Estudos de Cinema e Audiovisual Vol. 2 - Socine - 2011
Estudos de Cinema e Audiovisual Vol. 2 - Socine - 2011
Estudos de Cinema e Audiovisual Vol. 2 - Socine - 2011
SOCINE
- Volume 2 -
ISBN: 978-85-63552-03-7
(orgs.)
XII ESTUDOS
DE CINEMA E
AUDIOVISUAL
SOCINE
- Volume 2 -
2011
Estudos de Cinema e Audiovisual Socine – Vol. 2/ Organizadores: Laura
Cánepa, Adalberto Müller, Gustavo Souza e Marcel Silva – São Paulo: Socine
2011 –
370 p. (Estudos de Cinema e Audiovisual 2 – v. 12)
ISBN: 978-85-63552-03-7
Capa
A partir de arte gráfica de Luiz Fernando Moura
Revisão
Marcos Visnadi
____________________________
1a edição digital: setembro de 2011
Conselho Deliberativo
Comitê Científico
Conselho Editorial
Adalberto Müller, Afrânio Mendes Catani, Alexandre Figueirôa, Ana Isabel Soares, André Brasil, André Gatti,
Andréa França, Anelise Corseuil, Arthur Autran, Bernadette Lyra, Carlos Roberto de Souza, Cezar Migliorin,
Cláudia Mesquita, Consuelo Lins, Eduardo Escorel, Eduardo Vicente, Egle Spinelli, Erick Felinto, Felipe Trotta,
Fernando Morais da Costa, Fernando Salis, Flávia Seligman, Gelson Santana Penha, Glênio Póvoas, Gustavo
Souza, João Guilherme Barone, José Inácio de Melo e Souza, Laura Cánepa, Leandro Mendonça, Luciana
Corrêa de Araújo, Lúcio de Franciscis dos Reis Piedade, Luiz Antonio Mousinho, Luiz Augusto Rezende
Filho, Luiz Vadico, Mariana Baltar, Mariarosaria Fabris, Maria Ignês Carlos Magno, Manuela Penafria, Marcel
Vieira, Marília Franco, Maurício de Bragança, Maurício Reinaldo Gonçalves, Newton Canitto, Roberto Franco
Moreira, Rogério Ferraraz, Rosana de Lima Soares, Samuel Paiva, Sheila Shvarzman, Sílvio Da Rin, Suzana
Reck Miranda, Vicente Gosciola, Victa de Carvalho, Zuleika Bueno
Comissão de Publicação
- Volume 2 -
Cinema brasileiro
Documentário
Sonoridades
301 Assim era a música da Atlântida: a trilha musical do cinema popular brasileiro no
exemplo da companhia Atlântida Cinematográfica
Sandra Ciocci e Claudiney Carrasco
mão dos meios disponíveis para revelar de alguma forma suas inquietações.
impostos pela cultura oficial deu os primeiros sinais de vida exatamente nesse
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Prenúncios da diversidade no filme Esses moços pobres moços ricos moços - Alexandre Figueirôa
Cinema brasileiro
em 1974, pela Rozemblit, no selo Solar (o mesmo que lançou Lula Cortes e Zé
exemplo, fosse uma condição inerente de suas montagens, pois para o grupo os
limites dos papéis sexuais eram fluidos e intercambiáveis e, tão simples quanto
ser cenógrafo, iluminador ou ator, era natural ser homem, mulher ou bicha. Ao
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Prenúncios da diversidade no filme Esses moços pobres moços ricos moços - Alexandre Figueirôa
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por ele realizados buscavam escapar das regras e estilos impostos pela cultura
Britto tratou de forma inovadora temas considerados à margem pelos círculos bem
pensantes. Entre esses trabalhos estão Noturno em Ré (cife) maior (1981), sobre
moços pobres moços ricos moços, pequeno filme rodado em 1975, inspirado pela
canção Esses moços pobres moços de Lupicínio Rodrigues, cantada por Gilberto
sua obra como uma extensão vivencial do próprio autor. O homoerotismo está
presente no seu cinema, portanto, não apenas como um tema, mas como uma
tomada de posição pessoal de modo a dar visibilidade a uma possibilidade afetiva
alguma forma a circulação de ideias. Esses moços pobres moços..., por trás de
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Prenúncios da diversidade no filme Esses moços pobres moços ricos moços - Alexandre Figueirôa
Cinema brasileiro
de forma mais aberta – como nos filmes realizados em parceria criativa com o
tanto a situação política do país quanto a liberdade sexual, abrigando em seu seio
deu para a abertura de um campo mais flutuante das relações afetivas, assim como
suas imagens anunciavam mais uma porta para que outros espaços expressivos
nacional, como tão bem demonstra Antonio Moreno em seu livro A personagem
e o início dos anos 80, 127 filmes com personagens homossexuais – e, dos
maneira pejorativa:
Segundo Moreno, no Brasil, até o final dos anos 50, as histórias dos
1966). A partir dos anos 70, Moreno constatou diversas abordagens do tema e,
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Prenúncios da diversidade no filme Esses moços pobres moços ricos moços - Alexandre Figueirôa
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A produção superoitista dos anos 70, no entanto, pela sua própria natureza
das primeiras iniciativas de um estilo de arte que Wilton Garcia, em seu estudo
sobre homoerotismo e imagem, classifica como homoarte. Estes filmes, como foi
na sua constituição, pelo menos uma das premissas elencadas pelo autor na
diversificado que esse suporte possibilitava e como ele podia ser, mesmo dentro
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Prenúncios da diversidade no filme Esses moços pobres moços ricos moços - Alexandre Figueirôa
Cinema brasileiro
em jogo ser porta-voz de uma dada comunidade, mas sim borrar as fronteiras
Esses moços pobres moços ricos moços, ele flagrava o espaço da classe
média, voltando seu olhar exatamente para o espaço privilegiado para o qual a
jovens percorrendo os jardins de uma casa de classe média, em que não pairam
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Prenúncios da diversidade no filme Esses moços pobres moços ricos moços - Alexandre Figueirôa
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trás. Aparece a estatueta de garoto com bandolim e inicia a música de fundo, Esses
grama enquanto o outro se aproxima de uma vidraça onde vemos seu reflexo. Em
então se aproxima do rosto de um deles, sugerindo que ele dorme e sonha. Vemos
faz plano das nádegas de ambos. Volta o rosto do rapaz que dorme. Vemos na
sua mão o livro Angústia, de Graciliano Ramos. Em seguida vemos que o outro
para a imagem dos dois rapazes agora vestidos, no portão, olhando para a rua. O
jovem que sonhou aparece caminhando entre crianças no lado de fora do portão.
com o outro e um deles afaga o cabelo do companheiro. Eles entram na casa com
um dos rapazes passando a mão sobre o ombro do outro. Pelo reflexo da vidraça,
vela a imagem. Neste momento, volta a música Esses moços. Os dois rapazes
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Prenúncios da diversidade no filme Esses moços pobres moços ricos moços - Alexandre Figueirôa
Cinema brasileiro
repete “é tudo mentira, é tudo figura”, sendo a mentira aqui colocada não no
seu sentido negativo, mas como provocação, em que se insinua que o amor
muito mais um espaço de dúvidas e insinuações entre aquilo que seria real e
o que seria imaginado. Segundo o próprio Jomard, ele rodou o filme em uma
e aproximação suficiente para dizer que ia rodar um filme sem informar o seu
afirma “eu sou uma pessoa de moral duvidosa” e ao ser questionado sobre “o que
mas ela não é uma imposição. Os gestos dos rapazes não seguem uma
inclusive, segundo Jomard, os atores amadores não eram gays, porém nada
iguais é, sim, uma possibilidade, mas isto deve ser decidido por quem os
vê. Os dois jovens podem estar rindo tanto do jogo encenado pelas imagens
como fomentador de uma reflexão que, junto a outros trabalhos artísticos dos
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Prenúncios da diversidade no filme Esses moços pobres moços ricos moços - Alexandre Figueirôa
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
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Prenúncios da diversidade no filme Esses moços pobres moços ricos moços - Alexandre Figueirôa
Cinema brasileiro
Referências bibliográficas
GARCIA, Wilton. Homoerotismo & imagem no Brasil. São Paulo: Nojosa, 2004.
MORENO, Antônio. A personagem homossexual no cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Funarte, 2001.
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Trad. de Fernando Mascarello. Campinas: Papirus, 2003.
XAVIER, Ismail. O olhar e a cena: melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues. São Paulo:
Cosac&Naify, 2003.
Referências audiovisuais
Babalorixá Mário Miranda, Maria Aparecida no Carnaval. Jomard Muniz de Britto. Brasil, 1974, filme super 8.
Esses moços pobres moços ricos moços. Jomard Muniz de Britto. Brasil, 1975, filme super 8.
Inventário de um feudalismo cultural. Jomard Muniz de Britto. Brasil, 1978, filme super 8.
Jogos frutais frugais. Jomard Munis de Britto. Brasil, 1979, filme super 8.
Noturno em Ré(Cife) Maior. Jomard Muniz de Britto. Brasil, 1981, filme super 8.
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Queremos a imagem nua e crua que se vê na rua: táticas estéticas e políticas em filmes experimentais piauienses - Frederico Lima e Edwar Castelo Branco
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
simbólicas do passado não são textos inocentes e/ou transparentes (HUNT, 1992),
Neto, em sua companhia ou mesmo nos anos imediatamente após a sua trágica
da arte simbólica em captar um mundo cada vez mais marcado por desencaixes
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Queremos a imagem nua e crua que se vê na rua: táticas estéticas e políticas em filmes experimentais piauienses - Frederico Lima e Edwar Castelo Branco
Cinema brasileiro
quadro da modernidade brasileira. Por outro lado, para além da alegoria, é muito
deste estudo, entretanto, fazer tais enquadramentos, ainda que o modelo teórico
permaneça como uma referência conceitual que vem sendo bastante significativa
cuja receita fora dada, pouco antes, por Torquato Neto, especialmente através
manteve por poucos meses no jornal Última Hora, do Rio de Janeiro (TORQUATO
pela ideia de que as palavras são “poliedros de faces infinitas” dos quais é preciso
luta da imagem contra o corpo obediente. Torquato Neto, Durvalino Couto, Arnaldo
Albuquerque, Edmar Oliveira, entre outros, não assinariam seus gestos e filmes
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Queremos a imagem nua e crua que se vê na rua: táticas estéticas e políticas em filmes experimentais piauienses - Frederico Lima e Edwar Castelo Branco
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
naquele momento só poderia ser vencida com um misto de bom humor, ironia e
bricolagem. Por isso procuraram reivindicar para si o direito de ser agente social
fizeram incursões pela música, pela poesia, pela literatura e mesmo pela
circularam em Teresina no início dos anos 1970 e que, sendo editados pelo
mais de dois anos fazendo filmes, o mesmo grupo legou mais de uma dezena
a que foram relegados estes filmes. É inegável, entretanto, que, superada uma
visão grandiloquente que tudo só enxerga pela lente da macropolítica, tais filmes
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Queremos a imagem nua e crua que se vê na rua: táticas estéticas e políticas em filmes experimentais piauienses - Frederico Lima e Edwar Castelo Branco
Cinema brasileiro
arena da política temáticas até então pouco relevantes, tais como o corpo, a
cabeludos à cidade. Muitas matérias dos jornais locais, no início dos anos 1970,
registram uma reação conservadora através da qual, entre outras coisas, várias
fala do professor Moacir Madeira Campos, então diretor do Ginásio Leão XIII,
um tradicional colégio de Teresina dos anos 1970, sintetiza a opinião das formas
fílmico piauiense trabalharia: filmes como David vai guiar (Durvalino Couto, 1972),
Miss Dora (Edmar Oliveira, 1974), Coração materno (Haroldo Barradas, 1974) e
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O filme David vai guiar pode ser visto como uma das expressões do
A cidade que emerge na tela, composta por um cenário bucólico que revela
uma vertigem expressa por motocicletas e automóveis que deslizam por suas ruas
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Cinema brasileiro
expressa em David vai guiar, não se faz apenas no sentido da negação, mas
aparecendo aqui e acolá, um cartaz com um leão com a boca aberta no centro, uma
procura de algo indefinido. Não há, no filme, começo, meio ou fim. São imagens
apenas! Muito mais que o Cinema Marginal do Sudeste e sua tentativa de explodir
pelos debates que sustentou com Glauber Rocha (ROCHA, 1997) em sua coluna
hoje, quando são feitas recorrentes releituras do Cinema Brasileiro dos anos 1960
“cruzada vanguardista no seu rumo original: uma moda que não pega nem é
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como cartelas com símbolos matemáticos, são expostos na rua, ao mesmo tempo
uma narrativa antiteleológica com a qual o filme procura jogar com o universo das
Pegue uma câmera e saia por aí, como é preciso agora: fotografe,
faça o seu arquivo de filminhos, documente tudo o que pintar,
invente, guarde. Mostre. Isso é possível. Olhe e guarde o que
viu, curta essa de olhar com o dedo no disparo: saia por aí com
uma câmera na mão. Fotografe, guarde tudo, curta, documente.
Vamos enriquecer mais a indústria fotográfica [...]. Vamos
guardar as imagens desse tempo, sair na rua e fotografar. Ou
prefiro “fazer cinema”? Ou prefiro contar história? [...] Quem vai
documentar isso? Quem vai guardar as imagens que o cinema
dos cinemas não exibe? (TORQUATO NETO, 1982, p. 117)
guiar, Coração materno e Miss Dora, entre outros, representam um esforço para
simulação ou atitude defensiva são mais que suficientes para torná-lo modelo de
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Cinema brasileiro
fílmico normalmente aparece, nos estudos sobre o tema, como algo politicamente
suspeito, ofuscado que fica, no mais das vezes, pelo reluzir do Cinema Novo
partir dessas experiências, pensar sobre o intervalo que vai do filme ao cinema.
sócio-histórico muito mais amplo que o filme. Aqui, filme experimental está sendo
daquele adotado pelos filmes comerciais, em razão de ser sua força criativa na
maioria das vezes retirada da sua pobreza (pouco dinheiro, câmeras rudimentares
etc.), mas também por ser um produto artesanal, feito todo ou quase todo por um
uma linha narrativa poética e abstrata. Neste tipo de filme também é comum a
álbum da banda Pink Floyd, e Toques (Jomard Muniz de Brito, 1976), filme que
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produção fílmica que permanece desconhecida por não estar iluminada, por
exemplo, pela “Boca do Lixo”, expressão que virou uma espécie de síntese do
chamado Cinema Marginal brasileiro, para onde tem convergido a maior parte
das reflexões nesta área. Do mesmo modo, tem sido possível, a partir do estudo
destes filmes, situar as especificidades existentes entre cada uma das experiências
2010).
Se essas experiências fílmicas nos deixaram alguma lição, esta diz respeito
brechas e a espreitar estes dribles. Eles oportunizam, entre outras coisas, pensar
com uma arte criativa e sutil, foram capazes de reconfigurar seu tempo e seu
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Queremos a imagem nua e crua que se vê na rua: táticas estéticas e políticas em filmes experimentais piauienses - Frederico Lima e Edwar Castelo Branco
Cinema brasileiro
Referências bibliográficas
______. Todos os dias de paupéria: Torquato Neto e a invenção da tropicália. São Paulo: Annablume, 2005.
GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
HUNT, L. (Org.). A nova história cultural. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
MACHADO JÚNIOR, R. O Pátio e o cinema experimental no Brasil: apontamentos para uma história das
vanguardas cinematográficas. In: CASTELO BRANCO, E. de A. (Org.). História, Cinema e outras imagens
juvenis. Teresina: EDUFPI, 2009.
MADEIRA CAMPOS, M. Entrevista. O Estado Interessante, Caderno 1, p. 12, Teresina, 04 jun. 1972.
RAMOS, F. Cinema marginal: a representação em seu limite. São Paulo: Paz e Terra, 1989.
ROCHA, G. Cartas ao mundo. Organização de Ivana Bentes. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
TORQUATO NETO. Os últimos dias de Paupéria. São Paulo: Max Limonad, 1982.
Referências audiovisuais
David vai guiar. Durvalino Couto. Brasil, 1972, filme super-8 mm.
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Queremos a imagem nua e crua que se vê na rua: táticas estéticas e políticas em filmes experimentais piauienses - Frederico Lima e Edwar Castelo Branco
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
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1. Trabalho desenvolvido com apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.
Este texto expõe parte das discussões travadas em torno da Mesa Temática Além da boca do lixo: confrontos estéticos e
políticos em filmes experimentais piauienses e pernambucanos, ocorrida em Recife-PE, de 05 a 09 de outubro de 2010,
por ocasião do 14º Encontro da SOCINE.
4. Para uma leitura mais aprofundada sobre o experimentalismo brasileiro em sua feição multifacetada, ver Machado Júnior
(2009).
5. Para esta perspectiva sobre o Cinema Marginal do Sudeste ver, por exemplo, Ramos (1989).
6. Algumas reflexões sobre este tema estão no livro História, Cinema e outras imagens juvenis (Teresina: EDUFPI, 2009),
organizado por Edwar de Alencar Castelo Branco.
7. Sobre isto, ver: CASTELO BRANCO, Edwar de A. O cinema curtição dos anos 60/70. In: Anais do XXV Simpósio Nacional
de História. Fortaleza: ANPUH, 2009.
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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
Cinema brasileiro
cidade de Olinda, sem dar maior importância à várzea pantanosa que lhe era
percebeu que existia, paralela àquela área de várzea, uma linha de arrecifes
que formava um porto natural (FRAGOSO, 1971, p. 13). Nessa região, surgiu a
contrários, ele considera Recife uma cidade “repugnante em cada parte” (apud
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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
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passam pelo Porto, circulam pelas ruas nas quais o comércio se desenvolve. Um
intenso processo de urbanização tem lugar na estreita faixa de terra que constitui
os limites da cidade (o atual Bairro do Recife), que logo se estende para a vizinha
irá marcar a cidade no início do século 19, como defende Gilberto Freyre em
9 mar. 1930, p. 10). Nessa sala, sob o comando de Severiano Ribeiro, são exibidos
em março de 1930 os filmes sonoros A divina dama (The divine lady, Frank Lloyd,
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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
Cinema brasileiro
Nos filmes, ao lado das ruas pavimentadas e cortadas pelos fios dos
postes de eletricidade, o Porto se sobressai como o elemento que exibe e
comprova o processo de modernização pelo qual passava a cidade, reforçando
também a ideia de uma vocação do Recife para atuar enquanto espaço
privilegiado de circulação de mercadorias, pessoas, bens simbólicos. O destino
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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
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comandante do navio, que também posa junto a outras autoridades (Figura 2).
Foto 1 – Veneza americana (Pernambuco-Film, 1925). Acervo Fundação Joaquim Nabuco – Recife.
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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
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Foto 2 – Veneza americana (Pernambuco-Film, 1925). Acervo Fundação Joaquim Nabuco – Recife.
quanto seu amigo jornalista que vai cumprimentá-lo antes da partida, subindo a
Foto 3 – A filha do advogado (Jota Soares, 1926). Acervo Fundação Joaquim Nabuco – Recife.
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Foto 4 – A filha do advogado (Jota Soares, 1926). Acervo Fundação Joaquim Nabuco - Recife.
Gelria. Há, inclusive, um intertítulo que faz referência às “falsas profecias” que a
O País move campanha que a imprensa pernambucana, por sua vez, considera
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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
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da União, o que faz vir à tona o marcante ressentimento da elite local em relação
outra questão da época: “Sempre o sul a tentar jogar-nos para os planos mais
firmado com a União que garantia a exploração do Porto até dezembro de 1934
(Diário de Pernambuco, 5 out. 1924, p.6). Portanto, exibir nos filmes imagens
em xeque também pela recusa da Mala Real Inglesa de atracar ali seus navios,
4 out. 1924, p. 2). Diante das polêmicas, se compreende melhor o destaque dado
que assumiu ao pôr termo a tão desagradável situação” (GONDIM, 1968, p. 52).
Elemento recorrente nos dois filmes, a rampa de acesso aos navios atua
seu livro sobre o porto do Recife, Umberto Guedes Gondim descreve a cena:
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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
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navios irá permitir maior visibilidade para o Recife. O mundo passa pelo Recife e
o Recife, por sua vez, se coloca ao olhar e à fruição do mundo. Dar a ver a cidade
não deixará de ser também uma ambição dos filmes ali realizados. O Porto e o
pode ser analisada dentro de uma perspectiva mais ampla, na medida em que
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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
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pela Aurora-Film, que tinha à frente Edison Chagas e Gentil Roiz. Fábrica
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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
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por vezes deixa a curiosa impressão de que o grande mérito das produções
filme natural” (30 set. 1930, p. 3). Essa afirmação levanta a suspeita
em Para Todos...: “Rios e rios de dinheiro tem-se gasto em filmes naturais, que
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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
Cinema brasileiro
nunca vemos, e qual o resultado? Os filmes da Aurora não estão fazendo muito
porém mais difuso, pode ser definido pela expressão (cunhada por Gilberto Freyre
1930, filme do qual é autor do argumento juntamente com Mário Mendonça, e que
tem roteiro e direção assinados por Luis Maranhão. Jota também colaborou nas
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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
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cabaré que ele próprio havia dirigido. Essa sequência com o acompanhamento de
discos é suficiente para que No cenário da vida seja anunciado como “o primeiro
julho e agosto de 1930, A filha do advogado volta a ser exibido em quatro cinemas
de bairro, mais o Cine Olinda, “com nova cópia sincronizada” (A Província, 9 jul.
1930, p. 2). Talvez tenha sido uma iniciativa de Jota Soares, uma espécie de teste
antes do novo filme para verificar se o método, improvisado, fazia-se passar por
pela filha, chegando ao Porto para receber o filho mais velho que volta
de viagem. Enquanto isso, no cais, uma jovem e seu pai acenam para um
mais discreta com que o Porto é inserido no filme. Pelo menos no que diz
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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
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e espaço públicos, ele agora pode surgir como cenário exclusivo para os
Porto também surge com destaque. No filme doméstico que registra a passagem
do hidroavião Jahú por Recife, a cidade está em festa, com as ruas do centro
dois filmes profissionais realizados sobre a passagem do Jahú por Recife, dos
(Vera Cruz-Film, 1927) e O filme do Jahú (Norte-Film, 1927), com Edison Chagas
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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
Cinema brasileiro
Referências bibliográficas
ARAÚJO, L. C. de. Aspectos do cinema em Recife nos anos 1920. Relatório de Bolsa Fapesp (Pós-Doutorado)
– Programa de Pós-Graduação em Multimeios, Universidade de Campinas, Campinas, 2003.
CARVALHO, C. Recife no caminho de Charles Darwin. Jornal do Commercio, Recife, 12 fev. 2009. Disponível
em: http://jc3.uol.com.br/2009/02/12/not_191820.php. Acesso em: 22 ago. 2009.
CHACON, V. Pernambuco marítimo. Ciência & Trópico, Recife, v. 13, n. 1, p. 15-71, jan.-jun. 1985.
COSTA, J. C. R. O porto do Recife: roteiro de uma viagem através de sua história. Recife: Secretaria do Interior
e Justiça; Arquivo Público Estadual, 1956.
CUNHA FILHO, P. C. (Org.). Relembrando o cinema pernambucano: dos Arquivos de Jota Soares. Recife:
Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 2006.
FRAGOSO, D. Velhas ruas do Recife. Recife: Universidade Federal de Pernambuco; Imprensa Universitária,
1971.
GONDIM, U. G. Porto do Recife: sua história, sua construção e sua utilização. Homens e fato. [S.l.: s.n.], 1968.
MELLO, J. A. G. de. Tempo dos flamengos. 3. ed. Recife: Fundaj; Editora Massangana; Instituto Nacional do
Livro, 1987.
MOREIRA, F. D. A construção de uma cidade moderna: Recife (1909-1926). Dissertação (Mestrado) – Centro de
Artes e Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1994 .
REZENDE, A. P. (Des) Encantos modernos: histórias da cidade do Recife na década de vinte. Recife: Fundarpe,
1997.
SILVA, J. P. da. O encanto da velocidade: automóveis, aviões e outras maravilhas no Recife dos anos 20.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2002 .
Periódicos
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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Sites
Referências audiovisuais
Chegada e Posse do Exmo.Sr.Dr. José Bezerra. America-Film. Brasil, 1920, filme 35 mm.
[O filme do Jahú] [título atribuído]. Cinegrafista não creditado. Brasil, 1927, 16 mm.
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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
Cinema brasileiro
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1. Pesquisa parcialmente financiada pela Fapesp. Trabalho apresentado no Seminário Temático “Cinema no Brasil: dos
primeiros tempos à década de 1950”.
2. A importância do porto do Recife para a expansão da Empresa Severiano Ribeiro no Nordeste foi destacada por Luiz
Henrique Severiano Ribeiro Baez (neto de Luiz Severiano Ribeiro Jr.), durante a abertura do Seminário Temático “Cinema
no Brasil: dos primeiros tempos à década de 1950” no XIV Encontro Socine (Recife, 6 out. 2010).
3. Agradeço a Ernesto Barros, que em 2010 exercia a função de Gerente de Audiovisual da Prefeitura do Recife, o acesso a
uma cópia em DVD desta filmagem doméstica, pertencente ao acervo da Cinemateca Municipal Alberto Cavalcanti.
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Cine-Produções Fenelon, Cinédia S. A. e o cinema independente - Luiz Alberto Rocha Melo
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Em 1941, juntamente com Paulo e José Carlos Burle, Arnaldo de Faria, Alinor
Luiz Severiano Ribeiro Jr., então o maior exibidor do país, tornou-se acionista
por conflitos internos com os Burle e com Watson Macedo, Fenelon decide retirar-
se da Atlântida e,a partir de 1948, tendo constituído sua própria firma, a Cine-
Luiz Alípio de Barros afirma que Fenelon “imprimiu à sua produção independente
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Cine-Produções Fenelon, Cinédia S. A. e o cinema independente - Luiz Alberto Rocha Melo
Cinema brasileiro
Este texto tem como objetivo analisar de que forma esse conceito se aplicava na
Para tanto, discutirei alguns aspectos relativos à produção de cinco filmes que
São Cristóvão a comédia Esta é fina (Luiz de Barros, 1948) e Moacyr se integrou à
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Cine-Produções Fenelon, Cinédia S. A. e o cinema independente - Luiz Alberto Rocha Melo
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
dúvidas se roteirizava uma peça intitulada Pão duro, a ser interpretada por
grande sucesso escrito pelo médico Paulo Roberto (FENELON, 1948, s./p.). Por
à empresa, como é possível perceber no tom de uma carta que o primeiro envia,
isto. Ele é o elemento que me faltava aqui, e já está em atividade. [...] Este ano
Gonzaga também tinha esperanças de que uma parceria com Fenelon pudesse
significar uma volta por cima, oportuna porque os estúdios estavam enfrentando
uma grave crise financeira que vinha desde 1947, decorrente de diversos fatores
de Abreu, 1947-49) que, de acordo com Hernani Heffner, consumiu cerca de Cr$
1,5 milhão, quase metade de todos os recursos investidos no estúdio desde 1930,
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Cine-Produções Fenelon, Cinédia S. A. e o cinema independente - Luiz Alberto Rocha Melo
Cinema brasileiro
O quinto filme, ...Todos por um!, começou a ser rodado nos estúdios da
Cinédia em 29 de junho de 1948, estendendo-se até 19 de novembro (21 dias
de filmagem ao longo de quase cinco meses), sendo lançado em 06 de fevereiro
de 1950. A montagem e a finalização de ...Todos por um!, no entanto, não foram
feitas na Cinédia, pois dois dias depois de concluídas as filmagens Gonzaga pôs
um término ao acordo de coprodução. No dia 26 de dezembro de 1950, Fenelon
já não possuía mais nenhum vínculo com a Cinédia.
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Cine-Produções Fenelon, Cinédia S. A. e o cinema independente - Luiz Alberto Rocha Melo
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
chamados “filmes sérios”, sendo que Obrigado, doutor! e O homem que passa
é uma comédia musical com alguns toques dramáticos, o que a afasta da pura e
Estou aí? e...Todos por um! Ao mesmo tempo em que Fenelon impulsionava a
carreira de Cajado Filho, que até então jamais havia assinado a direção de um
que tinham como principal objetivo dar retorno de bilheteria, e que certamente
contrato com alguns atores, tais como Rodolfo Mayer, Lourdinha Bittencourt,
Vale aqui ressaltar alguns aspectos que a visão de conjunto desses cinco
filmes realizados entre fevereiro de 1948 e novembro de 1949, isto é, num período
final das filmagens de um título e o início das filmagens de outro em geral dura
menos de um mês, com exceção do intervalo entre Estou aí? e O homem que
passa (um mês e 10 dias) e entre O homem que passa e ...Todos por um! (um
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Cine-Produções Fenelon, Cinédia S. A. e o cinema independente - Luiz Alberto Rocha Melo
Cinema brasileiro
filmagem). Isso talvez se deva ao fato de que Obrigado, doutor! foi a produção
Cinédia. Não só por ser o filme de estreia após sua saída da Atlântida, mas
também porque se tratava de um “filme sério”, que teria como propósito levantar
Obrigado, doutor! custou em torno de Cr$ 750 mil, dos quais Cr$ 200
milhão, dos quais Cr$ 150 mil foram creditados à Cinédia; Estou aí? custou
aproximadamente Cr$ 1,4 milhão, dos quais Cr$ 145 mil eram cotas da
Cinédia; O homem que passa custou cerca de Cr$ 1,3 milhão, dos quais
Cr$ 1.350.000,00, dos quais Cr$ 142 mil creditados à Cinédia. As cotas
das produções não significavam reajuste dos preços acertados entre os dois
associação com a Cinédia foi de fato extremamente vantajosa, por conta das
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havia rendido um total de Cr$ 996.675,80, dos quais Cr$ 265.888,00 pertenciam
abril do ano seguinte, Estou aí? rendeu Cr$ 899.228,90, sendo que Cr$ 134.874,00
somou Cr$ 268.990,00, dos quais Cr$ 37.655,80 cabiam à Cinédia; de março
a abril de 1950, ...Todos por um! havia rendido Cr$ 353.622,50, dos quais Cr$
Ainda que os dados acima não compreendam toda a carreira dos cinco
filmes nos cinemas do país, pode-se afirmar que as cinco co-produções entre
dos grandes estúdios (Vera Cruz, Maristela e Multifilmes), mas somente três
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Cine-Produções Fenelon, Cinédia S. A. e o cinema independente - Luiz Alberto Rocha Melo
Cinema brasileiro
em íntima ligação com Getúlio Vargas, sem prender-se à fórmula dos grandes
Atlântida não significou seu rompimento com Luiz Severiano Ribeiro Jr. Mesmo
a distribuição do filme para a UCB, o que aliás provocou atritos entre Fenelon e
Gonzaga, este sim avesso à idéia de trabalhar com Ribeiro Jr. No entanto, em
agosto de 1948, Ribeiro Jr. entrou em entendimentos com Fenelon e o filme foi
lançado pela UCB. O mesmo ocorreu com Poeira de estrelas e Estou aí?
