(2019) Barsaglini Biato. Bilhetes (Arrastado)

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CAPÍTULO

Marcos William Kaspchak Machado


(Organizador)

RESERVADO PARA TITULO

Impactos das Tecnologias nas Ciências


Humanas e Sociais Aplicadas 5

Atena Editora
2019

Impactos das Tecnologias nas Ciências Humanas e Sociais Aplicadas 5 Capítulo 2


2019 by Atena Editora
Copyright da Atena Editora
Editora Chefe: Profª Drª Antonella Carvalho de Oliveira
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Prof. Dr. Willian Douglas Guilherme – Universidade Federal do Tocantins
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)
I34 Impactos das tecnologias nas ciências humanas e sociais aplicadas
5 [recurso eletrônico] / Organizador Marcos William Kaspchak
Machado. – Ponta Grossa (PR): Atena Editora, 2019. –
(Impactos das Tecnologias nas Ciências Humanas e Sociais
Aplicadas; v. 5)

Formato: PDF
Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: World Wide Web
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7247-165-7
DOI 10.22533/at.ed.657191103

1. Ciências sociais aplicadas. 2. Humanidades. 3. Tecnologia.


I.Machado, Marcos William Kaspchak. II. Série.
CDD 370.1
Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422
O conteúdo dos artigos e seus dados em sua forma, correção e confiabilidade são de
responsabilidade exclusiva dos autores.
2019
Permitido o download da obra e o compartilhamento desde que sejam atribuídos créditos aos
autores, mas sem a possibilidade de alterá-la de nenhuma forma ou utilizá-la para fins comerciais.
www.atenaeditora.com.br
CAPÍTULO 17

BILHETES/BEREUS COMO AGENCIAMENTO PARA


COMUNICAR NECESSIDADES DE SAÚDE EM
PENITENCIÁRIA, MATO GROSSO

Reni Aparecida Barsaglini pelas condições de sua produção e o segundo


Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de ocupa-se dos conteúdos. Os bilhetes informam
Saúde Coletiva, Departamento de Saúde Coletiva, pertencimentos e contextos e, ao atravessarem
Cuiabá – Mato Grosso.
as grades, enfrentam intermediações até
Emília Carvalho Leitão Biato
Universidade de Brasília, Departamento de
traduzí-los como necessidade para legitimar o
Odontologia, Brasília – Distrito Federal.
atendimento. Como traduções de necessidades

lembretes, solicitações, histórias mesclando


RESUMO: No contexto prisional é comum dados da situação, “diagnóstico”, sinais e
os presos usarem bilhetes (chamado, sintomas. As privações postas pelo contexto
nativamente, bereu) para se comunicar com prisional restringem a ação, mas também
pessoas e equipes de diferentes setores, capacitam e criam condições de socialidades
entre eles o de saúde, em um esforço de que e agenciamentos pelos presos para agir
necessidades diversas gerem demandas conforme seus projetos. O acesso dos presos
e sejam atendidas. Adota-se o conceito de ao atendimento em saúde é perpassado por
agência referindo à ação e criatividade dos elementos subjetivos, objetivos, relacionais,
sujeitos diante constrangimentos sociais,
estruturais em situações cotidianas. Como desigualdades intra e extra-muros como
parte de uma pesquisa qualitativa analisam-se sinalizou a análise.
aqui os bilhetes quanto à sua materialidade, PALAVRAS-CHAVE: agência, saúde no
funções e conteúdos em uma penitenciária de sistema prisional, comunicação, necessidades
Mato Grosso. O material empírico compõe- de saúde
se, centralmente, de bilhetes propriamente
que chegavam à enfermaria, foram lidos e ABSTRACT: In the prison context, it is common
interpretados nas suas mensagens materiais e for prisoners to use notes (called, natively,
imateriais. Complementarmente, consultamos bereu) to communicate with people and
teams from different sectors, including health
saúde. Os resultados foram organizados em care, in an effort that diverse needs generate
dois tópicos: o primeiro enfoca a aparência demands and are met. It adopts the concept of
dos bilhetes marcados pelos seus autores e agency referring to the action and creativity of

