9 Faustino Revisado
9 Faustino Revisado
Leliane Faustino1
Resumo: Este artigo teve como foco investigativo analisar como a escritora e professora
maranhense Maria Firmina dos Reis (1825-1917) construiu seu ethos autoral e se auto inseriu
no Romantismo brasileiro. Por meio da análise de sua historicidade e leitura de seus textos,
podemos afirmar que a autora correspondia à estética e ao discurso românticos. Contudo,
devido aos mecanismos racistas e sexistas de seleção dos cânones historiográfico e literário,
pouco figurou nas produções da historiografia e literatura brasileiras, o que nos impediu, por
um longo tempo, o acesso ao seu importante olhar sobre a história do Brasil, oferecido pelo
texto literário. Com isso, nosso objetivo foi demonstrar, através da mobilização política de
Maria Firmina dos Reis dentro da literatura romântica brasileira, com recorte no romance
Úrsula (1859) e no conto A escrava (1887), como a criação literária abarca o viés crítico da
escritora, sendo, portanto, uma contribuição epistêmica para os estudos literários e a trajetória
da historiografia brasileira.
Palavras-chave: Maria Firmina dos Reis; História da Historiografia Brasileira; Romantismo;
Literatura e Sociedade.
“AUTORA DE SEUS DIAS”: THE CRITICAL MOBILIZATION OF MARIA FIRMINA DOS REIS IN
BRAZILIAN ROMANTICISM
Abstract: This article analytical focus is to analyze how the Maranhão writer and teacher Maria
Firmina dos Reis (1825 - 1917) raised her authorial ethos and inserted herself into Brazilian
romanticism. Through the inquiry of her historicity and by the account of her texts, we can
affirm that the auteure lived up to the aesthetics and the romantic discourse, however, due to
the racist and sexist mechanisms of election of historiographic and literary canons, figured
limitedly in the histories of Brazilian historiography and literature. Which steadily prevented us
from accessing her important perspective on the history of Brazil conveyed by the literary text.
Herewith, our aim is to expose that through the political mobilization of Maria Firmina dos Reis
within Brazilian romantic literature, giving lights to the novel Úrsula (1859) and the short story
1
Doutoranda em História pela Universidade Federal de Ouro Preto, área de concentração: Poder e
linguagem, inscrita na linha de pesquisa: Ideias, linguagens e historiografia. Pesquisadora bolsista da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). É membra do Núcleo de
Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM-UFOP); do Grupo de estudos História,
Cultura e outras Linguagens (HILL-UFMA); do Núcleo de estudos Afro-brasileiros e indígenas (NEABI
- UFOP). E-mail: [email protected]
150
A escrava (1887), how literary creation encompasses the writer's critical bias, therefore being
an epistemic contribution to literary studies and the history of Brazilian historiography.
Keywords: Maria Firmina dos Reis; History of Brazilian Historiography; Romanticism;
Literature and Society.
Introdução
Maria Firmina dos Reis foi uma mulher negra, professora, escritora e musicista,
nascida em São Luís (MA), em 11 de outubro de 1825. Em conciliação com a carreira
docente, Firmina possui uma extensa produção literária, desenvolvida com maior
expressão ao longo da segunda metade do século XIX. Sua postura intelectual e
política, somada à sua atuação como escritora - escolhendo narrar de forma crítica a
instituição da escravidão, dentre outros aspectos, são revolucionárias e
transgressoras, especialmente quando analisadas sob o viés dos estudos
historiográficos e literários, dentro da rigidez de seu contexto e das condições para a
realização da escrita política de uma mulher negra nos oitocentos.
A escritora residiu e passou a maior parte de sua vida em São José de
Guimarães, onde foi efetivada ao cargo público de professora, em 1847. São
atribuídas a Maria Firmina dos Reis diversas composições para as festas de Boi,
assim como o Hino à Liberdade dos Escravos, de 1888 (MORAIS FILHO, 1975). A
professora se aposentou em 1866 e continuou fazendo poesias, compondo músicas
e escrevendo para os jornais maranhenses. Maria Firmina morreu em 1917, em
Guimarães.