Em São Paulo, os filmes continuam a ser distribuídos pela Cinedistri, então a filial
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Cine-Produções Fenelon, Cinédia S. A. e o cinema independente - Luiz Alberto Rocha Melo
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Ribeiro Jr. propôs um preço fixo para projetá-lo nos cinemas do Ceará. Como
Ribeiro Jr. retirou o filme de cartaz, mesmo com o sucesso de público, e vetou a
de muito antes, pelo menos desde o final dos anos 1930, quando aos poucos o
Jr. Fenelon concede uma série de entrevistas nas quais ataca o monopólio
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Cine-Produções Fenelon, Cinédia S. A. e o cinema independente - Luiz Alberto Rocha Melo
Cinema brasileiro
cotistas a entrarem como sócios em filmes que jamais darão retorno financeiro.
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Cine-Produções Fenelon, Cinédia S. A. e o cinema independente - Luiz Alberto Rocha Melo
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
momento que as desavenças entre Moacyr Fenelon e Luiz Severiano Ribeiro Jr.
***
dúvida alguma um dado a ser aqui sublinhado. Cinco longas em pouco mais
de um ano é uma meta que, em qualquer período histórico, sempre foi difícil
Fenelon como produtor talvez não tivesse sido possível ou certamente teria
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Cine-Produções Fenelon, Cinédia S. A. e o cinema independente - Luiz Alberto Rocha Melo
Cinema brasileiro
que sugere que, entre nós, a expressão “cinema independente” não se refere
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Cine-Produções Fenelon, Cinédia S. A. e o cinema independente - Luiz Alberto Rocha Melo
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Referências bibliográficas
CINEMA E TRUSTE. Golpe de morte no filme nacional. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 12 jun. 1948.
HEFFNER, H. Um empreendimento arriscado. In: ARAGÃO, A.; HEFFNER, H.; ROBALINHO, R. (Org.). Cinédia
75 anos. São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil, 2006.p. 5-11.
MENEZES, J. Moacyr Fenelon - o maior cineasta brasileiro! Folha Carioca, Rio de Janeiro, p. 9, 22 dez. 1949.
_____________________________________________________________
1. Trabalho apresentado no seminário Cinema no Brasil: dos primeiros tempos à década de 1950.
2. E-mail: [email protected]
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Cine-Produções Fenelon, Cinédia S. A. e o cinema independente - Luiz Alberto Rocha Melo
Cinema brasileiro
4. Todas as informações contidas neste texto foram extraídas das anotações diárias dos Anuários da Cinédia referentes
ao período 1948-1950, Acervo da Cinédia, Rio de Janeiro. As informações que não pertencem aos Anuários serão,
portanto,discriminadas ao longo do texto.
5. As informações sobre os custos de produção e as cotas de participação da Cinédia foram extraídas da documentação
referente aos filmes. Cf. cartas contratuais entre a Cinédia S.A. e a Cine-Produções Fenelon para os filmes Obrigado,
doutor! e Poeira de estrelas, respectivamente datadas de 15 de dezembro de 1948 e de 15 de dezembro de 1949; cf.
também demonstrações das cotas relativas à Cinédia dos filmes Obrigado, doutor! (28 de julho de 1949), Poeira de estrelas
e Estou aí? (29 de julho de 1949), O homem que passa (30 de outubro de 1949)e ...Todos por um! (28 de fevereiro de 1950).
Acervo da Cinédia, Rio de Janeiro (Pastas “Cine-Produções Fenelon”, “Obrigado, doutor!”, “Poeira de estrelas”, “Estou aí?”,
O homem que passa” e “...Todos por um!”).
7. Cf. Diário Oficial da União (Seção 1), Rio de Janeiro, 30 ago. 1931, p. 12591. A Cine-Distribuidora do Brasil previa distribuir
filmes nacionais e estrangeiros “no país e fora do território nacional”.
8. O caso está relatado em um editorial intitulado “Cinema e truste. Golpe de morte no filme nacional”.Correio da Manhã, Rio
de Janeiro, 12 jun. 1948. Recorte de jornal sem indicação de página pertencente ao Acervo da Cinédia, Rio de Janeiro
(Pasta Luiz Severiano Ribeiro Jr.).
9. Cf., por exemplo, PÁDUA, C. T. de e ORTIZ, C. Duras as perspectivas do cinema nacional,Folha da Manhã, São Paulo, 31
maio 1949; Sabotagem, A Noite, Rio de Janeiro, 04 jul. 1949; e Nos bastidores do cinema nacional, Diário de Notícias, Rio
de Janeiro, 21 ago. 1949. Recortes de jornal sem indicações de página pertencentes ao Acervo da Cinédia, Rio de Janeiro.
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O cangaço no cinema brasileiro - Marcelo Dídimo Souza Vieira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Introdução
documentários e ficções.
Primórdios
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O cangaço no cinema brasileiro - Marcelo Dídimo Souza Vieira
Cinema brasileiro
sem mãe (Tancredo Seabra, 1925), que foi exibido somente uma vez no extinto
Cinema São José em Recife, Pernambuco. Esta é a primeira produção que insere
(Jota Seabra, 1926), considerado por alguns estudiosos como o segundo filme a
filme mais importante desse período e um dos mais significativos para o gênero,
um dos pioneiros, serviu de inspiração para filmes e seus realizadores e, até hoje,
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O cangaço no cinema brasileiro - Marcelo Dídimo Souza Vieira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
diretor da Aba Film de Fortaleza, que lhe forneceu todo o aparato técnico para
Lampião e seu bando, o cerco estava se fechando. Era o início do fim do cangaço.
Getúlio Vargas que levaria ao Estado Novo. As imagens registradas pelo libanês
assistiu a essa sessão, “a fita, no momento com 500 pés, sem legendas, mostrava
Durante esse período, o filme de cangaço ainda não havia sido definido
que retratem diretamente o cangaço, e por isso estão nos primórdios do gênero.
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O cangaço no cinema brasileiro - Marcelo Dídimo Souza Vieira
Cinema brasileiro
O Nordestern
da década de 60, mas foi na década anterior que esta temática fez surgir um
conhecidos filmes de cangaço têm seu marco inicial no filme de Lima Barreto,
diversos filmes realizados sobre o cangaço nesse período. Este termo é uma
a partir dos anos 1950. Nesse sentido, o cangaço passou a ser um gênero
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O cangaço no cinema brasileiro - Marcelo Dídimo Souza Vieira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
nacional com pitadas de erotismo, trabalhando uma narrativa que fazia contraponto
Comédias
Dessa forma, a comédia dialoga com o cangaço sob um prisma bem humorado.
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O cangaço no cinema brasileiro - Marcelo Dídimo Souza Vieira
Cinema brasileiro
realizou O Lamparina (Glauco Mirko Laurelli, 1963), uma brincadeira com o apelido
tema. Outra característica destas comédias reside no fato de que estes filmes
fatos históricos. Pelo contrário, são feitos justamente para contrapor o assunto e
debochar dos filmes que buscaram esse tipo de abordagem. Não se pretende,
com isso, desqualificar esses filmes, mas entendê-los de uma forma diferenciada
Documentários
único dentro da filmografia sobre o cangaço. Esse filme tornou-se não apenas
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O cangaço no cinema brasileiro - Marcelo Dídimo Souza Vieira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
uma referência para outras películas, mas também foi usado para o estudo do
movimento histórico. Nesse sentido, ele serviu como documento histórico para a
1965) se utiliza do Cinema Verdade para tal. Esse movimento passou a ser
de som direto. De um modo geral, este tipo de filme caracteriza-se por não
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O cangaço no cinema brasileiro - Marcelo Dídimo Souza Vieira
Cinema brasileiro
inestimável, pois procuram dar uma visão mais próxima do movimento rebelde
verdade, não é mostrar o lado definitivo da história, mas oferecer versões dessa
citar: Nelson Pereira dos Santos, Paulo César Saraceni, Luis Sérgio Person,
Leon Hirzman, Carlos Diegues, Walter Lima Júnior, Ruy Guerra, Joaquim Pedro
cangaço durante essa década: Deus e o Diabo na terra do sol (1964) e O dragão
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O cangaço no cinema brasileiro - Marcelo Dídimo Souza Vieira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
e outras estéticas impressas pelo autor em seus trabalhos. Mesmo que seus
Releituras
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O cangaço no cinema brasileiro - Marcelo Dídimo Souza Vieira
Cinema brasileiro
Um gênero que tem seus primórdios nos anos 1920, cria raízes na década
de 1950 e se fortalece e ganha número a partir de 1960 não pode morrer nos
anos 1980. Durante mais de dez anos o cangaço é esquecido dentro do cenário
antiga que seja sua história, é sempre passível de novas leituras e releituras e de
Conclusão
sua história e se faz presente em mais de sete décadas, desde os anos 1920. O
cinematográfica brasileira.
num gênero nacional. Acredito ser um gênero que jamais vai morrer, pois
50 filmes que construíram uma história própria, uma vida própria, através
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O cangaço no cinema brasileiro - Marcelo Dídimo Souza Vieira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Referências bibliográficas
ABREU, N. C. Boca do Lixo: cinema e classes populares. Campinas: Editora da Unicamp, 2006.
BERNARDET, J.-C. Brasil em tempo de cinema. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
NÃO PODERÁ SER EXIBIDO o filme de Lampião.O Povo, Fortaleza, 03 abr. 1937.
ROSENTHAL, A. Writing, directing and producing documentary films and vídeos.Carbondale; Edwardsville:
Southern Illinois University Press, 1996.
XAVIER, I. Alegorias do subdesenvolvimento:cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São Paulo: Brasiliense.
1993.
Referências audiovisuais
A ilha das cangaceiras virgens. Roberto Mauro. Brasil (São Paulo), 1976, filme 35 mm.
A morte comanda o cangaço. Carlos Coimbra. Brasil (São Paulo), 1960, filme 35 mm.
A mulher no cangaço. Hermano Penna. Brasil (Rio de Janeiro) 1976, filme 16 mm.
A musa do cangaço. José Umberto Dias. Brasil (Bahia), 1982, filme 35 mm.
A vingança dos doze. Marcos Faria. Brasil (Rio de Janeiro), 1970, filme 35 mm.
As cangaceiras eróticas. Roberto Mauro. Brasil (São Paulo), 1974, filme 35 mm.
Baile perfumado. Paulo Caldas; Lírio Ferreira. Brasil (Pernambuco), 1997, filme 35 mm.
Cangaceiros de Lampião. Carlos Coimbra. Brasil (São Paulo), 1967, filme 35 mm.
Corisco, o Diabo Loiro. Carlos Coimbra. Brasil (São Paulo), 1969, filme 35 mm.
Deu a louca no cangaço. Nelson Teixeira Mendes; Fauzi Mansur. Brasil (São Paulo), 1966, filme 35 mm.
Deus e o Diabo na Terra do Sol. Glauber Rocha. Brasil (Rio de Janeiro), 1964, filme 35 mm.
Entre o amor e o cangaço. Aurélio Teixeira. Brasil (Rio de Janeiro), 1965, filme 35 mm.
Filho sem mãe. Tancredo Seabra. Brasil (Pernambuco), 1925, filme 35 mm.
Jesuíno Brilhante, o cangaceiro. William Cobbett. Brasil (Rio de Janeiro; Rio Grande do Norte), 1972, filme 35 mm.
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O cangaço no cinema brasileiro - Marcelo Dídimo Souza Vieira
Cinema brasileiro
Kungfu contra as bonecas. Adriano Stuart. Brasil (São Paulo), 1976, filme 35 mm.
Lampião, a fera do nordeste. Guilherme Gáudio. Brasil (Bahia), 1930, filme 35 mm.
Lampião, o Rei do cangaço. Benjamin Abrahão. Brasil (Ceará), 1936, filme 35 mm.
Lampião, o Rei do cangaço. Carlos Coimbra. Brasil (São Paulo), 1962, filme 35 mm.
Lampião, o Rei do cangaço. Fouad Anderaos. Brasil (São Paulo), 1950, filme 35 mm.
Maria Bonita, Rainha do cangaço. Miguel Borges. Brasil (São Paulo), 1968, filme 35 mm.
Memória do cangaço. Paulo Gil Soares. Brasil (Rio de Janeiro), 1965, filme 35 mm.
Meu nome é Lampião. Mozael Silveira. Brasil (Rio de Janeiro), 1969, filme 35 mm.
No raso da Catarina. Hermano Penna. Brasil (Rio de Janeiro) 1977, filme 16 mm.
Nordeste sangrento. Wilson Silva. Brasil (Rio de Janeiro), 1962, filme 35 mm.
O cangaceiro do Diabo. Tião Valadares. Brasil (São Paulo), 1980, filme 35 mm.
O cangaceiro sanguinário. Osvaldo de Oliveira. Brasil (São Paulo), 1969, filme 35 mm.
O cangaceiro sem Deus. Osvaldo de Oliveira. Brasil (São Paulo), 1969, filme 35 mm.
O cangaceiro trapalhão. Daniel Filho. Brasil (Rio de Janeiro), 1983, filme 35 mm.
O cangaceiro. Aníbal Massaíni Neto. Brasil (São Paulo), 1997, filme 35 mm.
O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro. Glauber Rocha. Brasil (Rio de Janeiro), 1969, filme 35 mm.
O Lamparina. Glauco Mirko Laurelli. Brasil (São Paulo), 1963, filme 35 mm.
O leão do norte. Carlos Del Pino. Brasil (Rio de Janeiro), 1974, filme 35 mm.
O primo do cangaceiro. Mário Brasini. Brasil (Rio de Janeiro), 1955, filme 35 mm.
O último dia de Lampião. Maurice Capovilla. Brasil (Rio de Janeiro), 1975, filme 16 mm.
Os cangaceiros do Vale da Morte. Apollo Monteiro. Brasil (São Paulo), 1978, filme 35 mm.
Os três cangaceiros. Víctor Lima. Brasil (Rio de Janeiro), 1961, filme 35 mm.
Pedro Bó, o caçador de cangaceiros. Mozael Silveira. Brasil (Rio de Janeiro), 1978, filme 35 mm.
Quelé do Pajeú. Anselmo Duarte. Brasil (Rio de Janeiro), 1969, filme 70 mm.
Riacho de sangue. Fernando de Barros. Brasil (Rio de Janeiro), 1966, filme 35 mm.
Três cabras de Lampião. Aurélio Teixeira. Brasil (São Paulo), 1962, filme 35 mm.
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O cangaço no cinema brasileiro - Marcelo Dídimo Souza Vieira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
_____________________________________________________________
1. O trabalho foi apresentado no 14º Encontro da Socine – Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, na
Mesa Temática “Os gêneros no cinema brasileiro e latino-americano: práticas, transformações, remixagens e tendências.
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O filme de mistério: colaborações para o estudo genérico no cinema no Brasil - Rafael de Luna Freire
Cinema brasileiro
O filme de mistério:
filme The great train robbery (Edwin Porter, 1903), com seus cowboys montados
percebido como western na época em que ele foi feito” (NEALE, 2000, p. 44).3
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O filme de mistério: colaborações para o estudo genérico no cinema no Brasil - Rafael de Luna Freire
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
notando desde já, por exemplo, que, no Brasil, o western, o filme passado no
novembro de 1932, no qual a primeira pergunta era: “Que espécie de filme gosta
“mistério” (na grafia da época, mysterio, mais próximo ao inglês mystery), que
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O filme de mistério: colaborações para o estudo genérico no cinema no Brasil - Rafael de Luna Freire
Cinema brasileiro
Alice Gonzaga (1996, p. 103) citou o concurso criado pela Universal em sua
réis a quem descobrisse o final do primeiro seriado produzido pelo estúdio norte-
americano, A rapariga misteriosa (Lucille Love, The girl ofmistery [Francis Ford,
primeiras idas à sala escura levado por sua mãe Elisabeta – fã de filmes que
chegou a tocar piano nos cinemas na década de 1920 –, contou que seu pai a
filme curto para narrativas mais longas, surgindo no mesmo momento em que
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O filme de mistério: colaborações para o estudo genérico no cinema no Brasil - Rafael de Luna Freire
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
grande parte dos programas compostos por outros shorts (comédias, dramas,
para os longas-metragens.
no Brasil filmes de oito a dez partes (que ocupavam, na prática, toda uma
nova composição que, “em breve espaço de tempo, passou a predominar nos
Estados Unidos, explorados por todos os principais estúdios, como pelo braço
(The perilsof Pauline [Louis Gasner, 1914]), que levou ao estrelato a atriz
americana Pearl White. Os perigos de Paulina havia sido produzido pelo magnata
um novo seriado estrelado por Pearl White, em 1916, o célebre Les mystères
de New-York, como lembrou Pedro Nava (2000, p. 215): “Leia na Noite e depois
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O filme de mistério: colaborações para o estudo genérico no cinema no Brasil - Rafael de Luna Freire
Cinema brasileiro
(1978, p. 107), que décadas mais tarde ainda se lembrou com saudade do “tempo
de Helena)”, além dos Cine Íris e Ideal, “afamados pelos seus seriados que
seguíamos com devoção (Rollauxetc)”. O mesmo pode ser dito do crítico Pedro
Lima, que, respondendo a uma enquete feita em 1967 sobre as vinte maiores
Stain Mistery [T. Hayes Hunter, 1916/1917br]), o “mais estupendo film policial até
futuro crítico Pedro Lima. Se o resumo das tramas era publicado nos programas
pelos fãs –, esse “romance estupendo” também era publicado no jornal A Rua.9
carioca”: “Em São Paulo, A rapariga misteriosa foi exibida sem nenhum destaque,
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O filme de mistério: colaborações para o estudo genérico no cinema no Brasil - Rafael de Luna Freire
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Ford como detetive de seriados parece ter sido enorme, ao ponto de, em
de, em 1917, o jornal A Noite ter dedicado grande campanha publicitária – com
diversos jornais foi anunciado como “O tesouro dos navios alemães”. Era a história
Tanis que possui poderes “sobrenaturais”, mas “não é mais do que um audacioso
ladrão filiado a uma quadrilha internacional, organizada para operar nas grandes
(Fernande Briand), com quem se instala num palacete no Cosme Velho, ele
desperta o amor da “pobre criança” Hilda (Margot), filha do Cônsul. Através dele,
“Djalmo faz-se do mundo elegante, freqüenta clubes, salões”, e descobre que seu
amigo diplomata tem sob a sua guarda diversos navios, inclusive o maior deles,
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O filme de mistério: colaborações para o estudo genérico no cinema no Brasil - Rafael de Luna Freire
Cinema brasileiro
de Hilda pelos bandidos, para o desespero de seu pai, o Cônsul, que “cai como
ficou a cargo de Guido Panela – que teria sido o “verdadeiro diretor do filme”–,
Conforme Alex Viany, o filme tinha seis rolos de duração (cerca de 100
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O filme de mistério: colaborações para o estudo genérico no cinema no Brasil - Rafael de Luna Freire
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
mocinhas na fila do cinema, tenha brincado “que valia mais a pena ver as Belezas
a domingo, saindo de cartaz “no meio de pleno êxito, e tudo por causa de uma
francesa”: a atriz Madeleine Céliat, estrela do filme italiano Monna Vanna (Mario
que haviam assistido ao filme: 5.834 pessoas na estreia, 11.000 em dois dias de
fechada sete meses antes, provavelmente teve o apoio do jornal apenas para ser
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O filme de mistério: colaborações para o estudo genérico no cinema no Brasil - Rafael de Luna Freire
Cinema brasileiro
A Noite, fundado em 1911, era sustentado por grandes tiragens e, uma vez que
nos próprios locais onde os fatos ocorreram –, nos quais, conforme José Inácio
de Melo Souza (2000, p. 108), “ver era uma extensão do lido ou do comentado
fraco dos fabricantes por essas produções vazias que logram no entanto
atrair o público mais ou menos desconhecedor das boas peças de pura arte
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O filme de mistério: colaborações para o estudo genérico no cinema no Brasil - Rafael de Luna Freire
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
num extraordinário aumento nas tiragens dos periódicos franceses, não faltando
vendas do Jornal do Commercio – cuja tiragem era, porém, várias vezes menor
XIX o folhetim deixou de “ser moda” sem nunca ter sido popular devido à circulação
da cultura letrada (livro ou imprensa), mas sobretudo por meio de sua articulação
formatos audiovisuais.
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O filme de mistério: colaborações para o estudo genérico no cinema no Brasil - Rafael de Luna Freire
Cinema brasileiro
em sua versão publicada nos jornais, impresso nos programas dos cinemas e
relação ao outro. Se por volta de 1917 praticamente todo seriado lançado nos EUA
podiam ser considerados duas partes de uma mesma unidade textual ampla e
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O filme de mistério: colaborações para o estudo genérico no cinema no Brasil - Rafael de Luna Freire
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
semelhança ou paródia.
escritor Coelho Neto, seria responsável, juntamente com Afrânio Peixoto, Medeiros
e Albuquerque e Viriato Correia, por aquela que é hoje considerada por estudiosos
Cada episódio (foram 47 ao todo) foi escrito por um autor diferente, deixando um
Monteiro Lobato & Cia naquele mesmo ano de 1920, ganhando novas edições em
eles continuariam em voga no Brasil até a década de 1930, quando o termo “filme
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O filme de mistério: colaborações para o estudo genérico no cinema no Brasil - Rafael de Luna Freire
Cinema brasileiro
Referências bibliográficas
BIGNOTTO, C. Monteiro Lobato e a edição de Mistério. In: ADAMI, A. et al. Mídia, cultura e comunicação 2. São
Paulo: Arte e Ciência, 2003.
COELHO NETO et al. O mysterio. São Paulo: Editora Monteiro Lobato & Cia, 1920.
GONZAGA, A. Palácios e poeiras:100 anos de cinemas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Record, 1996.
HALLEWELL, L. O livro no Brasil (sua história). São Paulo: T. A. Queiroz, editor; Editora da USP, 1985.
MEYER, M. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
MITTELL, J. Genre and television: from cop shows to cartoons in American culture. New York: Routledge, 2004.
SANDRONI, C. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar; Ed. UFRJ, 2001.
SINGER, B. Serials. In: NOWELL-SMITH, G. (Ed.). The Oxford History of World Cinema.New York: Oxford
University Press, 1996.
______. Imagens do Passado: São Paulo e Rio de Janeiro nos primórdios do cinema. São Paulo: Senac, 2004.
VIANY, A. Memória dos cinemas do subúrbio carioca. Filme Cultura, Rio de Janeiro, n. 47, ago. 1986.
_____________________________________________________________
1. Trabalho apresentado no seminário temático “Cinema no Brasil: dos primeiros tempos à década de 1950”.
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O filme de mistério: colaborações para o estudo genérico no cinema no Brasil - Rafael de Luna Freire
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
2. E-mail:[email protected]
4. Cinearte, v.7, n. 349, 2 nov. 1932, p. 3. A grafia da época foi atualizada nesta e nas demais citações.
5. Cinearte, v. 8, n. 381, 15 dez. 1933, p. 5. O resultado da enquete foi: romance 30%, dramático 15%, comédia 10%, histórico
9%, mistério 7%, drama de sexo 7%, melodrama 6%, filmes cômicos 6%, educativo 6%, far west 4%.
6. Devido ao enorme sucesso internacional de Os perigos de Paulina, superior mesmo ao mercado norte-americano, foi
produzida logo em seguida a série The Exploits of Elaine (Louis Gasner, co-dir. George Seitz, 1914-1915), que incluía
aindaThe Romance of Elaine (1915) e The New Exploits of Elaine (1915). Esses seriados foram relançados nos EUA e
Europa num pacote de 22 episódios renomeados como Les mystères de New-York.
9. Programa do Cinema Pátria, Rio de Janeiro [1917] (Acervo Pedro Lima, Cinemateca Brasileira).
10. Nenhum material do filme sobreviveu. O resumo da trama foi elaborado a partir de: FonFon, s.d [1917]; Selecta, 17 mar.
1917; Recorte sem identificação; e Correio da manhã, 26 out. 1917, p. 5. A maioria desses documentos está reunida na
pasta “Os mistérios do Rio de Janeiro” pertencente ao Arquivo Cinédia, reunido e organizado por Alice Gonzaga.
11. A indicação de Guido Panela como “verdadeiro diretor do filme” está em anotação manuscrita de Adhemar Gonzaga citando
depoimento pessoal de Carlos Machado (documento do Arquivo Cinédia). Em FonFon, informou-se que a parte técnica do
filme teria sido “confiada ao operador Sr. Guido Pauella” [sic] (FonFon, n. 13, 31 mar. 1917).
13. Jornal do Commercio, 23 out. 1917, p. 5; Jornal do Commercio, 25 out. 1917, p. 20.
14. Cf. 35 mm Conversion Chart for Projection Speed. Disponível em: http://www.cinemaweb.com/silentfilm/bookshelf/18_99_20.
htm. Acesso em: 5 jul. 2011.
16. Correio da manhã, 26 out. 1917, p. 10; Correio da manhã, 27 out. 1917, p. 10; Correio da manhã, 28 out. 1917, p. 10; Jornal
do Commercio, 29 out. 1917, p. 7.
17. Mistérios do Rio de Janeiro (Os). [Verbete], s.d., (Acervo Alex Viany). Disponível em: www.alexviany.com.br Acesso em: 9
jul. 2010. Verbete provavelmente escrito para a Grande Enciclopédia Delta-Larrousse.
18. A Noite, 24 out. 1917, p. 5; Jornal do Commercio, 25 out. 1917, p. 20. Ofereço mais detalhes sobre A quadrilha do esqueleto
em minha tese de doutorado.
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Movimentos da violência em Madame Satã - Ramayana Lira
Cinema brasileiro
da vida de João Francisco dos Santos (nascido em 1900 e morto em 1976), drag
“história real”, o filme de Aïnouz opta por recortar a trajetória de João Francisco
dando ênfase à segunda metade dos anos 1920. Desde esses momentos iniciais
constrói-se uma tensão entre uma subjetividade que se projeta nos simulacros
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Movimentos da violência em Madame Satã - Ramayana Lira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
condenado por quase 30 crimes, ele mesmo é uma autoficção, uma constelação
sobre sua família protética formada pela prostituta Laurita e pela figura ambígua
de Tabu. João é uma Scheherazade (ou Xarazá, como fala no filme) reinventando-
que possibilita a suspensão do julgamento, já que não produz uma “verdade” que
possa ser avaliada. A sequência final do filme sugere isso: sobrepondo-se à voz
da lei que lhe confere a sentença condenatória, a voz de João Francisco (re)cria
Jamacy como outra passagem, de forma que sua subjetividade deslizante não
pergunta: “Mas foi a bala que matou?”. Resposta de João Francisco: “A bala
são utilizados para dar conta de/contar essa história, ou seja, a discussão sobre
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Movimentos da violência em Madame Satã - Ramayana Lira
Cinema brasileiro
Além disso, Madame Satã instiga a indagar sobre a relação entre a política
gen justa (2009) para entender o cinema argentino contemporâneo, mas que pro-
curo também trazer para o contexto brasileiro. Aqui, quero crer, as categorias de
confronto tantas vezes rico quanto frustrante – e da minha posição fora dos centros,
pela imagem como ponto de partida para compreender o cinema. Badiou vai
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Movimentos da violência em Madame Satã - Ramayana Lira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
que procuro entender a síntese que o cinema produz entre “imagens violentas” e
“imagens da violência”.
afetamento. As “imagens da violência”, por outro lado, não prometem outra coisa
grande violência dessas imagens acaba sendo contra o clichê, pois que elas
seu corpo na luta aberta de capoeira são compostas de planos que reiteram
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Movimentos da violência em Madame Satã - Ramayana Lira
Cinema brasileiro
entre João e Renatinho são, eles mesmos, carregados de uma força bruta
vez que narrativamente não são indispensáveis. Qual então, o sentido dos corpos?
A “imagem da violência” marca uma apropriação da nudez e do sexo como um
querer ver, um querer prazer vendo, o que Jean-Luc Nancy chama de pornografia.
corpo, ou melhor, formas da pele, percorrida em close-ups que revelam seu brilho,
nuances de cor, pelos e defeitos. Quase uma pele-tela, onde se passa o filme.
Notar o uso da palavra “passar”: roçar, toque na superfície, como a língua que
desliza sobre o corpo, “imagem violenta” tantas vezes repetida no filme. A pele
Mais uma vez, uma certa imagem “que sobra” dentro da economia narrativa.
