Coletânea Poetas Marginais

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PCC 4 – Profa. Dra.

Thaise Monteiro – Coletânea Poesia Marginal

Cacaso

Logia e mitologia

Meu coração

de mil e novecentos e setenta e dois

já não palpita fagueiro

sabe que há morcegos de pesadas olheiras

que há cabras malignas que há

cardumes de hienas infiltradas

no vão da unha na alma

um porco belicoso de radar

e que sangra e ri

e que sangra e ri

a vida anoitece provisória

centuriões sentinelas

do Oiapoque ao Chuí.
Aquarela

O corpo no cavalete

é um pássaro que agoniza

exausto do próprio grito.

As vísceras vasculhadas

principiam a contagem

regressiva.

No assoalho o sangue

se decompõe em matizes

que a brisa beija e balança:

o verde – de nossas matas

o amarelo – de nosso ouro

o azul – de nosso céu

o branco o negro o negro


Há uma gota de sangue no cartão postal

eu sou manhoso eu sou brasileiro


finjo que vou mas não vou minha janela é
a moldura do luar do sertão
a verde mata nos olhos verdes da mulata

sou brasileiro e manhoso por isso dentro


da noite e de meu quarto fico cismando na beira de um rio
na imensa solidão de latidos e araras
lívido
de medo e de amor

O que é o que é

Descoberto pelo português


emancipado pelo inglês
educado pelo francês
sócio menor do americano
mas o modelo é japonês...
Chacal
Meio assim
tava atrasado.
o metrô ia sair.
corri.
a porta se fechou.
metade de mim foi.
outra ficou.

uma que já era,


ficou mais ensimesmada.
olhando o relógio
falando no celular.

a outra, tagarela,
levantava leviana
a saia das moças,
uivando intempestiva.

se alguém
encontrar uma delas,
avise a outra.
eu vou ver
se estou na esquina.

Aquilo que sobra

gosto daquilo que sobra.


daquilo que as pessoas desprezam.
na feira, recolho entre os dejetos
a semente da abóbora, a folha da mandioca.
no empório, compro o farelo do trigo, do arroz.
gosto de me alimentar de coisas nutritivas.
pessoas principalmente.
mas nossa cultura, assim como os grãos, refina
as pessoas.
tira delas o mais nutritivo e deixa apenas o miolo
sem sustância.
por isso gosto do que sobra.
das pessoas desprezadas como eu.

Rápido e rasteiro
vai ter uma festa
que eu vou dançar
até o sapato pedir pra parar.
aí eu paro, tiro o sapato
e danço o resto da vida
Bermuda larga

muitos lutam por uma causa justa


eu prefiro uma bermuda larga
só quero o que não me encha o saco
luto pelas pedras fora do sapato

espere baby não desespere


não me venha com propostas tão fora de propósito
não acene com planos mirabolantes mas tão distantes

espere baby não desespere


vamos tomar mais um e falar sobre o mistério da lua vaga
dylan na vitrola dedo nas teclas
canto invento enquanto o vento marasma

espere baby não desespere


temos um quarto uma eletrola uma cartola
vamos puxar um coelho um baralho e um castelo de cartas
vamos viver o tempo esquecido do mago merlin
vamos montar o espelho partido da vida como ela é

espere baby não desespere


a lagoa há de secar
e nós não ficaremos mais a ver navios
e nós não ficaremos mais a roer o fio da vida
e nós não ficaremos mais a temer a asa negra do fim

espere baby não desespere


porque nesse dia soprará o vento da ventura
porque nesse dia chegará a roda da fortuna
porque nesse dia se ouvirá o canto do amor
e meu dedo não mais ferirá o silêncio da noite
com estampidos perdidos.
Ana Cristina César

Estou atrás
do despojamento mais inteiro
da simplicidade mais erma
da palavra mais recém-nascida
do inteiro mais despojado
do ermo mais simples
do nascimento a mais da palavra.

Ciúmes

Tenho ciúmes deste cigarro que você fuma


Tão distraidamente.

Travelling

Tarde da noite recoloco a casa toda em seu lugar.


Guardo os papéis todos que sobraram.
Confirmo para mim a solidez dos cadeados.
Nunca mais te disse uma palavra.
Do alto da serra de Petrópolis,
com um chapéu de ponta e e um regador,
Elizabeth reconfirmava, “Perder
é mais fácil que se pensa”.
Rasgo os papéis todos que sobraram.
“Os seus olhos pecam, mas seu corpo
não”,
dizia o tradutor preciso, simultâneo,
e suas mãos é que tremiam. ‘É perigoso”,
ria Carolina perita no papel Kodak.
A câmera em rasante viajava.
A voz em off nas montanhas, inextinguível
fogo domado da paixão, a voz
do espelho dos meus olhos,
negando-se a todas as viagens,
e a voz rascante da velocidade,
de todas três bebi um pouco

Como rasurar a paisagem

a fotografia
é um tempo morto
fictício retorno à simetria

secreto desejo do poema


censura impossível
do poeta

Psicografia

Também eu saio à revelia


e procuro uma síntese nas demoras
cato obsessões com fria têmpera e digo
do coração: não sou e digo
a palavra: não digo (não posso ainda acreditar
na vida) e demito o verso como quem acena
e vivo como quem despede a raiva de ter visto
Paulo Leminski

Sem título
Eu tão isósceles
Você ângulo
Hipóteses
Sobre o meu tesão

Teses sínteses
Antíteses
Vê bem onde pises
Pode ser meu coração

Não discuto
não discuto
com o destino
o que pintar
eu assino

Sintonia para pressa e presságio


Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo,
na pele, na palma, na pétala,
luz do momento.
Soo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
do escândalo que cala,
no tempo, distância, praça,
que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo.

Eis a voz, eis o deus, eis a fala,


eis que a luz se acendeu na casa
e não cabe mais na sala.

Aviso aos náufragos


Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.

Nasceu para ser praia,


quem sabe Andrômeda, Antártida
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.

Palavras trazidas de longe


pelas águas do Nilo,
um dia, esta pagina, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom-dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não e assim que é a vida?

Razão de ser
Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso,
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece,
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?
Dor elegante
Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Com se chegando atrasado
Chegasse mais adiante

Carrega o peso da dor


Como se portasse medalhas
Uma coroa, um milhão de dólares
Ou coisa que os valha

Ópios, édens, analgésicos


Não me toquem nesse dor
Ela é tudo o que me sobra
Sofrer vai ser a minha última obra

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