Estudos de Cinema e Audiovisual Vol. 2 - Socine - 2011

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ESTUDOS DE CINEMA E AUDIOVISUAL

SOCINE
- Volume 2 -

ISBN: 978-85-63552-03-7

ANO XIV – SÃO PAULO


2011
Laura Cánepa, Adalberto Müller, Gustavo Souza, Marcel Vieira

(orgs.)

XII ESTUDOS
DE CINEMA E
AUDIOVISUAL

SOCINE
- Volume 2 -

SÃO PAULO - SOCINE

2011
Estudos de Cinema e Audiovisual Socine – Vol. 2/ Organizadores: Laura
Cánepa, Adalberto Müller, Gustavo Souza e Marcel Silva – São Paulo: Socine
2011 –
370 p. (Estudos de Cinema e Audiovisual 2 – v. 12)

ISBN: 978-85-63552-03-7

1. Cinema. 2. Cinema brasileiro. 3. Cinema latino-americano. 4. Cinema


asiático. 5. Documentário (Cinema). 6. Audiovisual. I Título.

CDD: 791.34 (20a)


CDU: 791.4

Estudos de Cinema e Audiovisual – Socine


- Volume 2 -
____________________________
Coordenação editorial
Laura Cánepa

Capa
A partir de arte gráfica de Luiz Fernando Moura

Projeto Gráfico e Diagramação


Paula Paschoalick

Revisão
Marcos Visnadi
____________________________
1a edição digital: setembro de 2011

Encontro realizado em 2010 - Recife - Pernambuco

Socine - Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual


Diretoria da Socine

Maria Dora Mourão (USP) – Presidente


Anelise Corseuil (UFSC) – Vice-Presidente
Paulo Menezes (USP) – Tesoureiro
Mariana Baltar (UFF) – Secretária

Conselho Deliberativo

Adalberto Müller (UFF)


Afrânio Mendes Catani (USP)
Alexandre Figueirôa (Unicap)
André Gatti (UAM/Faap)
Andréa França (PUC-RJ)
Angela Prysthon (UFPE)
Cezar Migliorin (UFF)
Eduardo Morettin (USP)
Fernando Mascarello (UNISINOS)
Ilana Feldman (USP) – representante discente
Laura Cánepa (UAM)
Mahomed Bamba (UFBA)
Marcel Vieira (UFF) – representante discente
Rogério Ferraraz (UAM)
Rubens Machado Jr. (USP)
Samuel Paiva (UFSCar)
Tunico Amancio (UFF)

Comitê Científico

Bernadette Lyra (UAM)


Consuelo Lins (UFRJ)
José Gatti (UTP/UFSCar)
João Guilherme Barone (PUC-RS)
João Luiz Vieira (UFF)
Miguel Pereira (PUC-RJ)

Conselho Editorial

Adalberto Müller, Afrânio Mendes Catani, Alexandre Figueirôa, Ana Isabel Soares, André Brasil, André Gatti,
Andréa França, Anelise Corseuil, Arthur Autran, Bernadette Lyra, Carlos Roberto de Souza, Cezar Migliorin,
Cláudia Mesquita, Consuelo Lins, Eduardo Escorel, Eduardo Vicente, Egle Spinelli, Erick Felinto, Felipe Trotta,
Fernando Morais da Costa, Fernando Salis, Flávia Seligman, Gelson Santana Penha, Glênio Póvoas, Gustavo
Souza, João Guilherme Barone, José Inácio de Melo e Souza, Laura Cánepa, Leandro Mendonça, Luciana
Corrêa de Araújo, Lúcio de Franciscis dos Reis Piedade, Luiz Antonio Mousinho, Luiz Augusto Rezende
Filho, Luiz Vadico, Mariana Baltar, Mariarosaria Fabris, Maria Ignês Carlos Magno, Manuela Penafria, Marcel
Vieira, Marília Franco, Maurício de Bragança, Maurício Reinaldo Gonçalves, Newton Canitto, Roberto Franco
Moreira, Rogério Ferraraz, Rosana de Lima Soares, Samuel Paiva, Sheila Shvarzman, Sílvio Da Rin, Suzana
Reck Miranda, Vicente Gosciola, Victa de Carvalho, Zuleika Bueno

Comissão de Publicação

Laura Cánepa, Adalberto Müller, Gustavo Souza, Marcel Vieira


ENCONTROS ANUAIS DA SOCINE

I 1997 Universidade de São Paulo (São Paulo-SP)


II 1998 Universidade Federal do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro – RJ)
III 1999 Universidade de Brasília (Brasília – DF)
IV 2000 Universidade Federal de Santa Catarina (Florianópolis – SC)
V 2001 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Porto Alegre – RS)
VI 2002 Universidade Federal Fluminense (Niterói – RJ)
VII 2003 Universidade Federal da Bahia (Salvador – BA)
VIII 2004 Universidade Católica de Pernambuco (Recife – PE)
IX 2005 Universidade do Vale do Rio Dos Sinos (São Leopoldo – RS)
X 2006 Estalagem de Minas Gerais (Ouro Preto – MG)
XI 2007 Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro – RJ)
XII 2008 Universidade de Brasília (Brasília – DF)
XIII 2009 Universidade de São Paulo (São Paulo – SP)
XIV 2010 Universidade Federal de Pernambuco (Recife - PE)
XV 2011 Universidade Federal do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro - RJ)
Sumário

- Volume 2 -

Cinema brasileiro

11 Prenúncios da diversidade no filme Esses moços pobres moços ricos moços


Alexandre Figueirôa

21 Queremos a imagem nua e crua que se vê na rua:


táticas estéticas e políticas em filmes experimentais piauienses
Frederico Lima e Edwar Castelo Branco

32 Recife na rota do mundo:


o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos
Luciana Corrêa Araújo

49 Cine-Produções Fenelon, Cinédia S. A. e o cinema independente


Luiz Alberto Rocha Melo

63 O cangaço no cinema brasileiro


Marcelo Dídimo Souza Vieira

76 O filme de mistério: colaborações para o estudo genérico no cinema no Brasil


Rafael de Luna Freire

90 Movimentos da violência em Madame Satã


Ramayana Lira

100 Entre a ficção e o documentário no cinema alternativo


Roberto Moura

113 A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona


Wilton Garcia
Cinema mundial contemporâneo

131 A câmara autoconsciente e a função das repetições em Lake Tahoe,


de Fernando Eimbcke
Aleksandra Jablonska

141 O local, o comum e o mínimo


Denilson Lopes

156 Recursos frente à passagem do tempo


Fábio Allan Mendes Ramalho

170 Nos contornos do vazio: Gerry e os cinemas de deserto


Fernando de Mendonça

180 A construção da destruição: Jia Zhang-ke e a iminência da catástrofe


Lúcia Ramos Monteiro

193 Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático


Ludmila Moreira Macedo de Carvalho

Documentário

209 As imagens, os seus circuitos e modalidades expositivas:


o caso do cinejornal Ita-Jornal – Porto Alegre, 1927
Alice Dubina Trusz

226 Elementos estilísticos da trilogia Qatsi


André Bonotto

236 Narrativa indireta livre em Serras da desordem e 500 almas


Francisco Elinaldo Teixeira

246 O documentário animado e a leitura não ficcional da animação


Jennifer Serra
258 Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória
Juliana Martins Evaristo da Silva

273 Forma-ensaio e documentário-biografia: contaminações, jogos, estética e política


Patrícia Rebello da Silva

286 Acaso, morte e significação no documentário Um corpo subterrâneo


Patrícia da Costa Vaz

Sonoridades

301 Assim era a música da Atlântida: a trilha musical do cinema popular brasileiro no
exemplo da companhia Atlântida Cinematográfica
Sandra Ciocci e Claudiney Carrasco

314 Montagem, canto e música em Alberto Cavalcanti


Fernanda Aguiar Carneiro Martins

325 O soundscape da modernidade: os Sound Studies e o som no cinema


José Cláudio Siqueira Castanheira

339 As damas do Bois de Boulogne, o musical bressoniano


Luíza Beatriz Amorim Melo Alvim

354 Os sons da continuidade intensificada: o caso de Sergio Leone


Rodrigo Carreiro
Cinema brasileiro
Prenúncios da diversidade no filme Esses moços pobres moços ricos moços - Alexandre Figueirôa
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Prenúncios da diversidade no filme

Esses moços pobres moços ricos moços1

Alexandre Figueirôa (UNICAP)2

Apesar do tempo sombrio e do clima de repressão política provocados pelo


regime militar, a década de 70 prenunciou, nos bastidores da vida cultural brasileira,

movimentos de contestação aos padrões estabelecidos. No teatro, na música, no

cinema, se muitos artistas e criadores não podiam expressar abertamente suas

convicções políticas e ideológicas, tampouco perdiam a oportunidade de lançar

mão dos meios disponíveis para revelar de alguma forma suas inquietações.

No Recife, não foi diferente e a revisão crítica dos padrões de comportamento

impostos pela cultura oficial deu os primeiros sinais de vida exatamente nesse

período em que o “desbunde” acionou o espírito transgressor que abriria espaço

para o homoerotismo tornar-se uma atitude desafiadora aos modelos vigentes

como atesta João Silvério Trevisan, no seu livro Devassos no paraíso:

Ainda que a contragosto, a cruel ditadura brasileira instaurada


a partir de 1964 imprimiu um impulso peculiar em certas áreas
da vida nacional, nos anos 70. A urgência de uma modernização
em ambiente avesso à prática política democrática talvez tenha
favorecido, entre os jovens, o surgimento de movimentos de
liberalização nem sempre alinhados com orientações ideológicas
precisas. Daí porque uma das palavras-chave do período foi
“desbunde”. Alguém desbundava justamente quando mandava
às favas – sob aparência frequente de irresponsabilidade –

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Prenúncios da diversidade no filme Esses moços pobres moços ricos moços - Alexandre Figueirôa
Cinema brasileiro

os compromissos com a direita e a esquerda militarizadas da


época, para mergulhar numa liberação individual, baseada na
solidariedade não-partidária e muitas vezes associadas ao
consumo de drogas ou homossexualidade (então recatadamente
denominada “androginia”) (TREVISAN, 2007, p.284).

Foi nesse ambiente que vimos surgir, em Pernambuco, evidências de

que também no Nordeste nem todos estavam de acordo em reproduzir o retrato

existencial, social e cultural do homossexual marcado predominantemente pelo

preconceito e a caricatura. Na música, o cantor compositor Flavio Lira gravou,

em 1974, pela Rozemblit, no selo Solar (o mesmo que lançou Lula Cortes e Zé

Ramalho), o disco Flaviola e o bando do sol, autêntico representante da onda

musical psicodélica do período, no qual algumas canções deixavam entrever

referências ao amor entre pessoas do mesmo sexo, a partir de uma matriz

lírica e romântica. O melhor exemplo no disco é a canção Do amigo, cuja letra

enaltece o reencontro amoroso e fraterno de dois amigos. No teatro, na mesma

época, surgiu em Olinda o Grupo Vivencial. De postura anárquica e com nítidas

influências do Tropicalismo e dos Dzi Croquettes, o grupo usava a linguagem

teatral para provocar o regime militar e o autoritarismo político e moral imposto ao

país. Em suas peças, abordava de maneira ousada e irreverente as questões que

inquietavam os seus jovens integrantes, sobretudo as relativas à liberdade sexual,

ao uso do corpo e ao homoerotismo. O Vivencial permitiu que o travestismo, por

exemplo, fosse uma condição inerente de suas montagens, pois para o grupo os

limites dos papéis sexuais eram fluidos e intercambiáveis e, tão simples quanto

ser cenógrafo, iluminador ou ator, era natural ser homem, mulher ou bicha. Ao

dar visibilidade a esse processo no palco, o grupo transformou essa transgressão

estética em transgressão de comportamento, sintonizando suas empreitadas

artísticas com as mudanças que o mundo começara a experimentar a partir dos

movimentos de liberação das minorias étnicas e sexuais.

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Prenúncios da diversidade no filme Esses moços pobres moços ricos moços - Alexandre Figueirôa
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

No cinema, esse período é marcado, em Pernambuco, pelo que se designa

de Ciclo do super 8, uma movimentação que envolveu diversos realizadores

e produziu cerca de 250 obras, entre documentários, filmes de ficção e filmes

experimentais. O pernambucano Jomard Muniz de Britto foi um dos mais atuantes

realizadores em super 8 no Recife entre os anos de 1973 e 1983 com filmes de

destaque como O palhaço degolado (1977), Inventário de um feudalismo cultural

(1978) e Jogos frutais frugais (1979). O cineasta reconhecia as limitações técnicas

da bitola, mas encarava a realização de filmes amadores em super 8 como um

instrumento cultural aberto à experimentação. Sua produção se caracterizou por

um diálogo constante com as artes plásticas, o teatro e o próprio cinema e os filmes

por ele realizados buscavam escapar das regras e estilos impostos pela cultura

oficial. Além de questionar a realidade sócio-cultural do período, Jomard Muniz de

Britto tratou de forma inovadora temas considerados à margem pelos círculos bem

pensantes. Entre esses trabalhos estão Noturno em Ré (cife) maior (1981), sobre

as aventuras de um vampiro bissexual na noite do Recife e de Olinda, e Esses

moços pobres moços ricos moços, pequeno filme rodado em 1975, inspirado pela

canção Esses moços pobres moços de Lupicínio Rodrigues, cantada por Gilberto

Gil, cujas imagens evocam o relacionamento amoroso entre dois rapazes.

Interessado em pesquisar novas linguagens e revelar por meio da imagem

as contradições da cultura tradicional, Jomard Muniz sempre buscou fazer um

cinema performático, em que a linguagem corporal ganhava destaque e mostrava

sua obra como uma extensão vivencial do próprio autor. O homoerotismo está

presente no seu cinema, portanto, não apenas como um tema, mas como uma
tomada de posição pessoal de modo a dar visibilidade a uma possibilidade afetiva

que, a despeito das condições de produção destes filmes, pudesse ampliar de

alguma forma a circulação de ideias. Esses moços pobres moços..., por trás de

sua ingenuidade e simplicidade narrativa e estética, evidencia um discurso que

abria outra frente de ruptura temática, ocupando um espaço expressivo onde

a censura e o patrulhamento ideológico era menos rigoroso, e que permitiu ao

próprio artista explorar em produções posteriores o tema da homossexualidade

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Prenúncios da diversidade no filme Esses moços pobres moços ricos moços - Alexandre Figueirôa
Cinema brasileiro

de forma mais aberta – como nos filmes realizados em parceria criativa com o

Vivencial, cuja transgressão se tornou notória ao discutir, em seus espetáculos,

tanto a situação política do país quanto a liberdade sexual, abrigando em seu seio

artistas, intelectuais e travestis.

Não duvidamos da contribuição que este filme aparentemente “inocente”

deu para a abertura de um campo mais flutuante das relações afetivas, assim como

suas imagens anunciavam mais uma porta para que outros espaços expressivos

da cultura e do cinema brasileiros abordassem a questão da homossexualidade

fora dos estereótipos e das caricaturas em geral presentes na cinematografia

nacional, como tão bem demonstra Antonio Moreno em seu livro A personagem

homossexual no cinema brasileiro. Moreno catalogou, entre a década de 20

e o início dos anos 80, 127 filmes com personagens homossexuais – e, dos

67 filmes analisados por ele, a maioria aborda o personagem homossexual de

maneira pejorativa:

A maioria dos filmes, 62,68%, apresenta um enfoque pejorativo


sobre o homossexualismo, e 43,30%, o conjunto de discurso
pejorativo e gestualidade estereotipada. Estes filmes contribuíram
para a formação de um personagem-tipo do homossexual. E
ainda quando não condenam o comportamento da personagem,
a utilizam como um gay clown, um homossexual palhaço, ou a
colocam como algo depravado, doente, criminoso, freqüentador
dos piores bas-fond” (MORENO, 2001, p. 280).

Segundo Moreno, no Brasil, até o final dos anos 50, as histórias dos

filmes abordavam o homossexual de maneira até certo ponto brincalhona e

carnavalesca. Na década de 60 começa a se observar a acentuação da tendência

de um discurso pejorativo em relação a estes personagens, com poucas exceções

(como foi o caso do filme O menino e o vento, de Carlos Hugo Christensen, de

1966). A partir dos anos 70, Moreno constatou diversas abordagens do tema e,

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Prenúncios da diversidade no filme Esses moços pobres moços ricos moços - Alexandre Figueirôa
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

sobretudo nos filmes eróticos e nas pornochanchadas, o teor pejorativo acentuou-

se e a presença de um travesti ou de um homossexual tipo “bicha louca” ficou

obrigatória e patente (MORENO, 2001, p. 283).

A produção superoitista dos anos 70, no entanto, pela sua própria natureza

e contexto sociocultural alternativo, parece ir de encontro a essa normatização

comprovada por Moreno na produção comercial de longas-metragens. Muitos

realizadores pelo Brasil afora e em Pernambuco levaram para a tela obras

que abriram uma nova perspectiva na abordagem da temática homossexual.

Podemos mesmo afirmar que eles delinearam, no âmbito do audiovisual, algumas

das primeiras iniciativas de um estilo de arte que Wilton Garcia, em seu estudo

sobre homoerotismo e imagem, classifica como homoarte. Estes filmes, como foi

o caso de Esses moços..., apresentam elementos discursivos que prenunciam,

na sua constituição, pelo menos uma das premissas elencadas pelo autor na

construção deste conceito:

Parece-me que a homoarte pode ser considerada, por uma


lógica formal, sob uma determinada produção artística, que
contenha em seu desenvolvimento alguns aspectos circundando
uma estratégia positiva da temática, como: a ação afirmativa
de uma cena homoerótica em um filme ou uma fotografia com
dois rapazes gays ou duas moças lésbicas presentes. Nesta
circunstância, verifica-se a materialidade disposta na cena,
que relaciona conteúdo/objeto a partir de recursos técnicos
e estilísticos, em que o posicionamento do sujeito é visto de
maneira afirmativa. O produto contextual, centrado nessas
narratividades identitárias/culturais, apresenta-se no “estilo” de
uma vivência e/ou prática, na qual arte e sexualidade (inter)
cambiam-se (GARCIA, 2004, p.170).

Jomard vislumbrava, na produção de filmes em super 8, o caráter

diversificado que esse suporte possibilitava e como ele podia ser, mesmo dentro

de suas limitações – técnicas e de circulação numa esfera pequeno-burguesa –,

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Prenúncios da diversidade no filme Esses moços pobres moços ricos moços - Alexandre Figueirôa
Cinema brasileiro

um excelente instrumento contra a cultura oficial domesticadora, não apenas no

âmbito político, mas também dos costumes:

Quando fiz Babalorixá Mário Miranda, Maria Aparecida


no Carnaval, um professor universitário disse: “Mas como
Jomard faz um filme sobre uma bicha?”. Isso mostrava o total
desconhecimento dele deste universo, porque Maria Aparecida
é um pai de santo e não é só viadagem, é toda uma cultura que
tem vida própria (apud FIGUEIRÔA, 1994, p. 186).

Os filmes rodados por Jomard Muniz de Britto não escondiam, portanto,

sua intenção de desmascaramento e de afirmação positiva com relação ao

estatuto do homossexual, independente de sua posição social, de modo a levar

os espectadores a questionar os papéis sociais impostos. Para ele, não estava

em jogo ser porta-voz de uma dada comunidade, mas sim borrar as fronteiras

e romper os limites do trânsito ainda, naquele período, fortemente demarcado

dos atores dos processos socioculturais, de modo a dar-lhes visibilidade. Em

Esses moços pobres moços ricos moços, ele flagrava o espaço da classe

média, voltando seu olhar exatamente para o espaço privilegiado para o qual a

bitola super 8 tinha sido comercialmente direcionada, com a função de atender

às demandas de registro do lazer doméstico da pequena burguesia. Todavia,

em vez de apresentar os personagens usuais de filmes caseiros – famílias

tradicionais entretidas em suas atividades diletantes –, neste filme vemos dois

jovens percorrendo os jardins de uma casa de classe média, em que não pairam

dúvidas sobre o envolvimento afetivo/erótico existente entre eles. Apesar da

ausência de diálogos, o gestual dos dois rapazes e a forma como a câmera

os enquadra constrói um clima crescente de aproximação amorosa, impressão

reforçada com a trilha musical que acompanha as cenas.

O filme inicia-se com os dois rapazes entrando no jardim onde vemos um

portão ao fundo, alusão da existência de um mundo exterior que é deixado para

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Prenúncios da diversidade no filme Esses moços pobres moços ricos moços - Alexandre Figueirôa
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

trás. Aparece a estatueta de garoto com bandolim e inicia a música de fundo, Esses

moços, de Lupicínio Rodrigues, cantada por Gilberto Gil. Os rapazes dedicam-

se, então, a atividades prosaicas típicas do lazer burguês, como a admiração

de objetos artísticos existentes no jardim da casa. Depois, um deles se deita na

grama enquanto o outro se aproxima de uma vidraça onde vemos seu reflexo. Em

seguida, ambos estão lendo em silêncio, sentados em espreguiçadeiras. A câmera

então se aproxima do rosto de um deles, sugerindo que ele dorme e sonha. Vemos

a água de uma piscina. Depois, os dois rapazes aparecem sem camisas e se

aproximam um do outro. No plano seguinte vestem sungas e tomam banho de sol,

balançam na rede e mergulham numa piscina com outros adolescentes. A câmera

faz plano das nádegas de ambos. Volta o rosto do rapaz que dorme. Vemos na

sua mão o livro Angústia, de Graciliano Ramos. Em seguida vemos que o outro

rapaz lê Alexandre e outros heróis, também de Graciliano. Logo, há um corte

para a imagem dos dois rapazes agora vestidos, no portão, olhando para a rua. O

jovem que sonhou aparece caminhando entre crianças no lado de fora do portão.

Há um close no rosto do que ficou por trás do portão. Reaparece a estatueta

do garoto com bandolim. Os dois se entreolham e caminham para os arbustos

até desaparecerem, por trás dos arbustos, da visão do espectador. Vemos os

arbustos se moverem rapidamente, sugerindo que eles estão transando. Novo

detalhe da estatueta. Os dois rapazes reaparecem. Agora estão mais afetivos um

com o outro e um deles afaga o cabelo do companheiro. Eles entram na casa com

um dos rapazes passando a mão sobre o ombro do outro. Pelo reflexo da vidraça,

vemos um deles sentado sem camisa e o outro se aproximando. Uma cortina

vela a imagem. Neste momento, volta a música Esses moços. Os dois rapazes

reaparecem sorridentes no jardim. O filme acaba.

Como podemos perceber, o filme é construído como um jogo, uma

brincadeira repleta de possibilidades e que leva o espectador a um mundo de

ambiguidades, marca constante da filmografia de Jomard Muniz de Britto. Neste

sentido, na narrativa, é emblemático o uso da canção Quem nasceu, cujo refrão

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Prenúncios da diversidade no filme Esses moços pobres moços ricos moços - Alexandre Figueirôa
Cinema brasileiro

repete “é tudo mentira, é tudo figura”, sendo a mentira aqui colocada não no

seu sentido negativo, mas como provocação, em que se insinua que o amor

homoerótico sugerido pela narrativa (sobretudo, naquela época) era sempre

muito mais um espaço de dúvidas e insinuações entre aquilo que seria real e

o que seria imaginado. Segundo o próprio Jomard, ele rodou o filme em uma

casa da aristocracia intelectual pernambucana com quem ele mantinha relações

e aproximação suficiente para dizer que ia rodar um filme sem informar o seu

conteúdo. Ação transgressora, relatada por ele, de interpenetrar espaços

reservados e de aparência conservadora da cidade do Recife para desnudá-los e

ressignificá-los. Ele também tinha em mente ao rodar Esses moços..., um diálogo

do filme Hiroshima meu amor, de Alain Resnais, em que um dos protagonistas

afirma “eu sou uma pessoa de moral duvidosa” e ao ser questionado sobre “o que

isto significa”, responde: “eu duvido da moral dos outros”.

Apesar das ambiguidades, é inegável que temos no filme uma

afirmação da homossexualidade como um lugar de quebra das normas,

mas ela não é uma imposição. Os gestos dos rapazes não seguem uma

encenação estereotipada de afetação ou uma composição efeminada –

inclusive, segundo Jomard, os atores amadores não eram gays, porém nada

impede que os consideremos assim. Os planos finais com os dois rapazes

sorrindo para a câmera devolvem ao espectador a ideia de que o amor entre

iguais é, sim, uma possibilidade, mas isto deve ser decidido por quem os

vê. Os dois jovens podem estar rindo tanto do jogo encenado pelas imagens

sugeridas quanto de alegria pela descoberta do prazer homoerótico.

É nesta direção que compreendemos o valor deste filme e o seu papel

como fomentador de uma reflexão que, junto a outros trabalhos artísticos dos

anos 70, pavimentou o caminho percorrido posteriormente pela homoarte como

elemento de provocação e de indagações. Pequenas produções independentes,

circulando em espaços alternativos, permitiram que a homoarte não fosse um

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Prenúncios da diversidade no filme Esses moços pobres moços ricos moços - Alexandre Figueirôa
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

modelo congelado, mas uma ação expressiva em constante mutação, aberta

e plural. Filmes como Esses moços... ganhavam força ao serem exibidos em

mostras e festivais e estabeleciam um diálogo, fomentando a criação de uma

rede identitária compartilhada com outras obras em diversos estados brasileiros.

Eles fortaleceram os laços e vínculos de expressivos grupos sociais por meio

de um olhar artístico capaz de transformar a diversidade dos afetos em uma

realidade palpável e possível de ser vivenciada. Por esta razão, consideramos

fundamental recuperar a memória destes filmes, de forma a mostrar a importância

dessas atitudes transgressoras na produção audiovisual – e que não podem de

maneira alguma ser esquecidas.

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Prenúncios da diversidade no filme Esses moços pobres moços ricos moços - Alexandre Figueirôa
Cinema brasileiro

Referências bibliográficas

FIGUEIRÔA, Alexandre. O cinema super 8 em Pernambuco. Recife: Fundarpe, 1994.

GARCIA, Wilton. Homoerotismo & imagem no Brasil. São Paulo: Nojosa, 2004.

MORENO, Antônio. A personagem homossexual no cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Funarte, 2001.

STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Trad. de Fernando Mascarello. Campinas: Papirus, 2003.

TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso. Rio de Janeiro: Record, 2007.

XAVIER, Ismail. O olhar e a cena: melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues. São Paulo:
Cosac&Naify, 2003.

Referências audiovisuais

Babalorixá Mário Miranda, Maria Aparecida no Carnaval. Jomard Muniz de Britto. Brasil, 1974, filme super 8.

Esses moços pobres moços ricos moços. Jomard Muniz de Britto. Brasil, 1975, filme super 8.

Hiroshima meu amor. Alain Resnais. França, 1959, filme 35 mm.

Inventário de um feudalismo cultural. Jomard Muniz de Britto. Brasil, 1978, filme super 8.

Jogos frutais frugais. Jomard Munis de Britto. Brasil, 1979, filme super 8.

Noturno em Ré(Cife) Maior. Jomard Muniz de Britto. Brasil, 1981, filme super 8.

O menino e o vento. Carlos Hugo Christensen. Brasil, 1966, filme 35 mm.

O palhaço degolado. Jomard Muniz de Britto. Brasil, 1977, filme super 8.

_____________________________________________________________

1. Trabalho apresentado na mesa Diversidade cultural/sexual no cinema brasileiro

2. Professor Adjunto. E-mail do autor: [email protected]

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Queremos a imagem nua e crua que se vê na rua: táticas estéticas e políticas em filmes experimentais piauienses - Frederico Lima e Edwar Castelo Branco
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Queremos a imagem nua e crua que se vê na rua:

táticas estéticas e políticas em filmes experimentais piauienses


Edwar Castelo Branco (UFPI)3

Frederico Lima (UFU)4

Bricolagem, pastiche e alegorias em Super-8

Partindo do pressuposto de que os vestígios que descrevem as ações

simbólicas do passado não são textos inocentes e/ou transparentes (HUNT, 1992),

este trabalho propõe entender um conjunto de filmes experimentais realizados em

Teresina, no início da década de 1970, como um esforço histórico de constituição

de uma linguagem fílmica capaz de problematizar as identidades, o tempo e o

lugar de uma geração de jovens piauienses que, sob a influência de Torquato

Neto, em sua companhia ou mesmo nos anos imediatamente após a sua trágica

morte, sustentaram uma guerrilha semântica com a qual procuravam escapar da

captura de suas subjetividades pelas formas dominantes de pensamento.

Como se sabe, a representação alegórica, a qual emergiria do fracasso

da arte simbólica em captar um mundo cada vez mais marcado por desencaixes

e abstrações (GIDDENS, 1991), colocaria em xeque a ideia, própria da

representação simbólica, de que as intenções e os conceitos entrariam com

facilidade e com conforto na representação. Os filmes em estudo, marcas de

um mundo crescentemente desencaixado e habitado por sujeitos cada vez mais

21
Queremos a imagem nua e crua que se vê na rua: táticas estéticas e políticas em filmes experimentais piauienses - Frederico Lima e Edwar Castelo Branco
Cinema brasileiro

descentrados, representam uma gama variada de motivações e estratégias de

linguagem que desconfiam da forma e utilizam, entre outros recursos, o grotesco,

a deformação e a assimetria para cavar um fosso entre arte e realidade, tornando

a arte autônoma em relação à representação das coisas.

A representação alegórica é própria da arte moderna, o que poderia sugerir

um enquadramento do experimentalismo fílmico em estudo dentro do amplo

quadro da modernidade brasileira. Por outro lado, para além da alegoria, é muito

comum, nestes filmes, o recurso à bricolagem e ao pastiche, o que os poderia,

também, articular a uma arte pós-moderna (JAMESON, 1966). Não é intenção

deste estudo, entretanto, fazer tais enquadramentos, ainda que o modelo teórico

permaneça como uma referência conceitual que vem sendo bastante significativa

para o desenvolvimento do trabalho.

Em Teresina, no início dos anos 1970, em um ambiente intensamente

marcado pela repressão e pela censura, parcela da juventude piauiense se valeria

de bitolas domésticas de super-8 milímetros para compor uma contralinguagem

cuja receita fora dada, pouco antes, por Torquato Neto, especialmente através

de textos-manifesto que publicaria em sua efêmera coluna Geleia geral, a qual

manteve por poucos meses no jornal Última Hora, do Rio de Janeiro (TORQUATO

NETO, 1982). As margens dessa contralinguagem seriam dadas, por um lado,

pela ideia de que as palavras são “poliedros de faces infinitas” dos quais é preciso

sempre desconfiar. Por outro lado, essa contralinguagem se constituiria através

de um inglório esforço para superar as metáforas, desnudando a realidade de sua

carga ideológica e a revelando de forma nua e crua (CASTELO BRANCO, 2005;

TORQUATO NETO, 1982).

No caso específico dos filmes piauienses, inclusive no caso de O terror da

vermelha (Torquato Neto, 1972), esta contralinguagem iria se expressar através de

um esforço para vampirizar e bricolar dispositivos disciplinares, levando ao limite a

luta da imagem contra o corpo obediente. Torquato Neto, Durvalino Couto, Arnaldo

Albuquerque, Edmar Oliveira, entre outros, não assinariam seus gestos e filmes

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Queremos a imagem nua e crua que se vê na rua: táticas estéticas e políticas em filmes experimentais piauienses - Frederico Lima e Edwar Castelo Branco
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

como portadores de uma nova autoria comportamental ou estilo cinematográfico,

mas, ao contrário, apontariam para o fato de que a luta que se desenvolvia

naquele momento só poderia ser vencida com um misto de bom humor, ironia e

bricolagem. Por isso procuraram reivindicar para si o direito de ser agente social

das pequenas – porém significativas – mudanças que aconteciam no ambiente

cultural da cidade de Teresina no início dos anos 1970.

Neste esforço para subverter o cotidiano de uma sociedade que, ao

longo de séculos, vigiou e puniu, perseguiu e disciplinou, jovens artistas

fizeram incursões pela música, pela poesia, pela literatura e mesmo pela

pintura. Mas foi no cinema que encontraram uma forma satisfatória de

representar o cotidiano que queriam.

Após meia década escrevendo letras de músicas e publicando furtivamente

em encartes de jornal ou em jornais mimeografados, eles legaram para os

historiadores um acervo considerável de fontes hemerográficas. Comunicação,

Gramma e O Estado Interessante são exemplares da geração mimeógrafo que

circularam em Teresina no início dos anos 1970 e que, sendo editados pelo

grupo, anunciavam seus ideais estéticos, políticos e comportamentais. Em pouco

mais de dois anos fazendo filmes, o mesmo grupo legou mais de uma dezena

de exemplares filmados em Super-8 milímetros, o que representa um importante

recurso para o conhecimento da memória do experimentalismo fílmico não apenas

piauiense, mas brasileiro, em suas múltiplas facetas.5

Esses filmes, vistos em conjunto, apresentam uma geração multifacetada de

artistas cujas diferenças convergem para o esforço de questionar o comportamento

social dócil e padronizado. E, como é comum que aconteça, aquelas obras

receberiam diferentes significações. Para alguns, seriam apenas imagens

desconexas e mal elaboradas, “A imagem da preguiça e da inaptidão política”

(EDITORIAL, 1973), opinião que colaboraria para o esquecimento e abandono

a que foram relegados estes filmes. É inegável, entretanto, que, superada uma

visão grandiloquente que tudo só enxerga pela lente da macropolítica, tais filmes

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Queremos a imagem nua e crua que se vê na rua: táticas estéticas e políticas em filmes experimentais piauienses - Frederico Lima e Edwar Castelo Branco
Cinema brasileiro

revelam um forcejar historicamente importante: a própria constituição, no cenário

social brasileiro, de um novo campo, o da micropolítica (CASTELO BRANCO,

2005). Nesse novo campo, abandonada a preocupação com os grandes temas,

tais como os partidos e as eleições, parcelas da juventude arrastariam para a

arena da política temáticas até então pouco relevantes, tais como o corpo, a

sexualidade, a família etc.

A sociedade teresinense assistiria assustada à chegada dos primeiros

cabeludos à cidade. Muitas matérias dos jornais locais, no início dos anos 1970,

registram uma reação conservadora através da qual, entre outras coisas, várias

escolas da cidade proibiam ou cancelavam matrículas de alunos cabeludos. A

fala do professor Moacir Madeira Campos, então diretor do Ginásio Leão XIII,

um tradicional colégio de Teresina dos anos 1970, sintetiza a opinião das formas

então dominantes de pensamento na cidade:

Sou contra o uso dos cabelos longos pelos homens e não


permito que rapazes de abastadas e afeminadas cabeleiras
freqüentem o meu colégio. Sou contra porque acho que esse
costume desmasculiniza o homem, fazendo-lhe ficar com
gestos afeminados. Não concordo também com quem diz que
os cabeludos representam uma nova corrente cultural e que o
cabelo grande é um protesto da juventude. Para mim eles não
querem protestar nada e a maioria deles usa longas cabeleiras
apenas para mostrar que está em dia com a moda, sem que
isso traduza nenhuma tomada de posição diante dos problemas
sociais e culturais do mundo (MADEIRA CAMPOS, 1972).

Esse embate seria parte da argamassa com a qual o experimentalismo

fílmico piauiense trabalharia: filmes como David vai guiar (Durvalino Couto, 1972),

Miss Dora (Edmar Oliveira, 1974), Coração materno (Haroldo Barradas, 1974) e

O terror da vermelha forcejariam contra essa interdição, procurando criar novos

espaços e recursos sociais de significação.

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Queremos a imagem nua e crua que se vê na rua: táticas estéticas e políticas em filmes experimentais piauienses - Frederico Lima e Edwar Castelo Branco
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Operações sub-reptícias de ultrapassagem dos limites da cidade

O filme David vai guiar pode ser visto como uma das expressões do

desbunde e do deboche para com os padrões e clichês sociais que imperavam

em Teresina no início da década de 1970, no mesmo momento em que o País se

encontraria embriagado com o “milagre brasileiro”. No filme, dezenas de jovens

caminham preguiçosamente pelas ruas de Teresina, divertindo-se em afrontar a

azeitada engrenagem disciplinar. Trocadilho com o nome do principal protagonista

– Davi Aguiar –, o título remete às intenções centrais do filme: utilizar as noções de

guia e contraguia para, a partir de um deslocamento sobre a cidade de Teresina, ir

dando visibilidade e afrontando os instrumentos pan-ópticos de controle do espaço

urbano, como os sinais de trânsito.

A cidade que emerge na tela, composta por um cenário bucólico que revela

pacatos bate-papos de final de tarde nas calçadas, é repentinamente submetida a

uma vertigem expressa por motocicletas e automóveis que deslizam por suas ruas

em alta velocidade. Ao som ao mesmo tempo agressivo e melancólico da banda

de rock Pink Floyd, o protagonista sorri quase furiosamente, enquanto, cabelo ao

vento e a pretexto de guiar sua motocicleta, arrasta os olhares na contramão. O

argumento do filme se concentra em um esforço para ler os signos da cidade a

partir de uma afronta aos regulamentos. O destaque é dado às placas de trânsito,

as quais são consumidas sempre no sentido da negação.

O gesto de subverter os regulamentos do trânsito, expressivos fragmentos

do discurso urbanista, configurariam uma escrita alternativa de Teresina. Como

já se observou, o gesto de caminhar pela cidade – que equivale a deslocar-se

na cidade – constitui uma atividade enunciativa, através da qual os caminhantes,

delinquentemente, subvertem a cidade idealizada pelas estratégias do discurso

utópico urbanista, revelando, em seu interior, “as práticas microbianas, singulares e

plurais” (CERTEAU, 1994, p. 175) que também a fazem. A subversão caminhante,

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Queremos a imagem nua e crua que se vê na rua: táticas estéticas e políticas em filmes experimentais piauienses - Frederico Lima e Edwar Castelo Branco
Cinema brasileiro

expressa em David vai guiar, não se faz apenas no sentido da negação, mas

principalmente da bricolagem. Esta bricolagem multiplica as possibilidades da

cidade através de uma operação sub-reptícia de ultrapassagem de seus limites.

Símbolos nas roupas, uma camisa vermelha com o nome Gellati

aparecendo aqui e acolá, um cartaz com um leão com a boca aberta no centro, uma

paisagem urbana de contrastes, uma chaminé de fábrica fumando o progresso,


um papelote de maconha que sub-repticiamente aparece entre uma cena e outra,

giros de corpo com a câmera no ombro, movimentos desconexos da câmera à

procura de algo indefinido. Não há, no filme, começo, meio ou fim. São imagens

apenas! Muito mais que o Cinema Marginal do Sudeste e sua tentativa de explodir

com a representação,6 o cinema experimental piauiense não conheceu regras


de filmagem, não contratou atores, não exibiu seus filmes em cinemas nem se

vinculou a qualquer postura no âmbito da teoria do cinema.

Torquato Neto, poeta piauiense que se notabilizou, entre outras coisas,

pelos debates que sustentou com Glauber Rocha (ROCHA, 1997) em sua coluna

Geleia Geral, já citada, em suas raras – mas promissoras – experiências fílmicas

evidenciaria uma prática de filmagem que desafinaria em relação às noções

estéticas que norteavam o olhar da crítica sobre o cinema nacional. Notadamente

hoje, quando são feitas recorrentes releituras do Cinema Brasileiro dos anos 1960

e 1970,7 a obra de Torquato Neto – assim com as obras de Durvalino Couto,


Arnaldo Albuquerque e Edmar Oliveira – não se vincula facilmente a rótulos como

Cinema Novo ou Cinema Marginal.

O terror da vermelha é um claro exemplo da dificuldade apontada acima.

Estética e politicamente, o filme expressa um esforço de manter, no cinema, uma

“cruzada vanguardista no seu rumo original: uma moda que não pega nem é

lançada para tanto” (CASTELO BRANCO, 2005, p. 199). O filme se desenvolve

em meio a uma constante descoberta de possibilidades de filmagem. De uma

narrativa aparentemente simples, na qual um desengonçado serial killer percorre

as ruas da cidade matando pessoas, Torquato constrói conexões entre diversas

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Queremos a imagem nua e crua que se vê na rua: táticas estéticas e políticas em filmes experimentais piauienses - Frederico Lima e Edwar Castelo Branco
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

linhas discursivas. Elementos plásticos incomuns à narrativa cinematográfica,

como cartelas com símbolos matemáticos, são expostos na rua, ao mesmo tempo

em que despreocupados e absortos transeuntes são capturados pela câmera e

tornados personagens de um filme. Colagens, bricolagens e multicolagens fazem

uma narrativa antiteleológica com a qual o filme procura jogar com o universo das

possibilidades. Buscando uma estratégia comunicacional alternativa, Torquato

Neto chegou ao limite da experimentação através da fusão entre desenho, texto

e fotografia, buscando, assim, desreferencializar os objetos a partir de “diferentes

estratégias visuais” (CASTELO BRANCO, 2005, p. 215). A receita, composta pelo

próprio Torquato, parecia simples:

Pegue uma câmera e saia por aí, como é preciso agora: fotografe,
faça o seu arquivo de filminhos, documente tudo o que pintar,
invente, guarde. Mostre. Isso é possível. Olhe e guarde o que
viu, curta essa de olhar com o dedo no disparo: saia por aí com
uma câmera na mão. Fotografe, guarde tudo, curta, documente.
Vamos enriquecer mais a indústria fotográfica [...]. Vamos
guardar as imagens desse tempo, sair na rua e fotografar. Ou
prefiro “fazer cinema”? Ou prefiro contar história? [...] Quem vai
documentar isso? Quem vai guardar as imagens que o cinema
dos cinemas não exibe? (TORQUATO NETO, 1982, p. 117)

Além de O terror da vermelha, filmes já citados, tais como David vai

guiar, Coração materno e Miss Dora, entre outros, representam um esforço para

afrontar os modelos tradicionais de vida – casamento, carreira profissional, vida

pacata, beber socialmente, cabelo curto para os homens, espaços diferenciados

para homens e mulheres, enfim – e o aparecimento de um novo estilo de vida

que era atestado com a presença de um corpo juvenil deselegante, arredio à

disciplina e pulsante em energia. No limite, um corpo contracultural, pois “o

cabelo, a barba, a roupa, o sorriso malicioso, a total ausência de formalidade,

simulação ou atitude defensiva são mais que suficientes para torná-lo modelo de

vida contracultural” (ROSZAK, 1972, p. 135).

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Queremos a imagem nua e crua que se vê na rua: táticas estéticas e políticas em filmes experimentais piauienses - Frederico Lima e Edwar Castelo Branco
Cinema brasileiro

Filme ou cinema? À guisa de notas finais

Qual seria, então, do alto dessa miríade de possibilidades de leitura, a

melhor maneira de enquadrar estes filmes experimentais piauienses no âmbito

dos estudos sobre o cinema experimental? Como se sabe, o experimentalismo

fílmico normalmente aparece, nos estudos sobre o tema, como algo politicamente

suspeito, ofuscado que fica, no mais das vezes, pelo reluzir do Cinema Novo

(MACHADO JÚNIOR, 2009, p. 20). Mas é inegável que à pobreza técnica,

normalmente acentuada, se somaria, nestes filmes, uma deliberada subversão das

formas de produção e circulação das obras, confundindo a linguagem filmográfica

e, portanto, favorecendo a formulação de uma nova linguagem. Se não é possível,

para além da rejeição ao objeto “ditadura militar”, encontrar um eixo catalisador

em torno do qual se possam articular os filmes experimentais que foram feitos em

profusão entre as décadas de 1970 e 1980 no Brasil, é certamente possível, a

partir dessas experiências, pensar sobre o intervalo que vai do filme ao cinema.

No presente caso, não se está falando de um Cinema experimental, mas

de filmes experimentais. Como se sabe, o cinema corresponde a um universo

sócio-histórico muito mais amplo que o filme. Aqui, filme experimental está sendo

entendido como um procedimento de filmagem que não apenas se distingue

daquele adotado pelos filmes comerciais, em razão de ser sua força criativa na

maioria das vezes retirada da sua pobreza (pouco dinheiro, câmeras rudimentares

etc.), mas também por ser um produto artesanal, feito todo ou quase todo por um

único sujeito. Em razão disso, comumente enfatiza os aspectos visuais, criando

uma linha narrativa poética e abstrata. Neste tipo de filme também é comum a

criação de obras visuais inspiradas em obras musicais, do que são exemplos os


filmes O terror da vermelha, ancorado em The dark side of the moon, famoso

álbum da banda Pink Floyd, e Toques (Jomard Muniz de Brito, 1976), filme que

explora a música Odara, de Caetano Veloso.

Apropriadas por este trabalho, as peripécias filmográficas de Torquato Neto

e seus companheiros vem nos ajudando a iluminar regiões ainda obscuras da

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Queremos a imagem nua e crua que se vê na rua: táticas estéticas e políticas em filmes experimentais piauienses - Frederico Lima e Edwar Castelo Branco
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

história da cultura contemporânea no Brasil e que dizem respeito a uma significativa

produção fílmica que permanece desconhecida por não estar iluminada, por

exemplo, pela “Boca do Lixo”, expressão que virou uma espécie de síntese do

chamado Cinema Marginal brasileiro, para onde tem convergido a maior parte

das reflexões nesta área. Do mesmo modo, tem sido possível, a partir do estudo

destes filmes, situar as especificidades existentes entre cada uma das experiências

estéticas que articularam o experimentalismo superoitista no Nordeste brasileiro,

clarificando, por exemplo, as diferenças entre os filmes curtição8 baianos, a

pernambucália jomardiana e a transa underground torquateana. Para cada uma

dessas séries, diferentes linhas de fuga e de territorialização (GUATTARI; ROLNIK,

2010).

Se essas experiências fílmicas nos deixaram alguma lição, esta diz respeito

ao reconhecimento de que a política também se exerce em espaços micrológicos.

Como já foi percebido e anotado,

o cotidiano, longe de ser o lugar da opressão e do controle


social, capaz de submeter e uniformizar as pessoas, é um lugar
prenhe de interpretações e de desvios. É espaço de constituição
de brechas através das quais os homens ordinários, com táticas
sutis e silenciosas, driblam a opressão panóptica (CASTELO
BRANCO, 2009, p. 9).

Os filmes experimentais aqui estudados nos ajudam a enxergar estas

brechas e a espreitar estes dribles. Eles oportunizam, entre outras coisas, pensar

sobre as diferentes formas através das quais parcelas da juventude brasileira,

com uma arte criativa e sutil, foram capazes de reconfigurar seu tempo e seu

lugar, indiferentes à grandiloquência dos “anos de chumbo”.

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Queremos a imagem nua e crua que se vê na rua: táticas estéticas e políticas em filmes experimentais piauienses - Frederico Lima e Edwar Castelo Branco
Cinema brasileiro

Referências bibliográficas

BERNARDET, J.-C. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 2004.

CASTELO BRANCO, E. de A. Rupturas instauradoras e funcionamento social da imagem no Brasil contemporâneo.


In: ______ (Org.). História, Cinema e outras imagens juvenis. Teresina: EDUFPI, 2009.

______. Todos os dias de paupéria: Torquato Neto e a invenção da tropicália. São Paulo: Annablume, 2005.

COUTO, D. Os caçadores de prosódias. Teresina: Fundação Cultural do Piauí, 1994.

EDITORIAL. O dia, Caderno 1, p. 2, Teresina, 23 set. 1973.

GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991.

GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

HUNT, L. (Org.). A nova história cultural. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

LIMA, F. O. A. Curto-circuitos na sociedade disciplinar: Super-8 e contestação juvenil em Teresina (1972-1985)


Dissertação (Mestrado em História do Brasil) – Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2007. 120 f.

MACHADO JÚNIOR, R. O Pátio e o cinema experimental no Brasil: apontamentos para uma história das
vanguardas cinematográficas. In: CASTELO BRANCO, E. de A. (Org.). História, Cinema e outras imagens
juvenis. Teresina: EDUFPI, 2009.

MADEIRA CAMPOS, M. Entrevista. O Estado Interessante, Caderno 1, p. 12, Teresina, 04 jun. 1972.

RAMOS, F. Cinema marginal: a representação em seu limite. São Paulo: Paz e Terra, 1989.

ROCHA, G. Cartas ao mundo. Organização de Ivana Bentes. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

ROSZAK, T. A contracultura. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1972.

TORQUATO NETO. Os últimos dias de Paupéria. São Paulo: Max Limonad, 1982.

Referências audiovisuais

Coração materno. Haroldo Barradas. Brasil, 1974, filme super-8 mm..

David vai guiar. Durvalino Couto. Brasil, 1972, filme super-8 mm.

Miss Dora. Edmar Oliveira. Brasil, 1974, filme super-8 mm.

O terror da vermelha. Torquato Neto. Brasil, 1972, filme super-8 mm.

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Queremos a imagem nua e crua que se vê na rua: táticas estéticas e políticas em filmes experimentais piauienses - Frederico Lima e Edwar Castelo Branco
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

_____________________________________________________________

1. Trabalho desenvolvido com apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.
Este texto expõe parte das discussões travadas em torno da Mesa Temática Além da boca do lixo: confrontos estéticos e
políticos em filmes experimentais piauienses e pernambucanos, ocorrida em Recife-PE, de 05 a 09 de outubro de 2010,
por ocasião do 14º Encontro da SOCINE.

2. Professor; CNPq, Bolsista de produtividade em pesquisa . E-mail: [email protected]

3. Doutorando; UFPI, Professor. E-mail: [email protected]

4. Para uma leitura mais aprofundada sobre o experimentalismo brasileiro em sua feição multifacetada, ver Machado Júnior
(2009).

5. Para esta perspectiva sobre o Cinema Marginal do Sudeste ver, por exemplo, Ramos (1989).

6. Algumas reflexões sobre este tema estão no livro História, Cinema e outras imagens juvenis (Teresina: EDUFPI, 2009),
organizado por Edwar de Alencar Castelo Branco.

7. Sobre isto, ver: CASTELO BRANCO, Edwar de A. O cinema curtição dos anos 60/70. In: Anais do XXV Simpósio Nacional
de História. Fortaleza: ANPUH, 2009.

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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
Cinema brasileiro

Recife na rota do mundo:

o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos1

Luciana Corrêa de Araújo (UFSCar)

O Porto do Recife é a própria razão da existência da cidade. Quando o

português Duarte Coelho chegou ao Brasil no século 16 para tomar posse da

capitania de Pernambuco, encantou-se com a localização que viria a ser a

cidade de Olinda, sem dar maior importância à várzea pantanosa que lhe era

vizinha. Como não houvesse lugar adequado para ancoradouro em Olinda, se

percebeu que existia, paralela àquela área de várzea, uma linha de arrecifes

que formava um porto natural (FRAGOSO, 1971, p. 13). Nessa região, surgiu a

aldeia de pescadores que daria origem à cidade do Recife. Já em 1836, quando

Charles Darwin é obrigado a uma parada em Pernambuco, provocada por ventos

contrários, ele considera Recife uma cidade “repugnante em cada parte” (apud

CARVALHO, 2009), mas se impressiona com o recife de pedra:

Não creio que haja no mundo inteiro uma formação natural de


aspecto tão artificial. Esse recife alonga-se numa extensão de
algumas milhas, em linha absolutamente reta, a pouca distância
da costa, com a largura de 30 a 60 metros de parte superior,
chata e unida, parecendo, na maré baixa, um quebra-mar
construído por ciclopes (apud GONDIM, 1968, p. 1).

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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

É pelo Porto que chegam os invasores holandeses no século 17, preferindo

se instalar em Recife, e não na capital Olinda, pelas condições de defesa mais

favoráveis. Imigrantes se instalam na cidade, viajantes e tripulantes de navios

passam pelo Porto, circulam pelas ruas nas quais o comércio se desenvolve. Um

intenso processo de urbanização tem lugar na estreita faixa de terra que constitui

os limites da cidade (o atual Bairro do Recife), que logo se estende para a vizinha

Ilha de Antônio Vaz. O historiador José Antônio Gonsalves de Mello identifica

nesse momento de dominação holandesa o mesmo “prestígio da rua” que também

irá marcar a cidade no início do século 19, como defende Gilberto Freyre em

Sobrados e mucambos (MELLO, 1987, p. 107).

Pelo Porto vêm os filmes, os primeiros exibidores ambulantes, os

cinegrafistas que percorriam o país em busca de trabalho. Como tantos outros,

também o comércio cinematográfico irá se desenvolver apoiado no transporte

marítimo. É graças à circulação de mercadorias promovida pelo Porto do Recife,

por exemplo, que o exibidor Severiano Ribeiro encontra as condições necessárias

para ampliar e consolidar sua cadeia de exibição no Nordeste, alimentada pelas

constantes remessas de novos títulos.2 Quando da implementação do cinema


sonoro na cidade, a imprensa noticia a chegada pelo navio Itahité de quarenta

volumes de aparelhamento de som para o Teatro do Parque (Jornal do Commercio,

9 mar. 1930, p. 10). Nessa sala, sob o comando de Severiano Ribeiro, são exibidos

em março de 1930 os filmes sonoros A divina dama (The divine lady, Frank Lloyd,

1929) e The Broadway Melody (Harry Beaumont, 1929).

Projetos de melhoramento do Porto foram propostos ainda no século 19,

mas é só em 1908 que as obras têm início. Concluídas em 1918, as obras do

Porto significaram uma transformação também na fisionomia do Bairro do Recife,

com a demolição de prédios antigos e a abertura das largas avenidas Marquês de

Olinda e Rio Branco, inspiradas no traçado urbanístico do Barão de Haussmann

em Paris. As obras complementares para melhoramento do Porto têm início

em 1923, no segundo ano do governo Sergio Loreto (1922-1926), e visavam

proporcionar uma inserção regional mais efetiva dentro do cenário nacional,

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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
Cinema brasileiro

criando as condições indispensáveis para a expansão das relações mercantis e

do modelo agroexportador (MOREIRA, 1994, p. 98).

Segundo o historiador Antonio Paulo Rezende (1997, p. 39), na década de


1920 “o discurso da modernização contagia o poder público”, postura que na gestão
de Loreto estará presente não só nas obras como também no papel estratégico
conferido à propaganda. O discurso da modernização aliado ao investimento na
propaganda têm importantes desdobramentos na produção cinematográfica local,
seja de maneira direta, nos diversos filmes naturais patrocinados pelo governo
do estado para divulgar suas realizações, seja de forma mais difusa, mas não
menos determinante, na medida em que cinegrafistas e aspirantes a realizadores
encontram terreno fértil para exercer uma das atividades modernas por excelência:
o cinema. Também se deve levar em conta a relativa estabilidade política e
econômica ao longo da gestão de Loreto como fator relevante para o impulso
invulgar que caracteriza a produção e exibição de filmes locais em meados da
década, entre 1924 e 1926.

Durante e depois desse período, o Porto aparece com destaque na


produção silenciosa pernambucana dos anos 1920, tanto em naturais quanto em
posados. Entre o material preservado, encontramos cinco filmes com imagens
do cais do porto: os naturais Veneza americana (Pernambuco-Film, 1925) e
Grandezas de Pernambuco (Olinda-Film, 1925); e os posados A filha do advogado
(Jota Soares, 1926) e No cenário da vida (Luis Maranhão, 1930). Além deles,
o filme doméstico sobre a passagem do hidroavião Jahú por Recife, em 1927,
inclui imagens do Porto ao registrar a intensa movimentação popular em torno
do evento, uma das paradas do raid aéreo entre Gênova e Santos, a primeira
travessia aérea do Atlântico realizada por brasileiros.3

Nos filmes, ao lado das ruas pavimentadas e cortadas pelos fios dos
postes de eletricidade, o Porto se sobressai como o elemento que exibe e
comprova o processo de modernização pelo qual passava a cidade, reforçando
também a ideia de uma vocação do Recife para atuar enquanto espaço
privilegiado de circulação de mercadorias, pessoas, bens simbólicos. O destino

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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

de cidade portuária já estaria inscrito na própria formação natural dos recifes,


propícia a abrigar um porto, e na situação geográfica estratégica, na rota para a
Europa, África e Américas Central e do Norte. É uma vocação que também serve
a propósitos políticos e ideológicos, procurando valorizar ou reivindicar uma
relevância para a cidade que nem sempre corresponde à sua efetiva situação
no cenário político, econômico e cultural do país. O Porto sintetiza, assim, tanto
a vocação cosmopolita da cidade, seu diálogo com o mundo, como a defesa dos
valores provincianos, em reação aos elementos externos.

Nos filmes profissionais de meados da década, as imagens do Porto


vêm carregadas de um valor de propaganda, tanto nos filmes naturais (Veneza
americana e Grandezas de Pernambuco) como também na ficção A filha do
advogado. Em Veneza americana, financiado pelo governo Loreto, o Porto é o
protagonista da história de progresso narrada pelo filme. E surge apenas em
alguns planos de Grandezas, que, no entanto, seja pelas imagens ou pelo próprio
título, faz crer que tenha contado com financiamento de capitalistas locais e,
provavelmente, também do governo.

Em Veneza americana, o governador Sergio Loreto é enquadrado ao subir


(Figura 1) e descer a rampa de acesso ao transatlântico Gelria, primeiro navio de
grande calado a atracar no cais. Em seguida, o governador aparece ao lado do

comandante do navio, que também posa junto a outras autoridades (Figura 2).

Foto 1 – Veneza americana (Pernambuco-Film, 1925). Acervo Fundação Joaquim Nabuco – Recife.

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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
Cinema brasileiro

Foto 2 – Veneza americana (Pernambuco-Film, 1925). Acervo Fundação Joaquim Nabuco – Recife.

É interessante observar como na ficção A filha do advogado a inserção do

Porto é construída por meio de planos e motivos bastante semelhantes àqueles

encontrados no natural Veneza americana.

A filha do advogado mostra tanto o advogado, de viagem para a Europa,

quanto seu amigo jornalista que vai cumprimentá-lo antes da partida, subindo a

rampa de acesso ao navio (Figura 3) e, no convés, os dois reunindo-se a um grupo

do qual faz parte o comandante (Figura 4).

Foto 3 – A filha do advogado (Jota Soares, 1926). Acervo Fundação Joaquim Nabuco – Recife.

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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Foto 4 – A filha do advogado (Jota Soares, 1926). Acervo Fundação Joaquim Nabuco - Recife.

A recorrência dos planos de subidas na rampa de acesso ao navio, além

do destaque ao comandante, está longe de ser coincidência. Formalmente

parecidos, os filmes também se aproximam na função de propaganda que

ambos exercem. As obras no Porto empreendidas por Loreto permitiram que

finalmente navios de grande calado atracassem no cais, o que aconteceu em 01

de outubro de 1924 quando o paquete Gelria inaugurou oficialmente o “serviço

de atracação” (Diário de Pernambuco, 02 out. 1924, p. 1). Além de acompanhar

a visita de Loreto, que se realiza dois meses depois, em 04 de dezembro, o filme

Veneza americana não poderia deixar de registrar a chegada e a atracação do

Gelria. Há, inclusive, um intertítulo que faz referência às “falsas profecias” que a

atracação do Gelria viria a desmentir.

O intertítulo é uma pálida referência às acaloradas polêmicas que cercaram

a atracação do Gelria e as obras do Porto em geral. No Rio de Janeiro, o jornal

O País move campanha que a imprensa pernambucana, por sua vez, considera

“difamatória [...] contra os legítimos interesses de Pernambuco e o bom nome de

sua administração atual” (X.X. “Porto do Recife”. Diário de Pernambuco, 6 dez.

1924, p. 4). Para os defensores de Loreto e das obras do Porto, a questão se

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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
Cinema brasileiro

coloca também em termos de concorrência com outros estados mais poderosos

da União, o que faz vir à tona o marcante ressentimento da elite local em relação

ao governo federal. Como escreve o jornalista Samuel Campello a propósito de

outra questão da época: “Sempre o sul a tentar jogar-nos para os planos mais

baixos...” (“Mais três problemas”. Diário de Pernambuco, 7 dez. 1924, p. 3).

A campanha é a face mais visível da disputa de interesses pela exploração

dos serviços do Porto. Caso o Estado de Pernambuco não conseguisse concluir

as obras e aparelhamento até 31 de dezembro de 1925, perderia o contrato

firmado com a União que garantia a exploração do Porto até dezembro de 1934

(Diário de Pernambuco, 5 out. 1924, p.6). Portanto, exibir nos filmes imagens

de Loreto e de personagens embarcando e desembarcando de grandes navios

por meio da rampa de acesso atesta a eficiência do Porto do Recife, colocada

em xeque também pela recusa da Mala Real Inglesa de atracar ali seus navios,

alegando insuficiência de serviços (Diário do Estado apud Diário de Pernambuco,

4 out. 1924, p. 2). Diante das polêmicas, se compreende melhor o destaque dado

ao comandante do Gelria, que chegou a ser presenteado na ocasião com um

“valioso anel de brilhante, como prova de reconhecimento pela arrojada atitude

que assumiu ao pôr termo a tão desagradável situação” (GONDIM, 1968, p. 52).

Elemento recorrente nos dois filmes, a rampa de acesso aos navios atua

também como uma imagem poderosa de modernização na medida em que se

contrapõe às precaríssimas condições oferecidas até então para embarque e

desembarque de passageiros. As grandes embarcações costumavam fundear no

ancoradouro do Lamarão, localizado fora da barra, o que obrigava a procedimentos

de embarque e desembarque nem um pouco confortáveis ou mesmo seguros. No

seu livro sobre o porto do Recife, Umberto Guedes Gondim descreve a cena:

[…] o desembarque de passageiros se procedia por meio de


uma grande cesta de vime que comportava mais ou menos
4 pessoas, manobrada por paus de carga de bordo, para
alvarengas que estacionavam nas proximidades do navio e

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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

conduziam as pessoas à terra. Geralmente enfrentando mar


grosso, essa operação constituía verdadeira tragédia, somente
suportada, sem receio, por pessoas calmas ou afeitas a esse
gênero de trabalho (GONDIM, 1968, p. 51).

Depois da atracação do Gelria, o Jornal do Commercio comemora que

os trabalhos do Porto tenham permitido aos passageiros dos transatlânticos

livrarem-se “dos terrores do Lamarão”, “proporcionando aos itinerantes o ensejo

de conhecerem mais de perto a tradicional ‘Veneza Americana’” (apud Diário

de Pernambuco, 04 out. 1924, p. 2). Se antes a distância da terra e o terror do

Lamarão não animavam os passageiros a visitar a cidade, agora a situação já se

mostrava diferente. Atracado o Gelria, “as ruas encheram-se de autos conduzindo

famílias que as percorriam contemplando as belezas de uma capital que, do alto

mar, jamais suporiam apresentasse atestados tão evidentes de vida ativa e de

progresso”. O teor dessa matéria publicada no Jornal do Commercio aponta para

uma interessante leitura da importância da modernização do Porto: para além de

todas as vantagens econômicas, comerciais e culturais, a atracação de grandes

navios irá permitir maior visibilidade para o Recife. O mundo passa pelo Recife e

o Recife, por sua vez, se coloca ao olhar e à fruição do mundo. Dar a ver a cidade

não deixará de ser também uma ambição dos filmes ali realizados. O Porto e o

cinema, portanto, compartilham a mesma função simbólica.

A proximidade entre os planos de Veneza americana e A filha do advogado

pode ser analisada dentro de uma perspectiva mais ampla, na medida em que

estimulam a identificar outras intersecções que se dão entre filmes naturais e de

enredo, dentro da produção pernambucana do período. A começar pelo fato de

que, direta ou indiretamente, muitas produções se beneficiam de investimentos

do governo. Como parte das estratégias de propaganda que marcam a gestão

de Sergio Loreto, o governo do estado banca os dois longas-metragens da

Pernambuco-Film: Recife no Centenário da Confederação do Equador (9

partes), lançado em outubro de 1924, e Pernambuco e sua Exposição de 1924

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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
Cinema brasileiro

(7 partes), exibido em janeiro de 1925 – lembrando que Veneza americana

é uma compilação com cenas dos dois filmes. Além da Pernambuco-Film,

também fazia trabalhos para o governo, especialmente para o Departamento

de Saúde e Assistência, o cinegrafista A. Grossi, que em janeiro de 1924 exibe

Pela saúde, talvez o primeiro natural patrocinado por Loreto, em comemoração

ao primeiro aniversário de sua gestão.

É bastante provável que também tenham recebido financiamento do

governo os filmes do interior do estado dirigidos pelo cinegrafista mineiro

Aristides Junqueira, da Empresa Cinematográfica Norte do Brasil. Os filmes

são exibidos no “Cinema da Exposição”, uma das variadas atrações da

Exposição Geral de Pernambuco, promovida pelo governo do estado entre

outubro e novembro de 1924. No mesmo ano, Aristides Junqueira filma em

Recife o Pernambuco Jornal (2 partes), exibido em agosto, com imagens das

festividades em comemoração ao centenário da Confederação do Equador.

Na Filmografia Brasileira, não existem indicações de filmes realizados por

Junqueira em Pernambuco. No entanto, além das produções exibidas em

1924, em Recife, foram encontradas em jornais duas referências anteriores

a um A. Junqueira, cinegrafista do natural Chegada e posse do Exmo.Sr.Dr.

José Bezerra, produção da America-Film, fábrica responsável também por

Inauguração do Matadouro de Peixinhos. Nesses dois filmes, exibidos em

1920, é provável que o cinegrafista seja de fato Aristides Junqueira.

Já o terceiro aniversário do governo Loreto, em 1925, será registrado

pela Aurora-Film, que tinha à frente Edison Chagas e Gentil Roiz. Fábrica

de maior destaque na produção de filmes posados no Recife, a Aurora

não ficará alheia à produção de naturais, realizando para Loreto os títulos

Hospital do Centenário e O 3º aniversário do governo Sergio Loreto, ambos

de 1925. Como a Aurora, outras fábricas que realizaram filmes de enredo

receberam financiamentos oficiais e de políticos para a produção de

naturais, a exemplo da Vera Cruz-Film, Liberdade-Film e, provavelmente

também, a Olinda-Film e a Goiana-Film. Na medida em que viabilizam a

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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

produção de naturais, beneficiando a atuação de fábricas e realizadores,

os investimentos oficiais acabam também por contribuir indiretamente para

a produção de fitas de enredo.

Outro ponto de intersecção entre filmes naturais e de enredo é a

presença, em ambos os gêneros, de imagens da cidade. Reconhecer na

tela imagens locais é um diferencial dos filmes pernambucanos que rende

comentários positivos na imprensa, incluindo aqui os filmes de enredo.

Sobre Retribuição (1925), primeiro longa da Aurora-Film, os jornais elogiam

os “belos panoramas” (Jornal do Commercio, 17 mar. 1925, p. 3) e os

“cenários naturais que nos mostram recantos dos nossos arrabaldes” (A

Província, 17 mar. 1925, p. 3). Um dos comentários publicados no Jornal

do Commercio sobre No cenário da vida, que elogia a fotografia “nítida” dos

“mais atraentes panoramas da nossa cidade” focalizados pelo filme, ressalta

que “houve mesmo, por parte do diretor, essa preocupação de propaganda

pernambucana” (25 set. 1930, p. 3). A recorrência desse tipo de comentário

por vezes deixa a curiosa impressão de que o grande mérito das produções

de enredo é o que elas apresentam de material documental.

Ainda sobre No cenário da vida e também no Jornal do Commercio,

o crítico Evaldo Coutinho expressa opinião bem diferente, ao lamentar:

“Edison Chagas não devia ter dado a algumas seqüências o cunho de

filme natural” (30 set. 1930, p. 3). Essa afirmação levanta a suspeita

de que Chagas tenha reaproveitado planos já filmados por ele para os

naturais que realizou no período, inserindo-os no filme de enredo, seja

para satisfazer os espectadores com imagens da cidade, seja como

estratégia para complementar a metragem do filme sem ter o custo da

compra de mais negativos e de novas filmagens.

Atento ao interesse em torno das cenas documentais, o jornalista carioca

Adhemar Gonzaga irá revertê-lo em favor dos filmes de enredo, escrevendo

em Para Todos...: “Rios e rios de dinheiro tem-se gasto em filmes naturais, que

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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
Cinema brasileiro

nunca vemos, e qual o resultado? Os filmes da Aurora não estão fazendo muito

mais propaganda de Pernambuco do que os filmes do natural que o governo

espiritossantense manda fazer?” (n. 365, 12 dez. 1925).

O governo e outros órgãos oficiais como fontes de financiamento direto

ou indireto, a documentação cinematográfica da cidade e região, o caráter de

propaganda do cinema – são aspectos que aproximam os filmes naturais e de

enredo produzidos em Pernambuco. Outro aspecto, relacionado aos anteriores,

porém mais difuso, pode ser definido pela expressão (cunhada por Gilberto Freyre

ao analisar a cidade no século 19 e retomada por José Antônio Gonsalves de

Mello a propósito do período holandês): é o “prestígio da rua”.

Naturais e posados do cinema silencioso pernambucano acompanham

o processo de urbanização do Recife. A imagem das ruas torna-se elemento

iconográfico e narrativo constante. Nos naturais, a presença humana costuma

ser mais controlada, quando não evitada, como se vê em diversos planos de

ruas e bairros da cidade em Veneza americana e Grandezas de Pernambuco:

espaços amplos, eletrificados, asfaltados – e desertos. Quando aparecem

em maior número, os moradores surgem sobretudo como espectadores

dos espetáculos promovidos pela classe dirigente: a atracação do Gelria, as

comemorações do Centenário da Confederação do Equador, a Exposição Geral

de Pernambuco. Em contraposição (embora, como vimos, sem deixar de atuar

em termos de propaganda), a experiência cotidiana das ruas será explorada de

maneira sistemática em A filha do advogado, no qual a rua e a movimentação dos

espaços externos estão em constante entrosamento com as situações ficcionais

do enredo, comprovando o gosto do diretor Jota Soares pelos ambientes urbanos

e sua admirável habilidade em retratá-los.

A sensibilidade de Jota ao ambiente urbano e aos elementos da

modernidade estará presente em No cenário da vida, lançado em setembro de

1930, filme do qual é autor do argumento juntamente com Mário Mendonça, e que

tem roteiro e direção assinados por Luis Maranhão. Jota também colaborou nas

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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

exibições do filme. Durante as projeções, sincronizava com discos a sequência de

cabaré que ele próprio havia dirigido. Essa sequência com o acompanhamento de

discos é suficiente para que No cenário da vida seja anunciado como “o primeiro

filme pernambucano sincronizado e dançado”, antes da estreia em setembro de

1930 (Jornal do Commercio, 27 set. 1930, p. 12). Uma curiosidade é que, em

julho e agosto de 1930, A filha do advogado volta a ser exibido em quatro cinemas

de bairro, mais o Cine Olinda, “com nova cópia sincronizada” (A Província, 9 jul.

1930, p. 2). Talvez tenha sido uma iniciativa de Jota Soares, uma espécie de teste

antes do novo filme para verificar se o método, improvisado, fazia-se passar por

cinema sonoro, convencendo e agradando ao público.

Os trechos existentes do filme trazem a sequência do cabaré e alguns

outros fragmentos, inclusive uma cena ambientada no Porto, que marca o

encontro do casal de protagonistas. Vemos uma senhora, acompanhada

pela filha, chegando ao Porto para receber o filho mais velho que volta

de viagem. Enquanto isso, no cais, uma jovem e seu pai acenam para um

amigo no convés do navio. O amigo está justamente ao lado do rapaz que,

depois de devidamente apresentado à jovem ao desembarcar, com ela irá

formar o par romântico do filme.

É possível perceber uma mudança no tratamento e na postura em

relação ao Porto. Como em A filha do advogado, ele continua sendo utilizado

pela narrativa para marcar a modernidade da cidade e o cosmopolitismo dos

personagens burgueses, porém sem exibir a mesma carga de propaganda

nem tampouco os traços de festividade popular que caracterizam o embarque

no filme de 1926. Os mais de cinco anos que separam o filme da primeira

atracação do Gelria, a incorporação dos embarques e desembarques ao

cotidiano da cidade, as mudanças no cenário político, bem mais instável às

vésperas da Revolução de 1930, certamente contribuíram para a maneira

mais discreta com que o Porto é inserido no filme. Pelo menos no que diz

respeito às imagens existentes, não há circulação de outros passageiros

ou a movimentação de pessoas no cais para acompanhar o embarque e

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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
Cinema brasileiro

desembarque. Uma vez estabelecida a importância do Porto como obra

e espaço públicos, ele agora pode surgir como cenário exclusivo para os

personagens e sua história. Também não se deve perder de vista a ausência

de um vínculo mais sistemático entre a produtora Liberdade-Film e o governo

de Estácio Coimbra, como havia entre a Aurora-Film e o governo Loreto.

Em outro registro cinematográfico, que não o filme natural ou de enredo, o

Porto também surge com destaque. No filme doméstico que registra a passagem

do hidroavião Jahú por Recife, a cidade está em festa, com as ruas do centro

lotadas de curiosos para assistir à “amerissagem” do hidroavião no Porto e ao

desfile da tripulação brasileira. Imagens semelhantes deveriam fazer parte dos

dois filmes profissionais realizados sobre a passagem do Jahú por Recife, dos

quais infelizmente não existe material preservado: As asas gloriosas do Brasil

(Vera Cruz-Film, 1927) e O filme do Jahú (Norte-Film, 1927), com Edison Chagas

responsável pelos trabalhos de câmera deste último.

No filme doméstico sobre o Jahú, tanto a movimentação popular

quanto a maneira como ela é filmada aparecem de forma mais espontânea,

sem o controle ou mesmo a supressão dos grupos populares observado nos

naturais ou a sua subordinação à primazia da narrativa nos filmes de enredo.

No entanto, fica evidente que a pessoa responsável pela filmagem (ou as

pessoas) encontrava-se em lugares estratégicos: primeiro a câmera enquadra,

quase misturada à multidão das ruas do centro, o grande afluxo de pessoas se

dirigindo ao cais do porto; depois, de dentro de um barco, está posicionada em

ótimos ângulos para registrar a movimentação no cais, os outros barcos que

passam carregados de curiosos e mesmo o próprio hidroavião Jahú, depois

de pousar. Também há um bom plano geral do desfile dos tripulantes, filmado

provavelmente a partir da sacada de um prédio mais alto.

Ironicamente, essa festiva recepção que atrai milhares de moradores ao

cais do porto e arredores representa um momento incipiente da aviação que, ao

se constituir em bases comerciais, viria a rivalizar e por fim desbancar o porto

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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

enquanto foco de circulação de viajantes e informações. Nos anos 1920, porém,

tanto a passagem do Jahú quanto a modernização do Porto representam bem

o entusiasmo com a perspectiva de uma inserção do Recife no circuito nacional

e internacional, seja em termos de trocas econômicas e comerciais, seja

quanto a aspectos culturais e simbólicos. Desse desejo de representatividade

e de inserção, fazem parte também os filmes, tanto os títulos realizados por

profissionais quanto os registros amadores.

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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
Cinema brasileiro

Referências bibliográficas

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Periódicos

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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

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Chegada e Posse do Exmo.Sr.Dr. José Bezerra. America-Film. Brasil, 1920, filme 35 mm.

A filha do advogado. Jota Soares. Brasil, 1926, filme 35 mm.

O filme do Jahú. Norte-Film. Brasil, 1927, filme 35 mm.

[O filme do Jahú] [título atribuído]. Cinegrafista não creditado. Brasil, 1927, 16 mm.

Grandezas de Pernambuco. Olinda-Film. Brasil, 1925, filme 35 mm.

Hospital do Centenário. Aurora-Film. Brasil, 1925, filme 35 mm.

Inauguração do Matadouro de Peixinhos. América-Film. Brasil, 1920, 35 mm.

No cenário da vida. Luis Maranhão. Brasil, 1930, 35 mm.

Pela saúde. A. Grossi. Brasil, 1924, 35 mm.

Pernambuco Jornal. A. Junqueira. Brasil, 1924, 35 mm.

Pernambuco e sua Exposição de 1924. Pernambuco-Film. Brasil, 1925, 35 mm.

Recife no centenário da Confederação do Equador. Pernambuco-Film. Brasil, 1924, 35 mm.

Retribuição. Gentil Roiz. Brasil, 1925, 35 mm.

O 3º aniversário do governo Sergio Loreto. Aurora-Film. Brasil, 1925, filme 35 mm.

Veneza americana. Pernambuco-Film. Brasil, 1925, 35 mm.

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Recife na rota do mundo: o Porto do Recife nos filmes silenciosos pernambucanos - Luciana Corrêa de Araújo
Cinema brasileiro

_____________________________________________________________

1. Pesquisa parcialmente financiada pela Fapesp. Trabalho apresentado no Seminário Temático “Cinema no Brasil: dos
primeiros tempos à década de 1950”.

2. A importância do porto do Recife para a expansão da Empresa Severiano Ribeiro no Nordeste foi destacada por Luiz
Henrique Severiano Ribeiro Baez (neto de Luiz Severiano Ribeiro Jr.), durante a abertura do Seminário Temático “Cinema
no Brasil: dos primeiros tempos à década de 1950” no XIV Encontro Socine (Recife, 6 out. 2010).

3. Agradeço a Ernesto Barros, que em 2010 exercia a função de Gerente de Audiovisual da Prefeitura do Recife, o acesso a
uma cópia em DVD desta filmagem doméstica, pertencente ao acervo da Cinemateca Municipal Alberto Cavalcanti.

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Cine-Produções Fenelon, Cinédia S. A. e o cinema independente - Luiz Alberto Rocha Melo
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Cine-Produções Fenelon, Cinédia S.A. e o cinema independente1

Luís Alberto Rocha Melo (UFF)2

Em 1941, juntamente com Paulo e José Carlos Burle, Arnaldo de Faria, Alinor

Azevedo e Nelson Schultz,Moacyr Fenelon fundou a Atlântida Cinematográfica S.

A., destinada à produção de curtas, cinejornais e longas-metragens. Em 1947,

Luiz Severiano Ribeiro Jr., então o maior exibidor do país, tornou-se acionista

majoritário da empresa. Incompatibilizado com a nova administração e premido

por conflitos internos com os Burle e com Watson Macedo, Fenelon decide retirar-

se da Atlântida e,a partir de 1948, tendo constituído sua própria firma, a Cine-

Produções Fenelon, aparecerá inúmeras vezes na imprensa definido ou definindo-

se como um produtor independente.

Em crítica ao filme Obrigado, doutor! (Moacyr Fenelon, 1948), por exemplo,

Luiz Alípio de Barros afirma que Fenelon “imprimiu à sua produção independente

uma boa dose de equilíbrio” (apud BARBATO, 1948, s./p.).

O cronista do jornal Folha Carioca, em 22 de dezembro de 1949, assim se

refere à trajetória de Fenelon:

Era Moacyr, dentro da Atlântida, aquilo que o vulgo convencionou


chamar de “pau para toda obra” autêntico homem dos sete
instrumentos. [...] E, deixando-a, fez-se produtor-diretor
independente, fundando sua própria empresa: Cine Produção
Fenelon (MENEZES, 1949, p. 9).

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Cine-Produções Fenelon, Cinédia S. A. e o cinema independente - Luiz Alberto Rocha Melo
Cinema brasileiro

Em reportagem publicada no dia 13 de abril de 1950, o repórter Newton

Carlos transcreve uma declaração atribuída a Fenelon:

A Atlântida foi o início da concretização de um sonho que há


muito vinha mexendo com os meus miolos. Ainda não era
independente, mas já ganhara um pouco de liberdade. [...]
tornei-me produtor independente com a organização da Cine
Produções Fenelon (FENELON apud CARLOS, 1950, s./p.).3

No Brasil, Moacyr Fenelon foi um dos primeiros profissionais de cinema a

assumir de forma consistente e contínua o conceito de “produção independente”.

Este texto tem como objetivo analisar de que forma esse conceito se aplicava na

prática, ou seja, quais as condições de produção que possibilitaram que Fenelon

conseguisse dar continuidade à sua trajetória de produtor e diretor independente.

Para tanto, discutirei alguns aspectos relativos à produção de cinco filmes que

Fenelon realizou com a Cine-Produções Fenelon, entre 1948 e 1949, todos

viabilizados a partir de uma sociedade com a Cinédia, um grande e bem equipado

estúdio fundado em 1930 no Rio de Janeiro por Adhemar Gonzaga.4

Em 1948, Moacyr Fenelon e Adhemar Gonzaga eram velhos conhecidos,

pois o primeiro já havia trabalhado na Cinédia como técnico de som em filmes

como Estudantes(Wallace Downey, 1935) e Alô, alô carnaval! (Adhemar Gonzaga,

1936).O reingresso de Moacyr Fenelon na Cinédia se deu efetivamente no dia 2

de janeiro de 1948. Naquela ocasião, Luiz de Barros realizava nos estúdios de

São Cristóvão a comédia Esta é fina (Luiz de Barros, 1948) e Moacyr se integrou à

produção dirigindo cinco números musicais e participando da montagem do filme,

juntamente com Afrodísio Pereira de Castro (fotógrafo contratado da Cinédia) e o

montador Rafael Justo Valverde.

Esse fato é interessante porque indica que a entrada de Moacyr Fenelon

na Cinédia não se deu imediatamente na forma de uma co-produção entre a Cine-

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Cine-Produções Fenelon, Cinédia S. A. e o cinema independente - Luiz Alberto Rocha Melo
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Produções Fenelon e os estúdios de Adhemar Gonzaga, o que,no entanto, não

significa que essa ideia não estivesse já em pauta.

Durante o mês de janeiro de 1948 ocorreram os primeiros entendimentos

entre Fenelon e Gonzaga a respeito da produção de um filme. Fenelon tinha

dúvidas se roteirizava uma peça intitulada Pão duro, a ser interpretada por

Procópio Ferreira, ou se adaptava Obrigado, doutor!, um programa de rádio de

grande sucesso escrito pelo médico Paulo Roberto (FENELON, 1948, s./p.). Por

fim, de comum acordo, Gonzaga e Fenelon optaram por Obrigado, doutor!,a

primeira realização da Cine-Produções Fenelon na Cinédia.

Adhemar Gonzaga parecia bastante esperançoso com a volta de Fenelon

à empresa, como é possível perceber no tom de uma carta que o primeiro envia,

em 16 de janeiro de 1948, a seu amigo Gilberto Souto, velho companheiro dos

tempos da revista Cinearte, e que estava vivendo em Hollywood: “Sim, o Moacyr

Fenelon deixou a Atlântida e voltou à Cinédia. Há muito que tínhamos combinado

isto. Ele é o elemento que me faltava aqui, e já está em atividade. [...] Este ano

espero tirar o pé da lama” (GONZAGA, 1948, s./p.).

Assim, o acordo a princípio se mostrava vantajoso para ambos os lados. Se

a Cinédia significava para Fenelon a chance de continuar a produzir sem a Atlântida,

Gonzaga também tinha esperanças de que uma parceria com Fenelon pudesse

significar uma volta por cima, oportuna porque os estúdios estavam enfrentando

uma grave crise financeira que vinha desde 1947, decorrente de diversos fatores

conjuntos, sendo um deles a lentae custosa produção de Pinguinho de gente(Gilda

de Abreu, 1947-49) que, de acordo com Hernani Heffner, consumiu cerca de Cr$

1,5 milhão, quase metade de todos os recursos investidos no estúdio desde 1930,

e não alcançou nem 5% na bilheteria (HEFFNER, 2006, p. 11).

O acordo entre a Cine-Produções Fenelon e a Cinédia previa a realização

de cinco filmes. Quatro deles foram inteiramente realizados dentro da Cinédia:

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Cine-Produções Fenelon, Cinédia S. A. e o cinema independente - Luiz Alberto Rocha Melo
Cinema brasileiro

1. Obrigado, doutor!, filmado de 14 de fevereiro a 22 de junho de 1948 (57

dias de filmagem ao longo de quatro meses) e lançado no Rio de Janeiro

em 28 de setembro do mesmo ano;

2. Poeira de estrelas, filmado de 12 de julho a 8 de novembro de 1948 (25

dias de filmagem ao longo de quatro meses), sendo lançado no Rio de

Janeiro em 12 de dezembro do mesmo ano;

3. Estou aí?, filmado de 23 de novembro de 1948 a 4 de fevereiro de 1949 (29

dias de filmagem ao longo de dois meses e meio), sendo lançado em 21 de

fevereiro do mesmo ano;

4. O homem que passa, filmado de 13 de março a 15 de julho de 1949

(aproximadamente 25 dias de filmagem ao longo de quatro meses), sendo

lançado em 24 de setembro do mesmo ano.

O quinto filme, ...Todos por um!, começou a ser rodado nos estúdios da
Cinédia em 29 de junho de 1948, estendendo-se até 19 de novembro (21 dias
de filmagem ao longo de quase cinco meses), sendo lançado em 06 de fevereiro
de 1950. A montagem e a finalização de ...Todos por um!, no entanto, não foram
feitas na Cinédia, pois dois dias depois de concluídas as filmagens Gonzaga pôs
um término ao acordo de coprodução. No dia 26 de dezembro de 1950, Fenelon
já não possuía mais nenhum vínculo com a Cinédia.

Os cinco filmes planejados pela Cine-Produções Fenelon em associação


com a Cinédia correspondiam a uma estratégia de mercado bem delimitada: dois
dramas, uma comédia musical, dois carnavalescos. Desses cinco filmes, três
foram dirigidos por Fenelon (Obrigado, doutor!,Poeira de estrelas e O homem que
passa) e dois foram dirigidos por José Cajado Filho (Estou aí? e ...Todos por um!).
Roteirista e cenógrafo, Cajado Filho era um antigo colaborador de Fenelon dos
tempos da Atlântida e, tal como Rafael Valverde e o operador de câmera Roberto
Mirili, também saiu daquela empresa em solidariedade a Fenelon.

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Cine-Produções Fenelon, Cinédia S. A. e o cinema independente - Luiz Alberto Rocha Melo
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Essa divisão da função diretorial entre Fenelon e Cajado apresenta

algumas particularidades. A primeira delas é que a Fenelon cabia a direção dos

chamados “filmes sérios”, sendo que Obrigado, doutor! e O homem que passa

encaixam-se perfeitamente nessa perspectiva, ao passo que Poeira de estrelas

é uma comédia musical com alguns toques dramáticos, o que a afasta da pura e

simples chanchada ou do chamado filme carnavalesco. Estes cabiam a Cajado

Filho, que, para o período de carnaval de 1949 e 1950, dirigiu respectivamente

Estou aí? e...Todos por um! Ao mesmo tempo em que Fenelon impulsionava a

carreira de Cajado Filho, que até então jamais havia assinado a direção de um

filme, também se livrava do compromisso de figurar como o diretor de trabalhos

que tinham como principal objetivo dar retorno de bilheteria, e que certamente

seriam alvos do furioso preconceito da crítica.

Outro ponto de interesse nesses cinco filmes é a constância da equipe

técnica em postos-chave (Afrodísio Pereira de Castro e Roberto Mirili na

fotografia; Rafael Justo Valverde na montagem; Luiz Braga Jr. no som) e o

contrato com alguns atores, tais como Rodolfo Mayer, Lourdinha Bittencourt,

Colé Santana e Emilinha Borba.

Vale aqui ressaltar alguns aspectos que a visão de conjunto desses cinco

filmes realizados entre fevereiro de 1948 e novembro de 1949, isto é, num período

de um ano e nove meses de trabalho ininterrupto, nos deixa perceber.

