0% acharam este documento útil (0 voto)
7 visualizações13 páginas

Aula 2

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1/ 13

Copyright © 2020 Brasil Paralelo

Os direitos desta edição pertencem a Brasil Paralelo

Editor Responsável: Equipe Brasil Paralelo


Revisão ortográfica e gramatical: Equipe Brasil Paralelo
Projeto de capa: Equipe Brasil Paralelo
Produção editorial: Equipe Brasil Paralelo

Morgenstern, Flávio

Mito, linguagem e mídia: Aula 2

ISBN:

1. Mito 2. Linguagem 3. Mídia

CDD 400
__________________________________________

Todos os direitos dessa obra são reservados a Brasil Paralelo.


Proibida toda e qualquer reprodução integral desta edição por qualquer meio ou
forma, seja eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de
reprodução sem permissão expressa do editor.

Contato:
www.brasilparalelo.com.br
contato@brasilparalelo.com.br
SINOPSE
Neste e-book, segundo dentre quatro do curso “Mito, Linguagem e Mídia”, com
Flávio Morgenstern, continuamos nossa jornada para compreender como ocorreu o
surgimento da linguística e de que forma esta se opõe à filosofia. Também exploramos
as diferentes funções que as palavras podem apresentar e a forma como essas
funções são utilizadas nos discursos atualmente.

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Ao final desse e-book, pretende-se que você saiba como a linguística surgiu;
quais os desafios impostos pela linguística moderna; quais as funções das palavras;

RÁPIDOS ESCLARECIMENTOS
No e-book anterior, identificamos problemas que ocorreram durante o
desenvolvimento da filosofia e como estes implicaram em empecilhos para a
linguagem em si e para as línguas. Também mencionamos brevemente dificuldades
postas à linguística moderna.
Antes de prosseguirmos para o conteúdo deste e-book, é preciso esclarecer
que filósofos que trabalham com linguagem não são, necessariamente, filósofos da
linguagem. Sócrates, por exemplo, não era um filósofo da linguagem, ainda que tenha
diuturnamente lidado com esta.

