Serra Antologiadoromancefolhetim
Serra Antologiadoromancefolhetim
Serra Antologiadoromancefolhetim
Antologia do
romance-folhetim
(ítyprô/o)
Tania Rebelo Costa Serra
nasceu no Rio de Janeiro a 10 de
outubro de 1950. Começou seus
estudos universitários na Sor
bonne, em Paris, em 1968.
Voltando ao Brasil, licenciou-
se em língua e literatura bra
sileira, portuguesa e francesa e
defendeu sua tese de mestrado
em 1982. Tendo completado seu
curso de doutorado na New
York University, em 1986, le
ciona literatura brasileira na
Universidade de Brasília, onde
faz parte do quadro permanente.
A professora é membro da
Academia Brasiliense de Letras e
está presentemente trabalhando
numa segunda antologia de ro-
mances-folhetins, que trará o
texto integral de dez romances
brasileiros inéditos, publicados
apenas em jornais e revistas li
terárias entre os anos de 1830 e
1859.
ANTOLOGIA DO ROMANCE-FOLHETIM
(1839 a 1870)
FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
Reitor
João Claudio Todorov
Vice-Reitor
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Diretor
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Alexandre Lima
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Emanuel Araújo
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Lúcio Benedito Reno Salomon
Marcel Auguste Dardenne
Sylvia Ficher
Vilma de Mendonça Figueiredo
Volnei Garrafa
Tania Rebelo Costa Serra
Antologia do romance-folhetim
(1839 a 1870)
EDITORA
UnB
Direitos exclusivos para esta edição:
EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
SCS Q. 02 — Bloco C — N9 78 — Ed. OK — 29 andar
70300-500 — Brasília — DF
Fax: (061)225-5611
Impresso no Brasil
Supervisão editorial
Aírton Lugarinho
Preparação de originais
Fatima Rejane de Meneses
Revisão
Fatima Rejane de Meneses e Yana Palankof
Editoração eletrônica
Elias Saldanha Nunes
Capa
Maurício Borges
Supervisão gráfica
Elmano Rodrigues Pinheiro
ISBN: 85-230-0473-4
Introdução crítica, 11
Precursores
João Manuel Pereira da Silva, 31
O ANIVERSÁRIO DE DOM MIGUEL EM 1828 (ROMANCE HIS
TÓRICO), 32
JUSTINIANO JOSÉ DA ROCHA, 57
OS ASSASSINOS MISTERIOSOS OU A PAIXÃO DOS DIAMANTES
(NOVELA HISTÓRICA), 58
Domingos José Gonçalves de Magalhães, 79
Amância (romance), 80
CONSOLIDADORES
Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa, 111
O FILHO DO PESCADOR (ROMANCE), 112
Joaquim Norberto de Sousa e Silva, 119
Maria, ou vinte anos depois (romance brasiliense), 120
Januário Garcia ou as sete orelhas (romance), 142
Joaquim Manuel de Macedo, 149
voragem, 150
Nina, 167
Apêndice
Lucas José de Alvarenga, 175
Statira e Zoroastes (novela), 176
Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva, 185
Heróides de Olímpia e herculano, jovens brasileiros; ou o
TRIUNFO CONJUGAL, 186
José Higino Sodré Pereira da Nóbrega, 197
Os ASSASSINOS E O ADULTÉRIO, 198
Bibliografias
Bibliografia concisa do folhetim francês no Brasil, 209
Bibliografia da ficção brasileira (1826-1870), 213
Bibliografia de apoio, 231
Introdução crítica
são uma e a mesma. Hegel, já no século XIX, vai dizer que o ro
mance é a epopéia burguesa moderna. Mas basta pensarmos nas
aventuras de Ulisses, tentando voltar para casa, passando por gran
des perigos e aventuras fantásticas (de vez em quando ajudado
pelos deuses, já que o maravilhoso era um item estrutural obrigató
rio na epopéia), para identificarmos alguns dos motivos recorrentes
do romance na Antigüidade.
De posse da matéria romanesca, o épico e/ou sua paródia, fal
tam a esse romance os meios retóricos necessários e o tempo histó
rico ideal para sua eclosão. Aqueles vão ser criados no período
clássico e este será o da invasão da Pérsia por Alexandre, quando a
cultura ocidental é levada às fronteiras da índia. A fusão de cultu
ras daí decorrente ocasionará um sincretismo, que embasa o hele-
nismo e que dará margem à criação da prosa de ficção do tipo ro
manesco.
Esta antologia
PRÓLOGO
II
III
furor e sua vingança? Pois olha, ei-lo ali, à frente desses soldados
do tirano. E sabes quem procura? A mim, sim, a mim.
— E corres perigo? E para que mo não disseste há mais tem
po? Para que me quiseste assim iludir?
— Oh! esse homem é hoje todo-poderoso e influente na corte!
Escravo humilde do tirano, é um daqueles que maiores crimes há
cometido. Português degenerado, ele denuncia seus compatriotas,
serve de testemunha em seus processos, e prepara-lhes o cadafalso,
procurando por esse meio merecer do usurpador o título de Físico-
Mor\ Ei-lo que para aqui se dirige; vai sem dúvida tudo pesquisar,
encontrar-me-á, e morrerei sem ser vingado, morrerei como um vil,
como um celerado!
— Oh! meu Deus! meu Deus! E por mim ele se sacrificou!
— Sim, por ti, por ti somente; eu nada tinha que esperar neste
país senão a morte; preferi morrer, mas vendo-te; a vida distante de
ti tomava-se para mim um peso cruel!
— Salva-o, ó Deus! gritou a donzela, e ajoelhou-se diante de
um crucifixo que estava pendurado na parede. A imagem do Re
dentor do mundo, pregada em uma cruz, onde tantos martírios
havia Ele sofrido dos homens, e a bem dos homens, pareceu a Ma
ria a única salvação de seu amante. E parece que o Senhor a ouviu,
porque no mesmo instante gritou-lhe Frederico da janela: Estou
salvo! estou salvo!
