Ice Season Nodrm

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2024 - Copyright © Esther Moretti

Todos os direitos reservados. É vedada a reprodução, distribuição, comercialização, impressão ou


cessão deste ebook ou qualquer parte dele sem autorização expressa, por escrito, da autora, exceto
pelo uso de citações breves em uma resenha. Este livro é exclusivo para o formato Kindle.

Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida
real é mera coincidência.

Autora: Esther Moretti


Título: Ice Season
Capa: Thais Alves
It's not a walk in the park to love each other
But when our fingers interlock
Can't deny, can't deny you're worth it[1]

Still into you - Paramore


Pra você, que canta a bridge de the smallest man
who ever lived a plenos pulmões. O seu amor so
high school ainda vai chegar.
Quer entrar ainda mais na vibe do livro?
Basta usar o código abaixo para acessar a playlist que montei com carinho
pra você!
NOTA DA AUTORA

Antes de mais nada, alguém me explica de onde veio esse surto de


escrever uma história sobre patinação no gelo?
É óbvio que a aproximação das Olimpíadas de Paris teve um peso
bem grande nessa escolha, mas vou culpar também o TikTok por isso.
Começar a ver edits de patinadores é um caminho sem volta. Recomendo
que você não entre nesse mundo, ou pode dar adeus aos minutos livres
(pensei em dizer horas, mas melhor esconder o quanto fiquei obcecada) do
seu dia.
Agora falando sério, escrever essa história foi um desafio. Eu não só
saí do futebol americano (inegavelmente minha zona de conforto) como
também decidi me aventurar em dois esportes novos. O que eu posso dizer
é que adorei o resultado. Gracie e Oliver se juntaram aos meus outros
personagens e estão ouvindo em primeira mão as ideias malucas que tenho
para os próximos livros. De bônus, ainda ganhei uma Nora Salmon em cima
dos ombros me cobrando sempre que penso em pular um dia de escrita.
Mas já falei demais, tá na hora de você conhecer meu novo casal
favorito. Espero que você possa separar um cantinho no seu coração para
eles!
PS: Os protagonistas de Ice Season são o que chamamos de anti-
heróis ou personagens moralmente cinzas. Isso significa que nem sempre as
ações deles vão ser as mais virtuosas ou corretas. Use capacete se for
andar de moto (você vai entender já, já) e lembre que essa é uma obra de
ficção, sem maiores compromissos morais.
NEWS: O fim de um império de oito anos

O fim de um império
O mundo da patinação artística acordou com um frio no coração que
nada tem a ver com os rinques gelados. Gracie Salmon (20) e Pierre
Durant (21), o casal multipremiado conhecido como Imperadores do Gelo
pelos fãs, encerrou suas atividades como dupla.
Não se sabe ao certo qual foi o motivo do ponto de ruptura entre os
dois favoritos à medalha de ouro nas Olimpíadas de 2024, mas algumas
fotos que circularam na internet na última semana mostram Pierre saindo
dos treinos ao lado de Kate Willians (20), uma amiga da dupla e também
patinadora. Por ser uma pessoa tão próxima do agora ex-casal, não
podemos afirmar que haja algo além de uma amizade, mas certamente as
páginas de fofocas estão alvoroçadas com a ideia de o rompimento ter sido
causado por uma traição.
A situação, que seria terrível em qualquer ponto da carreira de um
atleta, é ainda agravada pela proximidade dos jogos olímpicos de Paris.Os
gigantes do gelo pretendem competir um contra o outro? E qual o papel de
Kate nessa dinâmica?
Como uma bola de neve, as perguntas se acumulam e ameaçam se
transformar em uma avalanche. Há uma grande expectativa no ar para o
fim da tarde de hoje (21/06/2024) já que a Imperatriz do Gelo anunciou
uma live na sua página no Instagram. Não sabemos o que aconteceu, mas
toda equipe do EstherNews espera que os queridinhos que representariam a
Grã-Bretanha nas olimpíadas estejam bem e que consigam reverter essa
crise para trazer mais medalhas para casa.
Sexta-feira, 21 de junho de 2024
CAPÍT ULO 1 - GRACIE SALMON

Tem certeza que gostaria de encerrar a transmissão?


Tenho pouquíssimas certezas no momento, mas uma delas é que
quero desesperadamente encerrar essa live. Olho para a tela e pressiono o
botão, dando fim ao vídeo ao vivo que eu nem queria ter feito para início de
conversa. Infelizmente, quando você se torna uma pessoa famosa, sua vida
não é mais apenas sua, mas também de cada um dos milhões de seguidores
que preferem colocar suas rotinas sem graça em pausa para acompanhar as
fofocas sobre a vida alheia. Só nessa transmissão de 15 minutos que fiz
tinha quase 300 mil pessoas assistindo. É muita gente.
Como imaginei que aconteceria, meu celular começa a vibrar com
dezenas de chamadas. É óbvio que não vou atender ninguém. O que eu
tinha pra dizer, eu disse. Sei que vou ter que lidar com as consequências
mais tarde, mas não me importo. Ele acha que pode ferrar com a minha vida
e sair impune? Não enquanto meu nome for Gracie Salmon.
Coloco o celular no silencioso e sigo para o bar na minha cobertura.
Ao meu lado, separado por uma parede de vidro resistente, vejo o London
Eye ao lado do rio Tâmisa, cartão postal da cidade. Pego uma garrafa de gin
e hesito por um segundo antes de me servir uma dose generosa. Se fosse
uma semana atrás eu provavelmente levaria uma bronca do meu treinador,
mas agora nem treinador eu tenho.
Sinto algo roçar a minha perna e me abaixo para pegar Benjamin,
meu maltês e melhor amigo. Ele tem um olhar de censura ao ver a garrafa
em cima do balcão. Ben tem um sexto sentido que reconhece quando estou
prestes a fazer merda.
— Não me olhe assim. Hoje eu mereço, vai.
Ele dá um latido e vira o rosto para o lado oposto, claramente
indicando que não concorda. Esfrego minha mão na cabeça dele e o coloco
em cima do sofá.
Viro a maior parte do líquido que desce queimando a minha garganta
e logo sinto minha cabeça mais leve. Deixo o copo em cima do balcão e
caminho para apreciar a vista milionária da minha cobertura.
Eu me lembro de quando convenci meus pais a comprarem esse
apartamento. O ritmo de treinos estava aumentando muito e praticamente
não saíamos mais de Londres. Não fazia sentido ficar voltando sempre para
Guildford todos os dias. Por mais que a cidade onde nasci e cresci esteja a
menos de duas horas de viagem, é um deslocamento enorme depois que
você passou o dia inteiro treinando e cada músculo do seu corpo grita,
implorando por banheiras de gelo e descanso.
Lá embaixo vejo os carros passando na Belvedere Road. É difícil
acreditar que a vida das pessoas possa continuar inalterada enquanto a
minha despenca. Oito anos. Oito fucking anos de trabalho duro, lealdade,
confiança e segredos jogados no lixo por causa de sexo. Eu não consigo
acreditar nisso.
Não que Pierre seja uma pessoa maravilhosa, um exemplo de ser
humano, mas mesmo com todos os defeitos — e a lista deles é imensa —
ele nunca foi burro. Pelo contrário, a inteligência dele era algo que me
incomodava às vezes. Então como pode ter colocado sua carreira em
segundo plano por causa de um flerte?
Volto para o balcão onde deixei o meu copo e viro o resto da bebida.
Incrível como os nossos planos fogem ao nosso controle de uma forma tão
rápida. Uma semana atrás eu conseguia visualizar a medalha de ouro na
minha galeria de troféus. Agora, observo a rua lá embaixo com um copo de
gin na mão como se fosse uma alcoólatra que perdeu tudo.
E o pior? Eu meio que perdi mesmo.
O barulho do celular não para e decido colocá-lo no silencioso.
Atravesso a sala da direção do estúdio multimídia onde deixei o meu
aparelho e, assim que o pego, percebo que está quente por causa do excesso
de chamadas. Passo os olhos pela tela e vejo ligações da minha mãe, de
patrocinadores, do meu ex treinador e dezenas de números desconhecidos,
provavelmente jornalistas que conseguiram descobrir o meu número e agora
imploram por uma entrevista que possa encher as suas contas bancárias — e
almas — vazias.
Estou prestes a desligar o aparelho — silencioso não é o bastante,
quero me isolar do resto do mundo — quando vejo um nome aparecer na
minha tela. Respiro fundo. Por mais que eu não queira atender ninguém,
preciso dar uma satisfação para pelo menos uma pessoa.
— Antes que você já comece a me xingar — digo, assim que aceito a
ligação — saiba que ele mereceu e isso ainda foi pouco perto de tudo que
eu queria fazer.
Ouço o silêncio vindo do outro lado. Acho que essa não era a reação
que minha agente esperava.
— Como você está? Eu tentei te ligar mais cedo, mas você não me
atendeu.
— Como você acha que estou, Clarice? Depois de levar uma facada
do meu parceiro e da minha amiga? Eu devia ter percebido…
Flashes de lembranças me voltam à mente. É claro que o Pierre
estava transando com a Kate. Ela sempre aparecia nos nossos treinos. Como
ela também é patinadora, era comum nos encontrarmos nos rinques e,
muitas vezes, patinamos os três juntos. Era bom ter uma amizade com
alguém que conhece a rotina insana de um atleta. Era difícil explicar para as
pessoas de fora que, acordando às 5h da manhã todos os dias e passando
quase todas as horas acordados treinando, não sobrava muito tempo para
manter muitas amizades. Como resultado, Kate é a única amiga que tenho.
Ou melhor, tinha.
— Não foi culpa sua, Gracie. Não tinha como você saber que isso
aconteceria, ficar se culpando agora só vai…
— Sem papo furado, Clarice. Eu te pago para ser minha agente, não
minha terapeuta. Por que você ligou?
Novo silêncio na ligação, mas dessa vez, ele não dura mais do que
poucos segundos. Depois de tantos anos juntas, minha agente já se
acostumou com o meu jeitinho incisivo, uma palavra bem melhor do que
outras que já usaram para me descrever.
— Eu liguei porque precisamos discutir muitas coisas, sei que agora
não é um bom momento…
— É um péssimo momento.
— Sim, mas precisamos de estratégias para lidar com a imprensa e
como vamos trabalhar essa situação para que isso não manche a sua
imagem. A live não foi…
— Foi o que eu precisava fazer. O que está feito, está feito.
— Como eu ia dizendo, a live não foi uma ideia tão ruim assim. Você
ganhou muitos seguidores e tem pelo menos três hashtags com o seu nome
nos trendings topics.
— Fico feliz em saber que virei fofoca global. Qual o próximo passo?
Virar influencer? Participar do aposentados on ice?
Caminho para o bar e pego a garrafa de gin. Eu sei que eu não deveria
beber mais, mas eu também não deveria estar perto de ser desqualificada do
maior evento esportivo do mundo depois de tanto suor e sangue. Sim,
sangue.
— Se você acha que a fofoca está ruim para o seu lado, é porque não
viu pro lado do Pierre.
Minha mão treme ao ouvir aquele nome e um pouco de gin cai sobre
o balcão. A porcentagem de álcool na bebida é tão alta que ele logo começa
a evaporar.
— Não quero saber de nada sobre ele. — Faço uma pausa e bebo um
gole. — O que você quer dizer com isso?
Sei que estou sendo contraditória, mas tenho o direito de ser
incoerente depois de tudo que passei.
— Ele teve que privar os perfis em todas as redes sociais. O
linchamento virtual tomou proporções gigantescas. É óbvio que as pessoas
compraram o seu lado da história, afinal, ele foi o responsável por separar o
casal queridinho do gelo. Em outras palavras, você jogou o Pierre na
fogueira.
Percebo um sorriso se espalhar no meu rosto. Não vou fingir que não
gostei de saber disso. Pierre destruiu a minha vida, nada mais justo que eu
destrua a dele também. É óbvio que eu o amei durante o tempo que ficamos
juntos — amei mesmo? — , mas o que sobrava desse sentimento se
transformou em ódio quando ele decidiu me descartar como se eu fosse
uma bolsa barata. Eu sou uma pessoa ótima de se lidar, desde que não
pisem no meu calo.
— Ainda é cedo pra dizer, mas é provável que ele perca alguns
patrocinadores. Alguns já entraram em contato comigo, estão perguntando
quais são os seus planos, porque querem continuar com você.
Me sinto como uma mãe que percebe que os filhos não querem ficar
ao lado do pai no divórcio e o sentimento preenche um pouco do vazio no
meu peito. Não dá para negar, eu era a parte carismática da dupla. Pierre
fazia o tipo bom garoto, mas misterioso, talvez porque não conseguisse
sustentar o papel por muito tempo. Esse teatro só funciona bem se ele tiver
uma parceira animada e acostumada a ser o centro das atenções. E isso eu
faço muito bem. Tenho minhas dúvidas se Kate está a altura do desafio.
— Não quero mais saber de nada disso, Clarice. Pierre está morto
para mim e não quero mais ouvir esse nome saindo da sua boca, entendeu?
— Claro, Gracie. Quanto aos patrocinadores…
— Quer saber? Estou cansada disso tudo. Resolva as coisas do jeito
que você achar melhor.
— Mas Gracie, as olimpíadas estão chegando e precisamos…
— A única coisa que eu preciso agora é de silêncio. Você é a melhor
agente do país, sei que vai dar conta. Apenas para referência, estarei em
Guilford nos próximos dias. Preciso de um tempo pra esfriar a cabeça.
Desligo o celular antes que ela possa responder e me dar mais uma
lista de preocupações para ocupar a minha cabeça. Como se eu já não
tivesse muita coisa para pensar.
Viro o resto da segunda dose e sinto minha garganta queimar, dessa
vez por causa da azia. Eu definitivamente não deveria estar bebendo tanto
álcool com o estômago vazio. Ignoro o pensamento de que, na minha
condição, eu não deveria estar bebendo álcool nenhum e me preparo para
desligar o celular, mas antes ligo para o motorista e peço para preparar o
carro. Ficar sozinha nessa cobertura não vai ser uma boa ideia. Como se
pudesse ler o que estou pensando, Ben solta um latido agudo na minha
direção.
— Eu falo sem a companhia de outros humanos, honey.
Pressiono o botão de bloqueio do telefone e, nos segundos que o
celular leva para desligar, ainda vejo uma mensagem aparecer na tela.

PIERRE: Você vai me pagar por isso.

O celular desliga, me impedindo de responder. Sinto um sorriso de


vitória aparecer no meu rosto. Se meu ex-parceiro achava que sairia dessa
história limpo, estava completamente enganado. Isso só prova que ele não
me conhecia tão bem assim.
Sei que ele vai tentar me processar, mas que fique à vontade. Não
disse nenhuma mentira na live, apenas expus a traição. Não é como se a
maioria das pessoas já não soubesse, eu só confirmei. Tem fotos dos dois
juntos em todos os cantos da internet.
Sinto vontade de ligar o celular de novo e mandar uma mensagem
nada educada para o meu, agora ex, parceiro. Ele devia ter mais cuidado na
forma como fala comigo. Passamos oito anos juntos, sei tudo sobre ele. As
coisas boas e as ruins. Eu poderia ter feito muito pior naquela live. No final
das contas, Pierre deveria me agradecer pela benevolência.
Caminho até o meu quarto e tiro minha mala de mão do bagageiro.
Coloco-a em cima da cama e vou separando algumas roupas que quero
levar, sem escolher demais. Ainda não sei como me sinto em relação a
traição do Pierre. É como se eu estivesse dormente. Talvez seja um daqueles
casos onde a mulher termina o relacionamento na própria cabeça muito
antes de chegar às vias de fato.
Honestamente, eu não ligo se Pierre partiu meu coração, mas ele que
não tente fazer nenhuma gracinha com a minha carreira de novo.
CAPÍT ULO 2 - OLIVER FISHER

Ainda bem que Guildford é uma cidade segura.


Esse é o único pensamento que passa pela minha cabeça quando abro
os olhos, os primeiros raios de sol do dia despertando meu corpo. Minhas
costas estão doendo — provavelmente porque bancos de parque não são o
melhor lugar para homens de um e oitenta e oito de altura dormirem —, tem
cheiro de xixi em algum canto dessa praça e eu sinto que a noite anterior foi
um borrão, mas estou vivo.
Com um pouco de dificuldade, me sento no banco e coloco as mãos
no bolso da calça jeans. Meu celular está aqui, o que é um bom sinal. Não
morri, não fui espancado, não fui roubado. Parabéns, Oliver. Três vitórias
no dia e não deve ser nem seis da manhã. Você é uma máquina de vencer.
Deixo uma risada irônica escapar enquanto esfrego o rosto, tentando
me lembrar porque o Oliver bêbado que tomava conta desse corpo durante a
madrugada achou uma boa ideia dormir fora de casa, literalmente. Talvez
eu estivesse tentando evitar que o senhor Fisher acordasse às três da manhã
com a minha entrada indiscreta. Dá pra dizer que meu pai não está muito
feliz comigo desde que fui expulso do time de hóquei e gastei todo meu
último salário frequentando festas em Los Angeles, então estou tentando
cooperar, ser um bom garoto. O único problema é que a minha visão do que
é ser um bom garoto pode ser meio deturpada na maior parte do tempo.
Tateio os meus bolsos em busca do meu isqueiro e meus últimos
cigarros. Acendo a ponta de um deles. Nicotina é o café da manhã dos
vencedores, penso, enquanto observo o céu de Guildford ser tomado por
tons de laranja e rosa. A melhor parte de ter sido expulso dos New York
Owls é que não preciso mais me preocupar em manter uma saúde perfeita.
Ninguém liga se estou comendo a quantidade certa de proteínas, se estou
equilibrando meus carbos, bebendo dois litros de água ou dormindo 8 horas
por dia. Alguns chamariam a expulsão de fracasso, eu chamo de
independência.
Reviro os olhos assim que me levanto do banco. Não sei quem estou
tentando enganar com esse papinho furado, provavelmente o meu próprio
cérebro. Dou um longo trago no cigarro e me afasto da praça, caminhando
com calma pela cidade. Guildford ainda dorme, mas consigo ver alguma
movimentação por trás das portas das padarias e outras casas comerciais. O
cheiro de pão e mel denuncia que algumas pessoas estão na ativa há
algumas horas e, enquanto caminho até em casa, não consigo decidir se
amo ou odeio esse lugar.
A caminhada até a mansão dos Fisher demora mais ou menos quinze
minutos. O imóvel é imponente e antigo, como a maioria das casas por
aqui, com o diferencial que essa ocupa quase todo o quarteirão, muito mais
moderna por dentro do que parece ser por fora. Meu pai ama essa casa mais
do que ama seus filhos e insiste em fazer reformas praticamente todo ano,
embora todo mundo saiba que não tem mais o que ser melhorado. É a porra
de uma residência de luxo.
Quando chego nos portões, percebo que esqueci minhas chaves. Isso,
ou as perdi em algum momento da noite, o que também é muito provável.
Sem alternativa, acendo mais um cigarro e toco a campainha, ciente de que
alguém vai torrar a minha pouca paciência nos próximos segundos.
Normalmente esse papel é do Erik, mas também pode ser do Tyler,
dependendo de como anda o seu humor.
Alguns minutos se passam e eu espero em silêncio até que,
finalmente, Erik aparece, saindo da casa principal com um avental sujo de
farinha e a expressão de poucos amigos de sempre. Meu pai não é o único
que está puto comigo por ter sido expulso do time, o que, em outras
palavras, significa que eu não tenho liberdade para arruinar a minha própria
vida.
Ok, eu consigo entender parte da raiva. Meu pai é dono dos New
York Owls e o interesse dos patrocinadores e acionistas despencou depois
da minha expulsão, uma pequena tragédia que vai acompanhá-lo durante
toda a off season desse ano. Quanto ao Erik, ele só gosta muito de vencer e
sabe que vai ser difícil encontrar um atacante tão bom quanto eu. Podemos
ter nossas divergências fora do rinque, mas éramos uma grande dupla em
cima das pistas de gelo. Mesmo assim, ainda acho que eles esquecem de se
preocupar com o principal prejudicado dessa história: eu.
Ora ora, se não são as consequências das minhas próprias ações.
— Onde você estava? — Erik pergunta, sacudindo os dedos para tirar
o excesso de farinha das mãos.
Tenho certeza que ele acordou às quatro da manhã pra fazer
exercícios e pão de fermentação natural. Um principezinho, como a mídia
gosta de dizer.
— Tive uma ótima noite nos bancos da praça depois de cheirar muitas
carreiras de cocaína e transar com prostitutas sem usar preservativo —
respondo, me divertindo com a expressão de horror que surge no rosto de
Erik. No fundo, ele sabe que é mentira. Ou não. — E você? — pergunto,
encarando seu avental sujo. — Pães de novo?
Erik ignora minha pergunta enquanto tira as chaves do bolso da calça
para abrir o portão.
— Não acredito que dormiu na rua — ele resmunga, como se fosse
algum tipo de crime inafiançável.
— Não queria acordar ninguém no meio da madrugada.
— Que gentil da sua parte, Oliver — ele revira os olhos, dando
espaço para que eu entre. Antes de fechar o portão de novo, me encara de
cima a baixo, como se estivesse fazendo alguma espécie esquisita de
medição. — Tá de ressaca?
Dou de ombros e levo o cigarro até a boca, porque a resposta é óbvia.
— Não devia estar fumando desse jeito — reclama. — Os drafts da
NHL vão começar no final de junho e se você quiser ser recrutado por
algum tim…
— Não quero — corto, como já fiz uma centena de vezes antes.
Sendo honesto, acho que nem Erik acredita nessa história de draft. É
tudo uma questão de não dar o braço a torcer. Como capitão do time e
irmão mais velho, ele não pode sair por aí dizendo que nunca vou conseguir
jogar profissionalmente de novo, embora essa seja a verdade.
Erik suspira, passando as mãos pelo cabelo ruivo que precisa
urgentemente de um corte. Por um segundo, ele deve ter esquecido que seus
dedos estão sujos de farinha. Aproveito a brecha para aumentar a
velocidade dos meus passos na tentativa de me livrar dessa conversa, mas é
claro que ele não desiste.
— Talvez você devesse tentar…
Eu interrompo sua fala quando entramos na cozinha.
— Não quero tentar nada — enfatizo. — Dá um tempo, Erik.
Ele bufa, cruzando os braços.
— Sinto muito por não querer que você jogue a sua carreira no lixo.
— Devia aproveitar a oportunidade. Nunca conseguiu ser o melhor
jogador do time enquanto eu estava na equipe, então… Você sabe. É sua
chance de sair do eterno segundo lugar, se não for superado por algum
novato qualquer.
Erik franze o cenho. Consigo ver quando ele engole em seco, cerra os
punhos e respira fundo, porque está com muita vontade de me dar um soco
agora, mas não quer perder a sua pose de irmão mais velho preocupado. É
sempre divertido testar os seus limites porque, assim como eu, Erik é uma
bomba relógio. Todos nós somos. Ele só é melhor em fingir.
— Eu amo acordar com uma boa dose de amor fraterno no café da
manhã. — Só então eu percebo a presença de Tyler na cozinha, de pé ao
lado da bancada cheia de farinha e massa. Erik passa os olhos por ele e pela
bancada com as sobrancelhas ainda franzidas, como se desconfiasse das
boas intenções do rapaz. Ele odeia ter qualquer platéia perto da sua preciosa
panificação. — Bom dia pra vocês também.
Erik desiste de me dar um soco, mas me irrita na mesma proporção
quando arranca o cigarro dos meus dedos e o atira na pia.
— Não pode fumar aqui dentro.
É minha vez de respirar fundo. As vezes eu penso que o maior
objetivo de vida de Erik Fisher é me tirar do sério.
— Estão competindo pra ver quem vai levar um soco primeiro? —
Tyler zomba, enchendo sua caneca estampada com o mascote dos Owls,
uma coruja das neves, de café.
O sorriso no seu rosto traz duas mensagens óbvias: primeiro, ele deve
ter transado ontem. Segundo, ele é um atleta profissional. Estar bem
disposto antes das seis da manhã é uma característica nossa — e das
pessoas que nasceram com um relógio biológico abençoado. Estamos fora
da temporada dos jogos de hóquei, o que significa que nenhum dos dois
precisava estar acordado a essa hora, mas, depois que seu corpo se
acostuma a despertar antes do nascer do sol, é um caminho sem volta.
Sigo até a geladeira e sirvo um copo de suco, na tentativa de ocupar
as mãos agora que meu cigarro foi pro saco. Tyler se senta na mesa de
centro da cozinha e Erik volta para os seus pães, como se eu não o tivesse
interrompido. Se eu conheço bem essa família, meus pais ainda estão
dormindo. Joshua deve acordar a qualquer momento e Archie foi fazer uma
viagem de nerd pra alguma civilização abandonada pelo tempo, então sabe-
se lá quando vou vê-lo de novo.
Bebo um gole de suco. Quando fui adotado por Hank Fisher, eu tinha
dificuldade de entender meus irmãos como irmãos. Parecia algum tipo de
piada preconceituosa: um negro, um coreano-britânico e um branco entram
em um bar. Depois de algum tempo, a nossa falta de semelhança física e os
olhares espantados cada vez que mencionamos sermos irmãos se tornaram o
menor dos meus problemas.
Não que eu não os ame, só é complicado na maior parte dos dias.
Muito complicado.
— E falando em levar um soco — Tyler varre os meus pensamentos
para longe enquanto bebe um gole de café. Seus dreads escuros estão presos
em um coque no topo da cabeça e ele não usa uma camisa, mesmo que a
temperatura de doze graus não seja nada convidativa. — As últimas fofocas
de Guildford já chegaram em você?
Acho engraçado como ele diz “fofocas de Guildford”, como se não
fossemos atletas conhecidos mundialmente.
— Não — respondo. — Você é o fofoqueiro.
Tyler ergue o dedo médio na minha direção.
— Adivinha quem terminou o namoro de oito anos?
Arqueio uma das sobrancelhas, sem entender.
— Saiu em todos os jornais — Erik comenta, me fazendo perceber
que sou o único mal informado aqui. — A host do Sporticast vai fazer um
episódio só sobre isso, mas a Gracie não aceitou fazer uma entrevista.
— Gracie? — pergunto.
Tyler solta o ar pela boca, ironicamente.
— Olha que gracinha ele se fazendo de desentendido.
— Gracie Salmon — Erik enfatiza, como se eu realmente não
soubesse de quem eles estão falando.
— Sua paixãozinha de infância — Tyler completa. — Ela vem passar
algumas semanas na casa dos pais.
Eu reviro os olhos.
Gracie e eu nos conhecemos desde os dez anos de idade, quando eu
fui adotado pelo senhor Fisher. Meu pai e o pai dela são, tipo, os melhores
amigos do mundo inteiro. Cresceram juntos, estudaram juntos, casaram
mais ou menos na mesma época. Os Fisher são quase uma extensão dos
Salmon e vice-versa.
Irônico, se pensarmos no significado desses sobrenomes.
— Tá mais pra arqui-inimiga de infância — Erik corrige e, por
incrível que pareça, eu concordo. — Acho que ela ainda se lembra de
quando o Oliver mandou umas quinze estátuas de palhaço pra casa dela.
Movo a cabeça em afirmativa.
— Porque ela odeia palhaços.
— E também teve o ano que ele pintou o cachorro dela de verde-
limão.
— Com tinta própria pra animais — relembro, porque posso ser um
escroto, mas não com cachorros de patricinha que pesam menos de cinco
quilos.
— Você pode admitir que estava tentando conquistar ela — Tyler
zomba. — De um jeito meio…
— Psicopata? — Erik completa. — Todo mundo sabe que a Gracie
nunca sairia com um cara como o Oliver. Ela tem a cabeça no lugar.
— E quem disse que eu sairia com ela?
— Ah, claro que não, você tá muito ocupado comendo putas sem
camisinha — Erik lembra.
Tyler arqueia uma sobrancelha pra mim.
— O que é puta?
A voz infantil corta a conversa e nós três nos viramos para a porta,
encontrando um Joshua sonolento encostado no batente, arrastando seu
coelho de pelúcia pelas orelhas. Joshua Fisher — ou, em outras palavras,
nosso irmão mais novo — não é nada mais que um acidente. O senhor
Fisher não tinha planos de ter um filho biológico até que aconteceu e agora
nós meio que temos um mascotinho de quem cuidar durante as férias.
— O que é puta, Erik? — eu termino de beber meu suco. — Boa sorte
pra explicar pra ele. — Dou um sorriso irônico na sua direção e caminho até
a porta, bagunçando os cabelos loiros de Joshua antes de sair da cozinha. Se
tem alguma coisa que os irmãos Fisher têm em comum, é que todos
amamos esse pirralho.
Consigo ouvir Erik se embolar com as palavras na sua tentativa de
explicar o que é puta de uma forma educativa enquanto subo as escadas
para o segundo andar. A sensação de estranhamento de sempre assola meu
corpo quando entro na minha suíte, idêntica ao que era quando eu tinha
quinze anos. Passei muito tempo em New York jogando hóquei e agora
minha casa não parece mais minha casa. Sempre foi um costume dos Fisher
vir pra cá nas férias, mas admito que adiei esse momento o máximo que
pude. Só estou aqui porque não tenho outra opção.
Tranco a porta e tiro a jaqueta de couro dos meus ombros, jogando-a
na cama. Encaro o notebook que não uso há algum tempo em cima da
escrivaninha, junto de muitas outras tralhas, lutando contra a minha vontade
de pesquisar qualquer coisa sobre ela. Gracie Salmons ou, como prefiro
chamar, desgracie.
Conheça o seu inimigo, não é o que eles dizem?
Um breve sorriso aparece no meu rosto. Isso é só uma desculpa,
porque já sei tudo que há pra saber sobre ela e, de quebra, sobre Pierre e o
relacionamento que começou quando ela tinha 12 anos. Parecia brincadeira
de criança ao mesmo tempo que parecia absurdo e, honestamente, se não
fosse pelo lance todo da patinação, duvido que tivessem durado tanto
tempo.
Eu ligo o notebook, deixando a curiosidade patogênica que sinto a seu
respeito tomar conta das minhas buscas por alguns segundos. O seu nome
está em alta no Google e consigo todas as informações que preciso logo nas
primeiras páginas: terminou com o francês de sotaque insuportável por
causa de uma traição e agora não tem mais parceiro para as Olimpíadas de
Paris. Em outras palavras, ela está na merda.
Me levanto da cadeira, ainda sem uma opinião formada sobre o
assunto. Não é irônico que, de todos os lugares onde uma patinadora
milionária pode ir, ela tenha escolhido vir logo pra cá? Gracie Salmons não
é do tipo que se apega a memórias de infância.
Se eu acreditasse em destino, até diria que ele está tentando me dizer
alguma coisa.
CAPÍT ULO 3 - GRACIE SALMON

Voltar para casa não é tão bonito e romântico como os filmes tentam
mostrar. Pelo menos, não quando você tem uma família disfuncional. Liam
Salmon é um amor de pessoa, o tipo de amigo que as pessoas querem ter
por perto: engraçado, comunicativo e prestativo. É uma personalidade
muito querida em Guildford e é raro passar uma semana sem ser convidado
para jantar na casa de um dos vizinhos. O problema é que ele parece gastar
todo o seu carisma fora de casa e deixar apenas migalhas pra mim e minha
mãe. Moral da história: vivenciei o estranho fenômeno de ter um pai
ausente que dividia o mesmo teto comigo.
Se, por um lado, eu sentia falta do contato paterno, com minha mãe
foi o contrário.
Assim que chego em casa, é ela quem encontro. Ainda estou no hall
da imensa casa dos Salmon — uma casa grande demais para apenas um
casal e uma filha. Minha mala está ao meu lado e talvez eu precise pedir
ajuda a algum dos empregados para subir com ela até o meu antigo quarto.
Benjamin dispara pela casa, mostrando toda a empolgação que eu não estou
sentindo. Bem, pelo menos um de nós está feliz por ter voltado.
— Que história é essa de término, Gracie? E como eu só fiquei
sabendo disso pela internet?
Essa é Nora Salmon, minha queridíssima mãe. É claro que eu a amo,
seria uma filha muito desnaturada se não a amasse, mas não vou negar que
algumas vezes ela me fez questionar se compensa passar o resto da vida
cumprindo pena por matricídio.
Não teve um “oi, como você está? Imagino que as coisas estejam
difíceis para você. Vem cá, deixa eu te abraçar.” Não, Nora não funciona
assim. Com ela tudo tem que ser perfeito, não existe espaço pra sentimento
ou bem-estar. A carreira vem primeiro, a vida, se sobrar espaço, vem em
segundo. Talvez foi por causa disso que ela fez história na patinação
artística no gelo, conseguindo nada mais mais nada menos do que cinco
medalhas olímpicas de ouro na modalidade. Pressão? Imagina.
— Oi, mãe. Não, eu não estou bem, obrigada por perguntar.
Levanto a mão em um aceno para um dos empregados que nunca vi
antes. Eu nunca entendi muito bem o sistema de contratação de
funcionários aqui, mas meu pai parece não gostar que os empregados
fiquem por muito tempo, o que faz zero sentido na minha cabeça, já que
quanto mais eles conhecem da família e da casa, melhor sabem sobre as
rotinas e costumes para melhor atenderem. Mas não sou eu, a filha única e
sempre voto vencido, quem vai questionar os costumes dos Salmon. Pra
início de conversa, nem moro mais aqui.
— Não venha com chantagem emocional pro meu lado, mocinha. Se
queria conversar deveria ter atendido alguma das dezenas de ligações que te
fiz.
Ok, talvez ela tenha um ponto. Desde que os boatos da separação
começaram a circular nas águas tóxicas da internet, meu telefone tocou sem
parar.
Mas eu não queria conversar com minha mãe por telefone, na
verdade, não queria conversar com ninguém. Não tenho o que falar sobre o
que aconteceu. Pierre já tinha me machucado antes, centenas de vezes, mas
dessa vez ele passou dos limites. Uma traição é demais, não porque sou
apaixonada por ele e não suporto vê-lo com outra mulher, mas porque fama
de corna significa fama de otária. Eu posso ser muitas coisas, mas não sou
otária. De toda forma, não tenho mais o que remoer. O que eu tinha para
desabafar, já desabafei com meu melhor amigo de quatro patas. E a melhor
parte de tudo é que ele não me julga, nem me dá conselhos estúpidos.
— Eu não queria falar com ninguém. — Sigo o empregado que ainda
não sei o nome, mas faço uma nota mental de perguntar assim que me livrar
da minha mãe. — Na verdade, ainda não quero. Vou pro meu quarto.
— Não vai não, Gracie. Nós precisamos conversar. Eu e seu pai não
nos matamos para criar você com todo o luxo e oportunidades que você
teve para agora você jogar sua carreira brilhante no lixo tão perto das
olimpíadas.
Respiro fundo. Com ela é sempre assim. Imagino se ela consegue ver
uma pessoa de carne e osso quando olha para mim ou se tudo o que vê é um
imenso currículo deslizando sobre patins. Não olho para ela enquanto sigo
para o meu quarto. Apesar de estar no início da tarde e eu ainda não ter
almoçado, estou sem apetite e só quero a minha cama.
— Eu preciso descansar primeiro — solto, derrotada. Eu sei que não
vou conseguir fugir de uma conversa com ela por muito tempo, mas eu
realmente preciso dar uma cochilada antes de encarar a fera. — Benjamim!
Assim que escuta minha voz, meu fiel amigo corre na minha direção e
entra comigo no quarto. Ainda escuto o som dos passos da minha mãe
vindo na minha direção, mas fecho a porta antes que ela me alcance.
É sempre uma experiência estranha voltar para o lugar onde cresci.
Na época que eu morava em Guildford, as paredes do meu quarto estavam
repletas de posters de bailarinas e patinadoras, além, claro, dos cronogramas
com os infinitos treinos. Agora, as paredes estão limpas, sem graça, sem
vida, como se eu tivesse entrado em um quarto de hotel sem personalidade.
Se não fosse pelos mesmos móveis, seria difícil acreditar que eu morei aqui
por tantos anos.
Pego Ben no colo e me deixo cair na cama. O minúsculo maltês
começa a lamber o meu rosto, fazendo um sorriso fraco despontar nos meus
lábios.
— Se não fosse você, eu não sei o que seria de mim, honey.
Abraço o travesseiro e não demoro a dormir.

∞∞∞
Acordo com o barulho da risada alta do meu pai. Ele é o tipo de
pessoa que, quando ri, faz questão que todos saibam que está rindo. Puxo o
meu celular e percebo que são quase 17h. Sinto um gosto amargo na boca e
um incômodo no estômago me diz que eu não deveria ter ficado tanto
tempo sem comer. Sinto o corpo fraco e sei que é meu corpo berrando por
energia. No momento, estou flertando perigosamente com a hipoglicemia,
por causa da minha diabetes.
O fato de eu vir de uma família rica certamente ajudou a eu não ter
muitos problemas com essa doença. É óbvio que eu não gosto de ser
diabética, mas pelo menos consigo reconhecer que tenho condições
financeiras para fazer o melhor acompanhamento possível. Desde criança,
tenho ido aos melhores médicos e nutricionistas e tomo minha medicação
religiosamente. Minha diabetes é a do tipo 1, ou seja, meu pâncreas cismou
que insulina é algo trivial e decidiu produzir muito pouco dela. Moral da
história: tenho que injetar o hormônio uma vez ao dia para impedir que eu
tenha um colapso.
Saio do quarto sentindo o corpo um pouco fraco. Eu realmente não
deveria ter ido dormir sem almoçar. Sigo direto para a sala de jantar com
sua imensa mesa de vinte lugares e lá encontro minha mãe, meu pai e Mr.
Fisher, melhor amigo de infância do meu pai. Estão sentados, terminando
de tomar o chá da tarde. Assim que chego, sou cumprimentada com um
abraço apertado que me deixa ainda mais fraca.
— Minha nossa, como eles crescem rápido! — Mr. Fisher comenta.
— Se o Archie não estivesse viajando, a casa estaria cheia.
Minha cabeça está focada no bule de chá e no bolo em cima da mesa,
mas sei que não posso comer esse último. Ao invés disso, sirvo uma
generosa dose de chá preto e salada de frutas, tudo sem açúcar. Em uma das
últimas cartas que troquei com Archie, ele realmente disse que viajaria para
algum lugar remoto para ver alguma ruína. Nós dois temos essa tradição de
trocar cartas virtuais desde a adolescência, mas com o caos que minha vida
tomou nas últimas semanas, acabei nem respondendo ele.
— E como anda o time, Hank? Eu vi as notícias da expulsão, deve ter
sido um momento difícil pros meninos — comenta meu pai.
Expulsão?
Minha atenção é direcionada para a conversa enquanto como as
frutas. Todo mundo em Guildford sabe que os Fisher tem um time de
hóquei em New York, onde quatro dos cinco filhos jogam. Se houve uma
expulsão, matematicamente falando, tem grandes chances de ter sido um
dos Fisher, já que eles ocupam quatro das seis vagas titulares.
— Nem me lembra disso, Liam. Dessa vez o Oliver passou de todos
os limites.
Sinto o corpo enrijecer ao ouvir aquele nome. Não me lembro da
última vez que o ouvi. Quando fui pra Londres minha vida passou a girar ao
redor da patinação e perdi o pouco contato que eu tinha com esse esporte
grosseiro, embora tenha o stalkeado algumas vezes no Instagram. É óbvio
que, se eu tivesse que apostar na expulsão de um deles, apostaria todas as
minhas fichas no Oliver. Ele sempre foi um garoto problema e foi
responsável por me dar inúmeras dores de cabeça.
— Ah, sobre isso eu entendo muito bem — diz minha mãe, me
lançando um olhar atravessado. — A gente faz de tudo para agradar, mas só
recebe descaso.
Mr. Fisher concorda e se levanta da mesa.
— Mas já tomei demais o tempo de vocês. Espero encontrá-los mais
tarde. — Ele olha na minha direção. — Os meninos vão adorar te ver,
Gracie.
Eu não preciso ser muito inteligente para saber do que se trata.
Se não for um convite para um jantar, eu sou um boneco de neve.
Meu pai acompanha o amigo até a porta e, assim que eles deixam a
sala, a temperatura do ar diminui vários graus. É uma situação ridícula: uma
mesa imensa com um banquete para apenas duas pessoas que não trocam
uma palavra sequer. Sei que minha mãe está com raiva de mim pela forma
como me olha sem descanso, mas não vou puxar o assunto e muito menos
pedir desculpas por algo que não foi culpa minha.
Os segundos passam arrastados e, é com um grande alívio, que escuto
os passos do meu pai retornando para onde estamos. Ele pode não ser o
melhor pai do mundo, mas sempre funciona como uma ponte quando a
convivência entre eu e minha mãe fica insustentável.
— Bom, você quer nos contar o que aconteceu, princesa? — ele diz
retomando seu lugar na mesa ao lado da esposa. — Tudo o que sabemos foi
o que saiu na mídia.
Viro uma quantidade de chá maior do que deveria e sinto o líquido
quente queimar minha língua. Lágrimas sobem aos meus olhos e odeio
pensar que eles vão achar que estou chorando por causa do Pierre.
— Não tem mais nada para contar. Pierre foi um idiota e tava me
traindo há muito tempo com uma desquerida. Eu acabei descobrindo. Fim
de papo.
Enfio o garfo em um pedaço de kiwi e o levo à boca. Tento olhar para
o meu bowl de frutas, pois ele parece muito mais interessante do que o casal
que me encara em silêncio. Infelizmente, a calmaria não dura muito.
— Fim de papo coisa nenhuma, Gracie. E por causa disso você
decidiu jogar sua carreira no lixo? E daí que ele tá saindo com outra
pessoa? Pierre ainda é o seu parceiro. — Ela sacode os cabelos ruivos de
um lado para o outro. É irônico pensar que puxei todos os traços físicos do
meu pai, mas minha personalidade é quase uma cópia da minha mãe. Talvez
por isso brigamos tanto. — Meu Deus, será que só eu estou vendo o
problema que temos aqui?
Olho para minha mãe sem saber exatamente o que sentir. Não é
surpresa, por mais absurda que possa soar, eu sabia que essa seria a opinião
dela. Meu pai também está olhando para a esposa, mas é mais fácil nevar
em pleno verão do que ele contradizer Nora Salmon.
— Você queria que eu continuasse com ele depois do mundo inteiro
descobrir que eu fui corna?
— As coisas são mais complicadas do que isso, Gracie, tenha modos!
No mundo da patinação, infelizmente, às vezes a gente tem que engolir
algumas coisas se quiser ir longe. E pelo o que eu vi, ninguém sabia que
houve mesmo uma traição, não antes da sua live.
— Então tudo bem continuar com ele se o resto do mundo não
soubesse? É isso que você quer dizer?
Sinto ânsia de vômito ao imaginar Pierre me abraçando nas
apresentações. Como eu poderia continuar com ele depois disso tudo?
Como eu poderia pular esperando que ele me segurasse se não tenho mais
uma gota de confiança nele?
— Não estou dizendo que está tudo bem, estou dizendo que você
deveria ter esperado pelo menos até o fim das olimpíadas. Faltam só…
— Será que dá para não ficar me lembrando quantos dias faltam para
as olimpíadas? Eu já estou com problemas demais e não preciso
desenvolver uma crise de ansiedade.
— Não vou parar, porque parece que você esqueceu completamente!
Meu Deus, Gracie, onde você estava com a cabeça? Se tivesse me ligado
antes de fazer uma coisa dessas…
Me levanto, frustrada.
— Eu não liguei porque sabia exatamente o que você ia dizer. Seu
foco é sempre na minha carreira, nunca em mim. — Dou as costas sabendo
que o que estou prestes a dizer vai machucar minha mãe mais do que se eu
a ofendesse com todos os palavrões do planeta. — E eu nem sei se vou mais
participar das olimpíadas. Não tenho parceiro.
Saio do salão sem esperar por uma resposta. Não que eu ache que
minha mãe tenha algo a dizer depois do que eu falei e, bem, meu pai não é
de se meter. Quando eu disse que ele funcionava como uma ponte entre eu e
minha mãe eu quis dizer no sentido mais literal possível: ele permite que
haja um caminho entre nós, mas jamais toma um partido. É quase uma
lembrança em carne e osso mostrando que, se houver um assassinato,
haverá testemunhas.
Volto para o meu quarto, batendo a porta quando passo. Meu corpo
escorrega até o chão e apoio as costas na cama. Ben corre para o meu colo
na tentativa de me animar. Ele é o único nessa família que me entende.
Apesar de toda raiva que estou da minha mãe, em uma coisa ela está
certa.
Eu realmente não faço ideia do que vou fazer da minha vida agora.
E constatar isso me deixa com ainda mais raiva.
CAPÍT ULO 4 - OLIVER FISHER

ERIK: O pai vai ficar puto se vocês não chegarem na hora do jantar
@tyler @oliver
ERIK: Sabe como ele é com essas coisas.
ARCHIE: Ele voltou a fazer jantares?

A figurinha de um cachorro com expressão de desespero acompanha


a mensagem de Archie, mas Erik não responde diretamente.

ERIK: Vou cobrir vocês por mais trinta minutos.

Bloqueio a tela do celular sem responder as mensagens do grupo,


porque em nenhum momento Hank Fisher perguntou se eu queria passar a
noite fazendo sala para Liam, Nora e Gracie Salmon. Erik é um puxa-saco
melhor do que eu e tenho certeza que ninguém vai morrer se eu chegar
alguns minutos atrasado. Ou algumas horas.
— Vamos começar em quinze! — alguém grita no meio da multidão,
mas eu não perco meu tempo tentando identificar quem é.
— Tem certeza que quer correr hoje? — Tyler pergunta, levando seu
copo de cerveja até a boca.
Meus olhos passam pelas pessoas vestidas de preto até chegarem na
minha moto, estacionada na linha de início improvisada da corrida. Entendo
sua dúvida quando um raio corta o céu escuro, o som do trovão abafado
pelas caixas de som que nem deveriam estar aqui. O cheiro de terra no ar
denuncia que, em algum lugar nas proximidades, a chuva já começou.
— Gosto de correr com chuva — respondo, sucinto.
Tyler me encara. Seus olhos escuros dizem que sou maluco, mas sua
boca não diz nada.
As corridas clandestinas de Londres acontecem na estrada. É perto da
cidade mas nem tão perto, numa tentativa de evitar a atenção da polícia —
como se eles já não soubessem. São os jovens mais ricos de Guildford,
Windsor, Southall e outras regiões próximas reunidos praticamente todo
final de semana e, se a polícia não averiguou isso ainda, é porque ninguém
influente o bastante perguntou.
— Oliver — uma mulher murmura na minha direção. Seu rosto está
coberto por uma máscara branca que dá a impressão de que os seus olhos
estão derretendo. — Número 12.
Depois de tantos anos correndo, deixou de ser estranho conhecer a
sua voz mas não o seu rosto. Não é como se fosse um segredo, mas grande
parte das pessoas se acostumou com o uso de máscaras por aqui. São filhos
de políticos, atletas, herdeiros, gente com uma lista muito longa de coisas a
perder depois de uma temporada na prisão. Eles são esquivos, prontos para
desaparecerem na noite no primeiro sinal de problema.
No meu caso é diferente, minha reputação de garoto problemático me
precede e nunca pensei em usar uma máscara.
— Sempre bom te ver por aqui, Ty — ela, que eu carinhosamente
apelidei de Betty Boop macabra, apoia uma das mãos no ombro de Tyler e
sorri, acho. Sua máscara é fechada na parte da boca, o que me obriga a
imaginar sua expressão.
— Sabe que eu nunca nego uma festa durante a off season — Tyler
responde, com o seu ar típico de garoto propaganda.
Por algum motivo, ele também nunca quis usar uma máscara.
— Por acaso você transou com ela? — pergunto, assim que Betty
Boop macabra se afasta.
Tyler dá de ombros.
— Talvez. — A dúvida no seu tom de voz é genuína. — Minha vida
amorosa é agitada, não dá pra se apegar nesses detalhes.
— O detalhe de saber quem você está fodendo?
— Eu sei quem eu estou fodendo. — Ele bebe mais um gole de
cerveja —. Agora, reconhecê-las de máscara é pedir demais. — Tyler
aponta para outro grupo de garotas e três delas usam a mesma fantasia que a
Betty Boop macabra.
Acho graça da forma como ele usa a palavra no plural e não no
singular. Em três anos, Tyler Fisher vai ter zerado todas as bocetas solteiras
de Guildford e uma boa parte das casadas — isso porque ele só fica aqui
durante as férias. O estrago que ele fez em New York desde que se tornou
jogador dos Owls é incalculável.
— Você precisa de uma namorada — zombo.
O rosto de Tyler se retorce numa careta ultrajada e por um segundo é
como se eu tivesse acabado de sugerir que ele arrancasse o próprio braço e
o comesse no jantar. Ele meneia a cabeça na direção da arquibancada ao
redor da linha de início, onde as pessoas se amontoam para ver o começo da
corrida.
— Você também — diz. — E não faltam candidatas…
Viro o rosto na direção que Tyler apontou e encontro duas garotas
vestidas com a camiseta azul cinzenta dos Owls. Elas acenam na minha
direção e consigo ver o 32 — meu antigo número — estampado no tecido
de uma delas enquanto segura uma plaquinha com o meu nome, declarando
torcida por mim na corrida de hoje à noite.
Eu não me importaria em transar com uma delas se estivéssemos em
uma noite normal, mas, hoje, Hank Fisher resolveu empatar todas as minhas
fodas.
— Cinco minutos! — outra pessoa grita.
— Hora do show — digo, tomando o copo de cerveja dos dedos do
Tyler. Bebo todo líquido já quente num gole só, fazendo uma careta ao
sentir o gosto.
Tyler franze o cenho pra mim e, mentalmente, sei que está me
xingando.
— Boa sorte.
— Sabe que eu não preciso de sorte.
De forma irônica, mando um beijo para Tyler e giro nos calcanhares
para chegar até a linha de partida, onde os outros corredores já se preparam
para montar suas motos. Por causa da tempestade próxima, temos pouca
competição hoje. Você precisa ser louco para correr clandestinamente, mas
precisa de um nível acima da loucura para correr com chuva, quando as
estradas ficam ainda mais escorregadias que o normal.
Betty Boop macabra — não tenho certeza se é ela ou outra garota
com a mesma máscara — se coloca entre as motos, segurando uma
checkered flag[2] enquanto passa os olhos vazios pelos competidores. As
primeiras gotas de chuva começam a cair, mas ninguém dá a mínima. A
garota na moto cor de rosa ao meu lado coloca o seu capacete e todos os
outros competidores fazem o mesmo, exceto por mim, o que gera um
burburinho na plateia.
Você precisa ser louco para correr.
Um nível acima da loucura para correr com chuva.
Nível Oliver Fisher de loucura para correr com chuva e sem proteção.
Eu subo na moto sem o capacete. Os sussurros aumentam, mas não
consigo ouvi-los com clareza porque a chuva engrossa. Betty Boop macabra
ergue as suas mãos e sacode a bandeira.
Segundos depois, as motos disparam.

∞∞∞
Ainda consigo sentir a adrenalina correndo por minhas veias quando
estaciono a moto atrás do carro de Tyler, na garagem dos Fisher. Água
escorre do meu cabelo e minha jaqueta de couro nunca esteve tão úmida,
mas não estou sentindo frio. É como se a vitória de mais uma corrida me
mantivesse quente. Agora são dez seguidas.
— Nós estamos — eu checo as horas no meu celular, também
molhado — quarenta minutos atrasados?
— Setenta minutos atrasados — Tyler responde, fechando a porta do
carro. — Se o pai não tiver um infarto hoje, não vai ter nunca mais.
Eu rio, porque Hank Fisher é um homem difícil de tirar do sério. Eu
mesmo só consegui esse feito duas vezes: quando fui pro reformatório aos
dezesseis anos e quando fui expulso dos Owls. Não é grande coisa, mas sou
o irmão Fisher que detém o recorde.
— Ele devia agradecer que estamos aqui — murmuro, sacudindo o
cabelo com uma das mãos —, fazendo sala pros Salmon.
Tyler ri.
— Você sabe que eles são praticamente irmãos.
— Eu não disse que não gosto do Liam — meu tom de voz é baixo
enquanto subimos as escadas que dão acesso a casa —, mas a esposa dele é
maluca.
— Ela é uma patinadora — Tyler corrige, passando os dedos pelos
dreads, verificando se estão molhados. — Todas são malucas. E eu não
julgo, deve ser muito estressante ficar o tempo inteiro sendo arremessada
pra lá e pra cá… pelo menos elas usam saias bem curtas enquanto fazem
isso.
— E isso ajuda a diminuir o estresse? — Minha pergunta é irônica,
porque já sei a resposta.
— O meu estresse, sim.
Eu reviro os olhos enquanto Tyler abre a porta da garagem. A
primeira coisa que ouço é a playlist de jazz do meu pai embalar o ambiente.
Já decorei todas as músicas, porque são a trilha sonora oficial de qualquer
evento na casa dos Fisher. Eu respiro fundo, segurando a vontade de fumar
um cigarro antes de chegar na sala. Não gosto da ideia de passar uma noite
inteira na mira do olhar nada atencioso de Nora Salmon. Se ela não perdoa
nem os erros da própria filha, não quero saber o que ela acha dos meus.
— Eu não sei o que deu na cabeça dela. — A voz de Nora é a
primeira que ouço quando coloco os pés na sala. Liam está ao lado dela,
apenas concordando e acenando. Acho que esse é o segredo dos casamentos
duradouros. Concordar e acenar. — E agora com a proximidade das
olimpíadas… — Ela para de falar quando seus olhos caem em mim e Tyler.
A ruiva franze o cenho quando percebe que estamos molhados, em clara
desaprovação. — Boa noite.
— Boa noite. — Tyler abre o seu sorriso simpático de golden
retriever, sem se importar com o quanto aquela mulher é antipática. Eu me
limito a balançar a cabeça num comprimento.
— Onde vocês estavam? — Hank pergunta, girando sua taça de
vinho.
— Você não vai querer saber — respondo. — Eu vou só… — Aponto
para as minhas roupas e Hank move a cabeça em afirmativa.
— O jantar está quase pronto — Hank complementa. — Seu irmão e
a Gracie estão fazendo a sobremesa.
Arqueio uma das sobrancelhas. Tenho vontade de perguntar porque
estão perdendo tempo com a sobremesa se temos empregados que poderiam
fazer isso, mas não quero ser antipático. Mais antipático.
— Eu vou lá em cima — Tyler murmura pra mim, apontando para o
cabelo.
Eu sei que ele vai gastar uma boa meia hora secando os dreads, o que
significa que vou passar mais tempo sendo o centro das atenções desse
jantar. Diferente de mim, Tyler sabe lidar com situações sociais tensas como
ninguém. Ele tem uma simpatia natural que eu não tenho.
Sigo na direção da área de serviços antes que alguém tente puxar
assunto sobre os Owls, porque eu sei que eles vão. Não do jeito agressivo
— o que você vai fazer da sua vida agora que destruiu sua carreira? —,
mas com aquela simpatia fingida muito típica entre as famílias de atletas —
é melhor você começar a se preparar para entrar em outro time ou vai ficar
pra trás. — Escolher essa carreira é transformar a sua vida em uma eterna
corrida, a única diferença é que não existe linha de chegada.
Sendo sincero, não dá pra dizer que eu escolhi. Acho que nenhum de
nós escolheu, mas tínhamos uma dívida de gratidão implícita com Hank. Se
ele queria que seus filhos desajustados fossem jogadores de hóquei, nós
seríamos. Não parecia um sacrifício tão grande na época. Erik e Tyler
acabaram tomando gosto pela coisa, quanto a mim e ao Archie… Não tenho
certeza.
As luzes se acendem quando entro na área de serviço que divide
espaço com a nossa despensa. Eu tiro a jaqueta e a camisa, jogo em uma das
máquinas vazias e encho o recipiente com sabão em pó. Eu não precisava
estar lavando isso agora, mas quanto menos tempo na sala melhor.
Abro um dos armários onde costumam guardar as roupas secas antes
de levar para os quartos e procuro por algum moletom que seja meu.
Dividir o mesmo teto com três outros caras pode ser meio caótico, mesmo
que só durante as férias. Antes que eu encontre, ouço passos se
aproximando da lavanderia e me viro na direção da porta.
Gracie Salmon me encara, parecendo em dúvida se deve dar mais um
passo ou se virar e ir embora. Dá pra dizer que ela não mudou muito desde
a última vez que nos vimos. Parece um pouco mais magra, mas ainda usa os
seus conjuntos de terno e saia de patricinha que fazem parecer que ela foi
vestida pelo mesmo estilista do elenco de Gossip Girl. Seu cabelo castanho
dourado é enorme, caindo até a altura da cintura, combinando perfeitamente
com sua pele negra clara. As olheiras ao redor dos olhos também castanhos
denunciam que está passando por um momento complicado, mas nem isso é
capaz de afetar sua beleza de tirar o fôlego.
— Vim buscar doce de leite pro Erik — diz, depois de alguns
segundos em silêncio, como quem confessa um crime — pra decorar nossa
banoffee.
— Ali atrás.
Eu aponto para o cômodo ao lado da sala de serviços e Gracie
enrijece os ombros, parecendo tensa com a ideia de ter que passar por mim
para chegar até lá.
— Eu não vou te morder, desgracie.
Ela arqueia uma das sobrancelhas finas e eu complemento:
— Você já está mal o suficiente.
Gracie cerra os olhos, ultrajada.
— Olha só quem diz, garoto problema. Furacão de Guildford, rebelde
sem causa, Oliver-Tretas-Fisher, não é assim que os jornais te chamam?
Dou de ombros. Os olhos de Gracie descem pelo meu corpo e ela
gasta alguns segundos analisando as tatuagens no meu peito. Não sei se ela
acha que está sendo discreta, mas não está.
— Era o que esperavam de mim, não é? Ser expulso. — Eu me volto
para o armário. — Agora você…
— Eu o quê? — Ela caminha até a despensa, mas para na porta.
Cruza os braços e espera que eu responda, reativa como de costume.
— Era uma promessa da patinação e agora está fora das Olimpíadas
de Paris — respondo, sucinto. — Quanto mais alto você chega, pior a
queda, mas acho que eu sempre estive por baixo.
— Grande coisa pra se vangloriar. — Gracie solta o ar pela boca. —
Não vou discutir com você. Se eu quisesse ir pras olimpíadas, eu iria.
Ela entra na despensa e eu finalmente encontro meu moletom surrado
dos Owls. A coruja com máscara de hóquei que estampa a peça está
descascando, praticamente desaparecendo do tecido.
— É mesmo? Com que parceiro?
— Qualquer um. — Ela demora alguns segundos procurando o vidro
de doce. — Tenho certeza que minha agente já recebeu milhares de
propostas. Muitos patinadores matariam pra patinar comigo.
Solto o ar pelo nariz, numa atitude de escárnio. Eu duvido muito. As
fofocas no meio do esporte não mentem sobre Gracie: ela é obcecada com
medalhas de ouro e troféus. Se você não está disposto a treinar 25 horas por
dia, não serve pra ela.
— E você?
Gracie retorna para área de serviço, agora com o pote nas mãos. Eu
não entendo a sua pergunta, então ela continua:
— Era um bom patinador — diz. — A gente patinava junto quando
éramos crianças.
— No lago Silent Pool — lembro. — Não patino mais.
— Não?
— Sei ficar de pé em cima dos patins, se é isso que quer saber, mas
não dá pra chamar de patinação.
Gracie assente.
— Você gostava.
— No passado.
Ela bufa ao perceber que a sua tentativa de ser simpática não foi bem
recebida por mim.
— Beleza, entendi. — Gracie encara meu rosto, mas seus olhos
descem até o meu abdômen de novo. Sua atenção se alterna entre as
tatuagens e os meus dedos cheios de anéis.
— Eu posso colocar a blusa ou você vai querer apreciar por mais um
tempinho?
— O quê?! Eu não… — Ela deixa uma risada escapar. Um fato sobre
Gracie é que ela sempre ri quando está nervosa. — Fala sério, você não está
no meu nível.
— Sei. — Eu visto o moletom. Meu cabelo e minha calça ainda estão
úmidos, mas isso não me preocupa. — Você gosta dos patinadores
mauricinhos que te enchem de chifre. Como se diz chifre em francês?
Chifrrrrrée?
Gracie suspira.
— Vai se ferrar. — E é engraçado como ela se recusa a dizer “foder”.
Ela segura o pote de doce com mais força e acelera o passo para sair
da área de serviço, mas eu chamo sua atenção antes que desapareça de vista.
— Desgracie — murmuro, e ela se vira pra mim, impaciente. Aponto
para o doce nas suas mãos. — Tem o diet na dispensa. Não quero que o seu
corpo colapse no meio da minha sala de jantar.
Gracie demora um segundo para assentir, como se seu cérebro tivesse
acabado de travar. Tem muito tempo que não nos vemos, mas a dinâmica
entre nós continua a mesma: eu sou escroto com ela, ela é escrota comigo,
mas se sou gentil, ela não sabe o que fazer. Não posso dizer que não a
entendo. Lidar com ódio é sempre mais fácil do que lidar com gentileza. E
na nossa relação, gentilezas demais significam problema.
CAPÍT ULO 5 - GRACIE SALMON

Aparentemente, ninguém quer patinar comigo.


Descobri isso depois de uma conversa não muito tranquila com a
Clarice hoje de manhã. Como a agente excepcional que é, ela não deixou de
sondar as agências que representam os melhores patinadores da Inglaterra.
Chegou até a verificar alguns potenciais atletas nos outros países do Reino
Unido, mas, por um complô universal contra mim, ninguém quer trabalhar
comigo. As explicações variam, mas a maioria alega o curto intervalo de
tempo para o evento e que seria impossível desenvolver química, confiança
e sincronia com alguém desconhecido.
Eu não julgo. Só alguém em um nível de loucura absurdo toparia
entrar nesse barco furado. Além disso, sei que muitos não querem tomar
partido na guerra fria entre eu e Pierre. A família dele é extremamente
influente e, no mundo dos esportes, nunca se sabe quando você vai precisar
de um favor. E quando eu digo favor, é um daqueles que ninguém pode
saber.
Além disso, todos os holofotes estarão virados na nossa direção
durante o evento e não é por causa do esporte.
Ou melhor, estariam. Do jeito que as coisas andam, acho que, pela
primeira vez nos últimos 25 anos, não vamos ter uma Salmon na
competição.
Minha mãe vai me matar.
Tento afastar o pensamento da minha mente, mas é como tentar ficar
descalça no centro da superfície de um lago congelado. Dói e não há para
onde correr.
Eu e Nora já temos nossa cota de discussão. Vez ou outra entramos
em algum conflito por causa da forma como eu treino ou pelos programas
que decido executar nas minhas apresentações, mas todas as brigas somadas
não chegam ao pé do confronto que se aproxima. Já consigo imaginar os
gritos.
Você está manchando o nome Salmon!
Depois de tudo o que fizemos por você.
Você acaba de jogar a sua carreira no lixo.
Eu amo como tenho um relacionamento saudável com a minha mãe.
Felizmente, a vibração no meu celular me resgata do redemoinho de
pensamentos negativos no qual estou afundada até o pescoço.

ERIK: acabei de chegar.


ERIK: vou te esperar no portão.

No jantar da noite passada, eu e o mais velho dos irmãos Fisher


combinamos de correr hoje para relembrar os velhos tempos. Como as
nossas duas famílias sempre foram muito próximas, foi natural que eu
crescesse junto com os meninos e desenvolvesse algo próximo de uma
amizade. Com exceção de um deles. O garoto problema que sempre me deu
dor de cabeça.
— Qual vai ser o roteiro? O mesmo de sempre ou você ficou
enferrujada nos últimos anos? — O sorriso provocador no rosto do ruivo é
como uma máquina do tempo, me levando de volta para as nossas
competições para ver quem chegava primeiro até o Lake North, um dos
pontos turísticos da região.
— Você está esquecendo que sou uma atleta olímpica. — Sinto um
aperto no peito ao pensar que talvez não possa mais dizer isso no futuro,
mas o ignoro. — Posso ganhar de você mesmo se quiser correr até Londres.
Erik está usando um conjunto todo preto, enquanto eu uso uma calça
legging e uma camisa térmica rosa. O clima da Inglaterra, que é um dos
piores do planeta, dessa vez parece ter se esquecido que já estamos na
primavera e mantém o frio e as chuvas das últimas estações. Do jeito que o
planeta está, não duvidaria nada se começasse a nevar em pleno junho.
Prazer, aquecimento global.
Disparamos em uma corrida devagar e silenciosa. O lado bom de
correr com Erik é que não precisamos falar nada. Conseguimos manter um
silêncio confortável enquanto focamos no exercício. Nas primeiras vezes
que começamos a correr ainda na adolescência, Oliver costumava vir com a
gente, mas o garoto problema da família não conseguia manter a boca
fechada por um minuto.
Pensar em Oliver faz um arrepio percorrer o meu corpo. Eu já tinha
visto algumas fotos dele, mas pessoalmente é… diferente. Desde quando o
garoto insuportável da minha infância e adolescência tinha crescido e
adquirido um físico daqueles? Ele poderia trabalhar como modelo de
academia se quisesse. As tatuagens, apesar de ser algo que eu jamais faria
no meu corpo, deram um contraste legal na pele dele. Um toque rústico,
bruto.
Talvez seja o exercício, mas definitivamente não está tão frio quanto
eu pensei.
Seguimos pela estrada que leva ao lago enquanto minha mente é uma
bagunça de pensamentos incômodos. Olímpiadas, traição, cobrança materna
e, igualmente irritante, o abdômen trincado de Oliver. Sério, se alguém
inventar alguma pílula que silencie os pensamentos, me mande, não importa
o preço.
— Não acredito que o Oliver está fazendo merda de novo.
Olho para Erik sem entender o que ele está falando.
Ele aponta para uma das margens do lago e percebo que há duas
pessoas ali. E infelizmente eu conheço muito bem quem são elas.
Cruzando a superfície congelada do lago, está nada menos do que o
maior pesadelo da Gracie adolescente. Com uma touca cobrindo o cabelo
preto e um conjunto de moletom grosso, o left winger dos Owls desliza
sobre o gelo com toda a desenvoltura de alguém que está mais do que
acostumado com aquele meio. Para um jogador de hóquei, patinar acaba
sendo uma segunda natureza.
Observo a cena, chocada, sem saber o que mais me assombra.
Primeiro que é impossível que o lago ainda esteja congelado nessa época do
ano. Sei que o clima está uma loucura, mas tudo tem limite. Em segundo
lugar, ele me disse que não patinava mais. Ok, eu sempre soube que os
Fisher jogavam em um time profissional e que estavam na NHL, a maior
liga de hóquei do planeta, ainda assim, na minha cabeça isso não queria
dizer que um patinador com meses sem prática podia patinar tão bem.
Claro, há muito o que ser aprimorado, Oliver tem movimentos duros e às
vezes inclina o corpo de um jeito estranho que faz com que ele perca
velocidade e equilíbrio. Mas no fim das contas, isso pode ser só um jeito
rústico de patinar. Não é exatamente errado. Em uma banca avaliadora,
pode até mesmo ser um sinal de personalidade.
Percebo a direção que meus pensamentos estão seguindo e balanço a
cabeça de um lado para o outro.
De jeito nenhum.
Isso é absurdo.
— Oliver Fisher, cai fora daí!
O grito me faz pular e sair dos meus devaneios. Não entendo porque
Erik parece tão preocupado, já que patinar não é apenas algo que une as
famílias Fisher e Salmon como ainda o fazemos de forma automática.
Antes que eu pudesse perguntar, ele me responde.
— A defesa civil emitiu um alerta durante a semana de que qualquer
atividade no lago estava proibida, por causa do risco do gelo romper. Nem
era pra estar congelado ainda nessa época do ano.
Ao ouvir aquilo, meu coração acelera. Antes que eu possa perceber,
estou correndo ao lado de Erik na direção de Tyler, que está em pé na
margem observando o irmão deslizar sobre o gelo. Diferente de nós, ele não
parece preocupado.
— Não é como se ele fosse ouvir vocês — diz o center do time, seus
dreads escorrendo ao lado do capuz do moletom. — Mas relaxem, ele sabe
o que tá fazendo.
Erik solta o ar pela boca, como um pai que se irrita com os filhos
fazendo bagunça. Tecnicamente, é quase isso. A fama de Oliver na cidade é
lendária. Sempre atrás de confusão, sempre atrás de mostrar que ele pode
fazer o que quiser, que as regras para ele são apenas orientações facilmente
descartáveis em troca de adrenalina.
Ele seria um péssimo atleta olímpico.
No meu mundo, regras são a base, o esqueleto que faz a gente ficar de
pé. Não coma isso, ou seu corpo ficará pesado ao fazer um lutz[3]; não
durma tarde, ou seu treino na manhã seguinte será uma aberração; não beba
álcool, ou pode dizer adeus à recuperação dos seus músculos depois do
treino. Sem regras, um atleta não é nada.
Ao ver que tem uma plateia, Oliver, convencido como só ele
consegue ser, começa a se exibir dando alguns saltos enquanto corta o gelo
a altas velocidades. Por mais que eu esteja impressionada com as
habilidades dele, a preocupação começa a ganhar a briga dentro de mim e
faço coro aos gritos de Erik pedindo para que ele volte para a margem.
Durante alguns segundos, Oliver nos ignora e continua o seu
espetáculo, mas quando estou prestes a desistir, ele gira o corpo na nossa
direção e desliza em alta velocidade até parar a poucos centímetros de onde
estamos.
— Não sabia que eu tinha uma torcida organizada.
Seu rosto está vermelho, uma mistura do frio com o exercício, mas
sua voz vibra enquanto seus olhos brilham Eu também não tinha reparado
no quanto ele está bonito.
Oliver sempre tinha sido um garoto mais magro se comparado aos
irmãos, isso, aliado ao seu temperamento insuportável, não o tornava o ímã
de garotas que Tyler e Erik eram. Agora, eu aposto que a situação mudou
completamente.
— O que você tem na cabeça, Oliver? Já pensou se esse gelo racha?
— E daí? — Oliver ri, como se a ideia de cair no gelo e morrer de
hipotermia não fosse nada preocupante — Relaxa, eu evitei as partes com
muitos estalos.
Acho que não sou a única que percebe o que está escondido nas
entrelinhas.
— Como assim partes com muitos estalos? — pergunto, já sabendo
qual vai ser a resposta.
— O gelo tá muito fino, ele tá todo estalando, prestes a romper, mas
tem algumas áreas que estão melhores que outras. Eu acho.
Vejo Erik fechar os olhos e sinto que, se não fosse por sua postura
sempre centrada na intenção de dar o exemplo, ele partiria para cima do
irmão ali mesmo.
— Oliver, o pai não precisa de mais uma dor de cabeça com você. Dá
pra sair daí?
Oliver encara o irmão por longos segundos, depois olha para Tyler,
que levanta os ombros como se não houvesse nada a ser feito. Depois, ao
perceber o olhar de censura no meu rosto, o Furacão de Guildford revira os
olhos e sai do lago.
— Vocês são insuportáveis. Bando de pé no saco.
Tyler abafa uma risada, mas logo sua expressão fica séria ao notar o
olhar severo de Erik.
— Você sabe que ele faz isso porque tem o seu apoio, não sabe?
— Até parece, Erik. O Oliver não precisa de plateia pra ser idiota. Tá
no DNA dele.
Oliver dá um soco em Tyler após a provocação.
— Fã ou hater? — Ele pergunta, arrancando um sorriso de Tyler
enquanto se abaixa e começa a tirar os patins.
— Tyler…
Erik e Tyler trocam um olhar. Uma daquelas coisas entre irmãos,
como se eles falassem uma língua que ninguém mais entende. Tyler revira
os olhos, Erik fecha a cara, e é como se eles estivessem mesmo tendo uma
conversa. O ruivo aponta um dos bancos ao redor do lago, um pouco
afastado de onde estamos. Tyler se levanta e assente, então os dois
caminham até lá.
— Acho que agora é o momento que ele diz que sou a decepção da
família, que jogo o nome Fisher no lixo e que o Tyler, como meu irmão,
precisa me colocar na linha e não incentivar a minha falta de juízo.
Talvez por estar no meu momento fundo do poço, minha mente esteja
dando os primeiros sinais de colapso. Sinto um pouco de empatia por Oliver
Fisher.
Um pouco, quase nada.
— Já pensou que talvez, só talvez, ele esteja um pouco certo em se
preocupar?
Ele bufa.
— Claro que você vai ficar do lado dele. O que você sabe sobre não
atingir o que todo mundo espera de você?
Eu não consigo conter a risada amarga que sai pelos meus lábios.
— Vou te apresentar uma pessoa. O nome dela é Nora Salmon. Pode
deixar que ela vai te dar um dossiê com centenas de páginas de tudo o que
faço de errado com a minha vida. E aqui, errado significa que não está nos
padrões dela.
Oliver olha para mim e, pela primeira vez desde que o conheço, ele
sorri. Não um sorriso debochando dos meus vestidos rosas, ou um riso de
escárnio depois de eu não ter sido eleita Miss Guilford. Apenas um sorriso.
— A instituição pais controladores precisa acabar.
— Nunca pensei que eu fosse dizer isso, mas acho que concordamos
em alguma coisa. — Ofereço a mão para ajudar Oliver a se levantar agora
que já calçou suas botas Timberland. — Mas também acho que você
exagera sim.
Sinto que fiquei muito do lado dele e precisava deixar bem claro que
não somos amigos.
Ele revira os olhos, mas não responde. Sinto que existe um furacão
atrás daqueles olhos pretos enquanto ele encara os irmãos conversando.
Novamente, um pensamento absurdo volta à minha mente, dessa vez
com um pouco mais de força. Ele parece ridículo de todos os pontos de
vista, mas depois da conversa com minha agente nessa manhã, sei que eu já
passei muito do ponto do desespero.
— Você patina muito bem para um jogador de hóquei.
— Nada que você já não soubesse.
— Eu não sabia. Quer dizer, patinamos juntos quando éramos mais
novos e tal, mas era coisa de criança. E você me disse que não patinava
mais, então… Olha, tem muita coisa para melhorar, mas o potencial está aí.
— Até agora eu não entendi se você tá elogiando ou criticando.
Solto um riso nervoso.
— É um elogio! Mas não se acostuma. — Eu faço uma pausa e sei
que estou prestes a fazer algo que vai me assombrar pelo resto dos meus
dias, mas não posso mais me dar ao luxo de ser criteriosa. — Eu estava
pensando. E se você… fosse meu parceiro nas olimpíadas?
Eu o encaro. Tento não parecer o gato de botas do Shrek, com aqueles
olhos enormes e pidões, mas sinto que estou exatamente assim agora. Ele
mantém os olhos tempestuosos fixos nos meus e balança a cabeça para o
lado, como Ben faz quando não entende alguma ordem. Então, ele ri.
De todas as reações possíveis, jamais imaginei que ele começaria a
rir.
Meu corpo ferve de raiva e humilhação. Tenho vontade de jogar
Oliver no gelo, bem em cima de uma rachadura e observá-lo se debater
enquanto seu corpo congela. Eu respiro fundo e preciso me segurar ao
máximo para não marcar seu rosto com a minha mão.
— Espera, você tá falando sério?
Eu hesito enquanto Oliver me encara.
Ele não aceitaria. É óbvio que ele não aceitaria.
— Claro que não. Você jamais conseguiria, não é um estilo de vida
pra você.
Tento disfarçar, mas sei que falhei miseravelmente.
Que ódio, eu não deveria ter aberto a minha boca.
— Olha, um dia histórico. Concordamos pela segunda vez. Sem
chances, desgracie. Procura outro, não vou me meter nessa. Posso até ter
um parafuso ou outro faltando, mas isso é loucura demais até pra mim.
Nunca fui tão humilhada em toda a minha vida.
— Até parece que eu ia querer você como parceiro. Se enxerga,
Fisher. Eu só tava zoando você. — Por sorte, Erik e Tyler estão voltando
depois da conversa que tiveram. Dou um passo para encontrá-los no meio
do caminho e puxo Erik pelo braço. — Anda, vamos continuar nossa
corrida. Já ficamos parados tempo demais.
CAPÍT ULO 6 - OLIVER FISHER

— Fiquei sabendo que a Gracie precisa de um parceiro novo.


