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“AUTORA DE SEUS DIAS”: A MOBILIZAÇÃO CRÍTICA DE MARIA FIRMINA DOS

REIS NO ROMANTISMO BRASILEIRO

Leliane Faustino1

Resumo: Este artigo teve como foco investigativo analisar como a escritora e professora
maranhense Maria Firmina dos Reis (1825-1917) construiu seu ethos autoral e se auto inseriu
no Romantismo brasileiro. Por meio da análise de sua historicidade e leitura de seus textos,
podemos afirmar que a autora correspondia à estética e ao discurso românticos. Contudo,
devido aos mecanismos racistas e sexistas de seleção dos cânones historiográfico e literário,
pouco figurou nas produções da historiografia e literatura brasileiras, o que nos impediu, por
um longo tempo, o acesso ao seu importante olhar sobre a história do Brasil, oferecido pelo
texto literário. Com isso, nosso objetivo foi demonstrar, através da mobilização política de
Maria Firmina dos Reis dentro da literatura romântica brasileira, com recorte no romance
Úrsula (1859) e no conto A escrava (1887), como a criação literária abarca o viés crítico da
escritora, sendo, portanto, uma contribuição epistêmica para os estudos literários e a trajetória
da historiografia brasileira.
Palavras-chave: Maria Firmina dos Reis; História da Historiografia Brasileira; Romantismo;
Literatura e Sociedade.

“AUTORA DE SEUS DIAS”: THE CRITICAL MOBILIZATION OF MARIA FIRMINA DOS REIS IN
BRAZILIAN ROMANTICISM

Abstract: This article analytical focus is to analyze how the Maranhão writer and teacher Maria
Firmina dos Reis (1825 - 1917) raised her authorial ethos and inserted herself into Brazilian
romanticism. Through the inquiry of her historicity and by the account of her texts, we can
affirm that the auteure lived up to the aesthetics and the romantic discourse, however, due to
the racist and sexist mechanisms of election of historiographic and literary canons, figured
limitedly in the histories of Brazilian historiography and literature. Which steadily prevented us
from accessing her important perspective on the history of Brazil conveyed by the literary text.
Herewith, our aim is to expose that through the political mobilization of Maria Firmina dos Reis
within Brazilian romantic literature, giving lights to the novel Úrsula (1859) and the short story

1
Doutoranda em História pela Universidade Federal de Ouro Preto, área de concentração: Poder e
linguagem, inscrita na linha de pesquisa: Ideias, linguagens e historiografia. Pesquisadora bolsista da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). É membra do Núcleo de
Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM-UFOP); do Grupo de estudos História,
Cultura e outras Linguagens (HILL-UFMA); do Núcleo de estudos Afro-brasileiros e indígenas (NEABI
- UFOP). E-mail: [email protected]
150
A escrava (1887), how literary creation encompasses the writer's critical bias, therefore being
an epistemic contribution to literary studies and the history of Brazilian historiography.
Keywords: Maria Firmina dos Reis; History of Brazilian Historiography; Romanticism;
Literature and Society.

Introdução

Maria Firmina dos Reis foi uma mulher negra, professora, escritora e musicista,
nascida em São Luís (MA), em 11 de outubro de 1825. Em conciliação com a carreira
docente, Firmina possui uma extensa produção literária, desenvolvida com maior
expressão ao longo da segunda metade do século XIX. Sua postura intelectual e
política, somada à sua atuação como escritora - escolhendo narrar de forma crítica a
instituição da escravidão, dentre outros aspectos, são revolucionárias e
transgressoras, especialmente quando analisadas sob o viés dos estudos
historiográficos e literários, dentro da rigidez de seu contexto e das condições para a
realização da escrita política de uma mulher negra nos oitocentos.
A escritora residiu e passou a maior parte de sua vida em São José de
Guimarães, onde foi efetivada ao cargo público de professora, em 1847. São
atribuídas a Maria Firmina dos Reis diversas composições para as festas de Boi,
assim como o Hino à Liberdade dos Escravos, de 1888 (MORAIS FILHO, 1975). A
professora se aposentou em 1866 e continuou fazendo poesias, compondo músicas
e escrevendo para os jornais maranhenses. Maria Firmina morreu em 1917, em
Guimarães.
A retomada póstuma do nome e da produção literária de Maria Firmina dos
Reis, após um longo hiato 一 já que a autora apareceu de forma imprecisa e pouco
suficiente nas Histórias da Literatura Brasileira2 一, aconteceu em meados do século
XX, quando, em 1962, o bibliófilo e historiador Horácio de Almeida encontrou, em um
sebo na cidade do Rio de Janeiro, um exemplar de Úrsula. O uso do pseudônimo
“Uma maranhense” na assinatura da primeira edição do texto inquietou o pesquisador,
que, após consultar o Dicionário Bibliográfico Brasileiro, de Sacramento Blake (1900),
detectou a autoria de Maria Firmina dos Reis. Almeida contata, então, José
Nascimento Morais Filho, escritor e jornalista maranhense, o qual promoveu incursões

2 A primeira citação que identificamos sobre Maria Firmina dos Reis está contida no Parnaso
Maranhense, de 1861. A partir dessa publicação, outras menções à escritora se valeram do Parnaso
como referência, são elas: breve citação, parte integrante do verbete feito para Joaquim Serra, na
História da Literatura Brasileira, de Sílvio Romero (1888, p. 389); os pequenos verbetes contidos no
Diccionario Bibliographico Brazileiro, elaborado por Sacramento Blake (1900, p. 232); e no Dicionário
Literário Brasileiro, de Raimundo de Menezes (1969, p. 570).
151
à Biblioteca Pública Benedito Leite (MA), onde estão arquivados vários periódicos
para os quais Firmina escrevia. Morais Filho também produziu uma série de
entrevistas com familiares e ex-alunas(os) da professora, na cidade de Guimarães,
tornando possível a realização de sua primeira biografia, Maria Firmina: fragmentos
de uma vida (1975). A biografia conta com prólogo de Horácio de Almeida e oferece
uma reunião de textos literários, relatos de pessoas próximas da autora, sempre
associados ao fato de Firmina ter sido reconhecida como uma grande professora da
vila, e parte da crítica feita pelos jornais locais, sobretudo quanto à recepção de
Úrsula.
Agenor Gomes publicou em 2022 Maria Firmina dos Reis e o cotidiano da escravidão
no Brasil, onde o autor apresenta documentação inédita sobre Maria Firmina,
conseguindo, dessa maneira, elaborar uma árvore genealógica da autora, bem como
pesquisar sobre as várias nações e etnias africanas que chegaram a Guimarães no
contexto da escravidão. Destaca-se na obra o convívio real de Firmina com pessoas
escravizadas, já que sua mãe, Leonor Felipa dos Reis, e a avó, Engrácia, foram
capturadas no continente africano, tendo sido escravizadas pelo comendador Caetano
José Teixeira (1760-1818), dono do navio tumbeiro Vitória, que desembarcava no
porto de Cacheu, na Guiné (GOMES, 2022, p. 31). A pesquisa de Gomes corrobora
as nossas afirmações sobre a opção da autora pelo realismo enquanto figura retórica
estrategicamente escolhida para a elaboração das narrativas sobre pessoas negras e
sobre a escravidão.
Destacamos ainda que a biografia tecida por Gomes foi fundamental para o
desenrolar da trama a respeito da controvérsia sobre o nascimento de Maria Firmina
dos Reis. Em 2018, a pesquisadora Dilercy Aragão Adler, através da consulta aos
Autos de Justificação do dia de nascimento de Maria Firmina dos Reis 3, verificou que
a autora requereu a alteração de sua data de batismo 一 naquele contexto a
consagração do batizado funcionava como uma espécie de certidão de nascimento
一 para 11 de março de 1822, alegando que fora acometida por uma doença que
impediu a realização da cerimônia quando ainda era recém-nascida. Tal
documentação, que é verídica, entrava em conflito com as demais encontradas até
então, as quais apontavam a data de nascimento como sendo 11 de outubro de 1825.
Contudo, a investigação de Agenor Gomes constrói a narrativa de que Firmina
solicitou a alteração da data de nascimento, pois não tinha idade legal para assumir o
cargo de professora, para o qual ela já havia sido aprovada e não tinha, portanto, a

