Sito Luandarejanesoares D

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

LUANDA REJANE SOARES SITO

ESCRITAS AFIRMATIVAS: ESTRATÉGIAS CRIATIVAS PARA


SUBVERTER A COLONIALIDADE EM TRAJETÓRIAS DE
LETRAMENTO ACADÊMICO

Campinas
2016
LUANDA REJANE SOARES SITO

ESCRITAS AFIRMATIVAS: ESTRATÉGIAS CRIATIVAS PARA


SUBVERTER A COLONIALIDADE EM TRAJETÓRIAS DE
LETRAMENTO ACADÊMICO

Tese de doutorado apresentada ao Instituto de


Estudos da Linguagem da Universidade
Estadual de Campinas como parte dos
requisitos exigidos para a obtenção do título de
Doutora em Linguística Aplicada, na Área de
Linguagem e Educação.

Orientadora: Profª. Drª. Angela Del Carmen Bustos Romero de Kleiman

Este exemplar corresponde à redação final da


Tese de doutorado defendida pela aluna Luanda
Rejane Soares Sito e orientada pela Profª. Drª.
Angela Del Carmen Bustos Romero de Kleiman,
aprovada pela Comissão Julgadora no dia 04 de
março de 2016.

Campinas
2016
Folha de aprovação
Agradecimentos

Para iniciar esta seção, quero agradecer aos universitários colombianos e brasileiros
que participaram desta tese, gentilmente compartilhando comigo suas histórias, experiências
e emoções. Essas trocas me emocionaram muito, principalmente pela coragem, energia,
determinação e sabedoria com a qual buscavam formar-se para construir um mundo melhor.
Também sou grata com seus orientadores que compartilharam as trajetórias de elaboração
dos trabalhos de conclusão de curso.
A experiência que me entrelaçou ao tema das “cotas na universidade” emergiu em
2005, quando participei da construção do “Grupo de Trabalho de Ações Afirmativas” (ou
GTAA). A esse coletivo agradeço imensamente pela oportunidade de, nas trocas, lutas,
diálogos, debates, festas, risos... transformar a UFRGS um território mais meu. Depois de
alguns anos de tropeços e estranhamentos, foi com a experiência no “GTAA” que passei a
apropriar-me da universidade, com o desejo de transformá-la. Um “obrigada” imenso aos
amigos do “GTAA”: José Carlos dos Anjos (profe Dos Anjos), João Augusto (Caco), Flávio
Gobbi, Diogo Raul, Cauê Machado, Maria Conceição Fontoura, e a minhas amigas
guerreiras Junara Ferreira, Tatiana Rodrigues, Kelly Moraes, Laura López, Mariana Selister
e Ana Paula Costa. Na Colômbia, agradeço ao grupo Carabantu e ao CADEAFRO, nas
pessoas de Yeison Meneses Copete, Ramón Emilio Perea, Maria Eugenia Morales, Arleison
Rivas, Angela Mena e Pedro León, com quem compartilhei espaços de debates e
seminários, nos quais aprendi muito sobre as lutas antirracistas da população afro-
colombiana.
Agradeço a minha orientadora, a professora Angela, pela parceria incondicional,
generosidade e abertura para o diálogo. Obrigada por me ajudar a polir meus desejos,
tensões e ideias ao longo da construção deste trabalho, com seu perfeito equilíbrio nas
orientações, nas quais nos motiva, guia e instiga. Culmino este doutorado com uma
admiração e carinho ainda maior por você, e já com saudades de nossas reuniões-cafés.
A experiência do estágio doutoral com a professora Zayda Sierra também foi muito
frutífera para este trabalho. À profe Zayda agradeço por compartilhar tanto comigo, leituras,
acompanhamento do trabalho de campo na Colômbia e trocas com seu grupo de pesquisa,
em especial, por me mostrar com tanto vigor e segurança que há caminhos de criar uma
universidade mais respeitosa com as culturas afrodescendentes, indígenas e campesinas.
Agradeço a leitura atenta, crítica e construtiva das professoras Teca Maher e
Cláudia Vóvio, que construíram comigo e Angela este trabalho, desde a primeira
qualificação (do projeto), sempre tão criteriosas e com propostas para construir conosco a
pesquisa. Também sou grata às professora Vera Regina Rodrigues, Luciene Simões, Maria
Aparecida Bergamaschi e Ana Lúcia Souza e ao professor José Jorge de Carvalho, quem
por suas trajetórias política e investigativa nutriram esta tese durante toda sua construção.
Muito me compraz ter vocês como leitores desta tese.
À professora Daniela Palma agradeço pela orientação da qualificação fora de área,
na qual pude dar vazão a uma temática por mim tão querida, mas que não coube na tese: a
identidade regional de paisas e gaúchos. Agradeço-te por ter enriquecido minhas ideias
iniciais sobre as identidades regionais e me mostrar novos caminhos para compreendê-las.
Agradeço às professoras Teca Maher e Márcia Mendonça por me proporcionarem a
participação no PED – Programa de Estágio Docente – e, com ela, a possibilidade de
ensaiar e aprender a dar aulas sobre temas tão caros para mim, letramentos, linguagem e
diversidade. E ao professor Pedro M. Garcez por ter me apresentado e iniciado na LA,
assim como ter me incentivado a voar e ir em busca dos meus sonhos acadêmicos, quando
eu nem imaginava sair de Porto Alegre. Sei que meu obrigado por sua confiança se expressa
com esta tese de doutorado!
Também expresso meus agradecimentos ao Grupo Letramento do Professor, em
especial pelas reuniões prazerosas com as amigas Paula De Grande, Carol Assis, Marília
Curado e Sílvia Letícia Pereira. Meninas, vocês tornaram esta jornada mais leve, alegre,
feliz e frutífera. Vou sentir muita falta de nossas reuniões-cafés com a professora Angela!
Também agradeço a generosidade de se deixarem mergulhar comigo neste tema, quando
tudo ainda era tão pouco claro, de maneira a me ajudar a tornar o texto mais compreensível
a outros leitores! A Camila Dilli e Bruna Morelo agradeço a amizade e o diálogo, que nos
permitiu construir um espaço muito frutífero de pensar sobre letramento acadêmico e ações
afirmativas!
Agradeço o apoio da Fapesp com a Bolsa de Doutorado no País para o
desenvolvimento da pesquisa Políticas de escritas afirmativas: estudo sobre as estratégias
de estudantes cotistas para lidar com as práticas de letramento acadêmico”, cujo resultado
final é esta tese. Sem esse apoio não teria sido possível desenvolver a pesquisa proposta
com campo em dois países e com o tempo delimitado para o doutorado.
Um agradecimento especial aos funcionários do IEL, que tanto nos apoiam nessa
longa jornada. Um imenso abraço a Rose, Cláudio e Miguel, quem, desde 2008, tornam a
CPG-IEL um espaço de acolhimento e alegria.
Por fim, agradeço a minha família e amigos, de Campinas e Porto Alegre, e também
aos de Medellín, pela escuta e ânimo que me deram em diferentes momentos do doutorado!
A Malvina, minha mãe de santo, que sempre esteve me guiando e cuidando de minha parte
espiritual (certamente os orixás estiveram comigo, apoiando-me nessa densa escrita). A
Patricia Lora, Viviane Rosa, Cristiane Souza, Elias Ribeiro e tantos outros com quem
construí zonas de conforto, para rir, chorar e pensar; a Pati um obrigada especial por me
ensinar tanto sobre a Colômbia (nossas teses se entrelaçaram muito nessa jornada
unicampeira)! A Juan Carlos, um obrigada especial por estar sempre a meu lado, com um
especial sorriso ou uma acolhedora palavra para me animar a voltar à escrita, que aqui
culmina.
RESUMO

O objetivo desta tese foi analisar como estudantes de cursos de ciências humanas que
ingressaram em universidades públicas (uma brasileira e uma colombiana) por políticas
afirmativas respondiam às demandas de práticas de letramento exigidas na universidade,
enfocando o processo de produção de seus Trabalhos de Conclusão de Curso. Na América
Latina, o século XXI iniciou com a demanda e implementação de políticas de ação afirmativa na
educação superior, com o objetivo de que a universidade abrisse suas portas a estudantes de
grupos historicamente marginalizados, física e culturalmente, do espaço acadêmico; no entanto,
esta entrada provocou controvérsias, por ser assumida de uma perspectiva deficitária em
detrimento de outras mais interculturais. Tomando essa tensão como pano de fundo, abordamos
as trajetórias de universitários, assim como suas produções do TCC, com o fim de entender
melhor como suas experiências interpelaram os programas pelos quais ingressaram na
universidade. Com interesse em conhecer essas trajetórias de letramento, e considerando a
universidade como uma zona de contato (CANAGARAJAH, 1997), alinhamo-nos à perspectiva
dos Estudos de Letramento (HEATH, 1982; STREET, 1993; KLEIMAN, 1995; ZAVALA;
NIÑO-MURCIA; AMES, 2004), especialmente dos Estudos de Letramento Acadêmico,
desenvolvida no campo da Linguística Aplicada, no qual está situada esta tese. Vinculada ao
grupo Letramento do Professor, a pesquisa consistiu em um estudo de caráter qualitativo, cujo
corpus é composto por entrevistas com estudantes e docentes, trabalhos de conclusão de curso
produzidos pelos estudantes, assim como documentos que regulam a política afirmativa nas
duas instituições. O enfoque da pesquisa está centrado em quatro trajetórias de jovens
estudantes – duas de cada país; ambas as instituições estão situadas em regiões onde há um
imaginário de branqueamento que caracteriza a população local (sul do Brasil e região andina da
Colômbia). A escolha das regiões foi orientada pela proximidade que observamos entre Brasil e
Colômbia no perfil de ação afirmativa para a educação superior. Como resultados desta
investigação, destacamos que os estudantes empregam estratégias criativas para subverter as
relações de poder e a colonialidade do saber. Ao analisar a produção do TCC – considerada uma
prática de escrita da zona de contato –, vemos que seus trabalhos visibilizam demandas e
indagações que são motivadas pelas experiências de seus grupos de origem e, com isso, retratam
processos de lutas para dominar ou transformar as práticas institucionais da universidade (seja
nos modos de fazer ou nos modos de dizer). Em paralelo, a análise das trajetórias nos mostra
que os universitários não apenas interpelam as políticas afirmativas, mas também apontam
novos horizontes para a criação de diálogos mais simétricos na produção de conhecimento, por
meio de estratégias como a autoetnografia, transculturação, crítica, colaboração, bilinguismo,
mediação, denúncia, expressões vernáculas, propostas alternativas e reconstrução de
imaginário. Ao aproximar-nos de experiências de políticas reparatórias, esta tese pretendeu
contribuir, a partir dos Estudos de Letramento Acadêmico, tanto a formação docente de nível
universitário quanto para as discussões sobre interculturalidade e políticas afirmativas para as
populações vítimas de racismo no contexto latino-americano.
Palavras-chave: letramento acadêmico – ações afirmativas – descolonialidade – universidade –
racismo
ABSTRACT

This research aims to understand how students of humanity courses, who entered public
universities (one in Brazil another in Colombia) by affirmative action policies, deal with the
literacy practices demands required at the university, through the description and analysis of
literacy trajectories and the development of their undergraduate thesis. In Latin America, the
twenty-first century began with the demand and the implementation of affirmative action
policies in higher education in order to foment the university opening its doors to students from
groups historically marginalized, both physically and culturally, from the academic space.
However, the policy caused controversy: while for some sectors of society, students who
entered university through affirmative action programs would not be able to meet academic
requirements (the deficit theory perspective); for others, on the contrary, these students would
not only have success in their training but they would also be able to break the hegemonic
discourses and to propose new forms of knowledge production (in an intercultural perspective).
By observing experiences of affirmative action in Latin America, it is possible to note
similarities between Brazil and Colombia in their affirmative actions for higher education and in
the pressure experienced by students who entered the university through these actions (pressures
related to their ethnic and racial identity). With the objective of in learning about these
trajectories, and taking the university as a contact zone (CANAGARAJAH, 1997), this thesis is
aligned with New Literacy Studies (HEATH, 1982; STREET, 1993; KLEIMAN, 1995;
ZAVALA; NIÑO-MURCIA; AMES, 2004), especially the Literacy Academic Studies,
developed in the field of Applied Linguistics. Linked to the Letramento do Professor research
group, this research consists of a qualitative study whose corpus is composed of interviews with
students and professor, the final graduation essay produced by the students, as well as
government documents related to the affirmative action policy on both institutions. The research
focuses on four young students’ trajectories – two from each country, from two institutions from
regions where there is a whiteness imaginary that characterizes the local population (Southern
Brazil and the Andean region of Colombia). The results of this investigation point out that
students employ creative strategies to subvert power relations and the coloniality of knowledge.
The analysis of their final papers – considered a practice of writing in the contact zone –
demonstrates that their works give visibility to demands and questions motivated by the
experiences as members of minority ethnic and racial groups and their struggles to learn or
transform university institutional practices ( ways of doing and ways of saying). In parallel, the
analysis of their academic literacy trajectories shows that the university students not only
question the affirmative policies, but also point to new horizons for creating a more symmetrical
dialogue for the production of knowledge through such strategies as autoethnography,
transculturation, critique, collaboration, bilingualism, mediation, denunciation, vernacular
expressions, alternative proposals and imaginary reconstruction. As we approach the reparation
policy experiences, this thesis aims to contribute, from the Academic Literacy Studies
perspective, both to teacher education programs at university level and to the discussion and
development of intercultural and affirmative policies for populations who have been victims of
racism in the Latin American context.
Key-words: Academic literacy – Affirmative action – Decoloniality – University – Racism
Title: Affirmative writing: creative strategies to subverting the coloniality in trajectories of
academic literacy.
RESUMEN

En esta investigación buscamos comprender cómo estudiantes de cursos de ciencias humanas que
ingresaron en universidades públicas (una brasileña y una colombiana) por políticas afirmativas
respondían a la demanda de prácticas de literacidad exigidas en la Universidad, enfocando sus
producciones de la tesis de grado. En América Latina, el siglo XXI se inició con la demanda e
implementación de políticas de acción afirmativa en la educación superior, con el objetivo de que la
universidad abriera sus puertas a los estudiantes procedentes de grupos históricamente marginados
física y culturalmente del espacio académico. Sin embargo, esta entrada generó algunas
controversias: mientras que para algunos sectores de la sociedad, los estudiantes que ingresarían por
la acción afirmativa no serían capaces de hacer frente a las exigencias académicas (en una mirada del
déficit); para otros, al contrario, estos estudiantes no sólo tendrían éxito en su formación como serían
capaces de romper con los discursos hegemónicos y podrían proponer nuevas formas de producción
de conocimiento (en una mirada desde la interculturalidad). Al observar experiencias de acción
afirmativa en Latinoamérica, constatamos primero una cercanía entre Brasil y Colombia en el perfil
de acción para la educación superior, y segundo una presión vivida por los universitarios que
accedieron por esas acciones (presiones relacionadas a sus identidades etnorraciales). Con interés en
conocer esas trayectorias de literacidad, y tomando la universidad como una zona de contacto
(CANAGARAJAH, 1997), nos basamos en la perspectiva sociocultural de los Nuevos Estudios de
Literacidad (HEATH, 1982; STREET, 1993; KLEIMAN, 1995; ZAVALA; NIÑO-MURCIA;
AMES, 2004), en especial los Estudios de Literacidad Académica, en el campo de la Lingüística
Aplicada, en el cual esta tesis está ubicada. Vinculada al grupo de investigación Letramento do
Professor – esta investigación consistió en un estudio de carácter cualitativo, cuyo corpus está
compuesto por entrevistas a estudiantes y docentes, tesis de grado producidas por estudiantes, bien
como documentos de la política de acción afirmativa de dos instituciones universitarias públicas. El
enfoque de la investigación está centrado en cuatro trayectorias de jóvenes estudiantes, dos de cada
país; ambas instituciones representan regiones donde hay un imaginario de blanqueamiento que
caracteriza a la población local (sur de Brasil y región andina de Colombia). Como resultados de la
investigación, destacamos que los estudiantes emplean estrategias creativas para subvertir las
relaciones de poder y la colonialidad del saber. Al analizar la producción del TCC – considerada una
práctica de escritura de la zona de contacto –, vemos que sus trabajos visibilizan demandas e
indagaciones que son motivadas por las experiencias de sus grupos de origen y, con eso, retratan
procesos de luchas para dominar o transformar las prácticas institucionales de la universidad (sea en
los modos de hacer o en los modos de decir). En paralelo, el análisis de las trayectorias nos muestra
que los universitarios no apenas interpelan las políticas afirmativas, sino también apuntan nuevos
horizontes para la creación de diálogos más simétricos en la producción de conocimiento, por medio
de estrategias como la autoetnografía, transculturación, crítica, colaboración, bilingüismo,
mediación, denuncia, expresiones vernáculas, propuestas alternativas y reconstrucción de
imaginario. Al acercarnos a las experiencias de políticas de reparación, esta investigación pretende
aportar, desde los estudios sobre literacidad académica, tanto a la formación docente de nivel
universitario, cuanto a las discusiones sobre interculturalidad y políticas afirmativas para las
víctimas de racismo de poblaciones en el contexto latinoamericano.
Palabras clave: literacidad acadêmica – acciones afirmativas – decolonialidad – universidad –
racismo
Título: Escrituras afirmativas: estrategias creativas para subvertir la colonialidad en trayectorias de
literacidad acadêmica
LISTAS DE FIGURA, GRÁFICOS E QUADROS

Figura 1 – Sumário do TCC de Flávia .......................................................................... 187


Figura 2 - Excerto dos agradecimentos ........................................................................ 188
Figura 3 - Resumo do TCC de Dorival em Kaingang, sua língua materna .................. 195
Figura 4 - Sumário do TCC de Joyce ........................................................................... 206
Figura 5 - Revista Vive Afro, TCC de Valentina ......................................................... 217

Gráfico 1 - Perfil das instituições de ensino superior pesquisadas ............................... 112


Gráfico 2 - Primeiro conjunto de participantes da pesquisa ......................................... 114
Gráfico 3 - Rede de participantes da pesquisa .............................................................. 115
Gráfico 4 - Instrumentos metodológicos da pesquisa ................................................... 117
Gráfico 5 - Modelos de ação afirmativa no ensino superior ........................................ 141
Gráfico 6 - Processo das políticas públicas .................................................................. 149
Gráfico 7 - Programa de Ações Afirmativas segundo estrutura da universidade ......... 157
Gráfico 8 - Estudantes de ingresso especial, por sexo.................................................. 162
Gráfico 9 - Estudantes de ingresso especial, por classe social (Estrato) ...................... 163
Gráfico 10- Ações do Programa Institucional para a Permanência com Equidade ...... 171

Quadro 1 - Relações entre os elementos da situação de comunicação, as práticas de


linguagem e gêneros do discurso .................................................................................... 94
Quadro 2 - Dimensões da trajetória de estudantes universitários ................................. 180
Quadro 3 - Estudantes participantes da pesquisa.......................................................... 183
Quadro 4 - Cursos do currículo orientados para a linguagem, em Ciências Sociais .... 186
Quadro 5 - Cursos do currículo orientados para a linguagem, em Pedagogia.............. 192
Quadro 6 - Cursos do currículo orientados para a linguagem, em Lic. em Línguas .... 204
Quadro 7 - Cursos do currículo orientados para a linguagem, em Jornalismo ............. 213
Quadro 8 – Trabalhos de conclusão de cursos analisados ............................................ 241
LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Modelos de escrita universitária no ensino superior ..................................... 81


Tabela 2 - Públicos-alvo de políticas de ação afirmativa ............................................. 122
Tabela 3 - Comparação da legislação pró-ações afirmativas em Brasil e Colômbia ... 124
Tabela 4 - População brasileira, segundo identificação raça/cor.................................. 128
Tabela 5 - População colombiana, segundo pertencimento étnico ............................... 129
Tabela 6 - Conceitos no Manifesto contrário à política de cotas.................................. 133
Tabela 7 - Conceitos no Manifesto favorável à política de cotas ................................. 134
Tabela 8- Índice de inclusão racial ............................................................................... 142
Tabela 9 - Universidades públicas colombianas com medidas de ação afirmativa ...... 143
Tabela 10 - Número e porcentagem de vagas ocupadas 2008-2012 – UPG ................ 155
Tabela 11 - Número e porcentagem de vagas ocupadas 2008-2013 – UPP ................. 161
Tabela 12 - Estratégias das artes letradas na zona de contato ...................................... 246
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AFRODES Asociación de Afro-colombianos Desplazados Forzadamente (Colômbia)


CNPq Conselho Nacional de Pesquisa
DANE Departamento Administrativo Nacional de Estadísticas (Colômbia)
DEDS Departamento de Educação e Desenvolvimento Social
DIH Direito Internacional Humanitário
FAPESP Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
FUNAI Fundação Nacional do Índio
IACOREQ Instituto de Assessoria a Comunidades Remanescentes de Quilombos
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INDEI Instituto Departamental para la Educación Indígena (Colômbia)
MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário
MEN Ministerio de Educación Nacional (Colômbia)
OIA Organización Indígena de Antioquia (Colômbia)
OIT Organização Internacional do Trabalho
PIBIC-Af Programa Institucional de Iniciação Científica nas Ações Afirmativas
PROREXT Pró-Reitoria de Extensão
SENA Servicio Nacional de Aprendizaje (Colômbia)
SENAI Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
SEPPIR Secretaria de Política de Promoção da Igualdade Racial
SPI Serviço de Proteção ao Índio
UdeA Universidad de Antioquia (Colômbia)
UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul
LISTA DE EXCERTOS DE ENTREVISTAS

Excerto 1 - “no hay veedurías”..................................................................................... 167


Excerto 2 - La inducción .............................................................................................. 168
Excerto 3 - “como una nevera” .................................................................................... 169
Excerto 4 - "a gente não abre mão do rigor intelectual" ............................................. 193
Excerto 5 - "E a gente também está inovando" ............................................................ 196
Excerto 6 - "Como a gente faz um mosaico?" .............................................................. 197
Excerto 7 - "criava uma situação assim de uma visita" ............................................... 198
Excerto 8 - "yo necesito prepararme para poder servir mejor"................................... 200
Excerto 9 - "volví otra vez a revivir" ............................................................................ 201
Excerto 10 - "Yo creo que la misma fuerza de ella" ..................................................... 203
Excerto 11- "hicimos una pelea" .................................................................................. 206
Excerto 12 - "Yo quería transformar la clase de inglés" ............................................. 209
Excerto 13 - "la cultura de mi mamá" .......................................................................... 211
Excerto 14 – Vocação profissional ............................................................................... 212
Excerto 15 - "uno hace el proyecto escrito" ................................................................. 214
Excerto 16 - A escolha do orientador........................................................................... 215
Excerto 17 – “um mundo novo”.................................................................................... 220
Excerto 18 - “tengo unas herramientas” ...................................................................... 222
Excerto 19 - “por ahí en el sexto” ................................................................................ 223
Excerto 20 - “já estou mais imersa nesse universo” .................................................... 224
Excerto 21 - “Aluna que ia sempre bem” ..................................................................... 227
Excerto 22 - “Vou jogar com as armas que eu tenho” ................................................. 230
Excerto 23 - “los profesores siempre hacían anotaciones en los trabajos”................. 232
Excerto 24 - “ya empecé a entrar en otro mundo” ....................................................... 234
Excerto 25 - “foi um processo menos dolorido”........................................................... 237
CONVENÇÕES DE TRANSCRIÇÃO

As convenções de transcrição são, em sua maioria, as mesmas da escrita convencional,


acrescidas das seguintes convenções1:
/ Truncamento ou interrupção abrupta da fala
... Pausa de pequena extensão
(...) Suspensão de trecho da transcrição original ou trecho
incompreensível
“aaa” Discurso reportado
‘aspas’ Leitura de texto
[] Interrupção de um interlocutor ou falas simultâneas
((xxx)) Comentário do analista
(xxx) Suposição de fala sem nitidez

Para marcar a entoação, são utilizados sinais de convenção ortográfica:


Vírgula (,) Pequena pausa
Ponto final (.) Entoação descendente
Ponto de interrogação (?) Entoação ascende, como uma pergunta.

Observação: Os nomes utilizados nas transcrições são todos fictícios, exceto o da


pesquisadora.

1
As convenções de transcrições foram adaptadas a partir de Garcez (2002) e Marcuschi (2003).
SUMÁRIO

ENTRELAÇAMENTO ENTRE AÇÕES AFIRMATIVAS, LINGUAGEM E UNIVERSIDADE:


INDAGANDO POR ESPAÇOS DE SUBVERSÃO DA COLONIALIDADE DO SABER. .................... 16

A CONSTRUÇÃO DAS PERGUNTAS............................................................................................................ 18


OBJETIVOS E PERGUNTAS DE PESQUISA ................................................................................................... 20
APRESENTAÇÃO DOS CAPÍTULOS ............................................................................................................ 22

PARTE I – APONTAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS DO PROBLEMA DE


PESQUISA ...................................................................................................................................................... 23

1. AÇÕES AFIRMATIVAS E UNIVERSIDADE: UMA CONVERSA SOBRE OS


“MONOPÓLIOS DE SABER” ..................................................................................................................... 24

1.1. O IMPACTO DA ESCRITA NA CIDADE LETRADA ................................................................................... 27


1.2. ENTRELAÇANDO O BRASIL E A COLÔMBIA: A INTERCULTURALIDADE EM QUESTÃO ........................ 32
1.3. DAS (AS)SIMETRIAS ENTRE SABERES NA PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO: UMA CONVERSA TENSA... 35
1.3.1. Conversa solitária: o racismo como uma lógica de desumanização do Outro ....................... 38
1.3.1.1. Alguns exemplos dessa forma de desumanização ............................................................................. 44
1.4. DOS DIÁLOGOS DE SABERES EM/COM A UNIVERSIDADE: UMA CONVERSA INTENSA .......................... 56
2. LINGUAGEM E UNIVERSIDADE: CONEXÕES ENTRE LETRAMENTO ACADÊMICO E
VIOLÊNCIA EPISTÊMICA ......................................................................................................................... 61

2.1. ESTUDOS SOBRE LEITURA E ESCRITA NA UNIVERSIDADE ................................................................. 61


2.2. LETRAMENTO ACADÊMICO: A CONTRIBUIÇÃO DOS ESTUDOS DE LETRAMENTO PARA A COMPREENSÃO
DA LEITURA E DA ESCRITA NA UNIVERSIDADE ........................................................................................ 67
2.2.1. Letramentos na formação universitária: tensão entre as esferas acadêmica e profissional ... 74
2.2.2. Algumas noções do campo de letramentos acadêmicos (ou ACLITS) ..................................... 76
2.2.2.1. Os modelos de letramento................................................................................................................. 79
2.2.2.2. As práticas institucionais do mistério (ou veladas) ........................................................................... 83
2.2.2.3. A geopolítica do conhecimento: linguagem como identidade, epistemologia e poder ..................... 87
2.3. O TCC COMO UMA PRÁTICA DE LETRAMENTO ACADÊMICO ............................................................. 92
2.3.1. Uma prática entre as esferas acadêmica e profissional: o desenvolvimento do TCC ............. 96
3. ENTRANDO EM CAMPO ...................................................................................................................... 103

3.1. DOS DESAFIOS DE PESQUISAR SOBRE, PARA E COM OS PARTICIPANTES ............................................ 104
3.2. O FAZER INVESTIGATIVO EM AÇÃO: NARRANDO A GERAÇÃO DE DADOS ........................................ 110
3.2.1. Do contexto: a seleção das instituições ................................................................................. 111
3.2.2. Dos participantes ................................................................................................................... 113
3.2.3. Dos dados gerados ................................................................................................................ 116

PARTE II – DAS PRÁTICAS DE LETRAMENTO ACADÊMICO EM CENÁRIOS DE AÇÃO


AFIRMATIVA.............................................................................................................................................. 119
4. AS POLÍTICAS AFIRMATIVAS EM DUAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS ................................ 120

4.1. POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS NO ENSINO SUPERIOR: DEBATES E EMBATES POR CONCEPÇÕES DE
JUSTIÇA ................................................................................................................................................. 121
4.1.1. Caracterização, princípios e propósito das ações afirmativas .............................................. 125
4.1.2. Debates sobre Ações Afirmativas nos contextos brasileiro e colombiano ............................. 129
4.1.3. Notas sobre justiça e meritocracia no debate das ações afirmativas .................................... 138
4.2. MODELOS DE AÇÃO AFIRMATIVA NO ENSINO SUPERIOR ................................................................. 140
4.3. AS POLÍTICAS PÚBLICAS SOB ANÁLISE............................................................................................ 148
4.3.1. A formulação da política na Universidade Pública Gaúcha ................................................. 150
4.3.1.1. A implementação e a avaliação da política: a Coordenadoria de Ações Afirmativas – CAF .......... 156
4.3.2. A formulação da política na Universidade Pública Paisa ..................................................... 160
4.3.2.1. A implementação e a avaliação da política: o Programa Institucional para a Permanência com
Equidade ...................................................................................................................................................... 170
4.4. A IMPLEMENTAÇÃO DA POLÍTICA: A INVISIBILIDADE DA PERMANÊNCIA NAS AÇÕES AFIRMATIVAS DA
EDUCAÇÃO SUPERIOR ............................................................................................................................ 172

5. TRAJETÓRIAS DE LETRAMENTO: (DES)ENCONTROS COM AS PRÁTICAS DE


LETRAMENTO ACADÊMICO ................................................................................................................. 178

5.1. OBSERVANDO OS PRIMEIROS PASSOS NA UNIVERSIDADE ......................................................... 179


5.2. AS TRAJETÓRIAS DE LETRAMENTO ACADÊMICO EM NARRATIVA ............................................. 183
Caso 1 – Flávia ............................................................................................................................................ 184
Caso 2 – Dorival .......................................................................................................................................... 190
Caso 3 – Joyce ............................................................................................................................................. 199
Caso 4 – Valentina....................................................................................................................................... 210
5.3. ...E DEPOIS VEM OS TROPEÇOS: DESLOCAMENTOS E MISTÉRIOS ...................................................... 218
5.3.1. Tornando familiar o estranho: trajetórias de (des)encontros no espaço-tempo da
universidade..................................................................................................................................... 219
“O mundo novo”: do familiar ao estranho ................................................................................................... 220
“A peleja”: do estranho ao familiar ............................................................................................................. 221
5.3.2. Sentindo-se fora de lugar: as práticas veladas de letramento acadêmico ............................. 226
As convenções inescrutáveis: a Universidade velando seus mistérios ......................................................... 227
Os contrapontos: quando as convenções são contemplandas como parte do ensino .................................... 231
5.3.3. Aprendendo a caminhar nesse espaço estrangeiro: estratégias estudantis para reexistir .... 233
Quando os estudantes lidam com as convenções ......................................................................................... 237
5.4. UM ESPAÇO PARA (RE)ENCONTROS: AS NOVAS ARTES LETRADAS DOS ESTUDANTES COTISTAS ...... 240
5.4.1. Estratégias e artes letradas nas zonas de contato ................................................................. 241
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS: VISIBILIZANDO AS BRECHAS PARA A SUBVERSÃO .............. 250

REFERÊNCIAS ........................................................................................................................................... 257

ANEXOS ....................................................................................................................................................... 274


16

Entrelaçamento entre ações afirmativas, linguagem e universidade:


indagando por espaços de subversão da colonialidade do saber.

A LA, graças a seu foco na produção das realidades sociais pela prática discursiva, está em posição ideal
para visibilizar e entender as resistências (ou ainda as reexistências) desses grupos que, a partir da periferia, produzem
novos saberes num processo de transformação do global pelo local. (Angela Kleiman, 2013)

A pesquisa aqui narrada nasceu de minha interrogação sobre o impacto das


políticas de ação afirmativa2 implementadas na educação superior para desconstruir as
assimetrias na produção de conhecimento que existem no espaço acadêmico. Busco, nesta
tese, delinear algumas respostas a esta inquietação de diferentes lugares de enunciação: como
mulher negra, pesquisadora do campo da linguagem, ativista política e formadora de
professores. A construção das perguntas de pesquisa partiu de minha experiência como
universitária e participante no processo de construção de políticas afirmativas em
universidades públicas brasileiras. Ao participar dos debates sobre “as cotas” – uma das
políticas de ação afirmativa mais polêmicas no país –, questionava-me sobre quais ações no
âmbito de acesso e permanência seriam criadas pela universidade para receber os estudantes
ingressantes por essa política.
Provocada pelo interesse em compreender o desenvolvimento das ações
afirmativas no Ensino Superior, enfoco nesta tese as práticas de letramento acadêmico a partir
de trajetórias de universitários negros e indígenas que ingressaram em universidades públicas
por políticas reparatórias. Optar pelas trajetórias de letramento desses sujeitos é uma busca
por mudar a lógica dos debates, tanto em torno das ações afirmativas quanto da leitura e
escrita na universidade. Para entender melhor esse cenário, aproximo a noção de reexistência
– dos estudos descoloniais (WALSH, 2009) – aos estudos de letramento, seguindo a proposta
de Souza (2011), ao cunhar o conceito letramentos de reexistência, definido como: “a
reinvenção de práticas que os ativistas [assim como populações negras e indígenas] realizam,
reportando-se às matrizes e aos rastros de uma história ainda pouco contada, nos quais os usos

2
Essas políticas serão discutidas nos capítulos 1 e 4. Por ora, apenas enuncio seu propósito de corrigir desigualdades
constituídas historicamente. Neste trabalho, elas serão também chamadas de políticas reparatórias, política(s)
afirmativa(s), medidas de ação afirmativa ou ações afirmativas.
17

da linguagem comportam uma história de disputa pela educação escolarizada ou não”


(SOUZA, 2011, p. 37).
A compreensão de um cenário de conflito frente a práticas de letramento
dominantes foi foco de minha dissertação de mestrado (SITO, 2010). Na dissertação,
investiguei as práticas de letramento de lideranças quilombolas em um contexto de
regularização de terras, no marco das ações afirmativas para a população negra. Com base nos
Estudos de Letramento e em uma concepção dialógica da linguagem (VOLOCHINOV, 1995),
analisei e descrevi um processo de mudanças (com resistências e apropriações) de práticas de
letramento decorrentes do processo de titulação de terras – que envolvia a construção de
novas identidades e que marcava um processo gradual de empoderamento dos sujeitos,
apoiados tanto em práticas de letramento locais quanto em práticas de letramento das
instituições com as quais dialogavam. Essa experiência de pesquisa mostrou como, mesmo
em um contexto de políticas públicas que buscam integrar grupos marginalizados, ainda há
ações que perpetuam desigualdades de acesso a direitos – antes à terra, e no presente também
à educação – por meio do uso da linguagem escrita.
Nesta tese – inserida no Grupo Letramento do Professor3 e financiada pela
FAPESP –, me propus enfocar a reinvenção das práticas, o que me permitiu deslocar a
atenção das persistentes desigualdades sofridas por grupos sociais para a busca, o
reconhecimento e o entendimento das respostas discursivas criativas que emergem de grupos
historicamente discriminados para transformar situações em que são subalternizados
individual ou coletivamente, nas quais as formas de possuir a palavra “são marcadas pelo
esforço de reconhecimento de si, desafiando, de diferentes maneiras e em diferentes formatos,
a sujeição oficialmente imposta, ainda materializada no racismo” (SOUZA, 2011, p. 37). Com
essa compreensão das práticas de uso da linguagem, delimitei o foco da pesquisa nas
estratégias que esses grupos (afrodescendentes e indígenas) desenvolveram durante sua
trajetória na universidade, com o propósito de compreendê-las durante o processo de
apropriação das práticas de letramento valorizadas.
Essa orientação faz muito sentido no campo de discussão das ações afirmativas e
dos estudos da linguagem; no primeiro, pela proposta de desconstruir as desigualdades raciais
no âmbito acadêmico e, no segundo, pela aposta em realizar essa desconstrução de uma

3
“O Núcleo de Pesquisa Letramento do Professor, criado em 1991, envolve grupos de pesquisadores que estudam as
práticas de leitura e escrita de alfabetizadores, professores de língua portuguesa e outros agentes de letramento com a
finalidade de subsidiar os programas de formação de professores e contribuir para a compreensão da identidade
profissional dos que ensinam a ler e escrever numa sociedade cada vez mais escrita.” Texto disponível em:
http://www.letramento.iel.unicamp.br/portal/. Acessado em 11.jan.2015.
18

perspectiva discursiva. Esse enfoque parte do campo da Linguística Aplicada (doravante LA),
área do conhecimento interdisciplinar, ou indisciplinar4, que se propõe a “criar inteligibilidade
sobre problemas sociais em que a linguagem tem um papel central” (MOITA LOPES, 2006,
p. 14). E nesse campo, como nos propõe Kleiman (2013), nós, linguistas aplicados,
defendemos a LA com:

uma agenda que, em consonância com sua vocação metodológica


interventiva, rompa o monopólio do saber das universidades e outras
instituições que reúnem grupos de pesquisadores e intelectuais e toma como
um de seus objetivos a elaboração de currículos que favoreçam, por um lado,
a apropriação desses saberes por grupos na periferia dos centros
hegemônicos e, por outro, a legitimação dos saberes produzidos por esses
grupos (p. 41-2).

A postura de visibilizar o papel da linguagem na formação acadêmica de forma a


transversalizar as discussões sobre assimetrias na produção de conhecimento fomenta um
diálogo com outros campos do conhecimento. Para realizar esse exercício teórico-prático
híbrido e mestiço com o compromisso de entrar em contato com o que o sociólogo
Boaventura de Sousa Santos (2009) chama de “as vozes do sul”, adoto como pilares do fazer
científico na LA a ética e uma visão crítica frente às relações de poder estabelecidas.

A construção das perguntas

A construção das perguntas desta tese está baseada no debate das políticas de
ações afirmativas que marcou minha formação no curso de Licenciatura em Letras na
UFRGS, iniciada em 2001. Foi durante a graduação que iniciei uma história junto a coletivos
do Movimento Social Negro, a partir da minha participação voluntária em um curso pré-
vestibular popular para estudantes negros de classes populares – o Cursinho Superação5 –, em
2002, como professora de idiomas e, depois, na coordenação do curso. Dois anos mais tarde
passei a fazer parte de atividades de formação política com lideranças quilombolas6. Após

4
Para Moita Lopes (2006), o campo da LA se expandiu para uma série de contextos que se distanciam da sala de aula –
seu objeto inicial –, e passou a constituir-se em cenários interdisciplinares. Esse movimento, para o autor, indicaria que o
campo não construiu um conhecimento disciplinar, mas sim INdisciplinar, no sentido de antidisciplinar e transgressivo.
Nessa direção, para mim, o diálogo que a LA vem estabelecendo com os estudos pós e descoloniais pode configurá-la
com um caráter descolonial.
5
O Curso Pré-vestibular Superação era um cursinho popular voltado para jovens negros de baixa renda, oferecido pela
Organização Não-Governamental Instituto Brasil-África, em Porto Alegre - RS.
6
Trabalho desenvolvido junto ao Instituto de Assessoria a Comunidades Remanescentes de Quilombos (IACOREQ-RS),
organização não-governamental que integra o movimento negro. Sua principal ação era colaborar no processo
19

essa experiência, participei de diversas atividades antirracistas dentro e fora da universidade.


Dentre elas estão três projetos de extensão que se destacaram: o Programa Educação
Antirracista no cotidiano escolar7, o Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a
universidade e comunidades populares8 (ambos desenvolvidos e coordenados pelo DEDS), e
o Grupo de Trabalho de Ações Afirmativas, projeto de extensão coordenado por um professor
do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS e composto por estudantes da
universidade e integrantes do movimento social.
Ainda no âmbito universitário, participei de projetos de extensão sobre a
desigualdade racial na educação e de instâncias deliberativas como representante estudantil.
Por conta dessa experiência, em 2006, integrei a Comissão Especial de Ações Afirmativas do
Conselho Universitário da mesma instituição, equipe responsável pela criação do Programa de
Ações Afirmativas dessa Universidade, que instituiu reserva de vagas nos seus cursos de
graduação no ano de 20079.
Entre os anos 2010 e 2011, uma oportunidade de trabalho me levou a morar na
Colômbia, país que tem se destacado por suas políticas contra a desigualdade racial. Trabalhei
como professora de português como língua adicional na Escola de Idiomas da Universidade
de Antioquia (UdeA) – localizada na cidade de Medellín10, região andina do país. Nesse
período, participei de atividades junto a organizações do movimento social afro-colombiano11.
Nessa experiência, pude perceber as semelhanças das práticas racistas na Colômbia com
aquelas do meu país de origem (Brasil), presentes tanto no discurso que busca invisibilizar a
discriminação racial quanto nos números elevados de desigualdade em termos de renda,

organizativo das comunidades quilombolas, como o fortalecimento identitário e a construção de Associações


Comunitárias. Agradeço ao professor José Carlos dos Anjos pelo feliz convite para ingressar nesse grupo que mudou
minha trajetória na universidade.
7
Programa criado pelo Departamento de Educação e Desenvolvimento Social (DEDS), vinculado à Pró-Reitoria de
Extensão da UFRGS (PROREXT), para oferecer formação a professores da rede municipal de Porto Alegre e sua região
metropolitana em resposta à Lei 10.639 de 2003, que inseriu o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira no
currículo escolar.
8
Esse Programa nacional, coordenado pelo Ministério da Educação, por intermédio da Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), atuou no contexto de implantação de ações afirmativas nas
instituições federais de ensino superior e desenvolveu-se em parceria com a Organização da Sociedade Civil de Interesse
Público (OSCIP) Observatório de Favelas, do Rio de Janeiro, e um grupo de Universidades Federais. Na UFRGS, foi
realizado entre os anos de 2005 e 2011.
9
O primeiro vestibular com reserva de vagas da UFRGS foi aplicado em 2008.
10
Medellín é capital do estado de Antioquia. Na Colômbia, a divisão administrativa de “departamento” equivale aos
estados no Brasil. Para melhor fluidez da leitura, utilizarei o termo brasileiro (estado) quando me refira às regiões
administrativas colombianas (departamento).
11 Participei de discussões para elaboração de um projeto de pesquisa sobre racismo na escola, junto à organização
Carabantu. Essa organização desenvolve ações de promoção da cultura negra na cidade de Medellín: entre elas cursos,
organização de atividades culturais, como amostra de cinema e debates com pesquisadores da temática afro-colombiana.
Mais informações em: http://carabantu.jimdo.com/ acessado em 25.março.2013.
20

trabalho, terra e educação entre as populações negras e indígenas em comparação com a


população branco-mestiça do país (WADE, 1997; SOLER; PARDO, 2008; MOSQUERA;
RODRÍGUEZ, 2009).
Essas experiências de vida e de trabalho – em cursinhos populares, formação
política com lideranças quilombolas, projetos de extensão sobre racismo na educação e ensino
de português para estrangeiros –, me propiciaram a constituição de um olhar voltado para os
conflitos do contato intercultural que se expressam na/pela linguagem. Após acompanhar tão
de perto o debate sobre programas de ação afirmativa no ensino superior e com um olhar mais
amadurecido, comecei a indagar sobre qual seria o impacto das políticas de reserva de vagas
na formação de profissionais da área de ciências humanas e como estaria sendo acolhido esse
novo público na Universidade. Pelas similitudes que eu via entre ambos os países, passei a
fazer a mesma pergunta para o contexto colombiano.

Objetivos e perguntas de pesquisa

O objetivo geral desta pesquisa de doutorado é analisar como universitários


ingressantes por políticas afirmativas de cursos de ciências humanas, de duas
universidades latino-americanas, criam estratégias para lidar com as práticas de
letramento acadêmico, exigidas durante seu processo de desenvolvimento e escrita do
Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Os universitários participantes da pesquisa fazem
parte de programas de ação afirmativa de duas instituições públicas de ensino superior latino-
americanas, em regiões nas quais há um imaginário de branqueamento da população local: sul
do Brasil (OLIVEN, 1999) e região andina da Colômbia (WADE, 1997).
Para atingir o objetivo geral, delimitei os seguintes objetivos específicos:
1. Descrever e discutir as políticas de ações afirmativas implementadas por duas
instituições públicas de ensino superior latino-americanas – uma brasileira e outra
colombiana –, visando à inserção dos estudantes negros e indígenas nas universidades;
2. Analisar como os estudantes constroem discursivamente posicionamentos em relação
aos modos como percebem as práticas de letramento acadêmico, em especial, a escrita dos
Trabalhos de Conclusão de Curso na esfera universitária;
3. Descrever as estratégias que os estudantes desenvolvem no processo de apropriação
das convenções acadêmicas em suas trajetórias de letramento;
21

4. Identificar quais são os conflitos que se apresentam no processo de inserção dos


universitários cotistas nas práticas de letramento acadêmico;
4.1. Analisar como os universitários cotistas reagem aos conflitos que se apresentam em
suas trajetórias de letramento acadêmico a partir da experiência da escrita dos seus
Trabalhos de Conclusão de Curso.

Com base nesses objetivos, delineio as seguintes perguntas que guiarão a


pesquisa:
1. Quais são as políticas de ações afirmativas implementadas pelas
universidades pesquisadas?
1.1. Dentre as políticas implementadas, quais focam as relações de ensino-
aprendizagem?
1.2. Quais são as concepções de permanência das políticas orientadas para
os estudantes cotistas?

2. Como os estudantes cotistas respondem às demandas de práticas de


letramento acadêmico envolvidas no processo de realização de seu Trabalho de Conclusão
de Curso (TCC)?
2.1. Como são narradas pelos estudantes suas trajetórias de inserção nas
práticas de letramento acadêmico?
2.2. Quais as apreciações atribuídas ao Trabalho de Conclusão de Curso
(TCC) pelos estudantes cotistas?
2.3. Como, em suas narrativas, reconstroem seu processo de escrita do
TCC?
2.4. Quais estratégias desenvolvem os estudantes cotistas no processo de
apropriação das práticas de letramento acadêmico para a produção de seu TCC?
2.5. Quais conflitos se apresentam no processo de desenvolvimento e escrita
do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC)?

A pesquisa que deu origem a esta tese consistiu em um estudo de caráter


qualitativo, cujo corpus é composto por entrevistas com estudantes e docentes, trabalhos de
conclusão de curso produzidos pelos estudantes, assim como documentos que regulam a
política afirmativa nas duas instituições universitárias públicas participantes da pesquisa. O
enfoque do estudo está centrado em quatro trajetórias de jovens estudantes: duas trajetórias de
uma universidade colombiana e duas de uma universidade brasileira. Ao aproximar
experiências de políticas reparatórias desses dois países, o trabalho busca inserir-se no campo
de discussões sobre linguagem, interculturalidade e políticas afirmativas para populações
vítimas do racismo no contexto latino-americano.
22

Apresentação dos capítulos

Esta tese está organizada em duas partes: Parte I – Apontamentos teórico-


metodológicos do problema de pesquisa, cujo objetivo é mostrar as bases teóricas que
orientarão a análise e as escolhas metodológicas da pesquisa, e Parte II – Das práticas de
letramento acadêmico em cenários de ação afirmativa, cujo propósito é trazer a análise dos
dados. Além disso, conta com este preâmbulo, no qual apresentei os objetivos e as perguntas
de pesquisa, situando a polêmica que está no pano de fundo deste estudo, e um último
capítulo com as considerações finais.
A primeira parte da tese é composta por três capítulos. No primeiro capítulo,
exponho as assimetrias na produção de conhecimento, como argumento que sublinhou a
demanda por ações afirmativas na educação superior. Para isso, conto com as contribuições da
rede de estudos sobre Modernidade/Colonialidade (ou Estudos Descoloniais) para o campo
dos estudos da linguagem, com o propósito de articular os conceitos de colonialidade do
saber, epistemicídio e violência epistêmica às propostas de diálogo de saberes que passaram a
marcar a discussão das políticas afirmativas. No segundo capítulo, focalizo o papel da
linguagem na universidade. Para isso, trago a contribuição dos Estudos de Letramento para a
reflexão da formação universitária a partir do conceito de letramento acadêmico. Destaco,
para isso, os conceitos-chaves e as concepções de linguagem e formação que subjazem a este
estudo. No terceiro capítulo, apresento a proposta metodológica, os participantes da pesquisa
e o processo de geração e análise de dados.
A segunda parte da tese está organizada em três níveis de análise: as políticas, as
trajetórias e os TCC. No quarto capítulo, disserto sobre as medidas de ação afirmativa,
descrevendo brevemente aquelas que serão investigadas, nos pampas brasileiros e nos andes
colombianos, e exploro o perfil das ações afirmativas nos dois países. No quinto capítulo, que
está estruturado em quatro tópicos – 1. Pré-ingresso; 2. Ingresso; 3. Universidade, Escritos e
Permanência; e 4. TCC –, abordo as trajetórias e os TCC dos estudantes para analisar seus
percursos desde o ingresso na universidade até a elaboração do TCC, assim como as
estratégias criadas para a produção de seus trabalhos. Finalizo a tese com as considerações
finais e uma síntese dos resultados, ponderando as possibilidades de subversão e criação no
processo de construção do TCC.
23

Parte I – Apontamentos teórico-metodológicos do

problema de pesquisa
24

1. Ações afirmativas e Universidade: uma conversa sobre os “monopólios de


saber”

El sentido de nación multicultural o pluricultural e interétnica tiene que ver con que al principio, en el momento de la
formación de la nación, los grupos étnicos, como los indígenas y los afros, no tuvieron presencia y representación en la
formación de la nación. (…) Es decir, que la uniformidad y el concepto de la estandarización y la hegemonización de nación
no quiebren la especificidad étnica y la especificidad cultural. O sea, que el horizonte común de nación sea el vertimiento del
reconocimiento de las distintas especificidades, de las distintas particularidades. Es decir, es necesario reafirmar la parte o
reafirmar el árbol para reconocer la existencia del bosque. (Carlos Rúa, ativista afro-colombiano) 12

La epistemología del Sur apunta fundamentalmente a prácticas de conocimiento que permitan intensificar la
voluntad de transformación social: frente a ‘la reducción de la realidad a lo que existe’. (Boaventura de Sousa Santos, 2009)

Esta tese entrelaça dois campos de discussão: por um lado, o contexto de


implementação de políticas afirmativas no ensino superior; e, por outro, a crescente reflexão
sobre o papel da linguagem na formação acadêmica. Esses dois campos se coadunam ao
analisar trajetórias de formação universitária de jovens ingressantes por programas de ação
afirmativa, em especial por haver um interesse em reconhecer, na perspectiva de Lahire
(1997), eventos de sucesso escolar nos meios populares.
Entrelaça também dois países: o Brasil e a Colômbia. As perguntas desta tese
emergiram, conforme já dito, em um diálogo com os movimentos negros e intelectuais
antirracistas brasileiros no contexto das ações afirmativas, e se ampliaram ao passar a dialogar
com os discursos colombianos sobre racismo e esfera acadêmica. Embora no contexto
brasileiro o termo “racismo” retome um campo teórico sobre as desigualdades raciais, no
contexto colombiano foi a palavra colonialidade que nos permitiu acercar mais do núcleo da
tese: o racismo epistêmico, e assim traçar pontes com as demandas por equidade e justiça
social no âmbito universitário. Considerando essa dupla audiência – brasileira e colombiana –,
chamamos a atenção para a bivocalidade da palavra colonialidade – que está enunciada no
título da tese –, pois a palavra colonialidade nos servirá tanto para vincular a discussão desta
tese às propostas dos estudos descoloniais e a noção de interculturalidade crítica, quanto para
nos referir ao racismo epistêmico e pós-colonial. Para desenvolver essa discussão,

12
Em Rodrigues (2012, p. 204).
25

apresentamos os conceitos de colonialidade do saber, epistemicídio e violência epistêmica


para articulá-los às propostas de diálogo de saberes no ensino superior.
A demanda para a abertura do Ensino Superior a grupos historicamente
discriminados e excluídos surge após algumas décadas de expansão da oferta da Educação
Básica. Um dos principais catalisadores dessas políticas foi o Plano de Ação assinado pelos
países que participaram da III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial,
Xenofobia e Intolerância Correlata (ou Conferência de Durban), ocorrida em Durban, África
do Sul, em 2001, entre eles a Colômbia e o Brasil. Universidades brasileiras e colombianas
vivenciam tanto um processo de expansão internacional, com grandes projetos de
internacionalização (por exemplo, o programa Ciência Sem Fronteira13 no contexto
brasileiro), quanto um processo de abertura para jovens de grupos estigmatizados e
discriminados (por exemplo, as populações indígenas e negras, a partir de programas de
inserção na universidade, foco desta tese).
Na América Latina, o século XXI iniciou-se com a exigência de políticas de ações
afirmativas no ensino superior, com o objetivo de que este abrisse suas portas a estudantes
indígenas, negros e oriundos de grupos sociais populares marginalizados física e
culturalmente do espaço acadêmico ao longo da história. Os programas de acesso para
populações discriminadas vêm sendo realizados, principalmente, por medidas de reserva de
vagas ou vagas suplementares orientadas para grupos específicos (DAFLON; FERES JR.;
CAMPOS, 2013). Contudo, como já dito, esse ingresso mediado por políticas de ação
afirmativa gerou polêmica14 no meio político e acadêmico. Entre variadas posições,
destacamos aqui duas delas para mostrar essas tensões: enquanto para alguns setores da
sociedade, os estudantes que ingressariam pela ação afirmativa não seriam capazes de
enfrentar às exigências acadêmicas (em uma perspectiva deficitária); para outros, ao contrário,
esses estudantes não apenas teriam sucesso em sua formação como seriam capazes de romper
com os discursos hegemônicos e poderiam propor novas formas de produção de
conhecimento (em uma perspectiva intercultural).
Pensamos que, como uma instituição formativa, outras formas menos polarizadas
para a Universidade enfrentar essa polêmica seriam refletir sobre os questionamentos a
respeito do seu papel na sociedade em que está inserida, assim como se reposicionar frente ao
novo papel que a sociedade lhe está requerendo (CARVALHO, 2004; SANTOS, 2011); para

13
Mais informações em: http://www.cienciasemfronteiras.gov.br/web/csf. Acessado em 12.jan.2015.
14
Essa polêmica se deu com mais força no Brasil. Na Colômbia, há uma invisibilidade nos meios jornalísticos e um
silenciamento nas universidades frente a esta medida afirmativa.
26

revisar suas formas de ensinar, especialmente a esse novo público que chega ao ensino
superior. Em alinhamento ao debate na mídia15 sobre essas políticas, por conta do histórico de
estigmatização de seu público-alvo, ressaltamos ainda que há uma tendência de a instituição
universitária justificar as dificuldades que esses estudantes venham a apresentar em seus
desempenhos com base no discurso do déficit (SOARES, 1986; LILLIS; SCOTT, 2007) ou no
“discurso da ausência” (SILVA, 2003)16. Esse cenário gera a necessidade de entender o
processo de consolidação de uma política afirmativa que visa à democratização do ensino
superior.
É nesse âmbito que entram as contribuições dos estudos da linguagem.
Acreditamos que a linguagem tem um papel crucial para que esses estudantes ingressantes por
programas afirmativos sejam capazes de romper com os discursos hegemônicos e propor
novas formas de produção de conhecimento, já que seu êxito acadêmico está relacionado
também a como eles se relacionam com práticas acadêmicas, como as de leitura e escrita. Isso
se dá porque a formação universitária implica uma dupla tarefa: aprender tanto os conteúdos
do campo disciplinar, quanto suas práticas discursivas (CARLINO, 2005). Nesse sentido,
formar os estudantes universitários implicaria promover ações nas quais eles pudessem
aprender as práticas de leitura e escrita tanto nas formas de usar a linguagem que caracterizam
seu campo profissional, quanto naquelas que caracterizam seu campo acadêmico.
Contudo, estudos como o de Bizon (2013) vêm mostrando que, dentro desse
debate sobre a democratização do ensino superior latino-americano, pouca atenção recebem
as questões do âmbito de ensino-aprendizagem e o papel da linguagem na formação
universitária. Frente a isso, estabelecemos um diálogo com trabalhos alinhados a uma
perspectiva crítica que estão voltando maior atenção para as práticas de uso de escrita e leitura
na academia (CANAGARAJAH, 1997; LEA; STREET, 2006; LILLIS; SCOTT, 2007;
ZAVALA; CÓRDOVA, 2010; KLEIMAN, 2010, 2013; FIAD, 2011; PASQUOTTE-
VIEIRA, 2014; MOSSMANN, 2014) e procuramos nos aproximar da perspectiva dos
estudantes, abordando experiências em dois contextos de políticas afirmativas que associam a
identidade étnico-racial ao mérito, pois esse cenário nos abre a possibilidade de visibilizar
identidades culturais e sociais antes marginalizadas no espaço acadêmico.
15
Um exemplo dessa polêmica na mídia foi a reportagem Eles são gêmeos idênticos, mas, segundo a UnB, este é branco
e... este é negro, publicada na revista Veja (Brasil) em 06 de junho de 2007. Disponível em:
http://veja.abril.com.br/060607/p_082.shtml. Acessado em 25.mar.2015.
16
No livro Por que uns e não outros?: caminhada de jovens pobres para a universidade (SILVA, 2003), o sociólogo
Jailson de Souza e Silva se propõe a mostrar trajetórias de jovens moradores da Maré (o maior complexo de favelas
carioca), no Rio de Janeiro, que acessaram ao ensino superior com o propósito de combater discursos preconceituosos e
estereotipados que descrevem atores de grupos de setores populares a partir do “não ter”, ou seja, da ausência de atributos
ou do déficit.
27

Por fim, de acordo com a ponderação de Lillis e Scott (2007) acerca do contexto
de expansão do ensino superior inglês, acreditamos que ao visibilizar uma questão
negligenciada – a relevância da linguagem, em especial a escrita, na formação universitária –
é possível enfrentar os discursos de déficit sem culpar os próprios alunos, assim como ampliar
o horizonte de respostas possíveis sobre o processo de produção de conhecimento.

1.1. O impacto da escrita na cidade letrada

No Brasil, em 2001, houve a aprovação do primeiro programa de ação afirmativa


em uma universidade pública brasileira17, com uma subsequente ampliação da política a
outras universidades. Embora o Projeto de Lei 73/99 – conhecido como lei das cotas, que
institui reserva de 50% das vagas nas instituições federais de ensino para estudantes de escola
pública – tenha sido aprovado apenas em 2012, naquele momento já havia um número
significativo de universidades18 que havia implementado algum modelo de política afirmativa
anterior à Lei federal19, utilizando sua autonomia para tal.
Esse processo de adoção de ações afirmativas em universidades públicas resultou
de uma intensa demanda de movimentos sociais, os quais exigiam uma ampliação do acesso à
formação profissional para grupos que tradicionalmente não ingressavam no ensino superior
por interdições sociais (como a raça/cor, região, classe social, ou a intersecção entre elas).
Nessa conjuntura, ganhou uma relevância ainda maior investigar práticas de letramento de
estudantes universitários de grupos minoritários20 no seio de uma política educacional que
tem como propósito desconstruir práticas discriminatórias, diminuir a desigualdade no acesso
e fomentar a permanência no ensino superior.
Rememorando nossa experiência universitária a partir das lentes dos Estudos de
Letramento, questionávamo-nos sobre quais seriam as trajetórias desses estudantes e como

17
A primeira política afirmativa foi aprovada na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em 2001 e, em 2003, na
primeira instituição federal de ensino superior, a Universidade de Brasília.
18
Em 2012, mais da metade das instituições de ensino superior federais haviam adotado alguma medida afirmativa. Ver
mapa das políticas afirmativas em: http://gemaa.iesp.uerj.br/dados/mapa-das-acoes-afirmativas.html Acessado em
11.out.2015.
19
Lei Federal n. 12.711, aprovada em 29 de agosto de 2012. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm. Acessado em 25.março.2015.
20
Quando nos referimos neste trabalho a grupos ou comunidades minoritárias, queremos indicar “aquelas populações que
estão distantes das fontes de poder hegemônico, embora, algumas vezes, numericamente sejam majoritárias em relação à
sociedade ou grupo dominantes”, conforme definição proposta por César e Cavalcanti (2007, p. 45).
28

estariam respondendo às exigências de práticas de leitura e escrita na academia. Com base


nessas questões, três aspectos delinearam a escolha das instituições que participaram da
pesquisa: i) a proximidade entre os imaginários raciais da região do sul Brasil e da região
andina da Colômbia; ii) a adoção de medidas afirmativas com critérios étnico-raciais para o
ensino superior, voltadas para estudantes negros e indígenas, nos dois países; iii) a situação
negligenciada da linguagem na formação acadêmica.
A primeira dimensão se expressa na escolha dos dois cenários para desenvolver a
pesquisa, que se aproximavam pelo ideal de regionalismo e pelas representações da população
local como branca e trabalhadora em contraponto à população nacional mestiça (OLIVEN,
1999; WADE, 1997; KENT; SANTOS, 2012; VIVEROS, 2013). Essa similaridade dos
imaginários regionais racializados indicou um ponto de encontro entre essas regiões
longínquas: o imaginário da população local, conforme explicaremos no terceiro capítulo.
A segunda dimensão se refere ao processo de reivindicação de uma
democratização da universidade, pautado pelo reconhecimento da existência de uma
desigualdade étnico-racial no âmbito acadêmico; ou seja, o racismo (articulado à classe ou
não) incide negativamente no acesso de populações negras e indígenas ao ensino superior
latino-americano. As universidades foco desta pesquisa oferecem mecanismos de seleção e
ingresso baseados na noção de mérito acadêmico, com a aplicação de exames vestibulares,
associados ao vínculo escolar (em escolas públicas) e à autodeclaração étnico-racial por parte
de estudantes negros e indígenas, reconhecendo, assim, que fatores como o racismo, classe
social e o vínculo escolar pregresso dificultam o acesso de alguns grupos sociais à
universidade. Esses mecanismos destinam maior atenção ao acesso dos estudantes, gerando
uma diversificação do público discente; contudo, continua sendo pertinente a pergunta sobre
se, de fato, constrói-se uma ruptura na assimetria nas formas de produção de conhecimento ao
longo da trajetória acadêmica desses estudantes.
A terceira dimensão se refere ao papel da linguagem no acesso e na permanência
estudantil. Para ilustrar essa relação, apresentamos dados do Programa Conexões de Saberes:
diálogos entre a universidade e comunidades populares 21 sobre o ingresso na Universidade
de jovens com o perfil étnico-racial não-branco ou advindos de classes populares. Esse
programa buscava reconhecer trajetórias de jovens de origem popular com o fim de formular

21
Entre os principais objetivos desse Programa, estavam: “estimular maior articulação entre a instituição universitária e as
comunidades populares, com a devida troca de saberes, experiências e demandas; - possibilitar que os jovens
universitários de origem popular desenvolvam a capacidade de produção de conhecimentos científicos e ampliem sua
capacidade de intervenção em seu território de origem, oferecendo apoio financeiro e metodológico para isso”. Disponível
em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12360&Itemid=714. Acessado em
25.mai.2013.
29

políticas de permanência no ensino superior, assim como de fortalecimento desses jovens em


suas comunidades de origem. Essas trajetórias foram analisadas por Bergamaschi e Arenhaldt
(2008), que retratam perfis muito similares aos de jovens que ingressaram pelo Programa de
Ações Afirmativas22. Os dados revelam uma gama de conflitos enfrentados por eles que
dificultam tanto seu acesso quanto sua permanência no curso; em especial, o exame vestibular
é representado como um grande empecilho para esses jovens. Esses relatos ilustram algumas
das dificuldades nas diferentes trajetórias desses estudantes, tais como: a) ser a primeira
geração universitária – “antes de mim e meus primos, ninguém de nossa família teve
formação superior”, b) ter pouca confiança em si – “minha mãe insistia em que prestasse o
vestibular, mas minha insegurança e baixa autoestima, somadas ao meu confuso segundo grau
não me permitiam pensar em semelhante façanha”, e c) sentir-se pouco identificado com o
espaço universitário nos discursos familiares – “em casa o dinheiro era contado (...) alguém
me disse que a grande maioria que conseguia passar na UFRGS era os ‘filhinhos de papai’,
mas eu estava na minoria que encarava o desafio” (BERGAMASCHI; ARENHALDT, 2008,
p. 81-9). Contudo, apesar dessas dificuldades, a persistência no desejo de ingressar na
universidade pública e a construção da confiança em si próprio ou em um membro familiar se
destacam nessas trajetórias.
Depois da dificuldade para ingressar, esses estudantes precisam ainda aprender a
garantir sua permanência no curso. Em conversas informais23 com estudantes universitários
ingressantes pelo Programa de Ações afirmativas da UFRGS, identificamos algumas
dificuldades com que eles se deparam na universidade, como: o silêncio acerca de suas
identidades étnico-raciais nos cursos, a recepção discriminatória de alguns colegas e
professores, o isolamento entre si (não há espaços de referência para encontro entre os
estudantes cotistas, e, talvez como uma consequência, muitos nem se assumem como cotistas
depois que ingressam), a pouca articulação política em coletivos, a dificuldade em
acompanhar o ritmo das aulas – seja pelos temas serem muito distantes de suas realidades,
seja pelo volume de leituras com o qual não estavam acostumados. Em alguns casos, o
resultado é a desistência do curso.

22
Os relatos do Programa Conexões de Saberes retratam a experiência de jovens que já estavam matriculados na
Universidade em 2005; anterior ao Programa de Ações Afirmativas, que iniciou em 2008.
23
Durante o segundo semestre de 2011, a autora da tese participou do Coletivo “Fórum de Ações Afirmativas”. Este
Coletivo foi constituído durante a preparação das atividades para o evento “Semana de Consciência Negra da UFRGS”,
de 2007. O Fórum tinha por objetivo fomentar ações com a finalidade de contribuir para o aprimoramento e para o êxito
do Programa de Ações Afirmativas dessa Universidade. Era composto por estudantes da universidade e pelos diferentes
segmentos sociais que estiveram engajados na luta pela aprovação do Programa de Ações Afirmativas da UFRGS e, na
época, também contava com a participação de novos estudantes da Universidade, dentre eles os primeiros estudantes
cotistas (do ano de 2008), com os quais pôde interatuar em diferentes espaços de ações do Fórum.
30

As críticas frente ao modelo de formação e docência universitária também ecoam


em depoimentos de universitários indígenas colombianos, conforme registros da pesquisa
Situación del/la estudiante indígena universitario/a, necesidades y perspectivas. Un estudio
en Antioquia y Chocó24 (SIERRA, 2004), realizada pela Faculdade de Educação da
Universidade de Antioquia. Ao falar sobre suas experiências na Universidade, os estudantes
afirmam que:

“Na universidade não se leva em conta para nada o que é o mundo indígena, pois não
aparece em nenhuma parte. O que se fala é muito pouquinho, mais nas referências que
se fazem a alguns por aí, mas de que exista uma consciência disso, não.” (Estudante de
Engenharia Química da Universidad de Antioquia, da etnia Embera Chamí-Caldas,
entrevista março 16 de 2002, nossos grifos).25

“– Na Universidade de Antioquia... não senti minhas expectativas satisfeitas no nível


acadêmico, porque achei muito academicista, usavam muita informação sem nenhum
aprofundamento, era como encher linguiça, tinha muito texto, tinha muita informação,
acredito que muito importante, mas não tínhamos tempo de saboreá-la, de desfrutá-la...
(Estudante egresso do curso de Administração Educativa da Universidad de Medellín e
Especialista em Gerência Social da Universidad de Antioquia, diretor do INDEI26, da
etnia Embera-Chocó, entrevista abril 1º de 2002, nossos grifos) 27

Esses depoimentos expressam aspectos importantes sobre a permanência


acadêmica. No primeiro excerto, o estudante da etnia Embera-Chamí relata seu incômodo ao
sentir que “não se leva em conta para nada o que é o mundo indígena”, ou seja, a universidade
desconsidera sua cultura e história. Além disso, revela uma insatisfação diante do
distanciamento que os estudantes detectam entre conhecimentos acadêmicos e aqueles de seus
grupos de origem. No segundo excerto, o estudante da etnia Embera critica o modus operandi
de ensino-aprendizagem universitário que não abre espaço-tempo para pensar sobre as
informações apresentadas, ou nas palavras do estudante não há tempo de “saboreá-la, de
deleitá-la” [essa nova informação].

24
Pesquisa realizada sob a coordenação da professora Dra. Zayda Sierra, da Universidad de Antioquia.
25
Original: “[En] la universidad es que no se tiene en cuenta para nada lo que es el mundo indígena, pues no aparece por
ninguna parte. Lo que se toca es muy poquito y las referencias que le hacen a uno por ahí, pero de que exista una
conciencia de eso, no.” (Estudiante hombre Embera Chamí-Caldas, de Ingeniería Química de la U de A, entrevista marzo
16 de 2002, meus grifos).
26
Instituto Departamental para la Educación Indígena, de Antioquia.
27
Original: “–En la Universidad de Antioquia... no sentí satisfechas mis expectativas a nivel académico, pues me pareció
muy academicista, se manejaba demasiada información sin ninguna profundización, era como llenar un chorizo, había
mucho texto, había mucha información, creo que muy importante, pero no teníamos tiempo de saborearla, de deleitarla...
(Egresado Embera-Chocó de Administración Educativa de la U de Medellín y Especialización en Gerencia Social de la U
de A, rector del INDEI, entrevista abril 1 de 2002)”.
31

A partir dos relatos apresentados anteriormente, destacamos três fatores relevantes


para o problema que abordamos nesta tese: a) o silenciamento sobre a dimensão da linguagem
na formação universitária; b) o papel da escrita no ensino superior, o qual, quando salientado,
é entendido de uma perspectiva da linguagem como habilidades (criticado por Lea & Street,
1998); c) a visão tradicional da escrita como habilidades resulta na manutenção de
desigualdades, tal qual a cidade letrada descrita por Rama (1984).
Para caracterizar a cidade letrada, Rama (idem) utiliza o conceito de cidade
escriturária para demonstrar como houve uma perpetuação da estrutura da cidade colonial, na
América Latina, após o final do colonialismo. Essa organização a que o autor chama de
“escriturária” se regia pela burocracia, a qual teve por propósito restringir o acesso aos bens e
serviços da cidade; acesso este que passou a ser hierarquizado pela linguagem escrita. Em sua
crítica, destaca a ordem dos signos como um elemento que manteve um hiato entre a “letra
rígida” e a “fluida palavra falada”:

a cidade letrada articulou sua relação com o Poder, a quem serviu mediante
leis, regulamento, proclamações, cédulas, propaganda e mediante a
ideologização destinada a sustentá-lo e a justificá-lo. Foi evidente que a
cidade das letras arremedou a majestade do Poder, apesar de que também se
pode dizer que este regeu as operações letradas, inspirando seus princípios
de concentração, elitismo, hierarquização. Acima de tudo, inspirou a
distância entre a letra rígida e a fluida palavra falada, que fez da cidade
letrada numa cidade escriturária, reservada a uma estrita minoria (RAMA,
1984, p. 54).

A cidade escriturária se estruturou em torno de um centro constituído por uma


elite que tinha acesso aos escritos, bens e direitos, excluindo aqueles que passavam a
constituir as periferias da cidade (e ficaram interditados desses direitos). Em outras palavras, o
autor nos chama a atenção para como a organização assimétrica da cidade letrada se construiu
com base nessa distância entre as práticas de escrita (“letra rígida”) e de oralidade (“fluida
palavra falada”), pois, embora esta fosse a mais comum à população, aquela foi a mais
utilizada justamente para limitar o acesso de uma maioria ao status de cidadão.
Com base nessa noção, e considerando os contextos colombiano e brasileiro,
podemos associar esse hiato à continuidade das estruturas coloniais espanhola e portuguesa,
que interditaram a suas populações afrodescendentes e indígenas o acesso à cidade letrada ao
organizarem-se por meio de leis, classificações e distribuições hierárquicas. Por isso, para
analisar como os estudantes passam a reconhecer as formas de atuar nas duas universidades
analisadas, desvendando a ordem do discurso estabelecida no âmbito universitário, optamos
32

por investigar uma prática de letramento envolvida na etapa final da graduação: o Trabalho de
Conclusão de Curso (TCC). Este trabalho – quando é um requisito para formação – costuma
concretizar a graduação dos universitários, já que o candidato, se aprovado, é reconhecido
como mais um membro entre os pares da comunidade acadêmica e/ou profissional. Nossa
hipótese é que sua construção pode promover um exercício de produção de conhecimento e de
apropriação de práticas acadêmicas por ser um escrito de maior envergadura no curso e, em
muitos casos, ser elaborado com autoria do próprio estudante. Esse enfoque justifica-se
também por haver poucos estudos sobre letramento acadêmico que focam essa prática de
letramento (TAPIA-LADINO; MARINKOVICH, 2013; MORETTO; BUENO, 2013).

1.2. Entrelaçando o Brasil e a Colômbia: a interculturalidade em questão

O exercício de comparar as realidades brasileira e colombiana, no âmbito de


políticas públicas, vem se ampliando nas ciências humanas28 na última década. Esses dois
países que limitam na região amazônica, possuem muito mais do que uma fronteira geográfica
em comum. Como nos mostra Arruti (2000), ao fazer uma primeira aproximação em torno da
temática de regularização fundiária quilombola, há uma grande semelhança entre as políticas
de garantia de territórios étnicos para populações afrodescendentes. Esse panorama é
aprofundado no trabalho de Rodrigues (2012), que analisou quais entrelaçamentos havia entre
ambos os países quanto à implementação de política afirmativa territorial. Com base em uma
pesquisa etnográfica multissituada, a autora investigou o processo de construção e
desenvolvimento de políticas públicas para comunidades quilombolas, no Brasil, e
comunidades palenqueras29, na Colômbia.
Além de explorar o movimento de redemocratização e de reconhecimento como
Estados nacionais multiculturais e multiétnicos, Rodrigues (2012) revela as similitudes entre
as políticas do Brasil – com o Programa Brasil Quilombola (de 2004) – e da Colômbia – a Lei
70 ou a “Lei dos negros” (de 1993) – que visam garantir os territórios às populações negras

28
Faço a ressalva de que os contatos entre organizações de movimentos sociais de ambos os países se estabeleceram há
mais tempo.
29
A palavra “palenque”, na Colômbia, se remete à população africana que, no período colonial, quando fugia do sistema
escravista, construía territórios com o fim de refugiar-se; sentido muito próximo ao termo “quilombo”, no Brasil. A
experiência mais próxima a do quilombo dos Palmares é a do território de San Basilio de Palenque: essa comunidade
palenquera colombiana foi fundada por escravizados fugidos (“cimarrones”) sob a liderança de Benkos Biohó, e está
localizada no estado de Bolívar (região caribenha), próxima da cidade de Cartagena das Índias, de onde procedia a
maioria de sua população. Ressaltamos que a cidade foi um mercado de escravos para todo o país naquela época. San
Basilio de Palenque foi reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, pela UNESCO, em 2008.
33

que os ocuparam historicamente. Suas análises demonstram as tensões que emergem por
haver um imaginário em transição: de países que se viam como democracias raciais e
mestiças a países que reconhecem suas desigualdades sociorraciais. Isso resulta em um
cenário de luta por garantir direitos mínimos, em paralelo a uma realidade que convive com
uma contínua política de Estado de violação dos direitos humanos. Essa vulnerabilização
histórica nos convida a uma compreensão das experiências brasileira e colombiana. Com o
propósito de analisar o contexto latino-americano, destacamos quatro elementos que foram
relevantes para compreender a conexão que estabelecemos entre os dois países:

 Mito da democracia racial: esse mito ou ideologia conjuga duas facetas em paralelo:
por um lado, os discursos de negação do racismo e, por outro, um panorama de
desigualdades sistemáticas e históricas vivenciadas pelas populações por meio da
noção de “raça”; esse cenário resulta em estigma, invisibilidade e vulnerabilidade
social, em especial para as populações negras e indígenas (MUNANGA, 1999;
WADE, 1997; RODRIGUES, 2012);
 Constituições cidadãs: a Constituição Federal do Brasil de 1988 e a Constituição
Política da Colômbia de 1991 reconhecem que suas sociedades são povos multiétnicos
e pluriculturais. A elaboração dessas constituições no contexto latino-americano, nas
décadas de 1980/1990, expressa um novo olhar por parte dos Estados brasileiro e
colombiano frente a suas populações.
 Conferência de Durban: a participação de organizações de movimentos sociais e
políticos construiu uma rede continental entre os movimentos étnico-raciais, o que
fomentou a assinatura do Plano de Ação da III Conferência Mundial contra o Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Formas de Intolerância Correlatas (ONU, 2001).
Os Estados, ao firmarem esse compromisso, reconheceram sua responsabilidade frente
à desigualdade racial dos seus países;
 Expansão da educação superior e reivindicações por equidade: ambos os países
possuem uma demanda crescente de acesso à educação superior e de criação de cursos
(em especial, licenciaturas) interculturais. Em paralelo a essa demanda, emerge uma
crítica contra as desigualdades, no ingresso à educação superior, enfrentadas por
populações racializadas (CARVALHO, 2004; SIERRA, 2004; LÓPEZ, 2009; SOLER,
2014).
34

Para explicar melhor o mecanismo da democracia racial, trazemos a explicação de


Carvalho (2004a), que toma a noção de duplo vínculo (no sentido proposto
por Gregory Bateson) para explicar o racismo brasileiro. Nesse racismo, como um sistema de
duplo vínculo, o autor afirma que "uma das características dessa ordem dominante branca no
Brasil (cuja especificidade em nada altera a intensidade do nosso racismo) é que ela tem
forçado os negros a entrarem cindidos no discurso social, submetendo-os a um duplo vínculo”
(p. 76). Esse jogo paralisante cria uma prisão para o sujeito estigmatizado pela identidade
racial, de uma forma que afeta sua autoestima, já que

não lhe permite responder a uma mensagem que simultaneamente nega e


afirma a sua condição de alteridade (ou de identidade) frente ao branco.
Completa-se aqui o sentido do duplo vínculo tal como formulado
por Bateson: se permanecer vinculado a essa estrutura desigual de
comunicação, sairá perdendo sempre, independente da posição que escolha
assumir (p. 76).

Em outras palavras, na ideologia da mestiçagem há uma complementação entre o


discurso de negação do racismo e sua faceta hierárquica. Assim, o sujeito que se sente
discriminado e explicita a diferença no trato que recebe (como um “outro”) é atacado como
um “paranóico” ou “complexado”, e como resposta escuta que racismo não existe; mas, se
assume a “igualdade”, logo se dará conta de que somos iguais, mas nem tanto, pois o sujeito
continuará enfrentando a discriminação racial, que pode ser sintetizada na expressão “cada um
no seu quadrado”.
Aproximar esses dois países nos possibilita conjugar experiências que, postas lado
a lado, podem contribuir para revisar e compreender melhor as políticas afirmativas que vêm
sendo realizadas na América Latina, por serem cenários que possuem uma expressão da
racialização mais próxima. Nessa direção, o trabalho de López (2009), por exemplo, examina
as mobilizações negras e suas identificações afrodiaspóricas no contexto do debate sobre as
políticas públicas e as ações afirmativas em sua face “local” no Cone Sul da América Latina.
Com uma abordagem antropológica, López (idem) descreve como ativistas de movimentos
negros atuavam em prol de políticas públicas nas capitais gaúchas de Buenos Aires,
Montevidéu e Porto Alegre, revelando como esses ativistas negociavam projetos de
identidades nacionais e transnacionais na busca de políticas mais pertinentes a suas demandas.
Suas ações questionavam o princípio de igualdade como “justiça” e propunham novas formas
de engajamento político na esfera pública. Destaca-se, em sua pesquisa, a abordagem dos
enlaces transnacionais a partir da identidade afrodiaspórica e da interseccionalidade.
35

1.3. Das (as)simetrias entre saberes na produção de conhecimento: uma


conversa tensa

Ao entrelaçar esse dois países por meio do tema das políticas afirmativas na
educação superior, o tema do diálogo de saberes se torna chave nessa discussão, porém cabe
discutir sobre os sentidos que atribuímos à palavra “diálogo”.
Essa palavra muitas vezes é associada a uma conversa entre pares, sem conflitos e
não hierárquica, vista quase como confluências e consensos. No entanto, para nós, que
compartimos das proposições do Círculo de Bakhtin (VOLOCHINOV, 1995) – que serão
discutidas com maior detalhe no capítulo seguinte – o diálogo é um processo de construção de
sentidos que se dá em jogos de conflito e poder, os quais são tecidos pelos sujeitos em suas
interações (dimensão sincrônica) e ao longo da história (dimensão diacrônica). Ou seja, na
perspectiva do dialogismo, o diálogo está muito mais próximo de debate, discussão e
negociação, do que de consenso, pois as respostas de um debate nem sempre resultam em
concordância, embora possam incluí-la.
Essa outra percepção de diálogo, quando conjugada à relação entre os saberes, as
epistemologias e a discriminação racial – tematizados pelas ações afirmativas –, nos leva para
um cenário ainda mais conflitivo, que é bem descrito pela noção de “zona de contato”,
proposta por Pratt (1991), definida como:

espaços sociais onde culturas díspares se encontram, se chocam, se


entrelaçam uma com a outra, frequentemente em relações extremamente
assimétricas de dominação e subordinação – como o colonialismo, o
escravagismo, ou seus sucedâneos ora praticados em todo o mundo (PRATT,
1999, pg. 27).

