Análise Das Emergências e Proveniências Das Práticas de Promoção de Saúde Realizadas em Um Serviço de APS

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26/06/2024, 16:57 Análise das Emergências e Proveniências das Práticas de Promoção de Saúde Realizadas em um Serviço de APS

Artigos
Análise das Emergências e Proveniências das
Práticas de Promoção de Saúde Realizadas
em um Serviço de APS

Analysis of Emergencies and Proveniences of Health


Promotion Practices Performed in a PHC Service

Análisis de Emergencias y Proveniencias de Prácticas


de Promoción de la Salud Realizadas en un Servicio de
APS

Fernanda Carlise Mattioni 1


Grupo Hospitalar Conceição, Brasil

Cristianne Maria Famer Rocha


Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil

Mateus Aparecido de Faria


Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil

Análise das Emergências e Proveniências das Práticas de Promoção de Saúde Realizadas em


um Serviço de APS
Revista Psicologia e Saúde, vol. 14, núm. 2, pp. 3-19, 2022
Universidade Católica Dom Bosco, Programa de Mestrado e Doutorado em Psicologia

Recepção: 22 Novembro 2021


Revised document received: 09 Junho 2022
Aprovação: 24 Junho 2022
DOI: https://doi.org/10.20435/pssa.v14i2.1854

Resumo:
Este artigo tem como objetivo analisar como se constituíram as práticas de Promoção da Saúde na
Atenção Primária em Saúde (APS), a partir do referencial teórico foucaultiano. Realizamos uma
pesquisa qualitativa, de inspiração genealógica, na qual entrevistamos 23 trabalhadores. A análise
possibilitou a identificação do momento histórico em que surgiram as práticas de Promoção da Saúde
(emergências), bem como as condições que possibilitaram que tais práticas fossem constituídas
(proveniências) na APS. Para a discussão dos dados, foram acionados os referenciais teóricos da
Promoção da Saúde e dos estudos foucaultianos. Os resultados são apresentados a partir de três
períodos históricos. As décadas de 1980/1990 foram marcadas pela redemocratização e constituição
de cidadãos de direitos. Nesse período, as práticas de Promoção da Saúde se caracterizavam
majoritariamente pela participação comunitária na luta por direitos. Os anos 2000 foram marcados
pela emergência das políticas públicas na área da saúde. Esse período teve como razão política a
governamentalidade neoliberal democrática, que influenciou a constituição de práticas de Promoção
da Saúde direcionadas à adoção de hábitos e comportamentos saudáveis por indivíduos e
comunidades. O período de 2016 até a atualidade é marcado pela austeridade fiscal e pelo
recrudescimento das políticas públicas, tendo como razão política a governamentalidade neoliberal
conservadora ou autoritária. Essa configuração representa uma diminuição da quantidade e do
escopo das práticas de Promoção da Saúde realizadas no serviço de APS pesquisado.

Palavras-chave:
Promoção da Saúde, Atenção Primária em Saúde, políticas públicas, estudos foucaultianos.

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Abstract:
This article aims to analyze how the Health Promotion in Primary Health Care (PHC) practices were
constituted, based on the Foucauldian theoretical framework. We carried out a qualitative research, of
genealogical inspiration, in which we interviewed 23 workers. The analysis made it possible to identify
the historical moment in which Health Promotion practices emerged (emergencies), as well as the
conditions that made it possible for such practices to be constituted (provenances) in PHC. To discuss
the data, the theoretical references of Health Promotion and Foucauldian studies were used. The
results are presented from three historical periods. The 1980s and 1990s were marked by the re-
democratization and constitution of citizens’ rights. During this period, Health Promotion practices
were characterized mainly by community participation in the fight for rights. The 2000s were marked
by the emergence of public policies in health. This period had as a political reason the neoliberal
democratic governmentality, which influenced the constitution of Health Promotion practices directed
to the adoption of healthy habits and behaviors by individuals and communities. The period from
2016 to the present is marked by fiscal austerity and an increase of public policies, having as a political
reason the conservative or authoritarian neoliberal governmentality. This configuration represents a
decrease in the quantity and scope of Health Promotion practices carried out in the researched PHC
service.

Keywords:
Health Promotion, Primary Health Care, health policies, Foucauldian studies.

Resumen:
Este artículo pretende analizar cómo se constituyeron las prácticas de Promoción de la Salud en la
Atención Primaria de Salud (APS), a partir del marco teórico foucaultiano. Hemos realizado una
investigación cualitativa, de inspiración genealógica, en la que entrevistamos a 23 trabajadores. El
análisis permitió identificar el momento histórico en que surgieron las prácticas de Promoción de la
Salud (emergencias), así como las condiciones que posibilitaron que tales prácticas se constituyeran
(procedencias) en la APS. Para la discusión de los datos, fueron utilizados los marcos teóricos de la
Promoción de la Salud y los estudios foucaultianos. Los resultados se presentan a partir de tres
periodos históricos. Los años 1980/1990 estuvieron marcados por la redemocratización y la
constitución de ciudadanos con derechos. Durante este período, las prácticas de Promoción de la
Salud se caracterizaron, en su mayoría, por la participación comunitaria en la lucha por los derechos.
La década de 2000 estuvo marcada por el surgimiento de políticas públicas en el área de la salud. Este
período tuvo como razón política la gubernamentalidad neoliberal democrática, que influyó en la
constitución de prácticas de Promoción de la Salud dirigidas a la adopción de hábitos y conductas
saludables por parte de los individuos y las comunidades. El período de 2016 a la actualidad está
marcado por la austeridad fiscal y el deterioro de las políticas públicas, teniendo como razón política
la gubernamentalidad neoliberal conservadora o autoritaria. Esta configuración representa una
disminución en la cantidad y el alcance de las prácticas de Promoción de la Salud realizadas en el
servicio de APS investigado.

Palabras clave:
Promoción de la Salud, Atención Primaria de la Salud, políticas públicas, estudios
foucaultianos.