A retomada póstuma do nome e da produção literária de Maria Firmina dos
Reis, após um longo hiato 一 já que a autora apareceu de forma imprecisa e pouco
suficiente nas Histórias da Literatura Brasileira2 一, aconteceu em meados do século
XX, quando, em 1962, o bibliófilo e historiador Horácio de Almeida encontrou, em um
sebo na cidade do Rio de Janeiro, um exemplar de Úrsula. O uso do pseudônimo
“Uma maranhense” na assinatura da primeira edição do texto inquietou o pesquisador,
que, após consultar o Dicionário Bibliográfico Brasileiro, de Sacramento Blake (1900),
detectou a autoria de Maria Firmina dos Reis. Almeida contata, então, José
Nascimento Morais Filho, escritor e jornalista maranhense, o qual promoveu incursões
2 A primeira citação que identificamos sobre Maria Firmina dos Reis está contida no Parnaso
Maranhense, de 1861. A partir dessa publicação, outras menções à escritora se valeram do Parnaso
como referência, são elas: breve citação, parte integrante do verbete feito para Joaquim Serra, na
História da Literatura Brasileira, de Sílvio Romero (1888, p. 389); os pequenos verbetes contidos no
Diccionario Bibliographico Brazileiro, elaborado por Sacramento Blake (1900, p. 232); e no Dicionário
Literário Brasileiro, de Raimundo de Menezes (1969, p. 570).
151
à Biblioteca Pública Benedito Leite (MA), onde estão arquivados vários periódicos
para os quais Firmina escrevia. Morais Filho também produziu uma série de
entrevistas com familiares e ex-alunas(os) da professora, na cidade de Guimarães,
tornando possível a realização de sua primeira biografia, Maria Firmina: fragmentos
de uma vida (1975). A biografia conta com prólogo de Horácio de Almeida e oferece
uma reunião de textos literários, relatos de pessoas próximas da autora, sempre
associados ao fato de Firmina ter sido reconhecida como uma grande professora da
vila, e parte da crítica feita pelos jornais locais, sobretudo quanto à recepção de
Úrsula.
Agenor Gomes publicou em 2022 Maria Firmina dos Reis e o cotidiano da escravidão
no Brasil, onde o autor apresenta documentação inédita sobre Maria Firmina,
conseguindo, dessa maneira, elaborar uma árvore genealógica da autora, bem como
pesquisar sobre as várias nações e etnias africanas que chegaram a Guimarães no
contexto da escravidão. Destaca-se na obra o convívio real de Firmina com pessoas
escravizadas, já que sua mãe, Leonor Felipa dos Reis, e a avó, Engrácia, foram
capturadas no continente africano, tendo sido escravizadas pelo comendador Caetano
José Teixeira (1760-1818), dono do navio tumbeiro Vitória, que desembarcava no
porto de Cacheu, na Guiné (GOMES, 2022, p. 31). A pesquisa de Gomes corrobora
as nossas afirmações sobre a opção da autora pelo realismo enquanto figura retórica
estrategicamente escolhida para a elaboração das narrativas sobre pessoas negras e
sobre a escravidão.
Destacamos ainda que a biografia tecida por Gomes foi fundamental para o
desenrolar da trama a respeito da controvérsia sobre o nascimento de Maria Firmina
dos Reis. Em 2018, a pesquisadora Dilercy Aragão Adler, através da consulta aos
Autos de Justificação do dia de nascimento de Maria Firmina dos Reis 3, verificou que
a autora requereu a alteração de sua data de batismo 一 naquele contexto a
consagração do batizado funcionava como uma espécie de certidão de nascimento
一 para 11 de março de 1822, alegando que fora acometida por uma doença que
impediu a realização da cerimônia quando ainda era recém-nascida. Tal
documentação, que é verídica, entrava em conflito com as demais encontradas até
então, as quais apontavam a data de nascimento como sendo 11 de outubro de 1825.
Contudo, a investigação de Agenor Gomes constrói a narrativa de que Firmina
solicitou a alteração da data de nascimento, pois não tinha idade legal para assumir o
cargo de professora, para o qual ela já havia sido aprovada e não tinha, portanto, a
3“Diz Maria Firmina dos Reis, filha natural/ de Leonor Filippa dos Reis, que ela quer justificar por este
Juiso que nasceo no dia 11 de Março do anno de 1822, e que só teve lugar o seu baptismo no dia 21
de Desembro de 1825, como mostra pelo documento junctos, por causa de molestia que então lhe
sobreveio e privou ser baptisada antes; o que feito requer se julgue por sentencia, e que mande abrir
novo assento por tt.o” (Autos de Justificação do dia de nascimento de Maria Firmina dos Reis apud
ADLER, 2018, p. 219).
