Isto tudo porque eu adoro dinheiro, mas não o tenho.

— Ainda não o tens, diz antes — especificou o Fera.

Após seis semanas de detenção, Arpad foi libertado. Os seus pais

pagaram a Stankowitz uma verba alta, como indemnização pela perda do

automóvel, e este aceitou retirar a queixa. A acusação de furto caiu. No

fim de um julgamento simplificado, Arpad foi condenado a uma pena

suspensa.

No momento de se despedir do Fera e da sua cela, no centro

penitenciário, sentiu que se haviam estabelecido sólidos laços de

amizade entre os dois.

— Acho que vou sentir falta de estar aqui contigo — disse Arpad,

dando-lhe um último abraço.

— Não digas disparates, pá! Vais ver que estamos sempre muito

melhor lá fora. Até breve.

***

Sete meses mais tarde.

Arpad instalara-se de vez em Saint-Tropez.

Depois de sair da prisão, não tivera vontade, nem coragem, de voltar

logo para Londres. A tranquilidade de Saint-Tropez funcionava para ele

como uma boa câmara de descompressão. Mas a estadia que previra


limitada no tempo — o seu plano era regressar a Inglaterra, mais cedo

ou mais tarde — ganhou outra dimensão quando o gerente do Béatrice

lhe propôs um período experimental no bar do restaurante. Com a

experiência que ganhara no clube privado de Kensington, onde

conhecera o senhor Stankowitz, Arpad não demorou muito a destacar-se.

Foi logo contratado, e depois promovido a supervisor do bar e das

reservas.

Arpad começou a desabrochar em Saint-Tropez. Adorava o seu

trabalho e era excelente no que fazia. Depois, havia aquela rapariga que

aparecera em janeiro no Béatrice, como rececionista para substituir

Céline, que se fora embora para prosseguir os estudos em Montreal. A

rapariga chamava-se Sophie e estudava Direito em Aix-en-Provence. Era

lindíssima. Houve logo química entre os dois e começaram a dormir

juntos com regularidade.

Brilhante e espirituosa, Sophie só tinha um defeito: ser a filha

querida de Bernard, o patrão do Béatrice e de vários outros

estabelecimentos do género na região. O gerente do Béatrice avisou logo

Arpad.

— Não te metas com a filha do chefe, ouviste? — disse.

— Claro que não — mentiu ele. — Não sou assim tão maluco.

Arpad estava-se completamente nas tintas para Bernard: aliás, só se

tinham cruzado uma ou duas vezes. Mas mais valia serem discretos, e

por isso os dois decidiram não assumir a relação. O segredo tinha

qualquer coisa de excitante, o que apimentava os encontros. Ele

representava um papel diante dos colegas do Béatrice, só se revelando

verdadeiramente quando se sentia ao abrigo da curiosidade alheia. E

nada divertia mais Sophie do que deixar que um cliente se metesse com

ela, sob o olhar de Arpad, levando-o a pedir aos seguranças para

expulsarem o intruso, atirando-o porta fora com um pretexto qualquer.

No início da primavera de 2007, o Fera foi libertado da prisão.


Aterrou provisoriamente em casa de Arpad, com o qual mantivera

contacto. Arpad ajudou-o como podia: ofereceu-lhe um lugar para

dormir e arranjou-lhe trabalho no Béatrice, a lavar pratos.

Mas Arpad constatou rapidamente que o Fera, tão bem adaptado ao

mundo prisional, tinha dificuldades em lidar com a vida de cidadão

livre. Para ele, a integração revelava-se problemática. O Fera era um

homem encantador, um amigo leal, mas também um tipo incapaz de se

vergar às regras, à disciplina. A aventura a lavar pratos foi sol de pouca

dura.

— Para mim, és como um irmão — disse ele a Arpad no dia em que

deixou o apartamento, depois de juntar todas as suas coisas num saco.

— Agradeço tudo o que fizeste por mim, mas prefiro ir-me embora antes

de te causar problemas. Não fui feito para esta vida.

— Qual vida?

— A vida de escravo. Sempre a trabalhar para os outros. A lavar os

pratos sujos dos senhores e das senhoras. E tudo por um salário

miserável que não me permite sequer pagar para ter um teto sobre a

minha cabeça. A vida é curta, e já sacrifiquei boa parte dela na prisão.

— Para onde é que vais? — perguntou Arpad.

— Para Fréjus. Um amigo diz que talvez me arranje trabalho como

estivador.

Era mentira. Na verdade, o Fera estava a preparar um assalto. Mas,

nesta altura, Arpad ainda não sabia de nada. Despreocupadamente,

encontrava-se com o Fera em Fréjus, nuns locais improváveis onde

aconteciam festas underground. Levava consigo Sophie. Em pouco

tempo, passaram a formar um trio inseparável.

Passaram vários meses. O verão estava quase a acabar.

Numa noite do início de setembro de 2007, quando o Fera e Arpad

se encontraram a sós, o Fera confidenciou ao amigo que estava prestes a

dar um grande golpe.

— Um grande golpe? — preocupou-se Arpad.

— Um assalto. Ao banco postal de Menton. Há imenso dinheiro

envolvido. O suficiente para não precisarmos de nos preocupar com

nada durante muito tempo.

Arpad ficou estarrecido.

— Porque é que me contas isso?


— Estou à procura de um parceiro. Alguém que saiba conduzir, não

sei se estás a ver o que eu quero dizer.

Arpad, ainda às voltas com a resposta àquela sugestão, julgou

necessário lembrar um aspeto importante.

— Eu… eu nunca participei num assalto — disse.

O Fera sorriu, tranquilizador.

— Num assalto, mais do que a experiência, o que conta é a

confiança. Preciso de alguém de confiança, um tipo como tu. Damos o

golpe e desaparecemos, algures em Itália. Tenho um esconderijo

perfeito, um antigo curral na Toscana onde podemos ficar durante uns

tempos.

Arpad ficou a olhar longamente para o Fera. Perguntava-se o que

queria ele dizer ao certo com «imenso dinheiro».


CAPÍTULO 12

9 dias antes do assalto

Segunda-feira, 20 de junho (Aniversário de Sophie)

Terça-feira, 21 de junho

Quarta-feira, 22 de junho

→Q UINTA-FEIRA, 23 DE JUNHO DE 2022

SEXTA-FEIRA, 24 DE JUNHO

SÁBADO, 25 DE JUNHO

DOMINGO, 26 DE JUNHO (A DESCOBERTA DE GREG)


Cinco horas e quarenta e cinco minutos, nas proximidades da Casa

de Vidro.

No seu automóvel escondido na orla do pequeno bosque, Greg, de

olhos fixos no ecrã, observava Sophie e Arpad a dormirem. Ela estava

aninhada entre duas almofadas. Ele, deitado de costas.

Sophie mexeu-se. Pareceu-lhe que ela estaria prestes a acordar, mas

foi falso alarme. A câmara não permitia fazer grandes planos, o que era

uma pena. Ele teria gostado, neste instante, de focar apenas o seu rosto,

de o admirar mais de perto. Tinha consciência do quanto Sophie era

única. Pelo contrário, ficara muito desiludido com Marion. Felizmente,

na véspera, conseguira desembaraçar-se dela sem grandes problemas.

Prometera-lhe que não haveria mais algemas e que da próxima vez iriam

ao restaurante. Ao deixar o apartamento, bloqueara o número de

telefone, para que ela deixasse de o poder contactar.

Na sua cama, Arpad tinha os olhos bem abertos, algo que Greg não

podia perceber, por causa da escuridão no quarto. Já há muito tempo que

estava acordado. A pensar no Fera. Por que raio surgia ele ao fim de

quinze anos, tentando convencê-lo a participar novamente num assalto?

Fera garantira-lhe nada ter revelado a Sophie sobre o seu despedimento.

Era certamente verdade, porque Arpad conhecia demasiado bem a sua

mulher para saber que ela não teria sido capaz de lho ocultar, se

soubesse. Há meses que Arpad mentia a Sophie. A indemnização que o

banco lhe dera servira essencialmente para saldar as dívidas do cartão de

crédito e dessa forma pagar, retroativamente, as férias de sonho na ilha

Maurícia. Quanto ao resto, financiara o estilo de vida da família

recorrendo ao dinheiro de Bernard. O Fera, sem conhecer os detalhes

todos, devia suspeitar das dificuldades financeiras de Arpad. Era um

estratega de primeira água. Ao propor-lhe a participação no assalto,

oferecia-lhe uma oportunidade de dar a volta à situação difícil em que se

encontrava.

Arpad acabou por se levantar. Esgueirou-se discretamente para o

closet, onde iria escolher o que vestir. Ficou, durante um instante, nu

diante dos seus fatos: em tempos, haviam envolvido um banqueiro cheio


de futuro, agora mais não eram do que as vestimentas de um falhado que

mentia à família. Selecionou um fato completo de cor creme, muito leve

e feito à medida. A farsa duraria pelo menos mais um dia. De repente,

sentiu o corpo de Sophie encostado ao seu, agarrando-lhe suavemente o

torso, mas ele desfez logo o enlace. Sophie protestou.

— Não sei o que é que se passa contigo, mas estás um verdadeiro

chato — disse.

— Desculpa, mas é que hoje vou ter de despedir pessoas e não é

coisa que me deixe bem-disposto!

— Pensava que os despedimentos tinham sido ontem.

Arpad precisou de complementar a sua mentira.

— É todo um processo. O anúncio da decisão é só a primeira etapa.

Agora, é preciso preencher a papelada, em coordenação com o

departamento de recursos humanos do banco. Ou seja, oficializar tudo!

Pensou que devia parar de mentir sobre o seu trabalho. De cada vez

que pronunciava a palavra «banco», sentia-se um pouco mais na mão do

Fera. Arpad vestiu à pressa a camisa e as calças e saiu do quarto com o

casaco debaixo do braço e os sapatos na mão. — Vou fazer-te um café

— anunciou, como se isso resolvesse o problema.

Abandonou Sophie nua no closet. Em situação normal, ela teria

seguido Arpad, para lhe dar a volta. Mas agora era ela que precisava que

lhe dessem a volta. Por causa do Fera. Combinara encontrar-se com ele

naquela manhã, ali mesmo. Na casa. Ele dissera que seria mais discreto.

Sophie devia fazer toda uma encenação, saindo para o trabalho como

todos os dias. Para não levantar suspeitas. Ela estava muitíssimo nervosa

e precisava de relaxar, diminuir a tensão. Deitou-se na cama e deslizou

os dedos entre as pernas.

Greg assistia a tudo, maravilhado. Num arroubo, pegou no telemóvel

e registou a cena em vídeo, para poder voltar a vê-la, repetindo a

sequência de imagens. E repetindo, e repetindo.


Dez horas da manhã, no quartel-general da polícia.

Os elementos do corpo de intervenção estavam a treinar na carreira

de tiro quando Greg foi convocado para o gabinete do chefe da unidade.

Era pouco habitual interromper uma sessão de exercício: o motivo da

chamada devia ser importante. Ao caminhar pelos corredores,

perguntou-se se não seria algo relacionado com a sucessão do chefe e a

sua potencial nomeação para o cargo. Não demorou muito a cair das

nuvens.

— Greg — disse-lhe logo o chefe —, temos um grande problema

entre mãos.

No gabinete também estava Fred, o armeiro e responsável pelo

material da equipa. Das espingardas de assalto aos capacetes à prova de

bala, passava tudo por ele.

— Que se passa? — perguntou Greg.

— Houve um roubo nas nossas instalações.

Greg pensou logo na câmara.

— Um roubo? — repetiu, olhando tanto para o seu chefe como para

o Grande Fred (no seio da equipa, toda a gente o apelidava de Grande

Fred, apesar de ele ser mais para o magricela).

Greg tentou analisar rapidamente a situação: aquela seria uma

verdadeira pergunta a que eles não sabiam dar resposta, ou um bluff, à

maneira do póquer? Teria o Grande Fred descoberto a verdade?

Esforçando-se para não deixar transparecer o seu nervosismo, perguntou

num tom preocupado:

— O que é que foi roubado?

— Uma das câmaras de observação — respondeu o Grande Fred.

— Como a que utilizámos para vigiar o gangue de assaltantes, há

umas semanas? — inquiriu Greg.

— Exatamente.

— Não terá ficado esquecida lá no sítio? — sugeriu Greg.

— Não, eu fiz o inventário no fim dessa missão de observação.

Todas as câmaras estavam no seu lugar.

— O quê? Mas isto não faz sentido! — disse Greg, fingindo-se

escandalizado. — Quem é que poderia ter roubado uma câmara?


— Era o que eu gostaria de saber — respondeu o chefe.

Greg sentia-se pouco à vontade: os seus interlocutores diziam pouca

coisa, não se descosiam. Será que já sabiam tudo? Optou por interpretar

o papel de polícia zeloso.

— Quem é que tem acesso ao material? — inquiriu.

— Unicamente os elementos da unidade — explicou o Grande Fred.

— Só nós é que temos acesso às instalações.

— A propósito, Greg — disse o chefe —, parece que tiveste duas

visitas nos últimos dez dias…

— Sim, de uma inspetora da PJ que participou na nossa intervenção

em Pâquis. Tinha questões que precisava de esclarecer no seu relatório.

Mas não chegou a entrar aqui: eu saí e conversámos no átrio de entrada.

Quando é que se deu o roubo?

— É difícil dizer — respondeu Fred. — Fiz o inventário do material

na quinta-feira e foi nessa altura que me apercebi.

— É mesmo muito estranho — comentou Greg. — Não imagino que

um elemento da unidade fizesse uma coisa dessas. Já conseguiram dar

uma olhadela à videovigilância?

— Sim — confirmou o chefe. — O Fred passou horas a ver as

imagens, em vão.

Como é óbvio, Greg tomara as suas precauções. Sabia da existência

de câmaras. Por isso aproveitara um ângulo morto para esconder o

material no seu saco de desporto.

Foi então que o chefe disse:

— Se te convoquei, Greg, é porque quero que leves a cabo,

discretamente, um inquérito a este roubo. Temos de descobrir quem é a

maçã podre da nossa unidade.

Greg fez que sim com a cabeça, mantendo um ar muito sério.

— Podem contar comigo — assegurou.

Ao sair do gabinete, Greg ponderou o que devia fazer. O melhor era

encontrar uma forma de recuperar a câmara instalada no quarto dos

Braun e atirar o material para o fundo do lago, de modo a nunca mais

ser encontrado. Mas, antes disso, passaria um último fim de semana a

contemplar a intimidade dos Braun. E depois acabaria com a

espionagem, antes que as coisas dessem para o torto.


Para ajudar à festa, Marion decidira aparecer naquele momento, em

pleno quartel-general da polícia, para uma visita-surpresa.

— Não podes continuar a aparecer assim sem mais nem menos… —

disse Greg, irritado. — O meu chefe já me chamou a atenção, não

convém mesmo nada que tu…

— Lamento ter de fazer isto, mas não consigo comunicar contigo e

as mensagens não são entregues… Bloqueaste-me?

— Escuta, Marion, eu na verdade fui um sacana contigo. A verdade

é que sou casado… Tenho filhos… Isto foi tudo um disparate…

— És casado? Mas então o quê? Quiseste só dar uma voltinha, é

isso? Por quem é que me tomas?

Greg não tinha a mínima intenção de embarcar em explicações.

— Lamento mesmo muito este mal-entendido. Agora, pára de

aparecer por aqui e deixa-me em paz. Espero não precisar de te dizer

isto outra vez — rematou.

***

Arpad deambulava pela cidade quando recebeu uma notificação no

telemóvel: o alarme da casa acabava de ser desativado. Sophie estava de

regresso. Sabia que era Sophie porque a empregada doméstica (que

ainda por cima nunca vinha às quintas-feiras) usava um código diferente

para desativar o alarme. Pensou que a sua mulher provavelmente se

esquecera de um dossiê em casa, mas uma intuição levou-o a telefonar.

— Olá, querido — disse-lhe Sophie. — Como é que está a ser a tua

manhã?

— Tudo bem. E a tua?

— Nada de especial. Estou no escritório.

Era mentira. Arpad sentiu um nó no estômago. Com dificuldade,

articulou:

— Então, bom trabalho, até logo.

— Até logo, meu amor.

Arpad desligou. Como é que ela podia mentir-lhe ao mesmo tempo

que dizia «meu amor»? Decidiu voltar à Casa de Vidro para ver o que se
passava.

Sophie, na Casa de Vidro, continuava pensativa. Arpad há vários

dias que dava sinais de andar muito tenso. E não tinha nada a ver com o

banco, como ele dava a entender. Estava tenso desde o regresso do Fera.

O regresso do Fera deixava-a, a ela, bastante transtornada, e Arpad

sentia isso.

De repente, a campainha do portão soou. Ela precipitou-se para o

abrir. O Peugeot cinzento entrou e deteve-se em frente à casa. Ao sair do

carro, o Fera sorriu a Sophie.

— Bom dia, minha pantera.

Arpad deixou o seu automóvel na berma da estrada de Capite. Faria

o resto do caminho a pé, para que ninguém desse por ele. Meteu pelo

trilho sem saída que ia dar à sua casa. Digitou o código do portão e

encontrou, do lado de dentro, o carro de Sophie e o Peugeot cinzento do

Fera.

Decidiu não entrar logo em casa, mas dar antes a volta pelo lado da

floresta, para tentar ver o que estaria a acontecer no interior do cubo de

vidro. Percorreu o limite da propriedade e entrou no bosque. Sentia-se

um intruso no seu próprio território. Os pensamentos atropelavam-se

uns aos outros.

Seguiu a linha das árvores e logo descobriu um posto de observação

perfeito. Um arbusto que aparentemente permitia ver sem ser visto.

Avançou, de cócoras, e sentou-se atrás de uma cortina de folhas.

Foi assim que Arpad, inspecionando as divisões da sua casa através

das imensas janelas, surpreendeu Sophie e o Fera no quarto de casal.

Estavam um diante do outro, a conversar. Depois, o Fera, abrindo a

gaveta da mesinha de cabeceira de Sophie, tirou de lá as algemas.

Trocou ainda algumas palavras com Sophie, antes de começar a rir-se à

gargalhada. Sophie baixou então os estores elétricos.

Arpad ficou em estado de choque.

Sophie andava a enganá-lo.

Escapou-se dali pela floresta.


15 ANOS ANTES

17 DE SETEMBRO DE 2007

Menton, França

Pelas seis da manhã, como fazia todos os dias, o diretor do banco

postal de Menton saiu de sua casa para passear o cãozinho.

Os assaltantes que esperavam por ele na esquina da rua tinham em

sua posse duas informações cruciais. A primeira era que o diretor vivia

sozinho. Ninguém se inquietaria no caso de ele não regressar do seu

passeio matinal. A segunda era que os cofres do banco estavam cheios,

ao ponto de estar prevista a passagem de uma empresa de transporte de

valores naquele mesmo dia.

O diretor seguia o seu itinerário habitual e não deu pelo automóvel,

cujo motor estava a funcionar, mas que quase não se via, na escuridão.

De repente, sentiu-se agarrado, enquanto lhe encostavam uma pistola à

têmpora.

— Nem uma palavra — disse-lhe o assaltante. — Boca calada e faz

o que te dissermos, Bruno.

Eles conheciam o seu primeiro nome. O diretor do banco postal

paralisou de medo e deixou-se levar até ao automóvel. Uma segunda

silhueta, saída da sombra, pegou no cãozinho e meteu-o no porta-

bagagens. Aconteceu tudo muito rapidamente.

O assaltante da pistola sentou-se no banco traseiro com o diretor,

apontando-lhe a arma. O outro instalou-se ao volante. Nenhuma palavra

foi dita. Os dois usavam um passa-montanhas, com um boné por cima.

O automóvel circulava a uma velocidade perfeitamente normal, de faróis

acesos, para não chamar a atenção. Tudo o que o diretor podia constatar

era que o golpe estava a ser feito por profissionais.

O automóvel parou à frente do banco, num lugar de estacionamento

legal. Mas pronto para arrancar. O assaltante no banco traseiro falou de


novo:

— Agora, Bruno, faz o que te digo e vai correr tudo bem. Vais

deixar-nos entrar no banco e vais abrir o cofre onde está o dinheiro em

notas. Se obedeceres, dentro de sete minutos tudo estará terminado.

Ao dizer isto, tirou do bolso um cronómetro desportivo e pô-lo em

marcha, anunciando: — Sete minutos!

Tudo se passou como numa dança perfeitamente coreografada.

Saíram do carro sem fazer barulho. Um dos assaltantes mantinha o cano

da pistola encostado às costas do diretor, o outro transportava os sacos

vazios. Fundiram-se na escuridão. O único indício que os podia trair: o

motor do automóvel que ficou ligado, pronto para arrancar. Dirigiram-se

para a porta de serviço. Era mais do que óbvio que eles tinham feito o

reconhecimento do local.

Sem vacilar, o diretor do banco fez o que esperavam dele. Eram, de

resto, as instruções de segurança que tinha: em caso de assalto,

obedecer. Não tentar qualquer tipo de gesto heroico. Fosse como fosse,

com instruções ou sem instruções, não tencionava arriscar a vida para

proteger dinheiro que nem sequer era seu. Digitou o código no teclado

junto à porta, e esta abriu-se. Havia uma antecâmara de segurança. A

segunda porta era protegida por um sistema de abertura dupla, com

chave e reconhecimento digital. O diretor encostou o polegar ao leitor e

a porta destrancou-se. Entraram na agência. Faltava só desligar o alarme.

O diretor aproximou-se da caixa. O assaltante voltou a encostar-lhe a

pistola à têmpora e disse:

— Nada de brincadeiras, nem penses em introduzir o código falso.

O diretor sabia muito bem o que o homem queria dizer. Havia um

código de segurança previsto para este tipo de situação, que desativava o

alarme mas ao mesmo tempo alertava a polícia. Neste dia, preferiu não

correr quaisquer riscos. Ia deixar os assaltantes levarem o que

quisessem, e manter-se vivo.

O alarme foi neutralizado.

— Cinco minutos! — gritou o homem do cronómetro.

Dirigiram-se em passo rápido para a sala dos cofres. O diretor deu-

lhes acesso à montanha de dinheiro que se encontrava lá dentro. O

assaltante da pistola prendeu então o diretor com fios de plástico.

Depois, os malfeitores encheram os seis sacos de lona com os maços de


notas. Dinheiro indiferenciado, sem registo dos números de série.

Dinheiro impossível de rastrear. Uma bênção. Além disso, o diretor da

agência pedira diversas vezes aos responsáveis na sede que as recolhas

feitas pelos transportadores de valores acontecessem com maior

regularidade. Mas fizeram sempre ouvidos moucos.

Quando o cronómetro indicou sete minutos, o assaltante gritou ao

comparsa, em inglês:

— Time!

E logo se escaparam com o resultado da pilhagem, cada um

transportando um saco às costas e outros dois nas mãos, deixando para

trás o diretor amarrado.

Só duas horas mais tarde é que o diretor foi encontrado pelo

funcionário responsável pela abertura da agência. O cãozinho, esse,

libertado pelos assaltantes, esperava calmamente no passeio, diante do

lugar de estacionamento.

Quando a polícia apareceu em força no local, o veículo dos

assaltantes já transpusera a fronteira italiana há muito tempo.


CAPÍTULO 13

8 dias antes do assalto

Segunda-feira, 20 de junho (Aniversário de Sophie)

Terça-feira, 21 de junho

Quarta-feira, 22 de junho

Quinta-feira, 23 de junho

→S EXTA-FEIRA, 24 DE JUNHO DE 2022

SÁBADO, 25 DE JUNHO

DOMINGO, 26 DE JUNHO (A DESCOBERTA DE GREG)


Seis horas e um quarto da manhã, nas proximidades da Casa de

Vidro.

A partir do seu automóvel, Greg mergulhava no quarto de Arpad e

Sophie. Com um certo prazer, constatava que a relação dos Braun já

conhecera melhores dias.

— Vá lá, podes dizer-me o que se passa? — perguntou Sophie,

enervada, tentando arrancar o marido ao seu silêncio.

Arpad ainda não tivera coragem para confrontar Sophie. Na véspera,

fora diretamente para o treino semanal de squash, com Julien, sem

passar por casa. Não quis armar uma confusão à frente dos filhos.

Depois do jantar no clube de ténis, ainda dera umas voltas, sozinho, e só

voltara cerca da meia-noite. A mulher já dormia.

Sophie repetiu a pergunta:

— Arpad, vais explicar-me o que se passa contigo e por que razão

andas tão estranho desde há dois dias?

— O que é que o Fera te quer?

— O Fera? Nada, nada de nada. Porque é que me falas dele?

Ela interpretava tão bem o seu papel de inocente, parecia tão sincera,

que ele teve quase a sensação de estar louco e de ter imaginado uma

história que não seria real. Sentia-se completamente à nora. Convencera-

se, além disso, de que, se revelasse o que tinha visto na véspera, ela seria

capaz de lhe dar a volta com toda a facilidade, convencendo-o de que

inventara aquilo tudo. Ou talvez até aproveitasse para o abandonar logo

ali. Isso acontecera a um dos seus amigos: ao descobrir que a mulher

tinha um amante, confrontara-a diretamente com as provas da

infidelidade. A mulher não negara, nem tentara justificar-se, antes lhe

dissera simplesmente que, uma vez que ele descobrira tudo, não valia a

pena prolongar a farsa, e foi viver com o outro. Arpad não podia correr o

risco de perder Sophie. Apeteceu-lhe então rebentar a granada que

aniquilaria o Fera. Revelar a Sophie que, por baixo daquele seu ar

sedutor de aventureiro estiloso e espírito livre, o Fera na verdade não

passava de um bandido, de um assaltante.

— Sabes porque é que eu parti de Saint-Tropez de um dia para o

outro, há quinze anos?


— Porque te ofereceram um emprego num banco — respondeu

Sophie, com uma nota de inquietude na voz.

— Menti-te — confessou Arpad. — Menti-te durante todo este

tempo… Eu saí de Saint-Tropez porque fui obrigado a fugir da região.

— Fugir da região? — repetiu Sophie, com um esgar. — Mas afinal

o que é que estás para aí a dizer, Arpad?

— Houve uma coisa que aconteceu, há quinze anos, e já vai sendo

tempo de saberes.

— Em Saint-Tropez?

— Em Menton.

— Em Menton?

Arpad calou-se de repente. Se ele contasse a Sophie, ela falaria disso

certamente com o Fera. E o Fera sempre o prevenira quanto às

consequências que se abateriam sobre ele, caso revelasse o segredo. Se

descobrisse que Arpad o traíra, era capaz de massacrar toda a família

para que ninguém falasse.

— Deixa estar — disse então Arpad, procurando contornar Sophie,

que se mantinha à sua frente.

— Arpad, não podes estar sempre a fugir de tudo!

Ele afastou-se, pegou à pressa nas suas roupas e deixou o quarto

precipitadamente.

Greg, a partir do seu automóvel, assistira a toda a cena. Nada lhe

escapara: que raio de história seria aquela de uma fuga? Quem era o tal

Fera? E o que se passara em Menton, quinze anos antes? Tencionava

tirar a limpo esta história.

No quartel-general da polícia, procurou nos motores de busca.

Começou por se deter naquele «Fera», mas o nome não obteve quaisquer

correspondências. Greg deduzira, da discussão tensa entre Arpad e

Sophie, que se tratava, em princípio, de um homem. Seria aquele

indivíduo que Greg surpreendera a espiar a casa dos Braun? Estaríamos

a assistir ao momento em que o passado de Arpad voltava de repente à

superfície?

Arpad dissera a Sophie que fugira de Saint-Tropez no seguimento de

algo que acontecera em Menton, quinze anos antes. Ou seja, algo que

devia remontar a 2007. Greg obteve a confirmação ao consultar os


registos oficiais do cantão de Genebra: Arpad declarara pela primeira

vez o seu domicílio fiscal na Suíça em outubro de 2007.

Ao procurar acontecimentos ocorridos em Menton no ano de 2007,

Greg deparou com o assalto a uma sucursal do banco postal, a 17 de

setembro. O diretor fora feito refém por dois indivíduos encapuçados

que o forçaram a abrir o banco e o respetivo cofre. Saíram de lá com

vários milhões de euros e nunca chegaram a ser capturados. Teria Arpad

alguma ligação a estes factos? Aparecera na Suíça pouco depois da data

do assalto. Tratar-se-ia apenas de uma coincidência?

***

Nesse dia, ao meio-dia em ponto, Sophie saiu do edifício que

albergava o seu escritório. Subiu a pé a rue du Rhône até à rue Pierre-

Fatio, sem se aperceber de que era seguida. Desta vez, era o marido que

a espiava. Entrou no restaurante Roberto. Arpad aproximou-se

discretamente da vidraça e viu a mulher sentar-se à mesa de um homem

velho e elegante que já a esperava: Samuel Hennel.

Arpad concluiu que ela não lhe mentira. Por uma vez. Este almoço

correspondia ao que estava inscrito no seu calendário eletrónico, ao qual

ele tinha acesso. Mas se a seguira, não fora tanto para verificar se ela

cumpria mesmo os compromissos de agenda, mas para se assegurar de

que teria caminho aberto durante as duas horas seguintes.

Dirigiu-se então ao gabinete da mulher, do qual possuía um

duplicado das chaves. Sabia agora que Sophie levava uma vida dupla,

mas precisava de uma prova tangível, porque não sabia lidar com a

calma dela, com aquele modo de se lhe dirigir como se ele é que fosse o

problema: «O que é que se passa? Pára de fugir! Fala comigo!» Não

encontrara nada na casa, mas tinha a certeza de que descobriria qualquer

coisa no escritório, alguns indícios concretos da relação entre ela e o

Fera. Que faria depois para tentar salvar o casamento? Como é que se

desembaraçaria do Fera? Ainda não fazia ideia.

No instante em que Arpad abriu a porta do escritório de Sophie,

ouviu a voz de Véronique:


— Sophie, és tu?

Arpad torceu-se todo por dentro: esquecera por completo a possível

presença da colaboradora de Sophie.

— Sou o Arpad — anunciou ele, com um tom falsamente jovial. —

Venho buscar uns documentos.

Véronique apareceu, com a sua mala a tiracolo. Estava visivelmente

de saída.

— Oh, olá Arpad! A Sophie não está…

Ele mentiu descaradamente.

— Eu sei, já falei com ela — disse.

— Posso ajudar-te? — perguntou Véronique, com simpatia. — Ia

sair para almoçar, mas se puder ser útil…

— Não, deixa estar. Isto é coisa para não mais de dois minutos.

— Ah, bom. Nesse caso, vou andando…

Quando a jovem mulher estava a passar a porta, Arpad reteve-a.

— Se precisar de imprimir um documento, posso usar o computador

da Sophie? — perguntou.

— Claro. Funciona tudo em rede, é muito fácil.

— Há uma palavra-passe para o computador?

— Sim. Pantera. Com P maiúsculo.

Arpad ficou perplexo com a escolha daquela palavra-passe. Julgava

que a pantera era uma coisa só entre ela e ele.

Véronique foi-se embora e Arpad instalou-se logo no gabinete de

Sophie. Sentou-se em frente ao ecrã do computador e digitou a palavra-

passe. Teria agora acesso a todos os seus documentos e todas as suas

mensagens de e-mail.

A leitura dos e-mails não deu em nada. Só encontrou interações

profissionais. Também não encontrou nada nos meandros do

computador: além de um dossiê com fotos de família, nada havia de

pessoal no disco duro.


Arpad começou então a examinar as gavetas e as prateleiras, à

procura de um segundo telemóvel ou de um segundo computador

portátil que esconderia os segredos de Sophie. Mas nada encontrou. De

repente, o seu olhar fixou-se numa fiada de livros. No meio dos manuais

de Direito e dos códigos processuais, estava um livro de arte que ele

sempre ali vira, sem lhe dar importância. Era uma obra consagrada ao

movimento pós-impressionista de que Matisse era a figura de proa: o

fauvismo. A arte feita pelos fauves, pelos «feras».

Arpad pegou no livro e folheou-o. Foi assim que descobriu as cartas

que Sophie escondia entre as suas páginas. Sentou-se no chão e

começou a lê-las. Começavam todas por Minha Pantera e estavam

assinadas O teu Fera. Segundo estas cartas, meticulosamente datadas, o

Fera e Sophie tinham uma relação há quinze anos. À medida que lia, foi

descobrindo a vida dupla de Sophie e as mentiras que duravam desde

sempre.

A primeira carta estava datada de dezembro de 2007, ou seja, pouco

depois de Arpad ter fugido de Saint-Tropez. O Fera escrevia a Sophie:

«Tenho pena de que os nossos caminhos se tenham separado (…). Sinto

a tua falta… Sinto falta do teu corpo… Podíamos ter sido felizes

juntos.»

Mas os caminhos não se tinham, visivelmente, separado durante

muito tempo. Houve reencontros, nomeadamente em Paris. Depois em

Espanha, em 2016. Numa carta posterior a essa viagem dos dois, o Fera

evocava «a alegria de estar contigo em Saragoça (…) a intensidade

desses momentos vividos juntos (…) esses dias que passaram demasiado

depressa».

Ao longo dos anos, o Fera fora dando a Sophie os seus novos

endereços, quase sempre num apartado, para que Sophie pudesse

continuar a escrever-lhe.

A penúltima carta datava de 2019. O Fera aludia a uma viagem a

San Remo. «Sonho com encontrar-te lá, outra vez. Quero reviver os

nossos passeios na praia, e voltar ao restaurante maravilhoso onde nos

rimos às gargalhadas.» Embalado por essas memórias, ele escreveu:

«San Remo não pode ser a nossa última vez.»

A última carta fora escrita poucos dias antes e consistia numa

mensagem de aniversário muito kitsch.


Minha Pantera,

Não foste feita para essa vida numa jaula. Talvez te tenhas

habituado a ela, como um animal no jardim zoológico. Mas a

tua rotina e o teu dia a dia são as grades que te prendem. A tua

felicidade é uma ilusão.

Não esqueças o aviso tão certeiro do Viscontini. Vem

comigo, ainda te quero dar a provar o sabor da liberdade.

Amo-te.

O teu,

Fera

Arpad pousou a carta. Sentia-se devastado. Como é que não se

apercebera de nada? Como é que pudera ser tão ingénuo? Sophie ia

regularmente a Paris no âmbito do seu trabalho: ela começara por se

encontrar com o Fera aí, depois aproveitara esse pretexto para organizar

reencontros amorosos em Saragoça e San Remo. Quando Sophie partia

para Paris, Arpad nunca imaginara que pudesse na realidade estar noutra

cidade. A sua confiança era tal que nunca se dera ao trabalho de

verificar, ou de telefonar para o seu hotel.

Quis verificar os dados no calendário eletrónico. O ano de 2016 fora

apagado da memória informática, mas ainda tinha acesso ao de 2019.

Em fevereiro desse ano, exatamente nas mesmas datas, ele tivera de se

deslocar a Montreal em representação do banco, e ela, a Londres. Arpad

lembrava-se de que Sophie devia acompanhar Samuel Hennel. E se essa

viagem a Londres nunca tivesse acontecido? Sophie, sabendo que Arpad

estaria ausente, aproveitara decerto para se juntar ao Fera em Itália.

Pedira aos pais para virem a Genebra tomar conta das crianças. Tudo

isto configurava um plano maquiavélico.

Para ter a certeza absoluta, Arpad voltou ao computador de Sophie.

Ao pesquisar o disco duro, dera com uma pasta cheia de documentos

para a contabilidade. Encontrou os recibos de 2019 e procurou as

despesas com viagens. Nem sinal de uma estadia em Londres. Por outro

lado, nas datas da pretensa deslocação à capital inglesa, havia um bilhete

de ida e volta para Nice, cidade que fica a uma hora de San Remo, por

estrada.
***

Três anos antes

Fevereiro de 2019

Sophie deambulava por uma rua fechada ao trânsito, em San Remo,

em modo turista, com uma máquina fotográfica ao pescoço, quando

recebeu a chamada de Arpad. O dia acabava de nascer em Montreal.

— Boa manhã — disse-lhe Arpad, à maneira quebequense.

Sophie riu-se.

— Como é que vai isso, meu amor?

— Apesar da terrível diferença horária, vai tudo bem. E contigo? O

que há de novo em Londres?

— Nada de especial — mentiu Sophie. — Reuniões em gabinetes

que se parecem todos uns com os outros e café intragável. Sinto a tua

falta, meu querido.

Enquanto dizia isto, virou-se para o Fera, que caminhava ao seu

lado, e piscou-lhe o olho.


Sábado, 2 de julho de 2022

O DIA DO ASSALTO

Duas horas antes do assalto

Sete e meia da manhã.

No quartel-general da polícia, na sala de briefing do corpo de

intervenção, Greg dava as instruções aos seus homens. A saída estava

iminente.

— O nosso alvo chama-se Arpad Braun — lembrou Greg, enquanto

uma fotografia de Arpad surgia no ecrã por trás dele. — É um antigo

gestor de fortunas de um banco privado. Foi despedido há vários meses.

Passou brevemente pela prisão, em França, por furto de viatura. Dispõe

de um cúmplice, um certo Philippe Carral. Suspeitamos que terão já

feito um assalto juntos, a um banco, em França, há quinze anos.

Sabemos que vão assaltar uma joalharia hoje. Ainda não sabemos qual.

Perdemos o rasto de Philippe Carral, mas seguimos todos os passos de

Arpad Braun. Uma equipa da brigada de observação acompanha-o. Vai

manter-nos informados a partir do momento em que ele sair de casa.


CAPÍTULO 14

7 dias antes do assalto

Segunda-feira, 20 de junho (Aniversário de Sophie)

Terça-feira, 21 de junho

Quarta-feira, 22 de junho

Quinta-feira, 23 de junho

Sexta-feira, 24 de junho

→S ÁBADO, 25 DE JUNHO DE 2022

DOMINGO, 26 DE JUNHO (A DESCOBERTA DE GREG)


Dez da manhã, na Verruga.

Os preparativos para o barbecue seguiam a bom ritmo. Karine,

muito bem-disposta, acabava de confecionar o seu tiramisu. Greg, por

seu lado, pendurava as grinaldas com luzinhas lá fora. Os rapazes

tinham ido passar a manhã com os avós e a casa estava deliciosamente

calma.

Terminada a sobremesa, Karine foi inspecionar o pátio.

— Ficam bem, essas grinaldas, não? — perguntou ela ao marido,

empoleirado numa escada.

Greg limitou-se a dizer que sim com a cabeça. Não parecia muito

convencido.

— Achas que isto é foleiro, não achas? — quis saber Karine.

— Só a palavra «grinaldas» já é foleira — disse Greg, divertido.

— Oh, és um chato! — indignou-se Karine, já cheia de dúvidas.

— Ficam muito bem — tranquilizou-a Greg.

— Se há coisa que eu não quero é parecer foleira à frente dos

Braun…

— Se eles pensarem que somos foleiros, então os foleiros são eles.

Karine sorriu ao marido. Depois voltou para a cozinha e pegou no

telemóvel para ligar a Sophie.

Na Casa de Vidro, as crianças brincavam na piscina. Arpad, sentado

num sofá de exterior, olhava para elas. Sophie recolhera-se à cozinha.

Ficara a saber que o marido já sabia. Ou, pelo menos, que sabia em

parte. Ele passara pelo seu escritório na véspera, entrara no seu

computador, revistara as gavetas e as prateleiras. O livro de arte sobre o

fauvismo fora tirado do sítio: as cartas tinham sido lidas.