Impactos das Tecnologias nas Ciências Humanas e Sociais Aplicadas 5 Capítulo 17 165
the subjects facing social, structural constraints in everyday situations. As part of a
qualitative research, we analyze the notes regarding their materiality, functions and
contents in a penitentiary of Mato Grosso. The empirical material consists, centrally, of

immaterial messages. In addition, we consulted the interviews with health professionals.

notes marked by their authors and the conditions of their production and the second
deals with the contents. The notes inform their belongings and contexts and, when
crossing the grids, they face intermediation until they reach the recipient / professional
who can translate them as a need to legitimize the service. As translations of felt needs,

“diagnosis”, signs and symptoms. The privations imposed by the prison context restrict
action, but also enable and create conditions of socialities and agency by prisoners to

mural inequalities as the analysis indicated.


KEYWORDS: agency, health in the prison system, communication, health needs

1 | INTRODUÇÃO

No contexto prisional é comum os presos usarem bilhetes (chamado, nativamente,


bereu) como forma de agenciamento para se comunicarem com pessoas e equipes
de diferentes setores, entre eles o de saúde, em um esforço de que necessidades
diversas gerem demandas e sejam atendidas. Partimos do entendimento de que o
contexto em que este movimento ocorre – a prisão – caracteriza-se como instituição
austera, de controle (FOUCAULT, 1999) onde vige a preocupação com a vigilância e
a disciplina, ou seja, mecanismos de controle impetrados por um aparelho/dispositivo
disciplinar.
Todavia, concordamos com GIDDENS (1979) para quem os sistemas de controle
nunca podem funcionar com perfeição, porque as pessoas que são controladas têm
agência e entendimento e, portanto, sempre conseguem encontrar maneiras de fugir
ou de resistir a eles. Subjaz aqui uma discussão histórica entre estrutura e ação em
que o conceito de agência nos parece contornar, enquanto:

Contudo, os indivíduos agem sempre em contextos nos quais estão presentes


regras e recursos (estrutura) que possibilitam a existência de práticas sociais,

Em complementação recorre-se à LÓPEZ (2004) para salientar que agência não


se refere a uma propriedade do indivíduo exclusivamente, mas é relacional, ou seja, se
refere à capacidade de agir no processo da experiência social e de poder-fazer que é

Impactos das Tecnologias nas Ciências Humanas e Sociais Aplicadas 5 Capítulo 17 166
sempre localizado e situado no espaço social em uma rede de interações constituindo-
se, assim, em agir na coletividade.
E foi desta forma que olhamos para os bilhetes produzidos pelos detentos em
uma penitenciária masculina, de regime fechado, do estado de Mato Grosso/Brasil,
para comunicar diversas necessidades de saúde e acessar o atendimento. No Brasil,
o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (BRASIL, 2005) e a Política
Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema
Prisional - PNAISP (BRASIL, 2014), amparam legalmente a implantação de equipes
de saúde em unidades prisionais com mais de 100 presos, as quais devem atuar
orientadas pelos princípios de universalidade, integralidade e equidade do Sistema
Único de Saúde – SUS.
De modo geral, a comunicação das necessidades se dá intermediada pelos
Agentes Prisionais, por outros presos que circulam em atendimento ou trabalhando
fora das celas (celas-livres
(administração local, juízes) que são comuns em unidades prisionais e parece que
os bereus são mais acionados em combinação com estes canais, mas prinicpalmente

Assim, as formas como as necessidades de saúde dos presos chegam ao

também são variadas e intermediadas ganhando destaque neste processo, e aqui


enfocado, os bilhetes/bereus.

necessárias para o gozo da saúde, como alimentação, abrigo, segurança, afeto,

p. 35). Caracteriza-se, ainda, como busca por respostas às más condições de vida ou

autonomia no modo de conduzir a vida, como também acesso a tecnologia de saúde

ambiente insalubre, celas superlotadas, garantias mínimas de segurança, alimentação

que as necessidade sejam conhecidas e atendidas (CONDON et al, 2007).


