Ens. Manipulaãço Gen Que Fala Sobre Sandel

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE

Fc DARCY RIBEIRO – UENF


CENTRO DE CIÊNCIAS DO HOMEM – CCH
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COGNIÇÃO E
LINGUAGEM-PPGCL

OS LIMITES MORAIS DA MANIPULAÇÃO GENÉTICA

EVANDRO MONTEIRO DE BARROS JUNIOR

CAMPOS DOS GOYTACAZES – RJ


MARÇO - 2017
2

OS LIMITES MORAIS DA MANIPULAÇÃO GENÉTICA

EVANDRO MONTEIRO DE BARROS JUNIOR

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Cognição e
Linguagem do Centro de Ciências do
Homem, da Universidade Estadual do
Norte Fluminense como parte das
exigências para a obtenção do título de
Mestre em Cognição e Linguagem.

Orientador: Prof. Dr. Julio Cesar Ramos


Esteves
Coorientadora: Prof(ª). Dr(ª). Verusca
Moss Simões Reis

CAMPOS DOS GOYTACAZES – RJ


MARÇO - 2017
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OS LIMITES MORAIS DA MANIPULAÇÃO GENÉTICA

EVANDRO MONTEIRO DE BARROS JUNIOR

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Cognição e
Linguagem do Centro de Ciências do
Homem, da Universidade Estadual do
Norte Fluminense, como parte das
exigências para a obtenção do título de
Mestre em Cognição e Linguagem.

APROVADO:______/______/_____

BANCA EXAMINADORA:

___________________________________________________________________
Prof. Dr. Cristiano Simão Miller
Centro Universitário Fluminense– UNIFLU

___________________________________________________________________
Prof. Dr. Giovane do Nascimento
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF

Profª. Drª. Verusca Moss Simões dos Reis


Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF

Prof. Dr. Julio Cesar Ramos Esteves


Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF
(Orientador)
4

À minha esposa Erika Costa Barreto Monteiro de Barros, meu baluarte nesta vida
caótica e eterno amor!
5

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais Evandro Monteiro de Barros e Ana Célia Braga Monteiro de Barros a
quem devo minha formação, minha total gratidão pelo amor e dedicação.
À minha querida avó Zelândia da Fonseca Braga por todo o carinho.
À minha esposa Erika C. Barreto Monteiro de Barros por sempre estar ao meu lado
me orientando e me proporcionando lapidar cada vez mais o meu ser.
Aos meus sogros Jurema Costa Barreto e Evaldo Gomes Barreto pela convivência e
aprendizados.
Ao meu amigo de infância (o irmão que identifiquei aqui na terra), meu revisor oficial
e conselheiro para todos os assuntos, Francisco Daniel Luna de Almeida (o Chico).
Ao mestre Fernando da Silveira que sempre acreditou no meu potencial e pela
amizade.
Ao meu orientador Julio Cesar Ramos Esteves, hoje a quem tenho a honra de ter
também como amigo, por quem nutro profundo respeito e admiração e por me
mostrar caminhos para reflexões filosóficas influenciando minha vida acadêmica e
pessoal.
À minha coorientadora Verusca Moss Simões dos Reis pela dedicação e paciência
durante essa jornada.
Aos amigos Luiz Fernando Baptista do Amaral Pinto, Manoel da Fonseca Junior
(meu professor de história medieval e da igreja), Jefferson Menezes, Lucas
Rodrigues, Marcelo Saldanha, Luan Raphael, Ronaldo Sobral, Sandro Leandro e

Luíza Barreto de Aguiar pela sincera amizade.


6

“Nicht nur fort sollst du dich pflanzen,


sondern hinauf” (Friedrich Nietszche).

“Nascemos um para o outro, dessa argila


De que são feitas as criaturas raras;
Tens legendas pagãs nas carnes claras
E eu tenho a alma dos faunos na pupila...

Às belezas heróicas te comparas


E em mim a luz olímpica cintila,
Gritam em nós todas as nobres taras
Daquela Grécia esplêndida e tranquila...

É tanta a glória que nos encaminha


Em nosso amor de seleção, profundo,
Que (ouço ao longe o oráculo de Elêusis)

Se um dia eu fosse teu e fosses minha,


O nosso amor conceberia um mundo
E do teu ventre nasceriam deuses...”

Argila (Raul de Leoni)


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RESUMO

MONTEIRO DE BARROS JUNIOR, E. Os limites morais da manipulação


genética. Campos dos Goytacazes, RJ: Universidade Estadual do Norte Fluminense
Darcy Ribeiro – UENF, 2017.

Este trabalho versa sobre os limites morais da manipulação genética, tendo como
objeto em seu primeiro capítulo tratar da questão da eugenia como projeto político
por meio de uma abordagem da história geral da filosofia, ou seja, ideais utópicos de
Platão à Campanella a respeito de seus Estados utópicos, adentrando ao período
das ditaduras nazista, da URSS e aspectos autoritários da China. No segundo
capítulo abordamos a eugenia como projeto individual, dissertando sobre o
liberalismo e o libertarianismo, bem como sobre o que seria a vida boa e o
perfeccionismo, com o escopo principal de tratar da eugenia nas famílias abordando
reflexões pautadas em casos concretos. Por último, tratamos da eugenia
moralmente possível e do espectro que ela representa no mundo ocidental,
apresentando argumentos em favor da utilização de técnicas da engenharia genética
desde que com critérios ético-legais rigorosos e com a impreterível participação da
doutrina jurídica.

Palavras-chave: manipulação genética; filosofia; eugenia; doutrina jurídica.


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ABSTRACT

MONTEIRO DE BARROS JUNIOR, E. The moral limits of genetic manipulation.


Campos dos Goytacazes, RJ: Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy
Ribeiro – UENF, 2017.

This work deals on moral limits of genetic manipulation covering general history of
philosophy with the utopian ideas from Plato up until Campanella, entering the period
of the Nazi, URSS dictatorsships and authoritarian aspects of China. In the second
chapter we approach the eugenics as an individual project, expounding about
liberalism and libertarianism, as well as about what should be a good life and the
perfectionism, with the goal about eugenics in the families approaching reflections in
concrete cases. At last, we approach the eugenics we consider morally possible, and
about spectrum that it represents in the Western wolrd, presenting arguments in
support of the use of the genetic engeneering as long as with ethical-legal strict rules
and with the unavoidable legal writings participation.

Keywords: genetic manipulation; philosophy; eugenics; legal writings


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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...........................................................................................................11

1. A eugenia como projeto político.........................................................................14


1.1 - Reprodução Assistida: técnicas e dilemas.........................................................16
1.2 - A eugenia como utopia. O estado eugênico (de Platão à Campanella)............19
1.3 - A Alemanha Nazista ..........................................................................................36
1.4- Refletindo sobre as apresentações de Sandel...................................................39
1.5 URSS, Cingapura e China ....................................................................................46
2. A eugenia como projeto individual ....................................................................49
2.1- Ética e bioética enquanto subáreas da filosofia..................................................49
2.2- O Relatório de Belmont e seus princípios...........................................................52
2.3 - Do liberalismo para o libertarianismo ................................................................54
2.4 - A vida boa e o perfeccionismo ..........................................................................59
2.5 - A eugenia nas famílias.......................................................................................62
2.6 - O triunfo da liberdade contra o determinismo – Aprimoramento é diferente de
perfeição................................................................................................................. ....65
2.7 - Os Britânicos e os chineses...............................................................................69
2.8 - O DNA em nossas mãos....................................................................................73
3. Diferença moral entre eugenia positiva e negativa...........................................75
3.1 - O télos e a eugenia nos esportes.......................................................................81

3.2 - A corrida do doping............................................................................................82


3.3 - As altitude houses..............................................................................................88
3.4 - O télos do esporte..............................................................................................89
3.5 - Até quando os esportes resistirão?....................................................................90
3.6 - Sobre a ética do melhoramento de Michael Sandel..........................................92
3.7 - O espectro da eugenia no mundo ocidental e a importância da doutrina.......93
3.8 A herança moral da Alemanha............................................................................95
3.9 O papel doutrinário da ética para influenciar o mundo jurídico.........................104
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................110
REFERÊNCIAS........................................................................................................112
APÊNDICE...............................................................................................................120
10

INTRODUÇÃO

Nos dias atuais, um dos assuntos que mais preocupam a humanidade é o


avanço científico e tecnológico alcançado pela engenharia genética, um importante
passo rumo ao futuro que por um lado visa à evolução no que toca o bem-estar e a
promoção de uma vida de qualidade, mas que por outro viés transmite receio e
preocupações quanto a questões morais. Seria possível realizar manipulação
genética em seres humanos sem que a moral fosse violada, ou seja, sem que os
limites morais fossem ultrapassados? Neste trabalho, pretendemos apresentar
argumentos no sentido de que seria possível, mas com as devidas cautelas, para
que não sejam ultrajadas normas éticas em favor da vida e da liberdade humanas.
Não é difícil perceber que o homem do presente está utilizando o
conhecimento científico para brincar de ser Deus em busca de um desejo
imorredouro que é nutrido por nós desde os tempos arcaicos, o desejo de
aperfeiçoar a nossa espécie.
Nesse meandro, seria possível questionar o uso da palavra eugenia no
sentido de pais que encomendam seus filhos, tendo em vista que esses projetos
visam crianças “bem nascidas” e selecionadas, algo não muito distante do sonho
antigo de se atingir a perfeição. Atingir a perfeição é um sonho antigo da
humanidade, que por diversas vezes apresentou o desejo de encomendar filhos com
as características desejadas, o que para eles significaria o alcance de crianças
“perfeitas” física e mentalmente. É nesse ponto que encontramos um espaço para
tratar da questão da manipulação genética, mais precisamente no que concerne a
uma noção de eugenia, que será explicada mais adiante.
Sendo assim, o bojo deste trabalho possui a pretensão de explorar os
assuntos mais importantes relacionados aos limites morais da manipulação genética
e, para tanto, pretendemos tratar, no primeiro capítulo, da questão concernente à
eugenia como projeto político no plano utópico, permeando os escritos de Platão e
Campanella, filósofos importantes que publicaram escritos sobre um projeto tanto
perfeccionista quanto ambicioso e, até mesmo, poderíamos afirmar que bastante
perigoso; adiante, porém, ainda no primeiro capítulo, será desenvolvido o tema no
sentido de demonstrar a eugenia como um projeto estatal, como realmente
11

aconteceu em diversos países, a saber, Alemanha, Estados Unidos da América,


antiga URSS, China e Cingapura.
O segundo capítulo será dedicado à eugenia como projeto individual, levando-
se em conta que atualmente particulares já são capazes de desenvolver projetos
eugênicos sem a interferência do Estado, bastando possuir meios econômicos
suficientes para tal empreitada. Este capítulo tratará das descobertas mais recentes
da ciência e da engenharia genética, como instrumentos que proporcionam cada vez
mais o homem a alcançar os objetivos eugênicos, sejam eles quais forem.
Por fim, o terceiro capítulo terá o escopo de trazer opiniões sobre como
poderíamos agir para que a humanidade seja beneficiada pelos avanços da ciência,
ou seja, que a ciência possa de alguma forma fazer mal à humanidade. Nesse
sentido o uso da ciência poderia ter o escopo de servir ao homem e, por isso, serão
abordados pontos como o espectro da eugenia e o reflexo mundial da herança moral
da Alemanha – uma discussão sobre o futuro da humanidade, bem como
argumentos em favor de uma possível eugenia negativa (capaz de sanar doenças já
no embrião); e, por fim, a respeito do papel da ética (doutrina) para influenciar o
mundo jurídico no que tange ao debate de projetos de leis como um avanço da
esfera da ética e bioética para o mundo jurídico. Com essa finalidade, discutiremos
obras de pensadores como John Locke, Habermas, Michael Sandel entre outros,
convergindo e refutando pontos que entendemos relevantes para nosso tema.
Em exórdio, cuidaremos do significado da palavra eugenia e do contexto
histórico em que ela foi concebida e, para isso, não podemos deixar de mencionar o
cientista britânico Francis Galton (1822/1911), que criou o conceito de “eugenia”
como a definição da melhora de uma determinada espécie através da seleção
artificial. Galton estava convicto de que a maioria das qualidades físicas, mentais e
morais dos humanos eram herdadas, ou seja, para ele o progresso humano
dependeria de como essas qualidades seriam passadas para as gerações futuras.
Nesse sentido, explica Jones: “Galton apresentou a ideia de que os atributos
humanos são codificados em uma única herança, que levou indiretamente à
explosão atual no que tange a genética humana. Ele estava particularmente
interessado na herança do genius (uma classe na qual ele incluiu a si mesmo)”
(JONES, 1995 p. 14).
12

As pesquisas de Galton tinham como objetivo o incentivo ao nascimento de


pessoas notáveis, com habilidades e virtudes e, em contrapartida, visavam
desencorajar o nascimento de “inaptos”. O cientista perseguiu seu escopo propondo
o desenvolvimento de testes de inteligência para selecionar homens e mulheres
brilhantes que pudessem ser capazes de produzir uma prole de excelência. Essa
empreitada deu origem ao conceito de testes metais ou de inteligência, bem como
de habilidade motora e de capacidade sensorial.
Além disso, Galton foi o primeiro a tentar estabelecer as diretrizes ou bases
da herança genética humana por meio de uma identificação clara de atributos
definidos, tais como, adquirir ou perder níveis de julgamento que especulam sobre
qualidades vagas, como musicalidade ou fraqueza de caráter, etc.
A genética, segundo o estudioso, poderia ser considerada como a chave do
passado, visto que todo gene humano possui um ancestral, o que significa que o
padrão da variação da herança genética poderia ser utilizado para montar uma
imagem da História mais completa do que qualquer outra fonte, e isso acabou sendo
provado e servindo como base para o que hoje é possível realizar nos laboratórios.
Já naquele tempo, Galton percebeu que cada gene seria capaz de nos ajudar
a decifrar mensagens dos nossos ascendentes, permitindo assim conhecer a história
completa da evolução humana. Ele verificou que cada um de nós é um fóssil vivo
que carrega consigo o registro capaz de ir até os primórdios da humanidade e além.
Essa crença tornou-se realidade, como podemos constatar nas palavras de
Steve Jones em sua obra considerada referência mundial: “Padrões pessoais de
DNA podem rastrear genes danificados e permitir aos pais a escolha se irão correr o
risco de ter um filho com uma doença de nascença. Aproximadamente cinco mil
dessas doenças são conhecidas, e se incluirmos, como devemos, todas as doenças
(como câncer doenças do coração) que possuem componentes herdados, a maioria
das pessoas morrem por causa dos genes que carregam” (JONES, 1995 p. 14).
Diante do que o homem já conhece e domina em matéria de engenharia
genética e ciência como um todo, já é possível sanar grande parte dos problemas
genéticos quando identificados logo no embrião ou por meio de diagnóstico feitos
anteriormente à concepção do embrião através da análise genética dos pais e dos
ascendentes, o que parece ser promissor para o futuro da humanidade que teria
pessoas mais saudáveis.
13

Agora, será que a utilização prática dessas técnicas se traduziria em atitudes


moralmente más? Quais seriam os limites para essas intervenções? O objetivo
desse trabalho se constitui em tentar responder essas e outras questões, como, por
exemplo, o ponto que trata sobre a violação da liberdade dos projetados e o
benefício que pode a eugenia negativa proporcionar, visando sempre à indicação da
melhor escolha em prol do ser humano e inclusive em respeito à ética.
Com o objetivo de manter os olhos sempre atentos quanto aos erros do
passado, dissertaremos sobre o que encontramos na bibliografia especializada e
desenvolvemos ao longo da pesquisa a fim de responder a questão: seria
moralmente permissível não desejar a perfeição? Essa é outra questão que permeia
o nosso problema.
Para responder essas questões analisamos os limites morais da manipulação
genética diante das mais novas técnicas e descobertas da biomedicina e da
engenharia genética à luz da filosofia (bioética). Dito de outro modo, investigamos
até onde os cientistas podem avançar sem que firam os limites permitidos pela
moral.
14

1. A EUGENIA COMO PROJETO POLÍTICO

O tema eugenia prima facie é bastante controverso, principalmente após as


experiências feitas durante o tempo do Nazismo.
Anterior ao termo genética, um ramo da biologia que estuda aspectos da
hereditariedade da gênese dos seres vivos, cunhado por William Bateson em 1908,
o termo eugenia foi proposto por Francis Galton em 1883 (DIWAN, 2017).
Filha direta da teoria Darwiniana que versa sobre a seleção natural das
espécies, linha de pensamento que defende que só os mais fortes sobrevivem e os
mais fracos estão fadados ao aniquilamento de forma natural, a eugenia encontrou
nesse ponto sua premissa de que no mundo há seres superiores e inferiores e abriu
espaço para que a seleção natural desse lugar a uma seleção feita de forma
voluntária pelos homens.
O contexto histórico que serviu de berço para o surgimento desta ideia
envolveu a Inglaterra do final do século XIX, teatro de grandes transformações e
adventos oriundos da Revolução Industrial e a ordem proposta para organizar o
caos que certamente se instalaria diante da população não fossem as novas regras
sociais e a ascensão da ciência e seus feitos.
Neste ínterim, e no ponto de vista dos idealizadores desse projeto biológico, a
eugenia surge como um possível auxílio à ordem estatal e à melhoria na vida das
pessoas, apresentando a possibilidade de se promover casamentos entre os
considerados “bem-dotados biologicamente” ou “notáveis” com seus iguais através
de programas educacionais que orientariam a população na escolha de seus pares.
O processo eugênico naquele momento deixaria de ser somente um sonho e
envolveria não apenas a promoção do melhoramento genético ao unir um casal
considerado biologicamente superior, o que recebeu o nome de “eugenia positiva”,
mas tinha, ainda, o propósito de eliminar os genes indesejáveis, ou considerados
como inferiores, o que excluiria doenças e más formações advindas de genes
defeituosos. Isto seria possível de se realizar através de métodos como
segregação, esterilização e leis de imigração restritivas, e a este tipo de eugenia foi
dado o nome de “eugenia negativa”. (DIWAN, 2017)
Ao longo dos séculos, desde que a humanidade passou a se organizar em
forma de sociedade, muitos pensamentos e técnicas foram desenvolvidos em busca
15

de uma melhora no estilo de vida do ser humano, bem como de sua evolução,
principalmente no que toca à esfera da genética com a possível e viável
manipulação de genes humanos, ao passo que a manipulação de genes é um sonho
que vem crescendo ao longo dos anos. Definir características desejadas e eliminar
doenças são alguns dos supostos benefícios possíveis de se alcançar através do
domínio de tal feito, que, a partir do século passado, passou a tornar-se realidade.
Apesar de todos os benefícios possíveis com o domínio e controle das
combinações genéticas, bem como com a seleção e descarte das mesmas, realizá-
las não é uma tarefa tão simples como pode parecer. O pensamento sobre as
possibilidades genéticas e seus benefícios deve vir sempre acompanhado do
escopo ético e filosófico que pretende nos atentar para a os limites morais de tais
feitos, um questionamento nascido da área da filosofia. Hoje tal questionamento está
presente em uma área subordinada ao pensamento filosófico, denominada bioética.
Falar sobre manipulação genética e suas finalidades, ou seja, incluir e excluir
características físicas e cognitivas em seres humanos faz com que recaiamos no
problema que tange ao possível melhoramento da espécie e das populações, para
que as coletividades humanas possam ser selecionadas, questão pertinente à esfera
da eugenia.
O termo eugenia vem do grego e traduz, segundo consta no dicionário
Michaelis, a “Ciência que se ocupa com o estudo e cultivo de condições que tendem
a melhorar as qualidades físicas e morais de gerações futuras, especialmente pelo
controle social dos matrimônios” (MICHAELIS, 2016).
Neste trabalho, a palavra eugenia deve ser lida e entendida sob o
aspecto científico, mais precisamente como uma forma de tentativa de
aprimoramento das qualidades da espécie humana e ou de evitar doenças que
podem ser sanadas já no embrião. Esse conceito sempre se mostra muito polêmico,
principalmente em virtude das ações empreendidas com vistas aos objetivos
nazistas de “melhoramento” da espécie através da segregação das raças (termo que
já não se usa mais, pois hoje se fala em uma só raça humana), e até mesmo
aniquilamento daquelas consideradas por eles como inferiores.
O termo eugenia, diferente do que as pessoas comuns pensam, não foi
cunhado por Hitler e, sequer idealizado por ele. Já na antiga Grécia, o filósofo
Platão, em A República, almejava uma sociedade se aperfeiçoando por processos
16

seletivos (PLATÃO, 1961), porém, Platão planejava uma classe elitizada, que seria a
classe dos guardiões, ou seja, a eugenia de Platão não estava direcionada a toda a
sociedade, e sim a uma elite.
Francis Galton (1822 – 1911), um antropólogo, meteorologista, matemático e
estatístico, em 1883 cunhou o termo eugenia ou bem-nascido (BLACK, 2003, p.56),
termo que demonstrou seu interesse em uma ciência que tratasse genuinamente da
hereditariedade genética humana, utilizando ferramentas biológicas e matemáticas
capazes de identificar os seres com as melhores características com o objetivo de
reprodução para fins de nascimentos de “seres melhores”.
Galton acreditava ser possível evitar problemas de doenças e garantir
melhoramentos da espécie humana evitando cruzamentos entre “indesejáveis”. Esta
seleção seria feita de forma natural, onde os pares se escolheriam de forma a não
perpetuarem, ou não potencializarem características indesejáveis, tais como
doenças hereditárias, doenças físicas ou mentais, propensão ao alcoolismo, entre
outras.
Ocorre que hoje em dia essa seleção já pode ser realizada por intervenção
direta da engenharia genética, capaz de modificar o indivíduo, independentemente
dos cruzamentos, selecionando dentre os genes dos pares que doarão os gametas
(células reprodutoras que se unirão para formar o zigoto), aqueles que possuam, ou
não, as características desejadas para o embrião. Isto é possível através da
manipulação “in vitro”, por exemplo.
Tratamos neste tópico o conceito de eugenia e dissertamos a respeito de
algumas técnicas já dominadas pela ciência no que toca a prática das atividades que
envolvem o tema. Assim, dando continuidade, pretendemos abordar no próximo
tópico a reprodução assistida, técnicas e dilemas.

1.1 Reprodução Assistida: técnicas e dilemas

Reproduzir-se e gerar descendentes é um desejo de quase todos os seres


humanos. Porém, nem todos os casais são capazes de conceber naturalmente, e
desta necessidade, nasceu a procura científica por uma opção que os pudesse
auxiliar, fazendo nascer o que conhecemos atualmente como reprodução assistida:
“Entende-se por Reprodução Assistida (RA) o conjunto de técnicas laboratoriais que
17

visa obter uma gestação substituindo ou facilitando uma etapa deficiente no


processo reprodutivo” (BADALOTTI, 2017).
A manipulação genética utiliza-se das técnicas provenientes da fertilização in
vitro, que é uma técnica de fecundação do óvulo (gameta feminino) pelo
espermatozoide (gameta masculino) fora do corpo, advindo o embrião desta
fecundação, e sendo logo implantado no útero da mulher para que a gestação
prossiga normalmente. Na fertilização in vitro, não há maior ou menor chances de
má formação fetal que numa gestação comum, já que o processo é exatamente o
mesmo que o ocorrido no corpo feminino, ou seja, os gametas são coletados e
unidos, porém sem seleção, de forma aleatória. Esta técnica também é chamada de
bebê de proveta, na qual as chances de não haver má formação bem como
inúmeras outras características podem ser modificadas.
No Brasil, segundo Raskin (1995), desde o ano de 1992, a Reprodução
Assistida está regulamentada e as bases éticas e morais que a regem foram
inspiradas nas de outros países como, por exemplo, Estados Unidos e França. O
que se observa, entretanto, é que os avanços científicos nesta área acontecem
frequentemente numa velocidade tal que os códigos de ética não são capazes de
dar conta de todos os problemas que surgem frequentemente, tanto na esfera moral
como na seara jurídica1.
Os avanços científicos vêm crescendo consideravelmente, e seu objetivo
principal seria identificar possíveis doenças provenientes de defeitos no DNA:

Aqui no Brasil, a fertilização in vitro e a manipulação genética já


caminham no sentido de previnir as doenças genéticas. Mas o futuro
desta técnica, acreditam os especialistas em reprodução humana e
genética médica, será - além do diagnóstico - a prevenção e a cura
destas enfermidades. Quando se puder manipular os genes,
reconhecer em que posição gênica nos cromossomos estão as
doenças e se conseguir utilizar isso em adultos e em fetos, terá
chegado o futuro da verdadeira profilaxia e terapêutica genética
(RASKIN, 1995).

1
MOREIRA, R. V. Maternidade Construída: implicações filosófico-jurídicas do útero de substituição.
Campos dos Goytacazes, RJ: Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF,
2016.
18

Entretanto, há fins que podem não parecer tão nobres quanto os que são
defendidos acima. Atualmente a escolha do sexo do bebê já é possível com a
separação dos espermatozoides que contém o cromossomo X dos que possuem o
cromossomo Y, conforme explicado abaixo:

A seleção de sexos já é possível, a partir das microbiópsias sobre as


células. Depois da união dos núcleos do óvulo e do espermatozóide,
forma-se a célula de 46 cromossomos, que começa a se dividir até
formar um embrião. Daí vão se formando um número variado de
células. Uma das técnicas de se saber o sexo ou se existe alguma
anomalia genética (do tipo anemia falciforme, que é um defeito de
formação nos glóbulos vermelhos, ou fibrose cística do pâncreas,
que é uma doença pulmonar e pancreática fatal) segue este
procedimento: separa-se uma célula das outras sete células, faz-se a
análise e congela-se as outras sete células (que são o embrião). Se
a célula analisada for sadia, implanta-se no embrião. Se for anormal,
joga-se fora o embrião (RASKIN, 1995).

Em 1993, esta já era uma realidade nos Estados Unidos quando casais que
desejavam ter uma menina foram recrutados por uma clínica americana para
realizarem o processo e obteve-se uma eficácia técnica de 92,9%. Ocorre que há
diferença entre os espermatozoides Y, que por sua vez possuem menor material
genético que os que carregam o cromossomo X, uma diferença de apenas 2,8%,
mas que torna difícil separá-los com 100% de exatidão (ENGELHARDT, 1986).

A pré-determinação de sexo ajudaria bastante em alguns casos


específicos, como por exemplo, nas doenças que só afetam o sexo
masculino (como a Distrofia muscular de Duchenne ou a hemofilia).
Se detectadas, obviamente que os casais em risco iriam preferir ter
crianças do sexo feminino e, portanto, sadias. Isso para eliminar a
necessidade de uma interrupção da gestação. É preocupante,
principalmente em países subdesenvolvidos, dar a um casal a opção
de escolher o sexo dos filhos. Pode gerar um desbalanceamento
grande (ENGELHARDT, 1986).

Futuramente os avanços na área da genética serão capazes de identificar não


apenas doenças genéticas irreparáveis e a separação de gametas femininos e
masculinos, mas também traços hereditários envolvendo características físicas e
cognitivas que tornarão os futuros humanos objetos do desejo de seus genitores, e
novamente recairemos sobre as questões éticas e morais conforme discutiremos a
seguir.
19

Neste tópico, abordamos a reprodução assistida, técnicas e dilemas de forma


ampla e, pretendemos adiante, adentrar ao tema eugenia como utopia: o Estado
eugênico (de Platão à Campanella).

1.2 A eugenia como utopia. O Estado eugênico (de Platão à Campanella).

Há estudiosos como Garcia (2005), que sustentam que os habitantes de


Esparta, Cidade-Estado helênico, já priorizavam a prática da eugenia frente aos
recém-nascidos, que eram, segundo estes, avaliados por uma comissão de anciãos
no intuito de garantir a perpetuação de pessoas saudáveis:

[...] os espartanos mantinham um acompanhamento cuidadoso na


gravidez de suas mulheres que eram levadas para fazer exercícios
que possibilitassem uma melhor gestação. Ao nascer, a criança era
avaliada por uma comissão de anciãos que buscava observar se o
recém-nascido apresentava saúde perfeita, caso contrário ocorreria a
sua execução (GARCIA, 2005).

Na obra de Platão, há a menção de Sócrates em uma conversa que trata da


miscigenação entre os gregos, o que seria segundo aquele diálogo uma ofensa aos
ensinamentos dos Deuses. Na referida passagem, Sócrates conta uma história
fictícia na qual a divisão de seres humanos em diferentes classes teria sido uma
criação divina, classes estas que teriam em sua composição o ouro, outros a prata,
e outros teriam sido feitos com o cobre. Esta ficção tinha o intuito de fazer com que
os cidadãos acreditassem que deveriam manter suas virtudes realizando
casamentos sem fugir de suas castas:

Sócrates – [...] – “ Sois todos irmãos na cidade, dirlhes-emos,


continuando esta ficção; mas o deus que vos formou introduziu o
ouro na composição daqueles dentre vós que são capazes de
comandar: por isso, são os mais preciosos. Misturou prata na
composição dos auxiliares; ferro e bronze, na dos lavradores e outros
artesãos. Comumente gerais filhos semelhantes a vós mesmos; mas,
como sois todos parentes, pode acontecer que, do ouro, nasça um
rebento de prata, da prata, um rebento de ouro e que as mesmas
transmutações se produzam entre os outros metais. Por isso, antes e
acima de tudo, o deus ordena aos magistrados que vigiem
atentamente as crianças, que tomem muito cuidado com o metal
20

misturado em suas almas e, caso seus próprios filhos apresentem


mistura de bronze ou de ferro, que sejam impiedosos com eles e lhes
concedam o gênero de honor devido À respectiva natureza,
relegando-os à classe dos artesãos e dos lavradores; mas, se destes
últimos nasce um rebento cuja alma contenha ouro ou prata, o deus
quer que reconheçam seu valor, elevando-o à categoria de guardião
ou de auxiliar, porque um oráculo afirma que a cidade perceberá
quando for guardada pelo ferro ou pelo bronze”. Conheces algum
meio de leva-los a acreditar nesta fábula? (PLATÃO, 415 a-c. 2010).

A separação dos bebês “bem-nascidos”, ou seja, geneticamente “melhores”


deveria ser feita na sociedade platônica, como demonstra a discussão entre
Sócrates e Glauco na obra em comento:

Sócrates – Os filhos, à medida que forem nascendo, serão entregues


a pessoas encarregadas de cuidar deles, homens, mulheres, ou
então homens e mulheres juntos, pois as funções públicas são
comuns a ambos os sexos. [...] Os referidos funcionários hão de
conduzir ao lar comum os filhos dos indivíduos da elite, confiando-os
a nutrizes residentes à parte num bairro da cidade. Quanto aos filhos
dos indivíduos inferiores, e mesmo os dos outros, que apresentarem
alguma deformidade, escondê-los-ão em local proibido e secreto,
como convém (PLATÃO. 460 b-c. 2010).

