Universidade de Brasília - Unb Instituto de Psicologia - Ip Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica E Cultura - PCL
Universidade de Brasília - Unb Instituto de Psicologia - Ip Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica E Cultura - PCL
Universidade de Brasília - Unb Instituto de Psicologia - Ip Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica E Cultura - PCL
INSTITUTO DE PSICOLOGIA –
IP PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
Brasília – DF
2015
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – UnB
INSTITUTO DE PSICOLOGIA – IP
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
Brasília – DF
2015
2
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Clínica e Cultura do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, sob a
orientação da Profa. Dra. Deise Matos do Amparo.
Aprovada por:
____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Francisco Moacir Catunda de Melo Martins (PCL/Universidade de Brasília -
UnB) Membro Interno
______________________________________________________________________
Profa. Dra. Sonia Regina Pasian (Universidade de São Paulo – USP Ribeirão) Membro
Suplente
3
Dedico esse trabalho ao meu amigo e avô, Darione
Nunes Cardoso (in memorium), com toda a minha
gratidão.
4
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, Professora Dra Deise Matos do Amparo, pela confiança, tempo e
dedicação depositados em mim durante todos esses anos de convívio, durante os quais
ela muito me ensinou.
À Vera Lucia Lima Cavaignac e Dario José Campos Cardoso, pelo apoio e carinho, sem
os quais a realização do presente trabalho não seria possível.
5
Resumo.
6
Abstract
This study intends to investigate the quality of Ego-Skin and the level of the boundary
investment in adolescents who scarify themselves. The scarification is most common in
the adolescence time. The emergence of puberty destabilizes the teenagers’ defenses,
testing their effectiveness of boundaries investment and the efficacy of the functions
performed by the Ego-Skin. Therefore, we started assuming the boundary pathology and
the failures in maintenance, continence and stop-excitement Skin-Ego´s functions are
related to the scarification. The survey was conducted with adolescents who had
scarification history record, three males and seven females, aged between 14 and 18
years. The clinical-qualitative method with case studies, following the single group
methodological perspective was the chosen method. Semi-structured interviews and
clinical interviews were applied, besides the Rorschach´s method, analyzed following
school of Paris interpretation perspective. The protocols´ analysis emphasized the
assessment of the quality of the boundaries and the maintenance, continence and stop-
excitement Skin-Ego´s functions. At first, all protocols were analyzed on focusing on
the quantitative analysis of the Rorschach. In a second phase, the case studies were
discussed by means of the qualitative information gathered by way of the four
Rorschach protocols results and the information collected through semi-structured
interviews and clinical interviews. According to the results, six participants showed the
fragility of the boundaries investment, while four of them showed boundaries limits
overinvestment. All participants showed failures on the Skin-Ego functions, as the
Rorschach results indicates. We conclude the existence of connection between
boundaries investment pathology, defects on the Skin-Ego and scarification. Therefore,
if the therapist is able to help the patient to restore his failures on the Skin-Ego
functions and pathological boundaries investment mode, treatment would tend to bring
successful results related to the scarifications overcoming.
7
LISTA DE TABELAS
Tabela 2.1-Indicadores do Investimento dos limites no Rorschach na patologia e na
saúde.............................................................................................................................................48
Tabela 2.2-A utilização do eixo central e dos modos de apreensão na avaliação da função de
manutenção do Eu-Pele................................................................................................................52
Tabela 2.3-A utilização dos determinantes formais e cinestésicos e fenômenos especiais na
avaliação da qualidade da função de manutenção do Eu-Pele.....................................................53
Tabela 2.4- O uso do Dbl, dos índices formais, dos desdobramentos, o índice barreira-
penetração, as respostas “pele” e os determinantes na análise da qualidade da função continente
do Eu-Pele....................................................................................................................................55
Tabela 2.5- A progressão de respostas e os modos de apreensão na análise do aspecto contentor
do Eu-Pele....................................................................................................................................56
Tabela 2.6- Índices de respostas formas, índice de controle afetivo, qualidade da representação,
choques e tempo de latência na análise da função de para-excitação do Eu-Pele.......................58
Tabela 3.1- Informações gerais sobre os participantes da pesquisa.............................................66
Tabela 4.1- Indicadores para análise de investimento dos limites nos protocolos de Rorschach
dos adolescentes...........................................................................................................................75
Tabela 4.2-Indicadores de fenômenos especiais nos protocolos de Rorschach dos
adolescentes..................................................................................................................................77
Tabela 4.3- Localização e determinantes utilizados como indicadores da função de manutenção
do Eu-Pele nos protocolos de Rorschach dos adolescentes..........................................................80
Tabela 4.4- Os determinantes formais, as respostas barreira e penetração e as localizações na
análise do funcionamento da continência do Eu-Pele nos protocolos de Rorschach dos
adolescentes..................................................................................................................................84
Tabela 4.5- Determinantes cinestésicos, sensoriais e a incidência de desdobramento na análise
da função de continência do Eu-Pele nos protocolos de Rorschach dos adolescentes.................85
Tabela 4.6- Incidência dos modos de apreensão e índices de determinantes formais na análise do
aspecto contentor do Eu-Pele.......................................................................................................91
Tabela 4.7- A incidência de determinantes formais e sensoriais, choques e o tempo de latência
médio total na análise da função de para-excitação do Eu-Pele nos protocolos de Rorschach dos
adolescentes.................................................................................................................................94
Tabela 4.8- Incidência das representações humanas e animais parciais em relação as
representações humanas e animais íntegras e localizações relacionadas a função de para-
excitação do Eu-Pele nos protocolos de Rorschach dos adolescentes.............................95
Tabela 5.1- Psicograma do protocolo de Rorschach de Laura......................................104
Tabela 5.2- Psicograma do protocolo de Rorschach de Paula......................................117
Tabela 5.3- Psicograma do protocolo de Rorschach de Helena....................................133
Tabela 5.4- Psicograma do protocolo de Rorschach de João........................................146
8
LISTA DE ANEXOS
ANEXO A – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido........................................171
ANEXO B – Roteiro de Entrevista Semidirigida com os adolescentes.......................172
ANEXO C – Nomenclatura francesa do Rorschach.....................................................174
ANEXO D – Critérios de classificação para escala Barreira-Penetração.....................179
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................................
.........................................................................................................................................11
10
CAPÍTULO III- MÉTODO.......................................................................................62
3.1. Instrumentos.......................................................................................................63
3.1.1. O Método de Rorschach............................................................................63
3.1.2. A entrevistas semi-estruturadas........................................................64.
3.1.3. Entrevistas clínicas ...............................................................................65
3.2. Participantes.........................................................................................................65
3.3. Procedimento para coleta dos dados......................................................................67
3.4. Procedimento para análise dos dados.......................................................................68
11
5.3.1. Histórico clínico .......................................................................129
5.3.2 Análise do protocolo de Rorschach de Helena ............................................132
5.3.3. As funções do Eu-Pele de Helena........................................................................134
5.3.4 Síntese do caso
Helena..........................................................................................................................142
5.4. Apresentação do caso José (Sujeito 3) .................................................................142
5.4.1 Histórico clínico .....................................................................................142
5.4.2 Análise do protocolo de Rorschach de José............................................144
5.4.2. As funções do Eu-Pele de José..............................................................147
5.4.3 Síntese do caso José................................................................................151
6. CAPÍTULO VI- Considerações finais.................................................................... 154
REFERÊNCIAS...........................................................................................................164
ANEXOS......................................................................................................................171
12
Introdução
13
Para investigar as escarificações na adolescência relacionadas a problemática
dos limites e do Eu-Pele, utilizamos o método clinico-qualitativo de pesquisa, segundo
o modelo de grupo único (Hussain, 1992-1993). Os dados foram obtidos por meio de
entrevistas semi-estruturadas, entrevistas clínicas e à partir do método de Rorschach,
cujos protocolos foram analisado segundo o modelo interpretativo proposto pela Escola
de Paris (Traubenberg, 1970; Chabert, 1998). A ênfase da análise dos protocolos recaiu
sobre os indicadores relativos a qualidade dos limites e da eficácia das funções
desempenhadas pelo Eu-Pele (Chabert, 1993; 1998; Roman, 1996; 2001; Frédérick-
Libon,2005; Emmanuelli; Azoulay, 2008; Kallas, 2012; Pinheiro; Linhares 2009).
Participaram da pesquisa dez adolescentes com histórico de escarificação, sete do sexo
feminino e três do sexo masculino, com idades de 14 a 18 anos.
O desenvolvimento do trabalho está organizado em seis capítulos. O primeiro
capítulo traz uma discussão teórica acerca da adolescência como fenômeno complexo e
sobre a relação desse período da vida com a problemática narcísica e do Eu-Pele. A
especificidades das escarificações também são discutidas, sendo tratadas as distinções
entre a automutilação e o suicídio, entre a automutilação e as escarificações, entre as
escarificações ritualísticas e as escarificações patológicas. Neste capítulo, por fim, é
apresentado o conceito do Eu-Pele e suas funcionalidades, além dos objetivos do
trabalho e hipóteses.
O capítulo II descreve conceitualmente os indicadores do Rorschach que são
referentes ao investimento dos limites e as funções de manutenção, continente e para-
excitação do Eu-Pele, sendo ainda apresentados nesse capítulo as formas de
interpretação possíveis para essas variáveis e a maneira que esses indicadores foram
interpretados para elaboração desse trabalho.
O capítulo III descreve detalhadamente o método utilizado. Já os resultados
estão divididos em dois capítulos. O capítulo IV trata dos resultados dos dez
participantes da pesquisa, tendo sido interpretados sob a ênfase da análise quantitativa
proporcionada pelos índices que compõem psicograma. O capítulo V trata da exposição
e discussão dos resultados relativos a quatro estudos de caso, elaborados por meio da
análise quantitativa/qualitativa dos indicadores do Rorschach e das informações sobre
história de vida participante, obtidas por meio de entrevistas clínicas e semi-
estruturadas. Por fim são feitas as considerações finais sobre o trabalho e reflexões
relativas aos resultados encontrados e ao tratamento das escarificações.
14
CAPÍTULO 1
ADOLESCÊNCIA E ESCARIFICAÇÃO:
A PROBLEMÁTICA DO EU-PELE
15
sexual e corporal, a ser feito pelo sujeito durante esse período de adolescência. Assim, o
trabalho a ser empreendido pelo adolescente passa pela redefinição da imagem de si e
das relações de objeto, por um lado, pela elaboração do luto e da perda da condição
infantil e do corpo da infância, por outro lado (Cardoso, 2011).
Freud não faz referência ao termo adolescência, uma vez que a construção da
adolescência, como conceito utilizado para designar um período específico da vida, é
posterior ao tempo de suas pesquisas. Entretanto, Freud (1905/1996) define a puberdade
como o momento de organização das pulsões parciais em torno das zonas genitais. A
puberdade, então, é tida pela psicanálise como o evento desorganizador das defesas
anteriormente eficazes no período de latência, pois o aumento da excitação pulsional,
decorrente da chegada da puberdade, desestabiliza o equilíbrio das defesas
anteriormente estabelecidas para controlar o excesso pulsional traumático (Drieu, Proia-
Lelouey, Zanello, 2011).
Esse processo de agrupamento das pulsões sexuais em torno das zonas genitais,
característica da mudança da passagem da fase latência para a fase genital (Freud,
1905/1996), instaura a necessidade de remanejamento narcísico e objetal; de redefinição
da identidade corporal e sexual (Drieu, Proia-Lelouey, Zanello, 2011). Sendo assim, a
puberdade, entendida como a mudança fisiológica que sinaliza o início da adolescência,
exige um considerável trabalho de remanejamento e redifinição sobre o si mesmo e
sobre as relações de objeto, processo necessário para diminuir a tensão gerada pela
perturbação efetuada no psiquismo do adolescente com a chegada da puberdade
(Emanuelly & Azulay, 2008).
Em outras palavras, a chegada da puberdade testa a qualidade das construções
narcísicas desenvolvidas na infância, pois, o aumento pulsional desencadeado pela
puberdade coloca em cheque a organização da imagem de si (representação corporal) e
da construção identitária infantil, assim como evidencia a qualidade da organização do
Eu-Pele, uma aquisição anterior ao estádio do espelho descrito por Lacan (Anzieu,
1978; 1989) e a eficácia de suas funções de manutenção, continente e para-excitação.
Além disso, a emergência da puberdade lança a demanda pela redefinição das relações
de objeto e pela elaboração do trabalho de luto pela perda da condição infantil, perda do
corpo e das relações de objeto da infância (Cardoso, 2011).
16
Freud considerava que o desenvolvimento do Eu era intimamente relacionado à
questão do narcisismo (Freud, 1914/1996). A própria incorporação do conceito de
narcisismo à metapsicologia freudiana, obrigou Freud a repensar a noção do Eu,
anteriormente descrita no Projeto de uma Psicologia Científica (1895/1996) como sede
da consciência. Assim, o desenvolvimento do Eu como conceito freudiano, começa
muito antes do texto do narcisismo e é concluído apenas no texto Eu e o Isso (Freud,
1923/1996), que introduziu a existência de uma imagem (representação) corporal nos
registros do Eu. Para Freud, o ser humano não nasce já tendo internalizada uma
representação psíquica unificada do próprio corpo, não sendo, o infante, capaz de
perceber a continuidade do próprio corpo e a descontinuidade entre seu corpo e o
ambiente externo. Em outras palavras, o Eu não existe desde começo; no começo é tudo
Isso (Freud, 1923/1996), o que nos leva afirmar que a diferenciação entre o interno e o
externo é uma aquisição a ocorrer ao longo do processo de desenvolvimento.
A primeira fase do desenvolvimento da libido, denominada de autoerotismo, é o
tempo da não diferenciação da energia pulsional, sendo o lactante um caos de sensações
isoladas. O sistema perceptivo permite que o lactante inicie o contato com o mundo
externo, o que proporciona progressivamente a diferenciação em relação aos demais
objetos parciais e a integração da unidade corporal; a parte do Isso em contato com a
percepção se diferenciará, formando o Eu, uma representação do próprio corpo; o
envelope psíquico. O tato por ser uma sensação tanto interna quanto externa,
desempenhará importante função no decorrer da internalização de tal aquisição (Freud,
1915/1996). O Eu é derivado das sensações corporais sendo, em especial, construído
por meio da função sensorial, pela qual as sensações que remetem ao apelo a superfície
do corpo são progressivamente integradas em uma unidade corporal, o envelope
psíquico. Dessa forma, o Eu é uma projeção da superfície corporal, que é internalizada e
se torna o representante da superfície corporal no aparelho psíquico (Freud, 1923/1996;
Le Breton, 2010)
Portanto, as bases narcísicas se constituem a partir do investimento libidinal do
infante na imagem corporal que é idealizada pela mãe, ao projetar o próprio narcisismo
na imagem de seu filho. Assim, as bases narcísicas, referem-se à noção de imagem
corpo e identidade, que são construções resultantes do reflexo de si mesmo no olhar da
mãe (Winnicott, 1975). Por bases narcísicas pode-se considerar também a aquisição do
sentimento de habitar a própria pele ou um envelope psíquico estabelecedor de um
espaço interno, cuja função é propiciar um espaço do pensar (função continente e
17
contentor); instaurar a distinção em relação ao mundo externo (diferenciação; função
de individuação) além de proteger o Self das invasões do excesso de estimulação do
mundo externo (função de para-excitação da pele) e garantir a solidez da representação
(função de manutenção), noções do Eu-Pele, proposto por Anzieu(1989).
Esse processo propicia a passagem do auto-erotismo para o narcisismo primário
e fundamenta a unificação de uma imagem corporal, que servirá de suporte para
constituição da identidade. Laplanche (1994) enfatiza a sutileza de Freud (1905/1996)
em defender que o autoerotismo é o primeiro estágio de desenvolvimento sexual, mas
que não é o primeiro estágio de desenvolvimento do sujeito, pois a vida de desejos
(sexual) é secundária a vida de necessidade. Assim, afirma Laplanche (1994), a
necessidade origina o desejo, fazendo surgir, a partir das pulsões de auto-conservação, a
pulsão sexual. Portanto, a libidinização do corpo do bebê pela mãe, instaura nele outro
prazer distinto daquele da satisfação da necessidade: a sexualidade.
Sabe-se que a emergência da puberdade desativa as defesas testando a eficácia
das bases narcísicas descritas acima. Por conta disso, a chegada da puberdade lança a
demanda de remanejamento narcísico e objetal. Em outras palavras, a emergência da
puberdade instaura a demanda pela redefinição da imagem de si e das relações de
objeto, tarefa a ser empreendida na adolescência (Cardoso, 2011).
Portanto, na época da adolescência, as possíveis falhas ocorridas no processo
infantil de constituição das bases narcísicas, podem se revelar e dificultar a superação da
crise pubertária. No caso de ocorrência de falhas precoces, a travessia da adolescência
tende a ser dificultada, pois o adolescente experienciará as falhas anteriores durante o
processo adolescente de reelaboração dos conflitos inerentes ao despertar do desejo
sexual e de reelaboração dos conceitos de feminino e masculino, aspectos relacionados
a imagem corporal, a identidade e as relações de objeto. Tais conflitos exigem
complexas elaborações, cuja resolução satisfatoriamente bem-sucedida resultará na
integração do Eu e na constituição de uma unidade corporal. Como a elaboração dessas
questões típicas do tempo da adolescência se realiza a partir das estruturas narcísicas
infantis previamente estabelecidas, o processo de adolescência acaba por revelar as
fragilidades das bases narcísicas (Le Breton, 2010). As dificuldades de diferenciação
entre o Eu e o Outro; o dentro e o fora, caso não tenham sido satisfatoriamente
elaboradas no tempo infantil, tanto se mostrarão presentes pela emergência da
puberdade, quanto tenderão a se colocar no sentido oposto da resolução das questões
adolescentes.
18
Assim, caso o narcisismo não esteja bem constituído na adolescência, pela
reatualização que esse momento implica para o sujeito, ele pode reviver o sentimento de
impotência e vazio, sentidos anteriormente, durante a fase pré-edípica. Esse processo
ocorre quando o período primitivo de constituição das bases narcísicas foi marcado pela
vivência de experiências precoces de ausências excessivas de contenção materna ou pela
falta da função do terceiro paraexcitante. Portanto, as falhas narcísicas decorrem tanto do
excesso quanto da falta da função materna. Dessa forma, quando a impossibilidade do
adolescente de se utilizar das defesas anteriormente eficazes no período de latência é
acompanhada pela pouca confiabilidade sentida em relação aos objetos internos e
externos, a puberdade pode se tornar um período traumático (Drieu, Proia-Lelouey,
Zanello, 2011). Conclui-se que a adolescência é um período no qual o excesso pulsional
testa a eficácia das bases narcísicas do sujeito, o induzindo a realizar a tarefa de
redefinição da imagem corporal, da identidade e das barreiras entre o mundo interno e
externo; assim como trata de forçar o sujeito a reelaborar as relações de objeto e
empreender o trabalho de luto pela condição infantil perdida.
1.2. As escarificações.
19
frequentes os sujeitos dotados de hábitos automutilatórios que alegam sentir alívio pela
dissipação dos sentimentos egodistônicos após efetuar machucados no próprio corpo
(Cedaro e Nascimento, 2013; Le Breton, 2003; DSM-V, 2014).
O ato de agredir o próprio corpo se apresenta como um ato” guardião da vida
psíquica”, uma vez que, esses tipos de atos têm a função de permitir a emergência de
representações fantasmáticas (Roussillon, 2006). Nesse sentido, Le Breton (2010)
defende que os atos de escarificações não são uma tentativa de morrer; são atos cuja
função é assegurar a vida, sobretudo a vida psíquica e o sentimento de unidade corporal,
(Le Breton, 2010). Os cortes auto infligidos seriam soluções de compromisso não
simbolizadas contra a ameaça do retorno dos elementos clivados, pois face ao retorno da
experiência angustiante, sofrida de forma passiva, o Self atuaria como agente da
situação traumática experienciada originalmente pela pessoa como sujeito passivo. A
experiência traumática que o sujeito busca controlar transformou-se, em decorrência da
excitação libidinal, em uma experiência prazerosa (Rousillion, 1999).
Essas transformações de passivo em ativo, de desprazer em prazer, representam
defesas narcísicas do sujeito nas quais o sujeito “prefere sentir-se culpado, mas
responsável ativo, do que reviver o desamparo e angústia experimentados de forma
passiva" (Rousillion, 1999, p. 28).
Entretanto, a possível alternância, no mesmo indivíduo, entre os distintos atos de
suicídio e automutilação podem indicar a hipotética relação de oposição entre a
automutilação e o autoextermínio; o primeiro a serviço da pulsão de vida, a auto
conservação, ato que possibilita a ligação, segundo a concepção de Matha (2010); e o
segundo tipo à serviço da pulsão de morte, ato relacionado ao desligamento
(desinvestimento) do próprio investimento, conceito de Green (1988).
20
Menninger (1938) no qual o sujeito arranca a própria mão em decorrência do
sentimento de culpa ativado por um infanticídio que ele próprio cometeu; ou ainda, o
célebre caso de Van Gogh, que mutilou a própria orelha. Há, nesse sentido, certa
importância teórica em estabelecer uma relativa diferenciação, tanto em decorrência das
especificidades de etiologia, função e de grau de irreversibilidade do prejuízo físico
causado entre o ato de cortar a própria pele e entre outros atos auto-mutilatórios, como
as mutilações psicóticas.
No manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais, o DSM-V (2014), os
atos de escarificação são classificados como “Autolesão não suicida (NSSI)” e definidos
como “dano intencional autoinfligido à superfície de seu corpo provavelmente
induzindo sangramento, contusão ou dor” (DSM-5, 2014 p. 803). Para o manual
estatístico de transtornos mentais, o sujeito que corta a própria pele guarda a expectativa
de obter alívio, por meio dos cortes, de sentimentos e pensamentos negativos, entre eles
as ideações suicidas são citadas. Os instrumentos utilizados para efetuar os cortes
podem ser facas, lâminas, agulhas ou qualquer outro objeto afiado, como a lâmina do
apontador, a ponta do compasso escolar ou o estilete. As lesões são mais
frequentemente feitas na parte interna da coxa e no lado dorsal do antebraço. Segundo o
manual, o comportamento de autolesão se inicia no início da adolescência,
apresentando-se na razão de ocorrência de 3:1 ou 4:1 em relação a distribuição por sexo,
sendo mais frequente nas mulheres. Uma das consequências funcionais da autolesão é a
possibilidade de transmissão de doenças, caso os instrumentos usados para efetuar os
cortes sejam compartilhados (DSM-5,2014).
Logo, as escarificações, objeto de estudo do presente trabalho, se referem aos
repetidos cortes e lesões autoinfligidos na superfície corporal e são um dos tipos
existentes de comportamentos auto-mutilatórios. Porém, as escarificações se distinguem
dos demais atos auto-mutilatórios, pois possuem significado, comportam um certo grau
de gravidade e indicam condições psicopatológicas próprias. As escarificações tendem
ser iniciadas no começo da adolescência, tempo no qual os cortes no corpo são mais
comuns, sendo atos mais frequentemente desempenhados por mulheres.
21
cultura ocidental atual, de cortar a própria pele e observar o jorrar do sangue em meio
ao sentimento subjetivo de alívio dos sentimentos invasivos de angústia é distinto da
experiência do indivíduo cuja pele é escarificada (pelo Outro) em um ritual cultural
(Costa, 2014). Há entre esses dois tipos de fenômenos, a escarificação ritualística e a
escarificação individual (autoinfligida), algumas distinções fundamentais.
A primeira diferença é referente à dimensão sociocultural que marca uma
diferença simbólica entre o ritual coletivo e o ritual individual, pois o ritual coletivo
guarda uma significação compartilhada do ato (escarificar a pele), ao passo que o ritual
individual é permeado por um significado simbólico indissioncrático, de sentido
frequentemente obscuro para o próprio sujeito. O ritual coletivo representa a passagem
de um status social para outra condição social, simbolizando a perda ou superação de
um estado anterior (Costa, 2014) .
Assim, a segunda distinção a ser efetuada se baseia na ideia de que as
escarificações ocorridas em contextos socioculturais não indicam a existência de
sofrimento psíquico coletivo ou individual, ao contrário, marcam a comemoração de um
evento ou marcam na pele a atribuição de um novo status social, entre outros
significados possíveis. Já os cortes na pele como um ritual individual, ocorrido em uma
sociedade que não valoriza (de forma manifesta) os cortes auto infligidos na pele,
indicam a existência de um relevante grau de sofrimento psíquico, de uma encenação do
traumático que ocorre pela via da inversão vetorial; pois o elemento traumático
vivenciado pelo indivíduo como sujeito passivo; é reencenado no ato de se cortar tendo
o sujeito desempenhando o papel ativo (Matha, 2010; Drieu, Proia-Lelouey, Zanello,
2011; Costa 2014).
Portanto, percebe-se que nem sempre as escarificações possuem conotação
psicopatológica, visto que há relatos de rituais nos quais os cortes no corpo são
apreciados e incentivados pelo meio-social o qual atribui significados compartilhados a
essas escarificações. Em algumas tribos da África, por exemplo, as escarificações são
feitas para denotar o status social do membro da tribo ou para servir de instrumento de
simbolização em ritos de passagens (Favazza, 2011). São rituais de passagem, presentes
no nascimento de algum membro da tribo, assim como são presentes na passagem para
vida adulta e na morte (Costa, 2014). Já as escarificações autoinfligidas ocorrem em um
contexto cultural que não as adota como ritual social, são por outro lado, manifestações
psicopatológicas, um tipo de comportamento de automutilação, cuja ocorrência
evidencia o sofrimento psíquico do sujeito (Favazzo, 1987).
22
Outra diferença se apoia na constatação de que os rituais coletivos são atos
simbólicos cujo significado é partilhado por uma dada comunidade, ao passo que os
cortes auto infligidos são formas de passagem ao ato.
23
poderiam ser melhor classificadas, em geral, como ato signo, um tipo de ato que é
caracterizado pela dificuldade ou impossibilidade de transformação da representação
coisa em representação palavra, como um significante (corte) em busca de significação
(fantasia latente) ou como um conteúdo em busca de um continente.
24
Ciavaldini, Jeammet, Schenckery. (2006) sobre o tema se faz relevante. Segundo os
autores, caso o autoerotismo falhe em lidar com a ausência do objeto, o infante tenderá
a investir no sistema perceptivo-motor ou se utilizar de autoestimulação.