O telemóvel tocou. Era Karine. Sophie tinha vontade de cancelar o

barbecue dessa noite. Não se sentia capaz de fingir que eram uma

família perfeita. Mas Karine estava numa grande excitação:

— Estou ansiosa por vos receber em nossa casa esta noite! O jogo de

futebol é às quatro da tarde. Com o intervalo e os prolongamentos, deve

terminar lá para as seis. Depois, ainda há a pequena cerimónia de fecho


da época, porque este é o último jogo da temporada. E depois podem vir

diretamente para nossa casa, achas bem?

Sophie não teve coragem de a deixar pendurada.

— Também queremos muito estar convosco. Até logo.

Depois de desligar, Sophie permaneceu pensativa. Tinha montado

um plano para amenizar as coisas com o marido, antes que ele

explodisse, e era tempo de o pôr em prática.

Saiu para o pátio com duas chávenas de café e juntou-se a ele no sofá

de exterior. Com um gesto espontâneo e ternurento, encostou a cabeça

ao ombro de Arpad. Visto de fora, tudo parecia maravilhoso: as crianças

a correr na relva, os pais sentados um ao lado do outro. Depois, como

boa advogada que era, Sophie começou a desmontar as teorias da

acusação, antes mesmo de esta ter tempo de as apresentar a julgamento.

— Sei que passaste pelo escritório — disse ela, com uma voz suave.

— Imagino que tenhas lido as cartas. Talvez tivesse podido falar-te delas

na altura… E ao mesmo tempo não, não podia… Há quinze anos, depois

da tua fuga de Saint-Tropez, vivi uma aventura com o Fera. De um dia

para o outro, tu desapareceste sem deixar rasto e eu procurei-te por todo

o lado. Desesperadamente. Durante esse período, aproximei-me do Fera:

ele era teu amigo, acreditei que ele te pudesse encontrar. Uma coisa

levou à outra e tivemos um breve caso. Não durou muito, eu não estava

minimamente interessada nele.

Após um silêncio, Arpad perguntou:

— Se não foi mais do que uma coisa passageira, como é que explicas

tantas cartas?

— Depois de eu terminar a relação, o Fera anunciou-me que se ia

embora para outro lado. Algumas semanas mais tarde, recebia a

primeira carta, que ele enviou para o Béatrice. Contava-me a tristeza em

que caíra depois de eu o ter deixado. Admito que fiquei tocada…

Respondi-lhe e ele escreveu-me de volta algum tempo depois. Como

entretanto eu mudara de armas e bagagens para Paris, o meu pai

reenviou-me a carta. Foi o início da nossa correspondência. Escrevíamo-

nos regularmente. Era evidente, nas entrelinhas, que ele não se resignara

com a nossa separação, mas do meu lado sempre fui muito clara com

ele. Além disso, as minhas cartas falavam sobretudo da minha vida de


família. Cheguei até a enviar-lhe uma fotografia nossa, de nós os quatro.

Acredita, não havia nada de ambíguo. Devia ter contado que me

correspondia com o Fera durante todos estes anos? Provavelmente.

Sobretudo se isto te deu falsas impressões.

— Se não representam nada, porque é que guardaste as cartas?

— Sempre tive a mania de guardar a minha correspondência, sabes

bem. Guardei as cartas do Fera como guardei muitas outras que recebi

ao longo do tempo. Nomeadamente as que me foste escrevendo. São

memórias das diferentes fases da minha vida.

— Se as cartas eram anódinas, por que razão as escondeste dentro de

um livro, no teu escritório?

— Quando fomos mudando de casas, em Genebra, comecei por

juntar toda a correspondência num caixote, mas achava ridículo que

estivesse num canto, a acumular pó. Então guardei as cartas nesse livro

de arte. Era mais uma arrumação improvisada do que propriamente um

esconderijo. E finalmente o livro foi parar ao meu gabinete. Aliás, uma

vez que encontraste as cartas do Fera, imagino que também tenhas

encontrado as outras.

— As outras quê? — perguntou Arpad.

— As outras cartas que guardo dentro do livro. Eu disse-te: cartões

de aniversário, postais, as palavras queridas que me deixas às vezes no

para-brisas quando sais para o trabalho antes de mim.

Ele não se lembrava de ter visto essas outras coisas. Não prestara

atenção. No momento, estava de tal forma obcecado pelas cartas do Fera

que não vira absolutamente mais nada.

Sophie, que conhecia bem o marido, sentiu que ele estava quase a

ficar convencido com as suas explicações. Ainda não estava ganho, mas

já conseguira semear a dúvida no seu espírito.

Arpad, algo confuso, esforçava-se para ordenar as peças do puzzle.

De repente, perguntou:

— Então e as vossas excursões?

— Quais excursões?

— Saragoça… San Remo…

Ela fingiu magnificamente a surpresa.

— Espera lá, estás a falar do quê? — perguntou.

— Das tuas viagens a Saragoça e a San Remo com o Fera.


Ela riu-se, divertida.

— Nunca fui com o Fera a Saragoça, nem a San Remo, nem a outro

sítio qualquer — afiançou.

Arpad passou-se.

— Pára de me tratar como um idiota, Sophie! Li uma carta do Fera

que fala do vosso reencontro em Saragoça, em 2016, e uma outra a

propósito de San Remo, em 2019. Uma carta em que ele te diz: «San

Remo não pode ser a nossa última vez.»

Ela não vacilou.

— Nunca fui a Saragoça com o Fera! — exclamou. — Quanto a San

Remo, isso aconteceu há quinze anos, durante o tal período em que tu

desapareceste de circulação. O Fera quis muito levar-me lá, para

almoçarmos. Saindo de Saint-Tropez, não é muito longe. Fomos e

viemos no mesmo dia. Perguntei-me, aliás, o que andava ali a fazer. Foi

precisamente depois disso que o deixei.

— Não estou a falar do que se passou há quinze anos, mas sim de

2019!

— Espera, meu querido — disse ela com uma voz muitíssima calma

e plena de empatia. — Parece-me que há aqui um grande mal-entendido.

San Remo foi há quinze anos, como já expliquei. Quanto a Saragoça, do

que me lembro, o Fera esteve por lá numa determinada altura, durante as

suas errâncias, mas não sei o que te levou a pensar que eu estivesse com

ele. Temos de esclarecer isso de uma vez por todas.

Ela reentrou por uns momentos na casa e voltou com um envelope

que continha as cartas do Fera.

— Antes de as deitar fora — coisa que já devia ter feito há muito

tempo —, quero mostrar-te que as cartas não têm nada de

comprometedor. A não ser, talvez, as fantasias do Fera. Mas deixemos-

lhe essa liberdade de imaginar. Enfim, estou curiosa para ver onde estão

essas cartas sobre as supostas viagens a San Remo e a Saragoça.

Arpad passou rapidamente em revista as cartas e encontrou a que

procurava. Saragoça em 2016. Pôs-se a ler em voz alta os momentos-

chave da missiva:

— «Queria estar contigo em Saragoça (…). A alegria desse

reencontro lembrar-me-ia da intensidade dos nossos momentos naquela

época… Esses dias juntos que passaram demasiado depressa…»


Interrompeu a leitura. Perturbado. Ao relê-las, as palavras ganhavam

um sentido diferente.

— «Queria estar contigo» significa justamente que eu não estava

com ele — observou Sophie. — Meu amor, és tão querido quando fazes

esses filmes na tua cabeça!

Arpad continuava perplexo. Teria lido demasiado rapidamente na

véspera e interpretado mal os textos? Voltou então à carta de fevereiro de

2019, sobre a viagem a San Remo. Leu em voz alta:

— «Sonho com encontrar-te lá, outra vez. Quero reviver os nossos

passeios na praia, e voltar ao restaurante maravilhoso onde nos rimos às

gargalhadas. San Remo não pode ser a nossa última vez.»

— San Remo foi há quinze anos — repetiu Sophie. — Quantas

vezes é que tenho de dizer a mesma coisa? O Fera andou sempre a

ruminar o passado. Almoçámos de facto num restaurante encantador,

junto ao porto, mas eu guardo uma memória horrível dessa refeição,

visivelmente ao contrário dele. Quando ele escreve «Sonho com

encontrar-te lá», ou «ainda quero reviver o que fizemos», vê-se bem que

ele está mergulhado na nostalgia de qualquer coisa que perdeu.

Sophie era muito convincente. Mas Arpad ainda não dissera a sua

última palavra.

— É estranho, porque em fevereiro de 2019, portanto na altura desta

carta, devias ter ido a Londres. Ora, percorri a contabilidade do teu

escritório nas datas dessa viagem a Londres e só encontrei um bilhete de

avião para Nice, que fica a uma hora de caminho de San Remo. É uma

coincidência estranha, não te parece?

Sophie já esperava que ele levantasse esta questão. Na véspera,

Arpad esquecera-se de fechar a pasta no computador. Ainda assim, ela

fingiu-se surpreendida.

— Isso parece-me estranho. Sobretudo porque me lembro

perfeitamente dessa viagem a Londres com o Samuel Hennel. Vou

esclarecer já esse mal-entendido.

Foi buscar o computador portátil e, debaixo do olhar do marido,

ligou-se remotamente ao servidor informático do seu escritório. Clicou

na pasta «Contabilidade», depois na subpasta do ano em questão, e fez

desfilar os diferentes elementos até deparar com um bilhete de avião.

Abriu o documento. Era de facto um bilhete de avião Genebra-Nice.

É
— Vês? — disse Arpad. — É um bilhete para Nice. Podes explicar-

me isto?

Sophie apontou para o nome do passageiro: Véronique Julienne.

— Foi a Véronique que se deslocou a Nice. Não eu. E agora que vejo

este bilhete, recordo-me que era a época do meu cliente Perez, que

estava a mudar-se de Genebra para o Mónaco. Lembras-te dele?

Arpad não soube o que responder. O mais certo era ter olhado para a

data, para o destino da viagem, mas não para o nome da passageira.

Sophie prosseguiu o seu contrainterrogatório:

— O que é bizarro, por outro lado, é não ver aqui o bilhete para

Londres. Onde é que terá ido parar? Isto significa que há erros no

arquivamento da minha contabilidade e não gosto nada disso…

Ela pareceu tocar piano no teclado do computador, fez alguns cliques

com o rato e abriu uma pasta chamada «Viagens». Abriu um separador

correspondente ao ano em questão e fez desfilar várias notas de despesa

criadas durante as deslocações, nomeadamente a Paris. Viu um certo

documento na lista e abriu-o.

— Aqui está! — exclamou, satisfeita.

No ecrã aparecia um bilhete de avião eletrónico em nome de Sophie

Braun. Genebra-Londres Heathrow, ida e volta, nas datas indicadas de

fevereiro de 2019.

— Vês, eu estive em Londres nessas datas.

— Em que hotel?

Ela pareceu exasperada com a pergunta, mas respondeu sem

hesitação.

— No Regent’s. Não tenho a fatura porque o Samuel Hennel

assumiu todos os encargos. E ficámos cada um no seu quarto, para o

caso de teres dúvidas. Aliás, podes telefonar-lhe, se quiseres. Foi uma

viagem importante e a única vez que o acompanhei a Londres. Ele

lembra-se de certeza. Ainda tens o número do telemóvel dele? Imagino

que sim, mesmo se ele já deixou de ser cliente do vosso banco. O

número é o mesmo.

Sophie fixou o marido com confiança. A sua operação de persuasão

estava a funcionar. Conseguira demolir cada uma das questões

levantadas por ele.

Arpad soltou um longo suspiro de alívio.


— Parece que fiz realmente grandes filmes na cabeça — admitiu.

Ela abraçou-o.

— Oh, meu amor… Como é que pudeste imaginar essas coisas? Eu

sou tua — mentiu ela. — Só tua.


Ao fim da manhã, Samuel Hennel aproveitava um momento de

tranquilidade no terraço da sua mansão quando o telemóvel tocou. Ao

ver o nome que surgiu no ecrã, teve um instante de apreensão. Decidiu

atender. Por ela.

— Alô?

— Senhor Hennel, fala Arpad Braun.

— Arpad! Que prazer em ouvi-lo! Como é que vai?

— Vou bem, obrigado — respondeu Arpad, que se fechara no quarto

conjugal para telefonar.

Houve um silêncio. Arpad não sabia como abordar o assunto.

Samuel retomou a conversa.

— A que devo a honra? Está desesperado para me voltar a ver como

cliente do vosso banco, é isso?

Os dois homens trocaram um riso incomodado.

— Peço muita desculpa de o incomodar, senhor Hennel. Na verdade,

estou a ligar-lhe para lhe colocar uma pergunta estapafúrdia. Vai parecer

idiota, mas tem a ver com a viagem que fez a Londres com a Sophie.

— Sim, diga, diga.

— Portanto, lembra-se dessa viagem?

— Claro que sim, foi para concluir a venda de uma parte da minha

coleção de pintura.

— Sophie falou-me com entusiasmo do hotel onde vocês ficaram

hospedados, mas o nome do hotel escapa-me. Ora, eu estou a preparar-

lhe uma pequena viagem romântica a Londres, uma surpresa, e gostava

de reservar quarto nesse hotel…

— Ficámos no Regent’s — respondeu Samuel Hennel, sem hesitar.

— Um hotel magnífico, muito bem situado, com um serviço impecável.

Se reservar mesmo o quarto, avise-me que eu dou uma palavrinha ao

diretor, conheço-o muito bem.

— O Regent’s, é mesmo isso! — repetiu Arpad. — Obrigado, senhor

Hennel. Foi muito simpático da sua parte. E pronto, já não o aborreço

mais. Um bom resto de dia.

— Para si também, Arpad. Até breve.


Samuel Hennel desligou, sentindo-se desconfortável. Mentira por

ela.

***

Na véspera, ao fim da tarde

Quando Sophie apareceu em casa de Samuel Hennel, sem avisar, o

ancião pensou de início que ela se teria esquecido de lhe pedir para

assinar uns documentos quaisquer, durante o almoço. Contudo, ao ver a

sua cara, percebeu que se passava alguma coisa.

— Está tudo mal, Samuel — confessou logo ela.

Lamentou vê-la tão assarapantada, mas tocou-o que ela se virasse

para ele num momento de aflição. Pediu-lhe que explicasse a situação.

— O que é que se passa? Estou aqui para si… Pode dizer-me tudo.

— Estou a destruir a minha família…

Samuel adivinhou logo que havia outro homem metido ao barulho.

— Um amante? — perguntou.

— Um antigo amante, que reapareceu há uns dias.

Hennel ficou incomodado com esta inconfidência. Porque é que

Sophie lhe contava isto tudo?

— Quer deixar o Arpad?

— Não, não! Eu amo-o. Amo-o mais do que tudo. Mas o que eu vivo

com este outro homem é único. Ele é como… ele é como uma droga. É

mais forte do que eu.

— O Arpad está ao corrente?

— Suspeita de qualquer coisa. E não o quero perder… Mas não

posso escolher entre ele e o outro. Não consigo escolher… Preciso dos

dois! Arpad é a minha razão de viver. Mas o outro é como uma vida

dentro da vida.

Samuel compreendia cada vez menos a razão de Sophie lhe estar a

contar tudo aquilo. Não parecia querer ouvir conselhos. Tinha ar de

saber muito bem o que queria.


— Sophie, não estou muito certo de compreender como é que a

posso ajudar…

— Samuel, considera-me uma amiga?

— Claro que sim!

— Então não é a sua advogada que tem agora diante de si, mas a sua

amiga. Vou pedir-lhe um imenso favor. Um favor que só um verdadeiro

amigo poderia fazer-me. É possível que Arpad o contacte. Vai falar-lhe

de uma viagem que nós fizemos, o senhor e eu, a Londres, há três anos.

— Mas nós nunca fomos a Londres juntos — observou Samuel.

— Justamente. Preciso que diga que foi isso que aconteceu. Que

estivemos juntos em Londres para encontrar um dos compradores da sua

coleção de arte.

***

Na Casa de Vidro, Arpad acabara de desligar o telemóvel, depois da

chamada a Samuel Hennel. Deixou-se cair em cima da cama. Julgava-se

a salvo de ouvidos indiscretos no quarto. Mas Sophie, atrás da porta,

escutara tudo. E esboçou um sorriso. O seu plano funcionara às mil

maravilhas. Ao descer discretamente para o rés do chão, sentiu-se

aliviada. Na véspera, quando Véronique lhe falara da passagem de Arpad

pelo escritório, e quando descobriu que o seu gabinete tinha sido

revistado, entrou em pânico. Precisou de imaginar, à pressa, uma história

plausível.

Para os bilhetes de avião falsos, foi simples. Comprara os bilhetes

pela Internet. Um voo de Véronique para Nice, e um voo com destino a

Londres para ela. Depois, com um simples programa de leitura de

documentos, alterara grosseiramente as datas. De seguida, fizera uma

cópia de ecrã para fixar o documento, registando-o depois no dossiê

como se fosse um verdadeiro bilhete de avião. Era uma falsificação

artesanal, que não escaparia ao olho de um especialista. Mas fácil de

passar por legítimo quando apresentado rapidamente num ecrã de

computador.
Foi então necessário apelar a ajudas exteriores. Primeiro, Samuel.

Não tivera outra alternativa que não fosse envolvê-lo neste imbróglio.

Depois, o Fera, que convenceu a redigir uma nova carta a propósito

de Saragoça. Encontrou-se com ele para lhe ditar o texto.

— O Arpad encontrou as tuas cartas, que eu tinha escondidas no

meu gabinete — explicou ela. — Vou vender-lhe a ideia de uma antiga

relação entre nós, mas não sei como explicar Saragoça. A menos que ele

julgue ter lido mal.

— Achas que ele engole isso?

— Nunca irá imaginar que a carta foi reescrita e colocada no mesmo

sítio.

— Estás sempre a protegê-lo! — reagiu o Fera, de repente zangado.

Ao fim de tantos anos, era a primeira vez que via sinais de ciúme no

Fera. Respondera-lhe, simplesmente:

— Não tenho vontade nenhuma de testar a fidelidade dele…

De seguida, o Fera executara o trabalho. E foi essa carta que Arpad

leu de manhã. O seu marido caíra que nem um patinho. Ou talvez não.

Porque Arpad, ainda no quarto, depois de falar com Samuel Hennel,

olhou com atenção para o ecrã do seu telemóvel. Releu a carta de

Saragoça, a original, que ele fotografara na véspera. Aquela em que o

Fera lhe dizia como tinha sido bom o reencontro em Espanha. Também

havia fotografado o bilhete de avião Genebra-Nice, em nome de Sophie,

e não de Véronique, como a mulher acabara de o tentar convencer. Em

fevereiro de 2019, Sophie estivera de facto em San Remo com o amante.

Não apenas lhe mentia, como achava que ele era um imbecil. Para

quê todas estas manigâncias?

Deixou-se cair de novo em cima da cama. Estava exausto, por causa

das insónias. Tinha vontade de fechar os olhos, mas, quando o fazia,

uma imagem voltava sistematicamente a assombrá-lo: Sophie naquele

mesmo quarto, com o Fera, a baixar os estores.

Ainda não dissera a sua última palavra. Estava decidido a prosseguir

aquele estranho jogo de enganos que os dois se puseram a jogar, Sophie

e ele.

Pela primeira vez, começara um duelo com a sua própria mulher.


Meio-dia.

Greg estava a voltar a Cologny com a carne e o marisco quando

Karine lhe telefonou.

— Precisamos de gelo e de manteiga com sal, por favor! — disse ela.

— Sim, senhora controladora-chefe.

Karine riu-se, porque merecia o comentário irónico.

— Obrigada por fazeres isto tudo por mim — disse, toda ternurenta.

— Eu sei que sou chata com as minhas grinaldas de luzinhas e o meu

marisco… Só quero que… Só quero que este seja um belo jantar.

— E vai ser um belo jantar. Tu esmeras-te a preparar tudo, é incrível.

Eu trato destas coisas. Vemo-nos em casa.

Greg parou num supermercado Manor, em Vésenaz. Levou uma

eternidade a encontrar a manteiga com sal, depois pegou num saco com

cubos de gelo e outro com gelo picado. Estava quase a chegar à caixa

quando deu de caras com Marion. Teve logo um mau pressentimento.

— O que é que fazes aqui?

— Queria falar contigo. Como imagino que em tua casa, com a tua

mulher e os teus filhos à volta, não seja fácil, tive de me desenrascar.

— Seguiste-me?

— Digamos que esperei a minha vez. Primeiro foste ao talho, depois

à secção do marisco, agora tens de passar por mim.

Ela seguia-o desde a véspera, ao fim da tarde, quando Greg saiu do

quartel-general da polícia em direção à Verruga. Queria ver como era o

sítio onde ele vivia. Depois voltou de manhãzinha e parou em frente à

casa. Queria ter uma ideia de como era a vida dele.

— Tens de me deixar em paz — disse Greg.

Marion inspecionou o carrinho.

— Vais dar uma festa esta noite, em tua casa?

— Não tens nada a ver com isso! — ripostou Greg, que começava a

perder a paciência. — Afinal de contas, o que é que queres?

— Quero uma segunda oportunidade. Não me podes abandonar

assim, de qualquer maneira, como se fosse uma peúga velha…

Greg esforçou-se por fazer uma voz amigável.


— Marion, não és tu, sou eu. Já te expliquei… Não o devia ter

feito… Não devia ter feito o que fiz. E arrependo-me. Peço-te desculpa.

Marion continuou a suplicar.

— Não podes fazer-me isto!

Ela falara em voz alta. Demasiado alta. À volta deles, os clientes

viraram as cabeças. Greg sentia-se cada vez mais nervoso. Não estava

muito longe do sítio onde morava e temia que algum vizinho, ou

conhecido, assistisse à cena de discussão conjugal com uma mulher com

quem não estava casado. Não tinha alternativa que não fosse recorrer a

medidas extremas. Conduziu Marion até um corredor pouco

frequentado. Depois agarrou-lhe uma das mãos e apertou-a com força.

Ela contorceu-se e abafou um grito.

— Tu vais sair da minha vida e é já! — soprou-lhe Greg. — Não

quero voltar a ver-te, não quero nunca mais ouvir falar de ti!

Greg soltou-a e encaminhou-se rapidamente para a caixa, com o seu

carrinho de compras. Marion permaneceu dobrada. A mão doía-lhe.

Começou a chorar.
Quatro da tarde, no estádio de Cologny-La Fontenette.

O jogo de futebol começara há instantes. Nas bancadas, Karine e

Sophie sentaram-se lado a lado, encorajando os respetivos filhos. Arpad

e Greg, de serviço no pequeno bar, acompanhavam a partida à distância.

Nenhum dos quatro progenitores estava verdadeiramente

concentrado no jogo. Cada um focava-se num assunto que considerava

muito mais importante.

Karine pensava no seu jantar. Arrependia-se da decisão de deixar a

manteiga com sal no frigorífico. Cá fora, à temperatura ambiente, teria

amolecido um pouco e tornar-se-ia muito mais fácil de barrar nas tostas

que acompanhariam o marisco.

Greg pensava em Marion. Envergonhava-se da sua brutalidade. A

cena no supermercado atormentava-o. Não se reconhecia naquela

atitude. Mas Marion fizera com que se passasse dos carretos. Aquela

mulher venenosa provocava-lhe suores frios.

Arpad pensava em Sophie. Nas poucas vezes que olhara para as

bancadas, vira-a de olhos fixos no ecrã do telemóvel. A quem é que ela

estaria a escrever?

Sophie pensava na história do homem e da pantera que o Fera lhe

dera a ler um dia. Luchino Alani di Madura, no seu palácio da Toscana,

no início do século xx. Fora nesta história que se inspirara a sua

tatuagem. O Fera sempre tivera razão. Tudo isto era mais forte do que

ela. Tudo isto estava a ultrapassá-la.

Depois do jogo (que terminou com uma vitória dos miúdos deles),

toda a gente se juntou, como previsto, na Verruga, para o barbecue. O

jantar foi um sucesso, o marisco estava ótimo, e Greg mostrara-se um

mestre na grelha. Depois da refeição, as crianças foram brincar às

escondidas para o jardim. À mesa, a conversa dos adultos manteve-se

alegre e animada. Os risos cresceram à medida que os copos de rosé se

esvaziavam, para logo se voltarem a encher. Era uma daquelas noites

perfeitas: a escuridão tardava a chegar, a temperatura continuava amena.

Todos se divertiam. Mas só por fora, só para manter as aparências.


Greg não parava de observar Arpad, tentando entender o mistério

daquele homem. Quem era ele verdadeiramente? Que esconderia sob o

seu ar de marido perfeito e de pai-modelo? Seria, afinal, um assaltante

que encontrou refúgio na Suíça há muitos anos?

Sophie estava claramente noutro lado, em pensamento. O seu

espírito deambulava entre Arpad e o Fera.

Arpad esforçava-se por manter uma certa contenção. Começara

aquele encontro social envergando a sua máscara de bom humor.

Conseguira, durante um momento, ser o homem que toda a gente

apreciava: afável, sorridente, sempre pronto a elogiar. Porém, à medida

que o jantar avançava, de tanto olhar para Sophie, sentada à sua frente,

começara a consumir-se por dentro. Tinha vontade de que toda a mesa

soubesse que ela lhe mentia. Que levava uma vida dupla. Tinha vontade

de gritar: «Esta mulher não é quem vocês pensam.» Estava muito

magoado. E, ao mesmo tempo, muito apaixonado. Os dois sentimentos

não podiam coexistir. Para não perder a compostura e para apagar o

incêndio que o consumia, pôs-se a beber. Mas o álcool só aumentava a

intensidade das chamas.

Quando Karine se levantou para ir buscar as sobremesas, Arpad viu

uma oportunidade de se ausentar uns minutos para se recompor.

— Deixa-me ajudar-te — disse, saltando da sua cadeira.

— Nem pensar. Ninguém se mexe daí! — decretou Karine.

Arpad não ligou e foi atrás dela até à cozinha.

Karine tirou as sobremesas do frigorífico e pousou-as na mesa, para

que Arpad as levasse. Mas ele estava a olhar para o vazio.

— Tudo bem, Arpad? — perguntou-lhe ela. — Estás com cara de

quem não está cá.

O rosto de Arpad contorceu-se num esgar.

— A Sophie tem um amante — anunciou ele.

Karine ficou estarrecida.

— O quê?

— A Sophie tem um amante — repetiu Arpad. — Vai para a cama

com outro.
Às onze da noite, os Braun saíram da Verruga. Tinham vindo de

carro desde o campo de futebol. Greg sugeriu a Arpad que deixasse

Sophie guiar. Mas Arpad fez logo que não.

— Está tudo bem — disse ele, com um ar chateado. — Não bebi

assim tanto. E além disso estamos literalmente a dois minutos de casa.

Não me vais algemar por causa disto, hem, ó Greg?

A rir sozinho, sentou-se ao volante. Sophie, com pressa de pôr fim

àquele momento constrangedor, sentou as crianças no banco de trás e

ocupou o lugar do passageiro. Foram-se embora.

— Podias ter feito um esforço para te controlares um bocado —

criticou Sophie. — Estás bêbedo e foste desagradável.

— Agora dás-me lições, é? — replicou Arpad.

Sophie decidiu não agravar ainda mais a situação. Sobretudo não o

fazer à frente dos filhos.

Arpad seguiu pela estrada da Capite. Mais trezentos metros e

chegariam ao caminho sem saída que levava à Casa de Vidro. Ao

chegarem a um cruzamento, Arpad parou num sinal de STOP. Nesse

instante, o automóvel que ia atrás deles ultrapassou-os e, buzinando,

deteve-se mesmo ao lado. Era o Peugeot cinzento. O Fera baixou o

vidro, sorriu a Arpad e cumprimentou toda a família.

— Boa noite a todos! Então como é que foi esse barbecue em casa

dos vizinhos? Agradável?

Depois de dizer isto, o Fera fez um sinal com a mão, saudando

Arpad, e arrancou a toda a velocidade. Arpad, fora de si, acelerou

furiosamente o Porsche, em perseguição do carro do Fera.

— Arpad, que bicho é que te mordeu? — gritou Sophie.

— Já vou ajustar contas com o teu amiguinho!

— Pára com isso! És doido?

No banco traseiro, as crianças começaram a gritar. Mas Arpad,

indiferente às súplicas dos seus, acelerou ainda mais. Em menos de

nada, alcançou o Peugeot e obrigou-o a encostar à berma. Já com os

veículos imobilizados, Arpad saltou do Porsche e abriu a porta do outro

carro, extraindo o Fera à força. Agarrou-o pelo colarinho, antes de lhe

aplicar um soco desajeitado que só o atingiu de raspão.


O Fera disse-lhe, divertido e calmíssimo:

— Vais ter de fazer melhor do que isso.

Sophie, que se manteve dentro do carro para não deixar os filhos

sozinhos, implorava ao marido que voltasse. Mas Arpad estava como

que possuído.

— Tu vais deixar-me em paz de uma vez por todas, ouviste? —

gritou na cara do Fera. — Vais pegar na tua carripana de merda e

desaparecer para bem longe daqui.

O Fera murmurou então a Arpad, com uma voz serena:

— Claro que me vou pôr a andar. Em breve. Mas antes, há o

assalto… Depois, prometo-te, nunca mais ouvirás falar de mim… Até ao

próximo!

Arpad já só tinha uma ideia na cabeça. Desembaraçar-se do Fera de

uma vez por todas. Nem que fosse preciso matá-lo. Arpad começou a

atingi-lo com uma sucessão de murros furiosos que, desta vez, o

atiraram ao chão. O Fera, erguendo a cabeça, com o lábio aberto, disse-

lhe então:

— A Sophie é minha.

Arpad atirou-se a ele, para o encher de pontapés. Apontou primeiro

ao corpo. E depois ao rosto. Gritava de raiva enquanto o espancava. O

Fera não oferecia resistência, o máximo que fazia era gritar. Dir-se-ia o

riso de um danado. Dentro do Porsche, Sophie, assustadíssima, abraçava

Isaak e Léa, que choravam de medo.

As luzes das vivendas ao lado da estrada acenderam-se. Sophie, não

sabendo o que fazer com as crianças, acabou por deixá-las no carro

fechado e precipitou-se na direção do marido. Empurrou-o com todas as

suas forças e tentou afastá-lo do Fera. Ele manteve-se à distância,

enquanto Sophie se agachava junto ao Fera para averiguar o seu estado.

Escolhera claramente um dos campos.

O Fera, com o rosto ensanguentado, encostou-se a Sophie, e depois,

sem que ela o visse, fixou Arpad nos olhos e lançou-lhe um sorriso de

triunfo.

— Arpad, contaste à Sophie o que aconteceu no banco?

Arpad ficou petrificado. Sophie virou-se para ele, com um olhar de

incompreensão. O Fera retomou:


— Ups! Espero não ter dito nada que não devia. Não estás ao

corrente, Sophie? O Arpad foi despedido do banco.

Sophie ergueu-se e fixou o marido como se estivesse diante de um

desconhecido.

— É verdade, Arpad?

O Fera rejubilava. E não tencionava ficar por ali.

— Já faz quase seis meses que o Arpad finge ir trabalhar. Passa os

seus dias a deambular pelas ruas, pelos parques, pelos cafés.

Sophie estava chocada.

— Arpad — gritou ela, com lágrimas nos olhos —, diz-me, por

favor, que isto não é verdade!

Ele sentiu um nó na garganta.

— Lamento muito, Soph’… Lamento muito…

Ouviram-se sirenes na noite e em breve as luzes giratórias azuis

iluminaram a escuridão. Os vizinhos, alertados pelos gritos, tinham

chamado a polícia. Chegaram vários carros-patrulha.

Arpad, sob o olhar da mulher e dos filhos, foi algemado e

transportado no banco traseiro de um veículo da polícia.


Sábado, 2 de julho de 2022

O DIA DO ASSALTO

O início do assalto

Nove horas e vinte e nove minutos.

Arpad dirigiu-se à joalharia Cartier.

Um polícia, disfarçado de funcionário municipal, alertou os seus

colegas pelo rádio:

— Ele vai entrar na Cartier! Ele vai entrar na Cartier!

Greg, que se encontrava ali perto, passou de carro. Teve apenas

tempo para ver Arpad a entrar na loja. Depois os polícias perderam-no

de vista. As vitrinas, por razões de segurança, estavam obstruídas por

expositores, e os raros interstícios não deixavam ver nada de longe.

Greg posicionou os seus homens em volta do edifício, para cobrir

todos os acessos. Pelo rádio, anunciou:

— Ninguém se mexe por enquanto. Queremos apanhá-los em

flagrante!

Passaram alguns minutos. O tempo pareceu longo. Greg, à coca no

seu veículo, perscrutava a loja. Do exterior, parecia tudo normal. Era

impossível distinguir fosse o que fosse.

— Precisamos de alguém para espreitar o que se passa lá dentro —

pediu Greg pelo rádio.

— Eu trato disso! — anunciou logo uma jovem mulher da brigada de

observação.

Uma silhueta que empurrava um carrinho de bebé passou em frente

à loja.

— Não vejo nada — disse a mulher pelo rádio.

— Como assim, não vês nada? — perguntou Greg. — Onde é que

está o Arpad?

— Não vejo ninguém dentro da loja.

— E na parte de trás? — perguntou Greg.


— Nada a assinalar — respondeu-lhe um dos colegas.

Greg torceu o nariz: a calma absoluta era geralmente um mau sinal.

Decidiu enviar um batedor.

— Alguém do corpo de intervenção que entre na loja — ordenou

Greg pelo rádio.

Um agente da tropa de elite, à paisana, apareceu de repente à porta

da loja, como se fosse um cliente. Mas a porta ofereceu-lhe resistência.

— A porta está fechada à chave — anunciou o polícia via rádio. —

E lá dentro não se vê ninguém…

Greg compreendeu logo: se a porta estava trancada e não havia

ninguém na loja, é porque os funcionários estavam retidos algures lá

para dentro. Era o momento certo para apanhar os assaltantes no tão

aguardado flagrante delito.

Greg hesitou um instante: não queria que o assalto degenerasse

numa tomada de reféns. Mas também não queria arriscar um tiroteio em

plena rua, se apenas intercetassem os assaltantes no momento da fuga.

— Vamos avançar — anunciou Greg. — Todos a postos. À minha

ordem.
CAPÍTULO 15

6 dias antes do assalto

Segunda-feira, 20 de junho (Aniversário de Sophie)

Terça-feira, 21 de junho

Quarta-feira, 22 de junho

Quinta-feira, 23 de junho

Sexta-feira, 24 de junho

Sábado, 25 de junho

→D OMINGO, 26 DE JUNHO DE 2022

(A DESCOBERTA DE GREG)
Nove da manhã, na Verruga.

Karine andava de um lado para o outro na cozinha.

— O que é que vai acontecer ao Arpad? — perguntou ao marido.

— Não faço ideia… Vou telefonar a uns colegas daqui a nada, para

saber mais. Mas o que é que lhe deu para se passar daquela maneira?

Na véspera à noite, Sophie, desfeita em lágrimas, telefonara a

Karine, falando de uma cena de pancadaria com um automobilista, na

estrada de Capite. A polícia fora chamada. Greg aparecera para ajudar.

Encontrara Arpad a entrar para a parte de trás de um carro-patrulha,

Sophie num stresse total e os filhos dos Braun em choque. Segundo os

agentes, um automobilista teria feito um gesto obsceno a Arpad e o

incidente degenerara numa cena de discussão rodoviária, seguida de

pancadaria. Ou, melhor dizendo, do espancamento do outro condutor

por parte de Arpad. A vítima estava em mau estado, mas recusou

cuidados médicos. Como não tinha álcool no sangue e não desejou

apresentar queixa, partiu como se nada fosse. Arpad, pelo contrário, ao

soprar o balão revelara uma taxa de álcool no sangue duas vezes

superior ao limite legal, pelo que foi levado num veículo da patrulha e

posteriormente metido na cela dos prevaricadores alcoolizados. Sophie

abraçou Greg, depois murmurou algumas palavras para si mesma, mas

que Greg conseguiu ouvir: «A culpa é toda minha.»

Este surto violento de Arpad permanecia um enigma para Greg. Até

que Karine lhe contou.

— O Arpad revelou-me que a Sophie tem um amante… — disse a

mulher.

— O quê? Quando é que ele te disse isso?

— Ontem à noite, enquanto me ajudava na cozinha.

— E só agora é que me contas?

— Com tudo o que se passou depois, esqueci-me de te contar.

Greg pôs-se a refletir. Não conseguia imaginar Arpad, mesmo muito

alcoolizado, a espancar um desconhecido, sobretudo por causa de uma

ofensa fútil. Quem era então o outro condutor? Arpad conhecia-o de

certeza e devia ter uma boa razão para se atirar a ele daquela maneira.

Seria o amante de Sophie? Na véspera à noite, os polícias não haviam


registado a identidade do homem. Verdadeiros amadores. Mas Greg

tivera a presença de espírito de anotar a matrícula do Peugeot cinzento

que ele conduzia.

A tecnologia moderna permitia agora aos polícias aceder, a partir do

seu telemóvel, às diferentes bases de dados nacionais, mas não às dos

outros países europeus. Teria de esperar pelo dia seguinte para fazer a

sua procura no quartel-general da polícia. Por agora, era Arpad que

ocupava os seus pensamentos.

Greg contactou a brigada de trânsito para saber novidades de Arpad.

— Arpad Braun? — perguntou um polícia ao telefone. — Já foi

libertado há cerca de meia hora.

— O que é que o procurador reteve contra ele?

— Unicamente a infração ao código da estrada, por causa da

alcoolemia. Quanto ao resto, nada, porque o outro automobilista não

apresentou queixa.

Com estas informações, Greg deixou a Verruga para se dirigir à Casa

de Vidro. Assim que virou na esquina, abriu-se a porta de um automóvel

discretamente estacionado perto de sua casa. A condutora, vendo que

tinha via livre, saiu do habitáculo. Era Marion. Trazia na mão um

envelope endereçado à senhora Liégean. Caminhou até à Verruga, enfiou

o envelope na caixa do correio, voltou ao carro e foi-se embora.


Greg estava sentado na sala de estar dos Braun.

— Sem açúcar, certo? — perguntou-lhe Sophie, ao pousar a chávena

de café expresso na mesinha de apoio.

— Exatamente — respondeu Greg. — Obrigado.

Ela começava a conhecer os seus gostos.

— Como te estava a dizer — continuou ele —, acabo de falar com o

procurador de serviço. Pedi-lhe para libertar o Arpad quanto antes, o

que ele aceitou. Já não deve demorar muito.

— Obrigada pela ajuda…

— Era o mínimo — disse ele, magnânimo. — É para isso que

servem os amigos. Sem ser indiscreto, posso perguntar-te o que é que

aconteceu ontem à noite?

— Perdeu a cabeça. O tipo esticou-lhe o dedo do meio e o Arpad

passou-se.

«Minha mentirosa», pensou Greg, convencido de que Sophie lhe

escondia a verdade.

— E as crianças? — perguntou, num tom falsamente preocupado.

— Ainda estão a dormir. Uma amiga minha vem buscá-las daqui a

nada, para irem tomar banho no lago com os filhos dela. Isso vai

permitir-me ficar a sós com o Arpad.

***

Só por volta do meio-dia é que Arpad voltou à Casa de Vidro.

Sophie passara a manhã à espera e a andar de um lado para o outro,

ansiosa. Tentara telefonar-lhe um número incalculável de vezes, mas o

telemóvel tocava no vazio.

Quando viu a silhueta exausta dele a entrar pela porta da rua, a única

coisa que conseguiu dizer foi:

— Onde é que andaste? Já foste libertado há horas!