Segundo Glauco, no diálogo com Sócrates, esse seria o meio eficaz para
preservar a pureza da raça dos guardiões, e nesse ponto já pode ser claramente
identificado um verdadeiro problema moral na vontade (intenção) dos protagonistas
daquela ideia, ou seja, o descarte dos “malnascidos” como garantia de uma
sociedade mais saudável e feliz, ou mesmo bela. Nesse ínterim paira a pergunta:
essa sociedade “perfeita” deveria ser concebida aos olhos de quem? Do filósofo?

Os hábitos espartanos, segundo o entendimento de Russell teriam inspirado


Platão em A República:

Os espartanos não eram um povo morbidamente sentimental. A


disciplina era dura e os sentimentos pessoais, reprimidos. Os bebês
deformados eram abandonados à própria sorte, para que o vigor da
raça não diminuísse. Bem cedo os jovens eram tirados dos pais e
educados em instituições semelhantes a quarteis militares. Em geral,
as meninas eram tratadas da mesma maneira que os meninos e a
posição social das mulheres era de franca igualdade. O estado ideal
de Platão é muito inspirado no exemplo de Esparta. (RUSSELL,
2016, p.48).
21

Os filósofos trocaram ainda muitas ideias a respeito daquele projeto


ambicioso, um verdadeiro embrião do que viria acontecer em diversas partes do
mundo séculos depois, como foi o caso da Alemanha nazista e da URSS comunista,
bem como da China e até mesmo Cingapura, o que será explorado mais
precisamente adiante.
Sócrates, naquela oportunidade, ainda foi além, versando sobre a idade
apropriada para a procriação de forma “perfeita” tanto do homem como para a
mulher, e declarou que estas deveriam procriar desde os 20 aos 40 anos, e aqueles,
logo depois de passado o primeiro ímpeto de juventude até os 55 anos. Nesse ponto
também é possível identificar mais um problema moral encontrado na fala do
filósofo, que, além de ter pregado que somente aquele tipo de vida defendido valeria
a pena ser vivido, pretendeu uma determinação do Estado face aos indivíduos, um
problema que fere a liberdade individual, o que foi também chancelado por Glauco
no referido diálogo.
Ainda no sentido de busca da perfeição, se manifesta também Nussbaum ao
afirmar:
Uma videira deve ser de boa linhagem para crescer bem. E, mesmo
que tenha uma boa herança, precisa de um clima favorável (orvalho
e chuva suaves, ausência de geadas repentinas e de ventos fortes),
bem como do cuidado de donos preocupados e inteligentes, para sua
contínua saúde e plena perfeição (NUSSBAUM, 2009, p. 1).

A autora assevera a importância de sermos seres racionais e o quanto isso


implica escolhas que podemos fazer sobre nossas próprias vidas e, nesse caso,
sobre a vida alheia:

Por mais que os seres humanos pareçam formas inferiores de vida,


somos diferentes, queremos insistir, em um aspecto crucial. Somos
dotados de razão. Somos capazes de deliberar e escolher, fazer um
plano em que os fins são classificados, decidir ativamente o que
deve ter valor e quanto (NUSSBAUM, 2009, p. 2).

O projeto utópico de eugenia apresentado na República e posteriormente em


outras obras, como, por exemplo, A Cidade do Sol de Campanella, que
abordaremos mais adiante, visava estabelecer um modelo de vida digna de ser
vivida e, sobre isso, afirma Nussbaum:
22

Essa necessidade de uma vida digna de ser vivida preocupou a


maioria dos primeiros pensadores gregos, incluindo alguns aos quais
a tradição denomina filósofos e alguns que normalmente recebem
outros títulos (por exemplo, poeta, dramaturgo, historiador). [...]
necessidade que motivou os fundadores de uma filosofia humana e
ética a premir sua busca por uma nova arte que progredisse para
além das crenças e práticas usuais; e a tradição filosófica grega
sempre permaneceu centralmente dedicada à realização de uma
vida humana boa, mesmo quando se ocupa, com frequência, de
investigações metafísicas e científicas (NUSSBAUM,2009, p. 2).

É preciso salientar que a obra platônica se revela tão importante para o tema
por nós abordado, que cabe adentrar na esfera de um importante comentador para
que possamos compreender A República de forma mais ampla.
Ao longo do texto apresentado em A República, o pensamento de Platão se
revela aos poucos demonstrando uma grande preocupação com a questão
relacionada a um projeto político de eugenia estatal, ainda que como algo
meramente ideal, e isso, se dá diante do arcabouço do filósofo, que já, no
entendimento de Jaeger em escritos anteriores vinha consolidando uma formação
de embasamento direcionada a ideia de que a análise socrática das virtudes estaria
intimamente ligada à ideia da virtude política. Tal virtude, ainda segundo o autor,
estaria presente no Protágoras e no Górgias, obras nas quais, ainda segundo o
autor, “o conhecimento socrático do bem em si é concebido como arte política, da
qual se tem de esperar toda a salvação” (JAEGER. 2013. p. 755).
A República é obra considerada por muitos como a mais arquitetada de
Platão, e isso, deve-se ao fato do sentido dos escritos não ser direcionado à uma
cidade específica ou momento histórico determinado, o que revela em sua obra um
caráter elástico, que a caracteriza como pretensão de um modelo universal, um
paradigma para a busca de um Estado perfeito, de maneira que: “A sua República
não é uma obra de direito político ou administrativo, de legislação ou de política, no
sentido atual. Platão não parte de um povo histórico existente, como Atenas ou
Esparta”, e continua o comentador: “Ainda quando se refere conscientemente às
condições vigentes na Grécia, não se sente vinculado a um determinado torrão nem
a uma cidade determinada” (JAEGER. 2013. p. 756).
Esse aspecto de caráter geral e ideal da obra platônica faz com que
estudiosos de Platão concluam que os estudos e escritos do filósofo não pretendem
23

se referir às grandes massas, a um povo ou raça, mas sim a criação de um homem


elevado, que parece dever estar à parte da sociedade, porém inclinado a servi-la. A
ideia de produção de Guardiões perfeitos surge após serem constatados que alguns
Estados estariam saindo da condição do que Platão denomina como Estados sãos,
para assumirem uma condição de Estados enfermo.
Os Estados são seriam para Jaeger aqueles que teriam como estrutura
originária somete as categorias de artesãos e as profissões mais necessárias, por
outro lado, o estado enfermo seria o Estado “formado por uma necessidade natural à
medida que aumentam a nobreza e o luxo” (JAEGER. 2013. p. 770).
É nesse contexto que surge para Platão, a introdução dos guardiões na
República, uma classe a ser criada para a nobre função de governar e defender a
pólis e que seria fruto de um projeto político de eugenia. Esse projeto Estatal teria o
cunho de utilizar seres “bem-nascidos”, ou seja, produtos de uma seleção de
progenitores que deveriam ser educados com o objetivo de pertencerem a uma elite
a serviço do Estado. Assim se manifesta Jaeger em citação interessante:

A criação de um tipo elevado de homem, de que nos fala o Estado


platônico, nada tem a ver com o povo em conjunto, concebido como
raça. A grande massa da população, as suas vicissitudes, os seus
costumes e nível de vida, são coisas que ficam à margem do estudo
platônico ou só aparecem na sua periferia (JAEGER. 2013. p. 757).

Como já vimos Platão não confere grande importância em se estabelecer um


conceito de homem ideal para o que seria compreendido como povo ou raça,
deixando de lado a grande massa. Por outro lado, o filósofo preocupa-se com
debates sobre a importância da poesia e da música na formação do homem,
centralizando o problema relacionado ao valor das ciências abstratas e retornando
ao exame do que concerne a poesia mais adiante em sua obra, e faz isso,
sobretudo, a partir de uma nova perspectiva, qual seja a de reformar o modelo
antigo de Paidéia:

O Estado de Platão versa, em última análise, sobre a alma do


homem. O que ele nos diz do Estado como tal e da sua estrutura, a
chamada concepção orgânica do Estado, onde muitos veem a
medula da República platônica, não tem outra função senão
apresentar-nos a “imagem reflexa ampliada” da alma e da sua
estrutura respectiva (JAEGER. 2013. p. 757).
24

Platão, como sustenta Jaeger, ocupa-se de uma atitude prática de “modelador


de almas”, conferindo importância à sua obra enquanto formadora do ser humano
não somente do seu tempo, mas também no tempo posterior, e isso fica claro no
sentido de que outros pensadores conseguiram compreendê-lo, como explica o
autor:

Jean-Jacques Rousseau soubera aproximar-se bem mais do Estado


platônico, ao declarar que a República não era uma teoria do Estado,
como pensavam aqueles que só julgavam os livros pelos títulos, mas
sim o mais formoso estudo jamais escrito sobre educação (JAEGER.
2013. p. 759).

Imbuído do intuito de produzir uma ideia capaz de reformar a antiga Paideia,


Platão apresenta críticas em A República por meio dos seus interlocutores para fins
de falar em uma reforma do antigo modelo de Paideia, mas, para isso, cabe
mencionar primeiro as origens do Estado, a divisão das tarefas dos cidadãos e,
posteriormente a necessidade econômica de expandir novos territórios para atender
os anseios da sociedade.
A expansão econômica e a necessidade de ampliação de territórios daria
ensejo à guerra, o que consequentemente viria impor a preparação de guerreiros
aptos a defender o Estado (uma classe específica) que teria a incumbência de atuar
precisamente em atividades militares como a defesa das fronteiras e em campos de
batalha.
Jaeger observa em sua obra que em A República, Sócrates não se refere a
“guerreiros”, mas fala de “guardiões”, especificando função a ser esperada por essa
elite, que seria a de guardar a cidade: “Nossa tarefa consistirá, pois, ao que parece,
em escolher, se formos capazes, os que são por natureza aptos a guardar a cidade
(PLATÃO, 374 e. 2010).
Nos moldes do princípio platônico da especialização, segundo a qual cada um
deveria apenas exercer o seu próprio ofício, nas palavras de Jaeger, “Platão
preconiza a existência de um estatuto de guerreiros profissionais, os Guardiões”, e
mais precisamente segundo o autor: “Platão prefere, todavia, que seja a própria
cidade a produzir uma classe especial de guerreiros”. O fato de serem os guardiões
produzidos pela própria cidade Estado criaria, na ótica de Platão o que Jaeger
25

chama de “um bom guardião dos seus”, com capacidade de distinguir as pessoas
conhecidas das desconhecidas e também deveriam reunir “qualidades
aparentemente contraditórias: doçura para com os seus e agressividade contra os
estranhos” (JAEGER. 2013. p. 770/772). Na obra platônica esse ponto fica bem
definido nas seguintes passagens:

- Crês que a natureza de um cão jovem, de boa raça, difere, no que


concerne à guarda, ao de um jovem bem-nascido? – O que queres
dizer? – Que ambos devem possuir sentidos aguçados para
descobrir o inimigo, rapidez para persegui-lo logo que o descubram e
força para combatê-lo, se necessário, quando for alcançado
(PLATÃO, 375 a. 2010).

Os guardiões, na ótica de Platão teriam a função específica e limitada de


defender o Estado, uma vez que sua educação seria voltada para essa função,
diferentemente da dos esportistas profissionais, dos músicos e de outras categorias.
Os guardiões deveriam ser donos de [...] agudeza de percepções sensoriais, a
presteza de seguir o percebido e a energia na luta pela consecução do objetivo
(JAEGER. 2013. p. 771). Tal projeto, visando formar uma classe de pessoas com
características determinadas alcançadas através de um critério rigoroso de seleção
e por conseguinte através de um modelo de educação apropriada, configura um
projeto político estatal de eugenia no sentido de haver uma intenção estatal para
atingir um tipo de homem perfeito para exercer uma atividade determinada em prol
do Estado, ou seja, a utilização de indivíduos como meios e não os respeitando
como fins em si mesmos e isso pode ser constatado a partir da visão Jaeger:

Logo nos vemos convertidos em escultores, aos quais é entregue a


missão de formar, por assim dizer, com mão de artista, através da
seleção dos caracteres mais adequados e de sua educação, o tipo
de Guardião inteligente e valoroso (JAEGER. 2013. p. 771).

No diálogo entre Sócrates e Glauco apresentado em A República aparece


também referência a raças de animais como uma forma de embasar os argumentos
em favor da seleção para cruzamentos entre humanos:

[...] vejo, em tua casa cães de caça e grande número e pássaros de


fina qualidade; por Zeus!, dispensastes alguma atenção à sua união
e à maneira como procriam? – Ora, pois; queres ter crias de todos
igualmente, ou te empenhas a tê-las tão somente dos melhores? – E
não crês que se a procriação não se efetuasse deste modo a raça de
teus cães e teus pássaros degeneraria muito? [..] Mas qual é a tua
26

opinião no tocante aos cavalos e aos outros animais? Com eles


acontece de outra maneira? (PLATÃO, 459 a. 2010).

O Guardião ideal deveria, acima de tudo, ser imbuído de bravura e valentia,


qualidades tidas como imprescindíveis ao idealizar o protótipo, tendo o Jaeger
comparado os guardiões a raças nobres de cavalos e cães, segundo o comentador:

Para o guerreiro ser bom guardião dos seus, a sua alma tem de
reunir, como os bons cães, duas qualidades aparentemente
contraditórias: doçura para com os seus e agressividade contra os
estranhos (JAEGER. 2013. p. 771/772).

Mas, para atingir tais resultados, como Platão resolveria o problema da


criação dessa classe idealizada para defender os muros da pólis? Essa questão
requer uma análise de todo o sistema idealizado pelo filósofo como molde para os
Guardiões e que, teria grandes impactos na educação da mulher e dos governantes
no “Estado perfeito”, ou seja, de nada adiantaria somente projetar o cruzamento
entre ‘notáveis” sem que houvesse um regramento da gestação, procedimentos para
garantir a boa saúde dos nascidos e a educação específica para os futuros
guardiões, entre outros procedimentos.
Dessa maneira, haveria a necessidade de um sistema legal que pudesse gerir
a norma gerada pela ideia de constituição do Guardião perfeito, que seria fruto de
uma mulher e também dos governantes, um sinal de que Platão estaria na origem
dos modernos, como afirma Jaeger: “Guardiões de acordo com o sistema
legalmente estabelecido pelo Estado é uma inovação revolucionária de alcance
histórico incalculável”, e ainda, complementa o autor: [...] em nenhum lado, fora de
Esparta, existia, segundo Aristóteles, uma educação organizada pelo próprio Estado
e pelas autoridades. (JAEGER. 2013. p. 773).
Nesse contexto podemos afirmar com base nos escritos já citados que tanto
Platão quanto Aristóteles remetem-se ao exemplo espartano de educação estatal
quando dissertam sobre uma cidade ideal e, quanto à educação da mulher, Platão
apresenta uma visão revolucionária na seguinte passagem:

- Achamos que as fêmeas dos cães devem cooperar com os machos


na guarda, caçar com eles e fazer tudo o mais em comum, ou que
devem permanecer no canil, incapazes de outra coisa porque parem
e alimentam os filhotes, enquanto os machos trabalham e assumem
todo o encargo do rebanho?
27

- Queremos – disse ele – que tudo lhes seja comum, exceto que
empregaremos as fêmeas como mais fracas e os machos como mais
fortes.
- Ora, é possível obter de um animal os mesmos serviços que de
outro, se não for nutrido e criado da mesma maneira?
- É impossível, certamente.
- Se, portanto, exigimos das mulheres os mesmos serviços que dos
homens, devemos formá-las nas mesmas disciplinas.
- Certo (PLATÃO, 451 e. 2010).

Certamente esses questionamentos ocuparam Platão quando pretendeu a


criação de um sistema eficaz de defesa da Pólis por meio dos guardiões e, é sabido
historicamente que antes de Platão, já havia em diversos ciclos a discussão sobre
como o Estado poderia, bem como deveria tomar as rédeas do presente para
influenciar os nascimentos porvindouros. O próprio Xenofonte versou sobre o rigor e
a disciplina a serem adotados como base da educação a partir da procriação e do
nascimento; Crítias, em obra em prosa sobre Esparta sinalizou também que antes
mesmo da concepção e da gravidez os progenitores deveriam submeter-se a
exercícios físicos criteriosos e a uma dieta que fortalecesse o organismo. Todo esse
arcabouço de teorias e diretrizes adotadas, sobretudo, por meio de um
comportamento eugênico pautado na observação da prática espartana, culminou em
inexorável influência nas obras de Platão, como consta na seguinte explicação de
Jaeger: “O filósofo deve ter ouvido discutir essas ideias no círculo em que vivia o seu
tio Crítias e por certo conheceria também a sua obra” (JAEGER. 2013. p. 828).
Mais uma vez a obra platônica mostrou-se afim com a cultura espartana,
primordialmente no que tange ao estilo de vida familiar, ou seja, a ausência da
família para a classe dos Guardiões, tendo sido necessário para Platão sistematizar
um lema que instituiria a ausência de propriedade individual para essa classe, o que
os levaria inclusive a um sistema de comunidade de mulheres e filhos, como é
possível constatar em passagem de A República:

- Ainda te lembras que há pouco fomos censurados por não sei quem
de negligenciar a felicidade de nossos guardiães, os quais, podendo
possuir todo o haver dos outros cidadãos, nada possuíam de
próprio? (PLATÃO, 466 a. 2010).
28

Ás mulheres ficaria reservada, além das funções típicas delas no Estado, a


função de “Guardiães” e, nas palavras de Platão as tarefas de ambos os sexos não
deveriam ser diferentes:

- Aprovas, portanto – indaguei – que haja comunidade entre


mulheres e homens, como expusemos, no que tange à educação,
aos filhos e à proteção dos outros cidadãos? Concordas que as
mulheres, remanesçam elas na cidade ou sigam elas para a guerra,
devem montar guarda com os homens, caçar com eles, como fazem
as fêmeas dos cães, e associar-se tão completamente quanto
possível a todos os trabalhos deles; que assim elas agirão de
maneira excelente e em nada contrária a natureza das relações entre
ambos os sexos, na medida em que são feitos para viver em
comum? – Concordo (PLATÃO, 466 d. 2010).

Quanto à diferença entre homens e mulheres na obra platônica, complementa


Jaeger: “É certo que reconhece que a mulher é em geral mais fraca do que o
homem, mas não crê que isso seja obstáculo para ela participar nas funções e nos
deveres de Guardiões”. Nesse sentido, se realizam as mesmas funções, logo terão
de obter o mesmo tratamento e relação a toda sua formação, como a mesma
alimentação, cultura entre outros atributos peculiares a função de guardião, em
pormenores: “A mulher da classe dominante deverá ser educada na música e na
ginástica, tal como o homem, e como ele se deverá formar para a guerra” (JAEGER.
2013. p. 822).
A formação física e cultural da mulher deveria, para Platão seguir o mesmo
rito que a dos homens, se fossem preparadas para a função de Guardiães:

- Pode acontecer, todavia, que muitas dessas coisas pareçam


ridículas por ir contra os costumes, se passarmos da palavra à ação.
- Com toda certeza. - E qual julgarias mais ridícula? Não será,
evidentemente, a de que as mulheres se exercitem nuas nas
palestras, com os homens, e não só as jovens, mas também as
velhas, como esses velhos que, enrugados e de aspecto pouco
agradável, continuam se comprazendo com os exercícios do ginásio?
(PLATÃO, 452 a – b. 2010).

Ainda, consoante ao que expusera Russell (2016, p.48) ao afirmar: O estado


ideal de Platão é muito inspirado no exemplo de Esparta, corrobora Jaeger no
sentido de que: “A tradição vinda até nós fala-nos de que as donzelas espartanas
praticavam nuas os seus exercícios físicos” (JAEGER. 2013. p. 824).
29

Na cidade ideal de Platão, o governo dos melhores instauraria o Estado ideal.


Mas, para que esse objetivo pudesse ser alcançado seria necessário definir o
princípio a partir do qual partiria a seleção almejada pelo filósofo. Dito de outro
modo, a educação a ser dada ao reduzido grupo de Guardiões, deveria antes de
tudo ser pautada em deliberar sobre as diretrizes básicas a serem seguidas.
Platão apresenta primeiramente preceitos relativos ao sexo e à procriação e,
posteriormente estabelece que para seu ideal a aristocracia não deveria ser definida
como a elite através de sua linhagem, ou seja, pela herança de sangue, mas sim por
cuidadosa seleção entre os melhores, conforme segue:

- É preciso, segundo os nossos princípios , tornar muito frequentes


as relações entre os homens e as mulheres de escol e, ao contrário,
muito raras entre os indivíduos inferiores de um e de outro sexo;
ademais, é preciso criar os filhos dos primeiros e não os dos
segundos, se quisermos que o rebanho atinja a mais alta perfeição; e
todas essas medidas devem permanecer ocultas, salvo aos
magistrados, para que a tropa dos guardiães se mantenha, na
medida do possível, isenta de discórdia (PLATÃO, 459 e. 2010).

No mesmo sentido complementa o autor alemão: A “aristocracia” platônica


não é uma nobreza de sangue, um regime que desde o berço confira aos indivíduos
dessa camada social o direito de a seu tempo dirigirem o Estado (JAEGER. 2013. p.
827). O exemplo claro dessa seleção pode ser encontrado na determinação do
descarte dos indignos e incapazes, ao mesmo tempo em que, seriam
periodicamente selecionados os indivíduos do terceiro escalão que fossem
considerados mais dignos e aptos. É interessante observar que esse ponto parece
valorizar uma espécie de meritocracia, mesmo em um momento tão voltado ao
mando absoluto do Estado face aos indivíduos.
Portanto, é possível afirmar com base nos escritos que a teoria platônica se
apega ao cruzamento de notáveis, mas como imposição estatal para que haja uma
prole de excelência, “os melhores” para governar, como quis dizer Platão no
entendimento de Jaeger:

Platão atribui ao nascimento, no entanto, uma importância essencial


na formação do seu escol. A sua convicção de que a descendência
da classe dominante corresponderá regra geral, a excelência dos
cônjuges (JAEGER. 2013. p. 827).
30

Prosseguindo, para Platão: “Os melhores só pelos melhores podem ser


gerados”. E isso, asseverou o filósofo, deveria ser assegurado por um “regime
especial de criação” que, por sua vez, deveria estar sob a égide do Estado
(JAEGER. 2013. p. 827).
Voltando ao ponto da seleção por meio de cruzamentos, cabe salientar que a
herança da nobreza não seria naturalmente transmitida através do sangue de uma
“casta”, mas sim criteriosamente via seleção de progenitores: [...] o que ele se
propõe não é educar na areté uma nobreza de sangue já existente, e sim formar
uma nova elite mediante a seleção dos representantes da suprema areté (JAEGER.
2013. p. 827). Assim, no Estado Platônioco os guardiões não teriam o direito de
possuir qualquer patrimônio, bem como estariam também impedidos de contrair
matrimônio ou qualquer tipo de união permanente entre os sexos e, em busca dessa
utopia, Platão, segundo Jaeger permite que sejam empregados meios não muito
éticos como o engodo e a fraude para atingir os fins desejados: “Platão deixa até
que as autoridades usem a fraude e o engano a fim de unirem, para bem da
comunidade, os melhores homens com as melhores mulheres e os piores com os
piores” (JAEGER. 2013. p. 829).
Há também algo que deve ser considerado como diretriz fundamental no
Estado Platônico, que é o dever do Estado em primar pela qualidade dos cidadãos e
não pela quantidade:

[...] o Estado perfeito prospera melhor em condições fáceis de avaliar


do que com uma massa humana difusamente misturada [...] por isso
essa norma não tende a fomentar, mas antes a limitar o número de
nascimentos. Não é a aumentar a quantidade dos cidadãos, mas sim
a melhorar a sua qualidade que a política racial de Platão aspira
(JAEGER. 2013. p. 830).

Como forma de controle, nem a velhice nem a mocidade teriam o direito de


procriar e ainda, sobre a amamentação e a criação dos filhos pelo Estado, rezava o
seguinte regramento:

O cuidado dos recém-nascidos deve subtrair-se absolutamente à


jurisdição das mães. Numa parte isolada da cidade, instalar-se-ão
lugares para criar as crianças de peito saudáveis, a cargo de
mulheres especialmente destinadas a isso. As mães só terão acesso
31

às crianças para amamenta-las, mas nem sequer conhecerão os


próprios filhos, pois deverão querer a todos por igual (JAEGER.
2013. p. 830).

Continua a autor alemão a explicação sobre as regras da ideia de Platão:

De certo modo, pretendia unir o Estado como se fosse uma grande


família, em que todos os pais se sentissem pais e educadores de
todos os filhos, e estes guardassem para com os adultos o mesmo
respeito que se eles fossem seus pais e educadores (JAEGER.
2013. p. 831).

Pelos escritos, é possível afirmar que o Estado ideal platônico não seria algo
somente possível entre os gregos ou mesmo em uma sociedade isolada, como
podemos ver: “O Estado ideal de Platão poderia realizar-se igualmente entre os
bárbaros, e até é possível que alguma vez tenha existido entre eles nos tempos
passados, sem o nosso conhecimento” (JAEGER. 2013. p. 832).
Dessa forma fica claro também que no pensamento de Platão não é a etnia
ou raça que está em jogo, mas uma seleção para a perfeição em sua completude,
como consta na obra de Jaeger: “Não é o material étnico de que está formado que
infunde valor à comunidade estatal de Platão, mas sim a sua perfeição como um
todo”. E, por fim, complementa o comentador que: “Aos olhos de Platão, o seu
Estado tinha mais de Estado que qualquer outro. Estava convencido de que o
homem alcançaria nele a forma suprema da virtude e da felicidade humana”
(JAEGER. 2013. p. 832/833).
Já quanto à educação dos guerreiros e a reforma do direito de guerra, cabe
mencionar que os guerreiros, para Platão deveriam ser iniciados desde muito novos
na arte da guerra, para que crescessem acostumados com as batalhas e
adquirissem uma coragem maior do que a dos homens comuns. Nas linhas da obra
da Jaeger:

Devem eles ser iniciados na guerra logo desde a infância, tal como
os filhos dos oleiros aprendem a arte da olaria, vendo o pai trabalhar
ou dando-lhe uma ajuda na sua tarefa. Os filhos dos “Guardiões” não
podem receber uma educação pior do que os pais. Porém também
não se deixará que eles corram o mínimo risco, quando forem
levados a guerra com eles. Platão adota providências especiais para
a segurança. Destina-lhes como guias e “pedagogos” os superiores
mais idosos, de maior capacidade e experiência e preocupa-se com
que sejam rapidamente afastados da zona de combate em caso de
acontecimentos imprevistos que pudessem pô-los em contato direto
com a luta (JAEGER. 2013. p. 836).

Nesse ponto a finalidade visada por Platão, afirma Jaeger, seria a formação
do éthos desses guerreiros, pois para ele: “Trata-se de um enrijecimento espiritual,
32

por meio do contato com a espantosa mecânica da guerra autêntica” (JAEGER.


2013. p. 837).

Em meio a todo o conteúdo da obra platônica e por ser seu estilo de escrita
tão marcante é possível perceber que há uma mensagem além do que está escrito
literalmente em A República, mensagem esta que Nussbaum foi capaz de alcançar e
explica em citação interessante:

Tampouco os diálogos de Platão argumentam simplesmente em


favor da revisão de sua concepção ética; em vez disso, Platão se
utiliza da forma diálogo para nos demonstrar um confronto de
posições, evidencindo para nós o que toda “solução” se arrisca a
perder ou entregar (NUSSBAUM, 2009, p. 8).

Já no Século XVII, muito tempo após o embrião das ideias eugênicas


propostas na obra de Platão, Tommaso Campanella (1568 – 1639) escreveu A
Cidade do Sol, livro no qual também apresenta ideais do mesmo quilate, como, por
exemplo, a seleção para cruzamentos entre seres humanos, que deveria ser tão
cuidadosa quanto à intervenção realizada nos animais domésticos para se atingir
raças com determinadas características. Campanella versa sobre uma espécie de
controle dessas decisões que estaria nas mãos do Magistrado Maior, uma figura
semelhante ao que conhecemos como Ministro da Saúde, que ficaria incumbida de
escolher os casais para as relações sexuais com fins de procriação (CAMPANELLA,
1973).
Além disso, foram traçadas por Campanella algumas diretrizes básicas para
o sucesso nos cruzamentos, como por exemplo: deveriam ser realizados entre uma
mulher gorda e um homem magro, ou vice-versa, com a finalidade de moderar os
excessos, tendo estabelecido até mesmo as idades apropriadas para a procriação,
assim como na obra platônica, de maneira que mulher alguma poderia consagrar-se
à geração antes dos 19 anos, enquanto os homens não deveriam ultrapassar os 21
(CAMANELLA, p. 250. 1973).
Nesse ponto se repete o mesmo problema moral de imposição do estado aos
cidadãos apontado na obra de Platão, o que revela uma grave violação da liberdade
individual, ainda almejada mesmo que muitos séculos depois dos clássicos gregos.
Na Cidade do Sol, tudo seria planejado com base em um modelo almejado
pelo filósofo, algo que se assemelha a ideia da República de Platão. A geração dos
33

cidadãos solares deveria ser arquitetada com base em critérios rígidos desde a
escolha entre os progenitores até a maneira de alimentar e educar os nascidos,
como na passagem apresentada a seguir:
O terceiro triúnviro é o Amor, que tem o primeiro papel no que diz
respeito à geração. Sua principal função é que a união amorosa se
realize entre indivíduos de tal modo organizados que possam
produzir uma excelente prole. Escarnecem de nós por nos
esforçarmos pelo melhoramento das raças dos cães e dos cavalos, e
nos descuidarmos totalmente da raça dos homens (CAMPANELLA,
p. 245. 1973).

Dando vós ao Almirante, Campanella apresenta sua visão sobre a geração e


versa sobre como seriam as regras para as relações sexuais, como é possível
constatar em citação interessante:

As mestras matronas e aos velhos mais idosos incumbe proporcionar


o prazer aos que, mediante pedido secreto ou nas palestras públicas,
tenham revelado possuir mais poderosos estímulos. Mas é sempre
necessária a presença do Grande Magistrado da geração, ou seja, o
Grande Doutor da medicina, que não reconhece outros superiores
além do triúnviro Amor (CAMPANELLA, p. 250. 1973).