152
documentação que comprovasse a idade mínima necessária de 25 anos (GOMES,
2022, p. 102).
É importante informar as controvérsias sobre o nascimento da autora, uma vez
que representam fragmentos de sua historicidade. Esses fragmentos, no entanto,
gradualmente vêm emergindo para pesquisadoras(es) e funcionam também como
comprovações do esquecimento sofrido pela autora, devido à ausência de
documentação e às escassas referências a ela na história da literatura brasileira. A
narrativa de Gomes nos conduz na interpretação sobre o quão ambivalente era a
cidadania negra nos oitocentos e como essa precariedade permaneceu no pós-
abolição. De acordo com Ana Flávia Magalhães Pinto (2014), que se incumbiu da
análise das condições de civilidade de intelectuais negros na segunda metade do
século XIX e no pós-abolição 一 a saber: Ferreira de Menezes, Luiz Gama, Machado
de Assis, José do Patrocínio, Ignácio de Araújo Lima, Arthur Carlos e Theophilo Dias
de Castro 一, ao se colocar os homens negros livres no lugar de uma ambiguidade
civil, dificultava-se também o encontro de registros que auxiliassem suas construções
genealógicas, devido à insuficiência de fontes. A partir da pesquisa de Magalhães
Pinto, ressaltamos que a escassez de documentação legal para a população negra
resulta no apagamento de suas próprias histórias, além do fato de que pessoas negras
não são consideradas como parte integrante da sociedade, ocupando uma condição
fronteiriça em meio à sociedade racista.
Dessa forma, as constantes revisões e atualizações biográficas da autora são
substanciais para a construção historiográfica, bem como representam um
posicionamento ético e político de uma historiografia que se ocupa objetiva e
criticamente com a pluralidade de sujeitos e discursos em sua narrativa, visando
naturalizar a presença de pessoas negras enquanto agentes no tempo, manifestando
as mais variadas formas de existência. No mesmo sentido, a partir dessa construção
historiográfica em outras áreas de conhecimento, como a crítica literária, é possível
se valer de material para o seu campo de estudo, trazendo Maria Firmina dos Reis e
sua importante trajetória intelectual como centro de produção de saberes.
4 No prólogo de Úrsula, Maria Firmina dos Reis faz uma defesa do romance e, através de uma retórica
irônica, aponta motivos para que as pessoas lessem sua obra de estreia. No fim do texto, a autora
ainda lança incentivos para que outras escritoras, leia-se outras mulheres, aventurassem-se no
movimento da escrita: “Não a desprezeis, antes amparai-a nos seus incertos e titubeantes passos para
assim dar alento à autora de seus dias, que talvez com essa proteção cultive mais o seu engenho, e
venha a produzir coisa melhor, ou quando menos, sirva esse bom acolhimento de incentivo para outras,
que com imaginação mais brilhante, com educação mais acurada, com instrução mais vasta e liberal,
tenham mais timidez do que nós” (REIS, 2018, p. 34).
153
Maria Firmina dos Reis foi uma autora que se incomodou profundamente com
as conjunturas políticas e sociais de seu tempo e projetou essas inconformidades no
texto literário. Valendo-se dos mecanismos estéticos e discursivos da literatura
romântica, a autora elaborou um projeto de educação sentimental, cujo princípio era
o fim da escravidão e o ápice a emancipação da população negra. A postura da autora,
assim como a materialização de sua obra, são demonstrações de não passividade
frente ao projeto colonial e de promoção de uma literatura política que reivindica a
posição de enunciadora para uma mulher negra, bem como a elaboração de temática
e de personagens negras não estereotipadas.
Antonio Candido (1988) defende a literatura como um direito universal do ser
humano, sendo a capacidade de fabular e receber narrativas ferramentas
fundamentais para práticas de bem viver, contudo, tais ferramentas são destinadas
apenas a parcelas da população, devido à elitização da literatura e de sujeitos leitores.
Alargando a crítica de Candido, em diálogo com Rafael Zin (2022), apontamos
também O direito à literatura afro-brasileira, destacando a produção literária e o corpus
narrativo que partem ou têm como centro pessoas negras:
154
ligadas à história e cultura afro-brasileira e indígena (ZIN, 2022, p. 29,
grifos nossos).
