Universidade de Brasília - Unb Instituto de Psicologia - Ip Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica E Cultura - PCL

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – UnB

INSTITUTO DE PSICOLOGIA –

IP PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM

PSICOLOGIA CLÍNICA E CULTURA – PCL

A ESCARIFICAÇÃO NA ADOLESCÊNCIA: A PROBLEMÁTICA DO EU-


PELE A PARTIR DO MÉTODO DE RORSCHACH

BRUNO CAVAIGNAC CAMPOS CARDOSO

Brasília – DF

2015
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – UnB

INSTITUTO DE PSICOLOGIA – IP

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM

PSICOLOGIA CLÍNICA E CULTURA – PCL

A ESCARIFICAÇÃO NA ADOLESCÊNCIA: A PROBLEMÁTICA DO EU-


PELE A PARTIR DO RORSCHACH

BRUNO CAVAIGNAC CAMPOS CARDOSO

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura
(PPGPsiCC) do Instituto de Psicologia (IP) da
Universidade de Brasília (UnB) como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre em
Psicologia Clínica e Cultura.

Orientadora: Profa. Dra. Deise Matos do Amparo

Brasília – DF

2015

2
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Clínica e Cultura do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, sob a
orientação da Profa. Dra. Deise Matos do Amparo.

Aprovada por:

____________________________________________________________________

Profa. Dra. Deise Matos do Amparo (Universidade de Brasília - UnB) Presidente

_____________________________________________________________________

Prof. Dr. Roberto Menezes de Oliveira (Psicologia/ UCB) Membro Externo

______________________________________________________________________
Prof. Dr. Francisco Moacir Catunda de Melo Martins (PCL/Universidade de Brasília -
UnB) Membro Interno

______________________________________________________________________
Profa. Dra. Sonia Regina Pasian (Universidade de São Paulo – USP Ribeirão) Membro
Suplente

3
Dedico esse trabalho ao meu amigo e avô, Darione
Nunes Cardoso (in memorium), com toda a minha
gratidão.

Se falava, era com seus perus, e que viver é um


rasgar-se e remendar-se. Era só um homem
debaixo de um coqueiro. (Rosa, 1979, p. 76)

4
AGRADECIMENTOS

À minha orientadora, Professora Dra Deise Matos do Amparo, pela confiança, tempo e
dedicação depositados em mim durante todos esses anos de convívio, durante os quais
ela muito me ensinou.

À Vera Lucia Lima Cavaignac e Dario José Campos Cardoso, pelo apoio e carinho, sem
os quais a realização do presente trabalho não seria possível.

À Lilian Campos Cardoso, pelo esforço em me ensinar o prazer e o valor do


conhecimento.

Aos psicólogos, psiquiatras, enfermeiros, técnicos e assistentes sociais do CAPS


Adolescentro e aos profissionais e alunos do Centro de Estudos e Atendimento
Psicológico da Universidade de Brasília.

Aos pesquisadores Jean-Yves Chagnon e Catherine Matha pelas valiosas contribuições.

A todos participantes do grupo de pesquisa e as pessoas que colaboram com realização


da pesquisa: Lana Wolff, Ramon Braga, João Augusto, Iasmim Estrela, Aline Caputo,
Maria Arlete Pessoa, Geovana Nunes, Pedro Bonaldo, Roberto Menezes, Carolina
Rocha, Jessica Paulucci, Isadora Brasil, Laís Villas Boas, Renata Arouca e July Emily.

À Thiago Petra Campos e Douglas Sé Braga, pela amizade e reflexões proporcionadas.

À Marília Miranda Costa Manso, pelo carinho e amizade.

Aos adolescentes que aceitaram compartilhar as suas experiências.

À toda minha família e amigos.

Ao CNPq pelo auxílio financeiro.

5
Resumo.

Cavaignac, B.C.C (2015). As escarificação na adolescência: A problemática do Eu-Pele


à partir do Método de Rorschach. Dissertação de Mestrado. Instituto de Psicologia.
Universidade de Brasília, Brasília.

O objetivo do presente trabalho é investigar a qualidade do Eu-Pele e do investimento


dos limites em adolescentes que se escarificam. A escarificação é mais frequente na
adolescência em comparação com outros períodos da vida. No período adolescente, a
emergência da puberdade desestabiliza as defesas, testando a qualidade do investimento
dos limites e a eficácia desempenhada pelas funções do Eu-Pele. Portanto, partiu-se da
hipótese de que as escarificações estariam ligadas a patologia do investimento dos
limites e a falhas nas funções de manutenção, continência e para-excitação do Eu-Pele.
A pesquisa foi realizada com adolescentes com histórico de escarificações, com idades
entre 14 e 18 anos, sendo três sujeitos do sexo masculino e sete do sexo feminino. O
método utilizado foi o clinico-qualitativo com estudos de caso, seguindo o modelo de
grupo único. Foram utilizadas entrevistas semi-estruturadas, entrevistas clínicas e o
método de Rorschach, segundo a perspectiva de interpretação da Escola de Paris. A
análise dos protocolos enfatizou a apreciação da qualidade dos limites e das funções de
manutenção, continência e para-excitação do Eu-Pele. Em um primeiro momento, todos
os protocolos foram analisados de forma conjunta, em se privilegiando a análise
quantitativa do Rorschach. Em um segundo momento, foram discutidos os estudos de
caso. Portanto quatro protocolos foram analisados com ênfase na análise qualitativa dos
resultados e com a integração das informações coletadas por meio das entrevistas semi-
estruturadas e entrevistas clínicas. Segundo os resultados encontrados, seis participantes
apresentaram fragilidade do investimento dos limites, enquanto quatro apresentaram
sobreinvestimento dos limites. Todos os participantes apresentaram falhas nas funções
do Eu-Pele investigadas. Conclui-se a existência de relação entre a patologia do
investimento dos limites e falhas nas funções do Eu-Pele com as escarificações.
Portanto, recomenda-se que o tratamento psicoterapêutico das escarificações na
adolescência objetive por restituir as funções falhas do Eu-Pele e remanejar o modo
patológico de investimento dos limites.

Palavras chave: Automutilação; Adolescência; Rorschach; Eu-Pele; Narcisismo


Escarificação.

6
Abstract

Cavaignac, B.C.C (2015). As escarificação na adolescência: A problemática do Eu-Pele


à partir do Método de Rorschach. Dissertação de Mestrado. Instituto de Psicologia.
Universidade de Brasília, Brasília.

This study intends to investigate the quality of Ego-Skin and the level of the boundary
investment in adolescents who scarify themselves. The scarification is most common in
the adolescence time. The emergence of puberty destabilizes the teenagers’ defenses,
testing their effectiveness of boundaries investment and the efficacy of the functions
performed by the Ego-Skin. Therefore, we started assuming the boundary pathology and
the failures in maintenance, continence and stop-excitement Skin-Ego´s functions are
related to the scarification. The survey was conducted with adolescents who had
scarification history record, three males and seven females, aged between 14 and 18
years. The clinical-qualitative method with case studies, following the single group
methodological perspective was the chosen method. Semi-structured interviews and
clinical interviews were applied, besides the Rorschach´s method, analyzed following
school of Paris interpretation perspective. The protocols´ analysis emphasized the
assessment of the quality of the boundaries and the maintenance, continence and stop-
excitement Skin-Ego´s functions. At first, all protocols were analyzed on focusing on
the quantitative analysis of the Rorschach. In a second phase, the case studies were
discussed by means of the qualitative information gathered by way of the four
Rorschach protocols results and the information collected through semi-structured
interviews and clinical interviews. According to the results, six participants showed the
fragility of the boundaries investment, while four of them showed boundaries limits
overinvestment. All participants showed failures on the Skin-Ego functions, as the
Rorschach results indicates. We conclude the existence of connection between
boundaries investment pathology, defects on the Skin-Ego and scarification. Therefore,
if the therapist is able to help the patient to restore his failures on the Skin-Ego
functions and pathological boundaries investment mode, treatment would tend to bring
successful results related to the scarifications overcoming.

Key words: Self-mutilation; Adolescence; Rorschach; Skin-Ego; Narcissism; Self-


Injury.

7
LISTA DE TABELAS
Tabela 2.1-Indicadores do Investimento dos limites no Rorschach na patologia e na
saúde.............................................................................................................................................48
Tabela 2.2-A utilização do eixo central e dos modos de apreensão na avaliação da função de
manutenção do Eu-Pele................................................................................................................52
Tabela 2.3-A utilização dos determinantes formais e cinestésicos e fenômenos especiais na
avaliação da qualidade da função de manutenção do Eu-Pele.....................................................53
Tabela 2.4- O uso do Dbl, dos índices formais, dos desdobramentos, o índice barreira-
penetração, as respostas “pele” e os determinantes na análise da qualidade da função continente
do Eu-Pele....................................................................................................................................55
Tabela 2.5- A progressão de respostas e os modos de apreensão na análise do aspecto contentor
do Eu-Pele....................................................................................................................................56
Tabela 2.6- Índices de respostas formas, índice de controle afetivo, qualidade da representação,
choques e tempo de latência na análise da função de para-excitação do Eu-Pele.......................58
Tabela 3.1- Informações gerais sobre os participantes da pesquisa.............................................66
Tabela 4.1- Indicadores para análise de investimento dos limites nos protocolos de Rorschach
dos adolescentes...........................................................................................................................75
Tabela 4.2-Indicadores de fenômenos especiais nos protocolos de Rorschach dos
adolescentes..................................................................................................................................77
Tabela 4.3- Localização e determinantes utilizados como indicadores da função de manutenção
do Eu-Pele nos protocolos de Rorschach dos adolescentes..........................................................80
Tabela 4.4- Os determinantes formais, as respostas barreira e penetração e as localizações na
análise do funcionamento da continência do Eu-Pele nos protocolos de Rorschach dos
adolescentes..................................................................................................................................84
Tabela 4.5- Determinantes cinestésicos, sensoriais e a incidência de desdobramento na análise
da função de continência do Eu-Pele nos protocolos de Rorschach dos adolescentes.................85
Tabela 4.6- Incidência dos modos de apreensão e índices de determinantes formais na análise do
aspecto contentor do Eu-Pele.......................................................................................................91
Tabela 4.7- A incidência de determinantes formais e sensoriais, choques e o tempo de latência
médio total na análise da função de para-excitação do Eu-Pele nos protocolos de Rorschach dos
adolescentes.................................................................................................................................94
Tabela 4.8- Incidência das representações humanas e animais parciais em relação as
representações humanas e animais íntegras e localizações relacionadas a função de para-
excitação do Eu-Pele nos protocolos de Rorschach dos adolescentes.............................95
Tabela 5.1- Psicograma do protocolo de Rorschach de Laura......................................104
Tabela 5.2- Psicograma do protocolo de Rorschach de Paula......................................117
Tabela 5.3- Psicograma do protocolo de Rorschach de Helena....................................133
Tabela 5.4- Psicograma do protocolo de Rorschach de João........................................146

8
LISTA DE ANEXOS
ANEXO A – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido........................................171
ANEXO B – Roteiro de Entrevista Semidirigida com os adolescentes.......................172
ANEXO C – Nomenclatura francesa do Rorschach.....................................................174
ANEXO D – Critérios de classificação para escala Barreira-Penetração.....................179

9
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................................................
.........................................................................................................................................11

CAPÍTULO I –ADOLESCÊNCIA E ESCARIFICAÇÃO: A PROBLEMÁTICA DO


EU-PELE.........................................................................................................................15

1. 1. A adolescência e a problemática narcísica..............................................................15

1.1.1. A adolescência como fenômeno complexo...............................................16

1.1.2 Confronto com as bases narcísicas na adolescência.........................16


1.1.2. As escarificações..........................................................................................19
1.2.1. A automutilação e suicídio...........................................................................19
1.2.2. Automutilação e Escarificação. ...........................................................................20
1.2.3. Escarificação ritualística e Escarificação patológica...................................21
1.2.4. Escarificação e passagem ao ato..........................................................23
1.2.5. Escarificação, Trauma e Narcisismo....................................................24
1.2.6 Escarificação, dor, sofrimento e masoquismo.....................................26
1.3As escarificações como tentativas de elaboração da separação em relação ao
objeto..................................................................................................................................32
1.3.1 As Escarificações e o Eu-Pele..........................................................32
1.3.2 O desenvolvimento do Eu-Pele.................................................... 34
1.4 As escarificações e a adolescência...............................................................................37
CAPÍTULO II - O NARCISISMO E O EU-PELE NO MÈTODO DE
RORSCHACH.................................................................................................................40

2.1. A apreciação do narcisismo segundo a abordagem francesa do Rorschach.............40


2.2 A apreciação das defesas narcísicas por meio do método de Rorschach..................42
2.3 Indicadores da qualidade das barreiras no Rorschach: As respostas “pele” e o
sobreinvestimento dos limites.................................................................................46
2.4 Indicadores da qualidade das funções do Eu-Pele............................................49
2.4.1. Indicadores da qualidade da função de manutenção do Eu-Pele...............50
2.4.2. Indicadores da qualidade da função de continência (aspecto continente e
contentor) do Eu-Pele..........................................................................................53
2.4.3. Indicadores da qualidade da função de para-excitação do Eu-Pele...........57

2.5 O Rorschach e a escarificação na adolescência ........................................................59

10
CAPÍTULO III- MÉTODO.......................................................................................62
3.1. Instrumentos.......................................................................................................63
3.1.1. O Método de Rorschach............................................................................63
3.1.2. A entrevistas semi-estruturadas........................................................64.
3.1.3. Entrevistas clínicas ...............................................................................65
3.2. Participantes.........................................................................................................65
3.3. Procedimento para coleta dos dados......................................................................67
3.4. Procedimento para análise dos dados.......................................................................68

CAPÍTULO IV- INVESTIMENTO NOS LIMITES E AS FUNÇÕES DO EU-PELE


DOS ADOLESCENTES PELOS INDICADORES DO MÉTODO DE RORSCHACH
.........................................................................................................................................72
4.1. Resultados dos indicadores de investimento de limites.......................................72
4.2. Resultados relacionados a função de manutenção do Eu-Pele.............................76
4.3. Resultados dos indicadores do funcionamento da função de continência do Eu-
Pele..................................................................................................................................84
4.4. Resultados dos indicadores do funcionamento da função de para-excitação do Eu-
Pele.................................................................................................................................93
CAPÍTULO V- ESTUDOS DE CASO DOS ADOLESCENTES QUE SE
ESCARIFICAM: ANÁLISE COM O MÈTODO DE
RORSCHACH.................................................................................................................99

5.1. Apresentação do caso Laura (Sujeito 4)...................................................................99


5.1.1 Histórico clínico ................................................................................99
5.1.2. Análise do protocolo de Rorschach de Laura................................. 104
5.1.3. As funções do Eu-Pele de Laura.1085.1.3 Síntese do caso
Laura..............................................................................................................................111
5.1. Apresentação do caso Paula (Sujeito 1).................................................................115
5.2.1. Histórico clínico ......................................................................................115
5.2.2. Análise do protocolo de Rorschach de Paula.....................................117
5.2.3. As funções do Eu-Pele de Paula.......................................................123
5.2.4 Síntese do caso Paula................................................................................128
5.1. Apresentação do caso Helena (Sujeito 2)...............................................................129

11
5.3.1. Histórico clínico .......................................................................129
5.3.2 Análise do protocolo de Rorschach de Helena ............................................132
5.3.3. As funções do Eu-Pele de Helena........................................................................134
5.3.4 Síntese do caso
Helena..........................................................................................................................142
5.4. Apresentação do caso José (Sujeito 3) .................................................................142
5.4.1 Histórico clínico .....................................................................................142
5.4.2 Análise do protocolo de Rorschach de José............................................144
5.4.2. As funções do Eu-Pele de José..............................................................147
5.4.3 Síntese do caso José................................................................................151
6. CAPÍTULO VI- Considerações finais.................................................................... 154
REFERÊNCIAS...........................................................................................................164
ANEXOS......................................................................................................................171

12
Introdução

As escarificações ritualísticas são fenômenos antigos, de origem desconhecida,


que compõem os rituais de passagem adotados por diferentes tribos e grupos sociais, de
diferentes tempos e localização. Geralmente as escarificações ritualísticas são parte de
cerimônias que conferem um novo status social, marcam o começo de uma nova etapa
de vida ou inscrevem na pele a filiação de pertencimento do sujeito. As escarificações
ritualísticas guardam o propósito de marcação (modificação) da pele, feita por um
objeto afiado o suficiente para escarificar a carne e alterar a superfície, conferindo um
novo relevo a pele: a cicatriz. Porém não se trata de uma simples cicatriz, pois esse
ritual detém o poder de transformar, a um só tempo, a imagem do indivíduo para si
mesmo e para os outros. Nesse contexto, as escarificações são rituais concretos e
simbólicos, coletivos e individuais: a pele é cortada, a cicatriz é criada, a modificação é
incorporada pelo sujeito envolvido em uma nova pele dotada de significado social.
Tudo isso é encenado na pele, o sismógrafo de nossa existência, pergaminho de nossa
história e o campo de batalha do nosso contato com o mundo, como postulado por Le
Breton (2003; 2010).
Portanto, tratar das escarificações remete à análise do papel desempenhado
pela pele no corpo e no psiquismo. O conceito de Eu-Pele (Anzieu, 1989) se mostrou
bastante útil para tanto e será tratado no decorrer desse trabalho.
Na cultura atual as escarificações apresentam significados distintos dos
tradicionais sentidos das escarificações ritualísticas descritas acima. Em especial, um
tipo de escarificação tem se configurado como um fenômeno relativamente presente na
cultura atual: a escarificação utilizada como meio de obtenção de alívio de sentimentos
angustiantes e pensamentos egodistônicos. Esse tipo de escarificação, que pode ter um
caráter patológico, foi estudada no presente trabalho.
Parte-se da hipótese de que esse tipo de escarificação estaria relacionada a
patologia do investimento dos limites e às falhas nas funções de manutenção,
continência e para-excitação do Eu-Pele. Portanto, o presente trabalho objetiva
investigar a qualidade do investimento dos limites e das funções do Eu-Pele nas
escarificações. Escolheu-se investigar esse fenômeno em suas ocorrências no tempo da
adolescência, pois a literatura descreve a preponderância de ocorrência desse fenômeno
durante essa etapa da vida, em comparação aos outros períodos da existência (Cedaro;
Nascimento, 2013).

13
Para investigar as escarificações na adolescência relacionadas a problemática
dos limites e do Eu-Pele, utilizamos o método clinico-qualitativo de pesquisa, segundo
o modelo de grupo único (Hussain, 1992-1993). Os dados foram obtidos por meio de
entrevistas semi-estruturadas, entrevistas clínicas e à partir do método de Rorschach,
cujos protocolos foram analisado segundo o modelo interpretativo proposto pela Escola
de Paris (Traubenberg, 1970; Chabert, 1998). A ênfase da análise dos protocolos recaiu
sobre os indicadores relativos a qualidade dos limites e da eficácia das funções
desempenhadas pelo Eu-Pele (Chabert, 1993; 1998; Roman, 1996; 2001; Frédérick-
Libon,2005; Emmanuelli; Azoulay, 2008; Kallas, 2012; Pinheiro; Linhares 2009).
Participaram da pesquisa dez adolescentes com histórico de escarificação, sete do sexo
feminino e três do sexo masculino, com idades de 14 a 18 anos.
O desenvolvimento do trabalho está organizado em seis capítulos. O primeiro
capítulo traz uma discussão teórica acerca da adolescência como fenômeno complexo e
sobre a relação desse período da vida com a problemática narcísica e do Eu-Pele. A
especificidades das escarificações também são discutidas, sendo tratadas as distinções
entre a automutilação e o suicídio, entre a automutilação e as escarificações, entre as
escarificações ritualísticas e as escarificações patológicas. Neste capítulo, por fim, é
apresentado o conceito do Eu-Pele e suas funcionalidades, além dos objetivos do
trabalho e hipóteses.
O capítulo II descreve conceitualmente os indicadores do Rorschach que são
referentes ao investimento dos limites e as funções de manutenção, continente e para-
excitação do Eu-Pele, sendo ainda apresentados nesse capítulo as formas de
interpretação possíveis para essas variáveis e a maneira que esses indicadores foram
interpretados para elaboração desse trabalho.
O capítulo III descreve detalhadamente o método utilizado. Já os resultados
estão divididos em dois capítulos. O capítulo IV trata dos resultados dos dez
participantes da pesquisa, tendo sido interpretados sob a ênfase da análise quantitativa
proporcionada pelos índices que compõem psicograma. O capítulo V trata da exposição
e discussão dos resultados relativos a quatro estudos de caso, elaborados por meio da
análise quantitativa/qualitativa dos indicadores do Rorschach e das informações sobre
história de vida participante, obtidas por meio de entrevistas clínicas e semi-
estruturadas. Por fim são feitas as considerações finais sobre o trabalho e reflexões
relativas aos resultados encontrados e ao tratamento das escarificações.

14
CAPÍTULO 1

ADOLESCÊNCIA E ESCARIFICAÇÃO:

A PROBLEMÁTICA DO EU-PELE

1. 1. A adolescência e a problemática narcísica

1.1.1. A adolescência como fenômeno complexo

Derivada do termo latino adolescere, que significa crescer, o período da


adolescência compreende a etapa da vida entre os dez e os vinte anos idade, segundo a
OMS (1965) ou doze aos vinte anos, segundo o Estatuto da Criança e Adolescente
(Brasil, 2007). Apesar da definição legal pautada unicamente pela idade biológica do
sujeito, sabe-se que a adolescência é um fenômeno complexo que ultrapassa a biologia
das mudanças corporais, por estar, a adolescência, além do processo causador de
mudanças biológicas típicas e universais, responsável pela transformação que se efetua
no corpo e no psiquismo do adolescente. É nesse sentido que se faz necessária efetuar a
diferenciação entre puberdade e adolescência: a puberdade é um processo biológico e
universal; a adolescência é um período da vida estabelecido culturalmente pelas
sociedades contemporâneas economicamente desenvolvidas a partir do final do século
XVIII. (Shoen-Ferreira, Aznar-Farias & Silvares, 2010; Birman, 2008).
Há nos dias atuais certa tendência de alongamento do período adolescente, em
todas as classes sociais urbanas, por resultado da transformação da infância e da
modificação da vida adulta. Portanto, há um processo em curso de modificação do
conceito de juventude: o que se entendia em tempos passados como juventude, não,
necessariamente, corresponde ao que nos referimos ao tratar da adolescência nos dias
atuais. Pode-se afirmar que a adolescência começa hoje mais cedo e termina mais tarde
em relação ao que ocorria em outros tempos (Birman, 2011).
Dessa forma, o que está além da puberdade na adolescência é a dimensão sócio-
cultural que constitui a adolescência como uma etapa de vida específica, pois o período
adolescente é também o tempo no qual o sujeito em transformação se percebe diante de
novas demandas sociais a serem enfrentadas e novas possibilidades a serem
vivenciadas. Assim, tanto as novas expectativas e possibilidades sociais, quanto o novo
corpo, em suas dimensões biológicas e pulsionais, marcam as transformações internas e
externas que suscitarão um laborioso trabalho psicológico de redefinição da identidade

15
sexual e corporal, a ser feito pelo sujeito durante esse período de adolescência. Assim, o
trabalho a ser empreendido pelo adolescente passa pela redefinição da imagem de si e
das relações de objeto, por um lado, pela elaboração do luto e da perda da condição
infantil e do corpo da infância, por outro lado (Cardoso, 2011).
Freud não faz referência ao termo adolescência, uma vez que a construção da
adolescência, como conceito utilizado para designar um período específico da vida, é
posterior ao tempo de suas pesquisas. Entretanto, Freud (1905/1996) define a puberdade
como o momento de organização das pulsões parciais em torno das zonas genitais. A
puberdade, então, é tida pela psicanálise como o evento desorganizador das defesas
anteriormente eficazes no período de latência, pois o aumento da excitação pulsional,
decorrente da chegada da puberdade, desestabiliza o equilíbrio das defesas
anteriormente estabelecidas para controlar o excesso pulsional traumático (Drieu, Proia-
Lelouey, Zanello, 2011).
Esse processo de agrupamento das pulsões sexuais em torno das zonas genitais,
característica da mudança da passagem da fase latência para a fase genital (Freud,
1905/1996), instaura a necessidade de remanejamento narcísico e objetal; de redefinição
da identidade corporal e sexual (Drieu, Proia-Lelouey, Zanello, 2011). Sendo assim, a
puberdade, entendida como a mudança fisiológica que sinaliza o início da adolescência,
exige um considerável trabalho de remanejamento e redifinição sobre o si mesmo e
sobre as relações de objeto, processo necessário para diminuir a tensão gerada pela
perturbação efetuada no psiquismo do adolescente com a chegada da puberdade
(Emanuelly & Azulay, 2008).
Em outras palavras, a chegada da puberdade testa a qualidade das construções
narcísicas desenvolvidas na infância, pois, o aumento pulsional desencadeado pela
puberdade coloca em cheque a organização da imagem de si (representação corporal) e
da construção identitária infantil, assim como evidencia a qualidade da organização do
Eu-Pele, uma aquisição anterior ao estádio do espelho descrito por Lacan (Anzieu,
1978; 1989) e a eficácia de suas funções de manutenção, continente e para-excitação.
Além disso, a emergência da puberdade lança a demanda pela redefinição das relações
de objeto e pela elaboração do trabalho de luto pela perda da condição infantil, perda do
corpo e das relações de objeto da infância (Cardoso, 2011).

1.1.2 Confronto com as bases narcísicas na adolescência

16
Freud considerava que o desenvolvimento do Eu era intimamente relacionado à
questão do narcisismo (Freud, 1914/1996). A própria incorporação do conceito de
narcisismo à metapsicologia freudiana, obrigou Freud a repensar a noção do Eu,
anteriormente descrita no Projeto de uma Psicologia Científica (1895/1996) como sede
da consciência. Assim, o desenvolvimento do Eu como conceito freudiano, começa
muito antes do texto do narcisismo e é concluído apenas no texto Eu e o Isso (Freud,
1923/1996), que introduziu a existência de uma imagem (representação) corporal nos
registros do Eu. Para Freud, o ser humano não nasce já tendo internalizada uma
representação psíquica unificada do próprio corpo, não sendo, o infante, capaz de
perceber a continuidade do próprio corpo e a descontinuidade entre seu corpo e o
ambiente externo. Em outras palavras, o Eu não existe desde começo; no começo é tudo
Isso (Freud, 1923/1996), o que nos leva afirmar que a diferenciação entre o interno e o
externo é uma aquisição a ocorrer ao longo do processo de desenvolvimento.
A primeira fase do desenvolvimento da libido, denominada de autoerotismo, é o
tempo da não diferenciação da energia pulsional, sendo o lactante um caos de sensações
isoladas. O sistema perceptivo permite que o lactante inicie o contato com o mundo
externo, o que proporciona progressivamente a diferenciação em relação aos demais
objetos parciais e a integração da unidade corporal; a parte do Isso em contato com a
percepção se diferenciará, formando o Eu, uma representação do próprio corpo; o
envelope psíquico. O tato por ser uma sensação tanto interna quanto externa,
desempenhará importante função no decorrer da internalização de tal aquisição (Freud,
1915/1996). O Eu é derivado das sensações corporais sendo, em especial, construído
por meio da função sensorial, pela qual as sensações que remetem ao apelo a superfície
do corpo são progressivamente integradas em uma unidade corporal, o envelope
psíquico. Dessa forma, o Eu é uma projeção da superfície corporal, que é internalizada e
se torna o representante da superfície corporal no aparelho psíquico (Freud, 1923/1996;
Le Breton, 2010)
Portanto, as bases narcísicas se constituem a partir do investimento libidinal do
infante na imagem corporal que é idealizada pela mãe, ao projetar o próprio narcisismo
na imagem de seu filho. Assim, as bases narcísicas, referem-se à noção de imagem
corpo e identidade, que são construções resultantes do reflexo de si mesmo no olhar da
mãe (Winnicott, 1975). Por bases narcísicas pode-se considerar também a aquisição do
sentimento de habitar a própria pele ou um envelope psíquico estabelecedor de um
espaço interno, cuja função é propiciar um espaço do pensar (função continente e

17
contentor); instaurar a distinção em relação ao mundo externo (diferenciação; função
de individuação) além de proteger o Self das invasões do excesso de estimulação do
mundo externo (função de para-excitação da pele) e garantir a solidez da representação
(função de manutenção), noções do Eu-Pele, proposto por Anzieu(1989).
Esse processo propicia a passagem do auto-erotismo para o narcisismo primário
e fundamenta a unificação de uma imagem corporal, que servirá de suporte para
constituição da identidade. Laplanche (1994) enfatiza a sutileza de Freud (1905/1996)
em defender que o autoerotismo é o primeiro estágio de desenvolvimento sexual, mas
que não é o primeiro estágio de desenvolvimento do sujeito, pois a vida de desejos
(sexual) é secundária a vida de necessidade. Assim, afirma Laplanche (1994), a
necessidade origina o desejo, fazendo surgir, a partir das pulsões de auto-conservação, a
pulsão sexual. Portanto, a libidinização do corpo do bebê pela mãe, instaura nele outro
prazer distinto daquele da satisfação da necessidade: a sexualidade.
Sabe-se que a emergência da puberdade desativa as defesas testando a eficácia
das bases narcísicas descritas acima. Por conta disso, a chegada da puberdade lança a
demanda de remanejamento narcísico e objetal. Em outras palavras, a emergência da
puberdade instaura a demanda pela redefinição da imagem de si e das relações de
objeto, tarefa a ser empreendida na adolescência (Cardoso, 2011).
Portanto, na época da adolescência, as possíveis falhas ocorridas no processo
infantil de constituição das bases narcísicas, podem se revelar e dificultar a superação da
crise pubertária. No caso de ocorrência de falhas precoces, a travessia da adolescência
tende a ser dificultada, pois o adolescente experienciará as falhas anteriores durante o
processo adolescente de reelaboração dos conflitos inerentes ao despertar do desejo
sexual e de reelaboração dos conceitos de feminino e masculino, aspectos relacionados
a imagem corporal, a identidade e as relações de objeto. Tais conflitos exigem
complexas elaborações, cuja resolução satisfatoriamente bem-sucedida resultará na
integração do Eu e na constituição de uma unidade corporal. Como a elaboração dessas
questões típicas do tempo da adolescência se realiza a partir das estruturas narcísicas
infantis previamente estabelecidas, o processo de adolescência acaba por revelar as
fragilidades das bases narcísicas (Le Breton, 2010). As dificuldades de diferenciação
entre o Eu e o Outro; o dentro e o fora, caso não tenham sido satisfatoriamente
elaboradas no tempo infantil, tanto se mostrarão presentes pela emergência da
puberdade, quanto tenderão a se colocar no sentido oposto da resolução das questões
adolescentes.

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Assim, caso o narcisismo não esteja bem constituído na adolescência, pela
reatualização que esse momento implica para o sujeito, ele pode reviver o sentimento de
impotência e vazio, sentidos anteriormente, durante a fase pré-edípica. Esse processo
ocorre quando o período primitivo de constituição das bases narcísicas foi marcado pela
vivência de experiências precoces de ausências excessivas de contenção materna ou pela
falta da função do terceiro paraexcitante. Portanto, as falhas narcísicas decorrem tanto do
excesso quanto da falta da função materna. Dessa forma, quando a impossibilidade do
adolescente de se utilizar das defesas anteriormente eficazes no período de latência é
acompanhada pela pouca confiabilidade sentida em relação aos objetos internos e
externos, a puberdade pode se tornar um período traumático (Drieu, Proia-Lelouey,
Zanello, 2011). Conclui-se que a adolescência é um período no qual o excesso pulsional
testa a eficácia das bases narcísicas do sujeito, o induzindo a realizar a tarefa de
redefinição da imagem corporal, da identidade e das barreiras entre o mundo interno e
externo; assim como trata de forçar o sujeito a reelaborar as relações de objeto e
empreender o trabalho de luto pela condição infantil perdida.

1.2. As escarificações.

1.2.1. A automutilação e suicídio.


O termo automutilação designa determinados tipos de passagens ao ato,
repetitivos ou impulsivos, que voltados ao corpo do sujeito, se materializam sob a forma
de cortes, perfurações, tricotilomania (arrancar os próprios cabelos), skin picking,
queimaduras ou demais lesões feitas pelo sujeito em alguma parte de seu corpo, sem a
intenção consciente de cometer suicídio.
Menninger (1938), marca a diferença entre os atos auto-mutilatórios e o suicídio,
classificando o primeiro ato sob o rótulo de “parasuicídio”, sendo, portanto, as
automutilações uma formação de compromisso que impede o sujeito de cometer o
suicídio, ao colocar em jogo o mecanismo de deslocamento da pulsão para determinadas
partes do corpo, como os braços, as pernas, os olhos ou os órgãos genitais, por exemplo.
Esse ponto de vista é coerente com a teorização de Favazza (2011), que enfatiza
a diferença entre a automutilação e o suicídio, ao propor uma distinção relativa ao
objetivo dos dois tipos de ato: enquanto o suicida busca a aniquilação de todos os
sentimentos; o sujeito que se utiliza dos atos auto-mutilatórios acredita que tais atos
podem melhorar o sentimento de bem-estar psíquico e existencial. De fato, são

19
frequentes os sujeitos dotados de hábitos automutilatórios que alegam sentir alívio pela
dissipação dos sentimentos egodistônicos após efetuar machucados no próprio corpo
(Cedaro e Nascimento, 2013; Le Breton, 2003; DSM-V, 2014).
O ato de agredir o próprio corpo se apresenta como um ato” guardião da vida
psíquica”, uma vez que, esses tipos de atos têm a função de permitir a emergência de
representações fantasmáticas (Roussillon, 2006). Nesse sentido, Le Breton (2010)
defende que os atos de escarificações não são uma tentativa de morrer; são atos cuja
função é assegurar a vida, sobretudo a vida psíquica e o sentimento de unidade corporal,
(Le Breton, 2010). Os cortes auto infligidos seriam soluções de compromisso não
simbolizadas contra a ameaça do retorno dos elementos clivados, pois face ao retorno da
experiência angustiante, sofrida de forma passiva, o Self atuaria como agente da
situação traumática experienciada originalmente pela pessoa como sujeito passivo. A
experiência traumática que o sujeito busca controlar transformou-se, em decorrência da
excitação libidinal, em uma experiência prazerosa (Rousillion, 1999).
Essas transformações de passivo em ativo, de desprazer em prazer, representam
defesas narcísicas do sujeito nas quais o sujeito “prefere sentir-se culpado, mas
responsável ativo, do que reviver o desamparo e angústia experimentados de forma
passiva" (Rousillion, 1999, p. 28).
Entretanto, a possível alternância, no mesmo indivíduo, entre os distintos atos de
suicídio e automutilação podem indicar a hipotética relação de oposição entre a
automutilação e o autoextermínio; o primeiro a serviço da pulsão de vida, a auto
conservação, ato que possibilita a ligação, segundo a concepção de Matha (2010); e o
segundo tipo à serviço da pulsão de morte, ato relacionado ao desligamento
(desinvestimento) do próprio investimento, conceito de Green (1988).

1.2.2. Automutilação e Escarificação.

Há outra distinção a ser esclarecida, a escarificação (cortes auto infligidos no


corpo), objeto de estudo do presente trabalho, é apenas uma das possibilidades
automutilatórias descritas pela literatura científica. A automutilação ocupa um espectro
classificatório maior em comparação às escarificações, pois, em suas fileiras, o próprio
ato da escarificação é incluído, da mesma forma que outros atos auto-mutilatórios
distintos como o arrancar de cabelos (tricoltimania), as queimaduras e até mesmo a
mutilação completa de órgão. Entre os atos de automutilação, pode-se exemplificar os
casos de mutilação dos genitais, tipo de ato relacionado as psicoses; o caso descrito por

20
Menninger (1938) no qual o sujeito arranca a própria mão em decorrência do
sentimento de culpa ativado por um infanticídio que ele próprio cometeu; ou ainda, o
célebre caso de Van Gogh, que mutilou a própria orelha. Há, nesse sentido, certa
importância teórica em estabelecer uma relativa diferenciação, tanto em decorrência das
especificidades de etiologia, função e de grau de irreversibilidade do prejuízo físico
causado entre o ato de cortar a própria pele e entre outros atos auto-mutilatórios, como
as mutilações psicóticas.
No manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais, o DSM-V (2014), os
atos de escarificação são classificados como “Autolesão não suicida (NSSI)” e definidos
como “dano intencional autoinfligido à superfície de seu corpo provavelmente
induzindo sangramento, contusão ou dor” (DSM-5, 2014 p. 803). Para o manual
estatístico de transtornos mentais, o sujeito que corta a própria pele guarda a expectativa
de obter alívio, por meio dos cortes, de sentimentos e pensamentos negativos, entre eles
as ideações suicidas são citadas. Os instrumentos utilizados para efetuar os cortes
podem ser facas, lâminas, agulhas ou qualquer outro objeto afiado, como a lâmina do
apontador, a ponta do compasso escolar ou o estilete. As lesões são mais
frequentemente feitas na parte interna da coxa e no lado dorsal do antebraço. Segundo o
manual, o comportamento de autolesão se inicia no início da adolescência,
apresentando-se na razão de ocorrência de 3:1 ou 4:1 em relação a distribuição por sexo,
sendo mais frequente nas mulheres. Uma das consequências funcionais da autolesão é a
possibilidade de transmissão de doenças, caso os instrumentos usados para efetuar os
cortes sejam compartilhados (DSM-5,2014).
Logo, as escarificações, objeto de estudo do presente trabalho, se referem aos
repetidos cortes e lesões autoinfligidos na superfície corporal e são um dos tipos
existentes de comportamentos auto-mutilatórios. Porém, as escarificações se distinguem
dos demais atos auto-mutilatórios, pois possuem significado, comportam um certo grau
de gravidade e indicam condições psicopatológicas próprias. As escarificações tendem
ser iniciadas no começo da adolescência, tempo no qual os cortes no corpo são mais
comuns, sendo atos mais frequentemente desempenhados por mulheres.

1.2.3. Escarificação ritualística e Escarificação patológica.


Em relação às escarificações, é necessário marcar a diferença entre os rituais
socioculturais de escarificação e os rituais individuais. O ato do sujeito, imerso na

21
cultura ocidental atual, de cortar a própria pele e observar o jorrar do sangue em meio
ao sentimento subjetivo de alívio dos sentimentos invasivos de angústia é distinto da
experiência do indivíduo cuja pele é escarificada (pelo Outro) em um ritual cultural
(Costa, 2014). Há entre esses dois tipos de fenômenos, a escarificação ritualística e a
escarificação individual (autoinfligida), algumas distinções fundamentais.
A primeira diferença é referente à dimensão sociocultural que marca uma
diferença simbólica entre o ritual coletivo e o ritual individual, pois o ritual coletivo
guarda uma significação compartilhada do ato (escarificar a pele), ao passo que o ritual
individual é permeado por um significado simbólico indissioncrático, de sentido
frequentemente obscuro para o próprio sujeito. O ritual coletivo representa a passagem
de um status social para outra condição social, simbolizando a perda ou superação de
um estado anterior (Costa, 2014) .
Assim, a segunda distinção a ser efetuada se baseia na ideia de que as
escarificações ocorridas em contextos socioculturais não indicam a existência de
sofrimento psíquico coletivo ou individual, ao contrário, marcam a comemoração de um
evento ou marcam na pele a atribuição de um novo status social, entre outros
significados possíveis. Já os cortes na pele como um ritual individual, ocorrido em uma
sociedade que não valoriza (de forma manifesta) os cortes auto infligidos na pele,
indicam a existência de um relevante grau de sofrimento psíquico, de uma encenação do
traumático que ocorre pela via da inversão vetorial; pois o elemento traumático
vivenciado pelo indivíduo como sujeito passivo; é reencenado no ato de se cortar tendo
o sujeito desempenhando o papel ativo (Matha, 2010; Drieu, Proia-Lelouey, Zanello,
2011; Costa 2014).
Portanto, percebe-se que nem sempre as escarificações possuem conotação
psicopatológica, visto que há relatos de rituais nos quais os cortes no corpo são
apreciados e incentivados pelo meio-social o qual atribui significados compartilhados a
essas escarificações. Em algumas tribos da África, por exemplo, as escarificações são
feitas para denotar o status social do membro da tribo ou para servir de instrumento de
simbolização em ritos de passagens (Favazza, 2011). São rituais de passagem, presentes
no nascimento de algum membro da tribo, assim como são presentes na passagem para
vida adulta e na morte (Costa, 2014). Já as escarificações autoinfligidas ocorrem em um
contexto cultural que não as adota como ritual social, são por outro lado, manifestações
psicopatológicas, um tipo de comportamento de automutilação, cuja ocorrência
evidencia o sofrimento psíquico do sujeito (Favazzo, 1987).

22
Outra diferença se apoia na constatação de que os rituais coletivos são atos
simbólicos cujo significado é partilhado por uma dada comunidade, ao passo que os
cortes auto infligidos são formas de passagem ao ato.

1.2.4. Escarificação e passagem ao ato.


A atuação, acting out ou passagem ao ato é um termo que designa a descarga de
energia pela ação em direção ao mundo externo fora dos limites da psique, que é
efetuado sobre a pele, nos limites do corpo, como no caso das escarificações. Dessa
forma, o acting out (passagem ao ato ou atuação) desempenha função mais expulsiva do
que integradora (Green, 2008). Entretanto, observa-se que esse tipo de passagem ao ato
não é sempre esvaziada de significação, pelo contrário, a escarificação patológica é
dotada de significação. Trata-se de um tipo de símbolo cujo significado não é
compartilhado como ocorre no ritual cultural da escarificação, pois a escarificação
patológica é um tipo de passagem ao ato cujo significado é idiossincrático.
Portanto, mesmo quando o ato se mostra obscuro ao sujeito que opera os cortes
na própria pele, as escarificações são tentativas de ligação de uma experiência
traumática (Matha, 2010). Seguindo esse ponto de vista, o cortar da própria pele
funciona como um ato “em curto-circuito”, em ação sob o comando da compulsão a
repetição, se constituindo como uma passagem ao ato a ser significada. Nesse sentido,
faz-se importante a investigação da passagem ao ato, mais especificamente a exploração
dos diferentes tipos de função da passagem ao ato.
Sobre esse tema, Roussillon (2006) tipifica a função do ato em quatro
classificações: a. Ato descarga; b. Ato Signo; c. Ato Tela; d. Ato experiência de apoio.
O primeiro tipo de acting out, o chamado ato descarga, remete a subtração da excitação
dos processos de pensamento e mentalização pela descarga direta na forma motora
(muscular), psíquica (alucinatória). Já no ato signo faz referência a um conteúdo
psíquico em busca de um “contentor”, trata-se de um ato em busca de sentido e
representação. O ato tela é uma recordação encobridora, uma encenação na qual o
trajeto percorrido pela atuação recupera um conjunto de elementos psíquicos
insuficientemente mentalizados, mas que incluem pensamentos de ligação, sendo um
tipo de ato que representa simbolicamente ou metaforicamente essa ligação. Por último,
o ato experiência de apoio é o ato da transferência, ou seja, é o retorno e atualização das
situações infantis recalcadas atualizadas em uma relação (Roussillon, 2006).
Considerando a definição proposta por Roussillon (2006), as escarificações,

23
poderiam ser melhor classificadas, em geral, como ato signo, um tipo de ato que é
caracterizado pela dificuldade ou impossibilidade de transformação da representação
coisa em representação palavra, como um significante (corte) em busca de significação
(fantasia latente) ou como um conteúdo em busca de um continente.

1.2.5. Escarificação, Trauma e Narcisismo.


O ato de se cortar, por se apoiar em um significado inconsciente ao sujeito,
estará, teoricamente, fadado a ser repetido, visto que a recordação do trauma não é
condição para a atuação, pelo contrário, o paciente atua ao invés de lembrar (Freud,
1914/1996), pois a memória encontra-se impossibilitada de ultrapassar os limites da
consciência em decorrência da clivagem radical do Eu (Matha, 2010).
Segundo a concepção de trauma adotada por Freud em Além do princípio do
prazer (Freud, 1920/1996), o trauma é uma experiência cuja elaboração é
impossibilitada em razão do triunfo das estimulações traumáticas sobre as defesas de
para-excitação do sujeito. As experiências traumáticas constituem transbordamentos da
pulsão sobre as funções de para-excitação, contenção e transformação disponíveis,
processo que resulta na desintricação ou defusão das pulsões. Por essa razão, o trauma
estaria fadado a compor o circuito de compulsão a repetição, sendo repetido e
reencenado repetitivamente sob a regência da pulsão de morte (Freud, 1920/1996;
Drieu, Proia-Lelouey, Zanello, 2011).
Sobre essa temática do trauma, Matha (2010) defende a relação entre as
escarificações e o retorno dos elementos clivados decorrentes de experiências
traumáticas; ao apontar que, em razão das experiências traumáticas vivenciadas pelo
sujeito passivamente, os cortes efetuados no próprio corpo tratam de reatualizar (no
tempo presente) o trauma (ocorrido no tempo passado) pela via do ato. Portanto, as
escarificações seriam repetições da experiência traumática, atuada tanto na posição ativa
(é ele que opera os cortes) quanto na posição passiva (é ele que é cortado). Trata-se,
portanto, de uma recuperação ilusória da cena, uma encenação, na qual o indivíduo
finge ter controle, dissimula o papel de sujeito, ao reencenar a situação traumática na
qual ele desempenhou o papel de objeto a-sujeitado, tendo experienciado o trauma
como situação sentida de maneira passiva (Matha, 2010).
A experiência traumática desempenha uma espécie de jogo narcísico, no qual o
sujeito é ao mesmo tempo carrasco e vítima dos cortes operados. Sobre o jogo narcísico
que se evidencia pelos cortes operados na própria pele, a reflexão de Chabert,

24
Ciavaldini, Jeammet, Schenckery. (2006) sobre o tema se faz relevante. Segundo os
autores, caso o autoerotismo falhe em lidar com a ausência do objeto, o infante tenderá
a investir no sistema perceptivo-motor ou se utilizar de autoestimulação.
No caso dos cortes no corpo, a dor causada por eles constituem a auto
estimulação buscada, assim como a visão do corte que faz escorrer o sangue e o ato de
cortar a pele representam o sobreinvestimento do sistema perceptivo-motor (Chabert
,Ciavaldini, Jeammet, Schenckery, 2006). O anti-pensamento decorrente de uma
atividade ligada ao ato operado pelo sobreinvestimento do sistema perceptivo motor, em
detrimento do sistema perceptivo, é responsável por afastar os sentimentos de angústia
da consciência do sujeito que opera os cortes e está relacionado ao sentimento de alívio
relatado pelos sujeitos que se cortam.
A dor incide sobre a totalidade do psiquismo, não afetando apenas o órgão
lesionado, pois captura grande parte da atenção do indivíduo, afetando todas as
atividades do sujeito. A dor transforma o corpo do sujeito em espaço de violação, da
mesma forma em que contribui para diminuição do sofrimento, uma vez que o
sofrimento é obscurecido pelo deslocamento da dor psíquica para a dor física (Le
Breton, 2003).
Por outro lado, a significação do ato de se cortar, se entendida como uma
tentativa de ligação seria caracterizada por uma inversão do jogo de repetição dos
elementos clivados ligados ao traumático, o que resultaria em uma tentativa de inversão
vetorial da pulsão. A escarificação seria uma atuação a serviço da ligação, que se dá
pela inversão da posição passiva em posição ativa; de asujeitado, o sujeito representa
uma cena na qual ele atua como agente do trauma (Matha, 2010).
Tal ligação do evento traumático é, vale lembrar, ainda uma possibilidade, que
enquanto não ocorre, dá lugar a repetição e as explicações racionalizantes “me corto
para sentir alívio”, “gosto de ver o sangue escorrendo”. Nota-se que tais explicações
são circulares a ponto de lembrar os pacientes hipnotizados por Charcot que
“inventavam” uma explicação para o comportamento que havia sido induzido pelo
comando do hipnotizador, ou seja, os hipnotizados explicavam o comportamento cujas
raízes eram inconscientes (comando feito pelo hipnotizador ao hipnotizado quando o
último estava em transe hipnótico) com base em uma explicação racionalizada
consciente. Portanto, acredita-se que as escarificações estejam relacionadas à lógica
da compulsão a repetição, sendo as escarificações tentativas de ligação (Matha, 2010),
ao mesmo tempo em que se considera que as escarificações estejam relacionadas a

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dificuldades de estabelecimento de limites internos e externos (Le Breton, 2010).
Portanto, as escarificações seriam, a um só tempo, tentativas de ligação acerca de um
modo de trauma específico, e atos ligados a tentativas de (re)estabelecimento de limites.
A relação entre esses dois fatores, nos aponta para hipótese de que o trauma que busca
ser ligado pela escarificação estaria relacionado ao estabelecimento de limites, o que
remeteria a ocorrência das escarificações patológicas à falhas ocorridas na constituição
dos limites. Tratar-se ia, portanto, de situações traumáticas precoces que são colocadas
em cena por carecerem de representação e elaboração. Neste ponto surge a seguinte
questão: Qual a natureza das situações traumáticas que estariam ligadas aos atos de
escarificação?
Segundo Costa (2010) a escarificação representaria a tentativa de marcar a
separação entre o Eu e o Outro, entre o interno e o externo. Já Le Breton (2003) lança a
hipótese de que os cortes no corpo seriam, entre outros aspectos, tentativas de
unificação do Eu e de estabelecimentos de limites. Além disso, as escarificações seriam
maneiras de atualizar a identidade pela via da modificação corporal, no caso dos cortes
na pele, a identidade ligada a afetos negativos seria projetada no corpo pela via do ato
(Le Breton, 2003).
Nesse sentido, lança-se a hipótese de que o trauma, a que as escarificações
fazem referência, seria o trauma da separação, descrito por Anzieu (1989) por meio da
fantasia masoquista de “pele arrancada”, que ocupa o psiquismo de certos sujeitos
sensíveis a questão da separação, por serem absorvidos pela fantasia da “pele comum”
(Anzieu, 1989).
Para esclarecer tal hipótese se faz necessária uma breve reflexão sobre a dor e
sobre o papel da pele na sua relação com o Eu.

