Religião e Conexões Geopolíticas No Terceiro Milênio

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FICHA CATALOGRÁFICA

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Religião e conexões geopolíticas no terceiro milênio [recurso eletrônico] /


Pamela Morales Arteaga, Marília Luiza Peluso, Wallace Pantoja
(Organizadores). – Belém, 2020.

Disponível apenas em versão digital.


ISBN 978-65-00-03541-4.

1. Geografia Cultural. 2. Religiões. 3. Geopolítica. I. Morales Arteaga, Pamela.


II. Peluso, Marília Luiza. III. Pantoja, Wallace. IV. Título.

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RELIGIÃO E CONEXÕES GEOPOLÍTICAS
NO TERCEIRO MILÊNIO

1ª EDIÇÃO

ORGANIZAÇÃO
PAMELA ARTEAGA
MARÍLIA LUIZA PELUSO
WALLACE PANTOJA

CAPA
DANILO SUEIRO
ROGERIO PEREIRA

PROJETO EDITORIAL/DESIGN GRÁFICO


DANILO SUEIRO

DIAGRAMAÇÃO
Danilo Sueiro

REVISÃO LINGUÍSTICA
MARIA ALICE MONTEIRO

AUTORES
CLEISON FERREIRA
DIEGO LOPES DA SILVA
MARÍLIA LUIZA PELUSO
PAMELA ARTEAGA
VANDA PANTOJA
WALLACE PANTOJA

Belém-PA
2020
multiculturalidade e com suas diferentes maneiras de interagir na sociedade e com ela.
A religiosidade, assim, entra no âmbito do público e da esfera política e a espacialidade daí
decorrente traz algo mais além do mítico, da busca pelo transcendente e dos ritos propiciatórios. O
espaço e, em especial o espaço geográfico, é também político e, neste sentido, as religiões mostram
um componente político de grande interesse para compreender como o laico e o religioso se
interligam. Nessa perspectiva é que se pode falar de uma geopolítica das religiões, como se verá nos
artigos dessa coletânea.
E a questão geopolítica é antiga e está bem presente no artigo que inicia esta coletânea, As
camadas de temporalidade presentes na espacialidade religiosa judaica: A relação do judeu
observante com seu território religioso sagrado sob a ótica da Geografia da Religião, escrito por
Lopes da Silva. O autor analisa a territorialidade sagrada do Templo, símbolo da resistência e da
unidade cultural e identitária judaica, e sua relação com as religiosidades que se desenvolveram
historicamente no Oriente Médio. O primeiro Templo foi construído pelo rei Salomão (1005-931
a.C.) para abrigar a Arca da Aliança, símbolo da proximidade de Javé com o povo judaico. Destruído
e reconstruído duas vezes ao longo do tempo, foi finalmente arrasado pelo Império Romano no
ano 70 d.C., mas permanece vivo como símbolo de um futuro renascimento do povo judeu e da
vinda do Messias esperado. Entretanto, na atualidade, os lugares sagrados israelenses são também
lugares sagrados das religiões islâmica e católica, criando tensões geopolíticas que precisam ser
constantemente superadas.
O segundo artigo, Geopolítica do Sagrado: Notas sobre a organização do Círio de Nazaré, da
autoria de Vanda Pantoja, aborda os conflitos entre a organização do espaço real e concreto e sua
conexão com o espaço simbólico da celebração religiosa em que se entrelaçam as esferas econômica,
política, cultural e, mais recentemente, os meios de comunicação. O Círio de Nazaré se iniciou
como homenagem popular na procissão de Nossa Senhora de Nazaré, no princípio do séc. XVIII.
Apropriada pela Igreja Católica, tornou-se uma manifestação do catolicismo colonial, expurgada
das práticas populares. Forma-se o conflito entre o religioso e o popular com suas diferentes formas
de devoção, e o poder político, que ora apoia um dos lados e ora outro. Recentemente, o processo
econômico, a capacidade de o Círio ser uma mercadoria conectada ao valor simbólico, mostrou-
se importante para o financiamento e propaganda das festividades, pois empresas associam seus
produtos ao evento. Busca-se, também, fazer frente ao crescimento do segmento evangélico no
estado do Pará.
E o segmento evangélico cresce e apresenta outra questão política, agora focada no indivíduo,
como mostra Peluso em Uma reflexão sobre a Modernidade: religião e política no Distrito Federal.
Busca-se compreender, numa revisão histórica, como as religiões tradicionais (Catolicismo e Igrejas
Reformadas) perderam fiéis na Modernidade. Segundo a autora, após o Iluminismo e o surgimento
do capitalismo como sistema dominante, afirmou-se a busca do sucesso econômico e da felicidade
terrena como objetivos individuais. Entretanto, as desigualdades sociais geradas pela nova economia
formaram uma massa de pessoas empobrecidas, para as quais o sucesso econômico e a felicidade
se mostraram inalcançáveis, numa situação que perdura até o século XXI, inclusive no Brasil, país
profundamente desigual. Entrevistas com duas mulheres de baixa renda, moradoras da Capital da
República, mostram como as Igrejas Pentecostais respondem aos desejos de sucesso econômico e
felicidade da população pobre e se tornam uma força política ao permitir-lhes reivindicar, em nome
de Deus, justiça social para os excluídos.
A questão geopolítica de um sistema religioso que busca a expansão territorial é tema de
Rodrigues Pantoja em Mormonismo em Belém do Pará (Brasil) – Dimensão transterritorial da
identidade dos Santos. O projeto de mundo dos Santos dos Últimos Dias (SUD) é a conversão do
planeta em decorrência da revelação divina a Joseph Smith (século XIX), para constituir o “Reino
de Deus”. Expandindo-se inicialmente pelo Centro-Oeste americano, Salt Lake City se tornou o
epicentro espacial religioso e expansionista, cuja pregação integra códigos culturais diversos,
reinterpretados da Bíblia e expostos nos livros sagrados próprios da doutrina. Entrevistas com fiéis
realizadas em Belém indicam reelaboração de tempos e espaços que torna o projeto de mundo
mórmon uma experiência individual e coletiva, objetiva e subjetivamente controlada. A expansão
mórmon pelos eixos metropolitanos de Belém revela uma geoestratégia de constituição do território
religioso que obedece a um conjunto de regras e referências simbólicas de uma comunidade fechada,
sujeita a ordens extraterrenas para a realização da obra de Deus.
A constituição de um espaço religioso pode se fazer, também, pela vivência profunda com
a Natureza, como expõe Arteaga, em Natureza e Espaço Sagrado – Sentir, Fazer, Mitificar. Os
cuidados para adaptar duas plantas amazônicas, Mariri e Chacrona, das quais deriva o chá Hoasca,
a meios ambientes diversos, leva os membros da União do Vegetal (UDV) a conceberem a Natureza
como algo interior e a sacralizam como projeto de mundo. Dessa maneira, a Natureza não é mais
tematizada como recurso a ser desvendado pela compreensão científica ou instrumentalizada
como um fator de produção, como no sistema econômico da atualidade, mas de acordo com outro
código, o da Natureza em si. O novo código leva não só a novas religiosidades, mas também a novas
identidades e pertencimentos a grupos sociais, a lugares, a um tempo cósmico. Pode-se, então,
propor uma nova política ambiental, em que a Natureza não é apenas recurso subordinado ao
conhecimento ou à produção, mas sacralizada, universal e mítica.
Encerrando esta coleção, o artigo de Ferreira, Maracatu-Nação e a Noite dos Tambores
Silenciosos: Territorialidade religiosa e política no carnaval do Recife (PE). O Maracatu-Nação é
manifestação cultural originada, provavelmente, no início do século XIX, na cidade do Recife, em
que dialogam matrizes religiosas africanas, europeias e indígenas. Na segunda-feira de Carnaval, à
meia-noite, realiza-se o encontro das Nações de Maracatu, que afirma a identidade afro-brasileira no
Pátio do Terço, Bairro São José, centro do Recife. No evento, as camadas de menor renda adquirem
visibilidade pela presença, entre o público, de políticos, religiosos, artistas, turistas e expectadores.
A festividade torna-se uma afirmação política de grupos sociais localizados, em sua maioria,
em bairros da periferia do Recife e Região Metropolitana. Na via cultural aberta pela Noite dos
Tambores Silenciosos participam ativistas do movimento negro que denunciam a discriminação
racial e as condições de vida marginais dos afrodescendentes. Mesclam-se, então, no Pátio do Terço,
as dimensões religiosa e política, definem-se territorialidades e identidades territoriais.
Ao final da apresentação dos artigos que compõem esta coletânea que, evidentemente, não
esgota a religiosidade brasileira que necessitaria de muitas coletâneas para ser conhecida, espero
ter evidenciado que o real e o divino, o mítico e o místico se mesclam, são interpretados e vividos
diferencialmente, pois como escreve Han, o sagrado não é transparente e o reino vindouro da paz
ainda está longe. E, justamente, esta distância de um futuro esperado, e que tarda a chegar, converte
as religiões num fato político.

Marília Luiza Peluso


Brasília, 2019
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, T.W.; HORKHEIMER, M. A dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro:


Zahar Editores, 1985.

HAN, B. Sociedade da transparência. Petrópolis: Vozes, 2017.

Sin-léqui-unnínni. Ele que o abismo viu. A epopeia de Gilgámesh. Tradução do


Acádio, Introdução e Comentários por Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2018.

Artigos e livros consultados

BURITY, J. A. Religião, política e cultura Tempo Social, Revista de Sociologia da


USP, v. 20, n.2 pp. 83-113. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ts/v20n2/05.
pdf, acesso em 10.10.2019.

CUCHE, D. La notion de culture dans les sciences sociales. Paris: Éditions La


Découverte, 1996,

GONÇALVES, A. T. M. As festas romanas. Revista de Estudos do Norte Goiano


Vol. 1, nº 1, ano 2008, p. 26-68. Disponível em https://historia.ufg.br/up/108/o/
as_festas_romanas_ana_teresa.pdf, acesso em 10.10.2019.

LEFORT, C. As formas da História. Rio de Janeiro: Editora Brasiliense, 1990.

RATZINGER, J. (BENTO XVI). Jesus de Nazaré. São Paulo: Planeta do Brasil, 2007.
ELABORAÇÃO: RAFAEL SANZIO ARAÚJO DOS ANJOS
CAMADAS DE TEMPORALIDADE NA ESPACIALIDADE RELIGIOSA JUDAICA:
A RELAÇÃO DO JUDEU OBSERVANTE COM SEU TERRITÓRIO RELIGIOSO
SAGRADO SOB A ÓTICA DA GEOGRAFIA DA RELIGIÃO
Diego Lopes da Silva

RESUMO

O artigo analisa oTemplo judaico e sua ligação espacial sob a égide da Geografia da Religião – que
entenderemos como campo –, na área limítrofe entre a Geografia Humanística, Cultural e Política, já
quehásériasimplicaçõesnaordemdoTemplocomasreligiõesquesedesenvolveramhistoricamente
no Oriente Médio. Como objetivo, visa-se compreender as camadas de temporalidade que revestem
a espacialidade religiosa judaica, a partir de uma perspectiva de análise do Templo, o qual é visto
pelo judeu como território religioso, cuja historicidade evidencia a formação de uma identidade
judaica e construção (geo)simbólica de resistência cultural. A metodologia é a dicotomia eliadiana
entreSagradoeProfano,permitindoentenderasformassimbólicasreligiosasaoespacializarotempo-
espaço sagrado e retirá-lo para estudo do espaço geográfico profano. Côrrea (2008) afirma que as
ações humanas estão repletas de significados, que dão sentido à existência humana e que toda ação
humana no espaçoésimbólicaetemporal, assim como todaação simbólicaé humanae representada
espacialmente,sendoimpossívelexplicaroespaçosemsuastemporalidadesdeterminadas.Conclui-se
queaformaespacialdoTemplo,aocondensarascamadasdetemporalidadedosímboloreligioso,cria
nojudeuosensodepertencimentoque,aoserconfrontadopornações/religiõespagãs,geraumclimade
instabilidade,tornando-seaindamaistensoaoserressignificadopeloislãnaáreaondeestariaoTemplo.
Palavras – chave: espacialidade judaica; Templo; Torah; Santo dos Santos; relações geopolíticas

INTRODUÇÃO

O presente artigo analisa a forma simbólica espacial do “Templo” criado como local sagrado de
culto judaico. O Templo se tornou, ao longo da história dos judeus, um elo de unidade cultural em
torno das suas práticas religiosas e, também, de resistência, através das sucessivas dominações que
buscavam impor sua religião e seus costumes à identidade coletiva judaica.
Ao se estudar as formas simbólicas espaciais religiosas na comunidade judaica, verifica-se um
continuum que liga passado, presente e futuro – a forma simbólica Templo – como um forte elo
identitário que permeia o imaginário da sociedade judaica através da Torah.
As relações geopolíticas entre judeus e nações circunvizinhas estão, desde a Antiguidade,
fortemente revestidas de um caráter religioso, pautadas na compreensão e aceitação das
peculiaridades do judaísmo pelos povos “vizinhos”, e eventualmente pelos possíveis conquistadores.
Dessa maneira, as nações circunvizinhas, ou mesmo reinos históricos que vieram a conquistar
territorialmente os judeus, são classificados qualitativamente como “bons” ou “maus” vizinhos em
virtude da relação com as práticas religiosas judaicas.
Uma análise interdisciplinar que aproxime as ciências geográfica, histórica e da religião
nos fornece elementos importantes para recriar e interpretar elementos passados que foram
negligenciados para compreender os símbolos culturais e a força que exercem nas mentalidades
– no caso aqui, a “mentalidade religiosa judaica” (posto que a configuração simbólica de um
território ambicionado trouxe do passado ecos até a contemporaneidade). Os sucessivos processos
de desterritorialização do seu lugar de culto geraram historicamente, no judeu tradicional, um
aumento na tensão com os povos circunvizinhos, já que existia o receio de uma dominação que não
somente fosse política, mas que quisesse alterar os costumes religiosos do povo judeu.
Destaca-se que os fenômenos religiosos abordados neste artigo estão ligados indiretamente
ao estudo da fenomenologia da religião. A fenomenologia vê a religião como sendo composta de
diferentes componentes (como símbolos e ideias), e os estudos desses componentes são aspectos
intrínsecos às tradições religiosas, logo inerentes à vida usual daqueles que praticam determinada
confissão de fé, conforme Jung (1980) quando trata de religião, psicologia e símbolos de
transformação.
Observa-se que os fenômenos religiosos são decorrentes das transformações na ordem social e
política de um determinado povo ou sociedade. Percebe-se que as religiões comuns da antiguidade
como o judaísmo, o zoroastrismo e o próprio cristianismo tiveram grandes mudanças atreladas a
momentos de dificuldade política e quando seu “espaço vital”1 de conceitos e crenças era atacado.
O caso mais clássico pode ser observado no judaísmo pós-exílio2, quando da redação final do
livro de Daniel (Dn), quando a Judeia estava sob o domínio do imperador selêucida Antíoco IV,
Epífanes, que a governou de 175-163 a.C. Seu governo foi marcado por uma das maiores revoltas da
história judaica, conhecida como Revolta dos Macabeus3. A revolta foi de suma importância para o
entendimento do processo de resistência cultural judaico, assim como a sua manutenção enquanto
nação e a figura (geo)simbólica do Templo como elemento de coesão social.
Vale ressaltar que as religiões buscam, através da criação de um “lócus” espacial do sagrado
com o intercâmbio das suas práticas ritualísticas, criar/definir nos seus seguidores um senso de
pertencimento ao determinado grupamento religioso. No caso dos judeus, esse pertencimento
acabou sendo o modus operandi para sua formação e manutenção como povo em torno de suas
práticas religiosas, que mantiveram os judeus e sua cultura viva até a contemporaneidade.
A presente análise está pautada sobre o conceito de religião e sua ligação com a análise espacial
sob a égide da Geografia da Religião – que se entende, como campo especializado na área limítrofe
entre a Geografia Humanística e a Geografia Cultural.
A zona de intersecção entre a Nova Geografia Cultural, a Geografia da Religião/História das

1 A expressão “espaço vital” utilizada neste projeto não está ligada à Antropogeografia ratzeliana do séc. XIX (atrelada
à constituição do território nacional alemão e, posteriormente, na política de “partilha” do continente africano). A
expressão, no contexto religioso, está ligada ao “lócus” de desenvolvimento dos seus conceitos e crenças, conforme
demonstra Diego Silva (2015) na sua obra sobre A Geografia do Além: O local do mundo dos mortos na cultura
judaico-cristã, sendo necessário até se reapropriar de conceitos e ideias externas a sua cultura para justificar seu
pensamento.
2 Na volta do exílio, os judeus passam a ser mais observadores da lei, acreditando no seu Deus como sendo único e
incorporando ideias comuns ao mundo babilônico e ressignificando-as dentro do próprio judaísmo
3 Conflito ocasionado pela imposição de valores sociais e culturais helenísticos aos judeus que não aceitavam
nenhuma modificação em sua estrutura religiosa de culto ao Deus dos judeus. Os livros bíblicos de 1 e 2 Mc mostram
a que ponto chegou a revolta dos judeus em relação às políticas praticadas por Antíoco IV, Epífanes.
Religiões Comparadas, as Ciências das Religiões, a Teologia e a Geografia Histórica e Ciência
Histórica representada na figura como C, “Centro da Religião”, representa uma Nova Geografia
da Religião com sua metodologia e elementos de análise que dialogam tanto com subcampos da
própria ciência geográfica quanto com as demais ciências que estudam o fenômeno religioso.

Figura 1: Relações entre a Nova Geografia Cultural, a Geografia da Religião Tradicional, a História das Religiões Comparadas,
as Ciências das Religiões, a Teologia e a Geografia Histórica/Ciência Histórica, na configuração da Nova Geografia da Religião
Elaboração: Costa, 2018.

Busco retratar o ponto “C” da figura relacionado ao judaísmo no sentido de entender as


peculiaridades deste sistema religioso, assim como os processos de reconhecimento de uma
identidade cultural “religiosa” e de resistência à dominação estrangeira que buscava alterar o modelo
teocrático judaico, tendo na figura do território sagrado do Templo o foco do entendimento das
dinâmicas sociorreligiosas da identidade coletiva judaica. Verifica-se que a ideia de uma política
da Torah e do Templo, destruído em 70 d.C., permaneceu viva nos judeus contemporâneos na
esperança de reconstrução do máximo símbolo espacial religioso judaico.
O imaginário cultural do povo judaico estava ligado à libertação religiosa por meio do juízo das
nações ímpias. Sendo assim, os judeus observantes não deveriam se contaminar com as culturas dos
povos e com uma esperança viva no território sagrado, e que mediante esta esperança se sentissem
compelidos a lutar pela restauração do culto e da ordem teocrática.
O processo de resistência cultural se tornou necessário para a definição do povo judeu enquanto
nação que comunga do mesmo ideário religioso e das mesmas crenças, logo, pode-se observar que a
dominação estrangeira acaba sendo questionada por dois vieses que estão intrinsecamente ligados.
Primeiro, pelo modelo teocrático de governo vivido pelos judeus em torno das suas leis e das
suas práticas morais consideradas sagradas; segundo, pela afronta que o dominador estrangeiro que
não concedia liberdade religiosa criava ao retirar dos judeus o seu “elo” de unidade cultural, isto é,
subtrair a adoração e a ritualística em torno de sua única divindade.
A religião pode ser compreendida no âmbito das suas relações com a ciência geográfica como
uma prática social que define um determinado “local” e um fenômeno cultural de forte abrangência
regional, tendo na cultura judaica uma peculiaridade ímpar, que é a interligação de todos os aspectos
da vida social, moral e cívica em torno da sua divindade.
Religare é o termo em latim que se refere à religião. Tal expressão tem como característica
fundamental o elemento de criar um elo, uma “religação” com o divino, embora possamos classificar
como qualquer doutrina ou forma de pensamento que tenha como característica fundamental um
conteúdo metafísico, ou seja, de além do mundo físico (ELIADE, 1992).
A geógrafa Zeny Rosendahl (1996) mostra a importância do estudo da religião sob as lentes
interpretativas da geografia e o valor da pesquisa focada no subcampo da Geografia da Religião.

Geografia e religião são [...] duas práticas sociais. O homem sempre


fez geografia, mesmo que não o soubesse ou que não reconhecesse
formalmente uma disciplina denominada geografia. A religião sempre
foi parte integrante da vida do homem, como se fosse uma necessidade
sua para entender a vida. Ambas, geografia e religião, se encontram
através da dimensão espacial, uma porque analisa o espaço, a outra
porque, como fenômeno cultural, ocorre espacialmente (ROSENDAHL,
1996, p. 11, grifo nosso).

A geografia, na sua vertente humanística4, fornece elementos de grande valia às análises social,
política e até econômica de determinada região/localidade onde a fé exerce o papel predominante
entre as demais estruturas da sociedade.
Os estudos contemporâneos em Geografia da Religião evidenciam que determinada crença
corresponde a uma prática social específica na medida em que edifica uma visão de mundo bem
característica e peculiar àquele agrupamento de pessoas em torno de suas crenças.
As formas simbólicas do conhecimento religioso qualificam o espaço sagrado, o qual é visto
ora como representação da realidade, ora como expressão do fenômeno religioso. Logo – segundo
o entendimento proposto por Gil Filho (2008) para compreensão do fenômeno religioso e sua
dimensão espacial – o espaço sagrado é tanto “estrutura estruturante” como “estrutura estruturada”
da realidade na esfera religiosa.

4 A matriz de pensamento da Geografia Humanística, por meio da sua vertente cultural, oferece imaginação,
sensibilidade e simbolismo ao meio e busca entender a vivência do ser, a existência do homem no espaço, o espaço
como lócus da vivência/existência humana. O espaço geográfico é plural, humano e humanizado das mais diversas
formas. Entender a geografia pelo espectro humanístico é entender a multiplicidade de agentes que atuam no espaço,
através da ótica humana, tendo em vista que as significações de paisagem, território e lugar são constructos mentais
viabilizados para entender uma lógica material (TUAN, 1983).
As espacialidades do sagrado5 são frutos das práticas culturais eivadas de sentido religioso,
crenças/mitos e divindades de determinado grupo. Tais práticas socioculturais marcam os homens
e o sagrado, juntamente com seus símbolos e mitologia, os quais ligados à geograficidade6 do
homem produz territorialidades; isto é, o homem produz a si mesmo e o espaço das suas práticas
socioculturais.
Dentro da questão da elaboração do espaço e da espacialidade do local sagrado, há culturalmente
os símbolos que são produzidos pelo homem, no seu conjunto social, e que viabilizam a relação do
ser humano com a sociedade e com o seu espaço produzido.
No sentido de entender que o espaço da religião é parte integrante da totalidade do espaço
geográfico – visto que o fenômeno religioso é um fenômeno geográfico, e envolve, em sua dinâmica,
categorias geográficas (tais como população, cultura e território) – pode-se constatar que a relação
dos judeus com os povos circunvizinhos está ligada à relação destes com as práticas religiosas judaicas
num claro fenômeno de resistência cultural, o qual historicamente foi essencial para manutenção
da unidade do povo judeu e sua unidade em torno dos aspectos religiosos como o monoteísmo.
A fiel crença nos conceitos centrais da lei mosaica fizeram com que o povo judeu “sobrevivesse”
às constantes perseguições e sucessivas dominações geopolíticas ao longo da sua história como
nação, o território sagrado dos judeus, amalgamado aos seus símbolos e ritos, está ligado diretamente
à definição de uma identidade cultural na religiosidade e na figura do seu território sagrado.
Adentrando as relações do território sagrado com a sociedade judaica e os povos vizinhos
dominadores, cabe fazer um apanhado para entender a dimensão da força simbólica do Templo
e seu antecessor – o Tabernáculo –, uma espécie de tenda móvel que os judeus tinham como
espaço sagrado de adoração. Após a libertação do cativeiro egípcio com vigência até a construção
do Primeiro Templo, sob a ordenança do rei Salomão, o Tabernáculo, no universo mental dos
judeus, era visto na sua estrutura como o “lócus” de habitat da sua divindade. Na tradição judaica,
a criação do Tabernáculo foi uma ordenança da divindade Yahweh ao lendário legislador Moíses7
para que os judeus tivessem um lugar de culto e a adoração a sua divindade enquanto estivessem
em peregrinação no deserto.

5 Uma variação dos espaços do sagrado, porém sem sua presença física constante. Isto é, são representações móveis
da religião e da vivência da fé. São espaços transitórios de vivência do sagrado através da fé, percepção e simbolismo
da religião, espaços dotados de significado transitório para um determinado agrupamento religioso, enquanto exercem
a prática da ritualística/dogmática e da fé nas suas mais várias formas (ROSENDAHL, 2002).
6 O conceito de “geograficidade” elaborado por Eric Dardel (1952) expressa, em parte, a própria essência da ciência
geográfica: o entendimento de ser/estar/pertencer e significar o mundo e o espaço, através das relações humanas,
significando e ressignificando o espaço natural, e criando espaços artificiais. A geografia, vista pela ótica da
fenomenologia e do humanismo, ampliou a relação da ciência geográfica com as demais ciências sociais, incluindo a
dimensão espacial da existência do ser, e as múltiplas relações do homem com a Terra.
7 A escola moderna de teologia defende a ideia da comprovação arqueológica para comprovar a existência dos
personagens bíblicos. Segundo tal escola, os personagens bíblicos, em sua grande maioria, são exemplos de
comportamentos e atitudes tidas como ideais ou abomináveis para seus escritores. Utilizo na narrativa o termo
“lendário” por não existir nenhum relato histórico ou dado que comprova a existência física de um judeu chamado
Moisés. Entretanto, o perfil do legislador ideal também se encontra na narrativa grega através da figura de Licurgo,
também lendário legislador de Esparta, que recebeu as leis diretamente da divindade e entregou ao povo. Para um
melhor entendimento do tema, sugiro a leitura do artigo de Silva (2008). A releitura de Licurgo nas Antiguidades
Judaicas (AJ) de Flávio Josefo.
O TABERNÁCULO

A palavra Tabernáculo vem do hebraico Mishkan que quer dizer santuário/local de habitação
do sagrado, sendo um espaço sacrificial e de rememoração de todas as benesses da divindade em
relação ao povo hebreu.
Ressalta-se que, conforme a tradição judaica, até o modelo/forma de como seria esse espaço
sagrado foi dado pela divindade ao legislador Moisés. Confeccionado por Bezaleel e Aoleabe, o
Tabernáculo seria dividido em três áreas/zonas: o átrio/pátio Chatser, delimitado pelas cortinas de
linho fino; o santo lugar Kodesh, que seria a primeira parte interna; e o santo dos santos/santíssimo
Kodesh HaKodashin, um espaço cúbico no qual se fundiam as dimensões humanas (da imperfeição
e sacrificial) e celestial (da perfeição e redenção).
Segundo Josefo (AJ), a divisão do Tabernáculo representava a divisão do próprio mundo: o
espaço sagrado se materializava nas dimensões da tenda e refletia uma unidade céu-terra e divino-
humano; o átrio representava a humanidade; o santo lugar seria o céu como os homens veem sua
imensidão; e, por sua vez, o santo dos santos estava representado pelo céu habitado, pela divindade
com sua imensidão e infinitude.
Cada espacialidade tinha uma representação simbólica e todas elas se fundiam no “santo dos
santos”, que era o local de intercessão e contato direto com a divindade. Assim, cada zona existente
dentro da tenda possuía um nível maior de sacralidade até chegar no santíssimo, que tinha no seu
interior a arca da aliança – o objeto mais sagrado dentro do judaísmo.
Cada objeto presente em cada uma dessas zonas tinha seu simbolismo e o perfeito local onde
deveria ser colocado. Assim, tudo era feito para que o povo se recordasse das grandes obras da sua
divindade e se atentasse à peculiaridade religiosa como aspecto preponderante da cultura judaica
em relação às demais culturas na antiguidade. Segundo a tradição judaica, a cada parada no deserto
na fuga da servidão egípcia8, o Tabernáculo era montado de dentro para fora – a partir do santo dos
santos até o átrio – para que os locais tidos como mais sagrados fossem os primeiros a estar de pé
com o intuito de buscar uma aproximação maior com a divindade.

8 Conforme relatos presentes na Torah, os judeus foram escravizados pelos egípcios por mais de um século até que
Moisés, que era judeu de nascimento mas vivia na corte egípcia, ao ver seu povo subjugado, resolve, por intermédio
de Yahweh, retirar seu povo da servidão do Egito, prometendo uma terra que emanava leite e mel e na qual os judeus
teriam paz e não seriam mais escravizados desde que guardassem os mandamentos e as ordenanças de Yahweh. Fato
que não aconteceu, pois os judeus peregrinaram por 40 anos no deserto.
Figura 2 – Tabernáculo Riggenbachs Mosaische Stiftshütte9

Figura 3 - Disposição aproximada do Tabernáculo. Organizado pelo autor a partir de Ex 25-28 e Archer (1974)

O átrio/pátio era um cercado em forma de retângulo demarcado por uma cortina de linho branco
que representava, na mentalidade judaica, a pureza e a santidade necessárias para a aproximação à
divindade. Era descoberto e tinha uma representação simbólica de aproximação de Yahweh de se
despir das “vestes” pecaminosas para se adentrar à comunhão direta com a divindade. Observam-
se graus de santidade dentro da própria figura do “prototemplo” já que dentro do Tabernáculo
existiam determinados lugares e objetos consagrados que somente o Sumo Sacerdote responsável
por apresentar a expiação dos pecados do povo à divindade poderia adentrar e tocar, sendo vedada
e passível de punição qualquer transgressão à regra do sacerdócio e de aproximação do Templo.
O lugar santo, por sua vez, era coberto e o sacerdote entrava semanalmente na presença da
divindade. No lugar santo estavam presentes a mesa dos pães da proposição Shulchán, o candelabro
Menorah (possivelmente o símbolo judaico mais conhecido no Ocidente) e o altar de incenso
Mizbach HaZahav. A mesa com os pães da proposição ficava do lado do norte com a sua coroa
ornamental coberta de ouro puro.
A cada cerimônia do Shabat os sacerdotes deviam colocar sobre a mesa os doze pães
(simbolizando as 12 tribos de Israel), dispostos em duas colunas, e borrifados com incenso. Ao
sul estava o candelabro de sete hastes Menorah, com as suas sete lâmpadas. O Menorah era feito
de ouro maciço e cada uma das suas hastes era ornamentada com flores trabalhadas semelhantes a
lírios. Como não havia janelas dentro do Santo Lugar, as lâmpadas do Candelabro nunca ficavam
na sua totalidade apagadas, mas tinham como função iluminar ininterruptamente dia e noite com
9 Visão do tabernáculo desenvolvida por Christoph Johannes Riggenbach, considerado um dos maiores teólogos do
séc. XIX, o qual ficou marcado historicamente pelo estudo do Antigo Testamento e da figura de Moisés para o judeu
ortodoxo.
um claro simbolismo de demonstrar que a divindade estava diuturnamente ao lado do seu povo na
peregrinação pelo deserto antes de chegar à “terra prometida”.
Diante do véu que separava o Lugar Santo do Santo dos Santos, sendo assim chamado em
virtude da “presença imediata do Altíssimo”, achava-se o áureo altar de incenso. O Sacerdote deveria
queimar incenso todas as manhãs e tardes sobre o altar. As pontas do altar eram aspergidas com o
sangue do sacrifício para a remissão dos pecados, e, no grande dia de expiação dos pecados, era, na
sua totalidade, borrifado com o sangue do sacrifício.
Observa-se que na mentalidade de um judeu tradicional o fogo presente no altar tinha sido
aceso por Yahweh, e conservado miraculosamente de maneira sagrada para o sacrifício e remissão
dos pecados do povo como cerimonial que deveria ser perpétuo e constantemente rememorado.
O terceiro compartimento, o Santo dos Santos, local onde se centralizava a cerimônia simbólica
da expiação e intercessão, formava o elo entre os céus (divindade) e o seu povo. Nesse compartimento
estava a arca da aliança Aron Haberit, uma grande caixa feita de madeira de acácia, coberta de ouro
por dentro e por fora e com uma coroa de ouro em redor de sua parte superior. A arca foi criada
para abrigar as tábuas de pedra do decálogo, sobre as quais a própria divindade escrevera os Dez
Mandamentos, entregando ao lendário legislador Moisés. Além das tábuas dos mandamentos, a
arca da aliança continha um pote com maná e a vara de Aarão que florescera miraculosamente no
deserto.
A cobertura da caixa sagrada se chamava propiciatório Kappõret, feito de uma peça inteiriça
de ouro encimado por querubins do mesmo metal precioso, ficando um de cada lado. Uma asa de
cada anjo se estendia ao alto, enquanto a outra estava fechada sobre o corpo em sinal de reverência
e humildade. A posição dos querubins, com os rostos voltados um para o outro, e olhando
reverentemente para baixo da arca, representava, na mentalidade judaica, a reverência com que a
hoste celestial considera a lei de Yahweh e o seu plano para o seu povo escolhido. Uma espécie de
vapor que representava manifestação física da glória divina ficava acima do propiciatório, entre
os querubins. Através deste vapor, chamado de Shekhinah, que Yahweh tornava conhecida a sua
vontade ao Sumo Sacerdote que era o mediador entre o povo e a divindade.

