(2019) Barsaglini Biato. Bilhetes (Arrastado)
(2019) Barsaglini Biato. Bilhetes (Arrastado)
(2019) Barsaglini Biato. Bilhetes (Arrastado)
Atena Editora
2019
Conselho Editorial
Prof. Dr. Alan Mario Zuffo – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Prof. Dr. Álvaro Augusto de Borba Barreto – Universidade Federal de Pelotas
Prof. Dr. Antonio Carlos Frasson – Universidade Tecnológica Federal do Paraná
Prof. Dr. Antonio Isidro-Filho – Universidade de Brasília
Profª Drª Cristina Gaio – Universidade de Lisboa
Prof. Dr. Constantino Ribeiro de Oliveira Junior – Universidade Estadual de Ponta Grossa
Profª Drª Daiane Garabeli Trojan – Universidade Norte do Paraná
Prof. Dr. Darllan Collins da Cunha e Silva – Universidade Estadual Paulista
Profª Drª Deusilene Souza Vieira Dall’Acqua – Universidade Federal de Rondônia
Prof. Dr. Eloi Rufato Junior – Universidade Tecnológica Federal do Paraná
Prof. Dr. Fábio Steiner – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
Prof. Dr. Gianfábio Pimentel Franco – Universidade Federal de Santa Maria
Prof. Dr. Gilmei Fleck – Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Profª Drª Girlene Santos de Souza – Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Profª Drª Ivone Goulart Lopes – Istituto Internazionele delle Figlie de Maria Ausiliatrice
Profª Drª Juliane Sant’Ana Bento – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Prof. Dr. Julio Candido de Meirelles Junior – Universidade Federal Fluminense
Prof. Dr. Jorge González Aguilera – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Profª Drª Lina Maria Gonçalves – Universidade Federal do Tocantins
Profª Drª Natiéli Piovesan – Instituto Federal do Rio Grande do Norte
Profª Drª Paola Andressa Scortegagna – Universidade Estadual de Ponta Grossa
Profª Drª Raissa Rachel Salustriano da Silva Matos – Universidade Federal do Maranhão
Prof. Dr. Ronilson Freitas de Souza – Universidade do Estado do Pará
Prof. Dr. Takeshy Tachizawa – Faculdade de Campo Limpo Paulista
Prof. Dr. Urandi João Rodrigues Junior – Universidade Federal do Oeste do Pará
Prof. Dr. Valdemar Antonio Paffaro Junior – Universidade Federal de Alfenas
Profª Drª Vanessa Bordin Viera – Universidade Federal de Campina Grande
Profª Drª Vanessa Lima Gonçalves – Universidade Estadual de Ponta Grossa
Prof. Dr. Willian Douglas Guilherme – Universidade Federal do Tocantins
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)
I34 Impactos das tecnologias nas ciências humanas e sociais aplicadas
5 [recurso eletrônico] / Organizador Marcos William Kaspchak
Machado. – Ponta Grossa (PR): Atena Editora, 2019. –
(Impactos das Tecnologias nas Ciências Humanas e Sociais
Aplicadas; v. 5)
Formato: PDF
Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: World Wide Web
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7247-165-7
DOI 10.22533/at.ed.657191103
Impactos das Tecnologias nas Ciências Humanas e Sociais Aplicadas 5 Capítulo 17 165
the subjects facing social, structural constraints in everyday situations. As part of a
qualitative research, we analyze the notes regarding their materiality, functions and
contents in a penitentiary of Mato Grosso. The empirical material consists, centrally, of
notes marked by their authors and the conditions of their production and the second
deals with the contents. The notes inform their belongings and contexts and, when
crossing the grids, they face intermediation until they reach the recipient / professional
who can translate them as a need to legitimize the service. As translations of felt needs,
“diagnosis”, signs and symptoms. The privations imposed by the prison context restrict
action, but also enable and create conditions of socialities and agency by prisoners to
1 | INTRODUÇÃO
Impactos das Tecnologias nas Ciências Humanas e Sociais Aplicadas 5 Capítulo 17 166
sempre localizado e situado no espaço social em uma rede de interações constituindo-
se, assim, em agir na coletividade.
E foi desta forma que olhamos para os bilhetes produzidos pelos detentos em
uma penitenciária masculina, de regime fechado, do estado de Mato Grosso/Brasil,
para comunicar diversas necessidades de saúde e acessar o atendimento. No Brasil,
o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (BRASIL, 2005) e a Política
Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema
Prisional - PNAISP (BRASIL, 2014), amparam legalmente a implantação de equipes
de saúde em unidades prisionais com mais de 100 presos, as quais devem atuar
orientadas pelos princípios de universalidade, integralidade e equidade do Sistema
Único de Saúde – SUS.