1.2.6 Escarificação, dor, sofrimento e masoquismo.


Freud (1924/1996) postula a existência de tensões prazerosas e rebaixamentos
que são sentidos como desprazerosos pelo sujeito. Embora causem conflitos, os três
princípios de funcionamento do psiquismo coexistem, estando o princípio de Nirvana
ligado à redução quantitativa da energia, o princípio do prazer ligado a uma
característica qualitativa do estímulo enquanto o princípio de realidade visa o adiamento
da descarga e uma aquiescência temporária ao desprazer produzido pela tensão. A partir
dessa concepção, torna-se plausível a hipótese acerca da erotização da dor nos cortes ao
corpo, visto que a dor (aumento de tensão) não necessariamente é sentida como uma

26
elevação desprazerosa, segundo o princípio econômico exposto. Le Breton (2003)
chama a atenção para o fato de que a dor raramente é congruente com a lesão sofrida,
pois tanto o sentimento de sofrimento quanto as sensações dolorosas são moduladas por
aspectos subjetivos ligados a experiência.
Em relação a esse aspecto, torna-se plausível que o ato de agredir o próprio
corpo possa evocar o masoquismo erógeno (Freud, 1924/1996) ameaçando a auto-
conservação. O valor econômico da dor, remete à questão do masoquismo e merece
uma reflexão mais aprofundada no contexto da discussão sobre o significado e sentido
da escarificação.
A ideia de um masoquismo originário tem a coexitação libidinal como conceito
central, pois para Freud, o prazer e o desprazer configurariam sensações indiferenciadas
no começo da vida, em razão da não distinção efetiva entre a sexualidade e a dor
sentidas pelo recém-nascido. Tal indiferenciação, denominada coexitação libidinal,
tenderia a ser extinta ao longo do desenvolvimento, entretanto a não superação
satisfatória da coexcitação libidinal é também uma possibilidade que inaugura as bases
para permanência do masoquismo erógeno, caracterizado pelo sentimento de prazer na
experiência da dor (Green, 1993/2010).
Assim, Freud (1924/1996) introduz de forma complexa a sua ideia a respeito do
masoquismo, postulando ao masoquismo primário (ou originário) à origem a outros dois
tipos de masoquismo: a) o masoquismo feminino e b) masoquismo moral. Essa ideia
contraria a concepção exposta nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Freud,
1905), texto em que ele defende a ideia do sadismo como originário, que é mantido
como tal nos trabalhos posteriores Instintos e suas Vicissitudes (1915/1996), Uma
criança é espancada (Freud, 1919/1996) e Além do princípio do Prazer (1920/1996).
Neste último texto, Freud afirma: “pode haver um masoquismo primário” (Freud,
1920/1996, p. 75), não chegando a tomar essa posição como certa, o que só ocorre a
partir do trabalho de 1924 (Strachey,1962).
Entretanto, Freud (1924/1996), após a sua discussão sobre a pulsão de morte
(Freud, 1920/1996), altera a metapsicologia da questão do sadismo e masoquismo ao
recriar o percurso do sadismo, originado a partir do masoquismo primário.
Considerando que as pulsões estão sempre fusionadas (Freud, 1920/1996), a libido,
representante de Eros, carrega a função de impedir a autodestruição, o que ela faz
voltando a pulsão de destruição para fora. Essa pulsão é então voltada para os objetos
externos, se transformando em pulsão de domínio ou vontade de poder. Esse é o

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percurso do sadismo: o masoquismo primário é transformado em sadismo por meio da
ação da pulsão de vida que se funde a pulsão de morte e dirige a destruição ao ambiente
externo.
Nesse momento (Freud, 1924/1996), o masoquismo feminino, outro derivado do
masoquismo primário, apresenta-se pela expressão de uma natureza feminina, na qual o
sujeito (do sexo masculino) obtém satisfação das fantasias sexuais masoquistas por
meio de atos masturbatórios. Essas fantasias representam algo caracteristicamente
feminino como o desejo de ser castrado, de ser copulado ou dar à luz a um bebê, que
revelam o desejo inconsciente de ser punido como uma criança travessa que teme a
castração.
Já o masoquismo moral difere dos outros tipos, pois o sofrimento não precisa ser
causado pela pessoa amada, neste tipo de masoquismo não é necessário nem sequer que
uma pessoa seja colocada no lugar do carrasco, o próprio destino pode desempenhar
esse papel (Green, 1993/2010). Assim Freud (1924/1996) deduz a existência de uma
necessidade de punição nesses sujeitos, que a buscam nos objetos externos e na punição
do Superego dotado de uma ultra moralidade voltada a si próprio. De maneira geral, o
masoquista busca efetuar ações “pecaminosas” para ser punido, pois a culpa é anterior a
ação proibida, uma vez que remete à necessidade de punição (Freud,1919).
Portanto, Freud (1924/1996) afirma que o sofrimento e o prazer podem gerar o
mesmo resultado, pensamento já presente nos Três Ensaios sobre a Teoria da
Sexualidade: “nada pode acontecer de considerável importância no organismo sem que
contribua com algum componente para a excitação sexual” (Freud, 1905, p.210-211).
Em se considerando a concepção freudiana acerca do masoquismo, o problema
dos cortes no corpo é entendido de maneira distinta pelos autores que tratam sobre o
tema.
Le Breton (2003) marca a diferença entre prazer pela dor, descrito como
masoquismo primário (originário) e erógeno; o masoquismo moral, entendido como
prazer no sofrimento; e os atos das escarificações. Para esse autor, as escarificações
remetem menos ao masoquismo, em suas formas erógenas e moral, do que se referem
ao ato de se cortar para garantir a existência. Le Breton (2003) cita Anzieu (1989) para
defender a ideia de que sentir dor é condição de existência, pois para certos sujeitos
sentir dor ou sofrer é existir, “Sofro, logo existo” (Anzieu, 1989, p.235). Trata-se do que
Le Breton (2003) se refere como envelope de sofrimento, envelope narcísico decorrente
da falta de investimentos maternos na infância, que leva o sujeito a recuperar a unidade

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do corpo e suas barreiras por meio da dor. Dessa forma, a dor seria o preço a ser pago
para garantir a existência entre os limites dentro e fora, que são deficitários devido a
falhas nas bases narcísicas. Portanto, não se trataria no caso das escarificações de se
apegar ao sofrimento e obter prazer à partir dele, como ocorre no masoquismo moral,
mas de efetuar o caminho inverso, o ato de se cortar representa uma tentativa de
amenizar o sentimento de angústia. A dor da lesão e a cicatrização, a tensão que
permanece na pele e a visão da ferida acalmam o sofrimento, pois o freio da dor física
organiza o caos propiciando o sentimento de poder sempre controlá-lo, o que não ocorre
com o sofrimento. Assim, a dor é o custo da própria continuidade e apaziguamento do
sofrimento, uma vez que a escarificação não é nem uma tentativa de morrer, nem uma
forma de sofrer; ao contrário, é um ato que assegura a vida, sobretudo a vida psíquica,
como uma possibilidade real (Le Breton, 2003).
Anzieu (1989) aprofunda a questão do masoquismo ao propor a análise do
masoquismo pela ótica do Eu-Pele. O autor remete a noção de masoquismo, em suas
três formas, à ocorrência de mudanças abruptas, repetidas e, portanto, traumáticas,
relativas a excessos de estimulação ou privação do contato físico. Tais mudanças a que
o autor se refere seriam experienciadas precocemente, antes mesmo do domínio da
marcha, ao estádio do espelho e a fala. Nesse sentido, o masoquismo estaria
relacionado a excessivas satisfações e frustações que ocorrem no campo do contato com
o outro.
Além disso, para analisar o masoquismo sob a ótica fantasmática, Anzieu (1989)
relaciona a fantasia de corpo esfolado, de pele rasgada ao masoquismo. Para tanto, cita
casos de sujeitos masoquistas analisados, que apresentaram tais fantasias, similares ao
Mito de Marsyas. Para o autor, o fantasma masoquista seria constituído por duas
representações: a) a fantasia sobre a existência de pele única que une a mãe e o bebê
estabelecendo uma simbiose entre eles b) e a representação da separação, inerente a
autonomia do infante, como o rasgar de tal pele comum simbiótica, como única
possibilidade de ocorrência. A maior parte dos pacientes com fixações masoquistas
guardariam fantasias de fusão cutânea em relação ao objeto primário, sendo a separação
do objeto sentido como um rasgar da pele comum entre o sujeito e o objeto (Anzieu,
1989).
Assim, a fantasia de desmembramento do corpo é considerada por Anzieu(1989)
como uma tipo de fantasia frequente nas psicoses e, portanto, distinta da fantasia ligada
às escarificações. Haveria nas escarificações um tipo de gozo que não pode ser

29
reconhecido como tal pelo sujeito, cujo conteúdo seria a fantasia de uma pele rasgada.
Exatamente por não poder ser reconhecido, o gozo masoquista seria encenado em atos
cujo roteiro é permeado pelos ataques voltados contra superfície da pele. Esse ato de
inscrição de traços na pele revela os elementos da fantasia masoquista inerente a eles:
arrancar, esfolar ou cortar a pele, pois a separação do objeto é sentida como uma
violência que rasga a pele, no interior da qual o sujeito, em fantasia, o sujeito se
encontra fusionado com o objeto.
Já segundo Green (1993/2010), a agressividade surge como fator comum ao
masoquismo e ao sentimento de culpa, este último, é relacionado ao masoquismo moral,
pois, quando o Superego recebe as projeções destrutivas e se ocupa de fazer o sujeito
sofrer, fornecendo o sentimento de culpa e a necessidade de punição, pode-se conceber
a existência de um gozo masoquista (Green,1993/2010). Nesse caso, poderíamos pensar
em uma relação entre as escarificações e o masoquismo moral, onde os atos de cortar a
própria pele poderiam ser incluídos em circuito narcísico masoquista, no qual o sujeito
faz par, não com um outro eleito para desempenhar o papel de carrasco, mas com a
própria pulsão, satisfazendo a necessidade de punição. Como afirma Green
(1993/2010), a possibilidade de se dispensar a presença do objeto no masoquismo
moral, confere a esse tipo de masoquismo uma característica essencialmente narcísica.
As escarificações guardam em seu próprio ato, voltado ao corpo do sujeito, tal
essência narcísica, por meio da qual, o sujeito encena sozinho as cenas oriundas das
situações traumáticas, ocupando, a um só tempo, o papel de algoz e de vítima. Em se
adaptando as reflexões de Green (1993/2010) expostas acima, poderíamos hipotetizar a
existência de considerável grau de masoquismo moral nos atos de escarificação
patológica, o que nos levaria a inferir a existência de um sentimento de culpa existente
antes mesmo do ato de se cortar. Da mesma forma, poderíamos inferir certo grau de
centração narcísica nos casos de escarificação, pois um dos fatores que Green
(1993/2010) chama atenção é o fator narcísico presente no masoquismo moral.
Segundo Matha (2010) há nas escarificações um tipo de relação masoquista cuja
função é ligar os elementos clivados relativos às situações traumáticas; entretanto trata-
se de um masoquismo sem objeto, pois o sujeito ocupa os dois papeis previsto no jogo;
o polo sádico e o polo masoquista.
Independentemente da existência de traços masoquistas nos sujeitos que se
escarificam, o fator mais relevante exposto pela reflexão dos autores citados para os fins
do presente estudo, é a relação existente entre a dor, sofrimento e o narcisismo, pois o

30
sentimento de dor, o sofrimento e o narcisismo aparecem como questões centrais da
clínica da escarificação, o que torna necessário aprofundar a reflexão sobre a dor e o
sofrimento.
Segundo Anzieu (1989), a dor estabelece uma relação assimétrica oposta ao
prazer: se a satisfação, ligada a diminuição de tensão, é uma experiência, a dor é uma
provação que suspende as diferenciações, impossibilita a canalização da excitação,
abole os desnivelamentos entre os subsistemas psíquicos e se espalha por todo o
psiquismo. Portanto, enquanto o Eu permanece intacto na experiência do prazer, a dor
diminui as capacidades egóicas, amenizando as distinções entre o Eu corporal e o Eu
psíquico, assim como o faz com as diferenciações internas, entre o Isso, Eu e Superego.
Nesse sentido, o ato de cortar a própria pele, por meio do apagamento das distinções
entre o Eu-Corporal e o Eu Psíquico, transforma o sofrimento psíquico em dor corporal.
Matha (2010) evidencia a relação entre a dor provocada pelos cortes e o
sofrimento psíquico não elaborado, ao enfatizar a retração narcísica decorrente da dor.
Esse movimento narcísico transforma a dor psíquica em dor física possibilitando a
melhor contenção do sofrimento e facilitando os processos de ligação. A retração
narcísica decorrente da dor estabelece uma relação entre a dor provocada pelos cortes e
o sofrimento psíquico não elaborado. (Matha, 2010).
Ao contrário do prazer, a dor não se partilha, exceto quando erotizada, como
ocorre nas relações de cunho sadomasoquista, o que expõe a dimensão narcísica
presente nas sensações dolorosas (Anzieu, 1989). Freud (1920), também denuncia a
ocorrência de tal centração narcísica na experiência de sofrimento, ao afirmar que a
pessoa acometida por uma doença é momentaneamente incapaz de amar, pois sua libido
está temporariamente voltada para seu próprio Eu.
Entretanto, a defesa contra a dor pode ser compartilhada, caso a função materna
de fornecimento, ao infante, de capacidades ligadas a função protetiva e mantenedora do
Eu-pele possa ser internalizada por ele. O objeto primário tende a confortar o sujeito
que sente dor, maximizando as funções do Eu-pele de manutenção e continência, o que
torna possível que a criança introjete essas funções como objeto suporte e restabeleça o
Eu-Pele capaz de para-excitar, amenizar e transpor a experiência de dor para graus
toleráveis. Se a mãe pouco se comunica com o infante, ou caso o sujeito vivencie o
excesso da falta dessa comunicação, é possível que a criança se utilize da dor como
forma de captar a atenção, cuidado e amor da figura materna para si (Anzieu, 1989).
Assim, além de transformar o sofrimento psíquico em uma dor física, pela

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suspensão das distinções entre mente e corpo, o ato de se cortar tem a função de impedir
a separação entre o sujeito e o objeto primário, uma vez que a dor dos cortes e a visão
deles (a descoberta dos pais de que seu filho se corta não raramente se torna um
“escândalo”) capta a atenção e cuidado dos objetos primários, acionados pela
dificuldade do sujeito de separar-se de tais objetos, em decorrência de falhas na
internalização da função materna, ligadas as funções de manutenção, continência e para-
excitação do Eu-Pele.

1.3. As escarificações como tentativas de elaboração da separação em relação ao


objeto.
O presente trabalho lança a hipótese de que os atos de escarificação patológica
seriam tentativas de representação da difícil e ambivalente tarefa de separação do sujeito
em relação ao objeto primário; tarefa que compreende a internalização de barreiras que
delimitem o espaço interno e o espaço externo; assim como dependeriam da
internalização das funções primeiramente desempenhadas pelo objeto primário, a saber,
continência, para-excitação e manutenção. Tal tentativa seria dificultada pela
ambivalência no contato com o objeto; o sujeito sente-se sozinho na ausência do objeto,
porém sente-se invadido quando está na presença do objeto. A tentativa de separação é
dificultada pela fragilidade da constituição das bases narcísicas e das funções do Eu-
Pele, pois ou os limites estão muito frágeis, como ocorre nos casos limite, ou as
barreiras são demasiadamente investidas, conforme pode se observar nos estados
narcísicos (Anzieu, 1989).
Em razão desses fatores, o objetivo do presente trabalho é investigar a qualidade
do Eu-Pele e de suas funções, conceitos relacionados a questão da instauração de
barreiras que delimitam a diferenciação Eu- Outro, dentro e fora e internalização das
funções de continencia, manuntenção e para-excitação, desempenhadas pelo Eu-Pele.
Neste ponto, faz-se necessário aprofundar o que se entende por Eu-Pele, conceito
descrito por Anzieu (1989).

1.3.1 As Escarificações e o Eu-Pele.


A reflexão acerca das escarificações auto-infligidas remete a questão da pele,
pois para entendermos o significado do ato de cortar a pele, precisamos antes investigar
a função que a pele ocupa no psiquismo. Sabe-se que a pele é um órgão complexo e
extenso que protege as células por meio da imersão delas em várias camadas

32
subcutâneas preenchidas com fluídos, propiciando proteção necessária frente ao
ambiente. Além disso, a pele apresenta aparência variada e participa da regulação da
temperatura corporal (Carlson, 2002).
A função protetiva da pele é também considerada quanto a sua função psíquica;
o Eu-Pele é uma estrutura intermediária do aparelho psíquico que assume, entre outras
funções, o papel mediador entre a mãe e o bebê, impedindo assim a confusão de
psiquismos. A conceituação de Eu-Pele faz referência a uma representação psíquica da
pele, pois, em Psicanálise, parte-se do pressuposto de que a imagem do corpo não é
dada filogeneticamente, pois tal representação de corpo é resultante do processo de
desenvolvimento; o mesmo ocorre em relação a membrana que separa os órgãos
internos e ambiente, a pele, cuja representação foi denominada por Anzieu (1989) como
Eu-Pele, embora já tenha sido descrita por Freud (1923) como “envelope psíquico”.
Segundo Anzieu (1978), a internalização do Eu-Pele seria geneticamente anterior a
representação de imagem corporal, conforme descrita por Dolto como imagem
inconsciente de corpo, e por Schilder (1950) como esquema corporal, sendo anterior
também ao estádio de espelho, descrito por Lacan (1948/1998).
Assim a pele funciona como limite primordial, continente das sensações
interiores e exteriores e exerce uma função de para-excitação, ou seja, de amortecimento
ou diminuição das tensões oriundas de fora e de dentro, instaurando uma fronteira cuja
função é proteger o sujeito contra a agressão externa ou contra a tensão íntima. Nesse
sentido, a pele proporciona ao indivíduo a sensação de possuir limites que atestam sua
existência, ou, ao contrário, no caso dos limites da pele terem sido inscritos no
psiquismo de maneira insuficiente, a porosidade sentida em relação a pele pode deixar o
sujeito à deriva do sentimento de caos e desorganização, experimentando a
vulnerabilidade de estar “à flor da pele”. Além das funções citadas, o Eu-Pele comporta
as funções de inter-sensorialidade, sustentação da excitação sexual, recarga libidinal,
inscrição de traços e auto-destruição. (Anzieu, 1989).
A conceituação de Eu-Pele ajuda a pensar as escarificação, pois permite o
entendimento do recurso à pele como um ato que coloca em jogo, por meio da imagem
de um corpo cortado, as questões da diferenciação do espaço interno-externo (fronteira),
as modalidades de troca pelas quais a pele estabelece o papel de para-excitação. Além
disso, o recurso a pele busca a continência, graças a inscrição figurada que ocorre na
superfície corporal (Matha, 2010).
A pele é a tela onde projetamos uma identidade sonhada, como no caso da

33
tatuagem, do piercing ou de outras variadas formas de encenação da aparência corporal
presentes nas diferentes sociedades. Entretanto, a pele pode encarcerar uma identidade
insuportável que o sujeito deseja abandonar, tendo como testemunha as lesões corporais
deliberadas (Le Breton, 2003).

1.3.2 O desenvolvimento do Eu-Pele.


As primeiras experiências corporais do ser humano ocorrem no campo do contato
físico entre a pele do outro que desempenha as funções de cuidado e a superfície e
orifícios corporais do recém-nascido. É por meio do toque entre a pele do infante e a
superfície corporal materna, ou a pele de seus substitutos, que o recém-nascido inicia seu
contato com o ambiente. Mais especificamente, o primeiro contanto corporal do recém-
nascido se dá com o seio materno, objeto parcial responsável por suprir suas necessidades
fisiológicas ligadas a alimentação. Portanto, o seio é o primeiro objeto de investimento a
ser incorporado pelo aparelho psíquico arcaico do bebê e a primeira representação
psíquica a ocupar a mente do recém-nascido (Anzieu, 1989).
No seio dessa relação oral parcial com ao objeto primário, o infante
progressivamente desenvolve a noção de superfície corporal, o que se entende pela
representação psíquica da pele, denominada Eu-Pele (Anzieu, 1989).
O cuidado materno produz estimulações eróticas que são responsáveis pela gênese
de um tipo de prazer distinto da satisfação das necessidades, uma vez que a estimulação
do corpo do recém-nascido no decorrer dos atos de cuidado materno erotizam o corpo do
infante instaurando nele uma vida de desejos (sexual) distinta da vida de necessidade
(Anzieu, 1989). Assim a necessidade origina o desejo, fazendo surgir, a partir das pulsões
de auto-conservação, a pulsão sexual. (Laplanche, 1994).
Além da inoculação da sexualidade, as primeiras experiências do infante com o
objeto primário carregam também a função de estabelecer uma comunicação pré-verbal,
entre o objeto primário e o infante, comunicação responsável por informar o infante sobre
a excitação e significação. Portanto, da mesma forma que o cuidado materno produz
estimulações eróticas na epiderme do bebê, fazendo surgir a sexualidade, a maternagem
instaura também um jogo de comunicação: “uma massagem torna-se uma mensagem”
(Anzieu, 1989, p.60). Esse processo é importante para o aprendizado da fala, uma vez que
comunicação verbal depende de um certo grau de domínio sobre a comunicação pré-
verbal. Assim, as primeiras formas de comunicação pré-verbal ocorrem no campo de
contato entre as superfícies corporais da figura materna e do infante. É dessa forma que a

34
figura materna, ou seus substitutos, comunicam tanto informações inerentes as excitações
quanto comunicam significados ao infante. A comunicação é uma das funções instaladas
pelo Eu-Pele, por meio da inscrição de traços (Anzieu, 1989).
A partir do contato com a pele do objeto primário, a mãe ou seus substitutos, o
infante, progressivamente internaliza a existência de um espaço interno em relação a
superfície de seu corpo, como um lugar distinto em relação ao espaço externo à sua
superfície corporal. Essa percepção instaura as bases para a concepção, por parte do
infante, acerca da existência de um volume ambiental no qual ele está imerso e do qual
ele se distingue, por facilitar a compreensão sobre a existência de barreiras entre seu
próprio corpo e o ambiente. A introjeção da noção de superfície e de volume
possibilitam a internalização de uma representação de continente, como um espaço onde
é possível guardar as boas representações. A experiência sentida pelo infante em relação
aos orifícios corporais permite que ele estabeleça o senso de incorporação e expulsão,
internalizando o que é bom e expulsando o que é ruim, inaugurando os mecanismos
descritos por Klein (1937/1996) de introjeção (do objeto bom) e projeção (do objeto
mau). Esse processo está relacionado a representação arcaica das noção de volume
(espaço interno e espaço externo) e superfície (a representação da pele como uma
barreira de contato em relação ao mundo externo), pois, no caso da saúde, a ocasião de
contato corporal do infante com o corpo da mãe, facilitará que o bebê adquira a
percepção da pele como um superfície de contato, como uma representação de barreira
que funciona como uma para-excitação e estabelece a distinção fundamental entre o
infante e o ambiente no qual ele se encontra envolto. Assim, além da inscrição de traços,
o Eu-Pele desempenha, entre outros papeis, as funções de continência e de para-
excitação (Anzieu, 1989).
A construção desse envelope psíquico, representação da pele, ocorre no campo
da relação reconfortante de apego desenvolvida com figura materna. Trata-se de um
processo, que além de apenas permitir o estabelecimento de barreiras entre dentro e fora
da superfície corporal, permite também o domínio dos orifícios corporais e o
desenvolvimento da confiança sobre eles. Portanto, o Eu-Pele garante o sentimento de
integridade do envelope corporal (Anzieu, 1989), continuidade da existência do ser e
sentimento de habitar uma pele individual (Le Breton, 2003).
Como toda atividade psíquica ocorre por meio de uma atividade biológica
(Anzieu, 1989), a pele, como órgão biológico, se apresenta como objeto narcísico a ser
internalizado pelo aparelho psíquico como representação constitutiva do Eu e de suas

35
principais funções (Le Breton, 2003). Portanto, a pele é responsável por fornecer as
bases para fundação de uma instância de manutenção do psiquismo no aparelho
psíquico, tornando possível a segurança do sentimento de si e do sentimento de habitar
uma pele individualizada.
Entre as funções desempenhas pelo Eu-Pele, a representação psíquica da pele,
podemos destacar as funções de para-excitação e de continência. Por para-excitação,
entende-se a função de amortecimento das tensões vindas de fora e de dentro, proteção
que ocorre por meio das barreiras psíquicas protetoras do mundo interno em relação as
agressões exteriores constituídas por excessos de estimulação. Além disso, a
representação psíquica da pele, o Eu-Pele, protege o Eu, que é definido como um
precipitado de identificações (objetos introjetados), por meio da função de continência,
das pulsões potencialmente destrutivas oriundas do espaço interno e assim como as de
guarda das invasões externas. Portanto, a internalização de uma representação de pele, o
Eu-Pele, oferece o sentimento de possuir limites ao sujeito, tanto limites internos quanto
externos, que são responsáveis por garantir a segurança dos objetos internalizados. Esse
sentimento torna possível ao sujeito pensar sua existência de forma individualizada,
protegida e diferenciada do caos ambiental (Le Breton, 2003). Trata-se, na saúde, de
uma internalização do Eu-Pele que propicia a construção de um envelope de bem-estar,
mantido pelas funções de para-excitação e continência (Anzieu, 1989).
Assim, o desenvolvimento da noção de Eu-Pele é caracterizado pela
internalização da representação de um envelope narcísico de bem-estar, capaz de
propiciar a atividade ilusória e o espaço de pensamento. A sua construção depende tanto
do sujeito quanto depende que a outra face do envelope (o objeto primário) atue em
harmonia as necessidades do infante (Anzieu, 1989).
As falhas excessivas nesse processo de construção do Eu-Pele que resultariam,
em alguns casos, no estabelecimento de traços ligados ao masoquismo ou ao
narcisismo, ocorrem por meio da construção de um envelope de excitação e de
sofrimento no lugar da instauração da representação de Eu-Pele como um envelope de
bem-estar. Nesses casos, não haveria a separação satisfatória da área de contato na qual
ocorrem trocas diretas de excitações e significações entre o objeto primário e o infante,
o que resultaria na fundação da fantasia da pele rasgada ou ferida no masoquismo ou da
fantasia da pele invulnerável (dupla Superfície de contato) nas construções mais rígidas
compostas por traços narcísicos (Anzieu, 1989).

36
Na saúde, ocorreria a internalização de um Eu-Pele integro e eficaz no exercício
de suas funções, a ser internalizado pela ação do objeto primário que se ocuparia de
funcionar como um filtro de excitações ambientais para o infante, desempenhado o
papel da para-excitação, função a ser incorporada progressivamente pelo sujeito. Seria
criado, por meio desse processo, um continente seguro das invasões do mundo externo.
Entretanto, no caso das fantasias masoquistas ocorre o que Anzieu (1989) denomina de”
paradoxo do contato”, quando o objeto primário atua no sentido de estimular
excessivamente o lactante, causado nele sensações mais ou menos desagradáveis. Em
razão disso, no lugar da instauração de Eu-Pele, como um envelope do bem-estar,
constituído pelas funções de continente e para-excitação, se desenvolveria um outro tipo
de representação acerca do Eu-Pele, denominado envelope de excitação ou envelope de
sofrimento (Anzieu, 1989).
O resultado das constituições patológicas do Eu-Pele remeteriam a duas
possibilidades ligadas a representação da pele unitária da mãe e do bebê. No Eu-Pele
constituído pela vertente do sobreinvestimento narcisista, se desenvolveria a fantasia de
uma pele comum ligada a representação de uma pele invulnerável, enquanto na
possibilidade de Eu-Pele constituído sobre a vertente masoquista, a fantasia da pele
unitária estaria ligada a fantasias de pele rasgada ou ferida (Anzieu, 1989). Assim, as
escarificações estariam ligadas a falhas no processo de internalização da pele como
representação psíquica, instaurando a possibilidade de uma pele internalizada de forma
rígida a permitir poucas trocas com o ambiente, como ocorre nos estados narcísicos, ou
em uma representação de pele rasgada e esfolada que seria encenada nas escarificações
atuadas por sujeitos permeados por fantasias masoquistas.
Portanto se faz necessária a investigação da qualidade do Eu-Pele nos sujeitos que
se escarificam a fim de verificar a hipótese acima construída.

1.4. As escarificações e a adolescência.


Tendo sido marcada a especificidade da escarificação (os cortes na pele) em
relação aos demais comportamentos auto-mutilatórios (perfurações, tricotilomania,
queimaduras ou demais lesões feitas pelo sujeito em alguma parte de seu corpo), e em
comparação aos rituais coletivos de escarificações; tendo sido explorado as questões da
dor, sofrimento, masoquismo e narcisismo que as escarificações suscitam, chega-se ao
tempo de delimitar o que o presente trabalho entende como escarificações: As
escarificações são as perfurações ou cortes, uniformes e poliformes, superficiais ou

37
profundos; inscritos em formas de palavras, siglas, letras ou riscos, que marcam a pele
com cicatrizes. Os dados demográficos encontrados apontam que as escarificações são
descritas como o tipo mais comum de automutilação (Favazza & Conterio,1987), sendo
a adolescência o período da vida em que os comportamentos de automutilação são mais
frequentes (Duque & Neves, 2004), apresentando-se mais frequentemente em
adolescentes do sexo feminino (Cedaro, & Nascimento , 2013).
As escarificações são mais frequentes entre os adolescentes, tendem a se iniciar
no início da puberdade e se manter durante o período da adolescência, principalmente
caso o sujeito não seja submetido a tratamentos especializados (Favazza, 2011; Le
Breton, 2003; DSM-5, 2014).
Algumas questões típicas da adolescência estariam relacionadas ao fenômeno
das escarificações, a começar por um dos problemas típicos e centrais da adolescência, a
redefinição da identidade, a que a sexuação promovida pela puberdade unida as novas
demandas sociais típicas do tempo de adolescência forçam o sujeito a reelaborar.
A identidade é uma noção mutável, tida como representação fixa apenas como
mito ou ficção pessoal, uma vez que a representação de si e o sentimento ligado a ele
são elementos fluídos, em constante metamorfose. Mais do que uma entidade, a
identidade é, por essência, relacional e derivada de um discurso virtual elaborado pelo
sujeito a dissertar sobre si mesmo. Apesar de ser uma construção que jamais termina de
ocorrer, pela constante mudança do sujeito em relação ao mundo, sabe-se que o tempo
da adolescência é caracterizado por uma maior fluidez do sentimento e representação de
si, em se comparando a adolescência a outras épocas da existência (Le Breton, 2003).
A sexuação da puberdade demanda mudanças relacionais com os primeiros
objetos, assim como a mudança corporal pela qual passa o adolescente pressiona o
sujeito a realizar uma atualização de si mesmo (Drieu, Proia-Lelouey; Zanello, 2011).
As transformações pubertárias inauguram mudanças relativas ao complexo de Édipo e
às bases narcísicas. Nesse sentido, tanto as questões identitárias, descritas por Le Breton
(2003), quanto as funções do Eu-Pele de diferenciação, comunicação, para-excitação e
continente descritas por Anzieu (1989), estão relacionadas ao ato de escarificação,
(Matha, 2010) estão relacionadas ao trabalho da adolescência, uma vez que o tempo da
adolescência é marcado por um triplo trabalho de a) redefinição da imagem de si b) das
relações objetais e c) pelo trabalho de luto da condição infantil (Cardoso, 2011;
Emanuelly & Azulay, 2008).

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A escarificação na adolescência ocorre no tempo de redefinição das formas
corporais e do modelo de contato e responsabilidade em relação ao outro; mudanças que
podem provocar a desorganização do Eu, principalmente se as bases narcísicas tiverem
sido insuficientemente elaboradas no tempo de sua constituição. Portanto, pensar os
cortes que ocorrem na superfície do corpo, nos remete a considerar a pele como local de
contato com o mundo (Le Breton, 2010) e como lugar das primeiras comunicações em
relação ao objeto primário (Anzieu, 1989). Se o adolescente tem pela frente a laboriosa
tarefa de construção de uma nova pele, e se o corpo é o campo no qual e por meio do
qual ocorrem as mudanças identitárias, os cortes na pele devem ser pensados pela lógica
das tentativas dos adolescentes de se diferenciar do mundo. Alguns sujeitos são capazes
de se diferenciar e definir a si mesmo pela modificação corporal (piercings, tatuagens,
cortes de cabelo), pois as formas de alteração corporal visam mudanças na forma de se
colocar em relação ao mundo. O mesmo pode ser pensado acerca dos cortes do corpo,
com a distinção de que no caso das escarificações é a representação de si ligada a afetos
negativos que é projetada em ato na pele (Le Breton, 2003).
Por outro lado, pode-se também pensar as escarificações na adolescência como
formas de traumatofilia; as bases narcísicas construídas de forma frágil na infância, não
são capazes de funcionar em sua função para-excitante, transformando os eventos
inerentes a adolescência, como a separação do objeto primário, o luto pela infância e a
ativação sexual, em elementos traumáticos, por ultrapassarem as barreiras de elaboração
disponíveis. As falhas nos limites internos dificultariam ainda a elaboração dos traumas
infantis. O resultado desse processo seria a representação das situações traumáticas por
meio do ato de se cortar (Drieu, Proia-Lelouey,; Zanello, 2011; Matha, 2010).
O objetivo do presente trabalho é o estudo do fenômeno das escarificações na
adolescência e sua relação com a qualidade das bases narcísicas, em especial, em
relação ao Eu-Pele e suas funções, conforme o conceituado por Anzieu (1989), por meio
do método de Rorschach.

39
CAPÍTULO 2

O EU-PELE NO MÈTODO DE RORSCHACH.

2.1. A apreciação do narcisismo segundo a abordagem francesa do Rorschach.

Conforme exposto no capítulo anterior, a evolução do narcisismo se dá a partir


das primeiras comunicações entre infante e objeto primário (mãe ou seus substitutos) e
resulta na internalização da representação da pele pela via de constituição de um Eu-
Pele. Essa representação embasa a construção e internalização das aquisições narcísicas
posteriores, como a imagem de corpo e a representação de si. A internalização da noção
de Eu-Pele fornece os processos elementares para o estabelecimento das fronteiras
psíquicas entre o dentro e o fora, assim como propiciam as bases para a instauração de
barreiras internas e para manutenção da unidade corporal e psíquica. No tempo da
adolescência, o processo pubertário põe à prova a qualidade e efetividade de tais
organizações narcísicas, por conta do excesso pulsional desencadeado pela emergência
violenta da puberdade. Esse processo tende a transbordar as capacidades egóicas do
adolescente ao desestabilizar as defesas anteriormente estabelecidas (Drieu, Proia-
Lelouey, Zanello, 2011). O processo de ligação do excesso pulsional oriundo da
puberdade, dependerá, em grande parte, da capacidade de reelaboração das
organizações defensivas e será tanto menos tortuoso quanto maior for a qualidade
efetiva das organizações narcísicas instituídas anteriormente (Le Breton, 2003).
Portanto, a adolescência é o tempo de lançamento de novas injunções, sociais e
psicológicas. Entre as novas demandas psicológicas suscitadas pela emergência
pubertária, é relevante citar o trabalho de redefinição si mesmo e do outro, a ser
empreendido pelo adolescente que, além das reelaborações narcísicas e objetais citadas,
há de se deparar com o trabalho de luto da infância a ser elaborado durante o tempo da
adolescência (Cardoso, 2011). Nesse período, a desestabilização das defesas e o
transbordamento do pulsional decorrente da puberdade estaria relacionado às diversas
patologias do agir, entre elas, as escarificações. Mais especificamente, a escarificação
indicaria certo grau de patologia do Eu-Pele e de falhas em suas funções, conforme a
hipótese lançada no capítulo anterior.
A configuração e os níveis de comprometimento do Eu–Pele pode ser analisado
por meio das técnicas projetivas em particular pelo método de Rorschach. Em razão
disso, se faz importante o levantamento dos indicadores de Rorschach ligados a

40
avaliação do narcisismo e apreciação do Eu-Pele, segundo o método proposto pela
abordagem francesa (Chabert, 1993, 1998; Traunbenberg 1970, Anzieu, 1978).
As pranchas de Rorschach funcionam como elementos mediadores entre o
clínico e o sujeito respondente, criando-se um espaço transicional entre os dois
(Chabert, 1998; Kallas, 2012). Assim, por meio do método de Rorschach, é possível
avaliar a capacidade de simbolização do sujeito, que é convidado pela instrução a se
utilizar de sua capacidade de mediação e de criação (Roman, 2001). Ao seguir a
instrução dada pelo examinador, o sujeito é convidado a adotar uma atitude
“semântica”, de emissão de significados a partir das manchas disformes apresentadas.
Em outras palavras, o sujeito elabora (significa) o que poderiam ser as manchas de tinta,
fornecendo assim o material, verbal e não verbal, que será avaliado pelo clínico
(Anzieu, 1978). Dessa maneira, é possível ajuizar sobre o grau de invasão da
imaginação sobre o processo perceptivo e sobre o nível de distorção do processo de
significação em relação ao grupo social no qual o indivíduo está inserido (Chabert,
1998). Esse aspecto propicia a avaliação de alguns fatores importantes; dentre eles a
apreciação do grau de adaptação em relação à realidade consensual e a avaliação da
qualidade e efetividade das barreiras, internas e externas.
Em relação a apreciação da organização narcísica, as manchas evocam
inconscientemente a representação do corpo do sujeito, sendo as respostas dadas
passíveis de serem classificadas de acordo com o estágio evolutivo específico em que
ocupa tal imagem corporal projetada (Anzieu, 1978). Esse fenômeno propicia a
avaliação do narcisismo do sujeito avaliado, uma vez que a configuração unilateral das
pranchas (I, IV,V,VI) organizadas em torno de um eixo central, suscita a projeção da
representação de si, evidenciando a qualidade das organizações narcísicas do
examinando. Por outro lado, as pranchas de configuração bilateral (II, III, VII,VIII, IX)
fornecem indícios sobre a qualidade das relações de objeto; domínio que também dá
indícios sobre a qualidade da organização narcísica. Além disso, a avaliação da
capacidade de diferenciação do sujeito em relação ao objeto e da possibilidade de
identificação com conteúdos humanos e a operação de distinção sexual das figuras
vistas em interação, auxiliam o clínico a esclarecer a capacidade de identificação e o
consequente grau de coesão egóica do examinando (Chabert,1998).
A análise prancha a prancha se mostra útil para a avaliação das questões
narcísicas do examinando, pois propicia ao clínico a apreciação das respostas e a análise
da qualidade dos envelopes psíquicos e representações corporais projetadas em torno do

41
eixo central, nas pranchas unilaterais. Além disso, o clínico pode ainda utilizar as
respostas fornecidas nas pranchas bilaterais para apreciar a organização narcísica, por
meio da análise da qualidade dos limites e da natureza das relações desempenhadas
pelos personagens representados nessas pranchas. Nesse sentido, as imagens vistas em
reflexo ou duplo, os chamados desdobramentos, são elementos importantes para a
avaliação da qualidade da organização narcísica (Chabert, 1993).
As respostas fornecidas tanto nas pranchas bilaterais quanto nas pranchas
unilaterais propiciam ainda a apreciação da organização defensiva utilizada pelo sujeito
(Anzieu, 1978).

2.2 A apreciação das defesas narcísicas por meio do método de Rorschach.

O investimento narcísico pode tanto ser patológico quanto apresentar uma


conotação positiva e protetora; no caso da saúde, os investimentos libidinais no si
mesmo garantem a manutenção das representações ligadas as barreiras que delimitam o
mundo interno e atestam a distinção entre o espaço interno e o espaço externo. Ao
mesmo tempo em que a organização narcísica saudável garante suficientemente a
coesão egóica, o grau suficiente de investimento no si mesmo garante a permeabilidade
necessária para a realização das trocas entre o sujeito e o ambiente. Por outro lado, os
investimentos narcísicos patológicos, tendem a sobreinvestir as barreiras intrapsíquicas
e delimitadoras da distinção entre dentro e fora, as transformando em limites
intransponíveis, em membranas impermeáveis; ou ao contrário, tendem a ocorrer com
importante falência em efetuar a manutenção dos limites (Chabert, 1993).
Sobre as manifestações patológicas do narcisismo, Anzieu (1989) propõe a
consideração de um diagnóstico diferencial em relação aos quadros de narcisismo
patológico: distingue o paciente narcísico (estado narcísico) dos chamados casos limite.
O estado narcísico busca a abolir o espaço entre as barreiras internas e externas,
sobreinvestindo as barreiras externas, o que resulta na solidificação das barreiras
externas e na diminuição do espaço de trocas em relação ao ambiente. Trata-se de uma
tentativa de autossuficiência, de apagamento dos traços do desejo e de tentativas de
abandono da dependência do objeto externo. Apesar disso, a relação continente e
conteúdo é preservada, mesmo a um custo psíquico a ser pago devido ao
sobreinvestimento das barreiras que delimitam o dentro e o fora e diminuem as trocas
com o ambiente (Anzieu, 1989)

42
Já nos casos limites, a barreira interna, que marca a fronteira entre as instâncias
psíquicas e entre o inconsciente e o consciente, e a barreira externa, que marca a
distinção entre o espaço interior e o espaço exterior, se fundem, formando uma só
barreira, semelhante ao modelo geométrico do anel de Möebius1, no qual as barreiras
são formadas apenas por uma faixa, não havendo distinção entre o dentro e o fora. Tal
organização dos casos-limite tende a ser caracterizada pelas patologias do Eu-Pele e
pela perturbação dos processos do pensamento (Emmanuelly; Azoulay; Bailly-Salin;
Martin, 2001).
Os funcionamentos patológicos narcísicos são mantidos pela utilização de
defesas que, ou garantem o sobreinvestimento dos limites e diminuem os espaços de
troca, típico dos estados narcísicos, ou efetuam os processos de apagamento das
distinções, conforme ocorre nos casos limite. Entre tais mecanismos, alguns deles
podem ser identificados por meio do método de Rorschach; entre eles podemos citar a
idealização, a clivagem, a identificação projetiva e os processos envolvidos no
congelamento pulsional que visa o “isolamento esplendido” ou a autossuficiência
buscada pelos sujeitos nos quais há a incidência do narcisismo patológico (Chabert,
1993).
Sobre a idealização, este fenômeno descrito como uma defesa narcísica, tanto
em seu aspecto positivo (a idealização propriamente dita), quanto em seu aspecto
negativo (a depreciação), pode ser percebido pela análise da relação estabelecida entre o
examinando e o clínico durante a situação projetiva, assim como pelo padrão de
respostas no Rorschach. No primeiro caso, a extrema sedução do examinando dirigida
ao examinador é excluída de conotação sexual, pois se trata de empreender um tipo de
relação na qual o sujeito e o objeto são indistintos e encontram-se identificados, tendo a
idealização (ou a depreciação) função de estabelecer a não diferenciação entre os dois.
O teste e o clínico podem ser elogiados e serem colocados à altura da grandeza sentida
pelo paciente acerca de si próprio, assim, como o teste e o clínico podem ser
depreciados sendo colocados no mesmo patamar negativo a que o sujeito coloca suas
considerações sobre si. Quanto às manifestações da idealização nas respostas, pode-se

1
O anel de Moebius é uma figura geométrica unilateral cujo formato final é similar à forma de um oito.
Sua construção se dá pela torção de um retângulo no sentido longitudinal, seguida da junção de suas
arestas, o que resulta na criação de um tipo de anel no qual não há distinção entre a face interior e o lado
exterior, constituindo-se, portanto, em uma figura geométrica de continuidade perfeita. Portanto, anel de
Moebius é composto por uma banda apenas, sem frente, nem verso, possuindo um único lado. Tendo sido
primeiramente estudado por Ferdinand Moebius em 1861, o anel de Moebius foi introduzido na
Psicanálise por Jaques Lacan ( Ávila, 1997).

43
considerar como tais os fenômenos ligados a percepção de objetos idealizados ou
depreciados sejam eles representações humanas, animais, vegetais ou objetos (Chabert,
1993; Kallas, 2012).

No Rorschach, as respostas compostas por perceptos humanos ou para-humanos


seguidos de representações opostas como, por exemplo, 1. “Um anjo” 2. “Um demônio”
na prancha I, em uma mesma resposta ou em respostas subsequentes, revelam a
incidência de mecanismos de clivagem (Kallas, 2012). Trata-se de uma alternância de
representações boas ou idealizadas seguidas da representação do objeto mau, ou vice e
versa. A clivagem pode ainda aparecer ligada a uma única percepção, como no exemplo
a seguir: Pr X. “Isso me lembrou meu pai, as cores, às vezes ele é meio alegre, as vezes
ele é meio chato. Mas tem sua parte boa” (Sujeito 1 da presente pesquisa). Em relação
aos modos de apreensão, as respostas G vagas, impressionistas ou inarticuladas podem
ser indicativos de clivagem. Já em relação aos determinantes, as respostas K nas quais o
investimento é idealizado ou desvalorizado, ou exclusivamente K ativo ou unicamente
K passivos, sem a integração do valor atribuído e a qualidade do movimento (ativo e
passivo) podem indicar a utilização da clivagem. Os protocolos compostos por F+
seguidos de abruptas quebras de padrão caracterizadas pela emergência dos processos
primários, também podem ser indicadores da incidência de mecanismos de clivagem
(Chabert, 1993). Neste tipo de resposta a assimetria real ou projetada nas manchas é
usada para atribuir a natureza oposta às percepções, o que indica uma dificuldade de
integração do objeto em seus aspectos positivos e negativos (Passalacque; Gravenhorst,
2005). Os mecanismos de clivagem resguardam os conteúdos psíquicos por meio da não
integração e pela separação radical entre os objetos bons e os objetos persecutórios, em
um procedimento que protege o objeto bom da invasão ou ataque fantasmático do
objeto mau e das pulsões destrutivas. A utilização desse procedimento resulta em uma
visão dicotômica em relação ao ambiente, no qual os objetos só podem ser percebidos
como excessivamente idealizados, por um lado, ou desvalorizados em excesso. Os
mecanismos de clivagem costumam ser acompanhados dos mecanismos de
identificação projetiva (Chabert, 1993).
Ao mesmo tempo em que a utilização da identificação projetiva revela a
incidência dos mecanismos de clivagem e de necessidade de controle do outro; a
identificação projetiva também revela falhas nos limites dentro e fora, sujeito e objeto,
que podem ser inferidas pela tendência do sujeito em se misturar com o objeto. A

44
distinção entre projeção e identificação projetiva se faz exatamente pela incapacidade,
do sujeito que se utiliza frequentemente de identificações projetivas, de estabelecer as
barreiras que delimitam o sujeito e o objeto, uma vez que esses limites são abolidos na
identificação projetiva. Portanto, na identificação projetiva, a atividade projetiva é
maciça escapando aos aspectos ligados à realidade do objeto, pela via da
desconsideração do objeto e de sua realidade. Em razão das falhas nos limites dentro e
fora presentes nos sujeitos que se utilizam desse mecanismo, sua aparição no Rorschach
tende a ocorrer nos casos-limite, em detrimento dos casos narcísicos, nos quais as
defesas rígidas e as barreiras dentro e fora impermeáveis costumam evitar sua
emergência. No Rorschach, a identificação projetiva pode ser identificada nas respostas
nas quais há a evocação de personagens (H, (H), (A), A) persecutórios seguidos de
determinantes kp, ou ainda em respostas clivadas, divididas, nas quais aparecem
conteúdos ligados a agressividade oral: dentes, maxilares, por exemplo (Chabert, 1993).
A tentativa de congelamento pulsional é outro indicador de defesas narcísicas
patológicas, pois visa o apagamento do desejo e o desinvestimento do próprio
investimento (Green, 1988/2010), a fim de alcançar a autossuficiência e independência
em relação ao meio e ao objeto. No Rorschach, as respostas nas pranchas II e III,
principalmente, as respostas marcadas pela tentativa de rejeição da utilização da cor
vermelha podem indicar defesas que visam abolir a pulsão e o objeto, funcionando
como defesas contra as pressões internas e externas. Nesse tipo de procedimento se
destacam as respostas G cortado (eliminação das partes vermelhas das pranchas), a não
associação da parte vermelha em relação aos representantes pulsionais e a atitude de
negação em relação ao impacto da cor vermelha. Pelo contrário, a dificuldade de
formalização dos perceptos vistos nas pranchas II e III, assim como a emergência de
respostas sensoriais não moduladas (C, E, C´, Clob) podem indicar dificuldades de
contenção das emergências pulsionais e(ou) falhas na função Eu-Pele de para-excitação
(Chabert, 1993; Kallas 2012).
As respostas nas pranchas de cor pastel (VIII, IX e X) causam reações ligadas as
relações estabelecidas entre o sujeito e o meio. Por um lado, em se tratando de limites
confusos e barreiras pouco estáveis, a patologia pode ser indicada pelos fortes impactos
suscitados pelas pranchas, causando desorganizações invasivas que não podem ser
elaboradas. Esse fenômeno pode ser identificado pela ocorrência de localizações pouco
organizadas, cenas regressivas, respostas C ou CF (Kallas, 2012). Por outro lado, a
recusa da utilização da cor, diminuição do índice RC% nas três pranchas finais parecem

45
indicar sobreinvestimento dos limites e consequente diminuição das trocas em relação
ao meio.

