Educação Na Contramão Da Democracia - A Reforma Do Ensino Médio No Brasil
Educação Na Contramão Da Democracia - A Reforma Do Ensino Médio No Brasil
Educação Na Contramão Da Democracia - A Reforma Do Ensino Médio No Brasil
Apresentação
1
Apresentação recebida em 22/05/21. Aprovada pelos editores em 23/05/21. Publicada em 27/05/21.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i39.50143
2
Doutora em Educação pela PUC SP. Professora na Universidade Federal do Paraná. Pesquisadora
1D do CNPq. Coordenadora da Rede Nacional EMPESQUISA. E-mail: [email protected].
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1079110450785932 ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1729-8742
3
Doutor em Educação pela UFMG. Professor da UFPA. Pesquisador 1D do CNPq.
E-mail: [email protected]. Lattes: https://lattes.cnpq.br ORCID: 0000-0002-5982-793X
6
A acelerada tramitação da MP 746/16 no Congresso Nacional, de cerca de
quatro meses, foi eivada de críticas e manifestos por inúmeras entidades científicas,
dentre elas a ANPEd, a ANFOPE e o FORUMDIR. Também como ato de resistência,
foi criado o Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio.
Foram 11 audiências públicas que ocorreram entre os meses de outubro/16 e
fevereiro/17. Ao fim, o que se viu pela conversão da MP na Lei 13.415/17 foi não
apenas a aprovação do que constava na proposta original, como a inclusão de outros
dispositivos que corroboram com a interpretação de que essa reforma comporta sérios
prejuízos formativos à juventude brasileira. A reforma em andamento tem como
determinação a ampliação da carga horária total da etapa de 2.400 horas para 3 mil
horas, a vinculação obrigatória ao documento de BNCC, a indução a parcerias com o
setor privado para viabilizar a oferta do itinerário de formação técnica e profissional e,
também, do percentual da carga horária que poderá ser ofertado na modalidade a
distância.
Ao ser incluída na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/16), a
reforma deixou a cargo dos entes federados que ofertam o ensino médio realizarem
as adequações necessárias. Dentre os dispositivos que necessitam de normatização
estadual citamos: a carga horária destinada à formação básica comum, que não
poderá exceder a 1.800 horas; a proposta curricular do “Novo Ensino Médio” tendo
por referência a BNCC; os critérios e processos destinados a conferir “notório saber”
para a docência; e a realização de parcerias.
Passados mais de quatro anos da publicação da medida provisória, o cenário
da implementação da reforma indica claramente um conjunto de retrocessos e de
perdas de direitos, sobretudo quando analisamos as experiências das chamadas
escolas-piloto criadas por meio de indução ao “Novo Ensino Médio”. Foram 20 as
unidades da federação que aderiram ao Programa criado pela Portaria 649/18. As
primeiras iniciativas da reforma indicam semelhanças entre as diferentes redes
estaduais, dentre elas a diminuição da carga horária de disciplinas, sobretudo Filosofia
e Sociologia, e a inclusão de temas como empreendedorismo, educação financeira e
projeto de vida, além da realização de parcerias com fundações e associações do
terceiro setor como Instituto Unibanco, Instituto de Corresponsabilidade pela
Educação e Instituto Ayrton Senna.
7
Define a Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, que altera a LDB e
implementa a reforma do ensino médio em curso, em seu artigo 12, que:
8
Sobre a realidade brasileira, o presente número traz cinco artigos da reforma
em implementação e quatro artigos da reforma pensada. Os primeiros cinco artigos
tratam do movimento de implementação da reforma em diferentes estados brasileiros:
Espírito Santo, Santa Catarina, Pernambuco, Pará e Rio de Janeiro.
O artigo de Ana Paula Félix de Carvalho Silva, Eliza Bartolozzi Ferreira e
Kefren Calegari dos Santos, intitulado O “Novo Ensino Médio” no Espírito Santo,
analisa os diferentes instrumentos normativos que orientam a organização do “novo
ensino médio” naquele estado. Nele, os autores procuram identificar as percepções
dos trabalhadores docentes a partir de uma enquete aplicada com 263 professores.
Entre outras coisas, verificaram o desconhecimento desses sujeitos sobre a
organização desse “novo ensino médio”.
