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A Bíblia e a Cultura

1. Pensar a Bíblia - Pensar a Bíblia é o título de um texto, em


coautoria, do teólogo André Lacocque e do filósofo Paul Ricceur
E um bom lema para quem pretende aproximar-se da Bíblia, acom-
panhado de diversas áreas do saber, particularmente a da filosofia.
Utilizando uma terminologia consagrada, adverte-se que não se
trata de conhecer a Bíblia, mas de a pensar, de modo que a activi-
dade deste nos dê acesso a múltiplas possibilidades, desde logo à
própria possibilidade de interpretação cultural e ontológica da
mesma Bíblia. Não há nada sobre que não se possa pensar, a Bíblia
acima de tudo, porventura um dos livros que mais «dá que pensar»,
se bem os hábitos que se infiltraram, na cultura ocidental, a respeito
dela, a costumem relegar para o âmbito da fé, opondo-a à razão.
As vias de entrada do pensamento na Bíblia podem ser infinita-
mente variadas, como aliás a própria exegese e a hermenêutica o
têm corroborado, desde sempre. Uma dessas vias tem consistido na
análise da articulação do texto bíblico com outros textos, que têm a
sua proveniência em culturas diferentes daquelas que e n q u a d r a m
as páginas da Escritura; u m a outra é o próprio estudo do cruza-
mento das múltiplos culturas que interferiram na composição da
Bíblia.
A nossa reflexão, como o título o sugere, aponta precisamente
para a cultura, mas não pretende ser um trabalho de análise, menos
ainda especializada, do virtual encontro da Escritura com diversas
culturas. E, antes, seu intuito equacionar, dum modo quase sempre
abstracto, a relação entre a Bíblia e o fenómeno cultural, sem se

1
Penser la Bible, trad. francesa por Aline Patte, Éd. du Seuil,Paris, 1998.

XXXV (2005) DIDASKALIA 735-699


736 DIDASKALIA

fixar em n e n h u m a das expressões históricas deste 2 . A iniciativa


da escolha desta reflexão foi desencadeada por dois estímulos: o da
religião dinâmica, que H. Bergson confere ao cristianismo, na sua
célebre obra Les deux sources de la morale et de la religion 3, e alguns
passos da Constituição Apostólica Gaudium et Spes, do Concílio
Vaticano II, bem como da Carta Encíclica Fides et Ratio 4, onde se
misturam a exaltação da cultura, os seus nexos com a fé cristã, tal
como as suas limitações.

2. A Bíblia e a cultura - A eleição da cultura para tema de refe-


rência, em conexão com a Bíblia, nesta reflexão, pode integrar-se
no movimento versátil por que tem passado a cultura, da qual só se
tomou consciência na modernidade, para atingir ultimamente uma
fase de declínio, pela atenuação da sua englobância e pela inconfor-
midade com a alegada radicalidade do seu poder explicativo 5 . Com
efeito, ao contrário do que, por vezes, se pensou, na modernidade, a
cultura não explica tudo, precisando ela, por outro lado, de pro-
curar a sua própria fonte de entendimento. Mas, ao dirigir a nossa
atenção para o tópico da cultura, não nos preocuparemos nem com
a exaltação da sua importância nem com a advertência sobre a sua
fragilidade explicativa, tomando, antes, como ponto de análise, o
movimento da sua constituição, servindo-nos, porém, do exercício
hermenêutico de desconstrução, o que equivale a reconduzi-la, por
aprofundamento, ao solo da sua origem. Pretendemos também
mostrar como a religião cristã, não se identificando com nenhuma
cultura, pode, todavia, inserir-se em todas as culturas, passando a

2
Perante o número interminável de definições de cultura, servimo-nos da que
apresenta a Constituição Pastoral Gaudium et Spes (n.° 53), não obstante o seu teor
prolixo, bem como o seu acentuado antropocentirsmo: «A palavra 'cultura' indica,
em geral, todas as coisas por meio das quais o homem apura e desenvolve as múlti-
plas capacidades do seu espírito e do seu corpo; se esforça por dominar, pelo estudo
e pelo trabalho, o próprio mundo; torna mais humana, com o progresso dos costu-
mes e das instituições, a vida social, quer na família quer na sociedade civil; e, final-
mente, no decorrer do tempo, exprime, comunica aos outros e conserva nas suas
obras para que sejam de proveito a muitos e até à inteira humanidade, as suas grandes
experiências espirituais e as suas aspirações.»
3
Cf. sobretudo o capítulo III.
4
JOÃO PAULO II, 1998. A relação entre a fé e as culturas merece uma reflexão
específica (n.° 70).
5
M . H E I D E G G E R , quase a terminar o seu ensaio Ciência e Reflexão (Wissenschaft
und Besinnung), considera que a idade da cultura acabou, pelo facto de uma outra
era ter surgido, que abre as portas em direcção ao ser.
A B Í B L I A E A C U L T U R A 737

ser um ímpar factor de dinamização, evitando que estas estiolem,


no seu tendencial processo de formalização. No que concerne a esta
função dinamizadora da religião, é legítimo estabelecer alguma
analogia com a filosofia, na medida em que vai partindo desta
expressão cultural a consciência da necessidade de reconduzir as
formas da cultura a um p a t a m a r mais radical do que ela 6 . Note-se
que, na obra, a que aludimos, Pensar a Bíblia, um dos interlocutores
é filósofo, Paul Ricoeur. Se é certo que, ao contrário do que habi-
tualmente se pensa, a racionalidade científica pode ser vista no
seguimento lógico da racionalidade filosófica ocidental, tem de
reconhecer-se que pela filosofia tem passado a principal missão de
desconstruir, hermeneuticamente, a ciência e a cultura. Nesse
aspecto, quer a religião cristã, quer a filosofia vão entrar no pro-
cesso de superação da própria cultura. Reconhecendo-se a irreduti-
bilidade da religião à cultura, importa, porém, insistir na participa-
ção da religião cristã no movimento da cultura, não para se adaptar
às suas formas, mas para a dinamizar 7 .