2.3 Indicadores da qualidade das barreiras no Rorschach: As respostas “pele” e o


sobreinvestimento dos limites.

A análise das respostas “pele” propicia aferir-se sobre a qualidade da pele


psíquica do sujeito quanto ao grau de permeabilidade dos limites e eficácia adaptativa
das barreiras (Chabert,1998). Por resposta “pele”, classificam-se todas as respostas, H,
A, Obj, Vest, entre outros conteúdos, que façam referência a existência de um envelope
ou conteúdo, revestido por barreiras que delimitem as fronteiras com o espaço externo,
criando um espaço interno. Portanto, as respostas “pele” permitem a generalização da
qualidade do envelope percebido na mancha para a apreciação da qualidade do envelope
psíquico e de sua superfície, o Eu-Pele. Em níveis quantitativos, o aumento das
respostas pele pode indicar relevante grau de fragilidade dos limites entre o dentro e o
fora (Chabert, 1993; Linhares; Pinheiro, 2009; Emmanuelli; Azoulay, 2008).
As respostas “pele” podem ser classificadas segundo o índice barreira e
penetração (Fischer & Cleveland, 1958), que indicam a capacidade do sujeito de
estabelecer limites suficientemente permeáveis em relação ao meio, a ponto de
favorecer o estabelecimento de relações de objeto não invasivas e, ao mesmo tempo,
permeadas pelo reconhecimento do outro. Portanto, o índice de barreira e penetração
permite a apreciação do grau de solidez/vulnerabilidade dos envelopes psíquicos
(Frédérick-Libon, 2005). Como barreira, são classificados perceptos que fazem
referência a roupas, todas as peles ou superfícies de animais nas quais a) a pele é
enfatizada em detrimento da percepção da cabeça do animal, b) as características da
pele são enfatizadas (ex. “pele dura”) ou caso c) sejam mencionadas criaturas com
carapaças duras (exceção de lagosta ou caranguejo, considerados como resposta barreira
apenas caso sejam percebidos apenas suas carapaças). Além disso, são respostas
classificadas como barreira as aberturas contidas na terra (ex. “vale”); os continentes
incomuns percebidos em representações humanas ou animais (ex. “mulher grávida”); as
superfícies sobrepostas protetoras (ex. “escudo”); os elementos escondidos ou
encobertos (ex. “pessoa escondida por algo”); os objetos compostos por superfícies
dotadas de característica especial de contenção (ex. “gaita de fole”); alguns tipos de
edifícios (ex. “fortaleza”); os elementos com armaduras ou objetos que dependam
excessivamente de suas paredes para proteção, como “tanque de guerra” ou “cavaleiro

46
de armadura”, por exemplo (Gerencer, 2012; Wolff, 2012). São ainda respostas
barreira, os perceptos H ou (H), caracterizados por sua função ou por sua segunda pele,
como palhaços, robôs, entre outros (Chabert, 1993). São cotadas como respostas
penetração as respostas que remetam as falhas na superfície do engrama percebido,
frequentemente visto como rasgado, esburacado e falho em sua função de proteção do
envelope (Chabert, 1993). Assim, as imagens que remetem a penetração, a orifícios de
passagem, as superfícies frágeis, as aberturas profundas na terra e aberturas em geral,
assim como as respostas em referência a objetos sem limites (algodão; nuvem) ou
compostos por superfícies transparentes, são classificadas como respostas penetração
(Gerencer 2012; Wolff, 2012).

Em resumo, trata-se de classificar os conteúdos ligados as percepções de


esconder-se; cobrir-se; ou respostas que delimitam espaços, ou ao que está grudado ao
corpo (jóias); ou que possui qualidade particular relacionada a superfície, como
respostas barreira. Por outro lado, as respostas referentes a limites transparentes,
estragados ou prejudicados e conteúdos compostos por limites vagos são classificados
como respostas penetração.
A norma sugerida por Fisher e Cleveland (1958) é de quatro respostas barreira
para duas respostas penetração (4B: 2P), como indicador de boa solidez das barreiras.
Entretanto, na adolescência, o valor normativo tende a se encontrar aumentado em torno
da ordem de oito respostas barreira para quatro respostas penetração (8B: 4P), segundo
a norma utilizada na França por Emmanuelli e Azoulay (2008). Caso os índices de
barreira estejam aumentados em relação a norma e em proporção exagerada em relação
as respostas penetração, pode tratar-se de barreiras demasiadamente investidas que
dificultam as trocas com o meio. A diminuição geral dos índices de respostas barreira e
penetração, caso se mostrem abaixo da norma (B:P<4:2), indica a fragilidade das
barreiras que pode ser compensada pelo recurso a rigidez, pela inibição ou até mesmo
não ser amenizada por recursos defensivos. Por último, o aumento das respostas
penetração em relação à norma indica fragilidade dos limites. Existe forte correlação
positiva entre as respostas K e o índice barreira e entre as respostas C e a cotação de
resposta penetração; fator que está de acordo com a avaliação das respostas formais
(F%; F+; F+%ext.) em relação ao bom estabelecimento de limites (Emmanuelli;
Azoulay, 2008). Conforme veremos a seguir na Tabela 2.1.

47
A formalização e a qualidade formal das respostas também é um importante
indicador da qualidade do envelope psíquico e do Eu-Pele, uma vez que os índices F% e
F+% e F+%ext. em nível normativo atestam o grau de capacidade e qualidade dos
limites. Tratam-se de índices que revelam a eficácia do sujeito em destacar o percepto
do restante da prancha, pela via da formalização. Ao contrário, as respostas F-, assim
como outros determinantes de qualidade formal negativa, indicam falhas no processo de
delimitação e diferenciação, pois, de modo geral, os índices F%, F+%ext. e F+%
propiciam a avaliação do nível de diferenciação que o sujeito é capaz de estabelecer em
relação ao objeto. Esses são importantes indicadores da capacidade de delimitação do
dentro e fora; sujeito e objeto; pela via da construção de uma barreira psíquica, o Eu-
Pele (Chabert, 1993). De forma similar, as respostas não moduladas (CF e C) indicam
falhas no processo de diferenciação (Emmanuelli; Azoulay, 2008) e falhas na função de
para-excitação do Eu-Pele (Linhares; Pinheiro, 2009).
A Tabela 2.1 expõe, de forma geral, os indicadores de patologia, caracterizada
pelo superinvestimento dos limites ou, pelo contrário, pela fragilidade dos limites; e de
saúde, caracterizados pelo grau suficiente de investimento narcísico que garante a
manutenção das barreiras responsáveis por delimitar o mundo interno e garantir a
distinção adaptativa entre o espaço interno e o espaço externo.

Tabela 2.1. Indicadores do investimento dos limites no Rorschach na patologia e na


saúde
Indicador Patologia Saúde
Resposta De modo geral, de qualidade formal De modo geral, de qualidade formal
“Pele” negativa ou em frequência positiva e em frequência normal.
aumentada.
B:P 8B<4P; 8B>4P ou B:P<8:4 8B:4P
F+%; F+%; Frequência maior ou menor que os Frequência próxima ao valor
F+%ext. valores normativos. normativo.
Conteúdos Frequência de Hd e Ad superior aos Frequência de respostas H e A
dados normativos; H<Hd e A<Ad. próximas ou superiores aos dados
normativos e H>Hd e A>Ad
Fonte: Chabert, 1993; Emmanuelli; Azoulay, 2008

48
2.4 Indicadores da qualidade das funções do Eu-Pele.

Alguns elementos no Rorschach podem indicar a qualidade do Eu-Pele e de suas


funções, principalmente de suas funções de manutenção, continência e para-excitação.
Antes de apontar tais elementos, se faz necessária uma breve apreciação dos conceitos
relativos às funções do Eu-Pele.
A função de manutenção se origina da internalização da função de holding
(Winnicott, 1962/1970) desempenhada pela mãe em relação ao seu bebê, e remete a
internalização pelo sujeito da continuidade (manutenção) das noções de psiquismo e de
corpo em sua solidez e continuidade, a partir da internalização do suporte oferecido pelo
objeto primário. Já a função de continência se desenvolve a partir da função de handling
(Winnicott, 1962/1970), pelas experiências táteis e sonoras, que, partindo de uma
fantasia de pele comum, desenvolvem a noção de Eu-Pele como superfície corporal
individual e delimitadora de um espaço continente, que serve de receptáculo de
conservação dos afetos, imagens e sensações do bebê. Ligada à função de continência,
há também a função contentora, caracterizada pelo papel de transformação dos
conteúdos, segundo a concepção de Bion (1962/1991) sobre a função alfa. A função de
contentor ocorre a partir da internalização da função rêverie. No desempenhar dessa
função de rêverie, a mãe traduz as identificações projetivas do infante, transformando
imagens, sensações e afetos em elementos representáveis. Na saúde, o sujeito internaliza
a função de reveriê, inicialmente desempenhada pela figura materna, incrementando as
suas possibilidades de transformação de elementos beta em elementos alfa (Bion,
1962//1991), de tradução de elementos não representáveis em elementos representáveis
(Anzieu, 1989). Por sua vez, a função de para-excitação do Eu-Pele ocupa o papel de
proteger o espaço interno das invasões dos estímulos externos. O Eu-Pele desempenha
ainda a função de individuação de si (sentimento de constituir um ser único e
diferenciado do meio), de intersensorialidade, excitação e recarga libidinal e de
inscrição de traços (Anzieu, 1989). A noção de Eu-Pele pode se apresentar falha em
alguns sujeitos, mais próximo de uma representação de pele psíquica permeada por
buracos em sua superfície. Alguns elementos fornecidos por meio do Rorschach podem
ser indicadores do “Eu-Peneira” ou “Eu-Escorregador”, a representação de Eu-Pele
falha em suas funções de manutenção e contenção. Entre esses indicadores, podemos
citar no Rorschach: o uso de determinantes formais que falham em sustentar o
estabelecimento de um conteúdo psíquico (F-% aumentado em relação a norma), e a

49
invasão pela sensorialidade da prancha, caracterizada pela dificuldade em efetuar a
delimitação e integração das partes coloridas da prancha. No mais, quando o psicograma
é caracterizado pela preponderância de respostas de Cor pura sobre as respostas de cor
modulada (FC<CF+C), ou quando há a ocorrência a de respostas de C pura nas
pranchas II e III em percepções cruas (Ex.” sangue” Pr II ou III) pode-se pensar em
falhas no Eu-Pele, relacionadas as deficiências das funções de continência e
manutenção. Além disso, essas falhas podem ser indicadas pela análise das cinestesias:
as respostas cotadas como (kob), relacionadas a elementos destrutivos, explosivos ou de
conatação agressiva, assim como as cinestesias (K ou kp) dotadas de aspectos
persecutórios ou agressivos, por um lado, e as cinestesia regressivas, ligadas a
dependência, representantes de relações fusionais ou simbióticas (Kallas, 2012), que
remetam a separação pela via da violência e que podem indicar falhas nas funções do
Eu-Pele de continência e manutenção.

2.4.1. Indicadores da qualidade da função de manutenção do Eu-Pele.

Em relação a função de manutenção do Eu-Pele, fazemos referência ao grau da


capacidade do sujeito em sustentar uma representação unificada de um envelope
corporal dotado de solidez (Anzieu, 1989). No Rorschach, as respostas que utilizam o
eixo central das manchas podem ser avaliadas em seu papel de suporte (manutenção);
pois o eixo central pode apresentar-se como um suporte efetivo aos engramas do
percepto (eficácia da função manutenção) demonstrando a solidez do envelope psíquico
b) pode apresentar-se como um suporte dividido por duas ou mais representações c)
pode indicar os mecanismos de clivagem e falha da manutenção (Linhares; Pinheiro,
2009).
As respostas G elaboradas e as respostas D íntegras associadas à boa qualidade
formal podem revelar certo grau de eficácia no desempenho da função de manutenção
do Eu-Pele, assim como pode ser traduzido pelas respostas K, quando bem vistas, por
propiciar o procedimento de projeção de movimento ao percepto, e, ao mesmo tempo,
garantir a manutenção da qualidade formal dos engramas percebidos no eixo central da
mancha. Ao contrário, os indicativos de normopatia no psicograma (F% e F+%
elevados; alinhados a um número excessivo de respostas banais) podem indicar
patologia da função de manutenção, ao cristalizar e constringir os elementos por meio
de defesas demasiadamente rígidas, ao invés de efetuar o suporte ou manutenção. Esse
fenômeno também pode ocorrer pela via da desvilatalização dos perceptos e do

50
congelamento pulsional. Além desses fatores, a disfunção da manutenção pode ser
indicada pela dificuldade de distinção da figura fundo e pela utilização dos espaços
brancos intramaculares sem a devida integração (Linhares; Pinheiro, 2009; Roman,
2001).
A confusão de detalhes e a tendência de unir várias percepções em uma só parte
da prancha, comprometendo a qualidade formal, podem ser indicadores de falhas na
função de manutenção, em um processo no qual sua manifestação extrema é indicada
pela incidência do fenômeno especial de contaminação. O fenômeno da contaminação
se refere a uma telescopagem de duas percepções que se apresentam fusionadas em
uma, em razão da não manutenção do engrama percebido. Embora seja mais comum de
ocorrer em uma só prancha, a contaminação pode ocorrer em pranchas diferentes. Sabe-
se que a contaminação, assim como a tendência a contaminação, além de indicar
classicamente falhas de pensamento, indica tanto a dificuldades na função de
manutenção, quanto se refere a falhas na função de continência (Linhares; Pinheiro,
2009; Frédérick-Libon 2005 ; Passalacqua; Gravenhorst, 2005).
As contaminações são divididas em três classes: a. A contaminação de grau 1 ou
contaminação verdadeira, na qual o sujeito se utiliza de neologismos e se mostra
incapaz de separar as duas percepções (ex. Pr I “mulher-pássaro”); b. A contaminação
de grau 2, na qual ocorre a fusão das qualidades, não dos conceitos; c. A contaminação
de grau 3 (tendência a contaminação ou contaminação atenuada), na qual os conceitos
se unem, porém sem a fusão dos engramas percebidos que são vistos de forma como
diferenciada, como o exemplificado pela seguinte resposta na prancha IV: ”Um
mosquito, dois chifrinhos, duas perninhas, as asas” (Linhares; Pinheiro, 2009;
Frédérick-Libon 2005; Passalacqua; Gravenhorst, 2005).
A parte em branco da mancha propicia avaliar a qualidade do trabalho do
negativo sob o qual se baseia a construção dos engramas, pois para bem realizar a
atividade semântica suscitada pelo Rorschach, o sujeito há de desconsiderar ou integrar
o espaço em branco da prancha, principalmente o branco intramacular, ao restante da
mancha, a ponto de criar a distinção de figura-fundo, necessária para a boa percepção
das formas. Esse processo propicia ao clínico avaliar a eficácia desse trabalho do
negativo e permite a consequente apreciação da qualidade das funções manutenção e
continência. Nesse sentido, a qualidade formal das percepções que utilizam o branco
como suporte para integração do percepto pode ser de grande importância para a
investigação da efetividade das funções de manutenção e continência (Roman 2001).

51
O uso do espaço pode indicar falhas na função de manutenção, caso a parte
branca intramacular da prancha seja utilizada sem a elaboração da devida diferenciação,
constituindo, nesses casos, o branco um núcleo vazio que invade a percepção e que
reflete a falta de solidez conferida pela organização internalizada do Eu-Pele, (Roman
1996). Portanto, afirma-se que a qualidade da função de manutenção pode ser medida
pela análise do processo de utilização do branco da mancha. Caso o branco seja
utilizado como suporte para construção de um percepto sólido, a elaboração da resposta
denota a eficácia do trabalho do negativo em desligar a percepção dos núcleos vazios
internos ao engrama, o que denota boa eficácia da função manutenção em sustentar uma
representação corporal sólida. Em resumo, caso a função de manutenção do Eu-Pele
apresente boa eficácia em reunir as representações em torno de um eixo central,
garantindo a solidez interna do envelope psíquico, o branco das manchas de Rorschach
tenderá a ser usado pelo sujeito como um fundo/suporte para a criação de um percepto
sólido e íntegro. No caso de falhas na função de manutenção, os engramas tendem a se
mostrar fragmentados, sendo compostos por núcleos vazios que representam os vazios
internos ao envelope psíquico do sujeito. (Roman, 2001). A Tabela 2.2 apresenta, de
forma resumida, os indicadores da eficácia e deficiência da manutenção do Eu-Pele no
método de Rorschach em relação ao uso eixo central e modo de apreensão.

Tabela 2.2. A utilização do eixo central e dos modos de apreensão na avaliação da


função de manutenção do Eu-Pele no Rorschach

Qualidade da função Uso do eixo central Localização


manutenção do Eu-Pele. (Pr. I, IV, V e VI)

Deficiência da função de Utilizado para: a) Excesso de G sincréticos,


manutenção do Eu-Pele a) construção de engramas impressionistas, vagos ou de
clivados qualidade formal negativa. b)
b) representações sem Respostas D não integradas.
solidez, de qualidade formal c) Dbl intramacular com
vaga ou negativa. qualidade formal negativa.
c) Não utilização do eixo d) Dbl% aumentado em
central. relação aos dados normativos

Eficácia da função de a) Utilização do eixo central a) Presença de G elaborados


manutenção do Eu-Pele para construção de engramas de qualidade formal positiva.
sólidos de qualidade formal b) Respostas D íntegras de
positiva. qualidade formal positiva
c) Capacidade de utilização
do Dbl intramaculares sem
comprometimento da

52
qualidade formal
d) Dbl% em valores
próximos aos dados
normativos

Fonte: Linhares; Pinheiro, 2009; Frédérick-Libon 2005; Passalacqua; Gravenhorst, 2005;


Roman 2001.

A Tabela 2.3 descreve, de maneira resumida, como os indicadores formais,


cinestesias e fenômenos especiais podem ser utilizados para analisar o grau de eficácia
da função de manutenção do Eu-Pele.

Tabela 2.3. A utilização dos determinantes formais, cinestesias e fenômenos especiais na


avaliação da qualidade da função de manutenção do Eu-Pele.

Indicadores. Deficiência da função de Eficácia da função de


manutenção do Eu-Pele. manutenção do Eu-Pele.
F+%; F+%ext.; F% a) Valores demasiadamente a) Valores próximos
baixos ou altos em relação aos dados normativos.
dados normativos.
Cinestesias a) Cinestesias mal vistas. a) Boa qualidade formal,
b) Cinestesias relacionadas a boa frequência de K.
representações que se apresentam
ligadas.
Outros indicadores a) Contaminação.
b) Tendência a contaminação.
c) Resposta de ligação
(Minkowska)
f) Desvitalização (Loosli-Usteri).

Fonte: Linhares; Pinheiro, 2009; Frédérick-Libon 2005; Passalacqua; Gravenhorst, 2005;


Roman 2001

2.4.2. Indicadores da qualidade da função de continência (aspecto continente e


contentor) do Eu-Pele.

Além de propiciar a apreciação da função de manutenção, os espaços em branco


da mancha simbolizam também o (re)encontro com o envelope materno primário. Tanto
a negação do branco, quando atração repetitiva pelos espaços vazios da mancha, são
atitudes que se referem a esse reencontro, que é revelador das bases utilizadas para a
internalização da noção de continente psíquico, uma das funções do Eu-Pele (Roman
2001).

53
Pois, é a partir da noção de um envelope materno primário, que o sujeito
constrói a representação de um continente próprio. A elaboração da dissolução da noção
de continuidade entre o seu próprio corpo e o corpo da mãe, a superação da “fantasia da
pele comum” apresenta um importante papel nesse processo de internalização do
continente (Anzieu, 1989). Os primeiros contatos com o envelope materno primário
propiciam a proteção, contenção e suporte, além de, pela qualidade das trocas, promover
a separação e superação da noção dessa ilusão de envelope comum entre figura materna
e infante. Esse processo, na saúde, culmina na criação de um envelope próprio a ser
enriquecido pela internalização das funções de suporte (manutenção), contenção
(continência) e proteção (para-excitação), antes desempenhadas pela função materna.
Nesse sentido, a apreciação das vicissitudes de utilização do branco no Rorschach
possibilita a análise da qualidade da função continente do sujeito examinado e revela
traços da natureza das primeiras relações. Nesse sentido, a utilização do branco propicia
a avaliação do continente do avaliado, no que se refere a um envelope cuja natureza é a
continência e continuidade dos limites, na saúde, ou a efração, na patologia (Roman
2001).
Ainda em relação a função de continência, os indicadores de Barreira e
Penetração (Fisher; Cleveland, 1958) em boa proporção, as respostas “pele” quando
apresentam boa qualidade formal e a os indicadores do psicograma, F%, F em torno da
norma, são indicadores da boa efetividade da função continente do Eu-Pele. Aliado a
esse fator, as cinestesias humanas (K), em apresentando boa qualidade formal, indicam
a capacidade de estabelecer os limites do continente, uma vez que as respostas K+
atestam a existência de um continente limitado por barreiras externas que é projetado
em determinada parte da mancha. Por outro lado, o excesso de respostas de esfumaçado
(E), quando estes fatores indicam a necessidade de um contato regressivo com o
continente, a imprecisão das formas, que atestam, em seu excesso, a confusão entre o
dentro e o fora, as resposta de cor pura ou cor-forma (C e CF), indicadores da
dificuldade de contenção dos conteúdos e as cinestesias (K, kan, kp ou kob) cuja
qualidade indica a protrusão dos limites, fragmentação ou a explosão, indicam falhas na
função do continente do Eu-Pele em conter os conteúdos psíquicos (Linhares; Pinheiro,
2009).

No Rorschach, os desdobramentos diretos e indiretos representam a necessidade


narcísica de abolir a distinção entre o sujeito e o outro, o que indicaria falhas na função

54
do Eu-Pele de estabelecer um continente que se apresente como um espaço distinto do
ambiente. Por desdobramentos diretos classificam-se as relações especulares que
aparecem nas representações que envolvem percepções em reflexo ou vista em espelho.
Já os desdobramentos indiretos se definem pelo aparecimento de representações de dois
personagens, humanos, para-humanos ou animais, vistos como idênticos, como duplos
em ausência de interação. A necessidade de apagamento das diferenças entre Eu e o
objeto, a que os desdobramentos fazem referência, é devida a necessidade do Eu de se
equiparar com o Eu-Ideal, processo que ocorre pela abolição das diferenças, pela
utilização do mecanismo de idealização e pela negação do desejo, este último aspecto
aparece no teste pela via do congelamento pulsional que resulta em ausência de
cinestesias e verbos interativos nas respostas (Chabert, 1993). As imagens percebidas
em duplo ou em reflexo podem indicar a ocorrência do processo de apagamento da
distinção fundamental entre o Eu e o outro, no qual o sujeito se dilui no outro. Nessas
respostas, a função de manutenção do Eu-Pele é partilhada com a figura idêntica,
percebida em duplo ou em reflexo (Linhares; Pinheiro, 2009). As respostas em duplo ou
reflexo, revelam, em maior ou menor grau, a dissolução dos limites que marcam as
diferenças entre o sujeito e o objeto, indicando falhas na função continente do Eu-Pele.
Na Tabela 2.4 são indicados parâmetros para análise da disfunção e eficácia da
função continente no método de Rorschach.

Tabela 2.4. O uso do Dbl, os índices formais, dos desdobramentos, o índice barreira e
penetração, as respostas “pele” e os determinantes na análise da qualidade da função
continente no Rorschach.

Indicadores Disfunção da função continente Eficácia da função continente


a) Em frequência aumentada a) Em frequência próxima a
b) Qualidade formal negativa norma
Dbl
dos b) Qualidade formal positiva
Dbl intramaculares. dos Dbl intramaculares.
Em valores menores que a Em valores próximos a
F% F+% F+%ext.
norma. norma.
Respostas Reflexo e Par em Respostas Reflexo e par em
Desdobramentos
frequência aumentada. frequência normal.
4B<2P norma adulta: frequência 4B:2P ou B>P norma adulta:
Barreira-Penetração dos dois elementos tende a ser frequência aumentada em
aumentada em adolescentes. adolescentes.
Associada aos determinantes Associada aos determinantes
formais de qualidade negativa formais de qualidade positiva
Resposta “Pele”
ou determinantes não ou determinantes modulados
modulados pela forma ou em pela forma e em frequência

55
frequência aumentada. normal.
a) Excesso de respostas de
esfumaçado (E)
b) FC<CF+C
c) Alta frequencia de K; Kob, Boa frequência de K ligada a
Determinantes
Kan e Kp ligadas a perceptos boa qualidade formal.
que apresentam imprecisão dos
limites.

Fonte: Linhares; Pinheiro, 2009; Chabert, 1993.

A função de continência, pressupõe, além da capacidade de conter, o papel de


transformação dos conteúdos irrepresentáveis em conteúdos representáveis, a chamada
função contentora, descrita por Bion (1962/1991) como função alfa. A análise dessa
função se faz pela apreciação da associação projetiva e pela análise prancha a prancha,
investigando-se a progressão das respostas do protocolo de Rorschach. Assim, respostas
F- seguidas de respostas F+; respostas sensoriais não moduladas (E, C) seguidas de
respostas controladas pela forma (FE, FC) indicam boa funcionalidade do aspecto
contentor da função de continência do Eu-Pele. O impacto da prancha pode ser
controlado pela via da transformação, assim como pode transbordar a capacidade de
elaboração do sujeito. Na saúde, observa-se uma progressão criativa que ocorre após as
rupturas, ao passo que na patologia da função contentora, observa-se a dissolução dos
limites que ocorre devido a falha na contenção e transformação (função contentor) dos
aspectos ligados as características sensoriais da prancha. No caso da boa eficácia do
aspecto contentor da função continente do Eu-Pele, caracterizada pela capacidade de
transformação dos conteúdos, observa-se a possibilidade de modificação ilusória,
adaptativa e criativa das manhas de tinta, o que permite ao sujeito fornecer respostas G
elaboradas ou respostas de detalhes (D) e pequenos detalhes (Dd) que seguem respostas
G, atestando a capacidade de criação de novos continentes e de transformação dos
existentes (Linhares; Pinheiro, 2009). A Tabela 2.5 mostra alguns elementos que devem
ser investigados para facilitar análise, no método de Rorschach, da qualidade do aspecto
contentor da função continente do Eu-Pele.

56
Tabela 2.5. A progressão das respostas e os modos de apreensão na análise do aspecto
contentor da função continente do Eu-Pele
Deficiência da função de Eficiência da função de
Indicador
contentora contentora
A análise do fio projetivo
A análise do fio projetivo
demonstra a eficácia dos
demonstra a ineficácia da
processos de transformação.
capacidade de transformação.
De modo geral, as seguintes
De modo geral, as seguintes
respostas indicam a eficácia
respostas indicam falhas no
desse processo:
processo de transformação:

Progressão dos determinantes a) F- seguidas de F +


a) F+ seguidas de F-
b) Respostas C, CF, C´F, C´,
b) Respostas FC, FC´ ou FE
E ou EF seguidas de respostas
seguidas de respostas C, CF,
FC, FC´ ou FE.
C´F, C´, E ou EF
c) F%, F+%; F+%ext
d) F%, F+%; F+%ext.
próximo aos valores
elevados ou diminuídos em
normativos.
relação aos valores
normativos.
a) Dificuldade de evocar a) Presença de G elaborados.
várias respostas a partir da b) Utilização dos detalhes (D;
mesma parte da mancha. Dd), à partir de uma resposta
Localizações
b) G% D% Dd% distantes inicialmente vista como G.
dos valores normativos. c) G% D% Dd% próximos
dos valores normativos.
Fonte: Linhares; Pinheiro, 2009.

2.4.3. Indicadores da qualidade da função de para-excitação do Eu-Pele.

Da mesma forma que os índices F%, F+% e F+ext %, em valores próximos a


norma, denotam boa funcionalidade da função continente, a utilização suficiente e
adaptativa da forma nas respostas de forma pura ou nas respostas moduladas pela forma
(FC; FE; FC), essas últimas principalmente nas pranchas que demandam a elaboração
das características sensoriais (cor vermelha, preta, branca e esfumaçados), denotam a
capacidade do sujeito em para-excitar as estimulações externas, indicando a boa
qualidade da função de para-excitação do Eu-Pele. O excesso da formalização, por outro
lado, pode indicar defesas narcísicas rígidas e até mesmo pode remeter a colagem das
barreiras internas e externas, ou a fusão das funções de para-excitação e continente, na
qual os conteúdos acabam se diluindo devido a falhas na função de contenção. A
insegurança na qual estaria submetido o objeto criaria a necessidade de formação de um

57
exoesqueleto, cuja manutenção ocorreria pelo empobrecedor sobreinvestimento dos
limites externos e diminuição das trocas com o ambiente (Linhares; Pinheiro 2009;
Roman, 1996).
Haveria ainda casos nos quais a para-excitação se mostra falha, no Rorschach,
por meio de respostas kp, Ad, Hd, G cortado ou Do (Detalhe oligofrênico), nos quais a
para-excitação se faz pela via da não representação integral dos perceptos que suscitam
a angústia. O aumento no tempo de latência, ou até mesmo sua diminuição, podem
indicar falhas na função de para-excitação do Eu-Pele; no primeiro caso, o aumento do
tempo se faz necessário como uma tentativa de compensar a função falha de para-
excitação das estimulações externas, no último caso, a diminuição do tempo revela a
falência da função de para-excitação, ao mesmo tempo em que pode ser elemento
revelador da conduta impulsiva (e expulsiva) do examinando. Por último, os choques
remetem as falhas de para-excitação (Linhares; Pinheiro, 2009).

A Tabela 2.6 apresenta alguns elementos que podem indicar falhas na função de
para-excitação do Eu-Pele no Rorschach.

Tabela 2.6. Índices de respostas formais, índices de controle afetivo, qualidade da


representação, choques e tempo de latência na análise da função de para-excitação do
Eu-Pele.

Indicador Falhas na função de para- Eficácia da função de para-


excitação excitação
a) Frequências abaixo da a) Frequência próxima a
F%, F+%, F+%ext. norma norma

FC:FC+C a) FC<CF+C a) FC≥CF+C


FE:EC+C b) FE<EF+E b) FE≥ EF+E
FC´:EC´+C` c) FC´<C´F+C´ c) FC´≥C´F+C´
Preponderância de Preponderância de
representações parciais representações inteiras
Qualidade da representação indicadas pelo aumento de indicadas pela alta frequência
Kp, Ad, Hd, (Ad), (Hd), G de K, A, H, G inteiro e D
cortado e Do
a) Presença de choques. a) Ausência de choques
Choques e tempo de latência b) Aumento ou diminuição do b) Tempo de latência próximo
tempo de latência em relação aos valores normativos.
a norma
Fonte: Linhares; Pinheiro, 2009.

58
2.5 O Rorschach e a escarificação na adolescência

Sendo a adolescência um período de agrupamento das pulsões parciais em


torno da zona genital, as técnicas projetivas criam a possibilidade de apreciação dos
traços pulsionais anteriores a organização genital. As técnicas projetivas tanto avaliam a
eficácia da tradução pulsional e das funções integradoras, quanto mostram o papel da
criatividade na tarefa de sustentar o impacto gerado por certas pranchas, como foi
exposto anteriormente no presente capítulo. É possível ainda analisar o grau de
adaptação a realidade e a qualidade dos recursos defensivos. Nesse sentido, a
fragilidade ou eficácia dos limites pode ser avaliada por meio da apreciação da
qualidade da imagem do corpo, da noção de Eu-Pele, do pensamento e do discurso, ou
ainda pela apresentação limites precisos e íntegros, na saúde, ou limites frágeis na
patologia. (Emmanuelli & Azoulay, 2008). Por demandar tanto a mobilização
perceptiva quanto projetiva, o Rorschach permite a análise das dificuldades e
capacidades relacionadas ao reconhecimento e a diferenciação (Rosado & Marques,
2009), que tendem a aparecer amplificadas nos protocolos dos adolescentes e que
podem ser utilizados pelo clínico para avaliar o grau de eficácia dos limites. Além disso,
o Rorschach propicia a apreciação da problemática das defesas narcísicas e das
solicitações pulsionais; processos que estão em vias de reelaboração pelo adolescente.
(Emmanuelli & Azoulay, 2008).
Em razão desses fatores, sabe-se que os resultados dos protocolos obtidos na
adolescência obedecem a normas próprias, devido a própria problemática da
adolescência na qual o manejo do excesso pulsional desencadeado pela emergência da
puberdade tenta ser elaborado, em meio ao trabalho de redefinição das barreiras, da
identidade e das relações de objeto, que ocorrem ao mesmo tempo em que o adolescente
busca realizar a elaboração do luto pelo final da infância e tenta dar conta das novas
demandas sociais atribuídas a ele. Assim a utilização dos processos de clivagem, a
fragilidade das defesas, o nível de desorganização do pensamento e o uso da inibição
tendem a estar aumentados na adolescência em comparação com os protocolos
fornecidos por jovens adultos e adultos (Marques, 1999; Emmanuelli & Azoulay, 2008).
Os indicadores desses fenômenos estão descritos na sessão acima desse trabalho.
Portanto, para que a distorção dos resultados fornecidos pelos protocolos dos
adolescentes seja evitada, a análise dos métodos projetivos deve ser feita á partir de
normas próprias para adolescentes, haja vista que se trata de sujeitos em processo de

59
transformação. Nesse sentido, o presente trabalho não objetiva realizar o diagnóstico ou
enquadramento dos adolescentes participantes em qualquer tipo de classificação
nosográfica definitiva que seja capaz de estabelecer correlações entre as escarificações e
as classificações psicopatológicas. Pretende-se, por outro lado, analisar as funções do
Eu-Pele dos sujeitos estudados, a partir da comparação com as normas próprias para
adolescentes (Jardim-Maran, 2011).

Na pesquisa de levantamento realizada por consulta ás bases de dados


(CAPES/Journal of Contemporary Psychotherapy; MEDLINE/PubMed (U.S. National
Library of Medicine)/ Web of Science/SciVerse ScienceDirect Journals/Medknow
Publications/Scopus/PsycARTICLES (American Psychological Association)/Cengage
Learning, Inc./Cambridge University Press/ ScienceDirect (Elsevier B.V.)/ ProQuest
LLC/ MLA International Bibliography/ Springer Science & Business Media B.V/
SAGE Publications) recortando o período dos últimos quinze anos (de 2000 a 2015 )
com o indexador ”Rorschach” combinado com as palavras-chave “automutilação”,
“self-harm”, “self-mutilation”, “self-injury”, “escarification”; “cutting”
“escarificação” foram encontrados cento e dezessete (117). Entretanto, não foram
encontrados artigos que utilizem a abordagem francesa de interpretação do Rorschach.
A maior parte dos artigos não relaciona a adolescência com as escarificações e busca
estabelecer relações entre a automutilação e a patologia borderline.
Dentre os artigos encontrados, citamos Baity; Blais; Hilsenroth; Fowler;
Padawer (2009) e Kochinski; Smith; Baity; Hilsenroth (2008), que encontraram indícios
de “distúrbios das barreiras” nos sujeitos com comportamentos de automutilação em
estudos sobre as automutilações investigadas por meio do método de Rorschach
segundo abordagem compreensiva de Exner. Esses estudos que compararam os
resultados dos adolescentes com automutilação aos protocolos de adolescentes do grupo
controle. Os resultados apontam para ocorrência aumentada, nos adolescentes com
automutilação, de movimentos agressivos passivos, conteúdos mórbidos, aumentos das
respostas determinadas por esfumaçado, movimento inanimado (equivalente a kob na
abordagem francesa) e distúrbios do pensamento, em comparação aos sujeitos do grupo
controle. Foram relatados no grupo de adolescentes que se mutilavam níveis
aumentados nas escalas de dependência e distúrbios das relações de objeto (Baity; Blais;
Hilsenroth; Fowler; Padawer, 2009; Kochinski; Smith; Baity; Hilsenroth, 2008).
Também foram relatadas evidências acerca de um maior uso da clivagem, da

60
idealização (e depreciação) patológica. Além disso, dados apontaram correlação
positiva entre distúrbios de identificação nas relações de objeto e automutilação
(Fowler; Hilsenroth; Nolan, 2000).

Entretanto, o objetivo do presente trabalho é investigar as escarificações,


distúrbio distinto das chamadas automutilações, conforme exposto no capítulo I. Mais
especificamente, o presente trabalho tem o objetivo de analisar a qualidade das barreiras
e das funções do Eu-Pele nas escarificações que ocorrem na adolescência. Dessa forma,
o presente trabalho pretende avaliar as escarificações ocorridas na adolescência por
meio do método de Rorschach, mais especificamente, trata-se de um estudo cuja
investigação se faz centrar na avaliação das funções do Eu-Pele e na qualidade das
barreiras narcísicas dos adolescentes que se utilização do ato de escarificar a própria
pele.

61
CAPÍTULO III

MÉTODO

O presente trabalho adotou o método clínico-qualitativo de investigação, com a


realização de um estudo exploratório com um grupo único e realização de estudos de
casos clínicos individuais de adolescentes que se escarificam. Pretende-se analisar a
qualidade das funções de continente, para-excitação, manutenção do Eu-Pele e a
qualidade dos limites, buscando realizar uma investigação clínica sobre o fenômeno por
meio do método de Rorschach. Partiu-se da sistematização de um grupo único
apresentando a mesma sintomatologia para posteriormente se desenvolver os estudos de
caso.
Segundo Hussein (1991) a pesquisa feita a partir de um único grupo pretende
avaliar as variações internas relativas ao grupo estudado. A emissão de uma mesma
classe de comportamento ou ocorrência de um tipo similar de sintoma não remete,
necessariamente, a um tipo comum de funcionamento subjacente a todos os sujeitos.
Esse aspecto possibilita a investigação de um fenômeno psicopatológico a partir de um
único grupo e a apreciação dos resultados sem a necessidade de comparação com um
grupo de controle. Nesse sentido, a pesquisa com o grupo único busca avaliar as
especificidades dos funcionamentos subjacentes a uma mesma categoria sintomática,
buscando-se revelar as variações da personalidade e as particularidades de cada
participante. Ainda assim, ao mesmo tempo em que busca avaliar as singularidades
entre os sujeitos participantes, o estudo exploratório de grupo único propicia a
identificação de uma unidade estrutural entre os sujeitos avaliados (Wolff, 2012). Para
tanto, as técnicas projetivas são de grande valia, por possibilitar a apreciação dos
aspectos idiossincráticos do funcionamento da personalidade dos participantes e a
comparação dos resultados com os dados normativos (Hussain 1992-1993).
Na perspectiva de Hussein (1991), a visibilidade do grupo no estudo das técnicas
projetivas deve ser dada não pelos indicadores dos CID ou DSM, que malgrado seus
esforços não têm uma uniformização dos critérios diagnósticos nem uma compreensão
psicodinâmica que particulariza o sujeito. A autora propõe a utilização dos critérios da
técnica projetiva, tanto quantitativos quanto qualitativos. Se por um lado esse critério
pode apresentar uma visibilidade fraca do grupo, por outro lado ele demonstra uma forte
unidade estrutural. O objetivo das técnicas projetivas, segundo Rausch de Traubenberg

62
(1986), é o de contribuir na compreensão do diagnóstico e também de realizar uma
reflexão sobre as singularidades das diversas organizações de personalidade. Na visão
de Hussein (1991), essa dupla polaridade reabilita a prática das pesquisas que têm por
base o grupo único.
Com o estudo de casos clínicos individuais busca-se a apreciação e
aprofundamento das particularidades de cada caso, em detrimento da descoberta
(criação) de uma regra geral conclusiva e universal sobre as escarificações. Esse fato
não impossibilita a generalização dos resultados, porém os dados são considerados em
sua complexidade particular, uma vez que o problema de pesquisa é investigado de
forma individualizada e por intermédio da relação estabelecida entre o pesquisador e o
participante. Tal relação é atravessada por fenômenos inconscientes e transferenciais,
que acabam por enriquecer os resultados em sua profundidade referente ao caso
particular. No estudo de caso, o pesquisador constrói uma narrativa ilustrativa sobre o
problema estudado. A posição subjetiva do participante é inferida pelo pesquisador a
partir do discurso fornecido pelo participante, no decorrer da experiência relacional que
se instaura entre o pesquisador e o sujeito de pesquisa durante os encontros clínicos. Em
resumo, o estudo de caso é uma narrativa cuja função é criar uma síntese ilustrativa
sobre o caso, que facilite a elaboração reflexiva teórica a ser feita sobre o problema
apresentado (Iribarry, 2003). Nos estudos de caso será feita a transformação dos
elementos emergentes nas entrevistas clínicas e nos métodos projetivos em
conhecimento, por meio da criação de uma narrativa sobre o caso.

3.1. Instrumentos.

3.1.1 O Método de Rorschach.


O Método de Rorschach (1921) é composto por dez pranchas, sendo cinco
manchas monocromáticas de cor escura, duas manchas coloridas pelas cores preta e
vermelha e três pranchas coloridas por cores pastel (Anzieu, 1978). Cada prancha
apresenta um conteúdo manifesto próprio, definido pelas características materiais da
mancha, e um conteúdo latente específico, cuja solicitação é inconsciente (Chabert,
1998). A instrução do teste é feita com o objetivo de estimular o examinando a realizar
a tarefa semântica proposta pelo teste. Assim, cada aplicação exige do clínico uma
postura adaptada para o sujeito examinado. Esses aspectos relacionais apresentados
durante a aplicação do método são analisados qualitativamente. Em resumo, o aplicador
não deve orientar o sujeito nas suas respostas, mas deve apresentar certo grau de

63
flexibilidade que é necessário para que o sujeito seja capaz de realizar a tarefa. O
examinador anota todas as respostas, tais como foram ditas pelo examinando,
preocupando-se em tomar nota dos comentários ditos pelo sujeito e em registrar com a
ajuda de um cronometro o tempo de latência entre a apresentação de uma prancha e o
fornecimento da primeira resposta fornecida a partir dela. Também é cronometrado o
tempo total que o sujeito leva para realizar a tarefa em cada prancha. Após a fase de
associação, na qual o sujeito informa livremente os objetos percebidos ao aplicador,
instaura-se a fase de inquérito. Nessa fase o sujeito deve explicar ao examinador três
aspectos básicos para a cotação das respostas: o que o participante viu na mancha
(Conteúdo), onde ele viu (Localização) e qual elemento presente na mancha determinou
a resposta fornecida (Determinante) (Anzieu, 1978).
As pranchas de Rorschach funcionam como um espaço transicional na
comunicação entre o clínico e o participante, sendo possível de se avaliar o grau de
capacidade do sujeito em utilizar da transionalidade oferecida pela situação projetiva
(Chabert, 1998). Por espaço transional, entende-se o espaço intermediário ilusório, que
não está localizado nem dentro, nem fora dos limites do sujeito (Winnicott, 1975).
Uma vez que o discurso sobre as pranchas é endereçado a um receptor, no caso,
aquele que aplica o método, as manifestações transferenciais não ficam ausentes de se
manifestar na situação projetiva. Assim, as dimensões transferenciais que tomam curso
durante a situação projetiva são de grande relevância para análise qualitativa dos dados
fornecidos pelo Método de Rorschach (Chabert, 1998).

3.1.2. A entrevistas semi-estruturadas.


Foram utilizadas as informações coletadas por meio de entrevistas semi-
estruturadas. A utilização de entrevistas semi-estruturadas busca entender a realidade
subjetiva do participante da pesquisa ao acessar a história, opinião, os significados e os
valores dos sujeitos sobre o fenômeno a ser estudado. De modo geral, na entrevista
semi-estruturada, esses elementos são inferidos a partir do discurso do participante.
Embora existam tópicos temáticos na entrevista semi-estruturada, a subjetividade do
entrevistado é possível de ser apreciada em razão da natureza das perguntas feitas pelo
entrevistador, que as elabora de forma aberta, embora siga o roteiro (Fraser; Gondim,
2004). O roteiro da entrevista realizadas encontra-se reproduzido no final do presente
trabalho (Anexo B).

3.1.3. Entrevistas clínicas

64
As entrevistas clínicas também fizeram parte do método clínico-qualitativo de
investigação. Por método clínico-qualitativo entende-se o modelo de investigação que
pretende efetuar a apreciação do problema por meio das informações decorrentes do
discurso do participante e da relação estabelecida entre o clínico e o participante,
relação essa que é atravessada por questões transferenciais e contra-transferenciais.
Assim, pretendeu-se construir o saber sobre realidade do objeto de pesquisa por meio do
discurso, por natureza, subjetivo do participante (Fontanella; Campos; Turato, 2006).
Dessa forma, buscou-se alcançar a realidade subjetiva do sujeito sobre o problema das
escarificações, considerando também os elementos encontrados nas entrevistas de
atendimentos clínicos, relatadas em formato de diário logo após a sua realização.

3.2. Participantes.
A presente pesquisa foi realizada com adolescentes, com histórico de
escarificações. Há de se ressaltar que, no tempo de coleta dos dados, alguns
participantes relataram ter deixado de escarificar a própria pele, ao passo que outros
afirmaram ainda se utilizar das escarificações. Trata-se de uma distinção importante que
poderia influenciar os resultados da pesquisa. Por essa razão, a informação sobre
presença ou remissão do sintoma das escarificações foi considerada na análise dos
dados.

Os participantes da pesquisa são do sexo masculino e feminino, têm entre 14 e


18 anos, sendo três do sexo masculino e sete do sexo feminino. Como foi constituída
uma amostra de conveniência não foi possível organizar o grupo com o mesmo número
de participantes do sexo masculino e feminino. Os adolescentes foram convidados a
participar da pesquisa por estarem em atendimento psiquiátrico e psicológico em uma
instituição pública especializada em saúde mental ou terem sido encaminhados para
atendimento psicológico na clínica escola da Universidade. Os participantes foram
escolhidos para participarem da pesquisa com base em dois critérios: ter se utilizado da
escarificação durante a adolescência e concordar em participar da pesquisa, tendo sido,
os adolescentes, autorizados a participar pelos respectivos responsáveis legais. A Tabela
3.1 mostra informações gerais sobre os participantes da pesquisa, a idade, o sexo dos
participantes, descrevendo as características das escarificações apresentadas e outros
elementos relevantes relatados pelos adolescentes.

Tabela 3.1. Informações gerais sobre os participantes da pesquisa.

65
Idade Sexo Características do ato. Outros elementos relevantes.
Sujeito 1 15 Feminino Estava há um mês sem se Apresenta histórico de
cortar na data da pesquisa. tentativa de suicídio.

Cortava-se com uma Vítima de abuso sexual na


lâmina de barbear e infância.
estilete nos braços e
coxas.

Sujeito 2 18 Feminino Cortes feitos nos braços. Histórico de uso de Crack e


outras drogas.
Relata que os cortes
estavam relacionados a Vítima de abuso sexual na
raiva e culpa que sentia infância.
em relação as situações de
abuso sexual que foi Experiência de visões e
vítima. aparições de cunho religioso.

Histórico de bulimia.
Sujeito 3 17 Masculino Estava há um mês sem se Apresenta alucinações
cortar na data da coleta de auditivas e delírios de culpa.
dados.
Histórico de tentativa de
Cortes profundos suicídio.
provocados por facas ou
lâminas de barbear nas
coxas, braços e dedos.

Relata sentir alívio ao se


cortar.
Sujeito 4 15 Feminino Cortes superficiais Vítima de abuso sexual na
provocados por lâminas infância.
de barbear nos braços e
coxas. Histórico de tentativa de
suicídio.
Havia deixado de
apresentar escarificações
ao termino dessa
pesquisa, porém ainda se
cortava na época de coleta
dos dados.
Sujeito 5 16 Masculino Cortes com gilete e Histórico de tentativa de
pedaços de vidro feitos suicídio.
nas coxas e braços.
Histórico de passagem ao ato
hetero-agressiva.

Quadro clínico de
incontinência fecal.

Presença de fantasias de
esquartejamento.

Sujeito 6 14 Feminino Cortes profundos feitos Vítima de abuso sexual.


com tesoura e lâmina de

66
apontador.

Sujeito 7 17 Masculino Cortes profundos na coxa, Histórico de tentativas de


panturrilha. suicídio.

Sujeito 8 15 Feminino Cortes profundos no Histórico de bulimia.


antebraço feitos com a
ponta do compasso e com
tesouras.

Afirma ter deixado de se


cortar há dois anos, após
ter feito um “pacto” com
uma amiga.
Sujeito 9 14 Feminino Cortes feitos no braço
com o objetivo de afastar
a tristeza ou “descontar a
raiva no próprio corpo”
Sujeito 14 Feminino Cortes nos braços e nas
10 coxas.