A pergunta soou a crítica, mas a sua voz traía preocupação.


Arpad mostrou um sorriso amargo. Mais parecia um espectro. Com

um ar abatido, meio atordoado após uma noite desconfortável na cela, as

roupas todas engelhadas, nunca tivera tão mau aspeto. Permanecia

imóvel no vão da porta, como se não ousasse entrar. Como se aquela já

não fosse a sua casa. Não abriu a boca, o que só fez aumentar a

ansiedade de Sophie: ela teria preferido uma grande discussão.

Finalmente, Arpad sussurrou:

— Os miúdos estão?

— A Rebecca e o Julien levaram-nos a passar o dia no lago. Está um

tempo tão bom…

Sophie lamentou ter dito uma banalidade que só evidenciava o seu

mal-estar. Acrescentou:

— Sabes, eles ficaram muito impressionados com o que viram ontem

à noite.

Arpad não soube como reagir. Mudou de assunto.

— Falaste com o teu pai? — inquiriu.

— Porque é que perguntas isso?

— Porque ele tentou ligar-me pelo menos dez vezes. Imagino que

não queira falar do bom tempo que está lá fora.

Ela suspirou. Pedira expressamente ao pai para não ligar a Arpad.

— Precisava de desabafar com alguém — justificou-se ela. — Mas

só lhe falei do teu despedimento.

O uso daquele só provocou o riso em Arpad. Significava que eles

tinham outros problemas bem mais sérios.

— O que é que se passou no banco? — perguntou Sophie.

— Despedimento por razões económicas… Ainda se eu tivesse sido

mau profissional… Mas não. «Bravo, Arpad, você é mesmo incrível,

mas vamos despedi-lo na mesma.»

— Porque é que não me contaste?

— Porque não queria que me olhasses com pena, como estás a fazer

agora. Não queria que telefonasses para o teu querido papá a pedir ajuda.

Queria resolver o assunto por mim. Queria dar a volta. Mostrar-te que

era capaz de o fazer. Encontrar uma solução. Queria que admirasses o

modo como eu viria a ultrapassar a adversidade. Sabes, Sophie,

apercebo-me agora de que tudo o que fiz, desde há quinze anos, foi para
que me admirasses. Um único elogio saído da tua boca foi sempre para

mim mais importante do que o reconhecimento do mundo inteiro!

Arpad recapitulava mentalmente aqueles quinze anos de amor com

Sophie. De Saint-Tropez a Genebra, do Béatrice ao banco, avançara

sempre na vida para conseguir o olhar e a admiração dela. A sua atitude

conquistadora, as suas promoções no banco, o seu corpo perfeito,

mantido graças a horas de desporto todas as semanas, a exibição do seu

saber, tudo para que ela o admirasse. As decisões arriscadas, o

branqueamento do dinheiro de Bernard, tudo para que ela o admirasse.

O apartamento da avenue Bertrand, a Casa de Vidro, os Porsche, as

férias de sonho, as viagens em classe executiva, sempre tudo para que

ela o admirasse.

Arpad deu alguns passos no interior da casa.

— Vim só buscar algumas coisas minhas — disse ele.

— Vais sair daqui? — inquietou-se Sophie, com dificuldade em

controlar a tremura na voz.

— Francamente, Sophie, achas que me vou deitar ao teu lado? Achas

que vou dormir na nossa cama como se não se tivesse passado nada?

Ela vacilava.

— Arpad, vamos superar tudo isto… Prometo-te! Quero lá saber do

teu trabalho!

— Ah, sim? Queres lá saber? E como é que vamos pagar este

casarão? E o nosso estilo de vida? O verão no Mediterrâneo, o Natal nas

Caraíbas, fevereiro nos Alpes. Como é que vamos pagar tudo isso?

— Mas eu não quero saber disso para nada! És tu que eu quero!

— Pára de mentir! Tu só queres proteger a tua imagem de uma

família perfeita! Queres a grande casa, os Porsche na garagem, os filhos-

modelo e o marido a acompanhar.

— É falso! Isso é absolutamente falso! — gritou Sophie. — Vai

descansar um bocado, depois conversamos com mais calma. Tiveste uma

noite difícil, compreendo que não estejas no teu estado normal.

— Enganas-te! Nunca estive tão lúcido! — replicou Arpad. — Achas

que não percebi os teus estratagemas? Os teus falsos bilhetes de avião, a

tua carta do Fera forjada?

Ela ficou estupefacta: como é que ele descobrira essas manigâncias?

Decidiu abrir o jogo.


— Muito bem, fiz merda com isso dos bilhetes falsos, não o devia

ter feito! Mas se o fiz, foi para te proteger! — afirmou.

— Proteger-me de quê? Da tua relação com o Fera? E o Samuel

Hennel assegurou-me que esteve em Londres contigo… Pediste-lhe para

mentir, foi?

Ela começou a chorar.

— Desculpa — pediu.

— Quer dizer que toda a gente está a par da tua infidelidade?

Ela deixou-se cair no chão.

— Só o Samuel — acabou por dizer, num fiozinho de voz.

— Só o Samuel! Ah! Só o Samuel!

— Eu amo-te, Arpad, foi contigo que tive os filhos!

— Mas já eu tenho de te partilhar…

— É complicado…

— O que é que há de complicado aqui?

— Não consigo… Não consigo escolher entre ti e o Fera…

— Porquê?

— Ele faz-me sentir coisas que tu nunca me poderás dar. Se eu… eu

posso estar contigo e ser feliz contigo é porque o Fera existe.

— Obrigado pela tua franqueza! — exclamou Arpad, com ironia.

Sentia a sua indignação a crescer e temia que a sua fúria o levasse a

partir a casa toda. Precisava de sair dali. Depressa. Pegar em algumas

coisas e pôr-se a andar. Nunca mais meter os pés naquela casa.

Foi rapidamente ao piso de cima e entrou de rompante no quarto de

casal. Encontrou um saco de viagem e encheu-o de roupa. Em cima da

cómoda, uma fotografia deles os dois, apaixonados, numa praia grega,

irritou-o. Atirou-a contra a parede, partindo o vidro e a moldura. Tinha a

sensação de estar a perder o controlo. Sentia-se asfixiar.

O telemóvel tocou. Era Bernard. De novo. Desta vez, atendeu. Tinha

vontade de destruir tudo, devastar aquela vida harmoniosa tão

pacientemente moldada. A capacidade de construir anda muitas vezes a

par de um talento para a destruição.

— Meu caro Arpad — disse-lhe Bernard —, estou muito aborrecido

com as más notícias que a Sophie me transmitiu. Mas não te preocupes,

vamos ajudar-te a encontrar um emprego, eu…


— Cala-te, Bernard! — gritou Arpad com todas as suas forças. —

Não preciso de ti para arranjar um emprego. Além disso, tudo o que

aconteceu foi culpa tua! Da tua arrogância! Da merda do teu dinheiro!

Dos teus presentes envenenados! Dos teus fogos de artifício! Vai-te

lixar!

Bernard, do outro lado, ficou petrificado. Arpad desligou-lhe a

chamada na cara e lançou o telemóvel para o outro lado do quarto.

Sophie, que ainda estava caída no chão, a chorar, no hall de entrada,

ouviu o alvoroço lá em cima. Pensou se não seria melhor chamar a

polícia. E começou por ligar ao Greg.

— O Arpad está completamente descontrolado — murmurou ela ao

telemóvel.

— Está em casa? — perguntou Greg.

— Sim. Neste momento, ficou sozinho no quarto. Ouvi-o a gritar e a

atirar objetos à parede. Entretanto, parece ter acalmado.

— O mais importante é manteres-te afastada dele. Eu vou já para aí.

— Obrigada.

Greg já estava ao corrente do estado de fúria de Arpad. Acabara de

seguir a cena no seu ecrã, dentro do carro, na orla do bosque. Quem

diria que ele chegara a sentir-se um rival deste demente. Olhava agora

para Arpad a chorar, todo encolhido como uma criança. À distância, os

soluços ressoavam no habitáculo do seu carro. Greg esperava que Sophie

entrasse no quarto e que ele se agarrasse a ela. Nesse caso, interviria

imediatamente. Daria um enxerto de porrada a Arpad. Estava mortinho

para fazer isso.

Aproveitou a espera para ligar a Karine. Ela julgava-o algures a

passear o Sandy.

— Acabo de receber uma chamada da Sophie. O Arpad voltou a

casa, mas não parece nada bem. Vou passar rapidamente por lá, para lhe

dar apoio.

— Faz isso. Greg Liégean, és um tipo mesmo impecável!

Ele desligou e concentrou-se outra vez no ecrã. Arpad estava imóvel

e silencioso.

O telemóvel de Greg tocou. Era Fred, o responsável pelo

equipamento do corpo de intervenção. Greg achou estranho que ele


estivesse a telefonar num domingo.

— Olá, Fred. Tudo bem? — perguntou ele.

— Tudo — respondeu Fred. — Estás onde?

— Domingo em família. Porquê? Há alguma emergência?

Nesse momento, Greg ouviu uma pancada no vidro do lado do

passageiro. Virou-se, sobressaltado. Era Fred, a olhar para ele, o

telemóvel ainda colado à orelha.

Sem dizer uma palavra, Fred abriu a porta e sentou-se ao lado do

colega. Houve um momento de silêncio, depois Fred disse, apontando

com o dedo para o ecrã pousado nos joelhos de Greg:

— O recetor da câmara emite um sinal quando está ligado. Se

conheceres a frequência, é possível detetá-lo. Depois, basta fazer uma

triangulação. Leva algum tempo, mas faz-se. Foda-se, Greg, o que raio

estás tu a fazer?

Greg ficou paralisado. Teria Fred acedido às imagens? Seria melhor

confessar tudo imediatamente? Ou negar tudo?

Fred olhava para o ecrã: o quarto, a cama, Arpad deitado no chão.

— Greg, estás a filmar esse tipo? O que é que se passa, pá? Sabes

que não vou poder fingir que não sei de nada. Tenho de avisar o chefe,

por isso o melhor é explicares-me o que se passa… És um dos melhores

agentes da unidade. Tens de certeza uma boa razão para teres roubado

uma câmara de observação e andares a espiar ilegalmente um gajo

qualquer com ela.

Greg tentou meter um pouco de ordem nos seus pensamentos.

Precisava de salvar a pele. Custasse o que custasse. Ponderou falar do

assalto em Menton, no qual Arpad estaria eventualmente implicado, mas

faltavam-lhe elementos concretos. Enquanto se esforçava para articular

um início de resposta, ouviu-se um toque de telemóvel dentro do carro.

Mas o telemóvel que tocava não estava dentro do veículo. Estava no

quarto de casal da Casa de Vidro.

No quarto, Arpad levantou-se de um salto. Não conhecia aquele

toque. Não era o seu telemóvel, nem o de Sophie. O toque continuava.

Além de tocar, aquele telemóvel também vibrava, e Arpad conseguiu

assim localizá-lo. Atrás de um rodapé que não se via, dissimulado atrás

da mesinha de cabeceira de Sophie. A peça de madeira não estava fixa à


parede e ao levantá-la Arpad descobriu um telemóvel, de um modelo

relativamente antigo. O ecrã indicava «número desconhecido».

Carregou numa tecla e atendeu.

Do outro lado, o Fera soube imediatamente que não fora Sophie a

atender. Ela teria falado logo. Pelo contrário, este interlocutor continuava

calado. Percebeu que só podia ser Arpad.

Os dois homens continuaram mudos mais alguns instantes, a ouvir

os respetivos silêncios. O Fera perguntou-se se teria sido Sophie a

entregar o telemóvel a Arpad. Uma forma de lhe provar que estava tudo

terminado com ele, o amante. Não tivera notícias de Sophie desde o

incidente da véspera. Arrependia-se da sua provocação. Não conseguira

evitar o impulso. Porque a verdade é que era terrivelmente ciumento.

Sabia bem que o objeto do seu amor lhe escapava cada vez mais.

Arpad, perspicaz, sem dúvida nenhuma, foi o primeiro a falar.

— Fera?

Depois de uma hesitação, o Fera respondeu:

— Sim.

Arpad não aguentava mais. O Fera tinha de desaparecer. E como

tinha sido incapaz de o matar, só havia uma solução: dar-lhe o que ele

pedira. Disse então:

— Podemos avançar com o assalto. Faço-o contigo. Quando é que

vai ser?

— Este sábado.

— Este sábado. Combinado.

No seu automóvel, Greg nem queria acreditar no que acabara de

ouvir. Fred dirigiu-lhe um olhar de pura surpresa e perguntou:

— Andaste a espiar os assaltantes?

— Sim — mentiu Greg, sentindo que talvez assim se pudesse salvar

milagrosamente do sarilho em que se metera. — Este tipo é um

assaltante que veio esconder-se na Suíça há quinze anos. E que está

prestes a recomeçar.
Sábado, 2 de julho de 2022

O DIA DO ASSALTO

Sete minutos após o começo do assalto

Às nove horas e trinta e sete minutos, o corpo de intervenção iniciou

o assalto.

Tudo aconteceu muito depressa. Em menos de trinta segundos.

Duas colunas de homens vestidos de negro, equipados com armas

pesadas e escudos, colocaram-se dos dois lados da entrada da loja da

Cartier e rebentaram com a porta.

Arpad foi apanhado de surpresa.

Ouviu uma primeira deflagração no exterior, imediatamente seguida

de uma segunda, já dentro da loja. Ficou paralisado durante um instante,

por causa do barulho e do brilho provocados pela explosão de uma

granada. Uma coluna de polícias encapuçados e protegidos por escudos

avançou loja adentro na sua direção.

Foi derrubado à bruta.

A adrenalina fez com que o seu coração disparasse. Sentia um

zumbido nos ouvidos. Pisaram-no com botifarras. Alguém o algemou.

Estava tudo terminado.


Terceira parte

Os dias que antecederam o

assalto
CAPÍTULO 16

5 dias antes do assalto

Domingo, 26 de junho (A descoberta de Greg)

→S EGUNDA-FEIRA, 27 DE JUNHO DE 2022

TERÇA-FEIRA, 28 DE JUNHO

QUARTA-FEIRA, 29 DE JUNHO

QUINTA-FEIRA, 30 DE JUNHO

SEXTA-FEIRA, 1 DE JULHO

SÁBADO, 2 DE JULHO (O DIA DO ASSALTO)


Quatro da manhã, na Casa de Vidro.

Sophie acordou sozinha na cama de casal e perguntou-se onde é que

Arpad teria passado a noite.

Na véspera, depois de passar por casa, voltara a sair, sem sequer lhe

dirigir uma palavra, levando algumas coisas num saco. No quarto,

encontrara o seu segundo telemóvel caído no chão. Arpad descobrira

então o esconderijo, atrás do rodapé. Sophie não perdeu tempo a ligar ao

Fera.

— Falaste com o Arpad?

— Liguei-te pela nossa linha e foi ele que respondeu.

— O que é que lhe disseste? Ele saiu de casa!

— Não disse nada!

— Mas porque é que falaste?

— Querias o quê? Que dissesse «peço desculpa, foi engano» e

desligasse? Tu tens um telemóvel secreto! O gajo não é estúpido!

Ao ouvir a palavra «gajo», Sophie estacou: ela e o Fera falavam do

seu marido como de um estranho.

Ainda mal tinha desligado e já o pai tentava falar com ela.

— Desculpa, papá, agora não dá…

Mas Bernard estava furibundo. Pôs-se a vociferar:

— Se achas que vou deixar que esse merdoso me trate assim, estás

muito enganada! Por quem é que ele se toma, afinal?

— O que é que ele te disse exatamente?

— Ignomínias! Eu liguei a oferecer ajuda para lhe encontrar um

novo emprego e ele respondeu-me com insultos!

— Foda-se, papá! Eu disse-te para não lhe ligares!

Bernard ficou em silêncio durante um instante: Sophie só muito

raramente dizia asneiras. Tentou de seguida defender-se,

desajeitadamente.

— Quando me disseste para não falar disto, pensei que te referisses à

tua mãe ou à tua irmã — desculpou-se.

— Papá, tens de aceitar que não podes estar sempre a intrometer-te

em tudo!
— Claro que tens razão — admitiu Bernard. — Ainda assim, ele

dirigiu-me palavras totalmente inadmissíveis! Exijo um pedido de

desculpas e…

Sophie desligou-lhe na cara. Não tinha naquele momento a energia

necessária para enfrentar o ego do pai, para além de tudo o resto. E eis

que o Fera se lembrava de tocar a campainha ao portão da Casa de

Vidro, aparecendo para uma visita-surpresa. Sophie gritou-lhe pelo

intercomunicador:

— Desaparece-me daqui! Desaparece-me daqui já! Os miúdos estão

quase a chegar! Deixa-me em paz!

Foi refugiar-se na sua cama. Estava perturbadíssima. Apercebia-se

de que tudo o que construíra com certeza e convicção — a carreira, a

família, o casamento, aquela casa, toda uma vida de perfeição e triunfo

social, de convenções burguesas — nada tinha que ver consigo. Essa

existência embrulhada em papel brilhante dava-lhe vómitos. Ela queria

ser livre. Ela queria ser selvagem. Já não queria mais ser Sophie Braun.

O Fera sempre lhe repetira que ela era uma pantera.

Às quatro da manhã era ainda muito cedo para se levantar, mas ela

sabia que não conseguiria voltar a adormecer. Desceu à cozinha, ainda

de noite. Fez maquinalmente café. Esperara encontrar uma mensagem de

Arpad, mas nada. Em poucos dias, este homem que ela trazia

entranhado na sua pele há quinze anos tornara-se como que um

fantasma, um estranho. Ela já não o reconhecia e, pior do que isso, a

culpa era toda dela. Se Arpad se passara dos carretos, se tinha revistado

o seu gabinete e espancado o Fera, se tinha chamado todos os nomes ao

seu pai, fora por causa dela.

Sophie ficou a pensar nestas coisas até ao despertar dos filhos. Para o

pequeno-almoço, fez-lhes crepes.

— O que é que festejamos? — perguntou Isaak, longe de imaginar o

que estava a acontecer.

— Estamos quase nas férias grandes — rejubilou falsamente Sophie,

que, diante dos filhos, voltara a colocar a sua máscara de mãe perfeita.

— É a última semana de escola! — gritou Isaak.

— Ainda faltam quatro soninhos! — lembrou Léa, que gostava de

contar os dias enumerando as noites.


Sophie anunciou-lhes a decisão que tinha tomado na véspera à noite,

com o pai, quando este ligara a pedir desculpas.

— Meninos, a propósito das férias, há uma boa notícia: sexta-feira,

depois da escola, vamos para a casa do avô Bernard e da avó Jacqueline,

em Saint-Tropez, por uns dias.

Ela esteve quase a dizer «por uns tempos», mas conteve-se. Não os

queria desestabilizar.

Ao ouvir isto, Isaak gritou de alegria. Léa precipitou-se para as

escadas, com o objetivo de avisar o pai, que ela imaginava lá em cima,

no primeiro andar.

— Papá! Papá! Vamos para Saint-Tropez! — gritou.

Sophie abafou um soluço.

— O papá não está cá, meus queridos…

— Então está onde? — questionou Isaak.

— Ele… Ele teve de ir viajar por uns dias… Em trabalho.

— É por causa do que aconteceu naquela noite? Por causa da luta

com o senhor?

— Não, não… Está tudo bem. É só porque tem coisas lá do trabalho

dele.

— Mas também vem para Saint-Tropez, não vem?

Sophie encontrou uma maneira de não mentir.

— Espero que sim! — disse.

Fez sorrisos tranquilizadores aos filhos, sabendo que eles eram tudo

menos parvos.

— Podemos falar com ele ao telefone? — perguntou Isaak.

— Evidentemente!

Sophie marcou logo o número de Arpad. Mas o telemóvel tocou no

vazio.

Estendido numa cama de hotel, Arpad deixou o telemóvel tocar.

Pensou que poderiam ser os filhos a querer falar com ele. Mas não tinha

qualquer vontade de trocar palavras com Sophie.

Quando o telemóvel se calou, levantou-se. Há horas que estava

acordado, mas ainda não se mexera. Abriu os cortinados, deixando

passar a luz do dia. Diante dele, podia ver o edifício principal do

aeroporto de Genebra. O quarto estava escassamente mobilado, como


em todos os estabelecimentos desta cadeia hoteleira de gama média. O

tempo dos luxos e das cinco estrelas parecia agora muito distante.

Arpad devia encontrar-se com o Fera ao meio-dia, para falar do

assalto. O encontro estava fixado para o Caravelle, um café próximo do

aeroporto. Arpad tinha uma ideia na cabeça: fazer um negócio com o

Fera. Deixar-lhe-ia todo o dinheiro do assalto, em troca da garantia de

que o Fera desapareceria para sempre da sua vida. O Fera era um

homem honrado, manteria a sua palavra. Era a única solução que Arpad

encontrara para se desembaraçar dele definitivamente.

Nesse instante, o Fera estava no Esconderijo, um pequeno

apartamento situado numa quinta em Jussy, uma comuna na parte rural

de Genebra. A doze quilómetros apenas do centro, Jussy oferece um

contraste impressionante: o essencial do território da comuna é

composto por campos e uma vasta floresta. Os 1200 habitantes que ali

vivem repartem-se entre a aldeia central e pequenos lugarejos dispersos.

O resto é só natureza que se estende até à fronteira com França. Uma

fronteira invisível. Alguém que passeie por ali pode passar de um país

para o outro sem sequer se dar conta. Era o lugar ideal para o Fera:

dependendo de como corresse o assalto, poderia ficar algum tempo em

Jussy, onde ninguém o iria procurar (tinha dinheiro suficiente para se

aguentar ali vários meses), ou então passava discretamente para França,

evitando os controlos aduaneiros.

O Esconderijo ficava a cerca de duzentos metros de França.

Encontrara-o através de um anúncio na Internet. Aceitara todas as

condições do agricultor proprietário daquelas terras, nomeadamente o

avanço de três meses no pagamento da renda, logo à cabeça, e em

dinheiro vivo, claro. Se tudo corresse bem, ele ficaria longe nos dias que

se seguissem ao assalto, só até que o alerta nas fronteiras fosse

levantado. Mas tinha de enganar bem o agricultor. Não despertar

qualquer suspeita. Por isso, nada deixara ao acaso: apresentara-se com

um nome falso, explicando que vinha para a Suíça trabalhar numa

plantação de tomate em permacultura. Sabia umas coisas sobre o

assunto, ou pelo menos o suficiente para responder, caso o agricultor lhe

fizesse perguntas. Tinha igualmente papéis falsificados correspondentes

ao nome falso, para o caso de o proprietário exigir um documento de


identidade. Mas o proprietário não lhe pediu nada. Melhor assim. Os

papéis falsos correspondiam a um folclore antigo, posto em causa com a

chegada dos parâmetros biométricos.

Ao instalar-se no Esconderijo, o Fera descobrira que o lugar na

verdade era ainda melhor do que imaginara. Aquele terreno agrícola

ficava completamente isolado: não havia nada à volta, só campos. Podia

chegar-se lá sem passar pela aldeia e pelos lugarejos; ou seja, sem

ninguém dar por isso. Ele verificara isso ao fugir da polícia, a partir da

casa dos Braun. Além disso, o edifício onde instalara o Esconderijo não

estava demasiado perto da habitação dos agricultores: podia ir e vir, a

todas as horas, sem se cruzar fosse com quem fosse. Os senhorios não

pareciam bisbilhoteiros, mas mais valia ter alguma prudência. Por fim,

do seu recanto, o Fera tinha uma vista desimpedida para a estrada de

acesso. De noite, as luzes de faróis apareciam tão raramente que se visse

algumas entraria, de imediato, em modo de alerta.

O seu espaço correspondia ao primeiro piso do edifício, por cima de

um armazém para guardar máquinas agrícolas. O acesso era feito por

uma escada exterior, em pedra. Lá dentro havia uma pequena cozinha,

que dava para uma sala de estar, um quartinho e uma casa de banho

acanhada. Da janela do quarto, bastava um salto para cair no telhado do

armazém, e passar daí para o chão, o que facilitava uma eventual fuga

através dos campos, até à floresta. No fundo, uma saída de emergência.

Primordial, em caso de chegada súbita da polícia. Desde que o Fera

conseguisse ser rápido. Nos bosques, ele tinha escondida uma

motocicleta, comprada quando chegou. Mais uma vez, recorrendo a um

anúncio na Internet. Tudo pago em notas. Depois, colocou na moto uma

matrícula roubada a uma scooter. A chave estava no contacto, pronta a

ser acionada. Nada fora deixado ao acaso. A sua imagem de marca.

No quarto do Esconderijo, o Fera observava com atenção as fotos de

família dos Braun. Algumas tinham-lhe sido enviadas por Sophie ao

longo do tempo, na correspondência trocada entre os dois. As outras

tinham sido captadas por ele mesmo nos últimos dez dias, e revelara-as

numa loja de fotografia. Não era muito prudente, mas também não era

particularmente arriscado. O funcionário da loja, longe de imaginar que

se tratavam de momentos roubados à intimidade alheia, dissera-lhe:

«Que bela família que o senhor tem.» Ao ouvir isto, sentiu um orgulho
imenso. E uma pontinha de tristeza, também. Não contradissera o

interlocutor. Gostara de ser Arpad, durante a duração de uma conversa.

O Fera recordava muitas vezes a sua primeira noite com Sophie.

Acontecera na primavera de 2007. Na época, Sophie e Arpad vinham

regularmente visitá-lo a Fréjus. Levavam-no a clubes underground, a

casas ocupadas ou bares clandestinos. Arpad gostava muito de festas,

independentemente do lugar onde aconteciam. Sophie sentia-se atraída

por uma certa marginalidade militante. Nesses ambientes, o Fera movia-

se como peixe na água. Uma noite em que os três tinham bebido bem

para lá da conta, foram dar à casa do Fera. Nem Arpad nem Sophie se

encontravam em condições de guiar o carro. Arpad, que estava com uma

bebedeira daquelas, desabara na cama do quarto. O Fera e Sophie viram-

se a sós na minúscula sala mesmo ao lado. Beberam mais um pouco,

ouviram música, conversaram sobre isto e aquilo. Nessa noite, ela quis

saber mais sobre ele. Perguntou-lhe qual a origem da sua alcunha. Ele

falou-lhe do seu passado de assaltante. Ao ouvir isto, os olhos de Sophie

começaram a brilhar. Ele sabia que era muito bonito e tinha consciência

do modo como as mulheres o olhavam, mas nunca poderia imaginar que

um passado duvidoso acrescentasse ainda mais encanto à sua aura. Num

impulso um pouco doido, beijou-a. Ela devolveu-lhe o beijo. Fizeram

amor a poucos metros de Arpad, que dormia como uma pedra. No dia

seguinte, de manhã, novamente sóbrios, Arpad e Sophie partiram de

mãos dadas. Alguns minutos depois da partida, o Fera reparou que ela se

esquecera da mala. Ouviu-se a campainha da porta. Ela apareceu

sozinha no patamar. Quando o viu, agarrou-lhe a cabeça e beijou-o mais

uma vez. O Fera pensou que se tratara de uma pulsão passageira. Mas

essa pulsão durava há quinze anos.


De manhã, na paragem de autocarros de Cologny.

Passara meia hora e quatro autocarros desde que Karine deixara os

filhos na escola, mas continuava especada no passeio. À espera de

Sophie. Era impossível que ela tivesse passado antes, porque Isaak ainda

não chegara à escola. E não seria Arpad a trazer as crianças, porque se

tinha posto a andar. Fora Greg que lhe contara. Karine gostava de

mexericos, queria muito saber o que se passara. As mensagens enviadas

a Sophie continuavam sem resposta. Pouco lhe importava chegar

atrasada ao trabalho naquela manhã (não tivera problemas em mentir,

dizendo que um dos miúdos estava doente), ela queria era informações

frescas!

Finalmente, Sophie parou diante da escola. Desceu rapidamente do

carro e acompanhou os filhos até ao edifício. Ao regressar ao automóvel,

uma voz interpelou-a: Karine. Ao vê-la, Sophie ganhou logo outra cor:

precisava de ser reconfortada. As duas mulheres caíram nos braços uma

da outra.

— Posso levar-te? — sugeriu Sophie.

Karine entrou logo no carro.

— Estava a ficar preocupada — disse, enquanto prendia o cinto de

segurança.

— Obrigada pelas tuas mensagens. Desculpa, não tive tempo de

responder.

— Deixa lá isso! Sei que os últimos dias devem ter sido muito

difíceis…

Sophie, como única resposta, abanou a cabeça. Antes de se

desmanchar em lágrimas.

— Oh, minha querida! — reconfortou-a Karine, abraçando-a. —

Vais ver que tudo se vai resolver.

— Não me parece — murmurou Sophie.

— Porquê? — perguntou Karine, ansiosa por saber pormenores.

— É complicado… — respondeu laconicamente Sophie, que não

parecia querer revelar mais.

Karine, para a instigar, confidenciou:


— No sábado à noite, quando vieram lá a casa, o Arpad disse-me

que tu tinhas alguém, um amante…

Sophie desfez-se outra vez.

— Estou a mandar o meu casamento pelo cano abaixo…

Karine não queria acreditar no que ouvia: era mesmo verdade, ela

tinha um amante.

— E isso dura há muito tempo? — perguntou ela inocentemente.

— É demasiado complicado para estar a explicar assim, dentro do

carro…

— Então vamos beber um café! — sugeriu Karine.

— Não dá. Tenho de ir já para o escritório. Estou atrasada com tudo

e parto para Saint-Tropez no fim da semana.

— Para Saint-Tropez? Mas já estava previsto?

— Não propriamente.

— Então imagino que vás sem o Arpad…

— Provavelmente sem o Arpad. Ainda está tudo incerto. Eu… Eu já

nem sei a quantas ando…

— Não é melhor desabafares com alguém?

— Desabafo contigo.

Karine ficou surpreendida por ser escolhida como confidente,

quando no fundo não se conheciam assim há tanto tempo. E todos

aqueles amigos que tinham aparecido para a festa de aniversário do

Arpad? Estaria Sophie a tentar manter a sua imagem a todo o custo?

Será que ela se movia, afinal, num mundo de simulacros e aparências?

Karine decidiu-se finalmente a dar-lhe um conselho, que mais

parecia uma lição de moral e uma sugestão para si mesma.

— No fim de contas, o casamento é aquilo que temos de mais

importante — disse. — Os filhos ocupam menos espaço do que se julga.

E damo-nos conta disso quando eles deixam o ninho.

Sophie concordou.

— Tu e o Greg parecem estar numa boa fase. Foi bonito ver-vos

assim, no sábado à noite.

— Diria que estamos bem, sim. No próximo fim de semana, vamos

sair só os dois. Os miúdos vão para casa dos meus pais, na Provença. E

nós vamos dar um saltinho a Itália. Ao Piemonte. À volta, ficaremos um

pouco com a família.


— Excelente — aprovou Sophie. — Fico mesmo contente por vocês.

Karine sorriu para si própria, satisfeita com a volta que a sua vida

estava a dar. Sim, nem tudo fora simples, sobretudo no último ano, que

pusera a estabilidade do casal à prova. Entre a mudança para a Verruga,

a pressão do trabalho na loja, e Greg que estava quase sempre a

trabalhar, tinham-se afastado um do outro. Mas agora as coisas voltavam

a entrar nos eixos, ela pressentia-o. As coisas melhoravam aos poucos e

este fim de semana romântico no Piemonte era a prova disso. Ela sabia

que criticara muito Greg por causa do seu trabalho. Mas a verdade é que

ele fazia turnos duplos porque aspirava a tornar-se o próximo chefe do

corpo de intervenção. Em vez de o azucrinar, ela devia encorajá-lo. E

nunca lhe dizia o quanto se sentia orgulhosa dele.

A promoção de Greg, porém, estava gravemente comprometida. O

seu chefe, informado por Fred da identidade do ladrão da câmara, ficou

furiosíssimo e acabava de o chamar ao seu gabinete.

— Com mil diabos, Greg, vais ter de te explicar muito bem! —

exclamou. — O que é que te passou pela cabeça para roubares material?

És o nosso melhor elemento! Devias estar na linha da frente para me

substituir como chefe do corpo de intervenção!

— O Fred contou-te o que nós descobrimos? — defendeu-se Greg,

desajeitadamente.

— Sim, o Fred contou-me…

— Está a ser preparado um assalto! — disse Greg, tentando afastar a

conversa da questão da câmara roubada. — E vão avançar no próximo

sábado!

Mas o chefe voltou à carga:

— Não é o assalto que me interessa! Quero saber por que razão

instalaste ilegalmente uma câmara de observação! Explica-te! Porque a

mim cabe-me avisar a inspeção-geral da polícia.

— Não faças isso! Se avisares a inspeção-geral, acabas com a minha

carreira! Eu sei que fiz merda. Eu sei que meti a pata na poça!

— Fizeste merda, sim, e da grossa! Agora explica-te!

Greg tivera tempo de se preparar. Nessa manhã, chegara mais cedo

ao quartel-general para fazer algumas pesquisas que lhe permitiram

organizar um pequeno dossiê de investigação. Fizera, de resto, uma


descoberta importante: a identidade do condutor do Peugeot cinzento.

Tudo isto, envolto numa mentira, iria permitir-lhe justificar o caso da

câmara. Sobretudo graças ao testemunho de Fred que, por acaso, ouvira

igualmente Arpad mencionar, ao telemóvel, o «assalto previsto para

sábado».

— Conheço pessoalmente o proprietário da casa onde coloquei a

câmara — explicou Greg. — Chama-se Arpad Braun, um tipo por acaso

muito simpático, do género golden boy. Vive com a família não muito

longe da minha casa. Somos ambos voluntários no clube de futebol

local. Em suma, uma noite, estava em sua casa quando ele recebeu uma

chamada telefónica. Ele afastou-se mas consegui, discretamente, segui-

lo. Não sei porque o fiz. Deformação profissional, sem dúvida. Falou de

um incidente em Menton, há quinze anos. E sabes o que se passou em

Menton, há quinze anos?

— Um assalto? — adivinhou o chefe.

— Nem mais — confirmou Greg, pousando à frente do seu chefe um

recorte de imprensa. A notícia falava de um grande golpe. Numa agência

do banco postal. Dois indivíduos tinham feito refém o diretor da

agência, ainda de madrugada, obrigando-o a abrir o cofre e apropriando-

se de uma montanha de dinheiro. Nunca foram encontrados…

— Tens elementos de prova, além dessa conversa que ouviste? Quem

é que te garante que o incidente de Menton era o assalto? Ele podia estar

a referir-se a um incêndio, a um acidente, ou a qualquer coisa mais

pessoal.

— Reuni um conjunto de indícios convergentes — explicou Greg,

que estava à espera daquela objeção. — Comecei por passar em revista

tudo o que aconteceu em Menton naquele ano, e não houve nada de

especial, só o assalto. Sobretudo, naquela época, Arpad Braun vivia em

Saint-Tropez, não muito longe de Menton. Vê lá tu que, imediatamente a

seguir ao assalto, ele fugiu de Saint-Tropez e veio instalar-se na Suíça,

de onde nunca mais saiu. Arpad tem dupla nacionalidade, britânica e

suíça, e, como sabes, a Suíça não tem acordos de extradição. Em

Genebra, encontrou logo um bom emprego num banco. Foi durante os

anos das vacas gordas. Subiu na hierarquia, ganhou bom dinheiro,

atingiu um belo nível de vida. Uma vivenda magnífica, férias ao sol,

carros de luxo, tudo isso.


— Se é assim, por que raio quereria ele participar noutro assalto? —

interrogou o chefe.

Greg evitou revelar que o soubera ao assistir, com auxílio da câmara,

à discussão telefónica entre Arpad e um certo Bernard.

— Liguei para o banco esta manhã — disse Greg. — Acho que o

Arpad já não tem quase nada nas contas. Precisa de dinheiro para salvar

a face. E espera, guardei o melhor para o fim. Há cerca de dez dias, a

mulher de Arpad sentiu que alguém andava a vigiar a casa. Acabou por

surpreender um homem à espreita. Chamou os polícias e tudo. Duas

vezes. Podes ver, anexei os relatórios da intervenção policial no dossiê.

— E…?

— Acho que o homem à espreita era o segundo assaltante de

Menton, que reapareceu. Ainda esta manhã obtive a confirmação por

parte da polícia francesa.

— Conta…

— No sábado à noite, Arpad envolveu-se numa cena de pancadaria

com um outro automobilista. Tudo porque o outro homem lhe mostrou o

dedo do meio. Uma coisa nada ao estilo de Arpad, perder a cabeça por

causa de um gesto obsceno, ainda para mais com a mulher e os filhos no

carro. Mais uma vez, a polícia interveio. Consegui encontrar o outro

condutor graças à matrícula do seu veículo, um Peugeot cinzento

registado em França.

Greg deixou pairar o suspense e pegou numa ficha que a polícia

francesa lhe transmitira uma hora antes. O chefe leu em voz alta o nome

do homem, destacado a negrito na página: Philippe Carral.

— Philippe Carral — repetiu Greg. — Não se trata de um tipo

qualquer. É um assaltante de alto lá com ele, desaparecido de circulação

há muitos anos. Vive oficialmente com a mãe, ou seja, em lado nenhum.

Arpad Braun e Philippe Carral conhecem-se muito bem: foram

companheiros de cela em Draguignan, uns meses antes do assalto em

Menton.

— Como é que descobriste isso tudo?

— Um inspetor da judiciária de Annemasse com quem trabalhei em

tempos. Liguei-lhe esta manhã para me dar informações sobre o

Peugeot. E depois pedi-lhe para pesquisar no sistema o nome de Arpad


Braun e fiquei assim a saber que ele esteve detido preventivamente por

causa do roubo de um automóvel.

— Caramba, Greg, fizeste um bom trabalho! — admitiu o chefe,

num tom mais suave.

Greg teve a sensação de que estava por fim a escapar do buraco em

que se metera.

Mas o chefe não se deixava convencer assim tão facilmente.

— Se isso que dizes é mesmo verdade, porque é que puseste tudo em

causa ao colocar ilegalmente a câmara no domicílio do suspeito? —

objetou. — É mesmo preciso ser o mais consumado dos idiotas! Essa

câmara pode invalidar todo o processo!

— Fui estúpido, apercebo-me disso agora. No momento de a colocar,

não tinha mais do que suspeitas, nada de sólido. Temia que ninguém me

levasse a sério e que por isso passássemos ao lado de um caso enorme.

Além disso, se tivesse pedido autorização para utilizar meios de

vigilância, o procurador teria recusado. Isso preocupava-me, porque

tinha necessidade de esclarecer aquilo. Então, quando no fim de semana

passado o Arpad Braun me convidou para sua casa, com a minha

família, para aproveitarmos a piscina, pensei que era uma oportunidade

que não podia desperdiçar. E aproveitei mesmo. Sem perder tempo a

pensar no que estava a fazer. Disse para mim próprio que regularizaria

tudo depois do golpe. Estava…

O chefe concluiu a frase de Greg:

— Obcecado!

— Exatamente — reconheceu Greg.

Estava obcecado, sim. Por Sophie.

Greg prosseguiu com uma voz suplicante.

— Arrependo-me. Devia ter pensado melhor…

— Isso sei eu! — constatou o chefe, que não lhe dava descanso. — E

ainda por cima tu não és um investigador, és a porra de um polícia do

corpo de intervenção! Cada um com o seu papel, com o seu trabalho!

Porque é que em vez de te armares em cavaleiro solitário, a montar por

tua conta essa estúpida câmara, não passaste a informação à polícia

judiciária?