O primeiro ponto a ser ressaltado é a impressionante continuidade do

ritmo produtivo em meio a uma situação financeira adversa. O tempo entre o

final das filmagens de um título e o início das filmagens de outro em geral dura

menos de um mês, com exceção do intervalo entre Estou aí? e O homem que

passa (um mês e 10 dias) e entre O homem que passa e ...Todos por um! (um

mês e meio, aproximadamente).

É interessante notar que o primeiro filme (Obrigado, doutor!) foi exatamente

aquele que consumiu mais dias de filmagem e maior tempo no processo de

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Cine-Produções Fenelon, Cinédia S. A. e o cinema independente - Luiz Alberto Rocha Melo
Cinema brasileiro

finalização e de lançamento (ao todo, sete meses de trabalho, com 57 dias de

filmagem). Isso talvez se deva ao fato de que Obrigado, doutor! foi a produção

de maior empenho artístico realizada por Fenelon em sua associação com a

Cinédia. Não só por ser o filme de estreia após sua saída da Atlântida, mas

também porque se tratava de um “filme sério”, que teria como propósito levantar

a carreira de Fenelon como diretor de prestígio e como produtor independente.

Em relação aos custos dessas produções, as informações obtidas

são incompletas, mas ainda assim possibilitam indicar de forma aproximada

a média dos orçamentos e a participação da Cinédia em cada um deles.

Obrigado, doutor! custou em torno de Cr$ 750 mil, dos quais Cr$ 200

mil eram investimento da própria Cinédia (cessão de estúdios, parte da

equipe e do equipamento gasto); Poeira de estrelas custou cerca de Cr$ 1

milhão, dos quais Cr$ 150 mil foram creditados à Cinédia; Estou aí? custou

aproximadamente Cr$ 1,4 milhão, dos quais Cr$ 145 mil eram cotas da

Cinédia; O homem que passa custou cerca de Cr$ 1,3 milhão, dos quais

Cr$ 138.500,00 eram da Cinédia; ...Todos por um!, algo em torno de

Cr$ 1.350.000,00, dos quais Cr$ 142 mil creditados à Cinédia. As cotas

relativas a Gonzaga variavam de 20% a 14%. Por contrato, Fenelon deveria

restituir essas porcentagens conforme os filmes fossem dando resultado na

bilheteria, o que em verdade só ocorria com grande atraso.

É curioso atentar para o fato de que os aumentos nos custos totais

das produções não significavam reajuste dos preços acertados entre os dois

sócios. Para os cinco filmes, o aluguel do estúdio e os principais técnicos

contratados da Cinédia (diretor de fotografia e técnico de som) não variaram

de preço ao longo de um ano e nove meses: Cr$ 66 mil para cessão de

estúdios e empregados e Cr$ 34 mil para fotógrafo e técnico de som, mais a

depreciação dos respectivos equipamentos. Isso atesta que, para Fenelon, a

associação com a Cinédia foi de fato extremamente vantajosa, por conta das

facilidades desse acordo com Gonzaga. 5

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Cine-Produções Fenelon, Cinédia S. A. e o cinema independente - Luiz Alberto Rocha Melo
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Um levantamento dos balancetes dos cinco filmes, feito em 26 de maio

de 1950, informa que, de novembro de 1948 a abril de 1950, Obrigado, doutor!

havia rendido um total de Cr$ 996.675,80, dos quais Cr$ 265.888,00 pertenciam

à Cinédia; de janeiro de 1949 a abril de 1950, Poeira de estrelas arrecadou Cr$

666.576,10, dos quais Cr$ 100.668,50 pertencentes à Cinédia; de abril de 1949 a

abril do ano seguinte, Estou aí? rendeu Cr$ 899.228,90, sendo que Cr$ 134.874,00

referem-se às cotas da Cinédia; de janeiro a abril de 1950, O homem que passa

somou Cr$ 268.990,00, dos quais Cr$ 37.655,80 cabiam à Cinédia; de março

a abril de 1950, ...Todos por um! havia rendido Cr$ 353.622,50, dos quais Cr$

49.505,40 pertenciam à Cinédia.6

Ainda que os dados acima não compreendam toda a carreira dos cinco

filmes nos cinemas do país, pode-se afirmar que as cinco co-produções entre

a Cinédia e a Cine-Produções Fenelon na verdade mantiveram o estúdio

de Gonzaga em funcionamento, dando-lhe uma sobrevida, mas não foram

suficientes para fazê-lo “tirar o pé da lama”.Tanto que, já em fins de 1949,Gonzaga

planeja liquidar as dívidas e fechar o estúdio, o que efetivamente ocorre em

1952. Mudando-se em seguida para São Paulo, tenta integrar-se ao movimento

dos grandes estúdios (Vera Cruz, Maristela e Multifilmes), mas somente três

anos depois consegue dirigir um filme, a comédia musical Carnaval em lá maior

(Adhemar Gonzaga, 1955), realizada nos estúdios da Maristela.

Já para Moacyr Fenelon esses cinco filmes significaram um

empreendimento bem mais positivo, pois possibilitaram que ele se capitalizasse

em termos sobretudo políticos e culturais e se legitimasse perante o meio

cinematográfico como produtor independente. Isso certamente facilitou

a posterior incorporação da Cine-Produções Fenelon à Flama Produtora

Cinematográfica Ltda., que os irmãos empresários Carlos, Murilo e Rubens

Berardo Carneiro da Cunha irão constituir no Rio, em março de 1950.

A ida de Gonzaga para São Paulo e a associação de Fenelon com a

Flama apontam para duas direções opostas. O primeiro resolveu apostar em um

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Cine-Produções Fenelon, Cinédia S. A. e o cinema independente - Luiz Alberto Rocha Melo
Cinema brasileiro

caminho que, já em 1952, dava mostras de um grande desgaste, quando não

de um completo fracasso (a reprodução do studio system baseada em vultosas

inversões de capital); o segundo buscou associar-se a empresários e políticos

em íntima ligação com Getúlio Vargas, sem prender-se à fórmula dos grandes

estúdios, e sim das produções médias para o mercado.

A distribuição para as salas de cinema das cinco co-produções Cinédia/

Fenelon também apresenta diversos pontos de interesse. Destaco aqui apenas

um deles: a relação entre a Cine-Produções Fenelon e a União Cinematográfica

Brasileira (UCB), distribuidora de Luiz Severiano Ribeiro Jr.

Ao contrário do que frequentemente se afirma, a saída de Fenelon da

Atlântida não significou seu rompimento com Luiz Severiano Ribeiro Jr. Mesmo

antes de terminar Obrigado, doutor!, em abril de 1948, Fenelon já cogitava entregar

a distribuição do filme para a UCB, o que aliás provocou atritos entre Fenelon e

Gonzaga, este sim avesso à idéia de trabalhar com Ribeiro Jr. No entanto, em

agosto de 1948, Ribeiro Jr. entrou em entendimentos com Fenelon e o filme foi

lançado pela UCB. O mesmo ocorreu com Poeira de estrelas e Estou aí?

Em maio de 1949, o contrato com a UCB é rompido assim que se tornam

evidentes algumas irregularidades nos balancetes da distribuidora entregues à

Cinédia. A partir daquela data, o próprio Fenelon se encarrega da distribuição

dos filmes, chegando mesmo a constituir, em agosto de 1949, juntamente com

Venceslau Verde Martinez e Antônio Antunes, a Cine-Distribuidora do Brasil Ltda.7

Em São Paulo, os filmes continuam a ser distribuídos pela Cinedistri, então a filial

da Cinédia gerenciada por Oswaldo Massaini.

O atrito entre Gonzaga e Fenelon por conta da escolha do segundo

pela UCB merece ser contextualizado. Em maio de 1948, uma denúncia do

exibidor Domingos Segreto contra Luiz Severiano Ribeiro Jr., acusando-o de

praticar o truste na exibição, motivou uma série de depoimentos de alguns

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Cine-Produções Fenelon, Cinédia S. A. e o cinema independente - Luiz Alberto Rocha Melo
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

produtores à Comissão Central de Preços, que então debatia o tabelamento

dos ingressos de cinema e que incorporou a denúncia contra Ribeiro Jr. O

assunto teve ampla divulgação na imprensa.

Adhemar Gonzaga foi um dos que depôs na CCP, relatando um caso

relacionado a O ébrio (Gilda de Abreu, 1946), o maior sucesso comercial da

Cinédia. O filme estava em sua terceira semana de exibição, em Recife, quando

Ribeiro Jr. propôs um preço fixo para projetá-lo nos cinemas do Ceará. Como

o preço oferecido era proporcionalmente muito abaixo do que o filme estava

rendendo, e tendo Gonzaga e os demais coprodutores se negado a fazer acordo,

Ribeiro Jr. retirou o filme de cartaz, mesmo com o sucesso de público, e vetou a

sua entrada nos outros cinemas do Recife.8

Na verdade, os desentendimentos entre Gonzaga e Ribeiro Jr. já vinham

de muito antes, pelo menos desde o final dos anos 1930, quando aos poucos o

segundo foi se apropriando da DFB (Distribuidora de Filmes Brasileiros),empresa

criada em 1935 a partir da Distribuição Cinédia, que Adhemar Gonzaga havia

oferecido sem ônus para a então recém-criada Associação Cinematográfica dos

Produtores Brasileiros (ACPB).

Por outro lado, ao longo de 1948 e até a primeira metade de 1949,

enquanto o contrato com a UCB e a Cine-Produções Fenelon esteve vigente,

Fenelon manteve-se estrategicamente afastado das discussões relativas

ao chamado “truste” da exibição. A maior parte de seus pronunciamentos na

imprensa dedica-se basicamente a promover os filmes que estava produzindo.

Somente em maio de 1949, quando o contrato com a UCB é rompido, é que

surgem na imprensa declarações de Fenelon contra Luiz Severiano Ribeiro

Jr. Fenelon concede uma série de entrevistas nas quais ataca o monopólio

de exibição, defende a lei de obrigatoriedade para o filme brasileiro e acusa

as irregularidades nas prestações de contas entre exibidores, distribuidores e

produtores, que prejudicam justamente estes últimos.9

57
Cine-Produções Fenelon, Cinédia S. A. e o cinema independente - Luiz Alberto Rocha Melo
Cinema brasileiro

Em agosto de 1949, Ribeiro Jr. contra-ataca, denunciando em entrevista

ao jornal O Globo a política das “cotas” no sistema de produção de filmes:

Está sendo criada no Brasil uma modalidade de produção


de filmes que, por sua esquisita organização, constitui uma
verdadeira aberração jurídica. Queremo-nos referir ao sistema
muito em voga de se venderem cotas de filmes a serem
produzidos. O “produtor”, título enfático que é usado e abusado
entre nós, organiza, ou melhor, planeja a produção de um filme,
dele fazendo um orçamento. Até aí, tudo vai bem; o pior, porém,
é que ele, o “produtor”, não tem dinheiro para o empreendimento,
e se tem (esses casos são raríssimos), não quer arriscar o
seu. Então (agora vem o então), sem um contrato social, sem
uma escritura pública e às vezes até sem sede ou mesmo sem
domicílio certo, o “produtor” emite cotas que, vendidas por
hábeis intermediários, proporcionam o levantamento do capital
necessário. [...] Em troca do seu rico dinheiro, os cotistas recebem
um papelucho impresso e selado, com todos os aspectos de uma
ação nominal de um banco, e ficam sonhando com os lucros
enormes que vão ter, como aconteceu com os que participaram
do filme Este mundo é um pandeiro [Watson Macedo, 1950] e
outros citados como exemplos pela lábia dos intermediários.[...]
Nossas leis comerciais regulam muito bem todas as sociedades.
Mas isso que se faz por aí, com as tais cotas, não se enquadra
em nenhuma sociedade legal. Assim sendo, o que vem sendo
feito é ilegal e merece bem a atenção dos que têm o dever de
zelar pelos incautos [...] (RIBEIRO JÚNIOR, 1949, s./p.).

O alvo é preciso: trata-se de atingir os produtores independentes acusando-

os de efetuar trambiques com o dinheiro alheio, isto é, convencendo possíveis

cotistas a entrarem como sócios em filmes que jamais darão retorno financeiro.

A esta acusação responde Fenelon, à época presidente da recém-fundada

Associação do Cinema Brasileiro, em carta ao mesmo jornal:

A única interpretação a extrair-se da entrevista, é a de que o


referido senhor [Ribeiro Jr.], num corajoso e louvável ímpeto,

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Cine-Produções Fenelon, Cinédia S. A. e o cinema independente - Luiz Alberto Rocha Melo
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

decidiu-se a uma bela atitude de auto-acusação, pois sendo,


precisamente, diretor influente em empresa produtora
cinematográfica que aplica como todos sabem o sistema de
produção contra o qual investe de maneira tão violenta [...] só
por experiência própria poderia [...] ter chegado às conclusões
que expendeu. Por isso mesmo [...] a Associação do Cinema
Brasileiro vem, através das colunas d’ O Globo, convidar o
mencionado exibidor-produtor a declarar, nominalmente, quais
os outros produtores também enquadrados nos delitos de que a
si próprio acusa (FENELON, 1949, s./p.).

O desafio fica sem resposta. No entanto, é somente a partir desse

momento que as desavenças entre Moacyr Fenelon e Luiz Severiano Ribeiro Jr.

se tornam explícitas, e passam a significar no meio cinematográfico uma cisão

entre os produtores independentes e o truste de produção-distribuição-exibição

representado pelas empresas Atlântida-UCB-Severiano Ribeiro.

***

A extraordinária capacidade de trabalho de Moacyr Fenelon é sem

dúvida alguma um dado a ser aqui sublinhado. Cinco longas em pouco mais

de um ano é uma meta que, em qualquer período histórico, sempre foi difícil

de ser atingida por qualquer produtor ou diretor cinematográfico. Mas, para

além desse aspecto evidente, a associação entre Moacyr Fenelon e Adhemar

Gonzaga indica também que, sem os estúdios da Cinédia, a atividade de

Fenelon como produtor talvez não tivesse sido possível ou certamente teria

se dado em condições bem menos favoráveis. A estrutura da Cinédia era o

que garantia a Fenelon elaborar um programa de ação, planejando um total de

cinco filmes a serem realizados em sequência.

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Cine-Produções Fenelon, Cinédia S. A. e o cinema independente - Luiz Alberto Rocha Melo
Cinema brasileiro

É significativa, portanto, a pouca atenção dada ao papel da Cinédia no

capítulo concernente à produção independente no Brasil dos anos 1940-50. O

que sugere que, entre nós, a expressão “cinema independente” não se refere

propriamente às relações de produção, mas a um discurso de legitimação de um

determinado perfil de realizador cinematográfico; para que esse discurso tenha

eficácia, é necessário deixar em segundo plano − ou às vezes até mesmo apagar

− as condições de produção que o sustentam.

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Cine-Produções Fenelon, Cinédia S. A. e o cinema independente - Luiz Alberto Rocha Melo
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Referências bibliográficas

BARBATO, S. Obrigado, doutor!O Dia, Curitiba, 17 out. 1948.

CARLOS, N.Silhuetas... Moacyr Fenelon. S. veículo, Rio de Janeiro, 13 abr. 1950.

CINEMA E TRUSTE. Golpe de morte no filme nacional. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 12 jun. 1948.

FENELON, M. Bilhete manuscrito a Adhemar Gonzaga. Rio de Janeiro, jan. 1948.

______. Carta manuscrita a Adhemar Gonzaga. Rio de Janeiro, jan. 1948b.

______.O “conto do cinema”... O Globo, Rio de Janeiro, 03 ago. 1949.

GONZAGA, A. Carta datilografada a Gilberto Souto. Rio de Janeiro, 16 jan. 1948.

HEFFNER, H. Um empreendimento arriscado. In: ARAGÃO, A.; HEFFNER, H.; ROBALINHO, R. (Org.). Cinédia
75 anos. São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil, 2006.p. 5-11.

MENEZES, J. Moacyr Fenelon - o maior cineasta brasileiro! Folha Carioca, Rio de Janeiro, p. 9, 22 dez. 1949.

NOSBASTIDORES do cinema nacional.Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 21 ago. 1949.

RIBEIRO JÚNIOR, L. S. O conto do cinema... O Globo, Rio de Janeiro, 02 ago. 1949.

_____________________________________________________________

1. Trabalho apresentado no seminário Cinema no Brasil: dos primeiros tempos à década de 1950.

2. E-mail: [email protected]

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Cine-Produções Fenelon, Cinédia S. A. e o cinema independente - Luiz Alberto Rocha Melo
Cinema brasileiro

3. Recortes de jornal pertencentes ao Acervo da Cinédia, Rio de Janeiro.

4. Todas as informações contidas neste texto foram extraídas das anotações diárias dos Anuários da Cinédia referentes
ao período 1948-1950, Acervo da Cinédia, Rio de Janeiro. As informações que não pertencem aos Anuários serão,
portanto,discriminadas ao longo do texto.

5. As informações sobre os custos de produção e as cotas de participação da Cinédia foram extraídas da documentação
referente aos filmes. Cf. cartas contratuais entre a Cinédia S.A. e a Cine-Produções Fenelon para os filmes Obrigado,
doutor! e Poeira de estrelas, respectivamente datadas de 15 de dezembro de 1948 e de 15 de dezembro de 1949; cf.
também demonstrações das cotas relativas à Cinédia dos filmes Obrigado, doutor! (28 de julho de 1949), Poeira de estrelas
e Estou aí? (29 de julho de 1949), O homem que passa (30 de outubro de 1949)e ...Todos por um! (28 de fevereiro de 1950).
Acervo da Cinédia, Rio de Janeiro (Pastas “Cine-Produções Fenelon”, “Obrigado, doutor!”, “Poeira de estrelas”, “Estou aí?”,
O homem que passa” e “...Todos por um!”).

6. Pasta “Cine-Produções Fenelon”. Acervo Cinédia, Rio de Janeiro.

7. Cf. Diário Oficial da União (Seção 1), Rio de Janeiro, 30 ago. 1931, p. 12591. A Cine-Distribuidora do Brasil previa distribuir
filmes nacionais e estrangeiros “no país e fora do território nacional”.

8. O caso está relatado em um editorial intitulado “Cinema e truste. Golpe de morte no filme nacional”.Correio da Manhã, Rio
de Janeiro, 12 jun. 1948. Recorte de jornal sem indicação de página pertencente ao Acervo da Cinédia, Rio de Janeiro
(Pasta Luiz Severiano Ribeiro Jr.).

9. Cf., por exemplo, PÁDUA, C. T. de e ORTIZ, C. Duras as perspectivas do cinema nacional,Folha da Manhã, São Paulo, 31
maio 1949; Sabotagem, A Noite, Rio de Janeiro, 04 jul. 1949; e Nos bastidores do cinema nacional, Diário de Notícias, Rio
de Janeiro, 21 ago. 1949. Recortes de jornal sem indicações de página pertencentes ao Acervo da Cinédia, Rio de Janeiro.

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O cangaço no cinema brasileiro - Marcelo Dídimo Souza Vieira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

O cangaço no cinema brasileiro1

Marcelo Dídimo Souza Vieira (UFo)2

Introdução

O Nordeste sempre teve uma forte presença na cultura brasileira em todos

os ramos da arte, e no cinema não poderia ser diferente. Se os estadunidenses

possuem seus westerns imortalizados pela figura do cowboy, o Nordeste do Brasil

possui os cangaceiros, que há muito tempo fazem parte do cenário cinematográfico

brasileiro, originando um gênero bastante singular no cinema nacional.

O cangaço foi retratado no cinema brasileiro em várias épocas e de diversas

formas. Desde a década de 1920 a temática fascina cineastas e espectadores. Em

quase um século de história, foram realizados cerca de 48 filmes sobre o assunto,

nas bitolas de 16 mm, 35 mm e 70 mm, entre curtas, médias e longas-metragens,

documentários e ficções.

Primórdios

Os primórdios dos filmes sobre a temática do cangaço datam das décadas

de 1920 e 1930, quando o movimento histórico ainda existia. Nessa época, a

63
O cangaço no cinema brasileiro - Marcelo Dídimo Souza Vieira
Cinema brasileiro

figura do cangaceiro estava começando a ser explorada pelo cinema, podendo

inserir-se parcialmente na história ou ser seu protagonista.

A primeira aparição de que se tem notícia de um cangaceiro nas telas de

cinema ocorreu em junho de 1917, no Theatro Moderno, em Recife. Segundo o

número 152 do jornal A Província, de 05/06/1917, foi apresentado um filme com

imagens de um jogo de futebol e da Casa de Detenção, onde se encontrava preso

o conhecido cangaceiro Antônio Silvino. O jornal assim descreve: “Apresentação

do terror dos nossos sertões, o famigerado Antônio Silvino manejando um fatídico

rifle. Outros sequazes Cabeça Branca e Zé Duque.”

O primeiro filme brasileiro a abordar o fenômeno do cangaço foi Filho

sem mãe (Tancredo Seabra, 1925), que foi exibido somente uma vez no extinto

Cinema São José em Recife, Pernambuco. Esta é a primeira produção que insere

o personagem em sua narrativa, “retratando a existência de cangaceiros no seu

desenrolar. (...) No filme da Planeta houve um tiroteio travado entre os cangaceiros

e forças militares” (SOARES, 1963).Em seguida foi realizado Sangue de irmão

(Jota Seabra, 1926), considerado por alguns estudiosos como o segundo filme a

retratar o cangaço no cinema.

Lampião, o rei do cangaço (Benjamin Abrahão, 1936) é, certamente, o

filme mais importante desse período e um dos mais significativos para o gênero,

sendo um documento chave para a compreensão antropológica do cangaço, e um

registro histórico no cinema brasileiro. Seu realizador, o mascate libanês Benjamin

Abrahão, foi um grande documentarista etnográfico e cineasta da caatinga.

Por serem as únicas imagens em movimento registradas de Lampião e

seu bando de cangaceiros em 1936, este filme é de fundamental importância para

o nosso cinema e inigualável como documento histórico. No gênero cangaço, foi

um dos pioneiros, serviu de inspiração para filmes e seus realizadores e, até hoje,

fascina os espectadores que assistem a essas imagens.

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O cangaço no cinema brasileiro - Marcelo Dídimo Souza Vieira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

O mascate contou com a ajuda de Adhemar Bezerra de Albuquerque,

diretor da Aba Film de Fortaleza, que lhe forneceu todo o aparato técnico para

filmar e fotografar Lampião e seu bando de cangaceiros. Cabia ao libanês a total

responsabilidade por esse equipamento.

Em 1936, a polícia estava intensificando as buscas na tentativa de capturar

Lampião e seu bando, o cerco estava se fechando. Era o início do fim do cangaço.

O mascate perdeu contato com o bando, e seus planos de finalizar e comercializar

seu filme foram por água abaixo.

O Dr. Lourival Fontes, diretor do Departamento de Propaganda


do Brasil, cuja repartição é subordinada ao Ministério da Justiça,
telegrafou ao Chefe de Polícia do Ceará, autorizando-o a fazer a
apreensão imediata de todo o material do filme sobre Lampião,
o qual não poderá ser exibido nos cinemas do país, por atentar
contra os créditos da nacionalidade (NÃO PODERÁ SER
EXIBIDO...,1937).

Este fato ocorreu no início de abril de 1937, meses antes do golpe de

Getúlio Vargas que levaria ao Estado Novo. As imagens registradas pelo libanês

foram exibidas em uma sessão especial para algumas autoridades e jornalistas

no Cine Moderno, em Fortaleza. De acordo com um repórter do jornal O Povo que

assistiu a essa sessão, “a fita, no momento com 500 pés, sem legendas, mostrava

o bando em atividades bem prosaicas. Não se colocava em risco a tal ‘dignidade

nacional’” (HOLANDA, 2000, p. 63).

Durante esse período, o filme de cangaço ainda não havia sido definido

como gênero, mas esses filmes passaram a introduzir o banditismo de forma

bastante sutil, ou inserindo o personagem do cangaceiro rapidamente em sua

narrativa, como quem mostra um possível caminho para a produção de filmes

que retratem diretamente o cangaço, e por isso estão nos primórdios do gênero.

Posteriormente, temos esse caminho traçado de forma mais concreta no filme

65
O cangaço no cinema brasileiro - Marcelo Dídimo Souza Vieira
Cinema brasileiro

de Benjamin Abrahão. Mesmo assim, o cangaço ainda não havia se tornado um

gênero em sua estrutura mais recorrente.

O Nordestern

O cangaço passou a ser bastante explorado no cinema brasileiro a partir

da década de 60, mas foi na década anterior que esta temática fez surgir um

gênero tipicamente brasileiro. Lima Barreto realizou O cangaceiro (1953), filme

que “inaugura o ciclo e delineia os principais traços que ficarão caracterizando o

cangaceiro no cinema comercial” (BERNARDET, 1977, p. 46). Dessa forma, os

conhecidos filmes de cangaço têm seu marco inicial no filme de Lima Barreto,

cuja estrutura narrativa será revisitada diversas vezes no cenário cinematográfico

brasileiro, e que também ficou conhecido como Nordestern.

A violência, o cavalo, os grandes descampados e a falta de


tradição cinematográfica no Brasil: mais nada era preciso
para transformar em filial do western norte-americano o filme
de cangaceiro, que Salvyano Cavalcanti de Paiva chama de
Nordestern (BERNARDET, 1977, p. 46-47).

O neologismo Nordestern foi criado na década de 1960 e atribuído aos

diversos filmes realizados sobre o cangaço nesse período. Este termo é uma

referência direta ao western clássico que muito influenciou os filmes de cangaço

a partir dos anos 1950. Nesse sentido, o cangaço passou a ser um gênero

com características estruturais comuns, criando uma vertente nacionalista com

referências diretas ao gênero norte-americano.

Estes filmes de cangaço possuem uma estrutura narrativa semelhante, com

características similares no que concerne ao desenvolvimento dos personagens

ou das histórias relacionadas a eles, o que os diferencia de outros filmes que

66
O cangaço no cinema brasileiro - Marcelo Dídimo Souza Vieira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

abordam o cangaço, como as comédias ou os filmes de Glauber Rocha. O cangaço

foi trabalhado em várias vertentes, às vezes como simples referência ou como

inspiração para reconstituições históricas.

Alguns filmes desse segmento foram realizados na Boca do Lixo, um

movimento ocorrido em São Paulo que contextualizava a estética do cinema

nacional com pitadas de erotismo, trabalhando uma narrativa que fazia contraponto

às ideias do Cinema Novo. Este ciclo, denominado o Cangaço da Boca do Lixo,

tinha características próprias e “revelou-se um terreno fértil para produções que

seguissem a fórmula realização rápida + baixo custo + erotismo, abarcando os

diversos gêneros” (ABREU, 2006, p. 46, grifos do autor).

Entre filmes de aventura, dramáticos e românticos, o segmento

Nordestern é o mais abrangente e com o maior número de títulos, dentre os quais

é possível citar, além de O cangaceiro: A morte comanda o cangaço (Carlos

Coimbra, 1960), o primeiro de quatro filmes realizados por Coimbra, o cineasta

que mais retratou o cangaço no cinema; Lampião, o rei do cangaço (Carlos

Coimbra, 1962); Entre o amor e o cangaço (Aurélio Teixeira, 1965); Riacho de

sangue (Fernando de Barros, 1966); Cangaceiros de Lampião (Carlos Coimbra,

1967); Maria Bonita, rainha do cangaço (Miguel Borges, 1968); O cangaceiro

sanguinário (Osvaldo de Oliviera, 1969); Faustão (Eduardo Coutinho, 1971),

baseado no personagem Sir Falstaff, de William Shakespeare; Jesuíno

Brilhante, o cangaceiro (William Cobbett, 1972), o primeiro longa-metragem

realizado no Rio Grande do Norte; Os Cangaceiros do Vale da Morte (Apollo

Monteiro, 1978) e O Cangaceiro do Diabo (Tião Valadares, 1980).

Comédias

A comicidade retratou o fenômeno histórico de forma satírica, irônica,

transformando em paródia seus personagens e outros filmes do gênero cangaço.

Dessa forma, a comédia dialoga com o cangaço sob um prisma bem humorado.

67
O cangaço no cinema brasileiro - Marcelo Dídimo Souza Vieira
Cinema brasileiro

Os filmes resultantes dessa associação são caracterizados por representar o tema

de forma diferenciada. Humoristas ícones da chanchada e da comédia brasileira

participaram desses filmes. Ankito, Grande Otelo e Golias protagonizaram Os três

cangaceiros (Víctor Lima, 1961), uma paródia de Os três mosqueteiros; Mazzaropi

realizou O Lamparina (Glauco Mirko Laurelli, 1963), uma brincadeira com o apelido

do famoso cangaceiro; e Os Trapalhões, liderados por Renato Aragão, fizeram O

Cangaceiro Trapalhão (Daniel Filho, 1983). A comédia erótica brasileira, mais

conhecida como a fase da pornochanchada, aproveitou-se do gênero e também

trabalhou o cangaço de forma debochada com pitadas de sexo.

Apoiada no humor e na exploração da nudez como apelo erótico,


[a pornochanchada] constrói suas tramas satirizando filmes de
aventura, de histórias infantis, as formas aculturadas do western
– os filmes de cangaço ou garimpo – e, principalmente, filmes
americanos de grande repercussão (ABREU, 2006, p. 149).

As cangaceiras eróticas (Roberto Mauro, 1974) e o inusitado Kung fu contra

as bonecas (Adriano Stuart, 1976) são duas pornochanchadas que satirizaram o

tema. Outra característica destas comédias reside no fato de que estes filmes

abordam a temática do cangaço sem a menor preocupação com a veracidade dos

fatos históricos. Pelo contrário, são feitos justamente para contrapor o assunto e

debochar dos filmes que buscaram esse tipo de abordagem. Não se pretende,

com isso, desqualificar esses filmes, mas entendê-los de uma forma diferenciada

e identificá-los quanto à sua principal característica: a comédia.

Documentários

No já citado filme de Abrahão, foram registradas imagens históricas

de Lampião e seu bando de cangaceiros, sendo esse material um documento

único dentro da filmografia sobre o cangaço. Esse filme tornou-se não apenas

68
O cangaço no cinema brasileiro - Marcelo Dídimo Souza Vieira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

uma referência para outras películas, mas também foi usado para o estudo do

movimento histórico. Nesse sentido, ele serviu como documento histórico para a

realização de alguns filmes sobre o cangaço, e suas imagens foram retrabalhadas

no corpus de alguns documentários históricos. A relação entre documento histórico

e documentário histórico é, em princípio, bastante evidente. Muitos documentários

históricos utilizam o documento, imagético ou não, para explorar o tema abordado.

“O documentário histórico é bastante popular e pode aparecer de diversas formas,

incluindo artigos, docudrama e memória oral, oferecendo bastante material de

pesquisa para o cineasta” (ROSENTHAL, 1996, p. 251, tradução nossa).

O documentário histórico pode ter uma importância enorme como

desmistificador de acontecimentos da história, pois é passível de trazer

novos pontos de vista sobre um determinado fato. É importante lembrar

que, ao fazer isso, espera-se mostrar um dos lados da história, e não um

lado supostamente definitivo.

Vertentes do documentário foram trabalhadas para mostrar uma fatia

da realidade do fenômeno histórico. Memória do cangaço (Paulo Gil Soares,

1965) se utiliza do Cinema Verdade para tal. Esse movimento passou a ser

difundido em países como França e Estados Unidos a partir da década de

1960 e se refere a documentários realizados com câmera na mão e captação

de som direto. De um modo geral, este tipo de filme caracteriza-se por não

possuir uma estrutura preestabelecida, sendo esta definida durante as

filmagens, de acordo com o desenrolar dos acontecimentos, ou na ilha de

edição. O Cinema Verdade também assume um caráter de maior compromisso

com a verdade, mais real, mais humano.

O Docudrama foi a referência utilizada em O último dia de Lampião (Maurice

Capovilla, 1975) e A mulher no cangaço (Hermano Penna, 1976), produzidos pela

Blimp Film para o Globo Repórter. O Drama Documentário, ou simplesmente,

Docudrama, localiza-se na fronteira entre a ficção e o documentário, resultando

em um novo produto, um híbrido desses gêneros.

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O cangaço no cinema brasileiro - Marcelo Dídimo Souza Vieira
Cinema brasileiro

Esses filmes não se preocupam com a audiência, mas procuram


descobrir e revelar boas reportagens para o público. O ponto
mais importante é mostrar o poder de dramaticidade capaz de
chegar o mais próximo possível do real. Este é o lado social
mais importante do docudrama, o que dá ao gênero uma ética
absoluta (ROSENTHAL, 1996, p. 234, tradução nossa).

É importante verificar que esses filmes documentais têm um valor

inestimável, pois procuram dar uma visão mais próxima do movimento rebelde

enquanto história, na busca da veracidade dos fatos. É claro que, guardadas as

devidas proporções, informações devem ser filtradas, pois o que se pretende, na

verdade, não é mostrar o lado definitivo da história, mas oferecer versões dessa

história. E esses documentários proporcionam isso.

O cangaço de Glauber Rocha

A partir do começo dos anos 1960, os realizadores do Cinema Novo

iniciaram uma campanha de advertência cultural para a realidade nordestina. O

movimento estabeleceu uma estrutura mais sólida e madura em 1962, e nomes do

cenário cinematográfico brasileiro passaram a se destacar no Cinema Novo com

filmes de cunho social e extrema importância para o movimento e para a história

do cinema nacional. Dentre os cineastas engajados ao movimento, é possível

citar: Nelson Pereira dos Santos, Paulo César Saraceni, Luis Sérgio Person,

Leon Hirzman, Carlos Diegues, Walter Lima Júnior, Ruy Guerra, Joaquim Pedro

de Andrade e Glauber Rocha, que realizou dois filmes abordando a temática do

cangaço durante essa década: Deus e o Diabo na terra do sol (1964) e O dragão

da maldade contra o santo guerreiro (1969).

Glauber retratou o cangaço em seus filmes de forma singular, abordando

o tema sob o prisma do ideal revolucionário, e introduzindo em sua narrativa

contextos simbólicos e alegóricos. Junte-se a esta ideologia a estética da fome

70
O cangaço no cinema brasileiro - Marcelo Dídimo Souza Vieira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

e outras estéticas impressas pelo autor em seus trabalhos. Mesmo que seus

filmes tenham alguns aspectos relacionados ao western, a estrutura narrativa de

Glauber, como também o contexto ideológico retratado, os diferencia, e bastante,

dos filmes caracterizados como Nordestern.

Na estética de Glauber, “a teatralização, o plano-seqüência, a câmera na

mão, a fala solene, as longas seqüências de reflexão em que os personagens

mergulham na imobilidade e as tensões deságuam na discussão sobre o poder, o

mito e a história” (XAVIER, 1993, p. 162).

Esses filmes têm um diferencial e não se encaixam em qualquer outro

segmento de filmes que retrataram o cangaço. O cangaço de Glauber Rocha, como

toda a sua obra, é singular. É dentro desse universo recheado de simbolismos

e personagens históricos que Glauber deixou sua marca no Cinema Novo e na

história do cinema brasileiro.

Releituras

Em meados da década de 1990, o Nordeste passou a ser revisitado por


cineastas interessados em retomar essa temática, que muito sucesso fez em
décadas passadas. Três filmes renovam o tema, tendo sua produção localizada
no Nordeste: Corisco e Dadá (Rosemberg Cariry, 1996), Baile perfumado (Paulo
Caldas; Lírio Ferreira, 1997) e O cangaceiro (Aníbal Massaíni Neto, 1997)
abordaram o cangaço com novos pontos de vista, e algumas releituras foram
feitas, através de abordagens subjetivas ou da refilmagem de um clássico.

A importância dessa realização dentro do renascimento do cinema


brasileiro está no fato de que, devido a uma diversidade de filmes realizados
com temas variados, o cangaço se faz presente como forma de revitalizar o
assunto de uma maneira diferenciada, com novas imagens e novos pontos de
vista sendo propostos. Isso reflete a importância desse momento para um gênero
cinematográfico que foi e ainda é muito representativo para o cinema brasileiro.

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O cangaço no cinema brasileiro - Marcelo Dídimo Souza Vieira
Cinema brasileiro

Um gênero que tem seus primórdios nos anos 1920, cria raízes na década

de 1950 e se fortalece e ganha número a partir de 1960 não pode morrer nos

anos 1980. Durante mais de dez anos o cangaço é esquecido dentro do cenário

cinematográfico brasileiro. Uma das características do gênero é sua capacidade

de se renovar constantemente, e esta nova safra representa isso: o cangaço foi, é

e provavelmente sempre será um tema a ser constantemente abordado; por mais

antiga que seja sua história, é sempre passível de novas leituras e releituras e de

modernizar-se tecnologicamente sem abandonar sua relação com a História.

Conclusão

O gênero cangaço é trabalhado no cinema brasileiro desde o início de

sua história e se faz presente em mais de sete décadas, desde os anos 1920. O

cangaço passou pelas mãos de vários cineastas, nomes de importância histórica

para o gênero e para o cinema brasileiro. Atores e atrizes tornaram-se ícones do

cinema nacional a partir desses filmes. Personagens foram criados, inspirados


em mitos do fenômeno histórico, e estão imortalizados até hoje na memória

cinematográfica brasileira.

O gênero cangaço se constituiu de forma tal que, essencialmente,

dialogou com outros gêneros para se criar. Os filmes de aventura, o

documentário, a comédia e o erótico se integraram ao cangaço para resultar

num gênero nacional. Acredito ser um gênero que jamais vai morrer, pois

está passível de novas leituras e é, constantemente, revisitado. São quase

50 filmes que construíram uma história própria, uma vida própria, através

de abordagens diferenciadas. Filmes que se tornaram parte de um gênero

tipicamente brasileiro, conhecido como “filmes de cangaço”.

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O cangaço no cinema brasileiro - Marcelo Dídimo Souza Vieira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Referências bibliográficas

ABREU, N. C. Boca do Lixo: cinema e classes populares. Campinas: Editora da Unicamp, 2006.

BERNARDET, J.-C. Brasil em tempo de cinema. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

HOLANDA, F. Benjamin Abrahão. Fortaleza: Demócrito Rocha, 2000.

NÃO PODERÁ SER EXIBIDO o filme de Lampião.O Povo, Fortaleza, 03 abr. 1937.

O FILME de Lampião. O Povo, Fortaleza, 12 jan. 1937.

ROSENTHAL, A. Writing, directing and producing documentary films and vídeos.Carbondale; Edwardsville:
Southern Illinois University Press, 1996.

XAVIER, I. Alegorias do subdesenvolvimento:cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São Paulo: Brasiliense.
1993.

Referências audiovisuais

A ilha das cangaceiras virgens. Roberto Mauro. Brasil (São Paulo), 1976, filme 35 mm.

A morte comanda o cangaço. Carlos Coimbra. Brasil (São Paulo), 1960, filme 35 mm.

A mulher no cangaço. Hermano Penna. Brasil (Rio de Janeiro) 1976, filme 16 mm.

A musa do cangaço. José Umberto Dias. Brasil (Bahia), 1982, filme 35 mm.

A vingança dos doze. Marcos Faria. Brasil (Rio de Janeiro), 1970, filme 35 mm.

As cangaceiras eróticas. Roberto Mauro. Brasil (São Paulo), 1974, filme 35 mm.

Baile perfumado. Paulo Caldas; Lírio Ferreira. Brasil (Pernambuco), 1997, filme 35 mm.

Cangaceiros de Lampião. Carlos Coimbra. Brasil (São Paulo), 1967, filme 35 mm.

Corisco e Dadá. Rosemberg Cariry. Brasil (Ceará), 1996, filme 35 mm.

Corisco, o Diabo Loiro. Carlos Coimbra. Brasil (São Paulo), 1969, filme 35 mm.

Deu a louca no cangaço. Nelson Teixeira Mendes; Fauzi Mansur. Brasil (São Paulo), 1966, filme 35 mm.

Deus e o Diabo na Terra do Sol. Glauber Rocha. Brasil (Rio de Janeiro), 1964, filme 35 mm.

Entre o amor e o cangaço. Aurélio Teixeira. Brasil (Rio de Janeiro), 1965, filme 35 mm.

Faustão. Eduardo Coutinho. Brasil (Rio de Janeiro), 1971, filme 35 mm.

Filho sem mãe. Tancredo Seabra. Brasil (Pernambuco), 1925, filme 35 mm.

Jesuíno Brilhante, o cangaceiro. William Cobbett. Brasil (Rio de Janeiro; Rio Grande do Norte), 1972, filme 35 mm.

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O cangaço no cinema brasileiro - Marcelo Dídimo Souza Vieira
Cinema brasileiro

Kungfu contra as bonecas. Adriano Stuart. Brasil (São Paulo), 1976, filme 35 mm.

Lampião, a fera do nordeste. Guilherme Gáudio. Brasil (Bahia), 1930, filme 35 mm.

Lampião, o Rei do cangaço. Benjamin Abrahão. Brasil (Ceará), 1936, filme 35 mm.

Lampião, o Rei do cangaço. Carlos Coimbra. Brasil (São Paulo), 1962, filme 35 mm.

Lampião, o Rei do cangaço. Fouad Anderaos. Brasil (São Paulo), 1950, filme 35 mm.

Lampião: o banditismo no nordeste. Brasil (Pernambuco), 1927, filme 35 mm.

Maria Bonita, Rainha do cangaço. Miguel Borges. Brasil (São Paulo), 1968, filme 35 mm.

Memória do cangaço. Paulo Gil Soares. Brasil (Rio de Janeiro), 1965, filme 35 mm.

Meu nome é Lampião. Mozael Silveira. Brasil (Rio de Janeiro), 1969, filme 35 mm.

No raso da Catarina. Hermano Penna. Brasil (Rio de Janeiro) 1977, filme 16 mm.

Nordeste sangrento. Wilson Silva. Brasil (Rio de Janeiro), 1962, filme 35 mm.

O Cabeleira. Milton Amaral. Brasil (São Paulo), 1963, filme 35 mm.

O cangaceiro do Diabo. Tião Valadares. Brasil (São Paulo), 1980, filme 35 mm.

O cangaceiro sanguinário. Osvaldo de Oliveira. Brasil (São Paulo), 1969, filme 35 mm.

O cangaceiro sem Deus. Osvaldo de Oliveira. Brasil (São Paulo), 1969, filme 35 mm.

O cangaceiro trapalhão. Daniel Filho. Brasil (Rio de Janeiro), 1983, filme 35 mm.

O cangaceiro. Aníbal Massaíni Neto. Brasil (São Paulo), 1997, filme 35 mm.

O cangaceiro. Lima Barreto. Brasil (São Paulo), 1953, filme 35 mm.

O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro. Glauber Rocha. Brasil (Rio de Janeiro), 1969, filme 35 mm.

O Lamparina. Glauco Mirko Laurelli. Brasil (São Paulo), 1963, filme 35 mm.

O leão do norte. Carlos Del Pino. Brasil (Rio de Janeiro), 1974, filme 35 mm.

O primo do cangaceiro. Mário Brasini. Brasil (Rio de Janeiro), 1955, filme 35 mm.

O último cangaceiro. Carlos Mergulhão. Brasil (Pernambuco), 1971, filme 35 mm.

O último dia de Lampião. Maurice Capovilla. Brasil (Rio de Janeiro), 1975, filme 16 mm.

Os cangaceiros do Vale da Morte. Apollo Monteiro. Brasil (São Paulo), 1978, filme 35 mm.

Os três cangaceiros. Víctor Lima. Brasil (Rio de Janeiro), 1961, filme 35 mm.

Pedro Bó, o caçador de cangaceiros. Mozael Silveira. Brasil (Rio de Janeiro), 1978, filme 35 mm.

Quelé do Pajeú. Anselmo Duarte. Brasil (Rio de Janeiro), 1969, filme 70 mm.

Riacho de sangue. Fernando de Barros. Brasil (Rio de Janeiro), 1966, filme 35 mm.

Sangue de irmão. Jota Seabra. Brasil (Pernambuco), 1926, filme 35 mm.

Três cabras de Lampião. Aurélio Teixeira. Brasil (São Paulo), 1962, filme 35 mm.

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O cangaço no cinema brasileiro - Marcelo Dídimo Souza Vieira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

_____________________________________________________________

1. O trabalho foi apresentado no 14º Encontro da Socine – Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, na
Mesa Temática “Os gêneros no cinema brasileiro e latino-americano: práticas, transformações, remixagens e tendências.

2. Instituto de Cultura e Arte, Professor Adjunto . E-mail: [email protected]

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O filme de mistério: colaborações para o estudo genérico no cinema no Brasil - Rafael de Luna Freire
Cinema brasileiro

O filme de mistério:

colaborações para o estudo genérico no cinema no Brasil1

Rafael de Luna Freire (UFF)2

Inicialmente, é necessária a advertência sobre dois problemas

metodológicos comuns nos estudos de gêneros cinematográficos: sua

a-historicidade e sua transculturalidade.

Os estudos genéricos foram tradicionalmente marcados por uma tradição

textualista sincrônica, como se os gêneros fossem constituídos por elementos

textuais estáveis e invariáveis, não atentando para a inevitável dimensão histórica

do gênero como categoria discursiva. Desse modo, a partir de uma concepção

aparentemente “tradicional” e “óbvia” do que seria, por exemplo, o filme de western,

os críticos genéricos olhavam para o passado e identificavam “naturalmente” o

filme The great train robbery (Edwin Porter, 1903), com seus cowboys montados

a cavalo, como o primeiro faroeste da história do cinema. Entretanto, “visto

retrospectivamente como um exemplo pioneiro de western, ele dificilmente foi

percebido como western na época em que ele foi feito” (NEALE, 2000, p. 44).3

Desse modo, evidenciava-se a instabilidade histórica do gênero e o

anacronismo de se analisar os gêneros fora de seu “âmbito de validade”, para

usar a expressão de Carlos Sandroni (2001, p. 117). Longe de se constituir num

“empirismo historicista”, a atenção às etiquetas genéricas tais como utilizadas

historicamente por diferentes agentes de terminologia genérica (produtores,

76
O filme de mistério: colaborações para o estudo genérico no cinema no Brasil - Rafael de Luna Freire
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

distribuidores, críticos, público etc.) é fundamental para explorar as formas

concretas através das quais um gênero foi culturalmente interpretado, avaliado e

definido (MITTELL, 2004, p. 14).

Um segundo problema diz respeito à concepção de que os gêneros são

universais e, novamente, a atenção às etiquetas genéricas se faz importante,

notando desde já, por exemplo, que, no Brasil, o western, o filme passado no

far-west (oeste distante), viria a ser singularmente chamado de faroeste. Como

ressaltou a francesa Raphaëlle Moine (2008), a propagada universalidade dos

gêneros hollywoodianos na verdade mascara singularidades nacionais, culturais

e históricas que são fundamentais para a compreensão de diferentes fórmulas

genéricas, sempre originárias de contextos específicos.

Desse modo, na pesquisa para minha tese de doutorado sobre o gênero

policial no cinema no Brasil nas décadas de 1930 e 1940, foi fundamental o

questionamento sobre a significação do termo “filme policial” naquele contexto

histórico específico e, ao invés de tentar anular as inúmeras diferenças,

discordâncias e sobreposições, meu objetivo foi ressaltar a multiplicidade de

termos e discursos associados ao gênero.

Um documento importante para a indicação sobre quais eram os gêneros

mais populares junto ao público e crítica brasileira no início da década de 1930

é o questionário promovido pela revista Cinearte junto aos seus leitores, em

novembro de 1932, no qual a primeira pergunta era: “Que espécie de filme gosta

mais?”. As opções disponíveis eram mistério, melodrama, comédia, história,

drama de sexo, romance, educativo, far west, filmes cômicos, dramático, ou

“outro gênero que não está na lista”.4

Tão significativo quanto a ausência do termo “policial” é a presença de

“mistério” (na grafia da época, mysterio, mais próximo ao inglês mystery), que

viria a conquistar o quinto lugar na preferência do público segundo a apuração das

cartas dos leitores publicada na mesma revista, mais de um ano depois. 5

77
O filme de mistério: colaborações para o estudo genérico no cinema no Brasil - Rafael de Luna Freire
Cinema brasileiro

O filme de mistério se insinua aparentemente como uma categoria

estabelecida, muito explorada pelo cinema silencioso, e ainda em evidência

naqueles anos em que os talkies se impunham lenta e turbulentamente no mercado

brasileiro. A origem e popularidade do termo de identidade genérica “mysterio”

remontavam, pelo menos, a meados da década de 1910, momento em que no

Brasil os circuitos de salas fixas já haviam se constituído nas grandes cidades e os

espectadores se transformavam em fãs, para os quais logo surgiriam as críticas

de jornais e as revistas especializadas.

Desse modo, ao comentar o sucesso do cinematógrafo no Rio de Janeiro,

Alice Gonzaga (1996, p. 103) citou o concurso criado pela Universal em sua

introdução ao mercado brasileiro, em 1915, que distribuiu prêmios de 200 mil

réis a quem descobrisse o final do primeiro seriado produzido pelo estúdio norte-

americano, A rapariga misteriosa (Lucille Love, The girl ofmistery [Francis Ford,

1914/1915br]). O crítico e cineasta Alex Viany (1986, p. 50), recordando suas

primeiras idas à sala escura levado por sua mãe Elisabeta – fã de filmes que

chegou a tocar piano nos cinemas na década de 1920 –, contou que seu pai a

chamava de Rapariga Misteriosa, “nome de um seriado muito popular naquela

época. Eles devem ter namorado vendo esse filme”.

Numa publicidade do jornal carioca Gazeta de notícias em 29 de julho

de 1915 (apud SOUZA, 2004, p. 331) anunciando o último episódio de A

rapariga misteriosa, o filme era definido como um “belíssimo drama policial”,

com “as cenas mais emocionantes e as peripécias as mais extraordinárias”,

revelando a imbricação das etiquetas genéricas “mistério” e “policial” na

divulgação dessa produção.

Os seriados (serials), geralmente com episódios de dois rolos de duração

(cerca de 35 minutos), representaram um passo importante na transição do

filme curto para narrativas mais longas, surgindo no mesmo momento em que

se consolidava o formato de longa-metragem. Conforme Ben Singer (1996), os

seriados serviram de alternativa para produtores americanos com dificuldades

78
O filme de mistério: colaborações para o estudo genérico no cinema no Brasil - Rafael de Luna Freire
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

para se encaminharem imediatamente para a produção de filmes com cinco a

seis rolos de duração. Inicialmente eles se constituíam na atração principal de

grande parte dos programas compostos por outros shorts (comédias, dramas,

atualidades etc.), apenas posteriormente assumindo a função de complementos

para os longas-metragens.

Segundo José Inácio de Melo Souza (2004, p. 333), a Fox só apresentou

no Brasil filmes de oito a dez partes (que ocupavam, na prática, toda uma

sessão) em 1916 – portanto, no ano seguinte à chegada dos seriados –, numa

nova composição que, “em breve espaço de tempo, passou a predominar nos

cinemas de primeira classe”.

Desde 1912 os seriados constituíam-se em um grande sucesso nos

Estados Unidos, explorados por todos os principais estúdios, como pelo braço

americano da companhia francesa Pathé, responsável por Os perigos de Paulina

(The perilsof Pauline [Louis Gasner, 1914]), que levou ao estrelato a atriz

americana Pearl White. Os perigos de Paulina havia sido produzido pelo magnata

das comunicações William Hearst com o objetivo de aumentar as vendas dos

jornais, prática comum na época, sendo os filmes acompanhados de uma versão

impressa da trama publicada na imprensa.

O mesmo procedimento foi posto em prática no Brasil no lançamento de

um novo seriado estrelado por Pearl White, em 1916, o célebre Les mystères

de New-York, como lembrou Pedro Nava (2000, p. 215): “Leia na Noite e depois

venha ver no cinema Os Mistérios de Nova York. Saía em folhetim diariamente e

os de cada sete dias correspondiam à série cinematográfica semanal”. 6

Mais de 25 anos depois, numa crônica radiofônica sobre a Avenida Central,

a “sala de visitas da cidade”, o jornalista Celestino Silveira também recordou a

popularidade dessa série de mistério junto ao público carioca, inclusive sua

parcela mais “selecionada”:

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O filme de mistério: colaborações para o estudo genérico no cinema no Brasil - Rafael de Luna Freire
Cinema brasileiro

O cinema imperou sempre na Avenida Central. Se não foi


ali que ele apareceu, foi sem dúvida em plena Avenida que
mais se impôs aos fans e às fanzinhas contemporâneas de
Pearl White e William Farnum... Os filmes em série eram a
“coqueluche” carioca. Os mistérios de Nova York arrastavam
ao Pathézinho multidões e multidões que se encontravam,
sempre as mesmas caras, em cada segunda-feira, com a
aparição de um novo episódio, prosseguindo o fio da meada
cada vez mais embaraçada e confusa... Depois os filmes em
série ficaram relegados para os cineminhas de bairro, mas a
princípio, eram obrigatoriamente assistidos pelo creme da
sociedade carioca. E todos sabem que mestre Rui Barbosa era
um incansável freqüentador dessa classe de películas, como
também dos romances policiais em fascículos...7

Os seriados também ficaram na memória do crítico Octávio de Faria

(1978, p. 107), que décadas mais tarde ainda se lembrou com saudade do “tempo

do Pathé com seus ‘seriados’ famosos (Os perigos de Paulina, Os mistérios

de Helena)”, além dos Cine Íris e Ideal, “afamados pelos seus seriados que

seguíamos com devoção (Rollauxetc)”. O mesmo pode ser dito do crítico Pedro

Lima, que, respondendo a uma enquete feita em 1967 sobre as vinte maiores

obras do cinema, escalou Os mistérios de Nova York na 11ª posição.8

A febre dos seriados no Rio de Janeiro prosseguiu em 1917, mas sobretudo

nos “cineminhas de bairro”, podendo ser mencionado ainda o sucesso de Os

estranguladores de New-York ou Mistério da mancha vermelha (The Crimson

Stain Mistery [T. Hayes Hunter, 1916/1917br]), o “mais estupendo film policial até

hoje conhecido”, grande sucesso no cinema Pátria, em São Cristovão, “templo” do

futuro crítico Pedro Lima. Se o resumo das tramas era publicado nos programas

das salas que exibiam os episódios – sendo consequentemente colecionados

pelos fãs –, esse “romance estupendo” também era publicado no jornal A Rua.9

Entretanto, é importante salientar o alerta dado por José Inácio de Melo

Souza de que o fenômeno de público dos seriados foi um fenômeno “puramente

carioca”: “Em São Paulo, A rapariga misteriosa foi exibida sem nenhum destaque,

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O filme de mistério: colaborações para o estudo genérico no cinema no Brasil - Rafael de Luna Freire
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

omitindo-se até mesmo o nome da produtora/distribuidora Universal […]. Os

seriados Os Mistérios de Nova York e Os vampiros tiveram destaque maior, mas

sem igualar o êxito popular acontecido no Rio” (SOUZA, 2004, p. 332).

De fato, na capital da República, o sucesso, por exemplo, de Francis

Ford como detetive de seriados parece ter sido enorme, ao ponto de, em

janeiro de 1918, o cronista da revista A platéa lamentar a moda carioca de se

copiar a aparência e o jeito dos astros do cinema norte-americano, revelando

que após, A moeda quebrada (The brokencoin, 1915), “começam a aparecer

os imitadores de Francis Ford. Chegam a usar boné de casimira xadrez!”

(apud GONZAGA, 1996, p. 114).

O benefício econômico para os jornais cariocas da aliança com os filmes

em série de “mysterio” e aventuras policiais parece ser comprovado pelo fato

de, em 1917, o jornal A Noite ter dedicado grande campanha publicitária – com

anúncios de destaque e intensa cobertura jornalística – à estreia de dois filmes

brasileiros no Rio de Janeiro: A quadrilha do esqueleto e Os mistérios do Rio de

Janeiro, no dia 25 de outubro de 1917, quinta-feira, o primeiro no Cinema Ideal e

no Cinema Avenida, e o segundo no Cine-Palais.

Planejado como um seriado em seis partes, Os mistérios do Rio de Janeiro

ficou apenas no primeiro episódio, intitulado “O tesouro do Viking”, mas que em

diversos jornais foi anunciado como “O tesouro dos navios alemães”. Era a história

de “um pseudo príncipe, um aventureiro estrangeiro” (Raul X), que se apresenta

ao Cônsul (João Barbosa), no Rio de Janeiro, como Djalmo de Khéper, príncipe de

Tanis que possui poderes “sobrenaturais”, mas “não é mais do que um audacioso

ladrão filiado a uma quadrilha internacional, organizada para operar nas grandes

capitais, durante a guerra”. Acompanhado de sua amante veronesa Fiammeta

(Fernande Briand), com quem se instala num palacete no Cosme Velho, ele

desperta o amor da “pobre criança” Hilda (Margot), filha do Cônsul. Através dele,

“Djalmo faz-se do mundo elegante, freqüenta clubes, salões”, e descobre que seu

amigo diplomata tem sob a sua guarda diversos navios, inclusive o maior deles,

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O filme de mistério: colaborações para o estudo genérico no cinema no Brasil - Rafael de Luna Freire
Cinema brasileiro

o Viking, que mantém um milhão em ouro. Depois de peripécias envolvendo o

assalto do navio pela quadrilha de Djalma, o filme terminava com o sequestro

de Hilda pelos bandidos, para o desespero de seu pai, o Cônsul, que “cai como

fulminado aos pés do Cristo”.10

O filme contou com a “direção intelectual” de Coelho Neto, “festejado

romancista brasileiro” e membro da Academia Brasileira de Letras. A fotografia

ficou a cargo de Guido Panela – que teria sido o “verdadeiro diretor do filme”–,

com colaboração do então conhecido fotógrafo Alfredo Musso, através da

empresa de atualidades Rio-Film.11

Definido em reportagens e críticas como uma série de mistério que

seria composta por “seis grandiosos dramas policiais”, Os mistérios do Rio de

Janeiro foi descrito em anúncio em A Noite, às vésperas de seu lançamento

comercial em outubro de 1917, como “um grande filme de ação local”,

destacando “usos e costumes nacionais surpreendidos d’apresnature na vida

das diversas camadas da população”.12

Segundo o Jornal do Commercio, Os mistérios do Rio de Janeiro era

apresentado sob a forma de um “drama em séries”, cada um trazendo “um

drama de assunto distinto e de atualidade”, destacando que “o segundo episódio

refletirá sempre os últimos sensacionais acontecimentos da vida brasileira”. Era

ressaltado no filme ainda “um entrecho empolgante pelos elementos de interesse

e fantasia que reúne”, mostrando “o trabalho da sapa da espionagem em nosso

país, e particularmente no Rio de Janeiro”, lembrando que justamente no dia 26

de outubro de 1917 o Brasil entrou oficialmente na Primeira Guerra Mundial (em

curso desde 1914), embora o clima de espionagem, o sentimento antigermânico e

os ataques à costa brasileira já fizessem parte da rotina do país.13

Conforme Alex Viany, o filme tinha seis rolos de duração (cerca de 100

minutos), sendo, portanto, um longa-metragem (em série), e não um episódio de

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O filme de mistério: colaborações para o estudo genérico no cinema no Brasil - Rafael de Luna Freire
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

seriado.14 Seu lançamento desfrutou de grande sucesso de público, embora o

comentarista da sessão “Pelos cinemas”, do Jornal do Commercio, ao ver tantas

mocinhas na fila do cinema, tenha brincado “que valia mais a pena ver as Belezas

do Rio do que seus Mistérios”.15

Os mistérios do Rio de Janeiro foi exibido entre 25 e 28 de outubro, quinta

a domingo, saindo de cartaz “no meio de pleno êxito, e tudo por causa de uma

francesa”: a atriz Madeleine Céliat, estrela do filme italiano Monna Vanna (Mario

Caserini, 1915/1917br), que o substituía no cartaz do Cine-Palais. Nos anúncios

publicados no Correio da Manhã foram ressaltados os números de espectadores

que haviam assistido ao filme: 5.834 pessoas na estreia, 11.000 em dois dias de

exibição, e 13.964 em três.16

Num verbete inédito sobre Os mistérios do Rio de Janeiro, Alex Viany

viu no filme a tentativa de reproduzir no Brasil as aventuras em episódios dos

“seriados norte-americanos (com Pearl White à frente) e europeus (Fantômas,

Za-la-Mort, etc.)”. Entretanto, ainda que as peripécias sensacionais lembrassem

os seriados americanos, a publicidade dos filmes se aproximava daquela utilizada

nos filmes e seriados criminais franceses que destacavam o retrato do bas-fond,

isto é, o submundo das grandes cidades.17

O outro filme promovido por A Noite e lançado conjuntamente com Os

mistérios do Rio de Janeiro, A quadrilha do esqueleto, marcava a estreia da

produtora Veritas, do jornalista Irineu Marinho, e recebeu muito mais publicidade

nas páginas do jornal através da publicação de anúncios e reportagens diárias

na semana que antecedeu sua primeira exibição. De fato, somente A quadrilha

do esqueleto foi realmente produzido pela Veritas, enquanto Os mistérios do Rio

de Janeiro, realizado com parcos recursos pela Rio-Film e exibido em sessão

fechada sete meses antes, provavelmente teve o apoio do jornal apenas para ser

lançado comercialmente com o outro filme, em outubro de 1917, “secundando a

nobre iniciativa d’A Noite” (sem grifo no original).18

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O filme de mistério: colaborações para o estudo genérico no cinema no Brasil - Rafael de Luna Freire
Cinema brasileiro

Na época de exibição de A quadrilha do esqueleto e Os mistérios do Rio

de Janeiro,os filmes sobre crimes – assim como a própria cobertura jornalística

desses mesmos crimes – continuavam em grande evidência. O filme produzido

pelo jornalista Irineu Marinho, em particular, apesar de divulgado como ficcional,

se aproximava claramente do noticiário criminal da época. Seu jornal, o vespertino

A Noite, fundado em 1911, era sustentado por grandes tiragens e, uma vez que

possuía um pequeno número de anunciantes, dependia da receita das vendas

e, assim, focava “o gosto do carioca médio”, divulgando o resultado do jogo

do bicho na primeira página, mantendo um “forte e grande noticiário policial” e

permanecendo sintonizado à modernidade, representada fosse pela aviação,

fosse pelo cinema (cf. BIAL, 2004, p. 50-58).

A relação entre filmes criminais brasileiros, como as várias versões

do famoso “Crime da mala”, e a imprensa e o noticiário policial é conhecida,

sendo muitos deles reconstituições de casos reais – frequentemente filmados

nos próprios locais onde os fatos ocorreram –, nos quais, conforme José Inácio

de Melo Souza (2000, p. 108), “ver era uma extensão do lido ou do comentado

por outros leitores”.

Entretanto, nesse conjunto de filmes há diferenças fundamentais que

devem ser consideradas. Uma matéria na Revista dos Cinemas, publicada em

1917, anunciando a exibição no mesmo dia dos “films de aventura” A quadrilha

do esqueleto e Os mistérios do Rio de Janeiro, por exemplo, comentava “o

fraco dos fabricantes por essas produções vazias que logram no entanto

atrair o público mais ou menos desconhecedor das boas peças de pura arte

dramática”. Os dois filmes “fazem imaginar cenas da mais exagerada fantasia,

como soe acontecer com esses filmes d’aventuras, que em literatura, há 50

anos, fizeram o regalo de nosso avós”.19

Na referência dessa reportagem a um gênero literário popular desde a

segunda metade do século XIX, evidenciamos a ligação estabelecida entre esses

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O filme de mistério: colaborações para o estudo genérico no cinema no Brasil - Rafael de Luna Freire
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

filmes de mistério (chamados nos jornais de “folhetim-cinema”) e a tradição do

romance-folhetim na imprensa brasileira. Os folhetins se consolidaram na França

no início de 1840 diante da dependência que os jornais passaram a ter da

publicidade e, por isso, da necessidade de “caçar os leitores”. A publicação nos

rodapés dos jornais de histórias em série (o folhetim-romance) resultou, de fato,

num extraordinário aumento nas tiragens dos periódicos franceses, não faltando

indícios de “correlação entre a prosperidade do jornal e o folhetim” (MEYER, 1996,

p. 294). Conforme Hallewell (1985, p. 139), imitando “como sempre” a França, no

Brasil foram traduzidos e publicados quase simultaneamente folhetins como Os

mistérios de Paris (1842-3), de Eugène Sue, que ampliaram, por exemplos, as

vendas do Jornal do Commercio – cuja tiragem era, porém, várias vezes menor

que a dos jornais parisienses.

A presença e popularidade do folhetim nos jornais brasileiros – assim

como a do noticiário policial, ambos exemplos de “sensacionalismo popular” – se

perpetuaram nas primeiras décadas do século XX, colaborando com o objetivo de

atrair um número maior de leitores, sobretudo o público popular, para os jornais

brasileiros que viriam a se instalar em moldes empresariais.

Renato Ortiz (1989, p. 15) sugeriu que, diferentemente do contexto francês

que presenciou a emergência do folhetim impresso, no Brasil do final do século

XIX o folhetim deixou de “ser moda” sem nunca ter sido popular devido à circulação

muito mais restrita da imprensa nacional em comparação com a penetração do

gênero junto às classes populares urbanas (e crescentemente alfabetizadas) da

Europa desde 1863. Entretanto, se Ortiz identificou um intervalo na circulação do

gênero no Brasil até a emergência da radionovela a partir de 1941, estudiosos da

comunicação vêm recentemente sugerindo que, diferentemente da Europa, as

massas na América Latina foram incorporadas à modernidade não através apenas

da cultura letrada (livro ou imprensa), mas sobretudo por meio de sua articulação

com a cultura oral (e.g. a literatura de cordel e os repentistas) e as experiências e

formatos audiovisuais.

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O filme de mistério: colaborações para o estudo genérico no cinema no Brasil - Rafael de Luna Freire
Cinema brasileiro

Nesse sentido, podemos apontar nesse suposto “vácuo” ao qual Ortiz se

referiu a significativa presença no Brasil da modalidade do folhetim-cinematográfico

em sua versão publicada nos jornais, impresso nos programas dos cinemas e

projetado nas telas, cada um gozando, evidentemente, de relativa autonomia em

relação ao outro. Se por volta de 1917 praticamente todo seriado lançado nos EUA

era acompanhado de uma versão escrita publicada em jornais ou revistas, ambos

podiam ser considerados duas partes de uma mesma unidade textual ampla e

multimidiática. Essa prática particular também se repetiu na imprensa brasileira na

década de 1910 e prosseguiu vigorosamente nas décadas seguintes através das

indispensáveis novelizações das tramas dos filmes em revistas ilustradas como

Selecta, Fon-Fon ou A Scena Muda.

Para Marlyse Meyer (1996, p. 303), o gênero do folhetim é “caracterizado

pela extensão, pelas infindas e atraentes peripécias se alongando no tempo,

desenvolvendo uma temática quer de aventuras, quer de capa e espada, quer

histórica, quer judiciário-policialesca, quer realista-sentimental, quer... tudo

misturado”. Em comum, os folhetins apresentariam o suspense, o drama, a

agilidade da escrita – todos os elementos utilizados para prender o leitor.

Na linha dos folhetins-romances envolvendo crimes e vinganças, agentes

da lei e bandidos e assassinos, e na tradição do sucesso do pioneiro Os mistérios

de Paris, podemos perceber toda uma tradição de títulos de folhetins brasileiros

publicados no final do século XIX e indicados por Meyer, como O mistério da

Roça, Mistérios de Recife, ou Mistério da Tijuca, e também estrangeiros, como

O mistério da Estrada de Sintra, de Eça de Queiroz, posteriormente incorporada

pelos seriados cinematográficos com o sucesso de Os mistérios de Nova York.

Seguindo o raciocínio de Sandroni (2001, p. 76-77) em sua discussão

sobre gêneros musicais, podemos apontar que quando um folhetim ou um seriado

“entrava no diálogo dos títulos” começados com “Mistério” ou “Os mistérios”, se

postulava implicitamente uma afinidade genérica entre essas obras de títulos

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O filme de mistério: colaborações para o estudo genérico no cinema no Brasil - Rafael de Luna Freire
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

similares, se estabelecendo obviamente um diálogo, fosse de correspondência,

semelhança ou paródia.

Ainda nesta relação entre cinema, imprensa e folhetim, é pertinente

apontarmos que o “diretor intelectual” do filme Os mistérios do Rio de Janeiro, o

escritor Coelho Neto, seria responsável, juntamente com Afrânio Peixoto, Medeiros

e Albuquerque e Viriato Correia, por aquela que é hoje considerada por estudiosos

a primeira narrativa policial brasileira (ALBUQUERQUE, 1979), cujo nome não

poderia ser outro que O mistério.

Tratava-se, de um folhetim publicado no jornal A Folha, de propriedade do

próprio Medeiros e Albuquerque, entre os dias 20 de março e 20 de maio de 1920.

Cada episódio (foram 47 ao todo) foi escrito por um autor diferente, deixando um

“gancho” a ser desenvolvido (e resolvido) por outro autor no episódio seguinte.

Com o sucesso da história – que teria até provocado um aumento na tiragem

do jornal –, menos de duas semanas após a publicação do episodio final Afrânio

Peixoto escreveu a Monteiro Lobato sugerindo a publicação desse “romance de


aventuras, policial, amoroso, etc, au jour le jour”. O livro foi publicado pela Editora

Monteiro Lobato & Cia naquele mesmo ano de 1920, ganhando novas edições em

1922 e 1928, quando chegou a 10 mil exemplares vendidos (BIGNOTTO, 2003, p.

304-305; ALBUQUERQUE, 1979, p. 206).

Os “films mysteriosos”, com sua imbricação com termos genéricos “dramas”

e “aventuras policiais”, ficaram em grande parte associados aos seriados e aos

filmes em série, que, diminuindo de popularidade após a Primeira Guerra Mundial,

passaram a se restringir às matinês das salas de “segunda linha” do subúrbio das

capitais ou das cidades do interior, atrações especialmente destinadas a crianças

e adolescentes, e também, em grande parte, ao gênero far-west. Ainda assim,

eles continuariam em voga no Brasil até a década de 1930, quando o termo “filme

policial” se popularizaria definitivamente.

Mas isso já é o tema do próximo episódio...

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O filme de mistério: colaborações para o estudo genérico no cinema no Brasil - Rafael de Luna Freire
Cinema brasileiro

Referências bibliográficas

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SOUZA, J. I. M. As imperfeições do crime da mala: “cine-gêneros” e reencenações no cinema dos primórdios.


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_____________________________________________________________

1. Trabalho apresentado no seminário temático “Cinema no Brasil: dos primeiros tempos à década de 1950”.

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O filme de mistério: colaborações para o estudo genérico no cinema no Brasil - Rafael de Luna Freire
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

2. E-mail:[email protected]

3. Tradução minha nesta e nas demais citações.

4. Cinearte, v.7, n. 349, 2 nov. 1932, p. 3. A grafia da época foi atualizada nesta e nas demais citações.

5. Cinearte, v. 8, n. 381, 15 dez. 1933, p. 5. O resultado da enquete foi: romance 30%, dramático 15%, comédia 10%, histórico
9%, mistério 7%, drama de sexo 7%, melodrama 6%, filmes cômicos 6%, educativo 6%, far west 4%.

6. Devido ao enorme sucesso internacional de Os perigos de Paulina, superior mesmo ao mercado norte-americano, foi
produzida logo em seguida a série The Exploits of Elaine (Louis Gasner, co-dir. George Seitz, 1914-1915), que incluía
aindaThe Romance of Elaine (1915) e The New Exploits of Elaine (1915). Esses seriados foram relançados nos EUA e
Europa num pacote de 22 episódios renomeados como Les mystères de New-York.

7. Cine-Rádio Jornal, v.4, n. 148, 8 mai. 1941, p. 50.

8. Filme Cultura , v. 1, n. 7, out.-nov. 1967, p. 461.

9. Programa do Cinema Pátria, Rio de Janeiro [1917] (Acervo Pedro Lima, Cinemateca Brasileira).

10. Nenhum material do filme sobreviveu. O resumo da trama foi elaborado a partir de: FonFon, s.d [1917]; Selecta, 17 mar.
1917; Recorte sem identificação; e Correio da manhã, 26 out. 1917, p. 5. A maioria desses documentos está reunida na
pasta “Os mistérios do Rio de Janeiro” pertencente ao Arquivo Cinédia, reunido e organizado por Alice Gonzaga.

11. A indicação de Guido Panela como “verdadeiro diretor do filme” está em anotação manuscrita de Adhemar Gonzaga citando
depoimento pessoal de Carlos Machado (documento do Arquivo Cinédia). Em FonFon, informou-se que a parte técnica do
filme teria sido “confiada ao operador Sr. Guido Pauella” [sic] (FonFon, n. 13, 31 mar. 1917).

12. A Noite, 23 out. 1917, p. 5.

13. Jornal do Commercio, 23 out. 1917, p. 5; Jornal do Commercio, 25 out. 1917, p. 20.

14. Cf. 35 mm Conversion Chart for Projection Speed. Disponível em: http://www.cinemaweb.com/silentfilm/bookshelf/18_99_20.
htm. Acesso em: 5 jul. 2011.

15. Jornal do Commercio, 26 out. 1917, p. 5.

16. Correio da manhã, 26 out. 1917, p. 10; Correio da manhã, 27 out. 1917, p. 10; Correio da manhã, 28 out. 1917, p. 10; Jornal
do Commercio, 29 out. 1917, p. 7.

17. Mistérios do Rio de Janeiro (Os). [Verbete], s.d., (Acervo Alex Viany). Disponível em: www.alexviany.com.br Acesso em: 9
jul. 2010. Verbete provavelmente escrito para a Grande Enciclopédia Delta-Larrousse.

18. A Noite, 24 out. 1917, p. 5; Jornal do Commercio, 25 out. 1917, p. 20. Ofereço mais detalhes sobre A quadrilha do esqueleto
em minha tese de doutorado.

19. Revistas dos cinemas, s.d. [1917] (Acervo Cinédia).

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Movimentos da violência em Madame Satã - Ramayana Lira
Cinema brasileiro

Movimentos da violência em Madame Satã1

Ramayana Lira (UNISUL)2

Madame Satã, filme de Karim Aïnouz lançado em 2002, enfoca episódios

da vida de João Francisco dos Santos (nascido em 1900 e morto em 1976), drag

queen avant la lettre, personagem da mítica Lapa carioca do início do século

XX, figura mercurial que se apresenta apavoada, montada e paramentada em

um instante para, em seguida, mostrar-se violento, cirúrgico em seus chutes de

capoeira. Assumindo-se, desde os títulos de abertura, como baseado em uma

“história real”, o filme de Aïnouz opta por recortar a trajetória de João Francisco

dando ênfase à segunda metade dos anos 1920. Desde esses momentos iniciais

constrói-se uma tensão entre uma subjetividade que se projeta nos simulacros

do star system hollywoodiano, rejeitando a posição subalterna e marginal, e um

sujeito enquadrado no xadrez exato da máquina da lei. A própria edição do filme,

nos primeiros minutos da obra, já contrapõe esses dois impulsos, estabelecendo

um jogo de multiplicação da figura de João Francisco, fadado à exclusão e à

fama ao mesmo tempo. A fotografia parece reforçar esse vacilo ao manipular o

foco, muitas vezes apresentando-se em “desfoque”, oferecendo uma imagem

que se esvai, sugerindo a impossibilidade de traçar uma “verdade” em relação

ao personagem histórico, estimulando a falsificação e, com isso, possibilitando a

recriação de tantos outros Madames Satã.

Pois a figura histórica, o João Francisco dos Santos nascido de escravos

em Pernambuco, vendido pela mãe, perturbador da paz, queer ensandecido

90
Movimentos da violência em Madame Satã - Ramayana Lira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

condenado por quase 30 crimes, ele mesmo é uma autoficção, uma constelação

de personae. Madame Satã é um filme que muito mais problematiza o processo

de invenção de si do que funciona como um biopic. O João Francisco interpretado

por Lázaro Ramos transita do vigor físico do capoerista mestre ao melodrama do

amor impossível, do sensualismo homoerótico à repressão patriarcal que emprega

sobre sua família protética formada pela prostituta Laurita e pela figura ambígua

de Tabu. João é uma Scheherazade (ou Xarazá, como fala no filme) reinventando-

se a cada noite: Jamacy, Mulata do Balacochê, Santa Rita do Coqueiral, Tubarão,

bicha renascentista canibalizando Josephine Baker, puta e santa, puto e santo. E

essas narrativas se contaminam: ao final, Jamacy, de onça dourada vira princesa

do deserto, para depois transmutar-se em Madame Satã, falsificação da narrativa

que possibilita a suspensão do julgamento, já que não produz uma “verdade” que

possa ser avaliada. A sequência final do filme sugere isso: sobrepondo-se à voz

da lei que lhe confere a sentença condenatória, a voz de João Francisco (re)cria

Jamacy como outra passagem, de forma que sua subjetividade deslizante não

consegue ser apreendida entre os dedos da lei.

Parênteses para lembrar que João Francisco dos Santos, quando

entrevistado pelo Pasquim, mostrava-se também Scheherazade, malandro

cheio da conversa. Indagado sobre ter atirado em um policial, desconcertava:

“O revólver que disparou da minha mão. Casualmente”. Sérgio Cabral lhe

pergunta: “Mas foi a bala que matou?”. Resposta de João Francisco: “A bala

fez o buraco. Quem matou foi Deus”.

O que me estimula a pensar sobre Madame Satã, o filme, é a sua articulação

de relevantes proposições para pensar a relação entre política e estética. É

obra que lida com a memória e a história, a (re)invenção de si, a significação

do corpo negro. Ao reativar a história da Lapa mítica do início do século, o filme

de Aïnouz solicita o questionamento dos procedimentos visuais e narrativos que

são utilizados para dar conta de/contar essa história, ou seja, a discussão sobre

a seleção de imagens e narrativas que operam essa memória. É nesse sentido

que busco pensar as categorias de “imagens violentas” e “violência das imagens”,

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Movimentos da violência em Madame Satã - Ramayana Lira
Cinema brasileiro

que se mostram a partir dessa seleção de imagens e narrativas. A violência no/do

cinema pode ser vista como irradiação, contaminação, (“imagens violentas”), em

constante tensão com os clichês da violência (“imagens da violência”). Voltarei a

essas noções mais adiante.

Além disso, Madame Satã instiga a indagar sobre a relação entre a política

formalizada em assuntos públicos, históricos e institucionais e a estética, que cria

representações desses assuntos, questão levantada por Ana Amado em La ima-

gen justa (2009) para entender o cinema argentino contemporâneo, mas que pro-

curo também trazer para o contexto brasileiro. Aqui, quero crer, as categorias de

“violência de classe” e “classe de violência” podem auxiliar no entendimento das

imbricações entre estética e política. Através dessas categorias podemos opor

à violência que exclui, que marca um dentro e fora, delimitando pertencimentos

(“violência de classe”), uma “classe de violência”, ou seja, não a violência de uma

classe social (uma abordagem que poderia levar a reducionismos identitários),

mas um tipo de violência que, experienciada por pessoas de diversos contextos

sociais, apresenta-se como uma recusa à violência excludente.

Essas categorias, quero crer, podem ser relevantes na recusa à lógica

estetizante produzida pelas atuais condições de vida e de convivência mediadas

e constituídas pela imagem. Coloco-me em uma zona de risco, um entrelugar

prenhe de rastros da filosofia continental – que me ajuda a articular conceitos

–, da tradição analítica – que me impulsiona no combate direto com o filme, um

confronto tantas vezes rico quanto frustrante – e da minha posição fora dos centros,

sejam eles epistemológicos, econômicos ou acadêmicos. Dessa maneira, passo

a tentar explorar, ainda que de forma resumida, os quatro conceitos mencionados

acima para, em seguida, voltar a Madame Satã.

Tanto Alain Badiou quanto Giorgio Agamben ressaltam o interesse

pela imagem como ponto de partida para compreender o cinema. Badiou vai

além ao afirmar que o cinema “é a perfeição da arte da identificação” (2004, p.

31). O filósofo francês busca, ainda, ver no cinema a perfeição da síntese do

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Movimentos da violência em Madame Satã - Ramayana Lira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

pensamento, capacidade de se compor de dualidades que não se excluem,

abrigando o sensível e o inteligível, a duração e o tempo construído, continuidade

e descontinuidade. À pergunta “como se pensa o cinema?”, poderíamos responder

“pensa-se sinteticamente” (ou, melhor ainda: “como se faz o cinema?”,“faz-se

como síntese”). Percebendo esse caráter antimetafísico da arte cinematográfica é

que procuro entender a síntese que o cinema produz entre “imagens violentas” e

“imagens da violência”.

A grande tarefa do cinema é reprocessar o entulho imagético que nos

cerca. A câmera filma tudo, o cinema aceita a complexidade infinita dessas

imagens e as transforma a partir de dentro, decantando imagens-tempo e

imagens-movimento. O filme é, então, uma síntese da batalha entre as imagens-

clichê e as imagens-criação, onde as vitórias são pontuais. O que chamo de

“imagens violentas” são aquelas imagens que se abrem em potência. Violentas

porque essa abertura opera o descongelamento dos clichês. Corte profundo de

afetamento. As “imagens da violência”, por outro lado, não prometem outra coisa

senão as mesmas imagens, retornando para a mesma violência. É preciso que

se diga, no entanto, que a forma em que penso “imagens violentas” não as

restringe a situações diegéticas que remetem à representação da violência. A

grande violência dessas imagens acaba sendo contra o clichê, pois que elas

o abrem, inclusive, para uma maior força afetiva. Paradoxalmente, a “imagem

violenta” pode ser aquela mais próxima de um afeto do que da violência.

Vejamos no caso de Madame Satã como se constitui uma síntese

dessas imagens. As sequências em que temos João Francisco empenhando

seu corpo na luta aberta de capoeira são compostas de planos que reiteram

os clichês da briga de rua. Mas se a capoeira é arma, corpo-faca, é também

sedução. O clichê da luta violenta, os golpes com as pernas em um cliente

que insiste em solicitar a atenção da prostituta Laurita, são, em seguida,

neutralizados por planos médios de João Francisco, galante, dedicando tais

golpes ao futuro amante, Renatinho. A contiguidade dessas ações libera o

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Movimentos da violência em Madame Satã - Ramayana Lira
Cinema brasileiro

corpo dos clichês da briga para a energia erótica. Os primeiros encontros

entre João e Renatinho são, eles mesmos, carregados de uma força bruta

que abre o corpo para o encontro sexual.

Cabe perguntar sobre a natureza das cenas de sedução. É possível

entender as cenas de sexo em Madame Satã como um excesso da imagem, uma

vez que narrativamente não são indispensáveis. Qual então, o sentido dos corpos?
A “imagem da violência” marca uma apropriação da nudez e do sexo como um

querer ver, um querer prazer vendo, o que Jean-Luc Nancy chama de pornografia.

Já o filme de Aïnouz trabalha de forma distinta. O sexo e a nudez são formas do

corpo, ou melhor, formas da pele, percorrida em close-ups que revelam seu brilho,

nuances de cor, pelos e defeitos. Quase uma pele-tela, onde se passa o filme.

Notar o uso da palavra “passar”: roçar, toque na superfície, como a língua que

desliza sobre o corpo, “imagem violenta” tantas vezes repetida no filme. A pele

cintila em múltiplas variações: purpurina, suor, sangue, oferecendo uma inscrição

na imagem para o aberto, o indecidido, o incompleto.

Lembremos, ainda, dos seios de Laurita, banhados pela luz do abajur.

Mais uma vez, uma certa imagem “que sobra” dentro da economia narrativa.

Sentado na cama, o corpo seminu de Laurita não é objeto de desejo – não pelas

suas qualidades individuais, ou por ser grotesco, pelo contrário. Mas porque os

seios tornam-se órgãos sem função, arrancam a imagem do seio do clichê da

sexualização e da objetificação do corpo da mulher. São massa iluminada, abrindo

a imagem para outras possibilidades.

Os deslizamentos ainda ocorrem na relação de João com sua família,

Laurita e Tabu. A imagem da violência patriarcal se imiscui com o prazer

da partilha de uma sexualidade nãohegemônica. Os planos dos rostos

tensos, por exemplo, na sequência em que João Francisco agride verbal

e fisicamente Tabu por não ter dado conta dos serviços domésticos, são

logo acompanhados de expressões brejeiras e lúbricas. João pergunta “E

o cu? Já deu hoje?”; Tabu lhe responde sorrindo. O jogo entre violência e

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Movimentos da violência em Madame Satã - Ramayana Lira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

afeto é marca das imagens violentas em Madame Satã, construindo uma

síntese em torno exatamente das imbricações entre continuidade (família) e

descontinuidade (violência), uma descontinuidade que continua.

Essa é a questão da violência do/no cinema, tão bem resumida por

Badiou nos seguintes termos:

[...] o cinema é muito facilmente violento e obsceno. [...] Incluídas


em grandes artistas há violências insuportáveis, obscenidades
visíveis. Mas o cinema, justamente, tem essa potência de tomar
o pior que há no mundo contemporâneo e mostrar que até com
esse material se pode inventar uma síntese artística (BADIOU,
2004, p. 72, tradução nossa).

A grande capacidade sintética do cinema está em transformar “imagens da

violência” em “imagens violentas”.

Mas a arte cinematográfica potencializa, também um novo pensamento do

outro, diz Badiou, potencializa o encontro com o outro; o cinema exige ir além do

pensamento da identidade, ele faz pensar o outro (BADIOU, 2004, p. 56). Essa

alteridade se manifesta de formas diversas, muitas vezes ela própria imersa em

uma violência que transita entre uma “violência de classe” e a “classe de violência”

(apropriando-me do jogo linguístico empreendido pelo grupo Medvedkine, que

produziu, nos anos 70, o média-metragem “Classe de luta”, que inverte os termos

da conhecida “luta de classes”). Uma “classe de violência” é aquela que se cria

quando a violência é partilhada por um grupo de pessoas, independentemente de

seu status. A “violência de classe” vai da classe para a violência, ou seja, necessita,

ainda que provisoriamente, de uma “identidade” de objetivos. Já a “classe de

violência”, na sua contingência, abandona a necessidade de uma identidade. Ela

forma uma comunidade provisória daqueles que se veem diante uns dos outros a

partir de uma violência que lhes é externa.

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Movimentos da violência em Madame Satã - Ramayana Lira
Cinema brasileiro

Madame Satã sintetiza a tensão dessas violências. Voltando de bonde

da boate dos “bacanas” que lhes recusou a entrada, João e Laurita são

apresentados em primeiro e em segundo plano dentro do quadro. O foco viaja

entre seus rostos marcados pela violência dos seguranças. Ao chegar em casa,

Laurita confronta João por ter reagido quando barrados. Ele questiona: “Vou

levar desaforo para casa? Todo mundo pode entrar por que que eu não posso?”.

“Porque você não é todo mundo”, responde Laurita. Não, João Francisco não

é todo mundo, mas de certa forma é o mundo todo cujo movimento é impedido

por convenções e instituições.

Não que João Francisco seja uma figura alegórica dos sujeitos à

margem. Isso ele é, mas não apenas. Enquanto conversa com a cantora

Vitória, a figura de João Francisco é enquadrada em plano baixo. O momento

é humilhante e derrisório: o servilismo de João e, ainda, a zombaria de Vitória,

rindo da ignorância geográfica e cultural dele. O que chama a atenção é o efeito

fotográfico da multiplicação da imagem de João Francisco. Aos pés de Vitória

vemos vários Joõesna mesma postura servil. Como se todas as suas máscaras,

criadas na invenção de si para sobreviver, estivessem ali prostradas diante da

mulher branca que nunca serão.

