O Falar de Deus

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Protestantismo em Revista, São Leopoldo, RS, v. 27, jan.-abr.

2012 9

O falar de Deus:
um olhar antropológico ao público evangélico
Speech of God: an anthropological glance to the evangelical pulpit

Por Anaxsuell Fernando da Silva


Doutorando em Ciências Sociais (Unicamp)
Bolsista CAPES
[email protected]

Resumo: Abstract:
Este trabalho tem como ponto de partida o desejo de This paper tries to understand the importance of the pulpit in
compreender a importância do púlpito na sociedade contemporary society, it discusses the influence of speeches in
contemporânea. Para tanto, ao longo do percurso, discute sob evangelical churches in an outlying neighborhood in Natal,
a mediação de instrumentos teóricos e analíticos a influência capital of Rio Grande do Norte. The emphasis is to discuss
dos discursos proferidos nas igrejas evangélicas de um bairro the process of building a social life, the worldview and
periférico em Natal, capital do Rio Grande do Norte. A practice of spirituality among the faithful listeners. The
ênfase é discutir – ao longo do caminho – o processo de construction process of the research was through direct
construção da vida social, da cosmovisão e da prática da observation in several evangelical churches of that district,
espiritualidade nos fiéis-ouvintes. E ainda, a especificidade das being written some of the sermons delivered from the pulpits
prédicas às questões locais ou levantar a possibilidade de que of them, transcribing them and analyzing them. It also sought
tais preleções seriam reverberações, em pequenas interviews with preachers and listeners. Having a theoretical
comunidades, de discursos oriundos em círculos eclesiais em perspective that language is not a neutral medium of
regiões centrais. O processo de construção da pesquisa se deu reflection or description of the world, the rhetoric of the
através de observações diretas em vários templos evangélicos sermons in church pulpits are directed to a specific audience,
do referido bairro, sendo gravados alguns dos sermões which is (or not) persuaded by the arguments presented and
proferidos nos púlpitos, transcrevendo-os e analisando-os. provides a signal in response to what had been reported. The
Buscou-se também entrevistas com os pregadores e ouvintes. culmination of work is thus the problematic role of the
Tendo por perspectiva teórica que a linguagem não é um church in the public sphere, since it operates as a mediator for
meio neutro de reflexão ou descrição do mundo, a retórica its cultural and political community of believers. This work
dos sermões nos púlpitos eclesiásticos é dirigida a um público lies with the proposition that epistemological dialogue
específico, que é (ou não) persuadido, pelos argumentos between areas of knowledge can promote understanding of
apresentados e oferece algum sinal em reação ao que fora the phenomenon, for it brings with it the desire to articulate
comunicado. O ponto de chegada do trabalho é, pois, a knowledge and practice of theology, sociology, history,
problematização da atuação da igreja na esfera pública, já que politics by anthropological bias.
esta opera como mediadora cultural e política para sua
comunidade de fiéis. Este trabalho assente com a proposição
epistemológica de que diálogo entre áreas do conhecimento
pode favorecer a compreensão do fenômeno. Por isto, traz
consigo o desejo de articular saberes e práticas da teologia,
sociologia, história e política pelo viés antropológico.

Palavras-chave: Keywords:
Púlpito evangélico. Sermão. Antropologia da religião. Religião Evangelical Pulpit. Anthropology of Religion. Religion.
e esfera pública.

As igrejas ou templos têm sido, ao logo da adentrar a uma igreja evangélica para que, pela
história, um canal tradicional, regular e natural de organização espacial desse grupo religioso, se
comunicação. E, em alguns lugares onde as evidencie a importância dedicada ao púlpito. Não
reuniões públicas são inibidas, o único. Basta há quadros, não há representações do divino. Os

