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Aula 09

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Aula 9

Igreja, Estado e
missionação
Anderson Oliveira
Cláudia Rodrigues
História do Brasil I

Meta da aula

Apresentar o papel da Igreja católica no processo de legitimação da expansão


portuguesa na América, identificando de que modo os aspectos teológicos e
evangelizadores, assim como os projetos de uniformização cultural, presentes na
missionação indígena e africana, agiram no sentido da
consolidação do projeto colonizador.

Objetivos

Ao final desta aula, você deverá ser capaz de:

1. identificar as diferentes abordagens historiográficas acerca do papel da Igreja


na América portuguesa, bem como o contexto de sua produção e aspectos
metodológicos nelas presentes;

2. analisar o papel da Igreja católica na América portuguesa no processo de


construção da cristandade colonial, levando em consideração o seu papel no
processo de legitimação da colonização;

3. conceituar e explicar o funcionamento do sistema de padroado régio;

4. identificar a missionação junto a índios e africanos/seus descendentes como


elemento não só de evangelização, mas também de colonização.

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Aula 9 – Igreja, Estado e missionação

Introdução

Antes de analisarmos a relação entre Igreja, Estado e


missionação na América portuguesa, acreditamos ser importante
situar a forma como a Igreja vem sendo pensada pela historiografia
brasileira, o que é significativo para identificarmos as diversas formas
como essa relação pode ser pensada. Segundo Luís Felipe Baêta
Neves, duas tradições consolidaram-se na interpretação da história
da Igreja católica no Brasil colonial.

A primeira poderia ser caracterizada enquanto uma


historiografia oficial ligada ao Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB) e aos estudos eclesiásticos sobre a história da Igreja
no Brasil. Em comum a esses trabalhos havia uma visão enaltecedora
do papel da instituição eclesiástica na formação da nacionalidade
brasileira. Deste modo, procedeu-se um verdadeiro elogio da “ação
civilizatória” da Igreja, que, segundo essa visão, teria transmitido aos
índios, e posteriormente aos negros, os elementos e valores de uma
religião que necessariamente era vista como superior às religiões
e aos costumes indígenas e africanos. Essa tradição historiográfica
consolidou-se a partir do trabalho de Varnhagen e se desdobrou
numa perspectiva historiográfica comum na tradição do IHGB, que
deu frutos durante o século XX.

Em Varnhagen, a abordagem institucional sobre a Igreja pode


ser identificada na prioridade que o autor dá à apresentação de
bulas e provisões de criação de circunscrições religiosas – a exemplo
de prelazias e bispados – e na descrição das ações dos bispos.
Analisando as ideias religiosas e a organização social dos índios,
Varnhagen se referiu aos rituais antropofágicos como “bárbaros” e
“selvagens”; associou as cerimônias festivas como bacanais; alegou
que os laços de família entre eles eram “mui frouxos”, dentre outros
juízos de valor. Fazendo frente a essa situação, a colonização
traria “a luz da civilização e do evangelho” e os “vínculos das
leis e da religião”. Já no caso dos africanos, seriam “gentios” ou

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História do Brasil I

“idólatras”, adoradores de ídolos e animais, que acreditavam em


calundus, feitiços e realizavam sacrifícios. Nas capitanias nascentes
predominaria entre os colonos a desmoralização e a irreligiosidade,
com o descumprimento dos preceitos da Igreja. Ou seja, caberia à
Igreja moralizar e civilizar essas vivências religiosas.

Outro exemplo do que falamos pode ser visto no capítulo


“A Igreja no Brasil Colonial”, que compõe o volume 2 da História
Geral da Civilização Brasileira, escrito por Américo Jacobina
Lacombe que, não por acaso, era membro do IHGB. Na análise de
Lacombe, o “fator religioso” é apresentado por meio da sucessão de
nomeações e ações da hierarquia eclesiástica nas várias capitanias
e pelas histórias de bispados e prelazias, além das ações das ordens
Visão tridentina religiosas. Predominava, assim, uma abordagem institucional.
Visão baseada nos
pressupostos do Entre os historiadores eclesiásticos que reforçaram esta
Concílio de Trento abordagem, destacam-se Monsenhor Guilherme Schubert e Frei
(1545-1563), que
Venâncio Willeke, igualmente sócios do IHGB. Nessas abordagens,
representou uma
reforma no interior da portanto, prevalecia a visão institucional laudatória na abordagem
Igreja católica, para do papel da Igreja na sociedade colonial, sem que houvesse
fazer frente ao avanço
espaço para o estudo da forma como a Igreja se relacionava com
da Reforma Protestante.
a sociedade e como ela lidava com as práticas religiosas dos fiéis.
O concílio reafirmou a
maioria dos dogmas Lembrando que, quando essas eram apresentadas pelos autores,
católicos criticados pelos eram tratadas como superstições e ignorâncias populares.
protestantes; a busca
de uma preparação Uma exceção a essas abordagens, embora não se tratasse
considerada mais de uma história da Igreja, é Visão do paraíso, de Sergio Buarque
adequada do clero;
de Holanda. Nesse clássico da historiografia brasileira, o autor,
a doutrinação mais
sistemática dos fiéis ao procurar compreender os motivos edênicos da colonização,
pelos párocos, através expõe os confrontos entre as religiosidades indígenas e a visão
do uso do catecismo e tridentina dos jesuítas, demonstrando como esse confronto foi
maior vigilância sobre
tomado pela Companhia de Jesus como uma justificativa para a
o clero e os leigos;
busca por eliminar as catequese dos nativos.
práticas consideradas
Nos anos 1960 e 1970, uma abordagem crítica à historiografia
supersticiosas e
mágicas adotadas pela de caráter tradicional foi realizada por historiadores ligados à
população, entre outras Teologia da Libertação. Patrocinada pela CEHILA (Comissão para
medidas.

