Tese - Célida Salume - Introdução e Cap. 1

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

ESCOLA DE TEATRO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

CÉLIDA SALUME MENDONÇA

FOME DE QUÊ?
Processos de Criação Teatral na Rede Pública de Ensino de Salvador

Salvador

2009
CÉLIDA SALUME MENDONÇA

FOME DE QUÊ?
Processos de Criação Teatral na Rede Pública de Ensino de Salvador

Tese apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Artes Cênicas, Escola de
Teatro, Universidade Federal da Bahia,
como requisito parcial para obtenção do
grau de Doutora em Artes Cênicas.

Orientador: Prof. Dr. Sérgio Coelho Borges


Farias.

Salvador

2009
UFBA – Escola de Teatro – Biblioteca Nelson de Araújo

M539 Mendonça, Célida Salume.


Fome de quê? Processos de criação teatral na rede pública de ensino
de Salvador / Célida Salume Mendonça - 2009.
237 f.: il.

Orientador: Prof.ª Dr.º Sérgio Coelho Borges Farias.


Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia, Escola de Teatro,
2009.

1. Arte - Educação. 2. Processos de criação. 3. Escola Pública. I.


Universidade Federal da Bahia. Escola de Teatro. I. Farias , Sérgio
Coelho Borges. III. Título.

CDD - 707
CDU – 7:37
A CHEGADA PELO QUINTAL DA CASA

Apelo aos Camamuenses


Camamu precisa de um colégio
Onde haja bastante eficiência,
Para que não se cometa o sacrilégio
De negar luz a tanta inteligência.
Devemos combater essa cegueira
Que nos envolve na primeira infância
Abrindo em cada escola uma trincheira
Pra reduzir de tudo a ignorância.
O homem analfabeto neste mundo
É um cego, tão cego quanto mudo
O seu vácuo de abismo é tão profundo
Que de si mesmo ele ignora tudo.
De que vale o dinheiro que nos sobra
Sem aplicarmos para fazer o bem?
Vamos fazer portanto alguma obra
Que seja boa e útil para alguém.
Ajudar um Ginásio é dar o lenho
Com que se há de construir a cruz,
A cruz da fé em que também me empenho
Nesta cruzada de acender a luz!
Camamuenses! Despertai do sono.
A aurora surge cheia de arrebol!
Não deixeis Camamu no abandono,
Projetai vossa terra a luz do sol!
Camamú, 05 de fevereiro de 1961.

Lúcio Mendonça

Em vinte e dois de novembro de mil novecentos e quarenta e seis, no município de


Camamu, estado da Bahia, Jorge Rafle Salume (Síria) se casa com a baiana Célida Martins
Mendonça, que passa a se chamar Célida Mendonça Salume. Célida é filha de Lúcio Manoel
dos Santos Mendonça, meu bisavô paterno, autor do poema que abre este texto. Lembro de tê-

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lo visto uma única vez, talvez duas, em viagem de férias com meus pais à Bahia. Entre os
poemas que escrevia, alguns eróticos, encontrei outros que falavam de indignação, de
protesto, de participação, revelando um homem com desejo de tornar a vida melhor.

A fragilidade da memória não me faz presente um homem preocupado com a


educação (como mostra o poema), mas a imagem e o cheiro de um quintal com pouca
luminosidade e muitas árvores. Entre elas, pés de pitanga, de cacau, de laranja, de abacate,
cana de açúcar, bananeiras, muitas folhas espalhadas pelo chão e meu bisavô sentado entre
elas em um banquinho. Havia ainda um frescor no ar. O quintal era um outro mundo nos
fundos do casarão. Tenho a impressão de habitar essa imagem, um espaço de intimidade, de
conforto. Na cozinha, paçoca de banana da terra, banana da terra frita, sopa de feijão preto
apimentada, cheiro de azeite de dendê e muitas pessoas que iam e vinham em torno de uma
mesa de madeira.

A cozinha estabelece uma identidade entre nós – como seres humanos (isto é, nossa
cultura) - e nossa comida (isto é, a natureza). A cozinha é o meio universal pelo qual a
natureza é transformada em cultura. A cozinha é também uma linguagem por meio da
qual “falamos sobre nós próprios e sobre nossos lugares no mundo”. (WOODWARD,
2007, p.42)

Um jogo de lembranças que só agora ativa correspondências através da fala do poeta:


“Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre isso
depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há que ser medido pela
intimidade que temos com as coisas” (BARROS, 2003).

Imagem 1 – “Eu, pesquisadora, com prato e colher, no quintal”

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E é nesse universo que insiro minha pesquisa: a comida que se constitui em refeição,
em intimidade. Não gratuitamente, pois pelo pouco tempo em que resido na Bahia pude
observar o papel da comida nessa cultura. Aquilo que comemos pode dizer muito sobre a
cultura na qual vivemos.

[...] existiam pomares, diversos pomares. E muitas outras coisas mais. Além de praças,
becos; além de becos, vielas. Que se pense, ainda, no caso das “feiras livres”, por
exemplo – naquela época, chamadas “quitandas”, uma expressão banto. Havia a
quitanda da Praia, a quitanda do Terreiro de Jesus, a quitanda das Portas de São Bento.
Nelas, mulheres negras vendiam peixe, toucinho, carne de baleia, hortaliças, etc. Era
para tais quitandas que o povo se encaminhava, quando ia comprar o de-comer. (...)
essas comidas circulavam pelas ruas, becos e praças, levadas por vendedores
ambulantes, negros: mocotó, caruru, vatapá, mingau, pamonha, canjica, acaçá, acarajé,
bobó, arroz-de-coco, feijão-de-leite, pão-de-ló, rolete de cana, queimado e “doces de
infinitas qualidades”. (RISÉRIO, 2004, p.216-217)

Uma das características, portanto, do povo baiano é comercializar e comer nas ruas,
além do prazer em trazer muita gente para comer na sua mesa, inclusive pessoas que não
conhece. Ou ainda, em ritual, oferecer comida para o santo. Na Bahia, a casa, a rua, a Igreja, o
terreiro, a feira, o mercado, o restaurante entre outros locais são espaços de socialização.
Existem, portanto, em cada cultura, costumes, tradições e rituais que nos acompanham, rituais
do fazer, rituais do servir, rituais do compartilhar.

Todas essas imagens assim como a realidade que lhes permite surgir configuram-se
em alimento. “Toda a alimentação é transubstanciação.” Bachelard defende a ideia de que “o
real é antes de tudo um alimento” (DURAND, 2002, p. 275). Assim, o ato alimentar confirma
a realidade das substâncias através de uma tomada de consciência da assimilação digestiva.
Substâncias essas, aqui entendidas como imagens, experiências, ideias e reflexões que serão
digeridas além de suas aparências. A experiência, do latim experientia, verbo experiri,
(experimentar) é também um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se
prova.

O ato universal de comer converte-se em conteúdo de ações compartilhadas,


permitindo assim o surgimento desse ente sociológico – a refeição: “O significado
sociológico da refeição está contido na possibilidade de pessoas que não partilham interesses
específicos se encontrarem para uma refeição em comum.” (SIMMEL, 2004) Para o

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sociólogo francês Michel Maffesoli (2005), a refeição gratifica o corpo e permite a troca. A
aparência de uma refeição, do encontro à mesa é um modelo insuperável do fato social e
parece indicar uma necessidade de recuperar uma socialidade de base.

A imagem aqui escolhida de uma “refeição” associada às várias etapas do processo


criativo originou-se de minha experiência na disciplina Processos de Encenação oferecida
pelo Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (UFBA). O curso
ministrado no 2º semestre de 2006 pela professora Dra. Sonia Rangel disponibilizava uma
variedade de autores (alguns mais apetitosos que outros) no formato de “cardápio” para serem
saboreados pelos alunos1. As discussões suscitadas afetaram consideravelmente o formato
deste trabalho permitindo que aflorasse “a ludicidade em rizoma indispensável de criação”
(RANGEL, 2006, p.312). A disciplina estabelecia relações com os projetos de pesquisa
individuais, propondo uma reflexão sobre os processos de encenação como processos de
criação, oferecendo subsídios teóricos para identificar e desenvolver os campos de
conhecimento que cada projeto instaurava, levantando questões emergentes e pertinentes a
cada um.

A refeição servirá ainda aqui de analogia, de moldura, possibilitando o diálogo com


uma emoção estética impossível de ser capturada. Assim como a omelete de amoras
encomendada pelo rei num conto de Walter Benjamin2 e que deveria ser igual àquela que
saboreou há cinquenta anos atrás na sua infância, os momentos vividos nesse processo de
iniciação teatral são impossíveis de serem recuperados com o mesmo saber experienciado, no
seu “instante de verdade”. Saber, no sentido de “ter o gosto de” ou “o sabor de”3, o que pode
ser confirmado etimologicamente na origem comum das palavras sabor e saber no verbo
latino sapere, que compreende entre seus vários significados: gosto, ter sabor, conhecer
através do paladar, ter inteligência, ter conhecimento, ciência, saber. Assim, saber implica em
saborear elementos do mundo e incorporá-los, ou apropriar-se deles.

- É claro que eu conheço todo o segredo da preparação de uma omelete de amoras, sei
empregar todos os temperos. - Conheço as palavras mágicas que devem ser
pronunciadas enquanto os ovos são batidos e a melhor técnica para batê-los. Mas não
me impedirá de ser executado, porque a minha omelete jamais será igual à da
velhinha. - Ela não terá o sabor picante do perigo, a emoção da fuga, não será comida

1
Sem desconsiderar a regra geral (gramática) que, quanto à forma, flexiona o substantivo biforme em masculino
e feminino: aluno – aluna, opto por utilizar apenas alunos, para determinar os dois gêneros, priorizando a leveza
do texto.
2
BENJAMIN, Walter. “Omelete de amoras” in Obras Escolhidas II, São Paulo: Brasiliense, 1987, p.219.
3
Cf. MICHAELIS (1998, p.1870); CUNHA (1982, p.695).

15
com o sentido alerta do perseguido, não terá a doçura inesperada da hospitalidade
calorosa e do ansiado repouso, enfim conseguido. Não terá o sabor do presente
estranho e do futuro incerto. (BENJAMIN, 1987, p.219)

Da mesma forma que a lembrança de Benjamin da omelete saboreada continha em si


a inocência da infância aliada ao sabor do perigo, meu olhar, hoje, em relação aos sabores
(saberes) da Bahia não poderia mais ser o mesmo. A não ser pela memória das viagens de
carro de férias com meus pais a esse Estado. A imagem afetiva mais agradável que ainda me
toma é o pote de galinha com farofa, preparado por minha mãe, saboreado à sombra de uma
árvore quando já estávamos bem cansados. A magia dos momentos protegidos no quintal de
meu bisavô se dissolveu no contato com a imagem simbólica da fome identificada em alguns
espaços, entre eles: a escola pública. A condição faminta é o resultado de uma desigualdade
social e do descaso, mas não da conformidade em relação à qualidade da educação pública.

O meu bom senso me diz, por exemplo, que é imoral afirmar que a fome e a miséria a
que se acham expostos milhões de brasileiras e brasileiros são uma fatalidade em face
de que só há uma coisa a fazer: esperar pacientemente que a realidade mude. O meu
bom senso diz que isso é imoral e exige de minha rigorosidade científica a afirmação
de que é possível mudar com a disciplina da gulodice da minoria insaciável. (FREIRE,
1996, p.63)

Nesse sentido, o processo aqui desenvolvido propõe a escola como sendo o lugar em
que se pode exercer a democratização do acesso à cultura e à formação estética de todos. Em
discurso ministrado por Gilberto Gil, na ocasião, ministro da Cultura, essa necessidade é
confirmada: “Cultura vista como um prato suculento para fomes mais sutis e não menos
importantes, onde o espírito, a reflexão e capacidade de sentir e traduzir realidades explícitas
e implícitas sejam consideradas” (GIL, 2007).

O presente trabalho aborda duas experiências de ensino de teatro instauradas e


saboreadas na escola pública no contexto curricular: uma delas com uma turma de 40 alunos
da 4ª série da rede municipal e a outra com uma turma de 39 alunos da 6ª série da rede
estadual de ensino do município de Salvador. Como não sou professora da rede pública de
ensino, visitei várias escolas, conversando com a direção e professores de artes, para sondar a
possibilidade de desenvolver uma experiência prática em um desses espaços. Nessas duas

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escolas, a direção, assim como as respectivas professoras, aceitaram e abraçaram a ideia de
disponibilizar um horário para as aulas de teatro. A idade dos alunos envolvidos variou em
torno de 10 e 15 anos no Nível Fundamental 1, e entre 12 e 19 anos no Fundamental 2,
retratando, deste modo, o nível de repetência dos alunos. Como questão norteadora estava a
pergunta: - Na experiência teatral desenvolvida em unidades da rede pública de ensino (em
caráter curricular), ocorre uma aprendizagem estética, independente das circunstâncias
impostas por esse espaço, através da escolha de encaminhamentos, procedimentos e
metodologias adequadas ao grupo de trabalho? O foco principal do estudo objetivava ainda
analisar a sustentabilidade do princípio “atenção criativa” a partir de pré-textos utilizados no
processo criativo instaurado.

Com estas turmas, a proposta inicial seria desenvolver durante um semestre, um


processo criativo em teatro partindo dos eixos temáticos propostos pelas escolas. Na escola
municipal, o eixo sugerido era Identidade, enquanto que, na escola estadual, o foco era
Cidadania. O objetivo maior era a construção de uma dramaturgia originada em diferentes
estímulos4 como histórias de familiares recontadas pelos alunos, noção de pertencimento ao
bairro, imagens, músicas, objetos, matérias de jornal, etc. A partir de diversos referenciais a
turma de 4ª série constrói uma sequência de cenas que revelam suas estórias, suas escolhas,
seus desejos e suas opções de lazer no bairro, e entre elas, a cena de um jantar. O processo
com a 6ª série parte igualmente de estímulos para a construção de cenas, mas com o objetivo
de detectar uma temática para a escolha de um texto literário ou dramatúrgico a ser utilizado
como pré-texto dentro do universo cidadania. Nas improvisações que partiam de imagens e
matérias de jornal, as escolhas voltavam-se, muitas vezes, para temáticas sociais. Assim,
considerando que cidadania pode e deve ser vista também como tomada de consciência,
Revolução na América do Sul de Augusto Boal torna-se o texto escolhido como suporte para
o percurso teatral dessa turma. Os procedimentos desenvolvidos conduziram os alunos à
recriação de alguns quadros do texto, contextualizando e facilitando sua apropriação pelos
participantes. Os dois processos enfrentaram um longo período de greve no momento em que
as relações começavam a se estabelecer.

Nas duas turmas o percurso criador será lido em quatro etapas: A relação onde é
estabelecido o primeiro contato com os alunos e o próprio contexto; a experimentação
quando são feitas intervenções com diferentes signos, referenciais, pré-texto; o momento de
4
Cf. Michaelis (1998, p.896): (lat. stimulu) 1 Aquilo que estimula. 2 Qualquer coisa que torna mais ativa a
mente, ou incita à atividade ou a um aumento da atividade. 3 Incitação à atividade mental ou física.

17
seleção quando as atividades de grupo já são possíveis e tudo que foi experimentado passará
por um processo de escolhas e organização para ser socializado, e finalmente, a apreciação
quando os resultados de processos e produtos parciais podem ser saboreados. A teatralidade
(produzida) resultou da articulação de imagens que surgiram nessas quatro etapas. Essas
imagens poderão ser digeridas ao longo da leitura deste trabalho.

Assim, como em uma refeição, o teatro reúne desconhecidos para partilharem uma
mesma ação. O encontro à mesa determina a comunicação, que envolve “uma mescla de
palavras, objetos e gestos que reclama uma poética globalizante” (Maffesoli, 2005, p.98). O
processo de escritura está assim, intimamente relacionado com o ato de descoberta desses
elementos. Rever os rascunhos do processo e reorganizá-los dessa forma, permitiu um outro
olhar sobre o percurso.

Finalizando essa chegada pelo quintal da casa apresento os principais ingredientes


desta refeição reconhecidos como princípios5 no processo criativo:

Pré-texto: Pré-texto refere-se aqui a um ponto de partida para a investigação cênica, podendo
ser uma música, uma imagem, um objeto, um filme, um texto literário ou dramatúrgico. O
texto tomado por pré-texto pelo professor de teatro6 orienta o planejamento do percurso
criador: a escolha de exercícios, jogos e improvisações utilizados num processo de montagem.
O texto literário ou imagético proposto para o aluno no desenvolvimento de um jogo teatral
ou improvisação age como desencadeador de imagens, personagens, narrativas e contexto
para a cena. A expressão pré-texto é introduzida por Cecily O’Neill (1995) em drama, para
diferenciar o estímulo capaz de promover um crescimento orgânico daquele mecânico, no
qual o foco da ação nem sempre é coerente com a narrativa em processo. Para O’Neill, “o pré-
texto opera em diferentes momentos como uma espécie de ‘forma-suporte’ para os demais
significados a serem explorados” (O’NEILL, 1995 apud CABRAL, 2007, p.48).