E ambos pareciam querer chorar de prazer!
— Maria, não tens por aqui um hábito de frade, ou manto de
qualquer irmandade, com que eu me cubra, e escape de suas gar
ras?
A donzela gritou pelo criado velho da casa, e este não tardou a
vir.
— Es um homem religioso, disse-lhe Frederico, e pertences
sem dúvida a alguma irmandade?
— Sim, meu amo, sou da irmandade de S. Vicente.
— Eu tenho uma penitência a cumprir, vai buscar o teu hábito,
empresta-mo. Eis aqui para compensar-te o trabalho!
E atirou-lhe com uma bolsa de dinheiro; o velho, cheio de ale
gria por aquela vista, não se fez rogar a segunda vez, correu a seu
quarto, e trouxe imediatamente o hábito. Frederico em um instante
envolveu-se nele, e cobriu a cabeça com o capuz. Ouviu-se logo
44 Tania Rebelo Costa Serra
IV
amizade ainda dura em teu peito, faze que eu obtenha minha pre
tensão.
— Farei.
— Obrigado, mil vezes obrigado, meu bom Francisco. Mas vê
que talvez corras risco de perder-te!
— Penso unicamente que mais vale obedecer à voz de minha
consciência, do que às ordens que me deram.
E o bom Francisco escondeu o ancião em um pequeno gabi
nete, procurando depois ocasião para o servir. Ela não tardou a
apresentar-se, e D. Miguel, passando por aquele aposento, viu a
seus pés curvar-se o velho, e sem mesmo pensar no que dizia, ocu
pado como estava em coisas fúteis, prometeu-lhe o que ele pedia!
E quando o ia deixando, apareceu-lhe o médico a quem ele,
com ares de soldado, ordenou que fosse falar ao ministro, para
perdoar ao filho do infeliz ancião que ali se achava. O médico,
com toda a hipocrisia necessária, aproximou-se d’el-rei e baixo lhe
disse:
— Senhor, V. M. tudo pode fazer, e tudo quanto faz é bem
feito; mas permita a este seu humilíssimo servo que ouse assegu
rar-lhe que o homem a quem quer perdoar é um dos mais exaltados
inimigos do seu trono, é um dos que pegaram em annas contra V.
M., deram vivas à filha de seu innão, e morras a V. M. real e legí
timo herdeiro da coroa portuguesa: e demais, para servir a V. M.,
fui eu próprio que o prendi!... Como quer que agora o solte?... Está
condenado à morte.
— Então, não; cumpra-se a sua sentença. Ele o fez, ele que o
pague. Queria ferir-me com ferro, com ferro seja ferido! Ah! ah!
meu velho, você tem filhos revolucionários!... Queira Deus que eu
não lhe mande fazer o mesmo! Ande lá! Forca com os desordeiros!
O ancião ergueu-se então do chão e, com os olhos cintilando
fogo, com o peito batendo descompassadamente, disse a el-rei:
— V. M., senhor, prometeu-me o perdão de meu filho; a pala
vra de um monarca deve ser sagrada!
— Ele é dos tais! Tome sentido comigo, que não sou para gra
ças! replicou-lhe D. Miguel com o seu ar brutal e suas palavras
baixas e incivis, e quis partir; mas o velho colocou-se diante dele,
duro e rijo como se fora um valente guerreiro, com o gesto majes
toso e o porte altivo. Assemelhava-se nesta posição a uma das
50 Tania Rebelo Costa Serra
VI
Epílogo
mais puro e sublime amor; era ela a única herdeira de seu pai, e
este havia aplaudido a seu amor e aprovado seu casamento.
Nessas circunstâncias, lembrando-se Mlle de Scudery do ter
rível tribunal que só conhecia um suplício, a fogueira, e o aplicava
debaixo do menor pretexto e com o mais leve indício, solicitou dos
juizes atenção e brandura para com o mísero mancebo. Em res
posta, obteve uma carta do presidente La-Reynie, que lhe assegu
rava que Oliveiro não podia deixar de ser criminoso: — com sua
prisão haviam cessado os atentados dos invisíveis: — a ferida de
Cardillac era em tudo igual à que faziam esses facínoras. Oliveiro
mentia, quando afirmava que seu mestre havia sido ferido na rua,
porque juram todos os vizinhos, e os moradores do andar de baixo
da mesma casa, que não haviam ouvido bulha que indicasse que
houvesse saído ou voltado da rua Cardillac, o qual, como de cos
tume, havia fechado sua porta às 9 horas da noite.
Por tudo isso estava já condenado Oliveiro, e se ainda não ha
via pago seus crimes, era porque precisava a justiça de suas revela
ções, para descobrir a quadrilha de que era, sem dúvida, o chefe.
Todavia, o réu pertinaz não queria fazer declaração alguma:
iam-se-lhe aplicar tormentos que lhe extorquissem completa con
fissão. Como, porém, por ele se interessasse uma senhora de tanta
consideração, como o réu pedia constantemente para ser-lhe apre
sentado, para dar-lhe a ela sinal de deferência, apresentar-lho-iam
em sua casa, livre de ferros, às 10 horas da noite, se Mlle de Scu
dery anuísse a seu pedido.
Não podendo por outro modo valer ao pobre moço, anuiu Mile
de Scudery ao desejo que manifestava, esperando obter, em resul
tado dessa conferência, plena prova de sua inocência.
A hora aprazada, abre-se a porta da sala de Mlle de Scudery, e
Oliveiro precipita-se a seus pés, debulhado em lágrimas.
Mlle de Scudery olhou para o mísero sem proferir uma só pa
lavra, e quanto mais considerava as feições do mancebo abatidas
pelo desgosto, mais ocupava seu pensamento a lembrança de uma
pessoa a quem outrora amara com ternura. Esqueceu-se de que era
um assassino que estava em sua presença, e disse com benevolência:
— Quisestes ver-me, aqui me tendes, Oliveiro.