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Aula 9 – Igreja, Estado e missionação

o Estudo da História da Igreja na América Latina), o trabalho desses


autores se caracterizou por uma perspectiva de denúncia em relação
aos abusos cometidos pela Igreja na sua ação missionária no período
colonial. Segundo essa perspectiva, a Igreja não teria realizado a
sua “verdadeira missão”, pois não teria se associado ao “povo”
realizando a “verdadeira” proposta do cristianismo e efetivando uma
ação missionária libertadora. No que tange ao período colonial, tal
abordagem se concretizou principalmente na História da Igreja no
Brasil – Primeira Época, organizada por Eduardo Hoornaert. Essa
obra pretendia realizar uma reflexão, interpretando o catolicismo
brasileiro “a partir do povo”, como se vê no próprio subtítulo.
Invertendo o polo das análises tradicionais, que privilegiavam a
ação institucional, o “catolicismo popular” foi considerado como
a forma de expressão mais autêntica da religiosidade colonial, já
que expressava a resistência ao chamado catolicismo guerreiro e
patriarcal patrocinado pelo Estado colonizador. Nas palavras de
Hoornaert, em Formação do catolicismo brasileiro, “o catolicismo
popular redimiu o catolicismo oficial”, considerando-se este
último comprometido com o sistema e com os seus numerosos
“pecados”.

Embora tenha se estabelecido como uma crítica a uma história


eclesiástica tradicional, esse enfoque não deixou de construir uma
abordagem teológica sobre a história, transformando-se num juízo
de valor ao se referir a um posicionamento “não libertador” da Igreja
colonial. Neste sentido, essas teses acabaram também reivindicando
a história como um instrumento de legitimação política, ideológica
e pastoral. Se o enfoque tradicional reduzia a análise da Igreja a
uma perspectiva enaltecedora da ação catequética e depreciadora
das religiosidades, o enfoque libertador não deixaria de produzir
a mesma distorção historiográfica ao cobrar da Igreja colonial um
posicionamento que, historicamente, ela não poderia assumir. Ou
seja, uma postura tão teleológica quanto a primeira.

Esses dois enfoques mencionados não deixam de apresentar


alguns problemas no que tange à análise historiográfica. A tradição

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História do Brasil I

laudatória nada mais fez do que reproduzir o próprio discurso da


ação missionária da Igreja colonial, disseminando os estereótipos
em relação às culturas indígena e negra. Além disso, o enfoque
evolucionista contentou-se em apresentar uma sucessão de ações
administrativas da Igreja, centradas principalmente na figura dos
bispos. O que em última instância reproduzia uma velha perspectiva
da História Política, além de um forte caráter teleológico, na medida
em que a sucessão de ações da Igreja teria como fim último a
construção da nacionalidade. A segunda tradição, igualmente
teleológica, não deu uma dimensão histórica às ações da Igreja
colonial. Partia de uma concepção teológica da história, em que a
função da Igreja estaria predeterminada por uma visão pastoral das
décadas 1960-1970 comprometida com uma ação libertadora da
Igreja. Deste modo, constrói-se uma dicotomia entre o que a Igreja
deveria ter sido e não foi.

Foram os anos 80 do século XX que marcaram o surgimento


de uma nova concepção sobre a história da Igreja no período
colonial, produzida no âmbito acadêmico, no contexto de expansão
dos programas de pós-graduação em História no Brasil. Sendo
importante destacar que essa concepção se desenvolveu no bojo
dos trabalhos realizados pela renovada historiografia internacional
que, desde fins da década de 1970, inovara em suas abordagens
sobre a questão da religião e da Igreja, na Época Moderna. Na
esteira da então chamada história das mentalidades, esses estudos
enfocaram principalmente a temática das Reformas católica e
protestante, a exemplo dos trabalhos de John Bossy, Jean Delumeau,
Pierre Chaunu, Carlo Guinzburg e Peter Burke. O que diferenciava
essas análises dos estudos tradicionais realizados fora do Brasil era
o enfoque sobre a relação da Igreja com os fiéis, a partir do estudo
das vivências religiosas e das religiosidades, para além de uma visão
institucional da Igreja. Para essa ruptura, muito contribuiu o uso de
novas fontes e metodologias (não só a história serial e quantitativa,
mas também a análise densa e os estudos de caso, na esteira da
micro-história), a partir do uso de processos inquisitoriais, acervo

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Aula 9 – Igreja, Estado e missionação

cartorário e registros paroquiais de batismo, casamento e óbito,


dentre outras fontes. O diálogo dos estudiosos brasileiros com essa
produção historiográfica, a partir da década de 1980, possibilitou
que novos enfoques fossem propostos para a compreensão do papel
da Igreja e do fenômeno religioso no Brasil colonial.

Um dos aspectos mais relevantes dessa produção foi demonstrar


que, mesmo na Europa, a ação das igrejas, tanto católica quanto
protestante, teve que se deparar com um processo de resistência da
população “iletrada” apegada aos costumes locais. Deste modo,
a antiga visão de um catolicismo europeu letrado e a existência de
áreas coloniais “selvagens” refratárias à ação missionária caiu por
terra. A partir desse momento, os estudos passaram a reconhecer a
tensão envolvida no processo de evangelização que foi comum às
igrejas de ambos os lados do Atlântico.

No Brasil, a influência dessa historiografia europeia combinou-


se com uma nova postura dos historiadores em relação aos estudos
sobre a Igreja e à religião. O tema, até então, estava quase que
exclusivamente na seara dos antropólogos e sociólogos. Afinal,
dentro de uma leitura relacionada a um marxismo mais ortodoxo,
influenciada pela situação política do país assinalada pelo combate
das esquerdas ao regime militar, a temática da religião não era
vista como algo que poderia contribuir para a luta revolucionária,
já que, como “ópio do povo”, os estudos nesse campo seriam tão
alienantes como o próprio proselitismo das igrejas.

Diferentemente das duas abordagens apresentadas no início


desta introdução, os estudos realizados por essa nova historiografia
não pretenderam abordar especificamente a história da Igreja,
mas a história das religiosidades coloniais – entendidas no plural
para dar conta da diversidade cultural da sociedade colonial,
predominantemente indígena, africana, lusitana e, consequentemente,
miscigenada. Neste sentido, temos que destacar o pioneirismo
dos trabalhos de Laura de Mello e Souza e Ronaldo Vainfas, que
propuseram a reflexão sobre algumas questões importantes, como a
diferenciação entre religião e religiosidades. Aspecto que se tornou

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História do Brasil I

fundamental para que pudéssemos compreender o papel das diversas


culturas presentes no processo de colonização e o diálogo que as
mesmas empreenderam com a cultura católica ocidental.