3. Bíblia, cultura e linguagem - O entendimento da cultura


obriga-nos a esclarecer, minimamente, a articulação entre cultura
e linguagem. Não podemos esquecer que a Bíblia é um livro e que a
religião cristã é muitas vezes integrada entre as Religiões do Livro -
judaísmo, cristianismo e o islão. Sendo esta designação sobrema-
neira inadequada, ela tem sido de enormes consequências para a
interpretação dessas religiões. Note-se, desde já, que as Religiões do
Livro ficam, atendendo à natureza deste, circunscritas a uma deter-
minada linguagem natural, onde já prepondera a escrita, fazendo

6
Fides et Ratio (n. os 3, 16) privilegia, entre os saberes, a filosofia, além de
aproximar tanto esta como a Bíblia da sabedoria dos povos.
7
«Porque a energia que a Igreja pode insuflar à sociedade actual consiste
nessa fé e caridade efectivamente vividas e não em qualquer domínio externo,
actuado com meios puramente humanos. Além disso, dado que a Igreja não está
ligada, por força da sua missão e natureza, a nenhuma forma particular de cultura
ou sistema político, económico ou social, pode, graças a esta universalidade, consti-
tuir um laço muito estreito entre as diversas comunidades e nações (...).» (Gaudium
et spes, n.° 42; ver também Encíclicas Centesimus annus, n.° 50, Redemptoris missio,
n.° 39, Fides et Ratio n. u 12). A Carta Encíclica Ratio et Fides aprofunda a relação
entre o cristianismo e as culturas, insistindo preferentemente na sua recíproca cola-
boração (n. os 16,23), considerando que as culturas estão abertas à Transcendêncis e
à revelação divina (n. os 70,71). O Evangelho desenvolve o que nas culturas subsiste
virtualmente (n.° 71), desencadeando nas culturas novos progressos (n.° 71), mas
não aceita que as culturas sejam critério de juízo último de verdade (n.° 71).
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assim polarizar a mensagem dessas religiões na linguagem de cul-


turas bem delimitadas historicamente, além de tender a esgotar na
linguagem natural todos os elementos da cultura 8 . Ora, as culturas,
tendo nas linguagens naturais uma das suas expressões mais eleva-
das, não se reduz a estas 9 , u m a ressalva importante, mostrando o
seu alcance sobretudo no momento de apurar a origem da própria
linguagem natural. Discute-se se esta deve entrar num âmbito mais
geral, a semiótica, ou se deve partir de si própria. Se, como vimos a
insistir, a culturas não partem de si mesmas, o mesmo se deve afir-
m a r da linguagem, que é já expressão da cultura. Por outro lado, a
linguagem, como aliás Santo Agostinho já notava, não se reduz
à linguagem verbal 1 0 . Quer isto dizer que na formação da própria
linguagem natural entram muitos elementos culturais, que somente
um exercício de desconstrução da linguagem detecta, os quais não
deixam, todavia, de ser significativos na cultura.
O pensar a Bíblia, hoje, não pode prescindir da consideração
dos estudos sobre a linguagem n . Não quer dizer que não tenhamos
de reconduzir a questão da linguagem a estratos que precedem a
cultura, o que faremos, mas, para já, urge não reduzir a cultura nem
à linguagem natural, nem, menos ainda, à linguagem científica 12.
O que interessa evidenciar é que a complexidade da Bíblia não

8
«Ela [a Igreja] aprendeu, desde os começos da sua história, a formular a
mensagem de Cristo por meio dos conceitos e línguas dos diversos povos, e procurou
ilustrá-la com o saber filosófico. Tudo isto com o fim de adaptar o Evangelho à capa-
cidade de compreensão de todos e às exigências dos sábios.» (Gaudium et spes, n." 44).
Fides et Ratio (n.° 61) refere-se mesmo à inculturação da fé.
9
A Constituição Dogmática Dei Verbum (n.° 2), do Concílio Vaticano II, chama
a atenção para a amplitude da revelação, que excede a palavra: «Esta 'economia' da
revelação realiza-se por meio de acções e palavras intimamente relacionadas entre
si, de tal maneira que as obras, realizadas por Deus na história da salvação, manifes-
tam e confirmam a doutrina e as realidades significadas pelas palavras; e as pala-
vras, por sua vez, declaram as obras e esclarecem o mistério nelas contido.»
10
Os gestos são como as palavras naturais de toda a gente (Confessionum
1,8,13).
11
«Plusieurs raisons contraignent le théologien chrétien à tenir compte de ce qui
se passe aujourd'hui dans le champ des études linguistiques. Exigences et instruc-
tions rassemblées à partir d'une théologie de la parole.» (P. Ricœur, Les Incidences
théologiques des Recherches actuelles concernant le Langage, Paris, 1974, p. 5).
12
«Une phénoménologie n'épuise pas le langage; nous avons à rendre compte
de la puissance de la parole, de la puissance de dire. Or cette puissance de dire et
l'acte de dire ne s'épuisent ni dans la structure de ses éléments, ni même dans l'inten-
tion des sujets parlant. On vient au langage; ne pas se laisser embastiller dans le
monde des signes. L'acte de dire est lui-même une modalité de l'être qui suppose une
constitution de l'être tel qu'il puisse être signifié» (P. Ricœur, ibidem, p. 15).
A BÍBLIA E A CULTURA 739

transparece na linguagem natural em que ela se manifesta, o que, a


suceder, confinaria o conteúdo da Bíblia às linguagens naturais das
culturas aí emergentes.