Nesse sentido, a própria universidade – em especial, após as medidas afirmativas


– pode ser considerada uma zona de contato, conforme propõe Canagarajah (1997), ao
produzir esses encontros e essas primeiras experiências de convivência entre grupos que se
chocam dada a suas relações desiguais construídas historicamente.
O conceito de Pratt (1991) está baseado na noção de assimetrias: relações de
desigualdade ou hierarquia que provocam dominação e opressão; ou seja, eventos de opressão
para uns e, ao mesmo tempo, de privilégios para outros. Contudo, considerando que os
diálogos são espaços potenciais para choques, tensões e assimetrias, também podem sê-lo
para negociações e encontros entre culturas. Assim, como a própria autora ressalta, nesses
36

espaços de choques também se promove a construção de espaços de proteção e redes de


solidariedade entre os sujeitos.
Embora haja muitas tensões em torno à palavra “cultura”, há uma noção
compartilhada nas ciências sociais que a noção de cultura se refere aos modos de vida e de
pensamento de grupos humanos (CUCHE, 2012). Para muitos, esta palavra é o objeto central
da Antropologia, tanto quanto a língua(gem) seria para a Linguística. Na Antropologia, a
cultura foi abordada como as expressões humanas que se diferenciavam da natureza; também
foi tratada como a dimensão simbólica do humano, ou como a forma de ser que é propriedade
de determinados grupos humanos, acepções que Restrepo (2012) critica por associar-se com
uma visão da cultura similar a uma “ilha”. Para o autor, há outras abordagens que se
distanciam radicalmente dessas, inclusive a proposta de abandonar a noção de cultura como
conceito ou categoria.
A variedade de respostas que emergem de encontros interculturais é objeto dos
estudos descoloniais. Walsh (2009, 2012) faz uma crítica aos usos do conceito de
“interculturalidade”, e caracteriza duas perspectivas paradoxais: por um lado, a
interculturalidade funcional, que estaria associada ao modelo neoliberal, expressa em
políticas que não questionam as regras do jogo nem se propõem a discutir as causas da
assimetria, estaria próxima dos modelos do multiculturalismo europeu. Por outro lado, a
interculturalidade crítica – à qual se vincula a autora – estaria concretizada em ações e
políticas que visam suprimir as assimetrias por métodos políticos não-violentos. Nessa
perspectiva, ela argumenta que o propósito das políticas interculturais seria tornar visíveis as
causas do não-diálogo (usado no sentido de conversa), para torná-lo um diálogo menos
assimétrico.
Contudo, Restrepo (2014) chama a atenção para o fato de que a divisão entre
multiculturalismo e interculturalidade não é tão simples. O autor alerta para as contradições
que povoam a palavra “intercultural” – “inter” + “cultural”; também argumenta que nos cabe,
como pesquisadores, observar o contexto de uso e os sentidos que se atribuem a essa palavra.
Embora o prefixo “inter” literalmente signifique ‘entre’ – o que nos leva na direção de
“relações entre” e “interações” ou “atuar juntos” – as contradições das políticas interculturais
começam no fato de que para interagir se requer multiplicidade, pois é necessário que haja
mais de um elemento para entrar em interação. Porém, muitas vezes a política intercultural se
aplica sob uma lógica monocultural, que congela o Outro em estereótipos fixos de modo a
estigmatizar sua diversidade; conforme argumenta o autor, isso resulta em uma redução do
sentido de “cultural”. Nesse sentido, consideramos, assim como o autor, que a
37

interculturalidade poderia ser discutida, revisando a ideia ingênua de que um encontro


intercultural é uma interação simétrica, para o qual propõe fazê-lo a luz da noção de
dialogismo de Bakhtin, na qual o diálogo implica relações de poder e conflito entre as
diferentes posições sociais dos enunciadores. Dessa forma, é importante retomar um conceito
atravessa a discussão: cultura 30, o qual abordamos como um conjunto de práticas, modos de
fazer e dizer que conformam um horizonte compartilhado, todos enquadrados em um marco
de legado histórico, ou seja, sociocultural. Além disso, como olhamos justamente as relações
de contato, de estar entre, nos afastamos da visão de “ilha” e incorporamos à noção de
relações de poder.
Ainda destacamos que, embora consideremos a crítica de Restrepo (2014),
também nos parece pertinente recuperar o elemento inovador na concepção de
interculturalidade crítica (MAHER, 2007a, 2007b; CANDAU, 2009; WALSH, 2012), que
decorre de uma preocupação teórico-metodológica em identificar e visibilizar as práticas de
grupos racializados e silenciados historicamente de maneira a produzir conhecimentos em
diálogo-debate com vozes até então ausentes. Esse propósito está alinhado aos esforços de
reverter os processos de “violência epistêmica” (CASTRO-GÓMEZ, 2005) e epistemicídio
(SANTOS, 2009), aqueles mecanismos de apagamento do outro que se constituíram a partir
de apropriação, expropriação ou invisibilização dos conhecimentos produzidos e legados por
grupos marginalizados e colonizados. Além disso, essa postura dialoga com a proposta de
sociologia das emergências que propõe Santos (2009) ao reivindicar as vozes do sul,
entendida como uma

metáfora do sofrimento humano sistematicamente causado pelo colonialismo


e pelo capitalismo. É um Sul que também existe no Norte global geográfico,
o chamado Terceiro Mundo interior dos países hegemônicos. Por sua vez, o
Sul global geográfico contém em si mesmo, não só o sofrimento sistemático
provocado pelo colonialismo e pelo capitalismo globais, mas também as
práticas locais de cumplicidade em relação a estes. Tais práticas constituem
o Sul imperial. O Sul da epistemologia do Sul é o Sul anti-imperial
31
(SANTOS, 2009, p. 12).

Nesse sentido, poderíamos esperar que as políticas que fomentam o ingresso de


jovens afros e indígenas – representantes dessas vozes do sul – em universidades públicas

30
Ver mais discussões em Cuche (2002) e Restrepo (2012).
31
Original: “metáfora del sufrimiento humano sistemáticamente causado por el colonialismo y el capitalismo. Es un Sur
que también existe en el Norte global geográfico, el llamado Tercer Mundo interior de los países hegemónicos. A su vez,
el Sur global geográfico contiene en sí mismo, no sólo el sufrimiento sistemático causado por el colonialismo y por el
capitalismo globales, sino también las prácticas locales de complicidad con aquéllos. Tales prácticas constituyen el Sur
imperial. El Sur de la epistemología del Sur es el Sur anti imperial.”
38

colaborariam na reversão de mecanismos epistemicidas. Contudo, esses encontros possuem


uma história de tensões que nos demonstram que é necessário maior trabalho para romper
com as assimetrias desse diálogo, como ilustra o relato de Sierra e Rojas (2009) sobre a
experiência de elaborar uma licenciatura intercultural indígena, vivida pelas autoras, em uma
importante universidade pública colombiana. Com base nessa experiência, as autoras
destacam que é necessário revisar o caráter colonial da universidade para que possamos
transformar seu caráter excludente, pois para isso não é suficiente apenas um discurso
inclusivo.
Essas tensões são tomadas como desafios epistemológicos, por Sierra e Fallon
(2013), quando analisam projetos que buscam entrelaçar comunidades e universidades. Ao
usar a metáfora do tecer, os autores sugerem que concebem esse contato como um exercício
que exige trabalho e articulação. De fato, a análise que promovem da experiência de diálogos
entre suas universidades e comunidades afro-colombianas, indígenas e campesinas apontam
desafios que ainda precisam ser tematizados nessa zona de contato onde se dá o diálogo, entre
eles: romper com uma tradição histórica e colonial de negação, deslegitimação e apropriação
de saberes; dirimir o isolamento das universidades; reconhecer quando essencializamos,
satanizamos ou romantizamos o “Outro”. Os autores também reconhecem que há condições
assimétricas para o diálogo de saberes, que são delineadas por essa tradição histórica colonial,
tradição com a qual necessitamos romper de forma a poder construir sensibilidade para outras
maneiras de pensar o mundo. Muitos desses desafios também se impõem aos jovens
ingressantes nos programas de ações afirmativas, como esboçamos na introdução desta tese.
Esses obstáculos nos levam a entender o diálogo de saberes como um espaço de
embates, assentados em um contexto sócio-histórico que em muitos cenários precisam ser
desvelados. Por isso, utilizamos a noção de violência epistêmica, a partir da qual buscamos
entender o impacto das ações afirmativas nas assimetrias entre as formas de produzir
conhecimento, quando concebemos o diálogo de saberes com seus desafios.

1.3.1. Conversa solitária: o racismo como uma lógica de desumanização do Outro

Nesta subseção, propomos uma articulação entre as reflexões sobre racismo,


desenvolvida em especial nos estudos de sociologia brasileira, e as contribuições do grupo de
39

pesquisadores do Programa Modernidade/Colonialidade32, a quem nomearemos como “grupo


de estudos descoloniais”. Esses pesquisadores criaram uma categoria para analisar e
compreender as persistências do colonialismo nas sociedades modernas até os dias de hoje: a
colonialidade.
Esse conceito, cunhado pelo sociólogo peruano Anibal Quijano, define o
colonialismo como um projeto que se expandiu nos níveis econômicos, simbólicos, sociais e,
em especial, epistêmicos a partir da colonização da América. Essa matriz de dominação
produziu sujeitos considerados de “segunda categoria”, ou sub-humanos, os quais não seriam
apenas colonizados no aspecto laboral (com a escravidão), mas também teriam seus corpos
racializados, generificados33 e sexualizados.
A colonialidade é uma matriz de poder que emergiu com o colonialismo. Walsh
(2012) caracteriza a matriz colonial em quatro eixos: a colonialidade do poder, baseada na
classificação hierárquica por meio da noção de “raça”, a qual justifica a dominação e a
exploração de povos inteiros; a colonialidade do saber, estruturada por duas facetas, a
legitimação do eurocentrismo como única e verdadeira forma de conhecimento, e o
desconhecimento de outras epistemologias; a colonialidade do ser, baseada na negação e na
inferiorização de grupos colonizados e oprimidos, se expressa em estigma, preconceitos,
discriminação e violência; e a colonialidade da natureza, baseada na divisão binária
natureza/sociedade, que resulta em uma visão da natureza como um recurso a explorar.
Essa matriz de poder hierárquica ainda repercute em processos de opressão e
subordinação nas sociedades contemporâneas. A base dessa matriz foi a criação de
marcadores de diferença – a diferença colonial (MIGNOLO, 2003): critérios de marcação
essencializados, que resultavam em dicotomias entre os grupos sociais (e, consequentemente
entre suas práticas e conhecimentos) – e acarretavam uma relação hierarquizante. Alguns
exemplos dessas dicotomias são “colonizador x colonizado”, “branco-mestiço x indígenas e
afros” ou mesmo “cotistas x não-cotistas”34.
Na base dessa matriz de poder, está a noção de raça. Na produção da sociologia
brasileira sobre o racismo, os conceitos de raça, racismo e racialização são vistos como

32
Mais do que um programa, esse coletivo de pesquisadores (em sua maioria de origem latino-americana) se articula em
uma rede interdisciplinar para produzir uma crítica forte sobre a correlação entre a Modernidade e a Colonialidade,
considerando a modernidade como o lado obscuro da colonialidade.
33
Embora, como pontua Quijano, gênero seja uma categoria de dominação anterior ao colonialismo; foi apropriada pela
colonialidade.
34
Durante entrevistas com estudantes cotistas no Brasil, muitos apontaram que a palavra ganhou um tom pejorativo e era
associada apenas aos estudantes negros e indígenas. Logo, no imaginário das comunidades acadêmicas, parece que os
estudantes brancos de classe popular foram dissociados do programa de ações afirmativas pelo signo da cor.
42

humano; e a zona do não-ser39, na qual os sujeitos poderiam ser explorados e dominados por
serem tratados como inferiores ou não-humanos.
Assumimos, portanto, nesta tese, a concepção sociológica da noção de “raça”,
com o fim de utilizá-la como um instrumental que nos permita analisar os impactos do
racismo na produção de conhecimento. Nesse sentido, nossa postura foi a de utilizar esse
conceito como uma ferramenta analítica40 que nos permitisse entender, nas experiências dos
participantes da pesquisa, os eventos em que as relações de racialização acionavam a noção de
raça para gerar subordinação e opressão. Um bom exemplo que ilustra as identidades raciais
como uma construção histórica e contingencial, que se baseia na leitura de traços fenotípicos e
em aspectos culturais, é a diferença na leitura da noção de raça entre o Brasil e a Colômbia.
Enquanto neste país de colonização espanhola a elite criolla e mestiça possui um status de
branco, naquele de colonização portuguesa os mestiços passaram a ser mais associados à
população negra do país. Nesse sentido, como expõe Segato (2005), a raça e a cor são signos
e “seu único valor sociológico radica em sua capacidade de significar. Portanto, o seu sentido
depende de uma atribuição, de uma leitura socialmente compartilhada e de um contexto
histórica e geograficamente delimitado” (p. 03). Assim, as categorias mediadas pela noção de
raça (assim como os sentidos atribuídos a elas) têm seu berço no período colonial e no tráfico
de populações africanas para a América, mas seguiram ampliando seus elementos de
referência ao longo da história.
A perspectiva sociológica acerca de concepções de raça, racismo e racialização
com a qual trabalhamos permite desvelar as conexões entre racismo, assimetrias e
conhecimentos. Além disso, ao considerar a diferença colonial como uma construção que
categorizou e hierarquizou os grupos humanos, também reconhece que houve um processo de
subjugação (e sobrevaloração) de saberes e práticas sociais. Desse modo, um dos mecanismos
dessa lógica de desumanizar os povos racializados é o racismo epistêmico, o qual:

se refere a uma hierarquia de dominação colonial, na qual os conhecimentos


produzidos pelos sujeitos ocidentais (imperiais e oprimidos) dentro da zona

39
O artigo de opinião “Nós, os verdadeiros humanos” (17/02/2014), de Eliane Brum, ao analisar os casos de “justiceiros”
na capital carioca, ilustra com maestria como podemos entender a interação entre as zonas do ser (humanos verdadeiros) e
do não-ser (humanos falsos). Disponível em:
http://brasil.elpais.com/brasil/2014/02/17/opinion/1392640036_999835.html. Acessado em 23.nov.2015.
40
Em termos dos indicadores da categoria de raça, Guimarães (2003), explica que a “raça” é lida nas relações sociais
brasileiras a partir da cor da pele; assim, esse seria um dos principais signos que evoca as categorias raciais. Por isso,
muitos registros censitários incorporaram “raça/cor”, de forma a visibilizar a cor como um marcador da diferença. Como
argumenta o autor, esse elemento caracterizaria o racismo brasileiro como um racismo de marca, baseado mais no
fenótipo; perfil que se contrapõe ao estilo norte-americano, caracterizado como racismo de origem, no qual a origem
familiar é levada em conta no processo de racialização.
43

do ser são consideradas a priori como superiores aos conhecimentos


produzidos pelos sujeitos coloniais não ocidentais na zona do não-ser
(GROSFOGUEL, 2011, p. 102)41.

A hierarquização criada no projeto colonial construiu uma lógica sobre a qual se


legitimava o eurocentrismo como única e verdadeira forma de conhecimento, ao mesmo
tempo em que invisibilizava ou expropriava outras epistemologias, ou seja, outras formas de
conhecimento, a chamada colonialidade do saber. Por isso, a uma política afirmativa que visa
desconstruir as desigualdades existentes, no âmbito do ensino superior, caberia o
questionamento sobre sua real potencialidade em promover a ruptura da colonialidade do
saber nas universidades.
Ao tomar o colonialismo como um projeto, entendemos, como já dito, que o
período colonial não se resumiu à escravidão, mas foi um processo duplo de promoção, por
um lado, da redução física dos povos colonizados por meio da exploração e, por outro, da
redução cultural e simbólica desses povos. Esse processo foi exemplificado por Quijano
(2005), nas seguintes palavras:

são conhecidos os nomes dos mais desenvolvidos e sofisticados deles:


astecas, maias, chimus, aimarás, incas, chibchas, etc. Trezentos anos mais
tarde todos eles reduziam-se a uma única identidade: índios. Esta nova
identidade era racial, colonial e negativa. Assim também sucedeu com os
povos trazidos forçadamente da futura África como escravos: achantes,
iorubás, zulus, congos, bacongos, etc. No lapso de trezentos anos, todos eles
não eram outra coisa além de negros (p. 248).

Essa subjugação promovida pela criação das identidades raciais, como “índio” e
“negro”, serviu para legitimar a dominação, e resultou em um apagamento da história e da
produção cultural desses povos para a humanidade. Como ainda argumenta o autor, durante o
projeto colonial, populações colonizadas foram expropriadas, tiveram reprimidas suas formas
de produzir conhecimento, bem como foram forçadas à conversão religiosa. Em síntese, esse
processo resultou em “uma colonização das perspectivas cognitivas, dos modos de produzir
ou outorgar sentido aos resultados da experiência material ou intersubjetiva, do imaginário, do
universo de relações intersubjetivas do mundo; em suma, da cultura” (QUIJANO, 2005, p.
237).
Nosso foco nas estratégias criadas pelos universitários vai ao encontro de ações
que visam subverter a matriz de poder colonial, ou seja, revelar as estratégias de resistência e

41
Original: “El racismo epistémico se refiere a una jerarquía de dominación colonial donde los conocimientos producidos
por los sujetos occidentales (imperiales y oprimidos) dentro de la zona del ser son considerados a priori como superiores a
los conocimientos producidos por los sujetos coloniales no-occidentales en la zona del no-ser”.
44

reexistência frente a esses mecanismos de subjugação, como os trabalhos de Maher (1998,


2007a, 2007b), Walsh (2009, 2012), Souza (2011) e Zavala (2010). Esse exercício de buscar
outras lógicas para o debate sobre as assimetrias pode ser entendido como parte das
epistemologias do sul, definida por Santos (2009) como “a busca por conhecimentos e
critérios de validez de conhecimento que outorguem visibilidade e credibilidade às práticas
cognitivas das classes, dos povos e dos grupos sociais que foram historicamente vitimados,
explorados e oprimidos pelo colonialismo e capitalismo globais.” (p. 12). Em outras palavras,
há um propósito de expandir as vozes – ou os pontos de vista – de sujeitos que historicamente
estiveram silenciados devido a desigualdades sociais. Isso está em diálogo com a ideia de
compreender o sofrimento como um criador de conhecimento42.

1.3.1.1. Alguns exemplos dessa forma de desumanização

A perspectiva discursiva contribui significativamente para revelar esses valores


(discriminatórios) naturalizados e reproduzidos que afetam o cotidiano de milhares de sujeitos
racializados. Para ilustrar melhor essa conexão, trazemos alguns dados de discursos
analisados por pesquisadores de ciências sociais e humanas que se propõem a delinear o
modus operandi das relações raciais no Brasil e na Colômbia.
No Brasil, o trabalho de Silva e Rosemberg (2008) examina uma série de estudos
que descrevem a dinâmica dos discursos. Em suas análises, os autores contemplam os
discursos de literatura, literatura infanto-juvenil, cinema, televisão, imprensa e materiais
didáticos. Para contextualizar esses discursos, os autores pontuam três elementos históricos
que marcam as relações raciais brasileiras: primeiro, o país nunca adotou uma legislação de
segregação racial após a abolição da escravidão, o que o diferenciaria de países como Estados
Unidos e África do Sul; segundo, o país não desenvolveu uma política específica de
integração dos negros recém-libertos (acrescentaríamos os povos indígenas) à sociedade
envolvente por parte do Estado, o que teria acentuado as bases do histórico processo de
desigualdades sociais entre brancos e negros e indígenas que perdura até os dias atuais e,
terceiro, o país incentivou a migração da população europeia branca como parte de uma

42
Uma discussão que enriquece essa ideia é realizada pelos autores Glăveanu, Sierra e Tanggaard (2015), no artigo
Widening our understanding of creative pedagogy: a North-South dialogue (Expandindo nossa compreensão da
pedagogia criativa: um diálogo Norte-Sul, tradução livre), no qual revisam o conceito de criatividade com contribuições
das perspectivas sociocultural e descolonial. Em sua proposta, defendem compreender a criatividade como um fenômeno
coletivo que é potencializado em cenários de diversidade e diferença.
45

política de Estado de branqueamento da população (no período entre os séculos XIX e XX),
que estava em consonância com as políticas racistas eugenistas desenvolvidas na Europa do
século XIX. Segundo os autores, essa história foi atualizada pelo racismo estrutural43 e
simbólico que seguiu o período escravista, o que configurou um padrão muito peculiar de
relações raciais, sintetizado pelos autores com as seguintes características:

a) um sofisticado sistema de classificação racial baseado na aparência


resultante da apreensão simultânea de traços físicos (cor da pele, traços da
face, cabelos), condição socioeconômica e região de residência; b) um
vocabulário racial comportando multiplicidade de termos; c) uma grande
população preta e mestiça (denominada “parda”) – 46%44 da população –, o
que faz com que o Brasil seja considerado o segundo país com a maior
população negra do mundo (composta por pretos e pardos); d) a convivência
de padrões de relações raciais simultaneamente verticais, produzindo intensa
desigualdade de oportunidades e horizontais em que não se observam
hostilidades abertas ou ódio racial, o que pode acarretar convivência
amistosa em determinados espaços sociais sob determinadas circunstâncias
(SILVA; ROSEMBERG, 2008, p. 77).

Dessa forma, os autores caracterizam o modus operandi do racismo brasileiro


como um “racismo de marca”, já que a identificação das categorias raciais está centrada no
fenótipo (como a cor da pele) – a marca. A nomeação também aparece como um elemento de
expressão do racismo; no caso brasileiro, há um vasto vocabulário para nomear as categorias
de pertencimento étnico, indicando sua filiação ou distanciamento. Na década de 1990, a
organização Movimento Negro Unificado realizou uma série de campanhas45 para
ressignificar a palavra “negro” e positivá-la. Entre os slogans estavam “Preto é cor, negro é
raça!” e “Negro é lindo”, como formas de subverter os sentidos negativos que foram
atribuídos à palavra “negro” desde o período colonial.
A grande presença de uma população mestiça, aliada à convivência com padrões
de relações horizontais entre brancos e não-brancos, legitima em muitos casos as
considerações de que temos um “racismo cordial” ou, inclusive, de que “não temos racismo”
no Brasil. Contudo, é importante observar que esse intenso contato (incluindo relações
familiares com casamentos inter-raciais) não eliminou a verticalidade das relações étnico-

43
Esse conceito compreende que a raça é um elemento-chave na produção das desigualdades em uma sociedade, de
modo que se expressa em toda sua estrutura. Nesse sentido, propõe analisar o impacto do racismo nas desigualdades em
suas múltiplas dimensões (mercado de trabalho, saúde, educação, violência, entre outras).
44
Percentual que aumentou em quase 5 pontos no censo de 2010.
45
Pela adoção que a palavra “negro” ganhou em espaços de luta antirracista no país, podemos dizer que houve um
impacto dessas campanhas. Mas atualmente, cerca de duas décadas depois das campanhas, é importante destacar que se
seguiu utilizando a palavra “preto” de modo afirmativo, como em muitas organizações de mulheres negras, por exemplo
o texto “Nós, mulheres pretas, exigimos respeito”. Disponível em: http://of.org.br/noticias-analises/nos-mulheres-pretas-
exigimos-respeito/. Acessado em 23.nov.2015.
46

raciais, expressa em oportunidades desiguais de acesso aos bens culturais e econômicos para
grupos estigmatizados pela noção de raça. Além disso, quando há a possibilidade de políticas
públicas que promovam a mobilidade social de populações negras, indígenas e de camadas
pobres, emergem discursos de ódio contra as políticas, casos que parecem ilustrar como a
“harmonia racial” se desfaz quando os atores subalternizados querem sair dos lugares
“destinados” a eles no imaginário racista da sociedade brasileira. Em notícias ou textos de
blogs nos meios de comunicação, podemos ver como os argumentos da “preguiça” ou da
“falta de capacidade” são acionados para deslegitimar as políticas para grupos
vulnerabiblizados, ou também, mais recentemente, para ser desconstruído. Como exemplo de
texto que se contrapõe a essa visão negativa, há o artigo Pagamento do “Bolsa Família” não
deixa pessoas preguiçosas46.
O impacto da variável raça/cor (positiva ou negativamente) nas trajetórias
escolares na educação brasileira tem sido objeto de estudo. Na década de 1980, Hasenbalg e
Silva (1990) revelam como os números são bastante onerosos para a população preta e parda,
indicando que a variável racial interfere no acesso e na permanência dos estudantes na escola:
segundo seus dados, a população negra ingressava mais tarde na escola, repetia mais vezes e
evadia mais cedo, em relação à população branca. Na década seguinte, Henriques (2002) faz
uma pesquisa similar, relacionando as variáveis de gênero e raça/cor. Seu estudo corrobora os
resultados de Hasenbalg e Silva (1990), explicitando como o fato de ser mulher ou negro
restringe muito as oportunidades de uma trajetória escolar exitosa, o que resulta em uma
desigualdade racial e de gênero no percurso escolar na educação básica. Em relação à
educação superior, Silva e Rosemberg (2008) apontam que, apesar de haver uma desvantagem
constante em todos os níveis da educação para as populações preta e parda, essas
desvantagens são particularmente acentuadas nesse nível de ensino.
No âmbito do ensino superior, Queiroz (2001) investiga a participação de
universitários em uma universidade federal baiana para compreender como as variáveis de
gênero e cor afetam a seleção e o desempenho em cursos de prestígio da instituição. Sua
hipótese é de que a escolha de carreiras prestigiosas estaria relacionada com o fato de que
essas carreiras poderiam gerar uma maior mobilidade social para os grupos sociais
marginalizados. Com base nos dados, a autora afirma, em primeiro lugar, que a desigualdade
se expressa pela variável de gênero, sendo mais severa sobre as mulheres “pretas”; mas é uma
inequidade maior no exame de ingresso. Conforme os dados de sua pesquisa,
46
Disponível em: http://noticias.uol.com.br/opiniao/coluna/2015/02/20/pagamento-do-bolsa-familia-nao-deixa-pessoas-
preguicosas.htm Acessado em 10.ago.2015.
47

as mulheres têm desempenho inferior ao masculino em situação de


competição, como a do vestibular, mas, passado esse momento, elas
apresentam um rendimento superior ao masculino, em quase todas as áreas.
Esse desempenho também reflete a escolarização realizada em escolas
privadas por uma parcela maior de mulheres (QUEIROZ, 2001, p. 228).

Em segundo lugar, a autora revela que a cor possui um impacto independente da


classe social, assim como afeta o desempenho dos estudantes: os mais claros (brancos e
mestiços) possuem melhor desempenho, nos cursos de prestígio, indicando que ao “gradiente
de cor corresponde uma gradação no desempenho do estudante, evidenciando que o melhor
desempenho cabe aos brancos e aos de mais elevado status” (QUEIROZ, 2001, p. 224).
Esses estudos, além de revelar inequidades no cenário educativo, abrem uma série
de perguntas que requerem pesquisas de caráter qualitativo. Nessa direção, está a pesquisa de
Cavalleiro (2005) que, a partir de uma abordagem etnográfica, traça algumas possíveis
respostas para entender como se constroem, no cotidiano escolar, as diferenças que se
expressam nas noções de raça/cor. Cavalleiro (idem) demonstra com a descrição de interações
em sala de aula como há uma reiteração de eventos discriminatórios, os quais

em especial, no cotidiano escolar acarretam aos indivíduos negros: auto-


rejeição, desenvolvimento de baixa auto-estima com ausência de
reconhecimento de capacidade pessoal; rejeição ao seu outro igual
racialmente; timidez, pouca ou nenhuma participação em sala de aula;
ausência de reconhecimento positivo de seu pertencimento racial;
dificuldades no processo de aprendizagem; recusa em ir à escola e,
conseqüentemente, evasão escolar. Para o aluno branco, ao contrário
acarretam: a cristalização de um sentimento irreal de superioridade,
proporcionando a criação de um círculo vicioso que reforça a discriminação
racial no cotidiano escolar, bem como em outros espaços da esfera pública
(CAVALLEIRO, 2005, p. 12).

Como destaca a autora, a repetição desse tipo de interação acarreta consequências


a longo prazo, as quais explicam em grande medida os dados desiguais da educação básica e
superior, conforme mostramos com os trabalhos de Hasenbalg e Silva (1990), Queiroz (2001)
e Henriques (2002). Como observamos, há uma presença naturalizada das noções de raça/cor
no espaço educativo que prejudica os sujeitos estigmatizados por imaginários racializados.
Na Colômbia, a palavra racismo está mais associada à população indígena. As
ciências sociais tornaram as problemáticas da população indígena como foco de suas
pesquisas de longa data, quando comparamos aos estudos recentes sobre a população afro-
colombiana. Estes conformam um recente campo de pesquisa com um pequeno conjunto de
48

trabalhos47, muito centrados ainda nas experiências da população negra que se localiza no
litoral pacífico.
Ao caracterizar a dinâmica do racismo colombiano, Soler e Pardo (2008) analisam
os discursos racistas que circulam nas esferas escolar e jornalística para mostrar as estratégias
discursivas utilizadas para manter os estereótipos em relação às populações racializadas.
Utilizam materiais didáticos de ciências sociais do período entre 1996 e 2006, considerando
cinco anos antes e cinco anos depois da Constituição Pública de 1991, para observar se
haveria mudanças na representação dos grupos vistos como minorias étnicas após a Carta
Magna. Como elemento histórico, destacam que há uma valorização da “brancura” ao longo
do período colonial, vista nos frequentes “casos judiciais decorrentes da difamação por causa
da herança racial” (p. 162). Além disso, pontuam o caráter “andinocêntrico” da política, ou
seja, muitos dirigentes políticos do país estabelecem as políticas públicas a partir dos
parâmetros da capital nacional, o Distrito Federal, que está localizado na região andina.
Assim, os imaginários raciais, que orientam muito a política, se mostram correlacionados ao
território, os quais vinculam à região dos litorais pacífico e caribenho uma presença negra, à
região amazônica uma maior presença indígena e à região dos Andes uma maior presença
branco-mestiça.
Os dados discutidos pelas autoras corroboram a importância de compreender a
visibilidade que os meios de comunicação conferem às populações afrodescendentes e
indígenas, pois muitas vezes a visibilidade a esses grupos apenas reafirma as assimetrias e
estereótipos existentes. As autoras mostram como, por um lado, nos discursos de materiais
didáticos, há uma ocultação dos atores, assim como de suas práticas, nas narrativas que são
ensinadas sobre o país. Outra estratégia é apresentar fatos inconclusos ou com informações
distorcidas quando esses grupos são focos da narrativa. Por outro lado, nos discursos da
imprensa, Soler e Pardo (2008) mostram como a visibilidade que é dada a esses grupos reitera
estereótipos negativos, pois quando eles passam a ser tema de notícias e reportagens são
representados como um problema, com imagens de um coletivo indiferenciado, um outro que
não possui semelhanças com o restante da sociedade ou um coletivo que sempre está em
conflito com o Estado. Essa dinâmica é sintetizada pelas autoras com a seguinte consideração
sobre o racismo colombiano:

o panorama do racismo na Colômbia mostra um país impossibilitado de


incluir e considerar o outro como igual-diferente. Afro-colombianos e
indígenas, no entanto, podem ser equiparados. Os colombianos continuam

47
Como indicam os trabalhos de Wade (1997), Escobar (1999), Restrepo (2002) e Rivas (2014).
49

aceitando a dicotomia mestiço/indígena, apregoada por mais de um século


pelas elites, sem deixar nenhuma possibilidade de inclusão dos afro-
colombianos. (...) O governo, a academia e os colombianos em geral não
conseguem se identificar com eles [afro-colombianos] nem com suas
demandas de igualdade de trato. Os negros na Colômbia padecem de um
paradoxo: seus direitos especiais não são reconhecidos, como acontece com
os indígenas, por não serem considerados diferentes; no entanto, também
não são vistos como iguais, com os mesmos direitos dos mestiços ou brancos
(SOLER; PARDO, 2008, p. 197).

De suas considerações, salientamos três elementos relevantes para esta tese. O


primeiro é o fato de que há uma diferença nas categorias raciais entre os dois países: na
Colômbia há uma aproximação entre as categorias mestiço e branco, já que os mestiços
gozam de privilégios como a população branca local e não são considerados como “o outro”;
enquanto no Brasil, a população mestiça (sob a categoria ‘pardo’) está muito mais próxima da
população ‘preta’, vivenciando em muitos casos cenários de discriminação e desigualdades
similares. O segundo ponto é como a dicotomia branco/mestiço versus afro-
colombianos/indígenas continua implicando uma assimetria, na qual o branco-mestiço seria
visto como o desenvolvimento, o lado positivo, e a população indígena representaria o atraso;
nessa oposição binária parece que a população afro-colombiana ficaria em um não lugar, ao
não ser reconhecida nem como diferente (como os indígenas) nem como igual (aos brancos-
mestiços). O terceiro elemento é o fato de a população negra ainda não possuir legitimidade
em relação a suas demandas, o que resulta em pouca solidariedade da sociedade com suas
agendas políticas.
Para ilustrar, citamos um debate recente na mídia colombiana sobre a proposição
de uma senadora que reivindicou separar um dos estados do país com o fim de criar “um
estado para os indígenas e outro para os mestiços”48; para a senadora era necessário “decidir
se partimos o estado [do Cauca49] em dois. Um [Cauca] indígena, para que eles façam suas
greves, suas manifestações e suas invasões, e um [Cauca] com vocação de desenvolvimento
no qual possamos ter estradas, se promova o investimento e onde haja empregos dignos para
os caucanos”. A senadora, em sua proposta, refere-se aos “os caucanos” como os brancos e
mestiços do estado do Cauca; já a população negra teria que decidir em qual dos dois
territórios viveria. Além disso, seu discurso reflete os estereótipos, apontados por Soler e

48
Notícia disponível em: http://www.elespectador.com/noticias/nacional/paloma-valencia-propone-dividir-el-
departamento-del-cau-articulo-549804. Trecho original: “decidir si partimos el departamento en dos. Uno indígena, para
que ellos haga sus paros, sus manifestaciones y sus invasiones, y uno con vocación de desarrollo donde podamos tener
vías, se promueva la inversión y donde haya empleos dignos para los caucanos”.
49
Cauca é um dos 32 estados da Colômbia, e caucano é seu gentílico.
50

Pardo (2008), ao tratar os povos indígenas do Cauca como um coletivo que está em conflito
com o Estado por querer impedir o progresso da região, logo, que provoca problemas.
Esses imaginários afetam as experiências de vidas de milhares de colombianos.
Os trabalhos de García (2012) e Munévar e Mena (2013) analisam depoimentos de pessoas
que enfrentam o racismo em seu cotidiano. García (2012) investigou as experiências de
pessoas afro-colombianas que foram desterradas pelo conflito armado e viviam, no momento
da pesquisa, em assentamentos de invasão e nos bairros ou condomínios de habitação urbana.
O atual conflito armado colombiano iniciou na década de 1960. O grupo
guerrilheiro colombiano mais conhecido são as Forças Armadas Revolucionárias da
Colômbia (FARC), mas também há outros como o Exército de Libertação Nacional (ELN) e
o Movimento 19 de Abril ou M-19 – uma guerrilha urbana que negociou com o governo e
entregou suas armas no ano de 1989. As FARC estão em negociação (os diálogos de paz) com
o governo colombiano, na cidade de La Habana, com mediação de Cuba, desde o ano 2010.
Outro ator armado desse conflito são os paramilitares: grupos de extrema direita que, em
grande parte financiados por latifundiários e em aliança com militares, realizaram uma série
de chacinas, usando como justificativa o propósito de acabar com a guerrilha. Desse modo, a
população civil, com mais intensidade na área rural, ficou em meio a uma guerra entre os
atores armados – guerrilha, exército e paramilitares –, podendo estes inclusive se combinar
(houve cumplicidade entre exército e paramilitares). Esses atores violaram os direitos
humanitários das populações, em diversas partes do território colombiano, com o uso extremo
da força e com a motivação de diversos deslocamentos forçados50.
A partir da noção de reexistências, o autor se propõe a entender as práticas criadas
pela população desterrada para sobreviver após os eventos de violência sofridos. Uma das
narrativas mais impactantes é a de uma mulher afro-colombiana que trabalha em serviço
doméstico, devido ao grau de violência simbólica vivenciada por ela:

Já tive que chegar a uma casa que a senhora era racista e esse dia que
eu cheguei tive um dia de trabalho lá pelo Obelisco, quando o
cachorro, ela tinha um cachorro peludo, preto, eu vi que o cachorro
comia em um dos pratos, e quando vejo que ela pegou e lavou o

50
O deslocamento forçado se constitui na expulsão realizada sistematicamente por parte dos atores armados contra a
população civil. Ao serem expulsas violentamente de seus territórios, as populações rurais (especialmente) foram
obrigadas a deslocar-se para regiões distantes de seus lugares de origem, em sua grande maioria indo para zonas urbanas
próximas ou grandes capitais, como Bogotá, Medellín e Cali. Para uma melhor compreensão do impacto desse desterro, a
Colômbia é o país que conta com a segunda maior população deslocada forçadamente no mundo, ficando atrás apenas do
Sudão. Ver mais informações na página da agência da ONU para refugiados (ACNUR): http://www.acnur.org/t3/donde-
trabaja/america/colombia/.
51

prato e me disse que fosse tomar o café da manhã e eu vendo que


era o prato do cachorro, o que você acha, então me disse veja lá o
café da manhã e eu disse senhora eu vou embora, e me vesti e vim e
eu não, que me respeitem, eu não tenho por que comer [no prato]
da comida que come o cachorro, me respeitem e aí mesmo peguei
e vim embora [...]. Também peguei outro trabalho que a senhora era
racista e o senhor não, então a menina dizia, “ai, eu não quero a
comida feita por essa moreninha, não, porque a comida fica negra”,
olha que há crianças assim que dizem que a comida está negra
porque a fez a negra, sim, aqui há muito racismo51 (Mulher adulta
afro-colombiana habitante do assentamento Altos de La Torre,
Entrevista 25 de junho de 2009) (GARCÍA, 2012, p. 102)

Nesse depoimento, a senhora narra os eventos de desprezo que passou em


contextos de trabalho, nos quais se revelam muitos imaginários sobre a população afro-
colombiana; imaginários que incidem no nível político, como vimos na ideia de uma divisão
geográfica proposta por uma senadora. Com base nesses dados, García (2012) chama a
atenção para o abandono do Estado, visto na exclusão sociorracial do território colombiano,
bem como na invisibilidade frente a muitas de suas demandas específicas. Esse silêncio
estatal resultaria em múltiplas formas de violência frente a esta população, conforme registra
a Associação de Afro-Colombianos Deslocados Forçadamente52 (AFRODES):

(i) atitudes e comportamentos racistas por parte das instituições e da


cidadania em geral, (ii) baixos níveis educativos que são produto dos
processos de exclusão anteriores ao deslocamento forçado, que nos colocam
em situação de desvantagem para articular-nos ao mercado de trabalho na
cidade, (iii) os saberes e as competências, de grande riqueza na vida anterior,
ante a impossibilidade de recontextualizá-los, levam à realização de
trabalhos mal remunerados nos quais somos vítimas de expressões racistas, e
(iv) a alta dependência de ajuda externa, que ao não facilitar a criação de
alternativas autônomas e sustentáveis para a geração de ingressos, gera
condições que inclusive resultam em práticas de mendicância53 (AFRODES,
2008, p. 27 apud GARCÍA, 2012, p. 64).

51
Original: “A mí me tocó llegar a una casa que la señora era racista y ese día que yo llegué me tocó un día de trabajo por
allá por el Obelisco, cuando el perro, ella tenía un perro peludo, negro, yo vi que el perro comía en uno de los platos, y
cuando veo que lo cogió y lavó el plato y me dijo que fuera a desayunar y yo viendo que era el plato del perro, cómo le
parece, entonces me dijo vea allá el desayuno y yo le dije señora yo me voy a ir, y me vestí y me vine y yo no, respéteme,
yo no tengo porqué comer en la comida que come el perro, respéteme y ahí mismo cogí y me vine […]. También me
cogió otro trabajo que la señora era racista y el señor no, entonces la niña decía, “ay yo no quiero la comida que haga esa
morenita, no que la comida se pone negra”, mire que hay niños así que dicen la comida está negra porque la hizo la negra,
sí aquí hay mucho racismo”.
52
Afrodes ilustra o grande número de organizações que lutam pelos direitos da população afro-colombiana deslocada
forçadamente pelo conflito armado.
53
Original: “(i) actitudes y comportamientos racistas por parte de las instituciones y la ciudadanía en general, (ii) bajos
niveles educativos que son producto de los procesos de exclusión anteriores al desplazamiento, que nos colocan en
52

Esse relatório sintetiza a condição de uma parte expressiva da população afro-


colombiana: entre os mais afetados pelo conflito armado. Infelizmente, os elementos
apontados revelam um conjunto de fatores que agudizam as desvantagens desses grupos, entre
eles as agressões racistas vividas cotidianamente, a falta de escolaridade e formação
profissional, a inserção no mercado de trabalho a partir de profissões mal remuneradas e um
alto grau de vulnerabilidade social.
Ao analisar histórias de vida de mulheres afro-colombianas com deficiências
físicas, Munévar e Mena (2013) trazem uma proposta inovadora ao olhar as experiências
racializadas de uma perspectiva interseccional. Conforme explicam as autoras, “a
interseccionalidade emerge como uma ferramenta analítica necessária no estudo e na
compreensão das maneiras em que o gênero se cruza com outras identidades e como estes
cruzamentos constituem experiências únicas de opressão e de privilégio”54 (MUNÉVAR;
MENA, 2013, p. 122-123). A partir desse conceito, as autoras investigam como se atualiza,
nessas histórias de vida, o conjunto de condições que, ao coexistir na estrutura social, produz
múltiplas relações de dominação. Dessa forma, o desafio é analisar a constituição mútua
desses elementos e como se relacionam na existência dos sujeitos. Evocando as palavras de
bell hooks55, as autoras chamam a atenção para ir além de um “enegrescimento do
feminismo”, mas sim dar conta de explicar a sexualização da raça e a racialização do sexo de
modo a entender as dominações e opressões, assim como os privilégios, que essas relações de
poder produzem. De sua análise, destacamos o relato de duas mulheres que narram suas
experiências na capital colombiana:

“Para mim, a situação é mais difícil porque sou mãe solteira, sofri
deslocamento forçado e por isso não tenho nem trabalho nem
dinheiro, além disso, é mais difícil que me deem trabalho porque não
terminei os estudos devido às gravidezes e à violência e tudo isso

situación de desventaja para articularnos laboralmente a la ciudad, (iii) los saberes y competencias, de gran riqueza en la
vida anterior, ante la imposibilidad de recontextualizarlos, empujan al desempeño de oficios mal remunerados en los que
somos víctimas de expresiones racistas, y (iv) la alta dependencia de ayuda externa, que al no facilitar la creación de
alternativas autónomas y sostenibles para la generación de ingresos, genera condiciones que incluso empujan hacia las
prácticas de mendicidad”.
54
Original: “la interseccionalidad emerge como una herramienta analítica necesaria en el estudio y la comprensión de las
maneras en que el género se cruza con otras identidades y cómo estos cruces constituyen experiencias únicas de opresión
y de privilegio.”
55
Este é o pseudônimo da intelectual Gloria Jean Watkins. A grafia de bell hooks em minúscula – inspirado no nome de
sua avó – é uma opção política da autora, com a qual quer destacar a qualidade de suas obras por suas ideias, mais do
que por seu nome ou títulos. O trabalho da autora ilustra as propostas de interseccionalidade, ao articular raça, sexo e
classe para entender as relações de dominação e opressão das sociedades capitalistas.
53

[...], além disso, aqui as pessoas são muito desconfiadas em relação


às pessoas negras.” 56 (Palavras de uma mulher oriunda do estado de
Chocó) (MUNÉVAR; MENA, 2013, p. 116)

“Eu já sou uma pessoa mais velha e estou doente, por isso as
pessoas e os médicos pensam que eu não sirvo, mas pergunte a meu
filho o que seria da vida da família dele sem minha ajuda, [...] porque
desde que estamos aqui em Bogotá temos tido muitos problemas, as
pessoas são muito racistas e a ele [seu filho] quase não o contratam,
a que consegue trabalho mais fácil é minha nora porque é mais
clarinha, [...] mas isso dá a ela muita raiva porque não pode dizer na
casa onde trabalha que nós somos negros porque seguramente a põem
pra rua ou começam a desconfiar, essa gente rica é assim”57 (Palavras
de uma mulher oriunda do estado de Magdalena, com 76 anos)
(MUNÉVAR; MENA, 2013, p. 118)

Com esses depoimentos, Munévar e Mena (2013) argumentam a favor da


importância de se compreender os impactos do racismo na vida das pessoas em sua conexão
com outros elementos que gerem opressão. No cenário de política pública, ainda é necessário
justificar que a noção de raça potencializa o cerceamento de oportunidades quando
entrelaçada a dimensões como gênero, idade, relações afetivas, deslocamento forçado,
deficiência física, entre outros.
As reflexões de García (2012) e Munévar e Mena (2013) nos dão pistas sobre o
modo em que atua a lógica do racismo no contexto colombiano, como uma ideologia que
permite práticas desumanizadoras frente a um “Outro” visto como diferente. Ao mesmo
tempo, esses trabalhos influenciaram esta tese de modo positivo, ao fortalecer o interesse em
reconhecer os sujeitos em suas diferentes identidades, tais como étnico-raciais, de gênero, de
idade e regionais, a partir de suas experiências.
A ideologia do racismo se expressa na desvalorização dos sujeitos que estão na
polaridade negativa da dicotomia imposta – branco (positivo) /não-branco (negativo) – o que
acarreta uma negação de suas formas de conhecer e habitar o mundo. Essa consequência é um
aspecto relevante para compreender a relação entre trajetórias dos universitários e o racismo
na universidade; para o qual contribui a noção de colonialidade do saber.

56
Original: “Para mí la situación es más difícil porque soy madre soltera, soy desplazada y por eso no tengo ni trabajo ni
plata, además es más difícil que me den trabajo porque no terminé los estudios por los embarazos y la violencia y todo eso
[…], además acá las personas son muy prevenidas con las personas negras.”
57
Original: “Yo ya soy una persona mayor y estoy enferma, por eso las personas y los médicos piensan que ya no
sirvo, pero pregúntele a mi hijo qué sería de la vida de la familia de él sin mi ayuda, […] porque desde que estamos aquí
en Bogotá hemos pasado mucho trabajo, la gente es muy racista y a él casi no lo contratan, la que consigue trabajo
más fácil es mi nuera porque ella es más clarita, […] pero a ella le da mucha rabia porque no puede decir en esa casa
en que trabaja que nosotros somos negros porque seguro la botan o empiezan a desconfiar, esa gente rica es así”.
54

Para finalizar, embora tenhamos falado até este ponto sobre o racismo de um
modo mais geral que afeta a populações negras e indígenas, é importante destacar que há
particularidades nas políticas interculturais para populações indígenas, assim como na
dinâmica da discriminação racial. No caso das populações indígenas de ambos os países, há
uma política de educação diferenciada que orienta a educação básica, no Ensino Fundamental
– com escolas e currículo diferenciado, a qual repercutiu nas conquistas dos movimentos
indígenas. Como destaca o intelectual indígena Luciano (2006)

a grande importância inicial da proposta de educação escolar indígena


diferenciada, com suas educação intercultural e educação bilíngue ou
plurilíngüe, foi ter trazido idéias e propostas concretas que alimentaram o
ânimo, a motivação e a esperança dos professores e das lideranças indígenas
emergentes. As idéias serviram como valioso argumento para marcar
posição política e uma razão necessária para capitanear o apoio dos povos e
das comunidades indígenas em favor das lutas mais amplas do que aquelas
que as emergentes organizações indígenas estavam desenhando e
implementando, como a defesa da terra e a (re)valorização cultural (p. 156).

O autor explica como o direito à educação básica resultou em um ganho


simbólico. Ainda que haja desafios a superar, como o fato de que muitos jovens indígenas
precisam deslocar-se de suas comunidades para cursar o Ensino Médio em escolas muitas
vezes distantes de seus municípios, o autor defende que “a proposta de educação escolar
diferenciada foi também fundamental para o surgimento de um novo segmento estratégico do
movimento indígena: o dos professores indígenas”58 (idem, p. 157). E esse novo segmento
passou a reivindicar novas parcerias com as universidades, pois o aumento de escolas
indígenas começou a requerer mais professores indígenas com formação universitária.
Como políticas que fortaleceram a educação escolar indígena59, Barnes (2010), Lima
e Barroso-Hoffman (2004) e Lima e Barroso (2013) destacam o direito à educação diferenciada
garantida na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996, o Programa de Apoio à Formação Superior
e Licenciaturas Interculturais Indígenas – PROLIND, o Plano de Ação da Conferência de Durban
e o Programa Trilhas de Conhecimentos; todas impulsadas por meio de alianças entre
organizações indígenas, indigenistas e o Estado. Além disso, para os autores, foi justamente o
avanço da política de educação escolar indígena que produziu, consequentemente, um aumento na
demanda pelo acesso à educação superior. Consideramos, contudo, que também a ampliação de
outros serviços públicos e a interação crescente com o mundo não-indígena fomentou essa
58
Como resultado de lutas indígenas que se viram refletidas na legislação, o número de professores indígenas aumentou
muito. Segundo o Censo Escolar Indígena (de 2005), dos cerca de 9.100 professores de escolas indígenas na época, 8.800
eram professores indígenas que atuavam em suas comunidades; o que representava 88% do total.
59
Sobre a diferença entre educação indígena e educação escolar indígena ver Luciano (2006).
55

demanda. O resultado se expressou não apenas em programas de reserva de vagas, mas também
na criação de licenciaturas interculturais, como o 3º Grau Indígena, na Universidade Estadual do
Mato Grosso (UNEMAT) (a primeira experiência, em 2001), o Curso de Licenciatura da
Universidade Federal de Roraima (UFRR) e a primeira política de acesso diferenciado para povos
indígenas em cursos regulares, o vestibular unificado das universidades estaduais do Paraná.
Conforme registros de um evento sobre políticas de ação afirmativa, lideranças
indígenas destacavam – na Mesa “Ação afirmativa e direitos culturais diferenciados: as demandas
indígenas pelo ensino superior” – quatro aspectos a serem considerados nessa discussão: i. a falta
de consenso entre os indígenas em defender a ideia de uma universidade indígena e/ou a política
de reserva de vagas, ii. a dificuldade em pôr em prática a pluralidade tão marcada na legislação
diferenciada, iii. a dificuldade de, ainda com as ações afirmativas, pensar em como trabalhar a
diversidade no espaço acadêmico, iv. a necessidade de cuidar para a universidade não se tornar
um espaço de confinamento, v. e a constante perda dos direitos garantidos na Constituição Federal
de 1988. A partir desses aspectos, a principal ponderação de Gersem Luciano (Baniwá) foi que “o
diálogo pressupõe construir junto; assim, qualquer política de educação, inclusive em nível
superior, só vai ter êxito para as comunidades indígenas se tiver a efetiva participação dos seus
membros, da concepção ao planejamento e à execução, além de todas as condições necessárias
para isso” (LIMA; BARROSO-HOFFMANN, 2004, p. 60).
Os cinco aspectos apontados por lideranças indígenas expressam um receio legítimo.
Conforme estudo de Niederauer (2013), sobre como os meios de comunicação da UnB vêm
representando os universitários indígenas após a implementação de políticas afirmativas, não há
ações que abordem a alteração de imaginários estereotipados sobre as populações indígenas. Seu
interesse foi entender que processos de inclusão e exclusão se dariam em um cenário institucional
que se diz mais favorável à diversidade. Em seus resultados, a autora afirma que no discurso do
portal UnB opera um apagamento tanto do protagonismo dos atores indígenas quando de suas
pautas políticas, criando uma representação de sujeitos que apenas recebem ou pedem, mas que
poucas vezes fazem e atuam. Por outro lado, quando há uma visibilidade para esses atores, ela é
eivada de estereótipos e identidades congeladas, conforme a autora explica em sua conclusão, já
que “em boa parte das fotografias que compõem os textos da UnB aqui analisados, por exemplo,
os participantes indígenas ocupam o primeiro plano da representação visual, bastante visíveis,
portanto. A questão central, então, passou a ser “quando os textos do portal UnB conferem
visibilidade aos universitários indígenas”?” (p. 219), que tipo de imaginário promove tal
visibilidade. Esse fomento de uma imagem negativa de populações afrodescendentes e indígenas
por parte dos meios de comunicação também é criticada, desde a Análise Crítica do Discurso, por
Soler e Pardo (2008).
56

Ao discutir a educação superior indígena, Luciano (2006) conclui que “o grande


barato do sistema de cotas é o valor simbólico que a proposta traz quanto ao reconhecimento por
parte do Estado brasileiro da sua dívida histórica para com os povos indígenas e com os negros”
(p. 165). Um reconhecimento que o autor considera imprescindível para qualquer projeto de
construção de uma nação brasileira que seja pluricultural e pluriétnica. Mas também é crucial
retomar um questionamento que o autor faz em relação à política de cotas: as ações afirmativas
“estão voltadas para os indivíduos ou para os povos historicamente excluídos e oprimidos?”. Esse
segue sendo um ponto nevrálgico para a política de reserva de vagas, já que poderia perder seu
teor transformador ao cair em uma lógica individualista.
Dessa forma, para o escopo desta tese, salientamos que, embora haja percursos
escolares diferenciados entre as populações negras e indígenas, focamos o encontro histórico que
emerge com o ingresso desses jovens na Universidade por meio de políticas afirmativas.

1.4. Dos diálogos de saberes em/com a universidade: uma conversa intensa

A tensão entre as compreensões sobre as ações afirmativas no seio das


universidades revela as diferenças na forma em que as instituições têm lidado com a
diversidade cultural: por um lado, constrói-se a legitimidade de uma “outridade”, mas ainda
baseada na manutenção de dicotomias hierarquizantes; por outro, constrói-se uma orientação
intercultural que mantém a preocupação em promover “alteridades” respeitadas, a partir de
uma ruptura com as assimetrias na produção de conhecimento que historicamente as
constituíram. Além disso, as ações afirmativas focalizadas apenas em ingressos flexíveis
revelam que seus resultados ficam muito aquém da proposta intercultural.
Por isso, nesta última seção, retomamos o tema de diálogo de saberes e
colonialidade do saber para mostrar os desafios que ainda persistem. Embora as ações
afirmativas venham se revelando como medida de inclusão (SANTOS, 2012; 2013), ainda há
muito por fazer se o propósito é fomentar um diálogo de saberes que rompa com as
assimetrias. Nessa discussão, o tema da descolonização da universidade é muito importante.
Ao discutir o aspecto da colonialidade do saber, Lao-Montes (2008), em uma conferência
sobre reformas do ensino superior, recorda que as ações afirmativas não se limitam
simplesmente à reserva de vagas, mas fazem parte de um projeto maior de transformação
social e reforma educativa que seria composto por políticas públicas, como o
desenvolvimento de projetos de educação bilíngue, de departamentos de estudos étnicos nas
57

universidades, de bolsas e programas de apoio a estudantes de setores subalternizados


(incluindo conselheiros pessoais e acadêmicos). O autor ressalta que essa concepção implica
muito mais que oferecer acesso, assinalando que a reserva de vagas para garantir o acesso é
uma medida necessária, mas não suficiente. Isso porque sua posição, afinada com a postura de
Fraser (2006) – conforme discutiremos no quarto capítulo – é que essas políticas requerem um
princípio de justiça para enfrentar as desigualdades no campo da produção de conhecimento:

por um lado a justiça redistributiva referindo-se à redistribuição justa e


equitativa de bens e recursos sociais, e por outro lado a justiça de
reconhecimento que significa a valorização das identidades e culturas, os
conhecimentos, os idiomas, as memórias e práticas espirituais dos
afrodescendentes e indígenas (LAO-MONTES, 2008, p. 20).

Ao considerar a negociação das políticas afirmativas no Brasil e na Colômbia


vemos diferenças importantes. Primeiro, o tema das relações étnico-raciais se mostra mais à
flor da pele no cenário brasileiro. Após quatro décadas de intensas mobilizações60, parece que,
finalmente, nos anos 2000, as organizações do Movimento Negro brasileiro conseguiram
inserir na agenda nacional o tema da desigualdade racial, reconhecimento que pôde ser visto
na criação da SEPPIR em 2003, assim como na presença que o tema ganhou no debate
público. No entanto, na Colômbia, embora haja um movimento indígena e afro-colombiano
organizado – com organizações reconhecidas como a Coordenação Regional Indígena do
Cauca (CRIC)61, a Organização Indígena de Antioquia (OIA)62 e o Processo de Comunidades
Negras (PCN)63, inclusive no âmbito universitário64 –, o conflito armado65 parece tomar a
cena e invisibilizar os impactos das desigualdades raciais. Ainda que o próprio conflito revele

60
Fazemos a ressalva de que o movimento negro é constituído de variadas organizações, que tem como principal objetivo
eliminar o racismo e a desigualdade racial. Sua existência é de longa data. Para alguns ativistas, o movimento emergiu
desde que o primeiro africano pisou em solo americano e se rebelou contra a escravidão. Mas as organizações mais
reconhecidas são aquelas constituídas no século XX, entre as quais estão o Movimento Negro Unificado e a Unegro, com
fundação nos anos 1970; e também algumas mais antigas como o Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado por
Abdias do Nascimento no ano de 1941, e a União dos Homens de Cor, com fundação em 1943, em Porto Alegre.
Também poderíamos considerar os clubes negros e os jornais e revistas de circulação (como Cadernos Negros) desde
pelo menos o início do século XX.
61
Página: http://www.cric-colombia.org/portal/
62
Página: http://www.oia.org.co/
63
Página: http://www.renacientes.org/
64
Exemplos são o Cabildo Universitário Chibcariwak, que reúne universitários indígenas da Universidad de Antioquia, e
o Coletivo de Estudantes Universitários Afro-colombianos, que congrega universitários afro-colombianos de diferentes
instituições de educação superior.
65
Entre os temas pautados na agenda dos movimentos por direitos humanos, estão as lutas agrárias, o reconhecimento de
territórios e práticas culturais, os mega-empreendimentos e o respeito aos direitos humanos no marco do Direito
Internacional Humanitário (DIH).
58

essas desigualdades – já que os atores armados atingem de forma mais contundente a regiões
de comunidades negras, indígenas e campesinas –, a discriminação racial entra como um tema
menor, que, inclusive, nem teria legitimidade dado à “mestiçagem” da população colombiana.
Segundo, há diferença na relação entre movimentos sociais e universidade: muitas das
decisões que institucionalizaram a reserva de vagas na Colômbia foram negociadas dentro da
própria instituição sem muito diálogo com os atores dos movimentos sociais, enquanto no
Brasil houve um intenso debate dado à resistência das instituições universitárias. O terceiro
elemento é o número de vagas, com quantidades menores no caso colombiano (em geral,
reserva de duas a cinco vagas para grupos étnicos), o que talvez justifique a diminuta reação
negativa frente aos programas. Por outro lado, o silêncio sobre as desigualdades raciais dentro
das instituições universitárias, assim como o reflexo das desigualdades da sociedade
envolvente na comunidade acadêmica, revelam pontos de encontro entre os dois países.
Preocupados com o diálogo de saberes, Carvalho e Flórez (2014) analisam
experiências do projeto “Encontro de saberes”, desenvolvido em duas instituições: na
Universidade de Brasília, no Brasil, e na Universidade Javeriana, na Colômbia. Proposto
como um projeto acadêmico, o projeto consistia em disciplinas curriculares para os cursos de
graduação e pós-graduação que contavam com intelectuais negros e indígenas como docentes
convidados da universidade, nas instituições nas quais os autores lecionavam. Uma pergunta
motivadora do projeto foi questionar se, como docente, queriam formar universitários
indígenas e afrodescendentes educados sob “lógicas brancas”, entendidas como lógicas
colonizadas. Porém, a resposta a essa questão indicou que não bastaria o ingresso por meio de
cotas. Segundo os autores, era necessário aliar a esse ingresso de cotistas uma ampliação da
diversidade de saberes, para que esses nutrissem os programas curriculares das universidades
e, assim, resultassem na transformação das desigualdades étnico-raciais. Essa afirmação está
baseada em uma análise histórica que os autores expõem sobre as universidades na América
Latina e Caribe, ao explicar que essas universidades foram criadas quase como réplicas das
instituições acadêmicas da Europa, seguindo os modelos de universidades francesas e alemãs.
Como resultado, essa imagem de superioridade se refletia em um currículo e um formato de
aulas que foram pensados “exclusivamente para grupos de estudantes de origem e formação
intelectual europeia, falantes de idiomas europeus e, claro, de fenótipo europeu branco
dominante”66 (p. 132). Pensar sobre as tensões que emergem no diálogo de saberes nos leva a
revisar os diferentes níveis de assimetrias sociais, dentro e fora das universidades.

66
Original: “exclusivamente para aulas de estudiantes de origen y formación intelectual europea, hablantes de idiomas
europeos y, por supuesto, de fenotipo europeo blanco dominante.”
59

As reflexões de Carvalho e Flórez (2014) encontram eco nas discussões de


Kleiman (2013), quando criticam que ainda trabalhamos nas áreas das ciências sociais com
horizontes de valores que se baseiam na matriz colonial. Considerando esse cenário, Carvalho
e Flórez (idem), a partir do projeto “Encontro de saberes”, sugerem como caminho que
colapsemos os vários níveis de fronteiras – entre os departamentos, entre as faculdades, e
entre as universidades. Complementaríamos com a proposta de “abertura epistemológica” de
que nos fala Kleiman (2013, p. 56), quando chama a atenção para a necessidade de que
revisemos as estruturas institucionais hierárquicas e inflexíveis – ou seja, pouco dispostas a
quebrar as assimetrias do diálogo – que afetam a pesquisa (pouco fomento à
transdisciplinaridade), o ensino (programas disciplinares conservadores) e a extensão (vista
como uma ação unidirecional e vertical).
Essa conexão entre universidade e colonialidade do saber, que expõem os autores,
dá um status especial para as universidades, tanto por seu potencial de reproduzir, quanto de
produzir novas realidades. Situando essa reflexão nos debates das ações afirmativas no ensino
superior e das práticas de leitura e escrita na universidade, a permanência universitária e as
estratégias criativas de universitários emergem como focos importantes de pesquisa. Nessa
direção, Zavala e Córdova (2010) chamam a atenção para a necessidade de entender melhor
como comunidades que foram subordinadas e oprimidas negociam as forças conflitivas para
se engajarem em práticas de letramento criativas. Ao questionar a ideia predominante de que
os estudantes que procedem de áreas rurais não leem nem escrevem, as autoras criticam os
valores pelos quais se define o que vale como conhecimento:

ampliar o campo da ciência moderna ocidental para permitir o ingresso de


domínios proibidos como o das emoções, a intimidade, o sentido comum, o
conhecimento ancestral e a corporeidade, e, portanto, reexaminar o que conta
como conhecimento relevante dentro e através das disciplinas para ‘abrir’ as
convenções da escrita acadêmica a novas formas de significar (ZAVALA;
CÓRDOVA, 2010, p. 141)67.

Como propõem as autoras, “se trata de pensar como descolonizar a Universidade”


e, nesse esforço, salientam que a linguagem tem um importante papel. A abertura das
convenções da escrita acadêmica é um requisito para o diálogo de saberes na universidade e,

67
Original: “ampliar el campo de la ciencia moderna occidental para permitir el ingreso de dominios prohibidos como el
de las emociones, la intimidad, el sentido común, el conocimiento ancestral y la corporalidad, y, por lo tanto, rexaminar lo
que cuenta como conocimiento relevante dentro y a través de las disciplinas para “abrir” las convenciones de la escritura
académica a nuevas formas de significar.”
60

como também pontuam Carvalho e Flórez (2014), esse é um desafio para a universidade,
sobre o qual pouco se tem discutido.
Em termos de colonialidade do saber e linguagem, destacamos a articulação que
Castro-Gómez (2005) estabelece entre o conceito de violência epistêmica e o uso da escrita,
ao mostrar como as constituições, os manuais de urbanidade e as gramáticas de idioma
funcionaram como tecnologias que, na cidade letrada (RAMA, 1984), definiram as
oportunidades de acesso à categoria de ser cidadão. Essas tecnologias possuem em um
denominador comum: sua legitimidade repousa na escrita. A partir desse elemento, o novo
marcador de diferença – a língua – constituiu uma diferença colonial, já que aqueles que
dominavam essas tecnologias podiam ser cidadãos, enquanto os “Outros”, justo aqueles aos
que o acesso à escolarização e à escrita foi interditado (FREIRE, 1989), ficam de fora dessa
categoria de cidadania.
A reflexão sobre os diálogos de saberes na/com a universidade nos exige adensar
a conversa sobre escrita e linguagem, assim como seu potencial criativo nessas zonas de
contato. Para tal, apresentamos as contribuições dos Estudos de Letramento.
61

2. Linguagem e Universidade: conexões entre letramento acadêmico e


violência epistêmica

O letramento acadêmico deveria cumprir um papel crítico e não paliativo no ensino superior, o que implica combater os
discursos de déficit acerca da falta de lógica e de racionalidade nos aprendizes. Necessitamos de uma mudança em uma
visão da conquista/fracasso baseada na “habilidade” e na “instrução” a uma que considere o estudo neste nível como uma
aprendizagem de novas formas de pensamento e de expressão para os estudantes. (Virginia Zavala, 2010)

Neste capítulo, apresentamos alguns debates sobre a leitura e a escrita na


universidade, e delineamos os principais conceitos que fundamentam esta tese. De acordo
com nosso propósito de pesquisa, destacamos conceitos que contribuem para desvelar
relações de poder que atravessam as práticas de letramento. Conforme esboçamos
anteriormente, o diálogo de saberes no âmbito acadêmico requer muito esforço para romper
suas assimetrias históricas que resultaram em violência epistêmica (CASTRO-GÓMEZ,
2010), a qual, segundo o autor, caracteriza-se por tentar eliminar as “‘as muitas formas de
conhecer’ próprias das populações nativas e substituí-las por outras que servissem aos
propósitos civilizatórios do regime colonial” (p. 63).
Iniciamos realizando uma breve introdução sobre o campo da leitura e a escrita na
universidade. Na segunda seção, apresentamos a perspectiva teórica adotada nesta pesquisa,
no que tange aos conceitos letramento acadêmico e práticas institucionais do mistério,
baseados em uma concepção bakhtiniana de linguagem. Finalizamos, na terceira seção,
apresentando a prática de letramento que será foco desta tese: o Trabalho de Conclusão de
Curso (o TCC, no Brasil, ou tesis de grado, na Colômbia), que apontará um diálogo com as
contribuições da interculturalidade crítica e estudos descoloniais.

2.1. Estudos sobre leitura e escrita na Universidade

Os estudos sobre a Leitura e Escrita na Universidade (doravante LEU) estão


conformando um campo, na América Latina, para o qual convergem diferentes áreas do
62

conhecimento e tradições de pesquisa. Além disso, seu desenvolvimento pode ser visto em
paralelo a esforços de Estados latino-americanos para ampliar a oferta de educação superior.
Os estudos sobre LEU são antigos e situam-se em diferentes tradições de
pesquisa, assim como revelam variadas áreas de interesses, entre eles os campos de língua
materna e adicional, e a formação universitária nas diferentes áreas de saber. Mas, embora
esteja em pleno vigor, este tema ainda não ocupa um espaço consolidado de diálogo entre os
pesquisadores dessas diferentes disciplinas.
Um exemplo é a organização da publicação “Estudos de escrita nas
universidades latino-americanas”, sob a coordenação dos professores Charles Bazerman
(University of California Santa Barbara) e Maria Ester Moritz (Universidade Federal de Santa
Catarina). Ambos os autores justificam sua proposta de publicação devido ao pequeno número
de produções na área que integre pesquisadores latino-americanos:

apesar do crescimento de pesquisas, teorias e trabalhos práticos, há pouca


publicação que congregue os trabalhos realizados por pesquisadores da
região. Esse número especial busca trazer a diversidade e o alcance desses
trabalhos com vistas a promover intercâmbios e cooperação entre
pesquisadores da América Latina. Assim, convocamos artigos latino-
americanos de diversas abordagens de escrita em nível universitário em L1
e/ou L268.

Outro exemplo, a partir do qual trazemos algumas reflexões para este capítulo, foi
o evento “V Encontro Internacional e VI Nacional de Leitura e Escrita no Ensino Superior. IX
Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior”69, que congregou pesquisadores do
Brasil e da Colômbia. Esse evento, organizado pela Asociación Colombiana de Universidades
(ASCUN), a Red de Lectura y Escritura en Educación Superior (REDLEES/Colômbia) e a
Associação Nacional de Pesquisa na Graduação em Letras-ANPGL, do Brasil, teve como
propósito fazer o balanço de uma década de discussão sobre leitura e escrita no ensino
superior. Além disso, fez parte de um esforço de tecer redes entre grupos de pesquisa
brasileiros e colombianos70. Assim, sua justificativa, conforme o material de divulgação do
evento, era que ambos os países se uniriam para “fazer um balanço a respeito das
contribuições que, na última década, surgiram a partir da discussão sobre leitura, escrita e
oralidade, buscando a transformação e produção do conhecimento no Ensino Superior”. Dessa

68
Chamada para publicação, disponível em: http://www.ilees.org/novedades
69
Evento realizado em Bucaramanga-Santander, Colômbia, entre os dias 27 e 29 de agosto de 2014.
70
Em especial, os núcleos de pesquisa Grupo de Estudos e Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise – GEPPEP
(http://paje.fe.usp.br/~geppep/apresentacao.html), liderado pelos professores Valdir Barzoto e Cláudia Riolfi, da USP
(Brasil), e Leer, Escribir y pensar (http://gruplep.univalle.edu.co/ ), liderado pela professora Gladys Stella López, da
Univalle (Colômbia).
63

maneira, o evento visava a uma reunião de trabalhos que enfocassem a leitura, a escrita e a
oralidade na Universidade, a partir de diferentes aportes teóricos.
Na conferência de encerramento do Encontro, a pesquisadora Narváez71 (2014)
apresentou a LEU como uma área emergente que, embora seja explorada em múltiplos
campos disciplinares, ainda não constituiu seu próprio campo teórico. Para sustentar sua
interpretação, apresentou a análise do projeto “Iniciativas de Leitura e Escrita na Educação
Superior na América Latina” (ILLES72), cujo propósito é construir um mapa compreensivo,
diverso e inclusivo das tendências de pesquisa e projetos pedagógicos na América Latina73.
Em sua descrição do projeto, abordou três elementos: os campos disciplinares do tema, seus
autores mais citados e seus espaços de publicação. Conforme sua descrição, os campos
disciplinares mais frequentes a que pertenciam os participantes da pesquisa foram Linguagem
e Linguística, Educação e Humanidades (conformada por Letras, Artes e Filosofia). Embora a
LEU tenha emergido de campos das ciências da linguagem, da linguística, da educação e
humanidades, nas pesquisas analisadas no projeto ILLES se revelou uma dispersão disciplinar
e teórica. Segundo a autora, isso poderia significar um ecletismo saudável, mas também
poderia refletir uma falta de redes acadêmicas que compartilhem interesses e aproximações de
pesquisa.
No que tange aos autores do campo, segundo Narvaez (2014), havia uma
diversidade tanto na origem quanto nas orientações disciplinares dos autores influentes –
identificados na categoria de “líderes acadêmicos”, criada para a pesquisa –, quanto no
número limitado de “líderes acadêmicos” que fossem compartilhados entre os participantes da
pesquisa. A autora também observou que uma tendência visível – possivelmente
correlacionada à diversidade indicada anteriormente – foi a falta de compartilhamento entre
autores latino-americanos de língua espanhola e portuguesa, ou seja, há muita pouca troca

71
Conferência de encerramento, intitulada “Estudios de la escritura en América Latina: trazando un mapa de logros y
desafíos.”, proferida em 29 de agosto de 2014.
72
Mais informações na página do projeto: http://www.ilees.org/index.html
73
Sobre o projeto “Iniciativas de Leitura e Escrita na Educação Superior na América Latina” (ILLES), nesse esforço de
construir um mapa das tendências de pesquisa e projetos pedagógicos na América Latina, algumas das hipóteses
levantadas a partir das agendas de pesquisa dos grupos participantes do projeto foram: a) a escrita é ensinada
explicitamente em diferentes momentos da formação e para diferentes audiências (cursos de escrita no primeiro ano,
cursos no currículo das disciplinas, oficinas, tutorias, programas articulados, cursos de extensão, centros de escrita, etc.);
b) as iniciativas advogam pelo ensino da escrita disciplinar e, ao mesmo tempo, pelo ensino de um saber escrito
acadêmico transversal (desenvolver e oferecer tarefas de escrita com diferentes tipos de textos acadêmicos, desenvolver as
habilidades de leitura e escrita para o ensino superior, desenvolver as competências para a escrita nas disciplinas e nas
profissões, favorecer a publicação científica dos professores universitários, etc.); c) a tradição linguística tem uma forte
influência; d) em alguns casos se argumenta que a escrita é ensinada na universidade devido ao tipo de população
estudantil (agendas de ensino justificadas pela chegada de estudantes não tradicionais às aulas, como estudantes de
primeira geração universitária ou aqueles não expostos a reformas educativas que influenciaram o ensino da leitura e
escrita na educação básica e secundária).
64

entre líderes acadêmicos brasileiros e outros líderes de países hispano-falantes da América.


Segundo a autora, isso indica que as lideranças acadêmicas nacionais se constroem com maior
influência que as internacionais, e poderia resultar em pouca articulação entre pesquisadores
da região.
O isolamento científico se repetiu na análise dos espaços para publicação. A
autora também ressaltou a falta de um espaço influente e reconhecido para publicação (como
revistas, páginas web ou base de dados) neste tema na região. Conforme sintetiza a autora:

é importante destacar que no Brasil, só revistas brasileiras foram


mencionadas e que entre os países hispano-falantes se mencionaram duas
revistas brasileiras: Linguagem em Discurso, no Chile, e a Revista Delta, no
Chile e na Argentina. Estas tendências mostram que, ao parecer, há um
padrão nacional de publicação forte e não há publicações que integrem a
região 74 (NARVAEZ, 2014, p. 14).

Com base nesse panorama, a autora sugere que a falta de espaços para publicação
poderia, por um lado, indicar que o campo ainda não emergiu com uma identidade disciplinar
distanciada das bases disciplinares que o nutriram; mas, por outro lado, ao não contar com
publicações que integrem as pesquisas da região, esse campo ainda emergente poderia resultar
fragmentado antes mesmo de sua consolidação.
Mesmo nessa dispersão teórica e metodológica que aponta Narvaez (2014),
algumas perspectivas que abordam a LEU se destacam. Os trabalhos de Swales e Feak (2012),
de tradição anglo-saxã, são referência entre os estudiosos de gêneros e ensino de inglês
acadêmico e a escrita através do currículo75, tanto no Brasil quanto na Colômbia. Seu
principal argumento é que os campos disciplinares conformam comunidades discursivas, e
para participar nessas comunidades é preciso aprender a comunicar-se dentro da retórica
dessas comunidades discursivas. Esses autores, a partir dos estudos da retórica, gêneros
discursivos e comunidades discursivas, traçam orientações para cursos de escrita gerais e
específicos para diferentes campos disciplinares.
No cenário hispano-falante, Carlino (2005) é das referências mais citadas nos
estudos sobre LEU. Do marco da “alfabetização acadêmica” 76, os trabalhos de Carlino (2002,

74
Original: “Es importante destacar que en Brasil, sólo revistas brasileras fueron mencionadas y que entre los países de
habla hispana se mencionaron dos revistas brasileras: Linguagem em Discurso en Chile, y la Revista D.E.L.T.A. en Chile
y en Argentina. Estas tendencias muestran que, al parecer, hay un patrón nacional de publicación fuerte y no hay
publicaciones que integren la región” (p. 14)
75
Do inglês WAC – Writting across curriculum. Propostas dessa vertente podem ser encontradas na obra “Genre in a
Changing World” (2009), organizada por Charles Bazerman, Adair Bonini e Débora Figueiredo.
76
Como expus em Sito (2014a), na discussão hispano-falante sobre LEU, os conceitos de alfabetización académica e
literacidad académica competem, mas se referem a tradições teórico-epistemológicas diferentes: “enquanto a
“alfabetização acadêmica” está orientada para o fazer educativo, o “letramento acadêmico” enfoca um conjunto de
65

2003, 2004, 2005, 2008) dialogam com os campos da didática da língua e psicologia para
propor ações que enfoquem a linguagem no processo de formação da educação superior. Em
seu livro mais citado, “Escribir, leer y aprender en la universidad” (2005), a autora narra sua
experiência didática em uma disciplina que ministrava no curso de Psicologia, na qual
realizou a inserção de tarefas de leitura e escrita ao perceber, após regressar de seu
doutoramento, que necessitava tratar da linguagem de modo mais explícito no processo de
ensino-aprendizagem das disciplinas.
Sua reflexão sobre alfabetização acadêmica responde aos pressupostos que
embasam as reclamações de professores universitários acerca da má escrita de seus
estudantes, para questioná-los (CARLINO, 2002). Ao apontar a falácia dessas queixas,
demonstra que a linguagem deve ser um elemento que faça parte do currículo das disciplinas
universitárias ao longo da formação. Sua questão central é mostrar como

aprender os conteúdos de cada curso consiste em uma dupla tarefa:


apropriar-se do sistema conceptual-metodológico [do campo] e também de
suas práticas discursivas [dado que] a leitura e a escrita resultam em
ferramentas fundamentais nesta tarefa de assimilação e transformação do
conhecimento77 (CARLINO, 2002, p. 7).