Este, sempre a seus pés, dando um profundo suspiro, disse
com voz magoada:
Antologia do romance-folhetim brasileiro 69
2 No Jornal do Commercio o autor publica a seguinte nota, que não vem registra
da quando da publicação em volume: “Será traduzida, será imitada, será original
a novela que vos ofereço, leitor benévolo? Nem eu mesmo que a fiz vo-lo posso
dizer. Uma obra existe em dois volumes, e em francês, que se ocupa com os
mesmos fatos; eu a li, segui seus desenvolvimentos, tendo o cuidado de reduzi-
los aos limites de apêndices, cerceando umas, amplificando outras circunstânci
as, traduzindo os lugares em que me parecia dever traduzir, substituindo com
reflexões minhas o que me parecia dever ser substituído; uma coisa só tive em
vista, agradar-vos; Deus queira que o tenha conseguido”.
Domingos José Gonçalves de
Magalhães
Amância
(romance)
fuga. Ide procurá-la com toda a prudência que requer este aconte
cimento.
— Eu vos agradeço, senhor, tão salutar conselho. Não me
ocorreu, no meu furor, que pudesse Amância ter ido para a casa de
alguma parenta. Deve ser como dizeis. Eu vou. Obrigado, mil ve
zes obrigado. Mas antes de deixar-vos... pedi ao vosso amigo que
me desculpe. Ele toma parte na minha desgraça; e contudo não é
inteiramente inocente. Talvez por ele Amância me desobedecesse.
— Se é como dizeis, respondi-lhe já caminhando para a porta,
há de vossa filha participar ao capitão, e nesse caso encarrego-me
de vos informar de tudo, a fim de tranqüilizar o vosso espírito.
“Agradeceu-me muito cordialmente, e retirou-se, deixando-me
entregue a novo combate.
“Em pé, no meio da sala, esperava eu que o capitão, erguendo
a cabeça do leito em que a tinha mergulhada, me dirigisse a pala
vra com mais algum discernimento, devendo ter ouvido o que eu
acabava de dizer ao velho.
“Depois de um largo espaço de tempo, dirigiu-se com efeito a
mim, a passos lentos. A palidez da morte lhe desfigurava o sem
blante; com a cabeça baixa, os cabelos em desordem, os braços
cruzados sobre o peito, disse-me com voz abatida”:
— Pode retirar-se; necessito estar só.
“Com todo o vagar tomei o meu chapéu, como quem pouca
vontade tinha de obedecer àquela ordem. Endireitei os lenços nas
algibeiras da minha casaca; tomei uma pitada compus-me todo, e
chegando-me a ele como para despedir-me, lhe disse com muita
gravidade:”
— Sinto ter merecido tão frio acolhimento, quando talvez a
vossa salvação dependesse de uma franca confidência. Eu me reti
ro, sr. capitão, mas lembrai-vos que sois vós que ordenais, sem
ouvir-me, como pede o vosso interesse.
“Acentuei estas últimas palavras. Disse-lhe adeus, e queria
sair, quando ele rompendo o silêncio me perguntou”:
— Não me disse o senhor que é médico?
— Sim, disse.
— E que tinha tratado de... dela?
— É verdade.
— Que está bastante enferma?
Antologia do romance-folhetim brasileiro 99
— De certo, e bastante.
— Mas se ela não está em casa de seu pai, onde esteve o se
nhor com ela?
— Eis o que eu desejava dizer-vos, e porque vim procurar-
vos, com perda de meus interesses. Mas eu vos incomodo; convém
retirar-me.
“Um ligeiro sopro de esperança parecia deslizar-se em seus
lábios.
— Senhor, se sois médico, não adivinhais que perdi o juízo?
Desculpai-me.
— Se vos não desculpasse, já aqui não estaria. Porém os meus
doentes me chamam...
— Esperai; eu também estou doente, e necessito do vosso so
corro.
— Sr. capitão, falemos claro; o acaso me fez sabedor do que
entre vós e d. Amância se há passado. Felizmente pude impedir as
funestas conseqüências da desventurada paixão dessa senhora; e
para servi-la vim procurar-vos, a fim de receber um desengano, e
restituir a seu pai uma menina que por causa vossa, e para escapar
à desonra, procurava a morte.
— A morte? por minha causa?
“Vivos sinais de interesse começaram a animar a sua abatida
fisionomia.
— Sim, a morte, de cujas garras a subtraí ontem à noite.
— Meu Deus! será possível! Explique-me tudo, caro doutor!
— O que vos digo é bastante para que possais compreender
que de tudo estou informado, e que me deveis franca confissão do
que necessito saber, para revelar-vos o resto.
— Prometo dizer tudo.
— Bem; vós destes à vossa amada um prazo no Passeio Públi
co. Por justa causa faltou ela na primeira vez; mas à vista de uma
carta vossa, bastante desesperada, escreveu-vos, prometendo que
comparecería naquela mesma noite, que foi ontem. Dizei-me ago
ra, por que tendo vós empregado tanta força para obrigá-la a esse
passo, faltastes ao prazo que destes?
— Faltar?... Pois disso me acusa ela?
— Sim.
100 Tania Rebelo Costa Serra
— Então, sabe o doutor onde ela está? onde? onde está? quero
ir vê-la... essa filha ingrata que será a causa de minha morte.
— Vós me pareceis bem agitado; tranqüilizai-vos, e conversa
remos.
Ah senhor doutor, se os filhos soubessem as aflições que cau
sam ao pobre homem que tem a desgraça de ser pai!... Parece que o
céu nos pune por havermos dado o ser a outras criaturas, rebelando
contra nós os nossos próprios filhos.
— Que blasfêmia! Foi o senhor por ventura a causa da desgra
ça de seus pais?
— Sempre os respeitei.