Meus olhos passam por Hank na cabeceira da mesa, mas eu não
respondo. É engraçado como ele diz “fiquei sabendo” como se isso fosse
uma fofoca próxima e não um fato que estampou os jornais esportivos de
boa parte de Londres durante a última semana.
Não sei o que ele espera que eu diga, nem sei se quer que eu diga
alguma coisa. Finjo estar muito concentrado na carne no meu prato
enquanto minha mãe complementa a conversa.
— Que situação horrível — Linda Fisher murmura enquanto corta as
batatas no prato de Joshua. Acho que ele saberia cortá-las sozinho, mas
temos o costume de mimá-lo demais. — Todo mundo achava que ela e o
Pierre iam se casar.
Sinto vontade de revirar os olhos. Todo mundo quem? Talvez as fãs
obcecadas do casal, lotando a memória dos seus celulares com centenas de
vídeos das apresentações de Gracie e Pierre. Poucos minutos no TikTok
foram suficientes para eu perceber que elas estão em luto.
— Eles não tinham nada a ver — penso, um pouco alto demais,
fazendo toda mesa se virar na minha direção.
— Os dois patinam juntos desde a infância, meu bem. Estavam
namorando desde os doze anos… Isso é uma vida inteira — Linda
responde, como se toda população de Guildford, eu incluso, já não soubesse
disso. — A Nora ficou tão triste com a notícia.
Movo a cabeça em afirmativa. Eu poderia, mas não vou entrar numa
discussão sobre como Nora Salmon está triste por perder uma medalha de
ouro e não porque a filha levou um par de chifres. Já perdemos tempo
demais com as lamúrias dela no último jantar, onde Nora abraçou todas as
oportunidades de tocar no assunto mesmo quando Gracie não parecia
interessada em falar sobre a própria carreira.
Felizmente, Erik desvia a conversa.
— Ela vai acabar conseguindo um parceiro novo.
— Falta quase um mês pras olimpíadas — Tyler lembra, um pouco
menos otimista que o ruivo.
— Você poderia ajudar — Hank diz, e por um segundo eu penso que
ele está falando com o Tyler.
Dou uma risada irônica quando percebo sua atenção em mim.
— Eu?
— Sabe patinar, não sabe?
A pergunta de Hank faz Erik me encarar com olhos cheios de
reprovação. Consigo imaginar meu pai entrando em colapso ao descobrir
que patinei no lago meio congelado.
— Não — respondo. — Não do jeito que a Gracie patina.
— Ela não está podendo escolher muito — continua Hank.
— Bom saber que sou a última opção dela — debocho.
Não acredito que estamos tendo essa conversa.
Linda abre um sorriso pra mim. Ao seu lado, Joshua observa a
conversa distraidamente, parecendo entediado.
— Não foi isso que o seu pai quis dizer.
— Acho que seria bom pra sua imagem, só isso — Hank diz, num
tom defensivo. — Gracie é uma boa garota aos olhos da mídia. Se você
patinasse com ela…
— Não acho que seria suficiente pra fazer os tabloides esquecerem
que ele quebrou o pulso de outro jogador — Tyler comenta. — Eu odeio ser
negativo, caras, mas… os jornais estavam sempre mencionando o
reformatório mesmo antes disso tudo acontecer.
Quando eu entrei nos Owls, sabia que era uma questão de tempo até a
mídia descobrir sobre o reformatório. E quando eles descobriram, fizeram
uma grande festa: foram meses de manchetes tendenciosas prometendo
desvendar meu passado, tentativas de entrevistas com os funcionários da
instituição e até matérias bizarras em revistas adolescentes sobre como eu
era sexy e violento. Depois de me transformar em um animal de circo, eles
foram atrás da próxima vítima. Felizmente, o mundo do esporte é cheio de
escândalos com os quais os jornalistas podem se esbaldar. Mesmo assim, eu
sempre fui o jogador do reformatório — antes de me tornar o jogador
expulso.
Solto o ar pela boca, pouco interessado na discussão que se desenrola.
A parte ruim de trabalhar com sua família é que até almoços inocentes
podem se transformar em reuniões de trabalho. Joshua acha graça do meu
evidente mau humor e me imita, sua boca cheia de batata e carne. Ao
menos alguém nessa casa me faz rir.
— Nada que uma medalha de ouro não resolva — Hank não desiste
da sua ideia maluca. — Duvido que os outros times da NHL recusariam um
medalhista.
— Por que quer tanto que eu entre em outro time, pai? — pergunto.
— Consciência pesada?
Hank me encara e consigo ver nos seus olhos um pouco de decepção.
Sei que toquei em um assunto sensível, mas fazer o papel de filho
compreensivo não está nos meus planos. Não vou dizer que não entendo o
lado dele, mas entre ser pai e ser empresário ele escolheu ser empresário
quando me expulsou.
Toda escolha tem uma consequência.
— Sabe que eu estava pensando no que era melhor pros Owls.
— Negócios antes de família, sei. Acho inspirador.
Linda suspira, e então morde o lábio inferior, dividida entre dar sua
verdadeira opinião ou tecer qualquer comentário aleatório que tire o foco
dessa conversa passivo-agressiva. Tyler me disse que ela e Hank ficaram
uma longa semana sem se falar depois que os Owls anunciaram minha
expulsão. Não acho que ela pense que eu estou certo, mas está exercendo
seu papel de mãe: ela pode criticar seus filhos, o resto do mundo não.
— Gracie vai achar um parceiro — Linda diz, por fim. — Se não for
o Oliver, vai ser outra pessoa.
Concordo com a cabeça e, antes que aquele almoço se transforme em
mais uma rodada de opiniões não solicitadas sobre mim ou Gracie, me
levanto com a desculpa de levar meu prato até a cozinha.
Às vezes, por mais absurdo que isso seja, sinto que sou o único são
dessa família.

∞∞∞
Por mais que a pista nunca mude, uma corrida clandestina nunca é
igual a anterior. O ambiente muda, as pessoas que frequentam o espaço
também, e tudo isso numa frequência tão rápida que alguns não se dão
conta. É uma coisa com a qual me acostumei, mas, mesmo assim, percebo
que algo de diferente está acontecendo quando chego na estrada e me
deparo com uma cancela improvisada no meio do caminho.
Eu observo as árvores ao meu redor, esperando que alguém apareça
para explicar de onde aquilo saiu. Demora alguns minutos, mas dois
homens parrudos surgem das sombras dentro de ternos risca de giz que não
combinam em nada com o ambiente. Arqueio uma sobrancelha. Eles não
são daqui.
— Nome? — um deles me pergunta e de repente me sinto na entrada
de uma festa em Los Angeles, esperando um segurança conferir cada
convidado da lista VIP.
— Oliver.
— Nome completo.
Eu reviro os olhos. Começo a me questionar se eles não são agentes
disfarçados, mas menciono meu sobrenome mesmo assim, porque não
tenho nada a perder.
— Fisher.
— Celular — ele pede, erguendo os dedos na minha direção.
Percebendo que não me movo, o homem continua. — Gravações e fotos
não estão permitidas hoje.
Eu o encaro enquanto meu cérebro tenta entender o que está
acontecendo essa noite. Algum magnata esquisito decidiu investir nas
corridas? Alguma merda aconteceu no último encontro e eles decidiram
reforçar a segurança? Estão cansados de usar máscaras?
— Fisher, nós não temos a noite toda — o homem resmunga.
Tiro o celular do bolso da jaqueta e entrego na sua mão. Ele é um cara
tão grande que o aparelho parece pequeno entre os seus dedos. Tenho
certeza que conseguiria matar uma pessoa só com um soco.
O homem tira um pedaço de fita isolante do bolso e cobre todas as
câmeras do meu celular.
— Não tire o adesivo até estar longe daqui.
O outro homem move a cabeça em afirmativa e se afasta até um dos
extremos da estrada, tirando um dos barris que sustentam a cancela de
madeira. Ele faz um sinal de ok com a mão e libera minha passagem. Ainda
sem entender qual o motivo disso tudo, eu acelero a moto pela estrada.
Tem algo de diferente no ar quando chego na pista. Eu estaciono no
mesmo lugar de sempre e observo a movimentação. A casa abandonada que
serve como ponto de encontro e bar clandestino parece mais cheia e as
pessoas estão mais agitadas que o costume.
Estão usando alguma droga nova?
Movo a cabeça em negativa, descartando a ideia. Tem uma faixa mal
colocada em cima da porta principal do imóvel: bem-vindos ao clube dos
garotos sem rosto. Prêmio de hoje: 50 mil dólares, com o patrocínio do
nosso V.K!
As iniciais não me são estranhas, mas não sou conhecido por ter uma
boa memória. Além disso, um clube de corridas não é lugar onde você vai
pra fazer amizades, então não tenho amigos para perguntar o que está
acontecendo hoje. Solto o ar pela boca e tiro um cigarro do bolso,
procurando por Betty Boop macabra com os olhos. Não encontro nenhum
sinal dela — ou das garotas que usam uma máscara parecida —, então
desisto de buscar informação, por enquanto.
Felizmente, a resposta para todas as movimentações estranhas chega
até mim do mesmo jeito.
— Oliver!
Eu me viro na direção da voz e encontro cabelos descoloridos e um
par de olhos muito azuis. É como se meu cérebro tomasse um choque de
realidade e, em segundos, consigo entender o que V.K significa. Vincent
Kelly.
— Achei que você não fosse vir — ele comenta. — Depois de tudo
que aconteceu, pensei que pudesse estar evitando treta — diz, e então ri,
como se não acreditasse nas próprias palavras. — Mas coloquei seu nome
na lista por via das dúvidas.
— Os brutamontes lá na frente são coisa sua?
Vincent move a cabeça em afirmativa.
— Ninguém pode me ver aqui — explica, tirando o celular do bolso e
apontando a câmera tapada do próprio celular —, mas eu queria vir, então
dei um jeito.
— Podia ter usado uma máscara como todo mundo.
— E deixar esse rostinho lindo fora de vista? De jeito nenhum.
— Você continua tão egocêntrico quanto eu me lembro.
— Já faz um tempo, hm? — Vincent apoia um dos braços no meu
ombro. É uma posição estranha, porque ele é alguns centímetros mais baixo
que eu.
Eu concordo com a cabeça. Nós nos conhecemos em uma festa da
NHL em New York onde a boyband de Vincent era atração principal. Um
ano depois ele se rebelou contra sua agência, se mudou pra Londres, fez
mais de cinquenta tatuagens e seguiu carreira solo. É claro que nada disso
foi bem visto pelas suas fãs adolescentes, então ele ainda está tentando
encontrar um meio termo entre o ídolo rockeiro problemático e a imagem
de bom garoto que sua gestão costumava vender no passado.
— Não sou a pessoa mais sociável do mundo depois de tudo que
aconteceu — murmuro, porque sei que o fato de eu não ter mandado uma
mensagem dizendo que estava em Guildford vai se tornar pauta mais cedo
ou mais tarde.
— Para com isso — Vincent protesta. — Todo mundo sabe que torrou
seu último salário fazendo festa em Los Angeles, o que me faz pensar que
você só não queria falar comigo.
— Nada pessoal — respondo, o que é verdade. — Gosto de você,
Vincent.
— Imagina se não gostasse — ele zomba, mas acho que acredita em
mim pelo menos em alguma medida. Caso contrário, não estaria aqui, me
abraçando como se fossemos amigos de infância. — Vai correr hoje?
Movo a cabeça em afirmativa.
— Ótimo — Vincent abre um sorriso, dando um tapa no meu ombro.
— Vou apostar em você, campeão invicto.
Eu rio da forma como ele fala, mas meu sorriso logo se desfaz quando
meus olhos caem no outro extremo da estrada. Primeiro, acho que é uma
miragem. Eu pisco algumas vezes, como se isso pudesse fazer a imagem de
Gracie Salmon desaparecer. Ela não seria tão maluca, seria?
— Era só o que me faltava — murmuro, irritado.
Vincent arqueia uma das sobrancelhas claras, olhando na mesma
direção que eu.
— Conhece ela? — pergunta.
— Dá pra dizer que sim.
— Ela é minha vizinha — comenta. — Em Londres, você sabe. É um
daqueles prédios chiques que só celebridades moram, mas eu não sabia que
ela era do tipo que curte coisas ilegais…
— Ela não é — eu resmungo. — Já volto.
Vincent move a cabeça em afirmativa. Eu me afasto e caminho na
direção dela, que destoa completamente do espaço com suas unhas feitas e
roupas em tons pastéis. Vir aqui vestida desse jeito é como colocar um alvo
nas costas, mas é claro que ela não sabe disso.
— O que você está fazendo aqui? — eu pergunto, e meu tom não é
nada gentil.
Mesmo assim, Gracie dá um sorriso diante da minha pergunta.
— Queria falar com você.
— Eu moro na casa em frente à sua — respondo, levando meu cigarro
até a boca. Gracie acompanha o movimento num olhar claro de reprovação,
mas não diz nada. Considerando que todas as pessoas aqui tem um cigarro
ou um pod na mão, ela nem ousaria.
— Sei disso. — Ela parece desconfortável diante dos olhares
inquisitivos na sua direção, mas respira fundo. — Fui até lá, mas você não
estava. Tyler me disse onde te encontrar.
Levo os dedos até as têmporas e solto um longo suspiro, ignorando a
vontade de socar meu irmão. Tyler Fisher é a única pessoa no mundo
desligada o suficiente para sugerir que Gracie viesse até aqui. Uma
patricinha dessas.
— E o que é tão urgente que não podia esperar até amanhã?
— Sobre aquilo que falamos no lago…
Eu reviro os olhos. É óbvio que Gracie Salmon não sabe ouvir um
não como resposta.
— Se veio até aqui pra tentar me convencer a patinar com você,
perdeu seu tempo.
Um estrondo faz o corpo de Gracie estremecer. Eu me viro na direção
da pista e vejo quando um dos seguranças de Vincent soca um dos
corredores da noite, não pela primeira vez. Tem um celular caído no chão
próximo aos dois, então imagino que tenha alguma coisa a ver com a fita
isolante que não deveríamos tirar do telefone.
Gracie cruza os braços, visivelmente amedrontada.
— A gente pode conversar lá dentro? — pergunta, apontando para a
casa atrás de nós.
Eu movo a cabeça em afirmativa. Gracie dá um passo para frente,
mas eu apoio uma das mãos na sua cintura e puxo seu corpo para perto do
meu.
— O que está fazendo? — ela pergunta, soando em dúvida sobre me
afastar ou não.
— Ninguém vai mexer com você se pensarem que está comigo —
explico. — Mas seria bom se tentasse não tremer de medo cada vez que vê
uma briga.
Gracie solta uma risada nervosa, mas sei que ela está puta com o meu
comentário. Ela apoia uma das mãos nas minhas costas e nós seguimos na
direção do bar enquanto os rostos ao nosso redor parecem ainda mais
interessados em cada um dos nossos movimentos. Gracie deu sorte. Se
Vincent não estivesse aqui para barrar as fotos, não sei quanto tempo
demoraria para sua presença se tornar um escandâlo na mídia. Isso nunca
aconteceu com o Tyler, por exemplo, porque ele tem os contatos certos.
Gracie é uma forasteira.
A cozinha e a varanda da casa são os dois lugares mais usados pelos
funcionários — não tenho certeza se posso chamá-los assim — do bar. Todo
resto parece ter saído de um filme de terror, com direito a tábuas que
rangem, teias de aranha e portas que não se fecham direito.
Ainda sentindo alguns olhares queimando nas minhas costas, nós
entramos em um dos quartos. Tem um sofá no centro, mas suas almofadas
foram praticamente decompostas pelo tempo. Se estivesse de olhos
fechados, eu diria que alguém morreu em cima delas.
— Certo — Gracie encara o sofá com um pouco de nojo e se mantém
próxima da porta. Seu olhar pousa no jogo de dardos na parede, curiosa. —
Quanto você quer pra patinar comigo? Duzentas mil libras e nós não
falamos mais nisso?
Uma risada escapa da minha garganta.
— Esse é o seu plano? — Meneio a cabeça, desacreditado. — Você
não pode me comprar, desgracie.
Ela dá um suspiro, frustrada. A luz da lua adentra o quarto e ilumina
seu rosto, me deixando ver quando uma ruga de preocupação surge entre as
suas sobrancelhas. Ainda não acredito que ela realmente se emperiquetou
inteira para vir até aqui e fazer uma proposta absurda como essa.
Gracie caminha até o alvo desgastado na parede e pega os três dardos
que os acompanham. Imagino que, em algum momento, esse espaço foi
uma sala de jogos.
— Imaginei que fosse falar isso. — Ela atira um dos dardos,
acertando o alvo.
— No fundo você sabe que essa ideia é horrível.
— Te ter como dupla?
Movo a cabeça em afirmativa.
— Não pode ser pior do que não competir — ela protesta. — Pierre
conseguiu uma parceira nova e depois do escândalo, eu vou ser a única que
saiu perdendo.
— Um parceiro problemático é tudo que você menos precisa no
momento.
— Você não é problemático.
— Foi o que você disse duas noites atrás — acho graça da sua
incoerência. — Precisa se decidir, desgracie.
— Precisa parar de prestar atenção nas bobagens que eu falo — ela
diz, simplesmente. Uma pessoa normal pediria desculpas. — O que você
quer pra aceitar minha proposta?
— Nada — respondo, batucando meu cigarro contra os dedos. — Sei
que você tem dificuldade em ouvir a palavra não, mas tô falando sério. Não
vou patinar com você.
— Não acredito que vai fazer isso com a sua amiga de infância.
Eu rio. Ela deve estar realmente desesperada para chegar ao ponto de
dizer que somos amigos de infância.
— Nós nunca fomos amigos.
— Bom, você me dava presentes de aniversário todo ano, é o que
amigos fazem.
— Você sabe que não eram presentes.
Gracie atira mais um dardo. Com a escuridão, ela demora alguns
segundos para conseguir enxergar onde acertou.
— Eu posso enfiar um dardo no seu pescoço e te deixar sangrando até
a morte se não aceitar. — Ela aponta o dardo pra mim.
Não levo a sua ameaça a sério.
— Você devia ter medo de mim, não o contrário.
Gracie dá de ombros.
— Não tenho.
Dou um passo na direção dela e, instintivamente, Gracie se afasta,
suas costas tocando a parede do quarto. Eu acho graça.
— Não tem mesmo?
— Foi reflexo — ela insiste, atirando o último dardo. — Pelo amor de
Deus, Oliver, nós crescemos juntos. Eu te conheço melhor do que qualquer
pessoa. E é justamente por isso que você deveria patinar comigo.
Consideração.
— O seu narcisismo te deixa cega. — Eu solto a fumaça dos lábios na
sua direção e sei que ela está muito perto de buscar um dardo para,
realmente, enfiar no meu pescoço. — Sinto te informar isso, Gracie, mas eu
não poderia me importar menos com você ou com a sua carreira. Se não
tem um parceiro, problema seu.
Gracie me encara sem dizer nada. O seu queixo está apontado para
cima, na sua pose arrogante de sempre. Por alguns instantes, os únicos sons
que ouvimos são os que vêm do lado de fora. A música, as pessoas pedindo
bebidas, o som de um casal transando em algum canto. Gracie analisa meu
rosto com muita atenção, como se duvidasse das minhas palavras.
— Tudo bem — ela diz, derrotada, então sua voz embarga. — Não
vou insistir mais.
Não respondo, porque seus olhos brilhando me deixam despreparado.
Ela funga enquanto uma lágrima escorre pelas suas bochechas e eu não
acredito que Gracie Salmon está chorando na minha frente.
— Gracie…
Ela desvia os olhos dos meus, colocando as mãos na frente do rosto.
Eu observo seu peito subir e descer de forma cada vez mais rápida enquanto
as fungadas aumentam, num choro cada vez mais audível.
Meu Deus, eu odeio ver pessoas chorando.
— Foi só uma forma de falar, não precisa ficar tão magoada.
Então ela chora mais alto, como se minha tentativa de melhorar as
coisas só servisse para deixá-la mais possessa.
— Gracie — eu murmuro mais uma vez, apagando meu cigarro para
apoiar as mãos no seu rosto. — Não chora, por favor.
Gracie tira as mãos do rosto. As lágrimas brilham no canto dos seus
olhos e ela me encara mais uma vez, antes de abrir o sorriso mais bonito e
mais diabólico que eu já vi na vida. Ela dá uma risada tão alta que quase
tenho a impressão que a música do lado de fora foi abafada pelo som que
sai do seu corpo.
Eu respiro fundo. Ela ganhou o apelido de desgraçada por um
motivo.
— Viu? — ela diz, limpando suas lágrimas de crocodilo com as
costas da mão. — Você se importa. Pelo menos um pouquinho, você se
importa.
— Vai se foder. — Eu ergo o dedo médio na direção dela. — Tá aí
um ótimo motivo pra não patinarmos juntos. Eu não tenho mais réu
primário pra gastar.
Me viro na direção da porta, mas Gracie segura meu braço antes que
eu consiga sair do quarto.
— Uma aposta, Oliver.
— O quê?
— Nas corridas — diz. — Se você perder hoje, patina comigo.
— Fácil desse jeito, desgracie? Eu nunca perco.
— Se for o caso, pode me pedir qualquer coisa.
— Qualquer coisa?
Gracie move a cabeça em afirmativa.
— Se eu vencer, você me deixa em paz.
Ela concorda.
— Palavra de escoteira.
— Você foi expulsa do clube das escoteiras por ser competitiva
demais.
— Não importa, a palavra ainda vale. — Ela solta meu braço e ergue
uma das mãos na minha direção. — Negócio fechado?
— Você é um pesadelo, sabia? — Aperto sua mão. — Negócio
fechado.
CAPÍT ULO 7 - GRACIE SALMON

Me sinto como uma alienígena — com um ótimo gosto para moda —


no meio desse grupo improvável. Fora Oliver, não conheço nenhuma dessas
pessoas e, considerando que estão fazendo algo ilegal, prefiro que continue
assim. Pensando bem, é difícil falar se as conheço de fato ou não, quando a
maioria absoluta está usando máscaras, mas é mais reconfortante pensar que
elas não fazem parte do meu círculo social.
Estou na frente da casa abandonada, que eu descobri funcionar como
uma espécie de bar, observando os corredores se agruparem perto da pista.
Oliver está lá conversando com uma mulher com uma máscara de um
desenho bizarro qualquer e parece animado para começar a corrida. Já ouvi
falar da fama que ele tem. Parece que Oliver Fisher faz sucesso em todo
lugar que passa. Sei que o rapaz odeia todas aquelas revistas que falam
sobre ele ser bonito e perigoso, mas eu não encontraria outras duas palavras
melhores para defini-lo. É engraçado. Contando que ele não foi expulso
daqui, pelo menos não foi expulso ainda, dá até para dizer que ele fez mais
sucesso nas corridas clandestinas do que jogando hóquei. O que, com
certeza, não é uma vitória assim tão grande.
A corrida está prestes a começar. Se eu entendi bem, o circuito será a
estrada que liga Guildford a Wanborough, ida e volta. Portanto, só
conseguirei ver a largada e a chegada. Como eles não seguirão até a cidade
vizinha, devem estar de volta em menos de 20 minutos. Olho para os
motoqueiros a postos e consigo contar 8 competidores. É muita gente
querendo infringir a lei para uma cidade tão pequena, o que me faz pensar
que provavelmente tem pessoas de outros lugares por aqui. Meu olhar para
em um homem alto, não tão alto quanto Oliver, mas deve chegar perto, que
está olhando na minha direção. Ele é uma das poucas pessoas que não usam
máscara e sempre há um homem de terno de risca de giz por perto. Não
precisa ser muito inteligente para perceber que ali está a razão dos cuidados
com os celulares na entrada do evento. O homem sustenta o meu olhar e eu
fico com a impressão de que o conheço de algum lugar. Definitivamente
não é de Guildford, então talvez o tenha visto em Londres, mas onde?
Escuto a contagem regressiva enquanto duas mulheres balançam as
checkered flags no alto para o início da competição. Estou levemente
ansiosa, não acredito que estou colocando a minha carreira na aposta de
uma competição clandestina. Se algum dia Nora Salmon sonhar que isso
aconteceu, serei deserdada.
O apito de largada é logo abafado pelo ronco dos motores quando as
motos aceleram e disparam na pista. Em questão de segundos, eles
desaparecem, mas não antes de eu notar que Oliver parece um pouco na
frente. Começo a repensar todo o meu plano. Acho que não foi uma ideia
muito inteligente apostar contra o grande campeão invicto da competição.
Isso só pode ter sido meu inconsciente tentando me proteger de trabalhar
com Oliver Fisher. Solto uma risada nervosa. Nós definitivamente não nos
damos bem e, pensando em todos os “presentes” de aniversários odiosos
que ele me deu ao longo dos anos, é evidente que há um desejo mútuo de
manter distância. Não, definitivamente não pode sair nada de bom de uma
parceria entre nós dois.
Ainda assim, é melhor do que não competir.
— Não sabia que o Oliver traria uma namorada.
A voz, perto demais do meu ouvido, me pega desprevenida e
interrompe o meu devaneio. Olho para o lado e percebo que o homem que
eu tinha visto minutos atrás está a poucos centímetros de distância. Dou um
passo para trás colocando um pouco mais de espaço entre nós.
— Eu não sou namorada do Oliver. Sou apenas uma amiga.
Ele levanta uma sobrancelha.
— Ele não me parece o tipo de cara que tem muitas amigas. — Ele
leva a mão ao bolso, puxa um cigarro e um isqueiro, me fazendo pensar se
todo mundo fuma nesse lugar. — Ele faz mais o tipo que tem bocetas
amigas.
Faço uma careta ao ouvir a expressão que ele usa.
— O que ele faz ou não, pouco me interessa. Estou aqui apenas para
vê-lo competir. Para ser mais exata, para vê-lo perder.
O homem ri do meu comentário.
— Então é esse tipo de amizade?
Não gosto do jeito que aquele par de olhos azuis me encara. É como
se ele conseguisse ver além de uma visão comum, como se conseguisse ver
através da minha roupa. O pensamento, ao mesmo tempo que me deixa
desconfortável, acende uma chama de curiosidade no meu peito. Afinal, ele
é muito bonito.
Ele solta a fumaça para o lado oposto onde estou.
— Está desperdiçando o seu tempo. Oliver nunca perde. Competir é
um ciclo vicioso, a pior droga que existe. Depois que você prova o sabor da
vitória, não quer mais nada além de prolongá-lo ao máximo. O Oliver está
nisso há vários meses. Apostei nele e tenho certeza que não vai me deixar
na mão.
Balanço a cabeça de um lado para o outro ao ouvir a metáfora. Ela
não está correta, ou melhor, não para todas as pessoas. Eu consigo ver
perfeitamente a analogia se encaixando com minha mãe, com o Pierre e até
mesmo com o Hank Fisher, mas não é todo mundo que pensa assim.
— Eu não sou assim, o Oliver também não. Competir vai muito além
de ganhar um prêmio ou reconhecimento, é sobre se desafiar, se superar na
trajetória. Ir a lugares que você nunca tinha ido antes.
— Disse a pessoa que provavelmente não está acostumada a ganhar.
— Ele joga o cigarro pela metade no chão. — Isso tá parecendo o papo de
gente feia dizendo que não liga pra aparência.
— Está dizendo que sou feia?
— De jeito nenhum, qualquer pessoa com um par de olhos e o
mínimo de bom gosto saberia que isso é mentira. Estou dizendo que você é
inocente.
Solto uma risada nervosa. Era o que faltava. Um espectro da minha
mãe me seguindo aonde quer que eu vá.
— Senhor Kelly, tem uma pessoa aqui que gostaria de falar com o
senhor. — Um dos armários vestindo terno de risca de giz aparece ao lado
do loiro e aponta em uma direção. — Diz que é importante.
— Diga que já vou. — Ele volta a olhar para mim. — Vou indo. Boa
sorte com a sua aposta.
Ele levanta a mão em um aceno e se afasta. Novamente fico com a
sensação de já ter visto esse homem em algum lugar, mas não consigo
forçar minha memória a me dar uma resposta. Penso em procurar no
celular, mas o som do ronco de motores rouba completamente a minha
atenção. Olho para a pista e percebo os pontos indicando os motoqueiros
ficando cada vez maiores. Sinto o coração disparar ainda sem conseguir
definir por completo se quero estar certa ou errada na minha aposta. Não
importa o que vai acontecer, eu sei que em ambos os casos vou sair
perdendo. O que tenho que pensar é o que eu prefiro perder: carreira ou
saúde mental?
Se fosse minha mãe respondendo isso, a resposta seria óbvia.
Escuto as vozes surpresas das pessoas assistindo à corrida e volto a
olhar para a pista. Logo entendo o porquê.
O universo decidiu.
Adeus saúde mental.
CAPÍT ULO 8 - OLIVER FISHER

Felizmente, alguém decidiu colocar um remix de Toxic da Britney


Spears no volume máximo depois da corrida terminar, o que me impede de
ouvir os burburinhos sobre a minha derrota. Depois de dez vitórias, é
chocante pra maioria das pessoas perceber que até mesmo Oliver Fisher
pode perder uma corrida.
Ainda é muito cedo pra dizer que Gracie Salmon me dá azar?
— Você me deve 10 mil libras — Vincent reclama enquanto eu peço
uma dose da bebida mais forte que eles tiverem no bar. É uma péssima
decisão, como todas as outras que fiz nos últimos meses.
— Relaxa — murmuro, virando o shot de bebida que me entregam
em seguida. Minha garganta queima. — Vou trazer uma medalha de ouro
pra casa.
Não sei se acredito nisso.
Vincent me encara, sem entender.
— Apostei com ela — digo, apontando para Gracie. Ela se recusa a
ficar perto demais do bar, como se alguém fosse jogar bebida alcoólica na
cara dela. — Se eu perdesse, seria o parceiro dela nas olimpíadas.
— Porra, você escolheu um péssimo dia pra perder — Vincent
gargalha. — Não sabia que ela era patinadora.
— Não sabe nada sobre os seus vizinhos?
— Quer a resposta honesta? Não — ele responde sem me dar tempo.
— A maioria das pessoas naquele prédio não passa muito tempo em casa.
— Estão muito ocupados com as suas babaquices de ricos babacas.
— Você também é um rico babaca, não se esqueça.
— Meu pai nunca me deixaria esquecer. — Eu empurro o copo de
bebida na direção da responsável pelo bar e abro um sorriso para Vincent.
— Fica por sua conta.
— Se não bastasse as 10 mil libras, agora me deve mais 10.
— Sim, vai anotando.
Vincent ergue o dedo do meio na minha direção antes de pedir outro
copo de cerveja. Poucos metros distante de nós, o seu segurança parece
repensar todos os seus planos de vida. Honestamente, eu não queria ser o
responsável por manter esse homem fora de perigo.
— Hora de ir pra casa — eu murmuro pra Gracie e ela leva um susto,
porque não notou minha aproximação. — Você já brincou de garotinha
rebelde demais por hoje.
— Normalmente eu gosto de discordar de você, mas dessa vez… —
Gracie franze o nariz quando olha ao redor, desgostosa. — Vou ficar feliz
em tomar um banho para lavar essa sujeira. Esse lugar é horrível e as
pessoas são esquisitas.
— São pessoas do nosso círculo social.
Gracie junta as sobrancelhas.
— O quê? Não são não — protesta, indignada. — As pessoas do
nosso…
— Você só não sabe — corto. — São herdeiros em sua maioria. O
Vincent é seu vizinho.
— O Vincent… — demora um segundo até que ela ligue o nome a
pessoa. — Ah, o gostoso tatuado. Sabia que já tinha visto ele em algum
lugar.
— Não preciso saber quem você acha gostoso.
— Agora que somos parceiros você vai saber muita coisa sobre mim.
— Gracie abre um sorriso, sentindo-se vitoriosa. — Precisamos criar
intimidade.
— Quer mesmo fazer isso?
— Nem vem tentar dar pra trás agora, Fisher — reclama. — Nós
fizemos uma aposta.
— Eu ainda tenho minhas dúvidas se você dá conta…
— Dar conta de você? Fácil. Já fiz isso no passado.
— Acha mesmo?
— O que você pode fazer de tão ruim além de me tirar do sério? —
Ela revira os olhos. — Isso você já faz, independente de qualquer parceria.
— Nesse caso, vou te dar uma carona até em casa.
Gracie torce o nariz, como se fosse algum tipo de pegadinha. Ela
passa os olhos pelo espaço, procurando o sinal de um carro, mas não
encontra.
— Na sua moto?
— Sim — respondo. — Você dá conta.
Gracie passa a língua pelo lábio inferior enquanto cruza os braços, em
dúvida. No fundo, sabe que essa batalha ela já perdeu. Não pode dizer não,
mas não quer dizer sim.
— Tudo bem — diz, finalmente —, mas tem a obrigação de me fazer
chegar inteira.
— Claro. Prometo não arrancar nenhum pedaço — ironizo.
As primeiras gotas de uma chuva fina despencam do céu enquanto
andamos até a linha de chegada da corrida, onde deixei minha moto
estacionada. Consigo ver o motoqueiro que me venceu comemorando ao
abrir uma lata de cerveja e jogando o líquido pro alto, junto dos seus
amigos. É bom mesmo que ele comemore, porque não vai acontecer de
novo.
— Você não vai me dar um capacete?
— Não ando com capacete — respondo, como se a ideia fosse
ridícula. Subo na moto. — Vamos, Gracie, você dá conta — repito.
— Lembra que pra gente patinar junto nós precisamos estar vivos —
ela enfatiza.
— Essa estrada é tranquila, tá? Relaxa.
Gracie suspira, então move a cabeça em afirmativa. Ela hesita por
mais um segundo e sobe na moto, suas mãos apoiando ao redor da minha
cintura. Uma curiosidade sobre Gracie Salmon é que ela é capaz de fazer
qualquer coisa para não assumir os próprios erros. Se eu sugerisse pular de
um penhasco, em nome do seu orgulho, ela aceitaria.
Gracie me aperta com mais força assim que eu acelero e tê-la na
garupa da minha moto não é o tipo de coisa que eu imaginei fazer um dia. O
cheiro do seu perfume invade minhas narinas e não é improvável que eu
cause um acidente, porque a sua presença manda toda minha concentração
pra casa do caralho.
Eu acelero um pouco mais e, a cada rugido da moto, Gracie se segura
com mais força. Não entendo como ela fica tanto tempo dando saltos e
piruetas que podem quebrar seu pescoço em dois, mas tem tanto medo de
uma moto em alta velocidade.
Para evitar a cancela dos seguranças de Vincent, escolho um caminho
alternativo dessa vez. Nós passamos por uma estrada de terra com uma
iluminação terrível e tenho certeza que conseguiria ouvir o coração
acelerado de Gracie espancar a sua caixa torácica se parasse para prestar
atenção. Eu apostaria todo dinheiro que perdi hoje que ela tem medo que eu
pare a moto e a deixe aqui sozinha, no meio do nada. Seria uma opção
interessante se eu quisesse deixá-la traumatizada pra sempre, mas, por
enquanto, não quero.
— É sua primeira vez andando de moto? — pergunto, e minha voz sai
um pouco estranha por causa do vento e da chuva fina na nossa direção.
— É tão visível assim? — Gracie responde, e acho que ainda não me
acostumei com a sua proximidade. É bom que eu me acostume, porque isso
vai ser cada vez mais frequente.
— Você não sabe viver, desgracie.
Gracie dá uma risada irônica em resposta e eu acho que a minha fala
tem mais verdade do que ela aceitaria assumir em voz alta.
A noite nos engole e, pelos próximos minutos, o único som que
conseguimos ouvir são provenientes do motor da moto e os seus pneus
contra a terra. Quando chegamos na cidade, a noite é tranquila. São quase
uma da manhã e a maioria das pessoas em Guildford já está dormindo esse
horário.
Eu reduzo a velocidade aos poucos e Gracie suspira, mas não diminui
o aperto das mãos ao meu redor.
— Estou começando a achar que esse seu medo de velocidade é só
uma desculpa pra se aproveitar do meu corpo.
— Cala a boca — Gracie protesta. — Mas admito que é um corpo
impressionante pra quem era um adolescente magricela. Deve ser por isso
que você tem muitas bocetas amigas…
Eu não preciso perguntar para saber que foi o Vincent quem disse
isso. É a cara dele.
Finalmente, nós chegamos no nosso bairro.
— É verdade? — Gracie pergunta.
A moto anda devagar e o silêncio das ruas contribui pra nossa
conversa. Depois de mais alguns segundos, estaciono na frente da casa dos
Salmon e respondo sua pergunta.
— Depende de quem quer saber.
— Eu quero saber — ela diz, descendo da moto com cuidado. Só
agora percebo que ela está usando sapatos de salto. — Quer dizer, eu
preciso saber. Lembra do que eu falei sobre criar intimidade?
— Essa é a melhor desculpa que arranjou pra perguntar sobre a minha
vida sexual? — Eu rio, balançando a cabeça em negativa. — Ai, desgracie,
se quiser transar comigo é só pedir.
— E você é fácil assim?
— Agora depende de quem pede. Se for você…
Gracie estala a língua. Acho que a gente sempre teve uma coisa,
desde a adolescência. Um alerta de gatilho, um aviso de bomba armada.
Como se a sua falta de paciência comigo, fosse, na verdade, uma forma de
proteger nós dois.
— Uma pena que eu não transo com os meus parceiros.
— Você namorou com o seu parceiro por mais de oito anos.
— Pois é, regra nova. — Gracie ergue as mãos, como se estivesse
dizendo que as coisas não estão no seu controle. — Fui fazer isso e olha no
que deu. Sem envolvimento sexual com parceiros a partir de hoje.
— Devia ter me dito isso antes de eu aceitar — zombo. — Sinto que
saí perdendo nessa história.
— Se quiser transar comigo é só pedir — ela repete, usando minhas
próprias palavras contra mim.
— Em você não brilha, desgracie — zombo.
Gracie solta o ar pela boca, deixando uma risada quase inaudível
escapar. Ela divide o olhar entre mim e a porta da casa, em dúvida sobre
entrar ou não.
— Vou falar com minha agente amanhã — diz. — Vai ser um
alvoroço e tanto na mídia quando eu anunciar que vou patinar com você.
— Ainda pode desistir.
— Não. Nada é pior do que ficar fora de Paris. — O medo cruza o seu
olhar por um instante e eu conheço muito bem esse sentimento. Acontece
quando damos o nosso melhor, mas nem o melhor é o suficiente. É
frustrante, agonizante, triste.
Sei que ela quer muito ganhar essa medalha, ou não teria ido atrás de
mim hoje.
Antes que eu possa dizer alguma coisa, a porta da casa dos Salmon se
abre.
— Meu Deus, Gracie, eu estava preocupada com você.
Meus olhos caem em Nora Salmon, vestida dentro de um roupão tão
felpudo que parece feito de uma dezena de coelhos inocentes. Ela me
encara, encara minha moto e isso é suficiente para eu saber que ela vai ter
pesadelos durante o resto da noite.
— Fui numa festa com o Oliver — mente. — O Erik estava lá
também — mente mais ainda.
Nora meneia a cabeça em afirmativa, ainda sem se referir a mim.
— Bom, eu te dou notícias — Gracie murmura, se despedindo com
um aceno na minha direção.
— É melhor você ir direto pra cama — Nora sugere, no seu tom
passivo agressivo de sempre. — Vamos ter uma reunião com a sua agente
amanhã e… Bom, boa noite, Oliver.
— Boa noite, Mrs. Salmon.
Ela agradece o meu cumprimento com um sorriso que não poderia ser
mais falso e as duas entram na casa, me deixando sozinho na rua.
Eu encaro a porta por um tempo.
Ainda não acredito que fiz isso.
NEWS: Um novo império?

Um novo império?
A última semana viu uma enxurrada de notícias sobre o agora ex-
casal mais querido da patinação artística. Após a live realizada na última
sexta-feira, Gracie Salmon (20) veio a público dizer que o relacionamento
dos dois tinha chegado ao fim depois que ela descobriu a traição de Pierre
Durant (21) com Kate Willians (20), antiga amiga do casal.
Não sabemos se foi uma resposta direta à live da ex-parceira com
quem venceu tantas competições, mas o Imperador do Gelo fez uma live na
noite de ontem onde aparecia ao lado de Kate e anunciavam não só que
estavam namorando, mas que também vão estar juntos nas Olimpíadas de
Paris. Essa bomba virou todo mundo da patinação de cabeça para baixo.
Mesmo sem o apoio de Salmon, Pierre está dentro da competição. Muito
tem sido debatido sobre o quão acertada foi essa escolha. Sabemos que
Pierre e Kate se conhecem há anos, mas será que isso basta para criar a
conexão necessária entre os dois patinadores? Essa é uma resposta que só
teremos quando os jogos começarem.
Do outro lado, não sabemos nada sobre a Imperatriz. Após sua live
na semana passada, Gracie tem se mantido distante das redes sociais e não
fez nenhum outro pronunciamento. A equipe do EstherNews entrou em
contato com a agente da atleta perguntando se ela tinha conseguido um
novo parceiro, mas não conseguimos nenhuma resposta. A única
informação que obtivemos é que Gracie estava de volta à Guildford, sua
cidade natal, o que nos parece uma resposta por si só. Não é o tipo de
cidade que tem centros de treinamento e muito menos o local para
encontrar um patinador a nível olímpico.
Esperamos que as coisas se resolvam para ambos e que tenhamos
duas duplas trazendo medalhas para a Grã-Bretanha esse ano.
Sexta-feira, 28 de junho de 2024
CAPÍT ULO 9 - GRACIE SALMON

A pior coisa que alguém pode escolher para a própria vida é seguir a
profissão dos pais. Principalmente se eles forem donos de um quadro
patológico de comportamento controlador, onde não sobra espaço para sua
opinião, vontade ou sugestão. Você se torna apenas uma extensão deles, um
prolongamento que vive em função de alcançar tudo que eles não
conseguiram. Ou que conseguiram, mas agora querem que você faça
melhor.
— Ela já está quatro minutos atrasada.
Minha mãe olha o relógio e começa a mover um dos pés rapidamente,
um pequeno barulho soando no escritório devido ao contato do sapato de
salto com o piso de porcelanato. Eu não sei como ela descobriu que eu
tenho uma reunião com a Clarice hoje. Foi uma surpresa para mim quando
ela se despediu do Oliver ontem à noite comentando sobre isso, o que me
leva a crer que ela andou conversando com Clarice sem eu saber. Nora
Salmon já extrapolou todos os limites possíveis da nossa relação mãe-filha.
Eu acredito que uma terapia familiar faria milagres para os Salmon, mas é
provável que eu seja expulsa de casa se sugerir isso.
— É normal. Ela sempre atrasa cinco minutos.
Abro um sorriso. Essa é uma piada interna entre nós duas. Na
primeira reunião virtual que fizemos, eu atrasei alguns minutos, a partir de
então, ela sempre chega um pouco depois.
Se eu me atrasar um pouco, você sempre estará no horário como uma
atleta de alto nível deve ser. Faço isso por você, Gracie, de nada.
— E é esse tipo de comportamento que você espera de um
funcionário seu? — A voz da minha mãe é fria como os rinques onde passei
minha infância e adolescência. Ainda bem que já estou acostumada ao frio,
por isso, apenas ignoro.
Começo a me arrepender de ter voltado para Guildford.
A tela do iMac acende e a imagem de Clarice aparece piscando
enquanto a música da chamada ecoa pela casa vazia. Não sei se meu pai
está, mas não é como se a presença dele fizesse alguma diferença, no fim
das contas.
— Bom dia, Gracie, Mrs. Salmon.
Não há surpresa na voz dela ao ver minha mãe ao meu lado, o que
reforça a minha hipótese. Isso é algo que preciso resolver depois.
— Bom dia, Clarice, eu tenho novida-
— Ms. Green, como ficou a situação do treinador da Gracie?
Lanço um olhar furioso para a minha mãe. Ela não apenas me
interrompeu, como ainda está tomando o controle da reunião.
Ajusto a minha postura, enquanto minha agente olha para mim
esperando uma orientação do que fazer. Ela conhece muito bem a sra.
Salmon, não apenas pela sua carreira na patinação, mas também pelos meus
desabafos. É irônico, porque não sou uma pessoa de desabafar. Eu fico
guardando pra mim tudo de horrível que acontece. São como gotas d'água
caindo dentro de uma garrafa. Elas caem, caem, caem, caem, até que um dia
a garrafa enche e transborda em cima da pessoa mais próxima. Na maioria
das vezes, essa pessoa é a Clarice, e ela sabe enxugar minha água. Às vezes
era Pierre e, diferente dela, ele não sabia. Ele sempre estava com aqueles
olhos muito azuis, me observando do alto como se eu fosse fraca por
explodir. Na verdade, ele me olhava como um professor olha uma criança
que machucou o joelho vinte minutos atrás e ainda está chorando. Ele fazia
eu me sentir dramática e incômoda. Era como se estivesse vomitando em
cima da minha água entornada e piorando a situação.
— Sim, Clarice — começo, tentando manter a voz firme. — Como
ficou a situação com Mr. Bailey?
— Não tenho boas notícias quanto a isso.
Sinto o peito afundar assim que ela começa a responder. Apesar de
não ter ouvido falar dele na última semana, eu ainda tinha esperanças de
que meu antigo treinador continuaria comigo. Não dá pra esperar muita
coisa de homens. Eles sempre se protegem.
— Eu consegui conversar com ele a muito custo. Parecia que estava
me evitando, então… ele disse que vai treinar o Pierre e a Kate, não tem
agenda para treinar você também.
Minha mãe balança a cabeça de um lado para o outro, sei que está
pronta para destilar o seu veneno, mas respondo antes que ela tenha tempo
de compartilhar sua maravilhosa opinião.
— É claro que vai treinar o queridinho dele. Nunca fez questão de
esconder o quanto preferia o Pierre. Pois que fiquem juntos, até melhor,
quando um afundar, vai puxar o outro.
Minha mãe me lança um olhar de reprimenda.
— Ficar falando mal do seu ex-parceiro não vai te levar a lugar
nenhum, Gracie. Você tem vários problemas enormes na sua frente e
pouquíssimo tempo para resolvê-los. Por que não direciona sua energia para
eles?
Inspiro tão fundo que acho que a disponibilidade de oxigênio no
escritório fica comprometida por alguns segundos.
— Problemas? Nossa, ainda bem que você falou. Eu não tinha
percebido.
— Pois tem. — Ela finge de idiota, ignorando a minha ironia. Olha
para o iMac antes de continuar. — Se o ex-treinador não está disponível, eu
imagino que você tenha olhado outras opções.
Fecho os olhos buscando paciência. Lidar com o Oliver parece uma
tarde no parque se comparado à minha relação com minha mãe.
— Sim. Mesmo antes de conseguir contactar Mr. Bailey eu já estava
acionando minha rede de contatos em busca de possibilidades. Eu tinha três
nomes em mente, Gracie — ela direciona o olhar para mim. — Os três
recusaram. Tentei outras opções, conversei com pelo menos cinco agentes
colegas meus em busca de opções, mas sempre a mesma resposta negativa.
Eu sabia que não seria fácil encontrar alguém tão em cima da hora.
Temos um mês para que os jogos comecem, precisaríamos encontrar um
treinador completamente descolado da realidade para aceitar uma
maluquice dessas. Treinadores são extremamente egocêntricos. Querem
treinar os melhores, não alguém que, com sorte, vai ganhar uma medalha de
participação.
— E qual resposta foi essa? — A voz da minha mãe começa a me
irritar mais a cada segundo.
— Hmm, bem, alguns disseram que estavam com a agenda cheia, já
outros não queriam associar o nome deles ao seu, Gracie.
— E por quê? — Minha mãe insiste, e eu não consigo mais segurar.
— Será que dá para parar de se meter?
Sinto o clima ficar tenso no escritório. Clarice está sem graça por
presenciar isso e sinto que ela está a muito pouco de encerrar a chamada,
alegando que a conexão caiu.
Para minha surpresa, o tom de voz da minha mãe é calmo quando ela
me responde.
— A verdade pode ser dolorosa, Gracie, mas quanto mais informação
você tiver, mais preparada vai estar.
A ausência de raiva na voz dela me desarma. Sinto uma nota de pena,
o que faz eu me sentir ainda pior. Não quero que a multi-medalhista Nora
Salmon sinta pena de mim. Prefiro lidar com a raiva dela. Pelo menos com
isso já estou acostumada.
— Nem todos se justificaram. Já outros… desculpa, Gracie, mas
outros disseram que “se você insistir em ir para os jogos, vai passar
vergonha” — ela faz o gesto de aspas com os dedos. — Essa reação vinda
dos coaches é compreensível. A imagem do Pierre ficou queimada, mas ele
tem uma parceira, então… Bom, se é pra se indispor com alguém, vão
preferir se indispor com você. E…
Clarice dá uma pausa.
Eu a encaro, pedindo que continue.
— Ele é um cara branco, né? — suspira. — Daqui umas três semanas
ninguém vai lembrar se te traiu.
Sinto meu corpo afundando ainda mais na cadeira. Eu dediquei a
minha vida ao trabalho, sacrifiquei minha infância, minha adolescência,
sacrifiquei coisas que quem é de fora não tem a menor ideia. A famosa
preguiça do domingo à tarde? Nunca a conheci. Eu estava preocupada
demais treinando ou, nas raras exceções, usando o tempo extra para
descansar os músculos do meu corpo em uma banheira de gelo.
— Foi mais de uma pessoa que disse isso? — Minha mãe insiste, mas
não tenho mais forças para revidar.
— Sim. Umas quatro ou cinco, não me lembro agora.
— E disseram essas mesmas palavras?
Minhas sobrancelhas se juntam na testa quando olho para a minha
mãe. Seu cabelo ruivo está preso em um coque alto e ela tem os olhos
verdes fixos na tela do computador. Acho que o mundo poderia acabar ao
nosso redor e ela não perderia a sua concentração.
— No geral, sim. Não exatamente as mesmas palavras, mas a ideia
era a mesma. E a parte de passar vergonha foi muito parecida.
Nora Salmon abre um sorriso enquanto balança a cabeça de um lado
para o outro. Aparentemente, ela tinha conseguido entender algo no caos
que minha carreira se tornou, algo que estava passando despercebido por
mim. A julgar pelo rosto culpado de Clarice, acho que sou a única aqui que
está completamente por fora da situação.
— Será que alguém pode me dizer o que está acontecendo?
Minha mãe gira o corpo na cadeira para me olhar.
— O discurso deles está alinhado demais para ser apenas uma
coincidência. Uma coisa que você vai aprender mais cedo ou mais tarde, é
que nessa carreira não podemos comprar inimigos, pelo menos, não
inimigos poderosos. Nós, mulheres, sempre somos colocadas de lado ou em
segundo plano quando nossa narrativa difere de algum homem. Sempre. Por
isso eu fiquei preocupada quando você fez aquela live. Ali você comprou
alguns inimigos.
— Tá dizendo que é culpa minha?
Sinto o sangue ferver e controlo a vontade de sair do escritório. Me
coloco de pé, inquieta.
— Controle-se, Gracie. Você não é mais uma adolescente rebelde. Se
quiser ir longe nessa carreira, precisa colocar a cabeça no lugar. — Ela não
desvia o olhar do meu rosto enquanto fala. — E te demos uma educação
boa o suficiente para você entender que não foi isso que eu disse.
Olho para Clarice em busca de um apoio. Minha agente levanta as
duas mãos e faz um gesto como se empurrasse uma barreira invisível, me
pedindo calma.
Consigo me sentar.
— O que eu quis dizer é que a narrativa está muito alinhada, como se
alguém tivesse contactado esses agentes e treinadores e passado essa
mensagem. Você consegue pensar em alguém assim?
Eu reviro os olhos, porque é óbvio. Pierre.
— Agora, não temos o que fazer. Estamos falando de uma área
conservadora e que não gosta de escândalos. Você agiu no impulso, está
colhendo o que plantou. Espero que no futuro procure ouvir mais o que
tenho a dizer.
E ali está Norman Salmon. Nunca perde a oportunidade de fazer algo
ser sobre ela.
— Você também acha que foi isso? — Pergunto para Clarice.
— É provável, sim.
— Eu acho que vocês não vão conseguir achar um treinador da forma
convencional — minha mãe retoma —, mas talvez eu consiga dar um
jeitinho. Vou pedir ajuda a uma grande amiga minha. Sei que ela está
entediada com a vida de aposentada e não abre mão um desafio. — Minha
mãe abre um sorriso ao continuar. — E não é como se ela se importasse
muito com a opinião alheia, de toda forma.
Clarice se empolga ao ouvir a notícia.
— Espera, estamos falando da Mrs. Mulligan?
O sorriso que se espalha no rosto de Nora é resposta suficiente.
Imagens de uma mulher baixa, com um cabelo loiro quase ruivo e bastante
grisalho volta à minha mente. Lembro da voz alta dela e da risada que
preenche os lugares. Durante minha infância, foram vários os momentos
que encontrei a antiga treinadora da minha mãe.
Primeiro, um colega de infância como parceiro, agora, a antiga
treinadora da minha mãe. Será que isso vai mesmo funcionar?
— Vou conversar com ela ainda hoje. Por enquanto, vocês precisam
focar no maior problema dessa bagunça: a Gracie precisa de um parceiro.
Minha atenção volta para a discussão atual e respiro fundo antes de
soltar a bomba. Me sinto um pouco culpada, pois sei que minha mãe vai
surtar e ela meio que tem sido útil, apesar do jeito controlador dela.
— Eu arrumei um parceiro. — Olho para minha mãe e decido
preparar o terreno. — Não surta.
Nora espera, seus olhos diminuindo a cada segundo. Se eu der tempo
suficiente, sei que ela vai chegar à resposta sozinha, por isso, digo rápido.
— Oliver Fisher.
Se é para puxar o Band-Aid, melhor fazer de uma vez.
O silêncio no escritório é uma surpresa pra mim. Eu esperava
xingamento, talvez até gritos. Nesse momento, Benjamin entra correndo
pela porta aberta e começa a arranhar a minha perna pedindo colo. Me
abaixo para pegar o meu filho e o coloco no meu colo. Meu fiel guardião.
Duvido que minha mãe terá coragem de me matar agora que estou
segurando o Ben.
A falta de reações me incomoda, então falo de novo:
— Eu e o Oliver vamos patinar juntos.
Agora, depois de dizer em voz alta, tudo é mais real, palpável. Eu
realmente estive naquela corrida, eu chorei na frente dele — de mentira —,
eu vi ele perder depois de todos dizerem que ele nunca perde. Sinto uma
pontadinha de medo. Não é Oliver quem me assusta, mas a ideia de passar
mais de dez horas diárias junto com ele.
— Não conheço nenhum patinador com esse nome — diz Clarice.
— É porque ele não é um patinador — respondo. — É um jogador de
hóquei nos Estados Unidos.
Poucas vezes na minha vida, vi minha agente surpresa. E nesse
momento ela está, literalmente, de boca aberta.
— Um ex-jogador — minha mãe completa. — Ele foi expulso por
comportamento violento.
Sua voz está calma, um tanto fria, mas não há uma provocação
implícita. Eu não consigo acreditar no que estou ouvindo. Ou melhor, no
que não estou ouvindo. Onde estão os xingamentos? Tenho certeza que está
ali, em algum lugar da cabeça dela, a vontade de dizer que Oliver Fisher é
um marginal.
— Bom, se isso está decidido…
Ela se levanta, dá dois passos, mas para quando eu a chamo.
— Não vai surtar comigo e me chamar de irresponsável?
Ela respira fundo e gira o corpo para me olhar.
— Eu odiei a escolha. Acho que não vai dar certo e que você vai se
arrepender depois, mas não é como se tivéssemos outra opção. No fim das
contas, é a sua carreira, você tem todo direito de arruiná-la.
Ela sai do escritório e não sei se fico aliviada ou revoltada com o que
ela diz.
CAPÍT ULO 10 - OLIVER FISHER

Hank Fisher está com os braços cruzados em frente da porta da


mansão, me observando como se eu estivesse fazendo tudo que jurei que
não faria dois dias atrás. Talvez porque seja exatamente isso que estou
fazendo.
— Esse carro é uma arma — ele encara a McLaren GTS preta
estacionada na frente da casa, onde eu acabei de colocar uma mochila no
banco traseiro. Não é a primeira vez que ele faz essa afirmação hoje. Nem a
segunda. — Talvez seja melhor você…
— Relaxa pai — digo, sucinto. — Se eu morrer em um acidente
trágico prometo que não vou voltar pra te assombrar.
Hank franze o cenho e reprova meu comentário, mas, no seu íntimo,
eu sei que ele quase riu. Apesar disso, tenho certeza que já se arrependeu de
ter me oferecido o maldito carro.
— Fico feliz que tenha escolhido patinar com a Gracie — diz,
mudando de assunto. Ele é um cara supersticioso e uma coisa que não gosta
de fazer é brincar com a morte.
— Não escolhi — lembro. — Fui obrigado.
Eu não entrei em detalhes sobre como eu e Gracie concordamos em
patinar juntos. Se eu fizesse isso, toda felicidade que Hank sentiu quando
recebeu a notícia iria por água abaixo. Aposto que ele desconfia das
corridas, mas nunca mandou nenhuma indireta.
— Eu sempre achei que você tinha uma quedinha por ela quando era
mais novo…
Eu reviro os olhos. Será que existe alguém na família Fisher que não
compartilhe essa mesma opinião?
— Uma quedinha por quem? — diz uma voz feminina.
A chegada repentina de Gracie me assusta. Ela está com o seu
cachorro magricela no colo e eu sinto que o bicho vai rosnar pra mim assim
que tiver a oportunidade.
— Ninguém — respondo, antes que meu pai o faça.
Mesmo os pais milionários gostam de envergonhar os filhos, deve ser
um pré-requisito na cartilha de pais.
— Que bom que decidiram patinar juntos — Liam diz, me entregando
a mochila da Gracie. A logo de uma marca caríssima cobre todo o tecido.
— Vai ser ótimo ver vocês dois em Paris. Quem diria, hein, Hank? Nossas
famílias estão mais ligadas do que nunca agora.
Hank abre um sorriso para o amigo enquanto eu coloco a mochila no
banco de trás, do lado da minha. Sei que Nora não vai com a minha cara,
por motivos óbvios, mas Liam parece realmente satisfeito com a escolha da
filha. Não sei se ele é maluco ou simplesmente não gosta de contrariar as
mulheres da família Salmon. Aposto na segunda opção.
— Se eu não mandar mensagem em três horas, chame a polícia —
Gracie zomba, antes de se sentar no banco de passageiro da McLaren do
meu pai com o seu cachorro no colo. Enquanto eu reviro os olhos, Hank
Fisher ri, como se a achasse adorável.
Ela pode ser uma megera, mas uma megera carismática na maior
parte do tempo.
Ainda não acredito que ela chorou.
— Tenho certeza que a Mrs. Mulligan vai adorar treinar vocês —
Liam comenta, dando um tapinha no meu ombro antes de eu entrar no
carro. — Aquela mulher sempre gostou de um desafio.
Eu dou um sorriso forçado na direção dele. Em outras palavras, quer
dizer que somos um caso perdido.
— Falei sério sobre o carro, hein? — Hank reforça. — Estou te dando
um voto de confiança.
— Sabe que confiar em mim é sempre uma escolha terrível.
Ele solta o ar pela boca e franze as sobrancelhas, passando uma das
mãos pela nuca em sinal de nervosismo. Um segundo depois, Hank assente,
como se concordasse com o que eu digo. Olho para o outro lado da rua,
mais especificamente para a casa imponente dos Salmon, e espero que Nora
apareça para se despedir de Gracie ou mandar algum recado que sirva de
apoio, o que não acontece.
Tudo bem, parece que somos só nós dois.
Liam e Hank desejam uma boa viagem mais uma vez e, finalmente,
eu acelero e saio do estacionamento da mansão Fisher. Não consigo deixar
de pensar que vai ser estranho passar as próximas duas horas trancafiado
dentro do veículo junto com Gracie Salmon. Não é como se a gente tivesse
uma lista muito longa de assuntos em comum, parece mais uma colisão
entre mundos completamente distantes.
— Já que vamos fazer isso — Gracie começa, apertando o cachorro
contra o peito como se fosse uma pelúcia. Ele realmente parece uma, dentro
de uma roupinha cor de rosa. As casas de Guildford começam a ficar cada
vez mais espaçadas, a estrada crescendo ao nosso redor. — Precisamos de
regras.
— Você e sua obsessão com regras.
— E você e sua obsessão em quebrá-las, o que transforma isso aqui
em uma combinação perigosa — ela diz, apontando para si mesmo e depois
para mim. — A regra número um é que, como eu falei antes, não vamos
fazer sexo.
— Pra alguém que não quer transar comigo você fala muito sobre
fazermos sexo.
— Só quero deixar claro. — Gracie meneia a cabeça, encostando-a no
banco. — A segunda regra é que você precisa se esforçar tanto quanto eu.
— Tanto quanto você? A rainha da produtividade tóxica? Você ficava
com os pés sangrando de tanto ensaiar quando tinha quinze anos de idade,
não tem como se esforçar tanto quanto você.
— Eu ainda faço isso — Gracie dá de ombros —, mas pra ser justo,
quem vai dizer se está se esforçando ou não é nossa treinadora, não eu.
— Certo, próxima.
— Um minuto de sincericídio.
Eu tiro o olhar da estrada por um segundo para encará-la, sem
entender.
— Sempre que as coisas não estiverem bem, vamos tirar um minuto e
ser sinceros um com o outro. Completamente sinceros.
— Esse era o tipo de dinâmica que seguia com o Pierre?
Gracie solta uma risada.
— Sincero era a última coisa que Pierre era.
— A gente deveria começar agora.
— Com o quê?
— O minuto de sincericídio — digo. — Tenho perguntas.
— Não sei se quero responder.
— Foi você quem disse que precisamos ser sinceros.
Gracie respira fundo, desconfortável.
— Tá, que seja. Use o seu minuto.
— Está fazendo isso por causa de você, por causa da sua mãe ou por
causa do Pierre?
— Por mim.
Eu arqueio uma das sobrancelhas e Gracie deixa uma risada nervosa
escapar.
— Não está sendo sincera.
— Tudo bem, existe a opção todos os três? Nunca sentiu vontade de
impressionar as pessoas?
Dou de ombros.
— Considerando todo o meu histórico, acho que o fato de eu ainda
estar vivo é bastante impressionante, então…
Gracie balança a cabeça, desaprovando meu comentário.
— Todo mundo espera que eu seja bem sucedida no que eu faço.
— Você e o Pierre eram os favoritos.
— Sim, mas… — ela respira fundo mais uma vez. — É complicado
ser filha de uma lenda do esporte. Ser bom não é suficiente, você precisa ser
perfeito. Um grande feito não é nada se você não superar toda a trajetória de
quem veio antes de você.
— E a sua mãe…
— Foi a melhor do mundo — Gracie diz, fazendo soar como algo
terrível. O cachorro late no seu colo, como se concordasse. — Ela e o
parceiro ganharam quatro medalhas de ouro seguidas e ninguém nunca mais
repetiu o feito. Em outras palavras, é praticamente como ser filha da
Beyoncé.
— Sei como é.
— O seu pai não parece tão maluco quanto a minha mãe.
— Meu pai biológico — corrijo. — Ele fez muita merda na vida,
nunca vou conseguir superar.
Gracie solta mais uma risada nervosa.
— Ai, idiota. Fazer piada das coisas que te machucam é seu melhor
mecanismo de defesa?
— Sim, você devia tentar.
Ela balança a cabeça, negando.
— Quarta regra, eu não aceito conselhos vindos de você.
— Uma pena — minha atenção se volta para a estrada —, porque eu
sou ótimo dando conselhos. Assim como sou ótimo escondendo
sentimentos e ótimo em fazer sexo, então dá pra dizer que você acabou de
descartar todas as melhores partes de mim.
— Quinta regra, não vamos falar de sexo.
— Sexta regra, não ter mais regras.
Gracie solta o ar pelo nariz. O cachorro late no seu colo, chateado ao
notar a irritação da dona.
— Sétima regra, não levar esse bicho pra todo canto.
— O nome dele é Ben! E se quer saber, ele também não gosta de você
— protesta. — Você acha que ele esqueceu de quando pintou o coitado?
Além disso, a regra sete é automaticamente anulada pela regra seis. De
acordo?
— Com as suas regras malucas?
Gracie assente.
Eu movo a cabeça em afirmativa, mas ela não se dá por vencida.
Ajeita o corpo no banco do carona e ergue o dedo mindinho na minha
direção, oferecendo-o.
— Regra cinco ponto 2 — Gracie dá um mínimo sorriso na minha
direção quando eu ofereço meu dedo e ela o entrelaça com o dela —
ganhando ou perdendo, estamos juntos nessa.

∞∞∞
— Nem fodendo.
Eu vejo quando os dedos de Gracie apertam a xícara de porcelana em
suas mãos com mais força. Ela parece dividida entre me xingar pelo
palavrão que usei na frente da técnica ou fingir que não ouviu o meu
comentário rude. Ela leva o líquido fumegante até os lábios para ganhar
tempo e finge que não queimou a língua, mas isso seria impossível.
— Mrs. Mulligan — Gracie começa, educadamente —, eu sou muito
grata por ter aceitado treinar a gente tão em cima da hora, mas…
— Se vou ser a treinadora de vocês, precisam me ouvir — Ciara
Mulligan diz, sem rodeios. A frase soaria grosseira na voz de qualquer outra
pessoa, mas ela tem um jeito parecido com a Rita Moreno em One Day At a
Time. Ela pode dizer a coisa mais mal educada do mundo e ainda assim
parecer simpática enquanto faz isso. — Confiança é o segredo de todas as
duplas de patinadores de sucesso. Como vão desenvolver confiança um no
outro se não passarem tempo juntos?
— Somos vizinhos em Guildford — Gracie tenta. — Vamos nos ver
todos os dias nos treinos, eu não acho que exista a necessidade de…
— A minha condição é essa — a treinadora corta. — Eu treino vocês,
mas precisam morar juntos até os jogos.
Gracie solta um muxoxo. Benjamin está deitado no pé da nossa mesa,
esperando alguém deixar cair um pedaço de biscoito, sem fazer ideia que,
aqui em cima, o mundo acabou de ruir mais um pouco. Mrs. Mulligan
escolheu uma das melhores casas de chá de Londres para nossa reunião e,
embora eu tenha ficado receoso com a possibilidade de jornalistas nos
verem, a mulher parece tranquila.
Tranquila demais para alguém que acabou de sugerir que eu vá morar
com Gracie Salmon.
— Você nem viu a gente patinando — é minha vez de tentar. — Nós
nos conhecemos desde a infância, sabemos tudo um sobre outro.
A treinadora abre um sorriso enquanto passa os olhos por mim. Ela
encara minha jaqueta de couro surrada, meu cabelo despenteado e depois se
vira para Gracie, com seu terninho cor de rosa e fios lisos penteados à
exaustão. Ela não diz, mas nem precisa. É óbvio que não acredita em uma
palavra do que digo.
— Bom — ela afasta sua xícara da mesa, levantando-se. Está usando
roupas tão coloridas que pode se considerar parte da poluição visual da
cidade. — É uma pena que não entramos em um consenso. Minha aula de
zumba começa em vinte minutos, então vou ter que pedir licença…
Gracie passa as mãos pelo cabelo liso e me encara como se estivesse
vendo as Torres Gêmeas desabando bem na sua frente.
— A gente pode treinar por conta própria — sugiro, enquanto meus
dentes brincam com o piercing na minha língua numa tentativa de passar
tranquilidade.
— Precisamos dela — Gracie responde, firme, seus olhos cor de
chocolate acompanhando Ciara até o caixa.
Solto um longo suspiro. Posso ser inconsequente, mas não sou idiota.
Um bom atleta não é nada sem um profissional mais experiente como guia.
No hóquei, temos o técnico da equipe e, na patinação, temos os treinadores.
— Eu também não estou confortável com a ideia — ela admite, num
sussurro —, mas é óbvio que não vamos achar outro treinador,
principalmente com o seu histórico. Se a gente prometer respeitar um ao
outro…
Eu franzo o cenho, porque agora ela parece uma professora do ensino
infantil tentando convencer um dos alunos a não morder a bochecha do seu
coleguinha até sangrar.
— Sabe que vamos passar praticamente 24 horas por dia juntos, não
sabe?
É a vez de Gracie suspirar.
— É um sacrifício que estou disposta a fazer.
— Vamos ter que criar mais regras…
— Diz que sim logo! — Gracie reclama, impaciente. — Você perdeu
a aposta, eu nem deveria estar te perguntando.
— E aí você seria presa por cárcere privado.
— Tanto faz. Vamos morar juntos, certo?
— E adianta falar não pra você?
— Isso mesmo, não adianta. — Gracie se abaixa para pegar Ben,
então, sem aviso, coloca o cachorro no meu colo. Segundos depois, seus
saltinhos estão martelando o piso da casa de chás enquanto ela grita o nome
da treinadora, da forma mais educada que consegue, dentro das
possibilidades da situação.
Nos meus braços, Ben rosna.
— Você me odeia mais do que a sua dona.
Como se quisesse confirmar que é verdade, Ben rosna de novo. Eu
acho que ele não vai me morder, então continuo segurando-o, mantendo
meu rosto numa distância segura por via das dúvidas. Ele parece um
brinquedo no meu colo, com as suas roupinhas cor de rosa. De onde estou,
consigo ver que Gracie alcançou a mulher e a conversa entre as duas é
rápida — ela realmente tem uma aula de zumba, afinal. Minutos depois,
minha parceira e, Deus, agora colega de apartamento, está de volta na mesa.
— Então — ela respira fundo, como se só agora tivesse se dado conta
do peso da sua decisão. — Vamos morar juntos.
Eu movo a cabeça em afirmativa enquanto devolvo o cachorro pra
ela.
— Consegui uma agente pra você, aliás — diz, um pouco esbaforida,
como se quisesse evitar ao máximo o assunto colegas de apartamento. —
Quer dizer, eu ainda não conversei com ela, mas… bom, ela trabalhava na
All Stars, onde a minha agente trabalha, então deve ter alguma
competência.
Gracie me entrega um cartão de visitas daqueles feitos com design
minimalista. É preto e branco, com um nome em alto relevo no centro,
acompanhado por um e-mail: Trinity Owens.[4]
Gracie não me dá tempo de responder ou agradecer o seu gesto.
— Marca uma conversa com ela — diz, simples, enquanto se levanta
da mesa. — Eu vou arrumar o meu… o nosso apartamento.
Não consigo evitar uma risada nervosa da forma como ela fala nosso.
Eu assinto e Gracie se afasta da mesa sem se despedir. A minha nova
dor de cabeça diária está quase saindo da loja quando eu a chamo de novo,
e ela se vê obrigada a se virar na minha direção.
— Já se arrependeu da aposta, desgracie?
— Eu não vou me arrepender — ela diz, revirando os olhos e
ajeitando o cachorro no colo. — Nem morta, Fisher.
CAPÍT ULO 11 - GRACIE SALMON

Assim que saio da casa de chá, me permito xingar em voz alta. Sinto
o coração do meu pobre cachorro acelerar com o susto. As próximas
semanas serão um inferno e morar com Oliver só vai piorar tudo.
Obviamente, não podia deixar ele ver que estou tão incomodada com a
ideia, porque minha situação já está difícil o bastante sem que ele surte e
desista de ser meu parceiro.
Calma, as coisas só parecem ruins, nada é tão terrível quanto a gente
imagina.
Me lembro de uma das frases que soam no meu app de meditação
guiada e tento internalizá-la da melhor maneira possível enquanto espero o
elevador no hall do meu prédio. Escuto passos às minhas costas, mas não
me viro para ver quem se aproxima. Apesar de ser um prédio
majoritariamente residencial, ainda há um movimento intenso de pessoas
indo e saindo dos 20 andares. Estou distraída com os meus problemas,
quando uma voz sussurra no meu ouvido.
— Olha só, se não é a namorada do Oliver.
Recuo um passo, me afastando daquela voz estranhamente familiar e,
quando olho para o lado, percebo que já vi aquele par de olhos azuis antes.
— Eu já te disse que não sou namorada do Oliver. — Me lembro da
nossa última conversa na corrida e decido provocá-lo. — E qual foi a
sensação de tê-lo visto ele perder? Se não estou enganada, você disse que
odiava.
Ele levanta os ombros no momento que as portas do elevador se
abrem. Em um gesto de cavalheirismo que eu jamais esperava vindo dele, o
homem das mil tatuagens estica o braço e segura a porta para que eu entre
primeiro.
— Não foi nada demais. Uns trocados.
Assim que entramos no elevador e as portas se fecham, um silêncio
constrangedor toma conta do lugar. Eu não tenho nenhum assunto com ele
e, para ser sincera, eu nem sei qual é o seu nome. Alguma coisa Kelly? Os
números no mostrador vão mudando lentamente e sei que ainda vai demorar
um pouco para chegar no 20, então arrisco algo apenas para quebrar o
silêncio.
— Tenho certeza que a maior parte da população discordaria de você.
Ele abre um sorriso lateral. Seus olhos se detém no meu rosto,
examinando cada pedacinho dele e levando um tempo desnecessário nos
meus lábios, ignorando totalmente o assunto do qual estamos falando.
— Com certeza — confirma — Mas sou diferente de todos eles.
Desvio o olhar. Se fosse em qualquer outro momento da minha vida,
eu poderia entrar nessa brincadeira, mas esse flerte veio na pior hora
possível. Uma carreira se equilibrando precariamente perto de um
precipício, o término de um namoro de anos, semanas de treinamento
intenso pela frente e ainda conviver o tempo todo com Oliver não me deixa
o menor espaço para ter um relacionamento casual agora. E não quero nem
pensar no estardalhaço midiático se algo vazasse.
E se tem algo que eu aprendi vivendo sempre nos holofotes, é que os
segredos sempre vazam.
Permaneço em silêncio pelo resto da subida. Respeitando o meu
espaço, meu vizinho também não diz mais nada e esperamos enquanto os
números aumentam. Quando chega no 15, o elevador para.
— Nos vemos por aí, vizinha solteira.
Reviro os olhos quando as portas voltam a fechar. Mais cinco andares
depois, estou em casa.
Assim que entro no meu apartamento, deixo Ben no chão e uma
chave vira na minha cabeça. A Gracie obcecada toma conta do meu corpo e
começo a pensar na melhor maneira de transformar as próximas semanas
em um período onde ambos consigamos sobreviver. Para isso, precisamos
de limites muito bem definidos.
E eu já sei como fazer isso.
Sigo para o escritório e pego uma fita adesiva rosa. Felizmente, tenho
vários rolos dela, já que vou precisar de muita. Volto para a porta de entrada
da cobertura e olho para o lugar. Graças a deus a Gracie do passado foi uma
patricinha mimada quando escolheu esse apartamento. Ele é enorme e
mesmo dividindo ele pela metade, ainda há espaço suficiente para viver
confortavelmente.
Me abaixo, colocando a fita na metade do espaço da porta, dividindo-
a em duas partes iguais. Estico a fita pelo chão, passando pela sala de estar,
pela varanda e pela área da piscina. Até aqui, consegui dividir o ambiente
em metades parecidas. Na sala, por exemplo, ficou um sofá de cada lado.
Porém, quando chego na cozinha, encontro um problema. Eu não tenho dois
de cada eletrodoméstico. Penso por um segundo que eu poderia comprar
novos equipamentos, mas isso daria trabalho. Por fim, respiro fundo,
aceitando que a cozinha vai ser um lugar de convivência comum. Se o
assassinato acontecer, já temos o local do crime.
Continuo demarcando o apartamento por quase uma hora até
terminar. Felizmente as duas suítes principais ficam em lados opostos no
corredor dos quartos, assim não foi difícil separar. Além da cozinha, o único
outro ambiente que vai ser compartilhado é a academia. Na verdade, nem
sei se o Oliver vai querer usá-la. O meu treinamento sempre foi focado em
resistência, não em ganho de massa e por isso não tenho todos os
equipamentos que ele precisa. Se ele preferir treinar em outro canto,
melhor. Menos um local de convivência.
Ben observa a minha fita sem entender o que estou fazendo. É óbvio
que ele pode passar pelos dois lados, mas, como ele não gosta do Oliver,
acho que isso não vai ser um grande problema.
Me jogo no sofá do meu lado do território e pego o meu celular.
Tenho tentado evitar entrar nas redes sociais desde que a bomba estourou,
mas a curiosidade acaba sendo mais forte que eu. Assim que abro o
Instagram, me vem o arrependimento ao ver uma foto do novo casal
queridinho da patinação. E pensar que até poucas semanas atrás eu fazia
parte disso. Olho o título do post “Um novo império?” e parece ser um
recorte de uma notícia maior. Passo os olhos pelo carrossel misturando
texto e algumas fotos de Pierre e Kate. A postagem diz estar preocupada
por não saber nada da minha vida, mas eu sei que a única preocupação que
eles têm é em conseguir um furo de reportagem. Nas últimas semanas, meu
celular não saiu do silencioso e está programado para recusar as ligações
automaticamente.
Mesmo sabendo que não devo fazer isso, clico no ícone dos
comentários para ver o que as pessoas estão dizendo.

Lorenaparker disse: vc tá muito melhor agora, Imperador!

Amyferraz disse: sinto que só agora vamos ver todo o potencial do


Pierre. Sempre senti que aquela lá limitava nosso menino

Giumontserrat disse: Kate chegou com tudo, entregou romance, drama


e performance. O ouro já é nosso

Victoredwards disse: só eu que achava a ex meio esquisita?

Fecho o aplicativo e minha cabeça vira na direção do bar. Com a


divisão, ele ficou completamente no lado do Oliver. Eu sei que eu não devia
abusar de álcool por causa da diabetes, mas tem horas que o mundo me
obriga a beber. Aquela lá. Então é assim que sou chamada agora? Como se
eu fosse patins descartados que já não servem mais.
Fecho os olhos e prometo a mim mesma que não vou mais olhar redes
sociais. Volto a pegar o celular e desinstalo o Instagram, X e TikTok. Assim
que estou prestes a soltar o aparelho, vejo a notificação de uma mensagem
de Clarice.

CLARICE: Mrs. Mulligan acabou de me ligar. Está tudo certo então?

Decido responder logo para poder esquecer que celular existe pelo
resto do dia.
GRACIE: tudo certo. Oliver vai morar no meu apartamento por
enquanto. Se eu sumir, você já sabe quem foi o assassino.
GRACIE: mas caso ele desapareça, não sabemos de nada.

Recebo uma figurinha de um gatinho com cara de assustado e me


levanto.
Decido tomar um banho antes de Oliver chegar e transformar minha
rotina em algo ainda mais caótico.
CAPÍT ULO 12 - OLIVER FISHER

Digitei cinco mensagens diferentes no grupo dos irmãos Fisher, mas


não tive coragem de enviar nenhuma delas. Encaro a foto que colocamos no
icon: eu, Tyler, Archie e Erik com nossos uniformes de hóquei antes de uma
partida em New York. A foto foi tirada no ano passado, mas a impressão é
que se passaram dez anos desde então. Não faço ideia de como vou dizer
para eles que eu e Gracie estamos indo morar juntos. Acho que a notícia de
que vou patinar com ela já foi chocante o bastante e tenho certeza que
Archie não vai ficar feliz com isso.
Ao invés disso, mando uma mensagem para Hank dizendo que vamos
ficar em Londres por algumas semanas. Acrescento que Gracie está bem,
que nenhum crime foi cometido nas estradas de Guildford e que a sua
McLaren sobreviveu sem arranhões. Não menciono devolver o carro,
porque ele tem vários outros, mas peço que algum dos seus funcionários
deixe a minha moto na casa da Gracie assim que puder.
Confiro as horas, guardo o telefone e decido conversar com meus
irmãos depois. Talvez quando Archie voltar da sua viagem de nerd. Ele vai
ter muitas novidades pra contar e com certeza Erik e Tyler vão se interessar
mais pelas suas fofocas do que pelas minhas.
Eu espero.
Já se passaram duas horas desde o momento em que Gracie me
deixou sozinho na casa de chá, com a desculpa de arrumar o seu —
temporariamente nosso — apartamento, seja lá o que ela quer dizer com
isso. Eu poderia ir até lá e passar o resto da tarde em casa, mas quero dar
um tempo para Gracie surtar sozinha sobre a nossa situação de merda. Será
que ela realmente acha que uma medalha de ouro vale tudo isso?
Eu continuo meu caminho pela Swain’s Lane, meus olhos observando
as casas que contornam o quarteirão do cemitério Highgate. Antes de me
mudar pra New York, sempre achei uma paisagem de mal gosto. Mansões
caríssimas dividindo espaço com um cemitério que parece ter sido
arrancado de um filme de terror do século passado. Eu não compraria uma
casa ali, mas gente rica não tem muita noção.
Respiro fundo quando entro no cemitério. Enfio uma das mãos no
bolso da minha calça jeans e procuro por um cigarro, mas a minha caixa
está vazia. Penso em comprar um maço novo, mas reviro os olhos ao
lembrar que vou ter que cuidar do meu pulmão agora que vamos entrar em
treinamento.
Ideia de merda.
Continuo seguindo o caminho que conheço muito bem, passando por
estátuas cheias de musgo verde, viúvas em luto e lápides das mais diversas,
algumas muito mais elaboradas que outras. As lápides que procuro ficam
afastadas da maioria, no lugar destinado às pessoas que não podem pagar
por um gazebo chique. Se você não olhar com atenção, quase não percebe
que a desigualdade social também existe na morte.
Um longo suspiro escapa dos meus lábios quando chego ao meu
destino. Tem pouquíssimas pessoas nessa parte do cemitério e o silêncio faz
parecer que estou completamente sozinho aqui, não fosse pelo som dos
pássaros e as conversas que acontecem muito longe.
Encaro as duas lápides, postas lado a lado, uma piada de mal gosto.
Leio as inscrições, como se nunca as tivesse visto antes:

Tara Shin, 01/04/1991 - 10/11/2013 e Joe Willians, 23/08/1977 -


11/11/2013.