3.3. Procedimento para coleta dos dados.

O presente trabalho faz parte de uma pesquisa maior intitulado “A clínica da


adolescência e a escarificação: Remanejamento psíquicos e metapsicológicos”, que foi
submetida à aprovação do conselho de ética por meio do sistema do Ministério da
Saúde“ Plataforma Brasil”, número 46302214.6.0000.5540.
Participaram da pesquisa nove adolescentes encaminhados ao pesquisador por
profissionais de um serviço público de psiquiatria e psicologia especializado em
atendimento de adolescentes. Os profissionais encaminharam os adolescentes ao
pesquisador, que realizou as entrevistas clínicas e de aplicação do Rorschach em salas
de atendimento cedidas pela referida instituição de saúde. Todos os pacientes foram
informados sobre a natureza da pesquisa e sobre os métodos que seriam aplicados. Aos
adolescentes que concordaram em participar, foi explicado o termo consentimento livre
esclarecido (TCLE/ Anexo A), que foi assinado pelo responsável legal e pelo
adolescente.
Os nove participantes da pesquisa recrutados da forma descrita acima foram
avaliados em no mínimo cinco sessões: o primeiro encontro tinha por objetivo explicar
a natureza da pesquisa, confirmar os critérios de inclusão e estabelecer um primeiro
vínculo com o participante; o segundo encontro serviu para a aplicação da entrevista
semi-estruturada cujo áudio foi gravado e transcrito; o terceiro encontro foi utilizado
67
para a aplicação do Método de Rorschach. O quarto encontro foi usado para aplicação
do TAT, cujos resultados não foram relatados e analisados para o presente trabalho. No
quinto e último encontro, foi realizada uma entrevista devolutiva dos resultados ao
adolescente participante. Alguns participantes foram atendidos por mais tempo, em
decorrência da gravidade de alguns casos ou de imprevistos que impossibilitaram o
termino do processo investigativo em cinco sessões.

Em relação a um participante, Sujeito 4 (Laura), o procedimento de coleta de


dados ocorreu de uma forma diferente, pois a paciente foi encaminhada ao pesquisador
para atendimento psicoterápico. As entrevistas clínicas foram realizadas na Clínica
Escola da Universidade - CAEP-UnB durante dois anos e o caso teve um seguimento de
acompanhamento psicoterápico. Em razão do atendimento psicoterápico dessa
participante ter ocorrido com o pesquisador ocupando a função de psicoterapeuta, o
Método de Rorschach e o TAT foram aplicados por outro profissional do grupo de
pesquisa, devidamente treinado no uso das técnicas projetivas.

3.4 Procedimento para análise dos dados.

As entrevistas semi-estruturadas e as entrevistas clínicas foram utilizadas para


construção da história clínica dos quatro estudos de caso descritos no capítulo V. As
entrevistas semi-estruturadas foram gravadas e transcritas. Já o atendimento clínico
seguiu o modelo de relato de sessão clínico feito logo após o encontro com a
participante. Dessa forma, os elementos dos casos clínicos foram relacionados aos
resultados obtidos pelo Método de Rorschach, no caso da construção dos casos.

A cotação do Rorschach ocorreu segundo Abordagem Francesa do Rorschach,


na perspectiva da Escola de Paris (Traubenberg, 1970; Anzieu; 1978; Chabert,
1993;1998) tendo sido utilizado os dados normativos próprios para adolescentes
brasileiros (Jardim-Maran, 2011) para a comparação estatística. A codificação das
respostas foi feita pelo grupo de pesquisa, por, pelo menos, quatro profissionais ou
estudantes membros da equipe de pesquisa, devidamente treinados a fazer a cotação das
respostas fornecidas segundo abordagem francesa do Rorschach (Anexo C). As
divergências eram discutidas até se chegar a um acordo sobre a cotação. Os dados do
psicograma foram calculados a partir da cotação das respostas feita pela equipe de
pesquisa.

68
Para a análise das funções de manutenção, continência e para-excitação do Eu-
Pele, foi feito um levantamento bibliográfico sobre o tema, por meio do qual foram
encontrados estudos relativos a utilização de certos indicadores de Rorschach para a
avaliação do Eu-Pele (Linhares; Pinheiro 2009; Roman 1996; 2001; Chabert, 1993;
Emmanuelly; Azoulay, 2008; Kallas, 2012; Frédérick-Libon 2005; Passalacqua;
Gravenhorst, 2005). Tendo sido feito isso, os protocolos de Rorschach e as
codificações propostas pela equipe de pesquisa foram avaliados de acordo com o
modelo de interpretação proposto por esses estudos. O modelo de interpretação dos
indicadores da qualidade do Eu-Pele, utilizado para análise dos dados do presente
trabalho, encontra-se descrito no capítulo II do presente trabalho. Essa etapa de análise
dos dados da pesquisa foi desenvolvida para análise do grupo único e encontra-se
apresentada e discutida no capítulo IV.

Além da utilização de um modelo de interpretação dos elementos do Rorschach


para a análise da qualidade do Eu-Pele, os protocolos utilizados nos estudos de caso,
descritos e discutidos no capítulo V, foram analisados de forma geral, segundo o
modelo da escola de Paris de interpretação do Rorschach Assim foram avaliados os
processos de pensamento, o tratamento dos conflitos e a organização defensiva que
permeia o funcionamento psíquicos dos sujeitos avaliados.
Por processos de pensamento, considera-se as modalidades e a qualidade da
atividade do pensar, aspectos interpretados a partir da composição dos modos de
apreensão e grau de adaptação e elaboração desses, a qualidade do K e a capacidade de
variação de localização, determinante e conteúdos. Já na parte de tratamento dos
conflitos, avalia-se a natureza dos conflitos, o tipo de angústia, o tratamento dos afetos,
o grau de domínio entre afeto e representação, a representação de si e a qualidade da
representação associada. Essa avaliação é feita em dois eixos; o eixo narcísico e o eixo
objetal. Em relação ao eixo narcísico, aspecto que comporta a avaliação das barreiras, a
representação de si e o tipo do afeto ligado a essa representação. As variáveis F%, F+%
ajudam a elucidar a qualidade das barreiras, enquanto os conteúdos, prevalentes em sua
integridade (H, A) ou fragmentação (Hd, Ad), ajudam a avaliar a qualidade da
representação de si de forma íntegra. A análise da prancha V, das pranchas unitárias de
conteúdo latente ligado ao sexual (IV; VI) e das pranchas II e III dão pistas sobre a
qualidade da representação si, do afeto ligado a identidade do sujeito avaliado e o grau
de sua capacidade de identificação sexual. No eixo objetal são avaliados a natureza da

69
qualidade das representações das relações de objeto, pela análise das respostas
fornecidas nas pranchas II, III, VII e IX, e o tratamento dos afetos, avaliados pela
análise dos determinantes sensoriais e índice RC%(razão entre o número de respostas
nas pranchas VIII, IX e X sobre o total de respostas). A análise desses fatores propicia
ainda efetuar a avaliação da relação entre afeto e representação e qualidade de ligação
entre os dois elementos pulsionais. Por fim, a organização defensiva permite classificar
as defesas como sendo de modo neurótico, psicótico ou limite. O número de respostas,
uso da cor, choques, comentários, rupturas propiciam avaliar quais as defesas
frequentemente utilizadas e classificar o protocolo como sendo inibido, lábil ou rígido
(Chabert, 1993; Emmanuelli; Azoulay,2008).

A abordagem cognitiva ou intelectual é avaliada a partir dos modos de


apreensão, dos determinantes formais e de sua qualidade formal, da qualidade
representação das respostas K, do A% e do número de banalidades. A capacidade de
variar a localização, de G para D ou de G para Dd, sem o comprometimento da
qualidade formal, a presença de G elaborados, bom número de respostas K de boa
qualidade formal e F+% em frequência normativa ou elevada são fatores associados a
boa capacidade intelectual ou cognitiva. A dinâmica afetiva é avaliada por meio da
apreciação do Tipo de Ressonância Ìntima e da formaula complementar e conteúdos,
ΣE, ΣC, FC:CF+C, FC´:C´F+C´, FE:EF+E e RC%. É importante avaliar qual o grau de
invasão da dinamica afetiva sobre o funcionamento intelectual ou a possível
preponderância da abordagem intelectual sobre as vivências afetivas. A socilização é
medida pela qualidade da adaptação social, avaliada pelo número de banalidades, F+%,
A% e pela frequência relativa dos determinantes duplos cotrolados pela forma (FC;
FClob; FC´; FE). Aspectos ligados a situação projetiva são também avaliados, pois a
clínica de aplicação possibilita o complemento do psicograma, por meio da análise dos
processos dinâmicos da aplicação, como a tonalidade afetiva que compôs a situação
projetiva, a relação com o clínico, as atitudes comportamentais e comentários feitos
durante a aplicação (Traubenberg, 1970; Chabert, 1998).
Esses índices expostos por Chabert (1998) e Traubenberg(1970) serão também
utilizados para a elaboração de um interpretação geral dos protocolos dos estudos de
caso, apresentados e discutidos no capítulo V, analisados segundo o esquema de
organização proposto pela escola de Paris de interpretação do Rorschach.

70
CAPÍTULO IV

INVESTIMENTO NOS LIMITES E AS FUNÇÕES DO EU-PELE DOS


ADOLESCENTES PELOS INDICADORES DO MÉTODO DE RORSCHACH

No presente capítulo serão descritos os resultados privilegiando os indicadores


quantitativos dos protocolos de Rorschach e a análise dos dez adolescentes participantes
da pesquisa com ênfase no investimento dos limites e nas funções do Eu-pele, tal como
descritas por Anzieu (1989). A apresentação desses resultados está distribuída em
quatro seções. Na primeira, será feita a avaliação do investimento dos limites, da
problemática identitárias e corporal. Na segunda, será apreciado o funcionamento da
função de manutenção do Eu-Pele. Tendo sido analisados esses aspectos, serão expostos
os resultados ligados a capacidade de continência do Eu-Pele, em seus dois aspectos,
continente e contentor. Por fim, na última seção, serão descritos os índices relativos a
função de para-excitação do Eu-Pele.

4.1 Resultados dos indicadores de investimento de limites.

Nessa seção, será descrita a problemática narcísica do investimento dos limites,


que é entendida como o grau de capacidade do sujeito de estabelecer a delimitação
dentro/fora, eu/outro. Na saúde, o investimento dos limites é permeado por barreiras
suficientemente eficazes em proteger o sujeito das invasões traumáticas externas e, ao
mesmo tempo, permitir as trocas entre o sujeito e o ambiente. A saúde do investimento
dos limites é caracterizada, em geral, pelo grau suficiente de investimento narcísico que
mantém as barreiras responsáveis por delimitar o mundo interno e garantir a distinção
adaptativa entre o espaço interno e o espaço externo. Portanto são organizações
patológicas, tanto o investimento dos limites demasiadamente frágil, por ser
caracterizado por uma porosidade excessiva a ponto de deixar o sujeito vulnerável a
confusão entre dentro/fora e a estimulação traumática, quanto é patológico o
sobreinvestimento dos limites, uma vez que ele é responsável por diminuir os campos
de trocas do sujeito em relação ao meio (Chabert, 1993; Emmanuelli; Azoulay, 2008))
No Rorschach, o nível de utilização dos determinantes formais e a qualidade
formal das respostas é um importante indicador da qualidade do envelope psíquico e do
investimento dos limites. Os índices F%, F+% e F+%ext. em frequência próxima a
norma atestam o grau de capacidade e qualidade do investimento dos limites. Tratam-se

71
de índices que revelam a eficácia do sujeito em destacar o percepto do restante da
prancha, pela via da formalização. A dilatação da frequência desses índices em relação
aos dados normativos indica sobreinvestimento defensivo, enquanto a diminuição
quantitativa desses indicadores em relação a norma remete a fragilidade dos limites
(Chabert, 1998). De forma complementar, o índice de conteúdo barreira e penetração
(B:P), cuja cotação está descrita no capítulo II do presente trabalho, permite ao
examinador efetuar a apreciação do grau de solidez/vulnerabilidade dos envelopes
psíquicos do sujeito (Frédérick-Libon, 2005). Em relação ao índice “barreira-
penetração”, a frequência normativa é de quatro respostas barreira para duas respostas
penetração, em adultos, e oito respostas barreira para quatro respostas penetração, em
adolescentes. A diminuição da razão de respostas barreira-penetração em relação a
norma (B:P<4:2), remete a inibição relacionada ao sobreinvestimento dos limites ou
fragilidade das barreiras; o aumento de respostas barreira sobre a penetração, além da
norma sugerida (B:P>4:2 em adultos e B:P>8:4 em adolescentes) indica
sobreinvestimento dos limites. Já o aumento de respostas penetração em relação as
respostas barreira (B<P), além da razão normativa (4B:2P/8B:4P), indica fragilidade
dos limites (Emmanuelli e Azoulay, 2008). Os critérios de cotação para barreira e
penetração estão em anexo (Anexo D).

As possíveis falhas do investimento dos limites podem ser relacionadas as


problemáticas identitárias ou corporais (Chabert, 1993). Por falhas identitárias,
podemos citar a dificuldade de identificação, que é expressa no Rorschach pelo aumento
ou diminuição da frequência de respostas globais em relação a norma (G%), pela
diminuição das respostas de conteúdo humano (H%), pelo aumento de respostas para-
humanas em relação as respostas humanas (H<(H)). Já as falhas de integração da
imagem corporal, remetem a uma problemática mais grave, sendo indicada no
Rorschach pela preponderância de respostas humanas parciais sobre as respostas
humanas integras (H e mesmo (H)), ou ainda pela diminuição das respostas humanas
em relação a norma. As respostas globais, em sua dilatação ou diminuição em
comparação a norma, pode tanto indicar problemas de identificação quanto pode estar
relacionada a problemas de integração da imagem de corpo.
A Tabela 4.1 apresenta os indicadores do método de Rorschach relacionados ao
investimento dos limites nos adolescentes participantes da pesquisa.

72
Tabela 4.1. Indicadores para análise do investimento nos limites nos protocolos de
Rorschach dos adolescentes

Participante F+% F% F+%Ext. H: Hd H: (H) G% B:P


Sujeito 1 57,13% 58,0% 41,60% 0:0 0:3 75,0% 1:2
Sujeito 2 56,2% 77,7% 81,2% 3:0 3:1 56,2% 1:1
Sujeito 3 33,3% 40,0% 46,7% 2:5 2:0 46,7% 2:0
Sujeito 4 61,6% 55,3% 36,8% 9:7 9:2 13,1% 0:2
Sujeito 5 45,0% 55,5% 65,0% 0:2 0:1 30,0% 0:3
Sujeito 6 81,5% 75,0% 75,9% 2:5 2:2 03,7% 0:0
Sujeito 7 44,4% 88,5% 80,5% 2:1 2:1 33,3% 1:1
Sujeito 8 41,7% 20,0% 41,7% 0:0 0:2 50,0% 0:2
Sujeito 9 62,5% 70,0% 68,7% 1:1 1:2 56,2% 0:1
Sujeito 10 45,4% 40,0% 38,1% 1:0 1:3 50% 2:1
Norma 54,5% 55,6% 57,3% -- -- 35% 8B:4P

Entre os adolescentes examinados, os Sujeito 3, 8 e 10 são os participantes com


maior concisão de indícios relativos a fragilidade do investimento dos limites.
Conforme descrito na Tabela 4.1, os protocolos desses participantes apresentam valores
F%, F+% e F+%ext. significativamente menores que os dados normativos. Esses
resultados indicam falhas na capacidade de estabelecimento da distinção fundamental
entre o dentro e o fora, entre eu/não eu. Além disso, os valores da escala de conteúdo
“barreira-penetração” (Fisher; Cleveland, 1952) extraídos dos protocolos dos Sujeitos 3,
8 e 10 estão em proporção menor que a norma, o que reforça a hipótese defendida
acima, sobre a fragilidades dos limites nos participantes citados (Emmanuelli; Azulay,
2008).

No caso do Sujeito 3, a elevação do número das respostas globais em


comparação aos valores normativos está aliada a preponderância de respostas parciais
humanas sobre as humanas inteiras (G%=46,7%; H: Hd = 2:5). Essa associação de
variáveis indica a existência de possíveis falhas na integração da representação da
imagem de corpo, para além da fragilidade dos limites (F%=40,0%; F+%=33,3% e
F+%ext=46,7%). Por outro lado, nos casos dos Sujeitos 8 e 10, a fragilidade dos limites
parece estar aliada a um fator distinto do caso do Sujeito 3, uma vez que esses sujeitos
apresentaram frequência de representação humana íntegra, humana ou para-humana, em
valores superiores a ocorrência de representações humanas parciais. Nos casos dos

73
Sujeitos 8 e 10, conforme indicado pela análise dos resultados da razão de respostas H:
(H) e H:Hd, respectivamente no Sujeito 8 (H:Hd = 0:0 e H: (H) = 0:2) e no Sujeito 10
(H:Hd =1:0 e H: (H) = 1:3), há capacidade adaptativa de representação integral da
imagem de corpo. Entretanto, o aumento da frequência de (H) em relação a ocorrência
de H indica que os Sujeitos 8 e 10 apresentam, provavelmente, dificuldades de
identificação.

Em relação ao Sujeito 4, apesar de apresentar frequência de respostas F+%=


61,9%, com valores próximos a média, esse participante exibe indícios relativos a
importante grau de fragilidade dos limites F+%ext.=36,8% abaixo da média).
Em menor proporção e apesar de apresentar índice de F% próximo aos dados
normativos, o Sujeito 5 apresenta possíveis dificuldades no estabelecimento de limites
(F+%= 45,0%; B:P = 0:3) e na representação integrada da imagem corporal (H:Hd=0:2;
G%= 30,0%). Tais falhas seriam atenuadas pela tendência defensiva em sobreinvestir as
barreiras internas e pela inibição da vida afetiva (F+%ext.=65,0%). Além disso, a
ausência de respostas humanas (H=0) no protocolo do Sujeito 5, pode ser um indício de
dificuldades relativas à identificação.

Em relação ao Sujeito 7, este apresenta um índice de ponderação das respostas


formais positivas, abaixo da média para adolescentes (F+%=44,4%), o que indica falhas
de delimitação adaptativa de um envelope que funcione como um limite entre o eu e o
outro, entre o dentro e o fora. Entretanto, apresenta uma organização defensiva que
busca sobreinvestir os limites (F%=88,5; F+%ext.=80,5) garantindo a integridade da
representação de imagem corporal e o funcionamento adaptativo da representação de si
(G%=33,3%; H:(H) =2:1; H:Hd= 2:1).

O Sujeito 6 apresenta uma organização defensiva rígida, marcada pela rigidez e


pelo sobreinvestimento dos limites (B:P=0:0; F%=75,0%; F+% =81,5% e F+%ext
=75,9%), que parece ocupar a função defensiva frente às prováveis dificuldades na
representação de si (H:(H) =2:2; H: Hd= 2:5; G% = 3,7%).

No mesmo sentido, o sobreinvestimento dos limites (F%=70,0%; F+%=62,5%;


F+%ext=68,7) também parece ser a defesa utilizada pelo Sujeito 9 para afastar possíveis
transbordamentos (Green, 2008) desencadeados pelo excesso pulsional traumático
ligado a representações angustiantes relativas a intrusão (B:P=0:1), das quais a rigidez
defensiva parece ocupar um papel defensivo importante. Apesar disso, o Sujeito 9 não

74
apresentou indícios de problemas relativos a integração da imagem corporal, sendo a
identidade a problemática central do caso (H:(H) =1:2; G% =56,2%).
O sobreinvestimento dos limites (F%= 77,7% e F+%ext.=81,2), apresentado
pelo Sujeito 2, tende a possibilitar, mesmo que por meio de uma organização defensiva
rígida, a efetividade da capacidade adaptativa de delimitação entre o dentro e fora e a
integração da imagem corporal. Apesar disso, a rigidez das defesas lança a tendência de
inibição da atividade fantasmática e de diminuição das trocas com o meio (F% =77,7;
F+%ext.=81,2; B:P = 1:1). O aumento das respostas globais (G%=56,2%) é comumente
interpretado como um indicador de dificuldades de identificação (Chabert, 2004), no
entanto, no caso do Sujeito 2, a razão das variáveis de conteúdos humanos (H:(H) = 3:0
e H:Hd= 3:1) afastam a hipótese de dificuldades de identificação, lançando a hipótese
de um funcionamento rígido que busca afastar as emergência pulsionais por meio do
apego ao aspecto objetivo da realidade (G%= 56,2%; F% =77,7% e F+% 81,2%),
conforme postulado como uma possibilidade por Chabert (2004).

Por fim, o Sujeito 1 apresenta indícios de boa capacidade de delimitação dos


limites, pelo menos quando se utiliza de uma abordagem objetiva da realidade
(F%=58,0% e F+%= 57,13%). Apesar disso, aparenta demonstrar dificuldades de
manutenção desses limites nas situações que exigem o manejo das estimulações
externas (F+%ext.= 41,60%), que parecem desestabilizar os limites entre o dentro e o
fora, estabelecidos pelo Sujeito 1. A razão da escala de conteúdo “barreira e penetração”
(B:P=1:2), apresenta-se invertida em proporção e em frequência rebaixada em relação a
norma, o que indica tanto a tentativa de sobreinvestir os limites, quanto aponta a
possível dificuldade de estabelecimento desses limites, hipótese fortalecida pelo número
de respostas globais acima da média (G%= 75,0%). A dificuldade de identificação
parece ser um problema central do caso (H=0), muito embora o Sujeito 1 apresente
capacidade de integração da imagem corporal, conforme indicado no protocolo pela
presença de três representações para-humanas (H: (H) = 0:3).

4.2. Resultados relacionados a função de manutenção do Eu-Pele.

A função de manutenção se origina da internalização da função de holding


(Winnicott, 1962/1970) desempenhada pela mãe em relação ao seu bebê, uma vez que
possibilita a internalização pelo sujeito das noções de psiquismo e corpo em sua solidez

75
e continuidade, a partir da internalização do suporte oferecido pelo objeto primário. Em
relação a função de manutenção do Eu-Pele, fazemos referência ao grau da capacidade
do sujeito em sustentar uma representação unificada do envelope corporal que serve de
base para a solidez dos elementos psíquicos (Anzieu, 1989).
A confusão de detalhes, a tendência a contaminação e a contaminação, em razão
do processo de ligação de várias percepções em uma só parte da prancha, tende a revelar
falhas na função de manutenção do Eu-Pele. O mesmo pode ser afirmado em relação ao
fenômeno especial de resposta de ligação, o qual acaba por também revelar a
necessidade por um suporte externo, o aplicador do método de Rorschach, em
decorrência de falhas nos processos de interiorização do suporte materno. Nesse
sentido, o excesso de respostas de ligação pode remeter a falhas na manutenção do Eu-
Pele que buscariam ser amenizadas pelo estabelecimento de relações simbióticas. A
necessidade de utilização do objeto externo como suporte pode também ser indicada
pelo fenômeno especial de envolvimento (Linhares; Pinheiro, 2009; Frédérick-Libon
2005; Passalacqua; Gravenhorst, 2005).

Os fenômenos especiais indicadores de falhas na função de manutenção do Eu-


Pele estão descritos na Tabela 4.2. A análise da função de manutenção do Eu-Pele é um
desafio a ser feito por meio de apenas dados quantitativos no Rorschach, visto que
grande parte dos elementos necessitam de uma avaliação qualitativa, conforme descrito
no capítulo II. Por essa razão, pretende-se fazer uma análise geral, que inclua pelo
menos um fator qualitativo, os fenômenos especiais. Em decorrência da natureza
qualitativa da análise da utilização do eixo central nas manchas unilaterais, importante
indicador da natureza do funcionamento da função de manutenção do Eu-Pele, será feita
essa avaliação apenas no capítulo V, no qual estão descritos os estudos de caso e a
avaliação qualitativa dos protocolos.

Tabela 4.2. Incidência de Fenômenos Especiais nos protocolos de Rorschach dos


adolescentes.

Participante Fenômenos Especiais


Sujeito 1 Tendência a contaminação Pr. II.
Resposta de ligação. Pr. II.
Envolvimento Pr. IV.
Sujeito 2 Resposta de ligação. Pr. I, II, III, VI, VIII.

76
Sujeito 3 Tendência a contaminação. Pr. V
Desvitalização. Pr. IX
Resposta de ligação. Pr. X.
Sujeito 4 Resposta de ligação. Pr. II e VIII.

Sujeito 5 Resposta de Ligação. Pr. II e VIII.


Desvitalização. Pr. III.
Tendência a contaminação. Pr. V.
Confusão de detalhes. Pr. X.
Sujeito 6 Resposta Ligação. Pr. X.
Sujeito 7 Resposta Ligação. Pr. X.
Confusão de detalhes. Pr. X.
Sujeito 8 Tendência a contaminação. Pr. VI.

Sujeito 9 Tendência a contaminação. Pr. II e V.


Contaminação. Pr. VII.
Resposta de ligação. Pr. II, IX
Envolvimento. Pr. III.

Sujeito 10 Desvitalização. Pr. IX.

É possível constatar, por meio da análise da Tabela 4.2, que oitenta por cento
(80%) dos participantes da pesquisa apresentaram pelo menos uma resposta envolvendo
o fenômeno especial de ligação. Primeiramente descrito por Minkowska (1956) no
desenvolvimento da abordagem fenômeno estrutural de interpretação do Rorschach
como uma resposta típica dos funcionamentos epiléticos, a resposta de ligação é
também comum em pessoas dependentes de vínculos simbióticos ou que necessitam de
excessivo contato com o ambiente externo (Passalacqua; Gravenhorst, 2005), o que
indica que a manutenção do Eu-Pele seria mantida pelo apelo anaclítico ao outro,
estabelecendo uma necessidade por relações de apoio que amenizariam as falhas de
manutenção. Esse parece ser o caso do Sujeito 2, detentor de cinco respostas de ligação
durante o teste. No entanto, ele apresenta três respostas K de boa qualidade formal,
conforme indicado na Tabela 4. 3, indicando que apesar de buscar a relação anaclítica
como suporte. O excesso de respostas de ligação denuncia a necessidade de utilização
do outro como suporte condicional para efetividade da manutenção do Eu-Pele. Essa
hipótese se mostra plausível pela associação de duas respostas de movimento humano
ao fenômeno especial de ligação. A única resposta K que não aparece associada ao
fenômeno de ligação, “duas mulheres, uma olhando pra outra”, denota uma

77
representação de apoio que ocorre, nesse caso, pelo olhar ao invés do contato físico.
Assim, a manutenção do Eu-Pele depende do apoio anaclítico do objeto, apesar da boa
frequência de K+ apresentar-se como indício de certo grau de eficácia adaptativa da
função de manutenção do Eu-Pele.

Apesar do aumento de frequência na utilização do espaço em branco (Dbl%=


6,2%), o branco da mancha é integrado a resposta sem o comprometimento da qualidade
formal. Esse fator indica que apesar da sensibilidade as falhas da representação de pele
psíquica, o Sujeito 2 é capaz superar os núcleos vazios do envelope psíquico que
invadem os processos perceptivos e manter a continuidade e solidez dessa
representação. Aliado a esse fator estão as cinco respostas globais elaboradas fornecidas
pelo Sujeito 2 que atestam certo grau de eficácia da função de manutenção do Eu-Pele,
uma vez que as respostas G elaboradas conferem a capacidade de utilização do eixo
central como suporte efetivo a representação, o que nos permite inferir a existência de
uma eixo central internalizado que serve de suporte para a manutenção e solidez das
representações corporais.

Em resumo, o Sujeito 2 apresenta algum grau de eficácia adaptativa da


manutenção das fronteiras, apesar do excesso de resposta ligação, que parecem denotar
necessidade de contato com o mundo externo. Nesse sentido, a função de manutenção
não parece ter sido suficientemente internalizada pelo holding (suporte) da relação
materno primária, precisando o sujeito de se apoiar no objeto externo para garantir a
eficácia da função.
A tendência a contaminação apresenta-se, em pelo menos uma resposta, em
cinquenta por cento (50%) dos protocolos avaliados. Considera-se a interpretação das
tendências a contaminação para além da interpretação clássica, que a relaciona com as
falhas na organização do pensamento. Portanto, a análise a seguir foi feita segundo o
modelo proposto no capítulo II.
Entre os adolescentes avaliados, o sujeito 9 é o participante com maior
frequência de tendência a contaminação. Além disso, ele apresenta uma contaminação
verdadeira na prancha VII “Tem duas pessoas aqui. Parece que esses dois, esses
coelhos estão saindo dela”, resposta DG F- H-A. A presença de contaminação (Pr. VII)
e as duas respostas de tendência a contaminação (Pr. II e IV), associadas a duas
respostas de ligação (Pr. II e IV) e uma resposta de envolvimento (Pr. III), indicam
prováveis falhas na manutenção do Eu-Pele, que seriam compensadas por meio do

78
suporte proporcionado pelo estabelecimento de relações anaclíticas. No caso do Sujeito
9, são indícios atenuantes para o adaptativo funcionamento da função de manutenção do
Eu-Pele uma resposta K+ e a ausência de respostas Dbl, conforme indicado na Tabela
4.3. Porém a análise das respostas globais (7 G simples, 1DG, 1 G vaga, 1 G cortada)
fortalece a hipótese de falhas na função de manutenção. Em resumo, o Sujeito 9 parece
apresentar falhas na manutenção do Eu-Pele, as quais ele busca compensar por meio do
apoio anaclítico ao objeto e do sobreinvestimento nos limites (F% = 70,0%e F+%=
62,5%; duas respostas de ligação).

Além da análise dos fenômenos especiais, a qualidade da função de manutenção


pode ser avaliada pela análise do processo de utilização do branco da mancha como
suporte para construção da percepção e da adequação da forma da figura que emerge
sobre o fundo negativizado. O branco pode se apresentar como um fundo que serve de
suporte a construção da forma, que possibilita a criação de um percepto unitário, caso a
função de manutenção apresente boa eficácia, assim como pode se mostrar
fragmentado, no caso de falhas na função de manutenção (Roman, 2001). Nesse sentido
a apreciação das respostas Dbl, em sua frequência e qualidade formal, pode indicar o
nível de funcionamento da função de manutenção. Contribui com essa análise, os
valores das variáveis formais (F+%; F%; F+%ext.) e cinestésicas. A capacidade de
manter a solidez e continuidade corporal pode ser inferida por meio da análise das
respostas cinestésicas de qualidade formal positiva, pois a projeção de movimento, sem
o comprometimento da qualidade formal, prescinde da utilização de um eixo central
como suporte a projeção, ao mesmo tempo em que a cinestesia bem vista atesta a
qualidade da continuidade dos envelopes corporais dos perceptos em movimento. As
variáveis formais, nesse último sentido, atestam o grau de manutenção de continuidade
dos envelopes psíquicos. Esses indicadores tais como apresentados pelo grupo de
adolescentes participantes da pesquisa são descritos na Tabela 4.3.

Tabela 4.3. Localização e determinantes utilizados como indicadores da função de


manutenção do Eu-Pele nos protocolos de Rorschach dos adolescentes.

Localização Determinantes

Sujeito G% Dbl% F+% F% F+%Ext. Cinestesias


Sujeito 1 75,0% 8,3% 57,13% 58,0% 41,60% K=0/ kan+ = 1
Sujeito 2 56,2% 6,2% 56,2% 77,7% 81,2% K+= 3

79
Sujeito 3 46,7% 26,7% 33,3% 40,0% 46,7% K+ = 1/ kan+ = 1
Sujeito 4 13,1% 2,6% 61,6% 55,3% 36,8% K+ = 1/ K- = 1/
kp- = 7
Sujeito 5 30,0% 5,0% 45,0% 55,5% 65,0% K=0/ kan+ = 2/
kp+ = 1/ kp- = 1/
kob- = 1
Sujeito 6 03,7% 0,0% 81,5% 75,0% 75,9% K=0/ kan+ = 1
Sujeito 7 33,3% 5,6% 44,4% 88,5% 80,5% K+ = 2/ kan + =1/
kob- = 1/ kp- = 1
Sujeito 8 50,0% 25% 41,7% 20,0% 41,7% K+ = 2/ kan+ = 2/
kan- = 1/ kob- = 1
Sujeito 9 56,2% 0,0% 62,5% 70,0% 68,7% K+ = 1/ kan+ = 2/
kan- =1
Sujeito 50% 13,6% 45,4% 40,0% 38,1% K=0/
10 kan+ = 1
Norma 35% 1,1% 54,5% 55,6% 57,3% --

Em relação aos participantes da pesquisa, o Sujeito 4 utilizou o branco da


mancha mais vezes que a média para adolescentes, não conseguindo elaborar a tarefa de
integração do branco intramacular ao restante da mancha sem comprometer a qualidade
formal da resposta, o que indica falhas na manutenção do Eu-Pele. Aliada a este
aspecto, a análise das respostas globais fornecidas e a análise das cinestesias, reforçam a
hipótese acerca de falhas na manutenção do Eu-Pele. Em relação ás respostas Globais,
apresenta (1GDbl, 1 G elaborado e 2G simples), a única G elaborada apresenta
comprometimento da boa forma: “Parecem almas, dadas as mãos, várias crianças, indo
em direção a uma espécie de portal. Atrás desses portais tem como se fosse uma cidade.
E vindo em direção a essas almas tem alguém erguendo os braços como se tivesse
dando boas-vindas. Na frente tem dois leões dourados” (G simples F- H-Cena). Na
análise das cinestesias, uma vez que as cinestesias humanas parciais de qualidade
formal negativa superam as respostas cinestésicas humanas (K+ = 1; K- = 1; kp- = 7),
conforme indicado na Tabela 4.3. Por fim o indicador F+%ext. (36,8%) termina por
embasar a hipótese de falhas manutenção do Eu-Pele. Por fim, as respostas de ligação
(Tabela 4.2), indicam falhas na manutenção do psiquismo. Tais falhas tendem a ser
compensadas pelo estabelecimento de relações anaclíticas, de maneira similar ao
inferido no caso do Sujeitos 2 e 9.
No caso do Sujeito 1, a ausência das respostas de movimento humano (K=0)
também indica possíveis falhas na função de manutenção. Aliado a tal indício, estão o
G% dilatado (75%) e a presença de um fenômeno especial de tendência a contaminação.
O Sujeito 1 apresenta uma resposta global elaborada de qualidade formal negativa e

80
duas respostas globais impressionistas, o que seria indício de ineficácia da função de
manutenção, uma vez que remete a dificuldade de utilização do eixo central da mancha
como organizador da percepção de representação vitalizada e solidificada em torno de
um eixo interno organizador. O Dbl% (8,3%), encontra-se dilatado, muito em razão da
baixa produtividade (R=12), ocupando a frequência de uma aparição em todo protocolo
(Dbl=1). Entretanto, o Dbl pôde ser integrado a mancha sem o comprometimento da
qualidade formal, um indicador da capacidade de manutenção do Eu-Pele. O fenômeno
de envolvimento e as respostas de ligação (Tabela 4.2) constituem-se indicadores de que
o sujeito se utiliza das relações de objeto como suporte auxiliares da manutenção da
unidade do Eu-Pele e apontam a existência de falhas na função de manutenção, de
maneira similar aos sujeito 2, 4 e 9.

O Sujeito 3 apresenta índices de F+% e F% (40% e 33,33%, respectivamente)


que indicam falhas na função de manutenção. Aliado a esse indicador, pôde-se observar
a frequência aumentada de utilização do espaço em branco (Dbl%= 26,7%), mal visto
em três das cinco respostas Dbl fornecidas. As falhas de integração do branco ao
restante da mancha, a presença de tendência a contaminação (Pr V) e desvitalização (Pr.
IX), descritas na Tabela 4.2, indicam falhas significativas na função manutenção do Eu-
Pele no Sujeito 3. Em relação a análise das respostas globais (3 G simples, 1 G cortado
e 2 GDbl) as falhas da função de manutenção puderam ser percebidas, em decorrência
da presença do G cortado, ausência de G elaborada e das duas respostas GDbl sem
integração adaptativa, uma vez que essas respostas atestam falhas na utilização do eixo
central e, portanto, apontam para dificuldades da representação corporal solida efetuada
em torno de um eixo organizador. A presença de uma resposta de ligação na prancha X
indica a tendência de utilização de relações anaclíticas, que podem ser utilizadas para
oferecer suporte a manutenção do Eu-Pele, em uma tentativa de garantir o
funcionamento adaptativa da função.

No caso do Sujeito 5 a preponderância de pequenas cinestesias sobre cinestesias


humanas (K=0/ kan+ = 2/ kp+ = 1/ kp- = 1/ kob- = 1), a presença dos fenômenos
especiais de desvitalização (Pr. III), a tendência a contaminação (Pr.V), os índices de
F% (55,5%) e F+%ext (65,0%) e a análise das localizações, com a presença de uma G
elaborada de qualidade formal negativa e aumento na sensibilidade ao branco
(Dbl%=5%) com dificuldade de integração do branco (em 50% das respostas Dbl

81
)indicam falhas na manutenção do Eu-Pele com tendência ao estabelecimento de
relações anaclíticas (fenômeno especial de ligação nas Pr. II e VIII).

No caso do Sujeito 6, o aumento na proporção das variáveis formais (F%=75%;


F+%= 81,5% e F+%ext= 75,9%) e o rebaixamento do G% em relação a norma
(G%=03,7%), com apenas um G cortado em todo protocolo, são indicadores de falhas na
manutenção do Eu-Pele. A presença da resposta de ligação na prancha X (Tabela 4.2)
pode indicar tendência ao estabelecimento de relações anaclíticas.
Conforme indicado na Tabela 4.3, o Sujeito 7 apresenta duas cinestesias
humanas de boa qualidade formal (K+), elemento que indica a eficácia na manutenção
do Eu-Pele. Entretanto, a sensibilidade ao branco (Dbl%=5,6%), que não pôde ser
integrada a mancha sem o comprometimento da qualidade formal, associada a presença
de um detalhe oligofrênico (Do) na prancha III, são indicadores de possíveis falhas na
manutenção do Eu-Pele. Assim, lança-se a hipótese de que o Sujeito 7 apresente
dificuldades em manter solidez do continente a partir de um eixo central, embora ele
tenha demonstrado a capacidade de efetuar essa manutenção. Nesse sentido, os
indicadores formais acima da média normativa, F% =88,5 e F+ext%%=80,5 e
F+%=44,4 abaixo da média indicam que o sujeito busca efetuar a manutenção, pelo
sobreinvestimento nos limites, porém falha em mantê-la.
O Sujeito 8 apresenta indicadores de falhas na manutenção do Eu-Pele,
apontados pelos indicadores formais abaixo da média (F+%= 41,7%, F% = 20%e
F+%ext=41,7%), a sensibilidade ao branco (Dbl =25,0%) acompanhada do
comprometimento da qualidade formal de todas as respostas, E pela presença de uma
resposta global cortada e de uma localização DG. Esses índices se contrapõem a
indicadores de eficácia da função, como a presença de duas respostas globais elaboradas
(de conteúdo agressivo) e duas cinestesias humanas de qualidade positiva. Entretanto a
tendência a contaminação na prancha VI e a confusão de detalhes apresentada na
prancha III (Tabela 4.2) apontam no sentido de dificuldades de manutenção do Eu-Pele,
ligadas principalmente a dificuldade elaboração do sentimento de vazio, contato
interpessoal e com o mundo externo, identificação sexual, temas latentes das pranchas
nas quais localização fornecida foi G cortada (Pr.III) e DG (Pr. VIII).

Por fim, o Sujeito 10 apresenta índices de respostas formais (F+%=45,4% F%


=55%e F+%ext.= 38,1) que apontam para dificuldades de manutenção do Eu-Pele. Em
consonância a essa hipótese, estão um fenômeno especial de desvitalização (Pr. IX) e a

82
sensibilidade ao branco (Dbl=13,6%) a qual não pôde ser integrada a mancha sem
comprometer a qualidade formal da resposta.

Em resumo, todos os adolescentes avaliados apresentaram, em maior ou menor


grau, indícios de falhas no processo de manutenção da continuidade da pele psíquica
organizada em torno de um eixo central. Chama ainda atenção que 80% dos protocolos
tenham apresentado pelo menos uma resposta de ligação, o que aponta que o
estabelecimento de relações anaclíticas. Essa é uma necessidade que visa compensar as
falhas da manutenção do Eu-Pele. Em decorrência das falhas nos processos de
identificação primária com o suporte proporcionado pela figura materna, os sujeitos
parecem se utilizar do outro como suporte externo, a fim de efetuar a manutenção do
Eu-Pele, que seria falha de outra maneira.

4.3 Resultados dos indicadores do funcionamento da função de continência do Eu-


Pele.

Enquanto a função de manutenção do Eu-Pele desempenha o papel de


sustentação do psiquismo, desenvolvida por meio da internalização do suporte materno
primário, a função de continência do Eu-Pele ocupa o papel de garantir a continuidade
da representação de uma pele que recobre a superfície interna, instaurando um envelope
psíquico que estabelece as barreiras interno-externo e funda a existência de um
continente próprio interno que pode servir de receptáculo para os objetos internos.
Segundo Käes (1979), há dois aspectos envolvidos nesse processo de constituição de
um continente psíquico: o aspecto imóvel e passivo de depósito de elementos
(continente); e o aspecto ativo de transformação desses conteúdos em elementos
representáveis (contentor), segundo o modelo de Bion (1962/1991) acerca da tradução
feita pela mãe das identificações projetivas da criança. No Rorschach, a utilização
do espaço em branco pode indicar o grau de capacidade de superação das falhas do
continente e a aptidão em manter a representação de uma superfície corporal de forma
continua e sem falhas. Desse modo, além da qualidade formal das respostas com
utilização do espaço em branco das manchas de Rorschach revelar a capacidade de
manutenção do psiquismo, o Dbl é também um indicador da qualidade das barreiras do
continente e da natureza do próprio continente. O índice barreira-penetração,
complementar aos índices formais (F+%; F% e F+%ext.) aponta a medida de eficácia da

83
capacidade delimitação de um continente próprio, uma vez que essas variáveis indicam
o grau de competência das barreiras em delimitar um continente distinto do restante
prancha. Esses índices, relativos aos participantes da pesquisa, estão descritos na Tabela
4.4.

Tabela 4.4. Os determinantes formais, as respostas barreira-penetração e a as


localizações na análise do funcionamento da continência do Eu-pele nos protocolos de
Rorschach dos adolescentes

Sujeito F+% F% F+%ext. B- P Dbl% G%


Sujeito 1 57,13% 58,0% 41,6% 1:2 8,3% 75,0%
Sujeito 2 56,2% 77,7% 81,2% 1:1 6,2% 56,2%
Sujeito 3 33,3% 40,0% 46,7% 2:0 26,7% 46,7%
Sujeito 4 55,3% 38,1% 23,7% 0:2 2,6% 13,2%
Sujeito 5 45,0% 55,5% 65,5% 0:3 5,0% 30,0%
Sujeito 6 81,5% 75,0% 75,9% 0:0 0,0% 3,7%
Sujeito 7 44,4% 88,5% 80,5% 1:1 5,6% 33,3%
Sujeito 8 41,7% 20,0% 41,7% 0:2 25% 50,0%
Sujeito 9 62,5% 70,0% 68,7% 0:1 0,0% 56,2%
Sujeito 10 45,4% 40,0% 38,1% 2:1 13,6% 50,0%
Norma 54,5% 55,6% 57,3% 4B:2P* 1,1% 35%

De forma complementar aos índices citados, as respostas K, de qualidade formal


positiva, indicam a capacidade de projetar a forma humana sem romper os limites do
continente do percepto, permitindo que a avaliação da capacidade de delimitação do
continente seja inferida. De forma similar, as cinestesias não humanas também
possibilitam apreciar a aptidão para construção de um continente próprio e diferenciado.
Entretanto, as respostas cinestésicas humanas ainda são um indicador maior de eficácia
na integração, visto que as respostas K remetem a projeção de continente ligado a
representação humana. Ainda, o excesso de respostas de esfumaçado (E), visto que estes
fatores indicam a necessidade de um contato regressivo com o continente do objeto
externo, e as resposta de cor pura ou cor-forma (C e CF), por indicarem a dificuldade de
contenção dos afetos no continente psíquico e a tendência a expulsão destes, são fatores
importantes de serem avaliados para a análise do funcionamento da função continente
do Eu-Pele. Já os desdobramentos, diretos (Respostas Reflexo) e indireto (Respostas
Par), indicam, em seu excesso, a tendência a não diferenciação do continente pela
dissolução dos limites que esse tipo de resposta atesta. Esses fatores estão descritos na
Tabela 4.5.

84
Tabela 4.5. Determinantes cinestésicos, sensoriais e a incidência de desdobramentos na
análise da função de continência do Eu-Pele no método de Rorschach dos adolescentes

Sujeito Cinestesias FC:CF+C FE:CF+E Desdobramentos


Sujeito 1 K=0 0:2 1:0 13,1% de respostas par, Pr. I e
kan+ = 1 II, III, V.
Sujeito 2 K+= 3 1:0 1:1 6,2% de respostas reflexo, Pr. V.
12,4% de respostas par,
Pr. VII, VIII.
Sujeito 3 K+ = 1 0:2 3:1 33% de respostas par, Pr. I, II,
kan+ = 1 VI, VII, X.
Sujeito 4 K+ = 1 0:2 1:1 13,1% de respostas par, Pr. I, II,
K- = 1 III, V.
kp- = 7
Sujeito 5 K=0 0:1 1:2 10% de respostas par, Pr. VIII,
kan+ = 2 IX.
kp+ = 1
kp- = 1
kob- = 1
Sujeito 6 K=0 1:1 2:0 3,7% de respostas par, Pr. II.
kan+ = 1
Sujeito 7 K+ = 2 2:1 0:1 11,1% de respostas par, Pr. I , II.
kan + =1
kob- = 1
kp- = 1
Sujeito 8 K+ = 2 1:1 0:0 8,3% de respostas par.
kan+ = 2
kan- = 1
kob- = 1
Sujeito 9 K+ = 1 0:0 0:0 12,5% de respostas par, Pr. VII,
kan+ = 2 VIII.
kan- =1
Sujeito 10 K=0 4:1 3:0 31,8% de respostas par, Pr.
kan+ = 1 II,VII,VIII, IX, X
Norma -- 2 ,1:2 0,7:0,4 --

Embora o Sujeito 1 apresente sensibilidade ao branco maior que a média para


adolescentes (Dbl%=8,3), ele se mostrou capaz de integrar o branco ao restante da
mancha, o que se configura como indicador de eficácia do continente do Eu-Pele. Além
disso, o índice de respostas formais (F% =58% e F+% =57,13%) apresentam valores
próximos a média, o que constituiriam indicadores da boa eficácia da função continente
do Eu-Pele. Por outro lado, o índice de F+%ext. (41,6%) abaixo da média, o índice
FC:CF+F (0:2) e o índice barreira-penetração (B:P=1:2) indicam fragilidade do

85
continente. Em resumo, há indícios de falhas na função continente do Eu-Pele no caso
do Sujeito 1, ao mesmo tempo em que, também aparecem indícios de eficácia dessa
função durante o protocolo. Portanto, é provável que o sujeito apresente a capacidade
adaptativa de delimitação das fronteiras, apesar de ocorrerem relevantes falhas em
determinadas situações, provavelmente naquelas nas quais o sujeito sente-se invadido
pela vida afetiva ou pelas estimulações externas (F+%ext. abaixo da média, FC<CF+C),
hipótese condizente com as falhas encontradas na manutenção do Eu-Pele, já descritas
na sessão acima.

As falhas nas funções de manutenção e continente do Eu-Pele, remetem a


hipótese do “Eu-Pele escorregador”, descrito por Anzieu (1989), no qual as
representações são dificilmente conservadas no continente. O continente é existente,
porém é marcado pela fragilidade e impossibilidade de conservação.
O Sujeito 2 demonstrou-se capaz em integrar o espaço em branco (Dbl=6,2%) ao
restante da mancha sem prejudicar a qualidade formal da resposta, o que é um indicador
de boa eficácia do continente. Apesar de apresentar forte sensibilidade ao branco, o que
aponta para presença de sensibilidade as falhas do continente e ao vazio, conforme
postulado por Roman (2001), o sujeito apresenta capacidade delimitação de um espaço
continente próprio, o que é um indício de eficácia da função continente. As respostas
F%, F+% e F+ ext (56,2% e 77,7%, 81,2%) em valores superiores à média e os valores
de barreira-penetração (1B:1P), em valores diminuídos em relação a norma, indicam
sobreinvestimento dos limites do continente, o que resultaria na diminuição das trocas
com o ambiente (Tabela 4.4). Apesar da defesa rígida marcada pelo sobreinvestimento
dos limites, a resposta reflexo (Pr. V) indica que as barreiras rígidas podem ceder e dar
lugar a uma confusão entre sujeito-objeto, similar ao que Anzieu (1989) descreve como
a fantasia de “uma pele comum” entre o sujeito e o objeto, no qual o sujeito é tomado
pela ilusão fantasmática de possuir uma pele compartilhada com o objeto. Esse fator,
associado as numerosas ocorrências de respostas de ligação (Tabela 4.2) reforçam a
tendência ao estabelecimento de relações anaclíticas.
O Sujeito 3 apresenta indícios de falhas na função continente do Eu-Pele,
conforme demonstram a qualidade formal negativa de metade das respostas de espaço
em branco (Dbl=26,7%), que indicam além da sensibilidade das falhas do envelope
psíquico, o grau de dificuldade de integração do vazio. Além disso, os resultados do
índice de barreira-penetração (B:P=0:2) e de F%, F+% e F+%ext. (40%, 33%, 46,7%,

86
respectivamente) fortalecem a hipótese sobre as falhas na barreira delimitadora do
continente. A única resposta K+ (Pr.III), “duas mulheres de cada lado...estão segurando
uma cabeça, alguma coisa assim”, indica que o envelope é representado em sua
integridade, porém a fase de inquérito denuncia a não manutenção desse envelope. Os
índices de controle afetivo (FC:CF+C=2:1; FE:EF+E: 3:1), indicariam eficácia no
estabelecimento de barreiras ao continente, se a qualidade formal negativa não se
fizesse presente e indicasse a fragilidade do continente (FC-=1; FE-=1; F+%ext.; F+%;
F% abaixo da média). Além disso, o alto número de respostas Par (frequência de 4
ocorrências) apontam para falhas da função continente do Eu-Pele. Portanto, há indícios
de que o Sujeito 3 apresente falhas nas funções de manutenção e continente do Eu-Pele.
Uma vez que os limites são necessários para que a pulsão possa ser projetada nas
partes diferenciadas do corpo, a ausência de barreiras que marquem os limites do
continente, conforme indicado pela análise do protocolo do Sujeito 3, indica que a
angústia não pode ser localizada, identificada e amenizada. Desse modo, o
funcionamento do Sujeito 3 se aproxima da metáfora de um “núcleo sem casca”
(Anzieu, 1989 p.116), que lançaria a necessidade ao indivíduo em buscar a
compensação dessa ausência de fronteiras entre o interno e o externo por meio da dor
física ou angústia psíquica, criando assim um envelope substitutivo composto pelo
sofrimento (Anzieu, 1989).

