Religião e Conexões Geopolíticas No Terceiro Milênio
Religião e Conexões Geopolíticas No Terceiro Milênio
Religião e Conexões Geopolíticas No Terceiro Milênio
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RELIGIÃO E CONEXÕES GEOPOLÍTICAS
NO TERCEIRO MILÊNIO
1ª EDIÇÃO
ORGANIZAÇÃO
PAMELA ARTEAGA
MARÍLIA LUIZA PELUSO
WALLACE PANTOJA
CAPA
DANILO SUEIRO
ROGERIO PEREIRA
DIAGRAMAÇÃO
Danilo Sueiro
REVISÃO LINGUÍSTICA
MARIA ALICE MONTEIRO
AUTORES
CLEISON FERREIRA
DIEGO LOPES DA SILVA
MARÍLIA LUIZA PELUSO
PAMELA ARTEAGA
VANDA PANTOJA
WALLACE PANTOJA
Belém-PA
2020
multiculturalidade e com suas diferentes maneiras de interagir na sociedade e com ela.
A religiosidade, assim, entra no âmbito do público e da esfera política e a espacialidade daí
decorrente traz algo mais além do mítico, da busca pelo transcendente e dos ritos propiciatórios. O
espaço e, em especial o espaço geográfico, é também político e, neste sentido, as religiões mostram
um componente político de grande interesse para compreender como o laico e o religioso se
interligam. Nessa perspectiva é que se pode falar de uma geopolítica das religiões, como se verá nos
artigos dessa coletânea.
E a questão geopolítica é antiga e está bem presente no artigo que inicia esta coletânea, As
camadas de temporalidade presentes na espacialidade religiosa judaica: A relação do judeu
observante com seu território religioso sagrado sob a ótica da Geografia da Religião, escrito por
Lopes da Silva. O autor analisa a territorialidade sagrada do Templo, símbolo da resistência e da
unidade cultural e identitária judaica, e sua relação com as religiosidades que se desenvolveram
historicamente no Oriente Médio. O primeiro Templo foi construído pelo rei Salomão (1005-931
a.C.) para abrigar a Arca da Aliança, símbolo da proximidade de Javé com o povo judaico. Destruído
e reconstruído duas vezes ao longo do tempo, foi finalmente arrasado pelo Império Romano no
ano 70 d.C., mas permanece vivo como símbolo de um futuro renascimento do povo judeu e da
vinda do Messias esperado. Entretanto, na atualidade, os lugares sagrados israelenses são também
lugares sagrados das religiões islâmica e católica, criando tensões geopolíticas que precisam ser
constantemente superadas.
O segundo artigo, Geopolítica do Sagrado: Notas sobre a organização do Círio de Nazaré, da
autoria de Vanda Pantoja, aborda os conflitos entre a organização do espaço real e concreto e sua
conexão com o espaço simbólico da celebração religiosa em que se entrelaçam as esferas econômica,
política, cultural e, mais recentemente, os meios de comunicação. O Círio de Nazaré se iniciou
como homenagem popular na procissão de Nossa Senhora de Nazaré, no princípio do séc. XVIII.
Apropriada pela Igreja Católica, tornou-se uma manifestação do catolicismo colonial, expurgada
das práticas populares. Forma-se o conflito entre o religioso e o popular com suas diferentes formas
de devoção, e o poder político, que ora apoia um dos lados e ora outro. Recentemente, o processo
econômico, a capacidade de o Círio ser uma mercadoria conectada ao valor simbólico, mostrou-
se importante para o financiamento e propaganda das festividades, pois empresas associam seus
produtos ao evento. Busca-se, também, fazer frente ao crescimento do segmento evangélico no
estado do Pará.
E o segmento evangélico cresce e apresenta outra questão política, agora focada no indivíduo,
como mostra Peluso em Uma reflexão sobre a Modernidade: religião e política no Distrito Federal.
Busca-se compreender, numa revisão histórica, como as religiões tradicionais (Catolicismo e Igrejas
Reformadas) perderam fiéis na Modernidade. Segundo a autora, após o Iluminismo e o surgimento
do capitalismo como sistema dominante, afirmou-se a busca do sucesso econômico e da felicidade
terrena como objetivos individuais. Entretanto, as desigualdades sociais geradas pela nova economia
formaram uma massa de pessoas empobrecidas, para as quais o sucesso econômico e a felicidade
se mostraram inalcançáveis, numa situação que perdura até o século XXI, inclusive no Brasil, país
profundamente desigual. Entrevistas com duas mulheres de baixa renda, moradoras da Capital da
República, mostram como as Igrejas Pentecostais respondem aos desejos de sucesso econômico e
felicidade da população pobre e se tornam uma força política ao permitir-lhes reivindicar, em nome
de Deus, justiça social para os excluídos.