Introdução

A Promoção da Saúde (PS) é um conceito amplo, complexo e em constante construção


(Mendes et al., 2016). Seu objetivo hegemônico é a indução de comportamentos saudáveis,
por isso, pode ser compreendida como uma estratégia biopolítica, definida por Foucault
(2008), de maneira bastante sintética, como o conjunto de ações operadas sobre a população
para fazê-la viver. As práticas de PS se inscrevem, majoritariamente, na perspectiva da
governamentalidade (Mattioni et al., 2021; Furtado & Szapiro, 2012), descrita como uma das
estratégias para operar a biopolítica na contemporaneidade, que compreende um conjunto
de ações, complexas e descontínuas, realizadas por diferentes atores em uma sociedade, a
fim de conduzir as condutas de indivíduos e populações. Essa investida do poder ocorre com
o uso de discursos, que, de acordo com condições de possibilidade (históricas, sociais,
culturais, políticas, econômicas etc.), ganham legitimidade e passam a ser considerados como
verdades por determinados grupos sociais (Foucault, 2008). As proveniências são justamente
tais condições de possibilidade e as emergências são o momento em que surge determinado
discurso ou prática (Foucault, 2014).

O conceito ampliado da Promoção da Saúde prevê que as medidas adotadas não se dirijam
a uma doença específica, mas que sejam capazes de proporcionar a saúde e o bem-estar por
meio de medidas relativas à moradia, educação, lazer, alimentação etc., as quais são
entendidas como Determinantes Sociais da Saúde (DSS). Estes são definidos como as
condições nas quais a vida transcorre, incluindo desde aspectos mais individuais até as
macrocondições de um país (Buss et al., 2020).

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A Promoção da Saúde e a Atenção Primária em Saúde (APS) têm uma relação intrínseca.
Ambas aparecem associadas, desde as primeiras movimentações, para a reorganização dos
sistemas nacionais de saúde no mundo. A Declaração de Alma-Ata (Organização Mundial da
Saúde, 1978), proveniente da Primeira Conferência Internacional de APS, de 1978, e a Carta
de Otawa (OMS, 1986), publicada a partir da Primeira Conferência Internacional de Promoção
da Saúde, em 1986, inauguram essa relação, cujo objetivo era “saúde para todos” até o ano
2000. Embora tais documentos apresentem uma concepção ampliada de saúde, já neste
período os sistemas nacionais de saúde passam a receber a influência dos organismos
financeiros internacionais (principalmente do Banco Mundial), que tencionavam a
necessidade de indivíduos e comunidades assumirem a responsabilidade pela sua saúde e o
gerenciamento dos riscos de adoecimentos (Furtado & Szapiro, 2012). Essa influência
demonstra a investida neoliberal no campo da Promoção da Saúde, que, ao longo das
décadas, teve como estratégias prioritárias a mudança de comportamentos individuais e o
controle de riscos em detrimento das ações voltadas aos DSS.

No Brasil, a Promoção da Saúde está presente na Constituição Federal de 1988


(Constituição da República Federativa do Brasil, 1988) e na legislação fundante do Sistema
Único de Saúde (SUS) - Leis 8.080 (1990) e 8.142 (1990b). As Políticas de Saúde, estruturadas
nos anos subsequentes à criação do SUS, com intensificação nos anos 2000, são sustentadas
no tripé Promoção da Saúde - Prevenção de Doenças - Cuidados/Reabilitação da Saúde.

A Política Nacional da Atenção Básica (PNAB), publicada em 2006 (Portaria n. 648, 2006),
com última atualização em 2017, orienta o desenvolvimento de ações intersetoriais,
integrando projetos sociais voltados para a Promoção da Saúde como parte do processo de
trabalho das equipes de APS. Além disso, a realização de práticas de Promoção da Saúde
(Portaria nº 2.436, 2017) aparece como atribuição de todos os núcleos profissionais que
integram as equipes de Estratégia Saúde da Família (ESF), Estratégia de Saúde Bucal (ESB) e
Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). Já a Política Nacional da Promoção da Saúde
(PNPS), publicada em 2006 (Portaria nº 687, 2006) e atualizada em 2014 (Portaria nº 2.426,
2014), prevê, em seus eixos operacionais, a atuação em base territorial, de modo articulado e
em rede, tendo a APS como cenário privilegiado para práticas de PS.

Por meio de revisão de literatura (Mattioni et al., 2022), foram identificadas as práticas de
Promoção da Saúde realizadas na APS, nos últimos cinco anos. Esta revisão apontou a
preponderância de práticas destinadas à mudança de comportamento e hábitos individuais.
Esse mesmo estudo demonstrou a necessidade de ampliar o escopo das práticas de
Promoção da Saúde na APS. Outro artigo de revisão (Mattioni et al., 2021) se destinou a
identificar estudos sobre a Promoção da Saúde que utilizaram o referencial teórico
foucaultiano em suas análises, no mundo. Esse estudo demonstrou que apenas 34 artigos,
publicados entre 2006 e 2021, utilizaram tal referencial. Sendo assim, o artigo que propomos
se justifica por apresentar análises sobre um tema amplamente pesquisado, porém não pela
vertente epistemológica dos estudos pós-estruturalistas no qual se inserem os estudos
foucaultianos. Tal perspectiva de análise pode ampliar as possibilidades de análises junto ao
campo da Promoção da Saúde, subsidiando as discussões acerca das políticas e práticas de
saúde na APS.

Diante do exposto, este artigo se propõe a analisar como se constituíram as práticas de


Promoção da Saúde na APS, a partir de teorizações foucaultianas. Para isso, buscamos
identificar e analisar o momento histórico em que surgiram as práticas de Promoção da
Saúde (emergências), bem como as condições que possibilitaram que tais práticas fossem -­
constituídas (proveniências) na APS.