Sentado na cama, o corpo seminu de Laurita não é objeto de desejo – não pelas
suas qualidades individuais, ou por ser grotesco, pelo contrário. Mas porque os
e fisicamente Tabu por não ter dado conta dos serviços domésticos, são
o cu? Já deu hoje?”; Tabu lhe responde sorrindo. O jogo entre violência e
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Movimentos da violência em Madame Satã - Ramayana Lira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
outro, diz Badiou, potencializa o encontro com o outro; o cinema exige ir além do
pensamento da identidade, ele faz pensar o outro (BADIOU, 2004, p. 56). Essa
uma violência que transita entre uma “violência de classe” e a “classe de violência”
produziu, nos anos 70, o média-metragem “Classe de luta”, que inverte os termos
seu status. A “violência de classe” vai da classe para a violência, ou seja, necessita,
forma uma comunidade provisória daqueles que se veem diante uns dos outros a
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Movimentos da violência em Madame Satã - Ramayana Lira
Cinema brasileiro
da boate dos “bacanas” que lhes recusou a entrada, João e Laurita são
entre seus rostos marcados pela violência dos seguranças. Ao chegar em casa,
Laurita confronta João por ter reagido quando barrados. Ele questiona: “Vou
levar desaforo para casa? Todo mundo pode entrar por que que eu não posso?”.
“Porque você não é todo mundo”, responde Laurita. Não, João Francisco não
é todo mundo, mas de certa forma é o mundo todo cujo movimento é impedido
Não que João Francisco seja uma figura alegórica dos sujeitos à
margem. Isso ele é, mas não apenas. Enquanto conversa com a cantora
vemos vários Joõesna mesma postura servil. Como se todas as suas máscaras,
Mas esse servilismo não dura, pois temos sua reação violenta
som de tecido sendo rasgado. Agora, não mais uma imagem multiplicada
do aio servil, mas o escuro de uma tela onde o espectador pode se lançar
como participante dessa violência, em segredo, por trás das portas. Tomar
parte, assim, nessa “classe de violência”. Um corte seco nos leva de volta ao
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Movimentos da violência em Madame Satã - Ramayana Lira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
violenta e que formam uma resistência ao que dá origem à situação. O corpo, nos
filmes (como lembra Ricardo Parodie), nos leva a ver uma organicidade que se
apoia – desde o começo da história do cinema, mesmo antes de o cinema adquirir
das mais evidentes manifestações políticas do corpo. Se, como afirma Gilles
Deleuze (1990), para o cinema feminista moderno era preciso tirar o corpo da
que canibaliza Vitória, Josephine Baker, samba e choro que João liberta também
ação, é o que sobra dela, tatuado no corpo cansado. Reagindo à violência com
sua performance, João responde com uma “violência de classe” sui generis: não
institucional. Não é à toa que temos tantas cenas em que os personagens costuram,
o cinema manifesta uma política. As escolhas estéticas se dão não apenas por
questões formais, mas porque o filme traz uma reconfiguração da apreensão dos
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Movimentos da violência em Madame Satã - Ramayana Lira
Cinema brasileiro
tino da noção de raça parece ser outro que não o da proposição de identidades.
Na síntese proposta pelo cinema, com sua potência de abrir a imagem, rasgar a
tiram sua força estética e política. A síntese de Madame Satã, que sai do clichê da
capoeira para outras imagens mais politicamente carregadas, que nos remetem
libera o filme dos clichês de uma mitologia. Mas isso já é outra história.
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Movimentos da violência em Madame Satã - Ramayana Lira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Referências bibliográficas
BADIOU, A.El cine como experimentación filosófica. In: YOEL, G. (Org.). Pensar el cine 1: Imagen, ética y
filosofia. Buenos Aires: Manantial, 2004. p. 23-81.
PARODI, R. Cuerpo y cine: reporte fragmentario sobre extrañas intensidades y mutaciones del orden corpora.
In: YOEL, G. (Org.). Pensar el cine 2:Cuerpo(s), temporalidad y nuevas tecnologías . Buenos Aires: Manantial,
2004. p. 73-100.
Referências audiovisuais
_____________________________________________________________
2. E-mail: [email protected]
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Entre a ficção e o documentário no cinema alternativo - Roberto Moura
Cinema brasileiro
daquela hora seriam tarefa de uma nova geração de realizadores que surge nos
festivais de cinema amador, uma das poucas possibilidades que se abrem para a
acervos das cinematecas criadas no Rio e em São Paulo – rede que é duramente
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Entre a ficção e o documentário no cinema alternativo - Roberto Moura
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
gerida pelo Instituto Nacional de Cinema e depois pela Embrafilme e pelo Concine
seria já na primeira metade dos anos 1980 neutralizada em seus efeitos pela
filmes, produzidos não apenas no Rio e em São Paulo mas por todo país, que
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Entre a ficção e o documentário no cinema alternativo - Roberto Moura
Cinema brasileiro
como uma jovem dissidência aqueles técnicos e artistas, com o povo,de quem
era preciso compreender, para além dos temores e preconceitos, tanto o trajeto
três desses filmes tomados como uma brevíssima amostragem – Duas histórias
para crianças (Pompeu Aguiar, 1978), Bahira, o grande burlão (Paulo Veríssimo,
não óbvio, mantido entre seus realizadores, tanto em relação aos aspectos
Duas histórias para crianças, roteiro e direção de Pompeu Aguiar (um dos
em 1978 em 35 mm, como todos os outros curtas na época, para poder cumprir a
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Entre a ficção e o documentário no cinema alternativo - Roberto Moura
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
para rodar o plano, imagens que são acompanhadas por ruídos ambientes
Nagara, e para o espectador não fica claro quem é o diretor, uma vez que
é representado como uma equipe onde o trabalho flui com especialidades mas
é construída pelo plano sequência que era preparado num travelling com som
direto: esse abre em plano próximo de uma rumorosa cascata, o zoom vai se
uma longa pausa, começa a narrar uma história com sabor de parábola sobre o
que se juntam a seu exército, até restar apenas um inimigo que, entretanto, não
cede frente as suas palavras. Finalmente este vem até a tenda do general e o
mata. Sua tropa se dispersa e sai o sol. Enquanto narra, sempre nos olhando
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Entre a ficção e o documentário no cinema alternativo - Roberto Moura
Cinema brasileiro
trêsplanos da atriz – nos dois primeiros ela está numa postura extremamente
vemos apenas sua cabeça passar por baixo do campo, indo e vindo.
que é por ele aceita com trágica tolerância. Quando termina o relato, a câmera
lateral que vê a atriz sentada enquanto, num trilho à sua frente, o carrinho
fios, enquanto Pompeu está sentado. O guarda-sol, que sabemos ser usado
cópia já em estado muito precário. Diferente de Pompeu, que tem seu trabalho
muito bem tratado e há pouco tempo, depois de muitos anos sempre realizando
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Entre a ficção e o documentário no cinema alternativo - Roberto Moura
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
fotografado em parte por Edson Batista, em parte por Renato Laclete, produzido
por Cintia Garcia e Marta Irene e montado por Carlos Alberto Camuirano.O filme
também pode ser dividido em três sequências, sendo a segunda a mais longa.
e que, adulto, vive muitos anos na Amazônia com diversos grupos indígenas – um
sendo os dois, na verdade, mentores do próprio Paulo Veríssimo, que com eles
Santa Tereza, bairro onde naquela época vivia também vivia o copacabaníssimo
Bahira (“Bahira foi quem criou o sol e a lua - Bahira fez o membro do sol da raís
de paxiúba / E fez da raiz do apuizaba o sexo...”a luz brilhante do sol não deixa
som muito trabalhado, com ruídos ambientes, piados de aves, flautas indígenas,
ruídos estridentes, sempre dominado pela voz em off de Nunes Pereira, que fala
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Entre a ficção e o documentário no cinema alternativo - Roberto Moura
Cinema brasileiro
que o leva, iniciando-se a sequência mais longa do filme, onde seu estatuto
viagem em meio aos outros passageiros, intercalado por imagens coloridas que
e de seu sopro faz surgir vários índios no bonde (particularmente lindas cunhãs
seminuas, com suas penas e colares que o acariciam, e que o servem com uma
falas curtas de um locutor off (o próprio Veríssimo), que diz com sua voz rouca
homens com trajes comuns, andando numa estação e, depois, misturados num
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Entre a ficção e o documentário no cinema alternativo - Roberto Moura
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
anda no Centro com sua bengala no meio da multidão, entre planos com
“Gostaria de ser enterrado entre o Maranhão e o Pará, para ser árvore, beijar
as estrelas. Mas face a industrialização sei que vou ser papel higiênico. Mas
época mais ligado à ABD5 do que à CORCINA– roda A resistência da Lua, que
andamento me volto para esse cinema alternativo – título fantasia: nós nunca
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Entre a ficção e o documentário no cinema alternativo - Roberto Moura
Cinema brasileiro
Noilton Nunes e Gigi, indo para o Acre atraído pela seita do daime, ou Sérgio
Péo e José Carlos Asbeg chegando ao ABC pra filmar comício de Lula. Octávio
não era mais respeitada e não adiantava mais fazer filmes com por volta de 10’,
de São Jorge somos conduzidos pela câmera na mão pela taberna às escuras até
estridente. Seu riso acompanha o inserte de um cavalo branco que trota na frente
um carro, um vendedor de picolé. Alguém faz sua voz ser escutada também
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Entre a ficção e o documentário no cinema alternativo - Roberto Moura
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
em off, dizendo: “filmando a miséria pra levar para outro país...”. Silêncio: no
fora. Voltamos ao locutor em close e depois visto em plongê: “Sou Clarindo Silva
uma campainha. Tilte desce até uma porta que se abre enquanto uma voz em
off diz esperançosa: “Nosso pai celestial nos deu o direito de falarmos com
ele”. Aparece um homem com um charuto que começa a rir, ele vira as costas
feiticeiro e feiticeira. Nós somos todos santos.” Vai até um oratório e acende
uma vela enquanto começa a contar sua vida nascido no Remanso, e depois...
agora, claramente em off, começa a falar do Brasil: “Brasil, que nome horrível,
mesa, uma mulher fala sobre o candomblé: “nossa força é passar de filho pra
neto.” Continua sua fala em off, enquanto vemos muitos fiéis na porta da igreja,
e depois o interior da missa repleta. O padre benze enquanto Clementina de
na Bahia.” Sua voz fica em off enquanto surge uma sequência de fotos em preto
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Entre a ficção e o documentário no cinema alternativo - Roberto Moura
Cinema brasileiro
som de rajada de metralhadoras, eles caem aos estertores, como o casal no final
de Bonnie and Clyde. Um dos convivas com um clarinete começa a tocar; aos
poucos, todos ritmam e cantam juntos, enquanto o clarinetista faz finos bordões e
A música segue enquanto vemos crianças na rua, cozinheiros numa sacada, uma
mulher que conta dinheiro, uma barbearia. Mulheres semidespidas num quarto,
uma se pinta, outra deitada se levanta e põe um vestido enquanto em off Bola
repleto até chegarmos ao Vovô que conta a história do nascimento do Ilê Aiê,
o primeiro bloco de negros no carnaval de Salvador: “pra sair, tinha que riscar
um poeta com seu terno branco declama na rua escura imagens barroca
ressurge o cavalo branco frente à igreja, plongê do poeta: “um gesto simples
São filmes feitos entre o final dos anos 70 e a metade dos 80, de Geisel
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Entre a ficção e o documentário no cinema alternativo - Roberto Moura
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
cena que constrói uma equipe cinematográfica, heranças fortuitas, mas ainda
sempre leve, que conformaram anotação poética dos fatos daquela modernidade,
fazem dessa pequena amostragem de filmes, a ser expandida pela pesquisa, uma
prévia ao acesso a esses outros olhos que flagraram os tais “anos de chumbo”:
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Entre a ficção e o documentário no cinema alternativo - Roberto Moura
Cinema brasileiro
Referências bibliográficas
CESAR, Ana Cristina. Literatura não é documento. Rio de Janeiro: MEC/FUNARTE, 980.
LUCAS, Meize Regina de Lucena. Caravana Farkas: itinerários do documentário brasileiro. Instituto de Filosofia
e Ciências Sociais, UFRJ, 2005.
_____________________________________________________________
3. LUCAS, Meize Regina de Lucena. Caravana Farkas: itinerários do documentário brasileiro. Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais, UFRJ, 2005.
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A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
abordagem teórico-metodológica.
***
e ativa recorrente dos Direitos Humanos. Aqui, ocorre uma crescente expectativa
sobre essa diversidade como temática do cinema nacional, ainda mais diante da
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A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
Cinema brasileiro
Desta forma, aponto o filme Elvis e Madona para este debate crítico-
fala a respeito da desigualdade social no país. Além disso, essa proposta perpassa
questões ontológicas (dos valores) do cinema no que diz respeito à sua forma de
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A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
noções de atualização e inovação. Seria uma (re)paginação que tento tecer entre
COSTA, 2010; GARCIA, 2004 e 2010; LOPES, 2001; MORENO, 2001; TREVISAN,
DESEJO homoerótico, por exemplo, parece não se ajustar tão bem aos fatos
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A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
Cinema brasileiro
Do cinema contemporâneo
lidar com esse tema no cinema, visto que não encontra respaldo de patrocínios
patrocinar filmes com essa natureza de discurso, que toca a diversidade, o que,
no cinema nacional.
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A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
ficcional do cinema.
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A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
Cinema brasileiro
valoriza o diálogo, a segunda tem na ação seu maior foco – conteúdo versus
formato. O que se pode ver hoje, na América Latina, seria justamente uma
por oposição, mostra o não revelado, sem abrir mão dos feitos tecnológicos.
manipulação da mensagem.
as manifestações cinematográficas.
Da diversidade
masculino e/ou feminino, bem como das categorias destoantes de atividade e/ou
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A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
junção com corpo e performance. A partir do corpo, penso na sua visibilidade crítico-
sapatão, viado, fanchona, drag queen, michê e/ou go-go boy passam a ditar
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A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
Cinema brasileiro
sociedade contemporânea.
Com isso, proponho uma política do afeto como poética, labor: algo para
e teórico pode ser visto como tal. Seria a adição de predicativos sensíveis à
diversidade cultural/sexual.
Da película
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A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
contemporânea?
cidade do Rio de Janeiro como zona de prostituição e sexo fácil), a trama traz um
casal de protagonistas queer. Ela é Elvis e ele, Madona. Uma é lésbica, a outra
(vivida por Simone Spoladore) é uma fotógrafa lésbica que começa a trabalhar
como entregadora de pizza para juntar dinheiro. Um dia, ela conhece Madona
(interpretada por Igor Cotrim), uma travesti3 que sonha em fazer um grande show
– um musical no estilo Teatro de Revista.
torto” de amizade, desejo e paixão, além de uma série de questões para se resolver
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A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
Cinema brasileiro
sexo etc. Há uma formulação de código que assume traços identitários na cultura
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A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Será que é possível essa expressão “entre iguais” como sintonia homo?
abarcar as diferenças entre iguais. Isso somente pode ser constituído como
Ora Elvis tem gestos grosseiros, ora delicados. Também se faz notar a
outro. Ambos batalham seus talentos profissionais, sendo que cada personagem
segue seu sonho – na expectativa de viver a vida e ser feliz.
Do espectador
apresentado na tela.
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A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
Cinema brasileiro
tecnológicos emergentes.
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A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
O que para algum espectador pode ser encarado como problema, para
o enredo cinematográfico.
precisam ser revistos. Sem dúvida, a trama oferta uma discussão a respeito da
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A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
Cinema brasileiro
Grosso modo, Elvis e Madona não pode ser visto/lido como filme político,
Considerações finais
valores um tanto quanto esquecidos, mas que devem ser sempre relembrados.
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A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
respectivos contextos.
estética e/ou política para ceder ao estado de transição dos objetos. Seria um
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A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
Cinema brasileiro
Referências bibliográficas
CANCLINI, N. G. Leitores, espectadores e internautas. Trad. Ana Goldberg. São Paulo: Iluminuras, 2008.
COSTA, H. et al (Org.). Retratos do Brasil homossexual: fronteiras, subjetividades e desejos. São Paulo: Edusp;
Imprensa Oficial, 2010.
COSTA, J. F. O vestígio e a aura:corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.
FOSTER, D. W. Queer issues in contemporary Latin American cinema. Austin:fUniversity of Texas Press, 2003.
GARCIA, W. Cinema brasileiro, corpo e diversidade sexual: estudos contemporâneos. Revista Conexão,Caxias
do Sul: UCS, v.8, n. 15, p. 79-91, jan./jun. 2009.
______. Diversidade sexual no documentário brasileiro: estudos contemporâneos. Revista Bagoas, Natal:
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______. Homoerotismo & imagem no Brasil. São Paulo: Nojosa; Fapesp, 2004.
GARLSON, M.Performance: uma introdução crítica. Trad. Thais Flores Nogueira Diniz e Maria Antonieta Pereira.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
LOPES, D. O homem que amava rapazes: e outros ensaios. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001.
MORENO, A. A personagem homossexual no cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Funarte; Niterói: Eduff, 2001.
STAM, R. Introdução à teoria do cinema. Trad. Fernando Mascarello. Campinas: Papirus, 2003.
XAVIER, I. O olhar e a cena:melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues. São Paulo: Cosac Naify,
2003.
Referências audiovisuais
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A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
_____________________________________________________________
2. Para pontuar a teoria queer no cinema, Robert Stam afirma que “a performance sexual desfaz, por assim dizer, a rigidez
da identidade sexual”. E complementa: “a teoria queer do cinema também se revitalizou em um constante diálogo com um
crescente número de longas-metragens, documentários e vídeos queers…” (STAM, 2003, p. 292-293). Uma livre tradução
do queer remete ao estranho, diferente, feio, torto, em desacordo.
3. Nos dicionários brasileiros de língua portuguesa, o termo travesti apresenta-se pelo gênero masculino, conforme a
gramática normativa atual. Contudo, utilizo este termo respeitando a cultura das travestis, que considera o gênero feminino
para sua auto-identificação. Registra-se, assim, a condição sociolinguística e política da palavra.
129
Cinema mundial contemporâneo
A câmara autoconsciente e a função das repetições em Lake Tahoe, de Fernando Eimbcke - Aleksandra Jablonska
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
em uma fórmula que, tendo sido já ensaiada por outros cineastas, nos possibilita
Esse não é o caso do filme que quero comentar. Como sabemos, desde
dos novos cinemas latino-americanos dos anos 60 e 70, dos filmes que tinham
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A câmara autoconsciente e a função das repetições em Lake Tahoe, de Fernando Eimbcke - Aleksandra Jablonska
Cinema mundial contemporâneo
já foram ensaiados por outros cineastas, especialmente por Jean Renoir, Yasujiro
do campo vazio – para falar das vidas comuns de personagens que não possuem
Las historias mínimas e El perro, de Carlos Sorin; Whisky, de Juan Pablo Rebella
personagem entre no quadro, faça algo e saia dele, para enquadrar novamente
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A câmara autoconsciente e a função das repetições em Lake Tahoe, de Fernando Eimbcke - Aleksandra Jablonska
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
distância diante dos personagens, que não aparecem senão como funções do
Ao mesmo tempo, esta forma de filmar pode ser entendida como o uso do
discurso indireto livre, em que a câmara deixa sua função supostamente objetiva
para identificar-se com a personagem e dar conta de seu mundo, apagando assim
atinge seu máximo quando a tela fica preta (DELEUZE, 1986, p. 27-28). E no filme
tela preta que se segue a esta saída faz com que o espectador imagine o espaço
plano visual e o sonoro não coincidem nestas ocasiões. Às vezes ocorre que esse
cão, que o vigia; ruído de batida; logo, se mostram suas consequências) – assim,
pela morte do seu pai, essa tela preta adquire outro significado: simboliza o vazio
que a morte e o luto deixam. Segundo Balázs essa tela permite “dessa forma
evocar a melancolia do adeus, das coisas que têm que morrer. Às vezes atua
como reticências ou como um olhar triste para aquilo que se afasta para sempre.
situações e ações – que criam um universo muito especial, feito de longas esperas
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A câmara autoconsciente e a função das repetições em Lake Tahoe, de Fernando Eimbcke - Aleksandra Jablonska
Cinema mundial contemporâneo
ampla comunicação. Nesse sentido o filme de Eimbcke poderia ser lido como uma
diferente do ocidental/moderno.
contra um poste, batida que não se vê, mas que o espectador percebe ao escutar
como “busca de ajuda”. Tal busca implica a visita a várias oficinas. O trajeto
de Juan por uma cidade semideserta é interrompido uma única vez, quando ele
telefona para sua casa; assim, ficamos sabendo que ele mora com a mãe e com
um irmão menor, Joaquín. A busca de ajuda origina o encontro com Don Heber, um
decide ajudá-lo (desde que isso não implique ter que sair de casa).
Quando explica para Don Heber qual é a peça que deve ser trocada
pelas lojas de peças para automóveis que o leva a conhecer três pessoas:
uma garota fã de música, seu pequeno filho Fidel, e David, que sabe de
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A câmara autoconsciente e a função das repetições em Lake Tahoe, de Fernando Eimbcke - Aleksandra Jablonska
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
para encontrar a peça que tem que trocar para o carro funcionar, as personagens
interrompida pela visita a casa de David (com o mesmo propósito), em que ele
obriga Juan a ver um filme de artes marciais e lhe empresta um livro sobre o
mesmo tema. Durante o café da manhã (situação que se repete, porque Juan
seu cão), a mãe de David lê para eles uma passagem do “Apocalipse” bíblico
parte do tempo fica calado –, crescem. Suas “esferas de ação” se ampliam: o que
parecia uma busca inútil pela peça para o carro resulta ser, ao final, uma forma
de viver o luto, uma forma de fugir do resto da família, a incapacidade inicial para
sequências que virão, será ele quem oferecerá ajuda aos outros, aparecendo
da garota que trabalha na loja de peças para automóveis. Mas sua capacidade
quando David rouba uma peça do carro dos amigos dos pais do Juan, enquanto
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A câmara autoconsciente e a função das repetições em Lake Tahoe, de Fernando Eimbcke - Aleksandra Jablonska
Cinema mundial contemporâneo
este os distrai. Eles o abraçam e lhe dão presentes, de tal forma que sua atitude
é descrita como evidente abuso de confiança. Esta cena também terá outro
Agora, David muda seu modo de agir com Juan, muda sua atitude de
de loja de peças para automóveis tinha tentado transformar a relação com Juan
em uma espécie de amizade ao pedir-lhe que ficasse com seu filho à noite,
enquanto ela ia tocar violão com os amigos. Mas o protagonista não aceita os
acaba de morrer e que tudo o que tínhamos visto, de certa forma, tinha
relação com esse fato.
relações. João encontrará Don Huber, e junto com ele o cão perdido; se reunirá
permite superar o momento mais agudo do luto, voltar para casa, consolar o seu
escondem alguns signos que permitem encontrar outra história mais profunda.
amizade com as pessoas que encontra durante seu périplo; 4) a cena em que,
“We need an emotional contact. Try again. I said emotional contact, no anger.
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A câmara autoconsciente e a função das repetições em Lake Tahoe, de Fernando Eimbcke - Aleksandra Jablonska
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Now, try again with me”. A reação de Juan, que permanece quieto com cara de
pesar enquanto David fala, é tomar o bastão e bater no carro. Depois Juan se
gestos que significam a guerra e a paz no mundo das artes marciais. Os dois
que todo o estranho comportamento de Juan era motivado pelo luto e pela sua
Heber, David e a garota que Juan poderá voltar para casa, quebrar o silêncio,
A dupla estrutura do filme permite lê-lo como uma alegoria, nos termos
formulados por Ismail Xavier (2005, p. 339-380), uma alegoria do luto. Efetivamente,
o conceito tradicional de alegoria como um texto para ser decifrado implica a ideia
Considerações finais
A maior parte do filme foi gravada por uma câmara fixa: o quadro se define
por um ponto de vista único e frontal sobre um conjunto invariável. Esse conjunto
está composto por casas, edifícios e áreas verdes de uma pequena cidade
que um personagem entre no quadro, que faça e diga algo e depois saia, enquanto
ela segue enquadrando o espaço agora vazio e permite retratar um mundo quase
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A câmara autoconsciente e a função das repetições em Lake Tahoe, de Fernando Eimbcke - Aleksandra Jablonska
Cinema mundial contemporâneo
estático, no qual o espaço pesa mais que a ação, um mundo não moderno, que não
está marcado pela pressa ou pela importância do dinheiro, mas pela relevância
das relações pessoais que se estabelecem ainda nas situações mais fortuitas.
tradução nossa). Esta propensão em mostrar tudo da forma mais brutal possível,
assinala a autora, tem anestesiado o público, que necessita de uma dose maior
descobriu que “tudo o que foge ao olhar direto contribui à emoção, que tudo o
como o faziam os “novos cinemas” das épocas anteriores. Com poucos recursos
classe média que vivem à margem do charme das grandes cidades, do uso das
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A câmara autoconsciente e a função das repetições em Lake Tahoe, de Fernando Eimbcke - Aleksandra Jablonska
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Referências bibliográficas
MUSICCO, D. O campo vazio: a linguagem indireta na comunicação audiovisual. Madri: Cátedra, 2007.
XAVIER, I. A alegoria histórica. In: RAMOS, F. P. (Org.) Teoria contemporânea do cinema: pós-estruturalismo e
filosofia analítica. Volume I. São Paulo: Senac, 2005. p. 339- 380.
Hemerografia
ABNER, M. Acalma Fernando Eimbcke seu duelo com filme. El Reforma, sección Gente, 29 de outubro 2008,
p. 2.
BONFIL, C. A mostra. Lake Tahoe. La Jornada, seção Espetáculos, 7 de novembro, 2008,p. 13.
BOTELLO, Y. Divide opiniões o filme Lake Tahoe. El Reforma, seção Gente, 10 de fevereiro 2008, p. 16.
LINO, M. Lake Tahoe, poesia fílmica. El Economista, seção La Plaza, 3 de dezembro, 2008, p. 8.
VÉRTIZ DE LA FUENTE, C. Lake Tahoe, alquimia de Eimbcke. El Proceso, núm. 1676, 14 de dezembro, 2008,
p. 72.
Referências audiovisuais
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A câmara autoconsciente e a função das repetições em Lake Tahoe, de Fernando Eimbcke - Aleksandra Jablonska
Cinema mundial contemporâneo
_____________________________________________________________
2. E-mail: [email protected]
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O local, o comum e o mínimo - Denilson Lopes
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Se, cada vez mais marcado pelos fluxos de pessoas, objetos, informações
e imagens, “o local costuma estar em outro lugar” (CANCLINI, 2008, p. 60), como
pensar o local e o homem comum hoje? Nos filmes que vamos discutir, cada
provenientes dos mais diversos lugares, pelas imagens televisivas, pelo que
se ouve no rádio e pelos trânsitos entre culturas. Não se pode pensar o local
Também não nos interessaram filmes que colocam o local apenas no horizonte
sem marca particular, o local encenado nas pequenas cidades está em intensa
transformação, como as grandes cidades. A busca estética do local não nos traz
forma desigual o planeta, mas sim a difícil questão do que nos une, do que nos
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O local, o comum e o mínimo - Denilson Lopes
Cinema mundial contemporâneo
faz pertencer, dos que nos é comum. Tal experiência é traduzida por uma estética
surgiu da aposta de que uma releitura de suas propostas (mais visíveis nos
dar alguma pista para ir além da mera utilização adjetiva para falar de uma
Uma vida em segredo (1964) de Autran Dourado (LOPES, 2010), uma outra
Espero que isto não seja apenas buscar um nome diferente para
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O local, o comum e o mínimo - Denilson Lopes
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
nesse sentido que pensamos que o menos ainda possa ser mais,5 ou seja, que as
ao Minimalismo, mas recoloca questões ainda atuais: como deixar com que os
objetos falem? Como os objetos podem ser personagens? O que é esta busca
do Humanismo? O que é estar num mundo em que o homem não ocupa uma
posição central? O que é viver num mundo em que espaços não são uma projeção
como o Abstracionismo, possa ser visto como uma construção de um mundo à parte
as nada impede que a ética do Minimalismo possa ainda ser pensada não como
simples recusa da cultura das mídias, mas que se pergunta como ainda podemos
e corpos que emergem? Creio não se tratar de uma volta ao corpo, certamente
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O local, o comum e o mínimo - Denilson Lopes
Cinema mundial contemporâneo
repetições, o enfrentamento não das grandes emoções, mas quando estamos fora
delas, de um mundo “que não precisa de nada”, que sobretudo não precisa de nós
um mundo estranho e novo mas que é o nosso mundo a partir de uma sensação
que buscamos. Usado por Deleuze para falar das peças tardias de Samuel
Beckett feitas para televisão, o esgotamento vai além do cansaço – que apenas
p. 75); no lugar dos nomes há vozes, e o silêncio não é “um simples cansaço
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O local, o comum e o mínimo - Denilson Lopes
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Esta última referência, a partir de Beckett, nos abre ainda mais, a partir do
Minimalismo, para um diálogo não só com as artes plásticas mas com o teatro.
mais forte entre eles, visto que um dos membros do grupo fala mal e de forma fria
cujo casamento sequer Xiao Wu é convidado. O mundo de Xiao Wu não é dos que
estão ganhando com a explosão capitalista na China nem dos que têm nostalgia
do passado. Sua própria família, de origem camponesa, não o recebe. Seu mundo
é o da prostituta Mei Mei que some sem dizer para onde foi. Desaparição parece
sons e imagens produzidos pelas ruas, TVs, celulares e karaokês. Xiao Wu passa
o filme num constante andar pelas ruas, em meio a poucas conversas banais.