De modo geral, a comunicação das necessidades se dá intermediada pelos
Agentes Prisionais, por outros presos que circulam em atendimento ou trabalhando
fora das celas (celas-livres
(administração local, juízes) que são comuns em unidades prisionais e parece que
os bereus são mais acionados em combinação com estes canais, mas prinicpalmente
p. 35). Caracteriza-se, ainda, como busca por respostas às más condições de vida ou
instituições de saúde que são de difícil mensuração. E, como exemplos, podemos citar
CICONELLI, 2013).
Diante desta complexidade propomos um recorte considerando o acesso relativo
Impactos das Tecnologias nas Ciências Humanas e Sociais Aplicadas 5 Capítulo 17 167
ao atendimento de saúde em enfermarias de penitenciárias. Partimos dos bilhetes
seus autores, indícios das condições de vida, de acesso e das necessidades de saúde;
que trilham caminhos incertos, desvios até chegarem (ou não) aos seus destinatários
e, neste artigo, analisamos suas características na sua materialidade, aparência,
2 | PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
embutem intecionalidade e carregam marcas do seu autor. Nesse sentido, devem ser
vistos como meios de comunicação e como expressão de agenciamento, em que o
pesquisador pode focalizá-los enquanto uma fonte e tópico de pesquisa: quais são
propósitos, à quem se dirigem e assim por diante (BACELLAR, 2011; FLICK, 2009). E o
envio, enfrenta obstáculos e, como andarilho, deixa rastros de seu autor e segue, com
um tanto do jogo de vida e obra, conforme notamos nos bilhetes. Contudo, um bilhete
não é a expressão literal da vida do preso, como relatos de fatos verídicos ocorridos.
Considerar os bilhetes como documentos e as condições em que são produzidos, se
aproxima da ambivalência apontada por LE GOFF (1996) para quem todo documento
é, ao mesmo tempo, verdadeiro e mentiroso: verdadeiro porque é concreto e pode
guardar prova sobre determinado local e época e mentiroso porque é fruto de relações
de poder, que podem manipulá-lo.
O remetente escreve de si, de sua dor e desconfortos, faz pedidos, resiste e se
esforça por alcançar uma clareza que lhe conceda aproximar-se da atenção. E, ao
chegar ao destinatário (equipe de saúde, no caso) nota-se, nos bilhetes que chegados,
um movimento tradutório de parte das necessidades em demandas e parte destas em
ações de cuidado
a maior precisão possível, porém, assumimos ser impossível garantir a pureza do que
Impactos das Tecnologias nas Ciências Humanas e Sociais Aplicadas 5 Capítulo 17 168
foi escrito e a originalidade da expressão de dor sentida pelo outro, pois também será
traduzido – da necessidade à demanda.
Munidos destes pressupostos, durante 10 meses de trabalho de campo em três
penitenciárias de regime fechado localizadas em Cuiabá/Mato Grosso – Brasil (com
300, 1.180 e 1.775 presos) por acosião de pesquisa mais ampla (BARSAGLINI, 2016),
Esta penitenciária foi escolhida por apresentar uma relação com os bilhetes
mesa de recepção, destinada a estes artefatos. Nas outras duas penitenciárias, uma
já foi presidiária ... (risos) ... Porque na atitude que eu vejo eles falando, entendeu?
...(risos) [...] por exemplo, esses dias mesmo eu pedi um telefone pra uma pessoa,
né. E aí ela me deu: ela catou um pedaço de isopor – não tem esses negocinhos
de tampa de marmitex daquela de isopor branquinho? – ela catou e escreveu o
telefone naquele negócio ali e me deu, sendo que tinha mais papel por lá, né. Aí
eu falei: “Ué!? Voce tá com sintoma de reeducando...”, falei pra ela. Ela falou “Por
que?” Porque voce ta escrevendo nisso aí e eu trabalho num lugar que eu recebo
isso aí de montão. É... telefone, bilhete de caixa de ovo, bilhete pedaço de papelão,
um monte de coisa... Aí a outra pessoa falou: “Mas voce não sabe, [Fulana]? Ela já
foi ex-presidiária...” ... [sic – risos]
Hoje ela é uma pessoa ressocializada, feliz da vida... Ela falou: “É ... eu aprendi
isso lá...”. Eu falei “Logo que você me deu esse bilhete, eu achei mesmo...” [risos]
bilhetes podem enfrentar no seu trajeto. E se chegam e como chegam – escritos com
caneta ou lapis com variação de cores, em recortes regulares/irregulares, manchados,
limpos, amassados, dobrados, reaproveitados – são detalhes repletos de mensagens
imateriais e relações. Notemos:
Mas o mais interessante que a gente prima muito é quando a gente chama, por
exemplo, o Fulano [cita um nome aleatório] e o Fulano chega e tira do bolso assim
vários [bilhetes] e diz: “Esses aqui disseram que querem falar contigo!” [...] Sim, os
bereus: ele tira do bolso! Esse você vê que está em contato direto com aqueles que
querem atendimento: ele não passou por uma triagem, o Agente passou ou jogou
e pouca familiaridade com o recurso, como nas duas transcrições literais a seguir.