4. A revelação - Há um significativo contraste entre a Bíblia e


a cultura, pelo facto de esta tender a fechar-se no seu próprio rendi-
lhado, cujo entendimento se tem procurado apenas na relações
estruturais, ao passo que a Escritura remete para uma fonte revela-
dora transcendente, provocando grandes relutâncias a certos esque-
mas racionais, muito ciosos da sua própria autonomia. A noção de
revelação é, pois, fulcral para pensar a Bíblia - o texto revelado.
Uma forma de esclarecer a natureza da revelação bíblica é a
consideração dos seus conteúdos fundamentais, começando pela
coerência recíproca deles, além de aferir a sua amplitude e notar o
seu distanciamento relativamente às categorias que enformam as
culturas.
Reconhecendo-se que o receptor do texto faz parte do mesmo
texto, o recurso à tradição torna-se um caminho legítimo e neces-
sário, designadamente quando o texto, donde se partiu, no caso
vertente o da Escritura, oferece grandes complexidades. Ora a tra-
dição, na prática religiosa e no exercício teológico especulativo,
interpretou a Bíblia como mensagem de salvação. Por outro lado,
as Igrejas reformadas, embora menos sensíveis à tradição - sola
Scriptura - do que a Igreja católica, ainda enfatizaram mais esse
horizonte soteriológico da Bíblia, como se este devesse monopolizar
todos os grandes vectores da revelação.
Esta interpretação englobante obriga logo a pensar, no interior
da Bíblia, a articulação entre a redenção e a criação 1 3 . Esta, na
ordem das razões e nas indicações do saber, o qual reconhece uma
fase, a primeira, da história do universo, sem a presença do ser
humano, o destinatário da redenção, ocupa o primeiro lugar, apenas
precedido pelos desígnios do Criador. Para alguns exegetas, porém,
a descrição bíblica tem sempre como horizonte a redenção, em
função da qual se situa à própria criação. Para lá das informações
provenientes da ciência, a ordem das razões, a partir da tentativa
humana de compreensão, compele-nos não só a reservar a priori-
dade à criação como ainda a desvinculá-la da redenção, leitura que

13
Prescindimos, em face dos propósitos desta reflexão, da ideia de aliança, que
pode ser também uma das entradas fundamentais para a leitura da Bíblia.
740 D I D A S K A L I A

trará, certamente - estamos bem conscientes disso - , consequências


p a r a o próprio entendimento da redenção. Neste contexto, para
evitar o acolhimento de contradições, pelo menos de paradoxos, no
seio do próprio texto bíblico, seremos assim levados a procurar um
plano que aglutine tanto a criação como a redenção 14. A noção - ou
noções - de revelação pode constituir porventura o percurso mais
azado para o apuramento de tal plano, que não é, primariamente,
de índole soteriológica.
A noção de revelação supõe uma fonte, que é Deus, e um con-
teúdo, que, resumidamente, seria a mensagem salvífica. Mas este
não é o único entendimento de revelação, sendo aliás significativo
que, não obstante se manter a revelação em função da redenção,
admite-se, ao mesmo tempo, que a criação é a primeira forma de
revelação 15. Mesmo que, neste caso, a criação possa ficar entrela-
çada com a redenção, a leitura do universo criado em termos de
revelação situa-nos n u m plano mais radical do que o da linguagem
natural, que é considerada veículo da mensagem redentora - a carta
de Deus.
Por outro lado, se, em vez de ficarmos no resultado, ou seja, no
conteúdo da revelação, nos colocarmos do lado da fonte dessa reve-
lação, Deus, o pensar a Bíblia deve tentar compreender, não a partir
desse resultado, mas do ângulo da própria realidade divina, sem
pretender, contudo, reduzir as razões de Deus às razões dos intér-
pretes finitos.
Ora, se nos situarmos na origem, na fonte divina, então a reve-
lação, seja qual for o seu conteúdo - criação, redenção ou outro -,
será sempre u m a manifestação de Deus, obedecendo à lógica da

14
O saber teológico tem-se ocupado da questão que pergunta pelos motivos da
encarnação do Verbo. No período da escolástica, sobressaiu a doutrina de João Duns
Escoto, sobre o Primado de Cristo, que não condiciona a encarnação ao pecado e
consequente redenção. J. A. M. Camino, Evangelizar la cultura de la libertad,
Mardrid, 2002, pp 162s. aborda o mesmo tema, aludindo a uma distinção proposta
por L. Ladaria, Antropologia Teológica, Casale Monferrato, 1995, p. 47, em que este
autor distingue dois conceitos, salvação e redenção, conferindo ao primeiro um signi-
ficado mais amplo, o de conformação com Cristo, do que uma simples redenção,
perante o pecado.
15
«Deus, criando e conservando todas as coisas pelo Verbo (cf. Jo 1,3), oferece
aos homens um testemunho perene de Si mesmo na criação (cf. Rom 1,19-20) e,
além disso, decidindo abrir o caminho da salvação sobrenatural, manifestou-se a Si
mesmo, desde o princípio, aos nossos primeiros pais. Depois da sua queda, com
a promessa da redenção, deu-lhes a esperança da salvação (...).» (Constituição
Dogmática Dei Verbum n.° 3).
A B Í B L I A E A C U L T U R A 741

realidade do próprio ser divino. Esta radicalização é decisiva.