O SURGIMENTO DA LINGUÍSTICA
Uma parcela considerável dos filósofos do século 19 pensou acerca das
questões envolvendo a linguagem e a língua. Em sua maioria, eram tradutores, e
muitos pertenciam ao romantismo alemão que, apesar de seu teor nacionalista,
traduziu obras das línguas mais diversas como sânscrito, grego e até mesmo o persa
antigo.
A evolução tardia desse movimento está presente em Schopenhauer. Ainda
que crítico aos expoentes do nacionalismo alemão, em seus escritos, esse pensador
destacou a importância do poliglotismo para o desenvolvimento intelectual. Em sua
perspectiva, o aprendizado de uma nova língua não significava apenas aprender
novas palavras, mas igualmente introjetar novos conceitos, novas estruturas de
pensamento. Em outros termos, aprender uma nova língua era equivalente a
aprender uma nova forma de pensar. Para evidenciar ainda mais a relevância de ser
poliglota, Schopenhauer também chamava atenção para o fato de que somente é
possível pensar sobre certos objetos em línguas específicas. O sânscrito é um
exemplo disto, pois apresenta seis palavras distintas, as quais não são traduzíveis,
para denominar diferentes tipos de respiração.
Como estavam traduzindo muitas obras, esses filósofos pensavam acerca dos
desafios impostos por essa atividade. Não à toa, a linguística surgiu precisamente
nesta época.
Embora tenha sido desenvolvida em diversas culturas diferentes, a Bíblia é
outro exemplo. Em suas três primeiras palavras - “bereshit bará elohim” -, o livro
apresenta obstáculos para ser transposto para outra língua.
O primeiro problema é o fato de bará estar no singular enquanto Elohim está
no plural. É como se estivesse escrito: Deuses criou. Aparentemente, há um erro de
concordância. Isso acontece porque, assim como, no português, utilizamos a segunda
pessoa do plural (vós) para demonstrar autoridade, em outras línguas, é a terceira
pessoa do plural que exerce essa função. Deste modo, é possível que o plural esteja
presente a fim de cumprir essa finalidade. Contudo, há discussões para entender por
que o verbo bará está escrito no singular.
Outro ponto. A palavra Bereshit foi traduzida como “no princípio”. Esse b
equivale a nossa preposição em, indicando “em um lugar”. Reshit, por sua vez, foi
traduzido como princípio. No entanto, no hebraico, somente as consoantes constam
na grafia, sendo as vogais excluídas da escrita. Por isso, reshit está escrito rsht. Rsht
foi traduzido como princípio porque realmente indica primeira coisa, aquela coisa que
dá origem a algo. Só que, como somente as consoantes estão marcadas, é possível
ler a palavra com a inclusão de vogais distintas, o que resultaria no significado cabeça.
Ou seja, “no princípio criou Deus” não está necessariamente fazendo referência à
criação física do mundo. Nesse sentido, muitos, por desconhecerem o hebraico,
apontam uma contradição no início da Bíblia, como se Deus houvesse criado o mundo
duas vezes. Como seria possível saber isso lendo ou a vulgata ou a versão do Lutero?
Para identificar tais complexidades, foi preciso conhecer o hebraico.
É precisamente este o caldo cultural que vai propiciar o surgimento da
linguística moderna.
O PAPEL DO ROMANTISMO ALEMÃO
No final do século 18, início do século 19, o romantismo alemão inteiro estava
focado na busca de traduções e tradições, tanto alemãs quanto de outras
nacionalidades. Ao realizarem traduções do persa, do sânscrito, do grego, os
expoentes desse movimento expuseram a existência de várias culturas. A
propagação da ideia de que não existia somente o cristianismo no mundo, engendrou
o enfraquecimento da visão cristã. Consequentemente, no romantismo, tem início o
ateísmo e há um reavivar do paganismo.
Alguns desses nacionalistas identificaram nas tradições orais, compiladas
sobretudo pelos Irmãos Green, a grande tradição germânica, que desde o Império
Romano havia levado a alcunha de bárbara. Por se reconhecerem como os
germanos, os bárbaros, os godos, visigodos, ostrogodos, buscaram reviver as
culturas desses povos.
Eles apresentavam um conhecimento gramatical muito aprofundado e