Satisfazer necessidades de saúde envolve, ainda, acesso e utilização dos serviços
de saúde os quais são conceitos complexos que mudam ao longo do tempo e do

instituições de saúde que são de difícil mensuração. E, como exemplos, podemos citar

do seguro saúde, atitudes frente ao cuidado, estrutura social, satisfação, condição

CICONELLI, 2013).
Diante desta complexidade propomos um recorte considerando o acesso relativo
Impactos das Tecnologias nas Ciências Humanas e Sociais Aplicadas 5 Capítulo 17 167
ao atendimento de saúde em enfermarias de penitenciárias. Partimos dos bilhetes

seus autores, indícios das condições de vida, de acesso e das necessidades de saúde;
que trilham caminhos incertos, desvios até chegarem (ou não) aos seus destinatários
e, neste artigo, analisamos suas características na sua materialidade, aparência,

deste texto foi apresentada no III Seminário Internacional de Pesquisa em Prisão,


realizado em Recife/PE, em 2017.
Trata-se de resultados parciais de pesquisa qualitativa (BARSAGLINI, 2016),
sendo minoritária tal abordagem sobre o tema, onde predominam estudos quantitativos/
epidemiológicos conforme revisão recente realizada por GOIS et al (2012) em contexto
de privação de liberdade.

2 | PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Os bilhetes/bereus podem ser considerados documentos e como tal, não são


meras representações de fatos ou da realidade, nem são neutros. Documentos
dizem muito acerca dos modos de vida e das relações sociais (SAINT-GEORGES,
2011) e, principalmente os escritos, possuem autoria, são feitos com determinados

embutem intecionalidade e carregam marcas do seu autor. Nesse sentido, devem ser
vistos como meios de comunicação e como expressão de agenciamento, em que o
pesquisador pode focalizá-los enquanto uma fonte e tópico de pesquisa: quais são

propósitos, à quem se dirigem e assim por diante (BACELLAR, 2011; FLICK, 2009). E o
envio, enfrenta obstáculos e, como andarilho, deixa rastros de seu autor e segue, com
um tanto do jogo de vida e obra, conforme notamos nos bilhetes. Contudo, um bilhete
não é a expressão literal da vida do preso, como relatos de fatos verídicos ocorridos.
Considerar os bilhetes como documentos e as condições em que são produzidos, se
aproxima da ambivalência apontada por LE GOFF (1996) para quem todo documento
é, ao mesmo tempo, verdadeiro e mentiroso: verdadeiro porque é concreto e pode
guardar prova sobre determinado local e época e mentiroso porque é fruto de relações
de poder, que podem manipulá-lo.
O remetente escreve de si, de sua dor e desconfortos, faz pedidos, resiste e se
esforça por alcançar uma clareza que lhe conceda aproximar-se da atenção. E, ao
chegar ao destinatário (equipe de saúde, no caso) nota-se, nos bilhetes que chegados,
um movimento tradutório de parte das necessidades em demandas e parte destas em
ações de cuidado
a maior precisão possível, porém, assumimos ser impossível garantir a pureza do que

Impactos das Tecnologias nas Ciências Humanas e Sociais Aplicadas 5 Capítulo 17 168
foi escrito e a originalidade da expressão de dor sentida pelo outro, pois também será
traduzido – da necessidade à demanda.
Munidos destes pressupostos, durante 10 meses de trabalho de campo em três
penitenciárias de regime fechado localizadas em Cuiabá/Mato Grosso – Brasil (com
300, 1.180 e 1.775 presos) por acosião de pesquisa mais ampla (BARSAGLINI, 2016),

como fonte privilegiada de dados, os bilhetes recolhidos em uma das penitenciárias e,

Esta penitenciária foi escolhida por apresentar uma relação com os bilhetes

mesa de recepção, destinada a estes artefatos. Nas outras duas penitenciárias, uma

população prisional e, portanto, comunicação por vias mais convencionais diretas ou


oralmente mediadas) e a outra apresentava apenas alguns bilhetes em um mural,
embora fosse a que abrigava maior população prisional.
Disponibilizamos uma pasta à equipe de saúde e, após 66 dias (15/7 a 20/9/2013)
coleta. Procedemos à leitura de todos os bilhetes e
parte deles foi fotografada e transcrita para análise sintetizada nos tópicos a seguir.
Por questões éticas e por serem os bilhetes considerados documento institucional
interno, resguardamos a identidade institucional e dos seus autores. O projeto mais
amplo foi aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital Universitário Julio Müller - Parecer
nº 344.952 de 31/7/13.