A questão geopolítica de um sistema religioso que busca a expansão territorial é tema de
Rodrigues Pantoja em Mormonismo em Belém do Pará (Brasil) – Dimensão transterritorial da
identidade dos Santos. O projeto de mundo dos Santos dos Últimos Dias (SUD) é a conversão do
planeta em decorrência da revelação divina a Joseph Smith (século XIX), para constituir o “Reino
de Deus”. Expandindo-se inicialmente pelo Centro-Oeste americano, Salt Lake City se tornou o
epicentro espacial religioso e expansionista, cuja pregação integra códigos culturais diversos,
reinterpretados da Bíblia e expostos nos livros sagrados próprios da doutrina. Entrevistas com fiéis
realizadas em Belém indicam reelaboração de tempos e espaços que torna o projeto de mundo
mórmon uma experiência individual e coletiva, objetiva e subjetivamente controlada. A expansão
mórmon pelos eixos metropolitanos de Belém revela uma geoestratégia de constituição do território
religioso que obedece a um conjunto de regras e referências simbólicas de uma comunidade fechada,
sujeita a ordens extraterrenas para a realização da obra de Deus.
A constituição de um espaço religioso pode se fazer, também, pela vivência profunda com
a Natureza, como expõe Arteaga, em Natureza e Espaço Sagrado – Sentir, Fazer, Mitificar. Os
cuidados para adaptar duas plantas amazônicas, Mariri e Chacrona, das quais deriva o chá Hoasca,
a meios ambientes diversos, leva os membros da União do Vegetal (UDV) a conceberem a Natureza
como algo interior e a sacralizam como projeto de mundo. Dessa maneira, a Natureza não é mais
tematizada como recurso a ser desvendado pela compreensão científica ou instrumentalizada
como um fator de produção, como no sistema econômico da atualidade, mas de acordo com outro
código, o da Natureza em si. O novo código leva não só a novas religiosidades, mas também a novas
identidades e pertencimentos a grupos sociais, a lugares, a um tempo cósmico. Pode-se, então,
propor uma nova política ambiental, em que a Natureza não é apenas recurso subordinado ao
conhecimento ou à produção, mas sacralizada, universal e mítica.
Encerrando esta coleção, o artigo de Ferreira, Maracatu-Nação e a Noite dos Tambores
Silenciosos: Territorialidade religiosa e política no carnaval do Recife (PE). O Maracatu-Nação é
manifestação cultural originada, provavelmente, no início do século XIX, na cidade do Recife, em
que dialogam matrizes religiosas africanas, europeias e indígenas. Na segunda-feira de Carnaval, à
meia-noite, realiza-se o encontro das Nações de Maracatu, que afirma a identidade afro-brasileira no
Pátio do Terço, Bairro São José, centro do Recife. No evento, as camadas de menor renda adquirem
visibilidade pela presença, entre o público, de políticos, religiosos, artistas, turistas e expectadores.
A festividade torna-se uma afirmação política de grupos sociais localizados, em sua maioria,
em bairros da periferia do Recife e Região Metropolitana. Na via cultural aberta pela Noite dos
Tambores Silenciosos participam ativistas do movimento negro que denunciam a discriminação
racial e as condições de vida marginais dos afrodescendentes. Mesclam-se, então, no Pátio do Terço,
as dimensões religiosa e política, definem-se territorialidades e identidades territoriais.
Ao final da apresentação dos artigos que compõem esta coletânea que, evidentemente, não
esgota a religiosidade brasileira que necessitaria de muitas coletâneas para ser conhecida, espero
ter evidenciado que o real e o divino, o mítico e o místico se mesclam, são interpretados e vividos
diferencialmente, pois como escreve Han, o sagrado não é transparente e o reino vindouro da paz
ainda está longe. E, justamente, esta distância de um futuro esperado, e que tarda a chegar, converte
as religiões num fato político.
RATZINGER, J. (BENTO XVI). Jesus de Nazaré. São Paulo: Planeta do Brasil, 2007.
ELABORAÇÃO: RAFAEL SANZIO ARAÚJO DOS ANJOS
CAMADAS DE TEMPORALIDADE NA ESPACIALIDADE RELIGIOSA JUDAICA:
A RELAÇÃO DO JUDEU OBSERVANTE COM SEU TERRITÓRIO RELIGIOSO
SAGRADO SOB A ÓTICA DA GEOGRAFIA DA RELIGIÃO
Diego Lopes da Silva
RESUMO
O artigo analisa oTemplo judaico e sua ligação espacial sob a égide da Geografia da Religião – que
entenderemos como campo –, na área limítrofe entre a Geografia Humanística, Cultural e Política, já
quehásériasimplicaçõesnaordemdoTemplocomasreligiõesquesedesenvolveramhistoricamente
no Oriente Médio. Como objetivo, visa-se compreender as camadas de temporalidade que revestem
a espacialidade religiosa judaica, a partir de uma perspectiva de análise do Templo, o qual é visto
pelo judeu como território religioso, cuja historicidade evidencia a formação de uma identidade
judaica e construção (geo)simbólica de resistência cultural. A metodologia é a dicotomia eliadiana
entreSagradoeProfano,permitindoentenderasformassimbólicasreligiosasaoespacializarotempo-
espaço sagrado e retirá-lo para estudo do espaço geográfico profano. Côrrea (2008) afirma que as
ações humanas estão repletas de significados, que dão sentido à existência humana e que toda ação
humana no espaçoésimbólicaetemporal, assim como todaação simbólicaé humanae representada
espacialmente,sendoimpossívelexplicaroespaçosemsuastemporalidadesdeterminadas.Conclui-se
queaformaespacialdoTemplo,aocondensarascamadasdetemporalidadedosímboloreligioso,cria
nojudeuosensodepertencimentoque,aoserconfrontadopornações/religiõespagãs,geraumclimade
instabilidade,tornando-seaindamaistensoaoserressignificadopeloislãnaáreaondeestariaoTemplo.