Na visão judaica, as ordenanças da divindade eram comunicadas ao


Sumo Sacerdote basicamente de duas maneiras: primeiramente por
uma voz que saía do vapor ou por uma luz que decaía sobre o anjo à
direita, para significar aprovação; secundariamente por uma sombra
que repousava sobre o anjo que ficava ao lado esquerdo, para revelar
reprovação ao plano arquitetado pelo povo na figura do Sacerdote
(GINZBERG, 2014).

O significado simbólico da arca é tamanho na cultura judaica que esta foi a única peça
trasladada para o Templo de Salomão. Segundo trecho transcrito da obra do professor Kevin Conner
(2005), esse é o maior e mais significativo símbolo que liga o cotidiano do povo judeu ao mundo
“imaginário”, na concepção contemporânea, mas “real” na mentalidade do judeu na Antiguidade.

A arca da aliança foi a mais importante peça de todos os objetos presentes


na mobília do Tabernáculo. De fato, toda estrutura do Tabernáculo,
assim com sua mobília girava em torno desse artigo. Sem essa peça
e tudo o que ele prefigurava simbolicamente, o Tabernáculo seria
meramente uma tenda. Esse artigo dava significado vida a estrutura e
mobília existente na Tenda. (CONNER, 2005, p. 76).

O Tabernáculo pode ser visto como um protótipo do Templo que surgiu após alguns séculos,
porém deve ser analisado como um microcosmo independente, o qual, segundo a visão de um judeu
tradicional, representaria o lugar de interligação entre o humano e o sagrado. Um microespaço
do sagrado móvel (ROSENDAHL, 2002), no qual a divindade interagia com o povo durante
a sua peregrinação. Todavia, observa-se que toda ritualística descrita acima deveria ser seguida
rigorosamente para que o sagrado se manifestasse diretamente ao povo através do Sumo Sacerdote.

Bezalael fora capaz de imitar a criação ao construir o Tabernáculo,


ainda que em pequena escala. Pois o Tabernáculo é um microcosmo
completo, uma cópia miraculosa de tudo quanto existe no Céu e na
Terra. (SCHOLEM, 1978, p. 199, grifo nosso).

Do ponto de vista geográfico, os textos que retratam esse período histórico abordam apenas
questões superficiais, como a disposição dos objetos sagrados dentro da tenda e a posição do povo
frente à ritualística judaica.
Na visão de um judeu tradicional, o princípio de religação com o sagrado através de um espaço
de comunhão direta com sua divindade nasce logo após a expulsão do homem do Jardim do Éden,
quando Adão e Eva viviam em comunhão diária e constante com a divindade.
A necessidade de reaproximação gerada após a transgressão cria um sentimento de reconexão
que se dá mediado por algo/algum lugar que tenha um poder de atração e que ligue as esferas
humanas e sagradas. Assim, a ideia de lugares de adoração e sacrifício já aparecem com os antigos
patriarcas dos judeus como Abraão, Isaque e Jacó/Israel, conforme trecho transcrito do Gênesis.
Deus disse a Jacó: Levanta-te! Sobe a Betel e fixa-te ali. Ali erguerás um altar ao Deus que
te apareceu quando fugias da presença de teu irmão Esaú. Jacó disse à sua família e a todos que
estavam com ele: “Lançai fora os deuses estrangeiros que estão no meio de vós, purificai-vos e
mudai vossas roupas. Partamos e subamos a Betel! Aí farei um altar ao Deus que me ouviu quando
estava na angústia e me assistiu na viagem que fiz.” (Gn 35:1-3).
Desde a mais longínqua Antiguidade o povo judeu busca essa reconexão com a divindade que
só acontece em determinados locais tidos como sagrados. Esses locais exercem um poder tão forte
de atração sociomental na população que vive em um ambiente altamente religioso que o lugar
sagrado passa a ser a principal instância de coesão da sociedade, assim como elo da formação de
uma identidade cultural.
O PRIMEIRO TEMPLO: GEOSSÍMBOLO DE RELIGAÇÃO COM O SAGRADO

Pela tradição rabínica10, aproximadamente trezentos anos depois da instituição do Tabernáculo,


com a consolidação do regime monárquico, através do Rei Davi11, (1040-971 a.C.) que surge a ideia
de uma habitação fixa para a divindade dos judeus.
Coube à descendência davídica a honra de construir a morada fixa para a divindade: o
encarregado da construção foi o filho de Davi, o rei Salomão (1005-931a.C.). A planta de construção
do Templo se assemelhava muito com o seu protótipo – o Tabernáculo –, principalmente pela
divisão em três compartimentos.
Do ponto de vista geográfico, o Templo estava inserido no Monte Moriá12, sendo considerado
um lugar chave para as dinâmicas culturais judaicas. Um forte elo de unidade é criado entre o
Monte (sagrado pela sua natureza e dinâmicas históricas), o Templo (lugar de rememoração das
benesses da divindade e prestação de sacrifício e culto) e a população, que via o lugar como centro
da sociedade por ser a divindade a principal instância de comando e coesão social. Observa-se
que, na Antiguidade, os Templos estão sempre em uma localidade de destaque, no alto de montes/
montanhas, devido à crença de que os Templos fazem uma conexão direta entre o “universo divino”
e o “mundo dos homens”. Sendo assim, os Templos presentes no cume dos montes representariam
o mais próximo que o homem comum chegaria da sua divindade, facilitando o contato do universo
divino (“sagrado por excelência”) com o sacerdote (“homem mais próximo da divindade”),
representando o universo humano.
Tal menção nos remete à ideia de simbolismo cêntrico desenvolvida por Eliade (2010); assim
como uma aparição ou manifestação sobrenatural da divindade tornava sagrado não somente o
contexto dos rituais e a cerimonialística em torno do Templo, mas o próprio lugar que expressava
sua sacralidade por ser o contato direto entre o humano e sagrado.
Telushkin (1991), ao abordar o lugar de construção do Templo no Monte Moriá, o qual foi
escolhido em virtude da hierofania a Abraão e da visão de Jacó/Israel da escada que unia céus e
terra com os seres celestiais subindo e descendo, afirma que diante de tamanha importância mental
da história dos hebreus não existiria outro lugar possível e tão sagrado quanto o Moriá para fixação
do Primeiro Templo.
Scheindlin13 (1998) coloca a construção do Templo de Salomão como o momento de virada,
na visão dos outros povos em relação aos judeus, diante da dimensão e da grandeza do Santuário.
10 Conjunto de tradições orais que foram compiladas em um livro chamado Talmude, constantemente reescrito
pelos rabinos judeus, conforme novas orientações divinas ou mesmo um consenso existente entre os principais dos
sacerdotes.
11 O principal Rei da história dos judeus seguiu as orientações de Yahweh e deixou os caminhos preparados para a
construção da habitação física grandiosa da divindade. Personifica o exemplo a ser seguido por um judeu tradicional,
que mesmo diante de falhas como homem busca fazer tudo que está ao seu alcance para agradar a sua divindade (I Rs
8:17; 9:4; II Cr 6:7; 30:19).
12 O Monte Moriá foi o marco de diversos eventos históricos do povo judeu ao longo da sua consolidação como
nação. O suposto monte no qual a divindade ordena que o patriarca Abraão sacrifique seu filho da promessa Isaque. O
primeiro patriarca vive a hierofania de encontrar o próprio anjo do Senhor e Davi recebe as instruções para construção
do Templo na chamada Pedra do Sacrifício. Um forte traço histórico de identidade e sentimento religioso foi criado
entre os judeus e esta localidade. Vale ressaltar que atualmente o Monte é ocupado pelo santuário islâmico conhecido
como Cúpula da Rocha; nome popular dado à Mesquita de Omar. (WIGODER, 2006).
13 O professor emérito Raymond Scheindlin é um dos grandes autores acadêmicos do judaísmo antigo no séc. XX,
com grandes contribuições sobre o judaísmo do Primeiro Templo (Salomão) e o judaísmo em regiões da Espanha e
suas interações com a cultura árabe na contemporaneidade.
A presença de metais preciosos, como muitos elementos revestidos de ouro puro, fez com que as
nações circunvizinhas olhassem os hebreus de outra forma. Porém, essa virada caiu diante do cisma
que ocorreu após morte de Salomão e na sucessão de péssimos governos que levou à precoce queda
do Reino do Norte e à desestruturação do Reino do Sul (que tinha ficado sob a responsabilidade da
descendência davídica).
A queda do Reino do Sul – com a consequente destruição do Templo em 580 a.C. – para
o impiedoso império Babilônico tinha para os conquistadores, além da necessidade de expansão
territorial, comercial e apreensão da riqueza dos judeus por parte do governante babilônico, um
caráter de submissão simbólica, visto que o ato de destruir/profanar o Templo demonstrava, nas
entrelinhas, que a divindade do povo subjugado não é tão forte quanto os deuses do seu conquistador.
O poder simbólico da destruição do Templo na conquista babilônica é ainda mais devastador
que a própria conquista política, visto que o judeu tradicional não vai deixar de acreditar na sua
divindade como regente das ordens terrestres, porém verá que “seus atos” foram responsáveis
pelo domínio momentâneo de um governo pagão. Assim, a queda foi vista pelos judeus como
consequência dos seus atos falhos frente à divindade e o esquecimento da ética e da justiça social,
esquecendo-se do que o geossímbolo efetivamente representava no seio da sociedade.
Os judeus tiveram seu Templo destruído e foram levados cativos à Babilônia, sendo os principais
do povo (sábios e profetas) designados a servir ao próprio imperador Nabucodonosor na sua corte
real – fatos narrados no livro de Daniel14, redigido após a destruição de Jerusalém e do Templo.
Porém, diante da dimensão do sentimento “nacionalista” emergente no judeu, os relatos daniélicos
mostram que sua divindade estava presente mesmo diante de toda a adversidade vivida no governo
babilônico.
Os setenta anos que ficaram sob a dominação babilônica serviram para intensificar no judeu
um laço ainda mais forte com sua religião, a Torah e o abandono da tradição politeísta das tribos
do Norte, que ao longo dos séculos também se fez presente no Reino do Sul. Na visão do judeu
tradicional, o “politeísmo velado” acabou por fazer com que a tradição sacerdotal e sacrificial do
Templo fosse esquecida, em virtude de administrações corrompidas e adoração aos falsos deuses.

O SEGUNDO TEMPLO (RENASCIMENTO DE UMA IDENTIDADE COLETIVA


JUDAICA PAUTADA NO GEOSSÍMBOLO RELIGIOSO)

O rei persa Ciro, após conquistar a Babilônia, acaba por conceder permissão inicial para que
cerca de cinquenta mil judeus que estavam exilados na Babilônia regressem à cidade sob a liderança
de Zorobabel, o qual, segundo Flávio Josefo (AJ) e a tradição rabínica, era de linhagem davídica.
A reconstrução dos muros da cidade ocorreu de forma simultânea à reconstrução do Templo,
já que não passava pela mentalidade de um judeu que tinha acabado de ser libertado da servidão
(causada no seu imaginário por ter se distanciado dos ensinamentos da Torah e da sua divindade)
14 O livro de Daniel possui, na sua versão original, doze capítulos, sendo encontrado na sua língua original associado
aos Escritos, enquanto nas versões cristãs modernas está incluso na seção profética. O livro possui, para fins didáticos
e temáticos, duas divisões: na primeira metade (capítulos 1 a 6), a narrativa gira em torno da figura do próprio
“profeta” Daniel e seus companheiros, que haviam sido deportados para a Babilônia em 585 a.C. Na Babilônia, eles
revelam a superioridade do Deus dos judeus por meio da sabedoria e da negação dos valores e divindades nativas. A
segunda metade contém as revelações “futuras” dadas por Deus a Daniel.
a existência da cidade sem um local fixo de adoração.

O judeu tradicional pós-exílio via na religião e no seu lugar sagrado de culto uma forma da
divindade restabelecer a glória de Israel, que diante da corrupção e da idolatria, foi subjugada
temporariamente pelos pagãos como forma de correção e disciplina dada por Yahweh ao seu povo.
A libertação do povo cativo, a reconstrução dos muros da cidade juntamente com a reconstrução
do Templo no Monte Moriá e a criação da Knesset Hagedolah (conhecida na literatura da língua
inglesa como a Grande Assembleia – um supremo órgão religioso e judicial dos judeus) marcaram
o início do período conhecido como Segundo Templo.
A figura do Templo era vista como um símbolo vivo de enfrentamento das injustiças sociais
existentes, assim como unidade sociopolítica e orgulho (após Yahweh ter permitido a profanação
e contaminação do seu lugar sagrado diante das inúmeras transgressões). O símbolo tão vivo e
tão forte como o do lugar sagrado remete à vida e à esperança de um futuro glorioso na crença do
poder de restauração do Templo que outrora fora de glória dos judeus e que agora teria uma função
de união e retorno à religião.
Segundo Mardones (2006), o poder do símbolo em tempos de crise é tamanho que faz com
que o sonho de vida e o invisível interiorizado se tornem realidade. O transcendente tem poder de
se tonar imanente na alma, conseguindo o alcance de traduzir o intraduzível e de tornar realidade
sonhos mesmo que longínquos.

O símbolo revela certo aspecto da realidade – os mais profundos – que


desafiam qualquer outro meio de conhecimento [...] respondem a uma
necessidade e preenchem uma função (ELIADE, 1992, p. 13).

A política de tolerância religiosa e “repatriação” das nações que estavam sob seu domínio
faziam parte de um amplo jogo político de aceitação do novo dominador persa. Um estratagema no
reconhecimento dos símbolos sagrados de cada nação, no sentido de manter uma coesão política
(uma administração confortável frente às várias crenças que compunham o vasto império), através
da tolerância e do respeito à diversidade, fez do rei Ciro um hábil governante.

Isto era politicamente expediente (reconhecimento dos símbolos


sagrados de culto e a repatriação) para garantir-lhe o apoio popular,
enquanto assumia o controle do vasto império babilônico que se
espraiava para o Ocidente através da Síria e da Palestina, até as fronteiras
com o Egito (SCHULTZ, 1995, p. 320).

O segundo Templo Beit Sheni foi erguido com muita dificuldade e limitação de orçamento,
entretanto, mesmo menor em extensão e suntuosidade, tinha uma função singular de (re)criação da
identidade da nação, através da religião com seu epicentro focado na figura do Templo de Jerusalém.
Com a figura do novo Templo, o Sumo Sacerdote passou a ter autoridade quase que soberana na
estrutura sociopolítica judaica, visto que diante de uma dominação política (persa e posteriormente
helênica), os eventuais esclarecimentos e as relações eram ditadas do dominador estrangeiro para o
representante máximo da religião judaica.
Tal situação – o sacerdócio se tornar um cargo político – gera debates mais profundos no
seio do judaísmo, quando, no período do grande ecúmeno helenístico, o cargo de Sumo Sacerdote
deixa de ser exercido pelos integrantes da tribo de Levi e passa a ser uma moeda de troca de apoio
político, quebrando assim as determinações da Torah. Isso deixava claro que este exercício deveria
estar intimamente ligado à tribo de Levi e à descendência do lendário Aarão, irmão mais velho de
Moisés. O cargo de Sumo Sacerdote passou a ser extremamente político15 e de grande amplitude
no contexto judaico, já que o Sumo Sacerdote tinha um poder, no imaginário da sociedade, que
extrapolava uma mera dominação religiosa.
Os estudos híbridos ganham destaque no judaísmo do Segundo Templo pelo regresso ao
judaísmo mais legalista mosaico, pelas relações ambíguas e tensas com os dominadores e povos
circunvizinhos e a relação peculiar que o judeu observante tinha em torno do Templo.
Do ponto de vista das ciências da religião, histórica e geográfica, a centralidade do Templo e
as relações existentes a partir deste epicentro do poder na sociedade judaica são diversas, tanto na
relação entre os judeus observantes – nas relações entre os legalistas e os culturalmente helenizados
–, quanto entre os próprios judeus que assimilaram a cultura dominante (helenizados) e estrangeiros.
A religião é o “macrocentro” das relações pessoais e de poder no judaísmo do Segundo Templo,
enquanto o “microcentro” do sagrado, que toma conta de toda a sociedade, é a figura do Templo,
que tem ascendência sobre todas as demais instituições na sociedade por representar o local por
excelência de manifestação do sagrado e por ser o espaço de remissão dos pecados que levaram
os judeus a serem dominados por outros povos, já que o princípio da Teodiceia levaria a própria
divindade a entregar seu povo às nações pagãs para que houvesse expiação dos pecados, adquirindo
Deus e o Templo uma função de juiz na sociedade judaica.

O Santuário não era considerado simplesmente obra humana: supunha-


se um modelo celestial (...). A presença de Deus é descrita, desde cedo,
como a imagem de um rei em seu trono. O cenário de um Templo, então,
é enriquecido com o cenário da corte de um soberano [...]. Os limites
das moradas terrestres e celestes se diluem como expresso nas visões de
Isaías 6 “aquele que está assentado acima do trono” e Ezequiel 1-3. Ao
mesmo tempo, o Santuário tinha função de garantir a proximidade de
Deus: ia-se ao Templo a fim de contemplar a “face de Deus” ou de “se
apresentar diante da sua face”. O Templo representava o céu e a terra,
o cosmo, a Criação – era o umbigo do Mundo. (MAIER, 2005, p. 209-
210, grifo nosso).

O território religioso sagrado evidenciaria o poder que a própria divindade outorgou ao povo
judeu, assim como uma tentativa de marcar um (re)nascimento, frente às nações circunvizinhas, de
um povo que foi dominado politicamente, mas que, apesar disso, permanecia fiel às suas práticas
religiosas e mantinha a obediência às regras estabelecidas por sua divindade.
As relações entre judeus e a figura do Templo ganham um caráter de maior poder e sacralidade
15 Conforme se vê na descrição de 2Mc 4:7-11, Jasão foi tornado Sumo Sacerdote sem o consentimento de Deus, por
uma manobra política, a fim de recolher maior quantidade de impostos e tesouros para o Templo, e estes acabariam
sendo posteriormente enviados para o governante selêucida. No decorrer do texto, vê-se que o Sumo Sacerdócio foi se
tornando cada vez mais um cargo de grande status na sociedade judaica do séc.II a.C.
no pós-exílio e nisso a literatura apocalíptica se torna essencial para entender como o pensamento
do judeu estava ligado às figuras de um Templo (habitação sagrada). Observa-se que nas narrativas
sobre os diversos governantes que estiveram à frente da Judeia, a figura central é sempre o Templo,
que, para o judeu tradicional, não deveria ser violado em nenhuma hipótese. E para não ter seu
lugar sagrado profanado, por vezes esteve em jogo a necessidade de pagar grandes quantias em
impostos aos dominadores.
O centro das narrativas e das histórias envolvendo judeus e governantes babilônicos, persas e
gregos (macedônios, ptolomeus e selêucidas) é a relação destes com a cultura religiosa judaica e a
peculiaridade que envolvia a figura central do culto e suas ritualísticas (por exemplo, a manutenção
da prática das ofertas e dos sacrifícios no Templo). A figura de Antíoco IV, Epífanes ao longo da
historiografia, é demonizada pelos judeus, pelo fato de o governante selêucida ter claramente
tentado helenizar os costumes religiosos judaicos.

Antiochus policy obliterating Yahwism proscribed most of the religious


practices that defined Judaism. The Sabbath, Scriptures, sacrifice to
Yahweh, circumsion and the Jewish religious festival were all forbidden.
The Temple had already been desecrated. The Jews reacted in three
diverse ways to these events and policies. Some, who saw greet value
in Hellenism, reluctantly acquiesced; some were martyred rather than
yield to the rulings of the king, and others resorted to armed resistance.
(ANDERSON, 2002, p. 37)16.

O contexto da forma simbólica sagrada do Templo é de grande importância para o entendimento


da narrativa e para toda relação existente entre os dominadores e o povo judeu. Aqueles povos
(governantes), que tinham uma boa relação com a religião judaica e concediam a liberdade de culto
e adoração no Templo, eram considerados governantes amigos. Porém, aqueles que não tinham
boa relação com o culto e com os ritos do Templo (ou queriam alterar a ordem cultural religiosa
vigente) eram considerados governantes perversos e personificados como “governantes malignos”.
O professor Martin Goodman (1994), ao comparar os problemas vividos pelos judeus durante
a dominação selêucida no séc. II a.C e a crise romana do Templo no séc. I d.C., afirma que existem
muitas similaridades entre as duas épocas, inclusive com relação ao foco que é o Segundo Templo
que foi profanado no séc. II a.C por Antíoco, Epífanes, e já no período do Império Romano foi
destruído pelo General Tito a mando do imperador Vespasiano no ano 70 da nossa era.

[...] references for the time of the Second Temple to the influence to the
Greek Culture from Jews are rare outside the context of the revolt of the
Macabees but a few can be found. So for instance Josephus wrote (AJ
15.267-8) that some Jews opposed the entertained plans to Herodes the
Great in Jerusalem on the grounds that athletic games, the theater and
amphitheater were foreigner customs which destroyed ancient way of
16 “A política de Antíoco proibiu a maioria das práticas religiosas que definem o judaísmo. O Sábado, as Escrituras,
o Sacrifício a Yahweh, a circuncisão e o festival religioso judeu foram proibidos. O Templo já havia sido profanado.
Desta forma os judeus reagiram de três formas diferentes a esses eventos políticos (helenização). Alguns, que viram o
valor no helenismo, concordaram, mesmo que relutantemente; alguns foram martirizados antes de cederem às decisões
do rei, e outros recorreram à resistência armada” (tradução nossa).
life (GOODMAN, 1994, p. 169, grifo nosso)17

CONSIDERAÇÕES FINAIS: UM TERCEIRO TEMPLO COMO FORMA


SIMBÓLICO-ESPACIAL.

Quando nos transportamos para o espaço presente, com a sobreposição de diversas


temporalidades existentes no continuum passado-presente, verifica-se que as relações no contexto
político estão impregnadas de um grande caráter religioso e que o Templo destruído ainda
permanece vivo na mentalidade do judeu observante com um símbolo de um futuro renascimento.
A figura mental de um Terceiro Templo está presente no cotidiano judaico como um símbolo
de esperança da vinda do futuro Messias como libertador político e religioso. Sendo assim, através
da sua presença, o imaginário do Terceiro Templo seria materializado no Monte Moriá (lugar
simbólico), no lugar em que se encontra o Domo da Rocha – lugar sagrado também para a religião
islâmica.
O espaço sagrado revestido do tempo Kairos18 em detrimento do tempo Kronos19 faz com que
o sentimento religioso esteja mais vivo em regiões próximas ao lugar da hierofania e que um estado
que ainda mantém fortes traços de uma teocracia tem sua política voltada a atender o grupo mais
próximo como o rabinato de Jerusalém. Sendo assim, as relações com a Palestina e com os demais
estados islâmicos não são boas pelo choque de duas grandes religiões monoteístas, e principalmente
pela incompreensão de ambos os lados, impossibilitando convivência harmoniosa entre essas duas
grandes religiões monoteístas.
As relações sociopolíticas dos judeus na contemporaneidade estão revestidas de caráter
simbólico da religião. Sendo assim, países que tradicionalmente são aliados de Israel são vistos
como boas nações, enquanto os países islâmicos circunvizinhos que não reconhecem o Estado de
Israel são vistos como nações ruins, mantendo o padrão classificatório da Antiguidade pautado na
afinidade político-religiosa para classificação de governos “amigos” e “inimigos”.
A análise espaço-temporal da forma simbólica do Templo permite verificar as incompreensões
geopolíticas com os dominadores que não se atentaram à peculiaridade religiosa dos judeus. Sendo
assim, vislumbrando o futuro através do passado, o “glorioso terceiro milênio” só teria sua gênese na
mentalidade do judeu tradicional através da reconstrução do seu axis mundi, o Templo (ELIADE,
1992), e que, possivelmente, incorreria em mais incompreensões e um clima belicoso com o Islã e
com as demais religiões que utilizam Jerusalém como epicentro do sagrado.
Uma possível reconstrução do Templo judaico acabaria por ocasionar um conflito de grandes
17 “[...] as referências para o tempo do Segundo Templo com a influência da cultura grega sobre judeus são raras fora
do contexto da revolta dos Macabeus, embora algumas possam ser encontradas. Josefo, por exemplo, escreveu (AJ
15.267-8) que alguns judeus se opunham aos planos de entretenimento de Herodes, o Grande em Jerusalém, alegando
que os jogos, o teatro e o anfiteatro eram costumes estrangeiros que destruíam o antigo modo de vida dos judeus”
(tradução nossa).
18 A temporalidade ligada à hierofania primordial, que não necessariamente está ligada ao tempo cronológico, mas
ligada ao sentimento e à rememoração do sentir o sagrado. No caso do judaísmo, podemos colocar como um exemplo
da vivência dessa temporalidade kairológica a leitura e a meditação na Torah que faz com que o judeu se transporte
aos tempos imemoriais dos seus patriarcas e do grande legislador Moisés (ROSENDAHL, 2014).
19 A temporalidade ligada ao tempo cronológico marcado pelos anos, meses, dias, horas e segundos. A temporalidade
de duração de um evento que não está ligada à rememoração de algum elemento ou ato indispensável à fé.
(ROSENDAHL, 2014).
proporções com os islâmicos que têm na mesquita seu espaço sagrado de contato com sua divindade.
E até mesmo com os cristãos que têm o lugar como sagrado pela vivência de Jesus Cristo e seus
apóstolos, em especial Pedro, que pela tradição Católica Romana, foi o primeiro Papa, juntamente
com a figura de Paulo, o grande artífice teológico de expansão do cristianismo de uma religião local
para uma religião de cunho universal.
Logo, a análise das formas simbólicas espaciais religiosas permite inferir que, ao menos
momentaneamente, os judeus mais ortodoxos continuarão a prestar suas orações e rememorações
ao Templo no muro das lamentações que fica na parte “anterior” da mesquita islâmica para não
gerar mais incompreensões políticas numa região na qual o caráter religioso desde a Antiguidade
sobressai, sendo um espaço sagrado para as três maiores religiões de cunho monoteísta do mundo:
judaísmo, islamismo e cristianismo.
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GEOPOLÍTICA DO SAGRADO: O CÍRIO DE NAZARÉ EM BELÉM-PA E SUAS
DEFINIÇÕES, UM CAMPO DE CONFLITOS
Vanda Pantoja20

RESUMO

O Círio de Nossa Senhora de Nazaré é uma das maiores celebrações religiosas do catolicismo
popular no Brasil. Acontece na capital paraense há mais de dois séculos e se constitui como um dos
momentosmaisfestivosdessapartedaAmazôniaBrasileira.Nestetexto,apartirdaanálisededadosde
campo,tentamoscompreenderacelebraçãoapartirdoconflitodeinteressesentreosagentespresentes
no contexto de organização. Temos como referência a Diretoria da Festa, instituição responsável
por organizar a celebração desde a primeira década do século XX, as empresas patrocinadoras e os
devotos. Nossa hipótese é de que há um desejo, por parte da Diretoria, não apenas de organizar e
controlar a celebração, mas de defini-la, dizer o que é o Círio e, consequentemente, o que ele não é.
Palavras Chave: Círio de Nazaré; Diretoria da Festa; Conflito; Igreja Católica.

INTRODUÇÃO

Círio é a forma como se denomina a principal procissão do conjunto de celebrações envolvidas


no culto à Nossa Senhora de Nazaré, em Belém, há mais de 200 anos21. É também como se nomeia o
tempo – cerca de vinte dias de homenagens à padroeira da cidade. Assim, círio é tanto a nominação
específica de uma procissão, quanto de um tempo no qual acontece um conjunto de celebrações
religiosas e não religiosas. Acontece no mês de outubro e inclui procissões, missas, feiras de
brinquedos regionais, exposições de arte, shows musicais, arraiais, festas de aparelhagens e muitos
outros festejos cidade adentro. Todos os festejos do Círio mobilizam diversas espacialidades,
despertam sentidos variados de acordo com a intencionalidade dos diferentes grupos que participam
das celebrações.
Assim como são plurais os sentidos para quem participa da festa, são plurais também as
abordagens que se fizeram/fazem da celebração na literatura acadêmica. A literatura que se tem
produzido sobre o Círio é vasta, oriunda de diferentes áreas do conhecimento e bastante diversificada
nas abordagens22. As preocupações vão desde questões sobre a relação da celebração com a imprensa
(MONTARROYOS, 1992; ALVES, 2002, 2012; SOUSA, 2013), passando por leituras centradas nos
efeitos da modernização na celebração (MATOS, 2010), até leituras que privilegiam as espacialidades
que surgem a partir da celebração, a exemplo do cenário musical (COSTA, 2006). Por questões
de espaço farei referência aqui apenas aos primeiros trabalhos feitos sobre o Círio e aqueles que
estejam, por natureza de abordagem, relacionados ao objetivo desde artigo que é compreender a
20 Artigo originalmente publicado em Novos Cadernos NAEA, V. 21, n. 2, 2018, com modificações.
21 Em 2019 a celebração do Círio completou 226 anos.
22 Desde 2014 quase todo o material produzido sobre o Círio está disponível para consulta na Biblioteca do Círio, projeto
da Universidade Federal do Pará que reúne, em um só lugar, os trabalhos realizados sobre essa manifestação cultural (www.
bibliotecadocirio.org).
celebração a partir das relações de conflito entre a Diretoria da Festa, patrocinadores e devotos.