— Se foi respeitoso filho, como declama contra todos os fi
lhos? A natureza de pai destrói por ventura a de ter sido filho?
— Os filhos de hoje não são como os do outro tempo: havia
então mais respeito, mais amor, mais religião. Hoje está tudo cor
rompido; nem a Deus se respeita.
— Engano! Acusai antes a vossa... pertinácia em querer forçar
a natureza. Se seu pai o tivesse obrigado algum dia a obrar contra o
seu coração, o senhor o chamaria bárbaro.
— Deixemos essa conversação: falemos antes de minha filha.
Sois moço, defendeis o vosso tempo, que já não é o meu. Onde
está Amância? Posso vê-la?
— Hoje mesmo a verá; mas peço-lhe um favor antes de vê-la.
— Tudo o que quiser; diga.
— Que a deixe escolher um marido a seu gosto. Um marido é
mais que um pai, e a escolha deve pertencer a quem a ele se há de
sujeitar. Sei que o senhor é viúvo, e que ainda hoje lastima a perda
da companheira de seus anos mais felizes. Se a força se tivesse a
ela ligado, nem a sua existência teria sido como foi, nem por ela
chorara.
“O pobre velho exalou um profundo suspiro, e seus olhos se
umedeceram.”
— Senhor, continuei, por amor dela, por amor de vossa faleci
da esposa, pelo sossego de sua alma, que agora talvez lamente o
vosso procedimento; perdoai a vossa filha.
— Eu lhe perdoo, sim, eu lhe perdoo.
— Deixai-lhe a liberdade de escolher um esposo.
— E minha palavra dada? Todo o mundo sabe que eu a tinha
prometido ao sr. Norberto; nem ele quererá ceder.
104 Tania Rebelo Costa Serra
O filho do pescador
(romance)
De volta, soube com espanto que o moço, meu amigo, era morto.
Perguntei a que horas tinha morrido, disseram-me que às onze
horas, pouco mais ou menos. A pessoa que disto me noticiava
acrescentou, dizendo a igreja para onde naquele momento tinha
seguido o acompanhamento fúnebre!
Não foi a morte súbita que eu admirei, mas foi a pressa de se
pultar-se o corpo do morto. Não pude resistir à minha admiração, e
encaminhei prestes para a dita igreja. Chego, a cerimônia do enter-
ramento está finda, e a igreja já quase solitária. Examino o corpo, e
conheço que o que parecia sono de morte não era mais do que um
profundíssimo letargo, a que seguir-se-ia o da morte, se breve se
não acudisse ao paciente. Cumpre notar que isto era devido ao tal
caixeiro, que deu mais do narcótico do que eu lho determinara,
como depois verifiquei. Conheci que o desgraçado podia ainda
viver se por ventura lhe acudissem.
Por felicidade o sacristão dessa igreja não só era meu conhe
cido, como até me era assás obrigado. Chamei-o, e exigindo dele
um juramento sagrado, comuniquei-lhe o que havia, invocando o
seu socorro em favor do suposto morto: tiramo-lo da catacumba,
despimo-lo de seus hábitos sepulcrais, e com eles fingimos o de
funto dentro do caixão da mesma catacumba, que devia fechar-se
na seguinte manhã e alguns pedaços de pano velho, uma pouca de
cal e vinagre acabaram de formar o fingido defunto.
Findo isto, eu e o sacristão tomamos o nosso homem, e o le
vamos para um lugar mais apropriado, onde prestei-lhe quantos
socorros a arte me aconselhou. Tomou finalmente a si, e um pouco
mais tranqüilo, por minhas diligências, soube por minha boca que
em conseqüência de um letargo fora julgado morto; nada mais lhe
disse, nada mais, pois, convinha. Poucas horas depois o ressuscita
do estava em minha casa. Quando se achou completamente resta
belecido, contei-lhe a história e as razões em que me fundava para
crer que fora envenenado por sua mulher, ou quando menos pelo
seu amigo.
O pobre homem tremia ao ouvir-me: queria não dar-me cré
dito; mas a compra do veneno, o narcótico levado, o seu longo
torpor, a pressa de seu enterramento eram provas quase evidentes.
Como quer que fosse, ele resolveu-se a ficar oculto, e debaixo de
hábitos e formas disfarçadas, espreitar os passos de sua mulher.
116 Tania Rebelo Costa Serra
Era, pois, em minha casa que ele estava oculto; mas passava
quase todas as noites rondando a casa de sua mulher. Além de mim
e o sacristão da igreja, só outra pessoa sabia destas coisas, era um
escravo que o acompanhava todas as noites, e em cujo quarto, pe
gado à casa de sua suposta viúva, ele passava muitas noites e até
dias.
Bem pouco tempo foi mister para verificar-se o crime. Deveis
saber, senhora, que quando a suposta viúva se julgava a sós, entre
os braços de seu criminoso amante, ela era ouvida pelo seu próprio
marido; mas ainda não era tempo...
(O doutor neste lugar fez uma parada, tirou a boceta, e tomou
uma pitada. Laura fazia-se de mil cores ouvindo a narração tão
análoga à sua história; sua alma experimentava neste momento os
mais terríveis tormentos do inferno! mas a necessidade a obrigava
a escutar. O doutor continuou sua história):
Houve uma noite, em que esta mulher, a pedido do seu aman
te, teve a bondade de contar-lhe a sua história: já se vê que durante
tal narração, seu marido a ouvia. O amante a ouviu e, ou fosse
horror, ou fingimento, o certo é que ele resolveu-se a deixá-la en
tregue a si própria, e efetivamente o fez nessa mesma noite, em que
lhe ouvido tinha a sua funesta história.
Esta mulher de sangue determinou logo acabar com este
amante: ela acha um malvado que, pelo prêmio do seu amor, aceita
esta mortal comissão, e poucos momentos depois que seu amante a
abandonara, ferido de um tiro, deixa de viver uma vida de fogo, de
sangue, de veneno, de mortes, de crimes, e de adultério enfim!...