Para o filósofo renascentista, na Cidade do sol, da mesma forma que em na


República, a decisão sobre importantes aspectos individuais do cidadão estaria nas
mãos do Estado, o que agravaria ainda mais a crítica quanto à liberdade dos
indivíduos para escolher seus parceiros, decidir se deveriam ou não procriar, entre
outras escolhas. Dessa forma, a utopia de Campanella também prezava por uma
moderação que possivelmente estaria relacionada a uma busca de perfeição e, para
tanto, a via dessa busca deveria ser pautada em uniões estabelecidas por critérios
como, por exemplo: “Uma mulher grande e bela se une a um homem robusto e
apaixonado, uma gorda a um magro, uma magra a um gordo, e assim, com sábio e
vantajoso cruzamento, moderam-se todos os excessos” (CAMPANELLA, p. 251.
1973).
A busca pela perfeição nas uniões era tanta que estaria atrelada a Deus, de
modo que os geradores teriam que seguir determinações dos mestres e mestras
como, por exemplo, não praticar as relações sexuais antes de digerir os alimentos e
mesmo antes de terem realizado a prece. Haveria também quartos próprios às
34

atividades da procriação, com um ambiente propício a levar a concepção de um


grande ser humano:

Nos quartos há estátuas de homens, respeitabilíssimos, aí colocadas


para serem contempladas pelas mulheres, que, depois, pondo-se a
uma janela com os olhos voltados para o céu, suplicam a Deus que
lhe conceda tornarem-se mães de perfeita prole (CAMPANELLA, p.
251. 1973).

Haveria para os solares um senso de coletividade como dever superior aos


direitos dos indivíduos, devendo ser claramente entendido que: “A geração é
considerada obra religiosa, tendo por fim o bem da república e não dos particulares.
Por isso, todos obedecem plenamente aos magistrados” (CAMPANELLA, p. 252.
1973). Nesse sentido, segundo entendimento de Monteiro: [...] a geração é um ato
público e ao mesmo tempo religioso. Especialistas em eugenia, bons geradores e
astrólogos buscam nos Céus as orientações para que a cidade receba uma boa
prole (MONTEIRO, p. 63. 2013). Prossegue ainda a estudiosa:

A comunhão de mulheres também não está ligada ao apelo sexual,


mas ao controle da geração. O acasalamento tem função apenas de
procriação, não está associado ao prazer, à atração física ou a
sentimentos. A reprodução é questão de Estado, pois diz respeito às
futuras gerações. Assim, não pode ser colocada em segundo plano
ou relegada à causalidade das escolhas individuais. Assim, o Grande
Magistrado da geração, chamado também de Grande Doutor da
Medicina, coordena e controla rigidamente os procedimentos de
reprodução, dos quais participam toda a comunidade: os meninos
preparam o leito do casal; os mestres e as mestras vigiam e
controlam os participantes para que eles estejam puros e
descansados no momento do ato sexual; o médico e o astrólogo
escolhem a hora em que as constelações se mostram benéficas para
geradores e gerados. Todos são supervisionados por Mor, o Príncipe
do Amor (MONTEIRO, p. 62/106. 2013).

Campanella complementa sua posição fazendo referência a Platão,


demonstrando a influência do clássico em seu pensamento:

Os indivíduos que, por sua excelente organização, têm o direito de


se tornarem geradores, ou geratrizes, se unem segundo os
ensinamentos da filosofia. Platão acha que isso deve realizar-se
tirando a sorte, a fim de que os que são afastados das mulheres mais
belas não fiquem odiando os magistrados; e diz que devem ser
enganados, no ato de tirar a sorte, os que não são merecedores de
supremas belezas, de maneira que obtenham, não as mais
35

desejadas, mas as mais convenientes (CAMPANELLA, p. 252.


1973).

A concepção e a gestação, bem como a amamentação e a criação da prole


também deveriam ser regradas segundo o pensador, para garantir o resultado
almejado. Assim, as que concebiam deveriam ficar quinze dias em repouso e,
depois de recompostas deveriam começar nas palavras de Campanella: “trabalhos
fáceis que lhes fortifiquem a prole e lhes abram os meatos da nutrição, e se
revigoram depois, gradativamente, com exercícios” (CAMPANELLA, p. 251. 1973).
Prosseguindo quanto aos vetores da criação e da educação dos cidadãos solares,
salienta o pensador:

Por dois e mais anos, segundo as prescrições do Físico, são


amamentadas as crianças. Depois disso, se é menina, é entregue às
mestras, e, se é menino, aos mestres. Começam, então, quase como
um divertimento, a aprender o alfabeto, a explicar as pinturas, a
exercitar-se na corrida, na luta, e depois a estudar as histórias
expostas pelas pinturas e as diferentes línguas (CAMPANELLA,
1973, p. 251).

É preciso salientar que, embora o filósofo renascentista se assemelhasse a


Platão em diversos pontos de seus escritos, refutou argumentos apresentados pelo
mesmo na voz de Sócrates quanto à comunidade das mulheres e das crianças,
como pode ser observado:

Sócrates pensa que o amor aumentaria entre os cidadãos se cada


um considerasse os velhos como seus genitores, estes os jovens
como filhos e os iguais como irmãos. Ao contrário, porém, isso
destruiria o amor, porque, ou se consideram todos coletivamente, ou
é verdade que todos os velhos são pais de todos os jovens, mas,
neste caso, o amor de cada velho, em particular, seria bem pequeno
em relação àqueles, como uma gota de mel em muita água, e logo
se extinguiria, pois ninguém conheceria os próprios filhos e nem
estes os seus pais (CAMPANELLA, 1973, p. 285).

E ainda, em segunda objeção afirma o pensador que: “Surgiriam discórdias


entre as mulheres e, muitas vezes, entre os pais e os filhos incertos” (CAMPANELLA,
1973, p. 285). Para muitos estudiosos da obra de Campanella seus escritos não são
somente críticas atuais e contundentes sobre a sociedade, mas sim uma espécie de
profecia:
36

A Cidade do Sol não é apenas uma crítica do presente pelo viés da


ficção, mas sim a antecipação do modelo social que vigeria durante
os mil anos de felicidade – época de paz e de justiça sobre a Terra -
que antecederiam o Julgamento Final. Campanella busca retratar em
sua utopia uma humanidade que desconhece a propriedade privada,
raiz de todos os males, e que proclama o amor recíproco e o saber
como bases da harmonia social (MONTEIRO, 2013, p. 124).

Entendemos que as normas utópicas da Cidade do Sol violariam princípios basilares


e direitos, traduzindo-se em uma forma autoritária de tratamento aos indivíduos. No mesmo
sentido posiciona-se Monteiro:

[...] o sistema político de Cidade do Sol, mesmo tendo abolido a


ignorância, a soberba, a tirania etc., revela-se totalitário, pois não
admite qualquer forma de oposição, não tolera dissidentes e exige
a completa subserviência do habitante ao Estado. A liberdade
individual e os desejos são completamente anulados (MONTEIRO,
p. 124. 2013).

Levando em conta que finalizamos a abordagem sobre a eugenia como utopia. O


Estado eugênico (de Platão à Campanella), no próximo tópico trataremos da
questão peculiar à Alemanha nazista.

1.3 A Alemanha nazista

Atualmente, em qualquer âmbito em que o termo eugenia seja mencionado, a


associação ao Fascismo, primordialmente ao Nazismo é quase inevitável, embora
seja nos Estados Unidos que de há muito até os dias atuais tenha sido
implementado o mais bem-sucedido e organizado plano de eugenização social da
história, como exemplificado na seguinte citação:

Os eugenistas alemães estabeleceram relações acadêmicas e


pessoais com Davenport e com o establishment eugenista
americano, desde a virada do século XX. Mesmo depois da Primeira
Guerra Mundial... suas ligações com Davenport e com o resto do
movimento americano permaneceram fortes e inabaláveis.
Fundações americanas, como a Carnegie Institution e a Rockefeller,
patrocinaram generosamente a biologia racial alemã com centenas
de milhares de dólares, mesmo quando os americanos estavam nas
filas da sopa durante a Grande Depressão” (BlACK, 2003, p. 418,
419).
37

Na literatura, bem como no cinema, existem passagens sobre a eugenia que


não passam despercebidas, pois ficam marcadas para sempre na história, como, por
exemplo, os ideais platônicos, desde a Idade Antiga, tempo áureo da filosofia
clássica e também da sociedade espartana, que era severamente adepta da
formação de cidadãos bem-nascidos, principalmente para objetivos militares. Esses
precursores da eugenia podem parecer esquecidos após a queda do Terceiro Reich,
mas muito foi produzido a respeito dos ideais eugênicos no século XX, mesmo que
somente na esfera da ficção.
Em 1976, o livro Ira Levin, Meninos do Brasil, virou filme. Todo o enredo da
ficção é em torno de um plano de clonagem inédito que teria sido arquitetado pelo
temido Dr. Joseph Mengele, o médico nazista que realizou experiências até hoje
comentadas mundo afora durante a Segunda Guerra Mundial. O plano do médico,
segundo a obra ficcional, seria realizar uma experiência em prol da raça ariana, um
projeto que previa não apenas a reprodução genética (via clonagem) de Hitler, mas
também a reprodução de todo o seu contexto familiar na vida de cada um dos
clones, assim como dos principais acontecimentos que marcaram a sua vida, com
finalidade de espalhar pelo mundo clones do “Führer”.
Há séculos, o homem notoriamente vem idealizando experiências eugênicas
(de forma ditatorial). No início tais práticas foram impostas pelo Estado, e nos dias
de hoje já podem ser realizadas pelos indivíduos (o que será demonstrado no
capítulo seguinte), como é possível constatar com a utilização cada vez maior
dessas técnicas em plantas e animais em prol do interesse humano, mas a pergunta
é: por que a eugenia seria interessante para nós?
Essa pergunta não poderia ser respondida sem que tratássemos, ainda que
de maneira breve, sobre a liberdade, a saber, do consentimento individual e da
dignidade da pessoa humana.
Pois bem, a questão da liberdade está intimamente ligada ao fato do ser
humano ter essa condição natural, o que na esfera dos direitos humanos poderia ser
explicado da seguinte maneira: somente pelo fato da pessoa ter nascido humana ela
já possui essa liberdade e inclusive a própria dignidade, ou seja, o direito à
sacralidade do seu corpo e, em última análise, da sua vida. Ocorre que, sendo livre
e possuindo dignidade, o ser humano tem o direito-poder de escolher o que é bom
para si próprio e também para a sua prole. Todavia, há limites quanto a essas
38

escolhas, sob pena de vivermos em um estado não de liberdade, mas sim de


licenciosidade.
O consentimento individual reside nessa liberdade, ou seja, a escolha que
pode ser feita, porém nos limites do que chamamos de ética ou moral. A liberdade
individual é considerada, ainda que pelo senso comum, como condição essencial
para obtenção da satisfação em uma existência, dito de outro modo, a liberdade
individual seria a liberdade de expressar desejos e vontades, sentimentos e
pensamentos, podendo ser considerada pela maioria das pessoas como o maior
bem da vida, e quando este lhe é retirado, as pessoas não conseguem se
desenvolver como pessoa. A questão da liberdade já é um problema para a filosofia
e muitos pensadores desenvolveram teorias a esse respeito2.
Mesmo assim, faz-se necessário um consenso entre a liberdade individual
das pessoas e um senso de coletividade, de forma que na maioria das vezes é
necessário, aceitável e imprescindível que haja padrões considerados corretos sobre
a forma de agir dos indivíduos, mesmo que alguns deles discordem. Essa liberdade
deve ser respeitada pela coletividade, a não ser nos casos em que ela possa vir a se
tornar uma ameaça para o indivíduo ou outrem, como é o caso do ideal defendido
pelos libertários, o que trataremos em pormenores no capítulo seguinte.
A palavra liberdade no sentido primitivo possui o seguinte significado: “A
liberdade é o estado daquele que faz aquilo que quer e não aquilo que outrem
pretende que ele faça; é a ausência de constrangimento alheio” (LALANDE,1999, p.
615).
Em se tratando da esfera da eugenia, o Estado pode encontrar nesta hipótese
sua defesa para intervir na vida do cidadão comum, e em suas escolhas
matrimoniais, com o subterfugio de estar protegendo não só a vida daqueles dos
quais se interfere na escolha, mas na coletividade como um bem maior, entretanto,
ocorre que, no Brasil, a vontade do legislador tem se mostrado cada vez mais aberta
a possibilidades de se evitar a eugenia, como é o caso do Estatuto da Pessoa com
deficiência, Lei 13.146 de 6 de julho de 2015, que permite o casamento e assegura o
direito de reprodução às pessoas com deficiência:

2
Para mais informações vide: LALANDE, A. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. – 3º ed. – São
Paulo: Martins Fontes, p. 615 e seguintes. 1999.
39

Art. 6o A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa,


inclusive para:
I - casar-se e constituir união estável;
II - exercer direitos sexuais e reprodutivos;
III - exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter
acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento
familiar;
IV - conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização
compulsória;
V - exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e
VI - exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como
adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as
demais pessoas (PLANALTO. 2015).

Retornando ao ponto que toca o âmbito de priorização das necessidades e,


ainda mais, dos nossos interesses, devemos nos preocupar, pois não são somente
essas realizações benéficas que têm ocorrido ao longo da história, visto que, por
outro lado, há projetos de Estados autoritários que visam à eugenia, contrariamente
à liberdade e ao consentimento individual, bem como à noção de dignidade do
homem, algo determinadamente inclinado a ferir ideais liberais ou mais radicalmente
libertários.
Abordado o tema Alemanha nazista, pretendemos refletir adiante sobre
algumas apresentações do filósofo norte-americano Michael Sandel.

1.4. Refletindo sobre as apresentações de Sandel

Muitos estudiosos consideram difícil conceber como moralmente aceitável o


sujeito deliberar sobre sua própria vida ou morte, quanto mais quando se trata de
embrião (manipulação genética). Uma parcela radical da linha política advoga uma
liberdade total do indivíduo, inclusive para fazer o que bem entender com o próprio
corpo, desde que essas atitudes não envolvam prejuízos ao próximo. A esses
chamamos de libertários: “Os libertários defendem os mercados livres e se opõem à
regulamentação do governo, não em nome da eficiência econômica, e sim em nome
da liberdade humana”. (SANDEL. 2009, p. 78.)
Essa falta de limites pode não significar liberdade, mas sim um retrato da
anarquia, ou seja, do caos, pois há necessidade em qualquer sociedade que haja
limites estabelecidos capazes de controlar os ímpetos humanos como a
manifestação do egoísmo, da inveja, da ambição e outros, sendo as normas de
40

bioética diretrizes para a prática segura e benéfica da ciência (no caso da


manipulação genética).
Nesse aspecto abordado por Sandel, cabe a questão formulada por
Nussbaum:

Precisamos indagar, então, se uma reestruturação do ser humano,


uma transformação ou supressão de certas partes familiares de nós
mesmos, poderia levar a um maior controle racional e auto-
suficiência, e se seria essa a forma apropriada de auto-suficiência
para uma vida humana racional (NUSSBAUM, 2009, p. 7).

Segundo o filósofo norte-americano Michael Sandel, os libertários alegam


principalmente que: “cada um de nós tem o direito fundamental à liberdade – temos
o direito de fazer o que quisermos com aquilo que nos pertence, desde que
respeitemos os direitos dos outros de fazer o mesmo” (SANDEL, 2009, p. 78).
Em uma primeira análise, entendemos que esse argumento, se aplicado à
questão da manipulação genética é autodestrutivo porque a intenção de manipular
viola a liberdade daquele que é objeto de tal manipulação.
Dos exemplos do livro de Sandel, o mais esclarecedor a respeito dos
libertários é o seguinte:

“Nenhum paternalismo. Os libertários são contra as leis que


protegem as pessoas contra si mesmas. As leis que tornam
obrigatório o uso do cinto de segurança são um bom exemplo, bem
como as leis relativas ao uso de capacetes para motociclistas”
(SANDEL, 2009, p. 79).

Mas, e os embriões e fetos, quem os protegerá?


Para nós é bastante clara a necessidade de proteção dos que ainda não
nasceram, de modo que, na mesma obra o próprio Sandel (SANDEL, 2009, p. 89)
diz que: “Não podemos nos apoderar da vida alheia e usá-la, mesmo que isso seja
feito por uma boa causa”.
Nesse caso, em uma segunda e mais profunda análise da questão, devemos
nos questionar se a assertiva de Sandel não comprometeria o futuro da humanidade
impedindo que grandes benefícios pudessem ser aproveitados para a nossa
espécie.
41

O cuidado de Sandel revela uma preocupação com aqueles que pretendem


apoderar-se de vidas como meios para atingir projetos ou ideias, ou seja, a
utilização de seres humanos como meios e não como fins em si mesmos, o que
tocaria em uma das questões fundamentais já manifestadas por Kant (1983) em
seus escritos, que é o simples fato do ser humano ter nascido humano o torna um
ser com dignidade e por isso não deve ser respeitado como indivíduo insubstituível,
a saber, sem atribuição de valor ou preço. Nesse sentido, para Kant o que tem
dignidade não pode ter preço, ao passo que o que àquilo que é atribuído preço não
pode ter dignidade.
Atualmente, como num contrassenso, já é possível que os pais, no âmbito
privado realizem a eugenia, sem a interferência do Estado. Essa atitude dos pais, a
saber, a decisão de se praticar a eugenia, reflete um problema moral, diga-se de
passagem. Ocorre que tais tentativas podem ser consideradas tanto motivadoras
quanto polêmicas e preocupantes por suas próprias naturezas, visto que já houve no
passado grande aceitação das práticas eugênicas por parte da sociedade, como
retratado por Newman (1921).
Segundo ele, nos Estados Unidos da América, havia leis que proibiam o
casamento de epilépticos, insanos, alcoólatras, miseráveis, idiotas, defeituosos e
aqueles afetados por doenças venéreas. No mesmo sentido, para Newman seria
desejável que essas leis não só fossem mais uniformes e difundidas, como também
mais rigidamente obrigadas a serem cumpridas.
Na década de 1930, com a ascensão de Adolf Hitler ao poder na Alemanha,
seu livro de doutrina política, Mein Kampf (1925), foi distribuído e lido pela maior
parte da população alemã como uma bíblia, o que permitiu a constatação de que,
naquele momento importante da história do mundo, a sociedade germânica estava
sendo completamente influenciada pelos aspectos legais norte-americanos, e pela
obra do Conde de Gobineau, intitulada como Ensaio sobre a desigualdade das raças
humanas (1855), considerada como um dos primeiros trabalhos sobre eugenia e
racismo publicados no século (GOBINEAU , 1856).
Como já vimos, o que se prezava na época Nazista era a pureza da raça
ariana, que contrariamente ao que propusera Platão, que queria uma classe de
guardiões perfeitos para defender e governar a Pólis. Os nazistas visavam um
melhoramento genético que englobasse todo o povo alemão, o que permite a
42

observação de que no entendimento do governo do Terceiro Reich as pessoas


comuns, além dos representantes e guardiões do Estado, também não deveriam se
misturar, mas sim realizar cruzamentos segundo um rigoroso critério conforme
podemos observar em citação do próprio Hitler:

Cada animal só se associa a um companheiro da mesma espécie.


O abelheiro cai com o abelheiro, o tentilhão com o tentilhão, a
cegonha com a cegonha, o rato campestre com o rato campestre,
o rato caseiro com o rato caseiro, o lobo com a loba etc. (HITLER,
1925, p. 269).

O ditador fundamentava seu posicionamento com o argumento de que a


prática da eugenia seria uma escolha em prol da “raça” alemã que, conforme seus
critérios, seria superior a todas as outras, tudo isso em busca de uma pureza étnica-
racial nacional-socialista: “O papel do mais forte é dominar. Não se deve misturar
com o mais fraco, sacrificando assim a grandeza própria” (HITLER, 1925, p.
269/270). Desse modo, é claramente perceptível constatar que, durante o regime
Nazista, esses métodos foram aplicados com vigor, submetendo os alemães que
não cumpriam as normas legais em favor da eugenia do regime a penas severas,
assim era o pensamento de Hitler: “Certo é que, se tal lei não prevalecesse, seria
escusado cogitar de todo e qualquer aperfeiçoamento no desenvolvimento dos seres
vivos em geral” (HITLER, 1925, p. 269/270).
Nesse interim, cabe mencionar a tentativa de criação de uma raça perfeita
pela Irmã do filósofo Friedrich Nietszche, a partir de uma ideologia oriunda do
compositor preferido de Adolf Hitler, Richard Wagner, e isso foi experimentado aqui
na América do Sul, como pode ser conferido na obra de Steve Jones:

Existe uma vila isolada no Paraguai com um nome não usual de


Nova Germânia. Os habitantes de lá tem a aparência muito diferente
da dos seus vizinhos. Muitos têm cabelos negros e olhos azuis. Seus
nomes não são espanhóis, mas algo mais inclinado a Schutte ou
Neumann. Essas pessoas são descendentes de um experimento, um
experimento de aperfeiçoamento da humanidade. Seus ancestrais
foram escolhidos entre pessoas da Saxônia em 1886 por Elisabeth
Nietzsche – irmã do filósofo [...]. A ideia foi sugerida por Wagner (que
planejou visitar o local, embora jamais tenha ido lá). Eles tinham a
expectativa de fundar uma comunidade tão favorecida na doação
43

genética que seria a semente de uma nova raça de super-homens.


(JONES, 1944, p. 224)3.

Há diversas fontes que tratam de forma verossímil sobre o que realmente foi
feito pelos nazistas, bem como a respeito do mito de que o Nazismo teria implantado
ideologicamente a eugenia na Alemanha. Em um rico documentário (BARON, 2008),
baseado em depoimentos de médicos nazistas de diversas especialidades e de seus
familiares, bem como de vítimas do que ocorreu na Alemanha, encontramos
fundamentos que nos ajudam a comprovar que não foi o partido nazista que
implantou ideologicamente um sistema de eugenia na Alemanha do 3º Reich, mas
sim os profissionais da saúde que já vinham idealizando projetos eugênicos bastante
ambiciosos e que com o advento da ascensão do nazismo vieram a influenciar o
partido de Hitler a realizar os empreendimentos.
É óbvio que o fato de as ideias eugênicas não terem nascido no partido
nazista não os exime da total responsabilidade pelo ocorrido na ocasião da
ascensão do Terceiro Reich, e isso, tendo em vista que se essas ideias somente
fossem pensadas e não executadas pelo poder do governo alemão, não haveria
prejuízos tão sérios à sociedade.
Rolf Thurm, um funcionário público aposentado que viveu na época do
ocorrido, contribuiu em depoimento no referido documentário proferindo as seguintes
palavras: “Qualquer um que não se encaixasse nesse plano grandioso teria de ser
destruído, ou mesmo impedido de nascer” (Ibidem).
Esse período da história deve ser considerado como um momento no qual o
Estado fez o que quis, mesmo que as bases científicas não fossem fortes o
suficiente para garantir que as medidas tomadas pudessem dar certo e tudo isso
com a chancela dos profissionais da ciência.
Já o professor Michael Burleigh, autor do livro O Terceiro Reich (2001),
considera que:

3
“In Paraguay there is an isolated village with an unusual name: Nueva Germania, New Germany. Its inhabitants
look quite different from their neighbors. Many have bold hair and blue eyes. Their names are not Spanish, but
are more likely to be Schutte or Neumann. These people are the descendants of an experiment, an experiment in
improving humanity. Their ancestors were chosen from the people of Saxony in 1886 by Elisabeth Nietzsche-
sister of the philosopher […]. The idea was suggested by Wagner (who planned to visit, although he never did).
They were expected to found a community so favored in its genetic endowment that it would be the seed of a new
race of superman”
44

A eugenia foi um entusiasmo que arrebatou os meios científico e


médico a partir de 1900. E foi mundial, pois tinha entusiastas na
América do Norte, na Índia, Japão, China e na maior parte da Europa
Ocidental. Ela independia totalmente do partido político, no sentido
de que havia eugenistas de esquerda e de direita (BARON, 2008).

Em 1920 o rico pesquisador amador alemão Alfred Plötz cunhou o termo


“higiene racial” (BARON, 2008). Ele era partidário de uma suposta supremacia
nórdica e logo em seguida, com o baby boom4, surgiu a conhecida “eugenia
negativa”, com a qual os médicos começaram a brincar de Deus instruindo seus
pacientes nas diretrizes genéticas consideradas corretas para eles, de modo que a
nova legislação nazista através da promulgação da Erbgesundheitsgesetz (Lei da
prevenção de descendentes geneticamente doentes. Promulgada em 14 de julho de
1933) passou a permitir aos médicos a esterilização de pacientes, o que já era feito
nos Estados Unidos há mais de uma década (Ibidem).
Consta na história que Ernst Rudin, o geneticista mais importante da
Alemanha naquela época, teria recebido com entusiasmo a nova lei, bem como
muitos entusiastas de tais medidas:

Os defensores da eugenia, ciência da "melhoria" das especificidades


genéticas do ser humano, saudaram esta lei, que impedia a
"multiplicação" de seres supostamente "inferiores". Entre os alvos da
lei estavam, por exemplo, portadores de esquizofrenia, cegueira,
deformidades físicas e surdez hereditárias. A lista também incluía
pessoas com deficiência no desenvolvimento mental e dependentes
de álcool” (LÜPKE-SCHWARZ, 2013.

Após a queda do Terceiro Reich, os cientistas, assim como fizeram muitos


nazistas que foram julgados no Tribunal de Nuremberg e em outros tribunais
instituídos posteriormente, alegaram que estavam simplesmente cumprindo ordens.
O Dr. Kopp não aceita essas desculpas: “É muito comum hoje se afirmar que
foram os Nacional-Socialistas que obrigaram ou convenceram os médicos alemães
a adotar a genética e a higiene racial. Isso simplesmente não é verdade. Não foram
os médicos que foram convencidos pelos Nacional-Socialistas, foi justamente o

4
Baby Boom (em tradução livre "Explosão de Bebês") é uma definição genérica para crianças
nascidas durante uma explosão demográfica. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Baby_boom.
Acesso em 20/03/2016.
45

contrário”. Já o cidadão Rolf Thurm conta a dramática história de que foi denunciado
aos 16 anos por seu professor às autoridades de saúde genética, pois nasceu com
deformidades nas mãos e nos pés, o que o fazia um grande candidato à
esterilização, reforçando o entendimento de que naquele tempo, conforme o regime
adotado, as decisões eram tomadas por juntas de médicos (juízes para os casos de
saúde), uma verdadeira invasão médica autorizada pelo Estado (BARON, 2008).
Hoje, há a discussão se essas decisões poderiam se tornar mais democráticas,
tendo em vista o melhor para a população (HABERMAS, 2004) e para que o
ocorrido no período nazista não se repita. O chamado Tribunal de Saúde Hereditária
que julgou Rolf em 1937 e o condenou a ser esterilizado era formado por julgadores
médicos, tendo sido o réu acusado também por médicos, o que nos remete a
célebre frase atribuída ao jurista alemão Gustav Radbruch, contemporâneo à
Segunda Guerra Mundial: "Quando se tem um juiz por acusador é preciso ter Deus
como defensor” (RADBRUCH, G. 1878/1949 apud WIKPÉDIA, 2015).
Ainda quanto aos médicos, o partido nazista os transformou em juízes todo-
poderosos, o que facilitou o caminho para alcançar os fins desejados pelo Estado.
Após a reunificação da Alemanha Rolf obteve um laudo atestando que seu
problema não era de cunho hereditário, mas sim uma mutação em um gene.
Hoje a Ciência estuda maneiras de corrigir essas mutações no embrião, então
por que não permitir? Essa é uma discussão que abordaremos mais adiante, mas
voltando ao caso da eugenia nazista, naquele tempo, os nazistas estavam
licenciando a prática dos médicos:

“Eles acreditavam que os fins justificavam os meios e que


conseguiriam melhorar a saúde genética da raça alemã tal como a
entendiam. Logo, estavam dispostos a ignorar quaisquer evidências,
e havia muitas de que o que estavam fazendo não tinha nenhuma
base científica” (BARON, 2008).

Não podemos confundir o que foi feito no passado com o que é possível
realizar hoje. Naquela época, mesmo com os cruzamentos selecionados, não foi
possível evitar o nascimento de pessoas com deficiências, o que levou o Estado a
recorrer a outra proposta dos eugenistas alemães, como é narrado no referido
documentário: “A ideia de que, em nome da perfeição genética, era certo matar
doentes e deficientes” (BARON, 2008). O que ocorreu na Alemanha foi um genocídio
46

dos próprios alemães que pode servir sim como um exemplo que jamais deve ser
seguido ou mesmo esquecido, porém, não podemos ficar presos ao passado e
sustentar essa resistência no que toca a questão de se abordar o tema eugenia.
Falar sobre eugenia é planejar o futuro da nossa espécie e isso não pode ser
confundido como indícios de um possível retorno às atrocidades nazistas.
Realizadas as reflexões a respeito do que apresenta Michael Sandel em sua
obra, iremos adentrar ao tema quanto à eugenia praticada na URSS, em Cingapura
e na China.

1.6 . URSS, Cingapura e China.

A URSS manteve um comportamento bastante intenso de práticas


eugênicas durante a Segunda Guerra Mundial, de maneira que é preciso atentar
para o fato de que “ [...] o conflito também deve ser entendido como uma experiência
humana que mudou a vida de centenas de milhões de pessoas, entre elas muitas
que jamais viram um campo de batalha” (HASTINGS, 2012, p. 516).
Na mesma linha, o historiador continua sua exposição sobre as atrocidades
de Stalin:
Entre outras vítimas dos soviéticos, encontrava-se 1,5 milhão de
poloneses deportados para o exílio siberiano ou para o gulag em
1940 e em 1941, em apoio às políticas de limpeza étnica de Stalin;
pelo menos 350 mil morreram de inanição ou dizimados por
enfermidades, e outros trinta mil foram executadas (HASTINGS,
2012, p. 516).

Para o autor, restou configurado que não só a Alemanha nazista foi a favor e
se utilizou de práticas eugênicas, e isso é enfatizado pelo estudioso em comento
quando afirma que:

[...] os homens que exerciam autoridade sob os regimes totalitários,


incluindo enfaticamente a União soviética, sabiam-se livres de todas
as limitações e salvaguardas relativas à santidade da vida humana,
desde que os assassinatos promovessem os objetivos do regime a
que serviam (HASTINGS, 2012, p. 521).

Como vimos a URSS teve participação marcante no que tange ao tema eugenia.
Seguiremos agora com a explanação do que ocorreu em Cingapura referente ao
assunto.
47

A eugenia continuou sendo praticada em diversos países, ocorre que de


forma mais velada. Em março de 2015, Lee Kuan Yew o ditador eugenista do nosso
tempo, que se perpetuou no poder em Cingapura durante 31 anos, faleceu aos 91
anos de idade. Segundo a mídia, ele teria conseguido alavancar o desenvolvimento
de seu país proporcionando prosperidade e segurança à população através de
vários atos, entre eles medidas eugênicas:

Lee Kuan Yew ficou conhecido com o pai fundador de Cingapura.


Durante os 31 anos em que esteve no poder, ele ajudou a
transformar uma cidade portuária sem recursos naturais em um país
próspero e seguro. Porém, também foi um temido ditador que
controlava a imprensa, manifestações públicas e a oposição, além de
estabelecer medidas extremas, como investir para que as mentes
mais brilhantes do país se casassem e gerassem bebês mais
inteligentes (RECORD, 2017).

