Camilacuqui Zinessérie Meia 16abr2021 2

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS

Centro de Artes
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
Especialização em Percursos Poéticos e Educação

Trabalho de Conclusão de Curso (TCCP)

Zinessérie Meia:
Autopublicação e financiamento coletivo contínuo

Camila Cuqui

Pelotas, 2020
2

Camila Cuqui

Zinessérie Meia:
Autopublicação e financiamento coletivo contínuo

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao Centro de Artes da Universidade Federal de
Pelotas, como requisito parcial à obtenção do
título de Especialista em Artes Visuais.

Orientadora: Prof. Dra. Kelly Wendt


3

Pelotas, 2020

Camila Cuqui

Zinessérie Meia: Autopublicação e financiamento coletivo contínuo

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Centro de Artes da Universidade


Federal de Pelotas, como requisito parcial à obtenção do título de Especialista em
Artes Visuais, Universidade Federal de Pelotas.

Data da defesa: 26/02/2021

Banca Examinadora:

Prof. Dra. Kelly Wendt (Orientadora)

Prof. Ma. Carolina Correa Rochefort (UFPel)

Prof. Dra. Renata Requião (UFPel)

Prof. Dra. Helena Beatriz Mascarenhas (FURG)


4

Dedico este trabalho todos os apoiadores que passaram pela campanha –


apoia.se/tecla – desde 22/11/2017 até 13/01/2021: Alércio PJ, Aline Neves
Cavalcanti, Ana Maia, Ana Paula Margarites, Angélica Freitas, Carlos Henrique,
Digliane Andrade, Hannah Carvalho, Juliano Guerra, Kelly Wendt, Karina Gallo,
Bitisa Mascarenhas, Marcelle Müller, Morgana Dornelles Pereira, Rafaela
Barbosa Ribeiro, Renata Job, Rose Albernaz, Talli Mattos, Thamires Seus,
Thiago Andrade, Thifani Ortiz, Vini Albernaz, Wemilly Soares Pereira.
5

Agradecimentos

À Rafaela Inácio, que além de me ajudar com seu belo léxico das artes
visuais no campo acadêmico no decorrer deste trabalho, esteve sempre presente
nesta monografia e na zinessérie, aparece sempre e às vezes constrói comigo as
zines. Obrigada pelas conversas, pelas ideias, por tudo que você me fez ver no
trabalho e em mim. A nossa loja & editora TECLA é a realização do meu sonho
profissional de adolescente. Ter ao meu lado essa artista incrível que é a Rafa, pra
somar e dividir, é a realização de mais um, o que faz de mim uma mulher muito feliz
e com dois sonhos realizados.
À Kelly Wendt, apoiadora da campanha, por ter anos antes me encontrado
perdida no Centro de Artes e me levado ao ateliê de gravura. Naquela prática e
depois, como monitora daquele espaço, eu conheci quase tudo o que é importante
para mim como artista hoje. A nossa amizade me fez acreditar de novo na academia
e nas trocas possíveis neste espaço. Por isso, mais ninguém poderia ter orientado
este trabalho. Agradeço que você seja essa pessoa que não poupa esforços para
ajudar e por ter topado a empreitada nesse semestre atípico.
À minha banca, Carolina Rochefort e Bitisa Mascarenhas, respectivamente a
orientadora do meu trabalho de graduação e a apoiadora mais assídua da
campanha de financiamento há anos. Cada uma de vocês fez parte deste processo,
despertou múltiplas questões e agora será uma honra poder incluir as referências
de vocês nessa nova troca.
6

Resumo

CUQUI, Camila. Zinessérie Meia: Autopublicação através de financiamento


coletivo contínuo. 2020. 50 fls. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização
em Artes Visuais) - Programa de Pós-Graduação em Percursos Poéticos e Ensino,
Centro de Artes, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2020.

No seguinte trabalho de conclusão é apresentada a Zinessérie MEIA, nove volumes


autobiográficos consecutivos escritos por Camila Cuqui, que se tornaram reais
através de um financiamento coletivo contínuo. Com referência a PALMER e através
da plataforma online apoia.se estabelece-se uma alternativa à escassez de espaço
no mercado. As narrativas das próprias zines suscitam discussões, que
acompanham FOUCAULT, BENJAMIN, DIDI-HUBERMAN, SILVEIRA, VALIATI,
MEIRELES e MAGALHÃES para pensar a autopublicação na internet.

Palavras-chave: zine, financiamento coletivo contínuo, autopublicação


7

Abstract

In the following monograph the zine' series MEIA is presented: nine consecutive
autobiographical volumes written by Camila Cuqui, which became real through
continuous crowdfunding. With reference to PALMER and through the online
platform apoia.se, the work sets up an alternative to the shortage of space in the
market. The narratives of the zines themselves give rise to discussions, which
accompany FOUCAULT, BENJAMIN, DIDI-HUBERMAN, SILVEIRA, VALIATI,
MEIRELES and MAGALHÃES to think about self-publishing on the internet.

Keywords: zine, crowdfunding, self-publishing


8

Sumário

Introdução 09
1. Antecedentes 15
2. MEIA: definições e procedimentos 21
2.1. MEIA 1 e a escrita de si 23
2.2. MEIA 2, MEIA 8 e a perda da aura 26
2.3. MEIA 3D, MEIA 5 e a página recortada 29
2.4. 19 MEIA 4, MEIA 7 e o pessoal é político 33
2.5. MEIA 6, MEIA extra e as minhas peles 37
3. Considerações sobre publicação e internet 40
4. Conclusão 48
5. Referências 52
9

Introdução
Behold the world's worst accident
I am the girl anachronism
The Dresden Dolls - Girl Anachronism

No seguinte trabalho de conclusão, pretendo discutir aspectos acerca da


zinessérie MEIA, que consiste em nove livros autorais que escrevi para um público
específico de apoiadores1 através de um financiamento coletivo contínuo, existente
desde 2017. Com o fim da graduação e também das bolsas e meias entradas, sem
imaginar o futuro distópico do nosso país, eu criei uma campanha na plataforma
online apoia.se. A MEIA surge, então, em 2018 para unir o registro, o desenho de
observação que eu já estava desenvolvendo e a necessidade criada pela própria
campanha de narrar certas atualizações e acontecimentos. Em 2019, ingresso na
especialização em artes visuais, com enfoque em percursos poéticos e educação, já
com o intuito de pensar zinessérie e a plataforma online que foi utilizada para
torná-la realidade.
Segundo MEIRELES (2013, p. 43):

O termo fanzine veio da língua inglesa: é a mistura das palavras fanatic (fan
= fã) e magazine (revista). Ou seja, em sua origem fanzine significaria
revista de fã. Stephen Duncombe (2008) ainda em 1997 percebeu que tal
definição já não abarcava o fenômeno, posto que poucos zines hoje são
feitos por pessoas no sentido de idolatrar algo ou alguém, mas sim de criar
e opinar a tratar dos mais diversos temas e através de diferentes formatos e
linguagens. Duncombe (2008) considera os fanzines uma subcategoria,
assim como os zines de quadrinhos, zines de viagem, zines-catálogos,
entre muitos. Concordo com o autor e adoto o termo zine. Embora os zines
existam desde a década de 30, foi apenas há cerca de vinte anos que
zineiros passaram a refletir sobre suas práticas produzindo saberes a
respeito do tema em universidades.

Este texto é uma reflexão sobre uma prática que eu mesma construí,
portanto, ele é colocado sempre em primeira pessoa. A prática a que me refiro - a
de enviar zines por correio em troca de dinheiro através de uma plataforma online -
começou fora do campo acadêmico e retornou à ele. Antes disso, quase me
convenci que o trabalho não pertencia a este espaço, mas escrevi o projeto para a
especialização tentando perceber potência nos mesmos aspectos onde antes via
fraqueza.

1
Apoiadores ou apoiers são as pessoas que subsidiam financeiramente a continuidade do trabalho
através da campanha no site apoia.se.
10

O trabalho que escrevi ao final da graduação pode ser bastante interessante


(na diagramação e no volume) e trazer algum conceito (no procedimento de revisitar
os trabalhos cronologicamente), mas a escrita naquele momento não se propôs a
ser formatada academicamente. Eu saí pela tangente poética daquela situação.
Portanto, o que fiz antes não me ajuda muito agora e sinto que é um completo novo
exercício a que me debruço ao digitar estas palavras.
Antes de mais nada, resgatei alguns emails onde também fiz outro exercício
de escrita. Durante a especialização me dediquei a escrever uma newsletter2, que
pretendia falar abertamente sobre a meia e fazer algumas considerações e
conclusões sobre o assunto. Acredito que tenha falhado na missão original, mas
trago aqui alguns trechos recortados dessa escrita livre sobre a zinessérie e o
cotidiano, que foi enviada por email a qualquer inscrito na época.