Todavia, não se descarta a possibilidade de terceirização da escrita do bilhete. São
exemplares os conteúdos de dois bilhetes transcritos literalmente a seguir:
Impactos das Tecnologias nas Ciências Humanas e Sociais Aplicadas 5 Capítulo 17 170
À enfermaria. Solicito atendimento com o máximo de urgência possível levando
em consideração que tenho problema de hérnia, diabete e coração e nos últimos
dias me encontro inchando e tenho muitas dores. (Nome e endereço do autor/Ala,
cubículo)
Oi eu sou [nome] e tinha esperas de te um sorris xegei a ser atedido mas agora estou
esquesido eu espero pode ceta seu o su tarbalio. Agardes espero acenperesão.
[Endereço do autor/Ala, cubículo]
2013), mas faz supor, também, que os que recorrem ao recurso informal do bilhete
para solicitar algum cuidado, são aqueles que carecem dos canais formais como
bereus
pelo nome e o endereço (ala, raio e/ou cubículo que são as divisões internas da
penitenciária) de residência na penitenciária.
Nos intrigava que muitos deles não tinham mais nada
ele, apenas repetia o seu nome. Sabia-se que era usuário de psicotrópicos prescritos,
contudo o seu consumo adequado pode ser prejudicado por vários elementos que
envolvem a circulação deste tipo de medicamento no contexto penitenciário, ainda que
haja um esforço rigoroso de controle e regulação pela equipe de saúde.
não era para estar
ali...”, referindo-se a um local apropriado para pessoas com transtorno mental para
Impactos das Tecnologias nas Ciências Humanas e Sociais Aplicadas 5 Capítulo 17 171
“...é ... mas pra ir para Unidade de Saúde Mental não é assim....Tem que advogado
pedir, juiz despachar, laudos....”. Novamente, dependerá dos diferentes recursos que
o sujeito possa mobilizar e por entender que estes são desigualmente distribuídos na
[Nome do preso] TB [tuberculose]. Por favor enfermaria. Estou passando mal sem
tomar o remédio da Tb. Estou sentindo fortes dores no corpo. Me ajuda a me
recuperar tomando remédio para que eu possa viver como uma pessoa normal e
saudável. Ass. Agradeço a atenção de Vc.
[Nome do preso] Estou com hérnia e está me prejudicando muito. Está crescendo
muito. E também estou com muitas dores no pé da barriga, o sintoma parece
exame. Eu agradeço.
atendimento. Fato é que casos críticos com relatos de sangramentos, dor intensa,
tipo de enfermidade são considerados para motivar agendamento ou autorização para
Impactos das Tecnologias nas Ciências Humanas e Sociais Aplicadas 5 Capítulo 17 172
mais viável/possível a constatação concreta da necessidade de cuidado trazida pelo
para ver o preso escrevente. Soma-se, ainda, que pode complementar com possiveis
informações adicionais sobre a necessidade, fornecidas pelos Agentes Prisionais
(LOPES, 2014) em que a objetividade do sinal/inchaço pode facilitar a legitimação
da queixa em que constam elementos subjetivos como a dor e sobre a qual recai
suspeitas sobre sua veracidade.
histórias sintetizadas em frases
curtas ou textos um pouco mais longos. Alguns deles iniciam-se com saudações do
tipo “Na paz do Senhor” sugerindo possível pertencimento religioso. Mesclam-se como
conteúdos a situação, diagnóstico, sinais, sintomas e a solicitação que legitimariam e
autorizariam o atendimento – traduções portanto. Passemos a sua leitura:
Estou mandando esse bereu para dizer que tenho epilepsia e estou passando mal.
Estou com a língua toda cortada.
Minha mãe trouxe remédio ontem e não entregaram, deixou na frente. [nome,
endereço] (grifo no original)
Não seriam necessidades de saúde relegadas por uma violência sub-reptícia, que
no limite aparece naturalizada, “de um modo de vida na instituição permeado pelo
autoritarismo materializado na dominação como forma de realização de uma ordem
(CASTRO, 1991, p. 58).
Ao dizer do que sente como quem diz de si, como quem diz por inteiro de suas
Impactos das Tecnologias nas Ciências Humanas e Sociais Aplicadas 5 Capítulo 17 173
4 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
Impactos das Tecnologias nas Ciências Humanas e Sociais Aplicadas 5 Capítulo 17 174
bereus nos provocam à criação de modos de oferecer atenção
e cuidado em saúde por vias errantes, com múltiplas possibilidades de sentidos ao
possibilidades de afetar-se com o que é enviado pelo outro, na instabilidade de seu vir
a ser. Instigam a resistir à tendência de limitar, enquadrar e a lidar não apenas com o
que é preciso e certo, mas a incluir os desvios no agir em saúde.
APOIO
REFERÊNCIAS
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Históricas. 3ª ed., São Paulo: Contexto, 2011.
BRASIL. Ministério da Saúde. Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário. Brasília, 2005.
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Paulo), março, abril, maio, p. 57-64, 1991.
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