Me pergunto se as pessoas que vem aqui não acham engraçado que


eles tenham datas de falecimento tão próximas.
Visitar o túmulo dos meus pais biológicos é uma coisa que, ou faço
com frequência ou não faço nunca, sem encontrar um equilíbrio entre esses
dois pontos. Quando eu ainda estava no orfanato, uma das freiras
responsáveis pelos passeios semanais das crianças achava que eu era muito
sortudo por saber onde meus pais tinham sido enterrados, então me trazia
aqui sempre que tinha a oportunidade. Não acho que ela fazia por mal, a
maioria das crianças orfãs não tem nada, mas, sabendo a história de Tara e
Joe como eu sei, às vezes eu preferia não ter nada.
Quando Hank me adotou, minha cabeça de dez anos de idade fazia
parecer que continuar vindo aqui era algum tipo muito grave de ingratidão.
Eu evitei as memórias trágicas dos meus pais por longos anos até decidir
que precisava encará-las de frente quando completei dezesseis. Por um
tempo, eu fiquei vindo aqui quase todos os dias, até que ser levado pro
reformatório cortou o mal pela raiz. Quando eu saí, Hank não pensou duas
vezes antes de me mandar pro apartamento do Erik em New York, pra
terminar o ensino médio e treinar em algum time de hóquei estudantil até
poder participar dos drafts da NHL. Isso significa que é a primeira vez em
muitos anos que volto aqui.
Respiro fundo. Dou mais uma olhada na lápide de Tara e o ano do seu
falecimento é como uma ofensa pessoal. Ela tinha 28 anos, eu tenho 22. Em
breve vou ser mais velho do que ela nunca teve a oportunidade de ser.
Num gesto de ressentimento, pego o buquê de flores em cima da
lápide de Joe e coloco em cima da de Tara. São margaridas e eu me
pergunto quem perde o seu tempo colocando margaridas na lápide desse
filho da puta. Se dependesse de mim, essa maldita cova nem estaria aqui.
Tenho vontade de incendiar o cemitério inteiro só pra fazê-la desaparecer.
Eu cerro os punhos, incomodado com todas as lembranças que esse
lugar traz. Antes que a raiva possa tomar conta de mim, meu celular vibra,
anunciando uma nova mensagem de Gracie.

GRACIE: O apartamento tá pronto.


GRACIE: você já pode vir.
OLIVER: já sentiu saudade?
GRACIE: Só quero te mostrar a divisão que eu fiz antes de ir pra
cama
GRACIE: E temos que dormir cedo. Ciara marcou o primeiro treino
pra amanhã.
GRACIE: falando nisso, onde você está?

Por motivos óbvios, prefiro não dizer que estou no cemitério.

OLIVER: na swains lane


GRACIE: O rinque de patinação onde gosto de treinar fica ai perto
GRACIE: se chama Canary Ice
GRACIE: Pode ir até lá e ver se já reservaram o horário das sete da
manhã?

Antes que eu responda, Gracie manda mais uma mensagem:

GRACIE: Aproveita pra comprar um par de patins.


GRACIE: os seus estão velhos, bom que você já vai amaciando os
novos
GRACIE: e diga ao seu amigo que não sou sua namorada!!

Arqueio uma sobrancelha diante do último comentário. De início, não


faço ideia de quem ela está falando, só então me lembro de Vincent dizendo
que era vizinho dela. Prefiro não perguntar onde, quando e como aquilo se
tornou uma questão.

OLIVER: mais alguma coisa, vossa majestade?


GRACIE: Por enquanto não, mas pergunte de novo mais tarde.

Eu respondo com uma figurinha revirando os olhos. Dou mais uma


olhada nas lápides de Tara e Joe e uso as mensagens de Gracie como
pretexto para ir embora de uma vez. Não quero que a minha estadia em
Londres se torne uma visita dolorosa ao passado, motivo pelo qual não
pretendo vir aqui de novo.
Eu saio do cemitério Highgate e, com ajuda do Google Maps, não
demoro a encontrar o tal Canary Ice. Além de ser um rinque de treinamento
para atletas, o espaço também funciona como salão de comemorações
infantis nos finais de semana, quando crianças podem usar o espaço para
patinar. Isso explica o canário amarelo gigante que fica na porta, como um
convite para os pequenos.
De todos os rinques disponíveis em Londres, não sei porque Gracie
gosta desse, mas não pretendo passar o meu primeiro dia de convivência
forçada discutindo. Me guio pelas placas do lugar e vou direto para a
secretaria quando entro no espaço. A mulher responsável por receber os
visitantes abre um sorriso pra mim, pausando alguma coisa no seu fone de
ouvido.
— Bem vindo ao Canary Ice, no que posso ajudar?
— Quero reservar o rinque — digo, mesmo não fazendo ideia se é
assim como essas coisas são feitas — pra amanhã às sete.
— Ótimo — a secretária sorri de novo. — Qual o nome do seu
treinador?
— Mulligan… — eu dou uma pausa, porque não me lembro do nome
dela.
Aparentemente, a treinadora da família Salmon é realmente uma
lenda do esporte, porque a mulher reconhece o nome instantaneamente e
completa minha fala:
— Ciara Mulligan? — sugere.
— Isso.
— Vou precisar dos seus documentos.
Ela gira sua cadeira na direção do computador assim que a entrego.
Suas unhas grandes batem contra o teclado enquanto ela cria uma ficha pra
mim.
— Então é verdade?
Ouvir aquele sotaque francês insuportável faz a raiva que eu estava
sentindo alguns minutos atrás acender mais uma vez. Eu não sei quem
disseminou a ideia de que sotaque francês é sexy, mas essa pessoa estava
maluca. É irritante.
— Pierre — eu murmuro, sem nenhum esforço para parecer
simpático. — Quanto tempo.
É claro que, quando sua amiga — inimiga? — de infância aparece
com um namorado, ele se torna presença vitalícia em todas as festas de
família. Pierre Durant estava lá no natal, no almoço do dia dos pais e em
todo tipo de evento que a família Salmon resolvia comemorar junto com os
Fisher. Nunca fui com a cara dele. Ele é loiro demais, francês demais e,
com certeza, branco demais.
— Eu imaginei que a Gracie fosse atrás de você quando soube que ela
estava em Guildford.
— Você ficou sabendo? — balanço a cabeça em negativa,
desaprovando. — A primeira regra dos términos é que você não stalkeia a
sua ex.
— E eu não stalkeei — ele garante, ajeitando a mochila de treino nos
ombros. — Não por vontade própria. Você mais do que ninguém sabe como
as fofocas voam no mundo dos esportes.
Movo a cabeça em afirmativa, muito interessado em terminar aquela
conversa.
— Como ela te pediu? — Pierre pergunta, os olhos claros se
esforçando para transmitir uma inocência que não existe. — Tenho certeza
que ela chegou em Guildford desesperada depois de fazer aquela live
ridícula.
— Ah, não. Na verdade, ela estava muito feliz. Tipo, feliz pra caralho.
Acho que você não sabe, mas ela ia te chutar de qualquer jeito. O lance todo
da traição só adiantou um pouco as coisas.
Pierre retesa os ombros. Não sei se ele acredita em mim, mas parece
irritado o suficiente para me fazer querer continuar:
— Sobre o pedido… — eu deixo uma risada escapar. — Eu não ia te
contar, cara, você sabe, bro’s code e tal, mas…
— Vocês transaram? — ele pergunta, antes mesmo de eu terminar,
como se isso fosse um crime gravíssimo.
Por mais que tenha metido um par de chifres nela, definitivamente,
ele ainda se importa.
— Sim — respondo. — Muito. Acho que o pedido rolou na oitava ou
na décima vez. Eu tenho um fôlego impressionante e a Gracie queria testar
a nossa química fora da cama também. Estamos juntando o útil ao
agradável, como você fez com a… Qual o nome dela? Karina?
Eu sei que o nome dela é Kate.
Vejo quando Pierre cerra os punhos. No fundo, estou torcendo para
que ele me dê um soco e eu possa socá-lo de volta, com a desculpa de que
ele me bateu primeiro. Sou vários centímetros mais alto, seria uma briga
fácil.
Infelizmente, ele não me soca.
— A Gracie nunca soube a hora de se retirar de uma situação — ele
diz, meneando a cabeça. — Nesse caso, vai ser um prazer ver vocês dois
indo embora de Paris sem nada enquanto eu e a Kate levamos o ouro pra
casa.
— E você já sabe que nome vai colocar na sua medalha? — pergunto.
— Eu sugiro Monsieur Traître[5].
— Fico feliz em saber que você tem senso de humor — ele revira os
olhos. — Vai precisar depois que perderem feio.
— Muito legal da sua parte se preocupar.
— Oliver — a secretária chama minha atenção e Pierre aproveita a
deixa para atravessar a porta que leva ao estacionamento. Eu observo seu
corpo esguio chegar no seu carro enquanto torço para que ele tropece e
quebre uma perna. — Reservei o seu horário. Cheguem com alguns minutos
de antecedência, tudo bem?
Eu assinto e ela me entrega um cartão com meu nome que, eu deduzo,
serve para formalizar a minha entrada no rinque.
— Boa sorte em Paris — ela completa. — Alguém precisa tirar esse
homem do pedestal.
Eu rio, agradecendo com um aceno que esconde o meu nervosismo.
Só agora consigo mensurar a tensão que compõe cada uma das paredes
desse rinque. Eu ignoro o arrepio que desce pela minha nuca e mando uma
mensagem para Gracie, porque é melhor que ela saiba o que eu acabei de
dizer pro Pierre.

OLIVER: espero que você não esteja planejando voltar com seu ex
OLIVER: se estiver, as coisas acabaram de ficar um pouco
complicadas pro seu lado
CAPÍT ULO 13 - GRACIE SALMON

Às vezes bastam dois segundos para você perceber que tomou uma
péssima ideia e que sua vida fugiu completamente do controle.
Dois segundos.
Esse foi o tempo que levei para ver o Oliver entrando no rinque de
patinação.
A situação entre nós, que nunca foi exatamente tranquila, está em um
ponto delicado depois da última noite quando descobri que o babaca disse
para Pierre que tinha transado comigo várias vezes, como se eu fosse uma
qualquer que tem zero inteligência emocional e que correu para o amigo —
inimigo? — de infância assim que levou um pé na bunda.
Eu não vou negar, adoraria ter visto a cara de espanto do meu ex.
Mesmo assim, eu não podia deixar o Oliver sair impune da sua gracinha.
Foi por isso que o proibi de ir para o meu apartamento ontem. Não sei onde
ele passou a noite, mas se está aqui agora, significa que está vivo.
Por enquanto.
— Onde você pensa que vai, vestido desse jeito?
Ele levanta uma sobrancelha e olha para o próprio corpo sem
entender.
— Até onde eu me lembro, temos um treino agora. Ou ficou tão
ofendida com a minha ajuda que desistiu da nossa parceria?
É muita ousadia desse homem falar que me ajudou.
— Ok, em primeiro lugar, você não me ajudou em nada. Segundo, eu
já disse que não vou desistir, precisa superar que perdeu a nossa aposta. E
terceiro, você não vai treinar desse jeito.
Ele volta a olhar para a própria roupa sem notar nada de estranho.
Solto um suspiro.
Acho que vai ser mais fácil eu mostrar do que explicar.
— Essa roupa é inadequada. Olha para mim. — Abro os braços
mostrando o conjunto rosa e simples colado ao corpo, mas de forma
confortável. Dou um giro ao redor dele puxando a imensa e larga camisa
dos New York Owls. — Isso aqui só vai atrapalhar.
Faço um gesto para tentar abraçá-lo, mas não consigo completar o
movimento, pois, como pensei, a camisa que caberia dois Olivers dentro
prende a minha mão.
— Viu? Essa camisa aí pode servir para hóquei, mas é inútil para
patinação.
Oliver acena e, por incrível que pareça, tem o rosto sério ao entender
o que quero dizer. Isso me dá uma esperança de que talvez ele consiga levar
o treinamento com a atenção necessária.
Ele me encara, então abre um sorriso malicioso.
— Isso não é apenas uma desculpa esfarrapada sua pra me fazer
treinar sem camisa?
Ok, esquece. Oliver Fisher é um caso perdido.
— Já te disseram que você se acha muito? — Aponto para o local de
onde ele veio. — Vai na secretaria, vê se tem alguma camisa por lá que
você pode pegar emprestado por hoje. Assim que terminarmos, a gente vai
comprar roupas decentes para você.
— Tudo bem, vossa majestade.
Reviro os olhos quando ele desliza na direção da entrada do rinque.
Começamos com o pé esquerdo e isso me deixar nervosa. Tem tanta coisa
em jogo, minha carreira, reputação, o nome Salmon e, agora, a carreira de
Mrs. Mulligan. E tudo isso depende da pessoa que veio treinar com uma
blusa que mais parece uma camisola.
Impossível não questionar todas as escolhas que fiz na minha vida
depois disso.
Bom, pelo menos, minha treinadora não viu isso. Foi uma vergonha
que passei sozinha.
Não demora muito tempo para Oliver voltar com uma camisa menor.
Ainda não é uma roupa adequada para a prática, já que ela tem mangas
curtas e está um pouco apertada — o que pode limitar seus movimentos —,
mas é um imenso avanço se comparado ao uniforme de antes.
— Satisfeita, vossa majestade?
É a terceira vez que ele me chama assim e não estou gostando nada
desse apelido. Como se desgracie não fosse ruim o suficiente.
— Vamos fazer um aquecimento antes da Ciara chegar.
Disparo pela pista para ganhar velocidade e Oliver logo me alcança.
— Eu vou fazer uma série de exercícios e quero que você os repita
comigo. Coisas simples, só pra manter o corpo aquecido.
Oliver concorda e viro o corpo para frente enquanto começo um
swizzle[6] com uma elevação de braços intercalados. Em seguida repito os
exercícios, mas enquanto faço um backward swizzle[7]. Agora posso
observar melhor Oliver e fico feliz que ele esteja fazendo sem nenhuma
dificuldade. É um alívio não precisar começar do básico.
Passamos pelos crossovers[8] e não temos tempo de avançar muito
mais antes da treinadora chegar com um sorriso no rosto. Ela faz um aceno
na nossa direção e, quem olha aquela expressão radiante, não imagina o
quanto ela pode ser carrasca durante os treinos. Tenho várias memórias de
quando eu ainda era criança e via minha mãe chegando em casa exausta e
xingando todos os nomes possíveis — sem palavrões, porque ela não os usa
na minha frente.
— Que bom que vocês já começaram, todo o tempo que temos ainda
será pouco. Vamos precisar de um milagre pra deixar vocês no jeito.
Não gosto da forma como ela me inclui na mesma categoria de
Oliver. Eu não sou uma amadora, sou uma medalhista olímpica, sei muito
bem qual é o meu lugar. Mesmo assim, decido não discutir.
— Pelos próximos minutos, eu vou pedir para que vocês façam uma
série enquanto dão voltas ao redor do rinque. Salmon, — ela aponta para
mim — você vai primeiro e mostra ao Fisher como deve ser feito. Em
momento nenhum quero que parem de circular o rinque, entenderam?
Eu e Oliver assentimos em silêncio enquanto a treinadora se desloca
para o centro do rinque.
— Quero que peguem velocidade, eu vou dizer quando vocês devem
parar.
Passamos quase meia hora fazendo dezenas de exercícios.
Felizmente, eu conhecia todos eles e consegui executá-los sem o menor
erro. No entanto, percebi que eram exercícios de complexidade baixa para
média, o que me faz pensar que ela quer ver até onde Oliver consegue ir. É
uma abordagem inteligente, mas eu não esperava menos da lenda Ciara
Mulligan.
— Ótimo, agora vocês têm cinco minutos para descansar e voltamos.
Ela desliza para uma parte do rinque onde há uma balcão e se serve
de uma xícara de café.
— O que tá achando? — pergunto pra Oliver. Ele tem o rosto
tranquilo, a respiração em um ritmo normal. Apesar de fumar como uma
chaminé, o hóquei deu um bom preparo para ele.
— Isso é ridículo. — Há um sorriso debochado no seu rosto que me
dá vontade de arrancar na unha. — Eu pensei que seu trabalho era um
pouco mais difícil, desgracie.
Respiro fundo. Eu sei que é questão de tempo para que o ego de
Oliver sofra um baque. Não vou estragar tudo adiantando as coisas.
— Você tem razão. Patinação artística é idiota, coisa de menininha. O
hóquei sim é difícil e complexo.
Ele me lança um olhar demorado, mas não responde.
— Se vocês não vierem logo, não vão descansar antes de a gente
começar a treinar.
Observo a cara de surpresa no rosto de Oliver e sorrio.
— Você não achou que a gente tinha começado, achou?
Saio sem esperar uma resposta, em busca do meu café sem açúcar.

∞∞∞
Eu sabia que tínhamos uma tarefa grande diante de nós, mas não
imaginava que ela seria, na verdade, gigantesca.
Depois de duas horas de treino, estou sentada ao lado do rinque, os
patins jogados no banco. Ciara foi fumar um cigarro e me disse, de uma
forma discreta, que eu deveria conversar com o Oliver enquanto ela
estivesse lá fora, se entupindo de nicotina. Apesar de não ter dito, eu sei que
ela está arrependida de ter aceitado o convite da minha mãe.
O Oliver é péssimo.
Se as olimpíadas acontecessem hoje, não passaríamos do programa
curto. Ele consegue fazer os exercícios mais simples e até mesmo alguns
medianos quando está sozinho, mas não consegue fazê-los em dupla. A
culpa não é só dele. Nos conhecemos desde a infância e eu imaginei que,
por causa disso, teríamos alguma conexão maior do que realmente temos.
Acho que superestimei demais a faísca que existe entre nós e,
honestamente, o que isso diz sobre mim?
Enfim. Dizem que o ódio é capaz de mover montanhas, mas, no
momento, não está movendo nem um pedacinho de gelo. Temos pouco mais
de 3 semanas até o mundo ver a pior apresentação da história das
olimpíadas.
— Acho que não foi tão horrível assim…
Olho para o homem de quase dois metros sentado despreocupado no
banco ao meu lado, bebendo isotônico. Observo uma gota escorrer pelo seu
queixo, descendo pelo pescoço tatuado. Preciso admitir que ele é gostoso,
mas eu estou com raiva. Não é possível que Oliver realmente acredite no
que acaba de dizer. A frustração no meu peito se expande e eu me permito
extravasar.
— Se nossa meta for passar vergonha para o mundo inteiro, estamos
no caminho certo.
Ele não responde nada, e isso me deixa com mais raiva. Só então
percebo que seus olhos estão contornados por olheiras profundas.
— Onde você esteve ontem à noite?
— Não é da sua conta. Você sabe que batemos um recorde, né?
Demorou menos de 24 horas pra me expulsar de casa — ele ri. — Eu me
virei.
Me levanto e fico na sua frente.
— Olheiras, isotônico… você tá de ressaca?
— Claro que não. Devo ter bebido duas cervejas com o Vincent, no
máximo.
Sinto o peito ferver e inspiro a maior quantidade de ar que consigo
para manter o controle.
Eu não vou surtar, não vou surtar.
— Eu não acredito que você foi encher a cara ontem à noite sabendo
que tínhamos um treino hoje cedo!
— Eu não enchi a cara. Já falei, duas cervejas. E eu apareci hoje, não
apareci? Não sei porque você tá surtando.
Solto uma risada nervosa.
— Você tá de brincadeira comigo? A última hora foi um desastre
total! Nesse momento a Ciara deve estar pensando em uma boa desculpa
pra desistir da gente e eu não julgo. — Deixo o meu corpo cair no banco ao
perceber algo que eu já temia. — Isso foi uma péssima ideia.
Oliver suspira, então revira os olhos. Definitivamente, ele não tem
algo importante que todos os atletas têm: a obsessão por vencer, a
capacidade de abrir mão de coisas em nome da própria carreira.
Estou fodida.
Estamos.
— Relaxa, Gracie — ele diz. — É só o primeiro dia de treino. E já
disse, foram só duas cervejas.
Antes que eu possa responder, Mrs. Mulligan está de volta.
— Sabe que essa é uma ótima ideia?
Olho para aquela mulher baixinha, os cabelos grisalhos e um rosto
bondoso sem acreditar no que estou ouvindo.
— Beber antes de um treino? Desde quando?
— Não foi isso que eu disse — ela se diverte. — Mas seria bom se
vocês passassem algum tempo sozinhos, na companhia de algumas
cervejas, quem sabe. Claro que você tem que maneirar, Salmon, não quero
que passe mal por causa da diabetes, mas uma tarde bebendo juntos vai
fazer milagre por vocês dois. Podem ir a um pub, quem sabe.
Meu cérebro envia um comando para o maxilar fechar a minha boca,
mas o meu corpo parece em estado de choque com o que eu acabo de ouvir.
— Nós… — eu começo, mas as palavras embolam na minha língua.
— E o treino hoje?
— Treinar como, menina? Vocês estão sem coordenação nenhuma.
Fisher, você não é um péssimo patinador, mas seu nível é básico. Se a gente
construir uma série focada na Salmon, teremos algo promissor pra
apresentar nos jogos. — O seu comentário enche o meu peito de esperança,
mas o balde de água fria vem logo em seguida. — Mas nada disso vai
funcionar se vocês não tiverem o mínimo de conexão. Sincronia, sinergia…
Vocês sabem do que estou falando.
De alguma forma, saber que não tenho uma conexão com Oliver
Fisher me deixa um pouco incomodada. Não sei explicar porquê, mas eu
sempre pensei que… Não sei. Tantos anos odiando uma pessoa pareciam
significativos de alguma forma, mas aparentemente não são.
Como eu não me movo, a treinadora começa a me empurrar para fora
do banco.
— Anda! Vocês estão perdendo um tempo valioso! Só tenham limites,
amanhã quero os dois aqui às cinco da manhã. Agora saiam e voltem com
uma conexão decente.
Somos praticamente enxotados do rinque de gelo. Depois de ser
chutada pelo meu antigo parceiro, meu antigo treinador e agora a minha
atual treinadora, a sensação que fica é que estou sendo expulsa de todas as
áreas da minha vida.
CAPÍT ULO 14 - OLIVER FISHER

— Acho que quando Mrs. Mulligan disse que precisávamos criar uma
conexão, ela não estava dizendo que deveríamos cometer crimes juntos.
Os braços de Gracie estão cruzados na frente do peito e ela respira
muito fundo para demonstrar a sua irritação. Eu tiro as chaves do
apartamento de Vincent e enfio na fechadura, o que seria suficiente para
Gracie entender que esse não é um caso de invasão de propriedade se ela
não fosse uma ansiosa crônica.
Vincent é do tipo que leva seguranças para corridas clandestinas, mas
também é o cara que não se importa em dar uma chave do seu apartamento
pra qualquer pessoa o que, em outras palavras, significa que ele tem uma
tendência a ser pouco ou nada coerente. E qualquer pessoa, em dias
normais, quer dizer as garotas com quem ele tem casos de uma noite só.
Nessa situação específica, qualquer pessoa sou eu.
A porta se abre e Gracie arqueia uma sobrancelha ao observar o
movimento, mas não se mexe.
— Foi aqui que você dormiu? — pergunta, deduzindo o óbvio.
— Por quê? — Eu entro antes dela, conferindo que Vincent não está
em casa. Pego minha mochila no sofá da sala. — Vai me expulsar de novo?
— Não vou ser tão boazinha da próxima vez.
— Isso foi você sendo boazinha? — Balanço a cabeça em negativa,
incrédulo. — Eu queria ter dormido na rua, levado uma facada e morrido só
pra você viver o resto da vida com peso na consciência.
— Eu ficaria triste — responde, finalmente entrando no apartamento
de Vincent. — Mas só porque não teria mais um parceiro. Infelizmente
preciso que seus órgãos internos fiquem intactos por um tempo.
— Meus órgãos internos estão ótimos, obrigada.
— Disse o fumante. O que nós viemos procurar? — Gracie questiona,
encostando a porta atrás do corpo. Ela passa os olhos pelo apartamento,
como se estivesse julgando as escolhas decorativas de Vincent. — Ou
roubar.
— Pegar emprestado — corrijo. — Mrs. Mulligan disse pra gente
beber, mas acho que precisamos de um tratamento de choque.
— Eu não vou usar cocaína com você.
Reviro os olhos.
— Não é cocaína.
Gracie franze o cenho, como se duvidasse do meu comentário. Eu
deixo ela na sala e vasculho a bancada da cozinha de Vincent, tentando me
lembrar onde ele disse que guardava. Talvez ele nem use mais,
considerando que era uma coisa dos seus tempos de boyband.
Dedilho a porta de madeira dos armários enquanto penso. Abro um
deles e percebo que é onde Vincent deixa seus temperos. Não faz sentido,
porque ele nunca cozinha. Observo cada pote com mais atenção e
finalmente entendo que o que eu procurava estava na minha frente o tempo
todo.
Pego um dos potes e tiro a tampa para confirmar minhas suspeitas. O
cheiro responde todas as minhas perguntas e eu fecho o armário, deixando
os outros potes de Vincent pra trás. Nem quero saber as outras coisas que
ele guarda ali dentro.
Gracie se aproxima do batente da porta com uma expressão entediada.
Acho que se cansou de analisar cada centímetro do apartamento de Vincent
e agora está ansiosa pra ir embora. Desde a sugestão da treinadora, ela
parece um pouco mais puta com a minha existência, como se perder um dia
de treino para beber fosse um absurdo que ela nunca presenciara ao lado de
Pierre.
— O que é? — ela pergunta, analítica.
— Maconha.
Gracie arregala os olhos. Sua boca se move e sei que ela está prestes a
soltar algum xingamento, mas desiste no meio do caminho. Balança a
cabeça em negativa e volta para a sala, soltando um suspiro alto.
Mando uma mensagem para Vincent avisando que roubei sua
maconha e saio do apartamento, esperando que Gracie me acompanhe.
Enquanto esperamos o elevador, repasso todos os detalhes dessa
manhã pavorosa: primeiro, eu e Gracie somos péssimos patinando juntos.
Segundo, roupas largas não são próprias pra patinação. Terceiro, todo
mundo sabe que eu e Gracie estamos patinando juntos, mas, até a sua
agente mandar uma nota oficial pra imprensa, ninguém sabe. Esse foi um
dos motivos pelo qual escolhemos passar nosso dia de bebedeira em casa e
não em um pub. Gracie estava surtando diante da possibilidade de vazarem
fotos nossas.
A porta se abre e nós dois entramos em silêncio. Ela ainda está
absorvendo o fato de que estou com uma quantidade considerável de droga
dentro de um pote de tempero caseiro que poderia ser de alguma avó.
Gracie encosta o quadril nas paredes do elevador e observa os números
digitais aumentarem até que chegamos na cobertura.
— Eu dividi o apartamento — Gracie informa. — Pra ficar mais
confortável pra nós dois.
Os outros apartamentos do prédio — são dois por andar — contam
com um extenso corredor, mas não o de Gracie. Por ser a cobertura, o
elevador leva direto para a sala, onde o seu cachorro nanico espera por nós.
Ela faz um sinal para que eu saia e usa uma das chaves do seu chaveiro
felpudo para trancar a porta.
— Tem que deixar trancado sempre que chegar — explica. — Vou
arranjar uma chave pra você.
Movo a cabeça em afirmativa. Quando ela disse que dividiu o
apartamento, eu não pensei que ela estava sendo literal. Meus olhos caem
na fita cor de rosa que separa a sala em partes iguais e eu solto uma risada
incrédula.
— Que merda é essa?
— A divisão do apartamento — responde, dando de ombros. — O seu
quarto fica no fim do corredor, bem longe do meu. Fique na sua parte e
nenhum de nós dois vai ser preso por homicídio doloso.
Como se estivesse zombando da minha cara, Ben deita de costas em
parte da fita que cobre o chão, rolando de um lado para o outro. Tenho
certeza que está se divertindo por ter uma liberdade que eu não tenho.
— Lembra quando eu te mandei várias esculturas de gelo de palhaço
de aniversário?
— Sim. — Gracie franze o cenho.
Todo mundo sabe que ela odeia palhaços.
— Vou fazer pior depois dessa história de fita.
— Estou tentando transformar a nossa convivência em uma
experiência mais suportável. — Ela se senta no sofá, no que eu entendo que
é a parte dela. — Vai lá, prepara essa coisa.
A forma como ela diz “essa coisa” não deixa dúvidas de que nunca
fumou antes.
— Então você vai fumar?
— Supondo que meu corpo entre em pane, você sabe o que fazer?
Movo a cabeça em afirmativa.
— Meus contatos de emergência estão no celular — diz, por
precaução, colocando o iPhone em cima da mesinha de centro na frente do
sofá.
Gracie se levanta, mas não diz pra onde vai. Eu sento no “meu” lado
do sofá — nem ele foi poupado da fita rosa que atravessa todo o lugar — e
vasculho minha mochila até encontrar alguma seda. Com certeza não vai
ser o melhor baseado que bolei na vida, mas vai servir.
Gracie volta com uma garrafa de Gin e coloca na mesa.
— Eu tomei um bom café da manhã hoje — diz. — E já apliquei
minha dose de insulina. Acho que vou sobreviver. Se eu precisar de uma
dose de emergência…
— Sei o que fazer, desgracie — ressalto, mas não tenho certeza se ela
acredita em mim.
Ela se senta de novo, tira a tampa da garrafa e sorve um longo gole,
sem se preocupar em pegar um copo. Acho que está tentando parecer mais
descolada do que realmente é.
— Mas não exagera — complemento.
Gracie revira os olhos.
— Se é pra tomar um porre, tem que fazer direito.
— Tomar um porre, não uma overdose.
— Impressionante — Gracie me encara. — Você sabe ser
minimamente responsável quando quer.
— Isso não é responsabilidade, é trauma.
— Trauma do quê?
— Uma garota em Los Angeles — explico, sem entrar em muitos
detalhes. As festas em L.A costumam sair de controle muito fácil, mas eu
definitivamente não esperava ter que lidar com um problema daquele
tamanho. — Digamos que ela teve uma overdose numa festa que eu estava.
[9]

— E ela sobreviveu?
— Sim.
Gracie faz uma careta.
— Não se fazem mais traumas como antigamente.
— É sério, foi uma situação de merda.
— É claro que foi — Gracie oferece a garrafa na minha direção e eu a
pego assim que termino de bolar o nosso beck.
Dou um gole.
— Pronta pro primeiro baseado da sua vida?
— Era óbvio que ser sua parceira ia me levar pro mal caminho — ela
reclama, mas move a cabeça em afirmativa.
Tiro um isqueiro do bolso da calça e acendo o cigarro. O cheiro de
erva se espalha pela sala e Gracie tem alguma dificuldade de tragar quando
eu entrego o baseado nas suas mãos. Ela engasga duas vezes antes de
conseguir fumar de verdade e deixa parte da seda suja de gloss labial. Isso
me faz pensar que a gente deveria ter comido ao invés de fumar, mas isso
seria radical demais pra ela.
Ela passa o cigarro pra mim e grita pra Alexa tocar alguma música da
sua playlist de favoritas enquanto recupera a garrafa de gin. Passamos
alguns minutos assim, em silêncio, alternando entre o beck e a bebida até
que o gosto de gin começa a parecer enjoativo. O sorriso no rosto de Gracie
é com certeza maior que dez minutos atrás, o que me fez ter certeza de que
ela já ficou um pouco alta.
— Eu devia ter dito isso pra ele.
Provavelmente por causa da maconha, eu demoro um segundo para
pegar o que ela está falando. Gracie aponta para um dos ouvidos e eu
entendo que preciso prestar atenção na letra da música que preenche o
apartamento.
Only six seconds and I had to fake it.[10]
Uma risada escapa da minha garganta e eu sei que minha reação é
indelicada, mas posso colocar a culpa na erva e na garrafa de gin que já está
na metade.
— Você ficou oito anos namorando um cara que não te fazia gozar?
Gracie pega uma almofada do seu lado do sofá e atira na minha
direção.
— Tinha muita coisa em jogo — murmura, a voz um pouco
embolada. — Sexo ruim não parecia um motivo bom o bastante pra jogar
tudo pro alto. Além disso, eu acho… — ela dá uma pausa, então ri. — Eu
tenho certeza que minha mãe me mataria se eu estragasse tudo só por causa
de sexo. Ela não ficou do meu lado nem quando eu disse que ele me traiu.
Faço uma careta.
— Ela leva essa coisa de patinação muito a sério.
Gracie franze o cenho.
— E isso é uma coisa ruim?
Dou de ombros, levando o cigarro até a boca.
— Mais ou menos.
— Mais ou menos como?
— Sinto que você vai ficar puta se eu falar minha opinião de verdade.
— Ninguém fica puto depois de fumar maconha — ela pula no sofá,
se aproximando um pouco mais do meu lado. Seus olhos estão começando a
ficar vermelhos. — Eu acho.
Assinto, mas continuo com a impressão que ela vai me bater assim
que eu abrir a boca.
— Acho que ninguém deveria viver pela própria carreira, só isso.
Gracie move o dedo indicador de um lado para o outro, em uma
negativa exagerada que só uma pessoa chapada faria.
— Levar a sério e viver pela própria carreira não são a mesma coisa.
— Me fala um sonho seu — peço. — Um que não seja sobre
patinação.
Gracie passa a língua pelo lábio inferior, num gesto de nervosismo.
Ela abre a boca algumas vezes, mas não diz nada. Consigo ver pelo vazio
nos seus olhos que não consegue encontrar, dentro dos seus próprios
pensamentos, uma resposta satisfatória.
— Quem é você quando não está patinando, Gracie?
Gracie bufa, bebendo mais um gole de gin.
— Continuo sendo medalhista de ouro quando não estou patinando —
responde, fingindo que não entendeu minha pergunta. — Não é suficiente?
— Pra você é?
Ela deixa a garrafa em cima da mesa e rouba o cigarro da minha mão.
— Você tá me deixando confusa — reclama, como uma criança
birrenta. — Esse não é o tipo de papo que dá pra ter depois de fumar
maconha pela primeira vez.
Gracie se levanta do sofá, ainda com o cigarro na mão. Ela não traga,
então tenho a sensação que se esqueceu dele. Ainda está dentro das suas
roupas de treino, o que não combina com a nuvem de fumaça que toma
conta da sala. Tenho certeza que esses móveis nunca viram uma tragédia tão
grande.
Gracie tropeça de repente e por um segundo eu acho que ela
desmaiou por causa de uma alta de glicose no sangue. Eu me levanto para
ver de perto e entendo que não é o caso quando ela solta uma gargalhada,
rindo da própria situação. Ela não tenta se levantar. Ao invés disso, deita o
corpo no tapete felpudo ao lado da mesa e me observa.
— Esse tapete é tãooooooo bom — diz, enquanto move os braços
pelo tecido. — Fico feliz que a Gracie do passado tenha comprado ele. Viu?
Eu tenho sonhos que não envolvem patinação. Ter esse tapete na sala, por
exemplo. Tapetes são caros.
Estou prestes a dizer que nem ela acredita no que está dizendo, mas
ela levanta uma das mãos na direção da mesinha antes que qualquer
comentário escape da minha boca. Ela tenta encontrar a sua garrafa de Gin
e leva um susto quando seus dedos a derrubam em cima da mesa, causando
um pequeno desastre.
— Puta que pariu — ela reclama, numa mistura de indignação e
medo. Ela confere os próprios dedos para garantir que não se cortou e abre
um sorriso como se pedisse desculpas. — Merda, eu vou ter que mandar
meu tapete lindo pra lavanderia.
Nunca ouvi Gracie Salmon falar tantos palavrões em tão pouco
tempo, o que significa que, com certeza, ela está um pouco chapada.
— Você vai ter que se mandar pra lavanderia — digo, levantando a
garrafa de bebida. Só então ela percebe que sua blusa está melada de gin.
Seus olhos finalmente encontram o cigarro de maconha em cima da mesa,
agora apagado por causa da bebida. O beck parece um pastel depois de ficar
encharcado. — Acho que chega de álcool por…
Eu não termino a fala, porque Gracie tira a sua blusa encharcada e a
atira em um canto do sofá. Sequer tenho raciocínio lógico o suficiente para
definir se aquele lado é o meu ou o dela.
Puta que pariu, desgracie.
— Chega de álcool por hoje — ela completa minha fala, como se não
tivesse feito nada demais. — Você não tá nemmmm um pouquinho bêbado?
Eu assinto, usando todo meu autocontrole para não encarar os peitos
dela, mas tenho certeza que já encarei, uma vez ou duas.
Talvez três, porque eu saberia descrever em detalhes o sutiã que está
usando.
— Acho que sim — respondo, voltando a me sentar no sofá. Tento
encontrar alguma coisa que tire Gracie Salmon seminua da minha visão,
mas não encontro nada —, mas maconha não bate em mim do jeito que bate
em você.
Gracie move a cabeça em afirmativa e fica mais alguns segundos em
silêncio, a música nas caixas de som do apartamento sendo o único som
entre nós. Ela se levanta e eu sinto meu pau latejar dentro da calça com uma
visão muito privilegiada dos seus peitos — uma visão que eu não deveria
ter.
Gracie se senta do meu lado. Ela coloca a unha do polegar na boca e
rói num nervosismo que ela nem tenta esconder. Eu sei que, em dias
normais, ela não é do tipo que rói as unhas.
Sua boca se move, mas Gracie demora um bom tempo até formar uma
frase.
— É normal… — ela para no meio do caminho e fica me encarando
por um bom tempo, sem dizer mais nenhuma palavra. E ela não precisa
dizer, porque seus olhos descem até minha boca de tempos em tempos e ela
olha as tatuagens no meu braço como se quisesse tocar cada uma delas.
Sei reconhecer uma mulher com tesão quando vejo uma.
Tenho certeza que esse era o último efeito que Mrs. Mulligan queria
quando sugeriu que a gente bebesse. Tesão não ajuda em nada. Tesão
complica as coisas.
— Deixa pra lá — diz. — Tenho certeza que vou me arrepender se
falar isso.
O mais sensato seria concordar e mandar Gracie pro lado dela do
apartamento. Obviamente, não é isso que eu faço, porque brincar com fogo
é a minha especialidade. Ultrapasso a faixa cor de rosa que divide o sofá e a
observo mais de perto. Ela não se afasta, mas também não completa a frase
que começou.
Me aproximo mais um pouco, porque quero saber até onde posso ir
sem ganhar um olho roxo. Eu enrolo uma mecha do seu cabelo nos dedos e
faço a pergunta, mesmo já sabendo da resposta.
— Você tá com tesão?
Minha pergunta direta a deixa desconcertada por um momento. O seu
perfume floral enche meu olfato e sinto que vai ser difícil tirar esse cheiro
da cabeça. Ela dá uma olhada na minha boca de novo, como se estivesse
decidindo se vale a pena quebrar nossa regra de não envolvimento sexual na
minha primeira noite aqui. Eu não vou transar com ela, porque está bêbada,
chapada e carente dias depois de terminar um relacionamento merda de oito
anos. Mesmo assim, seria uma grande massagem no meu ego saber que
Gracie sente por mim o mesmo desejo que sinto por ela.
Quase consigo ver nos seus olhos o momento que ela decide abrir
mão da sua regra de não envolvimento. Ela coloca uma das mãos no meu
pescoço e seus dedos contornam a tatuagem de adaga na minha pele com
uma atenção impressionante. Como se soubesse que sua dona está prestes a
tomar uma péssima decisão, Ben late.
— Não estou. — Gracie se levanta de supetão e corre para pegar o
cachorro no colo. — O que foi, honey? — ela pergunta, fazendo uma careta
exclusivamente para ele. Então, ela se volta pra mim. — Eu só estava
pensando…
— Em transar comigo?
— Talvez isso tenha passado pela minha cabeça, sim, mas não
importa — Gracie fala, rápido, querendo encerrar o assunto. — As regras
que discutimos na viagem pra cá ainda estão valendo. Não vamos transar,
Oliver, nunca. Mesmo que o meu cérebro esteja tentando me pregar uma
peça por causa dessa maconha maldita.
— Tá dizendo isso pra mim, pra você ou pra sua boceta?
Gracie levanta o dedo do meio pra mim.
— Pra todos os três.
Ela se vira e, antes que eu possa responder, desaparece no corredor
com Ben no colo, respeitando as linhas cor de rosa e indo em direção aos
quartos que estão do seu lado do apartamento.
— Desgracie! — eu chamo.
Ela demora alguns minutos para aparecer na sala de novo, dessa vez
sem o cachorro, agora enrolada numa toalha. Gracie não se aproxima
demais, apoiando um dos braços no batente, como se temesse seu próprio
autocontrole. Seu cabelo escuro cai por cima da toalha de um jeito
bagunçado, as pontas ainda molhadas de gin. É cedo e as luzes do
apartamento estão desligadas, mas sua pele escura parece brilhar mesmo
assim. Normalmente, tem uma lista enorme de motivos pelos quais odeio
Gracie Salmon, mas, nesse momento, a odeio por ser tão bonita.
— Tenho certeza que eu te faria gozar.
Primeiro, ela ri, mas sei que é o efeito por termos fumado. Logo em
seguida, Gracie me mostra o dedo do meio e volta pro seu quarto, não sem
antes gritar pra mim:
— Vai se foder, Fisher!
NEWS: O retorno da lenda

O retorno da lenda
Depois de muitos dias de silêncio e especulação, finalmente os fãs de
Gracie Salmon (20) receberam uma atualização sobre a patinadora. A nota
que sua agente enviou para a imprensa foi curta, mas com informações
suficientes para fazer uma legião de entusiastas do esporte surtar.

“Gracie Salmon irá competir nos Jogos


Olímpicos de Paris e já está treinando com o
seu novo parceiro, Oliver Fisher (22), um
grande amigo de infância. Com a supervisão de
Ciara Mulligan, a nossa equipe está confiante
de que realizarão um ótimo trabalho e não
vemos a hora de poder compartilhá-lo com o
público.”

Uau! Tantas informações em tão poucas palavras! Para quem não


conhece, Oliver Fisher é ex-jogador dos New York Owls e foi expulso por
comportamento violento na última temporada, uma informação que a
esperta agente de Salmon preferiu não comentar. Ninguém sabe o motivo
dessa escolha, já que o jogador não tem nenhum histórico de participação
em competições de patinação artística.
Além disso, descobrimos agora que a filha está seguindo os passos da
mãe ao ser treinada pela lendária Ciara Mulligan, a treinadora mais
premiada da história da patinação artística mundial. Eu não sei o que
vocês pensam sobre isso, mas aqui no EstherNews, estamos muito
empolgados com isso. Vários atletas tentaram trazer a Sra. Mulligan de
volta à ativa nos últimos anos, mas todos falharam. O que será que ela viu
nessa improvável dupla para decidir deixar de lado o conforto da sua
aposentadoria e voltar à cena? Ou será que está apenas fazendo um favor à
sua pupila de mais de duas décadas?
Acho que só teremos a resposta para essas e várias outras perguntas
no final do mês.
Sexta-feira, 5 de julho de 2024
CAPÍT ULO 15 - GRACIE SALMON

Se a Gracie adolescente tivesse um vislumbre do futuro e visse onde,


com quem e o que estou fazendo agora, ela acharia que bati a cabeça em
algum lugar e perdi completamente a minha capacidade cognitiva. Nada no
universo parece capaz de explicar em qual realidade seria normal Gracie
Salmon e Oliver Fisher saírem às compras juntos.
Estamos no intervalo entre os treinos. Ciara está impondo uma rotina
intensa de treinamento para que a gente consiga recuperar o tempo perdido.
Começamos às cinco da manhã, seguimos até às dez e depois fazemos uma
pausa de duas horas para o almoço. Quando retornamos, seguimos até às
cinco da tarde. Em toda a minha carreira no gelo, nunca tive treinos tão
longos. Estava acostumada a períodos menores — geralmente de três horas
—, mas intensos. Não sei se gosto desse novo formato.
— Acho que fumar um deu resultado — diz Oliver enquanto
caminhamos pelo Shopping Westfield London. Eu preferia que não fosse
um local tão público, mas agora que a Clarice já mandou a declaração para
a imprensa, não vai ser um furo de reportagem se nos verem juntos. — Mrs.
Mulligan quase nos elogiou hoje.
— Fala baixo! — Imediatamente olho ao redor, mas não tem ninguém
perto o suficiente para ouvir a nossa conversa. — A última coisa que eu
preciso é um escândalo dizendo que estou usando drogas.
— Seria uma forma de chamar a atenção. Imperatriz do Gelo
Maconheira. Aposto que o mundo da patinação não tá preparado pra isso.
— Não me chame assim.
— Assim como? Maconheira?
Paro de andar e cruzo os braços.
— É sério, Oliver, para de dizer essa palavra em público! — Olho ao
redor buscando a loja que estamos procurando. — Mas não é disso que eu
estava falando. A outra coisa.
Suas sobrancelhas se juntam enquanto ele tenta pensar no que quero
dizer.
— Imperatriz do Gelo? Pensei que você gostasse desse título, passa
bem o seu ar de mandona.
Levanto o dedo do meio para ele e retomo a caminhada, pensativa.
Como a Ciara diz que precisamos nos aproximar mais, talvez valha a
pena compartilhar um pouco sobre questões pessoais. Os meus 60 segundos
de sincericídio ainda estão valendo. No treino dessa manhã, finalmente
conseguimos ajustar nossas passadas. Por ser quase trinta centímetros mais
alto que eu, Oliver precisava reduzir um pouco a abertura da perna durante
a patinação para que nós dois conseguíssemos sincronizar os nossos
movimentos. Ainda é pouco perto do tanto de trabalho que temos pela
frente, mas definitivamente foi um avanço.
— Eu nunca gostei desse nome. Foi ideia do Pierre. Ele gostava dessa
sensação de estar no topo do mundo, de sentir todo o resto das pessoas aos
pés dele. Por isso ele continua usando esse título idiota. A diferença agora é
que ele tem uma nova Imperatriz.
Oliver fica em silêncio enquanto me segue. Acho que também não
esperava que eu fosse compartilhar algo pessoal às 10:30 da manhã. Não sei
se é uma forma de lidar com uma intimidade um tanto forçada, mas ele logo
desvia o assunto.
— E qual vai ser nosso nome? — Ele faz uma pausa como quem
pensa na resposta. — Já sei! Macon…
— Oliver! — Dou um tapa no braço dele, fazendo um barulho um
pouco mais alto do que eu esperava. Um casal que está na nossa frente olha
para trás, mas não nos dá muita atenção.
Mesmo sendo mundialmente famosa, não sou facilmente reconhecida
pelo público geral. Por um lado, isso é ótimo, porque permite que eu possa
sair por aí sem precisar de uns quatro seguranças para me proteger. Por
outro lado, mostra como a patinação artística ainda é um esporte de bolha e
um tanto quanto elitizado. Impossível não fazer a comparação com os
atletas de futebol.
— Maconheira não pode, mas agressora é ok?
Inspiro a maior quantidade de ar que consigo tentando manter a
calma.
— Precisamos de uma nova regra. Nunca mais usar a palavra com M.
Ele balança a cabeça de um lado para o outro.
— Esqueceu da sexta regra? Sem mais regras.
— Essa foi uma regra estúpida, não precisamos dela.
— Precisamos, sim. É a única coisa que impede a srta. obcecada a
chegar na regra número 783. Daqui a pouco vai ter regra até pra ditar como
eu respiro.
— Bom, agora que você comentou…
Oliver levanta o dedo do meio para mim, arrancando uma risada
sincera. Quem diria que provocar o left winger dos Owls seria tão
divertido?
Achamos a loja de itens esportivos e seguimos direto para a seção de
patinação. Eu não preciso de nada, por isso, foco em selecionar roupas para
meu parceiro. Não queremos roupas chamativas, então opto por tons
escuros e sem muitas estampas. É provável que nossos figurinos oficiais
sigam esse caminho. O objetivo da nossa apresentação é desviar os
holofotes para mim e faz sentido que ele use roupas mais neutras enquanto
eu uso e abuso do rosa e das estampas florais.
— Você quer que eu experimente a loja inteira?
Ele me olha com o rosto levemente assustado ao perceber o tamanho
do carrinho de compras.
— Não temos tempo para mandar lavar roupa todos os dias, por isso é
melhor comprar uma para cada dia da semana. Vai nos poupar trabalho,
acredite em mim.
Ele balança a cabeça, mas não responde. Oliver pode ter um milhão
de defeitos, mas pelo menos parece me escutar quando falo sobre uma área
que ele não domina. Talvez essa parceria, por mais improvável que seja,
possa funcionar.
Seguimos para os provadores. São três cabines no fundo da loja que
ainda está vazia pelo horário. Oliver empurra o carrinho como se fosse um
condenado seguindo para a cadeira elétrica. Ao entrar na primeira cabine,
ele tenta colocar o carrinho inteiro dentro, mas o lugar é apertado demais.
Como se fosse a única opção possível, ele levanta os ombros e, sem a
menor vergonha, tira a camisa que está usando, sem nem ao menos fechar a
porta.
— Deixa de ser exibido! Quer que a gente seja expulso por atentado
ao pudor?
Tento fechar a porta, mas o carrinho atrapalha.
— Quer dizer que você ficou tentada?
Sinto um leve rubor subir ao meu rosto quando meus olhos percorrem
as costas musculosas de Oliver. Há um mar de tatuagens ali e, por um
segundo, me vem a vontade de passar os dedos em cada uma delas.
— Você se acha demais, Fisher. Eu só estou evitando parar na
primeira páginas dos jornais antes das olimpíadas.
Ele me lança um olhar por cima do ombro e abre um sorriso.
— Acho que vou começar experimentando essa calça.
Suas mãos se movimentam para a sua cintura e, quando eu percebo o
que ele está prestes a fazer, puxo o carrinho, liberando o caminho da porta e
a bato com muito mais força do que eu pretendia. Uma vendedora olha de
longe com uma cara indicando que o dia mal começou e ela já está sem
paciência.
— Desculpa, foi o vento — digo a desculpa mais burra do planeta.
De dentro da cabine, escuto uma risada e minha vontade é de perder o
meu réu primário com esse homem.
Agora que a situação foi controlada, consigo voltar a respirar com
mais calma. Ok, eu surtei diante da possibilidade de ver Oliver Fisher de
cueca. Tento estrangular a vozinha no fundo da minha cabeça dizendo que
isso provavelmente significa alguma coisa.
Significa que eu não quero sair no jornal ao lado de um tarado
exibicionista.
As conversas da noite passada voltam à minha mente, aumentando
ainda mais a sensação de calor que toma o meu corpo.
Tenho certeza que eu te faria gozar.
A frase dele ecoa pela minha cabeça e, ontem, depois que entrei no
banho, nem meu vibrador favorito foi o suficiente para aliviar o tesão
acumulado há tanto tempo. Namorar por oito anos com um cara que não me
satisfazia na cama acabou tendo consequências maiores do que eu
imaginava. Eu e Pierre começamos a namorar muito cedo e, agora que
terminamos, ele é a única referência sexual que tive na vida, o que me deixa
perigosamente curiosa.
Eu deveria baixar um aplicativo de relacionamento e fazer sexo
casual com qualquer um ao invés de estar fantasiando com o meu novo
parceiro. Por mais que minha boceta não tenha entendido ainda, falei sério
sobre não transar com Oliver.
— Isso ficou horrível.
A voz me pega de surpresa, rompendo o meu devaneio e me puxando
para o mundo real. Assim que a porta da cabine é aberta, meu coração dá
uma batida em um ritmo diferente do anterior e prendo a respiração.
Essa parceria não vai dar certo.
Não tem como dar certo.
Olho para Oliver vestido em uma calça e camisa pretas quase coladas
ao corpo, mas sem ser algo exagerado. Ele parece uma estátua grega com os
músculos bem definidos implorando para que alguém os acaricie com os
dedos.
Ou com a língua.
Ignoro o último pensamento e tento me recompor. A última coisa que
esse convencido precisa é saber do impacto que tem sobre mim.
— Vem cá, deixa eu ver como ficou.
Meio a contragosto, Oliver sai da cabine e dou uma volta ao redor
dele. Infelizmente, a costureira que fez aquela calça não deixou a parte da
bunda muito justa, mas ainda assim, dá pra ver os músculos bem definidos
dos glúteos.
Não que eu esteja preocupada com a bunda de Oliver Fisher.
— Viu a diferença em usar roupas que valorizam o seu corpo? —
pergunto, mais para dizer algo do que qualquer outra coisa. Ficar encarando
ele tanto tempo em silêncio estava começando a ficar assustador.
— É um esporte ou um desfile de moda?
— É um pouco dos dois. Patinação artística tem elementos de desfile,
de balé, de dança, isso para citar só algumas áreas. Não estamos apenas
deslizando pelo gelo, estamos entregando um espetáculo. — Encosto a
palma da mão nas costas dele, fazendo com que ele olhe no local onde
toquei. — E é claro que a roupa desempenha um papel crucial nisso. Nosso
visual também é avaliado.
Ele fica em silêncio, talvez absorvendo as informações novas.
Continuo falando como uma forma de preencher meus pensamentos com
algo útil e não sexual.
— É claro que essas são só roupas de treino, ainda precisamos ver
qual estilista vai assinar os nossos figurinos oficiais. Mesmo assim, faz uma
diferença enorme, quer ver?
Me posiciono na frente dele como se estivéssemos no rinque. Com a
visão periférica, percebo duas vendedoras nos olhando. Não tem problema,
isso também é trabalho.
Ou pelo menos é a desculpa que estou usando para me convencer.
Giro o corpo com rapidez sem sair do lugar e logo em seguida, meus
braços envolvem Oliver em um movimento preciso de quem já o treinou
milhares de vezes. Dessa vez não teve nenhuma roupa larga atrapalhando.
Não houve um tecido escorregadio impedindo a adesão da palma da minha
mão ao corpo dele. Tudo se encaixou como deveria ser.
— Na próxima vez que quiser que eu te abrace, é só pedir. Não
precisa inventar um plano mirabolante envolvendo roupas novas.
Dou um passo para trás e reviro os olhos.
Como ele consegue ser tão insuportável?
— Vai experimentar o resto. Ainda temos que almoçar antes de voltar
pro treino.
Oliver entra na cabine com um sorriso no rosto. Um sorriso perigoso.
Espero que ele tenha comprado minha desculpa, ou a situação entre nós vai
seguir para um lado bem complicado.
CAPÍT ULO 16 - OLIVER FISHER

— Não perca o seu tempo lendo essas porcarias — Gracie diz,


quando estou prestes a responder um tweet com uma sequência de emojis
de dedo do meio.
É claro que todas as pessoas do mundo dos esportes tem uma opinião
sobre o assunto do momento: Gracie Salmon está patinando comigo. Por
incrível que pareça, as opiniões são pouco diversas e consigo separá-las em
três grupos: os que acham que Gracie enlouqueceu, os torcedores dos Owls
que acham que eu enlouqueci e os fãs de patinação artística que não sabem
nada sobre mim, mas estão a dois passos de ficarem impressionados com o
meu péssimo histórico. O tweet que eu quase respondi estava no primeiro
grupo.
Gracie toma o celular da minha mão e se abaixa para deslizá-lo pelo
gelo, mirando no banco onde estão nossas garrafas de água. Ela não se
preocupa em conferir se o telefone chegou no lugar certo e dá um sorriso de
misericórdia na minha direção. Eu sei que eu não deveria estar com o
celular aqui, para início de conversa, por isso não discuto.
Excepcionalmente hoje, existe uma pessoa nesse rinque capaz de
irritar Gracie Salmon mais do que eu.
— Ela devia ter me avisado que viria — reclama, enquanto desliza
pelo gelo, impaciente. Estamos na nossa pausa de quinze minutos antes de
começar um novo grupo de exercícios, mas Gracie perdeu a capacidade de
ficar quieta algumas horas atrás.
Viro a cabeça na direção de Nora Salmon. Ela está na arquibancada
próxima ao rinque do Canary Ice, falando com Mrs. Mulligan com um
sorriso grande e gesticulações excessivas. Apesar de ter convivido com a
senhora Salmon por muitos anos, ainda não entendi qual é a dela. Não sei se
teve uma filha porque queria ou porque precisava de uma mini versão sua
para passar o seu legado pra frente. Eu me lembro de vê-la patinando no
lago com Gracie quando ela tinha apenas dez anos e ainda não havia
começado a sua carreira profissional. Nora sempre ficava irritada quando
errava algum movimento, como se ela fosse uma grande patinadora e não
uma criança. Hank sempre brinca dizendo que Gracie aprendeu a patinar
antes de aprender a andar e, honestamente, não sei quanto disso é piada e
quanto é verdade.
Sei lá. A relação dela com a Gracie é estranha, parece sempre prestes
a dizer que não gosta mais da filha. É um pouco cruel, na verdade, quando
seus pais só te amam se entregar o que eles esperam de você.
Acho que não posso culpá-la por ser meio zoada da cabeça.
— Ela sabe que…
— Não — Gracie corta. — Ela vai querer matar Mrs. Mulligan por ter
sugerido isso. Minha mãe sabe ser conservadora quando quer.
— Nós podemos fingir que não estamos morando juntos se for esse o
caso.
Ela move a cabeça em negativa.
— Tenho certeza que ela vai querer dar uma passadinha lá em casa.
Ela sempre faz isso, você sabe, pra garantir que estou cuidando direito do
meu apartamento. É um prato cheio pra ela. Consegue fazer um longo
monólogo de reclamações sempre que acha alguma coisa fora do lugar.
— Imagina se ela soubesse o que fizemos ontem.
— Que bom que fui neurótica o suficiente para apagar todos os
rastros antes de sair hoje de manhã. Quem disse que mães narcisistas não
servem pra nada?
Deixo uma risada sem humor escapar. Consigo entender do que ela
está falando, mesmo que minha mãe biológica não tenha sido esse tipo de
mãe. Ainda bem que a Linda também não é.
— Bom — Nora bate palmas de onde está, numa tentativa de chamar
nossa atenção. Depois disso, ela estala os dedos, passando a impressão de
que somos pequenos filhotes de cachorro esperando para sermos
adestrados. Eu não reviro os olhos, mas é por pouco. — Os convites da
festa de integração do comitê olímpico chegaram em Guildford essa
semana.
Gracie patina até Nora. Eu tento esperar até ser oficialmente
convidado para a conversa, mas minha parceira me olha feio quando nota
que eu ainda não me movi. Solto um longo suspiro antes de patinar até as
três.
— Por que em Guildford?
— Devem ter pensado que você ainda estava lá — Nora diz, sucinta.
— Mandaram um convite extra pro caso de você ter um acompanhante.
A ruiva passa os olhos por mim, como se não tivesse coragem de
dizer que eu sou o acompanhante.
Arqueio uma das sobrancelhas, sem fazer ideia do que elas estão
falando.
— Vai ser ótimo. — Mrs. Mulligan abre um sorriso. Amo estar em
uma roda de conversa onde todo mundo parece muito melhor informado do
que eu. — Os concorrentes precisam ver que vocês tem uma boa sinergia
fora do gelo.
Gracie ri.
— Nós temos?
Nora ignora o comentário da filha.
— Já falei com o seu estilista — ela diz. — Ele estava atarefado, mas
conseguiu uma vaguinha pra vocês dois. Vão vestir Giambattista Valli.
Tenho 90% de certeza que nem sei como pronunciar esse nome.
Apesar do título de herdeiro, adentrar o mundo das marcas de alta costura
nunca foi um grande interesse meu. Aparentemente, estou sendo sugado na
direção dele de qualquer forma.
— Você ainda veste 34? — Nora pergunta, diretamente para Gracie.
Acho que não é uma pergunta de verdade. Gracie é, obviamente, uma
mulher magra, mas ela não veste 34. Crianças vestem 34, pré-adolescentes
vestem 34.
— 38 — Gracie responde, desconfortável.
A expressão no rosto de Nora faz parecer que vestir 38 é um crime.
— Você tem ido no seu nutricionista?
— Ela está em forma, Nora — Mrs. Mulligan responde, apoiando
uma das mãos no ombro da ruiva, notando o clima tenso prestes a se
instaurar. — Giambattista Valli, hm? Ótima escolha.
— Olha só quem chegou — Gracie murmura, e não sei se ela está
falando comigo ou consigo mesma. — Que surpresa agradável.
Eu tiro meu foco de Nora, virando a cabeça na mesma direção de
Gracie e observando a entrada do rinque. O cabelo extremamente loiro de
Pierre é tão inconfundível quanto o seu sotaque francês. Não conheço a
garota ao lado dele, mas, pelas fofocas que vi nas redes sociais, consigo
deduzir que é Kate. Em outras palavras, a talarica.
— E eles estão vindo pra cá — Gracie murmura, num tom falso de
comemoração.
— É a sua chance de mostrar que tá bem melhor sem ele — respondo,
também em um tom de voz baixo para que só ela escute.
— E eu estou?
— Eu não sei dizer como anda o seu coraçãozinho, desgracie, mas em
termos de parceiro, tenho certeza que sou mais atraente que o queijo coalho
francês. Foi você quem disse que patinar também envolve um pouco de
desfile, então tenho certeza que ganhamos alguns pontos porque somos
muito bonitos juntos.
Eu noto quando os ombros de Gracie relaxam suavemente e ela deixa
uma risada escapar, o canto dos olhos franzindo. O som se espalha pelo
rinque e um sentimento estranho toma conta do meu peito. Não é ruim, só
diferente. Como se fazê-la rir fosse a coisa mais certa que eu já fiz na vida.
— Mrs. Salmon. — Pierre se aproxima pelas arquibancadas. Com o
canto dos olhos, vejo Kate entrar em um dos vestiários. Eles ainda não estão
de patins. É provável que peguem o rinque depois que eu e Gracie
terminarmos.
— Pierre. — Nora abre um sorriso, mas é falso. — Sempre bom ver
você. Como estão os preparativos?
— Estamos indo bem. — Ele também sorri. Dentes brancos, pele
branca, cabelo e olhos claros. Ele realmente parece um queijo coalho com
toda aquela branqueza. — Kate é a parceira que eu sempre sonhei em ter.
— Que bom que a gente se livrou um do outro, não é? — Gracie
arqueia as sobrancelhas, cruzando os braços. — Eu também estou muito
melhor com o Oliver.
Os olhos de Mrs. Mulligan passam por Gracie, depois por Pierre. Ela
parece perto de expulsar todas as pessoas desse rinque para poder continuar
o nosso dia de treinamento. No fundo, adoraria que ela fizesse isso.
— Tenho certeza que a ficha criminal dele é um bônus
impressionante.
Eu não me importaria de aumentar essa ficha se fosse pra quebrar
todos os dentes dele.
— Não tão impressionante quanto a sua seria se eu abrisse a minha
boca — Gracie responde. Demoro alguns segundos para entender que ela
está mesmo me defendendo. — O que você acha? Vamos fazer outra live?
A expressão reluzente de Pierre se fecha de imediato, deixando claro
que Gracie não está mentindo. O que ela sabe? Consigo sentir a curiosidade
roendo os meus ossos, porque tenho certeza que ela não vai me contar.
— Todos estamos muito felizes que você encontrou uma nova
parceira, Pierre — Mrs. Mulligan comenta —, mas você pode se retirar, por
favor? Seus colegas precisam treinar. Vão ter tempo para conversar na festa
de integração nesse final de semana.
— Eu mal vejo a hora — ironizo.
Pierre coloca o seu sorriso de bom garoto de volta no rosto e assente
na direção da nossa treinadora. Ele cumprimenta Nora mais uma vez e,
finalmente, desaparece em direção ao vestiário masculino.
Mrs. Mulligan bate uma sequência de palmas, indicando que nosso
treino acaba de recomeçar. Tenho certeza que ficamos muito mais que
quinze minutos em descanso, o que significa que ela vai comer o nosso
couro nas próximas horas.
— Não precisava me defender — eu murmuro, enquanto patinamos
até o centro do rinque.
— Eu machuquei o seu ego de macho tóxico?
— Não. — Coloco as mãos na cintura de Gracie. A primeira parte do
treino foi focada em figuras de flexibilidade. Agora, tenho que treinar meu
equilíbrio enquanto carrego minha parceira. Em breve vamos começar com
os arremessos. — Só achei estranho.
— O quê?
— Você me defendendo. — Eu ergo o seu corpo suavemente, sob o
olhar atento da treinadora. — Acho que é uma coisa que nunca fez nos
últimos vinte anos. Quase me faz pensar que você anda me odiando um
pouquinho menos.
— Vai sonhando. — Ela se vira pra mim. Mrs Mulligan faz um sinal
com as mãos, indicando que devo levantá-la com uma mão só dessa vez. —
Você sabe o que dizem. Mantenha os amigos perto e os inimigos mais perto
ainda.
— Vai dizer que me odeia mais do que odeia o seu ex?
— Eu não odeio meu ex — ela respira fundo antes que eu a levante.
Seus braços se movem delicadamente enquanto está no alto, formando uma
figura que ainda não decorei o nome. — Ele não merece tanto.
— Fico feliz em saber que reserva os seus sentimentos mais
profundos pra mim.
— Minha raiva? Com certeza, é toda sua.
— De acordo com a nossa última conversa, o tesão também é.
Gracie está prestes a me dar um tapa quando a coloco no chão.
— Gracie! — Mrs. Mulligan reclama. — Coloque um sorriso nessa
cara. Vocês estão encenando amantes, não soldados em guerra! E deixem a
conversa fiada para quando saírem do rinque!
— Antes que eu me esqueça, vai se foder — Gracie sussurra, antes de
sorrir abertamente pra mim.
CAPÍT ULO 17 - GRACIE SALMON

— Não sabia que vocês moravam no mesmo prédio.


A voz da minha mãe se sobrepõe ao som suave do elevador indicando
os números dos andares subindo. Troco um olhar com Oliver, sabendo que
não tem muito como evitar esse assunto. Meu parceiro levanta os ombros,
como se estivesse apenas dizendo que não vai querer brócolis na salada.
— Sugestão da Mrs. Mulligan — faço questão de enfatizar. Não
quero ter que lidar com o furacão Nora Salmon por causa de uma coisa que
nem foi ideia minha.
Minha mãe me olha, uma sobrancelha franzida. Ainda parece não ter
entendido exatamente o quão perto estamos morando e se dependesse de
mim, ela continuaria assim. Não sei porque ela teve que vir aqui se meter na
minha vida pessoal. Típico dela.
O elevador para na cobertura e destranco a porta. Assim que entro,
minha pequena bola de pelo corre na minha direção e me abaixo para
carregar Benjamim. Pelo som da respiração da minha mãe, que mais parece
um secador de cabelo na potência máxima, percebo que a ficha finalmente
caiu. Pelo menos Oliver está aqui comigo e ela não vai tentar me matar na
presença de testemunhas.
— Isso é inadmissível! — Ela entra pela sala como um furacão. —
Vocês dois morando juntos? Onde já se viu algo assim? Se essa história sai
nos jornais, não vai demorar para começarem a especular que vocês estão
namorando.
Ela diz a palavra com uma careta, como se namorar com Oliver
Fisher fosse a mesma coisa que roubar um escargot da cozinha de um
restaurante francês e levar para casa como namorado. Olho para Oliver que,
por algum milagre, está tranquilo, sentado no lado dele do sofá.
— Se serve de consolo, eu e Gracie ficamos tão chocados quanto a
senhora.
— E não vamos deixar nada vazar, mãe. Estamos tomando cuidado.
Ela sacode a cabeça de um lado para o outro.
— A sua ingenuidade às vezes me assombra, Gracie. Até parece que
você não conhece a imprensa. Não é questão de se, mas de quando isso vai
vazar.
— E se vazar, paciência — Oliver responde, ainda calmo enquanto
mantém o olhar fixo em Ben, que o encara de volta, desconfiado. — Se no
final acharem que a gente está namorando, a gente finge. Pode até ser bom
pra ideia de casalzinho perfeito que esse povo da patinação adora.
Minha mãe não responde. Ao invés disso ela sai de perto, balançando
o cabelo ruivo de um lado para o outro. Só então ela percebe a fita pelo
apartamento. Lá vem.
— Gracie, você pode me explicar o que significa isso?
Fecho os olhos e presto atenção na minha respiração por alguns
segundos até conseguir voltar para um ponto de equilíbrio. Ela está surtada,
mas, dessa vez, não vai me arrastar junto. Já estou cansada de discutir com
minha mãe, não preciso de mais uma briga às vésperas das olimpíadas
quando toda minha energia precisa ser direcionada para os treinos.
— É pra separar o ambiente, mãe. Tem o lado do Oliver e o meu.
Assim ninguém invade o ambiente do outro.
Eu esperava uma briga, uma discussão sobre o meu jeito excêntrico
ou como tomo as piores decisões na minha carreira. Em vez disso, Nora
Salmon inclina a cabeça levemente e olha para mim como se não
entendesse o que eu disse. Depois de alguns segundos, ela pergunta:
— E foi ideia sua? Pela cor da fita eu acho que sim.
Dou de ombros, sem responder. Estou cansada, com os músculos do
corpo doendo depois do segundo treino do dia. A única coisa que quero é
tomar um banho frio para ver se consigo relaxar um pouco. Se a rotina
continuar exaustiva assim — dez horas no rinque não é brincadeira —,
talvez eu precise retomar com os banhos de gelo que eu fazia no início da
carreira.
Minha mãe levanta as sobrancelhas, aparentemente impressionada
pelo o que fiz. Depois de vinte anos, aprendi a interpretar aquele gesto
como uma espécie de elogio. Até porque se eu fosse esperar elogios
verbalizados, talvez eu tivesse ainda mais mommy issues do que tenho.
Nora Salmon começa a fazer sua caminhada pela casa, como de
costume. Não sei se ela faz isso intencionalmente, mas todas as vezes que
ela me visita, passa os primeiros minutos andando pelos corredores, à
procura de algo para criticar. Não é de se espantar que eu tenha virado uma
mulher neurótica com organização.
Qualquer um viraria se tivesse a mãe que eu tenho.
Ela caminha para a área do bar e eu sei que vai reclamar disso.
Quando o arquiteto sugeriu deixar uma área reservada para bebidas, minha
mãe foi contra. Usou todos os argumentos que podia para tentar nos
convencer de que era uma péssima ideia, mas no final, eu e meu pai, uma
das raríssimas vezes que ele ficou contra minha mãe, a convencemos de que
é importante para a parte social. A sociedade é viciada em álcool e não
oferecer drinks para convidados seria uma gafe imperdoável. E Nora
Salmon jamais faria algo que pudesse manchar a imagem de perfeição da
família.
Prova disso é que sorriu para Pierre hoje quando ele me ofendeu
indiretamente nas suas provocações. Sei que ela não gostou nada do que
ouviu, mas manteve a postura educada e gentil de sempre. Como ela mesma
adora dizer: nunca se sabe quem está olhando.
— Gracie, o que aconteceu por aqui nos últimos dias? Você deu uma
festa?
Eu não faço a menor ideia do que ela está falando dessa vez, por isso
apenas movo a cabeça de um lado para o outro.
— Alguém bebeu quase uma garrafa inteira de gin e eu espero que
não tenha sido você. — Ela lança um olhar para Oliver que está sentado
mexendo no celular como se estivesse em uma dimensão paralela onde nada
o alcançasse. Como está de costas para o bar, não percebe o olhar dela. —
Nós já conversamos sobre isso, filha, sua condição não permite que você
beba desse jeito. É melhor marcar uma nova consulta com…
— Não foi ela. Eu bebi.
Olho espantada para Oliver que não desviou os olhos do celular por
nem um minuto. Ele saiu em minha defesa ainda contando uma mentira?
Minha mãe fica sem palavras, mas como é de Nora Salmon que
estamos falando, isso não dura muito.
— Você está morando no apartamento da minha filha, Oliver, não
posso admitir que seja uma má influência para ela. Sei que você não está
acostumado a lidar com esse povo da patinação, mas preciso que haja um
mínimo de decência! É da carreira dela que estamos falando!
Pela primeira vez na conversa, Oliver desvia o olhar do celular e
encara minha mãe.
— Eu sei disso, a Gracie sabe disso, mas será que você sabe?
Prendo a respiração até sentir pontos pretos se formarem na frente dos
olhos. Vinte anos de idade. Centenas de meses discutindo com minha mãe
dos mais diversos assuntos, mas nunca, jamais, vi alguém causar a reação
que estou vendo agora.
Nora Salmon está parada, de frente para Oliver, com a boca aberta e
olhar vidrado. Parece um quadro pintado a óleo de tão imóvel. Até
Benjamin percebe a tensão no ambiente, pois se encolhe ainda mais nos
meus braços. Nora Salmon não tem o costume de ser contrariada,
principalmente de forma tão direta.
— Eu vou embora — ela sussurra, o olhar mirando o chão. — É
evidente que não precisam de mim aqui. Se precisar, me ligue, Gracie.
Ela sai da cobertura, mas a tensão ainda permanece. Sinto uma
mistura de sentimentos conflitantes no peito. Por um lado, sei que minha
mãe mereceu ouvir aquilo, por outro, sei que toda essa preocupação é
apenas uma forma de mostrar que se importa comigo.
— Agora eu entendo o que você disse mais cedo. — Decido romper o
silêncio desconfortável que paira ao nosso redor. — Realmente é estranho.
— O quê?
— Você me defendendo.
Ele abre um sorriso.
— Aprendi hoje que devemos manter nossos inimigos bem perto.
— Mas você pegou pesado com ela, minha mãe só estava preocupada.
Ele solta o ar pelo nariz e balança a cabeça. Seus olhos se estreitam
ainda mais quando me olha.
— É por isso que ela faz isso, porque você e seu pai dão espaço. Falar
umas verdades de vez em quando faz bem.
— Verdades? Você não bebeu o gin sozinho. Eu não te pedi para
mentir por mim.
— Não fiz porque sou um cara legal, só odeio ficar em dívida com
alguém. Agora estamos quites.
Ele se levanta, caminha pelo lado dele do corredor na direção da sua
suíte e para antes de olhar para trás.
— Mas até que a gente faz uma boa dupla.
Ele entra e fecha a porta sem me dar tempo para responder.
CAPÍT ULO 18 - OLIVER FISHER

Festas da alta sociedade me dão vontade de pular de um prédio.