Mas esse servilismo não dura, pois temos sua reação violenta

à humilhação que a cantora lhe impõe ao flagrá-lo usando as roupas do

espetáculo. A cena é enquadrada a partir da porta do camarim. João

Francisco fecha a porta para ajudar a cantora a trocar de roupa, deixando o

plano em total escuridão, e ouvimos a voz dela, com menosprezo: “Imagina

o cheiro que minha roupa ficou”. Alguns segundos se passam e ouvimos o

som de tecido sendo rasgado. Agora, não mais uma imagem multiplicada

do aio servil, mas o escuro de uma tela onde o espectador pode se lançar

como participante dessa violência, em segredo, por trás das portas. Tomar

parte, assim, nessa “classe de violência”. Um corte seco nos leva de volta ao

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Movimentos da violência em Madame Satã - Ramayana Lira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

camarim, agora não mais enquadrado com distanciamento através da porta,

mas em planos médios e planos americanos, mais próximos. Aqui, de volta a

imagens-clichê, João derrubando prateleiras, ameaçando com uma navalha.

Uma “classe de violência” é uma classe de corpos expostos a uma situação

violenta e que formam uma resistência ao que dá origem à situação. O corpo, nos

filmes (como lembra Ricardo Parodie), nos leva a ver uma organicidade que se
apoia – desde o começo da história do cinema, mesmo antes de o cinema adquirir

sua forma narrativa que define o centro de operações do cinema institucional – na

organização do corpo que outorga sentido a partições posteriores do filme e aos

conceitos de indivíduo, identidade e eu. (PARODI, 2004, p. 80)

O gesto é uma forma de o corpo individual se ligar ao corpo social, é uma

das mais evidentes manifestações políticas do corpo. Se, como afirma Gilles

Deleuze (1990), para o cinema feminista moderno era preciso tirar o corpo da

mulher da pose a que lhe condena a ordem patriarcal, reinventando os gestos,

para João Francisco, em Madame Satã, o simulacro dessa pose é exatamente o

que lhe permite multiplicar sua existência. É através da reapropriação performática

que canibaliza Vitória, Josephine Baker, samba e choro que João liberta também

seu corpo do tópico e da produção do desejo organizado. O gesto vem depois da

ação, é o que sobra dela, tatuado no corpo cansado. Reagindo à violência com

sua performance, João responde com uma “violência de classe” sui generis: não

apenas através do afeto em relação à sua família, mas na composição de seus

personagens, que formam uma constelação de possíveis resistências à violência

institucional. Não é à toa que temos tantas cenas em que os personagens costuram,

remendam, ajustam roupas. O vestir-se acaba se tornando forma privilegiada de

“montar-se”, ou seja, de selecionar as peças permutáveis, ritual de confecção e

uso dos disfarces contra a força da lei.

O filme de Karim Aïnouz, portanto, nos dá condições de pensarmos como

o cinema manifesta uma política. As escolhas estéticas se dão não apenas por

questões formais, mas porque o filme traz uma reconfiguração da apreensão dos

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Movimentos da violência em Madame Satã - Ramayana Lira
Cinema brasileiro

movimentos do corpo, principalmente do corpo negro de João Francisco. O des-

tino da noção de raça parece ser outro que não o da proposição de identidades.

Na síntese proposta pelo cinema, com sua potência de abrir a imagem, rasgar a

imagem da intimidade para mostrar a história, Madame Satã reativa a memória da

Lapa e a história de João Francisco do Santos para também remontar um mosaico

de imagens da capoeira, da luta, do jogo.

O que me “co-move” no cinema, ou seja, aquilo que me mobiliza junto com

a imagem, é justamente uma imagem, não a imagem justa. O que me mobiliza é

a possibilidade de os filmes criarem “imagens violentas” e “imagens da violência”

e “violência de classe” e “classe de violência” em um mesmo movimento, de onde

tiram sua força estética e política. A síntese de Madame Satã, que sai do clichê da

capoeira para outras imagens mais politicamente carregadas, que nos remetem

a um estado de constante mudança, é exatamente o contrário do filme Besouro

(João Daniel Tikhomiroff,2009), onde a expressão do corpo na capoeira é o que

libera o filme dos clichês de uma mitologia. Mas isso já é outra história.

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Movimentos da violência em Madame Satã - Ramayana Lira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Referências bibliográficas

AMADO, A. La imagen justa:cine argentino y política. Buenos Aires: Colihue, 2009.

BADIOU, A.El cine como experimentación filosófica. In: YOEL, G. (Org.). Pensar el cine 1: Imagen, ética y
filosofia. Buenos Aires: Manantial, 2004. p. 23-81.

DELEUZE, G. Cinema 2: imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990

PARODI, R. Cuerpo y cine: reporte fragmentario sobre extrañas intensidades y mutaciones del orden corpora.
In: YOEL, G. (Org.). Pensar el cine 2:Cuerpo(s), temporalidad y nuevas tecnologías . Buenos Aires: Manantial,
2004. p. 73-100.

Referências audiovisuais

Madame Satã. Karim Aïnouz. Brasil, 2002, DVD.

_____________________________________________________________

1. UNISUL/Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem. Trabalho apresentado no seminário temático “Cinema,


transculturalidade, globalização”, coordenado pela autora e pelos professores Anelise Corseuil (UFSC) e Denilson Lopes (UFRJ).

2. E-mail: [email protected]

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Entre a ficção e o documentário no cinema alternativo - Roberto Moura
Cinema brasileiro

Entre a ficção e o documentário no cinema alternativo1

Roberto Moura (UFr)2

Apenas ocasionalmente a pesquisa – que tem na SOCINE um divisor de

águas, pelo rompimento do paroquialismo partilhado entre os poucos especialistas

de até então e, consequentemente, pela maior amplitude de interesses que gerou

sua fundação – se voltou para o fenômeno do curta-metragem brasileiro, que

surpreendentemente renasce durante os governos militares. Alguns dos primeiros

filmes dos componentes do movimento do Cinema Novo, como também dos

do Cinema Marginal, foram curtas, sendo, além disso, ao primeiro movimento

associados os filmes das extraordinárias (vistas aos olhos de hoje) “caravanas”

Farkas – objeto de uma importante tese de doutorado ainda não publicada3–,

apesar da independência na iniciativa do produtor paulista. Entretanto, os curtas

daquela hora seriam tarefa de uma nova geração de realizadores que surge nos

festivais de cinema amador, uma das poucas possibilidades que se abrem para a

juventude cinéfila e libertária depois do Golpe de 64. A coisa ganha importância

com o crescimento quase espontâneo de uma rede de cineclubes pelos estados –

mesmo que alimentada inicialmente por parceiros aparentemente incompatíveis, a

Igreja e o Partido Comunista Brasileiro, e depois já pela empresa privada (o Jornal

do Brasil) – exibindo os filmes apresentados nesses festivais e fornecidos pelos

acervos das cinematecas criadas no Rio e em São Paulo – rede que é duramente

reprimida em 1968 pelo Ato Institucional nº 5. Com as Jornadas da Bahia a partir

do início dos anos 70 aglutinando esses recém-chegados à atividade, e com a

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Entre a ficção e o documentário no cinema alternativo - Roberto Moura
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

fundação da Associação Brasileira de Documentaristas, a ABD, que se tornaria

responsável em1978 pela chamada “lei do curta”,4 atrelando os curtas-metragens

aos programas com longas-metragens estrangeiros – criando um mercado que

fomentaria naquela virada da década a feitura de um impressionante número de

filmes –, chegamos ao momento de maior produtividade desse cinema alternativo

em relação ao lugar central do longa-metragem (tanto em termos econômicos,

quanto estéticos, como demonstraria uma parte desses curtas).

A legislação, posta em prática no início do ano seguinte, visava

explicitamente – expondo as contradições e brechas da política cinematográfica

gerida pelo Instituto Nacional de Cinema e depois pela Embrafilme e pelo Concine

(Conselho Nacional de Cinema) – criar um mercado para o “filme cultural”, livre de

compromissos publicitários, institucionais ou comerciais,como se caracterizava

a produção profissional de curtas-metragens daquelas décadas, cuja figura

emblemática era o francês Jean Manson e seu cinema de “qualidade”, que

depois do Golpe passara automaticamente a produzir filmes para o regime. No

Rio é fundada a CORCINA, uma cooperativa com o objetivo de mediar a chegada

ao mercado de filmes de realizadores não associados a produtoras, exigidas

pela,lei, que reuniria em seu quadro um número importante de interessados, o

que anarquicamente viabilizaria a feitura de inúmeros filmes através de formas

cooperativistas de produção. A própria Embrafilme cede às pressões abrindo

um setor de sua poderosa distribuidora para o curta-metragem, absorvendo

a proposta da ABD, favorecendo a pluralização dos focos de produção cujos

filmes se concentrariam na distribuidora estatal, com porte para dialogar com

distribuidores e exibidores. A “lei do curta”, desde o início combatida pelas


distribuidoras estadunidenses e pelos exibidores brasileiros, tradicionais aliados,

seria já na primeira metade dos anos 1980 neutralizada em seus efeitos pela

ação de seus advogados– e também por meios extralegais –, deixando esses

filmes, produzidos não apenas no Rio e em São Paulo mas por todo país, que

episodicamente são exibidos para as plateias dos blockbusters, definitivamente

fora das telas e da própria história do cinema brasileiro.

101
Entre a ficção e o documentário no cinema alternativo - Roberto Moura
Cinema brasileiro

Entre os mais de mil curtas-metragens produzidos nos pouco mais de

quatroanos de real vigência da legislação, observa-se em alguns o progressivo

polimento na direção do documentário clássico ou de um cinema ficcional realista

que se renovava dentro de um sistema de gêneros nacionalizado pela influência da

teledramaturgia da TV Globo. Entretanto, valendo-se da legislação, são também

realizados filmes autorais, militantes, experimentais, poéticos, estetizantes,

formalistas, numa “movimentação” não mais vinculada a um mesmo programa,

como nos “movimentos” anteriores, mas onde conviviam diversas orientações

estéticas e ideológicas, nos quais as referências às vanguardas e à contracultura

se associam às necessidades do projeto ainda em curso, embora cada vez mais

difuso e ambíguo, de associação da burguesia e da classe média, de onde vinham

como uma jovem dissidência aqueles técnicos e artistas, com o povo,de quem

era preciso compreender, para além dos temores e preconceitos, tanto o trajeto

histórico como a presença afro-brasileirae ameríndia.

Proponho-me nessa comunicação mais a descrever do que a analisar

três desses filmes tomados como uma brevíssima amostragem – Duas histórias

para crianças (Pompeu Aguiar, 1978), Bahira, o grande burlão (Paulo Veríssimo,

1979),e A resistência da Lua (Octávio Bezerra, 1985) –, evidenciando neles seus

partidos analíticos e retóricos e observando brevemente o diálogo íntimo, embora

não óbvio, mantido entre seus realizadores, tanto em relação aos aspectos

temáticos e formais, como frente a um feixe de questões que afloram associadas,

transcendendo nos filmes a seus próprios objetos.

Duas histórias para crianças, roteiro e direção de Pompeu Aguiar (um dos

fundadores da Corcina), valendo-se de dois textos de Julio Cortázar, foi realizado

em 1978 em 35 mm, como todos os outros curtas na época, para poder cumprir a

lei como complemento de longa-metragem estrangeiro, e divide-se em três partes.

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Entre a ficção e o documentário no cinema alternativo - Roberto Moura
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

A primeira estrutura-se como o making of da realização de um travelling,

sendo composta por planos da pequena equipe e de uma atriz preparando-se

para rodar o plano, imagens que são acompanhadas por ruídos ambientes

e trechos de conversas sobre o andamento do trabalho, embora nada fique

marcadamente em sincro. Conheço todos os presentes, mas o espectador só

os vai identicando a partir de suas atividades, como Flavio Ferreira e José

Joffily instalando a Angenieux na câmera e Jom Tob Azulai preparando o

Nagara, e para o espectador não fica claro quem é o diretor, uma vez que

Pompeu transitaentre os outros. Acordes sinfônicos por um momento rompem

o tom documental. O grupo de jovens, com suas inevitáveis jeans e camisetas,

é representado como uma equipe onde o trabalho flui com especialidades mas

sem hierarquias e de forma intensa e fraterna.

A segunda parte, antecipada pelo título TEMA PARA UMA TAPEÇARIA,

é construída pelo plano sequência que era preparado num travelling com som

direto: esse abre em plano próximo de uma rumorosa cascata, o zoom vai se

abrindo e corrigindo para a esquerda passando pela mata até revelar, já na

grande angular, um platô onde se encontra a atriz de vestido branco, Louise

Cardoso. Terminado o movimento do zoom em panorâmica começa propriamente

o travelling assumindo um tom marcadamente artificial/retórico, quando o

enquadramento preserva a câmera girando em torno da atriz até se fixar. Ela

agora olha para a câmera e, movendo-se para o centro do campo, depois de

uma longa pausa, começa a narrar uma história com sabor de parábola sobre o

general que, em desvantagem de soldados frente ao inimigo, escreve inspiradas


ordens que, divulgadas, provocam grandes dissidências nas tropas adversárias,

que se juntam a seu exército, até restar apenas um inimigo que, entretanto, não

cede frente as suas palavras. Finalmente este vem até a tenda do general e o

mata. Sua tropa se dispersa e sai o sol. Enquanto narra, sempre nos olhando

de frente, a atriz se movimenta sempre para a esquerda, no que é seguida

pela câmera no carrinho, que a mantém no centro do enquadramento. No final,

ela faz um movimento de aproximação, ficando em plano próximo, busto e

103
Entre a ficção e o documentário no cinema alternativo - Roberto Moura
Cinema brasileiro

rosto. Terminado o texto, voltam os mesmos acordes sinfônicos associados a

trêsplanos da atriz – nos dois primeiros ela está numa postura extremamente

informal interagindo com alguém fora de campo; o segundo é intervalado por um

escurecimento em fade in; o terceiro, uma tomada marcadamente retórica onde

vemos apenas sua cabeça passar por baixo do campo, indo e vindo.

Entra o título da terceira ea ultima parte (GUK, CAMELO DECLARADO

INDESEJÁVEL), quando, também num plano-sequência, quase todo fixo, a

mesma atriz em primeiro plano, também olhando diretamente para a câmera,

narra a história de um camelo objeto de uma reiterada rejeição burocrática

que é por ele aceita com trágica tolerância. Quando termina o relato, a câmera

começa lentamente a se afastar dela. Corte em sincro para um plano geral

lateral que vê a atriz sentada enquanto, num trilho à sua frente, o carrinho

com a câmera e o técnico de som se afastam. São quatro no carrinho: alguém

está atrás da câmera, dois estão de pé nos extremos do veículo e seguram

fios, enquanto Pompeu está sentado. O guarda-sol, que sabemos ser usado

para proteger a lente,no enquadramento parece estar ali exclusivamente para

proteger o “diretor”, agora equívocada mas corretamente, enfim, identificado

pelos espectadores. A imagem se fixa.

A cópia que disponho de Bahira, o grande burlão, com que Paulo

Veríssimo ganha em 1979 a 6ª versão do Festival JB de Curtas-Metragens,

em sua fase profissional, é resultado da gravação em DV da projeção de uma

cópia já em estado muito precário. Diferente de Pompeu, que tem seu trabalho

muito bem tratado e há pouco tempo, depois de muitos anos sempre realizando

filmes e vídeos retóricos ligados à alta cultura na obscuridade, lançou um

longa no mercado, Adágio Sostenuto, Veríssimo deixou todo seu trabalho em

cinema em precaríssimas condições – uma série de curtas antológicos e uma

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Entre a ficção e o documentário no cinema alternativo - Roberto Moura
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

segunda versão cinematográfica de Macunaíma, também com Grande Othelo e

canibalizando a versão teatral de Antunes Filho, que também ganha o Festival

de Brasília de 1985, provando que...

Bahira,que foi produzido no ambiente da CORCINA, tem 11 minutos, foi

fotografado em parte por Edson Batista, em parte por Renato Laclete, produzido

por Cintia Garcia e Marta Irene e montado por Carlos Alberto Camuirano.O filme

também pode ser dividido em três sequências, sendo a segunda a mais longa.

Seu tema, se desdobra em dois:Bahira, herói da mitologia dos Caufua-Parintintin,

e Nunes Pereira, personagem também extraordinário, já naquela época próximo

dos 90 anos, nascido dentro de uma casa de candomblé tradicional no Maranhão

e que, adulto, vive muitos anos na Amazônia com diversos grupos indígenas – um

antropólogo fora da academia, autor de inúmeros, livros inclusive um sobre Bahira

(com quem Nunes particularmente se identificava), entidade sensual e picaresca,

sendo os dois, na verdade, mentores do próprio Paulo Veríssimo, que com eles

explicitamente estabelece os valores do seu cinema.

A primeira sequência em preto e branco, sepiado com uma fotografia

granulada e muito contrastada, em queuma forte luminosidade entra pelas

janelas, é narrada em plano-sequência na casa/escritório de Nunes Pereira em

Santa Tereza, bairro onde naquela época vivia também vivia o copacabaníssimo

Veríssimo. Nunes, inicialmente sentado frente a uma escrivaninha, entre livros,

levanta-se e, com o passo cadenciado pela bengala, se dirige pelos corredores

até a porta e, depois de descer uma escada, chega à rua. Caracterizam a

sequência insertes de imagens do sol e de uma cartela com um texto sobre

Bahira (“Bahira foi quem criou o sol e a lua - Bahira fez o membro do sol da raís

de paxiúba / E fez da raiz do apuizaba o sexo...”a luz brilhante do sol não deixa

ler além), interrompendo por momentos o plano-sequência, que volta com um

som muito trabalhado, com ruídos ambientes, piados de aves, flautas indígenas,

ruídos estridentes, sempre dominado pela voz em off de Nunes Pereira, que fala

de sua formação com os índios. Nunes:

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Entre a ficção e o documentário no cinema alternativo - Roberto Moura
Cinema brasileiro

Se alguma coisa me reabilitou diante de mim mesmo, foi o


contato com os índios. Depois que realmente eu ingressei
nessa trajetória que é a maior de minha vida, através da brenha
amazônica e das tribos indígenas, eu me senti um indivíduo
mais poderoso que todos meus contemporâneos que vivem nas
cidades tentaculares que nos desmoralizam. A selva dá lições
extraordinárias de consciência e personalidade, sobretudo do
destino que nos cabe como seres humanos. As leis de lá são
ditadas pelos campos infinitos. O que me robusteceu foi que lá
não havia dominadores.

Nunes segue como um duende com bengala e cachimbo pela apertada

Almirante Alexandrino e, chegando a uma parada, faz o sinal para um bonde

que o leva, iniciando-se a sequência mais longa do filme, onde seu estatuto

como personagem real de um documentário seria transtornado – como, aliás,

o de todos demais personagens que surgiriam durante a viagem. Nessa

segunda sequência, o movimento narrativo é então construído pelo material

filmado empreto e branco sepiado, seguindo Nunes, envolvido no cotidiano da

viagem em meio aos outros passageiros, intercalado por imagens coloridas que

depois passam a predominar, tanto de animais, pássaros plumosos e jacarés,

idilicamente em seus habitats ou então aprisionados por grades e telas, como do

próprio Nunes. Este,com novos gestos e expressões, se transfigura em Bahira

e de seu sopro faz surgir vários índios no bonde (particularmente lindas cunhãs

seminuas, com suas penas e colares que o acariciam, e que o servem com uma

cuia de tacacá) e um currupira, que rouba seu cachimbo. Isso associado às

falas curtas de um locutor off (o próprio Veríssimo), que diz com sua voz rouca

magicizando a realidade: “Bahira é um detonador de distâncias”.

Num plano aberto, vemos o bonde com um escudo indígena pendurado na

frente,enquanto um pequeno grupo de índios o aguarda no ponto. Num momento,

esses personagens fantásticos surgem em planos preto e branco travestidos de

homens com trajes comuns, andando numa estação e, depois, misturados num

compartimento do metrô (no jornal de alguém se lê a manchete: “Metalúrgicos:

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Entre a ficção e o documentário no cinema alternativo - Roberto Moura
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

mediação à tarde”), imersos na rotina da cidade. Novamente estamos no bonde,

cor, com Nunes Pereira e as cunhãs já em preliminares da orgía. Saindo da cena

em panorâmica a câmera enquadra brevemente a cidade. Nunes volta a falar,

desta vez se referindo ao herói:

Bahira, era como um pai que dá a seu filho lição de moral.


Bahira, um inventor de objetos de caça e pesca, um inovador
da maneira de fornicar – essa a verdadeira arte de Bahira. Um
índio me pergunta como nós civilizados fazemos amor. Dou uma
evasiva e pergunto : e vocês? -Nós fazemos de lado e quando a
gente goza rola de prazer.

No epílogo, novamente em preto e branco azulado, Nunes Pereira

anda no Centro com sua bengala no meio da multidão, entre planos com

movimentos verticais de câmera pela Petrobrás e pelos prédios da Cinelância

– “Amor Bandido”, vê-se na marquise do cinema Odeon. O locutor de voz rouca

informa: “Bahira se lança ao sol”; também em off, Nunes Pereira se despede:

“Gostaria de ser enterrado entre o Maranhão e o Pará, para ser árvore, beijar

as estrelas. Mas face a industrialização sei que vou ser papel higiênico. Mas

eu vivi, eu vivi!” – repete a trindade.

Em 1985, Octávio Bezerra–também carioca, que recentemente lançou um

longa no circuito, Nzinga (2007), um musical dramático sobre a rainha africana,na

época mais ligado à ABD5 do que à CORCINA– roda A resistência da Lua, que

ganharia o Festival do Novo Cinema Latino de Havana. Se num trabalho em

andamento me volto para esse cinema alternativo – título fantasia: nós nunca

o cognominamos assim – e, por minhas limitações de pesquisa, me restrinjo

ao universo carioca de um fenômeno que foi nacional, muito me interessam as

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Entre a ficção e o documentário no cinema alternativo - Roberto Moura
Cinema brasileiro

incursões cinematográficas que alguns daqui fizeram em outros estados, como

Noilton Nunes e Gigi, indo para o Acre atraído pela seita do daime, ou Sérgio

Péo e José Carlos Asbeg chegando ao ABC pra filmar comício de Lula. Octávio

filma em Salvador o que acabaria se tornando um média-metragem de 32’,

provavelmente assumindo esse tempo, já que a naquele momento a “lei do curta”

não era mais respeitada e não adiantava mais fazer filmes com por volta de 10’,

como queriam os distribuidores. No filme, fotografado por Miguel Rio Branco e

montado por Severino Dadá, se no desenvolvimento da narrativa o som associado

a um ambiente se entrelaça com as imagens do futuro, as imagens de cada

universo ganham novos motivos sonoros, enquanto insertes apresentam as futuras

sequências. Assim, a divisão em três partes não é de sequências convencionais,

mas do que poderíamos chamar de movimentos narrativos.

Num prólogo antes dos créditos, o filme começa no mar, quando

pescadores remam em pé num barco ao som sucessivo de tambores, sopros e de

um canto africano. Na madrugada, a Cantina da Lua está vazia. De um presépio

de São Jorge somos conduzidos pela câmera na mão pela taberna às escuras até

uma entidade ambígua, um homem barbado vestido de mulher que ri de forma

estridente. Seu riso acompanha o inserte de um cavalo branco que trota na frente

da igreja. Crianças entram na cantina trazendo a manhã, depois negras que

trazem comida e outras mercadorias nas costas. Um homem fala ao microfone:

Os ponteiros do relógio acabam de se encontrar a fim de


dar exemplo à humanidade. São doze horas aqui na Lua, no
centro histórico de Salvador. Boa tarde, temos que sensibilizar
todas as camadas da sociedade para salvar o maior conjunto
arquitetônico da América Latina. Elevo meu pensamento a Deus
e peço ao Senhor do Bonfim.

Enquanto ele fala vemos na ladeira em frente mulheres encostadas em

um carro, um vendedor de picolé. Alguém faz sua voz ser escutada também

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Entre a ficção e o documentário no cinema alternativo - Roberto Moura
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

em off, dizendo: “filmando a miséria pra levar para outro país...”. Silêncio: no

enorme aposento na obscuridade, portas abobadadas revelam o dia claro de

fora. Voltamos ao locutor em close e depois visto em plongê: “Sou Clarindo Silva

da Cantina da Lua, um espaço cultural onde se reúnem boêmios, intelectuais e

biriteiros anônimos, o povo... O momento é de conscientização do valor histórico e

cultural...”. Novamente, externas – telhados, velhas fachadas, casas parcialmente

destruídas – enquanto Clarindo continua, agora em off: “não se pode permitir

que se preserve expurgando uma comunidade, a Resistência da Lua na luta pela

revitalização do centro histórico de Salvador.”

O segundo movimento narra um almoço festivo na Cantina, que costura

depoimentos, apresentações, cenas contrastivas, até seus convivas se unirem

numa cansão melancólica. Alguém conta a história jocosa de Cecília com o

estivador ao meio do burburinho. Risos. A imagem do Cristo supliciado – toca

uma campainha. Tilte desce até uma porta que se abre enquanto uma voz em

off diz esperançosa: “Nosso pai celestial nos deu o direito de falarmos com

ele”. Aparece um homem com um charuto que começa a rir, ele vira as costas

e o seguimos entrando pelo cômodo, enquanto ele fala: “curador e curandeira,

feiticeiro e feiticeira. Nós somos todos santos.” Vai até um oratório e acende

uma vela enquanto começa a contar sua vida nascido no Remanso, e depois...

agora, claramente em off, começa a falar do Brasil: “Brasil, que nome horrível,

é um monte de brasa, macho, feminina...”. A lua recorrente no céu escuro. Na

mesa, uma mulher fala sobre o candomblé: “nossa força é passar de filho pra

neto.” Continua sua fala em off, enquanto vemos muitos fiéis na porta da igreja,
e depois o interior da missa repleta. O padre benze enquanto Clementina de

Jesus canta (off) “Benguelê”. No candomblé, vemos mulheres paramentadas

que dançam enquanto Clementina continua cantando: “vamos saravá e vamos

sarava”. Voltamos à mesa, um homem (Jeová de Carvalho?) fala, todos o ouvem

em silêncio: “O movimento malê foi o mais importante movimento libertário havido

na Bahia.” Sua voz fica em off enquanto surge uma sequência de fotos em preto

e branco, referente a movimentos políticos negros, passeatas; o bispo Tutu,

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Entre a ficção e o documentário no cinema alternativo - Roberto Moura
Cinema brasileiro

Lumumba. Vemos um grupo de escravos amarrados com os olhos fechados. Ao

som de rajada de metralhadoras, eles caem aos estertores, como o casal no final

de Bonnie and Clyde. Um dos convivas com um clarinete começa a tocar; aos

poucos, todos ritmam e cantam juntos, enquanto o clarinetista faz finos bordões e

contrapontos: “meu desespero ninguém vê/ sou diplomado em matéria de sofrer”.

A música segue enquanto vemos crianças na rua, cozinheiros numa sacada, uma

mulher que conta dinheiro, uma barbearia. Mulheres semidespidas num quarto,

uma se pinta, outra deitada se levanta e põe um vestido enquanto em off Bola

Sete canta se acompanhando ao piano.

No terceiro movimento, a noite na taberna, enquanto alguém fala (off)

sobre “o negro escravo no Brasil (....), o quilombo como a primeira forma de

organização”, a câmera na mão avança ao longo do balcão pelo corredor

repleto até chegarmos ao Vovô que conta a história do nascimento do Ilê Aiê,

o primeiro bloco de negros no carnaval de Salvador: “pra sair, tinha que riscar

o braço”. O bloco sai no Terreirão em frente da Cantina: apitos, tambores, a

multidão em sua organização informal canta, toca e dança. Um dançarino

superlativo se destaca dançando com diversas mulheres. Num epílogo,

um poeta com seu terno branco declama na rua escura imagens barroca

e rememora momentos. Fachadas, pessoas perambulam, sinuca, ladeira,

ressurge o cavalo branco frente à igreja, plongê do poeta: “um gesto simples

e que faz chorar”, cornetas soam, novamente o cavalo branco enquanto o

poeta termina dizendo: “o que fomos ou pensamos ser.”

São filmes feitos entre o final dos anos 70 e a metade dos 80, de Geisel

a Figueiredo, durante a transição sangrenta e sofrida do regime militar para

a retomada da democracia conservadora no país, como orquestrara Golbery.

Enquanto o Estado se tornava protagonista da produção cultural no país

cooptando os membros do “quisto rebelde de produção simbólica nacional”

(CESAR, 980),foi episodicamente para o curta-metragem que se transferiu

a ponta vital do cinema brasileiro frente as questões da representação da

110
Entre a ficção e o documentário no cinema alternativo - Roberto Moura
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

realidadee da consciência dos realizadores responsáveis pela produção

cultural que chega às massas urbanas naquele momento.

Assim, alguns técnicos-artistas, vindos à tona num momento sombrio,

apropriam-se das possibilidades vindas com o cinema no pós-guerra, levando

adiante essa intervenção nas condições de produção, nomadizando pelas

cidades, e na forma expressiva, sem preocupações de gênero ou natureza

fílmica, apostando culta mas primitivamente na associação de diversos

elementos culturais, formais e conceituais, antes vistos como incompatíveis.

O intuito reiterado de desconstrução e denúncia, tanto do cinema ilusionista

como do institucionalmente possuído, expressa nesse universo alternativo um

desejo convergente – tanto de revelar a arbitrariedade ficcional da construção do

filme documentário, como de incorporar documentalmente as circunstâncias da

feitura do cinema ficcional, transcendendo limitações e limites em sua urgência

e em seu afã de relatar o que era deixado de fora.

O underground brasileiro no Pelourinho, a travessia do anti-herói por

apartamentos e bairros até o centro da metrópole ciclópica, ou simplesmente a

cena que constrói uma equipe cinematográfica, heranças fortuitas, mas ainda

irrevogáveis, da colonização e da escravatura atualizadas pela ditadura são então

reveladas em idioletos absolutamente locais e absurdamente comunicativos

por toda ocidentalidade e, particularmente pela mais periférica, a partir das

imprevisíveis possibilidades intertextuais de um cinema que tudo traça – teatro,

música, poesia, dança, artes plásticas, literatura, a arquitetura erigida pelo

progresso ou corroída pela miséria, as formas litúrgicas do transe ou mesmo os

frutos da natureza idílica transformados em papel higiênico. Soluções polifônicas

de montagem, manipulações caligráficas,câmera na mão ou no tripé, o manche

sempre leve, que conformaram anotação poética dos fatos daquela modernidade,

fazem dessa pequena amostragem de filmes, a ser expandida pela pesquisa, uma

prévia ao acesso a esses outros olhos que flagraram os tais “anos de chumbo”:

filmes primitivos de uma nova era – que não veio.

111
Entre a ficção e o documentário no cinema alternativo - Roberto Moura
Cinema brasileiro

Referências bibliográficas

CESAR, Ana Cristina. Literatura não é documento. Rio de Janeiro: MEC/FUNARTE, 980.

LUCAS, Meize Regina de Lucena. Caravana Farkas: itinerários do documentário brasileiro. Instituto de Filosofia
e Ciências Sociais, UFRJ, 2005.

_____________________________________________________________

1. Trabalho apresentado na mesa temática “Cinema e agentes periféricos”.

2. Doutor. E-mail: [email protected]

3. LUCAS, Meize Regina de Lucena. Caravana Farkas: itinerários do documentário brasileiro. Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais, UFRJ, 2005.

4. Resolução n° 18 do Concine de 24 de agosto de 1977.

5. Associação Brasileira de Documentaristas.

112
A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona1

Wilton Garcia (UBC)

O filme Elvis e Madona (2009), de Marcelo Laffitte, abre espaço para

o debate crítico sobre a diversidade cultural/sexual, sobretudo quando se

pensa o contexto brasileiro atual. Nessa película, registra-se uma riqueza de

personagens e tramas que marcam a história do cinema nacional e apontam

afetividades, sensualidades e eróticas etc. Experiência, imagem e subjetividade

elencam-se como categorias, inscritas ao longo desta investigação, visto que

os estudos contemporâneos do cinema, estrategicamente, convocam uma

abordagem teórico-metodológica.

***

Com o desafio de investigar cinema, estética e política, este trabalho foca a

diversidade cultural/sexual no cinema diante do contexto contemporâneo brasileiro.

A expressão da diversidade nos filmes mostra um movimento de inclusão social

e ativa recorrente dos Direitos Humanos. Aqui, ocorre uma crescente expectativa

sobre essa diversidade como temática do cinema nacional, ainda mais diante da

contribuição significativa do Festival da Diversidade Sexual Mix Brasil – embora

não se possa deixar de ressaltar as dificuldades de apoio e/ou fomento.

113
A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
Cinema brasileiro

Mesmo assim, mediante o esforço de (re)tratar ações afirmativas

e visibilidade das comunidades LGBTT (de Lésbicas, Gays, Bissexuais,

Transexuais e Travestis) nos filmes brasileiros, vislumbra-se uma tentativa de

implementar a segmentação no mercado cinematográfico. Ou seja, desenha-se

um recorte crítico-conceitual que privilegia uma arena específica de disputas

para equacionar diferentes modos de composição do sujeito homoerótico no

cinema. Trata-se de (re)posicionar a dimensão teórico-metodológica do tema a

ser desenvolvido neste texto.

A hipótese que lanço, aqui, enuncia a diversidade cultural/sexual no

cinema como estratégia discursiva do panorama nacional. Eis mais uma

vertente camaleônica da alteridade (compreendida por diferença e diversidade),

cuja representação desdobra possibilidades criativas do cinema brasileiro, em

especial na produção audiovisual que tange a condição homoerótica. Neste

conjunto, alteridade, diferença e diversidade se complementam em roteiro,

enredo e narrativa, entre outros.

Parto dessa premissa para (re)pensar a diversidade cultural/sexual no

cinema brasileiro, em que o corpo se inscreve, de modo (inter)subjetivo, como

um dado contemporâneo. Então, passo a eleger situações emergentes acerca

da imagem do corpo em cena, e o desfecho exemplifica tal diversidade. Logo,

impressões audiovisuais se acumulam em somatório com o desdobramento

flexível da película e o espectador assiste à ênfase da extensão cultural de

uma brasilidade: contingente, híbrida, intercambial, mestiça. Um carnaval de

expressões e imagens povoa a cena.

Desta forma, aponto o filme Elvis e Madona para este debate crítico-

conceitual sobre a diversidade cultural/sexual no cinema, ainda mais quando se

fala a respeito da desigualdade social no país. Além disso, essa proposta perpassa

questões ontológicas (dos valores) do cinema no que diz respeito à sua forma de

expor a representação da/na sociedade atual:o jeito de estabelecer as relações

afetivas entre os personagens do mesmo sexo.

114
A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Assim, estudos contemporâneos sobre cinema, estrategicamente,

convocam a uma abordagem teórico-metodológica a partir da linguagem –

estratificada entre cultura e representação. O critério teórico-metodológico

constitui-se de estudos contemporâneos cujas esferas estão entrecruzadas com

os estudos de cinema (FOSTER, 2003; STAM, 2003; XAVIER, 2003). Nesse

viés, opto por um percurso sensível e favorável à experimentação ao pensar a

diversidade no cinema brasileiro contemporâneo.

A expectativa é observar os modos de atualizar e inovar a representação

das coisas no mundo cinematográfico. Essa abordagem serve para imprimir

noções de atualização e inovação. Seria uma (re)paginação que tento tecer entre

os estudos do cinema e os estudos gays e lésbicos no Brasil (COSTA, 2004;

COSTA, 2010; GARCIA, 2004 e 2010; LOPES, 2001; MORENO, 2001; TREVISAN,

2000). Nota-se que a agenda do cinema atual deve permitir os (inter/trans)textos

de uma atitude expandida quando exprime a condição adaptativa de atualizar e

inovar, simultaneamente, formas e conteúdos como expressão da diversidade.

Para observar uma condição corpórea LGBTT nos filmes brasileiros,

atualmente, recomendo um olhar crítico cuja extensão percepto-cognitiva

enverede pelas diferentes estratégias de sobrevivência dessa comunidade.

Embora se considere o avanço democrático, a realidade brasileira coloca

em xeque o sujeito. Diante dessas imagens, falo de um paradoxo, porque o

DESEJO homoerótico, por exemplo, parece não se ajustar tão bem aos fatos

do cotidiano. Fica uma incógnita!

Esse breve panorama não apenas indica o modus operandi da sociedade

contemporânea, mas também instiga a (re)considerar alguns elementos

circunstanciais que agenciam/negociam a forma de SER/ESTAR de cada sujeito

homoerótico em sua (inter)subjetividade. Dito de outra forma, essa película valoriza

as redes de relações socioculturais que tecem a manifestação da homocultura no

país (GARCIA, 2004).

115
A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
Cinema brasileiro

Do cinema contemporâneo

Algumas (re)configurações crítico emergem do contemporâneo e

demonstram mudanças significativas no país. Elevados pela relação de

mercado e mídia, o debate sobre a diversidade cultural/sexual no cinema

brasileiro possibilita um agenciamento mais amplo de ideias e propostas que

tangem aspectos econômicos, identitários, socioculturais e políticos. Assim, a

emergência do debate teórico-metodológico faz avançar a sociedade e coloca

em agenda dois movimentos relevantes.

Primeiro: do ponto de vista das oportunidades. Há pouco investimento

neste tipo de filme brasileiro que destaca a diversidade cultural/sexual. Verifica-se

uma baixa predisposição de cineastas, realizadores e produtores culturais para

lidar com esse tema no cinema, visto que não encontra respaldo de patrocínios

nas instituições ou nos órgãos de fomento. Quase nenhuma empresa quer

patrocinar filmes com essa natureza de discurso, que toca a diversidade, o que,

em contrapartida, dificulta uma ampliação e um melhor destaque da cultura queer2

no cinema nacional.

Segundo: do ponto de vista político-ideológico. Trava-se um misto de ações

afirmativas e pela visibilidade LGBTT no cinema em consonância com a realidade

brasileira. É necessário ser insistente, persistente nesse posicionamento. Não

obstante, torna-se necessário também ampliar o leque de ações e possibilidades da

inscrição da diversidade nesse contexto. A expectativa seria promover a presença

queer no cinema brasileiro contemporâneo, a fim de ressaltar a sensibilidade do

público para um olhar mais amplo e ético.

Como argumento, as (inter)subjetividades discursivas do cinema são

instâncias fundamentais nesse debate, em especial no Brasil. Da forma ao

conteúdo, a produção do cinema nacional está em alta e a poética das alteridades,

que enfatiza diferença e diversidade, tenta aproveitar as oportunidades.

116
A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Uma proposta fílmica, efetivamente, faz emanar diferentes olhares,

métodos e materiais, uma vez que aponta instantes reveladores de exposição,

interação, observação e/ou reflexão. Como resultante de processo de emissão

e recepção de informações, as várias leituras (dos espectadores) somam-se às

interpretações (dos atores/atrizes em seus respectivos personagens), capazes

de absorver a experiência retratada como referência da realidade à construção

ficcional do cinema.

Ao discutir sobre o cinema no terceiro mundo, Robert Stam afirma:

Na indústria cinematográfica, os cineastas-teóricos tornaram-


se mais conscientes da necessidade de teorizar a mídia
de forma menos maniqueísta e de criar um cinema que
produzisse não apenas consciência política e inovação
estética, mas também um tipo de prazer espetatorial
permitidor do florescimento de uma indústria cinematográfica
economicamente viável (STAM, 2003, p. 309).

A linguagem do cinema se (re)inventa. Portanto, o cinema contemporâneo

insere-se em um corpusedificado pelo trânsito e/ou pela convergência das mídias

eletrônicas e digitais, as quais se nomeiam cultura midiática. Essa experimentação

eletrônica/digital eleva o grau de (dis)junção do tema/assunto roteirizado.

Uma intervenção poética de alteridades (des)territorializa a espessura do

objeto e seu contexto. Diria que os efeitos do cinema contemporâneo distanciam-

se do plano da referencialidade como demarcação de seu registro estrutural, ao

potencializar arestas circunstanciais. Isto é, deixa de tratar, exclusivamente, das

referências mediante a incomensurabilidade da representação.

Sendo que no percurso cinematográfico brasileiro, a alternância entre

a escola europeia e a estadunidense foi uma constante. Enquanto a primeira

117
A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
Cinema brasileiro

valoriza o diálogo, a segunda tem na ação seu maior foco – conteúdo versus

formato. O que se pode ver hoje, na América Latina, seria justamente uma

tentativa de acoplagem desses dois movimentos. Quando uma produção fala

por oposição, mostra o não revelado, sem abrir mão dos feitos tecnológicos.

Ao contrário, faz uso apropriado deles, para um maior agenciamento/

negociação entre emissão e recepção.

Nas condições indicativas, o resultado de uma narrativa cinematográfica,

atualmente, suplementa-se de um teor enigmático de intersubjetividades.

A criatividade, assim, surge no relato e na cena como síntese criteriosa,

capaz de incorporar os elementos técnicos, o registro das informações e a

manipulação da mensagem.

As (re)configurações de um fato (dados) são emanadas como

simulação e/ou simulacro extraviados pelas “novas/outras” possibilidades de

expressões criativas. A dinâmica de um filme, portanto, toca as combinações

de estratégias discursivas, as quais são habilitadas e moduladas em efeitos

éticos, estéticos e técnicos. Essa produção de efeitos, por exemplo, revigora

as manifestações cinematográficas.

Da diversidade

Como termo guarda-chuva, a diversidade, na sociedade atual, e

consequentemente interpretada no cinema, tenta agregar a tudo e a tod@s,

de forma inclusiva. Sua derivação de potência toca a exposição do corpo – em

uma atmosfera para além da diferença anatômica de homem e/ou mulher, da

orientação sexual e distante de binômios taxativos de gênero e sexualidade como

masculino e/ou feminino, bem como das categorias destoantes de atividade e/ou

passividade. O que vale é o ato, a prática em si.

118
A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

E aviso: esta leitura distancia-se de uma perspectiva essencialista,

existencialista e/ou materialista. Pelo contrário, melhor ainda, seria reconhecer

o enlace da diversidade a partir da estratificação desse corpo como performance

(GARLSON, 2009) e sua espetacularidade. O ato insurgente, em constante

transformação. Isto é, uma manifestação corpórea articula sua vertente política

no cinema ao equacionar a expressão do SER/ESTAR lésbico, gay, bissexual,

transexual, travesti (LGBTT) e afins.

Na cadência rítmica de imagem/som, os enlaces estéticos,éticos e

técnicos despertam efeitos emblemáticos do corpo exposto nesse filme, o qual

aposta na diversidade cultural/sexual. Assim, o tema da diversidade amplia a

condição adaptativa entre alteridade e diferença no combate ao preconceito e

à discriminação mediante o discurso cinematográfico contemporâneo, em (dis)

junção com corpo e performance. A partir do corpo, penso na sua visibilidade crítico-

conceitual, ideológica e política. Acredito que seria impossível não considerar a

dinâmica corporal neste contexto cinematográfico (GARCIA, 2009).

Atores e atrizes encenam conjugalidades socioculturais em prol de uma

estética marcadamente envolvente na vetorização mercadológica e midiática

entre projeção e identificação. Neste bojo, interessa apontar a inscrição de uma

mensagem política contra a homofobia no filme brasileiro. O desfecho seria a

possibilidade de amar e ser amado: a condição sine qua non de um amor

combatente, o qual ousa dizer o nome.

Muito mais que um mero registro tecnológico, o discurso

cinematográfico deve compreender uma narrativa evidenciadora da lógica

social (documental), atualizada pelo desenvolvimento da democracia. Ao

elencar recursos técnicos e estilísticos para acenar os parâmetros éticos

(conforme afirmado anteriormente), o cinema constitui retratos da sociedade,

visto que suas narrativas exploram a diversidade. Por exemplo: bicha,

sapatão, viado, fanchona, drag queen, michê e/ou go-go boy passam a ditar

o protagonismo cênico – o protagonismo midiático da homocultura.

119
A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
Cinema brasileiro

A criatividade, assim, surge no relato da cena como síntese criteriosa,

capaz de incorporar os elementos técnicos, o registro das informações e a

manipulação da mensagem. Assim, o papel do cinema atualiza/inova a temática

da diversidade cultural/sexual na agenda do cinema como expressão dessa

sociedade contemporânea.

Com isso, proponho uma política do afeto como poética, labor: algo para

afetar de fato. Um posicionamento acadêmico, conceitual, crítico, intelectual

e teórico pode ser visto como tal. Seria a adição de predicativos sensíveis à

diversidade cultural/sexual.

Sugiro, assim, a postura provocativa e desafiadora para uma

paisagem da afetividade no cinema brasileiro contemporâneo – falo de uma

política do afeto. Em contraponto às reivindicações, uma política do afeto

pode associar cinema e diversidade cultural/sexual sem cair numa exposição

frenética do corpo. Busco, incondicionalmente, a delicadeza dessa política:

uma voz sofisticada que pulsa a acuidade magistral e fascinante, encantada

pelo deleite de assinar um cinema com sua qualidade inventiva – de se (re)

estabelecer enquanto expressão de afetividade.

Da película

Sendo assim, apresento uma leitura crítica sobre a diversidade cultural/

sexual, no país, a partir da exemplificação de uma produção audiovisual

contemporânea – o filme Elvis e Madona.

Com pré-estreia nacional em 2009, na 17ª edição do Festival da

Diversidade Sexual Mix Brasil, o premiado filme de Laffitte encanta e contagia

o público porque traduz leveza na trama, ainda que aborde a contundência

de um tecido emaranhado de problemas cotidianos – e sutil de (inter)

120
A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

subjetividades. Afinal, a narrativa abre espaço para um olhar flexível sobre a

diversidade, no contexto brasileiro atual.

Por isso, pergunto: como gerar um debate teórico e político, mediante

essa subalternidade, ao percorrer o processo de criação cinematográfica

contemporânea?

A sinopse enuncia: ambientada em Copacabana (região emblemática da

cidade do Rio de Janeiro como zona de prostituição e sexo fácil), a trama traz um

casal de protagonistas queer. Ela é Elvis e ele, Madona. Uma é lésbica, a outra

“boneca”. Inverteram-se os papéis? Não, ajustaram-se!

Para além da referência popstar americana, Elvis, ou melhor, Elvira

(vivida por Simone Spoladore) é uma fotógrafa lésbica que começa a trabalhar

como entregadora de pizza para juntar dinheiro. Um dia, ela conhece Madona

(interpretada por Igor Cotrim), uma travesti3 que sonha em fazer um grande show
– um musical no estilo Teatro de Revista.

O encontro da dupla acontece de forma inusitada. Ao fazer uma entrega

(um delivery) no apartamento de Madona, Elvis a encontra machucada, pois

acabara de ser assaltada em casa e levar uma surra do violento cafetão

– João Tripé, o assustador antagonista da trama (interpretado por Sérgio

Bezerra). Com isso, começa a amizade, que mais tarde se transforma em um

sentimento muito forte.

Longe de ser polêmica, a história de amor nasce desse encontro “meio

torto” de amizade, desejo e paixão, além de uma série de questões para se resolver

– algumas engraçadas, outras não. Como comédia romântica de costumes no

cinema contemporâneo, verifica-se uma composição fílmica que mistura aventura,

humor, drama e alguma dose de suspense.

Da ficção à realidade, entrecruzam-se fatos quase verídicos nesta narrativa

cinematográfica envolvente. A história de um casal simpático, tão improvável,

121
A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
Cinema brasileiro

alinha uma relação diferente, em que papéis identitários de gênero e sexualidade

são questionados, colocados à prova. A efetiva relação de amizade e atração dá

lugar à comunhão do casal, que convive na diferença quando Elvis e Madona

passam a morar juntos (a ser conviventes), inclusive com a (re)dimensão de suas

vidas – perante a maternidade.

O roteiro dinâmico explora o caráter alegórico da narrativa – sem

estereótipos – para enunciar um enredo ágil, (de)marcado de novidades e

peripécias. O espectador se surpreende com o enredo. E essa versatilidade

de desfechos aflora a alteridade e a diferença, sobretudo quando a lésbica

fica grávida da travesti.

A performance invertidadas personagens (re)adequa as posições materna

e paterna em um tom subversivo. Assim, transforma o entorno bufão e, ao mesmo

tempo, dramático da narrativa cinemática, na expectativa de evidenciar tal esfera

transgressiva. Isso se faz também presente no rebento tenaz em que se pauta

a delimitação do problema deste texto, entre subversões e transgressões, como

algo inusitado da própria cinematografia contemporânea.

Entre (re)visões transgressivas – de agenciar/negociar – para lidar com

entraves de alteridade e diferença, as propriedades da homocultura pretendem

subverter noções de identidade, sexualidade e gênero a ultrapassar as

convencionalidades e tanger a dinâmica do discurso no campo da linguagem.

Na lógica dessa diversidade no cinema, uma escritura refina e sugere

poeticamente afeto, amor, encontro, despedida, desejo, erotismo, sensualidade,

sexo etc. Há uma formulação de código que assume traços identitários na cultura

e, com isso, a homocultura se faz emergir.

São aspectos estéticos, identitários, socioculturais e políticos

que requerem ações estratégicas sobre a homocultura e se desdobram

conceitualmente entre alteridade, diversidade e diferença, o que amplia

a flexibilidade e o deslocamento dos argumentos fílmicos, dispostos em

122
A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

experiências afetivas, eróticas, sensuais e sexuais entre pessoas do

mesmo sexo, entre iguais.

Será que é possível essa expressão “entre iguais” como sintonia homo?

Eis um paradoxo: conceber a diversidade a ponto de chegar a um termo

abrangente como a própria argumentação acerca da homocultura, capaz de

abarcar as diferenças entre iguais. Isso somente pode ser constituído como

tentativa, porque é complexo.

A maneira de expor a diversidade dos personagens passa pelo corpo

e suas variantes discursivas, estratificadas na película, ao pontuar recursos

estéticos e técnicos para acenar os parâmetros éticos. Assim, observa-se

o cuidado das cenas para não deixar de ser um episódio cinematográfico

sedutor ao grande público.

Ora Elvis tem gestos grosseiros, ora delicados. Também se faz notar a

imagem da diva Madona. E, nessa resultante, os dois cuidam muito bem um do

outro. Ambos batalham seus talentos profissionais, sendo que cada personagem
segue seu sonho – na expectativa de viver a vida e ser feliz.

Essa trajetória amorosa traça um painel contemporâneo das

convenções sociais, num enredo cinematográfico. E mostra que o amor pode

acontecer em qualquer situação.

Do espectador

A apresentação eminente do conceito de homocultura perpassa o

instante percepto-cognitivo do ato de ver/ler o objeto e seu contexto a partir

dos operadores culturais de leituras na sociedade contemporânea. O ato

perceptivo do espectador – o olhar e a observação – modula uma interatividade

cognitiva, cuja participação do público complementa a imanência do objeto

apresentado na tela.

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A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
Cinema brasileiro

Discutimos aqui, então, os diferentes modos de produção e recepção

das mensagens no cinema contemporâneo, bem como o percurso criativo

que toca os processos de feixes de efeitos de sentidos. Curiosidades,

diferenças e versatilidades são aspectos circunstanciais que orquestram a

dinâmica discursiva de uma narrativa cinematográfica frente aos mecanismos

tecnológicos emergentes.

Os detalhes criativos dessa película somam a maneira de se (re)pensar o

papel do cinema como (des)construção da diversidade. Um entrecruzar recorrente

na esteira que estende as (de)marcações contingenciais que estendem alteridade

e diferença. Assim, as alternativas oferecem variações distintas e, porque não,

complementares, que se implementam com mais possibilidades – para além de

uma condução óbvia.

Atualizar as posições discursivas implica reiterar o processo de criação

e o ato percepto-cognitivo no cinema, em que cada sujeito (ator, produtor,

diretor e/ou espectador) torna-se responsável pela qualidade sociocultural

e política das relações humanas. Na extensão desse exercitar percepto-

cognitivo, a articulação discursiva do cinema contemporâneo requer uma

sagacidade própria, que implementa-se diante de soluções criativas, seja do

ponto de vista técnico e/ou estilístico.

Neste caso, tento sensibilizar o leitor/a a efetivar um breve passeio (in)

orgânico absorvido pela tessitura poética do texto fílmico à película em questão.

Seria essa uma tentativa de comover o público através das imagens.

Por exemplo, para evitar qualquer mal-entendido que pudesse afugentar o

público declaradamente mais conservador, os personagens parecem sobressair

do cotidiano brasileiro, com suas angústias, seus anseios e, também, suas

realizações – em uma narrativa que investe no final feliz, o happy end.

São ressonâncias de práticas culturais e representacionais que ressaltam

a vida cotidiana e, por isso, é necessário ressignificar os avanços das mudanças

124
A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

sociais. De fato, o espectador assiste a um filme que narra a história de um casal

(uma mulher e um homem), os quais se encontram em circunstâncias insólitas,

atribuídas ao acaso ou ao destino.

Inicia-se um enlace frenético quando se conhecem, por acaso. Eles

se aproximam, trocam informações, se apoiam e passam a gostar um do

outro. Isso se torna vital para o desempenho criativo do enredo. A partir de

então, se apaixonam e vivem o encanto de simplesmente não abrir mão de

buscar seus projetos.

O que para algum espectador pode ser encarado como problema, para

os personagens são apenas fatos corriqueiros, que fazem parte do cotidiano.

Problemas existem para ser solucionados. E a narrativa explora essa potencialidade

da diferença, ao instaurar breves conflitos motivados pela tenacidade dos dados

sem procurar julgar a flexibilidade e o deslocamento necessários para acompanhar

o enredo cinematográfico.

O desafio da trama está na predisposição do espectador de suscitar


questionamentos e lidar com o tema da diversidade. O enfoque provoca uma

reflexão sobre o âmbito da diversidade cultural/sexual no Brasil, cujos conceitos

precisam ser revistos. Sem dúvida, a trama oferta uma discussão a respeito da

vida. Nessa trajetória, observo um acréscimo gradual de projetos veiculando a

diversidade cultural/sexual, que pode ser constatada como tendência recente no

cinema brasileiro e no internacional.

A expectativa de estudar os parâmetros que absorvem forma e conteúdo


em um filme implica descrever alguns elementos pontuais de (re)significações e
da diegese – devorar a ideia. Ao acompanhar o desenvolvimento de uma narrativa
audiovisual, o espectador possui o desafio de digerir, em seu estado emocional,
contemplativo e prazeroso, uma possível intenção reflexivo-explicativa (objetiva)
do filme, ainda que constituída de uma ação estético-poética (subjetiva). No
caso aqui analisado, trata-se deuma resultante simbólica e/ou emblemática: a

homocultura ressaltada pelos protagonistas do filme.

125
A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
Cinema brasileiro

As diferentes possibilidades de ver/ler criticamente essa película apontam

desafios crítico-conceituais capazes de (des)envolver um diálogo crescente e

efervescente com o espectador (XAVIER, 2003). Ao assumir o traço coeso de

identificação entre personagem e público, a narrativa explora instantes significativos

(complexos), que (re)configuram enlaces diegéticos.

Grosso modo, Elvis e Madona não pode ser visto/lido como filme político,

engajado, propriamente militante, embora circunscreva uma maneira diferente de

expor, através do cinema, a diversidade no país. Extrapolam-se os resultados. O

enredo registra a riqueza de enunciados que (de)marcam uma narrativa queer

brasilis, ao apontar instâncias de afeto, desejo, erótica, sensualidade e sexo.

Eminentemente, o filme exibe um convite à reflexão sobre a diversidade.

Considerações finais

Perante as argumentações enunciadas ao longo deste texto, procuro seguir

um conjunto representacional da diversidade formado por estágios intermediários

de perspectivas contemporâneas, as quais reverberam valores humanos. São

valores um tanto quanto esquecidos, mas que devem ser sempre relembrados.

Entre objetos discursivos e seus respectivos contextos, somam-se

deslocamentos necessários para o fluxo recorrente do pensar cinema. Este último

envolto em estética e política como princípios norteadores da criatividade brasileira

– que se (re)inventa e reitera, de acordo com a necessidade.

Da subjetividade à complexidade dos traços envolvidos, a partir dos

estudos contemporâneos, percebemos uma projeção identificatória no cinema

que aproxima e alicerça uma (re)dimensão mais afetiva do espaço (inter)subjetivo,

mediante as relações humanas. No país, essas relações extrapolam pequenas

caixas fragmentadas de subcategorias para ecoar uma carnavalidade sensual,

126
A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

erótica, desejante – para além de (de)marcações estereotipadas. A sinestesia de

Elvis e Madona toca o gosto das imagens!

As estratégias arquitetadas pelo roteiro do filme parecem ser

propositais para eleger um acúmulo de informações que colocam em xeque

a condição adaptativa da diversidade cultural/sexual na sociedade brasileira.

As imagens, aqui, reverberam poéticas criativas, cujos discursos permeiam

transversalidades estéticas, éticas e técnicas. Ou, se quiser, o fecundo

encontro entre cinema, estética e política.

No filme, a trajetória amorosa dos protagonistas traça um painel

contemporâneo das convenções sociais em uma narrativa cinematográfica

atual. E com esse olhar, impregnado da homocultura, inscreve-se uma

pesquisa que experimenta diferentes (de/trans)formações dos objetos e seus

respectivos contextos.

Os estudos, políticas e direitos sobre o cinema no Brasil, neste caso, devem

equacionar a necessidade de ampliar a diversidade cultural/sexual como tema. Quanto

maior a expressão coletiva, maior o ganho para a qualidade das representações

sociais, em que o espectador possa saborear sua própria representação.

Neste conjunto, corpo e performance reiteram-se como construto do

cotidiano da diversidade cultural/sexual, para além de uma interrupção da vida pelo

enredo do filme. Performance, aqui, ultrapassa o ideário de uma ação artística,

estética e/ou política para ceder ao estado de transição dos objetos. Seria um

intenso viver da escritura do desejo!

127
A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
Cinema brasileiro

Referências bibliográficas

CANCLINI, N. G. Leitores, espectadores e internautas. Trad. Ana Goldberg. São Paulo: Iluminuras, 2008.

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Imprensa Oficial, 2010.

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GARCIA, W. Cinema brasileiro, corpo e diversidade sexual: estudos contemporâneos. Revista Conexão,Caxias
do Sul: UCS, v.8, n. 15, p. 79-91, jan./jun. 2009.

______. Diversidade sexual no documentário brasileiro: estudos contemporâneos. Revista Bagoas, Natal:
CCHLA-UFRN,v. 4, n. 5, p 149-166, jan./jun. 2010.

______. Homoerotismo & imagem no Brasil. São Paulo: Nojosa; Fapesp, 2004.

GARLSON, M.Performance: uma introdução crítica. Trad. Thais Flores Nogueira Diniz e Maria Antonieta Pereira.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

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STAM, R. Introdução à teoria do cinema. Trad. Fernando Mascarello. Campinas: Papirus, 2003.

TREVISAN, J. S.Devassos no paraíso. 3.ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.

XAVIER, I. O olhar e a cena:melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues. São Paulo: Cosac Naify,
2003.

Referências audiovisuais

Elvis e Madona. Marcelo Laffitte. Brasil, 2009, filme 35mm.

128
A diversidade cultural/sexual no filme Elvis e Madona - Wilton Garcia
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

_____________________________________________________________

1. Trabalho apresentado na mesa temática“Diversidade cultural/sexual no cinema brasileiro”.

2. Para pontuar a teoria queer no cinema, Robert Stam afirma que “a performance sexual desfaz, por assim dizer, a rigidez
da identidade sexual”. E complementa: “a teoria queer do cinema também se revitalizou em um constante diálogo com um
crescente número de longas-metragens, documentários e vídeos queers…” (STAM, 2003, p. 292-293). Uma livre tradução
do queer remete ao estranho, diferente, feio, torto, em desacordo.

3. Nos dicionários brasileiros de língua portuguesa, o termo travesti apresenta-se pelo gênero masculino, conforme a
gramática normativa atual. Contudo, utilizo este termo respeitando a cultura das travestis, que considera o gênero feminino
para sua auto-identificação. Registra-se, assim, a condição sociolinguística e política da palavra.

129
Cinema mundial contemporâneo
A câmara autoconsciente e a função das repetições em Lake Tahoe, de Fernando Eimbcke - Aleksandra Jablonska
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

A câmara autoconsciente e a função das repetições em

Lake Tahoe, de Fernando Eimbcke1

Aleksandra Jablonska (Universidad Pedagógica Nacional, México)2

Na palestra farei uma análise de Lake Tahoe (2008), o segundo filme do

diretor mexicano Fernando Eimbcke, argumentando que sua narrativa se insere

em uma fórmula que, tendo sido já ensaiada por outros cineastas, nos possibilita

pensar na formação de um gênero. Parto, evidentemente, de uma definição

flexível de gênero cinematográfico, não da sua acepção clássica que o associa à

estrutura industrial de Hollywood, com sua função ritual e ideológica de apresentar

uma sociedade praticamente intemporal e de superar imaginativamente as

contradições inerentes à sociedade norte-americana, industrial, conservadora,

sempre ansiosa por reafirmar seus próprios valores (ALTMAN, 2000).

Esse não é o caso do filme que quero comentar. Como sabemos, desde

os anos 1960 os cinemas latino-americanos se têm afastado das normas das

narrações hollywoodenses, procurando temas e formas de expressão próprios,

admitindo, em todo caso, algumas influências europeias (seja do neorrealismo

italiano ou do “cinema de autor” francês), mas em geral procurando desenvolver

um cinema que desse conta de sua própria realidade através de estruturas e

linguagens cinematográficas originais.

Lake Tahoe, contudo, tampouco poderia se considerar como herdeiro

dos novos cinemas latino-americanos dos anos 60 e 70, dos filmes que tinham

131
A câmara autoconsciente e a função das repetições em Lake Tahoe, de Fernando Eimbcke - Aleksandra Jablonska
Cinema mundial contemporâneo

uma clara vocação militante e que buscavam despertar a consciência do público

acerca do momento histórico pelo qual passavam os países do continente,

empenhados em denunciar o imperialismo e o neocolonialismo ou em refletir

sobre o processo revolucionário cubano.

Proponho considerar Lake Tahoe como um filme “de gênero”, mas só no

entendimento de que comparte uma temática, uma estrutura e procedimentos que

já foram ensaiados por outros cineastas, especialmente por Jean Renoir, Yasujiro

Ozu e Jim Jarmusch, que empregaram ou têm empregado alguns recursos

formais – a câmara fixa, as entradas e saídas de campo dos personagens, o uso

do campo vazio – para falar das vidas comuns de personagens que não possuem

nenhuma qualidade extraordinária.

Também teríamos que advertir que a cotidianidade de pessoas comuns

tem, ultimamente, se convertido em um dos temas do cinema latino-americano –

Las historias mínimas e El perro, de Carlos Sorin; Whisky, de Juan Pablo Rebella

e a própria Temporada de pato, filme anterior de Eimbcke, são exemplos dessa

tendência. O tempo transcorre vagarosamente, não há ações espetaculares

nem tampouco grandes conflitos. As narrativas frequentemente se desenvolvem

em espaços limitados, provincianos e narram situações cotidianas nas quais,

não obstante isso, se desatam fortes emoções. A câmara parece comportar-se

como os personagens que retrata: reitera os mesmos planos, é quase estática,

sublinha a monotonia e a repetição das mesmas ações que esses personagens

desempenham no seu dia a dia.

Trata-se de uma câmara autoconsciente à medida que revela sua presença

mediante a repetição dos enquadramentos, bem como um procedimento particular

que consiste na construção de quadros “vazios” enquanto espera que um

personagem entre no quadro, faça algo e saia dele, para enquadrar novamente

uma porção do espaço. O anterior cria a sensação de que o narrado é filtrado

por uma consciência que desconfia da imagem-movimento e estabelece uma

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A câmara autoconsciente e a função das repetições em Lake Tahoe, de Fernando Eimbcke - Aleksandra Jablonska
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

distância diante dos personagens, que não aparecem senão como funções do

espaço e de um tempo que transcorre vagarosamente.

Ao mesmo tempo, esta forma de filmar pode ser entendida como o uso do

discurso indireto livre, em que a câmara deixa sua função supostamente objetiva

para identificar-se com a personagem e dar conta de seu mundo, apagando assim

a fronteira entre o objetivo e o subjetivo, próprio do cinema convencional.

As imagens estão rarificadas, segundo a terminologia de Deleuze, o que

atinge seu máximo quando a tela fica preta (DELEUZE, 1986, p. 27-28). E no filme

de Eimbcke a tela preta ocupa um lugar importantíssimo.

Graças a ela, o “fora do campo” adquire importância, sobretudo porque

muitos planos fixos terminam com a saída do personagem do plano. Assim, a

tela preta que se segue a esta saída faz com que o espectador imagine o espaço

em que supõe que o personagem está nesse momento. Em numerosas ocasiões

sua imaginação é estimulada pelos ruídos, latidos de um cão, sons de um filme: o

plano visual e o sonoro não coincidem nestas ocasiões. Às vezes ocorre que esse

espaço imaginário se concretiza quando a imagem volta (Juan sentado diante do

cão, que o vigia; ruído de batida; logo, se mostram suas consequências) – assim,

a tela preta funciona como premonição.

No final do filme, quando compreendemos que Juan está vivendo um luto

pela morte do seu pai, essa tela preta adquire outro significado: simboliza o vazio

que a morte e o luto deixam. Segundo Balázs essa tela permite “dessa forma

evocar a melancolia do adeus, das coisas que têm que morrer. Às vezes atua

como reticências ou como um olhar triste para aquilo que se afasta para sempre.

Em ambos os casos significa a decorrência do tempo” (BALÁZS apud MUSICCO,

2007, p. 58, tradução nossa).

Esses procedimentos são reforçados por outros tipos de repetição – de

situações e ações – que criam um universo muito especial, feito de longas esperas

e buscas repetidas, no qual predominam valores diferentes dos de uma sociedade

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A câmara autoconsciente e a função das repetições em Lake Tahoe, de Fernando Eimbcke - Aleksandra Jablonska
Cinema mundial contemporâneo

moderna, em que domina a pressa, a procura da eficiência e da eficácia e uma

ampla comunicação. Nesse sentido o filme de Eimbcke poderia ser lido como uma

continuação das preocupações dos novos cinemas latino-americanos empenhados

em desenhar linguagens adequadas para mostrar e narrar um contexto próprio,

diferente do ocidental/moderno.

A estrutura narrativa do filme

Em Lake Tahoe se percebe uma estrutura narrativa dupla – a da superfície

e a do fundo, a qual transforma o sentido da primeira. As ações do relato são

aparentemente desencadeadas pela leve batida de um Nissan Tsuru vermelho

contra um poste, batida que não se vê, mas que o espectador percebe ao escutar

um golpe e logo ver suas consequências.

Esse acontecimento desencadeia uma série de ações repetitivas de Juan,

o motorista do carro acidentado, as quais poderiam denominar-se genericamente

como “busca de ajuda”. Tal busca implica a visita a várias oficinas. O trajeto

de Juan por uma cidade semideserta é interrompido uma única vez, quando ele

telefona para sua casa; assim, ficamos sabendo que ele mora com a mãe e com

um irmão menor, Joaquín. A busca de ajuda origina o encontro com Don Heber, um

mecânico aposentado e cansado, que ao início se mostra hostil, mas finalmente

decide ajudá-lo (desde que isso não implique ter que sair de casa).

Quando explica para Don Heber qual é a peça que deve ser trocada

no carro, Juan começa uma segunda etapa de busca, agora um percurso

pelas lojas de peças para automóveis que o leva a conhecer três pessoas:

uma garota fã de música, seu pequeno filho Fidel, e David, que sabe de

mecânica e adora artes marciais.

As ações são repetitivas: as viagens da loja de peças para automóveis ao

carro, os pedidos de ajuda e também os percalços: depois da batida e da dificuldade

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A câmara autoconsciente e a função das repetições em Lake Tahoe, de Fernando Eimbcke - Aleksandra Jablonska
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

para encontrar a peça que tem que trocar para o carro funcionar, as personagens

descobrem que a peça que finalmente conseguiram não é a adequada.

A incessante busca de solução para o carro que não funciona só é

interrompida pela visita a casa de David (com o mesmo propósito), em que ele

obriga Juan a ver um filme de artes marciais e lhe empresta um livro sobre o

mesmo tema. Durante o café da manhã (situação que se repete, porque Juan

já tinha assistido a um estranho café da manhã na companhia de Don Heber e

seu cão), a mãe de David lê para eles uma passagem do “Apocalipse” bíblico

acerca da ressurreição dos mortos. A insistência da mulher nos temas religiosos

e o desinteresse de David em encontrar a peça de que Juan necessita para o

carro parecem obrigá-lo a fugir dessa casa. Já no final do filme o espectador

compreenderá que a leitura alude diretamente ao luto que o protagonista está

vivendo e poderá estimar de diferente maneira suas motivações.

As dimensões do personagem, apresentado externamente como

insignificante –tem um nome comum, se veste de maneira muito simples, a maior

parte do tempo fica calado –, crescem. Suas “esferas de ação” se ampliam: o que

parecia uma busca inútil pela peça para o carro resulta ser, ao final, uma forma

de viver o luto, uma forma de fugir do resto da família, a incapacidade inicial para

encarar a situação. (GARCÍA JIMÉNEZ, 1996, p. 279).

Subitamente, a busca de Juan por ajuda vira um signo contrário. Nas

sequências que virão, será ele quem oferecerá ajuda aos outros, aparecendo

repetidamente em uma atitude de proteção do irmão, da mãe e de Fidel, o filho

da garota que trabalha na loja de peças para automóveis. Mas sua capacidade

de auxiliar os demais é tímida e parcial: não consegue consolar realmente a mãe,

trancada no banheiro e oculta atrás de uma cortina; termina deixando só o irmão

pequeno e perde o cão de Don Heber, que levou para passear.

O tema da ajuda e da proteção é de repente substituído pelo engano,

quando David rouba uma peça do carro dos amigos dos pais do Juan, enquanto

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A câmara autoconsciente e a função das repetições em Lake Tahoe, de Fernando Eimbcke - Aleksandra Jablonska
Cinema mundial contemporâneo

este os distrai. Eles o abraçam e lhe dão presentes, de tal forma que sua atitude

é descrita como evidente abuso de confiança. Esta cena também terá outro

significado ao final do filme, quando o espectador compreenderá que não se

tratava de um simples cumprimento, mas que os amigos estavam dando-lhe as

condolências pela morte do pai.

Quando finalmente o carro funciona, fecha-se o primeiro ciclo.

Agora, David muda seu modo de agir com Juan, muda sua atitude de

ajuda pela de amizade e o convida para ir ao cinema à noite. Também a garota

de loja de peças para automóveis tinha tentado transformar a relação com Juan

em uma espécie de amizade ao pedir-lhe que ficasse com seu filho à noite,

enquanto ela ia tocar violão com os amigos. Mas o protagonista não aceita os

convites e volta para casa.

É só nesse momento que a narração revela o segredo ao espectador

e a história adquire outro sentido. Subitamente sabemos que o pai de Juan

acaba de morrer e que tudo o que tínhamos visto, de certa forma, tinha
relação com esse fato.

As sequências seguintes trarão a ideia de reencontro e afirmação das

relações. João encontrará Don Huber, e junto com ele o cão perdido; se reunirá

com David e com a garota. A aproximação com os diversos personagens lhe

permite superar o momento mais agudo do luto, voltar para casa, consolar o seu

irmão e, por fim, falar do pai.

A estrutura descrita até agora corresponde ao nível superficial. Nela se

escondem alguns signos que permitem encontrar outra história mais profunda.

Esses signos são: 1) a leitura do livro do “Apocalipse”; 2) o encontro com os

amigos do pai de Juan; 3) sua negativa inicial para estabelecer relações de

amizade com as pessoas que encontra durante seu périplo; 4) a cena em que,

ao sair do cinema, David ensina a Juan algumas posturas de kung fu e diz:

“We need an emotional contact. Try again. I said emotional contact, no anger.

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A câmara autoconsciente e a função das repetições em Lake Tahoe, de Fernando Eimbcke - Aleksandra Jablonska
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Now, try again with me”. A reação de Juan, que permanece quieto com cara de

pesar enquanto David fala, é tomar o bastão e bater no carro. Depois Juan se

tranquiliza, senta-se ao lado de David, que lhe ensina as diferenças entre os

gestos que significam a guerra e a paz no mundo das artes marciais. Os dois

terminam abraçando-se. A raiva de Juan e a incapacidade para expressar as

emoções encontram finalmente uma saída. É a partir da revelação do recente

falecimento do pai que estes signos adquirem sentido e permitem compreender

que todo o estranho comportamento de Juan era motivado pelo luto e pela sua

incapacidade de encarar a situação familiar: a angústia da mãe e do irmão. Será

a partir dos reencontros, reconciliações e da afirmação das relações com Don

Heber, David e a garota que Juan poderá voltar para casa, quebrar o silêncio,

falar da morte, do vazio que seu pai deixou, lembrar-se dele.

A dupla estrutura do filme permite lê-lo como uma alegoria, nos termos

formulados por Ismail Xavier (2005, p. 339-380), uma alegoria do luto. Efetivamente,

o conceito tradicional de alegoria como um texto para ser decifrado implica a ideia

de um “significado oculto” a priori, uma concepção que transforma a produção

e recepção da alegoria em um movimento circular composto por dois impulsos

complementares, um que esconde a verdade sob a superfície, e outro que faz a

verdade emergir novamente (XAVIER, 2005, p. 354).

Considerações finais

A maior parte do filme foi gravada por uma câmara fixa: o quadro se define

por um ponto de vista único e frontal sobre um conjunto invariável. Esse conjunto

está composto por casas, edifícios e áreas verdes de uma pequena cidade

portuária, dividida em áreas residenciais e comerciais.

É um “enquadramento insistente”, “obsessivo”, pelo qual a câmara espera

que um personagem entre no quadro, que faça e diga algo e depois saia, enquanto

ela segue enquadrando o espaço agora vazio e permite retratar um mundo quase

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A câmara autoconsciente e a função das repetições em Lake Tahoe, de Fernando Eimbcke - Aleksandra Jablonska
Cinema mundial contemporâneo

estático, no qual o espaço pesa mais que a ação, um mundo não moderno, que não

está marcado pela pressa ou pela importância do dinheiro, mas pela relevância

das relações pessoais que se estabelecem ainda nas situações mais fortuitas.

A trilha sonora está marcada pela tendência minimalista. Não há música

extradiegética, só escutamos os ruídos ambientais, os escassos diálogos e

um filme de artes marciais – com música, gritos, ruídos de pancadas – que

devemos imaginar, porque a tela aparece preta. Este é um dos momentos

cômicos do filme, que quebram o ambiente obsessivo, silencioso e estático

que se impõe na narrativa.

Poderíamos nos perguntar: a que preocupações responde este tipo de

cinema? Daniela Musicco, no prefácio de seu livro, opõe o cinema preocupado

com a cotidianidade e que apela à linguagem indireta à televisão e aos filmes

que utilizam a linguagem “atroz-direta” para mostrar “os horrores, a violência e

os vexames ruins do ser humano de nossa civilização” (MUSICCO, 2007, p. 13,

tradução nossa). Esta propensão em mostrar tudo da forma mais brutal possível,

assinala a autora, tem anestesiado o público, que necessita de uma dose maior

de violência para manter-se interessado. Porém, desde os inícios do cinema se

descobriu que “tudo o que foge ao olhar direto contribui à emoção, que tudo o

que fica fora do campo transforma a tela na mediação, no espaço e no tempo da

reflexão”. (MUSICCO, 2007, p. 15, tradução nossa).

Assim, os filmes de Eimbcke se inscrevem numa das tendências do cinema

contemporâneo que se afasta do aparelho hegemônico em um sentido diferente de

como o faziam os “novos cinemas” das épocas anteriores. Com poucos recursos

e uma linguagem cinematográfica indireta, seus filmes falam fundamentalmente

das emoções que acompanham a vida cotidiana dos adolescentes de camadas de

classe média que vivem à margem do charme das grandes cidades, do uso das

tecnologias e das modas juvenis.

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A câmara autoconsciente e a função das repetições em Lake Tahoe, de Fernando Eimbcke - Aleksandra Jablonska
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Referências bibliográficas

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XAVIER, I. A alegoria histórica. In: RAMOS, F. P. (Org.) Teoria contemporânea do cinema: pós-estruturalismo e
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Hemerografia

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AVIÑA, R. Em torno da morte. El Reforma, seção Cultura, 7 de novembro 2008, p. 9.

BONFIL, C. A mostra. Lake Tahoe. La Jornada, seção Espetáculos, 7 de novembro, 2008,p. 13.

BOTELLO, Y. Divide opiniões o filme Lake Tahoe. El Reforma, seção Gente, 10 de fevereiro 2008, p. 16.

O medo como forma de criatividade. El Excélsior, seção Cinema, 6 de fevereiro 2008, p. 1- 6.

LINO, M. Lake Tahoe, poesia fílmica. El Economista, seção La Plaza, 3 de dezembro, 2008, p. 8.

TOCA, V. Um filme artesanal. El Universal, seção Espetáculos, 4 de dezembro 2008, p.1.

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Referências audiovisuais

Lake Tahoe. Fernando Eimbcke. México, 2008, filme 35 mm.

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A câmara autoconsciente e a função das repetições em Lake Tahoe, de Fernando Eimbcke - Aleksandra Jablonska
Cinema mundial contemporâneo

_____________________________________________________________

1. Presentado en la mesa: OS GÊNEROS NO CINEMA BRASILEIRO E LATINO-AMERICANO: PRÁTICAS,


TRANSFORMAÇÕES, REMIXAGENS E TENDÊNCIAS

2. E-mail: [email protected]

140
O local, o comum e o mínimo - Denilson Lopes
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

O local, o comum e o mínimo1

Denilson Lopes (UFRJ)2

Se, cada vez mais marcado pelos fluxos de pessoas, objetos, informações

e imagens, “o local costuma estar em outro lugar” (CANCLINI, 2008, p. 60), como

pensar o local e o homem comum hoje? Nos filmes que vamos discutir, cada

vez mais a autonomia do local é redimensionada pelo consumo de mercadorias

provenientes dos mais diversos lugares, pelas imagens televisivas, pelo que

se ouve no rádio e pelos trânsitos entre culturas. Não se pode pensar o local

como antes da cultura midiática e da ampliação das redes de transportes, que

possibilitam cada vez mais viagens transcontinentais não só dos membros

de elites culturais e econômicas, mas também de trabalhadores legais ou

clandestinos em busca de melhores condições de vida. As pequenas cidades,

ainda que em menor escala do que as metrópoles e cidades globais, também

estão conectadas às paisagens transculturais.

Para pensar o local hoje, nos distanciamos de discursos que idealizam

a pequena comunidade pré-moderna como espaço de conservação de valores.

Também não nos interessaram filmes que colocam o local apenas no horizonte

de uma globalização homogeneizante. Nem espaço fora da história, nem espaço

sem marca particular, o local encenado nas pequenas cidades está em intensa

transformação, como as grandes cidades. A busca estética do local não nos traz

a difícil questão das transformações econômicas e tecnológicas que atingem de

forma desigual o planeta, mas sim a difícil questão do que nos une, do que nos

141
O local, o comum e o mínimo - Denilson Lopes
Cinema mundial contemporâneo

faz pertencer, dos que nos é comum. Tal experiência é traduzida por uma estética

transnacional minimalista. Portanto, antes de nos referirmos aos filmes, vamos

precisar o que entendemos como Minimalismo.

O interesse pelo Minimalismo ou por pensar uma encenação minimalista

surgiu da aposta de que uma releitura de suas propostas (mais visíveis nos

debates da pintura e escultura dos anos 60 do século passado) pudesse nos

dar alguma pista para ir além da mera utilização adjetiva para falar de uma

encenação minimalista3 no cinema. Além disso, acreditávamos que a evocação


do Minimalismo poderia nos ajudar a desenvolver, junto com os ensaios que

escrevi sobre a atualidade de Ozu (LOPES, 2009) e sobre Mouchette (Robert

Bresson, 1968) em diálogo com Um coração simples (1877) de Flaubert e

Uma vida em segredo (1964) de Autran Dourado (LOPES, 2010), uma outra

genealogia possível na compreensão de outras propostas de encenação do

comum e do neutro que se distanciassem tanto das propostas do cinema de

gênero, em especial da retórica do excesso e da identificação do melodrama,

quanto do Naturalismo que coloca como papel do artista o de ser um cronista,

um jornalista, um fotógrafo ou mesmo um etnógrafo da realidade.

Espero que isto não seja apenas buscar um nome diferente para

questões já conhecidas, mas, ao fazer o Minimalismo nas artes plásticas

dialogar com as outras artes, gostaria de desenvolver valores como, por

exemplo, a rarefação (que, tanto no cinema quanto no teatro, está presente

na contenção dos gestos, na redução de diálogos a falas banais e/ou sem

intensidade dramática e numa atuação sem exageros, evitando closes e frases

de efeito, mas nem por isso menos afetiva).

Portanto, não só no que refere à construção de personagens, o Minimalismo

seria também uma busca de despojamento e empobrecimento formais, na

redução de elementos em cena, sem que isto implique uma superestimação da

presença do ator. Em vez da multiplicação barroca de detalhes e ornamentos,

o Minimalismo valoriza a sobriedade e austeridade, sem realizar exercícios

142
O local, o comum e o mínimo - Denilson Lopes
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

metalinguísticos de desconstrução ou de distanciamento, na esteira de Brecht. É

nesse sentido que pensamos que o menos ainda possa ser mais,5 ou seja, que as

apostas na contenção e rarefação tenham também um papel ético não só frente

ao melodrama, mas ao excesso de imagens e informações, sem que isso implique

um retorno ao puritanismo burguês.

Também o artista é visto mais sob a marca da discrição do que da

celebridade. Por trás do afastamento em relação ao excesso de metáforas,

símbolos e alegorias didáticas, há uma postura não metafísica e que pensa a

vida na materialidade dos espaços, corpos e objetos que transitam em pé de

igualdade para além do Humanismo antropocêntrico.6 Este, claro, não se restringe

ao Minimalismo, mas recoloca questões ainda atuais: como deixar com que os

objetos falem? Como os objetos podem ser personagens? O que é esta busca

liminar de ver um mundo não a partir do olhar humano além da desconstrução

do Humanismo? O que é estar num mundo em que o homem não ocupa uma

posição central? O que é viver num mundo em que espaços não são uma projeção

de nossa interioridade e as coisas não são apenas utensílios que usamos, ou

seja, que espaços e objetos se tornam realmente distintos, autônomos?

Diferente da arte pop que mergulhou fortemente nas imagens e ícones da

sociedade de consumo, num primeiro momento, o minimalismo, nesse sentido

como o Abstracionismo, possa ser visto como uma construção de um mundo à parte

do frenesi da sociedade de consumo, do mundo dos simulacros e das velocidades,

as nada impede que a ética do Minimalismo possa ainda ser pensada não como

simples recusa da cultura das mídias, mas que se pergunta como ainda podemos

pensar materialmente no mundo das imagens evanescentes, quais são os objetos

e corpos que emergem? Creio não se tratar de uma volta ao corpo, certamente

não a um corpo antropomórfico7, como defende um certo discurso valorizador da

performance, e num sentido amplo, do teatro como uma possibilidade de resgate

crítico de um real último, sensório.

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O local, o comum e o mínimo - Denilson Lopes
Cinema mundial contemporâneo

Trata-se de uma descida de tom. A simplicidade dos pequenos dias, das

repetições, o enfrentamento não das grandes emoções, mas quando estamos fora

delas, de um mundo “que não precisa de nada”, que sobretudo não precisa de nós

seres humanos, mundo “indiferente” e “neutro”. (CARREÑO, 2003, p.153). Ver

um mundo estranho e novo mas que é o nosso mundo a partir de uma sensação

de esvaziamento e esgotamento. Esvaziamento menos decorrente de uma crise

existencial mas de percepção semelhante à de Cage que entende o silêncio como

cheio de sons. Também o vazio é pleno de coisas.

“Esvaziamento que de modo nenhum concerne mais ao mundo


do artefato ou do simulacro, um esvaziamento que aí, diante de
mim, diz respeito ao inevitável por excelência, a saber: o destino
do corpo semelhante ao meu, esvaziado de sua vida, de sua
fala, de seus movimentos, esvaziado de seu poder de levantar
os olhos para mim” (HUBERMAN, 1998, p.31).

O que resta é “uma aparição de nada, uma aparição mínima: alguns

indícios de um desaparecimento” (HUBERMAN, 1998, p. 42).

Esgotamento é outra expressão que parece traduzir este movimento

que buscamos. Usado por Deleuze para falar das peças tardias de Samuel

Beckett feitas para televisão, o esgotamento vai além do cansaço – que apenas

esgotou a realização e esgota todo o possível (DELEUZE, 2010, p. 67) – através

de quatro modos que nos aproximam da proposta que estamos delineando:

formar séries exaustivas de coisas, estancar os fluxos da voz, extenuar as

possibilidades do espaço e dissipar a potência da imagem (DELEUZE, 2010,

p. 86). Enquanto o cansaço depende de alguma coisa, já que se fica cansado

de algo (DELEUZE, 2010, p. 69), o esgotamento é desinteressado (DELEUZE,

2010, p. 71), próximo ao neutro, ao indiferenciado, o que nos leva a “esgotar

o possível com palavras [...] esgotar as próprias palavras” (DELEUZE, 2010,

p. 75); no lugar dos nomes há vozes, e o silêncio não é “um simples cansaço

144
O local, o comum e o mínimo - Denilson Lopes
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

de falar” (DELEUZE, 2010, p. 76), mas o espaço para as coisas e “uma

singularidade sem nada guardar de pessoal” (DELEUZE, 2010, p. 80) – na

esteira do comum que já discuti em outro momento (LOPES, 2010).

Esta última referência, a partir de Beckett, nos abre ainda mais, a partir do

Minimalismo, para um diálogo não só com as artes plásticas mas com o teatro.

Caminho que pode ajudar a ampliar as estéticas e dramaturgias do comum e

a traduzir importantes conexões entre o cinema feitos a partir dos anos 90 e o

cinema moderno, de formas diferentes de que o multifacetado e complexo retorno

do real foi discutido, em particular de suas formas mais hegemônicas, herdeiras no

Naturalismo do século XIX, ou de um realismo social que bem pode se aproximar

de matrizes do grande (melo)drama.

Xiao Wu (Jia Zhang-ke, 1997) está à margem da cidade, habita esta

margem mas a margem não o contém, mesmo preso e humilhado, exposto na

rua algemado. O filme de Jia Zhang-ke é aparentemente um filme de delinqüência

juvenil. A ambiência de Fenyang, cidade-natal de Jia Zhang-ke, em constante

transformação pela explosão capitalista na China parece criar um homologia

com a instabilidade do protagonista e mesmo acentuar sua fragilidade. Apesar do

protagonista pertencer a uma espécie de rede de delinqüentes, ela parece ser só

algo funcional, associada mais à sobrevivência do que constituir um vínculo afetivo

mais forte entre eles, visto que um dos membros do grupo fala mal e de forma fria

de Xiao Wu quando ele é preso. Durante o filme, Xiao Wu é contraposto a um

antigo amigo, ex-delinquente, que virou empresário-modelo com aparições na TV

local mesmo que possivelmente associado à prostituição e ao contrabando. para

cujo casamento sequer Xiao Wu é convidado. O mundo de Xiao Wu não é dos que

estão ganhando com a explosão capitalista na China nem dos que têm nostalgia

do passado. Sua própria família, de origem camponesa, não o recebe. Seu mundo

é o da prostituta Mei Mei que some sem dizer para onde foi. Desaparição parece

ser o signo que traduz existencialmente a fluidez das mercadorias e o excesso de

sons e imagens produzidos pelas ruas, TVs, celulares e karaokês. Xiao Wu passa

o filme num constante andar pelas ruas, em meio a poucas conversas banais.