Os primeiros olhares sobre o Círio já primavam pela diversidade de abordagem. Assim, temos a
celebração vista como um fenômeno social de grande importância sob a ótica da Geografia Humana,
a partir da mobilidade ou “transumância” entre o interior e a cidade provocada por ocasião do Círio,
como verificou Eidorfe Moreira (1971) ou, a partir de um ponto de vista estruturalista, como fez
Isidoro Alves (1980), que concebeu o Círio como um momento ritual que, por meio da dimensão
simbólica, revela a estrutura de um amplo sistema de relações sociais. Rocque (1981) se preocupou
em registrar a história da celebração por dois séculos, fornecendo, assim, importantes informações
sobre ela. Montarroyos (1992) produziu uma literatura a partir do que se relatou a respeito do
Círio na imprensa escrita. Partindo de uma perspectiva antropológica, Maués (1995) pensou o
Círio de Nazaré como exemplo da tensão que caracteriza o catolicismo como um todo. Pantoja
(2006), tendo como ponto de partida a relação entre a Diretoria da Festa e os demais envolvidos
no processo de organização da celebração, mostrou a tensão que marca o processo de produção do
Círio, chamando atenção para a dimensão econômica presente na celebração. Ainda privilegiando
o conflito, Corrêa (2010) se debruça sobre as tensões existentes entre os elementos tradicionais
do Círio como “corda, manto e almoço” e da festa religiosa em si com seus “espaços profanos”.
Alves (2012) e Sousa (2013), do ponto de vista da Comunicação, preocuparam-se com as tensões
advindas da relação da celebração com a mídia televisiva e a Internet.
Como se vê, são muitos os estudos preocupados em compreender a celebração do ponto de
vista do conflito. Nesse texto nos aproximamos dos autores que pensam o Círio a partir dessa
perspectiva e propomos uma compreensão da celebração tendo como ponto de partida os
interesses de diferentes agentes: Diretoria da Festa, devotos e empresas patrocinadoras, presentes
no processo de organização da celebração. Ao longo do texto trabalhamos com a tese de que além
do desejo de controle (MAUÉS, 2005), há um desejo de definição do Círio por parte da instância
organizativa Diretoria da Festa (DF). Esse coletivo, formado apenas por homens, ao longo dos
Círios tenta produzir uma celebração que responda às expectativas da Igreja Católica acerca do que
essa instituição pretende que seja o Círio. Tal expectativa gera uma série de práticas, entendidas
aqui como práticas políticas, que têm como eixo a relação entre sagrado e poder.
Por se tratar de um bem de natureza simbólica, todo processo de gerência da celebração precisa
ser negociado com os demais agentes envolvidos no amplo repertório que envolve o Círio. Assim,
todas as decisões tomadas pela Diretoria em relação ao Círio precisam ser negociadas com os
devotos, com a mídia e, mais recentemente, com empresas que desde 2003 fazem parte da celebração
como patrocinadoras oficiais via modelo instituído pela Diretoria da Festa23.
Evidências do desejo de controle sobre o sagrado se manifestaram no Círio de diferentes formas
ao longo do tempo. Na atualidade, essas tentativas são percebidas de diversas maneiras: desde o
desejo de criar um conceito sobre o Círio, isto é, dizer como ele deve se apresentar e quais ritos
que dele fazem parte, até a tentativa de registro de uma marca para o Círio via Instituto Nacional
de Propriedade Industrial (INPI)24. Saindo do âmbito da DF e da Igreja Católica e partindo de
uma definição ampla e popular, o Círio possui uma série de celebrações “sagradas” e “profanas”
23 Desde 2003 a Diretoria da Festa tem inovado no que se refere à captação de recursos para a realização da
celebração. Iniciou o projeto patrocinador do Círio de Nazaré, uma espécie de profissionalização de patrocínios que
já existiam no contexto da festa, mas que não eram marcados por uma visão empresarial e contratual. Desde então o
projeto vem se especializando a cada Círio no sentido de se tornar mais eficiente.
24 O pedido foi realizado pela Diretoria no início dos anos 2000. Até então não houve decisão.
associadas25, porém, de acordo com a Diretoria, seguindo uma perspectiva eclesial, fazem parte do
Círio apenas as celebrações de natureza religiosa. Tal concepção implica deixar de fora do Círio um
conjunto de ritos e demais eventos que em seu conjunto definem e compõem aquilo que se entende
popularmente como Círio, assim como restringem o “tempo do Círio”.
A partir de dados pontuados ao longo do texto procuramos mostrar que a celebração do
Círio tem sido um instrumento que, de tempos em tempos, é objeto de disputa pelos agentes que
fazem parte da instância organizativa DF e os demais agentes com algum poder de gerência como
promesseiros da corda, empresários, mídia e o povo participante em geral. Tal disputa pelo poder
revela diferentes concepções sobre o sentido do evento enquanto celebração religiosa, patrimônio
cultural, manifestação popular, produto cultural e todas as possíveis atribuições.
Alves (1981) mencionava em sua pesquisa uma “ideologia do controle” por parte da Diretoria
da Festa em relação ao Círio, percebida sempre que o poder da diretoria se encontrava ameaçado
por outros agentes. Trata-se, segundo ele, de uma “retórica” manifestação através de um discurso,
que em determinados momentos traz à tona uma série de ideias preconcebidas sobre a devoção, e
que têm como objetivo afastar qualquer outro discurso que ameace seu controle sobre a devoção.
Pantoja (2006) trabalhou com a hipótese de que a celebração, dada a sua dimensão, constitui
aquilo que Mauss (2003) chamou de fato social total. Nesse sentido, seria possível verificar, no
interior da celebração, sujeitos, interesses, sentidos e intencionalidades diversas. Trata-se de pensar
a celebração do Círio não apenas como um objeto a ser manipulado e apropriado por esse ou aquele
agente, mas como uma coisa, ou, como no dizer de Ingold (2012, p, 29), um “acontecer”, ou melhor,
“um lugar onde vários aconteceres se entrelaçam”.

Assim concebida, a coisa tem o caráter não de uma entidade fechada


para o exterior, que se situa no e contra o mundo, mas de um nó cujos
fios constituintes, longe de estarem nele contidos, deixam rastros e são
capturados por outros fios noutros nós. Numa palavra, as coisas vazam,
sempre transbordando das superfícies que se formam temporariamente
em torno delas (INGOLD, 2012, p, 29).

Isso permite pensar o Círio não apenas como um resultado ou produto de certa agência ou
agências (STRATHERN, 2006), mas como um processo, também político, capaz de mobilizar os
diferentes agentes que dele fazem parte, não apenas como organizadores, devotos, patrocinadores
etc., mas como fios que, via processo Círio, atualizam-se enquanto poder. Nesse sentido, a celebração
não atualizaria apenas a fé do devoto de Nossa Senhora de Nazaré; ela também expressa e atualiza
o Círio enquanto processo de fluxos, fora e dentro de si: fora quando é planejado, formatado e
idealizado pelos diferentes agentes; e dentro de si quando acontece como coisa, autônomo ao ponto
de não se expor aos desejos manifestos dos agentes, as procissões, os autos, feiras e festas na periferia
da cidade – os círios “sem controle”.

25 De acordo com documentos divulgados pela Diretoria da Festa, em 2016 havia 26 eventos associados ao Círio
que tinham a DF como entidade organizadora. No entanto, esse número é maior tendo em vista que a Diretoria não
considera como evento associado uma série de celebrações que não passam por sua gerência.
NO PRINCÍPIO ERA A FÉ...

No início da devoção à Nossa Senhora de Nazaré em Belém, na primeira década do século


XVIII, o culto era realizado por leigos; não havia a presença da instituição Igreja. Segundo a narrativa
local acerca da origem da devoção, o culto surgira por iniciativa de um senhor que teria achado a
imagem de uma santa às margens de um igarapé. Esse senhor, que na narrativa local era Plácido
José de Souza, ficara à frente da devoção sem intervenção da Igreja até a segunda década do século
XVIII, época em que teria acontecido a apropriação da celebração pela Igreja, a partir da visita
de uma autoridade religiosa à pequena imagem. O controle da Igreja sobre a devoção somente se
consolidaria na última década do mesmo século por meio da oficialização da devoção: a invenção
do Círio de Nazaré no ano de 1793 (ROCQUE, 1981; MAUÉS, 1995, 1999).
A presença de representantes do poder religioso no contexto da celebração entre a segunda e a
terceira décadas do século XVIII, e do poder político, no final do mesmo século, deram caráter de
oficialidade à celebração que, a partir de então, não pode ser pensada dissociada do poder controlador
do Estado e da Igreja. Em 1793, por iniciativa do “capitão de fragatas” Francisco Coutinho de Souza,
então governador da província do Pará, foi realizado o primeiro Círio de Nazaré. Desde então, a
celebração passaria a ser pensada como uma manifestação religiosa representativa, na Colônia, do
catolicismo lusitano. Para tanto, foi necessário o expurgo de práticas consideradas não condizentes,
segundo a visão da Igreja, com o “verdadeiro” catolicismo, práticas, que, por quase um século, já
aconteciam na devoção, tendo em vista seu caráter popular.
A relação de mais de 200 anos entre a Igreja e a devoção é marcada por frequentes conflitos
entre as duas frações do catolicismo: o Catolicismo Oficial, representado pela Igreja Católica, e o
Catolicismo Popular, representado pelos devotos. Ambas as categorias são assim definidas:

(...) desejo definir bem claramente o sentido em que utilizo a expressão


“catolicismo popular”. Ela é empregada, comumente, para fazer a
distinção dessa forma de catolicismo daquela que às vezes se chama
de “oficial”, isto é, a que é professada pela igreja hierárquica, que
a procura incutir no conjunto da população (...) não se trata de um
“catolicismo das classes populares”, pois no conjunto da população
católica (os leigos em oposição aos sacerdotes) independentemente
de suas condições de classe, professa alguma forma de catolicismo
popular, que às vezes é partilhada mesmo pelos clérigos, assim como
os leigos também partilham do catolicismo oficial. Entendo, pois, por
catolicismo popular aquele conjunto de crenças e práticas socialmente
reconhecidas como católicas de que partilham, sobretudo os não
especialistas do sagrado, quer pertençam às classes subalternas ou às
classes dominantes (MAUÉS, 1999, p. 171)

Segundo Maués, é a partir da relação entre as práticas do catolicismo eclesiástico e do catolicismo


popular que se dá a reprodução do catolicismo enquanto crença, sendo essa relação de contrários a
condição de existência do fenômeno catolicismo que, a partir de movimentos de recuo e de avanço,
reproduz-se enquanto crença.
Assim, ao longo da história do Círio têm sido comuns episódios conflituosos envolvendo as
duas formas de poder presentes e constitutivas dessa manifestação religiosa: o poder religioso-
político-econômico de um lado e o poder leigo de outro.
O poder religioso-político-econômico na atualidade é encarnado pela Diretoria da Festa
responsável por organizar a celebração e pelo capital, via empresários, responsável por parte do
custeio da festa.
A Diretoria da Festa representa ideologicamente a Igreja Católica, portanto, as decisões tomadas
nessa instância têm como propósito fazer um Círio de acordo com os preceitos de uma devoção
católica o quanto menos penetrada por elementos “folclóricos”26. Há o reconhecimento por parte
da DF de que alguns itens da celebração possuem grande valor cultural enquanto representativos de
elementos da cultura regional, particularmente amazônica, como o brinquedo de miriti, os cortejos
de boi-bumbá, as danças regionais. No entanto, tal perspectiva não avança no sentido de definir tais
elementos como sendo o Círio. Eles podem até fazer parte do Círio, mas não são o Círio.
Sendo também uma instituição de natureza religiosa27, logo representativa de um modelo de
catolicismo eclesial, a DF tem nos devotos seu contraponto, isto é, a representação do catolicismo
popular. Assim, todas as práticas da Diretoria têm os devotos como objeto de controle. Estes, por
sua vez, entendem a devoção como algo sem limites no que se refere às formas de expressão de
fé. Nesse sentido, na perspectiva do devoto, as procissões teriam tempo para começar e jamais
para acabar. No entanto, como são transmitidas em tempo real pela televisão local, as procissões
precisam cumprir o tempo estabelecido pelos acordos entre Diretoria e emissora de TV. Estabelece-
se, assim, um exemplo da “tensão constitutiva do catolicismo” proposta por Maués (1999) quando
comenta sobre a tensão entre Igreja e povo e destes entre si, como elemento presente na esfera do
catolicismo e como condição para sua (re) produção. De acordo com o autor, a ação do povo frente
às iniciativas controladoras do catolicismo oficial se dá através de “fluxos” e “refluxos”, chegando,
em certos momentos, a quase total anulação das práticas da Igreja. Porém, em outras ocasiões, as
ações da Igreja são tão presentes que quase anulam a ação do povo (MAUÉS, 1999, p. 486).
Ao longo da história do Círio, um dos momentos em que a ação do devoto fez frente às ações
controladoras da Igreja foi por ocasião dos “Círios civis” nos anos de 1878 e 1879, quando devotos
e Irmandades Religiosas, então responsáveis pela organização da celebração, desobedeceram as
ordens de D. Macedo Costa, bispo à época, que proibiu a realização dos serviços religiosos por
motivos de “representações indecorosas” no espaço do Arraial de Nazaré. O conflito teve seu ápice
com a realização da festa sem a presença de autoridades religiosas, mas com apoio do poder político
local (ROCQUE, 1981, 63-83).
Nos Círios contemporâneos, um dos elementos por meio do qual mais se percebem as ações
da Igreja no sentido de controlar a devoção, é a corda do Círio. Por outro lado, tem sido por meio
da corda, também, que se tem observado as ações de resistência por parte dos devotos às regras
impostas pela Diretoria (PANTOJA, 2006; CORREA, 2010).

26 Trata-se de termo mencionado em entrevista por um Diretor da Festa quando se referia ao desejo da DF em não
permitir que elementos da cultura popular como a Marujada tenham grande representação no Círio.
27 Apesar de a Diretoria da Festa ser formada em sua maior parte por leigos, nossas conclusões, a partir de observações de campo, é que estes
não são leigos comuns, pois que os dois diretores com quem mantive diálogos relataram que antes de entrarem na Diretoria já eram experientes
na vida cristã; os dois eram membros de grupos religiosos cristãos como E.C.C (Encontro de Casais com Cristo). Aliás, suponho que ser
“engajado” na vida cristã seja um critério para que um homem seja convidado ou indicado a integrar a Diretoria da Festa.
A seguir, apresento duas situações que ilustram e atualizam o desejo de controle sobre o Círio
e o conflito de interesses entre diretores da festa, devotos e empresários: a) a relação entre Diretoria
da Festa, Guardas de Nossa Senhora de Nazaré e devotos, e b) a articulação entre a celebração e o
mercado, via empresas, por meio do patrocínio oficial.

DIRETORIA DA FESTA, GUARDA DE NAZARÉ, DEVOTOS E SANTA

A presença da Diretoria da Festa na procissão do Círio é altamente marcada, física e


simbolicamente, pela segregação da Diretoria em relação aos demais devotos. Os diretores são
distintos das outras pessoas não apenas pelas vestes e sapatos brancos que usam ao participarem
das procissões, mas, sobretudo pelo lugar geográfico que ocupam no interior do cortejo28. Eles
se apresentam espacialmente separados do restante das pessoas que caminham na procissão, pois
se posicionam “dentro” da corda do Círio. Ficam assim protegidos dos empurrões e do vai e vem
comuns a uma procissão com mais de um milhão e meio de pessoas. Encontram-se também isolados
dos demais participantes por uma espécie de “corda humana” formada pela Polícia Militar e pelos
Guardas de Nazaré. Além disso, os diretores estão localizados no espaço de mais alta sacralidade do
cortejo: ficam próximo à berlinda, espécie de altar protegido com vidros que leva em seu interior a
imagem da santa. Lugar para onde todos os olhares convergem.
A Guarda da Santa, assim como a Diretoria, é (re) produtora da ideologia do controle pensada
pela Igreja Católica em relação ao Círio. Nesse sentido, há uma aproximação entre esses coletivos
visto que procuram o mesmo sentido para o Círio, almejam produzir uma procissão o quanto
menos penetrada pela intervenção do devoto, almejam um Círio “mais católico e menos folclórico”;
por outro lado, Guardas e Diretores são pessoas que podem ser entendidas como muito diferentes
do ponto de vista de classe social, instrução, trajetórias e visões de mundo.
A Diretoria é formada por homens de importância econômica e política na cidade; homens
com instrução religiosa devido ao pertencimento a grupos de formação religiosa no interior da
Igreja. Os Guardas, por outro lado, são trabalhadores comuns, funcionários públicos, garçons,
vigilantes, trabalhadores braçais, pessoas sem nenhuma projeção na sociedade local e com uma
precária formação cristã. Esse movimento de afastamento e proximidade entre diretores e guardas
possibilita a produção de diferentes interpretações acerca do que é o Círio. No entanto, como se
trata de relações de subalternidade entre os dois grupos, a vontade da DF tende a ser dominante29.
A constituição de uma guarda para Nazaré, ou Guarda de Santa, como é comumente chamada,
pode ser entendida como mais um capítulo de uma série de intervenções que materializam o desejo
28 Os diretores da Festa, assim como os religiosos de mais alto grau presentes no cortejo, ocupam um espaço
especialmente reservado para eles na procissão. Apesar de atualmente se encontrar abolida a ideia de “fora” e
“dentro”, já que esta se encontra disposta de forma reta, ainda assim, o espaço logo à frente da berlinda se encontra
protegido por uma corda e por policiais militares, mantendo, nesse caso, as mesmas características de “dentro” e
“fora” do modelo anterior a 2004.
29 É bom dizer que há uma grande diferença entre os membros da Diretoria da Festa e os membros da Guarda
de Nazaré. Eu diria que ideologicamente os membros da Diretoria estão mais afinados com a Igreja, pois são
representantes de uma classe economicamente mais abastada e com uma longa “caminhada” na Igreja através dos
movimentos católicos de caráter tradicional. Já os guardas de Nazaré, apesar de reproduzirem a ideologia da Igreja, já
que cumprem ordens da Diretoria, em termos de classe e de formação cristã se encontram mais afinados com a maior
parte dos devotos do catolicismo popular, principalmente no que se refere à precária formação cristã.
dos organizadores do Círio em discipliná-lo ao longo do tempo. O idealizador da Guarda foi o
padre Barnabita Giovane Incampo que esteve à frente da Basílica de Nazaré na década de 1970. Em
entrevista, o padre Giovane nos relatou o contexto em que se deu a instituição da Guarda.

(...) eu reparei que ao redor da berlinda havia muitos macumbeiros


que por uma tradição, promessa que eles fazem, eles misturam tudo,
macumba e religião, tudo que descaracterizava a devoção, a seriedade
da devoção à Nossa Senhora. Com os Guardas de Nossa Senhora de
Nazaré ficou mais fácil porque guardas conscientizados espiritualmente
com eles podiam contar que substituía o que não era católico, que era
católico mas frequentava duas religiões praticamente, substituí-los para
garantir que ao redor da berlinda houvesse pessoas conscientes, cristãs,
católicas que podia dirigir pacificamente a serviço de Nossa Senhora...
tudo isso foi moralizando o Círio.

A criação da Guarda por padre Giovane tem como finalidade tornar o Círio mais católico e
menos “folclórico”, e por folclórico entenda-se popular. Para tanto, o expurgo de certos agentes e
certas práticas religiosas, a exemplo dos “macumbeiros”, são, nesse sentido, fundamentais30.
Se a Diretoria da Festa é a instituição responsável pelo processo de “pensar” a organização geral
do Círio, a Guarda de Nazaré é o grupo responsável por pôr em prática o que fora planejado pela
Diretoria para as procissões, especialmente a do Círio. A Guarda é um grupo de cerca de setecentos
homens, voluntários, responsáveis por quase todos os serviços necessários à realização do festejo
religioso. Na origem, a Guarda tinha como principal função cuidar da berlinda da santa durante as
procissões e do espaço do Arraial de Nazaré para que nele não ocorressem excessos condenáveis
pela Igreja31.
No momento de organização do Círio são poucas, quase nulas, as intervenções dos devotos
no formato do Círio, no entanto, é por ocasião da realização das procissões que eles têm uma
participação ativa e muitas vezes definitiva sobre as procissões à revelia de qualquer organização
pensada pela Diretoria da Festa ou desejo dos patrocinadores.
Mas é também no processo de acontecer que o Círio se faz à revelia de todos e ao mesmo tempo
incluindo todos. A DF e a Guarda se dizem incapazes de controlar os devotos e estes reclamam dos
excessos de diretores e guardas, é nesse movimento que o Círio se faz.
No ano de 2004 a Diretoria modificou profundamente a organização espacial da celebração ao
alterar a disposição da corda ao longo da procissão32. Por meio dos discursos que justificavam tal
alteração à época, pode-se ver como a Diretoria lida com os outros agentes presentes no contexto
do Círio.

30 As aspas indicam palavras utilizadas pelo informante.


31 No momento de criação da Guarda, na década de 1970, esses excessos se referiam aos namoros que costumavam
acontecer no espaço do Arraial anexo à Igreja.
32 Tal alteração modificou a disposição da corda na procissão. Isso mexeu diretamente com um dos agentes mais
simbólicos da devoção, os promesseiros da corda, pessoas que, como diz o nome, pagam seus votos com a Santa
segurando a corda que, presa à berlinda, puxa e controla o ritmo da procissão.
Dependendo do contexto em que discursava, e para quem, a Diretoria mudava a forma do
discurso, mas sem alterar seu conteúdo controlador. Ao se dirigir aos Guardas de Nazaré para
esclarecê-los sobre as modificações à época na corda, um dos diretores utilizava de linguagem
simples, já que a maior parte dos guardas é constituída por trabalhadores advindos das camadas
populares, e lançava mão, em especial, de aspectos pedagógicos do discurso religioso para torná-
lo eficaz. Enfatizava sobre a importância dos guardas no contexto do Círio, sendo as procissões
o momento privilegiado para que estes pudessem demonstrar que eram homens “humildes”,
“obedientes aos superiores”, e “cristãos” como Maria. Destacava que a procissão não é momento
de “intrigas”, de “vaidades”33, e que Nossa Senhora e os “chefes de equipe 34” estariam observando
o comportamento da Guarda durante as procissões. Ao dizer isso a Diretoria se utiliza do aspecto
coercitivo também presente na ideologia religiosa35.
Aliada à autoridade de quem fala por uma instituição religiosa, a Diretoria lança mão, no intuito
de legitimar seu discurso, de ideias já pré-construídas sobre o Círio, como “retorno à tradição”,
“manutenção do controle” sobre a festa e “união entre corda e berlinda” 36.
Por outro lado, quando a fala dos diretores tem como alvo a imprensa local, o discurso sobre
a mudança da corda enfatiza especialmente a legitimidade da alteração por seu valor simbólico. O
simbolismo está ligado à ideia de que, a partir dessa alteração, a corda tende a permanecer atrelada
à berlinda até o final das procissões, o que significaria a não interrupção da ligação entre mãe (a
santa) e filhos (os devotos), o que também remete às origens do Círio, uma espécie de “retorno à
tradição”. Assim se expressa a Diretoria sobre o assunto.

Estamos voltando à origem da história dessa tradição que surgiu


quando uma corda foi usada para puxar a berlinda que estava atolada.
Essa volta a ser a sua função [da corda], a de puxar a berlinda.

“O CÍRIO SEM OS PATROCINADORES NÃO É NADA”

Enquanto processo, o Círio envolve a feitura de transações financeiras. Nos últimos anos a
celebração tem tomado o lugar de mercadoria capaz de ser trocada no mercado e por meio disso
se autorrealizar, ao mesmo tempo, enquanto processo religioso econômico e político. Portanto, a
capacidade de ser mercadoria não se dá fora do contexto de ser coisa sagrada. Ao contrário, é por
ser coisa sagrada que pode ser também bem de troca. Os bens de natureza simbólica expressam,
de acordo com Rosendahl (2003, 189), “uma realidade dotada de algum valor, às vezes valor moral
e, na maioria das vezes, um tipo de valor positivo”. A idealização de uma forma de captação de
recursos que pudesse financiar a realização da celebração do Círio e seus vários ritos associados e
33 Muitos Guardas de Nazaré definem os diretores da festa como “poço de vaidades” visto que adoram “ficar dando
tchauzinho” para seus parentes que estão nos prédios olhando a procissão passar.
34 Guardas que gerenciam o trabalho de outros guardas durante os cortejos.
35 Não de trata de força ou coerção física, mas de um domínio privilegiado, que se dá através do poder da Palavra
(ALTHUSSER apud ORLANDI, 1996, p. 242).
36 São termos utilizados por membros da DF para justificar as mudanças na corda.
que pudesse colaborar para as obras assistenciais da paróquia motivou a criação de um projeto que
mudaria a fisionomia e a forma de gestão do Círio: o patrocínio oficial.
Grosso modo, consiste em um contrato entre a DF e empresas públicas e privadas de nível local
e nacional que permite, via pagamento de um valor em dinheiro, que a DF dispense às empresas a
possibilidade de uso comercial de elementos ligados à celebração no mercado secular, como fotos
da imagem da santa, fitas, fotos da corda do círio, das procissões, ou de qualquer outro elemento
de forte associação com a celebração37 em sua dimensão sagrada. Dessa forma, segundo a DF,
ambas “saem ganhando”. As empresas ganham porque associam suas marcas a um bem de alto
valor simbólico com grande potencial de comercialização e a Diretoria ganha ao ter um orçamento
“fixo” para as despesas do Círio, além de se utilizar do nome de grandes e sólidas empresas para
propagandear seu produto, o Círio.
O projeto é considerado um sucesso por seus idealizadores que já não conseguem pensar a
celebração fora do contexto de patrocínio oficializado. Em conversa informal com um diretor, no
ano de 2011, ele dizia não saber o que seria do Círio se não fossem as empresas patrocinadoras.
Desde o lançamento do projeto, em 2003, o número de patrocinadores tem se mantido entre 11 e
18, e as mesmas marcas têm se mantido no negócio. O número de marcas que deseja ter seu nome
associado à celebração é bastante grande, porém, nem todas conseguem dar conta das contrapartidas
exigidas pelos contratos com a DF. Dessa forma, no ano de 2009 foi idealizado e lançado o Projeto
Apoiador do Círio de Nazaré. Tal projeto consiste em trazer empresas para o contexto da festa que
não conseguem arcar com as responsabilidades de patrocinador, mas desejam ter seus produtos
associados à celebração. Assim, as empresas apoiadoras pagam uma quantia menor e também
recebem “direitos” menores sobre o uso da marca Círio 38. Em 2003, quando o projeto foi criado,
a cota do patrocínio oficial estava em torno de R$ 50 mil reais e em 2016 o valor ficou em R$ 85
milhões.
A ideia do patrocínio oficial do Círio surgiu em um contexto de certas mudanças no cenário
religioso brasileiro. O grande crescimento do segmento evangélico confirmado pelo censo do IBGE
no ano 2000 balançou as estruturas que se pensavam sólidas da Igreja Católica. A ressonância desse
abalo foi percebida na Igreja paraense e uma série de mudanças ocorridas no contexto do Círio39
estão relacionadas à perda de fiéis pela Igreja Católica e ao avanço dos pentecostais. O Círio é
estratégico, pois se trata do momento ápice de evangelização para os católicos.

NA PROCISSÃO DAS DIFERENÇAS O “DESEJO DE TOTALIDADE”

Em momento de instabilidade entre as instituições religiosas (GUERRA, 2003), todos os


mecanismos possíveis na manutenção das igrejas precisam ser reavaliados segundo uma ótica eficaz
no que se refere a sua funcionalidade e eficiência enquanto mantenedoras de uma determinada
crença. É com esse propósito que a DF experimenta diferentes formas de captação de recursos e
utiliza expedientes não convencionais da esfera da religião para gerenciar o sagrado. Tais expedientes
37 É bom dizer, que no caso da imagem da santa, somente são utilizadas fotos da imagem peregrina. Imagens da
“santa original” não são utilizadas.
38 Em 2009, quando o projeto Apoiador do Círio foi lançado, cada empresa podia colocar a logomarca de seu produto
em 500 cartazes da santa e a colocação de um banner do site oficial do Círio.
39 Algumas dessas mudanças são identificadas e caracterizadas por Pantoja (2006, 2011).
têm demonstrado que são funcionais do ponto de vista prático, por isso a interpretação da Diretoria
de que são “bons” para a celebração. Do ponto de vista financeiro, essa forma de gerenciar o sagrado
tem sido uma alternativa bem-sucedida para o Círio. Por outro lado, do ponto de vista da relação
entre Círio e povo, o patrocínio tem aumentado os episódios de tensão, pois tem causado um maior
distanciamento entre a celebração e os devotos, visto que a introdução na celebração de empresas
patrocinadoras, em outras palavras, do mercado, tem causado um “rigor” maior na organização
da festa. Rigor que se manifesta no controle do tempo das procissões e no cerceamento das formas
populares de pagar promessas – questões que, para os devotos, não podem ser alteradas. A prática
do patrocínio oficial que tem como propósito fazer o Círio cada vez maior, agudiza os fenômenos
de fragmentação e atualiza, sob outra perspectiva, agora com traços do mercado, os conflitos e
tensões no Círio.
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UMA REFLEXÃO SOBRE A MODERNIDADE: RELIGIÃO E POLÍTICA NO
DISTRITO FEDERAL
Marília Luiza Peluso

RESUMO

Oartigobuscacompreenderaexpansão,namodernidadelaicaeracional,dasigrejaspentecostais
e carismáticas e compreender como formam uma força política e quais os motivos. Para abordar
tema tão complexo, filia-se a vários campos da Geografia: Cultural e Política, mas também Geografia
Econômica e Geo-história. Procura-se compreender quais processos levaram ao fracionamento
das religiões cristãs históricas, como se formaram os convertidos às religiões pentecostais e se os
convertidos às novas denominações religiosas formam uma força política na atualidade. Considera-
se, como hipótese, que há grupos sociais receptivos às igrejas pentecostais. Uma revisão histórica
do fracionamento das religiões cristãs a partir da Idade Média até o momento contemporâneo
pretende chegar a este grupo, contextualizando-o na cidade-satélite de Samambaia, no Distrito
Federal. Como metodologia, analisa-se o discurso de duas moradoras pentecostais de baixa renda,
com as quais se apresenta o potencial político do pentecostalismo carismático. Conclui-se que o
sentimentoreligiosoproporcionasensaçãodepertencimento,abrigoeumaidentidadepositivaque,
politicamente, traduz-se no número significativo de políticos pentecostais na Capital da República.
Palavras-chave: igrejas pentecostais; religiões cristãs históricas; fracionamento; potencial político

INTRODUÇÃO

A modernidade ocidental que emergiu do Iluminismo se caracteriza pelo pensamento racional,


pela fé nas ciências, pelo progresso contínuo e pela laicização da sociedade. As religiões e a fé de cada
indivíduo foram remetidas ao domínio privado e as Grandes Religiões perderam o poder político
que detinham anteriormente: tanto a Igreja Católica durante o período medieval, quanto, depois
do século XVI, as Igrejas Reformadas Protestantes Históricas (Luterana, Presbiteriana, Metodista e
Anglicana).
Portanto, é de certa maneira surpreendente o crescimento das religiões protestantes carismáticas
e pentecostais e seu grande fracionamento, principalmente após os anos 60 do século passado,
enquanto decrescem as práticas religiosas ortodoxas, mesmo em países tradicionalmente católicos
ou protestantes. (HOBSBAWM, 2013)40.
Dentro desse quadro, algumas questões se levantam e podem ser sintetizadas em três perguntas
problematizadoras, das quais procedem as hipóteses norteadoras da análise e os objetivos a serem
alcançados. Primeira: quais processos levaram ao fracionamento das religiões cristãs históricas?
Segunda: como se formaram os convertidos às igrejas pentecostais e carismáticas? Terceira:
os convertidos às novas denominações religiosas formam uma força política considerável neste
momento globalizado da modernidade que deveria ser secular?
As hipóteses básicas que nortearão as respostas para as três questões são: primeira, os homens
se inserem num mundo preexistente, cujo conjunto de culturas, simbolizações, significações,
relações sociais são internalizadas; segunda, o conjunto internalizado não é estático, mas se
altera historicamente. Terceira, dessa maneira, compreender o mundo preexistente “requer uma
arqueologia que nos remeta constantemente ao passado, para compreendê-lo em sua modernidade”
(PELUSO et al, 2015, p. 1). Escavando o passado, pretende-se encontrar os grupos sociais receptivos
às igrejas pentecostais e carismáticas e tentar compreender se eles formam uma força política e
quais os motivos.
O tema é complexo e pergunta-se – como abordá-lo por intermédio da espacialidade? Se
considerarmos, como o faz Massey (2012), que o espacial é político e de que há um “rol potencial
de conexões entre a imaginação espacial e a imaginação política” (MASSEY, 2012, p. 30), pode-se
buscar um caminho que exponha as conexões. O caminho com o qual se vão fazer as conexões
entre espacialidade e política é a conformação das identidades, pois bem se pode imaginar que a
modernidade, com “seu amplo quadro de mudanças”, como afirma Hall (1997, p. 7), trouxe consigo
uma ruptura com as antigas identidades e proporcionou a formação de novas.
Como procedimentos metodológicos, além da revisão bibliográfica para localizar temporalmente
as religiões, serão analisados os discursos emitidos por duas mulheres pobres, ambas adeptas
de igreja pentecostal, moradoras de uma cidade-satélite do Distrito Federal, Samambaia, e que
exemplificam bem as considerações teóricas que serão desenvolvidas41.
As considerações acima estão delineadas em quatro seções. Na primeira, vai-se refletir sobre
as discussões religiosas que se fizeram durante a Idade Média até a modernidade, teorizando o
conjunto de mudanças sociais que se gestaram no período e suas influências nos cânones religiosos;
na segunda, serão abordadas a ruptura das antigas identidades e as novas que se formaram, assim
como a instituição dos novos sujeitos; na terceira, será feita a contextualização dos sujeitos no
Distrito Federal (DF) e em Samambaia para, em seguida, analisar-se as falas das duas mulheres;
por último, nas conclusões, pretende-se apresentar o potencial político da espacialidade e do
pentecostalismo carismático.

