Clovismoura Investiga o Passado

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CLÓVIS MOURA INVESTIGAVA O PASSADO

HISTÓRICO PARA COMPREENDER


MELHOR AS LUTAS DO PRESENTE

José Carlos Ruy


Jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB e do Conselho Editorial
da revista Princípios e diretor do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo

Dois livros publicados em 1959 tornaram-se clássicos na literatura histórica brasileira -


Formação Econômica do Brasil, de Celso Furtado, e Rebeliões da Senzala, de Clóvis Moura,
modelos de duas formas radicalmente opostas de se considerar aqueles que sofreram a
escravidão em nosso país. Celso Furtado, tributário de idéias tradicionais – e mesmo do limitado
marxismo brasileiro de então – comparava os escravos dos engenhos de açúcar "às instalações de
uma fábrica", pois eram comprados como elas e sua manutenção representava os custos fixos.

Rebeliões da Senzala contrapunha-se pioneiramente a essa visão do escravo como vítima


passiva de seu destino. As visões dominantes da história de nosso passado escravista descreviam
uma sociedade idílica, sem luta de classes e onde os conflitos entre senhores e escravos eram
vistos como choques entre a cultura superior dos europeus, os senhores, e a barbárie dos
africanos, os escravos, uma contradição que só seria resolvida quando os últimos fossem
aculturados e, abandonando suas raízes originárias, adotassem a cultura dos dominadores. A
principal fonte dessa visão rósea foi a obra de Gilberto Freyre, mas os ecos da visão senhorial
podiam ser encontrados em quase todos os autores importantes de então, inclusive em marxistas
como Caio Prado Jr. Foi preciso o esforço pioneiro de gente como Edison Carneiro, Clóvis Moura –
com a sistematização definitiva feita em Rebeliões da Senzala – e da geração de estudiosos
liderada por Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Emilia Viotti da Costa, Fernando Henrique
Cardoso e tantos outros, para que essa visão idílica pudesse ser colocada em seu justo lugar de
apologia da ordem dominante, nostálgica do império e do escravismo.

Rebeliões da Senzala é obra de um autor marxista, no sentido ortodoxo da palavra. Seu


objetivo é investigar o passado histórico para compreender melhor as lutas do presente, e forjar os
instrumentos conceituais que permitam, aos oprimidos de todos os matizes de nosso tempo, lutar
pela igualdade entre os homens e por uma forma superior de organização da sociedade. Nesse
sentido, Clóvis Moura partiu, contra aquelas visões tradicionais, de uma premissa teórica marxista
fundamental: como em todas as demais sociedades divididas em classes, na sociedade escravista
também existiu luta de classes.

Seu livro, Rebeliões da Senzala é, assim, um marco, o primeiro painel das lutas escravas no
Brasil, que assinala o declínio das velhas concepções sobre a passividade e a docilidade do
escravo. Livro que abriu uma vertente que levaria, nos anos seguintes, a um reconhecimento
aprofundado da luta escrava e sua importância para a dinâmica da sociedade brasileira. O número
de estudos que surgiram, então, muitos inspirados diretamente pela sua leitura, levaram ao
reconhecimento de que a história do negro no Brasil se confunde com a história do povo brasileiro.

As lições de Rebeliões decorrem disso. Ele nos ajuda a compreender como, a partir daquelas
contradições de nosso passado histórico, o Brasil tornou-se o que é hoje. Em primeiro lugar, o
caráter e a persistência de algumas características que, enraizadas no passado colonial e
escravista, perambulam ainda como autênticas mortas-vivas pelo presente de nosso país, na
sobrevivência fantasmagórica do poder das oligarquias tradicionais, na pessoa de políticos como
Antonio Carlos Magalhães e assemelhados, estes sim, os verdadeiros dinossauros de nossa vida
política e social. Foi a relevância numérica da escravidão, seu tempo de duração e a forma como
foi abolida no Brasil que "determinaram a emergência do modelo do capitalismo dependente em
que vivemos até hoje", ensina Clóvis Moura. Aquelas elites, que dominaram durante todo o período
escravista, na Colônia e no Império, conduziram e determinaram a forma como se deu a abolição
em nosso país, e continuaram à frente do Estado e do governo sob a República. Contra essas
elites, Rebeliões da Senzala é talvez o primeiro estudo onde a história do escravo (e do negro)
brasileiro é colocada no seu justo lugar de história do povo brasileiro, e não de um segmento
populacional à parte, específico e segmentado. Rebeliões reata, assim, a história do povo
brasileiro de nossos dias com a história daqueles que, antes de 1888, mourejavam sob o instituto
infame e desumano que foi a escravidão.