Palavras – chave: espacialidade judaica; Templo; Torah; Santo dos Santos; relações geopolíticas
INTRODUÇÃO
O presente artigo analisa a forma simbólica espacial do “Templo” criado como local sagrado de
culto judaico. O Templo se tornou, ao longo da história dos judeus, um elo de unidade cultural em
torno das suas práticas religiosas e, também, de resistência, através das sucessivas dominações que
buscavam impor sua religião e seus costumes à identidade coletiva judaica.
Ao se estudar as formas simbólicas espaciais religiosas na comunidade judaica, verifica-se um
continuum que liga passado, presente e futuro – a forma simbólica Templo – como um forte elo
identitário que permeia o imaginário da sociedade judaica através da Torah.
As relações geopolíticas entre judeus e nações circunvizinhas estão, desde a Antiguidade,
fortemente revestidas de um caráter religioso, pautadas na compreensão e aceitação das
peculiaridades do judaísmo pelos povos “vizinhos”, e eventualmente pelos possíveis conquistadores.
Dessa maneira, as nações circunvizinhas, ou mesmo reinos históricos que vieram a conquistar
territorialmente os judeus, são classificados qualitativamente como “bons” ou “maus” vizinhos em
virtude da relação com as práticas religiosas judaicas.
Uma análise interdisciplinar que aproxime as ciências geográfica, histórica e da religião
nos fornece elementos importantes para recriar e interpretar elementos passados que foram
negligenciados para compreender os símbolos culturais e a força que exercem nas mentalidades
– no caso aqui, a “mentalidade religiosa judaica” (posto que a configuração simbólica de um
território ambicionado trouxe do passado ecos até a contemporaneidade). Os sucessivos processos
de desterritorialização do seu lugar de culto geraram historicamente, no judeu tradicional, um
aumento na tensão com os povos circunvizinhos, já que existia o receio de uma dominação que não
somente fosse política, mas que quisesse alterar os costumes religiosos do povo judeu.
Destaca-se que os fenômenos religiosos abordados neste artigo estão ligados indiretamente
ao estudo da fenomenologia da religião. A fenomenologia vê a religião como sendo composta de
diferentes componentes (como símbolos e ideias), e os estudos desses componentes são aspectos
intrínsecos às tradições religiosas, logo inerentes à vida usual daqueles que praticam determinada
confissão de fé, conforme Jung (1980) quando trata de religião, psicologia e símbolos de
transformação.
Observa-se que os fenômenos religiosos são decorrentes das transformações na ordem social e
política de um determinado povo ou sociedade. Percebe-se que as religiões comuns da antiguidade
como o judaísmo, o zoroastrismo e o próprio cristianismo tiveram grandes mudanças atreladas a
momentos de dificuldade política e quando seu “espaço vital”1 de conceitos e crenças era atacado.
O caso mais clássico pode ser observado no judaísmo pós-exílio2, quando da redação final do
livro de Daniel (Dn), quando a Judeia estava sob o domínio do imperador selêucida Antíoco IV,
Epífanes, que a governou de 175-163 a.C. Seu governo foi marcado por uma das maiores revoltas da
história judaica, conhecida como Revolta dos Macabeus3. A revolta foi de suma importância para o
entendimento do processo de resistência cultural judaico, assim como a sua manutenção enquanto
nação e a figura (geo)simbólica do Templo como elemento de coesão social.
Vale ressaltar que as religiões buscam, através da criação de um “lócus” espacial do sagrado
com o intercâmbio das suas práticas ritualísticas, criar/definir nos seus seguidores um senso de
pertencimento ao determinado grupamento religioso. No caso dos judeus, esse pertencimento
acabou sendo o modus operandi para sua formação e manutenção como povo em torno de suas
práticas religiosas, que mantiveram os judeus e sua cultura viva até a contemporaneidade.
A presente análise está pautada sobre o conceito de religião e sua ligação com a análise espacial
sob a égide da Geografia da Religião – que se entende, como campo especializado na área limítrofe
entre a Geografia Humanística e a Geografia Cultural.
A zona de intersecção entre a Nova Geografia Cultural, a Geografia da Religião/História das
1 A expressão “espaço vital” utilizada neste projeto não está ligada à Antropogeografia ratzeliana do séc. XIX (atrelada
à constituição do território nacional alemão e, posteriormente, na política de “partilha” do continente africano). A
expressão, no contexto religioso, está ligada ao “lócus” de desenvolvimento dos seus conceitos e crenças, conforme
demonstra Diego Silva (2015) na sua obra sobre A Geografia do Além: O local do mundo dos mortos na cultura
judaico-cristã, sendo necessário até se reapropriar de conceitos e ideias externas a sua cultura para justificar seu
pensamento.