O CAMINHO PARA A MODERNIDADE RELIGIOSA

A modernidade inaugurada com o Renascimento (meados do século XIV ao fim do século XVI)
resultou de um longo processo, no qual atuaram personagens significativos que trouxeram novas
discussões e novos pensamentos. Para compreender como ocorreram mudanças tão importantes
que ainda impactam o momento presente, deve-se ter em mente as palavras de Sartre quando
escreve

41 A pesquisa de campo, da qual se analisará as falas das duas moradoras de Samambaia, foi realizada em 1995,
durante a elaboração da tese de doutorado intitulada: O MORAR NA CONSTITUIÇÃO SUBJETIVA DO ESPAÇO
URBANO. As representações sociais da moradia na cidade-satélite de Samambaia/DF. Quem trabalha numa tese sabe
que muito material significativo termina não sendo elaborado, mas merece uma análise por sua importância, ou novas
leituras permitem novos olhares sobre material já elaborado. É o caso das falas das duas mulheres, em que o tempo
passado, no qual a pesquisa foi realizada só confirma sua validade no momento presente.
Os homens fazem sua história sobre a base das condições reais
anteriores (entre as quais se podem contar os caracteres adquiridos,
as deformidades impostas pelo modo de trabalho e de vida, alienação,
etc.), mas são eles que a fazem e não as condições anteriores; caso
contrário eles seriam os simples veículos de forças inumanas que
regeriam, através deles, o mundo social (SARTRE, 1987, p.150).

Basicamente, as condições anteriores foram gestadas em três momentos e por três processos:
pelas discussões religiosas, intelectuais e políticas que se fizeram durante o período medieval e
alguns homens que fizeram história e seus momentos serão destacados pelas novas visões que se
formaram na Idade Média; pelas mudanças trazidas pelo Iluminismo e, por último, pelas novas
identidades surgidas (e mantidas?) com o capitalismo nascente.
Ao contrário do que é opinião corrente neste momento laico com predominância do econômico,
não havia uniformidade de pensamento medieval e dentro dos cânones bíblicos considerados básicos,
era possível a liberdade de interpretação e a busca de novas sínteses religiosas. ARMSTRONG (2008)
mostra que conhecimentos religiosos constantemente eram originados dos antigos em críticas ou
em novas interpretações das narrativas sagradas. Ou seja, novas construções intelectuais e místicas
surgiam e desde muito cedo, como na Escola de Alexandria (séculos II e III D.C.), em que cristãos
estudavam filósofos gregos. ARMSTRONG (2008, p. 108) assinala que na Escola de Alexandria, por
exemplo, “Da mesma forma que os rabinos, eles (os cristãos de Alexandria) viam a Bíblia como um
texto inexaurível, capaz de produzir novos significados, interminavelmente”.
A conquista de Roma pelos bárbaros levou as discussões religiosas para os mosteiros. Porém, já
no século VIII, Carlos Magno iniciava a restauração das escolas e a construção de novas que depois
dariam origem às universidades. A influência greco-romana sobre os pensadores medievais na
Baixa Idade Média incorporou definitivamente a razão como elemento importante da interpretação
religiosa, ao lado da fé e do misticismo. As universidades desenvolveram o pensamento lógico e
racional na cristandade ocidental, influenciadas principalmente por Aristóteles, e se chocaram com
o pensamento espiritual dos mosteiros, como na discussão sobre a fé e a razão entre Abelardo
(1079-1142), professor em Notre Dame, e Bernardo, monge cisterciense (ARMSTRONG, 2008). No
século XIII, Roger Bacon pretendia o estudo da Bíblia nas línguas vernáculas e Marcílio de Pádua
contestava o direito da Igreja de ser a única intérprete dos livros sagrados (ARMSTRONG, 2008).
Na vertente política, ainda no século IV, apresentou-se a separação entre a Igreja e o Estado,
com Santo Agostinho, ao se posicionar sobre as palavras de Jesus aos fariseus: “Devolvei, pois, o que
é de César a César, e o que é de Deus, a Deus.” (Mt 22,15-21) 42 (LEHMANN da SILVA, 2016). De
acordo com Lehmann da Silva

42 “Quando eles partiram, os fariseus fizeram um conselho para tramar como apanhá-lo por alguma palavra. E lhe
enviaram os seus discípulos, juntamente com os herodianos, para lhe dizerem: ‘Mestre, sabemos que és verdadeiro
e que, de fato, ensinas o caminho de Deus. Não dás preferência a ninguém, pois não consideras um homem pelas
aparências. Dize-nos, pois, que te parece: é lícito pagar imposto a César, ou não?’ Jesus, porém, percebendo a sua
malícia, disse: ‘Hipócritas! Por que me pondes à prova? Mostrai-me a moeda do imposto.’ Apresentaram-lhe um
denário. Disse ele: ‘De quem é esta imagem e a inscrição?’ Responderam: ‘De César.’ Então lhes disse: ‘Devolvei,
pois, o que é de César a César, e o que é de Deus, a Deus.’” (Mt 22,15-21).
Segundo o ensinamento agostiniano, a cidadania cristã deve ser
entendida como dupla: uma voltada para o corpóreo, externo e mutável
da ordem política, e outra voltada para uma ordem transcendente e
permanente, através da qual a primeira pode ser entendida, explicada e
julgada (LEHMANN da SILVA, 2016, p. 24).

Santo Agostinho desenvolveu a diferenciação no simbolismo da “Cidade de Deus”, na distinção


e cisão entre as esferas religiosa e política, entre Estado e Igreja, entre a Cidade Terrena e a Cidade
Eterna e buscou-se preservar a liberdade da Igreja frente ao Estado (LEHMANN DA SILVA, 2016).
A distinção entre Ecclesia et Imperium mostrou-se um esforço medieval, permanente e instável, de
compromisso de parte a parte e originou constantes conflitos entre as duas esferas, principalmente
quando a Igreja Católica pretendia “a unificação horizontal de todas as culturas” sob sua doutrina
e comando ou o Imperium pretendia subordinar a Igreja a suas políticas (LEHMANN da SILVA,
2016, p. 25).
As Grandes Navegações, nos séculos XV, XVI e XVII, que colocaram a Europa em contato
com outros povos, culturas e civilizações e suas técnicas, tiveram papel primordial no processo de
transformar as discussões religiosas medievais anteriores em ruptura. A imprensa permitiu que a
tradução da Bíblia para as línguas vernáculas alcançasse um público sempre maior, assim como as
críticas à Igreja Católica e sua pretensão de ser a única intérprete dos livros sagrados. As pregações
dos grandes reformadores do século XV e XVI, Lutero, Zwinglio e Calvino, disseminaram-se
rapidamente, assim como a produção de novos significados. Lutero preocupava-se com as questões
teológicas levantadas pela Bíblia e quando morreu, em 1546, sua Bíblia traduzida para o alemão
era de leitura corrente (ARMSTRONG, 2008). Zwinglio e Calvino preocupavam-se com as
transformações sociais e políticas na vida cristã. Calvino, por sua vez, insistia em que os pregadores
tornassem a Bíblia “pertinente para as necessidades diárias de suas congregações” (ARMSTRONG,
2008, p. 164), incluindo-a na vida comum e nos modos seculares de pensamento. Tal insistência era
muito necessária, pois, como escreve Armstrong (2008, p. 10), “[...] os primeiros textos da Bíblia só
se tornaram sagrados quando abordados num contexto ritual que os excluiu da vida comum e dos
modos seculares de pensamento”.
A par dos reformadores religiosos e suas críticas à Igreja Católica, Copérnico e Galileu tiraram
a Terra do centro do universo e as Grandes Navegações tiraram os europeus do centro do mundo
ao lhes mostrar civilizações mais sofisticadas e crenças as mais diversas. Aos poucos emergiu o
Iluminismo (séculos XVII e XVIII) com novas maneiras de explicar os fenômenos e acontecimentos
e procurou-se compreender a ordem social existente baseada em quatro princípios: a racionalidade
– a natureza humana é racional; a dessacralização e dominação da natureza pela valorização
positiva do trabalho; a substituição do pensamento religioso pelo científico; a fé no progresso
(MENDOZA et al, 1995). As interpretações racionais e lógicas da Bíblia também se iniciaram e o
iluminista John Locke (1632-1704), por exemplo, defendia uma religião deísta, fundamentada na
razão (ARMSTRONG, 2008).
O Iluminismo, porém, trouxe algo mais do que apenas o pensamento racional e a dessacralização
do mundo, mas também a busca da felicidade. Em carta a um amigo, Mirabeau43 o encoraja a “[...]
estabelecer um plano para alcançar o que deve ser nosso único objetivo: a felicidade” (citado por
BRUCKNER, 2010, p. 13). A felicidade e o Bem Supremo agora não mais deviam ser procurados
43 Honoré Gabriel Riqueti de Mirabeau (1749-1791), escritor e político durante a Revolução Francesa.
na outra vida, o que permitira aos fiéis, principalmente os mais pobres e esquecidos, suportar os
sofrimentos terrenos na busca do Paraíso Celeste. A felicidade e o Bem Supremo agora deviam ser
procurados nesta vida terrena.
As críticas se fizeram em seguida e iniciou-se a contra-argumentação, afirmando a verdade
literal da Bíblia, buscando uma moral conservadora e negando as análises científicas sobre as
Escrituras (ARMSTRONG, 2008). Em meados do século XIX, escreve Armstrong (2008, p. 195),
“A natureza da fé mudava. Agora não era mais uma ‘confiança’, mas uma submissão intelectual a
um conjunto de crenças” ancorada numa leitura literal das Sagradas Escrituras. Estava em curso,
assim, em certos grupos sociais e religiosos, a negação do pensamento científico-racional e da
dessacralização do mundo.
Ao mesmo tempo em que as discussões religiosas se faziam, a afirmação do capitalismo como
sistema produtivo dominante trouxe grandes alterações nos hábitos e costumes para a Europa e
para o conjunto do Ocidente, tema que será abordado em seguida.

A INSTAURAÇÃO DA RELAÇÃO ENTRE POBREZA E IDENTIDADE ATRIBUÍDA


AOS POBRES

O sistema produtivo capitalista levou a alterações profundas nos hábitos e costumes do


continente europeu e depois para o conjunto do Ocidente: crescimento das cidades em número
e número de habitantes; novas divisões do trabalho (no início do capitalismo, teoricamente se
enfatizavam burguesia e proletariado, mas à medida que o sistema se tornava hegemônico e mais
complexo, com uma grande gama de atividades, muitas outras divisões surgiram, desapareceram e
foram substituídas por novas); mobilidade espacial; desenvolvimento das técnicas nas ciências, nas
comunicações, nos transportes e nos confortos da vida cotidiana. O novo sistema enalteceu a busca
do sucesso econômico e profissional já pregado por Calvino, no século XVI, como um sinal da
predestinação dos escolhidos (GUARESCHI, 1994). Finalmente, o sistema capitalista proporcionou
um desenvolvimento sem precedentes na riqueza planetária.
Entretanto, concomitantemente ao novo sistema econômico laicizante, e em decorrência
dele, sucederam-se novos processos que disseram diretamente respeito às pessoas envolvidas: a
emergência de novas subjetividades e novos sujeitos, a falência das tradições e a perda das raízes e
referências estáveis nas quais os indivíduos assentavam suas existências (FIGUEIREDO, 1993). As
novas subjetividades fizeram emergir, também, como escreve Hall (1997) o sentido moderno de
individualidade, em que “caberá aos homens, nesta medida, instituir suas próprias leis e se colocarem
sob o jugo do que lhes pareça um bom governo” (FIGUEIREDO, 1992, p. 25). Estava aberto o
caminho para o fracionamento religioso e ideológico, pois havia sempre diferentes indivíduos que
buscavam novas leis e diferentes bons governos, nos quais suas identidades se positivassem.
Como resultado, surgiram novas identidades e, a par dos que almejaram e alcançaram o
sucesso, novo sujeito fez sua aparição: as massas urbanas empobrecidas. Nos períodos anteriores
havia pobreza, evidentemente, mas velada e enraizada na servidão dos campos, nos estamentos,
nos clãs e nas castas, buscando a felicidade na vida após a morte. É um novo sujeito que surgia, pois
os antigos vínculos estavam desfeitos e ele encontrou-se desenraizado como todos os sujeitos da
modernidade.
BRESCIANI (1994) dá conta das imagens empregadas para nomear as massas empobrecidas
que se dirigiam às cidades no processo de urbanização e industrialização. Escreve ela que na
Inglaterra da primeira metade do século XIX, por exemplo, a pobreza miserável representava um
perigo ao bom desempenho e à moralidade da população. Na França, a distinção entre pobreza e
miséria era pouco nítida e a noção de barbárie, que atingia o corpo e a alma do homem atuava como
elemento explicativo para as condições precárias da turba urbana (BRESCIANI, 1994).
Rotuladas de sediciosas, criminosas, doentias, rebeldes e de moralidade duvidosa, o baixo
status que lhe foi atribuído instituiu um sujeito com identidade deteriorada e estigmatizada como
um outro urbano sobre o qual poderes e práticas foram exercidos. Goffman (1988, p.12) entende
por “identidade deteriorada” uma relação entre pessoas, na qual se evidencia que alguém possui
um atributo que o torna “de uma espécie menos desejável – num caso extremo, uma pessoa
completamente má, perigosa ou fraca. Assim, deixamos de considerá-lo criatura comum e total,
reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída”. Na dialética desse processo, o sujeito assim
instituído pela realidade externa e objetiva assumiu como sua a identidade que lhe foi atribuída. Ele
internalizou, com suas experiências de segregação e discriminação, a realidade proposta e formou
a partir daí sua consciência, que reforçou sua condição de instituído (PELUSO, 1998).
No Brasil, país profundamente desigual, a estigmatização dos mais pobres não foi diferente. Na
Bahia do século XIX, por exemplo, Fraga Filho (1996) mostra como as elites rotularam as camadas
livres e pobres da população de vadias e ociosas e consideravam-nas uma ameaça à estabilidade
social e à ordem pública. Em meados do século XX, manteve-se o mesmo discurso depreciativo,
como escrevem Leeds e Leeds (1978) ao citarem relatório oficial, datado de 1958, que apresenta as
qualidades negativas e a moralidade duvidosa atribuídas aos moradores das favelas.
A situação se mostrou conflitiva para as classes empobrecidas, pois não era só o estigma, mas
as privações reais: a falta de dinheiro, a falta de emprego, a falta de um lugar para morar, a falta de
auxílio em momentos de necessidade e de como educar os filhos em meio a tantas faltas44. Para os
mais pobres seus problemas terrenos são muito mais prementes do que o que acontecerá na outra
vida e nesta vida eles esperam os milagres. As Igrejas pentecostais e neopentecostais carismáticas
respondem a estas faltas e aos problemas terrenos (GUARESCHI, 1994), além de oferecerem
milagres e felicidade para as aflições terrenas.
No pentecostalismo latino-americano, Guareschi distingue alguns cultos como mais
influentes tanto antigos, quanto novos45. Entre os antigos, encontram-se a Assembleia de Deus
e a Congregação Cristã do Brasil, que chegaram na primeira década do século XX; a Igreja do
Evangelho Quadrangular, dos anos 1940, e Brasil para Cristo, bem mais recente, de 1956. Entre as
novas, destacam-se a Igreja Pentecostal Cristã, a Igreja Rosa Mística e a Igreja Universal do Reino
de Deus, fundadas nas últimas décadas do século passado (GUARESCHI, 1994). Entretanto, nada
impede a fragmentação e que outras igrejas se formem como dissidências das antigas ou surjam
novas, mesmo que de vida efêmera, pois há liberdade de culto e de interpretação da Bíblia e cada

44 Na pesquisa para a elaboração da tese de doutorado, um dos entrevistados assim se denomina, e aos outros na
mesma situação, e expressa seu desamparo: “Agora para quem é da classe baixa, classe pouca [...] Então, acho que
ninguém ajuda ninguém [...]” (PELUSO, 1998, p. 158). Outro entrevistado resume assim a aflição dos mais pobres e
as consequências da pobreza: “Chega aqui, o que acontece? Não consegue emprego, não consegue moradia. Gera o
quê? A miséria, a marginalidade” (PELUSO, 1998, p. 158).
45 Entre os autores, as denominações para as Igrejas Pentecostais não são uniformes. Visto que seus procedimentos
são bastante similares com intenso carisma, militância religiosa, moral tradicional, cultos milagrosos e leitura literal da
Bíblia optou-se, neste trabalho, por denominá-las ora pentecostais, ora carismáticas ou os dois termos juntos.
indivíduo busca colocar-se sob o jugo do melhor governo46.
No Distrito Federal encontram-se igrejas evangélicas tradicionais e igrejas evangélicas
pentecostais de todas as denominações e o mesmo se pode afirmar de Samambaia. Na seção seguinte
vai-se traçar um breve perfil da cidade-satélite e das entrevistadas.

A ESPACIALIDADE SOCIAL E ECONÔMICA DAS ENTREVISTADAS

O Sujeito A e o Sujeito B moravam numa cidade-satélite localizada na periferia de Brasília,


chamada de Samambaia, iniciada em 1982 e que, em 1995 contava com 140.000 habitantes. Para
essa cidade, de 1989 até 1992, foram removidas, num programa habitacional do Governo do Distrito
Federal (GDF), cerca de 120.000 pessoas, cujas condições anteriores de moradia eram precárias.
Tratava-se de inquilinos, invasores de áreas públicas e compradores de poucos recursos que se
juntaram a moradores, cujas habitações haviam sido adquiridas, nos primeiros momentos, no
âmbito do mercado imobiliário ou de programas governamentais para populações de renda mais
elevada. Formou-se logo uma cidade grande, desigual economicamente e complexa socialmente.
A remoção de populações de baixa renda sem moradia para áreas determinadas pelo governo é
um fenômeno muito próprio de Brasília, pois as terras das antigas fazendas desapropriadas passaram,
juridicamente, a pertencer ao GDF. Ao longo do tempo as terras foram vendidas para particulares,
mas a intensa migração ocasionou um déficit habitacional que se tornou particularmente agudo
nas décadas de 80 e 90 do século passado. No final da década de 1980, determinou-se uma política
de assentamento em larga escala, na qual cidades novas foram criadas, como Samambaia, além de
Santa Maria, São Sebastião, Riacho Fundo e Recanto das Emas (PELUSO, 1998).
Pela falta de dados oficiais, é difícil precisar a renda dos moradores na época. Mas considerando
que, em 2011, a renda per cápita mensal era de 1,06 salário mínimo (SM) (CODEPLAN, PDAD,
2011) e que em 2015, Samambaia ainda estava entre as 10 cidades do DF com as mais baixas rendas
per cápita mensais, de 1,16 SM (CODEPLAN, PDAD, 2015), pode-se, por hipótese, considerar que
nas áreas para as quais a população empobrecida foi alojada a renda era ainda mais baixa.
As duas mulheres, cujos discursos serão objeto de análise, adaptam-se bem ao que se poderia
denominar de “população de baixa renda”, visto que exercem atividades informais mal remuneradas.
Os rendimentos mensais familiares do Sujeito A provêm de sua atividade de crecheira informal,
pois cuida de crianças, cujos pais podiam pagar muito pouco e complementa esses ganhos com a
venda de roupas usadas na feira da cidade; o Sujeito B costura para fora e, no montante total de seus
rendimentos está a pensão do pai inválido e o trabalho de duas irmãs que moram com ela.
Vejamos o que elas dizem sobre a religião que professam, definem suas espacialidades e como
fazem suas histórias.

46 Como falou uma respondente que havia fundado uma pequena igreja e reunia seus vizinhos: “A gente ora e se
protege, porque aqui é uma bandidagem só” (PELUSO, 1998). No DF foram encontradas muitas igrejas pentecostais,
o que não significa que não possa haver outras como, por exemplo: Assembleia de Deus, Comunidade Cristã da Fé,
Igreja Episcopal Apocalíptica, Sara Nossa Terra, Igrejas Plenitude de Deus, Igrejas Betel Brasileiras.
RELIGIÃO E POSITIVAÇÃO DAS IDENTIDADES: A VISÃO POLÍTICA DA
ESPACIALIDADE

Os sujeitos A e B pertencem a grupos que dificilmente ascendem de status social. A riqueza


sem precedentes gerada pelo sistema econômico não chegou até elas e dificilmente chegará. As
duas pertencem, provavelmente, àquele “grosso da humanidade” que “se torna supérfluo para as
demandas da produção e da tecnologia” (HOBSBAWM, 2013, p. 245). O importante, portanto, a
reter é a percepção da continuada pobreza.
O Sujeito A dialoga com a mãe sobre as más condições de vida do passado, na zona rural, e sua
manutenção no presente, na zona urbana:

“Pode falar a verdade, filha! Nós era pobre que nem Jó!”
(Mãe do Sujeito A)
“Ainda hoje a gente é, mãe.”
(Sujeito A)

A semelhança com o personagem bíblico Jó, que recuperou seus bens e a estima do povo por
manter a fé em Deus, é sugestiva, pois cria uma esperança de futuro em vidas que se repõem iguais,
não importa o espaço em que se encontrem. A expressão tem uma conotação simbólica de redenção
futura que perpassa o discurso da pobreza.
Quando, no lugar de origem, a pobreza não é sentida tão agudamente, o sujeito percebe que
deslizou na escala de valores e, agora na cidade, localizou-se num lugar socialmente muito baixo.
A casa de antes da migração para Brasília fornece o parâmetro da reposição de condições de vida
que não melhoram. O pai migrou também e a casa do passado desapareceu, mas para o Sujeito B o
passado está sempre presente como uma comparação para um presente de dificuldades:

Olha, na casa dos meus pais lá... quintal é bem grande e outra, que tudo
era muito grande. Quintal bem grande, frutas, coisas assim. Em Caxias
do Maranhão. Agora, aqui ... (Sujeito B)

Os sujeitos religiosos, A e B, percebem a complexidade de Samambaia como um espaço habitado


por pessoas não-religiosas, que recusam o que Eliade (1992, p. 23) denomina de “sacralidade do
mundo”, e vivem, por consequência, num espaço profano que ambas evitam. As diferenciações
vão-se fazendo no cotidiano, na vida vivida no dia-a-dia, na espacialidade física em que todos
habitam. A imaginação bíblica estabelece a diferença entre as espacialidades. Se o espaço físico de
Samambaia em que as duas mulheres religiosas habitam é o mesmo que o dos homens profanos, a
religiosidade marca, subjetivamente, as espacialidades, a diferença entre o “fora” e o “dentro”, entre
o espaço sagrado e o espaço profano, entre o povo não religioso e o povo religioso (PELUSO, 1999).
Os “[...] laços gerados por meio do contato pessoal, de relações face a face, estabelecidas em
frequentes e sistemáticas reuniões coletivas realizadas semanalmente, ano após ano” (MARIANO,
2010) são ressignificados por outra simbologia bíblica transposta para a vida cotidiana – o traidor.
Estabelece-se novo lugar de oposição ao homem não religioso, recentra-se a identidade e se institui
uma positividade com um Deus familiar e num “dentro”, na igreja em que todos se conhecem:

É fácil fazer amigos em Samambaia, só que a gente evita, porque são


mais falsos do que Judas. Não tenho amigos em Samambaia. Meus
amigos são só Deus e minha família ... porque fingem que são amigos
e, no fundo, não são. E a gente evita. (Sujeito A)

É fácil fazer amigos em Samambaia. Eu tenho na igreja. Porque as


pessoas que não são crentes não são meus amigos. Não tenho nada
contra eles, a gente conversa, convive, mas ... mas lá na igreja eu tenho
muitos amigos. (Sujeito B)

A consideração do Sujeito B pelo homem não-religioso, provém de sua religiosidade. O que


acontece no mundo profano não é aleatório, mas o caos está previsto na Bíblia e suas palavras
devem ser cumpridas. O Sujeito B estabelece o que está fora – o povo que não é de Deus, o caos que
habita o outro lado:

Então, para mim, lá fora não tem nada porque tudo o que está
acontecendo a gente está vendo que se está cumprindo o que está
escrito na Bíblia. Então, a gente que está lá dentro... O povo hoje...
Então, cada vez que vai passando o tempo, vai aumentando as coisas.
A gente convive, assim, a gente sabe, entendeu, o outro lado. Está na
Bíblia, tem que cumprir. (Sujeito B)

Escreve Eliade (1992, p.22), que “quando o sagrado se manifesta por uma hierofania qualquer,
não só há rotura na homogeneidade do espaço, como também revelação de uma realidade absoluta,
que se opõe à não-realidade da imensa extensão envolvente”. Essa manifestação, inclusive, permite
ao Sujeito B dizer que “lá fora não tem nada”. Para que o espaço se sacralize não é necessária a
restrição ao território do templo, pois o “dentro” está em cada fiel e ele o porta, como símbolo de
sua diferença, onde quer que esteja.
Como o sagrado se manifestou para a respondente B, como ela o porta dentro de si e estabelece
a diferença com o povo que está lá fora? A conversão ocorreu num momento de sofrimento, em
que sentiu faltar-lhe apoio de quem deveria atendê-la, como numa doença, principalmente se seu
comportamento até esse momento se pautou justamente pela falta da moralidade atribuída aos
pobres. Na biografia dessa respondente se entrelaçam o desamparo, o desejo de atenção, a identidade
deteriorada e o encontro com Deus, que a dota com uma identidade positiva pelo abandono daquilo
que a estigmatizava:
O que fez eu entrar nessa religião foi um problema que deu em mim.
Passei a noite desmaiando e vomitando, passando mal. Me levaram
para o hospital. Eu tinha ido para a casa de minha mãe, no Varjão.
Lá dentro, tomando umas e outras, comendo frango assado (eu bebia
muito, não sabe?), passei mal. Me levaram para o hospital. O médico
fez lá uns exames e disse que eu não tinha nada. Aí, chegou uma crente
e disse: “Vamos lá para a igreja. Deus tem uma benção especial para te
dar e Ele vai te curar.” Eu fui, não senti mais nada. Comecei a fazer uma
limpa. Larguei da vida, de roupa, aquelas coisas imundas que eu usava,
as coisas do mundo. (Sujeito B)

Ela supera a situação conflitiva e a identidade deteriorada pela religião, pois é proibido aos
fiéis aquilo pelo qual “a classe baixa, a classe pouca” é identificada: a bebida, a festa, a diversão,
a ociosidade. Converter-se para esta fé permite ao indivíduo estigmatizado mostrar que, em sua
“carreira moral”, na expressão de Goffman (1988), incorporou referenciais diferentes daqueles que
o cercam. O crente incorpora uma identidade positiva e desestigmatiza-se, pois já não possui aquele
estigma particular, a falta de moral.
A modernidade trouxe a descentração do indivíduo, o fracionamento das interpretações dos
textos sagrados, a multiplicidade de ideias, a individualização. Mas, a modernidade trouxe também
a noção de conforto nesta vida, como escreve Bruckner

Se são múltiplos os significados do Bem Supremo, vamos então fixá-los


sobre alguns ideais coletivos – saúde, riqueza, corpo, conforto, bem-
estar – talismãs sobre os quais ele deveria pousar à maneira de um
pássaro numa isca. (BRUCKNER, 2010, p. 17)

Os confortos da modernidade, porém, é o que as duas mulheres dificilmente conseguirão,


apesar de os terem na imaginação como um ideal a ser perseguido e o Sujeito A explicita o que é o
conforto em oposição ao lugar onde vive:

Para falar a verdade, nenhum lugar é confortável. Nenhum é muito


importante para mim, porque quando chove, goteja em todo lugar.
Quando corro é aquele socorro. Aí eu digo: ‘meu Deus me dá condição
de eu cobrir esta casa!’ Não é, né? Nós têm é hoje lugar para dormir.
Eu não tenho cama assim, um colchão confortável para dormir... não
tem...que a gente é religiosa... tem que ter um lugar para a gente orar e
tudo e não pode, que a casa sempre dorme com mais gente. Aí eu estava
pensando no sofá, se tivesse um colchão bem (acentua o BEM) gostoso,
uma cama. Tudo coisinha de pobre, mas você sabe ... Mas a gente é feliz
com o que a gente tem, não com o que os outros têm, é com o que a
gente tem. (Sujeito A)
Na religião, ambas encontraram, no pouco que adquiriram, o que Bruckner denomina de “uma
palavra de ordem emancipadora do Iluminismo – o direito à felicidade [...]” (BRUCKNER, 2010,
p. 17). O direito dos pobres à felicidade foi negligenciado da política até anos recentes. Entretanto,
a Constituição de 1988, que democratizou o direito ao voto em seu artigo 14, deu, como enfatiza
Hobsbawm (2013, p. 247), “[...] inevitavelmente um peso maior e cada vez mais decisivo às massas
em cuja vida a religião continuou a desempenhar papel muito maior do que entre as elites ativistas”.
E aqui, no campo político, as igrejas pentecostais participam cada vez mais com candidatos e
partidos e procuram ampliar seus eleitores, defender os valores cristãos tradicionais e dar ao povo
religioso não só uma identidade positiva, mas uma identidade política47.
A “classe baixa, a classe pouca” tem, pela leitura da Bíblia, uma visão muito clara da pouca
consideração que lhes é devida e de um espaço que é não só religioso, mas também político:

Porque que eles deveriam... porque tem muita terra... O povo acha que
é dono de tudo, não é dono de nada. Deus fez a terra para a gente.
Inclusive está na Bíblia, está escrito que Deus falou: ‘Crescei, enchei
e povoai a terra’. No entanto, os homens tomaram conta de tudo, o
povo tomou conta de tudo. E estão ali as pessoas sofrendo. Muita gente
morando de aluguel porque não pode ter uma casa própria. Uns não
podem comprar por causa do salário, só dá mesmo para cuidar da
família. E outros estão ali, tentando ganhar um lote. No entanto, eles
não deram... Para mim é uma humilhação isso. (Sujeito B)

Pela leitura da Bíblia, os despossuídos percebem que, na Cidade dos Homens, muito foi dado
a César e muito pouco ao povo de Deus. No vínculo entre a religião e fatos econômico-sociais, o
indivíduo religioso está de posse de uma nova maneira de ver o mundo, que redefine a espacialidade
dos mais pobres e permite-lhes reivindicar, em nome da palavra de Deus, a terra apropriada e não
distribuída e dar uma versão política aos problemas da população de baixa renda. A esfera-mundo
toda foi apropriada e nada foi distribuído entre os pobres e humilhados.