5
Cf Rangel: “PRINCÍPIO. De caráter molecular, unidade viva de obra e pensamento, permite em suas operações
conectar tempos e espaços libertos de hierarquias e cronologias. PRINCÍPIO para esta metodologia é equivalente
ao que Calvino descreve em seu Seis Propostas para o Próximo Milênio (leveza, rapidez, exatidão, visibilidade,
multiplicidade). É aquela unidade molecular que ao ser retirada da obra e do seu pensamento lhe esvazia sentido,
configuração, vitalidade. [...] Um princípio opera por uma didática estética, de reconhecimento, aproximação,
pulsão, desejo, compreensão, invenção. (RANGEL, 2006, p.311).
6
Entre as diversas denominações (professor-diretor, professor-artista, arte-educador, mestre-encenador) que
traduzem a função do profissional que conduz a prática teatral em diferentes contextos, adoto no transcorrer do
texto o termo professor de teatro. Ver também (CONCÍLIO, 2008, p.73-78).

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Multiplicidade: Multiplicidade como princípio se refere às possibilidades de abordagens
metodológicas na diversidade de elementos utilizados no processo. Nessa perspectiva, Italo
Calvino nos aproxima de um olhar singular sobre a literatura em sua ambição de representar a
multiplicidade das relações, em ato e potencialidade. A multiplicidade de pré-textos
instaurados no processo de criação teatral faz emergir significados abertos a diferentes formas
de leitura dessa construção. Nessa trajetória do percurso criador, na busca de variadas
respostas para a solução dos problemas propostos nas aulas de teatro, nesse contexto de
expectativa, de curiosidade, a operação divergente age desenvolvendo tipos diferentes de
competências artísticas.

Formatividade: Formatividade como processo inventivo direcionado intuitivamente pelo


professor de teatro: (...) o artista é um jogador tentando a sorte: sua execução é ao mesmo
tempo procurar e encontrar, tentar e realizar, experimentar e efetuar. (PAREYSON, 1993,
p.69). O processo de criação teatral pode ser compreendido em três momentos: experimentar,
selecionar e organizar, dando por fim visibilidade ao objeto cênico. De acordo com Pareyson,
essa série de tentativas e diversas conexões se apresenta como um processo orgânico, pois “o
que guia intrinsecamente o tentar é a própria obra como lei de organização do processo com a
qual se produz.” (PAREYSON, 1993, p.92) Esse procedimento vai inventando no decorrer da
operação o modo de fazer, o como as imagens se cruzam e se harmonizam e as escolhas a
serem feitas.

19
1 ENTRADA: primeiro contato com as duas escolas

Estou na casa onde as memórias se sentam nas cadeiras para jantar em pratos
invisíveis.

José Luís Peixoto

Antigamente comia-se quando se tinha fome. Mais tarde entra em cena a refeição
propriamente dita, e com ela, uma regularidade na hora de comer, e, na mesma direção, o que
se poderia chamar de hierarquia da refeição. Assim, não se tira mais a comida da gamela, ao
bel prazer e sem regras, mas, para se servir, passa-se a respeitar certa sequência.

Para iniciar uma boa refeição, uma entrada é indispensável. As iguarias ligeiras que
dão água na boca e a expectativa do prato seguinte me foram servidas rapidamente, logo ao
chegar às duas escolas.

O prato surge como uma criação individualista que indica que esta porção de comida
é exclusivamente para uma única pessoa. Metaforicamente o prato simboliza também a
desigualdade social. Sua forma redonda demarca isso, concentra em si o seu conteúdo de
modo mais definitivo. O prato de entrada sugere ainda o sabor de uma comida congelada: “A
escola já está pronta. Há 50 anos. Mesmo programa, mesmo conteúdo, mesmo livro. Ela está
encaixotada, no formol, porque esse conteúdo morreu. Não tem nada a ver com a vida, a
necessidade, o momento” (ROCHA, 2008, p.33).

Como entrada, sirvo aqui, as duas primeiras imagens por mim digeridas. Imagens um
tanto indigestas, que aguardam pelos ingredientes a serem saboreados no decorrer do
processo, em busca de uma aproximação das delícias da culinária baiana.

20
Na primeira escola (Município), uma mãe aguarda
ansiosamente pela diretora, pois no dia anterior sua filha
foi cercada e ameaçada por outras colegas ao final da
aula. A fala da mãe revela o pensamento de defesa e
proteção: “- Eu já disse pra minha filha: A gente nasce
só e tem que conviver só.” E em relação à represália
enfrentada pela aluna, a fala de uma das professoras
alimenta mais ainda este pensamento: “- Assim nasce o
menor infrator!” Outra professora aquece a discussão
lembrando que recentemente uma aluna teve o rosto
cortado por uma navalha na escola vizinha. Enquanto
aguardo meu horário para entrar, a mãe permanece na
direção e a professora da turma em questão vem
acompanhar a conversa com a diretora. Os alunos ficam
a sós na sala e logo se desencadeia uma briga que
termina com socos e sangue.

Na segunda escola (Estado), os alunos já me abordaram


no corredor. As aulas já começaram, mas algumas
turmas estão espalhadas pelo pátio (motivo: falta de
alguns professores). Alunos de diferentes turmas se
mostraram muito interessados, primeiro querendo saber
quem eu era e depois que ouviram PROFESSORA DE
TEATRO os olhos das meninas brilharam: “- Ô profe!
Será que você vai dar aula pra nossa turma?” A
professora de artes da 6ª série me recebeu prontamente e
disse que eu poderia assumir a turma quando quisesse, e
que não afetaria em nada o seu planejamento. Nas
semanas seguintes algumas alunas de outra turma me
procuraram pedindo que trabalhasse teatro com eles.
Contaram que a professora de artes da turma deles nem
sempre vinha dar aula, e que estava desde o início do
ano ensinando o conteúdo Ponto, e havia realizado até
então apenas uma única atividade que nunca recolheu.

21
As considerações acerca das aulas de teatro desenvolvidas em duas turmas do ensino
fundamental, uma de 4ª série (Município) e outra de 6ª série (Estado) e os relatos dessas
experiências surgem de minha prática pedagógica no contexto da escola pública no decorrer
do ano de 2007. Apesar da previsão inicial de um semestre, com a greve, observou-se a
necessidade de estender o projeto até o final do ano letivo. Em nenhuma das duas turmas
verificou-se o oferecimento de aulas de teatro anteriormente. As aulas que passam a ser
ministradas fazem parte da grade curricular, ocupando o horário da aula de “Educação
Artística”7 (como ainda é denominada na escola). A carga horária para a primeira turma é de
1h semanal e para a segunda de 2h/a semanais não consecutivas. Para a 4ª série, o horário
destinado era a última aula da semana, sexta-feira das 9h às 10h. É importante salientar que
muitas dessas aulas não aconteciam por diversos motivos como: ausência de professores no
fundamental II ou assembléias (sem aviso prévio), o que acarretava um adiantamento das
aulas, ou ainda falta de professor no fundamental I com a dispensa dos alunos ou mudanças de
horário.

Os resultados da pesquisa são apresentados no formato de uma refeição, subdividida


em três partes: Entrada, Prato Principal e Sobremesa. Fazem parte da entrada que é servida os
espaços constituídos pelo ambiente das duas escolas e seus arredores, um aperitivo picante
que tem como principal ingrediente um panorama do ensino público em Salvador, um olhar
foucaultiano do corpo na escola através das relações de poder que este envolve. E finalmente
a Escola, o Teatro e o Olhar como nutrientes para uma nova Atmosfera em construção na sala
de aula. O Prato principal expõe o processo criativo em quatro momentos: um primeiro de
relação e diagnóstico deste grupo; um segundo de experimentação no qual os alunos
desenvolveram jogos improvisacionais a partir de diferentes pré-textos; um terceiro de
seleção, em que os temas e conteúdos do grupo foram reconhecidos; e um quarto momento de
apreciação no qual os alunos saborearam seus produtos parciais. A Sobremesa, o último prato
da refeição, traz as considerações finais, apresentando os princípios que nortearam os
processos de criação: o pré-texto, a multiplicidade e a formatividade. As reflexões finais
apontam para o ensino de teatro na escola pública como um banquete a ser construído.

Bom apetite!

7
Com a LDBEN nº 9.394, promulgada em 20/12/1996, no seu art. 26, § 2º, fica revogada a legislação anterior,
passando a denominação “ensino de Arte” a ser adotada no lugar de “Educação Artística”, conforme vinha sendo
chamada esta disciplina escolar desde a LDB 5.691/71.

22
1.1 Os espaços

Imagem 2 – Engenho Velho de Brotas

[...] o Engenho Velho não é só samba e Carnaval. O processo de favelização do bairro


teve início na década passada, quando nasceu a invasão Iolanda Pires. Hoje, os mais
de dez conjuntos residenciais que eram a característica principal da habitação local,
convivem com uma população cada vez maior de sem-tetos. Problemas elétricos
provocados pelos “gatos”, além das questões do saneamento básico, abastecimento de
água, rede de esgoto, criminalidade e mendicância resumem queixas dos moradores.
(Correio da Bahia, 09/09/1991)

Esta unidade contextualiza as escolas e seus arredores identificando os dois diferentes


espaços no ambiente interno e externo das escolas públicas que foram ponto de partida para a
construção de meu objeto de pesquisa. Para tanto pretendo dialogar com o encenador inglês
Peter Brook que aborda o ambiente escolar ao relatar uma viagem pela França onde se
deparou com uma série de salões de colégios, ginásios e quadras de aparência rude e
antiestética, bem como sua ideia de usar um tapete como zona de ensaio para delimitar a área
de cena, o espaço de atuação.

As duas escolas escolhidas para o desenvolvimento dessa experiência de ensino de


teatro no contexto curricular localizam-se no bairro de Brotas, uma delas mais
especificamente no Engenho Velho de Brotas.

23
Brotas é um distrito central da cidade de Salvador, um dos mais populosos da capital
baiana, situado no morro de Brotas, e que tem ligação com diversos pontos da capital. É
possível sair ou chegar em Brotas a partir de vários bairros da cidade. O distrito de Brotas é
composto pelos diversos bairros de Brotas: Campinas de Brotas, Engenho Velho de Brotas,
Acupe de Brotas, Cosme de Farias, Pitangueiras de Brotas, Castro Neves, Santa Rita, Vila
Laura, Candeal de Brotas, Cidade Jardim, Horto Florestal, Matatu de Brotas e Daniel Lisboa,
além da avenida principal de Brotas propriamente dita.

Em pesquisa realizada por Selma Paula Maciel Batista (2005) encontramos dados
sobre a constituição do bairro, de população predominantemente afro-descendente. Com o
Recenseamento de 1855 e através das listas de qualificação eleitoral da época, pode-se
deduzir que, em geral, os moradores de Brotas eram, na sua maioria, pessoas simples e de cor,
que habitavam em roças. Os conflitos eram muito frequentes, principalmente as brigas
corriqueiras entre a população local, em geral envolvendo traições conjugais. De acordo com
documentos redigidos por um Juiz de Paz à presidência da província nesse período: “ações
praticadas por negros forros, que induziam os que eram escravos a afastar-se dos seus
senhores e os acolhiam para trabalhar em suas roças e culturas” (NASCIMENTO, 1986, p.89
apud BATISTA, 2005, p.22). Refugiada na mata fechada, a população extraia dela o seu
sustento. Mais tarde, até a década de 1970, o bairro contava com melhor infra-estrutura onde
residia uma população com desigualdades de renda. No entanto, entre os anos de 1980 e 1990
ocorre uma mudança quando moradores dos antigos casarões, deixam o bairro atraídos por
novos empreendimentos, negociando seus imóveis com o comércio.

Por conta desta dinâmica urbana da cidade de Salvador, o núcleo habitacional


consolidado pela população de baixa renda, passou a agregar um contingente de
excluídos das áreas centrais que, ocupando desordenadamnte as encostas, sem infra-
estrutura urbana, habitacional e serviços públicos, passam a ser identificados como
“favelados”. (BATISTA, 2005, p.22)

O Engenho Velho de Brotas, onde está localizada a escola municipal onde foi
desenvolvida parte da pesquisa é um bairro do subdistrito de Brotas. Com ruas marcadas por
um terreno irregular, pouco arborizado, com construções antigas e sobrados que abrigam
várias famílias, o bairro está situado à margem oeste do Dique do Tororó, fazendo limite ao
sul com o Garcia e a Federação, e ao norte com Cosme de Farias. O bairro é constituído, na
24
sua parte mais antiga, de ruas estreitas que acompanham a irregularidade do solo, situando-se
ali a parte mais elevada da cidade. Suas principais vias públicas são as ruas Laurindo Régis,
Almirante Alves Câmara, a praça da Capelinha e a Praça dos Artistas - onde acontecem
apresentações culturais. Originalmente era um dos muitos engenhos que produziam o açúcar -
principal riqueza do Brasil Colônia, que deu nome ao bairro. Era neste bairro que estava
localizada antigamente a residência da família do poeta Castro Alves, amplo solar que tinha a
vista para a Baía de Todos os Santos e que, ao longo do tempo, foi Hospital Psiquiátrico, onde
funciona atualmente a sede da Secretaria Municipal de Educação e Cultura - SMEC.

No bairro, há uma grande concentração de população afro-descendente, oriunda da


grande população de escravos que afluíram para a Bahia no tempo da Escravidão. Na segunda
metade do século XX uma parte do bairro foi sendo urbanizada, com a construção de vários
conjuntos habitacionais. Espaços destinados ao culto do candomblé coexistem, no bairro, com
as igrejas católicas, protestantes e evangélicas. A economia se baseia principalmente nas
atividades terciárias como o comércio bastante variado.

Nos dias que antecedem a data comemorativa de Santa Luzia (13 de dezembro)
acontece uma festa de largo em homenagem a esta santa no fim de linha do bairro, que
constitui-se na principal festa da comunidade. Com o fim do carnaval de rua decretado no
início de 2000, a festa é o evento que aproxima todos os moradores. O sociólogo francês
Michel Maffesoli ao falar do papel da sociabilidade e do lúdico em nossas sociedades ressalta
o aspecto comunicacional dos bairros:

Mas o que funda a coletividade é a inserção local, a espacialização e os seus


mecanismos de solidariedade. [...] Talvez seja o caso de recorrer simplesmente à velha
noção espacial de bairro e à sua conotação afetiva. [...] Um espaço público que
conjunta uma certa funcionalidade e uma carga simbólica inegável. (MAFFESOLI,
2005, p.85)

O principal ponto turístico e histórico do bairro é o Parque Solar Boa Vista (antiga
casa do poeta Castro Alves), onde há também um Cine-Teatro, onde são realizados shows
musicais, peças teatrais, cursos de capoeira, corte e costura, artesanato; além de palestras para
a comunidade local, escolas e encontros para o desenvolvimento do bairro. A antiga moradia
do fotógrafo-etnólogo Pierre Verger, hoje Espaço Cultural Pierre Verger, visitado por
25
habitantes da comunidade local e turistas, atua como centro de informações e pesquisas
relacionadas com as influências recíprocas entre o Brasil e a África em geral. Nele encontra-
se uma pequena biblioteca de rico acervo, tendo como uma visão maior a identidade e história
dos orixás. Nesse espaço também são oferecidos seminários, cursos de culinária, estética afro,
línguas, informática, dança afro, violão, capoeira e laboratório de fotografia. O Engenho
Velho de Brotas também é sede do Bloco Afro Ókánbí fundado em 1982, que além das
atividades carnavalescas que levam a tradição e a história afro-brasileira, desenvolve projetos
sócio-educativos. Os problemas enfrentados pelos moradores do Engenho Velho se
aproximam das dificuldades vivenciadas também em outros bairros de periferia de grandes
cidades, como a coleta de lixo insuficiente, a falta de saneamento básico adequado, habitações
pobres, violência e tráfico de drogas.

Eu amo Salvador apesar que Salvador é um lugar de violência, e o bairro é um lugar


que eu nunca iria deixar jogar lixo mais como é uma rua suja não importa se ela esta
suja ou limpa o que importa é que ela é minha cidade. Engenho Velho de Brotas a
minha cidade. (Registro de uma aluna da quarta série)8

Em um dia de aula, ao abrir a possibilidade de marcar em breve uma apresentação da


quarta série para os pais, eles dizem logo que não vai ser possível à noite pois tem toque de
recolher e não podem sair. Eis alguns depoimentos dos estudantes:

Aqui no Engenho Velho tá tendo tiroteio no largo e é um absurdo. Já mataram dois


aqui no Bariri, um ali subindo, e tem tiroteio aqui no largo sempre.

E também na Vila América a menina tomou um tiro na cabeça. Passou na televisão,


sabia? E morreu também uma mulher no ponto.

Ontem tinha sete viaturas aí.

Pegaram um menino ali em cima deram um baculejo nele, daqui da escola, tomo um
baculejo. A polícia chegou, mandou tirar o chapéu e deu uns tapas.

E a polícia disse que depois de oito horas não quer ver nenhum menino lá em cima se
não vai meter bala.

8
Todas as falas dos alunos envolvidos no processo que constam nesse trabalho foram transcritas na íntegra sem
correções.

26
Este clima de tensão também constrói o espaço habitado pela comunidade. Além da
violência, a situação de pobreza da maioria das famílias obriga as crianças a trabalharem no
turno oposto, e muitas vezes até nos finais de semana. Uma das alunas afirma trabalhar todas
as tardes de diarista, enquanto outros lavam carros. Há um estranho contraste entre a suposta
infância, período em que se encontram a maioria das crianças que frequentam a 4ª série e o
amadurecimento precoce a que são submetidos.