O artigo que trata da reforma em Santa Catarina, intitulado A Reforma do
Ensino Médio em Santa Catarina: um percurso atravessado pelos interesses do
empresariado, de Filomena Lucia Gossler Rodrigues da Silva, Tatiane Aparecida
Martini e Tamiris Possamai, identifica como principal interlocutor da Secretaria
Estadual de Educação na sua implementação o empresariado, que quer determinar a
formação dos estudantes bem como a formação e o trabalho dos professores.
Já no artigo Reforma do Ensino Médio em Pernambuco: a nova face da
modernização-conservadora neoliberal, Jamerson Antônio de Almeida da Silva
analisa a implementação da reforma do ensino médio na rede de ensino de
Pernambuco, buscando identificar as consequências para a escolarização no âmbito
do ensino médio. Nele, o pesquisador verifica que a reforma expressa uma etapa da
modernização conservadora neoliberal, gestada por meio de mudanças moleculares
dirigidas por diferentes governos, desde a década de 1990, dando nova forma
institucional a um modelo de oferta baseado no paradigma das aprendizagens
flexíveis.
No artigo A regulamentação e as primeiras ações de implementação da
Reforma do Ensino Médio pela lei nº 13.415/2017 no Pará, as autoras Alice Raquel
Maia Negrão e Dinair Leal da Hora analisam a regulamentação e as primeiras ações
de implementação da reforma do ensino médio no estado do Pará. Por meio de
pesquisa documental, identificam uma atuação conjunta da Secretaria e do Conselho
Estadual de Educação, mas que não apresentam efetivas mudanças capazes de
9
alterar a realidade do ensino médio paraense, oferecendo condições para a melhoria
da qualidade dessa etapa da Educação Básica.
Ao tratar da implementação da reforma do ensino médio no estado do Rio de
Janeiro, Natália Silva Pereira, no artigo A Reforma do Ensino Médio e a Formação
da Classe Trabalhadora no Rio de Janeiro, demonstra que a direção apontada pela
reforma já vinha sendo tomada há pelo menos 10 anos, na rede estadual do Rio de
Janeiro, com grande participação de instituições vinculadas às classes dominantes e
sem o diálogo com os profissionais da educação.
Os artigos em tela revelam, entre outras coisas, que a implementação da
reforma nos estados é feita sem o diálogo com os docentes ou os estudantes, sendo
seus interlocutores principais as representações empresariais que acabam por dar
uma conotação conservadora às propostas em processo de implementação, ausentes
de elementos capazes de promover a inovação e a qualificação dessa etapa da
educação básica nos estados estudados.
Em sequência, o número da TN traz quatro artigos que tratam do conteúdo da
reforma pensada. No artigo de Dante Henrique Moura e Elizeu Costacurta
Benachio, intitulado Reforma do Ensino Médio: subordinação da formação da classe
trabalhadora ao mercado de trabalho periférico, os autores analisam a proposta de
nova organização curricular para o ensino médio e apontam que a reforma tende a
promover um processo de fragmentação deste nível de ensino e a fragilização da
etapa final da educação básica, afetando o direito a uma educação plena para os
estudantes e alinhando as finalidades do ensino médio aos interesses produtivos do
mercado de trabalho.
No artigo O Banco Mundial e a Reforma do Ensino Médio no governo Temer:
uma análise das orientações e do financiamento externo, Márcia Fornari e Roberto
Antonio Deitos analisam as políticas de financiamento da reforma, em particular, as
condicionalidades expressas no contrato de empréstimo do Ministério da Educação
com o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD)/Banco
Mundial (BM). Os autores identificaram que o acordo de empréstimo toma o ensino
médio como uma mercadoria, ao passo que o valor emprestado para implantação da
reforma entra num processo de financeirização que amplia o volume da dívida
brasileira e a especulação financeira. Constatam ainda que a reforma do ensino médio
10
atende à lógica do sistema capitalista e não às expectativas da classe trabalhadora
no que diz respeito à melhoria da qualidade da oferta da educação.
No artigo Tempo Político, Novo Ensino Médio e Conhecimento, de Henrique
da Silva Lourenço, o autor foca no lugar do conhecimento na proposta do “Novo
Ensino Médio”. Por meio de Análise de Conteúdo em documentos da Fundação
Lemann e CONSED e outros, revela a tendência à instrumentalização do currículo e
ao esvaziamento de sua dimensão processual, bem como uma hipervalorização da
prática como elemento curricular.