Greg não teve alternativa senão ir ao limite da narrativa que tinha

minuciosamente arquitetado.
— Nesse caso, seria a brigada criminal a pegar no dossiê — disse

ele, num tom fatalista.

— Sim, claro. E depois?

— Bom, acontece que eu fui para a cama com uma inspetora da

brigada criminal e a coisa não acabou bem. Tive medo de que ela

sabotasse o dossiê!

A explicação de Greg era um pouco forçada, embora não mentirosa.

— Mas que porra, Greg! — enervou-se o chefe. — Tens outros

disparates para me confessar?

Greg jogou então a cartada do arrependimento e da paixão que

punha no seu trabalho.

— Eu sei que fiz merda. Eu sei que fiz mesmo merda. Mas não

invalides todo este trabalho por causa de um erro, mesmo se grosseiro.

Se decidirmos ignorar o que descobri, haverá um assalto no sábado.

Estes tipos não são meninos de coro: já fizeram um refém no outro caso.

Sábado, pode haver pessoas feridas, ou pior, e não teremos feito nada

para o evitar.

O chefe começou a andar de um lado para o outro no gabinete.

Finalmente, voltou a sentar-se, fez uma chamada e convocou Fred para

vir o mais rapidamente possível. Quando os três homens se reuniram e

fecharam a porta, o chefe declarou:

— Vamos cobrir o Greg. Ele fez uma asneira, mas vamos apanhar

estes assaltantes. Passamos o dossiê à brigada criminal da PJ, com os

elementos descobertos pelo Greg, mas sem mencionar o recurso à

câmara. Depois vamos assegurar que a brigada criminal pede ao

procurador a autorização para instalar uma câmara. Diremos que o Greg

conhece bem esse tal Arpad Braun e que tem uma janela de

oportunidade. Com um pouco de sorte, obteremos a autorização e a

coisa compõe-se.

— E se o procurador recusar? — perguntou o Fred.

— Aceite ou recuse, assim que tivermos detido o Braun, haverá de

qualquer maneira uma busca em casa dele. Asseguraremos fazer parte

dessa busca. O corpo de intervenção participa geralmente nas operações

relacionadas com assaltos. Nesse momento, aproveitaremos para

recuperar a maldita câmara. E ninguém chegará a saber o que aconteceu.

— Obrigado — disse Greg.


O chefe apontou-lhe então um dedo, ameaçador.

— Muita atenção, Greg — preveniu-o. — Salvo-te uma vez, não te

vou salvar uma segunda. Agora que estou a par das tuas idiotices, o meu

cargo fica em risco. Se voltas a utilizar essa câmara, suspendo-te na

hora, denuncio-te imediatamente à hierarquia e podes dizer adeus ao

corpo de intervenção, e talvez mesmo à polícia. Fiz-me entender?


Meio-dia.

O Caravelle, onde o Fera combinara encontrar-se com Arpad, era

uma barraca junto ao aeroporto. Aquela estrutura de madeira gozava de

uma vista desafogada para as grandes pistas de alcatrão: não era difícil

imaginar aquele sítio invadido regularmente pelos maluquinhos da

aviação que gostam de ir ver os aviões a descolar. Mas ao meio-dia,

quando Arpad lá chegou, não havia ninguém. O sítio estava fechado e

ele teve de esperar em frente à porta.

Ao fim de uns minutos, o Peugeot cinzento chegou ao parque de

estacionamento deserto. Arpad estava nervoso. O Fera inspirava-lhe

agora uma mistura de medo e ódio. Só tinha vontade de se atirar a ele.

De o espancar de novo. Mas sabia que, desta vez, o Fera não lhe daria

qualquer hipótese. Na outra noite, junto à berma da estrada, deixara

voluntariamente que ele o agredisse. Por ter visto como o Fera na prisão

acertara o passo a alguns brutamontes, Arpad sabia perfeitamente do

que ele era capaz.

O outro caminhou muito devagar até ele, sem dizer palavra. Trazia

uma máquina fotográfica a tiracolo e tirou algumas fotografias à pista,

como se estivesse interessado nos aviões. Depois virou-se para Arpad e

disse-lhe:

— Vem ver as fotografias.

Falara como se aquilo tudo fosse normal, como se mostrasse a um

velho amigo, também adepto das aeronaves, as imagens que acabara de

captar. Arpad aproximou-se e espreitou o ecrã. Em vez de fuselagens e

asas, viu a montra da loja da Cartier. O Fera fez desfilar uma série de

fotografias do edifício, nomeadamente o seu acesso pelas traseiras,

destinado aos empregados.

— Sábado de manhã, vamos assaltar a loja da Cartier.

Arpad sentiu o coração disparar. Estava tudo a tornar-se real. Já não

podia fazer marcha atrás. O Fera adivinhou que o seu acólito estava a

ficar desorientado.

— Concentra-te — ordenou-lhe. — Vai tudo correr bem desde que

te mantenhas focado. Lembras-te do que te disse da outra vez? Num


assalto, o que conta não é tanto a experiência, mas sim a confiança que

tivermos um no outro.

Arpad fez que sim com a cabeça. O Fera prosseguiu:

— Tu conheces bem a loja da Cartier, parece-me. Muito bonito,

diga-se, o anel que ofereceste à Sophie.

O Fera mexeu rapidamente no seu aparelho e fez desfilar uma série

de fotos que tinha feito de Arpad, uma semana antes, quando se

deslocara à loja da Cartier para comprar o anel da pantera.

Arpad sentiu a fúria a crescer dentro de si.

— Há quanto tempo é que me segues? — quis saber.

O Fera pôs logo água na fervura.

— Neste caso, meu amigo, foste tu que apareceste na loja justamente

quando eu estava a fazer o reconhecimento do local — disse. — O

mundo é mesmo pequeno. Mas, enfim, não percamos o fio das coisas,

por favor. Vamos agir no momento da abertura, às nove e meia em

ponto. Devemos evitar que haja demasiados clientes na loja.

— Nove e meia — repetiu Arpad.

O Fera distribuiu as tarefas.

— Tu vais entrar pela porta principal da loja. Como se fosses um

cliente. Levarás contigo o anel que ofereceste à Sophie, com o pretexto

de que tem um defeito qualquer. Aí, provocarás uma manobra de

diversão, ao deixar cair o anel sem que o vendedor se aperceba. Vai

simplesmente verificar que o anel desapareceu, entrará em pânico e

alertará o segurança. Enquanto toda a gente estiver a procurar o anel, eu

entrarei pelas traseiras, para deitar mão às joias guardadas na parte de

trás da loja. É lá que se encontram as melhores peças. Se tudo correr

bem, ninguém se aperceberá de nada. Tudo o que terás a fazer é

controlar e manter toda aquela gente ocupada durante sete minutos.

Depois disso, cada um sairá pelo seu lado e encontramo-nos mais tarde.

A esta hora, numa manhã de sábado, no verão, já haverá bastante gente

nas ruas. E isso será o ideal para a nossa fuga. Desapareceremos

facilmente na multidão.

— É só isso? — perguntou Arpad.

— É só isto. Um assalto deve ser o mais simples possível, para ser

eficaz. Ações de grande efeito, só no cinema. Como é óbvio, não deixes

nada por escrito, não tomes notas e não baralhes as etapas do assalto.
Tens tudo perfeitamente registado na tua cabeça. Também não fales

disto ao telefone.

— E com quem é que eu haveria de falar disto ao telefone? —

perguntou Arpad, que considerou este comentário idiota.

— O que eu quero dizer é: considera-te como que vigiado pela

polícia. E, sobretudo, não pode haver mais contactos entre nós. Sou eu

que te ligarei na sexta à noite, para te confirmar que está tudo em ordem

e que o assalto se mantém. As minhas palavras serão: «Amanhã vai

fazer bom tempo, o que é que dizes de apanharmos o barco?» É o sinal

para que, no dia seguinte, às nove e meia em ponto, apareças na loja da

Cartier, como combinado. Se eu não disser nada, é porque a coisa cai.

Compreendido?

— Compreendido. Tenho só um ponto a esclarecer, sobre a fuga.

O Fera agitou-se.

— Diz lá — pediu ele, desconfiado.

— Uma vez concluído o assalto, separamo-nos e não nos voltamos a

encontrar.

— Sou eu que fico com as joias — explicou o Fera —, e será

impossível partilharmos isso durante o assalto.

— Pois. O que eu quero dizer é que podes ficar com a minha parte.

Fica tudo para ti.

O outro ficou de queixo caído.

— Por que raio é que havias de fazer uma coisa dessas?

— Já pensaste no motivo que me levou a aceitar participar nisto?

— O facto de precisares de dinheiro…

— Preciso de dinheiro, sim. Mas não deste tipo de dinheiro. Eu só

quero que tu desapareças da minha vida. Ajudo-te no assalto, e depois

nunca mais te quero por perto. Nunca mais. O mundo é suficientemente

vasto, não faltam bancos e joalharias para assaltar, por isso deixa-me em

paz, a mim e à minha família.

O Fera olhou muito sério para Arpad e depois disse, simplesmente:

— Negócio fechado. Até sábado.

Quando ele já se afastava em direção ao parque de estacionamento,

Arpad reteve-o.

— Encontrei o cartão de aniversário que escreveste à Sophie —

disse.
O outro imobilizou-se.

— E…? — perguntou o Fera, falsamente impassível. — Já não se

pode escrever cartões de aniversário?

Em resposta, Arpad pegou no telemóvel e leu, em voz alta, o texto

que fotografara no gabinete de Sophie.

— «Minha Pantera, não foste feita para essa vida numa jaula. Talvez

te tenhas habituado a ela, como um animal no jardim zoológico. Mas a

tua rotina e o teu dia a dia são as grades que te prendem. A tua

felicidade é uma ilusão. Não esqueças o aviso tão certeiro do Viscontini.

Vem comigo, ainda te quero dar a provar o sabor da liberdade. Amo-te.»

Arpad lera a mensagem com um tom de escárnio e o Fera ficou

profundamente magoado com isso. Aquela era uma carta íntima.

Custara-lhe muito escrever aquelas linhas. É sempre delicado escrever a

alguém que amamos. Além disso, «minha pantera», na boca de outro,

soava a falso. Ficava ridículo. Ele sentiu-se humilhado e teve vontade de

desfazer o rosto de Arpad com murros. Há muito que sonhava com isso.

Mas tinha de manter Arpad inteiro. Precisava dele. E sobretudo, se lhe

fizesse mal, Sophie nunca lhe perdoaria.

Na verdade, havia uma razão muito concreta para Arpad evocar

aquele cartão.

— Quem é Viscontini? — perguntou.

— Um escritor italiano.

Então era mesmo isso: Arpad informara-se na Internet e encontrara

efetivamente referências a um escritor esquecido do início do século xx.

Mas qual era a relação entre Viscontini, Sophie e o Fera? Seria um autor

apreciado por Sophie? Ela nunca lhe falara dele. Tinha a sensação de

redescobrir a sua mulher através dos olhos de um outro.

— Porquê Viscontini? — perguntou Arpad.

A sua pergunta era uma admissão de fraqueza. Estava mortificado

por ter de penetrar na intimidade do casal formado por Sophie e pelo

Fera, para compreender quem era verdadeiramente a sua mulher.

— Gosto da obra dele — explicou o Fera.

— Há decerto outra coisa…

— Ficas assim tão espantado por eu gostar de ler?

— Eu sei que há outra coisa! — irritou-se Arpad.


O Fera deleitou-se com a frustração do rival. Disse-lhe então, num

tom provocador:

— Acho que não vais querer saber…

— Sim! Sim! — gritou Arpad. — Quero saber! Quero saber tudo!

Decidido a sair na mó de cima, o Fera deu meia-volta e começou a

afastar-se.

— Até sábado — disse, antes de desaparecer. — E entretanto fica

sossegado. Não me faças o que fizeste em Menton!


Era o fim da tarde.

Arpad andava de um lado para o outro no seu quarto de hotel. Os

pensamentos atropelavam-se no seu cérebro: Sophie, o casamento, o

assalto. Tinha a impressão de estar a perder o controlo. O telemóvel

quebrou subitamente o silêncio. Era Julien Martet, o seu amigo e

companheiro de squash. Arpad deixou tocar, mas Julien insistiu até ele

atender.

— Arpad, porque é que não me disseste que tinhas ficado sem

emprego?

Julien soubera da situação por Sophie. Arpad ficou de rastos por se

ver desmascarado desta forma. E, mais uma vez, sentiu-se traído pela

mulher.

— A Sophie não tinha nada de expor os nossos problemas na praça

pública! — queixou-se ele.

— Arpad, vá lá, eu sou um dos teus melhores amigos! Não sou a

praça pública! E além disso a Sophie precisava de falar disto com

alguém, até porque ficou aflita ao descobrir que estás desempregado há

seis meses. Porque é que não falaste disto comigo? Jogamos squash

todas as semanas. Todas as semanas!

— Tinha vergonha!

— Vergonha de quê? Todos os bancos estão a fazer cortes, cortes tão

extensivos que se torna ridículo, aliás.

Arpad acalmou-se. Fazia-lhe bem falar com um amigo. Ficou

aliviado por não ter de fingir que estava tudo bem.

— Tinha vergonha ao comparar-me contigo… Tu prossegues a tua

carreira impressionante, enquanto eu fui despedido. Sentia-me…

inferior.

— Arpad, és meu amigo por seres o homem que és. O resto não tem

importância.

— Eu sei isso… E no entanto…

— Escuta, estou neste momento no Luxemburgo, em trabalho, até

sexta-feira, mas podíamos beber um copo justamente na sexta, ao fim do

dia. O que dizes? Daqui até lá, vou ver se há lugares na nossa empresa a
que te possas candidatar. A Sophie disse-me que estás fora de casa.

Onde é que tens ficado?

— Num hotel.

— Podes vir lá para casa, se quiseres. Mesmo que eu não esteja, a

Rebecca ficará contente de te receber.

— Não quero estar a dar trabalho a ninguém — declinou Arpad. —

Mas obrigado, és um bom amigo, um amigo a sério. Vemo-nos na sexta.

No mesmo momento, em Cologny, Karine, de regresso do seu dia de

trabalho, descia do autocarro. Dentro de cinco dias, estaria a passar um

fim de semana em Itália com Greg. Só os dois. Recapitulou o programa

da viagem na sua cabeça: no sábado de manhã, os seus pais viriam

buscar as crianças, com as malas e a parafernália toda, para as levarem

para a Provença. Então, depois de saírem, ela e Greg partiriam sem

pressas. Deixariam Sandy no hotel para cães e seguiriam depois com

destino ao Piemonte.

Ao ver a sua casa, sentiu-se serena. Regozijou-se, até, da barafunda

feliz que a esperaria ao cruzar a porta de entrada. Os filhos a correr pela

sala e a ama escarrapachada no sofá. Não trocaria por nada este pequeno

mundo imperfeito que era o seu, porque valia mais ser feliz na Verruga

do que infelicíssima na Casa de Vidro.

Antes de entrar, apanhou a correspondência que enchia a caixa do

correio. Passou rapidamente em revista os diferentes envelopes,

essencialmente faturas para pagar. Um dos envelopes, porém, chamou-

lhe a atenção: estava dirigido simplesmente à «Senhora Liégean», sem

endereço nem selo. Alguém o viera deixar aqui, diretamente. Karine

abriu-o e leu, com espanto, a mensagem anónima que vinha lá dentro:

O teu marido é um badalhoco que te engana


Sábado, 2 de julho de 2022

O DIA DO ASSALTO

9h45

Enquanto Arpad era detido no interior da loja, uma outra coluna do

corpo de intervenção, que cobria a saída de emergência, intercetava o

segundo assaltante, no momento em que este saía pela porta,

preparando-se para fugir.

Os dois suspeitos foram então algemados e vendados. As instruções

determinavam que fossem conduzidos de imediato às instalações da

polícia judiciária.

Greg, encapuçado e com o uniforme de choque, teve especial prazer

em arrastar Arpad até ao veículo da brigada de intervenção e atirá-lo à

bruta lá para dentro. O automóvel arrancou logo, com a sirene ligada e

as luzes azuis a girar. Arpad não via nada, e pouco ouvia. Efeito

secundário da explosão. Estava em estado de choque. O que lhe iria

acontecer? O que o esperaria dali em diante?

No passeio, Greg via o veículo da polícia a afastar-se. Rejubilava.

Era como um caçador a contemplar a presa a seus pés. Mas Greg

cantava de galo demasiado cedo. A caça só termina quando se dá o tiro

de misericórdia.

É por isso que convém ter cuidado com os animais feridos.

Porque os animais feridos são os mais perigosos.


CAPÍTULO 17

4 dias antes do assalto

Domingo, 26 de junho (A descoberta de Greg)

Segunda-feira, 27 de junho

→T ERÇA-FEIRA, 28 DE JUNHO DE 2022

QUARTA-FEIRA, 29 DE JUNHO

QUINTA-FEIRA, 30 DE JUNHO

SEXTA-FEIRA, 1 DE JULHO

SÁBADO, 2 DE JULHO (O DIA DO ASSALTO)


Sete e quarenta e cinco, no seu quarto de hotel.

Arpad fez rapidamente a cama, para que o cenário não parecesse

demasiado caótico. Depois ajustou a camisa, como se estivesse a chegar

a um encontro importante, pegou no telemóvel e carregou na tecla da

videochamada, ao lado do número de Sophie.

Ela atendeu. Via-se a cozinha como pano de fundo. Trocaram um

breve olhar, intenso, depois ressoaram os gritos de alegria das crianças,

que estavam a acabar de tomar o pequeno-almoço.

— É o papá? — berrou Isaak, tirando o telemóvel das mãos da mãe.

— Olá, papá, como é que estás?

— Eu também quero falar com o papá — choramingou Léa,

colando-se ao irmão.

— Como é que estão vocês, meus queridos? — perguntou Arpad.

— Bem — respondeu Isaak. — Onde é que estás?

— Em Londres.

— Com a avó e o avô?

— Não, estou num hotel. Vim em trabalho.

— Pensava que tinhas ido embora por causa da confusão da outra

noite…

— Não, não.

Ele sabia que os filhos estavam chocados com o que tinham visto no

sábado anterior. A cena de pancadaria com o Fera, a fúria do pai, a

polícia.

— Desculpem se vos preocupei — disse Arpad. — Agora está tudo

bem.

— Quando é que voltas?

— Logo que possa.

— Nós vamos para Saint-Tropez na sexta-feira, de férias. E tu

também vens, não vens?

Arpad esforçou-se para disfarçar o espanto. Sophie estava prestes a

ir-se embora com os filhos? Então era mesmo o fim. Ouvir isto foi

demasiado duro para ele. Sentiu-se submergido por uma onda de

emoções.

— Meus queridos, vou ter de desligar.


— Está bem, papá, mas volta depressa, por favor, temos saudades

tuas.

Arpad conteve um soluço na garganta. Teve de se contentar com um

sinal de concordância, com a cabeça, e apressou-se a desligar.

Na Casa de Vidro, Sophie tinha os nervos à flor da pele.

— Vá, toca a andar, vamos lá para a escola — disse ela, apressando

os filhos.

Precisava de ficar sozinha. Precisava de poder ir-se abaixo sem

ninguém à volta. Foi deixar os filhos na escola e depois parou num

parque de estacionamento, onde se desfez em lágrimas. O quarto de

hotel enganara as crianças, mas ela não conseguia aceitar a destruição da

sua família. Era algo de insuportável. E tal como fora a causa de tudo

isto, também teria de ser ela a solução. Não podia mais continuar assim.

Tinha de cortar todos os laços com o Fera.

Quando se recompôs e enxugou os olhos, Arpad desceu para tomar

um rápido pequeno-almoço na sala de jantar sem graça do hotel. Nem

sequer tinha fome, mas precisava de ver gente à sua volta.

Assim que ultrapassou o choque de saber que os filhos partiriam

para Saint-Tropez, Arpad ganhou algum ânimo: nem tudo estava perdido

no seu casamento; tudo poderia, pelo contrário, recomeçar. Ele iria à

luta. Era preciso criar as condições para um recomeço da relação. Ele

perdoaria o que Sophie fizera, os dois ultrapassariam juntos aquela

provação e sairiam dela reforçados. Depois do assalto, livrar-se-ia para

sempre do Fera. Voltaria a ter a sua mulher só para si. Sem precisar de

temer um eventual regresso do predador. Acabou por achar que até era

bom que os filhos partissem para Sul na sexta-feira: era melhor que

estivessem longe de Genebra. Após o assalto, iria ter com eles. E nessa

altura poderia assistir-se ao renascimento do casal e da família. Pensou

então em Bernard e lamentou o facto de o ter insultado daquela maneira.

Apresentar-lhe-ia as suas desculpas. Bernard riscaria de vez o incidente.

E tudo voltaria a ser como fora antes.


De repente, Arpad ficou impaciente por chegar à casa de Saint-

Tropez, impaciente por ficar preso no terraço à conversa com Bernard,

impaciente por levar com a converseta infinita de Jacqueline, impaciente

por rever Alice, a insuportável cunhada, e Mark, o seu marido cirurgião.

Quinze anos depois de ter feito o inverso, ele fugiria de Genebra

para se refugiar em Saint-Tropez.

Arpad dirigiu-se à receção do hotel e anunciou que prolongaria a sua

estadia até sexta-feira. Depois, para tornar credível um futuro álibi,

aproveitou para contar a sua vida ao rececionista: «Sexta-feira, parto

para Saint-Tropez. Começam as férias escolares, vou levar os filhos à

família da minha mulher.» Se o interrogassem, o empregado poderia

confirmar a partida para Saint-Tropez na sexta-feira. A prudência nunca

era demais. Arpad deixou então o hotel. Foi buscar o automóvel ao

parque de estacionamento e arrancou.

A cena não escapara à equipa de polícias que vigiava todos os passos

e gestos de Arpad, desde a véspera à noite. Uma agente que fingia ser

uma cliente do hotel ouvira a conversa entre Arpad e o empregado. No

parque de estacionamento, dentro de um veículo descaracterizado, a

inspetora Marion Brullier e uma colega da brigada criminal viram

Arpad a ir-se embora. O seu Porsche seria seguido pela brigada de

observação.

— Não tem cara de assaltante — disse Marion, brincando com a

chávena de cartão em que bebera o seu café.

— E o que é uma cara de assaltante? — perguntou a colega,

enquanto dava as últimas dentadas no seu croissant.

Marion sorriu.

— Não faço ideia. Mas este tem o ar dos tipos sem histórias —

disse.

— Os criminosos em potência são sempre, de início, tipos sem

histórias. E depois, o que é que ele está a fazer num hotel, ainda por

cima mesmo à frente do aeroporto, se não estiver envolvido em nada de

ilícito?

— Se calhar, discutiu com a mulher — sugeriu Marion.

A colega não reagiu. Marion acrescentou:

— O polícia do corpo de intervenção que nos deu a dica, sabes, eu

conheço-o…
— E…?

— É uma besta. Pergunto-me se as informações que ele dá serão

credíveis.

— Pode ser uma besta e um bom polícia. O dossiê dele parece-me

exemplar.

Marion encolheu os ombros. Queria era saber se a mulher do Greg

encontrara a carta que lhe enviara.

Karine, sentada no autocarro a caminho do trabalho, não conseguia

pensar noutra coisa. Quase nem dormira por causa daquela carta. Seria

verdade? Andaria Greg a enganá-la? Seria ela mais uma dessas idiotas

ingénuas que nunca duvidam de nada? Será que, quando ele voltava para

casa às tantas da noite, por causa das intervenções, regressaria mesmo

das ditas intervenções? E quem teria escrito aquelas coisas horríveis? Ela

bem lera que o Greg era um badalhoco. Seria uma das suas conquistas a

vingar-se dele?

Como é evidente, não dissera nada ao marido. Ainda não se sentia

preparada para o enfrentar. Tentara aceder ao seu telefone profissional,

mas estava protegido por uma palavra-passe que Greg não dava a

ninguém. «Não é um telefone, é um instrumento de trabalho»,

costumava dizer.

Karine começava a questionar-se se não haveria, ali por trás, outra

coisa.
Arpad passou a manhã à procura do livro.

Fez a ronda das livrarias da cidade. Pequenas livrarias de bairro,

grandes superfícies, alfarrabistas. Sem sucesso. Passou igualmente por

uma biblioteca central, bem como pela biblioteca universitária da

Faculdade de Letras. Em vão. Teve de repente a ideia de ir a uma loja

especializada em livros antigos. Conhecia uma no centro histórico, que

vendia edições originais, obras raras e mapas de outras épocas. Foi ali

que o encontrou. «Uma edição única, encadernada em couro verdadeiro

e com acabamentos em dourado», explicou o livreiro para justificar o

preço de venda. Arpad pagou sem regatear. Precisava daquele livro.

Precisava de compreender.

***

Quase meio-dia.

Numa sala de reuniões do quartel-general da polícia judiciária estava

prestes a começar um ponto de situação com a presença de membros da

brigada criminal, da brigada de observação e do corpo de intervenção,

além do procurador que tomara conta do caso.

Greg, ao sentar-se junto ao seu chefe, reparou em Marion Brullier

entre os polícias presentes. Olha que azar, pensou.

O chefe da brigada criminal, que dirigia este caso, abriu a sessão e

convidou Marion a juntar-se a ele.

— Esta é a inspetora Marion Brullier, que está encarregada do caso,

por conta da brigada criminal — anunciou.

Greg inclinou-se para o seu chefe e murmurou-lhe ao ouvido:

— Porra, meteram uma miúda à frente da investigação… Vai deitar

tudo a perder. É por isso que às vezes é preferível agirmos sozinhos.

Tenho a certeza de que deve dormir com toda a gente. Tem cara disso.

O chefe de Greg deu uma risadinha. O responsável da brigada

criminal continuou a sua apresentação:


— Marion, apesar de jovem, é um dos nossos mais valorosos

elementos, por isso sei que vai fazer um trabalho exemplar. Agradeço-

vos antecipadamente toda a ajuda que lhe possam dar e concedo-lhe

agora a palavra.

Marion ergueu-se diante dos colegas e começou a fazer o seu

relatório.

— A vigilância ao suspeito teve início ontem à tarde — disse. — Foi

muito fácil seguir o seu rasto. Instalou-se no quarto de um hotel que fica

diante do aeroporto, usando a sua verdadeira identidade. A observação

começou com o regresso dele ao hotel, por volta das 17 horas. Ele ficou

no quarto, depois jantou numa pizaria próxima. Voltou ao hotel às 20

horas e não saiu de lá a noite inteira.

— E o que fez ele ontem, antes das 17 horas? — perguntou Greg.

— Isso não sabemos. Só o localizámos quando regressou ao hotel.

— O telemóvel dele está sob escuta? — questionou o chefe de Greg.

— Sim — confirmou Marion.

O procurador tomou então a palavra:

— Eu autorizei as escutas. Por outro lado, para as câmaras de

observação requisitadas pelo corpo de intervenção, a resposta é niet.

Negativo. Nem no hotel, nem em sua casa. Sobretudo não em sua casa,

uma vez que notoriamente ele não fica lá. Já agora, sabemos a razão

desta ausência?

— Problemas conjugais — explicou Greg.

— Conhece-o bem? — perguntou o procurador.

— Sim, foi isso aliás que me permitiu saber do seu projeto de

assalto. Conheço igualmente bem a mulher dele, poderia ir vê-la sob um

falso pretexto e aproveitar a visita para colocar uma câmara na casa

deles. Fatalmente, ele acabará por passar em casa e teríamos todo o

interesse em ver o que ele anda a congeminar.

— Pois, mas eu não estou aqui para lhe facilitar a vida — lembrou o

procurador, de forma seca. — Estou aqui para o impedir de fazer algum

disparate que viole os princípios jurídicos fundamentais! No fim de

contas, não estamos perante um caso de terrorismo. Prossiga, inspetora,

por favor!

Marion retomou a palavra:


— Por agora, há muito pouca atividade no telemóvel do suspeito.

Recebeu uma chamada ontem, de um certo Julien Martet, que será um

dos seus amigos. Arpad Braun perdeu o emprego há seis meses e

ocultou esse facto de toda a gente, incluindo da mulher, que

aparentemente acaba de o descobrir. Julien Martet propôs-lhe ajuda na

procura de um novo emprego. Em suma, nada de muito interessante para

nós. Depois disso, a mulher tentou ligar-lhe duas vezes, ontem à noite,

mas ele não atendeu. Esta manhã, ligou aos filhos, em videochamada,

fazendo-lhes crer que se encontra em Londres por motivos de trabalho.

— Não houve mais chamadas? — espantou-se o procurador.

— Não, nem mais uma — confirmou Marion.

— Ele tem um segundo telemóvel! — exclamou então Greg. — Foi

através desse segundo telemóvel que o seu cúmplice falou com ele no

outro dia.

— Como é que sabe isso? — questionou o procurador.

— Eu… eu próprio vi.

— Como é que viu?

— Estava em casa dele.

— Nós vimos a menção a um segundo telemóvel no teu relatório —

indicou Marion —, mas não encontrámos nenhum vestígio desse

aparelho. Pode ser que se trate de um telefone estrangeiro, pré-pago, o

que o torna mais difícil de rastrear.

— Então temos o quê de concreto, além das suspeitas? — perguntou

o procurador.

— Não temos mais nada por enquanto, a não ser a conversa ouvida

pelo agente Greg Liégean sobre um assalto planeado para o próximo

sábado.

— A um banco ou a uma joalharia? — quis saber o procurador.

— Muito provavelmente a uma joalharia — disse Marion. — Os

bancos estão fechados ao sábado, e não creio que se interessem por um

multibanco. Quanto ao resto, existe efetivamente uma ligação entre

Arpad Braun e Philippe Carral, um assaltante francês. Carral está

registado pelos serviços secretos franceses como uma ameaça potencial

à segurança do Estado, por causa da sua ligação a ativistas violentos de

extrema-esquerda. Os dois homens conhecem-se, estiveram juntos na

prisão. Segundo os nossos homólogos franceses, os serviços secretos


perderam o rasto de Philippe Carral há muito tempo. Mas Carral foi

visto em Genebra, no passado sábado, à noite, depois de uma altercação

com… Arpad Braun!

— E agora, onde pára esse Carral? — inquiriu o procurador.

— Não fazemos ideia. Anda a monte.

— E Arpad Braun?

— Prolongou a estadia no hotel até sexta-feira. Indicou que partirá a

seguir para Saint-Tropez, para se juntar à família.

— Julgava que o assalto seria no sábado — observou o procurador.

— Justamente. Creio que ele está a tentar construir um álibi.

— E onde está neste momento?

O responsável da brigada de observação tomou a palavra:

— Começou o seu dia fazendo uma ronda pelas livrarias da cidade.

E agora, desde há um bom bocado, está sentado na esplanada de um café

na place du Bourg-de-Four.

— Sozinho? — perguntou o procurador.

— Sim. Está a ler o livro que passou a manhã a procurar. E agora

acaba de pedir uma salada de frango e uma água mineral, se quiserem

saber tudo.

— E que livro é esse que ele está a ler?

— Um livro raríssimo, escrito no início do século passado por um

escritor italiano. Segundo os livreiros por onde ele passou, procurava-o

desesperadamente. Descobriu-o por fim numa edição numerada, que

comprou por 900 francos, pagos em notas. Animais Selvagens, de Carlo

Viscontini. Animali Selvaggi, na versão original. Segundo as nossas

pesquisas, é um livro de contos centrados numa aldeia da Toscana.

— Gostava que alguém me explicasse qual é a ligação entre o assalto

e um velho livro italiano — pediu então o procurador.


Meio-dia, num restaurante do centro histórico.

Ainda havia poucos clientes. Num canto discreto, um homem

esperava com um ramo de rosas que não sabia onde pousar. Era evidente

que se tratava de um encontro romântico.

O Fera decidiu finalmente deitar o ramo ao chão. Devia ter

comprado um perfume, teria sido mais prático.

Estava muito entusiasmado por almoçar com Sophie. Propusera

encontrar-se com ela no Esconderijo, lugar dos encontros anteriores

desde que chegara a Genebra. Era mais discreto. Mas Sophie sugerira

encontrarem-se num restaurante e ele não se fizera rogado. Tinha a

impressão de formar com ela um verdadeiro casal. E sabia-lhe bem sair

da sombra.

Para a ocasião especial, comprara uma camisa numa loja de pronto a

vestir. Há muito tempo que não vestia uma. Ficava até com um certo ar

de Arpad. Decidira que lhe faria, à chegada, um ritual de beija-mão.

Vira Arpad a fazer-lhe este gesto quando saíam do Hôtel des Bergues,

depois do jantar de aniversário de Sophie.

Finalmente, Sophie apareceu. Mais bela do que nunca. Ofereceu-lhe

logo o seu encantador sorriso. Ele ergueu-se e pegou-lhe na mão. Ela

pensou que ele a ia apertar, de modo formal, o que a surpreendeu de

início, mas interpretou como uma vontade de ser discreto, para dar ao

encontro a aparência de uma reunião profissional. Resultado: um

lamentável passou-bem. Então o Fera apanhou as flores caídas no chão e

ofereceu-as a Sophie, que pareceu incomodada. Ele sentiu-se pouco à

vontade. Sentaram-se e ela disse-lhe de chofre:

— Fera, isto não pode continuar…

— O que é que não pode continuar?

— Nós. Temos de acabar com isto.

— Estás a dar-me um chuto?

— Lamento anunciar-te isto assim…

O Fera pareceu atordoado. Teve um reflexo de felino ferido: quis ir

esconder-se para lamber as feridas. Fez menção de se levantar.

— Não percas o teu tempo a almoçar comigo — proclamou,

tentando salvar a face. — Vou-me embora.


Ela reteve-o.

— Fera…

— Prefiro ser tratado outra vez como Philippe.

— Serás sempre Fera, para mim…

— É justamente esse o problema.

Ela murmurou-lhe então, com um ar desolado:

— Queria tanto que pudéssemos continuar juntos para sempre…

— Mas…?

— Eu tenho uma família — lembrou Sophie.

— Isso não te impediu de maneira nenhuma no passado…

— As coisas mudaram.

— Sabes — disse o Fera —, aquilo que te escrevi no cartão de

aniversário era mesmo o que eu pensava e que continuo a pensar: esta

vida confortável de burguesa não é para ti…

— É a minha vida, e gosto dela assim.

— Se gostasses mesmo dela, não estarias aqui, à minha frente, neste

momento.

— Estou à tua frente precisamente para te dizer que acabou tudo

entre nós.

Sophie arrependeu-se logo da dureza desta frase. Tentou emendar a

mão:

— Tens de compreender que existem duas Sophie. Uma que foi feita

para estar contigo, a outra que foi feita para estar com o Arpad e os

filhos. Tenho três pessoas que contam comigo, não lhes posso fazer isto.

O Fera não aguentou mais. Levantou-se e fugiu. Arpad ganhara.

Sophie escolhera-o a ele. Sempre temera que este momento chegasse.

Sophie ficou a ver o Fera ir-se embora. Desejava ardentemente

chamá-lo de volta. Detestava-se pelo sofrimento que lhe estava a causar.

Mas tinha de o deixar ir. Abandonou por sua vez o restaurante e voltou

para o seu escritório de advocacia.

Véronique, que comia uma salada à frente do computador, espantou-

se de ver a patroa regressar tão depressa.

— Não tinhas um almoço? — perguntou.

— Foi cancelado — respondeu laconicamente Sophie, antes de se

fechar no seu gabinete.


Ao sentar-se à secretária, tirou de uma gaveta o envelope com toda a

correspondência do Fera. Atirou-a para dentro do caixote do lixo de

ferro e deitou-lhe fogo. De início, as chamas não pegaram. O papel

resistia. Escurecia um pouco, torcia-se, mas as palavras continuavam lá.

Reacendendo-o furiosamente com o seu isqueiro, ela foi repetindo as

tentativas até começar a arder. Viu consumir-se assim uma parte

importante da sua vida. Esperava agora esquecer o Fera para sempre. Ao

abrir a janela para que o fumo saísse da sala, a corrente de ar atiçou as

labaredas que se tornaram ameaçadoras. Num impulso, atirou-lhes para

cima o conteúdo de uma garrafa de água que extinguiu o fogo

enfurecido. A parte de baixo do seu postal de aniversário, em cartão

mais espesso, continuava intacta. Ela conseguiu ler as palavras do Fera:

Amo-te.

O teu,

Fera

Depois, Sophie deixou as instalações como tinha chegado: mais

parecendo um furacão. Pediu a Véronique para cancelar os dois

compromissos da tarde, sem dar mais explicações, e desapareceu.

Entrou no seu carro no parque de estacionamento do Monte Branco e

ligou para Arpad. Este continuava a ler o seu livro no café de Bourg-de-

Four.

— Vem ter a nossa casa — disse-lhe ela. — Já só existes tu.

Ao ouvir «nossa casa», Arpad compreendeu. Fechou o livro e pagou

a conta. Um quarto de hora mais tarde, o seu Porsche atravessava o

portão da Casa de Vidro. Os agentes da brigada de observação que o

haviam seguido ficaram a alguma distância, para não serem vistos. A

vigilância intensificava-se em redor da casa. Já havia um casal a passear

por perto, sem dar nas vistas, e que de repente penetrou na floresta

adjacente.

Arpad entrou em casa, com o coração aos pulos.


— Soph’? — gritou ele, porque não a via.

Nenhuma resposta.

Encontrou-a na sala de estar. Lançaram-se nos braços um do outro.

Reencontravam-se, finalmente. Ele não podia estar mais feliz. Ela

esforçava-se para se convencer de que tinha feito a escolha certa.

***

A leitura de Arpad intrigou Greg durante o resto do dia. Instinto de

polícia. O livro de Viscontini era efetivamente quase impossível de

encontrar, mas, após longas pesquisas, conseguiu por fim descobrir uma

cópia digitalizada no site de uma biblioteca universitária do Québec.

Só pôde mergulhar no livro à noite, em casa. Sentado à mesa da

cozinha, fez desfilar as páginas no ecrã do seu computador portátil. A

obra parecia volumosa e ele começou pelo índice, à procura de uma

pista qualquer. O capítulo 7 chamou logo a sua atenção. Intitulava-se «A

pantera». Pensou evidentemente na tatuagem que vira na coxa de

Sophie.

Greg deixou-se absorver completamente pela leitura. Só levantou a

cabeça quando ouviu o som do seu telemóvel, a carregar na cozinha.

Acabava de receber uma mensagem. Levantou-se para a ler: era o

responsável da brigada de observação a dizer-lhe que Arpad não saíra de

casa. Pousou o telemóvel para regressar de imediato à leitura. Não se

dera ao trabalho de bloquear o ecrã porque o telemóvel se apagaria

automaticamente após alguns segundos sem utilização.

Mas Karine estava ali, mesmo ao lado, a fingir que fazia um chá.

Esperava este momento desde o início da noite. Com um movimento

discreto e rápido, apoderou-se do telemóvel antes que este ficasse

bloqueado. Greg não se apercebeu de nada, já de regresso à aldeia da

Toscana, objeto do livro de Viscontini.

Karine fechou-se na casa de banho e passou em revista as fotos e os

vídeos contidos no aparelho. E rapidamente ficou chocada. Era como se

tivesse levado um soco violento no estômago, que a deixou logo de

rastos e estonteada.
A PANTERA

Toscana, 1912

Giovanna aguardara durante muito tempo o regresso do patrão.