47 Na Câmara Legislativa do DF, em 2016, 29% das cadeiras eram ocupadas por representantes das igrejas evangélicas de
seis denominações diferentes: Abençoando Nações do Brasil, Comunidade das Nações, Sara Nossa Terra, Igreja Batista, Igreja
Universal do Reino de Deus, Igreja Mistério da Fé e muitos admitem ter as igrejas como bases eleitorais e a reivindicação dos fiéis
como objetivo de suas ações (TEIXEIRA e COSTA, 2014).
E AGORA, COMO CONCLUSÃO, UMA PERGUNTA

A modernidade trouxe o individualismo, o fracionamento das ideologias religiosas, o desejo


de conforto e felicidade a par dos que foram alijados da imensa riqueza gerada pelo sistema
econômico. Assim, as privações experimentadas pelas populações de baixa renda – os que ficaram
de fora – e a identidade deteriorada que lhes foi atribuída fazem com que as manifestações
religiosas correspondam, também, às necessidades dos mais pobres de se inserirem no mundo que
os cerca com uma identidade positiva. O sentimento religioso proporciona a sensação de abrigo e
pertencimento, com os quais o sujeito se distingue dos Outros, os não religiosos. O indivíduo está
de posse, também, de uma nova maneira de ver o mundo, que redefine a espacialidade dos mais
pobres, dando-lhe uma conotação política e permitindo reivindicar, em nome da palavra de Deus,
justiça para as pessoas carentes. No limite da redefinição, o indivíduo religioso faz uma crítica da
sociedade excludente. A pergunta, neste caso, seria: eles, os mais pobres, conseguirão escrever sua
história, ou forças inumanas regerão por meio deles o mundo social.
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blogspot.com.br/2014/11/cldf-legislativo-forca-da-bancada.html, acesso em
05.10.2016
MORMONISMO EM BELÉM DO PARÁ (BRASIL) – DIMENSÃO
TRANSTERRITORIAL DA IDENTIDADE DOS SANTOS 48
Wallace Wagner Rodrigues Pantoja

RESUMO

As relações entre território, religião e geopolítica parecem assumir um papel central no mundo
contemporâneo. Tento contribuir para o debate a partir de uma pesquisa em Belém do Pará sobre
o território e a identidade de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, os mórmons.
Instrumentalizadoporentrevistassemiestruturadas,observaçãodecampo,pesquisadedocumentos
oficiais da religião por uma interpretação que tenta articular estrutura e fenômeno existencial,
concluo que a expansão territorial mórmon segue um padrão espacial metropolitano em Belém do
Pará e se aprofunda – ganha agregação corpórea – na dinâmica de reelaboração subjetiva dos Santos
dos Últimos Dias (SUD); a identidade mórmon remonta sua geo-história em negociações frutíferas
e tensas com novos grupos culturais em busca de expansão; o território mórmon é realizado por
um dinâmica incontornável entre domínio e apropriação, para sustentar a unidade tensa do grupo.
Palavras-chave:GeografiadaReligião;AIgrejadeJesusCristodosSantosdosÚltimosDias(Mórmons);
Belém do Pará.

INTRODUÇÃO

A religião é a grande questão geopolítica do nosso tempo. Não uma ou outra religião, mas as
religiões em sentido relacional. Exigindo uma reflexão geográfica que seja sensível a este contexto
político cujas religiões não são epifenômenos, mas participam na constituição e nas causas
organizativas do mundo político, social e cultural muito mais do que gostaríamos admitir em
tempos de desencantamento de mundo (WEBER, 2014) e de mal-estar civilizatório (FREUD, 2011).
Se a geopolítica diz respeito ao controle estratégico dos espaços – o que, também, implica
sua (re)criação simbólica imaginada como transcendental – é preciso inscrevermos a dinâmica
geohistórica e a geoestratégia expansionista (ou de contenção de perdas) e, inevitavelmente, os
conflitos, disputas, associações e convivência das religiões na ordem do dia da reflexão geopolítica
contemporânea (AGNEW, 2006).
Proponho interpretar as relações entre território e identidade partindo de uma religião
específica – A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, os “mórmons”, em Belém do Pará
(Brasil). A escolha dos mórmons vai ao encontro da discussão entre geopolítica, espaço religioso
e existência individual/coletiva. Possibilita um debate transterritorial dado o caráter transnacional
desta religião, problematizando alguns elementos da geografia a partir do fenômeno religioso em
48 Uma versão ampliada deste artigo serviu de base à comunicação ocorrida no evento Descentered Mormonism, na
Universidade Bourdeux-Montagne, em março de 2019. O texto é uma síntese da pesquisa de mestrado que resultou na
dissertação Território e Identidade: a experiência mórmon em Belém do Pará.
contexto amazônico (PANTOJA, 2011).
Em termos geográficos, as pesquisas sobre o mormonismo, classicamente, estão centradas na
paisagem e na região cultural (MEINIG, 1965, 1972; ROSENDAHL, 2003), com destaque para
sua territorialização nos Estados Unidos. Entretanto, há lacunas na articulação entre geopolítica e
sentido do fenômeno religioso construído pelos membros em países culturalmente diversos.
Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 50 Santos dos Últimos Dias (SUD)49,
diálogos temáticos com líderes em Belém do Pará, interpretação de documentos oficiais do grupo
e observação de campo. A questão central é como a identidade dos Santos dos Últimos Dias (SUD)
se articula ao seu projeto geopolítico de expansão territorial em Belém do Pará?
Inicialmente discuto a formação geohistórica da identidade mórmon. Em seguida, explicito
sua territorialização em Belém do Pará e, por fim, busco interpretar esta territorialização tendo em
vista uma geopolítica de expansão que vai do indivíduo ao mundo.

OS SANTOS DOS ÚLTIMOS DIAS – ÊXODOS TERRITORIAIS E FORMAÇÃO DA


IDENTIDADE

A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (IJCSUD) surge no início do século XIX
em Nova Iorque, através da revelação de um anjo a Joseph Smith, o primeiro presidente e profeta
da igreja. A ele foi revelado traduzir um conjunto de placas de ouro enterradas no Monte Cumora
(IJCSUD, 1996), que resultaram no Livro de Mórmon – Um Outro Testamento de Jesus Cristo
(Janeiro de 1830) e Doutrinas e Convênios que, juntamente com a Bíblia, são considerados os
pilares escritos dos SUD (PANTOJA, 2011).
A elaboração do livro revelado, segundo Sachs (1988, p. 163):

[...] só podia ter acontecido no contexto cultural de um povo voltado


para a Bíblia, num momento determinado pela confluência de vários
fatores, a saber: a busca de uma forma de expressão artística nacional,
um crescente interesse romântico pelo passado místico dos habitantes
nativos do Novo Mundo; e, finalmente, uma fascinação pela escrita, em
particular pelos hieróglifos egípcios.

Há uma “marcação geocultural” forte na constituição da religião, expressando elementos do


contexto espacial e histórico estadunidense do início do século XIX. Um cristianismo que buscava
algo de autóctone no Novo Mundo. Não é sem razão que, segundo o Livro de Mórmon, os Astecas,
Maias e – ainda que de maneira “degenerada” – os atuais índios americanos, seriam remanescentes
do povo oriundo da Palestina, 600 anos antes de Cristo, que se disseminou na América dando origem
a diversas civilizações – entre civilizações pré-colombianas e egípcios ocorreriam similaridades na
escrita, nas construções e nas vestimentas.

49 As entrevistas foram realizadas no âmbito do projeto de mestrado (2009-2011) complementadas por outras realizadas
anteriormente (2005). Santos dos Últimos Dias (SUD) é como os membros da igreja se denominam.
Desde a formação dos mórmons50, sua postura revelava um conflito territorial triádico –
entrincheiramento comunitário dos “Santos”; necessidade de proteção das perseguições de religiões
já estabelecidas; deslocamento/expansão territorial para constituição do “Reino de Deus” (MEINIG,
1965). No plano sociopolítico, havia questões sérias de ordem civil, por exemplo: a poligamia, como
elemento bioterritorial, chocava-se com a legalidade puritana e com a jurisdição civil estadunidense.
A marcha estadunidense ao Oeste será realizada pelos SUD como uma espécie de “povo
pioneiro”, tanto como fuga quanto busca de novas terras para constituição do território de segurança
que se espacializa em região cultural (MEINIG, 1965). Tal dinâmica não se faz sem o contexto
espacial, a negociação escalar e o projeto de mundo:
a) O contexto espacial: a expansão do território areal estadunidense, diferente do padrão
reticulado nos princípios da afirmação do grupo. Isto implicava a desterritorialização de grupos
nativos americanos, a organização de uma sociedade branco/cristã em guerra com o México , cujo
espaço do futuro estado mórmon de Utah, pertencia;
b) Negociação escalar: este “êxodo territorial” dos mórmons refletirá uma forte ambiguidade
na relação do grupo com a sociedade americana – por um lado, são expulsos de diversos lugares
de maneira violenta, por outro serão convocados à “guerra duplicada” que o governo americano
vai realizar: contra os nativos ou povos originários do território e contra os detentores de parte do
território a se conquistar, no caso, os mexicanos;
c) Projeto de Mundo: O projeto de constituição da “Nova Jerusalém” antecipada pelos profetas
(Nosso Legado, 1996), às margens do Lago Salgado e emoldurado pelas Montanhas Rochosas será
recorrente no imaginário mórmon. Na fala de um viajante americano – reproduzido em livros
distribuídos na igreja – em meados do século XIX:

Nunca vi povo mais ordeiro, diligente, industrioso e civilizado do que


este, e é incrível o quanto fizeram aqui no deserto em tão pouco tempo.
Nesta cidade, que tem cerca de quatro ou cinco mil habitantes, não
encontrei um indolente sequer, ou qualquer pessoa que parecesse um
mendigo. Suas plantações prometem ser fartas e há uma vivacidade
e uma energia em tudo o que se vê que não podem ser comparadas
ao que existe em qualquer outra cidade, de qualquer tamanho em que
jamais estive. (Nosso Legado, 1996, p. 83).

Este projeto de mundo religiosamente constituído e culturalmente ancorado terá na construção


de Salt Lake City, em Utah, seu epicentro espacial51. Dinamizando uma região e, ao mesmo tempo,
garantindo o controle territorial mexicano pelos Estados Unidos. Além disso, e não menos
importante, cria uma longa relação ambígua e mesmo exterminadora com os índios americanos,
embora concebidos no projeto mórmon como “irmãos” (CERNDAS, 2008).

50 Não é importante, aqui, confrontar uma verdade factual como verdade histórica e sim revelar a historicidade como fonte de
verdade para os SUD. Para confrontação com essas verdades há uma gama de estudos científicos que contrariam a possibilidade
de um grupo ter vindo da Palestina para a América e refundado a civilização nos moldes egípcios, como uma linguagem derivada
dos hieróglifos, como sustentam os mórmons, publicando inúmeros artigos que esquentam este debate. (Cf. Foundation for
Ancient Research and Mormon Studies, baseada na Universidade Brigham Yong, Salt Lake City, Utah, Estados Unidos, 2010).
51 Terras que o Senhor promete como herança a seus fiéis seguidores e frequentemente também aos descendentes
deles. Existem muitas terras prometidas. No Livro de Mórmon, a terra da promissão várias vezes mencionada é o
continente americano (GUIA PARA O ESTUDO DAS ESCRITURAS, 1995, p. 200).
O espaço emergente desta confluência de contexto, negociação e projeto
é uma região cultural adensada por paisagens, marcas e matrizes de
significados52 para o grupo (BERQUE, 1999), “onde os santos poderiam
viver sem contato com os gentios” (MEINIG apud ROSENDAHL, 2003,
p. 218, grifos meus). Segundo ROSENDAHL (2003, p. 218).

A área de Salt Lake é marcada por uma homogeneidade interna de inúmeros códigos culturais,
que, combinados entre si, favorecem ao geógrafo reconhecer a área em estudo como uma região
cultural mórmon. Considera-se como região cultural um tipo de área que revela, no plano espiritual
e no plano material, uma concentração de representações simbólicas da cultura, vivida de modo
coletivo por um determinado número de indivíduos.
Tanto para os que vivem na região cultural, quanto para os que vivem fora dela – mas partilham
o pertencimento ao grupo – as várias paisagens, itinerários, lugares mórmons se constituem como
geossímbolos (BONNEMAISON, 2002) que reforçam sua identidade. Obviamente, uma região
cultural é produzida por um grupo de hegemonia regional que, de maneira nada sutil, domina
o espaço53. Por outro lado, além da constituição da região cultural saturada de geossímbolos, há
também a criação de uma fronteira imaginária religiosa, vagamente referida por Rosendahl (2003),
mas diretamente abordada por Cernadas (2008; 2009) e Pantoja (2011).
Cernadas e Pantoja reforçam o caráter plástico e criativamente apropriado de elementos
religiosos em novos contextos – seja na província de Formosa (Argentina), seja em Belém do Pará
(Brasil). Espaços da expansão mórmon na América Latina, iniciada nos anos de 1930, mas efetiva
nos anos de 1980 e 1990. As fronteiras da imaginação (CERNADAS, 2009) dizem respeito tanto à
posição dos “nativos” diante da expansão mórmon, sua reapropriação imaginativa dos elementos
do mormonismo por sua cultura, quanto esta tensão entre ethos religiosos que organizam relações
individuais/coletivas no/do espaço.
Assim como o “Oeste Americano”, os SUD vão expandir sua atuação socioespacial para fronteira
da civilização ocidental ou, para problematizar uma lógica autocentrada, vão expandir seu centro
sobre outros centros, aproximando-se de povos que seriam remanescentes das nações presentes no
Livro de Mórmon – os indígenas, antes norte-americanos e agora sul-americanos54.
A identidade em êxodo territorial será fundamental, na medida em que orienta um sentido de
expansão como revelação divina; consolida espaços geossimbólicos saturados de referências para
o grupo e, por oposição/relação, para os “gentios”; produz comunidades entrincheiradas (embora
permeáveis aos novos membros); articula-se em rede transnacional e é apropriada diferencialmente
(logo, não sem conflitos) pelos membros nos espaços de atuação com forte presença missionária e
planejamento espacial centralizado.
Identidade é um conceito escorregadio. Porém, penso a identidade como projeção intencional
do indivíduo e seu coletivo ou grupo em contexto. Se a subjetividade é uma perpétua projeção: o
52 “[...] por um lado ela [a paisagem] é vista por um olhar, apreendida por uma consciência, valorizada por uma
experiência. Julgada (e eventualmente reproduzida) por uma estética e uma moral, gerada por uma política, etc. e, por
outro lado (...) determina em contrapartida, esse olhar, essa consciência, essa experiência, essa estética e essa moral,
essa política, etc”. (BERQUE, 1999, p. 86).
53 O Oeste Americano (por si só uma referência espacial vaga, ambígua e logocêntrica), era muito mais diverso
culturalmente do que uma só região cultural poderia explicitar, por esta hegemonia saturada e ainda presente, podemos
supor ausências (MERLEAU-PONTY, 1999) e extinções culturais nada pacíficas.
54 O conteúdo contraditório e imperialista deste processo fortemente ideologizado pela ideia de que os indígenas
seriam “irmãos mórmons” será desenvolvido em outro trabalho.
homem que se repete indefinidamente e, contraditoriamente, não cessa de inovar, pelo fato mesmo
de inventar a si próprio (SARTRE, 2015), a identidade se configura na elaboração consciente e
subjetiva (logo, social e individual), tendo em vista a expressão de elementos numa repetição/
inovação contraditória e em sedimentação (HUSSERL apud BELLO, 1998). A subjetividade como
mediação “só pode tratar-se da projeção do ser de aquém sobre o ser de além. O que nos dá então a
possibilidade de compreender em que a subjetividade é indispensável para o conhecimento dialético
do social” (SARTRE, 2015, p. 55). A identidade sendo uma expressão desta subjetividade relacional
que, no plano coletivo se torna intersubjetividade politicamente mobilizada.
Concordo com Cuche (1999) no sentido de que a identidade exprime uma norma de vinculação
consciente e remete às relações de oposição, portanto, socialmente contextualizadas, que implicam,
ao mesmo tempo, vinculação e separação, pertencimento e diferença. Porém, o autor deplora a
subjetividade – ele chama de concepção subjetivista – do processo de constituição da identidade,
do que discordo. Entendo que a subjetividade, como exposto em Sartre (2015) é central para
constituição e manifestação da identidade.
A identidade pode ser fonte de significados (CASTELLS, 1999), mas não o é sem um ato dos
indivíduos que, ao subjetivarem seu contexto, (re)criam por repetição/inovação sua mediação
com o mundo – tanto simbolicamente, quanto emocionalmente, o que pode carregar um aspecto
não racionalizável ou mesmo não plenamente consciente (GONZÁLEZ REY, 2002). O território
que lhes pertence e do qual os mórmons sentem pertencer, fundamenta assim sua identidade –
relacional e situacional (CUCHE, 1999), sem menosprezar o emocional.
O quadro 1 sintetiza os elementos discutidos para apresentação da identidade religiosa dos
SUD. Obviamente, não esgota os elementos que constituem a identidade, mas são centrais para sua
intepretação, sobretudo em sua dimensão territorial, na medida em que muitas identidades têm no
território um de seus fundamentos básicos (HAESBAERT, 1999). Embora, diferentemente do autor,
nossa experiência de pesquisa exponha que muitos elementos identitários têm expressão espacial –
não estritamente territorial, de modo que a relação entre Identidade e Território, não é simétrica e
autoevidente quanto o conceito Identidade Territorial55 tenta constituir.

55 Haesbaert se coloca a questão (1999, p. 178): “Pode parecer uma contradição utilizarmos o termo ‘identidade
socioterritorial’, pois acaso o território não é sempre uma entidade social? Ocorre que nem toda a identidade [...]
tem no território um dos seus fundamentos de construção”. Obviamente, esta observação não resolve a questão da
articulação assimétrica e intencional entre identidade e território por parte de um grupo, que não cabe num quadro
bipartido entre identidades não socioterritoriais e identidades socioterritoriais que o autor evoca.
Quadro 1: Relação entre Identidade e Território dos Santos dos Últimos Dias
Construções Identitárias Dimensão Territorial
O povo eleito por Deus para refundar Comunidade entrincheirada – autossegregação e/ou “êxodos territoriais” por
o Evangelho perseguição político-religiosa; Imaginário de “fronteira” entre os santos e o
mundo.
Cristianismo na América pré- Expansão [extermínio] e assimilação negociada de povos nativos indígenas –
colombiana tanto norte-americanos quanto sul-americanos no espaço de atuação da religião;
compreensão de uma pátria de Santos dos Últimos Dias transterritorial e
transhistórica.
Culto aos Fundadores e aos Livros Construção de geossímbolos tanto em espaços altamente controlados pelo
Sagrados mormonismo (Ex. Salt Lake City) quanto em espaços pontualmente controlados
(Ex. Belém do Pará).
Forte hierarquização – obediência às Planejamento espacial dinâmico, com subdivisões em Ramos (pequenos
lideranças (o Presidente da Igreja é grupos), Alas (reunião de ramos), Estacas (reunião de alas) e Missões (escritórios
considerado profeta vivo) regionais e/ou nacionais diretamente ligados à Presidência Mundial).

Mobilidade Espacial como revelação Forte trabalho missionário, através do “Élderes” (jovens entre 18 e 26 anos que
divina divulgam a religião por dois anos ininterruptos), buscando espaços de atuação
no planeta inteiro, para constituir ramos, alas, estacas e missões – constituição
de um território-rede.
Puritanismo e (Norte) Americanismo Que se revela em diversos elementos da religião, mas enfatiza-se o caráter
retilíneo e sóbrio das construções do grupo, como Capelas e Templos, com clara
referência ao modernismo e ao estilo arquitetônico do Meio-Oeste americano,
além de uma retórica fortemente territorial.
Tabus alimentares e corporais Expressão imagética ligada à brancura (Puritanismo) e corporificação da santidade
que possibilita um “padrão santo” que explicita uma unidade amplamente
reproduzida em representações dos SUD. Inclui aí um cuidado extremo com
o corpo, a aparência e evitando bebidas ou substâncias “entorpecentes”, como
refrigerantes à base de cola e guaraná, além da proibição do café.

Elaborado por Wallace Pantoja, 2011.

MORMONISMO EM BELÉM – ESPACIALIZAÇÃO DO FENÔMENO RELIGIOSO

Atualmente, 226.509 membros da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (IBGE,
2010) residem no Brasil. No Pará são 5.615 membros residentes, a sua imensa maioria na capital,
Belém. Na contagem dos líderes os SUD – entre ativos e inativos – somam mais de 10 mil56
(PANTOJA, 2011).
A presença mórmon em Belém remonta ao final dos anos de 1970 e início de 1980, quando um
pequeno grupo de pessoas reunidas no Distrito Industrial de Icoaraci, recebeu instruções de um
missionário mórmon57. Forte trabalho missionário foi desenvolvido nos anos de 1980 e 1990. Esta
expansão territorial cria fricções inevitáveis no indivíduo e suas redes de afeto, o que fica evidente
na fala de um membro, que é representativa do conjunto: “Minha família estava indo para esta
igreja nova e eu não me permitia, isto gerava uma dificuldade na relação familiar”58.
A emergência missionária cria tensões familiares, de vizinhança, e mesmo do indivíduo
56 Na pesquisa estava mais preocupado com a visão específica dos mórmons sobre si mesmos, o que levou a uma
superestimação dos números do grupo no Brasil. Entretanto, conhecendo a metodologia do IBGE para aferição por
amostragem, não é demais supor que um número superior a 6.000 membros, mas bem inferior a 10.000 (já que os
líderes contam com membros ativos e inativos) seja mais provável.
57 Entrevista com Davi P. dos Reis, em 2005, então patriarca da igreja em Belém do Pará.
58 Entrevista com Davi P. dos Reis, em março de 2005, quando meu interesse sobre a relação entre religião e
geografia foi desperto. Pude realizar nova entrevista em 2011.
com ele mesmo, já que a religião introduz elementos identitários (cf. Quadro 1) muito marcados
espacialmente e em franca conflitualidade com religiões cristãs já estabelecidas ou modos de viver/
identificar-se. A estrutura territorial emergente segue um modelo que hierarquiza Missões, Estacas,
Alas, Ramos e Templos.
A Missão funciona como escritório/base de coordenação, garantindo a ação dos missionários,
conhecidos como “Élderes”, provendo seu sustento e disciplinando sua atuação; o Ramo se estabelece
quando já há um grupo de famílias para prover os serviços e a manutenção da igreja organizada59,
enquanto a Ala é um agregado de Ramos. Normalmente a criação da Ala supõe a construção
da capela mórmon para reuniões chamadas de “Sacramentais”, mas também para encontros de
sociabilidade comunitária. Por fim, a Estaca é um agregado de Alas; indica a consolidação efetiva
da igreja e é “ponta de lança” para novos movimentos de expansão (PANTOJA, 2011).
O templo é um espaço à parte. Não é de trânsito livre. Espaços sagrados altamente especializados,
somente neles rituais determinados podem ser feitos. “Os templos não são abertos ao público. Eles
se destinam à realização de ordenanças sagradas, tendo em vista a salvação dos vivos e dos mortos.
As principais cerimônias são os batismos, as investiduras, os casamentos, os selamentos”60 [...]
(SMITH, J. F., 1998, p. 306).
Os templos são marcadores da importância que a igreja atinge no território nacional e seu
efeito na construção da identidade dos SUD é explícito:

É uma emoção contagiante, quando chegamos ao final da jornada


[dentro do templo há um itinerário a ser seguido com final “apoteótico”],
encontramos outros lá naquela sala magnífica, choramos juntos, nos
abraçamos, mal podemos falar, parece que tudo está compreendido,
mesmo sem entendermos61.

Parece que tudo fica esclarecido. Temos o sentimento de que as coisas


estão no seu lugar e nós estamos ali para compartilhar isso tudo. Não
dá para segurar a emoção coletiva, o esforço realizado, isso tudo vem à
cabeça62.

A projeção e a mediação que a (inter)subjetividade expressa, via identidade religiosa, criam


um aquém e um além (SARTRE, 2015) que é, ao mesmo tempo, renovação e repetição, tanto ao
nível do corpo, quanto ao nível do coletivo e, por conseguinte, reforça a unidade tensa do grupo –
porque vivenciada de maneira semelhante, mas não igual e mesmo inusitada por cada SUD. Isto
contrastaria com outros grupos, segundo muitos SUD, já que não teriam esta mesma experiência
no espaço geossimbólico. Embora a saturação do ser pelo sagrado (ELIADE, 2001) seja uma
experiência relativamente comum nas diversas religiões, mas vivida diferencialmente.
59 Como nenhum cargo é remunerado na igreja [exceção de cargos em tempo integral, como a do Presidente da
Missão Brasil-Belém], é preciso ter membros ativos e empenhados em assumir o funcionamento e a manutenção das
capelas (Presidente Dario, da Estaca Belém, entrevista realizada em 29.04.2011).
60 Selamentos familiares, as famílias podem ser eternas se forem seladas no templo, e apenas neste lugar. As
investiduras são determinados símbolos recebidos, fundamentais para que um membro seja reconhecido como SUD
(Pantoja, 2011).
61 A. J. B. da Costa, ex-membro, em entrevista realizada em 03.02.2011.
62 A. B., em entrevista realizada em 04.02.2011.
Figura 1 (à esquerda): Templo dos Santos dos Últimos Dias (SUD) em Manaus.
Fonte: https://files.mormonsud.net/wp-content/uploads/2017/01/manaus-mormon-temple2-e1483599782912.jpg
Figura 2 (à direita): Capela dos Santos dos Últimos Dias no bairro do Atalaia (Ananindeua, Metrópole de Belém do Pará). Um
objeto simbólico que transmite não apenas significados para o grupo, mas que reconhecidamente se aproxima de um modelo não
comum de Belém ou da Amazônia, claramente “americanizado”. Fonte: Nascimento J. C., 2011.

Como em Belém do Pará não há constituição de região cultual, a exemplo de Salt Lake City,
as capelas funcionam como “nós” em um território descontínuo em expansão. Possuem dimensão
social e simbólica (BONNEMAISON, 2002) imbricadas do ponto de vista geocultural, em que a
experiência dos sujeitos é partilhada e (re)significada em relação à memória e ao território mórmon
em expansão63.
A construção das capelas depende de vários fatores (disponibilidade e valor do terreno, facilidade
de acesso pelos SUD), como no caso dos templos, porém, a escala quantitativa e a possibilidade de
expansão em dado bairro, cidade ou estado, por parte da igreja, parece ser preponderante (segundo
entrevista com o Presidente da Missão Brasil-Belém, Presidente Campos, em 13.05.2011).
O lançamento da pedra fundamental é um ato simbólico importante, uma repetição da
cosmogonia – entendida como a história do(de) deus(es) – que refunda o próprio território
enquanto sagrado. Há uma cerimônia que retoma a geo-história do grupo

Instalar-se num território, equivale, em última instância, a consagrá-lo.


Quando a instalação já não é provisória [...] implica uma decisão vital
que compromete a existência de toda a comunidade. “Situar-se” num
lugar, organizá-lo, habitá-lo – são ações que pressupõem uma escolha
existencial: a escolha do universo que se está pronto a assumir ao “criá-
lo”. Ora, esse “Universo” sempre é uma réplica do Universo exemplar
criado e habitado pelos deuses: participa, portanto, da santidade da
obra dos deuses (ELIADE, 2001, p. 36).

63 Geertz (1989, p. 104), coloca a questão nestes termos: “[...] a noção de que a religião ajusta as ações humanas a uma ordem
cósmica imaginada e projeta imagens da ordem cósmica no plano da experiência humana não é novidade”. E questiona que
ainda não está empiricamente esclarecido como este milagre [ajuste entre relações humanas e ordem cósmica] ocorre. Ao que
acrescento: e na Geografia, como ciência empírica, ainda há muito por se fazer para compreender este “milagre” no contexto
geopolítico das religiões.
Essa instalação implica um comprometimento com a “visão de mundo”, que não é apenas
deste mundo; possui uma solução de continuidade com o transcendente, como Eliade nos ensina.
Uma das perguntas fundamentais feitas a um possível novo membro é se ele crê e se compromete
com a visão do grupo e participará de sua constante ritualização/reatualização semanal na reunião
dominical (PANTOJA, 2011).
As capelas, como “nós” territorializados, partilham muitas outras funcionalidades. Algumas
são centros de estudo da doutrina, todas oferecem seminários para membros novos e antigos,
outras funcionam como centro de história da família (o estudo genealógico é fundamental para
o grupo), entre outras funções burocráticas necessárias ao funcionamento do território como um
todo64 (PANTOJA, 2011).
Estes espaços, evidentemente, configuram campo de sociabilidade e saturação simbólica,
rearticulam a vida dos SUD, especialmente os novos membros, em conformidade com a orientação
geral da identidade territorial.