Neste artigo, são apresentados os resultados parciais de uma pesquisa realizada para a
construção de Tese de Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Métodos

Realizamos uma pesquisa de campo, descritiva e exploratória, de abordagem qualitativa e


inspiração genealógica, no contexto da APS do município de Porto Alegre, Rio Grande do Sul,
Brasil. Os dados da pesquisa foram produzidos por meio de entrevistas semiestruturadas
com trabalhadores responsáveis por conduzir práticas de Promoção da Saúde em doze
Unidades de Saúde (US), que correspondem a 39 equipes de ESF e cinco NASF. Estas US são
responsáveis pelo atendimento de aproximadamente cem mil usuários. Os núcleos
profissionais dos participantes foram: Serviço Social (6), Enfermagem (5), Psicologia (4),
Agente Comunitário de Saúde (ACS) (3), Medicina (2), Odontologia (2), Nutrição (1), totalizando
23 participantes. Esse número de participantes foi definido por possibilitar a obtenção de
relatos sobre a maior parte das práticas de Promoção da Saúde identificadas no serviço
pesquisado, representando o ponto de saturação dos dados (Vinuto, 2014). A coleta dos

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dados ocorreu no período de fevereiro a maio de 2020. As entrevistas foram gravadas e
transcritas. Além disso, foi utilizado um diário de campo, no qual foram anotadas as
impressões da pesquisadora, primeira autora deste artigo.

Os dados foram analisados por meio de técnicas inspiradas na pesquisa genealógica, que
possibilita que tensões, disputas, discursos, práticas e relações de poder, possam ser
identificados. A genealogia é o estudo das formas de poder: “. . . na sua multiplicidade, nas
suas diferenças, na sua especificidade, na sua reversibilidade: estudá-las, portanto, como
relações de força que se entrecruzam, que remetem umas às outras, convergem ou, ao
contrário se opõem. . .” (Foucault, 1997, p. 71). A tarefa do genealogista consiste em analisar
os possíveis efeitos intrínsecos a uma prática discursiva, a fim de encontrar as condições de
possibilidade que originaram as formações discursivas, bem como os poderes que estão em
jogo nesse processo (Deleuze, 2005).

Na prática genealógica, são fundamentais as análises de proveniência (ou ascendência) e de


emergência. As proveniências são as condições de possibilidade, por meio das quais
discursos e práticas se formaram. A emergência é o ponto de surgimento, a localização
histórica em que a correlação de forças das condições de possibilidade convergiu para o
aparecimento de um discurso ou prática (Foucault, 2014).

A análise dos dados seguiu as seguintes etapas: leitura das entrevistas transcritas; leitura
de documentos técnico-legais referentes à APS (Portaria nº 648, 2006; Portaria nº 2.488, 2011;
Portaria nº 2.436, 2017) e à Promoção da Saúde no Brasil (Portaria nº 687, 2006; Portaria nº
2.426, 2014); descrição e análise das emergências e proveniências dos discursos e das
práticas de Promoção da Saúde no cenário da pesquisa.

Cabe salientar que a pesquisa que originou este artigo não teve a pretensão de ser uma
genealogia, mas sim de inspirar-se em algumas de suas estratégias analíticas. Assim, as falas
dos participantes não são consideradas fontes de verdade, mas um ponto de vista acerca de
como se constituíram as práticas de Promoção da Saúde no cenário pesquisado. Para
construir as análises deste artigo, foram levados em consideração os relatos dos
participantes, que resgatam a história das práticas de Promoção da Saúde, as Políticas
Nacionais de Atenção Básica (Portaria nº 971, 2006; Portaria nº 2.488, 2011; Portaria nº 2.436,
2017) e de Promoção da Saúde (Portaria nº 687, 2006; Portaria nº 2.426, 2014) e o referencial
teórico que se refere ao objeto de estudo, bem como o referencial foucaultiano. O resgate
histórico obtido por meio das falas e os registros presentes nas políticas possibilitaram
delinear as proveniências e emergências das práticas de Promoção da Saúde no cenário
pesquisado.

Para preservar o anonimato, os participantes da pesquisa foram identificados com


codinomes que remetem a expressões artísticas, escolhidos por eles mesmos. Durante toda a
pesquisa, foram observados os procedimentos éticos exigidos para estudos com seres
humanos no Brasil (Resolução nº 466, 2012). A pesquisa foi aprovada pelos Comitês de Ética
em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Grupo Hospitalar
Conceição, de acordo com os números de protocolo CAAE 16078319.7.0000.5347 e CAAE
16078319.7.3001.5530, respectivamente.

Resultados e Discussão

A análise dos dados será apresentada a partir de três períodos históricos. Descreveremos a
correlação de forças que possibilitou a emergência das práticas nos períodos, bem como as
condições de possibilidade (proveniências) que permitiram e fizeram com que as práticas
emergissem no cenário pesquisado.

A s D écadas de 1980/1990: R edemocratização , M obilização P opular , C onstrução do SUS e do


S erviço de S aúde P esquisado

De acordo com os dados coletados, as atividades que envolvem a participação comunitária,


o controle social e o planejamento participativo são as mais antigas, coincidindo, muitas
vezes, com a criação das próprias US integrantes da pesquisa. Estas foram criadas nas
décadas de 1980 e 1990, a partir da intensa organização comunitária e reivindicação de
serviços de saúde nas comunidades da zona norte de Porto Alegre, RS. A fala a seguir
demonstra esse processo:

Iniciamos o planejamento participativo em 1994, no início não era esse o nome, mas
era essa atividade, de planejar junto com a comunidade. Atualmente realizamos a cada
dois anos. Geralmente é feito em um sábado. Nesse momento discutimos temas da
saúde junto com a comunidade e elegemos as prioridades a serem trabalhadas nos
próximos anos. (Teatro).

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A partir da fala exposta, verificamos que, na década de 1990, existiam práticas que visavam
estimular a participação da comunidade. Nesse período, o país vivia o momento da
redemocratização, com a atuação maciça de movimentos sociais e populares, dentre eles, o
Movimento Sanitário Brasileiro. Uma possível explicação para a emergência de muitas
iniciativas e organizações de participação popular, que tomaram corpo na constituição de
Conselhos Locais de Saúde e Planejamentos Participativos, foi a influência desse momento
histórico, no qual muitos coletivos se mobilizaram para a construção de um sistema de saúde
público e universal. Além disso, o engajamento de docentes/pesquisadores universitários, no
processo de criação e legitimação do arcabouço técnico-político do SUS, influenciou e
estimulou a criação de espaços participativos e democráticos em seu contexto (Paim, 2016).
As primeiras US do serviço pesquisado foram criadas para serem campo da Residência de
Medicina Geral Comunitária, atualmente chamada de Medicina de Família e Comunidade
(Grupo Hospitalar Conceição, 2021), fato que demonstra a influência das estratégias
educacionais no processo de constituição dos primeiros serviços de APS do país.