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templos assemelham-se mais com salas de aula do fato específico não se constitui nosso campo de
modelo pedagógico tradicional. O seu centro é o análise.
púlpito: o lugar onde se fala de Deus.
O sermão e o contexto
O protestantismo1 privilegia a fala em oposição
à contemplação. Isso não é acidental, tem raízes Para a compreensão de um discurso, em nosso
teológicas. Em contraposição aos católicos, que caso dos sermões evangélicos, é necessário estar
ressaltam a dimensão contemplativa e visual da atento às condições em que este foi produzido e
experiência religiosa, Rubem Alves2 sugere que os considerar a linguagem como “interação, vista esta
protestantes viram no segundo mandamento um na perspectiva em que se define a relação necessária
interdito que lhes impôs um rigoroso ascetismo entre o homem e a realidade natural e social”.5 O
artístico, isto é, o divino não pode ser expresso pela dizer de um texto ou discurso não se origina
forma, pela cor ou pelo movimento. Restou ao somente no desejo do autor em cena, mas nasce de
protestantismo indicá-lo por meio da linguagem.3 O outros discursos:
logos é a encarnação do divino.
Do ponto de vista discursivo, as palavras, os
Indubitavelmente, a linguagem não é um meio textos, são partes de formações discursivas [...]
neutro de reflexão ou descrição do mundo. Assim como as formações discursivas determinam o
sendo, esta retórica dos sermões nos púlpitos que pode e deve ser dito a partir de uma
eclesiásticos é dirigida a um público específico, que posição dada em conjuntura dada, assim é que
é (ou não) persuadido pelos argumentos se considera o discurso como fenômeno
social.6
apresentados e oferece algum sinal em reação ao
que fora comunicado (classicamente, uma mudança O contexto é um elemento importante na
de comportamento ou opinião). compreensão do discurso. Segundo Michel
E. C. Dargan afirma que “a pregação é a parte Pêcheux, o sentido das palavras não pode ser
essencial e a característica distintiva do buscado unicamente na sua literalidade “mas ao
cristianismo”, e ainda acrescenta, “a pregação é contrário, é determinado pelas posições ideológicas
distintivamente uma instituição cristã”.4 A pregação que estão em jogo no processo no qual as palavras,
é indispensável ao cristianismo. Sem os sermões, expressões e preposições são produzidas (isto é,
ele perde algo necessário que lhe confere reproduzidas)”.7
autoridade. Isso porque o cristianismo foi e ainda é É nesse sentido que consideramos, aqui, o
essencialmente uma religião de palavra. discurso não como transmissão de informação, mas
Adicione-se a estes elementos a comunicação como efeito de sentido entre interlocutores,
resultante do sermão, uma repercussão em enquanto parte do funcionamento social geral.
microgrupos, através de aconselhamento e direção Então, os interlocutores, a situação e o contexto
espiritual, ou ainda, em alguns casos, a publicação histórico social, isto é, as condições de produção,
do sermão em boletins, jornais da instituição constituem o sentido da sequência verbal
eclesiástica e/ou sítios virtuais. Entretanto. este produzida. Quando se diz algo, alguém o diz de
algum lugar da sociedade para outro que, por sua
vez, também ocupa determinado lugar na mesma
1 Sem o intento de ignorar as especificidades histórico- sociedade e isso faz parte da significação. Como é
teológicas dos termos, ao longo deste trabalho, as exposto por Pêcheux, há nos mecanismos de toda
designações Protestantes, evangélicos e igrejas evangélicas serão
referidas como sinônimos. formação social regras de projeção que estabelecem
2 ALVES, Rubem. Dogmatismo e tolerância. São Paulo: Loyola, a relação entre as situações concretas e as
2004.
3 É bem verdade, como veremos adiante, que o
pentecostalismo muda – não completamente – esta 5 ORLANDI, E. A linguagem e o seu funcionamento. Campinas,
assertiva, com a introdução de elementos artísticos Pontes Editores, 1995. P. 17
(música gospel, dança e movimento) no culto. 6 ORLANDI, 1995, p. 158.
4 DARGAN, Edwin Charles. A history of preaching. Hodder 7 PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação
& Stoughton, 1905. v. 1. do óbvio. Campinas: UNICAMP, 1990. p. 160.