Houve sim alterações porque tem lugares que devemos ir porque


nos faça bem. Eu mudei algumas formas de agir, os lugares que eu
frequentava porque eu vi que temos que ir pra lugares que nos façam
bem, onde o espírito do senhor esteja com a gente e isso é algo que
mudou pra melhor65.
Porque eu me sinto como se eu estivesse na minha casa [quando está
na capela mórmon]66 .
Pior que não, eu não chegava a frequentar esses lugares, como bares. Já
aqui na igreja eu frequento os bailes várias vezes67.

O quadro a seguir sintetiza entrevistas realizadas ao longo da pesquisa e trazem indicações


para se pensar a relação entre identidade e território religioso mórmon. O que se pode ver é que o
projeto de mundo implica uma reelaboração dos tempos e espaços dos vários indivíduos quando
se transformam em “Santos do Últimos Dias”, compondo uma agregação corpórea que torna o
projeto de mundo uma experiência na carne, individual e coletivamente, ao mesmo tempo que
tende a articular algo próximo ao que Goffman (1987) denominava instituição total pelas tentativas
estratégias, e algumas geoestratégicas, de controle das subjetividades:

64 Dados levantados a partir das entrevistas com lideranças, realizadas entre fevereiro e maio de 2011.
65 Sister Freitas, missionária de Igreja, em entrevista realizada em 19.03.2011).
66 A. da S. O., 61 anos, em entrevista realizada em 29.04.2011.
67 P. M. de A., 27 anos, em entrevista realizada em 29.04.2011.
Quadro 2 - A Igreja como referência imediata no processo de identificação
Referências Respostas dos Entrevistados
Frequência às Todos frequentam ou tentam frequentar todos os domingos: “Porque o domingo é o
reuniões (sobretudo primeiro dia da semana, quando nós viemos à capela; é uma preparação para a semana
aos domingos) toda. Pode perguntar para qualquer santo, quando ele não vem à capela no dia de
domingo é como se ficasse faltando algo” (R. F., entrevista em 29.04.2011)
Lugares de Dentre os entrevistados, 34 foram explícitos na modificação dos lugares que
Frequência frequentavam, deixando de ir a praias, bares, festas noturnas, casas de show, sobretudo.
Os demais, assim como estes, embora não tenham deixado de ir a determinados
lugares, seja porque continuam hoje (1) ou porque nunca foram muito (15), afirmaram
que passaram a dedicar mais tempo às atividades e encontros na capela de sua Ala.
Tabus alimentares Dos entrevistados, 35 afirmaram a importância de manter o corpo são, não tomando
e corporeidade café ou qualquer tipo de substância “entorpecente”, além da importância da castidade
santificada antes do casamento. É importante ressaltar que esta não era uma pergunta direta na
entrevista. Aparecia nas respostas a primeira pergunta que tinha por premissa saber
se os membros acreditavam que eram diferentes dos membros de outras religiões e
o porquê. Se isto é completamente verdadeiro para cada um é irrelevante aqui. A real
importância está em como eles se representam para si e para os outros.
Obediência aos Todos ressaltaram obediência aos mandamentos e/ou aos líderes, na pergunta que
Mandamentos/Líderes versava sobre “quais os princípios mais importantes para o membro da igreja seguir”.
Os não-membros entrevistados (3), falaram da sua postura quando eram membros
ativos, neste caso.
Elaborado por Pantoja (2011), a partir de 50 entrevistas realizadas, entre 2005-2011.

GEOPOLÍTICA DOS SANTOS DOS ÚLTIMOS DIAS

A geopolítica68 nasceu de sua relação entre Estado e Espaço, especialmente relação entre
militarização e um território a conquistar – em busca de expansão e controle, logo, exercício de
poder (CASTRO, 2011). Não é difícil perceber os limites desta geopolítica na contemporaneidade
(VESENTINI, 2000; SANTOS, 2011), de modo que é preciso esclarecer que há outros agentes
espaciais que constroem sua geopolítica (VESENTINI, 2000).
Becker (2012, originalmente 1988, p. 117), afirma que “Cada vez mais o controle do espaço é
utilizado como forma de alternativa de controle social. O modo pelo qual o espaço é apropriado e
gerido e o conhecimento desse processo constituem, ao mesmo tempo, expressão e condição das
relações de poder”.
Concordo com a geógrafa, mas eu destacaria que o controle do espaço não é apenas uma forma
alternativa de controle social, mas a forma e o processo de controle social contemporâneo. A forma
supõe um projeto – no caso dos SUD, o projeto que vai do indivíduo ao mundo. Enquanto processo,
há um conjunto de estratégias para territorialização geo-histórica, não sem conflitos, no espaço de
relações humanas.
As religiões não são Estados69, embora possam ser reconhecidas como instituições ou
associações congregacionais (WEBER, 2012). Não são monolíticas e seus membros não são
fantoches – embora esta leitura seja possível – determinados por um poder “superorgânico”. Há
negociações, reelaborações e recontextualizações de estratégias e/ou diretrizes na medida em que se
68 Para uma compreensão epistemológica da geopolítica e da geografia política cf. Becker (2012); Castro (2011); Vesentini
(2000); entre outros.
69 É possível questionar as características que aproximam Estado e Religião, o mesmo se dando em estados teocráticos, como
o caso emblemático do Vaticano, mas vamos conservar esta diferenciação como componente interpretativo e, portanto, de forma
limitada neste artigo. Porém, a questão está em aberto.
busca territorialização planetária, em espaços diferentes daquele que, originariamente, se constituiu
a religião.
A forma-projeto que consubstancia a geopolítica mórmon se caracteriza pela expansão como
revelação da verdade do grupo (PANTOJA, 2011). Ou seja, o movimento é centralmente planejado
– da sede em UTAH – mas contextualmente efetivado nos lugares via modelo Ramo-Ala-Estaca-
Missão.
Em Belém do Pará este avanço segue a expansão da metrópole, de modo que há busca por
terrenos em áreas de ocupação novas, mas com infraestrutura de transporte e comunicação. O
território não se dá por contiguidade, é fragmentário em relação a outros espaços, como a região
cultural em Utah. Todavia, há uma direção de expansão que são os eixos do próprio movimento
metropolitano: a BR-316, no sentido dos municípios de Ananindeua, Marituba, Benevides e Santa
Isabel. As rodovias Augusto Montenegro e Artur Bernardes, que levam aos distritos de Icoaraci e
Outeiro, onde são construídas as novas capelas.

Figura 3: Mapa de Distribuição das Capelas Mórmons na Metrópole Belemense em 2011.


Fonte: Pantoja (2011) adaptado (omissão dos bairros da metrópole), elaborado por Leite (2011) a partir da pesquisa de campo.

Além das capelas (que garantem o sistema Ramo-Ala-Estaca-Missão), os templos são


geoestratégicos na constituição do território. Primeiro, porque são os principais geossímbolos
planetários do grupo. Segundo, porque garantem uma circularidade dos SUD em território não
contínuo – e aqui a “peregrinação”, a “marcha”, como foi para o Oeste Americano, é evocada
como imagem das caravanas em cidades que não têm templos para cidades que os têm. No Brasil,
sete cidades – todas importantes metrópoles (São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Porto Alegre,
Fortaleza, Recife e Manaus). – abrigam templos. Porém, esta forma-projeto só se realiza a partir
da interiorização das diretrizes sagradas pelos indivíduos (WEBER, 2012), ou seja, este domínio
do espaço exige uma apropriação (LEFEBVRE, 2006) para sua perpetuação, de modo que a
transterritorialidade nacional se revela como central: “Já não [somos] estrangeiros, nem forasteiros,
mas concidadãos dos santos, e da família de Deus” (Efésios 2:19, apud NOSSO LEGADO, p. 145).
Esse fragmento é muito usado em discursos de membros e nos faz refletir sobre como pensam
os SUD: uma unidade, não do ponto de vista de país, já que não são estrangeiros e forasteiros entre si
(ainda que sejam de nacionalidades diferentes), não são os outros, porque constituem concidadania
– o que significa a obediência ao conjunto de regras e o compartilhamento de referências simbólicas
– e constituem uma família, não de sangue, mas no sentido de comunidade fechada, selada por
ordem que vem do alto (PANTOJA, 2011).
É esta relação tensa entre apropriação e domínio, que implica contradições que vão desde o que
o indivíduo pensa como projeto e o que, hierarquicamente, é concebido pela unidade institucional,
levando a rupturas/modificações de pretensa identidade monolítica, como na fala de um dos
membros inativos:

Uma coisa que eu não gostei muito também, é que cada missão eles te
barravam um pouco de tu te envolver um pouco mais [com as pessoas].
A Igreja é muito fria nisso. Então fica uma coisa tão cheia de regras, tão
planejada, tudo tem que ser de acordo com a palavra da Igreja. Eu já
não achei muito bacana70

A construção da identidade em contextos culturais diversos e a partir da (inter)subjetividade


diferenciada, provocam esgarçamentos e/ou sedimentações entre a identidade mórmon e sua
expansão territorial. Apropriação e domínio também se revelam nos espaços geossimbólicos, como
no caso dos templos, por exemplo, que não são abertos nem mesmo para os SUD. A necessidade
de autorização de entrada reforça a sacralidade – o “santo dos santos”, para os membros da igreja,
além de criar forte curiosidade nos não-membros. Esta unidade entre morada e forte (defensivo/
ofensivo) é um aspecto central da constituição territorial como projeto geopolítico.
O processo geopolítico de territorialização, não é separado da forma-projeto. Dá-se por
estratégias territoriais, para reforço da identidade individual, coletiva e associativa. E, aqui, não
há simetria entre território e identidade, na medida em que o processo é expansão, o que implica
avanços e recuos, ganhos e perdas, coexistência pacífica ou conflitiva (ROSENDAHL, 2002b).
O que temos, figurativa e/ou claramente, é uma tensão conflitiva. E talvez aí a geopolítica, em
sua historicidade, ainda precise se manter “clássica”. Nas palavras de um líder mórmon em Belém
do Pará:
70 A. J. B. da Costa, em entrevista realizada em 03.02.2011.
Estamos conquistando mais espaço. É preciso dividir para se fortalecer;
é a realização da Obra de Deus que revela que essa é a única igreja perfeita
na face da Terra e seu crescimento trará muitas boas transformações
para essa cidade (Liderança Mórmon em Reunião Sacramental, 2011).

A alusão à “guerra santa”, contra o mundo, contra o mal, contra os SUD que se afastaram da “igreja
perfeita”, produz uma série de ações – tanto coletivamente hierarquizadas, quanto individuais. Vão
desde programas de ações sociais para criar canais de comunicação com a sociedade, passando pela
“Obra Missionária”, com centros de treinamentos de jovens em todo o mundo, até o maior centro
de genealogia que existe no planeta, para buscar a “história das famílias” e garantir o batismo dos
mortos, através de seus parentes vivos, o que ocorre no templo. Esse é num exemplo de imanência
e transcendência geo-histórica do território corporificado nos indivíduos que exercem ativamente
essa geo-história (MERLEAU-PONTY, 1999; CSORDAS, 2008).
Subsumir os indivíduos – sua relação intersubjetiva na construção relacional e diferencial
(CUCHE, 1999; HALL, 2006) em contexto geo-histórico – à visão monolítica de instituição
impessoal, empobrece a dinâmica desta “guerra santa”, que se dá entre as religiões e dentro delas
próprias, o que revela o caráter social, associativo e subjetivo.
O sentido que estabeleço aqui para “guerra santa” – tendo como referente empírico os
mórmons – é a guerra de projetos geopolíticos de religiões diferentes que se territorializam umas
sobre as outras e que convocam seus membros a se afirmarem frente a outros; dessacralizando
outros sagrados; dessantificandos outros santos (portanto desabsolutizando a relação entre sagrado
e profano como queria Durkheim [2003]).
Porém, na medida em que as relações geográficas são vividas, a guerra se complexifica porque
o outro, como rosto (LÉVINAS, 2010), coloca-se como irredutível ao meu olhar (e à vontade de
apreendê-lo) emergindo tensas negociações, violências gritadas e/ou silenciosas, mas também
diálogos e questionamentos pessoais sobre o sentido de “ser santo” na relação consigo e com o
outro. Uma tensão absoluta que é pessoal e coletiva, objetiva e subjetiva, interna e externa, em
carne e imaginada. Trajetada71 dinamicamente na paisagem (BERQUE, 1985) e na composição de
formas-projetos geopolíticos no espaço.
Ao redor do mundo, 148 templos mórmons estão em funcionamento. Onze estão em construção72
e há incontáveis capelas para abrigar Ramos-Alas-Templos. Seguramente, em Belém do Pará, o
número de capelas saltou entre 2011 e 2015. São cerca de 14 milhões de SUD no mundo, segundo
o site da Igreja, dado que pode estar superestimado. A capacidade de investimento em construção
e comunicação é exponencial e os fundos financeiros mórmons são conhecidos no mundo e no

71 Para Berque (1985) a constituição do meio ambiente não é nem só subjetiva nem só objetiva, mas transcende dinamicamente
esta dicotomia numa relação de autoprodução entre grupo/indivíduo e espaço. Acrescento que o sentido de “transcendência” aqui
também deve ser apreendido no plano do espiritual (no sentido dado pelos grupos tematizados) e no plano escalar (como forma-
projeto de mundo em escala, o fundamento da geopolítica do grupo ou grupos em relação). Importante ressaltar que Berque trata
de meio e eu acentuo aqui o sentido de território, portanto, necessariamente, o exercício de poder – mas também de afetividade –
na construção trajetiva.
72 Cf. http://lds.org.br/, página oficial dos SUD. Nas palavras de um dos presidentes da igreja: “Este é o tempo para todas as
pessoas estudarem a verdadeira economia e começarem a poupar e livrar-se das dívidas e tornar-se um povo livre e independente.
[...] Se simplesmente cumprirmos nosso dever como santos dos últimos dias e formos sábios na utilização de nossos meios,
superaremos as dificuldades, nosso trabalho será abençoado para nós, a terra se tornará frutífera e ceifaremos colheitas abundantes
e nos regozijaremos nelas [...] Este é o tempo de cortarmos nossas despesas. Este é o tempo de eliminarmos as extravagâncias e
abster-nos de alguns prazeres materiais.” (Presidente John F. Smith, p. 167, 1998; originalmente em 19 de agosto de 1893).
Brasil, bem como seus empresários73, seguindo a cartilha da Ética Protestante (WEBER, 2014), o
que não é possível avaliar neste artigo.
Ora, se é um processo de defesa-ataque, a identidade territorial (HAESBAERT, 1999, p. 186)
não pode ser a simétrica ao território, como o autor evidencia:

Produto e produtor de identidade, o território não é apenas um “ter”,


mediador das relações de poder (político-econômico) onde o domínio
sobre parcelas concretas do espaço é sua dimensão mais visível. O
território também compõe o “ser” de cada grupo social, por mais que a
sua cartografia seja reticulada, sobreposta e/ou descontínua.

A cartografia (representação desta simetria, tanto faz ser reticulada, sobreposta e/ou
descontínua) acaba por ser um decalque entre identidade e território, ou antes, a identidade no
território e vice-versa. Entre a representação e o movimento concreto do território há lapsos,
assimetrias, portanto, não um ser ou um ter, mas um “fazer-ser” contextual – que também envolve
o do próprio território, onde indivíduos e grupos hierarquicamente organizados se apropriam e
exercem domínio diferencialmente. Mais recentemente, o geógrafo (HAESBAERT; MONDARDO,
2010; HAESBAERT, 2014) vem projetando uma transterritorialidade que

[...] envolve não apenas o trânsito ou a passagem de um território ou


territorialidade a outra, mas a transformação efetiva dessa alternância
em uma situação nova, muito mais híbrida. Destaca-se a própria
transição, não no sentido de algo temporário, efêmero e/ou de menor
relevância, mas no sentido de “trânsito”, movimento e do próprio
“atravessamento” e imbricação territorial – não um simples passar por,
mas um estar-entre (HAESBAERT; MONDARDO, 2010, p. 35).

O geógrafo vai da identidade territorial à identidade transterritorial, num esforço de


complexificação honesto, ao qual eu precisaria: identidade em transterritorialização e, dialeticamente,
transterritorialização da identidade, mas penso que é desperdício criar prefixos/sufixos ao extremo!
Interessa que a identidade territorial mórmon é transterritorial por uma estratégia geopolítica e
condição de existência dela.
Tal transterritorialidade pode ser apreendida e produtiva de momentos espaciais,
geopoliticamente aperfeiçoados no grupo, em contexto com outros grupos culturais e indivíduos.
Estes momentos espaciais não são sucessões diretas, mas guardam certa reciprocidade entre si
configurando uma singularidade englobante, na acepção de Jaspers74. Para o contexto territorial da
Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, destacamos:

73 Cf. O jeito mórmon de fazer negócio, Isto É Dinheiro (on-line), 16.08.2012, http://www.istoedinheiro.com.br/noticias/
negocios/20120816/jeito-mormon-fazer-negocios/105628.shtml,
74 Segundo Jaspers, “[...] o englobante é aquilo que apenas se anuncia sempre – pela presença dos objetos e dos horizontes – mas
que nunca se converte nem em objeto, nem em horizonte. É o que nunca encontramos de fato, mas no seio do qual encontramos
tudo o mais. Só está indiretamente presente quando, nele mergulhados, nos encaminhamos para este ou para aquele horizonte a
fim de o transpor [...] uma totalidade aberta enquanto fundamento do ser” (apud HERSCH, 1982, p. 79).
Quadro 3: momentos espaciais da forma-projeto geopolítico mórmon
Momentos Espaciais Aparecimentos Geopolíticos (forma-projeto assimétrico)
Entrincheiramento Formação de núcleos de fortalecimento identitário para defesa-ataque (PANTOJA, 2011),
comunitário sentido contaminado de lugar, exclusivista (RELPH, 2012);
Mobilidade da comunidade Sucessão de ocupação ou possibilidade de ocupação de espaços, construindo geossímbolos
nos territórios (BONNEMAISON, 2002) do território descontínuo e um itinerário apropriado pela
memória dos SUD que o representa como contínuo numa perspectiva sagrada;

Região cultural Espaço consolidado em tempo de longa duração pelo grupo, saturado de geossímbolos em
gradação centro-domínio-borda (MEINIG, 1965);
Expansão transterritorial A partir da região cultural se reticula um território planetário, que se hibridiza com outras
culturas, criando grupos de constante trânsito (missionários, por exemplo) e articulando
uma identidade sobredeterminada a outra(s) identidade(s) dos membros de diversas
nacionalidades (CERNADAS, 2008, 2009; PANTOJA, 2011);
Concidadania Planetária Autogovernar hierarquicamente o modo de ser dos SUD é reatualizar constantemente a
memória geo-histórica, mas os indivíduos e grupos culturais se reapropriam subjetivamente
(SARTRE, 2015) da identidade territorial em constante formação – repetição e renovação –
o que cria tensões tanto internas, quanto externas a esta concidadania dos SUD.

Imanência/Transcendência O projeto de mundo é que os SUD convertam o planeta inteiro, tanto os vivos quanto os
Territorial mortos, a cada um e a todos. Portanto, é um projeto não simétrico, de avanços e recuos, de
esporas soltas aqui e ali; inacabável e, por isto mesmo, eterno, no tempo e no espaço.

Elaborado por Pantoja (2019), a partir da dissertação de mestrado de 2011.

Uma concidadania transterritorial tem se formado pela geopolítica mórmon, que valoriza a
brancura, a construção urbana, o puritanismo, o patriarcado, o passado mítico na América e o
sentido de movimento como expansão ininterrupta dos SUDs sobre a Terra. Ao mesmo tempo, o
mormonismo vive ressignificações de sua “visão de mundo” (CERNADAS, 2009; PANTOJA, 2011)
em contato com culturas diferentes, vive resistência a determinadas posições institucionais, tanto
internamente, sobretudo dos jovens da sociedade saturada do eu (HAN, 2015) e de outras religiões
que disputam territorialmente o espaço (BECKER, 2012). Mas uma coisa é fato – vivemos uma
conflitividade geopoliticamente feroz entre projetos de mundo religiosamente comprometidos. Os
conflitos e associações daí resultantes ainda estão por ser geograficamente interpretados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A articulação entre identidade e projeto geopolítico territorial dos Santos dos Últimos Dias
(SUD) em Belém do Pará exige um repensar das relações geopolíticas, uma negociação de uma
forma-projeto escalar que toma como missão criar espaços sagrados nos confins da civilização;
partilhando geossímbolos sagrados (concentrados e descontínuos); o culto aos fundadores e ao
passado mítico da América, os tabus ligados a um comportamento puritano. Porém, na medida
em que os mórmons se expandem para o mundo, a plasticidade da identidade entra em cena,
garantindo reelaboração, mas sem ruptura completa com os parâmetros sagrados.
Esta identidade tem sua dimensão territorial num incessante movimento de expansão e, ao
mesmo tempo, entrincheiramento comunitário, geopoliticamente informado, na medida em que
se realiza transterritorialmente e garante negociações (mas também imposições/extermínios) com
culturas locais e regionais, avançando suas construções espaciais aos membros e não-membros,
marcando seu território como urbano e que, no caso de Belém, segue o padrão metropolitano.
A geopolítica – que é forma e projeto – se revela na ação socioespacial dos indivíduos e da
“comunidade congregada”, de modo que para internalizar o domínio é preciso realizar apropriação
territorial. São inseparáveis os movimentos de atuação imanente (nos/dos indivíduos e grupo
hierarquizado) e transcendente (expansão territorial e efetivação do projeto de mundo sacralizado).
Este duplo movimento se realiza em contextos de tensão e negociação, seja no que se refere ao
próprio grupo (dissidências, espaços ainda fracamente articulados ao território, etc.), seja em
relação a outros movimentos religiosos, que possuem suas próprias estratégias geopolíticas.
Vários aspectos foram apenas mencionados, mas não aprofundados, dado os limites deste
artigo. Alguns destes aspectos são relativos: os processos de treinamento de doutrinação que
acompanham a infância na igreja; a posição da mulher dentro desta estrutura religiosa; a dinâmica
de dominação territorial e étnica; a disputa pela “verdade história” frente a outras religiões e/ou
grupo; a articulação dos mórmons com outros grupos/instituições nacionais.
É aqui que penso que é preciso avançar: o conflito entre projetos geopolíticos de modo a não
percebermos os coparticipantes das religiões como mera “massa de manobra”, mas como existências
que garantem de maneira tensa e negociada o próprio movimento das religiões. Apesar da nossa
visão “de fora” (científica?) intentar apreendê-las como homogêneas, não o são.
Interpretar, geograficamente, esta realidade plural, tensa e instável, no contexto emergente das
visões sagradas de mundo, como aglutinadoras de identidades territoriais coletivas, não é apenas
abertura temática – é uma exigência frente à realidade brasileira do 3º milênio.
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NATUREZA E ESPAÇO SAGRADO – SENTIR, FAZER, MITIFICAR

Pamela Elizabeth Morales Arteaga

RESUMO

Neste artigo será feita uma abordagem sobre a natureza numa perspectiva mítica e material, a
partir da experiência territorial do grupo religioso União do Vegetal (UDV), uma das religiões
hoasqueiras do Brasil. Esta sociedade religiosa se caracteriza pela utilização de um sacramento
originado de duas plantas, popularmente conhecidas como Mariri e Chacrona. Desenvolvemos o
debate no campo da Geografia Cultural, objetivando demonstrar a amplitude do entendimento de
Natureza para além da sua materialidade ou idealidade, como transcendente inscrito na existência.
Recorremos ao pensamento existencialista, sem esquecer algumas abordagens importantes de
outras correntes geográficas. Concluindo que a Geografia tem refletido pouco sobre a unidade
entre Natureza e Espacialidade numa perspectiva simbólica, vivida e existencial, bem como
notamos a possibilidade de outras racionalidades e grupos sociais na constituição de projetos
de mundo que contestam o sistema vigente e criam outras sociabilidades no tempo e no espaço.
Palavras-chave: União do Vegetal (UDV); Religião; Mitologia; Natureza material e mítica.

INTRODUÇÃO

Este artigo aborda o conceito de Natureza, numa perspectiva relacional – sagrada e política –
por parte das religiões hoasqueira (emergentes no território brasileiro), a partir da espacialidade
constituída/constituinte pelo Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (UDV).
O espaço de pesquisa é Brasília, projetada e visibilizada por um planejamento urbanista
moderno, que porém, dialeticamente, constitui um centro de religiosidades diversas, associada a
mitologias e mistificações da sua criação, incluindo aí a própria mistificação do moderno. Propomos
interpretar a possível construção territorial das religiões hoasqueiras, notadamente a UDV, cuja
sede está em Brasília, configurando um tipo de espaço que é, ao mesmo tempo, geopolítico e mítico.
A fundamentação do território religioso da UDV em Brasília tem, na categoria Natureza, uma
centralidade que explicita um projeto e estratégias de ação reticulares. Importante ressaltar que,
mais do que uma categoria do pensamento, assume a condição de categoria da existência. Embora
o debate sobre a Natureza seja frutífero na geografia contemporânea, acreditamos que o enfoque
aqui proposto caminha numa perspectiva diferencial: não é nem um sinônimo de criação fundante
(a natureza de algo, por exemplo), nem uma (re)criação material derivada de um valor atribuído,
como a teoria do valor relativo ou dado aos elementos da natureza como recursos em oferta material
ou simbólica (BOURDIEU, 2007).
Insistimos na unidade entre materialidade/materialização e símbolo/simbolização, sem uma
primazia entre o vivido e o concebido – entre a forma e o conteúdo – mas em relação constante
e irredutível a uma síntese (NIETZSCHE, 1992). Nosso percurso será desenvolvido a partir da
abordagem geográfica, em que pese a lacuna no desenvolvimento do tema, haja vista que este debate
não constitui um corpus abrangente e sistemático em diálogo com as ciências sociais, notadamente
a história e a sociologia.
O percurso metodológico, em explícita aproximação com a fenomenologia existencial e o pós-
estruturalismo75, partiu de uma vivência nos termos da pesquisa-ação (ainda em processo), revisão
bibliográfica do tema proposto e entrevistas semiestruturadas com membros da UDV nos espaços
de vivência da religiosidade.
Inicialmente explicitaremos os conceitos centrais para estabelecimento do debate, tendo em vista
o encaminhamento da questão: como a natureza é apropriada na constituição do território da UDV?
Em seguida, faremos um diálogo entre os conceitos e o trabalho empírico, sobretudo as entrevistas
realizadas para interpretarmos a emergência desta relação material-simbólica tensa na linguagem
dos membros da religião. Por fim, sintetizamos as ideias apontando caminhos que efetivamente
estamos tomando para aprofundar a questão. O artigo está dividido em contextualização geográfica
da Natureza, Cultura da Natureza na UDV e Considerações finais.

CONTEXTUALIZAÇÃO GEOGRÁFICA DA NATUREZA

A geografia como ciência tem uma ampla discussão sobre o sentido de Natureza. Aliás,
os primeiros movimentos de constituição do campo disciplinar estavam voltados para certo
“determinismo ambiental” que podemos chamar de natural, inclusive quando a região se fazia o
objeto privilegiado dessa ciência (HAESBAERT, 1999). Porém, as críticas sobre esta “naturalização
da produção social”, sobretudo partindo do positivismo lógico e da corrente marxista, colocam
abaixo a argumentação de um determinismo/possibilismo tanto natural quanto ambiental.
No plano marxiano, a natureza é tematizada pela apropriação humana, ou seja, o processo de
transformação da natureza em espaço humanizado (SANTOS, 2002). Torna-se, apesar (ou com a
cumplicidade?) da crítica marxiana, uma criação derivada, natureza como recurso em constante
humanização e, dialeticamente, ocorre uma naturalização humana. Esta marcha histórica se afastaria
do franco caráter “selvagem ou não-civilizado” do ser humano. A independência da natureza, do
ponto de vista ontológico, só é concebida como “base orgânica e biológica” em leituras marxistas
(LUCÁKS, 2012), metaforizada na geografia76. Qualquer outro modo é simplesmente definido
como uma irrealidade alienante, especialmente em sua aproximação com a religião77.
No plano do positivismo lógico a natureza vira geometria, expulsando daí qualquer possibilidade
de subjetivação-simbolização que não seja a precisão do dado e da constituição de um modelo
sistêmico no sentido ecológico, algo que, obviamente, é uma faceta da natureza, mas não a esgota.
75 Temos clareza da diferença destas abordagens e, em certos aspectos, aparente oposição, porém, também vemos
pontos de convergência e diálogo, como na valorização das contingências não capturadas tão facilmente por estruturas
mais ou menos fixas de pensar e agir.
76 Mesmo que o título do livro de Santos seja A Natureza do Espaço (2014), a direção que toma não é outra senão a
marxizante, não ortodoxa, mas marxizante, segundo suas próprias palavras.
77 Há exceções na seara marxiana, por isso destacamos aqui os trabalhos de Michael Löwy (2006), sem entrar, porém,
no mérito da categoria “natureza”.
A impressão que a marcha geográfica denota, é um tipo de perda, nas palavras de Brockelman78
(2001, p. 23):

O que perdemos, portanto, foi a habilidade de ver nossa vida como


parte de uma ordem e uma realidade mais amplas, para além de
nossos transitórios desejos e sonhos diários. Ao ver a natureza e todo
o universo como uma “matéria” posta aqui para nossa transformação e
uso infinitamente produtivos, reduzimos a realidade a um mero valor
extrínseco para nós; ela não é mais vivenciada como intrinsecamente
valiosa em si. Por consequência, perdemos todo senso de pertencer a
um drama e a uma realidade mais vastos e significativos.

Este entendimento materializado e extrínseco como recurso ou idealizado e intrínseco ao ser


humano, ainda que opostos, convergem para tornar a natureza “derivada”, logo, não tematizada em
si. Aqui não queremos negar a constituição relacional do mundo; queremos entender outras formas
de esclarecimento da natureza não estritamente racionalizadas que podem viabilizar relações
também outras com a Natureza.
Vesentini (1997, p. 10), levantava a questão no âmbito da geografia ao afirmar que:

Toda a ciência moderna – inclusive a geografia, oficialmente nascida mais


tarde, no século XIX – acabou reproduzindo esta dicotomia ocidental
e capitalista entre o homem (ser produtor, criador, transformar) e a
natureza (domínio a ser conquistado, explorado, submetido ao ritmo
da produção – especialmente industrial, pois a fábrica viria a ser o
protótipo das relações capitalistas).