A partir dessa compreensão, Carlino (2005) desconstrói o argumento de que os


estudantes já deveriam ter aprendido a ler e escrever antes da universidade, já que as práticas
de leitura e escrita desta instituição são distintas das práticas da escola. Assim, a autora
conclui exigindo uma mudança na postura dos professores universitários no sentido de que
recebam seus estudantes como pessoas estrangeiras que precisam ser apresentadas a essa nova
cultura da universidade.
No contexto colombiano, o recente trabalho de Pérez e Rincón (2013) tornou-se
um ícone ao abordar essa temática a partir da questão chave: Para que se lê e se escreve na
universidade colombiana? Para responder a essa pergunta (homônima ao título do livro), o
projeto de pesquisa articulou 17 (dezessete) instituições de ensino superior (públicas e
privadas) no país, a partir de grupos de pesquisa no campo da linguagem. Esses grupos
organizaram a pesquisa em três grandes eixos: 1) a cultura acadêmica, 2) a didática da língua,
e 3) as práticas de leitura e escrita; e constituíram um estudo quanti-qualitativo, no qual

práticas culturais em torno do uso de textos. Essa distinção também é reiterada pela pesquisadora Zavala (2013), por
entender que ambos os termos se referem a conceitos que possuem objetos de pesquisa diferentes, logo se tratam de
categorias, problemas teóricos e apostas metodológicas diferenciados, ainda que interconectados” (p. 24).
77
Original: “aprender los contenidos de cada materia consiste en una tarea doble: apropiarse de sistema conceptual-
metodológico [del campo] y también de sus prácticas discursivas [teniendo en cuenta que] la lectura y la escritura deviene
herramientas fundamentales en esta tarea de asimilación y transformación de conocimiento”.
66

utilizaram como metodologias questionários, análise documental (de programas de cursos e


de políticas institucionais que se referiam à linguagem), grupos de discussão e estudo de caso
(de boas práticas) nas próprias instituições participantes do projeto. A partir da análise de
dados, os autores afirmam que as notas de aula foram o texto mais lido e escrito pelos
estudantes, enquanto a leitura de fontes primárias (artigos ou livros) foi menos frequente.
Assim, como orientação final, com vistas a incidir sobre a política institucional de leitura e
escrita na universidade, os autores reivindicam a necessidade de fortalecer a escrita e a leitura
em sua função epistêmica, ou seja, não apenas de reprodução dos discursos vistos em aulas,
mas também de produção de conhecimento.
No cenário brasileiro, há uma grande tradição de estudos de gênero textuais e
discursivos. Essa tradição está tão consolidada, que já inicia uma reflexão sobre sua
singularidade no cenário internacional78. Essa influência também se expande ao tema da LEU;
muitos trabalhos sobre leitura e escrita na universidade são do campo dos gêneros
textuais/discursivos. O trabalho Motta-Roth e Hendges (1998), por exemplo, analisa o
resumo/abstract a partir dos estudos de retórica de gêneros acadêmicos. Ao caracterizar a
construção desse gênero, seu propósito é utilizar as descrições realizadas para elaboração de
programas de ensino de inglês para fins acadêmicos. Em outro trabalho, Motta-Roth (2006)
busca aproveitar as contribuições da Linguística Sistêmico-Funcional para atividades de
ensino de redação acadêmica.
Outro trabalho que também dialoga com os estudos de gênero é o de Fiad (2011),
sobre disciplinas específicas para o ensino da escrita. A autora propõe uma reflexão de sua
experiência com o curso de Prática de leitura e produção de textos, no início da década de
1990, quando a disciplina ainda integrava o currículo do curso de Letras de uma universidade
pública paulista. Segundo a autora, “essa disciplina era oferecida obrigatoriamente aos
estudantes calouros, com o intuito de lhes ensinar a escrita acadêmica, que era esperada nas
diferentes disciplinas do currículo” (FIAD, 2011, p. 360), com foco nos principais gêneros
que são requeridos na universidade, como resenhas, relatórios, projetos de pesquisa e ensaios.
No entanto, a autora considera que, com a difusão dos estudos de gênero, a relevância da
disciplina foi deslocada. Isso resultou na extinção dessa disciplina do currículo, justificada
com base na ideia de que os gêneros não deveriam ser ensinados separadamente, mas sim no
interior de cada uma das disciplinas.

78
O tema proposto para o VIII Simpósio Internacional de Estudos de Gêneros – SIGET (2015) – será um questionamento
se os diálogos brasileiros no estudo dos gêneros constituem uma "escola brasileira", com características próprias que a
singularizem. Gêneros acadêmicos é apenas uma da linhas que compõe esse amplo campo de estudos.
67

Nesse debate entorno a LEU, embora não haja ainda um campo de pesquisa, há
muitas pesquisas que abordam o tema a partir de perspectivas teórico-metodológicas
diferenciadas, conforme aponta Narvaez (2014), e que pode ser ilustrado com os trabalhos de
Swales e Feak (2012), a partir dos estudos da retórica anglo-saxã: de Carlino (2005, 2008),
alinhados à didática da língua de vertente francesa, de Motta-Roth (2006), a partir da
linguística sistêmico-funcional, de Cabral e Tavares (2005), baseados nos estudos sobre
competência, e de Fiad (2011), a partir dos estudos de letramento e de gênero. Contudo, quiçá
trabalhos como os de Pérez e Rincón (2013) pode indicar uma consolidação da LEU ao pôr
em diálogo diferentes vertentes que abordam o tema, incorporando algumas discussões dos
estudos de letramento. Nessa linha, os conceitos e metodologias parecem sedimentar-se entre
os campos da linguagem, didática das línguas e cultura acadêmica. Já em termos de propósito,
são pesquisas que objetivam incidir no âmbito das políticas institucionais, bem como na
prática docente.
Em todos esses trabalhos, uma lacuna que podemos sinalizar é o tema da
diversidade cultural e linguística que atravessa as práticas de leitura e escrita, também na
universidade. As abordagens da LEU ainda aparecem de uma perspectiva de ensino-
aprendizagem que não pressupõe a diversidade cultural nem estabelece espaços de
negociação, ou mesmo de subversão, das convenções acadêmicas para produção de
conhecimento. Para minimizar a lacuna existente, buscamos estabelecer uma conexão entre
práticas sociais de leitura e escrita, identidade e assimetrias na produção de conhecimento,
baseadas no campo dos estudos de letramento acadêmico.

2.2. Letramento acadêmico: a contribuição dos Estudos de Letramento para a


compreensão da leitura e da escrita na Universidade

A vertente sociocultural dos Estudos de Letramento (HEATH, 1982; STREET,


1984; KLEIMAN, 1995; ZAVALA; NIÑO-MURCIA; AMES, 2004) vem investigando, há
mais de três décadas, trajetórias de acesso à língua escrita, em especial de grupos
marginalizados socialmente. Essa perspectiva, consolidada no Brasil nos anos 1990,
principalmente na Linguística Aplicada, tem centrado sua atenção nos processos interacionais
entre os sujeitos, buscando entender como as pessoas se apropriam da escrita e quais são as
especificidades em relação ao meio social em que estão situadas, assim como compreender os
cenários em que a escrita permanece como uma ferramenta para interditar a grupos
68

marginalizados o acesso aos direitos humanos (RAMA, 1984; FREIRE, 1996; KLEIMAN,
1998, 2010).
Essa nova abordagem da linguagem escrita é decorrente da virada cultural e
linguística (FABRICIO, 2006). Essa virada, nos anos 1970, provocou mudanças na
compreensão da linguagem, de modo a conceber a escrita “como prática social e [buscar]
observá-la em uso, imbricada em ampla amalgamação de fatores contextuais” (p. 48).
Conforme nos explica Fabrício (2006), esse movimento implica um processo de
desaprendizagem das bases epistemológicas que conformaram a área de estudos da
linguagem, sintetizadas em três grandes revisões teóricas:

1) De que, se a linguagem é uma prática social, ao estudarmos a


linguagem estamos estudando a sociedade e a cultura das quais ela é parte
constituinte e constitutiva;
2) De que nossas práticas discursivas não são neutras, e envolvem
escolhas (intencionais ou não) ideológicas e políticas, atravessadas por
relações de poder, que provocam diferentes efeitos no mundo social;
3) De que há na contemporaneidade uma multiplicidade de sistemas
semióticos em jogo no processo de construção de sentidos (FABRÍCIO,
2006, p. 48).

Esse giro permitiu uma abertura das concepções de linguagem e cultura de modo a
reivindicar o reconhecimento de outras maneiras de usar a linguagem. Essa compreensão
mutante da Linguística Aplicada promoveu a busca por abordagens que nos permitissem
enfocar práticas de leitura e escrita cotidianas e escolares de populações antes invisíveis a
muitos campos das ciências sociais, de maneira que pudéssemos compreender os significados
atribuídos pelos próprios sujeitos ao letramento. Assim, expandiu-se não só a classe de
perguntas sobre a leitura e a escrita, mas também seus cenários de observação. Dessa forma, a
própria universidade se inseriu como mais uma esfera de observação das formas de uso de
linguagem.
No Grupo Letramento do Professor, nossa premissa é investigar as práticas de
letramento de uma “concepção identitária”, ou seja, para nós, compreender as práticas de
letramento pressupõe tanto rechaçar visões instrumentais e funcionais do ensino da escrita,
quanto promover o reconhecimento de trajetórias singulares dos usuários da linguagem. Isso
porque, conforme destaca Kleiman (2010), reconhecer essas trajetórias nos ajuda a:

facilitar o acesso dos grupos tradicionalmente excluídos à escrita, via escola;


ou seja, para proporcionar, por meio da escola, uma maior circulação pelas
práticas letradas àqueles que provêm de famílias com tradição de
69

analfabetismo, geralmente os mais pobres, que vivem nas margens da ordem


social, pouco usufruindo dos bens e serviços do estado. O exame dessas
trajetórias é relevante para entender o papel da coletividade, da resistência,
da subversão no processo de letramento desses grupos (p. 376).

Em nosso trabalho investigativo, há uma preocupação em “des-cobrir”, ao


examinar trajetórias de construção coletiva de conhecimento, assim como de resistências,
subversões e recriações de formas de usar a escrita (VALSECHI et al., 2014). Para isso, nesse
campo, há dois conceitos que se tornaram unidades básicas para as pesquisas da área: evento
de letramento79 e prática de letramento. O primeiro refere-se a encontros interacionais nos
quais a escrita é parte integrante da interação entre os participantes, assim como constitui seus
processos e estratégias interpretativas (HEATH, 1982). Na medida em que essas atividades
particulares passam a repetir-se regularmente, constituem valores e formas de fazer que
passam a moldar os eventos de letramento, as quais chamamos práticas de letramento
(STREET, 1993; BARTON, 1994, 2001).
Utilizando esses conceitos, Kleiman (1995) propôs uma agenda de pesquisa
centrada em reconhecer as práticas discursivas de grupos marginalizados. Uma agenda que,
para além de questionar a visão universal de letramento, teria de

conhecer as práticas discursivas de grandes grupos que se inserem


precariamente nas sociedades letradas tecnologizadas, particularmente as
práticas de letramento de grupos não-escolarizados: por exemplo, quando
fazem bicos, como calculam o material que necessitarão para realizar uma
tarefa, quem faz o papel de escriba desses grupos, isto é, a quem recorrem
quando precisam mandar uma correspondência, e como é a interação entre
escriba e cliente (p. 57-58).

Em pesquisa anterior, Sito (2010) investigou as práticas de letramento em uma


comunidade quilombola que levava a cabo um processo de regularização de seu território: um
contexto fértil para conhecer processos de mudanças de práticas discursivas de um grupo que,
de modo abrupto, entrava em um cenário de luta política. Com um enfoque crítico e um
questionamento sobre as estratégias criadas pelas lideranças para subverter as experiências
onerosas que sofriam, a autora mostra como líderes de uma comunidade quilombola se
organizavam de modo que a função de secretaria fosse destinada aos membros com maior

79
Destacaríamos que, em uma sociedade grafocêntrica como a nossa (KLEIMAN, 1995), um evento de letramento pode
ter diferentes maneiras de envolver o texto escrito. Barton (2001) chama a atenção para três modos que os escritos podem
integrar as interações: i) o texto como peça central na interação, ii) o texto com um papel simbólico (como a presença do
texto bíblico entre analfabetos), iii) o texto apenas como um objeto da conversa. A estas, chamaríamos a atenção para sua
diversidade nos modos de construção do texto. Um bom exemplo é a análise de Souza sobre a escrita kaxinawá (2001).
70

domínio da escrita, em geral, pessoas mais jovens do grupo que tiveram mais acesso à escola.
Logo, quem assumia a secretaria realizava a função de escriba para o coletivo. Outra forma de
lidar com as demandas de escrita que passaram a fazer parte do cotidiano local foi passar a
utilizar os caderninhos locais para registrar os novos gêneros que foram sendo apropriados e
transformados pelas lideranças durante o processo de luta quilombola.
Essa preocupação em reconhecer “quais são as estratégias que eles usam quando
fazem cursos de treinamento em serviço, quais são as operações mentais que eles utilizam
para realizar tarefas complexas, e assim sucessivamente” (KLEIMAN, 1995, p. 57-58), que
subjaz esta própria pesquisa, ilustra a agenda de pesquisa da vertente sociocultural dos
Estudos de Letramento (HEATH, 1982; STREET, 1984; ZAVALA; NIÑO-MURCIA;
AMES, 2004; JUNG, 2009; KALMAN; STREET, 2009) – que visam a (re)conhecer:
 os modos como os sujeitos usam a escrita em suas interações sociais,
 como a valorizam e a significam,
 assim como o que fazem com ela.
Para atingir esses objetivos, procuramos desnaturalizar as concepções valorizadas
sobre a escrita a partir de um exame crítico das práticas de letramentos dominantes. Ação que
se realiza mediante a análise do uso da linguagem de uma perspectiva sociocultural. Street
(1984) propõe, com o Modelo Ideológico de Letramento (STREET, 1984), que se reconheça
que nossas práticas de letramento são atravessadas por relações de poder e inextrincavelmente
relacionadas ao contexto sócio-histórico; desse modo, é necessário assumir que essas práticas
se tornam racializadas, generificadas e marcadas pela classe (HEATH, 1982; COOK-
GUMPERZ, 1991; SOUZA, 2011; ZAVALA, 2011). Nessa concepção, revelar essas relações
é parte do exercício investigativo que empregamos.
Nas pesquisas que desenvolvemos no Grupo Letramento do Professor, estudamos
as práticas de leitura e escrita de alfabetizadores e educadores populares (VÓVIO, 2007),
professores de línguas de formação inicial ou continuada (VIANNA, 2009; VALSECHI,
2009; CUNHA, 2010; DE GRANDE, 2010, 2015), estudantes de educação básica ou ensino
superior (MATENCIO, SILVA, ASSIS, 2000; MATENCIO, 2006; BUNZEN, 2009, 2010;
SILVA et al., 2010; TINOCO, 2010), líderes comunitários e agentes de movimentos sociais e
artísticos (SITO, 2010; SOUZA, 2011). A partir dessa compreensão das práticas de
letramento em distintos cenários, nossa finalidade é subsidiar programas de formação de
professores e contribuir para a formação daqueles e daquelas que ensinam a ler e escrever em
nossas sociedades, de maneira a legitimar os participantes da pesquisa e romper com as
assimetrias existentes. Esses trabalhos se articulam em duas grandes linhas de pesquisa: a)
71

letramento escolar: que se propõe a desenvolver, analisar e documentar “projetos de


letramento” (KLEIMAN, 2009), assim como entender seus efeitos no letramento escolar; b)
letramento não escolar: que enfoca práticas letradas locais, em especial de líderes
comunitários e grupos vulneráveis, e seus impactos nas identidades dos sujeitos e nas relações
de poder. As duas linhas se complementam ao traçar propostas para o desenvolvimento de
programas de ensino culturalmente sensíveis e favoráveis a estudantes oriundos de grupos
vulneráveis. Para isso, também incorporamos proposições da Pedagogia culturalmente
sensível (ERICKSON, 2001) e da Pedagogia crítica (FREIRE, 2012).
Esses trabalhos confluem em uma concepção que entende o uso da linguagem
como um “simpósio universal”, apropriando-se das contribuições do Círculo de Bakhtin, que
considera o ato de falar como uma resposta infinita, um elo de enunciados que se entrelaçam
por meio de palavras e valores sociais. Além disso, devemos compreender a língua

não como um sistema de categorias gramaticais abstratas, mas como uma


língua ideologicamente saturada, como uma concepção de mundo, e até
como uma opinião concreta que garante um maximum de compreensão
mútua, em todas as esferas da vida ideológica (BAKHTIN, 2003, p. 81).

Quando concebemos que um enunciado sempre responde a outro, nossa postura


rompe com a visão de língua como sistema, para adentrar em uma perspectiva social da
linguagem. Dessa forma, o discurso se coloca como nosso eixo, e cada enunciado implica
uma situação comunicativa concreta, um evento em que interlocutores dizem e, a partir desse
discurso, falam de si e de outros já ditos. Essa visão da linguagem estrutura o conceito de
dialogismo, explicado pelo autor com o exemplo de Adão, conforme este trecho:

apenas o Adão mítico que chegou com a primeira palavra num mundo
virgem, ainda não desacreditado, somente este Adão podia realmente
evitar por completo esta mútua orientação dialógica do discurso alheio
para o objeto. Para o discurso humano, concreto e histórico, isso não é
possível (...) Mas a dialogicidade do discurso não se esgota nisso. Nem
apenas no objeto ele encontra o discurso alheio. Todo discurso é orientado
para a resposta e ele não pode esquivar-se à influencia profunda do
discurso da resposta antecipada. O discurso vivo e corrente está imediata e
diretamente determinado pelo discurso-resposta futuro, ele é que provoca
esta resposta, pressente-a e baseia-se nela. Ao se constituir na atmosfera do
“já dito”, o discurso é orientado ao mesmo tempo para o discurso-resposta
que ainda não foi dito, discurso, porém, que foi solicitado a surgir e que já
era esperado. Assim é todo diálogo vivo (BAKHTÍN, 2003, p. 88-9, grifos
nossos).

Com esse exemplo, busca ilustrar o fato de que nunca falamos em um vazio;
sempre respondemos a algo ou alguém, e ao fazê-lo tomamos uma posição frente a esse fato.
72

Isso significa que a orquestra na qual tocamos, ao usar a linguagem, possui diferentes tons.
No instante em que fazemos uso da palavra, tomamos uma posição social avaliativa. Seus
tons sempre revelam pontos de vista do sujeito que profere o discurso, revelando perspectivas
semânticas e axiológicas, as quais, nas palavras de Bakhtin, seriam as vozes sociais. As vozes
sociais e históricas, por tanto, povoam os discursos de índices de valor ou acentos valorativos,
os quais dão sentido às palavras. Na concepção de linguagem proposta pelo Círculo de
Bakhtin, a palavra é apenas uma arena, na qual os diferentes acentos valorativos dos
interlocutores lutam por marcar seus sentidos, pois “a palavra da língua é uma palavra
semialheia. Ela só se torna “própria” quando o falante a povoa com sua intenção, com seu
acento, quando a domina através do discurso” (VOLOCHINOV, 1995, p. 100). Esse
exercício de apropriação de uma palavra semialheia constitui-se em um diálogo com os
valores do tempo e do espaço em que ocorre o evento discursivo, revelando um discurso-
resposta, assim como discursos já ditos. A luta pelos sentidos está em alinhamento à luta que
se trava na vida, devido às desiguais posições que os interlocutores ocupam na sociedade.
Essa visão de linguagem nos requer considerar sempre os eventos em que os
discursos são produzidos, assim como nos convida a desvelar as relações de respostas
(dialógicas) implicadas nos próprios textos. Se todo discurso é orientado para a resposta, e
sempre está influenciado profundamente pelo discurso da resposta antecipada, a resposta é
tomada como uma ação ativa, já que “ela liga o que deve ser compreendido ao seu próprio
círculo”. Nesse jogo, os atos de responder e interpretar estão intrinsecamente conectados, já
que “a compreensão e a resposta estão fundidas dialeticamente e reciprocamente
condicionadas, sendo impossível uma sem a outra.” (BAKHTIN, 2003, p. 90). Em outras
palavras, o dialogismo é uma proposta baseada na alteridade, pois significar é um processo
que se constrói com o Outro.
Mais um elemento da concepção de linguagem bakhtiniana relevante para esta
pesquisa é a noção de esfera de atividade humana. Essa noção ilustra a conexão entre dizer e
fazer que está na base da proposta sociológica de linguagem do Círculo de Bakhtin. A esfera
de atividade nos ajuda a pensar a comunicação a partir das atividades humanas. Esse conceito
nos leva a ampliar a observação da linguagem das formas de dizer, envolvendo também as
formas de fazer.
Nesta tese, a noção de esfera acadêmica nos permite refletir sobre as atividades
humanas implicadas nas formas de produção de conhecimento. A partir dessas atividades,
podemos observar quais usos de linguagem estão vinculados a elas. Por fim, ao escolher esta
concepção social de linguagem, fazemos uma opção por reconhecer as relações de poder que
73

atravessam as interações humanas; assim como sua expressão na linguagem, seja por forças
que buscam mascarar a dialogicidade dos discursos de modo a dissimular a polêmica
(discurso monológico ou unívoco), seja por forças que, na contramão, buscam revelar a tensão
entre as diferentes vozes sociais que compõem o discurso (discurso dialógico ou polifônico).
Ao reconceituar a palavra “diálogo”, Faraco (2009) destaca que a cada evento em que nos
enunciamos, nos orientamos para forças centrípetas (de unificação e centralização) ou
centrífugas (de diversidade e criação), porque justamente o diálogo:

deve ser entendido como um vasto espaço de luta entre as vozes sociais (uma
espécie de guerra dos discursos), no qual atuam forças centrípetas (aquelas
que buscam impor certa centralização verboaxiológica por sobre o
plurilinguismo real) e forças centrífugas (aquelas que corroem
continuamente as tendências centralizadoras por meio de vários processos
dialógicos tais como a paródia e o riso de qualquer natureza, a ironia, a
polêmica explícita ou velada, a hibridização ou a reavaliação, a sobreposição
de vozes, etc.) (p. 69-70).

Nessa síntese do autor, há uma retomada da própria palavra diálogo, que significa
tanto o “consenso” ou a “conversa” – sentidos que costumam ser atribuídos a ela no senso
comum, quanto “dissensos” e “encontros” que provocam conflitos; pois falar de diálogo é
falar de respostas, respostas que são dadas em meio a forças que visam tanto a unificar e
provocar consensos afinados a pontos de vistas dominantes, quanto respostas que são dadas
em meio a forças que visam a pluralizar os pontos de vista.
Ao delimitar as forças centrífugas como ações empregadas pelos grupos para
corroer continuamente as tendências centralizadoras, podemos traçar uma aproximação entre
as forças centrífugas do discurso e o conceito de “táticas” na atividade social de De Certeau
(1998), quando o autor as define como “uma ação calculada”, “um movimento dentro do
campo de visão do inimigo” que empregam os grupos a margem das instituições de poder.
Justamente essas ações – que em nossa investigação trataremos com o conceito de estratégias
– são nosso escopo da pesquisa. Nossa observação sobre as práticas de letramento dos
estudantes participantes desta pesquisa recai sobre suas “táticas” como parte desses
movimentos centrífugos que realizam.
Logo, a metáfora de diálogo para o dialogismo deve ser reelaborada para
enquadrá-la em um campo de lutas entre as vozes sociais (ou verdades sociais, já que são
valores que enunciamos). Nesse combate dialógico, a resposta pode ser tanto de consenso,
convergência e acordo, quanto de dissenso, divergência ou desacordo. Nosso foco nas vozes
74

sociais busca abrir uma brecha para, com base no dialogismo, revelar as tensões de embates
históricos que afetam o uso social da linguagem.

2.2.1. Letramentos na formação universitária: tensão entre as esferas acadêmica e


profissional

A formação universitária foi ganhando espaço nas pesquisas do Grupo Letramento


a partir de seu próprio exercício de formação continuada. Esse movimento de reflexão sobre o
próprio fazer partia do pressuposto de que a análise sobre as práticas de leitura e escrita na
educação básica requeria um conhecimento sobre essas práticas na formação inicial e
continuada de professores. Dessa forma, muitos trabalhos do grupo analisam justamente os
conflitos que emergem na tensão entre letramento acadêmico – as práticas de leitura e escrita
na esfera acadêmica – e letramento para o local de trabalho – as práticas de escrita e leitura
emergentes no contexto de trabalho, neste caso, a escola.
O estudo de práticas de letramento que desenvolvemos no grupo segue esta
postura crítica e sócio-histórica. Ao abordar letramento desde uma perspectiva situada,
Kleiman (2001) questiona sobre quais as práticas e exigências de letramento no local de
trabalho, já que estas deveriam orientar as atividades de formação continuada do professor. A
partir do conceito de letramento para e no local de trabalho, Kleiman e Silva (2008) analisam
criticamente o descompasso entre os conhecimentos exigidos em concursos públicos para
professores e aqueles realmente requeridos no espaço de trabalho. Com o propósito de
encurtar a distância entre a prática acadêmica e a profissional, as autoras ressaltam que é
necessário distanciar-nos das concepções mais instrumentais do conceito (como as
abordagens de alfabetização funcional, e de demandas mínimas de uso da escrita), para
compreender o letramento para e no local de trabalho como uma “prática situada, levando em
consideração os usos da língua oral e escrita no local de trabalho” (KLEIMAN; SILVA, 2008,
p. 19). Essa compreensão, segundo as autoras, poderia fomentar uma revisão na formação de
professores (inicial e continuada) a partir de discussões sobre como preparar melhor os
professores em formação para sua atuação na escola. Além disso, a pergunta sobre quais são
as exigências de letramento para determinado contexto se contrapõe ao Modelo Autônomo de
75

Letramento80 (STREET, 1984; KLEIMAN, 1995), que constrói uma visão da escrita como
independente de seus contextos de uso.
Outra linha de pesquisa sobre o papel da instituição universitária na formação do
professor é a análise de cursos de formação continuada a professores do ensino público. Nesse
campo, os trabalhos sobre professores em formação de Valsechi (2009), ao analisar o
processo de apropriação de saberes, e os trabalhos de De Grande (2010) e de Vóvio e De
Grande (2010), ao investigar o processo de construção identitária, revelam conflitos que
emergem nessas experiências de ensino-aprendizagem entre universidade-escola. Suas
análises mostram como o contexto de desvalorização da profissão docente81 afeta esses
encontros de formação, valores que acabam sendo revozeados nos discursos dos próprios
docentes. No entanto, por outro lado, as autoras também afirmam que prevalece um
movimento das docentes de se legitimarem “a favor da representação dos papéis profissionais
assumidos por elas, posicionando-as como sujeitos na produção de seus discursos e como
protagonistas de suas histórias” (VÓVIO; DE GRANDE, 2010, p. 68).
Esses trabalhos se constroem em diálogo com a concepção dialógica da
linguagem, tomando a produção do círculo bakhtiniano como base teórica e epistemológica
(VOLOCHINOV, 1995; BAKHTIN, 2003). Com base nessa concepção de linguagem,
utilizamos “metodologias que permitam descrever e entender os micro-contextos em que se
desenvolvem as práticas de letramento, procurando determinar em detalhe como são essas
práticas” (KLEIMAN, 1995, p. 17). De modo mais específico, abordamos as práticas de
letramento como situações em que

um “artefato” escrito é essencial para a interação, porque integra a própria


natureza da interlocução e do processo de produção de sentido, elas
implicam tanto o que se faz quando se lê e se produz texto, quanto as
concepções que lhes são subjacentes e os modelos sócio-cognitivos que
subjazem a essas representações, dando-lhes significado (MATENCIO,
2009, p. 08).

Esses modelos a que se refere Matencio (2009) podem ser compreendidos pelo
conceito de “gêneros do discurso”, os quais se constituem em matrizes sócio-cognitivas e

80
Esse modelo descreve as visões da escrita que a concebem como “um produto completo em si mesmo, que não estaria
preso ao contexto de sua produção para ser interpretado” (KLEIMAN, 1995, p. 22). Essa ideologia de linguagem
compreende a língua desconectada de seus contextos de produção.
81
A própria violência policial que vem sendo empregada contra manifestação de professores ilustra essa marginalização
da categoria docente. Ver notícia sobre o caso de Curitiba, em maio de 2015 – “PM reprime protesto de professores em
Curitiba e mais de 200 se ferem”, disponível em:
http://brasil.elpais.com/brasil/2015/04/29/politica/1430337175_476628.html
76

culturais que nos orientam a participar nos modos de dizer e de fazer que foram constituídos
historicamente pela sociedade em que estamos inseridos.

2.2.2. Algumas noções do campo de letramentos acadêmicos (ou ACLITS)

As pesquisas sobre letramento acadêmico, nos cenários anglo-saxão e hispânico


(LEA; STREET, 1998, 2006; CANAGARAJAH, 1997; LILLIS, 2003; LILLIS; SCOTT,
2007; ZAVALA, 2010, 2011), estão centradas tanto em analisar as formas de construção de
conhecimento de estudantes universitários (em geral, advindos de comunidades minoritárias
ou discriminadas), quanto em registrar as estratégias criadas por eles para responderem às
demandas de leitura e de escrita na Universidade. O propósito desses estudos que analisam o
processo de inserção de estudantes nas práticas de letramento acadêmico é, segundo Zavala
(2011), mostrar como o uso da escrita no ambiente acadêmico, tido como um meio neutro e
transparente utilizado para transmitir conhecimento, é apenas mais um modo de usar a
linguagem desenvolvida na tradição intelectual ocidental.
Esses estudos emergem como uma especificidade dos Estudos de Letramento, ao
tomar como objeto as práticas de uso da escrita na esfera acadêmica. Entre as perguntas e
objetivos do campo estão: a) aproximar-se das perspectivas dos escritores-estudantes; b)
reconhecer, a partir da voz dos estudantes, como as convenções da escrita acadêmica incidem
sobre a sua construção de conhecimento, e, por fim, c) explorar se são desenvolvidas, na
academia, alternativas para construir conhecimentos, e quais seriam elas (CANAGARAJAH,
1997; LILLIS, 2003; ZAVALA, CÓRDOVA, 2010).
A expansão do acesso à universidade, nos anos 1990, no contexto britânico, gerou
um redimensionamento desses conceitos e promoveu a emergência de novos temas. Os
conceitos de prática situada e de eventos, em situações de comunicação específicas, levaram à
multiplicação das adjetivações do termo “letramento”, em muitos casos segundo o espaço
institucional em que aconteciam os eventos: letramento escolar, letramento religioso,
letramento acadêmico, etc. Nessa direção, vemos que os estudos que observavam os usos da
linguagem na esfera acadêmica passaram a associar-se ao conceito de letramento(s)
acadêmico(s) (academic literacy ou academic literacies)82. Para esta tese, optamos por usar

82
Lillis e Scott (2007) ressaltam que há uma considerável ambiguidade no uso das formas no singular e plural, e por isso
se pode definir melhor a perspectiva da pesquisa sobre letramentos acadêmicos a partir de sua abordagem aos cenários
investigados, com base em uma perspectiva crítica, discursiva e antropológica. Na produção brasileira o conceito é
recente e ainda não há uma polêmica em torno da pluralização. Algumas das pesquisas afiliadas aos Estudos de
77

“letramento acadêmico”, considerando que é o uso mais comum no meio acadêmico nacional,
concentrando nossa preocupação em mostrar sua pluralidade na descrição das práticas sociais.
A expansão do ensino superior parece estar provocando mudanças, ao tornar a
instituição que tradicionalmente foi agente da pesquisa em um objeto de investigação. No
pano de fundo desta pesquisa, é necessário recordar os discursos de equidade e justiça no
acesso ao ensino superior, os quais provocam reflexões sobre o papel da universidade,
situando-a entre as instituições que precisam corresponder à diversidade cultural da sociedade
que as cerca. Esse movimento é impulsionado por sujeitos interessados em uma nova
configuração da academia, com propostas para descolonizar a universidade (CASTRO-
GÓMEZ, 2005; CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007; SANTOS, 2009).
Especificamente a escrita no ensino superior tem sido historicamente objeto
teórico de diferentes áreas83, conforme ressalta Street (2010); mas, foi durante o período de
internacionalização do ensino superior, no Reino Unido, quando as políticas para a expansão
universitária ampliaram a participação de estudantes estrangeiros, que emergiram questões
sobre as práticas comunicativas na universidade (LILLIS; SCOTT, 2007). No entanto, essas
políticas vieram acompanhadas de discursos públicos sobre a falha dos modelos de ensino, o
que tornava a escrita dos estudantes como emblemática da “crise” no ensino superior; embora
essas políticas não dispensassem a mínima atenção para a linguagem. Dessa forma, muito da
produção alinhada aos Estudos de Letramento com foco na academia emergiu como resposta
a discursos de déficit no contexto de expansão do ensino superior inglês. Essa produção se
voltou tanto para elaborar cursos de escrita para estudantes, quanto para reconhecer os
conflitos que vivenciavam durante sua inserção no ensino superior. Esse histórico nos ajuda a
entender, parcialmente, por que o enfoque do campo foi se constituindo em torno a trajetórias
de estudantes de grupos minoritários e/ou discriminados.
Em um estado da arte sobre o campo, Lillis e Scott (2007) descrevem como o
letramento acadêmico se constitui em uma epistemologia específica, orientada pelos conceitos
de letramento como prática social, de ideologia e de transformação; nesse campo de
investigação o texto é visto a partir da prática. Campo que, segundo as autoras, estaria

Letramento vêm usando o termo no singular, “letramento acadêmico” (FISCHER, 2008, 2011; FISCHER, A.;
PELANDRÉ, 2010), para investigar as práticas de letramento em cenários de ensino superior. Parece-nos que é
justamente o caráter transformador e a perspectiva de linguagem adotada, de base sócio-histórica, que configuram a
abordagem de “letramentos acadêmicos” ou “letramento acadêmico”, distinguindo-a de perspectivas mais normativas.
83
Street cita a escrita através do currículo (tradução livre do termo inglês Writing across the curriculum – WAC), estudos
dos gêneros e letramentos acadêmicos.
78

relacionado com o contexto de expansão do ensino superior britânico, em especial para um


público imigrante (falante de inglês como língua adicional).
No contexto brasileiro, há uma produção científica abundante sobre a
aprendizagem e o ensino da leitura e da escrita, mas essa produção é, em geral, orientada para
a educação básica. No entanto, como Marinho (2010) e Fiad (2015) ponderam, a investigação
sobre a escrita e a leitura acadêmica, assim como suas dimensões de ensino e aprendizagem,
ainda é recente em nosso campo. Mas ao conceber o uso da linguagem como uma prática
social vinculada a contextos sociais específicos, pesquisas sobre letramento vêm se
concentrando nas formas de usar a linguagem na esfera acadêmica. É importante destacar que
esses estudos também vêm ampliando a noção de “acadêmico”, ao contemplar também as
publicações em periódicos científicos e eventos científicos como conferências e congressos
(FIAD, 2015, p. 27). Para explicar o impacto do conceito de “letramento acadêmico” nos
estudos brasileiros, Fiad (2013) argumenta que

esse foco de estudos ganhou grande impulso em vários centros de pesquisa


não só por razões inerentes à concepção de letramentos múltiplos mas
também por motivações políticas e sociais, destacando-se a expansão do
ensino superior, não só em quantidade de alunos mas também e
principalmente em diversidade cultural e linguística (FIAD, 2013).

Como destaca a autora, o exercício de situar o texto em seu contexto provoca


tensões para o campo da linguagem. Entre os desafios, estaria o de “construir um modelo de
análise de escrita que rompa com a dicotomia entre o texto e o contexto, que vem
tradicionalmente sendo feita quando os estudos etnográficos servem apenas de “pano de
fundo” para as análises que acabam sendo exclusivamente textuais.” (FIAD, 2013, p. 469). O
outro desafio, objeto desta tese, é de aliar perspectivas críticas das ciências sociais – como os
estudos descoloniais – para compreender o impacto da diversidade cultural e linguística nas
práticas de produção de conhecimento, tanto nos textos quanto nas práticas sociais.
Para lidar com o primeiro desafio, Fiad (2013, 2015) destaca que, nos trabalhos de
seu grupo de pesquisa, associa a perspectiva etnográfica dos estudos de letramentos a
pressupostos teóricos dos estudos de psicologia linguística (aquisição da escrita\linguagem),
estudos da enunciação e crítica genética. Além disso, utilizam as noções de dialogismo e
diálogo com base na concepção bakhtniana de linguagem para realizar uma análise dialógica
da linguagem acadêmica. Desse modo, a autora defende uma “concepção de escrita como um
trabalho que se conduz no tempo e a de reescrita como parte desse trabalho, que possibilita,
ao analista, observar as marcas deixadas pelo escrevente e que indiciam, de algum modo, o
79

trabalho realizado” (FIAD, 2013, p. 467). Entre seus trabalhos, há um enfoque especial na
reescrita de estudantes (FIAD, 2013) e na análise de eventos de letramentos acadêmicos
(PASQUOTTE-VIEIRA, 2014).
Fiad (2015) conclui suas considerações sobre o conceito de letramento acadêmico
brasileiro, indicando que este pode ser potencializado se traçamos uma ponte entre os estudos
de leitura e escrita na educação básica e na educação superior:

considero que a grande quantidade de estudos sobre escrita escolar


desenvolvida no Brasil desde a década de 1980, com base em referenciais
teóricos advindos dos estudos do texto e do discurso, somados hoje aos
estudos dos Letramentos Acadêmicos, nos possibilita pensar, hoje, na escrita
acadêmica, a partir do que foi possível construir como críticas, reflexões e
propostas durante esses mais de 30 anos de pesquisas. Com isso quero dizer
que é possível pensarmos no letramento acadêmico tentando articular
concepções teóricas advindas dos Letramentos Acadêmicos com concepções
teóricas advindas de estudos do texto e do discurso. Considero essa
perspectiva como uma contribuição que os estudos brasileiros podem dar aos
estudos da escrita no contexto acadêmico (FIAD, 2015, p. 30).

Muitos desses estudos vêm propiciando uma “ocupação do latifúndio do saber”


(Marinho, 2010), em especial ao dar luz aos modos variados de usar a linguagem, mais do que
as convenções estabelecidas. Nesta tese, nossa escolha foi identificar as estratégias de
estudantes cotistas para construir conhecimento, a partir tanto das marcas que deixam em seus
textos (para o TCC), quanto das histórias que contam sobre seus textos (LILLIS, 2008). Em
outras palavras, estamos afiliados a uma agenda política de mostrar a diversidade das práticas
de letramento (KLEIMAN, 2013) de grupos que foram subalternizados. Nessa direção, as
pesquisas sobre letramento acadêmico visam tanto a mapear as concepções de linguagem e as
práticas de letramento que conformam as práticas de formação acadêmica, quanto propor
reflexões para uma revisão dessas práticas. Nessa seara, há três propostas conceituais, que
destacamos a seguir: os modelos de letramento (LEA; STREET, 1998), as práticas
institucionais do mistério (LILLIS, 1999) e a geopolítica do conhecimento (ZAVALA;
CORDÓVA, 2010).

2.2.2.1. Os modelos de letramento

A preocupação com as concepções de linguagem que se refletiam nas práticas de


formação universitária levou Lea e Street (1998) a sistematizarem suas observações acerca do
uso da linguagem na esfera acadêmica. Ao observarem experiências de expansão do ensino
80

superior no Reino Unido, os autores sintetizam três abordagens comuns nas práticas de ensino
da escrita na academia: o modelo de habilidade, o de socialização e o acadêmico. Segundo os
autores, o ingresso na universidade acarreta uma adaptação a novas maneiras de conhecer que
podem ser interpretadas pelo conceito de práticas:

novas formas de compreender, interpretar e organizar o conhecimento.


Práticas de letramento acadêmico – leitura e escrita nas disciplinas –
constituem processos centrais através dos quais os alunos aprendem novos
temas e desenvolvem seus conhecimentos sobre novas áreas de estudo. Uma
abordagem de práticas para letramento leva em conta o componente cultural
e contextual das práticas de leitura e escrita, e este por sua vez tem
implicações importantes para uma compreensão da aprendizagem do aluno84
(p. 157).

Consoante com essa perspectiva sociocultural, os autores consideram relevante


desenvolver uma análise mais complexa sobre o que significa inserir-se nas práticas de
letramento na universidade; para eles, essa inserção envolveria o engajamento da instituição
como um todo, e envolveria docentes e discentes (LEA; STREET, 1998, p. 157). Ancorados
em teorias do letramento como prática social, os autores analisaram a escrita de estudantes em
contextos acadêmicos, porque, para eles, a discussão sobre o uso da linguagem acadêmica não
se deve pautar em questões relativas à escrita do estudante ser “boa” ou “má”, mas em
questões de epistemologia envolvidas nessa produção.
O primeiro modelo, chamado de “Study skills”, é um modelo baseado nas
habilidades – ou técnicas de estudo. Explica as dificuldades dos estudantes pressupondo a
existência de um déficit, porque a escrita universitária é vista como uma habilidade técnica e
instrumental que pode ser aprendida independente da pessoa e do contexto. Logo, nessa visão
instrumentalista da linguagem, se há algum problema é necessário “consertá-lo”. O foco se
resume aos aspectos superficiais de linguagem, i.e., da gramática e da ortografia. As
principais fontes teóricas desse modelo encontram-se na Psicologia Comportamental e
Experimental.
O segundo modelo, o “Academic socialisation” ou modelo de socialização
acadêmica, prevê que haja uma inserção dos estudantes no discurso acadêmico. Como a
linguagem escrita universitária é vista como meio transparente de representação, nesse
modelo os métodos de ensino visam a iniciar os estudantes em uma nova ‘cultura’ com foco

84
Original: “new ways of understanding, interpreting and organizing knowledge. Academic literacy practices-- reading
and writing within disciplines--constitute central processes through which students learn new subjects and develop their
knowledge about new areas of study. A practices approach to literacy takes account of the cultural and contextual
component of writing and reading practices, and this in turn has important implications for an understanding of student
learning”.
81

na orientação para a aprendizagem e interpretação de tarefas. O equívoco neste modelo é


pressupor que a linguagem seja neutra e que haja uma "cultura" homogênea, sem pôr em
discussão as práticas institucionais, as relações de poder e as desigualdades que estão em
jogo.
O terceiro modelo proposto pelos autores é o “Academic Literacies”, ou de
letramentos acadêmicos, cujo propósito é formar o estudante para negociar as práticas de
letramento dominantes. Nesse modelo, a escrita universitária é vista como construção de
sentidos e contestação. Como consequência, o foco volta-se para os letramentos como práticas
sociais, e há uma preocupação com questões de epistemologia e de identidades. As
instituições são tomadas como cenários de discursos e poder, podendo ser alvo de
contestação. As principais fontes teóricas que embasam esse modelo são os Estudos de
Letramento, a Análise Crítica do Discurso e a Antropologia Cultural. Sua proposta é ilustrada
na Tabela 1:
Tabela 1 - Modelos de escrita universitária no ensino superior
“Study skills” • 'Consertá-lo'; habilidades atomizadas; aspectos superficiais da
O modelo de habilidades – ou linguagem, gramática, ortografia.
técnicas de estudo – pressupõe um  Escrita universitária vista como habilidade técnica e instrumental.
estudante com déficit.
“Academic socialisation” • Iniciar os estudantes em uma nova ‘cultura’; foco na orientação para
O modelo de socialização acadêmica a aprendizagem e interpretação de tarefa de aprendizagem, por
prevê a aculturação dos estudantes no exemplo, aprendizagem "profunda", "superficial" ou "estratégica";
discurso acadêmico. "cultura" homogênea, falta de foco sobre práticas institucionais,
mudanças e poder.
 Escrita universitária vista como meio transparente de
representação.
“Academic literacies” • Letramentos como práticas sociais; opera no nível da epistemologia
O modelo de letramentos e das identidades; instituições como cenários constituídos em
acadêmicos tem o propósito de discursos e poder; variedade do repertório comunicativo, por
formar o estudante para negociar as exemplo, gêneros, campos, disciplinas; alternância com respeito a
práticas de letramento conflitantes. práticas linguísticas, identidades e significados sociais.
 Escrita universitária vista como construção de sentidos e
contestação.
Fonte: “Appendix. Models of student writing in higher education” (Lea; Street, 1998).

Ao tomar as instituições como cenários constituídos em discursos de poder e


compreender o uso da escrita universitária como uma construção de significados em disputa,
Lea e Street (2006) salientam que um dos destaques do modelo por eles proposto está em

enfatizar a importância da explicitação, por parte dos professores para os


estudantes, das mudanças no gênero e na modalidade a medida que
experienciam trabalhar em grupo, falar, tomar notas, fazer uma
apresentação, usar a escrita formal, etc. Particularmente, nós identificamos a
ligação entre práticas culturais e diferentes gêneros; a importância do retorno
82

nas avaliações nos trabalhos escritos dos estudantes no processo de


aprendizagem; e os modos em que tanto estudantes quanto tutores podem
aprender com base no destaque da construção de sentidos e identidade no
processo de escrever (p. 229)85.

Essa ênfase na “explicitação” é adensada em artigo posterior, quando Street


(2010) propõe o conceito de “dimensões escondidas”. Nesse artigo, o autor apresenta uma
proposta empírica de um curso de escrita acadêmica que ministrou para estudantes de pós-
graduação, baseado em contribuições teóricas dos estudos dos gêneros, dos estudos da escrita
no âmbito das disciplinas e no modelo de Letramento Acadêmico. O autor apresenta o que
chama de “um conjunto de conceitos funcionais que permitam a professores e alunos abordar
questões relativas à escrita de artigos acadêmicos” (ibidem, p. 541), explicitando as
“dimensões escondidas” para sua escrita.
Street descreveu a abordagem que utilizou com os alunos, detalhando em quais
dimensões deu mais ênfase, já que escolheu aquelas que costumam ficar ocultas nas
avaliações de escritos dos estudantes. Para isso, relata como, durante a solicitação de tarefas,
discutiu os contextos de avaliações da escrita acadêmica, muitas vezes implícitas nas
interações entre docentes e discentes. Questões como a voz do autor, o ponto de vista e o
questionamento sobre interlocutores e objetivos foram problematizadas a partir das produções
escritas desenvolvidas pelos estudantes ao longo das aulas.
A proposta dos modelos de letramento e das dimensões escondidas – que revozeia
propostas de ensino de línguas estrangeiras/adicionais86 – embora avance pouco em termos
propositivos de ensino da escrita na Universidade, revela a importância da capacidade de
reconhecer mais facilmente as visões de linguagem que subjazem às práticas de ensino da
escrita, as quais costumam ser bastante misteriosas para os ingressantes.

85
Original: “emphasizing the importance of explicitness in teachers marking for students the shifts in genre and mode as
they move between group work, speaking, note taking, presentation, more formal writing, etc. In particular we identify the
link between cultural practices and different genres; the importance of feedback on students’ written assignments in the
learning process; and how both students and their tutors can learn much from the foregrounding of both meaning making
and identity in the writing process”.
86
Um exemplo é o constructo que subjaz o Exame de Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa para
Estrangeiros – Celpe-Bras, o qual – incorporando o conceito bakhtiniano de gênero do discurso – solicita nas tarefas
requeridas a explicitude dos componentes da situação comunicativa. Mais informações disponíveis em:
http://portal.inep.gov.br/celpebras-estrutura_exame.
83

2.2.2.2. As práticas institucionais do mistério (ou veladas)

Os trabalhos sobre letramento acadêmico visam a explorar as complexidades


envolvidas na comunicação acadêmica, em especial aquelas mediadas pela escrita. Essa
centralidade se deve, para Lillis e Scott (2007), ao fato de a escrita ser a modalidade de
linguagem que, no ensino universitário, constitui a principal forma de avaliação, assim como
ser a atividade de mais alto investimento para os alunos. Fato que tem sido verdadeiro
também na escola.
Com vistas a adentrar na complexa comunicação na esfera acadêmica, Lillis
(1999) investiga a relação entre professores e estudantes, focalizando universitárias de
primeira geração em suas famílias a ingressar na universidade. Em reuniões periódicas com
um grupo de dez estudantes, a pesquisadora indagava sobre as expectativas que tinham frente
às tarefas que lhes eram solicitadas em suas disciplinas da graduação. Com base em
entrevistas e acompanhamento desse grupo de alunas, a autora percebeu a existência de
muitas dúvidas por parte das estudantes sobre os objetivos e as expectativas dos docentes a
respeito das tarefas solicitadas. A autora critica a existência de uma lacuna entre as
expectativas dos professores e a compreensão das alunas-escritoras a respeito das convenções
exigidas na escrita acadêmica. Segundo ela, essas lacunas são analisadas em alguns trabalhos,
porém de maneira acrítica, porque:

nessas abordagens, a distância entre as expectativas dos professores e a


compreensão das alunas-escritoras de tais expectativas é problematizada
como uma incompatibilidade que pode ser resolvida, se os professores
disserem claramente para as alunas-escritoras por escrito ou oralmente o que
é exigido. No entanto, uma abordagem assim tende a reforçar a visão de que
as convenções são fenômenos autônomos e discretos, ao invés de
constituírem e refletirem uma prática de letramento particular (LILLIS,
1999, p. 130)87.

Dessa maneira, podemos entender que as “dimensões escondidas” podem ser


analisadas em diferentes níveis – de aspectos sobre a função do gênero e propósitos do gênero
– conforme análise de Lillis (1999), a aspectos estilísticos, tema, interlocutores e estrutura
composicional, conforme proposta de Street (2010).
Lillis (1999) explica que analisar a escrita acadêmica a partir dos Estudos de

87
Original: “In these approaches, the distance between tutors’ expectations and student-writers’ understanding of such
expectations is problematized as a mismatch which can be resolved, if tutors state clearly to student-writers in written or
spoken words what is required. However, such an approach tends to reinforce the view that conventions are autonomous
and discrete phenomena, rather than constituting and reflecting a particular literacy practice”.
84

Letramento requer compreender que a participação nas práticas comunicativas desta esfera
envolve aprender como se constroem sentidos através das convenções desse contexto
específico que é a universidade. Como a autora destaca, ainda, a interação nesse espaço requer
uma prática de letramento privilegiada na academia, a escrita da monografia (ensaio) 88. Por
ser uma prática situada, a autora investiga justamente o processo de marginalização e
exclusão decorrente de conflitos que emergem devido a uma incompatibilidade entre as
diversas compreensões acerca do que seria a escrita de uma monografia por parte de
estudantes e docentes. Nessa direção, ela ressalta que analisar os descompassos na interação
entre docentes e discentes acerca das avaliações realizadas nas disciplinas é crucial:

mesmo que prevaleça a visão de que tais convenções não são problemáticas
e de que são simplesmente "senso comum", eu argumento que a confusão é
uma dimensão tão onipresente na sua experiência como grupo de estudantes
“não-tradicionais” no ensino superior que aponta para uma prática
institucional do mistério (p. 127)89.

A prática institucional do mistério (ou a prática institucional velada) faz parte de


uma ideologia que permite que docentes atuem no ensino como se as convenções fizessem
parte do senso comum e, portanto, já fossem conhecidas pelos estudantes, o que limita sua
participação na universidade. Essa prática está inscrita ideologicamente e trabalha contra os
menos familiarizados com as convenções em torno da escrita acadêmica e, por isso, a autora
argumenta que é importante ver essa confusão “não como um fenômeno individual do aluno,
mas como reflexo de uma prática dominante no ensino superior”90 (p. 142). Em sua pesquisa,
a autora mostra um conjunto de consequências decorrentes da prática acadêmica de velar seus
modos de lidar com a escrita, como em trabalhos finais de disciplinas, dentre eles: o fato de as
estudantes não entenderem por que seus trabalhos tiveram sucesso ou fracasso, considerando,
em ambos os casos, seus sucessos e fracassos como uma consequência da subjetividade do
professor; a presença de uma ambiguidade de termos usados nas tarefas que dificulta a
compreensão da estudante; a diferença de ponto de vista entre professores dos cursos, que se
reflete em diferentes critérios de avaliação dos trabalhos.

88
Na tradição de língua inglesa, a principal produção escrita na academia é o “ensaio”, principalmente na avaliação de
disciplinas, o que costumamos chamar, no contexto brasileiro, de “monografia”.
89
Original: “Whilst the view prevails that such conventions are unproblematic and simply ‘common sense’, I argue that
confusion is so all pervasive a dimension of their experience as a group of ‘non-traditional’ students in higher education
that it points to an institutional practice of mystery.” (p. 131)
90
Original: “I would therefore argue that it is important to view such confusion not as an individual student phenomenon
but as reflecting a dominant practice in HE, which I am calling here, the institutional practice of mystery.”
85

Ao analisar as entrevistas com as estudantes, a autora conclui que essas


incompatibilidades demonstraram um espaço de diálogo monológico, no qual as estudantes
não apenas encontraram dificuldades para entender o que era exigido nas tarefas, mas também
se frustraram por terem pouca oportunidade de explorar tais dificuldades com seus
professores (LILLIS, 1999, p. 141).
Essa descontinuidade entre as convenções que integram as práticas de letramento
dos estudantes-escritores e aquelas requeridas nas práticas de letramento acadêmico mostra as
semelhanças com os resultados da pesquisa de Heath (1982) sobre o letramento escolar. Lillis
(1999) relata que muitos encontros do grupo de pesquisa eram focados em discutir “o que os
professores esperam em resposta a suas questões de avaliação?” para refletir sobre as
expectativas de docentes e discentes e para explicitar quais diferenças estavam afetando
negativamente a participação estudantil em aula. A partir de questões como essa,
pesquisadora e estudantes refletiam sobre a chegada de estudantes sem tradição de escrita
universitária ao ensino superior como algo que deveria ir além do acesso físico à instituição,
chegando a duas recomendações gerais: a) em instituições universitárias e departamentos, os
professores precisariam reexaminar a noção de acesso91, para considerar maneiras pelas quais
eles possam promover ativamente a apropriação de recursos simbólicos por parte dos
estudantes; b) nas disciplinas, os professores precisariam oportunizar mais negociação e
renegociação sobre a natureza específica das tarefas de aulas, incluindo os critérios de
avaliações. Para a autora, isso não é uma tarefa impossível, mas é sine qua non, se o objetivo
é o alargamento do acesso ao ensino superior nos planos físico e simbólico.
Anos depois, aprofundando sua análise sobre a interação estudante-professor,
Lillis (2003) explora como uma postura pedagógica na perspectiva do letramento acadêmico
deveria informar a prática e a teoria do ensino da escrita. Baseada no trabalho de Bakhtin, a
autora argumenta que o ensino da escrita acadêmica deveria considerar mais as forças
centrífugas – aqueles movimentos discursivos que dão espaço à réplica e possibilitam a
emergência de formas que expressem novas visões de mundo a partir de muitas verdades,
muitas vozes, muitas identidades, hibridismos e a apropriação de discursos internamente
persuasivos – em lugar de valorizar as forças centrípetas – aquelas que visam unificar e
centralizar as ideologias verbais.

91
Embora em cenários diferentes, os trabalhos de Kalman (2004, 2013) e Vianna (2009) trazem aportes para as noções de
noção de “apropriação”, “disponibilidade” e “acesso”, ao mostrar que, para que se dê a apropriação de práticas de
letramento, é necessário pensar não só na disponibilidade de materiais escritos, mas também observar as interações que
mediam o acesso a esses materiais.
86

Fazer referências e citar outros textos são mais um exemplo das práticas
institucionais do mistério, as quais provocam conflitos na apropriação das práticas de
letramento acadêmico. O processo de reconhecimento desse novo modo de enunciação exige
sua explicitação, já que essas práticas se diferenciam muito de outras esferas sociais. Essas
diferenças também provocam conflitos e sentimentos negativos nos estudantes, os quais se
sentem “incomodados”, ao interpretarem que explicitar a autoria das citações seria sugerir que
eles não podem chegar a pensar algo por conta própria.
Podemos observar que emergem conflitos frente à distância exigida no texto
acadêmico e à exigência de atribuir o conhecimento a outros, como indica Zavala (2010) na
experiência de Paula, quando critica que a escrita acadêmica não é de ninguém. Também o
estudo de Boughey (2000) aborda essa questão ao refletir sobre sua experiência de ensino de
filosofia, em uma universidade sul-africana. A autora argumenta que, para os estudantes,
orquestrar as distintas vozes em seus textos se tornava um obstáculo. Conforme descreve a
autora, uma das dificuldades que ela vê com frequência nos textos de seus estudantes

diz respeito à negociação de "vozes" em ambos os textos acadêmicos falados


e escritos. Um texto acadêmico contém muitas vozes. Ele contém as vozes
das autoridades, do autor citado e também contém a voz do autor, que
aparece em relação a essas outras vozes como um solista apoiado por um
coro (...) Na sua escrita, a dificuldade em fazer isto frequentemente se
manifesta em uma aparente incapacidade para distinguir entre as diferentes
vozes92 (BOUGHEY, 2000, p. 289).

Boughey (2000) nos ajuda a pensar nos mistérios que envolve orquestrar
diferentes vozes para os estudantes que chegam a esse “mundo novo”. Todo o tempo
orquestramos outras vozes, dentro e fora da universidade; porém, a diferença está nas
convenções que cada esfera social atribui aos modos de tocar a música.
Nessa direção, de outro marco teórico, Boch e Grossman (2002) analisam a
prática de citação tanto em escritos de estudantes principiantes quanto de pesquisadores para
observar as diferenças que poderiam se apresentar em seus escritos. Para sua análise, os
autores propõem uma tipologia para caracterizar os modos de fazer referência ao discurso do
outro: a evocação, quando o escritor apenas faz menção ao trabalho sem resumi-lo, o discurso
relatado, quando se resume, reformula ou cita o discurso do outro. Com base nessas

92
Original: “One difficulty which I see frequently in my work in the philosophy class concerns the negotiation of
“voices” in both spoken and written academic texts. An academic text contains many voices. It contains the voices of the
authorities the author cites and it also contains the voice of the author which appears in relation to these other voices as a
solist backed by a choir (…) In their writing, the difficulty in doing this frequently manifests itself in an apparent inability
to distinguish between the different voices.”
87

categorias, mostram como os escritores especialistas se diferenciam dos principiantes na


forma de referenciar o discurso do outro. Enquanto os primeiros utilizam mais o recurso da
evocação e da reformulação, os principiantes utilizam mais a citação. Uma das explicações
dos autores é o fato de que os principiantes, além de gerenciar as diferentes vozes, devem
lidar com a diferença entre sua posição de um escritor incipiente e aqueles a quem cita, já
reconhecidos, o que favoreceria que preferissem apresentar as palavras do outro de um modo
mais explícito. Como Boch e Grossmann (2002) destacam, os estudantes lançam mão com
maior frequência do recurso da citação como parte de um processo de apropriar-se das
práticas de letramento acadêmico, nas quais a citação

autoriza o gesto paradoxal de inserção de um discurso que é, quase sempre,


radicalmente outro (em seu vocabulário, em seu estilo, pelos espaços
teóricos que abre), dentro de um discurso tateante, às vezes disforme, mas no
qual eles aprendem a se constituir como sujeitos. Desse ponto de vida, a
citação pode constituir uma ajuda à escritura, tendo em vista que ela permite
ao escritor iniciante emprestar as palavras dos outros para assumir sua
própria voz, suas próprias escolhas (BOCH; GROSSMANN, 2002, p. 107).

A perspectiva de Boch e Grossmann (2002) nos permite ampliar a compreensão


sobre a complexidade envolvida no processo de articular as diferentes vozes no discurso
acadêmico, e ilustra bem mais um aspecto importante (e velado) das convenções da
linguagem acadêmica. Muitas vezes, a citação cria um paradoxo para os estudantes: por um
lado, há estudantes que relatam um incômodo em ter de atribuir a autoria de seu texto a vozes
de outros, e, por outro lado, há estudantes que entendem que sua voz não é necessária no seu
texto, apenas as vozes de outros. Dessa forma, engendra-se um conflito que provoca muita
dificuldade para articular e integrar as diversas vozes em seus textos, seja por meio das
citações, ou de outros recursos como a referenciação, evocação ou reformulação.

2.2.2.3. A geopolítica do conhecimento: linguagem como identidade, epistemologia e poder

Os Estudos de Letramento rompem com as perspectivas que pregam visões


“neutras” acerca do uso da linguagem93, e propõem uma abordagem que reconheça seu
carácter social; o que implica assumir, como expõe Kleiman (1995), que “as práticas de

93
O Modelo Autônomo de Letramento, proposto por Street (1984), serve para descrever aquelas concepções de
linguagem que pressupõem uma única forma de lidar com a escrita, baseadas em visões de causa e resultado entre a
escrita e progresso, civilização e mobilidade social. Além disso, o que marca esse modelo é sua negação da relação entre
usos da linguagem e os contextos sociais.
88

letramento, no plural, são social e culturalmente determinadas, e, como tal, os significados


específicos que a escrita assume para um grupo social dependem dos contextos e instituições
em que ela foi adquirida” (p. 21). Essa posição se orienta para um reconhecimento da
geopolítica do conhecimento, na qual se reconhece que o uso da linguagem na esfera
acadêmica também implica processos de identidade, epistemologia e poder.
A análise de letramento proposta por Collins e Blot (2003) situa o poder como um
objeto central para entender as relações mediadas pela linguagem. No capítulo Letramento,
poder e identidade: legados coloniais e transformações indígenas94, em especial, os autores
descrevem casos de apropriação da escrita no mundo não ocidental: cenários pós-coloniais na
América do Sul, no Caribe e na América do Norte, nos quais observam questões de
identidades híbridas e resistência ao poder nas práticas de escrita e leitura.
Collins e Blot (2003) destacam que os esforços coloniais são muitas vezes
narrados por um viés positivista, das “luzes” ou o iluminismo, e da civilização; contudo, há
outras facetas da conquista, nas quais a “civilização” é constituída de hierarquias que se
impõem sobre as sociedades colonizadas, como discutimos em relação ao conceito de
colonialidade do poder. O interesse dos autores é, a partir dos Estudos de Letramento, enfocar
as experiências de resistência e transformação empregadas contra a imposição de valores
coloniais. Segundo os autores, os sujeitos transformam esse legado colonial em formas
congruentes com sua cultura, o que abriria um espaço para a criação de sujeitos híbridos.
Nesse processo, Collins e Blot (idem) destacam que “o letramento não é nem causa nem
consequência; o processo de autoformação, autoconfecção é, antes, mediado pelo
letramento” (p. 122). Em outras palavras, reafirmam que esse processo de poder é uma
“conquista “da linguagem e pela linguagem”, mas também da auto-definição ‘na
linguagem’”95.
Considerando esses estudos, podemos entender a geopolítica do conhecimento
como a política colonial que, por um lado, privilegiou as formas de conhecer produzidas por
sujeitos do hemisfério norte e, por outro, criou um efeito de que não havia sujeitos (e seus
corpos) por trás do fazer científico ou das agendas de pesquisa; tudo isso sem correlacionar
com os processos de colonialismo, opressão e violência que viviam os outros contextos.

94
Original: “Literacy, power, and identity: colonial legacies and indigenous transformations”.
95
Original: “Literacy is neither cause nor consequence; the process of self-formation, self-fashioning is, rather, mediated
by literacy” (p. 122); “conquest “of language and by language”, but also of self-fashioning “in language”” (p. 154)
89

Ao compreender a linguagem em sua pluralidade e conexão como os valores


sociais, nossa abordagem nos permite entender a esfera acadêmica como um espaço de
diálogo entre discursos que refletem (e refratam) formas de se reconhecer, de se identificar, de
se relacionar e de construir conhecimento com o outro. A própria noção de “práticas
institucionais do mistério” nos coloca neste novo cenário. Com base nessa concepção, os
discursos sobre a “crise da escrita” ganham novas dimensões e compreensões. Nessa
discussão, Zavala e Córdova (2010) questionam que as questões emergentes na escrita de
estudantes sejam vistas do ponto de vista do déficit. Segundo as autoras,

nos últimos anos, a pesquisa neste campo demonstrou que as dificuldades e,


por consequência, os conflitos que emergem entre estudantes e docentes em
relação à leitura e à escrita na universidade não se restringem simplesmente
à técnica da leitura e da escrita, às habilidades ou à gramática96 (p. 113).

Ao investigar o processo de permanência de universitários ingressantes por ação


afirmativa, as autoras revelam que a aprendizagem da escrita acadêmica no ensino superior
produz tensões diversas na trajetória de letramento dos estudantes. Em geral, esses conflitos
são resultantes de divergências entre as práticas de letramento acadêmicas e as práticas das
comunidades de origem dos estudantes, assim como de diferenças nas suas formas de
produzir conhecimento, ou das relações de poder do espaço acadêmico. Nessa direção, as
autoras afirmam que essas tensões estão, antes, mais vinculadas:

a aspectos que estão relacionados com a identidade, a epistemologia e o


poder. Isso quer dizer que a leitura e a escrita também se relacionam com
nosso sentido de pertencimento à comunidade da qual tentamos fazer parte,
com as maneiras de construir conhecimento e com os valores diferenciados
que são atribuídos a diversas formas de leitura e escrita que se praticam em
nossa sociedade (p. 113).97

Com isso, ressalto como as discussões de letramento acadêmico podem


potencializar uma melhor compreensão do conjunto de programas e políticas específicas para
a diversidade no ensino superior, em especial aquelas relacionadas às políticas de ingresso
especial nas universidades, como a política de cotas.

96
Original: “en los últimos años, la investigación en este campo ha demostrado que las dificultades y, por consiguiente,
los conflictos que emergen entre estudiantes y docentes con relación a la lectura y la escritura en la universidad no se
restringen simplemente a la técnica de la lectura y la escritura, a las habilidades o a la gramática”
97
Original: “sino a aspectos que están relacionados con la identidad, la epistemología y el poder. Esto quiere decir que la
lectura y la escritura también se relacionan con nuestro sentido de pertenencia a la comunidad de la que intentamos formar
parte, con las maneras de construir conocimiento y con las valoraciones diferenciadas que se adscriben a las diversas
formas de lectura y escritura que se practican en nuestra sociedad.”
90

No Brasil, algumas pesquisas em desenvolvimento vêm abordando a experiência


dos estudantes cotistas a partir de seus discursos. Balloco (2010) analisa a construção
identitária de estudantes cotistas, a partir de redações produzidas pelos estudantes sobre sua
experiência de ingresso em uma universidade pública carioca. Suas considerações apontam
para a existência de tensões vividas pelos estudantes nesse espaço, que muitas vezes se mostra
hostil com esse público.
Na região centro-oeste do país, Gonçalves (2012) nos mostra algumas implicações
que a política de cotas provocou nos processos de letramento e de construção do
conhecimento de estudantes no curso de Letras de uma universidade federal. Para isso, a
autora utilizou a metodologia de pesquisa-ação, construindo, junto ao participante, reflexões e
compreensões sobre letramento, sexualidade e raça. A autora observa que as atividades
propostas (bolsa de iniciação científica e participação em atividades acadêmicas) promoveram
tanto um empoderamento do jovem participante, quanto uma melhoria em seu desempenho
acadêmico.
O estudo de Santos (2011)98, mais próximo de nossa pesquisa, enfoca a escrita de
alunos cotistas do sertão. Com base nos Estudos de Letramento, o autor aborda o uso da
citação em Trabalhos de Conclusão de Curso de professores indígenas em formação, os quais
ingressaram por cotas em uma universidade federal do interior baiano. Como resultados
parciais da pesquisa, o autor aponta que, embora os primeiros contatos do aluno cotista com a
referência teórica sejam marcados por resistências, essas tendem a ser provisórias. Esse
movimento de deslocamento parece estar relacionado com o fato de, ao longo do processo de
formação, haver uma apropriação da leitura teórica e do trabalho da citação, os quais passam a
compor o repertório de conhecimentos sobre a escrita do aluno e a fortalecer sua inclusão nas
práticas de letramento legitimadas na universidade.
No sul do Brasil, a criação de uma política de ampliação do acesso ao ensino
superior, por meio de cotas, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
iniciada em 2008, provocou a emergência de pesquisas que visavam compreender este novo
contexto (DOEBBER, 2012; PROLO, 2013; DILLI, 2013; MORELO, 2014). Entre os
trabalhos que abordavam a linguagem, Dilli (2013) e Morelo (2014) centraram sua atenção
nas ações de permanência criadas para os universitários indígenas que decorreram deste novo
modo de ingresso: o Curso de Inglês para Estudantes Indígenas e o Curso de Leitura e

98
Trabalho “Letramento Universitário: o trabalho da citação em Trabalhos de Conclusão De Curso (TCC)”, apresentado
no Simpósio “Letramento crítico: a escrita na formação profissional” do IX Congresso Brasileiro de Linguística Aplicada,
realizado no Rio de Janeiro, entre 25 a 28 de julho de 2011.
91

Escrita na Universidade para Estudantes Indígenas. Com base nos estudos de letramento
acadêmico, Dilli (2013) discute a abordagem pedagógica e teórica que fundamenta essas
ações de permanência, e oferece subsídios para a construção e o desenvolvimento de ações de
permanência que fomentem a diplomação de estudantes de grupos minoritários. Em diálogo
com essas proposições, Morelo (2014) analisa uma experiência de projetos pedagógicos
desenvolvida no Curso de Leitura e Escrita na Universidade para Estudantes Indígenas, de
maneira a compreender como articular a linguagem acadêmica à valorização dos saberes
tradicionais indígenas. Considerando o contexto de ingresso de estudantes indígenas nas
universidades públicas brasileiras, ambos os trabalhos visam à construção de uma educação
superior intercultural e dialógica, de modo a subsidiar práticas pedagógicas que se
contraponham ao discurso deficitário em relação às práticas letradas de estudantes de grupos
indígenas.
No cenário colombiano, Soler (2013) parte de uma típica reclamação de docentes
universitários para contradizê-la – Usted ya en la universidad y no saber escribir?99. Para
isso, discute aspectos da escrita, da geopolítica do conhecimento e do poder na universidade.
A autora sugere que, para entender o impacto desse discurso dominante sobre a escrita na
formação universitária, é necessário aproximar-se da perspectiva dos estudantes. Em sua
pesquisa, utiliza entrevistas em profundidade e depoimentos para análise das trajetórias dos
estudantes – metodologias que lhe permitem escutar de maneira atenta jovens que
ingressaram em uma universidade pública colombiana por meio de política de ação
afirmativa, centrando-se nas vozes de universitários que advêm de grupos historicamente
excluídos do ensino superior.
Suas escolhas possibilitam novas chaves de interpretação ao contrapor-se ao
“discurso do déficit”, com o fim de entender a perspectiva dos sujeitos sobre as práticas de
uso da escrita na universidade, ao invés de compará-las com as práticas de letramento
acadêmico dominantes. Além disso, estabelece conexões entre uso de linguagem e os temas
de interculturalidade e discriminação, para entender o impacto das assimetrias do ponto de
vista dos universitários.
Ao perguntar-se sobre como se ensina e aprende a ler e escrever na universidade,
as pesquisas sobre letramento acadêmico se propõem a compreender o uso social da
linguagem na esfera universitária, expandindo a preocupação com a escrita para as práticas
sociais envolvidas no processo de formação nessa esfera, tais como a construção identitária

99
Tradução: “Você já está na universidade e não saber escrever?”
92

dos sujeitos, as formas de construir conhecimento e as relações de poder, elementos que


constituem as práticas formativas. Com base nessa perspectiva, concebemos o “letramento
acadêmico” como

uma prática social situada, que envolve estratégias discursivas relacionadas


com capacidades para usar códigos utilizados nos contextos acadêmicos,
para ler e escrever textos nos gêneros dessa esfera, a fim de acessar os
conhecimentos produzidos pela academia, para interagir com seus pares por
meio das linguagens adequadas às situações vivenciadas na universidade,
para mobilizar modelos sócio-cognitivos (por exemplo, gêneros) para
alcançar metas, para acessar recursos culturais, tecnológicos, para
experimentar novas situações e para aprender e construir novos
conhecimentos em contextos acadêmicos (KLEIMAN; VIANNA; DE
GRANDE, no prelo).

Esse conceito abrange aspectos discursivos (práticas discursivas, gêneros),


conhecimento (socialmente construído) e modos de interação (co-construção de
conhecimento) que estão implicados nos processos de aprender. Como fica explícito, há uma
visão social de aprendizagem e construção do conhecimento (TERZI, 2001; ROGOFF;
CHAVAJAY, 2004; ZAVALA, 2011) que subjaz nossa perspectiva sociocultural de
letramento. Nessa visão, a aprendizagem é uma prática situada e construída na interação entre
os participantes em cada evento social de que participam. Nesse sentido, apropriar-se das
práticas discursivas do ambiente acadêmico requereria participar em sua diversidade de
eventos, em cada campo disciplinar do qual o estudante deseja fazer parte.

2.3. O TCC como uma prática de letramento acadêmico

A culminação da formação universitária, em variados cursos, é a realização do


Trabalho de Conclusão de Curso (o TCC, no Brasil, ou tesis de grado, na Colômbia). Esse
trabalho nos permite um diálogo com as contribuições da interculturalidade crítica e estudos
descoloniais, ao configurar um espaço de produção de conhecimento e construção de
identidade profissional. Apesar de o TCC ser de grande relevância na trajetória universitária,
tem ocupado pouco espaço nas pesquisas acadêmicas. Considerando essa lacuna, a pergunta
desta pesquisa centrou-se no processo de desenvolvimento e escrita do TCC, pois o
consideramos uma prática social de ritual de passagem, pela qual muitos cursos de graduação
culminam seu complexo processo de formação universitária, apesar de não haver respostas
93

claras para a pergunta: afinal, o que caracteriza o TCC? Uma forma de analisar essa prática
de letramento é mapeando os textos que a compõem.
A pergunta é necessária, mas não tem uma resposta fácil. O primeiro elemento a
pontuar é que o TCC não é obrigatório para todos os cursos. As Diretrizes Curriculares
Nacionais do Ensino Superior definem, para cada curso de graduação, se haverá um TCC, e
qual seu papel na formação acadêmica. Nas Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de
Filosofia, História, Geografia, Serviço Social, Comunicação Social, Ciências Sociais, Letras,
Biblioteconomia, Arquivologia e Museologia100, por exemplo, o TCC aparece em dois
requisitos: ora está ao lado do Estágio Supervisionado – “o Estágio Supervisionado e o
Trabalho de Conclusão de Curso devem ser desenvolvidos durante o processo de formação a
partir do desdobramento dos componentes curriculares, concomitante ao período letivo
escolar”, ora aparece como parte de Atividades Complementares requeridas para a formação,
as quais “devem integralizar a estrutura curricular (com atribuições de créditos), atividades
acadêmicas autorizadas pelo Colegiado tais como: estágios, iniciação científica, laboratórios,
trabalho em pesquisa, trabalho de conclusão de curso, participação em eventos científicos,
seminários extra-classe, empresa júnior, projetos de extensão”. Com base nessas Diretrizes,
podemos delinear duas dimensões do TCC na formação acadêmica: por um lado, a correlação
com as práticas profissionais, e por outro a interface com gêneros acadêmicos.
O TCC, ao ter como propósito culminar uma trajetória universitária, acaba
refletindo as tensões da formação profissional na esfera acadêmica. Mas, os gêneros do
discurso em que se realiza essa prática de letramento acadêmico ilustram os modos de dizer
que foram legitimados em cada área do saber. Para Bakhtin, nessa sequência infinita de dizer
que conforma a linguagem, algumas formas de usar a língua vão se consolidando socio-
historicamente, as quais Bakhtin (2003) chama de gêneros do discurso, dado que

em cada campo existem e são empregados gêneros que correspondem às


condições específicas de dado campo, é a esses gêneros que correspondem
determinados estilos. Uma determinada função (científica, técnica,
publicística, oficial, cotidiana) e determinadas condições de comunicação
discursiva, específicas de cada campo, geram determinados gêneros, isto é,
determinados tipos de enunciados estilísticos, temáticos e composicionais
relativamente estáveis (p. 266).

Ainda segundo Bakhtin, os gêneros refletem as condições específicas e as


finalidades de cada campo não só pelo conteúdo temático e pelo estilo da linguagem
(evidentes na seleção de recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua), mas
100
Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES0492.pdf
94

também pela construção composicional. Os três elementos do gênero – o tema, o estilo e a


estrutura composicional – estariam “indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são
igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação” (p.
262). Essa abordagem, que distingue o Círculo de Bakhtin, baseia-se em uma concepção de
linguagem que toma a noção de poder e os elementos situacionais, próprios da enunciação,
como componentes inseparáveis para a compreensão do uso da linguagem.
Detalhando a definição de gênero discursivo, Rojo (2005) explica que o primeiro
elemento, o tema, seria conformado pelos conteúdos ideológicos que se tornam comunicáveis
(dizíveis) através do gênero; o segundo, o estilo (ou as marcas linguísticas), seriam as
configurações específicas das unidades de linguagem, traços da posição enunciativa do
locutor e da forma composicional do gênero; por fim, o terceiro, a estrutura composicional,
seriam os elementos das estruturas comunicativas e semióticas compartilhadas pelos textos
pertencentes ao gênero (forma). Além disso, para tornar algo dizível em um gênero, esses três
elementos estão intrinsecamente relacionados às práticas de linguagem e à situação de
comunicação, ilustradas no Quadro 1:

Quadro 1 - Relações entre os elementos da situação de comunicação, as práticas de linguagem e


gêneros do discurso
Práticas de linguagem Situação de comunicação

 Esfera comunicativa
 Tempo e lugar históricos (cronotopos)
 Participantes (relações sociais)
 Tema
 Vontade enunciativa/apreciação
valorativa
 Modalidade de linguagem ou mídia
Gênero do discurso Tema
Forma composicional
Unidades lingüísticas (Estilo)
Fonte: Rojo (2005, p. 198), baseado na noção de gênero de Bakhtin (2003).

Todas as dimensões inseridas na situação de comunicação e as práticas de


linguagem vinculam o gênero aos processos de interação social. Nessa visão, exige-se que
compreendamos os gêneros inextrincavelmente conectados à situação comunicativa e os
contextos de produção. Em diálogo com essa proposta, outro autor que se apropria da
produção bakhtiniana para enfatizar o caráter social da linguagem é Bazerman (2006). Para
ele, os gêneros seriam:
95

fenômenos de reconhecimento psicossocial que são parte de processos de


atividades socialmente organizadas. Gêneros são tão-somente os tipos que as
pessoas reconhecem como sendo usados por elas próprias e pelos outros.
Gêneros são o que nós acreditamos que eles sejam. Isto é, são fatos sociais
sobre os tipos de atos de fala que as pessoas podem realizar e sobre os
modos como elas os realizam. Gêneros emergem nos processos sociais em
que pessoas tentam compreender uma às outras suficientemente bem para
coordenar atividades e compartilhar significados com vistas a seus
propósitos práticos (grifos do autor, p. 31).

Esse foco nas atividades humanas realoca o gênero dentro de um sistema de


gêneros (coleção dos sujeitos), que por sua vez está inserido em um sistema de atividades
(coleção de um grupo social). Ambos os conceitos, segundo Bazerman (2006), possibilitam
“analisar como produção, circulação e uso ordenado desses textos constituem, em parte, a
própria atividade e organização dos grupos sociais”, pois essa série de conceitos, como os
fatos sociais, os atos de fala, os gêneros, os sistemas de gêneros e os sistemas de atividades
“sugerem como as pessoas criam novas realidades de significação, relações e conhecimento,
fazendo usos de textos” (BAZERMAN, 2006, p. 19). Para exemplificar esses conceitos, o
autor realiza a descrição de um emaranhado de enunciados orais e escritos que organizam o
funcionamento das atividades no meio acadêmico, demonstrando como cada gênero está
encadeado a diversas ações e a outros gêneros. No que tange à relação entre textos e fatos
sociais, Bazerman (2006) sustenta que esses fatos são gerados por meio da criação de textos,
exemplificando com o contexto acadêmico:

requerimentos de graduação, programas definindo o trabalho de várias


disciplinas, critérios para as disciplinas serem consideradas de escrita
intensiva, listas das disciplinas aprovadas, matrícula de alunos (...). Nesse
ciclo de textos e atividades, vemos sistemas organizacionais bem articulados
dentro dos quais tipos específicos de textos circulam por caminhos
previsíveis, com conseqüências familiares e de fácil compreensão (pelo
menos para aqueles familiarizados com a vida universitária). Temos gêneros
altamente tipificados de documentos e estruturas sociais altamente
tipificadas nas quais esses documentos criam fatos sociais que afetam as
ações, direitos e deveres das pessoas (BAZERMAN, 2006, p. 21).