começaram a estudar muitas línguas e traduções. O resultado é esse caldo cultural
que vai ser chamado de linguística. Esses estudiosos perceberam que a língua
variava com o passar do tempo e que apresentava suas próprias histórias. Prova
disso era que os alemães que participavam do romantismo tinham extrema
dificuldade em compreender os cânticos de amor medievais escritos em alemão,
sendo que, supostamente, tratava-se do desenvolvimento da mesma língua. Por isso,
nesse primeiro momento, a linguística estava centrada no estudo histórico da língua.

LINGUÍSTICA HISTÓRIA E LINGUÍSTICA ESTRUTURAL


A linguística, na modernidade, é chamada por muitos de linguística estrutural,
pois desembocou no estruturalismo, apesar de esta não ser uma necessidade
original. Essa linguística, que surge no início do século 20, na Suíça, com Ferdinand
Saussure, pode ser diferenciada da linguística histórica.
Ferdinand Saussure era professor e seu curso de linguística geral foi, na
verdade, um conjunto de aulas compilado por três dos seus alunos.
O conhecimento de Saussure sobre diversas línguas era tão profundo que
chegou a realizar um estudo sobre o wichita, uma língua que sequer apresentava
literatura. Na época, havia um problema que os estudiosos estavam tentando
compilar da gramática do wichita e ele chegou a conclusão de que existia uma
semivogal que não estava sendo escrita nos textos e que, com sua inclusão, seria
possível explicar o problema. Depois da morte de Saussure, confirmaram que esta
sua tese estava certa. Era, portanto, um homem que entendia muito de línguas. No
entanto, a maioria de seus artigos contemplavam o campo da filologia, o estudo
histórico da língua.
Pouca gente sabe, mas o filólogo mais famoso do mundo foi Nietzsche. Goste-
se dele ou não, é preciso reconhecer o seu talento para escrita. Suas obras elevaram
a língua alemã a um novo patamar. Tal feito deve ser considerado ainda mais
levando-se em conta que o tempo de Nietzsche para escrever era muito exíguo, pois
sofria de crises de Sífilis, sendo constantemente assaltado por dores agudas. Mesmo
assim, ele conseguiu criar uma linguagem própria, bastante poética, dentro da língua
alemã. Seu caráter poético permitiu-lhe comprimir muito conteúdo em parcos
espaços. Seu excepcional desempenho dá provas dos benefícios de se estudar
filologia.
À parte feito, retornemos a Saussure, que se embrenhou na criação de algo
distinto da linguística histórica ao estudar a estrutura interna das línguas, adicionado
um novo desafio aos problemas que haviam sido postos por Sócrates.
Enquanto a gramática medieval buscava estabelecer a palavra correta para o
termo correto, a gramática normativa, existente em nossa vida cotidiana, é uma
compilação do melhor uso que as palavras ali presentes tiveram. Por isso, a gramática
está tão atrelada à literatura e é quase necessariamente correlata à escrita. Uma
língua que é exclusivamente oral, tribal, não pode ter uma gramática por ser ágrafa.
Com a linguística moderna, passou-se a estudar não a estrutura da gramática
normativa, mas sim as estruturas internas da língua em uso.
Por exemplo: no português brasileiro padrão, utilizado no século 21, há
pessoas que falam “nóis vai”. Dentro da gramática normativa, essa frase está errada.
No entanto, isso é uma questão do uso da língua e é possível entender o que a pessoa
quer dizer. Aliás, muitas palavras ou orações que eram faladas de forma equivocada
entraram para gramática por conta de seu emprego excessivo.
Isso ensejou discussões acerca do tema entre os linguistas, a ponto de alguns
inventarem o chamado preconceito linguístico. Tal preconceito é conhecido, no Brasil,
devido à era do PT no poder, que estava tentando implementar essa ideia no país. O
preconceito linguístico é uma ideologia aplicada ao estudo gramatical da gramática
normativa e inclui a perspectiva de que devemos ensinar as crianças a falarem errado
dentro da sala de aula, para que o preconceito com que não tem o domínio mínimo
do português seja eliminado. É impressionante, mas há livros sobre o assunto.