Laura de Mello e Souza insistiu em mostrar as peculiaridades


das religiosidades populares como uma das faces do catolicismo
colonial, demonstrando como muitos dos símbolos católicos
foram reapropriados à luz das culturas presentes no processo de
colonização, inclusive a diversidade da própria cultura branca
portuguesa que, em última instância, também não correspondia
ao idealizado pela mensagem missionária da Igreja tridentina.
Ronaldo Vainfas também demonstrou a criatividade do catolicismo
tupinambá que, ao apropriar-se da simbologia católica segundo a
cultura indígena, transformou-se em um foco de resistência ao próprio
processo colonizador.

Além destes, outros trabalhos acadêmicos sobre aspectos da


história do catolicismo colonial nos permitem visualizar uma história
do papel da instituição eclesiástica na América portuguesa que, para
além de uma visão institucional, nos apresenta a relação entre o
prescrito e o vivido, ou seja, entre o projeto eclesiástico e a forma
como esse projeto foi apropriado pelos fiéis.

Atende ao objetivo 1

1.a. Diferencie as três formas como o papel da Igreja católica na América portuguesa vem
sendo abordado pela historiografia brasileira.

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Aula 9 – Igreja, Estado e missionação

1.b. Situe cada uma das três abordagens citadas anteriormente ao contexto historiográfico
no qual foram produzidas, identificando aspectos metodológicos que as embasaram.

Respostas Comentadas
1.a. O aluno deverá demonstrar que, na “visão laudatória”, a Igreja era vista como imbuída
de uma missão civilizatória junto a índios, africanos/seus descendentes e colonos; na “visão
denunciadora”, teria sido compreendida como agente do Estado colonizador, deturpando o
que seria a “verdadeira” mensagem libertadora cristã; e na revisão historiográfica consolidada
a partir da década de 1980, a ação da Igreja é vista na sua historicidade realçando-se
sua interação no processo de consolidação dos Estados Modernos e na sua inter-relação
com as vivências religiosas, identificando a forma como estas se apropriaram do discurso
eclesiástico.

1.b. O aluno deverá diferenciar: a “visão laudatória” produzida no âmbito do IHGB e de


uma história eclesiástica, na qual prevalece uma visão institucional, a partir da incorporação
do discurso oficial; a “visão denunciadora ou libertadora” produzida no contexto da Teologia
da Libertação e do pouco espaço dado aos estudos da história religiosa na produção
historiográfica dos anos da ditadura militar, na qual prevalece uma perspectiva anacrônica de
denúncia da ação da Igreja, que não teria cumprido sua missão evangelizadora; a revisão
historiográfica, produzida no contexto da expansão dos programas de pós-graduação em
História, a partir da década de 1980, e de difusão da história das mentalidades, que privilegia
o estudo das vivências religiosas em sua relação com a instituição eclesiástica.

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História do Brasil I

Igreja e legitimação da colonização


portuguesa na América

A partir das abordagens de cunho mais acadêmico sobre


a história da Igreja, buscou-se compreender não só a perspectiva
institucional enquanto expressão de um dado projeto colonizador,
mas também a forma como tal projeto foi lido e vivido pela
sociedade, para além das leituras limitadas e parciais das tendências
anteriores, o que permitiu a realização de enfoques mais amplos e
complexos sobre a forma como se teceram as relações entre Igreja,
Estado e missionação na sociedade colonial. Afinal, como argumenta
Francisco Gomes, na definição do conceito de cristandade, esta
significa um sistema de poder e legitimação da Igreja e do Estado
na sociedade, uma vez que as relações entre estes dois polos só
fazem sentido se analisadas no contexto de experiências históricas
concretas. Neste sentido, falar da construção de um sistema de
cristandade na América portuguesa significa levar em consideração
todas as injunções políticas, econômicas e socioculturais que
influenciaram na constituição das relações entre Igreja e Estado.

Ao longo da Época Moderna, o processo de consolidação


dos Estados Nacionais Modernos foi acompanhado da definição
de um modelo confessional de cristandade. Tal processo significou a
afirmação do princípio conhecido como cuius régio illius et religio,
ou seja, a religião do rei deveria ser a dos seus súditos. Com base
nesta concepção, a religião passou a ser vista como um importante
instrumento de construção de unidade cultural dos Estados Modernos,
promovendo um intenso processo de colaboração entre as igrejas –
católica e reformadas – e os respectivos soberanos. É diante dessa
conjuntura, que implicava igualmente a disputa entre católicos
e protestantes para conquistar novos fiéis, que se torna possível
entender o papel da Igreja na expansão portuguesa e no processo
de colonização na modernidade.

Diante deste contexto, como demonstra Charles Boxer, a


expansão lusa foi sendo paulatinamente legitimada por Roma.

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Aula 9 – Igreja, Estado e missionação

Três bulas papais atestam essa legitimação. A primeira, de 18 de


junho de 1452, a Dum Diversas, autorizava o monarca português
a capturar e submeter os sarracenos, pagãos e outros inimigos da
Cristandade, podendo apossar-se de seus bens e submetê-los à
escravidão perpétua. A segunda bula, a Romanus Pontifex, de 8 de
janeiro de 1455, é considerada a mais importante das três, sendo
denominada por alguns como a “carta do imperialismo português”.
Por ela, a obra de D. Henrique na defesa da fé era enaltecida
reconhecendo-se ao monarca português a jurisdição espiritual
sobre todas as terras conquistadas. Era a afirmação do chamado
Padroado Régio, que representava uma combinação de direitos,
privilégios e deveres concedidos pelo papado à Coroa portuguesa
para patrocinar as missões católicas e as instituições eclesiásticas
no além-mar. Em troca de recolher o dízimo eclesiástico, a Coroa
se obrigava a sustentar a propagação do catolicismo nas áreas
de conquista e prover condições para o culto, podendo propor a
criação de dioceses e paróquias, erigir ou permitir a construção de
igrejas, apresentar bispos e demais cargos eclesiásticos (como a
nomeação de sacerdotes). Representava, assim, a aliança estreita
e, por muitos séculos, indissolúvel entre a Cruz e a Coroa, o trono e
o altar, a fé e o império. A terceira bula, de 13 de março de 1456,
a Inter Caetera é uma confirmação da Romanus Pontifex, solicitada
pelo Infante D. Henrique e por D. Afonso V.