É importante salientar que, no caso de Cingapura, como menciona Sandel


(2013), a eugenia teria tomado um ar de livre mercado, de maneira que, ao invés de
implantar um projeto eugênico através da violência e coerção, o ditador procurou
incentivar a população considerada menos notável a praticar esterilização e, por
outro lado, proporcionou condições de procriação de notáveis promovendo algo
como “passeios românticos de barcos para os privilegiados”, o que, segundo o autor,
poderia ser considerado por alguns como “um programa coletivista que se intromete
em escolhas reprodutivas que as pessoas deveriam ser livres para fazer por si
mesmas, sem a mão pesada do Estado” (SANDEL, 2013, p. 83).
Nesse caso, houve, sem a menor dúvida, a prática de eugenia por um viés de
projeto político, mesmo que não tenha ocorrido violência ou coação de forma direta,
pois o que configura tal projeto é a vontade de se realizar e não os meios
empregados.
No mesmo contexto, a China tem avançado cada vez mais em relação a
pesquisas que visam o melhoramento humano, uma espécie de eugenia que
preocupa a comunidade científica, sobretudo os mais ligados à ética e bioética.
Muito tem sido veiculado pela mídia sobre supostos projetos eugênicos
oriundos do Estado chinês, nesse aspecto se manifesta a historiadora Pietra Diwan:
48

A China, por outro lado, tem fama de praticar a eugenia atualmente.


Uma lei de 1995, que atinge 70% da população chinesa, prevê
exames pré-nupciais para o controle de doenças genéticas,
infecciosas ou mentais. Quando os médicos consideram inapropriada
a procriação do casal ou é detectada alguma doença pré-natal no
feto, são receitados o aborto e a esterilização voluntária. No entanto,
a eugenia na China não é uma novidade. Desde os tempos imperiais
há uma preocupação com a descendência da raça chinesa. Para
essa cultura milenar, os ancestrais são sempre os responsáveis
pelas gerações futuras, e conceber uma criança com qualquer tipo
de deficiência significa uma falha moral de seus pais, o que é
inconcebível nesse modelo de sociedade (DIWAN, 2007).

Houve, todavia, um expansionismo de projetos eugênicos por toda a Ásia, de


maneira que englobou também o Japão e outros países importantes: “A eugenia
tampouco ficou restrita às nações que seriam o berço da “raça branca”. E,
complementa Diwan: “Na Ásia, China e Japão desenvolveram exemplos práticos e
recentes de tentativas de aperfeiçoamento racial” (DIWAN. 2007). No Japão, por
exemplo, ocorreram práticas de eugenia relacionadas aos futuros samurais e
posteriormente, já em 1948, foram tomadas medidas inspiradas no modelo
eugênico alemão:

Durante o período Meiji (1868-1912), o Japão implantou técnicas de


melhoramento da raça através de um programa para a produção de
futuros samurais. Mais tarde, em 1948, a Eugenic Protection Law (Lei
de Proteção Eugênica), formulada sob inspiração da lei de
esterilização alemã de 1933, foi instaurada no Japão sob ocupação
americana no pós-guerra a fim de prevenir a reprodução dos
“indesejados”, incluindo pessoas com doenças infecciosas (DIWAN.
2007).

Tendo sido esclarecidos os pontos relacionados à práticas eugênicas na


URSS, em Cingapura e na China como projeto de eugenia estatal, pretendemos
agora dissertar sobre a eugenia como projeto individual, mas para tanto, iremos
explicar a ética e bioética enquanto subáreas da filosofia como base introdutória.
49

2. A EUGENIA COMO PROJETO INDIVIDUAL.

2.1 Ética e bioética enquanto subáreas da filosofia

Advinda do grego ethos, ética significa aquilo que advém de um costume


posterior ou característica do portador do caráter. A ética deve nortear princípios que
possam ser universais e abrangentes a todos. Segundo o vocabulário técnico e
crítico da Filosofia, é a “ciência que tem por objeto o juízo de apreciação, enquanto
este se aplica à distinção entre o bem e o mal”, em outras palavras, a ética é
considerada como o ramo da filosofia que versa sobre os assuntos relacionados à
moral (LALANDE, 1999, p. 348).
Enquanto alguns estudiosos explicam a Moral como a ciência dos
costumes, ou seja, como sendo algo anterior à própria sociedade e outros definem a
Ética como ciência teórica e reflexiva, concluindo quanto à Moral como sendo
eminentemente prática, consideramos em princípio que neste trabalho as palavras,
ética e moral serão tratadas com o mesmo significado, como propõe Frankena:

No caso, “ético” e “moral” não equivalem a “moralmente certo” ou


“moralmente bom”; correspondem a “relativo à moralidade” e opõem-
se a “não moral” e “não ético” e não a “imoral” e “antiético”
(FRANKENA, 1969, p.18).

A ética é definida pelo referido autor como sendo um ramo da filosofia: “É a


filosofia moral, ou pensamento filosófico acerca da moralidade, dos problemas
morais e dos juízos morais” (FRANKENA, 1969, p.16). Nesse meandro, a ética
busca o aprimoramento dos atos humanos, do modus vivendi, tanto no que toca a
resolução de problemas do cotidiano como nas próprias relações entre os homens.
Sendo assim, em todos os momentos e lugares, em todas as relações deverá
haver a ética para conduzir os caminhos que serão trilhados, de modo que, não se
pode pensar na ética sem que haja relações humanas (como no caso de um
50

náufrago solitário em uma ilha), pois a ética está para as relações de um ser
humano para com o outro, podendo ser somente assim aferida.
Tendo estabelecido esse critério, a “empresa social” denominada moralidade
engloba toda a coletividade, não sendo compreendida com caráter pessoal ou
relacionada somente a um indivíduo, mas em caráter geral, ou seja, incluindo toda a
sociedade.
Cabe ressaltar que não se pode confundir moral com direito (erro muito
comum, principalmente perpetrado por leigos ao julgarem fatos com base nas
informações midiáticas), sendo a ética, também de forma errada, confundida até
mesmo com critérios de convenção ou etiqueta.
Sobre essa linha tênue existente entre direito, moral e convenção ou etiqueta:

[...] a convenção não se ocupa de assuntos de importância social tão


grande quanto é a dos assuntos que interessam ao direito ou à
moralidade; e, aparentemente, repousa, em grande parte, em
considerações que dizem respeito a aparências, a gosto, a
conveniência. [...] a moralidade se distingue da convenção por certos
traços que partilha com o direito; e distingue-se do direito (com o qual
se confunde, por exemplo, ao proibir o homicídio) por certos traços
que partilha com a convenção – por não ser, exemplificando, criada
ou suscetível de alteração em virtude de algo que se assemelhe a
um ato exceções, não a força física ou a ameaça de usá-la, mas,
quando muito, o louvor e o vitupério e outras formas de expressar
favor ou desfavor que são, dominantemente, verbais (FRANKENA.
1969, p. 20).

Nesse ínterim, cabe antes de tudo, uma explicação sobre a diferença entre
valor e norma. Podemos afirmar que os valores possuem um conteúdo axiológico,
ou seja, denotam uma preferência pelo que é bom, pelo que é melhor. No prisma do
valor não se expressa o que deve ser, não se expressa, a título de exemplo, um
modelo de comportamento que deve ser adotado, mas sim o que é preferível. Valor
é algo altamente indeterminado e subjetivo, visto que está intimamente ligado a
conceitos em torno de discussões sobre o que é bom, o que é mau, o que é melhor
ou pior, o que é belo ou horrendo, o que é justo ou injusto. As normas
consubstanciam em sua essência os conceitos, que não são axiológicos, mas sim
deontológicos. Dito isso cabe frisar que as normas não possuem a presteza de
caracterizar preferências, todavia caracterizam um comportamento que deve ser
adotado através de princípios e regras. É justamente nesse ponto que reside o limite
51

do que pode ou não ser considerado como um ato moralmente aceito ou um ato que
transgrida a moralidade.
A bioética (descendente da ética médica) é mais antiga do que Hipócrates,
pois desde os tempos áureos da Babilônia (aproximadamente 1750 a.C), já havia
passado a integrar um dos mais conhecidos diplomas legais da época, o Código de
Hamurabi, que chegou até mesmo determinar normas de conduta aos profissionais
da saúde no sentido de estipular que se um médico falhasse em uma operação de
um membro da nobreza, ou melhor dizendo, se seus atos resultassem em morte ou
perda de um olho, por exemplo, a mão do médico deveria ser amputada como
punição (PRITCHARD, J.B apud KUHSE. H and SINGER. P, 2009, p 4)5.
Além da contemplação da bioética em textos legais, os códigos éticos (o que
mais nos importa nesse trabalho) já eram expressos oralmente em forma de
juramentos, como foi caso do Juramento de Hipócrates que estipulava os princípios
de como oferecer ajuda ao paciente (beneficência), ou mesmo não prejudicá-lo (não
maleficência), que seriam as diretrizes de como o médico deveria atuar para
beneficiar seus assistidos e procurar prevenir danos (PRITCHARD, J.B apud
KUHSE. H and SINGER. P, 2009, p. 5) 6.
A bioética vem se aprimorando cada vez mais ao longo dos séculos, e mais
ainda nas últimas décadas, a partir da descoberta do DNA, considerando o teor do
próprio juramento de Hipócrates e a evolução das ciências biomédicas, bem como
dos códigos de ética e disciplina mais avançados. Sendo assim, a bioética versa
sobre a responsabilidade moral dos médicos, biólogos e de todos os profissionais
que lidam com a vida em suas pesquisas teóricas e principalmente nas aplicações
práticas dessas pesquisas, ou seja, nas condutas dos profissionais que lidam com a
integridade física, saúde e com a vida (o mais importante), visando reforçar a
relevância dos princípios morais para a atuação desses profissionais.
Hoje é possível afirmar sem medo de errar que o enfoque inicial sobre o que
se definiu como bioética evoluiu a ponto de alcançar a microbioética, que substitui a
ética médica tradicional tratando da relação entre médico e paciente, e ainda, a

5
“It stipulates that if a doctor uses a bronze lancet to perform a major operation on a member of the nobility
that results in death or leads to the loss of an eye, the doctor´s hand will be cut off”.
6
“the oath establishes the principles of beneficence and nonmaleficence, that is, that doctors must act as to
benefit their patients and seek to prevent harm”.
52

macrobioética, que trata de questões ecológicas ligadas à sobrevivência da


humanidade (DINIZ, 2006, p.13.). De maneira ampla, e no mesmo sentido, leciona
(GARRAFA, 1997, p.128) demonstrando que para a doutrina mais moderna é
possível contemplarmos o questionamento da manipulação da vida sob diversos
prismas, a saber: o biotecnológico, político, econômico, social, jurídico e moral, de
modo que cumpre à bioética abordar todos estes enfoques de forma multidisciplinar,
em respeito à liberdade e ao pluralismo atuais.

2.2 O Relatório de Belmont e seus princípios

Fatos que culminaram em práticas consideradas desumanas durante a


Segunda Guerra Mundial, principalmente as práticas atribuídas médico alemão Dr.
Mengele e também práticas ocorridas após o conflito fizeram com que o mundo
ocidental se visse diante da necessidade de estabelecer parâmetros para a
realização de pesquisas, principalmente as que envolvem seres humanos. Assim,
em 1978 surgiu o Relatório de Belmont: Princípios e Diretrizes Éticas para a
Proteção de Pacientes Humanos em Pesquisas, elaborado pelos Estados Unidos
por meio de uma comissão especializada. Tais afirmações podem ser conferidas a
partir da manifestação de Black:

Mengele era responsável pela seleção das crianças gêmeas. Os


gêmeos tinham mais valor para os eugenistas nazistas pela razão de
serem geneticamente idênticos, o que os tornavam ideais para
experimentos genéticos, pois um serviria para controle e outro para
testes, de forma a se ter uma comparação dos resultados. As
crianças gêmeas eram, diferentemente dos outros prisioneiros, bem
alimentadas e bem tratadas, para que ficassem em forma para os
testes a que seriam submetidas. Depois, eram submetidas a
procedimentos dolorosos e degradantes. A maioria delas era
assassinada logo depois de terminadas as experiências, para que
fossem dissecadas minuciosamente (Black, 2003, p. 538).

Outro grande fato motivador da criação do referido relatório teria ocorrido nos
Estados Unidos, como explica Gomes:

[...] o Estudo Tuskgee sobre Sífilis, no qual negros em Macon City,


Alabama, não receberam tratamento para sífilis sendo enganados
por médicos do Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos de
1932 a 1972 foi um fato que marcou e escandalizou não só a
53

comunidade científica como toda a sociedade. Tal fato foi noticiado


pelo New York Times como "o experimento não terapêutico mais
prolongado em seres humanos da história médica (GOMES, 2016).

Desse modo, existe na Bioética, assim como em todos os ramos e subáreas


mais importantes da filosofia, um conjunto de princípios baseados no Relatório
Belmont de 1978, tendo em vista que o relatório pretendeu nortear os princípios
éticos considerados básicos para a pesquisa biomédica com seres humanos, sendo
eles: a) o princípio do respeito às pessoas; b) o princípio da beneficência; c) o
princípio da justiça (FRANCO, 2016).
No que toca o princípio de respeito às pessoas ou autonomia, há na literatura
especializada uma posição marcante:

A autonomia, então, diz respeito ao poder de decidir sobre si mesmo


e preconiza que a liberdade de cada ser humano deve ser
resguardada. Cabe aos profissionais da saúde oferecer as
informações técnicas necessárias para orientar as decisões do
paciente, sem utilização de formas de influência ou manipulação,
para que possa participar das decisões sobre o cuidado e assistência
à sua saúde, isto é, ter respeito pelo ser humano e seus direitos à
dignidade, à privacidade e à liberdade (KOERICH, 2005, p. 106-10).

Quanto ao princípio da beneficência, há os que entendem que se trata de


mais que um simples ato de benevolência ou bondade, é geralmente um ato
associado à caridade com as pessoas, ao passo que está associado a um
sentimento muito forte de compaixão e de intenção de não causar danos a outrem,
ou mesmo que sendo estes danos inevitáveis, que sejam pelo menos minimizados e
sempre em busca do máximo de benefícios.
O princípio da justiça é nada mais nada menos do que a ponderação entre
benefícios e malefícios diante de cada caso concreto, a permitir a garantia de um
tratamento justo. Este princípio é uma complementação que foi possível com um
acréscimo realizado pelo livro Principles of Biomedical Ethics dos pesquisadores T.
Beauchamp & J. Childress (1979), e se traduz como referência da corrente dos
estudos de bioética denominada principialismo, oriunda da especificação da ética
contida no Relatório Belmont. Esse princípio prega que “ao evitar o dano intencional
o indivíduo já está, na realidade, visando o bem do outro” (GOLDIM, 1997).
54

A partir dos princípios ora explicados, já é possível falarmos sobre o


liberalismo e o libertarianismo.

2.3 Do liberalismo para o libertarianismo

John Locke, considerado por muitos como o pai do liberalismo, versou sobre
a liberdade como originalmente limitada pela lei moral, mas ao que nos parece,
levando-se em consideração que ele entendia que o homem teria recebido de Deus
a razão, com a finalidade de que através dela pudesse escolher o melhor para si,
esse limite estaria sempre no cume das deliberações mais importantes da vida.
Se pudéssemos considerar o libertarianismo como uma exacerbação do
liberalismo a conferir importância somente ao Estado Civil e negligenciar a
observância da lei da natureza7, seria lícito partir da premissa de que ninguém teria
direito algum sobre o corpo do ser humano, exceto ele mesmo, o que traduziria uma
espécie de mandamento no sentido de transcender ao outro no que toca ao respeito
à liberdade, autonomia, segurança, integridade física, saúde e vida, ou seja, se
todos têm como restrição qualquer direito sobre o corpo alheio, essa restrição
deveria ser maior quanto às deliberações acerca de atributos que possam ou não
ser adicionados a um embrião ou feto.
Ocorre que para Locke o ser humano teria o dever moral de fazer o uso da
razão em seu próprio benefício, como consta na assertiva: “Deus, que deu o mundo
aos homens em comum, deu-lhes também a razão, a fim de que dela fizessem uso
para maior benefício e conveniência da vida” (LOCKE, 1998, p. 406).
Considerando as palavras de Locke sobre o que seria um “estado de perfeita
liberdade para regular suas ações e dispor de suas posses e pessoas do modo
como julgarem acertado”, é possível considerar que essa passagem teria o cunho de
transmitir a ideia de que pessoas devem ser respeitadas, mas os bens podem ser
dispostos, mesmo que criteriosamente, o que significa um estado de liberdade, mas
como ele mesmo se manifestou, “não de licenciosidade” (LOCKE, 1998, p.382).

7
Essa tese de que haveria uma exacerbação ou deturpação do liberalismo traduzida por libertarianismo é
defendida pelo professor Julio Esteves (no prelo).
55

Por outro lado, o pensador parece ter deixado claro que há na lei natural uma
igualdade estabelecida entre os seres da mesma espécie, apontando que não
deveria haver subordinação ou sujeição de qualquer sorte entre eles, a não ser que
fosse o caso dessa subordinação ou sujeição surgir de uma emanação (ordem)
divina:

[...] sendo absolutamente evidente que criaturas da mesma espécie e


posição, promiscuamente nascidas para todas as mesmas
faculdades, devam ser também iguais umas às outras, sem
subordinação ou sujeição, a menos que o senhor e amo de todas
elas, mediante qualquer declaração manifesta de sua vontade,
colocasse uma acima de outra e lhe conferisse, por evidente e clara
indicação, um direito indubitável ao domínio e à soberania (LOCKE,
1998, p. 382).

Nos dias atuais, esse soberano que seria concebido como Deus para Locke,
poderia ser comparado ao Estado (como já foi demonstrado em determinados
momentos da história) ou até mesmo com os pais projetistas, que colocam sua
vontade acima da autonomia de sua prole e, nesse sentido, Locke salienta que o
estado de liberdade não pode ser confundido com estado de licenciosidade, o que
parece estar de acordo com Thomas Hobbes, que reconhece a importância das leis
da honra como limites para controlar a violência entre os homens. (HOBBES, 2014,
p. 139).
Esse limite (um estado de não-licenciosidade), algo como uma lei moral,
parece prever que o homem não teria a liberdade de autodestruir-se, nem de
destruir qualquer criatura que estivesse sobre sua posse, o que analogamente
permitiria uma interpretação no sentido de proteger filhos de pais projetistas,
conforme a seguir: “Ninguém deveria prejudicar a outrem em sua vida, saúde,
liberdade ou posses” (LOCKE, 1998, p. 384).
Na mesma linha de pensamento, está prevista a proteção do homem contra si
mesmo ou contra outros homens para garantir que nenhum deles possa ser meio
para a satisfação dos anseios de outrem:

[...] não se pode presumir subordinação alguma entre nós que nos
possa autorizar a destruirmos uns aos outros, como se fôssemos
feitos para o uso (como meios – tradução nossa) uns dos outros,
assim como as classes inferiores de criaturas são para o nosso uso.
(LOCKE, 1998, p. 385).
56

Assim, Locke parecia acreditar que o ser humano não poderia e não deveria
ser utilizado como meio para atingir determinados fins, como a “perfeição”, por
exemplo, mas isso não implica em uma limitação que possa ser danosa ou injusta a
ponto de ter de deixar o homem, de contemplar em seu benefício as maravilhas que
a ciência moderna pode oferecer, sendo importante ressaltar esse ponto no que toca
a doenças que já podem e ou estão em iminência de serem detectadas no embrião,
podendo ser extirpadas através da intervenção direta de geneticistas. Entendemos
diante dos argumentos apresentados, que esse é o correto a se fazer, tendo em
vista que todos nós temos um dever diante de nós mesmos e em última análise
perante toda humanidade, que se traduz na autodeterminação e busca pelo
aperfeiçoamento pessoal, de modo que, retirar de um filho o sofrimento que uma
enfermidade certamente iria lhe impor durante toda a sua vida parece ser uma
escolha correta e que não viria a ferir a moral, pois em casos tais não se estaria
atribuindo valores no sentido de afirmar que somente determinado modo ou tipo de
vida mereceria ou valeria a pena de ser vivida. Em outras palavras, ao escolher
poupar o sofrimento de um ser humano que virá ao mundo não se estaria
determinando se o sujeito seria alto ou baixo, se teria olhos claros ou escuros, ou
mesmo se a vida daquele embrião merece ou não ser vivida; mas sim, deliberando
algo que traria a possibilidade de uma vida melhor, a saber, com menos sofrimentos
e limitações, algo em favor de uma vida mais próxima do que seria uma vida plena.
A concepção de Locke no sentido de que nenhum homem deve existir como
meio para os anseios de outro, mas que o uso da razão deve ser aplicado para o
bem da humanidade, afiança a tese que propomos e inclusive acentua que:
“Ninguém deveria prejudicar a outrem em sua vida, saúde, liberdade ou posses
(LOCKE, 1998, p. 385). Nesse aspecto é possível concluir que infringir ao embrião
ou feto qualquer tipo de dano ou mesmo deixar com que um dano já identificado
venha a permanecer por toda sua vida seria negligenciar à lei moral:

[...] cada um deve, tanto quanto puder preservar o resto da


humanidade, e não pode, a não ser que seja para fazer justiça a um
infrator, tirar ou prejudicar a vida ou o que favorece a preservação da
vida, saúde, integridade ou bens de outrem (LOCKE, 1998, p. 385).
57

Em outro aspecto, na obra de Locke, há uma passagem que parece


apresentar uma grande contradição e que pode ter propiciado interpretações
tendenciosas a ideais extremos. Trata-se da máxima de que “cada homem tem uma
propriedade em sua própria pessoa”, que, ao nosso ver, representa uma contradição
do próprio autor no que concerne todo o seu entendimento apresentado até então.
Para nós, essa passagem poderia ser encarada como uma das origens do
libertarianismo através de interpretações exacerbadas que ocasionaria uma
concepção de liberdade extrema, porém danosa. Entendemos que a melhor saída
para esse caso seria a relativização ou mesmo o esquecimento dessa parte da obra
de Locke, pelo menos quando se tratar, por exemplo, da prática da eugenia
negativa, pois esta, como já mencionamos, deveria ser aplicada em benefício do
homem, mesmo que para esta aplicação haja critérios rigorosos a serem observados
(o que defendemos por medida de segurança e proteção).
Para o filósofo norte-americano Michael Sandel, a questão que diz respeito
aos pais que projetam seus filhos é exposta de forma a ser encarada e bem definida
como pais que consideram sua prole como extensão deles mesmos, ou seja, como
parte de seu corpo, então, por que não comparar a situação apresentada com a
questão de um libertário alegar o direito de fazer o que bem entende com o próprio
corpo. Se para a lei moral, ao sujeito não é licenciado o direito de infringir dano a si
próprio, quanto mais ao que diz respeito ao embrião.
Em uma análise atual, porém não muito distante das lições e pensamentos de
Locke, Sandel em Justiça – O que é fazer a coisa certa tratou do libertarianismo
como uma corrente de adeptos ao Estado mínimo, mas de forma bastante
exacerbada e, para tanto, demonstrou três pontos nos quais os libertários se
agarram para tentar formular suas justificativas. Comentaremos os dois primeiros,
que são pertinentes ao nosso tema.
O primeiro argumento seria:

Nenhum paternalismo. Os libertários são contra as leis que protegem


as pessoas contra si mesmas. As leis que tornam obrigatório o uso
de cinto de segurança são um exemplo, bem como as leis relativas
ao uso de capacetes para motociclistas. [...] Desde que não haja
riscos para terceiros e que os pilotos de motos sejam responsáveis
pelas próprias despesas médicas, o Estado não tem o direito de ditar
a que riscos eles podem submeter seu corpo e sua vida (SANDEL,
2013, p. 79).
58

Neste trabalho, tratamos da questão da manipulação genética para fins de


eugenia, tanto em relação aos embriões como ao próprio feto já constituído ou em
formação, pois entendemos que se faz necessária proteção no campo da norma
moral e inclusive da norma legal (como já possuem no ordenamento jurídico
brasileiro, por exemplo).
Portanto, o argumento apresentado acima por Sandel como sendo uma tese
dos libertários não pode prosperar no que toca as questões abordadas neste
trabalho, como a manipulação genética nos casos de eugenia estatal e
principalmente da eugenia realizada por particulares (sem a intervenção estatal).
O segundo argumento dos libertários apresentado pelo referido filósofo seria o
seguinte: “Nenhuma legislação sobre a moral. Os libertários são contra o uso da
força coercitiva da lei para promover noções de virtude ou para expressar as
convicções morais da maioria” (SANDEL, 2013, p. 79).
Esse parece ser mais um ponto que extrapola a noção de Estado Civil, pois
caracteriza a atitude de um libertário como uma afronta ao Estado e aos
concidadãos, um comportamento que denota uma espécie de recaída ao Estado de
Natureza, o que seria uma verdadeira declaração de que o sujeito decide agir na
marginalidade desrespeitando as leis do ordenamento jurídico e a norma moral da
comunidade em que vive.
Sandel apresentou exemplos e inclusive casos concretos que poderiam ser
utilizados para tentar afiançar a tese de que seríamos donos de nós mesmos, mas,
no mesmo texto tentou dissuadir o leitor a adotar os princípios libertários em sua
vida utilizando exemplos contrários a seu convite, um estilo literário que nos convida
aos questionamentos mais profundos.
Além de ter explicado o libertarianismo conceitualmente e através de
exemplos, Sandel também mencionou dois casos concretos: o primeiro foi uma
situação envolvendo um prisioneiro americano que desejava doar seu único rim a
uma filha, mas que teve seu pedido denegado pela comissão de ética do hospital. O
outro caso é ainda mais macabro. Cuida-se de um homem alemão que
deliberadamente tratou com outro para que o matasse e logo após o comesse. Todo
o planejado foi consumado e o “Canibal de Rotenburg”, como ficou conhecido foi
condenado pela justiça alemã.
59

Nesses dois casos, há uma certa diferença que deve ser apontada, pois no
primeiro o sujeito queria doar o único rim por um motivo nobre, mesmo que isso
fosse causar sua morte, enquanto que no segundo caso, os motivos foram
basicamente a deliberação da vontade de morrer e ser comido de maneira egoística
e exacerbada, ou seja, um típico libertário.
Partindo de uma explicação do liberalismo para o libertarianismo, tentamos
esclarecer o ponto de vista desses dois ramos da filosofia política. A partir de agora
daremos sequencia aos estudos abordando a questão da vida boa e o
perfeccionismo.

2.4 A vida boa e o perfeccionismo

O conceito de perfeição é algo muito subjetivo, visto que há de se ter um


parâmetro para aferir o que é perfeito, o que torna extremamente difícil decidir a
partir de qual concepção devemos buscar a perfeição ou mesmo julgar o que
poderia ser nosso guia para a análise desta. Não seria razoável que levássemos em
conta o entendimento de um só filósofo e deixássemos todos os outros
posicionamentos de outros pensadores de lado para alcançar o que seria o conceito
absoluto de perfeição.
Alguns filósofos que se enquadram na categoria de perfeccionistas,
desenvolveram questionamentos sobre o perfeccionismo (uma forma de
consequencialismo) como, por exemplo, Platão (1973.), que nos leva a refletir sobre
quais são as qualidades ideais para um guardião; se seriam elas as mesmas de um
well ordered dog, ou seja, de um cão com pedigree e, ainda, se o guardião perfeito
deveria, a final de contas, ser um filósofo. Os questionamentos platônicos devem, ao
nosso ver, ser examinados com muita cautela, sob pena de cairmos em um
relativismo no qual cada um poderá produzir o que for perfeito aos seus olhos e,
justamente por isso, neste subcapítulo, pretendemos explorar o conceito de
perfeccionismo, que irá nos direcionar à compreensão dos pontos mais importantes
deste trabalho.
Uma definição bastante precisa do que seria o perfeccionismo foi apresentada
pelo filósofo neoaristotélico Thomas Hurka:
60

Essa teoria moral começa com uma explicação sobre a vida boa, ou
o desejo intrínseco de uma vida desejável. E caracteriza essa vida
em um caminho distinto. Certas propriedades, segundo a teoria,
constituem a natureza humana ou pertencem definitivamente à
humanidade – elas fazem dos humanos. A vida boa, como dizem,
desenvolve essas propriedades a níveis altos ou realizam o que é
central para a natureza humana. Diferentes versões da teoria podem
divergir sobre qual relevância tais propriedades possuem e também
divergir sobre o conteúdo da vida boa. Mas eles compartilham a ideia
fundamental que o que é bom, em última análise, é o
desenvolvimento da natureza humana (HURKA, 1993, p.3).

Outra definição satisfatória do perfeccionismo na filosofia moral e política é a


seguinte:

O perfeccionismo também pode ser entendido como o termo utilizado


para se referir à explicação do que seria uma vida boa, uma narrativa
do que seria estar bem well-being, ou mesmo uma teoria moral com
abordagem política. Historicamente, o perfeccionismo é associado a
teorias éticas que caracterizam o bem humano em termos de
desenvolvimento da natureza humana. Autores diversos como
Aristóteles, Aquinas, Spinoza, Marx e T.H Green são considerados
perfeccionistas nesse sentido (WALL, 2012).

No bojo conceitual do perfeccionismo não poderíamos deixar de apresentar a


definição que consta no Dicionário de Filosofia de Cambridge:

Uma visão ética segundo a qual indivíduos e suas ações são


julgados por um modelo máximo de realização - especificamente, o
degrau do qual se aproximam ideais de “perfeição" estética,
intelectual, emocional ou física. Perfeccionismo deve afastar-se, ou
mesmo prescindir, de modelos de moral convencionais em favor de
modelos baseados no que aparenta ser valores imorais. Esses
valores refletem uma admiração para certos níveis raros de
realizações humanas. Talvez as maiores características desses
modelos sejam a arte e outras formas de criatividade, mas incluem-
se proeminentemente uma variedade de outras atividades e estados
emocionais considerados “nobres”, por exemplo, resistência heroica
em face de grandes sofrimentos (CAMBRIDGE, 1995, p. 659).