2
Segundo a Wikipédia, boletim informativo (newsletter em inglês) é um tipo de distribuição regular a
assinantes e que aborda geralmente um determinado assunto.
11

(print de email enviado em 9 de junho de 2019)


12

(print de email enviado em 18 de julho de 2019)


13

A autopublicação e o crowdfunding3 se entrelaçam na criação e andamento


da zinessérie. Ambas se influenciam mutuamente. A circulação no ambiente virtual
é explorada e ao mesmo tempo abre espaço para uma comunicação analógica,
praticamente antiquada, via carta por onde chega para o apoiador. Cada zine
apreende um momento, realiza um registro e o envia para esse grupo de
interessados seletos. É nestes arredores práticos que pretendo pensar nesta
escrita.
Perpasso os pensamentos que me levaram a fazer a MEIA, os procedimentos
artísticos que utilizei para confeccioná-la, o ambiente digital onde ela é planejada e
o objeto físico que se apresenta para contextualizar o trabalho poético e teórico
dentro do campo das artes visuais. A fronteira entre a arte e o artesanato, a arte e a
feira gráfica é alargada no intuito de incluir narrativas importantes da sociedade que
estão presentes nestes trabalhos, mas muitas vezes não estão incluídos nas
análises e estudos. A impressora é vista aqui como gravura contemporânea
possibilitando a circulação desses conteúdos não-hegemônicos. No entanto, esse
cenário vem se modificando nos últimos anos.
No que diz respeito ao suporte, me insiro num campo de problemáticas entre
zine e livro de artista, discutidos atualmente tanto no campo de artes visuais quanto
na vivência das práticas gráficas independentes como feiras e plataformas online a
serviço da democratização dos serviços de caráter cultural. Quadrinhos, literatura,
desenhos e diversos outros conteúdos são financiados para a confecção de livros
em financiamento coletivos todo ano. De forma descentralizada e cada vez mais
inclusiva, plataformas online são uma nova profissão e um ambiente a ser
desvendado como possibilidade para demandas da arte e da sociedade.
Utilizo tanto dos estudos sobre livro de artista de Paulo Silveira, quanto da
bibliografia brasileiras sobre zines, com Fernanda Meirelles, Elydio dos Santos Neto,
Henrique Magalhães, Yuri Amaral e Ruth Rejane Lerm. Tive o prazer de ser
apresentada à Fernanda Meireles em 2017: ela chegou depois do show da minha
banda no Salão das Ilusões em Fortaleza e fomos apresentadas justamente com o
assunto das zines. Ela me presenteou com estes dois tesouros que podem ser
vistos na figura abaixo: o volume à esquerda é de @peaug, artista local que também

3
Termo amplamente conhecido, proveniente do inglês, crowd = multidão; funding = financiamento.
14

estampava as paredes por lá. O da direita é escrito pela própria Fernanda.


Posteriormente me deparei com os textos dela e com a produção ativa que o Ceará
representa para as zines no Brasil. Esse exemplo ilustra perfeitamente como a atual
pesquisa, por vezes, é permeada por doses de acaso que acabam funcionando
como uma antena e coletando informações extremamente relevantes.
A partir de agora, pretendo relatar alguns contatos anteriores que tive com a
produção de livros.
15

1. Antecedentes

Em 2010, ingressei na faculdade


de bacharelado em Artes Visuais na
UFPel. Da graduação, ressalto o que
na época lancei como meu primeiro
livro: sagitarius a ou SGR A é o nome
do buraco negro que fica localizado
atrás da constelação de sagitário na via
láctea. Lançado pela Editora
Nadifúndio, de Bianca Ziegler e
posteriormente impresso pela Editora
Caseira, de Gustavo Reginato, foi
apresentado durante a FLIA (Feira do
Livro Independente e Autônoma) em
Pelotas e exposto no Acervo
Independente, pelo NIEM/UFRGS em
Porto Alegre na exposição o
Feminismo é Para Todas as Pessoas.
O livro consiste num compilado de
desenhos meus dessa época, montados numa narrativa abstrata que deixa evidente
a ideia do sustento pela arte através de um site, que pretendia ser minha loja e
portfólio em camilacuqui.com (endereço que não está mais no ar). "Eis que arde, eis
que arte, pois, esse exemplar, trazendo pedaços, pra me sustentar de rango e
alma." (CUQUI, 2014, p. 31)
Desde 2010, sem ajuda financeira, me deparei com questões atuais dos
artistas contemporâneos independentes, que vivem numa constante procura de
meios: editais, plataformas, suportes, etc que possam difundir e financiar trabalhos e
projetos. Na gana de fazer acontecer ideias criativas, artistas visuais assumem
todas as mais diversas funções da cadeia produtiva: divulgam, planejam, executam,
criam, embalam, entregam.

Uma das mais importantes características dos fanzines é que seus editores
se encarregam completamente do processo de produção. Desde a
concepção da ideia até a coleta de informações, diagramação, composição,
16

ilustração, montagem, paginação, divulgação e venda, tudo passa pelo


domínio do editor. Em muitos casos até a própria impressão é feita pelo
editor, que aprende a lidar com o produto jornalístico de uma forma global.
A manipulação de todo o processo, embora exija mais tempo e habilidade,
dá maior liberdade de criação e execução da ideia. (MAGALHÃES, 2012, p.
10)

Fica óbvio que esse estilo de vida exige aprendizado constante e causa uma
sobrecarga, assim, meu site não durou muito, as coisas demoraram para funcionar
e nunca me deram real retorno. De uns tempos para cá, porém, muitas coisas
mudaram.

Com a internet, a facilidade de difusão de informações e o baixo custo de


transação aproxima o artista das massas, oferecendo-lhes a opção da
coprodução e do consumo, o que, por outro lado, libera o autor das
formalidades exigidas pela indústria cultural. (VALIATI, 2013, p. 46)

Plataformas online estão inovando cada vez mais as formas antigas de fazer
sites, lojas, portfolios. São muitas as opções pra quem procura um lugar ao sol
online. Há anos o crowdfunding ganha espaço na produção cultural mundial. É uma
forma direta de unir pessoas online para obter capital para realizar projetos, assim,
livros, quadrinhos, canais, ações filantrópicas e ambientais se tornam realidade sem
o intermédio de editoras e patrocinadores. Em troca do apoio, normalmente se
recebe recompensas, além da própria existência de projetos diferenciados dos quais
se acredita. PASCHOAL (s/d), criadora da Kickante4, relata em sua coluna no blog
da plataforma que desde o século XVII livros são feitos por crowdfunding, mas que o
primeiro grande projeto a se estruturar como tal foi a arrecadação de 100 mil dólares
doados por mais de 125 mil contribuintes para a construção e instalação da estátua
da liberdade nos Estados Unidos em 1884. Quem encabeçou a ação foi o editor do
jornal New York World, Joseph Pulitzer.
Para falar sobre esse tipo de financiamento coletivo e suas implicações, trarei
Vanessa Amália Valiati, num artigo publicado na revista da comunicação da
Unisinos, que relaciona os financiamentos coletivos com a indústria cultural; e
Amanda Palmer, artista, cantora e compositora, que além de ídola da adolescência
e referência para a vida, foi o centro de uma grande polêmica depois de obter uma
arrecadação maior que a esperada para o financiamento de seu disco.

4
um dos sites que oferece o serviço de financiamento coletivo pontual no Brasil.
17

Ao lançar minha campanha, acabei entrando num debate cultural mais


amplo que já vinha se arrastando e questionava se o crowdfunding era
sequer admissível; alguns críticos estavam desdenhando a prática como
uma forma grosseira de "mendigar na rede". (PALMER, 2015, p. 8)

Convidada para um TED talk, que posteriormente se tornou um livro, Amanda


fala da Arte de Pedir e relaciona seu passado como estátua viva em Nova Iorque
com a forma direta que ela interage com seus fãs ainda hoje. Além dessa campanha
pontual de sucesso, hoje 14.152 pessoas apoiam o trabalho dela numa campanha
contínua. Conhecer o Patreon5 da Amanda Palmer foi a principal inspiração sobre
esse tipo de financiamento e vejo que hoje a modalidade contínua se expandiu e a
maioria dos sites, mesmo no Brasil, oferece ambas.
Minha história com o financiamento coletivo,
assim como a da Amanda, está vinculada com a
música: em 2012 eu entrei pra banda Musa Híbrida
e lançamos nosso primeiro disco num formato que
chamamos na época de disco-livro-livre. As letras
das músicas e desenhos meus e do Vini Albernaz e
impressos em preto em papel colorido verde claro,
uma aquarela do Vini diz Musa Híbrida na capa e a
encadernação é japonesa irregular com uma linha
roxa. Foi impresso em gráfica, costurado e gravado
em casa. Foram feitas menos de 50 cópias dessa
raridade, que é o álbum homônimo da banda: Musa
Híbrida (imagem ao lado).
Em 2014, eu, Vini Albernaz e Alércio PJ, que compomos a banda, gravamos
vídeos e saímos online e presencialmente à procura dos potenciais compradores de
CDs e ideias para financiar coletivamente. As recompensas eram desde o próprio
disco, até camisetas, cortes de cabelo e shows em casa. A campanha foi um
sucesso e arrecadou um pouco a mais do que o valor estipulado. O resultado é o
álbum verde fosco roxo cinza, que está disponível para ouvir em todas as
plataformas de streaming. As letras no interior do encarte são montadas em várias

5
Segundo a Wikipédia, site de financiamento coletivo contínuo, que oferece ferramentas para
criadores gerenciarem serviços de assinatura de conteúdo, bem como formas para os artistas
construírem relações e proporcionarem experiências exclusivas para os seus assinantes, ou
"patronos." Fundado em 2013 pelo artista e YouTuber Jack Conte.
18

direções: eu escrevi elas à mão e o Vini


editou com referência ao livro O jogo da
Amarelinha, escrito por Julio Cortázar e
trazido como referência para nós pelo
Alércio. O autor sugere que esse livro seja
lido em uma ordem não-numerada dos
capítulos. Ele sugere uma sequência assim
como deixa aberto para que seja escolhida
outra. Como diz SILVEIRA (2015, p. 13),
logo no início de seu livro:

E se a primeira página
desse livro fosse a última, com ele começando pelo fim? Uma página,
digamos, -320? E depois uma -319, -318 e assim por diante? Isso nunca
(ou quase nunca) acontece. Isso pode ser considerado uma violação tanto
das práticas do bom senso (ou do consenso) como das normas escritas. É
uma violação da ordem. Um livro com o menor grau de violação já causa
estranhamento, para qualquer público. Essa é a premissa do livro de artista
contemporâneo, como o equilíbrio o foi dos seus antecessores.