Nesse emaranhado, podemos descrever diversos gêneros orais e escritos e práticas


sociais que podem compor o processo de elaboração do TCC: as sessões de orientação, os
diversos textos lidos para a escrita de artigos, participações em palestras e conferências,
comunicações orais do trabalho relacionados ao TCC, a defesa do TCC; além de gêneros
burocráticos, tais como o registro do TCC, o agendamento da defesa do TCC, o convite para a
banca, a ata de defesa do trabalho e inclusive a legislação que rege a elaboração do trabalho.
96

Esses elementos podem se articular às demais atividades de formação durante o curso para
outorgar ao estudante o grau de diplomado. Na abordagem de Bazerman (2006), à qual subjaz
a teoria dos atos de fala, há uma ênfase nas relações entre o fazer e o dizer que contribuem
para identificar os encadeamentos nas atividades dos sujeitos, e suas relações com os modos
de dizer, que nos interessa nesta tese.

2.3.1. Uma prática entre as esferas acadêmica e profissional: o desenvolvimento do TCC

A observação e a análise das práticas sociais mediadas por textos nos ajudam a
visibilizar as várias ações que compõe as trajetórias desses estudantes. O foco nas atividades
nos revela que a cada realização desses rituais de passagem há uma potencial tensão, ativada
pela possibilidade de criação de novas formas de lidar com o texto. Desse modo, por um lado,
temos uma potencialidade criativa que é promovida por estudantes e docentes a cada
interação; e, por outro lado, temos a reiteração dos gêneros canônicos que, para o caso do
TCC, em especial, é o gênero monográfico.
Preocupadas com a orientação de trabalhos finais na universidade, as
pesquisadoras Tapia-Ladino e Marinkovich (2013) e Moretto e Bueno (2013) decidiram
abordar o Trabalho de Conclusão de Curso, elaborado nos anos finais de vários cursos de
graduação. Tapia-Ladino e Marinkovich (2013) centram-se nos cursos de graduação em
Jornalismo e Serviço Social de uma universidade do Chile. As autoras descrevem quais são as
concepções que uma comunidade de pesquisadores de cursos das ciências humanas constrói
sobre a escrita acadêmica e sobre o TCC (‘tesis de grado’), porque entendem que “a escrita
acadêmica da qual forma parte a escrita do TCC é uma atividade de inclusão nas práticas
disciplinares e profissionais específicas” (p. 150)101. Ao justificar a escolha do TCC, as
autoras afirmam que,

reconhecemos como gêneros acadêmicos aqueles que são elaborados


preferencialmente dentro do âmbito universitário. Como parte de seu
processo formativo, os estudantes universitários desejam ingressar na
comunidade discursiva de sua especialidade com o fim de manter e expandir
o conhecimento de sua área e assim passar a ser membros do grupo (TAPIA-
LADINO; MARINKOVICH, 2013, p. 150).102

101
Original: “La escritura académica de la cual forma parte la escritura tesis es una actividad de inclusión a las prácticas
disciplinares y profesionales específicas”.
102
Original: “reconocemos géneros académicos como aquellos que se elaboran preferentemente dentro del ámbito
universitario. Como parte de su proceso de formación, los estudiantes universitarios requieren ingresar a la comunidad
97

As autoras partem da hipótese de que o TCC é entendido como um texto da vida


profissional por estudantes e docentes; contudo, em sua análise, essa expectativa é revisada.
Ao observar a experiência nos dois cursos pesquisados, verificaram que apenas para os
estudantes e professores do Serviço Social o TCC fazia parte do contexto profissional. Para as
autoras, o TCC é um gênero do discurso acadêmico que realiza uma atividade de produção de
conhecimento, podendo ser mais ou menos vinculado às atividades profissionais dos
graduandos. Por isso, as autoras caracterizaram diferentes dimensões de seu processo de
elaboração, tais como: as características do TCC, as dificuldades em seu processo de escrita, o
apoio no desenvolvimento da escrita, a função de textos escritos especializados na formação,
os processos de ensino-aprendizagem, os tipos de textos exigidos na formação, as
características dos escritos e a escrita dos docentes. Como resultados, Tapia-Ladino e
Marinkovich (2013) ponderam que: i) para o curso de Jornalismo o TCC era visto como uma
investigação jornalística, gênero que gerava certa dificuldade para os estudantes e não seria
tão exigido na sua carreira profissional; enquanto que ii) para o curso de Trabalho Social o
TCC era solicitado na forma de um relatório social, gênero dominado com facilidade pelos
estudantes e muito utilizado no seu cotidiano profissional.
Os resultados dessa pesquisa reorientam os pressupostos sobre a tensão em que os
TCC são elaborados, entre gêneros da esfera profissional ou acadêmica. Conforme as autoras
explicam, os cursos possuem resoluções diferenciadas frente aos propósitos do trabalho, e
podem, inclusive, escolher um gênero que articule ambas as esferas, como veremos no caso
dos cursos de jornalismo e licenciaturas da Universidad Pública Paisa, analisados nesta tese.
No cenário brasileiro, a discussão de Moretto e Bueno (2013) destaca a pouca
visibilidade nas pesquisas para um elemento tão importante na formação universitária, o TCC:

pouco se tem estudado sobre o trabalho de conclusão de curso nas


universidades. Afinal, quem é que nunca viu um aluno desesperado no
último semestre de graduação tentando finalizar o Trabalho de Conclusão de
Curso? O bicho de sete cabeças, o tão temível TCC parece ser, diante desse
quadro, o teste final para que o aluno possa demonstrar à comunidade
acadêmica que se apropriou do discurso ditado por ela e ocupou a posição de
pesquisador (p. 238).

discursiva de su especialidad con el fin de mantener y extender el conocimiento de su área y así pasar a ser miembros del
grupo.” (p. 150)
98

As autoras se dizem motivadas pela experiência de orientar esses trabalhos e se


defrontarem com questões que surgem no árduo processo da redação de um TCC. Com essa
preocupação, elas afirmam que a elaboração desses trabalhos e sua orientação exigem um
conjunto de atividades mais complexas do que o domínio do formato do trabalho; pois, para
elas, o principal problema é o gerenciamento de vozes, o que, segundo as autoras,
provavelmente ocorre “porque não há um espaço nas grades curriculares dos ensinos
superiores para o ensino das dimensões ensináveis do gênero monografia, bem como
materiais didáticos adequados a promover o letramento dos alunos nessa esfera” (p. 252). As
autoras analisam justamente os conflitos quando o gênero exigido para o desenvolvimento do
TCC é exclusivo da esfera acadêmica. Cotejando com o conceito de gênero, Moretto e Bueno
(2013) destacam ainda que, pelo fato de o TCC contemplar “uma diversidade de textos que
apresentam características funcionais e organizacionais distintas” (p. 255), elas compreendem
que uma monografia pode ser considerada um suporte103 por esta comportar diferentes
gêneros.
No entanto, divergimos dessa categorização de monografia ou suporte, já que
compreendemos a elaboração do TCC como uma prática de letramento que envolve uma série
de modos de fazer e dizer, pressupondo uma diversidade de gêneros que os compõem. A
monografia, por exemplo, é um dos gêneros mais solicitados para esse exercício de
finalização da graduação, o TCC, mas também o são relatórios de estágio, elaboração de
matérias jornalísticas, entre outros. Assim, há duas importantes questões a serem discutidas ao
abordar o TCC: por um lado, se os gêneros do TCC são da esfera profissional ou acadêmica;
por outro lado, quais seriam as dimensões ensináveis dos gêneros que compõem o TCC (como
o gerenciamento de vozes). A primeira questão está relacionada ao conceito de letramento
para e no local de trabalho, como na discussão de Kleiman e Silva (2008) sobre as brechas
entre as demandas em cenários avaliativos do professor e os necessários conhecimentos para
realizar sua profissão. Perguntas similares teriam de ser propostas pelas coordenações dos
cursos ao definirem como será realizada a prática de letramento do TCC. A segunda questão
se orienta para as reflexões sobre as práticas de ensino na formação universitária; e, nesse
âmbito, acreditamos que uma abordagem do TCC como prática de letramento acadêmico
poderia dar um marco mais plural frente aos diferentes gêneros que a atualizam. Nessa
direção, ressaltaríamos o cuidado em não pôr demasiada atenção nas dimensões ensináveis
103
A mesma definição é atribuída, algumas vezes, para o Livro Didático (LD), por seu caráter de possuir diferenciados
gêneros. No entanto, Bunzen (2009), em “O livro didático de língua portuguesa: um gênero do discurso” (dissertação em
Linguística Aplicada/Unicamp), analisa o LD como um gênero discursivo por este se conformar justamente a partir de
outros gêneros, como a definição e gênero secundário de Bakhtin (2003).
99

dos gêneros, com o fim de promover processos de ensino-aprendizagem que emirjam das
práticas sociais e abram espaço para transformações dos gêneros dos discursos da esfera
acadêmica.
Em relação à proposta de Tapia-Ladino e Marinkovich (2013), corroboramos seu
posicionamento em abordar a escrita do TCC como uma atividade de inclusão nas práticas
disciplinares e profissionais específicas, e reconhecer que há uma variabilidade de gêneros do
discurso que são exigidos ao longo do seu desenvolvimento. Assim, a pesquisa das autoras
nos instiga a pensar no TCC como uma prática de letramento constituída por uma variedade
de textos e atividades, que podem estar mais vinculados ao mundo laboral ou ao acadêmico,
assim como podem buscar articulá-los. Junto a isso, essa prática envolveria diferentes etapas e
processos, que, embora socioculturais, apresentam singularidades em cada instituição.
No que tange à variabilidade textual no TCC, como já notamos, a proposta de
Zavala (2010) amplia os questionamentos desse tema ao pôr em cena o potencial criativo que
estudantes vêm empregando para lidar com as práticas de letramento acadêmico. Para a
autora, o diálogo com as teorias descoloniais nos ajudaria, nos estudos de letramento, a
examinar com maior acurácia o que contaria como conhecimento relevante nas disciplinas ao
dirigir nossa atenção para novas formas de significar, flexibilizando as convenções
acadêmicas.
A autora considera que o silêncio sobre as convenções da escrita acadêmica, em
sociedades desiguais, corrobora a desvalorização de alguns conhecimentos frente a outros, o
que tratamos, nesta tese, como epistemicidio ou violência epistêmica (SANTOS, 2009;
CASTRO-GÓMEZ, 2010). Assim, essa preocupação com as novas formas de significar –
subjacente à perspectiva sociocultural de sua pesquisa – levou a autora a investigar as criações
linguísticas de universitários quéchuas para dar conta das exigências acadêmicas. Nessa
perspectiva, o letramento é analisado tanto a partir da ação dos sujeitos, como a partir dos
discursos acerca da linguagem que expressam. Conforme expõe Zavala (2011),

nos encontramos frente a uma nova noção de escrita, que já não implica um
objetivo, mas sim uma atividade. Escrever não é apenas um produto
(linguístico) ou um processo (cognitivo), mas uma prática situada, social,
material, ideológica e histórica (Canagarajah 2003). Nesta linha, os
pesquisadores começaram a se perguntar pelas estratégias que desenvolviam
os estudantes no processo de apropriação da escrita acadêmica, e não apenas
pelos textos como um produto acabado. (...) A noção de estratégia se vincula
com o emprego da agência dos sujeitos em uma tentativa de lidar com os
100

104
ditames da ideologia ou das representações dominantes na sociedade. (p.
92)

Esse caráter criativo e construtivo é constituído por meio de estratégias105, as


quais, para Zavala (2011), demonstram que os sujeitos podem travar pequenas lutas para lidar
com as representações dominantes em suas sociedades. Segundo ela explicita, apesar de não
haver muito espaço para criação de novos gêneros na esfera universitária, os estudantes
promoveram práticas que geraram novos gêneros para dar conta dos gêneros exigidos na
academia. Contudo, esse potencial criativo ficou silenciado em um mundo paralelo à
universidade, já que esses escritos – embora lhes ajudassem a compreender os textos e a
produzir trabalhos disciplinares – não circulavam nos espaços de aula ou nos trabalhos para a
disciplina. Na proposta da autora, é preciso que as universidades reconheçam a pluralidade de
experiências estudantis, de uma perspectiva de empoderamento que compreenda que os textos
acadêmicos serão criativamente modificados como consequência dos conhecimentos que
tragam os estudantes.
Nessa direção, é relevante ponderar, em relação ao letramento acadêmico, que a
abordagem do gênero discursivo pode dar-se não apenas desde sua estabilidade, mas também
a partir de sua relatividade e transformação. Preocupada com uma agenda de formação
universitária mais democrática e dialógica, Zavala (2011) nos propõe que ensinemos o
letramento acadêmico de forma mais clara aos estudantes, descontruindo seus mistérios. Além
disso, a autora reitera que o ensino do letramento acadêmico de forma crítica pressuporia
tanto revisar as relações de poder que estão por trás dos discursos formativos, quanto entender
que os alunos inseridos no ambiente acadêmico também possuem saber e agência. E, por fim,
projeta um espaço de ensino que vise a rupturas e mudanças nos gêneros, já que eles são
apenas relativamente estáveis e não imutáveis; isso com o fim de permitir a esses alunos que
possam dizer e sentir-se parte da instituição acadêmica.

104
Original: “Nos encontramos frente a una nueva noción de la escritura, que ya no implica un objeto sino una actividad.
Escribir no es solo un producto (lingüístico) o un proceso (cognitivo), sino una práctica situada, social, material,
ideológica e histórica (Canagarajah 2003). En esta línea, los investigadores han empezado a preguntarse por las estrategias
que desarrollan los estudiantes en el proceso de apropiación de la escritura académica y no solo por los textos como
producto acabado. (…) La noción de estrategia se vincula con el despliegue de la agencia de los sujetos en un intento de
lidiar con los dictámenes de la ideología o las representaciones dominantes en la sociedad”.
105
Sua definição de estratégias é muito próxima do conceito de táticas de De Certeau (1981), pois o autor considera
táticas as ações que os sujeitos realizam em seu cotidiano para mudar a ordem estabelecida, enquanto as estratégias seriam
as ações institucionais para manter a ordem estabelecida. Nesta tese, preferimos não fazer a diferenciação entre táticas e
estratégias, e chamamos estratégia o que para De Certeau são táticas.
101

Em síntese, a autora apresenta estratégias para desvelar as relações de poder


estabelecidas na esfera acadêmica. Com base em uma abordagem dos gêneros do discurso que
incorpora a proposta de enfocar mais do que a estabilidade dos gêneros, sua relatividade,
visamos abordar o processo de desenvolvimento e escrita do TCC, enfocando as estratégias de
estudantes cotistas para lidar com o letramento acadêmico.
Para esta tese, consideramos válido observar e analisar os gêneros do discurso por
meio dos quais se atualizam as práticas de letramento acadêmico implicadas na elaboração do
TCC, que se diferem nos variados cursos de graduação. Para isso, consideramos o fato de que
os escritos que compõem o TCC são multigenéricos, podendo utilizar monografia, projetos de
aula, documentários, levantamento bibliográfico, entre outros –, o que nos demonstra que o
TCC pode ser um catalisador de diversos gêneros profissionais e/ou acadêmicos. Devido a
essa caracterização, vamos abordar o TCC como uma prática de letramento acadêmico. Como
princípio metodológico dos estudos de letramento acadêmico, envolvemos tanto as práticas
sociais quando os textos que as mediam, com o propósito de desenvolver uma etnografia
profunda do uso da linguagem (LILLIS, 2008). Nossa opção, nesta tese, reflete uma visão
dialógica da linguagem. A partir daí, lançamos mão do conceito de gêneros do discurso para
compreender essa cadeia enunciativa que conforma o uso da linguagem, já que

se a ação de produção de linguagem é o que garante, da perspectiva


bakhtiniana, tanto a unicidade quanto a finalização do enunciado9 e, mais do
que isso, se o enunciado é fruto da experiência com a linguagem nas
diferentes esferas de atividades sociais, tem-se que, da perspectiva
bakhtiniana, os gêneros do discurso são um artefato simbólico10, de
mediação entre o sujeito e o outro, entre o sujeito e o objeto, entre o sujeito e
uma dada atividade e, enfim, entre o sujeito e uma certa esfera social
(MATENCIO, 2006a, p. 140).

Ao incorporar as discussões pós-coloniais e descoloniais (MIGNOLO, 2003;


WALSH, 2009; KLEIMAN, 2013), a reflexão sobre a assimetria na produção de
conhecimentos passa a ser um ponto de análise, e com ela, consideramos a faceta epistêmica
desses artefatos simbólicos, os textos produzidos no TCC. Estudos descoloniais vêm
contribuindo para esse amplo leque de respostas possíveis, movido pelas forças centrífugas,
como aqueles que abordam práticas de reexistência em contextos coloniais ou pós-coloniais.
Nesse campo, Pratt (1991) analisa um texto autoetnográfico, de um intelectual quéchua,
Guaman Poma106, elaborado no período colonial, para criticar as atuações da colônia

106
O trabalho de Pratt (1991) descreve a narrativa autoetnográfica de um intelectual quéchua, Felipe Guaman Poma de
Ayala. No livro “Nova crônica e o Bom Governo”, Poma de Ayala se propôs, durante a colônia, a criticar o sistema de
102

espanhola. Esse texto revela estratégias de subversão das relações coloniais, o que, como
pontua a autora, ao ter sido produzido na zona de contato (PRATT, 1991) que provoca o
colonialismo, envolveu ações colaborativas entre intelectuais letrados abolicionistas e ex-
escravos. Guaman Poma ilustra um processo de transculturação, ao usar os conhecimentos e a
linguagem da coroa para criar estratégias de mudança e de ruptura com o status quo. No
âmbito da linguagem, suas artes letradas na zona de contato foram compostas por elementos
como autoetnografia, transculturação, crítica, colaboração, paródia, bilinguismo, mediação,
denúncia, diálogo imaginário e expressões vernáculas107 – noções que serão retomadas no
quinto capítulo. Esses elementos, embora muitas vezes sejam respostas possíveis, acabam
silenciados pelo discurso monológico das grandes narrativas históricas e da normatividade.
Em diálogo com essa proposta de artes letradas na zona de contato, podemos
compreender a produção do TCC sob aspectos: por um lado, por sua função epistêmica, que
envolve a produção de conhecimento; por outro lado, por sua função sócio-relacional, que
envolve a construção de uma identidade profissional. Assim, ampliamos o espectro de análise
desses trabalhos de maneira a abordar o processo de escrita dos estudantes, suas narrativas
sobre o mesmo, assim como os indícios de suas estratégias deixados no próprio texto
(imagens, agradecimentos, dedicatórias, referências bibliográficas, etc). Suas narrativas sobre
o desenvolvimento do TCC, assim como suas próprias produções escritas, nos dão pistas para
analisar as estratégias criadas pelos estudantes, seja de apropriação dos modos de dizer
convencionais da sua área de conhecimento, seja de subversão dos mesmos. Desse modo,
nosso olhar estará enfocado tanto nas trajetórias construídas pelos estudantes, quanto nas
mudanças nas formas de dizer e de fazer nas práticas de letramento acadêmico. Ao abordar o
TCC como espaço de construção de identidade e conhecimento, esperamos contribuir para o
campo de letramento acadêmico ao propor laços entre as práticas sociais de leitura e escrita,
identidade e assimetrias na produção de conhecimento.

colonização no Peru. Pratt resgata, em sua análise, as diferentes estratégias utilizadas por Poma de Ayala para se enunciar
contra o regime colonial. Sua produção em meio à colonização é considerada pela autora uma produção da zona de
contato.
107
A autora também observa que há riscos que ameaçam os escritos da zona de contato, como a má compreensão, a
incompreensão ou mesmo a não leitura.
103

3. Entrando em campo

…there is no power without resistance. Power engenders resistance and is always being resisted. (Deborah
Cameron et al., 1992)

Neste capítulo, apresentaremos as escolhas metodológicas e a descrição da


geração de dados para esta pesquisa, situada no campo crítico e transdisciplinar da Linguística
Aplicada (SIGNORINI; CAVALCANTI, 1998; MOITA LOPES, 2006; KLEIMAN, 2013).
Os contextos da pesquisa emergem de uma questão de grande polêmica e relevância social: a
flexibilização de políticas de ingresso ao ensino superior (assim como sua permanência nele).
Com base nos conflitos desse contexto, interessamo-nos em reconhecer quais estratégias eram
mobilizadas por estudantes cotistas para lidar com práticas de letramento acadêmico, o que
determinou a escolha por uma pesquisa qualitativa.
Nossa compreensão de pesquisa qualitativa está em consonância com a definição
de Mason (1996), que a descreve como uma pesquisa:
 fundamentada em uma posição filosófica que é amplamente
"interpretativista", no sentido em que está preocupada com a forma como o
mundo social é interpretado, entendido, experienciado ou produzido. (...)
 baseada em métodos de geração de dados que são flexíveis e sensíveis
ao contexto social em que os dados são produzidos (em vez de rigidamente
padronizados ou estruturado, ou removidos da "vida real" ou do contexto
social "natural", como em algumas formas de método experimental).
 baseada em métodos de construção de análise e explicação que
envolvem entendimentos da complexidade, do detalhe e do contexto. A
pesquisa qualitativa tem como objetivo produzir compreensões
desenvolvidas sobre bases de dados densos, contextualizados e detalhados108
(MASON, 1996, p. 4).

Em diálogo com esses princípios, nossa preocupação na realização da


investigação foi em mostrar formas alternativas de interpretar, entender, experienciar e

108
Original: “- grounded in a philosophical position which is broadly “interpretivist” in the sense that is is concerned with
how the social world is interpreted, understood, experienced o produced. (…); - based on methods of data generation
which are flexible and sensitive to the social context in which data are produced (rather than rigidly standardized or
structured, or removed from “real life” or “natural” social context, as in some forms of experimental method); - based on
methods of analysis and explanation building which involve understandings of complexity, detail and context. Qualitative
research aims to produce rounded understandings on the basis of rich, contextual, and detailed data.” (p. 4)
104

produzir nosso mundo social. Nessa escolha, quando elaboramos trabalhos investigativos com
populações que se encontram em situação de desigualdade e/ou vulnerabilidade social, um
desafio que se impõe é repensar as formas tradicionais de desenvolver pesquisa.
Em nosso contexto latino-americano, a colonização propiciou a realização de
pesquisas que serviram como ferramenta para, em um primeiro momento, conhecer os saberes
de populações indígenas e afrodescencentes com o fim de apropriar-se deles e, em um
segundo momento, invisibilizar a autoria desses saberes; processo que resultou na sua
expropriação do legado dessas comunidades. Trabalhos como os de Nieto (2000) e Castro-
Gómez (2005), na Colômbia, e de Carneiro (2005), no Brasil, analisam e mostram em detalhe
o fenômeno que Santos (2009) nomeia “epistemicidio”, entendido como “processos de
opressão e de exploração, [que] ao excluir grupos e práticas sociais, excluem também os
conhecimentos usados por esses grupos para levar a cabo essas práticas.”109 (p. 12). Essa
morte de outras formas de conhecer é parte do que Santos chama de injustiça cognitiva
global.
Reconhecendo essas injustiças cognitivas, esta pesquisa se propôs a examinar
trajetórias universitárias de jovens negros e indígenas que ingressaram em universidades
públicas por políticas afirmativas. Isso nos colocou o desafio metodológico de criar uma
experiência de escuta atenta e de envolvimento no campo, de modo a ouvir e olhar esses
sujeitos outros de forma sensível e comprometida. Para isso, ao longo do desenvolvimento do
trabalho, foi relevante questionar sobre os acordos negociados entre pesquisador e
participantes, tendo em vista que “a ética precisa ser co-construída inter ou
multiculturalmente” (CAVALCANTI, 2006, p. 250). Além disso, um dos desafios foi manter
cientes todos os envolvidos na investigação quanto aos limites da pesquisa (VÓVIO; SOUZA,
2005, p. 50). As reflexões durante o desenvolvimento da pesquisa nos levaram a inserir o
trabalho no marco de propostas de pesquisa empoderadora e colaborativa.

3.1. Dos desafios de pesquisar sobre, para e com os participantes

Nomear como “participante” as pessoas que fazem parte do processo investigativo


demonstra um deslocamento na visão do pesquisador: antes um “objeto de estudo” e agora
sujeitos partícipes e ativos na pesquisa. Essa mudança também se revela em um movimento

109
Original: “Los procesos de opresión y de explotación, al excluir grupos y prácticas sociales, excluyen también los
conocimientos usados por esos grupos para llevar a cabo esas prácticas”.
105

de pesquisar sobre a um de pesquisar para e com. Nesse cenário, aparece o termo


“empowerment”110 – traduzido nesta tese por empoderamento – que poderia ser sintetizado
como um conjunto diverso de ações que visam propiciar que o indivíduo em situação de
subalternidade se fortaleça e subverta essa situação. Esse termo, muito presente nos trabalhos
sobre gênero, raça e classe, também traz contribuições para o fazer científico. Justamente por
isso, a partir de reflexões tecidas sobre o empoderamento, presentes em trabalhos de pesquisas
acadêmicas (KLEIMAN, 1995; 2006; BORGES, 2007; VÓVIO, 2007; SITO, 2010; SOUZA,
2011, entre outros), podemos fomentar cenários propositivos para que os atores sociais
possam usar os resultados a seu favor, apropriando-se deles, e, com isso, talvez se
empoderem. É importante observar que o poder sempre está em tensão, não é algo dado ou
um produto, mas um jogo de relações que, inseridas em um contexto sócio-histórico, por
vezes é transformado pelos sujeitos que em situações de opressão e subalternização lutam por
alterar o status quo. Logo, não entendemos que resultados de pesquisa por si só empodera os
sujeitos participantes de uma pesquisa, mas que eles, ao lançar mão de resultados pesquisas
realizadas (ou em desenvolvimento) sobre, para e com eles, possam empoderar a si mesmos.
Nos estudos aplicados de linguagem, a proposta de pesquisas que fomentam o
empoderamento ganhou força na década de 1990. A publicação de Cameron et alii (1992)
contrasta dois paradigmas de pesquisa e detalha aquele que têm um perfil empoderador (o
paradigma que defendem). Em sua discussão, os autores destacam que é necessário repensar
tanto a relação entre pesquisador e pesquisados quanto as relações de poder na proposição de
uma pesquisa empoderadora. Ao questionarem o paradigma da ética como um pesquisar
sobre ou ainda um fazer ou falar por (“advocacy”) –, ou seja, pesquisar sobre e para um
grupo –, eles salientam que, nesses dois paradigmas, não há uma implicação dos interesses
dos participantes da pesquisa na agenda do pesquisador; o que mantém uma relação
assimétrica entre pesquisador e pesquisado. O paradigma de empoderamento proposto pelo
grupo se empenharia em pesquisar sobre, para e com os sujeitos, permitindo ao pesquisador
ser afetado pelas demandas e interesses dos participantes da pesquisa.
É esta ética que tem marcado a produção científica na Linguística Aplicada
brasileira. Um grupo variado de linguistas aplicados (SIGNORINI; CAVALCANTI, 1998;
MOITA LOPES, 1994, 2006, 2013; KLEIMAN; CAVALCANTI, 2007) destacam a
relevância das agendas sociais na construção de conhecimento da área, envolvendo um
exercício interdisciplinar e de intercambio com os participantes. A mudança nos modos de
110
Esse termo é definido no dicionário Oxford como o “ato de dar a alguém mais controle sobre sua própria vida ou a
situação em que estão”, ou “o ato de dar a alguém o poder ou autoridade para fazer algo”.
106

compreender e nomear as pessoas, por exemplo, como “coautores” ou “participantes da


pesquisa” ao invés de “objetos da pesquisa” é resultado desse debate no campo da LA.
Nesta pesquisa, não é diferente. Em meio a um cenário de implementação de uma
política pública – a reserva de vagas para jovens negros e indígenas no Ensino Superior –, a
polêmica sobre as cotas silenciou outras questões, como as reflexões sobre a permanência dos
estudantes e a própria crítica à universidade que esse tipo de política fazia emergir111. Em
meio a essa discussão, era necessário um desenho de pesquisa que abrisse espaço para uma
construção coletiva. Por isso, retomamos a discussão apresentada por Cameron et al. (1992)
sobre a pesquisa empoderadora, cuja singularidade se dá na construção coletiva de uma
agenda de pesquisa.
Esse processo implica ter um conhecimento compartilhado durante o
desenvolvimento do trabalho. Entre as características constituintes desse perfil de pesquisa,
estão:
 O uso de métodos interativos: as pessoas não são objetos, logo não deveriam ser
tratadas como tal. Há uma reivindicação em tratar as pessoas como sujeitos
participantes da construção do conhecimento.
 A importância das agendas dos próprios sujeitos: a existência de negociação
durante todo o processo, pois os sujeitos possuem suas próprias agendas e o
pesquisador deveria tentar ir a seu encontro.
 A questão do retorno e do conhecimento compartilhado: isso requer desde o início
estar consciente das agendas dos participantes para avaliar que produtos (para além de
dissertações e teses) podem ser compartilhados, pois se requer que os participantes
possam utilizá-los de acordo a seus interesses.
Entre os itens apontados, ressaltamos um elemento importante em relação aos
imponderáveis do campo de que já nos advertia o antropólogo Malinowski (1976). Utilizar
métodos interativos é um elemento muitas vezes previsto na metodologia definida a priori;
porém, quando buscamos envolver as agendas dos sujeitos e definir os modos de retorno e
compartilhamento de conhecimento – ou seja, a inter-ação de fato –, um cenário mais instável
para o perfil de pesquisa se desenha.
Durante as entrevistas, pela emoção com a qual os estudantes narravam suas
histórias emergiu a ideia de realizar um documentário com as participantes. Comentamos com
a estudante de jornalismo, que acolheu a ideia com muito entusiasmo e se propôs a participar

111
Críticas em relação à (falta de) didática na formação universitária, ao currículo ou às assimetrias entre conhecimentos
na universidade. Ver a elaboração de Kleiman (2013) sobre essa questão.
107

na sua elaboração. Todavia, devido ao tempo que requereria a realização de um material


audiovisual, esse plano teve de ficar para depois da conclusão da tese. Seguimos com o
propósito de construir um documental, mas já o visualizamos como uma forma de retorno e
compartilhamento de conhecimento depois da finalização do relatório da pesquisa (e com
base nele)112.
Dizemos isso porque, embora lidássemos com metodologia interativa e fosse clara
a importância da agenda dos próprios sujeitos para nós, não era tão claro, no início da
pesquisa, como realizaríamos seu retorno e o compartilhamento do conhecimento produzido.
Havia um impasse entre a teoria e a prática, tanto pela dificuldade de constituir grupos
permanentes de discussão nos dois países ao longo do estudo, quanto por, muitas vezes,
durante as entrevistas, entender que fazia muito sentido que os interlocutores do produto final
da tese fossem os gestores públicos, mais do que os estudantes – já que estes últimos tinham
muita consciência do panorama que nos ajudavam a construir durante a elaboração da tese.
Enfim, levar em conta os elementos da proposta de pesquisa empoderadora de Cameron et al.
(1992) foi uma preocupação constante para nós.
Mas durante o desenvolvimento da pesquisa, seja pelas leituras, seja pelo contato
com os dados, novas ideias se somaram ao estudo. As problematizações sobre a experiência
de trabalho de campo, discutidas por Briones (2013), apresentaram algumas respostas frente a
esse impasse. Esta autora, ao discutir possibilidades de realizar uma pesquisa antropológica
participativa junto à população indígena Mapuche (na Argentina), reflete sobre as relações de
assimetria que se constroem no fazer académico antropológico, que nos servem para pensar o
próprio fazer investigativo na Linguística Aplicada.
Em sua reflexão, Briones (2013) explora três distintas formas de interação entre
pesquisador e participantes da pesquisa. Uma delas é o fazer científico que mantém
assimetrias de conhecimento, sejam elas procuradas ou não, reconhecidas ou não. A autora
exemplifica essa forma de pesquisar com um estudo que realizou sobre bruxaria, no qual
estava mais interessada em explicar o fenômeno do que em seguir as pistas dos Mapuche
sobre sua própria compreensão sobre a bruxaria, o que resultou em uma imposição de sua
agenda da teoria sobre a vida social. A segunda forma de o pesquisador interagir com os
grupos, apresentada pela autora, é a pesquisa com colaborações acordadas ou demandadas
para a produção de conhecimento. O exemplo vem de seu trabalho junto à comunidade
Mapuche, no qual havia uma negociação entre a pesquisadora e a comunidade para definir o

112
Nas consultas que realizamos com equipes de comunicação social, uma primeira etapa para a criação de um
documental é justamente uma pesquisa sobre o tema, para a qual a tese contribuirá.
108

que seria relevante como fruto da pesquisa para ambas as partes, tal como os riscos para a
comunidade com a divulgação de informações concedidas em campo. A terceira forma de
interação, ensaiada nesse momento pela pesquisadora em um trabalho com populações
carcerárias, é o que ela chama autonomias consentidas ou mutuamente reclamadas nas
respectivas práticas do conhecer. Nessa postura, a autora propõe uma quebra de assimetrias a
fim de construir um diálogo de parceria com os grupos e um princípio de que haverá ganhos
para todas as partes. Essa forma de fazer pesquisa requer negociações no mesmo nível entre
os participantes, além de pressupor que haja agendas paralelas em negociação, o que inclui
tempos e produtos diferenciados.
Ao final, a partir das reflexões acerca de sua experiência de trabalho – a mais
longo prazo com comunidades Mapuche e atualmente com população carcerária –, Briones
(2013) aponta algumas revisões e sugestões sobre como pensar a produção de conhecimento
colaborativa em contextos interculturais. Uma contribuição de sua proposição é uma
flexibilidade disciplinar, de forma que os pesquisadores possam construir experiências de
trabalho mais interdisciplinares, nas quais os conhecimentos de distintos campos se somam
para a compreensão da vida cotidiana. Outra contribuição é a recomendação do exercício de
construir agendas de pesquisa em conjunto; agendas que podem ser divergentes, mas que
fomentem a reflexão conjunta sobre a produção acadêmica. Por fim, a contribuição que mais
nutre esta pesquisa é sua orientação de reconhecer os dispositivos epistemicidas da
antropologia (e, poderíamos dizer das ciências sociais), a saber: a hegemonia hermenêutica –
expressa na supremacia da voz do pesquisador sobre os sujeitos – e a hegemonia
comunicativa – expressa na inflexão dos métodos de geração e registro de dados.
A nosso ver, as categorias de hegemonias hermenêutica e comunicativa podem ser
conceitos que nos ajudam a caracterizar com mais detalhe as relações de poder existentes nas
interações entre pesquisador e outros participantes da pesquisa a que fazem referência
Cameron et al. (1992). Assim, construir uma pesquisa empoderadora requer observar de que
ponto de vista falamos como pesquisadores, em especial, na tessitura das publicações finais,
nas quais nossa postura pode reproduzir ou transformar a supremacia da voz do pesquisador
sobre os sujeitos (hegemonia hermenêutica). Também no processo da pesquisa, a seleção dos
métodos de geração e registro de dados (hegemonia comunicativa) pode implicar mudanças
nessas hegemonias. Outra alternativa, que vemos como viável, para romper essas hegemonias
é produzir uma pesquisa que se proponha a ecoar as diferentes vozes dos participantes o mais
próximo possível de seus próprios pontos de vista.
109

Alinhar-se a uma proposta de empoderamento implica reconhecer esses legados


em nossos campos científicos – como problematiza Kleiman (2013) – assim como questionar
justamente essas marcas recebidas como uma herança em nossa produção de conhecimento
científica. Esse movimento poderá fomentar a elaboração de outras formas de construção de
conhecimento.
Nesse sentido, a escolha de uma concepção de linguagem coerente com essa
postura, no desenvolvimento do trabalho, está alinhada com uma busca por métodos de
construção de análise e explicação que nos permitam construir interpretações a partir da
complexidade e singularidade de cada contexto. Como nos propõe Mason (1996), a pesquisa
qualitativa tem como objetivo produzir compreensões desenvolvidas sobre bases de dados
densos, contextualizados e detalhados. Para tentar registrar outras formas de dizer e olhar,
buscamos nos centrar nas experiências e discursos dos estudantes, de modo a analisá-los
como uma infinita cadeia enunciativa, com base na noção bakhtiniana de dialogismo. Além
disso, analisar essas experiências é registrar as compreensões desses e dessas estudantes sobre
os espaços em que se constituíram os acontecimentos que lhes marcaram. Essa visão profunda
sobre a experiência é descrita por Larrosa (2002), nestas palavras:

seria algo como um território de passagem, algo como uma superfície


sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos,
inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos. Se
escutamos em francês, em que a experiência é “ce que nous arrive”, o sujeito
da experiência é um ponto de chegada, um lugar a que chegam as coisas,
como um lugar que recebe o que chega e que, ao receber, lhe dá lugar. E em
português, em italiano e em inglês, em que a experiência soa como “aquilo
que nos acontece, nos sucede”, ou “happen to us”, o sujeito da experiência é
sobretudo um espaço onde têm lugar os acontecimentos (p. 24)

A definição do autor nos abre um campo interpretativo para olhar a experiência a


partir da observação das percepções e construções das identidades, diferenças e redes de
solidariedade, narrativas sobre suas experiências para compreender aquilo que lhes chega e
lhes acontece. Essas experiências nos trazem indicadores de apropriações, resistências e
reexistências, ao revelar as formas como quem lidam com as práticas de letramento
acadêmico que já estão estabelecidas. Como Cameron et alii (1992) destacam, a atenção do
pesquisador pode orientar-se também para as respostas dos sujeitos frente ao poder, pois para
eles o poder está sempre ativando a resistência, de maneira que sempre há forças resistindo a
relações de poder impostas. Ao considerar essa premissa e não assumir uma reprodução
eterna das relações estabelecidas, abre-se um horizonte de possibilidades, alternativas e
mudanças possíveis no decorrer da pesquisa.
110

3.2. O fazer investigativo em ação: narrando a geração de dados

Optar por um perfil de pesquisa empoderadora e qualitativa requer a escolha de


componentes metodológicos que sejam coerentes com esse posicionamento. Passamos, então,
a descrever as escolhas metodológicas de geração de dados desta pesquisa.
O compromisso em acercar-nos da perspectiva de universitários fomentou uma
primeira escolha de métodos de pesquisa, cujo objetivo era desenvolver um olhar etnográfico
na análise dos dados gerados, ou uma etnografia como teorização profunda como propõe
Lillis (2008), ou seja, articular uma boa conexão entre análise das práticas sociais e dos
textos. Num primeiro momento, os métodos escolhidos para a pesquisa foram grupo de
discussão, diários de letramento113 e análise documental de textos sobre as políticas públicas.
Contudo, a entrada em campo alterou seu desenho inicial. O primeiro contato com os
estudantes começou a mostrar uma série de dificuldades no desenvolvimento de grupos de
discussão planejados.
Durante a primeira incursão em campo, realizada no contexto brasileiro,
observamos que havia dificuldade para encontrar os estudantes cotistas. No que concerne aos
estudantes negros com quem havíamos feito contato, eles possuíam uma carga horária de
trabalho e estudo pesada e apresentavam uma alta inserção no mercado de trabalho. Muitos
deles já possuíam famílias. Ademais, esses estudantes estavam bastante dispersos na
universidade, já que naquele momento não existiam espaços de encontros frequentes, ou
coletivos organizados. No que concerne aos estudantes indígenas, eles estavam mais presentes
na universidade: possuíam bolsas de estudos e uma sala de informática na moradia estudantil
da universidade. Isso facilitava encontrá-los. Porém, as diversas dificuldades que afetavam
sua permanência estudantil resultaram em um número baixo de estudantes que, no momento
da pesquisa, estivessem elaborando seu TCC114. Esse cenário nos fez redesenhar os
instrumentos metodológicos. A partir desses realinhamentos, elegemos escolher um número
menor de participantes, aprofundar o estudo de suas trajetórias de construção do TCC e incluir
os textos apresentados nos Trabalhos de Conclusão de Curso pelos estudantes participantes.

113
O instrumento “diários de letramento” – ou Literacy Diary Notes, baseado em “Multilingua literacies: reading and
writing diferente worlds”, de Jones, Martin-Jones e Bhatt (2000) – possibilitaria mapear em maior detalhe as atividades de
escrita e leitura no cotidiano dos estudantes.
114
Até 2012, apenas uma estudante indígena havia concluído o curso (de Enfermagem). Em seu TCC, analisou a
presença da temática “saúde da mulher indígena” na produção científica da Enfermagem no Brasil.
111

A organização das três subseções que seguem responde às perguntas: Onde? Com
quem? Como?, em relação ao trabalho de campo realizado.

3.2.1. Do contexto: a seleção das instituições

A pesquisa focou duas experiências de políticas afirmativas, por reserva de vagas


com caráter étnico-racial. Ambas as universidades são instituições públicas, reconhecidas por
sua qualidade acadêmica em nível regional e nacional. Possuem programas de ações
afirmativas há mais de 05 anos: desde 2002, na Colômbia, e desde 2008, no Brasil. Desde a
aprovação de seus programas, essas universidades vêm desenvolvendo políticas para pôr em
prática seus projetos de inclusão com vistas a melhorá-los.
Outro elemento que orientou a seleção das instituições foi, conforme já
comentamos, a aproximação entre seus imaginários regionais. Levando em conta as
semelhanças entre esses dois países no que tange às políticas de inclusão no ensino superior,
escolhemos dois cenários para a pesquisa que se aproximam pelo ideal de regionalismo e
pelas representações da população local como branca e trabalhadora em contraponto à
identidade nacional.
No Brasil, a Universidade Pública Gaúcha115 está localizada no estado do Rio
Grande do Sul. Nesse estado, o mito do gaúcho aciona a imagem social do homem do campo,
um mestiço de origem indígena, que passou a ser cada vez mais associado a um fenótipo
europeu, em contraponto à imagem nacional de população tropical (OLIVEN, 1999). Essa
nova imagem do gaúcho, associado à Europa, foi construída com mais força na segunda
metade do século XX (LÓPEZ, 2009; SITO, no prelo), e é atribuída às levas de imigração
vindas da Europa no final do século XIX (em períodos de guerra em países como Espanha e
Alemanha, especialmente).
Na Colômbia, a Universidade Pública Paisa está localizada no estado de
Antioquia. A figura do paisa, representante da população da região, é descrita como um
contador de histórias, campesino astuto, negociante e trabalhador (VIVEROS, 2013), também
composto pelo traço da branquitude (assim como o gaúcho, o paisa é um sujeito identificado
no país por “ser branco”). Esta figura se contrapõe principalmente à população da costa

115
O nome das instituições foi omitido para preservar a anonimato da instituição, e porque não interfere nos resultados.
Muitos pontos apontados nas instituições que abordamos tendem a ser similares a outras instituições públicas de ambos os
países.
112

pacífica, os chocoanos116; sendo esta justamente a população que vem ingressando


significativamente na Universidade117 (GARCÍA, 2006).
Como vão apontar os estudos de Wade (1997) e Viveros (2013), para o caso
colombiano, e Oliven (1996) e Kent e Santos (2012), para o caso brasileiro, os imaginários
regionais do paisa e do gaúcho se encontram ao distinguirem-se pelo traço da branquitude,
utilizando a brancura como um signo de distinção das demais identidades regionais em seus
países. Abordando a trajetória de movimentos negros nas capitais de Montevidéu, Buenos
Aires e Porto Alegre, López (2009) também questiona a branquitude regional. Sua pesquisa
abre espaço para as vozes afrodiaspóricas tão invisibilizadas nessa região do continente. Esses
discursos nos permitem revisar os processos de construção desses imaginários locais, e como
eles se interconectam com as assimetrias e a produção de conhecimento.
Em relação às universidades, ambas as instituições figuram nos primeiros lugares
em rankings nacionais. Isso lhes confere reconhecimento também no plano das políticas
públicas criadas. Nos últimos anos, suas políticas de ingresso e permanência têm servido de
referência a instituições de outras regiões de seus países. No Gráfico 1, caracterizamos as
universidades:

Gráfico 1 - Perfil das instituições de ensino superior pesquisadas

Universidade Pública • Política afirmativa: reserva de vagas para estudantes de escola pública
Gaúcha e negros e vagas suplementares para estudantes indígenas
Universidade federal • Público alvo: estudantes de escolas públicas, negros e indígenas.
localizada na região sul • Número de estudantes: aproximadamente 30 mil (matriculados na
brasileira. graduação)

Universidade Pública • Política afirmativa: vagas adicionais para estudantes negros e para
Paisa estudantes indígenas
Universidade estadual • Público alvo: estudantes afro-colombianos e indígenas.
localizada na parte • Número de estudantes: aproximadamente 34 mil (matriculados na
andina colombiana. graduação)

Essa caracterização sintética dos programas de ação afirmativa das instituições


tem o propósito de situar o contexto da pesquisa. Durante a elaboração do projeto, havíamos
116
Gentílico referente às pessoas que nascem no estado de Chocó. A população desse estado colombiano é composta por
mais de 90% de população negra.
117
Por conta do conflito armado e da falta serviços públicos na região, a população chocoana também tem se deslocado
forçadamente para a cidade de Medellín.
113

estabelecido contato com ambas as instituições com o fim de apresentar-lhes a proposta


investigativa. Na Universidade Pública Gaúcha, estabelecemos contatos com um coletivo
organizado, o Fórum de Ação Afirmativa, que contava com a participação de estudantes e
integrantes do movimento negro. Também conversamos com a equipe da Coordenadoria de
Ações Afirmativas (CAF) – órgão responsável pelo acompanhamento e criação de políticas
para os estudantes do Programa, criado em 2012 – e com uma professora da universidade, que
havia sido responsável pelo Programa Conexões de Saberes e pela Comissão de Acesso e
Permanência do Estudante Indígena (CAPEI), em anos anteriores. Na Universidade Pública
Paisa, estabelecemos contato com o grupo Carabantu, do movimento afro-colombiano, e com
uma professora da Faculdade de Educação118, que estava responsável por um grupo de
universitários negros e indígenas participantes do Programa Martin Luther King119. Outro
profissional que colaborou com a pesquisa foi um professor indígena da licenciatura
intercultural da faculdade (do grupo de pesquisa Diverser).
Para finalizar, uma última informação que queremos pontuar sobre as instituições
é o fato de que embora ambas sejam públicas, a instituição colombiana não é gratuita. As
universidades públicas colombianas possuem um valor de matrícula por semestre, mas
também oferecem preços mais baixos em comparação com as privadas, assim como descontos
para estudantes de classes populares, a partir do critério de estratos. No caso das vagas
especiais, os estudantes pagam apenas um valor simbólico (cerca de R$ 1,00 por semestre). O
estrato é definido de acordo com o endereço residencial, segundo o qual a prefeitura local
estabelece uma categoria (de 1 a 6, sendo 1 a categoria com menos recursos econômicos)
indicada nos comprovantes de residência (contas de luz e água).

3.2.2. Dos participantes

A identificação de estudantes que poderiam participar da pesquisa foi construída


no diálogo com docentes e ativistas sociais em cada uma das instituições de ensino. Foi a

118
Essa professora, uma das pesquisadoras fundadoras do grupo Diverser, também orientou o estágio de doutoramento
que realizamos durante o desenvolvimento desta pesquisa.
119
O Programa Martin Luther King oferece bolsas de estudo para cursos de inglês e liderança para jovens negros e
indígenas no Centro Cultural Colombo-Americano. Além da formação em inglês, o curso possui um componente de
formação em liderança e responsabilidade comunitária, que se realiza com a elaboração de pequenos projetos de ação
social pelos participantes. Ao final, os estudantes viajam aos Estados Unidos para apresentar seus projetos. Mais
informações ver: http://www.colomboworld.com/index.php/component/content/article/26-noticias-slide-home/390-
convocatoria-mlk-fellowship-program-2014 Acessado em 18.maio.2015.
116

3.2.3. Dos dados gerados

Para concluir, passamos a descrever como realizamos a geração de dados. No que


concerne à geração de dados, utilizamos três fontes principais: entrevistas semiestruturadas
com estudantes e seus orientadores e com gestores dos programas; trabalhos de Conclusão de
Cursos dos estudantes; e documentos oficiais que: a) regulavam as políticas de ação
afirmativa das universidades, ou b) orientavam a elaboração dos Trabalhos de Conclusão de
Cursos.
No caso dos estudantes, as entrevistas semi-estruturadas (conforme roteiro no
Anexo 02) abordaram experiências em torno da escrita e do desenvolvimento do TCC a partir
de quatro tópicos: 1. Pré-ingresso; 2. Ingresso; 3. Universidade, Escritos e Permanência; e 4.
TCC. Neste último tópico, havia questões que abordavam seu desenvolvimento e elaboração.
Durante a entrevista semi-estruturada com os estudantes e docentes, em muitos momentos
foram criados contextos de conversa, os quais deram vazão a narrativas e visibilizaram muitos
elementos de suas apreciações sobre os programas de ações afirmativas e experiências na
universidade. As entrevistas com os docentes permitiram conhecer suas apreciações acerca da
experiência de orientar o TCC. As escolhas foram decorrentes das narrativas dos estudantes:
escolhemos depoimentos daqueles docentes que foram descritos como “bons orientadores” ou
sensíveis ao processo de escrita dos estudantes, e colaborativos. Todas essas entrevistas foram
gravadas em áudio, e, posteriormente, segmentadas e transcritas. Os participantes das
entrevistas receberam e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Anexo
01), acompanhado da explicação sobre em que consistia a pesquisa.
As entrevistas com os gestores (Anexo 02) visavam compreender outras facetas
do contexto que envolvia as experiências estudantis. Na Universidade Pública Gaúcha,
conversamos com a gestora da Coordenadoria de Ações Afirmativas. Neste caso, a docente
responsável tem uma formação em Linguística Aplicada, o que gerou maior interesse e
compreensão das questões formuladas no projeto, e um diálogo intenso ao longo da geração
de dados. Na Universidade Pública Paisa, realizamos uma entrevista com a equipe do
Programa Institucional para a Permanência com Equidade, responsável pelas políticas de
inclusão por ingresso especial. A contribuição dos gestores consistiu em delinear as ações
desenvolvidas pelas instituições em prol dos estudantes do programa de ações afirmativas, e
suas concepções frente a esses programas. Nas entrevistas informais com os gestores, que não
foram gravadas, há informações reconstituídas a partir de notas de campo realizadas durante a
118

O trabalho de campo também envolveu uma primeira etapa de observação


participante nas instituições de ensino, em especial de eventos relativos às ações afirmativas,
atividades junto a grupos de iniciação científica pesquisa para apresentar o projeto e escutar as
narrativas sobre as trajetórias universitárias das pessoas presentes. Mas, como já sinalizamos,
tendo em vista a limitação de tempo e espaço, muitas entrevistas e observações que
contribuíram para nossa compreensão do nosso objeto de estudo ficaram de fora deste texto, o
qual registra uma parte reduzida da pesquisa realizada.
Ao alinhar-nos a uma perspectiva qualitativa, lançamos mão da triangulação dos
dados, devido à variedade de sua natureza (entrevistas, documentos, trabalhos de conclusão de
curso). Esse processo permite dar sentido à “mescla” de métodos, requerido pela
complexidade de nosso objeto de estudo, ou seja, a análise com base em uma triangulação dos
dados. Essa integração de diferentes métodos requer gerar uma consonância também entre as
lógicas que os subjazem, de maneira que sua triangulação potencialize a análise e a
construção das explicações da pesquisa, que são tópicos da Parte II desta tese.
119

Parte II – Das práticas de letramento acadêmico em

cenários de ação afirmativa


120

4. As políticas afirmativas em duas universidades públicas

Entonces parte de la lucha es por la manera en la que se formula el problema: los términos del debate y la “lógica” que
conlleva. (Stuart Hall, 2010)

Nesta segunda parte da tese, nosso objetivo é apresentar a análise dos dados por
nós gerados, entre 2012 e 2014. Como vimos explicando, o pano de fundo desta pesquisa –
ações afirmativas na universidade – é polêmico, e os termos nos quais são formuladas as
perguntas sobre o tema costumam seguir uma lógica de déficit (ou de incapacidade dos
ingressantes). Assim, a partir da perspectiva sociocultural e descolonial de letramento, nos
propomos a reformular a lógica do debate sobre a escrita acadêmica e os programas de
inclusão universitária, com o propósito tanto de deslocar o foco deficitário quanto de voltar a
atenção para o modo como os estudantes interpelam, a partir de sua produção do TCC, os
modelos de ação afirmativa em suas universidades.
Na seara da discussão intercultural, Hall (2010) tece uma reflexão sobre a questão
racial na Inglaterra, mostrando as tensões que envolvem os termos desse debate. Segundo o
autor, quando a questão racial é ancorada em um debate sobre os números da desigualdade, é
difícil inserir novos argumentos; logo, os contra-argumentos entram em um jogo de afirmar,
modificar ou negar os dados do primeiro argumento, mas não alteram o cerne do debate. O
tema segue sendo tratado como uma questão de números. Nas palavras do autor, o difícil é
justamente transformar os termos nos quais o argumento é formulado:

os argumentos contrários são fáceis de montar. Mudar os termos do


argumento é sumamente difícil, já que a definição dominante do problema
adquire, através da repetição, e através do peso e da credibilidade daqueles
que a propõem ou subscrevem, a garantia do “senso comum”122 (HALL,
2010, p. 181).

122
Original: “Los argumentos contrarios son fáciles de montar. Cambiar los términos de un argumento es sumamente
difícil, ya que la definición dominante del problema adquiere, a través de la repetición, y a través del peso y la credibilidad
de quienes la proponen o subscriben, la garantía del “sentido común”.
121

Em nosso debate latino-americano, uma lógica argumentativa equivalente seria a


“democracia racial”, que muitas vezes anula qualquer proposta de análise das desigualdades
raciais, já que estas não existiriam. Nesses embates, destacamos a relevância, na exposição do
autor, de reconhecer que contra-argumentar não é a parte mais difícil em um debate, mas sim
alterar seus termos e seus pressupostos. Em relação à escrita acadêmica e às políticas
afirmativas, uma forma que encontramos para modificar as bases desse debate foi criar uma
escuta sensível dos estudantes universitários cotistas sobre sua experiência.
Para empreender essa escuta, nossa análise linguístico-discursiva está organizada
em três dimensões: as políticas, as trajetórias e o desenvolvimento do TCC, articulando a
análise de textos e prática social em um viés linguístico-discursivo. Neste capítulo, cujo foco
é a primeira das três dimensões, nosso propósito é responder às seguintes perguntas de
pesquisa:
1. Quais são as políticas de permanência implementadas pelas universidades
pesquisadas que visam à inserção dos estudantes no ambiente acadêmico?
1.1. Dentre as políticas implementadas, quais se ocupam com a construção de ações
de permanência no campo das linguagens?
1.2. Quais são as concepções subjacentes às políticas de permanência orientadas
para os estudantes cotistas?
À guisa de introdução, revisamos o conceito de “ações afirmativas”, apresentando
os debates em torno dessas políticas. Na segunda subseção, apresentamos um panorama sobre
os modelos de ações afirmativas de ensino superior em países latino-americanos. Na terceira
subseção, analisamos os dois programas das instituições que são foco desta pesquisa, para
mostrar as políticas que foram implementadas no bojo dos programas de ação afirmativa,
assim como para desvendar as concepções que subjazem a essas políticas, o que nos permitirá
compreender se esses programas possuem um perfil intercultural tal qual proposto pela
interculturalidade crítica (WALSH, 2012). Na seção final, cotejamos ambas as políticas e
apontamos algumas reflexões sobre o contexto em que os estudantes realizam seus TCC.

4.1. Políticas de ações afirmativas no ensino superior: debates e embates por


concepções de justiça

As demandas discutidas na Conferência de Durban em relação à reparação e


justiça foram, em grande medida, respondidas com o instrumento legal das ações afirmativas.
Nessa discussão, essas políticas são compreendidas como medidas institucionais que advogam
por um tratamento diferencial para grupos historicamente vulnerabilizados e/ou
122

estigmatizados, com o fim de estabelecer relações de equidade e diminuir as desigualdades


entre os grupos sociais. Nesta tese, adotamos a definição de “ações afirmativas” a definição
de Carvalho (2004), que as define como:

políticas públicas que visam corrigir uma história de desigualdades e


desvantagens sofridas por um grupo racial (ou étnico) [também de gênero,
opção sexual, religião, deficiência física, entre outros], em geral frente a um
Estado nacional que o discriminou negativamente. O que motiva essas
políticas é a consciência de que essas desigualdades tendem a se perpetuar se
o Estado continuar utilizando os mesmos princípios ditos universalistas com
que tem operado até agora na distribuição de recursos e oportunidades para
as populações que contam com uma história secular de discriminação (p.
51).

Essa definição de ações afirmativas está assentada no princípio jurídico da


igualdade material, que pressupõe que “pessoas em condições similares devem ser tratadas
por igual e, em consequência, a lei não deve aplicar-se necessariamente de maneira idêntica a
cada pessoa” (GÓNGORA, 2014, p. 45). Logo, o processo de proposição de – e reivindicação
por – uma política afirmativa requer o reconhecimento por parte da sociedade de que há
algumas identidades que são vistas como diferentes, e de que essas diferenças provocam
desigualdades. Após reconhecer a correlação entre identidades- diferenças-desigualdades, há
a negociação de uma medida para produzir justiça nesse contexto de desigualdades que se
constroem por uma identidade não ser reconhecida e/ou por ser estigmatizada – as ações
afirmativas. A implementação dessas ações reconhece um limite nas políticas de cunho
universalista – voltadas para “todos” sem especificidade – e exige um recorte de acordo com a
desigualdade que se quer combater.
Na Tabela 2, destacamos os principais grupos que são públicos-alvo de políticas
afirmativas propostas por Brasil e Colômbia:

Tabela 2 - Públicos-alvo de políticas de ação afirmativa


Brasil Colômbia
a. Mulheres a. Mulheres
b. Minorias e grupos étnico-raciais: b. Minorias e grupos étnicos: afro-
negros, indígenas, quilombolas. colombianos, indígenas e ciganos.
c. Deficientes físicos ou mentais c. Deficientes físicos ou mentais
d. Idosos d. Deslocados forçadamente pelo conflito
armado
e. Idosos
Fonte: adaptado de León & Holguín (2005).
123

Com o propósito de diminuir as assimetrias entre os grupos e ampliar sua


participação social, essas políticas são temporárias e precisam atender aos propósitos de
proporcionalidade (um número ou percentual razoável para eliminar as desigualdades ao
longo do tempo previsto) e de adequação (orientado a grupos que de fato vivenciem uma
realidade de vulnerabilidade e de menor acesso aos recursos e serviços) de maneira a não
gerar outras exclusões ou ferir o princípio de justiça.
O histórico dessas políticas está relacionado com o reconhecimento nacional de
demandas de movimentos sociais identitários (como indígenas, feministas, negros, LGBTI),
que se tornou mais potente após os anos 70. No caso dos movimentos étnicos, foi apenas entre
o final do século XX e início do XXI que ganhou força, no cenário político, a legitimidade de
uma resposta estatal frente aos flagelos de populações discriminadas racialmente na América
Latina. O ápice se deu na Conferência de Durban, evento que, conforme já dito, contou com a
participação de ativistas sociais e instituições do governo de vários países do mundo. A
elaboração do Plano de Ações de Durban (ONU, 2001) por um coletivo tão variado
congregou um conjunto de políticas de caráter afirmativo para a diminuição das desigualdades
raciais nos países participantes123.
A Conferência de Durban tornou-se um marco na discussão sobre ações
afirmativas na América Latina. Muitas organizações sociais de Estados latino-americanos que
participaram nesse evento passaram a ter legitimidade em seus países para demandar medidas
contra as desigualdades raciais em diferentes áreas sociais – como saúde, educação, mercado
de trabalho, terras124. O Brasil e a Colômbia, ao assinarem o Plano de Ação da Conferência,
passaram a responsabilizar-se pela redução da desigualdade racial em seus países. Com isso,
tiveram de criar políticas públicas com esse enfoque. Além disso, como resultado do
compromisso assumido como signatários de uma série de convenções e tratados
internacionais125 que combatem o racismo, houve uma intensificação na criação de ações de
combate à desigualdade racial por parte desses países.

123
Documento disponível em: http://www.unfpa.org.br/novo/index.php/biblioteca/publicacoes/onu/410-declaracao-de-
durban. Acessado em 21.mar.15.
124
No Brasil, a criação da Secretaria Especial de Promoção de Políticas para a Igualdade Racial fortaleceu a criação de
ações e programas específicos que transversalizavam os diferentes Ministérios, tais como o programa como o “Brasil
Quilombola” (SEPPIR e MDA) e a oferta de bolsas de iniciação científica para estudantes cotistas (SEPPIR e CNPq). Na
Colômbia, a criação de órgãos orientados para as políticas específicas ficou a cargo dos governos departamentais (nível
estadual); no caso de Antioquia, por exemplo, há na estrutura do governo a “Gerencia Indígena” e a “Gerência de
Negritudes”.
125
Como a Convenção de Direitos Humanos e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de
1989. Esta última é um instrumento jurídico que vem garantindo os direitos de povos indígenas e comunidades étnicas no
mundo. Mais informações disponíveis em: http://www.socioambiental.org/inst/esp/consulta_previa/?q=convencao-169-
da-oit-no-brasil/a-convencao-169-da-oit
125

grande maioria dos afrodescendentes estar excluída127 das recentes reformas que asseguraram
direitos coletivos, somente o Brasil e a Colômbia estão tentando elaborar outros meios legais
para combater o racismo, como a legislação relativa aos direitos civis” (p. 90). Esse
argumento é recuperado na pesquisa de doutorado de Rodrigues (2012), que comparou as
políticas territoriais para populações negras realizadas pelos dois países. Segundo os dados da
autora, a proximidade entre as políticas públicas reflete tanto um diálogo entre os movimentos
negro brasileiro e afro-colombiano, quanto a semelhança no cenário das desigualdades étnico-
raciais que vivenciam as populações negras e indígenas de ambos os países.

4.1.1. Caracterização, princípios e propósito das ações afirmativas

As primeiras experiências de políticas de ação afirmativa foram iniciadas na Índia,


na década de 1940, mas passaram a ser mais conhecidas as experiências do ensino superior
estadunidense. Investigando a história dessas políticas, Góngora (2014) narra que

Índia foi a primeira democracia no mundo que tratou de combater


desigualdades sociais através de políticas preferenciais (Kennedy-
Dubourdieu, 2006, p. 8). Dois anos depois de ganhar sua independência do
império britânico, foram incorporadas ações afirmativas (reservas) na
Constituição de 1949. Neste momento fundacional, entraram em conflito
dois grandes paradigmas de igualdade: um que seguia a tradição liberal
ocidental, fundado na presunção de igualdade formal (“todos são iguais
perante a lei”), defendido por Mahatma Gandhi; e um paradigma de inclusão
real fundado na ideia de igualdade material (pessoas em condições similares
devem ser tratadas por igual e, em consequência, a lei não deve aplicar-se
necessariamente de maneira idêntica a cada pessoa). Seu defensor mais
notório foi o jurista Bhimrao Ramji Ambedkar, um dos primeiros membros
da casta dos intocáveis que conseguiu acessar à educação universitária, foi
redator da Constituição da Índia e foi responsável pela inclusão de direitos
preferenciais para as castas marginalizadas (p. 45)128.

127
Contudo, segundo a autora, na América Latina a grande maioria das políticas para populações étnicas está orientada
para populações indígenas, pouco contemplando as populações negras de seus países. Frente a esse panorama, Hooker
pergunta “por que as elites nacionais e a opinião pública foram mais sensíveis às reivindicações dos grupos indígenas” (p.
93), apontando que esta pode ter sido uma estratégia do Estado de distanciar-se de um ponto central das reivindicações
interculturais: a discriminação racial.
128
Original: “India fue la primera democracia en el mundo que trató de combatir desigualdades sociales a través de
políticas preferenciales (Kennedy-Dubourdieu, 2006, p. 8). Dos años después de ganar su independencia del imperio
británico, fueron incorporadas acciones afirmativas (reservations) en la Constitución de 1949. En este momento
fundacional entraron en conflicto dos grandes paradigmas de igualdad: uno que seguía la tradición liberal occidental,
fundado en la presunción de igualdad formal (“todos son iguales ante la ley”) y que defendía Mahatma Gandhi; y un
paradigma de inclusión real fundado en la idea de igualdad material (personas en condiciones similares deben ser tratadas
por igual y en consecuencia, la ley no debe aplicarse necesariamente de manera idéntica a cada persona). Su defensor más
notorio fue el jurista Bhimrao Ramji Ambedkar, uno de los primeros miembros de la casta de los intocables que logró
acceder a la educación universitaria, fue redactor de la Constitución de India y fue el responsable de la inclusión de
derechos preferenciales para las castas marginadas.” (p. 45)
126

Revisitando esse processo, o autor também revela como o protagonismo indiano


foi apagado nas narrativas latino-americanas sobre políticas afirmativas129. Em sua análise,
ressalta que esse apagamento se deve às assimetrias na circulação do conhecimento no
mundo. Ainda, segundo o autor, uma das consequências da suplantação da experiência
indiana e seus pressupostos foi uma contradição gerada por conta do perfil neoliberal e
individualista do modelo norteamericano entre os países da América Latina; isso porque os
movimentos sociais latino-americanos que reivindicavam as ações afirmativas se
posicionavam contrariamente ao neoliberalismo.
No Brasil, por exemplo, muitas organizações do movimento negro de orientação
marxista questionaram a política de cotas em universidades por uma oposição à política norte-
americana, a qual, na visão deles, queria apenas formar uma elite negra sem alterar a situação
da grande maioria dessa população em situação de pobreza extrema.
Essa visão não é de todo equivocada quando analisamos outras concepções de
ações afirmativas ao lado da norte-americana. Na concepção indiana, por exemplo, havia uma
preocupação maior com o fomento de políticas de redistribuição de recursos que pudessem
romper com as desigualdades estruturais. Esse princípio de orientação distributiva difere dos
modelos definidos como paliativos, pois não se propõem a desconstruir as desigualdades
estruturais na sociedade, como também argumenta Góngora (2014):

à diferença da experiência da Índia, as ações afirmativas estadunidenses não


foram concebidas originalmente como políticas distributivas ou mecanismos
de transformação social para superar desigualdades estruturais, senão como
medidas reparatórias ou compensatórias frente às injustiças e disparidades
herdadas do regime segregacionista, e como paliativos diante da
discriminação de fato e da multiplicação de conflitos raciais e violência
interna, sem abandonar de todo o paradigma liberal da igualdade formal e da
confiança nas dinâmicas do mercado (p. 47)130.

Essa preocupação com a transformação das desigualdades estruturais era expressa


nas reivindicações de movimentos sociais latino-americanos. O caso mais concreto dessa
tensão frente ao modelo norte-americano é o de Equador, como ilustra a análise de Góngora
(idem). Nos cenários brasileiro e colombiano, essa tensão foi mais difusa, dado que, entre os

129
Entre as exceções, é importante destacar o trabalho de Carvalho (2004), que já apontava o protagonismo do jurista no
tema das ações afirmativas.
130
Original: “A diferencia de la experiencia de la India, las acciones afirmativas estadounidenses no fueron concebidas
originalmente como políticas distributivas o mecanismos de transformación social para superar desigualdades
estructurales, sino como medidas reparativas o compensatorias ante las injusticias y disparidades heredadas del régimen
segregacionista, y como paliativos ante la discriminación de facto y la multiplicación de conflictos raciales y violencia
interna, sin abandonar del todo el paradigma liberal de la igualdad formal y la confianza en las dinámicas del mercado.”
127

segmentos de movimentos sociais antirracistas, havia posições variadas no apoio às políticas


afirmativas, tanto com uma proposta de redistribuição quanto com uma proposta reparatória.
Nessa discussão, as expressões “ação afirmativa”, “política compensatória” e “política
reparatória” muitas vezes foram usadas como sinônimos.
Nessa discussão, o debate realizado por Fraser e Honneth (2006) explicita as
questões subjacentes a esse debate. Os autores afirmam que, nas políticas universalistas,
estaria envolvida uma preocupação pela distribuição de recursos a grupos pobres; enquanto
nas específicas, haveria uma preocupação com a vulnerabilidade de identidades de grupos
estigmatizados. Em outras palavras, parece haver uma tensão entre as primeiras, políticas de
redistribuição de recursos, e as últimas, de reconhecimento identitário. Fraser (2006, 2001)
explica que as políticas de redistribuição emergem em um contexto de reivindicações pós-
fordistas, com uma demanda principal por redistribuição de renda, no bojo das bandeiras
marxistas de lutas de classe contra assimetrias econômicas. Já as políticas de reconhecimento
são aquelas demandadas pelas reivindicações de movimentos sociais identitários, que
(re)emergiram na década de 1970 com demandas por respeito e valorização de suas
identidades e culturas, contra assimetrias culturais. O argumento central de Fraser e Honneth
(2006) é que, para ter justiça, é preciso desenvolver ações de redistribuição e de
reconhecimento para ter uma participação social equânime. Isso coloca a necessidade de se
discutir como associar as demandas por redistribuição e por reconhecimento no âmbito
político.
Consideramos que um dos principais desafios às ações afirmativas é articular
esses eixos, já que “uma compreensão suficiente de justiça deve envolver, pelo menos, dois
conjuntos de questões: as que se projetam na época fordista como lutas pela redistribuição e
as que pouco a pouco se projetam hoje em dia como lutas pelo reconhecimento”131. (p. 14).
Contudo, não tem sido fácil concatenar esses elementos durante a implementação das políticas
públicas. No caso das medidas de reserva de vagas em universidades públicas, uma questão
relevante é se essas medidas se constituem em políticas de redistribuição e reconhecimento.
Mas, ao lado disso, teríamos também de considerar a dimensão das assimetrias, e questionar
se essas medidas vêm ampliando a participação dos grupos alvos da política na produção de
conhecimento.

131
Original: “[La premisa subyacente, compartida por ambos autores, es que] una comprensión suficiente de la justicia
debe englobar, por lo menos, dos conjuntos de cuestiones: las que se proyectan en la época fordista como luchas por la
distribución y las que a menudo se proyectan hoy día como luchas por el reconocimiento”.
128

Ao pensar em participação, é necessário revisar os dados demográficos do


contexto. Iniciamos pela população brasileira, mostrando os dados da Tabela 4 com os
percentuais em relação a identificações étnico-raciais.

Tabela 4 - População brasileira, segundo identificação raça/cor


Grupo étnico População %
Total 190.755.529 100
Indígena 817.963 0,43
Amarelo 2.084.288 1,09
Branco 91.051.646 47,7
Pardo 82.277. 063 43,1
Preto 14.517.961 7,6
Sem declaração 6.608 0,08
Fonte: IBGE – Censo 2010.

Conforme a Tabela 4, os percentuais das populações indígena e preta aumentaram


nesse último censo. Em especial, a população negra – a soma entre as populações parda e
preta – ampliou de 47% na década anterior para a 50,7% da população brasileira no censo de
2010.
O percentual de pessoas que conclui o ensino superior dobrou na última década,
de 8,1% em 2004, para 15,2% em 2013. No ano de 2009, por exemplo, a taxa da população
com idade entre 18 e 24 anos que teve acesso à educação superior em 2009 foi de 19%.
Conforme análise de Andrade (2012), embora tenhamos tido um aumento no público da
educação superior, esse acesso segue sendo clivado pela raça/cor: no mesmo ano de 2009,
enquanto o percentual de acesso ao ensino superior para autodeclarados brancos foi de 28%,
para não-brancos foi de apenas 11%. Ou seja, houve uma melhora na última década com as
ações afirmativas, mas o fator raça/cor persiste provocando clivagens e dificuldades no acesso
aos bens culturais, como a formação universitária132.
A população colombiana é de aproximadamente 44 milhões de habitantes,
distribuídas em cerca de 1.140.000 Km2 de território. Sua população é classificada pelo censo
em três categorias étnico-raciais, as quais são apresentadas na tabela a seguir:

132
Na publicação dos dados do Índice de Analfabetismo Funcional, “INAF Brasil 2011: principais resultados” (Ação
Educativa; Instituto Paulo Montenegro, 2013), há indicadores que mostram uma pequena diminuição da desigualdade em
termos de raça/cor na educação na última década, período no qual um conjunto de políticas diferenciadas foi realizado.
129

Tabela 5 - População colombiana, segundo pertencimento étnico


Grupo étnico População %
Total 40.607.408 100
Indígena 1.392.623 3,4
Cigano (rom) 4.858 0,01
Afro-colombiano 4.311.757 10,6
Sem identificação étnica 34.898.170 85,9
Fonte: DANE (2007).

Na leitura dos dados, destaca-se o alto percentual de pessoas sem identificação


étnica, o que aponta uma distinção em termos de identificação no Brasil – nos dados
brasileiros não chegou a 1% a população que não declarou. Mas há de explicitar que entre os
grupos no censo brasileiro estão as categorias branco e amarelo, que não estão presentes no
censo colombiano, fato que poderia explicar o alto percentual de pessoas que não se
identificaram. Outro dado é que não há uma categoria de mestiçagem explicita nos dados do
censo do país vizinho.
É importante destacar que os povos indígenas e afro-colombianos são os mais
afetados pelo conflito armado, o que resulta em sua migração forçada dos locais de residência.
Sobre educação, também apontamos que cerca de 93% da população na Colômbia é
alfabetizada, índice que é menor em áreas rurais. Em relação ao acesso ao ensino superior, foi
difícil encontrar dados sobre o total de população graduada no ensino superior. Segundo o
Observatório Laboral para a Educação133, no período entre 2001 de 2013, havia 2.642.709
estudantes graduados, o que representa cerca de 6% da população total. O relatório não
apresentava especificações sobre o pertencimento étnico dos estudantes.

4.1.2. Debates sobre Ações Afirmativas nos contextos brasileiro e colombiano

O debate público em torno às políticas afirmativas nem sempre se orienta para as


proposições de Fraser e Honneth (2006) acerca da efetividade das políticas em termos de
justiça. No cenário brasileiro, por exemplo, a discussão em torno às ações afirmativas para
jovens negros e indígenas na universidade traz a tona pontos nevrálgicos da identidade
brasileira. Na leitura de Oliven (2007),

133
Mais informações em: http://bi.mineducacion.gov.co:8380/eportal/web/men-observatorio-laboral/ubicacion-
geografica
130

esse debate, bastante complexo, envolve as relações universidade e


sociedade, a formação da elite; a constitucionalidade da implementação de
políticas de cotas raciais, o possível alcance das mesmas; as mazelas de
nosso passado escravocrata, a “ideologia da democracia racial” brasileira, a
discriminação contra negros e pardos, ainda presente em nossos dias; a
questão da distribuição de renda, a necessidade do reconhecimento de todos
os grupos sociais como um direito de cidadania e, por último, mas não
menos importante, qual o nosso projeto de nação. Os argumentos ora
enfatizam problemas mais internos da universidade e suas implicações
administrativas, ora levantam questões de natureza mais política e filosófica
que se referem ao modelo de sociedade que desejamos (p. 43).

Esse amplo debate pode ser muito saudável para a sociedade; contudo, sua
polarização cria uma sensação de que a discussão não avança em direção a algum resultado,
tonando-se pouco propositivo. No caso brasileiro, houve um processo gradual de incorporação
de políticas afirmativas com enfoque étnico-racial em diferentes setores após a Conferência
de Durban. Como exemplos, cito ações nos campos da propriedade territorial (titulação das
terras quilombolas), da saúde (plano de saúde para a população negra), da política (a criação
da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial - SEPPIR), da mídia e do
trabalho (reserva de vagas para os grupos étnico-raciais com pouca representação nesses
espaços) e da educação (a Lei de inserção da história e cultura africana, afro-brasileira e
indígena no currículo escolar da Educação Básica e a reserva de vagas nas Universidades
públicas).
A reserva de vagas para estudantes negros e indígenas na Universidade foi a
política afirmativa que gerou mais polêmica, com posicionamentos acirrados e polarizados
registrados em inúmeras publicações. Entre os posicionamentos favoráveis à política, houve
publicações que reiteravam a pertinência do critério racial para diminuição das desigualdades
sociais. Elaborados por autores que eram, ao mesmo tempo, pesquisadores do tema, ativistas
sociais e fazedores da política, revelam o olhar daqueles que apoiaram as políticas
afirmativas. Entre elas, estão a coletânea de artigos intitulada “Educação e ações afirmativas:
entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica” (2003), organizada pelo sociólogo Valter
Silvério e a educadora Petronilha Gonçalves e Silva, da Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar), e o livro “Inclusão Étnica e Racial no Brasil. A questão das cotas no ensino
superior” (2004), do antropólogo José Jorge de Carvalho, da Universidade de Brasília (UnB).
Nessas obras, os autores buscaram denunciar a exclusão de negros e indígenas tanto do corpo
discente quanto docente em universidades públicas, bem como mostrar o impacto do racismo
nas práticas de produção de conhecimento, tomando a política para negros e indígenas como
um mecanismo pertinente para diminuir a desigualdade racial na própria academia.
131

Já entre os posicionamentos contrários à política, houve um conjunto variado de


publicações que emergiu como uma contrarresposta, por parte de pesquisadores que se
posicionavam contrários a reservas de vagas. Entre eles, está posicionamentos como o do
jornalista Ali Kamel, com o livro “Não somos racistas” (2006), que nega a existência em si da
desigualdade racial. Kamel (idem) argumenta que os dados do IGBE referentes à população
negra seriam equivocados, já que não se deveriam somar as populações preta e parda nas
análises de desigualdade; sendo assim, a população negra se resumiria à categoria “preta” e
não chegaria a 8% do total da população brasileira.
Também há posicionamentos embasados nas ciências, como ilustra a coletânea de
artigos “Divisões perigosas: políticas raciais no Brasil contemporâneo” (2007), organizada
pelos antropólogos Peter Fry e Yvonne Maggie, da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), e Marcos Chor Maio, Simone Monteiro e Ricardo Ventura Santos, da Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz), que inclui pesquisadores da temática étnico-racial (como Fry e
Maggie). O livro reúne textos de circulação na esfera jornalística de pesquisadores do campo
das ciências sociais, saúde e biologia. A coletânea “Divisões perigosas” (FRY et alii, 2007)
apresenta artigos com argumentos mais bem elaborados do ponto de vista acadêmico-
científico que o livro mencionado anteriormente, sejam eles de autoria de antropólogos, como
Peter Fry e Ivone Maggie, que pesquisam temas étnico-raciais, sejam pesquisadores de outros
campos, como o biólogo Sérgio Pena. Esses pesquisadores apresentam argumentos diversos
que, embora reconheçam as clivagens sociais geradas pelas noções de raça e cor na sociedade
brasileira, reiteram o risco da realização de políticas que tomem essas noções para elaborar
políticas públicas. Ainda assim, transparecem tanto uma confusão entre as perspectivas
biológica e sociológica da noção de raça, quanto uma rejeição de políticas que enfoquem o
racismo de modo explícito. Considerando a dominância do discurso de democracia racial,
acreditamos que esse posicionamento acaba por silenciar as vozes de intelectuais negros e
indígenas que há anos vêm denunciando as desigualdades que lhes afetam negativamente,
geradas por essa categoria (racial e étnica), assim como a necessidade de ações diretas contra
essas desigualdades (SANTOS, 2007; ONU, 2011; MUNDURUKU, 2012).
Além desses livros, foi publicado um dossiê na revista “Horizontes
Antropológicos”134, o qual registrou um debate multidisciplinar representando diferentes
pontos de vista sobre o tema. É interessante pontuar, nesse debate, pontos convergentes e
divergentes: ainda que intelectuais favoráveis e contrários às cotas reconheçam que há

134
Publicada em 2005 (volume 11, número 23).
132

desigualdades e discriminação raciais e que é necessário promover políticas públicas para


diminuí-las, o consenso se desfaz ao ter que decidir se é adequado aplicar medidas específicas
com recorte racial ou não como solução.
Em meio a esse debate, o argumento sobre o papel da universidade frente às
desigualdades sociais ganhou espaço nos meios de comunicação. Na experiência que tivemos
no Grupo de Trabalho de Ações Afirmativas135, ao analisar os números das desigualdades na
educação e escutar lideranças dos movimentos sociais (negros, indígenas e populares),
questionávamos o lugar da própria comunidade acadêmica nesse cenário: pode continuar a
universidade a questionar e criticar a sociedade quando ela mesma está assentada em
números alarmantes de exclusão social e étnico-racial?
Para compreender melhor esse debate polêmico, em Sito (2014), analisamos dois
Manifestos136 que ilustram bem os argumentos presentes nas esferas acadêmicas e políticas
acerca das políticas públicas com recorte racial:

 “Todos têm direitos iguais na República Democrática”, de 30 de maio de 2006, com 115
assinaturas;
 “Manifesto a favor das cotas e do estatuto da igualdade racial”, de 03 de julho de 2006,
com 390 assinaturas.