Diante de todas as possibilidades existentes no que tange a perfeição, paira o


questionamento muito comum se seria ou não moralmente permissível não desejar a
perfeição, ou melhor dizendo, o aperfeiçoamento humano. Nesse prisma, a partir do
modelo de perfeição adotado (se é que há um modelo mesmo que possa ser
seguramente perseguido) é que seriam determinados os cruzamentos para a
finalidade de se atingir resultados genéticos, o que nos leva a crer que seria
61

necessário um freio, um limite moral para que não fosse desordenadamente possível
a determinação dos pais, e inclusive por parte do Estado, direcionando os filhos
como meios e não como fins em si mesmos, algo como determinar as suas
características físicas (altura, cor dos olhos etc.) e ou habilidades como (velocidade,
inteligência, memória, entre outras).
Segundo o imperativo categórico de Immanuel Kant (1797), o Estado deve se
justificar perante o indivíduo, daí não se admitir medidas eugênicas determinadas
pelo Estado, mas diante da facilidade atual de se praticar eugenia entre particulares,
sem que o próprio Estado venha a ser consultado, nos parece importante
estabelecer limites morais e legais para direcionarem essas práticas.
É claro que devemos também levar em consideração os milhões de seres
humanos que vivem em condições sub-humanas e que não possuem meios de se
expressar diante das autoridades, mas, para parcela significativa da nossa espécie,
as práticas de manipulação genética já estão disponíveis no mercado. Diante disso,
pensando em como estabelecer tais limites, não os financeiros, mas sim os morais,
recorremos aos estudos da ética e da filosofia como um todo para abordar o tema.
Na Idade Antiga, o filósofo grego Hipócrates (460 – 370 a.c.) defendia a
hipótese do Pangênese, segundo o qual cada órgão ou parte do corpo de um ser
vivo produziria uma gêmula que conteria as informações para a formação dessa
parte ou órgão. Essas gêmulas seriam repassadas, segundo o pai da medicina, aos
órgãos reprodutores e transmitidas aos descendentes. Essa parece ter sido a
explicação encontrada por Hipócrates para esclarecer a semelhança entre pais e
filhos.
Posteriormente, Aristóteles (384 – 322 a.c.) posicionou-se como opositor à
ideia da Pangênese, tendo elaborado um tratado que explica a reprodução e a
hereditariedade, no qual descreveu 4 tipos de reprodução: Reprodução sexuada
com cópula, reprodução sexuada sem cópula, reprodução assexuada por
brotamento, geração espontânea ou abiogênese.
Somente após o Século XVII, com as reflexões do médico William Harvey
(1578 – 1657), os conhecimentos sobre a hereditariedade tiveram um avanço
significativo.
O médico concluiu que todo animal se originaria a partir de um ovo produzido
pela fêmea e fertilizado pelo sêmen do macho. Com a aceitação das ideias de
62

Harvey, surgiram duas importantes teorias, a da epigênese e a da pré-formação,


esta pregava que, em um dos gametas, feminino ou masculino, já havia um ser pré-
formado, e aquela dizia que os embriões se formavam nos ovos a partir de uma
matéria indiferenciada e homogênea.
A genética, área da biologia que se dedica ao estudo da hereditariedade,
somente desenvolveu-se como ciência a partir da metade do século XIX, tendo se
destacado pela descoberta dos gametas, pela compreensão dos processos de
divisão celular (mitose e meiose), pelo papel dos cromossomos e dos genes na
transmissão das características hereditárias e, por fim, pela descoberta do DNA.

2.5 A eugenia nas famílias

No ano de 2009, o filósofo norte-americano Michael J. Sandel publicou uma


obra que se tornou relevante mundialmente pela abrangência do seu conteúdo e
pela sua atualidade. O livro Contra a Perfeição: Ética na Era da Engenharia
Genética trouxe à tona fatos recentes, como o caso de um casal que desejava ter
um bebê surdo, e utilizou-se do conhecimento da biomedicina para realizar tal
objetivo. As duas mulheres, que formam um casal, eram acometidas da deficiência
auditiva absoluta, todavia se orgulham dessa característica e sustentam que esse
seria um traço de identidade dos membros da comunidade do orgulho surdo e não
uma deficiência. A propósito, devemos atentar para um ponto importante nessa
história, que é o fato de que temos aqui um caso de autoritarismo, não do Estado,
mas por parte dos indivíduos, o que denota um problema moral relacionado à
violação da autonomia dos que irão nascer, impondo uma limitação proposital
àquele indivíduo.
Os fatos motivaram Sandel a desenvolver algumas questões, como: Será
errado ter um filho surdo de propósito? Se sim, o que torna isso errado – a surdez ou
o propósito?”. E prossegue o filósofo: “Ainda que nenhum prejuízo esteja envolvido,
não existe algo de inquietante no fato de encomendar uma criança com traços
genéticos específicos? (SANDEL, 2013, p.16/17).
Diante do exposto, cabe-nos imaginar os seguintes casos hipotéticos para
que possamos analisar a questão dos limites morais da manipulação genética:
63

1- Casal heterossexual, no qual ambos são pessoas com deficiência


auditiva completa, mas querem ter um filho, porém querem que nasça um filho
surdo. Há algo de imoral nisso?
2- Homem heterossexual que é surdo procura uma mulher surda para a
finalidade de ter uma prole surda. Há algo de imoral nisso? Observem que nesse
caso não houve apelo a uma intervenção genética direta, mas sim o uso do
conhecimento da biologia, como ocorreu no caso verídico apresentado por Sandel.
No caso concreto, o que nos causa um desconforto ou mal estar, como diria
Sandel, é o fato de se trazer um ser com deficiência ao mundo propositadamente,
mas querer melhorar o embrião e trazer um super-bebê ao mundo também poderia
ser considerado como uma forma de quebrar uma barreira moral.
Contra a tese do casal que projetou um filho surdo há várias argumentações
como, por exemplo, a de que uma coisa seria querer ter um filho com características
parecidas com a dos progenitores (biológicos ou mesmo os que adotam), outra coisa
seria querer ter um filho com uma característica que irá lhe impor dificuldades na
vida.
Entre diversos dilemas, o filósofo abarca o fato de que o nosso conhecimento
genético, tão aprimorado nos últimos anos, nos permite manipular nossa própria
natureza, algo no sentido de:

[...] melhorar nossos músculos, nossa memória e nosso humor; para


escolher o sexo, a altura e outras características genéticas de nossos
filhos; para melhorar nossas capacidades física e cognitiva; para nos
tornar melhores do que a encomenda” (SANDEL, 2013, p. 19).

Conforme a opinião do autor, que não é diferente da de muitos especialistas


no assunto, as pretensões humanas face aos seus novos herdeiros não são nada
modestas. Todo esse contexto engloba a ambição de alguns em relação ao futuro,
almejando superatletas, grandes gênios da música e das artes, bem como seres
humanos com capacidades extraordinárias em outras áreas, como para a realização
de cálculos matemáticos de alta complexidade ou capacidade extraordinária de
memorização. Ora, esses casos, segundo Sandel também poderiam configurar a
quebra de uma barreira moral, pois justamente pelo fato de ser violado o princípio da
autonomia, motivo pelo qual, tanto no caso do bebe surdo como no caso de um
super-bebê haveria um problema moral.
64

Outra questão formulada por Sandel abarca uma polêmica antiga na


comunidade científica:

O que há exatamente de errado em gerar um filho que seja um


gêmeo idêntico ao pai ou a mãe, de um irmão mais velho que morreu
tragicamente ou, até mesmo, de um cientista, um atleta ou uma
celebridade admirados? (SANDEL, 2013, p. 20).

A manipulação genética para a melhoria da saúde humana parece, pelo


menos em primeira análise, ser aceita com mais facilidade pela maioria das
pessoas, mas a manipulação com fins de melhoramento ou escolha de
características físicas e ou mentais já é encarada como algo mais aterrorizante.
Parece bastante claro que o que há de problemático nessas pretensões é que
os seres criados não podem ser livres para optar por ser ou não clones, ou gêmeos
idênticos, ou até mesmo super-homens, uma violação à autonomia para a qual
Habermas chamou atenção em O Futuro da Natureza Humana – A Caminho de uma
Eugenia Liberal (2004). A título de exemplo, poderíamos imaginar o caso hipotético
de um sujeito que reclame com seus pais por não terem optado que ele nascesse no
Brasil, por ter nascido no ceio de uma família pobre, baixinho etc. como apresenta
Habermas: “Desse modo, mais tarde os descendentes poderiam pedir satisfação
aos produtores do seu genoma e responsabilizá-los pelas consequências,
indesejáveis do seu ponto de vista, desencadeadas no início orgânico de sua
história de vida” (HABERMAS, 2004, p. 19).
Ainda sobre os super-homens, há também uma preocupação no sentido
contrário, como o espectro que ronda para efeitos de produção de seres inferiores
intelectualmente e em outros aspectos para servirem aos superiores.
Consideremos ainda o caso verídico de dois amigos adolescentes (que
chamarei aqui de F e D), que deixou um impacto imenso em um deles para o resto
da vida:
F e D eram amigos e estudavam na mesma turma da escola, ocorre que F era
não somente mais baixo que D, mas era também de longe o mais baixo da turma.
Com o tempo as coisas foram mudando, naturalmente D parou de crescer, e
F cresceu consideravelmente, ultrapassando em tamanho vários colegas da turma,
inclusive D.
65

O curioso é que o pai de F, um notável médico da cidade, utilizou


medicamentos em seu filho que resultaram em seu crescimento, porém o pai de F
era também médico de D, mas por motivos até hoje não sabidos não prescreveu os
medicamentos para o crescimento de D.
Quando D soube do fato, anos depois, reclamou com sua mãe e com o
doutor, questionando o porquê de ele ter sido preterido quanto à prescrição da
medicação, mas já era tarde, D ficou frustrado para o resto de sua vida.
Como já dito, a imposição propositada face às crianças projetadas tiraria
delas o direito de escolha sobre o futuro, o que Sandel explica na obra citada:
“ferindo sua autonomia e violando seu direito à escolha própria de um projeto de
vida” (SANDEL, 2013, p. 21). Se considerarmos a hipótese de terem eles nascido de
forma natural (sem manipulação genética), mesmo assim não teriam direito de
escolher como seriam ou em determinados casos qual futuro iriam ter, mas se elas
fizessem a seguinte pergunta aos seus pais, quando já estivessem maduras: Por
que vocês não lançaram mão da ciência para fazerem de mim um ser melhor, mais
perfeito, com mais virtudes e menos defeitos? Essa é a questão sobre a qual
Habermas parece se preocupar.
Para Sandel, no mundo acadêmico seria muito comum a resistência de
filósofos, teólogos e teóricos políticos quando se trata desses temas. Ocorre que
para ele é importante questionar:

Será que deveríamos dedicar nossa proficiência tecnológica para


curar as doenças e ajudar as pessoas a recuperarem a saúde ou
será que também deveríamos nos melhorar reconstruindo nossos
corpos e nossas mentes? (SANDEL, 2013, p. 28).

2.6 O triunfo da liberdade contra o determinismo – Aprimoramento é diferente


de perfeição

O filósofo Sandel menciona o filme Gattaca – Experiência genética, de 1997,


no qual é abordado o peso de se conviver com a perfeição. O filme retrata um futuro
próximo que podemos considerar possível diante das descobertas e criações da
ciência moderna, um futuro no qual os pais teriam em sua rotina a prática da
eugenia, testando e escolhendo os embriões de seus filhos, podendo direcioná-los
às características almejadas por eles, como QI, altura, imunidade, sexo e outras.
66

Desse modo, opina o autor: “Existe algo de perturbador no quadro exibido em


Gattaca, mas não é fácil identificar qual é exatamente o problema de testar embriões
para escolher o sexo de nossos filhos” (SANDEL, 2013, p. 33).
É exatamente esse tipo de sentimento que nos convida a filosofar, como
assevera Sandel (2009) em seu livro Justice: what´s the right thing to do? de
maneira a apresentar aos seus leitores como as reflexões morais surgem na vida na
Pólis, como os problemas do dia a dia devem ser pensados e solucionados, como as
relações entre os homens devem ser compreendidas e encaradas sob uma ótica de
responsabilidade que cada um deve tomar para si. Tudo isso indica que os dilemas
morais nos levam a uma busca pela perfeição como seres humanos, lapidando
todos nós no que concerne às questões de justiça, o que é certo ou não fazer,
julgamentos em relação à dignidade do homem, liberdade e em última instância
nossa própria segurança, saúde e vida (SANDEL, 2009 p. 36/39). Tomar decisões e
fazer escolhas sobre o que será de um indivíduo parece mesmo algo perturbador,
mas devemos levar em conta também a superação, autocriação e imaginação, como
é o caso do protagonista do filme que consegue se superar mesmo não sendo
“produto da ciência”.
É nesse sentido que o filme parece apresentar-se como uma espécie de
triunfo da liberdade contra o determinismo, uma vez que possui o viés de
demonstrar que há uma grande discussão antológica sobre o controle de nossa
genética. Questões sobre se esse controle total ou parcial da genética humana
poderia ou não ser considerado como algo bom, por exemplo. Esse questionamento
fica no ar quando o casal protagonista indaga o geneticista se haveria a
possibilidade de deixar pelo menos um espaço para o acaso na geração do segundo
filho on demand.
Seria absurdo pensar que o acaso poderia ser completamente banido de
nossas vidas tendo em vista o conhecimento tecnológico e os avanços que a ciência
já alcançou, mas hoje em dia já é possível deliberar sobre certos aspectos de um
embrião ou mesmo no que toca a uma reprodução humana em laboratório.
Acreditamos que o total controle está longe de acontecer, e mais, podemos
inclusive afirmar que beira o impossível devido à complexidade da nossa espécie.
Quando à manipulação genética, o autor apresenta seu posicionamento,
declarando que o problema, nesses casos, não está somente nos meios
67

empregados, mas também nos fins alcançados pela prática da eugenia, mas admite
que é difícil identificar quais práticas reduzem à humanidade:

É comum dizer que o melhoramento genético, a clonagem e a


engenharia genética ameaçam a dignidade humana. Isso é verdade.
O desafio, porém, é identificar como essas práticas reduzem a nossa
humanidade – ou seja, quais aspectos da liberdade humana ou do
florescimento humano se veem ameaçados (SANDEL, 2013, p.35).

O referido filósofo parece condenar até mesmo a prática eugênica para fins
“desejáveis”, tomando como exemplo o talento musical e aptidão para esportes, e
assevera que mesmo a escolha dos pais por essas qualidades viria a conduzir a
prole a uma escolha de vida determinada, negligenciando a autonomia do indivíduo,
violando o direito de escolha e liberdade daquele ser. Em nossa visão existem,
todavia, melhoramentos almejados por nós que não seriam nada além de benéficos
para nossa espécie, como a eliminação de doenças hereditárias e características
físicas limitadoras, como baixa estatura, obesidade e outras como problemas de
visão. Não veríamos mal algum na utilização dessas práticas, desde que com
critérios rigorosos pautados na bioética e na própria norma jurídica.
Habermas também se posiciona de forma defensiva quanto à possível pratica
da eugenia negativa:

Devemos considerar a possibilidade, categorialmente nova, de


intervir no genoma humano como um aumento de liberdade, que
precisa ser normativamente regulamentado, ou como a
autopermissão para transformações que dependem de preferências
e que não precisam de nenhuma autolimitação? (HABERMAS, 2004,
p. 18).

A resposta de Habermas logo em seguida é justamente visando direcionar o


ordenamento: “Somente quando essa questão fundamental for resolvida em favor da
primeira alternativa é que se poderão discutir os limites de uma eugenia negativa e
inequivocamente voltada à eliminação de males” (HABERMAS, 2004, p. 18).
Acreditamos que já chegou a hora de tratarmos da importância da
regulamentação normativa para avançarmos no aspecto da ciência servir ao ser
humano, ou seja, ser desenvolvida para possibilitar cada vez mais a busca pela
felicidade e plenitude na vida.
68

A título de conceito, cabe mencionar que a eugenia positiva é aquela que visa
agregar características ao embrião, enquanto que a negativa é a que visa retirar do
embrião os genes reputados como “defeituosos”, o que já é possível devido a
galopante evolução de várias esferas da ciência, direciona pesquisadores a crer ser
possível descartar tais características genéticas indesejadas, para que tenhamos
uma vida melhor, o que não se confunde com o projeto embrionário de eugenia
desde os gregos (de cunho militar e dominador), transpassando os pensadores de
séculos posteriores, até o surgimento do Nazismo (também de cunho militar, mas
ideológico racial), sua queda e os dias de hoje.
Em se tratando do lado bom de se pensar a eugenia, são apresentadas por
Sandel questões pensadas por filósofos e pensadores:

Será que nessas condições a seleção do sexo continuaria a ser


repreensível? E se fosse possível escolher não apenas o sexo, a cor
dos olhos e a cor da pele? Além de orientação sexual, QI,
habilidades musicais e aptidão para os esportes? Imagine ainda que
o melhoramento genético de músculos, memória e altura fosse
aperfeiçoado a ponto de ser seguro e colocado à disposição de
todos: Nesse caso deixaria de ser repreensível? (SANDEL, 2013, p.
35).

Nessa linha, pensamos se seria moralmente correto melhorar a espécie


humana através da engenharia genética, tanto no que toca a prática da eugenia
negativa como também na positiva, mas sempre acentuando que o problema atual
difere da proposta de Platão, uma vez que hoje esse projeto eugênico pode ser uma
campanha de particulares e não do Estado. Ocorre que o fato de tanto o projeto de
uma cidade ideal com governantes selecionados proposto por Platão, quanto os
novos projetos de melhoramento da espécie humana caem sempre no mesmo
problema moral, qual seja, o de se estabelecer qual seria uma vida digna de ser
vivida.
No que toca a questão da eugenia no âmbito privado, fica difícil manter um
controle, pois não raras vezes é impossível o acesso ao que as famílias fazem em
suas vidas privadas. Indagamos também se seria possível realizar esse feito sem
infringir os limites morais e pugnamos pela elaboração de normas que sirvam para
orientas tais práticas, pois o ser humano pode ainda não estar preparado para a
realização da intervenção nos genes sem que desrespeite as regras éticas, para não
69

falarmos dos direitos humanos e das normas éticas que protegem a vida, que seriam
também violados se tais práticas fossem realizadas de maneira desmensurada.

2.7 Os Britânicos e os chineses

Nos dois últimos dois anos em que nos dedicamos a este trabalho de
pesquisa (2015/2016), foram veiculadas na mídia diversas notícias, matérias e
reportagens, bem como artigos científicos por todo o mundo, representando
verdadeiro “boom” sobre o tema manipulação genética. Nas últimas décadas a
humanidade passou a se preocupar cada vez mais com esse assunto, pois parece
que essa realidade está cada vez mais próxima das famílias dos países mais
desenvolvidos, e nesse sentido, a Grã-Bretanha e a China parecem estar à frente
nessas novas pesquisas, apresentando novidades a cada dia como numa corrida
armamentista, de maneira que, desenvolveremos a seguir as informações e críticas
a respeito dessas novidades científicas.
Em muitos aspectos já é possível afirmar que superamos a barreira do
humano, como, por exemplo, a informação que foi publicada em 08 de março de
2015, que dizia: “Decisão da Grã-Bretanha de permitir a geração de embriões com
DNAs de três pessoas é saudada pelos defensores do transumanismo, que propõem
romper os limites impostos ao homem por sua biologia” (ROSA, 2015, p. 1). A
matéria escrita por Gulherme Rosa apresentou uma nova possibilidade de geração
de seres humanos. Segundo o autor, “o objetivo de deixar que mães com mutações
consideradas maléficas em seu DNA mitocondrial não as transmitam para o filho”
(ROSA, 2015, p. 1).
Esse procedimento dá origem aos transumanos, que por lei já podem ser
contemplados na Grã-Bretanha. Os defensores do transumanismo pregam que esse
avanço deveria ser utilizado em diversas esferas da ciência como, por exemplo, na
neurociência, nanotecnologia e na própria genética para fins de ultrapassarmos os
limites impostos ao ser humano pela natureza, e isso é no mínimo preocupante.
Com todo esse avanço científico e com a aprovação do legislativo, a Grã-
Bretanha, além de ter se tornado o primeiro país a permitir a manipulação genética
em células germinais humanas, o sociólogo Steve Fuller nos recorda que: “A Grã-
70

Bretanha também foi o primeiro país a introduzir a fertilização in vitro em 1979. Essa
decisão é apenas outro passo desse processo" (ROSA, 2015, p. 1).
Os britânicos continuaram suas conquistas nas pesquisas, de modo que, em
setembro de 2015, foi divulgada a seguinte notícia:

Apenas alguns meses depois de cientistas chineses causarem furor


internacional ao dizer que tinham modificado geneticamente
embriões humanos, uma cientista do Instituto Francis Crick, de
Londres, pediu ao órgão regulador de fertilidade do governo britânico
licença para realizar experimentos semelhantes (REUTERS, 2016).

Ao tempo da referida notícia a cientista Kathy Niakan declarou ao mundo que


não estava intencionada em realizar quaisquer alterações em embriões para fins de
reprodução humana, mas sim para conhecer melhor o processo de desenvolvimento
de um embrião humano saudável. A pesquisadora revelou ainda na mesma
oportunidade que "Esse conhecimento pode melhorar o desenvolvimento do embrião
após a fertilização in vitro e pode proporcionar melhores tratamentos clínicos para a
infertilidade” (REUTERS, 2016).
Em abril do mesmo ano, poucos meses antes do avanço britânico, a
manchete que chocou o mundo reproduziu que: “Pesquisadores chineses usaram
técnica de edição genética para alterar uma parte do DNA que causa doenças
hereditárias” (VEJA, 2015).
Dessa vez o mundo ficou mesmo chocado, pois, diante da nova técnica
apresentada pelos cientistas, tornou-se possível copiar, colar e deletar os genes
como se fossem arquivos de computador. O que parecia ser obra de ficção
científica, agora está ao nosso alcance, e isso gerou uma série de manifestações
sobre a ética na comunidade científica mundial.
Com a técnica denominada CRISPR/Cas9, os chineses foram capazes de
modificar o gene que causa a talassemia beta, uma doença hereditária que,
segundo os pesquisadores, origina anemias graves e pode ser fatal.
Consta também no artigo publicado que os cientistas liderados por Junjiu
Huan, da Universidade Sun Yat-sen, em Guangzou, não teriam utilizado embriões
viáveis e nem teriam sido implantados em úteros humanos. Verdade ou não, as
pesquisas continuam e as preocupações na esfera da bioética não param de
crescer. O “recorta e cola” ficou famoso em 2013, tendo sido utilizada com sucesso
71

um ano após, quando cientistas editaram o gene HBB, no cromossomo 11, causador
da talassemia beta em macacos transgênicos.
Embora somente uma pequena parcela dos embriões manipulados pudesse
gerar vidas humanas saudáveis, como alegam terem comprovado, cientistas do
mundo todo temem a respeito da segurança da técnica e principalmente quanto às
consequências dessas manipulações nos seres humanos do futuro, e nesse
contexto, segundo a matéria:

Estuda-se a criação de uma moratória voluntária que pausaria


momentaneamente as pesquisas de CRISPR/Cas 9 para discutir
melhor as técnicas de edição genética e seu impacto entre os
pesquisadores e com o público. (VEJA, 2015).

O que nos preocupa é o fato de que é possível que pesquisas dessa natureza
possam estar sendo feitas em algum lugar do mundo sem que sejam realizados
quaisquer tipos de controle ético.
Em pouco tempo, após a divulgação do avanço britânico, a nova técnica de
fertilização com três pais foi realizada com sucesso esse ano (2016). De acordo com
a publicação, o bebê Abrahim Hasan tem 5 meses e nasceu no México sob os
cuidados da equipe do New Hope Fertility Center, de Nova York. Os pais da criança, de
acordo com a notícia, residem na Jordânia e escolheram o México como local de
nascimento do bebê porque lá, as leis são omissas quanto ao assunto. Segundo o
médico John Zhang, líder da equipe que realizou o procedimento, o país "não tem
regras" a respeito desse tipo de técnica (GLOBO, 2016).
Mesmo em se tratando de um caso no qual a mãe do bebê seja portadora de
genes para a síndrome de Leigh, distúrbio neurológico fatal que acomete bebês no
primeiro ano de vida, esse cenário nos causa certa preocupação, pois comprova que em
certos aspectos basta ter condições financeiras para se realizar um projeto de
manipulação genética. A mãe de Abrahim é saudável, mas há sempre a possibilidade de
transmissão de sua doença aos seus filhos, o que já ocorreu e causou a morte de seus
primeiros bebês. Diversos experimentos de fertilização já foram realizados com sucesso
por Cientistas nos Estados Unidos em 2001, ocorre que com técnica diferente
empregada mais especificamente por pesquisadores de Nova Jersey que utilizaram o
72

citoplasma do óvulo de uma mulher fértil e implantaram-no no óvulo de uma mulher


estéril, em seguida fecundado com o esperma do pai. Segundo a referida publicação:
“Quase 20 crianças foram concebidas dessa forma nos Estados Unidos”, o que gerou
muitas perguntas e levou ao órgão fiscalizador a pedir aos cientistas que abandonassem
seu uso em seres humanos sem uma permissão especial (GLOBO, 2016).
As pesquisas não param em diversos países e a mídia noticia a cada dia uma
novidade. No dia 21 de novembro de 2016, O globo publicou uma matéria que
parece ter quebrado mais um tabu, e dessa vez a novidade veio da Escandinávia.
Os suecos avançaram em uma pesquisa audaciosa, considerada pela mídia como o
primeiro estudo de edição genética com embriões humanos saudáveis, uma
experiência que desafia os limites da bioética e da tecnologia.
Enquanto muitos países, e o Brasil é um deles, proíbem estudos com
embriões humanos, outros avançam em pesquisas que surpreendem cada vez mais
a humanidade. O cientista sueco Fredrik Lanner do Instituto Karoliska foi quem
realizou, com aprovação do Comitê de Ética de Estocolmo, o experimento
detalhadamente explicado na matéria publicada no referido jornal em um passo a
passo bastante elucidativo:

1- Um embrião de apenas dois dias, com quatro células, é


recebido de clínicas de fertilização; 2- Uma das células recebe uma
injeção com a ferramenta CRISPR-Cas9, composta por uma proteína
e uma guia de RNA; 3- a proteína se une ao DNA da célula e a guia
busca por uma sequência genética específica, como o endereço de
uma casa numa avenida; 4- Quando o gene alvo é encontrado ele é
desativado pela ferramenta; 5- a célula modificada será comparada
com as outras, em busca de possíveis alterações. Dessa forma, será
possível descobrir quais genes são essenciais para o
desenvolvimento embrionário. (O GLOBO, 2016, p. 25).

Embora muitos cientistas e membros da academia insistam sempre em frisar


que estamos na era dos bebês sob encomenda, Lanner se posiciona que estamos
distantes disso.
A pesquisa parece estar sendo realizada no intuito de avançar nas técnicas
para corrigir doenças, mas o próprio pesquisador considera que a tecnologia ainda
não está madura o suficiente e que para lograr êxito, o empreendimento deve
continuar sendo experimentado in vitro, “para ver se é possível otimizar a tecnologia
ou ajudar a tratar doenças” (Ibidem). O pioneirismo nesse ramo da manipulação
73

genética advindo de um país pertencente à União Europeia abre precedente, o que


gera ainda mais preocupação sobre seus limites no que tange a bioética e a
questões relacionadas à justiça.

2.8. O DNA em nossas mãos

No dia 03 de janeiro de 2016 o programa da Globo “Fantástico” exibiu uma


matéria sobre as mais recentes descobertas na esfera da manipulação genética,
demonstrando mais uma vez que estamos na era das modificações e que nunca foi
tão fácil manipular geneticamente o ser humano. Somos aproximadamente 7 bilhões
de seres humanos na Terra, e cada um de nós possui características bem
peculiares, de maneira que não há seres iguais em nosso planeta.
Nunca foi tão fácil, barato e seguro mexer no DNA como em nossa era. As
descobertas do passado e todos os esforços de cientistas fazem hoje a diferença no
que foi inimaginável há muito tempo. De acordo com os estudiosos, há uma nova
técnica sendo utilizada nos laboratórios para realização de manipulações genéticas,
a chamada CRISPR, uma mistura de material genético com uma proteína. Fyodor
Urnov, geneticista da Universidade da Califórnia afirmou que: “Se antes você
precisava de um doutor para trabalhar com engenharia genética, com o CRISPR
qualquer aluno do primeiro ano de biologia já consegue”. A técnica se resume em
injetar o CRISPR na célula, o que possibilita que a substância corte o DNA
exatamente onde o manipulador deseja. Após a retirada da “peça defeituosa”, é
possível emendar as pontas ou trocar o pedaço retirado por um de qualidade
superior.
Há três anos, foi publicado o primeiro estudo sobre o CRISPR, o que a
propósito estimulou uma altíssima produtividade intelectual. Nos últimos anos, os
estudos não pararam de avançar e a produção de artigos não parou de crescer
gerando a partir de 2015 uma “explosão de artigos científicos” na área, abrindo
espaço para pesquisas promissoras em 2016.
Em se tratando de um tema que poderá trazer benefícios ou malefícios à
espécie humana, a matéria exibida obteve em certo aspecto uma completude
quando apresentou o caso da babá aposentada Fátima, que é portadora da doença
falciforme, uma enfermidade genética que compromete a circulação sanguínea, e
74

que pode ser eliminada já no embrião com a utilização das técnicas mais modernas,
o CRISPR, ou até mesmo curada já em uma pessoa que seja portadora.
Conforme a explicação do biólogo da USP Oswaldo Okamoto, o procedimento
seria o seguinte: “É possível, por exemplo, obter células doentes do próprio
paciente, fazer esta correção no laboratório utilizando a técnica do CRISPR e
devolver essas células corrigidas geneticamente para o mesmo paciente” (GLOBO,
2016).
O procedimento explicado pelo especialista traz cada vez mais esperança
para os portadores de doenças como a AIDS, que poderão ser beneficiados da
mesma forma, através da manipulação genética. Nesse caso, o CRISPR poderia ser
usado para deixar as células de defesa com resistência ao vírus HIV, o que já se
demonstrou possível no laboratório da Califórnia, que obteve resultados positivos.
Os benefícios são facilmente enxergados por nós, mas ainda há certa
resistência, enquanto isso cientistas continuam trabalhando em novas descobertas e
testes possibitando cada vez mais o que Urnov acredita ser possível em um futuro
bem próximo, editar o DNA para prevenir pessoas de ataques cardíacos e também
para a cura do câncer, com tratamento por meio de células de defesa alteradas
geneticamente para atacar um tumor, por exemplo.
Essas pesquisas mais recentes proporcionam cada vez mais o debate ético
sobre quais seriam os critérios; de que forma poderíamos agir sem ultrapassar os
limites morais; quem ou qual órgão político teria autoridade para decidir essas
questões tão importantes; se deveríamos proibir ou liberar a atuação desenfreada de
cientistas, inclusive com a utilização de cobaias, pessoas portadoras de doenças
que não podem mais esperar pois não há tempo. É relevante sabermos quais
diretrizes morais e legais deveriam orientar os profissionais no sentido de não violar
os limites morais com essas intervenções e onde ficaria o respeito à vontade do
paciente que não dispusesse de tempo e desejasse ser submetido a testes na
tentativa de lutar pela vida, afinal, essa é uma escolha que só cabe ao próprio
indivíduo fazer, sem contar que as pesquisas nesses casos poderiam ser favoráveis
e benéficas à sociedade como um todo.
O que causa certo temor é o fato de que uma equipe chinesa já teria realizado
uma empreitada ousada, mexendo no DNA de células de embriões com o simples
75

intuito de ver se dava certo e obteve êxito em algumas células, o que já basta para
confirmar que é possível (GLOBO, 2016).
A partir daí, começam a ressurgir problemas concernentes à bioética (mesmo
que sob nova roupagem), pois a manipulação genética foi realizada no embrião sem
consentimento daquele ser, que virá a se tornar um adulto com as características
pré-estipuladas pela manipulação genética segundo os desejos de um terceiro.
Um segundo problema ético seria também a hereditariedade das
características concebidas através da manipulação genética, ou seja, os futuros
seres humanos viriam a herdar características dos seus pais que foram modificados
geneticamente, dando assim origem a uma nova espécie humana (os melhorados).
Essas são questões de ética na genética que devem ser discutidas cada vez
mais, pois as pesquisas não param de avançar, e consciente disso, Urnov, em
entrevista (FANTÁSTICO, 2016), chegou a cogitar a possibilidade de que deveria
haver um consenso entre os cientistas no sentido de não utilizarem essas técnicas
em embriões humanos, não em sua totalidade, mas que seja limitado e que a
sociedade e os pesquisadores possam conversar sobre essas questões antes de
qualquer decisão. A solução para ele seria uma espécie de moratória, pelo menos
por agora, uma modalidade de convenção entre os povos.
O problema de tudo isso é que muitas vidas não podem mais esperar...