Ao aprofundar o conhecimento de nosso passado, e demonstrar que a história da história da


escravidão faz parte do fio contínuo da história de nosso povo, Clóvis Moura aprofundou também,
e inovou, o pensamento marxista e contribuiu para aprofundar a consciência socialista e anti-
racista das gerações seguintes de historiadores e militantes do movimento revolucionário e anti-
racista brasileiro.

Uma dessas inovações é a lição fundamental, aprofundada nas obras que vieram depois de
Rebeliões da Senzala, de que, em sociedades como as nossas, os conceitos de classe e raça são
inseparáveis para a compreensão da situação das classes dominadas. Não se compreende a
situação das classes dominadas no Brasil, hoje como no passado, sem que se leve em conta as
duas dimensões essenciais da dominação, a classista e a racial. Elas imbricam-se, e conferem
características próprias às relações de dominação em nossas sociedades.

Rebeliões da Senzala preparou também o rompimento com os esquemas fossilizados do


oficialismo marxista de então, que impunham uma evolução das sociedades obrigatoriamente em
cinco estágios sucessivos – comunidade primitiva, escravismo, feudalismo, capitalismo e
socialismo. Ao ajudar a resolver o problema que durante décadas atormentou os estudiosos do
passado brasileiro – qual a natureza do modo de produção que aqui existia, capitalista ou feudal –
Clóvis Moura deu importante passo para a compreensão de que aquelas etapas estavam ligadas a
uma visão eurocêntrica da evolução das sociedades, que não se aplica ao Brasil, onde o passado
foi escravista colonial e o modo de produção capitalista emergiu, depois de uma lenta transição, da
desagregação do escravismo – e não do feudalismo, como na versão clássica européia.

Finalmente, um último aspecto que deve ser ressaltado: contra as análises tradicionais, que
enfatizavam o caráter reflexo de nossa história, Rebeliões da Senzala mostrou que a formação
social brasileira era um pouco mais complexa. Aqui, a influência externa interage com a dinâmica
interna da sociedade brasileira, e nossa história resulta da combinação destes dois elementos, a
influência externa, colonial e neocolonial (e imperialista, hoje), com os interesses que dominam
nossa sociedade.

Historiador marxista e veterano militante comunista, o objetivo da atividade intelectual e


científica de Clóvis Moura é compreender o passado para fundamentar a ação transformadora no
presente. Neste ponto, um elemento se destaca: o que é o conhecimento histórico, como se dá a
intervenção consciente do homem na história e qual é a natureza da consciência de classe. São
temas marxistas fundamentais, não por um capricho teórico, mas por uma necessidade prática. A
luta política orientada pelo marxismo não se fundamenta nos desejos arbitrários dos militantes,
sendo orientada por teses que surgem da análise cuidadosa da origem da situação atual, análise
em que os aspectos históricos combinam-se com os conjunturais, compreendidos como
desdobramento de um processo histórico mais longo e que, portanto, só podem ser entendidos em
sua inteireza a partir de sua gênese.

A história é, para os marxistas, a ciência no sentido mais profundo. A objetividade do processo


histórico deve ser procurada na análise cuidadosa do desdobramento da aventura humana através
do tempo. A lógica deste processo, que é a lógica da história, está inscrita na ação dos atores da
história. Nesse sentido, a história não é linear ou previsível como, por exemplo, a trajetória dos
astros no firmamento, e toda compreensão teleológica da história, de uma história que seja autora
de seu próprio destino, é mais próxima do providencialismo religioso com seu passado já pré-
definido na mente eterna de um criador, do que propriamente do marxismo, que compreende a
história como resultado da ação humana, que encara o processo histórico como conseqüência do
entrechoque de vontades, interesses, culturas, preconceitos, nível de conhecimento, dos homens
que são personagens desse processo.

Assim, o processo histórico não é externo à ação dos agentes sociais e às suas lutas, mas
intrínseco a eles, determinado por eles e pela consciência histórica e social daqueles atores
sociais. Isto introduz outro elemento fundamental na visão marxista da história, cuja compreensão
em nosso país foi iluminada pelas conquistas registradas em Rebeliões da Senzala: trata-se da
complexa questão da consciência de classe.

Clóvis Moura aborda esta questão de forma explícita nas conclusões de seu livro, onde
diferencia os escravos que, ao rebelar-se, iniciavam o processo de formação de uma "classe para
si", daqueles que, conformados com seu destino e prostrados sob o escravismo, sem compreender
sequer sua situação imediata, eram ainda componentes "de uma classe em si, simples objeto do
fato histórico".