Conhecido então o universo habitado pelos alunos e seus familiares, chegamos as


escolas. No que diz respeito ao espaço interno, as duas escolas diferem significativamente na
estrutura física oferecida. A escola estadual, situada na avenida principal do bairro de Brotas
dispõe de uma área enorme comparada a escola municipal e um número significativo de salas
de aula. As paredes das salas são limpas e dão para um corredor lateral principal onde os
alunos aguardam a chegada dos professores.

Imagem 3 – Entrada principal Escola Estadual em Brotas e Escola Municipal no Engenho Velho

A Escola oferece Ensino Fundamental de 1ª a 4ª série e 5ª a 8ª série. Logo na entrada


uma área aberta de circulação e ao lado esquerdo uma pequena área coberta onde alunos
menores têm aula de dança. Há ainda uma estrutura administrativa na entrada da escola com
salas para a direção, secretaria, coordenação pedagógica, sala de professores e uma sala
recentemente organizada para exibição de vídeos e reunião de pais.

Já a escola municipal é muito pequena e não pode ser vista da rua. Ela faz limite com
outras duas escolas e oferece Ensino Fundamental de 1ª a 4ª série. Abrindo o seu portão
descemos a escada que nos leva a um terreno em declive onde a escola está localizada. No

27
primeiro lance um piso de cimento em meio ao matagal que cresce. Ela não tem quadra de
esportes, e nenhuma área coberta. Conta apenas com uma sala para a direção da escola, uma
cozinha, um banheiro coletivo em péssimo estado e quatro pequenas salas de aula. Na entrada
das salas uma vala que nos dias de chuva acumula água, restos de merenda e lixo. O aspecto
da escola é triste, paredes descascadas com praticamente nenhum atrativo que não seja
simples cartazes pendurados nas paredes. Como bem afirma Nelson Pretto9 em matéria
intitulada Escola é lugar de criança: “Não podemos ‘amontoar’ as crianças o dia todo em
cubículos sem ventilação, sem iluminação, biblioteca, área verde e outras coisas mais.
Precisamos do espaço físico concreto, mas também do virtual” ( A Tarde, mai. 2006).

Essa imagem de precariedade das escolas é também recuperada pelo encenador Peter
Brook em viagens realizadas pela França para apresentações do seu grupo. Ele constata que
muitas das escolas e ginásios visitados nada tinham em seu aspecto de “mágicos”, “cada qual
mais feio e inóspito do que o anterior”. O encenador aponta como proposta para esse trabalho
“‘a rudeza’ - agarrar a feiúra com ambas as mãos” e transformar momentaneamente esses
lugares, tornando-os “resplandecentes de vida”. (BROOK, 2000a, p.39) E complementa: “a
forma é, por sua própria natureza, uma mistura composta por elementos puros e impuros”.
(BROOK, 2000a, p.40) Estabelece assim, através de sua intervenção uma nova relação com o
impuro.

Além da precariedade de sua estrutura, a maioria das escolas da rede pública, não
contempla uma sala própria para o desenvolvimento das aulas de arte. A opção para o
professor de teatro é buscar espaços alternativos na escola e reorganizar rapidamente o espaço
da própria sala de aula com a ajuda dos alunos, compondo assim, uma atmosfera de
teatralidade.

Assim como existe a casa oniricamente completa sugerida por Gaston Bachelard,
onde é possível viver os devaneios de intimidade, o espaço da criação teatral precisa também
ser produzido para possibilitar aos alunos o acesso à imaginação.

9
Nelson Pretto é Mestre em Educação pela UFBA (1984) e Doutor em Ciências da Comunicação pela
Universidade de São Paulo (1994). É professor associado I da Universidade Federal da Bahia, consultor ad hoc
de diversas revistas e instituições entre as quais a Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, do
Centro de Estudos em Educação e Sociedade e da Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em
Educação (Anped). É conselheiro do Conselho Estadual de Cultura do Estado da Bahia (2007/2010). Foi
Assessor do Reitor da UFBA (1995/1996) e Diretor da Faculdade de Educação da UFBA por dois mandatos
(2000/2008).

28
A escola delimita espaços. Servindo-se de símbolos e códigos, ela afirma o que cada
um pode (ou não pode) fazer, ela separa e institui [...] o prédio escolar informa a todos
a sua razão de existir. Suas marcas, seus símbolos e arranjos arquitetônicos ‘fazem
sentido’, instituem múltiplos sentidos, constituem distintos sujeitos. (LOURO, 1997
apud SOARES, 2004, p.112-113)

Nosso desafio permanente é construir novos espaços. Transpor esses limites


estabelecidos através da carência estrutural, do sem cor, do sem vida, do sujo, do ambiente
triste e carregado, da falta de hospitalidade. Acreditar na possibilidade de transcender a
situação atual. De início foi mais que constatado que seria impossível contar com os dias
nublados para que uma aula de teatro acontecesse no espaço externo da sala por vários
motivos: debaixo de chuva seria obviamente impossível, assim como sob o sol quente, além
do barulho ir direto para as salas, que, não tendo janelas, ficam com as portas abertas. A área
interna mal tem espaço de circulação entre as carteiras. A saída seria então, tirar todas as
mesas e cadeiras, empilhando na sala apenas as que não obstruíssem o espaço. Como o chão
fica geralmente sujo, nos dias em que fossem planejadas atividades de solo, uma lona seria
colocada no espaço da sala. Instaurando assim, um novo lugar, novo esteticamente e novo na
relação desses corpos “soltos” no espaço. A lona atua de certa forma, como o tapete utilizado
por Peter Brook:

Em nosso trabalho costumamos usar um tapete como zona de ensaio, com um objetivo
muito claro: fora do tapete, o ator está na vida cotidiana, pode fazer o que quiser:
desperdiçar a energia, fazer movimentos que não expressam nada em particular, coçar
a cabeça, tirar um cochilo... Mas assim que pisa no tapete está obrigado a ter uma
intenção definida, a estar intensamente vivo, pela simples razão de que há um público
observando. (BROOK, 2000a, p.12)

Naturalmente que as intenções do encenador inglês com a introdução do tapete em


seu processo de trabalho não são alcançadas na mesma dimensão com um grupo de alunos
que, praticamente, nunca tinha tido semelhante oportunidade de transgredir o espaço da sala
de aula. Por outro lado, as primeiras imagens que tenho dos alunos sobre a lona se aproximam
de um verdadeiro playground, expressão utilizada pelos críticos ao descreverem a zona de
atuação proposta por Peter Brook:

29
Posteriormente, para grande alegria nossa, alguns críticos chamaram este espaço de
playing field, expressão que se usa na Inglaterra somente para esportes, ou
playground, nome que se dá ao pátio de recreio numa escola, dois termos que
correspondem exatamente ao que pretendíamos desde o início – um lugar para o jogo
cênico ou, em outras palavras, um lugar em que o teatro não pretendesse ser nada mais
que teatro.” (BROOK, 2000a, p.101)

Mesmo que aparentemente caótico e desesperador o espaço instaurado pela lona


passa a dar vida àquele lugar onde se inicia uma nova maneira de lidar com o corpo.
Inicialmente eles não querem ouvir nada nem ninguém e ficam num verdadeiro êxtase.
Algumas meninas ficam de lado, olhando desconfiadas, enquanto os meninos viram
cambalhotas, estrelas, dão saltos, reproduzem golpes de luta, passos de capoeira. Ou ainda,
atravessam a lona carregando os colegas ou arrastando-os pelo espaço. As paredes continuam
descascadas e mal pintadas, mas a sala é transformada de um espaço morto em um espaço
vivo. Para o encenador Peter Brook o que determina a diferença de um espaço vivo e um
espaço morto é a maneira como as pessoas que estão neste lugar se colocam não apenas no
espaço, mas um em relação ao outro. Nesse sentido, e em detrimento da organização que
encontramos nas escolas, Madalena Freire nos lembra que “cada professor é sujeito,
juntamente com as crianças da sua organização (espacial e de atividades) transformadora,
pois só eles sabem como deixar a marca naquele espaço, dentro daquele tempo, das suas
vidas”. (FREIRE, 2008, p. 91)

Esta mesma noção da sala de aula convertendo-se em espaço vivo pode ser lida
através do que propõe Hugo Assmann em Reencantar a Educação: rumo à sociedade
aprendente. O autor defende a persistência de processos de aprendizagem, em que os
processos vitais e os de conhecimento exerçam atração e interesse, no intuito de reencantar a
educação. Considerando que o prazer no processo educativo envolve a experiência sensorial,
a metodologia que viabiliza a apropriação do conhecimento tem que ser dinâmica e prazerosa,
compreendendo uma multiplicidade de ações que passem pelo cognitivo, pelo afetivo,
expressando-se no corpo deste aluno. A educação é entendida atrelada à escolha de conteúdos
e procedimentos que promovam a revitalização desses espaços.

Por fim, o espaço é transformado, ou devorado, se lermos metaforicamente o que


propõe Piaget em Biologia e conhecimento, quando afirma que a aprendizagem é um processo

30
de assimilação progressiva do espaço ao redor do corpo. Essa assimilação do espaço é a
prioridade cognitiva do corpo, porque desse conhecimento depende sua sobrevivência.

O corpo do animal não termina na pele. Estende-se pelo seu entorno. O entorno é
comida. Só é digno de ser aprendido o espaço que pode ser comido. Aprender,
apreender, comer. Aprendiz: aquele que come o seu espaço. Traduzido
pedagogicamente: é esse espaço vital, anímico, gastronômico, extensão, parte do meu
próprio corpo, que estabelece o programa de aprendizagem. (ALVES, 2004, p.95)

Para o aluno, a aprendizagem acontece no entorno vital, através de todas as


experiências vivenciadas. Acontece nas ruas, nas ladeiras, nas escadarias, na Lan House, na
praça, na televisão, no ônibus, na praia, nas relações, na escola...

31
1.2 Aperitivo10 picante: um panorama do ensino público em Salvador

O fato é que sofremos de mimetismo. Como Sexta-feira, o índio que servia a Robinson
Crusoé e tentava vestir-se como ele. Talvez isso tenha provocado nossas duas maiores
tragédias sociais: o abandono da educação e o mimetismo tecnológico. Esse foi o
maior problema criado pela mentalidade economicista que forma o imaginário
brasileiro há pelo menos sessenta anos. Não consideramos importante investir em
educação básica, e optamos por um modelo tecnológico totalmente importado [...]

Cristovam Buarque

“Como uma lâmina precisa, o filme corta a alma”. É assim que o cineasta brasileiro
Fernando Meirelles descreve a experiência de assistir o documentário Pro dia nascer feliz
(2006) de João Jardim. Aproximo-me de sua impressão acrescentando se tratar de um filme
duro, que nos choca, e nos tira de uma posição confortável e segura. Realizado entre abril de
2004 e outubro de 2005, Pro dia nascer feliz focaliza de maneira sensível o sistema
educacional no Brasil. Partindo de depoimentos de alunos e professores de algumas escolas
públicas e particulares dos estados do Rio de Janeiro, Pernambuco e São Paulo, as imagens
nos proporcionam um retrato da viabilidade de nosso país, ou melhor, de sua inviabilidade. A
gritante desigualdade de oportunidades retratada no filme através desses três estados nos
possibilita refletir sobre nosso futuro. Por meio das relações adolescência X escola X classes
sociais, o filme reforça o que não é novidade: a escola pública está desacreditada e não
cumpre mais a sua função. As escolas estão cheias de professores que fingem ensinar e alunos
que fingem aprender. Dizer que 97% das crianças frequentam as escolas, não significa
garantia de aprendizagem. As estatísticas educacionais e sociais do país apontam para uma
situação de crise profunda do sistema educacional brasileiro.

[...] o Brasil está, por exemplo, na vergonhosa lista de 12 países que concentram 75%
de todas as pessoas do mundo, com idade superior a 15 anos que não sabem ler ou
escrever – 1,9% dos analfabetos do planeta são brasileiros. [...] a facilidade ao acesso
não significa educação de qualidade. A Unesco calcula que, pela permanência das
crianças até a 5ª série, em nosso país está o maior índice de repetência da América
Latina. A quantidade de horas que as crianças permanecem na escola também piora a
situação no quesito qualidade. Um dos principais obstáculos na diminuição da evasão

10
Que abre os poros, que abre ou estimula o apetite.

32
escolar é a continuidade no aprendizado. O Brasil fica em 85º no ranking deste tópico,
próximo a países como o Senegal. (BARBIERI, 2006)

Todos os dias, quase 30 mil dos 230 mil professores da rede estadual de ensino
paulista faltam às aulas [...] O número significa uma ausência diária de 12,8%.
Estudos nacionais e internacionais já apontaram que há relação entre absenteísmo dos
docentes e perda de aprendizagem. (Folha de São Paulo, nov. 2007)

Essas faltas quebram o desenvolvimento das atividades e têm relação direta com a
dificuldade de aprendizagem dos alunos11 do ponto de vista cognitivo e afetivo. Reforçando o
exemplo alarmante da falta de professores na rede estadual de ensino paulista, acrescento a
rotina frequente de faltas na escola estadual em que o projeto de teatro foi instaurado, assim
como em outras escolas do bairro, como confirmam os próprios alunos:

Às vezes a gente não tem as últimas aulas e a gente fica prejudicado, né. Hoje mesmo
só teve duas aulas, a primeira e a segunda e era pra ter o último, mas só que a
professora não veio. E a aula não antecipa não, às vezes bota até prova que não dá
nem assunto, a gente não estuda direito. Às vezes os professores tão na sala e não dão
aula, ficam na diretoria, a gente vai perguntar se vão dar aula e eles falam que não tem
mais nada pra fazer na sala. (Alunos da Escola X)

Do ponto de vista da teoria todas essas ausências seriam ilegais se considerássemos


que esse compromisso é garantido pela Lei nº 9.394 de 1996 que estabeleceu as diretrizes e
bases da educação nacional no Brasil. No Art.13 do documento encontramos:

Art.13. Os docentes incumbir-se-ão de:

II - elaborar e cumprir plano de trabalho segundo a proposta pedagógica do


estabelecimento de ensino;

III - zelar pela aprendizagem dos alunos;

11
A Secretaria de Estado da Educação de São Paulo cruzou dados das faltas dos professores com as notas médias
das escolas estaduais no Saresp 2007 (exame da rede paulista). Foi utilizado um modelo estatístico para
comparar unidades com condições praticamente iguais, mas com taxas diferentes de absenteísmo. De acordo
com essa pesquisa, um ponto percentual a mais no índice de absenteísmo dos docentes representa perda para os
estudantes. Essa queda no desempenho escolar em razão da falta dos docentes já havia sido identificada na rede
estadual de Minas Gerais, por meio de um estudo realizado na Universidade Federal de Juiz de Fora. Folha de
São Paulo, 12.01.2009.

33
V - ministrar os dias letivos e horas-aula estabelecidos, além de participar
integralmente dos períodos dedicados ao planejamento, à avaliação e ao
desenvolvimento profissional;

O excesso de faltas cometidas pelos professores da rede pública de ensino torna-se


um problema ético, acarretando sérias consequências para a aprendizagem dos alunos.
Sabemos que o professor, mesmo o mais consciente, não está livre de problemas e poderá
precisar faltar, mas infelizmente não é o que acontece, sendo a maioria das faltas, abusivas.
Ter um professor substituto para essas situações também não resolveria pois, às vezes, faltam
dois, três ou até quatro professores, no mesmo dia. Por outro lado, a escola, também não
oferece alternativa - educativa ou cultural - para os alunos, diante dessas ausências. Os alunos,
na maioria das vezes, são simplesmente dispensados ou passam o tempo perambulando pelo
pátio da escola.

Logo no segundo encontro12 com a turma de 6ª série, ao final da primeira aula, os


alunos me dizem que eu poderia adiantar a aula de teatro do último horário para o penúltimo
porque hoje era aniversário da professora de educação física e ela não viria dar aula. Digo que
vou verificar a possibilidade na direção. Quando estou a caminho me perguntam se não quero
adiantar minha aula já no segundo período, pois a professora de inglês que daria aula neste
horário também não veio. Em todos os dias em que fui à escola, mesmo antes de começar o
projeto, sempre faltavam professores, que na sua maioria não eram substituídos. Por outro
lado, temos no documentário anteriormente mencionado, o depoimento de uma professora da
Escola Estadual Parque Piratininga II situada em Itaquaquecetuba (periferia) a 50 km da
cidade de São Paulo que reflete a situação em que se encontram muitos educadores:

Olha, eu falto. Porque... por cansaço. Eu acho que ser professor e estar envolvido
mesmo com a profissão, com eles, com os alunos e tal, é uma carga física e mental
muito grande. É mais do que o ser humano pode suportar, porque é muito psicológico.
Eu faço terapia uma vez por mês, eu tenho que ir no psiquiatra porque não dá, porque
você se envolve com os problemas deles e nem sempre você tem um retorno. Às vezes
você entra numa sala de aula e você é mal recebido. Porque o professor ainda é visto
pela maioria dos alunos como o inimigo. Então existe um abismo muito grande ainda
entre professor e aluno, professor e diretor. A impressão que eu tenho é que ninguém
se entende. A falta acontece por isso, às vezes, puxa vida, você está lá, você estudou e

12
Utilizo o termo encontro como correlato a aula em função de seus bem vindos significados: reunir, deparar
com, descobrir, ir de encontro a, chocar-se com.

