A Importância Do Milho em Cabo Verde

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A Importância do milho em Cabo Verde

Segundo António Carreira, a introdução do milho em Cabo Verde aconteceu nos finais do século XV e princípios do século
XVI, importado da América do Sul, e a sua cultura difundiu-se de forma rápida, não só pela adaptação às características
climáticas do arquipélago (essencialmente nos meses de maior calor e alguma humidade), mas também pela necessidade
de alimentar uma numerosa mão-de-obra escrava e por se conservar durante muito tempo. Dessa forma o milho
transformou-se na base da economia de subsistência em Cabo Verde, estando o seu consumo associado ao grupo menos
favorecido, constituído essencialmente por negros escravos e livres. O grupo dominante continuava a importar da Europa
os géneros necessários à sua dieta alimentar (trigo, centeio, cevada, azeite, etc), como se depreende do seguinte
testemunho do Padre Baltazar Barreira, datado de 1606: A principal sementeira que fazem é o milho, deste coxem
ordinariamente os crioulos e pretos que fazem muita qualidade de xarém e cuscus, ao passo que a farinha de trigo vinha
muito de fora que se amassa cada dia o pão que comem os portugueses. Agindo desse modo os brancos também
manteriam o seu status quo no plano alimentar.

Paulatinamente, o milho iria transpor os seus limites tradicionais, quais sejam os de ser alimentação dos escravos, pobres e
remediados, para fazer parte da dieta dos brancos reinóis e da terra. Tal fenómeno explica-se pela constituição de uma
cultura cabo-verdiana mestiça e pela depauperação da sociedade cabo-verdiana. À medida que se verificava a ascensão dos
negros e mestiços, o grupo dos brancos diminuía, mercê do êxodo provocado pela crise do modelo escravocrata e do
sistema de morgadio. Assim, os hábitos e costumes cimentados nas classes mais baixas e mais expressivas acabam por se
disseminar por toda a sociedade cabo-verdiana, atingindo também os brancos remanescentes, que tiveram de adaptar-se
às novas circunstâncias.

Desse modo, o milho penetra nos hábitos alimentares da classe colonial e torna-se no epicentro do ciclo de vida em Cabo
Verde, passando a condicionar todos os outros aspetos da vida no arquipélago.

A partir desse produto, aparentemente pobre, o cabo-verdiano, abandonado face à inospitalidade da terra, inventou
formas de sobreviver, por vezes impressionantes, que influenciaram toda a sua cultura. A ergologia cabo-verdiana foi tão
influenciada pelo milho que alguns instrumentos/utensílios se tornaram verdadeiros ícones da sua identidade, casos da
enxada, pilão e moedor (mó). Além destes, praticamente todo o artesanato utilitário local (olaria, cestaria, etc) estão
intimamente ligadas à produção, recolha, conservação e consumo do milho.

Por outro lado, o milho condicionou de tal forma a produção imaterial em Cabo Verde que muitas das tradições mais
enraizadas dependiam do sucesso ou não da sua colheita. É o caso das cerimónias de casamento, batizado, festas de
romaria, rituais fúnebres, etc. O fausto dessas manifestações dependia sempre do desenrolar das “as-águas”.

Dadas as condições adversas e imprevisíveis em que a cultura do milho se fazia, esse ciclo produtivo assumiu um carácter
sacralizado, transformando-se num verdadeiro ritual de fé, do qual dependia o destino dos cabo-verdianos.

Até bem pouco tempo o milho constituía a base da dieta alimentar em Cabo Verde, a ponto de a catchupa ser um dos
garantes da homogeneidade cultural do arquipélago. Um dos principais atrativos da gastronomia das ilhas residia
precisamente na multiplicidade de pratos confecionados à base de milho verde ou seco. A título meramente
exemplificativo, realça-se o xerém (confecionado de modo diferente em cada ilha), prentém (ou midje aliód), papa de
milho, ralom, midje em grão, cuscuz, papa de labada, camoca, sopa loron, djagacida, fongo, pastéis de milho, sarodje, etc.

Atualmente porém, muitos desses pratos já apenas sobrevivem nos meios rurais e a sua confeção é cada vez mais
esporádica, exceção feita à cachtupa, antes considerada comida de pobre, como se depreende do seguinte trecho do conto
“O Intruso”, de Gabriel Mariano: “Deste primeiro jantar do senhor Cruz em nossa casa só me lembro do seu ar
comprometido e do rosto carrancudo da vovó. Nós os meninos não estávamos também muito contentes. Mas a razão era
diferente. Deu-se o caso de a mamãe ter suprimido nessa noite a cachupa do jantar. Parecia estranho convidar um estranho
e dar-lhe milho cochido…”

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