trecho da bula Romanus Pontifex

(...) que o mesmo Rei D. Afonso ou os seus


sucessores e o Infante possam estabelecer, fundar
e construir igrejas, mosteiros e outros lugares
pios, assim nas ilhas, províncias e lugares por
ela já adquiridos, como naqueles que de futuro
vierem a adquirir; que possam enviar para esses
lugares quaisquer pessoas eclesiásticas, seculares
ou regulares de qualquer Ordem, ainda que

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História do Brasil I

seja mendicante, que para lá queiram ir de sua


própria vontade, com autorização, porém, dos
seus superiores; e que estas lá habitem durante
a sua vida, e possam ouvir de confissão os que
nessas partes viverem ou a elas forem, e depois
de confessados os possam absolver de todos os
casos, com exceção dos que estão reservados à
dita Sé, dar-lhes a penitência correspondente, e
administrar-lhes os sacramentos. Decretamos, por
isso, que as referidas pessoas eclesiásticas lícita
e livremente o possam fazer assim; e ao dito D.
Afonso, aos seus sucessores Reis de Portugal que
depois dele vierem, e ao Infante, concedemos e
permitimos que possam dar à execução, o que dito
é (...). (apud BRÁSIO, 1973, p. 42).

Atende ao objetivo 2

2. Explique o papel da Igreja católica no processo de construção da cristandade colonial,


na América portuguesa.

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Aula 9 – Igreja, Estado e missionação

Resposta Comentada
Deverá ser destacado que a Igreja foi fundamental no processo de expansão lusa na América,
e que sendo o catolicismo a religião oficial do Estado português, coube à Igreja importante
papel no processo de construção da unidade cultural e da legitimação do projeto colonizador,
através do padroado régio.

Exemplo dessa relação entre Igreja e Estado no processo


de legitimação da colonização pode ser visto na análise do
funcionamento do sistema do padroado na América portuguesa,
através do processo de criação e funcionamento das paróquias ou
freguesias coloniais.

Segundo Fernando Torres-Londoño, nos primórdios da


colonização, as capelas antecediam as paróquias, constituindo-se no
núcleo original dos povoados. Estabelecidas por grupos de colonos,
constituíam-se em ermidas muito simples, igrejinhas de pau a pique
com telhado de palha ou oratórios, erguidos e sustentados pelos
moradores, que faziam referência a uma expressão de fé dos colonos
e a necessidade de sacralizar o espaço ocupado com os signos
católicos da cruz, do sino e do altar, recebendo os sacramentos
das mãos de missionários ou capelães. Por trás de uma capela que
vingava, estaria um grupo de colonos interessados em ser enterrados
como cristãos, um senhor de engenhos preocupado com a salvação
de sua alma ou um bandeirante que queria ter reconhecido o seu
arraial junto às instâncias do poder colonial.

Enquanto as capelas remetiam à presença e à atuação dos


leigos, as paróquias assinalavam a presença do Estado metropolitano
através do padroado régio. As paróquias instituídas por intermédio
da Coroa portuguesa, no âmbito do padroado, eram designadas
de coladas; ou seja, mantidas pela Coroa em caráter vitalício. De

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História do Brasil I

modo geral, a paróquia colada indicava o reconhecimento por


parte das autoridades coloniais e metropolitanas da consolidação
de áreas de ocupação com certa representatividade econômica
ou expressão política, que deveria se expressar na capacidade
demonstrada pelos colonos para levantar uma igreja e aparelhá-la
adequadamente ao culto, além do pagamento do dízimo por parte
dos fregueses que, pelo direito do padroado, pertencia à Coroa.
Em muitos casos, a formação das paróquias coladas se dava pela
exigência e pressão dos fregueses, ávidos pelo reconhecimento
de sua condição por parte do Estado; o que lhes garantiria a
existência de instituições permanentes, de caráter vitalício, tais
como a administração continuada dos sacramentos e a produção de
registros assegurados legalmente (como os de batismos, casamentos
e óbitos), que seriam traduzidos em direitos, privilégios e prestígio
propiciados pela estrutura eclesiástica.

Através da Mesa da Consciência e Ordens – instituição da


administração portuguesa, criada em 1532 e responsável, entre outros
assuntos, pela aplicação do padroado aos territórios ultramarinos:
examinando as indicações de sacerdotes para as paróquias e os
cabidos das catedrais, as solicitações dos bispos para criação de
uma nova freguesia e as queixas dos fiéis a respeito de um pároco
considerado relapso –, as paróquias coladas eram providas de padres
vitalícios, que deveriam administrá-las conforme as recomendações
do Concílio de Trento. Esse processo de nomeação ocorria mediante
concurso organizado pelo bispo, no qual os candidatos eram
examinados acerca da doutrina e quanto a sua idoneidade. Escolhido
o nome, o bispo o encaminhava ao rei que, através da Mesa da
Consciência e Ordens, deveria confirmá-lo.

Uma vez aprovado, o pároco recebia a paróquia em caráter


vitalício e ascendia a um privilégio que o colocava numa situação de
diferenciação social em relação aos demais padres do baixo clero
(que não possuíam colocação fixa): por terem poderes e status na
sociedade colonial, devido à autoridade que passavam a exercer
nos planos religioso e civil, tornando-se, na prática, “funcionários da

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Aula 9 – Igreja, Estado e missionação

Coroa”, tendo como sustento o recebimento de um benefício anual


– a côngrua – pago trimestralmente pela Real Fazenda local.