156
críticos e literários modos de ser e de enxergar a sociedade através de um
nacionalismo frágil, em meio às constantes reformulações políticas que o país
enfrentava. Na tentativa de uma unificação identitária, de pensar a gênese do povo
brasileiro, e consequentemente seus produtos culturais, coube à literatura narrar
tamanha complexidade:
157
O cânone literário brasileiro se constitui sobre o silenciamento das
vozes dissidentes dos marcadores da autoria hegemônica. Isto é,
todos aqueles que não são homens brancos, provenientes dos
maiores eixos urbanos e das classes sociais mais elevadas,
heterossexuais e letrados, estiveram silenciados dos mecanismos de
circulação e canonização. Um exemplo previsível pode ser recolhido
na análise das historiografias literárias publicadas no século XX, como
a de Antonio Candido, Alfredo Bosi, José Veríssimo, Afrânio Coutinho,
Lúcia Miguel Pereira, Massaud Moisés, entre outros. Em todas, existe
uma partilha do invisível, digamos assim, no sentido do soterramento,
isto é, da invisibilização que produzem em relação às autorias negras
e em larga medida femininas, como Maria Firmina dos Reis e Ruth
Guimarães, ainda que ambas tenham usufruído de reconhecimento
público em seus contextos de surgimento (ASSUNÇÃO; MIRANDA,
2022, p. 211).
Maria Firmina dos Reis se construiu como autora por meio de uma agência
própria. O entendimento de sua mobilização dentro da vastidão e complexidade da
estética e do discurso românticos do século XIX, bem como os impasses de produção
e recepção de seus textos, apontam para a contribuição da autora e seu importante
olhar crítico sobre as conjunturas sociopolíticas, em meio aos dilemas e reformulações
do Estado oitocentista, de uma sociedade colonial e seus inúmeros desdobramentos
racistas que perduram até os dias de hoje.
Ao historicizar a autora, sua atuação política e produção literária, entrecruzando
o contexto de formação do campo da historiografia brasileira e sua íntima relação com
literatos oitocentistas, afirmamos que não há uma excepcionalidade em Maria Firmina
dos Reis quanto ao projeto antirracista, manifestado nos textos literários por ela
elaborados ainda no século XIX. Essa excepcionalidade pode ser compreendida do
ponto de vista da literatura de seu tempo, por ter sido pré-abolicionista, contudo,
embora seja constantemente mencionada como a primeira romancista brasileira e
provavelmente a primeira mulher negra nesta condição 一 a exemplo dos trabalhos
de Norma Telles (1987), Luíza Lobo (1988) e Eduardo de Assis Duarte (2018), sem
descartar a relevância destes apontamentos 一, compreendemos a veracidade dessas
colocações como comprovação de que apenas com muito esforço de pesquisa foi
possível detectar sua autoria e disponibilizar sua fortuna crítica para a apreciação
científica e literária. A partir dessa premissa, tensionamos a historiografia e história da
literatura brasileiras enfatizando que Maria Firmina dos Reis foi uma mulher de seu
tempo e reivindicou sua contemporaneidade, já que as pessoas negras são
158
destituídas de pertencimento temporal por estratégias racistas que as aprisionam em
locais fixos. Firmina estava inconformada com o status quo e buscou agir movida por
esta inconformidade, o que confirma a sua atuação crítica no tempo presente.
6 Neste artigo trabalhamos a noção de realismo a partir de Paul Ricoeur (2007). O autor concebe o
realismo como uma escolha que coabita o estético e o político, articulada por autoras(es) que optam
por construir em seus textos imagens e arquétipos que, através da linguagem, aproximam suas
narrativas com experiências reais de sujeitos no tempo.
159
Maria Firmina cresceu ouvindo os relatos do cativeiro narrados por sua
avó Engrácia e por sua mãe Leonor. Ambas haviam sido escravas do
comendador Caetano José Teixeira, dono do navio Vitória, usado no
tráfico de africanos escravizados com frequentes rotas do porto de
Cacheu, na Guiné, para o porto de São Luís. Posteriormente, Engrácia
e Leonor foram negociadas com Baltazar Jozé dos Reis, pai de Sotero
dos Reis, obtendo, em seguida, a alforria. As narrativas dos dramas
da viagem atlântica nos porões dos navios foram acrescidas pelas
histórias contadas pela escrava Lauriana, mãe de Guilhermina. Maria
Firmina refere-se a Guilhermina, em seu diário, como “irmã querida”.
