Fichamento O GUARANI
Fichamento O GUARANI
Fichamento O GUARANI
espaços das janelas pendiam dois retratos que representavam um fidalgo velho e uma dama
também idosa. Sobre a porta do centro desenhava-se um brasão de armas em campo de
cinco vieiras de ouro, riscadas em cruz entre quatro rosas de prata sobre palas e faixas. No
escudo, formado por uma brica de prata orlada de vermelho, via-se um elmo também de
prata, paquife de ouro e de azul, e por timbre um meio leão de azul com uma vieira de ouro
sobre a cabeça. (p. 5)
• Sobre a alvura diáfana do algodão, a sua pele, cor do cobre, brilhava com reflexos dourados;
os cabelos pretos cortados rentes, a tez lisa, os olhos grandes com os cantos exteriores
erguidos para a fronte; a pupila negra, móbil, cintilante; a boca forte mas bem modelada e
guarnecida de dentes alvos, davam ao rosto pouco oval a beleza inculta da graça, da força e
da inteligência. Tinha a cabeça cingida por uma fita de couro, à qual se prendiam do lado
esquerdo duas plumas matizadas, que descrevendo uma longa espiral, vinham rogar com as
pontas negras o pescoço flexível. Era de alta estatura; tinha as mãos delicadas; a perna ágil e
nervosa, ornada com uma axorca de frutos amarelos, apoiava-se sobre um pé pequeno, mas
firme no andar e veloz na corrida. Segurava o arco e as flechas com a mão direita calda, e
com a esquerda mantinha verticalmente diante de si um longo forcado de pau enegrecido
pelo fogo p. 15
• — Tu não abandonarás tua senhora, não é? disse ela passando a mão sobre o seu pêlo
acetinado.
— Não faças caso, Cecília, replicou Isabel reparando na melancolia da moca; pedirás a meu
tio para caçar-te outro que farás domesticar, e ficará mais manso do que o teu Peri.
— Prima, disse a moça com um ligeiro tom de repreensão, tratas muito injustamente esse
pobre índio que não te fez mal algum.
— Ora, Cecília, como queres que se trate um selvagem que tem a pele escura e o sangue
vermelho? Tua mãe não diz que um índio é um animal como um cavalo ou um cão? p. 21
• D. Antônio desejava saber noticias do Rio de Janeiro e de Portugal, onde se haviam perdido
todas as esperanças de uma restauração, que só teve lugar quarenta anos depois com a
aclamação do duque de Bragança. O resto dos aventureiros ganhou o outro lado da
esplanada e foi misturar-se com os seus companheiros que saiam ao seu encontro. Aí foram
recebidos por um tiroteio de perguntas, de risadas e ditos chistosos, em que tomaram parte;
depois, uns, curiosos de novidades, outros, ávidos de contar o que viram, começaram a falar
ao mesmo tempo, de modo que ninguém se entendia. P 27
• Era noite. Todos se ergueram; os aventureiros cortejaram e foram-se retirando a pouco e
pouco. Cecília ofereceu a fronte ao beijo de seu pai e de sua mãe, e fez uma graciosa mesura
a seu irmão e a Álvaro. Isabel tocou com os lábios a mão de seu tio, e curvou-se em face de
D. Lauriana para receber uma bênção lançada com a dignidade e altivez de um abade.
Depois, a família chegando-se para junto da porta, dispôs-se a passar um desses curtos
serões que outrora precediam à simples mas suculenta ceia. P 30
• — Não há dúvida, disse D. Antônio de Mariz, na sua cega dedicação por Cecília quis fazer-
lhe a vontade com risco de vida. É para mim uma das coisas mais admiráveis que tenho
visto nesta terra, o caráter desse índio. Desde o primeiro dia que aqui entrou, salvando
minha filha, a sua vida tem sido um só ato de abnegação e heroísmo. Crede-me, Álvaro, é
um cavalheiro português no corpo de um selvagem! p. 31
• Viu então sentados entre as guaximas dois selvagens, mal cobertos por uma tanga de penas
amarelas, que com o arco esticado e a flecha a partir, esperavam que Cecília passasse diante
da fresta que formavam as pedras para despedirem o tiro. E a menina descuidada e tranqüila
já tinha estendido o braço e ferindo a água passava sorrindo por diante da morte que a
ameaçava. Se se tratasse de sua vida, Peri teria sangue-frio; mas Cecília corria um perigo, e
portanto não refletiu, não calculou. Deixou-se cair como uma pedra do alto da árvore; as
duas flechas que partiam, uma cravou-se-lhe no ombro, a outra rogando-lhe pelos cabelos
mudou de direção. p. 47
• Peri que tinha sido testemunha muda desta cena, aconselhou a D. Diogo que se recolhesse à
casa por prudência, e continuou a sua caminhada. O espetáculo que acabava de presenciar o
entristecera; lembrou-se de sua tribo, de seus irmãos que ele havia abandonado há tanto
tempo, e que talvez àquela hora eram também vitimas dos conquistadores de sua terra, onde
outrora viviam livres e felizes p. 58
• Ora, o índio conhecia a ferocidade desse povo sem pátria e sem religião, que se alimentava
de carne humana e vivia como feras, no chão e pelas grutas e cavernas; estremecia só com a
idéia de que pudesse vir assaltar a casa de D. Antônio de Mariz. p. 59
• O fidalgo não sabia o que mais admirar, se a força e heroísmo com que ele salvara sua filha,
se o milagre de agilidade com que se livrara a si próprio da morte. Quanto ao sentimento que
ditara esse proceder, D. Antônio não se admirava; conhecia o caráter dos nossos selvagens,
tão injustamente caluniados pelos historiadores; sabia que fora da guerra e da vingança eram
generosos, capazes de uma ação grande, e de um estimulo nobre. p. 76
Por fim D. Antônio de Mariz conhecendo que toda a insistência era inútil, encheu duas taças
hde vinho das Canárias. — Peri, disse o fidalgo, há um costume entre os brancos, de um
homem beber por aquele que é amigo. O vinho é o licor que dá a força, a coragem, a alegria.