Mesmo os que vêem a Bíblia como u m a mensagem de redenção
consideram que a revelação é a manifestação do próprio Deus ad
extra. A revelação é, pois, antes e acima de tudo, a manifestação de
Deus, ocupando esta a prioridade absoluta, sem ter que estar condi-
cionada pelos seus destinatários, pois é apenas a difusão da vida do
próprio Deus, que, no entanto, pelo facto de o seu ser se identificar
com o amor, inclui sempre u m a relação - a da Trindade, ad intra,
e a do mundo criado, ad extra. Aliás a própria tradição teológica, a
par da economia da redenção da humanidade, sublinha também
a deificação desta, que seria mais radical do que a própria redenção,
além de ser a consumação plena desta 1 6 .
Esta radicalização, que se enraíza no próprio ser divino, im-
pele-nos a regressar à questão da linguagem. Quando se considera
a Bíblia em termos de mensagem redentora, esta é consignada na
língua natural de uma determinada cultura, que, depois, passa pelo
processo normal de tradução em outras línguas naturais. A articula-
ção da Bíblia e das línguas naturais representa uma situação eluci-
dativa para esclarecer o encontro entre cristianismo e culturas.
A manifestação da revelação através das línguas naturais e das
culturas é, por vezes, assemelhada ao processo da encarnação
do Verbo, que possibilita à humanidade ouvir falar de Cristo, nas
próprias linguagens dela. Neste contexto, verificar-se-ia também
aqui um processo quenótico, n u m a espécie de entrega do Verbo, a
Palavra de Deus, à pobre linguagem humana. Esta visão, todavia,
ressente-se de um forte antropocentrismo, subordinando o ponto de
partida, que é Deus, às estruturas humanas. E por isso necessário
perguntar se as línguas naturais são apenas manifestações especí-
ficas da natureza h u m a n a ou se estão presentes em outros entes,
tendo mesmo a sua origem no Ser divino. O esclarecimento desta
interrogação passa não só pela questão do próprio fundamento da
cultura - ela é, como já referimos, um produto derivado como
também pela possibilidade de ver as línguas naturais como expres-
sões de Deus, tal como a criação o é. Neste caso, as línguas naturais
estariam na linha de desenvolvimento da realidade criada, também

16
0 texto da Constituição Dogmática Lúmen Gentium (n.° 2) apresenta a ordem
da acção de Deus ad extra: «O eterno Pai, pelo libérrimo e insondável desígnio da Sua
sabedoria e bondade, criou o universo, decidiu elevar os homens ã participação da
vida divina e não os abandonou, uma vez caídos em Adão (...).»
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revelação de Deus. Com esta interpretação, situam-se as línguas


naturais a nível ontológico, não se subordinando, quenoticamente,
Deus à humanidade a ser redimida. O processo de desconstrução da
cultura, levando ao aprofundamento desta em sedimentos ontoló-
gicos, deve ser também aplicado à linguagem.
O modelo trinitário de Deus, mas não o da encarnação do
Verbo - a palavra como corporização do pensamento - , pode trazer
alguma luz para a compreensão do enraizamento ontológico da
linguagem, ao assemelhar esta à própria expressão da vida divina.
Na nossa contemporaneidade, muito se tem discutido sobre a relação
entre ser e linguagem, ora identificando-os, ora acentuando a prio-
ridade do ser. Na interpretação que perfilhamos, não só a linguagem
tem fundamentos ontológicos como também o próprio ser é lingua-
gem, ressalvando-se, porém, que não se esgota numa determinada
língua, antes se vai manifestando em todas as linguagens e nas
diversas línguas.

5. O possível, o irrecusável e a Escritura - Dado o carácter


revelado da Bíblia, a ciência, nos seus pruridos de uma total auto-
nomia, tem dificuldade de se harmonizar com o texto religioso. Mas
se o nosso intuito não é de conhecer a Bíblia, mas de a pensar,
damos guarida à modalidade do possível, encarando, inclusiva-
mente, o real empírico como um possível, a par de muitos outros.
Até este momento, temos dirigido o pensar para as múltiplas
possibilidades de interpretação, abertas pelo texto bíblico, bem
como p a r a as condições de possibilidade dele, designadamente as
de ordem cultural, conscientes, porém, de que as formas da cultura
nunca constituem ponto de partida radical, onde se possa procurar
a determinante derradeira. Fomos, por isso, orientados para o solo
ontológico, fora do qual nada pode ser pensado, já que ele repre-
senta a possibilidade de todas as possibilidades. E neste sentido
que os escolásticos consideravam o ser como objecto primeiro do
pensamento. Todas as modalidades de manifestação - o necessário,
o possível e o real - só podem ser vistas no horizonte do ser. Mas se,
fora da luz do ser, nada pode ser entendido pelos humanos, ainda
a vida estes, torna-se imperioso clarificar, minimamente, para dar
consistência ao exercício do conhecer e do pensar, a nossa experiên-
cia do ser, que, p a r a além de constituir a condição de todo enten-
dimento, é um dado irrecusável da experiência humana. Quando
Santo Agostinho disserta sobre uma dupla força, a da existência e a
A B Í B L I A E A C U L T U R A 743