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O local, o comum e o mínimo - Denilson Lopes
Cinema mundial contemporâneo
Nada a fazer. Nada expresso nos rostos. Nem desespero nem tédio. Ele em breve
instável. Não importa o que fazem. Todos parecem um pouco perdidos, mesmo a
namorada de Bin Bin que vai estudar em Pequim, como é representado pela última
visto o anúncio das Olimpíadas de 2008 sem saber aonde vai dar a estrada ou o
cultural mas a ela também resistem por uma espessura que não fornecer sentidos
comum não como uma figura da negação ou de recusa, muito menos de uma
horizonte concreto do dia após dia, sem grandes sonhos nem niilismo, apenas um
sutil redirecionamento. Comum mas não banal. Comum por poder estar em nós.
outros diretores que a que vamos nos referir, talvez por não terem (ainda?) seu
trata de falar do local como uma espécie de reserva da cultura nacional, um espaço
extremamente distinto, também aqui estamos num intervalo, que poderia ser o do
um diálogo. Identificamos algo que poderia ser próximo a nós ao invés do local
exótico, sem cair na tentação etnográfica que permeia muito de um debate sobre
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O local, o comum e o mínimo - Denilson Lopes
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
pensar o comum, como o que pode nos aproximar mas que retém sempre um
certo distanciamento estético e ético. É a partir deste espaço que podemos nos
bairro, onde se situa na cidade, seu contexto. É como sempre estivéssemos ali,
podemos fazer a não ser estar presentes, resistir a vermos apenas a destruição,
para que possamos ver e sentir a vida mesmo em condições precárias, mas
que não se resume à pobreza como uma limitação social. Não se trata de uma
palavras grandiloqüentes não nos auxiliam muito. É necessário olhos para ver a
trazida do teatro sobre a presença das pessoas (COSTA, 2008, p. 26), mas que
necessidade de uma marca local exótica. O trabalho não aparece sob a marca
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O local, o comum e o mínimo - Denilson Lopes
Cinema mundial contemporâneo
falta. Estamos desde o inicio colados pela câmara às costas de Rosetta (Émile
Dequenne) que resiste, no início do filme, a ser demitida ao que parece mais
uma vez. Sua vida passa pela incerteza dos trabalhos provisórios e por ser a
própria casa um trailer num camping onde mora com sua mãe, sem trabalho, com
mas o desespero não é traduzido por palavras. Estas são poucas, mas os
uma breve pausa quando consegue um emprego e faz amizade com Riquet
também instalada num trailer, marca mais um sinal de instabilidade tanto na casa
quanto no trabalho. Mas logo é demitida. Quando para conseguir seu emprego
de volta ela denuncia ao patrão (interpretado por Olivier Gourmet que atuará
primeiro momento que a rotina do trabalho para a casa a estabiliza, mas não dura
muito tempo. Sua vida não parece mudar. A mãe continua a mesma. Sua solidão
constitua a mesma. A vida normal que ela procura ter não a parece acolher. Ela
acaba por se demitir e quando a vemos levando um bujão de gás para dentro de
seu trailer, pensamos que vai se matar. A falta de trabalho não é só pensada como
uma condição social externa, mas interna, no próprio corpo, no próprio cotidiano.
Quando Riquet aparece no camping como se tivesse perseguindo-a mais uma vez
e ela cai com o bujão e começa a chorar, tudo parece caminhar para o fim. Neste
último momento, quando nada parece mais aparecer a ela como uma alternativa,
vemos Riquet com sua mão estendida para ajudá-la a se levantar. O filme corta
a cena e termina. Como é breve e impreciso o seu efeito não causa uma catarse
mas para quem não tem nada nem ninguém que o ampare pode ser muita coisa,
pode ser a diferença mesma entre a vida e morte, ainda que seja só naquele
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O local, o comum e o mínimo - Denilson Lopes
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
afetivos, apenas o dia após o dia, na sua repetição, quase sem uma válvula
de escape. Nem o trabalho nem a fé parecem sustentar esta vida frágil que
quase um pouco bovino, longe do modelo arguto tipo Sherlock Holmes mas
conectado com o mundo das coisas e das sensações e não apenas alienado
depois ouvindo musica; acariciando uma porca num estábulo; quando abraça um
criminoso na delegacia ou beija na boca Joseph, seu amigo que é identificado como
fato de sua mulher e filho terem morrido não o coloca sob a marca da melancolia
um crime é que o filme poderia se aproximar de um filme policial mas não no seu
estilo, no seu ritmo. Humanidade está longe do fetiche pelo noir dos anos 80 e o
Mais do que o crime, O que interessa mais é o trio de amigos formado por
norte da França, perto do canal da Mancha, quase sempre com poucas pessoas
nas ruas, eles saem para jantar, para a praia. No seu cotidiano, Pharaon alterna a
investigação policial com a rotina em casa onde mora com sua mãe.
Bruno Dumont, como Pedro Costa, também prefere trabalhar com não
atores e procura neles e nos seus corpos aquilo que eles têm (apud TANCELIN,
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O local, o comum e o mínimo - Denilson Lopes
Cinema mundial contemporâneo
2001, p. 13). Ele utiliza cenários reais, pessoas reais, sons reais para criar
a linha da estória não deve ser forte, nem os atores, nem o cenário, nem o
dialogo, nem as tomadas (apud TANCELIN, 2001, p. 84), para que o neutro
ruína (AGUILAR, 2006, p.8) hostil, nunca uma paisagem a ser contemplada a
da chuva, paralisante como a piscina suja ou como o boi morrendo atolado. Esta
seus atos destinados a se realizar como a viagem planejada a Bolívia para fazer
compras para o colégio. Mesmo a morte final do filho menor da prima de Mecha
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O local, o comum e o mínimo - Denilson Lopes
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
só aparece como ato banal, contraponto à morte do boi no inicio do filme mas
que não revela nada, nem dramatiza nada. Por mais que se possam se mover
parece que nada muda, como se andassem em areia movediça. Mais uma vez,
personagens, deitados em camas ou nas cadeiras das piscinas, sem nada para
onde se narra a aparição da Virgem Maria que a única personagem da família que
vai ao lugar não consegue ver. Ela também nada revela. A família de classe média
que Ana Amado chamou de “minimalismo dramático” (AMADO, 2007, p. 231), mas
sem o desenvolver. Trata-se de um outro tipo de corpo que não é marcado pelo
ou das grandes causas, que aqui é encenado sem nostalgia nem celebração.
para o lenhador solitário. O tempo é um dia atemporal que parece ser sua
não fora mas à margem do capital global. Sua liberdade, se ela existe, está
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O local, o comum e o mínimo - Denilson Lopes
Cinema mundial contemporâneo
numa vida básica, não de renúncia, mas marcada pela sobrevivência e pela
precariedade. Quase sem falar nem para si mesmo, sendo apenas gestos,
média urbana dos três filmes de ficção de Martin Rejtman encenado também
(SARLO apud BERNINI, 2008, p. 86) nem dialogam com questões como o passado
argentino (o tema da ditadura, por exemplo). Até os nomes são marcas de uma
desidentificação que longe de ser apenas uma forma de negatividade pode ser
uma possibilidade de encontro como parece dizer pelo final de Silvia Prieto
p.6) que sempre dá no mesmo fazer ou não fazer (OUBIÑA, 2006, p. 14). Se
de forma mais precária e difícil. Talvez filmes como No Meu lugar (Eduardo
desdobram nesta busca de uma outro registro dramático mas com resultados
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O local, o comum e o mínimo - Denilson Lopes
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
no caso dos filhos: o evangélico, o jogador de futebol, o motoboy, o filho que quer
cotidiano não consegue firmar nenhuma visão estética, ética ou política muito
particular sobre o Rio de Janeiro além do conhecido mote de uma cidade partida
filme feito de fora, não de algo pessoal. Talvez só a família do jovem que assalta
a casa ganha uma espessura e sutileza maiores. Tanto a família de classe media
Suely (Karin Aïnouz, 2006), A fuga da Mulher Gorila (Felipe Bragança e Marina
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O local, o comum e o mínimo - Denilson Lopes
Cinema mundial contemporâneo
Referências bibliográficas
AGUILAR, G. Otros Mundos. Um ensayo sobre el nuevo cine argentino. Buenos Aires: Santiago Arcos, 2006.
AMADO, A. Cansacio y precipitación In: La imagen justa: cine argentino y politica (1980/2007). Buenos Aires:
Colihue, 2007.
BERNINI, E. Silvia Prieto. Un film sin atributos. Buenos Aires: Picnic, 2008.
COSTA, P. Un mirlo dorado, un ramo de flores y una cuchara de plata. Barcelona: Caprici, 2008.
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da linguagem. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007.
HUBERMAN, G. D. O que vemos, o que nos olha. Rio de Janeiro: Editora 34, 1998.
_____________________________________________________________
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O local, o comum e o mínimo - Denilson Lopes
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
3. No caso de estudos de filmes, podemos citar o uso extensivo do termo Minimalismo por Bordwell (2009) ou ainda por
Yvette Biró (2006).
4. Para a questão do empobrecimento, ver Bersani (1993), livro em que o autor faz uma bela análise comparativa de Rothko,
Beckett e dos primeiros filmes de Resnais.
5. Menos é mais (less is more) é a conhecida expressão de Mies Van der Rohe que encontra um equivalente na também
conhecida expressão de Frank Stella – “O que você vê é o que você vê”. São duas frases que traduziram uma sensibilidade
minimalista.
6. O pós-humano se situa na esteira da desconstrução e historicização do homem feita por Foucault. Para leituras recentes
ver WOLFE, 2009.
7. Esta visão antropomórfica se relaciona com fascínio pelo rosto, presente em toda uma tradição do teatro de vedete, do
cinema hollywoodiano e suas estrelas, no seu privilégio pelo close dramático que ressurge curiosamente no horizonte
midiático dos talk shows, no mundo das celebridades, até no tratamento de pessoas comuns, como podemos ver em Jogo
de cena (Eduardo Coutinho, 2007). É claro, no cinema, há grandes poetas do rosto, nesta tradição antropomórfica, que
não nos interessa no momento, de A paixão de Joana D´Arc” (Carl Dreyer, 1929) a Cassavettes ou Bergmam.
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Recursos frente à passagem do tempo - Fábio Allan Mendes Ramalho
Cinema mundial contemporâneo
mostra em grande medida ilegível. Tal opacidade, inscrita nas ações rotineiras dos
das quais distintas gerações poderiam, nas palavras de Gonzalo Aguilar (2006,
breve análise dos dois títulos mais recentes mencionados,3 busco argumentar
nada voltaria a ser como antes. A imposição seca desta intenção pela voz off da
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Recursos frente à passagem do tempo - Fábio Allan Mendes Ramalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
com o mesmo sentido terminante. Los guantes mágicos, por sua vez, parte de
Fernández Capello), um homem de trinta e seis anos que trabalha com serviços
tempos da escola primária, quando aquele havia estudado com o seu irmão.
Mesmo sem lembrar nada, Alejandro aceita um convite para jantar com o cliente,
meio tempo, termina o namoro com Cecilia (Cecilia Biagini) e precisa comparecer
os pontos em que se ligam uns aos outros, e a aparente naturalidade com que
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Recursos frente à passagem do tempo - Fábio Allan Mendes Ramalho
Cinema mundial contemporâneo
qual, de um jeito ou de outro, todos os elementos dos filmes terminam por inserir-
com seu ex-marido, que mesmo tendo notado a troca de suas roupas pelas de
de desfazer o equívoco como ressalta que precisa fazer regime, já que as roupas
que lhe foram entregues por engano são de um número menor. Em outra cena,
as na própria roupa, mas liga o secador de mãos antes de sair. Em casa, por
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Recursos frente à passagem do tempo - Fábio Allan Mendes Ramalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
sem sobressalto, enquanto frases feitas são repetidas juntamente com uma
De fato, aqui não seria possível sequer dizer que o trabalho falha em
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Recursos frente à passagem do tempo - Fábio Allan Mendes Ramalho
Cinema mundial contemporâneo
ele perde o seu traço inconfundível pela constatação de que existem outras
(Rosario Bléfari) à descoberta de que existiria outra Silvia Prieto (Mirtha Busnelli)
fato que atesta sua disponibilidade para sustentar o nome como forma de vínculo e
segundo argumenta Beatriz Sarlo (2003, p. 140). Neste caso, o único requisito seria
compartilhar o mesmo nome. Em Los guantes mágicos, por sua vez, uma única
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Recursos frente à passagem do tempo - Fábio Allan Mendes Ramalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
provisoriamente8 – reaparece com mais força em Los guantes mágicos. E aqui fica
ainda mais claro que não apenas a faculdade de eleger é redimensionada pela
determinado momento se nos oferece uma leitura bastante particular das dinâmicas
mudança termina por denunciar suas conexões com outras dinâmicas para cuja
lógica os personagens não têm um claro acesso. Ascender a uma condição social
vida modesto, por exemplo, implica dominar o modus operandi dos negócios em
Impelido pelo objetivo de ser algo mais que um remisero, Alejandro vende
seu Renault 12 – a despeito da centralidade que este parece ocupar em sua vida
– para investir na compra das mercadorias que dão nome ao título do filme: luvas
tipo tamanho único cuja demanda mostra-se promissora em face da frente fria que
torna-se risível: Alejandro vende o seu veículo, passa a receber como empregado
para exercer o mesmo trabalho de antes e, agora sem carro, recorre aos serviços
de táxi para se locomover durante o seu tempo livre. E assim como a retórica dos
e relembrar a história triunfante que vem coroar sua trajetória de êxitos. Sua lição,
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Recursos frente à passagem do tempo - Fábio Allan Mendes Ramalho
Cinema mundial contemporâneo
que substitui o frio por uma forte onda de calor e torna inútil todo o segundo
nos modos de ver e sentir e também a busca pelo inesperado constituído como
dever ou de uma interdição. Não obstante, a realização deste ideal não é sempre
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Recursos frente à passagem do tempo - Fábio Allan Mendes Ramalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
contribui inclusive para assinalar os limites dessa tática de fuga. Com o dinheiro
uma passagem para Mar del Plata. Nem o tom de voz, nem a expressão do
indiferente a uma paisagem litorânea poderia atestar que aquele não é apenas
mais um lugar dentre muitos, dado que o tratamento formal e estético é o mesmo.
mágicos, quando Cecilia viaja ao spa brasileiro para perder os sete quilos
sua roupa é a mesma nas cenas do embarque e do retorno, como que para
Com isso, o deslocamento torna-se algo trivial, incapaz, como todo o resto,
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Recursos frente à passagem do tempo - Fábio Allan Mendes Ramalho
Cinema mundial contemporâneo
Cecilia comenta que ganhou uma passagem para visitar seu novo namorado
no Canadá. “Hay que viajar, chicas! Hay que viajar lo más que se pueda!” – e
o imperativo cai no vazio, como uma frase feita que soa como ironia frente ao
torna banal, inclusive as viagens, que não apenas perdem qualquer traço de
nas margens, marcou sempre a experiência dos sujeitos com o caráter opressivo
urbanos pode ser relacionada também à vontade de fuga que orienta as táticas
seus pontos mais desconcertantes – ainda mais do que em Rapado, seu primeiro
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Recursos frente à passagem do tempo - Fábio Allan Mendes Ramalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
sobre o corpo, levado ao extremo em Los guantes mágicos pela presença dos
Zanelli) vai com sua nova namorada à casa de sua ex-esposa (Bléfari) e os três
también (Alfonso Cuarón, 2001), por exemplo, temos o fim de tarde e sua luz
por fim, dar vazão a seus desejos não confessados. É nessa noite, ainda, que
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Recursos frente à passagem do tempo - Fábio Allan Mendes Ramalho
Cinema mundial contemporâneo
Luisa (Maribel Verdú) expressa mais livremente seus impulsos, sua ânsia de
Whisky (Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll, 2004), por sua vez, é também em uma
noite – a última da viagem a Piriápolis – que Jacobo (Andrés Pazos) lança a sorte
e aposta tudo, enquanto Marta (Mirella Pascual) faz sua visita silenciosa ao quarto
que tudo se desata. Não obstante, tanto em Silvia Prieto quanto em Los guantes
contribui o uso recorrente das mesmas locações. Para Alejandro e Valeria (Valeria
ambos trabalham com “transporte de passageiros”. Para os insones, por sua vez,
sair para dançar pode ser melhor do que ficar em casa “olhando para a parede”. A
vegetação à margem. Nada mais próximo e ao mesmo tempo mais distante das
uma finitude que persiste em se fazer anunciar, aqui elas vêm acompanhadas
unicamente pela voz apática de Alejandro que nos atualiza sobre o paradeiro
cena na sua nova função. O trabalho parece ter afetado outros territórios de sua
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Recursos frente à passagem do tempo - Fábio Allan Mendes Ramalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
formas de habitar o espaço urbano – estes três recursos com os quais o cinema
incômodo. Lembremos, no entanto, que este filme – como, ademais, toda a obra
superficialidade que termina por revelar-se muito expressiva. Mais do que ceder
a um impulso explicativo, então, podemos nos ater à sua última sequência como
obsessivo pelos carros, todos remetendo a um único carro; a fuga mais banal,
que é também o encontro com uma juventude cujos traços mostram-se cada vez
é evocado pela música e pelo visual retrô da danceteria. O corte final acontece um
pouco brusco, quando Alejandro mal ensaia, ainda, os seus primeiros movimentos
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Recursos frente à passagem do tempo - Fábio Allan Mendes Ramalho
Cinema mundial contemporâneo
Referências bibliográficas
AGUILAR, G. Otros mundos: un ensayo sobre el nuevo cine argentino. Buenos Aires: Santiago Arcos Editor,
2006.
CHAUVIN, I. D.. Martín Rejtman: profanações da fala no novo cinema argentino. Comunicação&política, v. 25,
n. 2, p. 235-246. 2007.
REJTMAN, M. Rapado. Buenos Aires: Grupo Editorial Planeta; Biblioteca del Sur, 1992.
SARLO, B. Plano, repetición: sobreviviendo en la ciudad nueva. In: BIRGIN, A.; TRÍMBOLO, J. (Org.). Imágenes
de los noventa. Buenos Aires: Libros del Zorzal, 2003. p. 125-149.
Referências audiovisuais
_____________________________________________________________
1. Este artigo resulta de uma pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq). Trabalho apresentado na categoria de comunicação individual, na mesa de Estética e Política.
2. E-mail: [email protected]
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Recursos frente à passagem do tempo - Fábio Allan Mendes Ramalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
3. Depois deles, Rejtman dirigiu ainda um documentário, Copacabana (2006), e um projeto para a televisão argentina
realizado em parceria com o também diretor Federico León, Entrenamiento elemental para actores (2009). Tendo em vista
o recorte assumido e os limites desta comunicação, tais obras não farão parte da análise.
4. Um serviço de aluguel de carros com motorista que não se confunde com o serviço de táxi. Os remises são mais informais,
não levam o mesmo tipo de identificação apresentada pelos táxis, não costumam tomar passageiros nas ruas (apenas por
meio de um contato prévio) e as condições do serviço prestado – preço e itinerário – são também previamente definidas.
5. A constituição destas séries ocupa um lugar central na importante análise realizada por Gonzalo Aguilar (2006), que
enfatiza em seu argumento as relações entre mercadoria, valor e experiência na obra de Rejtman. Tal serialidade encontra
destaque ainda no trabalho de Irene Chauvin (2007) que, não obstante, privilegia em sua abordagem a questão da voz
bressoniana como mecanismo de desvelamento da materialidade da linguagem nas falas dos personagens.
6. Em Silvia Prieto, a personagem de Rosário Bléfari decide pedir demissão quando percebe que já não pode somar os cafés,
leites e cortados servidos – perdeu a conta.
7. Ao final, temos o que seria a concretização da ideia do clube: com uma mudança significativa no modo de filmar – que
agora evoca um registro documental, o que por sua vez contribui para elevar ainda mais o estranhamento que contamina
as premissas do filme –, abre-se espaço para uma série de depoimentos que atribuem ao grupo um sentido de experiência
compartilhada.
8. Ver uma consideração destes dois sistemas, a série e a eleição, como “máquinas de narrar” (AGUILAR, 2006, p. 86).
9. Note-se, a esse respeito, a posição de destaque que o road movie ocupa na produção cinematográfica do subcontinente ao
longo da última década, com filmes como Y tu mamá también (Alfonso Cuarón, 2001), Diarios de motocicleta (Walter Salles,
2004), Historias mínimas (Carlos Sorín, 2002), Tan de repente (Diego Lerman, 2002), dentre outros.
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Nos contornos do vazio: Gerry e os cinemas de deserto - Fernando de Mendonça
Cinema mundial contemporâneo
sobre a areia faz com que o relevo desértico seja natural e perpetuamente
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Nos contornos do vazio: Gerry e os cinemas de deserto - Fernando de Mendonça
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
da reflexão do mundo, o espaço vazio a ser completado por uma realidade que
é sempre nova e que ele mesmo ajuda a renovar. Não há imagem fixa. Todo e
sua ontologia do vazio, lugar onde nada mais há do que a luz e a sombra, para
terra que formou o homem agora encontrasse o lugar ideal da criação. É quando
***
Van Sant, 2002), não seria possível ir muito além da linha acima. Filme
da linguagem cinematográfica. Gus Van Sant, que com esse filme iniciou uma
pela maneira como manipula o tempo e o espaço a favor de uma narrativa que
por cinema moderno (DELEUZE, 2007). Ao filmar Gerry, Van Sant deu a ver o
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Nos contornos do vazio: Gerry e os cinemas de deserto - Fernando de Mendonça
Cinema mundial contemporâneo
impõe como uma novidade estética, que assume suas inspirações sem jamais
***
de verdades assim sobre a região desértica é porque ela própria tem por
ilusória. O deserto esconde sua vida. A existência infiltra-se sob a areia, entre
A associação entre cinema e deserto, pode, sob esse viés, iluminar uma
em seu interior uma pulsão nuclear criadora, mas permanecendo sempre num
AUMONT, 2007), força que difere da tela pictórica por não converter o olhar
172
Nos contornos do vazio: Gerry e os cinemas de deserto - Fernando de Mendonça
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
***
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Nos contornos do vazio: Gerry e os cinemas de deserto - Fernando de Mendonça
Cinema mundial contemporâneo
cinematográfica), Michael Allan (2008) observa neste mesmo feito dos irmãos
***
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Nos contornos do vazio: Gerry e os cinemas de deserto - Fernando de Mendonça
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
outros) indicam que o tempo deixou de ser algo em jogo para eles (GONÇALVES,
2009), os dois jovens de nomes idênticos, faces de uma mesma moeda humana.
O caráter mítico de sua busca, alçado por Gus Van Sant até as últimas
corpo, também feita a partir de Gerry, o professor Daniel Lins constata: “Em Gerry,
para o deserto como alguém que se abandona à vertigem – não ao medo do vazio,
mas à atração irrepresentável para o próprio vazio, como se fora um vazio pleno.”
da falta não suprida. O mesmo autor lança mão do conceito de “involução” para
contra o devir do próprio tempo” (LINS, 2009, p. 171-72). A plenitude pelo vazio
científicas, indiscutíveis, mas que encontra no desejo pela dúvida um prazer que
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Nos contornos do vazio: Gerry e os cinemas de deserto - Fernando de Mendonça
Cinema mundial contemporâneo
de programa, 1991), mas, ao mesmo tempo, pela maneira como diferencia sua
diante dessa “busca do Eu”. Nesse sentido, é iluminadora a abordagem que Luiz
são características do eco referido por Pondé. Através delas, o caráter labiríntico
do deserto devolve aos gritos dos jovens as respostas proferidas por eles
corpo) encontra-se indiscernível pela maneira como Gus Van Sant os delimita
dentro de suas imagens. Se seu deserto também pode ser vivido enquanto
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Nos contornos do vazio: Gerry e os cinemas de deserto - Fernando de Mendonça
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
***
sucederam pouco tempo após o seu lançamento (The brown bunny, Vincent
sem procurar qualquer identificação com o espaço, ainda que ela se dê pelo
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Nos contornos do vazio: Gerry e os cinemas de deserto - Fernando de Mendonça
Cinema mundial contemporâneo
A solidão imposta aos personagens perdidos termina por fundi-los numa só carne,
onde a morte, agora aceita e enfrentada como etapa natural da vida, revela-se
***
que sua busca particular tenha culminado em seu próprio Eu, abrem-se novas
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Nos contornos do vazio: Gerry e os cinemas de deserto - Fernando de Mendonça
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Referências bibliográficas
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Referências audiovisuais
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2. E-mail: [email protected]
3. A mulher das dunas, romance escrito por Kobo Abe e roteirizado por ele mesmo para uma versão cinematográfica dirigida
pelo cineasta Hiroshi Teshigahara em 1964, é uma das obras definitivas sobre o deserto no século XX. A narrativa trata de
um colecionador de insetos que vai ao deserto para tentar descobrir novas formas de vida; na jornada ele é capturado por
um estranho povo e cai numa espécie de armadilha da qual não mais poderá sair vivo, aprisionado com uma mulher entre
dunas que “escorrem” ininterruptamente. É na bela prosa de Abe que lemos: “Uma vez que a terra é varrida por correntes
de ar e de água, talvez seja inevitável que se forme areia. Enquanto o vento soprar, o rio correr e o mar agitar-se a areia
brotará do solo grão após grão, e serpenteará por toda parte como um ser vivo. A areia jamais repousa. Silenciosa, porém
infalivelmente, ela vai violentando, destruindo a superfície da terra” (ABE, 1995).
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A construção da destruição: Jia Zhang-ke e a iminência da catástrofe - Lúcia Ramos Monteiro
Cinema mundial contemporâneo
A construção da destruição:
Preâmbulo
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A construção da destruição: Jia Zhang-ke e a iminência da catástrofe - Lúcia Ramos Monteiro
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Marker, “um poderia ter-nos inquietado, mas nós ainda não sabíamos.” Ao
um círculo que se fecha, como se sua morte estivesse inscrita nas imagens
relação complexa entre o homem e seu entorno nos filmes de Jia e, em seguida,
vou falar da combinação única que eles fazem entre realidade e irrealidade.
um operário encara a câmera e fala: “Filma esse lugar. Daqui a pouco não vai
sobrar mais nada”. Reiteradas vezes ao longo dos 551 minutos do filme, outros
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A construção da destruição: Jia Zhang-ke e a iminência da catástrofe - Lúcia Ramos Monteiro
Cinema mundial contemporâneo
todo um modo de vida. A frase citada acima parece ser uma síntese do projeto
Jia conta que esse projeto surgiu de maneira inesperada, quando ele se
preparava para rodar um curta sobre a primeira noite de um casal, que deveria
ser filmado inteiramente dentro de um quarto. Antes do início das filmagens, Jia
viajou para sua cidade natal, Fenyang. Ali, ficou impressionado pelas enormes
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A construção da destruição: Jia Zhang-ke e a iminência da catástrofe - Lúcia Ramos Monteiro
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
tempo nasce com Xiao Wu (1997) e reaparecerá em cada um dos filmes de Jia,
morrem acidentalmente, sonhos que se apagam... Isso faz com que Jason McGrath
difícil entre homem e mundo e revela-se através de um certo conflito de escala, entre
vilarejo às margens de Três Gargantas, que vive seus últimos dias antes de ser
inundada pela barragem. Still life foi lançado no Brasil sob o título Em busca
quanto para dizer que ainda há vida – o título original era completamente
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A construção da destruição: Jia Zhang-ke e a iminência da catástrofe - Lúcia Ramos Monteiro
Cinema mundial contemporâneo
personagem “O Pequeno”.
Na abertura de Still life, os passageiros do barco que leva a Fenyang são filmados
através das janelas, mas tão superexposta que se torna branca e quase invisível.
submersa, Sanming leva o olhar para a paisagem, sem dizer nada – como
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A construção da destruição: Jia Zhang-ke e a iminência da catástrofe - Lúcia Ramos Monteiro
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
uma camada branca e espessa atravessada pelo trem aéreo do parque. Essa
inserido em uma paisagem ou no mundo, mas diante dele, sem encontrar seu
Esse véu indica a existência de uma tensão entre fundo e figura, parecida
exemplo é o aborto de Plataforma, sem lágrimas, sem discussão, feito numa sala
atinge um ápice de emoção, algo raro no cinema de Jia. A poeira levantada pela
demolição acaba por ocupar todo o quadro, o que leva a pensar que, para Jia, o tal
véu talvez fosse sempre composto de uma nuvem de partículas interpostas entre
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A construção da destruição: Jia Zhang-ke e a iminência da catástrofe - Lúcia Ramos Monteiro
Cinema mundial contemporâneo
locações externas reais, atenção a como a população mais pobre vive uma época
de transição), o uso da película nos primeiros longas de Jia contribuiu para que a
mais a ligação entre Jia e Bresson (a admiração por Bresson é compartilhada com
Jia com o real. A discussão não é nova: na gravação digital, não há uma impressão
de tipo fotográfico ligando a imagem a seu referente e, por isso, o resultado seria
menos “real”.6 Claro que essa discussão poderia ser abreviada pela constatação
de que o digital tem dominado progressivamente as produções documentárias,
por várias razões. Equipamentos mais leve reduzem custos e permitem gravações
De fato, Jia Zhang-ke gravou muitas vezes sem autorização7 e seu projeto
de “filmar as coisas enquanto elas acontecem, com um mínimo de planejamento”,8
adoção do digital por Jia deve-se menos a uma comodidade do que uma escolha
estética verdadeira.