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representações dessas situações no interior do atendida pelo governo.11 Entretanto, há um número


discurso. significativo de ONGs e de igrejas evangélicas.
Essa imensa capilaridade das igrejas traduz-se –
Além do contexto histórico que mencionamos,
merece igual destaque o contexto sociocultural. como discutiremos adiante – numa crônica
inabilidade de relacionamento entre tais
Weber estuda a noção de estratificação social como
instituições.
um fator determinante das mensagens religiosas,
relacionando as afinidades eletivas entre diversas Esses problemas sociais estão presentes nos
posições sociais dos indivíduos com tipos diálogos entre os fiéis das igrejas. Lá eles partilham
determinados de religiosidade. Por exemplo, ele suas dores, seus sofrimentos e angústias. Como
observa que “conceitos como ‘culpa’, ‘redenção’, constatou-se durante as observações, por várias
‘humildade’, são não só estranhos, mas também vezes os fiéis emitiram publicamente seus “pedidos
antinômicos aos sentimentos de dignidade das de oração” por determinados parentes que estavam
classes dominante e em particular da nobreza envolvidos com drogas ou sofriam vitimados da
guerreira”.8 Falando sobre a maneira pela qual a violência constante no bairro. Certamente estes
situação de uma classe na sociedade determina os fatos constituem um cenário que deve ser levado
seus interesses religiosos, afirma que as classes em consideração nas análises empreendidas no
desfavorecidas no mercado tendem a aceitar, pela discurso proferido dos púlpitos das igrejas
necessidade de compensação, as crenças de que evangélicas deste bairro.
uma “missão” especial lhes foi confiada, Nossa pesquisa buscou uma representatividade
demandando “religiões de salvação”.9 na gravação dos cultos observados diretamente nas
Desta forma, faz-se necessário esclarecer o igrejas evangélicas do bairro de Felipe Camarão.
entorno social – ter uma visão socioantropológica Dentre as 58 igrejas existentes,12 foram gravados 12
da comunidade na qual o discurso acontece. A sermões, em abarcando diferentes grupos
opção metodológica deste trabalho restringe sua denominacionais.
observação empírica à cidade do Natal, e de forma
mais específica ao bairro de Felipe Camarão, zona O sermão e o texto
oeste da cidade.
Todo discurso possui um conteúdo, uma
No bairro, existem diferentes espaços que se mensagem a ser transmitida. Com o sermão, isso
criam e se recriam constantemente no mesmo não é diferente, ele possui um texto, isto é, uma
território. Mas, se esse processo aponta para a mensagem que precisa ser comunicada.
fragmentação, essa fragmentação também retrata o
A caracterização da pregação, como alguém
mosaico de criação de significados que caracterizam
que transmite a voz de Deus, desvela a assimetria
grupos, linguagens e estilos de vida que se
fundamental da prédica cristã, entre emissor e
completam, excluem-se e dialogam entre si. Essa
receptor. O primeiro – como já foi dito
cidade polifônica teima em existir dentro da
anteriormente – encontra-se em um plano espiritual
cidade.10 Com seus códigos, leis e signos próprios,
(o Sujeito, Deus) e o receptor é do plano terreno
estabelece formas de ver e de relacionar-se com o
(os sujeitos, os homens). Isto é, o pertencimento a
mundo.
estas ordens de mundo tão díspares, afetadas por
Trata-se de um bairro com graves problemas
sociais, denso populacionalmente, em área pouco
11 O último senso do IBGE, em 2000, menciona para Felipe
Camarão uma população de 45.907 habitantes que vivem
numa área de 663,4 ha.
8 WEBER, M. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 12 Em trabalho anterior, discuto com maior vagar a situação
1963. p. 318. das igrejas evangélicas neste bairro. SILVA, Anaxsuell F.
9 WEBER, 1963, p. 319-320. O falar de Deus: introdução aos estudos sócio-científicos do
10 A ideia da metáfora de uma cidade dentro de outra cidade púlpito cristão. Monografia (Bacharelado em Ciências
está presente em: CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Sociais) – Universalidade Federal do Rio Grande do
Companhia das Letras, 1999. Norte, Natal, 2005. 108f..

