Clovismoura Investiga o Passado
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Seu livro, Rebeliões da Senzala é, assim, um marco, o primeiro painel das lutas escravas no
Brasil, que assinala o declínio das velhas concepções sobre a passividade e a docilidade do
escravo. Livro que abriu uma vertente que levaria, nos anos seguintes, a um reconhecimento
aprofundado da luta escrava e sua importância para a dinâmica da sociedade brasileira. O número
de estudos que surgiram, então, muitos inspirados diretamente pela sua leitura, levaram ao
reconhecimento de que a história do negro no Brasil se confunde com a história do povo brasileiro.
As lições de Rebeliões decorrem disso. Ele nos ajuda a compreender como, a partir daquelas
contradições de nosso passado histórico, o Brasil tornou-se o que é hoje. Em primeiro lugar, o
caráter e a persistência de algumas características que, enraizadas no passado colonial e
escravista, perambulam ainda como autênticas mortas-vivas pelo presente de nosso país, na
sobrevivência fantasmagórica do poder das oligarquias tradicionais, na pessoa de políticos como
Antonio Carlos Magalhães e assemelhados, estes sim, os verdadeiros dinossauros de nossa vida
política e social. Foi a relevância numérica da escravidão, seu tempo de duração e a forma como
foi abolida no Brasil que "determinaram a emergência do modelo do capitalismo dependente em
que vivemos até hoje", ensina Clóvis Moura. Aquelas elites, que dominaram durante todo o período
escravista, na Colônia e no Império, conduziram e determinaram a forma como se deu a abolição
em nosso país, e continuaram à frente do Estado e do governo sob a República. Contra essas
elites, Rebeliões da Senzala é talvez o primeiro estudo onde a história do escravo (e do negro)
brasileiro é colocada no seu justo lugar de história do povo brasileiro, e não de um segmento
populacional à parte, específico e segmentado. Rebeliões reata, assim, a história do povo
brasileiro de nossos dias com a história daqueles que, antes de 1888, mourejavam sob o instituto
infame e desumano que foi a escravidão.
Uma dessas inovações é a lição fundamental, aprofundada nas obras que vieram depois de
Rebeliões da Senzala, de que, em sociedades como as nossas, os conceitos de classe e raça são
inseparáveis para a compreensão da situação das classes dominadas. Não se compreende a
situação das classes dominadas no Brasil, hoje como no passado, sem que se leve em conta as
duas dimensões essenciais da dominação, a classista e a racial. Elas imbricam-se, e conferem
características próprias às relações de dominação em nossas sociedades.
Finalmente, um último aspecto que deve ser ressaltado: contra as análises tradicionais, que
enfatizavam o caráter reflexo de nossa história, Rebeliões da Senzala mostrou que a formação
social brasileira era um pouco mais complexa. Aqui, a influência externa interage com a dinâmica
interna da sociedade brasileira, e nossa história resulta da combinação destes dois elementos, a
influência externa, colonial e neocolonial (e imperialista, hoje), com os interesses que dominam
nossa sociedade.
Assim, o processo histórico não é externo à ação dos agentes sociais e às suas lutas, mas
intrínseco a eles, determinado por eles e pela consciência histórica e social daqueles atores
sociais. Isto introduz outro elemento fundamental na visão marxista da história, cuja compreensão
em nosso país foi iluminada pelas conquistas registradas em Rebeliões da Senzala: trata-se da
complexa questão da consciência de classe.
Clóvis Moura aborda esta questão de forma explícita nas conclusões de seu livro, onde
diferencia os escravos que, ao rebelar-se, iniciavam o processo de formação de uma "classe para
si", daqueles que, conformados com seu destino e prostrados sob o escravismo, sem compreender
sequer sua situação imediata, eram ainda componentes "de uma classe em si, simples objeto do
fato histórico".
Isto é o que diferencia o conteúdo da consciência dos atores sociais e imprime sua marca ao
processo histórico. Clóvis Moura filia-se à longa tradição marxista, iniciada em 1847 com a
publicação de Miséria da Filosofia, onde Karl Marx, sob nítida influência hegeliana, diz que a
massa de trabalhadores de um país, que é uma classe em si, só na luta contra o capital "constitui-
se em classe para si mesma". Os interesses que ela defende tornam-se interesses de classe", e a
luta de classes "é uma luta política". Mais tarde, no Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, Marx
reafirma esta tese: os camponeses se distinguem dos demais franceses, diz, por suas condições
econômicas de existência, seu modo de viver, seus interesses e cultura, e por se opor às outras
classes de forma hostil. Por isso, eles "formam uma classe"; entretanto, sem nenhuma união
nacional ou organização política, diz Marx, eles "não formam uma classe".
Finalmente, é aqui que está ancorada a ênfase, no conjunto da obra de Clóvis Moura, na
rebeldia escrava, na consideração da ação dirigida contra a manutenção do escravismo como
principal elemento para a compreensão das contradições fundamentais não só daquele modo de
produção, como do capitalismo que o sucedeu e das formas políticas que, sobreviventes do
passado, estão ainda baseadas num autoritarismo gerado e nutrido no domínio da senzala pela
casa-grande.
Entre Zumbi e Pai João, para usar a metáfora que ficou famosa, a ênfase recai sobre o herói
palmarino. Não por um gosto arbitrário do heróico, nem pelo desconhecimento das complexas
formas que as relações entre senhores e escravos assumiram. A própria continuidade da
exploração escravista e colonial impunha uma combinação complexa entre coerção e
convencimento, onde o chicote e os castigos físicos combinavam-se em doses variadas com
pequenas concessões cotidianas, num jogo de pressões e contrapressões que a historiografia de
nosso dias descreve com muita precisão.
Entretanto, trata-se aqui de captar, primeiro, aquela dimensão onde o caráter e as contradições
do escravismo possam emergir com nitidez. A negociação possível naquele regime desumano
podia disfarçar as agruras da opressão e permitir ao escravo estratégias de sobrevivência que
minoravam sua sorte, e a ênfase neste aspecto parece baseada num contratualismo impróprio e
fora de época, envolvendo partes absolutamente desiguais, o dono do escravo e o escravo por ele
possuído, uma assimetria social e política indisfarçável. O conflito, ao contrário, parte cotidiana da
vida do escravo, podia variar de grau e intensidade, de pequenas resistências diárias no trabalho,
à morte de feitores e senhores ou à rebelião aberta, e sua eclosão quebrava todos os véus,
dilacerava os disfarces que a negociação construía, opondo as duas facetas contraditórias e
inconciliáveis daquela relação, o senhor e o escravo.
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BIBLIOGRAFIA
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Corte. São Paulo: Cia das Letras, 1990.
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10. MOURA, Clóvis. O negro: de bom escravo a mau cidadão? Rio de Janeiro: Editora Conquista,
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12. REIS, João José & SILVA, Eduardo. Negociação e conflito - a resistência negra no Brasil
escravista. São Paulo: Cia das Letras, 1989.