3. DIFERENÇA MORAL ENTRE EUGENIA POSITIVA E NEGATIVA

O tema: a diferença moral entre eugenia positiva e negativa merece uma


atenção especial. E, por este motivo decidimos dedicar este item ao referido tema.
Iremos então, abordar a questão: pode ser ou não caracterizada alguma diferença
moral entre a prática da eugenia negativa e a positiva?
A eugenia negativa pode ser resumida na intervenção direta ou indireta na
genética humana para fins de “terapia”, ou mais precisamente para evitar que certas
características consideradas como ruins possam ser transmitidas para a prole, ao
passo que, a eugenia positiva pode ser entendida como a intervenção direta ou
indireta no ser humano para fins de “melhoramento” (HABERMAS, 2004, p. 26-7). É
muito comum tanto entre leigos quanto no métier acadêmico que se tolere a prática
da eugenia negativa com mais facilidade do que se permitiria a prática da eugenia
76

positiva, ocorre, porém, que se observarmos com mais cautela perceberemos que a
intervenção na genética em ambos os casos se torna algo bastante delicado. Muitos
argumentos apresentados por pesquisadores no sentido de tentar impedir as
práticas eugênicas em geral, são pautados no passado nazista ou na tentativa de
refutar o darwinismo social, como é possível apreender na seguinte explanação:

A maioria das pessoas sente uma repulsa profunda contra a


intervenção genética. Essa repulsa é resumida na metáfora “brincar
de Deus”, que se apresenta de forma privilegiada no tema da
eugenia. Critica-se a intervenção genética em humanos através do
argumento de que ela seria uma prática sujeita aos mesmos
abomináveis erros e censuras das eugenias propostas pelo
darwinismo social e pelo nazismo (JONAS, 1979, p. 61 apud FRIAS).

Nesse ínterim, complementa o autor preocupado com a proteção de grupos


que poderiam ser considerados prejudicados no sentido de poderem ser tais práticas
como uma tendência ao “genismo (o preconceito segundo diferenças genéticas) e
ao genocídio genético (a destruição de algum grupo geneticamente preterido”
(ANNAS, 2004, p. 284-5 apud FRIAS).
Lincoln Frias é professor de bioética e ética aplicada da UFMG e conclui em
sua pesquisa algo que nos chama atenção e que nos convence a respeito dos
argumentos éticos aceitáveis e do que deve ser sopesado para que se atinja a
decisão mais justa quanto às intervenções genéticas. Para o pesquisador, não
haveria qualquer objeção ética que seria capaz de impedir a intervenção na genética
para beneficiar o ser humano, desde que o quesito liberdade fosse resguardado. É
justamente nesse ponto que estaria o limite da intervenção genética quanto ao
aspecto moral:

[...] não há argumentos éticos aceitáveis para impedir completamente


as intervenções genéticas em seres humanos, mesmo intervenções
genéticas hereditárias para melhoramento; no entanto, o respeito à
liberdade da futura criança e o interesse em promover a justiça social
colocam limites éticos para essa intervenção (FRIAS. 2013, p. 99-
117).

Pensamos que, quanto mais esse tema for discutido na academia e na


sociedade civil, quanto mais a academia se mostrar aberta à sociedade, convidando
os cidadãos para se manifestarem através do voto e quanto mais as autoridades se
comprometerem e se aprofundarem no conhecimento do assunto, mais próximos
77

estaremos de atingir às práticas ideais dessas intervenções, o que logo, poderá


levar o homem a ser beneficiado pela ciência. E é nessa linha que o referido
professor apresenta seu ponto de vista na conclusão de seu trabalho científico,
quando sustenta que:

[...] Nossas respostas foram que as intervenções genéticas não


ameaçam a comunidade moral, mas a incrementa, na medida em
que torna os pais responsáveis pelo genótipo dos filhos; e que o
princípio da diferença genética é a melhor maneira de evitar
consequências indesejáveis (FRIAS, 2013, p. 99-117).

O autor pondera que, mesmo sendo moralmente aceitas, ambas as práticas


eugênicas merecem grande atenção para algumas características consideradas por
ele como fortes, tais como a escolha do sexo e a cor dos olhos e até mesmo outras,
que possam de qualquer forma ferir a liberdade daquele ser que estará sendo objeto
dessas escolhas, posicionamento este que nos parece aceitável diante da
segurança e proteção que o indivíduo merece ter em relação ao que pode ou não
ser feito com seu material genético. Para tentar sanar essa dicotomia Agar propõe
segundo o referido pesquisador que diante dessas práticas: [...] os pais devem
escolher – ou a legislação deve permitir que os pais escolham – apenas as
características que impediriam os piores planos de vida, não que escolhessem o que
julgam os melhores planos de vida. Isso significa, complementa o autor, que: [...] o
melhoramento deve ser feito sob um véu de ignorância rawlsiano. A escolha sobre
quais características incentivar e quais prejudicar deve ser feita ignorando planos de
vida específicos, almejando apenas a qualidade de vida em geral (FRIAS, 2013, p.
99-117).
O argumento de Agar volta à questão anteriormente proposta na República de
Platão, na Cidade do Sol de Campanella e em outras obras ideais, representando
uma tentativa de determinar uma qualidade de vida ideal no intuito de aumentar a
felicidade e a liberdade do ser do futuro, o que para alguns aumentaria as chances
de liberdade do futuro indivíduo que não ficaria refém de “defeitos” genéticos por
escolha de terceiros, que pudessem prejudicá-lo na vida cotidiana. Frias apresenta
como exemplo “defeitos genéticos que limitem sua capacidade motora, imunológica
e cognitiva. Se pudermos ter vidas mais saudáveis, mais imunidade e longevidade,
seremos mais autônomos e mais livres” (AGAR, 1999, p. 179 apud FRIAS).
78

É importante para nossa pesquisa ressaltar que há na academia uma grande


divisão entre os pesquisadores a respeito desse tema tão relevante e atual, pois as
questões que envolvem intervenção genética não tratam somente de casos
específicos e isolados, mas, de toda a nossa espécie, como explica o autor:

A partir da criação e do desenvolvimento da Bioquímica, da Biologia


Molecular e da Genética Evolutiva, nos últimos 150 anos, a chamada
tecnologia biomédica adquiriu um poderio de intervenção tão radical
sobre o ser humano que, em princípio, seu objeto não é mais um
paciente ou um grupo de pacientes, mas a própria espécie humana –
como ficou evidente no Projeto Genoma Humano (FRIAS, 2013, p.
99-117).

Como mencionado alhures, grandes nomes da ciência dividem-se em relação


ao problema da reprodução manipulada de seres humanos e são classificados como
oponentes radicais, oponentes moderados, defensores moderados e defensores
radicais. Como oponentes radicais a tais práticas são apontados por FRIAS os
seguintes nomes: (JOÃO PAULO II, 1995; KASS, 2002; FUKUYAMA, 2002; ANNAS,
2004 etc). Como oponentes moderados são elencados: JONAS, 1979; HABERMAS,
2001. No rol dos considerados como defensores moderados da intervenção genética
humana estão: RAWLS, 1971; DWORKIN, 1999; BUCHANAN et al.; KITCHER,
2002; SINGER, 1993, 2003; 2000; AGAR, 1999. E, por fim, na lista dos defensores
radicais enquadram-se: NOZICK, 1974; STOCK, 2002. Estes últimos juntam-se a
outros autores conhecidos como transhumanistas ou pós-humanistas (FRIAS, 2013,
p. 99-117).
Há uma diferença marcante entre a Eugenia autoritária e a Eugenia liberal,
que pode ser bem compreendida por meio da explicação de AGAR:

Na versão autoritária, a escolha das características segue apenas


um ou alguns modelos que são impostos de maneira uniforme pelo
Estado, ao passo que, no modelo liberal, a eleição das
características seria feita pelos pais e, por isso, tenderia a ser plural,
autônoma e livre de modelos impostos. [...] a eugenia por si não é
ruim, o que é ruim é o autoritarismo a dirigi-la. Portanto, na medida
em que a intervenção genética possibilite uma eugenia que aumente
a liberdade dos agentes, ao contrário da autoritária que a diminuía, a
intervenção genética não estaria sujeita às mesmas críticas e erros
que os projetos eugenistas autoritários do começo do século XX
(AGAR, 1999, p. 99-117 apud FRIAS).
79

Em certos casos de eugenia negativa (compreendida como a de caráter


terapêutico, curativo, clínico ou como resultado de um diagnóstico genético de pré-
implantação), há um “certo senso de convenção” no sentido de estarem estas
práticas justificadas diante dos benefícios que possibilitariam à vida no futuro,
justificativas estas que para Nicolau estariam pautadas na sensatez:

[...] Em relação à eugenia negativa não há, assim, controvérsias


maiores quanto ao uso das técnicas disponíveis que impedem o
nascimento de seres humanos onerados com deficiências graves, ou
seja, aqui como alhures não há muita celeuma quando se trata de
evitar o pior, o defeituoso, o que causa sofrimento e/ou traz
infelicidade (NICOLAU, 2006, p. 42-55).

Não é difícil perceber logo de pronto que o tema requer um olhar proveniente
de diversas áreas do saber, caracterizando verdadeiro link entre filosofia política,
ética e direito, entre outras e, desse modo, a interpretação constitucional jamais
poderia ser deixada de lado, como observa Forst citado por Nicolau:

[...] de acordo com o artigo 1° da Constituição alemã, os direitos


fundamentais são constitutivos da dignidade humana
(Menschenwürde), Habermas não tem como evadir-se da dialética
natural dos “bons motivos morais” (aus guten moralis- chen
Gründen), uma vez que as premissas do agir comunicativo, do
reconhecimento recíproco e da ética do discurso permanecem sem
ação na malha argumentativa do cenário bioético e biopolítico dos
embriões humanos (FORST, apud NICOLAU, 2005, p. 589-596).

Nicolau encontra no trabalho de Baer uma crítica ao modo como Habermas


formula sua tese. Tal crítica é alicerçada na interpretação do direito como um todo e
não em partes isoladas. Ora, a leitura de um artigo da constituição, seja ela qual for,
deve ser interpretada de acordo com o seu bojo, ou seja, seu contexto completo
abrangendo espaço e tempo, e não isoladamente. Nesse sentido o autor se
manifesta: [...] os bons motivos morais não substituem, num estado de direito, a
interpretação ponderada do direito da dignidade humana no âmbito da respectiva
constituição (BAER, apud NICOLAU, 2005, p. 571-588).
Admitindo um possível acordo no futuro, Habermas licencia a eugenia
negativa com base em dispositivos legais capazes de restringir o direito fundamental
a uma herança genética não manipulada, ponderando, segundo Nicolau “[...] se a
80

ponderação moral e a formação democrática da vontade conduzam a esse


resultado”. Assim, Nicolau interpreta o entendimento de Habermas:

O princípio da admissão da eugenia negativa opera com a


plausibilidade antecipada dos pais em admitir o acordo do
futuro rebento em favor de uma intervenção genética capaz de
sustar a possível transmissão de disposições patológicas. Com
isso, o ônus normativo da prova “recai aqui sobre o direito de
antecipar um consentimento que não pode ser obtido no
momento”. A exceção feita coincide com o senso comum
quando exclui, como anormais, atitudes que preferem doenças
à saúde, o que não pode, por sua vez, ser admitido no âmbito
da eugenia positiva, dada a ausência de um padrão universal
de preferências eugênicas saudáveis à disposição dos
progenitores do nascituro. (NICOLAU, 2006, p. 42-55).

Sob esse prisma parece haver para alguns autores uma diferença moral entre
eugenia negativa e positiva, como é possível compreender na passagem de
Habermas em que ele reputa o conhecer e o agir como qualidades embutidas no
que ele chama de ética da espécie humana, afirmando que torná-la disponível seria
o mesmo que abandonar o substrato natural “da moralidade e do direito, da
dignidade humana e do direito humano”, ou como assevera Nicolau na formulação
de Volpato Dutra: “Mexer na natureza humana altera o auto entendimento do
homem como eticamente livre e moralmente guiado por normas” (NICOLAU, 2006,
p. 42-55). Todavia, ousamos discordar, uma vez que acreditamos não haver tal
distinção, visto que ambas teriam o condão de aperfeiçoar a espécie humana,
restringindo obviamente qualquer tipo de prática nociva à nossa espécie, a saber,
qualquer ato capaz de colocar em risco a saúde e a vida humana. Portanto, nos
posicionamos junto aos defensores moderados da Eugenia, tanto a negativa, como
a positiva, visando sempre o melhor para o ser humano, ponderando, é claro, que
haja em todas as situações o olhar de comitês de ética e bioética, legisladores
dedicados à coletividade para que confeccionem leis aperfeiçoadas, julgadores com
formação hábil a aplicar bem as leis aos casos concretos devido às diferenças
peculiares de cada caso, entendemos que com a presença de todos esses atores
seria possível que as decisões fossem tomadas com os devidos cuidados em prol do
ser humano. Nesse meandro:
81

Justamente a autocompreensão da espécie sustentada por


Habermas faz da tendência de subtrair-se ao próprio destino natural
um dado antropológico irrenunciável, ou seja, o homem moderno se
identifica com a luta sem fim contra o sofrimento físico, o destino
natural da decadência corpórea e da morte certa (NICOLAU, 2006, p.
42-55).

Naturalmente nós, seres humanos, lutamos a cada dia para que possamos
sobreviver e, acima de tudo, para que tenhamos uma vida melhor. O jurista filósofo
norte-americano Ronald Dworkin certa vez afirmou que: “Brincar de Deus é de fato
brincar com fogo. Mas é isso que nós mortais temos feito desde Prometeu”. O
pensador considera em seus escritos que: [...] nós brincamos com fogo e assumimos

as consequências porque a alternativa é covardia perante o desconhecido.


(NICOLAU, 2006, p. 42-55.).
Tendo versado sobre a diferença moral entre a eugenia positiva e negativa,
trataremos adiante do tema: melhoramento moral.

3.1 O télos e a eugenia nos esportes

Nos dias de hoje, podemos contar com grandes avanços não somente na
tecnologia como também na alimentação própria para os atletas e nas técnicas que
ajudam a melhorar o desempenho dos competidores. Desde as sandálias de folhas
improvisadas por corredores olímpicos no mundo antigo até as vestimentas
altamente hidrodinâmicas próprias para nadadores já disponíveis nos tempos atuais,
há debates sobre competição desleal entre os atletas, uma espécie de argumento no
sentido de não haver, nesses casos, uma paridade de armas que proporcionaria
uma competição justa. Tudo isso nos leva a pensar se deveria ou não ser
considerado como desleal o uso de artifícios que ajudam a promover ou aumentar
as potencialidades dos competidores. Para abordarmos essa questão, é necessário
considerar qual é o télos do esporte e quais são os limites morais da manipulação
genética no caso dos esportistas. Este trabalho pretende esclarecer qual é o télos
dos esportes e evidenciar que a busca da perfeição nesse caso, ou seja, através da
manipulação genética, deve ser avaliada com base em critérios distintos daqueles
geralmente aplicáveis ao ser humano comum.
Ao examinar a questão do melhoramento genético aplicado à prática de
esportes, no livro intitulado Contra a Perfeição, o filósofo norte-americano Michael
82

Sandel busca refletir sobre as razões e princípios que dariam conta de nossos
escrúpulos morais face às técnicas utilizadas por esportistas com a finalidade de
alcançar grandes feitos. Sandel (2013) conjectura que a utilização dessas técnicas
poderia representar uma ameaça à nossa capacidade de agir de forma autônoma e
livre, com a consequente diminuição de nosso sentimento de sermos os autores do
que fazemos (pp. 25-6). Na linha desse argumento, no que tange ao esporte, a
noção de mérito desapareceria completamente. Contudo, Sandel não está
convencido de que o problema estaria no fato de que o melhoramento genético
arruinaria uma noção fundamental para o pensamento liberal, a saber, a
meritocracia.
Na visão do filósofo, o pressuposto liberal que norteia competições baseadas
no mérito não seria o determinante dos nossos escrúpulos com relação aos atletas.
Ele objeta que muita coisa relevante em nossas vidas é fruto do acaso, de dádivas,
do que não depende do nosso esforço. Além disso, segundo ele, o esporte não teria
a ver com esforço (pessoal), mas com excelência. Dito isso, exploraremos a ideia do
que seria o verdadeiro télos dos esportes a partir de uma proposição apresentada
pelo Professor Julio Esteves em suas aulas, o que nos proporcionou alcançar uma
conclusão sobre o tema eugenia nos esportes.

3.2 A corrida do doping

Para falarmos de alcance de records, eugenia e a respeito do que seria o


verdadeiro télos dos esportes, não poderíamos deixar de adentrar no tema polêmico
e sempre atual que é o doping. Ousamos dizer que esse assunto é sempre atual por
conta da importância dos grandes jogos, como são os Jogos Olímpicos e da
tentação que passa pela mente dos competidores desde os primórdios das
competições. A glória almejada por quem dedica quase que todo o seu tempo e
esforço para buscar resultados inalcançáveis aos outros parece ser muitas vezes
tentadora, o que levaria atletas ao consumo de drogas aliado à promessa de
obterem melhores rendimentos do que normalmente conseguiriam atingir.
Nas últimas décadas, tornou-se uma grande preocupação o consumo de
drogas como EPO testosterona e esteroides com o intuito de aumentar os
rendimentos de atletas por todo o mundo. Acontece que, segundo especialistas,
83

essas drogas podem até proporcionar um sucesso momentâneo, o que ocasionaria


melhores rendimentos em competições, mas em contrapartida os atletas arcam com
grandes prejuízos, como danos irreversíveis à saúde (MARKUN, 2016). Nesse
sentido, embora muitos pesquisadores ligados à Agência Mundial Antidoping (World
Anti-doping Agency - WADA) afirmem que competidores que por ventura utilizem
medicamentos proibidos, mesmo que ganhem medalhas irão perdê-las tempo
depois, ainda há muitos que preferem arriscar (WORLD ANTI DOPING AGENCY,
2016).
Nos bastidores de toda essa discussão polêmica sobre o mercado negro do
doping, há mesmo quem queira que ele acabe, ou essa é apenas a vontade de
alguns? Nesse meandro, cientistas travam o que poderíamos chamar de guerra da
ciência contra a própria ciência para descobrir como identificar substâncias nos
organismos dos atletas, substâncias que a ciência ainda não é capaz de detectar.
Dia após dia milhões são empreendidos com o objetivo de desenvolver novas
substâncias imunes aos exames anti-doping, e isso tornou-se uma guerra entre
países, o que nos faz lembrar de um passado não muito distante, nas décadas de
1980 e 1990, e mesmo no século XXI, quando nos deparamos com presenças
imponentes em competições, principalmente nos Jogos Olímpicos.
Como poderíamos nos esquecer da assustadora seleção feminina cubana de
vôlei que sempre intimidava o Brasil nas competições? Aquelas meninas eram
símbolos do que o socialismo pretendia apresentar ao mundo como superioridade
de seu regime, o que levaria a um modelo de ser humano superior aos demais, algo
que, segundo eles, deveria ser seguido por todos. No mundo da ficção (ainda na
esfera ideológica), o próprio Capitão América foi um sujeito franzino transformado
em um supercombatente mediante experiências de laboratório com o objetivo de
salvar o mundo dos nazistas. O clima de competição entre os países envolveu até
mesmo o campo do entretenimento com a emocionante saga de Rocky Balboa em
Rocky IV, (1985) que também apresenta uma espécie de disputa declarada entre o
"american way of life" e o modo autoritário socialista soviético, o que demonstra mais
uma vez a engenharia biológica sendo utilizada a serviço de uma ideologia. Essa
guerra ideológica pode ser facilmente percebida logo no início do filme na cena que
mostra punhos rivais com as bandeiras americana e soviética, o que serve como um
bom exemplo de um querer estatal em busca do desportista perfeito. No campo da
84

manipulação e ou intervenção genética, podemos utilizar o boxer russo Ivan Drago


(no filme) como exemplo. O "Expresso Russo" contava com treinamento e suporte
técnico de alto nível, assim como com o uso de anabolizantes; contudo, para os
seus compatriotas, ele era um modelo de superatleta, um atleta perfeito, que havia
atingido o objetivo do esporte, ou seja, ser insuperável e mostrar ao mundo a força
de seu país. Quem se lembra do clássico deve se recordar que, embora a esposa e
os treinadores do “Touro Siberiano” assegurassem que o atleta era treinado
naturalmente, o filme exibe cenas nas quais ele utiliza esteroides anabolizantes.
É possível inclusive identificar algumas frases de conotação ideológica que
aparecem no filme, como por exemplo, Apolo dizendo: "Eu não estou bravo com ele,
eu só quero mostrar ao mundo que a Rússia não tem os melhores atletas", ou
mesmo dirigindo-se ao seu discípulo: "Isso não é só uma exibição que não significa
nada. Somos nós contra eles"!
Em oposição, o treinador soviético afirmou na mídia: "É uma questão de
tamanho e evolução. Drago é o mais perfeito atleta que já foi treinado, é a visão do
futuro". Entre o primeiro e o segundo round, o coach diz ao lutador russo: "O
americano é pequeno e fraco", já entre o segundo e o terceiro round o coach de
Balboa o incentiva: "Você machucou ele, viu? Ele não é uma máquina".
Deixando um pouco a questão do idealismo de lado, o que é preocupante no
que toca a produção, a grande demanda de mercado e principalmente o uso dessas
drogas por atletas é o fato de que federações no mundo todo figuram como partes
em processos de toda sorte, mas ao mesmo tempo são os próprios juízes dessas
questões, o que compromete a lisura das decisões.
Há no mundo científico pesquisadores que afirmam que somente após 10
anos da conquista de medalhas é que se saberá ao certo quem realmente mereceu
a vitória nas últimas Olimpíadas, de modo que, a questão moral envolvida nesses
debates parece estar tão arraigada na cultura de cada um que a triatleta suíça
Nicola Spirig (2016) chegou a sugerir, em A corrida do doping, que todos os
envolvidos nesses casos sofressem pena de prisão. A triatleta inclusive externou
que se sente muito triste por duvidar dos seus concorrentes, pois nunca sabe se
eles estão limpos ou não. Outra parte importante desse debate e que se revela
muito séria é a assertiva do especialista Ramon Cugat de que a terapia celular teria
assumido um papel indispensável na recuperação e no desenvolvimento dos atletas
85

e ocasionado uma tendência à aprovação pela Agencia Mundial de Saúde, ou seja,


o que teria começado de maneira ilegal tornou-se uma prática lícita por conta da
pressão dos poderosos do futebol (A CORRIDA DO DOPING, 2016).
Essa afirmativa demonstra que o livro de Sandel Contra a perfeição – Ética na
Era da Engenharia Genética (2013), no momento em que versa sobre a terapia
celular, já está superado, visto que tal terapia já é permitida nos dias de hoje.
No futuro, a dopagem genética (por ter um rastro maior de duração do que as
de hoje) será, segundo alguns, mais facilmente detectável, todavia, muitos se
perguntam se até lá a nova concepção de esportistas estará refém das pressões
institucionais que, por conseguinte, poderiam tornar lícitas a produção, a venda e o
consumo dessas substâncias de acordo com a demanda. Há também a
preocupação de que se essas práticas teriam começado hoje ou se seria algo
existente desde que os antigos gregos que teriam forjado as primeiras sandálias de
folhas para protegerem seus pés nas grandes corridas. Nesse sentido, existem
muitas discussões que abarcam a ética e a bioética e que visam definir se atletas
melhorados pela biotecnologia e pelo uso de próteses podem ser considerados uma
farsa e sobre como será a definição do ético ou permitido moralmente daqui a
alguns anos.
Para nós, é no mínimo interessante considerar que devido a certas
convenções e a necessidade de atletas, a dopagem poderá passar a não ser uma
prática considerada ilícita ou até mesmo imoral. Mas será que na esfera dos
esportes isso deve ser considerado sob o mesmo prisma do melhoramento genético
do não esportista?
Na obra em estudo Sandel exprime seu posicionamento. Ele parece acreditar
que o principal problema das terapias de melhoramento e da engenharia genética
está pautado no fato de que elas representariam uma espécie de aspiração
prometeica no sentido de remodelar a natureza humana para servir os nossos
propósitos e satisfazer nossas vontades, ou seja, segundo ele o esporte não teria a
ver com esforço (pessoal), mas com excelência.
Em contrapartida, nós diríamos diferente, uma vez que acreditamos que no
caso dos esportes o que determina o êxito dos atletas não é mais o talento do que o
treino intenso (esforço pessoal). Estamos mais inclinados a pensar conforme a
conhecida frase atribuída comumente a Thomas Edison: “Talento é 1% inspiração e
86

99% transpiração. O grande músico erudito Mozart é conhecido até hoje por ter sido
um “prodígio da natureza”, mas sua história foi diferente. Essa glória foi
proporcionada não somente pela genética de seus ancestrais (avô materno e seu
pai), que eram habilidosos artistas, mas sim por meio de uma prática árdua que o
tornou um exímio instrumentista. Esse exemplo serve também para afiançar nossa
tese sobre o desempenho dos esportistas e a respeito do que seria o télos dos
esportes.
Da mesma forma que o pai do músico o direcionou à prática durante longas
horas diárias e o proporcionou algo inacreditável, como o aprendizado das oito
peças do livro de música de Nannerl, aos quatro anos de idade (um feito
considerado impossível até então), podemos observar um comportamento bem
parecido do pai do nosso craque Neymar desde quando o garoto começou a andar.
O talento de Neymar é facilmente visível, mas o que seria dele sem a prática
reiterada dos movimentos e das técnicas, bem como sem o preparo físico que o
revelou um destaque nos campos? Desse modo, acreditamos que o esforço faça a
verdadeira diferença no final, sendo possível afirmar, mesmo que empiricamente,
que na convivência de pessoas de extremo talento, mas que nada fazem para
potencializá-los, ao invés de se tornarem pessoas virtuosas se revelam verdadeiros
fracassados. Nesse prisma, do que adianta a “dádiva” sem o esforço e o
comprometimento?
É claro que falar em meritocracia em uma sociedade com valores de justiça e
igualdade tão deturpados não é tarefa fácil, mas nesse aspecto preferimos apostar
nos esforçados.
Outro exemplo de superatleta é o jogador de futebol lusitano Cristiano
Ronaldo, que vem de maneira surpreendente acumulando títulos e batendo recordes
sem parar ao longo de sua carreira. Fora a acumulação de títulos e a insuperável
média de 1,17 gols por partida, o desportista surpreende a cada jogo com sua
explosão muscular, velocidade e outros atributos que segundo seus biógrafos,
fazem dele o melhor jogador de futebol de todos os tempos. Acrescentam ainda que,
a genética do jogador parece ser privilegiada, mas esse fato unido ao
comprometimento que ele tem com a causa, toda sua dedicação e preparo com os
melhores profissionais e com as melhores técnicas e aparelhos do mundo fazem
com que ele tenha sucesso (PEREIRA e GALLARDO, 2014).
87

Afinal, quais são os segredos por trás desse grande atleta? Será que todo
esse sucesso nas competições é fruto somente de uma genética favorável à
modalidade esportiva que ele escolheu praticar, ou existe alguma intervenção
externa responsável por isso?
Para os cidadãos comuns, o desempenho do jogador é algo que simboliza o
limite do homem e que nos faz perguntar: Como ele consegue realizar isso tudo?
Seria sua completude fruto somente de uma genética privilegiada?
Essa pergunta é o que os biógrafos de Cristiano Ronaldo (PEREIRA e
GALLARDO, 2014) tentam responder em seu livro mencionando velocidade e força
do atleta (resultantes em uma magnífica explosão muscular) seriam oriundas de
qualidades geneticamente herdadas de sua avó paterna, uma africana de Cabo
Verde.
Ocorre que essa herança genética, por mais acentuada que possa ser, não
faz dele o que ele realmente é, visto que o jogador conta com o melhor que a
tecnologia pode proporcionar a um atleta. Além de todo a aparato técnico e
alimentação regrada de acordo com nutricionistas, ele treina em uma máquina
“futurista” desenvolvida pela NASA. Essa máquina simula um ambiente que diminui
a força da gravidade e consequentemente o peso de quem corre nela. Em outras
palavras, a máquina permite que o seu usuário corra com pelo menos 80% a menos
que seu peso real, ou seja, um homem de 100 Kg corre nessa esteira com o peso de
uma criança de somente 20 Kg (GLOBO ESPORTE, 2015).
Esse grande invento da ciência e da tecnologia permitiu que o atleta não
forçasse seu tornozelo operado e que pudesse continuar treinando sem problemas
para desenvolver suas habilidades e capacidades aeróbicas, ao invés de ter que
passar meses ou até anos sem poder treinar, comprometendo sua carreira como
acontecia com os atletas lesionados no passado.
Os biógrafos do livro citado complementam que Cristiano Ronaldo não treina
somente o futebol, mas que se revelou um exímio jogador de tênis de mesa desde
criança e que pratica até hoje essa modalidade, o que o permite desenvolver ainda
mais suas habilidades de coordenação motora e psicológica, que são fundamentais
para o desempenho em campo.
Como vimos, o resultado final do melhor do mundo não é só baseado em sua
genética, mas também em um complexo conjunto de fatores externos, e sendo
88

assim, por que não falarmos em uma possível manipulação genética em favor dos
atletas?