2 Na volta do exílio, os judeus passam a ser mais observadores da lei, acreditando no seu Deus como sendo único e
incorporando ideias comuns ao mundo babilônico e ressignificando-as dentro do próprio judaísmo
3 Conflito ocasionado pela imposição de valores sociais e culturais helenísticos aos judeus que não aceitavam
nenhuma modificação em sua estrutura religiosa de culto ao Deus dos judeus. Os livros bíblicos de 1 e 2 Mc mostram
a que ponto chegou a revolta dos judeus em relação às políticas praticadas por Antíoco IV, Epífanes.
Religiões Comparadas, as Ciências das Religiões, a Teologia e a Geografia Histórica e Ciência
Histórica representada na figura como C, “Centro da Religião”, representa uma Nova Geografia
da Religião com sua metodologia e elementos de análise que dialogam tanto com subcampos da
própria ciência geográfica quanto com as demais ciências que estudam o fenômeno religioso.
Figura 1: Relações entre a Nova Geografia Cultural, a Geografia da Religião Tradicional, a História das Religiões Comparadas,
as Ciências das Religiões, a Teologia e a Geografia Histórica/Ciência Histórica, na configuração da Nova Geografia da Religião
Elaboração: Costa, 2018.
A geografia, na sua vertente humanística4, fornece elementos de grande valia às análises social,
política e até econômica de determinada região/localidade onde a fé exerce o papel predominante
entre as demais estruturas da sociedade.
Os estudos contemporâneos em Geografia da Religião evidenciam que determinada crença
corresponde a uma prática social específica na medida em que edifica uma visão de mundo bem
característica e peculiar àquele agrupamento de pessoas em torno de suas crenças.
As formas simbólicas do conhecimento religioso qualificam o espaço sagrado, o qual é visto
ora como representação da realidade, ora como expressão do fenômeno religioso. Logo – segundo
o entendimento proposto por Gil Filho (2008) para compreensão do fenômeno religioso e sua
dimensão espacial – o espaço sagrado é tanto “estrutura estruturante” como “estrutura estruturada”
da realidade na esfera religiosa.
4 A matriz de pensamento da Geografia Humanística, por meio da sua vertente cultural, oferece imaginação,
sensibilidade e simbolismo ao meio e busca entender a vivência do ser, a existência do homem no espaço, o espaço
como lócus da vivência/existência humana. O espaço geográfico é plural, humano e humanizado das mais diversas
formas. Entender a geografia pelo espectro humanístico é entender a multiplicidade de agentes que atuam no espaço,
através da ótica humana, tendo em vista que as significações de paisagem, território e lugar são constructos mentais
viabilizados para entender uma lógica material (TUAN, 1983).
As espacialidades do sagrado5 são frutos das práticas culturais eivadas de sentido religioso,
crenças/mitos e divindades de determinado grupo. Tais práticas socioculturais marcam os homens
e o sagrado, juntamente com seus símbolos e mitologia, os quais ligados à geograficidade6 do
homem produz territorialidades; isto é, o homem produz a si mesmo e o espaço das suas práticas
socioculturais.
Dentro da questão da elaboração do espaço e da espacialidade do local sagrado, há culturalmente
os símbolos que são produzidos pelo homem, no seu conjunto social, e que viabilizam a relação do
ser humano com a sociedade e com o seu espaço produzido.
No sentido de entender que o espaço da religião é parte integrante da totalidade do espaço
geográfico – visto que o fenômeno religioso é um fenômeno geográfico, e envolve, em sua dinâmica,
categorias geográficas (tais como população, cultura e território) – pode-se constatar que a relação
dos judeus com os povos circunvizinhos está ligada à relação destes com as práticas religiosas judaicas
num claro fenômeno de resistência cultural, o qual historicamente foi essencial para manutenção
da unidade do povo judeu e sua unidade em torno dos aspectos religiosos como o monoteísmo.
A fiel crença nos conceitos centrais da lei mosaica fizeram com que o povo judeu “sobrevivesse”
às constantes perseguições e sucessivas dominações geopolíticas ao longo da sua história como
nação, o território sagrado dos judeus, amalgamado aos seus símbolos e ritos, está ligado diretamente
à definição de uma identidade cultural na religiosidade e na figura do seu território sagrado.
Adentrando as relações do território sagrado com a sociedade judaica e os povos vizinhos
dominadores, cabe fazer um apanhado para entender a dimensão da força simbólica do Templo
e seu antecessor – o Tabernáculo –, uma espécie de tenda móvel que os judeus tinham como
espaço sagrado de adoração. Após a libertação do cativeiro egípcio com vigência até a construção
do Primeiro Templo, sob a ordenança do rei Salomão, o Tabernáculo, no universo mental dos
judeus, era visto na sua estrutura como o “lócus” de habitat da sua divindade. Na tradição judaica,
a criação do Tabernáculo foi uma ordenança da divindade Yahweh ao lendário legislador Moíses7
para que os judeus tivessem um lugar de culto e a adoração a sua divindade enquanto estivessem
em peregrinação no deserto.