3“Diz Maria Firmina dos Reis, filha natural/ de Leonor Filippa dos Reis, que ela quer justificar por este
Juiso que nasceo no dia 11 de Março do anno de 1822, e que só teve lugar o seu baptismo no dia 21
de Desembro de 1825, como mostra pelo documento junctos, por causa de molestia que então lhe
sobreveio e privou ser baptisada antes; o que feito requer se julgue por sentencia, e que mande abrir
novo assento por tt.o” (Autos de Justificação do dia de nascimento de Maria Firmina dos Reis apud
ADLER, 2018, p. 219).
152
documentação que comprovasse a idade mínima necessária de 25 anos (GOMES,
2022, p. 102).
É importante informar as controvérsias sobre o nascimento da autora, uma vez
que representam fragmentos de sua historicidade. Esses fragmentos, no entanto,
gradualmente vêm emergindo para pesquisadoras(es) e funcionam também como
comprovações do esquecimento sofrido pela autora, devido à ausência de
documentação e às escassas referências a ela na história da literatura brasileira. A
narrativa de Gomes nos conduz na interpretação sobre o quão ambivalente era a
cidadania negra nos oitocentos e como essa precariedade permaneceu no pós-
abolição. De acordo com Ana Flávia Magalhães Pinto (2014), que se incumbiu da
análise das condições de civilidade de intelectuais negros na segunda metade do
século XIX e no pós-abolição 一 a saber: Ferreira de Menezes, Luiz Gama, Machado
de Assis, José do Patrocínio, Ignácio de Araújo Lima, Arthur Carlos e Theophilo Dias
de Castro 一, ao se colocar os homens negros livres no lugar de uma ambiguidade
civil, dificultava-se também o encontro de registros que auxiliassem suas construções
genealógicas, devido à insuficiência de fontes. A partir da pesquisa de Magalhães
Pinto, ressaltamos que a escassez de documentação legal para a população negra
resulta no apagamento de suas próprias histórias, além do fato de que pessoas negras
não são consideradas como parte integrante da sociedade, ocupando uma condição
fronteiriça em meio à sociedade racista.
Dessa forma, as constantes revisões e atualizações biográficas da autora são
substanciais para a construção historiográfica, bem como representam um
posicionamento ético e político de uma historiografia que se ocupa objetiva e
criticamente com a pluralidade de sujeitos e discursos em sua narrativa, visando
naturalizar a presença de pessoas negras enquanto agentes no tempo, manifestando
as mais variadas formas de existência. No mesmo sentido, a partir dessa construção
historiográfica em outras áreas de conhecimento, como a crítica literária, é possível
se valer de material para o seu campo de estudo, trazendo Maria Firmina dos Reis e
sua importante trajetória intelectual como centro de produção de saberes.

“Autora de seus dias4”: política, literatura e história

4 No prólogo de Úrsula, Maria Firmina dos Reis faz uma defesa do romance e, através de uma retórica
irônica, aponta motivos para que as pessoas lessem sua obra de estreia. No fim do texto, a autora
ainda lança incentivos para que outras escritoras, leia-se outras mulheres, aventurassem-se no
movimento da escrita: “Não a desprezeis, antes amparai-a nos seus incertos e titubeantes passos para
assim dar alento à autora de seus dias, que talvez com essa proteção cultive mais o seu engenho, e
venha a produzir coisa melhor, ou quando menos, sirva esse bom acolhimento de incentivo para outras,
que com imaginação mais brilhante, com educação mais acurada, com instrução mais vasta e liberal,
tenham mais timidez do que nós” (REIS, 2018, p. 34).
153
Maria Firmina dos Reis foi uma autora que se incomodou profundamente com
as conjunturas políticas e sociais de seu tempo e projetou essas inconformidades no
texto literário. Valendo-se dos mecanismos estéticos e discursivos da literatura
romântica, a autora elaborou um projeto de educação sentimental, cujo princípio era
o fim da escravidão e o ápice a emancipação da população negra. A postura da autora,
assim como a materialização de sua obra, são demonstrações de não passividade
frente ao projeto colonial e de promoção de uma literatura política que reivindica a
posição de enunciadora para uma mulher negra, bem como a elaboração de temática
e de personagens negras não estereotipadas.
Antonio Candido (1988) defende a literatura como um direito universal do ser
humano, sendo a capacidade de fabular e receber narrativas ferramentas
fundamentais para práticas de bem viver, contudo, tais ferramentas são destinadas
apenas a parcelas da população, devido à elitização da literatura e de sujeitos leitores.
Alargando a crítica de Candido, em diálogo com Rafael Zin (2022), apontamos
também O direito à literatura afro-brasileira, destacando a produção literária e o corpus
narrativo que partem ou têm como centro pessoas negras:

Num contexto multicultural como o brasileiro, que é marcado por


desigualdades profundas de ordem material e simbólica e que
estruturam as relações sociais do modo como estão dadas,
perspectivas como as que Antonio Candido defende, ainda que não
seja essa a sua intenção, limitam o direito à literatura apenas como
direito ao acesso e à fruição das obras literárias ditas eruditas,
deixando de considerar demais aspectos fundamentais do nosso
ordenamento jurídico, tais como o direito ao reconhecimento da
diversidade e do valor estético das mais variadas formas de expressão
literária produzidas no Brasil, como as manifestações de cunho oral
provenientes do rico acervo civilizatório de matrizes indígenas e
africanas; o reconhecimento do direito de enunciar-se
literariamente a identidade e as memórias dos diversos
segmentos sociais brasileiros; o acesso às condições de produção
e de circulação das obras por autores e narrativas divergentes das
consideradas canônicas; além do lugar de prestígio que a literatura
ocupa nas políticas públicas de promoção da igualdade racial, como a
Lei federal 10.639, de 9 de janeiro de 2003, complementada pela Lei
federal 11.645, de 10 de março de 2008, que alteram a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, incluindo no currículo oficial
das escolas de todo o país a obrigatoriedade do ensino das temáticas

154
ligadas à história e cultura afro-brasileira e indígena (ZIN, 2022, p. 29,
grifos nossos).