Esses manifestos foram produzidos no período mais intenso da discussão para


intervir em uma decisão do Congresso Nacional, que analisava duas políticas afirmativas: a
lei de cotas para negros e indígenas nas universidades federais e o Estatuto da Igualdade
Racial. Ambos os manifestos foram entregues ao Congresso, como parte dos embates pró e
contra as políticas específicas. Ao pôr lado a lado os principais argumentos que subjazem os
Manifestos, podemos detalhar melhor os pontos de vista que estiveram em jogo na polêmica
das “cotas”. Apresentamos, na Tabela 6, quatro definições do Manifesto contrário à reserva de
vagas:

135
Em um primeiro momento, em 2005, emergiu como um Grupo de Trabalho articulado em uma Semana Acadêmica
das Ciências Sociais, que mobilizou estudantes de diferentes cursos de graduação. Em 2006, tornou-se um Projeto de
Extensão, orientado pelo Prof. Dr. José Carlos dos Anjos, do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
136
Uma versão dos Manifestos está disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u18773.shtml.
Acessado em 09 out. 2012.
135

Moreira e Pereira (2011), que coteja os argumentos sobre raça, estado e democracia no debate
que se dá na academia brasileira sobre as ações afirmativas, exemplifica essa complexidade.
Os autores apontam um conjunto de argumentos tanto no campo favorável à política, quanto
no campo contrário, e conseguem mostrar que há grandes matizes nesses posicionamentos de
defesa ou rechaço às políticas. No grupo dos argumentos contrários, os autores destacam sete
justificativas diferenciadas entre si, as quais são: 1. o argumento biológico, justificando a
inexistência das raças; 2. o histórico-biológico, com a noção do Brasil mestiço; 3. a
incompatibilidade com a ordem democrático-liberal das cotas (por tratar de modo diferente os
desiguais); 4. a inexistência do racismo no Brasil ou o fato de ele não ser estruturante das
desigualdades; 5. a importação de teorias e instituições estranhas à realidade brasileira, pois
as cotas teriam sido importadas dos EUA; 6. o racismo existe, mas existem outros meios de
solucioná-lo; 7. os efeitos produzidos pelas cotas são piores do que seus possíveis benefícios.
Já no grupo dos argumentos favoráveis, Moreira e Pereira (idem) identificam quatro
argumentos principais: 1. a legalidade e adequação das ações afirmativas ao ordenamento
jurídico brasileiro; 2. a eficácia da medida contra a persistência dos preconceitos e das
discriminações raciais; 3. a demanda reparatória ao Estado brasileiro pelos afrodescendentes
(e acrescentaríamos pelos povos indígenas); 4. A ação pedagógica contra o racismo que pode
decorrer dessas políticas.
Além disso, não só a questão racial esteve em jogo. Por isso, também queremos
trazer a voz de acadêmicos que trouxeram outros olhares para esse debate. Oliven (2007)
ilustra isso a partir de sua experiência profissional:

gostaria de acrescentar um argumento com base em minha experiência de


professora universitária. A universidade se constitui num espaço
importantíssimo de sociabilidade e de aprendizagens não apenas formais,
mas, também, informais. (...) Os alunos provenientes de famílias da elite
pouco têm a acrescentar a seus familiares e amigos em termo de capital
cultural. Por outro lado, alunos, cuja origem social é mais baixa, e alunos
negros, que costumam ser a primeira geração a freqüentar a universidade,
tendem a contribuir muito mais para aumentar os conhecimentos e as
expectativas educacionais de seus familiares, principalmente de irmãos mais
novos. A universidade sendo pública deve servir da melhor forma possível
ao maior número de pessoas. Portanto, acho que essa realidade é, também,
importante de ser levada em consideração (p. 47-8).

A autora parte de sua experiência docente para apontar um elemento que


considera importante dessa política: a democratização do grupo discente universitário. Como
ela ressalta, o ingresso de estudantes de grupos populares e negros (acrescentaríamos os
grupos indígenas, embora em uma proporção muito menor) pode contribuir socialmente ao
136

promover sua participação na produção científica no país, além de construir novos


imaginários (mais positivos) sobre sua presença na universidade137. Além disso, destacamos
que essa primeira geração universitária também poderia contribuir ao diversificar as questões
e problemas de pesquisa ao colocarem em cena suas trajetórias.
Apesar da polêmica, muitas instituições públicas de ensino superior seguiram
avançando na elaboração de programas de ação afirmativa para populações pobres, negras
e/ou indígenas. Após quase uma década de experiências implementadas, foi publicada uma
coleção organizada pelo antropólogo Jocélio Teles dos Santos, em dois volumes, intitulados
“Cotas nas universidades: análises dos processos de decisão” (SANTOS, 2012) e “O impacto
das cotas nas universidades brasileiras (2004-2012)” (SANTOS, 2013). Os dois volumes
analisam as políticas afirmativas com base em dados de experiências concretas; o segundo
volume está mais orientado à ilustração de experiências e desafios de políticas afirmativas.
No caso colombiano, León e Holguín (2005) destacam que as políticas para as
“minorias e grupos étnicos”138 estão baseadas em um conjunto legal que está fundamentado
especialmente na Constituição Política de 1991. Mas também contam com outro conjunto de
leis: a Lei 70 de 1993, também conhecida como “a lei dos negros”, por garantir uma série de
direitos para a população afro-colombiana; e a Convenção 169 da Organização Internacional
do Trabalho (OIT). A Colômbia se destaca na região por ter um conjunto muito organizado de
políticas específicas, do ponto de vista legal. Como destacam León e Holguín (2005),

dos quatro países considerados na pesquisa, comparativamente este [a


Colômbia] conta com o marco constitucional e jurídico mais aberto ao
reconhecimento da igualdade material ou efetiva como indissociável da
igualdade formal, além de outorgar reconhecimento expresso aos direitos
sociais e coletivos na Constituição de 1991. No artigo 13 desta carta, um dos
mais conhecidos, aponta: “O Estado promoverá as condições para que a
igualdade seja real e efetiva e adotará medidas a favor de grupos
discriminados ou marginalizados”139 (p. xxii).

137
É muito comum que nós, de classe popular, escutemos desde pequeno, na família e na escola, que “a universidade
pública não é para pobres e negros”. Esse discurso repetido por anos cria uma realidade para os jovens dessas classes: de
que a universidade (em especial, a pública) não é para todos. A discussão do sociólogo Jailson Silva (2003) – criador do
Programa Conexões de Saberes – tematiza essas experiências.
138
Há um amplo leque de políticas afirmativas focadas nas minorias: Vagas na política, previdência social em saúde,
etnoeducação – escolas Bilíngues e Interculturais com professores da comunidade e a Cátedra de Estudos Afro-
colombianos, titulação coletiva de terras.
139
Original: “De los cuatro países considerados en la investigación, comparativamente éste cuenta con el marco
constitucional y jurídico más abierto al reconocimiento de la igualdad material o efectiva como indisociable de la igualdad
formal, además de otorgar reconocimiento expreso a los derechos sociales y colectivos en la Constitución de 1991. En el
artículo 13 de esta carta, uno de los más conocidos, se señala: “El Estado promoverá las condiciones para que la igualdad
sea real y efectiva y adoptará medidas a favor de grupos discriminados o marginados”
137

Seu principal desafio é que a lei do papel se cumpra na prática. No caso da reserva
de vagas nas universidades colombianas, não encontramos registro da discussão sobre o tema
em revistas acadêmicas, jornais ou programas (de rádio ou TV). Inclusive os documentos de
Universidades são muito sintéticos na proposição da política, sem detalhar muito os
antecedentes nem os objetivos. Além disso, embora haja um grande número de políticas
afirmativas, o conceito ainda é difuso. A obra do jurista colombiano Durango (2011), por
exemplo, discute justamente os impactos da fluidez dos diferentes termos para as políticas
afirmativas. O autor, após mostrar as variadas e indistintas formas de usar os termos – ‘ações
positivas’, ‘ações afirmativas’, ‘discriminação positiva’, ‘discriminação inversa’,
‘diferenciação positiva’ – opta pelo termo “discriminação positiva”. A indistinção do termo e
falta de debate público sobre o tema nos leva a pensar que há uma invisibilidade em relação às
políticas afirmativas, tanto no contexto acadêmico, quanto na opinião pública.
Entre os discursos favoráveis às políticas de flexibilização do ingresso nas
universidades colombianas, Soler e Pardo (2008) também destacam a responsabilidade da
academia na reprodução de discursos racistas. Nesse sentido, o ingresso dos estudantes
poderia interromper a reprodução de antigos discursos racistas ao mesmo tempo em que
legitimaria novos discursos com outros pontos de vista mais respeitosos. Nas palavras das
autoras, caberia à Universidade:

por um lado, a urgente transformação das realidades discursivas, que no final


acabam sendo as realidades da prática social, o que implica, em primeira
instância, revelar as estruturas e as estratégias discursivas que legitimam
práticas excludentes – como o racismo – e, por outro lado, talvez mais
importante, gerar ações de diversos tipos, principalmente pedagógicas, que
contribuam a transformar a totalidade das práticas sociais (p. 198).

Ao abordar o caráter histórico e estrutural do racismo, tanto a postura de Silva e


Silvério (2003) quanto a de Soler e Pardo (2008) se orientam para um perfil de ações
afirmativas que se associam a “políticas distributivas ou mecanismos de transformação social
para superar desigualdades estruturais” (GÓNGORA, 2014, p. 47). Além disso, o foco no
âmbito simbólico do racismo e na reprodução da desigualdade racial aponta para a
necessidade de uma medida afirmativa que vá além do caráter paliativo e seja, sim,
transformadora.
Contudo, é necessário observar que uma rejeição maior emerge frente às políticas
de caráter mais transformador, como as que aliam redistribuição e reconhecimento. Nesse
sentido, estamos de acordo com a análise comparada, realizada por Wade (2009), quando
138

aponta que na Colômbia não houve grande controvérsia na implementação das ações
afirmativas, já que as universidades desse país já contavam com medidas em menor escala e
mais simbólicas. Essas medidas – baseadas nos imaginários raciais regionalizados –
enfocavam mais uma região do país (litoral pacífico, em especial) do que a população afro-
colombiana como um todo. Por isso, conforme argumenta o autor, a convergência da
Colômbia com o Brasil não irá além de realizar ações simbólicas, sem chegar a estabelecer
ações mais controversas como o fez Brasil com as cotas étnico-raciais. Pelos exemplos
analisados, e as discussões de Hooker (2006) e Wade (2009), consideramos que a controvérsia
está relacionada ao grau de explicitude que as políticas afirmativas dão ao racismo, que é
parte da agenda de reconhecimento identitário (FRASER; HONNETH, 2006).

4.1.3. Notas sobre justiça e meritocracia no debate das ações afirmativas

As noções de justiça e meritocracia subjazem a discussão de políticas afirmativas


na educação superior, já que as instituições nesse segmento educacional têm como princípio
que esse espaço é para aqueles que “merecem” estar aí. O problema está nos pressupostos
desses discursos meritocráticos. Um exemplo é o investimento na realização de exames de
ingresso – vestibulares –, vistos como espaços de competência justa já que há uma suposta
igualdade de condições entre os participantes. Desse modo, a compreensão é que se
realizamos todos o mesmo exame, nos mesmos locais e em horário similares, com isso, já
garantiríamos uma igualdade. No entanto, se entendemos justiça não apenas como uma
igualdade de condições mas também como equidade, ou seja, um reconhecimento dos direitos
de cada um em relação ao contexto que nos envolve, poderíamos questionar se de fato há
tanta justiça nesses exames140.
Ao analisar a polêmica das cotas, Moreira e Pereira (2011) também chamam a
atenção para a tensão de noções de mérito e meritocracia vs. ação afirmativa, já que em meio
a toda discussão o preceito do mérito

consegue permanecer quase incólume, dado o seu enraizamento como valor


em nossa cultura. Entretanto, isso impede o desenvolvimento de uma
discussão necessária, a saber, a qualidade dos métodos tradicionais do
vestibular e o próprio ensino superior que se quer construir no país
(MOREIRA; PEREIRA, 2011, p. 13).

140
Nos últimos anos, muitas universidades inclusive vêm alterando o desenho do exame vestibular e/ou associando ao
Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), como forma de flexibilizar o acesso.
139

Outro trabalho que destaca a relevância de pensar em justiça como equidade na


escola é o de Ribeiro (2013). Suas reflexões, embora abordem outro cenário – avaliações
externas e currículo escolar –, podem contribuir para essa discussão ao indicar que é
necessário associar as demandas sociais por igualdade às de equidade para conseguir superar
as desigualdades estruturais de sociedades desiguais.
Nas ações afirmativas, como buscamos mostrar com a discussão de Fraser (2006)
e Góngora (2014), há um reconhecimento de que quando há desigualdades históricas é
necessário propiciar direitos diferenciados para que haja igualdade de oportunidades em um
futuro. No caso do ensino superior, essas ações visam a romper com o ciclo histórico que
tornou essa instituição um espaço reservado para poucos nas sociedades latino-americanas
(SANTOS, 2005).
Certamente, é importante relembrar que a noção de mérito surgiu, nas sociedades
modernas, como uma alternativa à herança de “berço”. Naquele momento, rompia a sucessão
de oportunidades baseada na herança familiar. Contudo, em países como o Brasil e a
Colômbia, que por séculos se estruturaram com base no trabalho escravo, e seguem
apresentando altas taxas de desigualdade, a noção de mérito individual precisa ser revista.
Como explica Marenco (2007),

a ironia é que vantagens adscritivas foram capazes de adaptar-se às novas


regras impostas pela individualização das sociedades modernas,
reconvertendo capital econômico e social-familiar em capital escolar. Ao
investir, desde o ensino fundamental, na formação escolar de seus herdeiros,
famílias bem providas asseguram sua continuidade no interior das
instituições universitárias de maior prestígio e qualidade, que oferecem
títulos e diplomas mais valorizados no mercado, reproduzindo hierarquias
plutocráticas dissimuladas em capacidade intelectual individual.

Em outras palavras, cria-se uma ilusão de que a longa formação escolar dos
sujeitos não está relacionada com os recursos familiares para seu desenvolvimento; o que é
desconstruído com trabalhos como os de Queiroz (2001) e Henriques (2002). Elementos como
a família (o berço) e a cor seguem atuando nas hierarquias sociais. Logo, a tão defendida
meritocracia não estaria garantida com os vestibulares por si só. Como também argumenta
Marenco (idem),

a conversão de exames vestibulares em simulacros de mérito individual não


deve nos induzir ao desprezo pela relevância de regras que levam o mérito
em conta como condição para o estabelecimento de instituições racionais e
impessoais. Trata-se de controlar as distorções provocadas pela origem
social, neutralizando o efeito path-dependent: berço=diploma=renda.
140

Em síntese, os programas de reservas de vagas, vagas especiais e bonificação


complexificam o processo seletivo de forma a tornar mais justa a atribuição do “mérito”. Na
busca da justiça como equidade e igualdade, as ações afirmativas nas universidades visam
propiciar maiores oportunidades para um coletivo de jovens negros, indígenas e de classes
populares e, com seu ingresso, gerar uma mobilidade social para suas próximas gerações.
Esse acesso poderá construir cenários que promovam uma justiça cognitiva (SANTOS, 2012),
ou simplesmente criar um maior contingente de profissionais com formação superior que
tenham um “fenótipo” diferente do que secularmente nos acostumamos a observar nas
universidades. Para entender melhor essa discussão, passamos a apresentar os modelos de
ações afirmativas que vêm sendo desenvolvidos na educação superior.

4.2. Modelos de ação afirmativa no ensino superior

Os modelos de ações afirmativas para o ensino superior refletem a arena de


disputas no embate frente às políticas antirracistas. A resposta à demanda dos movimentos
sociais por políticas específicas para grupos discriminados mostra que, embora muitas vezes
essa demanda seja acolhida na agenda das instituições públicas, ela passa a ser alterada
quando é posta em marcha. Com o fim de conhecer o potencial de ruptura das assimetrias de
conhecimentos nas universidades, conforme discutido no primeiro capítulo desta tese,
apresentamos os modelos de ação afirmativa que vêm sendo desenvolvidos na educação
superior pública brasileira e colombiana.
Para esta apresentação, utilizamos dados da pesquisa sobre programas de ação
afirmativa desenvolvida por sociólogos do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ141
(DAFLON; FERES; CAMPOS, 2013), que buscam analisar o impacto das políticas
afirmativas no Brasil, e de duas pesquisas que mapearam políticas afirmativas na América
Latina, publicação da Fundação Equitas (LEÓN; HOLGUÍN, 2005) e a pesquisa “Diversidade
cultural e interculturalidade na educação superior na América Latina e no Caribe” do Instituto
Internacional da UNESCO para a Educação Superior na América Latina e no Caribe –
IESALC (MATO, 2008, 2014).
Os métodos de ingresso nas universidades no Brasil e na Colômbia são realizados
mediante provas (exame vestibular e examen de admisión). E como o número de vagas

141
Grupo coordenado pelo prof. Dr. Feres Jr.
142

instituições com políticas com recorte étnico-racial, 80% delas optaram por autodeclaração
étnica como procedimento de ingresso. Segundo os autores, a opção das universidades pela
autodeclaração se justifica já que os casos de fraude aparecem com um percentual residual.
Em termos de distribuição regional dos programas, os autores indicam que há
discrepâncias, de acordo à região do país, no número de universidades que oferecem algum
programa de ação afirmativa. Podemos apontar que os programas são oferecidos de maneira
geral em todas as regiões; contudo, a região Centro-Oeste tem o indicador mais alto de oferta
desses programas – 100% das universidades públicas dessa região oferecem programas,
enquanto a região Norte é a que menos os oferece, com apenas 36%. Esse dado é
complementado com informação sobre os beneficiários: as políticas com recorte étnico-racial
são distribuídas em 04 (quatro) categorias: “negro”, “indígena”, “quilombola” e “licenciatura
indígena”142. Ao observar o público beneficiário por regiões, vemos que a região Sudeste
possui 24 (vinte e quatro) programas de ação afirmativa com recorte étnico-racial, seguida
pela região Nordeste, com 22 (vinte e dois); a região Sul, com 18 (dezoito); a região Centro-
com Oeste 13 (treze); e a região Norte, com 8 (oito) programas étnico-raciais. A única região
que possuía programa para quilombolas foi a Nordeste.
A análise mais inovadora do trabalho de Daflon, Feres e Campos (2013) é a
construção de um índice de inclusão racial, elaborado a partir dos dados examinados. Esse
índice correlaciona o perfil das políticas por região e a composição étnico-racial de sua
população, resultante da razão entre o percentual de políticas afirmativas com recorte racial e
o percentual da população por raça/cor da região: o resultado mais próximo de 1 indicaria
uma boa inclusão étnico-racial. Conforme mostram os dados estatísticos, na Tabela 8, foi
considerada apenas a proporção de pretos e pardos (não a de indígenas):
Tabela 8- Índice de inclusão racial143

Fonte: Daflon; Feres Jr; Campos (2013) e dados do INEP (BRASIL, 2013).

142
A categoria “indígena” se refere a reserva de vagas para estudantes indígenas nos cursos de graduação estabelecidos e
a categoria “Licenciatura indígena” se refere aos novos cursos de licenciaturas interculturais indígenas.
143
Cociente entre a proporção de vagas ofertadas por cota racial e a proporção de pretos e pardos na população, segundo a
região.
143

Segundo os autores, o maior índice de inclusão racial está na região sul do país. A
nosso ver, esse alto índice se deve ao fato de que, apesar de haver um percentual menor de
populações negras e indígenas na região, todas as universidades estaduais paranaenses
adotaram políticas afirmativas (o que amplia consideravelmente o número de instituições
públicas com essas políticas). O menor índice estaria nas regiões Norte e Sudeste. No
Sudeste144, em especial, há uma forte resistência ainda hoje frente às políticas afirmativas
étnico-raciais, embora haja um grande número de população negra e uma significativa
presença indígena na região.
Para conhecer os programas de ação afirmativa da Colômbia, utilizamos a
pesquisa de León e Holguín (2005), que descreve em detalhe os programas de ação afirmativa
em 12 (doze) universidades colombianas. Com base em seus dados, apresentamos uma
síntese, na Tabela 9, focando apenas os programas das instituições públicas.

Tabela 9 - Universidades públicas colombianas com medidas de ação afirmativa


Universidades Medida Origem Processo de admissão
 2 vagas por curso
semestrais por cada grupo
 Iniciativa da Reitoria
1. Univ. de  Ingresso especial para  Menor pontuação no
 1983 Indígenas
Antioquia indígenas e afro-colombianos vestibular da Universidade
 2002 Afro-colombianos
 Competem entre si
pelas vagas
 Duas vagas por cada
 1990 indígenas
comunidade
 1999 afro-colombianos
2. Univ. de  Ingresso especial indígenas e  Exame do Estado
 O primeiro acordo se dá
Caldas afro-colombianos  Competem entre si
por convênio entre diretivas
pelas vagas
e cabildo indígena
3. Univ.  Para 40 estudantes
Distrital  Ingresso especial para admitidos regularmente
 2002 iniciativa da
Francisco minorias étnicas, culturais, por cursos são destinadas
Reitoria
José de reinseridos e desterrados. cinco vagas especiais
Caldas  Exame do Estado
 Ingresso especial para
4. Univ.
membros de comunidades  Desde 1991 até 1996
Industrial  Exame do Estado
indígenas, filhos de servidores, criaram acordos de ingresso
de  Menor pontuação
reinsertados, melhores especial
Santanter
estudantes da escola básica.
 2% das vagas por
 Admissão especial para  Iniciativa da Reitoria
curso
5. Univ. indígenas e afrodescendentes  1986 indígenas
 Vestibular da
Nacional da  Admissão especial para  1989 melhores
universidade
Colômbia melhores estudantes da escola estudantes
 Competem entre si
básica de municípios pobres  2009 afrodescendentes
pelas vagas
 Cinco vagas especiais
6. Univ.
 Ingresso especial para  2000 iniciativa da  Exame do Estado
Tecnológica
indígenas e afro-colombianos Reitoria  Competem entre si
de Pereira
pelas vagas
Fonte: com base em León & Holguín (2005).

144
As universidades estaduais paulistas – a Unicamp, a USP e a Unesp – adotaram o sistema de bonificação (pelo critério
socioeconômico e, dentro deste, o critério étnico).
144

Conforme os dados de León e Holguín (2005), das 06 (seis) universidades


públicas com ações afirmativas, 05 (cinco) possuem políticas de ingresso diferenciado desde
as décadas de 1980 ou 1990. Em grande parte, iniciaram com políticas para populações
indígenas, e apenas próximo aos anos 2000 inseriram a população afro-colombiana entre os
beneficiários. Um exemplo é a Universidad de Antioquia, que possuía uma política de
ingresso especial desde 1983 para povos indígenas, mas apenas em 2002 passou a oferecer a
mesma política também para população afro-colombiana. Essa mudança é uma resposta tardia
– pois aconteceu uma década depois tanto da Constituição de 1991 quanto da Lei 70 de 1993,
também conhecida como “Lei de comunidades negras”, na qual o Estado colombiano se
compromete com políticas específicas para a população negra do país.
A partir desses dados, podemos delinear cinco aspectos das políticas afirmativas
em universidades públicas colombianas. O primeiro tem a ver com a existência de um
ambiente favorável a políticas afirmativas antes da Conferência de Durban, a qual, conforme
já dito, ocorreu em 2001. Porém, esses programas mais antigos eram orientados apenas para a
população indígena. Em muitas instituições, a implementação das políticas resultou de
iniciativas das próprias Reitorias, o que pode indicar uma falta de diálogo das universidades
com movimentos sociais no desenho e na execução das políticas afirmativas. Outro aspecto
diz respeito aos beneficiários da política, entre os quais participam minorias étnicas –
indígenas e afro-colombianos – e também estudantes de municípios pobres, população vítima
e vitimária do conflito armado – desterrados145 e reinseridos146. Um terceiro aspecto é o
número de vagas destinadas a esses alunos: são muito poucas – em torno de 2% das vagas por
curso – e, ainda pior, sua definição não se guia pela proporção dos grupos de minorias étnicas
na população geral das regiões. Um quarto aspecto refere-se ao processo de certificação de
pertencimento: diferentemente do Brasil, as instituições colombianas exigem um certificado –
o aval para declaração étnica – que comprove a identidade étnico-racial do aspirante. Nessa
lógica, as instituições do movimento social afro-colombiano ou indígena que estejam
credenciadas junto ao Ministério do Interior são as responsáveis por fornecerem o aval aos
jovens aspirantes às vagas especiais. No entanto, há denúncias e reclamações sobre a compra-
venda desses avais. O último aspecto das políticas no país vizinho concerne à carência de
ações que se ocupem do acompanhamento acadêmico e da permanência estudantil.

145
Na Colômbia, o termo “desplazados forzadamente” faz menção a pessoas que foram deslocadas de seus territórios de
maneira forçada por serem vítimas do conflito armado. Também se fala de “desterrado”.
146
Na Colômbia, o termo “reinsertados” é usado para identificar as pessoas que abandonaram os grupos armados ilegais
(guerrilheiros ou paramilitares).
145

Embora os modelos de ambos os países pareçam similares, a discussão que


realizam León e Holguín (2005) mostra um cenário diferente quanto à proporcionalidade das
vagas destinada às políticas afirmativas, ao sistema educativo e ao contexto histórico. Além
disso, em relação ao sistema educativo colombiano, é preciso ressaltar que a educação pública
é paga, por isso um perfil das políticas é oferecer bolsas de estudo, como o recente programa
“Ser pilo, paga”147. O programa consiste em oferecer cerca de 10 mil bolsas, em universidades
públicas ou privadas, a estudantes de classes populares que tenham as melhores notas no
exame do ensino médio, similar ao ENEM no Brasil.
Quanto ao contexto histórico, conforme os dados de León e Holguín (2005),
destacamos que muitos programas não emergiram no seio do debate na Conferência de
Durban, mas por iniciativas institucionais; logo, sem grandes disputas e debates entre as
universidades e os movimentos sociais. As exceções são as licenciaturas interculturais, que
têm sido criadas a partir de projetos dialogados e gestados junto aos atores sociais
envolvidos148. As autoras identificaram, descreveram e analisaram as ações afirmativas de 04
(quatro) países latino-americanos – Argentina, Colômbia, Chile e Peru – com a preocupação
de saber se essas medidas ampliavam oportunidades de acesso à educação. Com base nesses
dados, as autoras criticam as políticas da Colômbia, e afirmam que nenhuma das
universidades observadas possui uma política de ação afirmativa como tal, ou seja, que possa
ser “entendida como uma série de medidas complementárias cujo fim é diminuir as lacunas
que existem entre diferentes grupos na sociedade e que se mantiveram historicamente”
(LEÓN; HOLGUÍN, 2005, p. 143-4). Para as autoras, com exceção da Universidade Nacional
da Colômbia, “nas demais universidades, encontramos, sobretudo medidas especiais de
ingresso” (ibidem, p. 143-4)149.
Embora compreendamos esse diferencial entre ação afirmativa e política especial
de ingresso proposto pelas autoras, não mantivemos essa diferença nesta pesquisa, porque
nosso interesse maior estava em reconhecer trajetórias de estudantes que ingressaram por

147
“Pilo” significa no espanhol colombiano ser esperto ou inteligente, o que poderíamos entender como uma chamada
aos estudantes para o fato de que ser esperto pode pagar sua matrícula na universidade (com uma bolsa). Mais
informações sobre o programa disponíveis em: http://www.colombiaaprende.edu.co/html/micrositios/1752/w3-article-
348560.html. Acessado em 25.março.2015.
148
Um exemplo seria a Licenciatura em Pedagogia da Mãe Terra, criada a partir de uma parceria entre a Organização
Indígena de Antioqua e a Faculdade de Educação da UdeA. Para mais informações ver:
http://www.faceducacion.org/madretierra/
149
Original: “[Ninguna de las universidades reseñadas en este capítulo cuenta con una política universitaria de acción
afirmativa,] entendida como una serie de medidas complementarias cuyo fin es disminuir las brechas que existen entre
diferentes grupos en la sociedad y que se han mantenido históricamente. [Sólo la Universidad Nacional de Colombia
cuenta con un programa de admisión especial que se acerca a una política universitaria de acción afirmativa; sin embargo,
dadas sus carencias, no se puede catalogar como tal.] En las demás universidades encontramos sobre todo medidas
especiales de admisión.”.
146

alguma forma de ingresso que se associava ao pertencimento étnico-racial,


independentemente da amplitude (ou não) do programa. Inclusive, muitos dos programas
observados por nós também iniciaram com políticas enfocadas no ingresso e, com o tempo,
foram respondendo a demandas relacionadas à permanência e ao bem-estar dos universitários.
No período de realização da pesquisa, por exemplo, as duas instituições já demonstravam
mudança de postura política com a criação de um órgão que seria responsável por propor
ações no âmbito da permanência e da equidade estudantil.
Em função dessas diferenças no enfoque e dimensões das políticas de ação
afirmativa, consideramos importante analisar a tensão, no interior das instituições públicas
que oferecem programas de ação afirmativa, em torno às concepções que possuem acerca de
seus programas. Nossa eleição foi, em meio a esse embate, questionar se essas políticas
enfocadas unicamente no ingresso poderiam efetivamente promover alterações nas formas
assimétricas de produção de conhecimento, já que reconhecemos a importância desses
programas como políticas de redistribuição de recursos e de reconhecimento identitário
(FRASER; HONNETH, 2006).
O exame das ações criadas pelas universidades para atender ao público
ingressante por políticas afirmativas indica que a atenção à permanência estudantil continuou
essencialmente a mesma, apenas ampliando responsabilidades de setores como as secretarias
de apoio ou assistência estudantil150. Segundo o relatório de Paixão, Rossetto e Monçores
(2012),

as modalidades de apoio social mais frequentes são, nesta ordem:


alimentação, bolsa permanência e moradia. Os alunos cotistas que
recebiam estes auxílios eram, respectivamente, 10,2%, 6,1% e 3,4%. Entre
os não cotistas os percentuais eram de, respectivamente, 6,9%, 1,0% e 1,0%
(...) Até 2010, a implementação de políticas de ação afirmativa encontrava
um duplo desafio: expandir o número de ingressos por reserva de vaga e a
adoção de políticas de apoio estudantil (p. 10, grifos nossos).

Como mostram os números do relatório, houve um aumento do percentual de


estudantes cotistas recebendo políticas de apoio. Contudo, a visão de permanência adotada
pelas instituições universitárias continuou restrita ao âmbito econômico. Muitas das
instituições criaram ações com enfoque no apoio financeiro; e, em poucos casos,
comprometeram-se com o aspecto acadêmico. Em síntese, poucas políticas abordaram as
tensões que emergiriam nas experiências de contato pela diversidade étnico-racial e cultural
dos ingressantes.

150
Nas instituições colombianas, seria o setor de bem-estar universitário.
147

Observando instituições de educação superior e programas que são orientados


para atender a demandas de comunidades afrodescendentes e indígenas, a pesquisa
Diversidade cultural e interculturalidade na educação superior na América Latina e no
Caribe (MATO, 2008) analisa diversas experiências de cursos de formação universitária que
foram criados em resposta ao reconhecimento, por parte dos Estados latinos, do caráter
pluricultural de suas populações, em especial na década de 1990 – período de aprovação de
novas constituições cidadãs, como a Constituição Federal de 1988, no Brasil, e a Constituição
Política de 1991, na Colômbia. Apesar dessa potencial abertura à diversidade cultural, Mato
(2008) mostra como os programas, mesmo com os avanços constitucionais e legais que
possuem os países, ainda reproduzem práticas que ignoram os reconhecimentos garantidos na
Constituição desses países, em especial em relação à pluralidade cultural.
Em artigo mais recente, o autor analisa programas interculturais de ensino
superior e destaca que, para compreender a situação da educação superior atual em relação
aos povos indígenas e afrodescendentes, é indispensável relembrar aspectos históricos,
marcados pela “conquista e colonização, com massacres, despojos de território,
deslocamentos e reorganização social e territorial dos povoadores originais desta parte do
mundo, assim como com a importação massiva de contingentes de pessoas africanas
escravizadas”151 (MATO, 2014, p. 18-9). Esses aspectos permitem entender o contexto sócio-
histórico em que se reproduz essas relações de subalternidade de grupos culturais. Além disso,
esses eventos de conflito e violência passados se refletem nos encontros atuais, em especial
nas políticas públicas.
Hooker (2006), por exemplo, revisando as reformas multiculturais latino-
americanas, questiona por que na América Latina os afrodescendentes obtiveram menos
direitos coletivos de que os povos indígenas. Para a autora, para responder a essa pergunta é
preciso considerar também por que houve uma sensibilidade maior das elites nacionais e da
opinião pública frente às reivindicações de grupos indígenas. Embora as reformas
multiculturais tivessem o objetivo de promover a legitimidade democrática e remediar a
exclusão social, a autora argumenta que “os critérios usados para determinar os sujeitos que se
beneficiariam dos direitos coletivos não foram a discriminação racial ou a marginalização
política e socioeconômica” (HOOKER, 2006, p. 93). Essa postura, segundo a autora, está
associada a um modelo multicultural, o qual resulta em um Estado que, embora assuma as

151
Original: “la conquista y colonización, con masacres, despojos de territorio, desplazamientos y reorganización social y
territorial de los pobladores originales de esta parte del mundo, así como con la importación masiva de contingentes de
personas africanas esclavizadas”.
148

diferenças culturais, não dá conta das desigualdades sociais que as populações discriminadas
vivenciam em seus cotidianos. Como discutimos no primeiro capítulo, essa postura é muito
próxima do modelo multicultural definido por Walsh (2009), constituído por políticas que
visam promover a tolerância sem alterar as causas da assimetria cultural e social vigentes.
Na próxima seção, passamos a analisar com maior detalhe as medidas de ingresso
especial das universidades em questão nesta pesquisa.

4.3. As políticas públicas sob análise

Nesta seção, analisamos as políticas instituídas pelas duas universidades públicas


latino-americanas em exame, com vistas a atingir os dois primeiros objetivos desta tese: 1.
descrever e discutir as políticas de ações afirmativas implementadas por duas instituições
públicas de ensino superior latino-americanas – uma brasileira e outra colombiana –,
visando à inserção dos estudantes negros e indígenas nas universidades; e 2. analisar as
apreciações dos estudantes cotistas sobre o programa de ações afirmativas de sua
universidade. Iniciamos pela apresentação do contexto de emergência das duas políticas
públicas e a descrição da política, com o fim de mostrar como essas universidades atenderam
a demanda de ações afirmativas reivindicada por movimentos sociais. Antes, parece-nos
importante situar nossa visão sobre política pública.
O cientista político Pallares (1988) aclara que, quando falamos de política pública,
estamos identificando um campo de ações vinculado aos poderes públicos. Segundo o autor,
não há um consenso sobre a definição do termo, por isso o caracteriza de forma genérica,
como “o conjunto de atividades das instituições do governo, atuando diretamente ou através
de agentes, e que vão dirigidas a ter uma influência determinada sobre a vida dos cidadãos.”
(PETERS, 1982 apud PALLARES, 1988, p. 142-3). A essa definição genérica, Pallares
(1988) agrega duas considerações: em primeiro lugar, a política pode também consistir
naquilo que não se esteja fazendo, o que podemos chamar de uma política de manutenção do
status quo; em segundo lugar, as políticas públicas se constituem em um conjunto de decisões
ao longo de um tempo, que seria mais amplo que seu período de formulação. Essas
considerações são importantes para explicar por que consideramos as políticas afirmativas
como uma política pública.
O autor propõe três etapas para o processo de realização de uma política pública,
as quais deveriam ser vistas em um processo cíclico, representado no Gráfico 6:
150

Em seguida, passamos à segunda etapa de implementação, na qual a instituição


elabora um documento que define e regula a política criada152, assim como cria ações e
programas para que a política seja executada. Por fim, a terceira etapa se constitui em uma
avaliação da política, tanto para identificar seus impactos, quanto para considerar a
continuidade ou a alteração do modelo proposto.

4.3.1. A formulação da política na Universidade Pública Gaúcha

O Programa de Ações Afirmativas da UPG foi construído a partir de um diálogo


que se iniciou no seio dos movimentos sociais, em particular, do movimento negro, e ganhou
maior espaço na academia a partir de um projeto de extensão. Para contar o processo de
construção do Programa, recuperamos a história a partir do final de 2005, ainda que já
existissem outros movimentos de demanda por políticas afirmativas anteriores a esse período.
A seguir, cito parte dessa história já registrada em Sito, Ferreira e Rodrigues (2008), que
descrevem em detalhe o contexto de aprovação da política. Em sua narrativa, o ponto de
partida é a construção de um grupo de trabalho sobre ações afirmativas:

Foi nesse contexto no qual se reorganizaram grupos orientados para a


implementação de ações afirmativas na U. como o Grupo de Trabalho
de Ações Afirmativas (doravante GTAA). Esse Grupo de Trabalho
constituiu-se no intuito de compreender e difundir as razões da
necessária implantação das ações afirmativas, buscando promover o
diálogo entre a universidade e a sociedade mais ampla. Suas ações
priorizaram a articulação junto a outros grupos que também lutavam
pela implantação de Ações Afirmativas na U., bem como a realização de
encontros e seminários para dialogar sobre o tema. Além disso, o GTAA
encarregou-se de realizar o levantamento das necessidades específicas
dos grupos que mais sofriam com a desigualdade estrutural da
sociedade no acesso ao ensino superior, de formular novas propostas
para implementação de Ações Afirmativas, tanto no espaço universitário (seu
foco principal), quanto em campos como a educação básica e a saúde, e de
promover um círculo de palestras sobre Ações Afirmativas,
especificamente cotas (SITO; FERREIRA; RODRIGUES, 2008, p. 120,
grifos nossos).

As autoras posicionam o Grupo de trabalho de ações afirmativas como um agente


importante no processo, por ser um ator social que se propunha organizar outros coletivos em

152
No caso da Universidade Pública Paisa, o Acordo 236/2002; e no caso da Universidade Pública Gaúcha, a Decisão
134/2007 e, após a avaliação, a Decisão 268/2012.
151

prol de consolidar a política afirmativa (compreender e difundir a justificativa da medida,


articular outros grupos, dialogar sobre o tema). Durante o processo de sua atuação, o grupo
se constituiu em um coletivo articulador, em especial por criar diversos espaços para
“promover o diálogo entre a universidade e a sociedade mais ampla”; para isso buscava
apoio em outros grupos, conforme seguem narrando as autoras:

No final de 2005, o GTAA articulou-se com os programas Educação


Anti-Racista no Cotidiano Escolar: História e Acadêmico e Conexões de
Saberes: Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares,
para viabilizar uma agenda interna de discussões. Além disso, buscou o
diálogo com as comunidades a partir da realização de oficinas sobre
Ações Afirmativas e cotas étnico-raciais e sociais em escolas, cursinhos
populares e centros acadêmicos/DCE da U. O Grupo iniciou o ano de 2006
bastante ampliado, com a participação de entidades dos Movimentos
Sociais, como o Movimento Negro Unificado (MNU), a União de Negros
pela Igualdade (UNEGRO), o Instituto de Assessoria a Comunidades
Remanescentes de Quilombo (IACOREQ), o Afrosul/Odomodê, a Maria
Mulher - Organização de Mulheres Negras, o ENJUNE-RS e o Levante
Popular da Juventude, bem como de alunos, docentes e técnicos da
universidade. Encontros com lideranças indígenas Guarani e Kaingang
também compuseram os diálogos. Entre as ações do grupo, destacaram-se
o conhecimento de outros projetos de Ações Afirmativas, o estudo das
relações raciais e do racismo no Brasil, a realização de oficinas em escolas,
cursinhos populares e centros acadêmicos/DCE da U. e a participação em
manifestações junto aos Movimentos Sociais, todas fundamentais na
elaboração de uma proposta relevante para a Universidade. Dentre esse rol
de atividades, ao longo de 2006 e 2007, destacam-se as manifestações
realizadas em 21 de março de 2006 (Dia Internacional contra o Racismo), 08
de junho de 2006 (Levante da Juventude), 18 de agosto de 2006 (Dia
Nacional pelas Cotas nas Universidades) e 20 de novembro de 2006 e 2007
(Dia da Consciência Negra). Foi fundamental também o acompanhamento
das reuniões dos Conselhos Superiores da Universidade durante esses
dois anos – o Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão - CEPE e o Conselho
Universitário – CONSUN, quando a pauta incluía discussões relacionadas á
política de Ações Afirmativas (SITO; FERREIRA; RODRIGUES, 2008, p.
120-1, grifos nossos).

Esse conjunto de ações desenvolvidas pelo GTAA tinha como fim contribuir para
a elaboração de uma proposta de ação afirmativa relevante para a Universidade. Com base
nesses debates, o coletivo construiu uma proposta inicial, que foi apresentada à Comissão
Especial Ações Afirmativas da Universidade, constituída por membros dos Conselhos
Superiores, no final de 2006. Durante o primeiro semestre de 2007, houve uma série de
debates nos Conselhos Superiores para análise da proposta; e concomitantemente, o coletivo
do GTAA continuou realizando visitas aos diretores de cada unidade (que seriam os votantes
da proposta no Conselho Superior) e desenvolvendo atividades políticas em torno ao tema
(Foto 1). A proposta construída a partir dessa discussão foi finalizada na reunião do Conselho
153

anualmente para atender aos estudantes indígenas especificamente. Para essas vagas, realiza-
se um processo seletivo diferenciado para os inscritos. Para candidatos egressos do Sistema
Público de Ensino Fundamental e Médio, a medida consiste na reserva de um percentual de
30% do total de vagas dos cursos, das quais a metade é para os candidatos autodeclarados
negros (15%).
Para a identificação étnico-racial dos estudantes negros154 e indígenas é requerida
uma documentação diferenciada. Para os estudantes negros, exige-se a autodeclaração
registrada na inscrição para o Vestibular e assinada no momento da matrícula nas Comissões
de Graduação (COMGRAD) dos cursos – órgão institucional indicado na Decisão para um
acompanhamento mais próximo aos estudantes. As Comissões de Graduação (COMGRAD) –
órgão responsável por receber a documentação e realizar as matrículas – possuem os dados
sobre o percurso acadêmico dos estudantes, o que lhes permite conhecer suas trajetórias nos
cursos. Para os estudantes indígenas, a identificação é atribuída por um certificado assinado
por lideranças da comunidade indígena do estudante ou da Fundação Nacional do Índio
(FUNAI). O reconhecimento étnico-racial dos estudantes, sejam negros ou indígenas, é causa
de questionamentos ainda hoje. Não aprofundarei este tema por estar fora do escopo da tese,
mas é importante ressaltar que, para esta pesquisa, os estudantes também autorreconheceram
seus pertencimentos étnico-raciais.
Avançando na Decisão 134/2007, seu segundo artigo indica os objetivos
assumidos para o Programa:
Art. 2º - Este Programa de Ações Afirmativas, através de Ingresso por Reserva de Vagas, tem por
objetivos:
I - estimular a qualificação, aperfeiçoamento e valorização do Ensino Público Fundamental e Médio
através de políticas de estímulo ao acesso ao Ensino Superior Público de excelência de egressos desse
sistema de ensino;
II - ampliar o acesso em todos os cursos de graduação para candidatos egressos do Sistema Público de
Ensino Fundamental e Médio e para candidatos autodeclarados negros egressos do Sistema Público de
Ensino Fundamental e Médio, mediante habilitação no Concurso Vestibular;
III - promover a diversidade étnico-racial e social no ambiente universitário;
IV - apoiar estudantes, docentes e técnico-administrativos para que promovam, nos diferentes âmbitos
da vida universitária, a educação das relações étnico-raciais;

154
Uma reflexão mais aprofundada sobre este tema pode ser lida na tese “Linguagem e Identificação: uma contribuição
para o debate sobre ações afirmativas para negros no Brasil”, de Kassandra Muniz (2009). A autora discute como
funciona a "essencialização" da identidade negra, que foi (e ainda é) uma estratégia linguística e política utilizada pela
população negra brasileira para adquirir os direitos que lhes foram negligenciados historicamente.
154

V - desenvolver ações visando a apoiar a permanência, na Universidade, dos alunos referidos no Art.
1º, mediante condições de manutenção e de orientação para o adequado desenvolvimento e
aprimoramento acadêmico-pedagógico. (Decisão 134/2007, grifos nossos)

Entre as ações atribuídas, aparecem as ações de estimular, promover, ampliar,


apoiar, desenvolver, todas de responsabilidade da própria instituição universitária, pois,
segundo a Decisão, a universidade deveria estimular a qualificação, promover a diversidade,
ampliar o acesso de outros grupos à universidade, apoiar a comunidade acadêmica para
conviver com a diferença e desenvolver ações de permanência. De acordo com esses
propósitos, vemos que a Universidade Pública Gaúcha atribui ao programa a responsabilidade
não apenas pelo acesso dos estudantes, mas também pela permanência desses estudantes,
assim como pela reeducação das relações étnico-raciais no interior da instituição.
Entre os objetivos do Programa, destacamos que os três últimos incisos (III-V)
estão diretamente relacionados com a desconstrução de imaginários racializados e com a
observação das condições de permanência desses estudantes. Para atingir esses objetivos,
foram estabelecidas duas comissões de Acompanhamento, descritas nos artigos 11 e 12.

Art. 11 - Caberá ao Reitor nomear Comissão de Acompanhamento dos Alunos do Programa de Ações
Afirmativas, ouvidos o Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão - CEPE e o Conselho Universitário -
CONSUN, que terá como atribuição propor medidas a serem implementadas, a partir do primeiro
semestre de 2008, no sentido de apoiar e dar assistência a esses alunos.
Parágrafo único - A COMGRAD (Comissão de Graduação) de cada curso deverá acompanhar os
alunos do Programa de Ações Afirmativas, propondo medidas à Comissão de Acompanhamento.
Art. 12. - No ano de 2008, serão disponibilizadas 10 vagas para estudantes indígenas cuja forma de
distribuição será definida pelo CEPE, ouvidas as comunidades indígenas e a COMGRAD dos cursos
demandados. A partir do ano de 2009 este número de vagas poderá ser alterado.
§2º - As vagas para indígenas serão criadas, anualmente, especificamente para este fim. Aquelas que
não forem ocupadas serão extintas.
§1º - Institui-se a Comissão de Acesso e Permanência do Estudante Indígena, que terá sob sua
responsabilidade os processos seletivos dos estudantes indígenas, bem como o seu acompanhamento e
inserção no ambiente acadêmico. (Decisão 134/2007, grifos nossos)

O acompanhamento dos estudantes que ingressavam pelo Programa de Ações


Afirmativas ficou sob responsabilidade de três instâncias: duas Comissões constituídas por
membros do Conselho Universitário e as Comissões de Graduação de cada unidade de ensino.
155

Nesse primeiro modelo de comissões, havia uma divisão entre a atenção que se prestaria aos
estudantes de escola pública (negros e não-negros) e o acompanhamento aos estudantes
indígenas. A primeira, a Comissão de Acompanhamento dos Alunos do Programa de Ações
Afirmativas, tinha a cargo o fomento de ações enfocadas nos estudantes ingressos pela reserva
de vagas. A segunda, a Comissão de Acesso e Permanência do Estudante Indígena, tinha a
cargo duas responsabilidades: a permanência e o acesso, com a realização de um processo
seletivo especial para os estudantes indígenas. Até o ano de 2012, o acompanhamento dos
estudantes esteve a cargo dessas duas Comissões. Contudo, essa estrutura se mostrou precária
para pôr a funcionar um Programa de tal dimensão: em cinco anos, a Universidade contava
com 1.445 estudantes egressos de escola pública autodeclarados negros e com cerca de 50
estudantes indígenas.
Na Tabela 10, a seguir, apresentamos dados sobre as vagas ofertadas no vestibular
e o número de vagas que foram ocupadas no período de 2008 a 2012. Esclarecemos que as
vagas destinadas para a reserva, quando não são ocupadas em sua totalidade, são remanejadas
para os outros tipos de acesso e, no caso de ainda sobrarem vagas, retornam para os inscritos
por acesso universal, o que explica os números de ocupação superiores em alguns anos para o
ingresso universal e para estudantes autodeclarados negros (Ep). Conforme os dados da
Tabela 10, por exemplo, no ano de 2008, havia 667 vagas destinadas para estudantes de
escolas públicas autodeclarados negros (Epn), mas ingressou um número menor, 295; com
isso, as 372 vagas restantes foram realocadas para os estudantes de escolas públicas (Ep), que
ocuparam 1.020 vagas no total.

Tabela 10 - Número e porcentagem de vagas ocupadas 2008-2012 – UPG

MODALI- TOTAL
2008 2009 2010 2011 2012
DADE DE ocupação
INGRESSO Oferta Ocupação Oferta Ocupação Oferta Ocupação Oferta Ocupação Oferta Ocupação N %
Universal 2.978 2.997 3.148 3.170 3.419 3.417 3.460 3.489 3.650 3.715 16.788 69,86
Ep* 667 1.020 704 1.151 771 1.246 779 1.239 820 1.141 5.797 24,12
Epn** 667 295 704 231 771 247 779 265 820 407 1.445 6,01
Indígena 10 9 10 9 10 10 10 10 10 10 48 96
Fonte: Relatório de avaliação do período 2008-2012. *Ep – Egresso de escola pública. **Epn – Egresso de escola pública
autodeclarado negro.

No caso dos estudantes negros, o número de vagas ocupadas apresenta muita


variabilidade, e houve um incremento no ano de 2012 (407 vagas ocupadas). Ativistas do
movimento negro reclamam da falta de divulgação do programa, explicando que ainda é
156

necessário construir a imagem da universidade como um direito da população negra. Para os


ativistas, uma maior visibilidade do programa poderia provocar maior adesão da juventude
negra para participar do exame vestibular. Além de acolher essa crítica, acrescentaríamos que
essa construção também é necessária para os estudantes indígenas e de classe popular.
No caso dos estudantes indígenas, há uma ocupação acima dos 90% das vagas.
Essa alta adesão pode ser resultado da maneira em que se criam as vagas. Anualmente, a
Reitoria escuta as lideranças indígenas para decidir em conjunto quantas serão as vagas
ofertadas e em quais cursos, respondendo com uma oferta mais articulada à demanda. Em
termos de tamanho do programa, a Universidade possuía, em 2013, cerca de 30 mil alunos de
graduação matriculados. Desse total, 30,4% (7.290) das vagas foram ocupadas por estudantes
do programa de ações afirmativas; e aproximadamente 5% (1493) especificamente por
estudantes negros155 e indígenas. Entre os cursos que têm tido indicação constante (entre 2008
e 2013) pelos povos indígenas, estão Direito, Enfermagem, História, Medicina, Odontologia e
Pedagogia.
Em 2012, a Reitoria solicitou a primeira avaliação do Programa, realizada por
uma equipe de docentes, técnicos-administrativos e estudantes da instituição. Como parte do
processo das políticas públicas apontado por Pallares (1988), a avaliação teve o propósito de
indicar se haveria continuidade ou interrupção do Programa de Ações Afirmativas da
Universidade. Essa avaliação, que envolveu o período de 2008 a 2012, apresentou um extenso
conjunto de dados sobre o ingresso, revelando a necessidade de aperfeiçoamento nos cálculos
do vestibular e no acompanhamento dos estudantes. Após essa primeira avaliação do
Programa, foi instituída uma nova decisão que passou a vigorar em 2012. A Decisão
268/2012 garantiu a continuidade do Programa, e ainda propôs um novo órgão para fomentar
políticas e coordenar o Programa: a Coordenadoria de Ações Afirmativas.

4.3.1.1. A implementação e a avaliação da política: a Coordenadoria de Ações Afirmativas


– CAF

A instituição de um órgão responsável pelo Programa de Ações Afirmativas


resultou da avaliação realizada em 2012 e reiterou o interesse institucional em fortalecê-lo. A
Decisão 134/2007 recomendava uma avaliação do Programa após cinco anos para decidir

155
É importante ressaltar que, pelo cálculo dos pontos de corte no exame vestibular, estudantes autodeclarados negros
podem ingressar tanto pela modalidade de ingresso de escola pública quanto de escola pública para negros.
158

Na pesquisa, há o programa de Bolsas de Iniciação Científica Afirmativa (PIBIC-Af)158, para


jovens ingressantes por ações afirmativas – uma proposta em parceria entre a Secretaria
Especial de Políticas Públicas da Igualdade Racial (SEPPIR) e o Conselho Nacional de
Pesquisa (CNPq) (como parte das políticas transversais para a promoção da igualdade racial).
No ensino, há ações como a criação da Coordenadoria de Ações Afirmativas, para fomentar
políticas de apoio à permanência e à docência para os graduandos, assim como a atividade
“Portas Abertas”, para ampliar o conhecimento da comunidade externa sobre o acesso à
universidade e seu funcionamento; na extensão159, há variados projetos de extensão sobre o
tema, como a divulgação do Programa em escolas por meio de oficinas sobre ações
afirmativas. Algumas dessas ações são financiadas pela SEPPIR (Bolsas de iniciação
científica Afirmativa) e outras pela própria Universidade (Portas Abertas, pré-universitários e
outros).
A Coordenadoria de Ações Afirmativas está ligada diretamente à Reitoria da
Universidade e faz parte e uma figura chamada Pró-Reitoria de Coordenação Acadêmica.
Dessa forma, a CAF tem status de Pró-Reitoria acadêmica, como a Secretaria de Relações
Internacionais, por exemplo; o que lhe dá independência e autonomia para gerar ações que
transversalizem as demais Pró-Reitorias na instituição. Entre as principais atribuições da
CAF, estão o acompanhamento dos estudantes ingressantes pelo Programa, a realização de
relatórios periódicos relativos à permanência dos estudantes e, com base nesses dados, a
proposição de mecanismos de aperfeiçoamento do Programa, como pode ser visto na Decisão
nº 268/2012, que regula a Comissão:

Com a Decisão Nº 268/2012 que regulamenta o Programa de Ações Afirmativas da UPG, aprovada
pelo Conselho Universitário em agosto de 2012, criou-se a Coordenadoria de Acompanhamento do
Programa de Ações Afirmativas, ligada à Pró-Reitoria de Coordenação Acadêmica, com estrutura
própria e as seguintes atribuições:
I - realizar o acompanhamento dos estudantes ingressantes por este Programa, junto à Pró-Reitoria
da Graduação – PROGRAD – e às Comissões de Graduação – COMGRADs – de cada curso da
UPG, e buscar o atendimento de suas necessidades acadêmicas;
II - elaborar, ouvidas as Unidades Acadêmicas e as COMGRADs de cada curso, e encaminhar ao
Conselho Universitário relatório anual de avaliação do Programa;

158
Mais informações disponíveis em: http://www.cnpq.br/web/guest/pibic-nas-acoes-afirmativas
159
Com base no relatório de Avaliação, 07 (sete) ações de extensão foram vinculadas ao Programa de ações afirmativas:
Programa de Apoio à Graduação, Projeto de recuperação e estudos intensivos, Assistência Estudantil, Bolsas (de ensino,
pesquisa e extensão), Programa Conexões de saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares, PET-
Conexões de Saberes, Conversações Afirmativas.
159

III - realizar e encaminhar ao Conselho Universitário relatório bianual relativo à permanência e ao


desempenho do estudante ingressante por meio das vagas reservadas por este Programa;
IV - a partir das avaliações parciais realizadas, sugerir mecanismos de aperfeiçoamento do
Programa ao Conselho Universitário;
V - encaminhar relatório de avaliação acerca dos resultados do Programa de Ações Afirmativas,
sugerir mecanismos de aperfeiçoamento do mesmo e manifestar-se relativamente à sua
prorrogação, ao final de sua vigência;
VI - implementar mecanismos de efetivação, junto às Unidades Acadêmicas, dos objetivos deste
Programa, especialmente no que concerne aos incisos III e IV do Art.
VII - disponibilizar os dados referentes aos estudantes beneficiários da política de ações
afirmativas para as COMGRADs e Unidades Acadêmicas, a fim de permitir o acompanhamento e
qualificação dessa política no âmbito das Unidades e Cursos da UPG. (Decisão 134/2007, grifos
nossos)

Dos sete objetivos da Coordenadoria, três se relacionam com a avaliação. Os


demais objetivos podem ser sintetizados em dois eixos: “realizar o acompanhamento dos
estudantes” e “implementar mecanismos de efetivação” do Programa. Além disso, há uma
nova função, que serve como instrumento para as duas anteriores: o cuidado e o fornecimento
de dados do Programa. Durante os primeiros cinco anos, a Instituição raramente divulgou
esses dados, justificando que deveria proteger os estudantes cotistas de uma exposição
pública.
Outro elemento importante decorrente da nova Decisão foi a constituição do
Conselho Consultivo, previsto na regulamentação. Nesse Conselho, há representações de cada
área do conhecimento da universidade, assim como dos três segmentos da Universidade
(docentes, técnicos e discentes) e da sociedade civil, a qual conta com representantes dos
movimentos negro e indígena.

Composição do Conselho Consultivo da CAF:


Representantes por oito áreas: Ciências Agrárias, Ciências Biológicas, Ciências Exatas e da Terra,
Ciências Humanas, Ciências da Saúde, Ciências Sociais e Aplicadas, Engenharias e Lingüística,
Letras e Artes. Representante docente, Representantes dos técnico-administrativos, Representante
discente e Representantes da sociedade civil.

A descrição da Coordenadoria de Ações Afirmativas nos ajuda a analisar o


programa, ao revelar como a política foi elaborada de acordo à estrutura da instituição. As
160

ações foram distribuídas entre as três Pró-Reitorias e visaram aproximar-se dos estudantes a
partir das COMGRADs. Com base em entrevista informal160 realizada com equipe da
Coordenadoria, destacamos alguns elementos que ampliam a nossa visão das estratégias de
atuação deste órgão. A leitura da equipe em relação ao novo órgão é a de assumir esse espaço
como uma oportunidade para repensar as transformações que são necessárias dentro da
universidade para que acolha melhor os estudantes, já que, segundo a coordenadora da equipe,
a permanência estudantil é também uma responsabilidade institucional. Ela destaca que,
institucionalmente, se deveriam pensar as ações afirmativas em quatro etapas: ingresso,
acesso, permanência e conclusão do curso. Segundo a coordenadora, este é um órgão
transversal, ao destacar que está entre as Pró-Reitorias, a fim de promover e gerenciar ações
endereçadas à política afirmativa. Sua fortaleza está em concentrar-se em pesquisas sobre o
público-alvo da política, com o fim de propor políticas mais eficazes e acordes aos objetivos
do Programa.
Além disso, ao analisar os enunciados dos documentos de regulamentação do
Programa de Ações Afirmativa, vemos que os estudantes poucas vezes são topicalizados; e
quando o são, em geral, são objetos do tema de acompanhamento ou caracterizados como o
público-alvo da política. Há pouca descrição, mais detalhada, sobre os pressupostos e metas
da política, apesar do enfoque na avaliação ao final de determinado período.

4.3.2. A formulação da política na Universidade Pública Paisa

O primeiro programa de ingresso especial para grupos étnicos da Universidade


Pública Paisa data de 1983, quando a instituição implementou um processo especial para
ingresso de jovens indígenas. É apenas em 2002 que a política se amplia para abranger a
população afrodescendente, após uma década de reconhecimento de direitos étnicos à
população negra colombiana (Lei 70 de 1993).
Esse hiato pode ser explicado com argumentos que expusemos no primeiro
capítulo desta tese, em relação à menor legitimidade do movimento afro-colombiano em
relação ao movimento indígena. A população negra passou a ganhar maior visibilidade a
partir da Constituição Política de 1991, mais especialmente a partir da chamada “Lei dos
Negros”, de 1993, a qual lhe garante direitos especiais como minoria étnica. Essa legislação

160
Entrevista realizada em 20/05/2013.
161

potencializou a emergência de movimentos sociais negros, com demandas por titulação de


terras (no território pacífico) e por educação.
A política de ação afirmativa que analisaremos foi instituída pelo Acordo
Acadêmico 236/2002, de 26 de outubro de 2002 (Anexo). Esse Acordo prevê a atribuição de
vagas adicionais para candidatos ao exame vestibular que venham de comunidades negras e
indígenas, bem como para candidatos que tenham sido premiados nas provas de exame do
ensino médio no país. Em seu nono artigo, o Acordo Acadêmico define o funcionamento da
política de ingresso, no qual são atribuídas duas vagas adicionais para estudantes de
comunidades indígenas e outras duas para estudantes de comunidades negras em cada curso
da instituição:

Artículo 9. En cada programa se asignarán dos cupos adicionales para los aspirantes nuevos
provenientes de comunidades indígenas, y dos cupos adicionales para los aspirantes provenientes de
comunidades negras reconocidas por la Constitución Nacional [a Constituição Política de 1991].161

Com base em dados do Programa, desde seu início já ingressaram 2.359 alunos
pelas vagas complementares: 1.037 indígenas e 1.322 afrodescendentes, o que representa
cerca de 6 % do total de estudantes da universidade (aproximadamente 40.000 estudantes),
conforme pode ser observado na Tabela 11.

Tabela 11 - Número e porcentagem de vagas ocupadas 2008-2013 – UPP


ANO/MODALIDADE 2008-1 2008-2 2009-1 2009-2 2010-1 2010-2 2011-1 2011-2 2012-1 2012-2 2013-1 2013-2 TOTAL
DE INGRESSO

Indígenas 84 82 92 81 90 58 108 79 95 77 91 100 1037

Afrodescendentes 101 98 117 105 111 64 140 101 122 114 124 125 1322

Fonte: dados do Programa Institucional para a Permanência com Equidade (2013).

Quanto ao tamanho do programa, a Universidade ofereceu, em 2015, 71


programas de graduação na sede de Medellín, com um total de 3214 vagas. De acordo à
política especial de ingresso, foram oferecidas quatro vagas complementares para grupos

161
Tradução: “Artigo 9. Em cada curso de graduação serão oferecidas duas vagas adicionais para os candidatos novos
procedentes de comunidades indígenas, e duas vagas adicionais para os candidatos procedentes de comunidades negras
reconhecidas pela Constituição Nacional.”.
164

Segundo o documento, o candidato indígena será identificado conforme define o


Decreto 2164 de 1995. Essa definição é constituída por elementos como ascendência,
consciência de identidade, compartilhamento de valores, traços, usos e costumes, além de
formas de governo. A comprovação desse pertencimento segue uma lógica burocrática: o
vínculo do estudante com a comunidade indígena é demonstrado por um documento emitido
por uma representação legal indígena – o aval.
A identificação dos estudantes negros também é comprovada mediante a
apresentação de um aval fornecido por uma organização do movimento afro-colombiano,
conforme se pode ver na definição a seguir:

Definición de Afrodescendiente. La Universidad, para efectos de esta reglamentación, entenderá por


"afrodescendientes" a los miembros de las comunidades negras, como lo estableció la Ley 70 del 27
de agosto de 1993, en su artículo 2, numeral 5, así:
Comunidad Negra. Es el conjunto de familias de ascendencia afro-colombiana que poseen una
cultura propia, comparten una historia y tienen sus propias tradiciones y costumbres dentro de la
relación campo-poblado, que revelan y conservan conciencia de identidad que las distinguen de otros
grupos étnicos.163

Sem observar as diferenças na identificação étnico-racial de afro-colombianos e


indígenas, o Acordo Acadêmico estabelece uma mesma medida para o ingresso e a
identificação de ambos os grupos. No caso das comunidades afrodescendentes, é ainda mais
abstrata sua caracterização: a instituição entenderá as comunidades negras como um conjunto
familiar com cultura própria, que compartilha uma história, possui tradições e costumes
próprios, e conserva consciência da sua identidade. Essa definição, presente na Lei 70/1993,
corresponde a um período histórico no qual o movimento negro colombiano se aproximou da
noção de “identidade étnica” com um princípio de coletividade que era utilizado pelos povos
indígenas, com o fim de garantir seus direitos diferenciados. Contudo, a questão pertinente,

governo, gestão, controle social ou sistemas normativos próprios que as distinguem de outras comunidades, tenham ou
não títulos de propriedade, ou que não podem credenciá-los legalmente, ou que seus territórios foram dissolvidos,
divididos ou declarados vazios.”.
163
Tradução: “Definição de Afrodescendente. A Universidade, para efeitos desta regulamentação, entenderá por
"afrodescendentes" os membros das comunidades negras, como o estabeleceu a Lei 70 de 27 de agosto de 1993, em seu
artículo 2, número 5, assim: Comunidade Negra. É o conjunto de famílias de ascendência afro-colombiana que possuem
uma cultura própria, compartem uma história e têm suas próprias tradições e costumes dentro da relação campo-urbano,
que revelam e conservam consciência de identidade que as distinguem de outros grupos étnicos.”.
165

que não é elucidada, refere-se a como lidar com uma definição coletiva de pertencimento em
uma política de ingresso de caráter individualista como é na universidade.
A forma eleita pela universidade foi a cobrança de certificados de pertencimento
emitidos por organizações ou conselhos comunitários. Para que os estudantes possam se
candidatar a essas vagas adicionais destinadas para estudantes de comunidades indígenas e
afro-colombianas, precisam de documentos que certifiquem seu vínculo comunitário: o
chamado aval de organizações negras e indígenas.
Artículo 9. Parágrafo l. “El requisito para ser reconocido como aspirante indígena es el aval del
cabildo o su equivalente, o de una asociación de autoridades tradicionales indígenas”. (…)
“Para quien manifieste pertenecer a una comunidad negra, el representante legal de la respectiva
comunidad negra, reconocida por el Ministerio del Interior, certificará la descendencia Afro-
colombiana y su vinculación actual a la comunidad, de conformidad con la Ley 70/93 y el Decreto
1745/95”.164
Segundo o Acordo Acadêmico, o aval é o responsável por reconhecer o aspirante
indígena, assim como certificar a ascendência afro-colombiana dos candidatos. No caso
colombiano, as comunidades indígenas estão organizadas por “cabildos”, similar às “terras
indígenas” no Brasil; e as comunidades negras da região pacífica estão organizadas
coletivamente por meio dos Conselhos Comunitários, similar à organização quilombola no
Brasil.
Com base no mesmo Acordo Acadêmico, podemos fazer outras leituras sobre a
assinatura do aval. Quando as organizações assinam esse documento, a instituição pode
interpretá-lo não apenas como uma certificação, mas também um compromisso entre
estudante-organização. Um exemplo disso está no seguinte parágrafo:

Artículo 9. Parágrafo 1. Este beneficio será reconocido a los aspirantes que permanecieren
integrados a sus comunidades y acreditaren su participación en actividades de la comunidad o de la
asociación. Además, deberán establecer compromisos futuros de servicio con su comunidad o con la
asociación.165
O estabelecimento de compromissos futuros com as comunidades parece indicar
que o programa visa propiciar a manutenção de vínculo dos estudantes às suas comunidades
de origem. Esses compromissos assumidos pelos jovens são, em geral, projetos elaborados
pelos estudantes em parceria com as organizações que lhes fornecem a certificação étnica.
164
Tradução: “Artigo 9. Parágrafo l. “O requisito para ser reconhecido como candidato indígena é o aval do cabildo ou
seu equivalente, ou de uma associação de autoridades tradicionais indígenas. (…) Para quem manifeste pertencer a uma
comunidade negra, o representante legal da respectiva comunidade negra, reconhecida pelo Ministério do Interior,
certificará a descendência afro-colombiana e sua vinculação atual à comunidade, de conformidade com a Lei 70/93 e o
Decreto 1745/95”.
165
Tradução: “Artigo 9. Parágrafo 1. Este benefício será reconhecido aos candidatos que permanecerem integrados a
suas comunidades e participarem em atividades da comunidade ou da associação. Além disso, deverão estabelecer
compromissos futuros de serviço com sua comunidade ou com a associação.”.
166

O fortalecimento dos laços dos estudantes com suas comunidades de origem é um


objetivo muito positivo se visto de uma perspectiva intercultural – considerando que o
estudante poderia tornar-se um elo no diálogo entre a universidade e as comunidades no seu
entorno – um dos propósitos da política de ações afirmativas. Contudo, nas entrevistas e
observações percebemos que, além de não haver nenhum acompanhamento desses projetos
por parte da Universidade, o propósito de vinculação comunitária também não se reflete nos
cursos que receberão os estudantes. Ou seja, os projetos acabam sendo ações paralelas aos
programas dos cursos de graduação, pois os programas não abrem espaço para um diálogo de
saberes com os novos estudantes.
Em relação ao debate sobre o ingresso especial em universidades públicas
colombianas, embora não tenha havido um intenso debate público, houve contra-discursos
que explicitavam a estigmatização das populações racializadas, segundo apontam, em
entrevistas, ativistas do movimento afro-colombiano. O ativista Raul, psicólogo, membro da
organização Carabantu, que participa do ingresso especial para estudantes afro-colombianos
na Universidade Pública Paisa, afirmou, em entrevista, que havia muitas pessoas que
questionaram a política com discursos como este: “não, mas olhem, a gente deixa que eles
entrem na universidade e não estudam, são preguiçosos. O que está acontecendo com essa
gente? Se dão oportunidades e não estudam, não estudam”166 (Raul, 23/10/2012).
Para o ativista, essas falas sobre a “preguiça” (pereza) revelam os estereótipos que
historicamente foram atribuídos à população negra na Colômbia. Além disso, é um argumento
que serve para deslegitimar a política ao mostrar que seu efeito é nulo; estratégia que
poderíamos associar à tese da perversidade, de Hirschman (1992), em relação à retórica de
embates entre partidos políticos. Para Hirschman, a tese da perversidade é aquela na qual
“qualquer ação proposital para melhorar um aspecto da ordem econômica, social ou política
só serve para exacerbar a situação que se deseja remediar” (1992, p. 15-6), ou seja, nesses
discursos reproduzidos contra a política afirmativa, argumenta-se que essas ações são
ineficazes porque não serviriam para melhorar a situação social e econômica da população
negra devido ao fato de essa população não aproveitar a oportunidade, já que “não estudam”.
Por isso, Raul critica a ausência de ações que cuidem do acolhimento e da permanência dos
estudantes para que haja um sucesso maior da política; caso contrário, os casos de fracasso
serão um argumento a mais no discurso discriminatório – “se dão oportunidades e não
estudam”. Como resultado desse cenário, que afeta os estudantes negativamente, os ativistas
166
Original: “no, pero miren, uno los deja entrar en la universidad y no estudian, son perezosos. ¿Qué se le está pasando a
esta gente? Se le da oportunidades y no estudian, no estudian”
167

do movimento negro criticam a fragilidade da política institucional no acolhimento e no


acompanhamento estudantil.
Mercedes, outra ativista do movimento afro-colombiano e integrante de
organizações que fornecem o aval a estudantes negros, coincide com Raul em apontar a falta
de acompanhamento institucional (veeduría). Nesses segmentos da entrevista, Mercedes
reconta o histórico das políticas para definir, em sua visão, a ação afirmativa:

Excerto 1 - “no hay veedurías”


Aproximadamente desde el 2006 aplicando las acciones afirmativas que son
dos cupos por programa. Dos cupos para personas afros, hombres o
mujeres. ¿Cómo se ha aplicado esta acción afirmativa allá? Es las
organizaciones de base dan el aval, le hacen una inducción y un seguimiento
al estudiante, un proyecto de grado, una propuesta que vaya a ayudar a las
comunidades. Y con este aval se presentan y pueden pasar al examen,
¿cierto? Hasta ahí diríamos, ah, se está cumpliendo una acción afirmativa.
El año, entre comillas, eso tiene que quedar claro que te estoy haciendo un
primer recuerdo. El año pasado, con luchas, digamos, del movimiento de
base, y estuvimos en mucha discusión con la Universidad, principalmente
con DIVERSER, para que se obligara a abrir una plaza, ¿cierto?, porque
allá trabaja mucho, pero lo indígena, en lo afro no hemos conseguido
encontrar suficiente éxito. (…) El funcionario, cuando le sale la acción
afirmativa, nos hemos encontrado que nosotros vamos y hablamos con el
Rector, le decimos el contexto que vimos: las personas están ingresando,
están desertando los estudiantes, ¿sí?, un a:lto índice de deserción, ¿sí?, no
hay veedurías, no hay veeduría? es un proceso suelto, cuando en la
Universidad hay un comité de inclusión también le hemos hecho la
pregunta. 167(Mercedes, docente e ativista do movimento afrocolombiano,
entrevista de outubro de 2012)

Mercedes inicia contando a história do programa de ação afirmativa da


Universidade Pública Paisa, instituição da qual foi professora alguns semestres. Ela lembra
que esse processo, nomeado por ela como “a aplicação das ações afirmativas”, iniciou-se em
2006, com duas vagas por cada curso de graduação para homens e mulheres afros. Faz uma
pergunta retórica – “Como aplicaram esta ação afirmativa lá?” – e a responde elencando uma

167
Optamos por manter os dados em sua língua original no texto e inserir sua tradução em nota de rodapé e nas citações
do texto analítico. Tradução: “Aproximadamente desde 2006 aplicando as ações afirmativas que são duas vagas por
curso. Duas vagas para pessoas afros, homens ou mulheres. Como aplicaram esta ação afirmativa lá? Bom, as
organizações de base que dão o aval fazem uma apresentação e um acompanhamento do estudante, um projeto de
graduação, uma proposta que ajude às comunidades. E com este aval se apresentam e podem fazer o exame, entende? Até
aí diríamos, ah, se está cumprindo uma ação afirmativa. No ano, entre aspas, isso tem que ficar claro que estou fazendo
uma primeira recapitulação. No ano passado, com lutas, digamos, do movimento de base, e estivemos em muita discussão
com a Universidade, principalmente com DIVERSER, para que se obrigasse a abrir uma vaga docente, sabe?, porque lá
trabalha muito, mas o indígena, no afro não temos encontrado suficiente êxito. (...) O funcionário, quando sai a ação
afirmativa, temos encontrado que nós vamos e falamos com o Reitor, dizemos a ele o contexto que vimos: as pessoas
estão ingressando, estão evadindo os estudantes, né?, um a:lto índice de evasão, né?, não há acompanhamento, não há
acompanhamento? é um processo solto, quando na Universidade há um comitê de inclusão também fazemos a pergunta”.
168

série de ações que não estão registradas no Acordo Acadêmico, por ser de incumbência das
organizações políticas que fornecem o aval: “Bom, as organizações de base que dão o aval
fazem uma apresentação e um acompanhamento do estudante, um projeto de graduação, uma
proposta que ajude às comunidades [étnicas]”, ecoando a responsabilidade compartida entre
universidade-organizações implícita no documento. Além disso, Mercedes enfatiza que, se as
organizações realizassem o acompanhamento e o desenvolvimento do projeto de trabalho
comunitário, estariam realizando uma ação afirmativa (“até aí diríamos, ah, se está cumprindo
uma ação afirmativa”).
Em sua lembrança rápida sobre o tema “estou fazendo uma primeira
recapitulação”, nos ilustra uma série de ações que estão implícitas no “aval”, o documento
previsto no Acordo Acadêmico que permite que os estudantes participem da seleção especial.
Conforme Mercedes explica, na organização da qual participa, é realizada uma atividade
introdutória com os estudantes, apresentando-lhes o programa de ações afirmativas e
elaborando um projeto comunitário com eles; só depois desse processo é que fornecem o aval
aos interessados. Contudo, Mercedes afirma logo em seguida que isso não é suficiente, já que
os estudantes estão ingressando, mas também estão evadindo. Há um alto índice de evasão na
universidade; no entanto, segundo ela, não há uma política de permanência estudantil – “não
há acompanhamento, não há acompanhamento? é um processo solto”. Sua crítica desvela a
outra parte necessária do acompanhamento: a institucional.
No segmento a seguir, Raul também frisa a fragilidade do acompanhamento do
programa da universidade:

Excerto 2 - La inducción
hoy, digamos hoy los estudiantes afros entran a la universidad de Antioquia
por comunidades afros y hace creo que hace un semestre no se le hacían ni
inducción como afro-colombiano. O sea, una cosa es que hagan inducción
general, pero lo otro es que si uno entra por una organización afro es
importante que ese día en la inducción, esa organización afro vaya, les
cuente qué hace, en qué puede acompañar a los estudiantes168 (Raul,
psicólogo e ativista do movimento afrocolombiano, entrevista de 23 de
outubro de 2012)

168
Tradução: “hoje, digamos, hoje os estudantes afros entram na universidade UPP por comunidades afros e faz acho que
faz um semestre não faziam nem uma apresentação como afro-colombiano. Ou seja, uma coisa é que façam uma
apresentação geral, mas outra é que se a pessoa entra por uma organização afro é importante que nesse dia na
apresentação, essa organização afro vá, lhes conte o que faz, em que pode acompanhar os estudantes”.
169

Com base no aval, o esforço em prol da permanência estudantil é representado


como uma ação que seria compartida entre a universidade e as organizações de base dos
grupos afros e indígenas. Nesse sentido, segundo a análise que faz Raul, deveria haver uma
recepção acadêmica ao estudante, realizada pela universidade, mas também um acolhimento
que iniciaria com as organizações, nas quais o estudante fosse à organização de base,
conhecesse mais seu trabalho e juntos estabelecessem como a organização realizaria o
acompanhamento estudantil. Porém, quando Raul descreve o que existe na prática, aciona a
metáfora de uma “geladeira” para caracterizar a ineficácia dessas ações:

Excerto 3 - “como una nevera”


Yo he ejemplificado esa acción afirmativa como una nevera. Una nevera es
donde tú puedes entrar y coger una cosa pero no tienes contacto con más
nada. Es decir, tu entras a la universidad y entras como mucha gente que
viene, entra perdido, pero no sabes donde puedes ir a consultar con relación
al tema étnico, afro” 169 (Raul, psicólogo e ativista do movimento
afrocolombiano, entrevista de 23 de outubro de 2012)

Em sua análise do processo de construção de ações afirmativas, Raul descreve a


universidade como um espaço no qual o usuário pode entrar e pegar alguma coisa sem ter
contato com nada mais. Portanto, para esse ativista ainda não há um programa de ação
afirmativa, que contemple aspectos do acompanhamento institucional, tais como análise dos
dados do programa, do perfil dos estudantes e das suas trajetórias, a fim de propor ações que
fortaleçam a política. Essa omissão no desenho da política, como ele aponta, pode terminar se
contradizendo e afetar negativamente a população negra.
Voltando aos dados institucionais, passamos a apresentar as mudanças relativas à
permanência que foram realizadas em 2012, em período similar à instituição gaúcha, com a
criação do Programa Institucional para a Permanência com Equidade.