As condições de possibilidade (proveniências) que convergiram para a emergência das


práticas descritas, de acordo com o relato dos participantes, dos registros presentes na
legislação do próprio SUS (Lei nº 8.080, 1990; Lei nº 8.142, 1990) e da leitura do referencial
teórico da área (Paim, 2016), foram: o cenário político, identificado no processo de
redemocratização, em que o país ainda estava sob efeito da atuação dos movimentos sociais
e populares; a recente aprovação da Constituição Federal Brasileira (1988); o engajamento de
docentes e pesquisadores universitários no Movimento Sanitário Brasileiro; a estruturação
dos primeiros programas de Residência em Medicina Geral Comunitária; e as ações ou
programas de reorientação da formação profissional. Em nível local, as comunidades se
organizavam para reivindicar serviços de saúde em seus territórios, considerando a criação
do SUS em 1990 (Lei nº 8.080, 1990; Lei nº 8.142, 1990; Paim, 2016).

Outro conjunto de práticas de PS que têm bastante tempo de existência são os grupos de
convivência. Estas atividades aparecem em quase todas as US pesquisadas e cumprem uma
função importante como espaço de socialização entre os participantes. Dois aspectos
apontam para a emergência dessas práticas. Primeiro, que o surgimento de tais atividades
aconteceu já na implantação das US. Aquela mesma mobilização e organização comunitária,
do final dos anos 1980 e início dos anos 1990, pode ter influenciado a criação de espaços de
encontro e convivência, conforme verificamos na fala a seguir: Desde a sua criação, as
Unidades eram reconhecidas como espaços pertencentes à comunidade. Um local não
apenas de cura, mas também de compartilhar a vida. . . (Hortaliça).

A partir do que foi dito, é possível perceber que as US não são apenas consideradas
espaços de cura, mas também espaço de encontro entre as pessoas. Isso é ilustrado no fato
de algumas US integrarem centros comunitários que são sede para outras políticas, como a
de Assistência Social, bem como espaços de lazer comunitários (quadra de esportes, pracinha
para as crianças, piscina comunitária, cancha de bochas, salão da associação comunitária).

Além do surgimento de tais práticas, no contexto da redemocratização do país e da criação


das US, outro ponto chama atenção. O que fez com que os grupos de convivência se
mantivessem ativos por tantos anos e com tanta adesão? Um primeiro fator que pode ter
influenciado se refere ao vínculo estabelecido entre a comunidade e as equipes de saúde. Os
trabalhadores das US pesquisadas, por serem contratados via processo seletivo público e
terem condições de trabalho minimamente satisfatórias, majoritariamente se mantêm no
serviço por muitos anos (a média de tempo de serviço dos participantes da pesquisa é de 15
anos). Isso faz com que as equipes se vinculem com as comunidades. Além disso, as práticas
de PS com tais características são conduzidas ou contam com a participação de ACS. Antes
mesmo da criação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (Portaria nº 1.886/GM,
1997), o serviço pesquisado já havia criado o cargo de Agente de Saúde Comunitária (Grupo
Hospitalar Conceição, 2021). Estes trabalhadores, que também são moradores das
comunidades, integram as US desde as suas criações, conforme é dito a seguir: Eu trabalho
no serviço há 28 anos. Sempre me envolvi com os grupos. . . Grupo de convivência, de
artesanato, de adolescentes, da horta. . . (Hortaliça).

A participação das ACS, desde a criação das US, conforme exemplificado na fala acima,
influencia a vinculação e adesão dos usuários nas atividades de convivência, fazendo com
que elas sigam tendo a mesma força que no momento de sua criação (o grupo de convivência
mais antigo foi criado há 27 anos).

Na contemporaneidade, é possível identificar que as pessoas, mesmo em tempos que


antecederam a pandemia de covid-19, deflagrada no Brasil em março de 2020, encontravam-
se em processos de isolamento e fragilidade de relações. Os espaços de convivência, de arte
e de cultura, oferecidos pelas equipes de APS, representam uma possibilidade de socialização

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e produção de relações de apoio mútuo, demonstrando potência para a promoção da saúde
mental e apoio comunitário.

Entendemos que a emergência, nas décadas de 1980/1990, de práticas de Promoção da


Saúde, inerentes à participação popular e à convivência, estava vinculada à intensa
mobilização social presente no processo de redemocratização do país, especialmente o
Movimento Sanitário, no campo da saúde. Além disso, mais especificamente no cenário
pesquisado, o surgimento da Residência em Medicina Geral Comunitária, a mobilização das
próprias comunidades para a criação de Unidades de Saúde em seus territórios e a criação,
ainda nessa época, do cargo de Agente de Saúde Comunitária foram as condições de
possibilidade (proveniências) para o surgimento e a ampliação de tais práticas, nessa época.

Retomamos a noção de governamentalidade, palavra utilizada por Foucault (2008) para


definir as estratégias de condução das condutas dos indivíduos (governo de si) e da
população (governo dos outros), cujas características foram se modificando ao longo da
história. O processo de redemocratização do país, com as lutas por direitos sociais, esteve
ancorado em uma nova razão política, denominada governamentalidade democrática (Gallo,
2017). Foi um período histórico “centrado na afirmação e na promoção da cidadania,
evidenciando uma governamentalidade democrática como maquinaria posta em curso no
Brasil desde meados dos anos 80, azeitada pela constituição de cidadãos” (Gallo, 2017, p. 89).
Para que um governo democrático seja possível, a cidadania é obrigatória, por isso, naquele
momento histórico, a racionalidade do pensamento político, cultural, econômico e social
passa a se sustentar na noção de democracia e na noção de sujeito de direito, como o
fundamento da ação governamental (Gallo, 2017).

Identificamos a ação dessa racionalidade no campo pesquisado, nas décadas de 1980/90,


período em que as comunidades lutavam por seus direitos e por sua condição de cidadãos.
Ao mesmo tempo em que se construíam as bases que legitimaram o acesso à saúde como
direito social, também era elaborada uma complexa estrutura técnico legal que permitiria a
condução da conduta desses cidadãos de direitos, por meio da governamentalidade
democrática. Esses mecanismos se ampliam e se modificam nos anos subsequentes,
conforme veremos.