Além da côngrua, o pároco poderia acumular outras fontes de


receita, que dependiam das condições da freguesia: as conhecenças
– que se constituíam em uma remuneração a que os fiéis estavam
obrigados, por ocasião da Quaresma, pelo cumprimento do preceito
da confissão e comunhão pascal – e o pé de altar ou estola –, que
significava uma taxação pelo pároco sobre batismos, casamentos e
enterros, realizados no âmbito da paróquia cuja competência gerava
frequentes atritos com capelães ou regulares que desempenhassem
essas funções nos demais templos da freguesia. A Coroa ainda
pagava ao pároco os guisamentos ou ordinária, que consistia
numa módica contribuição destinada à sustentação das atividades
do templo, tal como a aquisição de cera e de vinho pertencentes à
Fábrica
fábrica da igreja.
Era o organismo

Segundo Torres-Londoño, a criação de paróquias coladas, que administrava


o patrimônio e os
sobretudo no período colonial, se deu de forma lenta, não obedecendo
rendimentos de uma
necessariamente a razões pastorais. Para o autor, o demorado paróquia e zelava
reconhecimento das paróquias coladas por parte do rei indicava o pela conservação dos
seus bens móveis e
pouco interesse que o Estado tinha em abrir mão de “seu” dízimo,
imóveis, significando,
principalmente pelo direito que as autoridades tinham adquirido assim, o patrimônio e
de poder utilizar o chamado resíduo que teoricamente restava da a administração das

diferença entre a receita e a despesa. Isso explicaria o fato de a igrejas matrizes.

Coroa não ter muito interesse em gastar com bispados, paróquias


e côngruas, principalmente em locais que não se constituíssem em
núcleos urbanos com população da qual se poderia cobrar dízimo.
Situação que contribuía para o que Sérgio Chahon se refere como
afrouxamento da malha paroquial, diante da relutância com que
o padroado assumia a responsabilidade pelo sustento material do
culto divino em terras ultramarinas, como indica a parcimônia com
que os recursos da Fazenda Real eram geridos no que tange a tal
finalidade.

Um segundo exemplo do papel da Igreja como legitimadora


da colonização empreendida pelo Estado português na América

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História do Brasil I

pode ser visto no estudo acerca do processo de missionação.


Entenderemos esse processo como a ação de conversão, catequese
ou evangelização, não só como costumeiramente se concebe,
frente aos índios, mas também dirigido aos africanos e seus
descendentes.

Atende ao objetivo 3

3. Conceitue e explique o funcionamento do padroado régio no processo de


colonização.

Resposta Comentada
O aluno deverá caracterizar de que modo o padroado representava uma combinação de direitos,
privilégios e deveres concedidos pelo papado à Coroa portuguesa para patrocinar as missões
católicas e as instituições eclesiásticas no além-mar, demonstrando como o estabelecimento dos
colonos se fez acompanhar da presença dos templos católicos e do clero.

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Aula 9 – Igreja, Estado e missionação

A missionação entre os índios

Segundo Baeta Neves, a ação missionária ambicionava


incorporar as populações coloniais a dois universos: o de Deus e o
do Império. Deste modo, como argumenta Maria Regina Celestino de
Almeida, a missão visava cumprir, para além do proselitismo religioso,
as tarefas essenciais para as Coroas ibéricas de abrir fronteiras e
garantir a soberania das áreas ocupadas, organizando a força de
trabalho indígena. Os jesuítas, neste aspecto, caracterizaram-se
como a grande ordem missionária a serviço da colonização.

Figura 9.1: Missionário jesuíta, imagem de 1779.


Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Jesuitpainting.jpg

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História do Brasil I

Segundo Ronaldo Vainfas, um dos aspectos que mais se


destacou no processo de conversão do elemento indígena foi a
demonização da sua cultura. Os ameríndios, estranhos aos olhos do
europeu, foram descritos como seres estranhos, cujo tipo físico, cor,
hábitos e costumes foram associados à inferioridade, à animalidade
e a práticas diabólicas. Tal perspectiva foi responsável por detratar e
hostilizar os costumes dos índios. A nudez dos corpos, por exemplo,
foi associada à licenciosidade e ao apego à vida promíscua. Provas
incontestáveis de uma associação ao demônio.

Uma das saídas para vencer esses costumes considerados


demoníacos era cristianizá-los, recorrendo-se àquilo que o historiador
francês Jean Delumeau denominou “uma pastoral do medo”.
Na linguagem dos missionários, a formulação de um discurso
atemorizante visava combater os exemplos considerados negativos
associados à cultura indígena. O que acabamos de afirmar pode
ser constatado no famoso Auto de São Lourenço, composto pelo
jesuíta José de Anchieta. Nesta peça teatral, as personagens que
rivalizavam com os emissários divinos recebiam nomes indígenas
Guaixará e Aimbirê. Após o martírio de São Lourenço, os demônios
Guaixará e Aimbirê procuram subverter a ordem, no que são
enfrentados e posteriormente vencidos por São Sebastião. Ao longo
do auto, diversos costumes indígenas são demonizados, como se
pintar de vermelho, beber cauim, matar e comer prisioneiros.

Auto de São Lourenço – José de Anchieta


Segundo ato
(Eram três diabos que querem destruir a aldeia com pecados,
aos quais resistem São Lourenço, São Sebastião e o Anjo
da Guarda, livrando a aldeia e prendendo os tentadores, cujos
nomes são: Guaixará, que é o rei; Aimbirê e Saravaia, seus
criados.)

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Aula 9 – Igreja, Estado e missionação

Guaixará

Esta virtude estrangeira


Me irrita sobremaneira.
Quem a teria trazido,
com seus hábitos polidos
estragando a terra inteira?

Só eu
permaneço nesta aldeia
como chefe guardião.
Minha lei é a inspiração
que lhe dou, daqui vou longe
visitar outro torrão.

Quem é forte como eu?


Como eu, conceituado?
Sou diabo bem assado.
A fama me precedeu;
Guaixará sou chamado

Meu sistema é o bem viver.


Que não seja constrangido
o prazer, nem abolido.