5 Uma variação dos espaços do sagrado, porém sem sua presença física constante. Isto é, são representações móveis
da religião e da vivência da fé. São espaços transitórios de vivência do sagrado através da fé, percepção e simbolismo
da religião, espaços dotados de significado transitório para um determinado agrupamento religioso, enquanto exercem
a prática da ritualística/dogmática e da fé nas suas mais várias formas (ROSENDAHL, 2002).
6 O conceito de “geograficidade” elaborado por Eric Dardel (1952) expressa, em parte, a própria essência da ciência
geográfica: o entendimento de ser/estar/pertencer e significar o mundo e o espaço, através das relações humanas,
significando e ressignificando o espaço natural, e criando espaços artificiais. A geografia, vista pela ótica da
fenomenologia e do humanismo, ampliou a relação da ciência geográfica com as demais ciências sociais, incluindo a
dimensão espacial da existência do ser, e as múltiplas relações do homem com a Terra.
7 A escola moderna de teologia defende a ideia da comprovação arqueológica para comprovar a existência dos
personagens bíblicos. Segundo tal escola, os personagens bíblicos, em sua grande maioria, são exemplos de
comportamentos e atitudes tidas como ideais ou abomináveis para seus escritores. Utilizo na narrativa o termo
“lendário” por não existir nenhum relato histórico ou dado que comprova a existência física de um judeu chamado
Moisés. Entretanto, o perfil do legislador ideal também se encontra na narrativa grega através da figura de Licurgo,
também lendário legislador de Esparta, que recebeu as leis diretamente da divindade e entregou ao povo. Para um
melhor entendimento do tema, sugiro a leitura do artigo de Silva (2008). A releitura de Licurgo nas Antiguidades
Judaicas (AJ) de Flávio Josefo.
O TABERNÁCULO
A palavra Tabernáculo vem do hebraico Mishkan que quer dizer santuário/local de habitação
do sagrado, sendo um espaço sacrificial e de rememoração de todas as benesses da divindade em
relação ao povo hebreu.
Ressalta-se que, conforme a tradição judaica, até o modelo/forma de como seria esse espaço
sagrado foi dado pela divindade ao legislador Moisés. Confeccionado por Bezaleel e Aoleabe, o
Tabernáculo seria dividido em três áreas/zonas: o átrio/pátio Chatser, delimitado pelas cortinas de
linho fino; o santo lugar Kodesh, que seria a primeira parte interna; e o santo dos santos/santíssimo
Kodesh HaKodashin, um espaço cúbico no qual se fundiam as dimensões humanas (da imperfeição
e sacrificial) e celestial (da perfeição e redenção).
Segundo Josefo (AJ), a divisão do Tabernáculo representava a divisão do próprio mundo: o
espaço sagrado se materializava nas dimensões da tenda e refletia uma unidade céu-terra e divino-
humano; o átrio representava a humanidade; o santo lugar seria o céu como os homens veem sua
imensidão; e, por sua vez, o santo dos santos estava representado pelo céu habitado, pela divindade
com sua imensidão e infinitude.
Cada espacialidade tinha uma representação simbólica e todas elas se fundiam no “santo dos
santos”, que era o local de intercessão e contato direto com a divindade. Assim, cada zona existente
dentro da tenda possuía um nível maior de sacralidade até chegar no santíssimo, que tinha no seu
interior a arca da aliança – o objeto mais sagrado dentro do judaísmo.
Cada objeto presente em cada uma dessas zonas tinha seu simbolismo e o perfeito local onde
deveria ser colocado. Assim, tudo era feito para que o povo se recordasse das grandes obras da sua
divindade e se atentasse à peculiaridade religiosa como aspecto preponderante da cultura judaica
em relação às demais culturas na antiguidade. Segundo a tradição judaica, a cada parada no deserto
na fuga da servidão egípcia8, o Tabernáculo era montado de dentro para fora – a partir do santo dos
santos até o átrio – para que os locais tidos como mais sagrados fossem os primeiros a estar de pé
com o intuito de buscar uma aproximação maior com a divindade.
8 Conforme relatos presentes na Torah, os judeus foram escravizados pelos egípcios por mais de um século até que
Moisés, que era judeu de nascimento mas vivia na corte egípcia, ao ver seu povo subjugado, resolve, por intermédio
de Yahweh, retirar seu povo da servidão do Egito, prometendo uma terra que emanava leite e mel e na qual os judeus
teriam paz e não seriam mais escravizados desde que guardassem os mandamentos e as ordenanças de Yahweh. Fato
que não aconteceu, pois os judeus peregrinaram por 40 anos no deserto.