No caso dos cortes no corpo, a dor causada por eles constituem a auto
estimulação buscada, assim como a visão do corte que faz escorrer o sangue e o ato de
cortar a pele representam o sobreinvestimento do sistema perceptivo-motor (Chabert
,Ciavaldini, Jeammet, Schenckery, 2006). O anti-pensamento decorrente de uma
atividade ligada ao ato operado pelo sobreinvestimento do sistema perceptivo motor, em
detrimento do sistema perceptivo, é responsável por afastar os sentimentos de angústia
da consciência do sujeito que opera os cortes e está relacionado ao sentimento de alívio
relatado pelos sujeitos que se cortam.
A dor incide sobre a totalidade do psiquismo, não afetando apenas o órgão
lesionado, pois captura grande parte da atenção do indivíduo, afetando todas as
atividades do sujeito. A dor transforma o corpo do sujeito em espaço de violação, da
mesma forma em que contribui para diminuição do sofrimento, uma vez que o
sofrimento é obscurecido pelo deslocamento da dor psíquica para a dor física (Le
Breton, 2003).
Por outro lado, a significação do ato de se cortar, se entendida como uma
tentativa de ligação seria caracterizada por uma inversão do jogo de repetição dos
elementos clivados ligados ao traumático, o que resultaria em uma tentativa de inversão
vetorial da pulsão. A escarificação seria uma atuação a serviço da ligação, que se dá
pela inversão da posição passiva em posição ativa; de asujeitado, o sujeito representa
uma cena na qual ele atua como agente do trauma (Matha, 2010).
Tal ligação do evento traumático é, vale lembrar, ainda uma possibilidade, que
enquanto não ocorre, dá lugar a repetição e as explicações racionalizantes “me corto
para sentir alívio”, “gosto de ver o sangue escorrendo”. Nota-se que tais explicações
são circulares a ponto de lembrar os pacientes hipnotizados por Charcot que
“inventavam” uma explicação para o comportamento que havia sido induzido pelo
comando do hipnotizador, ou seja, os hipnotizados explicavam o comportamento cujas
raízes eram inconscientes (comando feito pelo hipnotizador ao hipnotizado quando o
último estava em transe hipnótico) com base em uma explicação racionalizada
consciente. Portanto, acredita-se que as escarificações estejam relacionadas à lógica
da compulsão a repetição, sendo as escarificações tentativas de ligação (Matha, 2010),
ao mesmo tempo em que se considera que as escarificações estejam relacionadas a
25
dificuldades de estabelecimento de limites internos e externos (Le Breton, 2010).
Portanto, as escarificações seriam, a um só tempo, tentativas de ligação acerca de um
modo de trauma específico, e atos ligados a tentativas de (re)estabelecimento de limites.
A relação entre esses dois fatores, nos aponta para hipótese de que o trauma que busca
ser ligado pela escarificação estaria relacionado ao estabelecimento de limites, o que
remeteria a ocorrência das escarificações patológicas à falhas ocorridas na constituição
dos limites. Tratar-se ia, portanto, de situações traumáticas precoces que são colocadas
em cena por carecerem de representação e elaboração. Neste ponto surge a seguinte
questão: Qual a natureza das situações traumáticas que estariam ligadas aos atos de
escarificação?
Segundo Costa (2010) a escarificação representaria a tentativa de marcar a
separação entre o Eu e o Outro, entre o interno e o externo. Já Le Breton (2003) lança a
hipótese de que os cortes no corpo seriam, entre outros aspectos, tentativas de
unificação do Eu e de estabelecimentos de limites. Além disso, as escarificações seriam
maneiras de atualizar a identidade pela via da modificação corporal, no caso dos cortes
na pele, a identidade ligada a afetos negativos seria projetada no corpo pela via do ato
(Le Breton, 2003).
Nesse sentido, lança-se a hipótese de que o trauma, a que as escarificações
fazem referência, seria o trauma da separação, descrito por Anzieu (1989) por meio da
fantasia masoquista de “pele arrancada”, que ocupa o psiquismo de certos sujeitos
sensíveis a questão da separação, por serem absorvidos pela fantasia da “pele comum”
(Anzieu, 1989).
Para esclarecer tal hipótese se faz necessária uma breve reflexão sobre a dor e
sobre o papel da pele na sua relação com o Eu.
26
elevação desprazerosa, segundo o princípio econômico exposto. Le Breton (2003)
chama a atenção para o fato de que a dor raramente é congruente com a lesão sofrida,
pois tanto o sentimento de sofrimento quanto as sensações dolorosas são moduladas por
aspectos subjetivos ligados a experiência.
Em relação a esse aspecto, torna-se plausível que o ato de agredir o próprio
corpo possa evocar o masoquismo erógeno (Freud, 1924/1996) ameaçando a auto-
conservação. O valor econômico da dor, remete à questão do masoquismo e merece
uma reflexão mais aprofundada no contexto da discussão sobre o significado e sentido
da escarificação.
A ideia de um masoquismo originário tem a coexitação libidinal como conceito
central, pois para Freud, o prazer e o desprazer configurariam sensações indiferenciadas
no começo da vida, em razão da não distinção efetiva entre a sexualidade e a dor
sentidas pelo recém-nascido. Tal indiferenciação, denominada coexitação libidinal,
tenderia a ser extinta ao longo do desenvolvimento, entretanto a não superação
satisfatória da coexcitação libidinal é também uma possibilidade que inaugura as bases
para permanência do masoquismo erógeno, caracterizado pelo sentimento de prazer na
experiência da dor (Green, 1993/2010).
Assim, Freud (1924/1996) introduz de forma complexa a sua ideia a respeito do
masoquismo, postulando ao masoquismo primário (ou originário) à origem a outros dois
tipos de masoquismo: a) o masoquismo feminino e b) masoquismo moral. Essa ideia
contraria a concepção exposta nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Freud,
1905), texto em que ele defende a ideia do sadismo como originário, que é mantido
como tal nos trabalhos posteriores Instintos e suas Vicissitudes (1915/1996), Uma
criança é espancada (Freud, 1919/1996) e Além do princípio do Prazer (1920/1996).
Neste último texto, Freud afirma: “pode haver um masoquismo primário” (Freud,
1920/1996, p. 75), não chegando a tomar essa posição como certa, o que só ocorre a
partir do trabalho de 1924 (Strachey,1962).
Entretanto, Freud (1924/1996), após a sua discussão sobre a pulsão de morte
(Freud, 1920/1996), altera a metapsicologia da questão do sadismo e masoquismo ao
recriar o percurso do sadismo, originado a partir do masoquismo primário.
Considerando que as pulsões estão sempre fusionadas (Freud, 1920/1996), a libido,
representante de Eros, carrega a função de impedir a autodestruição, o que ela faz
voltando a pulsão de destruição para fora. Essa pulsão é então voltada para os objetos
externos, se transformando em pulsão de domínio ou vontade de poder. Esse é o
27
percurso do sadismo: o masoquismo primário é transformado em sadismo por meio da
ação da pulsão de vida que se funde a pulsão de morte e dirige a destruição ao ambiente
externo.
Nesse momento (Freud, 1924/1996), o masoquismo feminino, outro derivado do
masoquismo primário, apresenta-se pela expressão de uma natureza feminina, na qual o
sujeito (do sexo masculino) obtém satisfação das fantasias sexuais masoquistas por
meio de atos masturbatórios. Essas fantasias representam algo caracteristicamente
feminino como o desejo de ser castrado, de ser copulado ou dar à luz a um bebê, que
revelam o desejo inconsciente de ser punido como uma criança travessa que teme a
castração.
Já o masoquismo moral difere dos outros tipos, pois o sofrimento não precisa ser
causado pela pessoa amada, neste tipo de masoquismo não é necessário nem sequer que
uma pessoa seja colocada no lugar do carrasco, o próprio destino pode desempenhar
esse papel (Green, 1993/2010). Assim Freud (1924/1996) deduz a existência de uma
necessidade de punição nesses sujeitos, que a buscam nos objetos externos e na punição
do Superego dotado de uma ultra moralidade voltada a si próprio. De maneira geral, o
masoquista busca efetuar ações “pecaminosas” para ser punido, pois a culpa é anterior a
ação proibida, uma vez que remete à necessidade de punição (Freud,1919).
Portanto, Freud (1924/1996) afirma que o sofrimento e o prazer podem gerar o
mesmo resultado, pensamento já presente nos Três Ensaios sobre a Teoria da
Sexualidade: “nada pode acontecer de considerável importância no organismo sem que
contribua com algum componente para a excitação sexual” (Freud, 1905, p.210-211).
Em se considerando a concepção freudiana acerca do masoquismo, o problema
dos cortes no corpo é entendido de maneira distinta pelos autores que tratam sobre o
tema.
Le Breton (2003) marca a diferença entre prazer pela dor, descrito como
masoquismo primário (originário) e erógeno; o masoquismo moral, entendido como
prazer no sofrimento; e os atos das escarificações. Para esse autor, as escarificações
remetem menos ao masoquismo, em suas formas erógenas e moral, do que se referem
ao ato de se cortar para garantir a existência. Le Breton (2003) cita Anzieu (1989) para
defender a ideia de que sentir dor é condição de existência, pois para certos sujeitos
sentir dor ou sofrer é existir, “Sofro, logo existo” (Anzieu, 1989, p.235). Trata-se do que
Le Breton (2003) se refere como envelope de sofrimento, envelope narcísico decorrente
da falta de investimentos maternos na infância, que leva o sujeito a recuperar a unidade
28
do corpo e suas barreiras por meio da dor. Dessa forma, a dor seria o preço a ser pago
para garantir a existência entre os limites dentro e fora, que são deficitários devido a
falhas nas bases narcísicas. Portanto, não se trataria no caso das escarificações de se
apegar ao sofrimento e obter prazer à partir dele, como ocorre no masoquismo moral,
mas de efetuar o caminho inverso, o ato de se cortar representa uma tentativa de
amenizar o sentimento de angústia. A dor da lesão e a cicatrização, a tensão que
permanece na pele e a visão da ferida acalmam o sofrimento, pois o freio da dor física
organiza o caos propiciando o sentimento de poder sempre controlá-lo, o que não ocorre
com o sofrimento. Assim, a dor é o custo da própria continuidade e apaziguamento do
sofrimento, uma vez que a escarificação não é nem uma tentativa de morrer, nem uma
forma de sofrer; ao contrário, é um ato que assegura a vida, sobretudo a vida psíquica,
como uma possibilidade real (Le Breton, 2003).
Anzieu (1989) aprofunda a questão do masoquismo ao propor a análise do
masoquismo pela ótica do Eu-Pele. O autor remete a noção de masoquismo, em suas
três formas, à ocorrência de mudanças abruptas, repetidas e, portanto, traumáticas,
relativas a excessos de estimulação ou privação do contato físico. Tais mudanças a que
o autor se refere seriam experienciadas precocemente, antes mesmo do domínio da
marcha, ao estádio do espelho e a fala. Nesse sentido, o masoquismo estaria
relacionado a excessivas satisfações e frustações que ocorrem no campo do contato com
o outro.
Além disso, para analisar o masoquismo sob a ótica fantasmática, Anzieu (1989)
relaciona a fantasia de corpo esfolado, de pele rasgada ao masoquismo. Para tanto, cita
casos de sujeitos masoquistas analisados, que apresentaram tais fantasias, similares ao
Mito de Marsyas. Para o autor, o fantasma masoquista seria constituído por duas
representações: a) a fantasia sobre a existência de pele única que une a mãe e o bebê
estabelecendo uma simbiose entre eles b) e a representação da separação, inerente a
autonomia do infante, como o rasgar de tal pele comum simbiótica, como única
possibilidade de ocorrência. A maior parte dos pacientes com fixações masoquistas
guardariam fantasias de fusão cutânea em relação ao objeto primário, sendo a separação
do objeto sentido como um rasgar da pele comum entre o sujeito e o objeto (Anzieu,
1989).
Assim, a fantasia de desmembramento do corpo é considerada por Anzieu(1989)
como uma tipo de fantasia frequente nas psicoses e, portanto, distinta da fantasia ligada
às escarificações. Haveria nas escarificações um tipo de gozo que não pode ser
29
reconhecido como tal pelo sujeito, cujo conteúdo seria a fantasia de uma pele rasgada.
Exatamente por não poder ser reconhecido, o gozo masoquista seria encenado em atos
cujo roteiro é permeado pelos ataques voltados contra superfície da pele. Esse ato de
inscrição de traços na pele revela os elementos da fantasia masoquista inerente a eles:
arrancar, esfolar ou cortar a pele, pois a separação do objeto é sentida como uma
violência que rasga a pele, no interior da qual o sujeito, em fantasia, o sujeito se
encontra fusionado com o objeto.
Já segundo Green (1993/2010), a agressividade surge como fator comum ao
masoquismo e ao sentimento de culpa, este último, é relacionado ao masoquismo moral,
pois, quando o Superego recebe as projeções destrutivas e se ocupa de fazer o sujeito
sofrer, fornecendo o sentimento de culpa e a necessidade de punição, pode-se conceber
a existência de um gozo masoquista (Green,1993/2010). Nesse caso, poderíamos pensar
em uma relação entre as escarificações e o masoquismo moral, onde os atos de cortar a
própria pele poderiam ser incluídos em circuito narcísico masoquista, no qual o sujeito
faz par, não com um outro eleito para desempenhar o papel de carrasco, mas com a
própria pulsão, satisfazendo a necessidade de punição. Como afirma Green
(1993/2010), a possibilidade de se dispensar a presença do objeto no masoquismo
moral, confere a esse tipo de masoquismo uma característica essencialmente narcísica.
As escarificações guardam em seu próprio ato, voltado ao corpo do sujeito, tal
essência narcísica, por meio da qual, o sujeito encena sozinho as cenas oriundas das
situações traumáticas, ocupando, a um só tempo, o papel de algoz e de vítima. Em se
adaptando as reflexões de Green (1993/2010) expostas acima, poderíamos hipotetizar a
existência de considerável grau de masoquismo moral nos atos de escarificação
patológica, o que nos levaria a inferir a existência de um sentimento de culpa existente
antes mesmo do ato de se cortar. Da mesma forma, poderíamos inferir certo grau de
centração narcísica nos casos de escarificação, pois um dos fatores que Green
(1993/2010) chama atenção é o fator narcísico presente no masoquismo moral.
Segundo Matha (2010) há nas escarificações um tipo de relação masoquista cuja
função é ligar os elementos clivados relativos às situações traumáticas; entretanto trata-
se de um masoquismo sem objeto, pois o sujeito ocupa os dois papeis previsto no jogo;
o polo sádico e o polo masoquista.
Independentemente da existência de traços masoquistas nos sujeitos que se
escarificam, o fator mais relevante exposto pela reflexão dos autores citados para os fins
do presente estudo, é a relação existente entre a dor, sofrimento e o narcisismo, pois o
30
sentimento de dor, o sofrimento e o narcisismo aparecem como questões centrais da
clínica da escarificação, o que torna necessário aprofundar a reflexão sobre a dor e o
sofrimento.
Segundo Anzieu (1989), a dor estabelece uma relação assimétrica oposta ao
prazer: se a satisfação, ligada a diminuição de tensão, é uma experiência, a dor é uma
provação que suspende as diferenciações, impossibilita a canalização da excitação,
abole os desnivelamentos entre os subsistemas psíquicos e se espalha por todo o
psiquismo. Portanto, enquanto o Eu permanece intacto na experiência do prazer, a dor
diminui as capacidades egóicas, amenizando as distinções entre o Eu corporal e o Eu
psíquico, assim como o faz com as diferenciações internas, entre o Isso, Eu e Superego.
Nesse sentido, o ato de cortar a própria pele, por meio do apagamento das distinções
entre o Eu-Corporal e o Eu Psíquico, transforma o sofrimento psíquico em dor corporal.
Matha (2010) evidencia a relação entre a dor provocada pelos cortes e o
sofrimento psíquico não elaborado, ao enfatizar a retração narcísica decorrente da dor.
Esse movimento narcísico transforma a dor psíquica em dor física possibilitando a
melhor contenção do sofrimento e facilitando os processos de ligação. A retração
narcísica decorrente da dor estabelece uma relação entre a dor provocada pelos cortes e
o sofrimento psíquico não elaborado. (Matha, 2010).
Ao contrário do prazer, a dor não se partilha, exceto quando erotizada, como
ocorre nas relações de cunho sadomasoquista, o que expõe a dimensão narcísica
presente nas sensações dolorosas (Anzieu, 1989). Freud (1920), também denuncia a
ocorrência de tal centração narcísica na experiência de sofrimento, ao afirmar que a
pessoa acometida por uma doença é momentaneamente incapaz de amar, pois sua libido
está temporariamente voltada para seu próprio Eu.
Entretanto, a defesa contra a dor pode ser compartilhada, caso a função materna
de fornecimento, ao infante, de capacidades ligadas a função protetiva e mantenedora do
Eu-pele possa ser internalizada por ele. O objeto primário tende a confortar o sujeito
que sente dor, maximizando as funções do Eu-pele de manutenção e continência, o que
torna possível que a criança introjete essas funções como objeto suporte e restabeleça o
Eu-Pele capaz de para-excitar, amenizar e transpor a experiência de dor para graus
toleráveis. Se a mãe pouco se comunica com o infante, ou caso o sujeito vivencie o
excesso da falta dessa comunicação, é possível que a criança se utilize da dor como
forma de captar a atenção, cuidado e amor da figura materna para si (Anzieu, 1989).
Assim, além de transformar o sofrimento psíquico em uma dor física, pela
31
suspensão das distinções entre mente e corpo, o ato de se cortar tem a função de impedir
a separação entre o sujeito e o objeto primário, uma vez que a dor dos cortes e a visão
deles (a descoberta dos pais de que seu filho se corta não raramente se torna um
“escândalo”) capta a atenção e cuidado dos objetos primários, acionados pela
dificuldade do sujeito de separar-se de tais objetos, em decorrência de falhas na
internalização da função materna, ligadas as funções de manutenção, continência e para-
excitação do Eu-Pele.
32
subcutâneas preenchidas com fluídos, propiciando proteção necessária frente ao
ambiente. Além disso, a pele apresenta aparência variada e participa da regulação da
temperatura corporal (Carlson, 2002).
A função protetiva da pele é também considerada quanto a sua função psíquica;
o Eu-Pele é uma estrutura intermediária do aparelho psíquico que assume, entre outras
funções, o papel mediador entre a mãe e o bebê, impedindo assim a confusão de
psiquismos. A conceituação de Eu-Pele faz referência a uma representação psíquica da
pele, pois, em Psicanálise, parte-se do pressuposto de que a imagem do corpo não é
dada filogeneticamente, pois tal representação de corpo é resultante do processo de
desenvolvimento; o mesmo ocorre em relação a membrana que separa os órgãos
internos e ambiente, a pele, cuja representação foi denominada por Anzieu (1989) como
Eu-Pele, embora já tenha sido descrita por Freud (1923) como “envelope psíquico”.
Segundo Anzieu (1978), a internalização do Eu-Pele seria geneticamente anterior a
representação de imagem corporal, conforme descrita por Dolto como imagem
inconsciente de corpo, e por Schilder (1950) como esquema corporal, sendo anterior
também ao estádio de espelho, descrito por Lacan (1948/1998).
Assim a pele funciona como limite primordial, continente das sensações
interiores e exteriores e exerce uma função de para-excitação, ou seja, de amortecimento
ou diminuição das tensões oriundas de fora e de dentro, instaurando uma fronteira cuja
função é proteger o sujeito contra a agressão externa ou contra a tensão íntima. Nesse
sentido, a pele proporciona ao indivíduo a sensação de possuir limites que atestam sua
existência, ou, ao contrário, no caso dos limites da pele terem sido inscritos no
psiquismo de maneira insuficiente, a porosidade sentida em relação a pele pode deixar o
sujeito à deriva do sentimento de caos e desorganização, experimentando a
vulnerabilidade de estar “à flor da pele”. Além das funções citadas, o Eu-Pele comporta
as funções de inter-sensorialidade, sustentação da excitação sexual, recarga libidinal,
inscrição de traços e auto-destruição. (Anzieu, 1989).
A conceituação de Eu-Pele ajuda a pensar as escarificação, pois permite o
entendimento do recurso à pele como um ato que coloca em jogo, por meio da imagem
de um corpo cortado, as questões da diferenciação do espaço interno-externo (fronteira),
as modalidades de troca pelas quais a pele estabelece o papel de para-excitação. Além
disso, o recurso a pele busca a continência, graças a inscrição figurada que ocorre na
superfície corporal (Matha, 2010).
A pele é a tela onde projetamos uma identidade sonhada, como no caso da
33
tatuagem, do piercing ou de outras variadas formas de encenação da aparência corporal
presentes nas diferentes sociedades. Entretanto, a pele pode encarcerar uma identidade
insuportável que o sujeito deseja abandonar, tendo como testemunha as lesões corporais
deliberadas (Le Breton, 2003).
34
figura materna, ou seus substitutos, comunicam tanto informações inerentes as excitações
quanto comunicam significados ao infante. A comunicação é uma das funções instaladas
pelo Eu-Pele, por meio da inscrição de traços (Anzieu, 1989).
A partir do contato com a pele do objeto primário, a mãe ou seus substitutos, o
infante, progressivamente internaliza a existência de um espaço interno em relação a
superfície de seu corpo, como um lugar distinto em relação ao espaço externo à sua
superfície corporal. Essa percepção instaura as bases para a concepção, por parte do
infante, acerca da existência de um volume ambiental no qual ele está imerso e do qual
ele se distingue, por facilitar a compreensão sobre a existência de barreiras entre seu
próprio corpo e o ambiente. A introjeção da noção de superfície e de volume
possibilitam a internalização de uma representação de continente, como um espaço onde
é possível guardar as boas representações. A experiência sentida pelo infante em relação
aos orifícios corporais permite que ele estabeleça o senso de incorporação e expulsão,
internalizando o que é bom e expulsando o que é ruim, inaugurando os mecanismos
descritos por Klein (1937/1996) de introjeção (do objeto bom) e projeção (do objeto
mau). Esse processo está relacionado a representação arcaica das noção de volume
(espaço interno e espaço externo) e superfície (a representação da pele como uma
barreira de contato em relação ao mundo externo), pois, no caso da saúde, a ocasião de
contato corporal do infante com o corpo da mãe, facilitará que o bebê adquira a
percepção da pele como um superfície de contato, como uma representação de barreira
que funciona como uma para-excitação e estabelece a distinção fundamental entre o
infante e o ambiente no qual ele se encontra envolto. Assim, além da inscrição de traços,
o Eu-Pele desempenha, entre outros papeis, as funções de continência e de para-
excitação (Anzieu, 1989).
A construção desse envelope psíquico, representação da pele, ocorre no campo
da relação reconfortante de apego desenvolvida com figura materna. Trata-se de um
processo, que além de apenas permitir o estabelecimento de barreiras entre dentro e fora
da superfície corporal, permite também o domínio dos orifícios corporais e o
desenvolvimento da confiança sobre eles. Portanto, o Eu-Pele garante o sentimento de
integridade do envelope corporal (Anzieu, 1989), continuidade da existência do ser e
sentimento de habitar uma pele individual (Le Breton, 2003).
Como toda atividade psíquica ocorre por meio de uma atividade biológica
(Anzieu, 1989), a pele, como órgão biológico, se apresenta como objeto narcísico a ser
internalizado pelo aparelho psíquico como representação constitutiva do Eu e de suas
35
principais funções (Le Breton, 2003). Portanto, a pele é responsável por fornecer as
bases para fundação de uma instância de manutenção do psiquismo no aparelho
psíquico, tornando possível a segurança do sentimento de si e do sentimento de habitar
uma pele individualizada.
Entre as funções desempenhas pelo Eu-Pele, a representação psíquica da pele,
podemos destacar as funções de para-excitação e de continência. Por para-excitação,
entende-se a função de amortecimento das tensões vindas de fora e de dentro, proteção
que ocorre por meio das barreiras psíquicas protetoras do mundo interno em relação as
agressões exteriores constituídas por excessos de estimulação. Além disso, a
representação psíquica da pele, o Eu-Pele, protege o Eu, que é definido como um
precipitado de identificações (objetos introjetados), por meio da função de continência,
das pulsões potencialmente destrutivas oriundas do espaço interno e assim como as de
guarda das invasões externas. Portanto, a internalização de uma representação de pele, o
Eu-Pele, oferece o sentimento de possuir limites ao sujeito, tanto limites internos quanto
externos, que são responsáveis por garantir a segurança dos objetos internalizados. Esse
sentimento torna possível ao sujeito pensar sua existência de forma individualizada,
protegida e diferenciada do caos ambiental (Le Breton, 2003). Trata-se, na saúde, de
uma internalização do Eu-Pele que propicia a construção de um envelope de bem-estar,
mantido pelas funções de para-excitação e continência (Anzieu, 1989).
Assim, o desenvolvimento da noção de Eu-Pele é caracterizado pela
internalização da representação de um envelope narcísico de bem-estar, capaz de
propiciar a atividade ilusória e o espaço de pensamento. A sua construção depende tanto
do sujeito quanto depende que a outra face do envelope (o objeto primário) atue em
harmonia as necessidades do infante (Anzieu, 1989).
As falhas excessivas nesse processo de construção do Eu-Pele que resultariam,
em alguns casos, no estabelecimento de traços ligados ao masoquismo ou ao
narcisismo, ocorrem por meio da construção de um envelope de excitação e de
sofrimento no lugar da instauração da representação de Eu-Pele como um envelope de
bem-estar. Nesses casos, não haveria a separação satisfatória da área de contato na qual
ocorrem trocas diretas de excitações e significações entre o objeto primário e o infante,
o que resultaria na fundação da fantasia da pele rasgada ou ferida no masoquismo ou da
fantasia da pele invulnerável (dupla Superfície de contato) nas construções mais rígidas
compostas por traços narcísicos (Anzieu, 1989).
36
Na saúde, ocorreria a internalização de um Eu-Pele integro e eficaz no exercício
de suas funções, a ser internalizado pela ação do objeto primário que se ocuparia de
funcionar como um filtro de excitações ambientais para o infante, desempenhado o
papel da para-excitação, função a ser incorporada progressivamente pelo sujeito. Seria
criado, por meio desse processo, um continente seguro das invasões do mundo externo.