LINGUÍSTICA E FILOSOFIA - UMA DIFERENÇA SUBSTANCIAL


Na linguística estrutural, o uso da língua será o centro da análise. Nessa
circunstância, esbarramos em um problema abordado no e-book anterior.
Imagine o uso da palavra democracia. O uso dessas palavras, que, no
discurso, deveria ser mais elevado, que nós deveríamos estar buscando conceitos,
começa a determinar não mais um conceito, não mais a palavra socraticamente
definida, não mais aquilo que é filosófico, que é um conhecimento científico, mas se
busca justamente o uso corrente. Isso significa que a validade passou a ser concedida
a partir do uso dentro de uma comunidade linguística.
Percebam a dificuldade que isso representa ao ter em mente que a linguística
não é uma filosofia nem uma opinião, mas objetiva ser a ciência da língua oral. A
linguística estrutural entende a escrita como uma forma elevada da língua, uma vez
que todas as línguas são, inicialmente, orais. Por isso, primeiro, é preciso estudar o
código oral.
Apesar de todos os ganhos proporcionados pela linguística estrutural, esta
disciplina gerou um problema, pois boa parte do trabalho que foi feito, dentro desse
campo, proporcionou uma legitimação de tudo que possa ser dito. O que a linguística
usa e o que a filosofia quer pensar são duas coisas diferentes, sendo que a linguística
apresenta uma autoridade, pelo menos artificial, autointitulada, de ser ciência. Por
isso, quase todos os filósofos do século 20 que nos renderam problemas, como
Foucault e Lacan, estudaram linguística.
A estrutura básica que Saussure vai definir para este estudo mais científico da
língua é o signo linguístico. Este é constituído de dois elementos: o significante e o
significado. Neste caso, estamos falando apenas da linguagem oral e não estamos
pensando ainda no signo escrito. Este significante, também chamado de imagem
acústica, é o som da palavra, o qual identificamos como sendo de uma palavra. O
significado, por sua vez, apresenta a acepção padrão que já conhecemos: o
significado de uma palavra. Isso cria um problema muito sério, complexo, a ser
resolvido, tendo em vista que boa parte das palavras de uma língua apresentam mais
de um significado, uma polissemia. Para piorar, esses significados formam novos
significados entre si. Há palavras que dependem justamente de outras palavras para
formar significado.
Uma vez mais, pensemos na relação que essa ciência estabelece com a
filosofia. Sócrates chamava atenção das pessoas o tempo inteiro para o fato de não
utilizarem as palavras atreladas a um conceito fechado, a uma essência do que é
aquilo. A linguística faz exatamente o contrário. Ela se rebaixa para apontar que, no
uso corrente, há pessoas que falam “nós vai” e como é possível entender o significado
disso, este é um código existente na língua portuguesa. Vejamos outro exemplo.
Quando alguém fala “os menino”, compreende-se que há o emprego do plural.
Contudo, “o meninos” não é um código na língua portuguesa, pois não se sabe se
isso é plural ou singular. Quando se estuda o uso, há uma série de elementos que
despertam confusão.
Se existe significante e significado, estamos falando de uma comunidade
linguística específica. No caso, a comunidade dos falantes de português do Brasil.
Quando se vai determinar várias línguas falando mais ou menos das mesmas coisas,
é possível perceber que esses signos não são compatíveis entre si. Como eu também
já mencionei, não há sinônimos perfeitos. O título “Misto-Quente” de Bukowski, por
exemplo, é uma tradução literal de “Ham on Rye”, o nome original da obra. Contudo,
misto-quente, dentro do contexto da língua americana, indica um consumo de
pessoas pobres, semelhante ao pão com mortadela para os brasileiros. Misto-quente,
no Brasil, não é associado à pobreza. Ou seja, embora a tradução tenha sido
teoricamente fiel, as duas palavras não apresentam a mesma conotação. Como a
língua está em uso, o tempo todo está sendo manipulada e transformada.