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A construção da destruição: Jia Zhang-ke e a iminência da catástrofe - Lúcia Ramos Monteiro
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
oferecida pelo suporte, de acordo com a percepção de Jia – abstração que, aliás,
efeitos especiais em Still life– um disco voador corta o céu; um prédio em ruínas
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A construção da destruição: Jia Zhang-ke e a iminência da catástrofe - Lúcia Ramos Monteiro
Cinema mundial contemporâneo
as aparições de Still life Xiao Shan volta funcionam não apenas para romper a
ilusão da transparência, mas também para dizer que todo realismo é parcial. Em
24 City, a situação se complica, uma vez que o filme é lançado sob o rótulo de
“documentário”.
locais (BERRY, 2009, p. 27). Essas escolhas têm uma dupla motivação. Em
pela realidade e a experiência de vida dos atores. “Atores não profissionais podem
entender de verdade o que eu tento exprimir em meu roteiro. Eles cresceram num
nos personagens e no contexto” (JIA, 2005, p. 198).A preferência por atores não
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A construção da destruição: Jia Zhang-ke e a iminência da catástrofe - Lúcia Ramos Monteiro
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
filmes. O caso principal é o de Zhao Tao, que foi bailarina e atua em Unknown
filme ao outro vai na direção oposta. Cria-se uma espécie de “star system” próprio,
ator é originário do lugar que inspira um certo filme, esse pode não ser o caso no
Pequim. Wang também era de Henan e, assim, o dialeto falado por ele conferia
(todos os demais falam o dialeto local do Shanxi) (BERRY, 2009, p. 28), o que
leva Michael Berry a dizer que o filme cria uma ilusão de autenticidade e uma
do dispositivo cinematográfico.
por atores e textos fictícios encenados por atores – sem que o estatuto de cada
Moscou (2008), de Eduardo Coutinho, são alguns dos exemplos mais recentes.
24 City privilegia a forma da entrevista e tem até perguntas do entrevistador fora
anônimas dos operários – e não deixam dúvidas de que se trata de uma farsa.
São elas Zhao Tao, a estrela de Jia, e Joan Chen, a Elizabeth Taylor chinesa,
189
A construção da destruição: Jia Zhang-ke e a iminência da catástrofe - Lúcia Ramos Monteiro
Cinema mundial contemporâneo
revela uma postura muito complexa em relação ao cinema, e nos faz questionar
Conclusão
e criar seu próprio “star system”, entre um forte elo com o real e o uso de efeitos
intermediária entre os dois polos dessas dualidades toma forma na própria figura
do véu, que ao mesmo tempo mostra e esconde. Véu formado por partículas de
190
A construção da destruição: Jia Zhang-ke e a iminência da catástrofe - Lúcia Ramos Monteiro
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Referências bibliográficas
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Editora PUC Rio, 2006.
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California: Stanford University Press, 2008.
WILLIS, H. New digital cinema: reinventing the moving image. Londres: Wallflower Press, 2005.
ZHANG, Z. Bearing witness: Chinese Urban Cinema in the “Era of Transformation” (Zhuanxing). In: ______.
(Ed.).The Urban Generation: Chinese cinema and society at the turn of the twenty-first century.Durham; Londres:
Duke University Press, 2007.
_____________________________________________________________
1. Trabalho apresentado no seminário “CINEMA, ESTÉTICA E POLÍTICA: A RESISTÊNCIA E OS ATOS DE CRIAÇÃO”. Este
artigo não teria sido possível sem o apoio do Colégio Doutoral Franco-Brasileiro e do Instituto de Pesquisa em Cinema e
Audiovisual (IRCAV) da Universidade Paris 3.
2. E-mail: [email protected]
191
A construção da destruição: Jia Zhang-ke e a iminência da catástrofe - Lúcia Ramos Monteiro
Cinema mundial contemporâneo
3. Zhang Zhen põe em perspectiva um certo sentimento de urgência com o qual realizadores chineses contemporâneos têm
filmado as transformações recentes no país: “Na história do cinema chinês, a intensidade dessa urgência em documentar
a transformação acelerada da fisionomia urbana e de expor, com os meios do cinema, as contradições sociais que a
acompanham, só se compara ao cinema urbano engajado, produzido em Xangai nos anos 1930” (ZHANG, 2007, p. 6).
(Nesta e nas demais citações, a tradução é de minha responsabilidade.)
4. Plataforma (2000), história de um grupo de dança que se transforma de acordo com as mudanças políticas dos anos 1980
e 1990, trabalha a nostalgia pelos anos de juventude. A trupe incorpora a passagem do comunismo maoísta à abertura
que se seguiu; no repertório, os antigos hinos cedem espaço a músicas importadas; no relacionamento, o espírito de grupo
dá lugar ao individualismo. Nas palavras de Jason McGrath, “enquanto o tempo do filme é vivido subjetivamente pelos
personagens como uma melancolia em relação a um futuro inatingível, o filme como um todo contém uma melancolia ligada
a um passado perdido – em particular a Fenyang dos anos 1980 e, de um modo mais amplo, à esperança perdida de toda
uma geração” (McGRATH, p. 151).
5. A influência de Bazin é, aliás, tema de um artigo sobre Jia Zhang-ke, escrito por David Li Lei-Wei (2008).
6. Willis (2005) aprofunda essa discussão em New digital cinema: reinventingthemovingimage, ao propor que o meio digital
substituiu a operação de transcrição, existente na filmagem em película, por uma operação de conversão.
8. Jia diz, por exemplo, que em seus roteiros “os diálogos são um esboço, com muitas possibilidades a serem desenvolvidas”
(JIA, 2005, p. 198). Em uma entrevista (FRODON, 2007, p. 58-59), o diretor afirma, a respeito de Still life: “Ninguém
poderia ter escrito antecipadamente a história que esse filme conta hoje, ainda que aquilo que eu inventei em três dias,
dentro de um quarto, já contivesse os principais elementos. Pode-se escrever o roteiro depois.” A entrevista concedida
a Burdeau(2005) vai na mesma direção: “A partir do local das gravações despontam sempre elementos que se revelam
importantes e que modificam o roteiro, embora eu não os tenha previsto. Passo muito tempo tentando expressar essas
novas coisas que aparecem. Tenho a sorte de trabalhar com uma equipe que me conhece bem. Dessa maneira, assim que
o imprevisto surge, todo mundo fica pronto para incluí-lo, sem que eu precise pedir.”
9. Em Lei-Wei (2008), lemos: “Foi durante as gravações de In publicque Jia Zhang-ke percebeu pela primeira vez que o digital
podia produzir não apenas um efeito de instantaneidade, de mobilidade ou de vitalidade, mas também uma imagem mais
abstrata do que a produzida analogicamente (...). Esse efeito de abstração do real é completamente explorado em Still life.”
192
Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático - Ludmila Moreira Macedo de Carvalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
hoje em dia, o melodrama é um gênero de difícil definição, uma vez que seus
referia-se a peças dramáticas onde música era utilizada para realçar o efeito
excesso; cujos temas revolvem uma polaridade moral entre o bem e o mal.
Ao longo dos anos, o termo passou a ser usado de forma pejorativa para
193
Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático - Ludmila Moreira Macedo de Carvalho
Cinema mundial contemporâneo
gênero, The melodramatic imagination, Peter Brooks (1976) não faz sequer
fato de não existir nos idiomas orientais um sinônimo exato para a palavra
194
Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático - Ludmila Moreira Macedo de Carvalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
diretores da quinta geração chinesa, como Chen Kaige, Zhang Yimou e Tian
uma teoria definitiva do que seria o “melodrama asiático” – até porque uma
mas na natureza desses dilemas, nos modos como são construídos e representados
2000, Amor à flor da pele foi caracterizado por diversas instâncias – tanto críticas
195
Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático - Ludmila Moreira Macedo de Carvalho
Cinema mundial contemporâneo
Cinema Dmetri Kakmi escreve: “Amor à flor da pele é um filme misterioso, elíptico,
se inspirou na obra de Lean para fazer Amor à flor da pele, e essa inspiração se
Breves encontros
Noel Coward, com roteiro baseado numa peça de sua autoria, Breve encontro
foi lançado na década de 1940, uma era de ouro do cinema britânico. A história
narra o encontro inesperado entre Laura (Celia Johnson), uma dona de casa
casada e com dois filhos, e Alec (Trevor Howard), um médico também casado e
com filhos, numa estação de trem em Londres. Laura tem um cisco no olho e o
médico se oferece para auxiliá-la – a partir deste breve encontro, os dois passam
quando Alec se declara apaixonado e Laura se vê, pela primeira vez, mentindo
para o marido e as amigas. O caso nunca é consumado, uma vez que Laura não
Mudando de Londres dos anos 1940 para Hong Kong dos anos 1960, temos
naquela que seria sua trilogia dos anos 1960 (que começa com Dias selvagens
jovens casais alugam quartos em apartamentos vizinhos até que o Sr. Chow (Tony
196
Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático - Ludmila Moreira Macedo de Carvalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
comem juntos, escrevem histórias de artes marciais e ouvem música num quarto
tempo, porém, o sentimento romântico toma conta dos dois, que, mantendo seus
leva a Sra. Chan. Em ambos os filmes os casais passam muito tempo juntos e
ali além deles, como se o mundo não existisse para além daquela situação. Vale
dizer que esses espaços, mesmo os públicos, são não apenas desertos, mas
do realismo, esses cenários são puramente imaginários, eles estão ali para
de trem, o que vemos são suas sombras disformes projetadas na parede, como
se eles fossem dois criminosos fugitivos. Mais tarde, quando Laura decide ir ao
apartamento de Alec e é surpreendida por um amigo, ela sai correndo pelas ruas
da cidade, que ganham tons opressivos, realçando ainda mais a humilhação que
Não apenas as ruas, mas os interiores deste filme também são todos
197
Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático - Ludmila Moreira Macedo de Carvalho
Cinema mundial contemporâneo
o que vai colocar os inquilinos em permanente contato físico: em uma das belas
cenas iniciais vemos a “dança” que eles precisam fazer para entrar e sair de um
dos personagens. Os protagonistas de Amor à flor da pele estão tão presos nesse
não necessariamente visíveis, mas não menos reais. De fato, essa questão moral
está presente nos dois filmes: em ambos, os casais não conseguem consumar o
cenas nas quais as mulheres vão até o quarto de hotel, mas não têm coragem de
consumar o caso. “Não seremos como eles”, diz a Sra. Chan repetidas vezes em
Amor à flor da pele, como se estivesse lembrando a si mesma que é mais forte e
virtuosa que o marido. Nesse contexto, qualquer prazer que resulte dos encontros
com os pares é rapidamente substituído pela culpa e pela vergonha. Num dado
para descobrir que seu filho havia batido a cabeça enquanto ela esteve ausente,
final Alec se muda para a África e o Sr. Chow vai para Singapura).
198
Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático - Ludmila Moreira Macedo de Carvalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
como um bom homem, atencioso (ele ampara a esposa que chega visivelmente
ele não parece se importar quando a esposa decide contá-lo que encontrou um
estranho para o almoço e foi com ele ao cinema. Fred prefere se ocupar com
que pode ser interpretada pelo espectador como indiferença ou apatia, é não
obstante o que alimenta a culpa de Laura, é o que faz seu desejo por outro
mostrar seus rostos: deles são exibidos apenas as costas, um perfil ou outra
de que eles estão traindo seus respectivos cônjuges, de modo que não se
pode antipatizar ou simpatizar com eles. Essa estratégia reflete uma diferença
Chowe a Sra. Chan, sem qualquer espaço para que o espectador sequer se
preocupe com os outros. De fato, os infiéis jamais serão punidos, não haverá
mas não explicitados, está tão presente na trama. Em boa medida, esta
199
Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático - Ludmila Moreira Macedo de Carvalho
Cinema mundial contemporâneo
estratégia de utilizar uma relação constante com o que está fora de quadro
ilustra a relação dos próprios protagonistas com o que não é visto e não é dito
Isso nos leva a outro ponto de análise, que é a condução narrativa dos
dois filmes. A narrativa de Breve encontro é conduzida por Laura, que introduz
personagem, já que não apenas o discurso verbal (o que ouvimos) é gerado por
ela, como também o são as imagens (o que vemos), que são suas lembranças.
Essa condução narrativa feita por uma personagem principal proporciona um
de um personagem que dá sua versão dos fatos em voz off está presente em
todos os filmes de Wong Kar-wai, menos em Amor à flor da pele. Neste filme em
oferece essa espécie de acesso direto aos seus pensamentos e emoções a todo
o tempo. Essa ausência da expressão verbal nos dá uma pista importante para
Estética da sutileza
200
Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático - Ludmila Moreira Macedo de Carvalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
dito com palavras. “Um sistema depende do outro, signos verbais indicam
dos gestos. Os signos gestuais são por sua vez exagerados(...), porque o
ou “não podia suportar a vergonha, a culpa, o medo”, ditas por Laura em Breve
sobretudo nos gestos, mas estes são extremamente sutis e minimalistas, como
narradora maior, mas uma instância que não é totalmente neutra nem transparente
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Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático - Ludmila Moreira Macedo de Carvalho
Cinema mundial contemporâneo
por exemplo, quais situações são reais e quais são hipotéticas ou imaginárias, ou
o que a Sra. Chan respondeu ao convite do Sr. Chow para fugir com ele. O final
do filme, tão enigmático quanto todo o resto, dá inclusive uma sugestão de que
ela teria tido um filho com ele, obrigando o espectador a completar importantes
os detalhes são visivelmente importantes, aqui eles não operam para sublinhar
pele é composta por dois tipos de músicas: a trilha instrumental arranjada por
202
Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático - Ludmila Moreira Macedo de Carvalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
suave, sem deixar de ser sentimental. A duração do tema, sua qualidade rítmica
encontros e desencontros. Isto fica evidente, por exemplo, na cena que mostra
quizás, quizás provoca um certo estranhamento, uma vez que não apresenta uma
posição que se estabelece entre personagens que pouco ou nada revelam sobre
seus sentimentos com a trilha sonora que exacerba justamente sua qualidade
personagens só são capazes de insinuar com gestos e olhares. Não é por acaso
que uma canção como Quizás, quizás, quizás aparece num momento de profundo
203
Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático - Ludmila Moreira Macedo de Carvalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
(o que de fato aconteceu entre eles? O que aconteceria se eles ficassem juntos?).
Conclusão
mas que, na realidade, nunca havia sido analisado rigorosamente sob a chave
podemos dizer que Amor à flor da pele é um melodrama, devemos fazer algumas
uma estratégia mais sutil, mais recatada, na qual os elementos não verbais são
de fato mais expressivos do que o discurso explícito, e que preza por um certo
e isolamento de ambos.
a partir das quais o melodrama aparece e torna-se popular. Alguns críticos, como
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Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático - Ludmila Moreira Macedo de Carvalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Thomas Elsaesser (1991), acreditam que o melodrama nasce sempre num contexto
identidade social gerada pelo fim da Segunda Guerra e a Guerra Fria. Nos
isso fica evidente nos filmes analisados, uma vez que em ambos o melodrama
modo como esses temas são retratados em cada filme, as diversas maneiras
conceito não foi originalmente criado, procurando verificar seus limites e benefícios
205
Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático - Ludmila Moreira Macedo de Carvalho
Cinema mundial contemporâneo
Referências bibliográficas
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Dias selvagens (Days of being wild/ Afeizhengchuan). Wong Kar-wai.Hong Kong, 1990.
206
Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático - Ludmila Moreira Macedo de Carvalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
_____________________________________________________________
4. Vale lembrar que são dois objetos – uma bolsa e uma gravata – que “entregam” o caso dos amantes.
5. Vale notar que há uma relação contextual deste tipo de música com a narrativa do filme, já que a história se passa na
década de 60, época em que a música latina era de fato bastante popular na China. Ainda assim, o fato de a música ter
origem extradiegética não só facilita como encoraja uma interpretação expressiva em detrimento de uma função puramente
contextual.
207
Documentário
As imagens, os seus circuitos e modalidades expositivas: o caso do cinejornal Ita-Jornal – Porto Alegre, 1927 - Alice Dubina Trusz
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Jornal também foi objeto de interesse da imprensa diária (Correio do povo e Diário
209
As imagens, os seus circuitos e modalidades expositivas: o caso do cinejornal Ita-Jornal – Porto Alegre, 1927 - Alice Dubina Trusz
Documentário
A Ita-Film e o Ita-Jornal
suas produções (PFEIL, 1995, p. 28). Nos primeiros meses de 1927, divulgou-
se que a empresa se preparava para filmar Amor que redime, drama romântico
Kerrigan e Tullio na equipe técnica e também com o projeto do filme ficcional, que
Cia. era uma produtora privada independente, que possuía estúdio e laboratórios
O seu primeiro produto foi uma “película natural”, o Ita-Jornal, que foi
que “focalizava diversos aspectos da Capital”, havia sido produzido “com muita
210
As imagens, os seus circuitos e modalidades expositivas: o caso do cinejornal Ita-Jornal – Porto Alegre, 1927 - Alice Dubina Trusz
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
arte, possuindo [...] uma fotografia de nitidez perfeita”,10 que nada ficava a dever
seria simplificada, mas ganharia o acréscimo de dois novos temas: “Uma visão
futurista (humorismo) – Passeio em automóvel 120 kilometros a hora pela rua dos
Andradas (inédito).”13
abrindo o programa das quatro sessões do dia (14h30, 16h, 19h15 e 21h) como
211
As imagens, os seus circuitos e modalidades expositivas: o caso do cinejornal Ita-Jornal – Porto Alegre, 1927 - Alice Dubina Trusz
Documentário
espaço que já era reservado aos cinejornais nacionais e estrangeiros nas sessões
dos cinemas. Ele continuou sendo exibido durante esse mês e o seguinte, mas em
torneio desportivo havia figurado entre os temas filmados e que teria outra de
moldes da edição anterior, e foi exibido a seguir em outras salas. Ele trazia
confirmar o sucesso alcançado pela primeira exibição” (do Ita-Jornal n. 1). Sobre
os conteúdos, informou que a citada missa havia sido rezada na Igreja do Senhor
dos Passos e que a Banda Municipal, criada pelo intendente Octavio Rocha,
também que as imagens mostravam o desfile “dos Tiros 4, 251 e 318, Colégio
212
As imagens, os seus circuitos e modalidades expositivas: o caso do cinejornal Ita-Jornal – Porto Alegre, 1927 - Alice Dubina Trusz
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
20/09, a Banda Municipal deu concerto à tarde no arrabalde operário de São João,
muito raro que um filme ficasse em cartaz por dois dias seguidos, especialmente
07/12, no cinema Central, mas sem a repercussão das anteriores. Até 22/11,
seja, havia uma significativa oferta de produções locais em cartaz, uma onda que
na imprensa a partir de 22/11 pela Ita-Film era outra produção sua, um filme
213
As imagens, os seus circuitos e modalidades expositivas: o caso do cinejornal Ita-Jornal – Porto Alegre, 1927 - Alice Dubina Trusz
Documentário
geral”, na mesma sala, no domingo, 12/12, mas em sessão única, horário não
que terminou com um acidente fatal. Ele trazia imagens de “belíssimos quadros
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nos anúncios foi aquele do acidente do piloto de corridas, que foi divulgado de
um auto lançado à fantástica velocidade ser lançado a uma altura fenomenal e vir
uma empresa local especializada no setor, a United States Rubber Export & Co.
nem sequer foram referidas pela imprensa. E isso muito provavelmente porque
única incluída nas cinco edições do Ita-Jornal conhecidas, uma legítima “cavação”.
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produzidas e exibidas.
dia junto aos altos poderes, arranjando, isto é, ‘cavando’ empregos ou grandes
que, tendo comprado uma máquina cinematográfica, vive pelas ruas e por todos
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problema é que tais produções careciam de qualidade “artística”, pois aos seus
da sociedade e profissionais.
“O cavador”, onde o termo foi tratado em seu sentido amplo, observando-se que
burguês pacato, fazendo com eles o que se chamam ‘comidas’.”30 Esse sentido
pejorativo fica evidente em uma ilustração de humor intitulada “Os nossos
gravura, são representados onze casos de “cavação”, que vão desde mendigos
que usam crianças para obter esmola até comissões que organizam subscrições
cinema Guarany. Segundo os anúncios, era um filme “para rir mesmo de verdade”,
“cavando” um casamento com uma moça rica.32 O título recebido pela produção em
Porto Alegre (e talvez no Brasil) traduzia para os espectadores locais uma prática
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que também era popular nos Estados Unidos, e, igualmente, não se restringia ao
documental sob o termo depreciativo “cavação”, cujo uso parece ter se restringido
mundo, visual, num contexto em que ainda não havia televisão e o rádio
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por uma empresa local tinha certamente uma importância singular. Tanto é que,
de uma verdadeira indústria de filmes, indústria essa que viria beneficiar o Rio
alegrense, o Recreio Ideal-Jornal, de 1912, talvez por ter sido produzido por
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político, cultural e empresarial local, o que por sua vez produziria uma opinião
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distribuição e a exibição.
ele é percebido e homenageado como indivíduo, com a missa pela sua saúde,
que dotou a cidade antes que o seu mandato fosse interrompido precocemente
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de forma exemplar no evento Festa dos Estudantes na Vila Nova, que foi
organizado pela classe estudantil, mas recebeu favores do poder público (meios
Ou seja, mesmo que o Ita-Jornal não tenha tido por intuito explícito
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Referências bibliográficas
BERNARDET, J.-C. Historiografia clássica do cinema brasileiro: metodologia e pedagogia. São Paulo: Annablume,
1995.
CHARTIER, R. O mundo como representação. Estudos avançados, São Paulo, v. 5, n. 11, p. 173-191, 1991.
GAUDREAULT, A. El cine de los primeros tiempos situado y mantenido a distancia... Archivos de la filmoteca,
Valência, n. 28, p. 72-79, feb., 1998.
GOMES, P. E. S. A expressão social dos filmes documentais no cinema mudo brasileiro (1898- 1930). In: CALIL,
C. A.; MACHADO, M. T. (Org.). Paulo Emilio: um intelectual na linha de frente. São Paulo: Brasiliense; Rio de
Janeiro: Embrafilme, 1986.
LE GOFF, J. Documento/Monumento. In: ENCICLOPÉDIA Einaudi. Vol. 1. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1984.
MENESES, U. T. B. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares.
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 23, n. 45, p. 11-36, 2003.
PFEIL, A. J. Cinematógrafo e o cinema dos pioneiros. In: BECKER, Tuio. (Org.). Cinema no Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: Unidade Editorial/PMPA, 1995. p. 17-29. (Cadernos Porto & Vírgula, 8)
Jornais
Correio do povo, 1911, 1912 e 1927; Diário de notícias, 1927; A federação, 1911.
Revistas
Kodak, 1912; Kosmos, 1926; Mascara, 1927 e 1928; A tela, 1927
Filmes
Ita-Jornais n. 2, 4 e 5
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As imagens, os seus circuitos e modalidades expositivas: o caso do cinejornal Ita-Jornal – Porto Alegre, 1927 - Alice Dubina Trusz
Documentário
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1. Comunicação apresentada no seminário temático Cinema no Brasil - dos primeiros tempos à década de 1950.
2. E-mail: [email protected]
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3. A imprensa da época fornece informações detalhadas sobre as edições n. 1, n. 2, n. 4 e n. 5 do Ita-Jornal. Porém, não há
nenhuma referência à edição n. 3. Fazem parte do acervo da Cinemateca Brasileira as edições n. 2, 4 e 5, sendo que a
edição n. 2 consta como sendo a de n. 3 no letreiro do próprio filme.
7. Cinearte, Rio de Janeiro, 25/05/1927, p. 5, “Thomaz de Tullio deixará Campinas?”, por Pedro Lima (segundo pesquisa e
transcrição de Jesus Pfeil).
8. Eram seus proprietários Armando R. de Oliveira, Melchíades Soares e Antonio Gageiro, sendo que este último havia sido
um dos proprietários da Pindorama-Film.
11. Nesse momento, faziam parte das sessões de cinema os jornais da FOX, Pathé Jornal, Cine-Jornal Brazil (RJ), Diamond
Jornal (RJ?), Universal Jornal e Jornal da UFA.
17. Correio do povo, Porto Alegre, 18/10/1927, e Diário de notícias, Porto Alegre, 18/10/1927.
18. Produção da Pampa-Film, de Walter Medeiros, era um “film rio-grandense em 7 partes”. Diário de notícias, Porto Alegre,
11 e 17/11/1927.
19. Produção da Gaúcha-Film, de Eduardo Abelin, era um “cine-drama” “em 5 longas partes” ou “6 partes”. Diário de notícias,
Porto Alegre, 06, 07 e 10/11/1927. A sua exibição era acompanhada do curta-metragem Torres, “film natural” com cenas da
praia homônima, filmadas pelo mesmo “operador” de O Castigo do orgulho, José Piccoral.
20. Documentário realizado pela Ita-Film por encomenda da “companhia filmadora” Quadrhisreg, de São Leopoldo. Diário de
notícias, Porto Alegre, 25/11 e 04/12/1927. O filme, composto de cinco partes, estreou em São Leopoldo em 25/11 com
grande sucesso e direito à reprise.
21. Segundo o Correio do povo, Porto Alegre, 10/12/1927, a renda da sessão seria empregada na construção de uma escola
para crianças pobres e num prédio para os filhos do automobilista morto no acidente que marcou a competição apresentada
no filme.
22. Diário de notícias, Porto Alegre, 04 e 07/12/1927; Correio do povo, Porto Alegre, 07/12/1927.
27. A revista Kosmos, publicada em Porto Alegre em 1926, foi o primeiro periódico local que teve uma seção de crítica de
cinema, intitulada “Nos cinemas do centro”, na qual eram comentados individualmente os filmes em cartaz na cidade,
avaliando-os e atribuindo-lhes cotações como “medíocre, sofrível, bom, muito bom e ótimo”. A coleção da revista, que
pertencia ao acervo da Biblioteca Pública do Estado, foi roubada em 2007.
28. Mascara, Porto Alegre, n. 1, ano 10, 1927, seção “A Sétima Arte”.
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Elementos estilísticos da trilogia Qatsi - André Bonotto
Documentário
Introdução
(2002). Essas narrativas não utilizam palavra ou fala para se articular. Tampouco
e sua identificação e desenvolvimento, através dos três filmes, nos permite melhor
Dissociação imagem-música
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Elementos estilísticos da trilogia Qatsi - André Bonotto
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Tratemos primeiro das imagens. Nos dois primeiros filmes, a maior parte
das imagens foi gerada através do procedimento de a equipe sair com a câmera
A maior parte das imagens desses dois primeiros filmes são, portanto,
humanas). Visto que o tema que inspira os projetos desses filmes é um tanto
“aberto” (as “transformações nos modos de vida”), ocorre que nenhuma locação/
amplo e genérico, dos “modos de vida”. A maior parte das ações ou situações
“esquema sensório-motor”.3
Naqoyqatsi). Além das longas durações de cada faixa musical, podemos notar a
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Elementos estilísticos da trilogia Qatsi - André Bonotto
Documentário
trilhas musicais, junto às imagens, nos três filmes), o que faz com que a música
que dá forma e contorno aos inícios, aos desenvolvimentos e aos finais de cada
imagem; para além dessa ausência, temos a presença do continuum musical, que
Essas narrativas criam, dessa forma, uma verdadeira imagem audiovisual (nos
sim rigorosa (DELEUZE, 1990, p. 308). Não é casual que os principais sons
apresentado, daí sua irrupção no tecido sonoro. Algo parecido ocorre com
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Elementos estilísticos da trilogia Qatsi - André Bonotto
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
por equipamentos os mais atuais (em 2002, quando o filme foi finalizado) são
por toda a linhagem musical “clássica”. Ocorre que há aqui uma relação com o
ao universo apresentado no filme). Ela está associada a esse impulso, que pode
aceleradas da cidade).
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Elementos estilísticos da trilogia Qatsi - André Bonotto
Documentário
ocupa uma dimensão fundamental: este filme aborda um “modo de vida acelerado”
tem então importância central para as narrativas da trilogia Qatsi. Gilles Deleuze
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Elementos estilísticos da trilogia Qatsi - André Bonotto
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
os movimentos em conflito.
alguma ação; não o o fazemos nem mesmo em Powaqqatsi, filme que apresenta
quantidade razoável de tomadas de ações de trabalho, pois neste caso ocorre que
para a estrutura desses filmes:9 uma formação maior que apresenta uma grande
se encadear, havendo antes uma relação não linear, não sucessiva, mas de
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Elementos estilísticos da trilogia Qatsi - André Bonotto
Documentário
tomada de uma mãe acompanhada dos filhos, que olha vidrada as emissões
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Elementos estilísticos da trilogia Qatsi - André Bonotto
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
midiática irrompe na narrativa de Naqoyqatsi com toda a sua força, num infindável
das imagens eletrônicas quando elas atingiam seu mais alto potencial energético:
tempo as imagens já não estão mais presas aos monitores em seu transcorrer.
“a tela não é mais uma porta-janela (por trás da qual...), nem um quadro-plano
(no qual...), mas uma mesa de informações sobre a qual as imagens deslizam
deslizando como “dados”, umas sobre as outras. O próprio diretor afirma: neste
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Elementos estilísticos da trilogia Qatsi - André Bonotto
Documentário
Referências bibliográficas
BONOTTO, A. Trilogia Qatsi: visões e movimentos de mundo [Dissertação de Mestrado]. Campinas: Universidade
Estadual de Campinas - Instituto de Artes, 2009.
_____. A imagem-tempo. Tradução de Eloisa de Araujo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1990.
_____. Carta a Serge Daney: otimismo, pessimismo e viagem. In: Conversações (1972-1990). Tradução de Peter
Pál Perlbart. São Paulo: Ed. 34, 1992, p. 88-102.
ADORNO, T. W.; EISLER, H. Ideas para una estética. In: El cine y la música. 2a. ed. Tradução de Fernando
Montes. Madrid: Editorial Fundamentos, 1981, p. 83-111.
MACDONALD, S. Godfrey Reggio. In: A critical cinema 2. Interviews with independent filmmakers. Berkeley:
University of California Press, 1992, p. 378-401.
_____. Godfrey Reggio: Powaqqatsi. In: Avant-garde film: motion studies. New York: Cambridge Univ. Press,
1993, p. 137-146.
TEIXEIRA, F. E. A propósito da análise de narrativas documentais. In: CATANI, A. M.; FABRIS, M.; GARCIA, W.
(Orgs.). Estudos Socine de Cinema. São Paulo: Nojosa Edições, 2005, p. 119-126.
_____________________________________________________________
1. Trabalho apresentado na mesa “Questões Estilísticas do Documentário”. Agradecemos o suporte fornecido pelo Programa
de Pós-Graduação em Multimeios do Instituto de Artes da Unicamp, que nos permitiu apresentar este trabalho.