Quero as tabas acender


com meu fogo preferido
Boa medida é beber
cauim até vomitar.
Isto é jeito de gozar
a vida, e se recomenda
a quem queira aproveitar.

A moçada beberrona
trago bem conceituada.
Valente é quem se embriaga
e todo o cauim entorna,
e à luta então se consagra.

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História do Brasil I

Que bom costume é bailar!


Adornar-se, andar pintado,
tingir pernas, empenado
fumar e curandeirar,
andar de negro pintado.

Andar matando de fúria,


amancebar-se, comer
um ao outro, e ainda ser
espião, prender Tapuia,
desonesto a honra perder.

Para isso
com os índios convivi.
Vêm os tais padres agora
com regras fora de hora
prá que duvidem de mim.
Lei de Deus que não vigora.

(ANCHIETA, 2010)

Deste modo, a missionação pretendia-se, enquanto um


processo uniformizador, tornar os índios fiéis vassalos de sua
majestade. Sobrepor-se à cultura indígena significava inserir o nativo
no interior da cristandade. Essa inserção, com efeito, situava-se para
além do processo aculturador. Os índios reduzidos ou aldeados
funcionavam como perfeitos agentes da colonização, já que além do
braço relacionado ao cultivo, também assumiram papel fundamental
na estruturação do Império. Como afirma Maria Regina Celestino
de Almeida, os índios, além de mão de obra, foram também
responsáveis pela ocupação do território e manutenção do mesmo,
principalmente diante das invasões estrangeiras.

Na Amazônia, como ressalta Eduardo Hoornaert, o trabalho


da Ordem do Carmo foi fundamental na ocupação da região,

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Aula 9 – Igreja, Estado e missionação

durante o século XVIII, realizando importantes missões nos rios Negro


e Solimões. Em 1720, os carmelitas contavam com 15 missões na
área, que ajudaram não só a garantir fronteiras, mas também impor
as regras de trabalho às populações indígenas locais.

A catequese do elemento indígena, no entanto, gerou inúmeras


polêmicas entre as ordens, o Estado e os colonos. Tais polêmicas
estabeleceram-se principalmente com a Companhia de Jesus. Embora
vital à obra colonizadora, a ação dos jesuítas acabou aumentando
de forma, por vezes excessiva, o seu poder, o que ao longo do
período colonial gerou diversos embates com a Coroa, culminando
com a sua expulsão no período pombalino. A relação com os
colonos sempre foi tencionada em função do controle da mão de
obra indígena. Segundo Maria Regina Celestino de Almeida, há
um equívoco em se achar que a política dos aldeamentos sempre
serviu aos colonos. As expectativas em relação aos aldeamentos nem
sempre fizeram coincidir os interesses de colonos e missionários. A
Coroa, por vezes, tendeu a fortalecer a posição da Companhia,
já que em relação aos índios aldeados não se esperava somente o
trabalho, mas também a ação na defesa das fronteiras da América
lusa. As demais ordens consideraram igualmente os jesuítas como
rivais, na medida em que a sua eficácia missionária angariou
inúmeros privilégios concedidos pelo monarca.

Todavia, como antes mencionado com base no trabalho de


Ronaldo Vainfas, a tarefa de conversão do indígena não se fez sem
percalços. A resistência foi constante e, em algumas situações, como
demonstra Maria Regina Celestino de Almeida, houve necessidade
de se negociar com os índios, inclusive na política de definição dos
aldeamentos, já que tais comunidades prestaram serviços ao rei
na defesa do território colonial e exigiam em troca os respectivos
privilégios. Um exemplo disso é o caso da aldeia de São Lourenço em
Niterói, cujo líder Arariboia, em função do apoio aos portugueses na
guerra contra os franceses, foi agraciado com sesmaria na margem
oposta à cidade do Rio de Janeiro, além de receber o hábito da
Ordem de Cristo – a maior honraria concedida pela monarquia
portuguesa.

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História do Brasil I

Atende ao objetivo 4

4. Relacione os objetivos teológicos/evangelizadores e os temporais/colonizadores no


processo de missionação da Igreja entre os índios.

Resposta Comentada
Destacar que, por um lado, o projeto aculturador do catolicismo pretendia extirpar os costumes
identificados como inferiores, animalescos e demoníacos, tornando os índios fiéis cristãos
e tementes a Deus. Por outro, as práticas de missionação levadas a cabo pela Igreja se
enquadravam no projeto colonizador, através dos aldeamentos, de abrir fronteiras, ocupando
o território e produzindo mão de obra, tornando os índios fiéis vassalos de sua majestade.

A missionação entre os africanos e seus


descendentes

Ao contrário do que argumentam alguns historiadores, pensar


a obra missionária da Igreja não se resume à reflexão sobre a
questão indígena. Hoornaert é um dos que defende que a catequese

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Aula 9 – Igreja, Estado e missionação

foi algo pensado pela Igreja com ênfase em relação ao indígena.


Como já estava reduzido ao “sistema colonial”, o africano não teria
ensejado estratégias específicas de conversão.

Discordando desta abordagem, Anderson Oliveira argumenta


que coube à Igreja não só justificar a escravidão negra, mas também
garantir a inserção subordinada de africanos e seus descendentes
na cristandade colonial, por meio da catequese. Em relação aos
africanos, a Igreja tinha a convicção de que seu destino ao cativeiro
era perfeitamente compreensível pela marca do pecado e pela
sua inferioridade ética. Eram os africanos, segundo a concepção
vigente, os legítimos descendentes de Cam, filho amaldiçoado por
Noé por ter zombado de sua nudez. Como Noé representava a
honestidade num mundo de corrupção, Cam e seus descendentes
foram identificados à negatividade ética e à tentação diabólica de
destruir o plano divino.

Diante de tal concepção, o caráter fundamental que a


escravidão africana assumiu para o Império Colonial Português não
poderia deixar a Igreja ao largo da questão. A própria estrutura
social, fundada nas diferenças e hierarquias, exigia um projeto
específico de cristianização dos africanos e seus descendentes. Neste
sentido, a catequese, enquanto um discurso que queria produzir uma
unidade de procedimentos e crenças, não pôde fazê-lo sem levar em
consideração as diferenças sociais e a necessidade de reproduzi-
las para o bom funcionamento dos padrões de uma sociedade com
traços de Antigo Regime.