Na formação social brasileira, podemos identificar as desigualdades


econômicas presentes como continuidades reformuladas do que eram no Antigo
Regime, essenciais para a manutenção do sistema capitalista, e que colocam,
portanto, as populações negras, quilombolas, indígenas e pobres como não
produtoras de literatura, tampouco destinadas à recepção. Os mecanismos de criação
e seleção do cânone literário são pautados em categorias fixas, as quais funcionam a
partir de uma cadeia masculina fechada, onde os integrantes são em sua maioria
homens brancos, com poder aquisitivo, e que se retroalimenta por meio de citações
cíclicas (FAUSTINO, 2022, p. 9). Dessa forma, indagamos como fica o lugar da
literatura produzida por pessoas negras, se, ainda na contemporaneidade, há uma
reivindicação por pertencimento.
Embora exista a presença da narradora onisciente, a literatura firminiana é
marcada por personagens negras desenvolvidas psicologicamente e que falam em
primeira pessoa. Sua autenticidade no cenário romântico oitocentista está na oposição
que a autora faz às frequentes representações estereotipadas que o Romantismo
elaborou sobre a pessoa negra. Quando existia a presença destas personagens, elas
eram pautadas por construções objetificadas e figurativas, espécie de paisagem de
fundo para que a heroína ou o herói brancos se destacassem (MOURA, 1994, p. 184).
Nesse sentido, ao reivindicarmos o direito à literatura de autoria negra, estamos
projetando um lugar que anula concepções da pessoa negra como objeto estético
narrado de forma vazia, ou simplesmente representada por personagens alegóricas,
transmutando o processo para uma configuração mais bem construída, que alcance
suas experiências reais como sujeitos relevantes no tempo.
Sobre a escrita da história no século XIX, é importante ressaltar que havia uma
constante troca com os estudos literários. Na falta de um campo disciplinar delineado,
coube, em grande medida, aos literatos oitocentistas, no recorte deste trabalho,
literatos românticos, a elaboração escrita de uma História do Brasil (PEREIRA;
SANTOS, 2013, p. 21-22). Sendo assim, por meio de suas obras literárias e
posicionamentos críticos, estes homens das letras ofertaram também mecanismos
para a escrita da História do Brasil. Nos tratados de história da literatura brasileira,
textos pautados em nacionalismos literários eram apresentadas construções
identitárias para o povo brasileiro que conferiam legitimidade e cientificidade aos
estudos feitos no país, em conformidade com os discursos românticos e modernistas5

5Chamamos de modernista um discurso alargado, que ultrapassa o recorte temporal da Semana de


Arte Moderna em São Paulo, no ano de 1922, para apontar a produção de uma intelectualidade
modernista já no século XIX, onde notamos a estruturação de desejos por modernização nos discursos
155
que vigoravam (FAUSTINO, 2022, p. 36). Contudo, devemos questionar quais obras
e escritores(as) são pertinentes a essas histórias da literatura e que tipo de tradição e
seleção literária são inauguradas a partir daí. Sobre isso, tem-se que:

A literatura de um povo é o desenvolvimento do que ele tem de mais


sublime nas idéias, de mais filosófico no pensamento, de mais heróico
na moral e de mais belo na natureza; é o quadro animado de suas
virtudes e de suas paixões, o despertador de sua glória e o reflexo
progressivo de sua inteligência. E, quando esse povo, ou essa
geração, desaparece da superfície da terra, com todas as suas
instituições, crenças e costumes, escapa a literatura aos rigores do
tempo para anunciar às gerações futuras qual fora o caráter e a
importância do povo, do qual é ela o único representante na
posteridade. Sua voz, como um eco imortal, repercute por toda parte,
e diz: em tal época, debaixo de tal constelação e sobre tal ponto do
globo existia um povo cuja glória só eu a conservo, cujos heróis só eu
conheço. Vós, porém, se pretendeis também conhecê-lo, consultai-
me, porque eu sou o espírito desse povo e uma sombra viva do que
ele foi (MAGALHÃES, 1836, p. 1).

Dentro da pluralidade de discursos do Romantismo brasileiro, havia uma


vertente nacionalista que almejava a identidade unificada para o povo. Esse desejo
reverberava também na literatura, que a partir daí se qualificaria como nacional, sendo
uma das representações do povo brasileiro e, de acordo com Gonçalves de
Magalhães, guardiã de sua memória. Dessa forma, observamos que, ao empregar o
substantivo singular “literatura de um povo”, Magalhães confirma esse desejo de
alguns românticos, no entanto, demonstra como outras expressões literárias que
poderiam trazer as múltiplas formas de identificação que a população brasileira
poderia ter assumido naquele momento não correspondiam ao projeto hegemônico e
eram invalidadas.
O método de seleção canônico, assim como outros preceitos intelectuais, foi
importado a partir de uma cultura francesa, que vigorava no imaginário social brasileiro
no contexto oitocentista. Escritores românticos incorporaram aos seus repertórios

científicos, na escrita literária e em projetos políticos que despertaram no tempo-espaço a consciência


de modernidade. Em diálogo com Mônica Veloso (2008, p. 353) e Francisco Foot Hardman (1992, p.
390-391), sublinhamos que o discurso modernista ressaltava o caráter excludente da modernidade à
medida que selecionava partes específicas de um passado, ao mesmo tempo em que estimulava
rupturas com o que desejava ser esquecido; o progresso almejado, porém, não era acompanhado de
mudanças sociais efetivas.

156
críticos e literários modos de ser e de enxergar a sociedade através de um
nacionalismo frágil, em meio às constantes reformulações políticas que o país
enfrentava. Na tentativa de uma unificação identitária, de pensar a gênese do povo
brasileiro, e consequentemente seus produtos culturais, coube à literatura narrar
tamanha complexidade:

O tema “valor”, ao lado da questão da subjetividade do julgamento,


comporta ainda a questão do cânone, ou dos clássicos, como se diz
de preferência em francês, e da formação desse cânone, de sua
autoridade 一 sobretudo escolar 一 , de sua contestação, de sua
revisão. Em grego, o cânone era uma regra, um modelo, uma norma
representada por uma obra a ser imitada. Na igreja, o cânone foi a
lista, mais ou menos longa, dos livros reconhecidos como inspirados
e dignos de autoridade. O cânone importou o modelo teológico para a
literatura no século XIX, época da ascensão dos nacionalismos,
quando os grandes escritores se tornaram os heróis do espírito das
nações. Um cânone é, pois, nacional (como uma história da literatura),
ele promove os clássicos nacionais ao nível dos gregos e dos latinos,
compõe um firmamento diante do qual a questão da admiração
individual não se coloca mais: seus monumentos formam um
patrimônio, uma memória coletiva (COMPAGNON, 2010, p. 222-223).

Ao analisar a organização dos compêndios de história da literatura brasileira já


no século XX, que têm como parâmetro a metodologia oitocentista de sistematização
dos cânones, identificamos em autores como Antonio Candido e Alfredo Bosi 一 sem,
contudo, anular suas grandes contribuições para as ciências humanas 一 uma seleção
cronológica de gêneros, obras e autores divididos por escolas literárias. Embora
partam de um caráter didático, esses critérios e regras de seleção linear canônica, as
quais subdividem as escolas literárias em características gerais, textos e autores que
se destacaram no período correspondente ao recorte de análise, e em contrapartida
relegam ao lugar de “menores” (CANDIDO, 2017, p. 417) e “epígonos” (BOSI, 1993,
p. 128) aquelas(es) que não puderam se destacar, acabam por excluir uma gama de
outros textos e autoras(es) que não são apreciadas pelo público. Aqui não estamos
tratando somente de apreciação estética, juízo (JAUSS, 1994) e valor, mas levando
em consideração os inúmeros motivos de exclusão social de sujeitos que não
correspondem ao arquétipo hegemônico e que por estes motivos não puderam
aparecer também no universo literário:

157
O cânone literário brasileiro se constitui sobre o silenciamento das
vozes dissidentes dos marcadores da autoria hegemônica. Isto é,
todos aqueles que não são homens brancos, provenientes dos
maiores eixos urbanos e das classes sociais mais elevadas,
heterossexuais e letrados, estiveram silenciados dos mecanismos de
circulação e canonização. Um exemplo previsível pode ser recolhido
na análise das historiografias literárias publicadas no século XX, como
a de Antonio Candido, Alfredo Bosi, José Veríssimo, Afrânio Coutinho,
Lúcia Miguel Pereira, Massaud Moisés, entre outros. Em todas, existe
uma partilha do invisível, digamos assim, no sentido do soterramento,
isto é, da invisibilização que produzem em relação às autorias negras
e em larga medida femininas, como Maria Firmina dos Reis e Ruth
Guimarães, ainda que ambas tenham usufruído de reconhecimento
público em seus contextos de surgimento (ASSUNÇÃO; MIRANDA,
2022, p. 211).