Entretanto, no caso das fantasias masoquistas ocorre o que Anzieu (1989) denomina de”
paradoxo do contato”, quando o objeto primário atua no sentido de estimular
excessivamente o lactante, causado nele sensações mais ou menos desagradáveis. Em
razão disso, no lugar da instauração de Eu-Pele, como um envelope do bem-estar,
constituído pelas funções de continente e para-excitação, se desenvolveria um outro tipo
de representação acerca do Eu-Pele, denominado envelope de excitação ou envelope de
sofrimento (Anzieu, 1989).
O resultado das constituições patológicas do Eu-Pele remeteriam a duas
possibilidades ligadas a representação da pele unitária da mãe e do bebê. No Eu-Pele
constituído pela vertente do sobreinvestimento narcisista, se desenvolveria a fantasia de
uma pele comum ligada a representação de uma pele invulnerável, enquanto na
possibilidade de Eu-Pele constituído sobre a vertente masoquista, a fantasia da pele
unitária estaria ligada a fantasias de pele rasgada ou ferida (Anzieu, 1989). Assim, as
escarificações estariam ligadas a falhas no processo de internalização da pele como
representação psíquica, instaurando a possibilidade de uma pele internalizada de forma
rígida a permitir poucas trocas com o ambiente, como ocorre nos estados narcísicos, ou
em uma representação de pele rasgada e esfolada que seria encenada nas escarificações
atuadas por sujeitos permeados por fantasias masoquistas.
Portanto se faz necessária a investigação da qualidade do Eu-Pele nos sujeitos que
se escarificam a fim de verificar a hipótese acima construída.
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profundos; inscritos em formas de palavras, siglas, letras ou riscos, que marcam a pele
com cicatrizes. Os dados demográficos encontrados apontam que as escarificações são
descritas como o tipo mais comum de automutilação (Favazza & Conterio,1987), sendo
a adolescência o período da vida em que os comportamentos de automutilação são mais
frequentes (Duque & Neves, 2004), apresentando-se mais frequentemente em
adolescentes do sexo feminino (Cedaro, & Nascimento , 2013).
As escarificações são mais frequentes entre os adolescentes, tendem a se iniciar
no início da puberdade e se manter durante o período da adolescência, principalmente
caso o sujeito não seja submetido a tratamentos especializados (Favazza, 2011; Le
Breton, 2003; DSM-5, 2014).
Algumas questões típicas da adolescência estariam relacionadas ao fenômeno
das escarificações, a começar por um dos problemas típicos e centrais da adolescência, a
redefinição da identidade, a que a sexuação promovida pela puberdade unida as novas
demandas sociais típicas do tempo de adolescência forçam o sujeito a reelaborar.
A identidade é uma noção mutável, tida como representação fixa apenas como
mito ou ficção pessoal, uma vez que a representação de si e o sentimento ligado a ele
são elementos fluídos, em constante metamorfose. Mais do que uma entidade, a
identidade é, por essência, relacional e derivada de um discurso virtual elaborado pelo
sujeito a dissertar sobre si mesmo. Apesar de ser uma construção que jamais termina de
ocorrer, pela constante mudança do sujeito em relação ao mundo, sabe-se que o tempo
da adolescência é caracterizado por uma maior fluidez do sentimento e representação de
si, em se comparando a adolescência a outras épocas da existência (Le Breton, 2003).
A sexuação da puberdade demanda mudanças relacionais com os primeiros
objetos, assim como a mudança corporal pela qual passa o adolescente pressiona o
sujeito a realizar uma atualização de si mesmo (Drieu, Proia-Lelouey; Zanello, 2011).
As transformações pubertárias inauguram mudanças relativas ao complexo de Édipo e
às bases narcísicas. Nesse sentido, tanto as questões identitárias, descritas por Le Breton
(2003), quanto as funções do Eu-Pele de diferenciação, comunicação, para-excitação e
continente descritas por Anzieu (1989), estão relacionadas ao ato de escarificação,
(Matha, 2010) estão relacionadas ao trabalho da adolescência, uma vez que o tempo da
adolescência é marcado por um triplo trabalho de a) redefinição da imagem de si b) das
relações objetais e c) pelo trabalho de luto da condição infantil (Cardoso, 2011;
Emanuelly & Azulay, 2008).
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A escarificação na adolescência ocorre no tempo de redefinição das formas
corporais e do modelo de contato e responsabilidade em relação ao outro; mudanças que
podem provocar a desorganização do Eu, principalmente se as bases narcísicas tiverem
sido insuficientemente elaboradas no tempo de sua constituição. Portanto, pensar os
cortes que ocorrem na superfície do corpo, nos remete a considerar a pele como local de
contato com o mundo (Le Breton, 2010) e como lugar das primeiras comunicações em
relação ao objeto primário (Anzieu, 1989). Se o adolescente tem pela frente a laboriosa
tarefa de construção de uma nova pele, e se o corpo é o campo no qual e por meio do
qual ocorrem as mudanças identitárias, os cortes na pele devem ser pensados pela lógica
das tentativas dos adolescentes de se diferenciar do mundo. Alguns sujeitos são capazes
de se diferenciar e definir a si mesmo pela modificação corporal (piercings, tatuagens,
cortes de cabelo), pois as formas de alteração corporal visam mudanças na forma de se
colocar em relação ao mundo. O mesmo pode ser pensado acerca dos cortes do corpo,
com a distinção de que no caso das escarificações é a representação de si ligada a afetos
negativos que é projetada em ato na pele (Le Breton, 2003).
Por outro lado, pode-se também pensar as escarificações na adolescência como
formas de traumatofilia; as bases narcísicas construídas de forma frágil na infância, não
são capazes de funcionar em sua função para-excitante, transformando os eventos
inerentes a adolescência, como a separação do objeto primário, o luto pela infância e a
ativação sexual, em elementos traumáticos, por ultrapassarem as barreiras de elaboração
disponíveis. As falhas nos limites internos dificultariam ainda a elaboração dos traumas
infantis. O resultado desse processo seria a representação das situações traumáticas por
meio do ato de se cortar (Drieu, Proia-Lelouey,; Zanello, 2011; Matha, 2010).
O objetivo do presente trabalho é o estudo do fenômeno das escarificações na
adolescência e sua relação com a qualidade das bases narcísicas, em especial, em
relação ao Eu-Pele e suas funções, conforme o conceituado por Anzieu (1989), por meio
do método de Rorschach.
39
CAPÍTULO 2
40
avaliação do narcisismo e apreciação do Eu-Pele, segundo o método proposto pela
abordagem francesa (Chabert, 1993, 1998; Traunbenberg 1970, Anzieu, 1978).
As pranchas de Rorschach funcionam como elementos mediadores entre o
clínico e o sujeito respondente, criando-se um espaço transicional entre os dois
(Chabert, 1998; Kallas, 2012). Assim, por meio do método de Rorschach, é possível
avaliar a capacidade de simbolização do sujeito, que é convidado pela instrução a se
utilizar de sua capacidade de mediação e de criação (Roman, 2001). Ao seguir a
instrução dada pelo examinador, o sujeito é convidado a adotar uma atitude
“semântica”, de emissão de significados a partir das manchas disformes apresentadas.
Em outras palavras, o sujeito elabora (significa) o que poderiam ser as manchas de tinta,
fornecendo assim o material, verbal e não verbal, que será avaliado pelo clínico
(Anzieu, 1978). Dessa maneira, é possível ajuizar sobre o grau de invasão da
imaginação sobre o processo perceptivo e sobre o nível de distorção do processo de
significação em relação ao grupo social no qual o indivíduo está inserido (Chabert,
1998). Esse aspecto propicia a avaliação de alguns fatores importantes; dentre eles a
apreciação do grau de adaptação em relação à realidade consensual e a avaliação da
qualidade e efetividade das barreiras, internas e externas.
Em relação a apreciação da organização narcísica, as manchas evocam
inconscientemente a representação do corpo do sujeito, sendo as respostas dadas
passíveis de serem classificadas de acordo com o estágio evolutivo específico em que
ocupa tal imagem corporal projetada (Anzieu, 1978). Esse fenômeno propicia a
avaliação do narcisismo do sujeito avaliado, uma vez que a configuração unilateral das
pranchas (I, IV,V,VI) organizadas em torno de um eixo central, suscita a projeção da
representação de si, evidenciando a qualidade das organizações narcísicas do
examinando. Por outro lado, as pranchas de configuração bilateral (II, III, VII,VIII, IX)
fornecem indícios sobre a qualidade das relações de objeto; domínio que também dá
indícios sobre a qualidade da organização narcísica. Além disso, a avaliação da
capacidade de diferenciação do sujeito em relação ao objeto e da possibilidade de
identificação com conteúdos humanos e a operação de distinção sexual das figuras
vistas em interação, auxiliam o clínico a esclarecer a capacidade de identificação e o
consequente grau de coesão egóica do examinando (Chabert,1998).
A análise prancha a prancha se mostra útil para a avaliação das questões
narcísicas do examinando, pois propicia ao clínico a apreciação das respostas e a análise
da qualidade dos envelopes psíquicos e representações corporais projetadas em torno do
41
eixo central, nas pranchas unilaterais. Além disso, o clínico pode ainda utilizar as
respostas fornecidas nas pranchas bilaterais para apreciar a organização narcísica, por
meio da análise da qualidade dos limites e da natureza das relações desempenhadas
pelos personagens representados nessas pranchas. Nesse sentido, as imagens vistas em
reflexo ou duplo, os chamados desdobramentos, são elementos importantes para a
avaliação da qualidade da organização narcísica (Chabert, 1993).
As respostas fornecidas tanto nas pranchas bilaterais quanto nas pranchas
unilaterais propiciam ainda a apreciação da organização defensiva utilizada pelo sujeito
(Anzieu, 1978).
42
Já nos casos limites, a barreira interna, que marca a fronteira entre as instâncias
psíquicas e entre o inconsciente e o consciente, e a barreira externa, que marca a
distinção entre o espaço interior e o espaço exterior, se fundem, formando uma só
barreira, semelhante ao modelo geométrico do anel de Möebius1, no qual as barreiras
são formadas apenas por uma faixa, não havendo distinção entre o dentro e o fora. Tal
organização dos casos-limite tende a ser caracterizada pelas patologias do Eu-Pele e
pela perturbação dos processos do pensamento (Emmanuelly; Azoulay; Bailly-Salin;
Martin, 2001).
Os funcionamentos patológicos narcísicos são mantidos pela utilização de
defesas que, ou garantem o sobreinvestimento dos limites e diminuem os espaços de
troca, típico dos estados narcísicos, ou efetuam os processos de apagamento das
distinções, conforme ocorre nos casos limite. Entre tais mecanismos, alguns deles
podem ser identificados por meio do método de Rorschach; entre eles podemos citar a
idealização, a clivagem, a identificação projetiva e os processos envolvidos no
congelamento pulsional que visa o “isolamento esplendido” ou a autossuficiência
buscada pelos sujeitos nos quais há a incidência do narcisismo patológico (Chabert,
1993).
Sobre a idealização, este fenômeno descrito como uma defesa narcísica, tanto
em seu aspecto positivo (a idealização propriamente dita), quanto em seu aspecto
negativo (a depreciação), pode ser percebido pela análise da relação estabelecida entre o
examinando e o clínico durante a situação projetiva, assim como pelo padrão de
respostas no Rorschach. No primeiro caso, a extrema sedução do examinando dirigida
ao examinador é excluída de conotação sexual, pois se trata de empreender um tipo de
relação na qual o sujeito e o objeto são indistintos e encontram-se identificados, tendo a
idealização (ou a depreciação) função de estabelecer a não diferenciação entre os dois.
O teste e o clínico podem ser elogiados e serem colocados à altura da grandeza sentida
pelo paciente acerca de si próprio, assim, como o teste e o clínico podem ser
depreciados sendo colocados no mesmo patamar negativo a que o sujeito coloca suas
considerações sobre si. Quanto às manifestações da idealização nas respostas, pode-se
1
O anel de Moebius é uma figura geométrica unilateral cujo formato final é similar à forma de um oito.
Sua construção se dá pela torção de um retângulo no sentido longitudinal, seguida da junção de suas
arestas, o que resulta na criação de um tipo de anel no qual não há distinção entre a face interior e o lado
exterior, constituindo-se, portanto, em uma figura geométrica de continuidade perfeita. Portanto, anel de
Moebius é composto por uma banda apenas, sem frente, nem verso, possuindo um único lado. Tendo sido
primeiramente estudado por Ferdinand Moebius em 1861, o anel de Moebius foi introduzido na
Psicanálise por Jaques Lacan ( Ávila, 1997).
43
considerar como tais os fenômenos ligados a percepção de objetos idealizados ou
depreciados sejam eles representações humanas, animais, vegetais ou objetos (Chabert,
1993; Kallas, 2012).
44
distinção entre projeção e identificação projetiva se faz exatamente pela incapacidade,
do sujeito que se utiliza frequentemente de identificações projetivas, de estabelecer as
barreiras que delimitam o sujeito e o objeto, uma vez que esses limites são abolidos na
identificação projetiva. Portanto, na identificação projetiva, a atividade projetiva é
maciça escapando aos aspectos ligados à realidade do objeto, pela via da
desconsideração do objeto e de sua realidade. Em razão das falhas nos limites dentro e
fora presentes nos sujeitos que se utilizam desse mecanismo, sua aparição no Rorschach
tende a ocorrer nos casos-limite, em detrimento dos casos narcísicos, nos quais as
defesas rígidas e as barreiras dentro e fora impermeáveis costumam evitar sua
emergência. No Rorschach, a identificação projetiva pode ser identificada nas respostas
nas quais há a evocação de personagens (H, (H), (A), A) persecutórios seguidos de
determinantes kp, ou ainda em respostas clivadas, divididas, nas quais aparecem
conteúdos ligados a agressividade oral: dentes, maxilares, por exemplo (Chabert, 1993).
A tentativa de congelamento pulsional é outro indicador de defesas narcísicas
patológicas, pois visa o apagamento do desejo e o desinvestimento do próprio
investimento (Green, 1988/2010), a fim de alcançar a autossuficiência e independência
em relação ao meio e ao objeto. No Rorschach, as respostas nas pranchas II e III,
principalmente, as respostas marcadas pela tentativa de rejeição da utilização da cor
vermelha podem indicar defesas que visam abolir a pulsão e o objeto, funcionando
como defesas contra as pressões internas e externas. Nesse tipo de procedimento se
destacam as respostas G cortado (eliminação das partes vermelhas das pranchas), a não
associação da parte vermelha em relação aos representantes pulsionais e a atitude de
negação em relação ao impacto da cor vermelha. Pelo contrário, a dificuldade de
formalização dos perceptos vistos nas pranchas II e III, assim como a emergência de
respostas sensoriais não moduladas (C, E, C´, Clob) podem indicar dificuldades de
contenção das emergências pulsionais e(ou) falhas na função Eu-Pele de para-excitação
(Chabert, 1993; Kallas 2012).
As respostas nas pranchas de cor pastel (VIII, IX e X) causam reações ligadas as
relações estabelecidas entre o sujeito e o meio. Por um lado, em se tratando de limites
confusos e barreiras pouco estáveis, a patologia pode ser indicada pelos fortes impactos
suscitados pelas pranchas, causando desorganizações invasivas que não podem ser
elaboradas. Esse fenômeno pode ser identificado pela ocorrência de localizações pouco
organizadas, cenas regressivas, respostas C ou CF (Kallas, 2012). Por outro lado, a
recusa da utilização da cor, diminuição do índice RC% nas três pranchas finais parecem
45
indicar sobreinvestimento dos limites e consequente diminuição das trocas em relação
ao meio.
46
de armadura”, por exemplo (Gerencer, 2012; Wolff, 2012). São ainda respostas
barreira, os perceptos H ou (H), caracterizados por sua função ou por sua segunda pele,
como palhaços, robôs, entre outros (Chabert, 1993). São cotadas como respostas
penetração as respostas que remetam as falhas na superfície do engrama percebido,
frequentemente visto como rasgado, esburacado e falho em sua função de proteção do
envelope (Chabert, 1993). Assim, as imagens que remetem a penetração, a orifícios de
passagem, as superfícies frágeis, as aberturas profundas na terra e aberturas em geral,
assim como as respostas em referência a objetos sem limites (algodão; nuvem) ou
compostos por superfícies transparentes, são classificadas como respostas penetração
(Gerencer 2012; Wolff, 2012).
47
A formalização e a qualidade formal das respostas também é um importante
indicador da qualidade do envelope psíquico e do Eu-Pele, uma vez que os índices F% e
F+% e F+%ext. em nível normativo atestam o grau de capacidade e qualidade dos
limites. Tratam-se de índices que revelam a eficácia do sujeito em destacar o percepto
do restante da prancha, pela via da formalização. Ao contrário, as respostas F-, assim
como outros determinantes de qualidade formal negativa, indicam falhas no processo de
delimitação e diferenciação, pois, de modo geral, os índices F%, F+%ext. e F+%
propiciam a avaliação do nível de diferenciação que o sujeito é capaz de estabelecer em
relação ao objeto. Esses são importantes indicadores da capacidade de delimitação do
dentro e fora; sujeito e objeto; pela via da construção de uma barreira psíquica, o Eu-
Pele (Chabert, 1993). De forma similar, as respostas não moduladas (CF e C) indicam
falhas no processo de diferenciação (Emmanuelli; Azoulay, 2008) e falhas na função de
para-excitação do Eu-Pele (Linhares; Pinheiro, 2009).
A Tabela 2.1 expõe, de forma geral, os indicadores de patologia, caracterizada
pelo superinvestimento dos limites ou, pelo contrário, pela fragilidade dos limites; e de
saúde, caracterizados pelo grau suficiente de investimento narcísico que garante a
manutenção das barreiras responsáveis por delimitar o mundo interno e garantir a
distinção adaptativa entre o espaço interno e o espaço externo.
48
2.4 Indicadores da qualidade das funções do Eu-Pele.
49
invasão pela sensorialidade da prancha, caracterizada pela dificuldade em efetuar a
delimitação e integração das partes coloridas da prancha. No mais, quando o psicograma
é caracterizado pela preponderância de respostas de Cor pura sobre as respostas de cor
modulada (FC<CF+C), ou quando há a ocorrência a de respostas de C pura nas
pranchas II e III em percepções cruas (Ex.” sangue” Pr II ou III) pode-se pensar em
falhas no Eu-Pele, relacionadas as deficiências das funções de continência e
manutenção. Além disso, essas falhas podem ser indicadas pela análise das cinestesias:
as respostas cotadas como (kob), relacionadas a elementos destrutivos, explosivos ou de
conatação agressiva, assim como as cinestesias (K ou kp) dotadas de aspectos
persecutórios ou agressivos, por um lado, e as cinestesia regressivas, ligadas a
dependência, representantes de relações fusionais ou simbióticas (Kallas, 2012), que
remetam a separação pela via da violência e que podem indicar falhas nas funções do
Eu-Pele de continência e manutenção.
50
congelamento pulsional. Além desses fatores, a disfunção da manutenção pode ser
indicada pela dificuldade de distinção da figura fundo e pela utilização dos espaços
brancos intramaculares sem a devida integração (Linhares; Pinheiro, 2009; Roman,
2001).
A confusão de detalhes e a tendência de unir várias percepções em uma só parte
da prancha, comprometendo a qualidade formal, podem ser indicadores de falhas na
função de manutenção, em um processo no qual sua manifestação extrema é indicada
pela incidência do fenômeno especial de contaminação. O fenômeno da contaminação
se refere a uma telescopagem de duas percepções que se apresentam fusionadas em
uma, em razão da não manutenção do engrama percebido. Embora seja mais comum de
ocorrer em uma só prancha, a contaminação pode ocorrer em pranchas diferentes. Sabe-
se que a contaminação, assim como a tendência a contaminação, além de indicar
classicamente falhas de pensamento, indica tanto a dificuldades na função de
manutenção, quanto se refere a falhas na função de continência (Linhares; Pinheiro,
2009; Frédérick-Libon 2005 ; Passalacqua; Gravenhorst, 2005).
As contaminações são divididas em três classes: a. A contaminação de grau 1 ou
contaminação verdadeira, na qual o sujeito se utiliza de neologismos e se mostra
incapaz de separar as duas percepções (ex. Pr I “mulher-pássaro”); b. A contaminação
de grau 2, na qual ocorre a fusão das qualidades, não dos conceitos; c. A contaminação
de grau 3 (tendência a contaminação ou contaminação atenuada), na qual os conceitos
se unem, porém sem a fusão dos engramas percebidos que são vistos de forma como
diferenciada, como o exemplificado pela seguinte resposta na prancha IV: ”Um
mosquito, dois chifrinhos, duas perninhas, as asas” (Linhares; Pinheiro, 2009;
Frédérick-Libon 2005; Passalacqua; Gravenhorst, 2005).
A parte em branco da mancha propicia avaliar a qualidade do trabalho do
negativo sob o qual se baseia a construção dos engramas, pois para bem realizar a
atividade semântica suscitada pelo Rorschach, o sujeito há de desconsiderar ou integrar
o espaço em branco da prancha, principalmente o branco intramacular, ao restante da
mancha, a ponto de criar a distinção de figura-fundo, necessária para a boa percepção
das formas. Esse processo propicia ao clínico avaliar a eficácia desse trabalho do
negativo e permite a consequente apreciação da qualidade das funções manutenção e
continência. Nesse sentido, a qualidade formal das percepções que utilizam o branco
como suporte para integração do percepto pode ser de grande importância para a
investigação da efetividade das funções de manutenção e continência (Roman 2001).
51
O uso do espaço pode indicar falhas na função de manutenção, caso a parte
branca intramacular da prancha seja utilizada sem a elaboração da devida diferenciação,
constituindo, nesses casos, o branco um núcleo vazio que invade a percepção e que
reflete a falta de solidez conferida pela organização internalizada do Eu-Pele, (Roman
1996). Portanto, afirma-se que a qualidade da função de manutenção pode ser medida
pela análise do processo de utilização do branco da mancha. Caso o branco seja
utilizado como suporte para construção de um percepto sólido, a elaboração da resposta
denota a eficácia do trabalho do negativo em desligar a percepção dos núcleos vazios
internos ao engrama, o que denota boa eficácia da função manutenção em sustentar uma
representação corporal sólida. Em resumo, caso a função de manutenção do Eu-Pele
apresente boa eficácia em reunir as representações em torno de um eixo central,
garantindo a solidez interna do envelope psíquico, o branco das manchas de Rorschach
tenderá a ser usado pelo sujeito como um fundo/suporte para a criação de um percepto
sólido e íntegro. No caso de falhas na função de manutenção, os engramas tendem a se
mostrar fragmentados, sendo compostos por núcleos vazios que representam os vazios
internos ao envelope psíquico do sujeito. (Roman, 2001). A Tabela 2.2 apresenta, de
forma resumida, os indicadores da eficácia e deficiência da manutenção do Eu-Pele no
método de Rorschach em relação ao uso eixo central e modo de apreensão.
52
qualidade formal
d) Dbl% em valores
próximos aos dados
normativos
53
Pois, é a partir da noção de um envelope materno primário, que o sujeito
constrói a representação de um continente próprio. A elaboração da dissolução da noção
de continuidade entre o seu próprio corpo e o corpo da mãe, a superação da “fantasia da
pele comum” apresenta um importante papel nesse processo de internalização do
continente (Anzieu, 1989). Os primeiros contatos com o envelope materno primário
propiciam a proteção, contenção e suporte, além de, pela qualidade das trocas, promover
a separação e superação da noção dessa ilusão de envelope comum entre figura materna
e infante. Esse processo, na saúde, culmina na criação de um envelope próprio a ser
enriquecido pela internalização das funções de suporte (manutenção), contenção
(continência) e proteção (para-excitação), antes desempenhadas pela função materna.
Nesse sentido, a apreciação das vicissitudes de utilização do branco no Rorschach
possibilita a análise da qualidade da função continente do sujeito examinado e revela
traços da natureza das primeiras relações. Nesse sentido, a utilização do branco propicia
a avaliação do continente do avaliado, no que se refere a um envelope cuja natureza é a
continência e continuidade dos limites, na saúde, ou a efração, na patologia (Roman
2001).
Ainda em relação a função de continência, os indicadores de Barreira e
Penetração (Fisher; Cleveland, 1958) em boa proporção, as respostas “pele” quando
apresentam boa qualidade formal e a os indicadores do psicograma, F%, F em torno da
norma, são indicadores da boa efetividade da função continente do Eu-Pele. Aliado a
esse fator, as cinestesias humanas (K), em apresentando boa qualidade formal, indicam
a capacidade de estabelecer os limites do continente, uma vez que as respostas K+
atestam a existência de um continente limitado por barreiras externas que é projetado
em determinada parte da mancha. Por outro lado, o excesso de respostas de esfumaçado
(E), quando estes fatores indicam a necessidade de um contato regressivo com o
continente, a imprecisão das formas, que atestam, em seu excesso, a confusão entre o
dentro e o fora, as resposta de cor pura ou cor-forma (C e CF), indicadores da
dificuldade de contenção dos conteúdos e as cinestesias (K, kan, kp ou kob) cuja
qualidade indica a protrusão dos limites, fragmentação ou a explosão, indicam falhas na
função do continente do Eu-Pele em conter os conteúdos psíquicos (Linhares; Pinheiro,
2009).
54
do Eu-Pele de estabelecer um continente que se apresente como um espaço distinto do
ambiente. Por desdobramentos diretos classificam-se as relações especulares que
aparecem nas representações que envolvem percepções em reflexo ou vista em espelho.
Já os desdobramentos indiretos se definem pelo aparecimento de representações de dois
personagens, humanos, para-humanos ou animais, vistos como idênticos, como duplos
em ausência de interação. A necessidade de apagamento das diferenças entre Eu e o
objeto, a que os desdobramentos fazem referência, é devida a necessidade do Eu de se
equiparar com o Eu-Ideal, processo que ocorre pela abolição das diferenças, pela
utilização do mecanismo de idealização e pela negação do desejo, este último aspecto
aparece no teste pela via do congelamento pulsional que resulta em ausência de
cinestesias e verbos interativos nas respostas (Chabert, 1993). As imagens percebidas
em duplo ou em reflexo podem indicar a ocorrência do processo de apagamento da
distinção fundamental entre o Eu e o outro, no qual o sujeito se dilui no outro. Nessas
respostas, a função de manutenção do Eu-Pele é partilhada com a figura idêntica,
percebida em duplo ou em reflexo (Linhares; Pinheiro, 2009). As respostas em duplo ou
reflexo, revelam, em maior ou menor grau, a dissolução dos limites que marcam as
diferenças entre o sujeito e o objeto, indicando falhas na função continente do Eu-Pele.