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um valor hierárquico, existe uma submissão dos da consciência interpretativa e da razão crítica por
homens a Deus. meio de uma confissão que se torna o critério final
para a leitura do texto sagrado.
A assimetria, que assim se constitui, caracteriza
a tendência para a não reversibilidade: os homens A voz de Deus é audível, para ouvi-la é
comuns não podem ocupar o lugar do emissor, necessário apenas dedicar atenção ao pregador
porque este é o lugar de Deus – que manifesta-se (porta-voz de Deus), isso é manifesto nas palavras
pelo seu porta-voz, seu emissário, o pregador. do pregador da Igreja Metodista Wesleyana,
Portanto, essa relação de interlocução, que constitui durante culto: “as pessoas ficam em casa querendo
a pregação cristã, é dada e fixada, segundo a ouvir a voz do senhor, mas eles têm que ouvir na
assimetria. Uma voz se fala através da outra que é congregação, é aqui que Deus fala!”.15
seu representante, mediador. No sermão abaixo,
Instaura-se uma possibilidade de contato com
podemos perceber tal ideia:
o transcendente, e este contato com o sobrenatural
Qual é a comida que o pastor dá pro rebanho? fortalece o indivíduo nas lutas cotidianas, infligidas
Quem sabe? É oração, jejum, pela graça de pela vida social. Émile Durkheim já apontava para
Deus. Muitos líderes fracassam por este fato: “o crente que se comunicou com o seu
negligência e aprendizagem de algumas lições Deus, não é meramente um homem que viu novas
importantes sobre liderança. Muitas vezes verdades que o descrente ignora. Ele é um homem
nem foram submetidos ao discipulado, e
acaba decepcionado após a experiência como que é mais forte. Ele sente dentro de si mais forças
líder. Por isso é melhor prevenir do que seja para suportar as provações da existência, seja
liderar. A igreja do Senhor ela é composta de para vencê-las”.16
jejum, de oração, de palavra e também de
ensinamento, né irmão? E os homens O que fazer então para que os fiéis estejam em
escolhidos para essa tarefa têm que ser cheio constante “comunicação com os céus”? Como falar
da graça, cheio do poder de Deus. Num é do presente e futuro diante de uma revelação pré-
qualquer um não irmão!13 estabelecida? Alves nos aponta o caminho: repetir e
deduzir. Saber a verdade é repetir a verdade. É
Comentando acerca da mediação, o
verdade que a repetição tende a criar um estado
antropólogo Aldo Natale Terrin14 mostra a
emocional de enfado, por eliminar das expectativas
trivialidade do profano, que ele rotula como
toda a possibilidade de surpresa. Se o passado é a
“normal”, “cotidiano”, que não provoca situações
norma absoluta, podemos estar certos de que o
inexplicáveis, que não causa sobressaltos; o sagrado
amanhã será igual ao hoje, e qualquer tempo no
ao contrário, reveste-se de “potência”, “força”,
futuro será igual ao amanhã. Entretanto, a função
“mana”, um poder que quebra os esquemas
tranquilizante da repetição tem seu ônus no enfado
habituais e deixa entrever o religioso; um poder
que ela produz.
que, quanto mais inexplicável é, se identifica com as
“pegadas do sagrado”. Esse poder será essencial A pregação, enquanto discurso último de
para o próprio ritual de prédica e para o sentido manutenção da ordem, discurso sobre o absoluto,
profundo da mediação sacerdotal, isto é pastoral. teria algumas características bem peculiares. Antes
de tudo, seria o discurso da autoridade, legitimado
O conhecimento, para o protestante, começa
por si mesmo, apresentando-se sempre como
como ato de submissão a um texto de proposições
última palavra e única interpretação possível,
verdadeiras, absoluto, que contém a verdade do
desdobramento e legitimação que Chauí17 irá
tempo e a verdade da eternidade. Objetivando
chamar de discurso competente. Este seria também o
preservar o caráter absoluto do conhecimento,
acima de toda dúvida, obstaculariza-se o exercício
15 Sermão proferido no púlpito da Igreja Metodista
Wesleyana, dia 13 out. 2005.
13 Sermão pregado na Igreja Pentecostal Deus é Amor, no 16 DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa.
dia 20 out. 2005. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 30s.
14 TERRIN, Aldo Natale. Antropologia e horizontes do sagrado. 17 CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia. 4. ed. São Paulo:
São Paulo: Paulus, 2004. Cortez, 1989.