Maria Firmina dos Reis se construiu como autora por meio de uma agência
própria. O entendimento de sua mobilização dentro da vastidão e complexidade da
estética e do discurso românticos do século XIX, bem como os impasses de produção
e recepção de seus textos, apontam para a contribuição da autora e seu importante
olhar crítico sobre as conjunturas sociopolíticas, em meio aos dilemas e reformulações
do Estado oitocentista, de uma sociedade colonial e seus inúmeros desdobramentos
racistas que perduram até os dias de hoje.
Ao historicizar a autora, sua atuação política e produção literária, entrecruzando
o contexto de formação do campo da historiografia brasileira e sua íntima relação com
literatos oitocentistas, afirmamos que não há uma excepcionalidade em Maria Firmina
dos Reis quanto ao projeto antirracista, manifestado nos textos literários por ela
elaborados ainda no século XIX. Essa excepcionalidade pode ser compreendida do
ponto de vista da literatura de seu tempo, por ter sido pré-abolicionista, contudo,
embora seja constantemente mencionada como a primeira romancista brasileira e
provavelmente a primeira mulher negra nesta condição 一 a exemplo dos trabalhos
de Norma Telles (1987), Luíza Lobo (1988) e Eduardo de Assis Duarte (2018), sem
descartar a relevância destes apontamentos 一, compreendemos a veracidade dessas
colocações como comprovação de que apenas com muito esforço de pesquisa foi
possível detectar sua autoria e disponibilizar sua fortuna crítica para a apreciação
científica e literária. A partir dessa premissa, tensionamos a historiografia e história da
literatura brasileiras enfatizando que Maria Firmina dos Reis foi uma mulher de seu
tempo e reivindicou sua contemporaneidade, já que as pessoas negras são

158
destituídas de pertencimento temporal por estratégias racistas que as aprisionam em
locais fixos. Firmina estava inconformada com o status quo e buscou agir movida por
esta inconformidade, o que confirma a sua atuação crítica no tempo presente.

Autora crítica: a escravidão pela narrativa firminiana

Maria Firmina dos Reis optou por construir as dimensões de temporalidade


feitas sob o ponto de vista das personagens negras, assim como são estabelecidas
suas circunstâncias de experiência no tempo (FAUSTINO, 2022, p. 72). Nesse
sentido, a autora contribuiu para a construção historiográfica, enriquecendo a crítica
literária, pois oferta um tipo de representação dentro da literatura romântica que
normaliza a presença de pessoas negras enquanto agentes no tempo, em suas
diversas formas de atuação e possibilidades de existência, assim como recria outras
instâncias temporais, como um passado anterior à escravidão e perspectivas de
horizontes futuros, cujo caminho é o fim da escravidão. Essa construção destoa do
discurso hegemônico que aprisiona temporalmente a população negra no marco da
escravidão, com ausência de passado, funcionando como um adendo da história do
colonizador.
Com a pesquisa de Agenor Gomes (2022), já citada, conseguimos identificar
uma das fontes que inspiraram o processo criativo que possibilitou a Maria Firmina
dos Reis a inserção das personagens negras em Úrsula, Susana, Túlio e Antero, e no
conto A Escrava, Joana, Gabriel, Carlos e Urbano. Gomes ressalta o convívio íntimo
que a autora teve com pessoas negras escravizadas e livres, destacando que Firmina
estava inserida no Cotidiano da escravidão no Brasil, dentro do contexto da vila de
Guimarães, no século XIX. Portanto, em alguma medida, ela pôde testemunhar, por
meio de vozes plurais, os desdobramentos do sistema escravista e como essa
realidade recaía nos mecanismos de organização social. Dessa forma, a autora se
valeu de sua vivência para elaborar as narrativas sobre a escravidão, usando o
Romantismo como estilo e elemento persuasivo e o realismo6 como figura retórica
capaz de comportar os cenários da escravidão; estratégias que foram essenciais para
a recepção de seus textos, além de funcionarem como elemento difusor do projeto de
educação sentimental elaborado por ela. De acordo com Gomes, tem-se que:

6 Neste artigo trabalhamos a noção de realismo a partir de Paul Ricoeur (2007). O autor concebe o
realismo como uma escolha que coabita o estético e o político, articulada por autoras(es) que optam
por construir em seus textos imagens e arquétipos que, através da linguagem, aproximam suas
narrativas com experiências reais de sujeitos no tempo.
159
Maria Firmina cresceu ouvindo os relatos do cativeiro narrados por sua
avó Engrácia e por sua mãe Leonor. Ambas haviam sido escravas do
comendador Caetano José Teixeira, dono do navio Vitória, usado no
tráfico de africanos escravizados com frequentes rotas do porto de
Cacheu, na Guiné, para o porto de São Luís. Posteriormente, Engrácia
e Leonor foram negociadas com Baltazar Jozé dos Reis, pai de Sotero
dos Reis, obtendo, em seguida, a alforria. As narrativas dos dramas
da viagem atlântica nos porões dos navios foram acrescidas pelas
histórias contadas pela escrava Lauriana, mãe de Guilhermina. Maria
Firmina refere-se a Guilhermina, em seu diário, como “irmã querida”.
Lauriana, trazida em um navio tumbeiro, nasceu na costa ocidental
africana e faleceu aos 85 anos em Guimarães (GOMES, 2022, p. 31).

A literatura firminiana tem por foco narrar os universos que permeiam a


constituição do ser negro na condição de agente ativo na comunidade. Enquanto
descendente da diáspora africana e inconformada com o sistema escravista, Maria
Firmina dos Reis trouxe para o texto literário a elaboração de enredos que pretendiam
uma aproximação com a realidade da escravidão, na intenção de fornecer, através de
bases argumentativas/persuasivas sólidas, formas de combater o racismo e acabar
com a escravidão. Ao se colocar no lugar de autora, ela descreve de forma crítica as
mazelas do regime escravista vigente, fornecendo um plano tático de transformações
radicais. Ao trabalharmos com literaturas produzidas por pessoas negras, deparamo-
nos com a construção de subjetividades que não podem ser pensadas de forma
dissociada de seu contexto geopolítico; é um eu não narcísico que quer e se funde
com o nós, sendo lido neste artigo pela lente da Escrevivência, desenvolvida por
Conceição Evaristo:

A Escrevivência pode ser como se o sujeito da escrita estivesse


escrevendo a si próprio, sendo ele a realidade ficcional, a própria
inventiva de sua escrita, e muitas vezes o é. Mas, ao escrever a si
próprio, seu gesto se amplia e, sem sair de si, colhe vidas, histórias do
entorno. E por isso é uma escrita que não se esgota em si, mas,
aprofunda, amplia, abarca a história de uma coletividade. Não se
restringe, pois, a uma escrita de si, a uma pintura de si (EVARISTO,
2020, p. 35).