Acho que o meu primeiro contato com esse tipo de evento foi aos
doze anos, mais ou menos um ano depois de chegar na família Fisher. Hank
e Linda estão acostumados a adotar crianças e fazer festas de apresentação
de cada uma virou uma espécie de tradição familiar. Normalmente,
acontece mais cedo, mas eu ainda era uma criança traumatizada demais pra
entrar em contato com desconhecidos assim que o processo de adoção
aconteceu. Minha festa foi como uma comemoração de um ano, depois que
as sessões de terapia começaram a dar mais ou menos certo.
Foi um tédio. Eu entendi que festas de gente rica são para exibição e
não entretenimento. Ainda consigo ouvir o falatório interminável de
mulheres brancas sobre como crianças asiáticas são fofas — e graças a
Deus, Linda Fisher não é esse tipo de mulher branca.
Sei que a festa de hoje é um pouco diferente da dinâmica familiar dos
Fisher, mas admito que recusaria o convite se pudesse, principalmente
porque não é a minha carreira em jogo. Estou acostumado a fazer merda no
hóquei e, mesmo que o time também seja afetado, eu sou o único que sofre
as piores consequências. Dentro da patinação, eles parecem enxergar uma
dupla como uma pessoa só. Se eu fizer algo errado, Gracie também faz algo
errado.
Eu checo o celular, verificando que ela ainda não respondeu nenhuma
das minhas mensagens. Nós não conversamos muito depois do furacão
Nora Salmon e Mrs. Mulligan pegou um pouco mais leve no treino hoje,
porque sabia que a festa de integração do comitê tomaria muito da nossa
energia. Quando chegamos em casa, as roupas do estilista chique que não
lembro o nome já estavam no nosso quarto, com instruções precisas de
conservação e lavagem. Eu passei parte da minha tarde no apartamento de
Vincent, e Gracie estava trancada no banheiro da sua suíte quando voltei, o
que me leva até o momento presente, vestido dentro desse smoking meio
ridículo —, mas extremamente caro —, esperando por ela na garagem do
prédio.
Sempre me sinto fantasiado dentro de roupas sociais. Minhas
tatuagens não combinam com gravatas borboletas ou camisas de botão. É
como se eu estivesse fazendo um personagem e, tecnicamente, hoje eu
estou.
— Desculpa a demora. — A voz de Gracie ecoa pela garagem. —
Meu secador queimou e eu não lembrava onde tinha deixado a chapinha.
Entrar nesse vestido sozinha é mais difícil do que parece.
Diferente de mim, Gracie parece ter nascido pra usar essas roupas
elegantes. O tom rosa claro do vestido faz sua pele negra parecer mais
bronzeada, as mangas bufantes que começam no antebraço deixam sua
silhueta fina em evidência e o decote em formato de coração…
definitivamente, é melhor eu não pensar no decote em formato de coração.
Eu gostaria de ter algum comentário desagradável pra fazer, mas ela está
bonita de um jeito que parece ter arrancado todo o oxigênio do meu cérebro
e o meu coração bate tão forte que sinto que ela pode ouvir se chegar perto
demais. Porra. Eu espero que isso seja o começo de um ataque cardíaco.
— A gente já pode ir — Gracie comenta, cerrando os olhos diante da
minha falta de reação. — No que você tava pensando?
Você não vai querer saber no que eu estava pensando.
— Nada — respondo, o mais rápido que consigo. — Eu só me distrai
com… essas mangas bufantes e todo o resto.
Gracie ri.
— Eu me sinto esquisita — diz, enquanto eu cruzo a McLaren para
abrir a porta do carona. — Fantasiada.
O fato dela ter pensado o mesmo que eu sem termos conversado sobre
o assunto me deixa curioso. A cada dia que passa, parece que temos mais
coisas em comum do que imaginei. Ou talvez meu cérebro só tenha
congelado pela quantidade de horas diárias que estamos passando em um
rinque de patinação.
— Não, de jeito nenhum — murmuro, assim que ela entra no carro.
— Combinou com você. Tenho certeza que vai ser a mulher mais bonita da
festa.
Gracie espera que eu sente no banco do motorista antes de responder.
Ela me encara, deixando um pequeno sorriso preencher os lábios.
— Algum motivo especial pra estar sendo gentil?
A alegação de Gracie me deixa desconfortável porque tenho a
impressão que meu coração ainda bate rápido demais.
— Não estou sendo gentil. — Dou de ombros e me viro para enxergar
o carro estacionado atrás de nós antes de arrancar. O cheiro doce do
perfume de Gracie está por todo canto. — Só falei a verdade. Você tem um
espelho lá em cima, então… nada que você já não saiba.
— Eu não sabia, na verdade.
Olho pra ela, incrédulo.
— O que foi? Ficou com a autoestima baixa de repente?
Gracie nega.
— Eu não sabia que você me achava bonita.
Eu não entendo onde ela quer chegar com esse comentário, então não
respondo. Finjo estar muito entretido com o portão do prédio se abrindo
enquanto Gracie se encarrega de mudar de assunto.
— Já foi em festas da alta sociedade antes — não é uma pergunta. —
Sei que no mundo dos brutamontes do hóquei as coisas devem ser
diferentes então me observe antes de agir.
Movo a cabeça em afirmativa enquanto saímos do prédio. Agora ela
parece uma professora próxima dos sessenta anos, falando sobre os
brutamontes do hóquei e como eles são um perigo para a sociedade. Não sei
se Gracie já foi em uma festa do hóquei antes, mas não são tão caóticas
assim, embora a gente não tenha o costume de usar smoking e vestido
longo.
— Se não falar nenhuma besteira e não socar ninguém até o fim da
noite, nós vamos sobreviver.
— A primeira parte é fácil. A segunda depende mais dos seus colegas
da patinação artística do que de mim.
Gracie deixa uma risada nervosa escapar.
— Essa confraternização é importante pros jurados começarem a nos
ver com bons olhos. Se você estragar tudo…
— Estragar tudo não está nos meus planos de hoje. Amanhã, quem
sabe.
Gracie revira os olhos e afunda o corpo no banco, quase se afogando
dentro do tecido do vestido. Talvez ela seja a primeira a estragar tudo,
enfiando uma faca no meu pescoço e entrando pra história como a primeira
patinadora a assassinar o próprio parceiro. Ao menos seria um feito que a
mãe dela nunca conseguiu.
Sigo o endereço escrito em letra cursiva no convite que Nora Salmon
nos entregou no rinque. O The Savoy é um hotel cinco estrelas que não fica
muito longe da cobertura de Gracie e, por algum milagre que os deuses da
patinação devem ter abençoado, o trânsito londrino não está um inferno
hoje — malditos britânicos e o seu limite de velocidade de 20 milhas por
hora.
Assim que chegamos, um dos funcionários bem vestidos do hotel
balança uma placa indicando a direção do estacionamento. Tem pelo menos
dez jornalistas na frente da entrada, estourando seus flashes contra os vidros
das janelas de todo carro que ameaça entrar no Savoy. Gracie não parece
interessada em dar qualquer declaração para eles, então não me preocupo
em diminuir a velocidade. Quando entramos na primeira rampa do
estacionamento e estamos distantes das câmeras deles, faço uma pergunta:
— É sempre assim?
— Só quando estamos perto de alguma competição importante —
murmura Gracie. — Patinação ainda é um esporte de nicho, diferente do
hóquei. As pessoas que não são obcecadas por nós só lembram da gente
quando acontece as olimpíadas. Deve ser legal ter uma torcida te
acompanhando o ano inteiro. — Ela faz uma pequena pausa. — Você era o
jogador favorito dos torcedores dos Owls.
É um pouco estranho que Gracie saiba disso, considerando que nunca
se interessou pelos jogos de hóquei. Em qual momento da vida ela andou
pesquisando sobre mim? Isso foi antes ou depois de começarmos a patinar
juntos?
Eu ignoro as perguntas, porque sei que ela não vai me responder.
— Agora deve ser o Tyler — digo. — Pelo menos entre a torcida
feminina.
— Consigo entender cada uma delas.
— Não começa — reclamo, finalmente chegando nas vagas do
estacionamento reservadas para os atletas. — Posso lidar com você dizendo
que meus amigos são gostosos mas não começa a tarar os meus irmãos
também.
Gracie ri.
— Bom, você sabe o que as ruas dizem…
Arqueio uma das sobrancelhas.
— Os irmãos Fisher são uma das sete maravilhas de Guildford.
— Sabe que eu estou incluído em “irmãos Fisher”, não sabe?
— É mesmo? Não tinha reparado.
— Se fazer de idiota é uma ótima estratégia — ironizo, girando a
chave no painel do carro. Eu saio primeiro, pra abrir a porta do carona —,
mas ainda acho que burrice não combina com você.
Gracie aceita minha mão quando eu a ofereço. Exceto pelos treinos e
por momentos que aconteceram mais de cinco anos atrás, acho que nunca
estivemos em uma posição assim antes. Nós parecemos um casal. Merda,
nós parecemos muito um casal.
— Tem razão, não combina. — É tudo que Gracie diz antes de sair do
carro, tendo alguma dificuldade por causa do seu vestido. A saia é muito
longa e ela precisa ter cuidado para não deixar os seus saltos prateados
pisarem na barra. Parece complicado e eu agradeço mentalmente ao estilista
pela minha roupa não transformar a simples tarefa de andar para frente em
uma atividade extremamente complexa.
— Você disse pro Pierre que estávamos transando — Gracie sussurra,
quando entramos no elevador que leva ao salão de recepções. Tudo aqui é
dourado, brilhante e caro e eu sinto que meus olhos vão estar doendo até o
fim da noite. — Então…
— O quê? Quer transar comigo de verdade?
— Nem nos seus sonhos, Fisher.
Eu abro um meio sorriso na direção dela. Gracie continua:
— Seria interessante se os outros competidores também achassem —
diz. — Todo mundo sabe que começamos a patinar juntos há pouco tempo e
por isso eles não nos enxergam como uma ameaça, mas… se eles
perceberem que temos química juntos, vão ficar com medo.
— Em outras palavras, você quer fazer terrorismo.
— Gosto mais do termo tortura psicológica.
— Serve. — Eu apoio uma das mãos na sua cintura e puxo o seu
corpo para mais perto do meu assim que a porta se abre. — Vamos fazer
isso.
∞∞∞
— Mas a sua apresentação com o Pierre foi incrível no último
campeonato mundial. — Uma loira de longos cabelos cacheados, peitos
enormes de silicone e olhos cinzentos diz para Gracie, apoiando a mão nos
seus ombros como se fossem amigas de anos. Minha parceira tem um
sorriso no rosto, mas consigo sentir a tensão em cada poro do seu corpo, o
que é suficiente para eu entender que não sentem muito apreço uma pela
outra. — É uma pena que as coisas tenham terminado do jeito que
terminaram…
— Nós já superamos — Gracie diz, enquanto dou um gole no meu
whisky com gelo que já tem muito mais água do que álcool. — Foi uma
parceria ótima enquanto durou, mas… bom, essas coisas acontecem.
É engraçado como Gracie diz “essas coisas acontecem” para coisas
que não deveriam acontecer de jeito nenhum.
— Eu não queria estar no seu lugar — o parceiro da loira siliconada
diz, com um sorriso que nunca poderia ser interpretado como amigável. —
Além de toda pressão das olímpiadas, você vai estar competindo contra o
seu ex-namorado.
A loira força uma expressão de tristeza.
— Isso deve ser péssimo pro seu psicológico.
Gracie ri, bebendo um gole da sua água com gás.
— Vocês têm a cabeça fraca — diz, simples, e o tom passivo
agressivo da conversa tem uma chance enorme de se tornar apenas
agressivo. — Eu não me abalo tão fácil assim.
O homem move a cabeça em afirmativa, de um jeito que faz parecer
que está super feliz por Gracie. Todo mundo nessa roda sabe que não está.
Então, ele se vira pra mim, porque sou um alvo obviamente mais fácil.
— E você? Deve ser difícil. Primeiro ano nas olimpíadas e já
patinando com uma campeã mundial. Você não tem medo de ficar pra trás?
A loira dá uma risadinha.
— A Gracie está sendo muito compreensiva nesse sentido —
respondo, observando o gelo derreter dentro do meu copo. — Ela também é
uma ótima professora. Eu nem sinto que estamos prestes a competir, pra ser
sincero. Antes de mais nada, estamos realizando um sonho de infância.
— É — Gracie concorda. Me impressiona como ela é uma ótima
mentirosa. Tem facilidade pra construir uma narrativa convincente do mais
completo nada. Estou cada dia mais certo de que ela é o perigo em pessoa.
Bonita, manipuladora, um pequeno inferno na Terra. — A gente patinava
junto quando era criança. Foi um pouco antes de eu começar a patinar
profissionalmente.
— Nós não tínhamos noção de nada naquela época. — Eu finjo me
lembrar de algo enquanto minha mão aperta a cintura de Gracie mais um
pouco. Os olhos da loira descem até os meus dedos e sei que ela está
pensando exatamente o que queremos que ela pense.
— Mas sempre foi uma coisa nossa — Gracie continua, dando uma
breve olhada na minha direção, então abrindo um sorriso. — Melhores
amigos indo pras olimpíadas juntos. Parecia uma lembrança boba de criança
até alguns meses atrás, mas agora…
— Imagino como vocês devem estar felizes — a loira comenta, agora
um pouco mais amarga.
— Sim, é incrível patinar com ela.
— Nós nos conhecemos muito bem — Gracie complementa. — É
como se ele adivinhasse todos os meus movimentos.
— Estamos ansiosos pra ver toda essa sinergia no gelo em Paris. —
De fora da nossa pequena roda, uma mulher baixinha se aproxima, com
uma taça de champanhe nas mãos. Por causa da placa de identificação no
seu terno, eu entendo que ela é uma das pessoas do comitê de avaliações
dos jogos de inverno. — A história de vocês tem sido inspiradora.
— Estão dizendo isso? — o parceiro da loira pergunta.
De onde estamos, consigo ver Pierre e Kate do outro lado do salão,
atentos a cada movimento nosso.
— Mas é claro. — A mulher sorri e dessa vez parece sincera. —
Amigos de infância que se reencontraram depois de anos e estão patinando
juntos em Paris. É o tipo de história que nós amamos ouvir. E como se não
bastasse, ainda temos o grande retorno de Ciara Mulligan. Como uma
entusiasta da patinação artística, é impossível não ficar empolgada para ver
o que esses dois vão nos apresentar.
Os últimos resquícios de uma clima agradável, mesmo que falsos,
desaparecem. Sinto que a loira dos peitos gigantes está perto de quebrar um
copo com as mãos e cometer um homicídio — ou vários — com os cacos.
— Estamos muito felizes em ver a confiança que depositam em nós
— concluo, antes que alguém tenha um ataque de nervos.
A mulher dá um último sorriso na nossa direção e se afasta.
— Bom, foi ótimo conversar com vocês — o homem murmura, um
tanto desconfortável. — Se nos dão licença. — Apoia uma das mãos no
ombro da loira, puxando-a para o outro extremo do salão.
Finalmente sozinhos, eu termino de beber o meu whisky aguado e
Gracie dá um longo suspiro, como se tivesse mantido a respiração presa
pelos últimos trinta minutos.
— Estamos indo bem — ela murmura. — Podemos ir lá fora tomar
um ar — sugere, apontando o jardim ao lado do salão de festas com a
cabeça. — Acho que já conversamos com gente o bastante.
Eu assinto, pegando mais um copo de whisky quando um garçom se
aproxima. Gracie entrelaça os dedos na minha mão livre e nós caminhamos
pelo salão lotado de atletas, juízes, presidentes de comitê e todo tipo de
gente importante no meio. Não é um gesto impressionante, mas causa uma
pequena cena. Quase consigo sentir minhas costas queimando diante de
tanta atenção.
Quando chegamos do lado de fora, Gracie suspira de novo.
— Você precisa relaxar — digo, oferecendo o copo de whisky na sua
direção. Sei que ela não pode beber muito, mas como ainda nem chegou
perto de álcool essa noite, não será um problema. — Disse que estamos
indo bem.
— Sim, mas… argh. É estressante. — Ela toma o copo da minha mão
e vira um longo gole, fazendo uma careta em seguida. — Por incrível que
pareça, eu não gosto de mentir. — Gracie sussurra.
— Fala sério — eu debocho. — Não acredito em você.
Gracie ri enquanto nós nos afastamos das conversas e da música
animada que vem de dentro do salão, adentrando o jardim. Ela se senta na
beirada de uma pequena fonte, cheia de estátuas de cupidos, flechas e
corações de gesso, com cuidado para que a barra do seu vestido não se
molhe.
— Ok, talvez eu me divirta um pouco com uma mentira ou duas —
admite —, mas me irrita que tudo nesse mundo tenha que ser tão
orquestrado. Você me perguntou porque eu passei tanto tempo com o Pierre
e, bom, acho que foi por isso. Era a história que as pessoas queriam ver.
— Deve existir um equilíbrio entre o que as pessoas querem ver e o
que você quer mostrar.
— Talvez exista — diz, e o seu tom é um pouco triste —, mas acho
que ainda não encontrei.
Eu me sento ao lado dela enquanto o silêncio nos envolve. É uma
noite bonita em Londres. Tem uma brisa fresca ao nosso redor, as estrelas
estão visíveis no céu e a lua é tão brilhante que parece ter saído diretamente
do cenário de um filme.
— Temos companhia — ela sussurra, apoiando a cabeça no meu
ombro. Consigo enxergar uma silhueta e ouvir o barulho de folhas sendo
pisadas, mas, no ângulo que estou, Gracie tem uma visão melhor que a
minha.
— Acho que somos o assunto da noite.
— Com certeza — Gracie dá uma olhada com mais atenção. — Acho
que é aquele cara do podcast de esportes.
— O que ele vai fazer? Vazar uma foto nossa pras revistas?
— Ninguém vaza fotos desse tipo de festa — Gracie explica, ainda
sussurrando .— Pra não correr o risco de virar persona non grata. Eles só…
comentam sobre as coisas. É assim que a maioria dos burburinhos começa,
mas ninguém consegue ter certeza do que é verdade ou não.
Gracie levanta a cabeça. Ela olha para mim, então para a pessoa em
algum lugar atrás de mim, de um jeito discreto, como se não estivesse
olhando. Gracie franze o cenho, e de repente está com o seu olhar
pensativo. Quase consigo ouvir as engrenagens do seu cérebro trabalhando.
Ela estica uma das mãos e pega o copo de whisky de volta, tomando
mais um pouco da bebida amarga, como se estivesse precisando de um
pouco de coragem.
— Quer começar um burburinho comigo?
Parte do meu cérebro entende que Gracie só quer nos manter
interessantes aos olhos da mídia até os jogos começarem, mas a outra parte
fica meio embriagada com o seu rosto tão perto do meu. Pode ser que seja o
whisky, pode ser que seja o meu princípio de ataque cardíaco e pode ser que
seja ela. Independente da resposta, eu sei que não deveria beijar Gracie
Salmon essa noite, nem de mentira.
Mas eu beijo.
É óbvio que eu beijo.
E por um minuto, todas aquelas pessoas que passamos a noite
tentando impressionar perdem um pouco da importância. Tenho certeza que
Gracie não está pensando no comitê olímpico quando sua unha arranha
minha nuca, ou quando eu puxo seu corpo pro meu colo e ela geme contra
minha boca, fazendo meu pau endurecer dentro da calça. Eu consigo ouvir
quando o cara do podcast de esportes se afasta, mas meus lábios continuam
pressionando os de Gracie, nossas línguas se esfregando num ritmo cada
vez mais intenso. De alguma forma, eu tenho certeza que Gracie também o
ouviu, mas ela não recua até algumas gotas de água molharem nosso rosto.
Por um momento, penso que está chovendo. Quando minha boca se
afasta de Gracie, percebo que a fonte automática dos cupidos está soltando
água, o que me faz pensar que é configurada para ligar e desligar de tempos
em tempos.
— Acho que foi convincente — Gracie sussurra, mas ela ainda está
no meu colo, sua maquiagem bagunçada pelo que acabamos de fazer.
Seus olhos marrons têm um tom curioso e impressionado e acho que
nenhum de nós dois esperava perder o controle tão rápido. Meus olhos
descem até a sua boca e, merda, eu preciso respirar fundo para lutar contra a
vontade de beijá-la de novo.
— Mas… ninguém quer que pensem que somos namorados.
Gracie move a cabeça em afirmativa.
Seus olhos encaram minha boca enquanto ela murmura.
— Estamos vendendo uma história aqui. Melhores amigos de infância
que talvez estejam apaixonados. A parte do talvez é importante.
Eu rio da forma como ela arquiteta as coisas, como se fôssemos
personagens de um livro.
— Somos justamente o oposto disso.
— Sim, mas… acho que vou usar o meu minuto de sincericídio agora.
Meus olhos sobem até os seus e eu assinto. Ela ainda está no meu
colo e não tenho certeza se consegue sentir o quão duro eu estou, mas eu
apostaria que não, pela quantidade de tecido no seu vestido.
Não sei dizer se isso é bom ou ruim.
— Eu posso ter me aproveitado um pouco da situação — diz. —
Porque queria te beijar.
— Isso ficou óbvio no dia que fumamos maconha no seu tapete —
zombo. — E você sabe que vou jogar isso na sua cara em toda oportunidade
que eu tiver.
— Isso o quê? — Gracie se levanta do meu colo, com um sorriso
descarado no rosto. — Não faço ideia do que você tá falando.
Balanço a cabeça em negativa.
— É questão de tempo até você querer me beijar de novo.
— Mas a gente nunca se beijou — Gracie ironiza. — Talvez você
esteja sonhando acordado comigo, Fisher.
— Ou talvez você esteja mentindo pra si mesma, desgracie.
— Você sabe que eu nunca minto.
— Sei sim, pinóquio de salto alto.
Ela ergue o dedo médio pra mim, ajeitando a saia do seu vestido em
seguida.
— A gente precisa voltar.
— Me dá dez minutos.
Ela arqueia uma sobrancelha, sem entender.
— Preciso de um tempo pra… — Eu faço uma pausa, torcendo para
que ela entenda sem que eu precise falar diretamente. Gracie não entende.
— Essas calças são apertadas e o meu pau é acima da média. Preciso de
alguns minutos sozinho antes de voltar lá dentro.
Finalmente, Gracie entende. Ela deixa uma risada escapar, dando uma
boa olhada no volume da minha calça antes de me responder.
— Acho que é questão de tempo até você querer me beijar de novo —
Gracie repete, o tom de superioridade deixando óbvio que ela se considera a
vencedora dessa batalha.
— Sim, e?
— Não vai tentar negar?
— Quem começou com essa regra idiota de não envolvimento sexual
foi você, desgracie. — Eu me levanto, agora um pouco mais confortável. —
Eu já deixei claro que as minhas intenções são as piores possíveis. Quando
você quiser é só pedir.
Gracie balança a cabeça em negativa.
— Dez minutos — ela cruza os braços e se vira na direção do salão de
festas — e se comporte quando chegar lá dentro.
— Pode deixar, vossa majestade.
CAPÍT ULO 19 - GRACIE SALMON

Quem diria que beijar a pessoa que você odiou durante toda a
adolescência poderia trazer tamanha ressaca moral?
Estamos dentro do elevador em silêncio após estacionar a McLaren
na garagem. A festa não foi horrível, apesar dos olhares enviesados que
recebemos durante cada minuto que estivemos lá. No início, era uma
mistura de pena com deboche — coitadinha da patinadora que foi
abandonada —, mas depois, em parte pelo comentário da jurada, em parte
pela química que emanava toda vez que Oliver e eu estávamos juntos, os
olhares passaram a ser de receio. De novo, sou vista como uma competidora
à altura da competição. Esse era o objetivo principal da noite e o atingimos
com êxito.
O beijo foi dano colateral.
Eu podia ter evitado aquele momento, poderia apenas ficar com a
cabeça deitada nos ombros de Oliver e, no máximo, pedir para ele fazer
carinho no meu cabelo. Passaria uma imagem de que somos mais do que só
parceiros de patinação. Mas se tem uma coisa que Nora Salmon me ensinou
é nunca fazer algo pela metade. Se tem que fazer, faça perfeitamente. Por
isso apostei todas as minhas fichas naquele momento.
Os lábios dele fazem jus ao título de uma das maravilhas de
Guildford. O jeito que ele me puxou para o seu colo mostrou o quanto está
se acostumando a carregar o meu corpo e começo a pensar nas diferentes
formas que ele pode me jogar de um lado para o outro na cama.
— Acho que eu nunca te vi tão calada.
A voz dele interrompe o caminho perigoso dos meus pensamentos.
Levanto os ombros e olho para o elevador. Eu já gastei um minuto de
sincericídio para dizer que realmente estava com vontade de fazer o que eu
fiz e não vou insistir mais no assunto.
Oliver Fisher já se acha o bastante. Definitivamente, ele não precisa
saber que estou fantasiando com ele me jogando na cama.
— Cansada, eu acho. Eventos assim me desgastam mais do que várias
horas no rinque.
— Eu não sei como vocês aguentam.
A porta do elevador se abre e seguimos para o apartamento. Ben corre
na minha direção, pulando desesperadamente na intenção que eu o
carregue. Assim que está no meu colo, ele lança um olhar de poucos amigos
para Oliver, como de costume.
— Aguentam o quê? Vocês também tem festas no mundo do hóquei.
— É o que mais tem, mas não assim. — Ele se joga no seu lado do
sofá, pernas e braços abertos como se fosse um mafioso dono de todo o
prédio. — No hóquei tem menos fingimento. As pessoas falam o que
pensam e quando as palavras não dão conta do recado, a gente deixa os
punhos conversarem.
— Muito civilizados.
— Melhor do que dizer que está torcendo por você, mas no fundo está
desejando que tropece na barra do vestido, caia e tenha uma fratura exposta
na canela.
Sinto um arrepio percorrer o meu corpo ao imaginar a cena. Fraturas
nas pernas são uma das piores lesões que um patinador pode ter. O tempo
de recuperação é muito alto. Dependendo da gravidade, pode até mesmo
deixar o atleta parado por anos.
— Já foi em um baile de máscaras?
Oliver arqueia a sobrancelha sem a menor ideia do motivo da
pergunta.
— Eu sempre me imagino em um baile de máscara quando vou a
esses eventos — continuo, enquanto removo os meus saltos e estico os pés
no sofá ao lado do meu parceiro. Ben se deita entre nós dois como se fosse
uma lembrança viva da linha que separa as nossas partes do apartamento.
— Todo mundo ali esconde coisas atrás de uma máscara. Seja um caso que
está tendo com o treinador, uma frustração por não conseguir fazer um
programa novo ou, o que a grande maioria finge não sentir, inveja. Essa é
uma área onde nosso corpo é avaliado minuciosamente por uma equipe de
jurados, é quase doentio. Isso gera uma pressão muito grande pelo corpo
perfeito. Se você não estiver insatisfeita com o seu programa, com o seu
parceiro ou com o seu treinador, vai estar com o seu corpo.
— Você não parece esse tipo de pessoa.
— Graças a minha mãe.
Solto uma risada ao ver a expressão de confusão no rosto de Oliver.
— Eu cresci vendo o quanto ela se preocupa com aparências. Ela foi
criada para se adaptar ao meio da patinação, a vida dela gira ao redor disso.
Por isso, depois que se aposentou, ela meio que perdeu o propósito. Não
quero ser assim. Estou tentando não ser assim.
Ele assente e meus olhos demoram por alguns segundos pelo rosto
calmo de Oliver. Seus olhos proeminentes e estreitos parecem sorrir de
provocação ao me olhar. As tatuagens que aparecem através da gola da sua
camisa atiçam minha curiosidade, mas não quero ceder duas vezes no
mesmo dia.
Desvio minha atenção para Ben, além de ser um local mais seguro,
me dá tempo de pensar no que aconteceu na minha vida nos últimos dias.
Tanta coisa mudou e de forma tão rápida que ainda sinto um pouco de
dificuldade em acompanhar. Quem diria que eu estaria sentada na sala do
meu apartamento ao lado de Oliver e compartilhando um silêncio
confortável? Ainda acho difícil de acreditar.
— Posso fazer uma confissão?
— Mais um minuto de sincericídio? O que está acontecendo com
você?
Solto uma risada nervosa. Aquela é uma pergunta que tenho me feito
com uma frequência maior do que eu gostaria nas últimas semanas.
— Não é bem isso, é só que… — Não sei como dizer o que está na
minha mente. Odeio quando temos dificuldades de traduzir alguma
sensação ou sentimento complexo em palavras. — Hoje o evento foi
diferente.
— Em qual sentido?
— Eu não sei direito. Estou acostumada a ir em lugares assim com o
Pierre — Oliver faz uma careta ao ouvir o nome —, então nada disso é
novo para mim, mas hoje foi diferente. Acho que, pela primeira vez, eu
quase gostei de estar lá. Ainda não é o meu tipo de evento, mas eu acho que
pela primeira vez eu me senti acompanhada, sabe?
— Das outras vezes o queijo coalho não estava com você?
Contenho uma risada. Ele nunca diz o nome do meu ex.
— Estava, fisicamente. Uma coisa sobre ele é que ninguém nunca
será perfeito o bastante para estar no seu nível. O ego dele é gigante demais
para estar no mesmo lugar com outra pessoa. Ele pode estar ali com você,
se manter por perto, mas é mais como se fosse alguém vigiando uma
propriedade do que um parceiro ou namorado. É difícil de explicar.
— E você não se sentiu assim hoje?
Balanço a cabeça de um lado para o outro. Aproveito para desfazer o
meu penteado e deixar meu cabelo preto escorrer pelos meus ombros.
— Não. — Solto uma risada pelo nariz. — Foi até meio engraçado.
Era como se nós dois estivéssemos obrigados a ir para um lugar que não
gostamos. Aquela coisa de unidos por um ódio em comum. A escapada para
os jardins foi um exemplo. Pierre nunca teria topado. Queria sempre estar
no centro com os holofotes apontados para ele.
— Não sei se fico feliz por estar sendo comparado com seu ex.
Reviro os olhos. Tava tudo indo bem demais para ser verdade.
— Não é isso! Só quero dizer que, graças a você, a noite não foi tão
ruim quanto poderia ter sido.
Me levanto, sentindo que eu falei demais outra vez. É sempre assim.
Eu sou a única a compartilhar o que estou realmente pensando entre nós
dois. Oliver é uma parede de comentários sarcásticos e maliciosos, mas
nunca revela o que pensa de verdade.
— Vou me preparar para dormir.
Antes que eu dê o primeiro passo, sinto uma mão segurar o meu
pulso.
— Espera.
Ele se levanta e fica na minha frente, a fita rosa no chão passa a
centímetros entre os nossos pés. A mão dele atravessou o limite, mas estou
curiosa com o que ele tem a dizer, por isso, ignoro essa micro infração à
regra.
Olho para o rosto perfeito de Oliver e imagino quantas mulheres já se
apaixonaram por ele. Mais do que isso, quantas já tiveram seu coração
partido por ele? Tenho certeza que não foram poucas. Ele não é só bonito.
Tem um magnetismo natural, alguma coisa etérea que ninguém conseguiria
explicar. Tenho certeza que, em uma sala de homens bonitos, a atenção de
qualquer mulher cairia nele primeiro, porque só Oliver Fisher é Oliver
Fisher.
Ele sustenta o meu olhar por vários segundos e, em um movimento
muito rápido que me faz questionar se ele realmente aconteceu, seus olhos
pousam nos meus lábios antes de retomarem a posição inicial.
— Eu fico feliz em saber disso — ele começa, a voz em um tom
intermediário entre o sussurro e o normal. — É bom saber que você está
começando a ficar confortável perto de mim.
Assinto em um movimento leve. Não sei o que está acontecendo
comigo, mas parece que perdi a capacidade de formar palavras. Meu corpo
inteiro está pesado e parece feito de cimento, a exceção é minha cabeça que
está leve como um balão e parece prestes a se deslocar e sair vagando sem
rumo pelo apartamento.
O que diabos está acontecendo?
O contato da pele de Oliver no meu pulso faz um ardor se espalhar
desde o ponto do toque até meu último fio de cabelo.
— Isso é algo bom, não é? Pra patinação, quero dizer. Era o que Mrs.
Mulligan queria que fizéssemos.
Mais uma vez, apenas assinto. Já desisti de formar palavras.
— Boa noite, Gracie. — Ele se aproxima e encosta os lábios na lateral
do meu rosto fazendo minha pele queimar.
Ele me solta e volta a se sentar no sofá, me deixando como uma
estátua parada sem saber o que fazer. Por fim, giro nos calcanhares e saio
em passos lentos na direção do corredor sem dizer nada.
Assim que entro no meu quarto, fecho a porta e me jogo na cama.
Meu coração está disparado e sinto que vou ter um enfarte. O que foi
aquilo? Por que ele me beijou? E o mais estranho de tudo: ele não me
chamou de desgracie.
Durante vários minutos, faço minha rotina noturna no modo
automático. Enquanto tomo banho e visto o meu pijama, estou com a
cabeça na sala e no beijo na festa. Não era isso que eu tinha em mente
quando o chamei para patinar comigo. Eu acabei de sair de um
relacionamento traumatizante, não estou em condições de me envolver tão
cedo.
Balanço a cabeça.
É o Oliver.
Não tem a menor chance de eu me envolver com ele.
Repito isso como uma espécie de mantra. Eu preciso acreditar nisso,
ainda mais quando o meu corpo parece ter aceitado como algo normal parar
de funcionar quando ele chega muito perto. Felizmente, sou uma atleta
olímpica, aprendi desde cedo que é o corpo que obedece à mente, não o
contrário. Talvez eu precise sair com alguém diferente pra me distrair. Um
encontro no Tinder, uma fast foda. Não é a primeira vez que penso nisso.
Sinto a garganta seca e decido buscar um copo d’água antes de deitar.
Assim que chego no corredor, escuto barulho de portas de armário sendo
fechadas, por isso imagino que Oliver ainda não foi para o quarto. Me
aproximo devagar, curiosa com o que ele pode estar fazendo. Escuto a voz
dele vindo de algum lugar perto da cozinha.
— Por que tá com essa cara?
Por um minuto, penso que está falando comigo, mas não tem como
ele me ver do ponto onde estou. Dou mais alguns passos até conseguir vê-lo
agachado perto da varanda. Não sei o que está fazendo, mas há o barulho de
algo caindo em uma superfície de plástico.
— Eu sei que a gente não se dá muito bem, mas nem por isso vou te
deixar morrer de fome.
Vejo Ben se aproximar de Oliver e, pela primeira vez, passa por ele
sem lançar um olhar de raiva. Lentamente, seu rabinho começa a balançar
de um lado para o outro. Demoro alguns segundos, mas percebo que
esqueci de colocar a ração do Benjamin quando cheguei.
Oliver fez isso por mim.
Volto para o quarto sem beber água.
Acho que não vou conseguir dormir tão cedo.
CAPÍT ULO 20 - OLIVER FISHER

OLIVER: você transou com a namorada do cara de uma gangue?

Dou uma olhada no relógio do telefone enquanto espero uma


resposta. São 9:45 da manhã, estou sentado do lado de fora da Dunkin
Donuts da rua Baker e me perguntando quanto de açúcar preciso ter no
sangue para sobreviver à reunião que vai acontecer nos próximos quinze
minutos. Fui liberado do treino da parte da manhã, mas eu e Gracie vamos
ter várias horas no gelo durante o período da tarde, então me afogar em
doce não é uma boa ideia.

TYLER: bom saber que as fofocas já chegaram em londres


OLIVER: vincent tem olhos de águia
OLIVER: ou os seguranças dele tem
TYLER: por que acha que eu sabia que o namorado dela era de
uma gangue?
TYLER: eu não presto muita atenção nos namorados das garotas
com quem estou transando por motivos óbvios
OLIVER: você ouve o que você fala?
TYLER: o que eu digito*
OLIVER: vsf
OLIVER: quais as chances do cara querer tirar satisfação?

Meus olhos caem nos três pontos embaixo do nome de Tyler se


movendo na tela. Não acredito que com tantas mulheres em Guildford ele
inventou de foder logo uma garota comprometida — e com a merda de um
criminoso. Honestamente, isso não seria um problema tão grande se Tyler
não tivesse uma política idiota de não recorrer a violência em hipótese
alguma. Em outras palavras, isso significa que seus dois metros de altura e
corpo musculoso não servem de nada, porque ele se recusa a bater em
qualquer pessoa.

TYLER: a gente conversou


TYLER: vamos apostar uma corrida amanhã a noite
TYLER: não entendi como isso resolve as coisas
TYLER: na cabeça dele deve ser alguma coisa na vibe do velho
oeste
TYLER: você sabe………………….
TYLER: ele deve estar tentando recuperar a própria honra
OLIVER: você devia ter quebrado os dentes dele e seguido em
frente
TYLER: isso estragaria minha paz interior
OLIVER: sua paz interior não vai servir de nada quando você levar
uma FACADA
TYLER: rlx
TYLER: eu fiz minhas pesquisas
TYLER: ele nunca matou ninguém
TYLER: eu ter comido a namorada dele não parece um bom motivo
pra começar agora

Eu respiro fundo pra não dizer que, na verdade, esse é um motivo


mais do que válido para começar uma carreira no ramo dos assassinatos.
Antes que eu possa digitar uma resposta para Tyler, meus olhos caem em
Trinity no outro lado da Dunkin Donuts, girando a cabeça de um lado para
o outro, procurando por algum sinal meu. Ela não demora a me encontrar e
abre um sorriso simpático, acelerando seu passo até a minha mesa.
São 9:56.
Ela é do tipo que chega na hora certa, o que me faz pensar que
ganharia muitos pontos com a Gracie.
O ar escapa dos meus lábios quando o nome me vem à cabeça. Na
verdade, acho que não passei mais do que vinte minutos sem que Gracie-
Desgraça-Salmon invadisse os meus pensamentos desde tudo que aconteceu
na festa. Eu aceitei a sua regra de não envolvimento sexual idiota e ela
estragou tudo me beijando daquele jeito. Tecnicamente, fui eu quem beijei
ela, mas a minha reclamação ainda é válida. Passei a noite inteira pensando
no gosto da sua boca, na forma como gemeu nos meus lábios, nas suas
pernas no meu colo. Eu poderia ir em um pub e comer qualquer mulher,
mas sinto que não vai adiantar de nada.
Eu quero ela.
Maldita.
— Eu estava com medo de ter chegado cedo demais. — Trinity abre
um sorriso, sentando-se na única cadeira disponível na mesa. A loira passa
os olhos por mim e eu me pergunto quanto da minha vida ela deve ter
pesquisado antes de aceitar vir até aqui. — Fico feliz que tenha me
procurado, Oliver. Quanto você sabe do meu trabalho?
Percebo tarde demais que eu também deveria ter pesquisado sobre
ela.
— Foi minha parceira quem te indicou — explico, tentando não soar
grosseiro e não deixar óbvio que não sei nada sobre seus serviços como
agente. Ela pode ser uma traficante de órgãos disfarçada e eu não saberia.
— Confio muito nas escolhas dela.
Quantas mentiras eu disse em menos de cinco minutos de conversa?
— Gracie Salmon, certo? Eu conheço a agente dela, Clarice. Ela
trabalhou comigo nos meses que passei na All Stars.
Movo a cabeça em afirmativa.
— Eu dei uma pesquisada nas últimas notícias sobre você — Trinity
comenta, colocando seu iPad apoiado no centro da mesa. — Montei um
panorama geral da sua carreira e acho que vamos ter muito trabalho por
aqui.
Cerro os olhos enquanto Trinity abre o arquivo, pronta para encher
minha cabeça de dados e opiniões públicas. Ela fez um apanhado completo
de todas as últimas polêmicas, transformando as opiniões boas e ruins em
números. Fico realmente surpreso quando noto que Trinity também montou
um mapa, apontando em quais localidades do globo terrestre minha
popularidade é maior ou menor. Nada como descobrir que você é odiado na
Rússia para começar o dia.
— Nós precisamos definir os seus objetivos de curto e longo prazo
antes de começar. A sua parceria com a Gracie é uma coisa temporária, não
é? Vai voltar pro hóquei depois que as olímpiadas passarem?
Passo os olhos pelas letras do PowerPoint, sem saber o que responder.
Desde que fui expulso dos Owls tenho evitado pensar na minha carreira.
Não consigo me imaginar jogando em outro time e sei que Hank Fisher não
vai me aceitar de volta, porque isso alimentaria os boatos sobre os Owls
serem uma equipe de nepobabys. Ao mesmo tempo, não sei se eu e Gracie
temos algum futuro como parceiros. Ela estava desesperada para encontrar
um parceiro agora, mas, com mais calma, pode encontrar alguém melhor
que eu.
— Não pensei nisso — respondo, como se fosse uma pergunta muito
simples. — Por enquanto, o objetivo vai ser ganhar as Olimpíadas de Paris.
Trinity franze o cenho, então abre um sorriso nervoso. Talvez porque
eu esteja falando de vencer as olimpíadas como se fosse uma coisa tão
simples quanto andar pra frente. Eu sei que não é, mas é o que a Gracie
quer, então faremos acontecer.
— Ter ambição já é um grande começo — Trinity brinca, digitando
alguma coisa no iPad.
Passamos a próxima hora discutindo estratégias de limpeza de
imagem. Trinity acha que o que acontece fora dos rinques de gelo é tão
importante quanto o que acontece dentro e, embora os juízes não assumam,
uma reputação ruim pode influenciar nas nossas notas. Ela concorda que a
narrativa de melhores amigos de infância patinando juntos é uma boa
história a ser seguida e cria uma lista de tópicos proibidos para as minhas
futuras entrevistas. Nada de falar sobre o tempo no reformatório ou minha
expulsão por comportamento violento. Trinity também tem planos de entrar
em contato com alguns atletas do mundo do hóquei e verificar quem está
disposto a dizer algo positivo sobre mim em coletivas de imprensa, caso
surja a oportunidade.
Depois de longos sessenta minutos de conversa, estou quase
convencido de que ela não é uma traficante de órgãos.
— Eu vou entrar em contato com a Clarice assim que chegar em casa
— Trinity diz, levantando-se da mesa. — Vamos alinhar nossas propostas e
marcamos uma reunião conjunta com você e com a Gracie.
Eu assinto quando ela aperta minha mão num cumprimento educado.
— Fico feliz que tenha confiado no meu trabalho, Oliver.
Dou um sorriso pra Trinity, embora eu desconfie que ela é maluca por
ter topado. Limpar a minha imagem parece uma tarefa quase tão difícil
quanto secar o rio Tâmisa, mas eu não digo isso em voz alta.
Assim que eu me levanto e entro na área interna da Dunkin Donuts,
meu telefone toca.
— E aí? — A voz cansada de Gracie do outro lado da linha denuncia
que estava treinando até alguns minutos atrás.
— Deu tudo certo — respondo, observando o balcão transparente que
exibe uma quantidade quase infinita de sabores de donuts. — Tenho uma
nova agente.
— Finalmente um momento de glória. — Pelo barulho de lâmina e
gelo, deduzo que ela ainda está andando pelo rinque. — Sempre soube que
ela ia topar.
— Na verdade você duvidou desde o começo.
— Eu? Nunca. O sonho de toda agente esportiva em Londres deve ser
agenciar um cara como você.
— Ligou pra me dar os parabéns ou pra zoar a minha cara?
— Sempre dá pra fazer os dois.
— Espero que a Mrs. Mulligan tenha comido o seu couro no treino
hoje.
— Ela foi muito gentil. — Gracie força uma voz doce e agora não
faço ideia se ela está mentindo ou não. — Acho que você deixa ela de mau
humor, sabia?
— Eu acreditaria nisso, mas todo mundo sabe que irlandeses não têm
mau humor.
— Parabéns por conseguir tirar uma irlandesa do sério.
— Isso nunca aconteceu.
— Ainda vai acontecer. — Ela dá uma pausa mais longa do que o
necessário. — Falou sobre o hóquei com a Trinity?
— Não.
— Por que não?
Eu seguro um suspiro.
— Ainda não sei o que vou fazer com essa parte da minha vida.
— Você quer voltar?
— Você quer que eu volte?
Gracie hesita pra responder. Não sei porque estamos tendo essa
conversa. Não lembro da última vez que perguntei a opinião de alguém
sobre a minha carreira.
— Me pergunta isso depois de Paris — ela finalmente responde.
— Bem vindo a Dunkin Donuts, no que posso ajudar? — um
atendente pergunta, para um cliente ao meu lado.
— Tá na Dunkin Donuts?
— Sim.
— O Mr. Happy é meu donut favorito — Gracie comenta, e eu
consigo localizar o donut no balcão, com uma carinha feliz e amarela
desenhada —, mas não posso comer porque eles não tem uma versão sem
açúcar.
— Parece que eu vou ter que me afogar em rosquinha e cobertura de
geleia sozinho dessa vez.
— Você nem ouse — Gracie protesta. — Açúcar deixa o seu corpo
mais lento. E você tem vinte minutos pra chegar aqui, então sugiro que
venha logo.
— Pensei que a gente tivesse combinado que meu treino começa na
parte da tarde.
— Sim, mas agora mudei de ideia — diz, simples.
— Você precisa disfarçar quando sente saudade de mim, desgracie.
— Continue sonhando, Fisher — zomba. — Eu preciso ir porque a
Ciara está perto de me matar. Vinte minutos!
Ela desliga o telefone antes que eu tenha a oportunidade de responder.
Fico alguns segundos com o celular na mão, como se precisasse de mais
algum tempo para absorver essa conversa. Gracie Salmon acabou de
interromper um treino só pra me ligar?
Eu guardo o aparelho no bolso da calça antes de sair da loja.
Definitivamente, acho que o mundo acordou de cabeça pra baixo hoje.
CAPÍT ULO 21 - GRACIE SALMON

— Isso, agora levante a perna esquerda. Mantenha ela estendida para


trás para manter o equilíbrio do corpo. — A voz de Mrs. Mulligan ecoa
pelo rinque. Como treinei sozinha durante a manhã, agora é o momento de
passar alguns movimentos mais complexos para o Oliver. Sei que o foco
dele vai ser me dar apoio e evitar que eu caia nos saltos, mas nossa
treinadora insistiu que ele tivesse uma noção dos movimentos mais
complexos. Ele tem pelo menos três saltos no programa longo e nunca
sabemos o que nos espera.
Oliver desliza de costas com a perna esquerda levantada. Aquele é um
movimento que eu consigo fazer até de olhos fechados. Não é exagero dizer
que já fiz mais de mil vezes ao longo dos anos, já que é a pose usada antes
de fazer um lutz.
— Agora, dê o salto girando para trás como te mostrei.
Observo Oliver saltar, dando um giro completo no ar e pousando com
a perna direita. Antes que eu possa me conter, estou aplaudindo. Percebo
que não sou a única, Mrs. Mulligan também o aplaude com um sorriso no
rosto.
Oliver desliza na nossa direção com uma expressão espantada. Acho
que nem ele acredita que conseguiu fazer o salto.
— Então isso é um lutz? Fácil.
— E ainda assim você fez errado — respondo, só para remover
aquele sorriso esnobe no seu rosto.
Ele levanta uma sobrancelha na minha direção, mas não questiona,
em vez disso, olha para a treinadora como se esperasse que ela desminta.
— Sua perna de apoio dobrou pouco, isso te fez perder impulso.
Além disso, quando você caiu, seu corpo perdeu o equilíbrio e por pouco
você não foi ao chão.
Controlo a vontade de rir ao ver a expressão satisfeita escorrer do
rosto de Oliver ao ouvir as críticas. Se ele não me provocasse tanto, até
ficaria com pena.
— Mas você até que foi bem, para um iniciante — comento.
— Anda, os dois, quero que façam o Lutz ao mesmo tempo. — Mrs
Mulligan bate palmas indicando que devemos voltar para o treino. — A
palavra que deve estar na mente de vocês é sincronia. — Ela olha para
Oliver. — Quero que levante mais essa perna e aterrise com firmeza, mostre
que seus músculos servem pra alguma coisa. — Seguro uma risada, mas
logo é minha vez de levar uma puxada de orelha. — E Gracie, não adianta
fazer um Lutz perfeito, se você aterrissar um segundo antes do seu parceiro.
Prestem atenção, se um errar, os dois erram.
Percebo o sorriso no rosto de Oliver, mas por sorte, ele tem o mínimo
de bom senso e não me provoca. Ele desliza na minha frente e em poucos
segundos, estamos lado a lado, mas a uma distância segura, deslizando de
costas.
— Perna esquerda!
O grito da treinadora preenche o rinque no momento em que nós dois
nos preparamos para o salto.
— Agora!
Uso minha perna direita para pressionar o gelo e conseguir o impulso
necessário para o salto. Não preciso pensar, meu corpo sabe exatamente o
que fazer.
Memória muscular, eu te amo.
Vejo o rinque girar como um borrão antes de eu aterrissar com leveza
após concluir o movimento. Percebo que o fiz um pouco mais rápido que
Oliver.
— De novo! Prestem atenção ao meu comando!
Redefinimos nosso posicionamento e começamos de novo.
Novamente, termino um pouco antes de Oliver.
— Mais uma vez!
Depois de quase 40 minutos de treino, finalmente conseguimos fazer
o movimento com perfeição. Minha perna dói pelo esforço repetitivo de
mais de 30 pulos em um curto intervalo de tempo, mas no final, valeu a
pena.
— Mesmo que você não use esse movimento no programa de vocês,
agora você sabe como fazer um Lutz, Mr. Fisher.
Paramos de frente à treinadora que tem um sorriso satisfeito no rosto.
— Eu não entendo porque passamos tanto tempo fazendo uma coisa
que nem vamos usar.
Olho para Oliver com empatia. Deve ser difícil sair da sua área e
precisar aprender um esporte novo em um tempo recorde. Se ele tivesse
todos os anos que tive para praticar, entenderia que boa parte dos exercícios
que fazemos não são executados nos nossos programas.
— É mais fácil eu te mostrar do que explicar — ela diz, deslizando
para o meio do rinque. — Mr. Fisher, venha até onde estou. Vamos dar duas
voltas deslizando de costas.
Ele olha na minha direção, mas dessa vez estou tão perdida quanto
ele, por isso apenas levanto os ombros.
Ele desliza para o rinque, mas logo nos primeiros minutos, percebo o
que minha treinadora tinha em mente quando nos fez treinar aquele
exercício. Os dois estão completamente fora de sincronia.
— Gracie, troca de lugar comigo. Mr Fisher, você continua dando
voltas.
Sigo para o centro do rinque e, em questão de pouquíssimos
segundos, estamos deslizando com uma sincronia perfeita.
— Gracie, mude a velocidade! — Mrs Mulligan grita. — Pode
acelerar ou reduzir, você escolhe.
Sem aviso, acelero a velocidade. Oliver, percebendo o meu
movimento, leva pouco mais que alguns instantes para me acompanhar.
Novamente estamos deslizando pelo rinque como se fossemos o reflexo um
do outro.
Ainda é um movimento simples, mas definitivamente é um avanço.
Essa sincronia é uma das coisas mais difíceis de se alcançar com um
parceiro. Sinto a esperança tomar conta do meu corpo ao ver que, em pouco
tempo, estamos chegando lá.
— Entendeu agora, Mr Fisher? — Mrs Mulligan se junta a nós,
imitando o nosso movimento. Meu parceiro faz um aceno, um sorriso
tímido no rosto. — Pausa de cinco minutos para vocês beberem uma água e
na volta vamos começar com os saltos lançados.
Ela se afasta deixando apenas nós dois no rinque.
— Qual a sensação de saber fazer um lutz? — pergunto, com um
sorriso no rosto.
— Estranha. Não acho que as lâminas deveriam deixar de tocar o
gelo. Isso é coisa de gente que não tem amor à própria vida.
Solto uma gargalhada genuína. Estou tão acostumada com os saltos
com os patins que às vezes é difícil entender que essa não é a realidade de
todo mundo, nem mesmo de pessoas acostumadas a patinar. No hóquei, o
foco é mandar o pluck para dentro do gol, não fazer piruetas equilibradas
em duas lâminas finas.
— Com o tempo você acostuma. — Deslizo na direção dele e seguro
sua mão. — Pensa pelo lado bom: agora é você quem vai me lançar para o
alto, não o contrário.
O conduzo para a área com o pequeno balcão onde está nossa água e
o celular de Oliver. Mantive o meu dentro do armário, porque não tem
ninguém com quem eu queira falar no momento.
— Ainda bem, porque eu jamais aceitaria uma coisa dessa.
— Quem diria que o famoso Oliver Fisher não é tão corajoso como
dizem. Se essa notícia vaza, você vai perder boa parte dos seus fãs.
— Não é questão de ter coragem, mas sim de bom senso. Desafiar a
gravidade não parece ser algo muito inteligente a se fazer.
— Disse a pessoa que pilota sem capacete em corridas clandestinas.
Ele digita alguma coisa no celular e parece não prestar atenção no que
eu digo, sua expressão se fechando aos poucos.
— Aconteceu alguma coisa? — pergunto, tentando manter o tom de
voz o mais casual possível. Não quero dar a entender que estou me metendo
na vida dele.
Espero por alguns segundos, mas como não recebo resposta, insisto.
— Oliver?
— Não é nada. — A expressão séria indica o contrário. — Bobeira de
família. — O maxilar travado mostra que não é tão bobeira assim.
— Se quiser conversar, estou aqui.
Ele assente, mas a impressão que dá é que não ouviu nenhuma
palavra que eu disse. Depois de digitar mais uma mensagem, ele bloqueia o
celular e o coloca de volta no balcão.
— Vamos voltar? — ele diz assim que vê Mrs. Mulligan deslizando
para o centro do rinque.
Nossa treinadora para na nossa frente, seu rosto levemente
avermelhado pelo frio, mas ela não se importa. Décadas fazendo isso
certamente a prepararam para aturar temperaturas baixas.
— A sincronia entre vocês melhorou bastante — ela diz, os olhos
revezando entre eu e Oliver. — Aconteceu alguma coisa no Savoy que
vocês não me falaram?
Consigo reunir todo o meu autocontrole para não deixar uma risada
nervosa escapar. Meus olhos caem em Oliver, mas ele parece distante e não
tenho certeza se escutou o que a treinadora disse.
— Não aconteceu nada — respondo, antes que o silêncio a faça
interpretar coisas que não existem. — Deve ser a convivência.
Ela dá uma risada a ponto de inclinar a cabeça para trás. Apesar de
não dizer nada, aquela risada mostra que ela sabe que aconteceu, sim, algo
que não queremos dizer. Se a ideia era fazer as pessoas acharem que eu e
Oliver estamos transando, agora tem mais uma pessoa na lista. Eu só não
esperava que até a Mrs. Mulligan entraria para esse fã clube.
— Claro que acredito. Bom, de qualquer forma, continuem assim,
não fazendo coisas. Se mantiverem o ritmo, talvez possam sonhar com uma
medalha nesse verão.
Apenas assinto, gesto que Oliver copia, mas está estampado no rosto
dele que não faz ideia com o que está concordando.
— Mas pra isso, ainda há um longo caminho pela frente. Agora
vamos treinar os saltos lançados.
Durante duas horas, treinamos o lançamento, mas diferente da
primeira parte da tarde, dessa vez Oliver estava distante. Mulligan precisou
repetir várias vezes as suas orientações, porque a cabeça do jogador parecia
muito longe do rinque. Sempre que eu conseguia, tentava lançar um olhar
interrogativo na sua direção, mas não recebi nenhuma resposta.
É óbvio que tem alguma coisa acontecendo, mas, se depender do
Oliver, eu nunca vou saber o que é.
CAPÍT ULO 22 - OLIVER FISHER

Nunca vou admitir em voz alta, mas ser patinador é mais cansativo do
que ser jogador de hóquei. Em todos os anos jogando nos Owls, me lembro
de ter chegado em casa destruído de um treino poucas vezes, sempre no
auge da temporada. Eu sei que estamos treinando num nível muito acima da
média por causa da proximidade dos jogos olímpicos, mas tenho a
impressão que meus dedos dos pés vão se desfazer a qualquer momento.
Pelo menos a dor de ficar um dia inteiro com os patins nos pés me
distrai de pensar em toda a confusão com o Tyler. Eu adoraria poder apagar
da minha memória que ele vai correr hoje.
Acho que estou provando do meu próprio veneno. É assim que as
pessoas que se preocupam comigo se sentem quando faço as coisas sem
pensar?
Antes que minha mente caminhe nessa direção, Ben late. Ele está
sentado na porta do meu quarto desde que saí do banho. O cachorro tomba a
cabeça pro lado, me observando com curiosidade. Acho que ainda não gosta
de mim. Talvez esteja pensando se deve ou não fazer xixi na minha cama
quando estiver sozinho em casa.
Eu apoio a toalha no ombro e caminho até a área de serviço para
deixá-la na máquina de lavar. Gracie está na cozinha. Ela ainda olha pra
mim com aquele olhar de “eu sei que tem alguma coisa acontecendo”, mas
não me faz perguntas, o que é ótimo. Não quero ter que explicar que o Tyler
fez merda.
— Planos pra hoje? — ela pergunta, enquanto coloca um pacote de
pipoca dentro do microondas.
Olho as horas pelo relógio do aparelho. São quase onze, o que
significa que a corrida já deve ter começado. Eu deveria ter mandado uma
mensagem pro Erik e dito pra ficar de olho no Tyler, mas sei como é
irritante quando ele começa a dar uma de irmão mais velho. Eu não tenho
motivos pra ficar preocupado.
Relaxa, porra.
— Você realmente entrou em outro mundo — Gracie protesta, diante
da minha falta de resposta. — O que foi? A agente era uma gostosa e você
ficou desconcertado? Sua ex mandou mensagem? Homem quando fica
assim é porque tem mulher no meio.
— Não reparei se ela era gostosa.
Gracie arqueia uma das sobrancelhas, em dúvida.
— Foi a ex, então?
— Você sabe que eu não tenho ex, desgracie.
— Oficialmente, não, mas…
— A única mulher que me interessa no momento criou uma regra pra
não transar comigo — digo, diretamente, enquanto abro a geladeira em
busca de um refrigerante. Já que a Gracie é uma atleta, só temos suco
natural e kombucha. Opto pela segunda opção com uma careta. Não confio
totalmente em bebidas fermentadas, com exceção da cerveja. — Então não,
não estou tendo problemas com mulheres.
— Para de papinho — ela reclama, observando o seu saco de pipoca
aumentar de tamanho. — E você não respondeu a pergunta.
— Sem planos por enquanto.
— Ótimo. Eu tenho 40 episódios de uma novela turca pra assistir,
então se quiser me fazer companhia — ela sugere. — No seu lado do sofá,
obviamente.
O comentário de Gracie me traz lembranças muito específicas.
Costumávamos ver todo tipo de novela latina e turca nas poucas ocasiões
em que não estávamos brigando quando éramos menores.
— Você ainda assiste?
Ela move a cabeça em afirmativa.
— Me ajuda a desestressar.
Concordo com ela, bebendo um gole da kombucha de fruta. As bolhas
da bebida estouram na parede da minha boca e eu ainda não sei se é uma
sensação agradável. Não respondo a sua proposta. Gracie ainda está vendo
suas pipocas estourarem e eu aproveito para observá-la. Sei que ela disse
que eu deveria ficar do meu lado do sofá, mas não consigo deixar de pensar
que tem alguma coisa implícita naquele convite.
Meu celular vibra no bolso da calça de moletom e eu deixo a garrafa
de kombucha apoiada em cima da pia pra atender a notificação.

ERIK: Sabe se o Tyler foi pras corridas hoje?

Franzo o cenho, sem saber o que responder. Acho que sondar a


situação e descobrir o que o Erik sabe antes de falar é a minha melhor
alternativa, mas não tenho tempo de fazer isso. Uma nova mensagem sobe
na tela:

ERIK: Soube que rolou um acidente na estrada


ERIK: Sentido Guildford > Londres
ERIK: Alguma chance dele estar envolvido?

Mordo o lábio. Meu primeiro ímpeto é discar o número de Tyler, mas


ele não atende. Tento mais uma vez, sem resultado.
Gracie tira a pipoca de dentro do forno. Ela abre o pacote com
cuidado e despeja o conteúdo dentro de um daqueles baldes decorados que
os cinemas costumam dar de brinde. Esse é cor de rosa, inspirado no filme
da Barbie.
— E aí? — ela pergunta, apontando a sala com a cabeça. — Nós
vamos assistir ou…
Meu celular vibra de novo.

ERIK: Fiquei sabendo que tem uma galera da polícia por lá.
ERIK: E ambulâncias.

— Foi mal, surgiu um compromisso.


Uma ruga de irritação surge na testa de Gracie e eu sinto que todo o
progresso que fizemos ao longo da última semana está perto de ir por água
abaixo. Ela parece desapontada, mas força um sorriso mesmo assim.
— Só não demora — diz. — Nosso treino começa às cinco amanhã.
Eu concordo e ela vai pra sala sem fazer mais nenhuma pergunta.
Digito uma mensagem pra Erik e pego as chaves da moto no meu quarto.
OLIVER: não sei de nada
OLIVER: vou dar uma passada lá
OLIVER: te falo se descobrir alguma coisa

Desço pelas escadas do prédio enquanto disco o número de Tyler


repetidas vezes, mas, assim como aconteceu minutos atrás, ele não atende.
Se não tiver acontecido nada, eu mesmo vou matar esse filho da puta.
Quando subo na moto, reparo que um dos carros de Vincent não está
aqui. Penso em mandar uma mensagem perguntando se ele sabe de alguma
coisa, mas desisto antes de pegar o telefone. Ao invés disso abro o portão
da garagem e saio, muito provavelmente quebrando várias regras de trânsito
quando acelero a moto.
Existem duas hipóteses passando pela minha cabeça. Número um, ele
sofreu um acidente, número dois ele foi pego pela polícia. A segunda
alternativa causaria tanta dor de cabeça quanto a primeira, mas me deixa
cerca de 1% mais tranquilo. Depois dessa noite, vou dizer a Hank Fisher
que nenhum dos filhos dele tem maturidade pra pilotar a porra de uma
moto. É irônico pensar nisso, considerando que estou muito acima do limite
permitido de velocidade e sem capacete.
Os prédios de Londres não demoram a sumir do meu campo de visão.
A adrenalina da corrida se mistura com a ansiedade dentro do meu corpo,
fazendo meu coração bater mais forte. Em algum ponto da estrada, diminuo
um pouco a velocidade para tentar ligar para Tyler mais uma vez, mas de
novo tenho o mesmo resultado.
Quando chego no clube, não encontro nada.
As barricadas que os seguranças de Vincent costumam fazer não estão
aqui. Nada de Betty Boop macabra em lugar algum. As arquibancadas onde
os apostadores das corridas costumam ficar estão vazias e tem uma dúzia de
copos de bebida espalhados pelo chão, mas nada além disso.
Eu acelero a moto e paro em um ponto mais distante, lembrando da
mensagem de Erik sobre a polícia. Abro o bagageiro e encaro a máscara
que sempre deixo por ali, embora não tenha o costume de usá-la. É branca,
com uma mancha disforme no lugar da boca e a frase “KISS ME” na testa,
escrita com uma tinta vermelha que imita sangue. Em dias normais, eu não
teria medo de ser visto pela polícia, mas, agora, não posso me dar a esse
luxo. Se eu for preso, coloco a reputação da Gracie em risco.
Estaciono a moto perto das árvores que circundam a estrada, de um
jeito que ela não fique tão visível. Coloco a máscara e volto para a área
onde o clube deveria estar, tentando entender o que pode ter acontecido
aqui. Não vi nenhum acidente na estrada vindo pra cá, mas pode ser que
tenham liberado a pista no tempo que gastei atravessando Londres.
Eu entro no casarão que o clube costuma usar para preparar as
bebidas. Está tão vazio quanto parece do lado de fora. Olho em todos os
quartos e não encontro nada além de provas que pessoas estiveram aqui
mais cedo: uma garrafa de cerveja pela metade perdida numa escrivaninha
velha, o resto de um cigarro, camisinhas usadas. Levo um susto quando o
meu celular toca, o toque reverberando pelo casarão inteiro.
Ao mesmo tempo, sinto alívio ao ver o nome de Tyler brilhando na
tela.
— Seu filho da puta — eu xingo assim que atendo, minha voz saindo
abafada por conta da máscara.
— Xingamentos mais tarde — Tyler pede.
— Que porra aconteceu? — tento falar baixo, pro caso da polícia
ainda estar por perto.
— Tivemos um acidente na corrida — ele murmura. — Tenho a
impressão que alguém zoou minha moto. Acabei trombando em um cara.
— E ele ficou bem?
— Não faço ideia — seu tom de voz é pesaroso. — Precisaram
chamar uma ambulância, mas eu caí fora antes disso. Eu estaria fodido se
me levassem pro hospital.
— Mas você tá inteiro?
— Defina inteiro — Tyler zomba. — Tenho quase certeza que torci o
tornozelo, mas não posso ir no hospital pra ver. Anunciaram no rádio que
um acidente numa corrida clandestina aconteceu. Vou ter que esperar até
amanhã.
— Não pode esperar até amanhã — respondo, como se ele estivesse
maluco. — Se for uma coisa séria…
— Ir na emergência com um machucado de moto agora é assinar um
atestado de culpa. Acabei me queimando no escapamento quando tudo
aconteceu e acho que qualquer médico reconheceria de onde veio essa
ferida.
— Caralho, Tyler — eu bufo. — A foda valeu toda essa dor de
cabeça?
— Se eu responder que sim…
— Eu mesmo vou te moer no soco — corto. — Você tá em casa?
— Perto.
— Me espera na garagem.
Tyler ri, e eu não sei dizer se é uma risada de nervosismo ou de
confiança.
— Não me surpreende que você tenha um plano.
— Sabe que fazer merda e não ser pego é a minha especialidade.
CAPÍT ULO 23 - GRACIE SALMON

Assisto novelas turcas desde minha adolescência e, pela primeira vez,


elas parecem totalmente sem graça. Por mais que eu tente prestar atenção
nos plots, muitas vezes fantasiosos, nem mesmo todo o drama do mundo
consegue prender a minha atenção por mais de dois minutos seguidos. Eu
devo ter batido algum recorde nas últimas horas de quem mais olha o
relógio. Os segundos escorrem lentamente desde que Oliver saiu e não faço
ideia do que pode estar acontecendo.
Há uma briga feroz dentro de mim em busca da explicação mais
provável. Um lado acha que tem mesmo mulher envolvida nessa história.
Como argumento favorável, ele tem o histórico sujo de garoto problema e,
por mais que Oliver não seja tão mulherengo quanto Tyler, o sobrenome
Fisher parece ser um ímã que atrai as mulheres pra cama. Do outro lado,
acho que pode ter acontecido alguma coisa séria dessa vez. Oliver passou o
final do treino distante, com a cabeça em todo lugar, menos no rinque. Ele
não ficaria assim se fosse por causa de mulher, ficaria?
Na mesma hora, meu cérebro junta os dois lados em um só: ele
engravidou alguém.
Me levanto e começo a andar de um lado para o outro enquanto Ben
me observa em silêncio. Escuto no fundo os diálogos em uma dublagem
horrível para o inglês, mas não estou prestando atenção em nada ao meu
redor.
O que ele vai fazer com a criança?
Eu consigo imaginar o Oliver como muitas coisas: jogador, patinador,
empresário, artista, qualquer coisa, até mesmo padre, mas não consigo
imaginá-lo como pai. E pelo jeito que ele estava preocupado, aposto que já
sei qual vai ser a reação dele.
Corro para o meu Macbook e abro o Safari.

número máximo de semanas para fazer um aborto

Passo os olhos pelas notícias e vejo que alguns lugares defendem 12


semanas, enquanto outros permitem até 22. Faço umas contas rápidas na
cabeça. Esse é o tempo que Oliver ainda estava nos Estados Unidos. Eu não
faço ideia de como era a vida dele por lá, mas não imagino que ele fosse um
exemplo de comportamento. Ele ter engravidado alguém não me
surpreenderia, mas se fosse o caso, por que ele teria saído de casa agora
para encontrar uma pessoa que estava do outro lado do continente? Quem
seria louco de fazer uma viagem tão longa assim sem levar bagagem?
Bom, ela pode ter vindo para a Inglaterra para encontrar com ele.
Balanço a cabeça de um lado para o outro. Eu estou sendo ridícula.
Não seria impossível alguma menina apaixonada atravessar o oceano para
encontrá-lo, mas seria muito improvável. Qualquer pessoa com o mínimo de
senso saberia que esse é um péssimo plano.
Ok, ele não engravidou ninguém.
Sigo para o bar e paro na frente das garrafas de álcool. Eu realmente
não deveria beber. Minha mãe exagera nas implicações, mas ela está certa.
Eu sou uma atleta, devo priorizar a minha carreira, o que não encaixa com
drogas, tanto as lícitas quanto as ilícitas, pois são as piores inimigas de
quem performa em alto nível. Isso sem contar a diabetes.
Bom, só uma dose não vai me matar.
E se eu morrer, volto para assombrar o Oliver.
Coloco uma dose de gin no copo e fecho a garrafa, a devolvendo para
o bar. Sigo para o sofá e me sento, olhando para a televisão, mas sem
prestar atenção no que estou assistindo. Minha mente está fervilhando. Eu
até poderia tentar meditar para me acalmar, mas não sei se quero ficar mais
tranquila. O que eu quero é saber o que aconteceu com o Oliver.
Um novo pensamento surge na minha mente.
Por que isso me interessa tanto?
Levo alguns segundos para atacar esse pensamento. A resposta para
ele é óbvia: o jogador de hóquei agora é meu parceiro. O que ele faz
impacta o seu rendimento dentro do rinque, que por consequência, impacta
o meu. Isso sem contar que agora nossas imagens estão associadas uma à
outra. O que ele faz, respinga em mim. E minha reputação ainda está se
recuperando desde que Pierre me chutou pra fora da dupla. Se eu puder
escolher, prefiro não levar outro golpe por enquanto.
Mas o que ele poderia fazer para manchar a minha reputação?
A resposta vem como se fosse uma tijolada na minha testa.
Eu sou muito burra. Por que não pensei nisso antes?
A raiva me faz levantar do sofá e quase derrubo o resto de gin. Viro o
líquido de uma vez e sinto o álcool arder na minha boca. Ben solta um
latido, sempre preocupado com a minha integridade física.
Eu sei para onde ele foi.
A resposta é óbvia.
Oliver foi correr.
Esse sempre foi o seu hobby, não sei porque levei tanto tempo para
pensar nisso. Talvez porque eu sou idiota e cheguei a pensar que agora que
se tornou meu parceiro ele não faria algo tão irresponsável. Sinto minha
cabeça latejar de irritação.
Solto a respiração, frustrada. Pego o celular e fico vários segundos
decidindo se devo ou não ligar para Oliver. Parte de mim quer xingá-lo com
os palavrões mais abomináveis que existem, enquanto a outra parte ainda
quer dar uma chance.
Deixo meu corpo escorregar no sofá. O cansaço acumulado dos
treinos começa a falar mais alto e, agora que ele tem um eco com toda a
preocupação que o Oliver causou, sinto o esforço absurdo que é me manter
acordada na medida que os minutos se arrastam. Já é madrugada e eu
deveria estar dormindo. Sinto uma bola peluda se aninhar no meu colo. É a
última sensação que percebo antes de permitir que o sono tome conta do
meu corpo.

∞∞∞
Quando meu despertador toca às quatro e meia da manhã, Oliver
ainda não chegou em casa. Meu corpo está dolorido pela péssima posição
dormindo no sofá e eu me arrasto para um banho de cinco minutos antes de
vestir minhas roupas de treino. Checo todas as minhas redes sociais, mas
Oliver não deu nenhum sinal de vida desde o momento que saiu.
Espero até às cinco e mando uma mensagem para Mrs. Mulligan
dizendo que Oliver teve um imprevisto e não vai conseguir chegar no
treino. Ela me responde quinze minutos depois dizendo que não tenho como
treinar saltos e arremessos sozinha. Tire um dia de folga, querida.
Solto um suspiro irritado. Eu não quero tirar um dia de folga, eu
quero planejar o assassinato de Oliver Fisher de forma lenta e dolorosa. Por
um segundo, quase sinto saudades do Pierre. Ele pode ser um babaca que
fode mal, mas, ao longo da nossa parceria, nunca perdemos um treino.
Ben acorda quando o relógio marca seis horas. Ele corre pra cozinha e
se senta do lado do pote de ração, esperando pelo café da manhã. Encho seu
pratinho e abro a geladeira, tirando uma porção da salada de frutas que fiz
alguns dias atrás.
Eu como e volto pra sala. Me pergunto se deveria registrar uma
queixa de desaparecimento à essa altura. Minha novela turca ainda está
passando na televisão quando eu a desligo. Como na noite anterior, minha
mente começa a criar várias hipóteses sobre o que está acontecendo, mas
agora elas são um pouco mais macabras. E se ele tiver sofrido algum
acidente? Devo começar a checar hospitais? Vou ficar com fama de
patinadora viúva pro resto da vida?
Considero descer alguns andares e perguntar se Vincent sabe de algo,
mas desisto da ideia. Os primeiros raios de sol invadem o apartamento e eu
percebo que meu dia de treino foi oficialmente arruinado quando noto que
já são sete horas.
— Eu vou correr, honey — digo para Ben. — Se o Oliver aparecer,
arranque as bolas dele bem devagar.
Ben late, em concordância.
Eu coloco meus tênis e dou uma olhada na sala antes de sair. Tenho a
impressão incômoda de que esqueci de alguma coisa importante quando
acordei, mas ignoro.
Entro no elevador e encaro meu reflexo no espelho. Ajeito o cabelo
num rabo de cavalo, percebendo que a noite mal dormida no sofá cobrou
seu preço. Minha visão está um pouco turva, como se meu corpo ainda não
tivesse despertado por completo. Faço alguns exercícios de respiração e
saio pela portaria do prédio, satisfeita em sentir o calor do sol no meu
corpo.
Como se tivéssemos marcado algum encontro, Oliver está
estacionando na frente do meu prédio. Preciso de uma quantidade
gigantesca de autocontrole para não subir lá em cima, pegar uma faca e
furar os pneus dessa moto maldita.
— Onde você estava? — pergunto, mas não estou interessada na
resposta, não de verdade. Na situação em que estamos, eu ficaria irritada
por perder um treino mesmo que ele dissesse que tinha ido alimentar
animais em situação de rua.
— Foi mal — ele responde, mas não parece mesmo arrependido. —
Foi uma noite longa e cheia de imprevistos.
— Que tipo de imprevisto faz você perder um treino?
Oliver morde o lábio. Ele tira o celular do bolso e dá uma olhada no
relógio, só então percebendo que as cinco horas da manhã já se foram faz
tempo.
— Você não leva nada a sério — resmungo, me virando na direção da
rua que leva ao Holland Park. É um dos meus parques favoritos em Londres
e tenho certeza que algumas horas entre as árvores vai tirar a minha vontade
de assassinar o homem na minha frente.
Eu não espero que Oliver venha atrás de mim, mas ele vem.
— Foi mal mesmo — repete, como se adiantasse de algo. O fato dele
desconhecer a palavra desculpa me deixa ainda mais irritada. — Acho que
as coisas saíram de controle.
Ignoro seu comentário e acelero o passo. Ele aumenta a velocidade da
sua moto, dirigindo próximo ao meio fio para tentar me acompanhar.
— A gente pode treinar o dobro amanhã.
— Não é assim que as coisas funcionam — reclamo. — Nossos
músculos também precisam de tempo pra descansar.
Oliver assente. Nós passamos por vários quarteirões enquanto ele
tenta me acompanhar. Nossa dupla inusitada — ele na moto, eu a pé —
atrai o olhar de algumas pessoas.
— Ainda acho que não é o fim do mundo. Mulligan disse que
estamos melhorando.
— Não é o fim do mundo porque você não quer ganhar — eu
continuo aumentando o passo e estranho o fato do meu corpo parecer tão
cansado. Foi a dose de gin ontem? Eu costumo correr vários quilômetros
antes dos meus pulmões começarem a reclamar. — A patinação nunca vai
ser uma prioridade pra você. Não acredito que foi correr antes de um treino
importante.
— Eu não estava correndo ontem. Já disse que tive um imprevisto.
— É mesmo? Quem morreu? — reviro os olhos. — Nenhum
imprevisto no mundo é mais importante do que um treino quando estamos a
quase duas semanas das olimpíadas, Oliver!
— Caralho — ele solta um sussurro. Seu tom de voz é rouco e
cansado, talvez pela noite que passou em claro na farra. — Você é
igualzinha a sua mãe.
Eu paro de correr. Quase consigo sentir meu sangue borbulhando nas
veias.
— Eu sou igual a minha mãe?
— São obcecadas por patinação porque não tem mais nada na vida.
Sinto meus olhos arderem. Minha visão se torna mais turva e eu
respiro fundo mais uma vez.
— E o que você tem? Arruinou a própria carreira por falta de
inteligência emocional. Você devia ter me agradecido quando te chamei pra
patinarmos juntos. Eu te salvei da obscuridade de ser eternamente o
nepobaby que foi expulso do time do papai. Honestamente? Eu fui burra de
achar que você aproveitaria a oportunidade e levaria essa merda a sério —
por um segundo, ele parece chocado em me ver soltando um palavrão. —
Se não tivesse perdido a aposta você nem estaria aqui.
— Eu não perdi a aposta.
Arqueio uma das sobrancelhas. Quero voltar a correr, mas minha
respiração está estranha. Minhas pernas começaram a formigar.
— Você perdeu a corrida naquela noite.
Oliver deixa uma risada irônica escapar.
— Acreditou mesmo nisso? — ele balança a cabeça em negativa. —
Em nenhum momento você pensou que era estranho que o vencedor invicto
tivesse perdido uma corrida logo quando tantas coisas estavam em jogo?
Acorda, Gracie. Você não é a única que manipula as pessoas por aqui.
Eu demoro um segundo para entender o que ele está dizendo. Melhor
que isso, o que ele está confessando.
— Você…
— Perdi de propósito.
Não sei o que fazer com essa informação. A ponta dos meus dedos
está gelada e minha cabeça parece leve, como se eu tivesse tomado várias
doses seguidas de gin. Passo os olhos no relógio digital no meu pulso e
percebo que ele aponta batidas cardíacas acima do normal.
Minha visão se turva um pouco mais. Meu raciocínio é lento, mas
consigo entender, finalmente, que esqueci de tomar minha dose de insulina
antes de sair de casa. Oliver me encara. Acho que ele percebe que tem
alguma coisa de errado, porque estaciona a moto de qualquer jeito e desce
para me examinar mais de perto.
Minha boca fica seca.
— Esqueci de… — é como se as palavras estivessem na ponta da
minha língua, mas eu não sei ao certo como pronunciá-las. — Insulina.
Com o gin de ontem à noite e as frutas que comi no café da manhã,
minha glicemia deve ter ido parar no teto. Eu tento sugerir que Oliver me
leve de volta pra casa, mas não tenho certeza se eu conseguiria me segurar
na moto. Ao invés disso, ele apoia as mãos na minha cintura e me leva até o
meio-fio, dando apoio para que eu me sente.
Não sei se perco a consciência em algum momento, mas os instantes
seguintes passam como um borrão. Eu perco Oliver de vista por um
segundo e quando os meus olhos o localizam de novo, tem uma caneta de
insulina nas mãos. Eu não entendo. Talvez eu esteja alucinando, mas estou
certa de que estamos longe demais do apartamento para que ele tenha ido
até lá em segundos.
Oliver se senta do meu lado no meio-fio. Eu ofereço um dos braços
na sua direção e não preciso fazer mais nada, porque ele sabe exatamente
como tenho o costume de aplicar. Sinto a caneta picar minha pele enquanto
me pergunto quanto Oliver Fisher tem me observado nos últimos dias.
Demora alguns minutos, mas minha visão volta ao normal. Ainda me
sinto um pouco fraca, como se estivesse prestes a desmaiar a qualquer
momento, mas minha respiração se normaliza. Meu coração continua
batendo forte, então não me levanto.
Eu me viro pra Oliver. Observo cada centímetro do seu rosto, dos
olhos escuros até o maxilar marcado. Por alguns minutos, estou disposta a
ignorar a raiva que ainda estou sentindo.
— Você tinha uma caneta de insulina no bagageiro da sua moto?
— Também tenho no carro.
— Por quê?
— É um costume, desde que aprendi a dirigir. Sempre tenho algumas.
Nós passávamos muito tempo juntos em Guildford quando éramos mais
novos… Eu não queria correr o risco de ter uma emergência sem estar
preparado.
Não sei o que responder. Tenho milhares de perguntas, algumas mais
burocráticas que outras. Não sei se meu choque é maior por saber que ele
comprou canetas de insulina pra mim ao longo dos anos ou porque ele
perdeu a corrida de propósito.
— Por quê? — Devo estar parecendo uma idiota fazendo a mesma
pergunta um milhão de vezes, mas é tudo que escapa da minha boca.
— Porque eu me preocupo com você, desgracie. E odeio ver você
sofrendo por qualquer motivo que seja — ele diz, então se levanta do meio-
fio, me oferecendo uma das mãos como apoio. — Mas se falar sobre isso
mais tarde, vou fingir que você estava alucinando.
NEWS: O beijo no jardim

O beijo no jardim
Aconteceu na última quarta-feira (10) a festa de integração para os
atletas olímpicos da Grã-Bretanha. O evento, que é muito aguardado, serve
como uma oportunidade para os nossos atletas conhecerem e se
familiarizarem uns com os outros, tudo em nome de mostrar uma frente
unida representando o nosso país. Como é de conhecimento geral, nessa
festa não é permitido tirar fotos, muito menos gravar vídeos. Ainda assim,
nosso compromisso com a verdade mantém toda a equipe do EstherNews
atenta para captar o menor cheiro de notícias. E não voltamos de mãos
vazias dessa festa.
Obviamente, o casal mais aguardado do ano não demorou a
aparecer. Usando um vestido rosa claro com mangas bufantes, Gracie
Salmon (20) entrou ao lado de Oliver Fisher (22), também impecável no
seu smoking sob medida, evidenciando os músculos bem definidos. O casal
chama a atenção pelo belo par que formam, mas há muito por trás dessa
dupla além da aparência deslumbrante. Durante algumas conversas entre
os patinadores, um dos nossos jornalistas ouviu cochichos de que o novo
casal talvez seja mais do que apenas parceiros no rinque. Durante uma
escapada para os jardins, nossa equipe flagrou o momento onde os dois se
beijaram com uma intimidade que indica que aquele é um gesto comum
entre eles.
O que esse beijo revela? Será que teremos um novo casal de
namorados no gelo? Será que é um sinal de que Gracie já superou Pierre
menos de um mês depois do término? O EstherNews tentou entrar em
contato com os agentes dos atletas, mas não conseguiu informação
relevante. Uma das agentes disse à nossa equipe: “A vida pessoal do meu
agenciado não lhe diz respeito”. Essa foi uma resposta que julgamos
desnecessária, especialmente para alguém que acabou de abrir uma
empresa.
Seguimos na cobertura dessas e de outras notícias e mais ansiosos do
que nunca para ver os pombinhos nas Olimpíadas de Paris.
Sexta-feira, 12 de julho de 2024
CAPÍT ULO 24 - OLIVER FISHER

Minha relação com Gracie Salmon sempre foi estranha, mas ela
atingiu um outro nível de esquisitice depois que eu assumi que perdi a nossa
aposta de propósito. Enquanto Gracie já tentou engatar uma conversa sobre
esse assunto várias vezes nos últimos dias, eu estou evitando ao máximo
falar com ela mais do que o necessário. Não tem sido uma tarefa muito
difícil porque, embora Gracie esteja grata pelas insulinas, ela ainda não
esqueceu que eu perdi um treino importante.
Eu poderia ter contado que fiquei a noite inteira no hospital com Tyler
e que os médicos pediram centenas de exames para garantir que o seu
tornozelo estava mesmo bem quando perceberam que se tratava de um
atleta da NHL. Eu não contei. Se ela acha que sou um babaca irresponsável
que larga sua mão na primeira oportunidade, vou mostrar quão babaca
irresponsável eu posso ser.
Embora nenhum de nós tenha dito em voz alta, sinto que estamos
muito perto de começar uma guerra.
— Vou no cinema hoje. — Gracie aparece na porta do meu quarto,
dentro de um vestido muito curto que não deixa quase nada pra imaginação.
É arrumado demais pra uma simples ida ao cinema. — Pode ser que eu
demore.
Franzo o cenho.
Não tenho certeza de que horas são, mas desconfio que sejam quase
seis da tarde. Nosso treino hoje não foi dos melhores e, embora Mrs.
Mulligan não tenha nos dado um esporro, a decepção estava visível no seu
rosto.
— Com quem? — eu pergunto.
Pode ser um pensamento escroto, mas sei que Gracie não tem muitas
amigas.
— Não é da sua conta — diz, ríspida. — Dá ração pro Ben, por favor.
Eu afundo o corpo no colchão enquanto ouço o barulho dos seus
saltos altos se afastando do meu quarto. Tento não me importar com o que
ela pode estar planejando fazer, mas a ideia de imaginar Gracie em um
encontro me deixa mais irritado do que eu gostaria de assumir em voz alta.
Ela vai… Sair com outro cara? Eu respiro fundo. Sei que não é da
minha conta, mas, ao mesmo tempo, passei a vida inteira vendo a Gracie
com outro cara e, honestamente, acho que prefiro levar uma facada do que
passar por isso de novo.
Me levanto da cama.
Ela ainda está na sala quando eu chego.
— É um encontro?
Gracie passa os dedos pelo cabelo, ajeitando as pontas. Ela pega sua
bolsa no sofá e dá um longo suspiro.
— Já disse que não é da sua conta.
— Sim ou não?
Gracie morde o lábio. Me analisa por alguns segundos, mas dá uma
resposta honesta.
— Sim.
— Com quem?
— Um cara do Tinder — ela diz, dando de ombros —, mas Oliver…
— Você não pode ir em um encontro.
Gracie me encara, incrédula.
— E eu posso saber por quê?
Porque eu não quero.
Não tenho uma justificativa boa o suficiente, então invento uma:
— Isso tiraria seu foco das olimpíadas.
Mas o que eu quero dizer é: isso tiraria o seu foco de mim.
Gracie ri.
— Não é você que diz que eu preciso ter uma vida fora da patinação?
— Não era nisso que eu estava pensando quando falei…
— Tchau, Oliver — ela corta.
Gracie ameaça se virar na direção da porta, mas eu seguro seu pulso
um segundo antes que ela se afaste.
— Cancela.
Ela desce os olhos até minha mão, irritada.
— Cancela o encontro — peço.
Sei que estou sendo ridículo, mas, no fundo, meu pedido até que é
razoável. Não estava mentindo quando disse que um encontro tão perto das
olimpíadas poderia tirar o seu foco das medalhas de ouro. Aliás, quem é
esse Cara-do-Tinder? Em silêncio, minha mente começa a traçar um milhão
de possibilidades, mas não tenho muitos suspeitos. Além do Pierre, de que
tipo de homem a Gracie gosta?
Em quem eu tenho que bater?
— Deixa de maluquice. — Ela balança as mãos, se livrando do meu
toque.
— Você precisa focar no treino.
— Eu estou focando nos treinos, muito mais do que você, Fisher. —
Ela confere alguma coisa dentro da sua bolsa, então um sorriso toma conta
dos seus lábios, como se uma pequena luz tivesse se acendido na sua
cabeça. — Espera… Você tá com ciúmes?
— Não. — eu reviro os olhos. — Estou preocupado com a nossa
medalha de ouro.
Gracie bufa, descrente.
— Até parece. O meu Uber chegou, então, boa noite pra você. E não
traga uma mulher aqui pra casa ou eu vou te colocar pra dormir na rua de
novo.
Eu aperto meus dedos quando ela desaparece dentro do elevador, seu
perfume floral tomando conta de toda a sala mesmo quando sua presença
não está mais aqui. Não consigo acreditar que Gracie jogou uma regra de
não envolvimento sexual na minha cara e agora vai sair com outro. Como
ela… Argh. Maldita.
Uma ideia passa pela minha cabeça quando Ben late, quase como se
estivesse fazendo uma sugestão. Passo os olhos por ele, depois pelo
elevador que acabou de sair daqui e me dirijo para as escadas de
emergência, descendo os degraus de dois em dois. Estou correndo o risco de
ganhar uma fratura, mas acho que consigo chegar na garagem antes do
elevador deixar a Gracie na portaria.
Observo o pilotis assim que abro a porta das escadas. Pela quantidade
de vezes que estacionei a minha moto nas últimas semanas, aprendi a
conhecer esse lugar como ninguém. Se eu não estiver errado, o quadro
elétrico do prédio fica na parede atrás do bicicletário.
Abro um sorriso de vitória quando o encontro. Pode ser que as
câmeras da portaria me vejam aqui, mas se eu tiver que pagar uma multa
por ter desligado os elevadores do prédio, que seja. Assim que abro a porta
de metal, percebo que os controles não são etiquetados.
Na dúvida, eu desligo todas as chaves.
Apesar do sol do lado de fora, a garagem se transforma em um breu.
Eu volto pelas escadas de emergência e subo até a portaria. Não
encontro ninguém na cabine do porteiro o que, em outras palavras, significa
que tirei a sorte grande.
Ouço batidas na porta do elevador.
— Mr. Quigley? — a voz de Gracie soa abafada por causa da
estrutura metálica entre nós. — Acho que aconteceu uma queda de energia.
— Que azar o seu, hein?
— Oliver? — Gracie bufa do outro lado, confusa. — Chama o
porteiro pra mim.
— Só quando você cancelar o encontro.
— O quê? — Ela demora um segundo para entender. — Oliver
Fisher! Foi você, não foi?
— Eu?
— Não acredito que me trancou no elevador.
— Você deu azar — respondo. — Quedas de energia acontecem o
tempo todo. Uma pena que eu não to vendo nenhum sinal do Mr. Quigley
por aqui, tenho certeza que ele poderia ajudar a gente a resolver…
— Cara de pau. — Ela bate na estrutura metálica mais uma vez.
— Vamos lá, desgracie. Cancela o encontro e eu te tiro daí em dois
minutos.
— Eu vou ligar pros bombeiros.
— Tenho certeza que os bombeiros têm situações mais urgentes pra
resolver.
— Quando eu sair daqui, eu juro que você vai precisar de pontos.
Eu respondo com uma risada despreocupada que parece deixar Gracie
ainda mais puta. Depois de alguns minutos, o porteiro aparece.
— Aconteceu uma queda de energia? — ele pergunta. Está com um
brinquedo de criança molhado em mãos, o que me faz pensar que estava
fazendo um resgate na área das piscinas.
— Sim — digo. — Minha colega de apartamento ficou presa no
elevador.
— Ele me trancou aqui!
— Ela tá brincando. — Forço um sorriso. — Você é tão engraçada,
Gracie.
— Eu vou ligar pra companhia de energia — Mr. Quigley diz, com
um sorriso simpático. Ele caiu na minha. — Infelizmente eles costumam
demorar algumas horas pra resolver problemas elétricos nessa área. Se
quiser se sentar, senhorita Salmon…
Gracie solta um suspiro frustrado. O porteiro se afasta e eu dou mais
um sorriso satisfeito ao perceber que ele não pensou em checar os quadros
de energia, o que me dá mais algumas horas de vantagem.
— E aí? — pergunto. — O que vai ser?
CAPÍT ULO 25 - GRACIE SALMON

Oliver Fisher é um homem morto.