No caso do Sujeito 4, o índice F+%ext. (36,8%), o índice de barreira e


penetração em proporção inferior as taxas normativas (B:P=1:1) e a sensibilidade ao
branco acompanhada da falha de integração do branco ao restante da resposta
(Dbl=2,6%; Dbl+=0,0%) indicam falhas no estabelecimento de barreiras delimitadoras
de um continente. Ainda, a presença de um K de qualidade formal negativa e sete kp de
qualidade formal negativa indicam falhas na função continente do Eu-Pele, apesar da
presença de uma resposta cinestésica humana de qualidade formal positiva (K+=1; K-
=1; kp-=7). Além disso, a proporção de FC: CF+C =0:2 reforça a hipótese anterior,
acerca de falhas na eficácia do continente. Em resumo, infere-se que o sujeito 4
apresenta a capacidade de delimitação de um continente, porém as barreiras de tal
continente apresentam-se demasiadamente fluídas. Em outras palavras, o continente
existe, mas tende a falhar na tarefa de conter os conteúdos psíquicos, que escapam, não
podendo ser lembrados, muito menos elaborados, descrição próxima a do Sujeito 1 do
“Eu-Pele escorregador” proposto por Anzieu (1989).

87
O Sujeito 5 apresenta fragilidade das barreiras delimitadoras de um continente
próprio, conforme indicado pelos seguintes indicadores: preponderância de cinestesias
menores de qualidade formal negativa sobre as cinestesias maiores (K=0; kan+=2;
kp+=1; kp-=1; kob-=1), valor do índice barreira penetração (B:P=0:3), razão
apresentada nas formulas afetivas (FC:CF+C=0:1; FE<EF+E=1:2). A frequência do
F+% = 45,0% indica falhas na delimitação do continente, enquanto a variável F+%ext.=
65,5% indicam o superinvestimento defensivo das barreiras que visam afastar as
manifestações pulsionais. Em resumo, o Sujeito 5 apresenta importantes falhas na
delimitação de continente próprio contentor dos conteúdos psíquicos; as barreiras do
continente são frágeis, não sendo capazes de propiciar a capacidade de contenção dos
conteúdos psíquicos. Trata-se de mais um caso de “Eu-Pele escorregador” (Anzieu,
1989).
O Sujeito 6 apresenta superinvestimento das barreiras do continente, conforme
indicado pelo aumento das frequências de formalização F%=75,0%, F+%= 81,5e
F+%ext.= 75,9 em relação a norma. A ausência de respostas barreira e penetração
(B:P=0:0) fortalece essa hipótese acerca de barreiras do continente organizadas de modo
defensivo, caracterizado pelo excesso de investimento nos limites, o que diminui as
trocas com o ambiente e dificulta os processos de identificação, conforme citado na
primeira seção do presente capítulo sobre o caso em questão. Por meio do
sobreinvestimento dos limites, o Sujeito 6 mostra-se capaz de delimitar um continente e
conter os elementos em seu interior (FC:CF+C=1:1; FE:EF+E= 2:0; Dbl%=0).
Já o Sujeito 7, apresenta duas respostas cinestésicas humanas (K+=2) e índice de
controle afetivo adaptativo (FC:CF+C=2:1), o que denota a capacidade de contenção
dos afetos. A capacidade de integração do branco ao restante da mancha, sem o
comprometimento da qualidade formal da resposta (Dbl%=5,6%) indica a capacidade
de superação das falhas narcísicas. Entretanto, as barreiras do continente tendem a ser
demasiadamente investidas por defesas que efetuam o sobreinvestimento dos limites e
acabam por constringir os elementos psíquicos (F%=88,5%; F+%ext.=80,5% acima da
norma; B:P=1:1). Além disso, falhas na delimitação do envelope são prováveis de
ocorrer (F+%= 44,4% abaixo da norma).
Já o Sujeito 8 apresenta barreiras demasiadamente fluídas (F+%=41,7%, F%=
20% e F+%ext.=41,7%, abaixo da norma) com falhas narcísicas na manutenção do
envelope (Dbl%= 25% aumentado; B:P=0:2). Entretanto, apesar da fragilidade das
barreiras entre o interno e o externo e da sensibilidade às falhas narcísicas, o sujeito é

88
capaz de delimitar a existência de um continente interno (K=2; FC:CF+C=1:1).
Entretanto a análise qualitativa das respostas K indica dificuldade de conter a pulsão
agressiva e sexual: “Está parecendo dois anjos” na prancha I, é seguida por duas
respostas compostas por identificação projetiva na mesma prancha “tem uma bruxa,
bruxa malvada” e “um elefante malvado”. A identificação projetiva indica a dificuldade
de contenção do conteúdos e manutenção das barreiras delimitadores do continente. A
outra resposta K ilustra a dificuldade de continência pulsional sexual: “Um et dançando
Funk” G cortado K H Pr. III. Por fim, a análise das pequenas cinestesias indica falhas na
função continente do Eu-Pele, por conta das falhas de contenção da pulsão agressiva:
“Dois rinocerontes brigando” (associação) “o vermelho é sangue, agressão” (inquérito)
G KanCF A/Sg Pr. II; “Um vulcão” Dd kobEF Nat/Frag; “Dois cachorros
brigando de cabeça para baixo” D kan A Pr. VII.
O Sujeito 10 parece apresentar fragilidade dos limites que delimitam o dentro e o
fora do continente (F+%=45,4%; F%=40,0%; F+%ext.= 38,1% abaixo dos dados
normativos; Dbl%=13,6%) e dificuldades de contenção dos impulsos, falhas na função
continente do Eu-Pele (∑C:∑E:3:1,5).
Por fim, no caso do Sujeito 9, apesar do sobreinvestimento dos limites,
responsável pela diminuição das trocas com o meio e por constringir os elementos
psíquicos (F+%=62,5%; F%=70,0%; F+%ext.=68,7%) acima da média; FC:CF+C=0:0;
FE:EF+E=0:0), há indícios relativos a capacidade de delimitação de continente próprio
(Dbl%=0; K+=1; Kan+ =2).
A capacidade de transformação dos conteúdos sensoriais em conteúdos
representáveis, aspecto contentor do Eu-pele, é outro aspecto a ser analisado ao se
investigar a grau de efetividade do continente, uma vez que os conteúdos
irrepresentáveis tendem a romper as barreiras do continente (Anzieu, 1989).

Em relação a esse aspecto contetor do Eu-pele, os índices formais, quando se


apresentam próximos as normas, indicam a aptidão em realizar a tarefa semântica da
prova de Rorschach de uma maneira adaptativa. A diminuição dos índices formais
indica o oposto, por sinalizar a dificuldade de transformação das manchas de tinta em
conteúdos representáveis, de significado compartilhado com o grupo social de inserção
do sujeito. A boa frequência de G%, D% e Dd% indica a variação de modos de
apreensão, o que sinaliza a eficácia da função de transformação.

89
Os indicadores no Rorschach do aspecto contentor (de transformação dos conteúdos) do
continente estão descritos na tabela 4.6.

Tabela 4.6. Incidência dos modos de apreensão e índices de determinantes formais na


análise do aspecto contentor (transformação) da função de continência do Eu-Pele.

Sujeito G% D% Dd% F+% F% F+%ext.


Sujeito 1 75,0% 16% 8,3% 57,1% 58,0% 41,6%
Sujeito 2 56,2% 37,5% 6,2% 56,2% 77,7% 81,2%
Sujeito 3 46,7% 26,6% 13,3% 33,3% 40,0% 46,7%
Sujeito 4 13,2% 28,9% 57,9% 61,9%% 55,3% 36,8%%
Sujeito 5 30,0% 65,0% 15,5% 45,0% 55,5% 65,5%
Sujeito 6 3,7% 40,7% 55,6% 81,5% 75,0% 75,9%
Sujeito 7 33,3% 38.9% 27,8% 44,4% 88,5% 80,5%
Sujeito 8 50,0% 16,7% 33,3% 41,7% 20,0% 41,7%
Sujeito 9 56,2% 31,2% 12,5% 62,5% 70,0% 68,7%
Sujeito 10 50,0% 18,2% 31,8% 45,4% 40,0% 38,1%
Norma 35% 33,4% 30,3% 54,5% 55,6% 57,3%

No Sujeito 1, a dificuldade de variar na proporção equivalente à norma a


localização (de G para D e Dd) e a diminuição da qualidade formal nos determinantes
mistos e sensoriais (F+%=57,1; F+%ext. 41,6%) indicam falhas no aspecto contentor da
função de continência do Eu-Pele. As dificuldades de transformação dos conteúdos
podem estar relacionadas as falhas na contenção dos conteúdos psíquicos descritas
acima.

A análise da tabela 4.6 indica que o Sujeito 2 apresenta raras variações de


localização de respostas (G% 56,25%; D% 37,5%; Dd% 6,25%) Entretanto, o sujeito
demonstrou eficácia em transformar os perceptos, por meio do fornecimento de três
respostas globais elaboradas, um forte indício de capacidade de transformação dos
conteúdos, uma vez que as respostas G elaboradas remetem ao processo de projeção
criativa e adaptativa que ocorre pela integração de diferentes partes da prancha, sem o
comprometimento da qualidade formal geral da resposta. Por outro lado, os índices F%
(77,7%) e F+%ext. (81,2%) indicam a tendência a constrição dos conteúdos em

90
detrimento a sua transformação. Esses fatores confirmam a hipótese de falhas no
aspecto contentor do Eu-Pele.
Nesse sentido, no caso do Sujeito 3, o excesso de G% indica dificuldades de
transformação dos conteúdos, pois há a presença de uma G elaborada de qualidade
formal negativa aliado ao rebaixamento dos índices F+% e F+%ext., indícios da
dificuldade de transformação dos conteúdos. Esse fator pode estar relacionado as
dificuldades na representação de corpo descrito acima em relação a esse caso, visto que
a própria ausência de capacidade de delimitação de um continente próprio e
diferenciado do ambiente é um fator que impede a transformação dos conteúdos, pela
ausência de um espaço contentor.

No Sujeito 4, a capacidade de transformar os conteúdos apresentou-se falha por


conta da baixa variação de localizações (Dd%=57,85%) e rebaixamento do índice
F+%ext. em relação a norma. Além disso, o índice de controle dos afetos apresenta-se
em proporção (FC:CF+C=0:2) indicativa de falhas no aspecto contentor do continente e
indica a tendência a expulsão dos elementos psíquicos do continente, fator que pode
instaurar as bases para a utilização dos mecanismos de identificação projetiva.
O mesmo ocorre com o Sujeito 5, conforme indicado pelos índices FC<CF+C
(0:1), FE<EF+E (1:2), D% (65%) acima da média. Além disso, os índices F+% (45%)
rebaixado e são indicativos de falhas no processo simbolização dos conteúdos e indicam
a tendência a expulsão dos conteúdos, em detrimento da contenção e transformação
desses elementos.
No Sujeito 6, a frequência de F+%(81,5%), F%(75,0%), F+%ext. (75,9%),
acima da média, aliados a proporção afetiva (FC>CF+C=1;1 FE:EF+E=2:0) parecem
indicar que os conteúdos são constringidos no continente defensivamente enrijecido, em
detrimento da utilização de recursos simbólicos como processos auxiliares a contenção.
Dessa forma, o sujeito 6 parece se utilizar de defesas rígidas para evitar a emergência
dos conteúdos internos, uma vez que a simbolização desses conteúdos parece estar
impossibilitada, por conta da falta de recursos de elaboração ou pelo excesso pulsional
que supera as capacidades egóicas de transformação dos conteúdos.
Já o Sujeito 7 apresenta boa capacidade de transformação dos conteúdos,
conforme indicado pela melhor variação de localização apresentada por ele (G%; D%;
Dd% relativamente mais próximos a norma). Entretanto, o sujeito 7 utiliza defesas
rígidas (F%=88,5%; F+%ext.=80,5%); que tendem a impedir a ligação do afeto e causar

91
o aumento da ansiedade, provavelmente, em decorrência da dificuldade de
transformação dos elementos irrepresentáveis em conteúdos representáveis
(FE:EF+E=0:1 F+%=44,4%).

O sujeito 8 também apresenta dificuldades de transformação dos conteúdos


conforme indicado pelos indicadores F+%, F% e F+%ext. (41,7%;20%;41,7%
respectivamente) abaixo dos valores médios e pela frequência de G% acima da média
(G%=50%). A presença de uma resposta cinestésica humana (K+=1) e de uma de
resposta global elaborada denotariam a capacidade de transformação criativa.
Entretanto, uma análise mais qualitativa indica que a resposta G elaborada (“dois
rinocerontes brigando” Pr. II) revela falhas no processo de transformação sublimatória
dos elementos pulsionais, uma vez que a agressividade é projetada de maneira visceral.
Em resumo o sujeito parece apresentar falhas no aspecto contentor do continente.
Quanto ao aspecto contentor, o funcionamento do sujeito 10 apresentaria falhas
similares ao do sujeito 8, apresentando falhas em sua função, por conta da baixa
frequência de F+%, F% e F+%ext. (45,4%; 40,0%; 38,1%) e dilatação do G% em
relação à média (G%=50%). Além disso, o Sujeito 10 não forneceu respostas
cinestésicas humanas (K=0). Esse fator é agravante das falhas do aspecto contentor do
caso do sujeito 10, visto que K, de qualidade formal positiva, remete a capacidade
criativa de transformação da mancha. Desse modo, a ausência de K fortalece a hipótese
acerca de falhas no aspecto contentor da função continente do Eu-Pele do Sujeito 10.
Por fim, funcionamento do sujeito 9 parece se aproximar, quanto ao aspecto
contentor, aos casos citados acima, uma vez que há indícios que ele apresente
dificuldades de transformação dos conteúdos, conforme demonstrado pelo apego a
formas e pela dificuldade de variação de localização de resposta (G%=56,2%;
F+%=62,5%; F%=70,0%; F+%ext.=68,7%). Os conteúdos parecem ser constringidos ao
invés de serem transformados.

4.4 Resultados dos indicadores do funcionamento da função de para-excitação do


Eu-Pele.

Os índices F+% e F+%ext. %, em valores próximos a norma, além de denotarem


boa funcionalidade da função de manutenção e de continente do Eu-Pele, indicam o
bom funcionamento dos mecanismos de para-excitação, uma vez que atestam a

92
capacidade de circunscrever o estimulo e delimitar os limites do continente. Além disso,
a frequência de F% próxima a norma atesta o domínio do sujeito sobre o impacto
causado pelas características manifestas e latentes das manchas sobre ele. Assim,
utilização suficiente e adaptativa da forma nas respostas de forma pura ou nas respostas
moduladas pela forma (FC; FE; FC), é indicador da efetividade na função de para-
excitação das estimulações externas, indicando a boa qualidade da função de para-
excitação do Eu-Pele. O excesso da formalização, por outro lado, pode indicar defesas
narcísicas rígidas e até mesmo pode remeter a colagem das barreiras internas e externas,
ou a fusão das funções de para-excitação e continente, na qual os conteúdos acabam se
diluindo devido a falhas na função de contenção (Linhares; Pinheiro 2009; Roman,
1996).

Pode-se inferir a eficácia dos processos de para-excitação a partir do tempo de


latência, definido como sendo o tempo decorrido entre a apresentação de uma prancha
até o fornecimento da primeira resposta relativa a ela. O aumento ou diminuição no
tempo de latência pode indicar falhas na função de para-excitação do Eu-Pele; no
primeiro caso, o aumento do tempo se faz necessário como uma tentativa de compensar
a falha da função de para-excitação das estimulações externas. No último caso, a
diminuição do tempo revela a falência da função de para-excitação, ao mesmo tempo
em que pode ser elemento revelador da conduta impulsiva (e expulsiva) do examinando.
Por último, os choques remetem as falhas de para-excitação, uma vez que o impacto da
mancha sobre o examinando supera sua capacidade de elaboração (Linhares; Pinheiro
2009; Roman, 1996). Esses elementos estão descritos na Tabela 4.7.

Tabela 4.7. A incidência de determinantes formais e sensoriais, choques e o tempo de


latência médio total na análise da função de para-excitação do Eu-Pele nos protocolos
de Rorschach dos adolescentes.

Sujeito F+%ext F% FC:CF+ FE:EF+E FC´:C´F+C´ Choques TLm


C
Sujeito 1 41,6% 58,0% 0:2 1:0 0:0 Pr.III, IX 14’’
Sujeito 2 81,2% 77,7% 1:0 1:1 1:0 Pr. IX 27,1´´
Sujeito 3 46,7% 40,0% 0:2 3:1 0:0 Pr. VIII --
Sujeito 4 23,7% 38,1% 0:2 1:1 1:1 Pr. VI --
Sujeito 5 65,5% 55,5% 0:1 1:2 0:0 -- 25´´
Sujeito 6 75,9% 75,0% 1:1 2:0 0:0 -- 18´´
Sujeito 7 80,5% 88,5% 2:1 0:1 0:0 -- 16´´
Sujeito 8 41,7% 20,0% 1:1 0:0 0:0 -- 39’’
Sujeito 9 68,7% 70,0% 0:0 0:0 0:1 -- --

93
Sujeito 38,1% 40,0% 4:1 3:0 2:0 -- --
10
Norma 57,3% 55,6% 2,1:2 0,7:0,4 -- -- 21,2´´

Conforme Tabela 4.8, os Sujeito 1, 3 e 4 apresentaram indícios de falhas na


função de para-excitação do Eu-Pele, indicada por choques as pranchas (Pr. III e IX; Pr.
VIII; Pr. VI, respectivamente). No caso do Sujeito 1, tais falhas são indicadas ainda pela
variável FC<CF+C (0:2) e pela diminuição do tempo de latência (14 segundos),
enquanto no caso do Sujeito 3, além do índice FC:CF+C (0:2), a preponderância de
falhas nos processos de para-excitação são indicadas por uma resposta G cortado, H:Hd
(2:5) e F% abaixo da média (F%=40%). No caso Sujeito 4, além do choque na prancha
VI e da proporção do índice afetivo (FC:CF+C=0:2), a proporção de cinestesias
humanas parciais maior que as cinestesias humanas também é um indicativo de falhas
nos processos de para-excitação do Eu-Pele. O Sujeito 8 apresenta falhas na função de
para-excitação, conforme indicado pelos índices F% F+% (20% e 41,7%,
respectivamente) e considerável diminuição do tempo de latência (39 segundos).

Já o Sujeito 9 apresentou indícios relativos a falhas na função de para-excitação no


Eu-Pele, não pelos dados do psicograma, mas por fatores clínicos. Durante a primeira
tentativa de aplicação, o sujeito 9 sentiu-se mal ao final da fase de associação e pediu
que o procedimento fosse interrompido. Na segunda aplicação, durante a exposição da
prancha V, o Sujeito 9 pediu para interromper momentaneamente para que ele pudesse
“ir ao banheiro”, tendo demonstrado perceptível desconforto. Portanto, pode-se inferir
que há falhas na função de para-excitação do Eu-Pele do sujeito 9, relativas a relação
com o outro e a ligação, que comparecem na relação transferencial com o clínico, apesar
de não haver indicativos no psicograma.

O Sujeito 10 apresenta indícios relativos a incidência de falhas na função de


para-excitação, conforme indicado pelos índices de F% e F+%ext. (38,1% e 40%,
respectivamente). Entretanto, os indicadores afetivos conferem algum grau de
capacidade de para-excitação ao sujeito 10 (FC:FC+C=4:1; FE:EF+E=3:0
FC´:C´F+F´=2:0).

Por outro lado, o sujeito 7 parece apresentar capacidade adaptativa de para-


excitação do Eu-Pele, conforme indicado pelos indicadores descritos na tabela 4.7
(F+%=88,5%; F+%ext.=80,5%; FC:CF+C=2:1; FE:EF+E=0:1) e na tabela 4.8

94
(H:Hd=2:1; A:Ad=5:0; K:kp=2:1; ausência de G cortado). Entretanto, as falhas na
para-excitação são indicadas pela presença de um detalhe oligofrênico na Pr. III e pela
diminuição do tempo médio de latência (16 segundos).

No Rorschach, o excesso de respostas kp, Ad, Hd, G cortado ou Do (Detalhe


oligofrênico) pode indicar falhas nos processos de para-excitação, que ocorreria pela
não representação integral das percepções ansiogênicas (Linhares; Pinheiro, 2009).
Esses elementos estão descritos na tabela 4.8. Os sujeitos 2,3,5 e 6 apresentaram falhas
relativas a esses indicativos, conforme descrito acima.

Tabela 4.8. Incidência das representações humanas e animais parciais em relação as


representações humanas e animais íntegras e localizações relacionados a função de
para-excitação do Eu-Pele nos protocolos de Rorschach dos adolescentes.

Participante H:Hd A:Ad K:kp G:Gcort D:Do


Sujeito 1 0:0 5:0 0:0 8:0 2:0
Sujeito 2 3:0 8:0 3:0 8:0 6:0
Sujeito 3 2:5 2:0 1:0 4:1 3:0
Sujeito 4 9:7 9:0 2:7 4:0 11:0
Sujeito 5 0:2 5:3 0:1 3:0 13:0
Sujeito 6 2:5 13:0 0:0 0:1 11:0
Sujeito 7 2:1 5:0 2:1 5:0 7:1
Sujeito 8 0:0 5:2 2:0 4:0 11:0
Sujeito 9 1:1 8:1 1:0 7:1 5:0
Sujeito 10 1:0 8:0 0:0 10:1 4:0
Norma -- -- -- -- --

O Sujeito 2 mostrou dois indícios de falha da função: o aumento no tempo de


latência médio (27,1 segundos), e choque na prancha IX, sinalizado pelo aumento do
tempo de latência na prancha (120 segundos). No caso do Sujeito 5, há vários indícios
de falhas na função de para-excitação do Eu-Pele (a presença de três G cortados,
H:Hd=0:2; K:kp=0:1, FC:CF+C=0:1; FE:EF+F=1:2)

No protocolo do sujeito 6 há também indícios de falhas na para-excitação,


indicados por H<Hd, K<kp (Tabela 4.8) e pela leve diminuição no tempo médio de
latência total. Entretanto, essas falhas parecem ser amenizadas pela defesa de

95
sobreinvestimento dos limites e pela capacidade de controle dos afetos (F% aumentado
em relação a norma; FC=CF+C; FE>EF+E).

Para finalizar, pretende-se apresentar uma síntese dos resultados descritos neste
capítulo:

Em relação aos investimentos dos limites, os adolescentes podem ser divididos


em dois grupos segundos os resultados encontrados: um grupo que apresenta
sobreinvestimento dos limites; um grupo que apresenta fragilidade dos limites. O grupo
marcado pelo sobreinvestimento dos limites é composto pelos Sujeitos 2,5,6,7,9, ao
passo que o grupo que apresenta fragilidade das barreiras é composto pelos Sujeitos
3,8,10,4,1. Não foram encontrados resultados referentes a um modo de investimento
dos limites não patológico.

Todos os adolescentes avaliados apresentaram, em níveis diversos, falhas na


função de manutenção do Eu-Pele. Os Sujeito 2 e 7 apresentam maior adaptação em
relação a esse aspecto, embora ainda assim apresentem indícios de ineficácia da função.
O Sujeito 2 parece amenizar essas falhas e garantir um funcionamento adaptativo da
função por meio do estabelecimento de relações anaclíticas, ao passo que o Sujeito 7
parece ter dificuldades em conservar a boa eficácia da função, embora seja capaz de
efetuar essa tarefa. Além disso, os dois casos citados utilizam de defesas rígidas
responsáveis pelo sobreinvestimento dos limites como forma de garantir a manutenção
do Eu-Pele. Entretanto, essa estratégia tende a diminuir as trocas do sujeito com o
ambiente. Oitenta por cento dos participantes (80%) tendem a amenizar as falhas da
função de manutenção do Eu-Pele por meio de relações anaclíticas e utilização do
ambiente como suporte condicional para a boa eficácia da função.

Em relação a função de continência do Eu-Pele, os Sujeitos 1, 3, 4, 5, 8 e 10


apresentaram falhas no aspecto contentor e continente da função. Já os Sujeito 2, 6, 7 e
9 são capazes de realizar a função continente do Eu-Pele, mesmo que essa função possa
apresentar falhas ocasionais. Entretanto os indicadores do método de Rorschach
analisados apontam para ocorrência de falhas na função contentora (Transformação) do
Eu-Pele.

96
Em relação a função de para-excitação do Eu-Pele, todos os participantes
apresentaram falhas. O Sujeito 7 parece ser o participante com maior capacidade de
para-excitação, entretanto mesmo assim foram identificadas falhas na função.

97
CAPÍTULO V
ESTUDOS DE CASO DOS ADOLESCENTES QUE SE ESCARIFICAM:
ANÁLISE COM O MÈTODO DE RORSCHACH

No presente capítulo será feita a apreciação e discussão dos estudos de quatro


casos dos adolescentes com histórico de escarificação, três do sexo feminino e um do
sexo masculino. Será apresentado a história clínica, e analisado o método de Rorschach
nos seguintes eixos: processo de pensamento, o tratamento dos afetos, a organização
dos conflitos e das defesas, segundo o modelo da escola de Paris de interpretação do
Rorschach. Depois serão discutidos os resultados relativos a qualidade dos limites e as
funções de manutenção, continência e para-excitação do Eu-Pele. E por fim uma síntese
de cada caso, considerando a psicodinâmica e as hipóteses clínicas.

5.1. Apresentação do caso Laura2 (Sujeito 4).


“Gosto de ver meu reflexo no espelho, me cortando”,
“Gosto de ver os outros sentindo sofrimento”,
“Gosto de ver o sangue escorrendo”,
Prancha VI: “Sangue, Só “ (associação)
“Porque quando me cortava, o sangue quando
caía tinha quase o mesmo contorno assim... Quando eu me corto” (inq.)

5.1.1 Histórico clínico


O caso Laura difere dos outros, por ter sido o único que teve um seguimento
psicoterapêutico além da avaliação com o método de Rorschach. Laura, 14 anos (ela
tinha 15 na época de aplicação do Rorschach), foi encaminhada para atendimento
psicológico devido a escarificações e queimaduras auto-inflidas no braço, perna e
barriga. Ela tem mais quatro filhos, um mais velho que Laura, de 16 anos, e outros dois
mais novos, ainda crianças.
Nas primeiras sessões, Laura contou ter tentado suicídio seis vezes, e que
pretendia tentar novamente. Ela disse que não voltaria na próxima semana, pois
provavelmente já teria obtido êxito em cometer o suicídio. A participante disse ainda ter
conseguido morrer (por suicídio) em uma de suas tentativas, pois seu “coração parou

2
Os nomes utilizados para identificar todos os casos desse trabalho são fictícios visando proteger a
identidade dos pacientes.

98
por dez segundos”. Por fim, ela foi enfática em afirmar que cometeria suicídio antes dos
15 anos, pois essa seria a idade “que a mulher desperta”. Ela não desejava “despertar
como mulher”.
As escarificações começaram com a ajuda do namorado, que já se cortava. Para
Laura, há um prazer especular envolvido no ritual de escarificação: “gosto de ver meu
reflexo no espelho, me cortando”, “gosto de ver os outros sentindo sofrimento”, “gosto
de ver o sangue escorrendo”, até concluir: “Acho que sou sado-masoquista”.
Laura acredita que a sociedade é má, que todas as pessoas só pensam em seus
próprios interesses, até mesmo “as pessoas religiosas fingem ser boas”. Além disso, ela
conta não ter amigos, a não ser dois amigos imaginários. Ela tem consciência que essas
pessoas não existem, porém “sente a presença“ deles, assim conta ter tido uma
experiência de “incorporação espiritual”. Mesmo após essa experiência, ela relatou
sentir a presença desse espírito frequentemente. Apesar de não ter religião, a Laura
“gosta” do espiritismo e acredita em “reencarnação”. Ela pretendia reencarnar após o
suicídio, pois queria se livrar apenas da sua parte “má”.
Durante várias sessões, Laura cobria os olhos com seu cabelo vermelho,
justificando da seguinte forma: “dá para ver a alma pelos olhos e não quero que
ninguém veja minha alma”. Os braços eram marcados por cicatrizes ainda recentes dos
cortes, sempre cobertos por roupas longas ou assessórios. As roupas eram
preferencialmente pretas, o visual composto por botas e calças que cobriam as cicatrizes
nas pernas, mesmo nos dias de calor. Ela trazia junto ao corpo uma mochila jeans,
estrategicamente posicionada em seu colo durante as primeiras sessões. Laura
costumava citar músicas de artistas mortos para justificar sua descrença na humanidade
e sua desconfiança nos outros.
A única pessoa que Laura dizia “se importar” era sua mãe, com a qual ela
mantinha uma relação ambivalente: as aproximações afetuosas de Laura eram
geralmente negadas pela mãe; e as aproximações da mãe eram sentidas como
demasiadamente invasivas para a adolescente. As discussões eram constantes, tendo
ocorrido agressões físicas da mãe sobre Laura em algumas ocasiões. Laura sentia
ressentimento pelo pai, achava que ele era um homem bruto e desconfiava que ele tinha
casos extraconjugais, apesar de não ter provas. O potencial agressivo do pai assustava
Laura.
Laura se definia como uma pessoa carente, que precisa de “atenção”. Apenas
sentia-se amada por sua mãe, porém esse sentimento não atrapalhava seus planos de

99
suicídio, pois ela acreditava que sua mãe iria se recuperar do luto de perder a filha, caso
ela cometesse o suicídio, pois “as pessoas esquecem as coisas, substituem”, “minha
mãe tem os outros filhos”.
Laura não se sentia amada, nem pelo pai, cuja distância só era diminuída por
suas expressões agressivas, nem pela mãe, cujo contato era marcado por uma forte
ambivalência, uma vez que as aproximações da mãe eram invasivas à filha e sua
ausência era sentida como expressão de abandono por Laura. Os ciúmes de Laura para
com a sua mãe se dirigiam aos irmãos mais novos e ao pai. Ela sentia-se sozinha e
isolada, tinha poucas pessoas para conversar, poucos para compartilhar experiências e
angústias que compõem a novidade da adolescência. A auto-recriminação trocava
frequentemente de lugar com generalizações acerca da maldade do mundo. Além disso,
ela não se achava uma boa pessoa e preferia se isolar do que “machucar as pessoas”,
por temer o poder da destrutividade de sua raiva.
Com o passar das sessões, a raiva de Laura foi dando lugar a duas lembranças
específicas que, segundo ela, mudaram sua forma de perceber o mundo. Ela conta ter
sido vítima de abuso sexual, por duas vezes. A experiência traumática teria mudado
radicalmente sua existência e seu julgamento sobre os outros.
Esses fatos eram usados por ela para justificar sua crença de que as pessoas
seriam más, egoístas e fariam parte de uma sociedade hipócrita. Ela afirmava não
confiar em ninguém, por já ter sido “vítima de tudo, violação, de bullying, de
violência”.
A participante tinha um namorado, um rapaz de 17 anos, com histórico de
internações em clínicas psiquiátricas, várias tentativas de suicídio e uso abusivo de
drogas. Em uma ocasião, o rapaz tentou agredir a namorada, durante o calor de uma
discussão motivada por ciúmes, tentando enforcá-la, tendo sido impedido por familiares
dele que chegaram por acaso no momento da agressão. Os familiares do rapaz
minimizaram a situação, cuja gravidade só foi percebida por Laura após algum tempo.

As escarificações
Foi esse namorado que apresentou Laura a cultura das escarificações e tentou
instruí-la a cometer suicídio: “se você quer se matar, precisa tomar não 30, mas 90
pílulas para conseguir” relataram Laura sobre as instruções do namorado. Ela, no
entanto, se identificava com ele, percebendo no namorado “um espelho”. Após alguns
meses de namoro, o qual os pais de Laura veementemente desaprovavam, ela

100
engravidou, aumentando a ambivalência em relação ao namorado e as acusações da
família em relação as condutas da paciente. “O coito” como Laura se referia ao ato
sexual, era visto por ela em suas mais extremas conotações de abuso e passividade,
marcas prováveis das situações anteriores de abuso sexual. Em razão disso, ela culpava
o namorado pela gravidez e demonstrava extrema preocupação em relação ao seu
futuro. Laura, que suspendeu os estudos devido a gravidez e passou a sentir-se
abandonada pelo namorado após ele terminar o relacionamento. Além disso, ela sentia-
se invadida pela família dele, que queria garantir, desde a gestação, o direito de ter
contato com o neto.
O pai de Laura tentava se aproximar dela, mas que ela não permitia: “É como se
a gente não tivesse vínculo, aí agora ele vem tentar se aproximar”, dizia Laura.
Surpreendentemente, a reação do pai, ao saber da gravidez da filha, foi mais amena do
que Laura esperava que seria. Ele se comprometeu a ajudar a criar o neto, embora tenha
proibido a filha de se casar com seu namorado. A ameaça da família de Laura é clara:
caso ela resolva continuar o relacionamento com o rapaz, ela será expulsa de casa e
separada de seu filho.
A gravidez aumentou a ansiedade dela em relação a seu futuro. Ela contou estar
ansiosa com “tudo”, principalmente com sua mãe, que estava “doente do coração” e
não queria procurar um médico para fazer exames. O temor era a morte de sua mãe do
“coração”: “se ela morrer, eu não vou sobreviver”. Os ciúmes de Laura em relação a
sua mãe (“ela (a mãe) é minha, de mais ninguém”) se misturavam ao sentimento de
culpa pela suposta doença cardíaca desenvolvida por sua mãe. Ela, insegura, ficava
ansiosa quando sua mãe se aproximava de qualquer pessoa, principalmente de “outra
menina”, pois temia que sua mãe a trocasse “por outra menina”. O incômodo era
recorrente quando a mãe se aproximava do pai, por isso Laura almejava realizar-se
financeiramente para convidar a mãe para morar consigo, ao passo que o pai seria
hospedado em um asilo. As agressões do pai eram descritas em tom de raiva. Laura
ressentia-se tanto das agressões paternas direcionadas a ela, quanto guardava
ressentimento das agressões físicas e verbais que o pai dirigiu a sua mãe. O pai, por sua
vez, reagia de forma colérica as atuações desafiadoras da filha: “você (Laura) é inútil e
só faz coisas inúteis”, teria dito o pai em uma discussão.
Laura sentia-se culpada pelos problemas da mãe e pelos problemas da família.
Ela contava que “não gostaria de ter existido, não gostaria nem mesmo de ter sido
concebida” assim, ela acreditava, a família “não teria esses problemas que tem”. Para

101
ela, fazer parte da família era como viver em “uma prisão com quatro paredes, quatro
muros”, razão pela qual ela gostaria de ter nascido como “uma planta para não
depender da família para nascer”. As saídas dela, as experiências sexuais, com álcool e
drogas começariam a ser significadas por ela como tentativas de se “libertar da prisão
de quatro muros”. Laura tentava significar a experiência da gravidez, porém o fazia pela
via da culpabilização de seus pais ou de si mesmo. Para ela, os pais não a tinham
ensinado sobre a sexualidade, pois eles a consideram um “bebê”. A culpa, no entanto,
retorna ao sujeito: “Tudo isso teve consequências, estou grávida”.
Com o passar do tempo, a relação com namorado piora cada vez mais. Laura
descrevia o pai de seu filho como “bipolar”, às vezes “carinhoso”, às vezes “bravo”. O
relacionamento oscila entre términos e recomeços. Para ela, o namorado era parecido
com ela: o namorado era “como um espelho”. Ela lembra que antes da gravidez, o
namorado dizia que gostaria de ter um filho, porém ela dizia ser demasiadamente nova
para tanto, pois tinha quatorze anos na época. Enquanto estava grávida, apesar do que
dizia ao namorado, ela se perguntava se o filho foi um “acidente” ou se foi “planejado”,
uma vez que ela gostaria de viver com o namorado até que ela completasse 18 anos,
para escapar da “prisão de quatro paredes” que era a família. Apesar disso, ela tinha
medo de se casar, por temer “abandonar” a mãe sozinha com o pai. A decisão sobre o
casamento não precisou ser tomada, pois após alguns meses de gravidez, ela e o
namorado terminaram o relacionamento.
As sessões foram interrompidas durante o final da gravidez, pois Laura tinha
pouco dinheiro para pagar as passagens para a Universidade. Além disso, os recursos da
psicoterapia passaram a competir com os custos do pré-natal. A gravidez foi de risco.
Após o resguardo, as sessões recomeçam diferentes. Agora Laura traz em seu colo o
recém-nascido e os cortes e queimaduras não ocorrem mais sobre sua pele. Apesar de se
dizer cansada e de experimentar a ambivalência da maternidade precoce, ela disse estar
melhor. De fato, ela aparentava estar melhor. Já se passaram quase um ano desde o
início da psicoterapia e a paciente é capaz de representar boa parte de sua angústia: os
conflitos com os pais, a relação conturbada com o pai de seu filho, as consequências de
gravidez, as marcas dos abusos sofridos na infância. A angústia vai ganhando espaço
para representação. Apesar de inda ansiosa, ela é capaz de pensar o que antes era
irrepresentável.
Com o filho no colo, Laura descreveu a ambivalência da maternidade precoce, e
a vontade de voltar a estudar, pois sentia-se responsável pelo filho, desejava sair de casa

102
e prover uma vida confortável para ele. Laura estava angustiada, sentia-se sozinha sem
o namorado, apesar de não se sentir completa com ele. Ela percebe que o
relacionamento a prejudica e não reconhece mais o namorado “como um espelho”, pois
ela nota ter mudado e se diferenciado do namorado. Mesmo assim, ela conta sentir-se
grudada ao namorado “por um fio de cabelo”. A angústia de separação agora é em
relação a família que cobra que ela deixe de se relacionar com o namorado e em razão
do namorado, que cobra que ela atue como “mulher” e vá morar com ele abandonando a
família. Apesar de toda a angústia, ela não se corta mais.

5.1.2 Análise do protocolo de Rorschach de Laura.

A seguir será feita a análise do protocolo de Laura, no que se refere ao processo


de pensamento, tratamento dos afetos, organização defensiva, investimento dos limites e
as funções de manutenção, continência e para-excitação do Eu-Pele. A tabela 5.3
apresenta os resultados do psicograma de Laura.

Tabela 5.1 Psicograma do protocolo de Rorschach de Laura.

(Drieu, 2011) Determinantes Formais.

G% D% Dd% Dbl% F+% F+%ext. F%

13,1% 28,9 57,9% 2,6% 61,9% 36,8% 55,2%

Determinantes Sensoriais.

∑C:∑E K:∑k G:K FE:EF+E FC:CF+C FC´:C´F+C´

2:1,5 2:7 5:2 1:1 0:2 1:1

Outros índices

Ban% RC% H% A% TRI: K:∑C Índice de angústia.

5,3% 34,2% 55,3% 23,7% 2:2 28,9%

B:P H:(H) H:Hd A:Ad TVS: ∑k:∑E Node Respostas

2:1 9:2 9:7 9:0 7:1,5 38

103
O processo de pensamento

O protocolo de Laura é composto por 38 respostas, número bem superior aos


dados normativos, o que pode indicar tanto boa capacidade de produção, quanto
motivação para a elaboração da tarefa. Laura apresenta boa capacidade intelectual,
aspecto que pôde ser observado tanto em seu atendimento clínico, quanto em seu
protocolo de Rorschach. O processo de pensamento de Laura era caracterizado pela
tendência ao pensamento analítico (Dd%=57,9%).
Apesar disso, Laura apresentou baixa tendência a realização de sínteses a partir
dos elementos processados em sua excessiva atenção aos detalhes (G%=13,1%). As
sínteses mais elaboradas e globais, além de raras, tendiam a falhar (3 de 5 respostas G
são acompanhas por qualidade formal negativa). Embora os juízos apresentassem
adaptação, pelo menos nas situações nas quais ela se utilizava do pensamento objetivo
(F+%=61,9%), o aumento da estimulação tendia a influenciar a percepção adaptativa da
realidade e desencadear erros de julgamento cuja incidência diminuíam a qualidade
geral do pensamento (F+%ext.= 36,8%). Laura apresentava boa capacidade intelectual
(R=38; K=2), apesar das rupturas descritas acima (F+%=61,9; F+%ext. 36,8%) e das
falhas na produção sínteses (G%13,1%). Ela era capaz de julgar a realidade de modo
condizente com o consenso social, embora fosse dotada de um modo de pensar
incomum ao seu grupo social e faixa etária de inserção (A%= 23,7; Ban%= 5,3%).

O tratamento dos afetos e a identificação

O funcionamento de Laura era de tipo vivencial ambigual, com tendência


vivencial secundária introversiva. Dessa forma, é provável que Laura apresente a
dificuldade típica desse tipo de funcionamento em realizar escolhas, por conta da
diversidade de reações possíveis, ideacionais e emocionais que tendem a se igualar
(Traubenberg, 1970).
Uma resposta de sangue na prancha VI indicou a violência pulsional e a
dificuldade de contenção e elaboração da vida afetiva: “Sangue só...em toda a imagem”.
Embora houvesse a vivência de sentimentos ansiogênicos e distímicos, eles tendiam a
ser racionalmente contornados (FE:EF+E=1:1; FC´:CF´+C´=1:1), possivelmente em
decorrência do processo psicoterápico já em curso.

104
A representação de si estava ligada a afetos negativos, conforme indicado pela
resposta mórbida fornecida na prancha V, da identidade: (“Uma deformidade em uma
das pernas, nas duas, uma deformidade em uma das pernas. Porque não parece com a
outra, parece que elas perderam o pé, só tem osso” Dd F- HdAnat). Laura,
entretanto, apresentava boa capacidade de representação integral da imagem corporal
(H:Hd=9:7; A:Ad=9:0). .

A organização dos conflitos e das defesas

A análise do conflito indica a angústia de perda do objeto (respostas de ligação),


a qual Laura buscava amenizar por meio do estabelecimento de relações anaclíticas. As
respostas de ligação apontam para a necessidade de contato com o outro e para o
estabelecimento de relações anaclíticas: “Dois monges agachados com as mãos unidas,
em posição de uma oração; Duas pessoas tentando se tocar”, respostas fornecidas na
prancha II; “Pessoas dando as mãos para esses animais”. “E duas pessoas, uma
olhando para outra” resposta relativas a prancha VIII; “Parecem almas, dadas as
mãos, várias crianças, indo em direção a uma espécie de portal” na prancha X

A representação das relações é permeada por mecanismos de defesa como


identificações projetivas, conforme é ilustrado pelas respostas fornecidas nas pranchas
IX e X: Dois civis numa guerra, atirando em pessoas que tem família. Só isso. D K- H-
Cena. Pr. IX; Cavaleiros em cavalos como se tivessem preparadas para a guerra. Nas
mãos uma espécie de arma, embaixo os mortos. Só D F- H-Cena Pr. X. A utilização da
identificação projetiva, é acompanhada no protocolo pela rigidez cognitiva em abordar a
realidade de forma meticulosa e minuciosa, conforme indicado pelo Dd%=57,9%
(Chabert, 2004).

O investimento dos limites

Os limites para Laura parecem bem definidos, à primeira vista (F%=55,26%;


F+%=61,90%). Entretanto, o índice de barreira-penetração abaixo da norma
adolescentes (2B:1P), o índice F+%ext. abaixo da norma (36,84%) indicam dificuldades
em manter os limites quando a objetividade se encontra impossibilitada, quando as
respostas não são determinadas unicamente pela forma e sofrem influência dos afetos.
Esses últimos fatores indicam a fragilidade dos limites de Laura, sobre quem os afetos
concedem a sensação de dissolução das barreiras (F+%ext. 36,84%). Além disso, Laura

105
parecia busca desligar o afeto das representações, pela via do congelamento pulsional
dos engramas, conforme observado na prancha VIII: “esculturas feitas de pedra”,
resposta Dd F- Art.
Chama a atenção que o protocolo de Rorschach de Laura seja permeado por
referências ao “contorno” da mancha. Na prancha I, ela parece tentar seguir a tarefa
semântica levantada pelo Rorschach pelo caminho do apego ao contorno e aos limites
da mancha: “não sei o que o contorno lembra (associação) ... O contorno tipo parece,
eu não sei, o jeito, dá pra para ver os olhos, a boca e o nariz (Inquérito). Na prancha II,
Laura novamente faz apelo aos limites da mancha para determinar a resposta: “Tem
jeito de rato, o todo me parece de rato, o contorno (Inquérito)”. Na prancha IV o
contorno define a resposta Dd Kp HHd: “Uma pessoa e uma criança, um do lado do
outro, olhando pra frente” (associação) transforma-se, na parte do inquérito, em
representação parcial de cabeças apenas que são definidas pelo contorno, “eles parecem
que tão olhando pro horizonte e o contorno também parecem duas cabeças”.
Na prancha V, “duas pessoas deitadas” (Dd F+ H) são definidas novamente pelo
“contorno”, que dessa vez determina toda a representação de imagem do corpo: “O
contorno também, parece uma cabeça, os braços e as pernas”. Se nessa resposta os
limites da mancha, mais precisamente o “contorno”, definem a imagem corporal
íntegra, na resposta seguinte, a falta de contorno define uma percepção mórbida de um
corpo amputado: “Uma deformidade em uma das pernas, nas duas, uma deformidade
em uma das pernas...porque não parece com a outra, parece que elas perderam o pé, só
tem osso”, cotada como Dd F- HAnat (Mor). A sequência acima parece demonstrar
que o apego aos limites do corpo é uma forma de empreender a existência de limites
mínimos entre o dentro e o fora, entre o Eu e o Outro, entre a pele e a sua representação,
simbolizada no teste pelo “contorno” da mancha. Portanto, a fragilidade dos limites
tende a ser atenuada (F+%36,8; B:P=2:1) pelo frequente apego ao contornos
(F%=55,26%; F+%=61,90%).

Não se apegar a pele, aos limites, ao contorno, parecia ser uma forma arriscada
de existência para Laura. Entretanto, o recurso aos limites frequentemente se mostrava
falho, como denuncia o F+%ext. abaixo da média e o índice baixo de Barreira-
Penetração rebaixado em relação as normas (F+%ext=36,8%; B:P=2:1)
Ainda em relação a esse aspecto, na prancha VI, o conteúdo latente parece ter
suscitado uma invasão afetiva de tamanha dimensão que chega a desorganizar Laura.

106
Ao ser mostrada a prancha VI, ela diz: “Sangue. Só”. Na parte do inquérito, ela
completou: “Em toda a imagem”. A impressão de sangue foi fornecida pelas “curvas”,
o que revela a tentativa de Laura de retornar a defesa habitual de apego aos limites,
representada no teste pela ênfase ao contorno da mancha. Laura buscou se apegar aos
limites, porém essa tentativa não foi sustentada. Frente ao fato de que a prancha VI é
monocromática, sendo as respostas de sangue geralmente fornecidas nas pranchas
coloridas, o examinador insistiu novamente com outra pergunta “Como você vê esse
sangue? ”. Foi então que o sujeito respondeu: “Vermelho”. O examinador perguntou
novamente “O que te faz pensar em sangue? ”. O sujeito respondeu com a auto-
referência que aboliu a transicionalidade proposta pelo teste e revelou a falha da defesa
do sobreinvestimento dos limites: “Porque quando me cortava, o sangue quando caia
tinha quase o mesmo contorno assim... Quando eu me corto”. Nessa única resposta
fornecida na prancha VI, com uma projeção de cor em uma prancha monocromática,
cotada como G F- Sg, acrescida dos fenômenos especiais de auto-referência, o
sobreinvestimento dos limites falhou, dando lugar a uma desorganização dos limites,
indicada pela auto-referência que revelou a dissolução dos limites entre o sujeito e a
prancha, entre o dentro e o fora, entre o eu e o outro, pelo comprometimento da
qualidade formal.

A inclinação a fazer referência aos limites, o apego a pele, parece estar


relacionado ao modo defensivo de garantir a distinção entre o mundo interno e externo
pela via da criação de barreiras sobreinvestidas entre o dentro e o fora, que acabam por
diminuir as trocas com o ambiente, mas que por outro lado, permitem a mínima
manutenção de um limite entre o dentro e o fora e garantem a criação de um continente.