O s A nos 2000: I ndução de P ráticas de P romoção da S aúde por meio de P olíticas P úblicas de
S aúde

Nos anos 2000, as práticas de participação popular seguiram existindo no campo


pesquisado, mas demonstraram um recuo em relação às décadas anteriores. A organização
comunitária perdeu a sua força. As assembleias comunitárias e o Planejamento Participativo ­-
passaram a ser realizados com menor frequência e por menos Unidades de Saúde. Os
Conselhos Locais de Saúde ganharam características cada vez mais institucionais e vinculadas
a procedimentos burocráticos, sem a capacidade de mobilização comunitária anteriormente
identificada, conforme a fala a seguir:

A dificuldade é conseguir com que as pessoas [participem]. Tem gente que vai sempre,
mas são poucos. A gente não dá o devido valor para os espaços de participação social.
(Teatro).

Existe um grande questionamento por parte da gestão municipal em relação à


legitimidade dos Conselhos Locais de Saúde, nós ficamos preocupados que o espaço
fosse bem legitimado. . . . a participação social deixou de ser entendida como trabalho
no SUS. Os próprios colegas não estimulam que os usuários participem das reuniões.
(Capoeira).

As falas acima demonstram o processo de diminuição da participação dos usuários nos


espaços destinados para tal, bem como a falta de legitimidade desta prática (participação) no
contexto da gestão e do próprio processo de trabalho das equipes de saúde.

Esse processo coincidiu com a forte investida da racionalidade neoliberal, entendida como
um desenho socioeconômico no qual as relações de mercado devem ocorrer com a maior
liberdade possível, sendo a ação do Estado limitada a regular, em certa medida, tais relações.
Além disso, deve investir o mínimo possível na área social, na medida em que seja possível
manter o equilíbrio social, para que a população se mantenha produtiva e capaz de consumir
os bens e serviços ofertados pelo mercado (Lockmann, 2020; Dardot & Laval, 2016). Merece
destaque a implementação de ações do Banco Mundial sobre os sistemas de saúde de
diferentes países, cujos relatórios e proposição de modelos de atenção específicos
começaram a ser estruturados ainda nas décadas de 1990 e passaram a ser efetivamente
implementados nos anos 2000 (Mendonça et al., 2018).

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A luta pela constituição legítima de um Estado cidadão já não ocupava espaço de
centralidade na arena política nesse período. A ordem do dia passou a ser a construção e
operacionalização de políticas públicas capazes de garantir direitos e, ao mesmo tempo, por
meio da inclusão que proporcionam, de governar os cidadãos que integram a sociedade
democrática, já legitimamente constituída nas décadas anteriores. Nesse período, a
governamentalidade neoliberal democrática ganhou espaço no Estado brasileiro (Gallo,
2017), cuja racionalidade pode ser identificada nas muitas políticas públicas de saúde,
criadas/promulgadas nos anos 2000. Não conseguiríamos citar todas elas, mas podemos
dizer que, no cenário estudado, é possível identificar a indução de práticas de Promoção da
Saúde, de acordo com tais políticas.

No ano de 2011, o número de equipes de APS foi ampliado sobremaneira no serviço


pesquisado (Grupo Hospitalar Conceição, 2021). Tal ampliação foi possível com a publicação
da PNAB em 2011 (Portaria nº 2.488, 2011), que considerava novos arranjos para as equipes
de ESF. Esse foi o período em que as equipes de APS receberam os maiores aportes de
incentivos financeiros dos governos federal e estadual, com vistas à ampliação e qualificação
do trabalho (Mendonça et al., 2018).

Como práticas de PS, produto da indução de políticas públicas de saúde, emergiram no


serviço pesquisado: o Programa Saúde na Escola (PSE) (Portaria Interministerial nº 1.055,
2017b); os grupos/consultas coletivas de Hipertensão Arterial Sistêmica e Diabetes Mellitus; o
grupo Saúde no Prato (alimentação saudável); Grupos de Saúde Mental; atividades ­coletivas
do Programa Bolsa Família (programa de redistribuição de renda do governo federal, criado
em 2003, cujas condicionalidades incluem o acompanhamento sistemático de saúde das
famílias beneficiadas (Lei nº 10.836, 2004); Grupo de Tabagismo; Grupo de Caminhada. Todas
elas vinculadas a alguma política de saúde ou programa governamental. Destaca-se a
vinculação de muitas delas com os eixos operacionais da Política Nacional de Promoção da
Saúde (Portaria nº 2.426, 2014), conforme exemplificado pela fala a seguir:

A atividade começou demandada por parte da coordenação [da equipe]. O PSE


[Programa Saúde na Escola] é uma diretriz ministerial. . . Elaboramos um projeto que
contemplava ações de Promoção da Saúde e exames diagnósticos, realizados na
escola, conforme prevê o manual do PSE. (Cinema).

De acordo com o que foi dito, a partir de um programa estruturado pelo Ministério da
Saúde, as equipes foram convocadas pela gestão do serviço pesquisado a organizar as
práticas de Promoção da Saúde em seus territórios, conforme o previsto no referido
programa (PSE).

As outras práticas relatadas na pesquisa, neste período histórico, também emergiam a


partir da demanda pela sua criação, por parte dos gestores da instituição de saúde, que, por
sua vez, recebiam-na dos governos estaduais e federal. A partir da solicitação, eram criados
grupos de trabalho que organizavam as práticas no contexto das Unidades de Saúde.

Outro conjunto de práticas que emergiram nesse período se referem às atividades


culturais, conforme descreve a fala a seguir:

. . . uma iniciativa de estímulo e valorização da cultura foi a criação dos Pontos de


Cultura no território das Unidades a partir de 2007. Nestes locais, eram ofertadas às
comunidades atividades de arte, envolvendo a cultura local. Existia um espaço
centralizado, chamado Chalé da Cultura onde era feito o empréstimo de livros,
atividades artísticas, saraus literários, apresentações musicais e de dança, feira de
artesanato produzido nas comunidades. . . servia também como local de integração
das diferentes comunidades. (Flor).