Essa é a única frase que se passa pela minha cabeça quando as luzes
do elevador se acendem, uma hora depois do momento em que se
apagaram. As portas se abrem na portaria, meu destino original. Não
encontro nenhum sinal do meu parceiro — desconfio que ele tenha voltado
pra minha cobertura quando percebeu que eu não cancelaria encontro
nenhum —, e meus olhos caem no Mr. Quigley, ao lado de um homem
uniformizado com a logo da companhia de energia.
— Deu tudo certo, senhorita Salmon — o porteiro comemora. — Não
foi uma falha técnica. Parece que alguém desligou os disjuntores centrais
mais cedo.
Eu dou um sorriso sem mostrar os dentes.
— Obrigada — digo, me esforçando para ser simpática. Acho que
minha voz soa um pouco sem emoção. Tenho certeza que, se eu exibisse os
meus sentimentos de verdade, os dois funcionários se assustariam. — Eu
vou voltar pro meu apartamento.
Se ouvirem gritos, não chamem a polícia, tenho vontade de
completar.
Não entro no elevador dessa vez. Subo todos os malditos andares até
a cobertura só pro caso de Oliver-Psicopata-Fisher atacar de novo e me
deixar mais uma hora trancada dentro daquelas paredes de metal. Se ele não
fosse meu parceiro, eu o processaria por cárcere privado. Será que existe
um tempo mínimo de reclusão pra ser considerado crime de sequestro?
Antes de entrar no apartamento, respondo uma mensagem do meu
date dizendo que passei mal antes de sair de casa e que devemos marcar
outra coisa outra hora. Ele parecia um cara legal, mas nas mensagens que
trocamos disse que estava só de passagem em Londres, o que me faz pensar
que não vamos marcar coisa nenhuma. Talvez isso seja o universo tentando
me preservar de um encontro meia boca. Um recado muito claro das forças
cósmicas: você é a garota que passa oito anos namorando o mesmo cara e
não a que faz sexo com desconhecidos do Tinder.
Sinto vontade de mandar as forças cósmicas, o universo e Oliver para
o quinto dos infernos.
Não encontro nenhum sinal de Oliver quando entro no apartamento.
Ben pula nas minhas pernas, latindo e babando nos meus pés, fazendo uma
festa diante da minha chegada. Faço carinho na sua cabeça e atiro minha
bolsa no sofá com toda força que consigo, torcendo para que o tecido da
Prada automaticamente se transforme em uma granada explosiva.
Ouço o barulho do chuveiro ligado vindo da suíte do Oliver. Então ele
me trancou no elevador e seguiu o seu dia normalmente? Uma lista
gigantesca de xingamentos passa pela minha cabeça. Eu deveria trocar o
seu shampoo por creme depilatório.
Encaro a fita cor de rosa que divide os dois lados do apartamento e a
ultrapasso, ignorando minhas próprias regras por um instante. A porta da
suíte do Oliver está aberta, mas eu bato nela mesmo assim, mais para
descontar a minha raiva do que para avisar que estou entrando.
— Oliver! — A porta do banheiro também está aberta, o vapor da
água quente se espalhando pelo quarto. — Sai desse chuveiro agora.
— Você já voltou? — ele questiona, irônico. — Como foi o encontro?
— Eu devia te processar.
— Pelo que exatamente?
— Cárcere privado.
— Acho que o elevador do seu próprio prédio foi uma péssima
escolha de lugar pra te manter refém.
— Sai desse chuveiro — reclamo. — Precisamos conversar. Tenho
novas regras.
— Mais tarde, desgracie.
O apelido me deixa mais irritada do que deixaria em um dia normal.
Acho que estou acumulando raiva desde o momento em que mandei uma
mensagem para Mrs. Mulligan e percebi que teria que cancelar o nosso
treino. Em alguns momentos, essa raiva se transforma numa mistura
agridoce, como foi ontem, quando ele aplicou insulina no meu braço. No
momento, a raiva é amarga e explosiva, e eu deixo ela tomar conta do meu
corpo por tempo o bastante para fazer uma besteira.
Fecho os olhos e entro no banheiro. Conheço esse apartamento há
tempo o bastante para conseguir me guiar até o box sem precisar ver. Eu
empurro o vidro para o lado e entro, trombando no corpo de Oliver antes de
conseguir alcançar a torneira e desligar o chuveiro. A água quente molhou
parte do meu vestido, mas considero a missão um sucesso mesmo assim.
— Tá invadindo o meu banho? — Oliver protesta, e eu me viro na
direção dele, mantendo os olhos fechados. O vapor quente da água ainda
está aqui, causando a impressão de que estou dentro de uma sauna. —
Agora sou eu que posso te processar.
— O apartamento é meu, posso invadir o que eu quiser— cruzo os
braços. — Coloca uma toalha.
Oliver solta um suspiro. Mesmo sem ver, eu sei que ele revirou os
olhos.
— Pronto.
Meu sangue ferve quando o observo e vejo que ele não colocou
nenhuma toalha. Gostoso e desgraçado, é isso que Oliver Fisher é.
Me esforço para ignorar sua pele nua a centímetros de distância do
meu corpo.
— Tenho perguntas — digo, mas meu tom não é tão ameaçador
quanto eu gostaria que fosse. — Por que comprou as insulinas? — Ele cerra
os olhos mas não faz menção de responder. — Por que me trancou no
elevador? Por que perdeu a corrida?
— Eu já respondi a primeira. — Oliver dá de ombros. Eu gasto mais
tempo do que gostaria observando as tatuagens que cobrem seus braços e a
forma como seu cabelo molhado cai pelos olhos está me deixando…
Quente. — E a segunda…
Oliver hesita e o seu silêncio me incomoda.
— Acho que não está fazendo as perguntas certas — ele diz, simples.
Franzo o cenho.
— Devia estar se perguntando porque você se importa.
A pergunta me deixa mais atordoada do que eu gostaria de admitir.
Oliver dá um passo pra frente e apoia as duas mãos na parede atrás de mim,
seus olhos escuros consumindo os meus. Uma parte de mim quer olhar pra
baixo só pra conferir se o seu pau é mesmo acima da média, mas meu lado
racional prefere manter o próprio orgulho e se contentar com a visão
periférica. Parece grande. Enorme, se eu quiser ser mais específica.
— Por que você se importa, Gracie?
Odeio quando ele me chama de desgracie, mas também odeio quando
fala meu nome. Ele não desvia os olhos dos meus e um arrepio percorre
minha nuca, uma mistura de estímulos inebriantes acalmando a minha
raiva. O vapor, o cheiro de sabão e shampoo, a curiosidade de olhar pra
baixo. Percebo tarde demais que me enfiei em uma situação terrível pra
alguém que não quer transar com o seu inimigo de infância.
— Não me importo — respondo, finalmente. — Pode fazer o que
quiser, dane-se.
— Acho que pessoas adultas dizem foda-se.
— Foda-se, Oliver — corrijo, repetindo minha última frase: — pode
fazer o que quiser.
— O que eu quiser?
O meio sorriso malicioso no seu rosto me diz que eu caí em algum
tipo de pegadinha que só ele entende, mas assinto mesmo assim. Sei que
essa discussão não vai levar a lugar algum, então dou um passo para frente,
tentando sair do box. Oliver obstrui a minha passagem. Sua mão molhada
desce até a minha cintura e ele me empurra contra a parede de um jeito tão
suave que quase me faz duvidar se o seu movimento realmente aconteceu.
Os ladrilhos gelados arrepiam minha pele e eu me sinto traída pela minha
própria boceta, porque eu não deveria estar tão animada.
Respiro fundo e busco pela raiva que estava aqui há alguns minutos,
mas sinto que ela se transformou em outra coisa muito mais perigosa.
Gracie Salmon, você perdeu todo o juízo dentro daquele elevador?
Os olhos de Oliver descem até a minha boca e eu percebo que ele
ainda está esperando uma resposta verbal pra sua pergunta. É o momento
perfeito pra eu mandá-lo pro inferno mais uma vez e ir embora, mas eu não
faço isso. Parte de mim quer ver até onde ele vai, parte de mim quer fingir
que nada disso é excitante.
— Sim — respondo, ciente de que é a pior resposta que eu poderia
dar.
E então, com a droga do meu passe livre, Oliver me beija pela
segunda vez na vida, mas eu sinto como se fosse a primeira. Quando o
beijei nos jardins da festa, foi um risco calculado. O repórter estava por
perto e nós teríamos que voltar pro salão mais cedo ou mais tarde. Era
seguro, com milhões de impedimentos que garantiriam que o beijo seria só
um beijo. Agora, estamos sozinhos. É perigoso como se jogar de um
precipício, porque tudo que me impede de fazer uma besteira colossal é
meu próprio autocontrole e ele não parece muito bem regulado hoje.
Suas mãos molhadas me apertam com mais força, molhando meu
vestido. Meus dedos se embrenham nos seus fios escuros e eu puxo parte
deles, numa mistura de desejo e raiva. Como se estivesse me castigando por
isso, Oliver morde meu lábio inferior, arrancando um gemido que sai
abafado contra a sua boca.
Meu clitóris lateja. O efeito que esse filho da puta tem sobre mim é
inexplicável. Meu cérebro diz não, mas minha boceta diz que eu deveria
transar com ele e recuperar minha dignidade mais tarde. Dignidade, pff, isso
é mesmo tão importante?
Se transar com ele agora, vai querer transar de novo.
O pensamento vem de uma parte racional do meu corpo e nem
mesmo minha intimidade molhada consegue contestar tal argumento. Nossa
relação já é delicada o suficiente sem envolver sexo e eu não posso correr o
risco de perder mais um parceiro.
Os lábios de Oliver se afastam dos meus por um segundo. Sua língua
desce pelo meu pescoço e eu sinto todo meu corpo estremecer quando o
piercing gelado toca minha pele. A pergunta é inevitável: o que esse
piercing conseguiria fazer se ele descesse até…?
Vai mesmo arriscar as olímpiadas por causa de uma foda?
Meus dedos descem pelo peito de Oliver e eu paro no seu abdômen,
registrando todos os seus músculos na ponta das minhas digitais. Minha
calcinha molhada começa a incomodar e eu sei que meu vibrador vai ter
trabalho mais tarde, mas preciso pensar com o cérebro e não com a boceta.
Um tanto hesitante, eu o empurro pra trás.
— Você quer me deixar louca, não é? — Eu deixo uma risada
incrédula escapar. Meus olhos passam pelo rosto de Oliver, a boca vermelha
por causa do atrito. Agora, meu cérebro está jogando uma partida
involuntária de bem-me-quer, mal-me-quer: gostoso, desgraçado, gostoso,
desgraçado… — Chega — digo, pegando a toalha pendurada no box e
jogando na sua direção. — Se está tentando fazer eu quebrar as minhas
regras, isso não vai acontecer.
Oliver ri. Eu posso negar o quanto quiser, mas ele sabe muito bem o
estrago que acabou de fazer no meio das minhas pernas.
— Você parecia pouco comprometida com as suas regras um minuto
atrás — ele diz, enrolando a toalha na cintura.
Ótimo. Uma tentação a menos.
— Eu me deixei levar — murmuro. — Não vai acontecer de novo.
Oliver assente, mas tem alguma coisa na sua expressão que deixa
claro que não acredita em mim. Eu também não acredito.
— Nova regra — continuo. — Distância segura de pelo menos dois
metros quando estivermos sozinhos.
Me sinto um pouco patética. Como se estivesse vivendo uma nova
onda da pandemia de COVID-19 ou algo do gênero.
— Que gracinha — Oliver ironiza. — Acabou de admitir que não
consegue ficar por perto sem sentir vontade de dar pra mim.
Reviro os olhos, mas não tenho como me defender. Eu saio do box
numa mistura de sentimentos estranhos que não sei identificar. Frustração,
raiva, desejo. Oliver Fisher realmente consegue me deixar maluca.
— Nova regra — ele diz, quando estou chegando perto da porta. —
Sem encontros.
— E isso vale pra você também?
— Acho que você não entendeu da última vez que falei, então vou ser
mais direto. — Oliver me encara de dentro do box, o que é suficiente para
que eu pare e ouça o que ele tem a dizer. Foi idiotice da minha parte
escolher um parceiro tão bonito. Tenho certeza que não estaria tendo tantos
problemas se estivesse patinando com alguém com uma feiura natural que
me obrigasse a manter distância. — Eu não quero sair com ninguém. Eu
não quero transar com ninguém. Você é a única que me interessa. Não tenho
nenhum problema em admitir que sou obcecado por você, desgracie, mas
sabe qual é o lado bom disso?
Eu movo a cabeça na direção dele, indicando que continue. Suas
palavras e seu tom de voz rouco provocam arrepios por todo meu corpo
então, talvez, além da regra de dois metros de distância eu também deva
proibir qualquer tipo de conversa que não seja estritamente profissional.
— Você está perto de descobrir que é obcecada por mim também.
O seu tom é acusatório e eu me sinto ridícula ao perceber que não
tenho um bom argumento. Desde que começamos a patinar juntos, mais da
metade dos meus pensamentos diários são sobre ele. Eu posso mentir pra
mim mesma e fingir que isso é só a minha preocupação com as olímpiadas,
mas acho que nunca gastei tanto tempo assim pensando em Pierre.
Eu estou fodida.
— Dois metros de distância, Fisher — declaro, por fim, porque essa é
a única arma que eu tenho. — Ou eu juro que vou te dar um soco.
CAPÍT ULO 26 - OLIVER FISHER

Depois do incidente — não sei se posso chamar assim — no chuveiro,


Gracie e eu estamos oficialmente em guerra fria. Estou respeitando a sua
regra maluca dos dois metros de distância, exceto nos treinos, quando isso é
impossível. Gracie não mencionou nenhum outro encontro até então, o que
me faz pensar que vai seguir as minhas regras se eu seguir as dela. Mesmo
assim, o clima entre nós é tenso. Sexualmente tenso.
Não sei o que deu na cabeça de Gracie Salmon nos últimos dias, mas
ela parece ter descoberto que esse é um jogo pra dois. Se eu tiro a paz dela,
ela também quer tirar a minha — como se precisasse de muito. Tenho
certeza que a escolha de dormir com shorts de pijama cada vez mais
minúsculos não foi por acaso. A de deixar seu vibrador enorme e cor de
rosa visível no meio da sala muito menos. É quase como se estivesse
tentando provar um ponto. Gracie quer esfregar na minha cara o quão
gostosa ela é e depois me humilhar porque nunca vou tê-la disponível. Uma
verdadeira desgraça.
Como se estivesse prevendo a tempestade, Mrs. Mulligan cancelou o
treino de hoje. Aparentemente ela teve um imprevisto com o seu gato persa
de 20 anos de idade, mas deixou instruções, chaves e um endereço. Um
pequeno estúdio de dança nos limites de Guildford. Ela sugeriu que
treinássemos as figuras do nosso programa curto longe do gelo e dos patins
hoje.
— Não entendi porque ela escolheu um estúdio em Guildford —
Gracie murmura, batucando as unhas contra o volante. Não sei se foi boa
ideia colocar a McLaren do meu pai nas mãos dela, mas estou sem
paciência pra dirigir hoje. Como se eu não estivesse do seu lado, ela
continua a conversa, dando uma resposta ao seu próprio questionamento. —
Acho que ela está com medo dos olheiros. A família do Pierre é influente
no ramo da dança, eu não duvidaria se mais da metade dos estúdios em
Londres fossem propriedade dos Durant.
— Pelo menos vamos poder jantar em casa.
Gracie move a cabeça em afirmativa, mas não parece muito animada
com a possibilidade. Eu também não estaria se fosse filho de Nora Salmon.
Ela não diz mais nada. Liga o som, cantarola alguma música que eu
não conheço e, mais ou menos vinte minutos depois, estamos estacionando
em frente ao estúdio de dança que Mulligan indicou. Como quase tudo em
Guildford, é velho, mas tem seu charme. É como uma casa perdida no
tempo.
Gracie se aproxima da porta balançando as chaves da senhora
Mulligan como se fossem um acessório. Ela coloca o rosto perto do vidro e
faz uma careta quando percebe que não tem ninguém do lado de dentro.
— Parece que vamos ser só nós dois hoje — diz, e eu sei muito bem
que esse tom pesaroso vem da sua evidente falta de controle quando
estamos entre quatro paredes.
— E o que você esperava?
Gracie dá de ombros, encaixando as chaves.
— Um estúdio lotado, de preferência.
Eu deixo uma risada baixa escapar. Gracie abre a porta e a forma
como o sol adentra o estúdio faz parecer que o espaço inteiro foi colorido
por algum filtro em tons de sépia. O primeiro cômodo é uma pequena
secretaria que parece não ter sido usada nos últimos dez anos. Atrás de uma
bancada com um computador jurássico, uma pequena placa com uma
bailarina desenhada diz: “The Dance Loft”.
— Eu lembro dessa bailarina — Gracie comenta, ajeitando sua bolsa
de treino nos ombros. — Devo ter vindo aqui em algum momento quando
era mais nova.
— Esse lugar nem parece que foi usado um dia — ironizo.
— Foi, muito tempo atrás — ela sopra, caminhando na direção do
corredor.
O cheiro de pinho que exala de cada cômodo deixa óbvio que alguém
cuida do espaço, por mais abandonado que ele aparente ser. É pequeno:
consigo localizar mais dois cômodos além da secretaria por onde entramos,
os banheiros e a sala de dança cheia de espelhos para onde Gracie se dirige.
— Meu antigo treinador costumava dizer que patinação no gelo é um
balé mais complicado — Gracie explica, prendendo os fios de cabelo
escuros em um rabo de cavalo. — Eu não concordo totalmente, mas as
figuras que fazemos na patinação são semelhantes a algumas que existem
no balé. Basicamente, vai ser um treino de força e atuação. — O seu tom é
parecido com o da Mrs. Mulligan quando está explicando alguma coisa. —
Precisa me carregar e fazer parecer que não é esforço algum.
— Quase parece que você tá me chamando de frango.
Gracie ri.
— Se sobreviver até o final do treino vou acreditar que não é.
— Fácil.
Ela arqueia uma das sobrancelhas, duvidando do meu comentário
enquanto se abaixa para calçar suas sapatilhas. Não são sapatilhas de balé,
mas aquelas finas e próprias pra executar qualquer tipo de dança. Gracie me
entrega um par bem maior que o seu e espera que eu troque meu tênis por
ele. É quase como andar descalço.
Gracie coloca uma música no celular, porque o único aparelho de som
que temos disponível é tão jurássico quanto o computador na entrada e
nenhum de nós trouxe um cd ou um pen drive. Acho que nem os mais
velhos usam isso em pleno 2024.
Enquanto ela me passa instruções sobre os movimentos que
precisamos treinar, penso que ela seria uma boa técnica se quisesse. Sua
forma de orientar é simples e, assim como acontece com Mrs. Mulligan, eu
consigo entender tudo mesmo sem ser um grande especialista no assunto. É
uma boa opção, porque tenho certeza que Gracie Salmon nunca vai
abandonar os rinques de gelo, nem mesmo quando estiver velha demais pra
patinar.
— Então eu vou correr — ela explica, mais uma vez, só pra ter
certeza — e você precisa me carregar acima da sua cabeça com uma das
mãos.
Confirmo com a cabeça mais uma vez. Sinto que ela está sendo
cautelosa e não sei se ela não confia totalmente em mim ou se só quer
garantir que não vai conquistar uma lesão tão perto dos jogos de Paris. Na
verdade, acho que é um pouco dos dois.
Gracie se afasta e corre na minha direção uma, duas, três, dezenas de
vezes até que o movimento esteja perfeito — perfeito pra mim, aceitável
pra ela. Em todas as repetições, uma das minhas mãos se apoia em sua
cintura e eu giro seu corpo no alto, até que sua barriga se apoie em uma
única mão. Ela estica o braço e as pernas na figura de um cisne e, depois de
cerca de cinco segundos, eu a coloco no chão. Quando estamos no gelo, ela
também tem um giro depois disso.
— Muito bom. — Ela bate palmas assim que coloco seus pés no piso.
— Vamos de novo — e então completa: — de novo até que seu braço esteja
doendo.
Eu deixo uma risada sem humor escapar.
— Sádica.
Gracie dá um sorriso irônico e manda um beijo na minha direção,
muito grata em poder assumir o papel de general no lugar da Mrs. Mulligan
hoje. Quase acredito que estamos aprendendo a ficar em lugares privados
sem sentir vontade de transar — ou matar — um ao outro, mas, como se
meu corpo quisesse provar que estou errado, começo a prestar atenção
demais na sua bunda quando ela se vira. A sua calça legging é muito justa e
eu tenho a impressão que…
Não.
Ela não faria isso, faria?
— Um, dois, três… — Gracie recomeça a contagem, então corre.
Como em todas as outras vezes, eu pego seu corpo e levanto no ar. A
diferença é que, dessa vez, estou muito consciente do corpo dela e cada
centímetro dele que encontra o meu. Gracie termina seus movimentos,
alheia aos pensamentos pouco respeitosos que passam pela minha cabeça
agora. Quando eu a coloco no chão, sei que preciso fazer a pergunta ou não
vou me concentrar em mais nada até o fim do dia.
— Você…
Gracie franze o cenho, me encarando com curiosidade. Eu aperto os
olhos por um segundo, incrédulo.
— Você tá sem calcinha? — pergunto, finalmente, sem rodeios.
Gracie abre um sorriso. Não aquele sorriso comum, mas o sorriso que
ela usa quando sabe que acabou de vencer uma discussão.
— Se você pode me trancar no elevador do prédio e me pressionar
contra a parede do banheiro eu acho que também tenho direito de… Bom,
fazer coisas que te deixem desconcertado.
— Você invadiu o meu banho.
— E você se recusou a colocar uma toalha. — Ela cruza os braços. —
Sim.
— Sim o quê?
— A resposta da sua pergunta — Gracie diz, com mais um sorriso
diabólico.
— Inacreditável, desgracie — eu protesto, um grunhido de raiva
escapando da minha garganta. — Não sei como você espera que eu me
concentre depois de receber essa informação.
— Um bom atleta se concentra independente do que acontece no
mundo ao redor dele.
— Não sou um bom atleta.
— Se vira, Fisher.
Balanço a cabeça em negativa.
— Esse é o seu jeito de respeitar a regra de não envolvimento sexual?
— Nenhuma regra foi quebrada aqui.
— Você que pensa.
Gracie arqueia uma das sobrancelhas, sem entender.
— Na minha cabeça — digo. — Já quebramos essa regra algumas
centenas de vezes.
— Não tenho culpa dos seus pensamentos intrusivos.
Eu mordo o lábio inferior, deixando uma risada escapar. Quero gritar
com ela. Quero que engula todas as suas gracinhas, quero voltar algumas
semanas no passado e dizer pra mim mesmo que perder aquela corrida é
uma péssima ideia. Não faço nada disso, no entanto.
— Vamos de novo — Gracie instrui.
Eu seria um parceiro muito ruim se a deixasse cair no chão?
Certo, não vou fazer isso.
Repito o mesmo movimento mais uma vez, mas admito que minhas
mãos se demoram na sua cintura mais tempo que o necessário depois que a
coloco no chão. Ela se vira pra mim e, por causa do passo de dança, está na
ponta dos pés, o que faz com que nossos rostos estejam mais próximos do
que ficariam normalmente. Nossas respirações se misturam, o jeito que ela
me encara bagunça a minha cabeça. Minha mão desce até o seu quadril e eu
gostaria de descer mais um pouco, mas não faço ideia de até onde Gracie
vai me deixar ir.
Não até onde eu quero, com certeza.
Ela não se afasta. Sua mão está apoiada no meu ombro e seus olhos
encaram meu rosto, descendo até minha boca e dando uma longa conferida
na adaga desenhada no meu pescoço de tempos em tempos. Ela quer, eu
também quero. Não sei porque ainda estamos fingindo ou onde queremos
chegar com isso, mas, se é uma competição, eu aceito a minha derrota.
Como se pudesse ler minha mente, Gracie aproxima os lábios dos
meus, roçando-os suavemente contra minha boca. Nenhum de nós avança.
Como quem dá vida aos próprios pensamentos, Gracie sobe uma das mãos
até o meu pescoço, dedilhando a adaga com a ponta da unha curta. Eu
seguro seu pulso e seus olhos mergulham nos meus mais uma vez,
questionadores. No seu celular, a música continua tocando.
Não faço ideia de quem cede primeiro, mas de um segundo pro outro
a distância entre nós não existe mais. É uma sensação diferente cada vez
que nos beijamos, como se fosse uma substância química mudando de
acordo com o ambiente. A sua língua se esfrega na minha enquanto seus
dedos sobem pela minha nuca, procurando algum lugar onde se apoiar. Ela
suspira e geme contra a minha boca e, por um momento, fodam-se todas as
regras. Ela está entregue.
Uma das minhas mãos desce até a sua bunda e Gracie suspira de novo
quando eu a aperto. Nossos movimentos são descoordenados, movidos por
uma ânsia que parece cada vez maior. Quanto mais eu tenho dela, mais eu
quero.
Os dedos de Gracie apertam minha camiseta e ela me puxa para mais
perto enquanto nós cambaleamos pelo estúdio. Eu encosto seu corpo em
uma das paredes espelhadas e afastamos nossos lábios em um movimento
quase sincronizado, buscando por mais fôlego.
Gracie me fita. Suas pupilas estão dilatadas. Sua boca vermelha
combina perfeitamente com os fios de cabelo que escaparam do seu rabo de
cavalo e a respiração descompassada faz parecer que estávamos treinando
duro segundos atrás.
Eu passo o polegar pelo seu lábio inferior. Gracie acompanha cada
movimento atentamente até que abre a boca:
— Acho que já brincamos com fogo o suficiente por hoje — diz, sem
fazer menção de se afastar.
Balanço a cabeça em negativa.
— Nova regra — murmuro, sentindo meu pau latejar. — As regras só
valem em Londres.
Gracie ri.
— Tentador, Fisher, mas não — ela murmura, e nossos rostos ainda
estão perto o suficiente para que eu sinta seu hálito. Café, menta, pasta de
dente. Misturado ao seu perfume, é suficiente para me deixar inebriado. —
As regras continuam valendo.
— De que tipo de envolvimento sexual estamos falando?
— De todos.
— Abre uma exceção.
Gracie franze o cenho. Ela tem um meio sorriso na boca e é um
grande avanço que não tenha negado minha proposta de cara.
— Pra quê?
— Quero te fazer gozar — murmuro, e Gracie morde o lábio inferior
num gesto que não tenho certeza se foi consciente. — Me deixa te fazer
gozar, por favor.
Gracie dedilha meu queixo, descendo até meu pescoço. Ela fica em
silêncio e odeio não saber no que ela está pensando. Tento mais uma vez:
— Você já está sem calcinha então… Meio caminho andado.
Ela ri.
— Sim — responde, finalmente —, mas só porque você fica gostoso
implorando.
Sádica.
— Se eu soubesse que era só implorar, teria feito antes.
Minha boca volta a encontrar a sua, e os seus toques me respondem
numa urgência ainda maior. Enfio os dedos por baixo do tecido da sua blusa
e sentir sua pele quente contra minhas mãos faz o meu pau pulsar dentro
dessa maldita calça apertada. Eu puxo os botões da blusa sem me preocupar
se vão se arrebentar ou não. Caso isso aconteça, espero que ela tenha uma
roupa extra dentro da mochila.
Me afasto dos seus lábios quando sua blusa escorrega pelos ombros,
caindo aos nossos pés. Eu gasto tempo encarando seu corpo porque não sei
quando — nem se — ela vai me permitir fazer isso de novo. Gracie está
usando um top de ginástica que, tenho certeza, não foi feito pra ser sexy,
mas nela é a coisa mais bonita que já coloquei os olhos. Ele é um pouco
menor que o tamanho dos seus peitos, o que faz com que fiquem colados
um no outro, implorando para sair.
Minha língua desce pelo seu pescoço e sua pele se arrepia diante do
toque do piercing. Eu beijo seu ombro e sua clavícula enquanto meus dedos
se livram do fecho do top e Gracie deixa que ele caia pelos braços, tendo o
mesmo destino da blusa.
Abocanho um dos seus mamilos e ela geme, apoiando a mão esquerda
no espelho atrás dela, um tanto desnorteada. O seu gemido faz meu pau se
apertar ainda mais dentro da calça e, se eu não quisesse que esse momento
fosse inteiramente sobre Gracie Salmon tendo um orgasmo de verdade, eu
tentaria mudar suas regras de novo.
Eu chupo o bico do seu peito, contornando a aréola com a ponta do
piercing e ela arfa. Minhas mãos apertam sua cintura quando ela tenta
fechar as pernas, numa tentativa de se esfregar.
— Isso é minha responsabilidade, desgracie — murmuro pra ela. —
Se vira.
Gracie passa a língua pelo lábio inferior. Consigo ver a confusão nos
seus olhos, uma mistura de desejo e dúvida. Ela se vira para o espelho e eu
imediatamente puxo o seu corpo para perto do meu, sua bunda tocando meu
pau por cima do tecido das calças.
— Caralho — Gracie solta.
— Então agora você fala palavrão?
— Só quando fico realmente impressionada. O seu pau é…
— O quê?
— Merda, Oliver.
— Falou de novo.
— É enorme — Gracie murmura. Ela ameaça descer uma das mãos
para me tocar, mas eu a impeço.
— Vamos focar em você hoje — digo, puxando seus pulsos para trás
do seu corpo.
Eu mantenho seus braços imobilizados com uma das mãos enquanto
dedilho seu pescoço com a outra. Meus dedos descem pelos seus ombros,
apertam seus seios e chegam na barriga, sob o olhar atento de Gracie no
espelho. Ela solta um suspiro ansioso quando chego perto do cós da sua
calça.
Quase não acredito que estamos fazendo isso. Quase não acredito que
ela está aqui, tão disponível pra mim, enquanto seu perfume se impregna
nas minhas roupas e o meu nas dela. Minha mão desce mais um pouco e um
gemido desajeitado escapa dos lábios de Gracie quando meus dedos tocam
sua intimidade.
Porra.
Sentir sua boceta encharcada pela primeira vez é o caralho de uma
experiência. A minha vontade é tirar aquela calça e chupar cada centímetro
seu, mas sei que meus dedos dão conta do recado.
Volto a beijar o seu pescoço enquanto meu dedo percorre seu clítoris
em movimentos circulares. Eu gosto da imagem de Gracie no espelho,
porque ela é uma bagunça: Tem uma marca roxa e avermelhada no seu
peito, próximo ao mamilo. O rabo de cavalo acabou de se desfazer e ela
fecha os olhos de tempos em tempos, tentando manter sua respiração
descompassada um pouco mais normal.
Eu enfio um dedo dentro dela e continuo estimulando seu clítoris com
o polegar. Gracie geme, movendo os quadris contra minha mão, numa
tentativa de conseguir mais contato. Sua boceta apertada me pressiona e não
consigo evitar o pensamento de como seria sentir meu pau contra ela.
Céus, Gracie, você vai me fazer implorar de novo.
Ela solta mais um gemido quando eu mordo seu pescoço, com
cuidado para não deixar outra marca na sua pele escura, tão aveludada que
parece de mentira.
— Mais um — ela choraminga, e é como desbloquear uma nova
versão de Gracie Salmon dentro do meu cérebro, muito mais vulnerável do
que qualquer um está acostumado a ver.
Eu coloco outro dedo e Gracie aumenta o rebolado contra minha mão,
deixando gemidos cada vez mais altos escaparem.
Ela joga a cabeça pra trás, apoiando-a no meu ombro. Arrisca fechar
os olhos.
— Olhos abertos — eu peço, lambendo sua pele que arrepia diante do
meu toque. — Olha como você fica gostosa gozando pra mim.
Gracie ergue o pescoço e, por incrível que pareça, me obedece. Como
se fosse uma recompensa, eu aumento o ritmo das investidas contra ela,
esfregando seu clítoris um pouco mais rápido. Gracie morde o lábio com
tanta força que eu imagino ter visto uma gota de sangue se acumular no
canto da boca.
É uma visão do caralho vê-la desse jeito. Seus peitos balançam
conforme ela rebola na minha mão, deixando os mamilos duros em
evidência. Seus gemidos se misturam com suspiros e palavrões desconexos
enquanto ela pede por mais e tenho certeza que a ouvi dizendo meu nome
uma ou duas vezes.
Gracie Salmon gemendo meu nome.
É melhor que qualquer coisa que já ouvi.
Vejo quando as pernas de Gracie começam a tremer. Eu seguro seus
braços com mais força, mantendo a de pé. Sua boceta se contrai ao redor
dos meus dedos e consigo sentir seu clítoris sensível pulsando cada vez
mais a medida que continuo me movimentando contra ele.
— Oliver… — ela suspira, um filete de suor escorrendo pela testa.
Suas pernas bambeiam, mas ela não cai, porque estou apoiando seu corpo.
Gracie aperta os olhos quando o segundo orgasmo vem. Eu a observo
se derreter enquanto sua boceta pulsa contra os meus dedos, mil vezes mais
melada do que antes. É absurdo que aquele cara nunca tenha lhe dado um
orgasmo. É como ter uma Ferrari em casa e não dirigir.
— Nossa — Gracie murmura, ainda um pouco perdida, se virando na
minha direção. O volume óbvio na minha calça toma todo o seu foco e ela
fica alguns segundos observando, sem dizer nada. — Você quer que eu…
— Não — nego — Estamos quebrando as regras em parcelas. Por
partes, se você preferir. Não podemos quebrar outra parte hoje.
Gracie move a cabeça em negativa, enquanto se abaixa para pegar seu
top.
— Foi uma exceção.
— Foi uma armadilha.
Ela arqueia uma das sobrancelhas enquanto veste o top de ginástica,
sem entender. Eu pego sua blusa e jogo na sua direção.
— Por que agora que você sabe que eu posso te fazer gozar desse
jeito. — Eu levo os dedos que estavam dentro dela minutos antes até a
boca, chupando todo mel que ela escorreu em mim. Gracie para de se vestir
para observar o movimento e, pela segunda vez no dia, ela parece
hipnotizada. — Você nunca mais vai esquecer.
— Convencido como de costume, Fisher.
Ergo os ombros, dando um sorriso na direção dela.
— Foi um prazer ser o primeiro a te dar um orgasmo, Salmon.
CAPÍT ULO 27 - GRACIE SALMON

— A Ciara me disse que a sincronia entre vocês está melhorando


rápido.
A voz da minha mãe sobressai ao som dos talheres, pratos e sussurros
ao longo da enorme mesa da nossa sala de jantar. Nora Salmon nunca perde
uma oportunidade de se juntar com Hank e Linda. Como a última reunião
dos melhores amigos de infância havia sido na residência dos Fisher, essa
está sendo na nossa.
— A gente até que se dá bem quando a Gracie não tá tentando me
matar — diz Oliver, arrancando uma risada de Tyler. Eu acho que se meu
parceiro de patins disser que come plástico no café-da-manhã, seu irmão
favorito vai rir do mesmo jeito.
— É só você não me dar motivos — respondo à meia voz, de modo
que metade da mesa não escuta.
— Isso é uma coisa boa, não é, Nora? — pergunta Linda Fisher, que
parece não ter notado a provocação. — Imagino que precise de uma
sincronia perfeita para fazer aquelas piruetas malucas no gelo.
A atenção da mesa está voltada para as duas matriarcas enquanto os
empregados circulam completando as taças de vinho. Não a minha. Estou
só na água com gás hoje.
— É ótimo. Os movimentos mais difíceis dependem de muita
sincronia. — Ela pousa os talheres no prato e pega o lenço para limpar os
lábios que já estão impecavelmente limpos. — Mas é claro que os dois não
vão conseguir chegar nesse nível até Paris.
O comentário sai como um fato, uma lei da natureza que não pode ser
mudada. A água molha, o fogo queima, o frio congela, Gracie e Oliver não
tem uma sincronia perfeita.
— Por que não? — Oliver pergunta, os olhos negros fixos no rosto da
minha mãe. — Pensei que estivesse torcendo pela gente.
— Meu bem, é claro que estou torcendo por vocês. Às vezes acho que
torço até demais. — Oliver me lança um olhar rápido, mas é suficiente para
um mundo de troca de informações entre nós. — Não tem ninguém na
Inglaterra que quer mais a vitória de vocês do que eu, mas algumas coisas
não tem como mudar. Sincronia é uma delas.
— Você acha que eu e a Gracie não combinamos?
— Ora, mas isso é evidente. Acho que ninguém nessa mesa tem
alguma dúvida sobre esse assunto. Mas não estou falando só disso.
Minha mãe está rodeando tanto o tópico principal que começo a ficar
agoniada. Por isso, quando vejo que Oliver está prestes a perguntar mais
uma vez, me antecipo.
— Tempo. Ela quer dizer tempo. Pra conseguir uma sincronia perfeita
leva anos. Muitos anos.
— Exatamente. — Minha mãe retoma. — Só tive dois parceiros na
carreira e só fui chegar a ter uma sincronia verdadeira com o segundo. E
olha que fiquei quatro anos patinando com o primeiro. Vai muito além de
decorar movimentos, é saber como a pessoa reagiria aos mínimos detalhes,
saber como ela pensa, como se comporta. A parte física é apenas a
superfície, há todo um lago abaixo que precisa ser aprendido. E pra isso,
leva muito tempo.
A fala da minha mãe faz a temperatura da sala diminuir alguns graus.
É claro que ela não teve a intenção de jogar um balde de água fria no jantar,
mas Nora Salmon não é uma referência de empatia.
— Mas isso dá para ser acelerado, não dá? — Tyler pergunta.
Percebo que ocorre uma divisão silenciosa na mesa. De um lado,
minha mãe, com sua lógica e experiência fria como um rinque de patinação;
do outro, o time de hóquei esperançoso de que qualquer placar pode ser
convertido.
— Pode sim. E se tem uma pessoa que pode ajudar nisso, é a Ciara.
Ela tem uns métodos questionáveis, como fazer os dois morarem juntos,
mas…
Assim que a informação é solta, a mesa se transforma em um
pandemônio. Todo mundo falando ao mesmo tempo e inundando a mim e
ao Oliver com várias perguntas. Dentre todas as reações, percebo um olhar
chateado de Archie.
De todos os Fisher, Archie é a pessoa com a qual mais me identifico.
Termos a mesma idade com certeza ajudou um pouco, já que fomos às aulas
juntos e até ficamos na mesma sala durante um ano. No entanto, depois que
os esportes viraram nossas vidas de cabeça para baixo, acabamos nos
distanciando um pouco. Ainda assim, mantivemos um costume de enviar
cartas eletrônicas — um hobby dele que nunca vi muito sentido, mas que
com ele acaba funcionando — onde fazemos desabafos, contamos sobre
nossas vidas e esperanças. Porém, com a última viagem dele para Machu
Picchu, não trocamos quase nada no último mês.
Levanto os ombros como quem pede desculpas. Não é como se eu
estivesse escondendo o fato de estar morando com a pessoa que eu jurei
guerra infinita durante a adolescência, mas também não vou sair gritando
aos quatro cantos que estamos morando juntos. Não quero que as pessoas
tenham uma ideia errada sobre…
Percebo Tyler dando uma leve cotovelada no braço de Oliver, um
sorriso sacana no rosto que revela muito bem o que está pensando.
Reviro os olhos. É exatamente por isso que eu preferia manter tudo
em segredo.
Valeu, mãe.
Observo, em silêncio, as diferentes reações. O mais interessante é ver
como as diferenças acontecem também no plano físico. Erik, o mais velho
dos irmãos Fisher, observa Oliver com preocupação, seu cabelo ruivo
fazendo um contraste grande com sua pele pálida. Tyler, como sempre, acha
muita graça na sua recente descoberta porque, pra ele, a vida é uma grande
festa. Joshua deixa uma risadinha baixa escapar, mas não sei se, aos onze
anos, ele tem muita noção do que morar com alguém significa. Archie,
conformado, desvia o olhar para o prato, o loiro escuro do seu cabelo se
misturando ao bronzeado da pele. Por fim, o último dos irmãos, Oliver, olha
para mim no meio daquele caos e abre um sorriso com os lábios finos.
Os Fisher são a família mais improvável do universo.
De repente, o falatório cessa com o som de batidas de metal no cristal.
Olho para a extremidade da mesa e Hank está de pé esperando o momento
em que vai receber total atenção.
— Antes que todos se dispersem, tenho um anúncio que eu gostaria
de fazer. — Ele lança um olhar para o meu pai, indicando que já tinham
conversado sobre isso e minha curiosidade logo aumenta. — Mas antes,
quero propor um brinde aos Salmon por esse jantar maravilhoso.
Todos levantamos nossas taças de vinho — eu com a minha humilde
água com gás.
— Faz duas semanas que recebi uma proposta interessante no e-mail
dos Owls, mas eu posterguei pra falar com vocês porque não sabia ainda
quando Archie ia voltar. — Ele lança um olhar para o filho. — Agora que
ele está aqui, não podia deixar de aproveitar esse momento em família —
ele dá uma pausa, abrindo um sorriso brincalhão — e sim, os Salmon e os
Fisher são praticamente a mesma família.
Sinto um arrepio percorrer a minha pele com essa ideia. Não me sinto
confortável com o fato de um membro da minha “família” ser o responsável
pelo meu primeiro orgasmo. Minha mente começa a divagar para algumas
horas mais cedo quando eu e Oliver estávamos sozinhos no estúdio, mas
balanço a cabeça e tento focar no presente. Não sei se é a fala de Hank ou
se meu parceiro desenvolveu poderes telecinéticos, mas ele olha na minha
direção e pisca um dos olhos para mim.
Babaca.
Mas um babaca perigosamente gostoso.
— Para de enrolar e fala logo, papai! — diz Joshua, e um coro
concordando logo se segue.
— Calma, eu vou falar! Eu sei que vocês estão na off season, e sei
também que o Tyler machucou o tornozelo na última quinta, mas a Dra.
Jones disse que não foi nada sério, então não vejo muitos problemas.
Aquela informação é nova para mim.
Tyler se machucou na última quinta? Por coincidência, é o mesmo dia
que Oliver não dormiu em casa. Não precisa ser uma pessoa muito
inteligente para saber que esses dois eventos estão ligados. Para confirmar a
minha suspeita, assim que olho para ele, meu parceiro desvia o olhar e
parece super interessado no que Hank tem a dizer.
É óbvio que eles estavam correndo.
— Ainda falta acertar os detalhes, mas isso é coisa simples — Hank
continua. — O importante é que faremos um jogo beneficente na semana
que vem, aqui em Guildford.
O silêncio toma a mesa, deixando todos sem reação. A aparente
calmaria, no entanto, dura poucos segundos.
— Contra quem? — Erik pergunta.
— Onde? Não tem arena aqui. — Tyler complementa.
Hank levanta as mãos e volta a se sentar.
— Eu vou responder todas as perguntas com calma depois. Mas por
ora, basta saber que é uma partida amistosa. Não estou falando nem do
Owls, daria muito trabalho trazer o resto do time dos Estados Unidos em
plena off season. O prefeito veio com a ideia e achei interessante. É uma
forma da gente retribuir um pouco para a cidade também. Os ingressos
serão agasalhos infantis para serem distribuídos para os orfanatos daqui e
das cidades vizinhas.
Não sei se foi intencional, diria que não, já que Hank não é esse tipo
de pessoa, mas é óbvio que depois dessa informação não tem como os filhos
não aprovarem a ideia. Só aqui na mesa, quatro pessoas vieram desses
orfanatos.
— Isso inclui você, Oliver. Você aceita participar?
Todos os olhares são direcionados para o ex left winger dos Owls.
Minha mãe disse que uma sincronia perfeita é alcançada quando sabemos o
que o parceiro está pensando e sentindo, por isso, mais do que nunca,
percebo o quanto estamos longe desse estágio.
Eu não faço ideia de qual será a resposta dele.
Depois de vários segundos, ele responde.
— Esse jogo não tem nada a ver com os Owls?
— Não, filho. Seremos os Fisher apenas.
Depois de um longo suspiro, Oliver olha para mim.
— Olha com minha parceira. Se ela achar que posso tirar uma tarde
pro jogo, eu aceito.
De todas as respostas possíveis, eu jamais esperaria por essa. Quem é
esse homem e o que ele fez com Oliver Fisher? Estou tão chocada, que
devo estar vendo coisas, pois fiquei com a impressão de quase ter visto um
sorriso no rosto da minha mãe.
— Gracie? O que me diz? — Hank pergunta, mas sua voz é abafada
pela de Tyler implicando com o irmão.
— Eu? Bom, falta pouco mais de uma semana para as olimpíadas,
não podemos perder tempo, mas acho que uma tarde não vai fazer tanta
diferença assim. — Os Fisher comemoram como se tivessem marcado o
primeiro gol antecipado. — Mas só o jogo! Não libero o Oliver pra nenhum
treino!
Agora, tanto Tyler quanto Joshua estão implicando com o irmão.
— Nem casou e já tá assim! Imagina quando casar.
Sinto um movimento estranho na região do estômago. É estranho
pensar que, se Oliver e eu fossemos um casal de verdade, praticamente nada
nesse jantar seria diferente.
E esse pensamento me incomoda mais do que quero admitir.
CAPÍT ULO 28 - OLIVER FISHER

— Desde quando considera minha opinião antes de fazer alguma


coisa?
É a primeira pergunta que Gracie faz quando abre a porta do carro e
eu tenho a impressão de que está guardando isso desde o momento que
saímos de Guildford. Talvez ela esteja evitando conflitos dentro de
ambientes fechados depois do que aconteceu no estúdio e acho que é uma
boa estratégia, considerando a sua regra dos dois metros de distância.
Ela ainda está valendo? Boa pergunta.
— É o mais inteligente a se fazer — digo, brincando com o controle
do Porsche entre os dedos. Meu pai quis a McLaren de volta, mas foi
benevolente em me emprestar seu segundo carro favorito. Acho que ele está
perto de me perdoar. — Considerando que você surtou da última vez que fiz
algo por contra própria…
— E eu estava certa — Gracie cruza os braços. — O Tyler se
machucou por sua causa.
Deixo uma risada irônica escapar.
— É isso que você acha?
Eu continuo andando na direção dos elevadores, mas Gracie para. Ela
respira fundo, num misto de curiosidade e irritação.
— Não foi o que aconteceu?
É minha vez de parar.
— Ele se enfiou numa treta — digo, sucintamente, porque não quero
expor a vida sexual muito movimentada do meu irmão — e eu precisei
resolver. Era ele quem estava correndo naquela noite. Só ele.
O cenho de Gracie se franze, como se a ideia de me ver resolvendo os
problemas de alguém e não causando-os fosse o maior dos absurdos.
— Então é assim que você é? — pergunta.
— Assim como?
— Do tipo que larga tudo quando alguém que você ama tem um
problema — ela solta, voltando a andar na minha direção. — Não combina
com a sua pose de bad boy, sabia?
— Se eu disser que tive que matar três pessoas naquela noite fica
melhor pra você?
— Você é uma manteiga derretida, Fisher.
Eu aponto para o meu próprio rosto quando chegamos no hall dos
elevadores.
— Essa é a pele de um assassino, Bella.
— Uma manteiga derretida com doutorado em Crepúsculo — Gracie
ri. — Não melhora em nada sua situação.
Eu reviro os olhos e Gracie ri de novo, o que não é uma coisa comum
na dinâmica entre nós. Sei que ela não bebeu nada a noite inteira, então
colocar a culpa no álcool não é uma opção. Eu ergo um dos dedos para
apertar o botão do elevador e Gracie repete o movimento ao mesmo tempo,
fazendo nossas mãos se encontrarem no meio do caminho. Ela observa por
um instante antes de se afastar, deixando que eu termine. Será que essa é a
famosa sincronia?
— Concorda com o que sua mãe falou? — pergunto, assim que as
portas do elevador se abrem.
Gracie entra antes de responder.
— O quê?
— Que nós não combinamos — cruzo os braços, sem olhar pra ela
enquanto pergunto.
Quando éramos menores, meu pai jurava que Gracie e Archie
acabariam namorando um dia. Dois metódicos, calculistas, estudiosos.
Então o Pierre entrou na jogada e ele não teve nem chance. Eu não sei o
quanto Gracie realmente gostou do Pierre e quanto ele era o cara perfeito na
situação perfeita, ao menos aos olhos de Nora Salmon: um patinador com
pais milionários começando sua carreira não poderia ser um partido melhor.
— Somos uma combinação improvável — Gracie responde, no
momento que as portas fecham, como se esperasse por isso. — Você é
diferente.
— Diferente do que?
— Diferente de tudo que eu conheço — ela murmura, então se
corrige. — De todos que eu conheço.
Uma risada irônica escapa dos meus lábios.
— Isso é bom ou ruim, desgracie?
— No começo era ruim — ela diz, e seu tom adquire um tom sério de
repente. — Eu te odiei a minha adolescência inteira, mas também… você
tinha razão quando disse que somos obcecados um pelo outro — sopra,
baixinho, como se tivesse vergonha de admitir. — Eu sempre ficava
pensando sobre o que você estava fazendo, com quem estava saindo, qual
seria sua próxima gracinha. Foi um alívio ir embora de Guildford e não te
ter mais por perto, mas você criou um Instagram depois que entrou pros
Owls — Gracie protesta, fazendo o ato de criar uma conta numa rede social
parecer um crime inafiançável. — E o Pierre me pegou te stalkeando várias
vezes, então… acho que foi por isso que ele não ficou nada feliz quando
você disse que estávamos transando.
— Você tá divagando — reclamo. — Não falou nada que eu já não
soubesse.
— Sabia que eu te stalkeava?
— Não. Sabia que era obcecada por mim.
Gracie ergue o dedo médio.
— Você me assombrou por muitos anos, Fisher. Mas agora que
estamos patinando juntos… não parece bom nem ruim. Parece certo. E eu
sei que temos poucas chances de vencer esses jogos, mas se eu pudesse
escolher — Gracie hesita. — Você é um risco que vale a pena correr.
Eu passo os olhos por ela, incrédulo.
— Que bicho te mordeu? — zombo. — Quem é você e o que fez com
a verdadeira Gracie Salmon?
— Eu acabei de abrir meu coração — ela bufa, mas tem uma pontada
de ironia na forma como ela fala. — Você devia fazer o mesmo. Um minuto
de sincericídio, foi o que combinamos.
Eu movo a cabeça em afirmativa, mas falar sobre sentimentos nunca
foi meu forte. O que eu posso dizer? Que perdi a porra da corrida porque
queria patinar com ela? Que todas as minhas provocações na adolescência
eram só uma forma de fazê-la olhar pra mim? Que eu a tranquei no
elevador porque não quero lidar com outro Pierre? Não sei como dizer isso.
Não sei se quero dizer isso.
Felizmente, as portas do elevador se abrem e uma terceira pessoa
entra no cubículo de metal, evitando que o silêncio entre nós se torne um
constrangimento.
Vincent.
Nunca fiquei tão feliz com o fato de Gracie ser vizinha dele.
— E aí, casal 10 — ele diz, com o sorriso manso de quem já bebeu
muitas garrafas de álcool. — Eu tava mesmo procurando vocês. Você,
especificamente. — Ele aponta pra mim. Tem uma máquina de tatuagem
em uma das mãos e uma garrafa de whisky na outra. — Vi um vídeo no
YouTube e comecei a tatuar meus próprios dedos.
Gracie me encara com os olhos arregalados e o cenho franzido. Meus
olhos descem até a mão esquerda de Vincent e, como apontado, tem uma
mancha de sangue e um desenho incompleto colorindo sua pele.
— Mas essa porra dói pra caralho — ele continua. — Preciso que
termine pra mim.
É minha vez de franzir o cenho.
— E desde quando eu sei tatuar?
— Não sabe — Vincent dá de ombros. — Faz parte da graça. Vai
ficar uma coisa tipo… — ele pensa por um segundo — uma tatuagem
caseira. — Ele dá um gole na sua garrafa de whisky.
— Uma tatuagem de cadeia você quis dizer — Gracie enfatiza.
O sorriso de Vincent cresce.
— Mais estiloso ainda.
— Sabe que isso vai ficar na sua pele pra sempre, não sabe?
— Depois da décima tatuagem ninguém liga mais — digo. — Eu
devo ter uma galinha de tênis tatuada em algum lugar.
Gracie solta um muxoxo enquanto cruza os braços, completamente
incrédula. Ela não parece ser do tipo que faria uma tatuagem, para começo
de conversa, mas se fizesse, tenho certeza que seria algo perfeitamente
planejado. Consigo imaginá-la indo até o tatuador e pedindo que faça um
stencil de teste. Depois de uma semana com o desenho, talvez ela decidisse
marcá-lo na pele de verdade.
A porta do elevador se abre no apartamento de Gracie, e Ben desce do
sofá, correndo para pular nas pernas da sua dona. Ele ignora tanto eu quanto
o Vincent, o que arranca uma risada sincera da minha parceira.
— Vocês parecem um casal divorciado — Vincent zomba, apontando
para a fita cor de rosa que divide o apartamento em dois.
— Estamos tentando evitar um assassinato — Gracie coloca Ben no
colo, balançando o cachorro para cima e para baixo como se fosse uma
pelúcia.
— Pensei que já tivessem passado dessa fase.
— Estamos nessa fase há mais ou menos dez anos — pontuo. — Não
acho que vamos sequer sair dela um dia.
— Vocês sabem o que dizem — Vincent começa, caminhando na
direção do bar de Gracie como se a casa fosse dele. Pega um copo do
armário e vira sua garrafa de whisky, oferecendo a dose na minha direção.
— Amor e ódio são sentimentos que andam juntos.
Por incrível que pareça, Gracie não nega. Ela olha pra mim com
curiosidade, como se quisesse que continuássemos aquela conversa
interrompida no elevador. Ao invés disso, eu pego o copo das mãos de
Vincent e viro na boca, queimando minha garganta.
— Vai tatuar os dedos dele depois de beber? — Gracie questiona.
Eu dou de ombros.
— Melhora meus reflexos.
Vincent apoia uma das mãos no meu ombro, pouco preocupado.
— Se ele pode correr bêbado…
Gracie solta o ar pela boca lentamente, apertando o cachorro contra o
peito. Seus olhos percorrem a sala, como se estivesse procurando por tudo e
nada ao mesmo tempo.
— Eu vou estar no meu quarto se precisarem de mim.
— Nãooooo — Vincent murmura, o tom de voz arrastado de um
bêbado. Ele aponta o sofá com a cabeça. — Senta aí. Preciso que alguém
filme o processo pra postar no TikTok.
Gracie olha pra mim. Eu ergo um dos ombros em resposta.
— Vai ser uma longa noite — ela reclama, se virando na direção do
bar.
CAPÍT ULO 29 - GRACIE SALMON

Ficar alegre não estava nos meus planos, mas tem uma lista de coisas
que me obrigam a beber no momento. Primeiro, os dedos ensanguentados
de Vincent. Ok, não é sangue o suficiente para manchar o meu tapete, mas
tenho agonia de ficar vendo as manchas vermelhas aumentarem cada vez
que Oliver passa a máquina de tatuagem. Segundo, o jantar me deixou
tensa. Racionalmente falando, sei que eu e Oliver temos poucas chances de
vencer as olimpíadas. Também sei que Pierre e Kate não estão em uma
situação muito diferente. Mesmo assim, meu lado otimista gostaria que as
coisas acontecessem como num filme: eu e meu melhor amigo — inimigo
— de infância nos reencontramos depois de anos e temos uma química tão
impressionante dentro dos rinques que os jurados não tem outra opção
senão nos entregar o ouro. Eu sei. Um típico conto de fadas. Terceiro, não
sei o que deu em mim. Depois de tantos anos mentindo pra mim mesma,
pareceu boa ideia declarar meus sentimentos conturbados para Oliver
Fisher, assim, sem nenhum preparo, no elevador do nosso apartamento.
Tudo bem, não foi bem uma declaração, mas ele não disse nada em
resposta.
Você assustou ele, desgracie.
A vozinha no fundo da minha cabeça meio que tem razão. Se eu tiver
uma filha um dia, vou ensiná-la que não deve ser tão sincera. Se for se
declarar pra um homem, evite contar as partes constrangedoras. Não fale
que passou anos da sua vida stalkeando todas as redes sociais dele ou que
pensava nele mesmo quando tinha um relacionamento perfeito. Perfeito?
Perfeito. Tá bom.
Nada disso vai adiantar. Sinto pena da minha filha — que não existe
— desde agora, porque tenho certeza que Nora Salmon, algum dia, gastou
várias horas do seu tempo para dizer a uma pequena Gracie que não deveria
se humilhar pelos homens. Malditos.
Eu bebo mais um gole de gin no meu copo. Acho que meu corpo teria
altas chances de entrar em colapso caso eu decidisse me esbaldar de whisky.
Oliver termina a tatuagem nos dedos de Vincent e, por mais bizarro que seja
o resultado, o loiro parece muito satisfeito com ele.
— Dá pra dizer que é conceitual — eu comento, vendo o traço um
pouco trêmulo ao longo dos dedos. Ao menos os desenhos são
reconhecíveis: uma cobra, uma cruz, o nome da sua falecida banda.
Oliver pode ter feito um trabalho ruim, mas, com toda certeza, podia
ser pior.
— Ficou fantástico — Vincent observa, e tenho a impressão que
absolutamente nada no mundo seria capaz de deixá-lo de mau humor. —
Sinto muito por atrapalhar a rotina de vocês.
— Não sente nada — Oliver zomba.
Tenho certeza que ele está feliz por não ter que ficar sozinho comigo
depois do que eu falei no elevador.
Vincent se levanta.
— Então eu já…
— Não — eu corto Vincent, porque agora não sei se eu quero ficar
sozinha com o Oliver. — Fica mais um pouco. Nós podemos aproveitar que
estamos bebendo e jogar quem é mais provável.
Sério, o que aconteceu comigo nas últimas cinco horas? Acho que
perdi toda a minha capacidade de manejo social.
— Você amava esse jogo quando era adolescente — Oliver lembra.
— Sim — movo a cabeça em afirmativa. — Sou uma vencedora
invicta.
— O que, em outras palavras, significa que é uma careta.
Vincent ri do comentário de Oliver, se sentando de novo. Eu me
levanto e pego os copos de shot no bar, enchendo dois com whisky e um
com gin. Vincent arqueia uma sobrancelha, mas Oliver não diz nada,
provavelmente por causa da minha condição. Coloco os três copos na
mesinha de centro e ligo minha playlist na Alexa pelo celular.
— Vai, Vincent. Você começa.
Vincent esfrega as mãos cheias de plástico, pensativo. Por incrível
que pareça, ele começa com uma pergunta leve.
— Quem é mais provável de matar o seu parceiro de patinação?
Oliver e Vincent apontam pra mim. Reviro os olhos e me dou por
derrotada, apontando para mim mesma também. Bebo o shot de gin e me
concentro para fazer uma pergunta.
— Quem é mais provável de ir pra cadeia?
Dessa vez, Vincent aponta pra Oliver e Oliver aponta pra Vincent, o
que significa que eu preciso desempatar.
— Eu teria que ver a ficha criminal de vocês antes de responder essa
pergunta, então os dois bebem — digo, arrancando uma risada irônica de
Oliver.
Ele não perde a oportunidade de me provocar na sua vez de fazer a
pergunta.
— Quem é mais provável de fingir um orgasmo?
Oliver sabe que eu fingia com Pierre. Não que eu tenha falado
diretamente, mas algumas coisas são óbvias. Um relacionamento não dura
oito anos se você diz na cara do seu namorado que ele fode mal.
Vincent aponta pra mim.
— Ei! — protesto.
— Mulheres sempre fingem — diz, simples. — Homens são uns
merdas que não sabem transar direito.
Oliver concorda. Eu encho meu copo de gin e bebo de novo.
— Quem é mais provável… — dou uma pausa, considerando o que
perguntar. De repente, tenho a ideia perfeita. — De fazer sexo em público.
Os lábios de Oliver se erguem suavemente. Sei que ele está pensando
no que fizemos no estúdio de dança, mas, depois de alguns segundos,
aponta para Vincent. Eu sigo seu movimento.
— Acho que já gabaritei Londres inteira — ele assume. —
Principalmente os camarins de boates.
— Isso é suficiente pra dizer que a ficha criminal dele é maior que a
minha — Oliver alfineta.
— Atentado ao pudor nem é crime de verdade.
— É claro que é!
— Vamos lá — Vincent vira o seu shot. — Eu não ia fazer perguntas
desse tipo, mas já que vocês baixaram o nível… — Ele abre um sorriso
malicioso, e eu tenho medo do que pode vir a seguir. — Quem é mais
provável de fazer um ménage?
Eu deixo uma risada nervosa escapar. Oliver passa os olhos por mim
e, de novo, tenho aquela sensação estranha do jantar, quando me dei conta
de que não fazia ideia do que ele estava pensando.
— Qualquer pessoa, menos a Gracie.
O seu tom me irrita.
Ele me acha careta? Vou mostrar quem é careta.
— Eu faria — solto, sem hesitar.
Oliver franze o cenho.
— Vocês dois seriam boas opções — acrescento.
Vincent balança a cabeça em negativa.
— Quanto você bebeu?
— Ainda estou em pleno domínio das minhas faculdades mentais —
respondo, e é verdade. Apesar dos shots de gin, sempre paro de beber
quando começo a sentir os efeitos do álcool. — A proposta é séria.
— De jeito nenhum — Oliver responde.
— Quem está sendo careta agora? — reclamo.
Os olhos de Oliver estão mais escuros que o normal. Sinto que ele
está puto comigo e saber que o feitiço se virou contra o feiticeiro tem um
gostinho de vitória.
— Vai recusar um ménage? — Vincent pergunta, num tom
zombeteiro e descrente.
— Você vai, Oliver?
Eu me arrasto pelo sofá, sentando ao lado de Vincent. O jogador não
responde, mas acompanha cada movimento meu como se estivesse perto de
explodir. Não sei dizer se ele está com raiva ou com tesão. Talvez um pouco
dos dois.
Subo uma das mãos até o pescoço de Vincent e aproximo meu rosto
do dele. Tenho certeza que vejo o ódio preencher a expressão de Oliver
quando, sem fazer cerimônia alguma, Vincent me beija. O gosto de whisky
me invade, se mistura com o gin e eu me sinto inebriada pelo cheiro forte
do seu perfume, mas nossas línguas mal têm tempo de se conhecerem antes
que Oliver nos interrompa.
— Chega! — É tudo que ele diz, suas mãos apoiadas na minha
cintura enquanto me arrasta até o outro lado do sofá. É delicado o suficiente
para não me machucar, mas firme o bastante para eu saber que ele está puto.
— Cai fora, Vincent. Deu sua hora.
Eu observo a boca de Vincent, a marca do meu batom borrado no
canto esquerdo do seu lábio inferior. Tanto eu quanto ele achamos graça da
situação, mas Oliver mantém sua postura séria.
— Viu? — Vincent se levanta, erguendo os braços em sinal de
rendição. Ele tem amor o suficiente aos seus ossos para não arranjar briga
com Oliver. — Vocês são um casal divorciado.
Eu rio do seu comentário, levando mais um pouco de gin até os
lábios. Oliver não responde. Ele apoia uma das mãos nos ombros de
Vincent de uma forma nada amigável e o conduz até o elevador,
resmungando alguma coisa que eu não consigo ouvir. Vincent continua
achando graça e eu tenho a impressão que meu parceiro está muito perto de
quebrar o nariz dele, mas, felizmente, o elevador chega no apartamento
antes que ele possa fazer isso.
Eu me levanto do sofá, observando as portas se fecharem.
Seguro a vontade de repetir que ele está sendo careta. Nem sei se eu
realmente queria fazer um ménage, mas tem alguma coisa no fato de tirá-lo
do sério que me deixa muito satisfeita. Talvez eu esteja tentando provar —
pra Oliver ou pra mim mesma — que não sou uma maluca. E que os meus
comentários no elevador não mudam em nada a nossa relação.
— O que foi? — me divirto ao perguntar. — Quem te tirou do sério,
Fisher?
Oliver bufa, deixando uma risada sarcástica escapar. Normalmente, é
ele quem me deixa irritada. Pela primeira vez no jogo implícito entre nós,
estou em vantagem.
— Você, desgracie.
— Eu? Sou só uma mulher solteira colocando a minha solteirice em
prática.
Oliver move a cabeça em negativa.
— Não beija outro cara na minha frente.
— É só fechar os olhos.
Ele morde o lábio inferior como se precisasse descontar sua raiva em
algum lugar. Seus punhos estão cerrados, sua respiração é pesada. Quase
consigo ver o sangue correndo por suas veias num ritmo acelerado.
— Por que você se importa? — pergunto, finalmente. — E não ouse
me devolver o questionamento. As coisas entre nós eram mais simples
quando nossos sentimentos eram óbvios.
— Nunca foram óbvios.
— Você pintou o meu cachorro de verde limão quando eu tinha
quinze anos.
— Então agora você quer discutir coisas que aconteceram anos
atrás…
— Você me odeia — solto, com todas as letras. — E eu odeio você.
Não é isso? Sempre foi isso.
Do outro lado da sala, Oliver me encara. Tenho a impressão que o
mundo ao nosso redor está em câmera lenta, esperando uma resposta. Eu só
preciso que ele diga sim. Que me confirme que ainda nos odiamos, que
nada mudou entre nós desde o dia que começamos a patinar. Que vamos pra
Paris, vamos ganhar uma medalha e nunca mais olhar na cara um do outro
exceto pelos eventos na casa dos Fisher e dos Salmon. É o que eu preciso
que ele diga, mas ele não diz.
— Responda — peço, e meu tom é praticamente uma súplica.
Tudo que eu preciso é de alguma certeza, mas o que Oliver tem a me
oferecer é tempestade.
Ele não diz nada. Ignora por completo o meu pedido e caminha na
minha direção. De um segundo para o outro, esse apartamento se torna
muito grande, porque sinto que uma eternidade de anos passam do
momento em que ele dá o primeiro passo até o momento em que ele me
alcança.
Oliver continua em silêncio. Suas mãos seguram meu rosto e eu não
tenho tempo de assimilar seu toque, porque sua boca se choca contra a
minha um segundo depois. Eu consigo sentir sua raiva na forma como sua
língua se move violentamente, explorando cada centímetro da minha boca.
Não sei se essa é a resposta que eu estava procurando, mas meu corpo
inteiro reage como um fósforo acendendo.
Minhas mãos encontram seu peito e por um segundo eu considero
empurrá-lo, mas, em vez disso, eu aperto os dedos contra a borda da sua
camisa e puxo seu corpo para mais perto, desejando sentir cada parte dele.
Seus dedos deslizam até o meu cabelo e ele segura os fios com força
enquanto aprofunda o beijo, como se essa fosse uma tentativa de se fundir a
mim. Meu coração dispara e eu tenho a sensação terrível de que ele pode
escapar da caixa torácica a qualquer momento.
Meu corpo inteiro se arrepia. Cada toque das suas mãos acende uma
nova chama em lugares dentro de mim que eu sequer sabia que eram
passíveis de calor. Um gemido escapa da minha boca quando ele solta meu
cabelo e sua mão desce até o meu pescoço, apertando minha garganta como
se os seus dedos fossem uma coleira. Não sei se estamos nos beijando ou
começando uma briga, mas minhas barreiras derretem mais um pouco
quando ele morde meu lábio inferior com força, me fazendo pulsar.
Sem tirar a mão do meu pescoço, ele se afasta apenas o suficiente
para me olhar nos olhos e a intensidade nas suas orbes escuras me deixa
perdida. Oliver não diz nada, mas sua mão livre desliza pelo meu corpo até
alcançar a borda do meu casaco. Ele brinca com o zíper, descendo-o para
baixo e para cima enquanto me olha, esperando que eu afaste seu corpo ou
me renda de uma vez por todas. Minha resposta é um pequeno acenar de
cabeça, um que ele nem notaria se não estivesse tão focado nos meus
movimentos.
Oliver termina de descer o zíper, tirando meu casaco devagar, como
se quisesse me dar tempo para mudar de ideia. Com um movimento hábil,
ele puxa a blusa pela minha cabeça e a deixa despencar até o tapete,
chamando atenção de Ben, que late.
Eu encaro meu cachorro pulando ao redor da blusa, curioso,
provavelmente pensando que se trata de um novo brinquedo. Dou uma
risada nervosa.
— Não dá pra fazer esse tipo de coisa na frente do meu filho —
murmuro.
Oliver acha graça do meu comentário. Por um segundo, o clima tenso
entre nós se dissipa, mas ainda estou sentindo sua mordida no meu lábio
inferior.
— No seu quarto ou no meu?
— Me surpreenda.
Oliver assente, suas mãos voltam a contornar minha cintura e ele tira
os meus pés do chão, arrancando um suspiro assustado da minha garganta.
Meus braços envolvem o seu pescoço e, com a mesma facilidade que tem
nos treinos, ele me carrega até o meu quarto, fechando a porta atrás de nós.
O baque da madeira contra o batente me traz de volta para realidade e
minha mente analítica me força a pensar nas consequências do que estou
prestes a fazer, mas, pela primeira vez, eu não me importo.
Oliver me deita na cama e minha pele arrepia diante do toque frio dos
lençóis de seda. Antes que meu lado racional ameace estragar minha noite,
eu apoio os dedos no seu queixo e puxo seu rosto para perto do meu,
avançando na sua boca em um beijo ainda mais urgente que antes. Suas
mãos descem até meus seios e seus dedos provocam os mamilos através do
tecido fino do sutiã. Meu corpo se arqueia contra ele e um gemido escapa
dos meus lábios enquanto ele aperta e massageia, seus polegares circulando
toda área até que meus bicos estejam duros e sensíveis.
Oliver desliza uma das mãos até a parte de trás do meu sutiã e, com
um movimento rápido, ele desabotoa a peça, livrando-se da lingerie em
algum canto do quarto. Seus lábios descem até o meu pescoço e formam
uma trilha de beijos e mordidas até a minha clavícula. Seus movimentos
lentos me deixam ansiosa e um gemido alto escapa da minha garganta
quando sua língua toca meu mamilo, o contraste entre minha pele quente e
o seu piercing gelado me fazendo arquejar.
Sua outra mão se move lentamente pelo meu corpo, descendo pela
minha barriga, explorando cada curva da minha pele até chegar na minha
saia. Ele puxa o tecido pelas minhas pernas e me observa seminua por
tempo demais, como se seus olhos pudessem tirar uma fotografia que
ficaria eternamente presa nos fundos do seu cérebro. Minhas pernas
envolvem seu quadril e eu o puxo para mais perto, alcançando seu tronco
com as mãos e finalmente me livrando da sua camisa dos Owls.
Dessa vez eu não preciso me preocupar em parecer discreta. Meus
dedos traçam linhas imaginárias em cima das tatuagens do seu peito
enquanto meus olhos percorrem cada centímetro do seu abdômen definido.
Consigo sentir minha boceta encharcada melar todo o tecido da minha
calcinha e isso só se intensifica quando Oliver volta a me beijar.
Suas mãos descem pelas minhas coxas e ele brinca com o elástico da
lingerie antes de deslizar a peça para baixo, expondo minha intimidade.
Seus dedos contornam minha pele e, descaradamente, ele evita o centro das
minhas pernas, me provocando.
— Onde você guarda aquele maldito vibrador, desgracie? — ele
pergunta, e até mesmo aquele apelido infame parece sexy agora. Eu aponto
para o armário com a cabeça, lembrando de todas as vezes que o deixei
intencionalmente perdido pela casa nas últimas semanas.
É inegável dizer que o feitiço virou contra o feiticeiro.
Oliver sai da cama e abre a porta, encontrando o meu brinquedinho
rosa. Mesmo sendo de borracha, ele foi um dos grandes pilares do meu
relacionamento com Pierre. Eu engulo uma risada. Talvez eu tenha acertado
em alguma coisa na vida, porque sei que, pelo menos, não vou sair dessa
foda sem gozar.
Oliver se ajoelha entre minhas pernas, suas mãos firmes nas minhas
coxas. Ele se inclina para frente, beijando e mordendo minha barriga,
marcando cada centímetro da minha pele como se fosse sua por direito. Um
arrepio percorre meu corpo quando ele posiciona o vibrador na minha
entrada, observando cada reação minha.
Ele começa com um movimento lento, deslizando a ponta do vibrador
para dentro. Meu corpo se contorce diante do contato, meus quadris se
movendo para encontrar o brinquedo, buscando mais fricção.
Oliver balança a cabeça em negativa, como se me repreendesse.
— Você tá molhada e ansiosa demais pra alguém que não queria
transar comigo.
Sinto vontade de xingá-lo, mas ele liga o vibrador dentro de mim e eu
perco um pouco mais da minha sanidade.
— Agora você quer?
Antes que eu responda, Oliver se abaixa e sua língua encontra o meu
clitóris, percorrendo-o devagar. Um gemido alto escapa pela minha
garganta, meu corpo arqueando diante da sensação intensa e imediata. O
piercing, sua língua habilidosa deslizando pela minha intimidade, o
vibrador na minha boceta. São tantos estímulos ao mesmo tempo que eu
sinto minha cabeça pesar.
Como se não fosse o bastante, uma das mãos de Oliver sobem até os
meus seios e ele volta a brincar com meus bicos duros, beliscando-os. Eu
me sinto tão excitada que meu clitóris dói. Sua língua aumenta a pressão,
alternando movimentos rápidos e lentos enquanto seus dedos apertam meus
mamilos com mais força, puxando e torcendo, intensificando ainda mais o
meu tesão.
— Responda a pergunta, Gracie.
Ele aumenta a velocidade do vibrador e eu me sinto ainda mais
desnorteada. Sua língua percorre a parte interior das minhas coxas, sobe até
os meus grandes lábios e volta a se concentrar na minha boceta, fazendo
suas palavras perderem a importância. Meu cérebro esqueceu como formar
frases.
Oliver avança com o vibrador, me preenchendo um pouco mais.
Minhas pernas estão moles e eu sinto o orgasmo se aproximando quando ele
aumenta a velocidade mais uma vez, me deixando zonza.
Tenho certeza que estou há poucos segundos de gozar quando Oliver
para. Ele tira o vibrador de dentro de mim e sua boca se afasta da minha
boceta, me deixando ainda mais necessitada de cada toque seu. Eu demoro
um segundo para conseguir elaborar uma reclamação, meus pensamentos
ainda aéreos. Um choramingo incompreensível escapa da minha garganta e
eu esfrego meus dedos pelo lençol, frustrada.
— Não acredito que fez isso.
— Você não respondeu a minha pergunta.
Uma risada irônica escapa da minha garganta. É óbvio que ele não me
deixaria escapar dessa situação com o meu orgulho intacto, ou ele não seria
Oliver Fisher.
— Isso é algum fetiche de humilhação?
É a vez de Oliver rir. Ele se inclina pra frente, seu hálito roçando a
pele sensível da minha coxa. Seu dedo traça linhas imaginárias na região,
provocando arrepios que percorrem meu corpo inteiro.
— Só quero deixar as coisas claras.
— Acho que uma parte de mim foi clara o suficiente.
— Pode ser — seus dedos descem até a minha intimidade molhada,
mas ele não me toca o suficiente para aliviar a pressão —, mas você não foi.
— Você também não — protesto.
Eu não preciso especificar do que estou falando. É a pergunta que
paira entre nós desde o momento que nos beijamos pela primeira vez: A
gente ainda se odeia?
Para minha frustração, Oliver não responde. Aparentemente, ele é o
único que pode fazer perguntas aqui. Se eu tivesse um pouquinho mais de
autopreservação, levantar e ir embora seria uma alternativa. Na verdade,
não posso fazer isso. Estou no meu quarto.
A ideia de ir embora é afastada completamente da minha cabeça
quando ele leva o vibrador até os lábios e lambe toda minha lubrificação da
superfície de borracha, seus olhos fixos nos meus. Tenho certeza que passo
pelo menos alguns segundos de boca aberta, sem ter certeza se o oxigênio
que entra no meu corpo está chegando nos meus pulmões. Minha
intimidade pulsa e eu percebo que é uma batalha perdida. Eu faria loucuras
pra esse homem me comer.
— Eu quero — respondo, finalmente.
— Seja mais especifica.
Ele coloca o vibrador dentro de mim mais uma vez, a sensação de ser
preenchida arranca um gemido da minha garganta. Oliver move o
brinquedo lentamente dentro de mim e eu sei que não vai me dar o que eu
quero até eu dar o que ele quer.
— Quero transar com você. Eu estava sendo orgulhosa quando disse
que não. — Ele liga o vibrador. Eu ergo os meus quadris contra o
brinquedo, numa tentativa desesperada de conseguir mais contato, então ele
desliga o aparelho. — Oliver, por favor… Me deixa gozar, inferno.
Oliver ri do meu desespero, um brilho malicioso nos olhos,
apreciando o controle que tem sobre mim. Ele inclina seu corpo sobre o
meu e seus lábios roçam minha orelha quando ele sussurra:
— Diga mais um vez.
Ele tira o vibrador dentro de mim e o enfia de novo, tão lentamente
que sinto vontade de gritar.
— Quero transar com você — eu repito, meu corpo ardendo em um
tesão que nunca senti antes. — Eu preciso, Oliver, por favor…
Oliver assente, finalmente satisfeito. Eu mal tenho tempo de respirar
antes que sua língua quente e ágil encontre meu clitóris. A sensação me faz
arquear as costas, um gemido profundo escapando dos meus lábios.
Ele liga o vibrador de novo e a combinação deixa todos os nervos do
meu corpo à flor da pele, como se eu estivesse perto de explodir. Minhas
mãos descem até o seu cabelo e eu puxo os fios escuros enquanto meus
quadris se movem contra sua boca, implorando por mais.
Seus dedos guiam o brinquedo para dentro e para fora de mim, me
deixando tonta de prazer. Sua língua se move ao redor do meu clitóris,
lambendo, sugando, me destruindo naqueles malditos lençóis de seda.
A pressão crescente ameaça me consumir. Eu puxo seu cabelo com
mais força e inclino a cabeça pra trás, perdida nas sensações. Meus quadris
se movem de forma frenética e ele aumenta a intensidade dos seus toques à
medida que os meus gemidos aumentam.
Eu gozo na sua boca. Meu corpo inteiro treme. Estou suada,
desnorteada, gemendo seu nome e implorando por mais enquanto Oliver
continua os movimentos, prolongando meu orgasmo até que meu corpo
esteja esgotado. Porra.
— Alguém que te odeia te faria gozar assim? — Oliver pergunta, no
auge da sua cara de pau.
Uma resposta que não responde nada.
Para a sorte do jogador, eu estou relaxada demais pra questionar.
— Vamos ter uma DR mais tarde — eu zombo, mas não sei quanto
disso é mentira.
Me levanto da cama e puxo Oliver na minha direção, um movimento
que só é possível porque ele se deixa ser levado. Ele é muito maior que eu,
em todos os sentidos, e volto a ficar melada quando penso no seu pau me
preenchendo. Meu plano é ir até o chuveiro da suíte, mas nos beijamos no
meio do quarto e tenho a impressão que vamos acabar com isso muito antes
de chegar lá.
Oliver me empurra contra a parede e nosso beijo se torna feroz, sem
nenhuma cerimônia. Sinto seu pau duro dentro da calça e desço uma das
mãos até os botões do jeans, focada em me livrar deles o quanto antes. Ele
se afasta por um momento, apenas o suficiente para arrancar sua última
peça de roupa e se livrar da cueca, o que me deixa… Impressionada. Oliver
não estava mentindo quando disse que seu pau era acima da média, mas ele
esqueceu de mencionar que também era grosso. Muito grosso.
— Se vira — Oliver ordena, e a excitação no meio das minhas pernas
faz parecer que não gozei há menos de cinco minutos atrás. Na verdade, é
como se eu não tivesse feito sexo pelos últimos dez anos de vida.
Eu obedeço sem hesitação, me virando e apoiando as mãos na parede.
Oliver se posiciona atrás de mim, suas mãos grandes segurando meus
quadris com força.
— Você aguenta tudo? — ele pergunta, a voz rouca me deixando com
mais tesão.
A resposta racional pra essa pergunta é não.
— Sim — sussurro. — O esporte me ensinou a ser resiliente.
Oliver ri da minha piadinha sem graça e por um momento eu sinto
que, ao contrário do que as pessoas dizem, nós temos sim alguma sincronia.
Antes que eu possa pensar muito nisso, ele se empurra pra dentro de mim,
me preenchendo por inteiro, com uma estocada dura e forte que quase me
deixa sem ar.
Minha entrada arde e eu sinto lágrimas de reflexo nublarem meus
olhos, mas até mesmo a dor é prazerosa. Ele se move rapidamente dentro de
mim e eu sinto que cada centímetro do meu corpo reage a ele, da ponta dos
pés ao topo da cabeça.
Oliver segura meus quadris com mais força, seus dedos cravando
minha pele enquanto ele acelera o ritmo um pouco mais. O som dos nossos
corpos se chocando ecoa pelo quarto, se mistura com nossos gemidos,
criando uma sinfonia só nossa. Eu sinto cada estocada profunda, cada
movimento desesperado e intenso.
Ele inclina seu corpo sobre o meu, sua respiração quente e ofegante
contra a minha orelha.
— Você é tão gostosa — ele murmura, sua voz um rosnado rouco. —
Tão apertada.
Tudo que eu consigo é gemer em resposta, minhas mãos tocando a
parede enquanto tento me equilibrar contra o seu ritmo implacável. Minha
mente é uma página em branco, preenchida apenas pela sensação do corpo
dele contra o meu, dentro de mim, cada movimento me levando mais perto
do limite.
Oliver puxa meu cabelo para trás, fazendo minhas costas arquearem.
Com meu pescoço exposto, sua boca encontra minha pele sensível,
mordendo e chupando enquanto se move dentro de mim. Eu rebolo contra
ele cada vez mais rápido, ansiosa por mais, desesperada por mais.
Eu não duro muito tempo. Meu corpo se contorce, cada músculo se
contraindo enquanto o orgasmo estremece meu corpo. Eu murmuro seu
nome enquanto Oliver continua a se mover dentro de mim, prolongando
meu prazer.
Ele goza logo depois. Seu corpo se tensiona contra mim enquanto eu
sinto sua porra quente me preencher, acompanhada de um gemido profundo
que escapa da sua boca. Oliver se move algumas vezes mais, sua respiração
irregular tocando meu pescoço. Ainda dentro de mim, ele para.
Nós dois ficamos aqui por um momento, ofegantes e suados até que
Oliver se afasta lentamente, seus dedos traçando padrões preguiçosos na
minha pele. Eu me viro, encarando-o, parte do meu corpo ainda trêmula.
Ele me puxa para mais perto, sua boca encontrando a minha em um beijo
possessivo.
Meus olhos encontram os seus quando ele se afasta. Eu tenho medo
de dizer qualquer coisa depois desse momento, porque sinto que estou
completamente entorpecida pela sua presença. Independente da pergunta,
agora, minha resposta seria sim.
Do outro lado da porta, Ben late, cruelmente nos arrancando da bolha
completamente distante da realidade onde estávamos inseridos.
— Acho que não coloquei a comida dele — murmuro.
— Eu vou colocar — Oliver diz, depositando um beijo na minha
bochecha. — Boa noite, Gracie.
Eu assinto em resposta e ele se afasta em definitivo, recuperando suas
roupas esquecidas no chão. Observo o jogador passar pela porta e a
hesitação toma conta de mim. Eu deveria chamá-lo para dormir aqui ou…
Não.
Foi emoção demais pra uma noite só.
Sem me preocupar em colocar roupas eu me deito na cama, esperando
que minha respiração se normalize. Uma pitada de preocupação toma o lado
racional do meu cérebro, só então reconhecendo o perigo.
Oliver Fisher faz eu me sentir como uma adolescente, em todos os
sentidos da palavra.
CAPÍT ULO 30 - OLIVER FISHER