Na sua ausência, cuidara com desvelo do castelo familiar, um

edifício de pedra inspirado nos palácios romanos, erguido sobre uma

colina, dominando os muitos hectares de olivais e a aldeia próxima de

Brachetto.

Giovanna gerira a propriedade como se fosse sua, assegurando que

todos os empregados cumpriam as suas tarefas com diligência. Não se

preocupava muito com os olivais: os camponeses sabiam trabalhar e os

campos nunca ficavam ao abandono. Mas o motorista, os jardineiros, a

cozinheira e o restante pessoal doméstico, assim que o patrão partia para

uma das suas longas viagens, relaxavam bastante. Giovanna precisava de

os manter na linha. Do alto dos seus sessenta e cinco anos, dos quais

cinquenta ao serviço da família Madura, ela via bem como decrescia a

sua autoridade sobre os empregados mais velhos, que sabiam todos que

o patrão era magnânimo e de trato gentil como nenhum outro. Ainda

detinha, porém, influência sobre os mais jovens, com quem ralhava

amiúde.

Giovanna tinha orgulho de trabalhar para Luchino Alani di Madura,

«o último dos Madura». Durante séculos, os membros da família

Madura haviam sido os benfeitores de Brachetto. Mas o nobre nome

extinguir-se-ia com ele. Luchino Alani di Madura era o último elo dessa

grande linhagem, por ser o único descendente. Ainda celibatário aos

cinquenta anos, não tinha intenção de gerar prole. Desapareceria como

vivera: sozinho. E, com ele, levaria para a campa o nome da família e o

seu brasão.

Giovanna conhecia Luchino desde que ele nascera. Entrara ao

serviço dos pais dele quando tinha quinze anos. Cinquenta anos mais
tarde, cuidava dele e mimava-o como ao filho que nunca chegou a ter.

Luchino Alani di Madura gostava de aventuras. Uma vez por ano,

partia para viagens longínquas e explorações que podiam durar algumas

semanas ou meses. Descrevia a Giovanna os seus projetos em mapas-

múndi que conservava no seu gabinete. Depois, desde o dia da partida

ao do regresso, ela tomava conta do castelo, com uma fidelidade canina.

Quando Luchino voltava, era uma festa para ela. Chegava geralmente

num cortejo de veículos que transportavam tudo o que reunira durante a

expedição: móveis, esculturas, troféus de caça, luminárias. Cada objeto

tinha uma história que Luchino contava a Giovanna. Ela permanecia no

seu papel e queixava-se: seria mesmo preciso atravancar a sala com o

imenso sofá de madeira trazido do Brasil? Que pretendia ele fazer com a

coleção de estatuetas de marfim de um povo asiático? E que dizer do

espetacular urso empalhado que ele trouxera de uma surtida nas florestas

russas?

Desta vez, sentira-se fascinado pelo continente africano. Depois da

Líbia, prosseguira até à Etiópia, e descera em direção à colónia inglesa

do Quénia. Giovanna tinha seguido o seu itinerário num mapa,

consoante o que ele lhe contava nas cartas. Mas estas tornaram-se cada

vez mais curtas e cada vez mais espaçadas. Na última, dizia estar para

breve o regresso. Mas muitas semanas haviam passado após aquele

«para breve».

Desde o anúncio do regresso iminente, Giovanna mandava preparar

todos os dias um repasto a pensar nele. Mas a espera continuava a ser

em vão. Até que, numa manhã de domingo, os miúdos da aldeia

correram até ao castelo.

— Dona Giovanna! Dona Giovanna!

— Que querem, meninos?

— Ele está de volta!

Giovanna sentiu o coração a bater forte no peito. Uma alegria imensa

invadiu-a e um enorme sorriso iluminou o seu rosto, habitualmente tão

severo.

— E onde está ele agora?

— Na aldeia, dona Giovanna — respondeu uma das crianças, na

expectativa de uma recompensa. — Parou lá para cumprimentar toda a

gente.
Giovanna fez soar o alerta geral, mesmo sabendo que estava tudo

pronto. A refeição preparada, a mesa da sala de jantar posta. Os arbustos

do jardim tinham sido aparados na véspera, os jatos de água da grande

fonte jorravam na perfeição. O castelo dos Madura nunca estivera tão

bonito.

Os miúdos portadores da boa nova foram encaminhados para a

cozinha, para receberem guloseimas, e Giovanna postou-se em sentido,

nos degraus do castelo.

O cortejo de veículos chegou meia hora mais tarde. Luchino desceu

de uma carruagem e logo caiu nos braços da governanta.

— Giovanna! Minha caríssima Giovanna! — exclamou, enquanto a

abraçava.

— Meu Deus, Luchino! Andei tão preocupada! Julguei que nunca

mais voltaria a casa!

— Eu só parto para que o regresso seja cada vez melhor, minha

adorada Giovanna.

A governanta lançou um olhar reprovador às carripanas a

transbordar de volumosas lembranças. Alguns homens iam

descarregando um enorme baú de vime.

— Não me larguem essas coisas horrorosas no meio do pátio! —

repreendeu-os ela, com rispidez.

— Esta coisa horrorosa — interveio Luchino, divertido — é a nossa

nova companhia. Não voltei sozinho.

— Companhia? — espantou-se Giovanna.

Luchino abriu o baú e mergulhou as mãos lá dentro. Retirou um

animal encantador que se assemelhava a um grande gato malhado.

Luchino apresentou-o à governanta:

— Giovanna, eis o Gattino.

Ela olhou para o animal, desconfiada. Já havia no castelo gatos a dar

com um pau. Dois dias antes, tinham descoberto nove recém-nascidos

no estábulo!

O bichinho começou a miar e Luchino declarou que ele estaria com

fome. Pediu leite, e Giovanna foi logo à cozinha. Voltou com uma tigela,

tentando não entornar nem sequer uma gota.

— Leite! — exclamou ela. — Leitinho para o gatinho!

Luchino riu-se de forma maravilhosa.


— Minha querida Giovanna, não sai daqui há demasiado tempo! Da

próxima vez, levo-a comigo de viagem.

— Não, obrigada. Mas o que é que eu disse de tão divertido?

— Então, Giovanna, não vê que o Gattino é tudo menos um gato?

Giovanna sentiu-se idiota.

Permaneceu muda de perplexidade.

— Então se não é um gato, é o quê? — perguntou, por fim,

envergonhada da sua ignorância.

— Uma pantera, Giovanna. É uma cria de pantera.

***

Ao longo dos meses que se seguiram, Gattino tornou-se a

coqueluche não apenas do castelo, mas também da própria aldeia de

Brachetto. A pequena pantera, linda de morrer, estava perfeitamente

domesticada. No castelo, fazia parte da matilha de Luchino, imitando o

comportamento dos cães. Sob a liderança de Mama, uma velha cadela

pastora, a pantera corria atrás de uma bola no parque, dormia sestas no

tapete da biblioteca, reclamava carícias aos empregados, instalava-se no

atrelado das carroças para percorrer preguiçosamente o olival e, à noite,

dormia com o resto da canzoada no quarto do dono. Estando

desmamada, partilhava a comida dos seus amigos canídeos, servida em

gamelas de ferro. E todos os dias, quando Luchino bebia o seu chá no

alpendre, a pantera, como um cão bem-educado, estendia a pata para

pedir um biscoito.

Na aldeia, onde Luchino gostava de passear com ela, tornou-se uma

atração. As crianças abandonavam o pequeno carrossel da praça para

virem acariciar o felino, que se deitava de barriga para cima para receber

as festas no pelo. Não era por isso raro ver o último dos Madura, sentado

no café ou deambulando pelos corredores do mercado, levando ao seu

lado a pequena fera, pela trela.

Regularmente, Luchino mandava chamar o veterinário do jardim

zoológico de Roma, para se assegurar de que tudo estava bem com o

animal.
— Ela está a crescer sem problema nenhum — confirmava o clínico,

em cada uma das suas visitas. — Encontro-a de perfeita saúde. Mesmo

alimentada a comida de cão.

— Na verdade, ela comporta-se como um cão — explicou Luchino,

divertido.

— Ela julga que é um cão — corrigiu o veterinário.

— Isso significa o quê?

— O Gattino não tem consciência de ser uma pantera. Não

sobreviveria um único dia na savana, em África. Perdeu já os seus

instintos de predador e seria incapaz de caçar. Vive integrada na matilha

e pensa que é só mais um dos cães.

Um ano após a sua chegada ao castelo, a pantera atingira o seu

tamanho de adulta. De gatinho delicado, metamorfoseara-se em felino

de grandes dimensões. Mas de uma tranquilidade e placidez sem igual.

Era mais alegre, ternurenta e brincalhona do que os cães.

Ao contrário destes últimos, sujeitos a regras muito estritas, os

privilégios da pantera eram quase ilimitados: partilhava a cama de

Luchino, nadava com ele na grande piscina, comia as suas refeições no

tapete da sala de jantar, de um prato em porcelana, e acompanhava

sistematicamente o dono nas suas visitas a Brachetto, para felicidade das

crianças que gostavam de trepar para cima dela.

A reputação de Gattino espalhou-se por toda a região. Falava-se dela

nos jornais. Curiosos vinham a Brachetto com o único fito de

espreitarem a célebre fera. Diretores de circo vieram oferecer somas

enormes a Luchino por aquela pantera de salão, mas esses empresários

inoportunos eram logo conduzidos à porta de saída por Giovanna.

Mesmo esta, de início bastante reticente, acabou seduzida pelo bicho. E

depois, deu-se o caso de Luchino, desde a chegada da pantera, nunca

mais ter falado na ideia de partir novamente de viagem. Como é que ele

poderia deixar o seu belo animal sozinho? Com o tempo, Gattino

tornara-se a sua grande companhia.

***
Durante os três anos seguintes, a pantera contribuiu para a felicidade

do seu dono. Até àquela malfadada noite.

Era já muito tarde. O castelo estava às escuras, com exceção dos

aposentos de Luchino. Sentado à sua mesa de trabalho, ele tratava da

correspondência. À sua volta, espalhados em cima do tapete, os cães e a

pantera dormiam tranquilamente, uns sobre os outros. Reinava uma

calma absoluta. Os únicos sons eram os da respiração dos animais

adormecidos e o da pluma de Luchino, a deslizar sobre o papel.

O drama aconteceu quando ele quis abrir um envelope recebido

nesse mesmo dia. Um amigo de Milão, de quem ele queria muito receber

notícias, escrevera-lhe. O seu gesto com o abre-cartas foi demasiado

brusco: a lâmina atravessou o invólucro de papel e fez-lhe um pequeno

corte na mão. Nada de grave, um golpe superficial. Mas um fiozinho de

sangue começou a escorrer da ferida aberta. No tempo que levou a pegar

num lenço, Luchino sentiu de repente algo quente e áspero em contacto

com a sua pele. Era a língua de Gattino. A pantera começou a lamber o

sangue, primeiro devagarinho, depois tomada por uma espécie de

frenesim.

Luchino compreendeu nesse instante que a sua pantera domesticada,

ao reencontrar o gosto do sangue, voltara a ser uma predadora

implacável. Luchino sabia que, se retirasse a mão, a pantera matá-lo-ia.

Então, lentamente, com a mão livre, abriu uma gaveta da sua secretária e

tirou de lá um revólver. Aproximou-o da cabeça da pantera, que

continuava a lamber avidamente a ferida, e apertou o gatilho.

Foi Giovanna que os descobriu no dia seguinte.

Na sala, os cães andavam às voltas, aterrorizados. Luchino estava

caído no chão. Ainda chorava, abraçado ao corpo da sua pantera

adorada, imóvel no meio de uma poça de sangue.

Depois de explicar as circunstâncias do drama a Giovanna, Luchino

concluiu:

— Ela morreu por minha culpa…

— Mas, Luchino, se não o fizesse, ela matava-o!

— Quis fazer de uma pantera um cão doméstico. Mas os animais

selvagens são como os homens. Podemos amansá-los, restringi-los, fazer


com que pareçam outra coisa. Podemos enchê-los de amor e de

esperança. Mas não podemos mudar a sua natureza.


CAPÍTULO 18

3 dias antes do assalto

Domingo, 26 de junho (A descoberta de Greg)

Segunda-feira, 27 de junho

Terça-feira, 28 de junho

→Q UARTA-FEIRA, 29 DE JUNHO DE 2022

QUINTA-FEIRA, 30 DE JUNHO

SEXTA-FEIRA, 1 DE JULHO

SÁBADO, 2 DE JULHO (O DIA DO ASSALTO)


Quatro e meia da manhã, na Verruga.

Greg abriu os olhos. Ao seu lado, Karine dormia profundamente. Ele

deslizou para fora da cama e desceu até à cozinha. Fez um café que foi

beber lá para fora, no pátio. Ainda estava completamente escuro. No ar,

um cheiro a relva cortada recentemente. Acendeu a grinalda de luzinhas

e observou o pequeno jardim: estava tudo impecavelmente arranjado.

Tudo tranquilo. No interior da casa, pelo contrário, algumas horas antes,

tinha havido uma discussão acesa entre ele e Karine.

***

Algumas horas antes

Greg estava sentado à mesa da cozinha, a ler a história da pantera,

escrita por Viscontini. Mergulhado na leitura, não viu que Karine pegara

no seu telemóvel. Ela apareceu de súbito à sua frente, com o rosto

deformado pelas lágrimas. Greg começou por pensar que alguém

morrera. Talvez tivesse preferido isso.

— És um desgraçado! — pôs-se ela a vociferar. — És asqueroso!

Um porco nojento!

Ela mostrou-lhe o ecrã do seu próprio telemóvel, no qual se via

Sophie, lânguida, no seu momento de prazer solitário.

Greg sentiu-se invadido pelo pânico. Caíra que nem um patinho. Não

sabia o que dizer, e muito menos o que fazer. Ele, que sabia gerir as

situações de crise e que era mestre na arte da negociação, deixara-se

apanhar desprevenido.

— Calma, calma, calma, não é o que parece… — balbuciou.

Mas isso não chegava para deter Karine, que se transformara num

vulcão de insultos e gritos. À falta de melhor, Greg jogou a cartada dos

filhos.

— Não grites assim, que acordas os meninos… — pediu.

Péssima tática. Karine falou mais alto.


— Melhor ainda! Assim, ficam a saber que o pai é um porco nojento

que engana a mãe deles.

— Eu posso explicar-te tudo! — garantiu Greg.

— Então força, explica lá!

Tinha de encontrar uma narrativa plausível. E depressa. A sua única

saída foi evocar a investigação. Ao fazê-lo, violava o segredo

profissional. Mas teria ele outra escolha?

— O Arpad está sob vigilância da polícia — revelou. — Não te

posso dizer mais nada, mas instalámos uma câmara no seu quarto.

Karine ficou silenciosa durante um instante.

— Que raio de história é essa? E qual é a ligação entre isso e o vídeo

da Sophie?

Ele mentiu com determinação.

— Foi uma brincadeira idiota de um colega — afiançou. — Olha

bem para o vídeo, vais ver que filmaram as imagens de um ecrã de

vigilância.

— Não tenho vontade nenhuma de voltar a ver aquela coisa

horrorosa!

— Percebo-te — garantiu Greg, improvisando a sua argumentação.

— O colega estava encarregado da vigilância quando Sophie sentiu…

uma vontade. Ele não teve escrúpulos de filmar o ecrã com o seu

telemóvel e depois enviou o vídeo aos tipos da brigada, o que é não

apenas indigno de um polícia, como absolutamente ilegal. Aquilo

chegou até ao chefe e a mim também. Sabes que o chefe me considera

um bocado como o seu adjunto. Vamos sancionar o polícia responsável.

— Mas porque é que conservaste as imagens no teu telemóvel?

— É um vídeo relacionado com uma questão de trabalho, no meu

telemóvel do trabalho. Aliás, vamos ter uma reunião amanhã com a

inspeção interna para resolver o assunto. E para isso é preciso mostrar o

vídeo aos colegas.

Karine acalmou-se um pouco. Greg, constatando que a sua manobra

de diversão estava a resultar, acrescentou uma camada à narrativa.

— É lamentável, mas apercebo-me de que tenho mais fotografias

relacionadas com o trabalho nesse telefone do que fotos de família —

disse. — Acho que o melhor seria ter dois telemóveis. Um para o

É
trabalho e um para a família. É preciso separar as coisas. Não se pode

misturar tudo!

Após um momento de pausa, Karine perguntou:

— Que história é essa de uma investigação ao Arpad?

Era evidente que acreditara no que lhe dissera sobre o vídeo.

— Não te posso contar mais nada — garantiu Greg. — Até já te

contei mais do que devia.

— Oh, o jeito que te dá esconderes-te atrás do segredo profissional!

E como é que eu sei que não me estás a atirar areia para os olhos? Quem

é que me garante que não andas a saltar para cima da Sophie?

— Porque eu nunca te faria uma coisa dessas! Ela nem sequer me

interessa!

— Oh, poupa-me! Eu bem vejo que todos ficam loucos com ela!

Tens de me provar que existe essa tal investigação ao Arpad!

Greg mostrou a Karine o grupo de troca de mensagens no qual os

agentes da brigada de observação enviavam, em tempo real, informações

sobre Arpad. Deu-lhe a ler as mensagens e deixou-a ver as fotos. Ao

descobrir que o marido não lhe mentia, ela perguntou:

— O que é que suspeitam que o Arpad fez, para que a polícia chegue

ao ponto de instalar uma câmara na sua casa?

— Ele é um assaltante. Já o foi noutras alturas e está prestes a

recomeçar. O tipo com quem andou à porrada, no sábado à noite, depois

de sair daqui, é seu cúmplice.

— E por que raio haveria ele de andar ao soco com esse tipo, se se

preparam para fazer um assalto?

— Os ânimos exaltam-se sempre quando se aproxima o momento-

chave. É um comportamento clássico dos assaltantes: são gajos

stressados, não é preciso muito para se passarem dos carretos. Reparaste

no estado de nervos em que estava o Arpad no sábado à noite, durante o

jantar? Viste o que ele bebeu?

Karine não podia negar essa evidência. Greg aproveitou para

rematar:

— Até sábado, terás a prova de que tudo o que te disse é verdade.

— Como assim? — perguntou Karine, sem compreender aquilo a

que o marido se referia.

— Vais ver. Não te posso revelar mais nada.


— Lembras-te de que no sábado partimos para Itália? — recordou-

lhe Karine.

— Claro que me lembro. E estou muito feliz com essa perspetiva —

assegurou Greg, que já se esquecera completamente dos planos.

***

Algumas horas após este incidente, Greg chegou à conclusão de que

escapara de boa. Estava convencido de que dissipara as suspeitas da

mulher. Mas Karine, no andar de cima, também já acordada, voltava a

pensar no que o marido lhe dissera: «Eu nunca te faria uma coisa

dessas!» Se ele não fizera nada de mal, de onde vinha então aquela carta

que o acusava de ser um badalhoco? Fosse o que fosse que ele tivesse

feito, ela queria bater-se pelo seu marido e pela sua família. Não deixar

que se tornassem mais um desses casais destruídos. Não acabar como a

sua amiga Justine, sozinha com os seus três filhos às costas, desde que

empurrara o marido porta fora, penando para chegar com dinheiro ao

fim do mês e reduzida a uma vida de solidão. Seria preciso destruir tudo

por causa de um passo em falso? Ou o melhor era acreditar em Greg e

fechar os olhos?

Não conseguia deixar de recapitular na sua cabeça o barbecue da

noite de sábado. Pensou no modo como Greg olhava para Arpad e este

para Sophie. À força de pensar nesta cena, Karine acabou por

compreender: Arpad ardia de ciúme. Descobrira certamente o que se

passava entre Greg e Sophie. Caso contrário, porque lhe teria ele feito a

confidência que fez? Não eram assim tão próximos. Na verdade, não se

tratara de uma confidência: ele falara-lhe disso porque era uma questão

que também dizia diretamente respeito a Karine. O amante de Sophie

era Greg! E Arpad voltara à Verruga para deixar aquela mensagem

anónima na caixa do correio.

Karine estava agora convencida de que havia qualquer coisa entre o

seu marido e Sophie. Mas aquela cabra não se ficaria a rir. Ela tinha de

fazer alguma coisa.


Na Casa de Vidro, naquela manhã, o ambiente era de grande alegria.

À mesa do pequeno-almoço, Arpad divertia as crianças com as suas

encantadoras palhaçadas. Isaak e Léa riam a bandeiras despregadas.

Sophie olhava, feliz, para a sua pequena tribo de novo reunida. A família

Braun erguia-se das cinzas.

— Programa do dia — anunciou Arpad aos filhos. — Vou deixar-

vos nas vossas atividades da manhã. Depois, vamos todos almoçar à

cidade.

— Podemos ir comer hambúrgueres? — perguntou Isaak.

— Sim. Hambúrgueres para toda a gente — aprovou Arpad.

A decisão provocou um coro de vivas.

— E depois fazemos o quê? — perguntou Léa.

— O que quiserem — declarou Arpad. — Vocês é que decidem.

— Podíamos ir ao Museu de História Natural — sugeriu Isaak.

— Está um tempo tão bom — observou o pai. — Não acham melhor

escolhermos uma atividade ao ar livre?

O rapaz insistiu:

— Vá lá, por favor, por favor, papá ! Há bué tempo que não vamos

lá! Além disso tu disseste que nós é que decidíamos.

Léa imitou o irmão.

— Sim, por favor, papá! — pedinchou.

— E depois — acrescentou Isaak —, quando tu fazes as vozes dos

animais empalhados, é de morrer a rir!

— As vozes dos animais? — perguntou Sophie, com ar de gozo.

— É uma longa história — admitiu Arpad.

— É mesmo giro, mamã. Tens de ver. Vens connosco?

— Boa ideia — aprovou Arpad. — Porque é que não te juntas a nós?

— Infelizmente, tenho muito trabalho para fazer — declinou Sophie.

— Mas posso ir almoçar convosco.

— Ninguém resiste ao apelo dos hambúrgueres! — exclamou Arpad

num tom teatral, juntando as mãos em volta da boca como se fossem um

megafone.

Sophie riu-se. Tinha de ir trabalhar. Beijou os filhos e abraçou

Arpad. A família ideal. O casal perfeito. Estava tudo esquecido.


Um pouco mais tarde, nessa mesma manhã.

Arpad acabava de deixar os filhos nas atividades de quarta-feira

destes, quando recebeu uma chamada de um número desconhecido.

Atendeu.

— Alô?

Em resposta, uma voz que reconheceu logo intimou-o:

— Sábado de manhã conto contigo.

Era o Fera.

— Não alinho — disse Arpad.

Sophie estava de volta. Já não precisava de participar no assalto para

se ver livre do Fera, pois este deixara de ser uma ameaça.

— Não podes não alinhar — anunciou-lhe o outro. — Prometeste-

me que o farias.

— Já te disse que não alinho!

Arpad interrompeu a chamada e desligou o telemóvel.


Naquela tarde, conforme eles lhe tinham pedido, Arpad levou os

filhos ao Museu de História Natural. Começaram a visita todos juntos,

passando de uma vitrina à seguinte, ombro com ombro, admirando os

animais que se apresentavam à sua frente. Chegados ao segundo andar,

Isaak e Léa foram para um dos lados, passando diante dos dioramas que

representavam a fauna africana. Arpad deu por si a contemplar os

felinos empalhados. Uma pantera, com as garras de fora, parecia olhá-lo

diretamente nos olhos. Isaak regressou pouco depois para junto dele,

com um pedaço de papel na mão.

— Papá, um senhor pediu-me para te entregar isto.

O pai recebeu a mensagem.

— Um senhor? — perguntou Arpad.

— Aquele senhor que esteve em nossa casa no outro dia e que é

também o senhor da confusão na estrada.

Arpad desdobrou o papel.

Vem ter comigo à casa de banho do terceiro piso.

— O que é que está aí escrito? — quis saber Isaak.

— Nada — respondeu Arpad, guardando a mensagem no bolso. —

Vá, venham, está na hora do lanche.

Arpad foi buscar Léa, que admirava um conjunto de papagaios, e

levou-os para a cafetaria, situada no mesmo piso. Comprou-lhes tudo o

que quiseram: sumos de fruta, batatas fritas, gelados, bolos e bombons.

Depois, disse-lhes que não saíssem dali.

— Vou num instantinho à casa de banho — anunciou.

Apanhou o elevador até ao terceiro andar. Era o piso das exposições

temporárias, mas neste momento não estava patente nenhuma. Salas

desertas, sem sequer um vigilante. Dirigiu-se à casa de banho: ninguém.

Mas de repente abriu-se a porta de uma das cabinas e viu surgir o Fera.

— Porra, Fera! — exclamou Arpad, num tom que oscilava entre a

ameaça e a súplica. — Tens de me deixar em paz!

— Preciso de te falar do assalto.


— Isso acabou. Já não vai haver assalto! Perdeste. A Sophie já não

quer saber de ti, e eu não tenciono embarcar nos teus disparates.

— Uma vez assaltante, assaltante para sempre — disse o Fera. —

Temos isso no sangue. É um veneno para o qual não há antídoto.

Arpad enervou-se.

— Eu não tenho isso no sangue! Não sou um assaltante! Foi por isso

que fugi de Saint-Tropez. Assim que soube que tinhas assaltado o banco

postal em Menton, fiz tudo como tu me tinhas dito para fazer: sair dali

para fora. Não sou um assaltante, porra! Não tenho isso no sangue!

— Sei-o bem — respondeu o Fera. — Não é de ti que estou a falar.

Ao dizer isto, de olhos fixos nos olhos de Arpad, o Fera despiu a T-

shirt, revelando o torso nu.

Arpad, ao ver a tatuagem que o Fera exibia no peitoral esquerdo,

ficou sem palavras.

Era a tatuagem de uma pantera.

Exatamente a mesma que Sophie tinha na coxa.


15 ANOS ANTES

SETEMBRO DE 2007

Saint-Tropez

O Fera pedira a Arpad para se encontrar com ele em Fréjus, no seu

apartamento. Precisava de falar «a sós». Ou seja, sem Sophie.

Arpad supôs logo que se passaria qualquer coisa de grave. Ao

chegar, o Fera serviu-lhe um copo de uma bebida alcoólica forte e

disparou:

— Temos de falar de uma coisa.

— Sabes que a mim podes dizer tudo, chuta à vontade.

— Estou em vias de concretizar um grande golpe — confidenciou o

Fera.

— Um grande golpe? — preocupou-se Arpad.

— Um assalto. Ao banco postal de Menton. Há imenso dinheiro

envolvido. O suficiente para não precisarmos de nos preocupar com

nada durante muito tempo.

Arpad ficou estarrecido.

— Porque é que me contas isso?

— Estou à procura de um parceiro. Alguém que saiba conduzir, não

sei se estás a ver o que eu quero dizer.

Arpad, ainda às voltas com a resposta àquela sugestão, julgou

necessário lembrar um aspeto importante.

— Eu… eu nunca participei num assalto — disse.

O Fera sorriu, tranquilizador.

— Num assalto, mais do que a experiência, o que conta é a

confiança. Preciso de alguém de confiança, um tipo como tu. Damos o

golpe e desaparecemos, algures em Itália. Tenho um esconderijo

perfeito, um antigo curral na Toscana onde podemos ficar durante uns

tempos.
Arpad ficou a olhar longamente para o Fera. Perguntava-se o que

queria ele dizer ao certo com «imenso dinheiro». Mas pouco importava

o montante, ele passara pela prisão alguns meses antes e não fazia

tenções de lá voltar. Declinou a proposta com firmeza.

— Obrigado pela confiança, mas não me sinto capaz de fazer isso —

declarou.

— És capaz, sim — insistiu o Fera.

— Eu sei que não.

— Como é que podes saber, se nunca participaste num assalto?

— A resposta é não, Fera. Não vou assaltar um banco contigo.

O Fera sugeriu a Arpad que refletisse durante uns dias. Mas no que

tocava a Arpad não havia mais reflexões a fazer.

***

O Fera considerou que a recusa de Arpad era uma afronta e cortou

os laços com ele. Os dois homens voltaram a encontrar-se, no entanto,

uma última vez, na véspera do assalto. Nessa noite, ao voltar a casa

depois do serviço no Béatrice, Arpad deu de caras com o Fera no seu

apartamento. Ele esperava-o, sentado numa cadeira da cozinha, com

uma arma na mão.

Arpad começou por pensar que ia ser assassinado.

— Ouve-me com atenção — ordenou-lhe o Fera. — Vais seguir à

risca as instruções que te vou dar. Se fizeres o que eu te digo,

continuarás vivo. Quero que deixes Saint-Tropez. Vais pedir a demissão

no teu trabalho, entregar o apartamento e pirar-te daqui. Vais voltar à tua

vidinha de merda em Londres, ou noutra parte qualquer. Mas piras-te

daqui!

Arpad estava assustadíssimo, mas fez tudo para não o dar a entender.

— Vais fazer o teu assalto, é isso? E tens medo de que eu te

denuncie?

O Fera acenou com a cabeça, como que a dizer que sim.

— És perspicaz — reconheceu. — Não receio que me denuncies,

mas se a polícia te interrogar, tenho medo de que eles te quebrem o


ânimo e te obriguem a trair-me. E sabes bem qual o destino dos

traidores: a pena de morte!

Dito isto, o Fera atirou-se a Arpad, agarrou-o pelos cabelos e enfiou-

lhe o cano da pistola na boca. Arpad, com a voz abafada pela arma,

gritou de terror.

— Não te armes em esperto comigo, meu cabrão. Não é o teu

diploma de génio da finança que te vai salvar. Põe-te a milhas, ouviste?

Põe-te a milhas antes que seja tarde de mais!

No dia seguinte, segunda-feira, 17 de setembro de 2007, de

madrugada, o diretor do banco postal de Menton foi feito refém por dois

indivíduos que o forçaram a abrir o cofre da agência. Em sete minutos,

os assaltantes apropriaram-se de vários milhões de euros, desaparecendo

de seguida num automóvel de alta cilindrada.

O veículo acelerou em direção a Itália. Quando os assaltantes

compreenderam que estavam fora do alcance das autoridades,

rejubilaram enquanto retiravam os seus passa-montanhas. Ao volante, o

Fera. No banco ao lado, com uma caçadeira de canos serrados sobre os

joelhos, Sophie.
CAPÍTULO 19

2 dias antes do assalto

Domingo, 26 de junho (A descoberta de Greg)

Segunda-feira, 27 de junho

Terça-feira, 28 de junho

Quarta-feira, 29 de junho

→Q UINTA-FEIRA, 30 DE JUNHO DE 2022

SEXTA-FEIRA, 1 DE JULHO

SÁBADO, 2 DE JULHO (O DIA DO ASSALTO)


Dez horas da manhã, no quartel-general da polícia judiciária.

Os elementos das diferentes brigadas envolvidas na vigilância de

Arpad, bem como o procurador encarregado do caso, estavam reunidos

para ouvir o ponto de situação feito por Marion Brullier.

— Pensamos ter identificado Philippe Carral no Museu de História

Natural, ontem — anunciou ela aos colegas. — Esteve no local em

simultâneo com Arpad Braun.

Marion projetou na parede as fotos captadas na véspera pelos agentes

da brigada de observação. Numa delas, via-se Arpad e os filhos a

entrarem no museu. Noutra, um homem que entrou por sua vez, depois

deles. A inspetora pôs lado a lado esta última imagem e o único retrato

oficial de Philippe Carral, que datava do seu encarceramento, vinte anos

antes.

— É ele ou não é ele? — perguntou o procurador.

— Parece-me muito semelhante — respondeu Marion.

— Preferia que houvesse uma confirmação clara. Os «parece-me»

não têm grande peso legal, se apanharmos pela frente um bom advogado

de defesa.

Marion concordava.

— Pedimos a um contacto na brigada criminal de Paris para

conseguir junto dos Serviços Secretos uma imagem mais recente, uma

vez que têm uma ficha sobre o Philippe Carral — informou.

— E então o Philippe Carral e o Arpad Braun tinham um encontro

combinado no museu? — quis saber o procurador.

— É muito provável — respondeu ela. — Para não dizer que é mais

do que evidente.

— Permita-me que reformule a minha pergunta, inspetora: eles

foram, em algum momento, vistos juntos?

— Não — admitiu Marion. — Mas estavam no mesmo lugar ao

mesmo tempo. Havia pouquíssimos visitantes no museu, ontem à tarde,

por isso não era simples segui-los no interior do museu de forma

despercebida. Quando entrámos no museu, pouco depois, Philippe

Carral já desaparecera. Quanto ao Arpad Braun, tivemos de o observar à

distância. Num dado momento, deixou os filhos na cafetaria e apanhou o


elevador. Não conseguimos antever o andar para o qual se dirigia e

perdemos-lhe o rasto. Reapareceu na cafetaria cerca de seis minutos

mais tarde. Pegou nos miúdos e foi-se embora.

— Em sua opinião, terá sido nesse curto lapso de tempo que Braun

se encontrou com Philippe Carral? — interrogou o procurador.

— É essa a nossa convicção — confirmou Marion.

— E não voltaram a avistar Philippe Carral?

O responsável pela brigada de observação tomou a palavra.

— Como Marion já lhe explicou, perdemos o rasto de Philippe

Carral depois da sua entrada no museu — disse. — Vimo-lo a passar a

porta principal, mas depois como que se volatilizou. Não voltámos a vê-

lo no interior do edifício, e também não o vimos a sair.

— O museu dispõe de câmaras de vigilância?

— Uma única, à entrada. A imagem é a preto e branco, só para

verem o nível. É verdade que é um museu com animais empalhados e

frascos cheios de formol com serpentes lá dentro, não é propriamente o

Louvre. Há alguns guardas, e claro que os interrogámos, mas ninguém

viu nada. Ocorreu ainda assim um incidente: o alarme de uma das saídas

de emergência foi acionado às 15 horas e 47 minutos, ou seja, no

momento em que Arpad voltou para junto dos filhos na cafetaria.

Pensamos que corresponde à saída de Philippe Carral. As traseiras do

museu dão para um pequeno parque com muitas árvores, onde é fácil

desaparecer sem ser visto.

Marion retomou a apresentação.

— Interrogámos também colegas franceses sobre Philippe Carral —

prosseguiu. — Contaram-nos que a sua alcunha é Fera, porque se

considera indomável. Aparentemente, e embora tenha um físico

impressionante, o tipo pode estar a dois passos sem que nos

apercebamos disso. Como um predador, vê sem ser visto.

— Se compreendi bem — disse o procurador —, não temos nada de

mais concreto sobre esse tal assalto…

— Já lá ia — respondeu Marion. — Ontem de manhã, intercetámos

uma chamada no telemóvel de Arpad que confirma que o assalto está

previsto para sábado de manhã. Mas Arpad não parece ter muita vontade

de participar.

Ela ligou um aparelho. A voz de Arpad ouviu-se na sala.


Arpad: Alô?

Voz de homem: Sábado de manhã conto contigo.

Arpad: Não alinho.

Voz de homem: Não podes não alinhar. Prometeste-me que o

farias.

Arpad: Já te disse que não alinho!

— Depois disto, Arpad interrompeu a chamada e desligou o

telemóvel. A chamada vinha de um número pré-pago na Estónia.

Fizemos um pedido para Tallinn, via Interpol, para obter mais

informações, mas não sei quando é que teremos uma resposta.

— Quem é o homem que fala? — perguntou o procurador. —

Philippe Carral?

— Muito provavelmente, mas não temos nenhuma forma de o saber

— admitiu Marion. — É estranho que Philippe Carral, um bandido a

sério, decida correr tantos riscos ao telefonar de uma linha que é tudo

menos segura.

— Julgava que havia justamente um outro telemóvel para as

comunicações entre os dois homens — observou o procurador.

— Eu vi com os meus próprios olhos que Arpad Braun usa um

segundo telemóvel — afirmou Greg.

— Mas não encontrámos qualquer indício desse aparelho —

interpôs Marion.

— Já sabemos melhor qual poderá ser o alvo do assalto? —

perguntou o procurador.

— Não — lamentou Marion. — Mas queremos pôr o telemóvel da

mulher de Arpad Braun igualmente sob escuta. Se o marido hesitar,

pode ser que lhe faça uma confissão.

— Muito bem, avancem com isso — disse o procurador, após um

instante de reflexão.

Virou-se então para Greg e para o chefe dele.

— Gostaria que o corpo de intervenção se preparasse para intercetar

os suspeitos durante o assalto — acrescentou. — Quero apanhá-los em

flagrante. Não temos elementos suficientes para os deter antes disso.

Terminada a sessão, o chefe do corpo de intervenção anunciou a

Greg:

É
— És tu que vais dirigir a operação no sábado.

— Obrigado.

— Não me agradeças. Não é uma recompensa, é uma oportunidade

para te redimires das tuas asneiras. Quero um trabalho sem mácula, no

sábado.
Cinco e meia da tarde, em Cologny.

Quando Greg conduzia através da aldeia, reparou em Marion

Brullier no parque de estacionamento da padaria que costumava

frequentar. Estacionou logo, fazendo uma manobra inutilmente brusca.

Saltou do carro e dirigiu-se a ela, furioso.

— O que é que estás aqui a fazer? — perguntou de chofre.

— És parvo, ou quê? Sou eu que estou a supervisionar a investigação

ao Arpad Braun. Baza daqui, ou ainda estragas tudo!

— Falaste com a minha mulher?

Ela não conseguiu esconder um sorriso malicioso.

— Porquê? Estás com problemas conjugais? — perguntou, melíflua.

— O que é que lhe disseste? — insistiu Greg. — Foda-se, Marion, se

tu…

Nesse momento, a colega de Marion saiu da padaria com umas

sanduíches e umas bebidas.

— Está tudo bem, Marion? — perguntou.

— Sim, está tudo bem… Já vou ter contigo ao carro.

Marion esperou que a colega se afastasse para dizer a Greg:

— Ouve-me bem, ó parvalhão: desampara-me a loja ou apresento

queixa de ti por violação! Percebeste?

— Por violação? — repetiu Greg, num tom desafiador, embora não

sabendo ao certo a direção que a conversa poderia tomar.

— Uma relação sexual sem consentimento é uma violação, certo?

— Sem consentimento? Mas foste tu que me enviaste aquelas

fotografias, que me convidaste para tua casa e que te sentaste em cima

de mim! Era óbvio que querias sexo, não podes negar isso!

— Queria sexo, sim, mas não o sexo que aconteceu! Foi uma

violação, Greg! Se tens dúvidas, da próxima vez que estivermos com o

procurador perguntamos-lhe.

Greg foi-se embora. Transtornado. Já no carro, escreveu uma

mensagem a Karine:

Estou preso no trabalho. Volto tarde.


Pôs-se a caminho, passou pela Verruga e continuou em direção à

Casa de Vidro. Contornou a floresta e deixou o carro num caminho

agrícola, antes de avançar a pé pelo meio das árvores. Deparou logo com

dois polícias que fingiam ser funcionários municipais, atarefados à volta

de um tronco morto.

— Então? — perguntou-lhes Greg.

— Está em casa, com os filhos. Nada a assinalar.

— Muito bem. Mantenham-me ao corrente se acontecer alguma

coisa. Vocês são quantos da brigada de observação, destacados para

aqui?

— Estamos nós os dois na floresta — respondeu um dos agentes —

e há outro colega posicionado na estrada, dentro de um veículo, para

seguir o suspeito caso ele abandone a casa. Temos ainda dois inspetores

da brigada criminal no centro da aldeia, para iniciar uma perseguição, se

for preciso.

— E há alguém nos campos por trás da casa? — perguntou Greg.

— Não, ninguém. Porquê?

— Por nada. Perguntei só para saber ao certo qual é o dispositivo

montado.