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discurso das ausências e dos silêncios. O implícito Neste sentido, as intenções são as mais
seria mais recheado de sentido do que o explícito. variadas possíveis. Mencionaremos, aqui, pelo
O discurso do não-dito, não pela insuficiência menos quatro desses objetivos, os três primeiros
lógica da linguagem, mas pela impossibilidade de tal estão explicitamente presentes da atividade cristã
forma de discurso dizer tudo. Por último, teria de desde a fundação da igreja, visto tratar-se de uma
ser discurso da conformação e da confirmação. recomendação bíblica e constituir a práxis teologal.
Universalizar, harmonizar e conciliar seriam suas O intento de apresentar separadamente os
funções mais visíveis. objetivos do conteúdo sermonístico apenas é
didática. Tais finalidades estabelecem entre relação
Esse discurso substitui o humano pelo divino e
a vida pela eternidade, ignorando o corpo, o tempo, de interdependência e coexistem numa mesma
prédica.
espaço, sociedade e linguagem. O púlpito é o que
valida o discurso competente. “O discurso Subjaz à pregação protestante uma crescente
competente é aquele que pode ser proferido, preocupação das organizações religiosas com a
ouvido e aceito como verdadeiro ou autorizado satisfação da demanda de consumidores, que
(esses termos agora se equivalem) porque perdem determina tanto formas de elaboração e
laços com o lugar e o tempo de sua origem”.18 distribuição dos bens religiosos, quanto as
características estruturais, institucionais das
Em algumas igrejas, há deslocamento de
pessoas, movimentos corporais, formação de filas e instâncias produtoras. Tais tendências apontam na
realização de “peregrinações” dentro do templo. direção do aumento da centralidade das
Essas e outras formas de participação dos fiéis necessidades do “consumidor”. Embora a temática
exemplificam a alta mobilidade corporal que o culto do “mercado de bens simbólicos” não seja
preocupação neste texto, cabe mencionar a
nas igrejas contemporâneas – especialmente as de
corte pentecostais – exige dos participantes. E, influência deste nas prédicas evangélicas e nos
objetivos destas que comentamos a seguir.
portanto, parte do texto sermonístico. Tais ações
simbólicas são vividas com muita intensidade, Púlpito, lugar de Kerygma
proporcionando a cada fiel a oportunidade de
reviver eventos do passado, tidos como essenciais O pregador é o arauto, o anunciador das boas
para a fé, de uma maneira existencial. Assim, notícias, que no ideário cristão corresponde ao
através dessa interação,19 que ocorre algumas vezes evangelho. E, objetiva arregimentar “novos fiéis”,
durante a prédica e noutras ocasiões como isto é, promover um ambiente favorável à
resultadas da pregação, as igrejas trazem para conversão. E como gestor de bens simbólicos,
dentro do templo o espírito das festas populares e novos adeptos àquela denominação.
das procissões católicas.
Como já foi mencionado, não há uma
O sermão e o pretexto separação rígida nos objetivos da pregação.
Existem vários objetivos que se sobrepõem e que
Como já mencionamos, toda prédica traz se manifestam ao longo da prédica de várias
consigo uma intenção comunicativa. Existem maneiras. Assim sendo, a proclamação, enquanto
desígnios definidos para cada sermão enunciado. momento em que se enseja a conversão do
Como o objetivo da mensagem precede-a, assim, receptor, está presente em todos os sermões, visto
talvez não seja tão inconcebível a ideia de sermão que a prática proselitista é uma das premissas do
como pretexto. cristianismo. Tal qual podemos perceber no sermão
transcrito abaixo:
18 CHAUÍ, 1989, p. 7. Tem que aceitar o nome do Senhor
19 Para um ulterior aprofundamento na ideia de teatralização precisamos fazer uma aceitação para Jesus.
no culto pentecostal consultar CAMPOS, Leonildo Ele diz: Eu sou o caminho, eu sou a verdade,
Silveira. Teatro, templo e mercado: organização e marketing de
um empreendimento neopentecostal. Petrópolis: Vozes;
eu sou a vida e ninguém vai ao pai a não ser
São Paulo: UMESP, 1997. por mim. Ninguém pode ir a Deus se não for