No momento porém em que este malfeitor cai expirante, um des
conhecido lhe aperta a mão dizendo pouco mais ou menos: —
Deus te perdoe. Já se vê que este desconhecido era o suposto
morto. Poucos minutos depois esta mulher e seu novo amante,
contando ambos mais um crime, ouviram sobre a janela do quarto
em que estavam um como arranhar pelo lado de fora, sinal que
costumava dar o primeiro amante quando ia falar-lhe: ela é aberta,
e com espanto dos dois criminosos, o homem, que há pouco fora
assassinado, vê-se recostado à dita janela! Já se vê que foi o su
posto marido morto que arranhou sobre ela; e que o mesmo, ajuda
do de seu fiel escravo, foi quem trouxe o corpo do morto para re-
costá-lo à janela desse quarto de maldições! Sim, que ele estava
Antologia do romance-folhetim brasileiro 117
I — O Rapto
Pobre mesa,
Onde não tine a rica porcelana,
Nem cansa aos olhos trêmulo reflexo
De brunida colher, de refulgente
Britânico saleiro.2
‘Garção, epístola”, J. N. S. e S„ p. 7.
124 Tania Rebelo Costa Serra
II — Um Conto
pelo ruído de suas portas, que caem aos golpes do machado e pelos
gritos de seu filho que lhe roubam.
“E esse homem que sabia de tudo quanto se passava em sua
choupana durante a demora por longínquas paragens da costa,
pedia nas suas orações a maldição do céu para José Feliciano, e
jurava morte a sua esposa.”
— E esse homem sou eu, Maria! disse ele concluindo sua fatal
história, erguendo-se, precipitando-se sobre sua faca e arrastando
pelo braço a mísera esposa.
— E esse homem sou eu!
— Perdão! exclamou ela.
— E essa mulher és tu!
— Perdão, em nome de Deus, perdão! Em vão, ah, em vão
lutei eu, mas fui vencida; gritei, mas a quem me socorrer? Achei-
me a sós com homem tão terrível!... Tua vingança para ele que não
para mim, Gaetano!
— Para ele a maldição do céu, a minha praga no furor de mi
nha paixão; Deus vingar-me-á! para ti a minha desafronta! — a
desafronta é — a morte!
— Perdão! perdão! bradou ela levantando os olhos para o céu
e querendo ajoelhar-se, mas de repente, por um movimento rápido
lançou-se, desembaraçando-se de seu assassino, no aposento, sobre
a cama da filhinha. Gaetano tomou a candeia, seguiu-a, ah, ela
abraçava-se com Clarita, banhando-a de suas lágrimas; mas o im
placável calabrês tinha alcançado o seu punhal e deixado cair so
bre o colo de sua esposa...
Um grito de horror que foi longe, um ai de morte que faleceu
ao desprender-se dos lábios, retumbaram por toda a choupana.
Gaetano sacava o ferro tinto de sangue ainda fumante, quando a
filha, despertando, abriu os olhinhos, e um sorriso lhe roçou as
faces; e estendeu o braço para ele como lhe ofertando o ramalhete
de flores. Eriçaram-se-lhe os cabelos, gelou-se todo, e a candeia
escapou-se-lhe da mão e apagou-se.
Ouviu-se pouco depois o trotar de um cavalo, o latido de cães
e depois um trovão.
Era ele que se havia perdido entre as trevas da noite, como o
relâmpago; era a tempestade que tinha soltado o último bramido.
134 Tania Rebelo Costa Serra
E para longe,
E bem longe de Clara, como um sonho,
Sumiu-se...
A Louca.
IV — Conclusão
Gávea, 1842
IV — A Sétima e a Última
Un ange ou un demon?...
A. de Vigny
II tombe...
La vérité se montre! Tout est find...
Madame du Devant
fez-lhe ver que se achava ante uma povoação. Foi como o grito de
terra soltado a bordo que veio inundar-lhe o peito de júbilo; que
esse corpo fatigado de tantos errores e desvios se enlanguescia, e
necessário lhe era o repouso.
Caminhou Januário vagarosamente para essa nascente Vila
Boa de Goiás, que parecia surgir do meio das flores e folhagem
dos bosques que a contornavam, e sorrir-lhe benigna, como se
fosse ele o seu bem vindo. O painel mais pomposo e mais belo da
natureza, cheio de encanto, de vida, de harmonia e da poesia, des-
dobrava-se-lhe aos olhos, avezados na contemplação dessas cenas,
e sempre nelas embevecidos!
Casa de aspecto menos rústico era essa que aí entre outras se
elevava no princípio da vila; e Januário Garcia parou à porta e
pediu que o deixassem descansar. Abriu-se a porta imediatamente
achou-se ele na sala onde certo homem, cujos cabelos negros ra-
refaziam-se entre as brancas da idade madura apresentou-se-lhe, e
ambos se cumprimentaram.
— Este semblante, murmurou a um tempo cada qual consigo,
no mútuo entreolhar, não me é desconhecido!
— Senhor, disse o hóspede, vou mandar preparar o almoço:
comereis do que há por estas alturas da nossa Vila Boa de Goiás, e
no entanto descansareis; podereis mesmo vos deitar se isso vos
aprouver, pois que aqui não deveis fazer cerimônia de qualidade
alguma.
— Obrigado, respondeu friamente Januário.
— E voltarei para conversarmos; que sem dúvida haveis de
saber muitas cousas antigas que serão novidades para mim, e eu
estarei no mesmo caso para convosco.
— Sim, senhor, voltou-lhe Januário.
— Esquecia-me perguntar se não quereis mudar de trajos.
— Agradecido.