34
tal, você entra numa sala de aula e o cara manda você tomar naquele lugar, etc e tal. É
complicado lidar com essa situação. O papel do professor na sociedade ele é muito
importante, só que ninguém dá essa importância. Então quando você abandona o
profissional ele tende ao que? Deixar pra lá. O professor perdeu a dignidade na
verdade. A gente não tem dignidade pra trabalhar. Você tem que aceitar muitas coisas
dentro da sala de aula e isso vai deixando você com um espírito assim cada vez mais
pobre. O Estado, ele deixa tudo muito jogado, sabe? Não tem ninguém ali pra falar:
“Ta você ta dando essa aula, como é que tá sendo?” Maquia-se muito as coisas. [...] Ta
todo mundo cansado de ouvir quais são os problemas da educação, mas ninguém faz
nada (JARDIM, 2006).

A socióloga Miriam Abramovay13, uma das coordenadoras da pesquisa Juventude,


Violência e Vulnerabilidade Social na América Latina: desafios para Políticas Públicas,
realizada pela Unesco afirma: “Os jovens chegam até um certo ponto do processo educativo e
param. Muitos estudantes de escolas públicas não conseguem entrar na universidade e isso
lhes dá um forte sentimento de exclusão" (ABRAMOVAY, apud CHEQUER, 2007).
Enquanto que o pesquisador Athayde Motta revela que a disparidade educacional é resultado
de políticas públicas perversas: "O universalismo do ensino público brasileiro funciona bem
em teoria, mas no caso da educação ajudou a criar uma escola pública de péssima qualidade
para os pobres e uma universidade pública ótima para os ricos" (ATHAYDE, apud
CHEQUER, 2007). Em pesquisa realizada em 1994, Athayde constatou ainda que, entre as
primeiras e as últimas séries escolares, o percentual de crianças negras diminuía
gradativamente, chegando a desaparecer virtualmente no nível superior. A Bahia está entre os
estados brasileiros que tem uma população com baixa escolaridade:

Em 2005, 15% dos alunos baianos matriculados no ensino fundamental da rede


estadual abandonaram o colégio. No ensino médio, o índice é ainda maior: 21%, de
acordo com dados da Secretaria de Educação da Bahia. Este ano, mais de 1,2 milhões
de alunos estão matriculados, embora estejam sem aula há mais de 50 dias devido a
greve dos professores por melhores salários.[...] O tempo de duração do jovem para
concluir o ensino fundamental da 1ª à 8ª série é maior do que o esperado. Ao invés de
concluir em oito anos, os baianos demoram 12 anos para terminar o curso. Em 2005,
19% dos alunos foram reprovados em alguma das séries do ensino médio, atrasando a
conclusão dos estudos. (A Tarde, jun. 2007)

13
Professora da Universidade Católica de Brasília, Miriam Abramovay vem se dedicando ao estudo dos jovens
escolarizados do Brasil. Formou-se em Sociologia e Ciências da Educação pela Universidade de Paris, na
França, e possui mestrado em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

35
Esses dados só confirmam a disparidade educacional que reforça a noção de
“brasilianização do mundo”14 defendida pelo filósofo Paulo Eduardo Arantes em A fratura
brasileira do mundo. Conforme Arantes (2004), muitos países estão na mesma perspectiva do
que o Brasil é hoje, um país dividido em duas sociedades contrastantes: uma com
oportunidades econômicas, educacionais, culturais; outra na exclusão, no vazio social.
Infelizmente essa exclusão não tem carregado consigo nenhum princípio de recomposição da
sociedade, e sim uma falência múltipla dos enquadramentos formadores das antigas
solidariedades, família, escola, empresa, sindicato. A questão da exclusão está assim,
intimamente relacionada à desestruturação do ensino. Por outro lado, em contraste com as
informações levantadas, a mídia televisiva se encarrega de despolitizar a desigualdade no
país, afirmando que o Brasil vive um momento excelente com a qualidade de ensino subindo
nas pesquisas, como é apontado pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb).

Partindo deste primeiro retrato da educação, pretendo servir agora como aperitivo um
panorama do ensino público em Salvador, fruto de meu contato inicial, minhas primeiras
imagens da carência do sistema educacional. Imagem muito bem traduzida pela fala de uma
ex-moradora15 de um bairro carente situado na parte antiga da cidade de Salvador, em
pesquisa realizada por Maria do Carmo Soares de Freitas (2003, p.148):

Apesar do pouco estudo, eu posso ver as coisas e sentir. Falo aqui de dentro de minha
área. Saio, converso com as pessoas, então eu sei dos problemas. Vejo como as
pessoas vivem. Um bocado de criança, meu Deus do céu, sem escola. Ficam tudo por
aí na maconha, no crack. O governo dá escola, mas a escola não presta, não tem
professor. O professor nao vai pra sala de aula. [...] Meu filho vai hoje, nao tem aula,
vai amanhã, nao tem aula, vai depois, tem.

Apesar de muitas matérias relatarem um saldo positivo em vários aspectos da


educação na Bahia, a desigualdade só fez aumentar nos últimos anos. Impossível, portanto,
falar de ensino de teatro na escola em caráter curricular sem mencionar a situação em que o
ensino público encontra-se hoje. Nos jornais de Salvador podemos encontrar com frequência

14
Segundo Paulo Eduardo Arantes é possível que o primeiro enunciado explícito da tese de brasilianização do
mundo se deva ao americano Michel Lind. (ARANTES, 2004, p.30-31)
15
Ex-moradora do bairro do Maciel entrevistada pela nutricionista e pesquisadora Maria do Carmo Soares de
Freitas que elaborou etnografia da fome após convívio com o bairro do Péla – um dos principais redutos do
tráfico em Salvador. A experiência resultou na sua tese de doutorado defendida na Universidade Federal da
Bahia (UFBA) e transformada no livro Agonia da fome.

36
manchetes que se referem à má qualidade do ensino público. O que encontro nas escolas
públicas, em sua maioria, são professores que faltam com frequência16, a pedagogia
tradicional das primeiras décadas do século XX (a metodologia do quadro e giz, aula
expositiva e reprodução) e um descrédito que cresce em relação ao sistema educacional por
parte de professores e alunos17. Esse espaço é muito bem traduzido por Rubem Alves: “uma
escola tradicional é um naco de espaço-tempo separado do espaço-tempo da vida, com o qual
não se comunica” (ALVES, 2004, p.86).

As matérias publicadas entre os anos de 2000 e 2009 não se diferenciam nas temáticas
quando o assunto é educação: greve de professores, evasão escolar, vandalismo, superlotação
em sala de aula, falta de merenda, salas de aula interditadas, inexistência de áreas de lazer,
falta de equipamentos, entre outros. Os programas de ensino em turno integral não oferecem
as condições mínimas de funcionamento nas escolas. O panorama traçado nos últimos anos
aponta para um caminho de estagnação com algumas exceções. Em termos absolutos de
população, a Bahia possui o maior número de analfabetos do país, os alunos apresentam um
desempenho “crítico” em muitas disciplinas e os índices de reprovação e evasão são
consideravelmente significativos.

Após o período de matrículas, em março do ano de 2000, 45 unidades de ensino em


Salvador ainda contavam com 12.582 vagas para estudantes nos três turnos. O problema
maior é que a maioria dos alunos, por trabalharem, não ocupava o turno vespertino, no qual
sobravam vagas. Em 2001 algumas escolas estaduais chegaram a fechar por falta de
preenchimento de vagas. Enquanto que, no curso noturno, as salas estavam superlotadas com
até 70 alunos. Esse excesso causava e ainda causa dispersão, diminuindo o nível de atenção,
levando à indisciplina e ao desinteresse, o que dificulta o aprendizado.

16
Devido à estabilidade do emprego público, muitos professores faltam às aulas não cumprindo a carga horária
mínima de aula.
17
Ver também: RESSURREIÇÃO, Sueli Barros da. Coração de professor: o (des)encanto do trabalho sob uma
visão sócio-histórica e lúdica. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2007.

37
Imagem 4 – Salvador, A Tarde, 14/05/2006

Um segundo aspecto frequente são as reformas de emergência que fecham muitas


escolas ameaçadas de desabar, com problemas estruturais, enquanto outras funcionam em
condições precárias e com equipamentos de sala de aula semidestruídos. Em várias salas,
pilhas de cadeiras são abandonadas por anos aguardando ser recuperadas e, muitas vezes, não
há número suficiente de carteiras para os alunos. Enquanto isso, materiais novos não podem
ser usados por falta de peças e instalação, deteriorando-se ao longo do tempo.

38
Imagem 5 – Salvador, A Tarde, 01/03/2004

Em 2003, as manchetes enfatizavam as taxas de repetência e reprovação que


desestimulam os alunos a continuarem estudando. Reforçando as frustrações com a qualidade
do ensino, estavam as condições físicas da escola pública, o desinteresse dos estudantes e a
insatisfação dos professores na rede pública. Em algumas escolas da periferia o esvaziamento
ainda era causado pela falta de merenda escolar, um dos principais fatores de garantia da
frequência em sala de aula. Em 2004, a falta de alunos motivava a prorrogação de matrícula
na rede estadual, enquanto as escolas consideradas modelo estavam lotadas.

No Jornal A Tarde de dezembro de 2004 encontramos a manchete: “Estudantes


reclamam prejuízo”. Depois de um ano de greve, alunos da rede pública de Salvador
queixam-se das perdas no aprendizado, da falta de compromisso na reposição de aulas e do
enxugamento no conteúdo pedagógico. Poucas aulas repostas, assuntos resumidos e excesso
de trabalhos são situações constantes após as greves.

39
Imagem 6 – Salvador, A Tarde, 05/12/2004

A opinião sobre o ensino e o aprendizado em 2004 nas escolas públicas parece que é
unânime. E não apenas por parte dos alunos. Os próprios educadores confessaram em
entrevistas que, diante da previsão para as férias, tiveram que enxugar o conteúdo e buscar
formas de melhor trabalhar em classe.

Em maio de 2007, um mês após os baianos lerem no jornal a manchete: “Bahia tem
piores índices de escolaridade de todo o Brasil” (A Tarde, abr. 2007) mais uma greve é
deflagrada nas escolas estaduais, assim como as que ocorrem todo ano. Em todas as
paralisações, a principal reivindicação é o reajuste salarial dos professores. Os professores
ameaçando manter a greve e o governo ameaçando cortar os dias parados. Em alguns desses
movimentos junta-se à questão salarial, a falta de merenda, a degradação do espaço físico e a
falta de material de ensino. Como se não bastasse, nos períodos de chuva, as aulas são
suspensas em muitas escolas, em função dos problemas estruturais agravados, ruas inundadas,
canais transbordando, deslizamento de terras e desmoronamentos, além de cortes no
fornecimento de energia elétrica: “Em se tratando do já combalido ensino público, os efeitos
dos seguidos temporais são enormes. Tanto nas unidades geridas pelo município quanto nas
sob administração do Estado, há prejuízos” (A Tarde, mai. 2009).

40
Imagem 7 – Salvador, A Tarde, 19/05/2009

Todos esses problemas que se arrastam de ano a ano, confirmam a gravidade da


situação do ensino no Brasil (principalmente nos estados nordestinos) e apontam para a
necessidade urgente de interferência do Estado, o que já vem sendo diagnosticado há mais de
um século, como podemos observar:

Nos Pareceres/Projeto (1882) sobre o ensino primário Rui Barbosa destacou que
cabia a Reforma repudiar tudo o que existia e reorganizar totalmente o programa
escolar, conformando-o com a exigência dos novos tempos. Para fundamentar suas
afirmações recorreu às estatísticas procurando demonstrar a situação do ensino
brasileiro no que se referia ao ensino popular. Este mostrava uma situação caótica, era
quase inexistente e seus resultados poderiam ser considerados nulos. Para reverter essa
situação destacava a necessidade da interferência do Estado, financiando diretamente
ou fiscalizando o trabalho realizado nas escolas. Para tanto, era necessária a criação do
Ministério da Instrução Pública que deveria coordenar a organização do sistema
nacional de ensino. Sua posição era que o Estado deveria criar escolas suficientes, e
para isso era preciso aumentar os investimentos destinados ao ensino...
(STEPHANOU, 2007, p.97-98)

Lamentavelmente, as escolhas que foram feitas administrativamente, ou a falta delas,


não deram conta do caos em que se encontra a rede pública nos últimos anos. Cada governo
que entra ou se renova garante que está herdando uma rede sucateada e se propõe a recuperá-
la, estabelecendo prazos para vencer o analfabetismo, a evasão, implantar novas
metodologias, novos projetos, informatizar o ensino, dentre outras ações.

41
Imagem 8 – Salvador, A Tarde, 30/11/2006

Interessante observar que raras ou inexistentes são as matérias que mencionam


questões metodológicas quando o assunto é fracasso escolar. Elas se restringem ao espaço
físico inadequado, à baixa remuneração dos professores, à violência em algumas áreas
escolares, aos números de alunos alfabetizados ou à falta de programas complementares
(grifo meu) que mantenham o estudante na escola.

Imagem 9 – Salvador, A Tarde, 17/05/2009

42
Mesmo com cursos de capacitação, as novas experiências e aprendizagens não são
levadas para a sala e pouco contribuem para mudar a metodologia do ensino. Da mesma
forma, a maioria dos projetos educacionais, não são acompanhados em seu desenvolvimento.
Por outro lado, culpar o professor é ignorar o enorme paradoxo em que está inserida sua
identidade, prática profissional e precarização da carreira. Sua formação também encontra-se
intimamente ligada às condições do exercício da profissão. E, infelizmente, não é exagero
afirmar, que os poucos programas de formação de professores “são concebidos para criar
intelectuais que operam a serviço dos interesses do Estado, e cuja função social é
primordialmente manter e legitimar o status quo” (MOREIRA e SILVA, 1999, p.128).

Acreditando na possibilidade de mudança algumas escolas investem em gestão


participativa e na metodologia de ensino diminuindo os índices de repetência e evasão.18
Outras, através de convênios e parcerias apostam em aulas de arte, dança, capoeira, teatro e
música. Os recursos certamente são importantes, mas mesmo na falta deles, temos exemplos
de iniciativas no ensino público que apontam para mudanças do quadro atual.

Podemos encontrar escolas que se tornaram referência na Bahia pela prática de gestão
participativa mobilizando a comunidade escolar e transformando-se em indicador para
avaliação da qualidade de ensino. Assim, quanto mais ativa a participação de professores,
servidores, pais e alunos na gestão escolar, mais o ensino atende as necessidades da
comunidade em que a escola está inserida. De acordo com a pesquisadora Claudia Dias
Silva19 “[...] os estudos sobre o desempenho escolar e o funcionamento da escola pública vêm
apontando que a gestão das escolas constitui-se em um diferencial nas unidades que
apresentam os melhores resultados nos exames avaliativos nacionais e locais.” (SILVA, 2007,
p.16) Sua investigação analisou as características apresentadas pelo colegiado escolar de uma
unidade de ensino pertencente à rede pública do Estado da Bahia que propiciam o
empoderamento da comunidade escolar na gestão da escola pública, contribuindo para
minimizar o controle dos agentes do Estado sobre o seu funcionamento.

18
Em apenas dois anos a Escola Municipal Primeiro de Maio, no bairro de Massaranduba (Salvador), conseguiu
reduzir a taxa de repetência, de 32,1% para 6,8% e o índice de evasão, de 12,2% para 4,7%, graças a projetos de
valorização da identidade de alunos e da comunidade. (A Tarde, 27 ago. 2007, p.5)
19
SILVA, Claudia Dias. Empoderamento na Escola: estudo de experiência de gestão em unidade da rede
pública de ensino da Bahia. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2007.

43
A idéia de empoderamento fortalece a intenção de valorizar a capacidade dos
indivíduos de agir sobre o meio no qual estão inseridos, permitindo fazer escolhas,
ampliando e potencializando, por conseguinte, essa sua capacidade. Isso faz com que
o indivíduo deixe de ser visto apenas como objeto ou população meta de uma
intervenção pública, pois a sua condição de agente é mais valorizada. (SILVA, 2007,
p.18)

Os resultados de sua pesquisa mostraram que o órgão colegiado da escola investigada,


ao contrário do que se esperava, inicialmente, ainda não se constitui em espaço de
empoderamento de pais, alunos e funcionários da escola. Foi identificado ainda que a
tentativa de descentralizar o poder na gestão da unidade de ensino vinha servindo para
reforçar o poder do professor, que dispunha dos recursos e capacidades necessários para fazer
as escolhas que resultariam em melhoria para os alunos.

A Bahia sofre um agravamento da crise educacional porque não se confia na


qualidade do ensino oferecido. A descrença no ensino público e o fato de que o atual modelo
não prepara o estudante para o mercado profissional são alguns dos principais fatores
apontados, assim como o alto índice de pobreza registrado na periferia e a má distribuição das
unidades na capital. Além disso, segundo depoimento de alunos, professores e até autoridades
da área educacional, a escola não tem sido uma fonte de prazer e realização.