do desejo de felicidade l7 , ele está a antecipar infindas formulações


futuras do reconhecimento da impossibilidade de recusa da existên-
cia, mesmo que esta se transforme em alvo da nossa revolta. Toda a
nossa actividade, no consentimento, na revolta ou no desespero,
é sempre uma afirmação do ser, fonte de todas formas em que se
exprime. A predicação linguística é ainda uma manifestação dessa
experiência, na medida em que, aí, o mais importante, a fonte do
processo de afirmação, não são as formas de atribuição, embora se
tenha de passar por elas, mas o ser veiculado pelo verbo, onde todas
determinações do sujeito encontram a sua fonte.
A irrecusável experiência ontológica não diminui, antes suscita,
a gama de possibilidades, mas, ao mesmo tempo, impõe rigor a todas
as manifestações de pensamento, designadamente às compossibili-
dades e hierarquias de conceitos. Tratando-se, porém, de uma expe-
riência tão irrecusável, a rejeição, quase sistemática e contundente
duma ontologia, na especulação ocidental, sobretudo a partir da
modernidade, atinge as raias do paradoxo. E verdade que se nega
mais a validade dum saber sobre tal experiência do que propria-
mente a irrecusabilidade desta, que, de certo modo, foi temati-
zada desde Parménides. Por outro lado, as irrecusabilidades podem
existir, sem que haja consciência delas, já por excederem a própria
consciência, já porque entre elas e esta se interpõem muitos factores
que impedem de serem vistas. Tanto para a experiência do irrecusá-
vel como para a consciência dela, é necessário uma aprendizagem,
quer da vida quer da mente, de que se ocupa, em larga medida, a
actividade filosófica.
Mas o que excede a consciência e o pensamento humanos
apreende-se mais por descrição do que por tematização epistemoló-
gica. Ora, se tentarmos descrever a experiência do ser, ela aparece-
-nos, também irrecusavelmente, como u m a actividade de manifes-
tação, na qual participamos nós e todos os outros entes. Fica, assim,
prevenida uma objecção, que costuma ser condensada na crítica
heideggeriana à metafísica ocidental, que não passaria de uma
onto-teo-logia. A metafísica teria então como objecto, não o ser,
mas o ente divino. A essa objecção prende-se uma outra, que faz
parte da militância da filosofia moderna ocidental, ao considerar
inviável a ontologia, que estará sempre condicionada pela antropo-

17
De libero arbítrio III, VI-VIII. O próprio Deus não permite que pereçam os
que se destroem reciprocamente (Soliloquia 1,1,2).
744 D I D A S K A L I A

logia, no espaço da qual se inscreve a experiência ontológica. Não


se repara que o ser humano se afirma sobretudo, não pelo adjectivo
- humano - , mas pelo grau de intensidade do ser.
Deste modo e a partir de nós mesmos - u m a vez mais, irre-
cusavelmente não já através de indícios exteriores - a Bíblia ou as
culturas - , esta experiência de manifestação ontológica vai encon-
trar-se com a revelação, que, embora polarizada na exegese bíblica,
é, fundamentalmente, se entendida, a partir de Deus, como refe-
rimos acima, u m a manifestação ontológica do Ser divino. O facto
de a revelação bíblica ser inserida no âmbito da manifestação onto-
lógica não lhe subtrai nem o seu carácter de dom, nem a sua ampli-
tude, além de esbater muitas das relutâncias racionalistas, que ten-
dem, não só a dispensar-lhe u m a atenção, apenas gnosiológica,
como também a recusar a sua possibilidade 18.
Além das objecções, há pouco referidas, sobre a onto-teo-logia
e a inviabilidade da ontologia, estamos conscientes de uma outra,
que interpreta a aproximação por nós levada a efeito, entre a revela-
ção bíblica e a ontologia da manifestação, como uma interferência
abusiva, no campo do saber, da chamada «metafísica do Êxodo»,
suportada pela autoproclamação de Deus como Eu sou aquele que
sou 19. Na acalorada discussão sobre as interferências entre a filo-
sofia do ser, de proveniência grega, e esse passo do Êxodo, é certa-
mente mais plausível admitir a leitura desse lugar bíblico, dentro da
orientação da filosofia grega, do que transformar um enunciado
teológico num tópico metafísico 20 . Em todo o caso, essa referência
bíblica veio a repercutir-se, em termos de facto, a partir da filosofia
de inspiração cristã, na interpretação do ser, efectuada na espe-

18
Na nossa contemporaneidade, sobressai a especulação de Michel Henry, um
fenomenólogo, cuja primeira grande obra se intitula precisamente L'essence de la
manifestation, Paris,1963, rumando, depois, nos últimos escritos, em direcção ao
cristianismo: C'est moi la vérité. Pour une philosophie du christianisme, Paris, 1996, e
Incarnation. Une philosophie de la chair, Paris, 2000.
19
«Moisé disse a Deus:'Quando eu for ter com os filhos de Israel e lhes disser
que o Deus de seus pais me enviou para junto deles, se me perguntarem qual é o seu
nome, que lhes responderei? Deus disse então a Moisés:'Responderás o seguinte - Eu
sou Aquele que sou» (Ex 3, 13-15).
20
E. Gilson é o pensador que mais aprofunda o impacte de Eu sou Aquele que
sou na filosofia, c h a m a n d o a atenção para a sobreposição do acto de ser relativa-
mente à essência, com particular incidência na metafísica de S. Tomás de Aquino
(L'être et l'essence, Paris, 1948). Progressivamente, contudo, o célebre medievalista
foi atenuando as suas interpretações a este respeito. De qualquer modo, o referido
passo do Êxodo conduziu a uma notável inflexão da metafísica, privilegiando o eixo
A BÍBLIA E A CULTURA 745