3.3 As altitude houses

Além das inúmeras drogas existentes e consumidas por esportistas que


almejam resultados além de suas capacidades naturais, hoje existem algumas
técnicas que nos convidam a refletir sobre sua validade moral, como, por exemplo, o
emprego das “altitude houses” (SANDEL, 2009, p. 32) e de outros mecanismos
destinados a aumentar artificialmente a quantidade de glóbulos vermelhos no
sangue dos atletas, questões que Sandel explora no livro citado.
A utilização das “altitude houses” é uma técnica que utiliza o ambiente para
condicionar o organismo dos atletas a terem desempenhos melhores nas
competições, algo diferente dos outros métodos como, por exemplo, transfusões e
injeções de eritropoietina (EPO), um hormônio produzido pelos rins que estimula a
produção de glóbulos vermelhos.
O mecanismo dessas casas de altitude funciona, segundo especialistas, da
seguinte forma:

A hipoxia (deficiência de oxigénio) estimula a produção de


eritopoetina (EPO) na medula óssea, a responsável pelo aumento de
produção de glóbulos vermelhos e hemoglobina. Após o processo de
adaptação à alta altitude e aos níveis de oxigénio reduzidos, o corpo
como que refina os seus processos metabólicos, apresentando-se
“optimizado”, com uma capacidade de oxigenação dos músculos
mais eficaz e melhorada, o que se traduz em aumentos de
performance na ordem dos 3%, de acordo com os últimos estudos
apresentados (BARRAGAN, 2008).

Consideramos que a estadia na “altitude house” não apresenta qualquer


problema moral, desde que essa prática passe a ser comprovadamente segura para
a saúde dos atletas, de maneira que o tempo utilizado lá possa ser como o de um
jogo no qual o atleta que se sair melhor vencerá. Tendo em vista que o treinamento
nessas casas visa submeter os competidores à resistência ao clima, pressão
atmosférica e a outras dificuldades, mas não altera geneticamente seus corpos e
organismos como fazem as drogas, injeções e transfusões, podendo ou não, ser
suportado ou até mesmo eficiente ao desempenho dos esportistas de acordo com o
89

que cada um, através do que já é naturalmente (a genética pode ajudar) e do seu
próprio esforço e empenho, poderá aproveitar em seu favor. Por esse motivo, não
detectamos qualquer objeção moral à utilização das “altitude houses”.
Já os outros métodos, que inclusive foram banidos pelo Comitê Olímpico
Internacional até o momento, dizem respeito ao uso de drogas pelos atletas, o que
consideramos mais sério, em virtude do perigo à saúde dos atletas, e como já
versamos sobre a integridade física dos esportistas e também a respeito de suas
almejadas performances, adentraremos agora no que definiríamos como o télos do
esporte.

3.4 O télos do esporte

Sandel argumenta que nossas restrições sobre o uso de drogas e outros


artifícios não dizem respeito somente à saúde dos atletas, mas também, e
principalmente, à integridade e essência do esporte, ao télos do esporte (p. 38).
Considerando a hipótese de que os esportistas pudessem ser ou como se fossem
equiparados a representantes da humanidade para demostrar os limites que o
humano pode alcançar, existe uma preocupação atual quanto ao que o esporte pode
se tornar. Será que estamos próximos de alcançar o fim dos limites humanos? Será
que estamos caminhando no sentido que irá nos levar a perda dessa régua? O
esporte não parece ter tão somente o objetivo de entreter o espectador, mas sim
algo de maior nobreza que é a missão de exaltar as qualidades humanas, o que
exige a união entre o talento e o esforço, o segundo em maior importância para nós,
no intuito do objetivo maior que é o de quebrar recordes.
Há uma enorme diferença entre espetáculo e esporte, em outros termos, uma
coisa é o espetáculo proposto pelos Harlem Globetrotters e o desempenho
insuperável do Dream Team, que possuia o intuito de ganhar medalhas. Essa
questão nos fez recordar, a título de exemplo, o filme Space Jam, estrelado por
Michael Jordan, uma forma divertida de passar algumas tardes da década de 1990.
Acontece que aquela equipe não travava verdadeiras disputas, mas realizavam uma
espécie de espetáculo de circo.
A diferença entre esporte e espetáculo nos parece bastante clara, pois no
espetáculo visamos o entretenimento e nos esportes o objetivo final é vencer. Cabe
90

frisar que no esporte sempre há, de certo modo, um espetáculo, mas na essência de
uma apresentação artística não há o objetivo peculiar à pratica esportiva
profissional, que é bater recordes e obter a vitória..
Sob o ponto de vista do espectador (pagante), o que ele espera quando vai
ao Maracanã assistir a seu time jogar? É claro que ele espera a vitória do seu time e
gols que garantam a artilharia com quebra de records e, para isso, é necessário que
a equipe se empenhe ao máximo no objetivo de vencer, de modo que, a mínima
parte que toca ao espetáculo no jogo é reservada as jogadas incríveis como olés,
canetas e balõezinhos. Tudo isso é belo, mas não faz o time ganhar o jogo. Do
mesmo modo se comporta o torcedor do Dream Team, que é um time considerado
perfeito (equilibrado) e que visa o objetivo de fazer cestas. É claro que entre uma
jogada e outra há performances exibicionistas que embelezam o jogo, mas ninguém
está ali senão para vencer. É dessa forma que classificamos o télos do esporte, no
sentido de atingir recordes e vencer, e não de apresentar pura e simplesmente um
espetáculo.

3.5 Até quando os esportes resistirão?

Sandel admite que nem toda inovação corrompe ou degenera a prática


esportiva. Algumas até põem em relevo o que há de essencial nela, por exemplo, o
caso dos pés calçados em oposição aos pés descalços, o que proporcionou
estabilidade às competições e aos próprios competidores, que se livraram de pisar
em pedras e espinhos (SANDEL, 2013, p. 37). O mesmo se aplica às vestimentas
aerodinâmicas (que os nadadores já não estão usando mais), mas que ofereciam
um desempenho maior nas piscinas. Quanto a essas melhoras não constatamos
qualquer objeção moral. Acreditamos que nesse ponto vem à baila um aspecto
importante dessa discussão que é o das equipes no background dos grandes atletas
e da indústria de produtos e acessórios utilizados por eles. Tudo isso faz parte da
competição e não encontramos objeções morais quanto a esse tópico, muito pelo
contrário, essas inovações contribuem para a melhor atuação dos esportistas e
equilibram os jogos.
Diante dessas reflexões, nos parece que os esportes correm grande risco.
Imaginemos a hipótese de em um futuro próximo termos duas ligas desportivas, uma
91

composta por atletas ao natural, e outra composta por atletas artificialmente


melhorados. Acreditamos que haja mercado para isso, mas que corremos um sério
risco de perdermos o senso do humanamente possível. Podemos conceber que
seria curioso assistir durante alguns minutos pessoas modificadas geneticamente
levantando SUV´s, mas isso perderia logo a graça, depois que outros levantassem
caminhões.
Há, porém, algo de perigoso nisso tudo, como o problema de se utilizar o ser
humano como mero instrumento para afiançar regimes político-ideológicos, como já
aconteceu em diversos momentos da recente história do mundo como, por exemplo,
as competições entre as cidades gregas da antiguidade, que “Era uma ocasião em
que se desenvolvia o que já foi classificado de “uma guerra sem armas” e que
propiciava o exercício das disputas entre as póleis, em situação controlada, definida
por regras” (HIRATA, E. F. V. 2009).
Já naquele tempo, havia uma busca pela excelência em diversas
modalidades que cada cidade grega acreditava ser ideal:

A competição entre as cidades envolvia, pois, os vários tipos de


excelência entendidos como ideais na cidade grega. Ao vencedor
cabia, tanto a glória individual pelo feito extraordinário realizado
como, e talvez principalmente, o mérito de ter alçado a sua cidade a
uma posição de destaque frente à comunidade pan-helênica
(HIRATA, E. F. V. 2009).

As reflexões feitas em classe fizeram com que nos inclinássemos a acreditar


que, no caso dos esportes, o que determinaria o êxito dos atletas seria não tanto o
talento do esportista, mas o treino intenso e o esforço pessoal, como exemplificado
nos casos apresentados como o do músico erudito Mozart e dos jogadores de
futebol Neymar e Cristiano Ronaldo.
Embora o filme Amadeus (1984) potencialize a ideia de que a grandiosidade
de Mozart seja oriunda de dádiva, o que o tornou conhecido como um “prodígio da
natureza”, a glória do compositor não teria sido alcançada somente por conta de sua
herança genética, da mesma forma que Neymar e Cristiano Ronaldo também não
podem ser considerados como produtos somente de uma boa genética.
As principais conclusões deste subcapítulo nos direcionam a crer que
diferentemente do que propõe Michael Sandel nas obras utilizadas como referência
92

bibliográfica, os esportes tem como télos a vitória e o alcance records, e não o


simples objetivo de apresentar um espetáculo, e é justamente por causa desse télos
(peculiar à prática esportiva), que chegamos à conclusão de que a eugenia nos
esportes deve ser encarada com um olhar diferente da eugenia que se refere ao
homem comum, mas isso não significa que valeria tudo, pois a saúde dos
esportistas deve estar sempre em primeiro lugar.

3.6 Sobre a ética do melhoramento de Michael Sandel

Ao estudarmos o primeiro capítulo do livro Contra a Perfeição – Ética na Era


da Engenharia Genética, percebemos que o que importa no campo da moral é a
intenção.
Existe uma grande diferença entre o simples desejo e o querer. Enquanto o
desejo pode ser manifestado de maneira vã, o que explica o dito popular: vontade é
coisa que dá e logo passa, ou seja, como uma mera veleidade ou capricho, o querer
deve ser compreendido como uma vontade que se manifesta no emprego de tudo
que seja necessário para alcançar o objetivo almejado.
Devido à demanda de uma clientela aflita por soluções estéticas e de outras
ordens, a ciência tem sido usada para alcançar avanços que possam satisfazer essa
procura, tendo feito surgir um nicho de mercado bastante lucrativo que visa o acesso
à busca da perfeição, considerada um sonho antigo da humanidade, mas que hoje já
é factível, basta que os cientistas queiram realizá-lo.
Esse anseio que visa à perfeição deve ser compreendido como uma
característica que pode ser detectada ao longo da história das principais culturas,
visto que há uma liberdade de querer, que nos leva ao compromisso de entender o
livro "Contra a perfeição" cum grano salis, uma vez que ser totalmente contra a
perfeição parece ser uma posição inclinada a engessar os avanços em benefício do
homem.
Se pudéssemos eliminar doenças antes mesmo do nascimento dos nossos
futuros herdeiros, o que parece ser possível em alguns casos, atualmente seria
possível garantir certas habilidades à nossa prole, que seriam de ótima utilidade na
vida pratica das pessoas e proporcionariam uma vida melhor aos seres humanos do
futuro, dentre outras vantagens disponibilizadas pela ciência.
93

O que se observa em textos dessa natureza é que sempre devemos nos


perguntar sobre qual é a moral da história, mexendo com os princípios que estão
enraizados em nossa mente e que nem sempre percebemos de onde eles realmente
surgiram, o que nos parece é que tais princípios são mesmo algo natural.
É dessa forma que Sandel traz dilemas capazes de despertar as mais
polêmicas discussões sobre o tema eugenia, começando por fatos e nos levando a
pensar a luz dos princípios que embasam toda a ética.
Podemos nos questionar, por exemplo, se uma criança que nasce no Sudão
tem as mesmas liberdades ou condições de vida que uma criança que nasce na
Suécia, ou ainda, se é justo ou moral trazer uma criança à vida em um país como o
nosso, repleto de dívidas, tanto as relacionadas à herança moral quanto as de
ordem econômica, sabendo que a criança já nasceria em condições
consideravelmente desfavoráveis, já viria ao mundo na condição de “devedora”.
E, por que não dar aos nossos herdeiros melhores condições de lutar nesse
mundo competitivo, garantindo a eles o melhor que a ciência pode oferecer como
habilidades, qualidades e virtudes?
Pelo que concluímos do livro de Michael Sandel, sempre haverá uma loteria
genética (e é aqui que entra a questão da intenção como constituindo o que conta
na esfera da moralidade), tanto no caso dos geneticamente melhorados, o que pode
estar ligado a um projeto de vida idealizado e posto em prática pelos pais, como
também no caso dos concebidos e gerados de forma natural (sem a interferência da
engenharia genética). O problema nisso tudo são as intervenções que embutem
“valores”, a ideia de que existe um modo de vida melhor do que os demais, uma vida
modelo, que realmente merece ser vivida e cultivada na terra. A intervenção, ou
seja, a manipulação genética para evitar uma doença não implica qualquer problema
moral, mas a concepção do homem de como o ser humano deve ser, sim, tendo em
vista o telos com enfoque na eugenia.
Adentraremos a discussão de forma mais profunda adiante.

3.7 O espectro da eugenia no mundo ocidental e a importância da doutrina

Em se tratando do tema manipulação genética, é impossível deixarmos de


lado a questão jurídica que envolve discussões acerca do assunto. Enquanto muitos
94

países se mostram fechados quanto ao emprego das técnicas de engenharia


genética, outros parecem se abrir cada vez mais às possibilidades do acesso a
essas técnicas, principalmente quanto aos casos particulares, como é o caso dos
EUA.
Nesse interim, a falta de legislação que verse sobre como tais técnicas podem
ou devem ser manuseadas, bem como a ultrapassada gama de diretrizes da
bioética, acabam deixando uma lacuna enorme diante de casos concretos e, é
dessa forma que o caráter dinâmico do direito se faz presente e indispensável para a
formulação de diretrizes normativas que possam nortear os interessados na prática
da manipulação genética e/ou punir os que ultrapassem os limites. Nesse prisma, a
atuação da doutrina é de vital relevância para que através dos escritos possa
influenciar as normas éticas e também o mundo jurídico norteador das práticas sob a
égide da bioética e das leis.
Assim, percebemos que tanto o terror em se falar sobre eugenia devido ao
ocorrido no período do Nazismo quanto a licenciosidade das práticas de intervenção
direta nos genes humanos podem prejudicar o uso da ciência que, em vez de
proporcionar benefícios ao homem, pode passar a representar uma verdadeira
ameaça de regresso aos tempos sombrios do passado.
O pensador alemão Jürgen Habermas propõe, em O futuro da Natureza
Humana (2004), uma espécie de convenção europeia para fins de tratar dos
assuntos relacionados à manipulação genética, o que parece caminhar lado a lado
com o pensamento de Peter Häberle (constitucionalista também alemão), que
leciona em Hermenêutica Constitucional: A Sociedade Aberta dos Intérpretes da
Constituição, que:

No processo de interpretação constitucional estão potencialmente


vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas,
todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um
elenco cerrado ou fixado como numerus clausus de intérpretes da
constituição (HÄBERLE, 1997).

Nesse ínterim, pretendemos apontando o lugar de destaque dos teóricos, ou


seja, da doutrina para o aprimoramento ético-legal, uma vez que entendemos que a
doutrina pode ser uma excelente forma de auxiliar o ordenamento em prol de
melhoras na legislação por meio da crítica, que na maioria das vezes se fundamenta
95

em princípios como o da celeridade e economia processual, entre outros protetivos e


em benefício do indivíduo, sobre os quais não raras vezes são pautados com base
em críticas na esfera da moral.

3.8 A herança moral da Alemanha

Como já vimos no primeiro capítulo, a Alemanha carrega uma


responsabilidade muito grande face ao que ocorreu no período nazista, fatos que
ensejam um receio muito peculiar àquela nação ao que se refere a qualquer medida
que se assemelhe à eugenia. A nosso ver, o mencionado receio parece ser tão
acentuado que reflete até o tempo presente em grande parte da Europa, tendo
inclusive se expandido como forte corrente para quase todo o mundo ocidental.
A título de exemplo do que poderia representar essa herança nazista,
podemos citar a Carta dos Direitos Humanos da União Europeia, que, conforme já
mencionado por (HABERMAS, 2004), em seu artigo 3º, proíbe as práticas
eugênicas, sobretudo as que visam à seleção de pessoas:

Artigo 3. O Direito à integridade do ser humano

1. Todas as pessoas têm direito ao respeito pela sua integridade


física e mental. 2. No domínio da medicina e da biologia, devem ser
respeitados, designadamente: o consentimento livre e esclarecido da
pessoa, nos termos da lei, a proibição das práticas eugênicas,
nomeadamente das que tem por finalidade a seleção das pessoas, a
proibição de transformar o corpo humano ou as suas partes,
enquanto tais, numa fonte de lucro, a proibição da clonagem
reprodutiva dos seres humanos (CARTA DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS DA UNIÃO EUROPÉIA, 2000).

Devido à carga dessa herança e por outros motivos mais, na própria


Alemanha o legislador optou por proibir não só o Diagnóstico Genético de Pré-
implantação (DGPI) e o uso de embriões exclusivamente para pesquisa, mas
também nas questões relativas à clonagem terapêutica, à barriga de aluguel e a
eutanásia, que já é permitida em outros países, confirmando assim a marca desse
tabu.
A pesquisa com embriões e o DGPI (diagnóstico genético de pré-implantação)
acirram os ânimos, sobretudo porque são exemplos de um perigo que parece se
96

vincular à metáfora da “criação de humanos” e, a esse respeito, Habermas aduz o


que ele chama de “moralização da natureza humana”, citando uma passagem
importante da obra de Van den Daele: “aquilo que se tornou tecnicamente disponível
por meio da ciência deve voltar a ser normativamente disponível por meio do
controle moral” (VAN DEN DAELE, 2000, p. 24-31).
A “nova” necessidade de regulamentação sobre a qual Habermas se
posicionou há mais de uma década já precisa ser urgentemente revisada diante do
que a técnica científica hoje é capaz de realizar. Em outras palavras, o mundo está
carecendo de regulamentação para a aplicação das técnicas e utilização da ciência
em prol do ser humano, carência esta que não se confunde com a constatação de
novos problemas morais, pois como afirma Esteves:

Não pode haver problemas morais inteiramente novos: nós


simplesmente seríamos incapazes de tomar conhecimento deles a
partir do exame da realidade, se não dispuséssemos a priori de
princípios morais à luz dos quais avaliamos o que é dado na
realidade (ESTEVES, 2015, p. 95-118).

É justamente sob este prisma que se faz necessário cobrar dos estudiosos da
ética e bioética, melhor dizendo, da própria filosofia como mãe de todas as ciências
uma resposta através de manifestações que possam servir à humanidade na prática
e não somente construções teóricas. Nesse sentido continua o autor:

Ora, se não se trata propriamente de problemas morais inteiramente


novos, mas de velhos e tradicionais problemas sob uma nova
roupagem, então é lícito poder esperar obter da tradição filosófica
alguma orientação relevante para dar conta dos mesmos
(ESTEVES, 2015, p. 95-118).

Habermas começa a obra O futuro da Natureza Humana (2004) defendendo a


ideia de que o pensamento pós-metafísico deveria impor a si próprio uma
moderação, quando se trata de tomar posições definitivas em relação a questões
substanciais sobre a vida a qual ele denominou de boa ou não-fracassada, e
argumenta ainda se a filosofia estaria apta a se permitir a mesma moderação
também em questões relativas à ética da espécie.
A partir de um olhar retrospectivo às práticas hoje contestadas, Habermas se
preocupa e passa a considerar tais práticas como precursoras do que para ele
poderia ser algo como uma espécie de eugenia, definido por ele como eugenia
97

liberal, uma espécie, à primeira vista, regulada pela lei da oferta e da procura, o que
faz o pensador aduzir se haveria a possibilidade de uma moderação justificada e se
seria possível haver respostas pós-metafísicas para a questão sobre a vida
considerada como “correta”.
A antiga questão aberta aos pensadores sobre o que o ser humano deve e/ou
pode fazer com a própria vida pareceu durante muito tempo estar sob o domínio de
resposta dos filósofos, que teriam achado, segundo Habermas, que dispunham de
conselhos adequados para tal pergunta ou até mesmo respostas para elas. No
entanto, ainda no entendimento do referido pensador, após a metafísica, a filosofia
já não se julgaria mais capaz de dar respostas definitivas às perguntas sobre a
conduta de vida pessoal ou até mesmo coletiva.
Foi justamente em busca de um sentido exemplar ou de um modelo digno de
imitação para a vida que as grandes religiões apresentaram e ainda vêm
apresentando, de há muito, a vida dos seus fundadores e de grandes seguidores
como o caminho da salvação, ou seja, o modelo de uma vida exemplar, uma vida
que “merece ser vivida”, mostrando que a metafísica também parece ter algum dia
pretendido e, ao que parece ainda hoje, oferecer seu posicionamento quanto a
modelos de vida.
Ainda no entendimento de Habermas (2004), as doutrinas da sociedade justa,
como ele mesmo exemplifica como sendo a ética e a política, seriam consideradas
ainda como doutrinas com uma base única, aptas a formarem um todo que estaria
sendo construído no mundo do conhecimento, ao passo que, para o pensador,
desde a antiga Polis grega à classe medieval, transpassando o Renascimento com o
conceito hegeliano do indivíduo universal até a estrutura da família, da sociedade
civil e da monarquia constitucional, alcançando o liberalismo político proposto por
John Rawls (que reage ao pluralismo ideológico e a individualização dos estilos de
vida), as tentativas filosóficas de apresentar um modelo de vida foram fracassadas.
Para Rawls a “sociedade justa” deixa à critério de todas as pessoas aquilo que eles
querem “iniciar com o tempo de suas vidas” (HABERMAS, 2004, p. 4/5).
Esse ponto traz à baila o que entendemos ser o mais adequado ao que
passamos no presente, uma vez que diante das conjunturas atuais parece ser lícito
convir que somente pudesse ser possível a uma cultura conseguir se afirmar perante
outra se convencesse as novas gerações sobre suas vantagens, e a única maneira
98

de se atingir esse convencimento, ao que tudo indica, seria por intermédio do


diálogo entre pessoas e instituições.
Ocorre que quando tratamos sobre o tema manipulação genética, há algo que
nos parece ser bastante equivocado justamente por conta da resistência ao tema
gerada por um passado um tanto quanto desastroso. Todavia, o que nos parece
mais razoável seria a possibilidade de garantir às novas gerações o poder de dizer
sim ou não quanto ao futuro delas próprias, quanto ao que lhes cabe diante do que
querer e ter o direito de ser em um futuro próximo, libertando-as dos grilhões de
decisões tomadas por gerações passadas, que muito provavelmente ainda
estivessem sofrendo consequências de sistemas ditatoriais e sombrios em relação à
informação e ao conhecimento, ou seja, por esse viés político-filosófico o que nos
parece mais razoável a ser cogitado é que as gerações atuais não podem e nem
devem ser escravas das decisões dos seus antepassados estigmatizados por
sistemas autoritários.
Nessa corrente de pensamento, enxergamos a capacidade da filosofia não
somente teórica, mas principalmente por meio dos seus efeitos, ou seja, na vida
prática, de se esforçar até hoje para elucidar o ponto de vista moral, e responder a
célebre pergunta que envolve o que devemos fazer com as nossas vidas e qual
caminho devemos adotar, uma vez que as questões éticas englobam o interesse em
sabermos mais sobre nossa identidade, sobre quem somos e quem queremos ser e
nos tornar, o que retoma mais uma questão fundamental abarcada pela incógnita do
por que não procurar agir certo porque é certo, sem se preocupar com os
julgamentos morais.
No pensamento de Habermas, o que aparentemente é acentuado é que
muitas teorias deontológicas após Kant teriam avançado nas explicações de como
as normas morais devem ser fundamentadas e aplicadas, mas não teriam sido
capazes de responder o porquê deveríamos ser efetivamente morais, se isso teria
algo a ver com a falta de conhecimento próprio do ser humano ou mesmo se a
filosofia deveria se intimidar com algo que a psicanálise se julgasse capaz de fazer
e, ainda na linha do que pensa Habermas, consta que Kierkegaard teria
desenvolvido um importante conceito pós-metafísico que seria denominado como
“poder ser si mesmo” e versaria sobre a necessidade do indivíduo recobrar a
consciência de sua individualidade e de sua liberdade, para que, somente assim, tal
99

indivíduo pudesse ser capaz de assumir a responsabilidade pelos próprios atos e


contrair compromissos com seus semelhantes (HABERMAS, 2004).
Essa linha de pensamento estaria inclinada a afirmar que o indivíduo
consciente de sua existência pudesse prestar contas continuamente de sua própria
vida, de maneira que realizasse uma autorreflexão ética como projeto de uma vida
com êxito, reflexão esta que se basearia em uma autocrítica de apropriação do
passado, o que poderia, através do arrependimento, levá-lo à construção de uma
nova imagem de si mesmo.
Assim, segundo esse raciocínio, o indivíduo estaria apto a afirmar que ele
seria o próprio redator de sua história, mas em contrapartida para Kierkegaard o
indivíduo seria responsável perante Deus (HABERMAS, 2004).
Atualmente, diante da real possibilidade de o ser humano brincar de ser Deus,
faz-se necessário estabelecer critérios e parâmetros para responsabilizar os
geneticistas e aos outros profissionais ligados a essas técnicas, bem como aos pais
projetistas perante os atos praticados.
Com as novas tecnologias e com o avanço das ciências biomédicas e da
engenharia genética, nos parece que o ser humano já atingiu esse status de criador,
mesmo que ainda não tão aperfeiçoado como muitos imaginam. Por isso, nos
preocupamos em como estabelecer os limites morais para essa atuação tão
poderosa desses novos “deuses”, e esse caminho ao que nos parece mais sensato
deveria ser trilhado a partir da busca pelo diálogo entre as instituições e a
população.
No texto de Habermas, há uma tendência em acreditar que movimentos de
fuga nos levariam a uma posição de recuo, ou seja, o desespero de não querer ser
esse si mesmo, ou seja, um criador e, se isso fosse verdade, poderia gerar uma
dependência de projetar um sucesso na prole, o que poderia ocasionar problemas
de pais projetistas com um viés inclusive patológico.
Ao que parece, Habermas, partindo de uma visão pós-religiosa, também
permite a caracterização de uma vida não fracassada nos moldes do que
Kierkegaard teria compreendido como uma ética pós-metafísica, a partir de
direcionamentos determinados de projetos de vidas individuais, para ele vige a
seguinte premissa: “Tão logo a auto compreensão ética de sujeitos capacitados para
a linguagem e para a ação entra totalmente em jogo, a filosofia não pode mais se
100

furtar a tomar posição a respeito de questões de conteúdo” (HABERMAS, 2004, p.


17). No mesmo sentido, o progresso das ciências biológicas e o desenvolvimento
das biotecnologias teriam ampliado não apenas as possibilidades de ação já
conhecidas, mas também possibilitado um novo tipo de intervenção.
Em consonância com o que já foi abordado, prossegue Habermas:

Na medida em que o organismo humano também é compreendido


nesse campo de intervenção, a distinção fenomenológica de Helmuth
Plessner entre “ser um corpo vivo” (Leib sein) e “ter um corpo”
(Koerperhaben), segundo Habermas, passa a adquirir uma
atualidade impressionante: a fronteira entre a natureza que “somos”
e a disposição orgânica que “damos” a nós mesmos acaba se
desvanecendo (HABERMAS, 2004, p. 17).

Assim, em prol de uma convenção, pensadores deveriam se manifestar sobre


os possíveis modelos de escolha de como iremos proceder de agora em diante por
meio de elaboração de normas éticas e legais que conduzam a humanidade a uma
vida feliz, digna e equilibrada, pois é esse o sentido da crítica doutrinária, qual seja,
o de orientar os lidadores do direito para a modificação da legislação, aplicação
correta da lei e criação de novas leis, tudo isso em prol de atender o destinatário
desses serviços, ou seja, o contribuinte.
O próprio Habermas apresenta dois modelos possíveis como exemplo de
como poderíamos utilizar o alcance da nova margem de decisão, quais sejam: de
maneira autônoma – segundo considerações normativas que se inserem na
formação democrática da vontade; ou de forma arbitrária – em função de suas
preferências subjetivas, que serão satisfeitas pelo mercado. Ao que nos parece a
mais razoável delas é a primeira opção. Ele questiona ainda se deveríamos ou não
considerar a possibilidade de intervir no genoma humano como um aumento de
liberdade, que precisa ser normativamente regulamentado, ou como a
autopermissão para transformações que dependem de preferências e que não
precisam de nenhuma autolimitação, convidando assim a comunidade científica a se
direcionar rumo a uma convenção democrática (HABERMAS, 2004, p. 18).
Mas, o que os libertários achariam disso? Como já explicado anteriormente,
para esse grupo ideológico, apenas um Estado mínimo seria aceito e moralmente
justificável e, nesse meandro, lecionou o filósofo contemporâneo Michael J. Sandel
101

em Justiça – O que é Fazer a Coisa Certa: “os libertários são contra as leis que
protegem as pessoas contra si mesmas” (SANDEL, 2013, p.79).
Mas não foi somente citando como exemplo as leis que obrigam o uso de
cinto de segurança e as relativas ao uso de capacetes para motociclistas, exemplos
já tratados anteriormente por nós neste trabalho, que Sandel marcou sua posição
quanto às questões sobre intervenção direta do ser humano no próprio ser humano,
tanto ao que concerne à vida intrauterina e ao próprio embrião utilizado em
laboratório, mas também em seu livro intitulado Contra a Perfeição – Ética na Era da
Engenharia Genética, no qual aborda temas como: a ética do melhoramento; atletas
biônicos, filhos projetados, pais projetistas, entre outros não menos relevantes.
Em todo esse contexto, existe hoje um grande desafio a respeito da liberdade
e de se estabelecer seus limites em uma compreensão moderna, o que, para
Habermas, pelo menos no que toca a uma possível eugenia negativa, somente após
um consenso em favor de que o poder de intervir no genoma humano significaria um
aumento de nossa liberdade, mas que deveria, segundo ele, ser normativamente
regulamentado. Somente a partir disso, poderíamos falar na possibilidade da prática
da eugenia negativa com segurança e nos limites da ética, ou seja, a única espécie
de eugenia voltada à eliminação de males poderia ser aplicada de forma a servir o
homem.
Para que possamos responder à velha questão, se os seres humanos teriam
sido transformados em objetos, acreditamos que o caminho é o diálogo, mas que
para tanto, os pensadores devem estar sempre atentos a sua função crítica de
escrever sobre direcionamentos ao corpo legislativo, que não raras vezes
principalmente em países como o Brasil, não é formado por juristas especializados
ou profissionais versados em questões ético-legais. Portanto, para nós, esse seria o
momento de se pensar em como outorgar à humanidade a chance de decidir sobre
o seu futuro.
Mas, por que a preocupação na esfera jurídica se esses são problemas que
permeiam a bioética? Na época da publicação do livro (2004), Habermas afirmou
que:

Quando os adultos passarem a considerar a composição genética


desejável dos seus descendentes como um produto que pode ser
moldado e, para tanto, elaborarem um design que lhes pareça
apropriado, eles estarão exercendo sobre seus produtos
102

geneticamente manipulados uma espécie de disposição que interfere


nos fundamentos somáticos da auto compreensão espontânea e da
liberdade ética de outra pessoa (HABERMAS, 2004, p. 19).