Descontando esta tendência estruturante entre fábrica e sociedade que, na contemporaneidade


é altamente questionável como “padrão de relação generalizada”, Vesentini aponta para esta
dicotomia no plano da geografia, pouco investigada do ponto de vista ontológico, mesmo com
grande produção epistemológica.
Desse ponto de vista, as soluções vão se encaminhar para a convergência entre idealização
(ideologização) da natureza e materialização (recurso usável) dela. Porém, há um debate que
precisa ser retomado, a partir de aspectos pulverizados na produção geográfica que nos chamam
atenção. Quando Santos afirma que “a natureza pode ser definida como o conjunto de todas as
coisas existentes, ou, em outras palavras, a realidade em sua totalidade”, ajuda a complexificar, mas
também, a diluir o debate específico sobre o tema, na medida em que “a natureza se encontra em
estado de movimento permanente e cada um de seus momentos é fugaz” (SANTOS, 2002, p. 196).
Compreendemos que Santos, ao equivaler a Natureza à Totalidade em movimento, coloca-a
no interior dos marcos do marxismo, o método eleito para pensar o conjunto. Assim, encadeia
alguns entendimentos similares da natureza como tema primordial de toda a investigação social
(WOODBRIDGE apud SANTOS, 2002, p. 197), a experiência coletiva [...] os fatos que se encontram
sob os olhos de todos os homens (SANTAYANNA apud SANTOS, 2002, p. 197) ou o fato concreto
78 Devemos o primeiro contato com o texto de Brockelman, antes de dispormos do original, ao site de Benito Pepe,
cf. www.benitopepe.com.br.
com uma estrutura relacional recíproca e caracteres próprios (WHITEHEAD apud SANTOS, 2002,
p. 197), para daí questionar essas proposições com a afirmação: “Cada vez que há uma mudança
tecnológica profunda, uma mudança organizacional profunda, uma mudança social profunda, os
modelos de percepção da realidade mudam substancialmente” (SANTOS, 2002, p. 197).
Santos (2002) põe a questão da Natureza e sua percepção dentro de um “aparelho interpretativo
válido”, neste caso, a dialética marxiana. Não discordamos da relação entre mudança do real e
mudança da percepção, mas nos parece que, ao pensar a natureza como algo perceptível e estruturado,
também há o risco e, efetivamente ocorre, de colocar a Natureza subordinada ao capitalismo, mais
ainda, impõe-lhe um papel subordinado à percepção humana (científica) do capitalismo, o que pode
evitar a dicotomia alertada por Vesentini, mas extrai o “valor em si” da Natureza (BROCKELMAN,
2001), capturada pelo movimento do método, o materialismo histórico e dialético, que preconiza
que não existe valores em si.
Porém, a vantagem da teoria crítica marxiana sobre outro grupo de autores da geografia é
justamente a de não cair no encantamento idealizante da realidade, normalmente apreendido pelo
conceito de “sustentabilidade”, especialmente em suas versões mais instrumentais. Na medida em
que a natureza é pensada como (eco)sistema que sustenta o mundo, a sustentabilidade fica centrada
em mudanças técnicas que diminuam desperdício, uma economia (hiper)racional, porém, como
ressalta Mészaros (apud FREITAS; NUNES; NÉLSIS, p. 45, 2012), é preciso

[...] estarmos realmente no controle dos processos culturais,


econômicos e sociais vitais, através dos quais os seres humanos não
só sobrevivem, mas também podem encontrar satisfação, de acordo
com os objetivos que colocam para si mesmos, em vez de estarem à
mercê de imprevisíveis forças naturais e quase-naturais determinações
socioeconômicas.

Obviamente, aqui Mészaros usa os termos “forças naturais ou quase-naturais” como uma
aceitação naturalizada de processos em curso que impedem os seres humanos de encontrarem
sua satisfação. Portanto, a sustentabilidade seria inviável sem uma mudança profunda nestes
mecanismos “quase naturais” no âmbito do capitalismo, o que é insustentável efetivamente.
Entendemos que a compreensão de natureza como ideia manipuladora, ou recurso utilizável,
não esgotam a questão, seja como conceito, seja como prática relacional. Na geografia, a dimensão
simbólica e a relação mais existencial dos indivíduos, grupos sociais em sua espacialidade vivida e
conexão com possíveis naturezas é pouco explorada.
Nesse sentido, Massey (2009), afirma a importância de pensar a natureza na constituição do
espaço geográfico, na medida em que partilhamos com outros seres e espécies este planeta, o que
implicaria uma mudança radical de nosso papel neste todo mais que orgânico, mistificação da
realidade ou irracionalismo (JAPIASSU, 1991). Esta dimensão não é redutível ao ser humano,
embora só tenha “sentido” para este, o que torna complexa sua apreensão.
Do ponto de vista da mitologia, se amplia a discussão do conceito de natureza, como uma
criação vinda do cosmo, ou de uma forma sagrada, como a Gaia criadora, fecunda, provedora
da vida para um homem religioso (ELIADE, 1999). Então a Natureza nunca é ser exclusivamente
natural, sempre está carregada de um valor. No entanto, não deixa de ser uma autocriação e, em
certos casos, criação divina e não humana, impregnando o mundo de sacralidade, mas sem uma
oposição tácita com a técnica, a ciência ou a humanidade, haja vista que:

O que se poderia aproximar mais do caráter do mito do que a noção


de que o universo de fato apareceu, talvez do nada; de que os átomos
em nossos ossos e sangue foram formados em estrelas a anos-luz de
distância e bilhões de anos atrás; ou de que as partículas ainda mais
antigas de que são compostos esses átomos são fósseis de energias e
forças que existiriam durante o primeiro microssegundo da criação, as
quais mal podemos compreender? Somos todos artefatos do universo,
lembranças andantes do mistério último. Somos poeiras de estrelas,
poeira de estrelas andantes (OVERBYE apud BROCKELMAN, 2001,
p. 93).

Aqui, não só estamos nos referindo a uma criação divina de um espaço. Mais que isso, a Natureza
é o englobante da existência (JASPERS apud HERSCH, 1982), um fenômeno cósmico (ELIADE,
1999). Com a sacralização da natureza por parte do homem religioso, percebe-se o entendimento
transcendental através do simbolismo da mãe terra, nutridora das belezas, encantos e hierofania
– quando o sagrado irrompe na realidade cotidiana (ELIADE, 1999). O encantamento do homem
religioso com a natureza vem da transcendência, como algo que guia a existência e como visão e
objetiva de mundo, revelando uma consciência infinita da criação do superior (ELIADE, 1999).
Percebemos esta proposição a partir da ideia de Jaspers, para quem:

[...] o ser continua aberto: atrai-nos em todas as direções para o


ilimitado. Faz-nos reencontrar sem cessar o novo como determinação
do ser. [...] Cada vez que captamos uma realidade particular (e é também
realidade particular qualquer concepção sistemática da totalidade do
ser) experimentamos o que é o ser, e, ao mesmo tempo, o que ele não é.
[...] Este ser que nem é objeto (sempre restringente) nem uma totalidade
organizada no seio de um horizonte (sempre limitativo) chamamo-lo
o englobante (JASPERS apud HERSCHE, 1982, pp. 78-79, grifos no
original).

O englobante possui dois grandes modos de ser: 1. O ser que nos cerca – o mundo e a
transcendência; 2. O ser que nós somos. A natureza pode ser expressa como existência nos dois
campos de englobantes, mas enfatizaremos a sua expressão transcendente, entendida por Jaspers
(apud HERSCHE, p. 80) como “o ser que não é o mundo, mas que expressa no mundo pela
mediação do ser [...]. Se o mundo é tudo, não há lugar para a transcendência. Mas, se existe uma
transcendência, pode haver, na realidade do mundo, sinais que a indiquem”.
A transcendência revela a inesgotabilidade da existência humana (JASPERS, 1958), na medida
em que qualquer tentativa de abarcá-la em um conceito estritamente racional retira sua potência,
em prol de uma racionalização – reflexo da mudança técnico-científica de nosso tempo – portanto,
não apenas uma mudança da percepção como aponta Santos (2002), mas uma mudança no próprio
estatuto de objetividade humana (FEYERABEND, 2010).
A UDV, ao constituir sua sede em Brasília e dispersar seus “núcleos” pelo território do DF e
pelo Brasil, expõe um tipo de relação com a natureza que é ao mesmo tempo objetivo e material,
subjetivo e imaterial, com uma mediação entre estas dimensões da vida sem que elas sejam reduzidas
espacialmente, na medida em que:

A Terra, como base, é advento do sujeito, fundamentado de toda


consciência a despertar a si mesma; anterior a toda objetivação, ela se
mescla a toda tomada de consciência, ela é para o homem aquilo que
ele surge no ser, aquilo sobre o qual ele erige, todas as duas obras, o solo
de seu hábitat, os matérias de sua casa, o objeto de seu penar, aquilo
a que ele adapta sua preocupação de construir seu erigir (DARDEL,
2011, p.41).

É a partir desta perspectiva geográfica que queremos tratar a questão, a nosso ver, ainda pouco
aprofundada.

CULTURA DA NATUREZA NA UDV

O homem espiritual concebe a natureza e a sacraliza como projeto de mundo. Nas sociedades
hoasqueiras, incluindo a UDV, a sacralização – ritual e projeto – se dá por meio de duas plantas
sagradas: Mariri (Banisteriopsis Caapi) e Chacrona (Psychotria Viridis). Dessa união de vegetais
resulta um chá denominado, pelos membros da UDV, de Hoasca.

Foto 1: Chacrona. Fonte: http://panhuasca.org.br/, 2010; Foto 2: Flor do Mariri. Autoria, 2015.

Esse chá, como sacramento, é utilizado para concentração mental no ritual religioso. A ciência
pouco pode explicar a respeito da natureza divina da experiência singular que o chá proporciona
ao homem religioso. Entretanto, esta experiência singular se projeta coletivamente na preservação
e cuidado da natureza e sua valoração. Como dizem os entrevistados,
Cada vez mais procuro melhorar meu relacionamento com a natureza. Desde pequena sempre
gostei de cuidar de plantas, de mexer com terra; cresci também no meio do mato, então adorava,
desde pequena eu gostei muito da natureza. Sinto falta quando estou assim em São Paulo, um lugar
assim que não tem muita árvore o tempo todo, né? Sinto falta e procuro ir pra um parque, então
adoro o pé na areia, pé na terra desde pequena adoro, mas acho assim o contato que a gente tem
mesmo com a natureza em si e quando a gente está no preparo [do chá], lava a Chacrona, o contato
que a gente tem é de um jeito bem diferente, a gente bate o Mariri, traz muita força pra gente e pra
nossa vida mesmo, então acho que nosso contato é essencial (Membro 3)79.

Aqui era uma área de roça de Brazlândia, núcleo rural Alexandre


Gusmão e área de roça. Aqui era uma fazenda que produzia, produzia
morango e o cerrado estava bem raso, bem raso e todo ano passava
fogo. E aí a gente foi plantando e a gente está aí temos algumas coisas,
eucalipto e assim e pra adubar o solo e isso aí, esse aí (aponta uma
árvore) demorou quase três anos, foi rapidinho (Membro 2).

A utilização destas plantas sagradas oferece uma ligação com o divino, além de um profundo
conhecimento de si mesmo. Essa ligação traz um sentido de vida, como Eliade descreve:

A transcendência revela-se pela simples tomada de consciência da


altura infinita. O “muito alto” torna-se espontaneamente um atributo
da divindade. As regiões superiores inacessíveis ao homem, as zonas
siderais, adquirem o prestígio do transcendente, da realidade absoluta,
da eternidade. (ELIADE, 1999, p. 100).

Então podemos perceber que a Natureza, para o homem religioso, passa por um meio físico,
mas também transcendental. A intervenção dos elementos do território vem a ser parte do conjunto
de experiências que se têm ao sacralizar as duas plantas, que formam parte do reinado vegetal. Para
sua sobrevivência, é necessário pensar a Natureza como englobante (JASPERS apud HERSCHE,
1982) e meta projetiva, “reino natural” dos dois vegetais, mas também espaço inspirador pela sua
“paisagem e conteúdo existencial”.

Então o que eu vejo é que, assim, na União, a gente procura seguir o


ritmo da natureza, o ritmo em que as coisas acontecem. Então você
não tem que intervir, você tem que observar e absorver e aquilo que a
natureza está te dizendo. Para mim funciona assim (Membro 1).

79 As entrevistas ocorreram em diversos “núcleos” do Distrito Federal ao longo do primeiro semestre de 2015.
Omitimos os nomes dos entrevistados por uma questão ética. Referimo-nos a eles como Membro 1, Membro 2 e
Membro 3, selecionados aqui para compor o diálogo com a matriz teórica, no total de 15 entrevistados até agora.
As entrevistas são semiestruturadas, guiadas por perguntas que promovem a consecução dos objetivos da pesquisa,
centradas em torno das categorias Território, Rede, Natureza e Tempo. A natureza é o tema em foco neste artigo.
[...] minha relação com a natureza, eu tenho louvor e alguma tristeza
também por como o ser humano tem rejeitado o presente que Deus deu.
Mas eu tenho louvor, acho muito bonito. Eu sou analista de sistemas,
então fico mexendo com texto em inglês, planilhas de Excel, sistemas
complexos que os caras inventam e tal. Não sei o que... aí a pessoa fala:
“nossa, esse assunto é complicado”, só que na mosquinha da banana
tem mais ciência que isso tudo (risos) porque o homem não fez isso,
a vida tem mais ciência que tudo isso. Então trabalhar com sistema
agroflorestal, com a natureza é muito amplo, é aprendizado e é ciência
divina mesmo. Para a gente apreender as coisas e para desenvolver e
para gente, o lugar que tem pássaros é um lugar alegre, geralmente
um lugar que tem pássaro quando as pessoas chegam sentem alegria,
quando chegam os pássaros festejam, é bom demais (Membro 2).

A UDV, nos espaços onde se realiza a comunhão do Vegetal, organiza uma área de plantio onde
se cultivam as plantas sagradas através da utilização de Sistemas Agroflorestais (SAFs). As plantas
utilizadas na preparação do Chá Vegetal são aclimatadas aos diferentes biomas brasileiros. Entre os
trabalhos empreendidos, para melhor conservação e plantação, destaca-se a seleção das melhores
matrizes e manejo de preservação genética (CORRÊA apud BERNARDINO-COSTA, 2011).
Nesse sentido, a Natureza como expressão da relação entre o mundo e o transcendente –
que engloba a vivência do grupo –, bem explícitos nas falas dos membros, possibilita também
um repensar da técnica, do conhecimento humano, como meio para um projeto de expansão da
Natureza Relacional explícita na religiosidade.
Não ignoramos uma forma de analisar esta relação de maneira bastante esquemática e, por isso
mesmo, maniqueísta, que estipula um tipo de utilitarismo neste modo de perceber a Natureza.
Entretanto, parece-nos não só empobrecedor, mas até desonesto pretender analisar e não
interpretar as falas em seu contexto existencial, já que como se comunicam em suas práticas diárias
(WATSON; GASTALDO, 2015) é revelador de sua relação totalizante – sem fechar-se em uma
totalidade, dada a inesgotabilidade da relação (JASPERS apud HERSCHE, 1982) – que não separa
racionalidade e religiosidade.
Para uma adaptação mais dócil do Mariri (também conhecido como Cipó), como é uma planta
nativa da região Amazônica, tem-se realizado observações que mostram uma tendência adaptativa
em condições de luminosidade, substrato, umidade e temperatura, sendo uma planta com alta
capacidade de adaptação em condições adversas (CORRÊA apud BERNARDINO-COSTA, 2011).
Assim, a necessidade da UDV em manter e adaptar da melhor forma possível suas plantas
sagradas, em cada território que a sociedade religiosa ocupa, liga-se diretamente ao trabalho de
conservação, reflorestamento e afirmação de uma relação íntima com a natureza.
O que a gente está procurando fazer agora é o aproveitamento dos
resíduos, né. Dos resíduos orgânicos para fazer adubo para alimentar
os plantios, as hortas; alguns núcleos já têm a horta com plantio de
hortaliças sem agrotóxico, outros já têm as composteiras para aproveitar
o resíduo que é produzido durante o dia que a gente passa aqui. Se
produz muito resíduo orgânico, então a gente vai utilizar esses resíduos
para fazer a compostagem. Alguns núcleos estão mais na frente, outros
estão começando a caminhada agora (Membro 1)

As vivências deste novo milênio reclamam o debate acerca de temas de importância para o
futuro da própria humanidade, o que está relacionado com o projeto de mundo da UDV, já que a
sociedade religiosa acredita que o trabalho inicia com uma mudança dentro de cada um e, a partir
daí, dentro da instituição como espaço de ação transformadora de mundo. O zelo pela natureza vem
desde a origem da UDV, porque está relacionada à Amazônia, onde o “Mestre Gabriel” (criador do
grupo) encontrou o “sacramento” da UDV.
A fundação do novo demanda a realização da grande viagem, por caminhos jamais cindidos, a
peregrinação pelos confins do mundo em busca da semente ou graal que fará o novo vir à existência.
Desta maneira, a essência da UDV está diretamente ligada às plantas sagradas, nas quais os
membros procuram vivenciar a experiência de uma consciência que traz consigo uma evolução
espiritual e um reconhecimento do valor da Natureza em nossas vidas, por exemplo, reverenciando-a
como algo sagrado (CONDE, 2011).
Segundo Massey (2006), se pretendemos integrar a natureza e a sociedade (não apenas na
geografia), como oportunidade no estudo dos maiores problemas do mundo, temos que ampliar
nossa compreensão geograficamente informada sobre as diferentes formas de relação, construção e
experiência da natureza.
Para esta integração, remetemo-nos às origens indígenas desta prática religiosa que, apesar
das diferenças com as reapropriações atuais, uma característica permanece: pouco importa o nome
ou o ritual que se dê a este elemento sagrado; é o movimento que integra o homem ao seu meio,
a seu grupo – não só como religião – como fator de identidade, capaz de estimular e acentuar o
sentido de pertencimento a um lugar, um grupo em um tempo (FAGUNDES, 2011). Nas palavras
do membro 3:

Natureza e tempo é tudo interligado. A natureza é uma coisa que


se a gente parar para pensar, cada folha, cada flor que nasce é tão
pequenininha... a complexidade que é isso também leva tempo... uma
árvore leva tempo para crescer; ela tem o tempo certo [..] depois vai
crescendo. Tem uma hora que ela seca, aí morre para poder outra
surgir dela, né? De uma outra forma. Então acho isso muito legal, que
a natureza dá para a gente mostrar tudo isso, então a gente apreende
muito também [...], como as coisas são [...] ver a chuva, a tempestade,
a gente sabe ilustrar porque a gente consegue ver [...] a importância de
reconhecer isso que é graças à União [do Vegetal].
O lugar aqui desponta como um espaço de construção deste encontro, reunião (RELPH,
2012) entre membros e natureza. Ao mesmo tempo que é (re)construída, produz uma energia na
comunidade, um sentido de continuidade e transcendência que vai além do estrito senso de cada
um, ou mesmo do grupo, abarcando um sentido de natureza mais universal e, por isto mesmo,
partilhável (ELIADE, 1999; TUAN, 2012).

Foto 3: Membros de um núcleo plantando Chacrona


Fonte: www.blog.udv.org.br/DMD- Núcleo Divino Manto

Obviamente é possível fazer leituras mais economicistas, como supor o chá, resultante das
plantas, um tipo de “mercadoria simbólica” (BOURIDEU, 2007) oferecida no mercado religioso
em ebulição. Não invalidamos esta perspectiva, mas nos parece reduzir um tipo de experiência
não estritamente racionalizável e, por isso mesmo, inesgotável, a um esquema que tenta capturar a
vivência a um modelo explicativo e não compreensível (JASPERS, 1958). Escapa a esta interpretação
das relações entre religiosidade, espaço e natureza, a presença da Natureza em si, dotada de uma
realidade anterior e posterior ao ser humano, só apreendida nesta relação existencial, o que recoloca
o ser da Natureza com seu valor intrínseco, mas relacional ao ser humano, no caso da UDV, que não
é o único caso.
No momento atual, de compressão do espaço-tempo (HARVEY, 1989), que altera os
entendimentos globais e “reordena as distâncias” que parecem encurtar, processos que se dão em um
lugar têm efeito imediato em outro lugar ou território (HALL, 2004, p. 23): um tipo de mentalidade
– aparentemente hegemônica – emerge aqui e ali, podendo explicitar a centralidade da Natureza
em sua transcendência. Há processos que, de tempos em tempos, marcam uma trajetória que
transcende o indivíduo, sua época ou sua cultura, sobretudo em tempos de aceleração e expansão
das redes, quando a comunicação de suas trajetórias chega a territórios e grupos longínquos. É
nestes tempos de tecnificação que novos ou renovados modos de relacionamento com a Natureza
(e seus múltiplos sentidos) podem rearticular fé e razão, como no caso da UDV, realizando uma
comunicação existencial entre ser humano e Natureza e entre os próprios seres humanos que, ainda
que cultural e espacialmente diferentes, podem imaginar realizações comuns.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A geografia, como ciência do espaço, historicamente submeteu a Natureza a sistemas de


interpretação que, mesmo em uma posição crítica, tematizam a Natureza destituída de uma relação
mais antepredicativa, que implicaria uma reflexão a partir da vivência e do sentimento para com a
Natureza dos grupos humanos e mesmo dos indivíduos.
O artigo pretendeu promover uma discussão a partir do pensamento existencial, em diálogo com
o pós-estruturalismo, para dar visibilidade a concepções e práticas espaciais que não são capturadas
por sistemas interpretativos que “expulsam” a subjetividade da compreensão da realidade.
A UDV, em seu projeto de mundo e sua espacialização, passa a ser um referente empírico
importante para se discutir outra possível relação entre o pensamento geográfico e o conceito (e
existência) da Natureza.
Aqui, tentamos percorrer aspectos centrais desta relação, material e imaterial, objetiva e
subjetiva, imanente e transcendente, o que exige um aprofundamento no tema, pouco explorado
na geografia.
Mas em franca expansão, na medida em que o simbólico e o vivido passam a não mais constituírem
um resquício, e sim um resíduo, no sentido lefebvreano. Ou seja, formas de racionalidade e de
práticas questionadoras do padrão vigente, alternativas de pensar e viver que complexificam o real
e exigem repensar categorias de pensamento que sejam, ao mesmo tempo, categorias das práticas
sociais.
Obviamente, é um tema que exige maturação e maior densidade, mas é preciso começar a
assumir um caminho e realizar um projeto – que seja então um projeto de encontro, culturalmente
esclarecido e espacialmente compreensível. É o caminho que tentamos apontar aqui, tanto em
termos de pesquisa, quanto em termos de crítica a uma separação histórica entre geografias que
precisam se reencontrar.
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1997.
O MARACATU-NAÇÃO E A NOITE DOS TAMBORES SILENCIOSOS:
TERRITORIALIDADE RELIGIOSA E POLÍTICA NO CARNAVAL DO RECIFE (PE)

Cleison Leite Ferreira

RESUMO

Todos os anos, desde 1960, ocorre no Pátio do Terço, no centro do Recife (PE), a cerimônia Noite
dos Tambores Silenciosos. Esse evento, importante para os Maracatus-Nação e para as religiões de
matrizes africanas e ameríndias (Xangô, Jurema Sagrada e Umbanda), acontece à meia-noite da
segunda-feira de carnaval, quando, após as apresentações das Nações dos Maracatus, Pais e Mães de
Santo fazem preces e entoam cantos em Iorubá, homenageando os Eguns (ancestrais) e o orixá Iansã.
Nesse momento, o espaço do Pátio do Terço é ressignificado, deixando de ser o espaço do comércio
movimentado e do culto católico, e passa a ser o espaço do culto religioso de referências africanas,
tornando-se espaço sagrado para o Xangô, a Jurema e a Umbanda, definindo-se como hierofania. O
PátiodoTerçotambémpassaaserespaçodevisibilidadeedeatuaçãopolíticaporpartedomovimento
negro, já que ali se encontram diversas autoridades políticas e um número expressivo de pessoas para
assistiremaoscortejosdosMaracatuseàcerimôniareligiosa.Dessaforma,entende-sequesuaspráticas
sociais fundam o território e definem territorialidades, que repercutem das suas sedes, localizadas
em favelas ou comunidades, aos espaços públicos centrais. O objetivo deste trabalho é apresentar a
constituição de um território sagrado (hierofania) e político no Pátio doTerço na Noite dosTambores
Silenciosos e outras práticas sociais que configuram territorialidades negras no espaço público, por
meio dos Maracatus-Nação e suas associações com as religiões de matrizes africanas e ameríndias.
Palavras-chave: Maracatu-Nação; Religião; Território; Hierofania.

INTRODUÇÃO

Quem vai à cidade do Recife e a outros municípios da sua Região Metropolitana durante o
período carnavalesco se depara com uma diversidade de manifestações culturais se apresentando
nos espaços públicos das áreas centrais e das periferias, seja cumprindo um calendário oficial
divulgado pelas prefeituras, seja motivado de forma espontânea por foliões que se organizam em
agremiações, em blocos e troças carnavalescas.
O calendário oficial do carnaval recifense apresenta uma lista de folguedos populares que,
possivelmente, tende a agradar moradores e visitantes provenientes de vários lugares do Brasil
e de outros países, que buscam por um divertimento rico em diversidade cultural. A oferta de
atrações para turistas e foliões nativos vai além do tão divulgado frevo e do bloco carnavalesco Galo
da Madrugada. É possível encontrar expressões culturais como cocos, cirandas, maracatus, bois,
ursos, tribos de índio, escolas de samba, blocos de frevo, cavalos-marinhos, papangus, caboclinhos,
afoxés, blocos afros, troças e tantas outras, que são utilizadas como forma de divulgação turística
e de incremento do período carnavalesco, difundido, desde 2002 como Carnaval Multicultural da
Cidade do Recife (KOSLINSK, 2013). No entanto, nenhuma outra manifestação cultural tem obtido
crescente destaque quanto o Maracatu-Nação, não só como uma atração carnavalesca, mas também
como uma manifestação associada à identidade cultural pernambucana (GUILLEN, 2008).
O Maracatu-Nação, também conhecido como Maracatu de Baque Virado, é uma manifestação
cultural afro-brasileira, originada há pelo menos 220 anos, no estado de Pernambuco, e é
caracterizada por um cortejo real formado por uma corte e uma parte percussiva. A corte é composta
por um rei negro e uma rainha negra, seguidos de príncipe e princesa, duque e duquesa, vassalos,
embaixadores, damas da corte e baianas. À frente da corte vão o porta-estandarte e as damas-do-
paço, que carregam bonecas denominadas Calungas. Há, ainda, o porta-pálio, que leva um grande
sombreiro, protegendo o rei e a rainha. Seguindo a corte real, há uma orquestra percussiva que
executa o baque e a parte musical do Maracatu-Nação, conhecida como loa ou toada. A percussão
é formada, essencialmente, por bombo (ou alfaia), tarol, caixas de guerra, gonguê e mineiro.
O Maracatu-Nação tem suas atividades intensas ao longo do ano em suas sedes, localizadas nos
bairros e comunidades das periferias e do centro das cidades da Região Metropolitana do Recife
(RMR), porém é no carnaval que ele ganha maior visibilidade, pois está à mostra o resultado de uma
ação coletiva da comunidade que o faz. Assim, aos olhos dos espectadores, em geral, o Maracatu-
Nação pode parecer apenas um brinquedo que participa do carnaval no sentido do divertimento
e da festa, com personagens envoltos em uma dimensão alegórica, cumprindo um protocolo
repetido há séculos. Porém, essa manifestação cultural possui uma carga simbólica constituída
por inúmeros aspectos na sua construção social, quase que imperceptíveis para quem a assiste
nas avenidas, mas que a envolve intensamente, configurando-a para além dos aspectos visíveis e
práticos. Assim, nesse universo simbólico que permeia o Maracatu-Nação e que se constitui antes
e durante as apresentações nos espaços públicos, entre os aspectos mais significativos se destacam
a dimensão religiosa e a dimensão política, as quais são elementos definidores de territorialidades
e de identidade territorial.
Nos dias de carnaval, há diferentes momentos em que os Maracatus-Nação se apresentam nos
mais de 50 polos espalhados em vários bairros do centro e das periferias da capital pernambucana.
Porém, o Pátio do Terço, localizado na área central do Recife, é um dos espaços mais emblemáticos
no período carnavalesco e é onde as dimensões religiosa e política do território estão mais em
evidência. Isto porque é nele que acontece, desde 1960, a cerimônia religiosa Noite dos Tambores
Silenciosos, às segundas-feiras de carnaval.
Este artigo, resultante de pesquisas realizadas entre 2011 a 2016 sobre os Maracatus-Nação,
dedica-se em apresentar o território religioso e político definido na cerimônia religiosa Noite
dos Tambores Silenciosos no Pátio do Terço. Diante do exposto, pergunta-se: como é definido
o território religioso e político no Pátio do Terço na Noite dos Tambores Silenciosos? Como os
Maracatus-Nação instituem uma hierofania no Pátio do Terço durante a cerimônia religiosa?
O objetivo deste trabalho é apresentar a constituição de uma hierofania e do território sagrado
e político no Pátio do Terço na Noite dos Tambores Silenciosos e de outras práticas sociais que
configuram territorialidades negras no espaço público, por meio dos Maracatus-Nação e suas
associações com as religiões de matrizes africanas e afro-ameríndias.
Parte-se do pressuposto de que o Pátio do Terço é consagrado durante a cerimônia religiosa,
configurando-se em uma hierofania, e representa um território sagrado, tendo em vista a presença
de elementos simbólicos, de aspectos ritualísticos e dos Maracatus-Nação que estão relacionados
às religiões de matrizes africanas e afro-ameríndias, como também se define como um território
político, onde há socialização, disputas, negociações por parte dos Maracatus-Nação e busca por
reconhecimento por parte da população negra do Recife.
Será apresentada inicialmente uma discussão teórica sobre território, hierofania, territorialidade
religiosa e cultura como expressão política no espaço e como resultante de práticas sociais que
definem territorialidades. Em seguida, realizar-se-á uma caracterização dos Maracatus-Nação e sua
relação com o espaço metropolitano do Recife, onde criam territorialidades nos bairros onde estão
localizadas suas sedes. Por último, será analisado o território religioso e político do Pátio do Terço,
com a cerimônia religiosa Noite dos Tambores Silenciosos, e apresentadas as considerações finais.