Compartilhar com eles essa criação e aprender ali em partes sobre o


processo de arrecadação foi essencial para a minha compreensão e aproximação
com o financiamento coletivo.
Esse trabalho teórico tem a participação ativa de duas apoiadoras da
campanha há anos: Helena Beatriz Mascarenhas participou da banca e trouxe
questões muito pertinentes da área das Letras que modificaram o trabalho como
está agora. A orientação foi por Kelly Wendt, que além de artista e professora é
minha grande amiga. Além disso, outra das aproximações-coincidências perfeitas é
que ela foi orientada no doutorado pela Blanca Brites, que junto com a Élida Tessler
organizou o livro O Meio Como Ponto Zero: Metodologia da Pesquisa em Artes
Plásticas, em 2002. Esse livro é essencial para quem pesquisa em artes no Brasil.
Os textos que compõem o livro obedecem a ordem das apresentações orais do III
Colóquio Internacional de Artes Plásticas e lançam perspectivas de alguns dos
maiores pesquisadores nacionais sobre a metodologia única que se aplica à
pesquisa em artes.
Como já citado através daquele print de email supracitado, em 2017, a ideia
desse livro me inspirou a escrever a canção intitulada meio, uma das três músicas
entregues junto com meu trabalho de conclusão de curso. A música foi regravada
19

em 2018 e está disponível nas plataformas de


streaming, no álbum piscinas vazias
iluminadas em pé. Essa letra contém os
primeiros pensamentos que me levaram à
constituição da zinessérie posteriormente,
quando eu flexiono para o feminino o título
meio, é como a aplicação dos
questionamentos no próprio ponto de partida.

será que som?


será que dom
moldura haverá?
pesquisando em arte,
tateando métodos
quem nós somos? arredando interferências
quem são outras? descartando atrasos
quando eu digo homens
esculpindo técnicas não é humanidade
costurando referências a obra aberta
por que fazemos isso? a mente aberta
colecionamos lixo? as perna aberta
prolixo texto recriar a língua
concordância chupar as palavra
supõe concordar revolução é uma volta inteira em órbita
20

A letra dessa canção foi


feita a partir do poema a
linguagem (imagem da
página anterior), que
também fez parte do meu
TCC, dentro do caderno
triangular. Este, trazia
poemas visuais, letras de
músicas e referências de
entrevistas em vídeo num
formato de página diferente.
Cada poema tem seu título
numa lingueta que permanece para fora do volume, possibilitando que ele seja
puxado para leitura. Cada capítulo possui um tamanho, com mais ou menos páginas
dobradas, e pode conter ou não imagens.
No TCC, eu fiz uma retrospectiva de todos os trabalhos que havia feito
durante a graduação, analisando aspectos positivos e negativos que traçaram uma
continuidade ou me fizeram abandonar ideias. Neste texto, ao contrário do anterior,
me interessa focar exclusivamente no recorte da produção poética, que é a
zinessérie, e os trabalhos que muito se afinam para as discussões relativas ao livro,
à zine ou ao financiamento coletivo.
Foi em 22 novembro de 2017 que eu fiz 27 anos e comecei a minha própria
campanha de financiamento coletivo contínuo no apoia.se, que na época era o
único site brasileiro que eu conhecia a oferecer esse serviço de forma contínua. A
experiência desta realização possibilitou não apenas a existência da zinessérie, mas
meu crescimento pessoal e artístico.
Daqui para frente, chegaremos a algumas definições e procedimentos da
MEIA. O capítulo 1 apresenta a zinessérie e seus conceitos operacionais. Os cinco
subcapítulos trazem uma ou duas zines da série, relacionando com as referências
teóricas mais importantes que estavam desde a feitura até agora, na reflexão. O
segundo capítulo adentra a distribuição, focando em características da escrita de si,
da zine e do crowdfunding para pontuar o potencial de resistência de uma rede.
21

2. MEIA: definições e procedimentos

Estou em milhares de cacos


Eu estou ao meio
Onde será que você está agora?
Metade, Adriana Calcanhotto, 1994

Parte da ideia inicial da MEIA era trazer a banalidade do dia-a-dia recortada e


refeita através da zinessérie – e um pouco inventada na tradução. O arquivo é um
encontro entre a memória, o acontecimento e o registro.
A MEIA foi mais que um título, funcionou como conceito operatório de
escolha de conteúdo para as zines. Os elementos se repetem: o meu rosto, a casa,
eu e a Rafa, os nossos animais e plantas, cadeiras, canecas, pranchetas, o
bandolim. Tudo parte do desenho de observação, mas nunca imitando a realidade
de maneira fotográfica. A realidade é modificada desde a minha percepção até a
ação, no desenho, na montagem e recorte dele. Eu sou a meia bege fina que
segura o pó para passar o café, com o tempo minha cor muda. Amo café mais do
que deveria.

Porque a imagem é outra coisa que um simples corte praticado no mundo


dos aspectos visíveis. É uma impressão, um rastro, um traço visual do
tempo que quis tocar, mas também de outros tempos suplementares -
fatalmente anacrônicos, heterogêneos entre eles - que não pode, como arte
da memória, não pode aglutinar. É cinza mesclada de vários braseiros,
mais ou menos ardentes. (DIDI-HUBERMAN, p.216)

O feminino de metade, além de me agradar sonoramente, sempre me


interessou ao fazer esse pequeno deslocamento do meio como uma provocação ao
sujeito universal e hoje, vejo a linguagem sendo cada vez mais lugar de embates
profundos em relação às pautas identitárias.
Vesti, então, a meia. Queria falar de mim, me exercitar artisticamente.
Particularmente, adoro meias. Digo no sentido das que esquentam os pés mesmo.
Certa vez, fiz uma compra de meias no Ebay6 e entre as estampas de faquinha e
gatinho, comprei as meias da história da arte. Depois que chegaram na longa
espera da entrega, dormi e acordei com essas meias por muito tempo e acredito
que isso tenha me despertado à palavra pequena e perfeita cheia de significados:
meia.

6
Site de compras internacional semelhante ao Mercado Livre.
22

A captura de tela abaixo é parte da resposta que recebi da apoiadora que


está ativa há mais tempo na campanha, Bitisa Mascarenhas, logo após ter noticiado
o início da zinessérie por email.

Nas zines da MEIA, converso comigo e com meus apoiadores, as narrativas


criadas são sempre cartas desenhadas e não-lineares onde apresento recortes do
cotidiano feitos a partir da observação, elencando acontecimentos corriqueiros
através de uma montagem. Esse processo é realizado no momento de desenhar,
quando diferentes fragmentos são articulados levando em conta a percepção do
movimento – do olhar e das coisas – e da sobreposição de pontos de vista.
O mesmo processo se aplica na montagem das páginas de cada um dos
nove volumes: utilizo desenhos e frases selecionadas, recortadas do papel onde
foram feitas originalmente, reorganizando em outra folha, com cola ou fita durex.
Diversas vezes essa montagem fica evidente na visualidade do escaneamento,
como no sexto volume, a MEIA meia.
A zinessérie MEIA representa uma fenda no asfalto onde nasce uma flor. Ou
talvez a flor que representava “eu vejo você”, dada como agradecimento às moedas
recebidas pela noiva estátua. Assim como a Amanda Palmer, com ajuda e a
formação de uma rede – em outras proporções em relação à dela – eu e artistas de
todos os lugares e com as mais diferentes propostas podem criar em conexão direta
com seu público, independente do alcance, com a possibilidade de acontecer sob
demanda.
Alguns anos antes, em 2017 “eu estava ali desconcertada diante de um
abismo sem fundo entre o que queria ser – uma artista de verdade – e como, bom…
como fazer pra virar uma.” (PALMER, 2015, p. 29)
A partir de agora, vou apresentar os volumes que constituem a série de zines,
relacionando com teorias suscitadas pela própria narrativa presente.
23

2.1. MEIA 1 e a escrita de si

A MEIA 1 é, então, o botãozinho da flor


dessa ideia que desabrocha durante o
próprio andamento da campanha. Em abril
de 2018, depositei naquelas páginas muitas
expectativas, tentando captar o que já era e
prever o que seria. A capa é simples (Figura
à esquerda) e tem como inspiração a
tipografia do disco Melhor do que parece
(2016) da banda O Terno, criada pela
ilustradora, pintora e designer Talita
Hoffmann. Esse volume propõe uma
descoberta pelo seu formato, inicialmente
A6, que se desdobra num pôster A3 impresso no
lado interno. Um recurso recorrente no meio gráfico,
apenas com uma fenda no meio da folha, se cria
essa dobradura e com a impressão de dois formatos
simultâneos. Esse efeito parece evidenciar a
característica que o objeto livro possui - de esconder
e mostrar um conteúdo estocado em espaço
reduzido.

Quero menos o texto (os diversos códigos de sinais) do que o contexto (o


próprio suporte como obra). Constato as ressonâncias dos dualismos do
homem (o homem artista ocidental principalmente) nas páginas vincadas,
nos duplos par e ímpar, frente e verso, capa e contracapa, letra e imagem,
o abrir e o fechar, o mostrar e o esconder..." (SILVEIRA, 2008, p. 23)

A série é iniciada sugerindo "a bobagem mais importante possível",


misturando Regina Spektor, Better: "if you never say your name out loud to anyone
they can never ever call you by it" – se você nunca disser seu nome em voz alta pra
ninguém, eles podem nunca te chamar por ele – com Oswaldo Cruz ao som dos
bandolins e, obviamente, Meu Km, canção minha, que está atravessada nessa zine
toda, inclusive na citação da pintura expressionista "O grito" de Edvard Munch com
a parte da letra: "nada além de grito".
24

Cartaz ou livrinho de bolso, a MEIA 1 se modifica com o uso que o leitor dá a


ela. Toda impressa em preto e branco, a estampa da parte interna das capas é um
texto corrido à mão que mistura letras de músicas com explicações da MEIA e o que
está acontecendo à minha volta, do qual destaco o seguinte trecho:

"dor nas costas, mas os músculos se apertam pelo certo / isso é talvez o
que anoto da vida pra que me lembre mas minha visão já é o acontecido
todo torto então acho que assim compartilho um pouco do que procuro/"