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O local, o comum e o mínimo - Denilson Lopes
Cinema mundial contemporâneo

Nada a fazer. Nada expresso nos rostos. Nem desespero nem tédio. Ele em breve

irá desaparecer também. Parece naufragar no espaço. No entanto, a pequenez

diante do espaço não é encenada com dimensões épica nem melodramática.

A proposta feita em Xiao Wu é ampliada em Unknown Pleasures (Jia

Zhang-ke, 2002) em que o trio de jovens protagonistas, sem grandes contatos

com a família, perambula em meio a encontros fugazes e frágeis num mundo

instável. Não importa o que fazem. Todos parecem um pouco perdidos, mesmo a

namorada de Bin Bin que vai estudar em Pequim, como é representado pela última

imagem de Xiao Ji, no meio de uma estrada recém-contruida onde já tínhamos

visto o anúncio das Olimpíadas de 2008 sem saber aonde vai dar a estrada ou o

que ele irá fazer. Os personagens se vinculam a uma realidade sócio-histórica e

cultural mas a ela também resistem por uma espessura que não fornecer sentidos

óbvios associados à exclusão social ou à pobreza, numa tradição do naturalismo

ou de um realismo social. Os filmes de Jia Zhang-Ke nos ajudam a pensar o

comum não como uma figura da negação ou de recusa, muito menos de uma

utopia, mas no intervalo modesto entre a sobrevivência e a vida possível, no

horizonte concreto do dia após dia, sem grandes sonhos nem niilismo, apenas um

sutil redirecionamento. Comum mas não banal. Comum por poder estar em nós.

Os espaços das pequenas cidades encenados por Jia Zhang-ke e por

outros diretores que a que vamos nos referir, talvez por não terem (ainda?) seu

espaço mercantilizado pelo turismo global e pelas imagens midiáticas, poderiam

se constituir como um lugar com marcas muito particulares. No entanto, não se

trata de falar do local como uma espécie de reserva da cultura nacional, um espaço

extremamente distinto, também aqui estamos num intervalo, que poderia ser o do

comum, entre o universal (“que apaga toda diferença”) e o individual (“diferença

irredutível”) (GUIMARÃES, 2007, p.139) que ao invés de nos isolar, possibilita

um diálogo. Identificamos algo que poderia ser próximo a nós ao invés do local

exótico, sem cair na tentação etnográfica que permeia muito de um debate sobre

o documentário ou sobre as possibilidades do real na contemporaneidade.

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O local, o comum e o mínimo - Denilson Lopes
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Nosso caminho, no entanto, está tanto longe da tradição do documentário,

quanto o de mapear genealogias e constelações de estéticas do real, mas de

pensar o comum, como o que pode nos aproximar mas que retém sempre um

certo distanciamento estético e ético. É a partir deste espaço que podemos nos

aventurar a viver juntos, a partir dessa precariedade, habitando as ruínas, como

nos é possível, como os personagens de No quarto da Vanda (Pedro Costa, 2000),

enclausurados em quartos, pequenas moradas, em contraponto ao processo

de demolição do bairro de Fontainhas em Lisboa, onde moram portugueses e

caboverdianos pobres. No filme de Costa, nunca temos uma visão total do

bairro, onde se situa na cidade, seu contexto. É como sempre estivéssemos ali,

assistindo aos acessos intermináveis de tosse e as sessões de heroína de Vanda.

Sem espetacularização da pobreza ou do vicio da progaonista, nem mitificação

celebratória das margens da sociedade, não somos testemunhas, somos mais

acompanhantes tocados pelo que vemos. Compartilhamos o mesmo espaço, sem

catarse. Estamos sentados junto com os personagens, com a câmara e nada

podemos fazer a não ser estar presentes, resistir a vermos apenas a destruição,

para que possamos ver e sentir a vida mesmo em condições precárias, mas

que não se resume à pobreza como uma limitação social. Não se trata de uma

vida em meio ao caos, à guerra permanente, ao estado de exceção. Estas

palavras grandiloqüentes não nos auxiliam muito. É necessário olhos para ver a

materialidade do despojamento, a concretude dessas personagens fantasmais.

Como o próprio diretor nos revela, trata-se de uma “recusa do documentário em

favor de um shock plástico” (COSTA, 2008, p.19) e da afirmação de uma crença

trazida do teatro sobre a presença das pessoas (COSTA, 2008, p. 26), mas que

não leva ao virtuosismo da vedete nem a experiências na esteira de Cassavettes

com corpos em primeiro plano.

Em Rosetta (irmãos Dardennes, 1999), encontramos a protagonista

habitando uma cidade desnvinculada de um contexto nacional mais amplo ou da

necessidade de uma marca local exótica. O trabalho não aparece sob a marca

da segurança, do conforto, mas de uma constante busca e angústia pela sua

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O local, o comum e o mínimo - Denilson Lopes
Cinema mundial contemporâneo

falta. Estamos desde o inicio colados pela câmara às costas de Rosetta (Émile

Dequenne) que resiste, no início do filme, a ser demitida ao que parece mais

uma vez. Sua vida passa pela incerteza dos trabalhos provisórios e por ser a

própria casa um trailer num camping onde mora com sua mãe, sem trabalho, com

tendência a beber e a se prostituir. Rosetta busca um trabalho com desespero,

mas o desespero não é traduzido por palavras. Estas são poucas, mas os

gestos ríspidos, o andar apressado traduzem uma tensão no próprio corpo. Há

uma breve pausa quando consegue um emprego e faz amizade com Riquet

(Fabrizio Rongione), um rapaz que trabalha na mesma rede de lanchonete e é

a única pessoa que parece se preocupar com ela. A lanchonete, curiosamente

também instalada num trailer, marca mais um sinal de instabilidade tanto na casa

quanto no trabalho. Mas logo é demitida. Quando para conseguir seu emprego

de volta ela denuncia ao patrão (interpretado por Olivier Gourmet que atuará

em O Filho, irmãos Dardennes, 2002) o único amigo que a ajudou; parece no

primeiro momento que a rotina do trabalho para a casa a estabiliza, mas não dura

muito tempo. Sua vida não parece mudar. A mãe continua a mesma. Sua solidão

constitua a mesma. A vida normal que ela procura ter não a parece acolher. Ela

acaba por se demitir e quando a vemos levando um bujão de gás para dentro de

seu trailer, pensamos que vai se matar. A falta de trabalho não é só pensada como

uma condição social externa, mas interna, no próprio corpo, no próprio cotidiano.

Quando Riquet aparece no camping como se tivesse perseguindo-a mais uma vez

e ela cai com o bujão e começa a chorar, tudo parece caminhar para o fim. Neste

último momento, quando nada parece mais aparecer a ela como uma alternativa,

vemos Riquet com sua mão estendida para ajudá-la a se levantar. O filme corta

a cena e termina. Como é breve e impreciso o seu efeito não causa uma catarse

nem marca uma salvação. Em meio a tanto desamparo, um gesto é só um gesto,

mas para quem não tem nada nem ninguém que o ampare pode ser muita coisa,

pode ser a diferença mesma entre a vida e morte, ainda que seja só naquele

momento. O gesto nada assegura quanto ao futuro de Rosetta, é apenas uma

possibilidade no presente. Um gesto que aproxima, que dá uma chance, um gesto

de generosidade.seria um final cristão de redenção?

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O local, o comum e o mínimo - Denilson Lopes
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Diferente da salvação em Bresson que remete ao cristianismo, no filme,

se há salvação ela é neste mundo. A dramaticidade é de um mundo concreto,

material, sem horizontes utópicos, metafísicos ou mesmo profissionais e

afetivos, apenas o dia após o dia, na sua repetição, quase sem uma válvula

de escape. Nem o trabalho nem a fé parecem sustentar esta vida frágil que

no entanto não cai de todo.

Numa experiência próxima ao que vemos em Rosetta, encontramos

Pharaon de Winter de A humanidade (Bruno Dumont, 1999) um outro personagem

nesta constelação que estamos configurando. Policial investigador meio lento,

quase um pouco bovino, longe do modelo arguto tipo Sherlock Holmes mas

conectado com o mundo das coisas e das sensações e não apenas alienado

pelas pressões do mundo do tra balho e do tempo acelerado da produção. O

que é encenado em vários momentos: no inicio quando o vemos caído na terra;

depois ouvindo musica; acariciando uma porca num estábulo; quando abraça um

criminoso na delegacia ou beija na boca Joseph, seu amigo que é identificado como

o culpado do estupro e do assassinato da menina encontrada nas redondezas. O

fato de sua mulher e filho terem morrido não o coloca sob a marca da melancolia

ou do trauma. Também só no núcleo básico do enredo realizado em torno de

um crime é que o filme poderia se aproximar de um filme policial mas não no seu

estilo, no seu ritmo. Humanidade está longe do fetiche pelo noir dos anos 80 e o

crime parece se resolver de forma quase independente da procura do culpado.

Mais do que o crime, O que interessa mais é o trio de amigos formado por

Joseph, motorista de ônibus escolar, Pharaon e Domino, namorada do Joseph e

operária mas que também interessa a Pharaon. Em Bailleul, pequena cidade do

norte da França, perto do canal da Mancha, quase sempre com poucas pessoas

nas ruas, eles saem para jantar, para a praia. No seu cotidiano, Pharaon alterna a

investigação policial com a rotina em casa onde mora com sua mãe.

Bruno Dumont, como Pedro Costa, também prefere trabalhar com não

atores e procura neles e nos seus corpos aquilo que eles têm (apud TANCELIN,

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O local, o comum e o mínimo - Denilson Lopes
Cinema mundial contemporâneo

2001, p. 13). Ele utiliza cenários reais, pessoas reais, sons reais para criar

ficção (apud TANCELIN, 2001, p. 40). Trata-se de um mergulho na banalidade

do cotidiano, na temporalidade dos atores. Para tanto, Dumont defende que

a linha da estória não deve ser forte, nem os atores, nem o cenário, nem o

dialogo, nem as tomadas (apud TANCELIN, 2001, p. 84), para que o neutro

seja atingido (apud TANCELIN, 2001, p. 114).

Também no cinema latino-americano, podemos encontrar esta busca

de encenação do comum em pequenas localidades, como no primeiro filme

de Lucrecia Martel, O pântano (2001). Se nas pequenas cidades encenadas

por Jia Zhang Ke, o local aparece conectado, radicalmente transformado e as

personagens aparecem destroçaadas por um tempo veloz, marcado pela explosão

capitalista; em O pântano, como também em A Humanidade, o local se aproxima

mais da imagem tradicional da província, no filme de Martel, a região de Salta,

próxima da fronteira da Argentina com a Bolívia. Em O Pântano, a natureza é uma

ruína (AGUILAR, 2006, p.8) hostil, nunca uma paisagem a ser contemplada a

distância. A vida é terrena, terrosa, lamacenta, marcada pela presença constante

da chuva, paralisante como a piscina suja ou como o boi morrendo atolado. Esta

natureza material parece sempre a ponto de engolfar a casa de Mecha e sua

família na fazenda Mandrágora. A família de Mecha aparentemente parece viver

precariamente (de pimentões vendidos através de Mercedes, atual amante do filho

José) e os filhos aparecem meio órfãos. Mecha e o marido Gregório aparecem

bêbados e ausentes, “zombies e amnésicos” (AGUILAR, 2006, p. 30), como já

apreendemos na primeira e antológica cena. Longe de qualquer alegoria (AGUILAR,


2006, p.24), também não se trata de uma crônica de costumes de província, há

um perseverança no concreto, nas histórias mínimas sem melodrama, dissolvidas

em várias cenas e subenredos que não se resolvem de todo, em personagens

que compõem pequenos mundos que se friccionam, se esbarram. Sem passado

e sem maiores explicações psicológicas, a narração segue os personagens em

seus atos destinados a se realizar como a viagem planejada a Bolívia para fazer

compras para o colégio. Mesmo a morte final do filho menor da prima de Mecha

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O local, o comum e o mínimo - Denilson Lopes
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

só aparece como ato banal, contraponto à morte do boi no inicio do filme mas

que não revela nada, nem dramatiza nada. Por mais que se possam se mover

parece que nada muda, como se andassem em areia movediça. Mais uma vez,

a imagem do pântano é importante, onde os corpos também se misturam, neste

“cinema da decomposição” (AGUILAR, 2006, p.42). Se datas históricas ou fatos

nacionais são ocultados, a televisão é visível e reafirma a posição horizontal dos

personagens, deitados em camas ou nas cadeiras das piscinas, sem nada para

fazer, marcados por uma sensação de cansaço e esgotamento (AMADO, 2007,

p.217), criando um continuo entre o pântano, a cama e o tumulo (AMADO, 2007,

p. 220). Curiosamente, a televisão não só aparece sob a marca do consumo, é

onde se narra a aparição da Virgem Maria que a única personagem da família que

vai ao lugar não consegue ver. Ela também nada revela. A família de classe média

é um mundo em si, mas reafirma os preconceitos contra os pobres.

Mas o que mais me interessa sugerir é sua dramaturgia desdramatizada, o

que Ana Amado chamou de “minimalismo dramático” (AMADO, 2007, p. 231), mas

sem o desenvolver. Trata-se de um outro tipo de corpo que não é marcado pelo

êxtase, corpos feridos sem necessariamente inferir menos uma despolitização

(AGUILAR, 2006, p. 28) e mais um impasse sobre as formas e os sentidos do

político. Certamente o campo é o do impasse e da sobrevivência, não o da utopia

ou das grandes causas, que aqui é encenado sem nostalgia nem celebração.

Um outro caminho para o comum talvez ainda mais radical aparece

em A Liberdade (Lisandro Alonso, 2001). Aqui a natureza não é paisagem a

ser contemplada nem também ruínas como em O Pântano, mas realidade

bruta, onipresente, solar que se constitui sobretudo como lugar de trabalho

para o lenhador solitário. O tempo é um dia atemporal que parece ser sua

rotina diária encenando um cotidiano sem drama. O lenhador não representa

tanto a figura do eremita, do que recusou o mundo. Certamente é uma figura

não fora mas à margem do capital global. Sua liberdade, se ela existe, está

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O local, o comum e o mínimo - Denilson Lopes
Cinema mundial contemporâneo

numa vida básica, não de renúncia, mas marcada pela sobrevivência e pela

precariedade. Quase sem falar nem para si mesmo, sendo apenas gestos,

ele é tão exterioridade como o espaço a que somos lançados.

Em contraponto ao mundo rural de A liberdade, encontramos a classe

média urbana dos três filmes de ficção de Martin Rejtman encenado também

através de um “poética da abstenção” (BERNINI, 2008) em que relações e


objetos se intercambiam de forma desprendida, de forma pouco passional, sem

sobressaltos nem clímax. Os personagens pouco intelectualizados a que a saída

do pais parece estar no horizonte “não se pronunciam sobre questões públicas”

(SARLO apud BERNINI, 2008, p. 86) nem dialogam com questões como o passado

argentino (o tema da ditadura, por exemplo). Até os nomes são marcas de uma

desidentificação que longe de ser apenas uma forma de negatividade pode ser

uma possibilidade de encontro como parece dizer pelo final de Silvia Prieto

(1999) em que várias personagens chamadas Silvia Prieto se encontram com

nada mais em comum do que o nome. O nome comum, no entanto, é um motivo

suficiente para se reunirem ou como acontecem com o grupo de sagitarianos que


faz caminhada num parque. O despojamento aqui é de outra natureza do que em

Lisandro Alonso. Os personagens parecem não aderir a nada nem a ninguém,

soltos, como se pudessem ser jogados de um espaço para outro, de um trabalho

para outro, encenando uma espécie de “comédia desolada” (OUBIÑA, 2006,

p.6) que sempre dá no mesmo fazer ou não fazer (OUBIÑA, 2006, p. 14). Se

os personagens não são estereótipos (demasiado extravagantes para resultar

esquemáticos) nem arquétipos (traços comuns são demasiado caprichosos para

resultar emblemáticos), são caracteres genéricos (OUBIÑA, 2006, p. 15), o que os

aproxima do que estamos mapeando a partir do comum.

No cinema brasileiro, esta questão do comum e do local parece acontecer

de forma mais precária e difícil. Talvez filmes como No Meu lugar (Eduardo

Valente, 2009) e Linha de Passe (Walter Salles e Daniela Thomas, 2008) se

desdobram nesta busca de uma outro registro dramático mas com resultados

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O local, o comum e o mínimo - Denilson Lopes
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

menos satisfatórios. No caso de Linha de Passe as realidades sociais limitam

ao invés de redimensionar a caracterização dos personagens que acabam se

restringindo a seus traços mais fortes, reiterados durante a narrativa, sobretudo

no caso dos filhos: o evangélico, o jogador de futebol, o motoboy, o filho que quer

conhecer o pai. Se há um esforço inicial em captar o imponderável do cotidiano

ele pouco a pouco cede a uma sobrecarga (melo)dramática que simplifica os

traços de ambiguidade sugeridos inicialmente até o gran finale em montagem

paralela. No caso de No meu lugar a tentativa de esvaziar a violência pelo

cotidiano não consegue firmar nenhuma visão estética, ética ou política muito

particular sobre o Rio de Janeiro além do conhecido mote de uma cidade partida

em que o ponto de encontro das classes sociais seria só a violência. Parece um

filme feito de fora, não de algo pessoal. Talvez só a família do jovem que assalta

a casa ganha uma espessura e sutileza maiores. Tanto a família de classe media

como a do policial carecem de boas atuações e consistência na construção. A

busca de uma forma não-melodramática distinta do folhetim novelesco fica no

meio do caminho. Talvez um melhor esforço encontre traduzido em O céu de

Suely (Karin Aïnouz, 2006), A fuga da Mulher Gorila (Felipe Bragança e Marina

Meliande, 2009) e em Os Famosos e os Duendes da Morte (Esmir Filho, 2009)

de que não temos tempo de analisar aqui.

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O local, o comum e o mínimo - Denilson Lopes
Cinema mundial contemporâneo

Referências bibliográficas

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TANCELIN, P. et al. Bruno Dumont. Paris: Dis Voir, 2001.

WOLFE, C. What is Posthumanism? Minneapolis: University of Minnesotta Press, 2009.

_____________________________________________________________

1. Trabalho apresentado no Seminário Cinema, Globalização e Transculturalidade.

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O local, o comum e o mínimo - Denilson Lopes
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

2. Pesquisador do CNPq. E-mail: [email protected]

3. No caso de estudos de filmes, podemos citar o uso extensivo do termo Minimalismo por Bordwell (2009) ou ainda por
Yvette Biró (2006).

4. Para a questão do empobrecimento, ver Bersani (1993), livro em que o autor faz uma bela análise comparativa de Rothko,
Beckett e dos primeiros filmes de Resnais.

5. Menos é mais (less is more) é a conhecida expressão de Mies Van der Rohe que encontra um equivalente na também
conhecida expressão de Frank Stella – “O que você vê é o que você vê”. São duas frases que traduziram uma sensibilidade
minimalista.

6. O pós-humano se situa na esteira da desconstrução e historicização do homem feita por Foucault. Para leituras recentes
ver WOLFE, 2009.

7. Esta visão antropomórfica se relaciona com fascínio pelo rosto, presente em toda uma tradição do teatro de vedete, do
cinema hollywoodiano e suas estrelas, no seu privilégio pelo close dramático que ressurge curiosamente no horizonte
midiático dos talk shows, no mundo das celebridades, até no tratamento de pessoas comuns, como podemos ver em Jogo
de cena (Eduardo Coutinho, 2007). É claro, no cinema, há grandes poetas do rosto, nesta tradição antropomórfica, que
não nos interessa no momento, de A paixão de Joana D´Arc” (Carl Dreyer, 1929) a Cassavettes ou Bergmam.

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Recursos frente à passagem do tempo - Fábio Allan Mendes Ramalho
Cinema mundial contemporâneo

Recursos frente à passagem do tempo1

Fábio Allan Mendes Ramalho (UFPE)2

Identidades convencionadas, transtornos de linguagem

Três longas-metragens de ficção podem ser apontados como centrais

para a filmografia do cineasta argentino Martín Rejtman: Rapado (1992), Silvia

Prieto (1999) e Los guantes mágicos (2003). Longe do que se convencionou

chamar de cinema político, tais obras sugerem um panorama em que o social se

mostra em grande medida ilegível. Tal opacidade, inscrita nas ações rotineiras dos

personagens, orienta a constituição de um universo estético peculiar que contribuiu

para rearticular parte da produção cinematográfica no subcontinente. Juntos, tais

filmes indicam também uma consistente reflexão sobre as circunstâncias a partir

das quais distintas gerações poderiam, nas palavras de Gonzalo Aguilar (2006,

p. 87), “buscar os meios para aceder a uma experiência”. Restringindo-me a uma

breve análise dos dois títulos mais recentes mencionados,3 busco argumentar

que tais obras revisitam um universo de questões recorrentes no cinema latino-

americano para conduzi-las – a partir de uma perspectiva renovada e, de certo

modo, dissonante – a um momento de intensificação e crise.

O aniversário de vinte e sete anos de Silvia Prieto (Rosario Bléfari)

constitui o marco de uma transformação que ela considera decisiva, e o caráter

inflexivo deste ponto se reflete na consideração de que, daquele dia em diante,

nada voltaria a ser como antes. A imposição seca desta intenção pela voz off da

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Recursos frente à passagem do tempo - Fábio Allan Mendes Ramalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

personagem dá início ao filme de mesmo nome, e o que segue é uma breve

enumeração de providências com grau de importância variável, enunciadas

com o mesmo sentido terminante. Los guantes mágicos, por sua vez, parte de

um evento aparentemente menos significativo: Alejandro (Gabriel “Vicentico”

Fernández Capello), um homem de trinta e seis anos que trabalha com serviços

de remise,4 é interpelado por um passageiro que afirma conhecê-lo desde os

tempos da escola primária, quando aquele havia estudado com o seu irmão.

Mesmo sem lembrar nada, Alejandro aceita um convite para jantar com o cliente,

“Piraña” (Fabian Arenillas), e a esposa dele, Susana (Susana Pampin). Nesse

meio tempo, termina o namoro com Cecilia (Cecilia Biagini) e precisa comparecer

sozinho ao encontro no apartamento do casal.

Um primeiro aspecto em comum a ser observado entre os dois filmes

é que, em ambos, tais premissas rapidamente derivam para abarcar outras

perspectivas e eventos em uma dinâmica onde pessoas são assimiladas

“sem cerimônia” aos núcleos inicialmente estabelecidos. A versátil mobilidade

dos personagens, no que diz respeito às formas possíveis de estabelecer

aproximações, sugere algo como uma capacidade de aderir ao entorno e vincular

a esse contato circunstancial as suas determinações pessoais, profissionais e

amorosas – sempre estabelecidas em curto prazo, inconsistentes, mesmo quando

implicam projetos que se pretendem de absoluta transformação. De fato, o que

se coloca em cena é o enfraquecimento da distinção entre o próprio e o alheio:

os sujeitos interferem livremente na vida dos demais, ampliando e multiplicando

os pontos em que se ligam uns aos outros, e a aparente naturalidade com que

se encena essa intimidade devassada contribui para aumentar o estranhamento.

A instituição de tais dinâmicas encontra reforço também na circulação constante

de valores e objetos que em inúmeros momentos se sobrepõe como elemento

organizador da experiência, determinando a direção e o ritmo dos acontecimentos,

orientando o registro.5 E não apenas objetos, mas também as pessoas circulam,


são intercambiáveis: os casais, os passageiros, os amigos, os moradores que

dividem um quarto ou que ocupam um apartamento vazio. Estas subjetividades

157
Recursos frente à passagem do tempo - Fábio Allan Mendes Ramalho
Cinema mundial contemporâneo

à deriva passam a integrar assim pequenas ordens instáveis, sempre desfeitas

pela instauração de uma nova ordem provisória, contingente.

O estabelecimento de tais circuitos atende, assim, a uma serialidade na

qual, de um jeito ou de outro, todos os elementos dos filmes terminam por inserir-

se. Tudo se desdobra, duplica-se e se multiplica em uma série de recorrências,

retornos, reiterações que os personagens acompanham ou reforçam pela

assimilação do cálculo e da quantificação como meios para organizar um mundo

– o mundo muito particular de cada um deles. Contam-se os pedaços de frango,

os cafés, os leites, os cortados, as corridas de remise, os quilos somados ou

subtraídos do peso corporal, os carregamentos, as dúzias de luvas mágicas.

Conta-se, sempre, no duplo sentido do termo – o da quantificação e o do relato

– como se estes fossem sentidos indissociáveis e complementares. Revela-se

uma preocupação obsessiva com o cálculo como garantia de inteligibilidade,

como recurso que atribui concretude a um dado da narrativa. O apego ao cálculo

alude, assim, ao desejo de resgate de um sentido evanescente pela sua fixação

e reordenação a partir de uma lógica muito própria – o requinte extravagante de

eleger o detalhe como critério para apreensão da experiência.6

O apego às minúcias se traduz ainda em uma mecanicidade dos gestos

que já não corresponde a determinações coerentes, seja porque o seu sentido

nos escapa ou porque se encontram desestabilizadas as lógicas de causa e efeito

que assegurariam a verossimilhança. Assim, logo na primeira cena de Silvia

Prieto, a personagem interpretada por Rosario Bléfari observa, conversando

com seu ex-marido, que mesmo tendo notado a troca de suas roupas pelas de

uma desconhecida, na lavanderia, ela não apenas não considera a possibilidade

de desfazer o equívoco como ressalta que precisa fazer regime, já que as roupas

que lhe foram entregues por engano são de um número menor. Em outra cena,

a mesma personagem, ao lavar as mãos no banheiro do seu trabalho, enxuga-

as na própria roupa, mas liga o secador de mãos antes de sair. Em casa, por

sua vez, diversos planos a apresentam destroçando frangos e colocando-os em

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Recursos frente à passagem do tempo - Fábio Allan Mendes Ramalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

bandejas, compulsivamente. Explora-se por meio dessas sequências um efeito

cômico que a inserção dessas ações e diálogos suscita.

Também nas falas sobressai uma espécie de inversão desestabilizadora

que converte o extraordinário em trivial, enquanto o ordinário é convertido em

elemento insólito, pela sua exploração exaustiva e constante reiteração. É assim

que as grandes declarações, notícias de morte e decisões são enunciadas

sem sobressalto, enquanto frases feitas são repetidas juntamente com uma

profusão de detalhes que os sujeitos não se cansam de reiterar, assuntos

obsessivamente retomados, disseminando-se pelo corpo da narrativa. Neste

marco, o humor se instaura pela assimilação dessas desordens do sentido

pelas dinâmicas da vida diária, gerando uma expressividade que carece

de justificações imediatas e, em última instância, beira o despropósito. Tais

recursos geram resultados particularmente desconcertantes quando dialogam

com uma iconografia cara ao imaginário social e político latino-americano, como

é o caso dos protestos populares. Em Silvia Prieto, o acidente envolvendo

uma promotora de produtos, ocorrido enquanto ela distribuía amostras grátis

de sabão em pó na rua, torna-se risível ao ser dito por meio de um relato

impassível. O caráter nonsense do episódio é potencializado pela revelação

de detalhes deprimentes: a promotora, atropelada por um ônibus, morre

instantaneamente esmagada contra um edifício, mas ninguém se dá conta e

os passageiros levam todas as amostras que estavam espalhadas pelo chão.

Na cena seguinte, Brite (Valeria Bertuccelli), trabalhadora que possui o mesmo

nome do sabão em pó que promove, leva seu namorado a uma manifestação

motivada pelo incidente. O protesto consiste apenas em algumas garotas

sentadas que permanecem segurando cartazes com slogans que remetem a

linhas de protesto já desprovidas de sua força reivindicatória, restando a sua

repetição como um gesto que há muito se tornou esvaziado.

De fato, aqui não seria possível sequer dizer que o trabalho falha em

seu propósito de constituir uma fonte de identificação consistente, posto que

essa possibilidade não chega a ser colocada – a identidade se reduz a uma

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Recursos frente à passagem do tempo - Fábio Allan Mendes Ramalho
Cinema mundial contemporâneo

identificação nominal no crachá ou à referência a uma função profissional. As

conexões e associações mostram-se muito mais aleatórias, expondo, dessa

forma, o caráter convencionado que em maior ou menor grau sustenta todas

as identidades. A exacerbação desse aspecto vem sobretudo pela questão do

nome como um traço que é, paradoxalmente, marca pessoal e denominação

arbitrária. E se a afirmação de si pode se dar pelo nome como indicador

de uma individualidade, pela enunciação afirmativa de um “eu sou...”, aqui

ele perde o seu traço inconfundível pela constatação de que existem outras

denominações idênticas. Aniquila-se, deste modo, a exclusividade que

atestaria uma existência única.

Esse caráter ambivalente do nome se desdobra na reação de Silvia Prieto

(Rosario Bléfari) à descoberta de que existiria outra Silvia Prieto (Mirtha Busnelli)

vivendo em Buenos Aires. Ela se sente ao mesmo tempo transtornada e impelida

ao encontro de sua homônima e, após uma série de contatos atrapalhados por

telefone que terminam por aproximá-las, as duas finalmente marcam um encontro.

A Silvia Prieto de Busnelli interpreta esta coincidência como um quase parentesco,

fato que atesta sua disponibilidade para sustentar o nome como forma de vínculo e

estabelecer, a partir daí, uma instância de reconhecimento possível, que conduz à

estranha proposta de fundar um “clube de Silvias Prietos”.7 Diante da volatilidade,


as personagens de Rejtman expõem o caráter pactuado das relações identitárias

e negociam as circunstâncias que justificam sua aproximação recorrendo a

aspectos mínimos – que, não obstante, constituiriam ainda “eixos de articulação”,

segundo argumenta Beatriz Sarlo (2003, p. 140). Neste caso, o único requisito seria

compartilhar o mesmo nome. Em Los guantes mágicos, por sua vez, uma única

grande coincidência – o fato de que quase todos os presentes na viagem a um

spa brasileiro eram do mesmo signo astrológico – termina levando à constituição

de um grupo, o “grupo dos sagitarianos”, que passa a se encontrar regularmente

em um parque da cidade para fazer caminhadas.

A conjunção dos dois aspectos anteriormente mencionados – as

disposições subjetivas e os circuitos em que elas terminam por inserir-se, sempre

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Recursos frente à passagem do tempo - Fábio Allan Mendes Ramalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

provisoriamente8 – reaparece com mais força em Los guantes mágicos. E aqui fica

ainda mais claro que não apenas a faculdade de eleger é redimensionada pela

aleatoriedade da série, como também é na conjunção de tais sistemas que em

determinado momento se nos oferece uma leitura bastante particular das dinâmicas

econômicas que envolvem os personagens. Definir os rumos de uma vida torna-se

tarefa árdua devido à incidência sempre presente do acaso e das possibilidades

combinatórias dos encontros, mas também, principalmente, porque o caminho da

mudança termina por denunciar suas conexões com outras dinâmicas para cuja

lógica os personagens não têm um claro acesso. Ascender a uma condição social

que prometa mais que a sobrevivência sustentada na reprodução de um modo de

vida modesto, por exemplo, implica dominar o modus operandi dos negócios em

um mercado que não oferece garantias.

Impelido pelo objetivo de ser algo mais que um remisero, Alejandro vende

seu Renault 12 – a despeito da centralidade que este parece ocupar em sua vida

– para investir na compra das mercadorias que dão nome ao título do filme: luvas

tipo tamanho único cuja demanda mostra-se promissora em face da frente fria que

se aproxima de Buenos Aires. Não obstante, a série, convertida em larga escala,

torna-se opressiva, e os meandros pelos quais se arquiteta uma investida no

mundo dos negócios indicam as heterodoxas soluções que animam o desejo de

prosperar economicamente nos países periféricos. Todo o processo, condensado

em um curto intervalo de tempo onde são apresentados os seus desdobramentos,

torna-se risível: Alejandro vende o seu veículo, passa a receber como empregado

para exercer o mesmo trabalho de antes e, agora sem carro, recorre aos serviços
de táxi para se locomover durante o seu tempo livre. E assim como a retórica dos

governos e instituições torna assimiláveis as consequências da ordem econômica

dominante, tudo no filme transcorre como se a proposta apresentada consistisse,

de fato, em um grande investimento.

Neste sentido, Piraña incorpora com precisão a irônica figura do homem

de negócios, aquele que está sempre disposto a exaltar o espírito empreendedor

e relembrar a história triunfante que vem coroar sua trajetória de êxitos. Sua lição,

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Recursos frente à passagem do tempo - Fábio Allan Mendes Ramalho
Cinema mundial contemporâneo

no entanto, não oferece salvaguardas, apenas o fascínio do risco e da mudança,

elevados como requisitos para julgar a validade da experiência, mesmo quando a

razão e o sentido destes não parecem estar claramente definidos. A disponibilidade

de Alejandro – aquela que o leva a aceitar a intervenção de seu novo amigo e

aderir ao plano deste – esbarra no fato imprevisto: a súbita variação meteorológica

que substitui o frio por uma forte onda de calor e torna inútil todo o segundo

carregamento de mercadorias. Alejandro termina sem carro e sem dinheiro e

passa a trabalhar como motorista de um ônibus de excursão, integrando a partir

de então uma nova rotina de viagens, estradas e noites insones.

Marcas de uma época: lugares e indícios

O deslocamento desponta como um dos importantes elementos a partir dos

quais seria possível discutir a persistência de um imaginário trânsfuga no cinema

latino-americano contemporâneo. Nos múltiplos trânsitos empreendidos, tem-se a

configuração de possibilidades de fuga e encontro, a valorização de uma delicadeza

nos modos de ver e sentir e também a busca pelo inesperado constituído como

promessa. Vislumbra-se aí, ainda, um elemento para a intensificação dos contatos

e para a valorização de um estar junto em face de outras dinâmicas. Os relatos

de viagem, enfim, configuram uma das formas privilegiadas – embora certamente

não a única – pelas quais se pensa e se expressa uma subjetividade dissidente.9

Eles atribuem forma e consistência ao desejo de abandono de uma ordem de

trabalho opressiva ou, de maneira mais ampla, à negação de qualquer imperativo

que busque disciplinar ou orientar disposições singulares pela imposição de um

dever ou de uma interdição. Não obstante, a realização deste ideal não é sempre

possível ou suficiente – constitui, no máximo, uma aposta. O lugar é sempre

um lugar sonhado, a progressão não se confunde com o simples movimento, a

alteração dos termos e circunstâncias da experiência não suprime o desencanto.

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Recursos frente à passagem do tempo - Fábio Allan Mendes Ramalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Nos filmes de Martín Rejtman, delineia-se uma sensível diferença nas

formas pelas quais o elemento viagem é apresentado, posicionamento que

contribui inclusive para assinalar os limites dessa tática de fuga. Com o dinheiro

do primeiro salário, a personagem de Rosario Bléfari, em Silvia Prieto, compra

uma passagem para Mar del Plata. Nem o tom de voz, nem a expressão do

rosto, nem a composição dos planos, no entanto, denunciam essa mudança. O

deslocamento e a alteração na rotina – que em outra parte poderiam facilmente

ocupar todo o tempo de um relato, preenchê-lo com uma multiplicação de

anedotas, de eventos e seus desdobramentos – resumem-se aqui a uma rápida

passagem cujo aspecto mais significativo restringe-se à introdução de um novo

personagem, o italiano Armani (Mario Rubinacchi). No mais, apenas a citação

indiferente a uma paisagem litorânea poderia atestar que aquele não é apenas

mais um lugar dentre muitos, dado que o tratamento formal e estético é o mesmo.

O tom que predomina é o da indiferença.

Assim como nesta cena em particular, a atenção concedida às


viagens como acontecimentos narrados se encontra comumente reduzida,

no universo rejtmaniano, a um fato esvaziado que carece de maiores

implicações. As viagens marcam grandes elipses e, com frequência, são

apontadas unicamente pela inserção do breve plano de um avião decolando

ou pousando. Outras operações reforçam essa imutabilidade: em Los guantes

mágicos, quando Cecilia viaja ao spa brasileiro para perder os sete quilos

que havia adquirido com sua mistura bombástica de antidepressivos e álcool,

sua roupa é a mesma nas cenas do embarque e do retorno, como que para

demarcar propositalmente a percepção de que nada muda, inclusive sua

fisionomia e silhueta, que permanecem as mesmas, embora as falas atestem

de modo redundante a veracidade da sua oscilação de peso.

Com isso, o deslocamento torna-se algo trivial, incapaz, como todo o resto,

de alterar a peculiar modulação das vozes, o tom geral de desinteressado equilíbrio

que caracteriza a composição dos planos, a estruturação dos diálogos. Desse

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Recursos frente à passagem do tempo - Fábio Allan Mendes Ramalho
Cinema mundial contemporâneo

modo, chega a causar estranheza a observação feita pela aeromoça, quando

Cecilia comenta que ganhou uma passagem para visitar seu novo namorado

no Canadá. “Hay que viajar, chicas! Hay que viajar lo más que se pueda!” – e

o imperativo cai no vazio, como uma frase feita que soa como ironia frente ao

esgotamento de qualquer valor transcendente relacionado à viagem. Tudo se

torna banal, inclusive as viagens, que não apenas perdem qualquer traço de

aventura, como denunciam sua transfiguração em negócio turístico, submetido às

mesmas regras e assimilado pelas mesmas dinâmicas da esfera econômica que,

nas margens, marcou sempre a experiência dos sujeitos com o caráter opressivo

da exclusão, do déficit em suas inúmeras formas.

Algo semelhante ocorre com os lugares comumente frequentados pelos

personagens dos filmes de Rejtman. Se a deriva cotidiana pelos espaços

urbanos pode ser relacionada também à vontade de fuga que orienta as táticas

de sujeitos discretamente rebelados, em Rejtman os espaços da cidade, por

outro lado, parecem sempre remeter a um hábito, a uma ocorrência cíclica

e, pelo seu aspecto decadente, a um estilo de vida descompassado, inatual.

Nas lanchonetes, restaurantes chineses e sobretudo danceterias, podem-se

inferir os sinais de um modo de existir fora de circuito, onde a interação social

parece sempre restrita: ou porque os espaços estão em defasagem em relação

a qualquer pretensão de atualidade, ou porque é o sujeito que a ele se dirige

que se descobre desconectado dos demais, “fora de moda”. As danceterias

acumulam esses indícios: sua ambientação – as luzes, a música, as roupas –

denunciam um indisfarçável anacronismo, ao mesmo tempo em que os mais


velhos nada podem fazer senão deplorar a pouca idade perceptível no rosto da

grande maioria dos frequentadores.

Ambos os filmes de Rejtman em questão trazem, assim, como um de

seus pontos mais desconcertantes – ainda mais do que em Rapado, seu primeiro

longa-metragem – o desconforto causado pela passagem do tempo e seus

desdobramentos. Neles, como em poucos, desfiam-se o lamento e a melancolia

que acompanham a percepção de que os sentidos pessoais associados ao

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Recursos frente à passagem do tempo - Fábio Allan Mendes Ramalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

transcurso do tempo – a capacidade muito particular que cada um possui de

assimilá-lo – colocam irremediavelmente os personagens em descompasso. O

tempo cronológico e o tempo biológico vêm sublinhar o envelhecimento, ao passo

que a ansiedade decorrente desta constatação converte-se em um investimento

sobre o corpo, levado ao extremo em Los guantes mágicos pela presença dos

“atores pornôs” e figurado em detalhe no encanto por algumas habilidades

subitamente aguçadas ou recuperadas, como a audição.

Neste sentido, a deriva por inúmeros médicos, bem como a profusão de

receituários e medidas terapêuticas destacam uma questão semelhante àquela

evocada pelas recordações de um passado longínquo, trazidas por amigos

de infância ou por conhecidos distantes. Tais situações são indícios de um

desvanecimento, de um movimento pelo qual se atesta a impossibilidade de adiar

indefinidamente a maturidade, de ignorar as marcas físicas que anunciam o fim

da juventude ou as divergências que marcam diferentes gerações. Os dois filmes

ressaltam os efeitos cômicos desses traços epocais e sua ressonância no tempo

presente pela exploração do contraste que se estabelece entre a intensidade

de um sentimento resgatado em uma imagem do passado e o olhar impassível,

incrédulo, que o contempla desde o presente: em Silvia Prieto, Marcelo (Marcelo

Zanelli) vai com sua nova namorada à casa de sua ex-esposa (Bléfari) e os três

veem juntos o vídeo antigo do casamento já desfeito. Em Los guantes mágicos,

Cecilia assiste, com expressão quase catatônica, ao registro documental de uma

apresentação de rock que seria uma espécie de versão argentina do Woodstock,

festival ícone da efervescência juvenil.

Outro aspecto a considerar, por fim, é que o que também se encontra

suprimido nesses enunciados é o entusiasmo com o tipo de experiência que uma

certa errância noturna poderia proporcionar e que estaria ainda presente em

obras de diretores contemporâneos a Rejtman. No filme mexicano Y tu mamá

también (Alfonso Cuarón, 2001), por exemplo, temos o fim de tarde e sua luz

crepuscular prenunciando a noite em que os jovens trocam confidências e podem,

por fim, dar vazão a seus desejos não confessados. É nessa noite, ainda, que

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Recursos frente à passagem do tempo - Fábio Allan Mendes Ramalho
Cinema mundial contemporâneo

Luisa (Maribel Verdú) expressa mais livremente seus impulsos, sua ânsia de

vida, exalando uma sensualidade ébria enquanto dança sinuosamente ao som

da canção de amor Si no te hubieras ido, provocando a câmera, muito viva. Em

Whisky (Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll, 2004), por sua vez, é também em uma

noite – a última da viagem a Piriápolis – que Jacobo (Andrés Pazos) lança a sorte

e aposta tudo, enquanto Marta (Mirella Pascual) faz sua visita silenciosa ao quarto

de Herman (Jorge Bolani), realizando o encontro reservado cujos termos não se

dão a conhecer (RAMALHO, 2008, p. 151-152).

Tantas vezes associada à esfera da indeterminação, a noite pôde assim

configurar, em obras significativas da última década, esses instantes incertos em

que tudo se desata. Não obstante, tanto em Silvia Prieto quanto em Los guantes

mágicos ela se apresenta em grande medida esvaziada de tais qualidades. A

dança, as conversas, a movimentação, tudo segue um ritmo quase burocrático,

e até as celebrações e encontros amorosos cedem ao tom rotineiro, para o qual

contribui o uso recorrente das mesmas locações. Para Alejandro e Valeria (Valeria

Bertuccelli), a pista de dança pode ser um momento propício para discutir os

preços das corridas ou simplesmente para admirar-se da coincidência de que

ambos trabalham com “transporte de passageiros”. Para os insones, por sua vez,

sair para dançar pode ser melhor do que ficar em casa “olhando para a parede”. A

noite, no entanto, já não promete nada. Ou quase nada.

Próximo ao fim de Los guantes mágicos, temos um plano demorado

de uma estrada que se descortina em uma sucessão monótona de curvas e

vegetação à margem. Nada mais próximo e ao mesmo tempo mais distante das

imagens de veículo dos road movies. Se no mencionado filme de Cuarón elas

ocupam o quadro para disputá-lo, às vezes sem sucesso, com os símbolos de

uma finitude que persiste em se fazer anunciar, aqui elas vêm acompanhadas

unicamente pela voz apática de Alejandro que nos atualiza sobre o paradeiro

de alguns personagens. Algum tempo depois, vemos Alejandro novamente em

cena na sua nova função. O trabalho parece ter afetado outros territórios de sua

vida, contaminando-os, mas nada nos permite apontar qualquer similaridade

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Recursos frente à passagem do tempo - Fábio Allan Mendes Ramalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

com a utópica conciliação capaz de estabelecer uma harmonia entre as muitas

esferas conflituosas e irredutíveis do cotidiano.

Parte destas cenas finais nos sugere que os deslocamentos, as noites e as

formas de habitar o espaço urbano – estes três recursos com os quais o cinema

latino-americano tantas vezes conjurou o tédio e a imutabilidade – encontraram

um limite ou ponto crítico, de impasse, assinalando com isso um possível marco:

simultaneamente o esgotamento de um imaginário de dissidência e a culminação

de uma maneira de filmar. E se coincidimos em que a noite insone pode ser

percebida como aquela em que a experiência do tempo se intensifica – um tempo

que se mostra distendido ou em suspenso – poderemos interpretar a insônia

do protagonista, ao final, como a denúncia de um desarranjo ou a marca de um

incômodo. Lembremos, no entanto, que este filme – como, ademais, toda a obra

de Rejtman – não verticaliza os seus personagens, não se dedica a esmiuçar

suas motivações, suas determinações psicológicas. Aspira, assim, a certa

superficialidade que termina por revelar-se muito expressiva. Mais do que ceder

a um impulso explicativo, então, podemos nos ater à sua última sequência como

desfecho deste ensaio: a caminhada noturna em que se recoloca o interesse

obsessivo pelos carros, todos remetendo a um único carro; a fuga mais banal,

que é também o encontro com uma juventude cujos traços mostram-se cada vez

mais distantes, remetendo a uma época do passado, de modo semelhante ao que

é evocado pela música e pelo visual retrô da danceteria. O corte final acontece um

pouco brusco, quando Alejandro mal ensaia, ainda, os seus primeiros movimentos

na pista. Essa deriva muito pessoal e solitária é então interrompida, restringindo


a satisfação escassa que a cena poderia nos conceder para dar lugar, de forma

talvez um pouco apressada, aos créditos finais.

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Recursos frente à passagem do tempo - Fábio Allan Mendes Ramalho
Cinema mundial contemporâneo

Referências bibliográficas

AGUILAR, G. Otros mundos: un ensayo sobre el nuevo cine argentino. Buenos Aires: Santiago Arcos Editor,
2006.

CHAUVIN, I. D.. Martín Rejtman: profanações da fala no novo cinema argentino. Comunicação&política, v. 25,
n. 2, p. 235-246. 2007.

RAMALHO, F. A estética da monotonia: desencanto, solidão e incomunicabilidade em Whisky. In: HAMBURGER,


E.; SOUZA, G.; MENDONÇA, L.; AMÂNCIO, T. (Org.). Estudos de cinema SOCINE. São Paulo: Annablume;
FAPESP; Socine, 2008. p. 145-154.

REJTMAN, M. Rapado. Buenos Aires: Grupo Editorial Planeta; Biblioteca del Sur, 1992.

SARLO, B. Plano, repetición: sobreviviendo en la ciudad nueva. In: BIRGIN, A.; TRÍMBOLO, J. (Org.). Imágenes
de los noventa. Buenos Aires: Libros del Zorzal, 2003. p. 125-149.

SENNETT, R. A corrosão do caráter: conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Tradução de


Marcos Santarrita. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.

Referências audiovisuais

Los guantes mágicos. Martín Rejtman. Argentina, 2003, filme 35 mm.

Rapado. Martín Rejtman. Argentina, 1992, filme 35 mm.

Silvia Prieto. Martín Rejtman. Argentina, 1999, filme 35 mm.

Y tu mamá también. Alfonso Cuarón. 2001, filme 35 mm.

Whisky. Pablo Stoll; Juan Pablo Rebella. 2004, filme 35 mm.

_____________________________________________________________

1. Este artigo resulta de uma pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq). Trabalho apresentado na categoria de comunicação individual, na mesa de Estética e Política.

2. E-mail: [email protected]

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Recursos frente à passagem do tempo - Fábio Allan Mendes Ramalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

3. Depois deles, Rejtman dirigiu ainda um documentário, Copacabana (2006), e um projeto para a televisão argentina
realizado em parceria com o também diretor Federico León, Entrenamiento elemental para actores (2009). Tendo em vista
o recorte assumido e os limites desta comunicação, tais obras não farão parte da análise.

4. Um serviço de aluguel de carros com motorista que não se confunde com o serviço de táxi. Os remises são mais informais,
não levam o mesmo tipo de identificação apresentada pelos táxis, não costumam tomar passageiros nas ruas (apenas por
meio de um contato prévio) e as condições do serviço prestado – preço e itinerário – são também previamente definidas.

5. A constituição destas séries ocupa um lugar central na importante análise realizada por Gonzalo Aguilar (2006), que
enfatiza em seu argumento as relações entre mercadoria, valor e experiência na obra de Rejtman. Tal serialidade encontra
destaque ainda no trabalho de Irene Chauvin (2007) que, não obstante, privilegia em sua abordagem a questão da voz
bressoniana como mecanismo de desvelamento da materialidade da linguagem nas falas dos personagens.

6. Em Silvia Prieto, a personagem de Rosário Bléfari decide pedir demissão quando percebe que já não pode somar os cafés,
leites e cortados servidos – perdeu a conta.

7. Ao final, temos o que seria a concretização da ideia do clube: com uma mudança significativa no modo de filmar – que
agora evoca um registro documental, o que por sua vez contribui para elevar ainda mais o estranhamento que contamina
as premissas do filme –, abre-se espaço para uma série de depoimentos que atribuem ao grupo um sentido de experiência
compartilhada.

8. Ver uma consideração destes dois sistemas, a série e a eleição, como “máquinas de narrar” (AGUILAR, 2006, p. 86).

9. Note-se, a esse respeito, a posição de destaque que o road movie ocupa na produção cinematográfica do subcontinente ao
longo da última década, com filmes como Y tu mamá también (Alfonso Cuarón, 2001), Diarios de motocicleta (Walter Salles,
2004), Historias mínimas (Carlos Sorín, 2002), Tan de repente (Diego Lerman, 2002), dentre outros.

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Nos contornos do vazio: Gerry e os cinemas de deserto - Fernando de Mendonça
Cinema mundial contemporâneo

Nos contornos do vazio:

Gerry e os cinemas de deserto1

Fernando de Mendonça (UFPE)2

Quando a imagem se torna areia

O deserto, região natural de difícil acesso para o habitat humano, ao

contrário do imaginado, revela-se como um lugar de intenso movimento,

principalmente quando é formado por solos arenosos. A incessante ação eólica

sobre a areia faz com que o relevo desértico seja natural e perpetuamente

renovado, gerando formações diversas a todo instante, incidindo até mesmo

sobre as mais resistentes rochas, ecoando o princípio heraclitiano da água num

lugar onde a mesma é escassa.

Cenário de narrativas artísticas das mais diversas no decorrer da história,

o deserto se destaca como um lugar marcado pelo vazio, adequado à reflexão de

tal forma como se ele mesmo se debruçasse ao pensamento. Pois é inevitável

que, pelo seu potencial significativo, o cenário se torne personagem da narrativa

e influencie diretamente as questões levantadas na diegese em que impera.

O cinema, em pouco mais de um século, já conta com um painel particular

de obras que manifestam o deserto mais do que como um lugar, atribuindo-lhe

uma significação narrativo-formal que identifica a paisagem não apenas em

suas possibilidades metafísicas, mas encontrando nela uma analogia para a

própria constituição da linguagem cinematográfica.

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Nos contornos do vazio: Gerry e os cinemas de deserto - Fernando de Mendonça
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

A imagem de cinema, formada por grãos em movimento, torna-se o lugar

da reflexão do mundo, o espaço vazio a ser completado por uma realidade que

é sempre nova e que ele mesmo ajuda a renovar. Não há imagem fixa. Todo e

qualquer fragmento fílmico é dotado de uma dinamicidade interna que articula

sua ontologia do vazio, lugar onde nada mais há do que a luz e a sombra, para

originar um novo mundo em permanente transformação. Pois uma imagem nunca

é a mesma em si. O tempo e o espaço cinematográficos, agora desvinculados do

exterior que os gerou, configuram a imagem como um lugar de origem, como se a

terra que formou o homem agora encontrasse o lugar ideal da criação. É quando

a imagem se torna areia.

***

Dois jovens caminham no deserto à procura de uma coisa.

Se fosse necessário apresentar uma sinopse do filme Gerry (Gus

Van Sant, 2002), não seria possível ir muito além da linha acima. Filme

fundamento deste novo século, Gerry se estabelece como o melhor exemplo

para uma abordagem do deserto dentro de uma perspectiva contemporânea

da linguagem cinematográfica. Gus Van Sant, que com esse filme iniciou uma

nova fase em sua carreira, não deixa de inaugurar um cinema diferenciado

pela maneira como manipula o tempo e o espaço a favor de uma narrativa que

já não compactua com nenhum dos parâmetros clássicos, chegando mesmo

a exacerbar e quase romper os limites do que se convencionou compreender

por cinema moderno (DELEUZE, 2007). Ao filmar Gerry, Van Sant deu a ver o

potencial que a imagem de cinema possui de perceber e apreender a paisagem

natural, suspendendo o espaço e trilhando caminhos abertos por alguns dos

mais importantes cinemas que o século XX legou.

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Nos contornos do vazio: Gerry e os cinemas de deserto - Fernando de Mendonça
Cinema mundial contemporâneo

Assim como a formação de uma duna deriva da degradação de outras,

acumulando grãos que se desgarraram de sua origem rochosa, Gerry se

impõe como uma novidade estética, que assume suas inspirações sem jamais

deixar de evidenciar uma originalidade fugidia, de aparência tão frágil, quase

prestes a se espalhar com o vento, mas que não se desvincula da certeza da

permanência, pois por mais que vente e a paisagem se transforme, um deserto

não deixa de ser o que é.

***

Poucos lugares são capazes de abrigar uma variedade tão diversa

de formas de vida como o deserto. Se nos esquecemos tão facilmente

de verdades assim sobre a região desértica é porque ela própria tem por

condição ocultar tais verdades, construindo-se por uma aparência enganosa,

ilusória. O deserto esconde sua vida. A existência infiltra-se sob a areia, entre

as rochas, fugindo das condições climáticas e subsistindo somente por elas,

surpreendendo observadores mais atentos e fazendo ver que um deserto é

um lugar de plena atividade orgânica. 3

A associação entre cinema e deserto, pode, sob esse viés, iluminar uma

característica também essencial da imagem cinematográfica. Imagem que,

como a areia, subsiste pautada pelo princípio da ilusão de vida, condensando

em seu interior uma pulsão nuclear criadora, mas permanecendo sempre num

equilíbrio entre o real e o imaginário. Há fertilidade na imagem de cinema. Ao

nos lembrarmos da força centrífuga da imagem cinematográfica (BAZIN apud

AUMONT, 2007), força que difere da tela pictórica por não converter o olhar

apenas ao centro figurativo, mas por liberá-lo para um além-tela, como se a

imagem prosseguisse após suas margens, constatamos o mesmo movimento

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Nos contornos do vazio: Gerry e os cinemas de deserto - Fernando de Mendonça
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

do deserto, na indefinição da fronteira, em sua capacidade de portar e afastar


tipos de vida distintos, desafiando todo e qualquer ser que nele adentrar a uma
adaptação que transcende o corpo.

Não sabemos qual é a coisa procurada em Gerry, mas, juntamente com


os personagens, passamos a acreditar nela, a precisar vê-la, como se fosse
necessária para a manutenção da vida não apenas dentro daquele deserto,
mas além dele. E mesmo além ele vive. Impossível encerrar o filme e não
carregar a sensação de que o deserto continua. Sem fim.

***

O cinema nasce no deserto.

A chegada do trem na estação (1895), obra-prima dos irmãos Lumière


que marcou o nascimento oficial do cinematógrafo no fim do século XIX, deve
ser obrigatoriamente lembrada aqui, pois como não considerar o fato de que a
estação de La Ciotat irrompe dentro de uma região desértica? É verdade que o
urbano aí se apresenta com todo o poder de uma epopeia moderna, tanto pela
grande máquina em movimento como pela figuração das pessoas que estavam
ali simplesmente vivendo, mas não podemos ignorar que para além da areia que
se levanta sob a passagem do trem, o filme dos Lumière aponta uma primeira
reflexão da sétima arte em direção ao conflito do vazio × movimento, do deserto ×
urbano, da paisagem × humano.

O realismo da profundidade de campo abstraído pelos Lumière


transforma esse minuto de vida num símbolo de todo um período histórico,
uma bandeira de uma arte em ascensão, configurando àquele cenário a função
de durar como primeira memória do cinema, estabelecendo um lugar e uma
ação que seriam para sempre evocados e desenvolvidos por toda estética

verdadeiramente compromissada com a arte da imagem em movimento.

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Nos contornos do vazio: Gerry e os cinemas de deserto - Fernando de Mendonça
Cinema mundial contemporâneo

Valendo-se de um ensaio escrito por André Bazin (A ontologia da imagem

cinematográfica), Michael Allan (2008) observa neste mesmo feito dos irmãos

franceses, assim como no sistema de produção e filmagem desenvolvido por

eles ao redor do mundo – onde também se destacam os desertos egípcios –, um

princípio reordenador do tempo, cujo valor estaria no caráter transnacional ao qual

a história se afiliaria a partir de então. O deserto em imagem, por sua privilegiada

condição de espaço e pela duração imposta ao registro audiovisual, confronta o

estagnar da forma encontrando, no desafio, motivos que justificam sua retomada

contínua no subsequente desenvolvimento da história do cinema.

Pois falar de história e tempo no deserto é incorrer no improvável.

Destituído do incorruptível, do mundano, o espaço desértico subsiste como

um rompimento diante da secularização humana, um lugar onde o tempo e

o espaço profanos, “históricos”, tornam-se secundários (AMARAL, 2009).

Lugar de ausência, também à imagem do cinema pode-se aplicar semelhante

apropriação do mundo, não numa perspectiva sacralizada do espetáculo,

mas em seu particular contorno das coisas, seu necessário distanciamento

do evento histórico. Assim como o deserto é mais do que um lugar físico e

geográfico, pois potencialmente existe enquanto espaço mental, psíquico

(AMARAL, 2009), a novidade ofertada pelos Lumière amplia o alcance e a

permanência da imagem a um nível absolutamente interior ao homem – ao seu

pensamento, ao sentimento de memória que o faz Ser.

***

Quando os dois jovens se lançam ao inóspito ambiente desértico, no

início de Gerry, percebemos imediatamente que não poderemos acompanhar sua

jornada com os parâmetros externos àquele novo mundo desbravado, anteriores ao

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Nos contornos do vazio: Gerry e os cinemas de deserto - Fernando de Mendonça
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

filme, paralelos a qualquer compreensão prévia. Todos os elementos empregados

(iluminação, música, movimentos de câmera, interpretação dos atores, entre

outros) indicam que o tempo deixou de ser algo em jogo para eles (GONÇALVES,

2009), os dois jovens de nomes idênticos, faces de uma mesma moeda humana.

O caráter mítico de sua busca, alçado por Gus Van Sant até as últimas

consequências, veste-se de um interesse que se apoia claramente numa

compreensão metafísica do espaço, mas que não permite ao nível da representação

um estado alegórico em suas imagens – como aquele encontrado no deserto de

Zabriskie point (Michelangelo Antonioni, 1970). Em sua análise sobre o cinema e o

corpo, também feita a partir de Gerry, o professor Daniel Lins constata: “Em Gerry,

o vazio metafísico do deserto engendra a corrida; os dois personagens correm

para o deserto como alguém que se abandona à vertigem – não ao medo do vazio,

mas à atração irrepresentável para o próprio vazio, como se fora um vazio pleno.”

(LINS, 2009, p. 171-72) Pautado por uma poética do esvaziamento, o filme de

Van Sant encontra seu potencial dramático justamente no exacerbar da ausência,

da falta não suprida. O mesmo autor lança mão do conceito de “involução” para

compreender a divergência dos tempos enfrentada em Gerry: “Dissolve-se a

própria forma do corpo para liberar tempos, e, simultaneamente, confundi-lo,

delineando a própria marcação calistênica do tempo da representação, do tempo

contra o devir do próprio tempo” (LINS, 2009, p. 171-72). A plenitude pelo vazio

aí proposta, longe de corresponder-se a um projeto desintegrador, niilista ou

meramente conceitual, aproxima-se muito mais de uma arguição filosófica, na

maneira como ela pode ser nutrida pela juventude contemporânea.

Já sabemos a importância que a obra de Van Sant possui para a

representação do jovem; toda sua carreira concentra-se coerentemente nos

anseios e questionamentos de uma juventude que não espera por respostas

científicas, indiscutíveis, mas que encontra no desejo pela dúvida um prazer que

só pode ser apreendido sensorialmente. Fazer seus protagonistas perderem-

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Nos contornos do vazio: Gerry e os cinemas de deserto - Fernando de Mendonça
Cinema mundial contemporâneo

se numa jornada introspectiva retoma constantes que de certa forma já se

encontravam presentes em sua filmografia pregressa (Mala noche, 1986; Garotos

de programa, 1991), mas, ao mesmo tempo, pela maneira como diferencia sua

abordagem estética, abre caminhos para um novo posicionamento de seu cinema

diante dessa “busca do Eu”. Nesse sentido, é iluminadora a abordagem que Luiz

Felipe Pondé dedica ao espaço desértico numa reflexão a respeito da filosofia da

religião, sob a perspectiva de um método negativo de análise:

O homem é uma referência vaga e o eu, seu eidos metafísico


delirante. Quando, no deserto, ele grita seu nome, tudo
que ouve é seu próprio eco. Mas, segundo Dostoiévski e
Rosenzweig, essa experiência do vazio de si mesmo que
retorna materializado na efemeridade de uma voz que se
repete no infinito, não é apenas signo na miséria, mas
também da possibilidade de descobrir que a travessia desse
infinito da ausência de sentido pode ser, na realidade, um
método. (PONDÉ, 2009, p. 49, grifos do autor)

O deserto enquanto método. Artifício de investigação, ilusão de um infinito

presente, assim o deserto se configura como um ponto de travessia do Eu, uma

passagem de sua angústia rumo a efeitos que catalisem pulsões específicas do

desejo. As caminhadas intermináveis de Gerry, a desarticulação dos diálogos

travados entre os dois jovens, a errância a que eles se condenam perpetuamente,

são características do eco referido por Pondé. Através delas, o caráter labiríntico

do deserto devolve aos gritos dos jovens as respostas proferidas por eles

mesmos (ecos), confirmando o objeto da busca como localizado dentro do Eu,

pelo filme fendido e duplicado.

Tudo que os dois jovens possuem na vastidão da paisagem (nome,

corpo) encontra-se indiscernível pela maneira como Gus Van Sant os delimita

dentro de suas imagens. Se seu deserto também pode ser vivido enquanto

método, isso acontece porque em cada imagem de Gerry (importando a

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Nos contornos do vazio: Gerry e os cinemas de deserto - Fernando de Mendonça
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

configuração de movimento empregada pelos recursos técnicos de filmagem

– superabundância de planos-sequência, travellings) é instituída uma primeira

ausência de sentido, simbólico, permitindo fazer do plano cinematográfico uma

via de travessia, um espaço de passagem.

***

Dentre os diferenciais que destacaram Gerry pela crítica especializada

(FRODON, 2004; CHAMAYOU, 2006) como um ponto de virada na abordagem

do deserto no cinema, curiosamente acompanhado por outros filmes que o

sucederam pouco tempo após o seu lançamento (The brown bunny, Vincent

Gallo, 2003; Twentynine Palms, Bruno Dumont, 2003), podemos levantar a

renovação que o espaço de Van Sant proporciona ao conceito de Lugar, diante

da tradicional perspectiva que encenou o deserto nos cinemas do século XX.

Os cinemas de deserto raramente situam espaços arenosos como

desprovidos de fronteiras. Inúmeros filmes podem ser lembrados no sentido

de tornar os desertos lugares habitáveis, reconhecíveis, portadores de afetos e

memórias sensórias configuradoras do lugar-lar. O que não acontece em Gerry.

Em vez do conforto da sobrevivência, os jovens de Van Sant atravessam o deserto

sem procurar qualquer identificação com o espaço, ainda que ela se dê pelo

dispositivo de comparação natural à imagem. Tal compreensão aproximaria os

contornos do espaço em Gerry a uma potencial representação do “não lugar”.

Quando o antropólogo Marc Augé definiu o “não lugar” como um espaço

da supermodernidade, diametralmente oposto ao lar, à residência, ao espaço

personalizado, propondo parâmetros para o que ele chamou de “etnologia

da solidão” (AUGÉ, 2010), estava refletindo um mundo que é intimamente

compartilhado pelo imaginário de Van Sant e sua representação da solitária

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Nos contornos do vazio: Gerry e os cinemas de deserto - Fernando de Mendonça
Cinema mundial contemporâneo

juventude contemporânea. Apesar de Augé pautar seus exemplos com perfis

de espaços públicos (aeroportos, shoppings, supermercados), não é difícil

encontrar uma significativa variedade de características que aproximam sua

reflexão ao deserto em Gerry. Vejamos algumas delas: o “não lugar” é um espaço

de passagem incapaz de dar forma a qualquer tipo de identidade; é um espaço

de ninguém; próprio de uma época com excesso de fatos, superabundância

espacial e individualização das referências; um reflexo para a crise do espaço/

de alteridade; um mundo provisório e efêmero, comprometido com o transitório

e a solidão (AUGÉ, 2010). Claramente, tais definições são aplicáveis ao que

temos em Gerry, em sua afirmação negativizada do espaço desértico.

Muito mais do que (de)formar a identidade do jovem, ao confrontá-

lo consigo mesmo, Van Sant o reposiciona à condição humana da decisão, da

escolha, e faz isso lançando-o num espaço neutro, desprovido de subjetividades

exteriores ou ideologias que interfiram no amadurecimento pedido por seu corpo.

A solidão imposta aos personagens perdidos termina por fundi-los numa só carne,

onde a morte, agora aceita e enfrentada como etapa natural da vida, revela-se

como a única fronteira possível para o espaço devastado.

***

Ao abandonar o deserto, o sobrevivente Gerry já não é o mesmo. Ainda

que sua busca particular tenha culminado em seu próprio Eu, abrem-se novas

possibilidades de se enxergar o horizonte. O deserto, que ficou pra trás, agora

pode ser apreendido na totalidade do olhar, pode afirmar-se enquanto imagem,

numa conquista decisiva para suas continuidades (do espaço e do sobrevivente).

A transformação de sua postura, de ser observado para observador do espaço,

reafirma o fim da travessia. É quando a areia se torna imagem.

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Nos contornos do vazio: Gerry e os cinemas de deserto - Fernando de Mendonça
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Referências bibliográficas

ABE, K. A mulher das dunas. São Paulo: Aliança Cultural Brasil-Japão, 1995.

ALLAN, M. Deserted stories: the Lumière brothers, the pyramids and early film form. Early popular visual culture,
Berkeley, v. 6, issue 2, July 2008. p. 159-170.

AMARAL, R. A santidade habita o deserto: a hagiografia à luz do imaginário social. São Paulo: UNESP, 2009.

AUGÉ, M. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. 8. ed. São Paulo: Papirus, 2010.

AUMONT, J. O olho interminável: cinema e pintura. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

CHAMAYOU, B. Doublage de déserts. Mouvements, n. 45-46, 3/2006. p. 126-132.

DELEUZE, G. A imagem-tempo (cinema 2). São Paulo: Brasiliense, 2007.

FRODON, J.-M. A l’horizon des films déserts. Cahiers du Cinéma, Paris, n. 589, abr. 2004. p. 18-19.

GONÇALVES, H. F. M. P. Significação musical e definição de “espaços” cinematográficos: trilogia da morte de


Gus Van Sant. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2009.

JASPER, D. The sacred desert: religion, art and culture. Victoria: Blackwell, 2004.

LINS, D. Gerry: dê-me um corpo. In: FURTADO, B. Imagem contemporânea: cinema, TV, documentário,
fotografia, videoarte, games... São Paulo: Hedra, 2009. p. 163-177.

PONDÉ, L. F. Do pensamento no deserto: ensaios de filosofia, teologia e literatura. São Paulo: EDUSP, 2009.

Referências audiovisuais

Gerry. Gus Van Sant. EUA, 2002, DVD.

_____________________________________________________________

1. Trabalho apresentado na Sessão 2 do Seminário Temático “Cinema, transculturalidade e globalização”

2. E-mail: [email protected]

3. A mulher das dunas, romance escrito por Kobo Abe e roteirizado por ele mesmo para uma versão cinematográfica dirigida
pelo cineasta Hiroshi Teshigahara em 1964, é uma das obras definitivas sobre o deserto no século XX. A narrativa trata de
um colecionador de insetos que vai ao deserto para tentar descobrir novas formas de vida; na jornada ele é capturado por
um estranho povo e cai numa espécie de armadilha da qual não mais poderá sair vivo, aprisionado com uma mulher entre
dunas que “escorrem” ininterruptamente. É na bela prosa de Abe que lemos: “Uma vez que a terra é varrida por correntes
de ar e de água, talvez seja inevitável que se forme areia. Enquanto o vento soprar, o rio correr e o mar agitar-se a areia
brotará do solo grão após grão, e serpenteará por toda parte como um ser vivo. A areia jamais repousa. Silenciosa, porém
infalivelmente, ela vai violentando, destruindo a superfície da terra” (ABE, 1995).

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A construção da destruição: Jia Zhang-ke e a iminência da catástrofe - Lúcia Ramos Monteiro
Cinema mundial contemporâneo

A construção da destruição:

Jia Zhang-ke e a iminência da catástrofe1

Lúcia Ramos Monteiro (USP/Université Paris 3)2

Em 1865, o jovem Lewis Payne tentou assassinar o secretário


de Estado americano, W.H. Seward. Alexander Gardner
fotografou-o na sua cela; ele aguarda o enforcamento. A foto
é bela, o rapaz também: é o studium. Mas o punctum é: ele
vai morrer. Leio ao mesmo tempo: isto será e isto foi. Observo,
horrorizado, um futuro anterior em que a morte é a aposta.
Dando-me o passado absoluto da pose (aoristo), a fotografia
diz-me a morte no futuro. O que me fere é a descoberta desta
equivalência. (BARTHES, 1980, p. 148-150).

Preâmbulo

Ao longo de diversos filmes, um gesto de Chris Marker aparece de maneira

recorrente: ele confronta imagens de um passado, um “antes”, com acontecimentos

posteriores, determinantes de rupturas e criadores de um “depois”. Marker investiga

imagens do “presente” para traçar hipóteses de futuro. Em Une journée d’André

Arsenevitch(1999), filme de Marker sobre Tarkovsky, o diretor francês examina

imagens do making of de O Sacrifício (1986), o último filme do colega russo, e se

detém em um movimento, recorrente na filmagem do último (e fenomenal) plano:

Tarkovsky passa repetidas vezes a mão na cabeça.

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A construção da destruição: Jia Zhang-ke e a iminência da catástrofe - Lúcia Ramos Monteiro
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

“Entre uma centena de gestos engraçados”, diz o comentário de

Marker, “um poderia ter-nos inquietado, mas nós ainda não sabíamos.” Ao

longo do documentário, Marker propõe uma leitura das imagens produzidas

por Tarkovsky, do primeiro ao último longa, do primeiro ao último plano, como

um círculo que se fecha, como se sua morte estivesse inscrita nas imagens

que o realizador produziu em sua carreira.

Esse jogo de idas e vindas entre uma imagem do passado, um

conhecimento do futuro e um acontecimento que marca a ruptura se repete em

muitos filmes de Marker e, de certo modo, também está no trabalho do Godard

de História(s) do cinema (1997) e do Farocki de Intervalo (2007) e de Imagens

do mundo, inscrições da guerra (1989). Marker, Godard e Farocki detiveram-se

em imagens do século 20 e apontaram o quanto elas puderam (ou poderiam)

prever acontecimentos catastróficos. Essa prática se liga à ciência historiográfica

do prognóstico, “uma previsão baseada na razão”, como estudada por Koselleck

em O futuro passado. “A historiografia levanta as condições de um futuro possível,

que não é a simples soma de eventos isolados. No entanto, nos acontecimentos

que ela analisa, desenham-se estruturas que ao mesmo tempo condicionam e

limitam o campo de ação do futuro” (KOSELLECK, 2006).

Aqui, vou tratar do trabalho do realizador chinês Jia Zhang-ke, que se

dedica a filmar as transformações brutais por que passa a China no pós-maoísmo,

de um modo que chamo de “construção da destruição”. Primeiro vou tratar da

relação complexa entre o homem e seu entorno nos filmes de Jia e, em seguida,

vou falar da combinação única que eles fazem entre realidade e irrealidade.

Em um dado momento de A Oeste dos trilhos, de Wang Bing (2005),

um operário encara a câmera e fala: “Filma esse lugar. Daqui a pouco não vai

sobrar mais nada”. Reiteradas vezes ao longo dos 551 minutos do filme, outros

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A construção da destruição: Jia Zhang-ke e a iminência da catástrofe - Lúcia Ramos Monteiro
Cinema mundial contemporâneo

operários demonstram uma total consciência do desaparecimento iminente do

complexo industrial de Tie Xi Qu, em Shenyang, onde trabalham, e, com ele, de

todo um modo de vida. A frase citada acima parece ser uma síntese do projeto

cinematográfico de Jia Zhang-ke: filmar um mundo que se acaba, dando muito

mais destaque à destruição do velho do que à construção do novo. Assim como a

zona industrial que se apaga progressivamente ao longo das gravações de Wang

Bing entre 1999 e 2003, a China de Jia Zhang-ke é filmada metodicamente na

iminência de seu desaparecimento. Trata-se, é claro, de um desaparecimento

previsto, calculado e programado, provocado pela ação humana direta.

No cinema de Jia Zhang-ke, a noção de catástrofe tem menos a ver com a

primeira definição do dicionário, “acidente de grandes proporções”, do que com a

noção desenvolvida por Hannah Arendt em Entre o passado e o futuro: um evento

gerador de uma cisão na história, criando um antes e um depois e impossibilitando

a transmissão entre um lado e outro. Os personagens de Jia atravessam espaços

em extinção, habitam a borda de uma época que se fecha – e não parecem

preparados para viver do lado de lá.

Jia conta que esse projeto surgiu de maneira inesperada, quando ele se

preparava para rodar um curta sobre a primeira noite de um casal, que deveria

ser filmado inteiramente dentro de um quarto. Antes do início das filmagens, Jia

viajou para sua cidade natal, Fenyang. Ali, ficou impressionado pelas enormes

transformações, em diversos níveis.

A transformação radical que se produzia em frente aos meus olhos


fez com que surgisse em mim um enorme sentimento de urgência
para filmar antes do desaparecimento. O interior da China sofria
essa transformação massiva – não estávamos às vésperas de
uma mudança, nem no dia seguinte; tudo acontecia naquele
momento. Era evidente que aquele estado de coisas não poderia
durar muito tempo, talvez um ano ou dois. Tratava-se também
de um período de muito sofrimento. Naquele clima de excitação,
decidi fazer um filme sobre um chinês ordinário, cercado por
transformações (JIA, 2005, p. 191-192, tradução minha).

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A construção da destruição: Jia Zhang-ke e a iminência da catástrofe - Lúcia Ramos Monteiro
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

O espanto3 diante de transformações sem volta e da própria passagem do

tempo nasce com Xiao Wu (1997) e reaparecerá em cada um dos filmes de Jia,

sob diferentes registros. O nostálgico, o melancólico e o crítico: namorados que

se perdem de vista, elos de amizade ou de família que se rompem, jovens que

morrem acidentalmente, sonhos que se apagam... Isso faz com que Jason McGrath

(McGRATH), um estudioso do cinema de Jia, fale em uma dupla melancolia: em

relação a um futuro inatingível e a um passado perdido.4

No filme O mundo (2004), essa melancolia parece surgir de uma relação

difícil entre homem e mundo e revela-se através de um certo conflito de escala, entre

a pequenez dos operários e a monumentalidade do entorno, apesar do tamanho

reduzido dos monumentos-pastiche. Numa melancolia quase baudelairiana – e

longe do melodrama –, os personagens não parecem ser donos dos próprios

destinos, mesmo em uma época considerada “livre”.

Em Still life (2006), a melancolia está ligada à critica social. No filme,

um homem e uma mulher tentam reencontrar seus respectivos cônjuges num

vilarejo às margens de Três Gargantas, que vive seus últimos dias antes de ser

inundada pela barragem. Still life foi lançado no Brasil sob o título Em busca

da vida, que infelizmente não mantém o jogo de palavras entre a expressão

inglesa usada tanto para caracterizar naturezas mortas no universo da pintura

quanto para dizer que ainda há vida – o título original era completamente

diferente, “brava gente do Sichuan”.

O longa seguinte de Jia, 24 City (2008), trata do fechamento da usina

estatal 420, em Chengdu, para dar lugar a um condomínio de luxo, chamado de

24 City. A operação de retirada dos ideogramas gigantes da fachada da usina,

minuciosamente filmada pela câmera de Jia, indica um apagamento lento.

A demolição é um motivo recorrente para Jia. Mesmo em O mundo,

filme que não trata especificamente de nada que esteja desaparecendo, um

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A construção da destruição: Jia Zhang-ke e a iminência da catástrofe - Lúcia Ramos Monteiro
Cinema mundial contemporâneo

canteiro de obras tem aspectos de ruína – é nele que trabalha e morre o

personagem “O Pequeno”.

Minha hipótese é de que o ato de filmar lugares na iminência de

seu desaparecimento funciona como principal fonte de autenticidade do

cinema de Jia Zhang-ke.

O cinema de Jia Zhang-ke instaura uma forte dualidade entre homem e

paisagem – corpos humanos no primeiro plano, paisagens monumentais no fundo.

Na abertura de Still life, os passageiros do barco que leva a Fenyang são filmados

numa proximidade extrema. A paisagem das Três Gargantas aparece ao fundo,

através das janelas, mas tão superexposta que se torna branca e quase invisível.

Os dois protagonistas do filme vão à região das Três Gargantas em

busca do consorte desaparecido. De cara, a tarefa parece impossível: eles

devem se localizar e localizar alguém em uma cidade desconhecida, distante

e prestes a desaparecer. No meio do percurso de procura (que no final se

revelará “bem-sucedida”, com todas as aspas possíveis), ambos fazem pausas

para observar a paisagem.

Quando descobre que a casa em que morava a ex-mulher já se encontra

submersa, Sanming leva o olhar para a paisagem, sem dizer nada – como

se esperasse uma explicação, que nunca virá. A câmera o filma em primeiro

plano, a paisagem ao fundo, uma disposição que se repetirá ao longo do filme.

A cada vez, um véu mais ou menos espesso se interpõe entre o homem e a

paisagem. Bruma, neblina ou poeira, esse véu compromete a visão da paisagem,

esbranquiçada e pouco nítida.

A onipresença do véu que separa homem e paisagem é intrigante. Ele

também aparece em outros filmes de Jia, como em 24 City, interposto entre o

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A construção da destruição: Jia Zhang-ke e a iminência da catástrofe - Lúcia Ramos Monteiro
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

olhar de Zhao Tao e a cidade de Chengdu, e em O mundo ele toma a forma de

uma camada branca e espessa atravessada pelo trem aéreo do parque. Essa

camada acrescenta uma mediação entre o espectador e a imagem, reforçando

a opacidade cinematográfica e dando a sensação de que o homem não está

inserido em uma paisagem ou no mundo, mas diante dele, sem encontrar seu

lugar, o que só reforça a condição dos personagens – migrantes, desabrigados,

enfim, pessoas que buscam um lugar no mundo.

Esse véu indica a existência de uma tensão entre fundo e figura, parecida

com o que acontecia quando o cinema clássico americano usava a técnica de

fusão (“rearprojection”). Ele reforça a distância que existe entre os personagens e

seu entorno e a distância entre a câmera e os personagens. Nos filmes de Jia, a

subjetividade dos personagens é raramente atingida: há poucos closes (os planos

gerais predominam) e a compreensão do roteiro se dá por ações sutis – o melhor

exemplo é o aborto de Plataforma, sem lágrimas, sem discussão, feito numa sala

escondida no fundo do quadro.

Outra chave para entender a bruma insistente de Jia Zhang-ke está em 24

City. Enquanto ouvimos um coro feminino cantar o hino da Internacional Comunista,

vemos a implosão de um dos prédios da usina 420, em uma montagem que

atinge um ápice de emoção, algo raro no cinema de Jia. A poeira levantada pela

demolição acaba por ocupar todo o quadro, o que leva a pensar que, para Jia, o tal

véu talvez fosse sempre composto de uma nuvem de partículas interpostas entre

fundo e figura, em um estágio intermediário entre a solidez do antigo regime e o

esfacelamento contemporâneo – o momento em que tudo que é sólido desmancha

no ar, nas palavras de Marx (prevendo não a implosão de um sistema comunista,

mas a do capitalismo). Sobre a tela completamente branca, tomada pela poeira da

destruição do prédio, inscrevem-se os versos de Yeats (1933): “Nós que fizemos

e pensamos/que pensamos e fizemos/ devemos divagar e perdermo-nos/ como

leite derramado sobre uma pedra”.

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Cinema mundial contemporâneo

Junto com outros elementos (atores não profissionais, filmagem em

locações externas reais, atenção a como a população mais pobre vive uma época

de transição), o uso da película nos primeiros longas de Jia contribuiu para que a

crítica estabelecesse uma filiação entre seu cinema e um neorrealismo de tradição

baziniana.5 A profissão do protagonista de Xiao Wu, um trombadinha, facilitou ainda

mais a ligação entre Jia e Bresson (a admiração por Bresson é compartilhada com

o diretor de fotografia, YuLikWai), entre Jia e De Sica.

A partir de Prazeres desconhecidos (2002), Jia adota o digital. O abandono

da película pode levantar dúvidas sobre uma possível modificação na relação de

Jia com o real. A discussão não é nova: na gravação digital, não há uma impressão

de tipo fotográfico ligando a imagem a seu referente e, por isso, o resultado seria

menos “real”.6 Claro que essa discussão poderia ser abreviada pela constatação
de que o digital tem dominado progressivamente as produções documentárias,

por várias razões. Equipamentos mais leve reduzem custos e permitem gravações

em equipes pequenas – no caso da nova geração de documentaristas chineses,

possibilita também gravações clandestinas, sem autorização do governo.

De fato, Jia Zhang-ke gravou muitas vezes sem autorização7 e seu projeto
de “filmar as coisas enquanto elas acontecem, com um mínimo de planejamento”,8

combina com a possibilidade de improvisação oferecida pelo digital. No entanto, a

adoção do digital por Jia deve-se menos a uma comodidade do que uma escolha

estética verdadeira.

Cada vez mais eu acredito que o digital é apropriado ao momento.


Tenho uma grande confiança nesse formato, é a ferramenta
mais eficaz para mostrar a realidade contemporânea. Além do
mais, sua textura combina perfeitamente com a sociedade de
consumo, com suas cores e com as embalagens que se vêem
por todo lado na Ásia (apud BURDEAU, 2005, p. 34).

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A construção da destruição: Jia Zhang-ke e a iminência da catástrofe - Lúcia Ramos Monteiro
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Faz parte da escolha estética do meio digital a possibilidade de abstração

oferecida pelo suporte, de acordo com a percepção de Jia – abstração que, aliás,

está ligada ao véu do qual falamos mais cedo.

Parece-me que o digital oferece uma certa dose de abstração


às gravações em lugares públicos. Tive de fazer alguns ajustes
[depois das primeiras gravações de Prazeres desconhecidos],
porque em minhas experiências iniciais com vídeo digital, tive a
impressão de que esse meio daria uma nova vida aos espaços
públicos, mas na verdade o resultado foi uma qualidade abstrata.
Todo espaço apresenta uma certa organização abstrata. Os
filmes tradicionais trabalham para romper essa ordem e fazem
com que as pessoas pareçam ativas e excitadas. Por sua vez, o
digital interage com os sujeitos de uma maneira muito delicada e
me permite capturar uma qualidade fria, distante, quase abstrata
(apud BURDEAU, 2005).9

A escolha estética do digital é radicalizada nas sequências de animação

(O mundo) e nos efeitos especiais (Still life), a conjugação mais contemporânea

da imagem cinematográfica, sobretudo na China. As imagens produzidas por

efeitos especiais em Still life– um disco voador corta o céu; um prédio em ruínas

alça voo como um foguete; um outro prédio é implodido artificialmente – fazem

parte de um conjunto mais amplo de imagens “surrealistas” presentes no filme

– um menino dentro de uma mala de viagens; homens que procuram metais

com roupas de astronautas; atores de ópera fantasiados e maquiados jogando

no celular. Sem relação evidente com os personagens ou com o fio narrativo,

essas “aparições” escancaram o absurdo da situação mostrada pelo filme: uma

barragem vai inundar toda a cidade.

Esses recursos colocam em xeque o regime de crença e a estética realista

atribuída a Jia. Na verdade, seus filmes navegam entre realidade e irrealidade.

Mais opacos que os olhares para a câmera e a câmera na mão de Xiao Wu

(que lembrariam ao espectador do cinema moderno que se trata de um filme),

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A construção da destruição: Jia Zhang-ke e a iminência da catástrofe - Lúcia Ramos Monteiro
Cinema mundial contemporâneo

as aparições de Still life Xiao Shan volta funcionam não apenas para romper a

ilusão da transparência, mas também para dizer que todo realismo é parcial. Em

24 City, a situação se complica, uma vez que o filme é lançado sob o rótulo de

“documentário”.

O recurso quase exclusivo a atores não profissionais é uma constante

do cinema de Jia Zhang-ke. Ele também recusa o emprego do mandarim, falado

nos filmes produzidos pelos estúdios chineses oficiais, e prefere os dialetos

locais (BERRY, 2009, p. 27). Essas escolhas têm uma dupla motivação. Em

primeiro lugar, há o desejo de fazer filmes de uma maneira “natural e realista”,

como ele mesmo explica:

Em geral atores profissionais estudam muito para falar


corretamente e para saber como movimentar o próprio corpo.
É muito difícil adaptar os métodos de movimentação e de
dicção que eles aprenderam ao modo “documentaresco” dos
filmes narrativos que faço. Um ator treinado para movimentar
bem seu corpo ficará provavelmente travado ao descer as
ruas de um lugar como Fenyang; é muito difícil fazer com que
pareçam naturais naquele espaço. Atores não profissionais
têm a vantagem de falar e se movimentar de uma maneira
extremamente natural (JIA, 2005).

Em segundo lugar, Jia preza por um tipo de contaminação dos personagens

pela realidade e a experiência de vida dos atores. “Atores não profissionais podem

entender de verdade o que eu tento exprimir em meu roteiro. Eles cresceram num

ambiente muito parecido ao dos personagens, eles podem acreditar no roteiro,

nos personagens e no contexto” (JIA, 2005, p. 198).A preferência por atores não

profissionais indica uma proximidade do neorrealismo italiano e mesmo do cinema

iraniano. Obviamente os atores – ou os figurantes – acabam por olhar para a

câmera, lembrando ao espectador a realidade de um filme sendo feito. Jia não

elimina essa ruptura radical da quarta parede cinematográfica.