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Elementos estilísticos da trilogia Qatsi - André Bonotto
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
3. Gilles Deleuze formula o conceito do esquema sensório-motor (no cinema) para tratar do desenvolvimento narrativo
tradicional, de base dramática, no qual há personagens agindo e reagindo a situações. Nesse tipo de narrativa, dita clássica,
veríamos “imagens privilegiadas” ou “centros de indeterminação” (os personagens) que sofrem a ação de outras imagens,
quaisquer que sejam, e respondem a elas. Daí a formulação do sensório-motor: a uma ação sofrida, “sentida”, sucede-
se uma “resposta”, uma posterior re-ação. O conceito é trabalhado principalmente ao longo de A imagem-movimento
(DELEUZE, 1985), e sua “superação” (ou seus limites) é explorada em A imagem-tempo (DELEUZE, 1990).
4. Daí podermos nos referir a uma “construção em mosaico” desses filmes. O diretor Godfrey Reggio se refere à forma do
mosaico ao comentar sobre a estrutura desses dois primeiros longas, notando que cada um desses mosaicos é composto
de acordo com um princípio diferente: estrutura de unidade pela padronização industrial (Koyaanisqatsi) versus estrutura
de unidade pela heterogeneidade das formas de vida (Powaqqatsi) (Cf. MACDONALD, 1992, p. 388). A intuição dessa
construção em mosaico também aparece, por exemplo, na parte traseira da capa dos DVDs de Koyaanisqatsi e Powaqqatsi
distribuídos no Brasil pela MGM, através da forma de agrupamento de dezenas de pequenos fotogramas de cada filme.
5. Instrumentos que compõem os estilos conhecidos como World Music ou Ethnic Music.
6. Banda composta basicamente por instrumentos de sopro, como o trompete, o trombone, a tuba etc., e instrumentos de
percussão, como a caixa, os pratos, o triângulo etc.; além disso, há no tecido sonoro da narrativa de Naqoyqatsi um
destaque para o violoncelo, executado por Yo-Yo Ma.
7. O trabalho de criação musical de Philip Glass nestes filmes se deu de forma simultânea e dialógica com a criação das
sequências visuais, isto é, foi “integrado em todo o processo” (MACDONALD, 1992, p. 397-398). Esse tipo de processo
criativo foi elogiado pelo compositor como “a melhor maneira de unirmos imagem e música”. Glass comenta esse processo
da seguinte forma: “Nos acostumamos a trabalhar interativamente. Ele mostrava as imagens. Eu mostrava a música.
Editávamos. Eu recompunha. Encontrávamos-nos. Víamos de novo. Revíamos o processo” (Cf. seu depoimento presente
no material audiovisual “A essência da vida”, que consta como extra no DVD de Koyaanisqatsi, distribuído no Brasil
pela MGM). Em importante texto publicado pela primeira vez em 1947, nos Estados Unidos, Theodor Adorno e Hanns
Eisler (1981) já apontavam para esse tipo de relação no processo de realização cinematográfica, o que chamaram de
“composição planificada” (p. 109-110), como indício de um caminho prolífico a ser seguido para a realização, no cinema,
de experimentos musicais realmente criadores, e não apenas subservientes às necessidades mercadológicas (p. 110).
8. Observam essa “descolagem” tanto Godfrey Reggio quanto Philip Glass. Reggio diz enxergar as narrativas desses filmes
como estruturadas “triadicamente”: “Há a imagem, há a música e há o espectador” (MACDONALD, 1992, p. 389-390).
Glass, por sua vez, diz o seguinte: “É questão de determinar a distância entre imagem e música. Essa visão é diferente.
Por exemplo, num comercial de refrigerante ou de cerveja você vê o que acontece, o som da lata, ou a música... acontecem
superpostos. Não há espaço entre elas. Não deve haver espaço, pois essa é a característica da propaganda. Não tem
espaço para o espectador. (...). Começando por esse exemplo, que acontece diariamente, é só ligar a tv. (...) Digamos que
haja uma distância entre imagem e música. E quando o espectador passa desse limite, ele personaliza o acontecimento.
É aí que se torna algo dele. A transação entre música e imagem ocorre quando o ouvinte atravessa o espaço entre uma e
outra” (Cf. seu depoimento em “A essência da vida”. Ver nota anterior).
9. O diretor afirma que “em Powaqqatsi, a intenção era criar um mosaico, um monumento, um momento congelado da
simultaneidade da vida, tal como ela existe num só instante ao redor do Hemisfério Sul” (MACDONALD, 1992, p. 388, grifo
nosso).
10. Utilizaremos a qualificação de midiática ou eletrônica para as imagens quando pretendermos, por um lado, ressaltar o fato
de sua transmissão para a sociedade ter sido feita em escala massiva ou, por outro lado, ressaltar o fato de sua geração e
circulação terem se dado através dos equipamentos eletrônicos (especialmente a televisão).
11. Para maiores informações a respeito da divisão das sequências nos filmes da trilogia Qatsi, consultar Bonotto (2009).
12. “No filme Naqoyqatsi, a locação em si é uma imagem. Então, transpomos para o virtual (...)”. Depoimento presente no
material audiovisual “O Impacto do Progresso”, disponível como extra no DVD de Powaqqatsi distribuído no Brasil pela
MGM.
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Narrativa indireta livre em Serras da desordem e 500 almas - Francisco Elinaldo Teixeira
Documentário
500 almas (Joel Pizzini, 2007), a partir dos materiais e dos modos de composição
dúvida, risco e instabilidade que se mantém como uma espécie de horizonte que
sentido, de tal modo que não há estilística documental que se sustente a não ser
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Narrativa indireta livre em Serras da desordem e 500 almas - Francisco Elinaldo Teixeira
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composição que lhe dão uma feição e consistência das mais híbridas. Mesmo
Serras da desordem e 500 almas são dois filmes que parecem estranhos
desejo e empenho de ainda buscar nos confins, na última fronteira, algo fora
em direção a paisagens que, embora surradas pela larga utilização de que foram
objeto ao longo da história documental, parecem ainda manter uma certa aura
daqueles espaços iniciáticos, com fronteiras de contornos fugidios, que nos fazem
acalentar a ideia de um mundo/natureza anterior ao homem e à cultura. Embora
palhas e acendendo uma fogueira no meio da floresta; a ele vem se juntar o grupo de
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Narrativa indireta livre em Serras da desordem e 500 almas - Francisco Elinaldo Teixeira
Documentário
seguir por uma inquietação que aos poucos vai ganhando contornos dramáticos,
para sobrepor e assim estratificar uma dupla temporalidade: uma mítica, dos
Esse primeiro bloco de imagens que abre o filme, quando nada ainda
sabemos quem é aquele índio, seu grupo, o devir que lhes aguarda. No entanto,
tudo já aconteceu. É o que o bloco final de planos vem revelar, com o fora de
(o índio que vimos no início, com seu grupo, e depois, em várias trajetórias
recolhendo seu impacto nas vidas infames de seus agentes. A indexação do filme
Orlando Senna, que desde o seu lançamento (oficialmente, apenas em 1981) gerou
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Narrativa indireta livre em Serras da desordem e 500 almas - Francisco Elinaldo Teixeira
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índio que escapou do massacre nos anos de 1970 e que também reapresenta tais
pausas, lapsos, ambivalências e hesitações que nos dão uma imagem sonora
parte da indagação “como chegamos a ser o que somos?” ou “quem somos nós?”,
dez anos após a qual retorna à aldeia dos Awá Guajá (LINS; MESQUITA,
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Narrativa indireta livre em Serras da desordem e 500 almas - Francisco Elinaldo Teixeira
Documentário
trás, ele parte partindo para uma nova viagem que atualizará essa memória-
um grupo massacrado, mas uma etnia inteira dada como extinta desde os
loja por uma freira. O desafio torna-se, então, retirar da virtualidade essa
composição e, particularmente, com atos de fala que o tempo todo não param
dessa dispersão que é a evocação, reiteradas vezes, de retorno a uma ilha como
anos de 1980); uma inscrição de sua existência no tempo histórico (no século XIX,
filológico (a partir da qual uma linguista pôde aferir uma grande singularidade
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Narrativa indireta livre em Serras da desordem e 500 almas - Francisco Elinaldo Teixeira
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dos rios ela se ergue até o alto dos céus; por vezes, se fixa num detalhe das
fora de óptica a que tinham sido relegados, o filme restitui um novo começo ao
imagem e som, em que o que se diz é aquilo que se vê, ou então o relevo dado
função da criação de sentido, afinal, por que não dispor dele? Contemporânea
fertilidade que ela pode gerar ganha relevo em várias estilísticas da atualidade.
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Narrativa indireta livre em Serras da desordem e 500 almas - Francisco Elinaldo Teixeira
Documentário
estranhos numa configuração espaço temporal que tem dado tanta ênfase e
equívoco, no entanto, pensar que esse “outro” que constitui a substância desses
dois documentários estaria tão distante assim, que ele tivesse tão somente a
o objetivo e o subjetivo, nas convenções do cinema, não têm tal consistência – eles
dizem respeito muito mais aos modos de olhar, tanto da câmera/cineasta quanto
da personagem. Foi em grande parte por conta de mudanças nesse circuito, nas
híbrida que seja sua consistência, isso não se deu pela facilidade com que pode
distinguir entre aquele que sabe e aquele que é objeto de saber. Suas possibilidades
feição de uma narrativa indireta livre, livre das certezas de se saber quem se é
e quem se filma, livre desse fardo cientificista, dessa herança cartesiana que se
Serras da desordem e 500 almas, como tantos outros de pelo menos duas
décadas para cá, operam nesse registro de uma liberdade narrativa, estilística,
em grande parte catalisadora do relevo e da audiência observáveis na atualidade.
do processo de criação, mas se abrem para uma lógica de incerteza que torna
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Narrativa indireta livre em Serras da desordem e 500 almas - Francisco Elinaldo Teixeira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
tutela incômodo exposto nos procedimentos da Funai, e que não se pode atribuir
Em 500 almas é a irrealidade de uma etnia inteira dada como extinta e que
o filme traz novamente à luz, por força de um denso circuito de imagens visuais
e sonoras que se combinam das maneiras mais diversas. Não poucas vezes,
operações que vão desde os planos de uma canoa singrando o rio, uma revoada
A sensação que passam é a de que viram alguma coisa grande demais, de que
foram afetadas por algo que lhes ultrapassa, de que, imersa numa espécie de
cotidiano chapado, aquela existência fora da “ilha” que lhes pertencia de fato
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Narrativa indireta livre em Serras da desordem e 500 almas - Francisco Elinaldo Teixeira
Documentário
não faz nenhum sentido. Isso tudo logo muda quando, por exemplo, uma das
do que pensava antes como condição para poder pensar de outra maneira. Não é
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Narrativa indireta livre em Serras da desordem e 500 almas - Francisco Elinaldo Teixeira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Referências bibliográficas
ANTONIONI, M. O fio perigoso das coisas e outras histórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
LINS, C.;MESQUITA, C. Filmar o real: sobre o documentário brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Zahar,
2008.
_____________________________________________________________
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O documentário animado e a leitura não-ficcional da animação - Jennifer Serra
Documentário
situado na fronteira entre os cinemas de ficção e não ficção e traz aos estudos
do meio questões referentes tanto aos limites dessa fronteira como às possíveis
destaque em festivais, como Ryan (Chris Landreth, 2004), Oscar de melhor curta-
metragem de animação em 2004, Valsa com Bashir (Ari Folman, 2008), Globo de
não é recente. O pesquisador Paul Wells (1998, p. 28) utiliza o termo “animação
com tendência documental”, por exemplo, para referir-se à animação que não
com a realidade, como o filme The Sinking of the Lusitania (Winsor McCay,
30. O filme Trade Tattoo (Len Lye, 1927), por exemplo, foi realizado quando
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O documentário animado e a leitura não-ficcional da animação - Jennifer Serra
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
o animador neozelandês Len Lye trabalhava na GPO Film Unit, dirigida por
clássico foi mantida no National Film Board do Canadá, onde Grierson fundou
baseadas em fatos reais. Para compreender o tipo de filme a que estamos nos
que receba essa narrativa como asserção sobre o mundo” (RAMOS, 2008, p. 22,
grifo do autor). Bill Nichols (2005, p. 69), por sua vez, afirma que, diante de um
documentário, pressupomos seu status de não ficção e a referência que ele faz
sobre o mundo em que vivemos, sendo que essa relação com o mundo histórico
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O documentário animado e a leitura não-ficcional da animação - Jennifer Serra
Documentário
quando ele reivindica uma abordagem do mundo histórico. Não é, portanto, o uso
o estatuto do filme, mas, como afirma também Noël Carroll, “a distinção entre
sobre o mundo real através de estratégias narrativas que são particulares desse
pertence somente a um dos gêneros, haja vista que ele é, ao mesmo tempo,
documentário animado:
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O documentário animado e a leitura não-ficcional da animação - Jennifer Serra
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
na atmosfera de uma situação vivida, mas que somente podem ser sentidos, e
um relato objetivo sobre o real. Essa tensão também pode estar associada a uma
ao mesmo tempo, uma produção artística. Segundo Brian Winston (2008, p. 7),
por muito tempo acreditou-se na fotografia como fonte de acesso objetivo ao real,
científico, o que mais tarde ocorreu também com a câmera cinematográfica. Mas,
imagem original que a fotografia (e mais tarde, o cinema) passou a ser reconhecida
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O documentário animado e a leitura não-ficcional da animação - Jennifer Serra
Documentário
uma forma de acesso direto ao real e, diante de uma produção com elementos
a acreditar que está diante de uma obra ficcional. Portanto, a questão a que
procuramos responder neste texto é como o documentário animado pode ser visto
pelo espectador como uma produção documental e o que confere a esse tipo de
ficcionais não deve ser estabelecida com base na dicotomia entre realidade ou
não realidade do que é representado, mas a partir da imagem que o leitor faz do
comunicação fílmica. Para Odin, uma dada produção pertence ao conjunto de filme
origem em uma pessoa com existência no mundo real. Pondo em ação esse modo
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O documentário animado e a leitura não-ficcional da animação - Jennifer Serra
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
por exemplo, que a narração é feita pelo próprio personagem, como no caso do
curta-metragem Silence (Sylvie Bringas; Orly Yadin, 1998), que, além de apontar
para a narração em primeira pessoa, informa através dos créditos que o filme trata
da história da narradora/personagem.
xilogravura, mostra como Tana foi mandada para a prisão nazista de Theresienstadt
e, ajudada por sua avó, manteve-se escondida para não ser enviada a campos
de extermínio. A segunda parte retrata a vida de Tana e sua avó na Suécia, onde
Tana passou o resto da infância e juventude, e foi realizada com desenho animado
Tana Ross”, atestam que trata-se de uma história real, o que reforça a leitura
documentarisante do filme.
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O documentário animado e a leitura não-ficcional da animação - Jennifer Serra
Documentário
Segundo a diretora Orly Yadin, o texto original de Tana foi refeito para que
casos pode “falar melhor” do que as palavras. Em todo o filme foram utilizados
pano de fundo audiovisual que “fala” sobre o Holocausto de maneira indireta. Muitos
no filme A is for Autism (Tim Webb, 1992). Neste curta-metragem o diretor utiliza
efeitos de áudio) com desenho animado, stop motion, montagem não linear,
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O documentário animado e a leitura não-ficcional da animação - Jennifer Serra
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neste documentário, segundo o próprio realizador, “foi uma ferramenta usada para
próprios autistas entrevistados foram animados, mas, além disso, parte das
real e sabermos que estamos diante de uma animação (isto é, uma construção
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O documentário animado e a leitura não-ficcional da animação - Jennifer Serra
Documentário
dos fatos de que trata o filme, mas sim no papel de fiador do filme, isto é,
aquele que garante a autenticidade do que está sendo dito, uma vez que ele é
dada realidade pelo animador, que pode ser reconhecido pelo espectador
imagem, mas sim no áudio real de entrevistas, narrações ou depoimentos, que são
interpretados criativamente pela parte visual, como é o caso dos episódios da série
inglesa Animated Minds (Andy Glynne, 2003/2008), feitos somente com imagens
geradas por computação gráfica. Nesses filmes o realizador foi responsável por
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O documentário animado e a leitura não-ficcional da animação - Jennifer Serra
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a instituição exibidora, espera que ele veja o filme como um documentário. E isso
aspectos subjetivos permite uma abordagem que não seria possível através
possa ser cada vez mais reconhecido como uma opção de tratamento criativo da
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O documentário animado e a leitura não-ficcional da animação - Jennifer Serra
Documentário
Referências bibliográficas
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Valsa com Bashir (Waltz with Bashir). Ari Folman. Israel, 2008, filme 35 mm.
_____________________________________________________________
1. Trabalho apresentado na sessão 6 - Cinema como arte e vice-versa, no 14 Encontro Socine. Este trabalho contou com o
apoio de uma bolsa de mestrado financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
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O documentário animado e a leitura não-ficcional da animação - Jennifer Serra
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3. Ao usar o termo “atualidades”, Grierson refere-se às actualités, o cinema de atualidades produzido pelos irmãos Lumiére.
A proposta de Grierson para o documentário era produzir obras de arte, isto é, era fazer com que as “actualités” sofressem
um tratamento criativo e, portanto, fossem o produto de um produção intelectual, e não o mero registro do cotidiano.
4. Charlotte Salomon foi uma artista judia nascida em Berlim e morta em Aushwitz. Em sua série de pinturas autobiográficas
Leben? oder Theater?: Ein Singspiel (Vida? ou Teatro?: Uma comédia musical) ela retrata sua vida em Berlim na época do
nazismo, sendo por isso considerada como a Anne Frank das artes visuais.
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Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória - Juliana Martins Evaristo da Silva
Documentário
possa se encontrar viva nas imagens a partir de uma operação que, à luz da
que as acolhem produzem também silêncios, na forma como suas lacunas são
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Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória - Juliana Martins Evaristo da Silva
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cada vez mais tudo nasce para se tornar uma imagem, e nós não escapamos
mais uma relação com o espaço e o que este pode oferecer de vestígios da
relação moderna com o tempo. Esta parece ser a pista para o uso da fotografia
século XX, enquanto há uma abundância de obras que incidem nos diversos
surge como ausência, um resto que perdura da coisa, mas não é a coisa. Tal
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Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória - Juliana Martins Evaristo da Silva
Documentário
Foucault, assim como Benjamin o fizera, nas suas análises históricas valoriza mais
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Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória - Juliana Martins Evaristo da Silva
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da redenção é o que a completa, uma completude que vem da falta, uma vez que o
messias nunca vem. A redenção é de ordem relacional, pois o que ela põe em jogo
esquecido que deve ser redimido pelo presente. Nas “Teses sobre o conceito de
história”, Benjamin (1986) enfatiza que essa recuperação do passado não visa à
irrupção que ocorre no instante, nos saltos da história. O instante, em sua visão,
final. Portanto, o juízo final não está no final, mas no agora. É o presente cheio de
atualidade. É ele que vê o progresso como uma catástrofe que deixa para traz um
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Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória - Juliana Martins Evaristo da Silva
Documentário
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Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória - Juliana Martins Evaristo da Silva
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
lida com a repetição e a paragem (AGAMBEN, 2007). A repetição torna o isso foi
em um isso teria sido. No texto, Agamben ressalta que a repetição não é o retorno
do mesmo: ela não se constitui como uma identidade em si mesma, mas como a
possibilidade do que foi. A ideia da repetição traz a da paragem, como uma dupla
uma nova relação entre elas. Assim como o “eterno retorno” de Nietzsche não é o
ter uma experiência da aura é reconhecer o poético das coisas, é olhar e ser
técnica como a aparição única de algo distante por mais próximo que se esteja.
inacessibilidade e a irrepetibilidade.
Benjamin mantém uma relação ambígua com a fotografia, uma vez que a
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Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória - Juliana Martins Evaristo da Silva
Documentário
Para Benjamin, existe um futuro acolhido pelas imagens que clama por
compreensão. Esta é uma possibilidade aberta pelo fato de que nem tudo que
centelha de que nos fala Benjamin ocorre quando algo que estava adormecido na
uma fonte infindável para tudo o que veio antes e depois. Benjamin escreve que
tempo virtual. Dessa forma, o tempo puro é a duração e o que dura é indivisível.
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Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória - Juliana Martins Evaristo da Silva
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
sensório-motor é o que nos leva a agir no solo onde o presente é o ponto móvel e
Proust busca uma saída do tempo e uma fuga da morte com a suspensão do
tempo cronológico, para se experimentar uma eternidade, nem que seja por um
é redimido pela arte, enquanto para Benjamin a intensificação do tempo tem por
finalidade a ação política na história, mesmo que essa ação política seja estética.
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Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória - Juliana Martins Evaristo da Silva
Documentário
fotografada por Hill, deixando transparecer em sua obra sua angustia por não
conseguir lhe dar seu nome. A verdade é que seu nome encontra-se perdido, a
fotografia não lhe garantiu a permanência, não sabemos quem foi essa vendedora
fotografia tanto preserva quanto mata, pois existe uma relação inextricável entre
tempo e morte abordada em sua obra, em que o tempo sempre acaba por apagar
o sentido das coisas. No entanto, seu trabalho não deixa de dizer respeito às vidas
representadas nas fotografias coletadas para suas instalações, travando uma luta
contra a perda de sentido, mas sabendo de antemão que esta é uma luta inglória.
Boltanski começou seu trabalho artístico por volta dos anos sessenta do
século XX, sendo um pioneiro num tipo de obra que tem por intuito a desconstrução
de metrô, entre outros lugares. Boltanski afirma ser um pintor, mas um pintor que
acesso a uma memória de segunda mão da guerra. Ele não a viveu diretamente,
mas as histórias que ouvia sobre ela, de pessoas que a viveram, moldou seu
e seu trabalho de uma forma ou de outra sempre aborda este tema, como
memória vêm nos assombrar sob a forma de caveiras que dançam a dança
da morte. O século XX, com suas guerras e genocídios, aparece em sua obra
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Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória - Juliana Martins Evaristo da Silva
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
noivas e cercados por crianças. Talvez estas próprias crianças tenham crescido e
descartado essa memória familiar que remetia ao nazismo, mas o que interessa
de fato a Boltanski nesta obra é mostrar que pessoas normais cometem atos
criminosos, que um agente da polícia nazista poderia abraçar seu filho de manhã
Datas ligadas por fios, roupas espalhadas por salas, fotografias de crianças
envoltas por velas e lâmpadas, olhos que nos miram na rua. O que estes restos de
existência querem nos dizer? Boltanski não nos dá uma resposta definitiva. Seu
que foram apropriados pelo seu gesto artístico. Sua presença se coloca para
exacerbar sua ausência. O artista tem especial apreço por objetos que mantiveram
nós, o sujeito fotografado nos demanda que lhe demos um nome. A seu ver,“[...]
assim, apesar disso – ou melhor, precisamente por isso – aquela pessoa, aquele
rosto exigem o seu nome, exigem que não sejam esquecidos” (AGAMBEM, 2007,
p. 29). Neste sentido, Boltanski parece não cumprir a missão imposta pelas
passa é uma segunda morte. No entanto, sem seus nomes elas permanecem
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Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória - Juliana Martins Evaristo da Silva
Documentário
como potências de nomes. O que não tem nome permanece como uma questão,
como um nome que não perdemos no ato de nomear. Boltanski lida também com a
aberto, dando-lhe um rosto. Desta forma, revelar o rosto das coisas é o papel da
se dos animais que interagem com o mundo no nível do afeto, sem lhe conferir um
reside um paradoxo, pois quando nomeamos algo perdemos este nome também.
permeada de lutas que visam à separação das coisas de seus nomes. Este campo
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Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória - Juliana Martins Evaristo da Silva
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
requerem seu nome, sendo estes, os ordinários, até mais importantes para o
há um pessimismo, em que o tempo vence o sentido, mas seu gesto não fecha as
seja, assim como sua contrapartida textual, o ensaio fílmico transita entre o literário
por ele, as quais articula com textos escritos e orais, sem, no entanto, apaziguar
trabalho de montagem como produtor de sentido para o filme. O gesto que permeia
principal, num futuro sombrio, marcado pela eclosão da terceira guerra mundial,
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Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória - Juliana Martins Evaristo da Silva
Documentário
suas viagens à África colonial, à Espanha de Franco, suas fotografias das ruas
de Paris, das exposições universais e dos surrealistas, para averiguar (tal como
progresso) e perceber o que suas imagens contêm da sombra da guerra por vir.
ficção que lhe permite questionar o próprio processo de feitura do filme e de que
memória está sendo produzida por ele. Uma voz feminina lê cartas que seriam do
Para Consuelo Lins, “a voz tensiona o que vemos na imagem, insere nela
do viajante cineasta tem por cenário “os dois pólos extremos da sobrevivência”,
faz presente ali, no rosto das mulheres no mercado. Em outra parte do filme,
compreende as doenças do tempo. Para ele, não faz sentido se emocionar com
em especial por imagens da infância, o que é uma busca pelo sentido delas e
aponta para o fato de esse sentido estar sempre associado à forma com que
nos afetamos pelas imagens, mesclando, assim, sempre uma parte subjetiva ao
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Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória - Juliana Martins Evaristo da Silva
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
que nos fala Benjamin, a memória tecida pelo esquecimento e que, para emergir,
destruir o solo sedimentado pelo tempo para que a memória surja como ruína.
Esse procedimento faz com que de tempos em tempos seja necessário que
voltemos a algumas imagens, pois há sempre algo que se perde entre a imagem
faz o nome permanecer como potência de nome, Chris Marker trabalha em torno
271
Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória - Juliana Martins Evaristo da Silva
Documentário
Referências bibliográficas
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MACHADO, A. O filme-ensaio. In: CATÁLOGO: Chris Marker: Bricoleur Multimídia. Rio de Janeiro; São Paulo:
Centro Cultural Banco do Brasil, 2009
_____________________________________________________________
272
Forma-ensaio e documentário-biografia: contaminações, jogos, estética e política - Patrícia Rebello da Silva
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Forma-ensaio e documentário-biografia:
autobiográficos. A dimensão ensaística, nos filmes que vamos analisar aqui, opera
Marina Person são dois filmes próximos e distantes, ao mesmo tempo. Ambos
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Forma-ensaio e documentário-biografia: contaminações, jogos, estética e política - Patrícia Rebello da Silva
Documentário
O resultado disso são dois filmes nos quais não se sabe bem “quem fala
local, durante este período, foi o documentário, dominado por um forte traço
regionalista. Na maior parte das vezes, era feito por encomenda, e recebia o
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Forma-ensaio e documentário-biografia: contaminações, jogos, estética e política - Patrícia Rebello da Silva
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
as pequenas histórias no lugar das grandes epopeias, foi a partir desse momento
que o documentário brasileiro começou a traçar uma história que enviesaria pelo
ser construídos menos pelo vasto campo de acontecimentos de uma vida inteira
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Forma-ensaio e documentário-biografia: contaminações, jogos, estética e política - Patrícia Rebello da Silva
Documentário
mais que dar conta do real, consolidou-se como uma arena privilegiada de
como essa outra imagem, à qual se atribui um terceiro sentido11, devolve o reflexo
distorcido no espelho. A partir dessa constatação, podemos perceber a instalação
A forma-ensaio no cinema
buscam dar conta do mundo histórico, escreve Nichols (1991, p. 57), os filmes
reflexivos estão mais interessados em pensar a forma como se fala sobre ele.
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Forma-ensaio e documentário-biografia: contaminações, jogos, estética e política - Patrícia Rebello da Silva
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
devolve a câmera, “mas fecha a porta...”. (um riso alegre e solto vem da
porta). Uma mão, surgindo de fora de campo, puxa a porta pela maçaneta
janela, olha para fora e, sempre com gestos amplos e fartos, comenta que a
música que canta é bonita, e que tem uma coisa de “sentimentaloide”, que não
de rio, que habitam “essas imensidões e essas solidões”... Fim de cena. Dessa
cena, que é apenas uma entre as milhares que compuseram a vida do poeta
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Forma-ensaio e documentário-biografia: contaminações, jogos, estética e política - Patrícia Rebello da Silva
Documentário
além de ser o título de uma poesia que Waly dedicou ao amigo Carlos Nader, é
também um encontro (ou uma busca) de Nader de uma estética adequada para
Por cerca de 15 anos, Carlos Nader filmou Waly Salomão nas mais
sobre Waly ou com Waly, é sobre a visão de mundo do Waly”.14 Nader passou dois
anos montando, escrevendo e reescrevendo o roteiro de edição, onde buscou
na aparição das imagens, que vêm e voltam no tempo); a segunda, mais linear e
aniversário de oito anos pediu um bolo em forma de livro, que cursou Direito,
que foi preso, que na prisão começou a escrever, entre outras coisas; a terceira
linha é “um ensaio sobre cinema, cinema sobre cinema, cujos autores de certa
escreveu um artigo póstumo sobre o Waly que influenciou todo o filme).”15 O filme
se estrutura a partir do entrelaçamento dessas três linhas, sempre atravessado
intervém sobre a montagem quando ela peca por ultrapassar os limites, e acaba
por escapar da densidade do real,16 mas mais próximo de uma noção dialética
do cinema apontada por Noel Burch, e que encerra possibilidades bastante
complexas. Partindo do princípio de que campo é tudo aquilo que o olho percebe
tela torna-se parte integrante da narrativa: ele pode ser definido pelos pontos de
entrada e saída dos personagens, pelo olhar em off (que define o espaço atrás
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Forma-ensaio e documentário-biografia: contaminações, jogos, estética e política - Patrícia Rebello da Silva
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
tônica da narrativa e da própria estrutura. E as escolhas que Nader faz para criar
imagens e sons que consigam dar conta dessa opção e do que ela significa é que
Marina Person optou por começar o filme que fez em busca da figura do
pai, o cineasta Luiz Sergio Person, morto em 1976, pela dor que vem junto aos
a ausência do pai, que ela perdeu aos 6 anos: a partir dos filmes de família em
super-8. Estar com o pai a partir daquelas imagens é a sutil diferença entre se
não mais como fazer um filme, mas como fazer para que haja filme? Quais
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Forma-ensaio e documentário-biografia: contaminações, jogos, estética e política - Patrícia Rebello da Silva
Documentário
com o diretor; e as conversas sobre o pai que Marina mantém com a mãe
e a irmã. Para além dos filmes, Person deixou um acervo pessoal de livros,
não são pedaços de realidades do passado que se juntam para formar uma
se a ideia original era registrar para guardar, no contexto do filme ela ressurge
presente. Aquela imagem não é capaz de responder por inteiro, ou mesmo por
técnicos (pouca luz, falta de foco, imagem tremida) são características deste tipo
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Forma-ensaio e documentário-biografia: contaminações, jogos, estética e política - Patrícia Rebello da Silva
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
voz em off: “Eu lembro da hora. Lembro que eu acordei e fui para o seu quarto.