Maria Firmina dos Reis ofereceu um tipo de olhar sobre a história do Brasil no
século XIX que não foi aproveitado por um longo período como base crítica tanto para
a historiografia como para os estudos literários. Na preocupação de se entender a
160
história do Brasil, a formação social e os arranjos políticos, uma série de autores
românticos, como Gonçalves de Magalhães, José de Alencar, Gonçalves Dias, dentre
outros, demonstraram essa interpretação por seus posicionamentos críticos, políticos
e pelo texto literário. Ao enumerar escritores românticos que formularam
interpretações sobre o Brasil, ressaltamos que, embora tenham sido excluídas, isso
não significa que mulheres, no século XIX, não emitiram suas visões sobre a
sociedade brasileira e sobre a história do Brasil, contudo, elas não podiam adentrar
nos espaços de poder. Neste caso, os marcadores de gênero e raça são elementos
fundamentais na dinâmica de seleção sobre quais vozes são pertinentes a ocupar
instituições de produção de conhecimento.
Ao trazer os relatos da escravidão promovidos em primeira pessoa, pelas
personagens escravizadas, a literatura firminiana preenche lacunas na historiografia.
A autora antecede o movimento abolicionista, pois já em Úrsula emitia um discurso
antiescravista e, posteriormente, quando o movimento abolicionista ganha espaço nas
vias públicas, a partir de 1870 (ALONSO, 2002), Firmina se confirma neste
posicionamento com o conto A escrava, de 1887, onde, na abertura, apresenta uma
declaração favorável ao abolicionismo:

Em um salão onde se achavam reunidas muitas pessoas distintas, e


bem colocadas na sociedade, e depois de versar a conversação sobre
diversos assuntos mais ou menos interessantes, recaiu sobre o
elemento servil.
O assunto era por sem dúvida de alta importância. A conversação era
geral; as opiniões, porém, divergiam. Começou a discussão.
— Admira-me, — disse uma senhora de sentimentos sinceramente
abolicionistas; — faz-me até pasmar como se possa sentir, e
expressar sentimentos escravocratas, no presente século, no século
dezenove! A moral religiosa e a moral cívica aí se erguem, e falam
bem alto esmagando a hidra que envenena a família no mais sagrado
santuário seu, e desmoraliza, e avilta a nação inteira! (REIS, 2018, p.
164).

Nesse trecho é apontado um viés sobre a escravidão reafirmando a referência


histórica sobre a pluralidade dos discursos acerca do sistema escravista e seu
possível fim perante os escritores românticos e em esfera pública. Os motivos para o
fim do cativeiro variavam de acordo com os segmentos políticos e de classe. Alguns
românticos previam o fim da escravidão pautados nos motes do progresso modernista
ou por preceitos liberais e burgueses, havendo ainda aqueles que acreditavam que a
pessoa escravizada e a mestiçagem corrompiam os homens da boa sociedade
161
(RANGEL, 2011). Maria Firmina era uma mulher católica e tanto no conto como no
romance a moral religiosa cristã é acionada como mecanismo retórico, em defesa da
tese de que a escravidão não condizia mais com o espírito do tempo e, assim, tentava
seduzir e comover seu público leitor.
Autores relevantes para a historiografia literária que cobre o período do
Romantismo nos demonstraram visões importantes e diversas sobre o sistema
escravista e seu declínio após 1850, no que Clóvis Moura chamou de Escravismo
Tardio7, tais como: Joaquim Manuel de Macedo (As vítimas algozes - Quadros da
escravidão, 1869); Bernardo Guimarães (A escrava Isaura, 1875) e Castro Alves (Os
escravos, 1883). Contudo, nesses textos não há a crítica à instituição da escravidão
feita pelo ponto de vista das personagens negras, tampouco é oferecido um discurso
de humanização do sujeito escravizado, sendo a abolição requerida devido a um mal
de origem das populações negras, como se dá no discurso de As vítimas algozes ou
na redenção da heroína de A escrava Isaura, que para ser vista como benevolente é
construída esteticamente como uma escravizada branca. Por fim, ainda que seja um
grande expoente da literatura abolicionista, ao se furtar do uso da primeira pessoa,
não identificamos em Os escravos, de Castro Alves, um projeto revolucionário se
comparado às narrativas de Maria Firmina dos Reis. A seguir, um trecho do conto A
escrava:

Por qualquer modo que encaremos a escravidão, ela é, e será sempre


um grande mal. Dela a decadência do comércio; porque o comércio e
a lavoura caminham de mãos dadas, e o escravo não pode fazer
florescer a lavoura; porque o seu trabalho é forçado. Ele não tem
futuro; o seu trabalho não é indenizado; ainda dela nos vem o opróbrio,
a vergonha; porque de fronte altiva e desassombrada não podemos
encarar as nações livres; por isso que o estigma da escravidão, pelo
cruzamento das raças, estampa-se na fronte de todos nós. Embalde
procurará um dentre nós, convencer ao escrageiro que em suas veias
não gira uma só gota de sangue escravo… (REIS, 2018, p. 164-165).

7 Clóvis Moura apresenta a passagem Escravismo pleno para o tardio após a promulgação da lei
Eusébio de Queirós, de 1850. De acordo com o autor, a sociedade escravista se reorienta após a
proibição do tráfico internacional, que ocasionou mudanças tanto no sistema escravista em si como nas
dinâmicas sociais, e gradualmente vão emergindo os movimentos abolicionistas. Contudo, vale
ressaltar que durante todo o processo de colonização a população negra organizou internamente
formas de combate à escravização, como as rebeliões de escravizados, a desobediência, os suicídios
etc.

162
Apresentando argumentos persuasivos para o fim da escravidão, cujo mote do
progresso é somado à moral cristã, nessa passagem de A escrava há uma crítica à
abolição tardia no Brasil, contrapondo o país com outras nações que já haviam
promovido a liberdade. Diferentemente dos discursos naturalistas, a exemplo de Von
Martius (1843), há também a compreensão da mestiçagem, humanizando a pessoa
negra e a colocando como elemento que compõe a identidade étnica brasileira. O fator
negativo, ou que corrompe a sociedade, não é a pessoa negra, mas a escravidão que
a atravessa. Ou seja, não se trata de características biológicas ou culturais
relacionadas à população negra, que servem de base argumentativa/discursiva para
o racismo: o mal, ou o aspecto negativo, é atribuído à instituição da escravidão. Na
sequência, outro trecho do mesmo conto:

— Amanhã, — continuou ele, — hei de ser castigado; porque saí do


serviço, antes das seis horas, hei de ter trezentos açoites; mas minha
mãe morrerá se ele a encontrar. Estava no serviço, coitada! Minha
mãe caiu, desfalecida; o feitor lhe impôs que trabalhasse, dando-lhe
açoites; ela deitou a correr gritando. Ele correu atrás. Eu corri também,
corri até aqui porque foi esta a direção que tomaram. Mas, onde está
ela, onde estará ele? (REIS, 2018, p. 174).