5.1.3. As funções do Eu-Pele de Laura.


A função de manutenção do Eu-Pele
Laura apresentou Dbl% dilatado (Dbl%=2,6%), não tendo demonstrado a
capacidade de integração do branco intramacular ao restante da mancha sem
comprometer a qualidade formal da resposta. A resposta Dbl, fornecida na prancha III
ilustra o processo de atração pelo branco com o comprometendo a qualidade formal:” A
face de uma caveira” (associação), “Tipo as fissuras que seriam os olhos e aqui a parte
da nariz, só que no caso não tem nenhum” (inquérito), resposta GDbl F- Anat. A
sensibilidade a falta, que revela as falhas na manutenção do psiquismo, foi revelada

107
nessa resposta pela utilização do Dbl como espaço vazio que justifica falta presente no
percepto “aqui a parte da nariz, só que no caso não tem nenhum”.
Aliada a este aspecto, a análise das respostas globais fornecidas e a análise das
cinestesias, reforçam a hipótese acerca de falhas na manutenção do Eu-Pele. Em relação
ás respostas Globais, (1GDbl, 1 G elaborado e 2G simples), a única G elaborada
apresenta comprometimento da boa forma: “Parecem almas, dadas as mãos, várias
crianças, indo em direção a uma espécie de portal. Atrás desses portais tem como se
fosse uma cidade. E vindo em direção a essas almas tem alguém erguendo os braços
como se tivesse dando boas-vindas. Na frente tem dois leões dourados” (G simples F-
H-Cena). Ainda, a análise das cinestesias, uma vez que as cinestesias humanas parciais
de qualidade formal negativa superam as respostas cinestésicas humanas (K+ = 1; K- =
1; kp- = 7) e a presença de respostas de ligação (Pr. II e VIII) indicam falhas no
processo de internalização do suporte cuja função é propiciar a manutenção dos
conteúdos psíquicos.

A função de continente do Eu-Pele


Enquanto a função de manutenção do Eu-Pele se caracteriza pela junção dos
elementos psíquicos, de modo similar à função desempenhada pela pele biológica em
prover a sustentação do esqueleto e dos músculos; a função de continência do Eu-Pele
atua no sentido da criação de uma superfície metafórica cuja função é estabelecer, pela
diferenciação dentro/fora, um continente interno ao sujeito no qual podem ser
depositados os elementos psíquicos, de maneira similar a função desempenhada pela
pele biológica em recobrir os órgãos internos à superfície corporal e conter os órgãos
sensoriais. Portanto, a função continente apresenta tanto a função de conter, assim como
a pele contém os órgãos, quanto desempenha a função de transformar, de forma similar
a transformação que os órgãos internos atuam em relação à realidade. A internalização
do Eu-Pele, nesse sentido, apoia-se na função desempenhada pela pele biológica
(Anzieu, 1989). Nesse sentido, muitos indicadores do Rorschach sinalizam a eficácia
das duas funções, em razão da distinção entre as funções ser meramente teórica.
Entretanto a interpretação a ser feita desses indicadores é distinta. Por exemplo,
enquanto o Dbl dilatado em relação a norma indica falhas no efetuar de suporte que
possibilite a solidez da representação do aspecto interno ao continente psíquico (falhas
na função manutenção), o mesmo indicador aponta para falhas na superfície corporal
internalizada que tendem a falhar na função de conter os conteúdos psíquicos em

108
decorrência da porosidade das barreiras interno e externo (Linhares; Pinheiro, 2009;
Roman, 2001).
Além de falhas na função de manutenção do Eu-Pele, Laura apresentava falhas
na função de continência do Eu-Pele.
Entretanto, as barreiras que delimitavam o envelope psíquico mostraram-se
efetivas quando o sujeito pôde afastar as intromissões do afeto e se apegar aos
contornos (F+%=61,90%), conforme discutido na sessão relativa ao investimento dos
limites.

Apesar disso, os limites do continente tendiam a dissolução nos momentos que a


estratégia de para-excitação pelo apego aos limites falha (K:∑k=7:2; K-=1; FC<CF+C;
kp-=7).
A capacidade de transformar os conteúdos, um dos aspectos da função
continente, apresentou indicadores de falha, como baixa variação de localizações
(Dd%=57,85%), dificuldade de superar as rupturas e de variar as localizações na mesma
prancha.
A única exceção de capacidade de variação das localizações ocorreu na prancha
X, na qual a primeira resposta é: ” parecem almas, dadas as mãos, várias crianças, indo
em direção a uma espécie de portal. Atrás desses portais tem como se fosse uma cidade.
E vindo em direção a essas almas tem alguém erguendo os braços como se tivesse
dando boas-vindas. Na frente tem dois leões dourados”, resposta G kp- H-Cena.
Essa resposta é seguida de uma resposta D, porém de qualidade formal negativa,
“E abaixo desse plano tem outro plano, onde tem muito verde, floresta e uma espécie de
castelo todo prata. Na frente desse castelo é uma menininha, sozinha”, classificada
como D CF- H-Cena. Por fim, o sujeito fornece uma resposta Dd, também de qualidade
negativa: ”Cavaleiros em cavalos como se tivessem preparadas para a guerra. Nas
mãos uma espécie de arma, embaixo os mortos. Só”, resposta cotada como Dd F- Abst,
Mor, Referência à lembrança pessoal”.
Apesar da variação de localização, as respostas são mal vistas, o que indica a
dificuldade do sujeito em transformar criativamente a mancha, afim de superar as
rupturas. O mesmo ocorreu na prancha VI, onde a resposta, G F- Sg, citada acima não
foi seguida de nenhuma resposta na mesma prancha, tendo sido seguida por três
respostas na prancha VII, das quais duas apresentavam qualidade formal negativa. Além
disso, análise prancha a prancha revelou que todas as respostas F+ ou de qualidade

109
formal positiva foram seguidas por respostas de qualidade formal negativa. Portanto, em
síntese, a capacidade de transformação e simbolização dos conteúdos em representações
se mostrava falha, o que lançava a tendência a expulsão dos conteúdos e utilização do
mecanismo de identificação projetiva, em detrimento de traduções dos elementos
irrepresentáveis em conteúdos simbólicos.

A função de para-excitação do Eu-Pele

A função de para-excitação do Eu-Pele parecia falhar, conforme foi indicado


pelo choque causado pela impressão suscitada pela prancha VI e outros indicadores
(FC:CF+C=0:2; F+%ext=36,8%; Hd=18,42%; Dd%=57,9% e kp=18,42%) apontaram
falhas na função de para-excitação do Eu-Pele. A para-excitação só mostrou suficiência
em efetividade pela estratégia do apego aos limites (F+%=61,90%; F=55,26%). O alto
número de respostas Dd% (57,9%) e representações parciais (kp=7 e Hd=7)
demonstrava a tentativa do sujeito em efetuar a para-excitação pela via da não
integração total das representações, o que pode ser relacionado com a utilização de
defesas de modo obsessivo caracterizadas pela minuciosidade da organização do
pensamento apresentado (Dd%=57,9).

5.1.4 Síntese do caso


Laura apresentou falhas nas três funções avaliadas segundo o método de
Rorschach, tendo apresentado ainda fragilidade dos limites, tendência a utilização de
identificação projetiva, dificuldade de controle dos impulsos e tendência ao
estabelecimento de relações anaclíticas.

Laura, hoje com 16 anos, não se utiliza mais das escarificações, nem apresenta
ideações suicidas. Parece que o espaço psicoterápico a ajudou amenizar a angústia,
antes impensável. Agora os elementos traumáticos não retornam mais pela via do ato da
escarificação (Matha, 2010), nem mesmo transbordam a capacidade psíquica de
elaboração, não mais exigindo o recurso aos cortes como uma saída desesperada para
diminuir a angústia e garantir a continuidade do ser (Le Breton, 2003).
As lembranças traumáticas retornam como lembranças que invadem a vida de
vigília e compõe os sonhos, o que permite que o traumático possa ser pensado. O medo
em ser “estuprada” ou mesmo “sequestrada” se faz ainda presente, porém apresenta-se

110
com uma diferença importante: não se trata mais da passagem ao ato de algo que não
pode ser lembrado, mas sim de recordação das cenas que servem de material de
composição desses receios. A repetição, que ocorria pela passagem ao ato, dá lugar
agora a recordação. Espera-se que próximo passo seja a elaboração.
Um sonho relatado por Laura ilustra da crescente capacidade de Laura em
conter os conteúdos psíquicos e transformá-los em elementos representáveis,
demonstrando aumento da efetividade de função continente (Anzieu, 1989). Trata-se de
um sonho no qual Laura se vê cercada por muitas pessoas, cuja identidade é obscura a
sonhadora, que a cercam e passam a mão pelo seu corpo contra a sua vontade, abusando
sexualmente de Laura. Ela revive no sonho a situação traumática, que se repete em
busca de elaboração (Freud, 1920/1996). Embora, o sonho cause angústia e os
elementos traumáticos tenham se transformado em medo de ser abusada novamente, e
até mesmo no medo de que seu filho seja vítima de abuso, o trauma se encontra agora
em vias de elaboração, já podendo ser lembrado e, em até certo ponto, ligado aos
aspectos traumáticos de sua história de vida. Antes, na época de aplicação do
Rorschach, o continente tinha se mostrado falho em conter e transformar os conteúdos.
Uma breve comparação entre o Rorschach e a impressões clínicas atuais confere
algum grau de evolução a função continente do Eu-Pele de Laura.
A gravidez de Laura desempenhou um importante papel na transformação dos
sintomas. O nascimento do filho diminuiu seu sentimento de solidão, assim como
impulsionou Laura a pensar em seu futuro, pois agora ela tem uma razão (o filho) para
permanecer viva. Laura arrumou um emprego e voltou a estudar. Atualmente, ela deseja
se tornar médica dermatologista, pois “a pele, além de ser o maior órgão do corpo”
chama muita atenção de Laura e desperta seu interesse. Ela relata o prazer em espremer
espinhas e manipular a pele das outras pessoas, embora não sinta mais a compulsão por
se cortar.
O caso Laura também nos chama atenção para a crescente melhora na
capacidade da adolescente em efetuar a diferenciação. Antes, sua capacidade de
diferenciação se mostrava frágil, o tampar dos olhos buscava impedir a visão de “sua
alma”; as incorporações espirituais invadiam seu corpo, mesmo fora de contextos
religiosos, os amigos eram imaginários, a possibilidade de morte da mãe era sentida
como a própria morte da adolescente e o namorado visto como reflexo de Laura. Além
disso, os resultados do Rorschach, apontavam para a fragilidade dos limites. Esses
aspectos, entre outros, denunciavam as falhas nos processos de diferenciação e

111
continência do Eu-Pele, que desencadeavam os sentimentos de transparência do corpo,
os quais ela tentava superar pelo “tampar (d)os olhos (que) protege a alma” e pela
feitura de cicatrizes decorrentes dos cortes. O anaclitismo e indiferenciação das relações
de objeto eram antes presentes e agora estão em vias de elaboração: “Me sinto grudada
a ele (o namorado) por um fio de cabelo”. A separação, representada pelo medo de
perder a mãe (por morte), de ser trocada por ela (“por outra menina”) e separar-se do
namorado (“ligado a ela por um fio de cabelo”) são dificuldades centrais de Laura.
Esses fatores eram indícios de falhas da função continente do Eu-Pele, o que nos remete
a pensar que as situações de separação eram, para a Laura, como o arrancar da própria
pele na qual ela se encontrava grudada com a pele do outro (Anzieu, 1989). As falhas
em seu continente exigem que ela permaneça ligada ao objeto, nem que seja “por um fio
de cabelo”, mesmo que o objeto seja dotado de grande potencial destrutivo, como são
as lâminas e a violência do namorado.
Na época de aplicação do protocolo de Rorschach, a capacidade de conter,
transformar, prover a manutenção, aspectos ligados as funções do Eu-Pele avaliadas, se
mostravam falhas, conforme foi demonstrado pela análise dessas funções pelo
Rorschach, cuja interpretação demonstrou falhas nas três funções avaliadas. Em
consequência disso, os elementos psíquicos tendiam a expulsão, em detrimento a
transformação e contenção. A imagem corporal tendia a ser permeada por uma fluidez
exagerada de seus limites e pela falta de uma unidade sólida. Os cortes eram um tipo de
apelo ao “contorno”, que parecia tanto atender à necessidade inconsciente de punição
suscitada pela culpa decorrente dos abusos sexuais sofridos e a as exigências da pulsão
agressiva que tanto embasam as condutas impulsivas, quanto visavam restabelecer os
contornos e limites corporais.
As falhas nas funções de continência e manutenção do Eu-Pele apontam no
sentido de um funcionamento de Eu-Pele escorregador, no qual as representações não
podem ser mantidas, nem mesmo contidas. Essa organização dificulta a elaboração dos
elementos traumáticos, em razão da dificuldade de recordação e tendência a expulsão
que esse tipo de funcionamento apresenta (Anzieu, 1989).
Laura é uma adolescente em pleno processo de desenvolvimento, portanto não
se aplicam classificações nosográficas definitivas. Entretanto, para fins comparativos e
teóricos, pode-se afirmar que o funcionamento de Laura assemelhava-se ao modo típico
do Eu-Pele presente nos estados limite. Nesse tipo de funcionamento, as duas faces do
Eu-Pele, interna e externa, encontram-se torcidas de modo similar as faces de um anel

112
de Moebius3. Assim, a face interna é, ao mesmo tempo, também externa e vice e versa.
Assim, o não Eu, se torna parte do Eu, os elementos internos tendem a ser externos e os
conteúdos tendem a não ser contidos (Anzieu, 1989). Essa hipótese explica, em parte, o
apego aos contornos; apegar-se a pele parece ser uma estratégia artificial de efetuar o
juízo de realidade para ampliar a capacidade de distinção entre o interno do externo.
Assim, as escarificações de Laura buscariam restabelecer os limites e efetuar a
distinção entre o interno/externo; dentro/fora; continente/conteúdo.
Em resumo, o caso Laura, por conta de sua evolução, parece apontar que o
espaço analítico pode propiciar o restabelecimento das funções do Eu-Pele que se
mostram falhas, por meio do processo terciário desempenhado pelo analista (Green,
2008). Esse aspecto parece ter sido um dos fatores importantes para a melhora de Laura,
pois o incremento das funções de manutenção, continente e para-excitação; que antes
caracterizavam um Eu-Pele escorregador, parece ter sofrido um desenvolvimento
decorrente do acesso ao espaço analítico. Se antes os elementos não podiam ser
lembrados, e, portanto, o ato era a única descarga possível a eles, agora os elementos
parecem poder ser pensados, graças ao desenvolvimento das capacidades de
manutenção, continência e para-excitaçao desempenhadas pelo Eu-Pele.
A dificuldades cotidianas de Laura pouco se modificaram. De certa forma, as
responsabilidades relativas a maternidade agora se mostram presentes e se acumulam ao
ambivalente relacionamento familiar e conjugal (namorado). No entanto, o espaço de
escuta do processo terapêutico parece ter proporcionado o desenvolvimento dos
processos de simbolização e contenção dos conteúdos. Ainda, o suporte proporcionado
pelo terapeuta pôde ser, em parte, internalizado a ponto de possibilitar uma maior
autonomia a Laura. A crescente distinção entre as barreiras interna e externa, entre o
dentro e o fora, tem proporcionado a Laura uma maior qualidade do pensar, que pouco a
pouco têm substituído as atuações.

3
O anel de Moebius é uma figura geométrica unilateral cujo formato final é similar à forma de um oito.
Sua construção se dá pela torção de um retângulo no sentido longitudinal, seguida da junção de suas
arestas, o que resulta na criação de um tipo de anel no qual não há distinção entre a face interior e o lado
exterior, constituindo-se, portanto, em uma figura geométrica de continuidade perfeita. Portanto, anel de
Moebius é composto por uma banda apenas, sem frente, nem verso, possuindo um único lado. Tendo sido
primeiramente estudado por Ferdinand Moebius em 1861, o uso metafórico do modelo do anel de
Moebius foi introduzido na Psicanálise por Jaques Lacan (Ávila, 1997). Enquanto Lacan acreditava que o
anel de Moebius ilustrava o funcionamento do normal Eu, Anzieu considera que o anel de Moebius é uma
metáfora eficaz para descrever a problemática do Self nos estados limite. (Anzieu, 1989).

113
5.2 Estudo de caso Paula (Sujeito 1).
“Você procurou isso, você que aguente, você não queria dor?
Agora você está sentindo, uma dor maior que a sua alma”.
Prancha II: Sangue espirrando... lembra eu quando eu me cortava

5.2.1 História clínica


Paula tem 15 anos, mora com o pai e a mãe na mesma casa que a avó. Paula tem
uma estreita relação com a mãe, tendo descrito a dinâmica entre as duas “como unha e
carne”, e afirma que as duas são “muito amigas”. Já a relação com seu pai é descrita de
forma oposta, como uma “guerra em casa, a gente não se fala, a gente mal olha um
para a cara do outro”. Paula explica que tinha uma boa relação com seu pai durante a
infância, diz guardar boas memórias dos passeios feitos com ele e afirma que ele era
muito atencioso com ela. Porém, ela passou a sentir-se distante do pai quando ela estava
com aproximadamente oito anos de idade, por sentir que ele deixou de fornecer o
carinho e a atenção experienciados anteriormente. Paula não entende o motivo do
afastamento de seu pai em relação a ela. A emergência da adolescência parece ser o
motivo de ter distanciado ainda mais o pai e a filha; atualmente Paula considera o pai
uma pessoa “muito rude, um inútil, um doido”. Sobre isso diz que seu pai é distante e
rígido, relata que ele discorda da forma que sua mãe estabelece as regras em relação a
filha e que ele a acusa de estar “fazendo alguma coisa”, de estar “muito solta,
namorando, transando com os meninos por aí e se drogando”. A participante se
ressente da ausência paterna e conversa pouco com ele que “não sabe pra onde (eu)
vou... ele nem sonha”.
O pai da participante não tem conhecimento sobre o abuso sexual sofrido pela
filha durante a infância. A mãe de Paula que descobriu o abuso sexual da qual a filha foi
vítima quatro anos depois do ocorrido, decidiu não contar ao marido por temer que ele
adotasse reações agressivas direcionadas ao agressor e a própria esposa. O abuso sexual
teria sido praticado por um membro da família extensa, quando a vítima estava com
cerca de quatro anos de idade. A vítima afirma ter sido trancada no quarto pelo
abusador, que estava hospedado em sua casa em razão de visita familiar. Segundo
Paula, ela permitiu que o abusador “passasse a mão” em seu corpo, por “pensar que era
carinho”. Quatro anos depois, quando estava com oito anos de idade, ela resolveu
contar o ocorrido para um familiar, que percebendo a gravidade dos fatos, contou para a
mãe de Paula.

114
As escarificações:
Paula começou a se cortar no início da adolescência. A tristeza é vista por ela
como o sentimento que desencadeia os cortes, ela diz: “a única saída para a tristeza é a
gilete, as laminas, tudo que (eu) achar pela frente”. Ela completa: “Eu não uso mais
prestobarba, quer dizer, eu não usava porque, eu não estava usando mais, porque ele
não fazia o estrago que eu queria, ele não fazia o que eu queria, que era cortar fundo
pra poder derramar sangue. ” Os cortes tinham de ser profundos e visavam derramar o
máximo de sangue possível, “porque (eu) achava que aquele sangue era toda a dor que
(eu) tava sentindo”. Os cortes são formas encontradas por Paula de diminuir a “dor”.
Ela acredita que os cortes podem “aliviar a dor”, que são necessários para o sentimento
de bem-estar, para o “fazer bem”. Afirma ser incapaz de viver sem as escarificações: “
(eu) não posso viver, (eu) não posso ficar sem me cortar. Não tem como”. Apesar de
estar sem escarificar a própria pele há um mês, Paula acredita não conseguir ficar sem
se cortar. Ela diz: “alguma hora (eu) vou ter que me cortar, (eu) vou ter recaídas”.
Paula compara as escarificações a um “vício”, dizendo “inventar motivos” para
se cortar. Os pais e o namorado já foram eleitos como culpados pelos cortes que ela
mesmo fazia com o intuito de “rasgar a pele”. A violência dos cortes assusta Paula, que
teme “arrancar a veia” durante os rituais. A descoberta da mãe sobre os cortes gerou
grande impacto na família. Paula conta que os pais choraram pois se sentem culpados
pelos cortes. Além disso, desilusões amorosas desencadearam outros episódios de
escarificação. As cicatrizes denunciaram os rituais aos pais e professores, o que fez com
que Paula trocasse “blusas” e “shorts” por roupas longas que escondiam as cicatrizes.
Durante o banho, o contato da água com a pele em processo de cicatrização causava
dor, experienciada como uma dor merecida: “Você quis aquilo, você procurou isso,
você que aguente, você não queria dor? Agora você está sentindo, uma dor maior que a
sua alma”.
Quando perguntada pela dor dos cortes, Paula afirma: “Dói na hora, é como
cortar o dedo”. Tal afirmativa aponta por uma busca pela intensidade da sensação,
mesmo que dolorosa, como forma de afastar os sentimentos distímicos, uma vez que ela
afirma se cortar para “afastar a (minha) dor”. Nesse sentido, o uso do álcool, tabaco,
entre outras drogas parece ocupar a mesma função: “Tabaco e cigarro que eu fumava
constantemente por causa da depressão, comprava carteira de cigarro e ia fumando”.
Ela contou sobre um episódio no qual bebeu vodca com amigos e adotou posturas
sexuais das quais se arrependeu depois: “Não acho que fui mais aproveitada porque

115
eles não me estupraram, porque na condição que eu estava eles poderiam ter feito
isso”. A mãe descobriu que ela havia ingerido álcool, o que causou uma intensa e
acalorada discussão entre as duas que resultou no afastamento de Paula dos amigos que
a acompanharam no episódio de abuso de álcool, pela via da proibição paterna.

Os pais não entendiam a razão pela qual Paula se cortava, ameaçando a filha
com castigos e tentando esconder as lâminas, sem sucesso. Afirma ter entendido
recentemente que sofre de “depressão”. As marcas no braço parecem ter tido a função
de tornar público o sofrimento que era interno. Nesse sentido, as escarificações parecem
ter tido a função de transformar a dor psíquica em dor física e visível, a ponto de
capturar a atenção dos familiares e motivar a procura por tratamento especializado.
Paula participa de psicoterapia individual e de grupo atualmente. Ela afirma que “não
está 100% ainda”, pois se “corta ainda, mas bem pouco, bem menos porque eu me
cortava frequentemente, agora com as consultas com as meninas, com a W., eu estou
melhorando”.

5.2.2 Análise do protocolo de Rorschach de Paula

A Tabela 5.1 apresenta os principais resultados do psicograma de Paula. A


seguir serão analisados os processos de pensamento, o modo de tratamento dos afetos, a
organização defensiva e os conflitos, o investimento nos limites e as funções de
manutenção, continência e para-excitação do Eu-Pele, a partir dos indicadores de
Rorschach fornecidos no protocolo de Paula.

Tabela 5.2 Psicograma de Paula (Sujeito 1).

Localizações Determinantes Formais.

G% D% Dd% Dbl% F+% F+%ext. F%

75% 16% 8,3% 8,3% 57,1% 41,6% 58%

Determinantes Sensoriais.

∑C:∑E K:∑k G:K FE:EF+E FC:CF+C FC´:C´F+C´

2,5:2 0:1 9:0 1:1 0:2 0:0

116
Outros índices

Ban% RC% H% A% TRI: K:∑C Índice de angústia.

16,6% 16,7% 8,3% 41,7% 0:2 16,7%

B:P H:(H) H:Hd A:Ad TVS: ∑k:∑E Node Respostas

1:2 0:3 0:0 5:0 1:2 12

O processo do pensamento
Em relação aos processos do pensamento, a dilatação das respostas globais
(G%=75%), associada a ausência de respostas de movimento humano (G:K=9:0) indica
tendência ao pensamento sintético que parece ser caracterizado pela baixa capacidade
de realização e dificuldades de pensamento concreto e analítico (D%=16%;
Dd%=8,3%). O F+% próximo a média indica boa adaptação do pensamento lógico. A
frequência de respostas banais (16,7%) e respostas de conteúdo animal (41,7%) indicam
que Paula tende a apresentar um tipo de pensamento adaptado a realidade de seu grupo
de inserção, sem que ela faça apelo a estereotipia de pensamento. Entretanto, o número
de respostas (R=12) indica baixo índice de produtividade, o que associado a ausência de
K, indica falhas do processo de pensamento, possivelmente decorrente da invasão do
afeto sobre os processos de pensamento (Índice de angústia=16,7%; FC:CF+C=0:2).

O tratamento dos afetos e a identificação


Paula apresenta tipo de vivência extratensivo puro (K:∑C: 0:2), o que remete a
um funcionamento emotivo e instável no qual o sujeito encontra-se submetido ao afeto.
Esse aspecto permite afirmar que a vida pulsional de Paula é caraterizada pela
preponderância do afeto sobre a representação. A impulsividade é a tendência provável,
assim como as cargas afetivas parecem ter descarga inadequada (∑C: ∑E=2,5: 2;
FC<CF+C; ∑k:∑E=1:2). O comprometimento dos processos de pensamento parece ter
grande influência do estilo afetivo marcado pela impulsividade e instabilidade
instaurada pelo excesso pulsional que tende a superar as capacidades egóicas de
elaboração.

117
Apesar de apresentar capacidade de integração da representação de corpo (H:(H)
=0:3; H:Hd=0:0; A:Ad=5:0), as dificuldades de identificação se fazem presentes
(G=75% H%=8,3%), ao mesmo tempo em que a identificação parece estar associada a
afetos negativos, conforme demonstrado pela resposta na prancha V: “Deixa eu pensar,
uma coisa bem.... Meu Deus! Parece um anjo com dois chifres, parece que eu sou meio
doida. Aham ahanm, eu sou meio doida” G F- A/Ad Resposta Híbrida; Crítica ao
sujeito. A resposta fornecida na prancha V, cuja demanda latente é a questão identitária,
aponta no sentido da dificuldade de integração entre os aspectos bons e maus da
representação de si, aspecto indicado pelos fenômenos especiais de resposta híbrida e
crítica ao sujeito. A representação das relações também parece apresentar-se falha, o
que pode estar relacionado às dificuldades de identificação, uma vez que a clivagem dos
objetos tende a dificultar o processo de identificação com ele, apresentado como mau
por conta da transformação empreendida pelos mecanismos defensivos.

A organização defensiva e os conflitos

O conflito principal de Paula parece ser a angústia de perda do objeto


(Fenômenos especial de envolvimento Pr. IV; Resposta de Ligação Pr. II), ligada a
dificuldades de identificação (H%=8,6%; H:(H) =0:3; G%=75%) e falhas no
estabelecimento de limites (F+%ext. 41,6; Resposta transparência Pr. II). Os conflitos
parecem relacionados, uma vez que as dificuldades de identificação remetem as
dificuldades de separação do objeto, visto que a internalização do objeto de forma
integral fica impossibilitada pelos mecanismos de cisão, que transformam o objeto em
objeto mau cuja internalização contamina negativamente a representação de si e funda a
necessidade de expulsão desses elementos ligados a afetos negativos, o que parece ser
feito pela utilização de descargas inadequadas (Uso de drogas, cortes; condutas de risco
descritas pela história clínica). Esses mecanismos de cisão descritos, estariam
relacionados a utilização da identificação projetiva (Pr. V e Pr. X), mecanismos típicos
de organizações limite, uma vez que remete a dissolução das barreiras entre o Eu/outro;
dentro/fora (Chabert, 1993). A resposta fornecida na prancha X é bastante ilustrativa:
“Isso me lembrou meu pai, as cores, às vezes ele é meio alegre, as vezes ele é meio
chato. Mas tem sua parte boa” (Risos); resposta G C Abst. Referência a lembrança
pessoal. Trata-se de uma resposta no qual a integração do aspecto bom e mau do objeto

118
se mostra falha revelando os mecanismos de cisão e identificação projetiva: “Essa
vermelha, o lado bom dele, essa escura, marrom, o lado ruim dele. E a azul é o lado
alegre. As outras cores são as outras cores, só me importei mais com essas” Pr. X Inq.

Em relação ao tipo funcionamento, a resposta na prancha II: Ah... isso me


lembrou essa parte aqui do corpo, como se chama, as costelas. É, as costelas” (Dd EF
Anat) por remeter a transparência do envelope psíquico, e a resposta adicional da
prancha III: “Os rostos assim conversando, talvez dois psicopatas e uma borboleta no
meio, passeando. Mas olhando bem parece que elas tão puxando, tão brigando. Parece
um coração que as pessoas saem puxando e acabam rasgando” (G K- H-Anat MOR)
por remeter a fragilidade do envelope psíquico, indicam falhas na representação da
imagem corporal e estabelecimento dos limites, que serão analisadas logo abaixo. Por
outro lado, a preponderância do afeto sobre a representação, caracterizada pelo
protocolo lábil fornecido (K:∑C=0:2 ∑C: ∑E=2,5: 2; FC<CF+C), aponta para
utilização de defesas de modo neurótico como o recalcamento das representações, além
das defesas narcísicas como a cisão e a identificação projetiva já citadas.
Em resumo, a análise do protocolo aponta para conflitos próximos a
problemática típica dos casos limite, como a angústia de separação do objeto e
dificuldades de estabelecimento de limites, dos quais a organização egóica busca se
defender por meio de defesas neuróticas (Recalque) e narcísicas (Identificação
projetiva, cisão).

O tratamento dos limites


Paula apresentou no Rorschach indicadores que apontaram falhas no
estabelecimento dos limites, os quais serão discutidos nessa sessão.
Ela apresenta uma resposta Barreira (besouro, pr. IX) para duas respostas
Penetração (Transparência na Pr. II e “Sangue expirando “na Pr. III Inq.), índice em
proporção que indica fragilidade dos limites, uma vez que a norma para adolescentes se
encontra na razão de oito respostas barreira para quatro respostas penetração (8B:4P),
segundo Emanuelly e Azoulay (2008). O número de respostas (R:12) aponta no sentido
da inibição, entretanto a utilização da cor e do esfumaçado (FC:CF+C:0:2; K:∑C: 0:2;
∑C:∑E=2,5: 2) indica protocolo lábil de funcionamento extratensivo puro, marcado
pela impulsividade (FC<CF+C; ∑C:∑E=2,5: 2; Resposta Conteúdo Sg, Pr III). Esses
fatores fortalecem a hipótese acerca das fragilidades dos limites conforme indicado

119
pelos dados do psicograma indicando. A fragilidade dos limites é sustentada ainda pela
ocorrência de identificação projetiva (Pr V: “Anjo com dois chifres”, na associação e
“O anjo é mau” no inquérito) e frequentes usos de auto-referência e referência a
lembranças pessoais, baixo índice de H e A, fatores relacionados a dificuldades de
estabelecimento de limites. Apesar dos índices F%(58%) e F+%(57,1%) próximo aos
dados normativos, a frequência diminuída em relação a norma do F+%ext. (41,6%)
indica falhas nos processos de delimitação entre Eu e o Outro (Chabert, 1998).
Por meio da análise dos indicadores qualitativos, foram encontrados índices que
demonstram que Paula apresentaria dificuldades em representar a imagem corporal de
forma integra. Além da ausência de H, e mesmo de Hd, no psicograma, exceto em
respostas adicionais (Respostas Add. H=1 Pr. II), as representações corporais vistas
aparecem sustentadas em conteúdos anatômicos, exceto em uma única resposta
adicional. É o que ocorre na prancha II, cuja representação corporal é anatômica e
permeada pela transparência: “Ah...Isso me lembrou essa parte aqui do corpo, como se
chama, as costelas. É, as costelas”, no inquérito “Nossa você decorou até o que eu
tinha esquecido. As asinhas. Parece assim, os risquinhos, isso não lembra a parte de
um corpo não? Pra mim lembra costelas. Aqui nessa parte parece que tem os pulmões
aqui e os risquinhos que parece que tá dividido, isso aqui me lembrou a laringe, mas
acho que ele é junto”. Trata-se de uma resposta D EF Anat, cujo inquérito acaba por
introduzir duas respostas adicionais: “Coração partido, parece o meu coração” D CF
Anat (Mor), Auto-Referência, uma representação angustiante logo procedida por outra
resposta adicional, também mórbida: “Duas pessoas conversando, parece que tão
puxando, tão brigando, parece um coração que as pessoas saem puxando e acabam
rasgando” G K- H/Anat MOR. A transparência do corpo é mal vista, determinada pelo
esfumaçado e apresenta certa confusão entre os limites dentro-fora, com visualização
dos órgãos internos, e confusão dos limites entre os órgãos corporais, pulmões, faringe e
coração. O “coração partido” (resposta adicional), faz parte do corpo “danificado” que
durante o proceder do inquérito se torna o próprio coração do sujeito (Auto-Referência),
para em seguida ser visto como objeto de conflito, “duas pessoas que tão puxando... e
acabam rasgando (o coração)”. Apesar de representar claramente a dificuldade no
estabelecimento de limites, a resposta adicional é a única resposta K de conteúdo
humano H em todo o protocolo e parece indicar relevantes dificuldades no
estabelecimento dos limites. Paula é capaz de fazer a diferenciação Eu/Outro, porém o
faz com grande dificuldade e confusão, o que se traduz no protocolo pela representação

120
mórbida auto-referente, indicando a dificuldade de separação e de estabelecimento dos
limites na representação do corpo.
A outra resposta de corpo humano aparece na prancha VII representada por uma
percepção anatômica desvitalizada, “Lembrou o corpo humano, olhando assim... Parece
daqueles livros de escola” G CF Anat. Os limites do corpo percebido são fluídos, a
percepção vista na mancha é duvidosa (“lembrou” o corpo humano “olhando assim”) e
o inquérito é confuso “Eu falei certo? Olhando de lado, parece que é um bicho saindo
de uma espécie de lago. Que estranho”. Frente a negativa da examinanda, o examinador
retoma a pergunta fornecida no inquérito “Corpo humano” e pergunta: O que faz
parecer corpo humano? Então, Paula responde: “Um corpo humano... Ah, parece assim
o corpo humano (Gesticula), as cores, aqueles desenhos de livro de escola”. O
Examinador pergunta então sobre a resposta adicional fornecida: “Você disse bicho
saindo? O sujeito responde: “Assim de lado, ele andando e era o reflexo dele, um
cameleão talvez”. Trata-se de uma resposta adicional, cotada como G kan A (reflexo).
A descrição é confusa, porém transmite o que ocorreu na situação projetiva. O clínico
fica confuso em decorrência da telescopagem de percepções feita na resposta à prancha,
o que indica a dificuldade da participante em manter a representação verbalizada na fase
de associação durante a inquérito. Trata-se de uma falha na função de manutenção e
continência do Eu-Pele, aspecto que será discutido na próxima sessão, cujo aspecto
transferencial se fez presente na clínica da aplicação.
Na primeira resposta dada na associação, a representação de corpo determinada
pelo CF mal visto em uma localização D, é procedida no inquérito por uma resposta
adicional animal em reflexo (“um camaleão”), animal cuja pele é composta por
carapaça dura e de grande capacidade morfogênica. Trata-se de uma tentativa falha de
fornecer uma resposta barreira após a emergência da percepção de penetração” um
bicho saindo de uma espécie de lago” e demonstra a dificuldade no estabelecimento dos
limites na representação corporal.
Paula forneceu apenas uma resposta “pele” (Chabert, 1993) em todo protocolo.
Trata-se de uma resposta fornecida na prancha VII, de temática latente materna. A
resposta foi cotada como global simples, composta por um conteúdo Vest, que não pôde
ser cotado como resposta Barreira por não haver percepto a ser coberto, já que trata-se
apenas de “uma roupa que minha tia tem” e que não cumpre a função de cobrir o corpo,
pois o corpo está ausente na resposta. A resposta é ainda composta por fenômenos
especiais de referência a lembrança pessoal, resposta diminutivo, sendo determinada por

121
um FE mal visto: “Isso me lembrou uma roupa que minha tia tem. Tipo um top que ela
tem” na associação. No inquérito, Paula completa “Ainda disse do Top. Achei que só
tinha pensado nisso. Tô pensando alto demais. Minha tia tem uma blusa que essa parte
de baixo é um top e aí amarra. Examinador: O que faz parecer top? Paula responde:
“Isso aqui embaixo eu acho, parece que tem zíper aqui no meio esse bichinho aqui do
meio. Esse negocinho preto com cinza, parece um zíper”. A única resposta “pele”
apresenta indícios, fornecidos pela qualidade formal negativa, que fortalecem a hipótese
acerca da fragilidade das barreiras e dos limites em Paula.
Em resumo, os dados apresentados no protocolo por Paula apontam para
dificuldades no estabelecimento dos limites e possíveis falhas na representação da
imagem do corpo, pois, embora o F% e o F+% apresentem-se próximos a média, os
limites do sujeito aparecem fluídos, conforme exposto acima (F% ext. baixo em
comparação a norma, presença de resposta “pele”; B:P 1:2; H% e A% baixos).

5.2.3. As funções do Eu-Pele de Paula


A função de manutenção do Eu-Pele
Um dos elementos a serem avaliados na investigação da função de manutenção
do Eu-Pele é o papel do eixo central das pranchas I, IV, V e VI na construção das
respostas: o eixo central pode ser utilizado como suporte para percepções integras ou,
por outro lado, ser utilizado para sustentar percepções clivadas que denunciam falhas na
função de manutenção do Eu-Pele (Linhares; Pinheiro, 2009).
Paula fez uso satisfatório do eixo central nas pranchas I (1. “Morcego” G F+ A
Banal e 2. “Máscara de Helloween” GDbl F+ Masc), na prancha IV (“Monstro gigante
de costas” G F+ (A) Banal) e na prancha VI, em apenas uma das respostas (1.”
Mosquitinho” D F+ A, resposta diminutivo). Entretanto, nas pranchas V (“Anjo com
dois cifres” G F- H (A) /Ad) e na segunda resposta da VI (“Folha daquelas de Outono”
D F- Pl) o uso do eixo central indica ineficácia da função de manutenção.
A resposta da prancha V demonstra, além da representação negativa ligada ao si
mesmo, que é indicada pelos fenômenos especiais de resposta híbrida e crítica ao
sujeito, a utilização do eixo central como suporte para representações clivadas. O sujeito
faz o uso distorcido da forma e utiliza parte do eixo central para projetar o mau objeto
na mancha, utilizando o mecanismo da identificação projetiva: “Anjo com dois
cifres...parece que ele é mau”. O Examinador pergunta: “O que faz parecer mau?”
Então o sujeito responde: ”As pernas”. Nota-se que o eixo central é utilizado como

122
suporte para a percepção clivada do objeto, pois o anjo visto inicialmente é
posteriormente investido por uma conotação persecutória, atribuída por conta da
posição das pernas (“As pernas” fazem o anjo parecer “mau”, em referência a parte
inferior do eixo central).

Já a segunda resposta da prancha VI, o eixo central é utilizado como suporte


para uma resposta mal vista “folha de Outono”. Apesar de poder indicar falhas na
função de manutenção, pela distorção da qualidade formal, trata-se aqui de uma falência
mais amena da que ocorre na resposta da prancha V. Enquanto na prancha V, Paula
fornece uma resposta mal vista, composta pelo hibridismo e pela percepção clivada do
objeto, não foram encontrados indícios de clivagem na prancha VI. Nas demais
respostas fornecidas nas pranchas compactas, o sujeito desempenhou com eficácia a
tarefa de utilização do suporte do eixo central. Considerando a hipótese de que a
prancha V, na qual o eixo central foi utilizado para a efetuar a clivagem, é uma prancha
de temática latente ligada a identidade, pode-se considerar a resposta fornecida como
um indicador de representações clivadas ligadas a identidade, associadas a falhas na
função de manutenção do Eu-Pele. Em se considerando ainda, o período adolescente,
caracterizado, entre outros aspectos, como sendo o tempo de redefinição da identidade,
a resposta da prancha V, parece relacionada com falhas na reelaboração de questões
identitárias.
Segundo Le Breton (2003), o ato de modificação corporal, que inclui tatuagens e
piercings, ocupa a função de imprimir a representação si na própria pele, aproximando o
corpo da imagem de si internalizada. Nesse sentido, as escarificações, uma forma de
modificação do corpo, funcionariam de maneira similar, porém apresentariam uma
diferença essencial: nas escarificações patológicas, é a identidade ligada a afetos
negativos, a representação de si odiada, fragmentada e “ferida” que seria atualizada no
corpo por meio dos cortes na pele. Segundo os indicadores de Rorschach associados a
avaliação da representação de si, Paula apresenta uma identidade ligada a afetos
negativos e representações clivadas. Essa seria a identidade atualizada por ela ao efetuar
cortes na pele. Assim, ao escarificar-se, Paula estaria imprimindo na carne as marcas da
representação que guarda sobre si (identidade odiada, clivada e ferida). Paula retalha a
pele de seu corpo e ao fazer isso acaba por aproximar sua imagem a representação
interna que guarda sobre si mesma. A identidade odiada, fragmentada e ferida é
reatualizada pelas escarificações, oferecendo também a possibilidade de expressão ódio

123
voltado contra si mesma e tornando públicas as feridas que ela sente internamente.
A presença de resposta de tendência a contaminação na Pr. II, o processo de
desvitalização (Pr. VIII “corpo humano de livros de escola”), confusão de detalhes
corporais na prancha II e III (“costelas” seguidas das respostas adicionais “coração” e
“duas pessoas que puxam o coração”) e na pr. II “Borboleta sendo libertada”, seguida
de “sangue expirando” e depois “lembra eu quando eu me cortava”) revelam falhas na
função de manutenção do Eu-Pele. A confusão de detalhes e a tendência a contaminação
indicam a fragilidade das representações em sua solidez que a falta de continuidade das
representações revela. Na contaminação, tendência a contaminação e confusão de
detalhes, o sujeito efetua uma telescopagem de percepções, sobrepondo um percepto a
outra percepção, o que aponta para a descontinuidade e concretude das percepções, que
se apresentam de maneira demasiadamente fluída em seu interior. Esse processo mostra
a falta de suporte proporcionado pelo Eu-Pele em sua função de juntar as representações
internas ao copo. Já a desvitalização remete a constrição dos perceptos, em detrimento
da contenção e transformação das representações no interior do continente psíquico,
fator que é tanto indicador da falta de suporte (manutenção) quanto de capacidade de
contenção (Função continente) proporcionada pela internalização do Eu-Pele (Linhares;
Pinheiro, 2009).

A ausência de K também indica falhas na função de manutenção, uma vez que a


projeção de movimento, sem o comprometimento da qualidade formal, remete tanto a
capacidade de delimitar um continente (eficácia da função continente do Eu-Pele)
quanto indica a solidez da unidade interior (eficácia da função de manutenção do Eu-
Pele). A única resposta cinestésica humana é mal vista e aparece como resposta
adicional (Pr. II G K- A/Anat), a resposta kan fornecida na prancha III (“Borboleta
sendo libertada”), único movimento fornecido na parte da associação, apresenta
qualidade formal negativa. Aliado a tais indícios o G% encontra-se dilatado (75%), em
razão da diminuição dos índices de D% e Dd% (16% e 8,3%, respectivamente). Entre as
respostas Globais, nenhuma delas é elaborada, o que seria indício ineficácia da função
de manutenção, pois atestaria a integridade da representação do interior do corpo
proporcionada pelo Eu-Pele.
O Dbl% (8,3%), encontra-se dilatado, muito em razão da baixa produtividade
(R=12), ocupando a frequência de uma aparição em todo protocolo (Dbl=1). Em
analisando a resposta Dbl, nota-se tratar de um Dbl intramacular que é integrado a

124
mancha sem o comprometimento da qualidade formal (Pr I “Máscara de Helloween).
Apesar da presença de conteúdos persecutórios em tal resposta (Olhos, na parte Dbl da
Pr I), a participante mostrou eficácia em integrar o branco em sua resposta, o que
demonstra certa eficácia do domínio sobre os vazios internos que poderiam
comprometer a solidez da representação de si. Por fim, as frequentes referências ao
clínico, feitas por meio de comentários constituem indicadores de que o sujeito se
utiliza das relações de objeto como auxiliares à função de manutenção (suporte) da
unidade corporal, o que indica a existência de falhas na função de manutenção.
Em resumo, há suficiência de indícios a ponto de poder se afirmar que Paula
apresenta falhas na função manutenção do Eu-Pele.

A função continente do Eu-Pele


Embora Paula apresente Dbl% aumentado, este fator não compromete a
qualidade formal da resposta (Pr I “Máscara de Helloween”), o que é um bom indicador
para a eficácia da função continente do Eu-Pele, assim como também indica eficácia da
função de manuntenção. O índice de F% e F+% apresentam valores próximos a média,
o que constitui indicadores da boa eficácia da função continente do Eu-Pele, pois esses
fatores indicam a capacidade de delimitação adaptativa da mancha, o que remete a
capacidade de delimitação das barreiras delimitadores do espaço interno e ambiente.
Por outro lado, a baixa frequência de cinestesia humana (K=0), a diminuição do
F+%ext. em relação a norma (F+%ext. 41,6 %), o índice FC<CF+F: 0:2; o índice B:P
(1:2) indicam fragilidade da função continente. Aliado a esses fatores está resposta
adicional da prancha VIII, na qual há ocorrência de um desdobramento direto
(camaleão andando, em reflexo), dado que a resposta reflexa implica um apagamento
das distinções entre os engramas percebidos, o que remete à tendência a dissolução das
barreiras do continente. A resposta “pele” fornecida na prancha VII em razão de sua
qualidade formal negativa seria indício de fragilidade do continente.
Em resumo, há indícios de falhas na função continente do Eu-Pele, ao mesmo
tempo em que, também há indícios de eficácia dessa função, o que nos leva a inferir que
o sujeito apresenta capacidade de delimitar as fronteiras, apesar de ocorrerem relevantes
falhas em determinadas situações. Os índices de controle do afeto (FC<CF+C; ∑C:∑E:
2,5;2 F+%ext.=57,1%) apontam que as barreiras que delimitam o continente tendem a
se romper quando o sujeito é invadido pelo excesso pulsional. Nessas situações é

125
provável que ele procure obter descarga pulsional por meio da expulsão dos elementos
psíquicos, uma vez que a função de continência do Eu-Pele tende a perder sua
capacidade de contenção dos conteúdos nessas situações nas quais as barreiras
interno/externo se rompem.

Em relação a capacidade de transformação e simbolização dos conteúdos


contidos no continente, a dificuldade de variar a localização (de G para D e Dd), de
fornecer várias respostas na mesma área da mancha, a progressão de F+ para F- (Pr.
VII), a progressão ocorrida nas pranchas de cor pastel ( CF na prancha VIII para F- na
prancha IX para C na prancha X) e dificuldade de integração da cor vermelha nas
pranchas II e III indicam falhas na tarefa de transformação, associada a função
continente do Eu-Pele. A capacidade de variar a localização, sem efetuar telescopagem
dos perceptos, indica a eficácia do aspecto contentor (transformação dos conteúdos) do
Eu-Pele por demonstrar a capacidade de transformação criativa e adaptativa dos
conteúdos percebidos. A superação das rupturas e integração da cor vermelha
demonstram a capacidade de transformação por atestar a habilidade em superar as
rupturas do processo de simbolização durante o teste, pela recuperação a aptidão
semântica das manchas.
Em resumo, há fortes indícios de falhas na capacidade contentora do Eu-Pele de
Paula. Essas falhas na capacidade de simbolização dos conteúdos, podem estar
relacionadas a falhas na função continente do Eu-Pele, uma vez que a dificuldade de
transformação dos conteúdos e falhas na ligação dos afetos pode culminar na expulsão
dos elementos psíquicos, em detrimento de sua contenção. É uma hipótese provável que
Paula tenha dificuldades de elaborar o excesso pulsional, pela via da transformação,
uma vez que ela apresentaria a vida pulsional permeada pela dominância do afeto sobre
a representação, aspecto mantido pela tendência ao recalcamento das representações e
pela expulsão das representações por meio do mecanismo de identificação projetiva.
Nesse sentido, por apresentar falhas na função de continência e manutenção do Eu-Pele,
pode-se inferir que Paula apresenta uma representação da pele psíquica próxima ao que
Anzieu (1989) denominou “Eu-Pele escorregador”, funcionamento no qual as
representações não se sustentam e não podem ser contidas, o que tende a impedir a
recordação e elaboração dos elementos que tendem se expressar pelo ato a serviço da
compulsão a repetição.

126
A função de para-excitação do Eu-Pele

No protocolo de Paula, os índices F+%ext (41,6%); FC<CF+C= 0:2; ∑C:∑E:


2,5:2 E=EF+E: 1:1; H:0%, A=25% e a presença de choques (prancha III e IX) indicam
falhas nos processos da função de para-excitação do Eu-Pele. Esses resultados indicam
que Paula falha em utilizar o recurso à para-excitação proporcionado pela internalização
do Eu-Pele, e acaba por ser invadida impressão provocada pelo conteúdo latente e
manifesto das pranchas.