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pela pessoa de Jesus Cristo, glória a Jesus! Por disse o pastor da Igreja universal durante seu
isso meu amigo é que nós pregamos essa sermão:
palavra, para o homem crer, para ele obedecer
a palavra do senhor. Porque a crença é crer e Veja bem pessoal, todo mundo um dia vai
obedecer a palavra. Glória a Jesus!20 partir desse mundo. Entendeu? Quem tá
entendendo levante a mão. Ninguém vai ficar
Ao colocar-se no púlpito, o pregador espera aqui para sempre. Vai chegar um dia que
resultados e, em geral, esse resultado é quantitativo todos nós vamos... O que vamos acertar as
e refere-se ao número de conversões que tal prática contas com Deus. Entenderam? Humm? Aqui
pôde gerar. Um eminente pregador do meio na terra alguém pode escapar mentindo uma
mentirinha aqui, uma mentirinha acolá é ou
protestante, Charles Spurgeon, em uma das suas
não é? Tá escrito, cada um de nós vamos
preleções dirigidas especificamente a pastores, prestar conta de tudo que nós fizemos aqui.
sentencia: Amém pessoal? Amém gente? Por isso você
tem que tomar a decisão que um dia eu tomei,
Orem e preguem de tal maneira que, se não aceitar Jesus. Entendeu, pessoal?23
houver conversões, vocês ficarão atônitos,
estupefados e de coração quebrantado. Deus deixa de ser uma experiência
Acreditem na salvação dos seus ouvintes tanto exclusivamente pessoal e adquire uma forma
quanto o anjo que soará a última trombeta
sistemática de ideias e de uma cultura coletiva que
terá certeza da ressurreição dos mortos!
Creiam na sua doutrina! Creiam no seu deverá ser arbitrariamente imposta aos outros.
salvador! Creiam no Espírito Santo que habita Deve-se notar a íntima associação que existe entre
em você! Pois assim será realizado o que converter-se e tornar-se frequentador daquela
deseja o seu coração e Deus será glorificado.21 instituição religiosa, em que tal decisão foi tomada.
E a aceitação religiosa por parte do ouvinte terá
A ideia de crescimento do número de adeptos
implicações, não só de natureza espiritual, mas
da religião protestante está intimamente imbricada
segundo o discurso religioso, resultados na vida
à pregação da mensagem cristã, à proclamação do
material de tais receptores, conforme verificamos
evangelho, que tem tanto a função de converter
no mesmo sermão citado anteriormente, proferido
àqueles que ouvem tal prédica, quanto de
em um templo da Igreja Universal do Reino de
convencer os ouvintes que já professam tal fé a
Deus:
engajar-se no propósito de arregimentar novos
adeptos. Isso é verificável no sermão transcrito: Aquele que busca a Deus, aquele que ora, que
“[...] quando você aceita Jesus, Deus tá colocando vem à igreja. Deus vai dá o quê? Condições
em suas mãos missão. A missão é pra cada pessoa, para vencer, amém pessoal? E aí quem não
pra cada crente dentro da igreja. Cada um de nós quer nada com Deus, como é que Deus vai
ajudar? Né verdade!? Se você quiser ser bem
tem uma missão de Deus e ele tem um propósito
sucedido na sua vida é só agradar a Deus,
para cada um de nós. Amém?”.22 amém pessoal?
Nesta dimensão, o sermão, enquanto
Púlpito, lugar de didachê
comunicação de uma verdade que se pretende
universalizar – mediante a conversão – levanta a O pregar (kêrusso, isto é, anunciar) não se limita
pretensão de dar vigência universal a uma visão exclusivamente ao evangelismo. Durante muitos
religiosa em particular, submetendo a esta o poder séculos, o púlpito tem sido lugar de didachê, isto é,
de imputar sentido à vida total. Vejamos o que ensino. Por conseguinte, a pregação tem sido
reconhecida como elemento substancial na
formação das pessoas. A expressão grega didachê se
20 Sermão proferido no púlpito da Igreja Pentecostal de traduz por arte ou técnica de ensinar. Enquanto
Jesus. adjetivo, deriva do verbo didasko, cujo prefixo (sko)
21 SPURGEON apud STOTT, John. Eu creio na pregação. São
Paulo: Vida, 2003.
22 Sermão gravado na igreja Deus é Amor, no dia 20 out. 23 Sermão proferido na Igreja Universal do Reino de Deus,
2005, proferido pelo pastor pregador da noite nessa igreja. no domingo dia 16 nov. 2005.