Por fim, nessa passagem, Gabriel, personagem escravizada, está à procura da


mãe, Joana, em fuga, muito doente e atordoada por ter sido separada de seus filhos:
“— É doida, minha senhora; fala de meus irmãos Carlos e Urbano, crianças de oito
anos, que meu senhor vendeu para o Rio de Janeiro. Desde esse dia ela endoideceu”
(REIS, 2018, p. 170). Tem-se uma narrativa em primeira pessoa, de forma consciente
e crítica, sobre as condições do trabalho servil, apontando para os castigos futuros
que receberia caso ele e a mãe fossem encontrados pelo feitor.
O tema da maternidade interditada às mães escravizadas é algo recorrente na
narrativa firminiana. Em Úrsula, Susana opera na figura da Mãe Preta, conceito
elaborado por Lélia Gonzalez (1984) que define essa posição como uma das
ramificações do que foi a mucama no Antigo Regime, onde as mulheres escravizadas
eram impedidas de ser mães de suas próprias crianças, mas foram obrigadas a cuidar
dos filhos e filhas da casa grande, funcionando como facilitadoras da vida cotidiana
de pessoas brancas. Essa prática tornou-se elemento cultural na sociedade brasileira
e perdurou no pós-abolição, o que causou incisiva interferência, através dessa relação
de violência, na dinâmica das relações sociais e na língua portuguesa falada no Brasil.
Por meio dessa personagem e também de Antero, pessoas escravizadas que
nasceram livres no continente africano, cria-se uma narrativa anterior ao processo de
escravização, onde tais personagens narram as experiências vividas em África,
163
criando um passado e, portanto, uma história que não se relaciona somente com a
escravidão. Em linhas gerais, Úrsula é um romance enquadrado nas técnicas do
Romantismo, cuja trama gira em torno da impossibilidade dos protagonistas brancos,
Úrsula e Tancredo, de viverem uma história de amor. O diferencial do romance
acontece quando as personagens escravizadas aparecem no texto e assumem, em
primeira pessoa, a narrativa, tornando-se fundamentais para o desenvolvimento do
texto. Na passagem a seguir é transcrita uma conversa entre Susana e Túlio, onde
conseguimos identificar uma crítica ao real sentido da liberdade via carta de alforria:

A africana limpou o rosto com as mãos, e um momento depois


exclamou:
— Sim, para que estas lágrimas?!... Dizes bem! Elas são inúteis, meu
Deus; mas é um, que não posso deixar de render a tudo quanto me foi
caro! Liberdade! liberdade… ah! Eu gozei na minha mocidade! —
continuou Susana com amargura — Túlio, meu filho, ninguém a gozou
mais ampla, não houve mulher alguma mais ditosa do que eu.
Tranquila no seio da felicidade, via despontar o sol rutilante e ardente
de meu país, e louca de prazer a essa hora matinal, em que tudo aí
respira amor, eu corria às descarnadas e arenosas praias, e aí com
minhas jovens companheiras, brincando alegres, com o sorriso nos
lábios, a paz no coração, divagávamos em busca das mil conchinhas,
que bordam as brancas areias daquelas vastas praias. Ah! meu filho!
mais tarde deram-me em matrimônio a um homem, que amei como a
luz dos meus olhos, e como penhor dessa união veio uma filha
querida, em que me revia, em que tinha depositado todo o amor de
minha alma: uma filha que era minha vida, as minhas ambições, a
minha suprema ventura, veio selar tão santa união. E esse país de
minhas afeições, e esse esposo querido, essa filha tão extremamente
amada, ah Túlio! tudo me obrigaram os bárbaros a deixar! Oh, tudo,
tudo até a própria liberdade! (REIS, 2018, p. 114).

Ainda que tenha criado uma África generalizada, Maria Firmina dos Reis,
mobilizando-se nos preceitos nacionalistas românticos, direciona o continente africano
para as ideias de nação e liberdade possíveis. Dessa forma, a autora subverte as
narrativas simplórias, que reduzem de forma pejorativa o continente africano como o
lugar do atraso e da barbárie, um dos motes para a colonização, caracterizando-o
como espaço da liberdade genuína. A narrativa de Susana, por meio do relato realista,
apresenta-nos cenários de amor, amizade e constituição de família e, ao fim, destaca
que “bárbaros” foram os colonizadores que violentamente a retiraram desse lugar. No

164
trecho a seguir, a própria escravizada, em primeira pessoa, narra o momento de
captura e escravização:

Ainda não tinha vencido cem braças do caminho, quando um assobio,


que repercutiu nas matas, me veio orientar acerca do perigo eminente
que aí me aguardava. E logo dois homens apareceram, e amarraram-
me com cordas. Era uma prisioneira 一 era uma escrava! Foi embalde
que supliquei em nome de minha filha, que me restituísse a liberdade:
os bárbaros sorriam-se das minhas lágrimas, e olhavam-me sem
compaixão. Julguei enlouquecer, julguei morrer, mas não me foi
possível… a sorte me reservava ainda longos combates. Quando me
arrancaram daqueles lugares, onde tudo me ficava 一 pátria, esposo,
mãe e filha, e liberdade! meu Deus! o que se passou no fundo de
minha alma, só vós o pudestes avaliar... (REIS, 2018, p. 115).

O sentimento do amor é construído na narrativa de Úrsula como parte


integrante do projeto de educação sentimental promovido por Maria Firmina dos Reis
e fundamental para a humanização da pessoa escravizada: “Amor! esse sentimento
novo ardente como o sol do seu país, arrebatador como as correntes, que se
despenham no vale 一 foi a varinha mágica que transformou-lhe a existência. Julgou
tudo um sonho encantador, cujas doçuras começava apenas a apreciar” (REIS, 2018,
p. 65). Pautada na ideia romântica de que o amor alcança o sublime e é redentor,
Maria Firmina dos Reis estrategicamente posiciona este sentimento como mote de
seu plano de humanização e emancipação.
Ao empreender o amor como mecanismo para a luta revolucionária no
confronto com o racismo, Maria Firmina se mobilizou no contexto romântico com
características próprias, centralizando os afetos em seu texto, encarando-os como
possibilidade de mudanças efetivas. Da mesma forma, o projeto de humanização do
sujeito escravizado é desenvolvido pela autora e tem na linguagem sua base
constitutiva. No romance, personagens negras e brancas interagem com as mesmas
estruturas de fala. A personagem Túlio, por exemplo, é um homem jovem, que já
nasceu na condição de escravizado no Brasil, foi separado da mãe ainda criança e
fica sob os cuidados de Preta Susana. Ao salvar Tancredo, que sofre um acidente
quando está vagando a esmo e a cavalo, estabelece-se uma relação de amizade
recíproca e ao longo do romance Túlio é alforriado por Tancredo. A construção da
personalidade de Túlio é amparada por características de docilidade e amabilidade,
sem, contudo, deixar de destacar a revolta por sua condição de escravizado:

165
E ao coração tocou-lhe piedoso interesse, vendo esse homem lançado
por terra, tinto em seu próprio sangue, e ainda oprimido pelo animal já
morto. E ao aproximar-se contemplou em silêncio o rosto desfigurado
do mancebo; curvou-se, e pôs-lhe a mão sobre o peito, e sentiu lá no
fundo frouxas e espaçadas pulsações, e assomou-lhe ao rosto riso
fagueiro de completo enlevo; da mais íntima satisfação. O mancebo
respirava ainda (REIS, 2018, p. 40).