Por outro lado, a própria conjuntura que se abria da segunda


metade do século XVII em diante colocava a urgência em se
pensar a questão africana, na medida em que africanos e seus
descendentes tornaram-se o maior contingente populacional da
América portuguesa. Do lado senhorial, a questão de Palmares
exigia uma melhor definição do projeto escravista-cristão, como
afirma Ronaldo Vainfas.

171
História do Brasil I

Antonio Vieira foi um dos primeiros a refletir sobre a


questão. O Sermão XIV do Rosário, de 1633, trabalhava a ideia
da escravidão africana como castigo e dádiva, onde a divindade
colocava para os “pretos” a possibilidade de resgate do pecado.
Segundo Vieira, os africanos e seus descendentes deveriam ser gratos
pelo fato de terem sido arrancados da África e trazidos ao Brasil.
Na condição de escravos, estariam numa situação melhor do que
aqueles que permaneceram em meio ao “gentilismo” inerente aos
povos africanos. A força para suportar os sofrimentos do cativeiro e
ver neles a possibilidade do resgate estaria na devoção ao Rosário
de Maria, daí a temática do sermão.

Ao final do seiscentos e início do setecentos, as preocupações


com a conversão dos negros se intensificaram. Algumas obras
publicadas no século XVIII atestaram esse processo: destacam-se,
fundamentalmente, os trabalhos dos jesuítas Jorge Benci (Economia
Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos), André João Antonil
(Cultura e Opulência do Brasil), e do padre Manoel Ribeiro da Rocha
(Etíope Resgatado: empenhado, sustentado, corrigido, instruído e
libertado). A preocupação com o governo dos escravos não estava
dissociada da necessidade de cristianizá-los. Para Jorge Benci, por
exemplo, era imperioso vencer a ignorância, pois o desconhecimento
dos africanos da Lei de Deus implicava um fator de desestabilidade
social. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de
1707, também expressaram a preocupação com a conversão
dos negros, tanto que traziam um catecismo especial dedicado à
catequese dos escravos, chamado de “Breve Instrução nos Mistérios
da Fé, acomodada ao modo de falar dos escravos do Brasil, para
serem catequizados por ela”, no qual se identifica aquela associação
entre pecado e salvação no processo de legitimação do cativeiro
entre os africanos.

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Aula 9 – Igreja, Estado e missionação

Catecismo dos escravos


P – Quem fez este mundo? /R – Deus.
P – Quem fez a nós? /R – Deus.
P – Deus onde está? /R – No Céu, e em todo o mundo.
P – Temos um só Deus ou muitos? /R – Temos um só Deus.
P – Quantas Pessoas? /R – Três.
P – Dizei os seus nomes? /R – Pai, Filho, Espírito Santo.
P – Qual dessas pessoas tomou a nossa carne? /R – O
Filho.
P – Qual dessas pessoas morreu por nós? /R – O Filho.
P – Como se chama esse Filho? /R – Jesus Cristo.
P – Sua Mãe como se chama? /R – Virgem Maria.
P – Onde morreu este Filho? /R – Na Cruz.
P – Depois que morreu onde foi? /R – Foi lá abaixo da
terra buscar as almas boas.
P – E depois aonde foi? /R – Ao Céu.
P – Há de tornar a vir? / R – Sim.
P – Que há de vir buscar? / R – As almas de bom
coração.
P – E para onde as há de levar? / R – Para o Céu.
P – E as almas de mau coração para onde hão de ir? /
R – Para o Inferno.
P – Quem está no Inferno? /R – Está o Diabo.
P – Quem mais? /R – As almas de mau coração.
P – E que fazem lá? /R – Estão no fogo que não se
apaga.
P – Hão de sair de lá alguma vez? /R – Nunca.
P – Quando nós morremos morre também a alma? /R –
Não. Morre só o corpo.
P – E a alma para onde vai? /R – Se é boa a alma, vai
para o Céu. Se a alma não é boa, vai para o Inferno.
P – E o corpo para onde vai? /R – Vai para a terra.
P – Há de tornar a sair da terra vivo? /R – Sim.
P – Para onde há de ir o corpo, que teve alma de mau
coração? /R – Para o Inferno.

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História do Brasil I

P – E para onde há de ir o corpo, que teve a alma de


bom coração? /R – Para o Céu
P – Quem está no Céu com Deus? /R – Todos os que
tiveram boas almas.
P – Hão de tornar a sair do Céu, ou hão de estar lá para
sempre? /R – Hão de estar lá para sempre.

Instrução para a Confissão.


P – Para que é a Confissão? /R – Para lavar a alma
dos pecados.
P – Quem faz a Confissão esconde pecados? /R – Não.
P – Quem esconde pecados para onde vai? /R – Para
o Inferno.
P – Quem faz pecados, há de tornar a fazer mais?
/R – Não.
P – Que faz o pecado? /R – Mata a alma.
P – A alma depois da Confissão torna a viver? /R – Sim.
P – O teu coração há de tornar a fazer pecados? /R
– Não.
P – Por amor de quem? /R – Por amor de Deus.

Instrução para a Comunhão


P – Tu Queres Comunhão? /R – Sim.
P – Para quê? /R – Para pôr na alma o nosso Senhor
Jesus Cristo.
P – E quando está nosso Senhor Jesus Cristo na
Comunhão? /R – Quando o Padre diz as palavras.
P – Aonde diz o Padre as palavras? /R – Na Missa.
P – E quando diz as palavras? /R – Quando toma a sua
mão na Hóstia.
P – Antes que o Padre diga as palavras, está já na Hóstia
nosso Senhor Jesus Cristo? /R – Não. Está no pão.
P – E quem pôs nosso Senhor Jesus Cristo na Hóstia?
/R – Ele mesmo, depois que o Padre disse as palavras.
P – E no Cálix o que está, quando o Padre o toma
na mão? /R – Está vinho, antes que o Padre diga as
palavras.