gBeber por um amigo é uma maneira de dizer que o amigo é e será forte, corajoso e feliz. Eu
tybbebo pelo filho de Ararê. p. 79
• ub corriam na várzea; anquela natureza forte e vigorosa que fazia prodígios de força e
coragem; aquela vontade indomável como a torrente que se precipita do alto da serra;
prostrar-se a seus pés submissa, vencida, escrava!... Era preciso que não fosse mulher para
não sentir o orgulho de dominar essa organização e brincar com a força obrigando-a a
curvar-se diante do seu olhar. As mulheres têm isso de particular; reconhecendo-se fracas, a
sua maior ambição é reinar pelo imã dessa mesma fraqueza, sobre tudo o que é forte, grande
e superior a elas: não amam a inteligência, a coragem, o gênio, o poder, senão para vencê-
los e subjugá-los. p. 85
• — Peri é escravo da senhora.
— Mas Peri é um guerreiro e um chefe.
— A nação Goitacá tem cem guerreiros fortes como Peri; mil arcos ligeiros como o vôo do
gavião. p. 86
• Peri abanou a cabeça com tristeza: — Peri não voltará! Sua mãe fez um gesto de espanto e
desespero. — O fruto que cai da árvore, não torna mais a ela; a folha que se despega do
ramo, murcha, seca e morre; o vento a leva. Peri é a folha; tu és a árvore, mãe. Peri não
voltará ao teu seio. — A virgem branca salvou tua mãe; devia deixá-la morrer, para não lhe
roubar seu filho. Uma mãe sem seu filho é uma terra sem água; queima e mata tudo que se
chega a ela. p. 87
• — Escuta, Peri é filho do sol; e renegava o sol se ele queimasse a pele alva de Ceci. Peri
ama o vento; e odiava o vento se ele arrancasse um cabelo de ouro de Ceci. Peri gosta de ver
o céu; e não levantava a vista, se ele fosse mais azul do que os olhos de Ceci. p. 98
• O fidalgo abriu os braços e deu em Peri o abraço fraternal consagrado pelos estilos da antiga
cavalaria, da qual já naquele tempo apenas restavam vagas tradições. O índio, de olhos
baixos, comovido e confuso, parecia um criminoso em face do juiz p. 115
• Um dia a menina, semelhante a uma gentil castelã da idade Média, tinha se divertido em
explicar ao índio, como os guerreiros que serviam uma dama, costumavam usar nas armas
de suas cores. p. 126
• — Se Peri fosse cristão, e um homem quisesse te ofender, ele não poderia matá-lo, porque o
teu Deus manda que um homem não mate outro. Peri selvagem não respeita ninguém; quem
ofende sua senhora é seu inimigo, e, morre! Cecília, pálida de emoção, olhou o índio,
admirada não tanto da sublime dedicação, como do raciocínio; ela ignorava a conversa que o
índio tivera na véspera com o cavalheiro. p. 144
• — Se tu fosses cristão, Peri!... O índio voltou-se extremamente admirado daquelas palavras.
— Por quê?... perguntou ele. — Por quê?... disse lentamente o fidalgo. Porque se tu fosses
cristão, eu te confiaria a salvação de minha Cecília, e estou convencido de que a levarias ao
Rio de Janeiro, à minha irmã. O rosto do selvagem iluminou-se; seu peito arquejou de
felicidade; seus lábios trêmulos mal podiam articular o turbilhão de palavras que lhe vinham
do intimo da alma. — Peri quer ser cristão! exclamou ele. p. 232
• Não era o sentimento da pátria, sempre tão poderoso no coração do homem; não era o desejo
de ver sua cabana reclinada à beira do rio e abraçar sua mãe e seus irmãos, que dominava
sua alma nesse momento e lhe dava esse ardor. Era sim a idéia de que ia salvar sua senhora e
cumprir o juramento que tinha feito ao velho fidalgo; era o sentimento de orgulho que se
apoderava dele, pensando que bastava a sua coragem e a sua força para vencer todos os
obstáculos, e realizar a missão de que se havia encarregado. 236
• Peri tinha abandonado tudo por ela; seu passado, seu presente, seu futuro, sua ambição, sua
vida, sua religião mesmo; tudo era ela, e unicamente ela; não havia pois que hesitar. Depois,
Cecília tinha ainda um pensamento que lhe sorria: queria abrir ao seu amigo o céu que ela
entrevia na sua fé cristã; queria dar-lhe um lugar perto dela na mansão dos justos, aos pés do
trono celeste do Criador. p. 247