Retirou-se o hóspede; e Januário pôs-se a passear pela sala, na
qual tudo lhe atraía a atenção. A mobília simples e rústica, o sítio,
as árvores apinhadas pelas planícies em graciosos grupos, as pal
meiras com seus leques abanados pela aragem, os penedos, as
águas que serpejavam sonoramente retratando o azul do céu, tudo
lhe trazia à memória doces e vivas lembranças, que lhe eram tão
caras! Parando ante um espelho, refletiu atentamente na mudança
144 Tania Rebelo Costa Serra
Mas dissimulemos, que não sei aonde, e ele conhece-me, pois mi-
rou-me desde os pés até a cabeça, trajo por trajo, feição por feição!
Quem será ele? Um anjo ou um demônio? Um anjo que salvou por
ventura minha família da miséria, e a quem ela agradecida mimo-
seou com este quadro, ou um demônio que o roubou, e que hoje o
possui?
E a esse tempo, sem ter repousado, a fadiga tinha-lhe desapa
recido; e só almejava saber como viera ter aquele quadro a Goiás,
como se chamava o hóspede, e depois partir; ou com o seu colar de
orelhas completo, ou em busca de mais uma, uma só!...
Pensando assim, agitava-se todo com tais reflexões, tremia
com tantas incertezas; quando um menino tão galante, quanto pode
ser um menino; tão vivo, tão espertinho quanto se pode ser na ten
ra idade, a pular, a saltar, a rir-se de inocência e de alegria, ganha
va a sala.
— Meu Deus! exclamou Januário encarando a criancinha,
como que para reconhecer-lhe um a um os contornos da fisiono
mia, é o retrato de minha mulher... De minha mulher!... É seu filho,
talvez... Oh!... As coincidências se multiplicam!... A fisionomia
desse homem que não me é inteiramente desconhecida... e a fisio
nomia deste menino tão semelhante à de Ana... e o meu quadro!...
Oh! que o coração se me despedaça em cem partes!...
E o inferno com todo o seu oceano de chamas se lhe entornava
dentro no peito! E os dentes rangiam, e os músculos contraíam-se,
e os olhos revolviam-se em órbitas de fogo, e as artérias pulsavam
com veemência, e ele todo agitava-se, comovia-se... até que pouco
e pouco, como procurando tranqüilizar-se, aproximou-se do meni
no, que ria como o anjo da alegria e inocência; buscou afagá-lo, e
o menino sempre a rir pôs-se a brincar-lhe com os cabelos da longa
barba embranquecida. Tomou-o ele afinal nos braços, sentou-o
sobre a perna, e amimando-o, perguntou-lhe como se chamava.
E uma voz tocante, harmoniosa, sensível, respondeu:
— Januário.
— Januário... repetiu Garcia, erguendo-se e largando o meni
no sobre o pavimento. Que ultraje!... Que escarnecer de mim!...
Não resta mais que duvidar nem conjecturas a tirar; é seu filho!...
O tempo e os trabalhos me aumentaram os anos, branquejaram esta
barba, que me cresceu até o peito; o sol amorenou-me a tez e mu-
146 Tania Rebelo Costa Serra
voltando para ele. A moral mostra que os pais devem dar uma edu
cação mais séria para suas filhas, a fim de que as jovens não ajam
levianamente. Também alude, flaubertianamente, às leituras alie-
nantes prejudiciais ao bom desenvolvimento da educação das mu
lheres.
No capítulo escolhido veremos a descrição física e moral do
provinciano, aliada à nova definição de romance, justamente o que
Macedo está tentando fazer nessa sua segunda fase.
Voragem
Foi seu mentor que pronto quis Qual novo cavalo ardente,
donoso Que o freio toma raivoso,
Das delícias ao céu romper-lhe Em furor impetuoso
o dia. Desencabresta veemente,
Por terra escarpada avança
E por fim cego se lança
Ill Em precipício horroroso;
Foi desastroso, fatal Durval no campo da vida,
O dia que lhe rompeu, Súbito livre, se atira,
Luz que aos vícios brilho deu, Fogo de paixões respira,
Funda cratera infernal, Quebra da virtude a brida,
Que o falso amigo, impudente E arrebatado honra, nome,
Num coração inocente Riqueza arroja e consome
Com malvadeza acendeu. Da imoral Vênus na pira.
X E vingativa, enorme
Na consciência brame.
Ante o algoz a vítima sentada! Tem daquele diadema o brilho
Durval, presente à orgia, encanto
Alvo é da zombaria Que é punição de Deus;
Da gente que em dez vinhos Luzentes raios seus
afogada, Os olhos de Durval turbam de
Surge para lançar escárnio in- espanto
sulso, Que resplandecendo em
Violento sobre o amante já trêmulo fulgor
passado No espaço esta sentença escre
Que foi do antro encharcado vem feia:
Depois de pobre expulso. “Tu és de firma alheia
“Um falsificador!
Viera à orgia a confundir Vora-
gem, E inda a paixão o escravo des-
E por vingar-se ardendo varia!
De fogo olhar tremendo Vê que Voragem fera
Durval, na mesa da libertina Malvada o vitupera,
gem, E a um aceno a seus pés se
Fixa embalde no rosto da cor prostraria!
rupta, O ódio em sua alma com a pai
Que em troco vibra olhar mais xão contende;
atrevido, E o bêbado que em sórdido
E é ele o confundido suplício
Na desfaçada luta. Maldiz do próprio vício,
E à taberna se prende.
Nina
II
Statira e Zoroastes
(novela)
Senhora
Heróide — I
TEU HERCULANO
Heróide — IV
insistas, crê que perdes de uma vez e para sempre aquela a quem
apelidas de tua
OLÍMPIA
Heróides — XVIII
mente indico para fazer-te ver que o concubinato fora sempre pelos
Romanos olhado com olhos de desprezo.