Na Tabela 2.4 são indicados parâmetros para análise da disfunção e eficácia da
função continente no método de Rorschach.
Tabela 2.4. O uso do Dbl, os índices formais, dos desdobramentos, o índice barreira e
penetração, as respostas “pele” e os determinantes na análise da qualidade da função
continente no Rorschach.
55
frequência aumentada. normal.
a) Excesso de respostas de
esfumaçado (E)
b) FC<CF+C
c) Alta frequencia de K; Kob, Boa frequência de K ligada a
Determinantes
Kan e Kp ligadas a perceptos boa qualidade formal.
que apresentam imprecisão dos
limites.
56
Tabela 2.5. A progressão das respostas e os modos de apreensão na análise do aspecto
contentor da função continente do Eu-Pele
Deficiência da função de Eficiência da função de
Indicador
contentora contentora
A análise do fio projetivo
A análise do fio projetivo
demonstra a eficácia dos
demonstra a ineficácia da
processos de transformação.
capacidade de transformação.
De modo geral, as seguintes
De modo geral, as seguintes
respostas indicam a eficácia
respostas indicam falhas no
desse processo:
processo de transformação:
57
exoesqueleto, cuja manutenção ocorreria pelo empobrecedor sobreinvestimento dos
limites externos e diminuição das trocas com o ambiente (Linhares; Pinheiro 2009;
Roman, 1996).
Haveria ainda casos nos quais a para-excitação se mostra falha, no Rorschach,
por meio de respostas kp, Ad, Hd, G cortado ou Do (Detalhe oligofrênico), nos quais a
para-excitação se faz pela via da não representação integral dos perceptos que suscitam
a angústia. O aumento no tempo de latência, ou até mesmo sua diminuição, podem
indicar falhas na função de para-excitação do Eu-Pele; no primeiro caso, o aumento do
tempo se faz necessário como uma tentativa de compensar a função falha de para-
excitação das estimulações externas, no último caso, a diminuição do tempo revela a
falência da função de para-excitação, ao mesmo tempo em que pode ser elemento
revelador da conduta impulsiva (e expulsiva) do examinando. Por último, os choques
remetem as falhas de para-excitação (Linhares; Pinheiro, 2009).
A Tabela 2.6 apresenta alguns elementos que podem indicar falhas na função de
para-excitação do Eu-Pele no Rorschach.
58
2.5 O Rorschach e a escarificação na adolescência
59
transformação. Nesse sentido, o presente trabalho não objetiva realizar o diagnóstico ou
enquadramento dos adolescentes participantes em qualquer tipo de classificação
nosográfica definitiva que seja capaz de estabelecer correlações entre as escarificações e
as classificações psicopatológicas. Pretende-se, por outro lado, analisar as funções do
Eu-Pele dos sujeitos estudados, a partir da comparação com as normas próprias para
adolescentes (Jardim-Maran, 2011).
60
idealização (e depreciação) patológica. Além disso, dados apontaram correlação
positiva entre distúrbios de identificação nas relações de objeto e automutilação
(Fowler; Hilsenroth; Nolan, 2000).
61
CAPÍTULO III
MÉTODO
62
(1986), é o de contribuir na compreensão do diagnóstico e também de realizar uma
reflexão sobre as singularidades das diversas organizações de personalidade. Na visão
de Hussein (1991), essa dupla polaridade reabilita a prática das pesquisas que têm por
base o grupo único.
Com o estudo de casos clínicos individuais busca-se a apreciação e
aprofundamento das particularidades de cada caso, em detrimento da descoberta
(criação) de uma regra geral conclusiva e universal sobre as escarificações. Esse fato
não impossibilita a generalização dos resultados, porém os dados são considerados em
sua complexidade particular, uma vez que o problema de pesquisa é investigado de
forma individualizada e por intermédio da relação estabelecida entre o pesquisador e o
participante. Tal relação é atravessada por fenômenos inconscientes e transferenciais,
que acabam por enriquecer os resultados em sua profundidade referente ao caso
particular. No estudo de caso, o pesquisador constrói uma narrativa ilustrativa sobre o
problema estudado. A posição subjetiva do participante é inferida pelo pesquisador a
partir do discurso fornecido pelo participante, no decorrer da experiência relacional que
se instaura entre o pesquisador e o sujeito de pesquisa durante os encontros clínicos. Em
resumo, o estudo de caso é uma narrativa cuja função é criar uma síntese ilustrativa
sobre o caso, que facilite a elaboração reflexiva teórica a ser feita sobre o problema
apresentado (Iribarry, 2003). Nos estudos de caso será feita a transformação dos
elementos emergentes nas entrevistas clínicas e nos métodos projetivos em
conhecimento, por meio da criação de uma narrativa sobre o caso.
3.1. Instrumentos.
63
flexibilidade que é necessário para que o sujeito seja capaz de realizar a tarefa. O
examinador anota todas as respostas, tais como foram ditas pelo examinando,
preocupando-se em tomar nota dos comentários ditos pelo sujeito e em registrar com a
ajuda de um cronometro o tempo de latência entre a apresentação de uma prancha e o
fornecimento da primeira resposta fornecida a partir dela. Também é cronometrado o
tempo total que o sujeito leva para realizar a tarefa em cada prancha. Após a fase de
associação, na qual o sujeito informa livremente os objetos percebidos ao aplicador,
instaura-se a fase de inquérito. Nessa fase o sujeito deve explicar ao examinador três
aspectos básicos para a cotação das respostas: o que o participante viu na mancha
(Conteúdo), onde ele viu (Localização) e qual elemento presente na mancha determinou
a resposta fornecida (Determinante) (Anzieu, 1978).
As pranchas de Rorschach funcionam como um espaço transicional na
comunicação entre o clínico e o participante, sendo possível de se avaliar o grau de
capacidade do sujeito em utilizar da transionalidade oferecida pela situação projetiva
(Chabert, 1998). Por espaço transional, entende-se o espaço intermediário ilusório, que
não está localizado nem dentro, nem fora dos limites do sujeito (Winnicott, 1975).
Uma vez que o discurso sobre as pranchas é endereçado a um receptor, no caso,
aquele que aplica o método, as manifestações transferenciais não ficam ausentes de se
manifestar na situação projetiva. Assim, as dimensões transferenciais que tomam curso
durante a situação projetiva são de grande relevância para análise qualitativa dos dados
fornecidos pelo Método de Rorschach (Chabert, 1998).
64
As entrevistas clínicas também fizeram parte do método clínico-qualitativo de
investigação. Por método clínico-qualitativo entende-se o modelo de investigação que
pretende efetuar a apreciação do problema por meio das informações decorrentes do
discurso do participante e da relação estabelecida entre o clínico e o participante,
relação essa que é atravessada por questões transferenciais e contra-transferenciais.
Assim, pretendeu-se construir o saber sobre realidade do objeto de pesquisa por meio do
discurso, por natureza, subjetivo do participante (Fontanella; Campos; Turato, 2006).
Dessa forma, buscou-se alcançar a realidade subjetiva do sujeito sobre o problema das
escarificações, considerando também os elementos encontrados nas entrevistas de
atendimentos clínicos, relatadas em formato de diário logo após a sua realização.
3.2. Participantes.
A presente pesquisa foi realizada com adolescentes, com histórico de
escarificações. Há de se ressaltar que, no tempo de coleta dos dados, alguns
participantes relataram ter deixado de escarificar a própria pele, ao passo que outros
afirmaram ainda se utilizar das escarificações. Trata-se de uma distinção importante que
poderia influenciar os resultados da pesquisa. Por essa razão, a informação sobre
presença ou remissão do sintoma das escarificações foi considerada na análise dos
dados.
65
Idade Sexo Características do ato. Outros elementos relevantes.
Sujeito 1 15 Feminino Estava há um mês sem se Apresenta histórico de
cortar na data da pesquisa. tentativa de suicídio.
Histórico de bulimia.
Sujeito 3 17 Masculino Estava há um mês sem se Apresenta alucinações
cortar na data da coleta de auditivas e delírios de culpa.
dados.
Histórico de tentativa de
Cortes profundos suicídio.
provocados por facas ou
lâminas de barbear nas
coxas, braços e dedos.
Quadro clínico de
incontinência fecal.
Presença de fantasias de
esquartejamento.
66
apontador.
68
Para a análise das funções de manutenção, continência e para-excitação do Eu-
Pele, foi feito um levantamento bibliográfico sobre o tema, por meio do qual foram
encontrados estudos relativos a utilização de certos indicadores de Rorschach para a
avaliação do Eu-Pele (Linhares; Pinheiro 2009; Roman 1996; 2001; Chabert, 1993;
Emmanuelly; Azoulay, 2008; Kallas, 2012; Frédérick-Libon 2005; Passalacqua;
Gravenhorst, 2005). Tendo sido feito isso, os protocolos de Rorschach e as
codificações propostas pela equipe de pesquisa foram avaliados de acordo com o
modelo de interpretação proposto por esses estudos. O modelo de interpretação dos
indicadores da qualidade do Eu-Pele, utilizado para análise dos dados do presente
trabalho, encontra-se descrito no capítulo II do presente trabalho. Essa etapa de análise
dos dados da pesquisa foi desenvolvida para análise do grupo único e encontra-se
apresentada e discutida no capítulo IV.
69
qualidade das representações das relações de objeto, pela análise das respostas
fornecidas nas pranchas II, III, VII e IX, e o tratamento dos afetos, avaliados pela
análise dos determinantes sensoriais e índice RC%(razão entre o número de respostas
nas pranchas VIII, IX e X sobre o total de respostas). A análise desses fatores propicia
ainda efetuar a avaliação da relação entre afeto e representação e qualidade de ligação
entre os dois elementos pulsionais. Por fim, a organização defensiva permite classificar
as defesas como sendo de modo neurótico, psicótico ou limite. O número de respostas,
uso da cor, choques, comentários, rupturas propiciam avaliar quais as defesas
frequentemente utilizadas e classificar o protocolo como sendo inibido, lábil ou rígido
(Chabert, 1993; Emmanuelli; Azoulay,2008).
70
CAPÍTULO IV
71
de índices que revelam a eficácia do sujeito em destacar o percepto do restante da
prancha, pela via da formalização. A dilatação da frequência desses índices em relação
aos dados normativos indica sobreinvestimento defensivo, enquanto a diminuição
quantitativa desses indicadores em relação a norma remete a fragilidade dos limites
(Chabert, 1998). De forma complementar, o índice de conteúdo barreira e penetração
(B:P), cuja cotação está descrita no capítulo II do presente trabalho, permite ao
examinador efetuar a apreciação do grau de solidez/vulnerabilidade dos envelopes
psíquicos do sujeito (Frédérick-Libon, 2005). Em relação ao índice “barreira-
penetração”, a frequência normativa é de quatro respostas barreira para duas respostas
penetração, em adultos, e oito respostas barreira para quatro respostas penetração, em
adolescentes. A diminuição da razão de respostas barreira-penetração em relação a
norma (B:P<4:2), remete a inibição relacionada ao sobreinvestimento dos limites ou
fragilidade das barreiras; o aumento de respostas barreira sobre a penetração, além da
norma sugerida (B:P>4:2 em adultos e B:P>8:4 em adolescentes) indica
sobreinvestimento dos limites. Já o aumento de respostas penetração em relação as
respostas barreira (B<P), além da razão normativa (4B:2P/8B:4P), indica fragilidade
dos limites (Emmanuelli e Azoulay, 2008). Os critérios de cotação para barreira e
penetração estão em anexo (Anexo D).
72
Tabela 4.1. Indicadores para análise do investimento nos limites nos protocolos de
Rorschach dos adolescentes
73
Sujeitos 8 e 10, conforme indicado pela análise dos resultados da razão de respostas H:
(H) e H:Hd, respectivamente no Sujeito 8 (H:Hd = 0:0 e H: (H) = 0:2) e no Sujeito 10
(H:Hd =1:0 e H: (H) = 1:3), há capacidade adaptativa de representação integral da
imagem de corpo. Entretanto, o aumento da frequência de (H) em relação a ocorrência
de H indica que os Sujeitos 8 e 10 apresentam, provavelmente, dificuldades de
identificação.
74
apresentou indícios de problemas relativos a integração da imagem corporal, sendo a
identidade a problemática central do caso (H:(H) =1:2; G% =56,2%).
O sobreinvestimento dos limites (F%= 77,7% e F+%ext.=81,2), apresentado
pelo Sujeito 2, tende a possibilitar, mesmo que por meio de uma organização defensiva
rígida, a efetividade da capacidade adaptativa de delimitação entre o dentro e fora e a
integração da imagem corporal. Apesar disso, a rigidez das defesas lança a tendência de
inibição da atividade fantasmática e de diminuição das trocas com o meio (F% =77,7;
F+%ext.=81,2; B:P = 1:1). O aumento das respostas globais (G%=56,2%) é comumente
interpretado como um indicador de dificuldades de identificação (Chabert, 2004), no
entanto, no caso do Sujeito 2, a razão das variáveis de conteúdos humanos (H:(H) = 3:0
e H:Hd= 3:1) afastam a hipótese de dificuldades de identificação, lançando a hipótese
de um funcionamento rígido que busca afastar as emergência pulsionais por meio do
apego ao aspecto objetivo da realidade (G%= 56,2%; F% =77,7% e F+% 81,2%),
conforme postulado como uma possibilidade por Chabert (2004).
75
e continuidade, a partir da internalização do suporte oferecido pelo objeto primário. Em
relação a função de manutenção do Eu-Pele, fazemos referência ao grau da capacidade
do sujeito em sustentar uma representação unificada do envelope corporal que serve de
base para a solidez dos elementos psíquicos (Anzieu, 1989).
A confusão de detalhes, a tendência a contaminação e a contaminação, em razão
do processo de ligação de várias percepções em uma só parte da prancha, tende a revelar
falhas na função de manutenção do Eu-Pele. O mesmo pode ser afirmado em relação ao
fenômeno especial de resposta de ligação, o qual acaba por também revelar a
necessidade por um suporte externo, o aplicador do método de Rorschach, em
decorrência de falhas nos processos de interiorização do suporte materno. Nesse
sentido, o excesso de respostas de ligação pode remeter a falhas na manutenção do Eu-
Pele que buscariam ser amenizadas pelo estabelecimento de relações simbióticas. A
necessidade de utilização do objeto externo como suporte pode também ser indicada
pelo fenômeno especial de envolvimento (Linhares; Pinheiro, 2009; Frédérick-Libon
2005; Passalacqua; Gravenhorst, 2005).
76
Sujeito 3 Tendência a contaminação. Pr. V
Desvitalização. Pr. IX
Resposta de ligação. Pr. X.
Sujeito 4 Resposta de ligação. Pr. II e VIII.
É possível constatar, por meio da análise da Tabela 4.2, que oitenta por cento
(80%) dos participantes da pesquisa apresentaram pelo menos uma resposta envolvendo
o fenômeno especial de ligação. Primeiramente descrito por Minkowska (1956) no
desenvolvimento da abordagem fenômeno estrutural de interpretação do Rorschach
como uma resposta típica dos funcionamentos epiléticos, a resposta de ligação é
também comum em pessoas dependentes de vínculos simbióticos ou que necessitam de
excessivo contato com o ambiente externo (Passalacqua; Gravenhorst, 2005), o que
indica que a manutenção do Eu-Pele seria mantida pelo apelo anaclítico ao outro,
estabelecendo uma necessidade por relações de apoio que amenizariam as falhas de
manutenção. Esse parece ser o caso do Sujeito 2, detentor de cinco respostas de ligação
durante o teste. No entanto, ele apresenta três respostas K de boa qualidade formal,
conforme indicado na Tabela 4. 3, indicando que apesar de buscar a relação anaclítica
como suporte. O excesso de respostas de ligação denuncia a necessidade de utilização
do outro como suporte condicional para efetividade da manutenção do Eu-Pele. Essa
hipótese se mostra plausível pela associação de duas respostas de movimento humano
ao fenômeno especial de ligação. A única resposta K que não aparece associada ao
fenômeno de ligação, “duas mulheres, uma olhando pra outra”, denota uma
77
representação de apoio que ocorre, nesse caso, pelo olhar ao invés do contato físico.
Assim, a manutenção do Eu-Pele depende do apoio anaclítico do objeto, apesar da boa
frequência de K+ apresentar-se como indício de certo grau de eficácia adaptativa da
função de manutenção do Eu-Pele.
78
suporte proporcionado pelo estabelecimento de relações anaclíticas. No caso do Sujeito
9, são indícios atenuantes para o adaptativo funcionamento da função de manutenção do
Eu-Pele uma resposta K+ e a ausência de respostas Dbl, conforme indicado na Tabela
4.3. Porém a análise das respostas globais (7 G simples, 1DG, 1 G vaga, 1 G cortada)
fortalece a hipótese de falhas na função de manutenção. Em resumo, o Sujeito 9 parece
apresentar falhas na manutenção do Eu-Pele, as quais ele busca compensar por meio do
apoio anaclítico ao objeto e do sobreinvestimento nos limites (F% = 70,0%e F+%=
62,5%; duas respostas de ligação).
Localização Determinantes
79
Sujeito 3 46,7% 26,7% 33,3% 40,0% 46,7% K+ = 1/ kan+ = 1
Sujeito 4 13,1% 2,6% 61,6% 55,3% 36,8% K+ = 1/ K- = 1/
kp- = 7
Sujeito 5 30,0% 5,0% 45,0% 55,5% 65,0% K=0/ kan+ = 2/
kp+ = 1/ kp- = 1/
kob- = 1
Sujeito 6 03,7% 0,0% 81,5% 75,0% 75,9% K=0/ kan+ = 1
Sujeito 7 33,3% 5,6% 44,4% 88,5% 80,5% K+ = 2/ kan + =1/
kob- = 1/ kp- = 1
Sujeito 8 50,0% 25% 41,7% 20,0% 41,7% K+ = 2/ kan+ = 2/
kan- = 1/ kob- = 1
Sujeito 9 56,2% 0,0% 62,5% 70,0% 68,7% K+ = 1/ kan+ = 2/
kan- =1
Sujeito 50% 13,6% 45,4% 40,0% 38,1% K=0/
10 kan+ = 1
Norma 35% 1,1% 54,5% 55,6% 57,3% --
80
duas respostas globais impressionistas, o que seria indício de ineficácia da função de
manutenção, uma vez que remete a dificuldade de utilização do eixo central da mancha
como organizador da percepção de representação vitalizada e solidificada em torno de
um eixo interno organizador. O Dbl% (8,3%), encontra-se dilatado, muito em razão da
baixa produtividade (R=12), ocupando a frequência de uma aparição em todo protocolo
(Dbl=1). Entretanto, o Dbl pôde ser integrado a mancha sem o comprometimento da
qualidade formal, um indicador da capacidade de manutenção do Eu-Pele. O fenômeno
de envolvimento e as respostas de ligação (Tabela 4.2) constituem-se indicadores de que
o sujeito se utiliza das relações de objeto como suporte auxiliares da manutenção da
unidade do Eu-Pele e apontam a existência de falhas na função de manutenção, de
maneira similar aos sujeito 2, 4 e 9.
81
)indicam falhas na manutenção do Eu-Pele com tendência ao estabelecimento de
relações anaclíticas (fenômeno especial de ligação nas Pr. II e VIII).
82
sensibilidade ao branco (Dbl=13,6%) a qual não pôde ser integrada a mancha sem
comprometer a qualidade formal da resposta.
83
capacidade delimitação de um continente próprio, uma vez que essas variáveis indicam
o grau de competência das barreiras em delimitar um continente distinto do restante
prancha. Esses índices, relativos aos participantes da pesquisa, estão descritos na Tabela
4.4.
84
Tabela 4.5. Determinantes cinestésicos, sensoriais e a incidência de desdobramentos na
análise da função de continência do Eu-Pele no método de Rorschach dos adolescentes
85
continente. Em resumo, há indícios de falhas na função continente do Eu-Pele no caso
do Sujeito 1, ao mesmo tempo em que, também aparecem indícios de eficácia dessa
função durante o protocolo. Portanto, é provável que o sujeito apresente a capacidade
adaptativa de delimitação das fronteiras, apesar de ocorrerem relevantes falhas em
determinadas situações, provavelmente naquelas nas quais o sujeito sente-se invadido
pela vida afetiva ou pelas estimulações externas (F+%ext. abaixo da média, FC<CF+C),
hipótese condizente com as falhas encontradas na manutenção do Eu-Pele, já descritas
na sessão acima.
86
respectivamente) fortalecem a hipótese sobre as falhas na barreira delimitadora do
continente. A única resposta K+ (Pr.III), “duas mulheres de cada lado...estão segurando
uma cabeça, alguma coisa assim”, indica que o envelope é representado em sua
integridade, porém a fase de inquérito denuncia a não manutenção desse envelope. Os
índices de controle afetivo (FC:CF+C=2:1; FE:EF+E: 3:1), indicariam eficácia no
estabelecimento de barreiras ao continente, se a qualidade formal negativa não se
fizesse presente e indicasse a fragilidade do continente (FC-=1; FE-=1; F+%ext.; F+%;
F% abaixo da média). Além disso, o alto número de respostas Par (frequência de 4
ocorrências) apontam para falhas da função continente do Eu-Pele. Portanto, há indícios
de que o Sujeito 3 apresente falhas nas funções de manutenção e continente do Eu-Pele.
Uma vez que os limites são necessários para que a pulsão possa ser projetada nas
partes diferenciadas do corpo, a ausência de barreiras que marquem os limites do
continente, conforme indicado pela análise do protocolo do Sujeito 3, indica que a
angústia não pode ser localizada, identificada e amenizada. Desse modo, o
funcionamento do Sujeito 3 se aproxima da metáfora de um “núcleo sem casca”
(Anzieu, 1989 p.116), que lançaria a necessidade ao indivíduo em buscar a
compensação dessa ausência de fronteiras entre o interno e o externo por meio da dor
física ou angústia psíquica, criando assim um envelope substitutivo composto pelo
sofrimento (Anzieu, 1989).
87
O Sujeito 5 apresenta fragilidade das barreiras delimitadoras de um continente
próprio, conforme indicado pelos seguintes indicadores: preponderância de cinestesias
menores de qualidade formal negativa sobre as cinestesias maiores (K=0; kan+=2;
kp+=1; kp-=1; kob-=1), valor do índice barreira penetração (B:P=0:3), razão
apresentada nas formulas afetivas (FC:CF+C=0:1; FE<EF+E=1:2). A frequência do
F+% = 45,0% indica falhas na delimitação do continente, enquanto a variável F+%ext.=
65,5% indicam o superinvestimento defensivo das barreiras que visam afastar as
manifestações pulsionais. Em resumo, o Sujeito 5 apresenta importantes falhas na
delimitação de continente próprio contentor dos conteúdos psíquicos; as barreiras do
continente são frágeis, não sendo capazes de propiciar a capacidade de contenção dos
conteúdos psíquicos. Trata-se de mais um caso de “Eu-Pele escorregador” (Anzieu,
1989).
O Sujeito 6 apresenta superinvestimento das barreiras do continente, conforme
indicado pelo aumento das frequências de formalização F%=75,0%, F+%= 81,5e
F+%ext.= 75,9 em relação a norma. A ausência de respostas barreira e penetração
(B:P=0:0) fortalece essa hipótese acerca de barreiras do continente organizadas de modo
defensivo, caracterizado pelo excesso de investimento nos limites, o que diminui as
trocas com o ambiente e dificulta os processos de identificação, conforme citado na
primeira seção do presente capítulo sobre o caso em questão. Por meio do
sobreinvestimento dos limites, o Sujeito 6 mostra-se capaz de delimitar um continente e
conter os elementos em seu interior (FC:CF+C=1:1; FE:EF+E= 2:0; Dbl%=0).
Já o Sujeito 7, apresenta duas respostas cinestésicas humanas (K+=2) e índice de
controle afetivo adaptativo (FC:CF+C=2:1), o que denota a capacidade de contenção
dos afetos. A capacidade de integração do branco ao restante da mancha, sem o
comprometimento da qualidade formal da resposta (Dbl%=5,6%) indica a capacidade
de superação das falhas narcísicas. Entretanto, as barreiras do continente tendem a ser
demasiadamente investidas por defesas que efetuam o sobreinvestimento dos limites e
acabam por constringir os elementos psíquicos (F%=88,5%; F+%ext.=80,5% acima da
norma; B:P=1:1). Além disso, falhas na delimitação do envelope são prováveis de
ocorrer (F+%= 44,4% abaixo da norma).
Já o Sujeito 8 apresenta barreiras demasiadamente fluídas (F+%=41,7%, F%=
20% e F+%ext.=41,7%, abaixo da norma) com falhas narcísicas na manutenção do
envelope (Dbl%= 25% aumentado; B:P=0:2). Entretanto, apesar da fragilidade das
barreiras entre o interno e o externo e da sensibilidade às falhas narcísicas, o sujeito é
88
capaz de delimitar a existência de um continente interno (K=2; FC:CF+C=1:1).
Entretanto a análise qualitativa das respostas K indica dificuldade de conter a pulsão
agressiva e sexual: “Está parecendo dois anjos” na prancha I, é seguida por duas
respostas compostas por identificação projetiva na mesma prancha “tem uma bruxa,
bruxa malvada” e “um elefante malvado”. A identificação projetiva indica a dificuldade
de contenção do conteúdos e manutenção das barreiras delimitadores do continente. A
outra resposta K ilustra a dificuldade de continência pulsional sexual: “Um et dançando
Funk” G cortado K H Pr. III. Por fim, a análise das pequenas cinestesias indica falhas na
função continente do Eu-Pele, por conta das falhas de contenção da pulsão agressiva:
“Dois rinocerontes brigando” (associação) “o vermelho é sangue, agressão” (inquérito)
G KanCF A/Sg Pr. II; “Um vulcão” Dd kobEF Nat/Frag; “Dois cachorros
brigando de cabeça para baixo” D kan A Pr. VII.