169
Tradução: “Eu exemplifiquei essa ação afirmativa como uma geladeira. Uma geladeira é onde tu podes entrar e pegar
uma coisa mas não tens contato com mais nada. Quer dizer, tu entras na universidade e entras como muita gente que vem,
entra perdido, mas não sabes onde podes consultar com relação ao tema étnico, afro”.
170

4.3.2.1. A implementação e a avaliação da política: o Programa Institucional para a


Permanência com Equidade

O Acordo Acadêmico 236/2002 da UPP é o documento geral que define


orientações para o sistema de ingresso, embora não regulamente ações de órgãos responsáveis
enfocadas na permanência dos estudantes que ingressaram nas vagas adicionais. Tampouco
encontramos documentos mais detalhados sobre a criação de um Programa com objetivos e
metas específicas nos primeiros dez anos da política especial de ingresso.
Apenas em 2012, foi criado pela Reitoria um órgão responsável pela permanência
dos estudantes que ingressavam pelas vagas adicionais: o Programa Institucional para a
Permanência com Equidade. Seu objetivo foi reunir ações com enfoque na permanência e
equidade que eram desenvolvidas de maneira desarticuladas: um grupo orientado para
discussões sobre inclusão, mais afeito ao tema da deficiência física; e outro grupo orientado
para discussões sobre equidade, mais próximo ao tema étnico-racial.
Essa demora na constituição de um órgão responsável pela temática das ações
afirmativas na universidade está relacionada com a visão institucional do programa. Para a
Reitoria, as organizações indígenas e negras, ao assinar o aval para o estudante,
comprometem-se com seu acompanhamento. Em uma entrevista com a coordenadora do
Programa, ela caracteriza o aval requerido aos estudantes como um documento que
“compartilha” com as organizações negras e indígenas a responsabilidade do
“acompanhamento e supervisão” da permanência dos estudantes que ingressam nas vagas
especiais. Essa leitura está muito próxima das considerações realizadas pelos ativistas do
movimento afro-colombiano, referido anteriormente. Logo, quando a Universidade exige o
aval das organizações, realiza um pacto de parceria no cuidado desse jovem estudante.
O Programa Institucional para a Permanência com Equidade iniciou com uma
pequena equipe, coordenada por uma professora da Faculdade de Ciências Sociais, e está
vinculado à Pró-Reitoria de Graduação (Vicerrectoría de docencia). O órgão tem entre suas
atribuições:

 Oferecer cursos intensivos para sensibilizar docentes e técnicos-administrativos em


relação à diversidade;
 Criar programas de tutorias para acompanhar os estudantes;
 Visibilizar as políticas para grupos vulneráveis, desenvolvidas pela instituição.
172

políticas institucionais do que vinculado aos estudantes ou organizações do movimento social.


Um exemplo é o fato de que a equipe não conta com um conselho consultivo, ou
representação estudantil ou de movimentos sociais.

4.4. A implementação da política: a invisibilidade da permanência nas ações


afirmativas da educação superior

Passamos a tecer pontos de encontros e divergências entre os modelos de políticas


afirmativas das instituições para responder a pergunta da tese sobre “Quais são as políticas de
ações afirmativas implementadas pelas universidades pesquisadas?”. Lembramos que nosso
propósito é discutir as políticas de ações afirmativas de duas instituições públicas de ensino
superior latino-americanas, visando à inserção dos estudantes negros e indígenas na
universidade, com a finalidade de pontuar elementos desses programas que fortalecessem o
diálogo de saberes e a interculturalidade nas instituições de ensino. No que se refere à
divergência entre as duas políticas, destacamos dois pontos:
1. A diferença no número de vagas destinadas aos candidatos negros e indígenas
inscritos por ingresso especial: na Colômbia a oferta é de quase 9%, enquanto no
Brasil é de cerca de 15%. Possivelmente, essa diferença também impacte de um modo
mais lento, no primeiro caso, na diminuição da desigualdade racial no país.
2. O sistema de financiamento da educação superior pública: enquanto no Brasil a
educação pública é gratuita e financiada pelo governo estadual ou federal; na
Colômbia, a educação superior pública é paga e está passando por um processo de
sucateamento, com constantes cortes nos financiamentos públicos. O valor da
matrícula semestral mais o custo de vida se refletem em um número alto de evasão dos
estudantes, que precisam muitas vezes abandonar os cursos para ingressar no mercado
de trabalho.
Por outro lado, também há convergências entre as políticas analisadas:
1. O perfil das políticas: ambas foram criadas com um enfoque no acesso – percentual ou
número de vagas, sem o apoio de uma estrutura que se responsabilizasse pela
permanência e conclusão do curso pelos estudantes do programa. Órgãos com esses
objetivos, mais estruturados, passaram a funcionar a partir de 2012, após alguns anos
de aplicação de uma política especial de ingresso.
2. O público-alvo: há um foco em populações vítimas do racismo: negras e indígenas.
173

3. A ausência de ações para o diálogo de saberes: as duas universidades realizaram


poucas ações para consolidar espaços mais simétricos de diálogo entre saberes e, com
isso, desconstruir a colonialidade do saber.

Se observarmos as políticas de permanência, essa última crítica fica mais clara. A


avaliação do programa e a proposição de ações no âmbito da permanência por parte das duas
instituições universitárias não acompanharam o gradual ingresso dos estudantes cotistas.
Além disso, a discussão sobre permanência universitária se centrou em aspectos como
rendimento acadêmico e situação financeira. Essa tendência também é apontada pelo estudo
do Grupo Estratégico em Educação Superior da Faculdade Latino-Americana de Ciências
Sociais-FLACSO, no qual Paixão, Rosseto e Monçores (2012), como já dito, indicam que as
principais ações para apoio estudantil no âmbito da permanência universitária no Brasil são os
auxílios para alimentação, bolsa permanência e moradia. Ponderando sobre esses dados em
universidades com política afirmativa de reserva de vagas, os autores salientam ainda que:

os dados do Censo da Educação Superior de 2010 evidenciam que as


políticas de reserva de vaga não foram acompanhadas por um incremento de
ações de assistência estudantil. Sem o reforço de mecanismos voltados ao
incentivo da permanência de alunos cotistas, corre-se o risco de ver
inviabilizada a aplicação da Lei de Cotas e os esforços em prol de uma maior
equidade do sistema de ensino brasileiro (Paixão; Rossetto; Monçores, 2012,
p. 10).

O alerta feito pelos pesquisadores é importante e coerente: sem zelar pela


permanência do estudante cotista, a política afirmativa pode não atingir seus propósitos. Com
essa consideração, não queremos ignorar a relevância do aspecto financeiro, pois este
certamente é parte importante do bem-estar estudantil; porém, nossa pesquisa, baseada nos
estudos de letramento acadêmico, quer interpelar o caráter restrito do bem-estar que está
implicado quando reduzimos tudo ao financeiro.
Os estudos de Lillis e Scott (2007) e Bizon (2013), por exemplo, destacam o papel
da linguagem (muitas vezes negligenciado) na discussão da permanência, quando esta inclui
aspectos de “apoio pedagógico”. Estudos do campo da educação, como o de Almeida e Soares
(2004), chamam a atenção para o fato de que a instituição precisa compreender a
complexidade desse processo de ingresso dos estudantes na universidade. O choque cultural
pelo qual passam os estudantes também poderia ser considerado nas discussões de
permanência, de modo a expandir as ações nessa área. Nesse sentido, a nossa tese postula uma
conexão entre trajetória acadêmica, permanência e letramento acadêmico.
174

Aos pesquisarmos quais foram as políticas praticadas nas duas universidades que
estavam orientadas para aspectos pedagógicos e de linguagem, não encontramos ações
estruturadas pelos órgãos de apoio à permanência, em parte porque estavam recém-criados.
Mas algumas ações já eram desenvolvidas por institutos e faculdades. Entre essas ações,
destacamos, na instituição brasileira, a oferta do Curso de Inglês e de Leitura e Escrita
acadêmicas para estudantes indígenas (DILLI, 2013; MORELO, 2014), discutidos no segundo
capítulo. Esses dois cursos foram solicitados pelos cotistas indígenas, e oferecidos por
estagiárias do curso de Letras – Inglês do Instituto de Letras. No caso colombiano, havia
tutorias acadêmicas oferecidas por alguns institutos, mas não pudemos conhecê-las em maior
detalhe170.
No caso brasileiro, consideramos que a centralidade das políticas na modalidade
de ingresso, mais do que na permanência, está relacionada à polêmica criada em torno das
cotas. Os posicionamentos acirrados, favoráveis ou contrários às cotas, geraram um debate
que buscava apenas provar se as cotas eram ou não o instrumento adequado no combate ao
racismo. Assim, como afirmamos em Sito (2014, p. 271), “parece que a dicotomia “cotas sim
ou não” invisibilizou questionamentos, estudos e políticas necessárias para a dimensão do
planejamento e da implementação da política”, restringindo seu escopo ao ingresso. Com a
entrada dos estudantes cotistas na universidade, as questões sobre a permanência passaram a
emergir da experiência real dos próprios estudantes.
Outro aspecto importante foi a criação de órgãos responsáveis pelo fomento de
ações para a permanência dos ingressantes e avaliação dos programas – a Coordenadoria de
Ações Afirmativas e o Programa Institucional para a Permanência com Equidade – pelas duas
instituições, o que parece ser um indicativo do amadurecimento dos programas. As equipes
desses órgãos passaram a expressar que o escopo da política não podia ser apenas o acesso, e
ampliaram seu alcance, abrangendo ações de permanência. Do nosso ponto de vista, uma
compreensão ampla das ações afirmativas abarcaria pelo menos cinco momentos – o pré-
acesso, o acesso, a permanência, a conclusão e a etapa após a graduação.
O cuidado com a permanência e o bem-estar do estudante precisará contemplar a
criação de espaços para o diálogo de saberes, como defendem Carvalho e Flórez (2014). No
entanto, como vimos em Paixão, Rossetto e Monçores (2012), as ações de permanência
invisibilizaram a questão cultural implicada nas políticas afirmativas. Essa postura de silêncio
das instituições educativas frente à diversidade está alinhada à perspectiva do déficit, que
170
Eram ações mais dispersas e pontuais na Universidade, sem vinculação com o Programa Institucional para a
Permanência com Equidade, o que dificultava entrar em contato com seus responsáveis.
175

busca construir uma “normalidade” entre os sujeitos, sempre acorde aos padrões estabelecidos
e à anulação das diferenças.
Essa contradição aponta para uma omissão frente às assimetrias na produção de
conhecimento que está presente nos cenários de ações afirmativas na educação superior. E,
em parte, isso se deve a lacunas na concepção dos próprios programas. Nesse sentido, a
análise de Maher (2007) sobre as políticas de educação indígena encontra consonância em
nosso contexto de pesquisa, pois, conforme argumenta a autora, o empoderamento de grupos
minoritários seria resultado “de três cursos de ação: (1) de sua politização; (2) do
estabelecimento de legislações a eles favoráveis; e (3) da educação do seu entorno para o
respeito à diferença” (MAHER, 2007, p. 257). A primeira ação é interna aos grupos e, nesta
pesquisa, pode ser vista na participação dos estudantes em grupos de movimentos sociais, em
especial em relação às ações afirmativas. A segunda ação também é atendida, pois há uma
atenção ao estabelecimento de legislações favoráveis às populações-alvo da política, embora
as políticas tenham apresentado um enfoque restrito às formas de acesso. Porém, a terceira
ação – a educação do entorno – ainda que enunciada em um dos documentos (a Decisão
134/2007) ficou fora do escopo das políticas interculturais estabelecidas pelas Reitorias.
Ainda assim, embora a visão do déficit vinculada à noção de mérito individual
seja dominante no espaço universitário, outras posturas vêm ganhando espaço nessa disputa.
Pesquisadores como Silva e Silvério (2003) defendem um caráter transformador de ações
afirmativas nas universidades. Em seu argumento, ressaltam o fato de que:

a universidade no Brasil está sendo chamada a participar da correção dos


erros de 500 anos de colonialismo, escravidão, extermínio físico,
psicológico, simbólico de povos indígenas, bem como dos negros africanos e
de seus descendentes (...) Assim sendo, a presença numericamente
significativa de jovens das classes e grupos até então impedidos de
freqüentar os bancos universitários, deve levar a que as ideologias, teorias e
metodologias que sustentam e dão andamento à produção de conhecimentos
sejam questionadas e, em decorrência, as atividades acadêmicas e científicas
sejam redimensionadas (p. 46-8).

Reconhecer que o extermínio de povos afrodescendentes e indígenas resultou


também na morte de formas de construção de saberes foi um dos principais argumentos dos
movimentos sociais a favor da reserva de vagas no ensino superior. Contudo, também é
relevante pontuar as limitações que essa política vem enfrentando para cumprir tal objetivo.
As experiências atuais nos mostram que a ruptura dessas assimetrias na educação
superior não é apenas uma questão de números, ainda que também o seja (LAO-MONTES,
2008; SOUZA LIMA, 2008). Com o propósito de elaborar um projeto de parceria entre
176

comunidades campesinas e uma universidade latino-americana, Sierra e Fallon (2013)


analisam as dificuldades que se colocam nesse diálogo, em grande parte pelo caráter
eurocêntrico das instituições universitárias, que ainda negam as histórias e os conhecimentos
do entorno. Para ilustrar esse argumento, os autores citam a descrição de um historiador sobre
as relações de poder e discriminação em uma universidade na região do pacífico colombiano,
na qual a maioria de estudantes e docentes são afro-colombianos. Em sua reflexão, a
explicação do historiador Mosquera sobre a constituição da universidade no departamento de
Chocó ilustra a experiência latino-americana de modo geral:

a Universidade nasce sem uma identidade étnica, nasce mais como um


clone da universidade ocidental... não se orienta desde sua criação ao
conhecimento da realidade onde está inserida, para propor solução a seus
problemas... foi uma Universidade que não foi pensada para a região nem
para sua gente [de maioria afrochocoana]. Também, às vezes na região,
vamos encontrar esse problema: de uma descontextualização total da
Universidade em seus cursos, em seus programas, em seus planos de curso,
em sua extensão à comunidade. Então tínhamos desconhecido que
estávamos num contexto no qual compartíamos um território com outros
grupos étnicos, e justamente se reproduzia a conceptualização que temos
dos grupos minoritários no âmbito nacional, nós invisibilizávamos também
aos grupos indígenas no interior da Universidade (SIERRA; FALLON,
2013, p. 244)171.

Seu relato descreve como em contextos com maiorias afro-colombianas e


indígenas pode persistir uma postura centrada em saberes ocidentais. Essa realidade é
corroborada por Carvalho e Flórez (2014), quando fazem uma crítica similar em relação a
suas instituições universitárias no Brasil e na Colômbia, ao explicar que, mesmo com o
ingresso de grupos marginalizados étnico-racialmente no espaço universitário por meio das
ações afirmativas, essa orientação eurocêntrica permanecia no cotidiano de suas
universidades. Dessa forma, destacam que “para transformar em fundo a desigualdade étnica
e racial da população universitária, é imprescindível ampliar a diversidade de saberes que
nutrem os programas curriculares universitários” (CARVALHO; FLÓREZ, 2014, p. 136).
Esse cenário foi motivação para a elaboração do projeto “Encontro de Saberes”, conforme
apresentado no primeiro capítulo, no qual os autores criaram disciplinas oferecidas por

171
Original: “La Universidad nace sin una identidad étnica, nace más bien como un clon de la universidad occidental…
no se orienta desde su creación al conocimiento de la realidad donde está asentada, para proponer solución a sus
problemas… fue una Universidad que no fue pensada para la región ni para su gente [de mayoría afrochocoana].
También, a veces en la región, vamos a encontrar ese problema: de una descontextualización total de la Universidad en
sus carreras, en sus programas, en sus planes, en su extensión a la comunidad. (…) Entonces habíamos desconocido que
estábamos en un contexto donde compartíamos un territorio con otros grupos étnicos, y justamente se reproducía la
conceptualización que tenemos de los grupos minorizados a nivel nacional, nosotros invisibilizábamos también a los
grupos indígenas al interior de la Universidad.”
177

intelectuais afros e indígenas no currículo de suas faculdades. Os cursos acadêmicos que os


autores propuseram em suas universidades, durante um semestre, eram oferecidos em parceria
com intelectuais afrodescendentes e indígenas e tinham o propósito de divulgar e pôr em
diálogo seus conhecimentos com os saberes da tradição acadêmica. Essa experiência tenciona
as práticas tradicionais universitárias, mas também aponta novos caminhos que podem
emergir nesses encontros. Para os autores, há aspectos positivos importantes a destacar, entre
eles o fato de emergir da luta antirracista (aspecto político), o desejo de criar espaços de
educação superior alternativos (aspecto institucional), o exercício de introduzir
conhecimentos indígenas, afrodescendentes e populares como objeto de estudos nas ciências
sociais (aspecto pedagógico) e a proposta de por lado a lado esses diversos saberes (aspecto
epistêmico)172.
Lembramos que estudos como o de Sierra e Fallon (2013) e Carvalho e Flórez
(2014) nos mostram como o acesso é só uma parte – ainda que indispensável – na ruptura nas
assimetrias na produção de conhecimento. A partir dessas experiências, parece estar cada vez
mais evidente que, para os programas de ação afirmativa serem mais bem sucedidos, são
necessárias uma articulação entre ações que estabeleçam diálogos de saberes e aquelas que
abordem as assimetrias que emergem nesse diálogo. Logo, as ações afirmativas ainda
provocam perguntas nesse campo. Por isso, abordamos a seguir as trajetórias dos
universitários, assim como suas produções do TCC, com o fim de entender melhor como
esses estudantes interpelam, desde suas experiências, os programas pelos quais ingressaram
na universidade.

172
Ao caracterizar o aspecto epistêmico do projeto, os autores realizam uma observação frente ao diálogo de saberes que
consideramos importante nessa discussão: para eles, “lo importante es no tomar a priori esa posibilidad de equivalencia,
de paralelismo entre ambos tipos de saberes; ni tampoco partir de la suposición inversa, de que no hay posibilidad de
diálogo científico” (CARVALHO; FLÓREZ, 2014, p. 142). Destacamos essa observação porque nos parece que enfatiza
o carácter criativo que está implicado no diálogo de saberes.
178

5. Trajetórias de letramento: (des)encontros com as práticas de


letramento acadêmico

O necessário é que, subordinado, embora, à prática “bancária”, o educando mantenha vivo em si o gosto da rebeldia que,
aguçando sua curiosidade e estimulando sua capacidade de arriscar-se, de aventurar-se, de certa forma o “imuniza” contra
o poder apassivador do “bancarismo”. Neste caso, é a força criadora do aprender de que fazem parte a comparação, a
repetição, a constatação, a dúvida rebelde, a curiosidade não facilmente satisfeita, que supera os efeitos negativos do falso
ensinar. Esta é uma das significativas vantagens dos seres humanos – a de se terem tornado capazes de ir mais além de seus
condicionantes. (Paulo Freire, 1996)

Na análise realizada sobre os programas de ação afirmativa na educação superior,


buscamos mostrar a relevância de pensarmos sua implementação para além do acesso, de
maneira a considerar aspectos que fazem parte da trajetória universitária desde o ingresso até
a conclusão do curso; a fim de reconhecer os desencontros e favorecer os encontros com as
práticas de letramento acadêmico (ZAVALA, 2002). Nessa direção, nosso objetivo, neste
capítulo, é analisar as entrevistas dos estudantes para responder à seguinte pergunta de
pesquisa: Como os estudantes cotistas respondem às demandas de práticas de letramento
acadêmico envolvidas no processo de realização de seu Trabalho de Conclusão de Curso
(TCC)? Assim, abordamos a segunda e a terceira dimensão de nossa análise: as trajetórias e os
TCC.
Para isso, organizamos o capítulo em quatro subseções: na primeira, pontuamos
aspectos da trajetória acadêmica que ampliam a visão sobre a permanência universitária; na
segunda, apresentamos os participantes da pesquisa – suas trajetórias e TCC; a seguir, na
terceira subseção, analisamos suas trajetórias universitárias – tanto sob o enfoque do estar na
universidade, quando sob o enfoque de lidar com a linguagem – e, na última, analisamos as
estratégias de subversão criadas durante a elaboração do TCC. Desse modo, visamos, por um
lado, abordar seus percursos desde o ingresso na universidade até a elaboração do TCC, com
uma atenção focada em suas experiências com as práticas de letramento acadêmico; por outro
lado, examinar as estratégias criadas para a produção de seus TCC. Nossa análise dos TCC se
centrou nos indícios enunciados pelos estudantes a respeito de suas estratégias empregadas na
179

elaboração do trabalho, o que contemplou aspectos do texto como suas dedicatórias,


agradecimentos, bibliografias, temas e estrutura do trabalho.

5.1.Observando os primeiros passos na universidade

O trabalho de Almeida e Soares (2004) realiza um estado da arte em áreas como


Educação e Psicologia para resenhar estudos que estão concentrados em descrever e entender
como se processa a transição de estudantes do Ensino Secundário para o Ensino Superior,
considerando aspectos acadêmicos, sociais e pessoais dessas trajetórias com o fim de
compreender o que constitui um bem-estar universitário. Os autores apresentam uma revisão
da literatura para apontar alguns dos desafios mais encontrados no campo. Além disso,
comentam que há um debate importante que emerge com a ampliação da cobertura
universitária e o consequente acesso de um público mais diverso às universidades.
Muitos trabalhos, ao abordar esse tema, relatam que é possível “reconhecer que
não só alguns grupos de alunos se identificam pouco com a Universidade, como esta ainda
não se adaptou suficientemente no seu funcionamento para atender a esta nova realidade”
(ALMEIDA; SOARES, 2004, p. 5). Embora os autores estejam discutindo o cenário
português, ele se aproxima muito do contexto latino-americano na medida em que as políticas
afirmativas justamente intensificaram uma abertura da universidade a grupos que
historicamente estiveram distantes dessa instituição; inclusive, até recentemente, interditados,
no caso das populações negras e indígenas.
Segundo Almeida e Soares (2004), nesse debate, cada vez mais o sentido de
sucesso acadêmico tem sido expandido, distanciando-se daquele mais tradicional de
rendimento ou classificação escolar. Para os autores, essa tendência promove uma ampliação
do próprio campo, trazendo para a agenda de estudos um conjunto variado de aspectos a
serem levados em conta nas ações para a permanência e bem-estar estudantil, tais como:

uma formação sócio-cultural mais ampla, o desenvolvimento de um sistema


de valores, a definição de projectos de carreira, a aquisição e o
desenvolvimento de competências de relacionamento interpessoal, liderança
e empreendedorismo, por exemplo, ilustram novas áreas da formação dos
estudantes do Ensino Superior não suficientemente enfatizadas na estrutura
lectiva e nas práticas pedagógicas existentes (ALMEIDA; SOARES, 2004,
p. 17).

Ao revisar os estudos sobre a transição de estudantes do ensino médio para a


universidade, os autores categorizam esses aspectos em três dimensões: a transição e
181

prevista se choca com as práticas institucionais universitárias, pouco afeitas a ações que
rompam com a tradição das práticas acadêmicas.
A terceira dimensão destacada pelos autores, incluindo aspectos do
desenvolvimento psicossocial, envolve a relação do estudante consigo mesmo e com outros
colegas, com a pluralidade dos sujeitos, ou mesmo com o espaço. Esse aspecto plural do
espaço universitário está presente nas narrações de muitos dos estudantes com quem
conversamos, quando descrevem a universidade como um espaço “cosmopolita”, dada à
diversidade de seu público.
Uma compreensão sobre o bem-estar universitário visto do ângulo da convivência
na diversidade nos auxilia a compreender melhor as experiências de jovens que são a primeira
geração universitária em suas famílias, que poderão estranhar ainda mais esse ambiente. As
trajetórias de universitários ingressantes por ações afirmativas trazem um elemento a mais
para esse debate: como os estudantes aprendem a viver em um espaço estrangeiro e muitas
vezes inclusive hostil por conta das múltiplas assimetrias, que vão desde as de expectativas
até as de conhecimentos?
A trajetória tem sido um tema presente nos estudos sobre letramento e cultura
escrita. Galvão et alii (2007), a partir da perspectiva da história cultural, por exemplo,
apresentam uma série de artigos que se propõem a mostrar como os modos de inserção não-
escolares, o manuscrito e a oralidade também têm constituído a cultura escrita no Brasil. Estes
estudos se preocupam pelos modos através dos quais os sujeitos que tradicionalmente foram
associados ao mundo da oralidade começaram a participar nas culturas do escrito nos séculos
XIX e XX, enfocando indivíduos, famílias e grupos sociais (o que chamam de escalas). Os
autores ainda chamam a atenção para os desafios metodológicos que se apresentam ao abordar
percursos individuais de participação na cultura escrita. Uma de suas preocupações é evitar o
risco de cair no anedótico ao analisar o percurso de trajetórias individuais; e, frente a isso,
destacam que:

é fundamental (re)situar o indivíduo estudado em relação à sua linhagem


familiar, aos circuitos de sociabilidade frequentados (bairro, cidade, igreja,
escola, trabalho) ao grupo social a que pertence e, direta ou indiretamente,
aos grandes determinantes da vida social, para que possamos construir
hipóteses explicativas que auxiliem na compreensão das múltiplas
dimensões que relacionam o sujeito a um lugar e um tempo historicamente
determinados (GALVÃO et al., 2007, p. 21).
182

Além de desafios, também há potencialidades no trabalho com escalas


individuais. Com base na vertente sociocultural dos Estudos de Letramento, Kleiman (2010)
ressalta a importância de investigar trajetórias de inserção na cultura escrita, com o propósito
compreender tanto as trajetórias singulares de agentes de letramento quanto as trajetórias de
coletivos, já que “o exame dessas trajetórias é relevante para entender o papel da coletividade,
da resistência, da subversão no processo de letramento desses grupos” (KLEIMAN, 2010, p.
376). Essa importância ganha maior dimensão quando há uma concepção social de
linguagem, cuja compreensão da escrita não se restringe à instrumentalidade, senão que
reconhece sua estreita relação com processos de construção de identidade.
Ao identificar desafios e potencialidades na abordagem de trajetórias, esses
estudos são pertinentes para este capítulo, cujo objetivo é analisar as trajetórias de letramento
de universitários ingressantes por políticas afirmativas de cursos de ciências humanas, com o
fim de compreender que estratégias eles criam para lidar com as práticas de letramento
acadêmico, exigidas durante seu processo de desenvolvimento e escrita do Trabalho de
Conclusão de Curso (TCC).
Nossa análise das trajetórias dos estudantes se embasa na perspectiva de
linguagem do Círculo de Bakhtin, explicitada no segundo capítulo. Nessa abordagem, o
discurso é entendido como uma expressão do eu na relação com o outro, já que “a enunciação
é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados”
(BAKHTIN/VOLOSHÍNOV, 1995, p. 112). Com base nessa concepção de dialogismo,
examinamos as narrativas dos estudantes como um emaranhado de vozes sociais que se
reorganizam a partir do olhar que eles vão construindo sobre suas próprias trajetórias
universitárias. Essa cadeia enunciativa, que se expande em nosso encontro, permite que
enfoquemos seus enunciados, os quais respondem não só a perguntas realizadas pela
pesquisadora, mas também a outros discursos com os quais os estudantes dialogam. Esse
processo de narrar sua própria história nos leva a identificar como os estudantes constroem
discursivamente seu percurso na universidade, assim como o processo pelo qual tentam tornar
esse espaço, que ao início é sentido como estranho, em um lugar familiar. Nesses
deslocamentos, há transformações tanto na forma como os sujeitos se identificam, quanto na
forma como identificam a outros, o que resulta em alterações na construção identitária dos
estudantes.
Para analisar as narrativas em maior detalhe, passamos, nas próximas três
subseções, a descrever suas trajetórias em uma perspectiva linguístico-discursiva, observando
183

a sequencia de tópicos da entrevista (1. Pré-ingresso; 2. Ingresso; 3. Universidade, Escritos e


Permanência; e 4. TCC).

5.2. As trajetórias de letramento acadêmico em narrativa

As trajetórias universitárias, assim como as escolares analisadas por Lahire (1997,


2002), são vistas como um percurso individual que reflete indícios de movimentos não apenas
dos estudantes, mas também de seus próprios grupos sociais, assim como das práticas da
instituição universitária. Ou seja, há um viés social na compreensão das trajetórias de
letramento de cada sujeito.
Nosso foco, nesta seção, está centrado nos depoimentos de estudantes sobre suas
próprias histórias, em especial sobre eventos que os marcaram nesse percurso pela educação
superior. Para conectar experiências brasileiras e colombianas, abordamos 04 (quatro)
trajetórias de universitários de cursos de ciências humanas (duas em cada país). No Brasil,
contamos com a participação de uma estudante negra – Flávia – e um universitário indígena –
Dorival, concluindo os cursos de Ciências Sociais e Pedagogia, respectivamente. Na
Colômbia, entre as universitárias de cursos de ciências humanas com quem conversamos,
havia uma estudante indígena –Joyce – e uma estudante afro-colombiana – Valentina,
concluindo os cursos de Licenciatura em Línguas Estrangeiras e Jornalismo, respectivamente.
Conforme a apresentação sintetizada dos participantes, no Quadro 3:

Quadro 3 - Estudantes participantes da pesquisa


Univ. Nome173 Curso Idade Auto identificação
1. Flávia M. Ciências Sociais, Entre 20 e 30 Negra
Inst. de Fil. e Ciências Humanas
UPG

2. Dorival C. Pedagogia, Entre 40 e 50 Indígena


Faculdade de Educação
3. Joyce N. Lic. em Línguas Estrangeiras, Entre 20 e 30 Indígena
Escola de Idiomas
UPP

4. Valentina M. Jornalismo, Entre 20 e 30 Negra


Faculdade de Comunicação

Todos já estavam na fase de conclusão do curso, o que lhes permitiu refletir sobre
um passado próximo, de um ciclo que está por culminar, em especial, com a apresentação dos
TCC. Além da observação do próprio texto, a escolha do orientador foi narrada pelos
estudantes como um aspecto importante da construção do TCC, o que nos levou a mostrar
173
Os nomes dos participantes desta tese são fictícios, com o propósito de proteger suas identidades.
184

aspectos da orientação do trabalho final, que ilustraremos com os casos de Dorival e Joyce, a
partir das entrevistas com os estudantes e seus orientadores. Nessas trajetórias, marcadas pelo
estigma racial (GOFFMAN, 1988) e discursos do déficit, os estudantes demonstram
reconhecer que o encontro com docentes que acreditam no seu potencial e se dispõem a
trabalhar para que eles encontrem sua voz pode ampliar suas oportunidades de permanecer na
universidade.
Para a apresentação das trajetórias, abordamos inicialmente os dois casos da
região gaúcha, com Flávia e Dorival, e em seguida, os dois casos da região paisa, com Joyce e
Valentina.

Caso 1 – Flávia

 Trajetória

Flávia nasceu em Porto Alegre, cidade onde cursou a graduação. Estudou toda sua
educação básica em escolas públicas. Chegou à universidade com um histórico de aluna
aplicada e dedicada. Atualmente, cursa os semestres finais do Bacharelado em Ciências
Sociais, na Universidade Pública Gaúcha.
Possui um irmão mais velho, que ingressou na aeronáutica. Sua mãe, vinda do
interior do estado, não completou o ensino fundamental e trabalhou como empregada
doméstica. Segundo Flávia, sua mãe veio de uma família com vários irmãos, na qual apenas
os homens puderam estudar. Foi somente quando os filhos já estavam grandes que sua mãe
retomou os estudos. Seu pai – que aparece na narrativa como uma referência para ela – fez o
ginásio (equivalente ao ensino fundamental completo) e é descrito como alguém que sempre
gostou de estudar. Tinha planos de ser militar, mas depois se tornou mecânico. Flávia contou
que ela e seu irmão motivaram os pais a voltar a estudar para melhorar sua inserção
profissional. Seus pais não chegaram a entrar na universidade, mas investiram muito no
estudo dos filhos para que o fizessem. Flávia assumiu esse compromisso, e destacou muitas
vezes a alegria de fazer parte da primeira geração a ingressar na universidade federal, um feito
de orgulho para sua família.
Ela entrou na primeira turma do programa de ações afirmativas em sua
universidade. Sua opção pelas Ciências Sociais surgiu após desistir do curso de Direito –
carreira que desejou por anos, mas abandonou depois de vivenciar um evento de
discriminação racial em seu primeiro emprego, justamente em um escritório de advocacia.
185

Ao ingressar na universidade, passou a participar ativamente dos grupos de


discussão sobre ações afirmativas, com a realização de oficinas e a elaboração de documentos
junto a movimentos sociais. Flávia foi integrante do Fórum de Ações Afirmativas – onde a
conhecemos – e participou do processo de avaliação174 do programa de sua instituição. Logo
depois, como fruto de sua dedicação às disciplinas, conquistou uma bolsa de monitoria no
terceiro semestre. Conforme conta, o fato de ter sido “ótima aluna na disciplina de
epistemologia rendeu a seleção para bolsa de monitoria”.
Sua aproximação com o tema de religiosidade afro, ao longo do curso, resultou na
constituição do seu TCC: conforme ela afirma, o trabalho “nasceu na medida em que eu fui
amadurecendo no curso”. Ao realizar a disciplina de Sociologia Contemporânea – uma
disciplina de pesquisa – começou a desenvolver o trabalho. Flávia cursou Bacharelado em
Ciências Sociais, uma graduação orientada à pesquisa. Nos semestres finais, ela tinha de
escolher um campo para especializar-se em antropologia, sociologia ou ciências políticas.
Nesse sentido, a participação em grupos de pesquisa era uma prática de letramento requerida
ao longo da formação, embora ela tenha observado que nem sempre houvesse oportunidade
para todos os estudantes.
Flávia começou a participar do projeto de pesquisa de um professor muito
reconhecido na temática do racismo e população negra. A experiência da estudante em
iniciação científica consistiu em realizar observação participante em um hospital da cidade
que possuía um espaço de diálogo com religiosos de matriz africana para pensar políticas para
a saúde. Seu interesse sobre os espaços de sociabilidade religiosos em um hospital da cidade
emergiu ao ver que poderia expandir sua iniciação científica em seu trabalho de conclusão do
curso. Logo, seu projeto se orientou para as articulações entre religiões de matriz africana e
saúde, a partir de uma política para a saúde da população negra. Nesse período, ela iniciou a
elaboração do seu TCC.
Podemos destacar na trajetória de Flávia uma identificação com aspectos culturais
da população negra, assim como uma participação ativa na defesa da política de ações
afirmativas. Sua identificação com a população negra aparece como um aspecto relevante na
construção do seu objeto de pesquisa, como mostra seu TCC.

174
Esta avaliação, realizada por uma equipe de docentes, decidiria se o programa deveria ou não continuar. Isso
mobilizou novamente muitas organizações do movimento social local.
186

 O TCC em análise

Observando o lugar da escrita e do TCC no currículo das Ciências Sociais, vemos


que não há disciplinas que enfoquem diretamente a linguagem acadêmica, ainda que Flávia
tenha destacado a existência de conflitos tensos durante sua aprendizagem das convenções
acadêmicas, conforme abordaremos na próxima subseção. O desenvolvimento do TCC foi
realizado em duas disciplinas – uma primeira para elaboração de projeto, e uma segunda para
a pesquisa e escrita do texto final – cujo objetivo era auxiliar os estudantes na construção do
problema de pesquisa. Essa estrutura mostra que o TCC é compreendido, no curso, como um
relatório de pesquisa, gênero muito similar a uma dissertação de mestrado. No Quadro 4,
podemos ver as disciplinas do currículo que estão orientadas para a construção do TCC:

Quadro 4 - Cursos do currículo orientados para a linguagem, em Ciências Sociais


Curso de graduação Currículo TCC
(Carrera) Quais disciplinas de leitura e/ou escrita são
oferecidos no programa do curso?

Projeto de TCC em Antropologia ou em Trabalho investigativo, em algumas


Bacharelado em Ciências Ciência Política ou em Sociologia (06 das ênfases oferecidas no curso:
Sociais-UPG créd.) Antropologia, Ciência Política ou
(08 semestres) Trabalho de Conclusão de Curso em Sociologia. O trabalho costumava ser
Antropologia ou em Ciência Política ou iniciado na disciplina de Projeto de
em Sociologia TCC.

Foi na disciplina de Projeto que Flávia iniciou a construção de seu TCC, com a
estruturação da pesquisa. Durante a entrevista, Flávia salientou que o tema de sua pesquisa
emergiu a partir de discussões teóricas nas disciplinas do curso de Sociologia Contemporânea.
Logo, construiu seu tema do TCC com o propósito de analisar as relações de reciprocidade na
religiosidade de matriz africana. Ao descrever suas sessões de orientação, Flávia comenta que
elas eram realizadas por meio de reuniões periódicas, nas quais o orientador a enfrentava,
questionava, desafiava e sugeria leituras para aprofundar sua pesquisa, experiência que ela
caracteriza como muito positiva, pois a motivava a estudar ainda mais.
Um aspecto interessante da construção do TCC de Flávia é como ela entrelaça
seus interesses pelo grupo de religiosos de matriz africana ao trabalho final exigido em seu
curso, trazendo a luz um tema pouco visibilizado no seu campo de estudos: a religiosidade
afrodescendente. Sua forma de elaborar o tema de pesquisa revela uma conciliação entre um
compromisso político (propiciar a visibilidade aos religiosos de matriz africana) e um
exercício de domínio teórico (estudo do conceito de sociabilidade).
188

participação nessas coletividades. Além disso, a estudante ressalta as práticas curativas dos
terreiros de batuque, o que reelabora o imaginário negativo frente a esses espaços religiosos,
mais associados ao mal.
Para compreender o trabalho de conclusão de Flávia em relação a suas
experiências, observamos os indícios de sua trajetória no contexto de ações afirmativas que
estão presentes nos agradecimentos de seu texto, do qual reproduzimos o excerto a seguir:

“AGRADECIMENTOS

A concretização do presente trabalho não demarca somente a conclusão de uma etapa em minha
trajetória acadêmica, mas exprimi em sua simplicidade o percurso de luta da população afro-brasileira
em busca de oportunidade, respeito e reconhecimento. O gosto pelo estudo sempre fez parte da minha
trajetória. É através dele que tive e tenho oportunidade de descobrir e conhecer possibilidades. A perspectiva
de tornar-me aluna da [Universidade] foi precedida por diferentes anseios que foram perpassados pelo
sentimento de não familiaridade, não identificação. Ingressei na UPG, durante a vigência do primeiro ano
do Programa de Ações Afirmativas da UPG, em 2008. Antes deste acontecimento, experenciei, em meu
primeiro emprego de carteira assinada, o amargor do racismo. Sofri uma acusação de roubo injustamente. O
motivo do ato foi o sumiço de um cheque da empresa onde eu trabalhava, sem sequer eu ter assinado o seu
recebimento e, sobretudo, estar no setor na ocasião do desaparecimento. Provei minha inocência com
paciência, dignidade e uma boa dose de sangue frio, porque o racismo nos ensina duramente a ter essa
habilidade. Mas não fiquei calada. Ao comunicar o pedido de desligamento da empresa fui interpelada, em
meio a sorrisos irônicos sobre o que eu faria sem emprego. Respondi que me dedicaria aos estudos para
ingressar no vestibular de 2008 da UPG. Nesta ocasião, ouvi que a sorte de estudar não estava no alcance de
todos e, ainda, para UPG, surgia no caminho de poucos. Converti este episódio em determinação e superação
para vencer e provar que é possível lutar pela sorte, quando esta parece não estar em nosso alcance. Quando
ingressei na UPG, deparei-me com um cenário não tão colorido como atualmente. Atuar no Fórum de
Ações Afirmativas da UPG no ano de 2012, em busca de sua permanência e ampliação, proporcionou-
me uma ideia mais concreta e palpável do poder de influência e transformação da Universidade para
além de seus muros. Esta experiência imprimiu uma compreensão política atuante não somente em minha
formação acadêmica, mas, sobretudo, na minha formação enquanto cidadã. Portanto, concluo esta fase
grata, orgulhosa e empoderada por ter me proposto em fazer um estudo antropológico que consistisse
em uma contribuição e, especialmente, um convite para discussões pertinentes a população afro-
brasileira. (...)”
Figura 2 - Excerto dos agradecimentos

Na seção de agradecimentos do TCC, Flávia mais do que agradecer realiza um


memorial. Assim, a estudante subverte essa seção do TCC a fim de narrar sua trajetória, e
expor episódios de racismo que a marcaram. Mas o mais interessante é como a estudante se
identifica com uma coletividade, ao enunciar que a conclusão de sua trajetória acadêmica
expressa também o trajeto da própria população negra, em sua luta por “oportunidade,
respeito e reconhecimento”.
A construção da identidade de Flávia como parte da população afro-brasileira é
marcada de forma positiva, ao ressaltar sua dimensão de luta por uma condição digna de vida.
Sua trajetória singular expressaria a trajetória de seu grupo, pois se posiciona como alguém
que possui uma história que ilustra o percurso de luta de um coletivo maior, de modo muito
similar à construção da identidade afro-diaspórica analisada por Brah (2006).
189

Além disso, desde este espaço inicial, Flávia se enuncia como uma estudante
negra cotista e demarca o contexto no qual ingressa na Universidade – “Ingressei na UPG,
durante a vigência do primeiro ano do Programa de Ações Afirmativas da UPG, em 2008”,
explicitando seu pertencimento ao coletivo de estudantes ingressos por esse programa. E
como aspectos determinantes do perfil cotista, a estudante ressalta tanto a “não familiaridade,
não identificação”, quanto as vivências dolorosas de discriminação racial.
O “ser negra” enunciado por Flávia é construído tanto na vivência do racismo,
quando na resistência a ele. Seguindo esses indícios, vemos como ela mostra esses episódios
como motivadores de sua luta – que faz parte do coletivo. Em seu argumento, são justamente
esses eventos que geram sua resistência: “provei minha inocência com paciência, dignidade e
uma boa dose de sangue frio, porque o racismo nos ensina duramente a ter essa habilidade.
Mas não fiquei calada”. A situação descrita por Flávia levaria a pensar que “provar a
inocência” seria o suficiente, mas ela avança destacando pelo “mas” que era necessário ir
além dessa ação e “não se calar”. Na narrativa memorial de Flávia, a ação de “não ficar
calada” aparece como um gesto de resistência, um ato para descontruir a subalternização que
tentam impor a ela, seja no episódio de racismo, seja na trajetória “não familiar” e ausente de
identificações na universidade. Sua narrativa constitui marco de transformação, no qual Flávia
constrói uma identidade positiva e de uma agente – que se enuncia como alguém que muda a
situação em que está, reelabora sua trajetória e busca alternativas, visto no uso de verbos de
ação: “convertir”, “vencer”, “provar”, “lutar pela sorte”.
Desse modo, o ingresso na universidade emerge como a superação em sua
trajetória, superação que seria a abertura de um novo cenário de luta: “Quando ingressei na
UPG, deparei-me com um cenário não tão colorido como atualmente”. Sua ampliação de
laços com grupos negros e sua atuação em ações políticas passa a ser a marca, na sua
narrativa, de sua apropriação do espaço universitário: “atuar no Fórum de Ações Afirmativas
da UPG no ano de 2012, em busca de sua permanência e ampliação, proporcionou-me uma
ideia mais concreta e palpável do poder de influência e transformação da Universidade para
além de seus muros”. As redes sociais que estabeleceu durante sua formação – como a
atuação em movimentos sociais relacionados à política de ações afirmativas – colaboraram
para que ela passasse a ver a universidade como uma instituição capaz de potencializar seus
propósitos.
Flávia reconstrói de modo positivo o imaginário sobre o estudante cotista ao
afirmar-se, primeiramente, como negra, logo, como cotista, e, na sequência, como um sujeito
exitoso: “concluo esta fase grata, orgulhosa e empoderada por ter me proposto em fazer um
190

estudo antropológico que consistisse em uma contribuição e, especialmente, um convite para


discussões pertinentes a população afro-brasileira. (...)”.
A bibliografia do trabalho de Flávia registra uma ampla leitura da produção
antropológica local, sem deixar de fora autores reconhecidos no cenário nacional e
internacional. Contempla em grande parte autores do cenário latino-americano, o que mostra
um indício de deslocamento na geopolítica do conhecimento (CASTRO-GÓMEZ, 2010;
ZAVALA, 2011).
O apagamento das contribuições de populações afrodescendentes e indígenas para
o contexto atual de “desenvolvimento” do estado gaúcho é reiterado em discursos escolares,
midiáticos e universitários. Por isso, o trabalho de Flávia, ao abordar práticas religiosas afro-
brasileiras, as quais têm sido muito marginalizadas e estigmatizadas socialmente no país,
também ecoa uma voz social historicamente marginalizada na academia; e, com isso, tenta
provocar deslocamentos em discursos dominantes de desvalorização e satanização das
religiões afro-brasileiras, inscrevendo-se como uma prática de letramento acadêmico de
reexistência.
As populações indígenas no sul do país também vêm interpelando esses
imaginários, como veremos com a experiência de Dorival.

Caso 2 – Dorival

 Trajetória

O professor Dorival é uma liderança Kaingang muito respeitada. Vive em uma


aldeia na região metropolitana de Porto Alegre. Iniciou sua trajetória escolar apenas aos 11
anos, por impedimentos relacionados às políticas de intervenção do Serviço de Proteção ao
Índio (SPI) em sua comunidade; caso que, segundo ele narra, reflete a história das políticas de
educação indígena na região. Mas esse atraso inicial não impediu que Dorival seguisse sua
formação e se tornasse um professor.
Nos anos 90, Dorival realizou a graduação em Educação em uma universidade
privada do sul do país, tornando-se um dos primeiros alfabetizadores especializado em
educação bilíngue do estado. Desde então, atua em escolas indígenas da região metropolitana
de Porto Alegre. Docente com larga experiência como professor em escolas indígenas,
191

Dorival também possui uma formação nos saberes de sua cultura indígena e é uma liderança
em sua comunidade.
Como parte do movimento indígena gaúcho, Dorival acompanhou o processo de
elaboração das ações afirmativas na UPG. Durante esse processo, motivou-se a ingressar em
um novo curso superior, e foi aprovado na primeira turma do Programa de Ações Afirmativas
da universidade, em 2008, para realizar a graduação em Pedagogia. No primeiro semestre,
contou com a ajuda de uma estudante que o acompanhava nas disciplinas, atividade que fazia
parte de um programa de tutoria oferecido pela Universidade aos estudantes indígenas. A
tutoria tinha o propósito de contribuir para a permanência dos estudantes, com uma função de
“tradução cultural” (SANTOS, 2009), já que, para muitos dos estudantes que vinham do
interior para a capital para cursar sua graduação, esse período inicial configurava-se em um
grande choque. O problema de evasão que se apresentava entre os estudantes indígenas era
um indicador dessa tensão.
No que se refere a sua permanência, embora Dorival tenha tido alguns eventos de
afastamento do curso, à medida que avançava nas disciplinas e ia estabelecendo relações com
novos colegas garantiu uma melhor jornada na universidade. O estudante também construiu
uma relação mais amistosa com a monitora que lhe acompanhou em semestres posteriores, o
que resultou em uma motivação maior nos cursos. Além disso, contou com uma bolsa da
FUNAI durante a graduação, destinada a estudantes cotistas indígenas, a qual, segundo
afirma,era muito inferior do que os custos de vida na cidade.
No trabalho de conclusão de curso, Dorival reflete sobre sua experiência
profissional com alfabetização em língua Kaingang. Em paralelo à Universidade, Dorival
seguiu com suas atividades de professor em escolas indígenas, trabalhando em especial na
alfabetização de crianças em escolas Kaingang. Também participava ativamente de
movimentos indígenas, especialmente do sul país.

 O TCC em análise

Em seu curso de Pedagogia, é exigida a realização de um TCC para graduação.


Esse trabalho é um relato analítico da prática de estágio docente realizada pelo estudante. Para
isso, no currículo, o TCC está estruturado para ser desenvolvido em dois momentos: em uma
disciplina para orientar a pesquisa (Trabalho de Conclusão de Curso), e outra que orienta a
escrita do trabalho (Análise e produção do texto acadêmico), conforme mostra o Quadro 5:
192

Quadro 5 - Cursos do currículo orientados para a linguagem, em Pedagogia


Curso de Currículo TCC
graduação Quais disciplinas de leitura e/ou escrita são
(Carrera) oferecidos no programa do curso?

Análise e produção do texto acadêmico O TCC era um trabalho analítico da prática


(02 créd) docente, desenvolvido em duas partes, nas
Licenciatura em Linguagem e educação I, II, III (03 disciplinas “Trabalho de Conclusão de Curso –
Pedagogia créd.) análise sobre a prática docente”, com orientação
UPG Trabalho de Conclusão de Curso – do trabalho, e “Reflexão sobre a prática
(08 Semestres) análise sobre a prática docente (07 docente”, que orienta a escrita do trabalho.
créd.)

Com base em sua experiência de educador-alfabetizador em escolas Kaingang,


Dorival construiu seu tema para o TCC buscando responder a questionamentos de sua própria
prática profissional. Assim, seu trabalho abordou a aprendizagem da língua Kaingang (oral e
escrita) na educação formal. Entre os objetivos gerais, se propunha a registrar, na modalidade
escrita, as memórias do povo Kaingang que ficaram somente na oralidade, e apresentar o
alfabeto Kanhgág (sua origem e significado).
Destacamos o movimento de construção do tema do TCC de Dorival, que alia um
problema teórico, a alfabetização, a uma demanda de seu contexto de origem, a alfabetização
bilíngue português e Kaingang. Assim como no caso de Flávia, o estudante rompe
silenciamentos históricos ao trazer para a agenda acadêmica discursos e saberes que não
circulariam na universidade sem a presença desses atores. Desse modo, demandas legítimas e
relevantes, tanto do ponto de vista teórico quanto prático, passam a ser incorporadas ao
espaço acadêmico. Para realizar essa aliança, outro aspecto importante passa a ser a
orientação do trabalho.
Dorival selecionou como sua orientadora uma docente que trabalhava há muito
tempo com povos indígenas. Junto com essa docente, ele havia ministrado um curso sobre
educação indígena, para o qual ela o havia convidado, tendo em vista seu papel protagonista
na luta pela educação indígena no estado. O convite de Dorival a ela partiu depois dessa
experiência. Durante esse curso, Dorival e a professora Maira – cuja afinidade se fortaleceu
pelo interesse da docente nas escritas indígenas – começaram a esboçar seu TCC.
Maira tem orientado estudantes indígenas na graduação e no mestrado. E, a partir
dessas orientações, ela pondera que é importante conjugar o rigor acadêmico ao esforço de
encontrar um espaço, nos textos, para as vozes indígenas, conforme ela narra no seguinte
trecho da entrevista, acerca de sua experiência de orientações:
193

Excerto 4 - "a gente não abre mão do rigor intelectual"


E a gente está assim tentando construir uma compreensão e como que a
gente alia uma escrita indígena que tenha as suas peculiaridades, que a gente
está procurando compreender essas peculiaridades, com o rigor acadêmico,
porque a gente acha que são trabalhos que merecem ter um rigor (...) que
precisam ter um rigor e que a gente não abre mão do rigor intelectual tudo,
mas que ela tenha também uma marca que seja (...) então a gente está todos
os as teses e as dissertações elas têm incorporado essa trajetória dos
estudantes até a universidade, no programa de pós-graduação, já como uma
parte da pesquisa (Maira, docente na Faculdade de Educação, entrevista de
08 de maio de 2014)

Maira se posiciona com um coletivo – a gente – para expressar sua preocupação


grande com o processo de orientação de estudantes indígenas, movimento que legitima sua
voz. A expressão “a gente” é repetida seis vezes no argumento de Maira, e parece construir
uma coletividade acadêmica outra, não indígena, que realiza uma ação de orientação
investigativa para contemplar as vozes indígenas no discurso acadêmico, como ações de uma
negociação em curso: a gente “está tentando construir”, nesse sentido, realiza alianças entre as
diferentes escritas, e “está procurando compreender”, “acha que são trabalhos que merecem
ter um rigor”, “não abre mão [do rigor]”.
Para a docente, é preciso evitar que as convenções acadêmicas silenciem as vozes
desses estudantes. Mas também chama a atenção para a necessidade de aprofundar mais a
reflexão sobre a escrita indígena. Como ela destaca, “a gente não abre mão do rigor intelectual
tudo, mas que ela tenha também uma marca que seja (...)”. Ao abordar o tema do rigor
acadêmico, seu discurso é marcado por uma contraposição, exposta pela palavra “mas”, que
reflete uma oposição entre tradição acadêmica vs. cultura indígena. Maira argumenta que sua
experiência como orientadora de outros estudantes indígenas, inclusive na pós-graduação,
mostra que há uma relação positiva entre afirmação identitária e apropriação da escrita
acadêmica. Como ela explica: “quando os estudantes indígenas aceitam, valorizam e afirmam
a sua identidade étnica, flui mais as aprendizagens deles dentro da universidade. E eu tenho
notado isso, até daria para a gente fazer uma pesquisa sobre isso com os nossos estudantes
aqui. Mas eu noto que as escritas fluem também”. Desse modo, a reescrita das histórias
aparece como uma via para criar um espaço que concilie o rigor acadêmico e as vozes
indígenas nos trabalhos.
A avaliação que Maira tece desse processo é valiosa, pois a experiência de
orientação entre Maira e Dorival justamente revela indícios de estratégias de orientação de
TCC que favorecem que o desenvolvimento de processos de afirmação identitária e o domínio
194

das convenções acadêmicas, facilitando a construção de trabalhos em que os estudantes


possam explicitar seus movimentos de autoria. Maira relata que sugere sempre a seus
estudantes que iniciem o trabalho com um relato de suas trajetórias, aproximando-se nisso do
gênero memorial e compreendendo esse exercício como parte do estudo. Essa estratégia é
utilizada por Dorival, conforme mostramos neste trecho, presente no primeiro capítulo do seu
TCC:

Capítulo inicial contando sua trajetória educativa


“1. A TRAJETÓRIA ESCOLAR E OS DESAFIOS DA ESCRITA KANHGÁG
Entrei na UPG em 2008, na primeira turma de estudantes indígenas e sou o primeiro
Kanhgág a cursar Pedagogia. Por isso acho que é importante falar de minha
escolarização, da trajetória que me trouxe até aqui.
O primeiro tempo de escolaridade foi aos 8 anos de idade, em 1972, em uma escola
que ensinava português. Eu era falante Kanhgág e a professora era não indígena: não
compreendia nada, apenas pedia licença para deitar na grama. Não frequentava direito as
aulas por causa do panelão, uma forma de exploração do trabalho indígena instituído
pelo Serviço de Proteção ao Índio – SPI. Com o passar do tempo, junto com a
professora não indígena havia também uma monitora indígena, que fazia a mediação
entre a língua Kanhgág e a língua portuguesa. Devido ao trabalho de monitoria fui
aprendendo a falar o português. Isso era um momento de crueldade, pois a professora
indígena dava algumas aulas em Kanhgág, com uma cartilha bem simples, na nossa
língua, porém eu não entendia o que estava escrito e cheguei na 6ª série sem aprender
nada da escrita em kanhgág. Apenas aprendi o português.
Tudo me foi muito difícil na vida escolar: eu era falante de Kanhgág, mas a
alfabetização em português foi muito forte e foi também muito difícil aprender a falar,
escrever e ler numa língua estranha. Essa dificuldade ainda continua na minha vida
de estudante até os dias atuais. [segue uma foto de sua juventude] (...)”

O título de seu primeiro capítulo já apresenta os temas sobre os quais tratará: sua
trajetória escolar e a escrita kanhgág (Kaingang). Sua narrativa exprime lembranças de uma
trajetória escolar marcada pela dificuldade e crueldade – “Isso era um momento de
crueldade”, “Tudo me foi muito difícil na vida escolar”. No caso de Dorival, sua história
retrata a presença do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) nas comunidades, os eventos de
exploração do trabalho nas comunidades, a violência, o descuido com o bilinguismo, o
ingresso escolar tardio; aspectos que estão presentes em diferentes comunidades indígenas do
país. Assim, podemos dizer que a trajetória individual de Dorival e a trajetória de Flávia
refletem as vozes de coletivos com os quais se identificam.
Dorival, ao enunciar-se como um estudante cotista indígena, marca sua
experiência entre as primeiras histórias de estudantes indígenas do programa “sou o primeiro
Kanhagág”, o que mostraria a relevância de contar sua trajetória escolar. Seu primeiro
capítulo, que situa sócio-historicamente a trajetória de Dorival, é construído em torno às
196

a seu TCC. Sua proposta foi de inovar no gênero acadêmico, aproveitando a forte tradição
oral nas formas de interação do estudante. Segundo Maira,

Excerto 5 - "E a gente também está inovando"


E daí eu propus para ele que foi a coisa que ele incorporou logo em
seguida. Não disse sim, não me disse sim, mas ãh de a gente fazer uma
entrevista com ele com esses itens que ele está trabalhando, que ele pudesse
falar e que a gente pudesse gravar essa fala e colocar num encarte na parte
escrita com a oralidade dele, que acho que é muito mais legítimo, né? E a
gente também está inovando. (Maira, docente na Faculdade de Educação,
entrevista de 08 de maio de 2014)

Maira equaciona o desejo por inovação nesse contexto com a busca por
legitimidade e autoria. Ela relata como uma ideia proposta por ela foi prontamente acolhida
por Dorival e, em colaboração, construída entre ambos. Assim, o TCC contemplaria
modalidades de linguagens outras capazes de expressar o vigor da oralidade na língua
indígena.
A fim de visibilizar a presença indígena na universidade, foi criada uma terceira
via para as formas de dizer na universidade, pondo em diálogo os conhecimentos Kaingang,
com os quais se distingue Dorival, e conhecimentos acadêmicos. Consideramos que, em
espaços de encontros tensos, a criação de outras formas de dizer permite uma alternativa
frente ao processo histórico de silenciamento que ocorrem nas zonas de contato (PRATT,
1999). Assim, a proposta de inserir um CD com uma entrevista foi acolhida por Dorival, e se
tornou não só uma marca de sua pessoalidade, mas criou um espaço alternativo confortável
para que ele pudesse falar sobre suas propostas educativas.
Dessa forma, vemos na experiência de Dorival uma busca por dar voz e visibilizar
os conhecimentos indígenas, que resultaram em uma renovação do gênero TCC. Essa
alteração demonstra que a relação de orientação estabelecida entre Maira e Dorival construiu
uma prática de letramento acadêmica que rompeu com relações assimétricas de saber e levou
em conta o outro. Nesse movimento autoral, Dorival e Maira, em parceria, vão aproveitando
as brechas desse cenário de abertura institucional, com as ações afirmativas, para criar
espaços que permitam a escuta de vozes indígenas.
Nessa inovação, orientadora e orientando desenvolvem um processo de
construção do TCC que a orientadora descreve por meio da metáfora – “fazer um mosaico”:
197

Excerto 6 - "Como a gente faz um mosaico?"


Ele já tinha trazido vários pedaços de escrita. Um é sobre a história da
língua indígena. Outro é sobre as vivências dele com a língua escrita. Outro
é sobre as repressões que a língua Kaingang sofreu no período do spi.
Depois ele fala da escola, a língua na escola. A dificuldade de ensinar
bilíngue. Então assim ele tem já uns quatro ou cinco trechos já escritos
pequenos, uns são de meia página, outros é de duas páginas, outros de uma
página. Que ainda não têm uma relação um com o outro. Então assim nós
combinamos que ele ia fazendo essas escritas e que depois a gente ia dar um
sentido a posteriori bem como se faz numa, num, como é que a gente diz, num
a esqueci o termo, a palavra que a gente vai montando com peças (...) Como
a gente faz um mosaico? Tu monta, tu traz as peças, tu coloca as peças
juntas aonde tu vê que o desenho vai ficar bonito e depois tu faz o rejunte.
(Maira, docente na Faculdade de Educação, entrevista de 08 de maio de 2014)

Nessa metáfora, Maira elabora uma alternativa ao texto acadêmico, com uma
prática escrita que se realizaria por partes e seria finalizada com um “rejunte”, cujo papel
poderia ser atribuído à interação orientadora-orientando ou ao CD com a entrevista. O CD
traria um depoimento de Dorival, no qual relataria sua trajetória escolar, sua experiência
docente e suas propostas para a educação indígena. Destacamos o fato de que é a partir de sua
observação das práticas de escrita de Dorival que Maira vai construindo estratégias para
orientá-lo, conforme ela descreve: “então assim nós combinamos que ele ia fazendo essas
escritas e que depois a gente ia dar um sentido”. Logo, a ideia do “fazer um mosaico”, assim
como a feitura do próprio “mosaico”, emergiu desse diálogo entre estudante e professora para
construção do TCC.
A metáfora do “mosaico” nos ilustra como estudantes de tradições mais distantes
da academia desafiam os orientadores a pensarem em soluções para cumprir exigências
acadêmicas valorizando os conhecimentos construídos por esses alunos. A proposta do CD é
um exemplo concreto, apresentado desde o resumo do trabalho:

Trecho do resumo
“Complementa o trabalho escrito um CD, contendo o depoimento do autor,
que relata sua trajetória de estudante e de professor, descreve a escola
indígena diferenciada e aponta possibilidades para a educação indígena. Esta
é uma forma de valorizar a oralidade na produção e transmissão de
conhecimentos como expressão kanhgág.”

O resumo do TCC de Dorival traz mais indícios de sua construção identitária.


Nesse texto, o estudante se caracteriza como “autor”, “estudante”, “professor” e proponente
de “possibilidades para a educação indígena”, dando relevância para a sua trajetória e sua
experiência. O elemento de inovação do trabalho é apresentado como uma valorização dos
198

conhecimentos de seu grupo social. Desse modo, o universitário constrói uma identidade
acadêmica fortalecida e positiva, assim como comprometida socialmente com a educação e
conhecimentos Kaingang.
Mas para entender o produto do TCC, é importante olhar para seu processo de
construção. Maira, durante a entrevista, ressalta sua preocupação com a escrita de seu
orientado e como modificou suas ações para orientação do trabalho. Com base na experiência
com diferentes orientandos indígenas, e percebendo a relevância de uma postura acolhedora
com seus estudantes, a docente foi promovendo algumas mudanças nos espaços de orientação:

Excerto 7 - "criava uma situação assim de uma visita"


Daí eu comecei a marcar na minha casa. E aí ele ia com a família dele, ia a
esposa, as crianças, e daí ele ficava uma tarde. E o meu marido até ria,
porque criava uma situação assim de uma visita, com chimarrão, com
alguma coisa para a gente comer, com as crianças aí em volta. Aí eu me dei
conta que eu também podia orientar na aldeia e com ele eu podia, porque o
Z. não mora tão distante. Então, eu também fazia algumas visitas, para ele
se sentir mais encorajado, mais empoderado, né?, naquilo que ele estava
fazendo e dialogando com um espaço tão difícil para ele. (Maira, docente na
Faculdade de Educação, entrevista de 08 de maio de 2014)

Nesse excerto, Maira narra como modificou sua forma de orientar trabalhos ao
observar que a universidade podia ser um espaço desconfortável para muitos de seus
estudantes indígenas. Uma orientação mais acolhedora requeria um espaço no qual eles se
sentissem bem: primeiro, na sua própria casa e, depois, na aldeia. Em seu relato, uma
orientação próxima aparece como uma estratégia tanto para encorajar a escrita de seu
orientando, quando para gerar uma melhor intercompreensão do trabalho desenvolvido. Em
síntese, a docente criou espaços que permitissem uma escuta mais sensível do outro.

Com as trajetórias de Flávia e Dorival, ilustramos como a presença desses


estudantes na universidade vem mobilizando a circulação de saberes e discursos em função
das novas perguntas e interesses que provocam ao indagar sobre temáticas vinculadas a
grupos sociais com os quais se identificam. Além disso, mostramos como eles vão
construindo uma identidade positivada de sua trajetória, em especial marcada pelo êxito
acadêmico. Por fim, examinamos como, ao abordar nos TCC as práticas de religiosos afro-
brasileiros e a alfabetização bilíngue português-kaingang, ambos os universitários utilizam o
TCC como forma de indagar e compreender realidades antes invisíveis no espaço acadêmico,
199

não apenas visibilizando-as como também tratando as questões de uma maneira afirmativa.
Com isso, seus movimentos de alteração dos modos de fazer e de dizer deixam indícios de
alterações nas práticas de letramento acadêmico.
Experiências exitosas também foram narradas na experiência do programa de ação
afirmativa da Universidade Pública Paisa. Para apresentá-las, abordamos a experiência de
Joyce, em diálogo com seu orientador para caracterizar a elaboração do TCC, e, na sequência,
analisamos a experiência de Valentina, que se destaca pela abertura em opções para realização
do TCC oferecidas pelo curso.

Caso 3 – Joyce

 Trajetória

Pertencente à etnia Nasa, Joyce nasceu no estado de Cauca, uma região


reconhecida nacionalmente por sua grande diversidade étnica. Foi a segunda geração da
família a cursar ensino superior; seus pais realizaram uma Licenciatura em Etnoeducação,
oferecida a comunidades indígenas. Eles tinham concluído seu curso um pouco antes do
ingresso de Joyce na universidade.
Sua comunidade é bilíngue: falam o espanhol e o nasa yuwe, uma língua
originária nasa175. Joyce dominava nasa yuwe oralmente e, após sua graduação, retornou para
sua comunidade e voltou a estudar o nasa yuwe escrito, já que estavam realizando ações para
revitalização de sua língua nativa, com a construção de um alfabeto escrito, materiais escritos
em nasa yuwe e cursos para aprendizagem do nasa yuwe escrito.
Joyce cursou a educação básica em uma escola localizada em sua comunidade.
Depois de concluir o ensino médio, participou do movimento juvenil Alvaro Ulcué Chocué176.
Nesse período, ela participou de um trabalho de censo em sua comunidade, cujo resultado foi
um maior conhecimento da situação de vulnerabilidade (pobreza e desigualdade) em que vivia
seu povo. De sua experiência nesse censo, emergiu seu interesse em cursar o ensino superior
com o propósito de formar-se para ajudar a sua comunidade.
As famílias que conheceu durante o censo e as dificuldades que reconheceu nas
escolas de seu povo a motivaram a não desistir do curso. Além disso, ela sempre quis ser

175
Antes se acreditava que era uma língua da família chibcha.
176
Foi o primeiro sacerdote católico indígena da Colômbia, nascido no resguardo nasa de Pueblo Nuevo, em Caldono
(Cauca). Para mais informações: http://www.elespectador.com/noticias/nacional/el-legado-de-alvaro-ulcue-chocue-
articulo-527124
200

professora. Ao elaborar seu TCC, tinha um grande desafio: aprender para retornar a sua
comunidade e ensinar inglês como uma ferramenta que a ajudasse a fortalecer a identidade e a
língua Nasa yuwe ao mesmo tempo em que ensinaria inglês.

Excerto 8 - "yo necesito prepararme para poder servir mejor"


Cuantos viven, era un censo de nivel nacional y todas esas cosas. Y ahí me di
cuenta de la realidad que vivía a mi, pues, mi comunidad. O sea, vivía
situaciones de hambre, de pobreza, o sea, como uno en el colegio es todo
tiempo en el colegio y no lo contextualizan a uno la realidad, ¿sí, me entiende?
Entonces cuando yo ya salí de allá, yo dije “uy, no”. Yo necesito, yo necesito a
cuidar, ayudar a mi gente. Pero yo no puedo ayudarle así, yo soy una simple
bachiller, yo necesito prepararme para poder servir mejor, y ese era como el
lema que maneja el movimiento juvenil177(Joyce, estudante indígena
colombiana, Lic. em Línguas Estrangeiras-UPP, entrevista de 13 de dezembro
de 2013)

Joyce se enuncia como indígena e como um sujeito comprometido com sua


comunidade: “Eu preciso, eu preciso cuidar, ajudar minha gente”. Para isso, marca sua pessoa
como um agente relevante nesse espaço – um “eu” que poderia ajudar a “minha gente”. Seu
compromisso com sua comunidade indígena é atribuído a um reconhecimento mais amplo de
seu contexto – o que resulta não da escola, descrita como um espaço descontextualizado, mas
sim de um trabalho pelo movimento social.
Vemos em seu depoimento a presença da voz do movimento juvenil do qual
participava, cujo lema era “preparar-se para poder servir melhor”. Joyce reitera esse lema para
justificar que o propósito de sua formação é o compromisso com seu povo. A universidade
aparece no seu discurso como um espaço que poderia apoiar sua formação – dando-lhe
ferramentas – para trabalhar na área educativa local: “E eu queria ter ferramentas para
trabalhar em uma comunidade indígena, eu queria por isso fazer [o estágio] lá, e por isso era
uma das razões pelas quais eu tinha ingressado aqui”178.
Sua primeira escolha foi Licenciatura em Língua Espanhola. Porém, quando
iniciaram suas aulas, ela se deu conta de que havia selecionado a Licenciatura em Língua
Estrangeira da universidade, e esse curso era estruturado em duas línguas: inglês e francês, as

177
Tradução: “Quantos vivem, era um censo de nível nacional e todas essas coisas. E aí me dei conta da realidade que
vivia a minha, minha comunidade. Ou seja, vivia situações de fome, de pobreza, ou seja, como a gente no colégio é todo o
tempo no colégio e não contextualizam a gente nessa realidade, né? me entende? Então quando eu já saí de lá, eu disse
“ih, não”. Eu preciso, eu preciso cuidar, ajudar minha gente. Mas eu não posso ajudá-la assim, eu sou uma simples
estudante do ensino médio, eu preciso me preparar para poder servir melhor, e esse era como o lema que direciona o
movimento estudantil”.
178
Original: “Y yo quería tener herramientas para trabajar en una comunidad indígena, que yo quería por eso hacerla allá,
y que por eso esa era una de las razones porque yo había ingresado acá”.
201

quais ela não dominava. Em seu relato, essa falta de transparência sobre o perfil do curso de
graduação escolhido pode ser vista como um aspecto das práticas institucionais do mistério,
as quais atuam de forma mais excludente com sujeitos que, como Joyce, não têm uma
familiaridade com a instituição acadêmica.
O estranhamento com a graduação se replicou com a nova cidade. Para estudar,
Joyce precisou deslocar-se de sua comunidade, no Cauca, para outro estado do país,
Antioquia. Os primeiros anos no curso de Licenciatura em Língua Estrangeira foram descritos
como muito difíceis. Ela relatou que, durante sua formação na universidade, eram as famílias
que conheceu no censo comunitário realizado e as dificuldades da escola em sua comunidade
as que a motivavam a seguir em frente e não desistir. Mas à medida que ela passou a conhecer
mais a instituição e, em especial, a relacionar-se com outros estudantes e professores
indígenas, sentiu-se mais confortável no espaço universitário, processo que ela nomeia como
um reviver:

Excerto 9 - "volví otra vez a revivir"


Convocaron y fue ahí que yo me conocí con los estudiantes y ya y ahí digo que
me sirvió mucho, y como que volví otra vez a revivir y ya me acostumbré,
aunque nunca me acostumbré ((a vivir en Medellín))179(Joyce, estudante
indígena colombiana, Lic. em Línguas Estrangeiras-UPP, entrevista de 13 de
dezembro de 2013)

O encontro com outros estudantes e professores indígenas (mesmo de outras


etnias) aparece como um processo que gerou uma identificação étnica para Joyce, que ela
caracteriza como uma experiência que a deixou mais fortalecida. Em outras palavras, esse
movimento de conhecer outros que, nesse espaço, eram outros-iguais é tratado pela estudante
de modo positivo – “me serviu muito, e como voltei outra vez a reviver”. Seu “reviver” indica
uma apropriação da universidade; enquanto a apropriação da cidade ainda é tratada com
ambiguidades, quando caracteriza esse novo espaço de moradia com uma contradição: “já me
acostumei, embora nunca tenha me acostumado”. Ter-se habituado à cidade, por um lado,
embora nunca tenha adquirido o hábito de morar em cidade deixa transparecer esse lugar
fronteiriço em que Joyce se encontra: faz parte e não faz, se sente integrada e não se sente.
Desde que ingressou na Licenciatura em Línguas, desejava ser professora em sua
comunidade, por isso definiu como meta para seu TCC realizar um trabalho que a formasse
para que, ao retornar a sua comunidade, pudesse ensinar inglês como uma ferramenta que
179
Tradução: “Convocaram e foi aí que eu conheci os estudantes e daí digo que me serviu muito, e como voltei outra vez
a reviver e já me acostumei, embora nunca tenha me acostumado ((a viver em Medellín))”.
202

ajudaria a fortalecer a identidade e a língua nasa. É importante relembrar que outra


consequência do conflito armado é o fechamento de escolas nos territórios em que a violência
tem sido mais aguda, especialmente em comunidades rurais (afrocolombianas, indígenas e
campesinas). Como os professores costumam deslocar-se de outras cidades para esses
territórios, quando há intensificação da violência, esses docentes, muitas vezes, precisam
deixar as escolas180. Por isso, Joyce expressa com veemência seu desejo de ser professora em
sua comunidade, pois como é originária de lá, nunca abandonaria a escola local.
Com esse propósito, Joyce também realiza uma associação entre a exigência
acadêmica – estágio docente – e demandas de seu grupo social – ensino de línguas em
contextos bilíngue. Desse modo, ela explica que necessitava realizar seu estágio em uma
escola indígena que tivesse características linguísticas semelhantes àquelas de sua
comunidade, ou seja, uma língua materna nativa e o espanhol como segunda língua. No
entanto, na cidade de Medellín – lugar destinado para o estágio – as comunidades indígenas
locais possuem o espanhol como primeira língua, por terem passado por processos de perda
de suas línguas nativas. Assim, Joyce teve de subverter as regras institucionais para realizar
seu estágio no contexto por ela desejado. Para isso, ela necessitou recorrer a docentes de
grupos de pesquisa sobre diversidade cultural e educação indígena, para que eles
intercedessem junto ao diretor de sua Faculdade para que lhe permitisse a realização do seu
estágio docente em uma comunidade indígena fora da capital. O docente orientador de Joyce
aprovou a proposta desde o início, e apoiou sua negociação com a Faculdade. Após um ano,
sua Faculdade aceitou a proposta.
A dificuldade em realizar estágio docente em uma comunidade indígena bilíngue
revela um aspecto que faz parte do contexto das ações afirmativas: as limitações da estrutura
burocrática da universidade para acolher esses outros discursos e práticas. Ou seja, o desejo
de enfocar as práticas culturais e saberes dos grupos cujo acesso ao ensino superior é
interditado provoca tensões nas formas de fazer da instituição. Mas, ao mesmo tempo, Joyce
revela como lançou mão de estratégias para realizar as práticas formativas que via
necessárias, as quais abordamos a seguir, na análise do TCC.

180
O filme “Los colores de la montaña” ilustra essa dificuldade nos territórios de conflito armado.
203

 O TCC em análise

O estágio docente de Joyce fazia parte do desenvolvimento do seu TCC, cujo


objetivo foi analisar uma experiência de ensino de inglês como terceira língua (L3) em uma
escola indígena em um contexto de bilinguismo (embera e espanhol), por meio da
transmediação181. Parte de seu trabalho foi uma pesquisa-ação, desenvolvida durante as
disciplinas de estágio. O trabalho foi redigido na língua inglesa, em um texto estilo
monográfico, no qual foram registradas a pesquisa e as considerações sobre o estágio docente.
Conforme orientações da Faculdade, este texto devia ter no máximo 30 (trinta) páginas e não
se permitia a inserção de imagens e figuras na capa.
A orientação do seu TCC era realizada em grupo. Em sua Faculdade, cada
professor orienta um grupo de 4 estudantes no desenvolvimento do estágio e, depois, na
escrita do TCC. Pelas normas da instituição, o TCC se mostrou uma prática que tentava aliar
gêneros das esferas acadêmica e profissional, orientado para a realização de uma pesquisa-
ação ao longo da prática de estágio supervisionado.
Joyce descreveu sua relação com o orientador como uma parceria, tanto no
acolhimento de sua proposta, quanto para a escrita do trabalho. Ela conhecera o professor em
uma disciplina que havia cursado previamente, e retomou contato quando chegou ao período
do estágio. Joyce narra que seu orientador revisava os textos junto com ela, oferecendo
espaços para reflexão e contraste entre o inglês e sua língua materna, o nasa yuwe. Além
disso, destacava que ele se interessava em buscar teorias linguísticas que a apoiassem no
ensino de inglês como terceira língua. Havia um diferencial no processo de elaboração e
escrita do TCC desenvolvido entre Joyce e seu orientador. Essa descrição tão positiva nos
levou a entrevistá-lo.
Seu professor, Josué, caracterizou a orientação como uma relação de apoio e
aproximação com os estudantes. Em relação a Joyce, Josué a descreveu como uma pessoa
com garra, entusiasmo e força de vontade em relação a seu trabalho; uma pessoa que tem
muito a dizer, com “uma quantidade de coisas” para falar, com quem podia ficar conversando
horas:
Excerto 10 - "Yo creo que la misma fuerza de ella"
Yo creo que la misma fuerza de ella, este entusiasmo, esas ganas, esa
posibilidad de escucharlos hablando de lo de ellos, todo el tiempo esa
misma preocupación.(…) Ella habla también una cantidad de cosas,
porque como su práctica fue en Jardín, entonces yo fui acompañarla varias

181
Conceito utilizado na área de ensino-aprendizagem de inglês como segunda língua.
205

monográfico que registra a pesquisa-ação desenvolvida a partir do estágio supervisionado.


Contudo, com base nas entrevistas, observamos que a demanda desse gênero gera tensão para
os graduandos. Como relata a estudante: “quando comecei a fazer o estágio, eu dizia: ‘será
que eu realmente sou capaz de escrever um trabalho de conclusão de curso?’”183.
A partir de pesquisa documental para seu TCC, Joyce identificou uma desconexão
entre a visão sobre o bilinguismo de Comunidades Indígenas e a do Plan Nacional del
Bilingüismo, documento colombiano que orientava o ensino bilíngue nas escolas, pois
entendia que o documento não refletia as expectativas de sua comunidade. Pois justo este
tema Joyce decidiu abordar em seu trabalho. O texto, em relação a sua forma composicional,
seguiu a estrutura convencional dos textos monográficos, pois a estudante e seu orientador
decidiram respeitar a exigência da instituição, que definia o formato dos textos a serem
apresentados. Esse aspecto revela as tensões na negociação com as práticas de letramento
acadêmico na instituição: mesmo provocando mudanças nas formas de fazer (o estágio),
mantinham as regras nas formas de dizer (o texto final).
Assim, seu sumário mostrou um texto impessoal, que não revelava em seus
subtítulos – Prefácio, contexto, definição do problema, pressupostos teóricos, perguntas de
pesquisa (objetivos geral e específicos), plano de ação, desenvolvimento das ações,
resultados e interpretações, conclusões e sugestões, reflexões – um vínculo com a temática
que se propõe discutir. Contudo, se observarmos o trabalho com mais detalhe, encontramos
elementos que imprimem as marcas de autoria de Joyce, conforme mostra a Figura 4.