AS FUNÇÕES DAS PALAVRAS


A filosofia medieval, ao tratar dos conceitos das palavras, estava sempre
pensando nas dez categorias do Ser de Aristóteles. A partir disso, os filósofos
medievais definiram as funções das palavras. As palavras, tal como democracia,
podem ter uma função descritiva. Neste exemplo, significa que a palavra “democracia”
em sua função descritiva é usada para descrever o sistema de governo específico
dentro de um país. Simultaneamente, “democracia” pode ter uma função apelativa.
Neste caso, não se quer apenas descrever. A palavra é usada a fim de que o
interlocutor execute uma ação, tome uma atitude, ocupe uma posição em relação ao
que se está dizendo.
Conforme comentado, nos debates políticos hoje, os candidatos sempre
acusam um ao outro de ser antidemocrático. Isso deriva do fato de a palavra
democracia ter perdido seu significado socrático-platônico, que era inclusive negativo,
para ser compreendida como sinônimo de bondade, tolerância, simpatia aos pobres.
Todos os aspectos positivos estão associados ao termo democracia.
No Brasil, durante uma época, as três palavras “mágicas” eram democracia,
social e trabalho. Excetuando-se poucas exceções, todos os partidos políticos
carregavam alguma ou todas essas palavras em seus nomes. Tal fato denota o
tamanho da força que essas palavras possuem. O termo social-democracia, por
exemplo, foi utilizado pelo Lênin, pelo Keynes, pelo PT. Ou seja, o termo foi
empregado por pessoas completamente diferentes umas das outras.
Tal qual a frase “o verdadeiro Marx foi deturpado”, com frequência escutamos
que “a verdadeira democracia não é isso”. Não existe verdadeira democracia. Caso
se queira a verdadeira democracia, é preciso retomar Sócrates e compreendê-la
como algo negativo. E, como já foi abordado, não há sequer mais o conceito de que
o governo de muitos possa ser negativo. Essa é a dimensão da complicação que
temos nas mãos no século 21.
A perda do sentido original da palavra democracia também culminou na
proliferação massiva de conceitos distintos. Cada autor que escreve um livro sobre o
tema, emprega uma compreensão específica acerca do termo. Ou seja, de antemão
não é possível saber ao que ele se refere quando utiliza a palavra “democracia”. Mas
todas apresentam apelo. Ou seja, a função apelativa é gigantesca.
O PCdoB é o partido da velha guarda comunista. Quando os guerrilheiros
armados conseguiam sequestrar embaixadores durante o Regime Militar, exigiam que
a Rede Globo lesse seus comunicados em que defendiam a ditadura do proletariado.
Hoje, eles pararam de usar esse termo e pintaram o logo de roxo. Em seu site, são
poucas as menções ao socialismo. Atualmente, o PCdoB acusa Bolsonaro de ser
antidemocrático. Eles também afirmam que piadas com mulheres e homossexuais
são antidemocráticas, apesar de, no passado, não falaram em momento algum sobre
democracia. Essas manifestações não estão no reino conceitual e nem no descritivo.
Essas pessoas não conseguem descrever o que é democracia. Está-se no reino
puramente apelativo. É a função apelativa da linguagem.
A função apelativa funciona porque as palavras e a linguagem apresentam
uma função psicológica. Há palavras que estão associadas a bons sentimentos,
inclusive as palavras que são usadas para expressar sentimentos, como é o caso do
amor. Amor é uma palavra bem associada. É difícil pensar em coisas ruins quando
pensamos em amor. A palavra noite, por outro lado, é o contrário. É possível que
alguns dos melhores momentos da sua vida possam ter acontecido à noite, mas,
dentro da poesia, “noite” sempre faz referência a momentos mais silenciosos,
escuros, sem clareza, por vezes, perigosos. Esses exemplos demonstram que a
palavra sozinha, às vezes, tem uma função psicológica fortíssima, que não tem nada
a ver com a descrição.
Algumas palavras apresentam uma espécie de simbolismo natural.
Reconhece-se algumas coisas como pertencentes ao reino filosófico, palavras como
noite, céu. Há uma dimensão psicológica em que as palavras não só são apelativas,
como te trazem sentimentos. Qualquer poeta conhece isso muito bem.
A função psicológica da linguagem é acompanhada por um um efeito bastante
interessante: há palavras que exigem, obrigatoriamente, o pertencimento a um
determinado grupo social para serem usadas. Essas palavras são chamadas de
xibolete. Ao pronunciar esta palavra, o indivíduo está demonstrando pertencer a um
grupo específico. Por exemplo: quando você pede para que um paulista e um carioca
pronunciem a palavra esporte, ambos são facilmente detectáveis com base em seu
sotaque. Lembremos que a linguagem é tribal. Esta função psicológica da linguagem
estabelece uma espécie de dentro e um fora.
O mundo das ideologias de hoje é exatamente isso. Por isso, diz-se que o
mundo está ficando cada vez mais polarizado. As pessoas usam termos que
permitem aos outros facilmente identificar a quais grupos elas pertencem, como
coxinhas e mortadelas. Se você pensar nesses xiboletes, nesses termos que
determinam a que grupo você pertence, você percebe imediatamente com isso
funciona. A gíria tem uma função, não é uma aleatoriedade da vida. Com seu
emprego, busca-se fechar grupos.
O termo neoliberal é outro exemplo dessa função psicológica das palavras e
da linguagem. Quando uma pessoa o emprega, já sabemos seu posicionamento
político, pois é possível traçar um dentro e fora - um grupo que o usa (dentro) e um
grupo que não o utiliza (fora). A função psicológica, vale frisar, desperta esse
pertencimento a um grupo. Por conta disso, perde-se a função apelativa.
Durante toda década de 1990, a esquerda xingou a todos chamando-os de
neoliberais. Quando ganharam as eleições, o projeto, que não era neoliberal, acabou