culação ocidental. Se a dinâmica da experiência ontológica não é


incompatível com a metafísica antiga, designadamente na de hori-
zonte neoplatónico, a tendência dessa filosofia propende mais para
a afirmação duma plenitude imobilista do que para uma actividade
ontológica. Mesmo sem discutir a questão das interinfluências histó-
ricas, torna-se impositivo admitir que o Êxodo, tal como a Bíblia em
geral, contribuiu p a r a u m a leitura nova da metafísica ocidental,
orientada para o dinamismo do ser. Ainda que a experiência irre-
cusável do ser se dissocie das culturas e da Bíblia, esta ajudou a
dirigir a atenção para ela, precisamente em termos de u m a dinâ-
mica de manifestação 21 .
Deste modo, a ideia de revelação - que parecia representar
um escândalo para a filosofia pode aglutinar, se for entendida em
termos de manifestação ontológica, tanto as exigências fundamen-
tais da filosofia como as essenciais coordenadas bíblicas.

6. A Bíblia e as culturas no horizonte da ontologia - Da análise


do dado bíblico, que representa, em face do irrecusável da experiên-
cia humana, uma contingência exterior, fomos conduzidos a esta,
que nos situou no solo do ser. Este percurso veio intensificar o grau
de possibilidades, na medida em que, descendo até à fonte das
formas concretizadas na história, nelas, todavia não nos fechamos,
mas antes rompemos o seu círculo, ao mesmo tempo que foram
abertas possibilidade para novas formas. Criámos, assim, condições
para uma dinamização da exegese e da hermenêutica bíblicas, tal
como transpusemos os limites das formas culturais. Foi também
ampliado o horizonte do pensar, cujas possibilidades nunca esgo-
tam as possibilidades do ser.
E, então, a partir do ser, entendido como dinâmica de manifes-
tação, que vamos pensar a Bíblia, bem como as articulações desta
com a cultura. Será esse ponto de partida que irá iluminar as mani-
festações concretas. Todas as categorias, que vimos analisando, são,
assim, reformuladas, na sua inserção no h ú m u s ontológico, desde
as noções de natureza, de cultura, de revelação, de criação e mesmo

do ser, a desfavor do da substância e da essência, de proveniência grega. A este pro-


pósito, comenta P. Ricceur: «D'abord il semble que le 'Je Suis qui je Suis' ne doit pas
être interprété à la grec comme un énnoncé ontologique sur l'être (...).» (Incidences
théologiques..., p. 66).
21
E. Lévinas tem o cuidado de distinguir entre expressão e manifestação, dado
que a primeira supõe um autor, enquanto a segunda é puramente fenoménica (Tota-
lité et Infini. Essai sur l'extériorité, Haia, 1961, p. 157).
746 D I D A S K A L I A

de redenção. Todas elas, inclusive as de índole religiosa, saem


beneficiadas, se aí forem reconduzidas. Aliás, desde o início desta
reflexão que havíamos anunciado a necessidade de aprofundar as
formas de cultura.
Se nada pode ser excluído da órbita ontológica, a caracterís-
tica soteriológica da Bíblia, sem dúvida a que a tradição mais tem
desenvolvido, parece constituir a maior dificuldade de aí ser inte-
grada. Mesmo que se venha e reconhecer que os desígnios de reden-
ção são a prioridade do conteúdo bíblico, a actividade do pensar
não paira de procurar outras possibilidades, nem, uma vez estas
apuradas, de as hierarquizar, segundo a ordem das razões.
Não obstante os desígnios soteriológicos terem logrado, na
tradição da vida e da exegese, um lugar preferencial, o conteúdo da
Bíblia nunca foi interpretado, em exclusivo, nesse horizonte, sobre-
tudo na hierarquização teórica levada a efeito pela teologia. A mani-
festou da vida de Deus sobrepôs-se a quaisquer outras finalidades,
atingindo a sua plenitude em Jesus Cristo, o Verbo encarnado da
Trindade, que revelou a Divindade, sobretudo quando se mani-
festou, na encarnação. Esta revelação, a da manifestação da vida
trinitária de Deus, que, na Escritura, ocupa a prioridade absoluta,
insere-se, com a máxima coerência, na dinâmica de manifestação
do ser, na qual irrecusavelmente participamos. O mesmo se aplica à
criação, bem como à redenção, sem que esta condicione a manifes-
tação - na criação e na encarnação - de Deus.
As mudanças de nível, que vimos propondo, rumo ao ser, além
de abrir o leque de possibilidades, altera também as duas categorias
que se t o r n a r a m pilares especulativos na cultura do Ocidente - a
natureza e a cultura. Se a consciência desta, como observámos, é
tardia, a noção de natureza, domina, para não dizer precede e subs-
titui, a metafísica do ser, especialmente na formulação aristotélica,
acabando por se confundir com a metafísica da substância ou, dito
por outras palavras, deixando a metafísica ao nível da física. Mas a
natureza é uma noção derivada e que também ela deve ser recondu-
zida ao ser. Com efeito, a consistência que se pretende outorgar à
natureza na filosofia grega é, em boa parte, uma ilusão, pois o dese-
nho da realidade, consoante o xadrez das natu-rezas, é um produto
cultural, tendo mais a ver com o modo de agir e compreender
humanos do que com a estrutura da realidade. Neste contexto, a
distinção entre natureza e cultura, em boa medida, esvai-se. E muito
diferente ver o movimento da realidade em termos de dinâmica da
natureza - melhor dito, das naturezas, pois é característica constitu-
A B Í B L I A E A C U L T U R A 747