Lauriana, trazida em um navio tumbeiro, nasceu na costa ocidental
africana e faleceu aos 85 anos em Guimarães (GOMES, 2022, p. 31).
Maria Firmina dos Reis ofereceu um tipo de olhar sobre a história do Brasil no
século XIX que não foi aproveitado por um longo período como base crítica tanto para
a historiografia como para os estudos literários. Na preocupação de se entender a
160
história do Brasil, a formação social e os arranjos políticos, uma série de autores
românticos, como Gonçalves de Magalhães, José de Alencar, Gonçalves Dias, dentre
outros, demonstraram essa interpretação por seus posicionamentos críticos, políticos
e pelo texto literário. Ao enumerar escritores românticos que formularam
interpretações sobre o Brasil, ressaltamos que, embora tenham sido excluídas, isso
não significa que mulheres, no século XIX, não emitiram suas visões sobre a
sociedade brasileira e sobre a história do Brasil, contudo, elas não podiam adentrar
nos espaços de poder. Neste caso, os marcadores de gênero e raça são elementos
fundamentais na dinâmica de seleção sobre quais vozes são pertinentes a ocupar
instituições de produção de conhecimento.
Ao trazer os relatos da escravidão promovidos em primeira pessoa, pelas
personagens escravizadas, a literatura firminiana preenche lacunas na historiografia.
A autora antecede o movimento abolicionista, pois já em Úrsula emitia um discurso
antiescravista e, posteriormente, quando o movimento abolicionista ganha espaço nas
vias públicas, a partir de 1870 (ALONSO, 2002), Firmina se confirma neste
posicionamento com o conto A escrava, de 1887, onde, na abertura, apresenta uma
declaração favorável ao abolicionismo:
7 Clóvis Moura apresenta a passagem Escravismo pleno para o tardio após a promulgação da lei
Eusébio de Queirós, de 1850. De acordo com o autor, a sociedade escravista se reorienta após a
proibição do tráfico internacional, que ocasionou mudanças tanto no sistema escravista em si como nas
dinâmicas sociais, e gradualmente vão emergindo os movimentos abolicionistas. Contudo, vale
ressaltar que durante todo o processo de colonização a população negra organizou internamente
formas de combate à escravização, como as rebeliões de escravizados, a desobediência, os suicídios
etc.
162
Apresentando argumentos persuasivos para o fim da escravidão, cujo mote do
progresso é somado à moral cristã, nessa passagem de A escrava há uma crítica à
abolição tardia no Brasil, contrapondo o país com outras nações que já haviam
promovido a liberdade. Diferentemente dos discursos naturalistas, a exemplo de Von
Martius (1843), há também a compreensão da mestiçagem, humanizando a pessoa
negra e a colocando como elemento que compõe a identidade étnica brasileira. O fator
negativo, ou que corrompe a sociedade, não é a pessoa negra, mas a escravidão que
a atravessa. Ou seja, não se trata de características biológicas ou culturais
relacionadas à população negra, que servem de base argumentativa/discursiva para
o racismo: o mal, ou o aspecto negativo, é atribuído à instituição da escravidão. Na
sequência, outro trecho do mesmo conto:
Ainda que tenha criado uma África generalizada, Maria Firmina dos Reis,
mobilizando-se nos preceitos nacionalistas românticos, direciona o continente africano
para as ideias de nação e liberdade possíveis. Dessa forma, a autora subverte as
narrativas simplórias, que reduzem de forma pejorativa o continente africano como o
lugar do atraso e da barbárie, um dos motes para a colonização, caracterizando-o
como espaço da liberdade genuína. A narrativa de Susana, por meio do relato realista,
apresenta-nos cenários de amor, amizade e constituição de família e, ao fim, destaca
que “bárbaros” foram os colonizadores que violentamente a retiraram desse lugar. No
164
trecho a seguir, a própria escravizada, em primeira pessoa, narra o momento de
captura e escravização:
165
E ao coração tocou-lhe piedoso interesse, vendo esse homem lançado
por terra, tinto em seu próprio sangue, e ainda oprimido pelo animal já
morto. E ao aproximar-se contemplou em silêncio o rosto desfigurado
do mancebo; curvou-se, e pôs-lhe a mão sobre o peito, e sentiu lá no
fundo frouxas e espaçadas pulsações, e assomou-lhe ao rosto riso
fagueiro de completo enlevo; da mais íntima satisfação. O mancebo
respirava ainda (REIS, 2018, p. 40).