Isto é o que diferencia o conteúdo da consciência dos atores sociais e imprime sua marca ao
processo histórico. Clóvis Moura filia-se à longa tradição marxista, iniciada em 1847 com a
publicação de Miséria da Filosofia, onde Karl Marx, sob nítida influência hegeliana, diz que a
massa de trabalhadores de um país, que é uma classe em si, só na luta contra o capital "constitui-
se em classe para si mesma". Os interesses que ela defende tornam-se interesses de classe", e a
luta de classes "é uma luta política". Mais tarde, no Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, Marx
reafirma esta tese: os camponeses se distinguem dos demais franceses, diz, por suas condições
econômicas de existência, seu modo de viver, seus interesses e cultura, e por se opor às outras
classes de forma hostil. Por isso, eles "formam uma classe"; entretanto, sem nenhuma união
nacional ou organização política, diz Marx, eles "não formam uma classe".

A "consciência histórica", a consciência social, de classe, não se reduz à percepção imediata,


pelo oprimido, de sua situação, mas envolve uma reflexão aprofundada sobre as relações sociais,
que tem caráter científico e elabora uma compreensão mais avançada e mais complexa do que
mera sensação imediata. Marx já havia notado, em O Capital, que a ciência seria desnecessária se
houvesse coincidência entre essência e aparência.

Em conseqüência, uma compreensão do processo histórico com as ambições que a análise


marxista se impõe não pode resumir-se à apreensão dos significados com que a ação social, em
seu sentido mais amplo, aparece para a consciência dos próprios agentes históricos. É preciso ir
além disso: compreender o grau de consciência que a própria ação indicava – e, daí, a distinção
entre as formas ativas e passivas de resistência do escravo, aquelas denunciadoras de elementos
iniciais de uma compreensão que poderia englobar as múltiplas e complexas relações em que o
escravo estava inserido; estas, indicadoras de uma compreensão ainda limitada e incipiente, presa
às vicissitudes do dia a dia e das imposições da sobrevivência e da acomodação. É preciso
distinguir também, aqui, o sentido político que a ação escrava tinha, não - de novo - na forma como
ele aparecia imediatamente ao escravo, mas na sua capacidade de formular um projeto mais
global de reordenação social, capaz ou não de transcender os limites do escravismo. O sentido
político não se define apenas subjetivamente, mas depende também das condições objetivas da
ação e da compreensão da relação entre estes dois aspectos, subjetivo e objetivo. Sem esta
distinção, a expressão sentido político da ação indica mais propriamente a boa intenção do analista
de respeitar a individualidade do personagem da história do que o caráter de sua ação que, assim
indefinida, pode oscilar da malandragem adaptativa, macunaímica, à vontade revolucionária
manifestada pelos malês em Salvador, em 1835 – um leque amplo o suficiente para diluir a correta
compreensão nas miríades de formas que o sentido político da ação pode assumir.

Finalmente, é aqui que está ancorada a ênfase, no conjunto da obra de Clóvis Moura, na
rebeldia escrava, na consideração da ação dirigida contra a manutenção do escravismo como
principal elemento para a compreensão das contradições fundamentais não só daquele modo de
produção, como do capitalismo que o sucedeu e das formas políticas que, sobreviventes do
passado, estão ainda baseadas num autoritarismo gerado e nutrido no domínio da senzala pela
casa-grande.

Entre Zumbi e Pai João, para usar a metáfora que ficou famosa, a ênfase recai sobre o herói
palmarino. Não por um gosto arbitrário do heróico, nem pelo desconhecimento das complexas
formas que as relações entre senhores e escravos assumiram. A própria continuidade da
exploração escravista e colonial impunha uma combinação complexa entre coerção e
convencimento, onde o chicote e os castigos físicos combinavam-se em doses variadas com
pequenas concessões cotidianas, num jogo de pressões e contrapressões que a historiografia de
nosso dias descreve com muita precisão.

Entretanto, trata-se aqui de captar, primeiro, aquela dimensão onde o caráter e as contradições
do escravismo possam emergir com nitidez. A negociação possível naquele regime desumano
podia disfarçar as agruras da opressão e permitir ao escravo estratégias de sobrevivência que
minoravam sua sorte, e a ênfase neste aspecto parece baseada num contratualismo impróprio e
fora de época, envolvendo partes absolutamente desiguais, o dono do escravo e o escravo por ele
possuído, uma assimetria social e política indisfarçável. O conflito, ao contrário, parte cotidiana da
vida do escravo, podia variar de grau e intensidade, de pequenas resistências diárias no trabalho,
à morte de feitores e senhores ou à rebelião aberta, e sua eclosão quebrava todos os véus,
dilacerava os disfarces que a negociação construía, opondo as duas facetas contraditórias e
inconciliáveis daquela relação, o senhor e o escravo.

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BIBLIOGRAFIA

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10. MOURA, Clóvis. O negro: de bom escravo a mau cidadão? Rio de Janeiro: Editora Conquista,
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11. MOURA, Clóvis. Os quilombos e a rebelião negra. São Paulo: Brasiliense, 1981.

12. REIS, João José & SILVA, Eduardo. Negociação e conflito - a resistência negra no Brasil
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