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A construção da destruição: Jia Zhang-ke e a iminência da catástrofe - Lúcia Ramos Monteiro
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Por outro lado, os mesmos atores não profissionais aparecem em diversos

filmes. O caso principal é o de Zhao Tao, que foi bailarina e atua em Unknown

pleasures, O mundo, Still life, 24 City e I wishIknew. Assim, se a escolha de

trabalhar com atores nãoprofissionaisvai na direção de acrescentar uma dose de

autenticidade aos filmes, a consequência da repetição dos mesmos rostos de um

filme ao outro vai na direção oposta. Cria-se uma espécie de “star system” próprio,

em que antigos personagens contaminam os novos. Além disso, se determinado

ator é originário do lugar que inspira um certo filme, esse pode não ser o caso no

filme seguinte. Wang Hongwei protagonizou o curta-metragem Xiao Shan volta

para casa (1995), história de um trabalhador da província de Henanqui vive em

Pequim. Wang também era de Henan e, assim, o dialeto falado por ele conferia

autenticidade. Em Xiao Wu, porém, Wang é o único a falar em dialeto Anyang

(todos os demais falam o dialeto local do Shanxi) (BERRY, 2009, p. 28), o que

leva Michael Berry a dizer que o filme cria uma ilusão de autenticidade e uma

atmosfera documentária através do emprego meticuloso de diversos elementos

do dispositivo cinematográfico.

Também nesse aspecto 24 City radicaliza. O filme combina depoimentos

de pessoas reais que trabalharam na usina 420, depoimentos reais interpretados

por atores e textos fictícios encenados por atores – sem que o estatuto de cada

fala seja explicitado. A história do cinema, inclusive brasileiro, nos fornece

diversos exemplos de confusões (ou indeterminações) desse tipo entre verdade

e mentira, documentário e ficção, realidade e imaginação. Jogo de cena (2007) e

Moscou (2008), de Eduardo Coutinho, são alguns dos exemplos mais recentes.
24 City privilegia a forma da entrevista e tem até perguntas do entrevistador fora

do campo, como se tentasse nos convencer de que vemos um documentário

tradicional. No entanto, os rostos de duas estrelas surgem entre as faces

anônimas dos operários – e não deixam dúvidas de que se trata de uma farsa.

São elas Zhao Tao, a estrela de Jia, e Joan Chen, a Elizabeth Taylor chinesa,

conhecida também internacionalmente, sobretudo por sua participação em O

último imperador (1987) e Twin Peaks (1990-1992). Dessa maneira, 24 City

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A construção da destruição: Jia Zhang-ke e a iminência da catástrofe - Lúcia Ramos Monteiro
Cinema mundial contemporâneo

revela uma postura muito complexa em relação ao cinema, e nos faz questionar

a pertinência dos rótulos “realista” ou “neorrealista” para Jia. A relação de Jia

com o cinema é única, ao mesmo tempo moderna e pós-moderna – na opinião

de Jason McGrath (2008, p. 217), trata-se de um realismo pós-socialista, inserido

na modernidade pós-socialista que vive a China, e imbuído da nostalgia por um

passado em que as utopias eram permitidas.

Conclusão

Jia recusa a cristalização de um método e faz um cinema cada vez mais

contaminado pelo ensaio e alimentado por contradições – entre filmar anônimos

e criar seu próprio “star system”, entre um forte elo com o real e o uso de efeitos

especiais ou de imagens de animação, entre opacidade e transparência. A posição

intermediária entre os dois polos dessas dualidades toma forma na própria figura

do véu, que ao mesmo tempo mostra e esconde. Véu formado por partículas de

destruição, formado pela poeira de algo que já começou a desaparecer.

Assim, apesar de recursos da mais extrema ficção (naves espaciais,

efeitos especiais e mise-en-scène), a escolha de rodar sistematicamente em

lugares destinados a desaparecer faz dos filmes de Jia documentos de valor

quase místico, semelhante à foto de Lewis Payne comentada por Barthes.

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A construção da destruição: Jia Zhang-ke e a iminência da catástrofe - Lúcia Ramos Monteiro
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Referências bibliográficas

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McGRATH, J. Post socialist modernity : Chinese Cinema, Literature, and Criticism in the Market Age. Stanford,
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ZHANG, Z. Bearing witness: Chinese Urban Cinema in the “Era of Transformation” (Zhuanxing). In: ______.
(Ed.).The Urban Generation: Chinese cinema and society at the turn of the twenty-first century.Durham; Londres:
Duke University Press, 2007.

_____________________________________________________________

1. Trabalho apresentado no seminário “CINEMA, ESTÉTICA E POLÍTICA: A RESISTÊNCIA E OS ATOS DE CRIAÇÃO”. Este
artigo não teria sido possível sem o apoio do Colégio Doutoral Franco-Brasileiro e do Instituto de Pesquisa em Cinema e
Audiovisual (IRCAV) da Universidade Paris 3.

2. E-mail: [email protected]

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A construção da destruição: Jia Zhang-ke e a iminência da catástrofe - Lúcia Ramos Monteiro
Cinema mundial contemporâneo

3. Zhang Zhen põe em perspectiva um certo sentimento de urgência com o qual realizadores chineses contemporâneos têm
filmado as transformações recentes no país: “Na história do cinema chinês, a intensidade dessa urgência em documentar
a transformação acelerada da fisionomia urbana e de expor, com os meios do cinema, as contradições sociais que a
acompanham, só se compara ao cinema urbano engajado, produzido em Xangai nos anos 1930” (ZHANG, 2007, p. 6).
(Nesta e nas demais citações, a tradução é de minha responsabilidade.)

4. Plataforma (2000), história de um grupo de dança que se transforma de acordo com as mudanças políticas dos anos 1980
e 1990, trabalha a nostalgia pelos anos de juventude. A trupe incorpora a passagem do comunismo maoísta à abertura
que se seguiu; no repertório, os antigos hinos cedem espaço a músicas importadas; no relacionamento, o espírito de grupo
dá lugar ao individualismo. Nas palavras de Jason McGrath, “enquanto o tempo do filme é vivido subjetivamente pelos
personagens como uma melancolia em relação a um futuro inatingível, o filme como um todo contém uma melancolia ligada
a um passado perdido – em particular a Fenyang dos anos 1980 e, de um modo mais amplo, à esperança perdida de toda
uma geração” (McGRATH, p. 151).

5. A influência de Bazin é, aliás, tema de um artigo sobre Jia Zhang-ke, escrito por David Li Lei-Wei (2008).

6. Willis (2005) aprofunda essa discussão em New digital cinema: reinventingthemovingimage, ao propor que o meio digital
substituiu a operação de transcrição, existente na filmagem em película, por uma operação de conversão.

7. Sobre isso, ver Frodon (2006, p. 27).

8. Jia diz, por exemplo, que em seus roteiros “os diálogos são um esboço, com muitas possibilidades a serem desenvolvidas”
(JIA, 2005, p. 198). Em uma entrevista (FRODON, 2007, p. 58-59), o diretor afirma, a respeito de Still life: “Ninguém
poderia ter escrito antecipadamente a história que esse filme conta hoje, ainda que aquilo que eu inventei em três dias,
dentro de um quarto, já contivesse os principais elementos. Pode-se escrever o roteiro depois.” A entrevista concedida
a Burdeau(2005) vai na mesma direção: “A partir do local das gravações despontam sempre elementos que se revelam
importantes e que modificam o roteiro, embora eu não os tenha previsto. Passo muito tempo tentando expressar essas
novas coisas que aparecem. Tenho a sorte de trabalhar com uma equipe que me conhece bem. Dessa maneira, assim que
o imprevisto surge, todo mundo fica pronto para incluí-lo, sem que eu precise pedir.”

9. Em Lei-Wei (2008), lemos: “Foi durante as gravações de In publicque Jia Zhang-ke percebeu pela primeira vez que o digital
podia produzir não apenas um efeito de instantaneidade, de mobilidade ou de vitalidade, mas também uma imagem mais
abstrata do que a produzida analogicamente (...). Esse efeito de abstração do real é completamente explorado em Still life.”

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Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático - Ludmila Moreira Macedo de Carvalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático1

Ludmila Moreira Macedo de Carvalho (UFBA)2

Desde a época em que surgiu e começou a tornar-se popular, na França

do século XIX, até ser amplamente reproduzido no cinema e nas telenovelas de

hoje em dia, o melodrama é um gênero de difícil definição, uma vez que seus

usos e significados vêm sofrendo inúmeras mudanças ao longo do tempo. A

palavra melodrama vem do grego melos, que significa música, e originalmente

referia-se a peças dramáticas onde música era utilizada para realçar o efeito

emocional das encenações (BROOKS, 1976, p.14). De maneira geral, pode-

se dizer que o melodrama se refere a representações ficcionais cujo aspecto


emocional é predominante; nas quais imperam figuras como a hipérbole e o

excesso; cujos temas revolvem uma polaridade moral entre o bem e o mal.

Diferente do realismo e da tragédia, o melodrama é a arte de produzir “drama –

uma história excitante, excessiva, parabólica – a partir da matéria-prima banal

da realidade” (BROOKS, 1976, p.2).3

Ao longo dos anos, o termo passou a ser usado de forma pejorativa para

classificar obras ficcionais de baixo requinte artístico, dadas ao sensacionalismo

e à crua manipulação dos sentimentos do espectador e, portanto, indignas

de apreciação crítica ou teórica. A partir da década de 1970, sobretudo com o

crescimento dos estudos culturais e a consequente revisão dos conceitos de alta

e baixa cultura, estudiosos de cinema, teatro, literatura e televisão perceberam

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Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático - Ludmila Moreira Macedo de Carvalho
Cinema mundial contemporâneo

que o melodrama era mais do que uma mera ferramenta de escapismo

para as massas: ele representava as estruturas profundas do pensamento

e do comportamento social, especialmente sob o viés feminino. Esses

críticos concluíram, a partir da análise da obra de cineastas consagrados

como Douglas Sirk e Vincente Minnelli (KLINGER, 1994; LANDY, 1991;

HAYS; NIKOLOPOULOU, 1999), que o melodrama podia ser não somente

artisticamente sublime, como também informativo e até mesmo subversivo,

emitindo fortes críticas à configuração patriarcal vigente.

No entanto, apesar do grande número de textos acerca do gênero

melodramático sendo produzidos nos últimos anos, verifica-se que a maioria

das investigações ainda permanece restrita ao contexto dos modos de

representação ocidentais, deixando de fora toda uma tradição dramática dos

países de línguas asiáticas. A maioria das definições do modo melodramático,

mesmo as mais abrangentes, parece se referir exclusivamente ao contexto

dos modos de representação ocidentais. Em seu livro seminal sobre o

gênero, The melodramatic imagination, Peter Brooks (1976) não faz sequer

uma menção à possível aplicação do conceito às representações não

ocidentais. Em um dos poucos livros dedicados ao assunto, Melodrama and

Asian cinema, Wimal Dissanayake (1993) chama atenção para o curioso

fato de não existir nos idiomas orientais um sinônimo exato para a palavra

melodrama – o mais próximo seria a expressão wenyipian, algo como “filme

de mulher” em mandarim (DISSANAYAKE, 1993, p.3).

Sendo assim, o termo ocidental é comumente usado por estudiosos

do cinema asiático para caracterizar obras que exibam as características

associadas ao gênero. A falta de estudos mais detalhados sobre o assunto

contrasta com a predominância de características melodramáticas na literatura,

no teatro, na televisão e no cinema de países tão diferentes quanto o Japão,

a China e a Coreia do Sul, por exemplo. Quando o cinema chinês começou a

popularizar-se e a mostrar sinais de influência ocidental, na década de 1980, o

melodrama foi um dos gêneros artísticos mais amplamente reproduzidos pelos

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Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático - Ludmila Moreira Macedo de Carvalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

diretores da quinta geração chinesa, como Chen Kaige, Zhang Yimou e Tian

Zhuangzhuang. O mesmo já havia acontecido décadas antes com o cinema

japonês do período após a Segunda Guerra em filmes de diretores como

Yasujiro Ozu, Kinoshita Keisuke e Akira Kurosawa. De modo semelhante, o

cinema sul-coreano também viveu a sua época dourada do melodrama entre

os anos de 1955 a 1972 (McHUGH; ABELMAN, 2005).

Neste contexto surgem algumas perguntas: usamos o termo ocidental

por falta de uma melhor definição, ou “melodrama” como o conhecemos seria de

fato aplicável ao contexto das representações asiáticas? Poderíamos falar de

um melodrama asiático? Se sim, quais seriam suas principais características?

O objetivo deste artigo é justamente o de promover essa investigação, que pode

ser considerada importante tanto para a área de estudos do cinema asiático

quanto para os estudos do melodrama. Não se trata, naturalmente, de oferecer

uma teoria definitiva do que seria o “melodrama asiático” – até porque uma

teoria deste tipo deveria levar em consideração as particularidades linguísticas,

sociais e históricas dos mais diversos países asiáticos, o que ultrapassaria as

limitações deste texto – mas, ao contrário, de iniciar um debate necessário e

promover uma aproximação mais cuidadosa entre o estudo do cinema não

ocidental e o gênero melodramático.

Para isso, desenvolvemos um estudo de caso tendo como base a

comparação entre os filmes Amor à flor da pele (Wong Kar-wai, China/Hong

Kong, 2000) e Breve encontro (David Lean, Inglaterra, 1945), verificando as

semelhanças e diferenças nos seus componentes melodramáticos: não somente

na apresentação dos dilemas morais e conflitos ideológicos entre os personagens,

mas na natureza desses dilemas, nos modos como são construídos e representados

cinematograficamente. Numerosos, os pontos de aproximação entre os filmes

justificam um estudo de natureza comparativa: quando de seu lançamento em

2000, Amor à flor da pele foi caracterizado por diversas instâncias – tanto críticas

quanto acadêmicas – como um melodrama “à moda antiga”, sendo abertamente

comparado ao clássico de David Lean. O ensaísta da revista eletrônica Senses of

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Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático - Ludmila Moreira Macedo de Carvalho
Cinema mundial contemporâneo

Cinema Dmetri Kakmi escreve: “Amor à flor da pele é um filme misterioso, elíptico,

um Breve encontro moderno, um conto da classe média sobre repressão e reserva

transformado numa fábula de desejo e estoicismo pelo comando do diretor de

imagens potentes”. O próprio Wong já mencionou em algumas entrevistas que

se inspirou na obra de Lean para fazer Amor à flor da pele, e essa inspiração se

mostra evidente após uma leitura comparativa dos dois filmes.

Breves encontros

Último filme feito em parceria entre David Lean e o dramaturgo inglês

Noel Coward, com roteiro baseado numa peça de sua autoria, Breve encontro

foi lançado na década de 1940, uma era de ouro do cinema britânico. A história

narra o encontro inesperado entre Laura (Celia Johnson), uma dona de casa

casada e com dois filhos, e Alec (Trevor Howard), um médico também casado e

com filhos, numa estação de trem em Londres. Laura tem um cisco no olho e o

médico se oferece para auxiliá-la – a partir deste breve encontro, os dois passam

a se encontrar repetidas vezes para almoçar, ir ao cinema, passear no parque.

O que começa como uma amizade inofensiva ganha proporções de adultério

quando Alec se declara apaixonado e Laura se vê, pela primeira vez, mentindo

para o marido e as amigas. O caso nunca é consumado, uma vez que Laura não

consegue aguentar a culpa do que fez, e finalmente os dois se despedem na

mesma estação de trem, cada um para seu lado.

Mudando de Londres dos anos 1940 para Hong Kong dos anos 1960, temos

Amor à flor da pele, o segundo longa-metragem do diretor chinês Wong Kar-wai

naquela que seria sua trilogia dos anos 1960 (que começa com Dias selvagens

e termina com 2046). A premissa narrativa é semelhante à do filme de Lean: dois

jovens casais alugam quartos em apartamentos vizinhos até que o Sr. Chow (Tony

Leung), jornalista, e a Sra. Chan, secretária, desconfiam que seus respectivos

cônjuges estão tendo um caso secreto. Os dois passam a conviver regularmente:

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Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático - Ludmila Moreira Macedo de Carvalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

comem juntos, escrevem histórias de artes marciais e ouvem música num quarto

de hotel, também numa relação a princípio inofensiva e platônica. Em pouco

tempo, porém, o sentimento romântico toma conta dos dois, que, mantendo seus

valores morais e temendo as especulações dos vizinhos, decidem parar de se ver.

A semelhança, que num primeiro momento é somente de ordem narrativa,

rapidamente se estende para todo o espaço fílmico: em ambos os casos os

personagens se encontram sempre nos mesmos lugares e nas mesmas situações

– que, curiosamente, envolvem comida. Em Breve encontro esse lugar é o bar

da estação de trem onde os personagens tomam chá; em Amor à flor da pele

esses lugares são a barraca de noodles e os restaurantes aonde o Sr. Chow

leva a Sra. Chan. Em ambos os filmes os casais passam muito tempo juntos e

é desses encontros a princípio amigáveis, inofensivos, que nasce o romance.

Até o enquadramento desses espaços fílmicos é semelhante, sugerindo uma

espécie de confinamento, de isolamento, como se não houvesse ninguém mais

ali além deles, como se o mundo não existisse para além daquela situação. Vale

dizer que esses espaços, mesmo os públicos, são não apenas desertos, mas

são também lugares confinados, sombrios: contrariando a chave interpretativa

do realismo, esses cenários são puramente imaginários, eles estão ali para

dar continuidade e visibilidade aos sintomas emocionais dos personagens. A

fotografia em preto e branco de Breve encontro evoca um imaginário próximo ao

do film noir: quando os dois amantes decidem se beijar na plataforma da estação

de trem, o que vemos são suas sombras disformes projetadas na parede, como

se eles fossem dois criminosos fugitivos. Mais tarde, quando Laura decide ir ao

apartamento de Alec e é surpreendida por um amigo, ela sai correndo pelas ruas

da cidade, que ganham tons opressivos, realçando ainda mais a humilhação que

a personagem acabou de sofrer.

Não apenas as ruas, mas os interiores deste filme também são todos

sombrios, tristes, desprovidos de vida. Neste sentido eles contrastam com os

interiores abarrotados de cores e objetos de Amor à flor da pele. No caso do filme

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Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático - Ludmila Moreira Macedo de Carvalho
Cinema mundial contemporâneo

de Wong, a quantidade de móveis e objetos num espaço absolutamente exíguo é

o que vai colocar os inquilinos em permanente contato físico: em uma das belas

cenas iniciais vemos a “dança” que eles precisam fazer para entrar e sair de um

simples cômodo apertado. No entanto, apesar das cores vivas e da decoração

barroca, o objetivo deste cenário ainda é o mesmo: retratar o código emocional

dos personagens. Os protagonistas de Amor à flor da pele estão tão presos nesse

universo confinado quanto Laura em sua casa sombria.

Neste momento é importante ressaltar um outro ponto importante de

aproximação entre os filmes, que é o jogo entre presença/ausência de outros

personagens e o impacto disso na construção do dilema moral que é central para

o melodrama. Na definição mais tradicional do gênero, o que está em questão

é o problema do reconhecimento da virtude. Peter Brooks (1976, p.20) fala do

melodrama como o drama do “moral oculto”, ou seja, um drama sobre a própria

existência da moralidade, sobre um universo onde duelam forças do bem e do mal

não necessariamente visíveis, mas não menos reais. De fato, essa questão moral

está presente nos dois filmes: em ambos, os casais não conseguem consumar o

romance extraconjugal por considerarem suas ações moralmente repreensíveis

no contexto de suas respectivas sociedades. Em ambos, esse fato é resumido em

cenas nas quais as mulheres vão até o quarto de hotel, mas não têm coragem de

consumar o caso. “Não seremos como eles”, diz a Sra. Chan repetidas vezes em

Amor à flor da pele, como se estivesse lembrando a si mesma que é mais forte e

virtuosa que o marido. Nesse contexto, qualquer prazer que resulte dos encontros

com os pares é rapidamente substituído pela culpa e pela vergonha. Num dado

momento de Breve encontro, Laura chega de um de seus encontros com Alec

para descobrir que seu filho havia batido a cabeça enquanto ela esteve ausente,

e imediatamente sente-se punida. Em ambos os filmes, as mulheres estão

condenadas a uma vida de conformidade social e supressão de suas emoções,

enquanto os homens são condenados ao afastamento, ao desaparecimento (no

final Alec se muda para a África e o Sr. Chow vai para Singapura).

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Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático - Ludmila Moreira Macedo de Carvalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Em Breve encontro, a culpa vivida pela personagem feminina é

exacerbada pela forma como seu marido é apresentado. Enquanto a esposa

e os filhos do médico nunca aparecem, Fred, marido de Laura, é caracterizado

como um bom homem, atencioso (ele ampara a esposa que chega visivelmente

abalada da rua sem questioná-la) e inofensivo – tão inofensivo, de fato, que

ele não parece se importar quando a esposa decide contá-lo que encontrou um

estranho para o almoço e foi com ele ao cinema. Fred prefere se ocupar com

suas palavras cruzadas, tamanha é sua confiança na esposa. Essa bondade,

que pode ser interpretada pelo espectador como indiferença ou apatia, é não

obstante o que alimenta a culpa de Laura, é o que faz seu desejo por outro

homem parecer ainda mais moralmente condenável – colocando simplesmente,

Fred não merece a traição de Laura.

Já em Amor à flor da pele os cônjuges é que são infiéis e, portanto,

moralmente condenáveis segundo os códigos melodramáticos. No entanto,

Wong Kar-wai adota uma tática estilística interessante, que é a de jamais

mostrar seus rostos: deles são exibidos apenas as costas, um perfil ou outra

parte irreconhecível do corpo e, portanto, longe de qualquer possibilidade

de identificação com o apreciador. Eles estão sempre ausentes, fora

de enquadramento, mesmo quando dialogam ou interagem com outros

personagens. Ou seja, nada se sabe sobre estes personagens além do fato

de que eles estão traindo seus respectivos cônjuges, de modo que não se

pode antipatizar ou simpatizar com eles. Essa estratégia reflete uma diferença

em relação ao melodrama tradicional que é a falta de polarização moral dos

personagens: a história que interessa é a do amor não realizado entre o Sr.

Chowe a Sra. Chan, sem qualquer espaço para que o espectador sequer se

preocupe com os outros. De fato, os infiéis jamais serão punidos, não haverá

um flagrante da traição ou qualquer coisa do tipo: o destino deles simplesmente

não importa. Por isso é que a noção de segredo, de sentimentos guardados,

mas não explicitados, está tão presente na trama. Em boa medida, esta

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Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático - Ludmila Moreira Macedo de Carvalho
Cinema mundial contemporâneo

estratégia de utilizar uma relação constante com o que está fora de quadro

ilustra a relação dos próprios protagonistas com o que não é visto e não é dito

– ou seja, com o que é velado ou apenas sugerido.

Isso nos leva a outro ponto de análise, que é a condução narrativa dos

dois filmes. A narrativa de Breve encontro é conduzida por Laura, que introduz

em voz off um flashback narrando toda sua aventura extraconjugal como se

fosse uma espécie de confissão silenciosa (direcionada ao mesmo tempo

ao marido e ao espectador). Toda a narração parte do ponto de vista desta

personagem, já que não apenas o discurso verbal (o que ouvimos) é gerado por

ela, como também o são as imagens (o que vemos), que são suas lembranças.
Essa condução narrativa feita por uma personagem principal proporciona um

processo de identificação maior com o espectador, e justamente por isso trata-

se de uma estratégia típica do melodrama. Curiosamente, este mesmo recurso

de um personagem que dá sua versão dos fatos em voz off está presente em

todos os filmes de Wong Kar-wai, menos em Amor à flor da pele. Neste filme em

particular, a narrativa é de algum modo distanciada dos personagens, ela não

oferece essa espécie de acesso direto aos seus pensamentos e emoções a todo

o tempo. Essa ausência da expressão verbal nos dá uma pista importante para

o que vem a ser uma grande diferença entre os filmes.

Estética da sutileza

Peter Brooks (1976, p.41) diz que o melodrama é um gênero calcado na

expressão verbal, o que ele chama de aesthetics of astonishment, ou seja, o fato

de que no melodrama as emoções não são somente exageradas e hiperbólicas

como são expressas de maneira exagerada e hiperbólica – ressaltando

a importância do discurso, pois os dilemas morais são frequentemente

expressos em termos exagerados: nada é subentendido, tudo é dito. E, ainda

assim, nos momentos de maior tensão dramática as palavras parecem não

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Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático - Ludmila Moreira Macedo de Carvalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

ser suficientes para expressar todo o conteúdo da cena, sendo necessário

fazer recurso de todos os elementos não verbais disponíveis – gestos, olhares,

figurino, cenário, música – constituindo o que Brooks, alternativamente, chama

de text of muteness. Ocorre que, no melodrama, estes signos não verbais ou

mudos, como ele chama, geralmente encontram uma expressão igualmente

exagerada, hiperbólica, que procura salientar ou sublinhar o que já está sendo

dito com palavras. “Um sistema depende do outro, signos verbais indicam

signos gestuais, ou especificam tais signos através de uma tradução verbal

dos gestos. Os signos gestuais são por sua vez exagerados(...), porque o

conteúdo em questão é grandioso” (BROOKS, 1995, p.71).

Enquanto em Breve encontro Laura descreve em detalhes seus

sentimentos mais profundos, em Amor à flor da pele o espectador nunca tem

certeza do que de fato acontece no íntimo dos personagens. Não existem no

filme de Wong frases como “Ainda há tempo, se conseguirmos nos controlar”,

ou “não podia suportar a vergonha, a culpa, o medo”, ditas por Laura em Breve

encontro. Até mesmo a interpretação dos atores é enigmática – o rosto de Maggie

Cheung é bem mais contido e misterioso do que a expressividade exacerbada

de Celia Johnson. Na realidade, a expressividade de Maggie está presente

sobretudo nos gestos, mas estes são extremamente sutis e minimalistas, como

o detalhe de uma mão que aperta nervosamente o braço, ou o gesto de desligar

o telefone, ou ainda uma quase que imperceptível troca de olhares.

A narrativa de Amor à flor da pele, embora linear, é mais complexa do

que a do filme de David Lean. Ao invés de ser narrado pela perspectiva de um

personagem intradiegético, o filme é claramente conduzido por uma instância

narradora maior, mas uma instância que não é totalmente neutra nem transparente

– pelo contrário, ela faz questão de esconder do espectador determinadas

informações, aproximando-se do que David Bordwell (1985, p.160) chama de

narrativa autoconsciente, ou seja, aquela que se reconhece enquanto artifício

narrativo e reconhece seu direcionamento ao espectador, ao contrário da narrativa

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Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático - Ludmila Moreira Macedo de Carvalho
Cinema mundial contemporâneo

clássica transparente. O filme é cheio de repetições, elipses e buracos propositais

na narrativa. A partir de determinado momento, quando os dois decidem fingir que

são os outros, essas repetições, espelhamentos e trocas de identidade entre os

personagens insistem em atrapalhar o apreciador. Nunca fica totalmente claro,

por exemplo, quais situações são reais e quais são hipotéticas ou imaginárias, ou

o que a Sra. Chan respondeu ao convite do Sr. Chow para fugir com ele. O final

do filme, tão enigmático quanto todo o resto, dá inclusive uma sugestão de que

ela teria tido um filho com ele, obrigando o espectador a completar importantes

lacunas narrativas. Nada fica totalmente explícito na condução da narrativa, onde

os detalhes mais sutis, os menores gestos e objetos cenográficos4 são o que

realmente contam a história. Portanto, se podemos dizer que na obra de Wong

os detalhes são visivelmente importantes, aqui eles não operam para sublinhar

o conteúdo verbal, como no melodrama de Lean, mas sim para substituí-lo,

uma vez que os personagens praticamente não expressam em palavras seus

sentimentos. Ao invés de exagero, os gestos apontam para o detalhe, para a

sutileza da sugestão, na medida em que é a partir desses detalhes cotidianos

que surge o drama, o conflito. Ao contrário do melodrama clássico, extremamente

comunicativo, aqui nada é dito, tudo é subentendido.

Um último (mas não menos importante) elemento de comparação entre

os filmes é o discurso musical. Não somente porque a concepção original de

melodrama significa drama acompanhado de música, mas pela centralidade

que esta ocupa,sobretudo no filme de Wong.A trilha sonora de Amor à flor da

pele é composta por dois tipos de músicas: a trilha instrumental arranjada por

Michael Galasso e as clássicas canções românticas de Nat King Cole cantadas

em espanhol. Derivado de uma trilha composta para outro filme (Yumeji, de

1991, do diretor japonês Suzuki Seijun), o tema instrumental “Yumeji’s theme”

reproduz o tom melancólico dos encontros entre os dois personagense contrasta

com a trilha orquestrada grandiosa que normalmente se vê nos melodramas

tradicionais – inclusive em Breve encontro. Neste, ao invés de uma trilha

composta especificamente para o filme, Lean optou por um concerto clássico

202
Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático - Ludmila Moreira Macedo de Carvalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

preexistente, de Rashmaniov, mas que tem todos os elementos grandiloquentes

de uma trilha clássica de melodrama. O tema de Yumeji, ao contrário, não é

grandioso ou robusto: nele, a orquestra serve apenas de pano de fundo para

os violinos, que executam um tema lânguido, lento, ao mesmo tempo grave e

suave, sem deixar de ser sentimental. A duração do tema, sua qualidade rítmica

repetitiva e o fato de ser apresentado sempre em conjunção com imagens em

câmera lenta encarnam a própria indeterminação dos quaseamantes em seus

encontros e desencontros. Isto fica evidente, por exemplo, na cena que mostra

o primeiro encontro entre os personagens fora de casa: nenhum olhar é trocado

entre os dois quando se cruzam na escadaria que leva à barraca de noodles,

seus corpos são enquadrados quase totalmente de costas. No entanto, a cena

é carregada de tensão emocional, presente sobretudo na música e no ritmo que

ela parece empregar aos corpos em câmera lenta.

Já as canções de Nat King Cole dão o tom abertamente sentimental que

faz possível classificar este filme como um melodrama. A princípio, a presença de

boleros sentimentais cantados em espanhol como Aquellos ojos verdes e Quizás,

quizás, quizás provoca um certo estranhamento, uma vez que não apresenta uma

ligação lógica evidente com o local ou a situação narrada.5 Entretanto, a contra-

posição que se estabelece entre personagens que pouco ou nada revelam sobre

seus sentimentos com a trilha sonora que exacerba justamente sua qualidade

sentimental cria um contraponto no mínimo interessante. Esta estratégia relacio-

na quase que imediatamente a representação dramática singela e sutil que vinha

se apresentando no filme à tradição do melodrama, em que sentimentos são tão

arrebatadores quanto as letras de um bolero. A música chega a ocupar um lugar

de narração, exaltando os sentimentos e deixando claro, com palavras, o que os

personagens só são capazes de insinuar com gestos e olhares. Não é por acaso

que uma canção como Quizás, quizás, quizás aparece num momento de profundo

impasse sentimental dos personagens. Siempre que te pregunto / Qué, cuándo,

cómo y dónde / Tú siempre me respondes / Quizás, quizás, quizás / Y así pasan

los dias / Y yo, desesperando / Y tú, tú contestando / Quizás, quizás, quizás. O

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Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático - Ludmila Moreira Macedo de Carvalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

“talvez” é um elemento fundamental, já que o próprio filme faz questão de deixar

certas coisas em aberto, fazendo o espectador se perguntar ou imaginar o “talvez”

(o que de fato aconteceu entre eles? O que aconteceria se eles ficassem juntos?).

Conclusão

O exercício interpretativo proposto neste artigo teve como ponto de partida

a comparação entre dois filmes, um deles um melodrama clássico, o outro,

um filme chinês contemporâneo que é comumente descrito como melodrama,

mas que, na realidade, nunca havia sido analisado rigorosamente sob a chave

interpretativa do gênero. O estudo das regras intrínsecas e das formalidades do

melodrama tornou possível a comparação entre os filmes, através da qual foi

possível constatar alguns pontos de aproximação e afastamento entre eles. Se

podemos dizer que Amor à flor da pele é um melodrama, devemos fazer algumas

ressalvas. Por exemplo, verificamos que, se a temática centrada no dilema moral

e sentimental entre os personagens está presente de maneira similar nos dois

filmes, a forma de expressão é bastante diferente: David Lean segue a linha da

hipérbole cara ao melodrama clássico, em que os elementos não verbais exaltam

e sublinham o conteúdo verbal que já é por si só grandioso, inclusive ancorando

a narrativa na personagem central feminina, enquanto Wong Kar-wai opta por

uma estratégia mais sutil, mais recatada, na qual os elementos não verbais são

de fato mais expressivos do que o discurso explícito, e que preza por um certo

distanciamento em relação aos personagens para manter a atmosfera de mistério

e isolamento de ambos.

Tais diferenças mostram-se especialmente iluminadoras para o objetivo

mais amplo deste trabalho, que é o de estudar a relação do melodrama com os

cinemas de línguas asiáticas como um todo. Culturas diferentes (assim como

épocas diferentes no interior de cada cultura) possuem suas próprias conjunturas,

a partir das quais o melodrama aparece e torna-se popular. Alguns críticos, como

204
Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático - Ludmila Moreira Macedo de Carvalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Thomas Elsaesser (1991), acreditam que o melodrama nasce sempre num contexto

de crise, devido à sua capacidade de trazer alento moral (e entretenimento) para

os espectadores. Na França do século XIX foi a crise do Sagrado que originou

o melodrama; no cinema norte-americano da década de 1950, foi a crise de

identidade social gerada pelo fim da Segunda Guerra e a Guerra Fria. Nos

países asiáticos, o melodrama encontra profusão no encontro traumático destas

sociedades com o conceito de “modernidade”, ou seja, no momento em que estes

países foram confrontados diretamente com a moderna realidade ocidental.

O que está em questão, portanto, não é a presença do melodrama

enquanto gênero entre o leque de expressões possíveis do cinema asiático –

isso fica evidente nos filmes analisados, uma vez que em ambos o melodrama

coloca em questão dilemas morais representados numa poética sentimental,

independentemente de suas particularidades sociais ou culturais. No entanto, o

modo como esses temas são retratados em cada filme, as diversas maneiras

possíveis de explorar o modo de representação melodramático, são fatores que

realçam e iluminam as diferenças e as particularidades artísticas e culturais de

cada um desses cinemas. O desafio encontra-se, portanto, em aplicar os conceitos

de melodrama previamente estabelecidos a um grupo de filmes para o qual esse

conceito não foi originalmente criado, procurando verificar seus limites e benefícios

nesta situação particular. É somente a partir desta perspectiva que se torna

possível utilizar as definições formais do gênero para verificar as particularidades

do melodrama produzido por culturas não ocidentais.

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Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático - Ludmila Moreira Macedo de Carvalho
Cinema mundial contemporâneo

Referências bibliográficas

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Referências audiovisuais

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Amor à flor da pele (In the mood for love/ Fayeungninwa). Wong Kar-wai.Hong Kong, 2000.

Breve encontro (Brief encounter). David Lean. Inglaterra, 1945.

Dias selvagens (Days of being wild/ Afeizhengchuan). Wong Kar-wai.Hong Kong, 1990.

Yumeji. Suzuki Seijun. Japão, 1991.

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Amor à flor da pele e o conceito de melodrama asiático - Ludmila Moreira Macedo de Carvalho
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

_____________________________________________________________

1. Trabalho apresentado no seminário temático Cinema, Transculturalidade, Globalização.

2. Pós-doutoranda do programa de Pós Graduação em Comunicação e Culturas Contemporâneas; Doutora em Literatura


Comparada e Cinema pela Universidade de Montreal, Canadá . E-mail:[email protected]

3. Todas as traduções são da autora (N.E.).

4. Vale lembrar que são dois objetos – uma bolsa e uma gravata – que “entregam” o caso dos amantes.

5. Vale notar que há uma relação contextual deste tipo de música com a narrativa do filme, já que a história se passa na
década de 60, época em que a música latina era de fato bastante popular na China. Ainda assim, o fato de a música ter
origem extradiegética não só facilita como encoraja uma interpretação expressiva em detrimento de uma função puramente
contextual.

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Documentário
As imagens, os seus circuitos e modalidades expositivas: o caso do cinejornal Ita-Jornal – Porto Alegre, 1927 - Alice Dubina Trusz
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

As imagens, os seus circuitos e modalidades expositivas:

o caso do cinejornal Ita-Jornal – Porto Alegre, 19271

Alice Dubina Trusz2

Este estudo tem por objeto central o Ita-Jornal, cinejornal lançado

nos cinemas de Porto Alegre em setembro de 1927 pela produtora Ita-

Film. Concentradas nos acontecimentos da cidade, as suas quatro edições

conhecidas (três das quais existentes), 3 versaram sobre temas amenos e


pitorescos, de amplo alcance público, mas também registraram práticas e

eventos de certa forma fechados, pois realizados em clubes, sociedades

e empresas privadas, aos quais o cinema abriu acesso indireto aos

espectadores, ao mesmo tempo em que promovia a distinção social e política

daqueles cujas imagens reproduziu nas telas.

Considerando-se que a maior parte dos acontecimentos filmados para o Ita-

Jornal também foi objeto de interesse da imprensa diária (Correio do povo e Diário

de notícias) e periódica (revista A tela), rendendo matérias textuais e reportagens

fotográficas, pretende-se pensar a questão da visualidade como ela se apresenta

e se caracteriza culturalmente em determinado contexto histórico, considerando

outros filmes documentais então produzidos e circulados e as demais formas

de produção e disseminação da informação e de formação da opinião pública

que faziam uso da imagem. Neste caso em particular, se buscará identificar a

consideração social de que gozavam os cinejornais entre os contemporâneos,

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As imagens, os seus circuitos e modalidades expositivas: o caso do cinejornal Ita-Jornal – Porto Alegre, 1927 - Alice Dubina Trusz
Documentário

num contexto marcado pelo empenho da nascente crítica de cinema brasileira na

campanha de combate às “cavações” ou filmes documentais e defesa dos “filmes

de enredo” ou “de arte”, as ficções.

A Ita-Film e o Ita-Jornal

A Ita-Film foi fundada em agosto de 19274 a partir do “legado” de outra

produtora, recém-extinta, a Pindorama-Film, surgida em setembro de 1926.5

No final de 1926, a Pindorama contratou Eugênio C. Kerrigan para dirigir as

suas produções (PFEIL, 1995, p. 28). Nos primeiros meses de 1927, divulgou-

se que a empresa se preparava para filmar Amor que redime, drama romântico

roteirizado e dirigido por Kerrigan.6 Em maio de 1927, a revista Cinearte informou


que a Pindorama-Film estava em negociações para contratar o fotógrafo paulista

Thomas de Tullio, que efetivamente se estabeleceu em Porto Alegre logo a

seguir.7 Contudo, a Pindorama-Film foi fechada e a Ita-Film acabou abrindo com

Kerrigan e Tullio na equipe técnica e também com o projeto do filme ficcional, que

finalmente sairia do papel em 1928.

A Ita-Film ou Empresa Cinematográfica Rio-Grandense Oliveira, Soares e

Cia. era uma produtora privada independente, que possuía estúdio e laboratórios

próprios na Avenida 13 de Maio, n. 1501, atual Avenida Getúlio Vargas.8 Ao


surgir, divulgou que se dedicaria “ao ramo de cinematografia em geral, filmagens

artísticas, comerciais e científicas e à confecção de letreiros [...]”.9 Ou seja, não era

uma empresa que se dedicaria exclusivamente à produção de filmes de enredo,

embora também tivesse essa pretensão.

O seu primeiro produto foi uma “película natural”, o Ita-Jornal, que foi

exibido em primeira mão aos representantes da imprensa local em 15/08, quando

a empresa foi oficialmente inaugurada, embora só tenha estreado publicamente

nos cinemas em 05/09. Após assisti-lo, os jornalistas consideraram que o filme,

que “focalizava diversos aspectos da Capital”, havia sido produzido “com muita

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As imagens, os seus circuitos e modalidades expositivas: o caso do cinejornal Ita-Jornal – Porto Alegre, 1927 - Alice Dubina Trusz
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

arte, possuindo [...] uma fotografia de nitidez perfeita”,10 que nada ficava a dever

aos demais cinejornais estrangeiros e nacionais exibidos na capital.11 O programa

do Ita-Jornal n. 1 compreendia cenas da

Procissão de Corpus Christi, vendo-se o início da organização


no Colégio Bom Conselho; desfile pela rua Independência,
praça da Caridade e finalmente a entrada e benção dada por
D.João Becker nas escadarias da capela do Espírito Santo;
chegada de um vapor da Costeira ao nosso porto; disputa
do campeonato de futebol pelas equipes das nossas escolas
superiores e a rainha dos estudantes, senhorita Annes Dias,
ao dar início ao torneio; torneio no campo do Grêmio Porto-
Alegrense; lançamento da pedra fundamental do novo quartel
do comando da Brigada Militar; torneio no campo do Sport Club
Cruzeiro em disputa da taça “14 de Julho” e do qual participaram
todos os clubes da APAD; quartel do 3º Batalhão da Brigada
Militar, vendo-se o chefe revolucionário Honório Lemos ao
deixar aquele estabelecimento, onde esteve preso, cercado de
pessoas de sua família, despedindo-se da força estadual; belos
aspectos da cidade, como sejam a Pedra Redonda, os novos
jardins da Av. Redempção, a rua Independência com os novos
combustores ali instalados, rua Duque de Caxias, uma tarde
na rua dos Andradas, etc. A parte mais interessante é que foi
apanhada a bordo do hidroavião Ypiranga, numa viagem desta
Capital ao Rio Grande. Ao espectador é dado apreciar não só
o lindo aspecto que apresenta a nossa cidade, como a do Rio
Grande, vista do alto, e todas as peripécias e panoramas até o
nosso porto marítimo.12

No anúncio do lançamento público do cinejornal, essa relação temática

seria simplificada, mas ganharia o acréscimo de dois novos temas: “Uma visão

futurista (humorismo) – Passeio em automóvel 120 kilometros a hora pela rua dos

Andradas (inédito).”13

O Ita-Jornal n. 1 estreou no cinema Central em 05/09, uma segunda-feira,

abrindo o programa das quatro sessões do dia (14h30, 16h, 19h15 e 21h) como

complemento de um filme de longa metragem estrangeiro. Dessa forma, ocupou o

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As imagens, os seus circuitos e modalidades expositivas: o caso do cinejornal Ita-Jornal – Porto Alegre, 1927 - Alice Dubina Trusz
Documentário

espaço que já era reservado aos cinejornais nacionais e estrangeiros nas sessões

dos cinemas. Ele continuou sendo exibido durante esse mês e o seguinte, mas em

outras salas. Após a exibição, o Correio do povo o recomendou, destacando sua

qualidade técnica e variedade temática e observando que o Ita-Jornal preenchia

uma “sensível lacuna em nossa vida artística”, deixando esperançosos aqueles

que se preocupavam com a “indústria do filme em nosso Estado.”14 O Diário

de notícias endossou essa apreciação e informou que os acadêmicos tiveram

entrada franca na exibição. Tratava-se dos universitários porto-alegrenses, cujo

torneio desportivo havia figurado entre os temas filmados e que teria outra de

suas festividades – a Festa da Primavera – documentada na quarta edição do

cinejornal. A filmagem do evento envolvendo os filhos da elite local foi o assunto

mais destacado na promoção publicitária do Ita-Jornal n. 4, sendo reveladora das

práticas que envolviam as relações desta classe com as autoridades, o comércio

e o setor das diversões públicas, perpassadas pelos interesses do cinema.

Como as demais edições, o Ita-Jornal n. 2 também foi divulgado por meio

de anúncios impressos, estreando no mesmo cinema Central a 19/09, nos mesmos

moldes da edição anterior, e foi exibido a seguir em outras salas. Ele trazia

variada e importante reportagem da cidade, destacando-se


a Missa em ação de graças pelo restabelecimento do Sr. Dr.
Octavio Rocha; a inauguração da Herma ao saudoso mestre
Apollinario Porto Alegre; a parada de 7 de Setembro; jogos no
jardim da infância em São João e Carlitos em Porto Alegre.15

Após assisti-lo, o representante de A federação observou que “a fita veio

confirmar o sucesso alcançado pela primeira exibição” (do Ita-Jornal n. 1). Sobre

os conteúdos, informou que a citada missa havia sido rezada na Igreja do Senhor

dos Passos e que a Banda Municipal, criada pelo intendente Octavio Rocha,

havia se apresentado diante do templo. A respeito da parada militar, acrescentou

também que as imagens mostravam o desfile “dos Tiros 4, 251 e 318, Colégio

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As imagens, os seus circuitos e modalidades expositivas: o caso do cinejornal Ita-Jornal – Porto Alegre, 1927 - Alice Dubina Trusz
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Militar, 7º B. C., 3º B. M., escolta presidencial e outras forças”.16 No feriado de

20/09, a Banda Municipal deu concerto à tarde no arrabalde operário de São João,

na praça Pinheiro Machado, a mesma filmada para o Ita-Jornal n. 2, dando conta

da visibilidade que o cinema conferia aos eventos, locais e pessoas.

Após um mês, em 18/10, estreou no cinema Central o Ita-Jornal n. 4, sem

que tivesse havido qualquer referência na imprensa (jornais A federação, Correio

do povo e Diário de notícias) à edição n. 3. O cinejornal foi exibido nas quatro

sessões de uma terça-feira, assumindo novamente caráter complementar. Desta

vez, mostrava “assuntos de palpitante interesse da vida porto-alegrense”, como

“aspectos encantadores dos arredores desta capital, provas atléticas no Turner

Bund e a Festa dos Estudantes em Vila Nova”.17 A novidade é que o Ita-Jornal


n. 4 foi reprisado no dia seguinte na mesma sala, em uma época em que era

muito raro que um filme ficasse em cartaz por dois dias seguidos, especialmente

nas melhores salas, do centro. Tal sucesso estava relacionado às temáticas

contempladas no filme e aos seus protagonistas.

A última edição do Ita-Jornal exibida em 1927, de n. 5, foi lançada em

07/12, no cinema Central, mas sem a repercussão das anteriores. Até 22/11,

nenhuma notícia sobre a Ita-Film saiu no Diário de notícias. No entanto, duas

produções gaúchas de ficção circulavam pelas salas de cinema da cidade: Um

drama nos pampas,18 com locações campestres e temática pastoril, e O castigo do


orgulho,19 filmado em Porto Alegre. Ambos estrearam na última semana de outubro

e mantiveram-se em cartaz em sete salas diferentes até meados de novembro. Ou

seja, havia uma significativa oferta de produções locais em cartaz, uma onda que

já arrefecia quando a Ita-Film voltou a ser comentada.

No entanto, o interesse principal dos anúncios e notas publicados

na imprensa a partir de 22/11 pela Ita-Film era outra produção sua, um filme

documentário intitulado Glória à Virgem do Rosário,20 cuja exibição tinha por


complemento o Ita-Jornal n. 5. Os filmes estrearam no cinema Central na quarta-

feira, 07/12, ocupando as quatro sessões do dia e ganhando reprise, “a pedido

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As imagens, os seus circuitos e modalidades expositivas: o caso do cinejornal Ita-Jornal – Porto Alegre, 1927 - Alice Dubina Trusz
Documentário

geral”, na mesma sala, no domingo, 12/12, mas em sessão única, horário não

comercial e com renda beneficente.21

Segundo a imprensa, que se omitiu de qualquer apreciação sobre

o Ita-Jornal n. 5 antes e após o seu lançamento, o cinejornal trazia cenas

da “inauguração da sede do Duca degli Abruzzi, flagrantes do Dia da Flor,

exercícios de equitação pela Escolta Presidencial, etc. etc.”22 O recurso


aos seus entretítulos agrega novas informações sobre os temas da edição:

“Inauguração da garagem do clube de remo G.I. Canottieri Duca D. Abruzzi

c/ Batismo de botes – A chegada de um dos páreos – O dia da Flor – United

States Rubber Export & Co.Ltda., c/ escritórios, gerência, funcionários, estoque

– Exercício de equitação da Brigada Militar”.

Já Glória à Virgem do Rosário recebeu elogios, sendo identificado como

um “trabalho fotográfico” do “sr. Thomas de Túlio, diretor do departamento

técnico da Ita-Film” que muito honrava a “cinematografia nacional”.23 O filme era


uma espécie de cinejornal de edição única, visto que documentava diferentes

atividades do programa das comemorações em louvor de N. Sra. do Rosário,

realizadas em São Leopoldo em outubro, incluindo uma corrida automobilística

que terminou com um acidente fatal. Ele trazia imagens de “belíssimos quadros

da Virgem, a missa celebrada na praça por D.João Becker, quadros históricos

reproduzindo o desembarque de Pedro Álvares Cabral e sua comitiva”,24

as danças dos Cafres, Jardineiras, Ciganas, das Flores etc.; as tradicionais

cavalhadas entre Mouros e Cristãos; festas esportivas e o trágico quadro do

desastre ocorrido durante a prova automobilística SALTO DA MORTE”.25

Constata-se, assim, que os dois filmes tratavam, sob enfoques

diferentes, da questão do automobilismo. A sua divulgação começou justamente

na mesma edição (22/11) em que o Diário de notícias publicou uma grande

matéria sobre as corridas automobilísticas realizadas no domingo anterior, na

estrada de Canoas, sob o patrocínio da Associação das Estradas de Rodagem.

O evento demonstrou que havia velozes corredores no meio local e que o

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As imagens, os seus circuitos e modalidades expositivas: o caso do cinejornal Ita-Jornal – Porto Alegre, 1927 - Alice Dubina Trusz
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

público também já vinha prestigiando tais disputas como “reunião social”,

isto é, como um evento frequentado por uma “elegante multidão”, composta

inclusive de “senhoras da sociedade”.

De fato, o trecho de Glória à Virgem do Rosário que maior destaque mereceu

nos anúncios foi aquele do acidente do piloto de corridas, que foi divulgado de

forma sensacionalista, ressaltando-se que o filme permitiria ao espectador “assistir

um auto lançado à fantástica velocidade ser lançado a uma altura fenomenal e vir

contra o solo depois de ter cuspido no ar os seus tripulantes (Inédito).” Em outro

anúncio, enfatizava-se a promessa de um espetáculo de sensações, onde, “entre

outras cenas de emoção, veremos renovar-se ante nossos olhos horrorizados o

pavoroso desastre ocorrido na prova O SALTO DA MORTE, onde o condutor de

um automóvel, num salto arriscado, teve morte quase instantânea!”.26

Embora a indústria automobilística representasse um setor econômico

de ponta na época e o tema concentrasse um interesse social crescente, foi o

contrário que ocorreu com o Ita-Jornal n. 5, em que as filmagens que divulgavam

uma empresa local especializada no setor, a United States Rubber Export & Co.

Ltda., representante de um fabricante estrangeiro de pneus para automóveis,

nem sequer foram referidas pela imprensa. E isso muito provavelmente porque

se tratava de uma explícita reportagem cinematográfica publicitária, a primeira e

única incluída nas cinco edições do Ita-Jornal conhecidas, uma legítima “cavação”.

Cavação x filme de enredo

No Brasil, caracterizou a década de 1920 uma crescente distinção entre

os filmes ficcionais e os documentais, endossada pelo desprezo a estes últimos.

Estabeleceu-se, assim, uma oposição entre “filmes posados” ou “de enredo”, as

ficções, e “filmes naturais”, generalizados sob o termo depreciativo “cavação”.

Tais concepções, evidenciadas no meio cinematográfico, foram instituídas e

disseminadas em meio a uma campanha promovida pela nascente crítica de

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As imagens, os seus circuitos e modalidades expositivas: o caso do cinejornal Ita-Jornal – Porto Alegre, 1927 - Alice Dubina Trusz
Documentário

cinema brasileira, cujo intuito era estimular o desenvolvimento da indústria

cinematográfica nacional (CAMPELO, 2005). No entanto, elas não parecem ter

tido maior adesão da sociedade mais ampla, em se tratando do cinema e da

recepção dos espectadores em geral às produções de caráter documental então

produzidas e exibidas.

A distinção depreciativa ganhou ênfase na segunda metade da década,

inicialmente nas sessões especializadas em cinema de revistas cariocas de

variedades, como Selecta e Paratodos, e depois na revista cinematográfica

Cinearte (1926-1942). Nestes veículos, críticos como Pedro Lima defendiam os

filmes de enredo como as únicas e legítimas produções cinematográficas capazes

de concentrar valor artístico e dignificar o cinema brasileiro.

Tais ideias tiveram repercussão em Porto Alegre, sendo reproduzidas

pelas revistas ilustradas Kosmos (1926)27 e Mascara (1918-28), que foram os


primeiros periódicos locais a reservar seções exclusivas para o tratamento dos

assuntos cinematográficos, até o surgimento da revista de cinema local A tela

(1927-34). Os redatores da seção temática da Kosmos eram os jovens Jutahy de

Nonohay e Dante Laytano. Extinta a Kosmos, eles assumiram, no início de 1927, a

seção especializada de cinema lançada pela Mascara.28 Enquanto ocuparam tais

postos, trocaram correspondências com os críticos da Cinearte, enviando-lhes

notas informativas sobre a cinematografia gaúcha.

Na Kosmos, foi comumente reproduzido o discurso de defesa dos

“filmes de enredo” e de condenação das “cavações”, fundado na observação

de que a proliferação destas últimas ameaçava a cinematografia brasileira,

desprestigiando-a. Mas qual era o sentido do termo em 1926? Segundo esclareceu

o redator de cinema da revista, os “cavadores” eram “pessoas que andam todo

dia junto aos altos poderes, arranjando, isto é, ‘cavando’ empregos ou grandes

empreendimentos, onde possam ganhar dinheiro facilmente.”29 Procurando ser


mais específico, enfatizou que, em cinema, denominava-se “cavador” ao “indivíduo

que, tendo comprado uma máquina cinematográfica, vive pelas ruas e por todos

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As imagens, os seus circuitos e modalidades expositivas: o caso do cinejornal Ita-Jornal – Porto Alegre, 1927 - Alice Dubina Trusz
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

os recantos do país a tirar vistas à custa do governo, municipal ou federal.” O

problema é que tais produções careciam de qualidade “artística”, pois aos seus

produtores o que interessava era a quantidade.

Se essa definição correspondia perfeitamente aos cinegrafistas que,

financiados pelas elites, documentavam as suas posses, participações sociais

e oficiais, e mesmo o seu cotidiano (GOMES, 1986), o fato é que o termo e a

prática eram anteriores à sua adoção e adaptação pelo meio cinematográfico

brasileiro e tinham um sentido mais amplo e genérico, abarcando outros setores

da sociedade e profissionais.

Em janeiro de 1927, a própria Kosmos veiculou uma matéria intitulada

“O cavador”, onde o termo foi tratado em seu sentido amplo, observando-se que

remontava ao início do século XIX e tinha representantes em todas as áreas,

sobretudo entre os jornalistas de “segunda categoria”. O que eram “cavadores”?

Eram indivíduos “cuja profissão era arrancar a fórceps os dinheiros do bolso do

burguês pacato, fazendo com eles o que se chamam ‘comidas’.”30 Esse sentido
pejorativo fica evidente em uma ilustração de humor intitulada “Os nossos

cavadores – Do que a polícia deve livrar o povo”, veiculada na Kodak em 1917,

demonstrando a difusão popular do termo e sua ampla aplicação social. Na

gravura, são representados onze casos de “cavação”, que vão desde mendigos

que usam crianças para obter esmola até comissões que organizam subscrições

públicas para a construção de monumentos, passando por videntes e falsos

médicos estrangeiros. Ou seja, protagonizam as cenas charlatões que exercem o

seu “ganha-pão” explorando as classes abastadas por meio de vigarices.31

Em setembro de 1927, este sentido do termo continuava em voga, como

o demonstra a divulgação da comédia norte-americana O cavador, exibida no

cinema Guarany. Segundo os anúncios, era um filme “para rir mesmo de verdade”,

pois contava a história de um homem que vivia de expedientes e que acabou

“cavando” um casamento com uma moça rica.32 O título recebido pela produção em

Porto Alegre (e talvez no Brasil) traduzia para os espectadores locais uma prática

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As imagens, os seus circuitos e modalidades expositivas: o caso do cinejornal Ita-Jornal – Porto Alegre, 1927 - Alice Dubina Trusz
Documentário

que também era popular nos Estados Unidos, e, igualmente, não se restringia ao

campo da produção cinematográfica.

A importância social dos cinejornais

O breve levantamento acima buscou reunir indícios capazes de estender

a compreensão das bases da oposição entre filmes “naturais” e “posados”

e principalmente problematizar a generalização das produções de caráter

documental sob o termo depreciativo “cavação”, cujo uso parece ter se restringido

a uma parcela dos contemporâneos, os críticos de cinema.

O exame da imprensa da época indica que, a princípio, os cinejornais

não eram identificados como “cavações”, entendendo-se que eram produzidos

por razão de um objetivo distinto e louvável: o registro e a divulgação dos

acontecimentos cotidianos por meio do cinema. Os filmes documentais, de

atualidades e cinejornais, concentravam grande importância social enquanto

produtos informativos e noticiosos, caracterizados pela variedade temática

e pela atualidade, pois proporcionavam um outro e mais amplo acesso ao

mundo, visual, num contexto em que ainda não havia televisão e o rádio

apenas começava a se instalar.

A experiência de assistir filmes documentais foi sempre muito valorizada

pelos porto-alegrenses, desde os primórdios da exibição cinematográfica no meio

local (TRUSZ, 2010). Embora os filmes do gênero tenham se transformado desde

1895, assim como o modo de exibi-los e assisti-los, eles continuaram marcando

presença nos programas dos cinemas e desempenhando um papel fundamental

como “janela para o mundo”.

Em 1927, entre tantos cinejornais estrangeiros e alguns nacionais que

eram exibidos regularmente nos cinemas porto-alegrenses e já faziam parte do

cotidiano dos espectadores, a produção de um cinejornal sobre a realidade local

218
As imagens, os seus circuitos e modalidades expositivas: o caso do cinejornal Ita-Jornal – Porto Alegre, 1927 - Alice Dubina Trusz
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

por uma empresa local tinha certamente uma importância singular. Tanto é que,

após conhecerem as instalações da Ita-Film, os jornalistas saudaram os dirigentes

da empresa, incentivando-os a empenhar-se pela “implantação, no nosso Estado,

de uma verdadeira indústria de filmes, indústria essa que viria beneficiar o Rio

Grande do Sul, pois mostraria ao mundo o seu progresso. [...]”.33

Orientados pelo exemplo norte-americano, os brasileiros entendiam

que a capacidade de produção cinematográfica também era uma amostra do

desenvolvimento cultural e econômico de um país. O primeiro cinejornal porto-

alegrense, o Recreio Ideal-Jornal, de 1912, talvez por ter sido produzido por

iniciativa de um exibidor e projetado apenas no seu cinema, não foi considerado

propriamente um exemplo nesse sentido. Tratava-se de um contexto diverso

daquele de 1927, quando a atividade exibidora já estava consolidada, o mercado

brasileiro estava tomado pela produção norte-americana de modelo hollywoodiano

e almejava-se desenvolver uma indústria cinematográfica brasileira nele pautada.

Em agosto de 1927, o Diário de notícias veiculou uma nota elogiosa aos

cinejornais da UFA, considerados os melhores em cartaz na cidade no momento.

Entre os temas então tratados na produção alemã, destacou-se a aviação, que

também constaria entre os interesses do Ita-Jornal n. 1, lançado logo a seguir.

Considerando que a filmagem local documentou o voo do primeiro hidroavião da

recém-fundada VARIG, empresa pioneira da aviação comercial no Brasil, e que

essa viagem era um privilégio de poucos, é possível fazer ideia da importância

dessas imagens para os contemporâneos.

No seguimento, o redator voltaria a enfatizar o valor dos cinejornais

pela sua função “instrutiva”, pelo caráter documental de suas imagens e a

sua potencialidade como meio de expressão visual, capaz de proporcionar ao

público um acesso rápido e de baixo custo aos acontecimentos e à diversidade

cultural do mundo fisicamente inacessível. Tal manifestação, que demonstra o

interesse social do gênero entre os contemporâneos, cada vez mais exigentes

quanto à qualidade técnica e temática dos filmes, também caracterizava o

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As imagens, os seus circuitos e modalidades expositivas: o caso do cinejornal Ita-Jornal – Porto Alegre, 1927 - Alice Dubina Trusz
Documentário

contexto de lançamento do Ita-Jornal, paralelamente à campanha da crítica de

cinema contra os filmes “naturais”.

A produção do filme de arte

O projeto de produção de filmes de arte, como se sabe, esteve desde o

início entre os planos da Ita-Film. O anúncio da sua produção começou cedo,

ainda antes da estreia do Ita-Jornal n. 4 (18/10), em 29 e 30/09, quando foram

publicados no Correio do povo e em A tela materiais anunciando que a empresa

resolvera “lançar no mercado a sua primeira super-produção” e dera início à

seleção do elenco. Um trecho do anúncio foi inclusive reproduzido em um dos

entretítulos iniciais do Ita-Jornal n. 4. No dia da sua estreia, outra nota lembraria

que a Ita-Film, “produtora dos apreciados Ita-Jornal”, iniciaria em breve a filmagem

do futuro Amor que redime (1928).

Quando exibiu Glória à Virgem do Rosário, a Ita-Film procurou da mesma

forma associar os elogios recebidos pelo filme – recomendado como “magnífico

film documentário”, filmado com “técnica apurada e brilhante” e apresentando

“artística fotografia”34 – com o anúncio da filmagem de sua película ficcional.


Afinal, o que justamente interessava à Ita-Film como produtora cinematográfica

era construir uma reputação positiva do ponto de vista da competência técnica

e da excelência artística dos seus produtos, ganhando a confiança do meio

político, cultural e empresarial local, o que por sua vez produziria uma opinião

pública favorável e também despertaria o interesse dos eventuais financiadores. A

produção do Ita-Jornal deve ter servido ao mesmo intuito, podendo-se reconhecer

nele uma espécie de cartão de visita e um trabalho de valor no “currículo” da

Ita-Film, e não o contrário, embora preponderasse no meio cinematográfico a

valorização dos filmes de enredo.

Na verdade, embora em nenhum momento os Ita-Jornais tenham

sido percebidos e/ou criticados como “cavações”, observa-se na seleção dos

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As imagens, os seus circuitos e modalidades expositivas: o caso do cinejornal Ita-Jornal – Porto Alegre, 1927 - Alice Dubina Trusz
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

“motivos filmados” uma orientação mais promocional do que informativa, além

de conformidade com o padrão das revistas ilustradas da época, reunindo temas

amenos e pitorescos. No conjunto, o cinejornal documentou campeonatos

esportivos, eventos militares e cívicos, festas populares, lazer e sociabilidades

das elites, contribuindo para a promoção de autoridades, do alto comércio

local, da própria produtora e demais setores envolvidos com o cinema, como a

distribuição e a exibição.

Se a ousada edição de estreia ofereceu aos espectadores a experiência

imaginária de voar num avião e percorrer as ruas da cidade em um automóvel “a

grande velocidade”, permitindo exercícios perceptivos do olhar e novas perspectivas

de visão, as edições seguintes foram menos ousadas e criativas do ponto de

vista das possibilidades expressivas das imagens e da técnica cinematográfica,

restringindo-se a um registro bastante estático de acontecimentos locais recentes

que também mereceram cobertura jornalística da imprensa.

Considerando-se a qualidade das abordagens, verifica-se que apenas

o Ita-Jornal n. 5 traz evidências claras de financiamento externo e promoção

comercial, ou seja, de “cavação”. Contudo, já no Ita-Jornal n. 1 o voo no hidroavião

sinalizava as relações entre os proprietários da Ita-Film e da VARIG, comprovadas

pela pesquisa. No Ita-Jornal n. 2, igualmente observa-se a promoção política

da administração municipal, presente ainda na primeira edição, quando são

mostradas as obras de remodelação urbana da cidade (calçamento, ajardinamento

e iluminação pública), promovidas pelo intendente Octavio Rocha. Desta vez,

ele é percebido e homenageado como indivíduo, com a missa pela sua saúde,

voltando-se a dar destaque ao administrador, na filmagem de uma das praças com

que dotou a cidade antes que o seu mandato fosse interrompido precocemente

pela morte, em 1928. O Ita-Jornal n. 2 também continha uma autopromoção da Ita-

Film e do seu cinejornal, registrando o sucesso da sua estreia no cinema Central,

que também colhia os louros da iniciativa. A filmagem da performance do imitador

de Carlitos, que já se apresentara em frente ao mesmo cinema promovendo o

lançamento do novo filme de Chaplin, Em busca do ouro (1925), fecharia com

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As imagens, os seus circuitos e modalidades expositivas: o caso do cinejornal Ita-Jornal – Porto Alegre, 1927 - Alice Dubina Trusz
Documentário

chave de ouro a rede de práticas e influências estabelecida entre os diferentes

setores do mercado cinematográfico local.

O Ita-Jornal n. 4 continuaria promovendo os setores ligados ao cinema e as

sociabilidades mundanas e esportivas da burguesia porto-alegrense, sintetizadas

de forma exemplar no evento Festa dos Estudantes na Vila Nova, que foi

organizado pela classe estudantil, mas recebeu favores do poder público (meios

de transporte), do comércio (comes e bebes) e dos exibidores cinematográficos,

que financiaram as taças com que foram premiadas as disputas do piquenique da

elite na zona sul da cidade.

Ou seja, mesmo que o Ita-Jornal não tenha tido por intuito explícito

atrair verbas públicas ou privadas para o seu financiamento e o de outras

futuras produções da Ita-Film, as classes dirigentes protagonizaram as suas

imagens. As suas atividades políticas e culturais, as diferentes manifestações

de sua ação e participação social foram privilegiadas entre os acontecimentos

filmados, sendo assim legitimadas como representativas do desenvolvimento

econômico, político e cultural local.

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As imagens, os seus circuitos e modalidades expositivas: o caso do cinejornal Ita-Jornal – Porto Alegre, 1927 - Alice Dubina Trusz
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

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TRUSZ, A. D. Entre lanternas mágicas e cinematógrafos: as origens do espetáculo cinematográfico em Porto


Alegre. 1861-1908. São Paulo: Terceiro Nome/Ecofalante, 2010.

Jornais
Correio do povo, 1911, 1912 e 1927; Diário de notícias, 1927; A federação, 1911.

Revistas
Kodak, 1912; Kosmos, 1926; Mascara, 1927 e 1928; A tela, 1927

Filmes
Ita-Jornais n. 2, 4 e 5

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As imagens, os seus circuitos e modalidades expositivas: o caso do cinejornal Ita-Jornal – Porto Alegre, 1927 - Alice Dubina Trusz
Documentário

_____________________________________________________________

1. Comunicação apresentada no seminário temático Cinema no Brasil - dos primeiros tempos à década de 1950.

2. E-mail: [email protected]

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As imagens, os seus circuitos e modalidades expositivas: o caso do cinejornal Ita-Jornal – Porto Alegre, 1927 - Alice Dubina Trusz
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

3. A imprensa da época fornece informações detalhadas sobre as edições n. 1, n. 2, n. 4 e n. 5 do Ita-Jornal. Porém, não há
nenhuma referência à edição n. 3. Fazem parte do acervo da Cinemateca Brasileira as edições n. 2, 4 e 5, sendo que a
edição n. 2 consta como sendo a de n. 3 no letreiro do próprio filme.

4. A tela, Porto Alegre, ano 1, n. 3, 15/09/1927, e A federação, Porto Alegre, 15/08/1927.

5. Kosmos, Porto Alegre, ano 1, n. 20, 25/09/1926.

6. Mascara, Porto Alegre, ano 10, n. 1, [s.d.], 1927.

7. Cinearte, Rio de Janeiro, 25/05/1927, p. 5, “Thomaz de Tullio deixará Campinas?”, por Pedro Lima (segundo pesquisa e
transcrição de Jesus Pfeil).

8. Eram seus proprietários Armando R. de Oliveira, Melchíades Soares e Antonio Gageiro, sendo que este último havia sido
um dos proprietários da Pindorama-Film.

9. A federação, Porto Alegre, 15/08/1927 e Diário de notícias, Porto Alegre, 16/08/1927.

10. Diário de notícias, Porto Alegre, 16/08/1927.

11. Nesse momento, faziam parte das sessões de cinema os jornais da FOX, Pathé Jornal, Cine-Jornal Brazil (RJ), Diamond
Jornal (RJ?), Universal Jornal e Jornal da UFA.

12. A federação, Porto Alegre, 16/08/1927.

13. A tela, Porto Alegre, n. 2, 27/08/1927.

14. Correio do povo, Porto Alegre, 06/09/1927, p. 3.

15. Diário de notícias, Porto Alegre, 18/09/1927.

16. A federação, Porto Alegre, 19/09/1927.

17. Correio do povo, Porto Alegre, 18/10/1927, e Diário de notícias, Porto Alegre, 18/10/1927.

18. Produção da Pampa-Film, de Walter Medeiros, era um “film rio-grandense em 7 partes”. Diário de notícias, Porto Alegre,
11 e 17/11/1927.

19. Produção da Gaúcha-Film, de Eduardo Abelin, era um “cine-drama” “em 5 longas partes” ou “6 partes”. Diário de notícias,
Porto Alegre, 06, 07 e 10/11/1927. A sua exibição era acompanhada do curta-metragem Torres, “film natural” com cenas da
praia homônima, filmadas pelo mesmo “operador” de O Castigo do orgulho, José Piccoral.

20. Documentário realizado pela Ita-Film por encomenda da “companhia filmadora” Quadrhisreg, de São Leopoldo. Diário de
notícias, Porto Alegre, 25/11 e 04/12/1927. O filme, composto de cinco partes, estreou em São Leopoldo em 25/11 com
grande sucesso e direito à reprise.

21. Segundo o Correio do povo, Porto Alegre, 10/12/1927, a renda da sessão seria empregada na construção de uma escola
para crianças pobres e num prédio para os filhos do automobilista morto no acidente que marcou a competição apresentada
no filme.

22. Diário de notícias, Porto Alegre, 04 e 07/12/1927; Correio do povo, Porto Alegre, 07/12/1927.

23. Diário de notícias, Porto Alegre, 25/11/1927.

24. Diário de notícias, Porto Alegre, 25/11/1927.

25. Diário de notícias, Porto Alegre, 04/12/1927.

26. orreio do povo, Porto Alegre, 07/12/1927.

27. A revista Kosmos, publicada em Porto Alegre em 1926, foi o primeiro periódico local que teve uma seção de crítica de
cinema, intitulada “Nos cinemas do centro”, na qual eram comentados individualmente os filmes em cartaz na cidade,
avaliando-os e atribuindo-lhes cotações como “medíocre, sofrível, bom, muito bom e ótimo”. A coleção da revista, que
pertencia ao acervo da Biblioteca Pública do Estado, foi roubada em 2007.

28. Mascara, Porto Alegre, n. 1, ano 10, 1927, seção “A Sétima Arte”.

29. Kosmos, Porto Alegre, ano 1, n. 9, 10/04/1926.

30. Kosmos, Porto Alegre, ano 2, n. 23, 22/01/1927.

31. Kodak, Porto Alegre, ano 3, n. 14, 03/11/1917.

32. Diário de notícias, Porto Alegre, 08 e 10/09/1927.

33. Diário de notícias, Porto Alegre, 16/08/1927.

34. Correio do povo, Porto Alegre, 07/12/1927.

225
Elementos estilísticos da trilogia Qatsi - André Bonotto
Documentário

Elementos estilísticos da trilogia Qatsi1

André Bonotto (Unicamp) 2

Introdução

Analisaremos neste trabalho elementos estilísticos da trilogia Qatsi, dirigida

por Godfrey Reggio: Koyaanisqatsi (1983), Powaqqatsi (1988) e Naqoyqatsi

(2002). Essas narrativas não utilizam palavra ou fala para se articular. Tampouco

utilizam personagens. Que estratégias poderíamos elaborar então para melhor

apreender estes agenciamentos audiovisuais? Propomos a análise dos seguintes

elementos estilísticos, os quais consideramos possuir central relevo para este

conjunto de filmes: a dissociação imagem-música, os movimentos aberrantes e a

presença da imagem midiática/eletrônica. Tais elementos estão inter-relacionados

e sua identificação e desenvolvimento, através dos três filmes, nos permite melhor

apreender a trilogia como uma unidade estética e temática consistente.

Dissociação imagem-música

Iniciemos esta análise pela relação essencial que estrutura as narrativas

dos três filmes: a relação imagem-música.

As três narrativas são compostas basicamente por uma infinidade de


imagens as mais heterogêneas, articuladas a uma trilha musical constante,

incessante. Assim, podemos identificar a característica dominante de cada um

226
Elementos estilísticos da trilogia Qatsi - André Bonotto
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

desses dois componentes: a fragmentação ou descontinuidade do componente

visual, e o continuum ou continuidade do componente sonoro.

Tratemos primeiro das imagens. Nos dois primeiros filmes, a maior parte

das imagens foi gerada através do procedimento de a equipe sair com a câmera

ao mundo, realizando tomadas de locais diversos, considerados interessantes

para tratar do tema que inspira o projeto: os modos de vida em transformação

(transformação causada principalmente pelo desenvolvimento técnico-industrial).

A maior parte das imagens desses dois primeiros filmes são, portanto,

tomadas (imagens registradas por uma câmera) realizadas em situações do mundo

histórico. Essas tomadas registram uma grande quantidade de locais, paisagens

(naturais ou urbanas), objetos (industriais ou artesanais) e ações (maquinais ou

humanas). Visto que o tema que inspira os projetos desses filmes é um tanto

“aberto” (as “transformações nos modos de vida”), ocorre que nenhuma locação/

situação em particular é explorada extensivamente. O que temos são grandes

quantidades de tomadas diversificadas a compor esse painel ou “mosaico”, mais

amplo e genérico, dos “modos de vida”. A maior parte das ações ou situações

não se prolonga de um plano a outro: não há desenvolvimento do que se chama

“esquema sensório-motor”.3

Podemos agora observar com maior discernimento a fragmentação

das imagens nas narrativas da trilogia: o componente visual da narrativa está

carregado desse vetor dispersivo, centrífugo, já que não há essa continuidade

linear de ações e reações. As imagens parecem a todo o momento tender a ser

lançadas longe, descoladas da narrativa, dada sua heterogeneidade em relação

às imagens que as precedem ou sucedem4. Mas algo as “segura”. E esse algo é

o componente sonora, composto essencialmente por uma trilha musical.

A trilha musical é composta, ao longo dos três filmes, por faixas

musicais longas (nove faixas em Koyaanisqatsi; onze em Powaqqatsi; treze em

Naqoyqatsi). Além das longas durações de cada faixa musical, podemos notar a

227
Elementos estilísticos da trilogia Qatsi - André Bonotto
Documentário

existência de um continuum musical (uma presença constante e incessante das

trilhas musicais, junto às imagens, nos três filmes), o que faz com que a música

tenha um papel fundamental de estruturação das narrativas, sendo o elemento

que dá forma e contorno aos inícios, aos desenvolvimentos e aos finais de cada

sequência dentro dos filmes.

Ressaltamos essa dimensão de continuum do componente sonoro, em

contraste com a maior fragmentação do componente visual, para tornar mais

apreensível o que fundamenta a relação entre ambos: uma dissociação dos

componentes visual e sonoro.

Os filmes da trilogia Qatsi se compõem com a ausência da fala (interna ou

externa ao plano) e, igualmente, com a ausência de qualquer sincronismo som-

imagem; para além dessa ausência, temos a presença do continuum musical, que

se torna como um “corpo estranho” sobre as imagens (DELEUZE, 1990, p. 284).

Essas narrativas criam, dessa forma, uma verdadeira imagem audiovisual (nos

termos de Gilles Deleuze), com seus componentes dissociados.

Mas a relação entre sonoro e visual não é arbitrária; antes disso, é

sim rigorosa (DELEUZE, 1990, p. 308). Não é casual que os principais sons

escolhidos para compor os blocos musicais de Koyaanisqatsi sejam os de teclado

eletrônico; de Powaqqatsi, os de instrumentos musicais latino-americanos,

asiáticos, indianos ou africanos5; de Naqoyqatsi, os de instrumentos que compõe


a formação de uma banda esportiva/militar6.

Em Koyaanisqatsi, o eletromecânico e o tecnoindustrial eram as

principais forças organizando todo o complexo modo de vida (fora de equilíbrio)

apresentado, daí sua irrupção no tecido sonoro. Algo parecido ocorre com

Powaqqatsi, onde a diversidade cultural visual era explorada nas sociedades,

nos modos de vida (em transformação) registrados; por isso o aparecimento

de sonoridades (instrumentos musicais, ritmos e cantos “étnicos”) oriundas

desses próprios agrupamentos humanos.

228
Elementos estilísticos da trilogia Qatsi - André Bonotto
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Já em Naqoyqatsi há uma relação menos evidente. Imagens processadas

por equipamentos os mais atuais (em 2002, quando o filme foi finalizado) são

acompanhadas por uma sonoridade quase “antiquada”: instrumentos de sopro

(metais), percussão e corda. São timbres já utilizados à exaustão, já codificados

por toda a linhagem musical “clássica”. Ocorre que há aqui uma relação com o

impulso de ordenação, de controle, que estaria presente em diversas instâncias: na

ordem numérica que gera as imagens computacionais e científicas; na infinidade

de imagens de guerra, de conflitos; nas experiências de testes de colisão ou

de desempenho, contexto no qual as tomadas esportivas, acompanhadas pela

proliferação de dados científicos, acabam se inserindo. Partindo do exposto acima,

há, na seleção dos instrumentos mencionados para compor o tecido sonoro da

narrativa, uma sonoridade esportivo-militar, uma sonoridade arcaica (em relação

ao universo apresentado no filme). Ela está associada a esse impulso, que pode

ser considerado também “arcaico”: o impulso de controle, ligado, no universo da

narrativa, à destruição (vida como guerra).

Prolongando-nos nessa questão, poderíamos afirmar que menos

“arbitrários” ainda eram os agenciamentos visuais e sonoros que operavam

em certas passagens de Koyaanisqatsi por sofisticadas cadeias de repetições

e variações (referimo-nos especialmente à sequência das tomadas noturnas

aceleradas da cidade).

Essa relação entre os componentes sonoro e visual surge, é claro, apenas

através de um processo de pensamento musical do filme, simultâneo e correlato

à própria criação (dos esboços) da narrativa e à ordenação das imagens.7

Não se trata de “a música imitar a imagem” ou vice-versa. O que ocorre

é que os componentes, as “imagens sonora e visual”, formam um outro tipo de

relação. “A imagem visual e a imagem sonora estão numa relação especial,

relação indireta livre” (DELEUZE, 1990, p. 309) e, portanto, fora de qualquer

simples assimilação de uma à outra.

229
Elementos estilísticos da trilogia Qatsi - André Bonotto
Documentário

É isso o que está na essência da impressão que temos de a “música estar

descolada das imagens” (ou vice-versa) nas narrativas da trilogia Qatsi.8

Movimentos aberrantes: aceleração/desaceleração

Passemos agora, neste segundo momento, a observar os movimentos.

É evidente em Koyaanisqatsi que o movimento acelerado, a aceleração,

ocupa uma dimensão fundamental: este filme aborda um “modo de vida acelerado”

por meio da exploração de procedimentos fílmicos que lidam com a aceleração

(captação de tomadas aceleradas, colocação da câmera em movimento,

montagem com planos curtos, trilha musical cuja estrutura e desenvolvimento

tornam-se mais complexos e rápidos).

Em Powaqqatsi, a narrativa também lança mão da velocidade anormal

– no caso, a desaceleração das imagens, que está relacionada à criação de um

tempo diferenciado para o ato de vê-las, um tempo distendido próprio ao rito/mito,

elemento difuso por todo o filme.

Quanto a Naqoyqatsi, nele existe uma incidência desses dois movimentos

anteriores: de aceleração vertiginosa (Koyaanisqatsi), que se intensifica numa

dimensão caoide; e de desaceleração (Powaqqatsi), que toma uma outra

direção, perversa, relacionada ao controle. O choque desses dois movimentos


estaria relacionado com o estado de conflito geral, de “vida em guerra” que se

passa neste terceiro filme.

A questão dos movimentos “anormais”, acelerados ou desacelerados,

tem então importância central para as narrativas da trilogia Qatsi. Gilles Deleuze

(1990, p. 48-57), ao tratar do tema, diz que o “movimento aberrante” desestrutura

as ligações orgânicas do “esquema sensório-motor”, fundadas em relações

localizáveis de ações e reações, de movimentos recebidos e reações executadas,

de uma continuidade da percepção à ação.

230
Elementos estilísticos da trilogia Qatsi - André Bonotto
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

As narrativas da trilogia Qatsi utilizam de forma predominante os

movimentos aberrantes, em detrimento dos movimentos normais. Como

dissemos, Koyaanisqatsi é quase todo imagens aceleradas, em Powaqqatsi

predominam as imagens desaceleradas e Naqoyqatsi faz entrarem ambos

os movimentos em conflito.

Dado esse comentário sobre os movimentos aberrantes, observamos

que, nos três filmes, quase não podemos acompanhar o desenvolvimento de

alguma ação; não o o fazemos nem mesmo em Powaqqatsi, filme que apresenta

quantidade razoável de tomadas de ações de trabalho, pois neste caso ocorre que

nunca acompanhamos um esforço físico em sua integralidade, de sua fase inicial

a sua fase final. Vemos apenas fragmentos.

Partindo disto, podemos evocar (novamente) a referência do mosaico

para a estrutura desses filmes:9 uma formação maior que apresenta uma grande

quantidade de fragmentos de ações, fragmentos de imagens, que parecem não

se encadear, havendo antes uma relação não linear, não sucessiva, mas de

“encavalamentos”, com várias imagens agindo e reagindo umas sobre as outras.

Essa configuração de mosaico está relacionada ainda à força de dispersão ou

centrifugação das imagens, a que nos referimos anteriormente.

Podemos concluir sumariamente que, nessas narrativas, o que ocorre

é a instauração de um regime imagético-narrativo no qual tanto o aspecto de

mosaico visual (advindo da fragmentação e descontinuidade das imagens) quanto

a presença incessante dos movimentos aberrantes determinam um “espaço”

onde os movimentos não podem mais se reencadear organicamente, não há

possibilidades de desenvolvimento do esquema sensório-motor.

Vejamos agora o terceiro elemento que nos propusemos a analisar.

231
Elementos estilísticos da trilogia Qatsi - André Bonotto
Documentário

Presença da imagem midiática/eletrônica

Em Naqoyqatsi é feito um uso massivo de imagens de arquivo, grande

parte do que se consegue reconhecer como sendo “imagens midiáticas”,

isto é, imagens veiculadas através da mídia televisiva, grande meio de

comunicação de massa: material publicitário, reportagens, transmissão de

jogos esportivos, filmes etc.

É necessário notar, contudo, que essa presença marcada das

“imagens midiáticas” ou “imagens eletrônicas” 10 podia já ser pressentida nos


dois primeiros filmes da trilogia.

Em Koyaanisqatsi havia um breve trecho ao final da oitava sequência,11


em que, num pico de máxima aceleração da narrativa, podíamos ver a inserção

do fluxo da imagem midiática e o aparecimento da imagem eletrônica – na

tomada de uma mãe acompanhada dos filhos, que olha vidrada as emissões

televisivas num aparelho numa loja de eletrodomésticos; na tomada de um pai

segurando o filho num dos braços e tentando jogar um videogame (fliperama)

com o outro, seguido por diversos outros planos de telas de videogames; e,

finalmente, numa estrutura montada com diversos monitores televisivos uns

sobre os outros, todos ligados, dentre os quais às vezes se fixa um deles,

dentro do qual se pode vislumbrar um fluxo sempre acelerado de fragmentos

entrecortados de programas extraídos de vários canais de gêneros diversos. Ao

final deste conjunto de planos, a estrutura televisiva toda é explodida, como se

não fosse possível suportar esse fluxo visual desenfreado.

Diferente é a aparição desses tipos de imagem em Powaqqatsi.

Nesse filme, há um espaço maior dedicado às imagens midiáticas e

eletrônicas, presentes na oitava sequência, integralmente composta por

filmes publicitários (com rostos de pessoas sorridentes e ações encenadas)

e excertos telejornalísticos (apresentadores incorporando “expressões de

seriedade” dentro de uma mesma construção de quadro). A velocidade do

232
Elementos estilísticos da trilogia Qatsi - André Bonotto
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

transcorrer dessas imagens é muito baixa, e as transições entre elas ocorrem

principalmente por meio de fusões, também lentas e graduais.

Tendo primeiro aparecido em Koyaanisqatsi numa intensa aceleração das

emissões televisivas e em Powaqqatsi num lento ofertar ludibriante, a imagem

midiática irrompe na narrativa de Naqoyqatsi com toda a sua força, num infindável

deslizar das imagens umas sobre as outras, em constantes choques e dissoluções.

Em Koyaanisqatsi, os aparelhos não eram mais aptos a suportar o fluxo

das imagens eletrônicas quando elas atingiam seu mais alto potencial energético:

os monitores simplesmente explodiam. O que ocorre então em Naqoyqatsi,

tendo este filme, como tipo de imagem privilegiada, uma “imagem-fluxo”? O

que ocorre é que estes fluxos se intensificam imensamente, mas ao mesmo

tempo as imagens já não estão mais presas aos monitores em seu transcorrer.

A passagem, na última sequência de Koyaanisqatsi, em que a cidade e a tela

tornam-se momentaneamente uma superfície de informações eletrônica (pela

comparação presente na associação dos planos da cidade e do chip) era já uma

prefiguração da situação que se generalizaria com Naqoyqatsi, situação esta

referente ao estado de coisas do cinema (ou da imagem) na contemporaneidade:

“a tela não é mais uma porta-janela (por trás da qual...), nem um quadro-plano

(no qual...), mas uma mesa de informações sobre a qual as imagens deslizam

como ‘dados’” (DELEUZE, 1992, p. 98).

Finalizando a trilogia Qatsi nesta virada de milênio, Naqoyqatsi comporia

então esse grande ambiente de imagens como uma “mesa de informações”,

onde predominam as imagens eletrônicas, midiáticas e as numéricas, todas

deslizando como “dados”, umas sobre as outras. O próprio diretor afirma: neste

filme, “a locação é a imagem”.12

233
Elementos estilísticos da trilogia Qatsi - André Bonotto
Documentário

Referências bibliográficas

BONOTTO, A. Trilogia Qatsi: visões e movimentos de mundo [Dissertação de Mestrado]. Campinas: Universidade
Estadual de Campinas - Instituto de Artes, 2009.

DELEUZE, G. A imagem-movimento. Tradução de Stella Senra. São Paulo: Brasiliense, 1985.

_____. A imagem-tempo. Tradução de Eloisa de Araujo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1990.

_____. Carta a Serge Daney: otimismo, pessimismo e viagem. In: Conversações (1972-1990). Tradução de Peter
Pál Perlbart. São Paulo: Ed. 34, 1992, p. 88-102.

ADORNO, T. W.; EISLER, H. Ideas para una estética. In: El cine y la música. 2a. ed. Tradução de Fernando
Montes. Madrid: Editorial Fundamentos, 1981, p. 83-111.

MACDONALD, S. Godfrey Reggio. In: A critical cinema 2. Interviews with independent filmmakers. Berkeley:
University of California Press, 1992, p. 378-401.

_____. Godfrey Reggio: Powaqqatsi. In: Avant-garde film: motion studies. New York: Cambridge Univ. Press,
1993, p. 137-146.

MACHADO, A. Máquina e imaginário. 2a. ed. São Paulo: Edusp, 1996.

_____. Pré-cinemas & pós-cinemas. 4a. ed. Campinas: Papirus, 2007.

PARENTE, A. Narrativa e modernidade. Os cinemas não-narrativos do pós-guerra. Campinas: Papirus, 2000.