(...) Eu lembro que ela falou: papai morreu”. É Marina Person, que recorda o dia
de um filme sobre uma busca. Em todas as entrevistas, ela divide a cena com os
mas que faz toda a diferença na hora de pontuar o estatuto do filme: além de
uma biografia de Person, trata-se da busca da filha pelo pai. Nesses pequenos
Algumas das cenas mais bonitas do filme são aquelas em que a diretora
contraluz, o movimento das duas irmãs em direção à saída. Duas silhuetas, duas
sombras, duas imagens tão cinematográficas quanto aquelas através das quais
do filme é de Marina Person, falando sobre a dor da perda: “Você não supera
começa e termina falando de dor. O ritual é concluído. E se, com ele, Marina
escuros das imagens de arquivo, para quem o jovem rapaz de barba nas imagens
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Forma-ensaio e documentário-biografia: contaminações, jogos, estética e política - Patrícia Rebello da Silva
Documentário
era apenas o papai. Se as imagens ainda funcionam como uma ponte entre ela e
a figura do pai, como será que ela se percebe nos filmes em S8, agora que sabe
Conclusão
cinema para que os dois filmes alcancem seus objetivos. A relação de Carlos
pai, por poucas imagens. Não por outra razão, o filme de Nader aposta na ideia
de que se pode apreender algo a partir do conjunto das imagens (Waly vivia em
aposta na ideia de que a partir da soma das imagens algo se institui. Um queria
da realidade nos filmes, mas a realidade dessa inscrição; menos a duvidar das
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Forma-ensaio e documentário-biografia: contaminações, jogos, estética e política - Patrícia Rebello da Silva
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Referências bibliográficas
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XAVIER, I. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra, 2005.
283
Forma-ensaio e documentário-biografia: contaminações, jogos, estética e política - Patrícia Rebello da Silva
Documentário
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1. Trabalho apresentado durante o XIV Encontro Internacional de Estudos de Cinema e Audiovisual (SOCINE), realizado na
Universidade Federal de Pernambuco em outubro de 2010.
2. “Os Europeus e os Norte-americanos enchiam o Brasil de filmes de ficção, pois a industria vinha se desenvolvendo
exclusivamente em função do filme de enredo” (BERNARDET, 1979, p. 23).
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Forma-ensaio e documentário-biografia: contaminações, jogos, estética e política - Patrícia Rebello da Silva
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
3. “(...) a cavação cobre o documentário de encomenda, a propaganda, o ensino em pequenas escolas de cinema. (...)
sa terminologia traz embutido certo desprezo pela produção documentária e pelo seu esquema de produção” (RAMOS;
MIRANDA, 2004, p. 177). O esquema de produção se refere ao subsídio do documentário por uma elite política, militar e
eclesiástica, interessada em construir e defender seu nome e sua imagem através de filmes.
5. O fato de a produção do INCE ser orientada para a informação não significa que seus filmes fossem pouco criativos. Humberto
Mauro, um dos mais importantes diretores brasileiros, de rigor, elegância e genialidade ímpares nos enquadramentos, foi
um dos principais nomes da instituição, produzindo cerca de 354 documentário de curta e média duração enquanto lá
trabalhou. Para além disso, foi também a instituição que apoiou os primeiros projetos dos cineastas da geração que, nos
anos 1960, dariam nova forma ao documentário brasileiro. Entre esses projetos, estão alguns filmes do começo do Cinema
Novo, como Aruanda (1960), de Linduarte Noronha, e Romeiros da Guia (1962), de Vladimir Carvalho e João Ramiro.
6. A Casa de Mário de Andrade (1952), O Aleijadinho (1955), Euclides da Cunha – antes de tudo um forte (1970), Delmiro
Gouvêa: o homem e a terra (1971), Anchieta, o apóstolo do Brasil (1973), de Ruy Santos; A João Guimarães Rosa (1968-
1969), de Roberto Santos; Humberto Mauro – o coração do bom (1978), de Alex Viany; Carmem Santos (1969), Humberto
Mauro (1970), Oswaldo Cruz (1973), O cinegrafista Rondon (1979), de Jurandyr Noronha, entre outros.
8. Os dois curtas-metragens, filmados em 1959, têm como tema, respectivamente, o poeta Manuel Bandeira e o sociólogo
Gilberto Freyre.
9. Em O poeta do Castelo, acompanhamos Manuel Bandeira fazendo seu desjejum e caminhando pelas ruas vazias do centro
do Rio de Janeiro; em O mestre... observamos Gilberto Freyre preparando uma batida de frutas e tomando café com a
esposa.
10. Cf. Ramos e Miranda (2004, p. 197). Essa produção pode ser conferida em filmes como Jânio a 24 quadros (1979-1980),
de Luis Alberto Pereira, Jango (1984), de Silvio Tendler, O evangelho segundo Teotônio (1984), de Vladimir Carvalho, O
terceiro milênio (1981), de Jorge Bodansky, Céu aberto (1985), de João Batista de Andrade, entre outros.
11. Me refiro aqui ao conceito de Roland Barthes definido no texto “O terceiro sentido” (vide bibliografia).
12. Os filmes que enviesam por uma perspectiva formalista concentram a atenção do espectador no desenho estético e na
abordagem construtivista do documentário; já os que optam por uma perspectiva política, apontam em direção às tramas e
relações construídas no mundo e para as questões que daí surgem.
13. A versão utilizada para este ensaio foi apresentada no festival “É Tudo Verdade”. Algumas modificações ocorreram entre a
exibição daquele momento e o lançamento nas salas e em DVD; no entanto, verificou-se que isso não prejudica a análise
do filme.
14. Entrevista realizada pelo crítico Leonardo Luiz Ferreira e publicada no blogue de documentário do jornal O Globo,
“DocBlog”, em 03/12/2008. Disponível em:
15. Fonte: entrevista ao jornal O Globo. O artigo de Antonio Cícero foi publicado em ‘Infinidades do Sem Fim’. Vide bibliografia.
16. “(…) é preciso que o imaginário tenha na tela a densidade especial do real. A montagem só pode ser utilizada aí dentro de
limites precisos, sob pena de atentar contra a própria ontologia da fábula cinematográfica. Por exemplo, não é permitido
ao realizador escamotear, com o campo/contra-campo, a dificuldade de mostrar dois aspectos simultâneos de uma ação”
(BAZIN, 1991, p. 60).
17. “(…) o contato com o Waly foi libertário para mim, porque ele deixou claro que a vida em si é uma trama de vários fios
ficcionais e reais. Não é só um filme que mistura realidade e ficção. A vida, antes dos filmes, também faz isto”. Fonte:
entrevista a O Globo.
18. “(...) na verdade o filme reflete bem o que foi o processo, né, uma viagem pessoal de descoberta tanto da obra dele quanto
da pessoa: o Person pai, o Person marido, o Person diretor. Então o quê que era, quem era ele? Na verdade a busca é
essa: Quem é o meu pai? Quem é essa pessoa, que é meu pai, que todo mundo fala tanto e eu mal tive contato. É isso:
uma viagem pessoal, intimista, de descobertas.” (entrevista concedida ao blog de Mário Cascardo, disponível em: )
19. Para maiores referências sobre os filmes de família, ver ODIN, Roger (org) “Le film de famille”
285
Acaso, morte e significação no documentário Um corpo subterrâneo - Patrícia Costa Vaz
Documentário
Um corpo subterrâneo1
Introdução
no contexto audiovisual.
286
Acaso, morte e significação no documentário Um corpo subterrâneo - Patrícia Costa Vaz
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
1992, p.13). Essa noção de texto permite a aplicação de seus conceitos a outras
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Acaso, morte e significação no documentário Um corpo subterrâneo - Patrícia Costa Vaz
Documentário
informações acerca da obra servirão de base para transcorrer sobre o discurso que
luto e da memória dos falecidos. Para finalizar, uma breve explanação sobre a fala
Um Corpo Subterrâneo
Estas reflexões fazem parte de uma pesquisa mais ampla que está sendo
contou com veiculação nacional, tem 52 minutos e foi dividida em quatro blocos.
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Acaso, morte e significação no documentário Um corpo subterrâneo - Patrícia Costa Vaz
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Uma vez imerso no universo literário dos autores, ele parte para as pré-entrevistas.
deixa levar pelo encontro do inesperado, pelo acaso: “não se pode saber tudo o que
e/ou para o morto) com a câmera. As imagens captadas por Machado e pelos
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Acaso, morte e significação no documentário Um corpo subterrâneo - Patrícia Costa Vaz
Documentário
placa posicionada na altura do peito do cineasta, por meio de duas alças como as
Não se trata de uma steadycam, a câmera não passeia na tomada; pelo contrário,
com o olhar do entrevistado, à medida que este capta as suas próprias imagens.
imagens ora tremidas, sem iluminação suficiente, ora embaçadas, dão lugar à
personagem tranquilo quanto ao não domínio do aparato, quando diz: “Você não
quer fazer essa imagem? Porque a proposta é que a própria pessoa faça, eu te
edição une pequenos trechos das leituras dos moradores. Da imagem da certidão
e das leituras (nome, data de nascimento, sexo, cor, filiação, cidade do registro)
pelas imagens de estrada, pela trajetória que começa no litoral (cidade de Cajueiro
290
Acaso, morte e significação no documentário Um corpo subterrâneo - Patrícia Costa Vaz
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
acompanha e caracteriza.
Cinema de encontro
mas também sofre grande influência de quem as escuta. Falar sobre determinado
291
Acaso, morte e significação no documentário Um corpo subterrâneo - Patrícia Costa Vaz
Documentário
de ficção, pois a vida de cada um deles continua após o filme. Falar do luto e
mais detalhes, que se sinta à vontade para falar, mostrar objetos ou partes
da casa que acredite serem importantes para a situação. Com esta postura, o
que o encontro produz uma situação nova de discurso: não se pode esperar que
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Acaso, morte e significação no documentário Um corpo subterrâneo - Patrícia Costa Vaz
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
nos seus relacionamentos diários, e determinam sua conduta ética. Escrito por
“Trato Social”,6 dá uma pequena mostra das reflexões do diretor em torno destes
cuidados, que viriam a ser fundamentais no documentário:
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Acaso, morte e significação no documentário Um corpo subterrâneo - Patrícia Costa Vaz
Documentário
ele no início do vídeo, ele (Machado) deveria procurar a sepultura mais recente
convencer as pessoas a falar com ele ainda devastadas pelo recente luto. Na
“Eu entendo que para vocês é muito difícil e até pra gente que está fazendo, a
uma apreensão mais humana e falível do realizador por parte do espectador, bem
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Acaso, morte e significação no documentário Um corpo subterrâneo - Patrícia Costa Vaz
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Em outra situação, na casa dos parentes de Dona Francelina, Douglas – que nas
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Acaso, morte e significação no documentário Um corpo subterrâneo - Patrícia Costa Vaz
Documentário
a filha Cândida fala como a mãe. Em meio a seu discurso, Cândida se apropria
uma força que solidifica no presente (ou melhor, eterniza) aquilo que era apenas
jantar, diz que a mãe gostava de sentar em uma cadeira onde ela passava a maior
Piripiri, ao visitar o túmulo da mãe afirma: “Aqui é a mamãe”. E, mais tarde, Neuma,
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Acaso, morte e significação no documentário Um corpo subterrâneo - Patrícia Costa Vaz
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
sobrinha de Dona Francelina, falando sobre os gostos da tia: “Na casa dela, ela
personagem, dona Elenir pede: “Mostre um pouco das coisinhas dela, assim”,
pela personagem, Elenir (filha de Dona Elenor), que também passa a fazer uso
dos sufixos-inho, -inha não como estratégia de aproximação, mas como carinho
e cuidado com os objetos que lembram a mãe: “Aqui é a mesinha dela, aqui era
Segundo Stam (1992, p. 12), “cada língua é uma arena onde competem
o relato oral obtido nas gravações perpetua esses modos de falar. Bakhtin, na
297
Acaso, morte e significação no documentário Um corpo subterrâneo - Patrícia Costa Vaz
Documentário
lhe tragam seu discurso original, sua linguagem” (BAKTHIN, 1993, p. 134).
Considerações Finais
comunicacionais da fala.
estamos conscientes de que este artigo é apenas uma reflexão inicial de sua
298
Acaso, morte e significação no documentário Um corpo subterrâneo - Patrícia Costa Vaz
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Referências bibliográficas
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YATES, F. A.A arte da memória. Trad. Flávia Bancher. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.
Referência audiovisual
_____________________________________________________________
3. Os seis municípios estão presentes na versão de 83 minutos do documentário;na versão de 52 min aparecem apenas as
cidades de Cajueiro da Praia, Piripiri, Oeiras e Gilbués.
4. Com exceção de Teresina, em que nenhum cemitério é mostrado, e na cidade de Gilbués, em que o cineasta a caminho do
cemitério encontra a procissão de uma missa de Sétimo Dia.
5. O texto “Trato Social” foi escrito pelo cineasta em fevereiro de 2003. O cineasta nos repassou esse texto arquivado em um
DVD com vários outros arquivos referentes à sua obra, em fevereiro de 2009.
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Sonoridades
Assim era a música da Atlântida: a trilha musical do cinema popular brasileiro no exemplo da companhia Atlântida Cinematográfica - Sandra Ciocci e Claudiney Carrasco
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
que, alguns dos 48 títulos, não estejam à disposição dos pesquisadores, pela
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Assim era a música da Atlântida: a trilha musical do cinema popular brasileiro no exemplo da companhia Atlântida Cinematográfica - Sandra Ciocci e Claudiney Carrasco
Sonoridades
inundação da década de 705ou durante exibição nos cinemas pelo Brasil. A data
exata do desaparecimento do título não nos importa, mas sim o fato de não haver
qualquer registro da autoria das trilhas desses filmes. Na época, a companhia não
organizava seus arquivos e muitas vezes o contrato com os músicos era tratado
baseadas em títulos publicados, mas que não traduzem a realidade dos dados a
respeito dos compositores de cada filme, quando comparado aos créditos oficiais,
não existe, no filme, composição musical na forma instrumental e ainda não havia
uma definição sobre o que fazia, ou não, parte de uma trilha musical, não há
crédito sobre quem organizou as canções, além do fato de existirem canções não
Léo Peracchi, Lindolpho Gaya, Lírio Panicalli, Luiz Bonfá, Radamés Gnattali e
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Assim era a música da Atlântida: a trilha musical do cinema popular brasileiro no exemplo da companhia Atlântida Cinematográfica - Sandra Ciocci e Claudiney Carrasco
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
buscavam inserir, nas suas produções, música similar à utilizada nos filmes de
trilhas dos filmes da Atlântida. Embora, nos primeiros filmes da Atlântida, não
e do leitmotiv, mas, não era empregada de forma pura. Nas trilhas dos filmes da
empresa que teve um local como esse, de sua propriedade foi a Vera Cruz.
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Assim era a música da Atlântida: a trilha musical do cinema popular brasileiro no exemplo da companhia Atlântida Cinematográfica - Sandra Ciocci e Claudiney Carrasco
Sonoridades
sempre compatíveis, como o famoso monstro criado por Mary Shelley. Segundo
Infelizmente, essa afirmação por parte dos funcionários não pode ser definida
com precisão na atualidade, pois dos filmes produzidos com a utilização desta
(1944), Fantasma por acaso (1946) e Luz dos meus olhos (1947). Durante coleta
de dados para esta pesquisa, tivemos contato com os três filmes citados. O
edição e transcrição óptica. Não era permitido o controle mais fino da gravação.
Isso significa que a Atlântida no início passou pelas mesmas dificuldades que a
Cinédia,ou seja, não se podia fazer a edição de som. Contudo, esse procedimento
era possível e utilizado pelas companhias de cinema dos Estados Unidos, desde
dos filmes da Atlântida foi a separação entre música e diálogos. Os três elementos
personagem falava, não tinha música; quando tinha música, não havia diálogo.
que limitou a utilização da música nos primeiros filmes da Atlântida, foi um dos
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Assim era a música da Atlântida: a trilha musical do cinema popular brasileiro no exemplo da companhia Atlântida Cinematográfica - Sandra Ciocci e Claudiney Carrasco
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
fatores que levou à inserção de tantas canções em um mesmo filme. Como não
era possível colocar música sob diálogos, foi necessário criar uma maneira de
apresentá-la. Esses números musicais não podiam ser gravados com som direto,
não tinha equipamentos para tal procedimento. Então, a solução era registrar as
a “captação de som fosse de boa qualidade”, quase sempre essa qualidade “se
Não podemos nos esquecer de que o mundo estava vivendo o período após a
Brasil, vindo do México, onde tinha feito um filme com John Ford. Esse americano
quatro canais RCA hight fidelity. Randall teria trazido o equipamento para o Brasil a
fim de criar aqui uma indústria cinematográfica, um estúdio em São Gonçalo. Seus
planos foram frustrados, ele trabalhou por um breve tempo na Vera Cruz, no filme
que nos interessa neste fato é que a qualidade da gravação de som dentro da
infinitamente superior à dos filmes anteriores, nos revela que além da qualidade
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Assim era a música da Atlântida: a trilha musical do cinema popular brasileiro no exemplo da companhia Atlântida Cinematográfica - Sandra Ciocci e Claudiney Carrasco
Sonoridades
Atlântida com o trabalho de Aloysio Vianna. Outro fator significativo é que com a
não havia um equipamento perfeito, mas a diferença era expressiva, para melhor,
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Assim era a música da Atlântida: a trilha musical do cinema popular brasileiro no exemplo da companhia Atlântida Cinematográfica - Sandra Ciocci e Claudiney Carrasco
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
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Assim era a música da Atlântida: a trilha musical do cinema popular brasileiro no exemplo da companhia Atlântida Cinematográfica - Sandra Ciocci e Claudiney Carrasco
Sonoridades
Com base na lista anterior, podemos afirmar que as trilhas dos filmes
Gnattali. Lírio atuou com muitos diretores, enquanto Alexandre fez uma parceria
de trabalho com Carlos Manga, que iniciou como diretor em 1953, e assumiu o
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Assim era a música da Atlântida: a trilha musical do cinema popular brasileiro no exemplo da companhia Atlântida Cinematográfica - Sandra Ciocci e Claudiney Carrasco
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
em Nem Sansão nem Dalila, filme no qual Manga inseriu uma trilha orquestral
trilhas dos filmes de Manga atingem uma maturidade, não apenas com a música
que podia ser político ou não. O tema era desenvolvido entre a abertura e a
musicais, inseridos no espetáculo popular, não surgiu nas chanchadas, mas foi
rosto dos cantores que só eram conhecidos pela voz, através do rádio.
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Assim era a música da Atlântida: a trilha musical do cinema popular brasileiro no exemplo da companhia Atlântida Cinematográfica - Sandra Ciocci e Claudiney Carrasco
Sonoridades
Carlos, Luiz Gonzaga, Eminha Borba, Dóris Monteiro, 4 ases e 1 coringa e Dick
Farney, entre muitos outros. No princípio, eles apareciam no filme como eles
de Assim era a Atlântida. Os números musicais foram cortados dos originais para
integrar o documentário e não foram mais devolvidos aos seus lugares de origem.
mas, sobretudo, para a história da música popular brasileira, por conter os únicos
do rádio, pois foram produzidos em uma época em que não existia a televisão e
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Assim era a música da Atlântida: a trilha musical do cinema popular brasileiro no exemplo da companhia Atlântida Cinematográfica - Sandra Ciocci e Claudiney Carrasco
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
a restauração e devolução dos números musicais retirados, para que não se perca
esta parte da memória de nossa história, nunca cultuada com o devido respeito.
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Assim era a música da Atlântida: a trilha musical do cinema popular brasileiro no exemplo da companhia Atlântida Cinematográfica - Sandra Ciocci e Claudiney Carrasco
Sonoridades
Referências bibliográficas
(Dissertação de Mestrado).
UNICAMP, 1996.
_____________________________________________________________
1. Trabalho apresentado em sessão de comunicação, na mesa de estudos do som. Projeto financiado pela CAPES e apoiado
pela Rede Globo de Televisão através do Globo Universidades
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Assim era a música da Atlântida: a trilha musical do cinema popular brasileiro no exemplo da companhia Atlântida Cinematográfica - Sandra Ciocci e Claudiney Carrasco
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
4. Companhia Atlântida Cinematográfica, empresa fundada no ano de 1941 por José Carlos Burle e Moacyr Fenelon, na
cidade do Rio de Janeiro. Atuou na produção de filmes de longa metragem até o ano de 1962.
7. Informação obtida através de comunicação pessoal com Hernani Heffner, diretor de conservação da Cinemateca do MAM,
no Rio de Janeiro.
8. A Companhia Cinematográfica Maristela surgiu em 1950 capitaneada pela família Audrá(de industriais e proprietários de
terras e de companhia de transportes). Seus estúdios eram localizados em São Paulo e para a montagem foram gastos 30
milhões de cruzeiros (RAMOS; MIRANDA, 2004, p. 358).
9. Luiz Severiano Ribeiro Júnior, empresário, natural de Fortaleza, CE (1912-1993). Herdeiro da maior cadeia exibidora
de cinema no Brasil. Estudou Administração em Londres com a finalidade de assumir os negócios da família. Investiu
na distribuição de filmes fundando a Distribuidora de Filmes Brasileiros que foi substituída paulatinamente pela União
Cinematográfica Brasileira (UCB). Abriu um laboratório, Cinegráfica São Luiz, ampliando o campo de atuação dentro
do ramo cinematográfico. Com a compra da Atlântida passou a atuar desde a produção, passando pela distribuição e
finalizando com a exibição de filmes.
11. VENEZIANO, Neyde. O teatro de revista no Brasil. Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP,
1991.
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Montagem, canto e música em Alberto Cavalcanti - Fernanda Aguiar Carneiro Martins
Sonoridades
Paris, 1982) espera por um estudo aprofundado, assim como a sua contribuição
arte, quando ainda havia o cinema silencioso, num período marcado por várias
existência do cinema, quando ele colaborou com músicos de prestígio como, por
com o seu documentário, ou melhor, a sua “sinfonia urbana” Nada como o passar
das horas (Rien que les heures, 1926) – graças ao seu aspecto inovador no tocante
ele tem a audácia de transpor para a tela de cinema uma canção popular francesa,
que resulta no curta-metragem homônimo A pequena Lilie (La p´tite Lilie, 1927),
o que lhe rende algumas críticas. Na mesma década, Cavalcanti lança mão de
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Montagem, canto e música em Alberto Cavalcanti - Fernanda Aguiar Carneiro Martins
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
do General Post Office Film Unit – G.P.O. Film Unit, sob a responsabilidade de
nem sempre lhe proporcionam uma boa reputação. Antes de seu estabelecimento
experiência lhe permite se familiarizar com a nova técnica. Data dessa época
César Guerra Peixe, cujo momento-chave dessa colaboração não poderia ser
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Montagem, canto e música em Alberto Cavalcanti - Fernanda Aguiar Carneiro Martins
Sonoridades
Porém, vale salientar ainda que, após a realização de O canto do mar, após o
em Senhor Puntila e seu criado Mati (Herr Puntila und seinknecht Mati, 1955) –
Eisler possuindo, por sua vez, obras-primas como a composição camerística feita
para Chuva (Regen, 1929), de Joris Ivens, em 1941, além de Noite e neblina (Nuit
de um cinema nacional, ele faz coincidir a exploração dos cenários naturais (em
busca de realismo nos conduz aos ideais defendidos pela Escola Soviética.
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Montagem, canto e música em Alberto Cavalcanti - Fernanda Aguiar Carneiro Martins
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Embora haja recriação do espaço físico, o cronista admite que isso não
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Montagem, canto e música em Alberto Cavalcanti - Fernanda Aguiar Carneiro Martins
Sonoridades
tudo isso contando ainda com a presença da música ambiente. Eis alguns dos
momentos do filme que põem em jogo a cultura regional popular (no caso, a dança
pontos fracos do filme) sem conexão com a lógica narrativa. Na verdade, tais
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Montagem, canto e música em Alberto Cavalcanti - Fernanda Aguiar Carneiro Martins
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
mar conta, por um lado, com uma partitura orquestral, graças à colaboração do
compositor clássico César Guerra Peixe; por outro, com uma profusão de canções
popular tão explorada no filme. Assim sendo, O canto do mar põe em evidência
ora uma música de tela de cinema (ou, melhor ainda, uma música de fonte),
a saber, uma música diegética, cuja origem o espectador conhece, uma vez
que pertence ao universo ficcional do filme. Tal distinção nos é oferecida pelo
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Montagem, canto e música em Alberto Cavalcanti - Fernanda Aguiar Carneiro Martins
Sonoridades
jovem protagonista Raimundo vai encontrar o seu pai; ele passa diante de
uma igreja católica, de onde sai uma procissão, cujos fiéis cantam. No final da
da letra, que faz referência às partes do corpo da criança defunta. Quanto aos
xangô, eles são tão singulares que o espectador pode dificilmente os decifrar.
meu boi, e o caráter religioso das chamadas das divindades do ritual do Xangô.
Sob essa perspectiva, vale ressaltar, o que Gilles Mouëllic nos esclarece: nos
anos 1950, a formação clássica dos compositores de filmes não impede uma
reporta aos recifes de coral que compõem o litoral em questão. Além disso,
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Montagem, canto e música em Alberto Cavalcanti - Fernanda Aguiar Carneiro Martins
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
musical é posta em trabalho ao longo das próprias imagens do filme. Sob essa
Dito isso, tudo leva a crer que a música constitui o enjeu, ou melhor, a
quando ele se refere a um “tempo” da imagem, que tem seu ritmo, sua pulsação,
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Montagem, canto e música em Alberto Cavalcanti - Fernanda Aguiar Carneiro Martins
Sonoridades
Beat das imagens tais como elas sucedem na tela, beat dos
planos e das sequências, beat da montagem; beat do preto e do
branco, do brilho, da luz e de seu eclipse; mas beat também das
associações para as quais se presta a própria visão repetida de
um filme, beat das interferências e das rupturas de nível que ela
induz; beat do tempo até no que este pode ter, paradoxalmente,
de não sincrônico; beat da história até no que o termo pode
ter de anacrônico, e a ideia, de propriamente não figurável.
(DAMISCH, 1997, p.13, tradução nossa).
José Luiz, um marinheiro em plena conquista de sua amada). Tal clima aparece
a música de fonte, por sua vez, contribuindo para dar primazia à atmosfera de
que dança e parece estar em transe. Isso ocorre no instante em que o pai de
santo joga búzios a fim de descobrir o que acomete o ex-marinheiro, e tenta achar
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Montagem, canto e música em Alberto Cavalcanti - Fernanda Aguiar Carneiro Martins
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
dar a ver uma realidade que tende a se dissipar. Daí se explica o papel de um
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Montagem, canto e música em Alberto Cavalcanti - Fernanda Aguiar Carneiro Martins
Sonoridades
Referências bibliográficas
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MOUËLLIC, G. La musique de film: pour écouter le cinéma.2. ed.Paris: Cahiers du Cinéma ;SCÉRÉN-CNDP,
2006.(Coleção “les petits cahiers”)
_____________________________________________________________
1. Trabalho apresentado no Seminário Temático Cinema no Brasil: dos Primeiros Tempos à Década de 1950. Esse estudo
constitui objeto do projeto de pesquisa “O Som no Cinema segundo Alberto Cavalcanti”, aprovado no Edital Universal
014/2010, doConselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, em curso a partir de novembro de
2010.
3. O figural se encontra na base das questões concernentes à Figura que, por sua vez, conhecem uma fortuna crítica
excepcional na tradição filosófica até os dias atuais. Parte de um trabalho teórico em curso, a Figura abrange no domínio do
cinema os estudos de G. Deleuze, J. Aumont, M. Vernet, P. Dubois, N. Brenez, entre outros. A Figura, comportando como
instância suprema o figural, o que recobre a matéria “imageante” da obra, permite aceder, através do material sensorial e
não verbal que a imagem contém, a uma forma de pensamento que lhe é própria. Conferir a esse respeito “Puissances de
l’image, puissance de l’analyse” e “Figurable, Figuratif, Figural”, encontrados no livro À Quoi pensent les films, de J. Aumont
(Paris: Séguier, 1996).