Nesse horizonte, o professor de teatro já sabe de antemão que diante de todas estas
faltas encontradas no ensino público precisa construir com paciência pedagógica20 uma
atmosfera que viabilize a experiência teatral. O processo criativo em teatro instaurado nas
duas escolas anteriormente mencionadas foi diretamente prejudicado pela greve deflagrada
em maio de 2007 que se estendeu por cinqüenta e seis dias. Já no período inicial das aulas,
quando as relações começavam a se estabelecer com os alunos, a paralisação dos professores
estaduais foi anunciada. As atividades com a 6ª série foram então suspensas. Apesar de a
outra escola integrar a rede municipal de ensino, a professora responsável pela turma de 4ª
série, com a qual eu vinha trabalhando, pertencia aos quadros do Estado e de imediato
interrompeu suas atividades dispensando os alunos. As atividades só se normalizaram dois
meses depois.

20
Paulo Freire utiliza a expressão paciência pedagógica como uma das habilidades necessárias de estarem
presentes na conduta didática dos professores, para que a resolução dos problemas propostos se realize de
maneira produtiva: aguardar a resposta elaborada pelo aluno, conceder tempo para a sua construção, relacionar o
conhecimento trabalhado com a vida prática e adequar o ensino ao nível de conhecimento anterior da classe.

44
No ano seguinte, a situação não era muito diferente. E antes mesmo das paralisações,
em matéria redigida para o Jornal A Tarde em março de 2008, encontramos:

Dois mil e quinhentos alunos de sete escolas da rede municipal de ensino de Salvador
já estão com o ano letivo em atraso, por conta de reformas estruturais nos
estabelecimentos, que começaram a ser realizadas pela prefeitura justamente no início
das aulas.

Em maio deste ano (2009) os professores da rede municipal de ensino de Salvador


decretaram greve por tempo indeterminado. A paralisação se estendeu até o mês de julho,
afetando 180 mil alunos. Apesar de a manifestação ter durado mais de um mês, o calendário
de reposição de aulas se reduziu (na proposta) a 15 dias. Também este ano (2009), muitas
escolas estaduais em Salvador e em outras localidades do estado, vivenciaram uma situação
caótica: “Muitas escolas estão sem aulas porque faltam 7.500 professores21 na rede estadual,
de acordo com o Sindicato. Até a limpeza está comprometida porque firmas terceirizadas não
recebem salários.” (BA TV – Jornal da TV Bahia, mar. 2009) Os alunos reclamavam da falta
de professores: “Vim para o colégio, gastar transporte e durante a semana só tem uma aula”.
Os professores foram substituídos por pedagogos que já eram da rede estadual de ensino,
mas sem qualificação específica para ensinar determinadas disciplinas. O problema não ficou
restrito às escolas da capital. No dia que se seguiu ao da matéria, os alunos fizeram protesto
fechando duas avenidas movimentadas da cidade de Salvador.

Imagem 10 – Salvador, A Tarde, 12/04/2009

21
Segundo matéria veiculada no Jornal A Tarde de abril de 2009, a rede estadual de ensino da Bahia tem uma
carência de 7.310 profissionais, o que equivale a 14,5% do atual corpo docente.

45
Além disso, ao mesmo tempo em que as escolas recebem novos equipamentos, os
alunos se queixam das péssimas condições físicas do espaço escolar: salas pequenas e sem
ventilação, falta de área de lazer, biblioteca e laboratórios. Não há estrutura mínima para
abrigar a nova tecnologia.

Em setembro deste ano (2009) os professores protestaram através de paralisações,


contra o método chamado “enturmação”22 proposto pela Secretaria da Educação do Estado
(SEC). Para suprir a falta de professores, de infra-estrutura e evitar a evasão dos alunos, foi
proposto que os professores dessem aulas para várias turmas reunidas em uma só, o que só
prejudica a qualidade de ensino para alunos e professores. Antônio Moura, membro da
Associação de Mães e Pais de um dos colégios da capital desabafa: “Estamos indignados com
a situação da educação na Bahia: greve de mais de 60 dias, ausência de material didático, de
professores, tudo isso desestimula a frequência dos alunos, principalmente os do curso
noturno”. (A Tarde, 12 abr. 2009)

É importante ressaltar que os problemas enfrentados na educação em Salvador não se


restringem à rede pública de ensino. As escolas particulares também vivenciam suas crises23.
Mas em função do foco da pesquisa, não abordo questões relativas ao ensino nessas escolas.

Apesar de todos os problemas apontados, muitos professores não ignoram o seu perfil
de educador. Mesmo diante de todas essas adversidades, professores comprometidos
procuram saídas para enfrentar a superlotação das salas de aula, tornar as aulas mais
dinâmicas e interativas, e conter o comportamento inquieto dos alunos. Em pesquisa24
realizada por Gideon Borges dos Santos (2004), uma das professoras entrevistadas conta sua
estratégia para promover a participação de todos:

Com relação ao comportamento, que a maioria dos professores se queixa, eu não vejo
esse problema. Entendo o que é você colocar quarenta alunos de 11 anos na sala, e não

22
A proposta da enturmação é uma coisa rídicula - por um lado é culpa do governo que não faz
acompanhamento de professores, da situação das escolas e por outro dos professores, que não dão aulas, vão dar
aulas com MP3 ligado e desestimulam os alunos', completou Moura. (Jornal Correio, 18 set., 2009)

23
Inadimplência e irregularidades em documentos. Por esses e outros motivos, segundo informações da
Secretaria Estadual de Educação, 21 instituições privadas de ensino fecharam as portas até julho deste ano. Mas,
conforme o órgão, este número pode ser muito superior, em função de muitas escolas encerrarem suas atividades
sem seguir os procedimentos adequados. (Tribuna da Bahia, 18 ago. 2009)

24
SANTOS, Gideon Borges dos. A Fênix renasce das cinzas: o que os professores e professoras fazem para
enfrentar as adversidades do cotidiano escolar. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal da Bahia.
Faculdade de Educação. Salvador, 2004.

46
poder olhar para o lado, não poder conversar, não fazer uma brincadeira com o outro.
Eu acho impossível, então eu faço mais brincadeiras que eles, aí eles ficam mais
sossegados.25 (SANTOS, 2004, p.101)

O pesquisador acrescenta ao comentário da professora, que os professores que


apresentam essas soluções de enfrentamento do cotidiano escolar, não têm o reconhecimento
de seus pares: “aliás, são muitas vezes adjetivados como idiotas, bobos, bestas, que
trabalham de graça para o governo, etc”. Entretanto, quando esses mesmos professores criam
estratégias de afastamento são acusados como: “quem não quer nada, não se preocupa com os
alunos”.

Compreendo que em meio a tantas dificuldades, e muitas vezes com uma carga
horária excessiva de trabalho, seja difícil para um professor sustentar o olhar propositivo
dessa professora (colega). Mas acredito igualmente que é possível olhar para os alunos, para a
sala de aula, para a escola, para os colegas de trabalho, de outra forma, ou, simplesmente,
olhar.

Por onde vamos ensinar desejo aos nossos alunos se não promovermos mudanças?
Como bem afirmou Sartre: “Eu posso sempre escolher mas devo estar ciente de que, se não
escolher, assim mesmo estarei escolhendo” (SARTRE, 1987, p.17). Somos, portanto,
responsáveis até por nossas não escolhas. Maffesoli redescobre a autoridade do educador no
sentido de confiança. O professor como autoridade, como fundador, autor, semeador.
Autoridade que vem do latim auctoritas (auctoritatem) é o que faz crescer. A apetência se
daria pela autoridade, essa busca do mestre. O mestre que é mediador, que impõe confiança,
influência, força, referência, que se torna importante para alguém. Retomando assim as
relações entre saber e poder, e por que não, afeto e saber.

De fato, uma vida estudantil “inteiramente submissa a idéia de função e de ofício”,


longe de conduzir a um aprofundamento da vida, longe até mesmo de constituir uma
verdadeira aprendizagem desta vida, é isso mesmo que, por uma utilidade direta e
imediata, tende a especializar, a reduzir a vida de conjunto, e finalmente a fazer do
estudante nada mais do que um rolamento intercambiável da maquinaria social. A
análise é pertinente, tanto mais que ela é perfeitamente atual, mas sobretudo porque
destaca com força a necessidade do sentimento estético, do sentimento do inútil, a
necessidade da utopia e a potência das imagens na constituição de uma comunidade
chamada a pensar e a agir sobre a sociedade. (MAFFESOLI, 1995, p.114)

25
(Entrevista 4) Professora de ensino fundamental de uma escola municipal da cidade de Salvador localizada
num bairro de classe popular.

47
1.3 O corpo: um olhar foucaultiano

Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma
manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O
corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o
recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma ‘mecânica do
poder’, está nascendo: ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros,
não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer,
com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica
assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”.

Michel Foucault

Com o panorama educacional anteriormente traçado não se espera encontrar


facilmente uma escola pública onde a pedagogia em vigor não seja outra que a tradicional26.
Reforço o termo tradicional associado ainda à tradição como aponta Peter Brook: “podemos
concluir que ‘tradição’, no sentido que damos à palavra, significa ‘imutabilidade’. É uma
forma imutável, mais ou menos obsoleta, reproduzida por automatismo.” (BROOK, 2000a,
p.42) A escola pública sobrevive sem a transformação de seu modelo rudimentar e
ultrapassado, alimentando a disciplina como um dos pilares do processo educativo; o que se
realiza pelo viés de uma educação autoritária, na qual o aluno, em sua maioria, não participa
ativamente desse processo, e, portanto, não exercita o desenvolvimento de uma consciência
crítica.

As características que confirmaram essa hipótese foram se solidificando nas visitas


realizadas a várias escolas e no contato direto que tive com as duas escolas que foram foco da
intervenção teatral instaurada no decorrer do ano de 2007 na cidade de Salvador; inicialmente
com a observação das aulas que antecediam minha entrada em sala, e posteriormente com o
acompanhamento da rotina escolar, conversas na sala dos professores, no pátio das escolas,

26
A pedagogia tradicional é uma proposta de educação centrada no professor cuja função define-se por vigiar os
alunos, aconselhá-los, ensinar a matéria e corrigi-la. A metodologia decorrente de tal concepção tem como
princípio a transmissão dos conhecimentos através da aula, frequentemente expositiva, numa seqüência
predeterminada e fixa, enfatiza a repetição de exercícios com exigências de memorização. Valoriza o conteúdo
livresco e a quantidade. O professor fala, o aluno ouve e aprende. Não propicia ao sujeito que aprende um papel
ativo na construção dessa aprendizagem, que é aceita como vinda de fora para dentro. Muitas vezes não leva em
consideração o que a criança aprende fora da escola, seus esforços espontâneos, a construção coletiva. Fonte:
http://www.centrorefeducacional.com.br/educge.html Acesso em 26 de janeiro de 2008.

48
administração escolar, entre outros. As aulas eram sempre expositivas, ou o professor estava
falando, ou passando matéria no quadro, ou advertindo os alunos (batendo com o apagador na
mesa), ou ainda sentado em sua mesa, muitas vezes lendo revista ou conversando com outro
professor enquanto os alunos copiavam a matéria do quadro, principalmente na 4ª série
(Município).

No nível Fundamental 1 os alunos nunca haviam feito trabalho em grupo e no


Fundamental 2 essa regra era quebrada apenas pela exceção de um ou dois professores em
raras situações. Os alunos da 4ª série, no ano anterior, não tinham um horário de recreio por
determinação da direção como recurso à não-violência. As aulas de educação física se
reduziam a liberação de uma bola para as crianças. Na 4ª série a disciplina era rígida e os
comentários de repreensão humilhantes: “O que vocês querem? É ficar limpando chão da sala
de doutor?” Ou ainda em uma ocasião que a professora pede ao aluno o seu caderno: “Isso é
jeito! Não deve nem ter família, não é mesmo? Pra sair de casa sem farda, nem caderno, é
porque não tem ninguém que olhe por ele”. Em outra situação em que alunas do Fundamental
2 foram repreendidas e encaminhadas à Coordenação Pedagógica por estarem brincando com
a água no bebedouro e jogando umas nas outras, a coordenadora pedagógica fala: “Vocês
precisam se aproximar da palavra de Deus, vocês estão sendo tentadas pelo demônio, mas
precisam resistir!” Nas duas situações os alunos escutam as repreensões em silêncio, de
cabeça baixa.

Os corpos de nossos alunos são educados por toda realidade que os circunda, por
todas as relações que estabelecem de convivência ou a ausência desta e pelas relações que se
estabelecem em espaços delimitados, como é o caso da escola. Que corpo afinal é esse que
habita a sala de aula?

No livro Imagens da educação no corpo: estudo a partir da ginástica francesa no


séc. XIX, duas imagens em especial se destacam pelo deslocamento imaginário que instauram
na semelhança com os contrastes educacionais encontrados nas duas escolas. (Ver imagens 11
e 12)

49
Imagem 11 – Jogos

Imagem 12 – O batalhão escolar (1885)

50
A primeira imagem traz o quadro Jogos com brincadeiras tradicionais. Os jogos, com
seus códigos e sentidos próprios, alargavam o universo utópico da vida em festa. Enquanto
que a segunda imagem intitulada O batalhão escolar (1885) retrata sob diferentes ângulos o
“treinamento” na sala de aula no século XIX. No caso da escola pública, é como se a segunda
imagem anulasse ou engolisse a primeira.

A rotina dos alunos do Fundamental I envolve (nos primeiros meses) a formação de


uma fila para fazer uma oração e em seguida a entrada na sala. “Não vai longe o tempo em
que os alunos faziam, nos pátios das escolas públicas, antes de entrar em aula, exercícios de
ordem unida, como recrutas num quartel, e acredito que em alguns lugares isso ainda seja
prática comum.” (GALLO, 2003, p.100). No Fundamental II uma sirene era ouvida
sinalizando o início das aulas, mas apenas bem depois os professores se dirigiam às suas
respectivas salas. Como muitos professores faltavam frequentemente, em algumas turmas as
aulas eram adiantadas e os alunos liberados antes do término do período.

A circularidade da rotina escolar diária é muito bem retratada no conto O pacto da


mediocridade: o “ensino” de Ezequiel Theodoro da Silva:

Bate o sinal que mais parece um alarme de incêndio. Os alunos, dando cascudos uns
nos outros, entram às carreiras na sala de aula e se ajeitam nas carteiras enfileiradas.
[...] Dez minutos de atraso e ela finalmente chega. Carrega consigo, numa sacola, uma
carrada de livros didáticos. Silêncio de todos: hora da chamada [...] Mais seis minutos
são gastos nessa tarefa. Apaga a lousa, olhando de soslaio para os mais irriquietos. Diz
que a sala está uma sujeira – que lugar do lixo é no lixo. Caminha até a mesa. Pega a
pesada sacola de livros e faz uma pilha sobre a mesa. Senta-se. Respira fundo. Tira um
espelhinho da bolsa. Dá uma olhada na maquiagem. E começa a abrir livro por livro,
selecionando exercícios para a lição do dia. 10 intermináveis minutos nessa seleção.
[...] Solta um estridente “psiu”, que reverbera pela sala e impõe o necessário silêncio.
Cruza o espaço e segue até o armário lá no fundo. [...] Pega uma caixa de giz branco e
um apagador. Esse ritual de vai-e-vem, acompanhado pelos olhos das 34 crianças
presentes a aula demora mais 5 minutos. Depois de ameaçar de mandar para a
diretoria dois alunos que estavam conversando, começa a transcrever na lousa os
exercícios pinçados dos livros didáticos [...] bate o sinal: “Está encerrada a aula!”
(SILVA, 1996, p. 30-31)

Nessas circunstâncias, quem já não esperou ansioso pela hora do intervalo no colégio,
em que não estaria mais disposto em fileiras sem direito a comunicação e livre da tarefa de
copiar do quadro uma sucessão de assuntos desconexos? A permanência da estrutura

51
tradicional ainda mais limitada pelas condições precárias da escola pública, assim como a
ausência de trabalhos em grupo distanciam o aluno de uma aprendizagem significativa,
alimentando o olhar dicotomizado corpo/mente cartesiano.

Uma reflexão maior sobre estas questões relativas ao poder no contexto educacional
formal pode nos aproximar das não inéditas observações realizadas pelo filósofo francês
Michel Foucault. Em sua obra Vigiar e Punir – O nascimento da prisão, podemos encontrar
um olhar sobre o automatismo dos hábitos e o corpo como objeto e alvo de poder - corpos
limitados, submissos, manipuláveis, “dóceis” que podem ser transformados a qualquer
momento. Os métodos de coerção de tempo, espaço e movimentos permitem o controle do
corpo através da disciplina imposta. É sobre o corpo que se impõem às obrigações e as
proibições. De forma geral, na escola pública, o corpo está dissociado do processo de
aprendizagem.