O que foi dito acima exemplifica o fato de os Pontos de Cultura terem sido uma prática
expressiva de Promoção da Saúde, ancorada na perspectiva da intersetorialidade (envolvia
diretamente os Ministérios da Saúde e o Ministério da Cultura), da participação comunitária e
do respeito e da valorização da cultura e dos saberes locais. Embora as condições de
possibilidade que fizeram emergir os Pontos de Cultura nessa época também contemplem a
participação do Estado, por meio de editais e incentivos financeiros para as atividades, a
correlação de forças não permitiu que esta prática de saúde - vinculada à cultura - se
tornasse uma política pública de saúde. Por isso, sua existência permaneceu condicionada à
gestão (temporária) da instituição a qual estavam vinculados. Com a crescente precarização
dos serviços de saúde, acentuada a partir de 2016, tais práticas foram sendo fragilizadas de
modo que os Pontos e o Chalé da Cultura foram extintos nesses territórios. Isso denota uma
derrota diante da adoção do conceito ampliado de saúde e do alcance das práticas de
Promoção da Saúde. A cultura é uma dimensão importante da vida, capaz de proporcionar

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26/06/2024, 16:57 Análise das Emergências e Proveniências das Práticas de Promoção de Saúde Realizadas em um Serviço de APS
saúde mental e bem-estar. Para muitas pessoas, das comunidades nos quais estavam
inseridos, os Pontos de Cultura representavam a possibilidade de acesso a práticas culturais.

Foi a partir das atividades desenvolvidas nos Pontos de Cultura e no Chalé da Cultura que
surgiram as primeiras iniciativas em relação à implantação de Práticas Integrativas e
Complementares, nas US pesquisadas, de acordo com a fala a seguir:

Um grupo de trabalhadores e residentes. . . realizaram um seminário para discutir a


temática. Constituíram um grupo de pessoas com formação em Reiki, que passou a
realizar aplicações no próprio Chalé da Cultura. Então outras práticas foram incluídas e
foram se estendendo para as demais Unidades. (Flor).

Conforme o que foi dito, é possível identificar a importância do Chalé da Cultura para que
as práticas Integrativas e Complementares passassem a ser incluídas no serviço de saúde
pesquisado.

Em nível macro, destacamos o esforço da Rede de Educação Popular em Saúde em


fomentar a Educação Permanente sobre práticas tradicionais e a construção da Política
Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) (Portaria nº 971, 2006). Em nível
local, as atividades dos Pontos de Cultura construíram as condições de possibilidade
(proveniências) para a emergência das Práticas Integrativas e Complementares (PICS) no
serviço pesquisado.

Algumas práticas identificadas no cenário da pesquisa, que surgiram nos anos 2000,
escapam à indução realizada por meio de políticas de saúde, incentivos financeiros e
orientações de documentos técnico-legais. São elas: grupo de dança na escola; grupo de
escrita criativa; grupo da horta; grupo de artesanato; grupo de visitas da alegria com
palhaços. As falas a seguir demonstram isso:

O grupo surgiu a partir de um projeto de extensão da universidade. . . . O objetivo [da


prática] é poder se expressar através da escrita. . . . Tem um objetivo de ser um espaço
lúdico, de ser um espaço criativo. (Criatividade).

A prática surgiu da associação da minha trajetória pessoal com a dança, com os


resultados da minha tese de doutorado. Não queria fazer algo de educação em saúde
tradicional na escola. Queria olhar para o corpo de outro jeito. No serviço de saúde, se
olha para o corpo orgânico. [Nessa prática, o objetivo] É olhar para um corpo que
dança. (Dança).

A partir desses exemplos, é possível identificar práticas de Promoção da Saúde que não são
induzidas pelas políticas de saúde, mas por outros fatores, como a participação da
Universidade e o percurso/experiência pessoal do trabalhador.

A emergência dessas práticas, as quais, em certa medida, escapam ao escopo do que ditam
as (tradicionais) políticas públicas da área da Saúde, destinadas principalmente a modular
comportamentos e controlar riscos, tem como condições de possibilidade para seu
surgimento a trajetória e experiência pessoal dos trabalhadores que as conduzem; a
presença de projetos de extensão de universidades; e a presença e atuação de residentes dos
Programas de Residência Multiprofissional em Saúde e de Medicina de Família e
Comunidade.

As práticas induzidas pelas políticas públicas de Saúde podem ser entendidas como a
expressão da governamentalidade neoliberal democrática (Gallo, 2017), pois visam,
majoritariamente, induzir comportamentos saudáveis, inscritos em uma normatização
estabelecida no campo da saúde. A Promoção da Saúde, posta em ação desta forma, pode
ser compreendida como uma estratégia biopolítica operada para manter corpos saudáveis,
produtivos e aptos ao consumo. Já as práticas que escapam ao que ditam as políticas públicas
majoritárias desse momento histórico podem ser compreendidas como contracondutas, que
Foucault definiu como a “luta contra os procedimentos postos em prática para conduzir os
outros” (Foucault, 2008, p. 266); ou seja, a adoção de uma conduta diferente da esperada,
diante de um conjunto de políticas públicas que visam induzir determinadas práticas de
Promoção da Saúde, inscritas na lógica da governamentalidade neoliberal democrática. São
práticas que vão buscar a produção de saúde de acordo com as singularidades dos
participantes, sem um modelo único do que seria saúde e sem ter, unicamente, como
objetivo final, um corpo apto ao trabalho e ao consumo.

Podemos exemplificar práticas que se constituem como contraconduta, como a descrita na


fala que segue:

No grupo de convivência ninguém deve ficar fiscalizando. Ah, se come bolo e tem
diabetes. Lá cada um sabe da sua vida e o objetivo não é ficar controlando a comida. É
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um espaço de convivência, que tem comida e as pessoas podem comer, sem ser
cerceadas. (Viagem).