3 | APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS DADOS

comum em textos qualitativos, a discussão e análise não se dissociaram da descrição


dos dados empíricos.

3.1 Bilhetes/bereus: sobre a aparência e pertencimentos

No contexto da autoria dos bilhetes, chama atenção como eles se apresentam:


olhar em quê se escreve nos diz de quem escreve e seu entorno. No caso, é usado
qualquer material onde possa ser grafado, aludindo pertencimentos, rastros de vida:
pedaços caixas de papelão e embalagens (alimentos, medicamentos), tampa de
marmita de isopor, papel de carta com desenhos, papel de embrulho etc. Expressam
re-apropriações e adaptações improvisadas e inventivas de materiais com as mais

comum em instituições de privação de liberdade.


Neste sentido, no banco de dados da pesquisa mais ampla (BARSAGLINI, 2016)
Impactos das Tecnologias nas Ciências Humanas e Sociais Aplicadas 5 Capítulo 17 169
relatos referentes aos bilhetes, entre os quais destacamos dois deles a seguir. O primeiro

que THOMPSOM (1991) tratou por prisionização como o processo de assimilação em


graus variados do modo de pensar, agir, dos costumes e hábitos da cultura prisional
e que não atinge somente o preso. Pelo que se percebe, também, não se limita aos
muros e ao tempo na prisão.

já foi presidiária ... (risos) ... Porque na atitude que eu vejo eles falando, entendeu?
...(risos) [...] por exemplo, esses dias mesmo eu pedi um telefone pra uma pessoa,
né. E aí ela me deu: ela catou um pedaço de isopor – não tem esses negocinhos
de tampa de marmitex daquela de isopor branquinho? – ela catou e escreveu o
telefone naquele negócio ali e me deu, sendo que tinha mais papel por lá, né. Aí
eu falei: “Ué!? Voce tá com sintoma de reeducando...”, falei pra ela. Ela falou “Por
que?” Porque voce ta escrevendo nisso aí e eu trabalho num lugar que eu recebo
isso aí de montão. É... telefone, bilhete de caixa de ovo, bilhete pedaço de papelão,
um monte de coisa... Aí a outra pessoa falou: “Mas voce não sabe, [Fulana]? Ela já
foi ex-presidiária...” ... [sic – risos]
Hoje ela é uma pessoa ressocializada, feliz da vida... Ela falou: “É ... eu aprendi
isso lá...”. Eu falei “Logo que você me deu esse bilhete, eu achei mesmo...” [risos]

bilhetes podem enfrentar no seu trajeto. E se chegam e como chegam – escritos com
caneta ou lapis com variação de cores, em recortes regulares/irregulares, manchados,
limpos, amassados, dobrados, reaproveitados – são detalhes repletos de mensagens
imateriais e relações. Notemos:

Mas o mais interessante que a gente prima muito é quando a gente chama, por
exemplo, o Fulano [cita um nome aleatório] e o Fulano chega e tira do bolso assim
vários [bilhetes] e diz: “Esses aqui disseram que querem falar contigo!” [...] Sim, os
bereus: ele tira do bolso! Esse você vê que está em contato direto com aqueles que
querem atendimento: ele não passou por uma triagem, o Agente passou ou jogou

Saúde – Nivel Superior)

A aparência dos bilhetes são indícios de pertencimentos: dos seus autores e do


seu entorno, ou seja, uma diversidade de pessoas, de condições humanas, simbólicas
e materiais vigentes no mesmo contexto. Denotam carências, mas seriam reproduções

Além do material e condições do bilhete, notamos que variava o domínio da


língua portuguesa havendo textos com escrita formal em contraste com escritas de

e pouca familiaridade com o recurso, como nas duas transcrições literais a seguir.
Todavia, não se descarta a possibilidade de terceirização da escrita do bilhete. São
exemplares os conteúdos de dois bilhetes transcritos literalmente a seguir:

Impactos das Tecnologias nas Ciências Humanas e Sociais Aplicadas 5 Capítulo 17 170
À enfermaria. Solicito atendimento com o máximo de urgência possível levando
em consideração que tenho problema de hérnia, diabete e coração e nos últimos
dias me encontro inchando e tenho muitas dores. (Nome e endereço do autor/Ala,
cubículo)

Oi eu sou [nome] e tinha esperas de te um sorris xegei a ser atedido mas agora estou
esquesido eu espero pode ceta seu o su tarbalio. Agardes espero acenperesão.
[Endereço do autor/Ala, cubículo]

2013), mas faz supor, também, que os que recorrem ao recurso informal do bilhete
para solicitar algum cuidado, são aqueles que carecem dos canais formais como

a serem atendidas podendo funcionar como atalho ao atendimento. Estes últimos,


ressalta-se, dependem que sejam acionados juridicamente o que é facilitado pelos
vínculos afetivos e capacidade econômica que os agilizem (familiares, conhecidos,

3.2 Bilhetes/Bereus e seus conteúdos

bereus

pelo nome e o endereço (ala, raio e/ou cubículo que são as divisões internas da
penitenciária) de residência na penitenciária.
Nos intrigava que muitos deles não tinham mais nada

como os interpretavam. Pois bem, informaram que, às vezes, tratava-se de um caso


conhecido, atendido e constituía um lembrete como “ver dia cirurgia ortopedia”, que

interpretado isoladamente, mas complementado com informações da necessidade


de atendimento por meio, principalmente, do Agente Prisional ou de outras pessoas

Se este tipo de bilhete lembra a equipe de uma existência e uma necessidade,


há casos que isso não é possível como a situação que testemunhamos em uma das
penitenciárias onde um preso foi levado até a enfermaria, mas com claro estado de

ele, apenas repetia o seu nome. Sabia-se que era usuário de psicotrópicos prescritos,
contudo o seu consumo adequado pode ser prejudicado por vários elementos que
envolvem a circulação deste tipo de medicamento no contexto penitenciário, ainda que
haja um esforço rigoroso de controle e regulação pela equipe de saúde.
não era para estar
ali...”, referindo-se a um local apropriado para pessoas com transtorno mental para

Impactos das Tecnologias nas Ciências Humanas e Sociais Aplicadas 5 Capítulo 17 171
“...é ... mas pra ir para Unidade de Saúde Mental não é assim....Tem que advogado
pedir, juiz despachar, laudos....”. Novamente, dependerá dos diferentes recursos que
o sujeito possa mobilizar e por entender que estes são desigualmente distribuídos na

de acesso à saúde a qual, possivelmente, estão relegados muitos casos.

medicamento ou um exame. São entendidos como lembretes de um medicamento


de uso regular ou solicitação

[Nome do preso] TB [tuberculose]. Por favor enfermaria. Estou passando mal sem
tomar o remédio da Tb. Estou sentindo fortes dores no corpo. Me ajuda a me
recuperar tomando remédio para que eu possa viver como uma pessoa normal e
saudável. Ass. Agradeço a atenção de Vc.

Em meio a risos com nuances mesclados de jocosidade, certa ironia e bom

“diagnóstico” e a “prescrição” (leigas). Seria tão diferente do que ocorre externamente,

interpretação e tradução de uma necessidade qualquer sentida e que materializaria-

vejamos este outro:

[Nome do preso] Estou com hérnia e está me prejudicando muito. Está crescendo
muito. E também estou com muitas dores no pé da barriga, o sintoma parece

exame. Eu agradeço.

Alguns bilhetes apontam apenas alguma especialidade da área de saúde,

se de frases completas sendo dada a mesma interpretação supracitada. Há aqueles


que além da solicitação, apontam queixas, relatam sinais e sintomas ou a existência
de alguma enfermidade (hanseníase, diabetes, hipertensão, coceiras/dermatites,
soropositividade) ou condição que requer cuidado (pós-cirurgias, fraturas e corpos

atendimento. Fato é que casos críticos com relatos de sangramentos, dor intensa,
tipo de enfermidade são considerados para motivar agendamento ou autorização para

entrevistados em outra pesquisa no mesmo local (LOPES, 2014).