Então quando chega a aula de teatro os alunos não si comportam como devem
adequadamente por que se sente mais a vontade, o que não tem e o que não podem
fazer nas outras aulas estão fazendo na aula. Os outros professores deveriam também
fazer as aulas melhores e de forma diferente. (Aluna da 6ª série)

A fala desta aluna de uma escola estadual da cidade de Salvador reforça esse abismo
entre o corpo e a aprendizagem que é oferecida na maioria das escolas, colocando os
estudantes num papel passivo. Sua fala consciente aponta a ausência de um processo de
aprendizagem vivido, que permanece, muitas vezes, distante e abstrato. Essa diferença entre
as aulas de artes e as aulas entendidas por muitos alunos como “mais sérias” é discutida no
texto A arte e o domínio afetivo na educação do professor Sérgio Farias. Ele afirma que, ao
mesmo tempo em que o aluno vai avançando nas séries, as atividades que envolvem a
expressão artística e corporal e a experiência estética vão tomando os últimos lugares na
escala de prioridades dentro dos currículos.

Nas duas turmas em questão a formação da sala em todas as aulas era a convencional
com carteiras colocadas uma atrás da outra e a mesa do professor próxima ao quadro negro.
Nesse sentido, a organização do espaço permite de certa forma o controle e a ideia de
enclausuramento ao não propiciar atividades em grupo ou fora da sala. A disposição em filas
individualiza os corpos - a maioria dos alunos não se conhece pelos nomes. Nos mínimos
corredores que se formam entre as fileiras quase não há espaço de circulação.

52
Imagem 13 – O tradicional enfileiramento de carteiras

Foucault descreveu a escola como um local disciplinar, onde a importância dessa


disciplina é anterior à distribuição dos indivíduos no espaço. Como referência toma os
colégios e os quartéis. Nesses espaços cada um deve permanecer em seu lugar evitando as
distribuições por grupos. Assim como no século XVIII, a ordenação por fileiras definia a
repartição dos indivíduos por desempenho, comportamento ou colocações obtidas, podemos
observar ainda hoje uma certa hierarquia do saber, das capacidades ou das atitudes nessas
distribuições.

No entanto, essas observações não podem insinuar ou afirmar, não pela ótica
foucaultiana, que existam práticas pedagógicas inerentemente libertadoras ou repressivas,
considerando que as relações de poder também são dispersas e fragmentadas. Como exemplo,
podemos tomar o próprio costume de dispor as carteiras em círculo - formação comum nas
escolas que seguem as práticas pedagógicas progressistas27. Essa disposição afasta a interação
de sala de aula do controle direto do professor, como aponta Grumet (1988):

O círculo contrapõe-se à sala de aula tradicional na qual “a posição fixa é o resultado


da ciência da super-visão, um arranjo de pessoas em unidades coletivas acessíveis a
vigilância constante. Através do arranjo dos estudantes em fileiras, todos os olhos
voltados para a frente, confrontando diretamente a nuca do colega, encontrando
apenas o olhar da professora, a disciplina da sala de aula contemporânea coloca em
ação o olhar (a observação) como uma estratégia de dominação (GRUMET, 1988,
apud SILVA, 1994, p.16)

27
As Tendências Pedagógicas de cunho Progressista são representadas pelas Teorias Críticas de Educação, que
buscam uma escola articulada com os interesses concretos do povo: Libertadora, porque utiliza métodos
centrados nas discussões de temas sociais e políticos, e Crítico-Social dos Conteúdos, porque confronta
conhecimentos sistematizados com experiências sócio-culturais e a vida concreta.

53
O círculo abre assim a possibilidade dos alunos manifestarem suas opiniões e serem
ouvidos. De pé, sentados no chão ou em cadeiras móveis eles são libertados dos limites
restritivos das carteiras.

Imagem 14 – Formação em círculo

Todavia, pelo olhar do filósofo francês, não existe nada de inerentemente libertador
nessa alternativa. A formação em círculo pode exigir por outro lado uma maior autodisciplina
e um comportamento ainda mais apropriado por parte do aluno. E o controle sugerido
inicialmente na formação tradicional em fileiras pode se deslocar da pessoa do professor para
o grupo de colegas:

Por outro lado, a privacidade parcial permitida pela colocação tradicional de carteiras,
na qual se está sob a vigilância ou supervisão principalmente da professora, pode
desaparecer à medida que as estudantes ficam cada vez mais diretamente também sob
a supervisão de suas colegas. A estudante que prefere não se manifestar fica menos
evidente quando todas as carteiras estão voltadas para frente da sala de aula, assim
como a estudante que não pode usar sapatos novos, que fica ruborizada, que está
entediada e assim por diante. (SILVA, 1994, p.16)

Tudo depende de como movo o caleidoscópio. Assim, dependendo do ponto de vista,


as relações de poder estarão sempre presentes nas escolhas do professor. A sala de aula nunca
é um caos, mesmo com os alunos ocupando o espaço desordenadamente, há sempre uma
ordem implícita que objetiva uma ação pedagógica, trazendo consigo a marca do exercício do
poder.

54
Na 4ª série cada conversa ou movimento dos alunos recebe de imediato uma
advertência da professora da turma. “O treinamento dos escolares deve ser feito da mesma
maneira, poucas palavras, nenhuma explicação, no máximo um silêncio total que só seria
interrompido por sinais [...]” (FOUCAULT, 1988, p.149). Em algumas situações, o aluno é
colocado a cheirar parede de costas para os colegas ao lado do quadro negro, em outras é
apenas humilhado ouvindo a professora dizer que “desse jeito não vai ser nada na vida”.

Nas propostas instauradas na primeira etapa do processo teatral, os alunos não


permanecem envolvidos por muito tempo na mesma atividade. Logo na primeira
improvisação planejada em pequenos grupos a evidência de uma suspeita se confirma: os
alunos da 4ª série nunca trabalharam em grupo. Enquanto buscava formar os grupos
estipulados alguns verbalizavam a aversão dizendo que não queriam fazer. Um grupo
reduzido demonstrava interesse diante da perspectiva de escolha dos componentes do grupo:
“o pessoal deste lado da sala nem fala com os que sentam do lado de lá, pró”.

Imagem 15 – Trabalhando em grupo

Em função do tempo frequentemente tomado para se retirar todas as carteiras da sala


para a realização das atividades, começamos a desenvolver o encaminhamento inicial na sala
de aula e em seguida trabalhar na área externa contando assim com mais espaço – o que só era
possível quando não chovesse. No espaço externo os alunos correm, sobem no mastro da
bandeira, andam sobre a mureta que circunda o pequeno pátio, vão até o banheiro, espiam a
direção da escola, alguns voltam pra sala de aula e outros brincam de pegar. O que gera
muitas vezes um decréscimo do que foi organizado em sala. Podemos comparar esse
movimento ao da criança pequena que recebe uma cartolina para fazer seu desenho e utiliza

55
apenas a barra do papel. Ela não sabe o que fazer com tanto espaço, ou, não está acostumada a
ocupá-lo. Os alunos, então, presos por tanto tempo em suas carteiras, se lançam
desordenadamente naquele espaço externo, sem saber o que fazer com toda aquela liberdade.

Na semana seguinte, a proposta é trabalhar na própria sala. Encarando como uma


brincadeira, os alunos começam a retirar as carteiras da sala organizando-as no pátio externo.
Enquanto isso outro aluno que me observa limpar a lona, pede permissão e lança-se sobre ela
deslizando com o pano umedecido, dando continuidade ao trabalho. Enquanto outros tentam
unir-se a ele e são repreendidos pelas próprias crianças com o alerta de que devem tirar os
calçados. Em poucos minutos a sala está vazia e a lona é erguida por vários corpos formando
uma enorme centopéia que invade a sala. A entrada da lona na sala de aula converte-se num
momento cênico com o volume da lona no ar em movimento, preenchido pelos corpos livres
dos alunos no espaço.

Imagem 16 – A chegada da lona na sala de aula

Por vezes, os espaços institucionais onde nos instalamos são excessivamente


carregados de sentido pelos participantes que vivem e trabalham neles. É ainda mais
apaixonante desconstruí-los e aproveitar todos os cruzamentos de sentidos que
aparecem. O jogo é um meio de “recarregar” os espaços. (RYNGAERT, 2009, p.128)

Na verdade, até então, nenhum jogo foi proposto. Mas a maioria deles encara cada
etapa como parte de um jogo de desconstrução desse espaço, que possibilita, de certa forma,
destruir a estabilidade. Ao nos aproximarmos das características fundamentais do jogo

56
apontadas por Roger Caillois (1990), identificamos em uma delas, o ilinx28, na reação desses
alunos. Na movimentação já mencionada anteriormente onde os alunos viram cambalhotas,
estrelas, saltam, giram, arrastam os colegas, reproduzem golpes de luta e de capoeira, a
perturbação provocada pela vertigem é procurada. O autor sugere que essa vertigem está
associada ao gosto, muitas vezes reprimido, pela desordem e pela destruição.

Em todos os casos, trata-se de atingir uma espécie de espasmo, de transe ou de


estonteamento que desvanece a realidade com uma imensa brusquidão. [...] Cada
criança sabe também que, ao rodar rapidamente, atinge um estado centrífugo, estado
de fuga e de evasão, em que, a custo, o corpo reencontra o seu equilíbrio e a percepção
a sua nitidez. [...] Gritar até a exaustão, rolar por uma ladeira, o toboggan, o carrocel,
se andar suficientemente depressa, e o baloiço, se for suficientemente alto, provocam
sensações análogas. Há vários procedimentos físicos que as provocam: o volteio, a
queda ou a projecção no espaço, a rotação rápida, a derrapagem, a velocidade, a
aceleração de um movimento rectilíneo ou a sua combinação com um movimento
giratório. (CAILLOIS, 1990, p.43-44)

Diante das primeiras propostas orientadas sobre a lona, três movimentos se


evidenciam no grupo: um primeiro de querer fazer e abraçar a novidade, um segundo de se
ver exposto e recuar e um terceiro de agitação geral, não sabendo o que fazer com tanta
liberdade. Tudo leva muito tempo para iniciar. As atividades de aquecimento com dança em
questão de minutos transformam-se no conhecido empurra-empurra dos blocos de pagode do
carnaval de Salvador. Alguns alunos entram e saem da atividade, enquanto outros provocam
os colegas.

Proponho que todos deitem com os braços ao longo do corpo para uma atividade de
relaxamento sem se debruçarem sobre os colegas – o que é claro, não acontece. A lona entra
aqui como possibilidade de transformar e redimensionar esse espaço. É evidente que quando
os alunos se defrontam com esse novo signo, não reconhecem nele uma área delimitada para a
prática teatral, mas sim um lugar em que a relação corpo X espaço é diferenciada do que lhes
é oferecido cotidianamente na escola. Um lugar onde, de certa forma, tudo é permitido. Um
lugar onde o corpo se descobre, como bem descreve Carmela Soares (2006, p.98): “Corpos
inertes na cadeira, tão jovens e tão sem esperança. A alegria das descobertas explode no

28
“(...) proponho o termo ilinx, nome grego para o turbilhão das águas e de que deriva precisamente, na mesma
língua, o designativo de vertigem (ilingos).” (CAILLOIS, 1990, p.45)

57
prazer de jogar, na curiosidade e no desejo de fazer. Tantas subjetividades em jogo, tantos
desejos ocultos, tantos medos, fantasmas e modelos incorporados”.

Imagem 17 – Explorando o novo espaço

Todas essas questões relativas ao corpo, espaço e controle estão inseridas num
horizonte maior: o currículo. As relações de poder podem ser observadas através do próprio
currículo, que é o operador imaginário que determina as escolhas pedagógicas.

O currículo é lugar, espaço, território. O currículo é relação de poder. O currículo é


trajetória, viagem, percurso. O currículo é autobiografia, nossa vida, curriculum vitae:
no currículo se forja nossa identidade. O currículo é texto, discurso, documento. O
currículo é documento de identidade. (SILVA, 1999, p.150)

O currículo é visto como um processo de racionalização de resultados educacionais.


Esses resultados são fruto de uma seleção entre um universo mais amplo de conhecimentos e
saberes. Essas escolhas estão relacionadas ao tipo de pessoa considerada ideal, pois um
currículo busca modificar as pessoas que vão “seguir” aquele currículo, como sugere o
sociólogo Tomaz Tadeu da Silva: “Qual é o tipo de ser humano desejável para um
determinado tipo de sociedade?” (SILVA, 1999, p.15)

58
Em Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo, Tomaz
29
Tadeu apresenta uma síntese das discussões geradas sobre as teorias do currículo no
decorrer do século XX. Ele define uma teoria pelos conceitos que esta utiliza para conceber a
“realidade”, classificando-as em tradicionais, críticas e pós-críticas, centrando-se na análise
das teorias pós-críticas. O estudo registra as preocupações dessas teorias com as conexões
entre saber, identidade e poder no meio educacional.

Retomo então a questão básica: que corpo é esse que habita a sala de aula? Formulo a
partir desta uma segunda questão: que corpo queremos formar, ou qual é o tipo de pessoa que
queremos formar na escola pública? Nessa ótica identificamos no currículo questões de
identidade ou subjetividade e principalmente questões de poder, pois no próprio ato de
selecionar já está imbuída uma operação de poder. E é precisamente a questão de poder que
vai distinguir as teorias tradicionais das teorias críticas e pós-críticas do currículo. As teorias
tradicionais são aparentemente mais neutras e desinteressadas, enquanto as críticas e pós-
críticas argumentam que nenhuma teoria é neutra e que está sempre implicada em relações de
poder. A pedagogia tradicional que foi aqui identificada nas duas escolas trabalha mais
facilmente conhecimentos e saberes com padrões dominantes, se concentrando em questões
técnicas e de organização. A escola pratica ainda a subordinação em detrimento das atitudes
de comando e autonomia.

No contexto da sociologia crítica da educação há um termo proposto por Basil


Bernstein30 que, na mesma perspectiva, traduz esse poder e controle na teoria tradicional de
ensino, o enquadramento: “Quanto maior o controle do processo de transmissão por parte do
professor, maior é o enquadramento. Assim, o ensino tradicional tem um forte
enquadramento, enquanto o ensino-centrado-no aluno é fracamente enquadrado.” (Silva,
1999, p.73) Bernstein distingue ainda poder e controle. Em sua opinião o poder está
essencialmente ligado à classificação que determina o que é legítimo ou ilegítimo incluir no
currículo. Enquanto que o controle está associado ao enquadramento, ao ritmo, ao tempo, ao
espaço da transmissão.

29
Tomaz Tadeu da Silva, autor de vários livros na área de Currículo, é doutor em educação pela Universidade de
Stanford, Estados Unidos. Atualmente é professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É coordenador, juntamente com a Prof. Sandra Corazza, de um
grupo de estudo denominado DIF - Grupo de Currículo de Porto Alegre.
30
Sociolinguista inglês, autor da teoria sobre os impedimentos sociais no aprendizado, Basil Bernstein está entre
os grandes sociólogos do século 20, mostrando um interesse muito particular pela educação.

59
[...] a educação que um menino recebe dos objetos, das coisas, da realidade física – em
outras palavras, dos fenômenos materiais da sua condição social-, torna-o
corporalmente aquilo que é e será por toda a vida. O que é educada é sua carne, como
forma do seu espírito. A condição social se reconhece na carne de um indivíduo...
Porque ele foi fisicamente plasmado justamente pela educação física da matéria da
qual é feito o mundo. (PASOLINI, 1990, apud SOARES, 2004, p. 110)

Imagem 18 – Ocupando a lona

Usar o pensamento de Foucault e seus discípulos como referência para discutir


relações de poder pode parecer reforçar um olhar pessimista sobre a situação em que se
encontra o ensino público. Aparentemente Foucault não aponta saídas ou soluções e só
identifica e expõe os problemas com uma lente de aumento. Mas se olharmos com mais
atenção, as compreensões e perspectivas que seu pensamento oferece podem ajudar a lidar
com essas preocupações, apontando a questão da liberdade como uma das suas preocupações
centrais. O filósofo não supõe responsabilidade social, mas nos provoca a sair da posição de
sujeito obediente – treinado para restaurar o desviante ao seu estado normal - e desenvolver
como profissionais da educação comprometidos, nossos próprios projetos de liberdade.

Seguramente é muito mais fácil falar sobre o fracasso escolar, sobre o desrespeito dos
alunos para com os professores, sobre seu baixo desempenho, sobre sua incapacidade de
expressão e interpretação, sobre alunos de risco, e nos esquivarmos de nossas
responsabilidades enquanto educadores. Entretanto, “se o mecanismo de combate à frustração

60
for o da apatia (acomodação somada à falta de esperança), então restará ao magistério velar o
defunto e enterrá-lo de vez” (SILVA, 1996, p.55).

Foucault sugere que provoquemos novas formas de subjetividade através da recusa do


tipo de individualidade que nos tem sido imposta, num auto-distanciamento. É certo que não
nos diz como fazê-lo. Mas provavelmente não será ignorando esses processos e essas relações
de poder diariamente. A questão não reside apenas no aluno, nas direções de escola ou nas
políticas públicas, e sim na forma como temos sido, enquanto professores, constituídos e
administrados de modo útil. Inicialmente recusando aquilo que somos e em seguida
conhecendo melhor as próprias circunstâncias dessas relações e possibilitando um contínuo
projeto ativo de auto-invenção. A filosofia tem em seu olhar uma ação criadora que não se
reduz a uma mera passividade, pois a própria criação de conceitos31 converte-se em uma
intervenção no mundo, em uma forma de transformá-lo.