— Ele não disse que seria uma coisa simples? — murmuro,


observando da porta do vestiário o aglomerado de pessoas que se ajeita nas
arquibancadas do antigo rinque de patinação no gelo de Guildford. — A
porra da BBC está aqui.
— E desde quando nosso pai sabe fazer alguma coisa simples? —
Tyler zomba. — Você devia ter sacado que seria esse circo todo quando
aceitou jogar.
— A Gracie aceitou por ele — Archie alfineta, e eu tenho a impressão
que ele não está nada feliz comigo desde que soube que eu estou morando
no apartamento dela. Não tivemos muito tempo para conversar desde que
ele voltou da sua viagem de nerd, então é impossível ter certeza.
— Vai ser bom pra você — Erik completa, me encarando do outro
lado do vestiário. — Patinar com a Gracie deu uma limpada na sua barra.
Participar de um jogo beneficente é a cereja do bolo.
Não sei se “deu uma limpada na minha barra” é a colocação certa,
mas tenho certeza que Erik, no seu posto de irmão mais velho, está muito
mais satisfeito comigo agora do que alguns meses atrás. Não que eu esteja
minimamente preocupado com isso.
— Eu nem lembro como se joga esse esporte — zombo, mas existem
coisas que você nunca esquece. Acho que, pra mim, hóquei é uma delas. —
Nós começamos em vinte minutos?
Erik assente. Eu faço um sinal de continência na direção dele — um
gesto que estou acostumado a fazer desde que jogava nos Owls — e saio do
vestiário. Tento ignorar a péssima impressão de que todos os olhos da
arquibancada estão pregados em mim.
A partida de hoje é contra os London Lions, time independente de
Londres. Dos Owls, apenas eu e meus irmãos estamos aqui. Pode até
parecer muito, mas 4 em 21 é quase nada. Ainda assim, os rivais ficaram
satisfeitos com a oportunidade de serem vistos por mais pessoas, porque
sabiam que iríamos atrair a atenção da mídia. Os times que não estão dentro
de uma liga acabam suando para conseguir patrocínios — isso quando
conseguem.
Minha impressão é que Guildford inteira veio nos assistir, o que não é
surpreendente pra uma cidade do interior. Quase nada acontece, mas,
quando acontece, facilmente se torna o evento do ano.
— Oliver Fisher, uma palavrinha com os repórteres?
A frase vem acompanhada de um microfone erguido na minha
direção, o que significa que não foi exatamente uma pergunta. Não me
lembro da última vez que dei uma entrevista e tenho a impressão que
Trinity não vai ficar nada feliz quando souber que falei com a imprensa sem
autorização dela, mas negar seria um prato cheio para milhares de
reportagens ressaltando o quanto o garoto problema dos Owls é grosseiro
com jornalistas.
Malditos.
Me forço a abrir um sorriso pra câmera.
— Como é estar de volta nos Owls depois da sua expulsão? — a
repórter ruiva pergunta. Ela é uma mulher baixinha e secretamente eu
desejo que a câmera enorme e pesada do seu ajudante despenque na sua
cabeça.
— Tecnicamente, não estou de volta — digo. — Quem joga hoje não
são os Owls, mas é sempre bom voltar a jogar com os meus irmãos,
principalmente em nome de uma causa tão importante.
Ela assente, parecendo irritada por não ter conseguido arrancar
nenhuma grande gafe de mim. Meus olhos percorrem o espaço atrás dela e
eu encontro Gracie na barraquinha de merch que montaram perto do
estacionamento. É uma forma de arrecadar mais doações para os orfanatos
da cidade.
— Semana que vem você vai estar em Paris, como está a ansiedade
pros seus primeiros jogos olímpicos? Patinar no gelo é muito diferente de
jogar hóquei?
Eu demoro um instante para responder, porque ainda estou
observando Gracie atrás das câmeras. A noite anterior é uma lembrança
vívida, intoxicando cada ponto do meu cérebro como uma praga. A
atendente da barraca de merchs diz alguma coisa que faz Gracie rir e eu não
consigo escapar do pensamento de que ficaria aqui o dia inteiro, só
observando Gracie Salmon rir.
Foco, Oliver.
— Acho que eu e Gracie estamos fazendo um bom trabalho juntos —
respondo, finalmente. — Independente do resultado, vamos chegar em Paris
com a certeza de que fizemos nosso melhor. E não deixe os caras dos Owls
ouvirem isso, mas patinar é dez vezes mais difícil do que jogar hóquei. Nós
somos brutamontes no gelo e patinação artística exige leveza.
A ruiva assente, partindo para próxima pergunta.
— E o que você pode nos dizer sobre os boatos de romance entre
você e a sua parceira? — Ela tem um sorriso diabólico no rosto. — Você
sempre foi visto com muitas garotas diferentes ao longo dos anos, será que
seu coração finalmente encontrou uma dona?
Me lembro do que Gracie disse quando estávamos na festa de
integração, sobre criar burburinhos. Respostas exatas não criam
burburinhos, então tento ser vago.
— Nós estamos passando um bom tempo juntos. É nostálgico, eu
acho. Nós patinamos juntos quando éramos crianças, então é como voltar
no tempo. Estamos felizes e satisfeitos com o nosso trabalho, é o que mais
importa.
— Obrigada, Oliver. — A ruiva tenta disfarçar sua insatisfação diante
da minha falta de resposta, mas ela quase escorre pelos poros.
Eu forço mais um sorriso antes de me afastar das câmeras, indo na
direção da barraca de merchs. Pra uma primeira entrevista depois de muito
tempo, acho que fui bem o suficiente. Se a Trinity não ameaçar me matar na
reunião que temos amanhã, vou saber que não falei nenhuma merda.
— Parece que os repórteres não te odeiam mais — Gracie comenta,
encostada na mesa de apoio da barraca.
— Ah, eles odeiam sim. Tenho certeza que ela esperava alguma
resposta atravessada.
— E você deu?
— Não. Acordei de bom humor hoje.
Gracie me encara, então deixa uma risada escapar. Por um segundo,
todas aquelas pessoas na arquibancada desaparecerem e somos só nós dois e
aquela piada interna.
— A sua camisa, senhorita — a atendente nos interrompe, colocando
uma camisa dos Owls em cima da mesa de apoio.
Gracie agradece com um sorriso, vestindo-a por cima da sua própria
roupa.
— E aí? — me pergunta, dando um passo para trás e um giro. — O
que você acha?
— Péssimo — reclamo. Ela franze o cenho, prestes a soltar um xingo.
— Deveria ter meu nome atrás dela.
Gracie revira os olhos, mas tem um sorriso de canto preenchendo seus
lábios quando o faz.
— É mesmo?
— Sim, não pode vir num jogo de hóquei e usar uma camisa sem
nome. As pessoas vão pensar que você não tem um dono.
— E desde quando eu tenho dono, Fisher?
Ela não espera uma resposta, apenas move a cabeça em negativa.
Demora um segundo de hesitação para Gracie tirar a camisa e pedir uma
nova pra atendente, com meu nome nela. É uma sorte que ainda tenham
camisas minhas aqui, porque elas ficaram muito raras depois que fui
cancelado. Não consigo entender o que se passa na cabeça das pessoas.
— Satisfeito? — pergunta, vestindo a nova camiseta.
Eu assinto, mas um grupo de garotas se aproxima da barraca antes
que eu possa dar uma resposta verbal.
— Oliver! — A primeira delas abre um sorriso de orelha a orelha. —
Pode me dar um autógrafo?
Definitivamente, hoje é o meu dia de fazer papel de miss simpatia.
Abro um meio sorriso na direção delas.
— Claro.
A primeira garota me entrega uma caneta stencil e eu espero que ela
me entregue um papel também, mas, ao invés disso, ela abaixa um pouco o
decote da sua blusa de alcinha e aponta o canto do seu peito. Não é uma
coisa inédita, mas eu com certeza preferia não ter que passar por isso com
Gracie Salmon do meu lado.
Eu dou um passo para frente e assino onde ela apontou, me
esforçando para tocar no seu corpo o menos possível. A garota abre um
sorriso e me puxa para um abraço assim que eu termino.
— Obrigada! — diz, animada. — Estamos torcendo por vocês nas
olimpíadas — diz, agora para Gracie, antes de sair com suas amigas na
direção das arquibancadas.
Gracie ri.
— Isso foi…
— Intenso — eu completo.
— Não pode sair por aí assinando peitos — ela sussurra. — As
pessoas vão pensar que você não tem uma dona.
— E eu tenho?
— I said what I said — Gracie debocha, ajeitando a camiseta no
corpo.
Com o canto dos olhos, vejo meus irmãos saindo do vestiário. Os
jogadores do London Lions também começam a se ajeitar nas laterais da
pista de gelo.
— Boa sorte no jogo — ela diz, ficando na ponta dos pés para me dar
um abraço. É um gesto muito diferente do que estamos acostumados e
arrisco dizer que é o toque mais íntimo que já trocamos. Consigo ouvir
alguns flashes disparados na nossa direção.
— Mais um burburinho?
— Não — Gracie murmura. — Realmente queria te abraçar.
— Vamos lá, Oliver — a voz de Hank Fisher interrompe nosso
momento e eu só tenho chance de dar um sorriso pra ela antes de correr até
as laterais da pista.
Apesar de estar passando a maior parte do meu tempo acordado em
um rinque, a sensação agora é completamente diferente da que tenho
sentido nas últimas semanas. Primeiro, porque há milhares de pessoas
olhando para nosso time enquanto nos posicionamos na arena. Segundo,
porque agora, em vez de caminhar ao lado de Gracie, tenho meus cinco
companheiros de time. E terceiro, estou carregando um taco e, porra, eu
confesso que senti falta disso. Não sei quais desejos primitivos são
despertados ao carregar um instrumento fálico, mas não me importo. Hoje
eu só quero deslizar pelo gelo, prensar pessoas na grade e fazer o goleiro
adversário buscar o puck no fundo do gol o maior número de vezes
possível.
Hoje eu realmente acordei de ótimo humor.
Antes do juiz apitar, nosso time se reúne na nossa área do rinque.
Como sempre, Erick assume a posição de capitão e nos chama para uma
conversa rápida. Esse movimento é algo comum para os Fisher, mas o outro
defensor e o goleiro convidados — e que não faço ideia de onde surgiram
— olham para nós com os rostos determinados. Nunca os vi antes, mas
gostei da postura deles. Tá na cara que não estão aqui para brincadeira.
— Eu quero lembrar a vocês que essa é uma partida beneficente. O
objetivo aqui não é massagear o ego de ninguém, ouviram?
Ele olha de mim pra Tyler.
— Mas isso não quer dizer que não podemos ganhar — solto.
— Até porque nós iremos — diz Tyler.
— Tyler… — Archie começa, mas é logo interrompido.
— Não, eu falo sério. Vocês já viram esse time jogando? É de sentir
pena.
— Você esquece que não somos os Owls hoje — Erik retoma, e dessa
vez, sou obrigado a concordar com ele. — Vamos jogar com cuidado e
focar em entregar um bom espetáculo. Pode ser?
Concordamos e tomamos nossa posição. Erik recua, ficando ao lado
do outro defensor. Enquanto isso, eu e Archie seguimos para as alas e Tyler
toma posição entre nós dois. O som do apito soando faz a adrenalina jorrar
pelo meu corpo.
Meu cérebro apaga qualquer coisa que não esteja ligada ao gelo, tacos
e pucks. Hóquei é um esporte rápido e que não permite a menor distração.
Ao contrário dos esportes com bola, o puck é muito pequeno, escorregadio
e fácil de arremessar de um lado para o outro com o menor esforço. Uma
mente distraída corre o risco de só achar onde ele está depois do gol.
Disparo pela esquerda quando Erik toma o puck do time adversário e
avança pelo meio. Antes que penetre na área dos Lions, ele faz o passe para
Archie, no lado direito e recua para uma posição mais defensiva. Ele sabe
que se houver um contra-ataque, é responsabilidade dele fazer a contenção.
Uma vantagem de jogar com seus irmãos é que o conhecimento que
você tem deles fora dos jogos ajuda muito a fazer a correta leitura das
jogadas. Archie é o tipo de cara que gosta de ter uma noção completa de
qualquer coisa antes de fazer alguma jogada arriscada, por isso eu sei que
ele está prestes a passar o puck para mim quando, deslizando para atrás do
gol adversário, ele gira a cabeça para trás para ver onde estamos
posicionados.
Ele dispara o puck na minha direção e, no espaço de no máximo dois
segundos, tenho duas opções. Passar para Tyler que está sozinho perto do
goleiro ou arriscar o gol de onde estou, mesmo sem uma área
completamente limpa.
Me lembro do rosto do meu pai quando me deu a notícia de que eu
não jogaria mais pelos Owls. Por mais que eu nunca tenha me sentido
completo no hóquei, ainda assim era o que eu mais gostava de fazer, e a
expulsão doeu muito mais do que eu gostaria de admitir.
Hoje ele vai ver o que perdeu.
Finjo que farei o passe para Tyler, mas no último instante, lanço o
puck na direção do gol. O disco passa entre as pernas do goleiro abrindo o
placar.
Posso não estar mais no esporte, mas vou deixar claro que são eles
quem saem perdendo, não eu.
Deslizo até a região próxima à barraca de merchs e levanto o taco
para Gracie. Ela pula comemorando o gol junto com parte da torcida.
Inferno, eu poderia me acostumar com isso.
Sinto Tyler colidindo comigo enquanto comemora o gol e me arrasta
de volta para a minha posição. É só o primeiro período, ainda tem muito
jogo pela frente.
O jogo avança pelos períodos seguintes sem nenhuma violência
característica desse esporte. Acho que jogar pensando nos orfanatos diminui
um pouco a sede por brigas. Olho para o placar improvisado na
arquibancada. Não há um telão no rinque, por isso o placar é mostrado em
um cork board com duas folhas fixadas. Em uma delas, o número 4, na
outra, o 2. Tyler errou ao imaginar que seria uma partida fácil, mas
felizmente, estamos ganhando. Depois de marcar duas vezes, ainda dei uma
assistência para Tyler e Archie. Não há dúvidas de quem foi o nome do
jogo.
Observo o juiz se aproximar com o puck para retomar a partida.
Estamos no último minuto de jogo e não há nada que os Lions possam fazer
para mudar o resultado. Pego o puck e recuo para a defesa, deixo ele com
Erik e volto a disparar para o ataque. O rinque não é muito grande, então
com 4 passadas largas, estou perto da área adversária. Erik lança para
Archie e, percebo que o caçula do time vai lançar à frente de onde estou.
Nesse momento, me vem a imagem de Mrs. Mulligan, demonstrando como
fazer um backward swizzle em alta velocidade. Sem reduzir minha
velocidade, giro o corpo, olhando para o meu próprio gol, o que faz a
marcação adversária mudar a trajetória pensando que irei recuar, mas
flexiono os joelhos e pego impulso deslizando de costas. A surpresa no
rosto de Archie não o faz perder o timing e ele logo lança o puck na minha
direção. Estico o taco, recebendo e disparando para o gol. Escuto o som do
disco batendo no goleiro, mas ele volta para o rinque e Tyler o empurra para
o fundo do gol. Mais uma assistência, e dessa vez, estilo patinação artística.
O center corre para comemorar junto a torcida, mas meus olhos
procuram Gracie. Observo o sorriso no rosto dela e odeio saber que fiz isso
apenas para impressioná-la. Me sinto um adolescente tentando impressionar
a crush e não gosto nada do calor no meu peito quando a vejo levantar o
polegar em um sinal de positivo.
Por favor, que alguém acerte a minha cabeça com um taco antes que
seja tarde demais.
NEWS: Mais que amigos?

Mais que amigos?


As fãs que shippam nosso casal Fisher&Salmon (até o sobrenome
deles combina!) receberam mais combustível para alimentar as teorias
sobre um possível relacionamento entre os dois no jogo beneficente entre os
Fisher e o London Lions, time de hóquei independente de Londres. O
evento, que teve uma grande adesão da população de Guildford, foi uma
ideia em parceria entre o prefeito da cidade e Hank Fisher, o empresário e
dono dos New York Owls. Foram arrecadados quase 100 mil libras para
serem distribuídas para os orfanatos da região. Essa foi, sem sombra de
dúvidas, uma campanha incrível.
Incrível também foi a química do nosso casal (?) favorito do
momento. Oliver, ao lado dos irmãos e ex-colegas de clube, não parava de
olhar na direção de Gracie ao fazer suas jogadas espetaculares. A
patinadora, por outro lado, torcia para o seu parceiro e usava até mesmo
uma camisa dos Owls com o nome dele estampado nas costas. Se isso não é
um claro sinal de que estão juntos, eu não sei o que mais poderia ser.
Pela foto abaixo, podemos ver um momento de carinho entre os dois,
logo antes do início da partida, que terminou com uma vitória incontestável
para o time de Guilford, batendo os Lions por 5 a 2. Foi uma atuação de
gala de Oliver Fisher com dois gols, três assistências e ainda um backward
swizzle para mostrar que agora ele é mais do que um jogador de hóquei.
Certamente, Hank Fisher deve ter ficado com um gosto amargo na boca
por ter expulsado o filho do próprio time.
Como anda as teorias sobre nosso casal? Não deixe de acompanhar
o EstherNews para ficar por dentro de tudo o que está acontecendo no
mundo das celebridades do gelo!
Sexta-feira, 19 de julho de 2024
CAPÍT ULO 31 - GRACIE SALMON

— Eu me sinto indo a um double date — digo, quando o chá sem


doce e sem graça chega à mesa onde estamos sentados no Starbucks da
New Oxford St. Oliver está sentado ao meu lado, seu estilo largado como se
fosse um dos proprietários da loja. Hoje, está usando a camisa do Owls com
o seu próprio nome, o cúmulo do egocentrismo. Como se a mídia falando
da atuação dele no jogo de ontem não fosse atenção suficiente.
Ele olha para mim, uma sobrancelha levantada.
— Quer dizer que você acha que estamos em um date?
Balanço a cabeça de um lado para o outro deixando o meu cabelo
preso em um rabo de cavalo responder por mim.
As coisas estão estranhas entre nós dois, mas, honestamente, acho que
esse é nosso novo normal. Sim, eu percebi que houve algo a mais no jogo
de ontem. Todas as vezes que Oliver fazia uma boa jogada, ele não olhava
para a família adotiva na arquibancada. Não olhava para as câmeras
postadas ao redor do rinque. Olhava para mim. Sempre. Não tenho certeza
se isso significa alguma coisa, mas, embora eu não admita, me deixou
balançada.
— Vai sonhando, Fisher. O que aconteceu não muda a nossa situação.
— Ah é? E qual é a nossa situação?
Ele tem um sorriso no rosto, como se seu hobby favorito no mundo
fosse me tirar do sério. Às vezes acho que é. Se irritar Gracie Salmon fosse
um esporte, Oliver seria o maior medalhista de ouro da história, deixando
Nora Salmon — ou talvez o Pierre — no segundo lugar do pódio.
— Temos uma relação profissional. Eu pensei que tivesse deixado
isso bem claro quando te fiz o convite.
— Você fala do convite com as várias regras que você não perde a
menor oportunidade de quebrar?
Cruzo os braços, ultrajada pela mentira.
Ok, mentira parcial.
— Você fala como se fosse um cristal imaculado de pura inocência.
— Agora sim você viu o meu verdadeiro eu.
Levanto o dedo médio para ele enquanto bebo um gole do chá.
— Eu não quebrei as regras sozinha.
— De quais regras estão falando? Espero que não seja nenhuma das
olimpíadas. — Uma voz animada surge de um lugar às minhas costas e em
poucos segundos, nossas agentes tomam o outro banco na frente da nossa
mesa. — Desculpa o atraso, gente. O trânsito de Londres é uma loucura.
Trinity se apresenta e fico surpresa com o quanto é bonita. Loira de
olhos claros e um corpo escultural. No seu cartão de visitas não tinha
nenhuma foto e eu também não tive muito tempo de pesquisar.
Será que o Oliver também achou ela bonita?
Controle-se, Gracie.
Não tem porque sentir ciúmes dele.
— Estou animada por finalmente conhecer o Oliver — diz Clarice,
olhando para o meu parceiro. — Gracie ficou muito feliz por você ter
aceitado patinar com ela. Espero que ela demonstre o quanto estamos
agradecidas pelo seu gesto.
— Ela demonstrou sim. Não precisa se preocupar.
Ele lança um olhar cheio de segundas intenções para mim, fazendo o
meu sangue esquentar e subir para o meu rosto. Era só o que me faltava,
passar vergonha na frente de duas agentes ao mesmo tempo.
Se alguma das duas percebeu o tom malicioso, preferiu ignorar.
— Bom, como falei ao telefone — Clarice continua —, eu achei
importante marcarmos essa reunião para estabelecermos melhor como será
o comportamento de vocês em Paris.
— Eu estava pensando em manter o básico: não matar ninguém, não
ser preso e não aparecer em rede nacional por algum crime.
Reviro os olhos ao ouvir o comentário do Oliver. Percebo que meu
gesto é imitado, em uma menor escala, por Trinity. Acho que ela não é uma
pessoa muito paciente.
— Vai ter que fazer melhor que isso, Oliver — ela responde, sem dar
margem para a gracinha do meu parceiro.
— Muito melhor que isso. Sua carreira está ligada à minha, se você
fizer besteira, vai manchar o meu nome também — respondo.
— E o meu — Trinity adiciona e sinto uma conexão instantânea com
ela. Consigo imaginar uma cena entre nós duas implicando com o Oliver
por uma hora seguida. Seria muito divertido.
— Além do básico — Clarice retoma, trazendo a discussão para o
caminho sério como a excelente profissional que é — vamos precisar que
vocês tentem se manter o mais distante possível das câmeras. Os boatos de
que vocês são um novo casal estão rodando pela internet e às vésperas dos
jogos seria um péssimo momento para descobrirem que não passa de
mentira.
— A não ser, é claro, que vocês realmente sejam um casal — Trinity
joga o verde, me fazendo engasgar com o chá.
Minha língua queima.
Eu não sei o que responder.
Oliver e eu… um casal? A ideia me deixa tonta. Ao mesmo tempo,
pensar em Oliver namorando outra garota trava o meu cérebro, como se a
ideia fosse um crime. Uma vez, quando ainda éramos adolescentes, lembro
de ter visto Oliver beijando uma garota numa viela de Guildford e fiquei
sem comer por um final de semana inteiro, mas isso foi antes. Tudo bem,
admito que odiei vê-lo autografando os peitos daquela mulher, por mais que
seus olhos estivessem em mim o tempo todo. Talvez eu também tivesse o
trancado no elevador se ele tentasse ir em um encontro.
Mesmo assim, balanço a cabeça em negativa. Me lembro de todas as
vezes — ok, foram duas, no máximo — que tentei falar sobre sentimentos
com Oliver Fisher e recebi silêncio em resposta. Ele pode gostar de transar
comigo, mas isso não significa que gosta de mim.
Odeio a pontada de insegurança que acompanha esse pensamento.
— Você tá maluca? Não estamos juntos — adiciono, depois de um
segundo de hesitação.
Oliver olha para mim.
Não consigo traduzir o que se passa no seu olhar. Não sei se ele
esperava que eu desse uma resposta diferente. Não sei se falei da verdade
ou não. Ele não diz nada. Trinity lança um olhar na sua direção, mas ao
perceber que não consegue informações, apenas levanta os ombros e joga o
jornal que estava no seu colo em cima da mesa.
— Não é o que a imprensa e os fãs de vocês acham.
Oliver puxa o jornal para o nosso lado. Há uma foto grande
estampada, mostrando o momento que o abracei antes do início da partida
de ontem. Foi um momento espontâneo, apenas queria desejar boa sorte
antes do jogo. Ok, confesso que também queria abraçá-lo, mas sei que é
apenas um efeito colateral por termos transado na noite anterior. Já passou.
Ou não.
Não tenho certeza.
Perco vários segundos observando a foto. Consigo entender porque as
pessoas acham que somos um casal. Além dos boatos que espalhamos nas
nossas raras aparições em público, essa foto realmente parece mostrar um
casal apaixonado. A típica namorada do atleta desejando sorte antes da
partida. Isso porque aqui nem está mostrando os olhares que recebi depois
de cada boa jogada dele.
Isso não quer dizer nada, Gracie, se controle!
— Deixa eles acharem. É melhor pra gente — digo, voltando à
realidade.
— Eu concordo — Clarice retoma. — Vocês, como atletas isolados,
são apenas mais uma dupla no meio de dezenas, mas como casal, a coisa é
diferente. Viram o centro das atenções.
— Por isso queremos que fiquem longe das câmeras — Trinity
continua. As duas têm um diálogo muito bem alinhado, o que me faz pensar
que conversaram muito antes de virem para cá.
— Se vocês quiserem, podemos mostrar que somos um casal de
verdade — Oliver diz, e olho para ele com certa desconfiança. Não
esperava que ele estivesse disposto a destruir a sua fama de conquistador
por causa dos jogos.
— E acabar com o mistério? — Clarice adiciona. — De jeito nenhum.
O interesse em vocês no momento é absurdo. Precisamos extrair o máximo
possível. Mais do que ver um casal, as pessoas gostam de se sentirem
detetives, para no futuro, quando percebem que estavam certas, se sentirem
validadas.
— Se vocês quiserem, podem adicionar um toque ou outro, mas que
seja ambíguo, igual estão fazendo agora. Deixem o povo especular.
Concordo com as agentes. É triste saber que as pessoas estão mais
curiosas sobre um possível relacionamento entre nós do que pela nossa
habilidade em patinar. Infelizmente, faz parte do meio onde estamos
inseridos e não tem nada a se fazer.
— Atenção é algo positivo, desde que seja esse tipo de atenção —
Clarice retoma, pela forma que ela cruza os dedos em cima da mesa, sei que
vem um assunto delicado pela frente. — Não queremos nenhuma bomba
estourando na mídia. — Ela olha para mim e depois para Oliver. — Então
se tem algum lixo embaixo do tapete de vocês, preciso que nos falem agora.
Precisamos saber como reagir caso venha à tona.
Balanço a cabeça de um lado para o outro. Eu tenho informações que
podem, sim, deixar a imprensa falando por meses, mas não é sobre mim. E
não direi nada a ninguém até que se faça estritamente necessário.
— E você, Oliver? Nada? — A minha agente insiste.
Ele solta uma risada sem graça.
— Meu tapete parece um Everest de tanta sujeira acumulada, mas não
se preocupe — ele adiciona ao ver a expressão chocada no rosto de Clarice.
— A imprensa já se cansou de falar dos meus podres. Sou um órfão rebelde
que não se encaixa em lugar nenhum e ainda com uma tendência ao
comportamento violento. Um prato cheio que perdeu o gosto depois de ser
servido inúmeras vezes.
Quase um mês de convivência diária com Oliver me faz questionar
como é possível que tenham construído essa imagem na mídia. Ok, eu não
estava presente nos momentos que Oliver perdeu a cabeça — a expulsão do
time e a internação no reformatório não foram de graça —, mas isso não
reflete quem Oliver é. Tem muito escondido atrás dessa pose marrenta de
quem finge que não se importa com nada. No fundo, ele é um cara sensível
que carrega injeções de insulina como back up, dá ração pra um cachorro
que o odeia e larga tudo para ir em auxílio do irmão quando ele precisa.
Paro para acompanhar o rumo dos meus pensamentos e sinto vontade
de me bater.
Que merda é essa, Gracie Salmon?
Aparentemente, o chá de pica de alguns dias atrás tirou meu bom
senso.
— Isso é ótimo — Trinity comenta. — Temos um bom plano:
estimular o mistério e sem bombas ou polêmicas. E claro, focar na
patinação para trazer uma medalha para casa.
— Essa é a parte fácil.
O comentário de Oliver arranca pequenas risadas das agentes e me
surpreendo ao ver o sorriso se espalhando nos meus lábios.
E não é que a minha ideia absurda de chamar um jogador de hóquei
para patinar comigo está dando certo?
CAPÍT ULO 32 - OLIVER FISHER

TYLER: só fala a verdade de uma vez

Releio a mensagem de Tyler várias vezes enquanto caminhamos na


direção do apartamento de Gracie. Já se passou quase um mês desde a
minha mudança, mas ainda não consigo pensar naquela cobertura como
sendo minha. Acho que, se eu comprasse uma casa em Londres, seria bem
menos extravagante do que aquela.

OLIVER: Não sei se é o melhor momento……………….


TYLER: você tá com medo

Ele manda uma figurinha de um enorme emoji amarelo batendo no


chão de tanto rir. Filho da puta.

TYLER: o que é muito irônico, considerando o seu histórico


TYLER: não tem medo de apostar rachas, correr de moto sem
capacete ou cair no soco com qualquer pessoa, mas tem medo de
mulher
OLIVER: Me respeita, não é qualquer mulher
OLIVER: é uma mulher específica
TYLER: não melhora sua situação em nada

Respondo com uma sequência de emojis de dedo do meio.


TYLER: vocês precisam decidir se são ou não um casal antes da
temporada começar
TYLER: não aguento mais o archie suspirando pela casa
TYLER: se é pra sofrer, que ele sofra tudo de uma vez

Bloqueio o celular e o coloco no bolso da calça, deixando o ar escapar


pelos meus lábios. Uma fumaça fina se forma na frente do meu rosto,
denunciando a noite fria. Não me preocupo com Archie porque ele se
apaixona na mesma frequência que os Owls ganham uma partida, o que
acontece muitas vezes.
— Ela meio que arrancou o nosso couro hoje — Gracie comenta,
quando estamos a três ruas de distância do apartamento. Um raio corta o
céu e uma tempestade vai começar em breve, mas nenhum de nós acelera o
passo.
— Acho que todo treinador é um pouquinho sádico.
Gracie concorda com a cabeça. Depois da reunião com Clarice e
Trinity, nós fomos direto para o rinque de gelo, onde passamos o resto da
nossa tarde. Felizmente, Mrs. Mulligan está feliz com o nosso progresso e
já conseguimos completar o programa curto e o programa longo sem
maiores dificuldades. Segundo nossa treinadora, os próximos dias e os
últimos treinos em Paris serão cruciais para o nosso desempenho nos jogos.
Talvez seja por isso que não quero dizer nada agora.
Nós já quebramos todas as regras, mas falar sobre sentimentos parece
além de todos os limites, uma coisa ainda mais íntima do que sexo. A
mensagem de Tyler ainda está na minha cabeça: não tem medo de apostar
rachas, mas tem medo de mulher. Honestamente, a pior coisa que pode
acontecer em uma corrida clandestina é morrer e eu tenho absoluta certeza
que ser rejeitado por Gracie Salmon depois de tantos anos em silêncio é
centenas de vezes pior que isso.
— No que você tá pensando? — ela pergunta, me arrancando dos
meus devaneios.
— Que vai chover — respondo, quando um novo trovão estremece os
céus escuros de Londres.
Gracie ri, revirando os olhos.
— Não está pensando nisso — diz. — Sessenta segundos de
sincericídio? Você nunca usou comigo — reclama, cruzando os braços. —
Nunca me deixa saber o que passa pela sua cabeça.
— Eu sou muito mais transparente do que você pensa.
Ela arqueia uma das sobrancelhas.
— É mesmo?
Antes que eu possa responder, a chuva despenca. Gotas grossas de
água caem do céu, freneticamente, estourando na calçada. O barulho se
junta ao som dos trovões e raios e transforma nossa conversa em algo
impossível de ser mantido. Acho que fui salvo pelo gongo, de novo.
Gracie me encara, deixando o ar escapar pela boca. É o tipo de
tempestade torrencial da qual não adianta correr: em segundos, estamos
ensopados. Ela balança os braços, tentando tirar a água do seu casaco de
treino, mas é um esforço inútil. Uma risada desliza pelos meus lábios e nós
apertamos um pouco o passo, procurando abrigo de marquise em marquise
até, finalmente, chegar no seu prédio.
— Boa noite, senhorita Salmon. — Mr. Quigley está na frente da
portaria, com um guarda-chuva enorme. — Perdão pelo inconveniente, mas
estamos sem energia. Acho que foi a chuva.
Gracie me encara e eu levanto as mãos em sinal de rendição.
— Não foi culpa minha dessa vez — sussurro, sem deixar que o
porteiro ouça.
— Obrigada, Mr. Quigley — ela responde. — Acho que tenho
algumas velas em casa.
O porteiro sorri em resposta e nós entramos no edifício, seguindo
direto para as escadas de emergência. Subir até o último andar do prédio é
um puta exercício depois de passar mais de cinco horas em cima de patins
no gelo e Gracie se dá bem melhor na tarefa do que eu. Ok, talvez eu não
devesse ter subestimado o poder do cigarro de foder um pulmão.
— Que fracasso, hein? — Gracie zomba, quando chega no último
degrau e ainda falta uma sequência de mais dez pra mim.
— Cala a boca. A gente devia ter esperado lá embaixo até a luz voltar.
— Isso é carma — ela se diverte — por ter me trancado no elevador.
— Posso te trancar nas escadas de emergência dessa vez — digo,
quando finalmente chego ao último degrau.
— São escadas de emergência — Gracie ri quando eu coloco as mãos
na sua cintura, ameaçando empurrá-la para baixo. — Parte da utilidade é
que não tem como ficar preso nelas.
— Eu dou um jeito nisso.
— Vai mandar colocaram fechaduras nas portas só pra me prender?
Vindo de você, eu não duvido.
— Você pensa muito mal de mim, desgracie.
— E com razão — Gracie me encara, a expressão divertida ainda
tomando conta do rosto. Seus dedos sobem até meu cabelo e ela joga os fios
molhados para trás, tirando-os dos meus olhos. Seu toque é elétrico.
Tem alguma coisa diferente no seu olhar hoje. Parece expectativa.
Acho que está esperando que eu diga qualquer coisa a respeito dos meus
sentimentos desde a sua confissão no elevador, graciosamente interrompida
pelo Vincent.
Mas eu não digo.
— Você vai ficar gripada se não trocar de roupa — murmuro.
Gracie parece ligeiramente decepcionada — e não é a primeira vez
—, mas ela concorda.
Nós saímos das escadas e entramos no apartamento. Ben está
encolhido no centro da sala, com medo dos trovões. Gracie faz uma
expressão de tristeza olhando para ele e se vira pra mim em seguida.
— Tem algumas velas aromáticas no seu banheiro — diz. — Acende
pra mim enquanto eu resolvo… — Ela aponta para o próprio corpo
molhado, depois para o Ben, então coloca sua mochila de treino encharcada
no chão. — Bom, tudo isso.
Concordo com a cabeça enquanto vou atrás das velas. Não ligo a
lanterna do celular porque, apesar da chuva, o apartamento de Gracie não
fica totalmente escuro, provavelmente por causa das janelas de vidro
infinito que percorrem toda sala. Os raios iluminam cada centímetro da casa
de tempos em tempos e é bonito na mesma medida que é assustador.
Eu volto pra sala com meu isqueiro e todas as velas aromáticas que
minhas mãos conseguem carregar. Distribuo estrategicamente cada uma
delas pela sala e pelo bar, e em instantes não estamos mais dependendo dos
raios como principal fonte de luz.
— Você também vai ficar gripado. — Gracie surge na sala, jogando
uma toalha na minha direção. — Seque-se — diz, um meio sorriso no rosto,
como se tivesse feito uma piada que só ela entendeu.
Penso em contar todas as vezes que corri debaixo de chuvas
torrenciais e não fiquei gripado, mas não acho que Gracie ficaria feliz em
saber. Na verdade, ela ficaria aterrorizada.
Eu assinto e passo a toalha pelo cabelo, apenas tempo suficiente para
evitar que ele fique pingando. Gracie se senta no seu lado do sofá,
apertando Ben no colo, e eu sinto que essa cena já aconteceu várias vezes
antes, em contextos diferentes. Por causa da chuva, os cachos naturais do
seu cabelo estão aparecendo. Não me lembro da última vez que vi seu
cabelo com cachos.
— O que foi? — ela pergunta, sua pele negra tomando tons brilhantes
de laranja por causa da nossa iluminação à luz de velas.
— Nada — eu finalmente me sento. — Estava reparando no seu
cabelo.
Só então Gracie se dá conta.
— Ah — ela suspira. — Ficou uma bagunça.
— Ficou bonito — eu corrijo.
— Pierre sempre dizia que era uma bagunça — ela solta.
— Deve ser por isso que ele não é mais seu namorado.
— Justo — Gracie move a cabeça em afirmativa, colocando as pernas
em cima do sofá. Sempre que fala dele, ela não parece triste. Parece
aliviada. — Gosto que ele tenha me traído.
Eu não seguro uma risada.
— Tem fetiche em ser corna?
Gracie levanta o dedo médio na minha direção.
— Vai se ferrar — ri. — É só que… se ele não tivesse, eu nunca
terminaria porque isso significaria colocar minha carreira em risco. Eu
nunca gostei dele, mas estava disposta a ficar mesmo assim, acho que às
vezes sou mais parecida com minha mãe do que imagino. Isso é algo que
ela faria. — Ela faz uma pequena pausa, mas logo continua. — Que bom
que eu não fiquei, porque ele é um ótimo patinador e péssimo em todo
resto. Em oito anos de relacionamento ele nunca me fez uma surpresa de
dia dos namorados — Gracie reclama, e parece ser algo importante para ela.
— Na verdade, nunca fez nada que me fizesse sentir minimamente vista.
— Você consegue pegar as coisas ruins que as pessoas fazem e
transformar em coisas boas — murmuro. Aos poucos, Ben se acalma no
colo de Gracie. — Mas você não merecia ser traída desse jeito. Deveria
estar com um cara que te ofereça devoção.
Gracie acha graça.
— Então eu sou algum tipo de divindade?
Não respondo a pergunta, mas tem um pensamento ecoando no fundo
da minha cabeça. Pra mim você é.
Vendo minha falta de resposta, Gracie continua:
— Você acha que as coisas estão mesmo controladas? Fiquei
pensando nisso depois da nossa reunião com as meninas. Tudo ficou
tranquilo de repente… Nem parece de verdade.
Eu dou de ombros, afundando meu corpo nas almofadas do sofá.
— Foi o que eu disse — lembro. — Do lado de cá não tem muito
mais o que descobrirem.
— O comitê com certeza vai fazer um dossiê completo da sua vida
quando chegarmos em Paris — Gracie diz, conformada. — Sempre fazem
isso.
— Talvez eu conquiste o coração dos juízes — zombo. — Todo
mundo ama uma história trágica.
— Você nunca me contou.
— O quê?
— Sobre… — ela faz uma pausa, ajeitando Ben no colo. — Os seus
pais biológicos.
— É o tipo de coisa que você encontra com cinco minutos de
pesquisa no Google.
— Eu nunca pesquisei — murmura. — Pareceu invasivo. Sei lá. Eu
não gostaria que todas as pessoas tivessem acesso a um dos meus maiores
traumas tão fácil assim, então nunca fui atrás de saber. Tudo que eu sei
foram os meus pais que me contaram, sem entrar em muitos detalhes
porque eu era nova demais pra entender… Depois nós crescemos e esse
assunto nunca foi o favorito de ninguém, então…
— Você quer saber?
— Depende de quão desconfortável é tocar nesse assunto.
De alguma forma, a chuva caindo do lado de fora e as velas que
iluminam o apartamento transformam o ambiente em um lugar confortável.
Embora eu odeie desabafos, preciso admitir que a atmosfera me incentiva a
falar.
— Eu não sei de quase nada — digo, e é verdade. — Eu só conheci
minha mãe biológica por dez anos e os primeiros cinco são um borrão. Joe e
Tara brigavam o tempo inteiro. Me lembro de ir dormir na casa de um
colega da escola quando tinha oito anos e estranhar o fato de que seus pais
não estavam gritando um com o outro toda hora. Era a descoberta de um
mundo novo, sabe? — Eu dou uma risada sem humor. — Como assim, na
sua casa os seus pais não brigam até dormir?
Gracie apoia uma das mãos no meu ombro, ajeitando Ben no colo.
Até ele ficou quieto, como se entendesse a seriedade do assunto.
— Um dia eu cheguei em casa e o ambiente era puro silêncio. Não
um tipo de silêncio tranquilo, mas aquele silêncio que esmaga você. De
alguma forma, eu sabia que tinha acabado. Minha mãe não estava em lugar
nenhum e Joe não disse nada naquele dia, mas o cheiro de sangue tinha se
impregnado em cada canto da sala de estar. Eu ouvi um barulho alto durante
a noite, parecido com fogos de artifício, mas não tive coragem de ir ver o
que era. Quando eu acordei… — Dou uma pausa, respirando fundo. — O
cheiro de sangue da sala tinha aumentado e o corpo dele estava no sofá,
com a mandíbula… Ele se matou com um tiro na boca, então, era nojento.
Tenho certeza que ele fez de propósito. Se matou na sala, pra eu não ter
como fugir daquela imagem. Foi um filho da puta até o último segundo de
vida.
Gracie move a cabeça em afirmativa. Seus olhos estão cheios de
lágrimas e a imagem me faz ter vontade de chorar também, mas eu respiro
fundo. Mesmo anos depois, ainda é uma ferida que dói pra caralho. Nos
primeiros anos de terapia, eu ainda tinha esperança que a dor sumisse, mas,
hoje, eu aceitei. É o tipo de coisa com a qual vou ter que lidar pra sempre.
— E a sua mãe? — ela pergunta.
— O corpo foi encontrado alguns dias depois. Causa mortis,
espancamento. Não fizeram o velório aqui, porque ela não tinha nenhum
familiar em Londres. O corpo foi transportado pra Coréia do Sul e eu fui
mandado pro orfanato.
— Os seus avós maternos não…
— Não. Nunca quiseram contato. Eu não posso dizer que estão
errados — e isso é uma coisa na qual penso frequentemente. — Acho que
também não ia querer conhecer o filho do cara que matou minha filha.
Gracie balança a cabeça em negativa.
— Você era só uma criança. Eles deviam ter te acolhido como o Hank
fez.
Dou de ombros.
— Passei minha adolescência inteira tentando provar que o Hank
estava errado — eu solto, e embora essa seja uma conclusão que cheguei
muito tempo atrás, na terapia, nunca tinha dito em voz alta. — Que ele não
deveria ter me adotado, porque eu era tão ruim quanto o meu pai. Acho que
veio daí. A revolta.
— Tinha direito de estar revoltado.
— A maioria das pessoas não pensa assim. Às vezes eu acho que elas
estão erradas, às vezes… Não sei — eu suspiro, frustrado. — Quando vejo
as manchetes dizendo que meu comportamento violento sempre foi
previsível fico pensando se não sou exatamente como ele. Talvez eu seja.
Gracie move a cabeça em negativa.
— Fiquei sabendo o que aconteceu antes da sua expulsão. As revistas
de fofoca não falaram sobre isso…
— O que te contaram?
— Que quebrou o pulso dele — ela murmura, devagar. — Por que ele
disse que Hank era um velho com fetiche em sofrimento que adotava
crianças problemáticas e colocava pra jogar hóquei como se fossem galos
de briga.
Eu a encaro, sem entender como conseguiu essa informação.
— A Trinity realmente vasculhou toda a sua vida antes de aceitar ser
sua agente. Mais do que isso, ela falou com pessoas — murmura. — Não
sei como ela descobriu, mas ela disse pra Clarice, que comentou comigo
quando você foi pagar nossa conta. Não é útil pra nossa imagem, porque
ninguém tem como provar que isso aconteceu… Não fica se achando, mas
eu meio que sempre soube que você não era mais um adolescente revoltado.
Acho graça da forma como ela fala.
— Não conta pra ninguém.
— Ninguém sabe?
— Se a Trinity descobriu, com certeza, alguém sabe, mas não os
meus irmãos ou meu pai. É melhor deixar as coisas assim.
— Você não tentou se explicar?
Dou de ombros.
— Não ia resolver. Lembra do que disse sobre contar uma história?
Os jornalistas já tinham decidido quem era o mocinho e quem era o vilão.
Gracie assente.
— Acho que não importa mais — ela diz, por fim. — Mas você
comprou insulinas pra mim. Perdeu uma corrida de propósito. E vamos pra
Paris em poucos dias, atrás de um sonho que não é seu. Acho que essa é a
principal diferença entre você e o Joe. Ele não era digno de amor como
você é. E você faz eu me sentir amada como ninguém nunca fez.
— Ouvir você dizer isso em voz alta é surpreendente.
— Não faz eu me arrepender — Gracie pede. Ela respira fundo e
então me encara, hesitando por alguns longos segundos antes de continuar
— Seria muito egocentrismo da minha parte dizer que eu me sinto assim
porque você está apaixonado por mim?
— Seria — respondo, e a sua expressão murcha. — Seria narcisista,
pedante e presunçoso. Eu não estou apaixonado por você, Gracie. —
Percebo ela murchar ainda mais. —. Eu sou apaixonado por você, porque,
desde o dia que nos conhecemos, não me lembro de uma fase da vida que
você não tenha feito meu coração bater mais forte. Eu não faço ideia de
como é viver uma vida onde você não é o centro. Meus pensamentos
sempre foram seus e eu espero que você sinta o mesmo ou as coisas vão
ficar muito estranhas em Paris.
Contar a verdade é como dar um tiro no escuro. Quase sinto minhas
mãos sujas de pólvora. E eu me sinto nervoso como se tivesse mesmo
atirado em alguém, mas então…
Gracie ri.
Sua risada me acalma, mesmo que eu não saiba se ela está rindo de
mim, pra mim ou comigo.
Ela não responde, mas coloca Ben no meu colo antes de se levantar
no sofá. O cachorro se agita, confuso diante da ausência da dona. Acho que
também estou como ele, sem ideia do que fazer em seguida.
Observo sua silhueta atravessar a sala iluminada pelo fogo e chegar
na porta do apartamento. Gracie fica na ponta dos pés e puxa a fita cor de
rosa que divide cada cômodo em dois, livrando-se dela.
— Tem mais de uma semana que eu tento arrancar essa declaração de
você, então acho que a minha resposta é óbvia — ela se senta no meu colo,
com cuidado para não esmagar o Ben, que parece ultrajado com a sua
demonstração de afeto. Sinto que ele está perto de morder alguém,
possivelmente eu. — Mas se for quebrar meu coração, por favor, faça isso
depois de Paris.
Movo a cabeça em negativa.
— Nem depois de Paris, nem nunca. É uma promessa.
Os lábios de Gracie encontram os meus ao mesmo tempo que as luzes
do apartamento se acendem. Nós rimos da coincidência e Ben pula do meu
colo, dando mais espaço para que ela me abrace.
Independentemente do que acontecer em Paris, eu já sei qual é o
sabor da vitória.
E ele tem o gosto dessa noite.
CAPÍT ULO 33 - GRACIE SALMON

— Ok, mais uma vez!


Eu acho que vou ter pesadelos com essas quatro palavras.
Estou longe de ser uma patinadora iniciante, ainda assim, nunca tive
uma treinadora que gostava tanto de me mandar refazer o mesmo exercício
de novo e de novo.
Deve ser a centésima vez que eu e Oliver estamos fazendo o
salchow[11] duplo. Ele faz parte do nosso programa curto e, para dar uma
incrementada no movimento, já que ele é muito simples, Mrs Mulligan
sugeriu sincronizarmos nossos corpos para fazer o salto ao mesmo tempo.
Estou sentindo o músculo da minha coxa direita pedindo descanso. Eu
preciso tomar cuidado para não me lesionar, estando tão próximo da viagem
para Paris.
Pego impulso para fazer o salto observando Oliver imitando os meus
movimentos como uma sombra. Não sei como isso aconteceu, e jurava que
seria impossível, mas em pouco mais de um mês, conseguimos atingir uma
sincronia muito boa. Ainda tem muito espaço para melhorar, óbvio, mas
ninguém esperava que conseguíssemos chegar ao ponto que estamos hoje
antes de Paris.
Nem eu esperava, para ser honesta.
Dou o salto girando o corpo, o rinque rodando ao meu redor como um
borrão branco. Sinto a mão de Oliver buscando a minha assim que volto a
pisar no gelo, mais um sinal de que completamos o movimento ao mesmo
tempo.
— Ótimo! Mais uma vez!
Oliver está tão próximo a mim que vejo o revirar de olhos que ele me
lança.
— Essa mulher vai fazer a gente criar um buraco no gelo — sussurra,
para que Ciara não possa ouvir.
Eu abro um sorriso, mas não reclamo. Aprendi muito cedo a nunca
questionar os métodos dos treinadores. Por mais que possa parecer algo
cansativo, sem sentido ou mesmo impossível, sei que eles têm os seus
motivos e estão sempre pensando no quadro geral. E Mrs Mulligan, mais do
que ninguém, tem um histórico que passa uma credibilidade inquestionável.
Nos preparamos para mais um salchow e, mal meu pé toca o gelo
após o salto, escuto novamente o grito vindo da treinadora:
— Mais uma vez!
Essa vai ser uma longa manhã.

∞∞∞
— Eu estou feliz com o resultado do treino de vocês — diz Ciara, se
aproximando de nós depois de gritar por horas as mesmas três palavras. —
Eu juro que, se não tivesse visto como estavam nos primeiros dias, não
acreditaria que estão juntos há tão pouco tempo.
Abro um sorriso. Uma das características de Mrs. Mulligan é não ter
freio na língua: da mesma forma que ela não se contém para criticar,
também solta elogios com extrema facilidade quando acredita neles. Para
quem cresceu sob a asa sombria de Nora Salmon, receber elogios depois de
uma prática parece algo de outro mundo.
— Acha que ele está bom para o programa, Mrs Mulligan? —
pergunto, um pouco receosa com a resposta. Não temos muito mais tempo
para treinar. — Podemos voltar durante a tarde para repassar mais vezes.
Pelo canto do olho, percebo Oliver me fuzilando com o olhar, mas
ignoro.
— Está ótimo, treinaram mais do que o suficiente. O corpo de vocês
já sabe como fazer o salchow mesmo de olhos fechados. — Ela cruza os
braços, um sorriso se espalhando pelo rosto bondoso e cheio de rugas. Acho
que se tivéssemos um pouco mais de intimidade, ela viria me abraçar. —
Além disso, tenho outros planos pra nossa tarde.
Olho para Oliver, curiosa, mas ela caminha para fora do rinque antes
de responder.
— Nós já terminamos todos os dois programas — Oliver diz, assim
que começamos a seguir a treinadora pela pista. — Falta alguma coisa?
Vejo o cabelo curto ruivo e grisalho se mover de um lado para o outro
enquanto ela continua se afastando sem olhar para trás.
— Não é treino. Treinamos tudo o que dava para treinar no tempo que
tínhamos. — Agora, quero que continuem trabalhando na sincronia entre
vocês. — Ela lança um olhar para nós, um sorriso brincalhão nos lábios. —
Mas quanto a isso, não preciso me preocupar. Dá pra ver que estão
trabalhando isso de uma forma muito efetiva, bem longe do gelo.
Ela solta uma risada como se tivesse feito a piada do ano.
Olho para Oliver, que também tem um olhar confuso no rosto.
— Como ela sabe? — sussurro para o meu parceiro, tomando o
cuidado para só ele ouvir, mas recebo apenas um erguer de ombros.
Não houve nenhum vazamento na mídia, nenhuma foto reveladora,
nenhuma cena nossa em público que pudesse afirmar que realmente existe
algo entre nós além do trabalho.
Será que ela deduziu pela nossa dinâmica no gelo?
— O que preparei para vocês hoje, é algo diferente — ela continua,
enquanto tira os patins ao sair do rinque. — Já treinamos o corpo, treinamos
a sincronia, agora precisamos trabalhar a imagem. Mas só vamos fazer isso
depois que estivermos com a barriga cheia.
Desisto de tentar descobrir o que ela está falando e me limito a segui-
la enquanto caminha para um dos restaurantes próximos à pista de gelo.
Durante a refeição, minha mente fica uma bagunça. A proximidade da
competição faz o nervosismo no meu corpo ganhar espaço. Nossos
programas são bons o suficiente para valer uma medalha? Sei que são
coreografias simples, mas minha mãe sempre diz que o simples bem feito é
melhor que o mirabolante mal executado. Gostaria de perguntar a opinião
da Ciara mas tenho medo que ela, na sua sinceridade extrema, me dê uma
resposta que não quero ouvir.
Como se não bastasse a questão das olimpíadas, tem outra pessoa
fazendo caos na minha cabeça: Oliver Fisher. Meus olhos passam por ele,
mas meu parceiro está focado na sua lasanha e em alguma piada irlandesa
que a Mrs. Mulligan acabou de contar, mas eu não ouvi. Ele parece
despreocupado e presente no momento, o que faz eu questionar se ele tem
as mesmas dúvidas que eu. Sinto que a conversa a luz de velas foi um passo
importante no nosso relacionamento, mas, ainda sim, existem dúvidas nos
cercando. Como vai ser depois de Paris? Ele vai voltar pro hóquei? Ele quer
voltar pro hóquei? Vamos continuar morando juntos ou…
Eu não faço ideia de como é viver uma vida onde você não é o centro.
As palavras de Oliver voltam a minha mente e eu sinto meus ombros
relaxarem por um segundo, como se tivesse acabado de usar uma dose da
mais potente das drogas. Por mais louco que seja, acho que temos tudo que
precisamos pra fazer isso dar certo.
— Sua comida vai esfriar — diz Oliver me trazendo de volta para o
almoço. Sinto uma mão gentil apoiada no meu braço e percebo que Mrs.
Mulligan não deixou o gesto passar despercebido, mas apenas abre um
sorriso.
Assim que terminamos de comer, seguimos a treinadora de volta para
o rinque, mas antes que possamos ir para o vestiário nos prepararmos para
mais uma tarde de treino, ela segue para uma sala na entrada das
arquibancadas onde nunca estive. Vejo uma mulher parada lá dentro e um
notebook aberto em cima da mesa. Apesar de nunca ter visto ela antes,
percebo pelo olhar curioso que é alguém da mídia.
— Eu marquei uma entrevista.
Olho para a treinadora sem entender o que ela quer dizer. Clarice não
me falou nada sobre isso e sempre temos uma longa discussão antes de
qualquer entrevista para alinhar os tópicos que devo dizer a ponto de evitar
qualquer furo ou escândalo.
Pelo olhar surpreso de Oliver, percebo que aquilo também é novidade
para ele.
— Eu sei, eu sei, devia ter avisado antes, mas eu não queria nada
muito engessado. Quero que as pessoas vejam vocês como são. Do jeito que
eu vejo vocês no gelo todos os dias. Sem máscaras, sem respostas prontas,
sem discurso ensaiado. Pensei de vocês entrarem e terem uma conversa
com ela. O que acham? Já me adiantei e deixei claro que vocês não
responderão nada polêmico. E não vai ter fotos também. Só conversa.
Apesar de não me sentir confortável com a ideia, não vejo como isso
poderia ser algo problemático. Tenho certeza que Clarice vai me xingar
depois e me mostrar um milhão de motivos pelos quais eu não deveria ter
aceitado sem um planejamento cuidadoso antes, mas com minha agente eu
lido depois.
Sinto uma pontada de alívio ao perceber que confio na Mrs. Mulligan.
— O que você acha? — pergunto Oliver, mesmo sabendo qual vai ser
sua resposta.
Ele assente e dá de ombros, como quem diz que não tem nada a
esconder.
Faço um aceno para Mrs. Mulligan, concordando. Pensando bem,
essa vai ser a única entrevista oficial que daremos antes de deixar o país.
Vai ser bom ter uma forma de alcançar diretamente os nossos fãs antes de
chegarmos nas Olímpiadas.
Assim que entramos na sala, somos cumprimentados por uma mulher
loira, jovem e com um sorriso simpático no rosto.
— Oi, meu nome é Lilian Anderson, sou jornalista independente no
canal EstherNews e estou muito feliz por conhecer vocês. Vi uma parte do
treino hoje e posso dizer que estou muito animada e esperançosa com o
trabalho que vieram construindo.
Retribuo o cumprimento e me sento ao lado de Oliver na frente de
uma mesa onde ela está com o notebook aberto. Ciara senta em uma cadeira
ao nosso lado e puxa o celular, logo ficando imersa em um mundo só dela.
Ainda assim, ter a presença da treinadora ali ajuda a manter minha calma.
— Eu fiquei muito feliz quando a Mrs. Mulligan aceitou a proposta
que enviei de fazer a entrevista. Meu blog, apesar de ser independente, tem
um alcance expressivo, e as pessoas amam saber mais sobre vocês. Mas
podem ficar despreocupados, enviarei o texto pra suas agentes antes de
publicar. Minha ideia aqui não é expor nada que deixe vocês
desconfortáveis, apenas quero que os fãs conheçam um pouco mais do casal
do momento.
Ela fala tudo isso de uma vez, sem dar tempo para que possamos
comentar nada, por isso, apenas me limito a concordar.
— Ótimo! — ela retoma. — Então vamos?
CAPÍT ULO 34 - OLIVER FISHER

Nosso próximo treino será em Paris, no rinque oficial da competição.


Tecnicamente, eu já sabia disso, mas minha ficha caiu de verdade depois
que encerramos a entrevista e a Mrs. Mulligan nos desejou uma boa
viagem. Ainda temos mais três dias em Londres, mas nossa treinadora quer
que nossos músculos descansem. Se dependesse da Gracie — e eu não vou
julgar, porque ela tem me surpreendido nos últimos dias —, nós
continuaríamos passando dez horas por dia no gelo, mas a senhora Mulligan
não é tão maluca.
— E aí? — eu pergunto, vendo Gracie jogada no sofá. Ela terminou
de tirar a fita cor de rosa do apartamento ontem e ainda não me acostumei a
circular pelo espaço inteiro. Não que eu não fizesse isso antes, mas agora
tenho autorização. — O que vamos fazer hoje?
— Que tal tentar não morrer de ansiedade? — Gracie ri, mas sei que
está falando sério pela forma como seus ombros estão tensos. Passamos a
tarde inteira assistindo novelas turcas e, embora estejamos perto de finalizar
uma delas na Netflix, ela não parece mais relaxada. — Os elogios da Mrs.
Mulligan me deixaram pensativa. Acho que lido melhor com críticas.
— Que coisa saudável de se dizer.
Gracie dá de ombros.
— Eu não achava que a gente tinha chances de ganhar — admite. —
Só queria competir pra mostrar pra todo mundo que não preciso do Pierre
pra nada, mas agora… nós somos bons.
— Tá se sentindo ansiosa porque somos bons?
Gracie move a cabeça em negativa.
— É que… — ela suspira. — Acho que a derrota certa deixava os
meus nervos mais tranquilos. Ter chance de ganhar também significa que
temos chances de perder. E perder quando se tem esperança de ganhar…
— Tá hiperventilando — eu corto, e ela joga a cabeça pra trás no
sofá, soltando um suspiro irritado. — E criando trava línguas. — Gracie ri,
erguendo o dedo médio pra mim. — Sabe o que ajuda na ansiedade? Sair de
casa.
— E onde nós vamos?
Eu a encaro, passando os anéis dos meus dedos de uma mão para a
outra. Da última vez que fui em uma corrida, Gracie surtou. Acho que as
coisas entre nós estão diferentes agora, mas não quero correr o risco de
estragar tudo. É um assunto sensível, porque realmente gosto de correr.
— Você vai me matar se…
Antes que eu termine a frase, Gracie me interrompe:
— Quer correr?
Eu movo a cabeça em afirmativa, sem certeza do que esperar como
resposta. O que me consola é saber que ela não vai querer perder o seu réu
primário faltando menos de 72 horas para chegarmos em Paris. Pelos
próximos dias, estou imune a tentativas de assassinato.
Por incrível que pareça, a resposta dela vai na contramão de qualquer
hipótese que tenha passado pela minha cabeça.
— Posso correr com você?
A negativa está na ponta da minha língua, porque sou hipócrita.
— Não vale dizer que é perigoso — Gracie protesta. — Você fica em
cima de lâminas e me arremessa no gelo, uma corrida de moto não pode ser
mais mortal que isso.
Infelizmente, ela tem um ponto.
Eu assinto.
— Vamos ter que ser cuidadosos — digo. — Nos misturar na
multidão. Um escândalo poucas horas antes dos jogos é tudo que não
queremos.
Gracie me encara, incrédula.
— Nossa. Quem é você e o que fez com o Oliver Fisher que eu
conheço?
— A Trinity é linha dura — eu deixo uma risada escapar. — Melhor
não deixá-la irritada.
Gracie concorda com a cabeça.
— Talvez ela possa te ajudar a entrar em um novo time de hóquei
depois de Paris, se for isso que você quer…
O comentário cheio de reticências de Gracie não é um bom sinal. Sei
que existe uma pergunta nas entrelinhas da sua fala, mas não sei se estou
pronto pra respondê-la. Desde que fui expulso dos Owls, fico pensando qual
vai ser o próximo passo da minha carreira. Por mais que meu pai e meus
irmãos tenham me incentivado a procurar outro time, ainda acho que seria
estranho jogar contra eles, principalmente sabendo que o time não é só um
time. É o projeto de uma vida do Hank.
Ao mesmo tempo, gosto de patinar com a Gracie, mas não sei se
estou à altura de alguém que patina profissionalmente desde os doze anos
de idade. Com tempo disponível, ela conseguiria encontrar um parceiro
bem melhor do que eu. Essa parceria foi benéfica agora, mas não sei se
temos futuro a longo prazo.
— Não vamos falar sobre depois de Paris hoje — eu peço. — Não
vamos pensar em nada relacionado ao esporte nos próximos três dias, pode
ser?
— É um desafio mais difícil do que fazer um triplo axel[12] — Gracie
reclama, então passa os dedos pelos lábios, como se fosse um zíper —, mas
pode contar comigo.