TEIXEIRA, F. E. A propósito da análise de narrativas documentais. In: CATANI, A. M.; FABRIS, M.; GARCIA, W.
(Orgs.). Estudos Socine de Cinema. São Paulo: Nojosa Edições, 2005, p. 119-126.

_____________________________________________________________

1. Trabalho apresentado na mesa “Questões Estilísticas do Documentário”. Agradecemos o suporte fornecido pelo Programa
de Pós-Graduação em Multimeios do Instituto de Artes da Unicamp, que nos permitiu apresentar este trabalho.

2. Doutorando em Multimeios. E-mail: [email protected]

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Elementos estilísticos da trilogia Qatsi - André Bonotto
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

3. Gilles Deleuze formula o conceito do esquema sensório-motor (no cinema) para tratar do desenvolvimento narrativo
tradicional, de base dramática, no qual há personagens agindo e reagindo a situações. Nesse tipo de narrativa, dita clássica,
veríamos “imagens privilegiadas” ou “centros de indeterminação” (os personagens) que sofrem a ação de outras imagens,
quaisquer que sejam, e respondem a elas. Daí a formulação do sensório-motor: a uma ação sofrida, “sentida”, sucede-
se uma “resposta”, uma posterior re-ação. O conceito é trabalhado principalmente ao longo de A imagem-movimento
(DELEUZE, 1985), e sua “superação” (ou seus limites) é explorada em A imagem-tempo (DELEUZE, 1990).

4. Daí podermos nos referir a uma “construção em mosaico” desses filmes. O diretor Godfrey Reggio se refere à forma do
mosaico ao comentar sobre a estrutura desses dois primeiros longas, notando que cada um desses mosaicos é composto
de acordo com um princípio diferente: estrutura de unidade pela padronização industrial (Koyaanisqatsi) versus estrutura
de unidade pela heterogeneidade das formas de vida (Powaqqatsi) (Cf. MACDONALD, 1992, p. 388). A intuição dessa
construção em mosaico também aparece, por exemplo, na parte traseira da capa dos DVDs de Koyaanisqatsi e Powaqqatsi
distribuídos no Brasil pela MGM, através da forma de agrupamento de dezenas de pequenos fotogramas de cada filme.

5. Instrumentos que compõem os estilos conhecidos como World Music ou Ethnic Music.

6. Banda composta basicamente por instrumentos de sopro, como o trompete, o trombone, a tuba etc., e instrumentos de
percussão, como a caixa, os pratos, o triângulo etc.; além disso, há no tecido sonoro da narrativa de Naqoyqatsi um
destaque para o violoncelo, executado por Yo-Yo Ma.

7. O trabalho de criação musical de Philip Glass nestes filmes se deu de forma simultânea e dialógica com a criação das
sequências visuais, isto é, foi “integrado em todo o processo” (MACDONALD, 1992, p. 397-398). Esse tipo de processo
criativo foi elogiado pelo compositor como “a melhor maneira de unirmos imagem e música”. Glass comenta esse processo
da seguinte forma: “Nos acostumamos a trabalhar interativamente. Ele mostrava as imagens. Eu mostrava a música.
Editávamos. Eu recompunha. Encontrávamos-nos. Víamos de novo. Revíamos o processo” (Cf. seu depoimento presente
no material audiovisual “A essência da vida”, que consta como extra no DVD de Koyaanisqatsi, distribuído no Brasil
pela MGM). Em importante texto publicado pela primeira vez em 1947, nos Estados Unidos, Theodor Adorno e Hanns
Eisler (1981) já apontavam para esse tipo de relação no processo de realização cinematográfica, o que chamaram de
“composição planificada” (p. 109-110), como indício de um caminho prolífico a ser seguido para a realização, no cinema,
de experimentos musicais realmente criadores, e não apenas subservientes às necessidades mercadológicas (p. 110).

8. Observam essa “descolagem” tanto Godfrey Reggio quanto Philip Glass. Reggio diz enxergar as narrativas desses filmes
como estruturadas “triadicamente”: “Há a imagem, há a música e há o espectador” (MACDONALD, 1992, p. 389-390).
Glass, por sua vez, diz o seguinte: “É questão de determinar a distância entre imagem e música. Essa visão é diferente.
Por exemplo, num comercial de refrigerante ou de cerveja você vê o que acontece, o som da lata, ou a música... acontecem
superpostos. Não há espaço entre elas. Não deve haver espaço, pois essa é a característica da propaganda. Não tem
espaço para o espectador. (...). Começando por esse exemplo, que acontece diariamente, é só ligar a tv. (...) Digamos que
haja uma distância entre imagem e música. E quando o espectador passa desse limite, ele personaliza o acontecimento.
É aí que se torna algo dele. A transação entre música e imagem ocorre quando o ouvinte atravessa o espaço entre uma e
outra” (Cf. seu depoimento em “A essência da vida”. Ver nota anterior).

9. O diretor afirma que “em Powaqqatsi, a intenção era criar um mosaico, um monumento, um momento congelado da
simultaneidade da vida, tal como ela existe num só instante ao redor do Hemisfério Sul” (MACDONALD, 1992, p. 388, grifo
nosso).

10. Utilizaremos a qualificação de midiática ou eletrônica para as imagens quando pretendermos, por um lado, ressaltar o fato
de sua transmissão para a sociedade ter sido feita em escala massiva ou, por outro lado, ressaltar o fato de sua geração e
circulação terem se dado através dos equipamentos eletrônicos (especialmente a televisão).

11. Para maiores informações a respeito da divisão das sequências nos filmes da trilogia Qatsi, consultar Bonotto (2009).

12. “No filme Naqoyqatsi, a locação em si é uma imagem. Então, transpomos para o virtual (...)”. Depoimento presente no
material audiovisual “O Impacto do Progresso”, disponível como extra no DVD de Powaqqatsi distribuído no Brasil pela
MGM.

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Narrativa indireta livre em Serras da desordem e 500 almas - Francisco Elinaldo Teixeira
Documentário

Narrativa indireta livre em Serras da desordem e 500 almas

Francisco Elinaldo Teixeira (Unicamp)1

Como parte de uma pesquisa mais ampla sobre o documentário brasileiro

contemporâneo (1984-2009), o propósito desta comunicação é proceder a uma

análise comparativa entre os filmes Serras da desordem (Andrea Tonacci, 2006) e

500 almas (Joel Pizzini, 2007), a partir dos materiais e dos modos de composição

de ambos, tendo como foco as operações com a narrativa indireta livre.

A narrativa indireta livre (também chamada discurso indireto livre ou,

ainda, subjetiva indireta livre) constitui um modo transversal de narrativa que

advém com o cinema moderno, diferenciando-se das modalidades direta e

indireta do período clássico. No campo do documentário ela opera um importante

deslocamento no circuito do objetivo e do subjetivo, da relação entre personagem

real e documentarista, deixando para trás uma recorrente consideração sobre as

facilidades do documentário como um domínio no qual se sabe quem se é e quem

se filma. Ao instaurar uma indiscernibilidade entre o que a câmera e a personagem

veem, os processos de criação documental entraram num regime de incerteza,

dúvida, risco e instabilidade que se mantém como uma espécie de horizonte que

desafia e impregna as múltiplas estilísticas da atualidade.

Por força dessa obliquidade de olhares, os materiais de composição e

suas combinatórias ganharam enorme relevo e espessura no âmbito da realização

documental. Vastos materiais são hoje mobilizados e combinados na produção de

sentido, de tal modo que não há estilística documental que se sustente a não ser

236
Narrativa indireta livre em Serras da desordem e 500 almas - Francisco Elinaldo Teixeira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

sob o signo da estratificação, de um grande repertório de materiais e modos de

composição que lhe dão uma feição e consistência das mais híbridas. Mesmo

num documentário aparentemente despojado, limpo, minimalista em termos

construtivos, mesmo aí é possível, no plano da análise, separar, restaurar e expor

uma heterogeneidade de materiais que nele subjazem como referências quase

incontornáveis com que o documentarista teve que se defrontar em seu processo

de criação. Além da pressão de se criar sentido numa configuração epistêmica

como a atual, saturada de significações estabelecidas, consensuais, trata-se,

aqui, de uma mudança bastante visível da cultura em relação à temporalidade

em que a tradição –herança do passado, concomitância de passado e presente –

restabeleceu-se como um importante parâmetro no balizamento do que pode ser

descoberta e invenção no âmbito da criação artística.

Serras da desordem e 500 almas são dois filmes que parecem estranhos

na configuração temporal da segunda metade da década de 2000. Filmes de

“índios”? De “outros”? De transformação do exótico/distante em familiar? De

desejo e empenho de ainda buscar nos confins, na última fronteira, algo fora

de ótica em relação a uma ambiência cultural que colonizou até as alteridades

mais radicais? De qualquer forma, ambos os documentaristas, urbanos em sua

vivência profissional e próximos no que diz respeito à pertinência a um domínio de

experimentação cinematográfica, retiram-se do burburinho de grandes metrópoles

em direção a paisagens que, embora surradas pela larga utilização de que foram

objeto ao longo da história documental, parecem ainda manter uma certa aura

daqueles espaços iniciáticos, com fronteiras de contornos fugidios, que nos fazem
acalentar a ideia de um mundo/natureza anterior ao homem e à cultura. Embora

esses elementos se façam presentes nos dois filmes e neles se componham

e distribuam de maneiras definitivamente distintas, é num vaivém de ordem e

desordem, serenidade e turbulência,que eles se processam.

Serras da desordem abre com uma imagem mítica, ancestral, filogenética:

um índio (Carapiru, da nação Awá Guajá, do Maranhão) construindo um abrigo de

palhas e acendendo uma fogueira no meio da floresta; a ele vem se juntar o grupo de

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Narrativa indireta livre em Serras da desordem e 500 almas - Francisco Elinaldo Teixeira
Documentário

crianças, jovens e adultos, o animal de estimação, os utensílios, as brincadeiras,o

riso, enfim,uma sociabilidade apaziguada pelo isolamento e fechamento sobre si.

Esse quase estado de natureza, de comunhão com a floresta, é rompido logo a

seguir por uma inquietação que aos poucos vai ganhando contornos dramáticos,

quando, então, a desordem civilizatória se interpõe de maneira contundente. Até

o final do filme, quando esse primeiro bloco de planos retorna, diferencialmente,

para sobrepor e assim estratificar uma dupla temporalidade: uma mítica, dos

começos do mundo, e uma atual, de fim de um mundo. Um antes e um depois,

portanto, imagens diretas do tempo.

Esse primeiro bloco de imagens que abre o filme, quando nada ainda

aconteceu, tem uma consistência fortemente documental-fabulativa: não

sabemos quem é aquele índio, seu grupo, o devir que lhes aguarda. No entanto,

tudo já aconteceu. É o que o bloco final de planos vem revelar, com o fora de

campo que, então, se expõe e nos dá a ver o dispositivo de encenação. Carapiru

(o índio que vimos no início, com seu grupo, e depois, em várias trajetórias

de perambulação após sobreviver ao massacre na floresta) é personagem real

no âmbito da série documental e, simultaneamente, personagem recomposto

no âmbito da série ficcional, ambas repartindo e tornando indiscerníveis os

acontecimentos histórico e fílmico.

“Quando tudo já aconteceu, há o que vem depois” – propôs Michelangelo

Antonioni como sendo a matéria-prima, a substância bruta do cinema ou, pelo

menos, de seu cinema (ANTONIONI, 1990). Eis o leitmotiv de Serras da desordem:

um acontecimento histórico do final dos anos de 1970 (pulverizado na memória,

como tantos outros) torna a irromper como acontecimento cinematográfico,

recolhendo seu impacto nas vidas infames de seus agentes. A indexação do filme

é a ficção, mas sua estrutura está em constante fuga em direção ao domínio da

fabulação, do documental e de seus elementos - daí o acento de sua recepção

como um filme documentário. Não por acaso, um material de relevo utilizado é

um trecho do filme Iracema – uma transa amazônica (1976), de Jorge Bodanzky e

Orlando Senna, que desde o seu lançamento (oficialmente, apenas em 1981) gerou

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Narrativa indireta livre em Serras da desordem e 500 almas - Francisco Elinaldo Teixeira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

incerteza com sua classificação como “drama documental”. Carapiru é o mesmo

índio que escapou do massacre nos anos de 1970 e que também reapresenta tais

acontecimentos na atualidade. Aí, o tom dominante não é nem o de uma memória

individual, como capacidade psicológica de lembrança,nem o de uma memória

coletiva de um povo, mas o de uma memória imemorial, involuntária, absoluta

(DELEUZE, 1990), enquanto interface/contato de um eu e um mundo, de um fora

e um dentro, de um atual e um virtual.

Para atualizar a consistência virtual dessa memória, fazê-la irromper do

campo problemático/caótico no qual se situa, dar-lhe uma forma, a operação

poético-construtiva mobilizou uma heterogeneidade de materiais e combinatórias

deles na montagem.Encenações e imagens da aldeia atual onde vive Carapiru;

materiais de arquivos provenientes do cinema, da televisão, da fotografia, do jornal

impresso; encontros, desencontros, reencontros das várias personagens entre si

(inclusive, totalmente ao acaso, de Carapiru com seu filho também sobrevivente);

entrevistas, diálogos, depoimentos, conversas esquizofrênicas, silêncios,

pausas, lapsos, ambivalências e hesitações que nos dão uma imagem sonora

das mais espessas e labirínticas. Portanto, uma grande extensão de materiais e

de modos de composição que nos levam da atualidade ao período da chamada

“modernização conservadora”, com a convivência de regime militar e processo

civilizatório avassalador. Tudo em função de uma arqueologia do presente que

parte da indagação “como chegamos a ser o que somos?” ou “quem somos nós?”,

nessa altura do tempo que nos concerne.

Desterritorializado após o massacre, em 1978, Carapiru perambula

cerca de dois mil quilômetros, do Maranhão à Bahia, numa jornada de

dez anos após a qual retorna à aldeia dos Awá Guajá (LINS; MESQUITA,

2008). Na atualidade que o fez sobrepor e indiscernir a personagem real

do documentário e a personagem recomposta da ficção, seu semblante

melancólico e, sobretudo, sua postura de peixe fora d’agua no espaço da

aldeia parecem apontar para uma difícil reterritorialização. Como dá a ver

o final do filme, é dessa ambiência e estado de espírito que, deixando para

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Narrativa indireta livre em Serras da desordem e 500 almas - Francisco Elinaldo Teixeira
Documentário

trás, ele parte partindo para uma nova viagem que atualizará essa memória-

mundo na qual seu ser se encontra incontornavelmente inscrito.

Com um título que remete a um antigo modo paroquial de contagem

da população, 500 almas parte de um dado tão ou mais inquietante ainda

que o de Serras da desordem, uma total ausência: não o sobrevivente de

um grupo massacrado, mas uma etnia inteira dada como extinta desde os

anos de 1960, os Guatós, de Mato Grosso do Sul. O ponto de partida das

indagações é uma peça de artesanato com a marca guató, encontrada numa

loja por uma freira. O desafio torna-se, então, retirar da virtualidade essa

tribo a partir desse indício de atualização.

Indexado como um documentário, ao contrário do anterior, sua estrutura

poética ganha contornos com a mobilização de vastos materiais e modos de

composição e, particularmente, com atos de fala que o tempo todo não param

de fabular, de trazer à superfície e recompor uma existência dispersa no tempo e

espaço. Além da remissão ao mito de Babel, há uma espécie de metáfora-síntese

dessa dispersão que é a evocação, reiteradas vezes, de retorno a uma ilha como

espaço de contenção de uma população que a migração para o continente foi

pulverizando ao longo do tempo. Aqui, mais uma vez, processos civilizatórios

avassaladores estão na base da assimilação de alteridades as mais radicais.

Vários materiais se tornam capitais no intento de criar um novo começo,

de promover uma reunião da extrema fragmentação guató: dois materiais de

encenação (um de uma peça teatral sobre “a controvérsia de Valladolid”, no século

XVI, a respeito da humanidade indígena da América recém-descoberta, o outro,

uma reconstituição de um julgamento do assassinato de um guató no início dos

anos de 1980); uma inscrição de sua existência no tempo histórico (no século XIX,

um pesquisador alemão se mobilizou para levar, arquivar e conservar, no Museu

de Etnologia de Berlim, objetos de sua cultura material); uma pesquisa de âmbito

filológico (a partir da qual uma linguista pôde aferir uma grande singularidade

da língua guató e, inclusive, compor uma gramática); mitos, lendas, narrativas

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Narrativa indireta livre em Serras da desordem e 500 almas - Francisco Elinaldo Teixeira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

e relatos; fragmentos de filmes como os do Major Thomás Reis, cinegrafista da

Comissão Rondon; fotografias tiradas por Claude Lévi-Strauss; enfim, materiais

de primeira mão dos levantamentos e contatos com membros remanescentes e

descendentes dos Guatós, localizados em vários pontos do território sul-mato-

grossense, sobretudo, em periferias de cidades.

A montagem, a composição de materiais tão díspares no âmbito de um

documentário, constitui um desafio monumental. Resulta que no filme, como em

um labirinto, o importante é percorrê-lo e não encontrar uma saída. A câmara se

desloca do continente à tal ilha quase mítica; da terra vermelha e da superfície

dos rios ela se ergue até o alto dos céus; por vezes, se fixa num detalhe das

mãos, de um rosto ou de um objeto, sem nenhuma cerimônia quanto à escala

de planos, à passagem/corte de um grande plano para um plano aproximado.

Pouco a pouco, as inúmeras peças vão compondo um quebra-cabeça que se

nos dá a ver, retém-se numa forma e retira-se do âmbito do imponderável,

atualizando a singularidade da existência guató. Da extinção, da ausência, do

fora de óptica a que tinham sido relegados, o filme restitui um novo começo ao

que parecia inapelavelmente encerrado.

500 almas reitera muitos elementos dos períodos clássico e moderno

da história do documentário, como, por exemplo, uma associação sincrônica de

imagem e som, em que o que se diz é aquilo que se vê, ou então o relevo dado

à entrevista e ao depoimento, que visam constituir um “discurso competente” de

autoridade do saber. O uso de materiais tão institucionalizados, mas apropriados

e combinados de maneiras tão particulares, vem revelar uma disposição

serena de acolhimento da tradição documental, mais próxima do espírito das

pós-vanguardas da atualidade e bem distante das reivindicações de absoluta

novidade das vanguardas modernas. Se o material é pertinente, se não tem uma

função apenas efeitista e soma forças na combinatória com outros materiais em

função da criação de sentido, afinal, por que não dispor dele? Contemporânea

em seu exercício, essa atitude dialógica frente à herança cultural e, sobretudo, à

fertilidade que ela pode gerar ganha relevo em várias estilísticas da atualidade.

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Narrativa indireta livre em Serras da desordem e 500 almas - Francisco Elinaldo Teixeira
Documentário

Como apontei no início, Serras da desordem e 500 almas parecem objetos

estranhos numa configuração espaço temporal que tem dado tanta ênfase e

produzido tanto rumor em torno dos chamados documentários em “primeira pessoa”,

“autobiográficos”, “performáticos”, ou seja, que constroem suas proposições a

partir do universo privado e do entorno restrito de seus realizadores. Seria um

equívoco, no entanto, pensar que esse “outro” que constitui a substância desses

dois documentários estaria tão distante assim, que ele tivesse tão somente a

consistência de um objeto disponível a um sujeito de conhecimento. Sabe-se que

o objetivo e o subjetivo, nas convenções do cinema, não têm tal consistência – eles

dizem respeito muito mais aos modos de olhar, tanto da câmera/cineasta quanto

da personagem. Foi em grande parte por conta de mudanças nesse circuito, nas

relações e trocas entre esses olhares, suas reversibilidades, confluências, fugas

e digressões, que se chegou ao nível de complexidade do momento atual. E se

o documentário se afirmou na cultura audiovisual como peça autônoma, por mais

híbrida que seja sua consistência, isso não se deu pela facilidade com que pode

distinguir entre aquele que sabe e aquele que é objeto de saber. Suas possibilidades

e procedimentos narrativos se ampliaram, se expandiram, adquirindo, assim, a

feição de uma narrativa indireta livre, livre das certezas de se saber quem se é

e quem se filma, livre desse fardo cientificista, dessa herança cartesiana que se

embasa numa onipotência do pensamento, e isso desde os seus primórdios com

filmes de grande liberdade e intensidade poéticas.

Serras da desordem e 500 almas, como tantos outros de pelo menos duas

décadas para cá, operam nesse registro de uma liberdade narrativa, estilística,
em grande parte catalisadora do relevo e da audiência observáveis na atualidade.

Neles, seus realizadores já não partem de um saber prévio confirmado ao longo

do processo de criação, mas se abrem para uma lógica de incerteza que torna

instável todo saber incrustado a respeito de si e do outro, que vem atender a

solicitação de tornar-se outro junto com a personagem, de transformar-se junto

com a transformação da personagem, de fazer desse encontro uma maneira de

pensar diferentemente do que pensava antes.

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Narrativa indireta livre em Serras da desordem e 500 almas - Francisco Elinaldo Teixeira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

São vários os modos de operação da narrativa indireta livre em ambos

os documentários. Irregular e aproximativa, como propõe Pasolini (PASOLINI,

1982), ou criando uma indiscernibilidade entre o visionarismo da câmera e

o da personagem, como propõe Deleuze (DELEUZE, 1990), sua obliquidade

manifesta-se desde as situações incomuns de que partem ou criam no

investimento das personagens, seus estados de espírito incomuns, fronteiriços,

disruptores, até amobilização e combinatória dos materiais mais díspares com

o propósito de criação de sentido.

Em Serras da desordem é o trauma do massacre sofrido por Carapiru,

sua perambulação que o faz se afastar milhares de quilômetros da aldeia, sua

localização pela Fundação Nacional do Índio (Funai), a difícil reterritorialização após

o afastamento, o retorno do reprimido que o faz reviver/encenar o acontecimento.

É o olhar indireto livre que compõe um painel do processo civilizatório brasileiro

pertinente à personagem, da construção da Transamazônica ao sentimento de

tutela incômodo exposto nos procedimentos da Funai, e que não se pode atribuir

apenas ao realizador. São os silêncios, pausas, hesitações e constrangimentos da

personagem, sua gestualidade, tão expostos e trabalhados ao longo do filme no

intento de mergulhar em seus estados de espírito.

Em 500 almas é a irrealidade de uma etnia inteira dada como extinta e que

o filme traz novamente à luz, por força de um denso circuito de imagens visuais

e sonoras que se combinam das maneiras mais diversas. Não poucas vezes,

as personagens dessa situação kafkiana parecem ausentes, contemplativas,

debruçadas sobre si mesmas numa espécie de monólogo interior que lhes

dá uma consistência de visionárias. A câmera traduz tais estados de alma em

operações que vão desde os planos de uma canoa singrando o rio, uma revoada

de pássaros, uma iconografia de Adão e Eva no paraíso, até um depoimento

contundente sobre a morte, com requintes de crueldade, de um líder indígena.

A sensação que passam é a de que viram alguma coisa grande demais, de que

foram afetadas por algo que lhes ultrapassa, de que, imersa numa espécie de

cotidiano chapado, aquela existência fora da “ilha” que lhes pertencia de fato

243
Narrativa indireta livre em Serras da desordem e 500 almas - Francisco Elinaldo Teixeira
Documentário

não faz nenhum sentido. Isso tudo logo muda quando, por exemplo, uma das

personagens rema o barco na direção de seu paraíso perdido. Aí um sorriso se

abre, um semblante se ilumina, a vida recobra sua potência.

Enfim, em ambos os filmes a narrativa indireta livre se expande no processo

criativo inteiro, fazendo passar as sensações de um polo a outro, da personagem

que afeta o documentarista e vice-versa, assim lançando o pensamento para além

do que pensava antes como condição para poder pensar de outra maneira. Não é

esse, afinal de contas, o propósito de toda criação artística?

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Narrativa indireta livre em Serras da desordem e 500 almas - Francisco Elinaldo Teixeira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Referências bibliográficas

ANTONIONI, M. O fio perigoso das coisas e outras histórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

DELEUZE, G. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.

LINS, C.;MESQUITA, C. Filmar o real: sobre o documentário brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Zahar,
2008.

PASOLINI, P.P. Empirismo herege. Lisboa: Assírio &Alvim, 1982.

_____________________________________________________________

1. Professor do Departamento de Cinema, Instituto de Artes Unicamp

245
O documentário animado e a leitura não-ficcional da animação - Jennifer Serra
Documentário

O documentário animado e a leitura não ficcional da animação1

Jennifer Serra (Unicamp)2

Filme híbrido de documentário e animação, o documentário animado está

situado na fronteira entre os cinemas de ficção e não ficção e traz aos estudos

do meio questões referentes tanto aos limites dessa fronteira como às possíveis

alterações que ocorrem com o discurso do documentário quando este confronta-

se com outros gêneros cinematográficos. Nos últimos anos, o documentário

animado vem ganhando popularidade especialmente através de filmes que tiveram

destaque em festivais, como Ryan (Chris Landreth, 2004), Oscar de melhor curta-

metragem de animação em 2004, Valsa com Bashir (Ari Folman, 2008), Globo de

Ouro de melhor filme estrangeiro em 2008, e Dossiê Rê Bordosa (Cesar Cabral,

2008), prêmio de melhor filme no 16º Anima Mundi.

No entanto, a relação entre narrativa documental e filme de animação

não é recente. O pesquisador Paul Wells (1998, p. 28) utiliza o termo “animação

com tendência documental”, por exemplo, para referir-se à animação que não

apenas aspira a uma representação naturalista, mas também, a um engajamento

com a realidade, como o filme The Sinking of the Lusitania (Winsor McCay,

1918), considerado por alguns pesquisadores, a exemplo de Sheila Sofian,

como o primeiro documentário animado. Além disso, a criação de filmes de

animação no contexto da produção documental pode ser notada, na tradição

do cinema documentário, dentro da escola inglesa de John Grierson nos anos

30. O filme Trade Tattoo (Len Lye, 1927), por exemplo, foi realizado quando

246
O documentário animado e a leitura não-ficcional da animação - Jennifer Serra
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

o animador neozelandês Len Lye trabalhava na GPO Film Unit, dirigida por

Grierson. A presença da animação em centros de produção do documentário

clássico foi mantida no National Film Board do Canadá, onde Grierson fundou

um departamento de animação coordenado por Norman McLaren.

O tratamento do real através da animação

Tomando o documentário animado como uma narrativa híbrida, podemos

situá-lo dentro do campo dos estudos do cinema documentário, distinguindo

esse tipo de produção de documentários que apresentam somente pequenas

inserções de trechos de animação e de filmes de animação que são ficções

baseadas em fatos reais. Para compreender o tipo de filme a que estamos nos

referindo ao usar o termo “documentário animado”, faz-se necessário considerar,

primeiramente, o conceito de filme documentário. Para o pesquisador Fernão

Pessoa Ramos, “documentário é uma narrativa com imagens-câmera que

estabelece asserções sobre o mundo, na medida em que haja um espectador

que receba essa narrativa como asserção sobre o mundo” (RAMOS, 2008, p. 22,

grifo do autor). Bill Nichols (2005, p. 69), por sua vez, afirma que, diante de um

documentário, pressupomos seu status de não ficção e a referência que ele faz

ao mundo histórico, ao contrário da ficção, que se refere a um mundo imaginado

pelo cineasta. Nichols define o documentário como uma representação do

mundo, isto é, um tipo de filme que sustenta um argumento, uma afirmação

sobre o mundo em que vivemos, sendo que essa relação com o mundo histórico

é o que o diferencia do filme de ficção. Segundo o autor, no documentário as

situações estão relacionadas no tempo e no espaço em virtude das suas ligações

reais, históricas, e não em virtude da trama, como na ficção.

Em concordância com Fernão Pessoa Ramos e com Bill Nichols,

defendemos que o que distingue o filme documentário do filme de ficção é sua

proposta como um filme que oferece asserções, isto é, proposições sobre o

247
O documentário animado e a leitura não-ficcional da animação - Jennifer Serra
Documentário

mundo através um discurso, de uma representação sobre um determinado tema.

Nesse sentido, compreendemos que a definição de um filme como “documentário”

fundamenta-se no compromisso ou relação que o filme estabelece com o mundo,

quando ele reivindica uma abordagem do mundo histórico. Não é, portanto, o uso

de recursos estilísticos próprios da narrativa ficcional (como uso de atuação ou de

animação) ou a ausência de um referente visual do mundo histórico que define

o estatuto do filme, mas, como afirma também Noël Carroll, “a distinção entre

não-ficção e ficção é a distinção entre os compromissos dos textos, não entre as

estruturas da superfície dos textos” (BORDWELL; CARROLL, 1996, p. 287).

Partindo da compreensão de documentário como um produto audiovisual

cujo discurso é assertivo, podemos considerar o documentário animado o filme

em que a animação é utilizada como recurso narrativo para oferecer afirmações

sobre o mundo real através de estratégias narrativas que são particulares desse

meio, apresentando, na maioria dos casos, algum elemento com referência no

mundo histórico, como, por exemplo, o áudio de uma entrevista, fotografias,

desenhos etc. Como um produto híbrido de documentário e animação, as

estratégias narrativas desses dois gêneros estão de tal forma relacionadas

no documentário animado que não é possível determinar se esse tipo de filme

pertence somente a um dos gêneros, haja vista que ele é, ao mesmo tempo,

filme de animação e filme documentário.

A pesquisadora Índia Mara Martins, pioneira no Brasil na pesquisa

sobre o documentário animado, propõe uma definição mais abrangente para o

documentário animado:

A princípio, nos parece necessário chamar de documentário


animado apenas os filmes de animação que têm algum referente
no mundo real, independente da sua forma estética ou estilo.
A animação deve ser uma opção de representação consciente
em função do potencial visual e narrativo, que se adéqua ao

248
O documentário animado e a leitura não-ficcional da animação - Jennifer Serra
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

conteúdo apresentado pelo documentário. A animação deve estar


amalgamada no conteúdo, e não ser apenas um complemento,
uma solução estética (MARTINS, 2009, p. 8).

Em sintonia com a proposta de Índia Mara Martins, consideramos que o

que justifica a opção por um documentário animado é o fato de que a animação

comunica algo através da sua própria natureza idiossincrática, animada,

oferecendo um tratamento do real que a imagem da câmera não pode oferecer.

Através da animação é possível, por exemplo, representar visualmente estados

mentais ou sentimentos dos personagens e também evidenciar dados que estão

na atmosfera de uma situação vivida, mas que somente podem ser sentidos, e

não visualizados, porque são aspectos subjetivos dessa realidade.

A união entre animação e narrativa documental no documentário

animado, entretanto, não é pacífica, mas carregada de tensão, pois a natureza

explicitamente construída da animação entra em conflito com a visão ainda

comum do documentário como sendo um veículo de acesso direto à realidade ou

um relato objetivo sobre o real. Essa tensão também pode estar associada a uma

visão ambígua do filme documentário como sendo um documento, uma prova, e,

ao mesmo tempo, uma produção artística. Segundo Brian Winston (2008, p. 7),
por muito tempo acreditou-se na fotografia como fonte de acesso objetivo ao real,

por conta do posicionamento original da câmera fotográfica como instrumento

científico, o que mais tarde ocorreu também com a câmera cinematográfica. Mas,

como nos lembra Winston, foi justamente através de técnicas de manipulação da

imagem original que a fotografia (e mais tarde, o cinema) passou a ser reconhecida

como uma forma de arte. A própria definição clássica de documentário proposta

por John Grierson como a de um “tratamento criativo das atualidades” traz a

intervenção sobre a realidade como elemento do filme documentário.3

249
O documentário animado e a leitura não-ficcional da animação - Jennifer Serra
Documentário

A leitura não ficcional da animação

A tensão presente no documentário animado pode se refletir principalmente

na maneira como o filme é recebido pelo espectador. A recepção pelo público do

documentário dá-se ainda em torno da aceitação da imagem documental como

uma forma de acesso direto ao real e, diante de uma produção com elementos

tradicionalmente ficcionais como é a animação, o espectador pode ser levado

a acreditar que está diante de uma obra ficcional. Portanto, a questão a que

procuramos responder neste texto é como o documentário animado pode ser visto

pelo espectador como uma produção documental e o que confere a esse tipo de

produção a qualidade de filme documentário.

Para tanto, tomamos como orientação a proposta do teórico francês Roger

Odin (1984, p. 263-278) para o modo de leitura documentarisante para defender

que, ao analisar o documentário animado, podemos identificar elementos que

conduzem o espectador a experimentá-lo como um documentário. Primeiro,

destacamos que, segundo Odin, a diferença entre produções ficcionais e não

ficcionais não deve ser estabelecida com base na dicotomia entre realidade ou

não realidade do que é representado, mas a partir da imagem que o leitor faz do

Enunciador do filme, aquele sujeito que é reconhecido como sendo o autor da

comunicação fílmica. Para Odin, uma dada produção pertence ao conjunto de filme

documentário quando ela integra explicitamente em sua estrutura a instrução para

colocar em ação o que o autor denomina modo de leitura documentarisante, isto

é, quando o filme conduz o espectador a reconhecer que o discurso do filme tem

origem em uma pessoa com existência no mundo real. Pondo em ação esse modo

de leitura, mesmo diante de um filme produzido somente com imagens geradas


por computação gráfica, o espectador reconhecerá que as asserções propostas

pelo filme têm origem no mundo histórico, e não em um mundo imaginário.

O primeiro elemento que pode ser destacado nos documentários animados

é a produção de um enunciador real a partir do rótulo dado ao filme por seus

realizadores e/ou exibidores. A classificação do filme como um “documentário

250
O documentário animado e a leitura não-ficcional da animação - Jennifer Serra
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

animado” funciona como um rótulo, uma indexação do filme. Na medida em que

o rótulo classifica o filme como documentário, o público é informado sobre as

intenções do realizador de que ele, o público, veja o filme como um documentário,

e sua disposição será a de seguir a instrução do autor. Os créditos do filme também

podem fornecer essa instrução ao não apresentar nomes de atores ou informar,

por exemplo, que a narração é feita pelo próprio personagem, como no caso do

curta-metragem Silence (Sylvie Bringas; Orly Yadin, 1998), que, além de apontar

para a narração em primeira pessoa, informa através dos créditos que o filme trata

da história da narradora/personagem.

Silence conta a história de Tana, uma sobrevivente de campo de

concentração nazista, e foi construído a partir do texto escrito pela personagem

para um concerto musical, adaptado para o formato de animação através da

construção entrelaçada da narração, efeitos sonoros e efeitos visuais. O filme

se divide em duas partes: a primeira, feita com desenho animado em estilo de

xilogravura, mostra como Tana foi mandada para a prisão nazista de Theresienstadt

e, ajudada por sua avó, manteve-se escondida para não ser enviada a campos

de extermínio. A segunda parte retrata a vida de Tana e sua avó na Suécia, onde

Tana passou o resto da infância e juventude, e foi realizada com desenho animado

inspirado nos quadros da pintora Charlotte Salomon.4

Nos documentários animados, o fato de a narração ser feita pela própria

personagem reforça a concepção do filme como um discurso em primeira pessoa,

e a informação de que o filme é baseado na vida de alguém indica que a fonte da

história contada é real. Nesse caso, o espectador identifica a origem do discurso

do filme como sendo o próprio personagem, tomando-o como enunciador real.

No caso de Silence, a indexação do filme como um documentário e informações

presentes nos créditos e na capa do DVD, como a frase “A história real de

Tana Ross”, atestam que trata-se de uma história real, o que reforça a leitura

documentarisante do filme.

251
O documentário animado e a leitura não-ficcional da animação - Jennifer Serra
Documentário

Segundo a diretora Orly Yadin, o texto original de Tana foi refeito para que

a animação desempenhasse um papel narrativo com mesma dimensão que a fala,

demonstrando a compreensão de que a linguagem visual da animação em alguns

casos pode “falar melhor” do que as palavras. Em todo o filme foram utilizados

elementos visuais e sonoros próprios do imaginário do Holocausto, como a figura e

os sons de trens, as pessoas transformadas em animais, os elementos referentes

à Música, além do diálogo da animação com imagens de arquivo, construindo um

pano de fundo audiovisual que “fala” sobre o Holocausto de maneira indireta. Muitos

documentários animados apresentam imagem live action, além de fotografias e

imagens de arquivo. O diálogo de imagens de qualidade fotográfica com imagens

animadas, nesses casos, reforça o caráter documental da produção e a opção

da animação como um tratamento criativo do tema, pois, as imagens fotográficas

fornecem indícios, mesmo que indícios não absolutos, de que o personagem é

alguém que encontra existência no mundo real.

A combinação de elementos visuais e sonoros e recursos narrativos

próprios da animação, como o simbolismo e a metamorfose, oferece asserções

sobre o fenômeno do Holocausto, representando visualmente os processos

subjetivos em curso na vida da personagem, expondo como foi sentir ou vivenciar

o Holocausto, tratando o tema a partir de um ponto de vista subjetivo. Segundo

o pesquisador Paul Ward (2005), há uma tendência do documentário animado à

subjetividade, pela própria característica da animação de poder tornar visíveis os

pensamentos e sentimentos das pessoas. Essa tendência à subjetividade está

presente em muitos documentários animados não apenas na abordagem de um


tema, mas também tomando uma subjetividade como tema, como por exemplo

no filme A is for Autism (Tim Webb, 1992). Neste curta-metragem o diretor utiliza

a animação de desenhos feitos por pessoas autistas, acompanhados de seus

depoimentos e de uma montagem que tenta exibir a condição do autismo segundo

a perspectiva de quem possui esse distúrbio.

A is for Autism combina diferentes intervenções sonoras (como falas e

efeitos de áudio) com desenho animado, stop motion, montagem não linear,

252
O documentário animado e a leitura não-ficcional da animação - Jennifer Serra
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

repetições de cenas etc., conformando um conjunto audiovisual caótico que

corresponderia ao universo mental dos autistas. Através da exploração de

elementos sonoros e estratégias narrativas da animação, como a metamorfose,

Tim Webb reconstrói a experiência dos personagens, utilizando os desenhos

para ilustrar seus sentimentos frente ao autismo – como quando as palavras

ditas por um personagem são escritas em um quadro negro e em seguida são

embaralhadas, representando a dificuldade de leitura do depoente. A animação

neste documentário, segundo o próprio realizador, “foi uma ferramenta usada para

apresentar o tema, não um meio artístico por seu próprio fim”.

O filme também exemplifica uma tendência na produção de

documentários animados que é a adoção de métodos de trabalho

colaborativos entre o realizador e o sujeito representado no filme, uma vez

que os personagens interagem com o animador/cineasta, estando envolvidos

no processo de produção. Em A is for Autism, não apenas os desenhos dos

próprios autistas entrevistados foram animados, mas, além disso, parte das

animações foi realizada por um dos autistas entrevistados, assim como o

piano da trilha sonora foi executado também por um autista.

A natureza contraditória da junção entre animação e documentário

pode ser também um elemento que aciona uma leitura documentarisante,

pois permite ao espectador refletir não apenas sobre as asserções que

são propostas, mas também sobre a abordagem das questões envolvidas

nessas asserções, pois ela suscita o questionamento sobre a adequação da

representação em relação ao que está sendo representado, funcionando como

estímulo à reflexão. Segundo Paul Ward, através da dialética particular que é

posta em ação ao sabermos que estamos diante do depoimento de uma pessoa

real e sabermos que estamos diante de uma animação (isto é, uma construção

imagética sem a correspondência indexante a que estamos acostumados a ver

em imagens de documentários), o documentário animado pode oferecer um

percurso intensificado para entender o mundo social real.

253
O documentário animado e a leitura não-ficcional da animação - Jennifer Serra
Documentário

Além disso, a natureza explicitamente construída da animação traz para

o primeiro plano a existência do animador por trás da construção das imagens.

No documentário animado, o animador opera o papel não como testemunha

dos fatos de que trata o filme, mas sim no papel de fiador do filme, isto é,

aquele que garante a autenticidade do que está sendo dito, uma vez que ele é

o responsável pela representação visual daquilo que o áudio expõe. A imagem

animada se apresenta, dessa forma, como uma interpretação visual de uma

dada realidade pelo animador, que pode ser reconhecido pelo espectador

como uma das fontes do discurso fílmico.

Outro elemento que pode conduzir o espectador a uma leitura

documentarisante é a banda sonora. No documentário animado o áudio apresenta

um protagonismo que não encontra paralelo na maior parte das produções

documentárias feitas exclusivamente com imagens gravadas. Em muitos

documentários animados há um substrato do mundo real que não reside na

imagem, mas sim no áudio real de entrevistas, narrações ou depoimentos, que são

interpretados criativamente pela parte visual, como é o caso dos episódios da série

inglesa Animated Minds (Andy Glynne, 2003/2008), feitos somente com imagens

geradas por computação gráfica. Nesses filmes o realizador foi responsável por

representar em termos audiovisuais a subjetividade dos personagens e expor

dramas e conflitos que requerem certos cuidados quanto a sua privacidade ou

anonimato, pois tratam de pessoas com distúrbios psicológicos e, nesse caso, a

animação oferece um manto que protege a identidade dos entrevistados.

O contexto em que o filme é produzido e/ou exibido pode ser também

determinante para a leitura fílmica. Por exemplo, a relação do espectador com um

filme exibido em um festival de animação se difere da sua relação com o mesmo

filme se exibido em um festival de documentário, como foi o caso do curta Dossiê

Rê Bordosa, que chamou atenção para o documentário animado no Brasil quando

foi exibido no festival de documentário É Tudo Verdade, em 2008. No que diz

respeito à importância do contexto, inclusive, a atual visibilidade do documentário

animado dentro do campo do cinema documentário, seja com a sua participação

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O documentário animado e a leitura não-ficcional da animação - Jennifer Serra
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

em festivais de documentário ou através da proliferação de publicações sobre

esse tema, vem contribuindo para a consolidação do gênero dentro do campo

do cinema não ficcional. A importância da aceitação do documentário animado

como um tipo de cinema documentário se dá, especialmente, através da influência

dessa aceitação junto ao público, pois, como já apontamos anteriormente, quando

o filme é rotulado como documentário o espectador tem em mente que o autor, ou

a instituição exibidora, espera que ele veja o filme como um documentário. E isso

é um fator determinante para a leitura fílmica.

Dessa forma, ao conduzir o espectador a tomar o autor da comunicação

fílmica, o enunciador, como um sujeito com existência no mundo real, o

documentário animado confere a si um caráter não ficcional, permitindo que

materiais de composição fílmica eminentemente ficcionais, como, por exemplo,

desenhos, bonecos e computação gráfica, sejam tomados como elementos

de textura documental. A tensão causada pela junção de gêneros tão distintos

quanto animação e documentário pode ser considerada o grande potencial

do documentário animado, pois ela permite revelar mais da realidade de uma

situação ao forçar a reflexão sobre a abordagem e o significado do que está sendo

mostrado. Além disso, a capacidade da animação de tornar visíveis as emoções

e pensamentos dos personagens e de representar a realidade através de seus

aspectos subjetivos permite uma abordagem que não seria possível através

somente de imagens gravadas, fazendo com que o documentário animado

possa ser cada vez mais reconhecido como uma opção de tratamento criativo da

realidade. Dessa forma, o engajamento da animação com a narrativa documental


oferece uma complexidade ao campo do documentário que justifica a sua adoção

como estratégia narrativa e torna o documentário animado um interessante objeto

para os estudos de cinema.

255
O documentário animado e a leitura não-ficcional da animação - Jennifer Serra
Documentário

Referências bibliográficas

BORDWELL, D.; CARROLL, N. (Org.). Post-Theory: reconstructing Film Studies. Madison, EUA: University of
Wisconsin Press, 1996.

MARTINS, Í. M. Documentário animado: experimentação, tecnologia e design. Tese (Doutorado em Artes e


Design) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

ODIN, R. Film documentaire, lecture documentarisante. In: LYANT, J.-C.; ODIN, R. (Ed.). Cinéma et réalités.
Paris: CIEREC; Université de Saint-Étienne,1984.

RAMOS, F. P. Mas Afinal... O que é mesmo documentário? São Paulo: Editora SENAC, 2008.

SOFIAN, S. The truth in pictures: explores the multifaceted world of documentary animation. FPS Magazine, p.
7-11, mar. 2005. Disponível em: www.fpsmagazine.com. Acesso em: 28 jun. 2009.

WARD, P. Documentary: the margins of reality. Londres: Wallflower Paperback, 2005.

WELLS, P. Understanding animation. Londres; Nova Iorque: Routledge; Taylor & Francis Group, 1998.

WINSTON, B. Claiming the real II, Documentary: Grierson and beyond. Londres: BFI, 2008.

YADIN, O. But is it documentary? In: HAGGITH, T.; NEWMAN, J. (Ed.). The Holocaust and the moving image.
Londres: Wallflower Press, 2003.

Referências audiovisuais

A is for autism. Tim Webb. Inglaterra, 1992, vídeo.

Dossiê Rê Bordosa. Cesar Cabral. Brasil, 2008, filme 35 mm.

Ryan. Chris Landreth. Canadá, 2004, filme 35 mm.

Silence. Sylvie Bringas; Orly Yadin. Inglaterra, 1998, vídeo.

The sinking of the Lusitania. Winsor McCay. Estados Unidos, 1918, filme 35 mm.

Trade tattoo. Len Lye. Inglaterra, 1927, filme 35 mm.

Valsa com Bashir (Waltz with Bashir). Ari Folman. Israel, 2008, filme 35 mm.

_____________________________________________________________

1. Trabalho apresentado na sessão 6 - Cinema como arte e vice-versa, no 14 Encontro Socine. Este trabalho contou com o
apoio de uma bolsa de mestrado financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

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O documentário animado e a leitura não-ficcional da animação - Jennifer Serra
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

2. Mestranda. E-mail: [email protected]

3. Ao usar o termo “atualidades”, Grierson refere-se às actualités, o cinema de atualidades produzido pelos irmãos Lumiére.
A proposta de Grierson para o documentário era produzir obras de arte, isto é, era fazer com que as “actualités” sofressem
um tratamento criativo e, portanto, fossem o produto de um produção intelectual, e não o mero registro do cotidiano.

4. Charlotte Salomon foi uma artista judia nascida em Berlim e morta em Aushwitz. Em sua série de pinturas autobiográficas
Leben? oder Theater?: Ein Singspiel (Vida? ou Teatro?: Uma comédia musical) ela retrata sua vida em Berlim na época do
nazismo, sendo por isso considerada como a Anne Frank das artes visuais.

257
Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória - Juliana Martins Evaristo da Silva
Documentário

Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória1

Juliana Martins Evaristo da Silva (UFRJ)2

“A experiência histórica faz-se pela imagem, e as imagens estão


elas próprias carregadas de histórias.”

(Giorgio Agamben, “O cinema de Guy Debord”)

A proposta do presente texto consiste em promover uma análise

comparativa entre Christian Boltanski e Chris Marker, tendo como horizonte

da reflexão o instrumental teórico de Walter Benjamin e de seus interlocutores

Georges Didi-Huberman e Giorgio Agamben acerca da imagem enquanto uma

potência, um lugar convergente das forças do passado e do futuro. O que vemos

de comum entre o artista plástico e o cineasta é a aposta de que a memória

possa se encontrar viva nas imagens a partir de uma operação que, à luz da

teoria benjaminiana, chamaríamos de dialética, enquanto contração temporal. No

entanto, a vida da memória nas imagens se encontra na forma como os arquivos

que as acolhem produzem também silêncios, na forma como suas lacunas são

exaltadas como potências significativas. É na incompletude que podemos forjar

uma memória, ainda que precária.

Quando de seu surgimento no século XIX, uma das primeiras formas de se

referir à fotografia aludia para a junção da primeira tecnologia da imagem (o espelho

e seu poder de criar duplos) com a reencarnação moderna da musa Mnemosýne

258
Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória - Juliana Martins Evaristo da Silva
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

e de sua luta contra o esquecimento. Para muitos, a fotografia encarnava um

verdadeiro espelho com memória.

Uma questão que o pensamento contemporâneo, incluídos aí o campo

fotográfico e o artístico, vem se colocando gira em torno de que memória o

legado da fotografia documental nos deixou como herança. O que faremos

com a quantidade de dados desse “arquivo universal” de imagens do mundo,

para usar a expressão de Rosângela Rennó. E ainda, uma questão mais

preeminente, qual o destino e a duração dessas imagens? Num mundo em que

cada vez mais tudo nasce para se tornar uma imagem, e nós não escapamos

deste paradigma, a pergunta pelo destino das imagens é na verdade uma

pergunta pelo nosso próprio destino.

Olhamos também para o desdobramento contemporâneo da produção

imagética, em que já sabemos anteriormente que perderemos a luta contra o

tempo. Como o tempo sempre apaga os sentidos ora construídos, passamos

a voltar-nos para seus vestígios. Assim, a fotografia moderna propunha muito

mais uma relação com o tempo, enquanto a fotografia contemporânea propõe

mais uma relação com o espaço e o que este pode oferecer de vestígios da

relação moderna com o tempo. Esta parece ser a pista para o uso da fotografia

documental e analógica na arte contemporânea e seu apreço pela fotografia

amadora, em que o afetivo se sobrepõe ao estético (não conhecemos trabalhos

contemporâneos de apropriação das imagens das vanguardas do início do

século XX, enquanto há uma abundância de obras que incidem nos diversos

arquivos da fotografia documental).

A fotografia pôs em cena o paradoxo de vivenciarmos uma presença que

surge como ausência, um resto que perdura da coisa, mas não é a coisa. Tal

encarnação presencial pode ser associada à leitura de Didi-Huberman da imagem

como resto, em que:

259
Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória - Juliana Martins Evaristo da Silva
Documentário

Alguma coisa permanece que não é a coisa, mas um farrapo


da sua semelhança. Alguma coisa – bem pouco, uma película
– resta de um processo de destruição: essa alguma coisa, ao
mesmo tempo em que testemunha uma desaparição, luta contra
ela, pois se torna a ocasião da sua possível memória. Essa coisa
não é nem a presença plena nem a ausência absoluta. Não
é a ressurreição nem a morte sem resto. É a morte enquanto
produtora de restos (DIDI-HUBERMAN, 2003, p. 206).

Um aspecto filosófico e também metodológico que perpassa todos os

autores que convocamos ao diálogo no presente texto é a concepção da história

como o tempo do anacronismo e de rupturas. Foucault explicita que “a história, com

suas intensidades, seus desfalecimentos, seus furores secretos, suas grandes

agitações febris como suas síncopes, é o próprio corpo do devir” (FOUCAULT,

1979, p. 20). Dessa forma, todos investem no reconhecimento da emergência do

acontecimento histórico – relação de forças que se invertem – como necessário

para a distinção de seus abalos, para o reconhecimento de seus ínfimos desvios.

Foucault, assim como Benjamin o fizera, nas suas análises históricas valoriza mais

os processos de ruptura e surgimento do novo do que a conservação do antigo. A

herança da genealogia de Nietzsche foi recuperada por Foucault, em toda a sua

instabilidade, na formulação de sua teoria da descontinuidade. A genealogia lida

com a pesquisa da proveniência e da emergência do acontecimento histórico.

A proveniência evidencia a heterogeneidade e fragmentação do corpo do

acontecimento na história. A emergência é o momento de atuação das forças, que

saem dos bastidores para a arena teatral da história.

Tal história de rupturas visa a não promover uma totalização – é a história

como o campo do aberto benjaminiano, em que não só o futuro é incompleto,

como também o passado e o presente o são. Nesta concepção historiográfica a

relação é mais importante do que os termos isolados, pois é sempre um presente

que recupera algo de um passado e assim se transforma a si mesmo em um futuro

diferente. A forma como Benjamin pensava a prática historiográfica conjugava

260
Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória - Juliana Martins Evaristo da Silva
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

uma dimensão redentora e outra revolucionária, as quais bebiam das tradições do

messianismo judaico e do socialismo libertário. Em sua teoria da historia, a espera

da redenção é o que a completa, uma completude que vem da falta, uma vez que o

messias nunca vem. A redenção é de ordem relacional, pois o que ela põe em jogo

é a relação do passado com o presente, um passado ou recalcado ou vencido ou

esquecido que deve ser redimido pelo presente. Nas “Teses sobre o conceito de

história”, Benjamin (1986) enfatiza que essa recuperação do passado não visa à

apreensão de como o passado realmente aconteceu, mas de como esse passado

se apresenta ao presente. Portanto, a missão messiânica em Benjamin não é

exatamente recuperar o passado, mas criá-lo em referência ao presente.

Walter Benjamin, como um seguidor de Nietzsche, investiu numa história

de agoras, recusando uma compreensão da história como um continuum e

preocupando-se em perceber os saltos promovidos pelos acontecimentos

históricos. Contra o tempo cronológico e linear, Benjamin passa a valorizar a

irrupção que ocorre no instante, nos saltos da história. O instante, em sua visão,

comporta uma temporalidade convergente. Ele é um ponto de encontro do

passado e do futuro no presente. Em sua concepção, o tempo se encontra em

constante luta para se engendrar um sentido. No corpo da história há disputas a

cada instante, a cada instante abrem-se possibilidades, cada instante é o juízo

final. Portanto, o juízo final não está no final, mas no agora. É o presente cheio de

possibilidades. Esta concepção de tempo aposta numa temporalidade de Kairos,

da oportunidade que nasce a cada instante num momento de risco e, portanto,

demandando atenção para com a sua irrupção. Benjamin associa o fazer do


historiador ao fazer do fotógrafo, pois ambos criam cristalizações com tensões de

diversas naturezas, como uma mônada.

A personagem conceitual do anjo em sua obra ocupa esse lugar da

atualidade. É ele que vê o progresso como uma catástrofe que deixa para traz um

amontoado de ruínas. O anjo se encontra na confluência de duas temporalidades:

uma do tempo do adiamento, do porvir, e a outra do tempo dilatado no interior

do instante, garantindo-lhe uma singularidade. Assim como o anjo que simboliza

261
Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória - Juliana Martins Evaristo da Silva
Documentário

o portal do instante, o historiador deve se ocupar da redenção de fragmentos

perdidos no que estes contêm de inexpresso.

Na Modernidade ocorre a valorização do instante/fragmento num momento

de crise da totalidade, quando o instante obtém importância como possibilidade

de se vivenciar o presente no presente. Para Benjamin, a experiência concreta,

que se diferencia da experiência vivida individualmente, só é possível a partir de

uma matriz coletiva. A experiência é uma transmissão de sabedoria vinculada

à tradição, sendo a percepção da semelhança uma experiência aurática. Na

Modernidade, perdemos a tradição, mas ganhamos o atual. A perda da experiência

na Modernidade, de que nos fala Benjamin, associa-se à nova forma de vivenciar

um mundo em que “tudo o que é sólido desmancha-se no ar”, como na famosa

frase de Marx – um mundo em constante transformação, fragmentado, em que

o choque se sobrepõe ao reconhecimento. Não há experiência fora do tempo.

No entanto, na sociedade industrial não podemos mais viver ao ritmo do tempo

natural. As semelhanças estavam mais presentes nas sociedades tradicionais do

que nas modernas. Portanto, sua percepção requer mais trabalho.

No texto “A doutrina das semelhanças”, há uma aproximação da imagem

da história com a semelhança, que deve se percebida no tempo – portanto, na

emergência da diferença, no interior do devir. Em suas palavras:

Mas o momento do nascimento, que é decisivo, é apenas


um instante. Isso evoca outra particularidade na esfera do
semelhante. Sua percepção, em todos os casos, dá-se num
relampejar. Ela perpassa, veloz, e, embora talvez possa
ser recuperada, não pode ser fixada, ao contrário de outras
percepções. Ela se oferece ao olhar de modo tão efêmero e
transitório como uma constelação de astros. A percepção das
semelhanças, portanto, parece estar vinculada a uma dimensão
temporal (BENJAMIN, 1986, p. 110).

262
Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória - Juliana Martins Evaristo da Silva
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Esta dimensão temporal pode ser associada à leitura de Agamben sobre

a montagem cinematográfica e sua relação com a história, em que o filósofo

enfatiza as condições transcendentais de um tipo específico de montagem, a qual

lida com a repetição e a paragem (AGAMBEN, 2007). A repetição torna o isso foi

em um isso teria sido. No texto, Agamben ressalta que a repetição não é o retorno

do mesmo: ela não se constitui como uma identidade em si mesma, mas como a

possibilidade do que foi. A ideia da repetição traz a da paragem, como uma dupla

face da mesma moeda. Com a paragem do fluxo de imagens podemos estabelecer

uma nova relação entre elas. Assim como o “eterno retorno” de Nietzsche não é o

do mesmo, pois se constitui num retorno na diferença, a percepção da semelhança

em Benjamin é também dependente da diferença, ocorrendo no tempo.

A questão da aura, como a percepção da semelhança, aparece na obra

de Benjamin, em seus textos sobre a linguagem, como resíduo da criação. Assim,

ter uma experiência da aura é reconhecer o poético das coisas, é olhar e ser

visto. No texto “A pequena história da fotografia” (BENJAMIN, 1986) já aparece o

conceito de aura, que será retomado no texto sobre a questão da reprodutibilidade

técnica como a aparição única de algo distante por mais próximo que se esteja.

Dessa forma, os termos “aparição”, “única” e “distância” indicam a irrupção e a

fugacidade como os componentes espaciais e temporais desta experiência – a

inacessibilidade e a irrepetibilidade.

Benjamin mantém uma relação ambígua com a fotografia, uma vez que a

fotografia, a primeira técnica de reprodutibilidade revolucionária, ao mesmo tempo

em que promove a destruição da aura (a percepção da semelhança), é a forma mais

eficaz de captar o semelhante e promover a interrupção temporal cara à concepção

do fazer historiográfico em Benjamin. Em sua concepção, o fazer do historiador

aparece associado ao fazer do fotógrafo, pois ambos criam cristalizações com

tensões de diversas naturezas, como uma mônada. A imagem fotográfica, assim

como o acontecimento histórico, possui um vestígio do inacabado.

263
Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória - Juliana Martins Evaristo da Silva
Documentário

Para Benjamin, existe um futuro acolhido pelas imagens que clama por

compreensão. Esta é uma possibilidade aberta pelo fato de que nem tudo que

existe na imagem pode ser compreendido em sua própria temporalidade. A

centelha de que nos fala Benjamin ocorre quando algo que estava adormecido na

imagem pode ser finalmente percebido. Portanto, a fotografia, em suas análises,

aparece como portadora tanto de índices de passado quanto de futuro. O que

leva Didi-Huberman a falar das imagens como um aglomerado de anacronismos.

O que interessa na imagem é o porvir. Didi-Huberman enfatiza que diante da

imagem estamos diante do tempo, com sua distância e sua dinâmica.

Podemos salientar a importância da leitura de Proust e de sua memória

involuntária para a formulação de Benjamin do olhar correspondido entre passado

e presente. Para ambos, o que interessava não era a recuperação de como o

passado realmente aconteceu, mas a imagem de passado que se projeta ao

futuro, ou, antes, como o passado se apresenta ao presente, como o presente

pode perceber analogias e semelhanças com o passado, sendo tal percepção

uma fonte infindável para tudo o que veio antes e depois. Benjamin escreve que

o semelhante emerge na temporalidade de um relâmpago de forma efêmera e

transitória, vinculando-se ao instante. Tal temporalidade se encontra em constante

movimento e em disputas por engendrar um sentido.

Entre Proust e Benjamin há ainda outro filósofo – Henri Bergson. Proust

e Benjamin compartilham com Bergson algo de sua concepção de tempo e

memória, no que concerne à coexistência temporal, mas se afastam de sua crítica

ao instante como artificialidade da experiência. Para Bergson, não há nada que

nos obrigue a separar o tempo em passado e presente, sendo o espaço atual e o

tempo virtual. Dessa forma, o tempo puro é a duração e o que dura é indivisível.

A experimentação desse tempo essencial não permite uma espacialização do

tempo. A ideia da coexistência temporal pressupõe que o passado não sucede ao

presente, afastando-se de um tempo linear e cronológico. Para ele, o passado tem

presente e o presente tem passado, ou há percepção na memória e memória na

percepção. Nossa atualidade se constitui pelo campo do sensório-motor, em que

264
Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória - Juliana Martins Evaristo da Silva
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

a sensação é do passado e o motor (o movimento) é do futuro. O presente é o que

passa e o passado é o que se conserva em circuitos virtuais até sua atualização.

O passado, ao se conservar em circuitos virtuais, os quais contêm todo o nosso

passado, constitui-se como condição da passagem do tempo. Este campo do

sensório-motor é o que nos leva a agir no solo onde o presente é o ponto móvel e

o passado é o fundamento do tempo.

Proust e Benjamin também apostam numa não linearidade do tempo, mas,

diferentemente de Bergson, veem na espacialização do tempo, com o instante

privilegiado da memória involuntária e da imagem dialética, a possibilidade de

vivência de um tempo puro, em que há uma convergência das forças do passado

e do futuro no presente, conferindo densidade temporal ao instante. Assim,

Proust busca uma saída do tempo e uma fuga da morte com a suspensão do

tempo cronológico, para se experimentar uma eternidade, nem que seja por um

instante, e Benjamin busca interromper o tempo cronológico, parar o contínuo

com uma ruptura, promovendo um congelamento do fluido como uma mônada.

Aqui encontramos uma cissão de proposta: para Proust, o tempo redescoberto

é redimido pela arte, enquanto para Benjamin a intensificação do tempo tem por

finalidade a ação política na história, mesmo que essa ação política seja estética.

Gostaríamos agora de iniciar nossa comparação entre Christian Boltanski

e Chris Marker com um famoso comentário de Benjamin sobre a fotografia de Hill

(Figura 1) de uma vendedora de peixes. Segue o comentário:

Mas na fotografia surge algo de estranho e de novo: na


vendedora de peixes de New Haven, olhando o chão com um
recato tão displicente e tão sedutor, preserva-se algo que não
se reduz ao gênio artístico do fotógrafo Hill, algo que não pode
ser silenciado, que reclama com insistência o nome daquela que
viveu ali, que também na foto é real, e que não quer extinguir-se
na “arte” (BENJAMIN, 1986, p. 93).

265
Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória - Juliana Martins Evaristo da Silva
Documentário

Christian Boltanski parece escutar o clamor da vendedora de peixes

fotografada por Hill, deixando transparecer em sua obra sua angustia por não

conseguir lhe dar seu nome. A verdade é que seu nome encontra-se perdido, a

fotografia não lhe garantiu a permanência, não sabemos quem foi essa vendedora

de peixes, se foi amada ou se amou, se sofreu ou fez sofrer. Para Boltanski, a

fotografia tanto preserva quanto mata, pois existe uma relação inextricável entre

tempo e morte abordada em sua obra, em que o tempo sempre acaba por apagar

o sentido das coisas. No entanto, seu trabalho não deixa de dizer respeito às vidas

representadas nas fotografias coletadas para suas instalações, travando uma luta

contra a perda de sentido, mas sabendo de antemão que esta é uma luta inglória.

Boltanski começou seu trabalho artístico por volta dos anos sessenta do

século XX, sendo um pioneiro num tipo de obra que tem por intuito a desconstrução

do grande inventário construído pela fotografia documental do século XX. Outra

marca de seu trabalho encontra-se na vontade de transcender os lugares

determinados para a arte. Suas exposições frequentemente saem do espaço do

museu para ruas, igrejas, parques, seções de achados e perdidos em estações

de metrô, entre outros lugares. Boltanski afirma ser um pintor, mas um pintor que

pinta com as ferramentas da pintura da segunda metade do século XX. É uma

constante em sua obra a reutilização metafórica de objetos com caráter indiciário,

com especial interesse por fotografias de anônimos e de roupas pertencentes a

pessoas que não existem mais.

Descendente de uma família judia no pós-guerra em Paris, Boltanski teve

acesso a uma memória de segunda mão da guerra. Ele não a viveu diretamente,

mas as histórias que ouvia sobre ela, de pessoas que a viveram, moldou seu

imaginário sobre o horror. Ele se considera como uma criança do Holocausto

e seu trabalho de uma forma ou de outra sempre aborda este tema, como

na instalação “Théâtre d’Ombres”, de 1984, em que os fantasmas de nossa

memória vêm nos assombrar sob a forma de caveiras que dançam a dança

da morte. O século XX, com suas guerras e genocídios, aparece em sua obra

como uma fonte inesgotável de assombramento, debruçando-se mais sobre o

266
Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória - Juliana Martins Evaristo da Silva
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

que chama de pequena memória. O trabalho intitulado “Sans Souci” é fruto de

uma compilação de fotografias achadas num mercado de pulgas em Berlim,

contendo imagens de oficiais da SS comemorando o Natal, sorrindo com suas

noivas e cercados por crianças. Talvez estas próprias crianças tenham crescido e

descartado essa memória familiar que remetia ao nazismo, mas o que interessa

de fato a Boltanski nesta obra é mostrar que pessoas normais cometem atos

criminosos, que um agente da polícia nazista poderia abraçar seu filho de manhã

e matar milhares de crianças à tarde.

Datas ligadas por fios, roupas espalhadas por salas, fotografias de crianças

envoltas por velas e lâmpadas, olhos que nos miram na rua. O que estes restos de

existência querem nos dizer? Boltanski não nos dá uma resposta definitiva. Seu

procedimento consiste em recolhê-los, nos mais diferentes arquivos encontrados,

e agrupá-los, sem hierarquizá-los, no intuito de evidenciar a relação existente

entre tempo e morte. O artista questiona a possibilidade de nós, espectadores de

suas instalações, percebermos os sentidos contidos nesses vestígios. Boltanski

estabelece uma relação ambígua com as fotografias e outros restos do passado

que foram apropriados pelo seu gesto artístico. Sua presença se coloca para

exacerbar sua ausência. O artista tem especial apreço por objetos que mantiveram

uma relação de contiguidade física com as pessoas que os possuíram; assim, os

transforma em emblemas metonímicos, da parte que fala de um todo, mas como

fragmentos da perda, e também, utiliza-se de simbolismos, como o uso de velas e

lâmpadas para aludir à vulnerabilidade da vida.

Para Agamben, assim como para Benjamin, as fotografias exigem algo de

nós, o sujeito fotografado nos demanda que lhe demos um nome. A seu ver,“[...]

Mesmo que a pessoa fotografada fosse hoje completamente esquecida, mesmo

assim, apesar disso – ou melhor, precisamente por isso – aquela pessoa, aquele

rosto exigem o seu nome, exigem que não sejam esquecidos” (AGAMBEM, 2007,

p. 29). Neste sentido, Boltanski parece não cumprir a missão imposta pelas

imagens. Para ele, quando não reconhecemos a pessoa fotografada o que se

passa é uma segunda morte. No entanto, sem seus nomes elas permanecem

267
Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória - Juliana Martins Evaristo da Silva
Documentário

como potências de nomes. O que não tem nome permanece como uma questão,

como um nome que não perdemos no ato de nomear. Boltanski lida também com a

possibilidade de postergar um pouco mais esta segunda morte, pois as fotografias

expostas sempre podem vir a ser reconhecidas.

Giorgio Agamben (2002), em “Le visage”, argumenta que todos os seres

vivos se encontram no aberto, mas só o homem quer se apropriar dele, conferindo-

lhe um sentido, sendo a linguagem o modo pelo qual o homem se apropria do

aberto, dando-lhe um rosto. Desta forma, revelar o rosto das coisas é o papel da

linguagem. Os humanos criam um mundo no interior de seu mundo, diferenciando-

se dos animais que interagem com o mundo no nível do afeto, sem lhe conferir um

sentido. Quando lidamos com o aberto, a possibilidade infinita de significação, via

linguagem, e nomeamos algo, fechamos um pouco o aberto. No ato de nomeação

reside um paradoxo, pois quando nomeamos algo perdemos este nome também.

No entanto, ao produzirmos um nome instauramos uma nova abertura, um novo

mundo – se nomeamos verdadeiramente, se há resquício do poético, este nome

poderá ser nomeado novamente. A transformação da abertura em nomes se dá

permeada de lutas que visam à separação das coisas de seus nomes. Este campo

de batalhas pelo nome das coisas se chama História, diz Agamben.

Encontramos aqui uma cisão entre o gesto do artista e o gesto do historiador,

pois, como continua Agamben:

Na mesma perspectiva, também penso que a exigência


que nos interpela pelas fotografias nada tem de estético.
Trata-se, antes, de uma exigência de redenção. A imagem
fotográfica é sempre mais que uma imagem: é o lugar de
um descarte, de um fragmento sublime entre o sensível e o
inteligível, entre a cópia e a realidade, entre a lembrança e a
esperança (AGAMBEN, 2002).

268
Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória - Juliana Martins Evaristo da Silva
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Benjamin fala que todos os acontecimentos, mesmo os mais ordinários,

requerem seu nome, sendo estes, os ordinários, até mais importantes para o

historiador, pois os grandes acontecimentos já possuem seus nomes. Em Boltanski

há um pessimismo, em que o tempo vence o sentido, mas seu gesto não fecha as

possibilidades das fotografias: elas permanecem em busca de seus nomes como

potências. A memória que Boltanski compõe é uma memória fragmentária da falta.

Marker começou a filmar por volta da década de 50 do século XX,

momento em que se iniciava a Nouvelle Vague e o documentário passava por um

deslocamento, com novas possibilidades técnicas e estéticas. Marker foi um dos

pioneiros do ensaio fílmico, em que “as paixões invocam o saber, as emoções

arquitetam o pensamento e o estilo burila o conceito” (MACHADO, 2009, p. 29), ou

seja, assim como sua contrapartida textual, o ensaio fílmico transita entre o literário

e o filosófico, trazendo de forma explícita algo da subjetividade de quem o produz

para se falar do mundo. Alexandre Astruc, no final da década de 1940, formulou

o conceito de câmera-caneta para falar desta nova possibilidade audiovisual

de fabulação dos significados do mundo. Marker foi um grande utilizador dessa

técnica. Em seus filmes encontramos imagens de diversas procedências, imagens

de arquivo, imagens documentais e encenadas, imagens apropriadas e produzidas

por ele, as quais articula com textos escritos e orais, sem, no entanto, apaziguar

a relação entre imagem e texto, mantendo uma tensão e valorizando, assim, o

trabalho de montagem como produtor de sentido para o filme. O gesto que permeia

a prática de Marker é o da apropriação crítica de um material heterogêneo.

Mesmo seus filmes mais ficcionais trazem um aspecto filosófico em torno

das questões do tempo, da memória e da subjetividade. Em La Jetée, de 1962,

seu cinefotorromance de ficção científica, filme criado a partir de fotografias,

Marker constrói uma temporalidade marcada pela simultaneidade, um tempo

em que o passado, o presente e o futuro coexistem. O filme apresenta um

tempo reversível em que, a partir de uma imagem da infância, o personagem

principal, num futuro sombrio, marcado pela eclosão da terceira guerra mundial,

consegue viajar ao passado e ao futuro.

269
Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória - Juliana Martins Evaristo da Silva
Documentário

Quase quarenta anos decorridos de La Jetée, em 2001 Marker se volta

novamente para a montagem com fotografias no filme Lembranças de um porvir.

Nele encontramos um procedimento benjaminiano de perscrutar nas fotografias

de Denise Bellon, produzidas no entre guerras, os sinais de futuro que se

inscreveram nas imagens. Assim, o filme percorre a produção dessa fotojornalista,

suas viagens à África colonial, à Espanha de Franco, suas fotografias das ruas

de Paris, das exposições universais e dos surrealistas, para averiguar (tal como

o anjo da fotografia de Benjamin que olha o amontoado de ruínas decorrentes do

progresso) e perceber o que suas imagens contêm da sombra da guerra por vir.

Outro aspecto de sua obra se encontra num questionamento das imagens

que apresenta. Em Sans soleil, de 1982, há uma mistura de documentário e

ficção que lhe permite questionar o próprio processo de feitura do filme e de que

memória está sendo produzida por ele. Uma voz feminina lê cartas que seriam do

cineasta viajante Sandor Krasna (não sabemos se é um recurso dramático ou se

de fato tal cineasta existe) em off, conjugando os tempos verbais na condicional.

Para Consuelo Lins, “a voz tensiona o que vemos na imagem, insere nela

temporalidade, injeta memória, insufla devir” (LINS, 2009. p. 37). O percurso

do viajante cineasta tem por cenário “os dois pólos extremos da sobrevivência”,

o Japão e a África. Na Guiné-Bissau, a voz se pergunta como o passado se

faz presente ali, no rosto das mulheres no mercado. Em outra parte do filme,

a voz vislumbra um homem que teria vindo do futuro, de um tempo em que a

humanidade não padeceria mais de esquecimento. O cérebro humano funcionaria

em sua totalidade, gerando uma memória total que, consequentemente, é uma


memória anestesiada. Este homem do futuro, que perdeu o esquecimento, não

compreende as doenças do tempo. Para ele, não faz sentido se emocionar com

uma fotografia, com uma música há muito não ouvida.

Em seus filmes, são recorrentes personagens marcadas por imagens,

em especial por imagens da infância, o que é uma busca pelo sentido delas e

aponta para o fato de esse sentido estar sempre associado à forma com que

nos afetamos pelas imagens, mesclando, assim, sempre uma parte subjetiva ao

270
Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória - Juliana Martins Evaristo da Silva
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

processo de significação. Outra característica que acompanha sua abordagem

imagética é o interesse pela memória, mas a memória em questão é aquela de

que nos fala Benjamin, a memória tecida pelo esquecimento e que, para emergir,

necessita de uma força destrutiva, como o trabalho do arqueólogo que deve

destruir o solo sedimentado pelo tempo para que a memória surja como ruína.

Esse procedimento faz com que de tempos em tempos seja necessário que

voltemos a algumas imagens, pois há sempre algo que se perde entre a imagem

da memória e a memória da imagem.

Enquanto Christian Boltanski promove uma suspensão da nomeação que

faz o nome permanecer como potência de nome, Chris Marker trabalha em torno

da paragem e da repetição das imagens, compondo uma montagem heterogênea.

Assim, com estratégias diferenciadas, ambos estão em busca de uma possível

redenção das imagens em seu processo de apagamento.

271
Christian Boltanski e Chris Marker: imagem e memória - Juliana Martins Evaristo da Silva
Documentário

Referências bibliográficas

AGAMBEN, G. Le visage. In: ______. Moyens sans fins: notes sur la politique. Paris: Éditions Payart e Rivages,
2002.

______. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.

BENJAMIN, W. Magia e técnica , arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1986.

Boltanski. Time. Mathildennhohe Darmstadt.

CHARNEY, L.; SCHWARTZ, V. R. (Org.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998.

______. Images in spite of all: four photographs from Auschwitz. Chicago: The University of Chicago, 2008.

LINS, C. O documentário entre a carta e o ensaio fílmico. In: CATÁLOGO: Chris Marker: Bricoleur Multimídia. Rio
de Janeiro; São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil, 2009.

LISSOVSKY, M. A máquina de esperar: origem e estética da fotografia moderna. Rio de Janeiro: Mauad X, 2008.

MACHADO, A. O filme-ensaio. In: CATÁLOGO: Chris Marker: Bricoleur Multimídia. Rio de Janeiro; São Paulo:
Centro Cultural Banco do Brasil, 2009

_____________________________________________________________

1. Mesa, sessão 2: Documentário, Arquivo e Memória.

2. Doutoranda; CNPq, Bolsista . E-mail: [email protected]

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Forma-ensaio e documentário-biografia: contaminações, jogos, estética e política - Patrícia Rebello da Silva
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Forma-ensaio e documentário-biografia:

contaminações, jogos, estética e política1

Patricia Rebello da Silva (UFRJ)

Esta comunicação tem como objetivo entender os meios pelos quais

a forma “ensaio” contamina certos documentários biográficos no Brasil, em

sua construção narrativa mais tradicional, e os transformam em ensaios

autobiográficos. A dimensão ensaística, nos filmes que vamos analisar aqui, opera

na diferenciação da abordagem biográfica clássica: não compram os dados e as

informações como “cúmplices”, mas sim como o princípio do questionamento

que está na origem da biografia. A história que é contada é menos um produto

da reunião de conceitos, datas e clichês que um questionamento a partir do ato

de colocar em confronto esses elementos.

Pan-cinema permanente (2008), de Carlos Nader, e Person (2007), de

Marina Person são dois filmes próximos e distantes, ao mesmo tempo. Ambos

são documentários-biográficos, quase uma subdivisão dentro dos vários

modos de pensar o documentário; ambos falam de pessoas muito próximas

dos respectivos realizadores; e exatamente por conta dessa proximidade, e do

sentimento que levou à realização dos filmes, ambos acabam confundindo e

misturando autor e personagem, biógrafo e biografado. Um traz imagens do

excesso de convivência; o outro, da falta.

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Forma-ensaio e documentário-biografia: contaminações, jogos, estética e política - Patrícia Rebello da Silva
Documentário

O resultado disso são dois filmes nos quais não se sabe bem “quem fala

sobre quem”: se o realizador sobre o personagem na tela, ou se as imagens do

personagem na tela sobre o realizador.

Pequena biografia das biografias no documentário brasileiro

Desde os primeiros filmes, o documentário manteve uma relação regular

com a produção de biografias. O crítico Jean-Claude Bernardet, ao se debruçar

sobre a história do cinema brasileiro, escreveu que, por volta da década de

1920, o mercado nacional estava dominado pelo produto importado.2 Segundo

Bernardet, o que permitiu a existência de uma indústria cinematográfica

local, durante este período, foi o documentário, dominado por um forte traço

regionalista. Na maior parte das vezes, era feito por encomenda, e recebia o

nome de filme de cavação.3 O filme de biografia, de teor elegíaco, que narra

cronologicamente a vida e os feitos de políticos, militares e industriais, era uma

das modalidades de documentário praticadas então.

Em 1937, o surgimento do INCE,4 parte de um projeto de governo de

Getulio Vargas que apostava na construção de uma identidade fundamental

para o desenvolvimento do país, consolida um tipo de documentário percebido

por um prisma didático, essencialmente voltado para a educação. Comprometido

com o teor informativo, organizado, na maioria das vezes, a partir de um texto

narrado em off, preocupado com a transmissão de conhecimento científico e com

a preservação da cultura, entre os anos 1930 e os anos 1960 o INCE consolidou

um cinema-informação, que priorizava o conteúdo da narrativa, em detrimento

da forma,5 e que se estende para além do próprio período de existência do

instituto. Dentro desse contexto, orientado pelo didatismo e pelo compromisso

com a divulgação de saber, biografias de personalidades históricas, de escritores

e políticos compõem uma boa parte do repertório.6

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Forma-ensaio e documentário-biografia: contaminações, jogos, estética e política - Patrícia Rebello da Silva
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

De certa maneira, podemos atribuir às transformações de linguagem no

filme- biografia os mesmos marcos que determinam os deslocamentos operados no

documentário brasileiro. Até o final da década de 1950, imperava essencialmente

o discurso de elogio e valorização do Brasil grande e exótico. A partir dos anos

1960, o cinema brasileiro é atravessado pelos desvios e modificações sofridos

pelas cinematografias europeia e estadunidense do pós-guerra;7 no documentário,

essa influência se manifestou na introdução das técnicas do cinema-verdade e

do cinema-direto, que, “pela primeira vez, deslocam o eixo educativo-científico

que permeia a voz e o foco narrativo do documentário brasileiro até meados

dos anos 1960” (RAMOS; MIRANDA, 2004, p. 186). Se existe a consciência de

que o país continua grande, ela agora é mais sensível à problematização e à

construção de uma linguagem interessada em produzir um movimento de reflexão

no espectador. A introdução do som direto, permitindo a utilização criativa da

técnica da entrevista, o uso irônico da voz em off, pontuando a crítica ao didatismo

do período anterior, e a portabilidade do equipamento, trouxeram conquistas e

modificações na linguagem dos filmes.

Segundo Fernão Ramos, duas biografias estão na raiz dessa transformação

no cinema brasileiro: O poeta do castelo e O mestre de Apicucos, ambos de

Joaquim Pedro de Andrade.8 Marcados por uma abordagem subjetiva e pela


exploração de um ponto de vista que desloca seus personagens da condição

de monumentos, os dois filmes se caracterizam pelo desvio agudo da “função

social” das biografias: construídos a partir de informações “desnecessárias e

cotidianas”,9 valorizando o personagem privado em detrimento da figura pública e

as pequenas histórias no lugar das grandes epopeias, foi a partir desse momento

que o documentário brasileiro começou a traçar uma história que enviesaria pelo

campo da subjetividade, da reflexão, da investigação dos limites entre o público e

o privado, entre fato e ficção; os personagens dos filmes-biografia começariam a

ser construídos menos pelo vasto campo de acontecimentos de uma vida inteira

do que pelos fenômenos de ruptura, pela concentração do discurso em fragmentos

de existência. Forma e conteúdo começam a ser pensados de maneira orgânica.

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Forma-ensaio e documentário-biografia: contaminações, jogos, estética e política - Patrícia Rebello da Silva
Documentário

Durante os anos 1980, uma verdadeira explosão de filmes-biografia

sobre personagens e personalidades históricas acontece no documentário.10

Vivendo o último período de uma opressiva ditadura de quase 20 anos, esses

filmes expunham situações absurdas a partir do uso de uma linguagem irônica,

reflexiva, militante e urgente, desdobrando e reinventando a realidade a partir

de todas as técnicas que, ao longo dos últimos 80 anos, haviam revolucionado

a escrita do cinema documentário.

A partir dessa breve incursão à história dos filmes-biografia, percebe-se

que, ao longo dos anos, o documentário se notabilizou por um deslocamento

criativo em relação ao referencial secular ao qual foi habitualmente associado:

mais que dar conta do real, consolidou-se como uma arena privilegiada de

confronto entre as várias formas que a imagem assume; e, consequentemente,

como essa outra imagem, à qual se atribui um terceiro sentido11, devolve o reflexo
distorcido no espelho. A partir dessa constatação, podemos perceber a instalação

da forma-ensaio no documentário, menos por uma perspectiva experimental, que

por uma dimensão reflexiva e original do discurso.

A forma-ensaio no cinema

Pensar o ensaio no cinema nos leva, em um primeiro momento, a noções

de deslocamento e argumentação. Bill Nichols, responsável pelo estabelecimento

de categorias para o documentário a partir de modos de representação, chama

esses filmes de reflexivos. Na contramão de boa parte dos documentários que

buscam dar conta do mundo histórico, escreve Nichols (1991, p. 57), os filmes

reflexivos estão mais interessados em pensar a forma como se fala sobre ele.

Textos reflexivos, segundo o autor, “são autoconscientes não apenas a respeito

de forma e estilo, (...) mas também sobre estratégia, estrutura, convenções,

expectativas e efeitos”. Para além de definir algumas das principais características

deste modo, Nichols observa que os documentários podem ser reflexivos a

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Forma-ensaio e documentário-biografia: contaminações, jogos, estética e política - Patrícia Rebello da Silva
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

partir de perspectivas tanto formais quanto políticas.12 Filmes como Pan-cinema

permanente e Person reafirmam uma tendência saudável no documentário

contemporâneo de se mover em direção ao espaço das metamorfoses e das

ambiguidades. Existe menos comprometimento com a construção da imagem,

que quanto há uma atitude de observação da sua modificação. Diferentes de

grande parte dos filmes-biografia, mais comprometidos com a lógica didática,

que, como definiu de forma fundamental o crítico Jean-Claude Bernardet

(285,2003), fizeram da entrevista o “feijão com arroz” dos documentários, os

filmes de Carlos Nader e Marina Person se destacam exatamente por deslocar

as posições de realizador e personagem e, com isso, modificar de forma radical

o filme que saíram de casa para fazer.

Pan-cinema permanente: a biografia de um ensaio

A primeira cena é emblemática,13 e determinante, para que se compreenda

o filme: uma porta aberta é filmada, do ponto de vista de dentro do apartamento.

Uma legenda nos situa no tempo e no espaço da tela: Manaus, 1998.

“Posso?”, pergunta a voz do outro lado da porta. “Espera aí”,

devolve a câmera, “mas fecha a porta...”. (um riso alegre e solto vem da

porta). Uma mão, surgindo de fora de campo, puxa a porta pela maçaneta

e a fecha. “Vai”, diz a câmera.

Em cena, Waly Salomão, cantando, de calça, sem camisa; deslizando

pelo apartamento, nunca deixando de se dirigir à câmera. Para em frente à

janela, olha para fora e, sempre com gestos amplos e fartos, comenta que a

música que canta é bonita, e que tem uma coisa de “sentimentaloide”, que não

é da ordem do urbano, mas da ordem do homem isolado, dos homens de beira

de rio, que habitam “essas imensidões e essas solidões”... Fim de cena. Dessa

cena, que é apenas uma entre as milhares que compuseram a vida do poeta

e agitador cultural Waly Salomão, morto em 2003. Pan-cinema permanente,

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Forma-ensaio e documentário-biografia: contaminações, jogos, estética e política - Patrícia Rebello da Silva
Documentário

além de ser o título de uma poesia que Waly dedicou ao amigo Carlos Nader, é

também um encontro (ou uma busca) de Nader de uma estética adequada para

a composição de um documentário sobre Waly.

Por cerca de 15 anos, Carlos Nader filmou Waly Salomão nas mais

diversas circunstâncias, cidades e países. “Pan-cinema permanente, tanto quanto

sobre Waly ou com Waly, é sobre a visão de mundo do Waly”.14 Nader passou dois
anos montando, escrevendo e reescrevendo o roteiro de edição, onde buscou

amarrar três diferentes linhas narrativas: a primeira, o retrato do personagem, uma

imagem polifônica, caleidoscópica e não linear (não há uma ordem cronológica

na aparição das imagens, que vêm e voltam no tempo); a segunda, mais linear e

cronológica, informa o espectador sobre a biografia de Waly: pela voz do próprio,

e de outros entrevistados, descobre-se que o pai de Waly era da Síria, que no

aniversário de oito anos pediu um bolo em forma de livro, que cursou Direito,

que foi preso, que na prisão começou a escrever, entre outras coisas; a terceira

linha é “um ensaio sobre cinema, cinema sobre cinema, cujos autores de certa

maneira somos eu e o Waly e, em certa medida, também o Antonio Cícero (que

escreveu um artigo póstumo sobre o Waly que influenciou todo o filme).”15 O filme
se estrutura a partir do entrelaçamento dessas três linhas, sempre atravessado

por uma discussão sobre o estar, ou não, em cena.

Noções de campo, fora de campo e extracampo estão entre as principais

referências da construção narrativa do filme. Não no sentido baziniano, que

intervém sobre a montagem quando ela peca por ultrapassar os limites, e acaba

por escapar da densidade do real,16 mas mais próximo de uma noção dialética
do cinema apontada por Noel Burch, e que encerra possibilidades bastante

complexas. Partindo do princípio de que campo é tudo aquilo que o olho percebe

na tela, Burch desenvolve três definições através das quais o espaço-fora-de-

tela torna-se parte integrante da narrativa: ele pode ser definido pelos pontos de

entrada e saída dos personagens, pelo olhar em off (que define o espaço atrás

do qual se acha o ponto de atração) e quando apenas uma parte do corpo do

personagem aparece na tela. A cena de abertura do filme, onde Waly, de fora da

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Forma-ensaio e documentário-biografia: contaminações, jogos, estética e política - Patrícia Rebello da Silva
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

cena, estica o braço para fechar a porta, e o constante direcionamento do olhar

para a câmera são traços indicativos da importância de um espaço extracênico

como extensão da cena. A ausência de um contraplano que dê conta do espaço

onde recai o olhar do personagem ganha corpo na imaginação do espectador e

necessariamente o obriga a ficar atento para a existência desse fora-de-campo.