O Sujeito 10 parece apresentar fragilidade dos limites que delimitam o dentro e o
fora do continente (F+%=45,4%; F%=40,0%; F+%ext.= 38,1% abaixo dos dados
normativos; Dbl%=13,6%) e dificuldades de contenção dos impulsos, falhas na função
continente do Eu-Pele (∑C:∑E:3:1,5).
Por fim, no caso do Sujeito 9, apesar do sobreinvestimento dos limites,
responsável pela diminuição das trocas com o meio e por constringir os elementos
psíquicos (F+%=62,5%; F%=70,0%; F+%ext.=68,7%) acima da média; FC:CF+C=0:0;
FE:EF+E=0:0), há indícios relativos a capacidade de delimitação de continente próprio
(Dbl%=0; K+=1; Kan+ =2).
A capacidade de transformação dos conteúdos sensoriais em conteúdos
representáveis, aspecto contentor do Eu-pele, é outro aspecto a ser analisado ao se
investigar a grau de efetividade do continente, uma vez que os conteúdos
irrepresentáveis tendem a romper as barreiras do continente (Anzieu, 1989).
89
Os indicadores no Rorschach do aspecto contentor (de transformação dos conteúdos) do
continente estão descritos na tabela 4.6.
90
detrimento a sua transformação. Esses fatores confirmam a hipótese de falhas no
aspecto contentor do Eu-Pele.
Nesse sentido, no caso do Sujeito 3, o excesso de G% indica dificuldades de
transformação dos conteúdos, pois há a presença de uma G elaborada de qualidade
formal negativa aliado ao rebaixamento dos índices F+% e F+%ext., indícios da
dificuldade de transformação dos conteúdos. Esse fator pode estar relacionado as
dificuldades na representação de corpo descrito acima em relação a esse caso, visto que
a própria ausência de capacidade de delimitação de um continente próprio e
diferenciado do ambiente é um fator que impede a transformação dos conteúdos, pela
ausência de um espaço contentor.
91
o aumento da ansiedade, provavelmente, em decorrência da dificuldade de
transformação dos elementos irrepresentáveis em conteúdos representáveis
(FE:EF+E=0:1 F+%=44,4%).
92
capacidade de circunscrever o estimulo e delimitar os limites do continente. Além disso,
a frequência de F% próxima a norma atesta o domínio do sujeito sobre o impacto
causado pelas características manifestas e latentes das manchas sobre ele. Assim,
utilização suficiente e adaptativa da forma nas respostas de forma pura ou nas respostas
moduladas pela forma (FC; FE; FC), é indicador da efetividade na função de para-
excitação das estimulações externas, indicando a boa qualidade da função de para-
excitação do Eu-Pele. O excesso da formalização, por outro lado, pode indicar defesas
narcísicas rígidas e até mesmo pode remeter a colagem das barreiras internas e externas,
ou a fusão das funções de para-excitação e continente, na qual os conteúdos acabam se
diluindo devido a falhas na função de contenção (Linhares; Pinheiro 2009; Roman,
1996).
93
Sujeito 38,1% 40,0% 4:1 3:0 2:0 -- --
10
Norma 57,3% 55,6% 2,1:2 0,7:0,4 -- -- 21,2´´
94
(H:Hd=2:1; A:Ad=5:0; K:kp=2:1; ausência de G cortado). Entretanto, as falhas na
para-excitação são indicadas pela presença de um detalhe oligofrênico na Pr. III e pela
diminuição do tempo médio de latência (16 segundos).
95
sobreinvestimento dos limites e pela capacidade de controle dos afetos (F% aumentado
em relação a norma; FC=CF+C; FE>EF+E).
Para finalizar, pretende-se apresentar uma síntese dos resultados descritos neste
capítulo:
96
Em relação a função de para-excitação do Eu-Pele, todos os participantes
apresentaram falhas. O Sujeito 7 parece ser o participante com maior capacidade de
para-excitação, entretanto mesmo assim foram identificadas falhas na função.
97
CAPÍTULO V
ESTUDOS DE CASO DOS ADOLESCENTES QUE SE ESCARIFICAM:
ANÁLISE COM O MÈTODO DE RORSCHACH
2
Os nomes utilizados para identificar todos os casos desse trabalho são fictícios visando proteger a
identidade dos pacientes.
98
por dez segundos”. Por fim, ela foi enfática em afirmar que cometeria suicídio antes dos
15 anos, pois essa seria a idade “que a mulher desperta”. Ela não desejava “despertar
como mulher”.
As escarificações começaram com a ajuda do namorado, que já se cortava. Para
Laura, há um prazer especular envolvido no ritual de escarificação: “gosto de ver meu
reflexo no espelho, me cortando”, “gosto de ver os outros sentindo sofrimento”, “gosto
de ver o sangue escorrendo”, até concluir: “Acho que sou sado-masoquista”.
Laura acredita que a sociedade é má, que todas as pessoas só pensam em seus
próprios interesses, até mesmo “as pessoas religiosas fingem ser boas”. Além disso, ela
conta não ter amigos, a não ser dois amigos imaginários. Ela tem consciência que essas
pessoas não existem, porém “sente a presença“ deles, assim conta ter tido uma
experiência de “incorporação espiritual”. Mesmo após essa experiência, ela relatou
sentir a presença desse espírito frequentemente. Apesar de não ter religião, a Laura
“gosta” do espiritismo e acredita em “reencarnação”. Ela pretendia reencarnar após o
suicídio, pois queria se livrar apenas da sua parte “má”.
Durante várias sessões, Laura cobria os olhos com seu cabelo vermelho,
justificando da seguinte forma: “dá para ver a alma pelos olhos e não quero que
ninguém veja minha alma”. Os braços eram marcados por cicatrizes ainda recentes dos
cortes, sempre cobertos por roupas longas ou assessórios. As roupas eram
preferencialmente pretas, o visual composto por botas e calças que cobriam as cicatrizes
nas pernas, mesmo nos dias de calor. Ela trazia junto ao corpo uma mochila jeans,
estrategicamente posicionada em seu colo durante as primeiras sessões. Laura
costumava citar músicas de artistas mortos para justificar sua descrença na humanidade
e sua desconfiança nos outros.
A única pessoa que Laura dizia “se importar” era sua mãe, com a qual ela
mantinha uma relação ambivalente: as aproximações afetuosas de Laura eram
geralmente negadas pela mãe; e as aproximações da mãe eram sentidas como
demasiadamente invasivas para a adolescente. As discussões eram constantes, tendo
ocorrido agressões físicas da mãe sobre Laura em algumas ocasiões. Laura sentia
ressentimento pelo pai, achava que ele era um homem bruto e desconfiava que ele tinha
casos extraconjugais, apesar de não ter provas. O potencial agressivo do pai assustava
Laura.
Laura se definia como uma pessoa carente, que precisa de “atenção”. Apenas
sentia-se amada por sua mãe, porém esse sentimento não atrapalhava seus planos de
99
suicídio, pois ela acreditava que sua mãe iria se recuperar do luto de perder a filha, caso
ela cometesse o suicídio, pois “as pessoas esquecem as coisas, substituem”, “minha
mãe tem os outros filhos”.
Laura não se sentia amada, nem pelo pai, cuja distância só era diminuída por
suas expressões agressivas, nem pela mãe, cujo contato era marcado por uma forte
ambivalência, uma vez que as aproximações da mãe eram invasivas à filha e sua
ausência era sentida como expressão de abandono por Laura. Os ciúmes de Laura para
com a sua mãe se dirigiam aos irmãos mais novos e ao pai. Ela sentia-se sozinha e
isolada, tinha poucas pessoas para conversar, poucos para compartilhar experiências e
angústias que compõem a novidade da adolescência. A auto-recriminação trocava
frequentemente de lugar com generalizações acerca da maldade do mundo. Além disso,
ela não se achava uma boa pessoa e preferia se isolar do que “machucar as pessoas”,
por temer o poder da destrutividade de sua raiva.
Com o passar das sessões, a raiva de Laura foi dando lugar a duas lembranças
específicas que, segundo ela, mudaram sua forma de perceber o mundo. Ela conta ter
sido vítima de abuso sexual, por duas vezes. A experiência traumática teria mudado
radicalmente sua existência e seu julgamento sobre os outros.
Esses fatos eram usados por ela para justificar sua crença de que as pessoas
seriam más, egoístas e fariam parte de uma sociedade hipócrita. Ela afirmava não
confiar em ninguém, por já ter sido “vítima de tudo, violação, de bullying, de
violência”.
A participante tinha um namorado, um rapaz de 17 anos, com histórico de
internações em clínicas psiquiátricas, várias tentativas de suicídio e uso abusivo de
drogas. Em uma ocasião, o rapaz tentou agredir a namorada, durante o calor de uma
discussão motivada por ciúmes, tentando enforcá-la, tendo sido impedido por familiares
dele que chegaram por acaso no momento da agressão. Os familiares do rapaz
minimizaram a situação, cuja gravidade só foi percebida por Laura após algum tempo.
As escarificações
Foi esse namorado que apresentou Laura a cultura das escarificações e tentou
instruí-la a cometer suicídio: “se você quer se matar, precisa tomar não 30, mas 90
pílulas para conseguir” relataram Laura sobre as instruções do namorado. Ela, no
entanto, se identificava com ele, percebendo no namorado “um espelho”. Após alguns
meses de namoro, o qual os pais de Laura veementemente desaprovavam, ela
100
engravidou, aumentando a ambivalência em relação ao namorado e as acusações da
família em relação as condutas da paciente. “O coito” como Laura se referia ao ato
sexual, era visto por ela em suas mais extremas conotações de abuso e passividade,
marcas prováveis das situações anteriores de abuso sexual. Em razão disso, ela culpava
o namorado pela gravidez e demonstrava extrema preocupação em relação ao seu
futuro. Laura, que suspendeu os estudos devido a gravidez e passou a sentir-se
abandonada pelo namorado após ele terminar o relacionamento. Além disso, ela sentia-
se invadida pela família dele, que queria garantir, desde a gestação, o direito de ter
contato com o neto.
O pai de Laura tentava se aproximar dela, mas que ela não permitia: “É como se
a gente não tivesse vínculo, aí agora ele vem tentar se aproximar”, dizia Laura.
Surpreendentemente, a reação do pai, ao saber da gravidez da filha, foi mais amena do
que Laura esperava que seria. Ele se comprometeu a ajudar a criar o neto, embora tenha
proibido a filha de se casar com seu namorado. A ameaça da família de Laura é clara:
caso ela resolva continuar o relacionamento com o rapaz, ela será expulsa de casa e
separada de seu filho.
A gravidez aumentou a ansiedade dela em relação a seu futuro. Ela contou estar
ansiosa com “tudo”, principalmente com sua mãe, que estava “doente do coração” e
não queria procurar um médico para fazer exames. O temor era a morte de sua mãe do
“coração”: “se ela morrer, eu não vou sobreviver”. Os ciúmes de Laura em relação a
sua mãe (“ela (a mãe) é minha, de mais ninguém”) se misturavam ao sentimento de
culpa pela suposta doença cardíaca desenvolvida por sua mãe. Ela, insegura, ficava
ansiosa quando sua mãe se aproximava de qualquer pessoa, principalmente de “outra
menina”, pois temia que sua mãe a trocasse “por outra menina”. O incômodo era
recorrente quando a mãe se aproximava do pai, por isso Laura almejava realizar-se
financeiramente para convidar a mãe para morar consigo, ao passo que o pai seria
hospedado em um asilo. As agressões do pai eram descritas em tom de raiva. Laura
ressentia-se tanto das agressões paternas direcionadas a ela, quanto guardava
ressentimento das agressões físicas e verbais que o pai dirigiu a sua mãe. O pai, por sua
vez, reagia de forma colérica as atuações desafiadoras da filha: “você (Laura) é inútil e
só faz coisas inúteis”, teria dito o pai em uma discussão.
Laura sentia-se culpada pelos problemas da mãe e pelos problemas da família.
Ela contava que “não gostaria de ter existido, não gostaria nem mesmo de ter sido
concebida” assim, ela acreditava, a família “não teria esses problemas que tem”. Para
101
ela, fazer parte da família era como viver em “uma prisão com quatro paredes, quatro
muros”, razão pela qual ela gostaria de ter nascido como “uma planta para não
depender da família para nascer”. As saídas dela, as experiências sexuais, com álcool e
drogas começariam a ser significadas por ela como tentativas de se “libertar da prisão
de quatro muros”. Laura tentava significar a experiência da gravidez, porém o fazia pela
via da culpabilização de seus pais ou de si mesmo. Para ela, os pais não a tinham
ensinado sobre a sexualidade, pois eles a consideram um “bebê”. A culpa, no entanto,
retorna ao sujeito: “Tudo isso teve consequências, estou grávida”.
Com o passar do tempo, a relação com namorado piora cada vez mais. Laura
descrevia o pai de seu filho como “bipolar”, às vezes “carinhoso”, às vezes “bravo”. O
relacionamento oscila entre términos e recomeços. Para ela, o namorado era parecido
com ela: o namorado era “como um espelho”. Ela lembra que antes da gravidez, o
namorado dizia que gostaria de ter um filho, porém ela dizia ser demasiadamente nova
para tanto, pois tinha quatorze anos na época. Enquanto estava grávida, apesar do que
dizia ao namorado, ela se perguntava se o filho foi um “acidente” ou se foi “planejado”,
uma vez que ela gostaria de viver com o namorado até que ela completasse 18 anos,
para escapar da “prisão de quatro paredes” que era a família. Apesar disso, ela tinha
medo de se casar, por temer “abandonar” a mãe sozinha com o pai. A decisão sobre o
casamento não precisou ser tomada, pois após alguns meses de gravidez, ela e o
namorado terminaram o relacionamento.
As sessões foram interrompidas durante o final da gravidez, pois Laura tinha
pouco dinheiro para pagar as passagens para a Universidade. Além disso, os recursos da
psicoterapia passaram a competir com os custos do pré-natal. A gravidez foi de risco.
Após o resguardo, as sessões recomeçam diferentes. Agora Laura traz em seu colo o
recém-nascido e os cortes e queimaduras não ocorrem mais sobre sua pele. Apesar de se
dizer cansada e de experimentar a ambivalência da maternidade precoce, ela disse estar
melhor. De fato, ela aparentava estar melhor. Já se passaram quase um ano desde o
início da psicoterapia e a paciente é capaz de representar boa parte de sua angústia: os
conflitos com os pais, a relação conturbada com o pai de seu filho, as consequências de
gravidez, as marcas dos abusos sofridos na infância. A angústia vai ganhando espaço
para representação. Apesar de inda ansiosa, ela é capaz de pensar o que antes era
irrepresentável.
Com o filho no colo, Laura descreveu a ambivalência da maternidade precoce, e
a vontade de voltar a estudar, pois sentia-se responsável pelo filho, desejava sair de casa
102
e prover uma vida confortável para ele. Laura estava angustiada, sentia-se sozinha sem
o namorado, apesar de não se sentir completa com ele. Ela percebe que o
relacionamento a prejudica e não reconhece mais o namorado “como um espelho”, pois
ela nota ter mudado e se diferenciado do namorado. Mesmo assim, ela conta sentir-se
grudada ao namorado “por um fio de cabelo”. A angústia de separação agora é em
relação a família que cobra que ela deixe de se relacionar com o namorado e em razão
do namorado, que cobra que ela atue como “mulher” e vá morar com ele abandonando a
família. Apesar de toda a angústia, ela não se corta mais.
Determinantes Sensoriais.
Outros índices
103
O processo de pensamento
104
A representação de si estava ligada a afetos negativos, conforme indicado pela
resposta mórbida fornecida na prancha V, da identidade: (“Uma deformidade em uma
das pernas, nas duas, uma deformidade em uma das pernas. Porque não parece com a
outra, parece que elas perderam o pé, só tem osso” Dd F- HdAnat). Laura,
entretanto, apresentava boa capacidade de representação integral da imagem corporal
(H:Hd=9:7; A:Ad=9:0). .
105
parecia busca desligar o afeto das representações, pela via do congelamento pulsional
dos engramas, conforme observado na prancha VIII: “esculturas feitas de pedra”,
resposta Dd F- Art.
Chama a atenção que o protocolo de Rorschach de Laura seja permeado por
referências ao “contorno” da mancha. Na prancha I, ela parece tentar seguir a tarefa
semântica levantada pelo Rorschach pelo caminho do apego ao contorno e aos limites
da mancha: “não sei o que o contorno lembra (associação) ... O contorno tipo parece,
eu não sei, o jeito, dá pra para ver os olhos, a boca e o nariz (Inquérito). Na prancha II,
Laura novamente faz apelo aos limites da mancha para determinar a resposta: “Tem
jeito de rato, o todo me parece de rato, o contorno (Inquérito)”. Na prancha IV o
contorno define a resposta Dd Kp HHd: “Uma pessoa e uma criança, um do lado do
outro, olhando pra frente” (associação) transforma-se, na parte do inquérito, em
representação parcial de cabeças apenas que são definidas pelo contorno, “eles parecem
que tão olhando pro horizonte e o contorno também parecem duas cabeças”.
Na prancha V, “duas pessoas deitadas” (Dd F+ H) são definidas novamente pelo
“contorno”, que dessa vez determina toda a representação de imagem do corpo: “O
contorno também, parece uma cabeça, os braços e as pernas”. Se nessa resposta os
limites da mancha, mais precisamente o “contorno”, definem a imagem corporal
íntegra, na resposta seguinte, a falta de contorno define uma percepção mórbida de um
corpo amputado: “Uma deformidade em uma das pernas, nas duas, uma deformidade
em uma das pernas...porque não parece com a outra, parece que elas perderam o pé, só
tem osso”, cotada como Dd F- HAnat (Mor). A sequência acima parece demonstrar
que o apego aos limites do corpo é uma forma de empreender a existência de limites
mínimos entre o dentro e o fora, entre o Eu e o Outro, entre a pele e a sua representação,
simbolizada no teste pelo “contorno” da mancha. Portanto, a fragilidade dos limites
tende a ser atenuada (F+%36,8; B:P=2:1) pelo frequente apego ao contornos
(F%=55,26%; F+%=61,90%).
Não se apegar a pele, aos limites, ao contorno, parecia ser uma forma arriscada
de existência para Laura. Entretanto, o recurso aos limites frequentemente se mostrava
falho, como denuncia o F+%ext. abaixo da média e o índice baixo de Barreira-
Penetração rebaixado em relação as normas (F+%ext=36,8%; B:P=2:1)
Ainda em relação a esse aspecto, na prancha VI, o conteúdo latente parece ter
suscitado uma invasão afetiva de tamanha dimensão que chega a desorganizar Laura.
106
Ao ser mostrada a prancha VI, ela diz: “Sangue. Só”. Na parte do inquérito, ela
completou: “Em toda a imagem”. A impressão de sangue foi fornecida pelas “curvas”,
o que revela a tentativa de Laura de retornar a defesa habitual de apego aos limites,
representada no teste pela ênfase ao contorno da mancha. Laura buscou se apegar aos
limites, porém essa tentativa não foi sustentada. Frente ao fato de que a prancha VI é
monocromática, sendo as respostas de sangue geralmente fornecidas nas pranchas
coloridas, o examinador insistiu novamente com outra pergunta “Como você vê esse
sangue? ”. Foi então que o sujeito respondeu: “Vermelho”. O examinador perguntou
novamente “O que te faz pensar em sangue? ”. O sujeito respondeu com a auto-
referência que aboliu a transicionalidade proposta pelo teste e revelou a falha da defesa
do sobreinvestimento dos limites: “Porque quando me cortava, o sangue quando caia
tinha quase o mesmo contorno assim... Quando eu me corto”. Nessa única resposta
fornecida na prancha VI, com uma projeção de cor em uma prancha monocromática,
cotada como G F- Sg, acrescida dos fenômenos especiais de auto-referência, o
sobreinvestimento dos limites falhou, dando lugar a uma desorganização dos limites,
indicada pela auto-referência que revelou a dissolução dos limites entre o sujeito e a
prancha, entre o dentro e o fora, entre o eu e o outro, pelo comprometimento da
qualidade formal.
107
nessa resposta pela utilização do Dbl como espaço vazio que justifica falta presente no
percepto “aqui a parte da nariz, só que no caso não tem nenhum”.
Aliada a este aspecto, a análise das respostas globais fornecidas e a análise das
cinestesias, reforçam a hipótese acerca de falhas na manutenção do Eu-Pele. Em relação
ás respostas Globais, (1GDbl, 1 G elaborado e 2G simples), a única G elaborada
apresenta comprometimento da boa forma: “Parecem almas, dadas as mãos, várias
crianças, indo em direção a uma espécie de portal. Atrás desses portais tem como se
fosse uma cidade. E vindo em direção a essas almas tem alguém erguendo os braços
como se tivesse dando boas-vindas. Na frente tem dois leões dourados” (G simples F-
H-Cena). Ainda, a análise das cinestesias, uma vez que as cinestesias humanas parciais
de qualidade formal negativa superam as respostas cinestésicas humanas (K+ = 1; K- =
1; kp- = 7) e a presença de respostas de ligação (Pr. II e VIII) indicam falhas no
processo de internalização do suporte cuja função é propiciar a manutenção dos
conteúdos psíquicos.
108
decorrência da porosidade das barreiras interno e externo (Linhares; Pinheiro, 2009;
Roman, 2001).
Além de falhas na função de manutenção do Eu-Pele, Laura apresentava falhas
na função de continência do Eu-Pele.
Entretanto, as barreiras que delimitavam o envelope psíquico mostraram-se
efetivas quando o sujeito pôde afastar as intromissões do afeto e se apegar aos
contornos (F+%=61,90%), conforme discutido na sessão relativa ao investimento dos
limites.
109
formal positiva foram seguidas por respostas de qualidade formal negativa. Portanto, em
síntese, a capacidade de transformação e simbolização dos conteúdos em representações
se mostrava falha, o que lançava a tendência a expulsão dos conteúdos e utilização do
mecanismo de identificação projetiva, em detrimento de traduções dos elementos
irrepresentáveis em conteúdos simbólicos.
Laura, hoje com 16 anos, não se utiliza mais das escarificações, nem apresenta
ideações suicidas. Parece que o espaço psicoterápico a ajudou amenizar a angústia,
antes impensável. Agora os elementos traumáticos não retornam mais pela via do ato da
escarificação (Matha, 2010), nem mesmo transbordam a capacidade psíquica de
elaboração, não mais exigindo o recurso aos cortes como uma saída desesperada para
diminuir a angústia e garantir a continuidade do ser (Le Breton, 2003).
As lembranças traumáticas retornam como lembranças que invadem a vida de
vigília e compõe os sonhos, o que permite que o traumático possa ser pensado. O medo
em ser “estuprada” ou mesmo “sequestrada” se faz ainda presente, porém apresenta-se
110
com uma diferença importante: não se trata mais da passagem ao ato de algo que não
pode ser lembrado, mas sim de recordação das cenas que servem de material de
composição desses receios. A repetição, que ocorria pela passagem ao ato, dá lugar
agora a recordação. Espera-se que próximo passo seja a elaboração.
Um sonho relatado por Laura ilustra da crescente capacidade de Laura em
conter os conteúdos psíquicos e transformá-los em elementos representáveis,
demonstrando aumento da efetividade de função continente (Anzieu, 1989). Trata-se de
um sonho no qual Laura se vê cercada por muitas pessoas, cuja identidade é obscura a
sonhadora, que a cercam e passam a mão pelo seu corpo contra a sua vontade, abusando
sexualmente de Laura. Ela revive no sonho a situação traumática, que se repete em
busca de elaboração (Freud, 1920/1996). Embora, o sonho cause angústia e os
elementos traumáticos tenham se transformado em medo de ser abusada novamente, e
até mesmo no medo de que seu filho seja vítima de abuso, o trauma se encontra agora
em vias de elaboração, já podendo ser lembrado e, em até certo ponto, ligado aos
aspectos traumáticos de sua história de vida. Antes, na época de aplicação do
Rorschach, o continente tinha se mostrado falho em conter e transformar os conteúdos.
Uma breve comparação entre o Rorschach e a impressões clínicas atuais confere
algum grau de evolução a função continente do Eu-Pele de Laura.
A gravidez de Laura desempenhou um importante papel na transformação dos
sintomas. O nascimento do filho diminuiu seu sentimento de solidão, assim como
impulsionou Laura a pensar em seu futuro, pois agora ela tem uma razão (o filho) para
permanecer viva. Laura arrumou um emprego e voltou a estudar. Atualmente, ela deseja
se tornar médica dermatologista, pois “a pele, além de ser o maior órgão do corpo”
chama muita atenção de Laura e desperta seu interesse. Ela relata o prazer em espremer
espinhas e manipular a pele das outras pessoas, embora não sinta mais a compulsão por
se cortar.
O caso Laura também nos chama atenção para a crescente melhora na
capacidade da adolescente em efetuar a diferenciação. Antes, sua capacidade de
diferenciação se mostrava frágil, o tampar dos olhos buscava impedir a visão de “sua
alma”; as incorporações espirituais invadiam seu corpo, mesmo fora de contextos
religiosos, os amigos eram imaginários, a possibilidade de morte da mãe era sentida
como a própria morte da adolescente e o namorado visto como reflexo de Laura. Além
disso, os resultados do Rorschach, apontavam para a fragilidade dos limites. Esses
aspectos, entre outros, denunciavam as falhas nos processos de diferenciação e
111
continência do Eu-Pele, que desencadeavam os sentimentos de transparência do corpo,
os quais ela tentava superar pelo “tampar (d)os olhos (que) protege a alma” e pela
feitura de cicatrizes decorrentes dos cortes. O anaclitismo e indiferenciação das relações
de objeto eram antes presentes e agora estão em vias de elaboração: “Me sinto grudada
a ele (o namorado) por um fio de cabelo”. A separação, representada pelo medo de
perder a mãe (por morte), de ser trocada por ela (“por outra menina”) e separar-se do
namorado (“ligado a ela por um fio de cabelo”) são dificuldades centrais de Laura.
Esses fatores eram indícios de falhas da função continente do Eu-Pele, o que nos remete
a pensar que as situações de separação eram, para a Laura, como o arrancar da própria
pele na qual ela se encontrava grudada com a pele do outro (Anzieu, 1989). As falhas
em seu continente exigem que ela permaneça ligada ao objeto, nem que seja “por um fio
de cabelo”, mesmo que o objeto seja dotado de grande potencial destrutivo, como são
as lâminas e a violência do namorado.