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indica característica de uma realização lenta e tem vínculos com outros grupos
através do tempo, própria do processo de instruir. denominacionais.24
O ensino baseado na exposição cuidadosa de
Púlpito, lugar de paraklêsis
textos sagrados, além de cooperar para a conversão
daqueles que não abraçaram a fé protestante, A pregação não se exaure na evangelização e
elucida “pontos” controvertidos da Bíblia. Muitas no ensino. Um objetivo que precisa ser perseguido
vezes, esses “pontos” tornam-se elementos é a “maturidade espiritual dos ouvintes”. Deste
distintivos entre as denominações que, sob efeito modo, grande parte dos sermões – para não dizer
da lógica de mercado, tenta incutir nos seus todos – traz conteúdos que exigem do receptor
receptores uma “identidade denominacional”, ou uma mudança de comportamento.
seja, uma concepção da Bíblia que sustenta suas
Paraklêsis está relacionado a apoio, auxílio,
doutrinas e axiomas.
conforto. O púlpito, como lugar de exortação,
Nesse processo, o indivíduo não será manifesta-se como uma ideia ordenadora ou
modelado como uma coisa passiva, inerte. Ao nomeante, por intermédio da qual se buscou intuir
contrário, ele será formado no curso de uma um mundo baseado numa lógica sagrada. Desde os
prolongada receptividade ao discurso que lhe está tempos mais remotos, aqueles que articulam tais
sendo transmitido, em que ele é participante. Desse sermões o fizeram destituindo os sentidos vigentes
modo, o mundo sociorreligioso (com suas das coisas, criando novas coisas ou ressignificando
instituições, concepções teológicas e eclesiásticas e as já existentes sob a égide de um saber de natureza
papéis) não é passivamente absorvido pelo teológica. O trecho de um sermão transcrito abaixo
indivíduo, e sim – utilizando a terminologia de pode nos ajudar na verificação de tal fato:
Berger – apropriado ativamente por ele. Além
disso, o indivíduo continua a participar desse Sabe aquele momento que você e eu, nós
processo, e é isto que o “sustenta como pessoa no estamos tão angustiados e as palavras não
saem. Nós muitas vezes não acertamos nem
uso da biografia em marcha”. Tornando-se coordenar palavras trocadas porque a luta é
coprodutor deste universo sociorreligioso e de si muito grande, porque a dificuldade é muito
mesmo. Neste percurso, ocorrem constantes grande aí o Espírito Santo ele vem conhecer a
interpretações e ressignificações, trazendo o sentido intenção do coração, o propósito do
original enunciado para aquém ou para além do pensamento. Transformar isso em oração e
apresenta a Deus. Ele capacita o crente para
proposto. falar nos momentos mais difíceis, e aqui você
Esse conjunto de informações bíblico- se encontra numa situação meia embaraçosa,
doutrinais e teológicas proferidas no discurso do mas se você tiver o espírito habitando dentro
de você ele vai capacitar você para falar nos
púlpito pelo representante da congregação momentos difíceis, até mesmo porque a
constituirá um edifício cognitivo e normativo da palavra diz que determinados momentos não
espiritualidade dos fiéis. A discordância em somos nós que falamos, mas é o espírito de
determinadas questões, ainda que poucas, pode Deus que fala por nós, usando os irmãos,
gerar cisão(ões) naquela comunidade religiosa, seja usando a igreja para tratar daquele assunto,
daquele fato, daquele momento. Muito bem!25
uma divisão interna (a comunidade divide-se em
duas ou mais, conservando ainda o vínculo
denominacional) ou uma divisão externa (em que
24 Dado os limites desse texto, não é possível mensurar o
podem surgir outras denominações). Em Felipe
motivo pelo qual tais igrejas não se vinculam a
Camarão, isso não é diferente, uma vez que a denominações de grande porte (em tese, com maior
maioria absoluta das igrejas encontradas na capacidade de investir na igreja local), por uma opção de
pesquisa de campo só existe naquele bairro e não vida religiosa sectária ou por sentirem-se excluídos,
marginalizados.
25 Sermão pregado durante o culto sacramental de ceia (uma
das reuniões mais importantes para este grupo, que nesta
igreja realiza-se uma vez por mês) na Igreja Evangélica
Assembléia de Deus