A ideia do personagem é que está constantemente em cena o tempo todo dita a

tônica da narrativa e da própria estrutura. E as escolhas que Nader faz para criar

imagens e sons que consigam dar conta dessa opção e do que ela significa é que

colocam o filme em um movimento entre um documentário clássico e um ensaio.17

Person: o ensaio de uma biografia

Marina Person optou por começar o filme que fez em busca da figura do

pai, o cineasta Luiz Sergio Person, morto em 1976, pela dor que vem junto aos

momentos de transformação. O filme começa pelas recordações da diretora

do dia da morte do pai. E é de recordações que Marina precisa: para ligar

a imagem do pai que aparece nos filmes de família à do elogiado diretor de

filmes como São Paulo S/A (1965).18

Marina Person desenvolveu um jeito muito específico de se relacionar com

a ausência do pai, que ela perdeu aos 6 anos: a partir dos filmes de família em

super-8. Estar com o pai a partir daquelas imagens é a sutil diferença entre se

relacionar com o pai e com a ausência do pai. Na falta da materialidade, fica

o fantasma. E é na fantasmagoria das imagens cinematográficas que Marina

vai buscar suas referências. Person é interessante na medida em que ajuda a

compreender a pergunta feita pelo pesquisador Jean-Louis Comolli (169,2004):

não mais como fazer um filme, mas como fazer para que haja filme? Quais

as condições, quais os limites para que esse projeto não se autoboicote? É

exatamente porque recorre ao formato do ensaio, entretecido a um documentário

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Forma-ensaio e documentário-biografia: contaminações, jogos, estética e política - Patrícia Rebello da Silva
Documentário

baseado na costura dos depoimentos, que Person ultrapassa um filme-biografia e

se transforma em uma declaração de amor.

Da mesma maneira que em Pan-cinema..., também são três as linhas

narrativas que se entrelaçam no roteiro: uma longa entrevista de L. S. Person

à TV; os depoimentos dos amigos, dos colegas e profissionais que trabalharam

com o diretor; e as conversas sobre o pai que Marina mantém com a mãe

e a irmã. Para além dos filmes, Person deixou um acervo pessoal de livros,

quadros, gravuras e fotos. O imaginário de Marina sobre o pai foi construído

essencialmente por esses materiais, uma combinação de imagens e ideias, sem

estrutura e, principalmente, sem montagem.

A dimensão do arquivo passa por Person na medida em que é a partir

dela que Marina decide ir em busca do pai. Pensando a questão do arquivo

no documentário, François Niney (2002, p. 256) aponta que essas imagens

não são pedaços de realidades do passado que se juntam para formar uma

história, “é preciso partir de questões que nós colocamos a essas imagens, e


de questões que elas nos colocam”. Deslocadas de sua função original, essas

imagens se tornam perigosas na medida em que também mudam de natureza:

se a ideia original era registrar para guardar, no contexto do filme ela ressurge

como um índice de transformação, algo capaz de mudar a percepção do próprio

presente. Aquela imagem não é capaz de responder por inteiro, ou mesmo por

um fragmento de tempo. Para Niney, ela é um símbolo, no sentido peirceano

da palavra, “remetendo a uma cadeia de intérpretes de então, que é preciso

recuperar e confrontar à cadeia de intérpretes na qual o filme e o espectador

restituem o documento”. (NINEY, 2002, p. 255)

Essas imagens são retiradas do passado, no filme, através de uma operação

de montagem. A primeira cena de Person é uma imagem de arquivo: fragmentos

de um filme de família. É a festa de aniversário da irmã de Marina. As sequências

organizadas fora de uma lógica narrativa, os saltos entre as cenas, os defeitos

técnicos (pouca luz, falta de foco, imagem tremida) são características deste tipo

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Forma-ensaio e documentário-biografia: contaminações, jogos, estética e política - Patrícia Rebello da Silva
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

de imagem.19 Enquanto correm na tela as imagens do passado, escutamos uma

voz em off: “Eu lembro da hora. Lembro que eu acordei e fui para o seu quarto.

(...) Eu lembro que ela falou: papai morreu”. É Marina Person, que recorda o dia

da morte do pai. A imagem de arquivo é cortada para uma imagem de Marina

no presente, no momento em que ela diz papai morreu. Logo em seguida, as

imagens da festa retornam à tela, mas é impossível olhar da mesma maneira. Já

não são mais imagens de momentos felizes: sinalizam a dor da perda.

A presença constante da diretora na tela não deixa esquecer que se trata

de um filme sobre uma busca. Em todas as entrevistas, ela divide a cena com os

entrevistados, ou aparece, por procedimento de montagem, em contraplano, nunca

deixando de estar presente. É um detalhe pequeno, que passa desapercebido,

mas que faz toda a diferença na hora de pontuar o estatuto do filme: além de

uma biografia de Person, trata-se da busca da filha pelo pai. Nesses pequenos

detalhes é que a dimensão ensaística se manifesta.

Algumas das cenas mais bonitas do filme são aquelas em que a diretora

e a irmã conversam sobre o pai. O cenário escolhido é uma linha de trem. O

trem é uma alegoria ao próprio cinema; e, enquanto caminham sobre os trilhos

e conversam sobre suas lembranças, elas insinuam caminhar duplamente pelos

caminhos do cinema, em busca de uma imagem do pai. A ultima cena do filme é

bastante significativa: uma câmera, parada, registra, de dentro de um túnel e em

contraluz, o movimento das duas irmãs em direção à saída. Duas silhuetas, duas

sombras, duas imagens tão cinematográficas quanto aquelas através das quais

criavam a lembrança do pai. Saindo do túnel, o cinema as liberta das imagens

do passado na mesma medida em que as transforma em imagem. A última frase

do filme é de Marina Person, falando sobre a dor da perda: “Você não supera

completamente nunca; na verdade, porque essa dor é a sua história”. O filme

começa e termina falando de dor. O ritual é concluído. E se, com ele, Marina

ganhou algumas imagens a mais do pai, terminou um pouco mais pobre em

imagens dela, da própria Marina. Distanciou-se da criança de cabelos anelados e

escuros das imagens de arquivo, para quem o jovem rapaz de barba nas imagens

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Forma-ensaio e documentário-biografia: contaminações, jogos, estética e política - Patrícia Rebello da Silva
Documentário

era apenas o papai. Se as imagens ainda funcionam como uma ponte entre ela e

a figura do pai, como será que ela se percebe nos filmes em S8, agora que sabe

de algo a mais que a menina do filme?

Conclusão

Se o ensaio faz enxergar, como escreveu Noel Burch (1969,187), a fusão

entre “tema” e “motivo”, faz sentido pensá-lo como a única possibilidade de

cinema para que os dois filmes alcancem seus objetivos. A relação de Carlos

Nader e Waly passa pelas dezenas de horas de imagens; já a de Marina e o

pai, por poucas imagens. Não por outra razão, o filme de Nader aposta na ideia

de que se pode apreender algo a partir do conjunto das imagens (Waly vivia em

cena o tempo todo, as imagens “comprovam”), enquanto que o filme de Marina

aposta na ideia de que a partir da soma das imagens algo se institui. Um queria

“podar” a imagem; a outra, aumentá-la. O que o exercício da reflexividade nos

dois documentários nos proporciona é a chance não tanto de pensar a inscrição

da realidade nos filmes, mas a realidade dessa inscrição; menos a duvidar das

imagens, que enxergar as possibilidades de representação escondidas no fundo,

ou por trás, de cada uma delas.

Deslocando a proposta original do registro a partir da instauração de

um processo de reflexão, e, com isso, emprestando nova vida e novos sentidos

às imagens, Pan-cinema permanente e Person trazem, ambos, para o centro

da narrativa, os processos que atravessam a construção dramática do próprio

texto – seja este o ato de organizar imagens e sons ou o de animar e dar

sentido a uma história.

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Forma-ensaio e documentário-biografia: contaminações, jogos, estética e política - Patrícia Rebello da Silva
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

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Forma-ensaio e documentário-biografia: contaminações, jogos, estética e política - Patrícia Rebello da Silva
Documentário

_____________________________________________________________

1. Trabalho apresentado durante o XIV Encontro Internacional de Estudos de Cinema e Audiovisual (SOCINE), realizado na
Universidade Federal de Pernambuco em outubro de 2010.

2. “Os Europeus e os Norte-americanos enchiam o Brasil de filmes de ficção, pois a industria vinha se desenvolvendo
exclusivamente em função do filme de enredo” (BERNARDET, 1979, p. 23).

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Forma-ensaio e documentário-biografia: contaminações, jogos, estética e política - Patrícia Rebello da Silva
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

3. “(...) a cavação cobre o documentário de encomenda, a propaganda, o ensino em pequenas escolas de cinema. (...)
sa terminologia traz embutido certo desprezo pela produção documentária e pelo seu esquema de produção” (RAMOS;
MIRANDA, 2004, p. 177). O esquema de produção se refere ao subsídio do documentário por uma elite política, militar e
eclesiástica, interessada em construir e defender seu nome e sua imagem através de filmes.

4. Instituto Nacional do Cinema Educativo.

5. O fato de a produção do INCE ser orientada para a informação não significa que seus filmes fossem pouco criativos. Humberto
Mauro, um dos mais importantes diretores brasileiros, de rigor, elegância e genialidade ímpares nos enquadramentos, foi
um dos principais nomes da instituição, produzindo cerca de 354 documentário de curta e média duração enquanto lá
trabalhou. Para além disso, foi também a instituição que apoiou os primeiros projetos dos cineastas da geração que, nos
anos 1960, dariam nova forma ao documentário brasileiro. Entre esses projetos, estão alguns filmes do começo do Cinema
Novo, como Aruanda (1960), de Linduarte Noronha, e Romeiros da Guia (1962), de Vladimir Carvalho e João Ramiro.

6. A Casa de Mário de Andrade (1952), O Aleijadinho (1955), Euclides da Cunha – antes de tudo um forte (1970), Delmiro
Gouvêa: o homem e a terra (1971), Anchieta, o apóstolo do Brasil (1973), de Ruy Santos; A João Guimarães Rosa (1968-
1969), de Roberto Santos; Humberto Mauro – o coração do bom (1978), de Alex Viany; Carmem Santos (1969), Humberto
Mauro (1970), Oswaldo Cruz (1973), O cinegrafista Rondon (1979), de Jurandyr Noronha, entre outros.

7. O movimento que culminou no Cinema Novo é o mais exemplar desse processo.

8. Os dois curtas-metragens, filmados em 1959, têm como tema, respectivamente, o poeta Manuel Bandeira e o sociólogo
Gilberto Freyre.

9. Em O poeta do Castelo, acompanhamos Manuel Bandeira fazendo seu desjejum e caminhando pelas ruas vazias do centro
do Rio de Janeiro; em O mestre... observamos Gilberto Freyre preparando uma batida de frutas e tomando café com a
esposa.

10. Cf. Ramos e Miranda (2004, p. 197). Essa produção pode ser conferida em filmes como Jânio a 24 quadros (1979-1980),
de Luis Alberto Pereira, Jango (1984), de Silvio Tendler, O evangelho segundo Teotônio (1984), de Vladimir Carvalho, O
terceiro milênio (1981), de Jorge Bodansky, Céu aberto (1985), de João Batista de Andrade, entre outros.

11. Me refiro aqui ao conceito de Roland Barthes definido no texto “O terceiro sentido” (vide bibliografia).

12. Os filmes que enviesam por uma perspectiva formalista concentram a atenção do espectador no desenho estético e na
abordagem construtivista do documentário; já os que optam por uma perspectiva política, apontam em direção às tramas e
relações construídas no mundo e para as questões que daí surgem.

13. A versão utilizada para este ensaio foi apresentada no festival “É Tudo Verdade”. Algumas modificações ocorreram entre a
exibição daquele momento e o lançamento nas salas e em DVD; no entanto, verificou-se que isso não prejudica a análise
do filme.

14. Entrevista realizada pelo crítico Leonardo Luiz Ferreira e publicada no blogue de documentário do jornal O Globo,
“DocBlog”, em 03/12/2008. Disponível em:

15. Fonte: entrevista ao jornal O Globo. O artigo de Antonio Cícero foi publicado em ‘Infinidades do Sem Fim’. Vide bibliografia.

16. “(…) é preciso que o imaginário tenha na tela a densidade especial do real. A montagem só pode ser utilizada aí dentro de
limites precisos, sob pena de atentar contra a própria ontologia da fábula cinematográfica. Por exemplo, não é permitido
ao realizador escamotear, com o campo/contra-campo, a dificuldade de mostrar dois aspectos simultâneos de uma ação”
(BAZIN, 1991, p. 60).

17. “(…) o contato com o Waly foi libertário para mim, porque ele deixou claro que a vida em si é uma trama de vários fios
ficcionais e reais. Não é só um filme que mistura realidade e ficção. A vida, antes dos filmes, também faz isto”. Fonte:
entrevista a O Globo.

18. “(...) na verdade o filme reflete bem o que foi o processo, né, uma viagem pessoal de descoberta tanto da obra dele quanto
da pessoa: o Person pai, o Person marido, o Person diretor. Então o quê que era, quem era ele? Na verdade a busca é
essa: Quem é o meu pai? Quem é essa pessoa, que é meu pai, que todo mundo fala tanto e eu mal tive contato. É isso:
uma viagem pessoal, intimista, de descobertas.” (entrevista concedida ao blog de Mário Cascardo, disponível em: )

19. Para maiores referências sobre os filmes de família, ver ODIN, Roger (org) “Le film de famille”

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Acaso, morte e significação no documentário Um corpo subterrâneo - Patrícia Costa Vaz
Documentário

Acaso, morte e significação no documentário

Um corpo subterrâneo1

Patrícia Costa Vaz (UFSCar)2

Introdução

A íntima poesia da vida é a poesia dos homens que lutam, a


poesia das relações inter-humanas, das experiências e ações
reais dos homens. (Lucáks)

Este artigo propõe uma leitura do documentário Um corpo subterrâneo

(Douglas Machado, 2007) a partir da noção de “vida social do discurso”

proposta por Mikhail Bakhtin, linguista e crítico literário russo. Buscaremos

explicitar elementos narrativos relacionados às representações da linguagem

no contexto audiovisual.

Embora os estudos do teórico tenham se voltado especificamente à

literatura, mais precisamente ao romance, a noção de texto proposta por ele,

segundo a leitura de Robert Stam, seria “toda produção cultural fundada na

linguagem (e para Bakhtin não há produção cultural fora da linguagem)” (STAM,

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Acaso, morte e significação no documentário Um corpo subterrâneo - Patrícia Costa Vaz
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

1992, p.13). Essa noção de texto permite a aplicação de seus conceitos a outras

áreas do conhecimento e artes, como o cinema.

Para facilitar a aproximação entre literatura e cinema adotaremos o

entendimento de narrativa proposto por Jacques Aumont (2008, p. 106):

A narrativa é o texto em sua materialidade, o texto narrativo que


se encarrega da história a ser contada. Porém, esse enunciado
que, no romance, é formado apenas de língua, no cinema,
compreende imagens, palavras, menções escritas, ruídos e
música, o que já torna a narrativa fílmica mais complexa.

Nessa perspectiva, o cinema se destaca como arte dialógica, outro

conceito caro a Bakhtin, através do qual a presença e o entrelaçamento de

várias instâncias enunciadoras sugerem uma dimensão polifônica ao discurso,

dominado por um movimento contínuo de ideias em interação (BAKHTIN, 1993).

Da complexidade dialógica presente em um filme fazem parte: os diálogos,

as interações entre os planos e sequências provocadas pela montagem, as

interações entre as imagens e a trilha sonora eentre os cenários, personagens

e figurinos, para citar apenas alguns elementos;isso faz do cinema um meio de

“muitos canais” (GATTI, 2003, p. 49).

Neste artigo, diante de tantos elementos de representação

da linguagem, vamos nos ater principalmente aos diálogos entre o

documentarista e seus entrevistados presentes no documentário Um

corpo subterrâneo: “Toda manifestação oral é produto da interação dos

interlocutores e, amplamente falando, de toda situação complexa em que

se deu” (BAKHTIN apud STAM, 1992, p. 13).

Iniciaremos com uma breve consideração sobre a concepção do

documentário, a narrativa e os principais elementos que a norteiam. Essas

287
Acaso, morte e significação no documentário Um corpo subterrâneo - Patrícia Costa Vaz
Documentário

informações acerca da obra servirão de base para transcorrer sobre o discurso que

se constrói a partir do encontro entre cineastas e entrevistados no filme, acerca do

luto e da memória dos falecidos. Para finalizar, uma breve explanação sobre a fala

específica de alguns entrevistados e os elementos heteroglóticos presentes nela.

Um Corpo Subterrâneo

Estas reflexões fazem parte de uma pesquisa mais ampla que está sendo

realizada como dissertação de mestrado sobre a perspectiva do processo de

criação de uma obra com base na Teoria da Crítica Genética. Na dissertação

pretendemos percorrer o universo de concepção do documentário Um corpo

subterrâneo, tendo como objetos de análise: páginas do caderno de anotações do

autor, livros e filmes (que o embasaram na criação do documentário), o projeto-

proposta do filme, dois roteiros de edição e duas versões do documentário: uma

versão de 52 minutos e outra versão de 83 minutos.

Juntamente com outros 48 documentários, dentre 859 projetos inscritos,

Um corpo subterrâneo foi aprovado na terceira edição do Programa de Fomento

à Produção e Teledifusão do Documentário Brasileiro, o Doctv III. Esta versão que

contou com veiculação nacional, tem 52 minutos e foi dividida em quatro blocos.

Douglas Machado iniciou seus trabalhos na área audiovisual em 1987 e,

desde então, realizou produções em diferentes cidades do Brasil e do exterior

(na Suécia e Espanha). Machado é autor de mais de 20 documentários e do

longa ficcional Cipriano (2001). É sócio da Trinca Filmes Ltda, em Teresina.

Dentre suas produções mais recentes destacam-se: O retorno do filho (2009)

premiado no Doctv IV (carteira especial), Passos de Oeiras (2008); Luiz Antonio

de Assis Brasil: o códice e o cinzel (2007); Marcos Vinicios Vilaça: o artesão da

palavra (2005); O sertão mundo de Suassuna (2003) e H. Dobal: um homem

particular (2002) – da Série Literatura: Brasil. Além de Um Corpo Subterrâneo

(2007) – premiado pelo Doctv Nacional.

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Acaso, morte e significação no documentário Um corpo subterrâneo - Patrícia Costa Vaz
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Nesses anos de produção audiovisual, Douglas sempre optou por um

excessivo cuidado com a pré-produção dos seus trabalhos; a necessidade de

conhecer seus entrevistados funcionou como regra para a estruturação da

narrativa. No caso dos documentários da Série Literatura:Brasil, para citar um

exemplo, o documentarista dedica vários meses à leitura de obras dos escritores.

Uma vez imerso no universo literário dos autores, ele parte para as pré-entrevistas.

No entanto, em 2006, o projeto piauiense aprovado pelo concurso Doctv

III é um novo desafio aos modos de produção do realizador. Douglas Machado

abandona as pré-entrevistas e se propõe encontrar seus personagens e gravar

em primeira tomada todos os depoimentos que compõem o documentário. Ele se

deixa levar pelo encontro do inesperado, pelo acaso: “não se pode saber tudo o que

vai acontecer a um documentário antes de fazê-lo. Estudar muito, conhecer bem o

tema, entretanto, deixar-se embriagar pela circunstância do fazer”,3 escreveu ele


em seu caderno de anotações.

No documentário Um corpo subterrâneo, o cineasta faz uma viagem do norte

ao sul do Piauí percorrendo seis municípios (Cajueiro da Praia, Piripiri, Teresina,

São Raimundo Nonato, Oeiras e Gilbués)4 em busca do que ele chama de “a


memória audiovisual do homem piauiense”. Em cada cidade o ponto de partida

é um cemitério;5 nele Douglas Machado identifica um túmulo recente, procura os

familiares deste falecido e, a partir de relatos dos parentes e amigos, reconstrói

a imagem dessas pessoas permeadas pelo luto. O cineasta transforma o luto e

a memória de costumes, gestos, objetos do homem piauiense em audiovisual.

Traços da personalidade do indivíduo são revelados a partir dos relatos e também

a partir da exibição de seus objetos, dos móveis prediletos do falecido e de sua

localização na casa. No final das entrevistas a câmera é entregue a um dos

parentes para que os entrevistados façam também um registro pessoal (sobre

e/ou para o morto) com a câmera. As imagens captadas por Machado e pelos

familiares, guiadas através dos cômodos da casa e dos pertences do falecido,

montam um mosaico das preferências daqueles que se foram – um diagrama do

que cada um foi, na memória dos que ficaram.

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Acaso, morte e significação no documentário Um corpo subterrâneo - Patrícia Costa Vaz
Documentário

A câmera ganha um papel central na narrativa. Ela é ao mesmo tempo

“olho do diretor, do espectador e do entrevistado”. A câmera está fixa sobre uma

placa posicionada na altura do peito do cineasta, por meio de duas alças como as

de uma mochila, e a ela está ligado um microfone direcional de grande captação.

Não se trata de uma steadycam, a câmera não passeia na tomada; pelo contrário,

ela vibra, acompanha o andar do diretor, aproximando o espectador do espaço

fílmico. No final de cada entrevista, é hora de o espectador se deparar também

com o olhar do entrevistado, à medida que este capta as suas próprias imagens.

Nesta situação, o que menos importa é o domínio da linguagem audiovisual, as

imagens ora tremidas, sem iluminação suficiente, ora embaçadas, dão lugar à

expressividade, às texturas sonoro-visuais. O documentarista procura deixar o

personagem tranquilo quanto ao não domínio do aparato, quando diz: “Você não

quer fazer essa imagem? Porque a proposta é que a própria pessoa faça, eu te

mostro mais ou menos como é que se segura a câmera”.

Outro objeto que irá figurar no documentário com grande relevância é a

certidão de nascimento. No início ou fim de cada entrevista, Douglas pede que

os parentes leiam as certidões dos falecidos. Para introduzir outra sequência

de filmagens em uma nova cidade, moradores também leem suas certidões de

nascimento ou casamento. São pessoas comuns cuja participação no filme se

restringe à leitura de sua certidão; a única exceção é o professor Dideka, na

cidade de Piripiri. Este morador participa posteriormente em uma sequência do

documentário, falando sobre suas constantes visitas ao cemitério da cidade. A

edição une pequenos trechos das leituras dos moradores. Da imagem da certidão
e das leituras (nome, data de nascimento, sexo, cor, filiação, cidade do registro)

à imagem de uma lápide, o autor faz um registro espaço temporal da existência

humana. A imagem recorrente da certidão/lápide e a menção à datação da vida e

da morte no documentário dialogam com o trajeto percorrido pelo filme, enfatizado

pelas imagens de estrada, pela trajetória que começa no litoral (cidade de Cajueiro

da Praia) e termina no sul do Estado (Gilbués), e ainda com a quilometragem

percorrida, creditada ao lado do nome de cada cemitério. A interação entre

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Acaso, morte e significação no documentário Um corpo subterrâneo - Patrícia Costa Vaz
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

esses elementos sugere uma preocupação existencial do diretor quanto ao tema

abordado em seu filme, e coloca à disposição do espectador uma leitura datada da

vida, nestes dois acontecimentos principais que a definem: nascimento e morte.

O trajeto percorrido pelo documentário faz referência à trajetória pessoal/vida dos

entrevistados, do diretor, do espectador. É a relação espaço temporal que nos

acompanha e caracteriza.

Cinema de encontro

A escolha das palavras em um diálogo é proposta a partir de quem emite,

mas também sofre grande influência de quem as escuta. Falar sobre determinado

assunto, de determinado modo pressupõe um querer se mostrar ao outro, partindo

de um conhecimento prévio de como o outro apreenderá essa fala. O discurso

nasce dessa interação. Bakhtin fala do discurso surgido do encontro:

[o discurso] se torce na presença ou ao pressentir a palavra, a


resposta ou a objeção do outro. A maneira individual pela qual o
homem constrói seu discurso é determinada consideravelmente
pela sua capacidade inata de sentir a palavra do outro e os meios
de reagir diante dela (BAKHTIN apud LINS, 2007, p. 108-109).

Douglas Machado trabalha sua produção na perspectiva desse encontro

com o entrevistado, suas reações, falas e contexto encapsulados em um momento

único de interação e significação. Contemporâneo do documentarista Eduardo

Coutinho, ambos têm em comum essa necessidade de priorizar a relação e fazer

do entrevistado o sujeito e não o objeto do documentário (LINS, 2007), uma

disponibilidade paraouvir e fazer do “outro” o foco principal de suas narrativas.

Essa valorização do encontro não se restringe aos diálogos entre personagens

ou a conversa entre eles e o diretor, ela se mostra também na preocupação

291
Acaso, morte e significação no documentário Um corpo subterrâneo - Patrícia Costa Vaz
Documentário

em respeitar e ler o gestual: as expressões faciais, as hesitações, silêncios e

movimentos do corpo como parte do universo linguístico, no que Ismail Xavier

chama de “filosofia do encontro”:

A composição da cena e sua duração buscam potencializar


a força do instante: produzir no encontro a irrupção de uma
experiência não domesticada pelo discurso, algo que, apesar da
montagem e seus fluxos de sentido, retém um quê de irredutível
na atuação do sujeito, mais ou menos revelador. (XAVIER, 2006)

Fazer documentário, de certo modo, exige do realizador um

comprometimento e respeito maior por seus personagens do que no cinema

de ficção, pois a vida de cada um deles continua após o filme. Falar do luto e

da saudade inerente à perda é ainda mais difícil. Qual o posicionamento do

documentarista diante do luto? Como tratar da morte sem ser um cineasta

inoportuno e sem tato? O desafio está em “compreender o imaginário do outro

sem aderir a ele, mas também sem julgamentos ou avaliações de qualquer

ordem, ironias ou ceticismos” (LINS, 2007, p. 107).

Em Um corpo subterrâneo, o cineasta participa não apenas direcionando

o diálogo; ele explica a proposta do documentário, exemplifica, dá continuidade

a uma fala do personagem, demonstra interesse, pede que o personagem dê

mais detalhes, que se sinta à vontade para falar, mostrar objetos ou partes

da casa que acredite serem importantes para a situação. Com esta postura, o

documentarista tenta provocar diálogos mais espontâneos, embora saibamos

que o encontro produz uma situação nova de discurso: não se pode esperar que

a pessoa se expresse com a câmera ligada com a mesma desenvoltura que se

expressa sem o aparato tecnológico.

Este posicionamento está fortemente relacionado com princípios do

cinéma-verité, em que a comunicação entre o entrevistado e o realizador é

292
Acaso, morte e significação no documentário Um corpo subterrâneo - Patrícia Costa Vaz
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

um elemento básico para a produção. Em 1960, Jean Rouch e Edgar Morin

apresentaram propostas para um cinema documentário voltado à interação

do realizador com os personagens através de entrevistas, diálogos,

discussões coletivas e conversas, movimento que ficou conhecido como

cinéma-verité, “uma verdade de um encontro em vez da verdade absoluta e

manipulada” (NICHOLS, 2008, p. 155).

O uso da palavra e a forma como o diretor se coloca diante do entrevistado

são temas de reflexões recorrentes para Machado e o conduzem a uma postura

específica, aplicável não apenas no encontro com os entrevistados, mas também

nos seus relacionamentos diários, e determinam sua conduta ética. Escrito por

Machado em 2003, anos antes da produção de Um corpo subterrâneo, o texto

“Trato Social”,6 dá uma pequena mostra das reflexões do diretor em torno destes
cuidados, que viriam a ser fundamentais no documentário:

levamos conosco – em corpo presente – uma série de


informações: a roupa que vestimos e suas respectivas cores ou
estampas, os adereços colocados no corpo ou perfurando os
mesmos, o corte do cabelo, o penteado, o perfume, se estamos
limpos ou sujos, a palavra ou expressão escolhida para cada
momento... (MACHADO, 2003, p. 01).

Detalhes que determinam a sua forma de apresentação, a leitura que faz

dos seus entrevistados e como dialoga com eles:

Quando o assunto em questão é delicado, estas informações


adicionais do corpo – silenciosas – afloram memórias que,
comumente, salientam aspectos negativos ou positivos entre
comunicador (es) e receptor (es). Caso ainda não se tenha um
relacionamento entre ambos, aflora a primeira leitura. Capciosa
primeira leitura. Apaixonada primeira leitura. Por vezes,
equivocada primeira leitura (MACHADO, 2003, p. 01).

293
Acaso, morte e significação no documentário Um corpo subterrâneo - Patrícia Costa Vaz
Documentário

Estas “informações adicionais do corpo”, unidas à fala propriamente

dita, são as bases que estabelecem o sucesso ou não do encontro. Mais

tarde, enquanto se prepara para iniciar as filmagens, o diretor retoma estas

reflexões e enumera cada um desses preceitos, como se fosse preciso tê-

los firmemente na memória:

Manter sempre uma disposição sincera em conhecer o universo


que não é seu, desprender-se de si mesmo; Não se esconder...
“o senhor me entendeu?” – no caso da não compreensão, na
entrevista; a matéria-prima deste ofício é a relação; não fazer
filmes contra as pessoas, comprometer-se com elas (caderno
de anotações, p. 2).

Nestas breves frases podemos verificar de antemão as bases que norteiam

a relação do documentarista com seus entrevistados: a ética e o respeito humano.

Em um dos momentos mais marcantes do filme, Douglas vai à casa

dos parentes de Dona Francelina, que se suicidou no dia anterior às filmagens.

Enquanto Douglas fazia uma entrevista com um morador da cidade, professor

Dideka, um cortejo se aproxima e ele é informado pelo entrevistado das

circunstâncias da morte da senhora. Segundo as determinações propostas por

ele no início do vídeo, ele (Machado) deveria procurar a sepultura mais recente

na cidade visitada. O enterro acabara de acontecer e o desafio seria maior –

convencer as pessoas a falar com ele ainda devastadas pelo recente luto. Na

casa dos familiares de Francelina, Douglas começa o diálogo com o recém-viúvo:

“Eu entendo que para vocês é muito difícil e até pra gente que está fazendo, a

gente se sente meio desconfortável”.

A franqueza e humildade demonstradas na fala do cineasta remetem a

uma apreensão mais humana e falível do realizador por parte do espectador, bem

diferente de uma abordagem nos documentários clássicos, onde a objetividade

294
Acaso, morte e significação no documentário Um corpo subterrâneo - Patrícia Costa Vaz
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

e o distanciamento do cineasta através do uso da “voz de Deus” daria ao

documentário um status de credibilidade, nos moldes dos noticiários televisivos.

Em outra situação, na casa dos parentes de Dona Francelina, Douglas – que nas

entrevistas anteriores e nas demais costuma pedir para conhecer o quarto do

falecido, os pertences e locais mais queridos da casa – hesita e se intimida em

vista da possibilidade de filmar no quarto onde ocorreu o suicídio de Francelina:

Neuma (sobrinha de Francelina): Aqui é o quarto dela. Aqui foi o


quarto onde aconteceu tudo!

Douglas: Mas, você quer que eu grave?

Neuma: Você é que sabe, não tem...

Douglas: Eu acho que... Eu estou na mão de vocês!

O documentarista se vê em uma situação problemática, ele não consegue

manter o distanciamento, filmar por filmar; a hesitação evidencia o respeito, mas

principalmente o envolvimento do diretor com o tema.

A fala dos personagens

No discurso dos personagens há uma unicidade quanto às boas

lembranças do falecido; não se fala de seus defeitos, não se comentam suas

falhas, as lembranças estão permeadas por uma aura de santidade. Douglas

não problematiza o luto no sentido de descobrir essas características “humanas,

demasiado humanas”, suas perguntas giram em torno de um conhecer o outro que

se traduz através do carinho com a família, as manias engraçadas ou peculiares,

os objetos queridos, se viveu a vida inteira na mesma cidade, a relação com os

vizinhos, a profissão... Os familiares procuram estabelecer um retrato do falecido

como homenagem e exaltação à saudade. Até a última cidade, Gilbués, as famílias

295
Acaso, morte e significação no documentário Um corpo subterrâneo - Patrícia Costa Vaz
Documentário

visitadas falam sobre o falecido; nesta cidade, no entanto, além de repetir as

informações tentando montar um mosaico sobre a extensa vida de Dona Inácia,

a filha Cândida fala como a mãe. Em meio a seu discurso, Cândida se apropria

do discurso da mãe, interpretando-a em maneirismo e imitação da voz. Segue o

trecho do diálogo correspondente:

Cândida: Mamãe como foi o começo do namoro? “Ah, eu nem


conhecia seu pai, viúvo assim e eu nem pretendia casar com
viúvo. E aí meu irmão com o compadre Domingos, foi quem
acertaram esse casamento com meus irmãos, né? E eu nem
gostava dele assim, não tinha costume com ele e tal” [...]

Douglas: Mas aí na convivência com seu pai?

Cândida:Sim, aí aprendi a amar, não é? E a respeitar, a tratar


com fidelidade e tudo. Eles combinavam muito bem. Ela era um
pouco agitadinha, e papai era tranquilo, né?

Essa apropriação do discurso da mãe, unida às lembranças dos hábitos,

gostos, comportamentos e os objetos que a rodeavam em vida, exemplifica o que

a pesquisadora Ecléa Bosi (1983, p.74) chama de “vontade de revivescência”,

uma força que solidifica no presente (ou melhor, eterniza) aquilo que era apenas

transitório. O enlutado fortalece através dessa memória a negação da mortalidade,

procura na constante observância do recente passado apegar-se ao falecido,

prolongando uma suposta vida que existe na memória dos sobreviventes. É da

necessidade de prolongar a vida que nos prendemos às práticas funerárias, à

visitação aos túmulos, à crença nos espíritos e na vida postmortem.

Em alguns relatos ouvimos as ações do falecido serem descritas usando o

verbo no presente: Dona Elenir, a primeira entrevistada, leva Machado à sala de

jantar, diz que a mãe gostava de sentar em uma cadeira onde ela passava a maior

parte do tempo: “Nesse cantinho aqui, é o dia todinho!”. Já o professor Dideka, em

Piripiri, ao visitar o túmulo da mãe afirma: “Aqui é a mamãe”. E, mais tarde, Neuma,

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Acaso, morte e significação no documentário Um corpo subterrâneo - Patrícia Costa Vaz
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

sobrinha de Dona Francelina, falando sobre os gostos da tia: “Na casa dela, ela

adora planta!”. Nestas frases diluídas no decorrer do diálogo, em que prevalece

a construção verbal no presente, a morte é negada, uma vitória das impressões

sensoriais sobre o elemento temporal, é o jogo empreendido entre a memória e o

esquecimento. E é nesse jogo entre o passado e o presente, de um luto também

em construção, que recorremos ao pensamento aristotélico comentado no livro

de Yates, sobre a memória: “A lembrança é a recuperação do conhecimento e da

sensação ocorrida. É um esforço deliberado para encontrar seu caminho entre os

conteúdos da memória” (YATES, 2007, p. 54).

O uso do diminutivo nas frases dos diálogos funciona como o “tato”

de que nos fala Bakhtin, sobre as estratégias de aproximação e interação

dos interlocutores em um discurso. Durante a conversa, pequenas e quase

imperceptíveis palavras instigam o entrevistado. Machado ainda com a primeira

personagem, dona Elenir pede: “Mostre um pouco das coisinhas dela, assim”,

e, mais tarde: “A senhora dormia pertinho dela?”. O diminutivo que, na fala de

Douglas, denota respeito, assumindo uma espécie de intimidade, é apropriado

pela personagem, Elenir (filha de Dona Elenor), que também passa a fazer uso

dos sufixos-inho, -inha não como estratégia de aproximação, mas como carinho

e cuidado com os objetos que lembram a mãe: “Aqui é a mesinha dela, aqui era

o cachimbo”... “eu tirei o colchãozinho, o travesseirozinho, eu joguei fora. Aí aqui

ela passava o dia todinho assentadinha aqui!”

Segundo Stam (1992, p. 12), “cada língua é uma arena onde competem

‘acentos’ sociais diferentemente orientados; cada palavra está sujeita a pronúncias,

entonações e alusões conflitantes”. Desta forma, os depoimentos são geralmente

entrecortados por expressões tipicamente piauienses, palavras e expressões

regionais que identificam o personagem àquela terra e àquela vivência: “ela

deitava de bandinha”, “pé de planta”, “reza de espinhela caída”, “dava o de

comer”, “embolado”. Esse vocabulário enriquece o documentário à medida que

o relato oral obtido nas gravações perpetua esses modos de falar. Bakhtin, na

sua apresentação sobre a heteroglossia, identifica estas variações no falar de um

297
Acaso, morte e significação no documentário Um corpo subterrâneo - Patrícia Costa Vaz
Documentário

povo, em suas falas cotidianas, como essenciais, dinâmicas, plurais e dialógicas.

É na estratificação da linguagem que os sujeitos são capazes de se expressar

plenamente, indo contra qualquer engessamento, centralização e unificação de

uma língua. O documentário, assim como o romance, “necessita de falantes que

lhe tragam seu discurso original, sua linguagem” (BAKTHIN, 1993, p. 134).

Considerações Finais

O legado de Mikhail Bakhtin é inestimável, sua concepção de linguagem nos

propicia uma experiência marcante no campo da complexidade e possibilidades

comunicacionais da fala.

Em um contexto bem além da literatura, a exaltação à diversidade social

do discurso proposta por ele revela princípios de aceitação do outro, do diferente.

Uma grande contribuição ao diálogo e à coexistência pacífica e enriquecedora da

sociedade. Bakhtin é um teórico da diversidade presente em todas as instâncias.

A vasta aplicabilidade de seus conceitos reafirma esta condição de se apropriar e

ser apropriado pelo discurso do outro.

Procurando aplicar alguns de seus conceitos ao cinema documentário,

estamos conscientes de que este artigo é apenas uma reflexão inicial de sua

aplicabilidade nestes filmes; no entanto, sentimos que muitos outros recortes

também ricos poderão ser aprofundados em estudos posteriores, como sobre os

elementos heteroglóticos presentes no documentário. Decidimos, por ora, dar mais

ênfase às possibilidades de discussão a partir da aplicabilidade do dialogismo nas

interações do cineasta com seus personagens.

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Acaso, morte e significação no documentário Um corpo subterrâneo - Patrícia Costa Vaz
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Referências bibliográficas

AUMONT, J. et al.A estética do filme.Trad. Marina Appenzeller. 6.ed.Campinas, SP: Papirus, 2008.

BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernadiniet al. 3.ed.
São Paulo: Unesp, 1993.

BILL, N. Introdução ao documentário. Trad. Mônica Sanddy Martins. 3.ed.Campinas: Papirus, 2008.

BOSI, E. Memória e sociedade:lembrança de velhos. São Paulo: T.A.Queiroz, 1983.

GATTI, J. Pseudologismo Mallandro. Revista Olhar, CECH/UFSCar, São Carlos, SP, v. 9, ago./dez.2003.

LINS, C. O documentário de Eduardo Coutinho:televisão, cinema e vídeo. 2.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2007.

MACHADO, D. Trato social. 2003. Arquivo digital fornecido pelo autor.

NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2008.

STAM, R.Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. Trad. Heloísa Jahn. São Paulo: Ática, 1992.

XAVIER, I. Indagações em torno de Eduardo Coutinho e seu diálogo com a tradição moderna.Revista Cultural
Crítica, São Paulo, ed. 4, 2006. Disponível em: http://www.apropucsp.org.br/revista/rcc04_r03.htm. Acesso em:
14 set.2008.

YATES, F. A.A arte da memória. Trad. Flávia Bancher. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.

Referência audiovisual

Um corpo subterrâneo. Douglas Machado. Brasil, 2007, vídeo, 83 min.

_____________________________________________________________

1. Trabalho apresentado no painel “Documentário em questão”. A pesquisadora é bolsista FAPESP.

2. UFSCar/Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som, Mestranda . E-mail: [email protected]


documentarista cedeua cópia de algumas páginas deste caderno à pesquisadora.

3. Os seis municípios estão presentes na versão de 83 minutos do documentário;na versão de 52 min aparecem apenas as
cidades de Cajueiro da Praia, Piripiri, Oeiras e Gilbués.

4. Com exceção de Teresina, em que nenhum cemitério é mostrado, e na cidade de Gilbués, em que o cineasta a caminho do
cemitério encontra a procissão de uma missa de Sétimo Dia.

5. O texto “Trato Social” foi escrito pelo cineasta em fevereiro de 2003. O cineasta nos repassou esse texto arquivado em um
DVD com vários outros arquivos referentes à sua obra, em fevereiro de 2009.

299
Sonoridades
Assim era a música da Atlântida: a trilha musical do cinema popular brasileiro no exemplo da companhia Atlântida Cinematográfica - Sandra Ciocci e Claudiney Carrasco
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Assim era a música da Atlântida:

a trilha musical do cinema popular brasileiro no exemplo da

companhia Atlântida cinematográfica1

Sandra Ciocci (UNICAMP) 2

Claudiney Carrasco (UNICAMP)3

Este artigo é parte de uma dissertação de mestrado, desenvolvida na

UNICAMP, durante os anos de 2008 e 2009. Nele, abordamos a composição e

inserção da trilha musical nos filmes da Companhia Atlântida Cinematográfica,

produzidos entre os anos de 1942 e 1962, os elementos musicais que caracterizaram

os filmes denominados chanchadas e as transformações ocorridas, devido ao

equipamento de gravação e edição de som ou a ausência deles, na empresa.

A Atlântida4, durante duas décadas, produziu 66 filmes de longa metragem.

O produto mais rentável da companhia foi a comédia musical de carnaval, mas

não foi o único. Dentre os filmes, comercializados pela empresa, encontramos

também policiais, dramas e romances. Embora os filmes, atualmente, estejam em

condições de conservação precárias, encontramos, sob os cuidados da Cinemateca

Brasileira, em São Paulo, 48 títulos, além de fragmentos de outros filmes, ainda

que, alguns dos 48 títulos, não estejam à disposição dos pesquisadores, pela

fragilidade do material original e ausência de cópias para pesquisa.

301
Assim era a música da Atlântida: a trilha musical do cinema popular brasileiro no exemplo da companhia Atlântida Cinematográfica - Sandra Ciocci e Claudiney Carrasco
Sonoridades

Os 18 títulos, dos quais não se tem notícia, de cópias ou originais, podem

ter se perdido no incêndio ocorrido na madrugada do dia 22 de novembro de 1952,

que destruiu completamente os estúdios da empresa (BARRO, 2007, p. 231), na

inundação da década de 705ou durante exibição nos cinemas pelo Brasil. A data

exata do desaparecimento do título não nos importa, mas sim o fato de não haver

qualquer registro da autoria das trilhas desses filmes. Na época, a companhia não

organizava seus arquivos e muitas vezes o contrato com os músicos era tratado

de maneira informal, assim, são poucas as informações concretas sobre a autoria

das trilhas musicais dos filmes desaparecidos. Existem muitas especulações

baseadas em títulos publicados, mas que não traduzem a realidade dos dados a

respeito dos compositores de cada filme, quando comparado aos créditos oficiais,

registrados na película, dos títulos preservados.

A imaturidade da indústria cinematográfica brasileira, nas décadas de

40 e 50, também contribuiu para o desaparecimento de elementos informativos

importantes. Podemos exemplificar com o filme Fantasma por acaso (1946). A

trilha musical é formada apenas por canções, inseridas diegeticamente6. Como

não existe, no filme, composição musical na forma instrumental e ainda não havia

uma definição sobre o que fazia, ou não, parte de uma trilha musical, não há

crédito sobre quem organizou as canções, além do fato de existirem canções não

creditadas, neste mesmo filme.

Durante análise dos filmes, na Cinemateca e nos escritórios da companhia,

encontramos o nome de músicos creditados como compositores das trilhas musicais

inseridas. Esses músicos são: Alexandre Gnattali, Guerra-Peixe, Guio de Moraes,

Léo Peracchi, Lindolpho Gaya, Lírio Panicalli, Luiz Bonfá, Radamés Gnattali e

Waldir Calmon. Se buscarmos a biografia destes compositores, encontraremos

uma semelhança entre elas. Todos, os compositores citados, tiveram formação

erudita, mas, por necessidades econômicas, desempenhavam funções dentro das

rádios populares do Rio de Janeiro e de São Paulo.

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Assim era a música da Atlântida: a trilha musical do cinema popular brasileiro no exemplo da companhia Atlântida Cinematográfica - Sandra Ciocci e Claudiney Carrasco
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Esse trânsito, fluente, entre a música popular e a erudita os credenciou

para trabalhar dentro das empresas cinematográficas brasileiras do período, pois

os diretores dos filmes, na Atlântida e nas demais companhias, ativas no período,

buscavam inserir, nas suas produções, música similar à utilizada nos filmes de

Hollywood. Basicamente a música estabelecida na década de 30 por compositores

como Max Steiner. As características dessa música hollywoodiana, da década

de 30, foram detalhadas por Carrasco, em Sygkhronos, e estão presentes nas

trilhas dos filmes da Atlântida. Embora, nos primeiros filmes da Atlântida, não

houvesse a preocupação em produzir uma composição original, não diegética, ela

sempre era instrumental, em grande quantidade e se utilizava do mickeymousing

e do leitmotiv, mas, não era empregada de forma pura. Nas trilhas dos filmes da

Atlântida, o mickeymousing está, quase sempre, vinculado à figura do cômico e

utiliza um determinado tipo de instrumentação que, muitas vezes, nos remete à

música dos palhaços no picadeiro dos circos. A instrumentação da música não

diegética também recebeu adaptações, devido à falta de recursos para contratar

grandes orquestras. As trilhas da Atlântida eram quase sempre gravadas dentro

dos estúdios da rádio nacional, devido à facilidade dos maestros-compositores em

transitar pelos estúdios onde trabalhavam. Encontramos muitas trilhas gravadas

com a formação do conjunto regional, que nas rádios acompanhava cantores e

cantoras em programas ao vivo. A Atlântida não possuía estúdio próprio, capaz de

comportar agravação de um grupo musical. Essa deficiência não era apenas da

Atlântida, nenhuma companhia de cinema, no Brasil, tinha estúdios para gravação

que comportasse uma orquestra, como nos estúdios de Hollywood. A primeira

empresa que teve um local como esse, de sua propriedade foi a Vera Cruz.

A proximidade entre a quantidade de música dos filmes de Hollywood e a

dos filmes da Atlântida cresceu proporcionalmente à qualidade e quantidade de

equipamentos, de gravação e edição de som, dentro da empresa. Na criação,

conturbada, da primeira diretoria da Atlântida, houve diversas despesas que não

estavam nos planos de Fenelon e Burle, deste modo, depois de providenciar

o local para estúdio e depósito, compra de material para gravação e edição

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Assim era a música da Atlântida: a trilha musical do cinema popular brasileiro no exemplo da companhia Atlântida Cinematográfica - Sandra Ciocci e Claudiney Carrasco
Sonoridades

de vídeo, não sobraram recursos suficientes para compra de um equipamento

de gravação e edição de áudio minimamente razoável. A solução foi juntar

peças, que pertenciam aos proprietários, e somar a outros equipamentos vindos

de diversas origens. A este equipamento, os funcionários davam o nome de

Frankenstein numa alusão à mistura improvisada de dispositivos valvulados, nem

sempre compatíveis, como o famoso monstro criado por Mary Shelley. Segundo

os funcionários, o equipamento produzia uma qualidade de som muito ruim, mas

não era necessário nenhum testemunho para se imaginar o resultado obtido.

Infelizmente, essa afirmação por parte dos funcionários não pode ser definida

com precisão na atualidade, pois dos filmes produzidos com a utilização desta

primeira fase de equipamentos só restaram três – Tristezas não pagam dívidas

(1944), Fantasma por acaso (1946) e Luz dos meus olhos (1947). Durante coleta

de dados para esta pesquisa, tivemos contato com os três filmes citados. O

material está muito comprometido e seria impossível distinguir o que realmente

foi má qualidade da gravação e o que seria condição precária de conservação,

deterioração. O importante é citar que, em depoimentos a Hernani Heffner7, um


dos funcionários, Jesus Narvaez, afirmou que a qualidade do som era limitada,

o que restringia a realização de determinados sons.

Na época, o som de filmes era monofônico, isto é, utilizava-se apenas um

canal em qualquer das etapas de realização – captação, modulação, equalização,

edição e transcrição óptica. Não era permitido o controle mais fino da gravação.

Isso significa que a Atlântida no início passou pelas mesmas dificuldades que a

Cinédia,ou seja, não se podia fazer a edição de som. Contudo, esse procedimento

era possível e utilizado pelas companhias de cinema dos Estados Unidos, desde

adécada de 30. O que o equipamento, ou a falta dele determinou na trilha musical

dos filmes da Atlântida foi a separação entre música e diálogos. Os três elementos

que constituem a trilha sonora de um filme nunca estavam juntos. Quando a

personagem falava, não tinha música; quando tinha música, não havia diálogo.

Ruídos de sala eram praticamente inexistentes. A falta de condições técnicas,

que limitou a utilização da música nos primeiros filmes da Atlântida, foi um dos

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Assim era a música da Atlântida: a trilha musical do cinema popular brasileiro no exemplo da companhia Atlântida Cinematográfica - Sandra Ciocci e Claudiney Carrasco
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

fatores que levou à inserção de tantas canções em um mesmo filme. Como não

era possível colocar música sob diálogos, foi necessário criar uma maneira de

apresentá-la. Esses números musicais não podiam ser gravados com som direto,

porque seria necessário microfonar toda a orquestra para gravar e a Atlântida

não tinha equipamentos para tal procedimento. Então, a solução era registrar as

canções em disco e usá-las como playback.

A partir de 1948, as condições da Atlântida tiveram uma melhora

considerável, tanto na parte de vídeo como na de áudio. As músicas começaram

a ser gravadas dentro do próprio estúdio da empresa. Segundo Heffner, embora

a “captação de som fosse de boa qualidade”, quase sempre essa qualidade “se

perdia no processamento laboratorial”. Os “funcionários da empresa chamavam

o laboratório de águas turbulentas”, o que nos faz imaginar o resultado que se

obtinha. Mas o problema não era apenas com os equipamentos da companhia.

Não podemos nos esquecer de que o mundo estava vivendo o período após a

Segunda Grande Guerra e o valor do material necessário para a gravação era

muito alto, além da dificuldade de aquisição desses produtos.

Em 1950, a Atlântida adquiriu um equipamento, já usado, mas em muito

boas condições, de um americano de nome Howard Randall. Ele tinha chegado ao

Brasil, vindo do México, onde tinha feito um filme com John Ford. Esse americano

era técnico de som e, depois da produção mexicana, ficara com a aparelhagem de

quatro canais RCA hight fidelity. Randall teria trazido o equipamento para o Brasil a

fim de criar aqui uma indústria cinematográfica, um estúdio em São Gonçalo. Seus

planos foram frustrados, ele trabalhou por um breve tempo na Vera Cruz, no filme

Caiçara (1950), montou a estrutura da Maristela8, mas depois desistiu, resolveu


sair do país, onde deixou o equipamento após negociação com a Atlântida. O

que nos interessa neste fato é que a qualidade da gravação de som dentro da

Atlântida tem um salto na qualidade, que pode ser percebido, gradativamente,

nos filmes posteriores. Mas, em Carnaval Atlântida (1953), a qualidade do som,

infinitamente superior à dos filmes anteriores, nos revela que além da qualidade

do equipamento, o uso dessa aparelhagem é mais consciente. Nesse período

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Assim era a música da Atlântida: a trilha musical do cinema popular brasileiro no exemplo da companhia Atlântida Cinematográfica - Sandra Ciocci e Claudiney Carrasco
Sonoridades

reconhecemos também a elevação da qualidade do profissional dentro da

Atlântida com o trabalho de Aloysio Vianna. Outro fator significativo é que com a

chegada de Severiano Ribeiro Jr.9 à Atlântida, os filmes passaram a ser revelados

na Cinegráfica São Luiz, de propriedade de Severiano. Na Cinegráfica São Luiz

não havia um equipamento perfeito, mas a diferença era expressiva, para melhor,

que o utilizado na Atlântida anteriormente.

O próximo salto tecnológico chegou à Atlântida, apenas em 1954, quando

a companhia adquiriu os equipamentos de som da Maristela. Todo o equipamento,

microfones e recorders, eram de excelente qualidade, mas o avanço expressivo

aconteceu, sobretudo, com a aquisição da mesa de oito canais. O equipamento

era de tamanha qualidade que mesmo após o período de produção de filmes

encerrar, em 1962, a Atlântida permaneceu como uma empresa da área de cinema

e oferecia serviço de finalização de som.

Podemos, então, dividir as trilhas musicais dos 66 filmes em quatro fases,

segunda a aquisição de tecnologia. Os filmes produzidos na primeira fase, e seus

respectivos compositores da trilha são:

Filme Ano Compositor


Astros em desfile 1942 *
Moleque Tião 1943 *
É proibido sonhar 1943 *
Brasil desconhecido 1944 *
Tristezas não pagam dívidas 1944 Guerra-Peixe
Gente honesta 1945 *
Romance de um mordedor 1945 *
Não adianta chorar 1945 *
Vidas solitárias 1945 *
Gol da vitória 1946 *
Segura esta mulher 1946 *
Sob a luz do meu bairro 1946 *
Fantasma por acaso 1946 **
Este mundo é um pandeiro 1946 *
Luz dos meus olhos 1947 Lírio Panicalli
Asas do Brasil 1947 *
*Filmes não analisados
** Filmes sem crédito para trilha musical

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Assim era a música da Atlântida: a trilha musical do cinema popular brasileiro no exemplo da companhia Atlântida Cinematográfica - Sandra Ciocci e Claudiney Carrasco
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Durante a segunda fase são produzidos os filmes:

Falta alguém no manicômio 1948 *


Terra violenta 1948 *
É com esse que eu vou 1948 Lírio Panicalli
E o mundo se diverte 1949 **
O caçula do barulho 1949
Escrava Isaura 1949 Radamés Gnattali
Também somos irmãos 1949 Lírio Panicalli
Carnaval no fogo 1949 Lírio Panicalli
Não é nada disso 1950 *
A sombra da outra 1950 *
*Filmes não analisados
** Filmes sem crédito para trilha musical

A terceira fase teve as produções:

Aviso aos navegantes 1950 LindolphoGaya


Aí vem o barão 1951 Lindolpho Gaya e Lírio Panicalli
Maior que o ódio 1951 Lírio Panicalli e Léo Peracchi
Areias ardentes 1951 *
Barnabé tu és meu 1952 Léo Peracchi
Os três vagabundos 1952 Lírio Panicalli
Amei um bicheiro 1952 Léo Peracchi
É pra casar 1953 Waldir Calmon
Carnaval em Caxias 1953 *
A dupla do barulho 1953 Lírio Panicalli
Os três recrutas 1953 *

Na quarta, e última, fase foram produzidos:

Nem Sansão nem Dalila 1954 Lírio Panicalli e Luiz Bonfá


Malandros em quarta dimensão 1954 *
A outra face do homem 1954 *
Matar ou correr 1954 Lírio Panicalli

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Assim era a música da Atlântida: a trilha musical do cinema popular brasileiro no exemplo da companhia Atlântida Cinematográfica - Sandra Ciocci e Claudiney Carrasco
Sonoridades

Guerra ao samba 1955 *


O golpe 1955 Lírio Panicalli
Paixão nas selvas 1955 *
Chico viola não morreu 1955 **
Colégio de brotos 1956 **
Vamos com calma 1956 Guio de Moraes
Papai fanfarrão 1956 *
Garotas e samba 1957 Alexandre Gnattali
Treze cadeiras 1957 ***
De vento em popa 1957 Alexandre Gnattali
É a maior 1958 *
Esse milhão é meu 1958 Alexandre Gnattali
E o espetáculo continua 1958 *
O homem do Sputnik 1959 Alexandre Gnattali
Cupim 1959 **
O palhaço o que é? 1959 *
Aí vem a alegria 1959 *
Duas histórias/Cacareco vem aí 1960 Alexandre Gnattali
Os dois ladrões 1960 Alexandre Gnattali
Quanto mais samba melhor 1961 Alexandre Gnattali
Pintando o sete 1961 Alexandre Gnattali
Entre mulheres e espiões 1961 Alexandre Gnattali
As sete Evas 1962 Luiz Bonfá
Os apavorados 1962 *
*Filmes não analisados
** Filmes sem crédito para trilha musical
***Nenhuma cópia encontrada tem a tela, preservada, do crédito do compositor da trilha

Com base na lista anterior, podemos afirmar que as trilhas dos filmes

da Atlântida foram, em sua maioria, compostas por Lírio Panicalli e Alexandre

Gnattali. Lírio atuou com muitos diretores, enquanto Alexandre fez uma parceria

de trabalho com Carlos Manga, que iniciou como diretor em 1953, e assumiu o

filme Carnaval Atlântida, por ordem do sócio-proprietário, Severiano Ribeiro, que

tinha sido iniciado por Burle.

Carlos Manga, mais do que qualquer outro diretor da companhia, buscou

uma proximidade, de seus filmes, com os filmes norte-americanos. As trilhas de

seus longas-metragens atingem a grandiosidade instrumental, hollywoodiana,

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Assim era a música da Atlântida: a trilha musical do cinema popular brasileiro no exemplo da companhia Atlântida Cinematográfica - Sandra Ciocci e Claudiney Carrasco
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

em Nem Sansão nem Dalila, filme no qual Manga inseriu uma trilha orquestral

gravada dentro do Teatro Municipal do Rio de Janeiro com grande orquestra10. As

trilhas dos filmes de Manga atingem uma maturidade, não apenas com a música

instrumental, mas também, no uso das canções.

Nos primeiros filmes da companhia, como já mencionado, houve uma

inserção grande de canções. Este procedimento não foi criado no Brasil. No

cinema de Hollywood, na década de 30, foi utilizada a inserção de canções

para disfarçar a impossibilidade de edição do som. Os números musicais eram

inseridos de maneira que a presença deles fosse justificada pelo ambiente

como teatros e casas noturnas. Nos filmes da Atlântida, os números musicais

também foram inseridos de maneira diegética, mas sofreram influência do teatro

de revista, do circo, do carnaval e do rádio popular. Encontramos, nos filmes

da empresa, diversos números transportados, fielmente, do formato utilizado

pelas Revistas de ano. Segundo Neyde Veneziano11, as revistas tinham uma

estrutura clássica. Ela obedecia, frequentemente, a um tema, quase um fio

condutor, geralmente ligado a um acontecimento de destaque da época,

que podia ser político ou não. O tema era desenvolvido entre a abertura e a

apoteose que,respectivamente, iniciavam e fechavam o espetáculo. A narrativa

era interrompida por uma média de 15 a 20 quadros, dividida entre esquetes,

cortinas e números de dança. Percebemos então, que a quantidade de números

musicais, inseridos no espetáculo popular, não surgiu nas chanchadas, mas foi

transferida. As revistas tinham a função de lançar músicas para o carnaval, que

é cedida para as comédias de carnaval. Desta maneira, passamos a sentir a

influência do mercado fonográfico na inserção e escolha das canções, já que

o público havia se acostumado a ir ao cinema para, muitas vezes, conhecer o

rosto dos cantores que só eram conhecidos pela voz, através do rádio.

Dos circos, recebemos a herança do palhaço cantor, que, através de

Oscarito e Grande Otelo, lança canções e marchinhas para os bailes de carnaval.

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Assim era a música da Atlântida: a trilha musical do cinema popular brasileiro no exemplo da companhia Atlântida Cinematográfica - Sandra Ciocci e Claudiney Carrasco
Sonoridades

Os musicais de carnaval, da Atlântida, tinham uma grande quantidade de

canções inseridas. Uma média de 10 canções por filme. Encontramos, nesses

filmes, a participação, em formato de número musical, de cantores como Francisco

Carlos, Luiz Gonzaga, Eminha Borba, Dóris Monteiro, 4 ases e 1 coringa e Dick

Farney, entre muitos outros. No princípio, eles apareciam no filme como eles

mesmos, não tinham um papel na ficção, eram os famosos cantores em números

dentro de um show ou baile. Uma das contribuições de Carlos Manga, para o

amadurecimento da trilha da comédia musical foi a diminuição da quantidade de

canções e a inserção do cantor ou cantora como atores, eles passavam a ter um

papel na ficção e cantavam, como nos musicais de Hollywood.

Manga também passa a utilizar as canções para auxiliar na condução

da narrativa, o que não acontecia antes, pois nos primeiros musicais, de

Atlântida, a música interrompia a dramaturgia, como num clip. Ele passa a

exigir dos compositores uma coerência entre a letra cantada e a história

da personagem e também introduz nos filmes uma música mais refinada

harmonicamente, composta por Billy Blanco, considerado um importante

compositor que produziu música pré-bossa nova.

Infelizmente, muitos desses títulos foram mutilados durante a produção

de Assim era a Atlântida. Os números musicais foram cortados dos originais para

integrar o documentário e não foram mais devolvidos aos seus lugares de origem.

Após nossos estudos e análises, podemos afirmar que os filmes da

Companhia Atlântida são de grande valor para a história do cinema brasileiro,

mas, sobretudo, para a história da música popular brasileira, por conter os únicos

registros audiovisuais de cantores, cantores e conjuntos musicais da Era de ouro

do rádio, pois foram produzidos em uma época em que não existia a televisão e

mesmo depois do aparecimento desta, produziu em tempos que a televisão era ao

vivo e não podia ser gravada.

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Assim era a música da Atlântida: a trilha musical do cinema popular brasileiro no exemplo da companhia Atlântida Cinematográfica - Sandra Ciocci e Claudiney Carrasco
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Esperamos, ansiosamente, que o Minc, agora proprietário dos filmes, faça

a restauração e devolução dos números musicais retirados, para que não se perca

esta parte da memória de nossa história, nunca cultuada com o devido respeito.

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Assim era a música da Atlântida: a trilha musical do cinema popular brasileiro no exemplo da companhia Atlântida Cinematográfica - Sandra Ciocci e Claudiney Carrasco
Sonoridades

Referências bibliográficas

BARRO, Maximo. José Carlos Burle: Drama na chanchada. São Paulo:

Imprensa oficial, 2007.

CARRASCO, Claudiney Rodrigues Trilha musical: música e articulação fílmica.

São Paulo: Escola de Comunicações e Artes - ECA, USP, 1993.

(Dissertação de Mestrado).

____________________________ Sygkhronos: A formação da poética

musical do cinema. São Paulo: Via Lettera: FAPESP, 2003.

VENEZIANO, Neyde. O teatro de revista no Brasil. Campinas: Editora da

Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, 1991.

_________________ Não adianta chorar: teatro de revista brasileiro...Oba!.

Campinas – SP: Editoras da Universidade Estadual de Campinas –

UNICAMP, 1996.

_________________ De pernas para o ar: teatro de revista em São Paulo. São

Paulo: Imprensa Oficial, 2006.

_____________________________________________________________

1. Trabalho apresentado em sessão de comunicação, na mesa de estudos do som. Projeto financiado pela CAPES e apoiado
pela Rede Globo de Televisão através do Globo Universidades

2. Doutoranda. E-mail: [email protected]

3. Professor Doutor. E-mail: [email protected]

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Assim era a música da Atlântida: a trilha musical do cinema popular brasileiro no exemplo da companhia Atlântida Cinematográfica - Sandra Ciocci e Claudiney Carrasco
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

4. Companhia Atlântida Cinematográfica, empresa fundada no ano de 1941 por José Carlos Burle e Moacyr Fenelon, na
cidade do Rio de Janeiro. Atuou na produção de filmes de longa metragem até o ano de 1962.

5. Informação no documentário Assim era a Atlântida (Carlos Manga, 1974).

6. Esse termo, aqui, é utilizado segundo a classificação de Claudia Gorbman (1987)

7. Informação obtida através de comunicação pessoal com Hernani Heffner, diretor de conservação da Cinemateca do MAM,
no Rio de Janeiro.

8. A Companhia Cinematográfica Maristela surgiu em 1950 capitaneada pela família Audrá(de industriais e proprietários de
terras e de companhia de transportes). Seus estúdios eram localizados em São Paulo e para a montagem foram gastos 30
milhões de cruzeiros (RAMOS; MIRANDA, 2004, p. 358).

9. Luiz Severiano Ribeiro Júnior, empresário, natural de Fortaleza, CE (1912-1993). Herdeiro da maior cadeia exibidora
de cinema no Brasil. Estudou Administração em Londres com a finalidade de assumir os negócios da família. Investiu
na distribuição de filmes fundando a Distribuidora de Filmes Brasileiros que foi substituída paulatinamente pela União
Cinematográfica Brasileira (UCB). Abriu um laboratório, Cinegráfica São Luiz, ampliando o campo de atuação dentro
do ramo cinematográfico. Com a compra da Atlântida passou a atuar desde a produção, passando pela distribuição e
finalizando com a exibição de filmes.

10. Informações obtidas durante entrevista do diretor concedida à pesquisadora

11. VENEZIANO, Neyde. O teatro de revista no Brasil. Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP,
1991.

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Montagem, canto e música em Alberto Cavalcanti - Fernanda Aguiar Carneiro Martins
Sonoridades

Montagem, canto e música em Alberto Cavalcanti1

Fernanda Aguiar Carneiro Martins (UFRB)2

A obra cinematográfica de Alberto Cavalcanti (Rio de Janeiro, 1897–

Paris, 1982) espera por um estudo aprofundado, assim como a sua contribuição

inestimável ao uso do som no cinema. O aporte cavalcantiano, no domínio do

som, é de tão fundamental importância que remonta aos primórdios da sétima

arte, quando ainda havia o cinema silencioso, num período marcado por várias

tentativas de sincronização entre imagem e música. Ao que parece, o trabalho

cavalcantiano de maior relevo se estende a aproximadamente cinco décadas de

existência do cinema, quando ele colaborou com músicos de prestígio como, por

exemplo, o brasileiro César Guerra Peixe e o alemão Hanns Eisler.

Se na época do cinema dito mudo Alberto Cavalcanti ganha notoriedade

com o seu documentário, ou melhor, a sua “sinfonia urbana” Nada como o passar

das horas (Rien que les heures, 1926) – graças ao seu aspecto inovador no tocante

à exploração de uma Paris não turística, flagrada de um amanhecer a outro, e ao

recurso da montagem –, ao longo das cinco décadas iniciais do cinema, a sua

incursão no campo do sonoro abrange uma gama variada de experiências. Nesse

sentido, Alberto Cavalcanti jamais economiza esforços: ainda no período marcado

pela música de acompanhamento, executada no momento da projeção do filme,

ele tem a audácia de transpor para a tela de cinema uma canção popular francesa,

que resulta no curta-metragem homônimo A pequena Lilie (La p´tite Lilie, 1927),

o que lhe rende algumas críticas. Na mesma década, Cavalcanti lança mão de

314
Montagem, canto e música em Alberto Cavalcanti - Fernanda Aguiar Carneiro Martins
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

colaborações para os seus filmes, contando com um músico de renome como

Maurice Jaubert. Eis a origem da versão sonora de Chapeuzinho vermelho (Le

petit chaperon rouge, 1929). Referência de inegável relevância, ao se falar na

Escola Britânica do Cinema Documentário, o seu nome encontra-se comumente

associado à utilização criativa e experimental do som na série de documentários

do General Post Office Film Unit – G.P.O. Film Unit, sob a responsabilidade de

John Grierson. Nesse contexto, Cavalcanti dá continuidade à colaboração com

Darius Milhaud, e descobrirá o talento de Benjamin Britten.

Todavia, as experiências cavalcantianas no domínio do som no cinema

nem sempre lhe proporcionam uma boa reputação. Antes de seu estabelecimento

na Inglaterra, não se deve esquecer a sua breve atividade nos estúdios

Paramount, situados em Joinville, subúrbio parisiense. Neles, Cavalcanti volta-

se para uma produção eminentemente comercial, com versões sonorizadas em

diferentes idiomas de um mesmo filme, efetuadas a fim de garantir acesso a

públicos de nacionalidades distintas. Cavalcanti é muito criticado, contudo tal

experiência lhe permite se familiarizar com a nova técnica. Data dessa época

a realização do primeiro filme falado em língua portuguesa,A canção do berço

(1930). Dedicando-se ao cinema de gênero na década de 1940, na Inglaterra,

Cavalcanti chega a dirigir um filme musical, Champagne Charlie (Champagne

Charlie, 1944), motivo de repúdio por parte do colega S. M. Eisenstein, devido

ao caráter alienante e de puro entretenimento do filme, num contexto de crise

gerado pelo grande conflito mundial.

No entanto, mais adiante, no seio da tentativa de industrialização do

cinema brasileiro dos anos 1950, período de emergência de um cinema nacional,

Cavalcanti faz descobrir a grandiosidade do compositor e também pesquisador

César Guerra Peixe, cujo momento-chave dessa colaboração não poderia ser

senão O canto do mar (1953), reunindo diversos ritmos e canções próprios da

cultura popular do Nordeste brasileiro. Nele, é interessante notar como a estética

construtivista, fazendo sobressair o trabalho inventivo do recurso da montagem, e

o emprego de uma variedade de cantos e de música entram em jogo, contribuindo

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Montagem, canto e música em Alberto Cavalcanti - Fernanda Aguiar Carneiro Martins
Sonoridades

para a criação de uma “imagem-ritmo”, a qual conjuga a expressão do gesto e do

corpo, em passagens do ritual e da festa. Eis o objeto de estudo do presente texto.

Porém, vale salientar ainda que, após a realização de O canto do mar, após o

esforço frustrado de se fixar no país natal, Cavalcanti, vendo-se forçado a retornar

para a Europa, exerce um trabalho em conjunto com o compositor Hanns Eisler,

em Senhor Puntila e seu criado Mati (Herr Puntila und seinknecht Mati, 1955) –

Eisler possuindo, por sua vez, obras-primas como a composição camerística feita

para Chuva (Regen, 1929), de Joris Ivens, em 1941, além de Noite e neblina (Nuit

et brouillard, 1957), de Alain Resnais.

Precisamente quanto a O canto do mar, inserido no contexto da emergência

de um cinema nacional, ele faz coincidir a exploração dos cenários naturais (em

filmagens de exteriores) e a presença de atores não profissionais, de dialetos

e de temas concernentes à ordem social. Graças à sua busca de realismo,

O canto do mar põe em jogo recursos que estabelecem um diálogo com o

Neorrealismo italiano, sintetizados em seu registro documentário. Nesse domínio

de reivindicações, o filme chama a atenção graças à conjugação de fatores de

relevo num outro contexto cinematográfico, que lhe é, no entanto, contemporâneo.

Acrescente-se a isso que, em O canto do mar, a configuração singular

do espaço geográfico, resultante do trabalho da montagem, demonstra que a

busca de realismo nos conduz aos ideais defendidos pela Escola Soviética.

Sob esse viés, trata-se de exercer maestria do espaço e, assim sendo, de

criar geografias imaginárias. Apesar das divergências entre Lev Kulechov,

Vsevolod Pudovkin, Dziga Vertov e Serguei M. Eisenstein, damo-nos conta de

que algo em comum os une: “cada um fixa na montagem os mesmos objetivos:

permitir não reproduzir fielmente o universo sensível, mas o interpretar, o

refratar de uma maneira inédita para metamorfoseá-lo num ‘sexto continente’,

radicalmente novo” (TSIKOUNAS, 1994, p.27).

Observamos no longa-metragem cavalcantiano, pois, que o espaço

geográfico é quase inteiramente reinventado. Para os habitantes da capital

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Montagem, canto e música em Alberto Cavalcanti - Fernanda Aguiar Carneiro Martins
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Recife, na época do lançamento do filme, tal fato provocou um choque:

eles tiveram dificuldade em aceitar e absorver o universo criado, uma vez

que localidades diversas entram na formação de um mesmo cenário. Um

cronista da época escreveu:

E o difícil para nós será anular em nosso entendimento esta


realidade geográfica a fim de aceitar a própria realidade do
filme, sem quebras emocionais dentro da [palavra ilegível no
microfilme] [sic] geral. Isto, entretanto, na tira ao filme a sua
[ilegível] continuidade, progressão esta intrínseca à história
e às situações do entrecho. De mais a mais, tais liberdades
geográficas, buscando nossos recantos mais fotogênicos e mais
fotográficos valorizam a parte visual do filme, dando-lhe maiores
efeitos plásticos (GONDIM FILHO apudARAÚJO, 1997, p. 230).

Embora haja recriação do espaço físico, o cronista admite que isso não

diminui em nada o filme, sua construção narrativa obedecendo a uma lógica

interna. Além disso, a escolha das locações é percebida como um elemento

que valoriza a concepção visual do filme, sua materialidade plástica. A título de

exemplo, no início do filme, os sertanejos chegam ao litoral, na praia da Ilha de

Itamaracá, tal acontecimento sendo contemporâneo da ação das lavadeiras, na

prática de sua função, à beira de um riacho, situado numa praia de Recife, a de

Riacho Doce. Em seguida, o jovem protagonista Raimundo é mostrado ao sair

de casa. Na caminhada de Raimundo três diferentes partes da capital aparecem

reunidas, dando a impressão de proximidade: a sua moradia na praia de Riacho

Doce, a fábrica Tacaruna, nas imediações da cidade, próxima ao município de

Olinda, e o centro, mais precisamente o porto de Recife. Na sequência do sonho

do protagonista, o mais surpreendente ocorre, quando assistimos ao jovem

protagonista entrar na igreja Nossa Senhora do Carmo, em Olinda, cujas tomadas

são do seu exterior, o interior imediatamente exposto sendo o da Capela Dourada,

com o seu estilo barroco requintado, a capela situando-se no centro da cidade.

317
Montagem, canto e música em Alberto Cavalcanti - Fernanda Aguiar Carneiro Martins
Sonoridades

Dito isso, testemunhamos a maneira de conceber o espaço própria ao

Construtivismo russo do início do século passado. Vale lembrar, que as novas

possibilidades de elaboração do espaço, sem existência na realidade, foram

batizadas de “geografia criativa” por Lev Kulechov.Nesse sentido, algo essencial

deve ser levado em conta:

[...] não se trata forçosamente de produzir um espaço impossível,


ou um tempo impossível, em relação às leis da realidade:
a propriedade se aplica não apenas às quimeras espaço-
temporais da ficção científica, do fantástico ou do surrealismo (a
exemplo da porta de apartamento de O cão andaluz que se abre
repentinamente para o mar), mas também à produção da ilusão
de um mundo compatível com o mundo real. O que caracteriza,
pois, o cinema não é a restituição de uma realidade, mas sua
produção; não é a adequação a priori do filme ao mundo físico,
mas sua capacidade de dele criar a posteriori uma simulação
(CHATEAU, 1994, p. 35, tradução nossa).

É no âmbito desse trabalho da montagem, unânime em atualizar as

conquistas do Construtivismo russo, que eu me proponho a analisar três passagens

de O canto do mar, precisamente as passagens do filme cujo encadeamento e

justaposição de planos curtos e próximos valorizam não apenas o próprio trabalho

da montagem, mas também o movimento dos figurantes no interior do quadro,

tudo isso contando ainda com a presença da música ambiente. Eis alguns dos

momentos do filme que põem em jogo a cultura regional popular (no caso, a dança

e a música do frevo, do xangô e do maracatu, momentos esses tomados como

pontos fracos do filme) sem conexão com a lógica narrativa. Na verdade, tais

trechos exercem uma função específica na narrativa do filme, vindo sublinhar

a atmosfera de sonho e de pesadelo, vivida por personagens, tomados por um

mecanismo queos ultrapassa, cuja realidade tende a se dissipar.

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Montagem, canto e música em Alberto Cavalcanti - Fernanda Aguiar Carneiro Martins
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

No que diz respeito à trilha sonora, legado inegável de Alberto Cavalcanti,

O canto do mar não esconde a ambição de conferir à banda som um valor

expressivo. Se já a partir de seu título o termo “canto” salienta a importância

da trilha sonora, ao longo de todo o filme a música é utilizada de modo a tornar

significativa a relação entre imagem e som, jamais natural nem redundante.

Dois empregos da música assumem cada um uma função essencial: O canto do

mar conta, por um lado, com uma partitura orquestral, graças à colaboração do

compositor clássico César Guerra Peixe; por outro, com uma profusão de canções

e de cantos, interpretados pelos próprios personagens e ainda por atores não

profissionais (até mesmo músicos), estes últimos valorizando a cultura regional

popular tão explorada no filme. Assim sendo, O canto do mar põe em evidência

ora uma música de fundo (ou, melhor ainda, de acompanhamento), própria de

uma orquestração imaginária, ou seja, uma “música de filme não diegética”,

ora uma música de tela de cinema (ou, melhor ainda, uma música de fonte),

a saber, uma música diegética, cuja origem o espectador conhece, uma vez

que pertence ao universo ficcional do filme. Tal distinção nos é oferecida pelo

estudioso Michel Chion, em seu livro L’audio-vision. Chion declara o seguinte

(eu guardo aqui as designações em francês):

Chamaremos música de fosse a que acompanha a imagem a


partir de uma posição off, fora do espaço e do tempo da ação.
Esse termo faz referência ao fundo de orquestra da ópera
clássica. Chamaremos música d’écran, ao contrário, a que
emana de uma fonte situada direta ou indiretamente no espaço
e no tempo da ação, mesmo se essa fonte é um rádio ou um
instrumento fora do campo (CHION,1990, p. 71, tradução nossa).

Quanto à composição orquestral, a estrutura em leitmotiv da escrita musical

clássica imprime ao filme o estilo pessoal do músico de renome César Guerra

Peixe. Sua partitura se desenvolve em torno de motivos melódicos, que parecem

nunca se resolver, privilegiando os registros agudos ou graves dos instrumentos

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Montagem, canto e música em Alberto Cavalcanti - Fernanda Aguiar Carneiro Martins
Sonoridades

de sopro ou de percussão. Tais motivos impregnam de emoção certos momentos

da ação, desde o início do filme, com a introdução dos personagens, ao mesmo

tempo em que se constroem de modo a criar uma espécie de “exaltação surda”,

em estreita relação com o tema do sonho.

Isso não descarta a presença de uma profusão de formas musicais,com

canções e cantos originários da cultura regional popular. Se as canções

concernem notadamente aos protagonistas – o pai ex-marinheiro e o

sertanejo, Zé Luiz e João Bento, com “Maria do Mar” e “O Canto do Mar”,

respectivamente –, os cantos, por sua vez, proliferam segundo os diferentes

modos de manifestação da cultura regional popular. No começo do filme, o

jovem protagonista Raimundo vai encontrar o seu pai; ele passa diante de

uma igreja católica, de onde sai uma procissão, cujos fiéis cantam. No final da

sequência da cerimônia fúnebre do irmão mais novo, o canto executado por

Nagisa, amiga da mãe Maria, chama a atenção graças ao conteúdo inusitado

da letra, que faz referência às partes do corpo da criança defunta. Quanto aos

cantos que acompanham a encenação do bumba meu boi, e em seguida do

xangô, eles são tão singulares que o espectador pode dificilmente os decifrar.

Compreende-se ao menos o aspecto lúdico, próprio ao espetáculo do bumba

meu boi, e o caráter religioso das chamadas das divindades do ritual do Xangô.

Sob essa perspectiva, vale ressaltar, o que Gilles Mouëllic nos esclarece: nos

anos 1950, a formação clássica dos compositores de filmes não impede uma

incursão no folclore e no jazz, muito pelo contrário: o ecletismo musical se

revela a norma (MOUËLLIC,2006,p. 33). Eis o exemplo de César Guerra Peixe.

Voltando ao título do filme, ele permanece sugestivo e enfatiza o que

o canto é suscetível de significar. Em princípio, “o canto do mar” mantém

uma relação com a realidade geográfica da capital pernambucana, ele nos

reporta aos recifes de coral que compõem o litoral em questão. Além disso,

encontra-se mais evidentemente a serviço do tema do sonho de evasão e

320
Montagem, canto e música em Alberto Cavalcanti - Fernanda Aguiar Carneiro Martins
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

do desespero, face à miséria retratada no filme, os personagens estando,

eu repito, tomados por um mecanismo que os ultrapassa. Aliás, o canto e

(aliadaa ele) a música se acrescentam às imagens do filme, eles nunca são

neutros nem passam despercebidos.

Uma importância fundamental dada à trilha sonora (claramente

anunciada pelo título, “o canto do mar”) demonstra que a música é eloquente e

parece intervir de maneira propícia no desenrolar da ação. A música serve para

sublinhar certos momentos de emoção, sugere atmosferas e chega a pontuar


reincidências em momentos cruciais da narrativa. Por sua vez, o canto parece

se destacar e se integrar às imagens do filme. Eu diria até que uma virtualidade

musical é posta em trabalho ao longo das próprias imagens do filme. Sob essa

perspectiva, as passagens com o frevo, o xangô e o maracatu merecem uma

atenção especial. Nelas, uma disseminação do princípio de montagem supõe

o fenômeno propriamente dito da fragmentação e da soma, característico

em certos filmes do cineasta soviético S. M. Eisenstein, fenômeno esse que

pressupõe a ideia de “uma decomposição analítica dos planos, fazendo notar

os parâmetros constitutivos da imagem tanto físicos (iluminação, escala dos

planos, etc.) quanto emocionais” (AUMONT, 1981, p. 180).

Dito isso, tudo leva a crer que a música constitui o enjeu, ou melhor, a

questão central de O canto do mar, talvez seu problema figural,3 determinante


de um outro modo de apreender o universo em jogo, pondo em relevo a vertente

musical e, assim sendo, não puramente representativa da imagem fílmica.

Ademais, as passagens do frevo, do xangô e do maracatu se revelam propícias

à instalação de um ritmo, trazendo elementos para acreditarmos na instalação

de uma “imagem-ritmo”, a qual conjuga a expressão do gesto e do corpo, em

momentos do ritual e da festa.

A respeito da “imagem-ritmo”, é interessante acompanhar Hubert Damisch,

quando ele se refere a um “tempo” da imagem, que tem seu ritmo, sua pulsação,

seu “beat”. O estudioso afirma:

321
Montagem, canto e música em Alberto Cavalcanti - Fernanda Aguiar Carneiro Martins
Sonoridades

Beat das imagens tais como elas sucedem na tela, beat dos
planos e das sequências, beat da montagem; beat do preto e do
branco, do brilho, da luz e de seu eclipse; mas beat também das
associações para as quais se presta a própria visão repetida de
um filme, beat das interferências e das rupturas de nível que ela
induz; beat do tempo até no que este pode ter, paradoxalmente,
de não sincrônico; beat da história até no que o termo pode
ter de anacrônico, e a ideia, de propriamente não figurável.
(DAMISCH, 1997, p.13, tradução nossa).

Na teoria do cinema, a questão do ritmo permanece complexa e problemática.

Quanto às passagens do filme evocadas: na do frevo, uma relação se estabelece

entre a ambiência circundante e dois figurantes, uma dançarina e um homem

bêbado; a falta quase total de equilíbrio de ambos demonstra que à atmosfera de

exaltação, proporcionada pela festa, se liga o clima de uma perturbação iminente

(espécie de flashback, essa seqüência mostra o passado do protagonista, o pai

José Luiz, um marinheiro em plena conquista de sua amada). Tal clima aparece

acentuado graças ao encadeamento e à justaposição de planos curtos e próximos,

a música de fonte, por sua vez, contribuindo para dar primazia à atmosfera de

embriaguez. Em seguida, duas sequências do filme são particularmente notáveis:

a do xangô e a do sonho do jovem protagonista Raimundo. Ambas põem em

evidência, de uma vez por todas, o clima de exasperação e de desespero. Como

na sequência do frevo, o encadeamento e a justaposição dos planos, quando

há a visita do filho e do pai, num terreiro de xangô, sugerem um paralelo entre a

condição do protagonista, o pai José Luiz, e um adepto do culto afro-brasileiro,

que dança e parece estar em transe. Isso ocorre no instante em que o pai de

santo joga búzios a fim de descobrir o que acomete o ex-marinheiro, e tenta achar

um meio de curá-lo. Damo-nos conta de que a música de percussão e o canto

se adicionam à ambiência circundante. Não podemos negar que, ao nível das

próprias imagens, a música adquire importância. Eis o que se dá ainda no trecho

da corrida do jovem protagonista Raimundo, em sua tentativa de realizar o seu

sonho – o de partir –, e ele se vê em meio a um desfile de maracatu.

322
Montagem, canto e música em Alberto Cavalcanti - Fernanda Aguiar Carneiro Martins
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Convém admitir, no filme, que o coeficiente onírico e simbólico da

imagem fílmica nunca está ausente. Ademais, o mérito de O canto do mar

parece ser o de lançar as questões seguintes: o que há de ficcional no real e,

vice-versa, o que existe de real no ficcional? Eis porque, no decorrer do filme,

vários procedimentos estilísticos estão a serviço de uma abordagem unânime:

dar a ver uma realidade que tende a se dissipar. Daí se explica o papel de um

inefável e também inelutável canto.

323
Montagem, canto e música em Alberto Cavalcanti - Fernanda Aguiar Carneiro Martins
Sonoridades

Referências bibliográficas

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France: Corlet; Télérama, 1994.

_____________________________________________________________

1. Trabalho apresentado no Seminário Temático Cinema no Brasil: dos Primeiros Tempos à Década de 1950. Esse estudo
constitui objeto do projeto de pesquisa “O Som no Cinema segundo Alberto Cavalcanti”, aprovado no Edital Universal
014/2010, doConselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, em curso a partir de novembro de
2010.

2. Professora adjunta. E-mail: [email protected]

3. O figural se encontra na base das questões concernentes à Figura que, por sua vez, conhecem uma fortuna crítica
excepcional na tradição filosófica até os dias atuais. Parte de um trabalho teórico em curso, a Figura abrange no domínio do
cinema os estudos de G. Deleuze, J. Aumont, M. Vernet, P. Dubois, N. Brenez, entre outros. A Figura, comportando como
instância suprema o figural, o que recobre a matéria “imageante” da obra, permite aceder, através do material sensorial e
não verbal que a imagem contém, a uma forma de pensamento que lhe é própria. Conferir a esse respeito “Puissances de
l’image, puissance de l’analyse” e “Figurable, Figuratif, Figural”, encontrados no livro À Quoi pensent les films, de J. Aumont
(Paris: Séguier, 1996).

324
O soundscape da modernidade: os Sound Studies e o som no cinema - José Cláudio Siqueira Castanheira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

O soundscape da modernidade:

os Sound Studies e o som no cinema1

José Cláudio Siqueira Castanheira (UFSC/ UFF)2

Introdução

Em seu livro Silent film sound, de 2004, Rick Altman levanta a questão

de que muitas das práticas sonoras que constituíam o período pré-cinemas

tiveram influência decisiva no surgimento de um padrão de reprodução sonora

especificamente cinematográfico na consolidação de um modelo próprio e

autônomo de exibição de filmes. Mais do que isso, Altman demonstra como

muito do modelo narrativo desse cinema se deve justamente às novas relações

hierárquicas criadas em torno desses dois elementos: som e imagem.

O caráter de realismo, tão amplamente defendido por determinadas linhas

de estudo do filme, nasce de uma confluência de práticas distintas de outra ordem

que não exclusivamente cinematográfica. Aliás, se tomamos como pertinentes

as observações de Altman sobre o modo como essas práticas configuraram um

modelo específico de narração, não poderíamos sequer falar de cinema antes

da união entre som e imagem, reproduzidos mecanicamente e em sincronia. Da

mesma forma percebemos como esse modelo representacional, que influenciaria

uma série de teorias posteriormente, se deve, igualmente, a uma necessidade de

reduzir a imagem – e agora, também, o som – ao mesmo patamar (ou pelo menos

a um análogo) das linguagens naturais.