Ficamos a nos questionar (sem respostas) se a capacidade de expressão
com detalhamentos da situação poderia, em certo grau, ser mais convincente da
necessidade do atendimento... Talvez, no caso onde a complementação por outras
fontes, por algum motivo, esteja prejudicada, nos pareceu que sim.
Um diferencial foi notado no caso do atendimento odontológico, onde parece ser

Impactos das Tecnologias nas Ciências Humanas e Sociais Aplicadas 5 Capítulo 17 172
mais viável/possível a constatação concreta da necessidade de cuidado trazida pelo

para ver o preso escrevente. Soma-se, ainda, que pode complementar com possiveis
informações adicionais sobre a necessidade, fornecidas pelos Agentes Prisionais
(LOPES, 2014) em que a objetividade do sinal/inchaço pode facilitar a legitimação
da queixa em que constam elementos subjetivos como a dor e sobre a qual recai
suspeitas sobre sua veracidade.
histórias sintetizadas em frases
curtas ou textos um pouco mais longos. Alguns deles iniciam-se com saudações do
tipo “Na paz do Senhor” sugerindo possível pertencimento religioso. Mesclam-se como
conteúdos a situação, diagnóstico, sinais, sintomas e a solicitação que legitimariam e
autorizariam o atendimento – traduções portanto. Passemos a sua leitura:

Meu nome é [escreve o nome]

Estou mandando esse bereu para dizer que tenho epilepsia e estou passando mal.
Estou com a língua toda cortada.

Minha mãe trouxe remédio ontem e não entregaram, deixou na frente. [nome,
endereço] (grifo no original)

Eu preciso ir aí na enfermaria. Eu estou muito doente com tuberculose, baleado.


Pelo amor de Deus, me tira para eu ser atendido por que eu não agüento mais de
tanta dor. (Nome, endereço)

O bilhete acima pode expressar a urgência do socorro, mas segundo conversas


ver o
céu”, o impulso de circular, de ampliar os espaços onde se pisa. Não seriam estas,

Não seriam necessidades de saúde relegadas por uma violência sub-reptícia, que
no limite aparece naturalizada, “de um modo de vida na instituição permeado pelo
autoritarismo materializado na dominação como forma de realização de uma ordem
(CASTRO, 1991, p. 58).
Ao dizer do que sente como quem diz de si, como quem diz por inteiro de suas

Internacional das Doenças). No entanto, a riqueza do que se vive é traduzida e


inscrita em nomenclaturas bem delimitadas. O discurso médico não parece tolerar
ambiguidades. Assim, como traduzir o texto contido em um bilhete: “[...] cheguei a ser
atendido, mas agora estou esquecido”...
Organizar-se para ouvir as sutilezas da dor do Outro. Em alguns momentos, é
preciso se desterritorializar, olhar com aquele olho aguçado, de quem sensivelmente
se afeta e deixa se afetar e, sendo impactado pelo Outro, articular seu afetamento ao
conceito de saúde, com abertura a possibilidade de ampliá-lo.

Impactos das Tecnologias nas Ciências Humanas e Sociais Aplicadas 5 Capítulo 17 173
4 | CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme a abordagem qualitativa nos permitiu perceber, as necessidades de


saúde dos presos, em parte, canalizam-se para o serviço de saúde local, decorrendo
de agenciamentos que transcorrem com mediações de natureza objetiva e subjetiva,
relacionais (pessoais, grupais, institucionais) em que destacamos as características e
funções dos bilhetes/bereus no contexto prisional.
O conceito de agência mostra-se fecundo como perspectiva de análise por se
referir à ação, à não passividade e à criatividade/inventividade dos agentes/presos
diante constrangimentos sociais, estruturais em situações cotidianas, como aquelas
colocadas historicamente pelo aprisionamento. Ao mesmo tempo em que as privações
são restritivas da ação,
elas também são capacitadoras e engendram socialidades e agenciamentos pelos
presos para agir com intencionalidade conforme seus projetos e metas – no caso,
tornar necessidades de saúde conhecidas e atendidas.
Assim, as assimetrias das relações de poder operam numa instituição disciplinar