tiva da natureza a pluralidade - ou de manifestação do ser. Esta


questão complexifica-se ainda mais, se atendermos ã relação natu-
reza/cultura. Ora se tem acentuado a relação-tensão entre natureza
e cultura, ora se vê a primeira em função da segunda, ora se consi-
dera a cultura um artifício, de que decorre, por contraste, a exorta-
ção de um regresso à natureza. A interpretação mais comum é por-
ventura aquela que vê na cultura uma intervenção humana, para
superar as insuficiências da natureza, revestindo a cultura, nesse
caso, uma função de resgate, de redenção. Esta nota é importante,
na medida em que se vai encontrar, muitas vezes, com a interpre-
tação soteriológica da Bíblia, facilitando essa afinidade a redução
das religiões bíblicas à cultura. Todos estes ingredientes m a r c a m a
cultura ocidental, sem dúvida exacerbados pela presença muito
activa do gnosticismo e do maniqueísmo, que vêem o natural, o
movimento e a criação como um mal, que importa dissipar 2 2 .
A lógica da nossa reflexão impede-nos de partir do binómio natu-
reza/cultura, por o não considerarmos radical, substituindo-o pela
unidade do ser, de que as naturezas e as culturas são expressões.
Nos termos desta interpretação, o antropomorfismo que costuma
acompanhar a definição de cultura - acção do humanos sobre a
natureza em função deles próprios - pode e deve ser revisto, u m a
vez que tanto a natureza como a cultura entram na ordem de mani-
festação do ser, sendo, por isso, inerentes a toda a realidade.

7. Jesus Cristo e a comunidade: manifestação ontológica -


«Tendo Deus falado outrora a nossos pais, muitas vezes e de muitas
maneiras, pelos Profetas, agora falou-nos, nestes últimos tempos,
pelo seu Filho, a Quem constituiu herdeiro de tudo e por Quem
igualmente criou o mundo.» (Heb 1, 1-2).
Onde se torna mais patente a possibilidade de uma leitura
ontológica da Escritura é no horizonte para que toda esta aponta -
a pessoa de Jesus Cristo, o Filho de Deus, o Verbo encarnado. Este
título é prioritário a todos os outros, ainda o de redentor. Como
ousadamente notava Santo Agostinho, a vida do cristão pode não
estar dependente da Escritura 2 3 . A realidade da pessoa sobrepõe-se

22
O gnosticismo e o maniqueísmo c o n t r a p õ e m os dois Testamentos, o Antigo e
o Novo, precisamente porque, no primeiro, avulta o Deus criador, fonte de todos os
males, ao passo que o segundo nos a p r e s e n t a o Deus redentor, de que carecemos.
23
Quem vive na fé, esperança e na caridade, n ã o precisa das Escrituras, a não
ser para instruir os outros (De doctrina Christiana 1,39,43.).
748 D I D A S K A L I A

à função, que seria, neste caso, de contornos soteriológicos. Por


outro lado, a comunidade constituiu sempre, ao menos na interpre-
tação católica, uma referência ontológica fundamental e de cono-
tação trinitária. E p a r a a revelação do Deus trinitário em Jesus
Cristo e para a comunidade a deificar, que aponta fundamental-
mente a Escritura. Esta prioridade absoluta de Jesus Cristo e da
comunidade, na sua densidade ontológica, que nenhuma cultura
salvaguarda, tem que ser relevada, até porque reside, aí, uma razão
forte para não diluir a religião cristã nas culturas. Em grande parte,
devido à tendência ocidental de apreender cientificamente a cul-
tura, a pessoa e a comunidade, aliás fonte da produção cultural,
eclipsam-se, na jogo das estruturas formais da mesma cultura 2 4 ,
o único p a t a m a r susceptível de ser apreendido pela ciência 2 5 . Por
idêntico motivo, a cultura, pese embora a sua complexidade, tende
a formalizar-se, nesse processo, perdendo a sua dinâmica, que lhe
advém da comunidade.

8. A religião cristã e as culturas - Parece ser agora mais fácil


apreender o alcance da Constituição Pastoral Gaudium et Spes,
promovendo, por um lado, a cultura, mas acautelando, por outro, a
interpretação que vê a religião cristã como simples manifestação
cultural. Mesmo que se subtraia a característica sobrenatural da
fonte da religião cristã, a análise desta é suficiente para compreender
que não pode ser reduzida a cultura alguma, podendo estar embora
presente em todas elas 26 .
Para aqueles que sentem a exigência racional de ultrapassar
as formas da cultura, por estas não poderem ser ponto de partida e
de chegada originário, a religião cristã representa um dos elementos
disponíveis mais importantes - e com provas dadas - , para levar a
efeito essa tarefa. Algumas das características dessa religião devem
ser salientadas, visto repousar nelas a dinâmica de tal processo.