183
Original: “cuando empecé a hacer esta práctica yo decía ‘¿será que yo si soy capaz de escribir un trabajo de grado?’”.
207

su trabajo. Es de los únicos, por ahí hay otro, pero es de los únicos trabajos
que tienen un distintico. Estas son las alegrías porque esto nos vamos a
pelear, como hay aquí un filtro que dice que eso es académico, treinta y cinco
hojas y no puede ser nada más, y pelea y pelea. (…) nosotros no nos vamos a
pelear mas asegurémonos de que esto esté con los elementos, que esté lo que
usted quiera decir, que es lo más importante, y si logramos hacer alguna
otra cosa vale. Cuando me dijo que lo del chumbe había pasado, ¡muy
lindo! Ella cogió eso. Pero era lo que te decía, ella llevaba esas cosas. 184
(Josué, docente de Lic. em Línguas Estrangeiras, entrevista de 05 de março de
2014)

Uma forma de imprimir mais a marca de Joyce em seu texto foi a inserção de um
elemento importante da cultura Nasa no trabalho, o chumbe. O símbolo do chumbe, como
uma construção tecida durante a gestação é muito poderoso: o TCC de Joyce foi gestado,
elaborado com muito carinho. Seu TCC era um projeto de vida para ela e, assim, embora
Joyce não tenha podido tecer um chumbe para o trabalho, conseguiu um pedaço de seu
chumbe e o inseriu como marca d’água nas páginas do trabalho. A imagem ao fundo da
página é muito mais do que uma simples figura, pois remete às práticas de elaboração de algo
de grande relevância em sua comunidade indígena de origem: projetar o futuro da criança que
chega; neste caso, o TCC.
Josué mais uma vez constrói uma identidade positiva para Joyce, ao narrar com
muita alegria as transformações que provocavam no texto: “muito lindo”, “que legal colocar
nele tal coisa”, “essas são as alegrias”, ou seja, a vitória em conseguir “dar cor” à voz de
Joyce. Em sua fala, Josué caracteriza que o mais importante no processo é que Joyce possa
dizer o que quer: “que esteja o que você queira dizer, que é o mais importante”. Assim, os
dois escolhiam as lutas que travariam – “tivemos uma briga, uma briga mas simplesinha,
pequenininha e muito linda” – na instituição para alcançar seu objetivo. Após uma negociação

184
Tradução: “Como se supõe que é um texto acadêmico, que vai ser publicado, então a gente tem que responder a esses
requisitos, entende? Tivemos uma briga, uma briga mas simplesinha, pequenininha e muito linda. Ela tem em sua cultura
tem uma faixa que se chama chumbe. Um chumbe, isso é uma coisa muito linda, um chumbe é uma faixa que elas usam
em cerimônias, e um chumbe é uma coisa tecida que os pais fazem quando a criança nasce. Então no chumbe estão todos
os sonhos, tudo o que se prepara (...) Então, não te digo que aprendi uma montão de coisas. Então, claro, ela trouxe seu
chumbe e eu lhe disse, em algum momento não sei por que “escute, Joyce, como, como tu vais dar cor a teu trabalho? Do
que tu és?” (...) que legal colocar nele tal coisa, inclusive, eu acho que vai sair um chumbe dela mesma, vai fazer um
chumbe do, porque ela sabe tecer, vai fazer um chumbe do processo de escrita e do trabalho, mas o tempo não dava, então
pegou um pedaço de seu chumbe e o colocou como marca d’água em seu trabalho. É dos únicos, por aí há outro, mas é
dos únicos trabalhos que têm uma diferençazinha. Estas são as alegrias porque nós vamos brigar por isto, como há um
aqui um filtro que diz que isso é acadêmico, trinta e cinco folhas e não pode ser nada mais, e briga e briga. (...) nós não
vamos discutir mas garantamos que isto esteja com os elementos, que esteja o que você queira dizer, que é o mais
importante, e se conseguimos fazer alguma outra coisa serve. Quando me disse que o do chumbe tinha sido aprovado,
muito lindo! Ela acolheu isso. Mas era o que eu te dizia, ela experimentava essas coisas”.
208

com a Faculdade, Josué e Joyce conseguiram que fosse permitida a impressão do chumbe
como pano de fundo nas páginas do trabalho, conforme Figura 4.
A relação de orientação entre eles é retratada como uma parceria, com o propósito
de encontrar um espaço para a voz da estudante nessa zona de contato, a prática de letramento
do TCC. Um elemento muito relevante que emerge na narrativa de Josué é sua preocupação
em promover a autoria de Joyce neste processo, dar uma cor local ao trabalho.
A discussão de César (2011) amplia a noção de autoria, ao analisar a experiência
de indígenas Pataxós quando das comemorações dos 500 anos de “descubrimento”. A autora
propõe compreender a autoria indígena em relação aos movimentos de enfrentamento, que se
façam explícitos, à ordem que pretende ser hegemônica. Com base nessa análise, César
(2011) define a construção de autoria ou movimentos de autoria como:

por construção de autoria ou movimentos de autoria defino as práticas


discursivas que permitem deslocar posições historicamente determinadas.
Entendendo as práticas discursivas como práticas sociais, a construção de
autoria são movimentos ou percursos próprios, na maioria das vezes
invisibilizados, com que os sujeitos enfrentam a ordem estabelecida. Com
efeito, se, em cada domínio social, há mecanismos de controle da palavra
que definem os que podem falar (falar, ler, escrever) e os que não podem, os
que são e os que não podem ser autores, esses mecanismos, no entanto, são
contraditoriamente apropriados, ou negados por minúsculas ações do
universo cotidiano, pela ação crítica ou enfrentamento visível da ordem
instituída, exercidos pelos sujeitos que compõem as instituições (CÉSAR,
2011, p. 17).

Nessa perspectiva, pensar a construção da autoria na universidade nos exige


pensar que esse processo está eivado de ações subversivas, constituídas por aqueles que são
definidos pela lógica da colonialidade do saber (QUIJANO, 2005) como aqueles que não
poderiam falar e, logo, nem poderiam ser autores. Ao abordar como Joyce inseriu sua marca
no seu trabalho e, para isso, rompeu, com esse pequeno gesto, as normas de formatação do
TCC, mostramos os movimentos de autoria que ela estabeleceu com seu orientador para poder
construir sua voz no texto acadêmico.
Outra marca de autoria pode ser vista na sessão de agradecimentos da estudante.
Ao assumirmos a construção da autoria de César (2011), a ação de Joyce ao trazer as vozes de
cosmovisões indígenas para agradecer sua experiência de construção de conhecimento na
universidade pode ser vista como um movimento autoral. Quando ela dirige o primeiro
agradecimento aos seus “espíritos da mãe Terra”, abre o horizonte a outras expectativas
religiosas e de compreensão do saber, e dessa forma visibiliza formas de ver o mundo de
tradição indígena, ao mesmo tempo em que rompe com a ordem estabelecida.
209

AGRADECIMENTOS
Acknowledgments
As always, I owe a special debt of gratitude to all my spirits of the mother Earth
who have guided me to fight for my dream against difficulties. Also, I would like
giving my heartfelt appreciation to my family, especially my mom, CL, who
believes in me and always supports me to study185.
Special thanks also JCG for his usual unfailing patience, help, suggestion and
professional advice during entire process. I know that there are not words to
thank and appreciate his teachings and explanations which were really useful for
me as a person and as a professional teacher.
I am greatly indebted to the Family NT for its kindness and for welcoming
hospitality, especially Mr. CN who shared all his wisdom with me. My thanks go
to the Chamí Community, the students, and especially to the teachers, G, Y, G and
V, for their company and encouragement.
Above all, my gratitude goes to all my teachers who devoted their time to show
me how to face the challenges and to enjoy the beauty and the responsibility of
being a teacher; special thanks to the research group, Diverser, for
complementing my education.

Nessa seção, Joyce agradece a pessoas e entidades que, com esta ação, torna
relevantes em sua formação acadêmica, entre eles os “espíritos da mãe Terra”, sua família,
seu orientador, seu grupo de pesquisa e a comunidade na qual realizou seu estágio docente.
Nessa seção, Joyce também se posiciona como professora, caracterizando a profissão como
desafiadora, bela e de responsabilidade (“como enfrentar os desafios e apreciar a beleza e a
responsabilidade de ser professora”). Sua ruptura reside na seleção daqueles a quem presta os
agradecimentos ao invocar referências de cosmovisões indígenas como parte de sua realização
do TCC (“que me guiou a lutar por meus sonhos contra as dificuldades”).
Outro aspecto importante do trabalho é o fato de ser escrito em primeira pessoa.
Nas convenções acadêmicas da Faculdade, há uma orientação para o uso de uma escrita
impessoal, que privilegia o uso da terceira pessoa. Contudo, Joyce rompe com essa norma e se
enuncia em um “eu” que se expõe, ao falar de sua experiência em sala de aula, entrelaçada às
lacunas na discussão bilíngue que observou nos documentos oficiais e pontuando sua
preocupação com o ensino de língua adicional em escolas indígenas. Como ela indica ao falar
do objetivo de seu trabalho:

Excerto 12 - "Yo quería transformar la clase de inglés"


Teniendo en cuenta esas desarticulaciones, yo pensé en generar condiciones y
espacios para que los estudiantes sean capaces de utilizar los tres idiomas para
expresar sus sentimientos, compartir su cultura y acercarse a otras
comunidades. Yo quería transformar la clase de inglés un poquito y darle a ella

185
Tradução: “Como sempre, tenho uma dívida especial de gratidão com todos os meus espíritos da mãe Terra, quem me
guiou para lutar por meu sonho contra as dificuldades”.
210

algo de color local.186 (Joyce, estudante indígena colombiana, Lic. em Línguas


Estrangeiras-UPP, entrevista de 13 de dezembro de 2013)

Ao reconstruir a relevância de seu trabalho, pontua a falta de articulação entre


política institucional e demandas das escolas indígenas. A essa lacuna, ela opõe o lugar
escolar como um espaço de formação para o diálogo com o outro: “eu pensei em criar
condições e espaços para que os estudantes fossem capazes de utilizar os três idiomas para
expressar seus sentimentos, compartilhar sua cultura e aproximar-se de outras comunidades”.
O discurso de Joyce é marcado por uma agência, decorrente das ações que ela desenvolve na
sua narrativa de análise, escolha, elaboração e transformação. Como resultado, ela explicita
sua hipótese para o ensino de inglês como terceira língua: para ela, ao ensinar inglês para falar
do próprio, poderia tratar a identidade indígena de uma forma afirmativa: “eu queria
transformar a aula de inglês um pouquinho e dar a ela algo de cor local”.
A proposta didática da estudante, ao buscar romper com discursos que valorizam
o inglês em detrimento das línguas maternas, revela indícios de subversão das relações de
poder estabelecidas na geopolítica do conhecimento e linguística. Para isso, dialoga com áreas
como a pedagogia intercultural crítica. Esse movimento também deixa marcas em sua
bibliografia, na qual a estudante mostra a articulação de referências de outras áreas, como os
estudos descoloniais e as epistemologias do “Sul”. Essas mudanças nos modos de dizer –
mobilizando outros discursos e referências –, quanto nos modos de fazer – com a ruptura
criada com sua experiência do estágio docente – abrem brechas para ela construir pequenas
alterações nas práticas de letramento acadêmico.
A próxima trajetória apresenta um cenário diferente dos três anteriores no que
tange às exigências do TCC, e com isso propicia uma ruptura radical nos modos de dizer e
fazer em relação aos moldes tradicionais da elaboração de TCC, na pesquisa e no texto final.

Caso 4 – Valentina

 Trajetória

Valentina nasceu em Medellín, cidade na qual cursou a universidade. Seu pai veio
da região do litoral caribenho, e sua mãe da região do litoral pacífico. Eles migraram para a

186
Tradução: “Levando em conta essas desarticulações, eu pensei em criar condições e espaços para que os estudantes
fossem capazes de utilizar os três idiomas para expressar seus sentimentos, compartilhar sua cultura e aproximar-se de
outras comunidades. Eu queria transformar a aula de inglês um pouquinho e dar a ela algo de cor local”.
211

cidade para realizar formação tecnológica, onde se conheceram e se casaram. Valentina é a


mais velha de duas filhas do casal, e a primeira da família a concluir o ensino superior.
Seu ingresso na Universidade Pública Paisa foi pelo “programa especial para
negritudes”, no qual Valentina concorreu para o curso de Jornalismo. Antes, estudou em
escola pública e esteve durante um ano cursando uma tecnologia em mídias, no SENA
(formação tecnológica, similar ao SENAI no Brasil). Soube do ingresso especial por sua mãe,
após ser reprovada no primeiro vestibular. Com essa nova informação, decidiu tentar mais
uma vez; e, nesse novo exame, inscreveu-se pelo ingresso especial e passou. Comenta que não
teve dúvida em deixar o tecnológico e matricular-se no curso de graduação com que sonhava,
pelo qual expressou sua alegria, pois diz que se sentiu em afinidade com a comunicação social
desde a educação básica. Além disso, via o jornalismo como uma ferramenta de trabalho para
sua comunidade.
Segundo conta a estudante, foi apenas após alguns semestres na Universidade que
ela se aproximou de organizações afro-colombianas, mas desde o início do curso realizava
trabalhos sobre a população negra. Sua identificação com a comunidade negra aparece na
narrativa de Valentina como um laço afetivo, atribuído a sua mãe.

Excerto 13 - "la cultura de mi mamá"


empezando por la cultura de mi mamá, la cultura chocoana, ella siempre me
ha inculcado como eso, en casa siempre se ha escuchado que la chirimía, que
los alabados, cierto? Como … esa cultura del pacífico. Entonces siempre he
tenido mucha afinidad por conocer y por contar mis raíces y por contar esa
cultura negra ((hace un gesto como un abrazarse)). Entonces, cuando yo
ingresé acá en la Universidad, con periodismo, siempre traté de hacer
crónicas, reportajes, siempre como encaminado al tema afro187 (Valentina,
estudante afro-colombiana, Jornalismo-UPP, entrevista de 15 de janeiro de
2014)

A identidade negra construída por Valentina é atribuída às aprendizagens culturais


que teve em seu lar por sua mãe, que é retratada como o ator que vincula a estudante a essa
herança cultural, vinda do pacífico – “em casa sempre escutamos que a chirimia, que os
alabados [ritmos afro-colombianos], entende?” –, herança marcada em especial pela
linguagem musical. Esse laço a marcou positivamente, provocando sua curiosidade em

187
Tradução: “começando pela cultura de minha mãe, a cultura chocoana, ela sempre me inculcou isso, em casa sempre
escutamos que a chirimia, que os alabados [ritmos afro-colombianos], entende? Como... essa cultura do pacífico. Então,
sempre tive muita afinidade por conhecer e por contar minhas raízes e por contar essa cultura negra ((faz um gesto de
abraçar-se)). Então, quando eu ingressei aqui na Universidade, em jornalismo, sempre tratei de fazer crônicas,
reportagens, sempre como encaminhando para o tema afro”.
212

conhecer mais dessas práticas culturais, às quais se refere como “raízes” e “cultura negra”.
Chamamos a atenção para a relação indireta que a estudante constrói com a identidade negra:
herança mediada pela mãe. Porém, mesmo com esse laço indireto, ela trata de reiterar o afeto
e compromisso que possui com a população negra. O gesto corporal que Valentina realiza ao
mencionar o desejo de contar sobre a cultura de sua mãe – um abraço em si mesma – é mais
um indicador desse afeto que construiu pelas práticas ensinadas em sua casa.
Em seu discurso, o espaço da formação universitária é sempre meio, nunca
impedimento, para concretizar o desejo de dar voz à população afro-colombiana; desejo que
começa na adolescência. Nesse mesmo relato, vincula o jornalismo como um meio para
realizar seu desejo: “então, quando eu ingressei aqui na Universidade, em jornalismo, sempre
tratei de fazer crônicas, reportagens, sempre como encaminhando para o tema afro”. Valentina
constrói, ao longo da entrevista, duas identificações muito fortes: uma com a comunidade
negra, herdada de sua mãe, e outra com o jornalismo:

Excerto 14 – Vocação profissional


Cuando yo salí del colegio pues siempre he tenido afinidad por el periodismo
y la comunicación social, entonces me presenté por primera vez a la
universidad por medio de los cupos de acciones afirmativas y la primera vez no
pasé, entonces ingresé a un instituto que se llama Politécnico Central a
estudiar producción de televisión. Entonces cuando ya se acabó este primer
semestre me volví a presentar en primer opción a periodismo, y pasé.
Entonces ya dejé el curso allá y me vine a estudiar periodismo acá188
(Valentina, estudante afro-colombiana, Jornalismo-UPP, entrevista de 15 de
janeiro de 2014)

Quando Valentina destaca, em sua trajetória, como criou alternativas outras


quando não passou no primeiro vestibular, como buscar uma opção tecnológica próxima do
seu curso, constrói uma identidade de um sujeito que planeja, luta por seus sonhos e gera
meios de realizá-los, destacando seu papel de agente em sua trajetória. Outro aspecto
importante é sua visão sobre o jornalismo: ela o elabora como uma ferramenta de trabalho por
sua comunidade de origem. Dessa forma, para a realização de seu TCC explicou que não teve
dúvidas em escolher alguma opção que lhe permitisse estabelecer relação com os afro-

188
Tradução: “Quando eu saí do colégio, bem, sempre tive afinidade pelo jornalismo e pela comunicação social, então me
apresentei pela primeira vez à universidade por meio das vagas de ações afirmativas, e a primeira vez não passei, então
ingressei em um instituto que se chama Politécnico Central para estudar produção de televisão. Então quando acabou o
primeiro semestre eu voltei a me apresentar em primeira opção para o jornalismo e passei. Então já deixei o curso lá e vim
estudar jornalismo aqui”.
213

colombianos. Valentina contou também que tinha muito interesse na criação de uma empresa
jornalística, e por isso decidiu aliar essa opção de TCC ao tema afro.

 O TCC em análise
Seu curso oferecia muitas modalidades para realização do TCC. O mais
interessante dessa oferta era o fato de que as opções estavam relacionadas aos gêneros
discursivos da esfera profissional do jornalismo. Dentre elas, Valentina escolheu a criação de
uma empresa jornalística, pois esta lhe daria a oportunidade de construir uma revista digital, o
que ia ao encontro com seu sonho durante o curso.
Destacamos que este foi o único curso que ofereceu um amplo leque de opções de
gêneros discursivos para compor o TCC, todos vinculados à esfera laboral da estudante. Desse
modo, o curso de jornalismo da UPP se diferencia da experiência analisada por Tapia-Ladino
e Marinkovich (2013), no qual o TCC gerava certa dificuldade para os estudantes por não
manter uma relação com sua área profissional.
Outro elemento a destacar são as disciplinas que enfocam a escrita jornalística e
acadêmica, conforme mostramos no quadro 7:

Quadro 7 - Cursos do currículo orientados para a linguagem, em Jornalismo


Curso de Currículo TCC
graduação Quais disciplinas de leitura e/ou escrita são
(Carrera) oferecidas no programa do curso?
As possibilidades de realização do TCC
Composição espanhola (04 créd.) eram oferecidas com base nos gêneros
Reportagem e redação I-IV (04 créd.) da atuação profissional. Entre eles,
Linguagem e gêneros jornalísticos (04 créd.) estavam: i. Produção jornalística –
Jornalismo
Literatura (04 créd.) reportagens, crônicas, relatório especial;
UPP
Linguística (04 créd.) ii. Produção jornalística – perfis,
(08 semestres)
Trabalho de conclusão de curso (04 créd.) entrevistas, ensaio fotográfico, iii.
Práticas académicas (08 créd.) Sistematização de experiência; iv.
Proposta pedagógica; v. Criação de
empresas jornalística.

Ao eleger a opção de empreendedorismo, a estudante teve que realizar primeiro


uma pesquisa de opinião, para delinear o perfil da revista, para depois planejar e desenvolver
a revista. O texto que foi entregue para avaliação era composto por duas partes: a primeira, o
estudo de opinião com o planejamento da empresa, e a segunda, a revista digital completa.
Em sua descrição do TCC, Valentina descreveu várias etapas na realização do trabalho:
214

Excerto 15 - "uno hace el proyecto escrito"


Bueno, se supone que a la tesis es para desarrollarla en un semestre, pero eso
casi nunca se da, porque primero, bueno, en un semestre uno, hay un semestre
donde uno hace el proyecto escrito, donde dice qué es lo que quiere hacer,
cuáles son los objetivos, ¿cierto? Todo escrito. Ese proyecto se le pasa a un
comité y ellos aprueban o desaprueban el proyecto. Según si les faltan cosas se
les desaprueban, o si está muy bien lo aprueban. Cuando ya esté aprobado, ya
uno puede empezar a ejecutar el trabajo de grado. Entonces uno ya consigue
un asesor, que es una persona que sepa del tema y que va a estar
acompañando a uno en todo este proceso. Pero digo que casi nunca se da
porque la Facultad de Comunicaciones es muy flexible con los tiempos.
Entonces, por ejemplo, yo presenté mi proyecto el año pasado, en el dos mil
doce uno, en el dos mil doce dos, y me lo aprobaron el noviembre del dos mil
doce dos. Yo empecé a hacer el dos mil trece uno. Pero entonces como estaba
viendo otras materias y estaba trabajando entonces no le dedicaba el tiempo
que necesario. Entonces, sí, me demoré un año para terminarlo. Entonces, la
Facultad es muy flexible, porque si uno no termina puede cancelar la materia,
entonces uno tiene como tres posibilidades de cancelar, antes uno se relaja
mucho (…) Ah, bueno, ya luego, el asesor es quien evalúa a uno. Entonces él
le pone a uno la nota final. Pero ya luego vienen unas exposiciones con los
compañeros de la Facultad. Esas exposiciones es para estudiantes que hayan
sacado una nota de más de cuatro 4. Entonces es ahí donde uno explica189
(Valentina, estudante afro-colombiana, Jornalismo-UPP, entrevista de 15 de
janeiro de 2014)

Segundo Valentina, o trabalho iniciou-se com o desenvolvimento de um projeto


escrito, na disciplina de “Práticas académicas”. Esse projeto foi submetido a um Comitê do
seu curso com o fim de passar por uma avaliação, com sugestões de mudanças e revisões
desse plano inicial. Quando o projeto foi aprovado, ela pôde iniciar sua execução. Nessa etapa
do trabalho, a estudante reitera a temporalidade da instituição na aprovação dos projetos – “a
Faculdade de Comunicações é muito flexível com os tempos” – que dá uma impressão de ser
de certo modo excessiva para o desenvolvimento dos trabalhos.

189
Tradução: “Bom, se supõe que o TCC é para ser desenvolvido em um semestre, mas isso quase nunca acontece,
porque primeiro, bem, em um semestre a gente, há um semestre no qual a gente faz o projeto escrito, no qual diz o que é
que quer fazer, quais são os objetivos, entende? Tudo escrito. Esse projeto é passado a um comitê e eles aprovam ou
reprovam o projeto. Se faltam coisas neles ((os projetos)), os reprovam ou se está muito bem o aprovam. Quando for
aprovado, a gente já pode começar a executar o trabalho de conclusão de curso. Então a gente já consegue um orientador,
que é uma pessoa que saiba do tema e que vai acompanhar a gente em todo esse processo. Mas digo que quase nunca dá
porque a Faculdade de Comunicações é muito flexível com os tempos. Então, por exemplo, eu apresentei meu projeto no
ano passado, em dois mil e doze um, em dois mil e doze dois, e me aprovaram em novembro de dois mil e doze dois. Eu
comecei a fazer em dois mil e treze um. Mas então como estava vendo outras matérias e estava trabalhando então não me
dedicava o tempo que ((era)) necessário. Então, sim, demorei um ano para terminá-lo. Então, a Faculdade é muito
flexível, porque se a gente não termina pode cancelar a matéria, então a gente tem como três possibilidades de cancelar, e
isso faz com que fiquemos muito tranquilos (...) Ah, bom, logo depois, o orientador é quem avalia a gente. Então ele dá
para a gente a nota final. Mas logo depois há umas exposições com os colegas da Faculdade. Essas exposições são para
estudantes que tenham tirado uma nota maior que quatro. Então é aí onde a gente explica”.
215

O seguinte passo foi a escolha do orientador, definido por Valentina por ser uma
pessoa que sabia do tema e a acompanharia durante todo o processo. Após o trabalho ser
realizado, passou pela avaliação do orientador, que foi quem também deu a nota final.

Excerto 16 - A escolha do orientador


la idea del asesor es que también sea una persona que uno admire, con la que
uno se lleve bien, ¿cierto?, para no tener como inconvenientes en esa parte. Y
él siempre me había demostrado que, por ejemplo, cualquier duda que yo
tuviera él estaba ahí presente, porque hay unos asesores que sí lo dejan solo a
uno, pues por unas experiencias que uno conoce de otros compañeros.190
(Valentina, estudante afro-colombiana, Jornalismo-UPP, entrevista de 15 de
janeiro de 2014)

Entre os elementos que Valentina destaca está o fato de o orientador ser alguém
que a estudante admire, ou seja, alguém com tem tenha boa relação. Para isso, destaca que sua
experiência prévia com o professor foi determinante – “e ele sempre tinha me demonstrado
que, por exemplo, qualquer dúvida que eu tivesse ele estava ali presente”. Assim, sua eleição
parece ter sido definida considerando que esse docente, além de ajudá-la com a parte da
pesquisa de opinião e planejamento da empresa, era alguém que não a deixaria só, que seria
efetivamente um interlocutor sobre o trabalho. Além disso, mesmo que o docente não fosse
especialista no tema afro, ela destacou que já possuía uma rede social de pessoas que
poderiam colaborar com ela nessa dimensão do trabalho.
Essa rede social também é um indicador interessante da identidade positiva
construída por Valentina, já que a mostra como uma estudante com autonomia, segurança e
com uma identidade negra fortalecida. Para a apresentação pública, a faculdade organizou um
evento para que os estudantes que tiveram seu TCC aprovado com boa nota (que significa
nota acima de 4, num total de 5 pontos) o apresentassem frente à comunidade acadêmica –
evento no qual a estudante apresentou sua revista digital.
A narrativa de Valentina caracterizou o desenvolvimento do seu TCC como um
processo complexo e cheio de negociações, que requereu muito planejamento. Sua avaliação
nos faz ponderar um aspecto do letramento acadêmico: ainda que os gêneros discursivos
sejam do âmbito laboral e façam parte da formação, são complexos no processo de

190
Tradução: “A ideia do orientador é que também seja uma pessoa que a gente admire, com a qual a gente se dê bem,
entende? para não ter inconvenientes nessa parte. E ele sempre tinha me demonstrado que, por exemplo, qualquer dúvida
que eu tivesse ele estava ali presente, porque há outros orientadores que sim deixam a pessoa sozinha pois por algumas
experiências que a gente conhece as de outros colegas”.
216

aprendizagem dos estudantes. Logo, é importante que sejam contemplados na formação


acadêmica.
O TCC de Valentina, por nós analisado, foi uma revista digital. A revista Vive
Afro é uma empresa jornalística, cujo público-alvo seria a população afro-colombiana de
Medellín. Para sua criação, Valentina se inspirou em revistas como Ebony191, norte-
americana, e Raça192, brasileira. Com o título “Revista Vive Afro, viva tu mesmo”, Valentina
faz um chamado para que seu leitor “viva a si mesmo” por meio de sua revista, o que está
muito relacionado com seu propósito. Conforme apresenta Valentina, seu objetivo com a
criação da revista era produzir um espaço para apresentar experiências de vida na cidade de
Medellín a partir de perspectivas afro-colombianas.
É importante inserir esse objetivo no contexto da cidade de Medellín – berço da
cultura paisa. Nesse cenário, como apresentamos no terceiro capítulo, há um forte discurso de
valorização da branquitude de sua população local, em contraste com a mestiçagem negra e
indígena de outros estados (VIVEROS, 2013; SITO, no prelo). Dessa forma, a proposta de
Valentina emerge como um contra-discurso, ou um discurso anti-hegemônico (SANTOS,
2009), frente a esse discurso dominante de branqueamento da população paisa. Em termos
bakhtinianos, podemos afirmar que, com sua revista, Valentina busca gerar uma resposta a
partir de outro lugar social – assumindo uma voz social de grupo não-branco, caracterizado
como “afro” no contexto antioquenho, mobilizando, assim, forças centrífugas frente ao
discurso regional.
Além disso, o título de sua revista sinaliza para a presença de um discurso que se
descolou da identificação como “negra” e optou pela denominação “afro” – aproximando-se
das noções de “afro-colombianidade” e “afrodescendência”. Essa distância da palavra “negro”
ecoa os discursos do movimento “afro-colombiano” que, em especial após a “Conferencia
Santiago + 5 Contra el Racismo, la Xenofobia, la Discriminación y la Intolerancia”193,
intensificou as disputas pelos modos de autonomeação. Valentina passa a rejeitar a palavra
“negro” – por esta carregar sentidos de uma visão colonial, opressiva e desumanizadora no
seu contexto – e se vincula a uma identidade grupal que reivindica a história da diáspora
africana (HALL, 2003).

191
Disponível em: http://www.ebony.com/
192
Disponível em: http://racabrasil.uol.com.br/
193
A “Conferencia Santiago + 5 Contra el Racismo, la Xenofobia, la Discriminación y la Intolerancia” tinha o propósito
de revisar o Plano de Ação elaborado na Conferência de Durban (2001). Para mais informações, ver a publicação “Los
pueblos indígenas y afrodescendientes ante el nuevo milenio”. disponível em:
http://www.cinu.mx/minisitio/Afrodescendientes/Los%20pueblos%20ind%C3%ADgenas%20y%20afro.pdf
218

5.3. ...e depois vem os tropeços: deslocamentos e mistérios

As narrativas dos estudantes sobre suas experiências na universidade foram


marcadas por encontros, desencontros e reencontros com as práticas de letramento acadêmico.
Nessa dimensão dos deslocamentos, abordamos como os estudantes representam sua
trajetória, mostrando esse processo em dois eixos de sentido: o ir do familiar ao estranho –
referindo-se aos espaços do antes (como a comunidade, a família) e da entrada na
universidade (a comunidade universitária) –, e ir do estranho ao familiar – referindo-se ao
período de conclusão do curso – do agora –, explorando, em ambos eixos de sentido, as
identificações espaço-temporais dos eventos narrados.
Na dimensão da linguagem, discutimos dois eixos de sentidos relacionados aos
mistérios do letramento acadêmico: o carácter inescrutável das convenções da linguagem
acadêmica e a explicitação dos mistérios do letramento acadêmico no currículo. A partir
dessas duas dimensões, buscamos mostrar como se construíram as trajetórias de encontros e
desencontros dos estudantes no espaço-tempo da universidade e com as práticas de letramento
acadêmico. Ao observar seus depoimentos, encontramos narrativas de sucesso, registrando
não só os traumas, deslocamentos e mistérios que tiveram de enfrentar no seu percurso na
universidade, mas também suas estratégias criadas para ter êxito na sua graduação.
Os movimentos que se refletem no discurso revelam rupturas e reconstruções
identitárias dos interlocutores, assim como suas apropriações de práticas sociais daquela que,
para eles, era uma nova esfera. Nosso enfoque nos movimentos discursivos está alinhado às
perspectivas identitárias dos Estudos Culturais, para os quais a identidade é um processo de
(re)construção fluido e contraditório. Nas palavras de Hall (2005), a identidade

torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente


em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos
sistemas culturais que nos rodeiam (HALL, 1987). É definida
historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades
diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao
redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias,
empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações
estão sendo continuamente deslocadas (HALL, 2005, p. 13).

Essa concepção do autor rompe com as perspectivas de identidade como uma


“essência” ou uma postura “fixa” dos sujeitos, de um viés inclusive biológico. Para Hall
(2005), com as contribuições de estudos das ciências sociais, a identidade não deve ser vista
como “ser”, senão como um “estar”, um “construir-se”. Ao assumir essa visão, concebemos
219

que esses processos de construção identitária implicam deslocamentos e contradições, que


podem ser abordados no seu lócus de ocorrência: as práticas discursivas. Nessa conexão entre
identidade e linguagem, em diálogo com o contexto socio-histórico, a construção identitária
pode ser observada também na interação.
Maher (1998), ao estudar a constituição identitária indígena, demonstra como é
justamente “em suas práticas discursivas que o sujeito índio [e negro] emerge e é revelado: é,
principalmente, no uso da linguagem que as pessoas constroem e projetam suas identidades”
(p. 117).
Isso não significa que há uma liberdade infinita na projeção de identidades. Como
nos adverte Silva (2014), as fronteiras identitárias194 construídas nas ações de categorizar,
hierarquizar e naturalizar mostram como o processo de construção identitária envolve relações
de poder. Como o autor ainda argumenta, a relação entre identidade e diferença é permeada
por relações de poder, logo “a afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem
o desejo dos diferentes grupos sociais, assimetricamente situados, de garantir o acesso
privilegiado aos bens sociais. A identidade e a diferença estão, pois em estreita conexão com
relações de poder” (p. 81).
Ancoradas nesse pressuposto teórico, vamos examinar nas entrevistas como os
estudantes universitários representam suas trajetórias na universidade, como posicionam a si
mesmos em relação à universidade, e como posicionam a universidade em relação a si,
estabelecendo relações de identificação, estranhamento e familiaridade.

5.3.1. Tornando familiar o estranho: trajetórias de (des)encontros no espaço-tempo da


universidade

O ingresso dos estudantes na universidade é marcado pela distância: o espaço é


representado como um universo novo no qual os estudantes se sentem estrangeiros. As marcas
desse trânsito entre um “antes” e um “depois” são retratadas em dêiticos como “aqui” ou
“agora”, na descrição de momentos chaves que opõem um momento inicial ao atual, e em

194
Essas oposições hierarquizadas são discutidas por Silva (2014), ao analisar a relação entre diferença e identidade e
questionar a normalidade. O autor explica que “fixar uma determinada identidade como a norma é uma das formas
privilegiadas de hierarquização das identidades e das diferenças. A normalização é um dos processos mais sutis pelos
quais o poder se manifesta no campo da identidade e da diferença” (p. 83). Dessa maneira, ele destaca que o processo de
tornar uma identidade “normal” é arbitrário e pressupõe um parâmetro para regular e hierarquizar as demais identidades.
220

eventos que chamaremos de “divisores de águas”. Esses índices caracterizam os movimentos


de mudança espaço-temporal dos sujeitos, assim como os sentimentos associados a eles.

“O mundo novo”: do familiar ao estranho

Neste primeiro eixo temático, destacamos as narrativas marcadas por sentimentos


de ansiedade, como susto, traumas e medos, que provocam uma sensação de não
pertencimento ao espaço universitário. Dessa forma, o ingresso na Universidade é narrado
como um momento de muita tensão, tanto pela chegada a um novo espaço, quanto pelas
mudanças na organização do tempo que são requeridas pelas novas rotinas.
Flávia, estudante de Ciências Sociais da Universidade Pública Gaúcha, caracteriza
seu ingresso como um “tumulto”:

Excerto 17 – “um mundo novo”


“Foi um tumulto. Foi um tumulto assim em diferentes sentidos. Um
tumulto por um mundo novo estar se abrindo, estar se apresentando assim
ao meu alcance. Ãh, um mundo novo que eu não compartilhava, então me
deixou muito assustada, né? Um mundo novo por eu estar encontrando
pessoas que não eram como eu, ãh, em vários sentidos em termos de
questões sociais, em termos de cor e em termos de vivências também, não
eram pessoas que viviam no meu bairro.” (Flávia, estudante afro-brasileira,
Ciências Sociais-UPG, entrevista de 24 de setembro de 2013)

A sensação de “tumulto” reiterada por Flávia de modo enfático – ela repete três
vezes a palavra – é atribuída pela estudante ao “mundo novo”, um mundo que não era
compartilhado por ela previamente, mas que passou a estar ao seu alcance. Os sentidos de
tumulto são relacionados, no depoimento, com um grande movimento de pessoas e ruídos,
desordem, inquietação e embates; além disso, são associados pela estudante a esse trânsito de
chegada a um mundo novo – à educação superior. Assim, sua narrativa marca o ingresso ao
novo espaço como uma experiência que lhe provocou susto (“me deixou muito assustada”) e
estranhamento (“pessoas que não eram como eu”, “não eram pessoas que viviam no meu
bairro”). Flávia reconstrói um deslocamento entre o espaço do antes – marcado no “bairro” –
e o novo espaço – a universidade –, caracterizado por sobressaltos; vistos nos sentimentos de
susto e estranhamento relatados, que foram atribuídos ao fato de ela sentir-se muito distante
das pessoas desse lugar recém-conhecido.
221

Flávia percebe diferenças em relação à classe social (“questões sociais”), e


também em relação à identidade étnico-racial (“cor”) e às trajetórias (“vivências”). Desse
modo, a estudante posiciona a nova instituição como um espaço estranho, seja pelos novos
colegas, descritos como pessoas diferentes daquelas que conhecia em seu bairro, seja pelo
novo território, o próprio campus e as aulas. Esse estranhamento é descrito como um
motivador de sentimentos de inquietação e embates na estudante, o que aparece relacionado
com o fato de o novo espaço ser representado como a negação do seu mundo prévio e das
redes sociais que havia construído até o momento: é um espaço do qual não compartilha,
onde não há pessoas como a estudante, e não há pessoas como as de seu bairro – o espaço
familiar. Dessa forma, a trajetória de Flávia de ingresso nesse novo mundo aparece marcada
por uma experiência de solidão, estranhamento e negação de si.
A sensação de trauma na chegada a este novo espaço também está presente na
narrativa de outros estudantes entrevistados. A apreciação da estudante sobre a chegada à
universidade é construída como um deslocamento traumatizante de um espaço familiar para
esse “mundo novo”, recriado em imagens de tumultos, traumas, sustos e embates gerados pela
incompreensão dos modos de dizer e fazer nesse novo espaço, assim como pela solidão e pelo
medo. Ademais, esse deslocamento de um espaço familiar para o novo espaço foi
caracterizado pela negação: “não entendia nada, nada, nada, nada, nada” (Joyce). Essa
ausência de familiaridade – seja com os sujeitos desse novo cenário, seja com seus modos de
dizer e fazer – acaba lhes provocando receio e temor.
Mas esses sentimentos vão diminuindo à medida que os estudantes conhecem
pessoas e participam mais das atividades na instituição. No próximo eixo de sentidos,
salientaremos como os estudantes respondem a esse momento inicial no percurso de suas
trajetórias acadêmicas, tornando esse espaço universitário, no princípio alheio, em um espaço
próprio.

“A peleja”: do estranho ao familiar

Neste eixo, analisaremos como os estudantes narram o processo de tornar a


universidade um espaço seu, ou seja, como se apropriam das práticas desse espaço visto como
alheio. Em suas narrativas de inserção no espaço universitário, os estudantes inicialmente
foram construindo uma identidade de graduando exitoso, legitimada pela etapa de conclusão
do curso em que se encontravam. Desse modo, durante a análise, nossa interrogação era sobre
222

como os estudantes construiriam narrativas de sucesso ao contar suas trajetórias


universitárias?
O divisor de águas que marcou esse período está situado no processo de “reviver”:
a transição entre estar em um espaço que se mostrou tão hostil em suas chegadas –
desconhecido, tumultuado e amedrontador – para outro que lhes forneceu as “ferramentas”
para realizarem suas metas, as quais mais do que profissionais eram verdadeiros projetos de
vida. A narrativa de Joyce, estudante da Licenciatura em Línguas Estrangeiras-UPG, ilustra
como esse processo de apropriar-se das práticas da universidade é repleto de lutas:

Excerto 18 - “tengo unas herramientas”


Ahorita me siento bien porque me dejaron hacer una cosa que yo quería,
entonces eso me tiene muy contenta, y ahora sí siento que la universidad
me preparó a mí para lo que yo iba hacer, tengo unas herramientas. No me
voy a decir que tengo todas, pues, pero sí tengo unas que si yo no peleo por
lo que yo quería hacer en la universidad no hubiera tenido esas
herramientas para trabajar en mi comunidad ahora. Entonces eso me da
mucha / me da mucha alegría, porque ahora sí siento que voy a aportar a
mi comunidad, siento que puedo ayudar ahora sí, y eso me siento bien, en
esa parte ya me siento bien.195 (Joyce, estudante indígena colombiana, Lic.
em Línguas Estrangeiras-UPP, entrevista de 13 de dezembro de 2013)

Joyce retrata o “agora” como um momento em que está “muito contente”, por
estar preparada e com algumas ferramentas para concretizar seu desejo de contribuir para sua
comunidade e ajudá-la com seus conhecimentos. Ao contrário do espaço-tempo do ingresso,
em que a universidade representava ausência e medo, nesse momento final do curso, a
instituição aparece como um espaço formativo que serviu a seus propósitos: “agora sim sinto
que a universidade me preparou para o que eu ia fazer, tenho algumas ferramentas”. O
“agora” é marcado pela assertividade, pela positividade, pela concretude dos desejos. Mas
esse processo teve uma condição, a luta de Joyce: “se eu não luto pelo que eu queria fazer na
universidade, não teria tido essas ferramentas para trabalhar em minha comunidade agora” –
referindo-se à controvérsia que gerou na instituição sua solicitação para realizar o estágio de
língua estrangeira em uma comunidade indígena bilíngue (contexto similar ao que desejava

195
Tradução: “Nesse exato momento me sinto bem porque me deixaram fazer uma coisa que eu queria, então isso me
deixou muito contente, e agora sim sinto que a universidade me preparou para o que eu ia fazer, tenho algumas
ferramentas. Não vou dizer que tenho todas, ora, mas sim tenho algumas que, se eu não luto pelo que eu queria fazer na
universidade, não teria tido essas ferramentas para trabalhar em minha comunidade agora. Então isso me dá muita / me dá
muita alegria, porque agora sim sinto que vou contribuir para minha comunidade, sinto que posso ajudar, agora sim, e
nisso me sinto bem, nessa parte já me sinto bem.”
223

para seu futuro profissional) fora da capital, que a princípio não foi permitido pela
Universidade.
A narrativa de Joyce é construída por uma oposição temporal que marca
deslocamentos em sua identificação com o espaço. Paralelamente, sua imagem passa de uma
pessoa que, na sua chegada à universidade, era caracterizada como alguém resignado –
amedrontado e principiante –, à de uma pessoa que escolhe, planeja, luta e vence. No “agora”,
sua trajetória resulta em sucesso de lutas e batalhas que precisou travar na instituição para
concretizar seu propósito: ter algumas “ferramentas” para dar aulas de inglês em sua
comunidade Nasa. Assim, as ferramentas necessárias não foram “dadas” pela instituição, mas
pelejadas, ou seja, obtidas com enorme esforço (“mas sim tenho algumas que, se seu não
luto”). Assim, a batalha por realizar o que desejava antes mesmo de ingressar na universidade
implicou esforço, ganhos e perdas.
Seu êxito se expressa nesse processo intenso que vivenciou de aprender a
flexibilizar as regras do curso na universidade em prol de seus objetivos, que se mantiveram
vinculados a sua comunidade de origem: “vou contribuir para minha comunidade, sinto que
posso ajudar”. Na narrativa sobre sua trajetória de letramento, essas lutas resultaram em uma
mudança tanto no posicionamento de Joyce – de paciente a agente –, quanto na percepção da
própria universidade – de um espaço amedrontador e traumático a um espaço conhecido que
lhe promove bem-estar: “nesse exato momento me sinto bem”.
Os reposicionamentos na representação que os estudantes fazem de si e da
instituição revelam indícios dos movimentos de apropriação das práticas de letramento
acadêmico que são realizados por eles, assim como suas formas de interpretá-los. Esse
processo – sentir-se parte do novo espaço ao qual passam a acessar – é descrito como algo que
requer tempo e estratégia. No relato de Joyce, a seguir, ela também comenta que sentiu essa
transição apenas no sexto semestre da graduação:

Excerto 19 - “por ahí en el sexto”


En ese entonces estaba por ahí, umm, por ahí en el sexto. En el sexto, por
eso le digo desde ahí uno empieza a ensayar más conexiones y a entender
como lo suyo y ahí fue cuando yo empecé, pero ahí fueron las épocas
mejores, uno sentía como una calidad humana pues de profesores, muy
buenos196 (Joyce, estudante indígena colombiana, Lic. em Línguas
Estrangeiras-UPP, entrevista de 13 de dezembro de 2013)

196
Tradução: “Nessa época estava por aí, hum, por aí no sexto. No sexto ((semestre)), por isso lhe digo desde então a
gente começa a ensaiar mais conexões e a entender mais suas próprias coisas e aí foi quando eu comecei, e aí foram as
melhores épocas, a gente sentia como uma qualidade humana por parte dos professores, muito bons”
224

Nesse momento, a narrativa de Joyce começa a construir o espaço-tempo do


reviver, com a transformação da universidade em um espaço familiar. Esse novo período é
descrito como um tempo no qual ela começa a “ensaiar mais conexões” e “entender mais suas
próprias coisas”, o que resulta em um sentimento de que foram as “melhores épocas”. Nesse
novo momento, Joyce se descreve como alguém que sente a universidade como sua, sente-se
parte dela. Sua transformação se dá tanto em relação aos conhecimentos (mais conexões),
quanto em relação ao espaço e aos discursos (passa a entender sua área); como ela destaca,
inclusive a relação com os professores muda. No marco temporal de sua narrativa, foi após
seis semestres que a universidade começou a deslocar-se de um espaço hostil e amedrontador
para um espaço mais humano; mudança que é marcada por uma sensação de pertencimento e
por uma melhor interação com os docentes – “a gente sentia como uma qualidade humana por
parte dos professores, muito bons”.
No contexto brasileiro, a passagem do tempo também aparece como um aspecto
relevante na apropriação das práticas de letramento acadêmico. Em entrevista com Flávia, a
estudante de Ciências Sociais ilustra esse aspecto.

Excerto 20 - “já estou mais imersa nesse universo”


Luanda Tu acha que os modos que tu lê e escreve ajudam ou atrapalham
também a tu desenvolver tuas tarefas acadêmicas?
Flávia O modo de eu ler e escrever ... no início sim, agora já não mais.
Luanda No início atrapalhava ou ajudava?
Flávia No início atrapalhava, porque eu precisava me apropriar desse
conhecimento acadêmico que eu não tinha, precisava me
aproximar dele, de- agora eu já estou mais imersa nesse
universo e eu já estou lançando mão das armas que ele tem,
então eu dialogo com aquilo que ele deixa ali disponível para os
pesquisadores, para os estudantes, para os professores, então
agora eu consigo sentir uma relação um pouco mais próxima,
mais simétrica, e o meu progresso no curso se reflete muito na
relação que eu tenho com os professores” (Flávia, estudante
afro-brasileira, Ciências Sociais-UPG, entrevista de 24 de
setembro de 2013)

Ao relembrar as práticas de leitura e escrita que trazia do ensino médio, a


estudante as caracteriza como uma forma de fazer que “no início atrapalhava”, mas depois de
imergir nas práticas da universidade seus modos de ler e escrever anteriores já deixaram de
interferir: “agora eu já estou mais imersa nesse universo”. Quando Flávia se refere à imersão,
caracteriza sua apropriação como um processo gradual, que vivenciou ao longo de sua
trajetória universitária, o qual resultou em uma maior familiaridade com as formas de dizer e
225

fazer da instituição universitária. Em seu relato, sua trajetória de graduanda exitosa culminou
ao desvendar alguns dos mistérios estabelecidos na universidade.
No relato de sua trajetória, Flávia também situa essa mudança entre um “antes” –
cheio de tumulto pelo ingresso no “novo mundo” – e um “depois” – no qual a estudante
reconhece as práticas acadêmicas e aprende como lidar com elas. Flávia descreve um percurso
que implicou batalhar para que, no “agora” do final do curso, ela pudesse dialogar “com o que
está disponível”, referindo-se aos conhecimentos que construiu nas diferentes disciplinas do
curso. Ao utilizar seu conhecimento de diferentes disciplinas para os trabalhos finais, ela
expressa que consegue “sentir uma relação um pouco mais próxima, mais simétrica” com os
professores.
Dessa forma, Flávia, que antes se caracterizava como uma caloura assustada
(conforme excerto 17), ao final da trajetória universitária passa a descrever-se como uma
estudante que domina as disciplinas e estabelece relações mais simétricas com seus docentes,
revelando-se uma agente em sua trajetória. Além disso, a simetria a que se refere é construída
como um espaço real de interlocução: pois agora “eu entendo o que eles falam e eles
entendem o que eu falo”. Por fim, Flávia projeta esse processo de intercompreensão com os
docentes como um indicador de sua apropriação das práticas desse espaço que antes era um
“mundo novo”.
As narrativas de Joyce e Flávia ilustram esse processo de apropriação das práticas
de letramento acadêmico, caracterizado por ambas as estudantes como um movimento de
compreender os modos de dizer, as práticas discursivas, da instituição. Nesses relatos, um dos
resultados da mudança que as estudantes destacam é o fato de passarem a ser interlocutoras
dos sujeitos mais experientes nesse espaço, os docentes. O ato de narrar suas trajetórias as
reconstrói, pondo em cena suas próprias interpretações desse percurso de mudanças. Como
destaca Vóvio (2007), ao analisar trajetórias de professoras alfabetizadoras:

lançar mão da narrativa de experiência pessoal para produzir suas respostas


coloca-se a favor da explicitação tanto do caráter dessa representação, a de
um processo vivido, como de posicionamentos que significam esse processo
– passar de uma posição particular na escala social e cultural a outra – e a de
produção de táticas que driblam as condições desfavoráveis a que estavam
submetidos. Podem auto-analisar-se, rever seus atos, comportamentos,
interpretar situações vividas e, nessas ações de linguagem, objetivam a
própria história de leitores e as relações que estabeleceram ao praticarem a
leitura (Brunes, 1997). Fortalecem essa perspectiva analítica as reflexões de
Bakhtin (2003) sobre a criação estética na elaboração da autobiografia ou
biografia. ‘é o outro possível que se infiltrou na nossa consciência e
frequentemente dirige os nossos atos, apreciações, nossa visão de nós
226

mesmos, do nosso eu para si; é o outro na consciência’ (Bakhtin, 2003, p.


140) (VÓVIO, 2007, p. 166).

Nesse movimento autobiográfico das estudantes, a chegada à universidade foi


representada como uma ruptura entre esse espaço do “antes” na comunidade – espaço familiar
ou do bairro, acolhedor e da emergência dos desejos, tempo feliz – e um “depois”, com o
ingresso na universidade – espaço alheio, assustador, tempo de insegurança. Mas, após algum
tempo, esse espaço começou a ser transformado em familiar, quando as estudantes vão
revelando indícios de que constroem uma relação de pertencimento com a instituição. Além
disso, nos depoimentos analisados, vemos indícios de aspectos que afetam o momento dessa
transição do ensino básico para o superior, similares aos descritos por Almeida e Soares
(2004), em especial no âmbito do desenvolvimento psicossocial no processo de transição e
adaptação à universidade, aos quais poderíamos somar a dimensão da linguagem ao abordar
as práticas de letramento acadêmico, foco da próxima subseção.

5.3.2. Sentindo-se fora de lugar: as práticas veladas de letramento acadêmico

As práticas de leitura e escrita, pela forma na qual estão conectadas com seu
contexto sócio-histórico, conformam imaginários sociais que afetam as formas em que os
sujeitos se relacionam com os modos de usar a linguagem. No cenário acadêmico, o estudo de
Canagarajah (1997) descreve como, para seus estudantes afro-americanos, a prática da escrita
acadêmica representava um “atuar como branco”, o que provocava resistências na
apropriação das convenções dessa forma de escrita por parte dos estudantes. Além disso, os
conflitos também podem resultar da diferença entre concepções sobre a linguagem que os
estudantes possuem e aquelas das convenções acadêmicas, como discute Zavala (2010),
quando nos mostra como a chegada à universidade implica mais do que um estranhamento
com o espaço e com as formas de atuar nesse mundo novo por parte dos estudantes, já que
envolve a linguagem. Nesse sentido, entendemos que o processo de apropriar-se das práticas
da universidade traz consigo um estranhamento também nas formas de dizer, em especial nas
práticas de letramento acadêmico, tópico sobre o qual passamos a enfocar a análise das
trajetórias estudantis.
227

As convenções inescrutáveis: a Universidade velando seus mistérios

Adentrando na análise das trajetórias acadêmicas em nossa pesquisa, vemos que o


deslocamento dos estudantes de um “mundo novo” a um espaço familiar envolve também
cruzar fronteiras linguístico-enunciativo-discursivas, inclusive quando a língua materna dos
estudantes é a mesma língua oficial da instituição. Muitos dos conflitos que são narrados
pelos estudantes, em suas trajetórias estudantis, estão relacionados justamente ao não
reconhecimento das convenções que envolvem os modos de dizer da esfera acadêmica.
Nesse aspecto, o conceito de práticas institucionais do mistério (LILLIS, 1999)
contribui para esta pesquisa ao descrever essa forma de atuar que envolve um processo de
naturalizar as convenções da linguagem acadêmica ao ponto de invisibilizá-las, o que limita
muito a participação dos sujeitos menos familiarizados com as práticas universitárias da
educação superior. Nas narrativas estudantis investigadas, o estranhamento perante as
convenções das formas de dizer na universidade ocasionou muitos conflitos, os quais, em
grande parte, foram decorrentes das relações de poder que envolvem as interações entre
estudantes e docentes nesse espaço de formação.
Nesse debate, o foco está na instituição e suas práticas formativas. A discussão de
Calino (2005) e Pérez e Rincón (2013), por exemplo, no campo da alfabetização acadêmica,
trata justamente de refletir sobre modos de ensino que contemplem a dimensão escondida do
letramento acadêmico (STREET, 2010). Esses autores chamam a atenção para a relevância de
planificar o lugar da linguagem na formação universitária de qualquer área acadêmica, já que
a aprendizagem de um campo do conhecimento implica sempre uma apropriação de suas
práticas discursivas (SWALES; FEAK, 2012; FIAD, 2015).
Contudo, no processo de ensino-aprendizagem, as convenções das práticas do
letramento acadêmico muitas vezes são veladas pelos docentes, o que fica mais explícito em
momentos de conflitos, como nos narra Flávia, em especial nos espaços avaliativos. A
estudante detalha uma experiência que caracteriza como traumática, relacionada com os
mistérios da universidade: o conflito ocorreu em uma avaliação de uma de suas disciplinas no
curso de Ciências Sociais, chamada “Introdução ao pensamento sociológico”.

Excerto 21 - “Aluna que ia sempre bem”


“Mas era português, e era sociologia. E eu ficava pensando Meu Deus, eu
vejo sociologia em outras disciplinas e não é assim. O que que tá
acontecendo? Daí o que que aconteceu? Eu comecei a particularizar as
coisas, achando que era eu que não estava conseguindo acompanhar a
228

aula dela. Só que na verdade era uma turma inteira, né? Porque, o que que
ela, ela dava exemplos que não eram próximos a mim. Ela falava das
viagens dela, ela falava das experiências de outros alunos que já têm uma
proximidade com isso, com o tema do curso. Ah, porque é um parente que é,
ou algum conhecido, sabe, ou são / ou tem pais que já estão, já tem nível
superior, então de uma certa forma já passaram pelas ciências sociais.
Então, / e todas essas contribuições familiares, enfim, isso já ajuda na forma
de tu absorver o conteúdo. E isso era para mim totalmente alheio. E aí como
é que eu, eu sentia dificuldade de acompanhar realmente a aula dela por
toda essa, esses signos que eles compartilhavam e que não eram próximos a
mim. Além disso, a questão do português, que foi muito difícil, muito
difícil. Eu estudei num colégio, D. J.B., que é um dos colégios, um dos
melhores colégios aqui de Porto Alegre, de ensino médio ((público)) ... e,
assim, dentro de toda a questão do ensino público e tal, e das dificuldades,
eu sempre fui aquela aluna cdf, aplicadíssima, e vivia com os livros
debaixo / embaixo do braço, até para passear e tudo, a diversão era
estudar, sempre gostei muito de estudar, e me sinto muito realizada
estudando, e quero estudar para o resto da vida, porque eu adoro, e aí
então, mesmo tendo esse ensino público um pouco mais forte e diferenciado
dos outros colégios de ensino público, eu senti muita dificuldade” (Flávia,
estudante afro-brasileira, Ciências Sociais-UPG, entrevista de 24 de
setembro de 2013)

Em sua narrativa, Flávia ressalta que essa situação vivenciada por ela foi muito
marcante em sua trajetória, em especial porque se instaurou um conflito que pôs em xeque sua
identidade de “boa aluna”, muito valorizada pela estudante: “eu sempre fui aquela aluna CDF,
aplicadíssima, e vivia com os livros debaixo / embaixo do braço”. Flávia se descreve como
uma excelente aluna, e o advérbio “sempre” acentua a temporalidade contínua dessa
qualidade, reiterada nos adjetivos “CDF”, “aplicadíssima” e na imagem de quem vive com os
livros junto ao corpo.
Flávia retrata que havia uma incompreensão por sua parte sobre as atividades
propostas em aula, que ela atribui à distância que possuía dos referenciais mencionados pela
docente, quando justifica que por um lado, pela distância de sua experiência de vida – “ela ((a
docente)) dava exemplos que não eram próximos a mim”, e por outro, pela sua exclusão do
grupo dos “iniciados” – “esses signos que eles ((a docente e alguns colegas))
compartilhavam”. Sua descrição dessa experiência com a disciplina é construída por uma
série de características das práticas institucionais do mistério (LILLIS, 2003), que vão
identificando a docente como uma veladora dos mistérios do letramento acadêmico.
A incompreensão sobre as formas de dizer na esfera académica é atribuída, por
Flávia, aos pressupostos e saberes compartilhados pela docente com apenas um grupo de
229

colegas, os quais estavam ausentes na sua bagagem cultural. Além disso, explica que a
persistência dessas convenções inescrutáveis lhe provocava um sentimento de incapacidade
(“achando que era eu que não estava conseguindo acompanhar a aula dela.”), o qual passou a
ser reelaborado em sua avaliação, ao ponderar que era uma sensação compartilhada com
outros colegas: “só que na verdade era uma turma inteira, né?”. A narrativa da estudante
posiciona a docente como alguém que guarda os mistérios dos modos de fazer e de dizer da
instituição e que, com isso, torna-se pouco eficiente, colaborativa, para promover sua
aprendizagem. Essas ações de velar os mistérios são caracterizadas por Flávia como uma
prática que resulta, por um lado, em uma seleção de uns poucos estudantes mais próximos à
professora, e, por outro lado, em uma exclusão do restante do grupo, pelo descaso em
compartilhar com aqueles com quem não possui afinidades e relações – “Ela falava das
viagens dela, ela falava das experiências de outros alunos que já tem uma proximidade com
isso, com o tema do curso”.
Os conflitos narrados por Flávia ilustram experiências vividas por muitos
estudantes que são a primeira geração familiar a ingressar na universidade. A trajetória de
aprender a lidar com os mistérios das convenções da escrita e da leitura acadêmicas, assim
como de outros modos de fazer, nem sempre conta com uma aproximação amigável e
orientada. Muitas vezes os docentes auxiliam pouco na diminuição das lacunas entre seus
pressupostos sobre as convenções da linguagem acadêmica e aqueles trazidos pelos estudantes
(LILLIS, 2003; ZAVALA, 2011).
Flávia conta que, no final do curso, outra experiência a impactou negativamente: a
entrega dos trabalhos finais. Flávia narra uma cena na qual a docente foi entregando os
trabalhos a cada estudante na sala de aula de acordo com a ordem decrescente de suas notas,
em frente a outros colegas: “foi a base de choque, sinceramente, assim. Ela pegava, pedia pra
gente, dava os trabalhos ao longo do semestre, provas e tudo”. Flávia classifica essa conversa
com a professora como traumática, posicionando-se como alguém que foi exposta e sentiu sua
auto-imagem197 de ótima aluna ameaçada: “foi bem difícil, bastante traumatizante, porque
para mim eu era aquela aluna que ia sempre bem, e ali eu era aquela aluna D”. Flávia
descreve sua face de boa aluna no passado – era –, rememorando que naquela interação foi
assim avaliada pela docente. Segundo narra a estudante, era um trabalho complexo e muito
exigente para o qual ela se preparou:

197
Noção criada por E. Goffman para descrever a forma em que, nas interações, os sujeitos constroem representações de
si para o outro. Em geral, há um acordo tácito para construir representações positivas um do outro (a face), mas quando
posicionamos o outro de modo negativo, essa representação do sujeito passa a ser ameaçada.
230

Excerto 22 - “Vou jogar com as armas que eu tenho”


E aí então ela pediu esse trabalho de filosofia que era para fazer uma crítica
a um texto da Marilena Chauí. ... Só isso, era um capítulo dizendo “o que é
filosofia?”. E ela pediu para fazer um trabalho a respeito disso. E aí eu
busquei, digo, bom, né? eu pensei na época, vou jogar com as armas que eu
tenho, né? Vou para a internet, vou para a biblioteca pesquisar, enfim, né?
para entender o que que é essa forma crítica de expor uma ideia. Daí, bom,
enfim, sempre com o dicionário do lado, né? para saber colocar bem as
palavras, enfim, aí me apliquei no trabalho, fiz, assim, e quando vê o
trabalho voltou todo em vermelho. Aquilo me chocou, assim, me dilacerou,
sabe, porque mas meu Deus, o que eu fiz, eu fiz tudo errado, né? eu
realmente / ela tirou um dia de aula só para falar dos trabalhos realizados,
e ela chamava os alunos. Primeiro, ela chamou todos os alunos nota a,
porque ela achava que os alunos a não precisavam estar lá ouvindo o que os
alunos b, c e d tinham para ouvir, depois chamou o b, depois chamou o c, e
por fim os d, né?. E eu na expectativa, ah, agora ela vai me chamar, né?. E
eu fui ficando, e fui ficando, e aquilo foi me consumindo assim mas eu digo o
que que aconteceu. Tá, vamos lá, de repente eu não entendi direito, né? eu
fiz alguma coisa que não era, não estava na exigência, né? digo bom vamos
ver, né? Aí quando eu / vê / assim, meu trabalho todo riscado, porque ela
disse “não, eu não entendi o que tu escreveu. Tu não expôs com coerência”.
Aí eu digo, mas como assim, professora, alguma coisa a senhora tem -, a
senhora me falar isso não me acrescenta em nada, porque eu não sei em
que vou ter que melhorar, sabe? (Flávia, estudante afro-brasileira, Ciências
Sociais-UPG, entrevista de 24 de setembro de 2013)

A estudante reconstruiu o evento a partir da solicitação do trabalho, considerado


por ela como muito complexo. Depois narrou seu empenho para a realização do trabalho –
“enfim, aí me apliquei no trabalho” – e conclui com o sentimento de frustração quando o
recebeu todo riscado de vermelho: “Aquilo me chocou, assim, me dilacerou, porque mas meu
Deus, o que eu fiz, eu fiz tudo errado”. O relato de Flávia ilustra a distância entre as
expectativas de docente e estudantes em relação a avaliações solicitadas, práticas
institucionais que seguem veladas e que resultam em efeitos traumáticos e onerosos (para os
estudantes) provocados pelas práticas institucionais do mistério, que mantém as formas de ler
e escrever na esfera acadêmica inescrutáveis, impenetráveis, incompreensíveis. Como destaca
Lillis (1999), a prática institucional do mistério atua de forma mais perversa com aqueles que
são menos familiarizados com a instituição, como o caso dos estudantes participantes desta
pesquisa: marcados pelo estigma étnico-racial e, na sua maioria, vindos de primeiras gerações
universitárias em suas famílias.
No entanto, a narrativa surpreende, porque essa experiência motiva Flávia a
reverter a situação. E, nessa batalha, relata que recupera suas forças para responder à
231

professora, lutando por uma interlocução mais simétrica. A reivindicação da estudante é


simples, porém muito potente, ao exigir da professora que desvende os mistérios dessa
comunicação incompreensível para ela: “a senhora me falar isso não me acrescenta em nada,
porque eu não sei em que vou ter que melhorar, sabe?”.
Suas narrativas de aprendizagem provocaram espaços de reflexão, os quais se
constituem com
discursos [que] estão fortemente marcados pela menção de estados e
condições subjetivas, da descrição de ambientes e condições de vida, de
experiências pessoais passadas ou recém vividas, de opiniões e pontos de
vista sobre si mesmo, os outros e sobre os acontecimentos e vivencias dos
sujeitos. Relacionam-se, portanto, à capacidade de autoconsciência, que
emerge à medida que interpretam, valoram e distinguem os acontecimentos
que compõem sua história com a leitura, muitas vezes pontuados por
intercalações que suspendem a narrativa e dão espaço a sequências
avaliativas e explicativas (VÓVIO, 2007, p. 166).

O processo de aprendizagem das convenções acadêmicas é representado como um


processo doloroso, lastimoso e trabalhoso, com memórias evocadas pela estudante
atravessadas por sentimentos muito negativos como a metáfora do dilaceramento (“bastante
traumático”, “me chocou”, “me dilacerou”). Em seu relato, a imagem mais forte projetada é
da sensação de ter sido destroçada violentamente na interação com a docente sobre seu
trabalho. De fato, tentar desvendar os mistérios acadêmicos não foi uma tarefa fácil para a
Flávia, que, em sua trajetória de sucesso, descreve-se como alguém que luta por dar conta de
aprender as convenções implícitas da universidade, ainda que isso requeira questionar sua
docente. Assim, vemos que o modelo de “letramento acadêmico” como negociação, proposto
por Lea e Street (1996), não é tão simples para os estudantes.

Os contrapontos: quando as convenções são contemplandas como parte do ensino

Entre os eventos narrados pelos estudantes, também há aqueles que nos servem
como contrapontos à forte experiência de Flávia. Na trajetória de Valentina, estudante
colombiana, os mistérios do letramento acadêmicos foram incorporados como parte do ensino
de escrita de seu curso – Jornalismo. A estudante narra experiências que indicam que as
convenções sobre as formas de dizer das práticas acadêmicas também eram desconhecidas por
ela, recém-ingressada na universidade. Porém, em sua narrativa aparecem docentes que, a
partir do conflito, promovem um espaço de ensino. Os relatos de Valentina apontam para a
presença constante de revisões em seus textos, durante sua formação:
232

Excerto 23 - “los profesores siempre hacían anotaciones en los trabajos”


Bueno, con los trabajos escritos me ha ido bien. Algunas cosas pues al
principio, algunas cosas de ortografía, de redacción, pero fueron cosas que
eran normales, como para el primero, segundo semestre que los profesores
siempre hacían anotaciones en los trabajos que uno entregaba y pues yo
todos los trabajo los tengo guardados en mi computador. Y varias veces me
he puesto a analizar la escritura mía al final de la carrera y lo que yo
escribí al principio y la diferencia es total, pues sí ahí ha habido un proceso
muy rico porque, o sea, la forma que escribía al principio de la que escribo
ahora ha mejorado muchísimo.198 (Valentina, estudante afro-colombiana,
Jornalismo-UPP, entrevista de 15 de janeiro de 2014)

Em sua trajetória, menciona a presença de comentários sobre seus textos escritos


desde o início do curso, como uma constante no seu processo de formação. Essa experiência é
singular entre as trajetórias, e pode revelar uma forma diferenciada na formação dos
jornalistas, para quem a publicação de suas produções escritas é o alvo da formação. A prática
de revisar é descrita como algo comum em seu curso, a qual Valentina descreve como um
processo positivo – “muito bom” – por haver lhe ajudado na melhora de sua escrita. Além
disso, esse exercício de diálogo entre estudantes e docentes parece haver criado uma postura
de autorrevisão na própria estudante: “e várias vezes me pus a analisar minha escrita ao final
da graduação e o que eu escrevi no começo e a diferença é total”
A análise desses desencontros e encontros com a linguagem acadêmica nos indica,
conforme Zavala (2011), que o letramento acadêmico deveria ser ensinado de forma mais
explícita aos estudantes, de modo a não continuar sendo um mistério para eles. A partir de um
cenário semelhante ao de nosso estudo, a autora enfoca processos criativos para lidar com a
escrita acadêmica de universitários quéchuas, e descreve a forma como eles acomodam suas
escritas às convenções exigidas pelos docentes. Mas ressalta que a docência universitária
poderia dar maior espaço às estratégias criativas de estudantes, indo além do domínio dos
gêneros estabelecidos para criar formas novas formas de dizer, como fazem Dorival e
Valentina, por exemplo. Dessa forma, acreditamos que, com os aportes dos estudos sobre
letramento acadêmico, essas trajetórias penosas para desvendar os mistérios da escrita
acadêmica poderiam ser mitigadas e abreviadas.

198
Tradução: “Bom, com os trabalhos escritos eu fui bem. Algumas coisas, pois a princípio, algumas coisas de ortografia,
de redação, mas foram coisas que eram normais, tanto para o primeiro, como para o segundo semestre que os professores
sempre faziam anotações nos trabalhos que a gente entregava e, bom, todos os trabalhos eu os tenho guardados no meu
computador. E várias vezes me pus a analisar minha escrita ao final da graduação e o que eu escrevi no começo e a
diferença é total, pois sim aí houve um processo muito bom porque, ou seja, a forma que escrevia no início em relação
com a que escrevo agora melhorou muitíssimo”(Valentina, estudante afro-colombiana, Jornalismo-UPP).
233

5.3.3. Aprendendo a caminhar nesse espaço estrangeiro: estratégias estudantis para


reexistir

Assim como as narrativas indiciam conflitos, elas também revelam a criação de


estratégias que são empregadas pelos estudantes nesses eventos, para aprender a dominar as
formas de se comunicar no espaço acadêmico. A estudante Flávia, por exemplo, fala de “usar
suas armas”, descrevendo ações como o uso de estratégias escolares. Nessa direção,
retomamos as estratégias criadas pelos estudantes para resolver seus conflitos, desvendar os
mistérios do letramento acadêmico e, por fim, tornar a universidade um espaço mais familiar.
Para isso, nesta seção final, examinaremos as estratégias que são descritas pelos estudantes
brasileiros e colombianos para tornar próprio esse espaço alheio. Em seus depoimentos, três
fatores se destacam como relevantes para o sucesso na universidade: 1. a participação em
grupos de pesquisa, 2. a constituição das redes sociais e 3. a presença de mentores em suas
trajetórias.
A participação em grupos de pesquisa se mostrou como uma estratégia relevante
para que os estudantes pudessem compreender o espaço universitário. Em seus depoimentos,
diferentes tipos de experiências são descritos. Por exemplo, Flávia descreve seu ingresso em
um grupo de pesquisa a partir da experiência como monitora na disciplina de Sociologia
Contemporânea. Para ela, o trabalho resultou de seu empenho no curso realizado: “ótima
aluna na disciplina de epistemologia rendeu a seleção para bolsa de monitoria”; e, com base
nessa experiência, emergiu sua proposta para o TCC. Por sua vez, Dorival, foi convidado para
uma docência compartilhada em um curso sobre educação indígena, durante a qual construiu
um grupo de estudo com colegas. Já na trajetória de Joyce, a experiência em grupos de
pesquisa se concretizou com a participação no curso do Programa Martin Luther King (em
inglês e liderança), no qual eram realizados encontros regulares e construídos projetos de
pesquisa. Joyce, além desse programa, também participou de uma bolsa de iniciação científica
(os chamados semilleros, na Colômbia) em um grupo de pesquisa sobre educação indígena.
Desse modo, a participação em grupos de pesquisa aparece como resultado entre
um encontro conjuntural de esforços e escolhas dos próprios estudantes, associados a um
contexto que lhes propiciou essa oportunidade (seja o programa Martin Luther King, os
semilleros / iniciação científica e os grupos de estudo ou pesquisa). Além disso, outra
convergência entre todas essas experiências foi que, nesses espaços, a interação com novos
colegas lhes proporcionou tecer enlaces entre temáticas étnico-raciais e suas áreas de
formação, contribuindo não apenas para sua formação em pesquisa, mas também profissional
234

e pessoal. Esses dados corroboram a proposta de Kleiman, Vianna e De Grande (no prelo),
quando defendem que a iniciação científica pode promover oportunidades sine qua non para a
apropriação tanto de práticas de letramento acadêmico, quanto de letramento para o local de
trabalho. As autoras exemplificam como, em áreas de licenciatura, a iniciação científica pode
ser um importante espaço formativo não apenas para a formação em pesquisa, mas também
em docência.
Além dessa convergência que poderíamos considerar teórico-prática, a
participação em grupos de pesquisa também promoveu uma relação mais próxima com
professores e colegas, resultando em uma ampliação das redes sociais dos estudantes. O
depoimento de Joyce ilustra esse movimento de modo mais claro:

Excerto 24 - “ya empecé a entrar en otro mundo”


me metí a trabajar allá con ella, pues a trabajar de monitora ayudándole
con sus cosas, y ahí porque / yo empecé a me meter más en eso, y ahí me di
cuenta de que existía la pedagogía de la madre tierra, me empecé a
indagar por eso (…) percibir que existían más estudiantes indígenas
entonces me metí por ahí. Conocí al profesor Abadio, ya conocí a otra
gente, o sea, que yo ya empecé a entrar en otro mundo y eso me ayudó
muchísimo.199 (Joyce, estudante indígena colombiana, Lic. em Línguas
Estrangeiras-UPP, entrevista de 13 de dezembro de 2013)

Em sua narrativa, Joyce reconstrói seu ingresso como monitora em um grupo de


iniciação científica (semillero) sobre educação indígena, o qual caracteriza como um divisor
de águas, fundamental para que se reencontrasse com seu mundo, suas raízes. Segundo ela,
esse reencontro com outros colegas indígenas abriu um horizonte de interlocuções com
trajetórias mais próximas a sua. Além disso, essas novas relações parecem evocar o espaço
anterior à experiência universitária, o que resulta em uma reelaboração em sua visão sobre a
instituição como um espaço que também pode ser familiar. Esses novos interlocutores lhe
permitem dialogar com outras vozes indígenas, traçar pontes para dominar o saber acadêmico
e fazer novas perguntas sobre seu contexto de origem e, dessa forma, contribuir para seu
propósito de formação.

199
Tradução: “Convocaram e foi aí que eu conheci os estudantes e daí digo que me serviu muito, e como voltei outra vez
a reviver (...) comecei a trabalhar lá com ela, digo a trabalhar como monitora ajudando-a com suas coisas, e aí porque / eu
comecei a me envolver mais com isso, e aí me dei conta de que existia a pedagogia da mãe terra, comecei a me perguntar
sobre isso (...) perceber que existiam mais estudantes indígenas então fui por aí. Conheci o professor Abadio, depois
conheci outras pessoas, ou seja, que eu já comecei a entrar em outro mundo e isso me ajudou muitíssimo.” (Joyce,
estudante indígena colombiana, Lic. em Línguas Estrangeiras-UPG)
235

O relato de Joyce representa essas novas relações como um motor transformador


daquele espaço hostil e distante em um “outro mundo”, no qual a estudante sentiu que voltou
“outra vez a reviver”. Como ela narra, as atividades nesse novo espaço acadêmico (do
semillero) lhe provocaram novas perguntas sobre outras tradições indígenas – “aí me dei
conta de que existia a pedagogia da mãe terra200, comecei a me perguntar por isso” –, e lhe
permitiram estabelecer contato com outros companheiros que possuíam trajetórias próximas à
dela – “perceber que existiam mais estudantes indígenas”. Nesse percurso, a estudante destaca
como a vivência no grupo de pesquisa, além de criar oportunidades de participação em
eventos de letramento acadêmico, propiciou-lhe um encontro com outros estudantes oriundos
de comunidades indígenas.
Na experiência de Dorival, o grupo de pesquisa é constituído por um conjunto de
colegas com os quais realizava os trabalhos para a universidade, no qual ele destaca a
presença de ações de ajuda mútua, colaborativas e de parceria. Como consequência, o
estudante ressalta que essa relação de coleguismo transformou sua inserção na universidade –
“aí a coisa andou”. Isso porque, segundo Dorival, esse espaço para compartilhar, colaborar
com o outro e fazer juntos resultou em uma nova valoração da formação universitária, que
inclusive motivou o grupo a fazer a pós-graduação (o mestrado e o doutorado).
Os relatos de Dorival e Joyce sobre suas experiências em grupos de estudo e
pesquisa caracterizam esses grupos como acolhedores, além de indicar que esses coletivos
acadêmicos lhes permitiram estabelecer contato com suas comunidades de origem. Essa
representação aproxima esses espaços à noção de zona de conforto201 (PRATT, 1991;
CANAGARAJAH, 1997). No caso de Dorival, por exemplo, as práticas colaborativas em seu
grupo de estudos, por ele descritas, parecem construir uma ponte entre a universidade e o
espaço comunitário, reconstruindo sua visão desse lugar percebido como hostil aos
conhecimentos indígenas, por ele valorizados. Essa reconstrução se dá a partir do grupo, que
se tornou uma zona de conforto (CANAGARAJAH, 1997), no qual Dorival avalia que foi
construído um espaço horizontal, para o compartilhamento de conhecimentos de modo
simétrico, que possuía um alto grau de confiança e no qual temporariamente sentia-se
protegido dos legados da colonialidade do saber (QUIJANO, 2005). Joyce sinaliza que seu
200
Em sua instituição, há uma graduação construída no diálogo com movimentos indígenas que concebe a mãe terra
como pedagoga – a Licenciatura em Pedagogia da Mãe Terra.
201
O conceito safe house pode ser associado a variados sentidos no português, como refúgio, proteção e zona de conforto.
Inclusive, poderia ser aproximada à noção de “quilombo”, pelos sentidos de refúgio e resguardo que estão relacionados
com a expressão. Optamos por traduzir a expressão safe house por “zona de conforto” porque esta expressão nos traz a
referência à sensação de segurança que esse espaço criado proporciona aos sujeitos, embora a noção de quebra de
assimetrias que está proposta em safe house (PRATT, 1991) não esteja contemplada.
236

grupo de pesquisa se tornou sua zona de conforto ao representá-lo com a metáfora do


“reviver”, a qual poderíamos interpretar como uma reexistência, uma reelaboração da nova
existência nesse “mundo novo”.
Estabelecer e ampliar as redes sociais no seu entorno universitário também foi
uma estratégia que se destacou entre os estudantes. Ao longo de suas trajetórias na
universidade, os estudantes foram construindo relações de amizade, coleguismo e colaboração
que mudaram suas formas de olhar esse espaço. Joyce formou um grupo de amigos entre os
colegas indígenas do grupo de pesquisa DIVERSER, Valentina estabeleceu parceria com
organizações do movimento afro-colombiano, Dorival criou laços de amizade com a última
monitora e alguns colegas, e Flávia, com sua inserção no Fórum de Ações Afirmativas,
passou a ampliar sua rede de contatos.
Destacamos que a universidade, como um espaço cosmopolita, permitiu aos
estudantes ampliarem a compreensão da pluralidade social, inclusive de seus grupos de
origem. Em muitos relatos, podemos apontar que a universidade aparece como facilitadora de
encontros com outros grupos afrodescendentes e indígenas, em especial de contextos do
ativismo social. Nessa direção, algumas organizações e coletivos étnicos se destacaram nas
trajetórias: encontramos na UPG espaços como o Fórum de Ações Afirmativas, o Coletivo
Negração e um coletivo de universitários indígenas; e, na UPP, conhecemos as iniciativas do
Cabildo universitário Chibcariwak202 e do Coletivo Afroudea203. Contudo, fazemos a ressalva
de que esses encontros não resultaram de uma política de permanência, mas sim de ações
formativas dos próprios coletivos organizados que, a partir de ações públicas nas sedes
universitárias, atraem os estudantes cotistas para participar em suas atividades.
O último dos três fatores indicados como parte do fortalecimento da permanência
estudantil é a presença de mentores em suas famílias ou círculo de amigos. Nas trajetórias
estudantis, brasileiras e colombianas, foi recorrente a existência de um mentor que inspirou o
ingresso dos estudantes e/ou fortaleceu sua constância na graduação. Flávia é um exemplo,
pois, em sua narrativa, atribui seu ingresso na Universidade Pública Gaúcha à experiência de
202
O “cabildo urbano Chibcariwak” é uma organização que representa as comunidades indígenas residentes na zona
urbana de Medellín. Foi criado com o propósito de construir uma residência estudantil para jovens indígenas que vinham
de áreas rurais ou afastadas para morar na capital, com fins de realizar o ensino superior. Ver mais informações em:
http://cabildochibcariwak2010.blogspot.com/
203
O Coletivo Afroudea reúne estudantes afro-colombianos que cursam ensino superior na Universidade de Antioquia.
Sua emergência começou com iniciativas de colaboração entre os estudantes: grupos de estudo, aulas de reforço em áreas
como física e matemática. Essas ações foram fortalecendo-se e os estudantes atualmente oferecem um curso pré-
vestibular. Também realizam atividades para dar visibilidade à cultura afro-colombiana: sessões de debate, a Semana de
la afrocolombianidad, entre outas. Ver mais informações em: http://afroudea.blogspot.com/
237

uma prima mais velha, que havia sido formada pela mesma universidade, a única graduada na
família. Flávia se refere à prima como tutora, por suas ações de proteção e amparo:

Excerto 25 - “foi um processo menos dolorido”


com a ajuda de uma prima que estudava já aqui que me ajudou na
socialização assim vamos se dizer ... foi um processo menos dolorido por/
pela presença dela também de estar me mostrando, me explicando como
funciona, me tutelando mesmo, sabe? (Flávia, estudante afro-brasileira,
Ciências Sociais-UPG, entrevista de 24 de setembro de 2013)

A prima é caracterizada em sua narrativa como uma figura que a acolhe no novo
espaço – antes tão amedrontador. Isso porque sua prima é quem a tutela e lhe explica como
funciona o “mundo novo”. Dessa forma, Flávia relata que sentiu o ingresso na universidade
como “um processo menos dolorido” pela presença dessa mentora.
Como indicamos, a participação em grupos de pesquisa, a ampliação de redes
sociais e a presença de mentores que fortalecem a autoconfiança e autoestima dos estudantes
para permanecer no curso aparecem, nas narrativas estudantis, como estratégias criadas para
resistir aos conflitos na universidade. São processos que exigiram um enorme esforço e
culminaram em experiências descritas por uma das estudantes como um “reviver”, dando
indícios de que o “mundo novo” passou a abrir suas portas para outros mundos possíveis,
resultando não só em desencontros, mas também em reencontros.
Do conflito e da estranheza em relação às práticas da universidade, os estudantes
passaram, gradualmente, a apropriarem-se das práticas acadêmicas (VOLOSHINOV, 1995),
ou seja, das formas de dizer e de fazer convencionais da esfera acadêmica, o que resultou em
uma inserção no espaço da universidade e o desenvolvimento de um sentimento de
pertencimento a ele. Além disso, esse processo parece não só acarretar uma melhoria na
escrita dos estudantes, pois as formas de ler e de escrever, que “no início atrapalhava[m]”,
agora já são dominadas, mas também um desdobramento com rupturas e subversões para criar
um espaço de autoria no discurso acadêmico, com a inovação de gêneros e práticas.