Conforme Pignatelli (1994), Foucault também quer que estejamos conscientes das
consequências da nossa escolha de permanecermos silenciosos e desatentos. O que o
aproxima bastante de Sartre neste aspecto. O existencialismo de Sartre reflete a preocupação
existencial de que o homem deve fazer uma escolha, projetando-se para o futuro e se
distanciando do determinismo, sempre que a sociedade, a política, a família, a educação e os
hábitos adquiridos, o colocam numa encruzilhada. O homem só confirma sua liberdade de
acordo com o imperativo existencialista de engagement/compromisso, quando se decide por
uma situação, vinculando-se a ela implicado nessa escolha. De certa forma, a escolha é
sempre possível, o que não é possível é não escolher.

O desafio colocado à questão da agência docente – o pensamento de Foucault parece


sugerir – consiste em perceber o quanto um projeto educacional formulado nos termos
convencionais parece girar sempre e indefinidamente em torno dos mesmos e
insolúveis problemas, consiste em compreender que os modelos prescritivos parecem
formular apenas as questões que eles estão preparados para responder, limitando e
restringindo, assim, as ações de quem faz essas questões. (Pignatelli in SILVA, 1994,
p.140)

31
Podemos definir o conceito, na visão dos filósofos franceses, como sendo uma aventura do pensamento que
institui um acontecimento, vários acontecimentos, que permita um ponto de visada sobre o mundo, sobre o
vivido. (...) Todo conceito é criado a partir de problemas. Ou problemas novos ou problemas que o filósofo
considera que foram mal-colocados; de toda forma, um problema deve ser posto pelo filósofo para que conceitos
possam ser criados. (GALLO, 2003, p.45 e 47)

61
Podemos, portanto, buscar cumplicidade nesse caos instalado no sistema educacional,
encontrando um lugar confortável de vitimização ou olharmos essas questões por outro
ângulo. Assim um possível projeto de se tornar consciente, de praticar a liberdade envolve um
verdadeiro olhar das próprias posições discursivas e profissionais sobre nós ou o lugar de
poder, mantidos pela produção de conhecimento sobre si próprio, sobre nossos colegas de
trabalho e sobre nossos alunos. Essas construções discursivas obtêm sua força justamente pela
possibilidade de estarem desconectadas de determinadas práticas e circunstâncias sociais. Por
fim, um maior empenho nos atos cotidianos, atos que adquiram um valor coletivo: “A ação,
seja ela qual for, modifica aquilo que é, em nome daquilo que ainda não é. Já que ela não
pode realizar-se sem quebrar a ordem antiga, é uma revolução permanente...” (SARTRE,
2002, p.35). Ao escolhermos nossa atuação na escola, estaremos escolhendo para nós mesmos
e para todos aqueles com quem iremos trabalhar. Assim, todo ato singular se coletiviza. E se
nos perguntarmos em algum momento: - Que corpo é esse que habita a sala de aula (da escola
pública)? Poderemos responder com segurança: - O corpo que queremos formar, o de uma
pessoa sensível, segura, crítica e socializada...

Tomamos, portanto, o corpo no sistema educacional como unidade orgânica que


ocupa lugar no espaço, nesse espaço da sala de aula. A partir dos exercícios e jogos propostos
nas aulas de teatro este corpo aquecido torna-se o corpo dilatado do aluno, não apenas no
sentido físico ou emotivo, mas sim, no aspecto de envolvimento, desejo, concentração e
presença. Infelizmente, a pedagogia que encontramos nas escolas não considera corpo e
aprendizagem como elementos indissociáveis: “(...) a visão que temos das práticas educativas
é que a aprendizagem não necessita de corpos, falta uma interação entre o que se aprende e o
que se vive, independente da proibição de movimentação na sala de aula” (Ribeiro in
SANTANA, 2003, p.112).

62
1.4 A atmosfera em construção na sala de aula

Só interessa, na realidade, a atmosfera afetiva em que cada um se sente mergulhado.

Michel Maffesoli

Através das lembranças de todas as casas em que encontramos abrigo, além de todas
as casas que sonhamos habitar, é possível isolar uma essência íntima e concreta que
seja uma justificação do valor singular de todas as imagens de intimidade protegida?

Gaston Bachelard

No processo de preparação desta entrada chegamos pelo quintal da casa, nos


aproximamos dos espaços em que estão inseridas as duas escolas envolvidas na
experiência teatral, e nos conectamos com a real situação da escola pública e com as
relações de poder exercidas sobre o corpo de nossos alunos. Nesse mesmo território vamos
adentrar agora em um espaço de intimidade. Na verdade, o espaço ainda é o mesmo, mas o
olhar se amplia, ou melhor, se multiplica como num caleidoscópio.

Podemos comparar aqui a sala de aula à casa. A casa, como elemento vivo, como
casulo, é relacionada ao ambiente propício para a experiência teatral. Esse lugar do
processo criativo onde se trabalha com o espaço, corpo, texto, objetos, imagens. Assim
como o espaço de nossa casa é confortável, quente, aconchegante, familiar, também o
ambiente da sala de aula deve ser transformado, criando assim, uma atmosfera convidativa.

Para aprender é indispensável que haja um clima e um ambiente adequados,


constituídos por um marco de relações em que predominem a aceitação, a confiança, o
respeito mútuo e a sinceridade. A aprendizagem é potencializada quando convergem
as condições que estimulam o trabalho e o esforço. É preciso criar um ambiente
seguro e ordenado, que ofereça a todos os alunos a oportunidade de participar, num
clima com multiplicidade de interações que promovam a cooperação e a coesão do
grupo. (ZABALA, 1998, p.100)

63
O processo criativo em teatro relaciona-se com esse lugar, é gerado nele. É a casa
que abriga o devaneio, que permite sonhar. O espaço da escola pública, que oferece muitas
vezes uma textura dura, “rude” e antiestética32, precisa, portanto, ser transformado. Nessa
casa onde não se vive só, mas em grupo, a construção dessa nova atmosfera é coletiva. Em
casa nos sentimos à vontade, é o nosso espaço, nosso canto, nosso abrigo. Sob esse aspecto
também o espaço da sala de aula deve acolher o aluno propiciando condições favoráveis ao
desenvolvimento do processo criativo.

Diagnósticos de chegada, encaminhamentos, procedimentos e rotina nas


experiências em teatro desenvolvidas nas duas escolas, contribuem para um olhar que
aproxima inicialmente “atmosfera” do termo “ambiente”, proposto pela norte-americana
Viola Spolin33, relacionado aqui ao clima e condições favoráveis para o desenvolvimento
da aula de teatro. Como maior desafio para o ensino de teatro na escola, aponto, portanto, a
necessidade de construir uma nova atmosfera, estabelecer um ambiente para o
desenvolvimento da experiência teatral e ajudar os alunos a encontrar sentido nas
atividades que desenvolvem nessas aulas, possibilitando que sintam que sua contribuição
será necessária para esse processo. É importante observar, ainda, como a atmosfera teatral
dialoga com a violência encontrada nas escolas: violência contra a pessoa, verbal ou física,
ameaças, brigas, coerção, brincadeira-pancadaria, assim como a violência contra o
patrimônio das instalações escolares.

As possíveis relações a serem estabelecidas entre o termo atmosfera e o ensino de


teatro na escola, certamente não se restringem ao que venho propor nesses dois enfoques. Mas
delimito aqui, a discussão deste conceito sob um duplo olhar: um que aproxima atmosfera do
ambiente nas oficinas de trabalho, como propõe Spolin, e outro, que se refere à relevância
estética de uma imagem (objeto ou ato), ao poder atmosférico de um momento, uma
atmosfera não-aurática, segundo o que sugere Gernot Bohme em Ensaios para uma nova
estética.

32
Termos utilizados pela professora Carmela Soares em sua dissertação de mestrado Pedagogia do Jogo
Teatral: uma poética do efêmero – O ensino do teatro na escola pública, ao se dirigir a escola pública.
33
Viola Spolin (1906 - 1994), atriz, professora e diretora, desenvolveu nos Estados Unidos durante os anos
sessenta, um sistema de jogos teatrais com o objetivo de ensinar a linguagem do teatro a crianças, adultos,
profissionais e não profissionais. Os alunos são desafiados a trabalhar em torno da solução de um problema
cênico, aprendendo e experimentando de forma lúdica e orgânica os códigos e convenções teatrais. Fundado na
improvisação teatral, seu método obedece a regras precisas, sendo aplicado segundo a observação de alguns
procedimentos básicos, tais como: o foco ou ponto de concentração na solução do problema cênico, a instrução,
a presença de uma platéia constituída internamente pelos membros da turma e a avaliação coletiva.

64
A expressão atmosfera, bastante utilizada no discurso estético, é abordada pelo autor
alemão Gernot Bohme34 que alerta para a necessidade de um redimensionamento, uma
rearticulação de sua abrangência. Em sua opinião, uma introdução ao conceito de atmosfera
enquanto conceito da Estética deve unir os seus diferentes usos no cotidiano aos seus
diferentes caracteres.

Bohme propõe a criação de uma nova estética que está relacionada com a qualidade
do nosso entorno e com a qualidade do pensamento humano. A atmosfera é justamente este e,
que constitui a mediação entre o entorno e o pensamento. Sob seu ponto de vista, esta nova
estética pode ser formulada em três modos:

a) A estética até então predominante é uma estética do juízo, uma estética que não trata
da experiência sensitiva. Ela se ocupa mais com o julgamento e com o discurso. E a
partir de um determinado momento a teoria estética integra também uma função
social, que promove a discussão sobre obras de arte.
b) A estética pertence ao domínio da semiótica - a apreciação é descrita a partir de
esquemas da língua e da comunicação. A estética pode ser apresentada sob o título
generalizante de “linguagem da arte”.
c) E por último, um conceito que determinou seu lugar na teoria estética, criado por
Walter Benjamin: o conceito de aura. Através do qual o autor se refere a uma
atmosfera da distância e da apreciação, que uma obra original proporciona,
distinguindo a obra original de sua reprodução. Ele acreditava num desenvolvimento
próprio da arte que eliminasse essa noção de aura, especialmente pelas características
técnicas de reprodução dos novos meios de comunicação. Aura descreve, de certo
modo, a atmosfera, a ausência de características determinadas do invólucro da obra.

Do ponto de vista da história da estética, o termo “aura” recebeu seu significado


filosófico pelas mãos de Walter Benjamin. Semanticamente a palavra origina-se na tradução
do grego aúra para o latim aura, que significa sopro, ar, brisa, vapor. Simbolicamente pode
indicar ainda: “[...] um procedimento universal de valorização sagrada ou sobrenatural de um
34
Cf. BÖHME, Gernot. Essays zur neuen Ästhetik (Ensaios para uma nova estética). Trad. Luiz Cláudio Cajaiba,
Editora Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1995.

65
personagem: a aura designa a luz em torno da cabeça dos seres dotados de força divina, sendo
que a luz é sempre um índice de sacralização”. (PALHARES, 2006, p.13) Essa noção de aura
sofre o seu declínio diante do processo de reprodutividade técnica. Todavia, na opinião de
Palhares (2006, p.13), Benjamin não descarta de todo “a possibilidade de uma recepção
aurática-contemplativa, cuja crise estaria relacionada unicamente com a modificação histórica
da própria percepção”.

Considerando que essa aura, de que fala Walter Benjamin, pode se manifestar na
natureza das coisas, ou no olhar que imbutimos nelas, como algo perceptível espacialmente,
podemos tanto identificá-la manifesta em um objeto, como produzi-la intencionalmente.

Em suma, o que é aura? É uma figura singular, composta de elementos espaciais e


temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja.
Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte,
ou num galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas
montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa
respirar a aura dessas montanhas, desse galho. (BENJAMIN, 1993, p.170)

Sob esse olhar, a aura pode ser descrita como algo que pertence também à ordem da
natureza e não apenas à evocação de uma imagem poética: “[...] a aura da montanha não é
vinculada à sua unicidade física, à sua originalidade material, ela pode ser reproduzida por
uma situação específica do sujeito, que em um determinado instante (histórico) a sente como
uma experiência misteriosa do distante”. (PALHARES, 2006, p.53)

Assim, da mesma forma que, na linguagem cotidiana, pode-se falar da atmosfera


confortável e envolvente de uma sala, o que se sente logo ao entrar nela, e cuja atmosfera
relaxante também se pode usufruir; podemos falar do ambiente para as aulas de teatro e da
atmosfera que se instala no momento do fazer teatral35.

Ao estruturar os procedimentos das oficinas de trabalho com adolescentes, Viola


Spolin aborda o termo “ambiente” referindo-se tanto a composição física como a atmosfera
existente dentro desta composição. Para a autora, sempre que possível, a aprendizagem teatral

35
Utilizo o termo fazer teatral para reforçar o que propõe Luigi Pareyson em Estética: Teoria da Formatividade:
“O formar como ‘fazer’ inventando o ‘modo de fazer’ (...) no próprio curso da operação inventa o modus
operandi, e define a regra da obra enquanto a realiza, e concebe executando, e projeta no próprio ato que
realiza.” (PAREYSON, 1993, p.59).

66
destes alunos deveria realizar-se num espaço com as mínimas condições de iluminação e som,
alguns praticáveis e um guarda-roupa representativo. Recursos que viabilizam, segundo ela,
aos alunos, o desenvolvimento de habilidades como atuar, desenvolver material de cena e
criar efeitos técnicos. Os exercícios sugeridos em Improvisação para o Teatro possibilitam
ainda adaptar objetos, vestimentas, efeitos sonoros e iluminação a serem utilizados durante a
solução do problema proposto, compondo a atmosfera de teatralidade. Spolin não ignora que
as formas de improvisação, na sua maioria, utilizam poucos objetos ou elementos de cenário,
mas considera estes, importantes na função de abrir as portas do intuitivo36 para os alunos.

Infelizmente a estrutura oferecida pela maioria das escolas, principalmente as da rede


pública, não contempla uma sala própria37 para o desenvolvimento das aulas de teatro. O que
não considero impedimento para a sua realização. A alternativa para o professor desta
disciplina é buscar espaços alternativos na escola e reorganizar rapidamente o espaço da
própria sala de aula com a ajuda dos alunos.

É importante que o planejamento das aulas de teatro no ensino fundamental não perca
de vista uma estrutura organizacional, que leve em conta, os aspectos epistemológicos que
envolvem o processo de aprendizagem. Parafraseando Philippe Perrenoud38(2000), nós,
professores, não possuímos apenas saberes, mas também competências profissionais que não
se reduzem ao domínio dos conteúdos a serem ensinados. E entre elas, organizar, estimular e
envolver os alunos em situações de aprendizagem.

Sob esse aspecto, proponho que a aula de teatro seja composta por três momentos
principais: encaminhamento, desenvolvimento e devolução (avaliação do processo). A
simples delimitação de conteúdo e metodologia a ser utilizada não garante a aprendizagem
teatral, nos termos que entendemos como significativa. O estabelecimento de uma rotina de
trabalho e um olhar dedicado ao ambiente teatral gera uma atmosfera favorável e
mobilizadora para o processo criativo. Infelizmente, na prática, a proposta de uma rotina no

36
Cf. Spolin (1982, p.18): “Para evitar que a palavra ‘intuitivo’ torne-se vazia ou que a usemos para conceitos
ultrapassados, utilizo-a para denotar aquela área do conhecimento que está além das restrições de cultura, raça,
educação, psicologia e idade, mais profundo do que as roupagens de maneirismo, preconceitos, intelectualismos
e adoções de idéias alheias que a maioria de nós usa para viver o cotidiano”.
37
Quando uso o termo sala própria me refiro a uma sala simples com área livre e piso que possibilite atividades
de solo, sem pensar nos demais recursos.
38
O educador francês Philippe Perrenoud propõe em sua obra Dez novas competências para ensinar uma
progressiva recomposição do leque de competências de que os professores necessitam para exercer seu ofício de
forma eficaz e equitativa.

67
contexto curricular encontra dificuldades.

No projeto de teatro instaurado nas duas escolas anteriormente mencionadas com


alunos de 4ª e 6ª série, estes três momentos sofreram impasses para serem mantidos.
Considerando os seguintes aspectos: aulas com duração de 45 minutos, alunos que saem da
sala a cada troca de professor, tempo dedicado à chamada, avisos da direção, conclusão de
trabalhos ou avaliações da aula anterior, preparação da sala de aula, dificuldades de
organização em grupo - fica assim, comprometido, o momento de avaliação. E muitas vezes,
até o próprio desenvolvimento das atividades em grupo, considerando que a turma é
numerosa. Na turma de 4ª série, nos dias em que a professora não vinha dar aula, os alunos
eram dispensados antes mesmo que eu chegasse à escola. Esta característica descontínua da
aula de teatro na escola pública não é o modelo de uma prática ideal, no entanto, constitui-se
enquanto realidade concreta enfrentada pelos professores de teatro que optam por trabalhar no
horário curricular destinado as aulas de artes.

As primeiras aulas devem conter atividades de expressão corporal, dança, exercícios e


jogos teatrais com o grande grupo, em que todos se envolvam sem a presença de um
espectador. O foco inicial é a integração dos alunos, nessa nova forma de se relacionar com o
espaço da sala de aula, possibilitando que ganhem segurança nas atividades, sem
preocuparem-se com a exposição diante do outro. O objetivo é viabilizar atividades em que
todos possam se expressar de forma mais espontânea, desenvolvendo a confiança, o contato e
a concentração no grupo.