Essa zine, que é o volume primeiríssimo, chega a ser uma espécie de


manifesto da MEIA. Relendo agora, percebo indícios de procedimentos que
FOUCAULT coloca em A escrita de si. Quando eu cito “o acontecido torto”, por
exemplo, de maneira simples me remete à (FOUCAULT apud SÉNECA p. 143):
"Não consintamos que nada do que em nós entra fique intacto, por receio de que
25

não seja assimilado." Esse exercício é extremamente importante num ambiente


caótico da informação, soterrado de imagens e contaminado por fake news7.
A imagem à direita mostra eu me
desenhando, e pensando no desenho
também como uma espécie de escrita, em
FOUCAULT (p. 134) "Como elemento do
treino de si, a escrita tem [...] uma função
etopoiética: é um operador da
transformação da verdade em ethos8".
Então, o objeto cotidiano retratado nos
desenhos de observação não apenas é
editado, mas também me edita ao realizar
esta passagem através da inteligência.
Na banca, Carolina Rochefort me
trouxe o artigo escrito por AQUINO (2019), que aproxima o arquivo e a pesquisa
educacional pelas das práticas de liberdade de Foucault. O autor leva em conta as
considerações do filósofo espanhol Francisco Vázquez Garcia, definindo os
estudiosos focaultianos que, ao contrário dos focaultistas, não tomariam "as
proposições de Foucault como algo em si mesmo, mas como ferramentas a serviço
de problemas empíricos muito delimitados e muito modestos se considerados a
partir da mirada altiva do filósofo".
O arquivo, para AQUINO (2019) é "como um norte para pesquisa
educacional". Neste mesmo contexto, ele relaciona o conceito de montagem trazido
por Georges Didi-Huberman, argumentando que a lacuna é própria do ato de
arquivar e as narrativas só se estruturam a partir de recortes e montagens. Essa
percepção permite aos escritores, historiadores e artistas a interpretação do mundo
e de si próprios. A MEIA foi a possibilidade, então, de me reavaliar como artista e
perceber minha própria existência como mulher lésbica brasileira.

7
Do inglês: notícias falsas. Difíceis de combater, configuram uma estratégia política atual.
8
Segundo a Wikipédia, Ethos é o conjunto de traços e modos de comportamento que conformam o
caráter ou a identidade de uma coletividade.
26

2.2. MEIA 2, MEIA 8 e a perda da aura

Em junho de 2018, eu lanço a MEIA


dois. Oito páginas coloridas, no formato A5
retrato, com as folhas brilhosas grampeadas
ao meio, esse volume da zinessérie foi feito
enquanto eu editava o clipe da música viu,
lançado em 1 de agosto de 2018. O clipe
está disponível no canal da banda Musa
Híbrida no Youtube9, e é uma animação em
rotoscopia (desenhado a partir de frames de
vídeo) com imagens super coloridas e
sobreposição de gifs10, que me levaram à
mirabolante função caríssima de fazer uma
publicação colorida daquela vez. A imagem
da figura à direita revela uma imagem que é invisível no clipe em si, a imagem
filmada que gerou a rotoscopia, espelhada
acima. Sem muitas explicações, a zine traz
com exclusividade essa cena do vídeo
ainda não lançado.
Trago ainda mais uma página dupla
que faz parte do segundo volume. A
imagem que aparece à direita contém o
escaneamento de um recorte da pintura
Noite Estrelada e as já citadas meias da
história da arte. Apesar de Van Gogh ter
vendido apenas um único quadro em vida,
hoje está em muitas das reproduções em
massa que citam a arte de maneira bem
abrangente na internet. Isso só é possível
porque a reprodução técnica de imagens
se desenvolveu hiperbolicamente. Segundo BENJAMIN (1935-1936): "À xilogravura,

9
Segundo a Wikipédia, YouTube é uma plataforma de compartilhamento de vídeos com sede em
San Bruno, Califórnia.
10
.gif é uma extensão de formato de arquivos que reproduz vídeos de poucos frames por segundo.
27

na Idade Média, seguem-se a estampa em chapa de cobre e a água-forte, assim


como a litografia, no início do século XIX". O autor discute a perda da aura que sofre
a obra de arte com a reprodutibilidade técnica e essa discussão é cara para a
atualidade, uma vez que as inovações são sempre questionadas ou até mesmo
perseguidas e refreadas por setores conservadores da sociedade.
BENJAMIN (1935-1936) cita Marx no início de seu texto e o retoma aqui
como comparação entre as teses neste trecho final, para fazer suas previsões a
respeito de como pode ser negacionista subestimar o valor da tecnologia influindo
diretamente no campo das artes visuais:

Seria, portanto, falso subestimar o valor dessas teses para o combate


político. Elas põem de lado numerosos conceitos tradicionais - como
criatividade e gênio, validade eterna e estilo, forma e conteúdo - cuja
aplicação incontrolada, e no momento dificilmente controlável, conduz à
elaboração dos dados num sentido fascista.

Uma vez que a internet transformou seus usuários em difusores de


informação, houve uma inversão dos pólos da comunicação que modificou,
inclusive, a lógica de consumo. Essa nova lógica, mais difusa e menos centrada,
tem características muito mais próximas às democráticas. Segundo PEREIRA, a
leitura feita por Walter Benjamin dos fatos dessa época ainda continua se renovando
para a atualidade:
Todo o processo parece dar continuidade à discussão iniciada por Walter
Benjamin, em torno da possibilidade de reprodutibilidade técnica da obra de
arte. Se a fotografia inicia o percurso de desmontagem operada na
destruição da distância entre original e cópia, outros media vão radicalizar
esta investigação. O vídeo, talvez como forma emergente, aumenta a
abrangência e ao mesmo tempo diminui, um pouco mais, a distanciação
inicial; mas é sobretudo a arte eletrônica que propõe a anulação da
distância em termos totalizantes. (PEREIRA, 2002, p. 5)

A relação que este autor português faz com Walter Benjamin justamente
coloca a atualidade como a completa radicalização do caso da crise de autoria da
obra de arte perante sua reprodutibilidade.
A MEIA 8 fala um pouco da reprodutibilidade e das novas tecnologias quando
descreve o processo de montagem dos volumes.
Escrita para ser o fim da zinessérie, depois se torna a penúltima,
ultrapassada pela MEIA extra (da qual falaremos mais tarde). Com rabiscos de
pastel oleoso preto e recortes até que discretos do Guernica, de Picasso, essa zine
declara o fim da MEIA: "De um a oito / vou pensar no que houve / o mesmo e outro
28

está por vir" (CUQUI, 2020, p. 5). Já pensando neste texto, eu decidi encerrar a
zinessérie como ela se configurava, no intuito de pensar as reverberações e
formatos dela, encerrando assim, o objeto de estudo desta monografia.
A campanha, no entanto, continua ativa em http://apoia.se/tecla, onde outras
zines estão sendo desenvolvidas mensalmente para os apoiadores por lá, agora
com a alcunha da nossa loja virtual/ateliê, quem apoia hoje recebe também títulos
da Inácio Rafaela, ou Rafa, muito citada ao longo deste texto, minha namorada e
sócia.
29

2.3 MEIA 3D, MEIA 5 e a página recortada

A MEIA 3D foi lançada em


agosto de 2018. Em cima de uma
selfie11 minha e da Rafa com
bastante ruído12, há um sólido
geométrico planificado para
recortar. Nele: tijolos, moedas,
letras, fósforo, bandolim. Do
outro lado do cartão, o link para
um vídeo com experimentações
3D.
O vídeo, que pode ser acessado através do link youtu.be/yr4DCZ1d1ag,
mostra letras rabiscadas no espaço utilizando o programa online Google
SketchUp13, objetos baixados na 3D Warehouse (que é a loja do próprio software)
se movendo, prints de poemas sendo digitados, traços sendo desenhados no Adobe
Illustrator14 e uma única cena gravada que a Rafa fez de mim reestruturando uma
planta com tratamento supersaturado. A trilha sonora foi composta e executada
também pela Rafa no baixo no chão do meu quarto.
Pensando nessa proposta prática de recorte e montagem que propus, me
deparei com SILVEIRA (2008), que se interessa pela transgressão do objeto-livro
em A Página Violada: da ternura à injúria na construção do livro de artista. Ele
descreve casos de subversão do livro físico na arte. Segundo o crítico, muitos
artistas faziam livros sem um pensamento aprofundado sobre o suporte:

Alguns equívocos marcaram a produção da época. [...] Por característica


brasileira, o sucesso da poesia concreta era acompanhado do pouco
conhecimento pelos artistas da encadernação criativa e do projeto gráfico,
bem como do preconceito acadêmico com a comunicação visual.
(SILVEIRA, DATA p. 15)

O que chama a atenção dele, mais tarde, são objetos quase escultóricos
"inaceitáveis para o mundo da bibliofilia". Apesar do formato da zinessérie ser quase

11
Termo que a cultura pop utiliza para designar fotos tiradas de si mesmo.
12
Ruído é uma textura granulada utilizada como filtro fotográfico digital.
13
Software livre do Google para criar objetos e cenários 3D.
14
Editor de imagens vetoriais comercializado pela Adobe Systems.
30

sempre um livro com suas características formais, algumas vezes as propostas têm
o intuito de instigar os limites que abrangem esse suporte. O terceiro é
descaradamente o mais descaracterizado de todos os volumes, mas também se
dispunha a ser uma zine mais rentável possível para o projeto depois das
dificuldades do volume anterior. Com isso, resolvi explorar as escritas digitais no
vídeo em vez das impressas, mas, pra mim, mantive o objeto-livro através dessa
página única e recortável, que tem em si a possibilidade de se transformar num
pequeno sólido geométrico de papel como na imagem acima. SILVEIRA (2008, p.
23) também fala sobre a página, em si, como a menor unidade do livro quando
define seu objeto de estudo:

O livro de artista no sentido lato é o alvo principal deste estudo. E a página,


compreendida como sendo matéria expressiva (mesmo quando não exista
mais), é o foco adicional, porque ambos são mutuamente referentes. Ou
melhor, o livro de artista é um alvo móvel, ardiloso, que só pode ser atingido
por correção da paralaxe de nossa pontaria. A página é matéria plasmável
por sua interação positiva com o texto e a imagem, e também porque é
rasgada, furada, colada, feita, desfeita ou refeita, por mutilação ou
reciclagem. A página que, às vezes, não passa de uma remissão, uma
menção, uma possibilidade. Ela não deve ser confundida com uma folha
solta de papel. Ela guarda consigo os sinais de ser parte de um todo. A
página, como a estamos apresentando aqui, é a menor unidade possível do
suporte livro.