Observamos, assim, com esse relato, que se trata de uma atividade que se constitui como
prática diferente do que é majoritariamente ditado nas políticas de saúde, que se destinam
ao controle de comportamentos e mudanças de hábitos. Uma revisão de literatura (Mattioni
et al., 2022), sobre as práticas de Promoção da Saúde na APS revelou que as atividades
realizadas são majoritariamente destinadas à modulação dos comportamentos individuais.
Sendo assim, práticas cujo objetivo escapam a esta perspectiva podem ser entendidas como
uma contraconduta ao que está previsto nas políticas de saúde, que, em sua maioria, voltam-
se às abordagens comportamentais.

D e 2016 até A gora : P recarização do SUS, R efluxo das P ráticas de P romoção da S aúde e
N ovas (I m )P ossibilidades

A partir de 2016, não foi relatada, pelos participantes da pesquisa, a emergência de novas
práticas de Promoção da Saúde a partir da indução de políticas públicas de saúde. Esse
resultado acompanha o cenário de precarização dos serviços de saúde integrantes do SUS.
Tal precarização se inscreve na adoção de medidas de austeridade fiscal, ocorrida nos
últimos anos, cuja legitimação se deu com a aprovação da Emenda Constitucional (EC) 95
(Emenda Constitucional nº 95, 2016). Com isso, os gastos sociais públicos passam a ser ainda
mais limitados e, no caso da Saúde e Educação, os governos federais, estaduais e municipais
não são mais obrigados a investir percentuais mínimos de sua arrecadação nestas áreas
(Rego Menezes et al., 2020).

Além da limitação dos investimentos na área da saúde, nos últimos anos, o ritmo de
elaboração e publicação de políticas públicas de saúde diminuiu consideravelmente, assim
como mudaram os discursos presentes na sua composição, fato que remete ao visível recuo
do Estado brasileiro nessa área, demonstrando a investida da racionalidade neoliberal
conservadora (ou autoritária). Autores (Gallo, 2017; Lockmann, 2020) sustentam que, desde
meados dos anos 1980 até pelo menos 2016, funcionava, no Brasil, uma governamentalidade
neoliberal democrática sustentada na “inclusão como imperativo de Estado, garantindo
direitos aos cidadãos, mas ao mesmo tempo produzindo desigualdades” (Lockmann, 2020, p.
71). Como produto de um processo que se intensificou de 2016 até a atualidade, emergiu um
cenário no qual determinados grupos populacionais parecem não estar incluídos no escopo
das políticas de governo. Essa nova roupagem do neoliberalismo brasileiro passou a ser
chamada de governamentalidade neoliberal conservadora ou autoritária, em que certos
grupos populacionais seguem sendo incluídos, mas não todos (Lockmann, 2020). Admite-se
que, ao serem abandonados pelo Estado, determinados grupos populacionais podem (ou
devem) morrer. Ao contrário da estratégia biopolítica de fazer viver e deixar morrer, essa
configuração remete à perspectiva necropolítica de fazer morrer (Mbembe, 2018).

Também foram identificadas mudanças nas políticas públicas de Saúde. Com relação ao
objeto deste artigo, destacamos as alterações com a publicação da PNAB em 2017 (Portaria
nº 2.436, 2017), especialmente no que se refere à diminuição do número de ACS nas equipes,
a flexibilização da adscrição dos territórios às equipes de ESF e as mudanças no
financiamento das equipes de APS (Pinto, 2018). Esses aspectos impactam diretamente as
práticas de Promoção da Saúde realizadas na APS. De acordo com os resultados desta
pesquisa, os ACS participam de quase todas as práticas relatadas, sendo que foram os
criadores e coordenam muitas delas. Diminuir o número de ACS nas equipes significa
diminuir a possibilidade de manter e estimular a execução de práticas de Promoção da Saúde
vinculadas ao conceito ampliado de saúde.

A flexibilização da adscrição territorial, por sua vez, significa que as equipes podem não
estar vinculadas a comunidades específicas, fato que fragiliza a compreensão do território
como um espaço produtor de saúde ou de adoecimentos, bem como as possibilidades de
problematizar tais situações junto às comunidades e fomentar a organização para reivindicar
melhores condições de vida nos territórios, junto ao Estado (Pinto, 2018).

Considerando a presença de práticas de Promoção da Saúde na APS, ainda como produto


da indução operada por políticas públicas de saúde, e, ao mesmo tempo, a fragilização do
SUS, como resultado das medidas de austeridade fiscal, podemos dizer que está em curso
algo que pode ser chamado de bionecropolítica em relação ao campo da saúde (Dall’alba et
al., 2021). A Promoção da Saúde, desde sua criação, ao que parece, assumiu um caráter
biopolítico, visando à manutenção da vida, mesmo que com a finalidade de garantir uma
população produtiva e consumidora. Já a ausência de políticas públicas e de práticas de
Promoção da Saúde, em determinados territórios, significa que o Estado assume que certos
grupos populacionais não necessitam ser cuidados ou expostos a ações de promoção da vida
e, portanto, podem morrer, caracterizando, assim, uma estratégia necropolítica.

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26/06/2024, 16:57 Análise das Emergências e Proveniências das Práticas de Promoção de Saúde Realizadas em um Serviço de APS
Junto ao processo de precarização das políticas de Saúde, a pandemia de covid-19, cujos
primeiros casos no Brasil datam de março de 2020, também impactou sobremaneira as
práticas de Promoção da Saúde, no cenário pesquisado. A maior parte das práticas foram
suspensas nesse período, não sendo retomadas até o momento da escrita deste artigo (abril
de 2021). A característica do encontro entre as pessoas, presente na maior parte das práticas,
inviabiliza sua realização. Por outro lado, as medidas de distanciamento social, utilizadas para
prevenir o contágio da doença, estimulou as equipes de saúde a utilizarem as mídias digitais
para a comunicação com os usuários. Diferentes plataformas digitais e aplicativos de
mensagens passaram a ser utilizados com o objetivo de comunicar e informar as
comunidades a respeito das ações de saúde no território. As tecnologias digitais são
utilizadas para informar sobre o funcionamento dos serviços, para veicular mensagens de
educação em saúde (sobre a covid-19 e outros temas da saúde) e para convidar a
comunidade para participar de reuniões do Conselho Local de Saúde e assembleias
comunitárias, conforme descrito a seguir: Nosso Conselho está ativo, com reuniões
quinzenais. Este mês faremos a segunda Assembleia com os moradores. Tudo on-line.
Observo que as pessoas estão participando bem mais. (Viagem).