5.2.4 Síntese do caso Paula.

Em resumo, Paula apresenta falhas nas três funções do Eu-pele apreciadas e


ainda fragilidade dos limites. Seu principal recurso saudável tende a ocorrer pelo apego
a objetividade e apoio no objeto, que garantem um certo grau de funcionamento mínimo
das funções analisadas (F%=58% F+%=57,1%; Ban:2). Entretanto, o contato com as
experiências afetivas ligadas as estimulações internas e externas (Choque na prancha III
e IX, evitação da cor nas pranchas II e III; RC% 16,7%; baixa qualidade formal
apresentada nas pranchas pasteis, F% ext. 41,6%,), parecem superar os recursos de para-
excitação e desestabilizar os limites do sujeito, processo que resulta na não contenção
dos conteúdos psíquicos e descargas empreendidas de forma inadequada (∑C:∑E: 2,5;
FC:CF+C=0:2). Paula apresenta indícios de dificuldades relativas a imagem do corpo e
identidade, além da relatada fragilidade dos limites (H=0, Transparência da Pr. II;
B:P=1:2; F+%ext.=41,6%). Entretanto, ela apresenta grau adaptativo de contato com a
realidade compartilhada, embora rupturas possam ser observadas (A%=41,7%;
Ban%=16,6; F+% 57,1%).
O sintoma pode representar o apego a realidade citado. Nesse caso, as
escarificações seriam o guardião da unidade psíquica (Le Breton, 2003), cuja fragilidade
seria decorrente da falha da função de manutenção do Eu-Pele.
Além da fragilidade da representação do Eu-Pele, como suporte internalizado
(Função de Manutenção), a função de para-excitação do Eu-Pele falha em proteger
Paula dos excessos pulsionais traumáticos. Esses fatores dificultam os frágeis processos
de transformação e contenção dos elementos psíquicos por Paula (Função continente do
Eu-Pele). Desse modo, a invasão afetiva supera a capacidade de simbolização de Paula
e coloca em risco a própria manutenção da unidade.
Portanto, escarificar a própria pele pode ser uma maneira encontrada por Paula

127
em se utilizar a sensação do corte feito na pele como suporte para a recuperação dos
limites ilusórios necessários para continuidade da própria existência e, assim, afastar os
fantasmas ligados as dificuldades de separação e destruição do objeto interno,
desprotegido frente a falência das barreiras ineficazes em proteger e conter o objeto
seguro das invasões pulsionais internas e estimulações internas.
Ainda utilizando a hipótese de Matha (2010) sobre as escarificações, como
formas de retorno dos elementos traumáticos, há de se considerar que o abuso sexual do
qual Paula foi vítima, pode conter elementos que ainda não foram suficientemente
elaborados, tendendo a ser expulsos ou a compor formas inadaptadas de descarga, como
o uso de drogas (de acordo com significado atribuído as drogas por Paula) e os cortes do
corpo. Ainda em se considerar as modificações corporais, das quais as escarificações
fazem parte, como tentativas de atualização do corpo em relação a representação de si
internalizada, é possível que os cortes tentem atualizar no corpo a identidade negativa
(“louca” Pr. V; “psicopata” Pr. III) e dissociada (“anjo com chifres” Pr. V).
Por fim, as recomendações clínicas são direcionadas a aprimorar a capacidade de
representação do corpo, a aptidão a internalizar limites dessa representação e das
descargas pulsionais, além do incremento da internalização de um suporte que conceda
solidez ao mundo interno. Nesse sentido, Green (2008) cita a função do analista, como a
função terciária, na qual o analista pensa os problemas do analisando em sua
companhia, o que melhora artificialmente sua capacidade de elaboração no início, e
resulta no decorrer do processo analítica na internalização da capacidade de pensar do
analista pelo analisando. Dessa forma, caso o analista efetue a função de Rêverie a partir
das identificações projetivas de Paula propiciando a transformação dos conteúdos (Bion,
1962/1991), é provável que a capacidade de manutenção e continência dos elementos
psíquicos seja melhorada, a ponto de que o ato possa ser substituído pelo conflito
psíquico, sem que os conteúdos necessitem ser expulsos pelos paroxismos dos atos ou
que as representações precisem ser patologicamente recalcadas.

128
5.3 Estudo de caso Helena (Sujeito 2).

“Quando eu lembro de tudo que aconteceu, eu quero


descontar essa raiva, só que não nas pessoas que estão
próximas de mim, porque elas não têm nada a ver com
isso. Então acaba que eu...eu sinto um pouco de culpa
também, eu acabo me cortando por culpa e por raiva
deles”. “Porque o tamanho da dor que eu (Helena) sinto é
o tamanho do corte que eu dou”.
Prancha IV: “Aqui parece o monstro, aí vêm as garras
aqui em baixo, pé... E aqui em baixo meio que saindo
alguma coisa de dentro dele”.

5.3.1 História clínica


Helena tem 18 anos é estudante e está à procura do primeiro emprego. Ela mora
com a mãe adotiva e o irmão de criação, com os quais apresenta forte ambivalência
relacional. A participante acredita que sua mãe adotiva dá pouca “atenção”, por
depositar maior investimento ao irmão de criação. Incentivada por membros da família
distante, que se divertiam em ver Helena como um “cão de briga”, a participante se
envolveu repetidas vezes em brigas físicas com o irmão. Em uma ocasião, ela quebrou o
nariz do irmão, o que rendeu a Helena um dedo quebrado. Nos últimos dois anos, a
relação do Helena com o irmão tem melhorado, porém a participante ainda guarda fortes
ciúmes da relação do irmão com a mãe adotiva.
Helena não sabia que tinha sido adotada até que a sua mãe adotiva lhe contar,
quando ela estava com dez anos de idade. Ela escolheu não conhecer os pais biológicos,
quando sua mãe ofereceu essa possibilidade e afirmou não ter se “importado” com a
descoberta pois “estava passando era algo pior, então (eu) nem liguei”.
O “algo pior” a que ela se refere, eram os repetidos abusos sexuais dos quais foi
vítima na infância, quando estava com sete anos de idade. Os abusadores eram pessoas
próximas a família, que a ameaçavam e a drogavam para cometer os atos. As cenas de
abuso são lembradas com muita raiva. Ela relatou sentir mais raiva de um dos
abusadores, considerado por ela como o mais violento: “ (ele) falava que ia me matar,
pegar meu corpo e jogar na mala, que ia matar minha mãe se eu contasse, aí eu não
contei”. Em razão da raiva que sentia por esse abusador, Paula afirma ter feito um pacto

129
com o “Diabo”: “ Tava tão desesperada que acabei fazendo, foi aos treze anos eu fiz
um pacto com o Diabo pra que levasse X. Eu falei que queria que ele morresse de AIDS
e passou uma semana depois ele teve AIDS e faleceu”. O pacto envolvia um ritual do
qual Helena afirmou se arrepender: “Só que depois eu me arrependi e acabei voltando
atrás. Eu já passei um tempo na igreja, tive casos de possessão”. Após ter feito o
“pacto na presença dos quatro guardiões do inferno”, a participante afirma ter tido
episódios de possessão demoníaca durante dois meses, nos quais “meio que o Demônio
toma conta de você e sua alma sai, você se vê ali, mas você não está ali...Ele (Diabo)
entra e expulsa a gente, ele passa a ter a nossa vida e a gente a vida dele, então ele
entra no nosso corpo e a gente desce, a gente fica lá como se fosse ele lá no inferno”.
Os episódios de possessão são entendidos por Helena como “uma penitência pela
quebra do contrato”. Após dois meses, as “possessões demoníacas”, deram lugar a
perturbações que persistem até hoje, sendo constituídas por “visões, aparições e vozes.”
As vozes diziam que “Que eu (Helena) errei de ter feito essa técnica, que quem
sofreu não era só eu. Eu (Helena) estou percebendo isso”. Apesar das experiências
místico-religiosas citadas, a participante afirma não ter certeza na existência de Deus:
“Às vezes eu acho que eu sou ateu, às vezes acho que eu sou católica. Eu estou meio
indecisa assim”.
Aos doze anos, a participante chegou a usar crack frequentemente, tendo
chegado a roubar dinheiro e trocar celulares para consumir a droga. No entanto, ela
afirma ter deixado de usar drogas, após sentir-se culpada pela reação da mãe à época da
descoberta sobre esse fato. Mesmo assim, Helena continuou roubando dinheiro da mãe,
para “chamar a atenção dela”, por achar que a mãe adotiva dava mais atenção ao irmão.
A participante sente-se um “lixo” em relação a seu corpo, pois afirma ter
engordado muito nos últimos tempos, apesar de ter sido magra a maior parte da vida:
“Eu (Helena) penso que eu sou um lixo, eu não gosto do meu corpo”. Por conta disso,
episódios de bulimia marcaram a adolescência da participante que explica: “Eu era
magra e comecei a engordar, aí acabou que aos treze anos...quatorze anos eu
desenvolvi a bulimia. Eu era muito magra, até que eu fui engordando, até que eu
engordei demais. Aí eu olhava no espelho e falava assim: “essa aqui não sou eu, eu
tenho que emagrecer, eu tenho que emagrecer, até que eu fiquei com isso na cabeça. Eu
me sinto uma bola, sinto que eu sou gorda, que eu tenho que emagrecer de qualquer
jeito. Teve um mês aí que eu passei quase o mês todinho sem comer, só tomando suco.
Não me sentia mal, não me sentia culpada por ter comido, até porque eu não estava

130
comendo. Mas quando eu como assim, eu me sinto culpada, aí eu tenho que colocar a
comida pra fora”.

As escarificações.
As escarificações começaram inspiradas em uma reportagem sobre abuso sexual,
na qual uma “menina que passou pela mesma coisa se cortava falando que amenizava a
dor dela. Aí segui o mesmo caminho dela, então, eu (Helena) fui meio que Maria vai
com as outras nessa questão. Eu me cortei depois dessa reportagem que eu vi. E
realmente ela tinha um pouco de razão, me cortar eu me sinto culpada, mas também
aliviada”.
Os cortes no corpo são vistos por Helena como uma forma de satisfazer a raiva
que sente por conta dos abusos sexuais sofridos: “Quando eu lembro de tudo que
aconteceu, eu quero descontar essa raiva, só que não nas pessoas que estão próximas
de mim, porque elas não têm nada a ver com isso, então acaba que eu... Eu sinto um
pouco de culpa também, eu acabo me cortando por culpa e por raiva deles”.
A culpa é explicada pela participante pelo fato de não ter denunciado os abusos
sexuais na época em que eles ocorreram: “eu (Helena) me sinto culpada por não ter
falado antes, por não ter criado coragem antes”. Os cortes são profundos “porque o
tamanho da dor que eu (Helena) sinto é o tamanho do corte que eu dou”.
As escarificações eram feitas com gilete nos braços e nas coxas de Helena, tendo
tido início quando ela tinha cerca de doze anos de idade. Ela foi abusada sexualmente
dos sete aos doze anos de idade e afirma ter começado a se cortar por não “aquentar a
pressão” decorrente dos abusos e dos segredos que eles cobravam. Para Helena, os
cortes foram uma forma de pôr fim aos abusos: “isso tem que acabar, ou eu desconto ou
mim ou nas pessoas que não tem nada a ver com isso. Aí eu preferi descontar em mim
toda essa raiva que eu sentia”. A adolescente está em tratamento psiquiátrico e
psicológico, participando de psicoterapia individual e de grupo.

5.3.2 Análise do protocolo de Rorschach de Helena


Estão descritos na tabela 5.2, os resultados do psicograma feito à partir do
protocolo de Rorschach de Helena. A seguir serão analisados os indicadores de
Rorschach do protocolo da participante referentes aos processos de pensamento,

131
tratamento dos afetos, organização defensiva e as funções de manutenção, continente e
para-excitação do Eu-Pele.

Tabela 5.3. Resultados do psicograma de Helena.


Localizações Determinantes Formais.

G% D% Dd% Dbl% F+% F+%ext. F%

56,2% 37,5% 6,2% 6,2% 77,8% 81,2% 56,2%

Determinantes Sensoriais.

∑C:∑E K:∑k G:K FE:EF+E FC:CF+C FC´:C´F+C´

0,5:1,5 3:0 9:3 1:1 1:0 1:0

Outros índices

Ban% RC% H% A% TRI: K:∑C Índice de angústia.

6,25% 37,5% 18,75% 56,2% 3:0,5 6,2%

B:P H:(H) H:Hd A:Ad TVS: ∑k:∑E Node Respostas

1:1 3:1 3:0 8:0 0:1,5 16

O Processo de pensamento
O processo de pensamento de Helena tende a ser sintético e prático (G%=56,2;
D%=37,5%) apresentando boa capacidade de realização (G:K=9:3). Helena apresenta
uma forma de pensar pouco analítica e excessiva em seu apelo a objetividade
(F+%77,8; F+% 81,2%), tende a realizar sínteses pela tendência a ligação dos elementos
percebidos (G%=56,2; 5 respostas de ligação). Trata-se de um estilo de pensamento
sintético permeado por uma excessiva objetividade, no qual a estereotipia dos processos
de pensamento e a infantilidade dos julgamentos tende a se fazer presente (A%=56,2%).
Embora apresente um estilo de pensamento incomum ao grupo social de inserção e
faixa etária (Ban%=6,25%), Helena é dotada de juízo de realidade adequado a realidade
consensual, por meio da elaboração de juízo de realidade excessivamente dependente
dos aspectos objetivos dos fatos (F+% 77,8; F+%ext. 81,2). Não há indícios de

132
comprometimento intelectual, apresentando-se indícios de boa capacidade intelectual
(K+=3).

O tratamento dos afetos e a identificação


Helena apresenta tipo vivencial introversivo dilatado (K:∑C=3:0,5), o que indica
um estilo de personalidade no qual o sujeito é mais centrado em si, com tendência a
estilo mais reservado. O sujeito introversivo pode ter consciência de suas dificuldades,
porém os problemas podem absorver o indivíduo em sua habitual contemplação
imaginária (Traubenberg, 1970). Há indícios de dominância da representação sobre o
afeto (F+%=77,8%; F+%ext=81,2%; FC>CF+C=1:0). Embora o mundo interior tenda a
prevalecer nos indivíduos introversivos (Traubenberg, 1970), Helena apresenta
excessivo apego a realidade exterior (F% 56,2%; F+%=77,8%; F+%ext=81,2%).
A representação corporal apresenta-se íntegra (H>Hd=3:0; H>(H)=3:1;
A>Ad=8:0), com índice de respostas humanas levemente abaixo dos valores normativos
(H%=18,1%) o que indicaria dificuldades de identificação (G%=56,2%). Entretanto a
dilatação dos índices formais (F% 56,2%; F+%=77,8%; F+%ext=81,2%) indica a
inibição do afeto como defesa responsável pela diminuição da responsividade afetiva.
As respostas nas pranchas II, III e VII indicam que a representação das relações
costuma ocorrer pela tendência ao estabelecimento de relações anaclíticas, em razão da
tendência a ligar os engramas humanos percebidos, mesmo que o contato seja projetado
pela via do especular, como ocorre na prancha Pr.VII. (Pr II. Duas pessoas, juntando a
mão e o pé. Só isso, que eu consigo ver aqui, é só. (Vira a prancha, de cabeça para
baixo) G K H; Pr III Ou se não, parecem duas pessoas com a mão numa árvore, sei lá.
É isso G K H; Pr. VII Ou duas mulheres, uma olhando para outra. G K H).
A organização defensiva e os conflitos
A rigidez caracteriza o protocolo de Helena. Apesar da boa frequência de
cinestesias humanas (K+=3), trata-se de um caso no qual a rigidez defensiva tende a
inibir a vida afetiva (F% 56,2%; F+%=77,8%; F+%ext=81,2%; ∑C=0,5). É provável
que ela utilize o modo neurótico obsessivo de repressão dos afetos e se apoie na
objetividade da realidade para afastar a vida afetiva da consciência.
A separação tende a ser o conflito central (Respostas de ligação; G elaboradas e
K relacionadas a respostas de ligação), do qual Helena se defende pela via da
dependência e anaclitismo das relações objetais, além da já citada supressão dos afetos.

133
O tratamento dos limites
Helena apresenta uma resposta “pele” na prancha VI, “É um peixe, dois peixes,
juntos”, classificada como resposta “pele” e resposta barreira, em razão da percepção de
“escamas”. Em relação a análise da resposta “pele”, trata-se de uma resposta mal vista,
definida pelo esfumaçado e apoiada no duplo da percepção. Esses fatores são indícios
de falhas no estabelecimento de limites. A resposta cotada como D EF A, apresenta o
fenômeno especial de resposta de ligação, que também está presente em outras três
pranchas (Pr. I, II e III), o que indica tendência ao estabelecimento de relações de objeto
anaclíticas. Além disso, a sensibilidade ao branco pode representar tanto sensibilidade
aos afetos depressivos, como pode ser um indicador sensibilidade as falhas dos limites.
A proporção de respostas barreira-penetração, encontra-se na ordem de 1B:1P,
abaixo dos dados normativos, o que indica o sobreinvestimento dos limites pela via da
inibição. Já os indicadores F% e F+% (56,2%, 77,8%, respectivamente) apresentam
valores acima da média e indicam capacidade de delimitação dos limites, que tenderia a
ocorrer por meio do sobreinvestimento e diminuição consequente das trocas com o
ambiente (F% aumentado em relação a norma).
As frequências das respostas H e A (18,75% 41,7%) encontram-se um pouco
abaixo dos valores normativos, apesar de não indicarem, por essa razão, falhas no
estabelecimento de limites, uma vez que as taxas de resposta parciais, Hd e Ad se
mostram relativamente baixas (H:Hd=3:0; A:Ad=8:0). Em resumo, Helena apresenta
indicares de capacidade de estabelecimento de limites, embora o excesso do
sobreinvestimento diminua as trocas em relação ao meio. Paradoxalmente o
estabelecimento desses limites ocorre frequentemente pela via do apelo ao outro
(análise da resposta “pele”; respostas de ligação=4), o que, em se considerando o
sobreinvestimento e a rigidez defensiva (1B:1P; F+%=77,8%; F+%ext. 81,2%)
estabelece uma relação de compromisso: embora Helena seja carente por contato
(respostas de ligação; análise da resposta “pele”), o sobreinvestimento dos limites, tende
a dificultar o contato interpessoal e as trocas com o ambiente.

5.3.3. As funções do Eu-Pele de Helena

A função de manutenção

134
Helena forneceu duas respostas apoiadas no eixo central da prancha I. A
primeira foi um “Anjo” (associação) que” parece que tem corpos juntos, aí dá a
impressão que é só uma pessoa, tem as mãos levantadas” (inquérito), resposta G
F+K+ (H), composta pelo fenômeno especial de resposta ligação. A segunda resposta
foi: “Borboleta” (associação), “por causa das asas e furinhos no meio” (Inquérito),
resposta cotada como GDbl FC´ A.
A primeira resposta, por ser composta pelo fenômeno especial de resposta de
ligação, confere indícios de anaclitismo. Portanto a primeira resposta fornecida na
prancha I remete a falhas na internalização da função de suporte (manutenção),
proporcionada pelo Eu-Pele, visto que a percepção de “corpos juntos” remete a
dificuldade de separação e a tendência a se utilizar do outro como suporte. A segunda
resposta “borboleta”, é permeada pela sensibilidade ao branco, utilizado como suporte
para as falhas internas vistas no percepto: os “furinhos” da asa da “borboleta”. Esse
processo remete, além da sensibilidade ao vazio, para o sentimento de descontinuidade
da função continente e excessiva fluidez da unidade corporal. Dessa forma, o sujeito
forneceu duas respostas na prancha I que indicam falhas na função de manutenção do
Eu-Pele.
Na prancha IV, o sujeito forneceu uma resposta: “O monstro” (associação) com
“garras embaixo, pé, e aqui meio que saindo alguma coisa de dentro dele” (inquérito),
resposta banal, G FE (A). Além do percepto visto com “alguma coisa saindo dele”
apontar falhas na manutenção do psiquismo, as garras conferem indícios de
agressividade e a fala “alguma coisa saindo dele”, denota a dificuldades de contenção
dos conteúdos, falhas na função de continência do Eu-Pele.
Na prancha V, ela responde “morcego “G F+ A, só não cotado como banal por
ter sido visto na posição invertida da prancha, o que indica boa utilização do eixo
central e consequente boa qualidade da função de manutenção. A utilização do eixo
central da mancha como suporte de percepções distintas e bem vistas, indica a
internalização do suporte (holding) maternal, o que concede solidez a representação
corporal, conforme já descrito nesse trabalho.
Na prancha VI, a resposta mal vista, “é um, dois peixes, juntos” é determinada
por um EF. A resposta é vista com a prancha na posição vertical e o eixo central é
utilizado para marcar a separação entre o duplo, os “dois peixes juntos”. A progressão
do fio associativo ocorre pela transformação de um peixe, em dois peixes e, finalmente,
na mutação do percepto duplo para um peixe visto em reflexo: “É um peixe, dois peixes,

135
juntos” (Associação), “em cima e embaixo. Ou se não ele pode tá na água e o reflexo
dele tá aparecendo. Aí daí a impressão que é dois”.
Esse aspecto da resposta indica a regressão das relações objetais para relações
narcísicas que, por fim, se transformam em relações especulares, na quais a
diferenciação é reconhecida, apesar de falhar em ser mantida. A incidência de várias
respostas de ligação no protocolo (5 ocorrências, Pr. I, II, III, VI e VIII), a referência a
simetria( Pr. I), a resposta par (Pr. II) e a resposta reflexo (Pr. VI) denotam uma
tendência à relação anaclítica de objeto.
Assim, pode-se concluir que mesmo que a manutenção se mostre adaptativa no
caso de Helena, o modo de utilização do outro como suporte (respostas de ligação) é
indicio da insuficiente internalização do holding. Nesse sentido, o apego à realidade
(F%56,25%; F+%=77,8%) e a tendência às relações anaclíticas visam compensar as
falhas de manutenção do Eu-Pele, que seriam decorrentes das faltas maternas primárias
que resultaram na insuficiência da representação do suporte que confere a solidez a
representação corporal. Uma das consequências desse modo de funcionamento é que
Helena tende a se tornar dependente do objeto e diminuir as trocas com o ambiente.
Em síntese, os valores de F+% e F% acima da média (56,2% e 77,7%,
respectivamente) indicam a tendência em cristalizar e constringir os elementos
psíquicos por meio de defesas demasiadamente rígidas que ocupam o lugar da função de
o suporte ou manutenção desempenhada pelo Eu-Pele (Linhares; Pinheiro, 2009). O alto
número de respostas de ligação e cinestesias marcadas pela ligação das representações
(Pr. II, III) indicam dificuldades de distinção eu-outro e apontam para hipótese de que
Helena se utiliza do outro como suporte condicional para a eficácia da função de
manutenção psíquica.

A função continente do Eu-Pele

Helena apresentou uma resposta Dbl intramacular na prancha I, “Uma borboleta,


pra mim é obvio” na associação e “também por causa das asas e furinhos no
meio...Essas manchas em branco na asa aqui” GDbl FC´ A. Nessa resposta, o espaço
em branco é integrado apenas na parte de inquérito, sendo o branco usado como
determinante da resposta que detém qualidade formal positiva. Embora a resposta
fornecida seja indício da sensibilidade ao branco apresentada por Helena, o branco
intramacular é bem integrado ao longo da resposta. De forma geral, o que a resposta
parece indicar é que, apesar de apresentar forte sensibilidade ao branco, e portanto, da

136
relevante sensibilidade as falhas do continente e ao vazio, aspectos ligados a
depressividade que representam as marcas arcaicas das relações materno primárias
(Roman, 2001), Helena apresenta a capacidade delimitação de um espaço continente
próprio, o que é um indício de eficácia da função continente.
As respostas F% e F+% (56,23% e 77,77%) em valores superiores à média, os
valores de barreira-penetração (1B:1P), em valores diminuídos em relação a norma,
indicam sobreinvestimento dos limites do continente, o que resultaria na diminuição das
trocas com o ambiente, como o modo encontrado pelo sujeito para superar as falhas do
continente e a sensação de vazio. A resposta “pele” fornecida na prancha VII é
caracterizada pela dificuldade de definição do percepto: “É um peixe, dois peixes
juntos”. Nota-se que o peixe, inicialmente unitário, se transforma no duplo para ser
referido como um peixe em reflexo durante o inquérito: “Ou se não, ele pode tá na água
e o reflexo dele tá aparecendo. Aí daí a impressão que é dois”. Apesar de ser uma
resposta barreira, e, portanto, fazer apelo ao investimento dos limites, o desdobramento
denuncia uma tendência de diluição do sujeito no objeto. O Um, o duplo e o reflexo são
tidos pelo sujeito como conceitos quase indistintos, revelando a dificuldade de
separação do sujeito e objeto, que ocorre, apesar do sobreinvestimento dos limites. A
distinção sujeito-objeto é feita, porém não se mantém. Helena apresentaria a tendência a
se “misturar” com o objeto.
Portanto, em síntese, pode-se afirmar que Helena apresenta a tendência a
sobreinvestir os limites, constituindo um continente demasiadamente rígido, cuja
tendência é o fechamento às trocas em relação ao meio. Por meio da rigidez das
barreiras externas, o sujeito salva a existência de um continente em sua função de
estabelecer um espaço próprio, por meio do sacrifício empreendido pela diminuição das
trocas com o ambiente. Entretanto, apesar do sobreinvestimento dos limites, as rupturas
tendem a ocorrer, principalmente no sentido na confusão de limites entre sujeito e
objeto e na rejeição das diferenças, o que indica a tendência narcísica a se misturar com
o outro como forma de suprir as falhas primárias que permeiam o psiquismo (Chabert,
1993).

A análise do fio projetivo do protocolo de Helena mostra que, apesar da


dificuldade de variação das localizações de respostas (G% 56,25%; D% 37,5%; Dd%
6,25%), o sujeito demonstrou eficácia em transformar os perceptos, conforme
demostrado pela presença de três G elaborados definidos por K (Pr. II, III e VII). Além

137
disso, Helena apresentou eficácia em se recuperar das rupturas, pela progressão de F-
para respostas bem vistas, conforme observado na prancha III, na qual resposta
“pulmão, parece um esqueleto que tem a parte aqui, parece um pulmão” determinada
por um F- que é seguida por “duas pessoas com a mão numa árvore, sei lá” resposta
K+, ambas respostas fornecidas na localização G. A progressão da resposta da prancha
III nos indica a capacidade de Helena em transformar a mancha de forma criativa e
eficaz em afastar a angústia. Apesar disso, a resposta seguinte ao percepto mal visto em
transparência carrega a conotação anaclítica indicada pelo fenômeno especial de
ligação. Esse fato nos indica a tendência de Helena em garantir a continuidade do ser,
pela utilização suporte proporcionado pelo outro, aspecto discutido anteriormente.
A resposta EF “Um peixe, dois peixes juntos” fornecida na prancha VI é seguida
das respostas F+ “dois coelhos” e K+ “duas mulheres, uma olhando para outra” na
prancha VII, e a resposta F- “um sapo” na prancha IX é procedida por 4 respostas F+,
“um caranguejo”, “um peixe”, “uma lagosta” e “um cavalo marinho em cima de uma
pedra “, na prancha X. Portanto, Helena apresenta a capacidade de superação das
rupturas, principalmente pelo apego a objetividade e ao outro.
Na prancha VI a resposta mal vista é seguida de uma resposta F+ e de uma
resposta K+, de conotação persecutória, (“Duas mulheres, uma olhando a outra”). Na
prancha IX, a exigência latente da prancha por elaboração do afeto e diferenciação
suscita uma ruptura traduzida pela resposta “Sapo” (D F- A). Trata-se de uma resposta
fornecida após longo tempo de latência (TL: 104´´). A recuperação de tal ruptura se dá
pelo fornecimento de uma resposta Dd F+ A (“Um caranguejo”) na prancha X,
processo que substitui a pele frágil do sapo pela superfície corporal dura do caranguejo.
Essa recuperação indica a tendência a sobreinvestir os limites, como forma de superação
das rupturas.
De uma forma geral, Helena apresenta eficácia adaptativa da capacidade de
transformação da função continente, tendo mostrado eficiência em simbolizar as
pranchas e superar as rupturas causadas pelos conteúdos latentes das pranchas.
Entretanto, a transformação tende a ser feita pelo apego a objetividade e ao suporte
proporcionado pelo outro, o que revela dificuldade de autonomia no desempenhar da
transformações dos conteúdos e falhas nos processos de simbolização.
Em resumo, a o protocolo aponta para o sobreinvestimento dos limites e
diminuição das trocas em relação ao meio; enquanto o aspecto contentor da função

138
continente do Eu-Pele encontra-se condicionado em sua eficácia ao suporte oferecido
pelo outro e aos aspectos objetivos da realidade.

A função de para-excitação do Eu-Pele

Helena apresenta índices relativos a eficácia da função de para-excitação por


meio da constrição da vida afetiva (FC:CF+C=1:0; FE:EF+E:1:1; FC´:C´F+C´=1:0,
F%=56,2% e F+%=77,8%, K=3 H:Hd=3:0 e A:Ad=8:0) O tempo de latência total
(27,1 segundos) está aumentado em relação a norma (21 segundos), tendo sido dilatado
pelo choque ocorrida na prancha IX, na qual o tempo de latência foi de 104 segundo. A
denegação “esse aqui eu não sei o que é não” (Sujeito olha o verso da prancha)
antecedeu a resposta foi fornecida após o incentivo do examinador: “um sapo”, resposta
D F- A Pr. IX. O aumento do tempo de latência parece indicar falha da função de para-
excitação na prancha IX, cuja demanda latente é a elaboração dos afetos oriundos do
ambiente e a diferenciação, dificuldades já identificadas acima. Apesar de apresentar
F%=56,2%, a dificuldade de diferenciação se apresenta pelo elevado número de K
relacionadas a fenômenos especiais de ligação (Pr. II e Pr. III), respostas de ligação em
geral (Pr. IV e X) e desdobramento direto (Resposta reflexo na Pr. VI). O
sobreinvestimento dos limites, apesar de garantir a existência de um continente, parece
estar ligado a tentativa de afastamento do afeto, defesa que falha na prancha IX. Apesar
disso, a função de para-excitação parece aumentar sua eficácia por conta da rigidez das
defesas, conforme demonstrado pelos indicadores do psicograma (F%=56,2%;
F+%=77,8%; F+%ext. 81,2%; ∑C=0,5). A falha da função na prancha IX parece
reforçar os indícios acerca da dificuldade do sujeito de lidar com a diferenciação do
objeto e com o afeto, fragilidades que parecem ser uma das razões pelo estabelecimento
de defesas rígidas.

5.3.4 Síntese do caso Helena.


Em resumo, apesar de falhas precisas nas três funções do Eu-Pele avaliadas,
Helena se mostrou capaz de estabelecer os limites do continente. Entretanto, a para-
excitação ocorre pelo sobreinvestimento dos limites, a continência pela constrição dos
conteúdos psíquicos e a manutenção pelo estabelecimento de relações anaclíticas.
O anaclitismo das relações objetais parece ser uma relevante estratégia de
suporte e manutenção, em um funcionamento no qual as funções de para-excitação e
continência parecem estar organizadas como sinônimos. Assim, o sobreinvestimento

139
dos limites diminui as trocas com o ambiente, constringindo os conteúdos psíquicos, ao
invés de mantê-los de forma neutra, diminuindo assim o espaço entre a para-excitação e
a continência. As barreiras rígidas impedem ainda a emergência da vida afetiva.
Entretanto, a relação continente-conteúdo é preservada.
As barreiras externas, rigidamente defensivas, funcionam como barreiras de
para-excitação, em um funcionamento similar a descrição de Anzieu (1989) sobre os
estados narcísicos, uma vez que o funcionamento das três funções do Eu-Pele de Helena
parecem trabalhar com um objetivo de proteger o psiquismo das intromissões internas e
externas. Helena buscaria, portanto, abolir o espaço entre as barreiras internas e
externas, sobreinvestindo as barreiras externas, solidificando essas barreiras e
diminuindo o espaço de trocas em relação ao ambiente ao nível mínimo possível.
Esse processo defensivo, garante a preservação da relação continente-conteúdo,
pela criação de um envelope duplo, resultante da supressão da diferença entre das
barreiras internas e externas, que acabam por diminuir o espaço de jogo existente entre
elas. A organização defensiva rígida busca negar as falhas dos limites e o afeto
desencadeado pelas estimulações externas. Portanto, o sobreinvestimento dos limites,
pela configuração de um duplo limite, protege a relação continente-conteúdo
proporcionada por Eu-Pele reforçado, o que garante atividade do pensamento e a
integração do Eu psíquico ao Eu corporal.
Ao mesmo tempo em que se trata de uma tentativa de autossuficiência, Helena
permanece dependente do objeto e carente do contato invocado para efetuar a função de
ego-auxiliar da função de manutenção e continente, conforme apontado pelos
indicadores de anaclitismo no protocolo. As relações de objeto acabariam, portanto,
esvaziadas em alteridade, pois o objeto é visto como um desdobramento do sujeito.
Nesse sentido, Helena mostra-se capaz de diferenciar-se do objeto, porém falha em
sustentar tal diferenciação.
Assim o sujeito e objeto permanecem ligados, o objeto funciona como um duplo
a desempenhar a função auxiliar das funções de manutenção e continência do sujeito.
As estimulações externas parecem ter o efeito de desorganizar o psiquismo e, portanto,
tendem a ser evitadas, conforme indicado pelo baixo uso da cor, pela não utilização da
cor nas pranchas II e III e pelo choque na prancha IX. A organização defensiva
narcísica, entretanto, mesmo que pela via do sobreinvestimento dos limites do
continente que resulta na diminuição da distinção entre as funções a para-excitação e
continência, consegue manter a eficácia dos limites e o contato adaptativo com a

140
realidade. O anaclitismo e a rigidificação dos limites parecem ter sido as estratégias
encontradas pelo sujeito para garantir a continuidade da existência interior.
Assim, a dependência de drogas, os pequenos furtos e os cortes no corpo,
parecem ser tentativas de encontrar objetos anaclíticos que a auxiliem a afastar os
excessos pulsionais. O estabelecimento de relações anaclíticas buscaria a
autossuficiência em relação ao meio: o objeto é visto como um continente distinto,
porém ligado a Helena, como um continente auxiliar no efetuar das funções de Eu-Pele,
que se mostram falhas sem a presença do outro. A rigidez dos limites externos parece
funcionar como uma solução de compromisso em relação a temática da separação; ao
mesmo tempo que o sobreinvestimento garante a autossuficiência buscada, o
anaclitismo, por outro lado, garante que o sujeito permaneça ligado ao objeto. Cria-se
um compromisso no qual a aproximação do outro é invasiva como é a incorporação
demoníaca relatada na entrevista clínica: Ele (Diabo) entra e expulsa a gente, ele passa
a ter a nossa vida e a gente a vida dele, então ele entra no nosso corpo e a gente desce,
a gente fica lá como se fosse ele lá no inferno”. Por outro lado, a distância do outro é
sentida como abandono, que suscita atos que capturem a atenção do outro, como furtar a
mãe e usar drogas para “chamar a atenção”.
Há ainda de se considerar o papel desempenhado pela culpa nas condutas de
risco e nas escarificações do caso de Helena. Freud (1924/1996) afirma que a culpa
pode anteceder o ato, sendo a passagem ao ato proibido uma forma de propiciar a
ligação do sentimento de culpa a um acontecimento real sobre o qual o sujeito teve o
controle. Esse parece ser o caso de Helena: os pequenos furtos do dinheiro da mãe, o
uso de crack e os cortes no corpo são atos que causam a culpa por impactar a mãe,
porém também servem para propiciar o alívio: “me cortar eu me sinto culpada, mas
também aliviada”
O tratamento de Helena tende a ser eficaz caso o terapeuta seja capaz de
diminuir a dependência do sujeito em relação ao objeto, ao mesmo tempo em possa
proporcionar o desenvolvimento das capacidades de ligação do afeto e da percepção da
alteridade. O sentimento de culpa, caso possa ser elaborado na psicoterapia, tende a ser
amenizado e com isso contribuir para o remanejamento das defesas estabelecidas de
maneira rígida. Segundo Anzieu (1989), o incremento da função contentora do Eu-Pele
tende a ser eficaz no tratamento das personalidades narcísicas. Dessa forma, caso o
terapeuta consiga propiciar o desenvolvimento das capacidades de simbolização e

141
transformação dos conteúdos, é possível que Helena apresente melhora em seu
funcionamento narcísico.

5.4 Estudo de caso José (Sujeito 3).


” Ela não chega (a tristeza), ela sempre esteve
comigo. Ela (a tristeza) é uma coisa
onipresente. Qualquer momento que eu esteja,
eu estou triste, sei lá”.
Pr. VIII: “Parece uma caixa toráxica aberta,
como se alguém tivesse ferido. Uma autópsia
no corpo. Sei lá, essa aqui é um pouco
perturbante. Me perturbou um pouco. Acho
que só isso”

5.4.1 História clínica


José, 17 anos, sexo masculino, sofre de alucinações auditivas e afirma ser
perseguido por vultos, além de apresentar histórico de ideação e tentativas de suicídio e
episódios de escarificações. Ele se define como “uma pessoa triste, solitária, que não
tem muitos amigos, mas que se esforça pra ter”. Atualmente ele mora com o pai, a
madrasta e dois meio irmãos mais velhos
José descreve sua mãe como “Amorosa, carinhosa, legal, gente fina”, exceto
quando ela “bebe demais”, o que a torna “meio irritante”, uma vez que “ela fica com
raiva mais fácil e fica chateada com as coisas mais fácil”. Ele afirma que “isso meio
que prejudica às vezes” a relação entre os dois. Sobre seu pai, José conta que “não tem
uma relação muito boa” com ele, que os dois conversam raramente e que costuma
esconder assuntos pessoais do pai, para não deixá-lo preocupado. Ressente-se pelo pai
“liga(r) muito mais pra mulher dele do que pros filhos”, o que ele considera “uma
idiotice”, apesar de respeitar a posição do pai, já que acredita que “a escolha é dele.” As
vozes alucinatórias dizem para José “não falar com ele (o pai) porque ele (o pai) pode
ficar com raiva de mim (José) ou ficar chateado e eu (José) não quero mais chatear
alguém por causa de besteira minha. Eu acabo nem conversando muito com ele “.
Sobre a madrasta, ele contou que a relação é permeada por conflitos, pois ela “fica
querendo mandar” em José, tentando ocupar a função materna, o que o desagrada: “Ela
acha que é a minha mãe pra me botar pra fazer as coisas e não é”. A relação com os

142
irmãos, filhos de vários relacionamentos dos pais de José, é mais amena e mais
próxima. Um avô, falecido há dois anos, foi descrito como a pessoa mais próxima de
José: “Ele (o avô) era o melhor que tinha. Que eu (José) já tive. Porque ele sabia que
eu me cortava, que eu já me droguei, que eu bebia, que eu tinha essas vozes também...
Aí eu acho que quando ele morreu foi quando eu fiquei mais sozinho mesmo.”
Os pais de José divorciaram quando ele estava com seis meses de vida. Ele
continuou a morar com a mãe até os dois anos de idade, quando voltou a morar com o
pai. Dois anos depois, José regressou a casa da mãe, permanecendo na residência dela
por mais cinco anos. Aos nove anos, José voltou a morar com o pai e meio irmãos mais
velhos, antes do casamento do pai do participante com sua atual madrasta .
José contou sentir-se triste “a maior parte do tempo”: “Ela não chega (a
tristeza), ela sempre esteve comigo. Ela é uma coisa onipresente. Qualquer momento
que eu esteja, eu estou triste, sei lá. Chega até ser meio estranho isso, porque não
passa, é uma coisa que não passa nunca e isso me deixa angustiado, né. Me deixa mais
angustiado”. A intensidade do sentimento de tristeza aumentou no período da
adolescência, conforme os relatos de José: “quando eu era criança eu não sentia tanta
tristeza quanto eu sinto agora. ”
José fala na entrevista de ouvir vozes. Segundo informa as alucinações auditivas
são compostas por vozes de comando: “Elas (vozes alucinatórias) que ficam mandando
eu fazer as coisas que eu faço. Eu acabo fazendo, porque as vezes faz elas pararem de
falar por um certo tempo”. Também são comuns alucinações auditivas de conteúdos
auto-depreciativos e de culpa: “Elas (vozes alucinatórias) falam que eu sou idiota, que
eu (José) não presto”.
Segundo José, a intensidade das vozes aumenta quando ele está triste, sendo esse
aumento seguido pelo agravamento dos sentimentos de angústia e tristeza
experimentados por ele: “As vozes elas (vozes alucinatórias) ficam mais fortes, elas
começam a falar mais. E eu fico com vontade de me matar, eu não tenho vontade de
levantar da cama, tipo essas coisas. Perco a vontade de falar com as pessoas... Quando
eu tô feliz elas... Eu não chego a ficar feliz, feliz... Mas quando eu tô um pouco mais
feliz que o normal eu fico ouvindo elas, mas não é tanto”.
Além das vozes, foram relatados episódios alucinatórios visuais, nos quais uma
“sombra fica parada em um lugar só me (José) olhando, uma pessoa que fica parada
me olhando”. Durante os episódios nos quais há a aparição da “sombra” as vozes
aumentam em intensidade causando o incremento dos sentimentos de tristeza e raiva

143
sentidos pelo participante.
A culpa parece ser um tema central para José, que afirma sentir-se culpado pela
morte do avô, falecido há dois anos vítima de um acidente vascular cerebral. Apesar da
natureza da causalidade da morte do avô, com o qual José havia estabelecido boa
relação, o participante afirma sentir-se culpado: “as vozes que ficam falando que eu
(José) sou culpado pelo o que acontece com as pessoas que ficam perto de mim. Elas
falam que aquelas coisas acontecem por minha causa e às vezes eu acabo acreditando
nelas... As vozes falam que eu sou culpado pelo fato dele ter ficado doente, mas às vezes
eu acabo acreditando nelas, as vezes não”. O constante sentimento de culpa é
explicado pelo sujeito como se “você tivesse quebrado um copo muito caro da sua
mãe... Algumas coisas dão pra reparar, mas outras não. ”
As escarificações

As escarificações são feitas por facas, estiletes e giletes nos braços, pernas e
dedos, por causar uma “sensação boa” de alívio, uma vez que os cortes pelo corpo estão
relacionados, nesse caso, a experimentação de um sentimento de liberdade e alívio das
alucinações auditivas persecutórias, como relatou José: “Sei lá. É como se eu tivesse me
libertando de alguma coisa que tem dentro de mim. É como se as vozes parassem. ” A
dor provocada pelos cortes, às vezes profundos, às veze superficiais, a depender do grau
de sentimento de “angústia”, faz José sentir-se vivo, como ele explicou: “É uma dor
boa até, porque me faz mostrar que eu ainda tô vivo. Que eu ainda presto pra alguma
coisa...Eu tento saber (por meio das escarificações) se eu ainda tô vivo. Se eu ainda
sinto alguma coisa”.
José faz tratamento psiquiátrico, tendo sido receitada medicação anti-psicótica.
A equipe suspeita de esquizofrenia. Na época da coleta de dados, ele estava à espera de
atendimento psicoterápico.

5.4.2 Análise do Rorschach de José

Os dados do psicograma de José estão descritos na tabela 5.3. Serão analisados


os indicadores de Rorschach no que se refere aos processos do pensamento, tratamento
dos afetos, organização defensiva, tratamento dos limites e funções relativas ao Eu-Pele.

144
Tabela 5.4 Psicograma do protocolo de José.

Localizações Determinantes Formais.

G% D% Dd% Dbl % F+% F+%ext. F%

46,7% 26,7% 13,3% 26,7% 33,3% 46,7% 40%

Determinantes Sensoriais.

∑C:∑E K:∑k G:K FE:EF+E FC:CF+C FC´:C´F+C´

2:2,5 1:1 4:1 3:1 0:2 0:0

Outros índices

Ban% RC% H% A% TRI: K:∑C Índice de angústia.

6,6% 26,7% 13,3% 20% 1:2 53,3%

B:P H:(H) H:Hd A:Ad TVS: ∑k:∑E Node Respostas

0:2 2:0 2:5 2:0 1:2,5 15

O processo de pensamento

O processo de pensamento de José é caracterizado pela tendência em realizar


sínteses (G%=46,7%), pouco condizentes com a objetividade dos fatos (F+% 33,3%;
F+%ext. 46,7%). Os julgamentos feitos por José tendem a serem incomuns ao seu grupo
social e faixa etária (ban%=6,6%; A=20%). Há indícios de dificuldades no pensar de
modo analítico e no pensamento prático (D% 26,7%; Dd%=13,3%), sendo ainda o
modo pensamento de José caracterizado pela invasão dos processos projetivos sobre a
percepção (F%=40%).

O tratamento dos afetos


O protocolo de José indica a tendência de preponderância do afeto sobre a
representação. Trata-se ainda de um sujeito de estilo vivencial extratensivo dilatado, o

145
que indica que José tende a voltar sua atenção mais para o mundo externo e para os
outros do que para si. Além disso, está presente em José a predisposição a
excitabilidade aumentada e dificuldades no controle dos impulsos (FC:CF+C=0:2), que
caracterizam um tipo de funcionamento impulsivo-explosivo com predisposição a
utilização de descargas inadequadas (Traubenberg, 1970).
Há indícios de forte experimentação de afetos ligados a ansiedade e a angústia
(∑E=2,5; índice de angústia= 53,3%), que denunciam a falha dos mecanismos de defesa
ou insuficiência dos mecanismos de elaboração do excesso pulsional. O índice Dbl%
dilatado (26.7%) indica existência de afetos distímicos ligados ao sentimento de vazio
(Roman, 2001). O índice de reatividade afetiva ou RC% (26,6%) em frequência
diminuída em relação a norma, aponta para baixa sensibilidade a situações afetivas.
A resposta fornecida na prancha V indica instabilidade da representação de si
(“Esse aqui é definitivamente uma borboleta, mariposa ou borboleta. Acho que só isso
mesmo. Não parece que tem outra imagem não” Pr. V). O índice H% (13,3%) aponta
para dificuldades de identificação, ao passo que o H<Hd (2:5) remete a dificuldades de
integração da imagem corporal (Chabert, 1998).

A organização defensiva
O alto índice de angústia e a ansiedade apresentada por José (∑E=2,5; índice de
angústia= 53,3%) indicam falhas na efetividade da organização defensiva em manter
angústia em níveis propícios para sua elaboração. Protocolo se apresenta lábil, o que
indica a preponderância do afeto sobre a representação, ao mesmo tempo em que a
angústia em relação ao corpo se faz bastante presente (Anat=3; Hd=5; índice de
angústia=53,3%). A reposta na prancha VIII apresenta-se de forma bastante ilustrativa
no que se refere a angústia relativa ao corpo: “Parece uma caixa toráxica aberta, como
se alguém tivesse ferido. Uma autópsia no corpo. Sei lá, essa aqui é um pouco
perturbante. Me perturbou um pouco. Acho que só isso” resposta G F- Anat, conteúdo
mórbido. Além da angústia em relação ao corpo, comparece no protocolo uma
aumentada sensibilidade ao branco (Dbl%= 26,7%) que revela existência de
sentimentos depressivos ligados ao vazio. Dessa forma, o protocolo lábil demonstra
tanto angústia relativa ao corpo quanto denuncia a angústia de perda de objeto
possivelmente responsável pelos sentimentos depressivos.

146
O tratamento dos limites
José, 17 anos, do sexo masculino, apresenta vários indicadores de fragilidade
dos limites (F%=40%; F+%=33,3%; F+%ext=40%; B:P:0:2; H%=13,3% e A%=20%;
H<Hd; H=2; Hd=5). Em uma análise mais qualitativa pode-se perceber grande angústia
corporal, indicada pelas respostas permeadas pela transparência que remetem a
fragilidade do envelope corporal: “Parece caixa toráxica aberta, como se alguém
tivesse ferido. Uma autopsia no corpo” G F- Anat Pr. VIII; “Parece o esqueleto de
alguém. Como se tivesse tirado um raio x” G FE- Anat Pr. IX. Na prancha I, a resposta
incialmente apreendida como H se torna a Hd durante a parte do inquérito, na qual as
“Duas pessoas, de costas, um de frente pro outro” relatadas na associação se
transformam em parte do corpo, o rosto das pessoas, “olho, nariz e boca” (DdDbl F-
HHd). Esse fator parece indicar que a representação corporal íntegra é até percebida,
porém é dificilmente sustentada. Essa hipótese é fortalecida pela análise das duas
respostas H. A primeira é mal vista e arbitrária “duas pessoas, de costas de frente para
o outro” (Pr. I DdDbl F- HHd). A segunda resposta H ocorre na prancha III,
apresenta movimento humano banal. Entretanto, a evolução da resposta de movimento
humano denuncia a fragilidade do envelope corporal e as falhas na representação da
imagem corporal: “Uma mulher segurando alguma coisa de cada lado” na parte da
associação e “tão (Estão) segurando uma cabeça, alguma coisa assim” na parte final do
inquérito (Pr III D K H). Novamente, a percepção íntegra de corpo dá lugar, no decorrer
do discurso, a representações parciais, o que indica a incidência de falhas nos limites e,
até mesmo, na representação de imagem corporal. Portanto, em resumo, José apresenta
sérios problemas de estabelecimento de limites, acompanhado de forte angústia corporal
e falhas importantes na representação, não apenas do Eu-Pele, mas de toda
representação da imagem corporal.

5.4.3. As funções do Eu-Pele.

A função de manutenção do Eu-Pele.


José apresenta índices de F%, F+% e F+%ext. (40%, 33,33%, 46,7%,
respectivamente) que indicam falhas na função de manutenção. Aliado a essa hipótese,
pôde-se observar a frequência aumentada de utilização do espaço em branco (Dbl%=
26,6%), mal visto na prancha I (“Duas pessoas de costas, um de frente para o outro”
DdDbl F- HHD), na prancha III (“Parece um rosto com duas mexas vermelhas dos
lados” GDbl FC- Hd) e na prancha X (“Dá pra ver duas pessoas, dois rosto aqui no

147
meio da imagem” Dbl F- Hd Par). Nas três respostas citadas, a utilização do branco
como suporte para a construção da forma se mostrou falha, o que é um indício de
ineficácia da função de manutenção do Eu-Pele (Roman, 2001). Como pode ser
observado na resposta da prancha X, o branco intramacular não pôde ser integrado, por
invadir a percepção, comprometendo a utilização da forma. Esse fato remete a falhas
nas funções de manutenção e continência do Eu-Pele (Roman, 1996).
O espaço em branco se faz presente nas duas respostas fornecidas na prancha I; a
primeira resposta “duas pessoas” (DdDbl F- HHd) é procedida pela resposta
“mariposa com asas abertas” (GDbl F+ A), o que demonstra boa capacidade do sujeito
de superar a ruptura, apesar de ter havido a falha da utilização do eixo central na
elaboração da primeira resposta.