O cartão, que é o terceiro volume, é


uma página única, mas se inclui num todo. Ele
pode ficar guardado entre os outros dois
números vizinhos, ou ser totalmente desfeito
entre fundo e figura utilizando uma tesoura. O
fundo pode ir ao lixo ou continuar sendo a
menção desta página recortada, desfeita, mas
que é a conexão do 2 com o 4. A figura do
sólido geométrico pode nunca ser montada ou
pode se transformar num objeto de papel, uma
página no espaço.
Nesse mesmo mês, aconteceu o único evento de apoiadores. Sob a alcunha
de Cuqui Apoiers Fest, no dia 5 de agosto, no MQD, em Pelotas, expus a série
numa banca e projetei o vídeo na parede externa ao cair da noite. Alguns
apoiadores que residem em Pelotas compareceram e retiraram as entregas do mês
31

em mãos, mas o maior público foram pessoas


que não conheciam e se interessaram pela
campanha. Essa tentativa de encontro foi
interessante, mas também me fez acreditar mais
na potência do evento assíncrono na atualidade,
a leitura que chega pelo correio se faz a qualquer
momento, a comunicação mais profunda que
cada um no seu tempo e no seu espaço permite.
Isso sem considerar a atual necessidade pelo
encontro online causada pela pandemia, mas essas não eram questões naquele
momento.
No trecho abaixo, MEIRELES destaca essa característica sobre as cartas e
zines, que não apenas antes, mas também depois de recebidos, lidos e guardados
continuam guardando a mesma potência:

Longe dos olhos e das mãos, as cartas descansam. Os zines também.


Dentro de caixas, pastas, envelopes ou gavetas, cartas e zines
adormecidos repousam nos quartos de pessoas de vários bairros, em
muitas cidades e também nos países mais distantes. Mas basta um gesto,
um toque, e tudo se move outra vez. (MEIRELES, 2013, p. 16)

A MEIA 5 é outra das zines que se encaixa numa proposta de recorte e


propõe uma violação às regras comuns
do livro. Lançada em janeiro de 2019,
cheia de linhas de corte e tesourinhas,
essa zine é um grande catálogo de
algumas coisas da nossa casa
desenhadas por mim e pela Rafa, que
também assina o lettering da capa. São
oito páginas grampeadas e cinco presas
no volume com um clips-verde-metálico.
Essas páginas soltas são uma tentativa
de que realmente seja cortado o
objeto-livro, pelo qual muitos
colecionadores tem muito apreço, sem
deixar a sensação de que ele foi
32

danificado ou subtraído. Para os zineiros menos clássicos, inclusive as páginas


presas podem – e até devem – ser recortadas. Depois de passar por muitas
decepções tentando fazer meu público cumprir propostas, eu compreendi que a
obrigatoriedade é irreal e cada um sempre vai fazer o que bem entender. E tudo
bem.

Então, a interação possível com a página recortada – a possibilidade de


passar pelo meio mesmo, o meio da superfície, pela fibra do papel, o separando
com uma tesoura com ou sem ponta – é colocada sempre sem resposta certa, ela
apenas se coloca à disposição para ser completada pelo leitor, se for de sua
vontade.
A tesoura, além de delimitar áreas de recorte, representa a identidade
lésbica. Os escritos são declarações de amor e cotidiano de duas artistas visuais,
que dividem plantas, tatuagens, moedas de um real e ela desenhou o bandolim
também. Ficou lindo.
33

2.4. 19 MEIA 4, MEIA 7 e o pessoal é político

Este volume foi escrito entre o primeiro e o segundo turno das eleições
presidenciais no Brasil em 2018. Numa mistura de esperança com tristeza e
distopia, é a maior zine de todas, tem um aspecto de revista, com 16 páginas
tamanho A4. O título 19 MEIA 4 é uma referência à data do golpe militar que deu
início à ditadura no Brasil, em 1964. Por suas páginas: o número de telefone do
caminhão de mudanças mais barato de Pelotas na época, espaços internos, várias
Tatianas15, o dia que a Rafa posou para a disciplina de Desenho da Figura Humana
e figurinhas de agendas e cadernos escolares.
A narrativa presente na 19 MEIA 4 tenta evidenciar como as ações cotidianas
são políticas. Apesar do Brasil, "você me abre seus braços e a gente faz um país"
da Marina Lima é uma das últimas frases presentes. A última é "no fundo só
desenhe seu amor" (CUQUI, 2018, p. 15).

Criar é resistir, nos sopra Deleuze (1992). Fazer zines é um ato político, de
micropolítica. [...] Zines como bombas-caseiras, artefatos fabricados em
casa para explosões internas. Assim como as missivas. O que esperava eu

15
Nossa cachorra.
34

dessas explosões? Que deslocassem a organização interna dos leitores,


que provocassem um movimento inédito e imprevisível, belo ainda que
simples (MEIRELES, 2013, p. 83)

Fernanda Meireles fala sobre as Missivas, zines de autoria dela, mas essas
explosões são aplicáveis ao ato de fazer zines em si. O pensamento "personal is
politics" é um ponto no livro de DUNCOMBE (2008), mas esse discurso reverbera
de forma orgânica entre os fazedores de zine. Esse vaivém entre o pessoal e o
político é visível na narrativa desse volume, mas está presente - por vezes de
maneira mais ou menos implícita - em todas as escritas.
As pesquisas que tem como tema as mulheres lésbicas acabam encontrando
dificuldade metodológica: a falta de registro histórico é notável, mas o apagamento
muitas vezes é mais sutil e bastante eficiente ainda assim: as perseguições sociais
que as lésbicas sofrem desde à infância também as mantém numa intensa
Síndrome do Impostor16, o que não facilita a produção de materiais de pesquisa.
Segundo AGUIAR (2017, p. 15-16):

16
Segundo a Wikipédia, é um fenômeno pelo qual pessoas capacitadas sofrem de uma inferioridade
ilusória, achando que não são tão capacitados assim e subestimando as próprias habilidades.
35

Estudos no campo da História (Lessa, 2007; Selem, 2007; Navarro-Swain,


2000) alertam para o risco de apagamento das histórias e experiências das
mulheres que se relacionam sexual e afetivamente com outras mulheres,
devido ao baixo número de trabalhos trazendo as lésbicas como tema. Na
mesma linha, em uma apresentação de trabalho, Suane Soares (2014, p.
1440) desabafa sobre a dificuldade de se conduzir pesquisas sobre o
movimento lesbofeminista no Brasil: “escrever sobre nós é um desafio que
guarda uma peculiaridade. Somos demasiadamente invisíveis para registrar
nossas histórias”. Falta de registros, invisibilidade e o baixo número de
publicações tratando especificamente de homoerotismo de mulheres e do
movimento em defesa das lésbicas no Brasil são fatores que se
retroalimentam: não apenas há carência de documentos, mas é difícil
encontrá-los, o que dificulta a definição de objetos para pesquisa neste
tema; mais que isso, como Soares mesmo aponta (e concordo), mesmo a
busca por referências teóricas pode se tornar um desafio.

Dada, então, a importância do registro para a existência lésbica através de


documentos que possam durar gerações, eu encontro no formato da zine a perfeita
locação para o exercício de um pensamento acessível de arte contemporânea.
Os meus registros subjetivos, além do intuito de visibilizar um cotidiano
muitas vezes secreto da intimidade de duas mulheres lésbicas, passam através dos
eventos ínfimos para chegar a discussões
sobre arte e processo criativo. Como diria
MAGALHÃES:
Uma das características
importantes dos fanzines
é que muitos deles são
produzidos pelos próprios
artistas. São eles que vão
escrevendo sua história
atual e a história de sua
arte mediante pesquisas
e entrevistas com os
antigos autores. Os
criadores são ao mesmo
tempo pesquisadores e
sujeitos da ação.
(MAGALHÃES, 2012, p.
73)

Esse local de sujeito é exatamente


o que procuro como mulher lésbica na
sociedade e na arte, e estava evidente
quando iniciei a série e agora ainda mais através dessa pesquisa.
A resistência não está apenas nas escritas dessas zines, mas no próprio ato
de publicar contra uma corrente bem estabelecida de editoras e interesses do
36

mercado. Aqui, porém, proponho uma aproximação narrativa: além da já citada 19


MEIA 4, falarei da MEIA 7, a antepenúltima zine da série.
O volume foi montado todo à mão em outubro de 2019. Nele, eu falo um
pouco sobre uma aula presencial que tivemos antes da pandemia, ministrada pela
Úrsula Rosa da Silva, em que ela faz um plano de ensino que pretende dar aos
alunos "as ferramentas para resistir": a indicação de textos sobre educação como
prática de liberdade.
Nos tempos obscuros que vivemos, com a ascensão do fascismo e a retirada
de direitos civis, a resistência não pode ser um tema apenas para as minorias
sociais. É essencial compreender porque Paulo Freire e outros educadores são
vistos com maus olhos por alguns perante a distopia que vivemos no Brasil e esta
disciplina foi incrível para este propósito.
Dentre a bibliografia, o texto que mais me tocou entre todos os apresentados

foi escrito pela própria Úrsula. Nele, a mitologia grega de Perseu é utilizada para
fazer uma metáfora da forma como a arte pode funcionar como um espelho para a
realidade, assim como o escudo que pertence à Perseu. A Medusa transforma em
pedra qualquer um que a direcione o olhar, mas é derrotada pelo semideus, que se
37

guia pelo reflexo do escudo e, sem fixar seus olhos na deusa diretamente, corta sua
cabeça. A realidade seria, então, essa deusa cruel, e a arte o escudo através do
qual o artista consegue observar e inclusive modificar a realidade, sem que ela o
transforme em pedra.
A zine termina assim: “Uma esperança de que criar imagens lance / Fogos de
artifício silenciosos / no cotidiano opressor” (CUQUI, 2020, p. 8)