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O soundscape da modernidade: os Sound Studies e o som no cinema - José Cláudio Siqueira Castanheira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
O soundscape da modernidade:
Introdução
Em seu livro Silent film sound, de 2004, Rick Altman levanta a questão
reduzir a imagem – e agora, também, o som – ao mesmo patamar (ou pelo menos
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O soundscape da modernidade: os Sound Studies e o som no cinema - José Cláudio Siqueira Castanheira
Sonoridades
que argumentos como os que colocam o som como reprodução fiel da realidade
a respeito do som nos filmes. Não se pode dizer que tais pesquisadores
Studies, editado por Rick Altman e totalmente dedicado ao assunto, pode ser
propõe uma ampliação das possibilidades do som como objeto de estudo para
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O soundscape da modernidade: os Sound Studies e o som no cinema - José Cláudio Siqueira Castanheira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Sound Studies
Esse “novo campo”, a bem da verdade não é tão novo assim. Muitos dos
o que desponta como uma característica peculiar, pelo menos dos trabalhos
sua escuta. Fatores históricos, culturais e sociais não podem, certamente, ser
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O soundscape da modernidade: os Sound Studies e o som no cinema - José Cláudio Siqueira Castanheira
Sonoridades
proposições nos anos 80, ainda aqui vemos uma tentativa de fugir de um império
mundo através de sons torna-se uma tarefa no mínimo pouco comum. “Como
como premissa comum o fato de que a audição merece uma investigação mais
visual e aqueles que se apoiam em modelos sonoros para investigação deve ser
muito embora não devam ser colocadas em polos opostos como vem sendo
feito ao longo dos anos. Também, não devemos naturalizar nem uma nem
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O soundscape da modernidade: os Sound Studies e o som no cinema - José Cláudio Siqueira Castanheira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
que científico nada mais faz do que levar a acreditar que todos ouviríamos ou
que ouvir (bem como ver) traduzem e são traduzidos por modos específicos de
habitar o mundo. Há uma dimensão que pode ser de bastante difícil prospecção
Vejamos três trabalhos que, citados por Pinch e Bijsterveld, podem nos dar
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O soundscape da modernidade: os Sound Studies e o som no cinema - José Cláudio Siqueira Castanheira
Sonoridades
um projeto de inventário dos sons nos mais diferentes lugares da Terra, o World
sons encontrados com uma classificação que incluiria categorias como “sons
naturais”, “sons humanos”, “sons e sociedade” etc. Para Schafer, existe uma
clara ruptura entre os ditos “sons naturais” e os sons frutos de uma intervenção
desenfreados) não nos permite uma clara leitura desses sons, implica uma
do ideal propagado pela música concreta dos anos 50, em que a origem não
seria mais importante do que os aspectos físicos concretos dos sons ouvidos e
entre os eventos sonoros, como quer Schafer, e os objetos sonoros, como descritos
A ideia de Paisagem Sonora, que também tem sido utilizada por alguns
de diversas áreas, inclusive do próprio cinema. Michel Chion (2009), por exemplo,
acha que o termo é limitante. Não poderíamos descrever uma dimensão auditiva
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O soundscape da modernidade: os Sound Studies e o som no cinema - José Cláudio Siqueira Castanheira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
da mesma forma que o fazemos com uma paisagem visual (de onde o conceito
teria herdado o nome) uma vez que o som não é estático. Os sons, além de
disse que uma paisagem visual deve ser, necessariamente, imóvel? E se for o
de nossa apreensão desses objetos? Nossa leitura não é linear, nem em termos
determinada classe de sons não poderia ser apontada como destoante, talvez
encontremos novos usos mais produtivos para o conceito, mesmo que à revelia
e reprodução de som.
como o rádio e o telefone são parte de um mundo que passa a se ouvir de forma
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O soundscape da modernidade: os Sound Studies e o som no cinema - José Cláudio Siqueira Castanheira
Sonoridades
diferente. Aparelhos como o Vitaphone3 são vistos como exemplos de uma nova
sonoridade, deixando claro que essa escuta que se configura está indiscutivelmente
ondas sonoras, em evento elétrico. O som passa a ser tratado como sinal dentro de
em que o conjunto das ondas sonoras refletidas nas paredes funcionava como
nos filmes. Os diálogos, vistos então como o elemento mais importante para a
sons. Novos materiais passam a revestir prédios com uma dupla função: evitar
excesso de reverberação.
conscientes de que o som tinha uma importante função a exercer e parecia natural
que a mediação tecnológica fosse a mais apropriada para isso. O próprio advento
contribuiu para que o som passasse a ser visto como mercadoria, como algo
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O soundscape da modernidade: os Sound Studies e o som no cinema - José Cláudio Siqueira Castanheira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
uma vez que não apenas o telefone e o rádio tornavam-se formas usuais de
do qual aparatos como o estetoscópio (apenas para sair da esfera dos aparelhos
sons torna-se fundamental para finalidades mais práticas, como, por exemplo,
como esteio para as novas técnicas de ouvir, dando-se atenção àqueles detalhes
sonoros que antes poderiam passar despercebidos. Notar um som um pouco mais
parte importante dessa nova escuta, entendida não como algo natural, mas como
que se estabelece entre essa perspectiva e uma história dos sentidos é muito
assim como não podemos ignorar que a própria ideia de um aparelho biológico
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O soundscape da modernidade: os Sound Studies e o som no cinema - José Cláudio Siqueira Castanheira
Sonoridades
códigos que ultrapassam as diferenças que algumas das teorias tradicionais tentam
tanto a um quanto a outro campo. Não há escuta “natural”, assim como não há
uma razão científica que dominou os séculos XVIII e XIX. Esses fatores também
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O soundscape da modernidade: os Sound Studies e o som no cinema - José Cláudio Siqueira Castanheira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Sound art
os processos pelos quais ele opera” (LABELLE, 2006, p. ix, tradução nossa).
e como essas relações podem ser percebidas ou modificadas por meios sonoros.
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O soundscape da modernidade: os Sound Studies e o som no cinema - José Cláudio Siqueira Castanheira
Sonoridades
som também pode promover um rearranjo dos papéis exercidos dentro desse
espaço por cada um de seus componentes. O som, com sua natureza temporal e
na sociedade e que podem não vir à tona se não por um exercício desse tipo.
junto com muitos outros componentes que devem ser, então, mapeados.
tecnologias, muito embora elas tenham sido tratadas neste trabalho como
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O soundscape da modernidade: os Sound Studies e o som no cinema - José Cláudio Siqueira Castanheira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Conclusão
ser uma espécie de termômetro dessas mudanças. Elas não são a causa, mas
nossas relações com pessoas e objetos talvez diga mais a nosso respeito do que
a desses modos. Como diz Sterne: “nas narrativas de ‘impacto’, tecnologias são
seres misteriosos com origens obscuras que descem do céu para ‘impactar’ as
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O soundscape da modernidade: os Sound Studies e o som no cinema - José Cláudio Siqueira Castanheira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
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STERNE, J. The audible past: cultural origins of sound reproduction. Durham: Duke University Press, 2003.
THOMPSON, E. The soundscape of modernity: architectural acoustics and the culture of listening in America,
1900-1933. Massachusetts: The MIT Press, 2002.
_____________________________________________________________
1. Trabalho apresentado no Seminário “Estudos do Som”, sessão 1, do 14º Encontro Socine, na UFPE, Recife, PE, em
outubro de 2010.
3. Sistema de reprodução de sons gravados em discos e sincronizados com a projeção da imagem, utilizado pela Warner
Brothers no final da década de 20 e início dos anos 30. O filme citado como marco inicial do cinema falado, O cantor de jazz
(Alan Crosland, 1927), foi um dos primeiros a utilizar o Vitaphone. Caiu em desuso com o advento do registro e reprodução
de sons opticamente, no próprio filme, em sistemas mais eficientes e práticos.
5. Optamos por manter o termo original em vez de sua tradução (Arte sonora) por entendermos que o primeiro ainda é usado
mais comumente, mesmo no Brasil.
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As damas do Bois de Boulogne, o musical bressoniano - Luíza Beatriz Amorim Melo Alvim
Sonoridades
Famoso por temas referentes à espiritualidade e pelo estilo recto tono de falar dos
Agnès, vivida por Elina Labourdette, além de outra sequência em que a sua rival
Hélène toca ao piano a música-tema do filme. Com efeito, Paul Guth (1945, p. 11)
relata que, ao encontrá-lo em abril de 1944, Bresson lhe revelou, sem maiores
explicações, que pensava em fazer “qualquer coisa sobre a dança”.
justamente por conta da parcimônia com que era utilizada, bem diferente
Foi talvez pensando nessas unheard melodies que Bresson reuniu em seu
livro Notas sobre o cinematógrafo várias observações suas a partir dos anos 50
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As damas do Bois de Boulogne, o musical bressoniano - Luíza Beatriz Amorim Melo Alvim
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
sobre as formas de utilização da música, como: “Música. Ela isola seu filme da
vida de seu filme (deleite musical)” (BRESSON, 2008, p.69), ou: “Quantos filmes
de algumas das notas iniciadas cinco anos depois. Por exemplo, há uma
certa economia do uso de música extra diegética, como sugere o diretor nas
Além disso, levando-se em conta que o filme foi feito durante a guerra, tendo sido
pensar que houve uma influência da busca porutopia e entretenimento, típica dos
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As damas do Bois de Boulogne, o musical bressoniano - Luíza Beatriz Amorim Melo Alvim
Sonoridades
amante: ela o incita a casar-se com uma jovem que lhe é apresentada como
transforma em Hélène (vivida por Maria Casarès), o amante Marquês des Arcis,
(Elina Labourdette).
apenas como alternativa para ganhar a vida receber homens todas as noites
no cabaret. Aos 11 minutos, é a primeira vez em que ouvimos música depois dos
Logo a seguir, vê-se uma pessoa de costas (que saberemos mais tarde ser
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XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
dançarina. A câmera sobe, enquanto começa uma música de jazz e vemos Agnès
vestida de cartola, luvas, saia preta longa e transparente sobre um collant brilhante
não vemos o seu público. Ela sorri, parecendo satisfeita com a sua performance.
A seguir, a música se altera, ficando mais lenta, assim como a dança, que se
torna mais sensual (até aí, o plano 27 do filme).6 Vemos, então, Hélène sentada
não duro, mas sim interessado”, GUTH, 1945, p.65). Agnès sapateia mais um
para trás (Joseph Cunneen, 2003, chama a atenção para que a performance é, na
verdade, mais acrobática que sensual) e continua a sua dança mais lentamente
(plano 29). Em plano próximo (30), vemos o rosto dela, sempre com fisionomia
plano americano, ela faz uma pirueta lentamente (plano 32). De novo, temos um
plano de Hélène olhando para ela (plano 33). Finalmente, depois de uma série de
piruetas (plano 34), a dançarina termina o número caindo ao chão com as pernas
totalmente abertas (plano 35) e, num plano próximo (36), saúda o público tirando
sua cartola. A performance inteira dura cerca de um minuto e meio e, de seus dez
o espetáculo do seu corpo inteiro, tal como costumava acontecer nas danças de
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As damas do Bois de Boulogne, o musical bressoniano - Luíza Beatriz Amorim Melo Alvim
Sonoridades
Fred Astaire, o número é extremamente curto e mesmo assim tem ainda dois
cortes para a figura de Hélène. É como se ela pairasse sobre todo o espetáculo,
sobre Agnès do que a dança propriamente dita. Isso nos faz pensar na forma
como Bresson utilizou a música nos seus filmes a partir de Um condenado à morte
mostrado pela câmera. Com efeito, os musicais foram um alvo comum para as
ressalta Agnès como objeto do olhar intenso de outra mulher, Hélène. Na verdade,
como mostra Thibaut Shilt, no plano em que Agnès é vista pela primeira vez,
ela é enquadrada entre duas mulheres do público sentadas nas mesas, sendo
segundo Shilt, nem de filmes americanos, nem mesmo de filmes franceses, como
Por outro lado, seja pelo tipo de música – o jazz 8 –, seja pelo
sapateado, ou ainda pela roupa – Agnès usa uma cartola –, há uma referência
personagens interpretados por Fred Astaire, quase que uma marca do ator-
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As damas do Bois de Boulogne, o musical bressoniano - Luíza Beatriz Amorim Melo Alvim
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
(que ocupava 50% dele antes da guerra). Segundo Yann Darré (2000), foram
Alguns cineastas fizeram mesmo a sua estreia nessa época, como é o caso de
francês foi aberto aos filmes americanos, havendo uma verdadeira inundação
guerra. O ator Jean Marais, por exemplo, foi proibido de encenar uma peça
na época, acusado de “zazouísmo”. Curioso é que Jean Marais era para ter
o ator já estava comprometido com outro filme, ficando o papel com Paul
de homossexualidade e zazouísmo.
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As damas do Bois de Boulogne, o musical bressoniano - Luíza Beatriz Amorim Melo Alvim
Sonoridades
apesar de curto, o número de Agnès tem bastante energia, como é comum nos
ela está bastante insatisfeita justamente por ter que ganhar a vida no cabaret.
realização do número, como mostrada por Agnès com suas cambalhotas e piruetas,
musical, algo que, como vimos, é falso em Agnès. Outro mito identificado por
Como vemos, a bela performance de Agnès não combina com a tristeza de sua
vida fora do palco. O seu casamento, a sua integração, só será possível após o
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As damas do Bois de Boulogne, o musical bressoniano - Luíza Beatriz Amorim Melo Alvim
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
próximo número.
apartamento, onde vivem reclusas. Agnès passa a vestir uma capa comprida e um
chapéu pequeno, um tanto masculinizada, como que para esconder seus encantos.
deixam-me a música”.10
do Bois de Boulogne. Ele se inicia com o plano (182) de um disco de vinil numa
vitrola, mais uma vez confirmando que a música é diegética. Logo depois de
e vai para a sala, onde está a mãe. Ela é vista, então, num enquadramento
emoldurado pela porta, sempre dançando e saltando para uma poltrona e dela
para o chão (plano 183). No plano seguinte (184), a câmera está do lado de fora
para fechar a janela, diminuindo o som. Volta um plano aberto (185) de Agnès
rodopiando pela sala. Ela sai para outro cômodo, mas a câmera permanece
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As damas do Bois de Boulogne, o musical bressoniano - Luíza Beatriz Amorim Melo Alvim
Sonoridades
na sala, mostrando a mãe. Agnès volta, vemos ainda sua dança e depois ela
fala: “quando você dança, você é outra pessoa, você se ilumina como um lustre
uma cambalhota, Agnès responde que ela quer apagar o lustre, pois resolveu
mesa, diz que resolveu parar de se disfarçar. Vemos, então, um plano da mãe
sentada, enquanto Agnès ainda fala. A mãe levanta com expressão preocupada
Agnès cai desmaiada (plano 190), tal qual a camponesa Giselle do ballet
homônimo, e diz depois ter sido o seu coração.12 No final da sequência, ouvimos
a música extra diegética correspondente a Agnès. O número dura um minuto e
dez segundos e tem oito planos, incluindo aqueles em que só aparece a mãe.
Com base nas categorias de Richard Dyer (1992), podemos dizer que há
que a mãe fecha a janela para que os vizinhos não se incomodem. Entretanto,
e transparente, pois ao mesmo tempo em que Agnès parece feliz, ela afirma
que não dançará mais. Isso se confirma com o desmaio final, um anúncio da
É curioso que numa parte do número Agnès vá para o outro quarto, mas
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XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Tudo isso mostra, mais uma vez, o “método das interrupções” de Bresson.
Vê-se também aqui uma mulher (a mãe) como o único olhar para o número
de Agnès e a ausência do olhar masculino. Para Burch e Sellier (1996), essa dança
cultura popular e erudita é bastante comum nos musicais americanos, nos quais
negros de Hélène (nome, alíás, ligado à mitologia grega) também contrastam com
(como veremos no próximo item), numa prova de sua erudição, enquanto Agnès
talvez nem saiba tocar (ou, pelo menos, isso não é mostrado, embora haja uma
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As damas do Bois de Boulogne, o musical bressoniano - Luíza Beatriz Amorim Melo Alvim
Sonoridades
de Hélène se passam totalmente sem música, como aquela em que ela e Jean
confessam um ao outro não mais se amarem. Parece, então, que Bresson reforça,
Hélène tocando o seu tema musical ao piano. Nos musicais americanos, também
Hélène de costas, tocando ao piano (plano 153). Jean entra e vemos um plano de
Hélène ao piano, enquanto Jean vai se aproximando e ficando à direita. Ele beija
a ouvir o piano (plano 154). Vemos, então, um plano médio de Hélène ao piano
(156 a 161) de Jean e Hélène, sendo que, no último, ela sai do piano (e do
campo) e os dois continuam a conversa por um longo tempo (planos 162 a 169).
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As damas do Bois de Boulogne, o musical bressoniano - Luíza Beatriz Amorim Melo Alvim
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
Então, Hélène volta ao piano, com Jean ao fundo. Depois que ela recomeça
a tocar, Jean lhe pede que pare, dizendo que o piano está insuportável. Ela
não obedece (plano 170). Plano médio de Jean (171). Ele sai, deixando Hélène
ainda ao piano. Ela termina a música e, quando percebe que Jean não está mais
interrupção, dura cinco minutos e tem muitos planos. Nela percebemos que, ao
ao que ele conta de seu desespero de não conseguir reencontrar Agnès. Uma
quanto, no final da sequência, o grito assustado dela, ao se dar conta de que Jean
já tinha ido embora.Como observa Jean Sémolué (1993), o piano tem o papel
interior de Hélène (a sua tristeza e o seu desejo de vingança), tal como acontece
com a voz over em outros filmes de Bresson, já citados aqui, como Diário de um
música é interrompida para depois ser recomeçada. Isto torna mais difícila sua
nos filmes da última fase da obra de Bresson, em que ele abole toda a música
que a música de Grünenwald que Hélène toca é uma fuga inspirada na obra
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As damas do Bois de Boulogne, o musical bressoniano - Luíza Beatriz Amorim Melo Alvim
Sonoridades
da pianista. Mais do que isso, não podemos nem mesmo nos concentrar na
música, já que Hélène e Jean conversam o tempo todo enquanto ela toca.
de Ophuls), Jacques Demy, diretor francês que ficou famoso pelos seus musicais
mostra durante o filme uma foto de cena de Agnès no cabaret. Demy confessou ter
sido As damas do Bois de Boulogne o primeiro filme que lhe fizera “compreender
que o cinema fazia parte da grande arte” (apud SÉMOLUÉ, 1993, p.27). Tudo
isso mostra uma certa genealogia da qual fariam parte o filme de Bresson e os
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As damas do Bois de Boulogne, o musical bressoniano - Luíza Beatriz Amorim Melo Alvim
Sonoridades
Referências bibliográficas
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GORBMAN, C. Unheard melodies: narrative film music. Londres: BFI Publishing, 1987.
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Cinéma, Paris, p.7-24, 59-74, 15nov. 1977.
SHILT, T. Marginal pleasure and auterist cinema - The sexual politics of Robert Bresson, Jean-Luc Godard,
Catherine Breillat e François Ozon. Disponível em <http://www.ohiolink.edu> Acesso em: 01 nov. 2009.
VIEIRA, J. L. Cinema e performance. In: XAVIER, I.(Org.). O cinema no século. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Referências audiovisuais
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As damas do Bois de Boulogne, o musical bressoniano - Luíza Beatriz Amorim Melo Alvim
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
_____________________________________________________________
1. Trabalho apresentado na sessão 2 do Seminário Temático Estudos do Somna XIV SOCINE, em Recife, PE, 2010.
2. Doutoranda. E-mail:[email protected]
3. Em As damas do Bois de Boulogne, Bresson ainda trabalha com atores profissionais, mas tentafazer com que eles se
contenham na interpretação. Já a partir do filme seguinte, Diário de um padre(1951), essa característica da fala se afirmará
com o uso de nãoatores, os chamados “modelos”.
4. Como Burch e Sellier (1996) analisam, Bresson tira das personagens femininas o cinismo da anedota libertina de Diderot,
dando a elas uma dimensão trágica. Ele aumenta consideravelmente o peso deAgnès na intriga, transformando-a numa
jovem revoltada contra o seu destino.
5. Elina Labourdette teve como professor de sapateado o mexicano Romero (GUTH, 1945).
6. A numeração de planos desta e das outras sequências analisadas corresponde à decupagem de Vincent Pinel publicada
na revista Avant-ScèneCinéma em 1977.
7. A música e o som dos sapatos eram gravados antes e, posteriormente, tanto os músicos como Elina Labourdette faziam
uma dublagem em cima do playback (GUTH, 1945).
8. Na verdade, o compositor Jean-Jacques Grünenwald disse a Paul Guth (1945) que pretendia tratar toda a música do filme
como um “jazz sinfônico” (p.46).
9. A palavra zazou apareceu pela primeira vez na canção de 1939 Eu sou swing, de Johnny Hess (primeiro parceiro de
Charles Trenet), adaptada do cantor americano CabCalloway (BURCH; SELLIER, 1996). Usaremos no texto o termo
zazouísmo para indicar o fenômeno.
11. “Quand tu danses, tu es une autre personne. Tu t’allumes comme un lustre suspendu en l’air ”, no original.
12. Em Giselle, ballet francês de 1841 com música de Adolphe Adam e libreto de Théophile Gautier, a personagem-título é uma
camponesa com problemas de coração. Ela se apaixona por um principe que se disfarçava de camponês e, ao descobrir a
farsa, dança tão apaixonadamente que acaba caindo morta.
13. Opfer, em alemão, embora possa significar “oferenda”, também tem o sentido de “vítima”, tal como Hélène se sente.
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Os sons da continuidade intensificada: o caso de Sergio Leone - Rodrigo Carreiro
Sonoridades
como uma sucessão de ciclos de ruptura, Bordwell propôs que os princípios gerais
recursos narrativos e estilísticos que busca incentivar a imersão cada vez mais
cada vez mais intensa. Bordwell sugere que, embora muitos recursos de estilo e
táticas narrativas tenham sido introduzidos desde então no cardápio dos cineastas,
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Os sons da continuidade intensificada: o caso de Sergio Leone - Rodrigo Carreiro
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
a poética, não. Um diretor pode decidir seguir ou não uma determinada estética;
narrativas (em variados graus de ênfase) para que possa ser compreendido. Esse
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Os sons da continuidade intensificada: o caso de Sergio Leone - Rodrigo Carreiro
Sonoridades
a fragmentação cronológica e espacial das tramas, com cenas mais curtas e não
que o afastou do chamado “cinema de autor” popular na Europa dos anos 1960),
Três ferramentas
destacar três recursos recorrentes principais dentro da prática estilística dele: (1)
desde os anos 1950, mas até então pouco utilizado em trilhas cinematográficas)
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Os sons da continuidade intensificada: o caso de Sergio Leone - Rodrigo Carreiro
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
efeitos sonoros; (3) a articulação mais cuidadosa entre áudio e imagem, em que
padrões recorrentes na obra dele. São características que podem ser conectadas
alcance uma imersão afetiva mais intensa ao ver os filmes; e todas essas
uma maior liberdade de atuação[nos sets]” (FABRIS, 2006, p. 206). Sem ter
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Os sons da continuidade intensificada: o caso de Sergio Leone - Rodrigo Carreiro
Sonoridades
compensar esse fato, os roteiros incluíam muitas cenas de ação física (perseguições
duração das cenas de ação, outra foi a necessidade de encontrar uma maneira
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Os sons da continuidade intensificada: o caso de Sergio Leone - Rodrigo Carreiro
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drinque, acender um cigarro, comer, dirigir, dar um laço no sapato, jogar sinuca,
etc. – que nada acrescentam à narrativa, a não ser uma dinâmica visual que
mascara o caráter verbocêntrico da cena em si: é o que está sendo dito pelos
personagens, e não o que eles estão fazendo, que faz a ação dramática avançar.
sonora da narrativa, que Chion (2009, p. 73) chama de “lacônico”. Isso pode ser
trabalhos de Leone têm menor quantidade de falas do que qualquer outro filme
1964) possui 687 linhas de diálogo em 99 minutos (menos de sete linhas por
minuto). O homem que matou o facínora (John Ford, 1962), feito dois anos antes,
contém 1093 frases em 123 minutos, quase nove por minuto – taxa idêntica a
Rastros de ódio (John Ford, 1956). Onde começa a inferno (Howard Hawks,
1959) soma 1526 linhas em 141 minutos (onze por minuto), enquanto Rio
Vermelho (Howard Hawks, 1948) é ainda mais tagarela: 1628 em 133 minutos,
179 minutos (cinco por minuto). Já Era uma vez no Oeste (Sergio Leone, 1968)
contém 686 linhas de diálogos em 175 minutos – pouco mais de quatro por
americanos de westerns psicológicos com heróis que pouco falam, como Budd
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Os sons da continuidade intensificada: o caso de Sergio Leone - Rodrigo Carreiro
Sonoridades
(Budd Boetticher, 1959) apresenta 642 frases em 73 minutos (nove frases por
minuto). Um certo Capitão Lockhart (Anthony Mann, 1955) possui 1102 linhas em
esse esquema não foi adotado por razões de comodidade narrativa. Os diretores
não impulsionam a trama para frente usando diálogos apenas porque é mais
quando nossos ouvidos detectam o timbre da voz humana (que soa dentro
conversavam durante as cenas de ação. Mas, sem poder utilizar muitos diálogos
nas demais cenas, qual ferramenta narrativa ele podia usar para manter a ação
dramática progredindo?
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Os sons da continuidade intensificada: o caso de Sergio Leone - Rodrigo Carreiro
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
raro até então: o uso abundante de sons naturais amplificados, que consistia na
de audição mais aguçado, com sons que se sobressaem com o objetivo narrativo
Esse procedimento não era comum nos anos 1960. Como as tecnologias
Hollywood, a banda sonora era preenchida com música sinfônica, que intercalava
ambiência – o que Michel Chion (2009, p. 87) chama de “vasta extensão” sonora
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Os sons da continuidade intensificada: o caso de Sergio Leone - Rodrigo Carreiro
Sonoridades
Nesse ponto, Leone seguiu a trilha aberta por pioneiros no uso dos
construção do espaço fílmico fora de quadro. Essa construção tem relação com a
o som. Ao contrário das imagens, que são projetadas numa tela e por isso têm
limites (laterais, superior e inferior), os sons são percebidos num raio de 360
graus. Ouvimos sons o tempo inteiro, pois não podemos “fechar” os ouvidos (como
Tati, vale a pena citar Stanley Kubrick e Jean-Luc Godard, todos trabalhando com
ruídos e efeitos sonoros de modo criativo–, o italiano pode ser apontado como um
Estéreo.5 Jacques Tati foi um dos grandes pioneiros dessa técnica, descrita
assim por Michel Chion:
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Os sons da continuidade intensificada: o caso de Sergio Leone - Rodrigo Carreiro
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
uma melodia, recusada pelo diretor. Então, o compositor sugeriu que Leone
cachorro que late ainda mais longe; um moinho enferrujado; uma goteira que cai
o terceiro pistoleiros, que tenta cochilar; e toda uma coleção de pequenos ruídos
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Os sons da continuidade intensificada: o caso de Sergio Leone - Rodrigo Carreiro
Sonoridades
contribuem para dotar o espaço fílmico de uma qualidade aural vívida e vibrante,
Leone abusar dos close-ups e planos fechados que sempre foram uma marca
cena é uma citação ao filme Matar ou morrer (High Noon, Fred Zinnemann,
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Os sons da continuidade intensificada: o caso de Sergio Leone - Rodrigo Carreiro
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
como motivo visual. Por fim, é possível afirmar que o moinho simboliza a
passagem do tempo, pois ele soa como um relógio. Esse som sinaliza ao
vezes o som ouvido pelo espectador durante um plano, quase sempre oriundo de
algum objeto, animal ou pessoa que está fora do quadro, chame a atenção para
esse novo elemento, que só aparecerá na imagem depois de ser ouvido, quase
sempre no plano seguinte. Através desse princípio, que pode ser percebido em
que utilizam esse recurso. Durante o plano que mostra o primeiro pistoleiro
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Sonoridades
Conclusão
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acabou por se tornar uma assinatura estilística do italiano. A abertura de Era uma
das fronteiras entre música e ruídos era, para Leone, uma realidade. Afinal,
a cena tinha mesmo sido planejada para evocar uma experiência musical. O
California, estavam entre esses alunos. Foi através deles (e de outros diretores
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Os sons da continuidade intensificada: o caso de Sergio Leone - Rodrigo Carreiro
Sonoridades
Referências bibliográficas
BORDWELL, D. The way Hollywood tells it:story and style in modern movies. Los Angeles: University of California
Press, 2006.
CHION, M. Film, a sound art. New York: Columbia University Press, 2009.
FABRIS, M. Neo-realismo Italiano. In: MASCARELLO, F. (Org.). História do cinema mundial. Campinas, SP:
Papirus, 2006. p. 191-220.
SERGI, G. The Dolby Era: film sound in contemporary Hollywood. Manchester: Manchester University Press,
1994.
Referências audiovisuais
Era uma vez no Oeste. Sergio Leone. Itália, 1968, filme 35 mm.
O homem que matou o facínora. John Ford. Estados Unidos, 1962, filme 35 mm.
Sete homens sem destino. Budd Boetticher. Estados Unidos, 1959, filme 35 mm.
Um certo Capitão Lockhart. Anthony Mann. Estados Unidos, 1955, filme 35 mm.
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Os sons da continuidade intensificada: o caso de Sergio Leone - Rodrigo Carreiro
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine
3. Estilo de composição surgido no final dos anos 1940, na França, através da utilização de sons eletrônicos e urbanos na
estrutura melódica e rítmica das composições.
4. A função só apareceu oficialmente em 1979, quando Walter Murch recebeu esse crédito pela criação e mixagem da trilha
sonora de Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola (STAM, 2003, p. 237).
5. O sistema Dolby Estéreo (1975) permitiu que os cineastas passassem a finalizar o som dos filmes com até quatro canais
inscritos na película e projetados separadamente nas salas de exibição. O Dolby Estéreo tornou-se o sistema de projeção
de áudio padrão no mundo inteiro em 1977 (SERGI, 1994).
6. Aparelho utilizado pelos montadores para cortar e colar os pedaços de negativo, que permite a possibilidade de manipulá-lo
quadro a quadro.
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XII ESTUDOS
DE CINEMA E
AUDIOVISUAL
SOCINE
ISBN: 978-85-63552-03-7