Identificamos, com o relato acima, intensificação do uso de tecnologias digitais,


desencadeada pela situação de crise sanitária. Destacamos o alcance que as mensagens
disparadas, tanto por meio de plataformas digitais quanto por meio de aplicativos de
mensagens, podem ter, disseminando discursos sobre saúde, que podem tanto se alinhar a
uma lógica da Promoção da Saúde mais conservadora, focada unicamente no controle de
riscos e na responsabilização/culpabilização individual, como pode reforçar a difusão do
conceito ampliado de saúde e desta como um direito social.

Outro aspecto positivo foi a ampliação da participação das comunidades com a utilização
das ferramentas virtuais, algo que não ocorria quando os encontros eram presenciais,
conforme já relatado neste artigo. Essa pode ser uma alternativa para que as pessoas se
inteirem sobre os assuntos das Unidades de Saúde e seus respectivos territórios,
participando das decisões e se mobilizando diante das necessidades identificadas. A
utilização do meio virtual foi uma alternativa imposta pela pandemia, porém pode vir a ser
um elemento de aproximação com as comunidades e potencializar a participação popular.

Tais aspectos representam possibilidades para a disputa do conceito de saúde junto à


população, algo inerente aos rumos da Promoção da Saúde, pois, se a população assume o
discurso de que saúde é apenas controlar riscos, fazer exames preventivos (muitos deles
desnecessários) e utilizar medicações e suplementos alimentares, ganha a indústria da saúde,
que garante cada vez mais pessoas dispostas a comprar seus produtos. Por outro lado, se a
saúde é vista em perspectiva ampliada, como produto de diferentes Determinantes Sociais, a
população pode reconhecer a importância do fortalecimento dos serviços públicos de saúde
e da necessidade de ampliação de políticas públicas intersetoriais, capazes de promover
ambientes que favoreçam uma vida saudável nas comunidades (Akerman & Germani, 2020).

Considerações Finais

Apresentamos a análise das emergências e proveniências das práticas de Promoção da


Saúde realizadas em um Serviço de APS. Ao longo de quatro décadas, emergiram práticas de
Promoção da Saúde que, de um modo geral, acompanham os arranjos socioeconômicos,
políticos e culturais da sociedade brasileira. Aspectos locais, no entanto, garantem
características singulares a algumas práticas relatadas no cenário pesquisado.

Os resultados desta pesquisa ratificam o argumento de que as práticas de Promoção da


Saúde se configuram, majoritariamente, como estratégias biopolíticas, destinadas à
modulação de comportamentos, controle de riscos e produção de corpos saudáveis, aptos ao
trabalho e ao consumo, induzidas por meio de políticas públicas. Existem, no entanto,
práticas que se constituem com características que escapam ao escopo de tais políticas,
colocando-se como contracondutas às práticas de Promoção da Saúde inscritas na lógica da
governamentalidade neoliberal democrática, ou seja, seu objetivo é produzir bem-estar e
felicidade, mesmo que isso signifique fugir das normas dos (tradicionais) protocolos
sanitários.

Destacamos que as análises realizadas neste artigo não devem ser entendidas como
afirmações de verdade. Por se tratar de uma pesquisa inspirada no método genealógico, os
resultados e suas análises devem ser considerados tão somente como uma possibilidade de
entendimento do objeto de estudo em questão. Sua maior potencialidade está na utilização
do referencial teórico pós-estruturalista (foucaultiano) para uma temática pouco explorada
sob essa perspectiva epistemológica. A partir das entrevistas, da pesquisa documental
realizada sobre políticas de saúde e da utilização do referencial teórico escolhido,
oferecemos, por meio deste artigo, pistas sobre como se constituíram as práticas de

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26/06/2024, 16:57 Análise das Emergências e Proveniências das Práticas de Promoção de Saúde Realizadas em um Serviço de APS
Promoção da Saúde em um cenário e em um período histórico delimitado. Por isso, tais
resultados não são passíveis de generalizações, mas podem sugerir possibilidades analíticas e
de compreensão das realidades, em outros contextos e cenários.

Salientamos, ainda, que o teor da crítica aqui realizada buscou tão somente analisar (sem
juízos de valores) que a condução de condutas que operam como estratégias biopolíticas
parece contribuir sobremaneira a uma concepção de Saúde bastante diferente daquela
vivenciada na atualidade, em que a racionalidade neoliberal conservadora (ou autoritária)
admite que determinados grupos populacionais podem (ou devem) ser excluídos e
abandonados pelo Estado, a sua própria sorte. Certamente, este é um tema que remete a
estudos futuros, no sentido de aprofundar essas outras formas de atuação do Estado
brasileiro, que não mais se inscreve unicamente na categoria da biopolítica.

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Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. (2017). Aprova a Política Nacional de


Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção
Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Ministério da Saúde.
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Rego Menezes, A. P., Moretti, B., & Reis, A. A. C. (2020). O futuro do SUS: Impactos das
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26/06/2024, 16:57 Análise das Emergências e Proveniências das Práticas de Promoção de Saúde Realizadas em um Serviço de APS
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Autor notes

Fernanda Carlise Mattioni: Doutora em Enfermagem pela Universidade Federal do Rio


Grande do Sul (UFRGS). Enfermeira da Unidade de Saúde Vila Floresta, do Serviço de Saúde
Comunitária do Grupo Hospitalar Conceição. E-mail: [email protected],
Orcid:https://orcid.org/0000-0003-3794-6900
Cristianne Maria Famer Rocha: Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). Professora permanente do Programa de Pós-Graduação em
Enfermagem (PPGENF), do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU) e da
Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-
mail: [email protected], Orcid:https://orcid.org/0000-0003-3281-2911
Mateus Aparecido de Faria: Doutorando em Saúde Coletiva pelo Instituto René Rachou -
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz Minas). Técnico administrativo em Educação na
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: [email protected],
Orcid:https://orcid.org/0000-0001-6622-9949

1 Endereço de contato: Rua Antônio Joaquim Mesquita, 570/1022, Passo D'Areia, Porto
Alegre, RS. CEP 91350-180. E-mail: [email protected]

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