2.5. MEIA 6, MEIA extra e as minhas peles

Lançada em agosto de 2019, na MEIA meia eu falo


sobre as cinco peles de Hundertwasser, uma teoria
que sempre retorna à minha poética,
principalmente por suas tendências na arquitetura
e meio ambiente. Para o arquiteto e artista
austríaco, a epiderme é apenas a primeira pele do
ser humano, seguida pelas roupas, casas,
identidade e a própria Terra. Esse movimento de
pensar o ambiente a sua volta como parte de si
mesmo tem muito a ver com meu processo com a
MEIA – dentro da casa, dentro do quarto, dentro

de mim.
Eu me desenho numa
espécie de casulo que me
lembra um palanquim (Figura à
direita), uma carruagem que
pertence às Diamantes no
desenho Steven Universo
38

distribuído pela Cartoon Network. No


planeta das Gems, só existem figuras
femininas. Eu trago a perspectiva das
peles pra dentro do trabalho para
pensar o lugar das mulheres na Terra
e sociedade e até mesmo nossas
identidades – se estamos nos
expressando e existindo no mundo e
a resposta é quase sempre não.
Depois dessa apresentação eu me
lembro do que não podemos fazer e
das limitações impostas, que podem
ser ainda muito mais cruéis com
outras mulheres. “Eu achava que
desenhos e sons podiam mudar o
mundo / Agora torço pra que o mundo
não me mude muito.” (CUQUI, 2019,
p. 2). Termino com uma definição
impalpável : "A arte é arredia, oferece
uma compreensão arenosa / se você
tenta segurar com muita força / ela
escapa dos dedos do cérebro".
A fonte da capa foi desenvolvida para o texto poético que inscrevi na primeira
edição da publicação POÇA, organizada pela Rafa. É possível acessar os textos em
paraquepossa.tumblr.com. A fonte, chamada Peluda Gothic, foi uma
experimentação com tipografia digital e poesia, que aconteceu na mesma época, e
se encaixou também como a capa deste sexto volume.
39

Em fevereiro de 2020, A MEIA extra foi diagramada com recortes do material


que havia sobrado da zinessérie. A frase “aproveitar a sobra, inserir ruído” aparece
logo na primeira página. Na imagem abaixo (Figura 30), foram colocados desenhos
de diferentes momentos do ano de 2019, num registro repleto de montagens justas
e camadas sobrepostas.
Do texto abaixo, destaco a frase: “digital potência em vez de virtual fake”, que
já dá a abertura para algumas discussões que faremos no próximo capítulo.
40

3. Considerações sobre publicação e internet

Peço que você digite num papel sulfite


Versos convincentes [...]
Vamos imprimir em negrito
Tudo de bonito que marcou a gente
Metá Metá - Papel Sulfite

Antes mesmo do surgimento da rede mundial de computadores, a zine já


representava um espaço de questionamentos e inovações da imagem e da
sociedade. Tão discreto quanto expressivo, esse lugar abriga as mais variadas
narrativas e permite experimentações autorais tanto da linguagem quanto da
materialidade. Ruth Rejane Lerm, em artigo para a anpap17, modifica seu objeto de
pesquisa do livro de artista para a zine, na busca da leitura de textos verbovisuais:

Como produções alternativas, marginais, inclassificáveis, fora do circuito


comercial da grande imprensa ou dos meios de comunicação em massa, os
fanzines mostram-se livres das pressões e coerções do mercado editorial
tradicional, portanto, um espaço aberto para novas experiências e passível
de abrigar o inesperado. (LERM, 2015, p. 2857)

Há um enorme e talvez incontável número de publicações impressas fora do


circuito. Somado, esse número representa um valor bastante expressivo da
produção contemporânea. Mas, além destas, se pensarmos nas zines publicadas
online, temos um terreno muito mais amplo. Se considerarmos, ainda, que nas
redes sociais os textos e imagens postados pelos usuários também são chamados
de “publicações”, o ato de tornar público parece se tornar cada vez mais acessível.
Entretanto, as concepções do mercado da arte e da indústria cultural ainda
mostram equívocos na construção da figura do artista e os caminhos para chegar às
validações de ambos os campos quase nunca são transparentes. Linda Nochlin, já
em 1971 conclui que fatos importantes deixam de ser considerados sobre fazer arte,
o que permite a perpetuação de uma “concepção semirreligiosa do papel do artista”:

Por trás da maioria das mais sofisticadas pesquisas sobre grandes artistas,
mais especificamente a monografia de história da arte que aceita a ideia do
grande artista em primeiro plano e as estruturas sociais e institucionais nas
quais ele tenha vivido e trabalhado como meras influências secundárias ou
apenas pano de fundo, se esconde a ideia do gênio que possui, em si,
todas as condições para o êxito próprio. (NOCHLIN, 2016, p. 19)

17
Sigla da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas.
41

A figura do artista é distorcida pelo dom divino, ideia que também dá suporte
à precarização de todo trabalho criativo. A maior parte dos artistas sempre precisou
resistir: pouquíssimos são absorvidos em circuitos que permitem algum tipo de
validação.
A resistência que é intrínseca à zine não é novidade. Contendo os discursos
mais diversos na sociedade, esses livros tem a capacidade de unir públicos
pequenos e potentes. Em seu livro, o publicitário Yuri Amaral também coloca
fanzines como um recurso de resistência identitária:

Ao materializarem uma intenção como resistência aos discursos ecoados


pelas instituições e pelos meios de comunicação hegemônicos, os fanzines
se tornam um apelo pela sobrevivência de uma identidade que não quer ser
apagada, ao passo que não desejam fazer parte de um público
homogêneo, sem identidade própria. E é nesse sentido de pertencimento,
de ser ouvido entre tantos discursos proferidos por tantos meios, que
aqueles que publicam seus fanzines se encontram com outras pessoas, se
unindo em conexões horizontais, fortalecendo laços afetivos com aquilo que
realmente se identificam. (AMARAL, 2018, p. 21)

Por democratizarem a informação, as fanzines dão voz a uma multidão de


discursos que coexistem. A identificação é uma questão social latente em diversas
lutas: a falta de representação dos grupos minoritários na mídia tradicional, hoje, se
modifica e encontra subterfúgio nessas publicações e, de maneira muito mais
ampla, na internet.
Pensando o trabalho nessa perspectiva, a MEIA se vale de um terreno de
inovação online para abranger uma rede que é bastante analógica. A zine enviada
por correio faz alusão à carta, que é uma prática já quase esquecida. A feitura punk
que compete às zines, por muitas vezes, é questionada no meio tradicional da arte e
eu, como mulher lésbica, também me sinto numa constante provação vivendo no
mundo e também no ambiente artístico.
Diante disso, eu resolvo abraçar essa mídia que pode ser considerada
questionável, por muitas vezes adotar uma estética bagunçada e lotada de
informação e ser feita de modo barato para chegar a um maior público. Utilizando os
recursos a meu alcance, com o apoio de poucos e bons, crio um espaço de livre
expressão autobiográfica.
Mesmo com pouca quantidade de apoios, o financiamento coletivo tem uma
potência muito grande. Amanda Palmer tira uma lição valiosa de seu passado como
42

artista de rua e a forma como um pequeno grupo é capaz de movimentar a arte, ao


contrário do que sugerem as grandes gravadoras:

Foi exatamente o que aprendi ali, de pé na caixa, depois tocando em bares


com minha primeira banda e, mais tarde, quando recorri ao crowdfunding.
Era essencial sentir gratidão pelos poucos que paravam para assistir ou
ouvir, em vez de desperdiçar energia me ressentindo com a maioria que
seguia em frente. [...] Eu precisava apenas de… algumas pessoas.
Pessoas suficientes. Suficientes para que valesse a pena voltar no dia
seguinte, suficientes para eu pagar o aluguel e pôr comida na mesa. E,
assim, suficientes para eu continuar fazendo arte. (PALMER, 2015, p 39)

As novas tecnologias todo dia permitem que novos emissores de informação


- considerados amadores pelos segmentos tradicionais - criem, opinem e alcancem
espaços. Tais espaços não são cedidos com gentileza pelos mecanismos de cada
campo do conhecimento, eles são novos espaços e configurações sociais
incontroláveis. Segundo MEIRELES (2013, p. 43): “Stephen Duncombe (2008)
discute o conceito de amador e apresenta zines como uma forma de relação
humana“. Esse conceito do amadorismo, portanto, é usado como uma proteção ao
modo tradicional de fazer algo ou à maneira centralizada de disseminar
informações, descartando os indícios de inovação social e artística que a prática de
fazer zines tem capacidade de propor.
Assim como as zines, depois delas, a internet vem para radicalizar a
informação em sua fonte. A possibilidade de praticar a arte é, em grande parte,
monopólio de quem tem herança e tempo livre, mas uma arte completamente
deslocada de correntes nasce nas frestas da impossibilidade. Das redes sociais às
feiras gráficas brotam artistas cada vez mais jovens, que já vendem commissions18
para sites gringos.
O xerox, em dado momento, revolucionou a capacidade de fazer zines, mas a
liberdade criativa proporcionada pelos softwares de edição de desenho e fotografia
é infinita. Todas as texturas de papéis, pincéis e lápis de todas as cores estão
disponíveis a poucos cliques de distância. Os programas, aplicativos, plataformas,
entre outros, adentraram a vida do artista contemporâneo assim como as máquinas
e a tecnologia.