O grupo hegemônico necessita alterar no âmbito da linguagem identidades que


não se assemelham a eles. Neste movimento, valendo-se da estereotipagem (HALL,
2016), identidades subalternizadas são renomeadas e colocadas em categorias
frágeis de análise, para que suas demarcações étnicas, geográficas e raciais façam
sentido também no patamar linguístico para o colonizador. Sendo assim, em diálogo
com Sueli Carneiro (2005), ao se projetarem como Eu, o polo detentor de razão,
beleza e linguagem, automaticamente se cria sua antítese, aqueles que são
depositados na categoria do Outro, carregando as qualificações negativas e sendo
destituídos de mobilização temporal, linguagem, memória e história.
Ao construir a personalidade de Túlio amparada pelas características de
bondade, generosidade e amizade, por elaborar para essa personagem uma
consciência assertiva quanto à sua condição de cativo e de revoltoso com este lugar,
assim como disponibilizar para as personagens negras os mesmos recursos
comunicativos das personagens brancas, Maria Firmina opera em sentido contrário à
construção do outro como não-ser, pois devolve a humanidade para o sujeito
escravizado. Túlio é um personagem central para o desenrolar da trama, é um elo que
liga a história das personagens negras e brancas e é referido desde o princípio do
romance pelo substantivo “homem”, pelo qual é apresentado e só mais adiante os
leitores são informados de que se trata de um escravizado:

O homem que assim falava era um pobre rapaz, que ao muito parecia
contar com vinte e cinco anos, e que ria franca expressão de sua
fisionomia deixava adivinhar toda a nobreza de um coração bem
formado. O sangue africano refervia-lhe nas veias; o mísero ligava-se
à odiosa cadeia da escravidão; e embalde o sangue ardente que
herdara de seus pais, e que o nosso clima e a servidão não puderam
resfriar, embalde -dissemos - se revoltava; porque se lhe erguia como
barreira - o poder do forte contra o fraco!... (REIS, 2018, p. 41, grifos
nossos).

166
bell hooks, ao estabelecer o amor como instrumento de revolução, aponta para
o desenvolvimento de sociedades mais justas. O caráter de mudança oferecido pelo
ethos do amor na proposta de hooks pode ser identificado no romance Úrsula como
parte do projeto de educação sentimental promovido por Maria Firmina dos Reis, onde
a autora se vale de Túlio enquanto personagem elaborada com a finalidade de ilustrar
que a partir do amor se desencadeia uma rede de sentimentos emancipatórios. Esta
construção de sentimentos que prioriza os afetos são elementos caros ao texto
firminiano e essenciais na fundamentação antirracista que a autora empreende, assim
como estratégia de convencimento da sociedade escravista para a libertação de
sujeitos escravizados. De acordo com hooks:

O amor redime. Apesar de todo o desamor que nos cerca, nada tem
sido capaz de bloquear nosso desejo pelo amor, a intensidade do
nosso anseio. A compreensão de que o amor redime parece ser um
resiliente do saber do coração. O poder curativo do amor redentor nos
atrai e nos convoca em direção à possibilidade de cura (hooks, 2021,
p. 212).

Antero é a última personagem analisada neste artigo e nos oferece uma gama
de interpretações. Assim como Susana, ele é um escravizado nascido livre no
continente africano. Descrito como velho e decrépito, está às ordens do antagonista
do romance, o comendador Fernando P., tio de Úrsula. Antero é vítima do vício em
bebidas alcoólicas e em dado momento, quando está vigiando Túlio 一 capturado por
Fernando P. por ajudar Úrsula e Tancredo durante a fuga do casal 一, o personagem
resolve contar para Túlio sobre sua experiência com o álcool no país de origem:

一 Pois, bem, 一 continuou o velho 一 no meu tempo bebia muitas


vezes, embriagava-me, e ninguém me lançava isso em rosto; porque
para sustentar meu vício não me faltavam meios. Trabalhava, e
trabalhava muito, o dinheiro era meu, não o esmolei. Entendes?
一 Perfeitamente 一 retorquiu Túlio, fingindo sorrir-se.
一 Pois ouça-me senhor, senhor conselheiro: na minha terra há um dia
em cada semana, que diverte-se, brinca, e bebe. Oh! lá então é vinho
de palmeira mil vezes melhor que cachaça, e ainda que tiquira (REIS,
2018, p. 189).

167
Nesse trecho, Antero retoma seu passado no continente africano revelando
para Túlio as relações de trabalho e o consumo alcoólico. Em tom de brincadeira,
compara a bebida de seu país com a tiquira, espécie de cachaça tradicional do estado
do Maranhão. O escravizado demonstra ter consciência de que, a partir do sequestro
e da escravização, a embriaguez se tornou um escape efêmero diante da dura
realidade e, dessa forma, podemos inferir que ele se tornou adicto durante a condição
de escravizado. Na narrativa de Antero, assim como na de Susana, o escape narrativo
que desloca a personagem para um passado saudoso, estratégia narrativa comum
nos romances românticos, reporta tal ligação imediatamente ao continente africano,
sendo a pátria nacionalista idealizada por Firmina.
Esta personagem também nos propõe a reflexão sobre a transformação do
hábito de beber em patologia. O consumo exacerbado de bebidas alcoólicas, quando
transformado em vício, é entendido como desamparo do Estado e um problema social
e histórico, apresentado pela sensibilidade do romance, que acomete a população
negra ainda na contemporaneidade. Antero estabelece um divisor crítico ao contrapor
sua relação com a bebida no continente africano e depois de escravizado, quando o
vício se torna uma resolução ou um deslocamento possível diante da realidade da
escravidão, em um cenário de destituição da liberdade e desumanização:

Em presença dos dois homens de má catadura e feições horrendas,


ele mostrou-se rígido, e atirou com o prisioneiro para um quarto úmido
e nauseabundo, e mostrou interessar-se vivamente em cumprir as
ordens, que recebera. Depois colocou-se à porta, qual fiel cão de fila
a quem o dono deixou de guarda a sua propriedade ameaçada por
ladrões (REIS, 2018, p. 187).

Segundo Frantz Fanon (2002), há algo patológico imposto à mentalidade de


povos colonizados que implica uma aproximação com o colonizador e,
consequentemente, a despersonificação de quem foi colonizado. O grupo hegemônico
estimula através da violência a performance dos corpos colonizados de maneira que
atendam aos desejos ou expectativas do colonizador. Por estar submetido às ordens
de Fernando P., e como já não se apresentava no auge de seu condicionamento físico
devido ao adoecimento, Antero tentava demonstrar algum tipo de serventia: “O povo
colonizado vê-se reduzido, então, a um conjunto de indivíduos que não encontram a
sua razão de ser, senão em presença do colonizador” (FANON, 2002, p. 313). Através
desta leitura, podemos interpretar a construção de Antero com o que Davidson Nkosi

168
(2014) descreve como o criado supermasculino8: um tipo de masculinidade forjada,
pautada em características de força física ilimitada e virilidade. No entanto, nessa
personagem, ainda que quando esteja sóbrio ou na presença do senhor e de seus
empregados o escravizado tente performar desta maneira, seu corpo velho, bêbado e
cansado já não responde a estes estímulos, fazendo com que os modos sejam
artificiais, mera caricatura do que poderia ter sido um dia.
A ideia do criado supermasculino elaborada por Nkosi faz parte de um diálogo
que o autor estabelece com Eldridge Cleaver (1971) e se relaciona com a construção
colonialista e ocidental de masculinidade, pautada em concepções fechadas e fixas
que atribuem ao modelo masculino hegemônico as características de força e controle
sobre as mulheres e os homens não brancos. Ao se colocarem no lugar de portadores
da razão, relegando às demais camadas da sociedade o lugar da emoção, o polo
masculino branco se elege como administrador e, em contrapartida, menospreza as
outras esferas sociais, sendo a população negra colocada como base do sistema de
trabalho que sustenta o capitalismo:

Em uma sociedade racista, o homem negro traz a escravidão impressa


em seu corpo e com ela os diversos atributos associados aos criados
supermasculinos. O negro, mesmo que não saiba disso, mesmo que
tente buscar outras significações e corporeidades, será visto e terá
que de uma forma ou de outra dialogar com estas expectativas
(FAUSTINO [NKOSI], 2014, p. 81).