Observa mais, Herculano: os filhos nascidos no concubinato,
em diferença dos nascidos das justas núpcias, não só se sujeitavam
ao poder pátrio de seus progenitores, mas também não os herda
vam. Não podiam usar do nome do pai nem dos seus privilégios,
nobreza, etc.; e o que indica tudo isso senão que os mesmos Ro
manos não igualavam nunca ao consórcio o concubinato, e muito
menos superiorizavam este sobre aquele. A história nos mostra que
Constantino Magno foi o que indiretamente começou a restringir a
prática dos concubinatos, ordenando que os concubinários se espo
sassem e que os contraventores não pudessem prodigar liberalida
de à concubina, e nem tampouco aos seus filhos. Assim marchou,
com mais ou menos alteração em seu uso, o concubinato, até que o
imperador Leão o proibiu definitivamente; e, a despeito de saber
também eu que uma semelhante lei só tivera execução no império
do Oriente e nunca no Ocidente, e que o mesmo concubinato se
fizera freqüentemente entre os Lombardos e Germanos, nem daqui
se segue que o concubinato não fosse por fim proibido como se
acha, por se reputar uma agressão à moral de um povo que cami
nhava na civilização com passos agigantados. Eu creio que te ilu
diste no que asseveraste a respeito do concubinato no tempo de
Júlio César. Este tirano tinha projetado uma lei autorizante da po
ligamia, por persuadir-se (erradamente) que por ela se caminhava
com muita vantagem no progresso da população; entretanto, não
saiu da concepção semelhante projeto, por haver descido apunha
lado ao sepulcro o seu autor; e tu não ignoras que a simples opinião
de um príncipe legislador, quando não é reduzida a lei, não se re
veste jamais do caráter que é propriamente privativo da lei obri
gatória; e por isso, não passando de simples opinião, não pode
vivificar um argumento.
Augusto não marchou como disseste: querendo conseguir o
mesmo fim de seu antecessor, o aumento da população, entendeu
que não era a poligamia o meio mais adequado de consegui-lo,
porque ao Estado convém mais ter uma população legítima, lícita e
homogênea, do que aquela que lhe resulta de gérmens d’outras
naturezas. Da primeira nasce a força, o nervo e a sustentabilidade
dos Estados, a moral pública mais se vulgariza, e a povoação se
Antologia do romance-folhetim brasileiro 193
TUA OLÍMPIA
Heróide — XIX
Os assassinos e o adultério
V — Os três heróis
caela com Ambrósio disse para este, que já de outra vez confessara
o seu crime, (qu)‘e essa sua negativa, longe de o salvar, ia ainda
comprometê-lo ainda mais.
— Sr. Juiz, disse Ambrósio, perdoe-me V. S., eu nunca con
fessei crime algum, e o que se acha escrito nestes autos foi V. S.
que mandou escrever para me comprometer, não que eu o dissesse;
porque na realidade não disse tal, e sustento que não disse.
— Então que lhe parece, sr. Juiz? disse o Dr. Nicodemo.
Rosalina, que também havia confessado, agora nega: o juiz
igualmente ponderou, que nos autos constava a sua confissão, e
ordenou a sua leitura; e, sendo satisfeito, ela respondeu:
— É verdade que eu declarei o que consta dos autos; porém
foi unicamente por me achar amedrontada.
— Esta agora é que ninguém lembra, disse o Dr. Nicodemo,
estava amedrontada, e em bem pouco tempo a senhora tomou as
lições dos padres mestres da cadeia.
O Dr. Ilias, defensor de Ambrósio, apenas ouviu o Dr. Nico
demo proferir estas palavras, encarou para ele, e disse-lhe: — Sr.
Dr., apesar de que eu não seja defensor da ré, cumpre-me observar-
lhe que basta a sua condição de ré, e presa para se ter toda comise
ração com ela.
O Dr. Eliseu, defensor de Rosalina, disse nesta ocasião, diri
gindo-se ao Dr. Nicodemo.
— Sr. Dr., cumpre-me, na qualidade de advogado da ré, agra
decer ao sr. Dr. Ilias o interesse que toma pela minha cliente, e
observar mais a V. S., que se lembre que a ré, além de estar presa,
é uma senhora, e isso é bastante para ser respeitada; e se o sr. Dr.
Nicodemo continua a insultá-la, eu tomo o insulto como feito à
minha pessoa, e rompo em algum excesso.
A vista destas palavras proferidas pelo Dr. Eliseu, o juiz im
pôs silêncio, chamando-os à ordem.
Concluídos os interrogatórios e acareações, foram introduzi
das as testemunhas, uma de cada vez, as quais juraram sobre a
existência do fato e mais pormenores que houveram, não afirman
do todavia quem foram os autores de tão horrível atentado, e no
fim de um mês já os nossos quatro heróis estavam pronunciados a
1 Apagado no texto.
200 Tania Rebelo Costa Serra
que Adão apresenta, de que o réu meu cliente o peitara para co
meter semelhante assassinato! A sua simples confissão, e a da ré
Micaela, que é muito mais criminosa do que o réu meu cliente, e
tão criminosa quanto o réu Adão, se não for mais. Micaela, Srs.,
senão anuísse aos rogos do meu cliente, e aos de sua senhora, se é
que estes dois praticaram o que ela declara, o que igualmente se
nega, e tratasse antes de despersuadir não só o meu cliente, como a
sua senhora, decerto que não se cometería semelhante assassinato.
“Micaela, Srs. jurados, foi e é muito criminosa; foi a motora e
a origem de haver o adultério, foi quem seduziu sua senhora a
adulterar-se com o réu meu cliente, e é por isso digna de um severo
castigo, pois se não houvessem malvados não haveríam nunca
crimes desta natureza.