Na época de aplicação do protocolo de Rorschach, a capacidade de conter,
transformar, prover a manutenção, aspectos ligados as funções do Eu-Pele avaliadas, se
mostravam falhas, conforme foi demonstrado pela análise dessas funções pelo
Rorschach, cuja interpretação demonstrou falhas nas três funções avaliadas. Em
consequência disso, os elementos psíquicos tendiam a expulsão, em detrimento a
transformação e contenção. A imagem corporal tendia a ser permeada por uma fluidez
exagerada de seus limites e pela falta de uma unidade sólida. Os cortes eram um tipo de
apelo ao “contorno”, que parecia tanto atender à necessidade inconsciente de punição
suscitada pela culpa decorrente dos abusos sexuais sofridos e a as exigências da pulsão
agressiva que tanto embasam as condutas impulsivas, quanto visavam restabelecer os
contornos e limites corporais.
As falhas nas funções de continência e manutenção do Eu-Pele apontam no
sentido de um funcionamento de Eu-Pele escorregador, no qual as representações não
podem ser mantidas, nem mesmo contidas. Essa organização dificulta a elaboração dos
elementos traumáticos, em razão da dificuldade de recordação e tendência a expulsão
que esse tipo de funcionamento apresenta (Anzieu, 1989).
Laura é uma adolescente em pleno processo de desenvolvimento, portanto não
se aplicam classificações nosográficas definitivas. Entretanto, para fins comparativos e
teóricos, pode-se afirmar que o funcionamento de Laura assemelhava-se ao modo típico
do Eu-Pele presente nos estados limite. Nesse tipo de funcionamento, as duas faces do
Eu-Pele, interna e externa, encontram-se torcidas de modo similar as faces de um anel
112
de Moebius3. Assim, a face interna é, ao mesmo tempo, também externa e vice e versa.
Assim, o não Eu, se torna parte do Eu, os elementos internos tendem a ser externos e os
conteúdos tendem a não ser contidos (Anzieu, 1989). Essa hipótese explica, em parte, o
apego aos contornos; apegar-se a pele parece ser uma estratégia artificial de efetuar o
juízo de realidade para ampliar a capacidade de distinção entre o interno do externo.
Assim, as escarificações de Laura buscariam restabelecer os limites e efetuar a
distinção entre o interno/externo; dentro/fora; continente/conteúdo.
Em resumo, o caso Laura, por conta de sua evolução, parece apontar que o
espaço analítico pode propiciar o restabelecimento das funções do Eu-Pele que se
mostram falhas, por meio do processo terciário desempenhado pelo analista (Green,
2008). Esse aspecto parece ter sido um dos fatores importantes para a melhora de Laura,
pois o incremento das funções de manutenção, continente e para-excitação; que antes
caracterizavam um Eu-Pele escorregador, parece ter sofrido um desenvolvimento
decorrente do acesso ao espaço analítico. Se antes os elementos não podiam ser
lembrados, e, portanto, o ato era a única descarga possível a eles, agora os elementos
parecem poder ser pensados, graças ao desenvolvimento das capacidades de
manutenção, continência e para-excitaçao desempenhadas pelo Eu-Pele.
A dificuldades cotidianas de Laura pouco se modificaram. De certa forma, as
responsabilidades relativas a maternidade agora se mostram presentes e se acumulam ao
ambivalente relacionamento familiar e conjugal (namorado). No entanto, o espaço de
escuta do processo terapêutico parece ter proporcionado o desenvolvimento dos
processos de simbolização e contenção dos conteúdos. Ainda, o suporte proporcionado
pelo terapeuta pôde ser, em parte, internalizado a ponto de possibilitar uma maior
autonomia a Laura. A crescente distinção entre as barreiras interna e externa, entre o
dentro e o fora, tem proporcionado a Laura uma maior qualidade do pensar, que pouco a
pouco têm substituído as atuações.
3
O anel de Moebius é uma figura geométrica unilateral cujo formato final é similar à forma de um oito.
Sua construção se dá pela torção de um retângulo no sentido longitudinal, seguida da junção de suas
arestas, o que resulta na criação de um tipo de anel no qual não há distinção entre a face interior e o lado
exterior, constituindo-se, portanto, em uma figura geométrica de continuidade perfeita. Portanto, anel de
Moebius é composto por uma banda apenas, sem frente, nem verso, possuindo um único lado. Tendo sido
primeiramente estudado por Ferdinand Moebius em 1861, o uso metafórico do modelo do anel de
Moebius foi introduzido na Psicanálise por Jaques Lacan (Ávila, 1997). Enquanto Lacan acreditava que o
anel de Moebius ilustrava o funcionamento do normal Eu, Anzieu considera que o anel de Moebius é uma
metáfora eficaz para descrever a problemática do Self nos estados limite. (Anzieu, 1989).
113
5.2 Estudo de caso Paula (Sujeito 1).
“Você procurou isso, você que aguente, você não queria dor?
Agora você está sentindo, uma dor maior que a sua alma”.
Prancha II: Sangue espirrando... lembra eu quando eu me cortava
114
As escarificações:
Paula começou a se cortar no início da adolescência. A tristeza é vista por ela
como o sentimento que desencadeia os cortes, ela diz: “a única saída para a tristeza é a
gilete, as laminas, tudo que (eu) achar pela frente”. Ela completa: “Eu não uso mais
prestobarba, quer dizer, eu não usava porque, eu não estava usando mais, porque ele
não fazia o estrago que eu queria, ele não fazia o que eu queria, que era cortar fundo
pra poder derramar sangue. ” Os cortes tinham de ser profundos e visavam derramar o
máximo de sangue possível, “porque (eu) achava que aquele sangue era toda a dor que
(eu) tava sentindo”. Os cortes são formas encontradas por Paula de diminuir a “dor”.
Ela acredita que os cortes podem “aliviar a dor”, que são necessários para o sentimento
de bem-estar, para o “fazer bem”. Afirma ser incapaz de viver sem as escarificações: “
(eu) não posso viver, (eu) não posso ficar sem me cortar. Não tem como”. Apesar de
estar sem escarificar a própria pele há um mês, Paula acredita não conseguir ficar sem
se cortar. Ela diz: “alguma hora (eu) vou ter que me cortar, (eu) vou ter recaídas”.
Paula compara as escarificações a um “vício”, dizendo “inventar motivos” para
se cortar. Os pais e o namorado já foram eleitos como culpados pelos cortes que ela
mesmo fazia com o intuito de “rasgar a pele”. A violência dos cortes assusta Paula, que
teme “arrancar a veia” durante os rituais. A descoberta da mãe sobre os cortes gerou
grande impacto na família. Paula conta que os pais choraram pois se sentem culpados
pelos cortes. Além disso, desilusões amorosas desencadearam outros episódios de
escarificação. As cicatrizes denunciaram os rituais aos pais e professores, o que fez com
que Paula trocasse “blusas” e “shorts” por roupas longas que escondiam as cicatrizes.
Durante o banho, o contato da água com a pele em processo de cicatrização causava
dor, experienciada como uma dor merecida: “Você quis aquilo, você procurou isso,
você que aguente, você não queria dor? Agora você está sentindo, uma dor maior que a
sua alma”.
Quando perguntada pela dor dos cortes, Paula afirma: “Dói na hora, é como
cortar o dedo”. Tal afirmativa aponta por uma busca pela intensidade da sensação,
mesmo que dolorosa, como forma de afastar os sentimentos distímicos, uma vez que ela
afirma se cortar para “afastar a (minha) dor”. Nesse sentido, o uso do álcool, tabaco,
entre outras drogas parece ocupar a mesma função: “Tabaco e cigarro que eu fumava
constantemente por causa da depressão, comprava carteira de cigarro e ia fumando”.
Ela contou sobre um episódio no qual bebeu vodca com amigos e adotou posturas
sexuais das quais se arrependeu depois: “Não acho que fui mais aproveitada porque
115
eles não me estupraram, porque na condição que eu estava eles poderiam ter feito
isso”. A mãe descobriu que ela havia ingerido álcool, o que causou uma intensa e
acalorada discussão entre as duas que resultou no afastamento de Paula dos amigos que
a acompanharam no episódio de abuso de álcool, pela via da proibição paterna.
Os pais não entendiam a razão pela qual Paula se cortava, ameaçando a filha
com castigos e tentando esconder as lâminas, sem sucesso. Afirma ter entendido
recentemente que sofre de “depressão”. As marcas no braço parecem ter tido a função
de tornar público o sofrimento que era interno. Nesse sentido, as escarificações parecem
ter tido a função de transformar a dor psíquica em dor física e visível, a ponto de
capturar a atenção dos familiares e motivar a procura por tratamento especializado.
Paula participa de psicoterapia individual e de grupo atualmente. Ela afirma que “não
está 100% ainda”, pois se “corta ainda, mas bem pouco, bem menos porque eu me
cortava frequentemente, agora com as consultas com as meninas, com a W., eu estou
melhorando”.
Determinantes Sensoriais.
116
Outros índices
O processo do pensamento
Em relação aos processos do pensamento, a dilatação das respostas globais
(G%=75%), associada a ausência de respostas de movimento humano (G:K=9:0) indica
tendência ao pensamento sintético que parece ser caracterizado pela baixa capacidade
de realização e dificuldades de pensamento concreto e analítico (D%=16%;
Dd%=8,3%). O F+% próximo a média indica boa adaptação do pensamento lógico. A
frequência de respostas banais (16,7%) e respostas de conteúdo animal (41,7%) indicam
que Paula tende a apresentar um tipo de pensamento adaptado a realidade de seu grupo
de inserção, sem que ela faça apelo a estereotipia de pensamento. Entretanto, o número
de respostas (R=12) indica baixo índice de produtividade, o que associado a ausência de
K, indica falhas do processo de pensamento, possivelmente decorrente da invasão do
afeto sobre os processos de pensamento (Índice de angústia=16,7%; FC:CF+C=0:2).
117
Apesar de apresentar capacidade de integração da representação de corpo (H:(H)
=0:3; H:Hd=0:0; A:Ad=5:0), as dificuldades de identificação se fazem presentes
(G=75% H%=8,3%), ao mesmo tempo em que a identificação parece estar associada a
afetos negativos, conforme demonstrado pela resposta na prancha V: “Deixa eu pensar,
uma coisa bem.... Meu Deus! Parece um anjo com dois chifres, parece que eu sou meio
doida. Aham ahanm, eu sou meio doida” G F- A/Ad Resposta Híbrida; Crítica ao
sujeito. A resposta fornecida na prancha V, cuja demanda latente é a questão identitária,
aponta no sentido da dificuldade de integração entre os aspectos bons e maus da
representação de si, aspecto indicado pelos fenômenos especiais de resposta híbrida e
crítica ao sujeito. A representação das relações também parece apresentar-se falha, o
que pode estar relacionado às dificuldades de identificação, uma vez que a clivagem dos
objetos tende a dificultar o processo de identificação com ele, apresentado como mau
por conta da transformação empreendida pelos mecanismos defensivos.
118
se mostra falha revelando os mecanismos de cisão e identificação projetiva: “Essa
vermelha, o lado bom dele, essa escura, marrom, o lado ruim dele. E a azul é o lado
alegre. As outras cores são as outras cores, só me importei mais com essas” Pr. X Inq.
119
pelos dados do psicograma indicando. A fragilidade dos limites é sustentada ainda pela
ocorrência de identificação projetiva (Pr V: “Anjo com dois chifres”, na associação e
“O anjo é mau” no inquérito) e frequentes usos de auto-referência e referência a
lembranças pessoais, baixo índice de H e A, fatores relacionados a dificuldades de
estabelecimento de limites. Apesar dos índices F%(58%) e F+%(57,1%) próximo aos
dados normativos, a frequência diminuída em relação a norma do F+%ext. (41,6%)
indica falhas nos processos de delimitação entre Eu e o Outro (Chabert, 1998).
Por meio da análise dos indicadores qualitativos, foram encontrados índices que
demonstram que Paula apresentaria dificuldades em representar a imagem corporal de
forma integra. Além da ausência de H, e mesmo de Hd, no psicograma, exceto em
respostas adicionais (Respostas Add. H=1 Pr. II), as representações corporais vistas
aparecem sustentadas em conteúdos anatômicos, exceto em uma única resposta
adicional. É o que ocorre na prancha II, cuja representação corporal é anatômica e
permeada pela transparência: “Ah...Isso me lembrou essa parte aqui do corpo, como se
chama, as costelas. É, as costelas”, no inquérito “Nossa você decorou até o que eu
tinha esquecido. As asinhas. Parece assim, os risquinhos, isso não lembra a parte de
um corpo não? Pra mim lembra costelas. Aqui nessa parte parece que tem os pulmões
aqui e os risquinhos que parece que tá dividido, isso aqui me lembrou a laringe, mas
acho que ele é junto”. Trata-se de uma resposta D EF Anat, cujo inquérito acaba por
introduzir duas respostas adicionais: “Coração partido, parece o meu coração” D CF
Anat (Mor), Auto-Referência, uma representação angustiante logo procedida por outra
resposta adicional, também mórbida: “Duas pessoas conversando, parece que tão
puxando, tão brigando, parece um coração que as pessoas saem puxando e acabam
rasgando” G K- H/Anat MOR. A transparência do corpo é mal vista, determinada pelo
esfumaçado e apresenta certa confusão entre os limites dentro-fora, com visualização
dos órgãos internos, e confusão dos limites entre os órgãos corporais, pulmões, faringe e
coração. O “coração partido” (resposta adicional), faz parte do corpo “danificado” que
durante o proceder do inquérito se torna o próprio coração do sujeito (Auto-Referência),
para em seguida ser visto como objeto de conflito, “duas pessoas que tão puxando... e
acabam rasgando (o coração)”. Apesar de representar claramente a dificuldade no
estabelecimento de limites, a resposta adicional é a única resposta K de conteúdo
humano H em todo o protocolo e parece indicar relevantes dificuldades no
estabelecimento dos limites. Paula é capaz de fazer a diferenciação Eu/Outro, porém o
faz com grande dificuldade e confusão, o que se traduz no protocolo pela representação
120
mórbida auto-referente, indicando a dificuldade de separação e de estabelecimento dos
limites na representação do corpo.
A outra resposta de corpo humano aparece na prancha VII representada por uma
percepção anatômica desvitalizada, “Lembrou o corpo humano, olhando assim... Parece
daqueles livros de escola” G CF Anat. Os limites do corpo percebido são fluídos, a
percepção vista na mancha é duvidosa (“lembrou” o corpo humano “olhando assim”) e
o inquérito é confuso “Eu falei certo? Olhando de lado, parece que é um bicho saindo
de uma espécie de lago. Que estranho”. Frente a negativa da examinanda, o examinador
retoma a pergunta fornecida no inquérito “Corpo humano” e pergunta: O que faz
parecer corpo humano? Então, Paula responde: “Um corpo humano... Ah, parece assim
o corpo humano (Gesticula), as cores, aqueles desenhos de livro de escola”. O
Examinador pergunta então sobre a resposta adicional fornecida: “Você disse bicho
saindo? O sujeito responde: “Assim de lado, ele andando e era o reflexo dele, um
cameleão talvez”. Trata-se de uma resposta adicional, cotada como G kan A (reflexo).
A descrição é confusa, porém transmite o que ocorreu na situação projetiva. O clínico
fica confuso em decorrência da telescopagem de percepções feita na resposta à prancha,
o que indica a dificuldade da participante em manter a representação verbalizada na fase
de associação durante a inquérito. Trata-se de uma falha na função de manutenção e
continência do Eu-Pele, aspecto que será discutido na próxima sessão, cujo aspecto
transferencial se fez presente na clínica da aplicação.
Na primeira resposta dada na associação, a representação de corpo determinada
pelo CF mal visto em uma localização D, é procedida no inquérito por uma resposta
adicional animal em reflexo (“um camaleão”), animal cuja pele é composta por
carapaça dura e de grande capacidade morfogênica. Trata-se de uma tentativa falha de
fornecer uma resposta barreira após a emergência da percepção de penetração” um
bicho saindo de uma espécie de lago” e demonstra a dificuldade no estabelecimento dos
limites na representação corporal.
Paula forneceu apenas uma resposta “pele” (Chabert, 1993) em todo protocolo.
Trata-se de uma resposta fornecida na prancha VII, de temática latente materna. A
resposta foi cotada como global simples, composta por um conteúdo Vest, que não pôde
ser cotado como resposta Barreira por não haver percepto a ser coberto, já que trata-se
apenas de “uma roupa que minha tia tem” e que não cumpre a função de cobrir o corpo,
pois o corpo está ausente na resposta. A resposta é ainda composta por fenômenos
especiais de referência a lembrança pessoal, resposta diminutivo, sendo determinada por
121
um FE mal visto: “Isso me lembrou uma roupa que minha tia tem. Tipo um top que ela
tem” na associação. No inquérito, Paula completa “Ainda disse do Top. Achei que só
tinha pensado nisso. Tô pensando alto demais. Minha tia tem uma blusa que essa parte
de baixo é um top e aí amarra. Examinador: O que faz parecer top? Paula responde:
“Isso aqui embaixo eu acho, parece que tem zíper aqui no meio esse bichinho aqui do
meio. Esse negocinho preto com cinza, parece um zíper”. A única resposta “pele”
apresenta indícios, fornecidos pela qualidade formal negativa, que fortalecem a hipótese
acerca da fragilidade das barreiras e dos limites em Paula.
Em resumo, os dados apresentados no protocolo por Paula apontam para
dificuldades no estabelecimento dos limites e possíveis falhas na representação da
imagem do corpo, pois, embora o F% e o F+% apresentem-se próximos a média, os
limites do sujeito aparecem fluídos, conforme exposto acima (F% ext. baixo em
comparação a norma, presença de resposta “pele”; B:P 1:2; H% e A% baixos).
122
suporte para a percepção clivada do objeto, pois o anjo visto inicialmente é
posteriormente investido por uma conotação persecutória, atribuída por conta da
posição das pernas (“As pernas” fazem o anjo parecer “mau”, em referência a parte
inferior do eixo central).
123
voltado contra si mesma e tornando públicas as feridas que ela sente internamente.
A presença de resposta de tendência a contaminação na Pr. II, o processo de
desvitalização (Pr. VIII “corpo humano de livros de escola”), confusão de detalhes
corporais na prancha II e III (“costelas” seguidas das respostas adicionais “coração” e
“duas pessoas que puxam o coração”) e na pr. II “Borboleta sendo libertada”, seguida
de “sangue expirando” e depois “lembra eu quando eu me cortava”) revelam falhas na
função de manutenção do Eu-Pele. A confusão de detalhes e a tendência a contaminação
indicam a fragilidade das representações em sua solidez que a falta de continuidade das
representações revela. Na contaminação, tendência a contaminação e confusão de
detalhes, o sujeito efetua uma telescopagem de percepções, sobrepondo um percepto a
outra percepção, o que aponta para a descontinuidade e concretude das percepções, que
se apresentam de maneira demasiadamente fluída em seu interior. Esse processo mostra
a falta de suporte proporcionado pelo Eu-Pele em sua função de juntar as representações
internas ao copo. Já a desvitalização remete a constrição dos perceptos, em detrimento
da contenção e transformação das representações no interior do continente psíquico,
fator que é tanto indicador da falta de suporte (manutenção) quanto de capacidade de
contenção (Função continente) proporcionada pela internalização do Eu-Pele (Linhares;
Pinheiro, 2009).
124
mancha sem o comprometimento da qualidade formal (Pr I “Máscara de Helloween).
Apesar da presença de conteúdos persecutórios em tal resposta (Olhos, na parte Dbl da
Pr I), a participante mostrou eficácia em integrar o branco em sua resposta, o que
demonstra certa eficácia do domínio sobre os vazios internos que poderiam
comprometer a solidez da representação de si. Por fim, as frequentes referências ao
clínico, feitas por meio de comentários constituem indicadores de que o sujeito se
utiliza das relações de objeto como auxiliares à função de manutenção (suporte) da
unidade corporal, o que indica a existência de falhas na função de manutenção.
Em resumo, há suficiência de indícios a ponto de poder se afirmar que Paula
apresenta falhas na função manutenção do Eu-Pele.
125
provável que ele procure obter descarga pulsional por meio da expulsão dos elementos
psíquicos, uma vez que a função de continência do Eu-Pele tende a perder sua
capacidade de contenção dos conteúdos nessas situações nas quais as barreiras
interno/externo se rompem.
126
A função de para-excitação do Eu-Pele
127
em se utilizar a sensação do corte feito na pele como suporte para a recuperação dos
limites ilusórios necessários para continuidade da própria existência e, assim, afastar os
fantasmas ligados as dificuldades de separação e destruição do objeto interno,
desprotegido frente a falência das barreiras ineficazes em proteger e conter o objeto
seguro das invasões pulsionais internas e estimulações internas.
Ainda utilizando a hipótese de Matha (2010) sobre as escarificações, como
formas de retorno dos elementos traumáticos, há de se considerar que o abuso sexual do
qual Paula foi vítima, pode conter elementos que ainda não foram suficientemente
elaborados, tendendo a ser expulsos ou a compor formas inadaptadas de descarga, como
o uso de drogas (de acordo com significado atribuído as drogas por Paula) e os cortes do
corpo. Ainda em se considerar as modificações corporais, das quais as escarificações
fazem parte, como tentativas de atualização do corpo em relação a representação de si
internalizada, é possível que os cortes tentem atualizar no corpo a identidade negativa
(“louca” Pr. V; “psicopata” Pr. III) e dissociada (“anjo com chifres” Pr. V).
Por fim, as recomendações clínicas são direcionadas a aprimorar a capacidade de
representação do corpo, a aptidão a internalizar limites dessa representação e das
descargas pulsionais, além do incremento da internalização de um suporte que conceda
solidez ao mundo interno. Nesse sentido, Green (2008) cita a função do analista, como a
função terciária, na qual o analista pensa os problemas do analisando em sua
companhia, o que melhora artificialmente sua capacidade de elaboração no início, e
resulta no decorrer do processo analítica na internalização da capacidade de pensar do
analista pelo analisando. Dessa forma, caso o analista efetue a função de Rêverie a partir
das identificações projetivas de Paula propiciando a transformação dos conteúdos (Bion,
1962/1991), é provável que a capacidade de manutenção e continência dos elementos
psíquicos seja melhorada, a ponto de que o ato possa ser substituído pelo conflito
psíquico, sem que os conteúdos necessitem ser expulsos pelos paroxismos dos atos ou
que as representações precisem ser patologicamente recalcadas.
128
5.3 Estudo de caso Helena (Sujeito 2).
129
com o “Diabo”: “ Tava tão desesperada que acabei fazendo, foi aos treze anos eu fiz
um pacto com o Diabo pra que levasse X. Eu falei que queria que ele morresse de AIDS
e passou uma semana depois ele teve AIDS e faleceu”. O pacto envolvia um ritual do
qual Helena afirmou se arrepender: “Só que depois eu me arrependi e acabei voltando
atrás. Eu já passei um tempo na igreja, tive casos de possessão”. Após ter feito o
“pacto na presença dos quatro guardiões do inferno”, a participante afirma ter tido
episódios de possessão demoníaca durante dois meses, nos quais “meio que o Demônio
toma conta de você e sua alma sai, você se vê ali, mas você não está ali...Ele (Diabo)
entra e expulsa a gente, ele passa a ter a nossa vida e a gente a vida dele, então ele
entra no nosso corpo e a gente desce, a gente fica lá como se fosse ele lá no inferno”.
Os episódios de possessão são entendidos por Helena como “uma penitência pela
quebra do contrato”. Após dois meses, as “possessões demoníacas”, deram lugar a
perturbações que persistem até hoje, sendo constituídas por “visões, aparições e vozes.”
As vozes diziam que “Que eu (Helena) errei de ter feito essa técnica, que quem
sofreu não era só eu. Eu (Helena) estou percebendo isso”. Apesar das experiências
místico-religiosas citadas, a participante afirma não ter certeza na existência de Deus:
“Às vezes eu acho que eu sou ateu, às vezes acho que eu sou católica. Eu estou meio
indecisa assim”.
Aos doze anos, a participante chegou a usar crack frequentemente, tendo
chegado a roubar dinheiro e trocar celulares para consumir a droga. No entanto, ela
afirma ter deixado de usar drogas, após sentir-se culpada pela reação da mãe à época da
descoberta sobre esse fato. Mesmo assim, Helena continuou roubando dinheiro da mãe,
para “chamar a atenção dela”, por achar que a mãe adotiva dava mais atenção ao irmão.
A participante sente-se um “lixo” em relação a seu corpo, pois afirma ter
engordado muito nos últimos tempos, apesar de ter sido magra a maior parte da vida:
“Eu (Helena) penso que eu sou um lixo, eu não gosto do meu corpo”. Por conta disso,
episódios de bulimia marcaram a adolescência da participante que explica: “Eu era
magra e comecei a engordar, aí acabou que aos treze anos...quatorze anos eu
desenvolvi a bulimia. Eu era muito magra, até que eu fui engordando, até que eu
engordei demais. Aí eu olhava no espelho e falava assim: “essa aqui não sou eu, eu
tenho que emagrecer, eu tenho que emagrecer, até que eu fiquei com isso na cabeça. Eu
me sinto uma bola, sinto que eu sou gorda, que eu tenho que emagrecer de qualquer
jeito. Teve um mês aí que eu passei quase o mês todinho sem comer, só tomando suco.
Não me sentia mal, não me sentia culpada por ter comido, até porque eu não estava
130
comendo. Mas quando eu como assim, eu me sinto culpada, aí eu tenho que colocar a
comida pra fora”.
As escarificações.
As escarificações começaram inspiradas em uma reportagem sobre abuso sexual,
na qual uma “menina que passou pela mesma coisa se cortava falando que amenizava a
dor dela. Aí segui o mesmo caminho dela, então, eu (Helena) fui meio que Maria vai
com as outras nessa questão. Eu me cortei depois dessa reportagem que eu vi. E
realmente ela tinha um pouco de razão, me cortar eu me sinto culpada, mas também
aliviada”.
Os cortes no corpo são vistos por Helena como uma forma de satisfazer a raiva
que sente por conta dos abusos sexuais sofridos: “Quando eu lembro de tudo que
aconteceu, eu quero descontar essa raiva, só que não nas pessoas que estão próximas
de mim, porque elas não têm nada a ver com isso, então acaba que eu... Eu sinto um
pouco de culpa também, eu acabo me cortando por culpa e por raiva deles”.