No presente, por meio de diversas pesquisas e obras assinadas por autores


importantes em todo o mundo, como por exemplo, o já referido Michael Sandel;
Peter Singer (1946); Mayana Zatz, (2015) professora de genética (brasileira
mundialmente reconhecida); entre outros, é possível perceber que esse fenômeno já
ocorre, e que será encarado naturalmente pelas novas gerações, o que poderia
levar os descendentes a exigir direitos diante do poder judiciário, responsabilizando
seus produtores por consequências indesejáveis e, é justamente nesse ponto que
para nós reside a importância da doutrina jurídica.
Com a facilidade oferecida pela mídia, a herança moral alemã 8 diante do que
ocorreu no período nazista, parece ter sido transmitida a quase todo o mundo
ocidental gerando um grande temor ao retorno das práticas fascistas, indicando que
falar em eugenia, mesmo que em ambientes acadêmicos pode ter se tornado um
verdadeiro tabu trazendo como consequência um prejuízo incalculável à
humanidade e, a esse respeito, há diversos posicionamentos de juristas que
apresentam questionamentos válidos como forma de estimular o pensamento sobre
os problemas morais que envolvem a manipulação genética, como demonstra a
seguir:

É justo estimular o nascimento de criaturas que venham ao mundo


carregando profundas limitações físicas e/ou mentais? E, ainda, com
o Projeto Genoma Humano e o progresso da terapia gênica,
consistirá em prática eugênica “consertar” preventivamente pares
danificados de gens detectados em fase intrauterina? (GARRAFA.
2003).

Na utilização prática de todo esse conhecimento científico, é necessário


termos total atenção às normas jurídicas, aos costumes de cada país e de cada
povo e, em especial, à ética/moral (objetivo central deste trabalho), para que não
haja violações das normas protetoras do ser humano, em virtude de ser comum na
atualidade a transmutação de genes, por exemplo, com objetivo de melhoramentos

8
Esse termo é utilizado pelo prof. Dr. Julio Cesar Ramos Esteves para expor uma teoria. No prelo.
103

das qualidades e princípios nutritivos de plantas (como tudo começou), bem como
fortalecimento de características dos seres humanos (de alguns anos pra cá).
Abrindo um parêntese, para adentrar ao mundo jurídico, muitos hermeneutas
e pensadores do direito estão preocupados não é de agora com esse tema. O jurista
Augusto Cardio constatou o que já era esperado nos últimos anos, diante de tanta
novidade científica e tecnológica, a necessidade de que surgissem normas no
sentido de proteger o ser humano:

Obrigatoriamente surgiram normas de proteção ao ser humano em


seu aspecto psíquico e físico, mudanças na legislação nacional e
internacional, novas interpretações, normas profissionais,
jurisprudências e doutrina (CARDIO, 2011).

A título de explicação, cabe mencionar que hoje o termo usado para definir
esse ramo da biologia é eugenética, que pode ser negativa, aquela que consiste nas
ações para prevenir doenças genéticas, ou eugenética positiva, a que cuida de
especular sobre o melhoramento de características físicas e mentais do futuro ser.
Nesse conceito, o termo “eugenética” representa a forma contemporânea da
eugenia, “uma tecnociência nascida nos anos 70 do encontro entre genética,
biologia molecular e engenharia genética” (ROLAND SCHRAMM, 2016).
Há inclusive alguns estudiosos que advogam em prol de uma eugenia a ser
aplicada com a finalidade do aperfeiçoamento do caráter, o que, à primeira vista, nos
parece algo intangível e, seguindo a mesma direção, para Arnhart, em se tratando
do caráter, nós não nascemos virtuosos ou com vícios, mas sim com temperamentos
e capacidades que nos influenciam a adquirir virtudes por meio do aprendizado e de
nossa capacidade de realizar julgamento. (ARNHART, 2010).
Essa linha teórica, parece ser afiliada ao que Aristóteles já propunha em Ética
à Nicômaco, versando que as virtudes não surgiriam em nós pela natureza nem
contrariamente a ela, mas por nossa natureza seria possível receber tais virtudes e
aperfeiçoá-las por meio do hábito (ARISTÓTELES, 1991, p. 24-25).
De Platão à Galton, lançando-se aos dias atuais, o sonho utópico de melhorar
o caráter humano (aperfeiçoamento moral) vai se tornando cada vez mais ambicioso
diante das novas técnicas atingidas pela ciência, o que traduz uma causa com intuito
de transformar o ser humano do futuro em super-homens, todavia, em contrapartida,
104

existe um grupo de teóricos mais conservadores que parece temer bastante o que
eles chamam de uma perigosa sedução que poderia desumanizar nossa espécie.

3.9 O papel doutrinário da ética para influenciar o mundo jurídico

Nosso ponto é algo que acreditamos ser do interesse do próprio ser humano,
a saber, a discussão no sentido de impulsionar as convenções políticas no sentido
de definir como a ciência de hoje pode nos beneficiar e quais seriam os limites
dessa atuação capazes de garantir a segurança da nossa espécie.
A doutrina, ao longo da história do direito e da própria filosofia, vem ocupando
um papel ético no sentido de abrir os olhos do legislador e dos lidadores do direito,
para que haja a possibilidade de se corrigir leis ou revogá-las no que couber em prol
de um ordenamento mais lapidado. É nisso que consiste a atividade do pensador no
âmbito do que pode e deve ocorrer no mundo fenomênico e, a esse respeito, o
pensador britânico Bertrand Russell certa feita afirmou que:

Embora em geral os filósofos sejam vistos com tolerante indiferença


pelo resto da humanidade, assim que emitem uma opinião crítica, é
impressionante como conseguem agitar as águas turvas da política
profissional. Nada aborrece tanto os que governam do que a
insinuação de que, afinal, talvez não sejam tão sábios quanto se
imaginavam (RUSSELL, 2016, p. 56/57).

Diante do apresentado por Russell, consideramos a importância da doutrina


no que toca ao tema deste trabalho, com ênfase na lei natural, ou seja, algo maior
do que a própria lei positivada, que deveria orientar e determinar o certo e o errado.
Manifestações de grande valor para a presente discussão podem ser encontradas
na literatura, como por exemplo, o destaque na obra Antígona de Sófocles, que
integra a trilogia tebana, na qual a riqueza cultural com base nos costumes é
invocada na forma da divindade Dikê ou justiça no seguinte contexto: Após a morte
de Édipo, o irmão de Antígona declara guerra ao tio, cujo nome é Creonte. Dessa
disputa, Creonte sai vitorioso, e imediatamente impede os ritos fúnebres praticados
naquela comunidade durante muito tempo, o que faz com que Antígona, indignada,
invoque a lei divina:
105

Sim, pois não foi decisão de Zeus; e a Justiça, a deusa que habita
com as divindades subterrâneas, jamais estabeleceu tal decreto
entre os humanos; tampouco acredito que tua proclamação tenha
legitimidade para conferir a um mortal o poder de infringir as leis
divinas, nunca escritas, porém irrevogáveis; não existem a partir de
ontem, ou de hoje; são eternas, sim! E ninguém pode dizer desde
quando vigoram (SÓFOCLES, 2006, p. 96).

Esse texto demonstra a importância de que há limites ao “Imperador”, do


mesmo modo que para alguns pensadores da história do direito, o antigo testamento
estabelece limites quando apresenta a ideia de que o homem teria sido criado à
imagem e semelhança de Deus, ou seja, qualquer agressão que fosse direcionada
ao homem passaria a ser uma agressão ao próprio Deus.
É importante frisar que esses dois exemplos devem ser encarados como em
épocas em que não havia lei positivada, mas sim uma lei moral que subordinava
tudo e todos, inclusive quem estava no poder. É nesse sentido que a ética ou moral
pode ser confundida com o próprio direito.
Já no auge do Direito Romano, com a sedimentação do princípio da
legalidade constante na Lei das 12 tábuas, quando Marco Túlio Cícero em sua obra
Da República afirmou: “Se um homem virtuoso se confrontar com uma lei que
contrarie tais ditames, nem por isso deve deixar de seguir e observar as regras da
eterna justiça em lugar das de uma justiça convencional”, em outras palavras, no
conflito entre a justiça e a lei, deve-se preferir a justiça. Nesse ponto está novamente
cravada a ideia de limites (CÍCERO. 2011).

Natura initium juris, disse Cícero. A lei, as instituições humanas, as


regras e toda ordem mundana derivam de uma única fonte, a toda
poderosa natureza, a única fons legum et juris, e o logos as revela
para o homem. A natureza comanda, é um preceito moral que
ordena ao homem obedecer ao logos soberano que rege a história
(DOUZINAS, 2009, p. 65).

Séculos depois, após a Segunda Guerra Mundial, com a construção dos


Direitos Humanos, podemos nos remeter ao jusnaturalimso, um dos seus
fundamentos, no qual impera que haveria um conjunto de normas vinculantes
anteriores e superiores ao sistema de normas fixadas pelo Estado. Hugo Grócio
(1583 - 1645), considerado como um dos fundadores do Direito Internacional, teria
escrito bastante sobre conjunto de normas ideais fruto da razão humana, ou seja,
com a premissa de que o direito dos legisladores só poderia ser considerado como
106

válido se compatível com os mandamentos desta lei imutável. Outro importante


filósofo que também teria versado sobre o jusnaturalismo foi São Thomás de Aquino,
em uma corrente que entendia que a lex humana deveria obedecer a lex naturalis,
que seria fruto da razão:

A lei natural é clara, irrefutável e simples. Nenhuma dúvida é


expressa em relação a sua harmonia com a sociedade civil e o
“caráter imutável das suas proposições fundamentais”, formuladas
por Deus, que dá as leis na “segunda tábua do decálogo9”. Esses
princípios de lei divina não sofrem exceção no abstrato e sua
validade universal é enfatizada por sua inscrição na consciência
humana ((DOUZINAS, 2009, p. 71).

O autor complementa ainda que: “A lei natural não pode ser legislada em
normas ou cânones de comportamento e não aceita uma formulação rígida ou fixa.
Ela oferece apenas orientações gerais acerca do caráter das pessoas e da ação da
lei” (Ibidem). O caráter metafísico como traço marcante do jusnaturalismo deve-se
ao fato de fundar-se na existência de um direito preexistente ao direito produzido
pelo homem, podendo sua origem ser dupla. Segundo alguns esse direito seria
oriundo de Deus; segundo outros seria proveniente da própria natureza do homem.
Em algum grau, é possível constatarmos manifestações jusnaturalistas até
hoje como, por exemplo, a Declaração de Viena de 1993 – 2° Conferência Mundial
das Nações Unidas, parte 1, § 1°, que versa que “os direitos e as liberdades
fundamentais são direitos naturais de todos os seres humanos” (VIENA, 1993).
O jusnaturalismo também está presente no ordenamento jurídico brasileiro em
decisões recentes do Supremo Tribunal Federal, como é o caso da ADI 595/ES cujo
relator foi o Ministro Celso de Mello, julgamento este que definiu bloco de
constitucionalidade material como sendo “o conjunto de normas de estatura
constitucional composto pelas normas expressas na constituição e normas implícitas
e valores do direito natural” (MELLO, Informativo 258. STF).
Existe uma grande crítica quanto ao jusnaturalismo, que se refere a uma falta
de comprovação dos direitos inerentes à natureza do homem.
Ainda na esfera dos Direitos Humanos, podemos destacar a interpretação
pro-homine, que é utilizada na análise de omissões e lacunas das normas de direitos

9
Os dez mandamentos ou preceitos da lei de Deus, escritos em duas tábuas de pedra e entregues a Moisés no monte Sinai,
segundo o livro do Êxodo.
107

humanos, bem como não poderíamos deixar de considerar o princípio da primazia


da norma mais favorável ao indivíduo que reza que nenhuma norma de Direitos
Humanos pode ser invocada para limitar de qualquer modo o exercício de outros
direitos. Podemos citar com o exemplo a repercussão da produção doutrinária no
mundo jurídico o título VI do Código Penal Brasileiro, que até a vigência da lei
12.015/09, tratava dos crimes contra os costumes.
Ora, a doutrina se perguntava, se o artigo 213 do Código Penal, constante no
referido título, previa mesmo a punição de um crime contra os costumes, o que
significa costumes? E a própria doutrina respondia: Costumes, no caso em tela,
nada mais são do que comportamentos que respeitam a esfera da moralidade
sexual pública. Mas será que o estupro viola a moralidade sexual pública? A
doutrina majoritária entendeu que não, pois o Estado não é mais vítima do que a
própria vítima e, do mesmo modo, a sociedade não pode ser considerada mais
vítima do que a própria vítima. Então, em 2009, acatando as críticas da doutrina, o
legislador modificou o referido título para que passasse a contemplar a punição de
crimes contra a dignidade sexual. Este é um excelente exemplo de como a doutrina
pode e deve atuar em prol da melhoria do ordenamento jurídico visando atender
melhor a sociedade.
Outro exemplo marcante em nossa história é o do Decreto 3.200/41 (Getúlio
Vargas), no qual estava prevista a possibilidade de casamento avuncular (entre tio e
sobrinha), desde que passassem por dois (2) médicos que garantissem que a prole
não seria afetada. Sendo assim, o juiz poderia autorizar o casamento.
Como se pode perceber, o referido decreto não abarcou os campos da moral
e o social, mas sim apresentou uma preocupação eugência. É importante ressaltar
que o Código Civil vigente reproduz regra do Código Civil de 1916 que é proibitiva
do casamento avuncular. Os fundamentos históricos da proibição eram: repúdio
social e riscos para a prole (eugenia). Todavia como já visto, o Decreto 3.200/41
admitiu tais casamentos por autorização judicial desde que houvesse dois (2) laudos
médicos que comprovassem inexistência de riscos à prole.
A questão que ficou a ser definida foi se o Decreto em comento sobreviveu ou
se teria sido revogado pelo Novo Código Civil, e daí entra o forte papel da doutrina,
que entende majoritariamente que o Decreto é lei especial e, por isso, prevalece
sobre a lei geral. Logo, o casamento avuncular é possível nos dias atuais. Assim
108

sendo, a segunda questão que se coloca é saber se é possível casamento avuncular


homoafetivo por meio de autorização judicial ou se essa é desnecessária, ao que a
doutrina ainda terá que versar.
Grandes nomes do direito expressaram seus entendimentos sobre os
costumes e a própria lei positivada, como, por exemplo, Bevilácqua, que previa que
a pureza dos costumes e as razões de origem fisiológica deveriam aconselham
maior rigor, sendo possível compreender que a expressão “pureza dos costumes”
para o referido autor reputa-se à moral social, enquanto que a expressão “ordem
fisiológica” se refere à eugenia (SIMÃO, 2013).
Lacassagne também se manifestou sobre o tema e, para ele, a atmosfera
moral da família deveria conservar-se límpida:

Nos meios urbanos sempre viciados, ela dará maus frutos, e o direito
de intervir para evitar a degeneração da raça. Além disso, a doutrina
do Código apoia-se na ética. A atmosfera moral da família conserva-
se mais límpida, se entre tios e sobrinhos não houver a possibilidade
de enlaces lícitos (LACASSAGNE apud SIMÃO, 2013).

Como o Decreto 3.200/41 afasta a questão do campo da moral e restringe o


problema a questão da saúde da prole, no casamento homoafetivo a questão não se
coloca, pois será impossível a prole do casal ser consanguínea.
Atualmente, temos também pela possibilidade de casamento avuncular no
Brasil, o enunciado 98 do Conselho da Justiça Federal que, embora não faça parte
do ordenamento jurídico pátrio serve como base interpretativa e reza o seguinte:

98 – Art. 1.521, IV, do novo Código Civil: o inc. IV do art. 1.521 do


novo Código Civil deve ser interpretado à luz do Decreto-Lei n.
3.200/41 no que se refere à possibilidade de casamento entre
colaterais de 3º grau (ENUNCIADO 98 do CJF).

Diante do que expusemos, fica clara a importância da doutrina e também que


há parcela significativa dela a favor do casamento avuncular, como Sílvio Venosa,
Maria Helena Diniz, Washinton de Barros Monteiro, Luiz Edson Fachin, Maria
Berenice Dias e outros (SIMÃO, 2013).
O intuito dessa preocupação que toca cada esfera do saber é o receio de que
todo esse avanço de técnicas e de descobertas possa comprometer nossa espécie e
também o mundo, ou seja, a vida na terra e o próprio planeta, caso essas técnicas
109

de manipulação genética, tão avançadas, sejam empregadas para objetivos


egoístas e ou doentios, o que poderia nos levar às ruinas.
Prioritariamente devemos traçar limites a serem observados pelos que detém
o poder/direito de utilizar essas técnicas, como médicos, biólogos, geneticistas e
outros muitos, uma vez que nos posicionamos no sentido de que não basta que haja
leis, mesmo que bem estruturadas coibindo a prática da manipulação genética de
uma forma ou de outra, mas sim a moral, que deve ser entendida acima de qualquer
legislação, na medida em que ela deve ser o guia do ser humano, devendo o direito,
por seu caráter dinâmico acompanhar a sociedade.
A partir dessa premissa, temos a concepção do comprometimento das
Ciências Jurídicas perante essas ciências da vida e da saúde, observando, a priori,
que a moral deve estar assídua em todo sistema de organização e melhoramento
social como instrumento de regulação, e mais, que deve servir como guia à
sociedade rumo ao progresso, da mesma forma que o Direito pretende ser um guia
em busca da paz social em qualquer que seja o regime político ou o sistema de
governo do Estado.
Nesse ínterim, cabe lançar mão de algumas observações sobre o tema que
consideramos interessantes para encerramento deste trabalho, são elas:
1- Existe hoje a interferência da medicina nos processos de fecundação e
desenvolvimento do feto até mesmo escolha de suas características físicas como:
sexo, cor dos olhos, capacidade cognitiva etc, como já abordado nos capítulos
anteriores.
2- A biologia também tem manifestado diversas experiências na mutação
genética de plantas e animais, inclusive, pelo que parece, foi daí que tudo começou
no que diz respeito à manipulação genética.
110

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A questão central abordada neste trabalho foi basicamente a seguinte: Seria


antiético ou imoral realizar manipulação genética em seres humanos? A segunda
questão que complementou a primeira foi a seguinte: Estariam as ciências médicas
de acordo com os princípios morais e éticos, com a Constituição Federal e leis
ordinárias de nosso ordenamento e do Direito comparado?
Com base nesses questionamentos, propomos uma dissertação a respeito
das teorias da evolução genética e sua correspondência com a moral, mencionando
o direito devido a sua importância para a vida em sociedade, pois a evolução da
sociedade deve ser perseguida pelo direito com a finalidade de regular as condutas
e estabelecer limites aos cidadãos. Nesse viés, acreditamos que antes de tudo a
norma moral, a saber, os conceitos da ética devem ser perseguidos para que
possam servir de guia para todos os profissionais que atuam na esfera da ciência e
estejam envolvidos nos dilemas da aplicação e utilização das grandes descobertas e
dos inventos alcançados pelos cientistas e das técnicas de manipulação genética
que já estão à nossa disposição, bem como os profissionais que irão lidar
diretamente com os procedimentos de intervenção. É nesse ponto que reside a
importância da filosofia e do direito quanto à prática da eugenia, a saber, a busca
pelo melhoramento e pela prática segura da manipulação genética.
Abordamos o tema “função maior dos juristas”, que deve ser sugerir com
quais instrumentos legais o Estado deverá trabalhar em prol da proteção do cidadão,
de maneira que a sociedade respeite as normas éticas, a partir de uma definição
hierárquica dos bens jurídicos que devem ser tratados como mais importantes, quais
sejam: os que estão ligados à sobrevivência da espécie humana, como a vida, a
liberdade, a igualdade e a dignidade da pessoa humana.
Por fim, ponderamos que aos estudiosos do direito cabe a atenção,
sobretudo, para a atuação do Estado, que em vários momentos da história mostrou-
se demasiadamente coercitivo, sendo importante frisar o que fora formulado por
Kant que “todo homem possui direitos imperdíveis, aos quais ele nem mesmo pode
renunciar, mesmo se quisesse, e os quais ele mesmo está legitimado a julgar”
(MAUS, 2010), e isso levando em conta o caráter afirmativo da historicidade do
Direito defendido por Rudolf Stammler (LARENZ, 2005), no qual o valor de cada
111

bem jurídico varia de acordo com o tempo e o espaço, portanto, os valores não são
perpétuos nem imutáveis numa mesma sociedade.
Sendo assim, podemos concluir que a relação entre a prática da eugenia, a
moral e o direito é bastante delicada, justamente em virtude de ser o próprio direito
(em muitos casos) violador dos direitos humanos, como leciona Maus, no sentido de
que a intervenção militar que visa direitos humanos estará de qualquer modo
violando direitos justamente por ser militar, direitos estes como os direitos humanos
fundamentais à vida e à integridade corporal, por exemplo, e isso pode ser
constatado pelo fato de não buscar o consentimento dos indivíduos atingidos
(MAUS, 2010).
Em suma, os valores são reguladores, não são objetivos concretos da vida e
da atividade, mas constituem padrões abstratos pelos quais deverão ser aferidos e
orientados todos os fenômenos da vida nos domínios da cultura que lhes dizem
respeito. Portanto, a doutrina deve fiscalizar e orientar o legislador e o lidador do
direito para que o ordenamento seja cada vez mais lapidado e sirva aos cidadãos da
melhor maneira possível. Assim, a manipulação genética caminhará no sentido de
servir à humanidade ao mesmo tempo que contará com a proteção dos indivíduos
envolvidos.
112

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120

APÊNDICE

Código de Nuremberg
Tribunal Internacional de Nuremberg – 1947

Trials of war criminal before the Nuremberg Military Tribunals. Control Council Law
1949;10(2):181-182.
1 O consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial. Isso
significa que as pessoas que serão submetidas ao experimento devem ser
legalmente capazes de dar consentimento; essas pessoas devem exercer o livre
direito de escolha sem qualquer intervenção de elementos de força, fraude, mentira,
coação, astúcia ou outra forma de restrição posterior; devem ter conhecimento
suficiente do assunto em estudo para tomarem uma decisão. Esse último aspecto
exige que sejam explicados às pessoas a natureza, a duração e o propósito do
experimento; os métodos segundo os quais será conduzido; as inconveniências e os
riscos esperados; os efeitos sobre a saúde ou sobre a pessoa do participante, que
eventualmente possam ocorrer, devido à sua participação no experimento. O dever
e a responsabilidade de garantir a qualidade do consentimento repousam sobre o
pesquisador que inicia ou dirige um experimento ou se compromete nele. São
deveres e responsabilidades pessoais que não podem ser delegados a outrem
impunemente.
2 O experimento deve ser tal que produza resultados vantajosos para a
sociedade, que não possam ser buscados por outros métodos de estudo, mas não
podem ser feitos de maneira casuística ou desnecessariamente.
3 O experimento deve ser baseado em resultados de experimentação em
animais e no conhecimento da evolução da doença ou outros problemas em estudo;
dessa maneira, os resultados já conhecidos justificam a condição do experimento.
4 O experimento deve ser conduzido de maneira a evitar todo sofrimento e
danos desnecessários, quer físicos, quer materiais.
5 Não deve ser conduzido qualquer experimento quando existirem razões
para acreditar que pode ocorrer morte ou invalidez permanente; exceto, talvez,
quando o próprio médico pesquisador se submeter ao experimento.
6 O grau de risco aceitável deve ser limitado pela importância do problema
que o pesquisador se propõe a resolver.
121

7 Devem ser tomados cuidados especiais para proteger o participante do


experimento de qualquer possibilidade de dano, invalidez ou morte, mesmo que
remota.
8 O experimento deve ser conduzido apenas por pessoas cientificamente
qualificadas.
9 O participante do experimento deve ter a liberdade de se retirar no decorrer
do experimento.
10 O pesquisador deve estar preparado para suspender os procedimentos
experimentais em qualquer estágio, se ele tiver motivos razoáveis para acreditar que
a continuação do experimento provavelmente causará dano, invalidez ou morte para
os participantes.
Outras informações importantes como: Diretrizes, Normas e Leis em Pesquisa em
Saúde; Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres
Humanos (Res. 196/96); Por que relembrar o Tribunal de Nuremberg? e Ética
Aplicada à Pesquisa em Seres Humanos podem ser encontradas no site:
https://www.ufrgs.br/bioetica/nuremcod.htm

Declaração de Helsinki I

Associação Médica Mundial - 1964

Adotada na 18a. Assembléia Médica Mundial, Helsinki, Finlândia (1964).

Introdução

É missão do médico resguardar a saúde do Povo. Seu conhecimento e sua


consciência são dedicados ao cumprimento dessa missão.
A declaração de Genebra da Associação Médica Mundial estabelece o
compromisso do médico com as seguintes palavras: "A Saúde do meu paciente será
minha primeira consideração", e o Código Internacional de Ética Médica declara:
"Qualquer ato ou notícia, que possa enfraquecer a resistência do seu humano, só
pode ser usado em seu benefício".
Porque é essencialmente importante que os resultados de experiência de
laboratório sejam aplicados aos seres humanos para incremento do conhecimento
científico e para ajudar a humanidade que sofre, a Associação Médica Mundial
preparou as seguintes recomendações, como um guia de todo médico que trabalha
122

na pesquisa clínica. É preciso acentuar que os padrões, como apresentados, são


somente um guia para os médicos em todo o mundo. Os médicos não são isentos
das responsabilidades criminais, civis e éticas de seus próprios países.
No campo da pesquisa clínica, uma diferença fundamental deve ser
reconhecida entre a pesquisa clínica, cujo propósito é essencialmente terapêutico
para um paciente, e a pesquisa clínica cujo objetivo principal é puramente científico
e sem valor terapêutico para a pessoa submetida à pesquisa.
I - PRINCÍPIOS BÁSICOS
1 - A pesquisa clínica deve adaptar-se aos princípios morais e científicos que
justificam a pesquisa médica e deve ser baseada em experiências de laboratório e
com animais ou em outros fatos cientificamente determinados.
2 - A pesquisa clínica deve ser conduzida somente por pessoas
cientificamente qualificadas e sob a supervisão de alguém medicamente qualificado.
3 - A pesquisa não pode ser legitimamente desenvolvida, a menos que a
importância do objetivo seja proporcional ao risco inerente à pessoa exposta.
4 - Todo projeto de pesquisa clínica deve ser precedido de cuidadosa
avaliação dos riscos inerentes, em comparação aos benefícios previsíveis para a
pessoa exposta ou para outros.
5 - Precaução especial deve ser tomada pelo médico ao realizar a pesquisa
clínica na qual a personalidade da pessoa exposta é passível de ser alterada pelas
drogas ou pelo procedimento experimental.
II - A PESQUISA CLÍNICA COMBINADA COM O CUIDADO PROFISSIONAL
1 - No tratamento da pessoa enferma, o médico deve ser livre para empregar
novos métodos terapêuticos, se, em julgamento, eles oferecem esperança de salvar
uma vida, restabelecendo a saúde ou aliviando o sofrimento.
Sendo possível, e de acordo com a psicologia do paciente, o médico deve
obter o livre consentimento do mesmo, depois de lhe ter sido dada uma explicação
completa. Em caso de incapacidade legal, o consentimento deve ser obtido do
responsável legal; em caso de incapacidade física, a autorização do responsável
legal substitui a do paciente.
2 - O médico pode combinar a pesquisa clínica com o cuidado profissional,
desde que o objetivo represente a aquisição de uma nova descoberta médica,
123

apenas na extensão em que a pesquisa clínica é justificada pelo seu valor


terapêutico para o paciente.
III - A PESQUISA CLÍNICA NÃO TERAPÊUTICA
1 - Na aplicação puramente científica da pesquisa clínica, desenvolvida num
ser humano, é dever do médico tornar-se protetor da vida e da saúde do paciente
objeto da pesquisa.
2 - A natureza, o propósito e o risco da pesquisa clínica devem ser explicados
pelo médico ao paciente.
3a - A pesquisa clínica em um ser humano não pode ser empreendida sem
seu livre consentimento, depois de totalmente esclarecido; se legalmente incapaz,
deve ser obtido o consentimento do responsável legal.
3b - O paciente da pesquisa clínica deve estar em estado mental, físico e
legal que o habilite a exercer plenamente seu poder de decisão.
3c - O consentimento, como é norma, deve ser dado por escrito. Entretanto, a
responsabilidade da pesquisa clínica é sempre do pesquisador; nunca recai sobre o
paciente, mesmo depois de ter sido obtido seu consentimento.
4a - O investigador deve respeitar o direito de cada indivíduo de resguardar
sua integridade pessoal, especialmente se o paciente está em relação de
dependência do investigador.
4b - Em qualquer momento, no decorrer da pesquisa clínica, o paciente ou
seu responsável serão livres para cancelar a autorização de prosseguimento da
pesquisa.
O investigador ou a equipe da investigação devem interromper a pesquisa
quando, em julgamento pessoal ou de equipe, seja a mesma prejudicial ao indivíduo.
Outras informações importantes como: Código e Nuremberg (1947); Declaração de
Helsinki II (1975); Declaração de Helsinki III (1983); Declaração de Helsinki IV
(1989); Declaração de Helsinki V (1996); Diretrizes e Normas Regulamentadoras de
Pesquisas Envolvendo Seres Humanos (Resolução CNS 196/96); Normas de
Pesquisa com Novos Fármacos, Medicamentos, Vacinas e Testes Diagnósticos
Envolvendo Seres Humanos (Resolução CNS 251/97); Diretrizes, Normas e Leis em
Pesquisa em Saúde; Ética Aplicada à Pesquisa em Seres Humanos podem ser
encontradas em https://www.ufrgs.br/bioetica/helsin1.htm
124

Belmont Report

A comissão que elaborou o Belmont Report, em 1978, foi denominada


"National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and
Behavioral Research" (NCPHSBBR). Esta Comissão foi criada em 12 de julho de
1974. A sua denominação se deve ao local onde foi discutida e redigida. A sua
elaboração extrapolou o período previamente estabelecido, devido a complexidade
do tema proposto e às discussões que surgiram entre seus membros sobre qual a
melhor estratégia a ser seguida. Uma proposta era a de elaborar documentos
temáticos, abordando pequenos grupos vulneráveis ou situações peculiares de
pesquisa. Outra era a proposta de elaborar um documento abrangente e doutrinário,
como de fato acabou ocorrendo.
No Belmont Report foi, pela primeira vez, estabelecido o uso sistemático de
princípios ( respeito às pessoas, beneficência e justiça) na abordagem de dilemas
bioéticos, seguindo atradição norte-america já proposta por William Frankena.
Belmont Report - Texto integral; The Belmont Report: Ethical Guidelines for
the Protection of Human Subjects. Washington: DHEW Publications (OS) 78-0012,
1978; Diretrizes, Normas e Leis em Pesquisa em Saúde
Página de Abertura - Bioética.
Todas as informações completas disponíveis em:
<https://www.ufrgs.br/bioetica/belmont.htm>

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