24
Dum modo enviesado embora, L. Feuerbaeh, captou a diferença cristã, ao
dar relevo ao indivíduo, prescindindo da relação das estruturas culturais (Das Wesen
des Christentums 1,16).
25
Na história do processo de elaboração de uma ciência da cultura, constitui
obra de referência o texto de. B. Malinowski, A scientific theory of culture and other
essays, Carolina, 1944.
26
Nota E. Beaucamp que o cristianismo está presente em muitas culturas,
enquanto as outras religiões se circunscrevem a uma cultura determinada (La Bible
et se sens religieux de l'univers, Paris, 1959, p. 455).
A B Í B L I A E A C U L T U R A 749

Em primeiro lugar, a religião cristã não é um rito, nem redu-


tível a este. O rito é um factor de diluição nas culturas, mesmo que
nestas permaneça em esquemas de discriminação ou mesmo de
auto-exclusão. Jesus Cristo é muito claro na atitude de não subordi-
nação das pessoas aos ritos.
Depois e na mesma lógica de distanciação dos ritos, a religião
cristã é uma actividade exercida por pessoas, individual e comuni-
tariamente consideradas, a começar pelas pessoas divinas da Trin-
dade, que Jesus Cristo manifestou. Já tivemos ensejo de referir que
o estudo das culturas não consigna essa dimensão ontológica das
pessoas.
Por outro lado, a religião cristã, não obstante viver da constitu-
tiva presença de um Deus encarnado, que parece apontar para a
imanência divina no mundo criado, é alimentada por uma ímpar
Transcendência, sendo ela própria um exercício ontológico de trans-
cendência, que dinamiza as culturas, sem que as formas destas o
esgotem. E neste contexto que deve ser inserido um tópico espe-
culativo, que não é exclusivo do cristianismo e nem sequer pretende
ser de expressão religiosa, mas que foi formulado sobretudo pelos
pensadores cristãos. Referimo-nos ao chamado argumento onto-
lógico, que tem Santo Anselmo por principal referência, mas que
não pode ser reduzido ao engenho racional dele. A convocação do
argumento ontológico para este momento pretende ser, por um lado,
um complemento ao que já explanámos sobre a irrecusabilidade do
ser e, por outro, a tentativa de situar a própria religião cristã, inclu-
sivamente o seu exercício de transcendência, n u m território não
estritamente religioso. Sendo embora abundantes as interpretações
diferentes desse argumento e não obstante a sugestão da sua termi-
nologia - «Deus é o Ser que não só não pode ser pensado outro
maior como também é maior do que possa ser pensado» 27 - , a sua
integração em terreno ontológico ( a designação argumento ontoló-
gico não tem essa intenção), não é de tematização frequente. Para
nós, todavia, ele é o desenvolvimento da irrecusabilidade do ser,
numa manifestação axiológica, sem deixar de ser ontológica, tendo
no Ser divino a sua expressão absoluta. No contexto desta interpre-
tação, a filosofia e a religião bem se podem dar as mãos, em ordem
a muitas finalidades, mas sobretudo nessa dinâmica de superação
das culturas, as quais não são sensíveis ao argumento. Por outro

27
«Ergo Domine, non solum es quo maius cogitari nequit, sed es quiddam
maius quam cogitari possit» (Santo Anselmo, Proslogion XV).
750 DIDASKALIA

lado, o movimento e a consistência das formas culturais não supor-


tam a força incoercível da manifestação do ser.
Porém, a característica que, talvez, mais dificulte a redução da
religião cristã às culturas é a sua não exclusiva - nem mais impor-
tante - finalidade salvífica. Ver a religião cristã como processo de
redenção equivale a aproximá-la da cultura, que é também quase
sempre interpretada em termos de actividade redentora. Não é por
acaso que muitas vezes as culturas entraram em competição com a
religião cristã, precisamente nessa peculiar função redentora. Por
outro lado, a exacerbação das missões soteriológicas tende a trans-
formar estas num exercício mecânico e automático, em que o rito
desempenha u m papel fulcral, diametralmente oposto à acção
pessoal, que é o eixo da religião cristã. Quando se interpreta a reli-
gião como u m recurso p a r a superar a finitude, o mal, a culpa ou a
morte, tal significa que lhe são atribuídas funções culturais ou, pelo
menos, finalidades que a cultura a si mesma propõe 2 8 . Todavia,
quando a religião cristã mais não é, fundamentalmente, do que o
exercício de participação na vida trinitária de Deus, nesse momento
não haverá cultura alguma que pretenda substituí-la.
Mas, se a religião cristã dinamiza as culturas, impedindo de
se fecharem em si mesmas, não é menos verdade que, uma vez
presente n u m a cultura, esta tenderá a reduzir a si a vida religiosa,
transformando-a em processos soteriológicos, mediante ritos e
técnicas. É por isso que a Igreja procura evitar que se ritualizem os
sacramentos, a fim de não degenerarem em recursos de redenção
automática.
Quer isto dizer também que o Transcendente e a acção de trans-
cendência da religião é fundamental, nesse impedimento de rituali-
zação e de redução à cultura. Para lá de toda acção pessoal e comu-
nitária da religião cristã, esta nota de transcendência fica bem
consignada na prova anselmiana de Deus, que nós vemos indisso-
ciável da experiência humana do ser, que, na fonte e no horizonte, é
sempre o exercício de u m a razão - uma vida - verticalizante, em
direcção ao Ser maior.

JOAQUIM CERQUEIRA GONÇALVES

28
Gaudium et spes (n.° 58) refere-se m e s m o aos nexos entre a m e n s a g e m de
salvação do cristianismo e das culturas, mas Fides et Ratio (n. u 70) nota que a salva-
ção da fé é diferente da das culturas.

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