A culpa é explicada pela participante pelo fato de não ter denunciado os abusos
sexuais na época em que eles ocorreram: “eu (Helena) me sinto culpada por não ter
falado antes, por não ter criado coragem antes”. Os cortes são profundos “porque o
tamanho da dor que eu (Helena) sinto é o tamanho do corte que eu dou”.
As escarificações eram feitas com gilete nos braços e nas coxas de Helena, tendo
tido início quando ela tinha cerca de doze anos de idade. Ela foi abusada sexualmente
dos sete aos doze anos de idade e afirma ter começado a se cortar por não “aquentar a
pressão” decorrente dos abusos e dos segredos que eles cobravam. Para Helena, os
cortes foram uma forma de pôr fim aos abusos: “isso tem que acabar, ou eu desconto ou
mim ou nas pessoas que não tem nada a ver com isso. Aí eu preferi descontar em mim
toda essa raiva que eu sentia”. A adolescente está em tratamento psiquiátrico e
psicológico, participando de psicoterapia individual e de grupo.
131
tratamento dos afetos, organização defensiva e as funções de manutenção, continente e
para-excitação do Eu-Pele.
Determinantes Sensoriais.
Outros índices
O Processo de pensamento
O processo de pensamento de Helena tende a ser sintético e prático (G%=56,2;
D%=37,5%) apresentando boa capacidade de realização (G:K=9:3). Helena apresenta
uma forma de pensar pouco analítica e excessiva em seu apelo a objetividade
(F+%77,8; F+% 81,2%), tende a realizar sínteses pela tendência a ligação dos elementos
percebidos (G%=56,2; 5 respostas de ligação). Trata-se de um estilo de pensamento
sintético permeado por uma excessiva objetividade, no qual a estereotipia dos processos
de pensamento e a infantilidade dos julgamentos tende a se fazer presente (A%=56,2%).
Embora apresente um estilo de pensamento incomum ao grupo social de inserção e
faixa etária (Ban%=6,25%), Helena é dotada de juízo de realidade adequado a realidade
consensual, por meio da elaboração de juízo de realidade excessivamente dependente
dos aspectos objetivos dos fatos (F+% 77,8; F+%ext. 81,2). Não há indícios de
132
comprometimento intelectual, apresentando-se indícios de boa capacidade intelectual
(K+=3).
133
O tratamento dos limites
Helena apresenta uma resposta “pele” na prancha VI, “É um peixe, dois peixes,
juntos”, classificada como resposta “pele” e resposta barreira, em razão da percepção de
“escamas”. Em relação a análise da resposta “pele”, trata-se de uma resposta mal vista,
definida pelo esfumaçado e apoiada no duplo da percepção. Esses fatores são indícios
de falhas no estabelecimento de limites. A resposta cotada como D EF A, apresenta o
fenômeno especial de resposta de ligação, que também está presente em outras três
pranchas (Pr. I, II e III), o que indica tendência ao estabelecimento de relações de objeto
anaclíticas. Além disso, a sensibilidade ao branco pode representar tanto sensibilidade
aos afetos depressivos, como pode ser um indicador sensibilidade as falhas dos limites.
A proporção de respostas barreira-penetração, encontra-se na ordem de 1B:1P,
abaixo dos dados normativos, o que indica o sobreinvestimento dos limites pela via da
inibição. Já os indicadores F% e F+% (56,2%, 77,8%, respectivamente) apresentam
valores acima da média e indicam capacidade de delimitação dos limites, que tenderia a
ocorrer por meio do sobreinvestimento e diminuição consequente das trocas com o
ambiente (F% aumentado em relação a norma).
As frequências das respostas H e A (18,75% 41,7%) encontram-se um pouco
abaixo dos valores normativos, apesar de não indicarem, por essa razão, falhas no
estabelecimento de limites, uma vez que as taxas de resposta parciais, Hd e Ad se
mostram relativamente baixas (H:Hd=3:0; A:Ad=8:0). Em resumo, Helena apresenta
indicares de capacidade de estabelecimento de limites, embora o excesso do
sobreinvestimento diminua as trocas em relação ao meio. Paradoxalmente o
estabelecimento desses limites ocorre frequentemente pela via do apelo ao outro
(análise da resposta “pele”; respostas de ligação=4), o que, em se considerando o
sobreinvestimento e a rigidez defensiva (1B:1P; F+%=77,8%; F+%ext. 81,2%)
estabelece uma relação de compromisso: embora Helena seja carente por contato
(respostas de ligação; análise da resposta “pele”), o sobreinvestimento dos limites, tende
a dificultar o contato interpessoal e as trocas com o ambiente.
A função de manutenção
134
Helena forneceu duas respostas apoiadas no eixo central da prancha I. A
primeira foi um “Anjo” (associação) que” parece que tem corpos juntos, aí dá a
impressão que é só uma pessoa, tem as mãos levantadas” (inquérito), resposta G
F+K+ (H), composta pelo fenômeno especial de resposta ligação. A segunda resposta
foi: “Borboleta” (associação), “por causa das asas e furinhos no meio” (Inquérito),
resposta cotada como GDbl FC´ A.
A primeira resposta, por ser composta pelo fenômeno especial de resposta de
ligação, confere indícios de anaclitismo. Portanto a primeira resposta fornecida na
prancha I remete a falhas na internalização da função de suporte (manutenção),
proporcionada pelo Eu-Pele, visto que a percepção de “corpos juntos” remete a
dificuldade de separação e a tendência a se utilizar do outro como suporte. A segunda
resposta “borboleta”, é permeada pela sensibilidade ao branco, utilizado como suporte
para as falhas internas vistas no percepto: os “furinhos” da asa da “borboleta”. Esse
processo remete, além da sensibilidade ao vazio, para o sentimento de descontinuidade
da função continente e excessiva fluidez da unidade corporal. Dessa forma, o sujeito
forneceu duas respostas na prancha I que indicam falhas na função de manutenção do
Eu-Pele.
Na prancha IV, o sujeito forneceu uma resposta: “O monstro” (associação) com
“garras embaixo, pé, e aqui meio que saindo alguma coisa de dentro dele” (inquérito),
resposta banal, G FE (A). Além do percepto visto com “alguma coisa saindo dele”
apontar falhas na manutenção do psiquismo, as garras conferem indícios de
agressividade e a fala “alguma coisa saindo dele”, denota a dificuldades de contenção
dos conteúdos, falhas na função de continência do Eu-Pele.
Na prancha V, ela responde “morcego “G F+ A, só não cotado como banal por
ter sido visto na posição invertida da prancha, o que indica boa utilização do eixo
central e consequente boa qualidade da função de manutenção. A utilização do eixo
central da mancha como suporte de percepções distintas e bem vistas, indica a
internalização do suporte (holding) maternal, o que concede solidez a representação
corporal, conforme já descrito nesse trabalho.
Na prancha VI, a resposta mal vista, “é um, dois peixes, juntos” é determinada
por um EF. A resposta é vista com a prancha na posição vertical e o eixo central é
utilizado para marcar a separação entre o duplo, os “dois peixes juntos”. A progressão
do fio associativo ocorre pela transformação de um peixe, em dois peixes e, finalmente,
na mutação do percepto duplo para um peixe visto em reflexo: “É um peixe, dois peixes,
135
juntos” (Associação), “em cima e embaixo. Ou se não ele pode tá na água e o reflexo
dele tá aparecendo. Aí daí a impressão que é dois”.
Esse aspecto da resposta indica a regressão das relações objetais para relações
narcísicas que, por fim, se transformam em relações especulares, na quais a
diferenciação é reconhecida, apesar de falhar em ser mantida. A incidência de várias
respostas de ligação no protocolo (5 ocorrências, Pr. I, II, III, VI e VIII), a referência a
simetria( Pr. I), a resposta par (Pr. II) e a resposta reflexo (Pr. VI) denotam uma
tendência à relação anaclítica de objeto.
Assim, pode-se concluir que mesmo que a manutenção se mostre adaptativa no
caso de Helena, o modo de utilização do outro como suporte (respostas de ligação) é
indicio da insuficiente internalização do holding. Nesse sentido, o apego à realidade
(F%56,25%; F+%=77,8%) e a tendência às relações anaclíticas visam compensar as
falhas de manutenção do Eu-Pele, que seriam decorrentes das faltas maternas primárias
que resultaram na insuficiência da representação do suporte que confere a solidez a
representação corporal. Uma das consequências desse modo de funcionamento é que
Helena tende a se tornar dependente do objeto e diminuir as trocas com o ambiente.
Em síntese, os valores de F+% e F% acima da média (56,2% e 77,7%,
respectivamente) indicam a tendência em cristalizar e constringir os elementos
psíquicos por meio de defesas demasiadamente rígidas que ocupam o lugar da função de
o suporte ou manutenção desempenhada pelo Eu-Pele (Linhares; Pinheiro, 2009). O alto
número de respostas de ligação e cinestesias marcadas pela ligação das representações
(Pr. II, III) indicam dificuldades de distinção eu-outro e apontam para hipótese de que
Helena se utiliza do outro como suporte condicional para a eficácia da função de
manutenção psíquica.
136
relevante sensibilidade as falhas do continente e ao vazio, aspectos ligados a
depressividade que representam as marcas arcaicas das relações materno primárias
(Roman, 2001), Helena apresenta a capacidade delimitação de um espaço continente
próprio, o que é um indício de eficácia da função continente.
As respostas F% e F+% (56,23% e 77,77%) em valores superiores à média, os
valores de barreira-penetração (1B:1P), em valores diminuídos em relação a norma,
indicam sobreinvestimento dos limites do continente, o que resultaria na diminuição das
trocas com o ambiente, como o modo encontrado pelo sujeito para superar as falhas do
continente e a sensação de vazio. A resposta “pele” fornecida na prancha VII é
caracterizada pela dificuldade de definição do percepto: “É um peixe, dois peixes
juntos”. Nota-se que o peixe, inicialmente unitário, se transforma no duplo para ser
referido como um peixe em reflexo durante o inquérito: “Ou se não, ele pode tá na água
e o reflexo dele tá aparecendo. Aí daí a impressão que é dois”. Apesar de ser uma
resposta barreira, e, portanto, fazer apelo ao investimento dos limites, o desdobramento
denuncia uma tendência de diluição do sujeito no objeto. O Um, o duplo e o reflexo são
tidos pelo sujeito como conceitos quase indistintos, revelando a dificuldade de
separação do sujeito e objeto, que ocorre, apesar do sobreinvestimento dos limites. A
distinção sujeito-objeto é feita, porém não se mantém. Helena apresentaria a tendência a
se “misturar” com o objeto.
Portanto, em síntese, pode-se afirmar que Helena apresenta a tendência a
sobreinvestir os limites, constituindo um continente demasiadamente rígido, cuja
tendência é o fechamento às trocas em relação ao meio. Por meio da rigidez das
barreiras externas, o sujeito salva a existência de um continente em sua função de
estabelecer um espaço próprio, por meio do sacrifício empreendido pela diminuição das
trocas com o ambiente. Entretanto, apesar do sobreinvestimento dos limites, as rupturas
tendem a ocorrer, principalmente no sentido na confusão de limites entre sujeito e
objeto e na rejeição das diferenças, o que indica a tendência narcísica a se misturar com
o outro como forma de suprir as falhas primárias que permeiam o psiquismo (Chabert,
1993).
137
disso, Helena apresentou eficácia em se recuperar das rupturas, pela progressão de F-
para respostas bem vistas, conforme observado na prancha III, na qual resposta
“pulmão, parece um esqueleto que tem a parte aqui, parece um pulmão” determinada
por um F- que é seguida por “duas pessoas com a mão numa árvore, sei lá” resposta
K+, ambas respostas fornecidas na localização G. A progressão da resposta da prancha
III nos indica a capacidade de Helena em transformar a mancha de forma criativa e
eficaz em afastar a angústia. Apesar disso, a resposta seguinte ao percepto mal visto em
transparência carrega a conotação anaclítica indicada pelo fenômeno especial de
ligação. Esse fato nos indica a tendência de Helena em garantir a continuidade do ser,
pela utilização suporte proporcionado pelo outro, aspecto discutido anteriormente.
A resposta EF “Um peixe, dois peixes juntos” fornecida na prancha VI é seguida
das respostas F+ “dois coelhos” e K+ “duas mulheres, uma olhando para outra” na
prancha VII, e a resposta F- “um sapo” na prancha IX é procedida por 4 respostas F+,
“um caranguejo”, “um peixe”, “uma lagosta” e “um cavalo marinho em cima de uma
pedra “, na prancha X. Portanto, Helena apresenta a capacidade de superação das
rupturas, principalmente pelo apego a objetividade e ao outro.
Na prancha VI a resposta mal vista é seguida de uma resposta F+ e de uma
resposta K+, de conotação persecutória, (“Duas mulheres, uma olhando a outra”). Na
prancha IX, a exigência latente da prancha por elaboração do afeto e diferenciação
suscita uma ruptura traduzida pela resposta “Sapo” (D F- A). Trata-se de uma resposta
fornecida após longo tempo de latência (TL: 104´´). A recuperação de tal ruptura se dá
pelo fornecimento de uma resposta Dd F+ A (“Um caranguejo”) na prancha X,
processo que substitui a pele frágil do sapo pela superfície corporal dura do caranguejo.
Essa recuperação indica a tendência a sobreinvestir os limites, como forma de superação
das rupturas.
De uma forma geral, Helena apresenta eficácia adaptativa da capacidade de
transformação da função continente, tendo mostrado eficiência em simbolizar as
pranchas e superar as rupturas causadas pelos conteúdos latentes das pranchas.
Entretanto, a transformação tende a ser feita pelo apego a objetividade e ao suporte
proporcionado pelo outro, o que revela dificuldade de autonomia no desempenhar da
transformações dos conteúdos e falhas nos processos de simbolização.
Em resumo, a o protocolo aponta para o sobreinvestimento dos limites e
diminuição das trocas em relação ao meio; enquanto o aspecto contentor da função
138
continente do Eu-Pele encontra-se condicionado em sua eficácia ao suporte oferecido
pelo outro e aos aspectos objetivos da realidade.
139
dos limites diminui as trocas com o ambiente, constringindo os conteúdos psíquicos, ao
invés de mantê-los de forma neutra, diminuindo assim o espaço entre a para-excitação e
a continência. As barreiras rígidas impedem ainda a emergência da vida afetiva.
Entretanto, a relação continente-conteúdo é preservada.
As barreiras externas, rigidamente defensivas, funcionam como barreiras de
para-excitação, em um funcionamento similar a descrição de Anzieu (1989) sobre os
estados narcísicos, uma vez que o funcionamento das três funções do Eu-Pele de Helena
parecem trabalhar com um objetivo de proteger o psiquismo das intromissões internas e
externas. Helena buscaria, portanto, abolir o espaço entre as barreiras internas e
externas, sobreinvestindo as barreiras externas, solidificando essas barreiras e
diminuindo o espaço de trocas em relação ao ambiente ao nível mínimo possível.
Esse processo defensivo, garante a preservação da relação continente-conteúdo,
pela criação de um envelope duplo, resultante da supressão da diferença entre das
barreiras internas e externas, que acabam por diminuir o espaço de jogo existente entre
elas. A organização defensiva rígida busca negar as falhas dos limites e o afeto
desencadeado pelas estimulações externas. Portanto, o sobreinvestimento dos limites,
pela configuração de um duplo limite, protege a relação continente-conteúdo
proporcionada por Eu-Pele reforçado, o que garante atividade do pensamento e a
integração do Eu psíquico ao Eu corporal.
Ao mesmo tempo em que se trata de uma tentativa de autossuficiência, Helena
permanece dependente do objeto e carente do contato invocado para efetuar a função de
ego-auxiliar da função de manutenção e continente, conforme apontado pelos
indicadores de anaclitismo no protocolo. As relações de objeto acabariam, portanto,
esvaziadas em alteridade, pois o objeto é visto como um desdobramento do sujeito.
Nesse sentido, Helena mostra-se capaz de diferenciar-se do objeto, porém falha em
sustentar tal diferenciação.
Assim o sujeito e objeto permanecem ligados, o objeto funciona como um duplo
a desempenhar a função auxiliar das funções de manutenção e continência do sujeito.
As estimulações externas parecem ter o efeito de desorganizar o psiquismo e, portanto,
tendem a ser evitadas, conforme indicado pelo baixo uso da cor, pela não utilização da
cor nas pranchas II e III e pelo choque na prancha IX. A organização defensiva
narcísica, entretanto, mesmo que pela via do sobreinvestimento dos limites do
continente que resulta na diminuição da distinção entre as funções a para-excitação e
continência, consegue manter a eficácia dos limites e o contato adaptativo com a
140
realidade. O anaclitismo e a rigidificação dos limites parecem ter sido as estratégias
encontradas pelo sujeito para garantir a continuidade da existência interior.
Assim, a dependência de drogas, os pequenos furtos e os cortes no corpo,
parecem ser tentativas de encontrar objetos anaclíticos que a auxiliem a afastar os
excessos pulsionais. O estabelecimento de relações anaclíticas buscaria a
autossuficiência em relação ao meio: o objeto é visto como um continente distinto,
porém ligado a Helena, como um continente auxiliar no efetuar das funções de Eu-Pele,
que se mostram falhas sem a presença do outro. A rigidez dos limites externos parece
funcionar como uma solução de compromisso em relação a temática da separação; ao
mesmo tempo que o sobreinvestimento garante a autossuficiência buscada, o
anaclitismo, por outro lado, garante que o sujeito permaneça ligado ao objeto. Cria-se
um compromisso no qual a aproximação do outro é invasiva como é a incorporação
demoníaca relatada na entrevista clínica: Ele (Diabo) entra e expulsa a gente, ele passa
a ter a nossa vida e a gente a vida dele, então ele entra no nosso corpo e a gente desce,
a gente fica lá como se fosse ele lá no inferno”. Por outro lado, a distância do outro é
sentida como abandono, que suscita atos que capturem a atenção do outro, como furtar a
mãe e usar drogas para “chamar a atenção”.
Há ainda de se considerar o papel desempenhado pela culpa nas condutas de
risco e nas escarificações do caso de Helena. Freud (1924/1996) afirma que a culpa
pode anteceder o ato, sendo a passagem ao ato proibido uma forma de propiciar a
ligação do sentimento de culpa a um acontecimento real sobre o qual o sujeito teve o
controle. Esse parece ser o caso de Helena: os pequenos furtos do dinheiro da mãe, o
uso de crack e os cortes no corpo são atos que causam a culpa por impactar a mãe,
porém também servem para propiciar o alívio: “me cortar eu me sinto culpada, mas
também aliviada”
O tratamento de Helena tende a ser eficaz caso o terapeuta seja capaz de
diminuir a dependência do sujeito em relação ao objeto, ao mesmo tempo em possa
proporcionar o desenvolvimento das capacidades de ligação do afeto e da percepção da
alteridade. O sentimento de culpa, caso possa ser elaborado na psicoterapia, tende a ser
amenizado e com isso contribuir para o remanejamento das defesas estabelecidas de
maneira rígida. Segundo Anzieu (1989), o incremento da função contentora do Eu-Pele
tende a ser eficaz no tratamento das personalidades narcísicas. Dessa forma, caso o
terapeuta consiga propiciar o desenvolvimento das capacidades de simbolização e
141
transformação dos conteúdos, é possível que Helena apresente melhora em seu
funcionamento narcísico.
142
irmãos, filhos de vários relacionamentos dos pais de José, é mais amena e mais
próxima. Um avô, falecido há dois anos, foi descrito como a pessoa mais próxima de
José: “Ele (o avô) era o melhor que tinha. Que eu (José) já tive. Porque ele sabia que
eu me cortava, que eu já me droguei, que eu bebia, que eu tinha essas vozes também...
Aí eu acho que quando ele morreu foi quando eu fiquei mais sozinho mesmo.”
Os pais de José divorciaram quando ele estava com seis meses de vida. Ele
continuou a morar com a mãe até os dois anos de idade, quando voltou a morar com o
pai. Dois anos depois, José regressou a casa da mãe, permanecendo na residência dela
por mais cinco anos. Aos nove anos, José voltou a morar com o pai e meio irmãos mais
velhos, antes do casamento do pai do participante com sua atual madrasta .
José contou sentir-se triste “a maior parte do tempo”: “Ela não chega (a
tristeza), ela sempre esteve comigo. Ela é uma coisa onipresente. Qualquer momento
que eu esteja, eu estou triste, sei lá. Chega até ser meio estranho isso, porque não
passa, é uma coisa que não passa nunca e isso me deixa angustiado, né. Me deixa mais
angustiado”. A intensidade do sentimento de tristeza aumentou no período da
adolescência, conforme os relatos de José: “quando eu era criança eu não sentia tanta
tristeza quanto eu sinto agora. ”
José fala na entrevista de ouvir vozes. Segundo informa as alucinações auditivas
são compostas por vozes de comando: “Elas (vozes alucinatórias) que ficam mandando
eu fazer as coisas que eu faço. Eu acabo fazendo, porque as vezes faz elas pararem de
falar por um certo tempo”. Também são comuns alucinações auditivas de conteúdos
auto-depreciativos e de culpa: “Elas (vozes alucinatórias) falam que eu sou idiota, que
eu (José) não presto”.
Segundo José, a intensidade das vozes aumenta quando ele está triste, sendo esse
aumento seguido pelo agravamento dos sentimentos de angústia e tristeza
experimentados por ele: “As vozes elas (vozes alucinatórias) ficam mais fortes, elas
começam a falar mais. E eu fico com vontade de me matar, eu não tenho vontade de
levantar da cama, tipo essas coisas. Perco a vontade de falar com as pessoas... Quando
eu tô feliz elas... Eu não chego a ficar feliz, feliz... Mas quando eu tô um pouco mais
feliz que o normal eu fico ouvindo elas, mas não é tanto”.
Além das vozes, foram relatados episódios alucinatórios visuais, nos quais uma
“sombra fica parada em um lugar só me (José) olhando, uma pessoa que fica parada
me olhando”. Durante os episódios nos quais há a aparição da “sombra” as vozes
aumentam em intensidade causando o incremento dos sentimentos de tristeza e raiva
143
sentidos pelo participante.
A culpa parece ser um tema central para José, que afirma sentir-se culpado pela
morte do avô, falecido há dois anos vítima de um acidente vascular cerebral. Apesar da
natureza da causalidade da morte do avô, com o qual José havia estabelecido boa
relação, o participante afirma sentir-se culpado: “as vozes que ficam falando que eu
(José) sou culpado pelo o que acontece com as pessoas que ficam perto de mim. Elas
falam que aquelas coisas acontecem por minha causa e às vezes eu acabo acreditando
nelas... As vozes falam que eu sou culpado pelo fato dele ter ficado doente, mas às vezes
eu acabo acreditando nelas, as vezes não”. O constante sentimento de culpa é
explicado pelo sujeito como se “você tivesse quebrado um copo muito caro da sua
mãe... Algumas coisas dão pra reparar, mas outras não. ”
As escarificações
As escarificações são feitas por facas, estiletes e giletes nos braços, pernas e
dedos, por causar uma “sensação boa” de alívio, uma vez que os cortes pelo corpo estão
relacionados, nesse caso, a experimentação de um sentimento de liberdade e alívio das
alucinações auditivas persecutórias, como relatou José: “Sei lá. É como se eu tivesse me
libertando de alguma coisa que tem dentro de mim. É como se as vozes parassem. ” A
dor provocada pelos cortes, às vezes profundos, às veze superficiais, a depender do grau
de sentimento de “angústia”, faz José sentir-se vivo, como ele explicou: “É uma dor
boa até, porque me faz mostrar que eu ainda tô vivo. Que eu ainda presto pra alguma
coisa...Eu tento saber (por meio das escarificações) se eu ainda tô vivo. Se eu ainda
sinto alguma coisa”.
José faz tratamento psiquiátrico, tendo sido receitada medicação anti-psicótica.
A equipe suspeita de esquizofrenia. Na época da coleta de dados, ele estava à espera de
atendimento psicoterápico.
144
Tabela 5.4 Psicograma do protocolo de José.
Determinantes Sensoriais.
Outros índices
O processo de pensamento
145
que indica que José tende a voltar sua atenção mais para o mundo externo e para os
outros do que para si. Além disso, está presente em José a predisposição a
excitabilidade aumentada e dificuldades no controle dos impulsos (FC:CF+C=0:2), que
caracterizam um tipo de funcionamento impulsivo-explosivo com predisposição a
utilização de descargas inadequadas (Traubenberg, 1970).
Há indícios de forte experimentação de afetos ligados a ansiedade e a angústia
(∑E=2,5; índice de angústia= 53,3%), que denunciam a falha dos mecanismos de defesa
ou insuficiência dos mecanismos de elaboração do excesso pulsional. O índice Dbl%
dilatado (26.7%) indica existência de afetos distímicos ligados ao sentimento de vazio
(Roman, 2001). O índice de reatividade afetiva ou RC% (26,6%) em frequência
diminuída em relação a norma, aponta para baixa sensibilidade a situações afetivas.
A resposta fornecida na prancha V indica instabilidade da representação de si
(“Esse aqui é definitivamente uma borboleta, mariposa ou borboleta. Acho que só isso
mesmo. Não parece que tem outra imagem não” Pr. V). O índice H% (13,3%) aponta
para dificuldades de identificação, ao passo que o H<Hd (2:5) remete a dificuldades de
integração da imagem corporal (Chabert, 1998).
A organização defensiva
O alto índice de angústia e a ansiedade apresentada por José (∑E=2,5; índice de
angústia= 53,3%) indicam falhas na efetividade da organização defensiva em manter
angústia em níveis propícios para sua elaboração. Protocolo se apresenta lábil, o que
indica a preponderância do afeto sobre a representação, ao mesmo tempo em que a
angústia em relação ao corpo se faz bastante presente (Anat=3; Hd=5; índice de
angústia=53,3%). A reposta na prancha VIII apresenta-se de forma bastante ilustrativa
no que se refere a angústia relativa ao corpo: “Parece uma caixa toráxica aberta, como
se alguém tivesse ferido. Uma autópsia no corpo. Sei lá, essa aqui é um pouco
perturbante. Me perturbou um pouco. Acho que só isso” resposta G F- Anat, conteúdo
mórbido. Além da angústia em relação ao corpo, comparece no protocolo uma
aumentada sensibilidade ao branco (Dbl%= 26,7%) que revela existência de
sentimentos depressivos ligados ao vazio. Dessa forma, o protocolo lábil demonstra
tanto angústia relativa ao corpo quanto denuncia a angústia de perda de objeto
possivelmente responsável pelos sentimentos depressivos.