TERRITÓRIO E HIEROFANIA: A CONSTRUÇÃO SOCIAL E POLÍTICA DO


ESPAÇO SAGRADO

A identidade cultural se constitui a partir do pertencimento tanto a um grupo como a um


território, sendo, assim, identificação territorial. Saquet (2010, p. 23) afirma que a identidade é
um “elemento central na constituição do território e da territorialidade”. O território carrega as
referências do grupo, da coletividade e deve ser entendido como território usado, que é, segundo
Santos (2006, p. 14), “o chão mais a identidade”, e é dotado de poder simbólico, onde os valores
partilhados cotidianamente e as práticas sociais constituem e conformam uma referência territorial
necessária para a memória coletiva de um grupo social (SAQUET & BRISKIEVICZ, 2009).
Neste sentido, é preciso reconhecer o território numa perspectiva relacional e integradora,
como propõe Haesbaert (2006). Isto não significa uma visão unitária, total e contínua de espaço
geográfico, mas, sim, o seu caráter multiescalar, temporal, dinâmico e em rede, produto da ação
humana, construído e partilhado. Ou seja, não é uma dimensão naturalizada nem dada do espaço.
Segundo Rosendahl (2007, p. 195) “é pelo território que se encarna a relação simbólica que
existe entre cultura e espaço”. Para Saquet e Briskievicz (2009, p, 5), “os símbolos que compõem
uma identidade sempre mantêm vínculos com a realidade concreta”, não sendo eles algo eventual.
O território tem papel fundamental no que diz respeito às práticas espaciais que são um
conjunto de ações que criam, mantêm, desfazem ou refazem as formas geográficas (CORRÊA,
1995); à dinâmica histórica da ação humana e da própria aceitação do ser humano como sujeito
histórico; à definição da identidade e de aspectos étnicos e culturais e, sobretudo, às práticas sociais
de resistência territorial.
Território pode ser entendido como a base onde a sociedade inscreve a sua história e, por esse
motivo, é ação e contexto e é, segundo Santos (2006, p. 16), “sinônimo de espaço humano, espaço
habitado”. Para Anjos (2010, p. 7), “o território é na sua essência um fato físico, político, social,
econômico, categorizável, possível de dimensionamento, onde geralmente o Estado está presente”,
o que pressupõe existirem políticas públicas que atendam às demandas populacionais.
O território e a territorialidade são imprescindíveis para a realização das práticas religiosas. Para
Rosendahl (2007), toda religião precisa de uma base territorial fixa ou móvel para se constituir e se
manifestar. Assim, “a religião só se mantém se sua territorialidade for preservada” (ROSENDAHL,
2007, p. 195). Ou seja, é necessário que exista uma área delimitada e apropriada por pessoas ou
grupos (PELUSO; SINHOROTO, 2001, p. 134), efetiva ou afetivamente, política ou simbolicamente
(CORRÊA, 2006), onde possa ocorrer o conjunto de práticas desenvolvido pela instituição
religiosa, no sentido de controle de um dado território, criando assim uma territorialidade religiosa
(ROSENDAHL, 1996, p. 59).
No território da religião tudo aquilo que o compõe apresenta um valor simbólico e tem uma
carga de significado para a comunidade religiosa, não sendo apenas um objeto tal qual ele se
mostra. Apresenta-se, dessa forma, um paradoxo entre o objeto visível e a sua carga simbólica dada
pela experiência religiosa (ELIADE, 2010). Segundo Eliade (2010), tudo que está no espaço, toda a
Natureza (o Cosmos), é suscetível de ser consagrada. Assim, elementos que estão no cotidiano das
pessoas como pedra, montanha, árvore, ruas, praças etc. podem ser eles mesmos ou se tornarem
outras coisas, revelarem-se com outros significados, tornarem-se sagrados, serem hierofanias, e
serem vistos e vividos a partir de uma “realidade sobrenatural” (ELIADE, 2010, p. 18).
As hierofanias ocorrem numa realidade espacial as quais conferem ao espaço a qualidade de
sagrado, ou seja, ele se torna também uma hierofania. O espaço que não apresenta uma ordem,
sem consistência e sem forma, não foi consagrado e vive no Caos, é o espaço profano e, portanto,
é o oposto de espaço sagrado, que mantendo uma ordem e estando distante do Caos, funda o
Mundo, o Cosmos (Eliade, 2010, p. 32-34). Peluso e Sinhoroto (2001) destacam, a partir do livro de
Eliade O Sagrado e o Profano, que a oposição entre o espaço sagrado e o espaço profano sugere que
cada um deles tem uma origem diferente e que o próprio espaço sagrado “é, também, um produto
social e material, no qual o homem religioso inscreve suas crenças e sua sociabilidade” (PELUSO;
SINHOROTO, 2001, p. 133). E por ser resultado de processos sociais, a espacialidade sagrada é
também “espacialidade geográfica” (PELUSO; SINHOROTO, 2001, p. 134).
Assim, o fato de apresentar-se como uma espacialidade geográfica, o espaço sagrado se constitui
socialmente a partir da elaboração de “técnicas de construção” (ELIADE, 2010, p. 32), ou seja, é
necessário um meio técnico significativo e partilhado por uma comunidade religiosa para que o
espaço conquistado e ocupado (ROSENDAHL, 1996, p. 31) se consagre.

O MARACATU-NAÇÃO: HIBRIDISMOS, TRADUÇÕES CULTURAIS E


TERRITÓRIO

O Maracatu-Nação, também conhecido como Maracatu de Baque Virado, é uma manifestação


cultural afro-brasileira do estado de Pernambuco, originada desde pelo menos o início do século
XIX, na cidade do Recife. Representa um dos mais significativos aspectos da identidade cultural
pernambucana e se constitui, de forma sincrética ou híbrida80, por elementos das matrizes africanas,
europeias e ameríndias.
Atualmente existem 27 Nações de Maracatu na Região Metropolitana do Recife, com suas
sedes localizadas em comunidades das periferias e das áreas centrais das cidades do Recife,
Jaboatão dos Guararapes, Olinda e Igarassu, onde criam territorialidades cheias de significados
80 Hibridismo é definido por Hall (2011) como um termo utilizado para caracterizar as culturas cada vez mais mistas e
diaspóricas. Essa expressão não só ajuda a compreender os rearranjos e as ressignificações encontradas pelas culturas
locais para a sua sobrevivência, como também esclarece que a ideia de cultura intacta, imutável e centrada não
corresponde ao que historicamente vem se observando sobre as tradições. Estas são constantemente (re) inventadas ou
reelaboradas, num processo de tradução cultural.
para seus participantes e para as comunidades onde estão inseridas. Este é um número significativo,
considerando o passado de perseguições e de tentativas de extermínio que as práticas culturais
afro-brasileiras sofreram por forças policiais durante o governo estadual de Agamenon Magalhães
(anos de 1930 a 1945), sobretudo o Xangô e a Jurema Sagrada. Estas religiões encontraram abrigo e
segurança dentro dos Maracatus-Nação e a eles se associaram, onde puderam disfarçar seus rituais
e realizar seus toques, e definiram diferentes estratégias diante da realidade intolerante pela qual
passavam.
Devido aos deslocamentos que foram obrigadas a realizar, por ocasião dos investimentos
imobiliários que ocorriam nas áreas centrais nos anos 30 do século XX, passaram a ocupar áreas
suburbanas onde puderam dar continuidade às suas práticas religiosas (COSTA, 2009). Conforme
afirma Costa (2009), em um processo de des-re-territorialização, as religiões de matriz africana e
indígenas

Criaram e recriaram estratégias de manutenção de seus cultos,


camuflando seus terreiros em agremiações carnavalescas, ocultando
seus orixás (ancestrais e divindades africanos), propositalmente, por
trás dos santos católicos, persistindo na manutenção do culto mesmo
quando presos (COSTA, 2009, p. 25).

Os agrupamentos de pessoas que fazem o Maracatu-Nação são denominados de Nações. De


forma geral, atualmente cada Nação se caracteriza por um cortejo real formado pela presença de
um rei e de uma rainha, acompanhados de vassalos, de damas-do-paço, de baianas e, por fim, de
uma parte percussiva contendo alfaias (ou bombos), gonguês, caixas, mineiros e taróis. Em todas
as Nações há ainda o porta-estandarte, o qual leva à frente o símbolo da Nação, e as Calungas, que
são bonecas de madeira que, carregadas pelas damas-do-paço e vestidas como estas, representam
os Eguns (ancestrais).
Algumas Nações inserem outros elementos seja no cortejo, seja parte percussiva, demonstrando
o poder inovador e o quanto são híbridas, não só com elementos de origens históricas para o
Maracatu-Nação, bem como com os provenientes de outras manifestações culturais. Há, por
exemplo, a inserção do patangome, uma espécie de chocalho muito comum nas congadas de Minas
Gerais e São Paulo, e o timbal, um instrumento percussivo utilizado em bandas e cortejos afros de
Salvador, como o Timbalada e o Ilê Aiyê.
Assim, cabe ressaltar a definição de hibridismo cultural proposto por Haesbaert e Porto-
Gonçalves (2005), uma vez que ocorrem usos de elementos, diálogos e trocas entre os Maracatus-
Nação e outras manifestações culturais na contemporaneidade. Para esses geógrafos, hibridismo
cultural se trata de uma

Forma de interação cultural não dicotômica (que não separa “nós” e os


“outros”), que produz miscigenação e identidades múltiplas, em espaços
muito mais organizados na forma de redes do que de territórios-zona
bem delimitados. (Haesbaert e Porto-Gonçalves 2005, p. 148)

Neste sentido, o Maracatu-Nação se constrói dinamicamente no espaço de vivência das


comunidades e numa estrutura espacial multiescalar, ou seja, é resultado de tradução cultural e de
transformação histórica no território usado (SANTOS, 2006) e no território-rede (HAESBAERT,
2015). Desta forma está além de ser uma manifestação cultural muitas vezes associada a um fato
folclórico ou uma brincadeira de carnaval. Ela é articuladora, é ação política e é espaço de relações
sociais, e está constantemente traduzindo e reinventando suas tradições81.
Guerra Peixe (1981), Guillen (2007; 2008), Lima (2005; 2007; 2008; 2009) e Ferreira (2013),
diferentemente de outros estudiosos, como Pereira da Costa (1974) e Katarina Real (1967),
realizaram estudos sobre os Maracatus-Nação apontando-os como práticas culturais, políticas e
sociais, as quais, por serem construções de sujeitos históricos não podem ser vistas tão-somente
no seu valor patrimonial-simbólico, o qual também é importante. No entanto, sendo considerados
apenas dessa forma, corre-se o risco de apresentá-los como algo inerte e desprovido de capacidade
criadora e de se ressignificarem. Se os Maracatus são formados por atores sociais, devem ser
entendidos como espaço dinâmico, de criação e de reinvenção, não como reprodução, sem saída,
de heranças de um passado, quando na dor da escravidão e do distanciamento da África só lhes
restava um “brinquedo” para dirimir o sofrimento e a nostalgia.
Os Maracatus-Nação são mantidos, sobretudo, por indivíduos das camadas de baixa renda
que, passando por diversas dificuldades, dão novos significados a essas manifestações e reelaboram
suas heranças cotidianamente, num processo de ressignificação, “conforme as suas necessidades
e a sua relação com as tradições” (LIMA, 2005, p. 38), o que não significa descaracterização, mas
adaptação ao cotidiano, ao contexto e aos seus interesses (LIMA, 2005).
Milton Santos (2007, p. 81) afirma que:

A cultura, forma de comunicação do indivíduo e do grupo com o universo, é uma herança,


mas também um reaprendizado das relações profundas entre o homem e o seu meio, um resultado
obtido por intermédio do próprio processo de viver. Incluindo o processo produtivo e as práticas
sociais, a cultura é o que nos dá a consciência de pertencer a um grupo, do qual é o cimento.

Assim, há que se considerar que numa relação entre as pessoas e o meio,


antes realizada numa solidária troca orgânica direta, ocorre uma nova
situação “em que dados externos ao orgânico se impõem, na medida
em que a solidariedade orgânica, antes vigente, é tornada impossível”
(SANTOS, 2007, p. 82).

Milton Santos também expressa que

A cultura popular tem suas raízes na terra em que se vive, simboliza


o homem e seu entorno, a vontade de enfrentar o futuro sem romper
a continuidade. Seu quadro e seu limite são as relações profundas que
se tecem entre o homem e o seu meio. Assim, desde que imunizadas
contra os fatores de banalização que o consumo, entre outras causas,
carrega, as populações desenraizadas terminam por reconstruir uma
nova cultura popular, que é ao mesmo tempo filosofia e, por isso, um
caminho para a libertação. (SANTOS, 2007, pp. 86 e 87)
81À atuação por parte dos sujeitos para reinventar suas tradições como forma de diálogo com o contexto Homi
Bhabha (2013) denomina de tradução cultural.
Neste sentido, para a cultura popular, e no caso em tela os Maracatus-Nação, a abertura para as
transformações enquanto adaptação não ocorre de forma alienante e passiva. Tanto é que elementos
tidos como tradicionais os acompanham. Continuidade não significa linearidade e repetição. Mas
o estar no mundo e ser visto requer desdobramentos que configuram em novas formas e isto se dá
conscientemente.
Por fim, tanto a associação do Maracatu-Nação a ícone de identidade pernambucana, como a
luta das religiões para se manterem, deram-se por fortes tramas e lutas sociais da população negra,
como a ocupação de espaços públicos no centro e na periferia (ruas, praças, monumentos históricos
e pontos turísticos) e participando ativamente das festividades do carnaval e de muitos outros
eventos, concedendo-lhes grande visibilidade, como a cerimônia religiosa Noite dos Tambores
Silenciosos, a qual será a seguir apresentada.

A NOITE DOS TAMBORES SILENCIOSOS: TERRITORIALIDADE RELIGIOSA E


POLÍTICA NO PÁTIO DO TERÇO

Os Maracatus-Nação, hoje associados principalmente ao Xangô e à Jurema, apresentam-se nos


seus bairros sedes e nas ruas do Recife. Seu momento forte, porém, ocorre na segunda-feira de
carnaval quando, antecedendo uma cerimônia em homenagem aos Eguns (ancestrais) e ao orixá
Iansã, denominada “Noite dos Tambores Silenciosos”, é realizado um grande encontro no Pátio do
Terço, no Bairro de São José, no centro do Recife (Figura 1).
Os Maracatus-Nação se apresentam um após o outro, dançando e reverenciando o Rei e a
Rainha da nação. Saúdam os seus ancestrais representados pelas Calungas (boneca) e os orixás,
sobretudo Iansã, que é a divindade responsável pelo mundo dos mortos. A realização do percurso
e a sequência da evolução feita pelas Nações de Maracatu no Pátio do Terço acontecem da seguinte
forma e estão representadas na Figura 2.
O ponto 1 da figura é a entrada do Pátio do Terço e representa o local onde as Nações se
concentram para iniciarem as suas apresentações. Nesse espaço e tempo, enquanto aguardam para
iniciarem o cortejo, há uma grande manifestação de sociabilidade entre participantes das diferentes
nações. Os batuqueiros tocam estrondosamente suas alfaias, cantam loas e afinam seus instrumentos;
baianas, damas-do-paço, jovens e crianças participantes e toda a corte, descontraidamente, dançam e
conversam, numa grande informalidade, porém instituindo, naquele momento, uma territorialidade
política. As pessoas que ali passam ou que aguardam o início das apresentações podem conversar e
interagir com os membros das Nações. Dessa forma, elementos estéticos e cênicos que remetem às
diferentes matrizes que compõem os Maracatus-Nação – europeias, africanas e indígenas – dialogam
com os aspectos religiosos do Xangô e da Jurema. Nesse universo híbrido, estão em evidência, para
promover a apropriação, a ressignificação e a consagração do território do Pátio do Terço: turbantes
ornando os cabelos de homens e mulheres; guias (que são colares de uso religioso) representando
os Orixás; cores fortes e vibrantes que também são associadas às divindades; objetos ostentados ou
expostos por personagens (coroas, cetro, cachimbo, arco e flecha); musicalidade e instrumentos
musicais (alfaias, ganzás, atabaques, agbes).
Figura 1: Localização do Pátio do Terço – Recife – PE (2016)
Ao microfone é anunciada a entrada de alguma Nação. Este momento representa a sequência 2.
A Nação entra em cortejo e desenvolve sua evolução de forma contagiante e envolve tanto musical
quanto esteticamente o Pátio do Terço. Neste momento, os espectadores se manifestam com palmas
e, muitas vezes, respondem e cantam as repetidas loas que remetem a Luanda (capital de Angola e
onde se localizava o principal porto de tráfico de africanos entre os séculos XVI a XIX), aos orixás
e entidades das religiões de matrizes africana e ameríndias, aos seus cotidianos, ao Rei e à Rainha, à
Nossa Senhora do Rosário. Essa evolução segue até o espaço mais próximo à Igreja do Terço (onde
as Ruas Direita e Águas Verdes convergem formando a Rua Vidal de Negreiros chamada de “Pátio
do Terço”);
No palanque armado na porta da Igreja de São Braz (Igreja do Terço) ocorre a sequência 3.
Diante das centenas de pessoas que observam a passagem dos Maracatus, cada segmento formador
da Nação (a Corte, as Damas-do-paço, as baianas, os vassalos, entre outros) realiza sua performance
em homenagem ao Rei e à Rainha, em louvor às entidades e aos Orixás, aos Eguns e à Nossa Senhora
do Rosário, sempre tendo loas e percussão acompanhando-os;
Por fim, a quarta sequência dos Maracatus é o retorno e a saída do local. Retiram-se bastante
festivos, pois fizeram sua obrigação, mas ainda mantendo a forma de cortejo, e se direcionam para
a área de recuo que é uma rua estreita ao final do Pátio do Terço. Este espaço é outro momento de
sociabilidade e de interação com o público, com familiares dos participantes da nação e com filhos
e filhas de santo.
A partir da primeira sequência e se repetindo nas demais, o espaço do Pátio do Terço passa
a ser dotado do poder simbólico tanto das Nações de Maracatu como das religiões, sobretudo do
Xangô, apesar dos elementos da Jurema e da Umbanda presentes nos Maracatus (como o Caboclo).
Institui-se então uma hierocracia (ROSENDAHL, 2018) no Pátio do Terço, ou seja, “o poder do
sagrado, que se manifesta espacialmente por uma organização territorial” (ROSENDAHL, 2018, p.
305).
Elaboração: Cleison Leite Ferreira. Imagem extraída do Google Maps – 10/09/2016.
Figura 2: O Pátio do Terço e a Noite dos Tambores Silenciosos

As três últimas sequências são bastante significativas, pois representam a apropriação, de fato,
de toda a área do Pátio do Terço. As nações permeadas de seus elementos estéticos e simbólicos e de
suas práticas religiosas instituem um território o qual não é mais o espaço do movimento comercial
nem do culto católico. O Pátio do Terço se converte em um território permeado por valores e
visões de mundo, instituídos pelos africanos e seus descendentes, e repercutem naquele tempo e
espaço, na contemporaneidade. Também, não existe apenas uma referência étnica, mas sim uma
diversidade que constitui a própria formação das religiões e dos Maracatus. É uma culminância
que revela aspectos de ancestralidade, mas que comunga com aspectos da contemporaneidade a
partir de símbolos, vestimentas, movimentos de dança, instrumentos musicais, cantos e bênçãos
que permeiam o Pátio do Terço e instituem um espaço de diálogo entre os Maracatus-Nação e o
culto religioso.
As apresentações dos Maracatus-Nação seguem até meia-noite quando, solenemente, todos os
instrumentos musicais são silenciados e são apagadas as luzes do Pátio do Terço, permanecendo
apenas luzes de tochas no palco. Em seguida, o Babalorixá Raminho de Oxóssi inicia a cerimônia
“Noite dos Tambores Silenciosos” em homenagem aos Eguns dos que morreram na África (antes
da diáspora) e de africanos e seus descendentes que morreram no Brasil no período da escravidão.
É importante destacar que o ritual aos Eguns é uma prática trazida pelos africanos que
homenageavam seus ancestrais e continuou a existir no Candomblé, porém é muito restrito aos
terreiros e apenas alguns iniciados na religião dos orixás podem presenciar, como acontece na Ilha
de Itaparica (BA). No Recife, este ritual passou por uma ressignificação para poder ser presenciado
num espaço público e visto pelos que o acompanham. Assim, a Noite dos Tambores Silenciosos é
a realização pública desse ritual no Recife. Apesar de “inventada” nos anos 60, é considerada uma
tradição pelos Maracatus-Nação, como algo já vivido e criado por seus antepassados que morreram
na escravidão (LIMA, 2007). Assim, é com o discurso da tradição que os Maracatus e as religiões
legitimam a sua apropriação do espaço, e nele constituem um território numa dimensão política.
Há, na Noite dos Tambores Silenciosos, a presença da Calunga – a boneca que, levada pela
dama-do-paço dos Maracatus-Nação, carrega a ancestralidade, ou seja, os Eguns. Todos os
Maracatus afirmam que “sem a Calunga, o Maracatu não sai, porque é ela que carrega os segredos do
mundo dos mortos e os nossos antepassados” (Pai Clóvis, presidente do Maracatu-Nação Encanto
da Alegria). E é pelos Eguns que acontece o ritual e são eles quem realizam, naquele momento, a
integração entre os Maracatus e a cerimônia, no Pátio do Terço. Para os Eguns são realizadas preces
pelos Babalorixás (Pais de Santo) e pelas Yalorixás (Mães de Santo) e são pronunciadas respostas
por muitos adeptos das religiões que assistem a cerimônia, que termina quando pombas brancas
são soltas pelo pai de santo.
O Pátio do Terço também carrega uma força simbólica para os Maracatus-Nação e para
todo o movimento negro do Recife, pois é onde se localiza a casa que pertenceu a três senhoras
importantes de referência ancestral africana. Conhecidas como as tias do terço, Sinhá, Yayá e Badia,
foram renomadas e respeitadas mães de santo que tiveram forte ligação com os principais terreiros
do Recife, como o Sítio de Pai Adão (Terreiro Obá Ogunté). Segundo Guillen (2008), no Pátio do
Terço também foi realizado um espetáculo em que Joãozinho da Goméia (pai de santo baiano)
entregou presentes à Dona Santa, rainha do mais antigo Maracatu do Recife, a Nação Elefante
(fundada em 1800).
Assim, permeado de elementos simbólicos e sagrados para as religiões e para os Maracatus-
Nação, o Pátio do Terço é apropriado e ressignificado, já que ali cotidianamente é um movimentado
centro comercial e espaço de devoção católica, onde se localiza a Igreja de São Braz (ou Igreja do
Terço). Dessa forma, o Pátio do Terço se constitui como um território sagrado para as religiões de
matrizes africanas e indígenas e se revela como uma hierofania, e é onde Calungas, Caboclos, orixás
e tantos outros elementos definem territorialidades religiosas82, já que representam um conjunto
de práticas sociais e simbólicas (ROSENDAHL, 2005) que dão significado religioso àquele espaço
público.
Paralelamente ao espaço sacralizado, há a ocorrência do espaço profano, ou seja, o espaço onde
os aspectos religiosos não instituem uma ordem em conformidade com as normas de controle do
território fundado. Becos e vielas; bares na Rua Vidal de Negreiros ou próximos a ela; calçadas
onde são comercializadas bebidas, comidas, cigarros etc. representam o caos (ELIADE, 2010),
considerando as imediações do Pátio do Terço ou tudo aquilo que está nele, mas não se vincula ao
ritual.
Neste sentido, não só aspectos religiosos estão presentes no Pátio do Terço. Em outras palavras,
não só uma realidade sagrada o constitui na Noite dos Tambores Silenciosos. O ritual acompanhado
por um número expressivo de pessoas as quais lotam o espaço estreito do Pátio do Terço adquire
grande visibilidade, assim como os Maracatus e a religiosidade afrodescendente e indígena. Como
o evento é divulgado como sendo o mais importante acontecimento do carnaval (GUILLEN, 2008),
são atraídas diversas autoridades políticas e religiosas, artistas nacionais, turistas, intelectuais,
iniciados nas religiões e muitas outras pessoas, curiosas para conhecer a cerimônia.
Assim, a Noite dos Tambores Silenciosos se torna uma ocasião em que as Nações de Maracatu e
as religiões de matrizes africanas e indígenas, das quais há a participação de ativistas do movimento
negro da RMR, são atores centrais e são o foco exclusivo dos olhares para onde são lançados
elementos estéticos, visões de mundo, práticas socioespaciais da população negra, e que são
introjetados pelos espectadores. Não é à toa que “os movimentos negros, e em especial o MNU
(Movimento Negro Unificado), decidem investir na cultura afrodescendente, com o objetivo de
afirmar sua africanidade e criar autoestima entre os afrodescendentes” (GUILLEN, 2008, p. 194).
Guillen (2008, p. 194) destaca que “a via cultural foi considerada a principal estratégia política para
se discutir o racismo e a marginalidade social que a grande maioria dos afrodescendentes ainda era
vítima”.
A Noite dos Tambores Silenciosos e o Pátio do Terço se tornam, então, tempo e espaço
apropriados para o reconhecimento da população negra enquanto possuidora da mais significativa
identidade cultural no Recife, o Maracatu-Nação. Mas também é momento de atuação política e
de visibilidade. Por mais que a população negra ainda ocupe os piores lugares do espaço urbano
do Recife, sem saúde, sem escola, sem saneamento básico, sem moradia adequada, ela é maioria e
define os aspectos identitários recifenses. E isso se torna evidente no Pátio do Terço, o qual também
se institui como território de lutas sociais muitas vezes implícitas nos Maracatus e na manifestação
religiosa, mas às vezes explícitas, quando se vê uma Nação desfilar com suas Calungas e com
todos os adereços pedidos para a ocasião, porém tem seus batuqueiros vestidos com uma camiseta
estampada “Racismo Não! – Quotas raciais para negros e negras nas universidades públicas” e
canta, acompanhada das alfaias, o Hino Nacional da África do Sul, numa referência à luta contra o
Apartheid. Trata-se do Maracatu-Nação Cambinda Estrela, que tem sua sede localizada em Chão
de Estrelas, favela localizada na zona norte do Recife.

82 Rosendahl (2005, p. 204) define territorialidade religiosa como “o conjunto de práticas desenvolvidas por
instituições ou grupos no sentido de controlar um dado território, onde o efeito do poder do sagrado reflete uma
identidade de fé e um sentimento de propriedade mútuo. A territorialidade é fortalecida pelas experiências religiosas
coletivas ou individuais que o grupo mantém no lugar sagrado e nos itinerários que constituem seu território.”
CONSIDERAÇÕES FINAIS

As religiões de matrizes africanas e ameríndias e os Maracatus-Nação fazem parte do cotidiano


da Região Metropolitana do Recife. Considerados construções sociais da população afrodescendente
no contexto da diáspora africana forçada, como forma de não perder suas identidades originais,
hoje, além de serem referências identitárias, representam sociabilidades, estratégias de visibilidade
social e política, e representam a identidade cultural conferida não apenas à população negra, mas
ao estado de Pernambuco, conforme aponta Guillen (2008).
É fato que a relação entre os Maracatus-Nação e as religiões existe e está expressa em todos os
momentos em que esta manifestação cultural está em evidência, porém, é na cerimônia religiosa Noite
dos Tambores Silenciosos que essa relação se revela de forma mais contundente, ressignificando o
Pátio do Terço para um território religioso e político, tendo como principais referências as religiões
de matrizes africana e ameríndias e a atuação política dos fazedores do Maracatu-Nação.
O Pátio do Terço, os terreiros, os bairros constituídos por distintas referências culturais
representam territórios onde a população negra adquire, constrói e vive sua identidade, mas
também, numa dimensão política e simbólica, dão novos sentidos aos espaços, diferentes dos
sentidos cotidianos, concedendo identidade para a totalidade. Nesses espaços encontram elos
comunitários, sentimentos de pertença, segurança diante das adversidades, momento de festa e de
culto e reconhecimento por parte da sociedade recifense.v
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AUTORES
Cleison Leite Ferreira

Doutor em Geografia pela


Universidade de Brasília (2016). Professor
de Geografia da Secretaria de Estado
de Educação do Distrito Federal desde
2001, onde atuou como Gestor de escola
pública do Distrito Federal (2006 a 2009),
Coordenador Intermediário de Educação
para a Diversidade e para os Direitos
Humanos (2013 a 2014) e Assessor da
Coordenação Regional de Ensino do Gama
- DF (2019). Participou da Equipe Técnica
do Mapeamento dos Terreiros de Matriz
Africana do DF, coordenada e realizada
pelo Projeto Geografia Afro-brasileira
e pelo Centro de Cartografia Aplicada e
Informação Geográfica da Universidade de
Brasília – CIGA/UnB (2018). Pesquisador
Colaborador do Centro de Cartografia
Aplicada e Informação Geográfica desde
2011.
Diego Lopes da Silva

É Pós-Doutor em Geografia Cultural e


da Religião pelo Programa de Pós-Graduação
em Geografia da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (PPGEO/UERJ) e Doutor em
Geografia Humana subcampo Geografia da
Religião pelo Programa de Pós-Graduação
em Geografia da Universidade de Brasília
(PPGGEA/UnB).
É Mestre em História Social com ênfase
em Orientalismo pelo Programa de Pós-
Graduação em História (PPGHIS/UnB) pela
mesma instituição de ensino. Pesquisador do
Laboratório de Geoiconografias e Multimídias
da Universidade de Brasília (LAGIM/UnB), do
Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Espaço e
Cultura, vinculado à Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (NEPEC/UERJ); do Núcleo
de Estudos em Antiguidade (NEA) e do Grupo
de Filosofia da Religião da Universidade de
Brasília (GPFR/UnB).
Marilia Luiza Peluso

Possui graduação em Geografia pela


Universidade Federal de Santa Catarina
(1962), mestrado em Arquitetura e Urbanismo
pela Universidade de Brasília (1983) e
doutorado em Psicologia (Psicologia Social)
pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (1998). Atualmente é pesquisadora
e colaboradora sênior da Universidade de
Brasília. Leciona na Pós-Graduação do
Departamento de Geografia/IH/UnB, com
ênfase em Geografia Urbana e Regional,
atuando principalmente nos temas Distrito
Federal, educação ambiental, cultura,
meio ambiente, representações sociais e
metodologia. É também docente no curso
de Geografia a distância, no qual ministra
disciplinas que envolvem os mesmos temas.
Pamela Elizabeth Morales Arteaga

Doutoranda pela Universidade de Brasília


CEAM-UnB. (2018-2022). Mestre em Geografia
pela Universidade de Brasília (UnB) (2017).
Graduada e licenciada em psicologia pela
Universidade Internacional SEK (UISEK),
Santiago, Chile. Pesquisa território e redes no
Distrito Federal, com base na teoria e método
fenomenológico. Atua na área de gestão cultural
em Brasília, com experiência em pesquisa de
mapeamento das culturas populares no DF, na
área de pesquisa de mapeamento de cinema e
diferentes elos da economia criativa, atuando
em temas como gestão, elaboração, produção
e ações no território, capacitação e pesquisa.
Tem experiência em na área de psicologia
social. Trabalhou com elaboração de plano de
desenvolvimento local e gestão de território no
Sistema de Áreas Silvestres Protegidas do Estado
(SNASPE-2010) Corporação Nacional Florestal
(CONAF) – Chile.
Vanda Pantoja

Graduada em Geografia pela Universidade


Federal do Pará (UFPA), é mestre e doutora em
Antropologia (2011) pela mesma instituição.
Professora associada da Universidade Federal do
Maranhão (UFMA), é docente do programa de Pós-
Graduação em Sociologia/PPGS UFMA e do curso de
Licenciatura Interdisciplinar em Ciências Humanas/
UFMA. Pesquisa nas áreas de religiosidade, cultura,
gênero, território e desenvolvimento. Mãe de João,
Ernesto e Júlia.
Wallace Rodrigues Pantoja

Doutor em Geografia (UnB). Professor da


Rede de Educação do Estado do Pará (SEDUC-
PA). Membro do Grupo de Pesquisa sobre Ensino,
Aprendizagem e Formação de Professores (GEAF-
UnB) e do Grupo de Pesquisa Política Pública e
Dinâmicas Territoriais da Amazônia (GPDAM-
UFOPA), pesquisador associado do Centro de
Cartografia e Informação Geográfica (CIGA-
UnB), em estágio pós-doutoral no Programa de
Pós-graduação em Geografia da UFPA (PPGEO).
Diretor de documentários e experimentações em
audiovisual educativas. Desenvolve pesquisas em
Educação e Geografia na Amazônia, Geografia da
Religião, Geografia Fenomenológico Existencial e
Geocartografia. Sempre buscando as geograficidades
das beiras e bordas e não dos centros.

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