O homem que assim falava era um pobre rapaz, que ao muito parecia
contar com vinte e cinco anos, e que ria franca expressão de sua
fisionomia deixava adivinhar toda a nobreza de um coração bem
formado. O sangue africano refervia-lhe nas veias; o mísero ligava-se
à odiosa cadeia da escravidão; e embalde o sangue ardente que
herdara de seus pais, e que o nosso clima e a servidão não puderam
resfriar, embalde -dissemos - se revoltava; porque se lhe erguia como
barreira - o poder do forte contra o fraco!... (REIS, 2018, p. 41, grifos
nossos).
166
bell hooks, ao estabelecer o amor como instrumento de revolução, aponta para
o desenvolvimento de sociedades mais justas. O caráter de mudança oferecido pelo
ethos do amor na proposta de hooks pode ser identificado no romance Úrsula como
parte do projeto de educação sentimental promovido por Maria Firmina dos Reis, onde
a autora se vale de Túlio enquanto personagem elaborada com a finalidade de ilustrar
que a partir do amor se desencadeia uma rede de sentimentos emancipatórios. Esta
construção de sentimentos que prioriza os afetos são elementos caros ao texto
firminiano e essenciais na fundamentação antirracista que a autora empreende, assim
como estratégia de convencimento da sociedade escravista para a libertação de
sujeitos escravizados. De acordo com hooks:
O amor redime. Apesar de todo o desamor que nos cerca, nada tem
sido capaz de bloquear nosso desejo pelo amor, a intensidade do
nosso anseio. A compreensão de que o amor redime parece ser um
resiliente do saber do coração. O poder curativo do amor redentor nos
atrai e nos convoca em direção à possibilidade de cura (hooks, 2021,
p. 212).
Antero é a última personagem analisada neste artigo e nos oferece uma gama
de interpretações. Assim como Susana, ele é um escravizado nascido livre no
continente africano. Descrito como velho e decrépito, está às ordens do antagonista
do romance, o comendador Fernando P., tio de Úrsula. Antero é vítima do vício em
bebidas alcoólicas e em dado momento, quando está vigiando Túlio 一 capturado por
Fernando P. por ajudar Úrsula e Tancredo durante a fuga do casal 一, o personagem
resolve contar para Túlio sobre sua experiência com o álcool no país de origem:
167
Nesse trecho, Antero retoma seu passado no continente africano revelando
para Túlio as relações de trabalho e o consumo alcoólico. Em tom de brincadeira,
compara a bebida de seu país com a tiquira, espécie de cachaça tradicional do estado
do Maranhão. O escravizado demonstra ter consciência de que, a partir do sequestro
e da escravização, a embriaguez se tornou um escape efêmero diante da dura
realidade e, dessa forma, podemos inferir que ele se tornou adicto durante a condição
de escravizado. Na narrativa de Antero, assim como na de Susana, o escape narrativo
que desloca a personagem para um passado saudoso, estratégia narrativa comum
nos romances românticos, reporta tal ligação imediatamente ao continente africano,
sendo a pátria nacionalista idealizada por Firmina.
Esta personagem também nos propõe a reflexão sobre a transformação do
hábito de beber em patologia. O consumo exacerbado de bebidas alcoólicas, quando
transformado em vício, é entendido como desamparo do Estado e um problema social
e histórico, apresentado pela sensibilidade do romance, que acomete a população
negra ainda na contemporaneidade. Antero estabelece um divisor crítico ao contrapor
sua relação com a bebida no continente africano e depois de escravizado, quando o
vício se torna uma resolução ou um deslocamento possível diante da realidade da
escravidão, em um cenário de destituição da liberdade e desumanização:
168
(2014) descreve como o criado supermasculino8: um tipo de masculinidade forjada,
pautada em características de força física ilimitada e virilidade. No entanto, nessa
personagem, ainda que quando esteja sóbrio ou na presença do senhor e de seus
empregados o escravizado tente performar desta maneira, seu corpo velho, bêbado e
cansado já não responde a estes estímulos, fazendo com que os modos sejam
artificiais, mera caricatura do que poderia ter sido um dia.