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16 Protestantismo em Revista, São Leopoldo, RS, v. 27, jan.-abr. 2012

O protestantismo tem um forte elemento fazem parte da estrutura básica do discurso


moralista. Portanto, para uma vida cristã piedosa, é religioso. Um exemplo dessa característica seria a
necessária uma ruptura com o mundo. O nome tendência a um extremado literalismo na
para a ruptura da relação é “arrependimento” hermenêutica bíblica. O texto deve ser visto em sua
(metanóia). Todo converso precisa abandonar os formulação literal, sem nenhuma possibilidade de
atos morais equivocados e deve mudar sua ousar interpretações poéticas e simbólicas, muito
orientação. O político não se restringe à relação menos de se elaborar uma interpretação bíblica que
com o Estado. A vida social é atravessada por um traga novas visões teológicas dos textos sagrados,
sentido político. A política está presente nas pela possibilidade de abrir espaço para as vítimas da
microrrelações sociais; não é sequer possível dividir estrutura hierárquica de poder.
um espaço comum com outras pessoas sem uma
Dada a impossibilidade de muitos sermões
política de relacionamento que oriente e sustente a
comunicarem acerca dos dilemas cotidianos do
ordem social.
sujeito-receptor, que são vividos pela comunidade,
muitas vezes devido ao fato de que tais sermões são
Púlpito, lugar de politika
reproduções de discursos dos círculos centrais,
Da Constituinte para até os dias atuais, a iniciou-se então uma tentativa de que a música
“bancada evangélica”, sempre marcada pelo possa fazê-lo. Daí a crescente utilização da música
acentuado conservadorismo moral e pelo no culto cristão, por vezes até substituindo o
fisiologismo descarado de certos parlamentares,26 próprio sermão, ou tornando o púlpito mais pop.
aumentou significativamente de tamanho. Este Mesmo assim, muitos moldam sua vida e a sua
crescimento pode ser também atribuído ao fato de existência pelo que é pregado e ensinado pelo pastor
muitos pastores utilizarem o púlpito de suas igrejas no púlpito. Lembremo-nos que no bairro estudado
para convencerem os receptores-fiéis a votar nos existe (como em todo o Brasil) um grande número
candidatos propostos pela instituição eclesiástica. de analfabetos (inclua-se neste grupo também os
Associe-se a este fato a ocorrência de verdadeiras analfabetos funcionais). Assim sendo, o dito pelo
odisseias de candidatos nos púlpitos das igrejas pastor (conselheiro, sacerdote-mediador), e não a
“pregando o evangelho”. leitura do livro sagrado, torna-se regra de vida e de
Assim sendo, muitas vezes “pactos” são feitos padrão de comportamento, e qualquer desvio deste,
para que determinado grupo religioso apóie o púlpito estará presente para redarguir e exortá-lo.
determinada candidatura. Já que, segundo observou
Prandi, “a filiação religiosa tem peso nada
desprezível na direção e no timing de uma escolha
eleitoral”.27 E o púlpito, que foi lugar de Kerygma, de [Recebido em: dezembro 2010 e
aceito em: agosto 2011]
didachê, de paraklesis, passa a ser também um lugar
de politika.

À guisa de uma conclusão

Embora tentando abarcar todas as esferas da


vida, o pregador não fala acerca de alguns temas. O
silêncio sobre estes, ou o não esclarecimento de
detalhes perturbadores, não são meros acidentes,

26 Para uma ampliação deste assunto ver: FRESTON, Paul.


Evangélicos na política brasileira: história ambígua e desafio
ético. Curitiba: Encontrão, 1994.
27 PRANDI, Reginaldo; PIERUCCI, A. F. Religião interfere
em voto do eleitor. Folha de São Paulo, São Paulo, p. E-4,
28 out. 1992.

Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo da Faculdades EST


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