325
O soundscape da modernidade: os Sound Studies e o som no cinema - José Cláudio Siqueira Castanheira
Sonoridades

A partir dos anos 30, quando se aperfeiçoam dispositivos de reprodução

sonora mecânica em sincronia com a imagem, a existência de uma experiência

cinematográfica indissociável de aspectos sonoros torna-se um caminho sem

volta. Muitos críticos e realizadores viam no cinema sonoro uma ameaça à

pureza da arte do cinema mudo. Muitas dessas críticas acabam cristalizadas

em lugares-comuns acerca da natureza do cinema e da relação entre som e

imagem. A escassez de investigações teóricas sobre o campo também impediu

que argumentos como os que colocam o som como reprodução fiel da realidade

(enquanto a imagem funcionaria de modo mais independente e criativo) fossem

descartados. A própria natureza de nossos sentidos da audição e da visão

parecia rigidamente definida por modelos estanques.

Nos anos 80 vemos crescer o trabalho de um grupo de estudiosos

preocupados em resgatar algumas questões frequentemente esquecidas

a respeito do som nos filmes. Não se pode dizer que tais pesquisadores

constituíssem uma corrente de pensamento homogênea, mas o grande mérito

desses estudos foi o de redimensionar o papel do som na própria constituição da

experiência cinematográfica. A publicação do número 60 da Revista Yale French

Studies, editado por Rick Altman e totalmente dedicado ao assunto, pode ser

encarada como um sintoma dessa preocupação.

Este trabalho procura dar um pequeno passo além e fazer um

levantamento de algumas das correntes de estudo do som, não necessária

ou exclusivamente ligadas ao cinema, mas que podem apresentar novas

perspectivas para os estudos cinematográficos. Como Altman, chamamos

a atenção para alguns pressupostos falaciosos sobre a natureza do som e

da imagem e para o papel importante que o desenvolvimento de tecnologias

de gravação e reprodução teve na desnaturalização desses pressupostos.

O campo emergente dos Sound Studies, por sua abordagem interdisciplinar,

propõe uma ampliação das possibilidades do som como objeto de estudo para

o cinema e para as práticas sociais de um modo geral.

326
O soundscape da modernidade: os Sound Studies e o som no cinema - José Cláudio Siqueira Castanheira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Sound Studies

Em 2002, em um workshop internacional intitulado Sound matters: new

technology in music, realizado na Universidade de Maastricht, Holanda, autores de

campos diversos como etnomusicologia, história, antropologia, estudos culturais,

sociologia e estudos em ciência e tecnologia apresentaram algumas novas

perspectivas sobre o que passava a ser chamado mais amplamente de “cultura

auditiva”. Os trabalhos apresentados propunham, de forma geral, um novo olhar

sobre a tecnologia e sobre novas formas de escuta mediadas tecnologicamente.

Apesar de enfatizar nossa relação com a música, o encontro também revelou as

possibilidades de um campo mais amplo, que poderíamos chamar de Estudos do

Som (Sound Studies, no original).

Os Sound Studies são uma área interdisciplinar emergente que


estuda o consumo e a produção material da música, som, ruído
e silêncio, e como estes mudaram através da história e dentro
de diferentes sociedades, mas o faz por uma perspectiva muito
maior do que as das disciplinas padrão (PINCH; BIJSTERVELD,
2004, p. 636, tradução nossa).

Esse “novo campo”, a bem da verdade não é tão novo assim. Muitos dos

conceitos apontados por Pinch e Bijsterveld como exemplares no campo já vêm

sendo usados há um bom tempo, tanto na área da música quanto no próprio

cinema. O conceito de “paisagem sonora”, de Murray Schafer, é um deles. Mas

o que desponta como uma característica peculiar, pelo menos dos trabalhos

surgidos nessa reflexão descrita no texto de Pinch e Bijsterveld, seria a importância

das características materiais de todos os processos de produção de sons e de

sua escuta. Fatores históricos, culturais e sociais não podem, certamente, ser

dissociados das novas questões apresentadas, mas a ciência, a tecnologia e

suas máquinas, bem como os processos de conhecimento e de interação, são

fundamentais para o campo dos Sound Studies.

327
O soundscape da modernidade: os Sound Studies e o som no cinema - José Cláudio Siqueira Castanheira
Sonoridades

Da mesma forma que os teóricos de som no cinema e suas novas

proposições nos anos 80, ainda aqui vemos uma tentativa de fugir de um império

do âmbito visual como legitimador do conhecimento. Instrumentos científicos são

desenhados para demonstrar o mundo visualmente: uma “retina exteriorizada”

– termo que os autores tomam emprestado de Michael Lynch (PINCH;

BIJSTERVELD, 2004, p. 637) – que contribui para o domínio do “paradigma visual”

sobre o conhecimento humano.

Por outro lado, se nos referimos ao campo conhecido como “visual”,

poderia o “auditivo” ser colocado como o “desconhecido”? Certamente

faltam-nos termos específicos para descrever aspectos da alçada exclusiva

do universo sonoro. Apresentar conclusões e/ou explicações a respeito do

mundo através de sons torna-se uma tarefa no mínimo pouco comum. “Como

descrevemos o som de um piano Steinway ou de um sintetizador Moog?

Parte da dificuldade surgida no workshop era a de que diferentes disciplinas

desenvolveram suas próprias linguagens especializadas para descrever o

som” (PINCH; BIJSTERVELD, 2004, p. 637, tradução nossa).

Muito embora os Estudos do Som não tenham a pretensão de se

constituir como campo homogêneo ou institucionalizado, a falta de referências

ou terminologias em comum pode, muitas vezes, prejudicar o avanço na

definição dos próprios objetos a serem estudados. De um modo geral, tomamos

como premissa comum o fato de que a audição merece uma investigação mais

aprofundada de seus processos de modernização, assim como Jonathan Crary

o fez com a visão. Em segundo lugar, a defasagem entre modelos teóricos,

metodologias ou mesmo metáforas que utilizam termos de origem do campo

visual e aqueles que se apoiam em modelos sonoros para investigação deve ser

minorada. Por último, devemos compreender as diferenças entre a apreensão

do mundo através do som e aquela através da visão. São experiências distintas,

muito embora não devam ser colocadas em polos opostos como vem sendo

feito ao longo dos anos. Também, não devemos naturalizar nem uma nem

outra. Descrevê-las por metáforas ou definições de caráter mais poético do

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O soundscape da modernidade: os Sound Studies e o som no cinema - José Cláudio Siqueira Castanheira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

que científico nada mais faz do que levar a acreditar que todos ouviríamos ou

veríamos da mesma forma. Como podemos constatar no trecho abaixo:

É função do filme sonoro revelar nosso ambiente acústico,


a paisagem acústica na qual vivemos, a fala das coisas e os
sussurros íntimos da natureza, tudo o que tem fala para além
da fala humana e que conversa conosco com os vastos poderes
de conversação da vida, influencia e direciona incessantemente
nossos pensamentos e emoções, do murmurar do mar ao ruído
da grande cidade, do rugido das máquinas ao gentil tamborilar
da chuva de outono no vidro da janela (BALÁZS, 1952, p. 197).

Os sentidos são conformados mediante seu treinamento em condições

específicas, histórica e socialmente. Ruídos, vozes e músicas relacionam-se

com a vida social, com processos cognitivos, com padrões de percepção do

mundo, gerando uma espécie de narrativa do self (DENORA, 2000). Embora

possamos pensar em um nível mínimo de generalizações que podem nos facilitar

a demarcação de fenômenos auditivos em um determinado período, em um

determinado espaço e em um determinado grupo, não podemos ignorar o fato de

que ouvir (bem como ver) traduzem e são traduzidos por modos específicos de

habitar o mundo. Há uma dimensão que pode ser de bastante difícil prospecção

no que diz respeito ao universo íntimo de cada um.

Vejamos três trabalhos que, citados por Pinch e Bijsterveld, podem nos dar

uma mostra do alcance e das especificidades desses tipos de abordagem.

O primeiro deles, na verdade um conceito cunhado no final dos anos 60 pelo

compositor canadense Murray Schafer (1997), seria a ideia de Paisagem Sonora.

Por Paisagem Sonora, segundo a perspectiva de Schafer, poderíamos entender

o conjunto dos diversos sons ambientes que nos envolvem cotidianamente.

Essas sonoridades teriam um caráter intrinsecamente ligado a um lugar e a uma

comunidade. Um bairro, uma cidade, um país poderiam apresentar características

329
O soundscape da modernidade: os Sound Studies e o som no cinema - José Cláudio Siqueira Castanheira
Sonoridades

sonoras próprias, ou a presença de determinados sons específicos que

produziriam efeitos de identidade e de pertencimento. O pesquisador idealizou

um projeto de inventário dos sons nos mais diferentes lugares da Terra, o World

Soundscape Project, tentando integrar a descrição e o registro dos diversos

sons encontrados com uma classificação que incluiria categorias como “sons

naturais”, “sons humanos”, “sons e sociedade” etc. Para Schafer, existe uma

clara ruptura entre os ditos “sons naturais” e os sons frutos de uma intervenção

tecnológica sobre a natureza. Essa intervenção teria um caráter negativo para

o autor. A “esquizofonia”, ou seja, sons separados de suas fontes, amplificados

e transmitidos através do tempo e do espaço, seria um motivo de preocupação.

Deveríamos, ao mesmo tempo, tentar resgatar um universo sonoro do qual não

temos um registro sistemático e preservar uma ecologia acústica em equilíbrio,

evitando um crescimento da “surdez” universal.

A categorização das paisagens sonoras em tipos “hi-fi”, em que podemos

identificar claramente seus elementos constitutivos, e “lo-fi”, em que a saturação de

elementos sonoros (introduzidos por processos de industrialização e urbanização

desenfreados) não nos permite uma clara leitura desses sons, implica uma

posição crítica em relação às fontes desses mesmos sons. Diferentemente

do ideal propagado pela música concreta dos anos 50, em que a origem não

seria mais importante do que os aspectos físicos concretos dos sons ouvidos e

registrados, para Schafer importam as relações estabelecidas entre os diversos

elementos da paisagem sonora. A classificação não pode levar em conta apenas

características acústicas ou psicoacústicas, mas também os aspectos referenciais


e as qualidades emocionais ou afetivas. Assim, coloca-se de saída uma diferença

entre os eventos sonoros, como quer Schafer, e os objetos sonoros, como descritos

por Pierre Schaeffer (1966), um dos idealizadores da musique concrète.

A ideia de Paisagem Sonora, que também tem sido utilizada por alguns

autores na análise do som cinematográfico, recebeu muitas críticas de teóricos

de diversas áreas, inclusive do próprio cinema. Michel Chion (2009), por exemplo,

acha que o termo é limitante. Não poderíamos descrever uma dimensão auditiva

330
O soundscape da modernidade: os Sound Studies e o som no cinema - José Cláudio Siqueira Castanheira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

da mesma forma que o fazemos com uma paisagem visual (de onde o conceito

teria herdado o nome) uma vez que o som não é estático. Os sons, além de

apresentarem uma maior complexidade em termos de camadas simultâneas

de eventos, não se deixam aprisionar em um momento específico. É claro que

poderíamos levantar o mesmo tipo de argumento em relação às imagens. Quem

disse que uma paisagem visual deve ser, necessariamente, imóvel? E se for o

caso de analisarmos não os movimentos dos elementos em si, mas o movimento

de nossa apreensão desses objetos? Nossa leitura não é linear, nem em termos

de imagens, nem em termos de sons.

Mas, se pensarmos uma paisagem sonora como uma espécie de campo

onde podemos encontrar, sintomaticamente, determinado grupo de sons, ou onde

determinada classe de sons não poderia ser apontada como destoante, talvez

encontremos novos usos mais produtivos para o conceito, mesmo que à revelia

dos propósitos originais de Schafer.

Um dos exemplos desses usos pode ser visto no trabalho de Emily

Thompson (2002), The soundscape of modernity: architectural acoustics and

the culture of listening in America, 1900-1933, em que a autora realiza uma

investigação dos mecanismos de controle dos aspectos sonoros de salas

de exibição e de estúdios nas primeiras décadas do século XX, nos Estados

Unidos. Para Thompson, procedimentos como o isolamento acústico, bem

como o desenvolvimento de novos materiais de absorção sonora, tiveram

uma importância tão grande quanto a expansão das tecnologias de gravação

e reprodução de som.

Um novo invólucro sonoro surgia nas grandes metrópoles e novos ambientes

e métodos de contenção de ruídos não desejáveis foram aperfeiçoados. Materiais

isolantes e equipamentos de mensuração das ondas sonoras favoreceram um

domínio técnico do som e um controle de sua propagação no espaço. Escritórios

silenciosos, eletrificação de mecanismos de gravação e reprodução, tecnologias

como o rádio e o telefone são parte de um mundo que passa a se ouvir de forma

331
O soundscape da modernidade: os Sound Studies e o som no cinema - José Cláudio Siqueira Castanheira
Sonoridades

diferente. Aparelhos como o Vitaphone3 são vistos como exemplos de uma nova

sonoridade, deixando claro que essa escuta que se configura está indiscutivelmente

associada ao progresso e a descobertas científicas.

O cinema refletiu essas mudanças de forma intensa, tornando-se uma

referência no que concernia à transformação do som de fenômeno acústico, de

ondas sonoras, em evento elétrico. O som passa a ser tratado como sinal dentro de

um sistema, sujeito a demonstrações e controle através de fórmulas matemáticas.

Novos espaços refletiram essas mudanças. O Radio City Music Hall,

inaugurado em 1932 na cidade de Nova York, foi construído segundo um novo

modelo eletroacústico, priorizando o som amplificado pelas novas tecnologias,

em detrimento de uma arquitetura que obedecesse puramente a leis de

dispersão acústica mais “naturais”. O caráter “vivo” das salas de espetáculos,

em que o conjunto das ondas sonoras refletidas nas paredes funcionava como

preenchimento ativo do espaço, em uma espécie de amplificação, passou a ser

rejeitado. A reverberação torna-se um elemento incômodo na medida em que

o cinema passa a depender de uma melhor compreensão do que era “falado”

nos filmes. Os diálogos, vistos então como o elemento mais importante para a

compreensão do filme, exigiam um som mais “claro” e “limpo”. A eletrificação

criou formas de preencher esse espaço sem comprometer a “legibilidade” dos

sons. Novos materiais passam a revestir prédios com uma dupla função: evitar

o ruído externo e, principalmente no caso dos teatros e auditórios, diminuir o

excesso de reverberação.

Enquanto consumidores, as pessoas tornavam-se cada vez mais

conscientes de que o som tinha uma importante função a exercer e parecia natural

que a mediação tecnológica fosse a mais apropriada para isso. O próprio advento

do fonógrafo, ao separar os momentos de emissão e de reprodução sonora,

contribuiu para que o som passasse a ser visto como mercadoria, como algo

sujeito a aperfeiçoamentos, até certo ponto quantificável e comercializável.

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O soundscape da modernidade: os Sound Studies e o som no cinema - José Cláudio Siqueira Castanheira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Equipamentos como alto-falantes e microfones, inicialmente usados

em laboratórios para uma investigação científica das propriedades do som,

passaram a ser incorporados à paisagem urbana e a modificar o cotidiano,

uma vez que não apenas o telefone e o rádio tornavam-se formas usuais de

escuta, mas também eventos e manifestações ao ar livre ou em estádios eram

agora amplificados eletricamente. Aparentemente, o público gostava cada vez

mais desse novo tipo de som e várias companhias aderiam ao empreendimento

de eletrificação. Os fabricantes de fonógrafos, ao se renderem à eletricidade,

utilizavam como propaganda em sua disputa pelo consumidor o argumento do

“melhor” som. As características do que seria o “melhor” estavam nitidamente

ligadas a essa dimensão tecnológica, amparadas por uma busca incessante

pela eficiência e pelo desenvolvimento.

Outro autor que vai tratar desse regime de escuta da modernidade é

Jonathan Sterne (2003). Ao nomear como “modelo timpânico” o modo através

do qual aparatos como o estetoscópio (apenas para sair da esfera dos aparelhos

feitos especificamente para o registro de sons, como o fonógrafo) captam ou

registram as ondas sonoras, Sterne demonstra que a descrição material desses

sons torna-se fundamental para finalidades mais práticas, como, por exemplo,

estabelecer um diagnóstico médico. A racionalidade e a cientificidade servem

como esteio para as novas técnicas de ouvir, dando-se atenção àqueles detalhes

sonoros que antes poderiam passar despercebidos. Notar um som um pouco mais

“seco” ou “áspero”, o caráter “úmido” ou “aerado” de uma tosse, atentar para os

silêncios ou para as pausas, significava voltar-se para as informações que apenas


o som poderia dar sobre o funcionamento interno dos corpos. Os aparelhos eram

parte importante dessa nova escuta, entendida não como algo natural, mas como

fortemente guiada por aspectos revelados pelas “máquinas de ouvir”. O diálogo

que se estabelece entre essa perspectiva e uma história dos sentidos é muito

importante. Não há como negar a mediação tecnológica nos processos de escuta,

assim como não podemos ignorar que a própria ideia de um aparelho biológico

de escuta autônomo é, em si, uma herança dos estudos anatômicos e fisiológicos

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O soundscape da modernidade: os Sound Studies e o som no cinema - José Cláudio Siqueira Castanheira
Sonoridades

empreendidos por cientistas do século XIX, como Gustav Fechner e Hermann

Helmholtz. A distinção entre os mecanismos da audição e da visão, assim vistos

como independentes, é fruto dessas mesmas condições históricas. Um processo

de racionalização que, apesar dos grandes avanços na descrição de fenômenos

perceptivos, os colocou em campos isolados.

Essas tentativas de classificar, ou melhor, de ordenar o uso da visão e da

audição, situando os dois sentidos em esferas afastadas, quando não opostas,

é o que vai configurar o que Jonathan Sterne chama de “litania audiovisual”.

Conferem-se características específicas a cada um desses sentidos, como se

fossem naturalmente constituídos dessa forma e, mais grave, como se fossem

universais. Tais postulados esquecem o quanto tais modelos perceptivos são

construídos e o quanto eles funcionam dentro de contextos históricos, sociais

e culturais. Eles convivem com práticas que estão localizadas na sociedade,

cristalizadas em tecnologias. As tecnologias de som e imagem partilham de

códigos que ultrapassam as diferenças que algumas das teorias tradicionais tentam

imputar-lhes. Mesmo autores mais contemporâneos4 repetem essa classificação


que descreveria, por exemplo, a audição como esférica e a visão como direcional;

a audição como imersora e a visão como perspectivadora; a audição referindo-se

a interiores e a visão referindo-se a superfícies; enfim, o som como da ordem do

subjetivo e a imagem do objetivo, entre muitas outras oposições.

Sterne nos mostra, contudo, que processos similares de constituição afetam

tanto a um quanto a outro campo. Não há escuta “natural”, assim como não há

visão “natural”. As técnicas de ouvir estão relacionadas a uma acomodação do ato

de escuta, de suas relações com outras práticas (não necessariamente sonoras)

cultivadas no mesmo período, e a uma intervenção tecnológica, justificada por

uma razão científica que dominou os séculos XVIII e XIX. Esses fatores também

tiveram grande influência sobre nossos mecanismos de visão. Dessa forma,

devemos estar atentos para as diferentes articulações entre esses eventos e os

novos meios emergentes nesse período, como a fotografia, o registro sonoro e o

cinema, nascidos de um mesmo sistema de práticas e pensamentos.

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O soundscape da modernidade: os Sound Studies e o som no cinema - José Cláudio Siqueira Castanheira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Sound art

O som satura as artes deste século e sua importância se torna


evidente se pudermos ouvir através da presunção da visualidade
silenciosa dentro da história da arte, através do problema da
música que exclui referências ao mundo, através da voz que
é, de início, sua própria fonte de existência, através do controle
fonético da escrita, e através do que possamos ver como
escuta. Nenhuma das artes é totalmente muda, muitas são
inusualmente cheias de som apesar do seu aparente silêncio,
e as artes tradicionalmente auditivas crescem para soar bem
diferente quando incluídas em um arranjo de práticas auditivas
(KAHN, 1999, p. 2, tradução nossa).

Um campo de estudos e experimentações que tem crescido

sintomaticamente a partir do final dos anos 60 é o da sound art.5 Ligado ao

desenvolvimento de práticas desse período, como performances e instalações, a

sound art tem se preocupado com a possibilidade de relacionar-se com o mundo

não necessariamente através de categorizações abstratas ou elusivas, como

define Brandon LaBelle (2006). O espaço em que a obra é apresentada deve

ser incorporado ao trabalho. Aspectos materiais, como configurações arquiteturais

e vicissitudes técnicas, ou aspectos informacionais, como convenções sociais

e culturais, não passam ao largo da proposta do trabalho. Ao contrário, esses

elementos são necessariamente incorporados pelo artista e reelaborados por um

processo que conta, igualmente, com uma relação participativa do público. “A

sound art subordina, descreve, analisa, executa e questiona a condição do som e

os processos pelos quais ele opera” (LABELLE, 2006, p. ix, tradução nossa).

Como uma espécie de desenvolvimento da ideia de espaço acústico,

proposta por McLuhan, LaBelle descreve as possibilidades de um território

acústico. Neste estão implicadas as relações já existentes nos diferentes espaços

e como essas relações podem ser percebidas ou modificadas por meios sonoros.

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O soundscape da modernidade: os Sound Studies e o som no cinema - José Cláudio Siqueira Castanheira
Sonoridades

Apesar de reconhecer que o som fornece ao espaço determinada flexibilidade,

criando uma sensação de incerteza e desestabilização, o autor propõe que o

som também pode promover um rearranjo dos papéis exercidos dentro desse

espaço por cada um de seus componentes. O som, com sua natureza temporal e

evanescente, é capaz de deslocar os limites internos e externos do território.

Ao pesquisar as diversas práticas e os diferentes atores, produtores e

consumidores de som em espaços urbanos como ruas, calçadas, estações de

metrô, shoppings etc., LaBelle tenta vislumbrar movimentos cotidianos existentes

na sociedade e que podem não vir à tona se não por um exercício desse tipo.

O dia a dia é uma geografia modelada e delineada por forças e


relações específicas. Ao combinar esses territórios através do
modo de escuta, e de acordo com o comportamento auditivo,
eu estou interessado em definir essa geografia como produtiva,
cheia de ressonância dinâmica, como uma orquestração de
compartilhamento e sua suspensão; isto é, reconhecer os
movimentos relacionais já existentes da situação contemporânea
que marcam o globo (LABELLE, 2010, p. xxiv, tradução nossa).

Apesar de também levar em consideração aspectos tecnológicos da

produção e reprodução sonora, a sound art busca uma dimensão cultural

dos processos sonoros na sociedade. Não há como ignorar diferenças entre

atores, espaços e práticas. Tal perspectiva artística difere, igualmente, do

isolamento e independência impostos à figura do autor pelas teorias estéticas

clássicas. Autor e obra veem-se imersos, dessa vez, em um processo dinâmico,

junto com muitos outros componentes que devem ser, então, mapeados.

Não abandonando uma perspectiva subjetiva, é forçoso compreender que a

própria ideia de subjetividade passou por modificações. Também o papel das

tecnologias, muito embora elas tenham sido tratadas neste trabalho como

fundamentais para a reconfiguração de modelos perceptivos, não deve exceder

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O soundscape da modernidade: os Sound Studies e o som no cinema - José Cláudio Siqueira Castanheira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

o conjunto maior de fatores implicados no contexto cultural. Como diz Caleb

Kelly: “A tecnologia não comparece em um estágio acabado pronta para ser

passivamente consumida; em vez disso, ela está em um estado de constante

desenvolvimento no mercado e na esfera doméstica, bem como em discursos

históricos e teóricos” (KELLY, 2009, p. 26, tradução nossa).

Conclusão

A prática cinematográfica, assim como a sound art ou demais processos

contemporâneos envolvendo manifestações sonoras, não permanece estática. As

diferentes maneiras como podemos encarar os processos técnicos e artísticos,

ou mesmo teóricos, acerca do cinema tendem a mudar ao longo do tempo, de

acordo com mudanças mais amplas na sociedade. As tecnologias tendem a

ser uma espécie de termômetro dessas mudanças. Elas não são a causa, mas

um indicador (e apenas um deles) de que tais mudanças estão acontecendo.

Através de um olhar atento para determinados sintomas, podemos iniciar uma

investigação mais precisa sobre tais mudanças. O ato de deificar determinados

modos operacionais, como se eles fossem a causa de mudanças profundas em

nossas relações com pessoas e objetos talvez diga mais a nosso respeito do que

a desses modos. Como diz Sterne: “nas narrativas de ‘impacto’, tecnologias são

seres misteriosos com origens obscuras que descem do céu para ‘impactar’ as

relações humanas” (STERNE, 2003, p. 7, tradução nossa). Cabe a um trabalho

preciso e delicado de pesquisa, indagar e revelar algumas dessas origens.

Os Sound Studies, por sua abrangência e flexibilidade, podem, da


mesma forma, ajudar nessa investigação da experiência do cinema. Ao fugir dos
pressupostos perpetuados durante tanto tempo, ao fornecer novos instrumentos
metodológicos e ao aceitar novos objetos de pesquisa, eles podem favorecer o
crescimento dos Estudos de Cinema. Abrem-se novas perspectivas sobre o estudo
do som que, cinematográfico ou não, faz parte de uma relação com o mundo muito

maior do que o que temos nos permitido “ver” até agora.

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O soundscape da modernidade: os Sound Studies e o som no cinema - José Cláudio Siqueira Castanheira
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

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_____________________________________________________________

1. Trabalho apresentado no Seminário “Estudos do Som”, sessão 1, do 14º Encontro Socine, na UFPE, Recife, PE, em
outubro de 2010.

2. UFSC, Professor; UFF, Doutorando. E-mail: [email protected]

3. Sistema de reprodução de sons gravados em discos e sincronizados com a projeção da imagem, utilizado pela Warner
Brothers no final da década de 20 e início dos anos 30. O filme citado como marco inicial do cinema falado, O cantor de jazz
(Alan Crosland, 1927), foi um dos primeiros a utilizar o Vitaphone. Caiu em desuso com o advento do registro e reprodução
de sons opticamente, no próprio filme, em sistemas mais eficientes e práticos.

4. Sterne cita explicitamente Walter Ong.

5. Optamos por manter o termo original em vez de sua tradução (Arte sonora) por entendermos que o primeiro ainda é usado
mais comumente, mesmo no Brasil.

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As damas do Bois de Boulogne, o musical bressoniano - Luíza Beatriz Amorim Melo Alvim
Sonoridades

As damas do Bois de Boulogne, o musical bressoniano1

Luíza Beatriz Amorim Melo Alvim (UFRJ)2

A princípio, nada mais distante da utopia e da sensação de felicidade

proporcionadas pelos musicais do que os filmes do cineasta francês Robert Bresson.

Famoso por temas referentes à espiritualidade e pelo estilo recto tono de falar dos

seus atores,3 Bresson normalmente é associado à austeridade. Entretanto, em As

damas do Bois de Boulogne, de 1945, seu segundo longa-metragem, podemos

observar dois números musicais de dança, ambos performances da personagem

Agnès, vivida por Elina Labourdette, além de outra sequência em que a sua rival

Hélène toca ao piano a música-tema do filme. Com efeito, Paul Guth (1945, p. 11)

relata que, ao encontrá-lo em abril de 1944, Bresson lhe revelou, sem maiores
explicações, que pensava em fazer “qualquer coisa sobre a dança”.

Na verdade, a música (e se há dança, há música) foi mais um elemento

que contribuiu para essa impressão de austeridade no cinema de Bresson

justamente por conta da parcimônia com que era utilizada, bem diferente

daquilo que acontecia no cinema hollywoodiano clássico, cuja música foi

chamada por Claudia Gorbman (1987) de unheard melodies, pois a sua

onipresença resultava no fato de que os espectadores deixavam de ouvi-la e

se concentravam apenas nos diálogos.

Foi talvez pensando nessas unheard melodies que Bresson reuniu em seu

livro Notas sobre o cinematógrafo várias observações suas a partir dos anos 50

339
As damas do Bois de Boulogne, o musical bressoniano - Luíza Beatriz Amorim Melo Alvim
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

sobre as formas de utilização da música, como: “Música. Ela isola seu filme da

vida de seu filme (deleite musical)” (BRESSON, 2008, p.69), ou: “Quantos filmes

remendados pela música! Inunda-se um filme de música. Impede-se de ver que

não há nada nessas imagens” (BRESSON, 2008, p.106).

A música de As damas do Bois de Boulogne, composta por Jean-Jacques

Grünenwald, ainda lembra o estilo romântico tardio que tanto influenciou os

compositores de Hollywood. Mas já se pode perceber neste filme a aplicação

de algumas das notas iniciadas cinco anos depois. Por exemplo, há uma

certa economia do uso de música extra diegética, como sugere o diretor nas

notas citadas, aproveitando-se a música diegética sempre que possível. A

respeito dessa segunda característica, Bresson afirmou: “Nada de música de

acompanhamento, de apoio, ou de reforço. Nada de música de modo algum.

[com exceção, é claro, da música tocada por instrumentos visíveis – em nota de

pé de página]” (BRESSON, 2008, p.29).

A opção pelo uso de música diegética, justificada em cena, pode explicar

em parte o desejo de Bresson de filmar a dança em As damas do Bois de

Boulogne, embora esses números sejam os únicos em toda a sua filmografia.

Além disso, levando-se em conta que o filme foi feito durante a guerra, tendo sido

em parte rodado durante a Ocupação (portanto, um tempo de crise), poderíamos

pensar que houve uma influência da busca porutopia e entretenimento, típica dos

musicais americanos, sobre o cinema francês da época, inclusive o de Bresson.

Diante dessas considerações, quais seriam as possíveis relações dos

números musicais de As damas do Bois de Boulogne com os musicais americanos

e com o seu contexto histórico? E em que medida eles se relacionariam com os

preceitos e com a obra de Bresson como um todo?

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As damas do Bois de Boulogne, o musical bressoniano - Luíza Beatriz Amorim Melo Alvim
Sonoridades

O primeiro número de Agnès e suas relações


com os musicais americanos

As damas do Bois de Boulogne é uma adaptação de uma das histórias

contadas no livro Jacques, le fataliste, do enciclopedista Denis Diderot (1962).

Trata-se da vingança de uma mulher da alta sociedade francesa sobre o ex-

amante: ela o incita a casar-se com uma jovem que lhe é apresentada como

moça pura, mas que, na verdade, tinha um passado condenável moralmente. No

filme de Bresson, a Madame de La Pommeraye do livro de Diderot (1962) se

transforma em Hélène (vivida por Maria Casarès), o amante Marquês des Arcis,

no personagem Jean (Paul Bernard) e a jovem senhorita de Aisnon torna-se Agnès

(Elina Labourdette).

Considerando o que comentara com Paul Guth (1945), Bresson proporciona

a Agnès dotes artísticos para a dança que a personagem correspondente de

Diderot definitivamente não possuía.4 Com efeito, na descrição do livro, a senhorita


de Aisnon tinha uma voz “pequena” e pouco talento para a dança, restando-lhe

apenas como alternativa para ganhar a vida receber homens todas as noites

em seu quarto. Já a Agnès de Bresson vive como dançarina de cabaret, ofício

rejeitado moralmente pela burguesia da época e equiparado à prostituição.

A apresentação de Agnès se dá justamente durante o seu número musical

no cabaret. Aos 11 minutos, é a primeira vez em que ouvimos música depois dos

créditos e nisso o filme está de acordo com os princípios de Bresson sobre a

parcimônia da música extra diegética. De fato, durante o restante do filme, essa

música de fundo estará muito mais relacionada a Agnès que a Hélène.

Assim, ainda sobre as palavras de Hélène na sequência anterior, “Eu me

vingarei”, ouvimos o som do sapateado de Agnès.5 Com efeito, essa antecipação do


som é um procedimento bastante comum na obra de Bresson e, nesse momento,

sabemos que Agnès será o instrumento da vingança de Hélène sobre o amante.

Logo a seguir, vê-se uma pessoa de costas (que saberemos mais tarde ser

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As damas do Bois de Boulogne, o musical bressoniano - Luíza Beatriz Amorim Melo Alvim
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Hélène) sentando-se para assistir ao espetáculo, além dos pés e da sombra da

dançarina. A câmera sobe, enquanto começa uma música de jazz e vemos Agnès

vestida de cartola, luvas, saia preta longa e transparente sobre um collant brilhante

e de decote nas costas. O novo enquadramento privilegia a dançarina – quase

não vemos o seu público. Ela sorri, parecendo satisfeita com a sua performance.

A seguir, a música se altera, ficando mais lenta, assim como a dança, que se

torna mais sensual (até aí, o plano 27 do filme).6 Vemos, então, Hélène sentada

(plano 28), apreciando o espetáculo (nas palavras de Bresson, com um “olhar

não duro, mas sim interessado”, GUTH, 1945, p.65). Agnès sapateia mais um

pouco e dá duas cambalhotas para frente; ao fundo, aparecem os músicos, com

os trombones, trompetes, saxofones, o baixo e a bateria. Ela dá uma cambalhota

para trás (Joseph Cunneen, 2003, chama a atenção para que a performance é, na

verdade, mais acrobática que sensual) e continua a sua dança mais lentamente

(plano 29). Em plano próximo (30), vemos o rosto dela, sempre com fisionomia

de prazer. Vemos, então, parte do baixista aparecendo em primeiro plano e

tocando o instrumento, enquanto Agnès dá mais saltos (plano 31). A seguir, em

plano americano, ela faz uma pirueta lentamente (plano 32). De novo, temos um

plano de Hélène olhando para ela (plano 33). Finalmente, depois de uma série de

piruetas (plano 34), a dançarina termina o número caindo ao chão com as pernas

totalmente abertas (plano 35) e, num plano próximo (36), saúda o público tirando

sua cartola. A performance inteira dura cerca de um minuto e meio e, de seus dez

planos, dois são da personagem Hélène.

Em relação aos princípios de Bresson, é interessante notar a presença dos

músicos, confirmando o caráter diegético da música. O baixista chega a ficarem

primeiro plano, de costas, de forma que podemos observar os movimentos do arco

quando ele toca o instrumento. Embora fossem também mostrados em musicais

americanos, neste filme os músicos realmente parecem estar tocando os seus

respectivos instrumentose há uma preocupação com a sincronia.7

Além disso, embora os planos da dança de Elina Labourdette privilegiem

o espetáculo do seu corpo inteiro, tal como costumava acontecer nas danças de

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As damas do Bois de Boulogne, o musical bressoniano - Luíza Beatriz Amorim Melo Alvim
Sonoridades

Fred Astaire, o número é extremamente curto e mesmo assim tem ainda dois

cortes para a figura de Hélène. É como se ela pairasse sobre todo o espetáculo,

como se o objetivo de mostrá-lo fosse muito mais apresentar a sua influência

sobre Agnès do que a dança propriamente dita. Isso nos faz pensar na forma

como Bresson utilizou a música nos seus filmes a partir de Um condenado à morte

escapou(1956): o uso de pequenas partes de música em momentos esparsos,

interrompidas, para que não houvesse tempo suficiente de se enlevar o espectador

num deleite musical. Em As damas do Bois de Boulogne, Bresson parece estar

aplicando esse “método das interrupções” à dança.

Como lembra João Luiz Vieira (1996), desde as danças registradas

nos primeiros filmes da História do Cinema, a mulher era o objeto preferencial

mostrado pela câmera. Com efeito, os musicais foram um alvo comum para as

críticas feministas.Porém aqui, embora haja vários homens no ambiente, o filme

ressalta Agnès como objeto do olhar intenso de outra mulher, Hélène. Na verdade,

como mostra Thibaut Shilt, no plano em que Agnès é vista pela primeira vez,

ela é enquadrada entre duas mulheres do público sentadas nas mesas, sendo

os homens apenas vultos, o que não seria comum em performances femininas,

segundo Shilt, nem de filmes americanos, nem mesmo de filmes franceses, como

Lola Montès(1955), de Max Ophuls.

Por outro lado, seja pelo tipo de música – o jazz 8 –, seja pelo
sapateado, ou ainda pela roupa – Agnès usa uma cartola –, há uma referência

aos musicais de Hollywood. De fato, a cartola era um acessório típico dos

personagens interpretados por Fred Astaire, quase que uma marca do ator-

cantor-bailarino. É importante, então, verificar qual era o peso da influência

dos filmes americanos na época.

As damas do Bois de Boulogne foi rodado – com interrupções por falta

de energia elétrica durante a guerra – entre 10 de abril de 1944 e 10 de fevereiro

de 1945, portanto, antes e depois da Liberação da França ocupada na Segunda

Guerra Mundial. Durante a Ocupação, todos os filmes anglo-saxões haviam sido

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As damas do Bois de Boulogne, o musical bressoniano - Luíza Beatriz Amorim Melo Alvim
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

proibidos na França e a atividade cinematográfica passara a sofrer um grande

controle estatal, seja na França Ocupada, seja no governo de Vichy (DARRÉ,

2000). Apesar das difíceis condições de trabalho e das proibições profissionais

antissemitas, o cinema francês apresentou um grande desenvolvimento na época,

em parte por ter sido liberado da concorrência norte-americana no mercado

(que ocupava 50% dele antes da guerra). Segundo Yann Darré (2000), foram

produzidos 60 filmes em 1941, 78 em 1942, 58 em 1943 e 11 no início de 1944.

Alguns cineastas fizeram mesmo a sua estreia nessa época, como é o caso de

Bresson, com seu primeiro longa-metragem, Os anjos do pecado (1943), seguido

do seu segundo, As damas do Bois de Boulogne. Em abril de 1946, o mercado

francês foi aberto aos filmes americanos, havendo uma verdadeira inundação

destes nos cinemas franceses, e Robert Bresson só conseguirá filmar novamente

em 1951,com Diário de um padre.

Entretanto, mesmo no ambiente de interdição a filmes americanos

da Ocupação, Noël Burch e Geneviève Sellier (1996) destacam o fenômeno

dos zazous: 9 jovens urbanos que recusavam o enquadramento ideológico e


se distinguiam por um gosto pelo entretenimento e, em especial, pela dança

americana. Essa juventude mantinha vivo o culto da América na França da

guerra. O ator Jean Marais, por exemplo, foi proibido de encenar uma peça

na época, acusado de “zazouísmo”. Curioso é que Jean Marais era para ter

feito o protagonista masculino de As damas, o que só não aconteceu porque

o ator já estava comprometido com outro filme, ficando o papel com Paul

Bernard.Como relatam Burch e Sellier, as relações de Jean Marais com

Jean Cocteau, dialoguista do filme de Bresson, eram como um amálgama

de homossexualidade e zazouísmo.

Portanto, mesmo com a proibição, o espírito dos filmes americanos

pairava na França ocupada. Embora o gênero predominante na época tenha

sido o melodrama em torno de conflitos de moral e de sentimentos, os filmes

de estilo zazou utilizavam a música para desmantelar a seriedade. Eram,

portanto, comuns entre elesas comédias musicais e a utilização de canções e

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As damas do Bois de Boulogne, o musical bressoniano - Luíza Beatriz Amorim Melo Alvim
Sonoridades

música alegres (BURCH; SELLIER, 1996). Mesmo que As damas do Bois de

Boulogne como um todo esteja mais para o melodrama, o número de Agnès

faz também referência à alegria zazou, além da associação com os musicais

americanos e o sapateado de Fred Astaire.

O teórico Richard Dyer (1992) elaborou uma série de categorias que

caracterizariam o musical, como energia e intensidade. De acordo com elas,

apesar de curto, o número de Agnès tem bastante energia, como é comum nos

números de sapateado característicos do show-biz. Entretanto, embora Agnès

esteja o tempo todo sorrindo, mostrando, portanto, uma grande intensidade na

realização de sua dança, vemos que, após o término do número e já no camarim,

ela está bastante insatisfeita justamente por ter que ganhar a vida no cabaret.

Deixa de se aplicar, então, a categoria “intensidade”, a qual implicaria numa falta

de ambiguidade. Agnès é infeliz e toda a alegria esbanjada durante o número

revela-se uma grande mentira. Pensando-se também na classificação de Michel

Chion (1995) de música empática e anempática, a música jazzística do cabaret

seria anempática, ou seja, ela enfatizaria uma indiferença ostensiva à situação

emocional da personagem: é alegre em oposição à vergonha sentida por ela.

De modo semelhante a Dyer, Jane Feuer (1981) também identifica alguns

mitos que caracterizariam o entretenimento num determinado número musical.

Entre eles, o mito da espontaneidade, que se refere tanto à excessiva facilidade na

realização do número, como mostrada por Agnès com suas cambalhotas e piruetas,

quanto ao transbordar de alegria espontânea transmitido pelos personagens de

musical, algo que, como vimos, é falso em Agnès. Outro mito identificado por

Feuer, o da integração, refere-se à concomitância do sucesso na performance

com o sucesso na vida pessoal e à integração do indivíduo a uma comunidade.

Como vemos, a bela performance de Agnès não combina com a tristeza de sua

vida fora do palco. O seu casamento, a sua integração, só será possível após o

abandono do show-biz e, ainda assim, por conta do plano maquiavélico de Hélène.

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XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Deixa-se, então, de ser aplicado esse mito.

Voltaremos a mencionar as categorias de Dyer e Feuer na análise do

próximo número.

O segundo número de Agnès – do popular ao erudito

Depois do número no cabaret e acreditando poderem se livrar da má

reputação, Agnès e a mãe aceitam a ajuda de Hélène e se instalam em outro

apartamento, onde vivem reclusas. Agnès passa a vestir uma capa comprida e um

chapéu pequeno, um tanto masculinizada, como que para esconder seus encantos.

Esta vestimenta simplória também é um modo de indicar a penúria vivida durante

a guerra. De fato, um dos poucos móveis do apartamento onde Agnès e a mãe

vão viver é um piano, em relação ao qual a jovem observa: “Privam-me da dança,

deixam-me a música”.10

É no apartamento que acontece o segundo número musical de As damas

do Bois de Boulogne. Ele se inicia com o plano (182) de um disco de vinil numa

vitrola, mais uma vez confirmando que a música é diegética. Logo depois de

colocar o disco, descalça e vestida com trajes típicos de camponesa da Europa

Central, Agnès dança com um ar de felicidade, rodopiando por todos os cômodos

da casa. A música é alegre, semelhante aballets com cenários campestres, como,

por exemplo, o ballet Giselle.

Logo após o plano da vitrola, Agnès coloca uma guirlanda na cabeça

e vai para a sala, onde está a mãe. Ela é vista, então, num enquadramento

emoldurado pela porta, sempre dançando e saltando para uma poltrona e dela

para o chão (plano 183). No plano seguinte (184), a câmera está do lado de fora

da janela aberta: vemos a mãe sentada e Agnès dançando. A mãe se levanta

para fechar a janela, diminuindo o som. Volta um plano aberto (185) de Agnès

rodopiando pela sala. Ela sai para outro cômodo, mas a câmera permanece

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As damas do Bois de Boulogne, o musical bressoniano - Luíza Beatriz Amorim Melo Alvim
Sonoridades

na sala, mostrando a mãe. Agnès volta, vemos ainda sua dança e depois ela

vai para o espaço foradecampo, enquanto a câmera se aproxima de mãe, que

fala: “quando você dança, você é outra pessoa, você se ilumina como um lustre

suspenso no ar”11 (ainda o plano 185). No plano seguinte (186), no meio de

uma cambalhota, Agnès responde que ela quer apagar o lustre, pois resolveu

parar de dançar. Plano (187) só da mãe sentada na poltrona, com expressão

contrariada. No próximo plano (188), Agnès, sempre rodopiando em volta da

mesa, diz que resolveu parar de se disfarçar. Vemos, então, um plano da mãe

sentada, enquanto Agnès ainda fala. A mãe levanta com expressão preocupada

(plano 189). A música termina no plano seguinte, em que, ao final de um rodopio,

Agnès cai desmaiada (plano 190), tal qual a camponesa Giselle do ballet

homônimo, e diz depois ter sido o seu coração.12 No final da sequência, ouvimos
a música extra diegética correspondente a Agnès. O número dura um minuto e

dez segundos e tem oito planos, incluindo aqueles em que só aparece a mãe.

Com base nas categorias de Richard Dyer (1992), podemos dizer que há

bastante energia, como no número anterior. Ultrapassam-se mesmo os limites

de um palco ou de um cômodo: Agnès dança pela casa inteira. A energia é tanta,

que a mãe fecha a janela para que os vizinhos não se incomodem. Entretanto,

ainda há uma ambiguidade impedindo que o número seja realmente intenso

e transparente, pois ao mesmo tempo em que Agnès parece feliz, ela afirma

que não dançará mais. Isso se confirma com o desmaio final, um anúncio da

síncope do fim do filme. Quanto às categorias de Jane Feuer (1981), o mito da

espontaneidade se confirma na facilidade com que Agnès sobe dançando sobre

uma poltrona, e fala enquanto dá cambalhota e rodopia, espontaneidade que

será posta em dúvida pelo desmaio.

É curioso que numa parte do número Agnès vá para o outro quarto, mas

a câmera não a acompanhe, permaneçana sala, onde está a mãe. O número é

interrompido na imagem e, ainda por cima, há uma conversa sobreposta a ele.

Diferentemente de números musicais cantados em que a letra da música pode

servir como um complemento, aqui a palavra desvia para si a atenção da dança.

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XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Tudo isso mostra, mais uma vez, o “método das interrupções” de Bresson.

Vê-se também aqui uma mulher (a mãe) como o único olhar para o número

de Agnès e a ausência do olhar masculino. Para Burch e Sellier (1996), essa dança

de Agnès é uma expressão de seu desejo de pureza e de uma felicidade simples,

um último protesto de energia vital contra a ordem patriarcal que a oprime.

Levando-se em consideração agora ambos os números de Agnès, vemos

a presença tanto da cultura popular, representada pelo sapateado de jazz, quanto

da erudita, com o ballet campestre no apartamento. Com efeito, a oposição entre

cultura popular e erudita é bastante comum nos musicais americanos, nos quais

normalmente se eleva o sapateado como a nova arte, em contraste com as artes

clássicas. Porém, aqui há uma inversão: o sonho de Agnès seria dedicar-se à

dança clássica, enquanto o sapateado só é motivo de vergonha para ela.

Aliás, as oposições entre diversos aspectos marcam a construção de

muitos musicais e são também a base de As damas do Bois de Boulogne.Quanto

ao vestuário, por exemplo, vemos Hèlène sempre com vestidos negros, em


oposição à capa clara e ao vestido de noiva branco de Agnès (o próprio nome

dela faz referência a agneau, o cordeiro a ser sacrificado). Os grandes chapéus

negros de Hélène (nome, alíás, ligado à mitologia grega) também contrastam com

o pequeno chapéu claro de Agnès. Além disso, se o piano de Hélène é de cauda,

ao passo que o de Agnès é de armário, ele é efetivamente usado pela personagem

(como veremos no próximo item), numa prova de sua erudição, enquanto Agnès

talvez nem saiba tocar (ou, pelo menos, isso não é mostrado, embora haja uma

partitura na estante do seu piano).

A música de Grünenwald também foi construída com dois temas

contrastantes: o da vingança, associado a Hélène, e o do idílio, ligado a Agnès –

são ambos empáticos (na classificação de Chion, 1995) com os sentimentos ou

características das personagens. Além de ser mais romântica, a música de Agnès

está bem mais presente que a de Hélène. Em alguns momentos, e contrariando a

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As damas do Bois de Boulogne, o musical bressoniano - Luíza Beatriz Amorim Melo Alvim
Sonoridades

nota de Bresson de não se usar música de fundo, temos a impressão de estarmos

vendo um filme da Hollywood da época, acompanhando as desventuras da

mocinha casadoira ao som de uma das unheard melodies de Claudia Gorbman.

A música chega a permanecer durante sequências inteiras, como, por exemplo,

naquela em que Agnès vê uma carta de Jean em seu quarto, rasga-a, e lê um

dos pedaços. Diferentemente, várias sequências dramaticamente importantes

de Hélène se passam totalmente sem música, como aquela em que ela e Jean

confessam um ao outro não mais se amarem. Parece, então, que Bresson reforça,

por meio do tipo e da quantidade de música, o antagonismo entre Agnès e Hélène.

Ao romantismo da música constante da primeira, opõe-se a secura das sequências

da outra. No final, ocorre a vitória do romantismo com Agnès quase desfalecida

sendo perdoada por Jean ao som do seu tema triunfal.

Performances com instrumentos

Outra performance que acontece no filme, embora não de dança, é a de

Hélène tocando o seu tema musical ao piano. Nos musicais americanos, também

são comuns tais apresentações ao piano, porém, normalmente são associadas ao

canto, o que não é o caso no filme de Bresson.

A sequência começa quando ouvimos o som do piano de Hélène enquanto

vemos Jean entregando o chapéu e o casaco ao empregado no vestíbulo. O

empregado abre a porta e vemos, no enquadramento dado pela porta aberta,

Hélène de costas, tocando ao piano (plano 153). Jean entra e vemos um plano de

Hélène ao piano, enquanto Jean vai se aproximando e ficando à direita. Ele beija

a mão dela e a câmera o acompanha pela sala, ao passo em que continuamos

a ouvir o piano (plano 154). Vemos, então, um plano médio de Hélène ao piano

(155), ainda tocando sobre a voz de Jean. Há mais três planos-contraplanos

(156 a 161) de Jean e Hélène, sendo que, no último, ela sai do piano (e do

campo) e os dois continuam a conversa por um longo tempo (planos 162 a 169).

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XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Então, Hélène volta ao piano, com Jean ao fundo. Depois que ela recomeça

a tocar, Jean lhe pede que pare, dizendo que o piano está insuportável. Ela

não obedece (plano 170). Plano médio de Jean (171). Ele sai, deixando Hélène

ainda ao piano. Ela termina a música e, quando percebe que Jean não está mais

lá, grita por ele e sai correndo (plano 172).

Esta sequência relativamente longa de música, com uma grande

interrupção, dura cinco minutos e tem muitos planos. Nela percebemos que, ao

tocar enquanto o ex-amante fala, Hélène tenta mostrar indiferença em relação

ao que ele conta de seu desespero de não conseguir reencontrar Agnès. Uma

indiferença totalmente fingida, como atestamtanto a música solene e melancólica

quanto, no final da sequência, o grito assustado dela, ao se dar conta de que Jean

já tinha ido embora.Como observa Jean Sémolué (1993), o piano tem o papel

quase de um terceiro personagem, ou mesmo funciona como um comentário

interior de Hélène (a sua tristeza e o seu desejo de vingança), tal como acontece

com a voz over em outros filmes de Bresson, já citados aqui, como Diário de um

padre e Um condenado à morte escapou.

Quanto à interrupção do piano no meio da sequência, elacorresponde ao

método de Bresson a que já nos referimos. Porém, diferentemente dos números

de Agnès, em que as interrupções só eram das imagens de dança, aqui a própria

música é interrompida para depois ser recomeçada. Isto torna mais difícila sua

fruiçãopor parte do espectador, embora o fato de ser tocada a música-tema do

filme facilite o seu reconhecimento.

Podemos observar que performances com instrumentos são comuns

nos filmes da última fase da obra de Bresson, em que ele abole toda a música

extra diegética. Pensemos no velho pianista em O dinheiro (1983) – curioso é

que a música de Grünenwald que Hélène toca é uma fuga inspirada na obra

Musikaliches Opfer,13 de Bach, possuindo, assim, uma ligação com a Fantasia


cromática, também de Bach, tocada por esse personagem –, ou nos músicos

de rua na Paris de Quatro noites de um sonhador(1972). Nenhuma dessas

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As damas do Bois de Boulogne, o musical bressoniano - Luíza Beatriz Amorim Melo Alvim
Sonoridades

apresentações privilegia a virtuosidade dos executantes, tal como costuma

acontecer em filmes – musicais ou não – nesses momentos.

Em As damas do Bois de Boulogne, nem chegamos a ver as mãos

da pianista. Mais do que isso, não podemos nem mesmo nos concentrar na

música, já que Hélène e Jean conversam o tempo todo enquanto ela toca.

Portanto, se a Agnès ainda é permitido dançar, Jean quer impedir Helène de

continuar a sua música ao dizer que o piano lhe é insuportável. É como se

Bresson, mais uma vez, estivesse mostrando que a música e o romantismo

não são possíveis para Hélène.

Assim, tão estranho quanto a sua presença possa parecer no contexto de

toda a obra de Robert Bresson, os números musicais de Agnès e Hélène em As

damas do Bois de Boulogne revelam relações diversas, afinidades e diferenças,

com os musicais americanos e dialogam com a tradição da dança clássica, mas

não deixam de estar de acordo com os preceitos do diretor a respeito do uso

parcimonioso da música em filmes.

Mais do que isso, as relações de As damas do Bois de Boulogne com

os musicais não se restringem aos americanos. Ao fazer em 1961o seu primeiro

longa-metragem, Lola (cujo nome é uma homenagem ao já citado Lola Montès,

de Ophuls), Jacques Demy, diretor francês que ficou famoso pelos seus musicais

(e em Lola há também um número de dança e canto), escalou Elina Labourdette e

mostra durante o filme uma foto de cena de Agnès no cabaret. Demy confessou ter

sido As damas do Bois de Boulogne o primeiro filme que lhe fizera “compreender

que o cinema fazia parte da grande arte” (apud SÉMOLUÉ, 1993, p.27). Tudo

isso mostra uma certa genealogia da qual fariam parte o filme de Bresson e os

musicais franceses. Mas este já é outro trabalho.

351
As damas do Bois de Boulogne, o musical bressoniano - Luíza Beatriz Amorim Melo Alvim
Sonoridades

Referências bibliográficas

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DIDEROT, D. O euvres romanesques. Paris: Garnier Frères, 1962.

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GUTH, P. Autour des DamesduBois de Boulogne. Paris: Julliard, 1945.

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Catherine Breillat e François Ozon. Disponível em <http://www.ohiolink.edu> Acesso em: 01 nov. 2009.

SÉMOLUÉ, J. Bresson. Paris: Flammarion, 1993.

VIEIRA, J. L. Cinema e performance. In: XAVIER, I.(Org.). O cinema no século. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

Referências audiovisuais

Os anjos do pecado. Robert Bresson. 1943, filme 35mm.

As damas do Bois de Boulogne. Robert Bresson. 1945, filme 35mm.

Diário de um padre. Robert Bresson. 1951, filme 35 mm.

Lola montès. Max Ophuls.1955, filme 35mm.

Um condenado à morte escapou.Robert Bresson.1956, filme 35 mm.

Lola.Jacques Demy. 1961, filme 35mm.

Quatro noites de um sonhador. Robert Bresson. 1972, filme 35mm.

O dinheiro.Robert Bresson. 1983, filme 35mm.

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As damas do Bois de Boulogne, o musical bressoniano - Luíza Beatriz Amorim Melo Alvim
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

_____________________________________________________________

1. Trabalho apresentado na sessão 2 do Seminário Temático Estudos do Somna XIV SOCINE, em Recife, PE, 2010.

2. Doutoranda. E-mail:[email protected]

3. Em As damas do Bois de Boulogne, Bresson ainda trabalha com atores profissionais, mas tentafazer com que eles se
contenham na interpretação. Já a partir do filme seguinte, Diário de um padre(1951), essa característica da fala se afirmará
com o uso de nãoatores, os chamados “modelos”.

4. Como Burch e Sellier (1996) analisam, Bresson tira das personagens femininas o cinismo da anedota libertina de Diderot,
dando a elas uma dimensão trágica. Ele aumenta consideravelmente o peso deAgnès na intriga, transformando-a numa
jovem revoltada contra o seu destino.

5. Elina Labourdette teve como professor de sapateado o mexicano Romero (GUTH, 1945).

6. A numeração de planos desta e das outras sequências analisadas corresponde à decupagem de Vincent Pinel publicada
na revista Avant-ScèneCinéma em 1977.

7. A música e o som dos sapatos eram gravados antes e, posteriormente, tanto os músicos como Elina Labourdette faziam
uma dublagem em cima do playback (GUTH, 1945).

8. Na verdade, o compositor Jean-Jacques Grünenwald disse a Paul Guth (1945) que pretendia tratar toda a música do filme
como um “jazz sinfônico” (p.46).

9. A palavra zazou apareceu pela primeira vez na canção de 1939 Eu sou swing, de Johnny Hess (primeiro parceiro de
Charles Trenet), adaptada do cantor americano CabCalloway (BURCH; SELLIER, 1996). Usaremos no texto o termo
zazouísmo para indicar o fenômeno.

10. “On me prive de la danse, on me laisse la musique...”, no original.

11. “Quand tu danses, tu es une autre personne. Tu t’allumes comme un lustre suspendu en l’air ”, no original.

12. Em Giselle, ballet francês de 1841 com música de Adolphe Adam e libreto de Théophile Gautier, a personagem-título é uma
camponesa com problemas de coração. Ela se apaixona por um principe que se disfarçava de camponês e, ao descobrir a
farsa, dança tão apaixonadamente que acaba caindo morta.

13. Opfer, em alemão, embora possa significar “oferenda”, também tem o sentido de “vítima”, tal como Hélène se sente.

353
Os sons da continuidade intensificada: o caso de Sergio Leone - Rodrigo Carreiro
Sonoridades

Os sons da continuidade intensificada:

o caso de Sergio Leone1

Rodrigo Carreiro (UFPE)2

O pesquisador David Bordwell (2006, p. 120) introduziu o conceito de

continuidade intensificada nos estudos cinematográficos a partir de uma proposta

alternativa da evolução estilística do cinema no século XX. Indo na contramão

de parte dos historiadores do audiovisual, que compreende a história do cinema

como uma sucessão de ciclos de ruptura, Bordwell propôs que os princípios gerais

que governam a arte cinematográfica – cuja premissa central o pesquisador norte-

americano chamou de continuidade clássica (BORDWELL, 2006, p. 119) – jamais

deixaram de operar desde que foram consolidados, por volta de 1917.

Seguindo o raciocínio, esses princípios foram submetidos a uma operação

de intensificação gradual e incessante cujas origens podem ser rastreadas no

princípio dos anos 1960. Bordwell chamou esse processo de continuidade

intensificada. Esse conceito dá conta de um repertório cada vez mais amplo de

recursos narrativos e estilísticos que busca incentivar a imersão cada vez mais

intensa do espectador no espaço afetivo da diegese, tornando sua experiência

cada vez mais intensa. Bordwell sugere que, embora muitos recursos de estilo e

táticas narrativas tenham sido introduzidos desde então no cardápio dos cineastas,

os princípios gerais da construção narrativa, constituídos durante a fase clássica

do cinema, ainda continuam valendo:

354
Os sons da continuidade intensificada: o caso de Sergio Leone - Rodrigo Carreiro
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

O que mudou, tanto nos registros mais conservadores quanto


nos mais vanguardistas, não foi o sistema estilístico da
construção cinematográfica clássica, mas sim certas ferramentas
funcionando dentro desse sistema. (...) Desde os anos 1960,
essas técnicas foram trazidas para o primeiro plano, de formas
inéditas em décadas anteriores. Enquanto se tornavam mais
proeminentes, essas técnicas alteraram a textura de nossa
experiência fílmica (BORDWELL, 2006, p. 119, tradução nossa).

De modo geral, Bordwell defende que o processo da continuidade

intensificada não constitui uma estética, mas uma poética – um conjunto de

procedimentos técnicos e narrativos que governam a construção de sentido na

obra de arte. A diferença entre os dois conceitos é importante. A estética é opcional;

a poética, não. Um diretor pode decidir seguir ou não uma determinada estética;

no caso da poética, ele deve recorrer a um repertório de convenções e técnicas

narrativas (em variados graus de ênfase) para que possa ser compreendido. Esse

repertório, pertencente ao reino da estilística, foi e é objeto de uma evolução

constante em direção à intensificação:

De maneira geral, as novas ferramentas (...) não desafiam


o sistema; elas o revisam. Longe de rejeitar a continuidade
tradicional em nome da fragmentação e da incoerência, o
novo estilo aponta para uma intensificação das técnicas
estabelecidas. A continuidade intensificada é a continuidade
clássica elevada a um nível maior de ênfase (BORDWELL,
2006, p. 120, tradução nossa).

Em sua pesquisa, Bordwell mapeou alguns recursos narrativos e

estilísticos da continuidade intensificada nas três vertentes da poética. Na

vertente temática, representações mais realistas do sexo e da violência;

protagonistas mais falhos, alienados, solitários, inseguros ou moralmente

ambíguos; tendência ao alusionismo (citações críticas ou reverentes a filmes

355
Os sons da continuidade intensificada: o caso de Sergio Leone - Rodrigo Carreiro
Sonoridades

anteriores); caracterização mais complexa de personagens; atenção ao realismo

nos detalhes e na acuidade histórica. Na vertente da construção narrativa, a

divisão menos clara da narrativa em três atos; o uso de mais de um protagonista;

a fragmentação cronológica e espacial das tramas, com cenas mais curtas e não

lineares; relações causais ambíguas entre os eventos que compõem a trama. E

na prática estilística, montagem mais rápida; uso de lentes de distâncias focais

extremas; câmera mais próxima dos atores; movimentos de câmera incessantes,

com uso proeminente da câmera na mão, traveling e grua.

A pesquisa de Bordwell é centrada nos aspectos pictóricos e na

construção narrativa. Ele pouco leva em consideração as técnicas de construção

narrativa através do som. Aqui, pretendemos examinar algumas ferramentas que

proporcionam, na banda sonora dos filmes, a experiência intensificada de fruição,

através da análise da obra de Sergio Leone. Partimos do pressuposto de que os

filmes do diretor italiano, embora relativamente pouco estudados (sobretudo por

causa da atuação dele dentro de um ciclo de produções para consumo popular, o

que o afastou do chamado “cinema de autor” popular na Europa dos anos 1960),

ofereceram contribuições significativas à poética da continuidade intensificada,

sobretudo do ponto de vista sonoro.

Três ferramentas

Uma análise cuidadosa da maneira como Leone trabalhava o som permite

destacar três recursos recorrentes principais dentro da prática estilística dele: (1)

o uso de ruídos naturais amplificados para produzir efeitos sensoriais, afetivos

e narrativos; (2) a inclusão de elementos diegéticos na música, incorporando

influências do concretismo (movimento em voga entre os compositores europeus

desde os anos 1950, mas até então pouco utilizado em trilhas cinematográficas)

e borrando sutilmente as fronteiras entre dois componentes da construção sonora

dos filmes que tradicionalmente eram apresentados como distintos – música e

356
Os sons da continuidade intensificada: o caso de Sergio Leone - Rodrigo Carreiro
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

efeitos sonoros; (3) a articulação mais cuidadosa entre áudio e imagem, em que

os sons são sincronizados minuciosamente com os cortes visuais e/ou guiam a

atenção do espectador para certas áreas da imagem.

A análise dos filmes de Leone mostra que os três recursos formaram

padrões recorrentes na obra dele. São características que podem ser conectadas

ao conceito de continuidade intensificada, já que contribuem para que a plateia

alcance uma imersão afetiva mais intensa ao ver os filmes; e todas essas

características podem ser encontradas, em diversos graus de ênfase, em filmes

dirigidos pelas gerações posteriores de cineastas, independente da nacionalidade.

Vamos analisar mais detidamente cada um dos recursos.

Nos filmes de Leone, havia consideravelmente menos diálogos do que

na maior parte da produção cinematográfica internacional. Um dos motivos para

isto era o sistema de produção que vigorava em Cinecittà, desde a fundação do

estúdio, em Roma, em 1937. Este sistema desprezava a gravação de som direto

em locação. Aos olhos de hoje pode parecer um contrassenso, mas entre as

décadas de 1930 e 50 havia muitas razões para adotar tal procedimento.

Em primeiro lugar, os gravadores de som sincronizado com a película

eram caros e, sobretudo, pesados (o que inviabilizava seu uso em locações

externas). Depois, os cineastas vinculados ao neorrealismo, que começaram

a filmar durante a Segunda Guerra Mundial, vislumbravam uma vantagem

estética nessa limitação tecnológica: “A filmagem de cenas sem gravação

[de áudio], com sincronização realizada posteriormente, (...) tornava possível

uma maior liberdade de atuação[nos sets]” (FABRIS, 2006, p. 206). Sem ter

que se preocupar com a qualidade do áudio, os diretores podiam filmar mais

rápido e economizavam dinheiro.

Quando Sergio Leone se tornou diretor de cinema, no começo da

década de 1960, o Nagra IV – primeiro gravador portátil capaz de registrar

som direto sincronizado com a película– já tinha se tornado popular entre os

357
Os sons da continuidade intensificada: o caso de Sergio Leone - Rodrigo Carreiro
Sonoridades

cineastas europeus, mas não entre os italianos. Acostumados com o sistema

de pós-sincronização de áudio adotado pelos produtores do país, quase todos

os cineastas da Itália continuaram filmando sem som direto. Mesmo nomes

respeitados como Federico Fellini, que tinham melhores condições financeiras

para filmar, preferiam manter o procedimento técnico padrão em Cinecittà, com

o som inteiramente construído em estúdio.

Por último, durante o ciclo de spaghetti westerns, todos os filmes eram

dublados em quatro línguas diferentes (inglês, italiano, francês e alemão). Os

faroestes realizados na Itália tinham que ser econômicos em diálogos; para

compensar esse fato, os roteiros incluíam muitas cenas de ação física (perseguições

de cavalo, tiroteios, duelos, brigas dentro de bares etc.): uma a cada 15 ou 20

minutos. Este modo de produção, então, afetou os spaghetti westerns em muitos

níveis, e não apenas na textura sonora.

Se uma das consequências de tudo isso foi o aumento do número e da

duração das cenas de ação, outra foi a necessidade de encontrar uma maneira

alternativa de enfatizar a evolução do enredo, pois no cinema clássico a maior

parte da exposição acontece através de diálogos. Michel Chion chama o esquema

dominante da construção sonora de “verbocêntrico” (2009, p. 73), assinalando que

esse esquema se consolidou ao final dos anos 1930, em Hollywood, e continua

hegemônico (embora a importância dos efeitos sonoros tenha aumentando desde

o surgimento do sistema Dolby, em 1975):

O que é [o cinema verbocêntrico]? Um cinema em que o diálogo


é o centro invisível da atenção, porque ocorre simultaneamente
a uma ação visual (...) paralela ao diálogo, embora não tenha
relação intrínseca com ele, servindo apenas para pontuá-lo.
(...) Assim, a ação visual dá ao diálogo um impulso que faz a
cena parecer mais cinematográfica, nos fazendo esquecer que
o diálogo é o coração e o motivo de a cena estar ali. (CHION,
2009, p. 73, tradução nossa).

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Os sons da continuidade intensificada: o caso de Sergio Leone - Rodrigo Carreiro
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Chion nos dá uma série de exemplos de ações corriqueiras – beber um

drinque, acender um cigarro, comer, dirigir, dar um laço no sapato, jogar sinuca,

etc. – que nada acrescentam à narrativa, a não ser uma dinâmica visual que

mascara o caráter verbocêntrico da cena em si: é o que está sendo dito pelos

personagens, e não o que eles estão fazendo, que faz a ação dramática avançar.

Sergio Leone optou por um esquema alternativo de representação

sonora da narrativa, que Chion (2009, p. 73) chama de “lacônico”. Isso pode ser

comprovado estatisticamente. Basta comparar o número de frases ditas pelos

personagens de um western de Leone com a quantidade de falas presentes

em qualquer western norte-americano da época. Para fazer isso, selecionamos

um corpus aleatório de 23 westerns realizados entre os anos 1930 e 1960, por

diretores renomados (incluindo Ford, Hawks, Mann e Boetticher), e contamos

cada linha de diálogofalada pelos atores desses filmes. Fizemos o mesmo

procedimento nos cinco westerns de Leone. Os números mostram que os

trabalhos de Leone têm menor quantidade de falas do que qualquer outro filme

integrante do corpus selecionado.

Para efeito de comparação, Por um punhado de dólares (Sergio Leone,

1964) possui 687 linhas de diálogo em 99 minutos (menos de sete linhas por

minuto). O homem que matou o facínora (John Ford, 1962), feito dois anos antes,

contém 1093 frases em 123 minutos, quase nove por minuto – taxa idêntica a

Rastros de ódio (John Ford, 1956). Onde começa a inferno (Howard Hawks,

1959) soma 1526 linhas em 141 minutos (onze por minuto), enquanto Rio

Vermelho (Howard Hawks, 1948) é ainda mais tagarela: 1628 em 133 minutos,

mais de doze falas por minuto.

Há, em Três homens em conflito (Sergio Leone, 1966), 946 frases em

179 minutos (cinco por minuto). Já Era uma vez no Oeste (Sergio Leone, 1968)

contém 686 linhas de diálogos em 175 minutos – pouco mais de quatro por

minuto. Mesmo quando comparamos os filmes de Leone aos de diretores norte-

americanos de westerns psicológicos com heróis que pouco falam, como Budd

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Os sons da continuidade intensificada: o caso de Sergio Leone - Rodrigo Carreiro
Sonoridades

Boetticher e Anthony Mann, a discrepância permanece. Sete homens sem destino

(Budd Boetticher, 1959) apresenta 642 frases em 73 minutos (nove frases por

minuto). Um certo Capitão Lockhart (Anthony Mann, 1955) possui 1102 linhas em

104 minutos – dez por minuto.

Antes de seguir em frente, é necessário um último comentário relacionado

ao esquema verbocêntrico. Ao contrário do que Chion parece deixar implícito,

esse esquema não foi adotado por razões de comodidade narrativa. Os diretores

não impulsionam a trama para frente usando diálogos apenas porque é mais

fácil, mas também por razões cognitivas. Trata-se de um traço antropomórfico:

quando nossos ouvidos detectam o timbre da voz humana (que soa dentro

de uma faixa de propagação de ondas sonoras que vai de 60 a 1300 Hz),

direcionamos naturalmente nossa atenção para esses sons (e desprezamos os

demais), tentando reconhecê-los e interpretá-los. Com base nesse princípio, os

sound designers costumam mixar, na trilha sonora de qualquer filme, diálogos

em volume mais alto do que efeitos sonoros e música, salvo em momentos de

exceção. Se não fosse assim, os espectadores não apenas seriam privados

de acompanhar a trama, mas também ficariam exaustos pelo esforço mental e

auditivo de tentar decifrar as palavras por detrás dos outros sons.

Usando menos palavras, Leone podia diminuir o tempo necessário

de aluguel de estúdios sonoros para dublagem, pois os personagens não

conversavam durante as cenas de ação. Mas, sem poder utilizar muitos diálogos

nas demais cenas, qual ferramenta narrativa ele podia usar para manter a ação

dramática progredindo?

A resposta reside nos outros dois elementos componentes da banda

sonora: a música e os efeitos sonoros. A cada um deles, Leone imprimiu um

tratamento coerente com a poética da continuidade intensificada. A música

era executada com poucos instrumentos (guitarra, bateria, piano, trompete),

já que orquestras completas estavam além do orçamento possível. O

parceiro musical de Leone, Ennio Morricone, substituiu então as progressões

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Os sons da continuidade intensificada: o caso de Sergio Leone - Rodrigo Carreiro
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

melódicas tonais das composições neorromânticas (sinfônica e inspirada nos

compositores europeus do século XIX, como Schubert, Mahler e Brahms),

que eram hegemônicas na música para cinema, por melodias simples,

estruturadas como canções pop (alternância de versos e refrões). Influenciado

pelo conceito de música concreta,3 Morricone incorporou uma série de ruídos

pinçados diretamente da diegese: galopes, tiros, chicotadas, assobios, gritos

de animais. Promoveu, assim, a mistura entre a música e os efeitos sonoros,

algo incomum no cinema dos anos 1960.

Na área dos efeitos sonoros, Leone desenvolveu um recurso estilístico

raro até então: o uso abundante de sons naturais amplificados, que consistia na

utilização de ruídos mixadosem volume mais alto do que o normal, obtendo um

efeito que muitos desenhistas de som contemporâneos chamam de realismo

emocional, e que consiste na reprodução, dentro da trilha sonora, de um modo

de audição mais aguçado, com sons que se sobressaem com o objetivo narrativo

de afetar o espectador numa dimensão sensorial (SERGI, 1994). Michel Chion

prefere usar o termo “tradução” para conceitualizar o fenômeno:

O espectador reconhece os sons como verdadeiros e


compatíveis, não tanto porque eles reproduzem concretamente
aquilo que seria ouvido na mesma situação no mundo real,
mas porque eles traduzem, expressam ou transmitem as
sensações – não necessariamente auditivas – relacionadas à
situação (CHION, 2009, p. 488).

Esse procedimento não era comum nos anos 1960. Como as tecnologias

de gravação e projeção eram precárias, a maioria dos diretores de cinema

costumava dedicar pouco tempo para pensar criativamente a trilha de áudio. Em

Hollywood, a banda sonora era preenchida com música sinfônica, que intercalava

os diálogos. Ruídos e efeitos sonoros serviam mais para criar um senso de

ambiência – o que Michel Chion (2009, p. 87) chama de “vasta extensão” sonora

361
Os sons da continuidade intensificada: o caso de Sergio Leone - Rodrigo Carreiro
Sonoridades

– e sugerir a tridimensionalidade do espaço fílmico do que para criar pontos de

sincronização (CHION, 2009, p. 58) entre o que se ouve na banda sonora e as

imagens vistas simultaneamente na tela.

Nesse ponto, Leone seguiu a trilha aberta por pioneiros no uso dos

ruídos como elementos de construção da narrativa, como Robert Bresson (o uso

expressivo de sons fora do quadro) e Jacques Tati (efeitos sonoros em volume

amplificado que guiavam o olhar do espectador dentro do quadro).

O italiano, como outros diretores europeus da mesma geração,

compreendeu – talvez intuitivamente – a importância dos efeitos sonoros na

construção do espaço fílmico fora de quadro. Essa construção tem relação com a

maneira como a fisiologia do organismo humano faz nossos cérebros processarem

o som. Ao contrário das imagens, que são projetadas numa tela e por isso têm

limites (laterais, superior e inferior), os sons são percebidos num raio de 360

graus. Ouvimos sons o tempo inteiro, pois não podemos “fechar” os ouvidos (como

fazemos com os olhos). Por essas características, o cérebro se acostuma a isolar

os ruídos, processar os mais importantes e descartar os demais.

Na época de Leone, a figura do sound designer4 ainda não existia. Nesse


sentido, embora houvesse outros diretores experimentando técnicas inovadoras

de manipulação do espaço sonoro dos filmes antes de Leone – além de Bresson e

Tati, vale a pena citar Stanley Kubrick e Jean-Luc Godard, todos trabalhando com

ruídos e efeitos sonoros de modo criativo–, o italiano pode ser apontado como um

dos cineastas pioneiros no uso dos ruídos como ferramenta narrativa.

Esse recurso estilístico estava emergindo no cinema modernista europeu

dessa mesma época e se tornaria uma ferramenta extensamente explorada no

cinema contemporâneo, a partir da década seguinte, principalmente depois

que os filmes passaram a ter as trilhas sonoras finalizadas no sistema Dolby

Estéreo.5 Jacques Tati foi um dos grandes pioneiros dessa técnica, descrita
assim por Michel Chion:

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Os sons da continuidade intensificada: o caso de Sergio Leone - Rodrigo Carreiro
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

A impressão geral de fluxo sônico contínuo por parte do


espectador não resulta de características de edição e mixagem
concebidas separadamente, mas sim da combinação de todos
os elementos sonoros. Jacques Tati, por exemplo, usava efeitos
sonoros cuidadosamente planejados, gravados separadamente
e depois inseridos no continuum da trilha sonora em pontos
específicos. Caso ouvidos isoladamente em sucessão,
eles resultariam numa trilha sonora fragmentada e cheia de
interrupções, se não fosse pelo uso de um background sonoro
contínuo que amarrasse todos os demais elementos numa
massa sonora única. (CHION, 2009, p.46, tradução nossa).

Uma das mais interessantes experiências de Leone com música concreta

e ruídos amplificados aparece na abertura de Era uma vez no Oeste. São 15

minutos e 39 segundos com poucas palavras e quase nenhuma música,no

sentido tradicional do termo – uma espécie de sinfonia de ruídos. Aliás, a

metáfora da sinfonia é pertinente, já que a modulação da narrativa através dos

ruídos mesmo partiu de uma sugestão de Morricone. Originalmente, Leone

queria uma música orquestrada para sublinhar a cena. Morricone escreveu

uma melodia, recusada pelo diretor. Então, o compositor sugeriu que Leone

criasse padrões rítmicos a partir da mixagem dos sons diegéticos, de forma

a acentuar a impressão de monotonia dos três pistoleiros que aguardam a

chegada de um trem na estação de Flagstone.

O resultado é uma demonstração eloquente do efeito narrativo dos ruídos

sonoros intensificados, e funciona como um catálogo de sons característicos não

apenas da obra de Leone, mas de todo o spaghetti western: passos ritmados

de botas batendo contra o piso de madeira da estação ferroviária; portas velhas

que rangem ao abrir e fechar; pássaros e galinhas que cacarejam ao longe; um

cachorro que late ainda mais longe; um moinho enferrujado; uma goteira que cai

sobre o chapéu de um dos pistoleiros; o estalar de dedos do segundo pistoleiro; o

tilintar ocasional do telégrafo da estação; o zumbido de uma mosca que importuna

o terceiro pistoleiros, que tenta cochilar; e toda uma coleção de pequenos ruídos

363
Os sons da continuidade intensificada: o caso de Sergio Leone - Rodrigo Carreiro
Sonoridades

que poderiam passar despercebidos. Devidamente intensificados, contudo, eles

contribuem para dotar o espaço fílmico de uma qualidade aural vívida e vibrante,

além de obrigar o espectador a descobrir o lugar através dos sons, permitindo a

Leone abusar dos close-ups e planos fechados que sempre foram uma marca

registrada de seu estilo visual.

Num primeiro momento, esse conjunto de sons possui duas funções.

A primeira é a já citada caracterização da monotonia do ambiente. Esta tem

uma relação com o recurso estilístico do alusionismo, característica narrativa

da continuidade intensificada que Leone adotava: o esqueleto narrativo da

cena é uma citação ao filme Matar ou morrer (High Noon, Fred Zinnemann,

1952), em que a mesma situação dramática (três pistoleiros esperam a

chegada de um trem) pontua a trama principal.

A segunda função é auxiliar o espectador a explorar o ambiente de forma

sensorial. Nessa segunda função, se encaixam sons que se acumulampara gerar

a tensão dramática: as brincadeiras de um pistoleiro com um canário numa gaiola,

a risada nervosa do vendedor de bilhetes, a fuga da índia que trabalha no local, os

pés se arrastando no cascalho.

Durante toda a cena, Leone realiza uma edição de som planejada

para guiar a percepção do espectador de diferentes maneiras. É perceptível

a criação de padrões rítmicos sonoros minimalistas e repetitivos, para

exprimir a sensação irritante de monotonia. Cada pistoleiro cria seus próprios

padrões que traduzem no som essa monotonia: a goteira no chapéu (primeiro

pistoleiro), os estalos dos dedos (segundo pistoleiro), o tilintar do telégrafo e

o zumbido da mosca (terceiro pistoleiro).

Durante toda a cena, há um motivo visual e rítmico extra que afeta

todos os personagens, bem como o espectador, em segundo plano sonoro:

o rangido do moinho de vento abandonado. O som do moinho providencia

continuidade entre as ações independentes dos três pistoleiros e sugere a

364
Os sons da continuidade intensificada: o caso de Sergio Leone - Rodrigo Carreiro
XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

distância entre a estação ferroviária e a civilização. A torre do moinho funciona

como motivo visual. Por fim, é possível afirmar que o moinho simboliza a

passagem do tempo, pois ele soa como um relógio. Esse som sinaliza ao

espectador que a ação acontece em termo real, já que é possível ouvir o

rangido enferrujado durante toda a cena.

Outro recurso estilístico utilizado por Leone no desenho sonoro é a

orquestração cuidadosa da mixagem dos efeitos sonoros, de forma que muitas

vezes o som ouvido pelo espectador durante um plano, quase sempre oriundo de

algum objeto, animal ou pessoa que está fora do quadro, chame a atenção para

esse novo elemento, que só aparecerá na imagem depois de ser ouvido, quase

sempre no plano seguinte. Através desse princípio, que pode ser percebido em

diversos momentos, a percepção da imagem por parte da plateia é dirigida pela

organização (em termos de volume, intensidade e frequência) dos ruídos ouvidos

no plano imediatamente anterior.

Tudo isso é particularmente importante nos planos gerais e médios,

quando há muitos elementos visuais dentro do quadro, disputando a atenção

do espectador. Um bom exemplo pode ser encontrado no momento em que

os pistoleiros saem do prédio para a plataforma; há aí vários planos gerais

que utilizam esse recurso. Durante o plano que mostra o primeiro pistoleiro

caminhando sobre a plataforma, a intensidade do som do moinho de vento sobe

gradualmente; o plano seguinte mostra o moinho em primeiríssimo plano.

Depois, o plano do segundo pistoleiro sentado num banco, tentando

cochilar, é sonorizado com o ruído do moinho e o sopro do vento. No meio

do plano, o ruído frenético do telégrafo (que não está em quadro) começa a

soar bem alto; a tomada seguinte mostra o telégrafo em primeiro plano e o

pistoleiro atrás. Em seguida, enquanto o terceiro pistoleiro está parado sob a

caixa-d’água, o público começa a ouvir uma goteira fora de quadro; o plano

seguinte localiza a goteira na caixa-d’água, em um ponto exatamente acima

da cabeça do pistoleiro, num close-up extremo.

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Sonoridades

Por fim, Leone anuncia a chegada do trem utilizando o mesmo recurso:

o apito da locomotiva é ouvido enquanto vemos um close-up extremo de um

dos pistoleiros, mas o trem só aparece no plano seguinte. Em todos esses

casos, é sempre o som oriundo de um elemento fora do quadro que guia a

atenção do espectador para determinado ponto ou aspecto da imagem que

aparecerá no quadro seguinte.

Conclusão

A cuidadosa construção sonora da cena de abertura de Era uma vez

no Oeste está entre os momentos mais interessantes da obra de Leone, no

que se refere ao uso dos sons fora de quadro. Trata-se da intensificação da

técnica desenvolvida por Jacques Tati e Robert Bresson – efeitos sonoros

cuidadosamente organizados e inseridos dentro de uma paisagem acústica

contínua que dá unidade à trilha sonora, contribuindo para criar mentalmente um

cenário visualmente fragmentado, que não é mostrado por completo através de

imagens – acrescida de um elemento novo: o silêncio, nesse caso usado para

dar ênfase emocional à ideia de monotonia. Esse senso de monotonia só se

consegue através de uma técnica cinematográfica especificamente desenhada

para expressar o silêncio, e assim descrita por Michel Chion:

Outra maneira de expressar o silêncio (...) consiste em expor o


ouvinte a ruídos. Refiro-me a tipos sutis de ruídos, como o tique-
taque de um relógio, associados normalmente a ambientes
tranquilos e silenciosos. Esses elementos normalmente não
atraem atenção das pessoas; não seriam sequer audíveis se os
outros sons (tráfico, conversas, local de trabalho) não fossem
eliminados. (CHION, 2009, p. 57, tradução nossa).

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XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

O ritmo propositalmente lento, acentuado pelos silêncios e pela inserção

cuidadosa de efeitos sonoros criados a partir de ruídos naturais amplificados,

acabou por se tornar uma assinatura estilística do italiano. A abertura de Era uma

vez no Oeste representa um de seus momentos culminantes. E a participação

criativa de Ennio Morricone na construção sonora mostra que o borramento

das fronteiras entre música e ruídos era, para Leone, uma realidade. Afinal,

a cena tinha mesmo sido planejada para evocar uma experiência musical. O

background profissional de Morricone incluía um seminário estudando com o

compositor concretista John Cage.

Essas experiências com o uso de ruídos foram estudadas detalhadamente

pelas gerações subsequentes de cineastas. Christopher Frayling (2000,

p. 190-192) afirma que professores de montagem de cursos de graduação

em Cinema em instituições de ensino norte-americanas faziam seus alunos

estudarem essa cena na moviola,6 no final da década de 1960, analisando-a


plano a plano. O objetivo era não apenas entender que ruídos também podiam

ser música, mas que eram igualmente capazes de provocar o engajamento

afetivo do espectador e, ainda,direcionar a percepção da plateia para certos

elementos da composição visual.

George Lucas e John Millius, que frequentavam a University of Southern

California, estavam entre esses alunos. Foi através deles (e de outros diretores

norte-americanos) que o tratamento intensificado dos princípios da continuidade

clássica, através das novas técnicas assimiladas da produção europeia nos

anos 1970, se popularizou em nível global.

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Sonoridades

Referências bibliográficas

BORDWELL, D. The way Hollywood tells it:story and style in modern movies. Los Angeles: University of California
Press, 2006.

CHION, M. Film, a sound art. New York: Columbia University Press, 2009.

FABRIS, M. Neo-realismo Italiano. In: MASCARELLO, F. (Org.). História do cinema mundial. Campinas, SP:
Papirus, 2006. p. 191-220.

FRAYLING, C. Something to do with death. London: Faber and Faber, 2000.

SERGI, G. The Dolby Era: film sound in contemporary Hollywood. Manchester: Manchester University Press,
1994.

Referências audiovisuais

Era uma vez no Oeste. Sergio Leone. Itália, 1968, filme 35 mm.

O homem que matou o facínora. John Ford. Estados Unidos, 1962, filme 35 mm.

Onde começa o inferno. Howard Hawks.Estados Unidos, 1959, filme 35 mm.

Por um punhado de dólares. Sergio Leone. Itália, 1964, filme 35 mm.

Rastros de ódio. John Ford. Estados Unidos, 1956, filme 35 mm.

Rio vermelho. Howard Hawks. Estados Unidos, 1948, filme 35 mm.

Sete homens sem destino. Budd Boetticher. Estados Unidos, 1959, filme 35 mm.

Três homens em conflito. Sergio Leone. Itália, 1966, filme 35 mm.

Um certo Capitão Lockhart. Anthony Mann. Estados Unidos, 1955, filme 35 mm.

_____________________________________________________________

1. Trabalho apresentado no seminário temático “Estudos do som”.

2. UFPE, Professor. E-mail: [email protected]

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3. Estilo de composição surgido no final dos anos 1940, na França, através da utilização de sons eletrônicos e urbanos na
estrutura melódica e rítmica das composições.

4. A função só apareceu oficialmente em 1979, quando Walter Murch recebeu esse crédito pela criação e mixagem da trilha
sonora de Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola (STAM, 2003, p. 237).

5. O sistema Dolby Estéreo (1975) permitiu que os cineastas passassem a finalizar o som dos filmes com até quatro canais
inscritos na película e projetados separadamente nas salas de exibição. O Dolby Estéreo tornou-se o sistema de projeção
de áudio padrão no mundo inteiro em 1977 (SERGI, 1994).

6. Aparelho utilizado pelos montadores para cortar e colar os pedaços de negativo, que permite a possibilidade de manipulá-lo
quadro a quadro.

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AUDIOVISUAL

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ISBN: 978-85-63552-03-7

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