∞∞∞
Depois do incidente com o Tyler e a batida policial no último final de
semana, prefiro participar das corridas sem participar das corridas. Eu levo
Gracie até uma estrada de terra abandonada entre Canterbury e Guildford, o
lugar perfeito para arrancar uma moto em alta velocidade sem correr o risco
de sermos vistos. Por pura paranóia — ou como a Gracie diz, precaução —
estamos usando máscaras. Ela diz que jornalistas são como larvas, surgem
do nada e infestam tudo. Sei que correr de moto é uma área muito distante
da zona de conforto de alguém como a Gracie, por isso estou fazendo as
coisas do jeito dela.
— Tá pronta? — eu pergunto, e minha voz sai abafada por conta da
máscara na frente do rosto.
Gracie segura minha cintura com força.
— Não mata a gente — ela murmura. — Não é desse jeito que
queremos entrar pra história.
Uma risada escapa dos meus lábios e eu acelero a moto, sentindo seus
dedos apertarem um pouco mais ao redor da minha cintura. Meus olhos
observam o ponteiro vermelho do velocímetro se mover, alcançando
números cada vez mais altos. Oitenta quilômetros, noventa, cem, cento e
dez, cento e vinte. O vento frio da estrada atinge nossos corpos como se
fosse uma navalha, mas a adrenalina no meu sangue mantém minha pele
quente. Meu pé pressiona o acelerador e, aos poucos, Gracie parece mais
tranquila, mesmo que a velocidade tenha aumentado.
Acho que correr é a forma mais próxima que temos de experimentar a
liberdade. O motor vibra como se tivesse vida própria e o mundo ao meu
redor se torna um borrão de cores e luzes, completamente desfocado. Sinto
que todos os problemas fora daqui borram junto com ele. De repente não
existe Paris, jogos e muito menos a pressão nos meus ombros para ser o
melhor parceiro que Gracie pode ter. Não existem decisões. Tudo que eu
preciso fazer é acelerar.
Duzentos. O som do motor aumenta, o rugido ecoando pelas nossas
cabeças e abafando qualquer outro ruído noturno. A paisagem corre ao
nosso redor, desaparecendo em segundos. O cheiro do perfume de Gracie se
mistura ao cheiro de terra e árvore e eu demoro para perceber que uma
chuva fina começou a nos acompanhar.
Eu me inclino nas curvas da estrada, sentindo a moto como se fosse
uma extensão do meu corpo. Gracie solta um grito quando acelero mais um
pouco, mas depois consigo ouvir uma risada escapar dos seus lábios, o que
me faz pensar que ela finalmente entendeu porque sou viciado nisso. A
sensação de estar no controle e, ao mesmo tempo, estar à mercê da
velocidade. Um erro e tudo termina.
A chuva engrossa, o que me faz diminuir a intensidade com a que
aperto o acelerador. Aos poucos, a moto volta a uma velocidade normal e eu
consigo ouvir nossas respirações descompassadas se normalizando.
Estamos no meio do nada. Tudo que consigo ver ao nosso redor é a
iluminação da estrada e algumas casas solitárias, muito distantes para que
qualquer pessoa dentro delas note nossa presença.
Eu paro a moto. As estrelas no céu brilham muito mais intensamente
por causa da falta de iluminação e eu gasto alguns segundos em silêncio,
apenas admirando parte delas.
— Sua vez — eu digo, descendo da moto.
Por trás da máscara de gatinho — um gatinho macabro — Gracie me
encara.
— Não sei pilotar uma moto.
— Eu te ensino — eu aponto para o assento da frente e, desconfiada,
Gracie senta nele, apoiando as mãos no guidão da moto.
Eu me sento atrás dela.
— É como andar de bicicleta, só que com mais velocidade.
— Ótimo — Gracie suspira. — Não sei andar de bicicleta.
Rio.
— Vai — murmuro, apoiando as mãos na sua cintura — Acelera.
Timidamente, Gracie segue minhas instruções. Ela não passa dos
trinta quilômetros por hora, mas, em alguns momentos, perde o controle da
força no acelerador e acaba nos impulsionando pra frente. Ela não é uma
boa motociclista, mas acho que não vai nos matar.
— Você consegue quarenta — sugiro e, timidamente, ela aumenta um
pouco a velocidade.
Minhas mãos descem pela sua cintura, contornando o tecido da sua
saia até chegar nas coxas. Sua pele se arrepia contra os meus dedos.
— Não vale distrair a motorista — ela reclama.
— Continua pilotando.
Gracie se esforça para focar sua atenção na estrada, mas consigo ver
pela forma como ela segura o guidão que sua mente está em outro lugar.
Felizmente, as chances de um carro passar por aqui nas próximas horas são
poucas.
Eu apoio uma das mãos no seu joelho e abro suavemente suas pernas,
meus dedos encontrando sua calcinha. Ela se perde por um momento e
deixa a moto morrer.
— Não para — eu enfatizo, de novo, e Gracie leva alguns minutos
para conseguir fazê-la voltar a andar.
Meus dedos se infiltram dentro do tecido e o gemido que escapa dos
seus lábios é suficiente para me deixar duro. Eu deslizo pelo seu clitóris até
chegar na sua boceta e senti-la escorrendo é uma coisa que mexe com todos
os meus sentidos. Coloco um dedo na sua entrada e apenas aproveito a
sensação de vê-la desse jeito, molhada e minha. Gracie deixa a moto morrer
de novo, o que me faz rir.
Eu aumento o ritmo, deslizando meu dedo para dentro enquanto ela
tenta ligar o motor. Meu polegar massageia seu clitóris em círculos lentos e
os seus gemidos se misturam com o barulho da moto quando, finalmente,
Gracie consegue colocá-la andando mais uma vez. Seus quadris se movem
contra a minha mão, sua respiração rápida e irregular. Meu pau pulsa dentro
da calça, implorando por mais espaço.
— Estou ficando boa nisso — ela murmura em meio a um suspiro
desajeitado, quando consegue recuperar a velocidade da moto.
— Nisso o quê? — Eu me movo mais rápido dentro dela e seu corpo
derrete contra o meu, suas mãos resistindo bravamente no guidão da moto.
— Gemer pra mim?
— Nisso também — Gracie zomba.
Coloco mais um dedo dentro dela enquanto meu polegar contorna seu
clitóris várias vezes seguidas. Sua cabeça tomba para trás, se apoiando no
meu ombro, e é nesse momento que ela desiste de manter o controle da
moto, deixando-a morrer aos poucos. Seus quadris se movem contra os
meus dedos num ritmo desesperado e ela geme tão deliciosamente alto que
eu sinto como se fosse parte de uma música.
Eu puxo seu cabelo pra trás, mantendo-a apoiada no meu ombro. Ela
ainda está com os fios cacheados, o que faz com que fiquem ainda mais
bagunçados quando atingidos pelo vento. É uma confusão linda. Sinto sua
boceta pulsar ao redor dos meus dedos, sua umidade escorrendo, cada vez
mais molhada. Gracie morde o lábio inferior quando chega ao ápice, o
gemido escapando da sua boca em um fio de voz. Suas pernas tremem ao
redor da moto e ela arranha meus braços, na ansiedade de conseguir tocar
em algo.
— Você me deixa com tesão demais para o meu próprio bem. —
Gracie ri, e eu sei que o seu tom de protesto não é uma reclamação.
Eu desço da moto mais uma vez. Ela se vira na minha direção e eu
subo a máscara do rosto apenas o suficiente para colocar meus dedos sujos
do seu gozo na boca. A língua de Gracie contorna seu lábio inferior
enquanto ela observa a cena, atentamente.
Seguro sua mão e levo até a minha calça.
Gracie dá um sorriso malicioso quando percebe meu pau duro.
— Acho que posso dizer o mesmo.
— Também não é desse jeito que queremos entrar pra história.
— Por fazer sexo em público? — debocho. — Não vamos entrar na
história por isso, muita gente já fez. Mas se quer minha opinião, é
prazeroso.
— Você é um cafajeste, Fisher.
— São experiências. — Eu rio do ciúme no seu tom de voz. — Mas
nenhuma delas teve importância perto de você.
Gracie sobe uma das mãos até a minha máscara.
— Um cara mascarado se declarando pra mim no meio do nada. E de
alguma forma eu sinto que estamos prestes a fazer sexo. Como foi que eu
acabei virando protagonista de Devil’s Night? — ela ri. — É sexy e bizarro
ao mesmo tempo.
— Espero que mais sexy do que bizarro.
Gracie levanta minha máscara um pouco mais, passando os dedos
pelo meu queixo. Ela levanta a sua apenas o suficiente para que sua boca
fique visível, murmurando contra a minha:
— Com certeza mais sexy.
Ela me encara por trás da máscara e ficamos alguns segundos assim,
sua mão dedilhando meu rosto calmamente, alternando entre tocar meu
queixo e tocar minha boca. Nós não duramos muito. Meus lábios avançam
nos seus e o nosso beijo desesperado faz parecer que estamos nos tocando
pela primeira vez. Talvez seja o ambiente, a adrenalina que ainda corre nas
nossas veias ou o fato de que sempre vou ser faminto por ela, não importa
quantas vezes tenhamos fodido.
Suas pernas entrelaçam meu quadril, me pressionando com firmeza.
Minhas mãos deslizam pela sua cintura, explorando cada curva enquanto a
puxo para mais perto. Ela geme baixinho contra meus lábios e o som ressoa
dentro de mim, aumentando minha urgência. Movo os dedos até a barra da
sua camisa, infiltrando uma das mãos por debaixo do tecido.
Os dedos de Gracie puxam meu cabelo e arranham suavemente minha
nuca quando eu aperto seus seios, brincando com os mamilos por cima do
sutiã. Meus lábios descem pelo seu queixo e eu crio uma trilha de beijos
contra sua pele, do pescoço ao decote da sua blusa. Ela espera que eu refaça
o caminho de volta até sua boca, mas eu continuo a trilha, depositando um
beijo na sua barriga por cima da blusa e, finalmente, na parte interna das
suas coxas. Dessa vez, eu tiro sua calcinha e Gracie me encara, como se
estivesse pensando na ideia de montar nessa moto de novo, de saia.
— Você não vai precisar dela agora — murmuro, me ajoelhando na
frente da moto.
Gracie morde o lábio inferior e consigo ver seus olhos fixos em mim
por trás da máscara. Consigo ver sua boceta molhada pelas suas pernas
entreabertas e, porra, ela é tão gostosa que me deixa doente.
Minha língua encontra o seu clitóris, deslizando suavemente sobre
ele. As pernas de Gracie se apertam ao redor da minha cabeça, seus dedos
se emaranhando no meu cabelo enquanto ela me puxa para mais perto,
exigente.
— Esse piercing é muito útil — Gracie murmura, deixando um
suspiro escapar.
— Claro que é útil — digo, me afastando da sua boceta por um
segundo. — Por que eu teria um piercing na língua se não fosse pra te
chupar melhor?
Gracie ri, sua risada se misturando com um suspiro. Minha boca volta
a encontrar sua intimidade e ela arqueia as costas, pressionando-se contra
mim. Seus gemidos se tornam gritos abafados à medida que eu aumento o
ritmo e seu corpo treme contra a minha língua, fazendo a cabeça do meu
pau pulsar ainda mais. Minhas mãos seguram suas coxas com firmeza,
mantendo-a no lugar.
Grazie goza de novo, gemendo meu nome baixo como se fosse uma
oração feita em segredo. Toda vez que ela geme pra mim… Porra, é
simplesmente mágico.
— Eu preciso te comer agora — digo, assim que me levanto, meus
lábios percorrendo seu pescoço. — É tão urgente quanto respirar.
— Vai ser o terceiro da noite — Gracie sibila, sua respiração ainda
descompassada. Suas mãos descem até o fecho da minha calça e ela sente
meu pau, fechando minimamente os olhos. — Você vai acabar comigo.
— Depois de tanto tempo com um namorado meia bomba, acho que
vai demorar um pouco até você se acostumar a ser fodida direito —
debocho —, mas você aguenta o tranco.
Gracie tem um sorriso malicioso no rosto e, mesmo que ela não
admita, sei que a parte diabólica do seu cérebro se diverte toda vez que o
seu ex vira motivo de piada entre nós. Finalmente, ela abre o zíper da minha
calça e esfrega a cabeça do meu pau por cima da cueca, arrancando um
gemido da minha garganta.
— Sem me torturar — eu peço, segurando seu pulso, e tenho a
impressão que ela poderia ficar me provocando a noite inteira se não
estivéssemos em público.
Gracie puxa minha calça pra baixo e consigo ver o brilho faminto nos
seus olhos quando observa meu pau. Meus dedos descem até os seus
joelhos e eu afasto as suas pernas, pronto para entrar dentro dela.
Me alinho com a sua entrada e coloco a cabeça do pau dentro dela,
conquistando um gemido que ecoa pelas árvores entre nós. Com um
movimento firme, penetro sua boceta de uma vez, sentindo seu interior
quente e molhado me apertar. Caralho.
Com as pernas ao meu redor, Gracie me puxa para mais perto, suas
mãos subindo pelas minhas costas por baixo da jaqueta de couro. Eu entro e
saio dentro dela, num ritmo cada vez mais rápido, os gemidos de Gracie
aumentando e se juntando aos meus.
Com uma das mãos, eu finalmente tiro a sua máscara e minha boca
encontra a sua mais uma vez, num beijo ainda mais lascivo que antes.
Nossas línguas se entrelaçam enquanto continuamos nos movendo um
contra o outro, nossas respirações ofegantes e nossos pulmões implorando
por oxigênio. Gracie rebola contra mim, se esfregando no meu pau num
ritmo alucinado que me faz gemer mais forte. Está frio pra caralho essa
noite, mas suor escorre pela minha nuca, nossos corpos derretendo em
brasa.
Gracie se afasta apenas o suficiente para olhar nos meus olhos, um
brilho de desejo incontrolável cintilando em suas íris. Seus quadris não
param de se mover, esfregando-se contra mim com uma precisão que faz
meu pau pulsar ainda mais dentro dela. Minha mão sobe até o seu pescoço e
ela geme ao sentir o aperto ao redor da sua garganta.
— Bate.
Sinto que poderia ter um orgasmo só ouvindo a forma manhosa como
ela pede.
— Você gosta disso?
— Estou tentando descobrir se gosto disso.
Eu diminuo o ritmo dos movimentos dentro dela e minha mão sobe
até o seu rosto, acariciando sua bochecha antes de acertar um tapa. Não é
forte, apenas o suficiente para fazer sua pele arder. Gracie morde o lábio,
então um sorriso mínimo surge no canto da sua boca, e estou certo de que
essa é a expressão mais safada que eu já vi nesse rosto.
— Definitivamente gosto disso.
Eu acerto mais um tapa e Gracie geme, rebolando mais lentamente
contra mim, concentrada em aproveitar cada toque do meu pau contra sua
boceta. Sua pele se aquece diante do impacto e seus olhos se fecham por um
segundo, embriagada pela mistura de dor e prazer.
Meus dedos se entrelaçam nos cachos do seu cabelo mais uma vez,
puxando sua cabeça para trás, expondo seu pescoço. Minha língua desce
pela sua pele escura, alternando entre mordidas e lambidas enquanto minha
mão toca os seus seios, apertando-os por cima da blusa. A boceta de Gracie
pulsa contra mim, apertando meu pau, quase me fazendo perder o controle.
Ela apoia as mãos no meu pescoço e me puxa na sua direção, nossos lábios
se encontrando de novo. Ouço o som da minha máscara caindo no chão,
mas, nessa altura, ninguém mais se importa. A língua de Gracie se esfrega
na minha, os movimentos do seu quadril se tornando mais rápidos, assim
como os meus. Cada vez que entro dentro dela, me sinto mais perto de
explodir.
As unhas de Gracie arranham minha nuca e ela murmura alguma
coisa contra os meus lábios, mas suas palavras são só suspiros desconexos.
Sua boceta me aperta ao mesmo tempo que ela morde o meu lábio inferior,
suas coxas tremendo ao meu redor enquanto um gemido mais alto que todos
os outros escapa da garganta. Vê-la gozar é um espetáculo ao qual eu não
me acostumei ainda.
— Caralho, Gracie — eu murmuro, e ela me puxa para mais um
beijo, suas pernas ainda trêmulas ao meu redor.
Eu entro dentro dela outra vez, mais rápido e mais urgente que todas
as estocadas anteriores. O orgasmo toma conta do meu corpo e eu sinto o
jato de porra escorrer pela sua boceta enquanto nossas línguas se esfregam.
Depois de gozar, é como se eu tivesse fumado um caminhão de maconha.
Meu corpo relaxa instantaneamente e a impressão que tenho é que não
existe absolutamente nada dentro do meu cérebro. Pela expressão satisfeita
no rosto de Gracie, tenho certeza que ela se sente da mesma forma.
— Apesar do que eu disse — ela sussurra, inebriada, afastando seus
lábios dos meus apenas o suficiente para conseguir falar. Estamos no meio
do nada, numa noite fria, as estrelas brilham no céu acima de nós e é como
estar em uma bolha onde nada pode nos alcançar. — Foi uma boa forma de
entrar pra história.
CAPÍT ULO 35 - GRACIE SALMON

Eu odeio despedidas.
Quando vou a festas, sempre tento sair despercebida, sem ter que
despedir de um milhão de pessoas no caminho. Acho desnecessário. Se
despedir parece algo definitivo, como se fosse a última vez que estou
encontrando com aquela pessoa. Prefiro deixar encontros em aberto. É por
isso que, na medida que o dia da viagem se aproxima, mais minha
ansiedade ataca.
Nosso voo está marcado para depois de amanhã, então voltamos para
Guildford para nos despedirmos antes de seguirmos para os jogos
olímpicos. Na verdade, vim mais por insistência do Oliver, já que a família
dele não vai pra França. Meus pais, por outro lado, compraram as passagens
antes mesmo de eu decidir se iria competir — o que eu não sei se amo ou
odeio, honestamente.
Apesar de tudo, até que o almoço na casa dos Fisher foi divertido.
Erik estava animado como se fosse ele a disputar uma medalha olímpica.
Mantinha o assunto com perguntas e cenários possíveis sem deixar de
incluir uma ou outra recomendação, como de costume. Tyler passou a
metade do jantar cochichando com Oliver e trocando risos à meia voz. Em
muitos momentos, percebi que olhava na minha direção, o que me faz
pensar que Oliver contou para o irmão que estamos juntos. Joshua apenas
observa a conversa dos pais com Nora e Liam, os olhos indo de um lado
para o outro, uma expressão de tédio no rosto como se preferisse estar no
quarto jogando alguma coisa ou perdendo horas deslizando pelo TikTok
como um típico pré adolescente.
Mas isso não era nada perto da expressão de sofrimento no rosto de
Archie. Ele parecia torturado enquanto levava os pedaços de apple pie até a
boca e fazia esforço para não olhar na minha direção. Eu sei que ele está
chateado comigo. Desde o término com Pierre, eu me afastei muito,
deixando nossa amizade em segundo — na verdade, mais para quinto —
plano. Tantas coisas aconteceram que não tive tempo para dar a atenção que
ele merecia.
— Acho que você precisa conversar com ele.
A voz de Oliver no meu ouvido me faz dar um pequeno pulo na
minha cadeira, mas por sorte, a mesa está envolvida em conversa e não
percebe o que aconteceu. Eu estava tão mergulhada em pensamentos, que
não notei que estava encarando Archie.
Sinto a mão de Oliver procurar a minha debaixo da mesa. Nossos
dedos se entrelaçam e sinto um calor confortável se espalhar pelo meu
corpo. Eu realmente deveria conversar com Archie. Antes de toda essa
confusão que minha vida se tornou, ele era a pessoa mais próxima a um
melhor amigo que eu tinha. Depois do Benjamin, é claro.
— Vai lá.
— Agora? — respondo de volta, à meia voz.
— Sim, ninguém está prestando atenção. E olha pra cara dele, é
melhor você puxar o band-aid de uma vez e acabar com isso.
— O que você quer dizer? — Minhas sobrancelhas se juntam no meio
da testa.
— Sua água acabou, Gracie — Oliver diz, quase gritando.
A desculpa mais esfarrapada do mundo.
Inspiro uma quantidade enorme de ar e me levanto.
— Vou buscar mais uma garrafa.
— Não seja boba, menina — Hank responde. — Eu peço pra algum
dos empregados trazer.
Ele levanta uma das mãos, mas balanço a cabeça de um lado para o
outro, um dos cachos do meu cabelo caindo no meu rosto. Gostaria de dizer
que não tem um motivo específico para manter meus cabelos cacheados
hoje, mas não vou negar que os elogios de Oliver tiveram algum impacto.
— Não precisa, Hank. Preciso dar uma volta também. Acho que eu
comi muito. — Caminho ao redor da mesa e paro atrás da cadeira de
Archie. — Você me faz companhia?
Archie é pego de surpresa, mas logo se recompõe e se levanta, me
acompanhando até a cozinha. Em vez de seguir para a geladeira, continuo
caminhando até chegarmos no imenso jardim. Caminhamos em silêncio,
Archie não questiona onde vamos, apenas me segue com as mãos enfiadas
no bolso da calça. Chegamos em um banco ao lado de uma pequena fonte
circular rodeada de violetas e margaridas. Me sento e meu gesto é copiado
pelo meu amigo. Será que ainda posso chamá-lo?
Ficamos alguns minutos apenas ouvindo o som da água da fonte e um
ou outro canto de pássaro perdido vindo da mata no fundo da propriedade.
É um dia ensolarado, o que é muito raro de se ver por aqui.
— Acho que eu te devo desculpas — digo, decidindo que já tinha
esperado demais.
— Pelo o quê? — Seu tom de voz é curioso e ele parece
genuinamente intrigado pelo motivo que o chamei até aqui.
— Por ter te deixado de lado esse último mês. A gente trocava nossas
cartas toda semana, mas já tem tempo desde que você mandou a sua e eu
nunca mais respondi.
Essa é uma tradição nossa que desenvolvemos na adolescência e
mantivemos durante muitos anos. Através de um aplicativo, enviamos
cartas virtuais semanalmente contando como foi a semana, os problemas, as
dificuldades e as raras felicidades da vida adulta. De certa forma, éramos
meio que os confidentes um do outro.
Ele fica em silêncio. Seu rosto desvia para a fonte e ele parece muito
interessado em ver a água correndo no meio das pedras coloridas. Ótimo,
ele não quer olhar pra mim.
— Eu poderia dizer que aconteceu muita coisa, que o término me
desestabilizou e depois com a chegada do seu irmão minha vida virou de
cabeça pra baixo, mas acho que essas são só desculpas. Eu não fui muito
legal com você, é isso.
Ele escuta tudo em silêncio, o que começa a me incomodar.
— Tudo bem, Gracie. Não precisa se desculpar.
Ele abre um sorriso triste, mostrando que o que diz são palavras
vazias. É como se estivesse desapontado com alguma coisa. Não, como se
estivesse desapontado comigo. Eu preciso corrigir isso.
— Eu tenho uma novidade. Ainda não contei para ninguém, então
você vai ser o primeiro a saber.
Vejo o brilho de curiosidade nos olhos de Archie. Seus olhos cor de
mel fazem uma combinação harmônica com seu cabelo loiro escuro. Não é
à toa que os irmãos Fisher são chamados de as maravilhas de Guildford.
Ele é lindo. Muito diferente do Oliver, porque tem uma aura de bom garoto
ao seu redor, o tipo de cara que as mães adorariam conhecer. Apesar disso,
sei que ele não é um bom garoto de verdade, não totalmente.
— Eu e Oliver estamos juntos. Juntos mesmo… Como um casal, mais
do que só parceiros de patinação.
Eu nunca vi uma planta murchar na minha frente, mas imagino que
deve ser parecido com a reação que Archie teve ao ouvir as minhas
palavras. Seus ombros se movem na direção do peito enquanto ele solta o
ar, esvaziando como um balão.
Ok, essa não era a reação que eu esperava.
— Vocês estão namorando?
Sua voz é baixa, quase um sussurro, como se fosse algo abominável
de se dizer em voz alta.
— Não. Quero dizer, ninguém falou em namoro. E não sei como vai
ser depois das olimpíadas, a gente meio que tá evitando falar nisso. — Sem
perceber, começo a despejar os meus medos em cima de Archie. É bom
poder falar isso para alguém. — Mas estamos… Curtindo o momento. Acho
que é isso.
Ele se levanta, o rosto se torna uma máscara fria e sem expressão.
— Beleza — Archie diz, sem emoção — Eu acho melhor a gente
voltar…
Ele faz menção de se virar para retornar para casa, mas eu seguro o
seu pulso. Não sei o que está acontecendo, ele nunca ficou assim antes. De
todos os Fisher, Archie é o menos extrovertido — impossível pensar em um
Fisher introvertido —, mas ele nunca me escondeu nada, por que agora
estava agindo desse jeito?
Encaro os seus olhos e, finalmente, percebo o que está acontecendo.
Não, não, não, não.
— Acho que eu deveria pedir desculpas — diz — acabei confundindo
as coisas.
Sinto vontade de enfiar minha cabeça na fonte e esquecer do resto do
mundo. Então era por isso que ele estava estranho desde que anunciamos
que Oliver seria minha dupla?
— Archie, eu…
— Não precisa falar nada, Gracie. Eu que vacilei. Me deixei levar.
Vou só precisar de um tempo pra processar tudo isso... tudo bem?
Concordo, sem saber o que dizer.
Ele começa a caminhar de volta para casa, mas eu acordo do meu
atordoamento e corro na direção dele.
— Archie, espera! — Paro na frente dele, para que ele não possa me
evitar. — Vou respeitar o seu tempo, mas quero dizer que você é uma
pessoa muito importante pra mim, peço desculpas se dei a entender alguma
outra coisa. É um dos meus únicos amigos, na verdade, então, quando
estiver melhor… eu não queria te perder.
Archie assente. Me pegando de surpresa, ele se aproxima e me dá um
abraço.
— Obrigado, Gracie — ele sussurra, um meio sorriso no rosto. —
Acho que você precisa voltar pra mesa, ou vão começar a estranhar.
Ainda com o sorriso no rosto, ele retorna para casa, me deixando
sozinha no meio do jardim. Mil pensamentos passam pela minha cabeça.
Era por isso que Oliver disse que eu precisava conversar com Archie. Ele
sabia. Fico aliviada e, ao mesmo tempo, frustrada por ele ter me deixado
resolver a situação. É realmente algo que eu precisava fazer, mas meu lado
covarde gostaria de não ter sido a portadora da notícia que certamente
partiu o coração do right winger da família.
É por isso que odeio despedidas.
CAPÍT ULO 36 - OLIVER FISHER

— É sério, o que você tá tramando? — Gracie pergunta, não pela


primeira vez nos últimos dez minutos. Eu ajeito a máscara de dormir na
frente dos seus olhos, para ter certeza que ela não está enxergando nada por
baixo do tecido. — Oliver Fisher! Isso é um sequestro?
— Não. — Eu rio enquanto Ben me observa guiando sua dona para
fora do apartamento. Se ele fosse uma pessoa, estaria perto de chamar a
polícia. — Acho que a federação britânica não ficaria feliz com um
sequestro nessa altura do campeonato.
— Esse é o seu único motivo pra não me sequestrar?
Eu movo a cabeça em afirmativa, então me lembro que ela não pode
ver.
— Sim — respondo. — Confia em mim por mais cinco minutos.
Gracie cruza os braços, num misto de irritação e ansiedade. Eu
empurro seu corpo suavemente até o elevador e nós subimos até a área
externa do apartamento sob o som dos seus resmungos. Acho que nunca
viemos aqui juntos antes. Não parece ser o lugar favorito da Gracie, mas é
bonito. Tem uma jacuzzi, uma mesa que parece um vinil gigante, um sofá
cheio de pelos — o que denuncia que Ben sabe subir as escadas — e uma
vista privilegiada da London Eye, o que é suficiente para a maioria das
pessoas.
— Vamos lá — murmuro, brincando com a faixa que prende seu
roupão ao redor do corpo. Dou uma última olhada na mesa que preparei, só
pra ter certeza que não tem nada de errado com ela. Demoro quase um
minuto na minha análise minuciosa e Gracie bate o pé, irritada. Na verdade,
acho que prestes a me jogar do último andar do prédio seria uma colocação
mais precisa.
— Me deixa verrrrrrrr — ela reclama, balançando a cabeça, como se
isso fosse suficiente para fazer a máscara de dormir sair do lugar.
Eu fico atrás dela e empurro o tecido para baixo, antes que ela mesma
o faça. Gracie demora alguns segundos esfregando os olhos, ajeitando os
cílios amassados pela máscara com a ponta dos dedos. Ela encara cada
detalhe da mesa com uma curiosidade clínica. Tem um prato cheio de
donuts amarelos com carinhas felizes, uma garrafa de vinho — e eu não
faço a menor ideia se donuts e vinhos combinam, porque a minha forma de
harmonizar pratos é beber qualquer coisa que tenha álcool — e um cartão
que, admito, foi feito às pressas porque esqueci de comprar um. Está
escrito: Feliz dia dos namorados.
Gracie me encara, e a curiosidade no seu olhar só parece ter
aumentado.
— Hoje não é dia dos namorados.
— Eu sei — concordo —, mas você disse que nunca tinha ganhado
uma surpresa de dia dos namorados antes. E eu poderia ter esperado até o
ano que vem, mas estamos em julho e eu não queria ter que esperar quase
sete meses, então… Feliz dia dos namorados fora do dia dos namorados.
Gracie se aproxima da mesa de doces. Seus olhos estão ligeiramente
arregalados e acho que, em todo tempo que gastei enquanto a enrolava para
não subir aqui em cima antes da hora, isso não tinha passado pela sua
cabeça.
— Mrs. Happy — ela diz, pegando um donut com cobertura amarela.
Pela sua expressão, deduzo que está se lembrando de quando conversamos
sobre isso.
— É sem açúcar — digo. — Pode ser que esteja horrível porque
nunca tinha feito donuts antes. Aparentemente, o segredo é fritar em óleo
morno e rechear depo…
— Oliver — ela me corta.
— O quê?
— Tem farinha no seu cabelo — Gracie ri.
Eu reviro os olhos pra ela, passando os dedos pela cabeça. Consigo
ver os resquícios da farinha voando ao nosso redor, desaparecendo na noite.
— Ficou muito bom — diz, depois de dar uma mordida. — Se nada
der certo em Paris, já pode abrir uma filial do Dunkin Donuts, especializada
em diabéticos.
Eu rio, mas é uma risada nervosa.
— Espero não ter que fazer isso.
Sei que Gracie também está com os nervos à flor da pele, mas ela não
demonstra. Termina de comer seu donut e me entrega a garrafa de vinho
junto com o saca rolhas, esperando que eu abra. É um daqueles vinhos
espumantes e ela ri quando a rolha escapa por uma das janelas. Tem uma
chance de que sejamos multados por isso.
— Dia dos namorados fora do dia dos namorados — Gracie
murmura, enquanto eu sirvo sua taça. — Me pergunto o que você quer dizer
com isso.
— Não quero dizer nada — respondo, deixando sua taça de lado para
servir a minha. — Sem conversas sérias antes de Paris, não foi isso que
combinamos?
— Combinamos de não falar sobre Paris — Gracie assente. — Mas
eu quebrei essa regra dois minutos atrás. E você quebrou agora. Estamos
ficando bons nisso — ela bebe um gole de vinho e pega mais um donut —
quebrar regras.
Movo a cabeça em negativa.
— Eu já era bom nisso muito antes de você, desgracie.
— Desgracie — ela repete, movendo a cabeça em negativa. —
Algumas coisas nunca mudam.
Gracie fica um instante em silêncio, bebendo o seu vinho em doses
quase homeopáticas. Ela me encara, cerra os olhos e dá um sorriso,
pensando em coisas que eu nunca vou ter acesso, mas mataria para saber do
que se trata.
— Você-devia-me-pedir — diz, de repente, e a frase sai tão rápido que
parece um pensamento intrusivo.
— Te pedir?
Ela parece ter se arrependido do que acabou de dizer, como se fosse
um pensamento em voz alta.
— Sim. Se você quiser — Gracie bebe um gole muito longo de vinho
e é adorável perceber que ela está nervosa. — Não estou tentando te
pressionar, é só que… Bom, pareceu que você queria e eu também quero,
então…
— Tá hiperventilando de novo — eu corto.
Ela deixa mais uma risada nervosa escapar.
— Me afogar na jacuzzi é uma opção? — pergunta, olhando a
banheira de longe. — Acho que acabei de passar vergonha. Você não estava
pensando nisso, ok.
— Eu estava — digo, no que ela se acalma automaticamente. — Só
acho que isso tudo é muito simples pra um pedido de namoro.
— Cala a boca, você fez donuts pra mim.
— A gente precisa de uma coisa mais dramática. Acho que posso te
trancar no elevador de novo e só te deixar sair quando os carros do nosso
casamento estiverem na porta — zombo. — Casamento surpresa.
Gracie ri.
— É melhor a gente continuar só nos donuts — ela se aproxima de
mim, ficando na ponta dos pés para colocar um pedaço do doce na minha
boca.
Minha mão que não está ocupada com a taça desce até a sua cintura e
nós ficamos assim, frente a frente, movendo os pés num ritmo que não faz
sentido. Estamos dançando sem música.
— Não é dia dos namorados — eu sussurro, como se essa fosse a data
oficial de fazer pedidos desse tipo —, mas você quer namorar comigo?
Gracie abre um sorriso. Tem um brilho diferente no fundo dos seus
olhos marrons e eu quase não acredito que ela está olhando pra mim desse
jeito. Acho que nunca imaginei um mundo onde nós dois pudéssemos
funcionar juntos e agora que está acontecendo é como viver em um
universo paralelo. Numa versão muito mais doce da realidade.
— Sim — ela responde, me abraçando com cuidado para não
derrubar o vinho dentro das nossas taças. Gracie olha ao redor, procurando
por alguma coisa que não consigo definir. — Agora você precisa de um
anel.
Movo a cabeça em afirmativa. Eu demoro um momento para lembrar
que Vincent deixou uma coisa no andar de baixo da última vez que veio
aqui.
— Espera — digo, apontando para as escadas. — Já volto.
Gracie me encara com uma expressão de interrogação, mas assente
com a cabeça. Não tenho paciência para esperar pelo elevador, então desço
os degraus até o apartamento principal, encontrando Ben em cima do sofá
da sala, dormindo tranquilamente. Vasculho a sala até perceber que guardei
no meu quarto. Corro até lá e pego a máquina de tatuagem de Vincent.
Subo de volta até a área privativa. Gracie está comendo mais um
donut e, realmente, ela não estava brincando quando disse que eram seus
favoritos.
— O que você foi buscar? Um anel de noivado? — ela zomba,
encarando minhas mãos.
Eu ergo a máquina de Vincent na direção dela. Gracie arqueia uma
sobrancelha, curiosa.
— Tatua o meu dedo.
Ela ri, incrédula.
— O quê?
— Tatua um anel no meu dedo — eu repito, calmamente. — Depois
eu compro um anel pra você, mas, por enquanto, vai servir.
— Você é completamente maluco — Gracie diz, rindo. — Alguém já
te disse isso?
— Ah, você não faz ideia.

∞∞∞
O anel que Gracie desenha na minha mão direita não é perfeito. Na
verdade, eu nem sei se dá pra dizer que é um anel. É uma pequena linha
fina que ela se esforçou muito para não ficar torta — o que nenhum de nós
esperava que desse certo —, acompanhada de um pequeno peixe no centro.
Se parece com um daqueles peixes em formato de número oito que as
crianças desenham no fundamental, mas Gracie foi muito firme ao explicar
a teoria de que o símbolo do nosso relacionamento precisava ser um peixe,
por causa dos nossos sobrenomes.
— Você já partiu o coração de alguém sem querer? — ela pergunta,
de repente.
Estamos sentados no sofá, sua cabeça apoiada no meu ombro,
observando uma noite sem estrelas. Uma garrafa inteira de vinho já foi e
Gracie acaba de configurar a jacuzzi para esquentar a água, o que significa
que em breve estaremos dentro dela. Ela ergue a minha mão e observa o
desenho que marcou na minha pele, agora embalado por papel adesivo.
— Acho que todo mundo faz isso alguma vez na vida — respondo,
bebendo o meu último gole de vinho. — É difícil de saber, principalmente
se não foi intencional.
— Minha conversa com o Archie não foi muito boa.
— Em que sentido?
— Ele parecia decepcionado comigo — Gracie suspira. — Eu não
sabia que ele tinha sentimentos por mim.
— Não foi culpa sua.
Ela não parece convencida, então eu continuo:
— É sério, o Archie se apaixona por todo mundo — eu brinco, mas é
verdade. — Você não lembra, no aniversário de doze anos, quando ele
chorou porque cantaram com quem será e ele percebeu que não ia poder
casar com a Taylor Swift?
Gracie ri.
— Sim, mas isso não conta…
— E quando ele surtou duas temporadas atrás e disse que sairia dos
Owls pra se mudar pra Austrália por causa de uma surfista que ele tinha
conhecido há três dias? Ou quando ele…
— Tudo bem, entendi seu ponto.
— Ele vive seus amores intensamente. — E a minha crítica é irônica,
considerando que acabei de tatuar um anel de namoro. — E sofre por cada
um deles como se fossem relacionamentos de anos. Além disso, todos os
Fisher sabiam que era questão de tempo até você se apaixonar por mim.
Gracie faz uma careta, ultrajada.
— Tudo bem, senhor narcisista.
— Não, é sério dessa vez, eles meio que sabiam — eu rio. — Por que
acha que o Tyler nunca deu um cima de você?
— Você criou alguma regra bizarra pra eles não se aproximarem de
mim?
— Agora que você falou, eu devia ter feito isso — zombo —, mas
não. Eles só perceberam algumas coisas muito antes de você. Acho que eu
sempre fui óbvio.
— Só na sua cabeça você estava sendo óbvio — ela dá um tapa no
meu ombro, indignada.
Gracie se levanta do sofá, aproximando-se da jacuzzi com a garrafa
de vinho praticamente vazia nas mãos. Ela coloca um dedo dentro da água e
inspira o perfume dos sais de banho que ela mesmo jogou lá dentro, com
um sorriso satisfeito.
— Não me estressa mais — diz, sentando-se na beirada da banheira
— ou vou te afogar aqui mesmo.
— Com quantas ameaças de morte se faz um relacionamento sério?
— Você tem sorte — Gracie brinca, seus pés afundando na água
enquanto ela tira o nó do seu roupão. — As olimpíadas são o seu seguro de
vida.
— Vou me lembrar de nunca mais ficar sozinho com você quando as
olímpiadas acabarem.
— Escolha sensata.
Gracie termina de tirar o seu roupão, jogando o tecido para fora da
jacuzzi. O biquíni que ela está usando por baixo é tão pequeno que parece
uma calcinha e eu sinto que todos os pensamentos do meu cérebro foram
varridos pra longe junto com aquele roupão. Eu nem consigo me importar
com a sua ameaça de morte implícita.
— Você não vai entrar? — ela pergunta, me despertando do transe.
Eu me levanto do sofá e Gracie me passa a garrafa quando chego
perto da jacuzzi. Bebo o último gole de vinho enquanto os dedos de Gracie
percorrem a faixa do meu roupão, se demorando mais do que o necessário
antes de se livrar do tecido. Seus dedos percorrem as tatuagens do meu
peito, criando um rastro com a água quente que escorre da sua pele.
Meus olhos descem pelo seu corpo, agora descaradamente. Nunca
vou me cansar de olhar pra ela. É como se eu descobrisse um detalhe novo
a cada vez: agora, por exemplo, acabei de notar que ela tem uma marca de
nascença na barriga, perto do umbigo. É uma sensação boa, conhecer uma
pessoa há tanto tempo e ainda sim descobrir coisas novas sobre ela.
— Você tá vestindo roupa demais.
Meus dedos alcançam o laço do seu biquíni. O nó se desfaz e eu jogo
a peça em algum canto do espaço, observando seus seios com mais atenção.
São redondos, empinados, cabem perfeitamente na minha mão e esses bicos
duros… o meu pau pulsa dentro da bermuda só de olhar pra eles.
— Você também — Gracie protesta, e suas mãos descem até o cós da
minha bermuda, livrando-se dela.
Ela se ajoelha dentro da banheira e seus dedos deslizam pelas minhas
coxas enquanto tira minha cueca. Seus olhos percorrem meu pau e, por
mais que Gracie já tenha o visto antes, o seu olhar admirado me deixa com
mais tesão.
Com um sorriso malicioso, Gracie segura meu pau com uma mão,
envolvendo-o, acariciando-o de forma lenta. A sensação da sua pele contra
a minha é um tormento delicioso — porque é bom, mas com certeza não
suficiente — e meu corpo responde imediatamente ao seu toque. Gracie se
inclina para frente e sua respiração envolve a cabeça do meu pau, um
arrepio descendo pela minha espinha.
Ela passa a língua pelos lábios grossos antes de envolver minha
cabeça com a boca e um gemido escapa da minha garganta. Gracie move a
cabeça para cima e para baixo, sua língua explorando cada centímetro do
meu pau enquanto seus olhos permanecem fixos nos meus, acompanhando
minhas reações. É uma visão maravilhosa: ela me chupando, a água
cintilando em sua pele, a ponta úmida dos seus cabelos grudando nos
ombros… ela parece uma deusa. A minha deusa.
Minha mão se infiltra nos seus fios de cabelo e eu guio seus
movimentos, sentindo uma necessidade ardente crescer dentro de mim.
Gracie geme em torno do meu pau, uma das suas mãos descendo até as
minhas bolas, apertando suavemente enquanto continua trabalhando com a
língua. Ela aumenta o ritmo e sua boca se move com mais intensidade, me
chupando com urgência. Seus olhos não deixam os meus, um olhar faminto
que arrepia cada centímetro do meu corpo. Minha mão aperta seu cabelo
com mais força e ela entende meu recado, me engolindo até a base.
Consigo ver lágrimas de reflexo se formarem no canto dos seus olhos,
mas Gracie não se afasta. Ela continua indo e voltando, engolindo o meu
pau inteiro com um pouco de dificuldade, mas sem desistir da missão. Eu
sinto o controle do meu corpo se perder mais um pouco cada vez que ela me
engole. Sua outra mão acaricia minhas coxas, as unhas arranhando minha
pele, seus movimentos se tornando mais frenéticos.
— Caralho, Gracie. — A minha voz é um grunhido áspero e não faço
ideia se é compreensível.
Os lábios dela me percorrem com mais vontade. Seus movimentos se
tornam borrões na minha mente e sinto que cada toque da sua língua me
leva mais perto do limite. Gracie se afasta por um segundo, me
masturbando com uma das mãos.
— Goza na minha boca — ela pede, o que é suficiente pra me fazer
perder o rumo.
Sua boca volta a envolver meu pau, me engolindo com um desejo
voraz. Seus movimentos são rápidos, chupando e lambendo com uma
habilidade que me deixa alucinado. Sua língua percorre a minha cabeça, me
provocando. Não acredito que ela passou tantos anos fazendo um boquete
desses e aquele imbecil sequer conseguia fazê-la gozar de verdade.
Eu puxo seu cabelo com mais força, meu corpo tremendo com a
proximidade do orgasmo. Gracie nota minha urgência e aumenta seu
esforço, a pressão da sua boca contra minha carne me enlouquecendo
lentamente. Ela me chupa mais rápido, me suga com mais força e eu perco
o controle. Um gemido alto escapa da minha garganta e meu corpo se
contorce enquanto eu gozo dentro da sua boca. Seus lábios continuam
apertados ao redor do meu pau enquanto ela engole cada gota de porra,
prolongando meu orgasmo o máximo que consegue.
Puta que pariu.
Gracie não espera eu me recuperar para levantar da banheira e me
puxar na sua direção, seus lábios encontrando os meus de forma
desesperada, meu gosto se misturando na saliva. Eu entro na jacuzzi e
Gracie apoia as mãos no meu ombro, me movendo para baixo, indicando
que eu me sente.
— Quero sentir você dentro de mim — ela pede, a voz rouca e
manhosa. — Preciso de você dentro de mim.
A ansiedade dentro do seu tom me endurece tão rápido que nem
parece que acabei de ter um orgasmo. Gracie apoia as mãos no meu ombro
mais uma vez e guia meu pau até a sua boceta molhada. Com um gemido
baixo ela monta em mim, me tomando por completo. Nossos suspiros se
misturam, sua boceta quente e apertada pressionando o meu pau. Ela
começa a se mover, seus quadris se balançando contra mim em um ritmo
rápido.
Minhas mãos encontram sua bunda, apertando a área firme enquanto
a guio, empurrando-a para baixo com mais força. Seus gemidos aumentam
de volume e cada movimento dela cria uma fricção deliciosa que me deixa
perto do limite.
Gracie se inclina pra frente, seus seios balançando perto do meu rosto.
Minha boca toma um dos seus bicos duros e ela geme alto, sua boceta
pulsando ao redor de mim. Eu chupo e mordo seu mamilo enquanto Gracie
cavalga no meu pau com uma intensidade que quase me deixa sem ar. A
água ao nosso redor borbulha, nossos corpos criando ondas na banheira à
medida que se chocam um contra o outro.
Levo uma das mãos até o seu pescoço, apertando sua garganta com
cuidado. Como resposta, Gracie aumenta o ritmo contra mim, água
espirrando para fora da jacuzzi enquanto nossos corpos se chocam sem
parar. Minha língua encontra o seu outro seio, formando círculos no seu
mamilo duro. Ela arqueia as costas, perdida em um suspiro e outro.
— Oliver… — ela geme, mordendo o lábio, seus olhos entreabertos.
Acho que eu poderia gozar só olhando pra ela.
Suas unhas marcam a pele do meu ombro enquanto ela me engole por
inteiro, seus movimentos cada vez mais rápidos e desconexos. Sua pele
brilha de suor e minha boca encontra a sua, nossas línguas se esfregando no
mais puro desespero. Os movimentos de Gracie se tornam mais erráticos e
seu corpo treme à medida que ela se aproxima do orgasmo. Eu desço uma
das mãos até o seu clitóris e esfrego a área com o polegar enquanto ela
senta em mim.
O corpo de Gracie se arqueia quando o orgasmo finalmente a
consome. Sua boceta me aperta com uma força quase dolorosa, cada
pulsação enviando ondas de prazer pelo meu corpo. Eu gozo logo em
seguida e Gracie continua se movendo, prolongando nosso prazer, meus
lábios contra os seus no mesmo beijo sem sentido de antes. Nossas línguas
se entrelaçam enquanto nossos corpos se consomem dos últimos momentos
do clímax. Sinto cada pulsação da sua boceta, cada espasmo do seu corpo e
isso me deixa completamente bêbado, extasiado.
Gracie se afasta minimamente, sua respiração voltando ao normal aos
poucos. A água quente ao nosso redor relaxa nossos corpos e ela não faz
menção de sair do meu colo. Um de seus dedos percorre minha mandíbula
marcada, traçando o caminho.
— Eu te amo — ela solta, tão repentina e espontaneamente que eu
demoro um segundo para entender que realmente disse.
— Isso é o tesão falando por você ou…
Gracie ri.
— Não. Eu realmente te amo.
— Diz de novo.
Ela balança a cabeça em negativa, incrédula, mas tem um sorriso no
seu rosto quando o faz. Apesar do movimento, Gracie faz o que eu pedi.
— Eu te amo — murmura.
Um sorriso toma conta do meu rosto.
— Eu também te amo — sussurro. — E essa é a melhor coisa que eu
já ouvi.
NEWS: Entrevista Exclusiva

Entrevista EXCLUSIVA
É com imensa satisfação que o EstherNews traz a você algo que
nenhum outro jornal conseguiu: uma conversa divertida com o casal
sensação do gelo. SIM! Você não leu errado! Você sabe que não tem nada
que a nossa equipe não faça para trazer as últimas atualizações para
nossas leitoras. Agora sem mais delongas, com vocês Gracie Salmon (GS) e
Oliver Fisher (OF).

EN: Antes de mais nada, quero agradecer por


vocês terem aceitado essa conversa, podem ter
certeza que os fãs de vocês ao redor do mundo
vão se sentir muito privilegiados por conhecê-
los melhor.

GS: Nós é que somos privilegiados por ter


tanta gente incrível torcendo por nós.

EN: Gracie, qual é a sensação de saber que as


pessoas param suas atividades para assistir
suas apresentações? Depois de tantos anos,
imagino que já esteja acostumada.

GS: Jamais. Não tem como se acostumar com uma


coisa dessas. Mas sabe que isso é algo bom? Me
ajuda a sempre manter o foco, porque eu sei
que tem pessoas que dependem de mim, não posso
deixá-las na mão. Sou só eu patinando, mas
existe toda uma equipe por trás… técnicos,
patrocinadores, figurinistas.

EN: E falando em pressão, Oliver, qual a


expectativa para sua primeira apresentação com
a Gracie?

OF: A melhor possível. Você já viu essa mulher


patinando? Parece uma rainha do gelo.

EN: Deve ser uma tarefa muito difícil ser


parceiro dela, já que você precisa estar no
mesmo nível para fazê-la brilhar. Como foi
essa adaptação do hóquei para a patinação
artística?

OF: Sei que o que eu vou dizer aqui pode


parecer contraintuitivo, mas não foi tão
difícil assim. Deixa eu ver como eu posso
explicar. Patinar é muito mais difícil que
jogar hóquei (que os Owls me perdoem), porém,
depois de tantos anos sobre os rinques, a
gente acaba aprendendo boa parte dos
fundamentos. Toda a parte de resistência e
condicionamento eu já tinha.

EN: Eu conversei com a treinadora de vocês,


Mrs. Mulligan, e ela disse que vocês têm
treinado dez horas todos os dias desde que
formaram a dupla. Essa não é uma carga muito
pesada?

GS: É, mas não temos tempo. O que eu e Oliver


estamos fazendo, nunca foi feito com sucesso
antes. É arriscado forçar tanto assim o corpo,
mas qual outra opção temos?

OF: Do que vocês estão falando? Eu estava


pensando em sugerir a Mrs. Mulligan que
aumentasse o horário de treino. [RISOS]

EN: Apesar da brincadeira, eu imagino que deve


ser cansativo até para você, Oliver, já que é
um mundo completamente novo. Além da parte
física, ainda tem o emocional em campo. Como
lidar com essa mudança de profissão?

OF: Eu e Gracie temos um trato: não falar de


assuntos sérios antes das olimpíadas. E essa é
uma regra que estou tentando fazer o meu
cérebro seguir também. Meu foco agora é nos
dois programas que temos que apresentar, tudo
o que não tem a ver com patins, gelos e
saltos, estou empurrando para o fundo da minha
mente. Vou lidar com isso depois. Agora estou
focado em viver o presente.

EN: E o que está achando do presente?

[PAUSA]

OF: Muito melhor do que eu imaginava.

EN: Você sabe que esse é o tipo de resposta


que vai fazer as leitoras imaginarem muita
coisa, não sabe?

OF: Deixa elas imaginarem à vontade. [RISOS]

EN: E Gracie, me conta como está sendo essa


experiência para você. Sei que vocês dois tem
um histórico, pois cresceram juntos em
Guildford. Como é patinar com o seu antigo
amigo de infância?

GS: Ele não era meu amigo.

EN: Ah não? Imaginei que os Fisher e Salmon


fossem próximos.

GS: Sempre fomos, mas eu e Oliver não nos


dávamos muito bem. Ele era muito chato.

EN: Estou chocada com essa revelação. E isso


não atrapalhou a dinâmica entre vocês?

OF: Nem um pouco. Repara que ela disse que eu


era chato. Hoje a Gracie me adora. [RISOS]

EN: Gracie, você tem algo a dizer?

GS: Acho que vou deixar aberto a


interpretação.

EN: Ok, eu ainda tenho um milhão de perguntas,


mas eu sei como a rotina de vocês é puxada,
então farei apenas mais duas. A primeira: uma
palavra que vocês acham que descreve vocês.

GS&OF juntos: Sincronia. [RISOS]

EN: Eu não acredito! Isso foi ensaiado,


confessem.

GS: Pior que não foi! [RISOS]

EN: Eu acredito, dá para ver a química de


vocês mesmo fora dos rinques. Impossível ter
essa conversa e não ficar empolgada com tudo o
que podem mostrar nas olimpíadas. Para
finalizar, uma última pergunta. E eu não podia
encerrar sem fazer essa, me desculpem. Mas o
que dizem dos boatos afirmando que entre vocês
há mais do que uma parceria profissional?

[TROCA DE OLHARES]

GS: Lembra da nossa regra sobre não falar


sobre assuntos sérios antes dos jogos?

OF: De novo, vamos deixar aberto para


interpretação.

O que foi essa entrevista!? Esse casal com certeza deixou muita coisa
aberta para nossa imaginação nem um pouco fértil. Agora, mais do que
nunca, nossa equipe estará atenta a qualquer detalhe envolvendo a dupla
sensação do momento.
Mal podemos esperar para o que esses dois vão apresentar nas
Olimpíadas.
Sexta-feira, 19 de julho de 2024
CAPÍT ULO 37 - GRACIE SALMON

Como eu passo a maior parte do tempo fechada em um rinque de


gelo, acabo perdendo a noção de que sou uma figura pública com fãs
espalhados pelo mundo inteiro. É no momento de deixar o país para alguma
competição internacional que sempre me lembro disso. É um pouco
estranho, na verdade, porque não consigo me enxergar com o mesmo nível
de importância que essas pessoas enxergam. Enquanto elas enxergam uma
ídola, ainda sinto que sou só uma pessoa.
Oliver observa os fotógrafos sem reduzir o passo na direção do avião.
Tem dezenas de repórteres espalhados pelo saguão, todos com aquele olhar
determinado de quem vai tirar a foto da capa do jornal de amanhã.
Estamos vestidos com uniformes nas cores da Grã-Bretanha — azul
escuro, vermelho, branco —, o orgulho do nosso país representado em cada
fio da roupa. É uma sensação única saber que representamos milhões de
pessoas em uma competição. Uma mistura entre o peso da responsabilidade
e a realização por ter chegado no ápice desse esporte.
Paramos perto de uma região indicada para tirarmos algumas fotos.
Fazemos poses contidas, apenas sorrisos, um leve abraço lateral e, por fim,
damos as mãos e a levantamos, como se fosse uma mini comemoração do
que está por vir.
Vez ou outra, uma voz distante de algum repórter chega até nós.
— Será que vocês podem dar uma entrevista?
Ignoro o pedido. O momento é apenas para fotos. Eu imaginava que
quando a entrevista do EstherNews saísse geraria um frisson de repórteres
querendo a versão deles para os seus respectivos jornais. Que continuem
sonhando. Odeio entrevistas, quando quero falar algo para os fãs, prefiro
abrir uma live no Instagram, sinto que isso me aproxima muito mais deles
sem a formalidade de ter alguém mediando a conversa. Aceitei fazer a
última entrevista por causa da Mrs. Mulligan.
Depois de alguns minutos e muitas fotos, finalmente entramos no
nosso voo. Eu sabia que esse era um avião fretado para os atletas olímpicos,
mas felizmente, somos muitos e não estamos todos aqui. Vejo skatistas,
maratonistas, judocas e várias outras modalidades, mas felizmente, o casal
que me dá vontade de vomitar não vai viajar com a gente. Vou agarrar cada
oportunidade que eu tiver para ficar longe de Pierre e Kate.
Me sento ao lado do Oliver, soltando um meio suspiro. Admito que
gostaria de ter usado o jatinho da família Salmon para voar até Paris e ter
um pouquinho mais de privacidade, mas não seria bem visto. As pessoas
não gostam. Meio ambiente, coisa e tal.
— Não sabia que você tinha medo de voar. Tá com uma cara péssima.
— Não é isso. É só que…
Não sei como explicar. Esse período antes de uma competição é a pior
parte pra mim. Eu não fico nervosa quando estou no rinque, ciente de que
meus movimentos estão sendo transmitidos para o mundo inteiro, mas nos
dias que antecedem a apresentação, é como se meu cérebro começasse a me
bombardear com tudo o que pode dar errado. O divertidamente da
ansiedade toma conta.
— Ei — sinto os dedos firmes de Oliver no meu queixo, me fazendo
olhar para ele. — Vai dar tudo certo. Nossos programas estão bons.
— Eu sei, meu cérebro que tem a mania de se rebelar nas vésperas de
qualquer competição.
Oliver assente. Eu ignoro as pessoas que podem olhar para nós e tirar
conclusões corretas, inclino minha cabeça e encosto no ombro de Oliver.
— Pelo menos você não está me chamando de pessimista.
Ele demora um segundo para entender do que estou falando.
— Aquele idiota fazia isso com você?
Movo a cabeça em afirmativa.
— Eu ficava me sentindo péssima. Apesar de ter ele ao meu lado,
sempre me sentia sozinha. É estranho, quando eu paro pra pensar. Um
esporte em dupla, eu trabalhava com o meu namorado o dia inteiro, mas
sempre ficava com essa sensação de solidão.
— Eu não entendo como uma mulher como você namorou aquele
babaca.
— Uma mulher como eu? — Giro o rosto para ver o olhar de Oliver
para mim. Seus olhos negros parecem fazer o que o resto do corpo não pode
e me sinto abraçada.
— Linda, determinada, responsável — ele faz uma pausa, então ri —
até demais às vezes. Nunca vou entender esse namoro.
Me ajeito no ombro dele como se fosse o travesseiro mais confortável
do mundo.
— Eu também não.
Imagens do passado voltam sem a minha permissão, me sugando em
um redemoinho de memórias indesejáveis que ameaçam me afogar. Era
sempre ele quem montava os programas, ele quem definia os horários dos
treinos e o que faríamos nos dias de folga, só não controlava o que eu comia
porque nunca teve a curiosidade de pesquisar a fundo sobre dieta para quem
tem diabetes.
— Você viu a entrevista?
Escuto a voz que me resgata do turbilhão de pensamentos hediondos.
Puxo o ar, deixando que ele entre pelo meu corpo e tento focar no presente.
É óbvio que Oliver está fazendo um esforço para me manter distraída.
Quem olha para essa pose rebelde não vê que atrás dos músculos e
tatuagens existe o homem mais fofo que já conheci.
— Ainda não li, mas a Clarice me disse que foi publicada ontem
depois da aprovação dela e da Trinity.
Sinto ele se buscando o celular. Abre o aplicativo de mensagens e
clica em um link. A entrevista que demos no início da semana aparece na
tela do celular e começamos a ler em silêncio.
Vejo a solidão me olhando de longe, mas, ao contrário do que está
acostumada, percebe que aqui não tem mais espaço para ela.

∞∞∞
Fomos muito bem recebidos pela comissão responsável por organizar
e alojar os atletas na vila olímpica. Dessa vez, ela foi construída do zero
para os jogos e servirá como um bairro residencial depois do evento.
Felizmente, além dos quartos individuais, existe a opção para quartos de
casal para os esportes em dupla, porém, antes que eu pudesse imaginar
passar as noites nos braços de Oliver, um balde de água fria é jogado em
cima de mim ao ouvir o discurso de uma das funcionárias.
— Pensando em servir de exemplo, a Vila Olímpica de Paris foi
construída para ser modelo para os jogos futuros. Duas palavras resumem o
projeto: sustentabilidade e economia. As camas, todas de solteiro, são feitas
de papelão, mas não pensem que são frágeis! Conseguem suportar até 200
kg, apesar de não ser recomendado movimentos muito bruscos em cima
delas.
Troco um olhar com Oliver, sem conseguir me conter. É evidente o
que está escondido atrás das palavras da funcionária. Nada de sexo. Ou pelo
menos, não na cama. Eu entendo a preocupação da comissão organizadora,
porque o mundo inteiro sabe da fama das vilas olímpicas. Milhares de
atletas com hormônios transbordando estresse e preocupação. Não podemos
abusar das drogas, então é óbvio que o sexo se torna a saída mais fácil.
Mesmo assim, apesar do aviso, no final da pequena reunião foi distribuída
caixas e mais caixas de preservativos. Parece o pai dizendo aos filhos para
não dar uma festa, mas escondendo os pertences mais caros antes de sair de
casa.
Meus olhos caem em Oliver de novo. O riso no seu rosto mostra que
ele tem várias ideias de como gastar aqueles preservativos — passou da
hora de começarmos a usá-los, para começo de conversa — e preciso me
conter para não me deixar levar. Estou aqui por um motivo, não posso
perder o foco justo agora.
O momento pelo qual me preparei nos últimos anos está mais perto
do que nunca. E o mais incrível é que eu sinto como se já tivesse ganhado
uma coisa muito mais importante do que uma medalha de ouro.
CAPÍT ULO 38 - OLIVER FISHER

Por mais que eu esteja envolvido no meio esportivo desde os treze


anos de idade, nunca tive o costume de acompanhar as olimpíadas. O
hóquei não é um esporte olímpico e nenhum dos outros parecia interessante
a ponto de valer a minha atenção ao longo de quatro semanas. Eu nem fazia
ideia de como era uma cerimônia de abertura até chegar em Paris, e preciso
dizer que é algo grande.
— A gente precisa mesmo ir nessa festa? — pergunto pra Gracie, já
sabendo da resposta.
Nenhum de nós vai admitir, mas estamos exaustos. Depois de chegar
em Paris, deixamos nossas malas no quarto, recebemos preservativos e
indiretas sobre educação sexual como se estivéssemos no ensino médio e
fomos para a cerimônia de abertura, como todos os outros atletas. Eu
imaginei que a cerimônia fosse coisa de 15 minutos, mas, porra, o Oliver do
passado estava completamente errado. Foram três horas, entre
apresentações artísticas, o desfile de todos os atletas, os juramentos,
discursos, hasteamento da bandeira olímpica e acendimento da pira. No
final, minha maior preocupação era discutir mentalmente o que aconteceria
se alguém apagasse o fogo da pira antes dos jogos terminarem.
— Depende — Gracie responde, do banheiro. Como estamos
competindo em dupla, temos uma suíte só nossa, diferente dos outros
atletas, que as dividem em grupos. — Se você não quiser apanhar da Trinity
ou da Clarice, é altamente recomendado.
Eu deixo uma risada escapar, me levantando da cama. Apoio uma das
mãos no batente da porta e observo Gracie pelo espelho, terminando de
passar uma grossa camada de batom vermelho nos lábios. Ela parece muito
mais disposta do que eu e automaticamente me sinto idiota por ter dito que
tinha um condicionamento melhor na nossa entrevista. Eu claramente não
tenho.
— Ou — me aproximo dela, apoiando as mãos no seu ombro. Minha
boca desce até o seu pescoço e sua pele arrepia diante do meu toque. — A
gente pode ficar aqui e testar se as camas de papelão são realmente
resistentes — digo. — É por uma boa causa, nossas agentes entenderiam.
Gracie ri, virando-se pra mim.
— Temos que ir até lá e alimentar a fanfic dos nossos fãs. — Ela fica
na ponta dos pés e deposita um beijo no canto da minha boca, me sujando
com batom vermelho.
— Não que a gente não possa fazer isso daqui do quarto.
Gracie arqueia uma sobrancelha pra mim. Eu pego o celular no bolso
da calça e tiro uma foto dela na minha frente, com o meu reflexo no
espelho. A marca de batom é visível. Mostro pra Gracie e ela concorda,
então posto a foto nos stories do Instagram. Passam menos de dois
segundos até que meu celular comece a vibrar com centenas de
notificações.
— Casal do ano — eu zombo.
Gracie ri, seus braços envolvendo a minha cintura. Seus lábios
encontram os meus e eu sei que vamos fazer uma bagunça por causa do seu
batom vermelho, mas isso não me impede de beijá-la como se minha vida
dependesse disso. Um gemido contido escapa dos lábios de Gracie quando
eu empurro seu corpo contra a bancada e, agora, testar as malditas camas
parece uma ideia de verdade.
— Se continuar me beijando assim, não vamos sair desse quarto.
Gracie finge que não ouviu meu comentário, suas mãos apoiadas na
minha nuca. Nossas línguas se encontram de novo e eu desço as mãos até a
sua bunda, usando como apoio para levantar seu corpo e apoiar na pia do
banheiro. Tenho certeza que ouço o som de algumas maquiagens caindo no
chão e Gracie ri, mas nenhum de nós se importa. Nossos rostos estão
vermelhos por causa do batom e meus dedos já subiram o vestido de Gracie
até a metade das coxas quando a porta do nosso quarto se abre.
Puta que pariu.
Não acredito que não trancamos.
— Vocês já estão prontos pra… — a voz de Clarice preenche o quarto
e eu só tenho tempo de colocar Gracie no chão antes que ela chegue no
banheiro. — Boa noite?
Trinity vem logo atrás dela. A loira olha alguma coisa no celular antes
de levantar os olhos na nossa direção e soltar uma risadinha incrédula.
— Estamos interrompendo alguma coisa? — pergunta, embora seja
óbvio.
— Não — respondo. — Nada.
Clarice suspira.
— Os burburinhos não eram só burburinhos.
— Eles estavam mentindo na nossa cara o tempo inteiro — Trinity
conclui. — Que gracinha.
— Eu não chamaria de mentira — Gracie diz, enquanto se movimenta
para pegar um papel higiênico e limpar o batom do rosto. — Chamaria de
omissão parcial da verdade.
— Estamos namorando — solto, mostrando a tatuagem no meu dedo
de uma vez, porque é melhor que elas saibam logo.
Gracie solta uma risada nervosa.
Clarice cerra os olhos.
— Fez uma tatuagem pra ela?
— Eu tatuei o dedo dele — Gracie explica, aproximando-se de mim
para limpar o meu rosto.
Clarice parece ainda mais incrédula.
— Jovens — sussurra para Trinity, como se nós não estivéssemos
aqui e como se ela fosse uma senhora de 72 anos.
— Que bom que as camas são de papel.
— Você não percebeu? — Clarice ri. — Eles iam usar a pia.
— Podemos excluir o tópico nossa vida sexual dessa discussão? —
pergunto.
— Vocês estão usando camisinha? — Trinity pergunta. — Por que
uma patinadora grávida é tudo que…
— A Gracie usa DIU desde o dia que entrou na idade reprodutiva,
não precisamos nos preocupar com isso — Clarice responde.
Gracie move a cabeça em afirmativa, confirmando, mas não remove
completamente o ar preocupado do rosto de Trinity.
— Vamos manter esse fogo todo dentro dos quartos, tudo bem? —
Trinity sugere. — Os fãs de um romance fofinho entre patinadores não
precisam saber que vocês estão cheios de tesão um pelo outro, embora
vocês claramente estejam.
Meus olhos acompanham os de Gracie e nós trocamos um olhar
cúmplice. Estamos nos segurando para não rir, porque a situação é
equivalente a estar na escola e levar uma bronca da professora por sentar no
colo de um colega de sala.
— Certo — Clarice continua. — Vamos repassar nosso roteiro pra
festa. Amanhã vocês tem um treino às cinco da manhã, antes da primeira
apresentação oficial então, eu falo em nome da Mrs. Mulligan aqui, não
bebam e nem fiquem até tarde demais. Vocês só precisam ir até lá, interagir
com alguns atletas, sorrir pras fotos e mostrarem aos jurados a sintonia que
existe entre vocês dois. Gracie, seus pais foram convidados pra festa, então
não deixa sua mãe te estressar, hm?
Gracie assente.
— Em outras palavras — Trinity murmura, muito mais direta. —
Sejam agradáveis, não se comam em público e estejam no quarto antes da
meia noite, cinderelos.
— Tudo certo, chefia — respondo.
— Se arrumem — ela pede, num tom autoritário, fazendo um gesto
indicando o próprio rosto. Realmente fizemos uma bagunça com o meu
batom vermelho. — Vamos descer em 15 minutos. — Trinity se vira na
direção do corredor, então dá uma última olhada em nós dois. — Nós
estamos em frente à porta então, é sério, não fiquem de graça.
Gracie faz um sinal de continência para Trinity e eu sei que esse é um
gesto que ela aprendeu comigo. Acho que o papo todo de sincronia foi
levado muito a sério e agora estamos nos tornando a mesma pessoa.
Clarice fecha a porta.
Ficamos em silêncio por um instante, até que nos encaramos de novo
e não conseguimos conter uma risada que ecoa pelo quarto.
— Você ouviu, Cinderela — zombo, dando um último beijo na sua
boca. — Sem gracinhas.
CAPÍT ULO 39 - GRACIE SALMON

O maior desafio da patinação artística não é fazer um lutz triplo. Na


verdade, arrisco dizer que não há pulo que se equipare com a dificuldade de
socializar entre os atletas e manter intacto o réu primário. Oliver está ao
meu lado, um sorriso discreto no rosto enquanto segura uma taça com um
drink verde radioativo que não faço ideia do que pode ser. Combinamos de
não beber muito hoje à noite, já que amanhã será um grande dia, por isso
estou segurando a única taça de vinho — minúscula, diga-se de passagem
— que pode entrar no meu corpo.
— Eu me sinto ultrajada. Conversarei com meus advogados, pois isso
poderia, sim, se encaixar em um processo por constrangimento — diz uma
mulher alta e magra em uma roda de conversa ao lado, os cabelos pretos
elaborados em um penteado que certamente levou horas para ficar pronto.
— Onde já se viu obrigar a gente a dormir em cama de papel?
Oliver olha para mim como se só agora tivesse percebido o quanto era
absurdo alguém passar por uma situação tão terrível assim. Controlo o riso,
faço um gesto de aviso para ele, mas sou ignorada quando ele se junta à
conversa.
— Não, e o pior não é isso — diz. O rosto sério como se estivesse
realmente indignado com aquela afronta aos direitos humanos. — E a
minha suíte que não tem uma banheira? Como eles querem que eu relaxe
depois de um longo dia estressante?
A risada sobe pela minha garganta, mas consigo disfarçar como se
fosse uma tosse.
— Espera, você tem uma suíte? — A morena que antes estava
indignada, agora está furiosa. — Ah, pode ter certeza que vou acionar meus
advogados assim que sair dessa festa!
— Faça isso, é um absurdo tratar a gente de forma diferente! — A
falsa indignação no rosto de Oliver é digna de um Oscar. E eu, por outro
lado, estou me descobrindo uma péssima atriz, pois segurar a risada está se
mostrando uma tarefa complicada.
Antes que eu deixe evidente que o meu parceiro está apenas
colocando lenha na fogueira, vejo uma pessoa se aproximar. Clarice disse
que ela estaria aqui, mas preferi torcer para não encontrá-la hoje. A última
coisa que preciso é levar um sermão antes de um dos dias mais importantes
da minha carreira.
— Finalmente encontrei vocês — ela diz, se aproximando do grupo.
Algumas pessoas olham para ela, admiradas ao reconhecer a lenda da
patinação artística no gelo. Nora Salmon cumprimenta o Oliver com um
olhar e volta sua atenção para mim. — Posso conversar com você por um
minuto?
A minha vontade é dizer não, mas sei que não tem como fugir da
minha mãe, por isso, concordo e a acompanho até uma das varandas
principais com uma vista incrível do rio Sena. Lembro de uma notícia que
vi antes de embarcar dizendo que a concentração de coliformes fecais no rio
estava maior do que a permitida e fico feliz por não ser um dos atletas que
vai ter que nadar nele. Que nojo.
— Quem eram aquelas pessoas? — ela pergunta, assim que se apoia
na mureta da varanda.
— Não faço ideia. A gente tava só jogando conversa fora.
— Não acha que seria melhor aproveitar esse tempo para conversar
com os outros patinadores? Conhecer quem você vai enfrentar amanhã é
importante, Gracie. Isso pode te dar uma vantagem enorme.
Reviro os olhos. Era óbvio que ela tinha me chamado para encher o
saco. Isso é tão Nora Salmon.
— Eu sei o que estou fazendo — respondo, um pouco mais seco do
que pretendia, mas definitivamente não quero render esse assunto. Estou
nervosa o suficiente sem que minha mãe precise colocar mais dúvidas na
minha mente.
— Eu sei. Na verdade, é por isso que queria conversar com você. —
Ela desvia o olhar para o rio que corre silenciosamente na noite. Vários
barcos deslizam na sua superfície, na certa cheio de casais aproveitando a
cidade mais romântica do planeta.
Olho para minha mãe e não consigo reconhecer o desconforto nela.
Nora Salmon sem jeito de dizer alguma coisa? Será que entrei em uma
realidade paralela? Essa não é a mulher que conheço há pouco mais de vinte
anos.
— Eu pensei muito em algo que Oliver me disse uma vez. Você sabe
que eu quero apenas o melhor para você, não sabe?
Fico em silêncio. Por mais que lá no fundo eu saiba, é difícil ver isso
todas as vezes que ela me critica. A impressão que dá é que ela realmente
confunde a minha carreira com a dela.
— Eu sei que exagero às vezes — ela continua ao ver que eu não digo
nada —, mas se você soubesse de metade das coisas que eu passei,
entenderia porque tento te preparar ao máximo. E deu certo, não foi? Olha
onde você está agora.
Sinto a indignação crescer dentro de mim. Eu não acredito que ela
está dando a entender que só cheguei aqui por causa dela. Meus músculos
doem pelo esforço excessivo que tenho feito nas últimas semanas.
Acho que ela percebe o que disse através da expressão no meu rosto,
pois logo completa.
— É claro que você chegou aqui por mérito, filha. Nossa, eu
realmente não sou boa nisso. O que quero dizer é que gosto de pensar que
ajudei um pouco. Só isso. E que…
Ela faz uma pausa tão grande que por um momento penso que ela
esqueceu o que estava prestes a dizer.
— Eu estou orgulhosa de você, Gracie.
Sinto o chão vacilar sobre os meus pés. Eu realmente entrei em um
universo paralelo. Não tem outra explicação. Antes que eu possa me
recuperar do choque e dizer alguma coisa, ela aponta um dedo para a taça
na minha mão.
— E você acha mesmo uma boa ideia beber hoje à noite? Se eu fosse
você, ia pra casa e descansava assim que conversasse um pouco com os
patinadores. Melhor se preparar do que se embriagar.
Ela sai, me deixando sozinha na varanda sem entender o que tinha
acontecido. Agradecimento e vontade de cometer um matricídio se
misturam em igual medida dentro de mim. É sempre um morde e assopra
impressionante.
Volto para o grupo onde Oliver ainda conversa, animado, sobre as
barbaridades da vila olímpica, mas antes que eu possa me enturmar, escuto
uma voz repugnante vinda das minhas costas. Meu corpo inteiro reage a ela.
Um frio que não tem nada a ver com as janelas abertas do salão percorre a
minha pele e, pela segunda vez na noite, penso que talvez ter seguido o
plano de Oliver de ficar no quarto fosse uma ideia melhor.
— Olha se não é o casal do momento…
A voz de Pierre é escorregadia como uma lesma. Ainda com a
conversa com minha mãe na mente, tento pensar no que ela faria nessa
situação.
— Oi, Pierre. Onde está a Kate?
— No quarto. Preferiu descansar pra amanhã, sabe como é. Não
estamos em um bom momento pra encher a cara — ele diz, os olhos fixos
na minha taça.
Preciso respirar fundo para não virar o resto de vinho na cara dele.
Esse imbecil não vai me tirar do sério hoje. Oliver olha para nós dois, já não
tem mais o semblante alegre de minutos atrás. É como se Pierre fosse uma
nuvem carregada anunciando a aproximação de uma catástrofe. Se Kate não
tivesse traído a nossa amizade, eu quase teria dó dela. Ela não sabe onde se
meteu.
— De qualquer forma, eu não vim aqui pra te dar conselhos. Acho
que essa parte da nossa vida já ficou para trás.
— Graças a Deus — é uma ironia, porque Pierre sabe que não sou
religiosa. — Pena que ainda durou tanto.
Sinto uma satisfação egoísta ao ver o sorriso murchar naquele rosto
falso como uma nota de 25 libras. Porém, o sorriso logo é substituído por
um olhar duro que eu conheço muito bem, porque já o vi tomar conta do
rosto de Pierre mais vezes do que gostaria de admitir ao longo do nosso
namoro. Ele está fervendo de raiva.
O olhar não dura mais do que um segundo, e logo o sorriso volta para
os seus lábios. Ele se aproxima de mim como se fosse me abraçar. Oliver dá
um passo na nossa direção, mas faço um gesto indicando que está tudo bem.
Pierre jamais faria algo para manchar a imagem dele de bom moço. Quer
dizer, depois de me trair com uma amiga em comum. Detalhes.
Sinto o cheiro de álcool quando ele aproxima o rosto do meu ouvido e
penso na hipocrisia de condenar minha minúscula taça de vinho quando ele
mesmo estava bebendo. Flashbacks do nosso relacionamento me voltam à
mente. As coisas com ele sempre foram assim. Um peso, duas medidas.
— Eu ficaria tão triste se algo acontecesse com vocês e jogasse no
chão esse castelo de areia que vocês montaram — ele sussurra, as palavras
rasgando o meu ouvido. — Imagina o mundo inteiro ver que tudo isso não
passa de uma farsa? Confessa que nem você acredita que esse brutamontes
pode patinar, Gracie. Melhor desistir antes que seja tarde.
Não sei se ele pretendia dizer algo mais, porque Oliver o puxa para
trás antes que possa, o afastando de mim. Pierre levanta as mãos em sinal
de rendição, como se não tivesse feito nada de mais. O olhar de algumas
pessoas cai em nós três, mas Pierre logo se afasta, não antes sem piscar pra
mim.
Eu termino de beber o vinho na minha taça em um gole só, o cheiro
do seu perfume ainda perturbando meu olfato. Meu coração acelera. Sei que
ele disse isso porque está se sentindo ameaçado, mas Pierre Durant não é do
tipo que costuma fazer ameaças vazias.
CAPÍT ULO 40 - OLIVER FISHER