“afetividade” e “solidariedade” (grifo no original – CAVALCANTE, 2006), concordando


com FOUCAULT (1999) que lá onde há poder, há resistência e, no entanto (e por isso
mesmo), esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder.
Comunicar-se pelos bilhetes expressa agenciamento, constituindo-se em
estratégia e a precisão do relato torna-se fundamental para estabelecer o atendimento,
mas requer a tradução da queixa, com abertura a uma compreensão mais ampla
acerca das desigualdades da nossa sociedade, dos aprisionamentos, das carências

Um nome, termos recortados e descrições


escritas de modo errado podem dizer muitas coisas ou podem ser entendidos pelos

quando informados predominantemente, lembremos, pela episteme biomédica.


Parece ser necessário trazer a este processo e ao trabalhador da saúde, a
ampliação de seu papel criativo e criador: criativo na originalidade de resposta aos
problemas que lhe chegam, e criador, como aquele que reescreve, (re)elabora, o
problema, que se põe a diferenciar, diferenciando-se (CORAZZA, 2013). O bilhete/
bereu
comprometidos com o cuidado. Requer arranjos no percurso.
Encontramo-nos, neste estudo, com trilhas incertas, com o tortuoso, o desviante.
Pelos bilhetes, tivemos pistas dos seus autores e nos aproximamo-nos das condições
restritivas presente no contexto prisional, nos incitando a pensar sobre o movimento

as vivências, mas deixam de lado a riqueza, a grandeza e a complexidade de quem


experimenta necessidades.

Impactos das Tecnologias nas Ciências Humanas e Sociais Aplicadas 5 Capítulo 17 174
bereus nos provocam à criação de modos de oferecer atenção
e cuidado em saúde por vias errantes, com múltiplas possibilidades de sentidos ao

possibilidades de afetar-se com o que é enviado pelo outro, na instabilidade de seu vir
a ser. Instigam a resistir à tendência de limitar, enquadrar e a lidar não apenas com o
que é preciso e certo, mas a incluir os desvios no agir em saúde.

APOIO

O artigo apresenta dados parciais do projeto “Fortalecimento da linha de


pesquisa Diversidade sociocultural, ambiente e trabalho do Mestrado em Saúde

de Nível Superior – CAPES, Processo nº 23038.007708/2011 (vigência 2012-2016). A


publicação do artigo contou, também, com o apoio do Programa de Pós-graduação em
Saúde Coletiva – Instituto de Saúde Coletiva / Universidade Federal de Mato Grosso.

REFERÊNCIAS

BACELLAR, C. Fontes documentais: uso e mau uso dos arquivos. In: PINSKY, C. B. Fontes
Históricas. 3ª ed., São Paulo: Contexto, 2011.

BARSAGLINI, R.A. Saúde penitenciária


unidades prisionais localizadas em Cuiabá/MT e na gestão das ações no nível central. Relatório de
Pesquisa – Capes. 2016.

BRASIL. Ministério da Saúde. Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário. Brasília, 2005.

BRASIL. Portaria Interministerial nº 1, de 2 de janeiro de 2014. Institui a Política Nacional de Atenção


Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) no âmbito do
SUS. , nº 2, Brasília, DF, 03/1/2014, p. 18-19.

CASTRO, M.M.P. Ciranda do medo. Controle e dominação no cotidiano da prisão. Revista USP (São
Paulo), março, abril, maio, p. 57-64, 1991.

CAVALCANTE, V.T. Controle social e resistência: “fabricação” do cotidiano de uma instituição


disciplinar para adolescentes infratores. Dissertação (Mestrado em Sociologia), Universidade Federal
de Pernambuco. 2006.

CECILIO, L.C.O. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade
e eqüidade na atenção. In: PINHEIRO R, MATTOS RA. (org.). Os sentidos da integralidade na
atenção e no cuidado à saúde. IMS, Abrasco, p.113-126, 2001.

health services: a qualitative study. J. Adv. Nurs (United Kingdom), v. 58, p. 216-26, 2007.

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