Greg voltou ao seu automóvel. A distância à casa era considerável,

mas esperava que o sistema de imagem ainda tivesse alcance suficiente.

Pegou no ecrã e no recetor que guardara consigo. Tinha consciência de

estar a brincar com o fogo, mas era mais forte do que ele. Prometeu a si

mesmo, ainda assim, que seria a última vez que utilizaria a câmara.

Esperou um momento que o sinal de conexão aparecesse, mas o ecrã

permaneceu apagado. Reiniciou o sistema várias vezes, enquanto

lançava olhadelas nervosas em redor. Se fosse apanhado, diria adeus à

carreira. De repente, no ecrã, surgiu o quarto onde dormiam os Braun.

Greg não conseguiu conter um pequeno grito de excitação.

Arpad estava sozinho no quarto. Sophie ainda não chegara do

trabalho e ele deixara as crianças em frente à TV. Precisava de algum

sossego.

Sentado no chão, ia folheando os álbuns com fotografias da família,

amontoados à sua frente. Coubera a Sophie a tarefa de os fazer e

organizar. Da época de Saint-Tropez até à festa dos quarenta anos de


Arpad, estavam ali quinze anos da vida dos Braun, contidos em álbuns

de vários tipos e formatos.

Ele deteve-se em imagens de Sophie. Sentia-se completamente

descoroçoado com o que descobrira sobre ela. Não lhe saía da cabeça a

cena da véspera, na casa de banho do Museu de História Natural,

quando admitira diante do Fera não ter espírito de assaltante, ao que ele

respondera: «Sei-o bem. Não é de ti que estou a falar.» Isto antes de lhe

revelar a tatuagem de uma pantera que ocupava o seu peitoral esquerdo.

Ao ver o desenho, similar ao que marcava a coxa de Sophie, Arpad

compreendeu imediatamente. Era à sua mulher que o Fera se referia.

Fez-lhe várias perguntas, mas o outro não lhe deu mais explicações. «A

Sophie que te explique», disse ele, antes de desaparecer. Siderado,

Arpad voltara à Casa de Vidro. Parecia-lhe que o chão se abria por baixo

de cada um dos seus passos. Conseguiu, no entanto, disfarçar a sua

perturbação até ao momento em que as crianças adormeceram. Depois,

confrontou Sophie.

***

Na véspera, à noite

Sophie desceu as escadas e juntou-se a Arpad na sala de estar.

— Os filhotes já dormem — disse ela.

Notou então que o marido a olhava fixamente, de um modo estranho.

— Está tudo bem, querido?

— Nestes anos todos, nunca explicaste a verdadeira razão para teres

feito a tua tatuagem…

Ela pareceu surpreendida por ele ir buscar o assunto.

— Porque é que estás a pensar nisso agora?

Arpad respondeu sem hesitações.

— Porque me cruzei com o Fera esta tarde e ele mostrou-me a

pantera dele… — disse.

Sophie petrificou. Foi incapaz de pronunciar uma simples palavra.

Caiu de joelhos, como se as pernas já não fossem capazes de a suster.


— Todo aquele dinheiro no banco — disse Arpad — nunca foi o

dinheiro do teu pai…

— Pois não — murmurou ela, em lágrimas.

— Era o dinheiro de um assalto, não era?

— Lamento, lamento tanto!

— Lamentas? — irritou-se Arpad. — Obrigaste-me a lavar o

dinheiro de um assalto! Foda-se, Sophie, tens noção de que tudo o que

construímos, toda a nossa vida, o nosso apartamento, e depois esta casa,

foi tudo pago com dinheiro sujo?

— O que construímos, Arpad, foi graças ao nosso amor!

Sophie encontrou a força para se erguer e tentar abraçá-lo.

— Tu és o amor da minha vida — disse-lhe, entre soluços.

Queria cobri-lo de beijos, mas ele afastou-a. Nervoso, deu uns

passos à volta do sofá.

— E o Fera? — perguntou, lançando um olhar negro à sua mulher.

— Também é o amor da tua vida?

— O Fera não é meu amante. Foi em tempos. Brevemente. Depois

de teres desaparecido de Saint-Tropez, mas isso já te expliquei.

— Pára de mentir! Eu parti de Saint-Tropez no dia a seguir ao

assalto de Menton. Se assaltaste esse banco com o Fera, é porque já

havia qualquer coisa entre vocês!

— Bem, talvez — admitiu Sophie.

— Talvez? — repetiu Arpad. — Mas tu ouves o que estás a dizer?

Puseste-me os cornos com esse gajo!

— Foi há quinze anos! — defendeu-se Sophie. — Foi uma espécie

de amor à primeira vista, uma coisa incontrolável!

— Uma espécie de amor à primeira vista? — gritou Arpad, entre o

nojo e a indignação. — Agora a sério, estás a gozar comigo?

— Então chama-lhe um momento de loucura, se preferires! —

respondeu Sophie. — Não brinques com as palavras e ouve o que estou

a tentar explicar-te!

— E o que é estás a tentar explicar-me? — berrou Arpad,

enraivecido.

— Que aos vinte e cinco anos, eu, a princesinha burguesa que vivia

no meu casulo em Saint-Tropez, apaixonei-me por um tipo mais velho.

Um rufia, com convicções anarquistas, infinitamente distantes da minha


educação. Eu ansiava por sensações fortes, desejava fazer um manguito

ao meu pai, diante do qual toda a gente se vergava, incluindo tu, que

dissimulavas o teu namoro com a filha do patrão! Por isso, sim, fui

irresistivelmente atraída pelo que o Fera representava: a subversão, a

recusa da autoridade. Isso fascinava-me, a mim, que era a filha perfeita,

correta, gentil, amável, sensata e boa aluna. Um dia, o Fera propôs-me

participar numa experiência única, na qual sentiria descargas de

adrenalina e emoções que não encontraria em mais lado nenhum…

Disse logo que sim, sem mesmo saber do que se tratava. E quando ele

me explicou que planeava um assalto, fiquei ainda mais excitada! Pode

parecer uma loucura… Eu não fazia a mínima ideia do que estava

realmente em jogo. Mas havia uma atmosfera de perigo e eu tinha

necessidade de correr perigo. Tinha necessidade de arriscar. De ir além

dos meus limites. Não por causa do dinheiro. Não queria saber do

dinheiro para nada. Precisava apenas de me sentir viva…

— Estás a falar do assalto ao banco postal de Menton — disse

Arpad.

— Sim — confirmou Sophie. — E sabes uma coisa? Essa foi

provavelmente uma das experiências mais fortes da minha vida. No dia

em que participei no assalto, libertei-me dessa Sophie na qual me sentia

presa e tornei-me mulher. Por fim. Foi provavelmente essa a razão de eu

sentir uma necessidade de recomeçar.

— Como assim, recomeçar? — perguntou Arpad, a medo. — Houve

outros assaltos?

Sophie pareceu perplexa.

— O Fera não te contou?

— Contar o quê? Fala! Quantos assaltos é que fizeram, depois de

Menton?

— Dois. Um em Saragoça e outro em San Remo.

Ele nem queria acreditar no que acabara de ouvir: as viagens

secretas a Espanha e a Itália não tinham sido escapadelas adúlteras, mas

assaltos. Já não sabia o que era pior. E compreendia agora como é que o

dinheiro no cofre do banco foi sendo reposto.

— Mas foda-se, Sophie! — esbracejou Arpad. — Nem acredito que

estamos a ter esta conversa. Foste assaltar um banco quando já eras mãe

de família!
— Em San Remo, foi uma joalharia — achou ela que era necessário

precisar.

— Eu nem quero saber isso! — gritou Arpad. — Nem quero

imaginar-te com uma arma na mão, a ameaçar pessoas!

O olhar dela revelava desespero.

— Eu sei! Foi por isso que nunca te falei destas coisas. No entanto,

foram os assaltos que me tornaram aquilo que sou. A Sophie que tu

amas tanto, a Sophie que atrai todos os olhares, essa Sophie existe

porque participei nesses assaltos. Gostes ou não gostes, esses assaltos

fazem parte de mim. Uma parte secreta, escondida o mais fundo que

consigo, e da qual não falo com ninguém…

— A não ser com o Fera — observou Arpad.

— A não ser com o Fera — concordou Sophie. — É o que me une a

ele de uma maneira tão… forte.

— Mais do que forte. Vocês trocam cartas de amor.

— É ele que me escreve cartas de amor — corrigiu Sophie. — Eu

não.

— Vais tentar convencer-me de que, depois da vossa breve relação

há quinze anos, nunca mais foram para a cama um com o outro?

— Nunca!

— Acontece que eu vi que estiveram juntos aqui, na quinta-feira. No

nosso quarto!

— O Fera veio aqui para preparar o assalto. Normalmente, os

encontros eram no esconderijo dele, mas na quinta-feira ele quis vir até

aqui.

***

Na quinta-feira anterior

Na cozinha da Casa de Vidro, Sophie estava chateada. Virara-se

apenas o tempo de preparar os cafés e o Fera desaparecera de vista.

Encontrou-o a explorar o quarto do casal. Subira os estores para

melhor inspecionar a divisão.


— O que é que fazes aqui?

O Fera não respondeu. Abriu a gaveta da mesinha de cabeceira e

tirou de lá o par de algemas.

— Arruma isso, por favor! — ordenou-lhe Sophie.

Ele começou a rir-se.

— Quem é que fica preso? Tu ou o Arpad? — perguntou.

— Já chega, põe isso no sítio! — enervou-se ela, baixando os estores

elétricos.

O quarto ficou às escuras.

— Sai já daqui! Nunca devia ter aceitado que viesses a minha casa.

— Vá lá! — minimizou o Fera. — Um bocadinho de humor…

***

— Baixei os estores e expulsei-o do quarto — garantiu Sophie. —

Arpad, tens de acreditar em mim. És o homem da minha vida. Depois

do assalto de Menton, escondi-me durante um mês em Itália. Foi por

isso que não conseguiste contactar-me após teres saído de Saint-Tropez.

E foi por isso que me sentia culpada de te ter perdido. Desde que voltei a

encontrar-te, nunca mais te enganei… sexualmente.

Sophie arrependeu-se logo desta formulação. Arpad murmurou,

devastado:

— Mas enganaste-me mentalmente, é isso? O que estás a confessar é

que continuas apaixonada pelo Fera?

Ela permaneceu calada.

— Fala! — encolerizou-se Arpad. — Fala, caraças! Estás

apaixonada pelo Fera?

— Não tenho vontade de te responder, nem de te mentir! —

murmurou ela.

De repente, ele quis partir tudo à sua volta. Espatifar a mobília e

deitar abaixo a casa. O casal já não existia. Ele já não queria estar ali.

Sophie disse-lhe com toda a ternura de que foi capaz:

— Amo-te mais do que nunca, Arpad! Mais do que qualquer outra

pessoa! És o homem da minha vida!


— Mas também o amas, a ele! Na verdade, amas dois homens!

Ela deu uma explicação incrivelmente desastrada:

— Não tens de ficar com ciúmes. Ele é o que tu não podes ser.

— Ah! Que maravilha! Obrigadinho, agora é que me sinto mesmo

bem!

— Mas é contigo que eu quero estar! Foi contigo que eu fiz a minha

vida! És tu o pai dos meus filhos!

— O que estás a fazer-me é horrível! Não me farias passar por isto,

se me amasses verdadeiramente!

Ela começou a soluçar. A sua fragilidade tornou-o ainda mais

virulento.

— Pára de gemer, a vítima nesta história não és tu!

— Tudo isto é mais forte do que eu! Sou vítima das minhas pulsões

e das minhas necessidades!

— São mais do que pulsões, Sophie: são sentimentos!

— E o que podemos nós contra os sentimentos? A nossa única

verdadeira liberdade está nos sentimentos.

Ficaram em silêncio durante um bom bocado. Os dois devastados.

Arpad sentiu necessidade de beber alguma coisa. Abriu uma garrafa de

conhaque no bar e encheu dois copos. Ela bebeu vários goles antes de

terminar a sua confissão.

— San Remo devia ser o nosso último assalto — explicou. — Eu

impusera-me isso. Não tanto por medo dos riscos, mas porque via bem

que o ritmo estava a aumentar. Temia ficar agarrada àquilo. Cada nova

experiência era ainda mais forte do que a anterior. Era como se houvesse

um veneno a correr-me nas veias. Era preciso acabar de vez,

imperativamente.

Arpad lembrou-se de uma frase numa das cartas do Fera: «San

Remo não pode ser a nossa última vez.»

Ela prosseguiu:

— Há umas semanas, o Fera telefonou-me. Disse que sentia a minha

falta e que queria vir encontrar-se comigo no meu aniversário.

Combinámos um encontro para esse dia.

— E então, achavas mesmo que ele só viria fazer-te uma visita de

cortesia? Não me tomes por imbecil!


— Desde San Remo, ele parecia respeitar o meu desejo de parar. As

suas cartas foram rareando. Mas para ser completamente franca, quando

ele me disse que vinha a Genebra esperei no fundo de mim mesma que

fosse por causa de um assalto. Que ele viesse arrancar-me à minha

decisão e fazer-me vibrar de novo. Quando o vi, no dia do meu

aniversário, ele entregou-me um cartão e disse que o presente viria

depois…

— E esse presente é o assalto do próximo sábado — compreendeu

Arpad.

Ela fez que sim com a cabeça.

— Esse assalto será mesmo o último — assegurou. — Prometo. Mas

não o farei se te opuseres.

Arpad ponderou rapidamente a extensão do dilema que tinha diante

de si.

— Garantes-me que vai ser o teu último assalto — disse. — Mas

como é que posso ter a certeza de que um belo dia não serás, apesar das

belas promessas, tomada de novo pelas tuas pulsões? Acabas de me

contar que já quiseste pôr um fim a isto depois de San Remo, mas que o

apelo foi visivelmente mais forte do que tu!

— Desta vez, vou tentar manter a minha promessa… Por ti…

— Mas não é certo que o consigas fazer…

Ela sentia-se encurralada pelas suas contradições.

— Farei tudo o que puder para não recomeçar, prometo-te!

— Se te pedir para renunciares a este assalto, provavelmente nunca

me irás perdoar. Algo se quebrará em definitivo na nossa relação. O

nosso casamento talvez nem sobreviva. Mas se te deixo fazer o assalto e

as coisas correrem mal, se fores morta ou presa pela polícia, a culpa será

minha. Porque esteve nas minhas mãos impedir-te. Ou seja, tanto num

caso como no outro, arrisco perder-te.

***

Tanto num caso como no outro, arrisco perder-te. Arpad, sozinho,

no quarto, remoía o seu dilema. Chegou à conclusão de que só havia


uma pessoa que o poderia ajudar: o Fera. E sabia como o contactar.

Arrastou a mesinha de cabeceira de Sophie e levantou o rodapé: o

telemóvel estava ali. Pegou nele e marcou o único número guardado, um

número estrangeiro cujo indicativo lhe era completamente desconhecido.

O Fera acabara de voltar ao Esconderijo. Tinha ido mudar a

matrícula da moto que escondia na floresta, mesmo junto à quinta, para

o caso de precisar de fugir à pressa. Na véspera, violara as sacrossantas

regras de segurança, ao usar a moto para se deslocar até ao Museu de

História Natural. A moto estava guardada para o assalto e até lá só devia

ser usada em caso de urgência. De regresso do museu, atirara a

matrícula para um caixote do lixo. Roubara outra durante a noite e

acabara de a fixar. Agora estava tudo em ordem, mas não lhe agradava o

que estava a acontecer: sentia-se a perder o controlo da situação, o que o

levava a correr riscos inúteis. Ele, que sempre fora tão rigoroso, via-se

agora a cometer erros de principiante.

De repente, o telemóvel tocou, arrancando-o às suas reflexões. Só

Sophie é que lhe ligava por esta via. Atendeu. Era Arpad, que lhe

perguntou de chofre:

— Há quinze anos, quando me obrigaste a fugir de Saint-Tropez,

tinhas medo que te entregasse à bófia, ou querias era afastar-me da

Sophie?

— As duas coisas — respondeu o Fera. — Sabes, tenho de te pedir

desculpa.

— Desculpa?

— Sim. Tudo isto nunca foi contra ti, mas pela Sophie.

— Então explica-me porque tentaste implicar-me no assalto do

próximo sábado, se na verdade querias fazê-lo com ela?

— Não foi a minha intenção inicial. Disse-te que vim a Genebra por

causa de um assalto, mas nunca te disse que o queria fazer contigo…

— Isso já percebi, entretanto. Mas então para que é que foi o

encontro no Caravelle?

— Na semana passada, a Sophie disse-me que queria renunciar ao

assalto. Por ti. Que tinha jurado que San Remo fora a última vez e que

manteria essa decisão. Estive em vias de desistir, eu também. Foi aliás

por isso que telefonei no passado domingo: ia dizer-lhe que a deixaria


em paz. Mas foste tu que atendeste e declaraste de repente que

participarias no assalto. Aproveitei a oportunidade, esperando que assim

talvez ela mudasse de ideias. Combinei o encontro sem saber muito bem

porquê. Não sei o que me passou pela cabeça, mas só consegui criar

ainda mais complicações.

— E agora? — perguntou Arpad.

— Agora o quê?

— O que é que vai acontecer?

— Como já te disse: ela vai renunciar ao assalto, por ti. Mas vais

perdê-la.

— Eu sei — concordou Arpad. — O que é que devo fazer?

Eis que se punha no lugar de receber conselhos matrimoniais do

Fera.

— Deves deixá-la ser o que é: um animal selvagem.

— O «aviso tão certeiro do Viscontini» no cartão de aniversário. É

disso que se trata, não é?

— Sim. Ela é a pantera de Viscontini. Nenhuma jaula a impedirá de

ser o que é. Tens de respeitar a sua natureza. Será a mais bela forma de a

amares.

Houve um silêncio. Em seguida, Arpad perguntou:

— Se a deixar fazer o assalto, tu depois desapareces para sempre?

— Prometo que sim — disse o Fera. — Mas não é a ti que prometo,

é a ela. Já o fiz, de resto. Este assalto será o último.

— Muito bem — disse Arpad. — Então eu quero participar.

— O quê?

— É a minha condição.

— Falaste disso com a Sophie?

— Não. E ela não saberá de nada. Só o descobrirá no sábado de

manhã, mesmo em cima da hora. O plano que me traçaste no Caravelle

ainda se mantém?

— Claro que sim — assegurou o Fera.

— E então o papel que me atribuíste, se compreendi bem, era o

papel da Sophie, é isso?

— Exatamente. Ela aparece à entrada e pede ao segurança que lhe

abra a porta. Ainda por cima é mulher, nunca ninguém desconfiará dela.

E eu entro pelas traseiras…


— Então eis o que proponho — disse Arpad. — Fico eu com essa

função que pensavas atribuir-lhe. Serei eu a introduzir-me na loja pela

entrada principal, tal e qual como tínhamos combinado. E vocês os dois,

juntos, entram pelas traseiras. Assim, estarás sempre perto da Sophie.

Podes zelar por ela. Jura-me que nada lhe acontecerá. E se houver

confusão, fazes com que ela fuja, em segurança. Se for preciso, em caso

de confronto com a polícia, gritas que é tua refém, ou seja, uma cliente

normal que teve o azar de estar à hora errada no lugar errado. Terás de te

sacrificar por ela.

— Sacrificamo-nos os dois por ela — precisou o Fera.

— Combinado — disse Arpad. — Sobretudo, não fales disto com

ela. No sábado, apresentamos-lhe a coisa como um facto consumado. Se

ela souber antes, há o risco de renunciar à ideia. Eu quero que ela possa

satisfazer a sua necessidade. E quero salvar o meu casamento.

No seu automóvel, Greg, de olhos fixos no ecrã, ficou estupefacto

com o que acabara de ouvir: haveria três pessoas envolvidas no assalto,

uma das quais Sophie.


15 ANOS ANTES

20 DE SETEMBRO DE 2007

Brachetto, Toscana

(Três dias após o assalto em Menton)

No meio dos olivais, erguia-se um pequeno curral de pedra. As ervas

altas e as silvas por todo o lado não deixavam quaisquer dúvidas sobre o

estado decrépito do que em tempos fora uma próspera exploração

agrícola.

O sol matinal anunciava um dia glorioso. Diante do casebre, uma

esplanada improvisada: duas cadeiras à volta de uma mesa em ferro,

posta para o pequeno-almoço. O Fera fazia café num bico de gás. Sophie

estava sentada num cepo, a uns metros de distância. Abarcava com o

olhar aquele horizonte selvagem. Ninguém os viria procurar ali.

Este olival abandonado seria o reino deles durante as quatro semanas

seguintes. O Fera alertara-a: tinham de sair de circulação durante um

tempo. Para que a sua ausência não levantasse preocupações, Sophie

dissera aos pais que partia, sozinha, em viagem por Itália. Na véspera do

assalto, telefonara-lhes de uma cabina para lhes dizer que o telemóvel se

tinha avariado e que não deviam inquietar-se com a escassez de notícias

nos próximos tempos. Por outro lado, eclipsara-se sem prevenir Arpad.

Na altura, pareceu-lhe que era mais seguro assim. Ele faria sempre

muitas perguntas e impunha-se não correr riscos. Além disso, a atração

que sentia pelo Fera também pesou muito.

Depois de roubarem o dinheiro do banco postal de Menton,

passaram sem dificuldade para Itália, seguindo sempre por estradas

secundárias. A fuga fora minuciosamente planeada. Abandonaram o

carro em Ventimiglia, onde tinham à espera um outro automóvel,

comprado legalmente algumas semanas antes, com matrícula italiana.

Depois, conduziram até à Toscana, com destino a Brachetto e, mais para


cima, na montanha, até aquele antigo curral, remodelado para

proporcionar um ambiente de conforto. O Fera acumulara víveres e água

que dariam para um mês. Levara também para lá várias caixas de um

vinho excelente. E livros. Tinham com que se ocupar e preencher as

muitas horas livres.

O Fera levou uma chávena de café a Sophie e sentou-se ao lado dela

no assento que em tempos fora um tronco de árvore. Ela encostou-se a

ele. Nos últimos três dias, tinham feito amor muitas vezes. Ela estava

eufórica: as imagens do assalto vinham-lhe constantemente à cabeça.

Sentia-se bem com o Fera, em segurança, a salvo de tudo. O único

elemento que lhes recordava o mundo civilizado era a pequena aldeia de

Brachetto, cuja silhueta se podia ver ao longe.

— Porque é que estes olivais foram abandonados? — perguntou

Sophie.

— Pertenciam a uma grande família da região, os Madura. A

linhagem extinguiu-se com a morte do último representante da estirpe,

Luchino Alani di Madura, que não deixou descendência.

— Depois disso, ninguém tomou posse dos terrenos?

— Ninguém. Acho que isto agora pertence ao município, que não

tem meios para fazer a manutenção mínima.

Sophie avistou um castelo em ruínas na colina em frente.

— Era ali que morava o teu Luchino di Madura?

— Nem mais. Podemos ir explorar o castelo daqui a pouco, se

quiseres.

Foi o que fizeram.

O castelo dos Madura transformara-se numa ruína romântica,

invadida pela vegetação. Ao chegar lá, assustaram uns quantos javalis

que por ali andavam. Em volta do edifício principal, os restos de um

jardim à francesa mostravam a sua rendição diante da reconquista da

natureza. O Fera, que visivelmente conhecia bem o local, conduziu

Sophie até um sítio de onde se podia apreciar um espetacular panorama

de toda a região. Encontravam-se ali três campas. Sophie aproximou-se

para ver melhor.

Na primeira lápide estava inscrito o nome de uma tal Giovanna

Montenapolino, que entregara a alma em 1921. Um pouco mais longe, a

sepultura do último senhor daqueles domínios, Luchino Alani di


Madura, falecido em 1931. E, mesmo ao lado, um pequeno mausoléu,

sobre o qual alguém gravara, muito simplesmente:

GATTINO

1912-1915

— Quem era o Gattino? — perguntou Sophie, vendo pelas datas que

se tratava de alguém que vivera muito pouco. — Uma criança?

— Uma pantera — respondeu o Fera.

No antigo curral, o Fera conservava um exemplar do livro Animais

Selvagens, de Carlo Viscontini. Sophie apaixonou-se pelo livro, em

particular pelo capítulo sobre a pantera, que lhe causou uma forte

impressão.

— Identifico-me com ela — explicou ao Fera. De tal modo que ele

começou a chamar-lhe «minha pantera».

De início, Sophie gostou de ser a pantera do seu amante, dois seres

livres no meio do olival. Mas após três semanas, o que em tempos fora

um redil passou a ser uma prisão para ela. Aos poucos, foi tomada por

um profundo tédio. Tinha vontade de se encontrar com Arpad, de quem

sentia muita falta. Só agora se apercebia do quanto estava ligada a ele.

Culpava-se de ter desaparecido sem o avisar.

***

Em meados de outubro, depois de quatro semanas de reclusão no

antigo curral, o Fera e Sophie fizeram uma primeira surtida a Brachetto,

que ela só conhecia do livro de Viscontini. Nessa noite, apressou-se a

telefonar a Arpad de uma cabina. Mas o telemóvel dele estava desligado.

Tentou ligar-lhe para o Béatrice, mas o gerente explicou-lhe que ele se

fora embora.
— Para onde? — perguntou, desamparada.

— Não faço ideia — respondeu o gerente. — Surgiu-lhe uma

oportunidade de trabalho. Em Londres, parece-me. E tu, como é que

vais? Tudo bem? O teu pai disse-nos que estás de férias em Itália.

Sophie sentiu uma necessidade imediata de voltar para Saint-Tropez

e partir no encalço de Arpad. Como não queria revelar ao Fera a

verdadeira razão do seu regresso precipitado a França, invocou as aulas

na universidade, que já tinham recomeçado. O Fera considerava que

ainda era muito cedo, que era melhor permanecerem escondidos mais

algum tempo, mas não a podia obrigar a nada. Ela era uma pantera, não

suportava nenhum tipo de restrição.

Antes de se separarem, foram passar dois dias a Florença. As luzes

da cidade fizeram-lhes bem. Por iniciativa de Sophie, decidiram

inscrever na pele a memória da experiência intensa que tinham vivido

juntos. No salão de um tatuador, ela desenhou uma pantera na coxa. Fera

pediu ao artista para reproduzir a mesmíssima imagem no seu torso.

No cais da estação ferroviária, quando o Fera abraçou Sophie antes

de ela entrar no comboio com destino a Milão, coibiu-se de lhe dizer

que a amava. Sentia que esse sentimento não era recíproco. Tinha o

coração partido.

Sophie, sem imaginar ainda a natureza do veneno que corria agora

nas suas veias, sabia que fora transformada por aquela experiência.

Estava finalmente pronta para viver a sua vida. Sobretudo, tomara

consciência do que sentia por Arpad. Esperava oficializar a relação com

ele. Já não se esconderiam mais. Haveria de o impor ao seu pai.

Mas, de regresso a Saint-Tropez, Sophie descobriu, para seu grande

desgosto, que Arpad desaparecera completamente de circulação.


CAPÍTULO 20

A véspera do assalto

Domingo, 26 de junho (A descoberta de Greg)

Segunda-feira, 27 de junho

Terça-feira, 28 de junho

Quarta-feira, 29 de junho

Quinta-feira, 30 de junho

→S EXTA-FEIRA, 1 DE JULHO DE 2022

SÁBADO, 2 DE JULHO (O DIA DO ASSALTO)


Dez da manhã, no quartel-general da polícia judiciária.

Numa sala de reuniões, planificavam-se os últimos detalhes para a

operação do dia seguinte. Dentro de vinte e quatro horas ocorreria um

assalto em Genebra, e os únicos a poderem alterar o curso dos

acontecimentos eram os polícias das diversas brigadas que vigiavam

Arpad, em permanência, desde há alguns dias. Seria preciso apanhar os

bandidos em flagrante delito e Greg afinava com os colegas as grandes

linhas da tática para a operação.

Na manhã seguinte, logo de madrugada, vinte agentes do corpo de

intervenção estariam mobilizados e repartidos por nove veículos: três

unidades ficariam estacionadas na margem direita, três na margem

esquerda e três na proximidade do domicílio de Arpad Braun. Uma vez

que desconheciam o local do assalto, Greg definia o dispositivo como

uma rede de pesca que se iria fechando em torno dos suspeitos, em

função das indicações dadas pela brigada de observação.

— Ficaremos suficientemente longe para não comprometer a

perseguição discreta, mas suficientemente próximo para intervir com

celeridade — explicou.

Greg ansiava por partilhar com toda a gente a descoberta que fizera

na véspera: haveria três assaltantes, entre os quais uma mulher, Sophie, e

o grupo planeava entrar na joalharia por dois acessos diferentes. Mas

não podia revelar esta informação sem se expor ao risco de ser

imediatamente suspenso por ter utilizado uma câmara de serviço não

autorizada pelo procurador. Tentou, ainda assim, passar a mensagem,

evocando a sua intuição.

— Sabemos que o alvo será, muito provavelmente, uma joalharia,

porque os bancos estão fechados ao sábado — começou. — Penso, aliás,

que o ataque será feito em simultâneo pela parte da frente e pelas

traseiras.

Os colegas receberam este último comentário com alguma reserva.

— Espera aí — interrompeu um deles. — «Parte da frente e

traseiras» do quê? Nem sequer sabemos qual vai ser o edifício visado.

Greg não se deixou ficar.


— Fiz algumas pesquisas — explicou. — As joalharias com montra

virada para a rua dispõem todas de uma saída de emergência nas

traseiras. Nomeadamente por questões de segurança, em caso de

incêndio, por causa da blindagem das montras. E havendo dois acessos à

loja, porque é que os assaltantes não farão uso de ambos?

— Porque assim é mais complicado — replicou o responsável pela

brigada criminal. — Os assaltantes querem agir o mais depressa que lhes

for possível: entram e saem geralmente pela porta principal. É o que me

diz a minha experiência de dez anos à frente da brigada criminal.

— Se os assaltantes entrarem pela porta principal, tanto melhor —

disse Greg —, será mais fácil detê-los. Mas eu prefiro pôr em cima da

mesa todas as hipóteses, para que o corpo de intervenção esteja pronto a

enfrentar qualquer eventualidade.

Greg teria gostado de revelar mais, mas com isso poderia

comprometer-se. A Providência, todavia, veio em seu socorro, alguns

instantes mais tarde, quando Marion Brullier fez um ponto de situação

sobre os avanços na investigação: os inspetores haviam interrogado as

suas fontes e informadores, mas ninguém tinha conhecimento de um

assalto iminente.

— Por outro lado — indicou Marion —, pudemos confirmar com

um maior grau de certeza que era mesmo Philippe Carral quem estava

no Museu de História Natural na quarta-feira. A foto de que

dispúnhamos datava de há vinte anos, tirada na altura do seu último

encarceramento. Obtivemos, entretanto, por meio de um contacto da

brigada criminal em Paris, uma foto captada pelos serviços secretos

franceses. É de há sete anos, não é propriamente recente, mas ainda

assim parece-me melhor do que a imagem que nos serviu de referência

até agora.

Projetou a imagem no grande ecrã, para que os seus colegas a

pudessem apreciar. Nela via-se o Fera, em calções de banho, à mesa de

um restaurante de praia.

— Olha, os assaltantes também vão de férias — ironizou um dos

polícias, desencadeando um coro de gargalhadas.

— Esta foto foi captada numa praia de Porto Vecchio — explicou

Marion. — Os tipos à volta dele são marginais que pertencem ao


submundo de Rimini e ao crime organizado da Córsega. Todos já

estiveram implicados em assaltos.

Ao ver a imagem, Greg nem quis acreditar na sua sorte. A resolução

da foto era baixa, mas conseguia-se perceber, no torso nu de Philippe

Carral, uma tatuagem semelhante à que Sophie exibia na coxa. Gritou

então, interrompendo Marion:

— Eu conheço aquela tatuagem!

Levantou-se, foi até ao ecrã, apontou com o dedo para o torso do

Fera, e explicou:

— Sophie Braun, a mulher do Arpad, tem uma tatuagem exatamente

igual na coxa.

A foto no ecrã estava um pouco desfocada e a tatuagem não era

nítida. Adivinhava-se que seria um animal, mas não se conseguia

discernir exatamente a espécie. Greg estava, no entanto, seguro de que se

tratava, traço por traço, do mesmo desenho inscrito na pele de Sophie.

— É um lobo? — perguntou um dos polícias.

— Não, é uma pantera — afirmou Greg.

— A mim parece-me um lobo — manteve o polícia.

Marion interveio:

— Tens a certeza de que se trata da mesma tatuagem, Greg?

— Absoluta. Eu já a vi em fato de banho. Ela tem esta pantera

tatuada na coxa.

— De certeza que não são os únicos — observou outro polícia. —

Agora vê-se muito, pessoas que tatuam animais selvagens: cabeça de

leão, cabeça de tigre, cabeça de lobo…

— É uma pantera, já vos disse! — protestou Greg.

— E se fizéssemos zoom? — propôs o procurador.

— Como é óbvio, tentámos isso — explicou Marion —, mas a

qualidade da imagem não permite. Quanto mais a ampliamos, mais se

enche de grão. Não se pode fazer nada.

— É exatamente a mesma tatuagem — repetiu Greg. — Ponho as

mãos no fogo. Há aqui uma ligação qualquer!

— Quer dizer que essa Sophie Braun pode conhecer o Philippe

Carral? — recapitulou o responsável da brigada criminal, para recentrar

a conversa.

Greg aproveitou a oportunidade:


— Vão ser três os assaltantes, entre eles uma mulher!

— Parece-me que essa conclusão é um bocadinho precipitada —

disse o procurador, deitando água na fervura. — Recordo-vos que «mãos

no fogo» tem pouco valor legal. Mas é preciso tirar a limpo essa questão

da tatuagem. A mulher de Arpad Braun já está sob escuta telefónica,

certo?

— Sim — confirmou o responsável pela brigada de observação. —

Como ficou decidido ontem, por esperarmos ouvir uma confissão do

marido, antes de passar ao ato. Mas até agora não houve nada que nos

chamasse a atenção.

— Temos de a colocar sob vigilância, como os outros — decretou o

procurador. — Abram bem os olhos e sigam cada passo que ela der.
Às onze da manhã, os agentes de atalaia viram o Porsche de Sophie

entrar num pórtico de lavagem automática na rue Dancet. Um deles

enviou uma breve atualização para o grupo de mensagens:

Os Braun acabam de fazer compras no

supermercado, e agora estão a lavar o carro.

Quando o Porsche desapareceu no túnel de lavagem, engolido pelas

escovas gigantes, Sophie agarrou no rosto de Arpad e disse-lhe,

reconhecida:

— Obrigada. Obrigada por me deixares fazer isto…

— Vai correr tudo bem amanhã? — perguntou ele.

Sophie afastou o olhar.

— Não falemos de amanhã — pediu. — Porque não vens connosco a

Saint-Tropez logo à tarde?

— Tenho um encontro com o Julien daqui a nada, talvez ele tenha

um trabalho para mim. E assim estarei por aqui amanhã, quando

estiveres a…

Houve um silêncio. Sophie ignorava evidentemente tudo sobre o

modo como o marido estava implicado no assalto, e ele escusava-se a

revelar o seu pacto com o Fera. Quase deitou tudo a perder ao colocar-

lhe a pergunta que lhe andava a fazer espécie:

— Como é que vais fazer para estar em Saint-Tropez esta noite e

aqui amanhã de manhã?

Ela fez um ar desconfiado.

— Como é que sabes que vai acontecer de manhã? — quis saber.

— Conheço o plano. O Fera já me tinha falado dele.

— Não falemos de amanhã — repetiu Sophie.

— Como é que podemos não falar de amanhã? — contrapôs Arpad.

— Não deve ser difícil perceberes que não consigo pensar em mais nada.

E se as coisas correrem mal?

— Vai correr tudo bem. Prometo-te. Confia em mim, confia no

Fera…

Arpad suspirou. Sophie acrescentou, então:


— Agora, escuta com atenção o que te vou dizer…

Ele acenou com a cabeça, para lhe mostrar que estava atento. Ela

prosseguiu:

— Se a polícia vier fazer-te perguntas…

Interrompeu-a logo:

— Por que raio viria a polícia fazer-me perguntas?

Sophie decidiu ignorar o comentário. Havia uma boa razão para que

tudo corresse mal, mas não iria obviamente revelá-la ao marido.

— Escuta-me com atenção, Arpad. Não faças perguntas e ouve-me,

por favor! Se os polícias te fizerem perguntas, é isto que tens de

responder.

Sophie enumerou então uma lista de comportamentos a adotar e de

respostas prontas a usar. No fim, acrescentou:

— Se as coisas correrem mal…

Ele voltou a interrompê-la:

— Se as coisas correrem mal? Porque haveriam de correr mal?

Ela não respondeu e retomou:

— Se as coisas correrem mal e eu tiver de desaparecer, vai ter

comigo ao Esconderijo.

— Ao Esconderijo?

— Fica numa quinta, em Jussy. Decora o endereço. É um

apartamento ao qual se chega subindo umas escadas, mesmo ao lado do

celeiro.

Se o assalto corresse mal e Sophie precisasse de fugir, não voltaria a

ver os seus durante muito tempo. E, se precisasse de desaparecer,

gostaria de rever Arpad. Uma última vez.


Às três da tarde, Sophie, no meio de outros pais, esperava pelos

filhos à porta da escola, em Cologny. A saída das aulas, no último dia

antes das férias de verão, descambara num ruidoso e alegre bruaá. Toda

a gente parecia muito descontraída.

À distância, Karine observava Sophie a beijar Isaak e Léa,

conduzindo-os até ao automóvel. Entraram todos. Apercebeu-se de que

tinha malas no porta-bagagens. O Porsche arrancou e desapareceu

rapidamente ao fundo da rua. Ignorava para onde é que ela se dirigia,

mas sentiu-se aliviada por a ver partir.

Sophie seguiu pela marginal do lago Léman, atravessando o bairro

de Eaux-Vives para apanhar a estrada de Malagnou, um eixo que liga o

centro de Genebra à fronteira francesa. Não reparou na muito discreta

coreografia dos carros da polícia que seguiam na sua peugada.

— Acaba de passar pela bifurcação para Thônex, parece-me que

segue em direção ao controlo de Vallard — anunciou um dos inspetores

pelo rádio.

Quando Sophie chegou ao posto fronteiriço, um funcionário

aduaneiro aproximou-se do Porsche como se estivesse a fazer um

controlo de rotina.

— Bom dia, minha senhora. Para onde é que se dirige?

— Para Saint-Tropez.

— Por quanto tempo?

— Todo o mês de julho. Talvez mais. Os meus pais vivem lá.

O funcionário aduaneiro espreitou o interior do veículo.

— Está tudo bem, pode seguir.

Ela voltou a arrancar e o funcionário aduaneiro ligou imediatamente

para o número que lhe tinha sido dado pela central.

— Acaba de passar a fronteira — anunciou ao seu interlocutor. —

Diz que vai para Saint-Tropez, para casa dos pais, onde tenciona passar
o mês de julho.

— Obrigado — disse o responsável pela brigada de observação, ao

desligar.

O polícia estava na sala de crise do quartel-general da polícia

judiciária.

— Aparentemente, vai passar o verão em Saint-Tropez — partilhou

com os colegas presentes.