O Dr. Isaías, curador do réu Adão, passou a desenvolver a
defesa por parte do seu curado, e concluiu dizendo:
— Srs. jurados, não é simplesmente o ouro que move um ad
vogado a encarregar-se da defesa de um acusado, sobre cujos om
bros pesa o rigor da lei, e vê por momentos o cutelo do algoz a
descarregar o tremendo golpe, que vai decepar-lhe a cabeça; tam
bém o dever de humanidade obriga um desgraçado em idênticas
circunstâncias. Sim, Srs. jurados; o dever da humanidade obrigou-
me a encarregar-me dessa árdua tarefa. Ainda mesmo que eu não
fosse nomeado seu curador, eu de bom grado me prestaria a defen-
dê-lo, e havia de procurar todos os meios que estivessem ao meu
alcance para o salvar da pena horrível que o ameaça; e provas dis
so tenho dado defendendo a réus mais miseráveis, e muitos deles
bem criminosos.
“Para que, srs. jurados, se há de acarretar toda a odiosidade
sobre o meu desgraçado curado, e a desgraçada ré Micaela, como
há pouco acabou de dizer o meu nobre colega o sr. Dr. Ilias, que o
meu curado e a ré Micaela são de todos os mais criminosos?! srs.
jurados, não basta a triste colisão em que se acham estes desgraça
dos acusados pela lei excepcional, pela qual nenhum recurso lhes
resta, senão o de petição de graça para o poder Moderador? Minha
missão é defender o réu Adão, e não o de acusar pessoa alguma,
mas vejo-me forçado a acusar alguém, visto ser chamado a campo
pelo meu nobre colega.
204 Tania Rebelo Costa Serra
“Por que razão o meu nobre colega não diz antes, que o seu
cliente é de todos o mais criminoso? Porque não diz antes que, o
seu cliente querendo desfazer-se da sua vítima, que era o finado
Roque, não teve a precisa coragem de o fazer, e serviu-se de um
braço emprestado para descarregar o tremendo golpe? Sim, srs.
jurados; o sr. Ambrósio serviu-se de um braço emprestado, e este
braço é o do desgraçado Adão, meu curado, e com promessas de
libertá-lo! Quem é, srs. jurados, que não ambiciona a sua liberda
de? E quem ainda é mais ambicioso deste dom do Eterno do que
um miserável escravo?! Eu estou convencido, de vós mesmos, se
fôsseis escravos, decerto desejarieis obtê-la a custo mesmo dos
mais altos sacrifícios: e se tivésseis um mal intencionado, como é o
sr. Ambrósio, que igualmente vos seduzisse como ele seduziu o
desgraçado Adão, qualquer de vós farieis o mesmo que este fez.
Portanto, srs. jurados, o sr. Ambrósio é de todos o mais criminoso.
“O sr. Ambrósio, Srs., é criminoso perante Deus, e perante os
homens, por persuadir um miserável escravo com promessas de
libertá-lo, a fim de conseguir dele a perpetração de um assassinato.
O sr. Ambrósio é criminoso perante Deus e perante os homens, por
seduzir uma mísera escrava a tentar contra a vida de seu senhor, e
a guiar o braço do assassino. O sr. Ambrósio é criminoso perante
Deus, e perante os homens, por ser a causa de uma esposa, que até
então vivia com toda a honestidade e candidez, ser arrastada ao
estado degradante não só de adúltera, como de assassina.
“Srs. jurados, à vista destas considerações que vos apresentei,
estou convencido de que em vossas consciências absolvereis o
meu desgraçado curado, e por hora limito-me simplesmente ao que
já acabei de expender-vos, esperando ter o gosto de ouvir a defesa
do meu nobre colega o sr. Dr. Zorobabel, e as réplicas dos Srs.
Drs. Nicodemo e Ilias.
Concluída a defesa do Dr. Isaías, obteve a palavra o Dr. Zoro
babel, curador da ré Micaela, e passando a desenvolver a defesa de
sua curada, procurou demonstrar que ela estava inocente, e con
cluiu dizendo:
— Srs. jurados, à vista das razões já por mim ponderadas,
nada mais teria a acrescentar à defesa do meu nobre colega o sr.
Dr. Isaías, mormente na triste colisão em que me acho, quando
vejo alçado o braço tremendo do sedento algoz sobre a cabeça da
Antologia do romance-folhetim brasileiro 205
1 Serão feitas referências a: Wilson Martins (WM), José Ramos Tinhorão, José
Galante de Sousa (G. Sousa), Marlyse Meyer, Afrânio Coutinho (AC), Barbosa
Lima Sobrinho (BLS), Edgard Cavalheiro e Mário da Silva Brito, Antonio Cân
dido (ACa), José Aderaldo Castello (JAC), Raimundo de Menezes (Men). Agra
decimentos à seção de pesquisa e documentação da Fundação Biblioteca Nacio
nal do Rio de Janeiro (vide referências no final de alguns livros). Quando hou
ver referência aos autores, assim deverão ser lidas: nome do autor, número do
volume, número da página.
2 SB por Sacramento Blake.
3 In por Inocêncio.
214 Tania Rebelo Costa Serra
Ver e ouvir
Aloysio Niemeyer Filho
Nomina gentium
Sérgio Bath
Língua latina
Janete Melasso Garcia
Antígona
Sófocles
Agamenon
Sófocles
O cânone colonial
Flávio Kothe
O romance em folhetins surgiu na França, em 1836, quando
alguns romancistas começam a publicar suas obras, em capítu
los, no periódico do jornalista Émile Girardin.
Utilizando técnica muito próxima do melodrama popular,
essas publicações logo se transformam em sucesso, principal
mente no seio da nova classe operária e da jovem burguesia,
egressas da Revolução Industrial européia.
Esta antologia traz para o grande público do século XX os
principais antepassados da telenovela, tais como: João Manuel
Pereira da Silva, Justiniano José da Rocha, Domingos José
Gonçalves de Magalhães, Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa e
Joaquim Manuel de Macedo.
Além dos textos escolhidos, esta antologia apresenta uma
vasta bibliografia de apoio. É, portanto, obra destinada tanto ao
público de Letras quanto ao público em geral.
ISBN 85-230-0473-4
9 788523 004736