O tipo de masculinidade conferido ao padrão hegemônico é imutável e não


permite a mobilidade e plasticidade próprias das identidades, com isso, não se
considera o atravessamento das categorias de raça, classe, geográfica, religiosas e
geracionais que podem compor o masculino. Assim como não há uma forma única de
masculinidade, também são múltiplas as masculinidades negras, que, contudo, devido
aos mecanismos racistas de deformação do sujeito, ficam condicionadas a performar
no estereótipo, na medida em que na sociedade racializada “o negro é um homem
negro” (FANON, 2008, p. 26). A seguir, mais uma passagem de Antero:

8 Ao analisar a deformação das masculinidades negras em prol do colonialismo, não estamos, contudo,
desprezando a equivalência do trabalho servil feminino. Angela Davis, em Mulheres, raça e classe
(1981), ressalta que no Antigo Regime, na condição de produtos, não havia uma distinção de gênero
entre sujeitos escravizados. Davis, ao descrever as reivindicações da classe trabalhadora negra
estadunidense, denota que as mulheres negras estavam sob as mesmas condições de servilidade de
seus companheiros homens, enquanto escravizadas, e esse emparelhamento das funções trabalhistas
também se deu no pós-abolição, como operárias (DAVIS, 2016, p. 220).
169
Que mau vício em verdade, pai Antero… sempre a fumar, e a beber.
Não vos envergonhais de semelhante procedimento? Que conceito
fará de vós o senhor comendador?!
一 Que conceito? 一 interrogou o velho desapontado 一 que conceito!
É o único vício que tenho; e ainda por conservá-lo não prejudiquei a
ninguém. Que te importa que beba. 一 acrescentou com voz que
queria dizer: não tens coração 一 porventura pedi-te algum dinheiro
para fumo ou cachaça? 一 e dizendo afagava a cabeça vazia com um
desvelo todo paternal, como que arrependido de tê-la desprezado, a
ela, a sua companheira constante (REIS, 2018, p. 189, grifos nossos).

O diálogo aqui proposto entre Fanon e Nkosi são relevantes para a análise de
Antero na medida em que relacionamos a construção das masculinidades negras com
a saúde física e mental do homem negro. Devido às múltiplas camadas de afetação
de seu corpo, mediante as heranças da escravidão atravessadas pelo racismo, foi
construída para estes sujeitos uma identidade fixa e estereotipada pelos resquícios
coloniais. Em nossa leitura de Antero, compreendemos que existe uma mudança no
padrão de consumo de bebida alcoólica, quando se compara a experiência no
continente africano daquela imposta após o processo de escravização. Nesse sentido,
entendemos o tornar-se alcoolista9 como mecanismo de biopoder, projetado por um
Estado racista, que patologiza o consumo alcoólico enquanto forma de aniquilação de
corpos negros, que devido ao desamparo, também de classe, tornam-se mais
suscetíveis à letalidade do consumo, uma vez transformado em vício sem o tratamento
adequado na saúde pública a que deveriam ter direito.
Maria Firmina dos Reis foi uma mulher negra letrada e politicamente ativa em
seu contexto. Ciente de sua realidade social, estruturada no sistema escravista
patriarcal, cujos mecanismos de dominação e exclusão estavam enraizados nas
práticas políticas e sociais do período, ela se construiu e se projetou como autora
legítima, apta à realização do texto literário. Nesse movimento, a escritora acaba por
estipular um ethos autoral contrário ao estabelecido pelo cânone oitocentista,
fornecendo-nos uma importante visão crítica sobre a história do Brasil através de sua
mobilização no Romantismo.

9 Em concordância com a Organização Mundial de Saúde (OMS), que considera como doença o
consumo excessivo de bebidas alcoólicas, na medida em desencadeia uma série de reações
patológicas no dependente, optamos pelo uso do termo ‘alcoolista’ em substituição do pejorativo
‘alcoólatra’ que denota a simples idolatria ao álcool pela pessoa adicta, como se tratasse de mera
escolha ou opção, corroborando com a estigmatização social destes indivíduos.
170
Considerações finais

Embora tenha sido negado durante muito tempo o conhecimento da produção


intelectual de Maria Firmina dos Reis para a apreciação científica e literária, devido
ao silenciamento que a autora sofreu no âmbito da história da literatura brasileira,
existe um movimento crescente de pesquisas desenvolvidas e em desenvolvimento
no interior das universidades que abarcam a autora e as suas produções. Em
concordância com esse cenário, tem sido disponibilizado o contato com seu rico
acervo, que atravessa as obras literárias publicadas, a contribuição massiva nos
periódicos oitocentistas, além da atuação como professora e musicista. Nesse
sentido, enfatizamos que o processo historiográfico e os estudos literários se renovam
à medida que pessoas negras figuram no ambiente acadêmico na condição de
pesquisadoras e como bases de conhecimento.
A literatura produzida por Maria Firmina dos Reis e a inovação do projeto
literário nacional que ela inaugura são representações de uma agenda política do
Romantismo brasileiro no século XIX (FAUSTINO, 2022). Os saberes gerados pela
população negra são epistemologias que carregam não só uma crítica social devido
ao lugar de subalternização a que foi condicionada pelo racismo, como também são
questionadoras do próprio fazer científico, ao passo que necessitam reivindicar o local
de sujeito de figuração e produção. Ao enfatizarmos as contribuições da escritora
dentro dos campos da história da historiografia e literatura brasileiras, estamos
apontando para a compreensão de que a produção literária, a atuação política e crítica
de Maria Firmina dos Reis, não só enriquece, bem como complexifica a pesquisa, o
ensino e a produção destas disciplinas. Dessa maneira, ao longo do artigo,
objetivamos justificar a relevância de se pensar a história do Brasil não apenas pela
perspectiva de uma mulher negra politicamente ativa na segunda metade do século
XIX, mas também pela possibilidade de longa duração dessa existência e atuação
relacionadas à contribuição para o pensamento intelectual brasileiro.

Referências

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uma precursora. Estudos Linguísticos e Literários. Salvador, n. 59, p.217-222,
2018.
ALONSO, Ângela. Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império.
São Paulo: Paz e Terra, 2002.
171
ASSUNÇÃO Marcello Felisberto Morais de; MIRANDA, Fernanda Rodrigues de.
“Indisciplinando o cânone: pensamento afrodiaspórico e a colonialidade no campo
historiográfico e literário.” In: ASSUNÇÃO Marcello Felisberto Morais de; MIRANDA,
Fernanda Rodrigues de. Pensamento afrodiaspórico em perspectiva: abordagens
no campo da História e Literatura - Volume 1: História., Porto Alegre: Editora Fi, 2021.
BLAKE, Augusto Vitorino. Sacramento. Diccionario Bibliographico Brazileiro. Rio
de Janeiro: Imprensa Nacional. vol.6. 1900.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Editora Cultrix,
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1880. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul; São Paulo: FAPESP, 2017.
CARNEIRO, Aparecida Sueli. A Construção do outro como não-ser como
fundamento do ser. 339F. Doutorado (Tese) - Programa de Pós-Graduação em
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Horizonte: Editora UFMG, 2010.
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Submetido em: 20/12/2023 Aceito em: 17/05/2024

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