Nós passamos mais uns trinta minutos alternando entre rodas de


conversa no salão de festas do hotel, mas Gracie não está mais aqui. Quer
dizer, o seu corpo está presente, mas é visível que sua mente foi sequestrada
e reside em algum lugar bem longe de Paris.
Quando Trinity se aproxima de nós, eu noto que não fui o único a
perceber.
Ela apoia uma das mãos nos ombros de Gracie, dando um sorriso
complacente. Não sei se ela viu toda situação com Pierre, mas sempre
penso que agentes tem olhos de águia.
— Você parece cansada — diz. — Acho que já socializaram o
bastante.
— Onde a Clarice está? — Gracie pergunta, como se quisesse uma
confirmação da sua própria agente a respeito do assunto.
— Ela foi pro quarto — Trinity explica. — Tá com crise de
enxaqueca. Mas ela vai estar bem amanhã. Vamos acompanhar vocês nas
entrevistas depois do programa curto.
Gracie assente, ainda parecendo um pouco perdida. Trinity me encara
por um bom tempo e, mesmo sem nenhuma palavra proferida, eu sei o que
ela está dizendo nas entrelinhas. Preciso dar um jeito na situação que o
Pierre causou e, embora o meu primeiro impulso seja o de quebrar o nariz
dele, sei que não posso fazer isso.
Eu faria, se não fosse prejudicar a imagem da Gracie.
— Tá tocando Abba? Quem fez essa playlist? — Uma quarta voz
invade nossa conversa e eu estou pronto para mais dor de cabeça quando
percebo que o homem que se aproximou não está falando comigo ou com a
Gracie, mas com a Trinity.
Ele é alto, loiro e bronzeado e ela automaticamente dá um sorriso pra
ele. Desde que começamos a trabalhar juntos, nunca vi essa mulher sorrir
de verdade até agora.
— Sabia que você ia reparar. — O olhar cúmplice que eles trocam me
faz pensar que é alguma piada interna entre eles. — Gracie, Oliver, esse é o
Alex[13]. CEO da All Stars de Londres.
— Então é assim que você me apresenta?
— E como você gostaria de ser apresentado?
— Alex — ele repete, erguendo uma das mãos na minha direção e,
depois, na de Gracie. — Namorado da Trinity.
Trinity deixa uma risada nervosa escapar.
— Isso. — Ela move a cabeça em afirmativa. — CEO e meu
namorado nas horas vagas.
— Vocês formam um casal lindo — Gracie comenta. — É um prazer.
Já que nossas obrigações na festa acabaram…
— Nós vamos pro quarto — eu completo. — Ter uma ótima noite de
sono.
Trinity arqueia uma das sobrancelhas loiras na minha direção.
— Juízo — ela enfatiza. — Você vai ficar bem, Gracie?
Gracie assente com a cabeça. É ela quem entrelaça os dedos nos meus
e me guia para fora do salão de festas. Consigo sentir como está ansiosa
para fugir dos olhos do público. Ela dá um longo suspiro quando chegamos
no saguão, virando-se na direção dos elevadores. Eu não deixo que
continue.
— Ei — apoio uma das mãos na sua cintura, mantendo-a no lugar. —
Acho que seria melhor se a gente não fosse pro quarto — sugiro. — Você
precisa de um pouco de ar puro.
Gracie me encara, como se estivesse considerando minha ideia. Eu
não dou tempo para que ela tenha a oportunidade de negar e me viro na
direção da saída. Sem dizer nada, mas ainda parecendo em dúvida, Gracie
me acompanha.
São quase vinte minutos de uma caminhada silenciosa até sairmos da
Vila Olímpica. Eu sei que New York é conhecida como a cidade que nunca
dorme, mas Paris poderia tranquilamente brigar por esse título. São quase
meia-noite e as ruas ainda estão cheias de turistas, vendedores ambulantes e
jovens chegando em festas. Mesmo que a vila tenha sido construída nos
arredores da Cidade Luz, ainda há uma movimentação intensa e
conseguimos avistar o topo da Torre Eiffel à distância.
— Acho que preciso mesmo é de comida — Gracie diz, de repente,
como se não tivesse passado os últimos minutos num silêncio absoluto. —
Tem uma brocante acontecendo no fim da rua.
Giro a cabeça na direção que ela aponta, mas ainda não tenho certeza
do que “brocante” significa. Nem preciso dizer que nunca vim a Paris antes.
Sempre passei mais tempo nos Estados Unidos do que na Europa.
Gracie ri ao perceber minha confusão. Ela parece um pouco mais
tranquila agora, longe de todo mundo.
— São feirinhas — explica. — Aqui chamam de brocante. Uma coisa
que aprendi viajando pros campeonatos é que a comida de rua é sempre
melhor do que a comida dos hotéis.
— Imagina quando as grandes revistas descobrirem que a herdeira de
Nora Salmon adora comida de rua.
Gracie acha graça.
— Ela diz que vou ter uma intoxicação e morrer. — Dá de ombros. —
Mas vale a pena.
Ela parece pensativa por um segundo, mas então apoia uma das mãos
no meu antebraço e me guia até as barraquinhas iluminadas por luzes que se
assemelham muito com aquelas que colocamos nas árvores de natal. O
cenário parece saído de um filme: tem artistas de rua tocando violino, casais
dançando e o lugar inteiro, de alguma forma, parece ter um cheiro muito
específico de mel. Enquanto caminhamos até as barracas de comida,
chamamos atenção considerável, porque estamos arrumados demais pra
ocasião. Acho que ninguém esperava encontrar pessoas de vestido longo e
smoking no meio de uma feira.
Quando chegamos em uma das barracas de crepe, Gracie faz o pedido
com um francês perfeito que eu nem sabia que ela tinha.
— O que você vai querer?
— É por sua conta hoje — eu digo, dando de ombros.
Gracie escolhe um crepe salgado pra ela e um doce pra mim o que, na
minha opinião, é uma estratégia pra roubar um pedaço do meu mais tarde,
sem causar uma crise de hiperglicemia. Nós esperamos a comida ficar
pronta e, depois disso, nos sentamos em um dos parapeitos da rua, de onde
conseguimos ver a torre com ainda mais precisão. Não acho que Gracie
esteja impressionada. Ela vem sempre aqui.
— Não sabia que falava francês.
— Aprendi por causa da família do Pierre — ela diz, balançando as
pernas por baixo do vestido vermelho. — Eles achavam que eu era burra e
viviam comentando sobre mim na língua materna. — Gracie ri. — Ainda
me lembro da cara de todo mundo quando eu comecei a falar francês em
um jantar. Tenho certeza que quase engasgaram com a comida.
— Então a família inteira é péssima?
Gracie morde um pedaço do seu crepe.
— Você sabe o que dizem, a maçã nunca cai muito longe da árvore.
Concordo com a cabeça, então entro no assunto que, eu sei, ela não
quer falar sobre.
— Sessenta segundos de sincericídio — digo. — O que ele te falou?
— Que odiaria se alguma coisa ruim acontecesse — murmura. — O
que, em outras palavras, significa que ele está torcendo pra alguma coisa
ruim acontecer. Eu fui burra. Devia ter exposto tudo naquela live.
Mordo um pedaço do meu crepe.
— Tudo o quê?
Gracie observa as pessoas ao nosso redor, como se estivesse com
medo de encontrar algum repórter. Ela coloca uma das mãos na frente da
boca e se aproxima da minha orelha, sussurrando:
— Ele usa doping. — Gracie se afasta. — Passamos os últimos anos
discutindo sobre isso. Ele queria que eu usasse também, mas nunca aceitei.
— Ele nunca foi testado?
— Não é assim que as coisas funcionam no mundo dos esportes de
competição — ela suspira. — Pierre é de uma família muito influente,
então, há menos que existam acusações reais contra ele, nunca vai ser
testado. Talvez eles te testem amanhã, por exemplo, mas nunca vão me
testar. Também acho que… Tem uma grande chance que ele estivesse
chapado, lá na festa.
— Acho que a maioria dos atletas estava um pouco chapado.
— Não. — Gracie meneia a cabeça, negando. — Chapado de
verdade. Alguns anos atrás corria um boato de que a Kate usava pó pra ficar
magra, então não duvido que ele esteja abusando de qualquer substância
química agora que eu não tô no caminho.
— Eu achava que ele era só um mauricinho insuportável, mas
aparentemente…
— Se existe uma pessoa no mundo que leva a carreira mais a sério do
que Nora Salmon, essa pessoa é o Pierre. Lembro que ele quebrou todas as
minhas canetas de insulina quando eu me neguei a usar trimetazidina pra
melhorar minha resistência cardíaca. Ele disse que eu não devia ser tão
contra substâncias químicas já que meu corpo sequer consegue funcionar
direito sozinho.
— Tem certeza que ainda quer essa medalha? — Eu movo a cabeça
em negativa, descrente. — Porque se você não quiser eu posso voltar pro
hotel e pintar os dois olhos dele de roxo. Foi um grande teste de paciência
não acertar um soco naquela cabeça loira dentro da festa.
Gracie ri.
— Violência é realmente sua linguagem do amor — ela zomba,
apoiando a cabeça no meu ombro. Sinto que já fizemos isso um milhão de
vezes antes. — Não pode bater nele. Ele acabaria dando um jeito de sair por
cima da situação. A gente só precisa ter cuidado porque… não sei. Não tô
com um pressentimento bom sobre amanhã.
— Lembra do que você disse quando estávamos no carro indo pra
Londres?
Gracie me encara, tentando se lembrar. Ela move a cabeça em
negativa.
— Disse que estamos juntos nessa — repito. — E nada de ruim vai
acontecer enquanto continuarmos juntos.
Ela assente, então sua mão procura pela minha, seus dedos
entrelaçando nos meus. Gracie dedilha o anel que ela mesmo desenhou, a
pele ainda um pouco inchada por causa da máquina de tatuagem.
— Obrigada por estar aqui. Sei que não é um sonho seu…
— Se é um sonho seu, pode ser meu também.
Gracie assente, então sorri.
— Acho que o destino tem formas engraçadas de nos mostrar as
coisas — ela diz, balançando meus dedos e os seus ao mesmo tempo. — Eu
não queria patinar com você e hoje vejo que não poderia ter escolhido um
parceiro melhor.
— Pode admitir que patinar comigo sempre foi um dos seus maiores
sonhos. Tenho certeza que comemorou quando eu fui expulso dos Owls.
— Cala a boca. — Ela dá um tapa no meu ombro. — Você é
convencido e por isso eu não posso te contar as coisas.
— Pode sim, continua falando.
— E por que você acha que tem mais?
— Só tenho a impressão que você estava prestes a dizer aquelas três
palavras. As que você disse na jacuzzi e eu gosto muito de ouvir.
Gracie ri, esticando um dos braços para roubar um morango do meu
crepe.
— Eu te amo — diz, finalmente, seus olhos mergulhados nos meus. É
o tipo de frase que faz o meu mundo inteiro parar. — Estamos juntos nessa.
— É a vez dela repetir.
— Também te amo — sussurro, e ela volta a apoiar a cabeça no meu
ombro.
Observo a forma como sua postura relaxa aos poucos e ela observa as
pessoas ao nosso redor, uma música romântica tocando no violino e se
tornando plano de fundo das nossas memórias. Sei que Trinity disse pra
voltarmos pro quarto antes da meia-noite, mas estamos dentro de uma bolha
tão confortável que eu não me importaria de ficar aqui até o dia amanhecer.
Realmente acredito no que eu disse pra Gracie.
Enquanto continuarmos juntos, nada ruim pode acontecer.
CAPÍT ULO 41 - GRACIE SALMON

As palmas da plateia se encerram no momento que levanto a minha


mão na direção de Oliver. O silêncio toma conta da pista de patinação e
parece que o planeta inteiro está na expectativa do que está prestes a
acontecer. Meu dedo indicador aponta para o peito do meu namorado e,
felizmente, percebo que ele não treme. Estou no gelo, estou em casa. Assim
que as primeiras notas da harpa ecoam pelo ar frio da manhã, Oliver, segura
o meu braço, sua mão no meu pulso, e me puxa na sua direção. Dou um
giro e paro de frente a ele, nossos rostos a poucos centímetros de distância.
E é quando o oboé solta seu lamento, o tema do famoso “O lago dos
cisnes”, que nossa apresentação começa. Sinto um arrepio percorrer do meu
pé até o pescoço e abro os dois braços, como se fosse um cisne prestes a
lançar voo. Devagar, Oliver segura minha cintura e me levanta no ritmo da
música. Porém, não me ergue muito alto, já que não chegamos ao ápice da
apresentação.
O cisne está apenas descobrindo que tem asas.
Assim que ele me coloca no chão, começamos a deslizar de costas
pelo rinque. Seguimos devagar, como se fossemos a mesma pessoa, mas em
corpos diferentes. Eu não preciso olhar para os pés de Oliver para saber que
estamos em uma sincronia perfeita. É o tipo de coisa que você
simplesmente sente. Lembro de todos os lutz que treinamos à exaustão e
controlo o sorriso que quer subir ao meu rosto. A música que escolhemos
tem uma carga dramática enorme e se eu sorrir agora perderemos pontos na
parte de apresentação.
Assim que o oboé entra na segunda linha do tema, volto a levantar a
mão na direção de Oliver, mas não o toco. Tento mostrar no rosto toda a
carga dramática como se estivéssemos sendo afastados e, ao mesmo tempo,
fazemos um toe loop[14] triplo, apenas para aquecer. Na minha mente, vem o
pensamento de que já garantimos 4 pontos, mas logo o afasto. Preciso estar
completamente focada no programa.
A música começa a ganhar intensidade, por isso levanto os braços até
a altura dos ombros e faço um flip[15] simples.
O cisne começa a perceber que pode usar as asas, mas ainda não sabe
até quando consegue voar.
Oliver desliza para perto de mim e me abraça, seus braços
envolvendo meu peito e minha cintura. Deslizamos assim por alguns
segundos e ele então segura minha mão e, de repente, no exato momento
que a orquestra entra para dar um maior volume à música, sinto seus braços
fortes jogando o meu corpo para o alto com a exata intensidade que eu
preciso para girar e completar os três giros do salto com lançamento e
aterrissar de costas com perfeição. Escuto a plateia comemorar o nosso
primeiro movimento mais elaborado. Estamos no caminho certo.
O cisne já percebeu que pode, com ajuda, se manter no ar por alguns
segundos.
Deslizamos em um twizzle[16] de costas enquanto a música ganha
intensidade e então, Oliver se aproxima de mim, seus braços deslizando
pelo meu corpo com uma sensualidade intencional. Levantamos as pernas e
nos abraçamos, formando o formato de uma cruz enquanto ganhamos
velocidade. Então, nos abaixamos e, ainda abraçados, damos três giros ao
redor do nosso próprio eixo.
Estamos nos aproximando do final do programa e meu coração está
acelerado. Até agora, cada gesto nosso foi executado com perfeição. A
esperança começa a inundar o meu corpo. É claro que eu imaginava que
fosse possível buscar uma medalha nos jogos, mesmo com toda a confusão
que foram os últimos meses, mas agora, perto de completar com louvor o
programa curto, esse cenário deixa de ser apenas possível e passa a ser
provável.
Os violinos começam a anunciar o clímax da música se aproximando
e lanço um olhar rápido para Oliver. Chegou o ponto mais complicado do
nosso programa.
Espero que essa troca de olhares que não dura mais que um segundo,
Oliver consiga entender a mensagem que estou enviando.
Eu confio em você.
Ele segura a minha mão, assumindo a posição de pivô enquanto eu
começo a girar cada vez mais rápido em volta dele, apenas uma lâmina
apoiada no gelo, quem olha do alto fica com a impressão de que estou
deitada no rinque girando a uma velocidade absurda. Completamos a espiral
da morte e já saímos para um salchow, o pulo que treinamos centenas de
vezes, cada um seguindo para lados contrários da pista.
A música atinge o ponto máximo e deslizamos na direção um do
outro. Esse é o momento crucial da nossa apresentação. Pego a velocidade
necessária e, no momento que a orquestra explode no tema principal, pulo,
sabendo que meu namorado vai me pegar.
Sinto sua mão na minha barriga quando ele me levanta acima da
cabeça e estendo os braços para o lado, paralela ao chão, vendo o mundo
rodar enquanto Oliver gira pelo rinque.
Finalmente, o cisne consegue voar.
Damos vários giros enquanto a plateia explode batendo palmas e a
música caminha para o seu final. Deixo o meu copo cair, sendo segurada
por Oliver que me pega no colo e mantém nossos olhares fixos com uma
intensidade que, tenho certeza, cria eletricidade no ar.
Apoio o meu pé no chão e continuamos girando devagar enquanto o
som da música diminui e as palmas aumentam. Estou com os braços ao
redor do pescoço dele e é como se não estivéssemos mais em Paris sendo
transmitidos para o mundo inteiro. Sinto como se estivesse em casa,
confortável, treinando no meu apartamento.
E de certa forma, estou mesmo em casa.
A música acaba e, consequentemente a apresentação, então deixo o
meu corpo cair no chão. Nada mais do que fizermos contará para os pontos,
por isso, não preciso mais manter a pose, apesar de saber que Nora Salmon
vai me criticar depois.
Sinto um corpo caindo ao meu lado e a risada feliz de Oliver. Seu
rosto transborda alívio e alegria ao ver que conseguimos concluir o
programa. Não consigo nem pensar no peso que ele carregou durante essas
semanas por ter que me acompanhar. Sei que montamos um programa
focado em mim, justamente para evitar partes muito técnicas para ele, mas
ainda assim, foi um desafio sobrehumano. E ver a alegria no rosto dele me
desmonta.
Sem pensar nas consequências, sem pensar que o mundo inteiro nos
assiste, aproximo o meu rosto do dele e o beijo. O calor das nossas línguas
faz um contraste com o frio do nosso corpo e, após o breve instante de
surpresa, sinto uma mão no meu pescoço em um carinho amoroso.
Obviamente, a plateia explode e mal consigo ouvir o que ele me diz.
— Conseguimos, desgracie.
Reviro os olhos com o apelido infame, mas abro logo um sorriso.
Me levanto e o puxo pela mão. Passamos quase um minuto
deslizando de um lado para o outro no rinque agradecendo aos jurados e às
pessoas na plateia que não param de bater palmas por um segundo sequer.
Seguimos para a saída do rinque e logo somos abraçados por Mrs.
Mulligan, envolvendo os braços ao nosso redor.
— Eu sabia que vocês estavam treinando fora dos rinques. — Ela
pisca para nós e entendemos o que ela quer dizer. Felizmente, ela não disse
nada muito explícito, porque tem microfones e câmeras espalhados em toda
parte.
Clarice e Trinity logo se juntam a nós, comemorando.
— Vocês fizeram a segunda melhor pontuação técnica até agora —
Clarice grita e, por mais que eu queira parecer profissional, saber que
conseguimos tantos pontos com um programa mais simples me deixa
eufórica.
— Vocês vão destruir na parte de apresentação — Trinity adiciona. —
Eu nunca vi uma sincronia tão grande. — Ela olha para mim e segura o meu
rosto com as duas mãos. — Mulher, que entrega foi essa. Parece que eu
estava assistindo um filme. Não sabia que você era atriz.
Seguro a mão de Oliver, entrelaçando os nossos dedos. Sinto o
cansaço e o frio finalmente se espalhando pelos meus músculos. Então,
como se tivessem adivinhado meus pensamentos, sinto uma jaqueta grossa
ser colocada nos meus ombros por alguém que se aproxima pelas minhas
costas.
— Parabéns. Vocês foram muito bem.
Me viro para observar Nora Salmon ajeitando a minha jaqueta. É
claro que ela saberia exatamente o que eu preciso nesse momento. Essa é
uma posição que ela já presenciou dezenas de vezes ao longo da carreira.
— Obrigado, Mrs. Salmon — Oliver diz, abrindo um sorriso.
Percebo no olhar da minha mãe que ela tem várias críticas a fazer,
mas, por um milagre do universo, ela não diz mais nada, apenas retoma
para o lugar onde estava sentada junto ao meu pai. Ele levanta a mão em
um aceno quando percebe o meu olhar.
— Sei que vocês estão destruídos — Ciara começa. — Mas vão ter
algumas horas para descansar antes do programa longo. Agora precisamos
receber a pontuação total.
Concordo e, de mãos dadas com meu namorado, seguimos os três
para a área onde uma câmera já está posicionada nos esperando. Nos
sentamos, a ansiedade voltando a tomar conta do meu corpo agora que
estou fora do rinque. Será que conseguiremos uma pontuação tão boa assim
na parte de apresentação? Eu sei que tivemos uma sincronia perfeita e não
perdemos pontos por nenhum deslize, mas ainda tenho minhas dúvidas. O
lago dos cisnes é um tema um pouco batido, fico receosa de que sejamos
penalizados por isso.
— Vai dar certo, o pior já passou. — Escuto o sussurro de Oliver no
meu ouvido e me permito soltar o ar que eu nem percebi que estava
prendendo.
Estou tão mergulhada nos meus pensamentos, que demoro um
segundo para entender de onde vem a gritaria ao meu redor. Só então olho
para o telão.

GBR - GRACIE SALMON/OLIVER FISHER


ELEMENTOS TÉCNICOS: 43,36
APRESENTAÇÃO: 39,51
DEDUÇÕES: 0,00
TOTAL: 82,87

Sinto minha cabeça ficar leve ao ver uma nota tão alta no placar. Eu
esperava, no máximo, chegar perto de 80 e, ainda sim, sendo otimista.
Jamais passar disso. A tela logo muda para a classificação geral, mostrando
que estamos em primeiro e, a cereja do bolo, mostrando que a dupla em
segundo lugar é Kate Willians e Pierre Durant.
Sei que esse não é um pensamento digno, muito menos algo do qual
eu deveria me orgulhar, mas não posso negar que ver Pierre perder a
liderança para mim vale mais do que qualquer pontuação. Não sei o que vai
acontecer na execução do programa longo, mas sinto que já valeu a pena vir
até aqui.
CAPÍT ULO 42 - OLIVER FISHER

Todas as pessoas ao nosso redor estão se esforçando para não colocar


pressão em mim e na Gracie, mas sinto que o próprio ambiente já faz isso
por si só. Uma nota ruim no programa curto seria motivo de desânimo, mas,
ao mesmo tempo, uma nota boa não é motivo para que a gente relaxe. Por
mais que eu esteja feliz, me sinto flutuando entre um lugar ruim e um
péssimo, e o lugar bom só vai estar disponível quando estivermos no pódio,
com uma medalha pendurada no pescoço.
— As pessoas na internet estão surtando — Trinity comenta.
Ela está sentada ao lado de Clarice e de tempos em tempos elas
apontam alguma coisa no celular uma da outra, como adolescentes
acompanhando a live de um show do seu artista favorito. Só que, ao invés
disso, são milhares de vídeos meus e de Gracie correndo pela tela, dos mais
diversos ângulos possíveis.
— As pesquisas pelos nomes de vocês aumentou em 600% — Clarice
complementa. — As pessoas estão tão obcecadas que nem parecem se
lembrar que um dia você patinou com o Pierre, Gracie.
— Ótimo — Gracie ri. — Eu também quero esquecer.
A minha risada acompanha a dela, meus dedos deslizando pela palma
da sua mão. Estamos numa sala reservada aos competidores do dia, mas,
depois que nos beijamos na frente de todo mundo, não existe mais razão pra
fingir que não estamos juntos. Trinity sugeriu fugir das perguntas durante as
coletivas de imprensa e assumir mais tarde nas redes sociais, de preferência
em um post junto com uma medalha para exibir.
— Quinze minutos para o programa longo — Mrs. Mulligan diz, da
porta, e eu vejo nos seus olhos que ela acredita em nós dois mais do que
qualquer um aqui.
— Vamos pegar nossos patins — Gracie pede, levantando-se do sofá
onde estava sentada, bem ao lado do meu. — Gosto de ficar pronta o quanto
antes.
Eu movo a cabeça em afirmativa, observando os detalhes do seu novo
vestido. O delicado body rosa deu lugar a um vermelho e preto, com
pedrarias que lembram uma cobra. Sua maquiagem também foi refeita,
agora com um batom escuro que contorna perfeitamente sua boca e uma
sombra reluzente que deixa seus olhos marrons ainda mais brilhantes.
— O que foi? — ela pergunta, percebendo minha falta de movimento.
— Nada — respondo. — Você tá linda.
— Ai meu Deus — Trinity ri. — Não me façam sair daqui shippando
vocês também.
— Pelo menos você tem namorado — Clarice reclama. — Isso é um
desafio pra nós, almas solteiras.
Gracie ri, me puxando pela mão.
— Vocês sabem o que precisam fazer — Mrs. Mulligan murmura,
quando passamos por ela. — Estão sincronizados o bastante para conseguir
prata ou, dependendo do nível dos outros competidores, ouro.
A expressão inteira de Gracie se ilumina quando a treinadora solta
essas palavras. Eu já sei o quanto ela quer o primeiro lugar, mas ver seu
corpo reagindo à ideia de realmente chegar lá sempre coloca um pouco
mais de pressão em cima dos meus ombros e isso não é culpa da Gracie. Na
verdade, é culpa minha, por amá-la tanto e querer tanto dar esse sonho pra
ela.
— Obrigada, Mrs. Mulligan — Gracie sorri, apertando as mãos da
treinadora. — Você sabe que nada disso seria possível sem você.
A mulher assente.
— Vão lá. Dez minutos!
Eu e Gracie saímos da sala ainda de mãos dadas e é impossível não
notar quando todos os olhares caem em nós. A mídia positiva em torno dos
nossos nomes nas últimas semanas era o bastante para assustar os atletas
mais paranóicos, mas, agora, depois de uma nota tão alta, todos realmente
tem motivos para se preocupar.
— Credo — Gracie murmura, quando um casal de patinadores passa
por nós, nos observando de cima a baixo. — Sinto que estou perto de
vomitar.
— Relaxa — eu respondo, mesmo não estando nada relaxado. — Vai
ser pior quando ganharmos o ouro.
Gracie ri.
— Eu ficaria feliz com o segundo lugar.
— Não. — Movo a cabeça em negativa. — Você merece o melhor.
Uma medalha de ouro pra minha garota ou nada.
Ela move a cabeça em negativa, como se dissesse que sou
inacreditável. Eu roubo um beijo seu e tenho a impressão que várias
câmeras capturaram o momento, mas não me importo.
— Vamos lá — Gracie murmura, fazendo uma careta quando precisa
se afastar. — Oito minutos.
Eu movo a cabeça em afirmativa. Nós seguimos em direções opostas,
eu para o vestiário masculino e ela para o feminino. O espaço é gigantesco e
tem um armário para cada atleta, com o nome e a bandeira do país
correspondente estampados na porta. Eu arqueio uma sobrancelha quando
vejo que o cadeado do meu escaninho está aberto. Tenho certeza que o
tranquei antes de sair, depois de guardar minhas coisas quando terminei o
programa curto.
Franzo o cenho. Abro a porta e dou uma olhada nos meus pertences,
mas tudo parece em perfeito estado. Eu pego a bolsa onde guardo os patins
e confiro, só para ter certeza que não tiraram nada daqui.
Tudo certo.
Pego meu celular e deslizo pelas últimas mensagens. Hank e Linda
mandaram fazer camisetas com uma foto minha e da Gracie, de quando
ainda éramos crianças. Tyler disse que está torcendo para a dupla da Rússia,
porque a patinadora é muito gostosa e Erik acaba de remover ele do nosso
grupo. Atlas[17] me mandou uma sequência de mensagens em caixa alta
perguntando porque eu não disse que estava patinando e que teria vindo pra
Paris se soubesse — ele não é muito ligado em nada que acontece fora da
bolha americana da NFL e NHL. Vincent mandou um áudio, muito
provavelmente bêbado e muito provavelmente comemorando as nossas
notas, mas eu não respondo nenhuma dessas coisas. Guardo o celular de
volta, porque não posso perder o foco.
Eu tranco o cadeado e me viro na direção da saída, mas esbarro em
Pierre antes de conseguir sair. Esse queijo coalho infeliz parece estar em
todos os lugares nas últimas vinte e quatro horas.
— E aí — ele cumprimenta, o sotaque francês entediante machucando
meus ouvidos. — Foi um bom programa curto, parabéns. — Eu não
respondo, porque a sua repentina gentileza me choca. Obviamente, ela não
dura muito. — Mas nós, profissionais de verdade, sabemos que o longo é o
que realmente importa. Estão em primeiro lugar, mas não por muito tempo.
— Se massageia o seu ego pensar assim…
Pierre apoia uma das mãos no meu ombro.
— Ainda dá tempo de desistir.
Sinto seus dedos tremerem contra a minha pele. Não consigo ver o
estado das suas pupilas, porque ele desvia o olhar antes que eu possa, mas
eu apostaria muito dinheiro que Pierre está dopado hoje.
— Um patinador novato te deixou com tanto medo? — ironizo,
empurrando sua mão pra longe.
— Você não é um patinador. — Pierre revira os olhos. — É um
jogador de hóquei — ele debocha, movendo a cabeça em negativa, como se
hóquei e patinação fossem mundos completamente distintos. Não dá pra
dizer que ele está errado, mas a sua forma de falar me irrita.
— É pior assim — digo, respirando fundo para manter a calma. —
Vai perder pra um jogador de hóquei.
— Isso não tem a menor chance de acontecer — Pierre murmura, e a
sua tranquilidade me deixa curioso. É quase como se ele soubesse de
alguma coisa que eu não sei. — A Gracie não te contou? Eu nunca perco.
— Pra tudo tem uma primeira vez.
— Não conte com isso — ele ri. — E diga a Gracie que ela pode me
procurar quando estiver cansada de brincar de namorada de ex-presidiário.
A minha raiva toma conta de mim por um segundo. Eu ouço o
barulho do corpo de Pierre batendo contra os armários, mas, felizmente,
minha mão não se move na direção do rosto dele como eu gostaria de fazer.
Diferente daquele dia com o meu adversário no hóquei, eu não avanço. Foi
só um empurrão.
— Sabe o que acontece se bater em mim. — Pierre abre um sorriso.
— Vá em frente.
— Você tem sorte da Gracie estar patinando comigo — digo. —
Porque, se não fosse por ela, você não sairia desse vestiário sem precisar da
porra de um cirurgião plástico.
— Não vai demorar muito tempo até ela perceber que a relação de
vocês é um erro.
— Foda-se, Pierre. — Eu me afasto dele. Machucá-lo seria uma
vitória, mas não pra mim. — Sabe o que eu acho? Foi você quem percebeu
a merda que fez. Você tinha uma namorada incrível, então, você machucou
ela. Você traiu ela. Você quebrou a porra das insulinas dela. — Balanço a
cabeça, incrédulo. — Você tá se dando conta que não é nada sem a Gracie,
mas agora é tarde demais. Boa sorte — eu murmuro, por fim. — Vai
precisar de muita.
Eu saio do vestiário e corro até a lateral da pista de gelo, onde Gracie
e Mrs. Mulligan estão me esperando.
Gracie me encara.
— Você demorou.
— Estava tendo uma conversa muito animada com o seu ex.
Ela arregala os olhos.
— Por que ele estava no vestiário? — pergunta. — A apresentação
dele é daqui a uma hora.
Dou de ombros.
— Isso não importa — aponto para a pista. A música da dupla que se
apresentou antes de nós termina e eles cruzam o rinque para receber os
aplausos da plateia. — Vamos fazer isso.
Ainda um pouco desconfiada, Gracie move a cabeça em afirmativa.
Mrs. Mulligan apoia uma das mãos no meu braço enquanto eu coloco meus
patins, me incentivando e descontando seu próprio nervosismo ao mesmo
tempo.
— E agora… Gracie Salmon e Oliver Fisher!
Me posiciono no centro do rinque e espero, a expectativa de como
será a reação da plateia quando a música começar. Percebo o olhar de
Gracie na minha direção, seus olhos ainda me julgam por ter escolhido
aquela música. Quando nos sentamos com Mrs. Mulligan para escolher
quais seriam as duas músicas dos programas, Gracie logo sugeriu o lago dos
cisnes, ela já tinha todo o conceito na mente. Não questionei, apesar de não
ter o costume de ouvir música clássica, sei que esse é um gênero muito
usual no mundo dela.
E foi aí que me veio a ideia de qual seria o conceito geral da nossa
apresentação: o encontro entre dois mundos completamente diferentes.
Fecho os olhos, a concentração no máximo quando escuto a voz
enlouquecida de Ozzy Osbourne ecoando pelo rinque:
ALL ABOARD![18]
Seguido de uma risada maníaca. Tenho quase certeza que escuto
alguém gritar de susto na plateia e sinto que meu plano deu certo. A guitarra
começa no mesmo tempo que eu e Gracie damos impulso para começar a
deslizar pelo rinque.
Maybe it’s not too late
To learn how to love and forget how to hate[19]
Se no programa anterior nossos movimentos eram delicados e
precisos, dessa vez temos mais liberdade para seguir a distorção da guitarra
e abusar de movimentos dos braços e pernas enquanto deslizamos pelo
gelo.
O mundo de Gracie é rígido e cheio de regras, o meu é solto e a
palavra de ordem é liberdade.
E somos a prova viva de que os dois podem conviver em harmonia.
Faço o primeiro toe loop do programa e, não sei se é impressão
minha, mas sinto que meus pés estão apertados demais dentro desse patins.
Eu quase perco o equilíbrio, mas é tão rápido que isso poderia facilmente
ser algo da minha mente. De qualquer forma, aterrisso no gelo sem
problemas, executando o movimento com perfeição.
Ao contrário do primeiro programa, dessa vez podemos sorrir e
mostrar o quanto estamos nos divertindo. Como se quisesse ressaltar que
agora tudo é permitido, Ozzy canta o refrão.
I’m going off the rails on a crazy train.[20]
Eu realmente fiquei surpreso que Gracie não tenha barrado essa
música quando eu sugeri. É claro que a sugestão vai muito além do fato de
ser uma música que gosto, ela também mostra o choque entre o mundo do
hóquei e a patinação. A sensação que eu tenho é que estou mesmo em um
crazy train.
Gracie vem ao meu encontro e me abraça, logo em seguida, damos
dois giros sem sair do lugar e inclinamos nossos corpos para trás, quase
encostando a ponta do dedo no chão. O sorriso no rosto de Gracie faz cada
uma das minhas escolhas nas últimas semanas valerem a pena e não
consigo deixar de pensar que eu poderia viver para fazê-la sorrir sempre.
Por ela eu toparia entrar nesse trem louco da patinação e nunca mais
descer.
Ganhamos velocidade enquanto deslizamos pelo gelo e Gracie dá o
seu axel triplo caindo com perfeição com a perna esquerda levantada para
dar equilíbrio. Eu pesquisei sobre esse salto e fiquei surpreso ao descobrir
que era tão difícil. Minha namorada o faz com uma facilidade imensa que
dá a impressão que é tão simples quanto caminhar.
Assim que ela aterrissa, estou ao seu lado e logo seguimos para um sit
spin, [21]
girando a uma velocidade tão alta que faz as arquibancadas
parecerem um borrão. Assim que levantamos, damos uma volta no rinque
em direções contrárias e assim que nos encontramos, seguimos juntos
deslizando abraçados para o delírio da torcida. Agora que não é mais
segredo que estamos mesmo juntos, todas as vezes que nos tocamos,
escutamos os gritos empolgados da plateia.
Pegamos um pouco mais de impulso e aproveito a velocidade para
arremessar Gracie pelo ar como se fosse uma espécie de pião humano em
um lançamento com salto. Ela aterrissa, mais uma vez com perfeição. E a
cada movimento, mais eu percebo o quanto essa mulher é incrível e o
quanto sou um homem de sorte por estar ao lado dela.
Sinto, mais uma vez, os patins apertarem meus dedos, fazendo eu me
desequilibrar um pouco, mas nada a ponto de me derrubar. Sinto minha pele
arder. Lanço um olhar preocupado para os meus pés. Os cadarços estão
amarrados, então não faz sentido aquela instabilidade. Olho para Gracie,
mas ela não nota o que aconteceu, pois ainda está se recuperando do último
salto.
Não faz sentido eu preocupar ela com isso. Até porque, o programa já
está chegando ao fim.
Não sei se é por causa do que acabou de acontecer, mas o verso
seguinte da música soa como um agouro.
I know that things are going wrong for me.[22]
O solo de guitarra começa e sei que estamos chegando ao fim. Me
preparo para o pulo que ensaiamos centenas de vezes nas últimas semanas.
Novamente, leio a confiança em mim estampada no rosto de Gracie, por
isso, mesmo com minha intuição dizendo o contrário, pego impulso para o
salchow. Por ela.
Eu percebo que algo deu errado assim que perco o apoio do gelo.
Estou no ar, mas minha perna esquerda não teve o impulso suficiente para
completar o salto, por isso, sei que não terei o apoio correto quando voltar a
pisar no rinque.
Sem ter nada que eu possa fazer, meu corpo vai ao chão.
Tenho a impressão de ouvir o coro de decepção da plateia antes dos
sons ao meu redor ficarem baixos, como se meus tímpanos tivessem
acabado de explodir. O gelo corta minha pele e minha cabeça dói de um
jeito que parece que vai me matar. Minha visão escurece, então volta ao
normal, então escurece de novo.
É como ver um filme picado.
— Por que ele não se levanta? — Tenho a impressão de ouvir o
questionamento, vindo de algum dos hosts da competição.
Aperto os olhos, tentando focar.
Gracie está sentada do meu lado no gelo. Sua boca se move e eu sei
que ela está dizendo alguma coisa, mas nenhuma das suas palavras chega
até mim. É como se eu estivesse vendo tudo em câmera lenta, de um lugar
distante, minha visão turva e embaralhada. Eu tento me mexer, mas o
mundo gira centenas de vezes ao meu redor, causando uma dor ainda mais
intensa.
Mais pessoas entram na pista.
Pessoas vestidas de branco.
Gracie ergue uma das mãos e eu vejo que tem sangue nos dedos dela.
Não consigo entender se a machuquei com a minha queda ou se esse sangue
é meu. Meus olhos ficam pesados. Ela sacode suavemente meus ombros,
mas, apesar de ver seu gesto, eu não sinto seus toques. É como se meu
corpo inteiro estivesse adormecido pela dor.
Eu tento me manter acordado, mas a escuridão e o silêncio completo
tomam conta de mim antes que eu possa registrar qualquer outro detalhe.
CAPÍT ULO 43 - GRACIE SALMON

Sinto que, de repente, alguém jogou meu corpo em um lago profundo,


onde os sons, imagens e toda a percepção de realidade não conseguem me
alcançar. Vejo a equipe médica carregando Oliver para fora do rinque
enquanto as câmeras se movem ao nosso redor procurando o melhor foco
como moscas atraídas pela carniça.
— Já chega! — Escuto uma voz que me parece familiar e um braço
apoia sobre os meus ombros. — Bando de abutres.
Olho para o lado e percebo o cabelo grisalho de uma mulher mais
baixa que eu. Ela me leva para fora do rinque enquanto faz gestos com as
mãos para bloquear nossa imagem e impedir que as câmeras foquem o meu
rosto.
O que está acontecendo?
Minha mente está confusa. Em um momento, estávamos no auge, no
pico da apresentação, a poucos minutos de receber nossa pontuação e ter
uma noção se estaríamos ou não na briga pelo pódio. De repente, meu
mundo desaba. Quase de uma forma literal.
Isso não faz o menor sentido.
A cena se repete na minha mente em um loop interminável. Nós
treinamos o salchow duplo centenas de vezes nas últimas semanas e, por
mais que Oliver não seja originalmente da patinação, ele conseguiu dominá-
lo com perfeição. Os gritos de “mais uma vez!” de Ciara ainda ecoam na
minha mente, me lembrando dos treinos exaustivos que fizemos desse salto.
Ok, erros acontecem nas apresentações, mas não consigo aceitar que tenha
sido nessa parte. Simplesmente não faz sentido.
Algo aconteceu.
— Gracie… Gracie!
Escuto o grito e minha atenção volta para o rosto da minha treinadora.
Estamos na lateral do rinque e, só agora, percebo que estou sendo levada
para a sala de espera enquanto Oliver é carregado em uma maca para longe
de mim.
— Não!
O grito sai da minha garganta e tento correr na direção onde a equipe
médica está, mas os patins me atrapalham e não consigo alcançá-los. O
máximo que consigo é chegar perto de um segurança que levanta a mão,
bloqueando o meu acesso.
— Desculpe, mas a senhorita não pode passar.
— Eu sou a dupla dele! É claro que posso passar! — A voz sai
esganiçada, tremida, e só um esforço hercúleo me impede de começar a
chorar. Sei que tem câmeras ao redor captando toda essa desgraça. Do jeito
que a mídia é, provavelmente interrompeu a programação em outros canais
para mostrar, em tempo real, como um sonho pode ser despedaçado em
questão de segundos. — É o meu namorado!
Sei que tínhamos combinado de revelar isso depois da competição em
um post no Instagram, junto com nossa nova medalha, mas esse plano
parece pertencer à outra vida e não a meros vinte minutos atrás.
— Desculpe, senhorita, ordens são ordens.
Tento me esgueirar ao lado do segurança, o que se mostra uma tarefa
impossível por dois motivos: ele é um armário e eu ainda estou com a
mobilidade reduzida por causa dos patins.
— Gracie, vem, nós precisamos sair daqui.
Escuto a voz de Ciara ao meu lado, mas não me importo com o que
ela diz. Só tem um lugar onde quero estar agora e saber que não posso ir
para lá me deixa ainda mais frustrada por não estar patinando nesse exato
momento.
Minha treinadora começa a, gentilmente, mas com força, me puxar
para a sala de espera contra a minha vontade. É quando vejo um homem de
roupa branca caminhando na minha direção. Ele passa pelo segurança e
para na minha frente.
— Sinto muito pelo o que aconteceu. — Ele carrega o par de patins
de Oliver e logo estende a mão me entregando. — Se quiser ficar com eles.
Eu não quero ficar com a droga dos patins. Eu quero o meu
namorado. Quero saber se ele está bem e, sobretudo, quero saber como isso
aconteceu.
Acho que o homem percebe a minha confusão, porque logo
acrescenta.
— Oliver está desacordado por causa da pancada, mas vai ficar bem.
Claro que vamos fazer alguns exames só para ter certeza, mas daqui a
pouco você vai poder ficar com ele.
Não sei porque, mas seu comentário não me tranquiliza. Ao longo da
carreira, aprendi a não confiar cegamente em médicos. Em um primeiro
momento, eles querem te acalmar, independente de quão ruim a situação
seja. A pista de gelo ainda está suja de sangue.
— Eu quero ficar com ele agora!
O grito atrai olhares na minha direção, mas eu não poderia me
importar menos.
— Eu entendo o quanto deve estar sendo difícil para…
— Você não entende nada! — corto, as lágrimas finalmente
começando a descer.
Penso em tudo o que estava em jogo: minha carreira, meu orgulho, o
nome Salmon, mas tudo isso fica em segundo plano perto da preocupação
com Oliver. Depois de tudo o que passamos, não é justo que isso esteja
acontecendo com a gente.
— Meu bem, precisamos ir — diz minha treinadora, com o tom mais
gentil possível.
— Eu sinto muito mesmo, senhorita Salmon — o médico diz, antes
de se afastar.
Me deixo ser guiada de volta para a sala de espera onde um grupo me
aguarda. Percebo Clarice, Trinity e meus pais me olhando de longe, como
se não soubessem o que dizer, uma mistura de medo e receio pairando no ar.
Minha mãe é a primeira que vem na minha direção. Sem falar nada,
envolve os braços ao meu redor.
Então, a represa em meu peito se rompe e as lágrimas jorram em
soluços que me fazem engasgar diversas vezes.
— Desculpa, mãe. Me desculpa. Me desculpa.
Começo a repetir essas palavras sabendo que a decepcionei, que
joguei o nome Salmon na lama por não conseguir fazer igual a ela. Sei que
o que aconteceu hoje vai manchar minha carreira e nunca vou chegar onde
ela chegou. Apesar de tudo o que ela fez por mim, no final, eu não alcancei
suas expectativas.
— Gracie — ela começa, mas não consigo prestar atenção. Lágrimas
e soluços se embolam com pedidos de desculpas me isolando em um
mundo só meu. — Gracie! — Ela me sacode e meus olhos conseguem
mirar o rosto dela. Seus olhos estão marejados e essa visão me desconcerta.
Eu nunca vi minha mãe chorando antes. — Para com isso. Eu te disse antes
e vou repetir, estou orgulhosa de você. O importante agora é o Oliver ficar
bem.
Sinto meu corpo inteiro sacudir enquanto as lágrimas drenam a
energia que resta em mim. Ver Nora Salmon preocupada com alguma coisa
além do primeiro lugar me deixa ainda mais tensa. A queda do Oliver…
Meu Deus. Deve ter sido alguma coisa grave. De novo, não consigo confiar
nas palavras do médico. Acho que minha mãe percebe que não estou
conseguindo ficar em pé, pois logo me leva para um banco. Ciara se abaixa
na minha frente, removendo os meus patins e coloco os de Oliver ao meu
lado. Só então permito que o meu mundo termine de desabar de vez.
Os últimos meses passam na minha mente como um filme trágico.
Vejo flashes da live que fiz anunciando o término com Pierre, a dificuldade
para achar um novo parceiro e treinadora, a falta de sincronia que tivemos
no início, as várias discussões, os longos treinos e, no meio de tudo isso, o
amor que começou a crescer e construir sonhos de conquistar os lugares
mais altos.
Você merece o melhor. Uma medalha de ouro pra minha garota ou
nada.
Sinto meu peito rasgar ao me lembrar da promessa de Oliver instantes
do acidente acontecer. Sinto vontade de gritar, de socar algo para descontar
a raiva, mas sei que nada disso vai adiantar, por isso, apenas deixo as
lágrimas escorrendo por um tempo que não sei mensurar se são minutos ou
horas.
Os patins de Oliver caem do banco. Olho para o calçado e, pela
primeira vez desde que os recebi, percebo algo que não tinha reparado.
Parece que eles nunca foram usados antes.
Limpo o que resta de lágrimas no meu rosto e me abaixo para
observar melhor. Não há dúvidas quanto a isso, a lâmina está intacta, como
se Oliver a tivesse usado pela primeira vez. Isso não faz sentido. Oliver não
disse que tinha trocado de patins, até porque se tivesse dito, eu teria
proibido. Todo mundo sabe que você precisa amaciar os patins por umas
duas semanas antes de usá-los para saltos e movimentos mais elaborados.
Patins novos têm um risco muito maior de derrubar e lesionar o atleta por
não estar completamente adaptado aos pés.
Todo mundo sabe disso, menos o Oliver. No hóquei eles não devem
ter essa preocupação, já que não exigem tanto dos patins.
Sinto o peito acelerar, mas isso não faz sentido. Eu estive com ele o
tempo todo nos últimos dias. Se ele tivesse comprado novos patins, eu
saberia. Por via das dúvidas, pergunto à Clarice que ainda me olha, sem
entender do meu interesse repentino no calçado que Oliver usava.
— Você sabe se o Oliver comprou patins novos?
Suas sobrancelhas se juntam na testa por um instante enquanto ela
balança a cabeça de um lado para o outro. Sei que não tem como ela saber
disso, mas não me importo de parecer irracional no momento.
Os patins na minha frente são idênticos aos que meu namorado usou
durante todas essas semanas. Se não fosse pela lâmina intacta, não daria
para notar que eles foram trocados.
Meus pensamentos focam na última palavra e logo um ódio que
nunca senti antes começa a nascer dentro do meu peito e crescer de uma
forma descomunal.
Estava tendo uma conversa muito animada com o seu ex.
A lembrança faz o meu corpo inteiro queimar de raiva. E o grito que
estava contido dentro de mim rasga a minha garganta enquanto me coloco
de pé. Saio em disparada pela sala sem dar a menor satisfação. Sei que vão
pensar que enlouqueci por estar correndo pelos corredores descalça, com a
maquiagem borrada pelo choro e o cabelo saindo do penteado
cuidadosamente elaborado para a apresentação. Mais uma vez, não poderia
me importar menos.
Escuto a voz da Clarice vindo de algum lugar atrás de mim, o que me
faz pensar que ela está me seguindo, mas não olho para trás. Meu foco é
apenas um: encontrar e destruir o Pierre. Agora eu entendo porque ele
estava no vestiário masculino uma hora antes da apresentação dele. Meu
Deus, como eu fui idiota. Uma pontada de culpa ameaça nascer dentro de
mim, mas ela é devorada pela raiva.
Saio para a área perto do rinque e percebo que as apresentações
acabaram. No telão, a lista de classificação das duplas mostra que a Grã-
Bretanha ganhou o primeiro lugar com Kate e Pierre. Em último lugar, com
a promissora pontuação de 82,87 do programa curto, meu nome e do Oliver
fecham a lista.
Ler isso é como jogar ainda mais lenha na fogueira que queima dentro
de mim.
Meus olhos varrem o lugar e logo param em um pequeno grupo não
muito longe da entrada do rinque. Felizmente a maior parte da plateia já foi
embora, então consigo correr na direção da coletiva que acontece antes da
premiação.
E lá está ele, todo sorridente enquanto responde às perguntas dos
jornalistas ao vivo.
Corro como nunca corri antes.
Escuto, novamente, a voz da Clarice, dessa vez mais próxima, mas
não diminuo o ritmo. Desvio das pessoas no meu caminho e, antes que o
mesmo segurança que eu vi minutos ou horas atrás — o tempo parece ter
parado de fazer sentido depois de tudo o que aconteceu — percebesse
minha aproximação, eu já tinha passado por ele e estava parada ao lado de
Pierre. O coração acelerado, os jornalistas olhando para mim sem reação,
mas o mais assustado de todos é meu ex-namorado, que olha para mim
como se eu fosse uma assombração. Pela visão periférica, vejo que o
segurança tenta vir na minha direção, mas é impedido por alguém.
Mil pensamentos passam pela minha cabeça, sei que tenho poucos
segundos para fazer algo e, logicamente, minha vontade é de dar um soco
naquele rosto asqueroso, mas logo percebo que tenho uma oportunidade de
ouro nas mãos.
CAPÍT ULO 44 - OLIVER FISHER

“I was tame, I was gentle till the circus life made me mean
Don't you worry, folks, we took out all her teeth
Who's afraid of little old me?
Well, you should be”[23]
Who’s afraid of little old me? — Taylor Swift

Minhas pupilas ardem quando abro os olhos.


O mundo ao meu redor é branco. O teto, a luz que ilumina meu rosto,
as paredes. Por um segundo, eu até penso que morri e cheguei ao outro
lado, mas tenho certeza que não é assim que as coisas acontecem. Meu
raciocínio ainda é lento, mas os beeps do monitor cardíaco ligados ao meu
corpo me fazem perceber que estou no hospital.
Ok, não foi dessa vez.
Eu tento erguer o corpo. Minha cabeça lateja. Antes que eu possa
reclamar, Trinity exclama ao meu lado:
— Meu Deus, você acordou!
Eu assinto, meio sem jeito, enquanto minha agente se levanta para
chamar um médico. Tento me lembrar de tudo que aconteceu. Eu e Gracie
estávamos indo bem, então… Eu caí. Sendo mais preciso, acho que parti
minha cabeça ao meio naquela pista de gelo.
— Boa tarde, Mr. Fisher — o médico me cumprimenta, com uma
prancheta nas mãos. — Como está se sentindo?
Faço uma careta, porque não sei definir muito bem.
— Sua cabeça está doendo? — ele continua, percebendo minha falta
de resposta.
— Sim.
Ele assente.
— É normal nesse tipo de acidente. Você teve uma concussão —
explica. — Já fizemos os exames necessários e não aconteceu nada mais
grave, mas pode ser que você continue sentindo uma dor de cabeça intensa
nos próximos dias. Tontura, enjoo, movimentos descoordenados e confusão
mental também são comuns. Vai ter que tirar umas duas semanas de
repouso e vamos te deixar em observação até a noite, só pra ter certeza que
está tudo bem.
Eu assinto, ainda um pouco atordoado. Não sei se minha dor é física
ou emocional. Não acredito que estraguei tudo tão perto de conseguir o
primeiro lugar. Tenho certeza que a Gracie está planejando meu assassinato
agora.
— Como é que foi a recepção das pessoas? — eu pergunto pra
Trinity, assim que o médico se retira de novo.
Ela está com o celular na mão, rodando pelo feed das redes sociais.
Em um primeiro momento, ela ignora a minha pergunta. De repente, seus
olhos se arregalam e Trinity me encara, a expressão de pura ansiedade
tomando conta do rosto.
— A Gracie deu uma coletiva de imprensa vinte minutos atrás — é
tudo que ela diz antes de correr pelo quarto pra pegar o controle da
televisão e colocar no canal de esportes.
A imagem de Pierre e Kate preenchem a TV. No canto inferior da
tela, uma faixa vermelha identifica os dois como sendo a dupla que levou o
ouro na patinação artística. Sinto vontade de voltar pro gelo e bater a cabeça
mais umas quinze vezes, só pra ter certeza que meu crânio esfarelou e vou
ficar em coma tempo suficiente para esquecer essa derrota.
— Estamos muito felizes em levar mais uma medalha de ouro pra
casa… — Pierre começa, sorridente. É estranho ver o seu personagem
tomar forma diante das câmeras. O seu olhar, a sua postura, tudo é muito
diferente do homem com quem conversei no vestiário. Ele devia seguir a
carreira de ator.
Antes que ele possa terminar a frase, a expressão tranquila e vitoriosa
no seu rosto desaba. As câmeras se viram e eu vejo Gracie correndo na
direção dele, com uma Clarice atônita tentando alcançá-la. Eu conheço
aquele olhar no rosto dela. Gracie Salmon está puta, mas, pra variar um
pouco, não é comigo.
Trinity apoia uma das mãos na testa, preocupada.
— Parabéns, Pierre — Gracie diz, com um sorriso de orelha a orelha,
que não combina em nada com a sua maquiagem borrada. Odeio saber que
ela estava chorando. — Estou tão orgulhosa de você! Por que você não
conta pras câmeras um pouquinho sobre o jeitinho Durant de patinar?
Um dos seguranças tenta tirar Gracie de cima do palco, mas é tarde
demais. Todos os jornalistas estão focados nela, curiosos com o que pode
vir a ser a fofoca do ano.
Pierre dá um sorriso nervoso.
— Acho que não tem segredo — ele diz. — Só muito trabalho duro e
dedicação.
Kate assente, com um sorriso tão travado quanto o de Pierre.
— Ah, não seja humilde — Gracie ri. — Conta pra gente sobre os
seus métodos não convencionais de patinação.
— Pode ser mais clara a respeito do que você está falando, senhorita
Salmon? — uma das repórteres pergunta.
— Claro — Gracie responde, e a expressão de bom moço de Pierre se
desfaz por completo. Ele está com raiva, com medo, prestes a explodir. —
Trimetazidina. É um medicamento que melhora as condições cardíacas.
Pierre é viciado nisso. Sempre usa, até mesmo nos treinos. Além do fato
dele ter colocado um par de chifres na minha cabeça e o seu
comportamento abusivo ao longo do relacionamento, esse foi o principal
motivo do fim da nossa dupla. Ele queria que eu me dopasse também.
— Não pode fazer uma acusação dessas sem provas — Kate retruca.
— Tudo bem, me perdoe. Você quer falar sobre como usou cocaína
no verão passado pra emagrecer? Tenho certeza que ainda está usando.
— Puta que pariu — Trinity exclama e começa a andar de um lado
para o outro no quarto. — Sua parceira enlouqueceu.
Uma risada escapa da minha garganta, mas eu tenho que me segurar
para não rir mais, porque minha cabeça lateja profundamente. Trinity me
olha feio, mas eu não consigo não achar graça. Gracie Salmon é mesmo
maluca e isso só me faz ter certeza que ela nasceu pra ser minha namorada.
— Testem eles — Gracie diz, por fim. — E se for mentira — ela
aponta para Pierre — pode me processar.
Gracie ameaça sair do palco, mas então ela muda de ideia e se volta
para as câmeras de novo.
— Aliás, eu gostaria de mencionar que o meu parceiro caiu porque
alguém trocou os patins dele. Tem alguma coisa a dizer sobre isso, Pierre?
— Sua acusação não faz sentido algum.
— Mas você estava nos vestiários uma hora antes da sua
apresentação, não estava?
Pierre fica sem jeito. Suas palavras se embolam e ele gagueja na
frente das câmeras.
— Vamos encerrar essa entrevista por aqui — Kate pede.
Meus pensamentos voam em direção à conversa que tivemos no
vestiário e as peças desse quebra-cabeças começam a se encaixar. O
cadeado aberto no meu armário, a instabilidade dos patins durante a
apresentação, minha queda em um dos saltos que eu e Gracie ensaiamos
mais vezes. Filho da puta. Eu devia ter quebrado os dentes dele quando tive
a oportunidade.
— Que bom que vocês já viram. — A voz de Gracie preenche o
quarto. Ela ainda está com a mesma roupa da nossa apresentação, mas
agora com o rosto limpo. — Eu não queria ter que explicar.
Trinity passa os olhos por ela.
— O que foi isso? — minha agente protesta. — Não acredito que
passamos as últimas duas semanas fazendo limpeza de imagem pra você
jogar tudo pro alto. Acha que isso vai ser positivo pra sua carreira?
— Não fiz pensando na minha carreira.
— O quê?
— Não fiz pensando na minha carreira — ela repete, embora eu tenha
a impressão que Trinity ouviu da primeira vez. — Dane-se a medalha, nós
perdemos. — Gracie dá de ombros — Mas eu não podia deixar o Pierre sair
impune depois do que ele fez com o Oliver. Sabe quantos acidentes fatais
acontecem no mundo da patinação? Ele podia ter morrido, ficado
paraplégico ou… Sei lá, porra, muita coisa podia ter acontecido.
Trinity suspira, seus olhos claros caindo em mim. Ela espera que eu
fique do seu lado, mas não tenho nada a dizer. Mesmo que Gracie tenha
fodido nossa imagem, não é uma coisa com a qual eu me preocupo.
— Eu vou ligar pra Clarice — ela diz, por fim, derrotada.
Trinity sai do quarto, nos deixando sozinhos. Gracie me encara,
curiosa e preocupada ao mesmo tempo.
— Você está bem?
Assinto.
— Foi só uma concussão.
— Só. — Gracie revira os olhos — Ficou puto comigo?
Eu a encaro, sem entender.
— Por quê?
— Por ter destruído a nossa carreira que acabou de começar — ela ri,
nervosa. — Juntando com o seu histórico, vai ser meio difícil a gente não
ficar com fama de barraqueiros…
— Eu não me importo, você estava defendendo a minha honra —
zombo. — E ficou bem sexy enquanto fazia isso, então…
— Vai se ferrar. — Gracie levanta o dedo médio na minha direção,
aproximando-se da minha maca. Eu dou espaço para que ela sente do meu
lado e ficamos em silêncio por um instante.
— Você sabe que eu só entrei nisso por sua causa, então, se quiser
arruinar nossa carreira, vai em frente — brinco. — Só estou aqui pra seguir
ordens.
Gracie ri.
— Eu deixei o ódio tomar conta de mim quando percebi o que tinha
acontecido. Nem sei como eu tive coragem. Deus, minha mãe vai me matar.
Ela não parece, realmente, preocupada com a reação de Nora Salmon.
— Parece que você também é uma manteiga derretida que larga tudo
quando alguém que você ama tem um problema — digo, citando sua
própria frase. — Eu teria feito a mesma coisa.
— Mentira — Gracie aponta. — Você teria invadido a coletiva de
imprensa, quebrado a cara dele e deixado as pessoas tirarem suas próprias
conclusões.
— É, você foi mais inteligente que eu. — Eu apoio um dos meus
braços no seu ombro, com cuidado. Além da dor de cabeça, meus pés estão
machucados por causa dos malditos patins. Não duvido que estejam cheios
de bolhas. — Sinto muito. Sei como você queria aquela medalha.
Gracie suspira.
— Por incrível que pareça, eu não estou triste — diz. — Quando você
caiu, eu não estava pensando que perdemos, estava com medo de te perder.
Você tinha razão em dizer que eu não sou nada além da patinação. E por
mais que eu ame patinar, não quero mais ser definida pelo número de
troféus que eu ganho em um ano.
Eu procuro pela sua mão entre os lençóis do hospital.
— Você nunca vai me perder, desgracie.
Gracie segura o meu rosto, seus lábios tocando os meus num toque
que dura menos de um segundo.
— Eu espero não estar interrompendo nada.
A voz de Mrs. Mulligan toma conta do quarto e Gracie se afasta
minimamente, abrindo um sorriso na direção dela.
— Como vocês estão? — ela pergunta, no plural, e acho que as coisas
não foram nada tranquilas pra Gracie no período que eu fiquei desacordado.
— Tirei um peso das minhas costas — Gracie admite.
— Bem — digo. — Vou sobreviver.
— É uma pena que vocês não tenham finalizado a apresentação — ela
murmura, caminhando lentamente pelo quarto. — Vocês cativaram uma
torcida, hm? Vi alguns fãs aqui na porta do hospital quando cheguei. Parece
que a sincronia dos dois conquistou boa parte do mundo.
Gracie assente. Mrs. Mulligan dá uma pausa, então nos encara de
novo.
— Você vai ficar de cama por quanto tempo? — pergunta para mim.
— Duas semanas. Não foi nada grave.
Ela concorda com a cabeça, um pouco hesitante. Na verdade, é quase
como se nossa treinadora estivesse nervosa.
— Bom, eu sei que a dupla de vocês era um arranjo de emergência,
mas o campeonato mundial começa daqui sete meses, em Boston. Se vocês
quiserem continuar patinando juntos, será um prazer treiná-los de novo —
ela suspira, então sorri. — A vida de aposentada é muito entediante.
Gracie se vira pra mim, e eu não preciso dizer nada, porque ela já
sabe qual é a minha resposta. Acho que finalmente entendo o que Nora
Salmon disse sobre saber o que o parceiro está pensando. Os dedos da
minha namorada entrelaçam os meus quando ela aperta minha mão.
Estamos juntos nessa.
NEWS: Escândalo nas Olimpíadas de Paris

Escândalo nas olimpíadas


O primeiro dia de competição das Olimpíadas de Paris pode ter sido
tudo, menos calmo. Começamos o dia com Gracie Salmon e Oliver Fisher
entregando química — com direito a beijo no fim do programa curto! — e
profissionalismo na sua releitura de O Lago dos Cisnes. A dupla
caminhava para um final feliz, mas o que pareciam ser flores se
transformaram em espinhos no programa longo, quando Oliver caiu em um
dos saltos e sofreu uma concussão. Ele foi encaminhado para o hospital e
passa bem, mas se engana se você acha que a novela terminou por aqui!
Pierre Durant e Kate Willians foram os grandes vencedores da
competição, e quem não ficou nada feliz com isso foi sua ex-namorada e
parceira, Salmon, que invadiu a coletiva de imprensa da dupla e acusou
Pierre de doping, abuso psicológico e de sabotar os patins do seu parceiro.
Hoje de manhã, a Associação Olímpica Britânica postou um
comunicado oficial nas suas redes sociais (confira aqui), confirmando que,
de fato, Pierre e Kate estavam sob efeito de trimetazidina durante a sua
apresentação no programa longo, o que desclassifica a dupla
automaticamente.
Agora sem medalha — o primeiro lugar ficou com os russos,
Valentina Alekseeva e Gavriel Petrov — resta saber qual vai ser a posição
do tribunal arbitral do esporte (CAS) a respeito do caso dos dois. Até
então, Pierre e Kate correm o risco de serem suspensos das competições
pelos próximos quatro anos. Caso seja comprovado que Pierre realmente
sabotou os patins do seu colega, a situação se torna ainda mais grave e ele
pode ser banido para sempre do esporte.
Atualizaremos vocês assim que tivermos novas notícias a respeito,
mas a pergunta que fica é, o que acontece com Oliver e Gracie? Não
sabemos sobre o futuro da dupla, mas nós do EstherNews estamos ansiosos
para vê-los patinando juntos de novo!
Domingo, 28 de julho de 2024
Epílogo

If you wanted me dead you should’ve just said[24]


A voz da Taylor Swift preenche o ar do rinque durante a última
apresentação do campeonato mundial em Boston. Não sei se os americanos
são mais animados que os franceses, mas desde que pisamos no gelo, a
plateia não para de gritar e vibrar com os menores movimentos que
fazemos. Sei que a mídia teve o seu papel nisso, desde que foi confirmado a
nossa participação, choveu matérias e mais matérias falando sobre a volta
por cima de Gracie Salmon e Oliver Fisher. Após o banimento por tempo
indeterminado de Pierre dos rinques — e, depois da minha coletiva de
imprensa, vários colegas de patinação surgiram nas redes para citar
situações onde ele teve um comportamento inapropriado —, alguns jornais
criaram um novo nome para nossa dupla: os Justiceiros do Gelo. Por mais
que o título seja extremamente tosco e sempre me faça pensar em super
heróis, confesso que criei algum apreço por ele.
É claro que nem tudo são flores. Alguns profissionais da área ainda
viram a cara pra mim, dizem que eu fui histérica e que é inadmissível expor
um colega de profissão da maneira que eu fiz, duas vezes. Mesmo assim, eu
não me arrependo.
Queria dizer que sou uma pessoa evoluída, que perdoei e não sinto
prazer na desgraça alheia, mas isso é mentira. Quando uma pessoa que você
costumava confiar faz de tudo para destruir sua vida, você tem direito de ser
rancorosa. Então, sim, estou muito feliz por saber que Pierre nunca mais vai
pisar em um rinque de gelo e mais feliz ainda por ter sido por influência
minha.
Por isso a escolha dessa música para o nosso programa longo no
campeonato mundial foi algo que me veio à mente logo que comecei a
pensar no assunto.
Deslizo em alta velocidade na direção de Oliver que segura a minha
cintura e começamos a seguir em um camel spin[25] em dupla, nossa
diferença de tamanho fazendo um contraste que, nas palavras de Mrs.
Mulligan, faz parecer um camelo mais velho cuidando de um mais novo.
Logo na sequência, emendamos um axel duplo, mas, dessa vez,
Oliver me acompanha no movimento e pousamos no gelo no mesmo
segundo. A sincronia nós já tínhamos nas olimpíadas, o que mudou foi a
técnica de Oliver que disparou nesses últimos meses. Jamais vou admitir
isso para ele, mas é inegável a facilidade que ele tem para aprender
movimentos que levam anos para serem aprimorados.
I was tame, I was gentle ‘til the circus life made me mean[26]
Oliver olha para mim e, mesmo tentando manter o rosto sério por
causa do drama que a música pede, consigo ler o desejo no olhar dele
sempre que me olha. É o mesmo olhar que me lança sempre que estamos
sozinhos. No quarto. Na cobertura. No elevador. No rinque vazio… não
importa o local. O olhar é sempre o mesmo.
E eu amo isso.
O programa se aproxima para a conclusão enquanto Taylor Swift grita
com toda a raiva:
Who’s afraid of little old me?
Sinto as mãos de Oliver segurando a minha cintura enquanto ele me
levanta no mesmo movimento que fizemos no programa curto das
olimpíadas sete meses atrás. É estranho pensar que passou tão pouco tempo,
visto o tanto que amadurecemos não só como dupla, mas também como
casal.
Encerramos a apresentação enquanto a platéia explode ao nosso redor.
Envolvo os braços ao redor do pescoço do meu namorado e encosto meus
lábios nos dele em um beijo curto, arrancando gritos ensurdecedores das
arquibancadas. Minha mãe ainda acha que não devemos fazer essas
demonstrações de afeto em público, mas the old Gracie can’t come to the
phone right now.[27]
Agora, jogo com nossas próprias regras.
— Você foi incrível — Oliver quase grita no meu ouvido, a única
forma de eu conseguir escutá-lo no meio da algazarra da plateia.
— Nós fomos incríveis.
Fazemos o circuito padrão de agradecimentos para os jurados e para o
público antes de seguir para o local onde vamos esperar nossos resultados.
Como fomos os últimos a apresentar, assim que sair a nota saberemos em
qual posição ficaremos. É claro que estou ansiosa, mas dessa vez sei que
fizemos uma excelente apresentação. E ter Oliver ao meu lado ajuda
bastante a manter a calma.
Eu desço os olhos até nossas mãos entrelaçadas. A tatuagem horrível
que fiz no seu dedo anelar ainda está ali mas, agora, tem uma no meu dedo
também. É quase idêntica, mas num olhar mais atento, qualquer um
perceberia que a minha foi feita por um profissional de verdade e não por
uma patinadora que não sabe desenhar, bêbada de vinho.
Somos recebidos por Ciara na saída do rinque. Ela usa um moletom
longo da cor do cabelo grisalho. Há um sorriso satisfeito em meio às rugas
do seu rosto e ela aplaude a nossa dupla.
— Parabéns. Vocês fizeram melhor do que combinamos.
Abraço a minha treinadora. Sei que, no fim das contas, depende da
dupla executar bem o programa planejado, mas não dá pra negar o impacto
gigantesco de ter um bom treinador na orientação. E não à toa Ciara é
considerada uma das melhores do mundo.
Sinto a emoção me dominar enquanto abraço aquele corpo pequeno e
de aparência tão frágil. Ela acreditou em nós dois em um momento onde
ninguém mais acreditava e eu nunca me esquecerei disso. Olho para a
plateia e vejo minha mãe sentada ao lado de Clarice e Trinity. Abro um
sorriso. Por mais que eu tenha minhas diferenças com a multicampeã Nora
Salmon e ela ainda continue criticando boa parte das minhas escolhas, ela
nunca, nos quase dez anos da minha carreira, perdeu uma apresentação
minha. Não importa o horário ou local. Ela sempre estava lá para me
criticar, mas também para me dar o abraço que precisei no momento mais
baixo da minha carreira.
Sei que há um peso enorme por carregar o nome Salmon, mas agora
consigo ver que existe um pouco de orgulho também.
— Melhor a gente ir logo, desgracie. Ou vamos perder a pontuação.
Reviro os olhos ao olhar para o meu namorado.
— A gente precisa conversar sério sobre você abandonar esse apelido
— respondo, seguindo ao lado dele e de Ciara para a área da entrega dos
resultados.
— Nunca. No fundo você gosta dele.
— Vai sonhando.
Nos sentamos de frente às câmeras. Com a empolgação do final da
apresentação, nem me preocupei em pegar uma jaqueta para me proteger do
frio, então inclino o meu corpo e encosto em Oliver, que me envolve em
seus braços. Ele deposita um beijo suave no meu cabelo e sei que esse
momento vai render vários edits virais no Tiktok nas próximas semanas.
Os segundos escorrem lentamente enquanto aguardamos, a ansiedade
me observando de longe, sabendo que agora é um pouco mais difícil de me
dominar.
As arquibancadas explodem em comemoração ao verem o enorme
242,31 na frente dos nossos nomes. Oliver aperta ainda mais o abraço
enquanto eu observo aquele número sem acreditar no que estou vendo.
Sinto que perdi alguma coisa. Aquele número… Antes que eu possa
perceber sozinha, o grito de Clarice vem de algum ponto atrás das câmeras.
— Vocês quebraram o recorde mundial!
Ao lado dela, Trinity bate palmas na nossa direção, animada. Meu
cérebro entende o que as duas dizem, mas meu corpo demora alguns
segundos para reagir ao que isso significa.
Sui Wenjing e Han Cong.
Beijing.
Jogos olímpicos de 2022.
Medalha de ouro com 239,88 pontos.
Eu me lembro que eu e Pierre ficamos em terceiro lugar naquele ano,
mas a maioria das pessoas estava mais focada em parabenizar Sui e Han
pelo recorde incrível.
Nós quebramos o recorde deles. Por mais de dois pontos.
Em meio a toda euforia, olho para o meu namorado, seu rosto
transbordando felicidade.
— Eu te disse antes: o melhor para minha garota, ou nada.
Oliver me puxa para um abraço e as lágrimas escorrem pelo meu
rosto mas, dessa vez, são de alegria. Agora eu entendo o que ele disse,
alguns meses atrás, naquela noite em Paris.
Enquanto estivermos juntos, tudo vai dar certo.
AGRADECIMENTOS

Quinto romance. Você tem noção que agora preciso usar todos os dedos
de uma mão para dizer quantos livros eu tenho? Ainda é difícil acreditar no
rumo maravilhoso que minha vida tomou desde a publicação de Wild
Players e isso tudo é graças a vocês.
Correndo o risco de soar repetitiva, mas não tem como começar os
agradecimentos sem agradecer ao meu namorado. Obrigada por não
implicar quando pego o seu celular e faço o algoritmo só entregar vídeos de
patinação. E pela última vez, não vamos tatuar anéis nos dedos!
Obrigada às betas mais maravilhosas que uma autora poderia ter. Bruna e
Gabi, vocês sempre entregam tudo! E me desculpa por criar padrões
inalcançáveis de relacionamentos.
À Kim Kardashian, minha gatinha fofa que logo será homenageada no
meu perfil. Olha só, entregando um spoiler para você que lê até os meus
agradecimentos.
E, óbvio, muito obrigada, leitora fiel que está sempre
surtando/sorrindo/chorando com as minhas histórias. Se estou aqui
escrevendo mais uma página de agradecimentos, é porque eu sei que tem
pessoas maravilhosas esperando por mais esse livro.
Te vejo na nossa próxima aventura!

[1]
Não é fácil amarmos um ao outro/ Mas quando nossos dedos se entrelaçam/ Não posso negar/ Não
posso negar que você vale a pena
[2]
Bandeira xadrez nas cores preto e branco usada nas corridas.
[3]
Salto assistido pelo dedão do pé, que começa com o atleta patinando para trás em uma curva
ampla e saltando pelo lado de trás de fora da lâmina e retornando no lado de fora de trás do pé
oposto.
[4]
Protagonista de Padrinhos em guerra, livro da mesma autora
[5]
Do francês, Senhor Traidor.
[6]
Movimento onde o patinador mantém o corpo ereto e, dobrando levemente os joelhos, faz uma
sequência de afastar e aproximar os pés, o que gera um impulso para frente.
[7]
Mesmo procedimento do swizzle, porém impulsionando o corpo para trás.
[8]
Movimento onde o patinador muda o peso do corpo de um pé para o outro enquanto impulsiona o
corpo para fazer uma curva. Muito usado nas laterais do rinque.
[9]
Para entender melhor essa história, leia Wild Choices, outro livro da autora.
[10]
Foram apenas seis segundos e eu tive que fingir.
[11]
Criado pelo patinador sueco Ulrich Salchow, é um salto que começa do lado de dentro de um pé
e termina do lado de fora do outro pé.
[12]
Inventado pelo norueguês Axel Paulsen, esse famoso salto da patinação artística começa de uma
posição para frente e consiste de meios-giros extras, decolando da ponta da frente e de fora da lâmina
e retornando no lado de trás e de fora da lâmina.
[13]
Protagonista do livro Padrinhos em Guerra da mesma autora.
[14]
Um salto simples. Salto assistido pelo dedão do pé, saltando e aterrissando do mesmo lado da
lâmina.
[15]
Salto assistido pelo dedão do pé, que começa no lado de trás de dentro de um pé e retorna no lado
de fora de trás do outro pé.
[16]
Uma série de voltas na dança no gelo, patinando com uma perna e fazendo uma ou mais rotações
rápidas e contínuas.
[17]
Protagonista do livro Wild Lovers da mesma autora
[18]
TODOS À BORDO!
[19]
Talvez não seja tarde demais/Para aprender a amar e se esquecer de como odiar.
[20]
Estou saindo dos trilhos em um trem maluco.
[21]
Giro em posição sentada, perto do gelo, com o patinador girando com uma perna dobrada e a
outra estendida.
[22]
Eu sei que as coisas estão dando errado pra mim.
[23]
Eu fui mansa, fui gentil até o circo da vida me tornar cruel/ Não se preocupem pessoal,
arrancamos todos os dentes dela/ Quem tem medo da minha velha eu?/ Bem, você deveria ter.
[24]
Se você me queria morta, era só dizer.
[25]
Giro usando a perna e o tronco estendidos, fazendo um ângulo de 90 graus.
[26]
Eu era mansa, era gentil, até que a vida de circo me deixou cruel.
[27]
A antiga Gracie não pode vir ao telefone neste momento.
Sobre a autora

Esther Moretti tem 22 anos e é apaixonada por livros de romance desde que
se entende por gente.

Estuda direito e sonha em ser juíza, mas no meio da rotina caótica na


faculdade sempre tira um tempinho para escrever — e ler — histórias.
É cat person, carioca da gema e obcecada por divas pop e podcasts de true
crime (o melhor dos dois mundos).
Redes sociais

Sempre bom lembrar que minhas redes sociais (ig:


@esthermorettiwrittes, tiktok: @esthermoretti) estão ativas e que costumo
trazer novidades por lá. Me siga pra não perder as próximas aventuras!
E não esqueça de deixar uma avaliação do livro! Isso me ajuda muito a
continuar escrevendo histórias pra você!
Outros livros do Estherverso

Padrinhos em Guerra
ENEMIES TO LOVERS + FAKE DATING + CEO E EX-FUNCIONÁRIA

Trinity Owens está tendo um ano de merda: ela acabou de se demitir do


seu emprego dos sonhos, não tem uma casa própria e seus pais não param
de perguntar quando ela vai arranjar um namorado. Trinity está disposta
a dar um jeito na própria vida, mas, antes, precisa ser madrinha de
casamento do seu melhor amigo de infância, Peter.

Animada com a ideia de passar uma semana por conta dos noivos na
paradisíaca Mykonos, na Grécia, Trinity descobre cedo demais que seu
sonho está perto de se tornar pesadelo.Isso porque um dos padrinhos do
matrimônio é justamente Alex Fletcher — seu ex chefe e principal motivo
da sua demissão.

Apesar de se odiarem, Alex precisa de uma acompanhante pra provar


que superou os chifres que levou da ex e Trinity bem que gostaria de evitar
as perguntas constantes da família sobre seu estado civil. Por conveniência,
um acordo é feito: fingir um namoro durante a viagem e tentar não se
matar enquanto ninguém está olhando.
Mas em uma semana muita coisa pode acontecer. E, talvez, padrinhos
em guerra possam se tornar algo mais.
Romance não indicado para menores de 18 anos.

∞∞∞
Wild Players
FAKE DATING + FRIENDS TO ENEMIES TO LOVERS + EX-MELHORES AMIGOS +
QUARTERBACK x ESCRITORA

Noah Hwang está no topo do mundo. Quarterback dos Pythons, um dos


times de futebol mais populares da NFL, sua carreira atinge picos cada vez
mais altos. Ele está na lista dos vinte jogadores mais influentes do mundo e
perto de viver a melhor temporada da sua vida. Ou pelo menos estava, até
um exposed colocar tudo a perder.

Do outro lado da ensolarada San Diego, Sabrina Evans recebe uma


péssima notícia: seu último lançamento foi um fracasso e sua editora pensa
em cancelar seu contrato. Desesperada, ela promete escrever um best-seller
digno do BookTok: um livro de romance erótico entre uma cantora e um
quarterback. O problema? Ela não entende nada de livros eróticos, futebol
parece um mundo desconhecido e a última vez que ela fez sexo foi seis
meses atrás.
Como num passe de mágica, a solução dos problemas de Sabrina surge
quando a agência de publicidade mais famosa dos EUA quer que ela seja a
namorada falsa do seu principal cliente, um quarterback cancelado. É o
acordo perfeito: a fama de mulherengo incorrigível de Noah desapareceria
e, de quebra, Sabrina teria material para escrever seu livro acompanhando a
rotina dos Pythons.

O que ninguém sabe é que Noah e Sabrina já se conhecem. E agora


precisam superar os corações partidos do passado para fazer esse namoro
falso dar certo.
Romance não indicado para menores de 18 anos.
∞∞∞
Wild Lovers
AMIZADE COLORIDA + APOCALIPSE x APOCALIPSE + FAST BURN + ELE SE APAIXONA
PRIMEIRO

Atlas Campbell nunca se apaixona.


Taylor Lynch sempre está apaixonada por alguém.
Depois de conhecer Hunter Simmons, Taylor Lynch tem uma nova
missão para o último semestre do seu ano: fazer o quarterback do time de
futebol falido da faculdade ser seu novo namorado. O problema? A
aspirante a atriz é virgem, as pessoas dizem que ela é muito intensa e suas
habilidades caóticas de flerte não parecem funcionar com Hunter, que mal
reconhece sua existência.

É por isso que ela pede ajuda para Atlas Campbell. Afastado dos
estádios pelos próximos três meses, o jogador lesionado dos Pythons tem
arrancado suspiros por onde passa desde que chegou em Los Angeles, com
a promessa de transformar os perdedores da UCLA em jogadores de
verdade.
Com uma lista muito extensa de “relacionamentos” que nunca passam de
uma semana, Atlas sabe exatamente o que Taylor precisa fazer para
conquistar um cara como Hunter.
Entretanto, o destino parece ter outros planos, e Atlas Campbell acaba se
esquecendo de que os cupidos não devem se apaixonar por quem estão
ajudando.
Romance não indicado para menores de 18 anos.

∞∞∞
Wild Choices
CLICHÊ INVERTIDO + ROMANCE PROIBIDO + REALITY SHOW

Chad Jacobs acabou de entrar na lista dos solteiros mais cobiçados dos
Estados Unidos. Apesar da quantidade de mulheres interessadas, o tight end
dos Pythons raramente é visto em clima de romance com alguém, o que
alimenta a curiosidade das revistas de fofoca: Quem vai ser a primeira a
derreter seus sentimentos congelados?
Cursando cinema na UCLA, Cleo Evans conquista uma lista de
corações partidos por onde passa. Sendo uma das melhores alunas da sua
turma, ela precisa de um grande projeto para participar de um concurso que
pode mudar sua carreira: E nada melhor para uma conquistadora do que
produzir um reality show de namoro. A ideia se encaminha bem mas, nas
vésperas dos primeiros dias de filmagem, uma confusão faz a influencer
que participaria do show cancelar sua participação. Agora, Cleo precisa
encontrar uma subcelebridade desesperada — ou simpática — o bastante
para levar a sua ideia maluca para frente.
Numa tentativa de ajudar Cleo, Chad decide participar do programa. Ele
só não esperava que aquela escolha aproximaria os dois de uma forma
perigosa e proibida, já que, sendo a cunhada do seu melhor amigo, ela está
fora dos seus limites. Depois de um vídeo viral, o Estados Unidos está
torcendo para que ele escolha uma das dez participantes do reality como sua
nova namorada, mas o que fazer quando seu coração bate mais forte pela
única pessoa que você não pode ter?

Romance não indicado para menores de 18 anos.

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