Heloise Paula Costa e Vagno Emygdio Machado Dias, no artigo A
Profissionalização Generalizada na Reforma do Ensino Médio, discutem a concepção
de educação profissional na reforma do ensino médio, no intuito de compreender o
sentido da inserção da profissionalização no currículo do ensino médio regular. Para
os autores, a profissionalização generalizada tem suas raízes em uma concepção
restrita de profissionalização, que vem sendo expandida para todo o sistema de
ensino, identificada como uma pedagogia da acumulação flexível.
Os artigos publicados revelam, principalmente, o caráter conservador e
antidemocrático da reforma. Demonstram, com base principalmente em pesquisas
documentais e bibliográficas, que, do ponto de vista pedagógico, a tendência da
reforma é conduzir à fragmentação e à fragilização do ensino médio, à
instrumentalização do currículo e ao esvaziamento de sua dimensão processual, bem
como à hipervalorização da prática como elemento curricular e, considerando a
profissionalização projetada, uma conformidade com uma pedagogia da acumulação
flexível. Do ponto de vista do financiamento, revela que a reforma tende a fortalecer a
ideia do ensino médio não como direito público, mas como uma mercadoria a ser
comprada e vendida no mercado educacional.
Não especificamente sobre a Reforma do Ensino Médio, mas tendo também a
precarização do trabalho na Educação Básica como eixo, o texto de Beatriz Garcia
Sanchez e Selma Venco, intitulado A Precariedade em cascata: o provimento do
cargo dos supervisores de Ensino no estado de São Paulo, analisa criticamente as
formas de provimento do cargo de supervisor de ensino adotadas pelo governo
paulista.
Na Seção Entrevista, a TN traz o diálogo dos organizadores dessa edição com
o Professor Luis Antonio Groppo acerca das ocupações secundaristas no Brasil, em
11
2015 e 2016. Nela, o entrevistado explica que essas ocupações se iniciaram no estado
do Paraná em resistência à reforma do ensino médio implementada por meio da
Medida Provisória 746/2016, editada pelo Governo de Michel Temer um mês após o
golpe dado no Governo de Dilma Rousseff. Na entrevista, Groppo faz um convite aos
leitores para que se mantenham atentos para ouvir o que realmente diziam e dizem
os jovens chamados de “ocupas”.
Esse é um número especial da TN, entre outras coisas, porque traz alguns
documentos históricos importantes para todo estudioso do ensino médio do Brasil. A
sua leitura revela que a reforma aqui tratada tem um “olhar no passado”, estando longe
de se caracterizar como um “novo ensino médio”, como quer denominá-la os
documentos oficiais e o discurso empresarial, seu principal interlocutor.
Na seção Clássicos, em entrevista publicada pela Revista Bimestre sob o título
O nó do ensino de 2º grau, editada pelo MEC/INEP/CENAFOR, em 1986, Dermeval
Saviani, um dos maiores intelectuais brasileiros, criticava a fragmentação do então 2º
Grau. Apontava a dualidade educacional como principal problema da educação
brasileira e indicava a Politecnia como ideia de referência para se pensar essa etapa
da educação nacional. Esse texto é contextualizado e interpretado por Marise Ramos
no artigo Do “nó do 2º. grau” ao ultraconservadorismo da atual política de Ensino
Médio no Brasil: atualidade e urgência do pensamento de Dermeval Saviani. Nele,
Marise recupera didaticamente algumas das ideias defendidas por Saviani sobre o
conceito de trabalho e sua relação com a educação escolar; a relação entre o trabalho
e os conhecimentos científicos objetos da educação escolar; a especificidade da
relação entre trabalho e educação escolar em diferentes etapas ou níveis de ensino;
a experiência concreta de trabalho de estudantes como ponto de partida do ato
pedagógico; o conceito de politecnia; a universalização da escola unitária; a relação
teoria-prática; os desafios da proposta e os limites da legislação educacional. Para a
autora, esta entrevista revela a atualidade e a urgência da defesa intransigente da
Politecnia frente aos processos de fragmentação e desqualificação do ensino médio.