Entretanto, na prancha IV, o processo ocorre no sentido contrário, da


representação bem vista para ruptura: ” Parece uma árvore com galhos bem longos e
grossos” G cortado FE+ Pl para a resposta “Parece que tem um rosto no meio da
imagem. Acho que só” Dd EF- Hd. Nessa prancha, a utilização do eixo central servia de
suporte para construção da resposta, que apesar da localização G Cortado, demonstrou
grau suficiente da capacidade de organização da resposta em torno do eixo central.
Mesmo que o eixo central não tenha sido utilizado para servir de suporte para uma
representação corporal íntegra, a percepção de “uma árvore” demonstrava alguma
capacidade relativa à eficácia da função de manutenção do Eu-Pele. Entretanto, como
observado na próxima resposta, “rosto no meio da imagem”, tal capacidade de
manutenção não é sustentada, o eixo central deixa de servir de suporte para a
representação, que é parcial, mal vista e definida pelo esfumaçado em detrimento da
forma.

Na prancha V o eixo central é utilizado para fornecer a única resposta banal do


teste: “Essa aqui é definitivamente uma borboleta, mariposa ou borboleta” na
associação e “como se estivesse com os braços abertos, batendo asas” (G Kan+ A
Tendência a contaminação; resposta “ou”). Apesar da utilização do eixo central para a
construção de uma resposta bem vista, a imagem é demasiadamente fluída, indefinida
em seu conteúdo “borboleta, mariposa ou borboleta”, em uma representação que é
permeada pela confusão com o corpo humano conforme indicado pela percepção de
“braços abertos” vistos em uma resposta animal que está “batendo asas”. Portanto, a

148
tendência a contaminação denuncia a falha da função de manutenção: a representação
não se sustenta, tende a se perder.

Já na prancha VI, o eixo central é usado como suporte para elaboração da


separação entre os dois duplos (“dois rostos, um de costas para o outro. Parece que tem
uma coisa separando eles. Acho que é só isso” D FE+ Hd Par). Assim, o eixo central da
prancha VI não é utilizado como suporte para construção de um engrama íntegro. Em
vez disso, o eixo central é utilizado para marcar a separação das percepções em duplo.
Assim, ao invés do eixo central ser utilizado como eixo organizador do percepto, o eixo
central é usado de forma difusa para indicar uma separação, o que indica a fluidez da
representação do Eu-Pele.

Em resumo, o aumento de Dbl%; os índices de F% e F+%; presença de


tendência a contaminação, as falhas no uso do branco em integrar a forma e a
dificuldade de utilização do eixo central nas pranchas I, IV, V e VI indicam falhas
significativas na função manutenção do Eu-Pele no caso de José.

A função continente do Eu-Pele


José apresenta indícios de falhas na função continente do Eu-Pele, o que é
indicado pela sensibilidade ao branco (Dbl%=26,6%) e pela tendência a integrar o
branco ao restante da percepção mesmo com o comprometimento da qualidade formal.
A resposta da prancha X é bastante ilustrativa desse aspecto: “Dá pra ver duas pessoas,
dois rosto aqui no meio da imagem”, resposta Dbl F- Hd Par. Respostas mal vistas
integram o branco também nas pranchas I e III. A utilização do branco parece indicar
sensibilidade as falhas do envelope psíquico e dificuldades em integrar o vazio, marca
das excessivas falhas da relação materna primária (Roman, 2001). Aliado a esses
indícios, estão as proporções do índice de barreira-penetração (B:P=0:2), de F% e F+%
(40% e 33%, respectivamente).

A única resposta K, na prancha III, apesar de demonstrar certo grau de precisão


dos limites, apresenta uma construção bizarra na parte do inquérito “duas mulheres de
cada lado” na parte da associação que “estão segurando uma cabeça, alguma coisa
assim”, na parte do inquérito. Esse fator denuncia a dificuldade de representação do
envelope psíquico, de uma forma íntegra, pois, por mais que o envelope possa ser
representado em sua integridade, a tendência é que a unidade do envelope não se

149
sustente.
Apesar dos índices relativos ao controle dos afetos (FC:CF+C=2:1; FE:EF+E:
3:1), um considerável número de resposta de cor e esfumaçado modulados pela forma
apresentam qualidade formal negativa (FC-=1; FE-=1; F+%ext.=46,7%), o que indica a
fragilidade do continente. Além disso, o aumento da soma de determinantes de
esfumaçado em relação aos determinantes de cor e em relação as pequenas cinestesias
(∑C: ∑E=2:2,5; ∑k: ∑E=1:2,5) e o alto número de respostas Par (frequência de 4
ocorrências) apontam para falhas da função continente do Eu-Pele.
A análise da sequência associativa ocorrida durante o processo de aplicação do
Rorschach indica falhas no aspecto contentor do Eu-Pele, em transformar as sensações
em representações. No Rorschach, a superação das rupturas e os processos de
simbolização frequentemente se mostraram falhos. Por exemplo, na prancha II, a
resposta “dois cachorros, um de cada lado” (Pr. II. DDbl F+ A Par) é seguida da
resposta “duas manchas vermelhas que parecem formar dois pulmões e um fêmur” (Pr.
II D CF- Anat). Na prancha IV, a resposta “parece uma árvore com galhos bem longos
e grossos” resposta (G cortado FE+ Pl) é seguida da resposta “Parece que tem um rosto
no meio da imagem” (Dd EF- Hd). Na progressão das prancha VII, para VIII e para IX,
todas respostas são determinadas por F-, o que demonstra a dificuldade de José em
superar as rupturas por meio de transformações criativas e pelos processos de
simbolização. Além disso, a persistência do tema “rostos” (Pranchas III, IV, VI, VII e
X), além do caráter persecutório que carrega, demonstra a dificuldade de José em
transformar criativamente as manchas, o que é um indício de falhas no aspecto
contentor do Eu-Pele.

Em resumo, José apresenta indícios de falhas nos dois aspectos da função


continência do Eu-Pele. Ele tanto apresenta dificuldades de representação do envelope
psíquico como um continente integro, quanto tende a falhar no processo de transformar
os conteúdos psíquicos irrepresentáveis em conteúdos representáveis.

A função de para-excitação do Eu-Pele


José apresenta F%, F+% e F%ext. abaixo da norma (40%, 33,33% e 46,66%,
respectivamente), alto índice de representações parciais (Hd%=33,33%; G cortado %=
6,66%), indicadores de falhas na função de para-excitação. Apesar do índice de controle
da cor (FC:CF+C=2:1; FE:EF+E=3:1) apresentar-se em níveis adequados, a presença de

150
determinantes FC- e FE- na composição das formulas (FC-=1; FE-=1) indicam falhas
no manejo das estimulações internas e externas.

5.4.4 Síntese do caso de José.


José forneceu indícios relativos a ocorrência de falhas importantes nas funções
de manutenção, continência e para-excitação do Eu-Pele. Dessa forma, ele apresentaria
falhas nos processos de manutenção dos conteúdos psíquicos, na contenção e
representação desses conteúdos e nos processos de para-excitação das estimulações.
Em analisando o protocolo, a problemática de diferenciação entre eu e o outro e
entre o dentro e o fora parecem ser problemas centrais, que aliados às dificuldades de
representação da imagem corporal indicam relevante grau de sofrimento do sujeito. A
sensibilidade ao branco revela elementos depressivos ligados a traços da relação
materna primária. Essa relação parece ter sido vivenciada, pelo sujeito, como
demasiadamente falha em fornecer as bases para a eficácia da função de manutenção,
continência e para-excitação. Além disso, a aumento do Dbl% parece denunciar as
fragilidades ligadas aos limites e a representação corporal (Chabert, 1993; Roman,
2001). Aliado a tais fragilidades, as dificuldades de identificação também se mostraram
centrais (H%=13,33%).
O ato da escarificação, nesse caso, é apenas mais um dos sintomas que compõe
toda uma constelação psicopatológica ligada a uma depressividade de natureza
melancólica e a fragilidade da representação corporal. As alucinações auditivas são
compostas por vozes de comando, que incentivam o sujeito a cometer suicídio ou
escarificar-se como forma de se punir. Aliadas a essas vozes, estão relacionadas as
alucinações auditivas cujo conteúdo é voltado a denigrir a capacidade do sujeito de
realização de seus objetivos que, por esse modo, justificam ao sujeito efetuar a auto-
punição dos cortes e das tentativas de suicídio, satisfazendo assim o gozo ligado a
necessidade inconsciente de punição (Freud, 1924/1996). Ao mesmo tempo em que as
alucinações revelam a dinâmica da culpa e apontam no sentido da melancolia, como
uma psicose alucinatória de desejo (Freud, 1917/1996), a ocorrência das alucinações
também revela, por outro lado, a dificuldade em estabelecer as distinções entre o dentro-
fora; entre a fantasia e a realidade, aspectos identificados no Rorschach, que estariam
relacionadas às falhas na representação do Eu-Pele e da imagem corporal. José tende a
ter dificuldades em sustentar o contato com a realidade, devido a fragilidade das

151
barreiras que dificulta a tarefa de distinção entre o dentro e o fora, entre a fantasia e a
realidade. Por mais que o sujeito tenha demonstrado certa capacidade de apreender
dados da realidade (Ban=6,7%), as construções imaginárias tendem a invadir e distorcer
a realidade consensual.

Apesar da angústia ligada ao corpo e da dificuldade de preservar o juízo de


realidade, José, na nossa hipótese clínica, não apresenta uma patologia esquizofrênica,
pois a composição da tristeza, que “sempre está presente”, indicada no Rorschach pelo
índice alto de oposicionismo Dbl% (26,6%) pode remeter a um quadro melancólico de
natureza psicótica no qual as manifestações alucinatórias psicóticas e as escarificações
denunciam a necessidade inconsciente de punição desencadeada pela culpa (Freud,
1924/1996).

152
CAPÍTULO VI.

CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Para finalizar esse trabalho, pretendemos realizar alguns comentários relativos


aos resultados do método de Rorschach dos dez adolescentes participantes da pesquisa,
em relação a qualidade dos limites e das funções de manutenção, continência e para-
excitação do Eu-Pele, estabelecendo relações com o fenômeno das escarificações ao
final.

Conforme exposto no capítulo IV, foram encontrados dois modos de


investimento dos limites narcísicos a partir dos resultados de Rorschach fornecidos
pelos participantes. Enquanto sessenta por cento dos participantes (60%) demonstraram
falhas nos processos de delimitação das barreiras entre dentro/fora, quarenta por cento
dos sujeitos (40%) demonstrou ter dificuldades opostas, por conta do excesso de
investimento direcionado as barreiras que delimitam o espaço interno e externo, o eu e o
outro. Segundo Chabert (1993), o recolhimento dos investimentos ao narcisismo, em
medida suficiente, ocupa a função saudável de garantir a identidade e de conferir
barreiras protetoras ao Eu, que evitam a confusão entre sujeito e objeto. Por outro lado,
a diminuição dos investimentos narcísicos, conforme apresentado por sessenta por cento
(60%) dos participantes, pode resultar na diminuição da capacidade de estar só
(Winnicott, 1969) e na tendência de confusão entre sujeito/objeto e dificuldades
identitárias (Chabert, 1993). Já o sobreinvestimento dos limites, encontrado em
quarenta por cento (40%) dos casos avaliados, é entendido como a medida excessiva do
investimento narcísico. Esse excesso patológico de investimento no si mesmo pode
resultar na transformação das barreiras entre o dentro/fora em limites invulneráveis.
Com isso, as trocas com o ambiente e a atividade fantasmática tendem a diminuir
(Chabert, 1993).

Conclui-se que todos os participantes da pesquisa apresentaram modos


patológicos de investimentos narcísicos: sessenta por cento (60%) detém um modo de
investimento narcísico insuficiente, a fragilidade dos limites; ao passo que quarenta por
cento (40%) exibiram excesso de investimento narcísico, o sobreinvestimento dos
limites.

153
A organização do Eu-Pele se mostrou distinta em cada participante da pesquisa,
tendo os casos clínicos descritos no capítulo V se ocupado de salientar essas
vicissitudes. Embora os resultados do Rorschach tenham demonstrado falhas nas
funções de manutenção e para-excitação do Eu-Pele em todos os adolescentes avaliados,
nota-se que parte dos adolescentes apresenta a capacidade de delimitar o continente,
apresentando certa eficácia adaptativa da função continente do Eu-Pele, portanto. Essa
eficácia é proporcionada pelo sobreinvestimento dos limites, apresentado por quarenta
por cento dos participantes (40%). Os demais adolescentes avaliados apresentaram
falhas na delimitação do continente (60% dos adolescentes avaliados), sendo esse o
aspecto de distinção deles em relação ao restante dos participantes, já que todos os
adolescentes apresentaram falhas nas funções de manutenção e continência do Eu-Pele.
Essa configuração de resultados permite pensar os casos a parir de dois eixos: a)
os casos dos sujeitos que investem excessivamente o continente; b) os casos dos sujeitos
permeados pela fragilidade do envelope psíquico. Sobre esse aspecto, os adolescentes
que apresentaram fragilidade dos limites (60%) apresentaram falhas em todos os
aspectos das funções do Eu-Pele, ao passo que os participantes que se utilizam dos
sobreinvestimento dos limites (40%) obtiveram resultados que demonstram a eficácia
de um único aspecto da função continente do Eu-Pele: o aspecto contentor. Portanto,
pretende-se partir da recapitulação função continente do Eu-Pele.

A função continente do Eu-Pele apresenta dois aspectos: a) o aspecto continente


“propriamente dito”, que se apresenta como um receptáculo as sensações e afetos,
conteúdos psíquicos a serem conservados dentro do continente; b) o aspecto contentor,
que ocupa-se do papel ativo de transformação das sensações e afetos em conteúdos
representáveis. Os dois aspectos são internalizados à partir dos cuidados da mãe em
relação a seu bebê. As falhas na internalização dessa função remetem a duas possíveis
situações, a existência de um núcleo sem casca ou a construção de um envelope
permeado por buracos que interrompem a sua continuidade. Há ainda a terceira
possibilidade, na qual a fantasia da pele comum (fantasia original e universal) não é
superada, dando lugar a fantasia secundária de uma pele invulnerável (Anzieu, 1989).
As duas primeiras possibilidades foram encontradas nos sujeitos com fragilidade
dos limites, enquanto a terceira possibilidade foi identificada nos sujeitos com tendência
ao sobreinvestimento dos limites.
Assim, os resultados apontam dois tipos distintos de configuração da função

154
continente. Um dos tipos é composto pela parcela dos adolescentes (40%) que
apresentou indícios de falhas na internalização do aspecto ativo e transformador da
função continente (aspecto contentor), apesar de deter a capacidade de delimitação do
continente. Tratam-se dos mesmos participantes que apresentaram sobreinvestimento
dos limites. A analogia é bastante simples, o sobreinvestimento dos limites preserva a
relação entre continente/conteúdo, apesar de sacrificar a vida afetiva e fantasmática pela
elaboração de uma barreira de contato excessivamente investida (Chabert, 1993).
O outro tipo de configuração da função continente do Eu-Pele identificada
apresenta-se falha em seus dois aspectos, continente e contentor. Esse tipo de
organização foi encontrada entre os participantes que apresentaram índices de
fragilidade dos limites (60%). Tal correlação é condizente com os resultados relativos
ao modo frágil de investimento dos limites apresentado por eles, pois o fracasso no
estabelecimento dos limites acaba por inviabilizar a construção de um continente seguro
onde os conteúdos possam ser depositados. Assim, todos os participantes com indícios
de fragilidade dos limites apresentaram, concomitantemente, falhas na delimitação de
um espaço interno que pudesse servir como receptáculo a conteúdos (aspecto
continente), segundo os indicadores do Rorschach.
Esses casos remetem a uma problemática mais arcaica em comparação ao grupo
que sobreinveste os limites, pois além de falhas na internalização do rêverie (Bion,
1962/1991) os sujeitos com fragilidade dos limites mostraram indícios de dificuldades
na delimitação do continente. Assim, essa parcela da amostra exibiu um tipo de
funcionamento no qual as barreiras do continente são excessivamente permeadas por
falhas e as possibilidades de simbolização mostram-se insuficientemente disponíveis.
Esse tipo de funcionamento do Eu-Pele apresentado em sessenta por cento dos
participantes (60%), remete à duas possibilidades de funcionamento de Eu-Pele
descritos por meio de duas metáforas por Anzieu (1989): o núcleo sem casca (envelope
de sofrimento) e o Eu-Pele escorregador.
O núcleo sem casca, remete a uma angústia causada pela excitação pulsional que
apresenta-se difusa por não poder ser localizada, amenizada, muito menos elaborada,
em decorrência da ausência de limites continentes suficientes para delimitar os afetos. A
pulsão precisa ser localizada no corpo e o excesso de falhas no continente fragiliza a
representação do envelope psíquico. Dessa forma, a dor física e o sofrimento se
encarregam de “envolver” o sujeito, tratando de criar uma espécie de “envelope de
sofrimento” que atua como continente do núcleo composto pelos afetos (Anzieu, 1989).

155
Esse parece ser o caso do Sujeito 3 (José): a insuficiência da representação da
continuidade do continente, o impede de localizar os afetos na superfície corporal e
dentro do corpo. As vozes alucinatórias apresentadas por ele, são localizadas fora do
continente, sendo entendidas por ele como vozes vindas de outras pessoas. A tristeza
“presente desde sempre” atua como um fundo continente que envolve a vida psíquica (o
núcleo) de José (Sujeito 3). Os limites corporais dele apresentam-se organizados de
maneira similar ao anel de Moebius, onde as faces dos limites são ao mesmo tempo
internas e externas. Em razão disso, o que é interno se torna externo, que se torna
interno no desencadear de uma cadeia que encerra-se em si mesma: “o conteúdo mal
contido se torna um continente, que contém o mal” (Anzieu, 1989, p.143).

Os demais adolescentes que apresentaram fragilidade no investimento dos


limites e falhas na função continente do Eu-Pele (50% dos participantes), parecem se
enquadrar na metáfora do Eu-Pele escorregador. Essa metáfora descreve o
funcionamento de um Eu-Pele no qual as barreiras do continente apresentam-se
internalizadas, porém sua representação é demasiadamente descontínua para garantir a
suficiência da conservação dos conteúdos. Por esse motivo, os conteúdos acabam por
“escorregar” do continente, sem que as sensações, pensamentos e lembranças possam
ser conservados. O resultado é um imenso sentimento de vazio que permeia o sujeito
que se esvazia, por conta da sua dificuldade de contenção dos conteúdos (Anzieu,
1989). Esse parece ser o caso do Sujeito 1 (Paula), Sujeito 4 (Laura), Sujeito 5, Sujeito
8 e do Sujeito 10.
No caso do núcleo sem casca, as escarificações parecem desempenhar a função
de constituir um continente ao núcleo que se apresenta descoberto, em razão da
fragilidade dos limites. Nesse sentido, o cortar da pele remete a sensação de dor, cuja
função seria envolver o núcleo do sujeito em um envelope de sofrimento (Anzieu,
1989). Nos casos de Eu-escorregador, os cortes teriam a função marcar os traços da
experiência que escapam ao continente interior a pele. As escarificações tratariam então
de inscrever os traços que escapam a conservação do continente, pela via da marcação
da pele pelas cicatrizes decorrentes dos cortes. Assim, nesses casos, o recurso a pele
buscaria a continência dos traços que escapam a conservação, graças a inscrição
figurada que ocorre na superfície corporal (Matha, 2010).
Além disso, o vazio decorrente da dificuldade de contenção dos conteúdos no
continente do Eu-Pele escorregador seria amenizado pela dor dos cortes. Sofrer é

156
melhor que não sentir nada, pois o sofrimento remete a dor da existência, o vazio remete
a morte: “Sofro, logo existo” (Anzieu, 1989, p.235). Nesse sentido, as escarificações
seriam o oposto do suicídio, pois o suicídio visa a aniquilação da existência, ao passo
que as escarificações buscam permitir a continuidade da existência, mesmo que ela
ocorra pela via da dor e do sofrimento (Le Breton, 2003).
Já em relação aos adolescentes que se utilizam de barreiras sobreinvestidas e
que, portanto, apresentam continentes demasiadamente reforçados e sem espaço para as
trocas com o ambiente (40%), pode-se pensar em um de Eu-Pele organizado em dupla
barreira (Anzieu, 1989). A dupla barreira busca sustentar a fantasia de pele invulnerável
a qual, por sua vez, resguarda o sujeito da fantasia de pele rasgada ou descarnada
(Anzieu, 1989). A organização do Eu-pele de dupla barreira guardaria portanto uma
função defensiva: afastar a fantasia de pele descarnada e sustentar a ilusão de ser
invulnerável.
Com esse intuito, o Eu-Pele em dupla barreia é construído por duas operações. A
primeira alteração em relação ao Eu-Pele “normal” consiste em unir as duas barreiras do
Eu-Pele, colando-se as barreiras internas com as barreiras externas, o que coloca o
envelope como principal interesse de investimento do sujeito. A segunda modificação
consiste em duplicar a barreira, criando uma espécie de escudo invulnerável, similar a
representação da égide de Zeus na mitologia grega (Anzieu, 1989). O resultado desse
processo culminaria em um isolamento esplendido, por meio do qual o sujeito almeja se
bastar, se tornar independente do objeto (Chabert, 1993) e ao mesmo tempo sustentar a
fantasia de pele invulnerável que engloba simbolicamente o continente do infante e do
objeto primário.
Entretanto, as falhas nas funções de manutenção e para-excitação foram
apresentadas por todos os sujeitos avaliados, inclusive pelos sujeitos com organização
do Eu-Pele em parede dupla. Isso significa afirmar que, apesar do sobreinvestimento
dos limites e do Eu-Pele organizado em parede dupla, o núcleo interno a essas barreiras
apresenta-se fluido e os processos de para-excitação ainda assim apresentam-se falhos.
Esses fatores impedem o almejado isolamento e independência do objeto buscada pelo
sobreinvestimento dos limites. Em decorrência disso, o sujeito permanece dependente
do outro para efetuar o suporte do psiquismo e a para-excitação. Essa dependência
permite que as falhas das relações de objeto causam frustrações que implodem a
organização defensiva descrita acima, suscitando a fantasia a todo custo evitada: a pele
rasgada é então representada no corpo.

157
Acredita-se, portanto, que as escarificações representam a fantasia da pele
descarnada: as frustrações narcísicas induzem o sujeito a representar o trauma da
separação por meio da compulsão em repetir a separação traumática, permeada pela
fantasia da pele rasgada. Assim, as escarificações, nesses tipos de casos, representam os
elementos da fantasia masoquista inerente a elas: arrancar, esfolar ou cortar a pele, pois
a separação do objeto é sentida como uma violência que rasga a pele, no interior da qual
o sujeito guarda luta para guardar a ilusão de fusão com o objeto.
Em relação a discussão dessa problemática no contexto da adolescência,
podemos inferir que este é o tempo de redefinição das formas corporais e do modelo de
contato com o outro (Cardoso, 2011). Essas mudanças podem provocar a
desorganização do Eu, principalmente se a capacidade de estabelecer limites for
demasiadamente fluída ou rígida (Drieu; Proia-Lelouey; Zanello, 2011). O adolescente
ainda enfrenta a tarefa de ligar excesso pulsional desencadeado pela sexuação da
puberdade (Gutton,2002). Caso tal excesso pulsional supere a eficácia dessas
construções narcísicas em estabelecer limites, conter, transformar e para-excitar o
excesso de estimulação pulsional, a puberdade tende a ser experienciada como um
período traumático.

Todos os adolescentes avaliados demonstram indícios de insuficiência da


constituição dessas funções narcísicas. O sobreinvestimento dos limites (40% dos
participantes) e a fragilidade dos limites (60% dos adolescentes avaliados) compõem os
resultados amostrais. Além dessas falhas, os resultados do Rorschach demonstram a
fragilidade das funções de manutenção e para-excitação de todos esses adolescentes,
fator associado a erros de tradução das sensações em conteúdos representáveis (100%
dos casos analisados). Esses fatores nos levam a inferir que a adolescência tem sido
experienciada como um período traumático pelos participantes da pesquisa, pois por
conta de falhas narcísicas anteriores, o trabalho de ligação do excesso pulsional
desencadeado pela sexuação da puberdade (Drieu; Proia-Lelouey; Zanello, 2011) acaba
sendo dificultado.
Nesse sentido, a escarificação seria uma forma de traumatofilia (Drieu; Proia-
Lelouey; Zanello, 2011): o ato da escarificação seria o recurso utilizado para dar conta
do excesso pulsional, cuja contenção, significação e para-excitação encontram-se
impossibilitadas em decorrência das falhas do Eu-Pele e da desmedida do grau de
investimento dos limites, indicados pelo Rorschach. Para esses adolescentes, as

158
escarificações seriam ainda tentativas de efetuar a diferenciação em relação ao mundo
(Le Breton, 2003), tarefa dificultada pela fragilidade ou sobreinvestimento dos limites;
além das falhas do Eu-Pele apresentadas.
Entre os adolescentes avaliados, quarenta por cento 40% apresentaram histórico
de abuso sexual na infância. Acredita-se que o abuso sexual aumente o excesso
pulsional traumático e dificulte mais ainda o período adolescente, tempo de ocorrência
do segundo tempo do trauma desencadeado pelo abuso sexual na infância. O resultado
desse processo seria a representação das situações traumáticas por meio do ato de se
cortar (Drieu; Proia-Lelouey; Zanello, 2011; Matha, 2010). Nesses casos, os cortes no
corpo visariam não apenas representar a separação e efetuar a diferenciação por meio da
inscrição de traços na pele (Le Breton, 2003), mas também seriam decorrentes da
compulsão a repetição daquilo que não pôde ser representado ou elaborado e, em
decorrência disso, acabaria por ser atuado (Matha, 2010).

Outro aspecto a ser analisado, refere-se à dependência do objeto nas


escarificações. Nessa pesquisa, todos os sujeitos apresentaram falhas relativas a função
de manutenção, sendo que oitenta por cento dos participantes (80%) forneceram pelo
menos uma resposta de ligação. No Rorschach, as respostas de ligação são indícios de
tendência ao estabelecimento de relações anaclíticas com o objeto (Passalacque;
Gravenhorst, 2005) e remetem a uma necessidade de contato sensorial com o ambiente.
Primeiramente descritas por Minkowska (1956), as repostas de ligação estão associadas
a um funcionamento sensorial, em detrimento de um funcionamento racional (Anzieu,
1978; Villemor-Amaral; Franco; Farah, 2008).
Por função de manutenção do Eu-Pele, fazemos referência ao grau da
capacidade do sujeito em sustentar uma representação unificada de um envelope
corporal dotado de solidez. Assim como a pele biológica proporciona a sustentação dos
músculos e do esqueleto em um unidade corporal solida, a sustentação proporcionada
pela pele psíquica (Eu-Pele) se refere a internalização de um suporte eficaz em
promover a unidade do psiquismo, conferindo ao sujeito o sentimento de continuidade
de si e de habituar uma pele própria. Primeiramente, o suporte é conferido pelo corpo
materno que sustenta o corpo do infante, porém a autonomia é alcançada quando o
suporte proporcionado pelo objeto primário pode ser internalizado e o sujeito se torna
capaz de sustentar-se sozinho a ponto de iniciar o domínio da marcha, o que confere ao
infante certo grau de independência em relação ao objeto primário. A internalização

159
desse suporte ocorre na eficácia da função de manutenção do Eu-Pele, entretanto nos
casos patológicos da função, o sujeito permanece dependente do suporte proporcionado
pelo outro, como condição para unificação do psiquismo (Anzieu, 1989).
Nesse sentido, as falhas da função manutenção do Eu-Pele, associadas a
ocorrência de respostas de ligação em oitenta por cento dos casos (80%), indicam a
tendência a dependência do objeto, utilizado como suporte capaz de amenizar as falhas
na manutenção do psiquismo.
A excessiva dependência se refere a baixa capacidade de estar só (Winnicott,
1969), o que resulta na baixa tolerância do sujeito em relação a separação do objeto. Em
se considerando a hipótese acima, a separação é experienciada como um rasgar da “pele
comum” entre sujeito e objeto (Anzieu, 1989, p. 142). A fragilidade da internalização
do suporte e as decorrentes falhas nos processos de manutenção desempenhados pelo
Eu-Pele abalam a segurança do sentimento de si e do sentimento de habitar uma pele
individualizada (Anzieu, 1989).
Essa insegurança seria amenizada pelas escarificações, que se encarregariam de
garantir a continuidade da existência, por meio dos cortes (Le Breton, 2003). Na
ausência do objeto, o sujeito se encarregaria de amenizar a fluidez do psiquismo pelo
apego a dimensão sensorial da dor. Em se considerando a hipótese de Minkowska
(1956) sobre as respostas de ligação denotarem apego ao sensorial em detrimento ao
racional, a dor desempenharia o recurso ao sensorial que trataria de invadir o psiquismo
e garantir a diminuição dos pensamentos ansiogênicos que superam a capacidade de
transformação do continente e dissolvem a unidade do psiquismo. A única
transformação possível de ser efetuada, não seria a elaboração da experiência de
sofrimento, mas a transmutação do sofrimento em dor física causada pelos cortes.
O apego ao sensorial, a dor, denotaria uma tendência ao anti-pensamento: o
apego a sensação que objetiva diminuir a atividade do pensamento. (Chabert;
Ciavaldini; Jeammet; Schenckery, 2006). Assim, as escarificações seriam uma maneira
de efetuar o sobreinvestimento do sistema perceptivo motor e provocar o afastamento da
atenção em relação sofrimento ligado a conteúdos que emergem à consciência do
sujeito, mas que não podem ser elaborados em razão de falhas no aspecto contentor do
Eu-Pele.
Portanto, as escarificações parecem estar associadas a tentativas de
reasseguramento do sentimento de si e do habitar de uma pele individualizada (Le
Breton, 2003) em pelo menos oitenta por cento dos participantes da presente pesquisa.

160
Para concluir, o sucesso dos processos de internalização de um Eu-Pele saudável
propicia o desenvolvimento do sentimento de habitar uma pele continua e contentora
das lembranças, sensações e pensamentos decorrentes da experiência. A internalização
do Eu-Pele “normal” é eficaz no desempenhar de suas funções e incrementa a
capacidade de transformação das sensações e de para-excitação dos estímulos. Essa
configuração de Eu-Pele desenvolve um envelope de bem-estar o qual o sujeito guarda
o sentimento de habitar (Anzieu, 1989).
Nenhum dos adolescentes avaliados apresentou resultados de Rorschach que
apontem a instauração da representação de Eu-Pele como um envelope de bem-estar.
Pelo contrário, os resultados apontam para organizações de Eu-Pele permeadas por
traços do masoquismo e do narcisismo na internalização do Eu-Pele, em três tipos: a)
Envelope de sofrimento ou Núcleo sem casca (10%); b) Eu-Pele peneira ou
escorregador (50%); c) Eu-Pele em dupla barreira (40%). Esses resultados apontam para
o alongamento temporal da fantasia primária de “pele comum”, cuja insuficiente
superação originaria duas fantasias secundárias: a fantasia da pele rasgada, identificada
nos casos que apresentaram fragilidade dos limites (60% dos adolescentes avaliados); a
fantasia da pele invulnerável (dupla Superfície de contato), inferida de quarenta por
cento da amostra (40%) a partir dos resultados apresentados.
Esse aspecto aponta que todos os participantes apresentam dificuldades de
separação do objeto. A elaboração da separação é dificultada pela fragilidade da
constituição das bases narcísicas e das funções do Eu-Pele, pois ou os limites estão
muito frágeis, como foi apresentado por sessenta por cento (60%) dos participantes, ou
as barreiras são demasiadamente investidas, conforme apresentado por (40%) dos
adolescentes avaliados. A dificuldade de separação do objeto instaura uma necessidade
por relações anaclíticas, nas quais o objeto é utilizado como Ego auxiliar.
Todos os sujeitos apresentaram patologia do investimento dos limites e falhas
em pelo menos duas funções do Eu-Pele. Essas fragilidades narcísicas tenderiam a
dificultar a elaboração das demandas típicas do tempo da adolescência.
Enfim, podemos concluir que as escarificações parecem ser tentativas de
representação de situações traumáticas (Drieu; Proia-Lelouey; Zanello, 2011; Matha,
2010), formas de garantir o sentimento de unidade e continuidade da própria existência
(Le Breton 2003; 2010) e estratégias de apego ao anti-pensamento para propiciar o
alívio dos elementos que emergem a consciência e comprometem a unidade do
psiquismo em razão de dificuldade de sua elaboração.

161
O tratamento desses pacientes requer a reconstituição das funções do Eu-Pele
que se mostram falhas, pois o sucesso dessa operação aumentaria a capacidade dos
pacientes em pensar, conter e transformar o sofrimento, sem utilizar de mecanismos de
cisão e identificação projetiva que acabam por sacrificar a unidade do psiquismo. O
desenvolvimento dessas funções, associado ao trabalho de remanejamento dos
investimentos nos limites, proporcionaria um maior recurso a recordação e elaboração,
em detrimento do ato da escarificação. Sobre esse aspecto, o caso Laura (Descrito no
capítulo V) parece ser bastante ilustrativo.

162
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Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília. .

170
ANEXO A

Universidade de Brasília – UnB


Instituto de Psicologia – IP
Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura – PPGsiCC

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO - TCLE


Você está sendo convidado(a) para participar, como voluntário, em uma pesquisa.
INFORMAÇÕES SOBRE A PESQUISA:
Título da pesquisa: A clínica da adolescência e a escarificação: remanejamentos psíquicos e
metapsicológicos. Orientador: Prof. Doutora Deise Matos do Amparo
Pesquisadores Responsáveis: Deise Matos do Amparo (61) 9968-0586 Bruno Cavaignac Campos
Cardoso
Telefone para contato: (61) 81322361/(61) 9333 8807
E mail comitê de ética CEP/IH: [email protected]

Você está sendo convidado para participar da pesquisa “A clínica da adolescência e a


escarificação: remanejamentos psíquicos e metapsicológicos. O objetivo deste estudo é a investigação da
dimensão da escarificação em adolescentes, na dimensão do funcionamento psíquico e no contexto do
atendimento clínico e da avaliação psicológica. Em outras palavas, deseja-se entender a razão pela qual
os adolescentes se cortam e qual a relação dos cortes com a personalidade da pessoa.
Você participará de um processo de avaliação psicológica a ser feito em três encontros de duração
variável. Se você quiser, poderá participar de um atendimento clínico individual, com duração de
cinquenta minutos, duas vezes por semana, duração mínima de seis meses e máxima de um ano. A sua
participação pode envolver algum risco, pois durante o atendimento e avaliação podemos tratar de
assuntos que envolvam sentimentos de tristeza, ansiedade ou angústia. Entretanto, esse é o único risco da
pesquisa. Por outro lado, a pesquisa traz vários benefícios: sua participação possibilita o estudo das
pessoas que se cortam durante a adolescência, permitindo o nosso entendimento sobre a razão pela qual
elas se cortam. O entendimento dessa questão pode fazer com que suas informações sejam usadas para
ajudar outras pessoas com problemas semelhantes aos seus. Além disso, o espaço de psicoterapia pode te
ajudar diminuir o seu sofrimento e contribuir com seu crescimento pessoal. Serão feitos testes
psicológicos projetivos e entrevistas.
Você não pagará nem receberá nada para participar do projeto. A qualquer momento você pode
desistir de participar e retirar seu consentimento. Sua recusa não trará nenhum prejuízo em sua relação
com o pesquisador ou com a instituição. As informações obtidas através dessa pesquisa serão
confidencias e asseguramos o sigilo sobre sua participação. Os dados não serão divulgados de forma a
possibilitar sua identificação.
Sua assinatura abaixo indica que você leu este consentimento, esclareceu todas as suas dúvidas, e
livremente concordou em participar nos termos indicados. Caso aceite fazer parte desse estudo assine ao
final deste documento, que está em duas vias, onde uma delas é sua e a outra é do pesquisador
responsável. Caso você tenha alguma questão ou alguma dúvida, pode perguntar agora. Se você tiver
dúvidas posteriores ou desejar entrar em contato conosco em relação a esta atividade, o nome e telefone
do professor responsável e do aplicador encontram-se no final da página.

Voluntário:_______________________________________ RG:___________________________
Assinatura:__________________________________________Telefone:________________________

Local e data: ______________________, _______ de ________________ de 20___.

Nome do pesquisador:_____________________________Assinatura:____________________________

Orientadora: Deise Matos do Amparo ([email protected]) Celular: (61)9968-0586


E mail comitê de ética CEP/IH: [email protected]

171
Anexo B

Instrumento: Entrevista Semi-Estruturada.

1 - Identificação:

Idade: Sexo: Escola que estuda: Série: Local do nascimento:

2 - Escola e perspectiva de futuro

Você estuda? Em quais escolas estudou? Teve mudanças de escola, Por que? Como é a
sua frequência escolar? Gosta da escola? Como é a convivência com os colegas de
escola? Quais as atividades que participa? O que mais gosta na escola? Como é seu
comportamento na escola? Você já fez algum curso técnico ou profissionalizante? Quais
os seus planos e o que pensa para o futuro? Pretende continuar estudos? Pretende
trabalhar? Tem algum ideal de estudo ou profissional?

3 - Saúde

Você já teve algum problema grave de saúde? Você alguma vez recebeu atendimento
psicológico ou psiquiátrico? Já tomou algum remédio para problemas nervosos? Você é
muito agitado? Você já ficou muito triste ou se sentiu em situação de abandono?
Alguém da sua família já teve problemas mentais? Quem?

4 - Vida familiar

Você vive com seus pais naturais? Com quem você vive? Como foi sua infância e
adolescência a família? Quais as idades das pessoas que convivem com você? Como é
sua vida em família? Como é a convivência com seus pais? Eles são carinhosos e
protetivos? Eles são agressivos? Já se sentiu abandonado ou agredido em casa? Há
situações de conflitos com agressões em família? Os seus pais tem muita influência
sobre você? Com quem se sente mais ligado, com quem mais se identifica (com quem
tem mais relação de confiança, em quem se apoia)? Por que? O que seus pais fazem
para sobreviver? Eles convivem bem? Eles brigam ou se agridem fisicamente? Eles
alguma vez se separaram?

5 - Relacionamento com amigos

Você tem amigos? Você os conhece? O que é amizade para você? Como é seu
relacionamento com eles? Tem algum amigo especial? O que faz junto com eles?
Costuma fazer suas atividades sozinho ou em grupo? Costuma se divertir sozinho ou em
grupo? Como se sente com os amigos? Tem confiança neles? Eles tem confiança em
você? Acha que pode contar com eles? Em que situação? Já recebeu ajuda de algum
deles? Em que situação? Já fez alguma coisa junto com eles que levou a problemas com

172
a lei? Como foi? Que consequências teve? Você já viveu alguma situação de violência
ou traumática com seus amigos? Como aconteceu?

6 - Relacionamentos afetivos

Você já teve relacionamentos afetivos? Quantos? Você teve algum(a) namorado(a)


"firme"/sério? Fale um pouco sobre esses relacionamentos e como se sentia neles? Você
se envolveu afetivamente? Como eram os relacionamentos? Quanto tempo duravam? O
que fazia que eles acabassem? Já se sentiu triste em função dos términos? Você já viveu
algumas situações traumáticas ou de violência em seus relacionamentos afetivos? Como
aconteceu?

7- Uso de álcool e outras drogas

Você bebe (ingere bebida alcoólica) ou usa drogas? Que tipo? Desde que idade?
Alguém da sua família já teve problemas com uso de álcool ou drogas?

8 - Autoimagem e perspectivas

O que você acha de si mesmo? Como é sua autoestima? Classifique sua autoimagem
numa escala de zero a dez. Qual foi a sua maior tristeza ou decepção? Qual foi a sua
maior alegria? Você está satisfeito com a sua vida até agora? Está faltando alguma coisa
na sua vida? O que? Tem algum aspecto da sua vida que precisa ser melhorado? Quais
as suas perspectivas para o futuro? O que você gosta de fazer para se divertir? Tiveram
coisas que foram positivamente marcantes em sua vida

9. Sobre as escarificações.

Quando elas começaram? Por que você se corta? Qual a sensação de se cortar? Alguém
te apresentou aos cortes no corpo? Você ainda se corta? Por que você acha que as
pessoas se cortam?

173
ANEXO C4

Nomenclatura francesa do Rorschach

1. Posição da prancha (rotações): ˅ - posição normal ˅ - posição invertida < - posição


lateral esquerda > - posição lateral direita

2. Produtividade: R – Número total de respostas efetivas em todos os cartões. RA –


Respostas adicionais dadas espontaneamente no momento da investigação. Rec –
Recusas: não respostas ao cartão. Den – Denegação: número de respostas dadas
espontaneamente no momento da aplicação e negadas no inquérito. T.L. – Tempo de
latência (em segundos): o tempo decorrido entre a apresentação da prancha e a primeira
resposta efetiva do respondente. T.L.m – Tempo de latência médio (em segundos):
soma dos tempos de latência onde houve resposta, dividido pelo número de cartões
onde houve interpretação. T.T. – Tempo total (em minutos e segundos): tempo total da
aplicação da prova (inquérito não é incluído). T.R.m – Tempo de reação médio (em
segundos): tempo médio por resposta. Tempo total dividido pelo número total de
respostas.

3. Tipos de Apreensão / Localização das respostas - Modo como o indivíduo apreende


os estímulos da realidade:

G – Resposta global: resposta que implica o todo da mancha, o mais aparente e


superficial. G%= 100 x ΣG/R

GDbl – Respostas G integradas com detalhe branco (Dbl). São contadas como G

D – Resposta de grande detalhe: área significativa e relevante da prancha. D%= 100 x


ΣD/R

DDbl – São contadas como D.

Dd – Resposta de pequeno detalhe: percepção e interpretação de pequenas partes do


cartão, referente às minúcias. Dd%= 100 x ΣDd/R

DdDbl – São contadas como Dd.

4
Refitado da tese de Jardim-Maran (2011) O Psicodiagnóstico de Rorschach em adolescentes:
normas e evidências de validade. Tese de doutorado. Universidade de São Paulo, São Paulo

174
Dbl – Grande detalhe branco: quando somente a forma ou a percepção é de vácuo
naquela área, com justificativa de resposta do branco (ausência de cor). Quando a cor é
destacada na resposta, considera-se, então, a área D e não Dbl.

Dbl%=100xΣDbl/R

Do – Detalhe oligofrênico ou inibitório: recorte dado a uma área onde normalmente é


produzida uma interpretação de caráter mais geral, que inclui o detalhe atualmente
nomeado. Do%= 100 x ΣDo/R

4. Determinantes das respostas – Fatores principais de determinação das respostas e sua


precisão formal: F = Resposta determinada unicamente pela forma da mancha, ou seja,
pelos aspectos de contorno da área interpretada. F+ = Respostas com forma bem vista
(boa precisão formal): respostas que respeitam o parecer formal de um grupo de
referência, ou seja, com o que é mais frequente em um determinado ambiente. F+- =
Forma imprecisa da resposta em área pouco específica do cartão; forma indeterminada.
Segundo Anzieu (1989) são classificadas como F+- ou F? as respostas em que a forma
do objeto é imprecisa e indeterminada (ex: nuvens, traçado, litoral).

F- = Respostas com forma mal vista; resposta que não corresponde à área interpretada
do cartão (má precisão formal).

F% - Percentagem das respostas formais em relação ao total de respostas. F%= 100 x


ΣF/R

F+% - Percentagem das boas formas em relação ao total das respostas-forma: precisão
das respostas-forma. F+%= 100 x (F+) + 0,5 x (F+-)/ΣF

F+ext% - Percentagem das boas formas dos demais determinantes: indicação de


precisão formal entre os determinantes afetivos.

F+ext%= [(F+) + (F+- x 0,5) + (K+) + (kan+) + kp + kob + FC + FE + FClob] x100/


R

K – Cinestesia humana: resposta que contenham movimento de pessoas inteiras. Kat –


Humano prestes a se movimentar. kp – Fragmento de forma humana vista em
movimento: ação feita por uma parte de humano. kan – Cinestesia animal: respostas
contendo movimento animal, que precisa estar inteiro e de fato em ação. kob –

175
Cinestesia objeto: respostas contendo movimento forte, que é próprio do objeto
interpretado.

Σk – Soma das cinestesias menores. Σk= Σkan + Σkob + Σkp

FC – Resposta forma-cor: resposta prioritariamente determinada pela forma e


secundariamente pela cor. Há predomínio da forma sobre a cor.

CF= Resposta cor-forma: resposta prioritariamente determinada pela cor e


secundariamente pela forma. Há predomínio da cor sobre a forma.

C= Resposta cor pura: determinação exclusiva da cor na resposta.

O sinal ’ atribuído a C indica a utilização do preto, cinza e branco como cor de


superfície. Segundo a importância relativa de C’e de F, temos três tipos de respostas:
FC’; C’F e C’, que também são incluídas na ΣC. Seus valores são análogos aos de FC;
CF e C.

ΣCponderada – Total ponderado das respostas que envolvem determinante cor


(cromático e acromático) ΣC= 0,5FC + 1CF + 1,5C

FE – Resposta forma-estompage: determinadas pela tonalidade, textura ou perspectiva


da mancha, onde a forma predomina.

EF – Resposta estompage-forma: há predomínio da estompage sobre a forma. E –


Resposta estompage pura: determinação da resposta foi exclusivamente o sombreado do
cartão. ΣEponderada – Total ponderado das respostas estompage ΣE= 0,5FE + 1EF +
1,5E

FClob – Resposta forma claro-escuro relacionada à angústia, à conteúdo disfórico,


ligado principalmente ao preto do cartão

ClobF – Resposta claro-escuro: há predomínio de resposta Clob sobre a forma.

Clob – Resposta claro-escuro pura: há manifestação exclusiva de respostas disfóricas.

5. Conteúdos das respostas: A/(A) – Resposta de conteúdo animal

Ad/(Ad) – Resposta de detalhe (parte) animal.

176
A% - Percentagem das respostas animais em relação ao número respostas totais. A%=
100 x [A + (A) + Ad + (Ad)] /R

H/(H) – Resposta de conteúdo humano. Hd/(Hd) – Resposta de detalhe (parte) humano.


H% - Percentagem das respostas humanas em relação ao número respostas totais. H%=
100 x [H + (H) + Hd + (Hd)]/R

Anat – Resposta de conteúdo anatômico Sg – Resposta de conteúdo sangue Sex –


Resposta de conteúdo sexual Obj – Resposta de conteúdo objeto Art – Resposta de
conteúdo artístico Arq – Resposta de conteúdo arquitetônico Simb – Resposta de
conteúdo simbólico Abs – Resposta de conteúdo abstrato Bot – Resposta de conteúdo
botânico Geo – Resposta de conteúdo geográfico Nat – Resposta de conteúdo natureza
Pais – Resposta de conteúdo paisagem Elem – Resposta de conteúdo elemento Frag –
Resposta de conteúdo fragmento

6. Funcionamento afetivo T.R.I. – Tipo de Ressonância Íntima: forma habitual do


indivíduo vivenciar sua afetividade. Fórmula que exprime a relação entre as cinestesias
humanas e as respostas-cor ponderadas. T.R.I. = x K / y ΣC (Proporção do número de
movimentos humanos sobre a somatória de respostas-cor).

- Extratensivo Puro: 0 K0>y ΣC - Extratensivo Dilatado: x K O> y ΣC - Introversivo


Puro: x K > 0=ΣC - Introversivo Dilatado: x K > y ΣC - Ambigual: x K para = y ΣC -
Coartativo: x K para = y ΣC = 1 - Coartado: x K para = y ΣC = 0

F.T.L. – Fórmula das tendências latentes: recursos afetivos em potencial, não


manifestos, mas possíveis de serem desenvolvidos futuramente. Exprime a relação entre
as cinestesias não-humanas e as respostas estompage.

T.L. = (kan + kob + kp): ΣE (Somatório das respostas de pequeno movimento


comparativamente às respostas estompage).

3ª Fórmula (I.R.A.) – Índice de Reatividade Afetiva: índice de sensibilidade do


indivíduo a situações afetivas. Relação do número das respostas dadas nas pranchas
VIII, IX e X dividido pelo número total de respostas. I.R.A. = 100 x (Número de
respostas VIII + IX + X) R

177
F.A. – Fórmula da angústia: índice de elementos de ansiedade e/ou angústia que o
indivíduo demonstra no teste. F.A. = Hd+(Hd)+Anat+ Sg+Fg+ Sex x 100/R

7. Respostas Banais: índice de compartilhamento do pensamento coletivo Ban –


Resposta banal: respostas de mesma localização e conteúdo que aparecem com
determinada frequência em certo grupo populacional. Ban% – Percentagem das
respostas banais em relação ao número total de respostas. Ban%= 100 x Ban
R Orig. – Resposta original: respostas dadas uma vez em cem por sujeitos considerados
“normais”(com funcionamento típico).

178
ANEXO D

179
180
181
182

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