Os polícias suíços não podiam seguir Sophie em território francês

sem autorização expressa do Ministério do Interior daquele país. O

responsável da brigada de observação contactou de pronto o procurador,

para que este enviasse um pedido às autoridades em Paris, mas o outro

retorquiu, num tom fatalista:

— Numa sexta-feira à tarde, nem penses. Só vamos receber resposta

dos franceses lá para meados da próxima semana.

— Posso enviar uma equipa a Saint-Tropez com estatuto de

confidencialidade máxima — sugeriu o responsável da brigada de

observação.

— Você só pode estar maluco! — vociferou o procurador. — Se

forem detetados, criam um incidente diplomático dos sérios. Quanto a

si, não sei, mas eu não tenho propriamente vontade que a minha carreira

termine neste fim de semana.

***

Às seis da tarde, como haviam combinado no início da semana,

Arpad encontrou-se com o seu amigo Julien Martet num bar do centro

da cidade.

— Tudo se vai resolver — garantiu Julien.

— Espero bem que sim — respondeu Arpad.

Ele sempre admirara Julien: ambicioso, trabalhador, talentoso,

disponível, sempre presente quando alguém precisava dele. No seu fato

impecável, transmitia-lhe a imagem do homem que ele próprio gostaria

de ter sido.
— Ouve — disse Julien —, isto fica entre nós, mas fui investigar

umas coisas lá na empresa. Eles estão à procura internamente de alguém

para gerir os clientes franceses. Sei que tens o perfil certo para o lugar.

As candidaturas vão ser analisadas na segunda-feira. Posso tentar sugerir

alguém vindo de fora e propor o teu nome para o lugar.

— Eh pá, isso seria mesmo de amigalhaço — agradeceu Arpad.

— Não é nada garantido, mas vou dar o meu melhor. E se não for

isto, alguma coisa haveremos de encontrar. Conta comigo, vai tudo

resolver-se.

Os dois homens beberam algumas cervejas. A conversa assumiu um

tom mais ligeiro. Mas Arpad continuava com a cabeça noutro lado:

contava as horas para o assalto. Além disso, estava-se bem nas tintas

para o emprego que Julien lhe propunha. Este encontro servir-lhe-ia

essencialmente como álibi. O de Sophie era à prova de bala: estaria em

Saint-Tropez. Quanto a ele, se lhe perguntassem por que razão não

partira para Sul com a mulher e os filhos, justificar-se-ia com este

importante encontro profissional.

***

Nove da noite, na Verruga.

Os filhos estavam deitados; as malas do casal, já feitas e junto à

porta de casa. Tudo pronto para o dia seguinte. Karine foi ter com Greg

à cozinha. Este tinha acabado de lavar a loiça e encheu-lhe um copo de

vinho.

— Ao nosso fim de semana romântico — disse ele.

Ela brindou com o marido e esforçou-se por fingir estar bem-

disposta. Só conseguia pensar naquela carta que acusava Greg de ser um

badalhoco e no vídeo de Sophie. Perguntava-se quem era realmente o

seu marido. Mas ele esforçava-se e ela devia fazer o mesmo. Decidira-se

a dar uma hipótese ao casamento e tinha de agir em conformidade.

— Os meus pais vêm buscar os miúdos às dez da manhã — disse

ela. — Se partirmos a essa hora, estaremos em Itália a tempo do almoço.


Encontrei um restaurantezinho perto de Alba que tem críticas

excelentes… Pode ser simpático.

Greg ainda não a avisara. Sabia que Karine iria fazer uma cena e por

isso fora adiando o momento.

— Talvez fosse melhor sairmos ao início da tarde — sugeriu. — Por

causa do trânsito.

— Achas mesmo?

— Sim, toda a gente se vai fazer à estrada ao mesmo tempo, amanhã

de manhã. O mais certo é encontrarmos um engarrafamento de

quilómetros para o túnel do Monte Branco.

— Mas não às dez da manhã — declarou Karine. — Além disso, o

trânsito nem sequer é um problema, porque não vamos ter os miúdos a

berrarem-nos aos ouvidos. Acordamos aqui, almoçamos em Itália, um

pé deste lado e um pé no outro!

Ela fez acompanhar as palavras com um gesto, agitando o pé direito

para que Greg reparasse que tinha ido à pedicure. Mas Greg não reagiu.

— Não gostas da cor? — perguntou, algo ansiosa.

Ele achou-se cobarde por ter esperado tanto tempo.

— Escuta, já não sei se te disse ou não, mas eu tenho de trabalhar

amanhã de manhã…

Ela abriu muito os olhos.

— Tu… o quê? Como assim, trabalhar?! — exclamou.

— Pois, sim, sabes aquele caso de que te falei…

— Greg, estás a gozar comigo?

— Sabes perfeitamente que o meu trabalho é sujeito a imprevistos!

— Há quanto tempo é que andamos a falar do nosso fim de semana?

Não podias arranjar alguém que te substituísse?

— Eu não posso ser substituído assim de qualquer maneira, Karine.

Pertenço a um corpo de intervenção, não sou vendedor numa loja.

Assim que a disse, arrependeu-se da frase.

— Sabes o que é que te diz a vendedora numa loja?

— Karine, expressei-me mal. Ouve, não estragues tudo…

— Tu é que estragas tudo!

— Ao meio-dia estou despachado! — prometeu ele. — E partimos

logo de seguida. Sairmos às dez ou ao meio-dia, vai dar ao mesmo. E

depois, basta almoçarmos mais para o tarde! Por exemplo às três! É


como eles costumam fazer lá em Itália, não é? Não me tinhas dito que os

teus pais vinham buscar os miúdos tão cedo.

— Não acredito que me estás a fazer uma coisa destas!

Karine só tinha vontade de chorar. Mas não à frente dele. Deu meia-

volta e dirigiu-se para as escadas.

— Esta noite podes dormir no divã — disse.

Greg tentou meter-se à frente dela.

— Vá lá, Karine, não sejas assim — implorou. — Convocaram-me

para uma grande operação!

— E tu, tu és mesmo imbecil!

Foi para o piso de cima, enquanto ele ficou no rés do chão. Karine

fechou-se no quarto e deixou-se cair na cama, a soluçar.

No mesmo momento, em Saint-Tropez, na vivenda dos pais de

Sophie, chegava ao fim um jantar feliz. Uma meia hora mais cedo,

Bernard recebera a filha e os netos com várias pizas confecionadas por

ele mesmo.

Agora, enquanto Jacqueline levantava a mesa, as crianças raspavam

o fundo das taças de gelado e Bernard conversava com Sophie sobre os

planos para as férias: passeios de barco, excursões, idas à praia. O verão

ia ser maravilhoso.

Foram interrompidos pelo toque da campainha. Sophie foi abrir. À

sua frente, dois inspetores da polícia judiciária, que lhe mostraram os

distintivos.

Os dois polícias explicaram que tinham sido chamados para intervir

numa das casas próximas, no seguimento de um assalto, e que faziam a

ronda por todas as habitações das redondezas, à procura de eventuais

testemunhas. Sophie chamou o pai: Bernard levou evidentemente o

assunto muito a sério. Não vira nada, mas disponibilizava-se para

participar na investigação. Depois Jacqueline também disse alguma

coisa, apenas como forma de se imiscuir na conversa. Foi finalmente

Sophie que libertou os pobres inspetores, quando Bernard se preparava

para lhes mostrar o terraço.

— Papá, parece-me que estes senhores têm mais que fazer… —

disse ela com bonomia.


Os polícias foram-se embora. Assim que entraram no seu veículo,

um deles ligou ao superior.

— Vimos a mulher — informou. — Até foi ela que nos abriu a

porta… Sim, corresponde à fotografia… Está com os filhos e com os

pais. O pai é um idiota… Só faltou convidar-nos para ficarmos a dormir

na casa dele… Sim, vimos o automóvel dela. Um Porsche preto, com

matrícula de Genebra. Sim, conseguimos instalar um localizador por

baixo, na carroçaria…

Do seu gabinete no serviço regional da polícia judiciária, em Toulon,

o chefe dos polícias contactou imediatamente o responsável da brigada

criminal, em Genebra, que lhe pedira ajuda no caso de um assalto

iminente. O protocolo exigia que este tipo de pedidos seguisse a via

oficial, mas entre polícias era sabido que o tempo é precioso nestas

situações e o fechar de olhos aos procedimentos burocráticos acontecia

com uma certa frequência.

— Os meus homens passaram pela vivenda. A mulher está lá, eles

identificaram-na formalmente. Instalaram também um localizador no

automóvel. Se ela se movimentar, saberemos.

— Obrigado por tudo.

— Só tenho pena de não ter podido ajudar mais. Mas com os

efetivos ao meu dispor, é impossível organizar uma verdadeira

vigilância.

— Já fizeste muito — assegurou o responsável da brigada criminal.

— Mil vezes obrigado. Fico a dever-te uma.

Na Casa de Vidro, Arpad refletia na sala de estar. Sentia-se nervoso.

Projetava mentalmente a jornada do dia seguinte. O toque do telemóvel

veio perturbar o silêncio. Era uma videochamada de Sophie.

Atendeu. Ela apareceu no ecrã, com a sala de estar dos pais como

pano de fundo. Estava radiosa.

— Como é que correu o teu encontro com o Julien? — perguntou-

lhe a mulher.

— Bem. Muito bem, até. Ele diz que talvez tenha um emprego para

mim lá no fundo de investimento.

— Boa! — congratulou-se ela. — Vem ter connosco logo que

possas, temos saudades tuas.


Não houve tempo para falar mais porque o Isaak e a Léa, de pijama,

apropriaram-se do telemóvel. Estavam prestes a ir para a cama.

— Boa noite, meus queridos — disse-lhes Arpad, de coração

apertado.

— Papá — gritou Isaak —, o avô Bernard fez pizas! Estavam

deliciosas!

Bernard apareceu na imagem, a rir.

— Então, Arpad, e essa entrevista de emprego? — perguntou,

dirigindo ao genro um sorriso caloroso.

Parecia disposto a passar uma esponja sobre o desaguisado entre os

dois e comportava-se como se a recente altercação nunca tivesse

acontecido.

— Estou a ver que as notícias correm depressa — disse Arpad,

divertido. — Foi um encontro informal, mas as perspetivas são boas.

— Fico contente! Quando é que te juntas a nós?

— Amanhã à tarde.

— Quero muito ver a família outra vez toda reunida — disse

Bernard.

— Eu também — respondeu Arpad.


CAPÍTULO 21

O dia do assalto

Domingo, 26 de junho (A descoberta de Greg)

Segunda-feira, 27 de junho

Terça-feira, 28 de junho

Quarta-feira, 29 de junho

Quinta-feira, 30 de junho

Sexta-feira, 1 de julho

→SÁBADO, 2 DE JULHO DE 2022 (O DIA DO ASSALTO)


Quatro da manhã.

Sophie acabava de passar incógnita a fronteira suíça, entrando pela

comuna de Jussy, através de um caminho isolado que atravessava

campos de cultivo. Chegou à exploração agrícola e estacionou diante das

casas da quinta onde ficava o Esconderijo do Fera.

Deixara Saint-Tropez por volta das dez e meia da noite. Ninguém a

viu sair da casa. Os pais já estavam deitados. Na manhã seguinte, seriam

eles a ocupar-se das crianças, desde o levantar, com uma ida prevista a

Cannes durante o dia inteiro, o que lhe permitiria dormir até tarde.

Sophie combinara tudo com o pai.

Abandonara a casa pela porta da cozinha e atravessara a parte de trás

do jardim. De seguida, descera discretamente a colina rochosa, umas

boas dezenas de metros até chegar a um pequeno caminho de gravilha.

Após uns minutos a andar, chegou a um parque de estacionamento

utilizado pelas pessoas que davam passeios no campo. O Fera deixara lá

um automóvel à espera dela: o seu Peugeot cinzento. Sophie trazia

consigo um duplicado da chave. Entrou no carro e pôs-se a caminho da

Suíça. Se não chamasse a atenção, se respeitasse todos os limites de

velocidade, se pagasse todas as portagens com notas e moedas, e se

passasse a fronteira por um caminho esconso, ninguém saberia do seu

regresso a Genebra.

No Esconderijo, o Fera recebeu-a com uma refeição, mas ela não

tinha fome. Estava nervosa. Ficava sempre nervosa antes de um assalto.

***

Cinco da manhã.

Na Verruga, Greg, que ficou a dormir no divã, acordou com uma

lambidela amistosa de Sandy. Fez-lhe uma festinha e levantou-se.

Preparou café e deixou o cão sair para o jardim. Culpava-se por ter

discutido com Karine. Precisava de reencontrar a harmonia entre os

dois. Mas lamentava a incompreensão dela. O seu trabalho não era uma
atividade qualquer. Havia um assalto prestes a acontecer: não podia

abandonar os companheiros de equipa só porque a data do crime não lhe

convinha. Antes de sair de casa, escreveu uma nota que deixou em cima

da mesa da cozinha.

Estarei de volta ao meio-dia. E partiremos logo

para Itália.

Amo-te

Era a primeira vez que saía para uma operação sem beijar a mulher.

Durante este tempo, na Casa de Vidro, Arpad recapitulava

mentalmente toda a coreografia do assalto. Já acordara há muito. A noite

fora curta e agitada. Os sete minutos que tinha pela frente pareciam-lhe,

de antemão, uma eternidade.

A poucos quilómetros dali, no Esconderijo, o Fera, sentado num

cadeirão, contemplava Sophie, que adormecera. Cobriu-a delicadamente

com uma manta. Só a acordaria quando fosse mesmo preciso. Ela

necessitava de descansar.

***

Um quarto para as sete da manhã.

No quartel-general da polícia, Greg acabava de se preparar nas

instalações do corpo de intervenção. Ainda estava sozinho no vestiário.

Envergara, de forma quase ritual, o uniforme negro. O seu

equipamento de choque. Esperaria pelo fim do briefing para vestir o

colete à prova de bala, enfiar o passa-montanhas e o capacete tático.

Observou-se demoradamente no espelho. Até que começaram a

chegar os primeiros colegas. Enquanto os outros se equipavam, ele

deslocou-se para a sala do briefing.

Hoje seria o dia do confronto.


Sete e um quarto da manhã.

Na Casa de Vidro, Arpad bebia um último café. Postara-se em frente

à janela, contemplando o exterior, como fazia tantas vezes Sophie.

Estava quase na hora de partir.

Releu uma última vez as instruções que Sophie lhe dera na véspera,

para o caso de o assalto correr mal e a polícia lhe fazer um

interrogatório. Assentara tudo num pedaço de papel, para memorizar.

Queimou então a nota no lava-loiça, para que não restassem quaisquer

indícios.

***

Sete e meia da manhã.

No quartel-general da polícia, na sala de briefing do corpo de

intervenção, Greg dava as instruções finais aos seus homens.

— O nosso alvo chama-se Arpad Braun — relembrou Greg,

enquanto uma fotografia de Arpad surgia no ecrã por trás dele. — É um

antigo gerente de fortunas de um banco privado. Foi despedido há vários

meses. Passou brevemente pela prisão, em França, por causa de uma

história que envolveu o furto de um automóvel. Dispõe de um cúmplice,

um certo Philippe Carral. Suspeitamos que já fizeram juntos outro

assalto, a um banco, em França, há quinze anos. Sabemos que hoje vão

atacar uma joalharia. Ainda não sabemos qual. Perdemos a pista do tal

Philippe Carral, mas continuamos a vigiar o Arpad Braun. Uma equipa

da brigada de observação está em cima dele. Avisar-nos-á assim que ele

saia de casa.

***

Oito da manhã.
Arpad entrou no carro, deixou a Casa de Vidro e conduziu em

direção ao centro da cidade. Seria impossível, mesmo para um olhar

treinado, perceber que os polícias o seguiam.

Deixou o carro no bairro de Tranchées, na rue François-Bellot.

Continuou a pé. O boné enfiado na cabeça. Caminhou um bom bocado

através da cidade, antes de se aproximar da rue du Rhône.

***

Nove da manhã.

Greg encontrava-se nas proximidades da estação de Cornavin, com

vários outros veículos do corpo de intervenção, quando recebeu a

informação enviada pela brigada de observação: Arpad andava às voltas

na rue du Rhône, há já algum tempo. O assalto seria provavelmente a

uma das muitas joalharias instaladas nesta artéria de grande prestígio.

Greg decidiu enviar todos os seus homens para a rue du Rhône. Os

nove veículos descaracterizados que compunham a unidade convergiram

para lá e foram tomando, discretamente, as suas posições.

Às nove e meia, após uma enésima voltinha na rua, Arpad dirigiu-se

para a loja da Cartier. Um polícia, disfarçado de funcionário municipal,

alertou os colegas pelo rádio:

— Ele vai entrar na Cartier! Ele vai entrar na Cartier!

Greg, que se encontrava mesmo ali ao lado, efetuou uma passagem

de carro. Teve apenas tempo para ver Arpad a entrar pela porta da frente

da loja. Depois os polícias perderam-no de vista. As montras

envidraçadas da loja, por razões de segurança, ficavam obstruídas pelos

expositores, e os raros interstícios não deixavam ver nada de longe.

Greg posicionou os seus homens em volta do edifício, de forma a

cobrir todos os acessos. Ordenou pelo rádio:

— Ninguém se mexe enquanto eles não começarem o assalto.

Queremos apanhá-los em flagrante!


Os dois assaltantes acabavam de entrar em simultâneo pelos dois

acessos da joalharia. Enquanto o primeiro assaltante entrara

simplesmente pela porta principal da loja, como se fosse um cliente

normal, o outro utilizara a saída de emergência, que também fazia as

vezes de entrada de serviço. Bastara esperar que chegasse uma

empregada cujos horários os assaltantes conheciam. A funcionária foi

totalmente apanhada de surpresa. Ficou paralisada ao ver a sombra

encapuçada que a ameaçava com uma caçadeira de canos serrados,

pousando um dedo diante da boca para lhe exigir silêncio e apontando

para o teclado digital da porta, para que ela a abrisse.

Como é óbvio, ela obedeceu às ordens que lhe deram. Uma vez

dentro da loja, foi amarrada e fechada numa sala. O assaltante

encapuçado juntara-se rapidamente ao seu comparsa do boné, na parte

da frente da loja. Tudo acontecera numa fração de segundo. O

Encapuçado ergueu a caçadeira, o do Boné sacou de um revólver que

trazia à cintura e pôs-se a gritar:

— Isto é um assalto, ninguém se mexa!

O Encapuçado, apontando a caçadeira, levou o vendedor e o gerente

para a parte de trás da loja. O assaltante do Boné obrigou o segurança a

fechar à chave a porta da loja, antes de o levar por sua vez para um lugar

a salvo de olhares indiscretos. Se alguém passasse diante da montra, a

única coisa que veria era uma loja deserta.

Greg, à coca no seu veículo, perscrutava a loja. Do exterior, parecia

tudo normal. Era impossível distinguir fosse o que fosse.

— Precisamos de alguém para espreitar o que se passa lá dentro —

pediu Greg pelo rádio.

— Eu trato disso! — anunciou logo uma jovem mulher da brigada de

observação.

Uma silhueta que empurrava um carrinho de bebé passou em frente

à loja.

— Não vejo nada — disse a mulher pelo rádio.

— Como assim, não vês nada? — perguntou Greg. — Onde é que

está o Arpad?
— Não vejo ninguém dentro da loja.

— E na parte de trás? — perguntou Greg.

— Não há nada a assinalar — respondeu-lhe um dos colegas.

Greg torceu o nariz: a calma absoluta era geralmente um mau sinal.

No interior da joalharia estava em curso uma dança perfeitamente

orquestrada. Os assaltantes sabiam bem o que estavam a fazer. O

segurança e o vendedor tinham sido imobilizados, de mãos atadas atrás

das costas com fios de plástico, e deixados sob a vigilância do

Encapuçado. O único que permaneceu de mãos livres foi o gerente da

loja, que o do Boné levou até ao cofre principal, obrigando-o a

introduzir o código de abertura.

O do Boné abriu, uma a uma, as gavetas do cofre, sem tocar no seu

conteúdo. Procurava algo em concreto e esboçou um sorriso de triunfo

ao encontrá-lo: enormes diamantes cor-de-rosa. Pegou num saco de

veludo e guardou as pedras preciosas lá dentro.

No seu veículo, Greg acabara de se decidir pelo envio de um batedor.

— Alguém do corpo de intervenção que entre na loja — ordenou

Greg pelo rádio.

Um agente da tropa de elite, à paisana, apareceu de repente à porta

da loja, como se fosse um cliente. Mas a porta ofereceu-lhe resistência.

— A porta está fechada à chave — anunciou o polícia via rádio. —

E lá dentro não se vê ninguém…

Greg entendeu logo: se a porta estava trancada e não havia ninguém

na loja, era porque os funcionários estavam retidos lá dentro. Era o

momento certo para apanhar os assaltantes no tão aguardado flagrante

delito.

Greg hesitou um instante: não queria que o assalto degenerasse

numa tomada de reféns. Mas também não queria arriscar um tiroteio em

plena rua, se apenas intercetassem os assaltantes no momento da fuga.

— Vamos avançar — anunciou Greg. — Todos a postos. À minha

ordem.

Uma vez recolhidos os diamantes do cofre, o do Boné precipitou-se

para a sala das traseiras da joalharia, onde estavam retidos os três reféns.
— Estamos prontos para ir embora — disse com uma voz muito

calma ao seu comparsa. — Vou verificar se temos o caminho

desimpedido.

O Encapuçado fez que sim com um movimento da cabeça. O do

Boné foi discretamente espreitar a rua pela montra.

A tensão estava prestes a aumentar ainda mais.

A saída da joalharia e a fuga eram os momentos mais perigosos do

assalto.

Greg, recorrendo aos binóculos, inspecionava o interior da loja. Viu

de repente a silhueta de Arpad, com o boné enterrado na cabeça, a olhar

para a rua através da montra.

— Assaltante à vista! Iniciem a intervenção!

Mal pronunciou estas palavras, duas colunas de homens vestidos de

negro, equipados com armas pesadas e escudos, colocaram-se dos dois

lados da entrada da loja da Cartier e rebentaram com a porta.

Arpad foi apanhado de surpresa.

Ouviu uma primeira deflagração no exterior, imediatamente seguida

de uma segunda, já dentro da loja. Ficou paralisado durante um instante,

por causa do barulho e do brilho provocados pela explosão de uma

granada. Uma coluna de polícias encapuçados e protegidos por escudos

avançaram loja adentro em sua direção.

Foi derrubado à bruta.

A adrenalina fez com que o seu coração disparasse. Sentia um

zumbido nos ouvidos. Pisaram-no com botifarras. Alguém o algemou.

Estava tudo terminado.

Enquanto Arpad era detido no interior da loja, uma outra coluna do

corpo de intervenção, que cobria a saída de emergência, intercetava o

segundo assaltante, no momento em que este saía pela porta,

preparando-se para fugir.

Os dois suspeitos foram então algemados e vendados. As instruções

determinavam que fossem conduzidos de imediato às instalações da

polícia judiciária.
Greg, encapuçado e com o uniforme de choque, teve especial prazer

em arrastar Arpad até ao veículo da brigada de intervenção e atirá-lo à

bruta lá para dentro. O automóvel arrancou logo, com a sirene ligada e

as luzes azuis a girar. Arpad não via nada, e pouco ouvia. Efeito

secundário da explosão. Estava em estado de choque. O que lhe iria

acontecer? O que o esperaria dali em diante?

***

Em Saint-Tropez, Bernard andava atarefadíssimo na cozinha, a

preparar o pequeno-almoço para Sophie, sob o olhar da mulher e dos

netos. Levou então o tabuleiro até ao quarto da filha. Este encontrava-se

deserto, mas só ele é que sabia disso. Entrou e falou em voz alta com a

cama vazia, assegurando-se de que Jacqueline e as crianças o ouviam à

distância:

— Bom dia, minha querida, dormiste bem? (…) Queres descansar

mais um pouco? Claro que sim. Dorme mais um bocadinho. Até já.

De regresso à cozinha, anunciou:

— A Sophie está exausta. Temos de a deixar dormir mais um pouco.

O melhor é irmos a Cannes sem ela.

***

A confusão instalara-se diante da loja da Cartier. A presença em

peso da polícia atraíra hordas de mirones, vindos das ruas comerciais, a

abarrotar num sábado de verão. No interior do perímetro de segurança,

dois inspetores da brigada criminal recolhiam o depoimento do gerente

da loja.

— Quando apareceram estes polícias todos — disse ele —, comecei

por pensar que se tratava de um assalto. Será que alguém me pode

explicar o que se passa?

Os dois inspetores trocaram um olhar de incredulidade.

— Como assim, o que se passa? — perguntou um deles.


Furioso, o procurador entrou na loja da Cartier. Foi imediatamente

conduzido a uma sala onde estavam reunidos os vários polícias

responsáveis pela operação.

— Digam-me que isto é uma partida! — vociferou ele.

Ninguém ousou dizer palavra. O gerente da loja, que também estava

presente, perguntou então:

— Que história vem a ser essa de um assalto? Gostaria que me

explicassem. Já viram o estado em que ficou a loja?

A pedido do procurador, o gerente recapitulou a visita do primeiro

cliente do dia. Na parede, um ecrã exibia as gravações das câmaras de

vigilância e, enquanto ia falando, o gerente passou as imagens que

correspondiam ao seu relato.

***

Trinta minutos antes

Arpad abriu a porta da loja. Um empregado, vendo o homem

elegante que acabava de entrar, veio recebê-lo com uma certa deferência.

— Bom dia, senhor, bem-vindo à loja da Cartier. Em que posso ser-

lhe útil?

— Comprei uma peça aqui, há duas semanas, um anel que perdeu

uma das pedras — explicou Arpad.

Tirou do bolso o anel em forma de cabeça de pantera, oferecido a

Sophie.

O empregado, vendo a joia, conduziu o cliente a uma sala privada.

Uma vez lá, Arpad pousou o anel sobre o tabuleiro em veludo que lhe

estendeu o empregado. Este calçou uma luva branca para agarrar o

objeto.

— Falta um dos diamantes que formam o contorno dos olhos —

explicou Arpad.

— Não consigo ver muito bem assim. Permita-me que vá buscar

uma lupa.
O empregado ausentou-se da sala por uns instantes. Quando

regressou, com uma lupa na mão, constatou que o anel já não estava

pousado na mesa.

— Onde é que está o anel? — perguntou o empregado.

— O anel? Mas eu pensei que o tivesse levado consigo — respondeu

Arpad.

***

— O anel caíra no chão — explicou o gerente da loja. — Como

podem ver nas imagens de videovigilância, o cliente, quando estava a

sós no salão, baixou-se para apertar os atacadores. Deu um encontrão na

mesa sem se aperceber e o anel caiu no chão, que é alcatifado. Por isso,

não ouviu nada. Nessa altura, vejam, o meu colega voltou à sala com a

lupa e reparou que o anel desaparecera. E nenhum deles viu o anel

caído.

— O que é que o senhor fez? — perguntou o procurador.

— O meu colega avisou logo a segurança. Os procedimentos são

claros: trancam-se as portas. Ninguém entra e ninguém sai. Como não

havia mais clientes na loja, os seguranças concentraram-se aqui. O

cliente queria sair da sala, mas um dos seguranças pediu-lhe para não se

mexer de onde estava. A situação não demorou muito tempo:

encontrámos logo o anel. Para mim, o incidente ficara resolvido. Mas o

cliente mostrou-se de repente muito arreliado.

***

Vinte e cinco minutos antes

— Será que este aparato todo era mesmo necessário? — perguntou

Arpad com irritação, dirigindo-se ao gerente da loja. — É muito

desagradável ser mantido à força seja onde for.

— Lamento, senhor, mas é o protocolo nestas situações.


— Ah, sim? Sequestrar os clientes?

— Não se tratou propriamente de um sequestro, senhor. O segurança

limitou-se a pedir educadamente que permanecesse na sala.

— Nesse caso, não temos a mesma noção de cortesia. Os senhores

trataram-me como se eu fosse um ladrão. Será isto maneira de receber as

pessoas, sobretudo quando estão dispostas a gastar bom dinheiro?

Devolva-me o anel, por favor, irei arranjá-lo noutro lado qualquer e de

certeza pagando muito menos.

— Não havia necessidade de falar dessa maneira…

— De qualquer modo, preciso de me ir embora. Tenho um encontro

importante.

***

— Quando ele estava prestes a sair — explicou o gerente da loja —,

surgiram do nada todos estes polícias encapuçados.

O procurador virou-se para o responsável da brigada criminal.

— E o outro tipo que detiveram quando se escapava pela saída de

emergência? — perguntou. — É quem? O Philippe Carral?

O polícia apontou para um homem de fato e gravata, no ecrã.

— É um dos empregados da loja — respondeu, encavacado. —

Entrou em pânico ao ouvir o barulho da nossa intervenção. Pensou que

se tratava de um assalto e tentou pôr-se ao fresco.

O procurador não conteve um palavrão. Depois gritou:

— Estamos a fazer figura de palhaços! Já viram os jornalistas todos

que estão lá fora? O que é que eu posso dizer-lhes?

— Mas, enfim — defendeu-se o polícia —, tem de admitir que há

qualquer coisa de muito estranho nesta história. O comportamento de

Arpad é no mínimo suspeito. Entra na loja, o seu anel cai ao chão como

que por acaso, o empregado encontra-o, ele faz uma cena e vai-se

embora.

— Tudo leva a crer que é um energúmeno — constatou o procurador.

— Mas não cometeu qualquer infração.


— E se foi tudo encenado? — sugeriu o polícia. — Repare, aqui nas

imagens, como ele, ao entrar na loja, acionou discretamente o

cronómetro do relógio. Depois, está sempre a controlar as horas. Acho

que o fazia para calcular o tempo que restava.

— Onde é que quer chegar? — perguntou o procurador.

— Eu diria que ele cronometra o tempo de reação dos seguranças.

Talvez seja um teste, a pensar num futuro assalto…

— Um futuro assalto? — barafustou o procurador. — Isso adianta-

me muito, inspetor, não haja dúvidas! E agora, com que base é que o vou

incriminar? Íamos agir sobre um assalto e não houve assalto nenhum!

— Enfim, sabe tão bem como eu que existem áreas cinzentas neste

caso! Como os laços de Arpad e Philippe Carral, mais o estranho

encontro deles no Museu de História Natural. E o telefonema a propósito

de algo que iria acontecer esta manhã…

— Justamente: sabe dizer-me ao certo o que devia acontecer esta

manhã? — contrapôs o procurador. — Andamos completamente aos

papéis!

— Deixe-nos interrogar o Arpad Braun — pediu o polícia. — Nunca

se sabe. Há algo que nos está a escapar, isso é óbvio, mas não sei o quê.

— Pode interrogar o Arpad Braun — concedeu o procurador. —

Mas aperte com ele: neste momento, não temos nada, por isso não

poderá continuar detido muito mais tempo.

Na floresta de Jussy, o Fera e Sophie tinham acabado de esconder a

moto no meio da vegetação. Deixaram os capacetes pousados no assento

e caminharam em passo rápido através do campo, até às habitações da

quinta. Quando se viram no interior do Esconderijo, puderam enfim

celebrar alegremente e abraçar-se. O assalto não podia ter corrido

melhor. Sophie sentia o coração a bater forte. Estava tomada pela

emoção. Como se fosse uma doce embriaguez.

O Fera ligou o computador portátil e consultou o site do jornal

Tribune de Genève. Viu logo o destaque na página principal:

TENTATIVA DE ASSALTO NA LOJA DA CARTIER

— Ah, que idiotas! — exclamou, orgulhoso. — Morderam o isco!


Dez e meia da manhã.

A joalharia Stafforn, estabelecimento pequeno mas prestigiado, fora

assaltada há mais de uma hora, sem que ainda ninguém se tivesse

apercebido.

A loja ficava na parte antiga da cidade, perto da place du Bourg-de-

Four, a abarrotar de gente neste sábado de verão. Os cafés estavam à

cunha e um fluxo incessante de transeuntes seguia por este espaço

inteiramente reservado a peões.

O Fera e Sophie tinham chegado e voltado a partir sem dar nas

vistas. Ninguém prestara atenção àquele casal que passara por ali uma

hora antes, igual a tantos outros. Naquele lugar, não havia uma única

câmara de segurança pública para acompanhar o percurso deles, desde a

joalharia Stafforn até à moto estacionada na rue Saint-Léger, uns metros

mais abaixo.

No Esconderijo, o Fera saboreava o sucesso.

Dois meses antes, no final de abril, quando lhe propuseram um

assalto fácil e bem remunerado em Genebra, aproveitara logo a

oportunidade. O mandante era um recetador que lhe merecia toda a

confiança. Um estónio com boa reputação e muitos contactos entre os

gangues de assaltantes europeus. O Estónio, como lhe chamavam no

meio, apreciava muito o Fera: gostava que ele fosse um lobo solitário,

um tipo que trabalhava à moda antiga, sempre de maneira eficaz e limpa,

muito fiável, com um código de conduta que na maior parte dos outros

casos deixara de ser aplicado. O mercado fora invadido pelos gangues de

Leste, que agiam em bando. Falavam demasiado, além de serem

violentos e imprudentes. Uma dessas equipas deitara a perder um grande

assalto em Paris porque dois dos elementos, antes do golpe, acharam

sensato cometer um roubo de esticão a um turista. Foram apanhados e

os polícias rapidamente chegaram aos outros bandidos do grupo. O Fera

era outra coisa.

Uma vez por mês, o Estónio e o Fera encontravam-se no ferry que

liga Helsínquia a Tallinn. Eram encontros profissionais, mas desde que

se conheciam que começavam sempre por beber um café e trocar dois


dedos de conversa. Depois o Estónio falava dos seus negócios: os

diamantes e joias que lhe encomendavam, e para os quais procurava o

assaltante-mercenário que fosse capaz de os roubar. O Fera escolhia

criteriosamente os trabalhos que aceitava. Era muito prudente. Não

corria riscos por dá cá aquela palha, e era isso que explicava a sua

longevidade no ofício. Deixara de assaltar bancos porque a margem de

aleatoriedade era excessiva. No meio, todos o conheciam e respeitavam.

O Estónio era a única pessoa que sabia do papel de Sophie.

Chamava-lhe a «amiguinha». O Fera não trabalhava com ninguém, a não

ser ela. Fora o Estónio que propusera os assaltos de Saragoça e de San

Remo, entre outros. E, dois meses antes, propusera o de Genebra.

***

Dois meses antes

29 de abril de 2022

No ferry Tallinn-Helsínquia, algures a meio do mar Báltico.

Sozinhos no convés batido pelo vento, o Estónio e o Fera bebiam café. O

Estónio, que tinha o sentido da hospitalidade, trouxera com ele uma

garrafa térmica e duas chávenas de plástico.

— Tenho um bom trabalho para ti — disse ao Fera, num francês sem

sotaque. — Na cidade da tua «amiguinha».

— Em Genebra?

— Sim. Um joalheiro que se endividou. O imbecil comprou, por

uma fortuna, peças que não consegue vender. Diamantes cor-de-rosa que

ninguém quer. Demasiado grandes, demasiado caros, sei lá eu.

Resumindo, o tipo quer ser assaltado para ter direito à indemnização do

seguro. São cinco diamantes que valem vinte e cinco milhões de euros.

Fazes o golpe e eu compro-tos a quinze por cento do seu valor.

O Fera reagiu logo.

— Quero vinte por cento.

— Cinco milhões por um assalto que vai ser uma brincadeira de

crianças é demasiado. O joalheiro forneceu todas as informações sobre o


acesso à loja, os horários dos empregados e os sistemas de vigilância. Só

tens de chegar lá e servir-te.

— O meu preço é este.

O Estónio não quis ofender o Fera com uma contraproposta.

— Negócio fechado — disse, estendendo-lhe a mão.

O Fera apertou-a, e depois propôs uma data.

— Vou tratar do assunto no início de julho — disse.

— Era melhor se fosse antes.

— Impossível — declarou o Fera.

— Não há impossíveis para ti. Deves ter uma boa razão.

— A 20 de junho é o aniversário da Sophie.

O Estónio sorriu.

— E o assalto será o teu presente? — perguntou.

— Sim — respondeu o Fera, cujo rosto se iluminou com um enorme

sorriso.

— Tu só sorris quando falas dela — observou o Estónio. — Está

bem, fica então para o início de julho.

***

No Esconderijo, enquanto o Fera recordava a sua última conversa

com o Estónio, Sophie seguia com preocupação, na Internet, as

informações sobre a tentativa de assalto na loja da Cartier. Estava

furiosa.

— Não acredito que tenhas feito isto! — insurgiu-se. — És um

inconsciente! Então vais usar o Arpad como manobra de diversão?

O Fera nunca tencionara recorrer a Arpad para o assalto à joalharia

Stafforn. Esse devia ser o seu momento com Sophie.

— Garanto-te que quando planeei este assalto a fingir na loja da

Cartier não sabia ainda que ele nos poderia ser útil.

— Útil?

— Quero dizer, que a polícia desconfiaria de alguma coisa e que isso

serviria de distração.

— O Arpad não era para ser incluído nisto!


— Foi ele que insistiu em juntar-se ao assalto!

— Não! Não! Foste tu que estiveste na origem disto tudo, com as

tuas provocações! Se não tivesses aparecido, o Arpad nem sequer

suspeitaria que estavas em Genebra e faríamos o nosso golpe nas

calmas!

— Foste tu que me convidaste para a vossa casa — lembrou o Fera.

— Porque tu insististe e eu quis agradar-te, como uma idiota!

Este comentário magoou-o. Era o seu último momento com ela e,

em vez de o aproveitarem, estavam para ali a discutir.

— O Arpad pensava que eu queria usar os seus préstimos num

assalto, por isso tive de encenar a coisa — justificou-se o Fera. —

Inventei este assalto na loja da Cartier porque o vi a ir lá para te comprar

o anel. O meu plano manteve-se. Mas foi unicamente para te proteger, a

ti. O que é que eu podia fazer? Revelar-lhe que eras tu a minha

cúmplice?

— Foi o que acabaste por fazer!

— Porque o caos estava instalado.

— Por tua causa! — indignou-se Sophie.

— Pouco importa — defendeu-se o Fera. — O que estou a tentar

explicar-te é que, quando o Arpad percebeu que este assalto seria feito

por nós os dois, insistiu em participar.

— Tinhas de lhe dizer que não!

— Nesse caso, ele iria pedir-te que renunciasses. Ele queria mesmo

estar presente para te proteger, para se assegurar de que escaparias ilesa.

Mas ele não tem qualquer experiência neste tipo de coisas, era um risco

muito grande pô-lo a participar. Por isso enviei-o à loja da Cartier, não

explicando evidentemente que se tratava de uma manobra de diversão,

porque talvez recusasse esse papel. E como combinámos, ele e eu, não te

dizer nada até ao último momento, nunca chegou a saber que não iria

participar no verdadeiro assalto.

Sophie compreendia agora por que razão Arpad permanecera em

Genebra, com o pretexto do encontro com Julien, supostamente para lhe

oferecer um emprego. Fora ingénua.

Voltou a consultar as notícias atualizadas sobre a intervenção

policial na loja da Cartier.


— Dizem que foi detido um suspeito — leu ela, com preocupação.

— Só pode ser ele!

— O Arpad não corre risco nenhum — assegurou o Fera. — Não

houve assalto. Os bófias não têm nada contra ele.

— E se estabelecerem uma ligação com a Stafforn?

— Se a polícia já tivesse descoberto o verdadeiro assalto, a

comunicação social falaria disso.

— Não necessariamente — disse Sophie. — Não o farão se os

polícias fizerem a ligação entre os dois casos e perceberem que a Cartier

foi só um engodo.