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Aula 9 – Igreja, Estado e missionação

P – E depois que diz as palavras, que coisa está no Cálix?


R – Está o sangue de nosso Senhor Jesus Cristo.
P – Por amor de quem? /R – Por amor de Deus.
(VIDE, 1720, p. 229)

Ciente do seu papel na manutenção de uma estrutura social


excludente, a Igreja multiplicou as suas ações ao longo do setecentos
na tarefa de inserção dos chamados “homens de cor” no interior da
cristandade. A multiplicação dessas ações se desdobraria também na
promoção de santos pretos que deveriam funcionar como exemplos
de virtudes cristãs para os africanos e seus descendentes. Carmelitas
e franciscanos, afamados hagiógrafos no Ocidente cristão, foram
grandes estimuladores de devoções entre os negros. A título de
exemplificação, podemos destacar o trabalho de Frei José Pereira de
Santa que, entre 1735 e 1738, publicou Os dois atlantes de Etiópia.
Santo Elesbão, imperador XLVII da Abissínia, advogado dos perigos
do mar & Santa Efigênia, princesa da Núbia, advogada dos incêndios
dos edifícios. Ambos Carmelitas. A obra em questão visava difundir a
vida de dois exemplos de virtudes cristãs, segundo Frei José, que teriam
vivido em terras africanas. Cabe ressaltar que era de igual propósito
associar este trabalho à imagem dos carmelitas, já que as ordens
religiosas também disputavam espaços no interior da cristandade,
principalmente na eficiência de melhor servir aos propósitos da Coroa,
carreando uma quantidade maior de mercês.

Caso semelhante pode ser visualizado no trabalho de Frei


Apolinário da Conceição, que publicou, em 1744, a obra Flor
Peregrina por Preta ou Nova Maravilha da Graça, descoberta na
prodigiosa vida do Beato Benedito de São Filadélfio. Religioso leigo
da Província Reformada da Sicília, das da mais estreita Observância
da Religião Seráfica, que visava igualmente difundir a vida do irmão
leigo franciscano, São Benedito, que nas palavras de Frei Apolinário
deveria ser um exemplo a ser seguido pelos pretos.

175
História do Brasil I

Figura 9.2: São Benedito.


Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Benedict_
the_Moore-icon.jpg

São Benedito dos Homens Pretos

São Benedito. Meu lindo Amor, dá-me uma sorte da


Vossa cor, se houve repetidas vezes dizer assim, nas
que se tiram para públicas obras pias, tanto nesta Corte,
como em outras partes, que até para as terem boas vos
invocam com o seu sobredito mote; e isto que todos
os interessados desejam nas tais sorte, vejo conseguiu
na vossa Beatificação pelo Vigário de Cristo a Família
Ultramana da mais Estreita e Regular Observância de
N. Seráfico P.S. Francisco, composta de trinta e três
províncias, três custódias e seis Prefeituras, pois havendo
de toda ela já no ano de mil setecentos e dez, as causas
de cinquenta servos de Deus na Sagrada Rota, em
ordem a Sua Beatificação e Canonização, foste, e foi
vós primeiro, que como pretinho nos acidentes lhe saiu,

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Aula 9 – Igreja, Estado e missionação

como por primeira sorte levando a tantos ilustres brancos


a Primazia em a Beatificação, e colocação de Vossas
Imagens nos altares da Militante Igreja.

(...) referindo-se assim mesmo algumas virtudes do


Benedito preto, que se segue, não pequeno fruto
espiritual assim dos Brancos, como dos Pretos, estes
por se lhes propor um Santo de sua própria condição,
aqueles, por verem um por seu nascimento, tão humilde,
tão exaltado, e favorecido (CONCEIÇÃO, 1744).

Atende ao objetivo 4

5. Relacione os objetivos teológicos/evangelizadores e os temporais/colonizadores no


processo de missionação da Igreja entre os africanos e seus descendentes.

Resposta Comentada
O aluno deverá caracterizar a concepção eclesiástica de que o cativeiro seria uma forma de
purgação do pecado original. Concepção esta que ia ao encontro do projeto colonizador
em sua fase de maior entrada de africanos na América, utilizados como mão de obra.

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História do Brasil I

CONCLUSÃO

Nesta aula pudemos perceber, portanto, que a atuação da


Igreja católica na legitimação da expansão portuguesa na América
esteve relacionada não só aos aspectos teológicos e evangelizadores,
mas contribuiu também para o processo de uniformização cultural,
a exemplo da missionação indígena e africana. Tal atuação foi
fundamental para a consolidação do projeto colonizador, na medida
em que a Igreja estava ligada ao Estado em regime de união, como
exemplificado através do padroado régio. Deste modo, por um lado,
a colonização portuguesa da América buscou produzir súditos ou
vassalos que fossem ao mesmo tempo fiéis católicos e se efetivou
enquanto um projeto da Igreja e do Estado. Mas esse processo não se
fez sem conflitos dentro da própria Igreja e no interior da sociedade
colonial. Por outro lado, embora possamos reconhecer que a Igreja
obteve sucesso no processo de evangelização da sociedade colonial,
através do seu discurso e de sua ação missionária, este sucesso não
pode ser visto como ilimitado ou como totalmente uniformizador,
uma vez que margens de não enquadramento existiram nos vários
segmentos sociais. O que não diminui o papel fundamental da Igreja
na sociedade colonial. Porém, nos obriga a analisar de forma mais
complexa a relação entre sociedade, Igreja e Estado na América
portuguesa.

RESUMO

Na presente aula procurou-se enfocar a questão da religião


na América portuguesa, ao privilegiar o enfoque institucional
demarcando de forma mais precisa as relações entre Estado e Igreja
e a construção de uma legitimação ideológica para o processo de
colonização.

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Aula 9 – Igreja, Estado e missionação

Informação sobre a próxima aula

Na próxima aula procurar-se-á dar destaque aos limites da


ação de catequese, enfocando-se precisamente os aspectos das
religiosidades coloniais como expressões de reinterpretações do
catolicismo diante do intenso processo de mestiçagem cultural que
caracterizou as vivências religiosas no período colonial.

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