Figura 2 – Tabernáculo Riggenbachs Mosaische Stiftshütte9
Figura 3 - Disposição aproximada do Tabernáculo. Organizado pelo autor a partir de Ex 25-28 e Archer (1974)
O átrio/pátio era um cercado em forma de retângulo demarcado por uma cortina de linho branco
que representava, na mentalidade judaica, a pureza e a santidade necessárias para a aproximação à
divindade. Era descoberto e tinha uma representação simbólica de aproximação de Yahweh de se
despir das “vestes” pecaminosas para se adentrar à comunhão direta com a divindade. Observam-
se graus de santidade dentro da própria figura do “prototemplo” já que dentro do Tabernáculo
existiam determinados lugares e objetos consagrados que somente o Sumo Sacerdote responsável
por apresentar a expiação dos pecados do povo à divindade poderia adentrar e tocar, sendo vedada
e passível de punição qualquer transgressão à regra do sacerdócio e de aproximação do Templo.
O lugar santo, por sua vez, era coberto e o sacerdote entrava semanalmente na presença da
divindade. No lugar santo estavam presentes a mesa dos pães da proposição Shulchán, o candelabro
Menorah (possivelmente o símbolo judaico mais conhecido no Ocidente) e o altar de incenso
Mizbach HaZahav. A mesa com os pães da proposição ficava do lado do norte com a sua coroa
ornamental coberta de ouro puro.
A cada cerimônia do Shabat os sacerdotes deviam colocar sobre a mesa os doze pães
(simbolizando as 12 tribos de Israel), dispostos em duas colunas, e borrifados com incenso. Ao
sul estava o candelabro de sete hastes Menorah, com as suas sete lâmpadas. O Menorah era feito
de ouro maciço e cada uma das suas hastes era ornamentada com flores trabalhadas semelhantes a
lírios. Como não havia janelas dentro do Santo Lugar, as lâmpadas do Candelabro nunca ficavam
na sua totalidade apagadas, mas tinham como função iluminar ininterruptamente dia e noite com
9 Visão do tabernáculo desenvolvida por Christoph Johannes Riggenbach, considerado um dos maiores teólogos do
séc. XIX, o qual ficou marcado historicamente pelo estudo do Antigo Testamento e da figura de Moisés para o judeu
ortodoxo.
um claro simbolismo de demonstrar que a divindade estava diuturnamente ao lado do seu povo na
peregrinação pelo deserto antes de chegar à “terra prometida”.
Diante do véu que separava o Lugar Santo do Santo dos Santos, sendo assim chamado em
virtude da “presença imediata do Altíssimo”, achava-se o áureo altar de incenso. O Sacerdote deveria
queimar incenso todas as manhãs e tardes sobre o altar. As pontas do altar eram aspergidas com o
sangue do sacrifício para a remissão dos pecados, e, no grande dia de expiação dos pecados, era, na
sua totalidade, borrifado com o sangue do sacrifício.
Observa-se que na mentalidade de um judeu tradicional o fogo presente no altar tinha sido
aceso por Yahweh, e conservado miraculosamente de maneira sagrada para o sacrifício e remissão
dos pecados do povo como cerimonial que deveria ser perpétuo e constantemente rememorado.
O terceiro compartimento, o Santo dos Santos, local onde se centralizava a cerimônia simbólica
da expiação e intercessão, formava o elo entre os céus (divindade) e o seu povo. Nesse compartimento
estava a arca da aliança Aron Haberit, uma grande caixa feita de madeira de acácia, coberta de ouro
por dentro e por fora e com uma coroa de ouro em redor de sua parte superior. A arca foi criada
para abrigar as tábuas de pedra do decálogo, sobre as quais a própria divindade escrevera os Dez
Mandamentos, entregando ao lendário legislador Moisés. Além das tábuas dos mandamentos, a
arca da aliança continha um pote com maná e a vara de Aarão que florescera miraculosamente no
deserto.
A cobertura da caixa sagrada se chamava propiciatório Kappõret, feito de uma peça inteiriça
de ouro encimado por querubins do mesmo metal precioso, ficando um de cada lado. Uma asa de
cada anjo se estendia ao alto, enquanto a outra estava fechada sobre o corpo em sinal de reverência
e humildade. A posição dos querubins, com os rostos voltados um para o outro, e olhando
reverentemente para baixo da arca, representava, na mentalidade judaica, a reverência com que a
hoste celestial considera a lei de Yahweh e o seu plano para o seu povo escolhido. Uma espécie de
vapor que representava manifestação física da glória divina ficava acima do propiciatório, entre
os querubins. Através deste vapor, chamado de Shekhinah, que Yahweh tornava conhecida a sua
vontade ao Sumo Sacerdote que era o mediador entre o povo e a divindade.
O significado simbólico da arca é tamanho na cultura judaica que esta foi a única peça
trasladada para o Templo de Salomão. Segundo trecho transcrito da obra do professor Kevin Conner
(2005), esse é o maior e mais significativo símbolo que liga o cotidiano do povo judeu ao mundo
“imaginário”, na concepção contemporânea, mas “real” na mentalidade do judeu na Antiguidade.