O antigo atelier do artista moderno transfigura-se em lugar de maquinaria


eletrônica, e, contudo, a familiaridade dos objetos de manuseamento

18
Termo amplamente utilizado na internet para a encomendas paga de desenhos e designs autorais.
43

mantém-se. Não é necessário mais do que o mínimo material para se


conseguir funcionar. (PEREIRA, 2002, p. 10)

Depois de anos realizando essas zines e projetos gráficos no geral, agora


conto com uma impressora jato de tinta no ateliê da TECLA, o que é relativamente
acessível e permite uma autonomia muito maior na impressão e montagem dos
volumes. Essas máquinas feitas para facilitar a vida de um escritório, como as
impressoras multifuncionais, são possibilidades não só da melhora, mas do
barateamento da impressão das zines em relação ao serviço oferecido por gráficas.
Assim, artistas vão se equipando com tecnologia: máquinas, softwares e
plataformas possibilitam a existência de seus trabalhos.
A plataforma escolhida para a realização da série de zines se mostra
renovadamente correta: o financiamento coletivo contínuo se construiu mutuamente
com a MEIA. Através dessa demanda, muito mais coisa é produzida. O apoiador é
muito mais que um leitor comum, ele aguarda a novidade, ele vibra e paga pela
impressão e envio.
Esse laço específico só é possível por causa da capacidade que cada usuário
tem de interagir através da internet, o que modifica completamente os sistemas de
comunicação antigos como a televisão, o rádio, jornais, entre outros emissores que
não recebem informação externa. O próprio crowdfunding se baseia na participação
ativa de seus consumidores, como diz VALIATI (2013, p. 43):

Neste sistema, por meio das novas tecnologias, o consumidor abandona


uma suposta passividade e alienação e se organiza em grupos que unem
esforços (neste caso, a doação de dinheiro) e destinam fundos a um projeto
de seu interesse. Dessa forma, o consumidor pode se tornar parte do
processo de produção de bens culturais sem a necessidade da
intermediação burocrática presente na indústria cultural.

A saber, o conceito de indústria cultural foi utilizado pela primeira vez em


1947 por Adorno e Horkheimer, que pertenciam à Escola de Frankfurt, assim como
Walter Benjamin. Se pensamos em falar sobre o assunto hoje, nessa época eles já
estabeleciam uma crítica ao modo como o capitalismo afetava a cultura com base
na sociedade norte-americana entre 1930 e 1940:

Produzindo apenas o que teria a maior probabilidade de ser consumido,


excluindo as novidades que pudessem gerar algum tipo de mudança na
sociedade. Na indústria cultural, o indivíduo perde a sua autonomia e passa
a fazer parte do sistema. Desprovido de crítica, torna-se facilmente
manipulável. (VALIATI, 2013, p. 44)
44

Certamente a cultura das massas tende a podar arestas da cultura,


transformando as atividades artísticas – que muitas vezes exploram um maior ou
menor desconforto em seus espectadores – em ações deglutíveis para a maior
parte da sociedade e, assim, amaciadas. Essa crítica, porém, pode ser elitista, uma
vez que a alta cultura se encontra acumulada nas mãos de poucos privilegiados. Os
insumos culturais que são julgados pela elite intelectual, geralmente estão chegando
em camadas populares que não tem acesso à cultura elevada. É neste sentido que
Edgar Morin questiona a validade da crítica acima. Ainda segundo VALIATI:

Morin (1997) desconstrói a perspectiva da Escola de Frankfurt sobre a


indústria cultural a partir do momento em que concorda com a existência de
uma indústria cultural sem o viés político e ideológico. E ainda, para o autor,
a cultura de massas foi a responsável por uma democratização da cultura
dita “cultivada”, apesar da resistência da classe intelectual. (2013, p. 44)

Sempre existe uma parcela populacional que permanece conservadora em


relação à inovação. A internet cria redes entre minorias, mas também é espaço para
a disseminação de discursos de ódio. É neste conflituoso espaço virtual que
ocorrem as questões mais inovadoras de muitos campos, muitas delas utilizando a
própria evolução da interação para a solução de problemas. VALIATI chama a
atenção para essa categoria de inovações, conhecida como crowdsourcing:

O crowdfunding faz parte de um sistema mais amplo, denominado


crowdsourcing. O crowdsourcing pode ser entendido como um modelo de
criação e/ou produção baseado em redes de conhecimento coletivo na
internet, que serve para solucionar problemas, criar conteúdo ou inventar
novos produtos de forma colaborativa. A expressão surgiu a partir de um
artigo do jornalista Jeff Howe, em 2006, para a revista Wired. Os exemplos
mais conhecidos hoje são a Wikipédia, os sistemas operacionais open
source como o Linux e o Apache e os bancos de dados The Internet Movie
Database (IMDb) e o IStockphoto, banco de imagens na internet, que
surgiram antes mesmo da criação do termo. (VALIATI, 2013, p. 46)

Algumas vezes ao longo do trabalho para definições muito simples, –


inclusive no rodapé desta própria página – utilizei verbetes da Wikipédia, tendo
consciência de que uma enciclopédia online construída pelos próprios usuários
pode conter erros, e é plausível a procura de fontes acadêmicas confirmadas, mas
diante da constituição deste trabalho como um todo, é necessário confiar na
renovação do conhecimento, em formatos completamente abertos e
compartilháveis.
As inovações tecnológicas criam muitos novos empregos, que partem não
apenas do empreendedorismo individual, mas também, e principalmente, de
45

soluções coletivas como o crowdsourcing. Esses caminhos pouco percorridos


abrem um leque imenso de possibilidades, mas também podem ser paralisantes. É
extremamente comum ver artistas independentes relatando no Twitter19 as
dificuldades de suas trajetórias, quase sempre se sentindo afastados da arte
propriamente dita devido ao excesso de atividades que o artista se encarrega.
Outro motivo para o desamparo emocional do artista é que a arte é a área
dos ídolos ou fracassados: para os artistas não-renomados, se espalha uma falsa
concepção na sociedade de que as atividades artísticas nem sequer representam
um trabalho. O trabalho digno, no capitalismo, age a serviço da exploração e da
concentração de riquezas por terceiros. Além da necessidade de resistir contra todo
um sistema social opressivo e o patriarcado, artistas lidam com a já citada Síndrome
do Impostor e todas as mais variadas complicações psicológicas dessa transação
complicada. A Patrulha da Fraude é a maneira como a Amanda fala sobre o
assunto:

Quem trabalha com artes luta diariamente contra A Patrulha da Fraude,


pois nosso trabalho em grande parte é novo e escapa a categorias prontas
ou convencionais. Quando se é artista, ninguém te diz como ou bate com a
varinha mágica da legitimidade. É você que bate na própria cabeça com
uma varinha que você mesmo fez. E você se sente um idiota ao fazer isso.
(PALMER, 2015, p. 42)

Os temas dos quais a Amanda fala em seu livro são tão úteis para as artes
como o são para a forma como a humanidade se relaciona em geral. Ela percebe,
depois de realizar a sua famosa fala, que ela havia afetado não apenas os músicos
ou os produtores de cultura: ela falava com uma população desesperada por se
comunicar, por se abrir, por ser visto e aprender a pedir ajuda quando preciso.

Nas artes, no trabalho, nos relacionamentos, muitas vezes a gente resiste


em pedir não só por medo da recusa, mas também porque nem sequer
achamos que merecemos o que estamos pedindo. Temos que acreditar
sinceramente na validade do que pedimos - o que pode dar muito trabalho
e requer a habilidade de andar numa corda bamba estendida sobre o
abismo da arrogância e da soberba. (PALMER, 2015 p. 19)

É preciosa a metáfora da corda bamba aqui colocada. Obviamente, também


é necessário que haja a compreensão do equilíbrio de que qualquer área requer um
trabalho árduo e constante. As artes, muitas vezes, são colocadas num patamar de
lazer que não ajuda ao tratamento sério do trabalho. O desconhecimento e o mito
19
Segundo a Wikipédia, rede social de microblogging.
46

sobre a profissão perpetuam uma lógica que nos empurra para a tal corda bamba.
Artistas são trabalhadores como qualquer outros, não devem almejar a idolatria,
mas o pagamento justo de suas atividades, o que quase nunca ocorre.
Assim, artistas são impelidos a viver no equilíbrio da ambição, na dosagem
da arrogância e da soberba, no delicado trabalho de acreditar em si mesma diante
do caos e da culpa capitalista e patriarcal, tentando desviar da fraude na
autoimagem. E, na maioria das vezes, como no meu caso, outras opressões se
entrecruzam: a minha experiência de escrita de si tenta se propor a elucidar os fatos
usuais do dia-a-dia, tentando gerar lapsos de auto compreensão e evolução
pessoal. Se tornar artista nunca é um caminho simples: há resistência constante
não apenas contra o entorno opressivo, mas também contra as armadilhas do
próprio pensamento.
Nesse sentido, Amanda incentiva seus amigos artistas a pedirem e terem
confiança em seus trabalhos, o que certamente não é uma tarefa simples. O objeto
de arte e a arte que não se encerra em objetos físicos são itens que não são
considerados de primeira necessidade: ninguém sabe que precisa de uma obra de
arte até encontrar com ela. Para chegar até alguém é preciso estar aberto a
conectar-se, senão na rua face a face, através da internet. E, ao contrário do que
pode parecer, muitas pessoas estão dispostas a pagar pelas criações, nós só
precisamos encontrar quem são estas pessoas que querem e podem ajudar:

Queria dizer que, na verdade, muita gente adorava de paixão ajudar


artistas. Que não era uma coisa unilateral. Que os artistas profissionais e o
público que os apóia são duas partes fundamentais num ecossistema
complexo. Que a vergonha polui um ambiente de pedir / dar que prospera
na base da confiança e da disponibilidade. (PALMER, 2015, p. 14)