O Fera esforçou-se por tranquilizá-la.

— E mesmo nesse caso, em que é que poderão pegar? — perguntou.

— O Arpad tem o melhor dos álibis possíveis: estava na loja da Cartier

no momento do assalto real. Estás a apoquentar-te por nada. O Arpad é

mais sólido do que julgas. Vai sair disto sem problemas.

No mesmo instante, a poucos quilómetros dali, em Cologny.

Como combinado, os pais de Karine acabavam de chegar à Verruga

para ir buscar os netos. Agnès ficou preocupada com o mau aspeto da

filha.

— Está tudo bem, minha querida? — perguntou.

— Sim, sim. Tudo ótimo.

— O Greg não está?

— Teve uma pequena urgência no trabalho. Estará de volta ao meio-

dia e partimos logo a seguir.

No Esconderijo, o Fera espreitava o horizonte pela janela.

— Já vai sendo tempo de ir embora, não? — perguntou Sophie.

Ela devia pegar no Peugeot cinzento e voltar a Saint-Tropez. Quanto

mais rápido, melhor, mas o Fera tinha vontade de prolongar aquele

momento. Previra beberem champanhe e comerem caviar para

festejarem o último assalto. Mas sentia que ainda não era o momento

certo para ir buscar as vitualhas. Queria apenas apreciar um derradeiro

instante na companhia dela. A última recordação que teria deles os dois.

Depois disso, ele desapareceria da vida dela para sempre, não apenas

para cumprir a sua promessa, mas porque compreendera o seu erro: os


assaltos eram a verdadeira jaula de Sophie. Impediam-na de viver

plenamente a sua existência em Genebra. Era na Casa de Vidro, com

Arpad e os filhos, que ela desabrocharia dali para a frente.

Ele tinha de desaparecer para que Sophie pudesse usufruir da sua

liberdade.

Se ele a amava verdadeiramente, teria de renunciar a ela.


Onze da manhã, no quartel-general da polícia judiciária.

Arpad estava a ser interrogado nas instalações da brigada criminal.

Sentia — mas sem compreender porquê — que a situação se alterava a

seu favor. No momento da detenção brutal, na loja da Cartier, acreditou

que tudo estava perdido. Mas após uma breve passagem pela cela,

tinham-no conduzido, sem algemas e com todo o respeito, a uma sala de

interrogatório. Uma jovem inspetora ia fazendo perguntas, sem ser

agressiva, e na verdade sem o acusar fosse do que fosse. Sobretudo, não

pronunciara uma única vez a palavra «assalto».

Marion Brullier perguntou a Arpad pela terceira vez:

— O que é que fazia na loja da Cartier?

— Já lhe disse: comprei na semana passada um anel do qual um

diamante se soltou. Posso saber o que se passa? E por que motivo fui

tratado como um malfeitor?

Ela ignorou as perguntas.

— Houve um incidente na loja da Cartier — limitou-se a dizer. —

Pode explicar-me o que viu?

— Um incidente? Eu nem lhe chamaria isso. Foram eles que

chamaram a polícia?

Marion não tinha grande margem de manobra: Arpad podia

abandonar as instalações se assim o desejasse. Mas, por enquanto, ele

ainda não se apercebera de que o podia fazer. Ela tentava forçá-lo a falar.

— O que é que se passou na loja da Cartier? — insistiu ela.

— Levei o anel defeituoso para que o reparassem. O anel caiu ao

chão sem que ninguém se apercebesse e isso gerou uma grande

confusão. A segurança interveio e montou-se todo um circo

absolutamente escusado. Foram eles que vos chamaram? Foi por isso

que me atiraram ao chão e algemaram? Sabe, tenciono apresentar

queixa.

Arpad dissera esta última frase para testar a inspetora. Ela não o

contradisse. Quereria isto dizer que não tinham nada contra ele? Mas

havia uma questão que o preocupava mais do que tudo o resto: o que

acontecera a Sophie e ao Fera? Faltavam-lhe peças do puzzle, mas

esforçava-se por não o deixar transparecer diante da agente policial.


Marion retomou o fio à meada.

— Por que razão está em Genebra? — inquiriu.

— Eu moro em Genebra — respondeu Arpad de pronto.

— A sua mulher e os seus filhos viajaram ontem para Saint-

Tropez…

— Como é que sabe isso?

Ela ignorou mais uma vez a pergunta dele.

— Porque não foi com eles?

— Justamente, esperam-me hoje.

— E porque não partiu ontem?

— Tinha um encontro ao fim do dia, para perspetivar um eventual

novo emprego num fundo de gestão de fortunas. Era a primeira

verdadeira oportunidade de trabalho em meses, pelo que Saint-Tropez

podia esperar. Desculpe, mas de que é que me acusam ao certo?

Marion sentia que não poderia manter Arpad à sua guarda durante

muito mais tempo. Usou por isso os últimos trunfos.

— Conhece um homem chamado Philippe Carral? — perguntou de

chofre.

Arpad ficou paralisado. Mas logo se recompôs, ao recordar os

conselhos prodigalizados por Sophie, na véspera, no recato do Porsche,

a meio do túnel de lavagem. «Se os chuis te falarem do Fera, diz-lhes

toda a verdade. É por aí que te podem apertar. Eles estão muito bem

informados, não os subestimes, não os tomes por idiotas.»

— Estive na prisão com o Philippe — explicou Arpad. — Foi há

mais de quinze anos. Detiveram-me preventivamente em França, sem

motivos para tal, mas o caso acabou por ser arquivado. Um estúpido

mal-entendido, a propósito de um automóvel que eu devia levar de

Londres a Saint-Tropez, para fazer o jeito a uma pessoa…

— E depois da prisão, voltou a encontrar-se com ele?

— Sim, primeiro em Saint-Tropez. Ele protegera-me na prisão, por

isso quis ajudá-lo cá fora. Arranjei-lhe trabalho, mas ele não o aguentou

muito tempo. Acabámos por nos perder de vista quando me vim instalar

aqui, em Genebra.

— E nunca mais o viu?

— Não o vi durante quinze anos. Mas é curioso que fale dele,

porque na semana passada reapareceu, como que vindo do nada.


— O que é que ele lhe queria?

— Não sei ao certo. Dinheiro, acho. Ele é um marginal, sabe?

Seguiu-me em duas ocasiões, mesmo ali no limite do assédio. No

passado sábado, cheguei a vias de facto com ele. Dei-lhe uma tareia.

Desde então, não voltei a ouvir falar dele…

Neste momento, Marion disse-lhe:

— O senhor está a mentir.

Em silêncio, a inspetora pousou duas fotografias à frente de Arpad,

captadas três dias antes, diante do Museu de História Natural. Numa,

via-se Arpad a entrar com os filhos no edifício. Na outra, o Fera a fazer

a mesma coisa.

— Encontrou-se com Philippe Carral no Museu de História Natural

na passada quarta-feira.

Arpad vacilou.

Pensou novamente no que Sophie lhe dissera: «Se num dado

momento sentires que estás a perder o pé, lembra-te que conseguiste

esconder de mim, durante meses, o facto de teres sido despedido. Sabes

endrominar as pessoas. Não leves isto a mal, não é uma crítica. É uma

força tua.»

Ele não se deixou ficar:

— Ora essa! Ele queria era ajustar contas comigo, depois da nossa

cena de pancadaria no sábado. E só confirma o que lhe disse, esse

maluquinho segue-me por todo o lado! A propósito, eu quero apresentar

queixa contra ele. Acho que só vamos lá com uma ordem de restrição ou

qualquer coisa desse tipo.

— Portanto não o viu no museu?

— Se eu o vi no museu? Se eu o tivesse visto, cara inspetora,

provavelmente não estaria à sua frente agora. Duvido muito que ele fosse

ali para ver os animais empalhados. Imagino que só não ousou atacar-

me por estarmos num espaço público.

— Está então a afirmar que depois da altercação de sábado passado

não voltou a ter contacto com ele? — perguntou Marion.

— Isso mesmo. Não tive contacto nenhum.

Marion exibiu um sorriso vitorioso. E fez ouvir um registo sonoro.

Arpad: Alô?
Voz de homem: Sábado de manhã conto contigo.

Arpad: Não alinho.

Voz de homem: Não podes não alinhar. Prometeste-me que o

farias.

Arpad: Já te disse que não alinho!

— Você falou ao telefone com Philippe Carral na quarta-feira de

manhã — disse Marion. — Algumas horas antes de se encontrar com

ele no Museu de História Natural…

Arpad estremeceu. Sophie, na véspera, avisara-o: «É possível que

eles tenham gravado conversas tuas com o Fera, mas não poderão

confirmar que se trata mesmo dele.» Como é que ela conseguira antever

isto? Sentia-se ultrapassado pela situação, mas esforçou-se para se

manter concentrado e seguiu à risca as preciosas indicações da sua

mulher. «Se te mostrarem essas conversas, dizes que…»

— A conversa foi com Elmar, um amigo estónio — explicou Arpad.

— Um amigo estónio? — repetiu Marion.

— Um amigo que vive na Estónia, se preferir.

— O que é que ele lhe queria? Parece ser muito insistente, no

telefonema.

«Diz que o Elmar te pediu para comprares, para ele, um relógio de

coleção num leilão privado», sugerira-lhe Sophie.

— Queria que eu lhe comprasse um relógio num leilão privado —

explicou Arpad. — Mas eu não estava para isso, até porque queria ir

para Saint-Tropez. Mandei-o dar uma curva. Consegue ser muito chato,

o Elmar: damos-lhe a mão e ele quer logo o braço todo. Pode ligar-lhe,

se quiser verificar a veracidade do que estou a dizer.

— Nós tentámos — disse Marion —, mas o telemóvel dele está

sempre desligado.

Arpad, sentindo que aquele era o momento da verdade, decidiu jogar

o tudo por tudo.

— Posso perguntar-lhe com que direito é que gravaram as minhas

conversas telefónicas? — perguntou então, indignado. — Exijo saber

agora mesmo a razão por que me retêm aqui.

Marion começava a ficar sem munições. Retorquiu simplesmente:

— Já volto. Não saia daqui.


Abandonou a sala e entrou numa divisão adjacente, onde o

procurador e outros polícias, entre os quais Greg, acompanhavam o

interrogatório.

— Ele tem resposta para tudo — disse o procurador. — Não tenho

nada que o incrimine. Nem sequer aconteceu um assalto. Vamos ter de o

deixar ir.

— Ele está a aldrabar-nos — disse Greg, exasperado. — Tenho a

certeza de que aquela voz é do Philippe Carral, e não de um suposto

amigo estónio!

— Não temos maneira de confirmar a quem pertence a voz —

lembrou o procurador. — A menos que consigam deitar a mão ao

Carral. E sobretudo: será preciso lembrar de novo que não houve

qualquer assalto? Obrigadinho pela dica!

Greg consumia-se interiormente. Tinha vontade de gritar tudo o que

sabia. Que instalara uma câmara no quarto dos Braun e que há dois dias

ouvira uma conversa entre Arpad e, provavelmente, o Fera, a propósito

do assalto. Haviam arquitetado todo um plano em que Arpad entraria

pela porta da frente, e o Fera pelas traseiras, com Sophie. Mas, se

revelasse a existência da câmara diante do procurador, a sua carreira

terminava ali mesmo. E tudo isso para nada: o assalto nem sequer

acontecera! Ou então ainda não acontecera. Eles estavam todos a ser

endrominados e isso deixava-o louco.

Pensou no segundo telemóvel, escondido atrás do rodapé do quarto

do casal. Ele vira Arpad a utilizá-lo em duas ocasiões, para falar com o

Fera. Se os investigadores lhe deitassem a mão, tudo mudaria.

— É preciso um mandado de busca para a casa dos Braun! —

exclamou ele, apanhando toda a gente de surpresa.

A proposta, no contexto da conversa entre os investigadores e o

procurador, parecia particularmente incongruente.

— Não se pode emitir um mandado de busca sem uma acusação

formal prévia — lembrou o procurador.

— Havemos de descobrir um motivo — respondeu Greg, sem

refletir.

— Mas nós não temos nada! — contrapôs o procurador, irritado. —

Falhámos em toda a linha. Fomos ridicularizados. E já perdemos

demasiado tempo e recursos com este caso. É preciso libertar Arpad


Braun. E abandonar a vigilância. A partir de agora, não há nada que a

justifique.

Na sala de interrogatórios, Arpad lembrava o último conselho de

Sophie: «Se te falarem do telemóvel escondido no nosso quarto por trás

do rodapé, dizes que o usavas para falar com os teus clientes, no banco,

clientes que não tinham necessariamente declarado os seus ganhos e que

temiam que as linhas oficiais estivessem sob escuta.»

A inspetora não mencionara o telemóvel escondido, mas este

comentário de Sophie perturbava-o: como é que a polícia podia ter

sabido que havia um telemóvel atrás do rodapé? Compreendeu nesse

instante que Sophie sabia algo que ele ignorava. Mais uma vez, ela não

lhe dissera tudo. Mas não teve tempo de pensar mais sobre isto, porque

Marion reapareceu na sala de interrogatório e anunciou-lhe:

— Ninguém o vai reter aqui. Pode ir-se embora quando quiser.

Depois de sair da esquadra, Arpad apanhou um táxi. Direção: bairro

de Tranchées, para recuperar o seu carro. O motorista, muito falador,

perguntou a Arpad:

— Ouviu falar do que aconteceu esta manhã na rue du Rhône?

Arpad não disse nada, mas o motorista fez questão de lhe contar:

— A polícia acreditou que estava a haver um assalto na loja da

Cartier. Por isso invadiram o sítio, com o corpo de intervenção. Foi uma

confusão do caraças.

— Como assim, «a polícia acreditou que estava a haver um assalto»?

— Não sei que raio de confusão inventaram eles, mas o certo é que

meteram a pata na poça. Na Internet, diz-se que foi um mal-entendido. E

não fizeram a coisa por menos: foi logo o corpo de intervenção e tudo.

Até rebentaram com a porta da loja, veja lá. Saiu caro, o mal-entendido.

E sabe com que dinheiro é que o Estado vai reembolsar os estragos?

Com o dinheiro dos nossos impostos! É um escândalo!


Arpad já não percebia nada do que estava a acontecer. Onde é que

parava a Sophie? E o Fera? Lembrou-se do Esconderijo de que Sophie

lhe falara. Para evitar que o seu automóvel fosse visto por lá, decidiu

fazer o percurso no táxi.

— Mudança de destino — disse ele ao motorista. — Vamos para

Jussy.
O meio-dia soou no campanário da igreja da pequena aldeia de

Jussy.

O táxi seguiu pela rua principal. Continuou depois por uma estrada

que serpenteava entre searas de trigo. A paisagem não podia ser mais

bucólica.

Arpad viu ao longe a exploração agrícola. Soube que era ali porque

Sophie falara de um grande letreiro de madeira que anunciava a venda

de ovos frescos. «No letreiro, viras à esquerda e continuas até às casas

da quinta. É aí.» Deu a indicação ao motorista.

O automóvel passou em frente a uns armazéns e, mais adiante,

Arpad vislumbrou os edifícios a que Sophie se referira. Depois reparou

igualmente no Peugeot cinzento do Fera. Tinha chegado ao Esconderijo.

Pediu ao taxista para o deixar ali.

Não se apercebera do veículo que o seguira discretamente desde que

abandonara, pouco antes, as instalações da polícia judiciária.

É certo que o procurador dera ordens para levantar a vigilância a

Arpad, mas Greg fez orelhas moucas. Decidido a provar a todos os seus

colegas que estavam redondamente enganados, seguiu Arpad desde que

este deixou a esquadra, no táxi. Ao ver que o taxista conduzia para fora

da cidade, Greg compreendeu que algo estava a ser tramado às

escondidas.

Para não dar nas vistas, mantivera uma razoável distância na

perseguição e acabara por perder o rasto do táxi à saída da aldeia de

Jussy. Deduziu que este teria decerto virado para um dos muitos

caminhos agrícolas. Mas qual?

Estava prestes a dar meia-volta quando viu o táxi de regresso, sem o

passageiro. Greg colocou sobre o tejadilho a luz azul giratória e fez sinal

ao taxista para este parar.

— Onde é que deixou o seu cliente? — perguntou.

— Ali à frente, numa quinta. O senhor vai por esta estrada e quando

vir a tabuleta a dizer «vende-se ovos frescos» vira à esquerda e depois

segue pelo caminho até chegar a um conjunto de casas. Primeiro vai ver

uns armazéns, mas não é aí. Tem de andar mais um bocadinho.


No Esconderijo, o Fera, demasiado envolvido na sua conversa com

Sophie, não reparou na chegada do táxi.

Decidira-se a abrir o champanhe para aproveitar os últimos

momentos com ela. Depois, teria de se ir embora.

— À tua — disse o Fera, brindando com Sophie.

— À nossa — respondeu Sophie.

O Fera bebeu um gole de champanhe. Teve finalmente coragem de

lhe confessar:

— Tu és a coisa mais bela que alguma vez me aconteceu.

Abraçaram-se e ele murmurou:

— Amei-te toda a minha vida.

— Eu sei — disse-lhe Sophie, com ternura.

Nesse instante, a maçaneta da porta do apartamento começou a

estremecer. Alguém tentava entrar, mas a porta estava trancada. O Fera,

numa fração de segundo, pegou na sua arma e aproximou-se

silenciosamente do óculo.
— Arpad? O que é que fazes aqui? — perguntou o Fera, tresloucado,

depois de o deixar entrar em casa.

Sophie correu para o marido e abraçou-o.

— Foda-se, Soph’! — exclamou o Fera. — Foste tu que lhe

explicaste como vir até aqui. Onde é que tens a cabeça?

Arpad contorceu-se ao ouvir o Fera usar também o diminutivo

Soph’.

— Estão a gozar comigo? — perguntou Arpad, enervado, ao ver a

garrafa e as duas flutes. — E por que raio estão a beber champanhe? Não

deviam antes ter levado o vosso estúpido assalto até ao fim? O que é que

se passa afinal, porra?

— O assalto aconteceu — disse Sophie. — Só que os bófias ainda

não sabem.

— Do que é que estás a falar? — perguntou Arpad, confuso.

— A parte na Cartier foi um engodo — confessou então o Fera.

— Um engodo? Como assim, um engodo? Usaram-me, é isso?

— Não era essa a ideia inicial — explicou o Fera. — Quando

acreditaste que era a ti que eu propunha participar no assalto, e

combinámos um encontro no Caravelle, inventei um golpe na Cartier

porque não te podia revelar que a tua mulher era uma ladra.

— E depois disso? — questionou Arpad. — Porque é que ainda

assim me mandaram para a Cartier?

— Era demasiado arriscado envolver-te no verdadeiro assalto.

— Então, se compreendi bem, mandaste-me para a loja da Cartier

para ficares descansadinho com a Sophie e fazerem a vossa cena os dois,

nas calmas. Que joalharia é que assaltaram?

— A Stafforn, na parte antiga da cidade — respondeu-lhe Sophie. —

Mas eu não fazia ideia dessa manobra de diversão criada pelo Fera. Nem

sequer da tua intenção de participares no assalto.

— Mas se não houve assalto na loja da Cartier, porque é que a

polícia apareceu lá em peso? — perguntou Arpad. — Os polícias até me

falaram de ti, Fera. O meu telemóvel estava sob escuta. Eles pareciam

estar ao corrente de tudo.


— Eles estavam efetivamente ao corrente de tudo — disse o Fera —,

e nós sabíamos disso.

— Como assim, vocês sabiam disso? — estrebuchou Arpad. — O

que é que vocês sabiam?

Sophie admitiu então:

— Na quarta-feira à tarde, a Karine veio ter comigo.

***

Três dias antes do assalto

Quarta-feira, 29 de junho de 2022

Sophie regressava do seu intervalo para o almoço quando deu de

caras com Karine, que a esperava à frente do edifício onde ficava o seu

escritório de advocacia.

— Olá, minha linda — cumprimentou Sophie, pensando que o

encontro era fruto do acaso.

— Deixa-te de tretas! — rosnou Karine. — Não passas de uma

cabra!

Sophie caiu das nuvens.

— Calma, Karine, o que é que se passa?

— Sei que andas enrolada com o Greg! — gritou Karine, a tremer de

raiva.

Sophie, que não percebia nada do que se estava a passar, tentou

acalmar os ânimos.

— Espera, espera, acho que estás a fazer uma grande confusão.

Porque é que não vamos esclarecer tudo no meu gabinete? — propôs.

Véronique estava ausente do escritório naquele dia: as duas mulheres

ficariam a sós. Sophie sugeriu a Karine que se sentassem na sala de

reuniões, mas Karine estava demasiado furiosa para se conseguir sentar.

Ficaram as duas, frente a frente, na entrada exígua do escritório.

— Queres um café? — propôs Sophie, desconfortável.

— O que quero é que tu desapareças!


— Ouve, não faço ideia do que te leva a pensar que há qualquer

coisa entre mim e o Greg, mas garanto-te que é mentira. Absolutamente

falso!

— Não me tomes por idiota, por favor! De qualquer forma, é mais

do que óbvio que precisas de agradar a todos os homens.

— Karine, já chega! Não tenciono deixar que me insultem assim.

Estás visivelmente descontrolada. Por isso, ou me dizes o que se passa,

ou põe-te a andar.

— Recebi uma carta anónima a dizer que o Greg me engana.

— Comigo?

— Quem escreveu a carta não entrou em detalhes. Mas eu encontrei,

no telemóvel do Greg, um vídeo em que tu te masturbas.

— O quê?! — exclamou Sophie, chocada. — Mas isso é impossível!

— Oh, acredita, eras mesmo tu!

— Karine — repetiu Sophie —, é impossível! Eu nunca te faria tal

coisa. Nem dormir com o Greg, nem prejudicar-te, nem fazer-te mal

fosse de que maneira fosse.

— Porque é que haveria de acreditar em ti?

— Porque…

Sophie parou. Como se hesitasse. Depois avançou:

— Porque tu és uma das minhas poucas amigas. Talvez a única

pessoa com quem eu me sinto verdadeiramente… eu mesma.

Karine riu-se de forma cínica.

— E todas aquelas pessoas que estavam na festa de aniversário do

Arpad? — perguntou.

— Eram a Verónique, minha colaboradora. O Julien, um bom amigo

do Arpad, e a sua mulher, Rebecca. Uns primos do Arpad. E alguns

conhecidos… Vês, afinal não sou assim tão popular como tu julgavas.

Mas nessa festa fiz uma amiga. Uma pessoa completa, íntegra, divertida,

espantosa. Tu.

Karine olhou Sophie nos olhos. Sentia-se presa num turbilhão de

sentimentos contraditórios. Por fim, disse-lhe:

— A polícia pôs uma câmara no vosso quarto. Foi assim que o Greg

teve acesso àquele vídeo em que te masturbas.

— O quê?

— A polícia suspeita que o Arpad tenciona fazer um assalto.


Instalou-se um silêncio pesado. As duas mulheres observaram-se

mutuamente. Karine, à beira das lágrimas, disse então:

— Se isto for verdade, desapareçam para um lado qualquer, tu e o

Arpad, para muito longe, antes que a polícia vos apanhe. Não quero que

o Arpad vá preso, e que tu fiques sozinha, na tua grande casa a dois

passos da nossa. Isso seria péssimo para o Greg. Ele passaria o tempo a

querer ajudar-te e apoiar-te. Eu conheço-o. Já o oiço a dizer-me:

«Independentemente do que o Arpad possa ter feito, temos de apoiar a

Sophie. É uma amiga.» Isso tudo para andar à tua volta, como um

cãozinho à espera de festas. Vais enlouquecê-lo. Na verdade, já o

enlouqueceste. Mas até agora eu estava demasiado cega por ti para me

dar conta disso. Desde o aniversário do Arpad, o Greg está como que

enfeitiçado. Desde essa noite, nunca mais foi o mesmo homem. Mas eu

estou decidida a recuperar o meu marido, Sophie. Ele é tudo o que

tenho.

***

— Há uma câmara no nosso quarto? — disse Arpad, siderado com o

relato de Sophie.

— Sim. Instalada na parte de cima do nosso armário. Um aparelho

de alta tecnologia. Uma coisa usada pela polícia.

— Mas como é que isso é possível?

— Não faço ideia. Mas quando contei ao Fera, ele viu nisso uma

oportunidade.

O Fera explicou então:

— Com a Sophie, fiz a lista do que os polícias poderiam saber se

tivessem enchido a vossa casa de microfones e câmaras, e posto os

vossos telemóveis sob escuta. Pensámos em todas as conversas que eles

poderiam ter ouvido. Eu e a Sophie tínhamos o nosso próprio protocolo

de segurança há muito tempo, justamente para manter a vossa família

afastada de tudo isto.

— Referes-te ao vosso telemóvel secreto?


— Entre outras coisas — concordou o Fera. — Para ser totalmente

franco, o telemóvel escondido em vossa casa era uma linha de socorro.

Mas como tu o descobriste, sabíamos que esse telemóvel estava

comprometido. E que os polícias talvez o tivessem visto com recurso à

câmara. Tal como eu cometi o erro de te ligar para o telemóvel, na

quarta-feira de manhã, quando estavas provavelmente sob escuta.

Resumindo, disse à Sophie que as suspeitas convergiam para ti e que

todos os polícias da cidade andariam na tua peugada, o que nos deixaria

via aberta para o nosso assalto.

Sophie continuou:

— O Fera convenceu-me de que esta manhã, enquanto estivéssemos

a assaltar a joalharia, os polícias estariam ocupados a vigiar-te em casa.

— Foi por isso que me deste aqueles conselhos todos no túnel de

lavagem? — deduziu Arpad.

— Exatamente. Mas eu, nesse momento, ainda não sabia do falso

assalto à Cartier.

Arpad virou-se para o Fera.

— Tu passaste-nos a perna, a mim e à Sophie, e mandaste-me para a

Cartier para que os polícias acreditassem que o assalto aconteceria ali —

disse.

— Não podia desaproveitar uma oportunidade destas — justificou-se

o Fera. — Graças a ti, ficámos com via aberta.

— Mas como é que podias ter a certeza de que a coisa funcionaria

na Cartier? — perguntou Arpad.

— Nas joalharias, os protocolos de segurança são todos iguais. Uma

brincadeira de crianças.

Arpad estava siderado. O Fera, olhando para o relógio, declarou

então:

— Está na hora de nos pormos a andar.

Espreitou maquinalmente pela janela que dava para o pátio e

exclamou:

— Foda-se, está ali um polícia!

Greg, no seu uniforme de intervenção, inspecionava o Peugeot

cinzento.

O Fera fechou o cortinado e sacou da arma. Precipitou-se para as

outras janelas e espreitou os espaços à volta.


— O que é que fazemos? — perguntou Sophie, com o coração aos

pulos.

— Não vejo ninguém lá atrás. Leva o Arpad contigo e segue o

protocolo de emergência.

— E tu? — perguntou Sophie, preocupada.

O Fera encolheu os ombros e repetiu:

— Leva o Arpad contigo e segue o protocolo de emergência!

Ela obedeceu. Pegou na mão de Arpad e levou-o para o quarto.

Saíram pela janela e, protegidos pela fachada do edifício, caminharam

pela saliência até ao primeiro piso do celeiro.

O Fera viu-os desaparecer e murmurou:

— Adeus Sophie, amei-te tanto…

Depois abriu a porta de entrada do Esconderijo, empunhando a

pistola, e começou a disparar na direção de Greg.

Sophie e Arpad desciam a escada do celeiro quando ouviram a troca

de tiros. As detonações vinham do pátio. Sophie dirigiu-se para uma

portinhola em madeira, ao fundo do celeiro. Abriu-a e pôs a cabeça de

fora, espreitando os campos. Ninguém. O caminho estava livre.

Metendo-se através da portinhola, saltou para fora do celeiro e disse a

Arpad que a seguisse. Este, grande de mais, ficou entalado pela cintura.

Preso na armadilha.

No pátio, o tiroteio continuava. O Fera, a partir da escada exterior do

apartamento, fustigava Greg com um fogo contínuo, obrigando-o a

esconder-se atrás de uma máquina agrícola.

Se, de início, o Fera esperava enfrentar uma coluna do corpo de

intervenção, agora constatava que o polícia estava sozinho. Era estranho.

Os disparos cessaram durante um período breve.

Sophie agarrou Arpad pelos braços e puxou-o com força. Ele

conseguiu libertar-se. Correram então a toda a velocidade em direção à

floresta. Já não se ouviam tiros.

O Fera já não conseguia ver o polícia. Desceu as escadas e avançou

com prudência. Ouviu um ruído e virou-se bruscamente. Nada. De


súbito, Greg apareceu à sua frente e não parou de disparar.

Nove balas atingiram-no em cheio no peito; uma, na cabeça.

Sophie estremeceu ao ouvir a rajada. Já estavam na floresta, a salvo,

por trás de um renque de árvores. Ela parou um instante e olhou na

direção da quinta, já fora do seu campo de visão. Depois caminhou até

ao bosque mais à frente. Destapou a moto, deu um capacete a Arpad,

enfiou na cabeça o dela. Agarrou o guiador, com Arpad atrás. Ligou o

motor e a moto acelerou pelo caminho florestal.


Uma da tarde, em Jussy.

A exploração agrícola estava cercada pela polícia. Os campos e a

floresta em volta foram passados a pente fino pela unidade cinotécnica.

No pátio, diante das casas da quinta, Greg estava a ser examinado por

um paramédico. Uma simples verificação. Ele não tinha nada. Via os

especialistas da polícia forense a recolherem indícios em torno do corpo

do Fera. Marion Brullier, enviada para ali com os seus colegas da

brigada criminal, aproximou-se de Greg.

— Estás bem? — perguntou.

— Estou.

Pousou-lhe a mão no ombro, amistosa.

— Confirma-se que é o Philippe Carral? — perguntou Greg.

— Parece que sim. Em breve teremos a certeza, com a análise de

ADN. Ele estava sozinho?

— Só o vi a ele. Mal cheguei, apareceu de repente no cimo das

escadas e começou a atacar-me.

— Como é que soubeste que ele estava aqui?

— Tive a sorte de me cruzar com o Peugeot cinzento, quando

voltava para casa — mentiu Greg. — Depois segui-o.

Manteve esta explicação, considerando inútil mencionar Arpad. Não

havia qualquer vestígio dos Braun na quinta e temia que a sua

obstinação acabasse por lhe causar dissabores, devido à questão da

câmara que instalara na casa deles.

Já era mais do que tempo de virar a página dos Braun.

Queria esquecer Arpad.

Esquecer Sophie.

Queria apenas voltar para casa, reencontrar a sua mulher e partir

com ela numa viagem a Itália.

Mas, de regresso à Verruga, encontrou a casa estranhamente

silenciosa. Sandy não o veio receber. A mala de Karine desaparecera.

Compreendeu logo que ela se fora embora. Que o abandonara.

Na cozinha, uma mensagem lacónica, escrita à mão:

Fizeste a tua escolha.


Greg ficou de rastos.

***

Quatro da tarde, na parte antiga de Genebra.

A joalharia Stafforn parecia fechada. Durante todo o dia, os clientes

encontraram a porta trancada. O mesmo aconteceu com a mulher do

gerente da loja que, preocupada por não conseguir falar com o marido,

acabava de chegar às instalações. Compreendendo que havia algo de

errado, a senhora deu o alerta. A polícia apareceu em força e descobriu,

no interior da loja, o gerente, os empregados e um segurança, todos com

as mãos atrás das costas, atadas com fios de plástico.

***

No mesmo momento, Arpad e Sophie seguiam a alta velocidade pela

autoestrada do Sul de França. Depois de fugirem do Esconderijo, tinham

ido na moto até ao centro de Genebra. Abandonaram-na no bairro de

Tranchées, perto do sítio onde estava estacionado o automóvel de Arpad,

no qual se fizeram ao caminho, em direção a Saint-Tropez.

Às seis e meia da tarde, pararam finalmente à porta da casa dos pais

de Sophie. Ao ouvirem o som do motor, Isaak e Léa saíram para receber

os pais. Seguidos por Bernard e Jacqueline.

Arpad precipitou-se para junto dos filhos, abraçando-os. Sophie

ficou ainda mais uns instantes dentro do carro. Tinha nas mãos um

pequeno saco de veludo que o Fera lhe entregara momentos antes de

Arpad surgir no Esconderijo. Lá dentro, os diamantes roubados. Mas

também um papelinho que ele deixara para ela:

Feliz aniversário

Amo-te para sempre

Fera
QUATRO MESES APÓS O ASSALTO

23 DE NOVEMBRO DE 2022

O assalto à joalharia Stafforn não chegou a ser elucidado.

A única certeza dos investigadores resumia-se ao facto de o Fera ter

sido um dos responsáveis. No seu esconderijo, encontraram roupas

idênticas às usadas por um dos assaltantes. Um boné e um lenço, que

correspondiam exatamente aos que eram visíveis nas gravações da

videovigilância.

Mas nem o seu cúmplice nem os objetos do roubo foram

encontrados. Os investigadores não tinham quaisquer pistas.

Debruçaram-se evidentemente sobre o casal Braun, mas Arpad dispunha

de um sólido álibi: no momento do assalto, estava na loja da Cartier.

Quanto à sua mulher, Sophie, não saíra de Saint-Tropez. Segundo os

dados obtidos, o seu telemóvel permanecera na casa dos pais, o seu

automóvel não saíra do lugar e tanto Bernard como Jacqueline

confirmaram a presença de Sophie junto deles naquela manhã. Do

mesmo modo, não era possível estabelecer uma ligação entre ela e o Fera

com base numa presumível tatuagem comum, pois aquela que o Fera

exibia no peito desaparecera sob o impacto das balas. Só haviam restado

pequenos farrapos de carne com marcas de tinta, impossíveis de

identificar.

Enquanto, em Genebra, os investigadores da brigada criminal se

preparavam para deixar este caso de lado, devido à existência de casos


mais urgentes, algures a meio do mar Báltico, no convés de um ferry que

fazia a ligação entre Tallinn e Helsínquia, um trio conversava.

Sobre as águas pairava uma bruma. E chovia. Todos os passageiros

se haviam recolhido ao interior da embarcação. Menos eles.

Um homem, embrulhado num casaco espesso, com uma garrafa

térmica na mão, servia café em três chávenas de plástico.

— Estou contente por finalmente a conhecer — disse o Estónio a

Sophie. — O Fera falou-me muito de si.

— Sinto o mesmo — respondeu Sophie, ao pegar na chávena que o

outro lhe entregava.

Atrás dela estava o pai, Bernard. O Estónio ofereceu-lhe igualmente

café. Bernard agradeceu-lhe com um movimento da cabeça.

Sophie e o Estónio conversaram durante um bocado. Depois ela

entregou-lhe os diamantes, e o Estónio, em troca, passou para a sua mão

um saco cheio de notas. O homem afastou-se depois de se despedir

afetuosamente de Sophie. Era a primeira e última vez que a via, mas teve

a impressão de a conhecer havia quinze anos.

Sophie e Bernard ficaram sozinhos no convés.

Ela sorriu. Um sorriso triste. Depois, de olhos postos no horizonte,

desfez-se em soluços inconsoláveis.

Dos grandes lutos, o tempo não sara quase nada.


EPÍLOGO

Um ano e meio após o assalto

31 de dezembro de 2023
Greg ficou um momento a observar a Verruga, a partir do seu

automóvel.

Karine acabara de sair com os filhos, sem dar pela sua presença. Ele

ia ali quase todas as manhãs, para ver os seus. Sentia a falta da sua vida

familiar. Uma vez de quinze em quinze dias, os filhos passavam o fim de

semana com ele, no seu pequeno apartamento no bairro de Jonction. No

resto do tempo, sentia-se terrivelmente só.

Ao deixar a Verruga, fez um desvio pela floresta, mesmo ao lado.

Deixou o automóvel na berma da estrada e atravessou o bosque. Uma

caminhada curta. Ao fim de uns minutos, viu a Casa de Vidro aparecer

por entre as árvores. Aproximou-se discretamente do limite da

propriedade e observou, através dos grandes janelões, a família de

ingleses que vivia ali desde há umas semanas.

Um casal e os seus dois filhos. Tinham um ar simpático. Como os

Braun, mas em pior.

A nove mil quilómetros de Genebra, numa praia da Costa Rica,

Arpad e Sophie, abraçados sobre a areia, observavam os filhos a brincar

nas águas do mar das Caraíbas.

— Sabias que o bar está à venda? — disse Arpad, apontando para

uma barraca feita de tábuas de madeira, ao longe.

— E então? Queres comprar? — perguntou Sophie.

— Podíamos fazer isso e rebatizá-lo El Beatriz — brincou Arpad.

Ela desatou a rir-se.

— Diz isso ao meu pai quando ele vier visitar-nos na próxima

semana.

— Estou mesmo a ver a cara da tua mãe: «Quer dizer, ó Bernard,

não vais mesmo comprar um bar aqui, pois não?»

Ela continuou a rir e levantou-se.

— Vens ao banho?

— Vou já.

Ela caminhou até ao mar, juntando-se aos filhos.

Arpad contemplou com ternura a sua pequena família. Depois

admirou Sophie, que entrava lentamente na água. Ao ritmo dos seus


movimentos, a tatuagem na coxa parecia mexer-se.

Como se a pantera ganhasse vida.


Sobre este livro

No dia 2 de julho de 2022, um par de delinquentes

prepara-se para assaltar uma grande joalharia na

cidade de Genebra. O engenhoso plano em nada se

parece com um roubo comum.

Vinte dias antes, nas margens do lago Léman,

Sophie Braun está pronta para comemorar o seu

quadragésimo aniversário. Tem uma vida de sonho:

mora com a família numa mansão cercada pela

floresta, num mundo idílico e aparentemente

intocável. Contudo, os alicerces desta ilusão estão

prestes a estremecer.

O marido de Sophie oculta inexplicáveis segredos. O vizinho mais

próximo, um agente da polícia, de reputação impecável, torna-se

obcecado por ela e espia todos os seus movimentos, até os mais íntimos.

E um homem misterioso oferece-lhe um presente que colocará a vida de

Sophie em perigo. Serão necessárias muitas viagens ao passado, longe

de Genebra, para traçar as origens desta intriga diabólica, da qual

ninguém escapará ileso. Nem sequer o leitor.

Um thriller de tirar o fôlego, assinado pelo autor que, desde A verdade

sobre o caso Harry Quebert, se tornou um fenómeno editorial sem par,

capaz de agarrar e ludibriar até o mais cético ou engenhoso leitor.


Sobre o autor

Joël Dicker nasceu em Genebra, Suíça, em 1985.

Estreou-se na literatura com O tigre, com apenas dezanove anos, e no

romance com Os últimos dias dos nossos pais. Mas foi o segundo

romance que o transformou num fenómeno literário global: A verdade

sobre o caso Harry Quebert foi publicado em trinta e três países, vendeu

mais de quatro milhões de exemplares e venceu o Grande Prémio de

Romance da Academia Francesa, o Prémio Goncourt des Lycéens e o

Prémio Lire para melhor romance em língua francesa. Foi ainda

adaptado a série televisiva pela mão de Jean-Jacques Annaud, com

emissão no canal AMC.

Seguiram-se O livro dos Baltimore, O desaparecimento de Stephanie

Mailer, O enigma do quarto 622, O caso Alaska Sanders e Um animal

selvagem, confirmando, livro após livro, a mestria de Dicker no género

do mistério literário. Toda a sua obra está publicada em Portugal na

Alfaguara.

Descubra mais sobre o autor e os seus livros em:

www.joeldicker.com

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