O Tabernáculo pode ser visto como um protótipo do Templo que surgiu após alguns séculos,
porém deve ser analisado como um microcosmo independente, o qual, segundo a visão de um judeu
tradicional, representaria o lugar de interligação entre o humano e o sagrado. Um microespaço
do sagrado móvel (ROSENDAHL, 2002), no qual a divindade interagia com o povo durante
a sua peregrinação. Todavia, observa-se que toda ritualística descrita acima deveria ser seguida
rigorosamente para que o sagrado se manifestasse diretamente ao povo através do Sumo Sacerdote.
Do ponto de vista geográfico, os textos que retratam esse período histórico abordam apenas
questões superficiais, como a disposição dos objetos sagrados dentro da tenda e a posição do povo
frente à ritualística judaica.
Na visão de um judeu tradicional, o princípio de religação com o sagrado através de um espaço
de comunhão direta com sua divindade nasce logo após a expulsão do homem do Jardim do Éden,
quando Adão e Eva viviam em comunhão diária e constante com a divindade.
A necessidade de reaproximação gerada após a transgressão cria um sentimento de reconexão
que se dá mediado por algo/algum lugar que tenha um poder de atração e que ligue as esferas
humanas e sagradas. Assim, a ideia de lugares de adoração e sacrifício já aparecem com os antigos
patriarcas dos judeus como Abraão, Isaque e Jacó/Israel, conforme trecho transcrito do Gênesis.
Deus disse a Jacó: Levanta-te! Sobe a Betel e fixa-te ali. Ali erguerás um altar ao Deus que
te apareceu quando fugias da presença de teu irmão Esaú. Jacó disse à sua família e a todos que
estavam com ele: “Lançai fora os deuses estrangeiros que estão no meio de vós, purificai-vos e
mudai vossas roupas. Partamos e subamos a Betel! Aí farei um altar ao Deus que me ouviu quando
estava na angústia e me assistiu na viagem que fiz.” (Gn 35:1-3).
Desde a mais longínqua Antiguidade o povo judeu busca essa reconexão com a divindade que
só acontece em determinados locais tidos como sagrados. Esses locais exercem um poder tão forte
de atração sociomental na população que vive em um ambiente altamente religioso que o lugar
sagrado passa a ser a principal instância de coesão da sociedade, assim como elo da formação de
uma identidade cultural.
O PRIMEIRO TEMPLO: GEOSSÍMBOLO DE RELIGAÇÃO COM O SAGRADO
O rei persa Ciro, após conquistar a Babilônia, acaba por conceder permissão inicial para que
cerca de cinquenta mil judeus que estavam exilados na Babilônia regressem à cidade sob a liderança
de Zorobabel, o qual, segundo Flávio Josefo (AJ) e a tradição rabínica, era de linhagem davídica.
A reconstrução dos muros da cidade ocorreu de forma simultânea à reconstrução do Templo,
já que não passava pela mentalidade de um judeu que tinha acabado de ser libertado da servidão
(causada no seu imaginário por ter se distanciado dos ensinamentos da Torah e da sua divindade)
14 O livro de Daniel possui, na sua versão original, doze capítulos, sendo encontrado na sua língua original associado
aos Escritos, enquanto nas versões cristãs modernas está incluso na seção profética. O livro possui, para fins didáticos
e temáticos, duas divisões: na primeira metade (capítulos 1 a 6), a narrativa gira em torno da figura do próprio
“profeta” Daniel e seus companheiros, que haviam sido deportados para a Babilônia em 585 a.C. Na Babilônia, eles
revelam a superioridade do Deus dos judeus por meio da sabedoria e da negação dos valores e divindades nativas. A
segunda metade contém as revelações “futuras” dadas por Deus a Daniel.
a existência da cidade sem um local fixo de adoração.
O judeu tradicional pós-exílio via na religião e no seu lugar sagrado de culto uma forma da
divindade restabelecer a glória de Israel, que diante da corrupção e da idolatria, foi subjugada
temporariamente pelos pagãos como forma de correção e disciplina dada por Yahweh ao seu povo.
A libertação do povo cativo, a reconstrução dos muros da cidade juntamente com a reconstrução
do Templo no Monte Moriá e a criação da Knesset Hagedolah (conhecida na literatura da língua
inglesa como a Grande Assembleia – um supremo órgão religioso e judicial dos judeus) marcaram
o início do período conhecido como Segundo Templo.
A figura do Templo era vista como um símbolo vivo de enfrentamento das injustiças sociais
existentes, assim como unidade sociopolítica e orgulho (após Yahweh ter permitido a profanação
e contaminação do seu lugar sagrado diante das inúmeras transgressões). O símbolo tão vivo e
tão forte como o do lugar sagrado remete à vida e à esperança de um futuro glorioso na crença do
poder de restauração do Templo que outrora fora de glória dos judeus e que agora teria uma função
de união e retorno à religião.
Segundo Mardones (2006), o poder do símbolo em tempos de crise é tamanho que faz com
que o sonho de vida e o invisível interiorizado se tornem realidade. O transcendente tem poder de
se tonar imanente na alma, conseguindo o alcance de traduzir o intraduzível e de tornar realidade
sonhos mesmo que longínquos.