Para Viola Spolin, prazer e relaxamento devem permear com frequência a atmosfera
das aulas. É fundamental que o professor de teatro espere dos alunos absorção não somente
dos procedimentos e das convenções apreendidas na experiência de trabalho, mas também do
clima que os acompanha. Não é raro encontrar autores que enfatizam a importância dessa
aura de prazer. Da mesma forma, Peter Brook preocupa-se com atividades que produzam
uma atmosfera mais relaxada: “Tudo que se faz em ensaio afeta esse processo: brincar ou
jogar cabra-cega em conjunto é um processo que traz certos resultados, como um sentimento
maior de confiança, amizade e informalidade” (BROOK, 1970, p.111). O encenador propõe
exercícios de grupo que desenvolvam a prontidão, a relação no olhar e o contato físico, uma
percepção coletiva que deve ser constantemente renovada para alimentar uma atmosfera de
união no grupo.

68
A relevância de tais considerações, sobre a atmosfera do fazer teatral, pode ser
confirmada pelo registro de alguns alunos das turmas de 4ª e 6ª série do Ensino Fundamental
com que foram desenvolvidas as atividades de teatro. Os alunos escreveram sobre o que foi
mais representativo no período em que tiveram aulas de teatro no horário das aulas de
educação artística:

• - Ter aulas de teatro foi muito legal porque todas as aulas a gente fazia alguma
brincadeira, algumas cenas e várias outras coisas.
• - Muitas coisas. Foi na hora que ela mandou fazer o movimento do corpo,
engrenagem, também conhecido como máquina.
• - Depois que a professora foi fazendo atividades foi abrindo mais a mente dos alunos.
• - Um dia que nós fizemos um exercício com o lenço.
• - A brincadeira de piscar para o outro e todas as aulas.

(Alunos 6ª série)

• - Eu gostei muito do teatro porque além de eu me divertir eu aprendi muitas coisas e


brinquei.
• - Eu aprendi a viver na aula de teatro.
• - A aula de teatro foi muito boa porque é um esporte quasi isso né. Foi bom para
saltar. É bom para o corpo.
• - É muito bom compartilhar da aula de teatro, muitas brincadeiras apresentações muito
massa. Engraçado foi a parte do restaurante que Fernando derrubou Mariana rs rs rs rs
dessa parte eu gostei teve imitei um bicho para o outro adivinha. Foi muito bom do
início ao fim uma grande aventura.

(Alunos 4ª série)

Percebemos através dos depoimentos dos alunos que o prazer, a ludicidade e a


diversão estão presentes na constituição do imaginário das aulas de teatro. As experiências
lhes proporcionaram ao mesmo tempo uma nova relação com o próprio corpo, a interação
com o outro e o estabelecimento de uma relação diferenciada com o espaço à sua volta. A

69
atmosfera da aula também é composta pela participação e absorção dos alunos que cresce à
medida que, na espontaneidade, esquecem o olhar dos colegas como espectadores que julgam,
e se entregam ao fazer teatral.

A própria expectativa da aula de teatro por parte dos alunos instala uma nova
atmosfera na sala. Muitas vezes, quando eu chegava diante da porta da sala da 4ª série, os
alunos empolgados comemoravam. Com a turma de 6ª série, fui surpreendida logo na terceira
semana: ao chegar à sala de aula e encontrar uma das alunas afastando as carteiras e varrendo
a sala, por iniciativa própria. Mesmo assim, o clima de “altos e baixos” era uma constante na
experiência de teatro desenvolvida com esses alunos. O que poderá ser melhor compreendido
através do relato do processo desenvolvido.

Na estrutura curricular, as aulas de teatro podem seguir um intervalo, uma aula de


matemática ou de educação física. Conforme a opção, os alunos podem encontrar-se em
diferentes estados físicos e de humor. Na sua maioria eles se mostram sedentos por participar
das aulas e estão sempre apressados com a preocupação de aproveitarem o máximo possível
do tempo. Nas primeiras aulas, esta ansiedade é verbalizada e fisicalizada: os alunos deslizam
pela sala, correm e determinam: “ - Vamos logo fazer teatro, professora! O que vamos fazer
hoje?” A condição inicial, o desejo de aprender e participar se faz presente, apesar de um
pouco desorganizado.

O “barulho” nas aulas de teatro é inevitável. O trabalho corporal provoca a fala que
aos poucos é organizada. Através de suas pesquisas, o psicólogo russo L.S. Vigotski39 (1998)
observa que é natural e necessário para a criança falar enquanto age. A fala não só acompanha
a atividade prática, como também tem um papel específico na sua realização. A partir da
familiarização com a atmosfera teatral esse “barulho” é substituído por um trabalho mais
“limpo” e “objetivo”, no qual os próprios alunos começam a exigir do grupo mais
concentração e determinação. A “indisciplina” de alguns vai gerando desconforto nos
próprios colegas que cobram uma nova atitude para que o grupo solucione a tempo de
socializar com a turma, o problema cênico proposto.

Todos os encaminhamentos da aula, como a formação em círculo, a reestruturação do


espaço, a chamada, a exposição dos objetivos, uma atividade de relaxamento ou aquecimento

39
Considerando que a escrita do nome Vygotsky aparece de diferentes formas nas fontes de referência, estarei
mantendo a grafia correspondente à obra consultada.

70
para o tema que será desenvolvido, funcionam como uma chamada de atenção para o
momento inicial, de integração em uma nova atmosfera. É como uma transição, uma
passagem da disciplina anterior para esta. Já no desenvolvimento da aula, como em geral as
turmas são numerosas, é imprescindível objetivar o tempo de preparação dos jogos e situações
de improvisação para que todos possam mostrar o trabalho que foi elaborado em grupo. Para
os momentos de avaliação final é importante esclarecer antes aos alunos os pontos que devem
ser observados durante o fazer teatral.

No processo desenvolvido com os alunos de 4ª e 6ª série, imagens e músicas serviram


como ponto de partida para a definição da situação dramática. As atividades que recorrem à
música como estímulo, sugerindo sensações, emoções e uma variedade de contextos
contribuem para criar uma atmosfera para a cena. Para os alunos, a música é inspiradora,
possibilita diferentes associações e auxilia na criação de uma nova atmosfera para a
representação. A percepção de um fragmento textual, seja ele, um poema, uma música ou um
texto literário adquire diferentes conotações em função de uma série de fatores: “A maneira
pela qual é emitido, o destinatário a quem se dirige e a situação em que isso ocorre” (PUPO,
2005, p.05).

Imagem 19 – Imagens de jornal local (Salvador) utilizadas como pré-texto para criação de cenas

Com crianças e adolescentes, textos, músicas, imagens e objetos como estímulo40,


causam muito mais impacto do que um discurso. Um elemento concreto a partir de sua
própria materialidade motiva e inspira muito mais os alunos, contribuindo para a entrada em
40
Cf. MARTINS, (2002, p.242): “(...) o encenador deve utilizar os mais variados estímulos, provocando a
multiplicidade de pontos de vista, estimulando novas experiências e a atitude de pesquisa dos participantes”.

71
uma nova atmosfera, transformando as imagens geradas a partir da discussão, em cena.
Através da experimentação gradual e crescente dos exercícios e jogos propostos, os alunos
passam a dominar e utilizar com mais frequência a dimensão simbólica no teatro. Planejar e
instaurar ações criativas é de responsabilidade do professor de teatro que pesquisa,
fundamenta e dialoga com diferentes autores e materiais formando um repertório para a
prática teatral no espaço escolar.

Nesse sentido, ao tratar do projeto poético que relaciono aqui ao olhar do professor de
teatro, dialogo com o pensamento de Cecília Almeida Salles (1998), que nos remete a um
outro aspecto da aura. Ela afirma que em toda prática criadora há fios condutores que atam a
obra como um todo: “São princípios envoltos pela aura da singularidade do artista; estamos,
portanto, no campo da unicidade de cada indivíduo. São gostos e crenças que regem o seu
modo de ação: um projeto pessoal, singular e único” (SALLES, 1998, p.37). Sob esse olhar, a
aura está presente nos princípios que regem nossas escolhas, no planejamento das aulas e/ou
na organização de um processo de montagem. Esse mesmo olhar pode ser ainda identificado
nas palavras de Peter Brook quando este se refere a um movimento oculto ou a uma intuição
amorfa que direciona o processo criativo.

O professor que chega como personagem, um novo objeto em sala, a força de uma
imagem criada, a música que instaura um espaço poético, a participação da platéia no fazer
teatral, a forma como o espaço foi utilizado e transformado, todos esses componentes
promovem a manifestação de diferentes atmosferas redimensionando o universo escolar e
possibilitando uma leitura das transformações desse ambiente. Como exemplo da inclusão da
plateia, cito uma iniciativa dos alunos da 6ª série que ao refazerem uma cena criada em grupo,
têm a ideia de introduzirem a participação da plateia fazendo perguntas aos colegas sobre o
paradeiro da personagem – um recurso fácil, mas inédito para esse grupo de alunos.

No final desta aula, a professora de artes da turma que sempre acompanhava o


trabalho comenta com um largo sorriso no rosto que os alunos estavam começando a absorver
a sistemática da aula e aprendendo a trabalhar melhor em grupo e na construção das cenas.
Observava assim, uma mudança na atmosfera da aula. O comentário da professora diz
respeito não só à frequência das aulas que já modificava o comprometimento dos alunos, mas
também às questões que pertencem ao currículo oculto, às relações sociais na escola: “O
currículo oculto é constituído por todos aqueles aspectos do ambiente escolar que, sem fazer
parte do currículo oficial, explícito, contribuem, de forma implícita, para aprendizagens
72
sociais relevantes” (SILVA, 1999, p.78).

Assim, também alimenta a formação da atmosfera da aula de teatro, a mediação


constante do professor nas situações de conflito, os elogios e incentivos durante o processo
criativo, cada elemento concreto e novo que traz para a aula demonstrando planejamento e
interesse, e o retorno dado para os alunos sobre o que produzem em sala. Todos esses
elementos dão um sabor distinto à vida de sala de aula. Um sabor que também é produzido
pela crença e paixão do professor em seu trabalho, e que ganha força na expressão do poeta
soviético: “se você não estiver ardendo, não poderá inflamar ninguém” (IESSÊNIN, apud
KUSNET, 2001, p.48-50)

Finalmente, na segunda relação que venho propor com o termo atmosfera, podemos
ler a entrada da lona na sala de aula (carregada pelo alunos) como uma proposta estético-
teatral fundada em princípios não auráticos, no modo de recepção daquele que observa.
Assim, a instalação e experimentação dos alunos com a lona, é tomada como um ato artístico
(grifo meu), em que a beleza pode ser enxergada no movimento vertiginoso que desencadeia.

Em Os Jogos e os Homens: A máscara e a vertigem, Roger Caillois fala de uma


atmosfera de prazer gerada a partir do jogo: “(...) a palavra ‘jogo’ evoca por igual as ideias de
facilidade, risco ou habilidade (...) contribui infalivelmente para uma atmosfera de
descontração ou de diversão”. (CAILLOIS, 1990, p.09) A busca desenfreada da vertigem está
associada ao gosto (muitas vezes reprimido) pela desordem e pela destruição, e pelo desejo de
tornar as coisas mais próximas, e, em conseqüência, destruir sua aura, captar o outro no
mundo como um fenômeno único.

Nesse ato, uma outra experiência estética está em jogo, uma estética “sensitiva” não
calcada no “juízo de valor”, como ressalta Bohme. A chegada da lona, em seu caráter
performático, pode ser lida como uma “instalação”, um ato artístico que revigora e reconstrói
os laços afetivos41 dos alunos com a escola, com a sala de aula, com os outros, constituindo-se
ao mesmo tempo em acontecimento artístico e pedagógico. Quando num curto espaço de
tempo, a lona adentra a sala preenchida pelos corpos livres dos alunos que fazem um novo
volume no espaço, essa imagem transpira teatralidade. A beleza do ato está na manifestação

41
Cf. Del Periggia (2000, p.02): “Cativar significa criar ‘laços’. Ligar o exterior e o interior, ligar o ar e o
homem: é assim que nasce o movimento [...] Ele se situa no ponto de equilíbrio entre o interior e o exterior do
indivíduo, que possui uma energia centrífuga”.

73
do sensível em sua imediaticidade, na experiência sensitiva. Esta satisfação depende do poder
daquele que olha, não podendo, assim, ser experimentada por todos.

A nova atmosfera sugerida por Bohme e que se traduz justamente pela conjunção e,
que constitui a mediação entre o entorno e o pensamento, aproxima-se das reflexões de
Maffesoli através da reimageficação que propõe. Neste novo paradigma observa-se uma
mudança de compreensão teórica, de perceber a vitalidade, de sairmos de uma representação
para uma presentação. A lógica da atualidade para o pensador está fundada igualmente no “e”:
religião e ciência, corpo e mente, sem reduções ou repartições, o que nos introduz numa
espiral sem fim. O que possibilita intensificar o que vivemos com o outro aqui e agora, nessa
mudança de temporalidade. A reimageficação proposta nesse contexto seria o retorno do
imaginário - a imagem contaminando os nossos dias. O festivo, a estetização da existência,
essa teatralidade cotidiana, reconhecida também na entrada da lona em sala como ato
performático. Uma paixão coletiva vivida em toda a sua intensidade, um lugar no qual a
alteridade faz a diferença. Assim, com o fim da percepção aurática, o significado da bela
aparência se transforma. A beleza não é mais só aparência, é a manifestação do espírito em
sua efemeridade, em sua instantaneidade. O corpo lona, em sua ação atmosférica tinge o
espaço42 no tempo de duração do seu ato: “À percepção pertence o reconhecimento afetivo,
pertence a realidade das formas, pertence a presença corporal”. (BOHME, 1995, p.12)

Alguns desses momentos, que eram também registrados, podiam ser posteriormente
revividos pelos alunos. Em um dos encontros com a 4ª serie levo para sala um cartaz que
preparei com algumas imagens deles em cena. Em segundos, os alunos se lançam sobre o
cartaz, na ânsia de se reconhecer nas imagens. Um deles se envaidece afirmando ser o que
aparece com mais frequência. Propus que cada um escrevesse em torno das imagens uma
palavra que estivesse relacionada, que representasse para eles, a aula de teatro.

O primeiro a escrever traçou uma linha no espaço da cartolina para equilibrar sua
palavra – movimento esse, que foi acompanhado pelas próximas crianças. Alguns, a pedido,
escrevem para os colegas que ditam a sua palavra, por preferirem, em detrimento da sua, a
letra do amigo. Os alunos me surpreendem, nos diferentes olhares que lançam sobre a aula:

42
Cf. Bohme (1995, p.07) “Os espaços são ‘tingidos’ com a existência das coisas das pessoas, da constelação de
entornos [...]”.

74
Imagem 20 – Alunos da 4ª serie observando as imagens das aulas de teatro

Criando

Instrumentos

Disciplina

Dança

Solidariedade

Brincadeira

União

Paz

Prosperidade

Alegria

Afeto

Aprendizado

Educativo

Cultura

Atenção

Jogos

Artes

Educação

75
Enriquecedora

Uma forma de demonstrar a realidade

Trabalho

Personagem

Através das palavras escolhidas pelas crianças foi possível observar que a percepção
dos alunos da aula de teatro pertence também à dimensão afetiva. Muitas delas estão
relacionadas ao currículo oculto: “os grandes grupos, a utilização do elogio e do poder que se
combinam para dar um sabor (grifo meu) distinto a vida de sala de aula coletivamente forma
um currículo oculto” (JACKSON, 1968 apud SILVA, 1999, p.77).

Por possibilitar uma nova relação entre eles, a característica estrutural da aula e da
situação de ensino, mais do que o seu conteúdo explícito, imprime, de certa forma, relações de
autoridade (disciplina), uma nova organização espacial, e a possibilidade de socialização
expressa nas palavras: solidariedade e união. Deste modo, também os laços de afetividade
modificam aos poucos a atmosfera da aula. Uma boa relação com o professor faz a aula ter
uma nova função, um significado a mais.

Significado, significativo - talvez resida nestas expressões o sentido de se produzir


diferentes atmosferas nas aulas de teatro. Produzir uma atmosfera que alimente um novo olhar
para a realidade, um olhar menos duro, macio, leve, mágico, mas não menos crítico. Uma
atmosfera que os aproxime da estética teatral e que possibilite uma aprendizagem
significativa43 em teatro. Uma atmosfera que sustente uma tensão em torno de um problema a
ser resolvido, e, sobretudo, uma atmosfera que seja confortável de habitar e onde seja
permitido sonhar. Assim, as conexões entre atmosfera e o fazer teatral nos conduzem
finalmente ao prato principal desta refeição.

43
Cf. Moreira e Silva (1999, p.13), a aprendizagem significativa caracteriza-se por: “uma interação (não por
uma simples associação) entre os aspectos específicos e relevantes da estrutura cognitiva e as novas informações,
por meio da qual essas adquirem significado e são integradas à estrutura cognitiva de maneira não arbitrária”.

76

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