Quando os estudantes lidam com as convenções

No âmbito da revisão de seus textos, os estudantes relataram utilizar algumas


estratégias para dar conta das demandas de escrita e leitura de seus cursos; entre as que foram
citadas estão:
 Ficha de leitura - “eu costumo fazer [ficha de leitura] para me organizar agora
238

para o TCC também”;


 Método de estudos por esquemas;
 Colega-revisor;
 Colega-monitor para ajudar na escrita: monitorias - “ela lia meu trabalho e dizia”
 Enlace entre diferentes disciplinas – “trazer as contribuições das outras
disciplinas, entrar em diálogo”.

No que tange à interação com docentes, a estudante Flávia descreve sua trajetória
como um processo de quebra de assimetrias (BRIONES, 2013), ao contar que, à medida que
se apropriava mais dos temas da universidade, percebia uma relação mais simétrica com
docentes, o que facilitava sua comunicação com eles e a compreensão mútua e, em
consequência, podemos aventar como hipótese, uma melhor aprendizagem: “eu entendo o que
eles falam e eles entendem o que eu falo”.
Nosso propósito, na abordagem das estratégias utilizadas pelos estudantes, foi
compreender como eles construíam sua trajetória de apropriação das práticas de letramento
acadêmico, como resolviam os problemas e como sobreviviam na universidade, em uma
perspectiva discursiva. Para isso, abordamos trajetórias individuais a partir de uma
compreensão do discurso e das práticas de leitura e escrita como fenômenos intrinsecamente
sócio-históricos. Em outras palavras, ao descrever e analisar essas trajetórias singulares,
consideramos que elas são “circunscritas por modos de ler que são sempre indiciários de uma
determinada época histórica vivida” (GUEDES-PINTO, 2001, p. 74). Dessa forma,
complementamos estudos que analisam estratégias de universitários e mostram como eles
desenvolvem ações que vão da acomodação, passando por uma resistência de fachada
(CANAGARAJAH, 1997), até chegar à criação e transformação de gêneros acadêmicos
(ZAVALA, 2011).
Em nosso estudo, mostramos como a apropriação (VOLOSHINOV, 1995) das
práticas de letramento acadêmico potencializa que os estudantes se tornem interlocutores em
um contexto que construíram como seu – suas zonas de conforto (as safe houses, para
PRATT, 1991). Assim, ao mostrar como os estudantes foram tornando familiar o espaço
universitário, obtemos indícios de como as estratégias criadas por eles lhes permitiram ir se
apropriando de outras vozes sociais (como ativistas, estudantes bem-sucedidos, sociólogos,
jornalistas, professores, etc.), em um contexto peculiar no qual suas instituições de ensino
levam a cabo uma política intercultural. Desse modo, vemos que o potencial dessa abordagem
de trajetórias de práticas de letramento acadêmico está em nos permitir
239

observar outros modos de acesso e distribuição dos bens culturais, de


trajetórias de formação, de inserção nas práticas culturais hegemônicas, que
culminam na apropriação das práticas de letramento que interessam ao
grupo, na equalização das oportunidades de acesso a essa cultura, na
autoafirmação e autorização dos sujeitos que seguem essas trajetórias
singulares de letramento (KLEIMAN, 2010, p. 394).

As trajetórias Flávia, Dorival, Joyce e Valentina dão indícios de seus movimentos


autorais em um contexto de políticas afirmativas. Ao entrelaçar essas narrativas, cotejamos as
práticas, as estratégias e regularidades nas trajetórias dos universitários. E, com base nessas
trajetórias de produção do TCC, destacamos quatro aspectos:
1. Os estudantes pertenciam à primeira ou segunda geração (caso de Joyce) a
concluir uma formação superior nas suas respectivas famílias. No caso de Joyce, seus pais
estudaram em um curso orientado a povos indígenas, um pouco antes de seu ingresso na
universidade.
2. Valentina e Flávia construíram, ao longo de sua formação, oportunidades para
falar sobre sua origem étnica no espaço universitário. Esse sentimento de pertencimento –
narrado por elas como um “autorreconhecimento” – parece ter se fortalecido no interior da
universidade a partir de contato com grupos de movimentos sociais negros e afro-
colombianos.
3. Joyce e Dorival tiveram sua educação primária afetada pela guerra (Joyce) e
pela ditadura (Dorival), e ilustraram as relações entre centro-periferia, ao terem de deslocar-se
de suas cidades no interior dos estados para cursar a universidade nas capitais – o que é um
indicador da centralidade das instituições universitárias (RAMA, 1984).
4. Os quatro estudantes demonstraram uma ética social e coletiva na elaboração
de seus TCC: segundo eles, a relevância de sua formação incidia, mais do que para ganhos
individuais, na oportunidade para transformar os conhecimentos universitários em prol de
ações que contribuíssem para melhorar a situação de vida de suas comunidades. Isso, em
grande medida, revela que há experiências que vêm respondendo positivamente à política de
ações afirmativas, no Brasil e na Colômbia.
Para investigar com mais detalhe esse processo de apropriação de práticas de
letramento acadêmico, na última subseção, aprofundaremos a análise sobre as estratégias
criadas pelos estudantes na elaboração dos TCC.
240

5.4. Um espaço para (re)encontros: as novas artes letradas dos estudantes


cotistas

A prática de realização de um TCC para culminar uma graduação funciona, como


já apontamos, como um ritual de passagem na esfera universitária, que já analisamos a partir
das trajetórias de letramento acadêmico: primeiro, examinamos os primeiros passos dos
estudantes na universidade, assim como seus tropeços, para em seguida, já nas etapas
intermediária e final do percurso, quando os estudantes já se sentem parte integrante do
espaço acadêmico, examinar como eles se situam entre as esferas acadêmica e profissional.
Nesta seção, recapitularemos essa trajetória a partir do exame das estratégias usadas pelos
estudantes para subverter e alterar os conhecimentos aprendidos, a seu favor.
Para tal, é importante lembrar que enfocamos o TCC a partir de uma aproximação
entre gênero e produção de conhecimento, baseando-nos na concepção de gênero bakhtiniana,
conforme discutimos no segundo capítulo. Dessa maneira, a universidade é compreendida
como uma esfera de atividade, na qual historicamente conformaram-se formas de dizer que
estabilizaram determinados gêneros que compõem as formas de dizer e de fazer acadêmico-
científicas. Serão importantes para a análise das estratégias criadas para elaboração do TCC as
noções de zona de contato, zona de conforto e artes letradas das zonas de segurança
(PRATT, 1991; CANAGARAJAH, 1997).
A seleção dos TCC focos da análise foi orientada por um interesse nas estratégias
de subversão da colonialidade do saber empregadas pelos estudantes, conforme reflexões do
primeiro capítulo. Nossa abordagem envolveu os indícios nas narrativas dos estudantes e nos
próprios textos dos TCC. Por isso, nos instigava analisar as estratégias dos estudantes a fim de
pôr em diálogo conhecimentos e demandas de grupos subalternizados nos os campos
estabelecidos na universidade. Antes de iniciar a análise das estratégias de subversão e
ocupação do espaço acadêmico na elaboração do TCC, apresentamos uma síntese dos
trabalhos, no Quadro 8:
241

Quadro 8 – Trabalhos de conclusão de cursos analisados


Nome Forma de Título Síntese do TCC
ingresso e curso
Flávia
Ingresso afro Raça e fundamento: uma Selecionou um tema teórico que
Ciências Sociais etnografia sobre a socialidade lhe possibilitaria reinterpretar as
batuqueira em uma casa de práticas religiosas de matriz
religião do município de Porto
africana, visando à saúde.
Alegre/RS.
[texto monográfico]
Dorival
Ingresso indígena Aprendendo com todas as O tema emergiu de sua
Pedagogia formas de vida do planeta: experiência profissional e
educação oral e educação política – a alfabetização
Kaingang
Kaingang.
[texto monográfico]
Joyce
Ingresso indígena Ebêrañolinguish: learning a O TCC estava articulado ao que
Licenciatura em third lenguaje from an se propôs em sua formação:
línguas intercultrual perspective at ensinar em sua comunidade,
institución educativa Embera discutindo o ensino do
estrangeiras
Karmatarua, in Jardín, Embera204 por meio da
Antioquia transmediação.
[texto monográfico]
Valentina
Ingresso afro Revista Vive Afro A ampla variedade de opções
Jornalismo [revista digital] para realizar o TCC lhe
permitiu criar uma empresa
jornalística.

Como destacamos na apresentação das trajetórias, os estudantes realizaram um


trabalho de amalgamar questões dos seus campos de formação e demandas de grupos sociais
com os quais se identificavam. Esse esforço pode ser interpretado como uma ação de
subversão das assimetrias de conhecimento existentes no espaço acadêmico. Além disso, suas
trajetórias podem dar mais indícios sobre como se desenvolveram suas estratégias subversivas
que ganharam uma acolhida no espaço de produção de conhecimento gerado durante a
elaboração do TCC.

5.4.1. Estratégias e artes letradas nas zonas de contato

A noção de zona de contato é utilizada por Pratt (1991) para identificar tensões
sociais que emergem na interação entre sujeitos, nas quais se reflete um contexto sócio-
histórico, como já discutimos anteriormente. Porém, queremos salientar, nesta análise, que
esse cenário de confronto é tratado pela autora também como uma possibilidade de criação.
Para ela, as zonas de contato fomentam ações criativas, elaboradas pelos sujeitos, cujo

204
Língua originaria do povo indígena Embera, presentes no estado de Antioquia.
242

resultado são as zonas de conforto: “espaços sociais e intelectuais nos quais os grupos podem
se constituir como comunidades soberanas, homogêneas e horizontais com altos graus de
confiança, conhecimento compartilhado e proteção temporária dos legados da opressão”
(1991, p. 40). Baseada na definição de comunidade imaginada, de B. Anderson, a autora
defende que a comunidade emergente em uma zona de conforto muitas vezes reage a
experiências de opressão com a criação de alternativas subversivas, o que na concepção
bakhtiniana pode ser pensado a partir do conceito de forças centrífugas.
A proposta de Pratt (1991) contribui para esta tese se aceitamos a premissa de que
a própria universidade pode ser abordada como uma zona de contato, em especial, por
fomentar – com a implementação de ações afirmativas – espaços de encontros entre diferentes
grupos sociais. Um exemplo, no âmbito dos estudos da linguagem, é o trabalho de
Canagarajah (1997), que retoma as noções de zona de contato e de artes letradas das zonas de
segurança, de Pratt (1991), para caracterizar o contexto acadêmico. Segundo o autor, as
comunidades minoritárias possuem tradições de resistência e apropriação cultural, as quais
provocam a invenção de modelos criativos de novos gêneros. Ao oferecer um curso sobre
escrita acadêmica, o autor analisou quais estratégias foram criadas por estudantes afro-
americanos durante essa disciplina. Em sua análise, revela algumas estratégias encontradas
tanto em produções nas zonas de conforto quanto em escritas na zona de contato. Na primeira,
a zona de conforto, – em espaços como o fórum, vistos como um domínio informal – os
estudantes usavam estratégias discursivas vernáculas, reveladas nas referências e estruturas
argumentativas utilizadas (como no uso de referências não legitimadas na academia, tais
como histórias dos familiares, anedotas, filmes, televisão e RAP, relacionados ao tópico do
debate). No entanto, na segunda, a zona de contato, – por exemplo, na produção de um ensaio
–, os alunos não revelavam a mesma maestria para discutir as questões já debatidas no fórum:
valorizavam muito o discurso dos autores lidos, não explicitavam sua posição sobre o tema e
tampouco tentavam derrubar o argumento do autor. Em suma, os estudantes criaram
estratégias muito variadas, desde uma acomodação às convenções retóricas dominantes, sem
desafiá-las, até à criação de uma terceira via para resolver seus conflitos durante a
aprendizagem dessa nova ordem do discurso instituída.
Contudo, para o autor, os estudantes demonstravam, mesmo na zona de contato,
tentativas criativas de resolução de conflitos com os quais se depararam na produção escrita.
Ele chama essas estratégias de artes letradas das zonas de conforto. Ainda assim, na escrita
243

na zona de contato, por exemplo, os estudantes usavam uma “arte da fachada” 205 (“fronting”)
para lidar com as exigências de escrita de seus professores – um conformismo aparente que
mascarava tendências opositivas mais profundas. O autor parte do pressuposto de que é
preciso entender melhor como comunidades subordinadas negociam as forças conflitivas em
suas comunidades de origem para se engajar em práticas de letramento criativas. Afinal,
também nos parece relevante questionar as experiências de subversão de grupos
discriminados para entendê-las e expandi-las a fim de repensar o ensino na universidade.
Outro trabalho que ilustra essas criações dos estudantes, conforme já
apresentamos, é o de Zavala e Córdova (2010). As autoras se aproximam de Canagarajah
(1997) ao realizar dois estudos de caso com universitários indígenas para, a partir da análise
de trajetórias desses estudantes, mostrar quais foram as estratégias criadas por eles para dar
conta das exigências de escrita durante sua formação acadêmica. Segundo as autoras, essas
estratégias são formas de uso da linguagem empregadas pelos estudantes no seu cotidiano
acadêmico. Para isso, Zavala e Córdova (2010) abordam atividades como, por exemplo,
reunião em grupos de estudo e de pesquisa com colegas para discutir questões de suas
comunidades, encontros para debater sobre a manutenção dos vínculos com a comunidade, ou
mesmo a oferta de oficinas a jovens do ensino médio.
No caso das universidades com ações afirmativas, a autodeclaração étnica exigida
para que os jovens ingressem na universidade parece promover uma zona de contato constante
entre as culturas marginalizadas das comunidades de origem desses estudantes e as culturas
dominantes, herdeiras dos legados da colonização; no entanto, essa diversidade não tem sido
considerada para uma revisão dos currículos universitários. Doebber (2012) chama a atenção
para a ambiguidade das políticas afirmativas, ao analisar experiências de estudantes cotistas
negros: os estudantes que, em um primeiro momento, devem se reconhecer como diferentes
para acessar ao programa; logo, em um segundo momento, quando ingressam, necessitam
tornarem-se iguais para permanecerem (e sobreviverem) na universidade – o que significa
atuar como se não fossem negros, com base na norma da branquitude (o que poderíamos
chamar como uma “branco-normatividade”, a semelhança da heteronormatividade). Isso nos
permite considerar, de acordo com Canagarajah (1997), que o ambiente acadêmico é uma
zona de contato, ou seja, um espaço no qual são forjados encontros assimétricos que
atravessam as práticas de usos da linguagem.

205
Para Canagarajah, essa estratégia tem sido realizada historicamente pelos afro-americanos em resposta à pressão da
sociedade dominante e proporcionou a seus estudantes uma reconciliação temporária com seu conflito.
244

Apropriando-nos desses trabalhos sobre as artes letradas das zonas de contato, e


situando-os em diálogo com a discussão descolonial (WALSH, 2009; CASTRO-GÓMEZ;
GROSFOGUEL, 2007), nossa releitura sobre as políticas afirmativas tem o propósito de
observar como elas geram contextos de emergência de alternativas para enfrentar às exclusões
provocadas pelas hierarquias sociais, com impactos epistêmicos, espirituais, raciais e étnicos,
e de gênero e sexualidade. Essas hierarquias – da colonialidade –, embora tenham sido criadas
pela modernidade, continuam tendo um papel importante no presente, em especial nas
práticas de produção de conhecimento (MIGNOLO, 2003; SANTOS, 2009; KLEIMAN,
2013), como discutimos no primeiro capítulo desta tese.
Nossa análise dos textos produzidos para o TCC nesse cenário assimétrico buscou
revelar indícios de movimentos de criação e mudança. O conceito de gênero discursivo
potencializa essa percepção, quando sua flexibilidade e relatividade são observadas. Nesse
sentido, Zavala (2011) defende que, nas universidades, se deveria dedicar maior atenção ao
processo de transformação dos textos acadêmicos, pois

se assumimos que os textos e os gêneros discursivos estão mudando e não


são estáticos, não se trata tanto de impor normas e regras de textualidade
uniformes, mas sim de permitir aos estudantes que encontrem uma voz no
discurso acadêmico, que conciliem suas diferentes identidades e que se
insiram nesta comunidade com disposição e se sentindo participantes plenos
da mesma (ZAVALA, 2011, p. 63).

A noção de artes letradas das zonas de conforto, de Pratt (1991), retomada em


Canagarajah (1997), contribui para reconhecer as alterações no processo de apropriação de
uma voz no discurso acadêmico, como destaca Zavala (2011). Em nosso caso, ao observar
quais estratégias foram criadas pelos estudantes para elaborar seu texto final para o TCC,
construímos um entendimento sobres suas trajetórias de apropriação das práticas de
letramento acadêmico.
No que tange às estratégias, Pratt (1991), ao analisar o texto “Nova crônica e o
Bom Governo” (de Poma de Ayala), descreve uma série de ações típicas utilizadas por autores
da época colonial na zona de contato para subverter o colonialismo. Entre elas estão usar a
autoetnografia, a transculturação, a crítica, a colaboração, a paródia, o bilinguismo, a
mediação, a denúncia, o diálogo imaginário e o uso de expressões vernáculas. Mas, essa
escrita na zona de contato também tem um lado reverso, que seriam os perigos da má
compreensão, a incompreensão, a letra morta, as obras-primas não lidas, ou uma
heterogeneidade absoluta dos sentidos. Para desenvolver a análise, apresentamos as
245

estratégias descritas por Pratt (idem):


 Autoetnografia – textos em que as pessoas descrevem a si próprios ou seus grupos de
origem, de modo que envolvam representações que outros fizeram delas. Os textos
autoetnográficos possuem duas audiências: uma audiência da metrópole e os falantes da
própria comunidade.
 Transculturação206 – empregada por etnógrafos, o termo se refere a processos nos
quais membros de grupos subordinados ou marginais selecionam e inventam a partir de
materiais transmitidos pela cultura dominante e metropolitana (como a língua da
conquista).
 Crítica – textos que apresentam reflexões sobre a situação de assimetrias e levam a
desvelar as relações de poder instituídas.
 Colaboração – para articular os conhecimentos da metrópole, como a língua da
conquista, e os conhecimentos dos grupos da periferia, o trabalho exige uma
colaboração seletiva, inclusive para reconhecer os modos de compreensão de suas
audiências. No caso da crônica inca-peruana, por exemplo, à participação de Guaman
Poma de Ayala com seu conhecimento sobre a cultura dos conquistadores letrados se
somou o conhecimento de senhores mais velhos Incas, que foram seus informantes.
 Paródia – na crônica de Guaman Poma de Ayala, por exemplo, este usa a paródia ao
usar a língua dos conquistadores para construir, em suas palavras, uma representação
opositiva da conquista.
 Bilinguismo – uso da língua da colônia em articulação com as línguas nativas.
 Mediação – os códigos escolhidos para elaborar o texto.
 Denúncia – revelar as desigualdades existentes e suas consequências.
 Diálogo imaginário – inserção de diálogos que invertem a lógica presente,
representando horizontes possíveis.
 Expressões vernáculas – típicas do grupo local, como a contação de histórias, os
rituais, canções, dança, dramas, pintura e escultura, desenhos, vestuário, artes têxtis,
formas de governo, crenças religiosas, entre outras.
Com base nessas estratégias, apresentamos uma síntese das artes letradas criadas
pelos estudantes cotistas na zona de contato, na Tabela 12, a seguir:

206
O termo, desenvolvido pelo antropólogo cubano Fernando Ortiz, se contrapõe às visões de “aculturação” e
“assimilação” propostas na época, para tratar o potencial criativo que se dá no encontro de diferentes culturas,
especialmente quando estas são marcadas pelo processo colonial.
246

Tabela 12 - Estratégias das artes letradas na zona de contato


Estratégias Flávia Dorival Joyce Valentina

1. Autoetnografia X X X X
2. Colaboração X X X X
3. Crítica X X X X
4. Denúncia X X - X
5. OUTRAS: Propostas alternativas - X X X
6. Transculturação - X - X
7. Bilinguismo - X X -
8. Mediação - - X -
9. Expressões vernáculas - - - X
10. OUTRAS: Reconstrução de imaginário - - - X
Fonte: baseado em Pratt (1991).

A leitura das artes letradas dos estudantes com base na noção de dialogismo nos
permite interpretar essas estratégias como uma responsividade ativa dos estudantes. Suas
ações responsivas, situadas e criativas resultam em trabalhos como o de Valentina: estudante
afro-colombiana que, em um território forjado sobre a égide do branqueamento e de visões
negativas sobre a cultura afro, aproveita um veículo de grande difusão – uma revista digital –
para provocar rupturas nos discursos estereotipados de negação do negro da região, fazendo
da visibilidade positiva uma resposta frente à negação; assim, utiliza o jornalismo como um
espaço de subversão do discurso dominante. Em relação às estratégias utilizadas pelos
estudantes para responder as demandas de letramento acadêmico na zona de contato,
destacamos que enquanto a autoetnografia, a crítica e a colaboração foram constantes nos
trabalhos analisados, a paródia e o diálogo imaginário não estiveram presentes em nenhum
dos textos, o que pode ser devido aos gêneros produzidos pelos estudantes. Por outro lado,
observamos nos dados outras duas estratégias: a reconstrução de imaginário, no qual o autor
se distancia e constrói textos que subvertam as imagens negativas sobre seu grupo; e a criação
de propostas alternativas, com planejamento e proposições diretas de um projeto alternativo.
O trabalho monográfico de Flávia se propôs a ser uma etnografia, mas também
revela traços de uma autoetnografia quando se propõe a repensar a trajetória de uma
identidade coletiva que é assumida por ela: a população negra. Constrói um texto que atende
às demandas da audiência da metrópole – neste caso, a universitária –, mas também traz
elementos que são de interesse da audiência comunitária – uma melhor compreensão por parte
dos pais de santo sobre a dinâmica dos filhos de santo nos terreiros. Sua autoetnografia está
247

ancorada, já nos agradecimentos, em um discurso de crítica e denúncia, ecoando as demandas


dos movimentos sociais negros. Assim, ela retoma discursos desses movimentos – por
reconhecimento e justiça –, e os enlaça a suas próprias experiências de racismo, para mostrar
ao leitor a relevância de seu trabalho – “contribuir para discussões pertinentes a população
afro-brasileira”, como as religiões de matriz africana207. Seu trabalho também contou com a
colaboração de religiosos, acadêmicos e ativistas do movimento social, a partir da qual
articulou os diferentes discursos; materializando esse diálogo nos conceitos que intitulam seu
trabalho – “raça”, da sociologia, e “fundamento”, do candomblé.
Dorival, em seu trabalho monográfico, analisa a alfabetização Kaingang, com o
objetivo de criar propostas alternativas para o ensino bilíngue, em contextos de línguas
Kaingang e português, como expressa em seu texto: “um dos meus sonhos é resolver os
problemas produzidos pela forma como foi escrita a língua Kanhgág”. Com esse objetivo,
seu trabalho também se constituiu em uma autoetnografia quando se propõe a repensar a
trajetória coletiva da população Kaingang. Ao narrar sua trajetória, no primeiro capítulo do
trabalho, ele tece um discurso crítico e de denúncia frente a políticas que foram utilizadas
para a educação formal indígena. Situado nesse contexto, explicita suas propostas para a
educação de uma perspectiva da cosmovisão Kaingang. O uso do bilinguismo em seu texto
ocorre em espaços relevantes do TCC, como a dedicatória e o resumo, escritos em Kaingang e
em português, assim como em expressões vernáculas ao longo do texto. Além disso, maneja
mídias audiovisuais: incorpora fotografias e elementos de sua oralidade ao texto, com o uso
de CD complementar para dar vazão a uma voz Kaingang. A transcultura pode ser vista em
sua ação de selecionar materiais da cultura dominante e transformá-los a favor de sua
comunidade (como para o ensino bilíngue kaingang-português). A colaboração é ilustrada na
relação de parceria que constrói com sua orientadora, e também na sua participação no
movimento indígena, para a elaboração do trabalho.
Com uma proposta similar à de Dorival, Joyce realiza uma pesquisa-ação com a
meta de criar propostas alternativas para ensino bilíngue em contextos de língua materna
indígena e espanhol como segunda língua. Desse modo, seu texto monográfico relata sua
experiência em sala de aula, analisando quais elementos foram mais positivos para uma
educação intercultural crítica. Seu trabalho também pode ser lido como uma autoetnografia,
por retratar uma situação de trilinguismo de modo a iluminar tanto as discussões de formação

207
Em especial em um período de recrudescimento de agressões por motivos religiosos. No Brasil, houve o caso de uma
menina que foi agredida na saída de um culto do candomblé, registrada na notícia: “Menina vítima de intolerância
religiosa diz que vai ser difícil esquecer pedrada”. Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-
janeiro/noticia/2015/06/menina-vitima-de-intolerancia-religiosa-diz-que-vai-ser-dificil-esquecer-pedrada.html
248

de professores de línguas, quanto as propostas educativas comunitárias de seu contexto Nasa.


O uso do bilinguismo está presente no tema e no título do trabalho – “Ebêrañolinguish”, com
a criação de um termo que articula as palavras embera (Ebêra), espanhol (ñol) e inglês
(guish). No que tange à colaboração, Joyce constrói uma rede ampla de docentes, ativistas
indígenas e membros da comunidade Embera para realizar seu estágio docente. Destacam-se,
em sua narrativa, as ações de seu orientador e do grupo de pesquisa DIVERSER. Dois
exemplos da mediação, realizada pela estudante, estão no uso da imagem do chumbe como
marca d’água nas páginas do trabalho, que também pode ser interpretado como uma
expressão vernácula, e na mobilização da imagem da Mãe Terra – elemento crucial em
muitas culturas indígenas – em seus agradecimentos.
Na trajetória de desenvolvimento da revista digital, Valentina utilizou 08 das 10
estratégias para visibilizar a perspectiva da população negra na cidade de Medellín. Sua
revista se tornou um texto autoetnográfico, ao criar um espaço para que as pessoas
identificadas com a identidade afro-colombiana falassem sobre si de seus pontos de vista.
Para isso, utilizou uma linguagem digital como forma de orientar-se a diferentes audiências –
população negra e não-negra de diferentes espaços, o que pode ser interpretado como uma
estratégia de transcultura dessa realidade, ao selecionar e inventar um novo material a partir
de materiais transmitidos pela cultura dominante (os meios digitais). Ao revelar o cotidiano
afro na cidade de Medellín, a revista também expressa discursos de crítica e denúncia, em
uma linguagem que flui entre o espanhol padrão e expressões vernáculas (como a presença de
músicas da costa pacífica quando se entra na página da revista). Todo o trabalho de Valentina
é colaborativo – com base no diálogo com o orientador, docente da universidade, a
participação em eventos de organizações do movimento afro-colombiano, até a contratação da
equipe que conforma sua empresa (uma equipe mista, composta por pessoas afro-colombianas
e mestiças). Com esse propósito, sua revista se propõe a reconstruir o imaginário local sobre
as pessoas afro-colombianas, assim como provocar uma ruptura com discursos estereotipados
e de negação da presença afro na região. Essas quebras com o discurso estabelecido – seja da
invisibilidade, seja da imagem negativa da população negra – podem ser associadas a uma
prática descolonial (WALSH, 2009). Além disso, por seu perfil, sua empresa jornalística se
revela uma proposta alternativa de atuar na zona de contato.
Neste capítulo, buscamos visibilizar as narrativas sobre os percursos que os
escritores-universitários traçaram, com o fim de identificar singularidades, regularidades,
pontos de convergência e divergência que vão para além das fronteiras nacionais, e revelam
diálogo com políticas institucionais que se propõem como interculturais. Os depoimentos
249

desses estudantes nos dão indicadores sobre como, a partir de suas experiências, são criados
novos caminhos para a produção de conhecimento e a interpelação das políticas interculturais
na educação superior. Nos processos de desenvolvimento e escrita de TCC observados, as
estratégias empregadas pelos estudantes para subverter a colonialidade na zona de contato
revelam, nos textos produzidos, uma importante característica das “artes letradas” desses
universitários: suas perguntas e temas de pesquisa interpelam, de diversas perspectivas, as
políticas afirmativas e apontam novos horizontes para a criação de diálogos mais simétricos
na produção de conhecimento.
250

6. Considerações finais: visibilizando as brechas para a subversão

Quanto mais metodicamente rigoroso me torno na minha busca e na minha docência, tanto mais alegre me sinto e
esperançoso também. A alegria não chega apenas no encontro do achado mas faz parte do processo da busca. E ensinar e
aprender não podem dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria. (Paulo Freire, 1996)

Devemos também questionar os nossos modos de receber, traduzir e fazer circular epistemologias do Sul: como fazer para
não reproduzir, dentro da elitista e arcaica estrutura universitária brasileira, as relações que o centro mantém com a
periferia? Em outras palavras, e usando os temos de nossos colegas do Sul, como fazer para implantar um projeto de
modernidade e descolonialidade nos nossos locais de trabalho? (Angela Kleiman, 2013)

Quase quinze anos depois de os primeiros programas de ações afirmativas no


Ensino Superior serem postos em marcha, a presença negra e indígena já se faz sentir pelos
corredores de um número significativo de universidades latino-americanas208. Com um
interesse em compreender essas experiências, o objetivo geral desta tese foi analisar como
universitários ingressantes por políticas afirmativas, de cursos de ciências humanas, de duas
universidades públicas (uma brasileira e outra colombiana), criaram estratégias para lidar com
as práticas de letramento acadêmico, exigidas durante seu processo de desenvolvimento e
escrita do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Em diálogo com estudos da LA que
caracterizam a representação e a (re)produção da desigualdade no contexto acadêmico (como
BIZON, 2013; NIEDERAUER, 2013), busquei reconhecer nessas trajetórias de letramento as
vozes do sul, aquelas que são contra-hegemônicas e emergem em pequenos esforços para
enfrentar, romper ou subverter a colonialidade do saber ou o racismo epistêmico.
Nos capítulos da primeira parte desta tese – Apontamentos teórico-metodológicos
do problema de pesquisa – propus uma reflexão que entrelaçou os temas de ações afirmativas,
linguagem e universidade, com o fim de apresentar propostas teóricas que apoiaram as
análises na compreensão de espaços de subversão da colonialidade do saber.
Nos capítulos da segunda parte – Das práticas de letramento acadêmico em
cenários de ação afirmativa –, cujo propósito foi apresentar a análise de dados, descrevi duas

208
No Brasil, houve um aumento considerável no ingresso de jovens entre 18 e 24 anos no ensino superior, aumento que
se viu refletido entre os jovens negros (pretos e pardos): “Em 2004, 16,7% dos estudantes pretos e pardos com 18 a 24
anos frequentavam o ensino superior, segundo a pesquisa, número que cresceu para 45,5% em 2014. Para a população
branca, essa proporção passou de 47,2%, em 2004; para 71,4%, em 2014. Ou seja, o percentual de pretos e pardos no
ensino superior em 2014 ainda era menor do que o percentual de brancos no Ensino Superior dez anos antes.” (Notícia
disponível em: http://www.brasil.gov.br/educacao/2015/12/numero-de-estudantes-universitarios-cresce-25-em-10-anos )
251

experiências de política afirmativa em três níveis: as políticas, as trajetórias estudantis e os


TCC. No que tange às políticas, apontei a existência de uma tensão na postura institucional
em relação às demandas pela quebra das assimetrias na produção do conhecimento. Para tal,
lancei mão dos aportes teóricos dos Estudos de Letramento, de estudos da sociologia sobre
racismo e da perspectiva dos Estudos Descoloniais, para descrever e discutir as políticas de
ações afirmativas implementadas pelas instituições públicas de ensino superior às quais os
universitários participantes da pesquisa estavam vinculados. Ao adotarem políticas mais
orientadas para o ingresso, as instituições partiram de uma perspectiva deficitária em
detrimento de outras mais interculturais. Essa refração nos sentidos da política reparatória
atravessou as experiências estudantis.
Nesse sentido, no que se refere às trajetórias de letramento dos estudantes, mostrei
como as trajetórias universitárias interpelaram as políticas afirmativas no ensino superior com
o fim de que estas se tornassem mais interculturais. Embora tenham retratado o início de suas
trajetórias como uma experiência traumática, estranha e até mesmo hostil, esses universitários
construíram narrativas de sucesso para contar como foram tornando o espaço universitário
cada vez mais familiar. Nesse aspecto, salientei as estratégias que foram por eles criadas para
ir se apropriando de outras vozes sociais (como ativistas, estudantes bem-sucedidos,
sociólogos, jornalistas, professores, etc.), ao longo de sua formação.
Por fim, mostrei como seus trabalhos de conclusão de curso – considerados uma
prática de escrita da zona de contato – visibilizaram demandas e indagações que foram
motivadas pelas experiências de seus grupos de origem e, com isso, revelaram processos de
lutas para dominar ou transformar as práticas institucionais da universidade (seja nos modos
de fazer ou nos modos de dizer). Nas trajetórias de elaboração de TCC descritas, identifiquei
processos de apropriação, subversão e reexistência, os quais constituíam o que denominei
“escritas afirmativas”: aquelas estratégias de uso da linguagem criadas pelos estudantes para
subverter a colonialidade do saber em suas trajetórias de letramento acadêmico. Desse modo,
é possível apontar que os universitários, além de interpelarem as políticas afirmativas,
também apontaram novos horizontes para a criação de diálogos mais simétricos na produção
de conhecimento por meio de estratégias como a autoetnografia, transculturação, crítica,
colaboração, bilinguismo, mediação, denúncia, expressões vernáculas, propostas alternativas
e reconstrução de imaginário.
Esses resultados refletem muito de minha própria trajetória: com origem em uma
família negra, de classe popular, fui a primeira geração a ingressar em uma universidade.
Esses primeiros semestres no curso foram um tanto hostis. Foi com o ingresso em um grupo
252

de pesquisa – Interação Social e Etnografia209 (UFRGS) – e o encontro com áreas que


dialogavam com minha realidade social – Estudos de Letramento e Linguística Aplicada –
que passei a reencontrar-me com a Universidade. Esse processo foi fortalecido quando passei
a participar de coletivos de movimentos sociais, como o Grupo de Trabalho de Ações
Afirmativas. Com o desejo de entrelaçar aspectos teóricos com realidades tão silenciadas no
espaço acadêmico – como a trajetória universitária de sujeitos marcados pelo estigma racial –,
tomei esta pesquisa como uma forma de indagar como outros sujeitos com uma trajetória
semelhante a minha – em um cenário que poderia ser tomado como mais favorável por conta
das políticas interculturais em vigor – construíam suas trajetórias de apropriar-se do espaço
acadêmico e construir um lugar para sua voz.
Ao delinear trajetórias de jovens de primeira geração familiar a ingressar na
universidade, por ações afirmativas, busquei mostrar seus desencontros e encontros com a
linguagem acadêmica não para etiquetá-los a partir de uma perspectiva do déficit (linguístico,
cognitivo ou cultural), mas sim para adensar a discussão sobre leitura e escrita na
universidade, de modo a contemplar questões sobre estratégias criadas por membros de
grupos historicamente marginalizados para interagir com a sociedade letrada e apropriar-se
gradualmente dos bens culturais que lhes foram interditados ao longo de séculos (KLEIMAN;
SITO, no prelo).
Muito além de uma discussão sobre o “domínio” dos gêneros acadêmicos, está
uma questão histórica que irrompe no cenário universitário com a pauta das ações afirmativas:
a persistência de mecanismos para apagar o outro, os quais se constituíram a partir de
apropriação, expropriação ou invisibilização dos conhecimentos produzidos e legados por
grupos marginalizados e colonizados (como as populações negras e indígenas 210);
mecanismos que contaram com a cumplicidade e/ou o protagonismo da universidade. Com as
contribuições de áreas como a alfabetização acadêmica e o letramento acadêmico, a formação
universitária passa ser vista em duas dimensões concomitantes: por um lado, como um
processo de ensino-aprendizagem tanto do sistema conceitual e metodológico do campo de
formação, quanto de suas práticas discursivas (CARLINO, 2002, 2005; ZAVALA;
CÓRDOVA, 2010); e por outro, como um processo de negociação e transformação do
conhecimento nessa zona de contato, que pode resultar na criação de novas formas de dizer e

209
Coordenado pelo professor Pedro M. Garcez, PhD.
210
Outros coletivos também se identificam com essas experiências, devido às hierarquias por gênero, sexualidade,
religião, região/território, diferenças físicas, entre outras.
253

de fazer (PRATT, 1991; CANAGARAJAH, 1997; ZAVALA, 2011), o que pode romper com
as grandes narrativas estereotipadas, baseadas na herança colonial (a colonialidade do saber).
Abordar as estratégias criadas pelos sujeitos ajudou a identificar e compreender as
“pequenas mudanças” em curso, ou como diria De Certeau “as táticas” que estão empregando
sujeitos que vêm de grupos estigmatizados socialmente e passam a ocupar esses “latifúndios
do saber”211. Nesse sentido, ao analisar o aspecto subjetivo de políticas públicas a partir das
trajetórias de letramento acadêmico, e entrelaçar as discussões sobre as ações afirmativas no
ensino superior e o papel da linguagem na formação acadêmica, pude:
 identificar a manutenção de assimetrias na produção de conhecimento (em diferentes
níveis: entre áreas, entre temáticas, entre metodologias e linguagens, entre os sujeitos
de conhecimento, etc.);
 mostrar o impacto do racismo epistêmico/colonialidade do saber no modus operandi
das universidades;
 identificar a invisibilidade sobre a linguagem nos processos formativos universitários;
 propor o TCC como uma prática de letramento entre as esferas acadêmica e
profissional, na qual há produção de conhecimento;
 reconhecer e descrever estratégias de subversão da colonialidade do saber.
A partir desse cenário, delineado no capítulo 5, é possível apontar desafios para a
universidade. E, em diálogo com esses desafios, quero esboçar algumas propostas em dois
aspectos: as políticas afirmativas e a formação universitária. No primeiro, é reafirmada a
necessidade de refletir sobre permanência, ações para a diversidade e diálogo de saberes.
Nesse sentido, para fomentar políticas universitárias derivadas das ações afirmativas é
imprescindível reconhecer a universidade como uma zona de contato, na qual é necessário
trabalhar tanto para o reconhecimento e a legitimação da diversidade cultural e linguística,
quanto para o rompimento de assimetrias na produção de conhecimento. Isso porque repensar
as formas de fazer e dizer das práticas universitárias pode nos abrir caminhos para subverter a
colonialidade no espaço acadêmico. Com a análise das quatro trajetórias universitárias reitero
que, quando as ações institucionais que enfocam a diversidade não chegam a pensar nas
práticas de linguagem, os monopólios do saber não são rompidos.
No segundo, a docência superior nos abre dois cenários: a formação docente e a
visibilização das práticas veladas da linguagem acadêmica. Em relação ao primeiro, destaco
que é necessário revisar as práticas de planejamento e avaliações docentes de modo a

211
Metáfora retomada de Marinho (2010).
254

contemplar mais espaços para que os estudantes possam apropriar-se das práticas discursivas
de sua área de formação e, assim, possam construir uma voz como profissionais do campo.
No entanto, esse trabalho não deveria ser independente, mas sim gozar de apoio institucional.
Para tal, a instituição pode disponibilizar espaço-tempo e pesquisadores com experiência,
especialmente do campo da linguagem, que possam auxiliar docentes das faculdades a
compor planos de estudo que contemplem a linguagem na formação dos estudantes do início
ao fim do curso, com vistas a desvelar as convenções da linguagem acadêmica. Por outro
lado, as leis e políticas para a diversidade (como a étnico-racial, de gênero, sexualidade,
deficiência física, etc.) requerem a oferta de políticas públicas para a formação de docentes
universitários para que eles possam participar mais ativamente na implementação da política,
assim como criar vagas docentes para disciplinas obrigatórias no currículo que abordem essas
temáticas, com um viés de justiça e equidade social. Essas ações podem criar legitimidade
para novos campos de conhecimento que vão se conformando na universidade.
No que tange à visibilização das práticas veladas da linguagem acadêmica, um
primeiro passo seria inserir a escrita como parte da formação acadêmica, de modo a
questionar-se sobre a pertinência dos gêneros monográficos e outros para a formação
profissional e acadêmica que estão em jogo. Conforme já argumentei, os gêneros discursivos
devem ser espaço para construção de conhecimento do campo e de identidade profissional dos
formandos, por isso a formação para linguagem deveria ir além de cursos iniciais sobre escrita
acadêmica, sendo contemplada ao longo do currículo.
Propostas há muitas, mas vão depender da abertura institucional e docente para
realizá-las. Uma possibilidade é criar espaço de discussão entre docentes e discentes de cada
faculdade sobre como será realizado o TCC do curso, oportunidade que permitiria repensar os
propósitos da própria formação e daria mais sentido para os usos de escrita da área. Essa
reflexão sobre os propósitos da formação acadêmica seria muito pertinente em um contexto
mais plural étnico-racialmente, promovido pelas ações afirmativas. Outra possibilidade é
definir entre o corpo docente e discente da faculdade os propósitos da formação profissional
que se realiza, de modo a negociar as identidades acadêmica e profissional que serão foco da
formação, assim como os gêneros discursivos que farão parte do currículo. Um bom exemplo
é o caso de Valentina: a variedade nas formas de compor o TCC em seu curso (Jornalismo)
permitiu que a estudante realizasse um trabalho que lhe propiciou criar autoria. Houve rigor
nos moldes acadêmicos, mas também espaço para que ela construísse sua voz. Além disso,
mostrou que a seleção dos gêneros para compor o TCC de um curso pode atender mais a um
critério de pertinência ao campo profissional, do que apenas a eleição do gênero monográfico.
255

Essa experiência dá pistas sobre como podemos formar nos modos de fazer ciência do campo
de saber sem fechar espaço para outros modos de produzir conhecimento.
Ao enunciar uma maior pluralidade nos modos de escrita acadêmica, em um
cenário de política intercultural, é fundamental destacar que a “luta” pela formação mais justa
de grupos historicamente marginalizados ainda se dá em duas frentes: por um lado, criar
esforços pela mudança das convenções do discurso acadêmico; e, por outro, promover o
acesso às mesmas convenções e normas da esfera acadêmica. Nesse sentido, pensar em
políticas para a permanência dos estudantes cotistas exige refletir sobre o que, para nós, ainda
é um calcanhar de Aquiles: em políticas educativas para grupos estigmatizados, como garantir
a possibilidade da diversidade nos modos de fazer e dizer e, ao mesmo tempo, romper com a
estigmatização e exclusão dos atores da política?
A experiência do estágio doutoral em projetos que construíam outras formas de
ser universidade também alimentou a esperança que subjaz a esta tese. Um desses projetos foi
a graduação Licenciatura em Pedagogia da Mãe Terra, oferecida pela UdeA: uma
licenciatura voltada para formação de professores que atuarão em comunidades indígenas. O
outro foi o projeto Rotas para uma ruralidade sustentável a partir da equidade e da
diversidade: criando alternativas educativas entre universidades e comunidades diversas
rurais (afro, indígenas e campesinas) da Colômbia212, do qual participei como parte de meu
doutorado-sanduíche. Este projeto tinha por objetivo criar um curso de graduação que fosse
oferecido a lideranças de comunidades rurais, com o propósito de brindar uma formação a
essas lideranças que fosse orientada a suas realidades e realizada em seus territórios, que
exigia reorganizar as tradicionais áreas de saber por meio da transdisciplinaridade e da
interculturalidade crítica. Esses são apenas alguns exemplos que mostram possíveis terceiras
vias para construir uma formação mais equitativa e justa no âmbito da produção de
conhecimentos.
Para concluir, como formadora, é inegável minha maior consciência sobre o giro
que implicaria dar ao visibilizar essa situação tão negligenciada que é a linguagem (ou o
ensino e aprendizagem das práticas de letramento acadêmico), ainda mais em um cenário que
se quer reconhecer a diversidade cultural. Nesse papel, preocupo-me com que nossa prática de
ensino seja mediada por uma pedagogia culturalmente sensível (ERICKSON, 2001) e crítica
(FREIRE, 1996, 2012). Por isso, busquei reconhecer espaços de aprendizagem que permitiam
aos sujeitos que encontrassem sua voz em meio a um coro tão polifônico como o é a

212
Coordenado pela professora Zayda Sierra, PhD.
256

universidade. Esse propósito me moveu a buscar experiências criativas de lidar com o


letramento acadêmico. Com a análise de experiências de produção e desenvolvimento do
TCC, espero contribuir tanto para a construção de um trabalho docente crítico e eivado de
alegria e boniteza, quanto para a indicação de respostas possíveis a perguntas sobre as
epistemologias do Sul e a descolonização do conhecimento.
257

Referências

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274

ANEXOS

ANEXO 1 - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Você está sendo convidado(a) para participar, como voluntário, em uma pesquisa da área
de Linguística Aplicada. Após ser esclarecido(a) sobre as informações a seguir, no caso de aceitar
fazer parte do estudo, assine ao final deste documento.

INFORMAÇÕES SOBRE A PESQUISA:


Título do Projeto: Políticas de escritas afirmativas: estudo sobre as estratégias de
estudantes cotistas para lidar com as práticas de letramento acadêmico.
Pesquisador Responsável: Luanda Rejane Soares Sito
Telefone para contato (inclusive ligações a cobrar): (19) 8725-8919
O projeto de pesquisa Políticas de escritas afirmativas: estudo sobre as estratégias de
estudantes cotistas para lidar com as práticas de letramento acadêmico tem como objetivo analisar
como estudantes de cursos de licenciatura das ciências humanas que ingressaram em universidades
públicas (brasileira e colombiana) por políticas afirmativas, lidam com as práticas de letramento
exigidas na Academia. Para isso, pretende-se descrever e analisar trajetórias de estudantes nas suas
interfaces com as práticas de escrita e leitura na Universidade.
Comprometo-me em preservar todos os nomes dos estudantes universitários envolvidos
na pesquisa. Comprometo-me também em compartilhar o desenvolvimento e os resultados da pesquisa
com todos os entrevistados antes da publicação da tese.
A pesquisa pretende contribuir para a implementação de ações afirmativas no ensino
superior e para a formação docente de nível universitário.
Por fim, coloco-me a disposição dos participantes da pesquisa para maiores
esclarecimentos.
Reitero a garantia de sigilo e o direito de retirar o consentimento a qualquer tempo.

1 de 2
275

Nome e Assinatura da pesquisadora:

CONSENTIMENTO DA PARTICIPAÇÃO DA PESSOA COMO SUJEITO

Eu, _________________________________________________________________, RG nº.


_________________________, abaixo assinado, concordo em participar da pesquisa
Políticas de escritas afirmativas: estudo sobre as estratégias de estudantes cotistas para lidar
com as práticas de letramento acadêmico, como entrevistado(a) para o estudo. Fui
devidamente informado(a) e esclarecido(a) pela pesquisadora Luanda Rejane Soares Sito
sobre a pesquisa, os procedimentos nela envolvidos, assim como os possíveis riscos e
benefícios decorrentes de minha participação. Foi-me garantido que posso retirar meu
consentimento a qualquer momento, sem que isto leve a qualquer penalidade.

Local e data: ______________________________, _______/_______/_______.

Nome: __________________________________________________________

Assinatura do sujeito ou responsável: __________________________________

2 de 2
276

CONSENTIMIENTO INFORMADO

Usted está siendo invitado(a) para participar, como voluntario(a), en una investigación del
área de Lingüística Aplicada. Después de tener conocimiento acerca de la investigación, en caso
de aceptar hacer parte del estudio, por favor firme al final de este documento.

INFORMACIONES SOBRE LA INVESTIGACIÓN:


Título del proyecto: Políticas de escrituras afirmativas: estudio sobre las estrategias de
estudiantes afros e indígenas para lidiar con las prácticas de literacidad académica.
Investigadora responsable: Luanda Rejane Soares Sito
Institución financiadora: Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Proceso FAPESP nº.
2012/01311-7)
Teléfono para contacto (incluso para llamadas a cobrar): (57) 3006439731 / (+574) 379-5751

El proyecto de investigación “Políticas de escrituras afirmativas: estudio sobre las


estrategias de estudiantes afros e indígenas para lidiar con las prácticas de literacidad académica”
tiene como objetivo analizar cómo estudiantes de cursos de ciencias humanas que ingresaron en
universidades públicas (brasileñas y colombianas) por políticas afirmativas responden a la
demanda de prácticas de literacidad exigidas en la Universidad. Para eso se pretende describir y
analizar las trayectorias de estudiantes en sus interfaces con sus prácticas de escritura y lectura en
la Universidad.
Me comprometo en preservar todos los nombres de estudiantes universitarios participantes
de la investigación, así como en compartir el desarrollo y los resultados del estudio con todos los
entrevistados antes de la publicación de la tesis doctoral.
La investigación pretende contribuir para la implementación de acciones afirmativas en la
educación superior y para la formación docente de nivel universitario.
Me pongo a disposición de los participantes de la investigación para mayores
esclarecimientos sobre el estudio.
Reitero la garantía del sigilo y el derecho de retirar su consentimiento en cualquier
momento de la investigación.

1 de 2
277

Nombre y firma de la investigadora:

CONSENTIMIENTO DE PARTICIPACIÓN DE LA PERSONA COMO SUJETO

Yo, _________________________________________________________________, cédula nº.


_________________________, quien firma abajo, estoy de acuerdo en participar de la
investigación Políticas de escrituras afirmativas: estudio sobre las estrategias de estudiantes
afros e indígenas para lidiar con las prácticas de literacidad académica (Proceso FAPESP nº.
2012/01311-7), como entrevistado(a) para el estudio. Fui debidamente informado(a) y
esclarecido(a) por la investigadora Luanda Rejane Soares Sito sobre el estudio, los
procedimientos en él involucrados, así como los posibles riesgos y beneficios decurrentes de mi
participación. Me fue garantizado que puedo retirar mi consentimiento en cualquier momento, sin
que esto lleve a alguna penalidad.

Local y fecha: ______________________________, _______/_______/_______.

Nombre: __________________________________________________________

Firma del sujeto o responsable: __________________________________

2 de 2
278

ANEXO 2 - ROTEIROS PARA ENTREVISTAS

Roteiros para entrevistas semiestruturadas a estudantes brasileiros


Pré-ingresso
1. O que te motivou a ingressar na Universidade?
Ingresso
2. Como foi tua preparação para o Vestibular?
3. Avaliando hoje tua expectativa frente à Universidade foi atendida? Por quê?
Universidade
4. O que a Universidade é para ti?
5. Em quais espaços da Universidade tu mais circulas? E em quais te sentes bem? Por quê?
Linguagem, escritos e permanência
6. Há diferença entre ler e escrever na Universidade e na escola? Em quê?
7. Como vocês se organizam para realizar os trabalhos das disciplinas?
8. Como vocês se sentem ou se sentiram ao ingressar na Universidade?
9. Já foram discriminados racialmente?
10. Já tiveram que desistir do curso? Por quê?
11. Como vocês veem que a política de ação afirmativa poderia impactar na desigualdade
existente contra os povos indígenas?
Escritos
12. A demanda de leitura e escrita se dá na mesma proporção? Como avalias?
13. Quais tipos de leituras são realizados no curso?
14. Quais tipos de escritas são realizados no curso?
15. Como são solicitadas?
16. Quais outras leituras buscas por fora do curso? Sobre os trabalhos do curso (Quais eram?,
Como foram solicitados?, Como os realizaram?, O que vocês esperavam deles?, O que
achavam que os professores esperavam deles?, Como foram avaliados?)
Sobre o TCC:
17. Como ocorreu a escolha do tema teu TCC?
18. Como foi a escrita do trabalho?
19. Como foi o diálogo com o orientador ao longo da escrita do trabalho?
20. O que gostarias de relatar sobre tua experiência na redação do TCC/Monografia final de
curso?
279

Guion para entrevistas semiestructuradas a estudiantes colombianos


Pre-ingreso
1. ¿Te acuerdas cómo se decidió tu ingreso a la Universidad?
2. ¿De cuál comunidad indígena viene?
3. ¿Qué te ha motivado a acceder a la Universidad?
4. ¿Eres la primera de tu familia/comunidad a ingresar en la Universidad?
Ingreso
5. ¿Y cómo fue el proceso de ingreso en la Universidad?
6. ¿Cómo fue tu preparación para los exámenes de admisión en la Universidad?
7. Si evalúas hoy tu expectativa en relación a la Universidad, ¿ella fue concretada? ¿Por qué?
Universidad
8. ¿Me puede contar qué la Universidad significa para ti? ¿Y para tu comunidad?
9. ¿En cuáles espacios de la Universidad tu más circulas? Y en cuáles de ellos te sientes bien? ¿Por
qué?
10. ¿Ya tuviste ganas de desistir de la carrera? ¿Por qué?
11. ¿Ya te sentiste discriminada racialmente?
12. ¿Cómo tu ves que la política de reserva de cupos, como una acción afirmativa, podría impactar
positivamente en la desigualdad existente contra los pueblos indígenas?
Lenguaje, escritos y permanencia
13. ¿Me puede contar cómo fue la experiencia de la escritura en la Universidad?
14. ¿Cómo fue tu experiencia en la Universidad en relación al lenguaje (situación de bilinguismo)?
15. ¿Utilizas tu lengua propia cuando elaboras tus escritos en la Universidad o toda tu escritura y
lectura son en español?
16. ¿Cómo tu realizabas los trabajos y parciales de las asignaturas?
17. ¿Qué tipo de recursos tienes para escribir? ¿Utilizas el computador?
18. ¿Percibiste diferencia entre leer y escribir en la Universidad y en la escuela? ¿Sabes decir en cuáles
puntos? ¿Qué crees que los docentes esperan con esos trabajos escritos?
Sobre la tesis de grado:
19. ¿Me puedes relatar un poco tu proceso de producción de la tesis de grado en tu carrera?
20. ¿Cómo funciona la producción de la tesis de grado en tu carrera?
21. ¿Cuál es tu tema de la tesis de grado? ¿Cómo elegiste ese tema? ¿Cómo ha sido la a escrita del
trabajo (escrita, reescrita, estrategias)?
22. ¿Hubo diálogo con el docente asesor durante la escrita del texto? ¿Cómo fue?
23. ¿Qué sentiste al recibir la primeria versión de tu borrador comentada por el asesor/la asesora?
24. ¿Qué hiciste después de sus comentarios? ¿Qué otras acciones realizó para desarrollar el trabajo?
25. ¿Qué te gustaría relatar sobre tu experiencia de producción de la tesis de grado?
280

Entrevistas com gestores das comissões de acompanhamento


1. Como você se envolveu com o tema das ações afirmativas?
2. Há uma política de permanência para os estudantes do Programa de Ações
Afirmativas? Ela é específica para os estudantes do Programa?
3. Houve um planejamento da política?
4. Como a política tem sido implementada?
5. O que você tem desenvolvido em seu posto?
6. Quais dificuldades você tem enfrentado?
7. Quais ganhos reconhece que vem conquistando?
a. Como você vê os alunos cotistas na universidade? Com que desafios eles se
deparam e como as comissões respondem a eles?
281

ANEXO 3 – ACORDO ACADÊMICO 236/2002

Acuerdo Académico 236/2002 – UdeA

Documentos Jurídicos

Normas Jurídicas Universitarias

ACUERDO ACADÉMICO 236213

26 de octubre de 2002

Por el cual se unifica el régimen de admisión para aspirantes nuevos a los programas de pregrado.

El Consejo Académico de la Universidad de Antioquia, en ejercicio de las atribuciones que le


confiere el literal g del artículo 37 del Estatuto General, y

CONSIDERANDO
1. Que, desde la expedición del Acuerdo Académico 126 del 17 de febrero de 1968,
"Por el cual se establece el régimen de admisión para aspirantes nuevos a los programas de pregrado",
esta norma ha sido sometida a diferentes modificaciones para adecuarla a la realidad del momento, por
medio de los Acuerdos Académicos 164 del 8 de marzo de 2000, 216 del 24 de julio de 2002,
y 234 del 25 de septiembre de 2002.
2. Que, con el objetivo de facilitar el manejo de estas normas, es conveniente su
unificación en una sola, con los ajustes requeridos para lograr un todo armónico.
3. Que, a la luz del literal g del artículo 37 del Estatuto General, es competencia de esta
Corporación "Definir la política y las condiciones de admisión para los programas de pregrado y de
posgrado",
ACUERDA

Artículo 1. Para ingresar a la Universidad, los aspirantes nuevos deberán acreditar los siguientes
requisitos:
a. Ser bachiller
b. Haber presentado los Exámenes de Estado o sus asimilados
c. Presentar las pruebas diseñadas y aplicadas por la Universidad de Antioquia
d. Lograr en estas pruebas los puntajes exigidos por la Universidad para ser admitido
como estudiante nuevo
Parágrafo 1. Podrán acogerse al régimen de aspirantes nuevos, además de los
bachilleres, los aspirantes que hubieren cursado estudios en otra institución de educación superior
reconocida por el ICFES, independientemente de si culminaron sus estudios o no. Además, los

213
Disponível em: http://secretariageneral.udea.edu.co/doc/u0236-2002.html. Acessado em 01.jun.2013.
282

aspirantes retirados de la Universidad en situación académica normal, los estudiantes matriculados en


programas de pregrado o de posgrado, los aspirantes que ya terminaron un programa de pregrado o de
posgrado en la Universidad, y los aspirantes que salieron de la Universidad por rendimiento
académico insuficiente a partir del 15 de febrero de 1981 (fecha en la que se expidió el Acuerdo
Superior 1 del mismo año) y que a la fecha de inscripción hubieren cumplido cinco años de
desvinculación de la Institución, contados a partir de la fecha de terminación del último período en el
cual estuvieron matriculados (Acuerdo Superior 164 de 1999).

Parágrafo 2. Los aspirantes a transferencia no deberán acreditar el requisito de presentación de


Exámenes de Estado.

Artículo 2. La Universidad diseñará y aplicará las siguientes pruebas para todos los aspirantes:
a. Una prueba básica sobre competencia lectora
b. Una prueba básica sobre razonamiento lógico
Artículo 3. Cada una de las pruebas anteriormente citadas tendrá un valor de 50 puntos sobre 100
(50/100).

Parágrafo: La calificación total estandarizada se obtendrá sobre la calificación total bruta.


Artículo 4. MODIFICADO. Acuerdo académico 268 de 2005. (El puntaje mínimo
estandarizado para ser admitido a un programa será de 53 sobre 100 (53/100).)
Acuerdo académico 268 de 2005. Artículo Único. Modificar el artículo 4 del Acuerdo
Académico 236 del 30 de octubre de 2002, que unificó el régimen de admisión para aspirantes
nuevos a los programas de pregrado, el cual quedará así:
El puntaje mínimo estandarizado para ser admitido a un programa de pregrado en la sede
de la Universidad en Medellín, será de 53 sobre 100.
El puntaje mínimo estandarizado para ser admitido a un programa de pregrado ofrecido
por la Universidad en las seccionales y municipios de Antioquia, será de 50 sobre 100.
Artículo 5. Todo aspirante tendrá derecho a inscribirse en dos programas de los ofrecidos
por la Universidad, expresados como primera y segunda opción.

Artículo 6. La selección de los aspirantes se efectuará mediante el siguiente procedimiento:


a. Los cupos ofrecidos para cada programa serán asignados inicialmente a los aspirantes
que lo seleccionaron como primera opción y obtuvieron los mayores puntajes estandarizados totales.
b. Si resultaren cupos sobrantes, éstos serán llenados por los aspirantes que no fueron
admitidos en la primera opción e inscribieron dicho programa como segunda. Se asignarán en estricto
orden descendente de puntajes estandarizados totales.
283

Parágrafo 1. El estudiante admitido a la primera opción no podrá hacer uso de la


segunda, y viceversa.

Parágrafo 2. Las situaciones de igualdad de puntaje, en el límite de cupos de cada programa, se


resolverán mediante el siguiente procedimiento:
a. Se aplicará la Ley 403 de 1997, sobre beneficios al sufragante.
b. Si persistiere el empate, se seleccionará a los aspirantes con mejor puntaje en la prueba
de razonamiento lógico.
c. Si aplicados los procedimientos anteriores aún continuare el empate, se ampliará el
cupo inicial hasta en un cinco por ciento, aproximando a la cifra par superior cuando fuere necesario, y
se seleccionará a los aspirantes hasta donde se resuelva el empate.
Artículo 7. Si, vencido el término señalado por la Universidad para liquidar matrícula o
reclamar el comprobante respectivo, resultaren cupos no utilizados, éstos se asignarán según lo
establecido en el artículo anterior.

Artículo 8. MODIFICADO. Acuerdo académico 259 de 2004. (Serán aspirantes nuevos especiales
los siguientes:
a. Miembros activos actuales de comunidades indígenas y comunidades negras,
reconocidas por la Constitución Nacional.
b. Estudiantes que obtuvieron la distinción Andrés Bello en las categorías Nacional y
Departamental.
Beneficiarios del Premio Fidel Cano del Colegio Nocturno de Bachillerato.)

Acuerdo académico 259 de 2004. Artículo 1. Modificar el artículo 8 del Acuerdo Académico 236 de
2002, el cual quedará así:
Serán aspirantes nuevos especiales los siguientes:
 Miembros activos actuales de comunidades indígenas y comunidades negras,
reconocidas por la Constitución Nacional.
 Estudiantes beneficiarios del Decreto 644 del 16 de abril de 2001.
 Beneficiarios del Premio Fidel Cano del Colegio Nocturno de Bachillerato.
Artículo 9. En cada programa se asignarán dos cupos adicionales para los aspirantes
nuevos provenientes de comunidades indígenas, y dos cupos adicionales para los aspirantes
provenientes de comunidades negras reconocidas por la Constitución Nacional.

Parágrafo 1. Este beneficio será reconocido a los aspirantes que permanecieren integrados a sus
comunidades y acreditaren su participación en actividades de la comunidad o de la asociación.
Además, deberán establecer compromisos futuros de servicio con su comunidad o con la asociación.
284

Definición de indígena. La Universidad de Antioquia, para efectos de esta reglamentación, entenderá


por indígena a los miembros de las comunidades indígenas definidas como tales por el Decreto 2164
del 7 de diciembre de 1995, que en su artículo 2 define:

Comunidad o Parcialidad Indígena. Es el grupo o conjunto de familias, de ascendencia amerindia,


que tienen conciencia de identidad y comparten valores, rasgos, usos o costumbres de su cultura, así
como forma de gobierno, gestión, control social o sistemas normativos propios que las distinguen de
otras comunidades, tengan o no títulos de propiedad, o que no pueden acreditarlos legalmente, o que
sus resguardos fueron disueltos, divididos o declarados vacantes.

Definición de Afrodescendiente. La Universidad de Antioquia, para efectos de esta reglamentación,


entenderá por "afrodescendientes" a los miembros de las comunidades negras, como lo estableció la
Ley 70 del 27 de agosto de 1993, en su artículo 2, numeral 5, así:

Comunidad Negra. Es el conjunto de familias de ascendencia afro-colombiana que poseen una


cultura propia, comparten una historia y tienen sus propias tradiciones y costumbres dentro de la
relación campo-poblado, que revelan y conservan conciencia de identidad que las distinguen de otros
grupos étnicos.

El requisito para ser reconocido como aspirante indígena es el aval del Cabildo, o de su equivalente, o
de una asociación de autoridades tradicionales indígenas.

Para efectos de esta reglamentación, se entenderá por "Cabildo Indígena", como fue descrito en el
Decreto 2164 del 7 de diciembre de 1995, así: "Es una entidad pública especial, cuyos integrantes son
miembros de una comunidad indígena, elegidos y reconocidos por ésta, con una organización
sociopolítica tradicional, cuya función es representar legalmente a la comunidad, ejercer la autoridad y
realizar actividades que le atribuyen las leyes, sus usos, costumbres, y el reglamento interno de cada
comunidad".

Para la definición de "Asociación de autoridades tradicionales indígenas" se tomará en cuenta lo


establecido por el Decreto 1088 del 10 de junio de 1993, especialmente en los artículos 1 y 2. El
reconocimiento de pertenencia a una Asociación de autoridades tradicionales indígenas no
desconocerá la autonomía de los cabildos o de las autoridades tradicionales.

En el caso de los raizales de San Andrés, Providencia y Santa Catalina, los aspirantes que alegaren una
identidad raizal serán presentados por las organizaciones que representaren a los raizales en el mismo
285

Departamento.

Para efectos de esta reglamentación, las organizaciones de comunidades negras y las organizaciones
de raizales, competentes para presentar aspirantes a la admisión especial para grupos étnicos, serán
aquellas, con personería jurídica, que hubieren sido reconocidas y registradas en la División de
Asuntos para Comunidades Negras del Ministerio del Gobierno.

Para quien manifieste pertenecer a una comunidad negra, el representante legal de la respectiva
comunidad negra, reconocida por el Ministerio del Interior, certificará la descendencia Afro-
colombiana y su vinculación actual a la comunidad, de conformidad con la Ley 70/93 y el Decreto
1745/95.

La Universidad, con el fin de dar una aplicación proporcional, razonable y con responsabilidad social a
la presente normativa, reconocerá como Comunidad y Parcialidad Indígena y Comunidad Negra a
aquellas que se encuentren incluidas en el censo elaborado por el Ministerio del Interior. En caso de
duda sobre la pertenencia a las comunidades Indígenas o Negras, se solicitará el peritazgo de
profesores expertos del Departamento de Antropología de la Institución.

Parágrafo 2. Los aspirantes de las comunidades indígenas y los de las comunidades negras,
previamente inscritos, deberán presentar las pruebas de admisión. Quienes no fueren admitidos por el
límite de cupos en el programa elegido, competirán por los dos cupos adicionales, y serán admitidos
los que tuvieren los mayores puntajes estandarizados, no inferiores a 40 puntos.

Parágrafo 3. Las situaciones de igualdad de puntajes para la selección de los dos aspirantes
adicionales de comunidades indígenas, o de los aspirantes de comunidades negras, se resolverán
mediante el siguiente procedimiento:
a. Se aplicará la ley 403 de 1997 sobre beneficios a los sufragantes.
b. Si persistiere el empate, o no fuere posible aplicar la ley 403, se seleccionará al
aspirante con el mejor puntaje en la prueba de razonamiento lógico.
c. Si aplicados los criterios anteriores aún continuare el empate, se ampliará el cupo
hasta en un ciento por ciento (máximo 4 admitidos).
d. De no resolverse el empate con el anterior procedimiento, el sistema efectuará la
selección aleatoriamente entre los empatados.
Parágrafo 4. Los aspirantes indígenas y los afrodescendientes, debidamente certificados
como tales, no pagarán derechos de inscripción.

Artículo 10. MODIFICADO. Acuerdo académico 259 de 2004. (Los estudiantes acreedores a la
286

distinción Andrés Bello en las categorías nacional y departamental ingresarán sin examen de
admisión al programa seleccionado como primera opción.

Parágrafo 1. Este beneficio se reconocerá a quienes, en el momento de la inscripción, acreditaren esa


condición mediante Resolución ICFES.

Parágrafo 2. Los cupos asignados a los estudiantes acreedores a la distinción Andrés Bello en las
categorías Nacional y Departamental no se considerarán como adicionales.

Parágrafo 3. Los acreedores a la distinción Andrés Bello Nacional y Departamental deberán pagar
los derechos de inscripción.)
Acuerdo académico 259 de 2004. Artículo 2. El artículo 10 del Acuerdo Académico
236 de 2002 quedará así:
Los estudiantes acreedores a la distinción establecida en el Decreto 644 del 16 de abril de
2001 en el nivel nacional y departamental ingresarán sin examen de admisión al programa
seleccionado como primera opción.
Parágrafo 1. Este beneficio se reconocerá a quienes, en el momento de la inscripción,
acreditaren esa condición mediante Resolución ICFES.
Parágrafo 2. Los cupos asignados a los estudiantes beneficiarios del citado Decreto no se
considerarán como adicionales.
Parágrafo 3. Los acreedores a la distinción consagrada en el Decreto 644 del 2001
deberán pagar los derechos de inscripción.
Artículo 11. La admisión de los acreedores al premio Fidel Cano se regirá por lo
establecido en el Acuerdo Superior 54 del 17 de julio de 1995. Los cupos asignados a éstos no serán
adicionales.

Artículo 12. Para aspirar a un programa de pregrado mediante transferencia se requerirá: no haber
realizado estudios de pregrado en la Universidad de Antioquia, y haber aprobado en otra institución de
educación superior, reconocida por el ICFES, los cursos correspondientes a un año de labor
académica, o su equivalente. En el momento de la inscripción, el aspirante deberá estar en situación
académica normal de conformidad con las normas vigentes en la institución de la cual proviniere.

Artículo 13. La Vicerrectoría de Docencia conformará una comisión técnica, coordinada por el Jefe
del Departamento de Admisiones y Registro, dedicada a la investigación, la evaluación y el
mejoramiento del sistema de admisión de la Universidad de Antioquia.

Artículo 14. El Departamento de Admisiones y Registro entregará, a las dependencias académicas, el


287

listado de los estudiantes admitidos, con sus respectivos puntajes brutos y estandarizados, y otros
elementos de su perfil social y académico, con el fin de apoyar el establecimiento, en cada unidad
académica, de un plan de asesoría y seguimiento a cada estudiante, al menos en los tres primeros
períodos académicos.

Artículo 15. Se mantiene el régimen de admisión establecido anteriormente para ingresar a los
programas de Música y Teatro en la Facultad de Artes.

Artículo 16. El presente Acuerdo deroga las demás disposiciones de igual e inferior categoría que le
sean contrarias; y sustituye íntegramente los Acuerdos Académicos 126 de 1998, 164 de 2000, 216 y
234 de 2002.

Alberto Uribe Correa


Presidente

Luis Fernando Restrepo Aramburo


Secretario
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ANEXO 4 – DECISÃO 134/2007

Decisão 134/2007 da UFRGS


O CONSELHO UNIVERSITÁRIO, em sessão de 29/06/2007, de acordo com a proposta
da Comissão Especial designada pelas Portarias n° 3222, de 3/11/2006, e 3480, de
17/11/2006, e as emendas aprovadas em plenário,

DECIDE
Art. 1º - Fica instituído o Programa de Ações Afirmativas, através de Ingresso por Reserva
de Vagas para acesso a todos os cursos de graduação e cursos técnicos da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, de candidatos egressos do Sistema Público de
Ensino Fundamental e Médio, candidatos autodeclarados negros egressos do Sistema
Público de Ensino Fundamental e Médio e candidatos indígenas.
Art. 2º - Este Programa de Ações Afirmativas, através de Ingresso por Reserva de Vagas
tem por objetivos:
I – ampliar o acesso em todos os cursos de graduação e cursos técnicos oferecidos pela
UFRGS para candidatos egressos do Sistema Público de Ensino Fundamental e Médio e
para candidatos autodeclarados negros egressos do Sistema Público de Ensino
Fundamental e Médio, mediante habilitação no Concurso Vestibular e nos processos
seletivos dos cursos técnicos;
II – promover a diversidade étnico-racial e social no ambiente universitário;
III – apoiar estudantes, docentes e técnico-administrativos para que promovam, nos
diferentes âmbitos da vida universitária, a educação das relações étnico-raciais;
IV – desenvolver ações visando a apoiar a permanência, na Universidade, dos alunos
referidos no Art. 1º mediante condições de manutenção e de orientação para o adequado
desenvolvimento e aprimoramento acadêmico-pedagógico.
Art. 3º - A modalidade de Ingresso por Reserva de Vagas é constituída pelo conjunto de
critérios e de procedimentos estabelecidos nesta Decisão e que serão integrados àqueles já
adotados pela UFRGS, no Concurso Vestibular, para preenchimento de vagas dos cursos
de graduação e nos processos seletivos dos cursos técnicos.
Art. 4º - A reserva de vagas ficará em vigor por um período de cinco anos, sendo avaliada
anualmente, e poderá ser prorrogada, a partir da avaliação conclusiva, que será realizada
no ano de 2012.
Art. 5º - Do total das vagas oferecidas em cada curso de graduação da UFRGS serão
garantidas, no mínimo, 30% (trinta por cento) para candidatos egressos do Sistema Público
de Ensino Fundamental e Médio.
§1º - Entende-se por egresso do Sistema Público de Ensino Fundamental e Médio o
candidato que cursou com aprovação em escola pública pelo menos a metade do Ensino
Fundamental e a totalidade do Ensino Médio.
§2º - O candidato que desejar concorrer às vagas destinadas a candidatos egressos do
ensino público, previstas no caput deste Artigo, concomitantemente às vagas de acesso
universal, deverá assinalar esta opção no ato da inscrição no Concurso Vestibular. No
momento da matrícula, o candidato aprovado deverá apresentar à Comissão de Graduação
289

- COMGRAD do Curso em que foi aprovado, certificado de conclusão e histórico escolar


de todo o Ensino Fundamental e Médio, reconhecido pelo órgão público competente, que
comprovem as condições expressas neste Artigo.
Art. 6º - Do total das vagas oferecidas aos candidatos egressos do Sistema Público de
Ensino Fundamental e Médio, conforme estabelecido no caput do Art. 5º,no mínimo a
metade será garantida aos estudantes autodeclarados negros, sem prejuízo ao disposto no
§3ºdo Art. 10.
Parágrafo único - O candidato que desejar concorrer às vagas destinadas a candidatos
negros, previstas no caput deste Artigo, concomitantemente às vagas de acesso
universal,deverá assinalar esta opção no ato da inscrição no Concurso Vestibular e
registrar a autodeclaração étnico-racial no espaço previsto para tal no formulário. Caso
aprovado, no momento da matrícula, o candidato deverá, além de apresentar os
documentos exigidos no §2º do Art. 5º,assinar junto à COMGRAD a autodeclaração
étnico-racial feita por ocasião da inscrição no Concurso Vestibular.
Art. 7º -Serão respeitadas as mesmas proporções designadas nos Artigos 5º e 6º para as
vagas oferecidas nos processos seletivos dos cursos técnicos.
Parágrafo único – Os procedimentos serão objeto de regulamentação específica.
Art. 8º - O candidato que prestar informações falsas relativas às exigências da presente
Decisão estará sujeito, além da penalização pelos crimes previstos em lei, à
desclassificação do Concurso Vestibular ou dos processos seletivos dos cursos técnicos e
ter, em conseqüência, sua matrícula recusada no curso, o que poderá acontecer a qualquer
tempo.
Art. 9º - Todos os candidatos habilitados no Concurso Vestibular para os cursos de
graduação serão ordenados em uma classificação geral por curso , conforme pontuação
obtida, independentemente de sua habilitação quanto ao disposto no Art. 1º desta Decisão.
Art. 10 - Os candidatos habilitados no Concurso Vestibular egressos do Sistema Público de
Ensino Fundamental e Médio, que não forem classificados nas vagas universais, serão
ordenados seqüencialmente em cada curso.
§1º - Da relação assim obtida, serão classificados os candidatos egressos do Sistema
Público de Ensino Fundamental e Médio até perfazerem o percentual de, no mínimo, 50%
(cinqüenta por cento) estabelecido no caput do Art. 6º.
§2º - O percentual de vagas restante será destinado aos candidatos que se autodeclararem
negros.
§3º - No caso de não haver candidatos em condições de preencher as vagas garantidas a
negros egressos do Sistema Público de Ensino Fundamental e Médio, estas serão
preenchidas por candidatos não negros oriundos de escolas públicas. Se ainda restarem
vagas as mesmas voltarão ao sistema universal por curso.
Art. 11 - Caberá ao Reitor nomear Comissão de Acompanhamento dos Alunos do
Programa de Ações Afirmativas, ouvidos o Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão -
CEPE e o Conselho Universitário - CONSUN, que terá como atribuição propor medidas a
serem implementadas, a partir do primeiro semestre de 2008, no sentido de apoiar e dar
assistência a esses alunos.
Parágrafo único - A COMGRAD de cada curso deverá acompanhar os alunos do Programa
de Ações Afirmativas, propondo medidas à Comissão de Acompanhamento.
290

Art. 12 - No ano de 2008, serão disponibilizadas 10 vagas para estudantes indígenas cuja
forma de distribuição será definida pelo CEPE, ouvidas as comunidades indígenas e a
COMGRAD dos cursos demandados. A partir do ano de 2009 este número de vagas
poderá ser alterado.
§1º - Institui-se a Comissão de Acesso e Permanência do Estudante Indígena, que terá sob
sua responsabilidade os processos seletivos dos estudantes indígenas, bem como o seu
acompanhamento e inserção no ambiente acadêmico.
§2º - As vagas para indígenas serão criadas, anualmente, especificamente para este fim.
Aquelas que não forem ocupadas serão extintas.

Porto Alegre, 29 de Junho de 2007.

JOSÉ CARLOS FERRAZ HENNEMANN,


Reitor

Disponível em: http://www.ufrgs.br/acoesafirmativas/informacoes/decisao-134-07


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ANEXO 5 – DECISÃO 268/2012

Decisão 268/2012 da UFRGS – pós-avaliação do Programa


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