A ideia do criado supermasculino elaborada por Nkosi faz parte de um diálogo
que o autor estabelece com Eldridge Cleaver (1971) e se relaciona com a construção
colonialista e ocidental de masculinidade, pautada em concepções fechadas e fixas
que atribuem ao modelo masculino hegemônico as características de força e controle
sobre as mulheres e os homens não brancos. Ao se colocarem no lugar de portadores
da razão, relegando às demais camadas da sociedade o lugar da emoção, o polo
masculino branco se elege como administrador e, em contrapartida, menospreza as
outras esferas sociais, sendo a população negra colocada como base do sistema de
trabalho que sustenta o capitalismo:
8 Ao analisar a deformação das masculinidades negras em prol do colonialismo, não estamos, contudo,
desprezando a equivalência do trabalho servil feminino. Angela Davis, em Mulheres, raça e classe
(1981), ressalta que no Antigo Regime, na condição de produtos, não havia uma distinção de gênero
entre sujeitos escravizados. Davis, ao descrever as reivindicações da classe trabalhadora negra
estadunidense, denota que as mulheres negras estavam sob as mesmas condições de servilidade de
seus companheiros homens, enquanto escravizadas, e esse emparelhamento das funções trabalhistas
também se deu no pós-abolição, como operárias (DAVIS, 2016, p. 220).
169
Que mau vício em verdade, pai Antero… sempre a fumar, e a beber.
Não vos envergonhais de semelhante procedimento? Que conceito
fará de vós o senhor comendador?!
一 Que conceito? 一 interrogou o velho desapontado 一 que conceito!
É o único vício que tenho; e ainda por conservá-lo não prejudiquei a
ninguém. Que te importa que beba. 一 acrescentou com voz que
queria dizer: não tens coração 一 porventura pedi-te algum dinheiro
para fumo ou cachaça? 一 e dizendo afagava a cabeça vazia com um
desvelo todo paternal, como que arrependido de tê-la desprezado, a
ela, a sua companheira constante (REIS, 2018, p. 189, grifos nossos).
O diálogo aqui proposto entre Fanon e Nkosi são relevantes para a análise de
Antero na medida em que relacionamos a construção das masculinidades negras com
a saúde física e mental do homem negro. Devido às múltiplas camadas de afetação
de seu corpo, mediante as heranças da escravidão atravessadas pelo racismo, foi
construída para estes sujeitos uma identidade fixa e estereotipada pelos resquícios
coloniais. Em nossa leitura de Antero, compreendemos que existe uma mudança no
padrão de consumo de bebida alcoólica, quando se compara a experiência no
continente africano daquela imposta após o processo de escravização. Nesse sentido,
entendemos o tornar-se alcoolista9 como mecanismo de biopoder, projetado por um
Estado racista, que patologiza o consumo alcoólico enquanto forma de aniquilação de
corpos negros, que devido ao desamparo, também de classe, tornam-se mais
suscetíveis à letalidade do consumo, uma vez transformado em vício sem o tratamento
adequado na saúde pública a que deveriam ter direito.
Maria Firmina dos Reis foi uma mulher negra letrada e politicamente ativa em
seu contexto. Ciente de sua realidade social, estruturada no sistema escravista
patriarcal, cujos mecanismos de dominação e exclusão estavam enraizados nas
práticas políticas e sociais do período, ela se construiu e se projetou como autora
legítima, apta à realização do texto literário. Nesse movimento, a escritora acaba por
estipular um ethos autoral contrário ao estabelecido pelo cânone oitocentista,
fornecendo-nos uma importante visão crítica sobre a história do Brasil através de sua
mobilização no Romantismo.
9 Em concordância com a Organização Mundial de Saúde (OMS), que considera como doença o
consumo excessivo de bebidas alcoólicas, na medida em desencadeia uma série de reações
patológicas no dependente, optamos pelo uso do termo ‘alcoolista’ em substituição do pejorativo
‘alcoólatra’ que denota a simples idolatria ao álcool pela pessoa adicta, como se tratasse de mera
escolha ou opção, corroborando com a estigmatização social destes indivíduos.
170
Considerações finais
Referências
173