146
O tratamento dos limites
José, 17 anos, do sexo masculino, apresenta vários indicadores de fragilidade
dos limites (F%=40%; F+%=33,3%; F+%ext=40%; B:P:0:2; H%=13,3% e A%=20%;
H<Hd; H=2; Hd=5). Em uma análise mais qualitativa pode-se perceber grande angústia
corporal, indicada pelas respostas permeadas pela transparência que remetem a
fragilidade do envelope corporal: “Parece caixa toráxica aberta, como se alguém
tivesse ferido. Uma autopsia no corpo” G F- Anat Pr. VIII; “Parece o esqueleto de
alguém. Como se tivesse tirado um raio x” G FE- Anat Pr. IX. Na prancha I, a resposta
incialmente apreendida como H se torna a Hd durante a parte do inquérito, na qual as
“Duas pessoas, de costas, um de frente pro outro” relatadas na associação se
transformam em parte do corpo, o rosto das pessoas, “olho, nariz e boca” (DdDbl F-
HHd). Esse fator parece indicar que a representação corporal íntegra é até percebida,
porém é dificilmente sustentada. Essa hipótese é fortalecida pela análise das duas
respostas H. A primeira é mal vista e arbitrária “duas pessoas, de costas de frente para
o outro” (Pr. I DdDbl F- HHd). A segunda resposta H ocorre na prancha III,
apresenta movimento humano banal. Entretanto, a evolução da resposta de movimento
humano denuncia a fragilidade do envelope corporal e as falhas na representação da
imagem corporal: “Uma mulher segurando alguma coisa de cada lado” na parte da
associação e “tão (Estão) segurando uma cabeça, alguma coisa assim” na parte final do
inquérito (Pr III D K H). Novamente, a percepção íntegra de corpo dá lugar, no decorrer
do discurso, a representações parciais, o que indica a incidência de falhas nos limites e,
até mesmo, na representação de imagem corporal. Portanto, em resumo, José apresenta
sérios problemas de estabelecimento de limites, acompanhado de forte angústia corporal
e falhas importantes na representação, não apenas do Eu-Pele, mas de toda
representação da imagem corporal.
147
meio da imagem” Dbl F- Hd Par). Nas três respostas citadas, a utilização do branco
como suporte para a construção da forma se mostrou falha, o que é um indício de
ineficácia da função de manutenção do Eu-Pele (Roman, 2001). Como pode ser
observado na resposta da prancha X, o branco intramacular não pôde ser integrado, por
invadir a percepção, comprometendo a utilização da forma. Esse fato remete a falhas
nas funções de manutenção e continência do Eu-Pele (Roman, 1996).
O espaço em branco se faz presente nas duas respostas fornecidas na prancha I; a
primeira resposta “duas pessoas” (DdDbl F- HHd) é procedida pela resposta
“mariposa com asas abertas” (GDbl F+ A), o que demonstra boa capacidade do sujeito
de superar a ruptura, apesar de ter havido a falha da utilização do eixo central na
elaboração da primeira resposta.
148
tendência a contaminação denuncia a falha da função de manutenção: a representação
não se sustenta, tende a se perder.
149
sustente.
Apesar dos índices relativos ao controle dos afetos (FC:CF+C=2:1; FE:EF+E:
3:1), um considerável número de resposta de cor e esfumaçado modulados pela forma
apresentam qualidade formal negativa (FC-=1; FE-=1; F+%ext.=46,7%), o que indica a
fragilidade do continente. Além disso, o aumento da soma de determinantes de
esfumaçado em relação aos determinantes de cor e em relação as pequenas cinestesias
(∑C: ∑E=2:2,5; ∑k: ∑E=1:2,5) e o alto número de respostas Par (frequência de 4
ocorrências) apontam para falhas da função continente do Eu-Pele.
A análise da sequência associativa ocorrida durante o processo de aplicação do
Rorschach indica falhas no aspecto contentor do Eu-Pele, em transformar as sensações
em representações. No Rorschach, a superação das rupturas e os processos de
simbolização frequentemente se mostraram falhos. Por exemplo, na prancha II, a
resposta “dois cachorros, um de cada lado” (Pr. II. DDbl F+ A Par) é seguida da
resposta “duas manchas vermelhas que parecem formar dois pulmões e um fêmur” (Pr.
II D CF- Anat). Na prancha IV, a resposta “parece uma árvore com galhos bem longos
e grossos” resposta (G cortado FE+ Pl) é seguida da resposta “Parece que tem um rosto
no meio da imagem” (Dd EF- Hd). Na progressão das prancha VII, para VIII e para IX,
todas respostas são determinadas por F-, o que demonstra a dificuldade de José em
superar as rupturas por meio de transformações criativas e pelos processos de
simbolização. Além disso, a persistência do tema “rostos” (Pranchas III, IV, VI, VII e
X), além do caráter persecutório que carrega, demonstra a dificuldade de José em
transformar criativamente as manchas, o que é um indício de falhas no aspecto
contentor do Eu-Pele.
150
determinantes FC- e FE- na composição das formulas (FC-=1; FE-=1) indicam falhas
no manejo das estimulações internas e externas.
151
barreiras que dificulta a tarefa de distinção entre o dentro e o fora, entre a fantasia e a
realidade. Por mais que o sujeito tenha demonstrado certa capacidade de apreender
dados da realidade (Ban=6,7%), as construções imaginárias tendem a invadir e distorcer
a realidade consensual.
152
CAPÍTULO VI.
CONSIDERAÇÕES FINAIS.
153
A organização do Eu-Pele se mostrou distinta em cada participante da pesquisa,
tendo os casos clínicos descritos no capítulo V se ocupado de salientar essas
vicissitudes. Embora os resultados do Rorschach tenham demonstrado falhas nas
funções de manutenção e para-excitação do Eu-Pele em todos os adolescentes avaliados,
nota-se que parte dos adolescentes apresenta a capacidade de delimitar o continente,
apresentando certa eficácia adaptativa da função continente do Eu-Pele, portanto. Essa
eficácia é proporcionada pelo sobreinvestimento dos limites, apresentado por quarenta
por cento dos participantes (40%). Os demais adolescentes avaliados apresentaram
falhas na delimitação do continente (60% dos adolescentes avaliados), sendo esse o
aspecto de distinção deles em relação ao restante dos participantes, já que todos os
adolescentes apresentaram falhas nas funções de manutenção e continência do Eu-Pele.
Essa configuração de resultados permite pensar os casos a parir de dois eixos: a)
os casos dos sujeitos que investem excessivamente o continente; b) os casos dos sujeitos
permeados pela fragilidade do envelope psíquico. Sobre esse aspecto, os adolescentes
que apresentaram fragilidade dos limites (60%) apresentaram falhas em todos os
aspectos das funções do Eu-Pele, ao passo que os participantes que se utilizam dos
sobreinvestimento dos limites (40%) obtiveram resultados que demonstram a eficácia
de um único aspecto da função continente do Eu-Pele: o aspecto contentor. Portanto,
pretende-se partir da recapitulação função continente do Eu-Pele.
154
continente. Um dos tipos é composto pela parcela dos adolescentes (40%) que
apresentou indícios de falhas na internalização do aspecto ativo e transformador da
função continente (aspecto contentor), apesar de deter a capacidade de delimitação do
continente. Tratam-se dos mesmos participantes que apresentaram sobreinvestimento
dos limites. A analogia é bastante simples, o sobreinvestimento dos limites preserva a
relação entre continente/conteúdo, apesar de sacrificar a vida afetiva e fantasmática pela
elaboração de uma barreira de contato excessivamente investida (Chabert, 1993).
O outro tipo de configuração da função continente do Eu-Pele identificada
apresenta-se falha em seus dois aspectos, continente e contentor. Esse tipo de
organização foi encontrada entre os participantes que apresentaram índices de
fragilidade dos limites (60%). Tal correlação é condizente com os resultados relativos
ao modo frágil de investimento dos limites apresentado por eles, pois o fracasso no
estabelecimento dos limites acaba por inviabilizar a construção de um continente seguro
onde os conteúdos possam ser depositados. Assim, todos os participantes com indícios
de fragilidade dos limites apresentaram, concomitantemente, falhas na delimitação de
um espaço interno que pudesse servir como receptáculo a conteúdos (aspecto
continente), segundo os indicadores do Rorschach.
Esses casos remetem a uma problemática mais arcaica em comparação ao grupo
que sobreinveste os limites, pois além de falhas na internalização do rêverie (Bion,
1962/1991) os sujeitos com fragilidade dos limites mostraram indícios de dificuldades
na delimitação do continente. Assim, essa parcela da amostra exibiu um tipo de
funcionamento no qual as barreiras do continente são excessivamente permeadas por
falhas e as possibilidades de simbolização mostram-se insuficientemente disponíveis.
Esse tipo de funcionamento do Eu-Pele apresentado em sessenta por cento dos
participantes (60%), remete à duas possibilidades de funcionamento de Eu-Pele
descritos por meio de duas metáforas por Anzieu (1989): o núcleo sem casca (envelope
de sofrimento) e o Eu-Pele escorregador.
O núcleo sem casca, remete a uma angústia causada pela excitação pulsional que
apresenta-se difusa por não poder ser localizada, amenizada, muito menos elaborada,
em decorrência da ausência de limites continentes suficientes para delimitar os afetos. A
pulsão precisa ser localizada no corpo e o excesso de falhas no continente fragiliza a
representação do envelope psíquico. Dessa forma, a dor física e o sofrimento se
encarregam de “envolver” o sujeito, tratando de criar uma espécie de “envelope de
sofrimento” que atua como continente do núcleo composto pelos afetos (Anzieu, 1989).
155
Esse parece ser o caso do Sujeito 3 (José): a insuficiência da representação da
continuidade do continente, o impede de localizar os afetos na superfície corporal e
dentro do corpo. As vozes alucinatórias apresentadas por ele, são localizadas fora do
continente, sendo entendidas por ele como vozes vindas de outras pessoas. A tristeza
“presente desde sempre” atua como um fundo continente que envolve a vida psíquica (o
núcleo) de José (Sujeito 3). Os limites corporais dele apresentam-se organizados de
maneira similar ao anel de Moebius, onde as faces dos limites são ao mesmo tempo
internas e externas. Em razão disso, o que é interno se torna externo, que se torna
interno no desencadear de uma cadeia que encerra-se em si mesma: “o conteúdo mal
contido se torna um continente, que contém o mal” (Anzieu, 1989, p.143).
156
melhor que não sentir nada, pois o sofrimento remete a dor da existência, o vazio remete
a morte: “Sofro, logo existo” (Anzieu, 1989, p.235). Nesse sentido, as escarificações
seriam o oposto do suicídio, pois o suicídio visa a aniquilação da existência, ao passo
que as escarificações buscam permitir a continuidade da existência, mesmo que ela
ocorra pela via da dor e do sofrimento (Le Breton, 2003).
Já em relação aos adolescentes que se utilizam de barreiras sobreinvestidas e
que, portanto, apresentam continentes demasiadamente reforçados e sem espaço para as
trocas com o ambiente (40%), pode-se pensar em um de Eu-Pele organizado em dupla
barreira (Anzieu, 1989). A dupla barreira busca sustentar a fantasia de pele invulnerável
a qual, por sua vez, resguarda o sujeito da fantasia de pele rasgada ou descarnada
(Anzieu, 1989). A organização do Eu-pele de dupla barreira guardaria portanto uma
função defensiva: afastar a fantasia de pele descarnada e sustentar a ilusão de ser
invulnerável.
Com esse intuito, o Eu-Pele em dupla barreia é construído por duas operações. A
primeira alteração em relação ao Eu-Pele “normal” consiste em unir as duas barreiras do
Eu-Pele, colando-se as barreiras internas com as barreiras externas, o que coloca o
envelope como principal interesse de investimento do sujeito. A segunda modificação
consiste em duplicar a barreira, criando uma espécie de escudo invulnerável, similar a
representação da égide de Zeus na mitologia grega (Anzieu, 1989). O resultado desse
processo culminaria em um isolamento esplendido, por meio do qual o sujeito almeja se
bastar, se tornar independente do objeto (Chabert, 1993) e ao mesmo tempo sustentar a
fantasia de pele invulnerável que engloba simbolicamente o continente do infante e do
objeto primário.
Entretanto, as falhas nas funções de manutenção e para-excitação foram
apresentadas por todos os sujeitos avaliados, inclusive pelos sujeitos com organização
do Eu-Pele em parede dupla. Isso significa afirmar que, apesar do sobreinvestimento
dos limites e do Eu-Pele organizado em parede dupla, o núcleo interno a essas barreiras
apresenta-se fluido e os processos de para-excitação ainda assim apresentam-se falhos.
Esses fatores impedem o almejado isolamento e independência do objeto buscada pelo
sobreinvestimento dos limites. Em decorrência disso, o sujeito permanece dependente
do outro para efetuar o suporte do psiquismo e a para-excitação. Essa dependência
permite que as falhas das relações de objeto causam frustrações que implodem a
organização defensiva descrita acima, suscitando a fantasia a todo custo evitada: a pele
rasgada é então representada no corpo.
157
Acredita-se, portanto, que as escarificações representam a fantasia da pele
descarnada: as frustrações narcísicas induzem o sujeito a representar o trauma da
separação por meio da compulsão em repetir a separação traumática, permeada pela
fantasia da pele rasgada. Assim, as escarificações, nesses tipos de casos, representam os
elementos da fantasia masoquista inerente a elas: arrancar, esfolar ou cortar a pele, pois
a separação do objeto é sentida como uma violência que rasga a pele, no interior da qual
o sujeito guarda luta para guardar a ilusão de fusão com o objeto.
Em relação a discussão dessa problemática no contexto da adolescência,
podemos inferir que este é o tempo de redefinição das formas corporais e do modelo de
contato com o outro (Cardoso, 2011). Essas mudanças podem provocar a
desorganização do Eu, principalmente se a capacidade de estabelecer limites for
demasiadamente fluída ou rígida (Drieu; Proia-Lelouey; Zanello, 2011). O adolescente
ainda enfrenta a tarefa de ligar excesso pulsional desencadeado pela sexuação da
puberdade (Gutton,2002). Caso tal excesso pulsional supere a eficácia dessas
construções narcísicas em estabelecer limites, conter, transformar e para-excitar o
excesso de estimulação pulsional, a puberdade tende a ser experienciada como um
período traumático.
158
escarificações seriam ainda tentativas de efetuar a diferenciação em relação ao mundo
(Le Breton, 2003), tarefa dificultada pela fragilidade ou sobreinvestimento dos limites;
além das falhas do Eu-Pele apresentadas.
Entre os adolescentes avaliados, quarenta por cento 40% apresentaram histórico
de abuso sexual na infância. Acredita-se que o abuso sexual aumente o excesso
pulsional traumático e dificulte mais ainda o período adolescente, tempo de ocorrência
do segundo tempo do trauma desencadeado pelo abuso sexual na infância. O resultado
desse processo seria a representação das situações traumáticas por meio do ato de se
cortar (Drieu; Proia-Lelouey; Zanello, 2011; Matha, 2010). Nesses casos, os cortes no
corpo visariam não apenas representar a separação e efetuar a diferenciação por meio da
inscrição de traços na pele (Le Breton, 2003), mas também seriam decorrentes da
compulsão a repetição daquilo que não pôde ser representado ou elaborado e, em
decorrência disso, acabaria por ser atuado (Matha, 2010).
159
desse suporte ocorre na eficácia da função de manutenção do Eu-Pele, entretanto nos
casos patológicos da função, o sujeito permanece dependente do suporte proporcionado
pelo outro, como condição para unificação do psiquismo (Anzieu, 1989).
Nesse sentido, as falhas da função manutenção do Eu-Pele, associadas a
ocorrência de respostas de ligação em oitenta por cento dos casos (80%), indicam a
tendência a dependência do objeto, utilizado como suporte capaz de amenizar as falhas
na manutenção do psiquismo.
A excessiva dependência se refere a baixa capacidade de estar só (Winnicott,
1969), o que resulta na baixa tolerância do sujeito em relação a separação do objeto. Em
se considerando a hipótese acima, a separação é experienciada como um rasgar da “pele
comum” entre sujeito e objeto (Anzieu, 1989, p. 142). A fragilidade da internalização
do suporte e as decorrentes falhas nos processos de manutenção desempenhados pelo
Eu-Pele abalam a segurança do sentimento de si e do sentimento de habitar uma pele
individualizada (Anzieu, 1989).
Essa insegurança seria amenizada pelas escarificações, que se encarregariam de
garantir a continuidade da existência, por meio dos cortes (Le Breton, 2003). Na
ausência do objeto, o sujeito se encarregaria de amenizar a fluidez do psiquismo pelo
apego a dimensão sensorial da dor. Em se considerando a hipótese de Minkowska
(1956) sobre as respostas de ligação denotarem apego ao sensorial em detrimento ao
racional, a dor desempenharia o recurso ao sensorial que trataria de invadir o psiquismo
e garantir a diminuição dos pensamentos ansiogênicos que superam a capacidade de
transformação do continente e dissolvem a unidade do psiquismo. A única
transformação possível de ser efetuada, não seria a elaboração da experiência de
sofrimento, mas a transmutação do sofrimento em dor física causada pelos cortes.
O apego ao sensorial, a dor, denotaria uma tendência ao anti-pensamento: o
apego a sensação que objetiva diminuir a atividade do pensamento. (Chabert;
Ciavaldini; Jeammet; Schenckery, 2006). Assim, as escarificações seriam uma maneira
de efetuar o sobreinvestimento do sistema perceptivo motor e provocar o afastamento da
atenção em relação sofrimento ligado a conteúdos que emergem à consciência do
sujeito, mas que não podem ser elaborados em razão de falhas no aspecto contentor do
Eu-Pele.
Portanto, as escarificações parecem estar associadas a tentativas de
reasseguramento do sentimento de si e do habitar de uma pele individualizada (Le
Breton, 2003) em pelo menos oitenta por cento dos participantes da presente pesquisa.
160
Para concluir, o sucesso dos processos de internalização de um Eu-Pele saudável
propicia o desenvolvimento do sentimento de habitar uma pele continua e contentora
das lembranças, sensações e pensamentos decorrentes da experiência. A internalização
do Eu-Pele “normal” é eficaz no desempenhar de suas funções e incrementa a
capacidade de transformação das sensações e de para-excitação dos estímulos. Essa
configuração de Eu-Pele desenvolve um envelope de bem-estar o qual o sujeito guarda
o sentimento de habitar (Anzieu, 1989).
Nenhum dos adolescentes avaliados apresentou resultados de Rorschach que
apontem a instauração da representação de Eu-Pele como um envelope de bem-estar.
Pelo contrário, os resultados apontam para organizações de Eu-Pele permeadas por
traços do masoquismo e do narcisismo na internalização do Eu-Pele, em três tipos: a)
Envelope de sofrimento ou Núcleo sem casca (10%); b) Eu-Pele peneira ou
escorregador (50%); c) Eu-Pele em dupla barreira (40%). Esses resultados apontam para
o alongamento temporal da fantasia primária de “pele comum”, cuja insuficiente
superação originaria duas fantasias secundárias: a fantasia da pele rasgada, identificada
nos casos que apresentaram fragilidade dos limites (60% dos adolescentes avaliados); a
fantasia da pele invulnerável (dupla Superfície de contato), inferida de quarenta por
cento da amostra (40%) a partir dos resultados apresentados.
Esse aspecto aponta que todos os participantes apresentam dificuldades de
separação do objeto. A elaboração da separação é dificultada pela fragilidade da
constituição das bases narcísicas e das funções do Eu-Pele, pois ou os limites estão
muito frágeis, como foi apresentado por sessenta por cento (60%) dos participantes, ou
as barreiras são demasiadamente investidas, conforme apresentado por (40%) dos
adolescentes avaliados. A dificuldade de separação do objeto instaura uma necessidade
por relações anaclíticas, nas quais o objeto é utilizado como Ego auxiliar.
Todos os sujeitos apresentaram patologia do investimento dos limites e falhas
em pelo menos duas funções do Eu-Pele. Essas fragilidades narcísicas tenderiam a
dificultar a elaboração das demandas típicas do tempo da adolescência.
Enfim, podemos concluir que as escarificações parecem ser tentativas de
representação de situações traumáticas (Drieu; Proia-Lelouey; Zanello, 2011; Matha,
2010), formas de garantir o sentimento de unidade e continuidade da própria existência
(Le Breton 2003; 2010) e estratégias de apego ao anti-pensamento para propiciar o
alívio dos elementos que emergem a consciência e comprometem a unidade do
psiquismo em razão de dificuldade de sua elaboração.
161
O tratamento desses pacientes requer a reconstituição das funções do Eu-Pele
que se mostram falhas, pois o sucesso dessa operação aumentaria a capacidade dos
pacientes em pensar, conter e transformar o sofrimento, sem utilizar de mecanismos de
cisão e identificação projetiva que acabam por sacrificar a unidade do psiquismo. O
desenvolvimento dessas funções, associado ao trabalho de remanejamento dos
investimentos nos limites, proporcionaria um maior recurso a recordação e elaboração,
em detrimento do ato da escarificação. Sobre esse aspecto, o caso Laura (Descrito no
capítulo V) parece ser bastante ilustrativo.
162
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71-84.
S, K., Smith , S. R., Baity, M. R., & Hilsenroth , M. J. (2008). Rorschach correlates of
adolescent self-mutilation. Bulletin Menninger Clinic Winter 72(1), pp. 54-77.
169
Winnicott, D. (1969). La capacité d´être seul (Original pulicado em 1958). Em D.
Winnicott, De la pédiatrie à la Psychanalyse . Paris : Payot.
170
ANEXO A
Voluntário:_______________________________________ RG:___________________________
Assinatura:__________________________________________Telefone:________________________
Nome do pesquisador:_____________________________Assinatura:____________________________
171
Anexo B
1 - Identificação:
Você estuda? Em quais escolas estudou? Teve mudanças de escola, Por que? Como é a
sua frequência escolar? Gosta da escola? Como é a convivência com os colegas de
escola? Quais as atividades que participa? O que mais gosta na escola? Como é seu
comportamento na escola? Você já fez algum curso técnico ou profissionalizante? Quais
os seus planos e o que pensa para o futuro? Pretende continuar estudos? Pretende
trabalhar? Tem algum ideal de estudo ou profissional?
3 - Saúde
Você já teve algum problema grave de saúde? Você alguma vez recebeu atendimento
psicológico ou psiquiátrico? Já tomou algum remédio para problemas nervosos? Você é
muito agitado? Você já ficou muito triste ou se sentiu em situação de abandono?
Alguém da sua família já teve problemas mentais? Quem?
4 - Vida familiar
Você vive com seus pais naturais? Com quem você vive? Como foi sua infância e
adolescência a família? Quais as idades das pessoas que convivem com você? Como é
sua vida em família? Como é a convivência com seus pais? Eles são carinhosos e
protetivos? Eles são agressivos? Já se sentiu abandonado ou agredido em casa? Há
situações de conflitos com agressões em família? Os seus pais tem muita influência
sobre você? Com quem se sente mais ligado, com quem mais se identifica (com quem
tem mais relação de confiança, em quem se apoia)? Por que? O que seus pais fazem
para sobreviver? Eles convivem bem? Eles brigam ou se agridem fisicamente? Eles
alguma vez se separaram?
Você tem amigos? Você os conhece? O que é amizade para você? Como é seu
relacionamento com eles? Tem algum amigo especial? O que faz junto com eles?
Costuma fazer suas atividades sozinho ou em grupo? Costuma se divertir sozinho ou em
grupo? Como se sente com os amigos? Tem confiança neles? Eles tem confiança em
você? Acha que pode contar com eles? Em que situação? Já recebeu ajuda de algum
deles? Em que situação? Já fez alguma coisa junto com eles que levou a problemas com
172
a lei? Como foi? Que consequências teve? Você já viveu alguma situação de violência
ou traumática com seus amigos? Como aconteceu?
6 - Relacionamentos afetivos
Você bebe (ingere bebida alcoólica) ou usa drogas? Que tipo? Desde que idade?
Alguém da sua família já teve problemas com uso de álcool ou drogas?
8 - Autoimagem e perspectivas
O que você acha de si mesmo? Como é sua autoestima? Classifique sua autoimagem
numa escala de zero a dez. Qual foi a sua maior tristeza ou decepção? Qual foi a sua
maior alegria? Você está satisfeito com a sua vida até agora? Está faltando alguma coisa
na sua vida? O que? Tem algum aspecto da sua vida que precisa ser melhorado? Quais
as suas perspectivas para o futuro? O que você gosta de fazer para se divertir? Tiveram
coisas que foram positivamente marcantes em sua vida
9. Sobre as escarificações.
Quando elas começaram? Por que você se corta? Qual a sensação de se cortar? Alguém
te apresentou aos cortes no corpo? Você ainda se corta? Por que você acha que as
pessoas se cortam?
173
ANEXO C4
GDbl – Respostas G integradas com detalhe branco (Dbl). São contadas como G
4
Refitado da tese de Jardim-Maran (2011) O Psicodiagnóstico de Rorschach em adolescentes:
normas e evidências de validade. Tese de doutorado. Universidade de São Paulo, São Paulo
174
Dbl – Grande detalhe branco: quando somente a forma ou a percepção é de vácuo
naquela área, com justificativa de resposta do branco (ausência de cor). Quando a cor é
destacada na resposta, considera-se, então, a área D e não Dbl.
Dbl%=100xΣDbl/R
F- = Respostas com forma mal vista; resposta que não corresponde à área interpretada
do cartão (má precisão formal).
F+% - Percentagem das boas formas em relação ao total das respostas-forma: precisão
das respostas-forma. F+%= 100 x (F+) + 0,5 x (F+-)/ΣF
175
Cinestesia objeto: respostas contendo movimento forte, que é próprio do objeto
interpretado.
176
A% - Percentagem das respostas animais em relação ao número respostas totais. A%=
100 x [A + (A) + Ad + (Ad)] /R
177
F.A. – Fórmula da angústia: índice de elementos de ansiedade e/ou angústia que o
indivíduo demonstra no teste. F.A. = Hd+(Hd)+Anat+ Sg+Fg+ Sex x 100/R
178
ANEXO D
179
180
181
182