não tendo condições de avançar. A esquerda permaneceu com o discurso contra os
neoliberais. Isso fez com que o xingamento perdesse completamente a força. Até
hoje, é possível identificar quem não atualizou os termos, quando o Paulo Guedes é
criticado por querer criar um ultra neoliberalismo privativista. Essa pessoa não sabe
o que está falando, pois o neoliberal é menos liberal do que os liberais. Nesse caso,
Guedes seria quase um social-democrata. Os termos, xiboletes, permitem a
identificação da classe social, dos valores daquela pessoa ou grupo.
Estamos em um tempo bastante ideológico, em que há um crescimento da
função apelativa e uma rarefação da busca por um conceito perfeito, socrático.
Quando se fala que cada vez mais as pessoas estão politizadas, isso desperta receio,
porque politizada também significa ter alguns dos trejeitos da linguagem eleitoral,
sobretudo na era da democratização e da linguagem de massa. Isso significa que
todo mundo está falando o tempo todo como se fosse marketeiro político, como a
pessoa que escreve os discursos para ganhar a eleição.
Giorgio Agamben pegou o conceito de Saussure de signo, formado por
significante e significado, e afirmou que existe uma primazia do significante sob o
significado. Isso é perigoso, pois expressa que o som da palavra vale mais do que
seu significado.
Nossa linguagem, atualmente, está extremamente impressionista. Tem-se um
condicionamento para as pessoas reagirem de uma maneira específica, ordenada,
coordenada, para determinados fins. Se estamos lidando com um reino
“desconceitual” e estamos inseridos em um reino puramente impressionista, pessoas
que estão querendo ter um pensamento mais elevado, mais filosófico, mais
verdadeiro, precisam atuar em duas frentes ao mesmo tempo.
Novamente, vamos utilizar o termo democracia como exemplo. Apesar de
saber o significado platônico de democracia, eu não posso sair na rua e dizer que sou
contra a democracia. É preciso adequar o meu pensamento à linguagem corrente.
Caso isto não seja feito, perde-se a função apelativa adequada. Isso quer dizer que
esse discurso não é capaz de convencer às pessoas que ainda não aderiram às ideias
que foram expostas. Há, simplesmente, o reforço de seu próprio grupo. A linguagem
que reforça grupos é muito boa enquanto se está no poder. Mas ela não significa uma
vantagem na próxima disputa eleitoral. Esse foi o problema da esquerda brasileira - e
está se tornando da esquerda norte-americana - nas últimas eleições. Durante toda a
década de 1990, a esquerda apontou a desigualdade social como o grande problema
brasileiro e conseguiram ganhar quatro eleições com esse discurso. Desde o período
do império, a desigualdade social vinha diminuindo. O salto, no Brasil, e em outros
países, nesse sentido, deveu-se ao avanço da tecnologia. O governo do PT coincidiu
com o boom da Internet. A internet apresenta uma vantagem que depõe contra o
nome dos Partidos dos Trabalhadores, pois há uma forma de trabalho e de riqueza,
hoje, que não está associado ao trabalho manual. O PT, supostamente o partido dos
sindicalistas metalúrgicos do ABC, detém maior apoio entre youtubers e atriz da
Globo, do que entre a classe trabalhadora brasileira. Mesmo depois de estar no poder,
o PT manteve o mesmo discurso: achincalhar os ricos e destacar a elevação que
promoveu na qualidade de vida das pessoas pobres. Ou seja, desigualdade social.
No entanto, os problemas brasileiros não estão relacionados à desigualdade social.
Fazer uma vinculação entre pobreza e criminalidade é, inclusive, uma ofensa aos
moradores da periferia. Resumidamente, o discurso do PT, como todos, é tribal, e faz
uso de uma função apelativa que funcionou em um determinado período histórico cujo
apelou, hoje, desapareceu. Por isso, houve a migração para ideologia de gênero. O
reino da ideologia é um reino exagerado em que se passa a ignorar completamente
a realidade e ficar apenas no mundo do discurso.
Heidegger, que era um filósofo que se opunha à filosofia da linguagem,
afirmava que a morada do ser é a linguagem. A interpretação dada é que, com isso,
ele queria expressar que não existe realidade, somente língua. Neste caso, eu
adotaria uma perspectiva mais complacente.
O homem é o ser da linguagem per si. Há uma conformidade entre os linguistas
e os filósofos da linguagem de que somente o homem possui linguagem. O homem é
o ser da linguagem. O problema é que toda nossa interpretação do mundo passa pelo
filtro da linguagem. Não há uma relação direta com a mesa, com o que diz uma
pessoa, com a democracia, sem passar pelo filtro da linguagem. Toda nossa relação
com os objetos é intermediada.
A linguística moderna, os estruturalistas, como Foucault, Sartre, Deleuze,
desfizeram-se da verdadeira filosofia e adotaram uma forma de expressão
extremamente empolada. Por isso, normalmente, as pessoas, impressionadas,
entendem muito pouco do que eles defendem, e se tornam incapazes de perceber
que suas produções são anti filosóficas. O discurso impressionista causa a sensação
de que se está diante de uma autoridade, quando, na verdade, não se está.
A filosofia moderna, do século 20, formou as bases da esquerda atual, que
não está vinculada aos aspectos econômicos do socialismo, mas sim aos discursos
acerca do lumpesinato, dos gays, das prostitutas, dos criminosos, promovendo até
mesmo a política do desencarceramento. Isso acontece justamente através das
implosões de conceitos e de um reino em que se lida simplesmente com o que as
palavras e alguns termos causam dentro de determinados grupos linguísticos.
Vamos aprender no próximo e-book que essas palavras estão associadas a
grandes autoridades políticas, burocráticas, inclusive intelectuais, no pior sentido
possível.

Você também pode gostar