Ainda nessa seção, uma matéria publicada em agosto de 1989 na Revista Sala
de Aula da Fundação Victor Civita, no período inicial dos debates em torno da
construção da nova LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – que veio
a ser finalizada e publicada em 1996. Sob o título “Essa tal da politecnia”, a matéria
identifica “um grupo de educadores que quer revolucionar o ensino no país” e
12
apresenta “os novos politécnicos” Dermeval Saviani, Lucília Machado, Gaudêncio
Frigotto e Acácia Kuenzer, que explicam essa e outras ideias tal como a Escola
Unitária. Nessa matéria também são recuperadas as primeiras experiências da Escola
Politécnica Joaquim Venâncio, da Fiocruz, fundada em 1985, e que assumiu a
Politecnia como a sua referência pedagógica principal.
Ainda versando sobre a reforma do ensino médio em curso, encontramos na
Seção Teses e Dissertações, o resumo expandido da dissertação de mestrado de
Anderson Pereira Evangelista, intitulada A política de educação em tempo integral
no ensino médio do estado do Acre e a atuação de institutos ligados ao setor
empresarial, defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Acre, em 2020. Traz também o resumo expandido da tese
de doutorado A distopia do mérito: desigualdades escolares no ensino médio brasileiro
analisadas a partir do ENEM, de Cássio José de Oliveira Silva, defendida em 2019
na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas.
Enriquecendo a temática em questão, a revista TN traz duas Resenhas de
livros que tratam da reforma do ensino médio e da proposta de ensino médio
integrado. O livro Ensino Médio Brasileiro: dualidade, diferenciação escolar e
reprodução das desigualdades sociais, de autoria de Ronaldo Marcos de Lima Araújo,
ganha a resenha de Sandy Caroline Seabra Coelho e Cristiane Lopes de Sousa,
intitulada “A Reforma do Ensino Médio Brasileiro: marcas de um passado presente ”.
Já o livro Oficina de Integração: vivências de sala de aula no Ensino Médio Integrado,
de Adriano Larentes da Silva, é resenhado por Arthur Rezende da Silva no texto
“Materialização do ensino médio integrado à educação profissional e tecnológica: é
possível?!”.
Fecha esse número da TN a Seção Memória e Documentos, na qual é
publicada a Exposição de Motivos de 1º. de abril de 1942 (BRASIL, 1942), que
antecede a Lei n. 4244 de 9 de abril de 1942 (Lei Orgânica do Ensino Secundário),
assinada pelo Ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, dirigindo-se ao
Presidente Getúlio Vargas. O documento é fruto da visão dualista de Gustavo
Capanema, que via a escola secundária e a universidade como “núcleo do sistema
formador das elites condutoras da nação” e as escolas de formação do trabalhador
com a finalidade de “inculcar nas massas os verdadeiros valores nacionais (o espírito
13
brasileiro) de forma a que estas acatassem a legítima autoridade dos líderes
nacionais”4.
Sobre esse documento Maria Ciavatta escreve um texto, A Exposição de
Motivos da Lei no. 4.244 de 9 de abril de 1942: Gustavo Capanema - Ministro da
Educação e Saúde, no qual explica que, apesar de o contexto da época da Reforma
Capanema ser bastante diferente e não recomendar uma comparação geral com a
Legislação da Reforma do Ensino Médio em curso (ver documento sobre Medida
Provisória nº 746, de 2016; e Exposição de Motivos apresentada pelo Ministro da
Educação José Mendonça Bezerra Filho, sobre a Reforma do Ensino Médio) é
possível verificar aproximações em alguns aspectos específicos e é sobre esses que
ela se detém, à vista do texto original da Exposição de Motivos.
Dessa apresentação esperamos ter conseguido dar uma mostra aos leitores e
às leitoras da TN quanto à pertinência e necessidade de estudos e pesquisas como
os que aqui agrupamos. As reformas educacionais, mesmo as mais autoritárias,
produzem efeitos sobre as escolas e sobre seus sujeitos. Quais os direitos que estão
sendo subtraídos? Que discursos e práticas estarão emergindo? Considerando a
distância entre as políticas pensadas e as políticas realizadas, é necessário também
saber como as redes e instituições de ensino estão respondendo às induções feitas
pelos agentes de governo. Esperamos ter conseguido reunir neste número temático
informações, reflexões e análises que sintetizam o momento atual da reforma do
ensino médio, e que, além disso, sejam suficientemente provocativas para dar início
ou contribuir com a continuidade de muitas outras pesquisas.
Boa leitura!
4
MENDONÇA, Ana Waleska Pollo Campos. Aprendendo com a História. In: Pará - SEDUC. Ensino
Médio Integrado no Pará como Política Pública. Belém: Seduc. 2009.
14