PALMER (2015, p. 38) também cita em seu livro a passagem de Joshua Bell,
pela cidade de Washinton, D.C. O renomado violinista associa-se com o jornal
Washinton Post e, no dia seguinte de seu concerto com ingresso a 150 dólares, ele
performa a música na rua. Em um primeiro momento, parece injusto que mais de mil
pessoas passem por ele sem parar, mas Amanda faz uma leitura completamente
válida desta situação: ao observar os transeuntes no vídeo gravado naquela manhã,
a maioria estava com pressa, a caminho do trabalho, de passagem. Para apreciar
arte, é preciso um local de escuta e dedicação total para o desenvolvimento
completo da percepção. O espaço público é um local onde podem vir a acontecer
47

conexões artísticas, mas não se pode cobrar essa troca de pessoas que não se
podem dar ao luxo de parar diante de horários e compromissos rígidos.
A atividade de colocar-se artisticamente sobre um suporte é, antes de mais
nada e antes de mais ninguém, olhar para uma parte de si mesmo de fora. Essa
visualização é um desejo que sempre esteve presente na humanidade. Ver-se é um
constante exercício de autoanálise, que constrói não apenas uma poética e estética
pessoal, mas também influi em relações sociais e na construção da própria
identidade.
Registrar-se, segundo FOUCAULT, equipara-se ao ato de escrever cartas, e,
muitas vezes, é através da carta – com possível expansão na atualidade para as
comunicações virtuais – que se relata o cotidiano:

A carta é também uma maneira de se apresentar ao correspondente no


decorrer da vida quotidiana. Relatar o seu dia – não por causa da
importância dos acontecimentos que teriam podido marcá-lo, mas
justamente na medida em que ele nada tem para deixar de ser igual a todos
os outros, atestando assim, não a relevância de uma atividade, mas a
qualidade de um modo de ser. (FOUCAULT, 1992, p. 155)

No processo de, de certa forma, reformular o cotidiano com a articulação de


frações de desenhos e frases reais, a MEIA cria narrativas curtas que pretendem
podar a realidade cruel e poder observá-la através de um filtro menos doloroso – ou
fatal, como na metáfora do espelho de Perseu. As sucessivas edições realizadas no
registro e a própria distorção da realidade na observação e no desenho,
demonstram uma fuga, assim como uma proteção. A criação de um lugar seguro
para expressão é reconfortante e necessária.
Ainda segundo FOUCAULT (1992, p. 145), “a carta enviada atua, em virtude
do próprio gesto da escrita, sobre aquele que a envia, assim como atua, pela leitura
e releitura, sobre aquele que a recebe“. Então, essas zines, que são diários e ao
mesmo tempo cartas, tem o poder de constituir um local de questionamentos
pessoais e também estabelecer conexões assíncronas valiosas. Através da
campanha, a escrita tem sempre esse leitor – fixo e atento –, sem o apoiador não
haveriam motivo para cartas, não teriam sido escritas e muito menos impressas.
A carta faz o escritor “presente” àquele a quem a dirige. E presente não
apenas pelas informações que lhe dá acerca da sua vida, das suas
atividades, dos seus sucessos e fracassos, das suas venturas ou
infortúnios; presente de uma espécie de presença imediata e quase física.
(FOUCAULT, 1992, p. 149)
48

A “presença” é uma prova irrefutável da existência de quem escreve. No


ambiente das redes sociais essa relação se comprova: as publicações de um perfil
representam a existência virtual deste mesmo alguém. Por isso, quem quer ser
visto, publica. Neste espaço, a fotografia é o novo relato, qualquer smartphone20 tem
(no mínimo) uma câmera acoplada, assim, selfies e storys21 facilitam a narração do
dia-a-dia, os lugares pelos quais se passa, as pessoas que se encontra por aí, o
que se come, vídeos abrindo caixas de tudo que se compra (conhecidos como
unboxing). Essa espetacularização da vida cotidiana pode ter impactos culturais
negativos, mas é inegável que nunca antes as identidades foram tão discutidas,
questionadas e recriadas.
No seguinte trecho, FOUCAULT (1992, p. 131) fala da escrita de si como
ferramenta de combate ao exterior, mas também para “que não nos enganemos
sobre nós mesmos”:

Por fim, a escrita dos movimentos interiores surge também, segundo o texto
de Atanásio, como uma arma do combate espiritual: uma vez que o
demónio é um poder que engana e que faz com que nos enganemos sobre
nós mesmos [...], a escrita constitui uma prova e como que uma pedra de
toque: ao trazer à luz os movimentos do pensamento, dissipa a sombra
interior onde se tecem as tramas do inimigo.

Portanto, a forma que encontrei de dar resposta ao apagamento sistemático


sofrido por mulheres lésbicas foi o registro excessivo de mim, não poupar páginas
nessa inscrição no mundo, me estender com exclusividade aos que querem e
podem receber e ler. Dessa forma, eu consegui levar meu trabalho para fora do
ateliê e, além disso, espero que sirva para que mulheres que gostam de outras
mulheres possam se ver aqui e que outros artistas se identifiquem e encontrem
maneiras de tornar real a arte que querem ver no mundo.

20
Segundo a Wikipédia, um smartphone (palavra inglesa que significa “telefone inteligente”) é um
celular que combina recursos de computadores pessoais, com funcionalidades avançadas que
podem ser estendidas por meio de programas aplicativos executados no sistema operacional.
21
Postagens de até 15 segundos, disponíveis para visualização por apenas 24h.
49

4. Conclusão

Porque o corpo humano tem


a resistência perfeita
se bate de leve dói
bate de com força mata
Avião Aeroporto - Karina Buhr

As escolhas intuitivas do processo de criar a campanha de financiamento


coletivo contínuo e, posteriormente, as escolhas poéticas da zinessérie MEIA vieram
a se complementar aqui neste trabalho. O ambiente do it yourself22 promovido pela
zine caseira se mostra cada vez mais o espaço justo para a disseminação de
informações específicas, direcionadas, que conseguem se sustentar com um
mínimo e fiel público. A produção de arte, neste cenário, é completamente
pulverizada e descentralizada, o que permite a inclusão de muitos discursos antes
não ouvidos.
A zine é uma forma de conexão, um meio pelo qual pontos são conectados.
Aqui a MEIA foi espaço de mediação e entrega: minhas conclusões e dúvidas sobre
a arte e o mundo. Segundo MEIRELES:

Como não evocar os zines e sua porosidade enquanto tecido de


significados neles gravados e a partir deles emergentes? O zine está
sempre entre, entre leitores, entre autores, entre gêneros, entre funções da
linguagem, entre saída para o tédio e taquicardia criativa, entre fases da
vida, entre original e cópia. (MEIRELES, 2013, p. 57)

A capacidade de mediação proposta pela zine fica clara neste trecho acima.
Para os apoiadores de outras cidades, eu coloco no correio as cartas endereçadas.
Mesmo terceirizado, ali existe um “entre” bem definido e calculado. Nas entregas
que ocorrem em Pelotas de bicicleta, porém, é onde eu sinto a maior evidência
desse “entre”. Quando eu deixo a carta na caixa de alguém (esperando que ela seja
pega logo e não se molhe), a única coisa que existe no meio entre eu e meus
apoiadores é a MEIA. Essa interação direta dispensa critérios do mercado e abre a
possibilidade para um sistema alternativo de vendas que conecta o "fã" diretamente
ao artista, desenvolvendo processos cada vez mais pessoais e autorais, no
contra-fluxo, e com cada vez mais diversidade, se vê cada vez mais identificação.
Na introdução deste trabalho, falei do surgimento e das ideias iniciais da
zinessérie. No capítulo um, fiz um recorte dos antecedentes dentro da minha
22
Do inglês: faça você mesmo. É um lema do movimento punk que faz hoje muito sucesso na
internet.
50

produção poética que me encaminharam em direção à MEIA. Formatos e conteúdos


previamente explorados nestes livros mais antigos que produzi e que reverberaram
em como foi criada a zinessérie.
No capítulo dois, depois de apresentar algumas definições e procedimentos,
apresentei cada uma das zines da série, relacionando seu conteúdo com
referências que estavam presentes na feitura delas.
Coube ao terceiro capítulo considerar algumas questões que ficaram soltas
sobre publicação, o papel do artista, resistência, democratização da comunicação, a
arte de pedir e a escrita de si e questões específicas em relação ao crowdfunding.
A tecnologia evolui todos os dias, mas a ética ao redor dela parece cada vez
mais confusa. Os direitos autorais encontram imensa dificuldade de adaptação às
novas mídias. Nesta conclusão estabeleço que, apesar de um contexto caótico, é
preciso encontrar estratégias de utilização a favor dos artistas, principalmente
quando esse indivíduo é uma pessoa socialmente oprimida.
Como artista lésbica brasileira, considero que as estratégias estabelecidas
através do meu apoia.se são, até hoje, a segurança necessária para a continuidade
da minha arte. O valor arrecadado mensal pode variar, mas se mantém
surpreendentemente estável e possibilita a existência de um escoamento para essa
livre expressão artística e identitária, que, fora deste contexto específico, teria muita
chance de ficar deslocada e não se encaixar nos padrões disponíveis.
O exercício de escrever-se, montar-se e remontar-se é tão pessoal quanto
político, tão local quanto global, e é preciso pensar a tecnologia, a evolução do
suporte em relação aos avanços, nós mesmos e o mundo no meio desse caminho.

"Só se expõe - poética, visual, musical ou filosoficamente - a política ao


mostrar os conflitos, os paradoxos, os choques recíprocos do qual toda
história é tecida. É por isso que a montagem aparece como procedimento,
por excelência, dessa exposição: as coisas só aparecem aí ao tomarem
posição, elas só se mostram aí ao se desmontar [démonter] inicialmente..."
(DIDI-HUBERMAN, 2016, p.1)

Mais essa camada de auto observação se encerra. Olhei pros detalhes que
quis de mim, encarando e recortando a realidade. Recortei os papéis e remontei a
realidade recortada e agora olhei novamente e escrevi sobre o que fiz. Essa
camada, como todas as outras, é apenas uma peça humilde num quebra-cabeça
extremamente complexo e entrelaçado com milhares de outras histórias e criações.
51

Referências

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