A política de tolerância religiosa e “repatriação” das nações que estavam sob seu domínio
faziam parte de um amplo jogo político de aceitação do novo dominador persa. Um estratagema no
reconhecimento dos símbolos sagrados de cada nação, no sentido de manter uma coesão política
(uma administração confortável frente às várias crenças que compunham o vasto império), através
da tolerância e do respeito à diversidade, fez do rei Ciro um hábil governante.
O segundo Templo Beit Sheni foi erguido com muita dificuldade e limitação de orçamento,
entretanto, mesmo menor em extensão e suntuosidade, tinha uma função singular de (re)criação da
identidade da nação, através da religião com seu epicentro focado na figura do Templo de Jerusalém.
Com a figura do novo Templo, o Sumo Sacerdote passou a ter autoridade quase que soberana na
estrutura sociopolítica judaica, visto que diante de uma dominação política (persa e posteriormente
helênica), os eventuais esclarecimentos e as relações eram ditadas do dominador estrangeiro para o
representante máximo da religião judaica.
Tal situação – o sacerdócio se tornar um cargo político – gera debates mais profundos no
seio do judaísmo, quando, no período do grande ecúmeno helenístico, o cargo de Sumo Sacerdote
deixa de ser exercido pelos integrantes da tribo de Levi e passa a ser uma moeda de troca de apoio
político, quebrando assim as determinações da Torah. Isso deixava claro que este exercício deveria
estar intimamente ligado à tribo de Levi e à descendência do lendário Aarão, irmão mais velho de
Moisés. O cargo de Sumo Sacerdote passou a ser extremamente político15 e de grande amplitude
no contexto judaico, já que o Sumo Sacerdote tinha um poder, no imaginário da sociedade, que
extrapolava uma mera dominação religiosa.
Os estudos híbridos ganham destaque no judaísmo do Segundo Templo pelo regresso ao
judaísmo mais legalista mosaico, pelas relações ambíguas e tensas com os dominadores e povos
circunvizinhos e a relação peculiar que o judeu observante tinha em torno do Templo.
Do ponto de vista das ciências da religião, histórica e geográfica, a centralidade do Templo e
as relações existentes a partir deste epicentro do poder na sociedade judaica são diversas, tanto na
relação entre os judeus observantes – nas relações entre os legalistas e os culturalmente helenizados
–, quanto entre os próprios judeus que assimilaram a cultura dominante (helenizados) e estrangeiros.
A religião é o “macrocentro” das relações pessoais e de poder no judaísmo do Segundo Templo,
enquanto o “microcentro” do sagrado, que toma conta de toda a sociedade, é a figura do Templo,
que tem ascendência sobre todas as demais instituições na sociedade por representar o local por
excelência de manifestação do sagrado e por ser o espaço de remissão dos pecados que levaram
os judeus a serem dominados por outros povos, já que o princípio da Teodiceia levaria a própria
divindade a entregar seu povo às nações pagãs para que houvesse expiação dos pecados, adquirindo
Deus e o Templo uma função de juiz na sociedade judaica.
O território religioso sagrado evidenciaria o poder que a própria divindade outorgou ao povo
judeu, assim como uma tentativa de marcar um (re)nascimento, frente às nações circunvizinhas, de
um povo que foi dominado politicamente, mas que, apesar disso, permanecia fiel às suas práticas
religiosas e mantinha a obediência às regras estabelecidas por sua divindade.
As relações entre judeus e a figura do Templo ganham um caráter de maior poder e sacralidade
15 Conforme se vê na descrição de 2Mc 4:7-11, Jasão foi tornado Sumo Sacerdote sem o consentimento de Deus, por
uma manobra política, a fim de recolher maior quantidade de impostos e tesouros para o Templo, e estes acabariam
sendo posteriormente enviados para o governante selêucida. No decorrer do texto, vê-se que o Sumo Sacerdócio foi se
tornando cada vez mais um cargo de grande status na sociedade judaica do séc.II a.C.
no pós-exílio e nisso a literatura apocalíptica se torna essencial para entender como o pensamento
do judeu estava ligado às figuras de um Templo (habitação sagrada). Observa-se que nas narrativas
sobre os diversos governantes que estiveram à frente da Judeia, a figura central é sempre o Templo,
que, para o judeu tradicional, não deveria ser violado em nenhuma hipótese. E para não ter seu
lugar sagrado profanado, por vezes esteve em jogo a necessidade de pagar grandes quantias em
impostos aos dominadores.
O centro das narrativas e das histórias envolvendo judeus e governantes babilônicos, persas e
gregos (macedônios, ptolomeus e selêucidas) é a relação destes com a cultura religiosa judaica e a
peculiaridade que envolvia a figura central do culto e suas ritualísticas (por exemplo, a manutenção
da prática das ofertas e dos sacrifícios no Templo). A figura de Antíoco IV, Epífanes ao longo da
historiografia, é demonizada pelos judeus, pelo fato de o governante selêucida ter claramente
tentado helenizar os costumes religiosos judaicos.
[...] references for the time of the Second Temple to the influence to the
Greek Culture from Jews are rare outside the context of the revolt of the
Macabees but a few can be found. So for instance Josephus wrote (AJ
15.267-8) that some Jews opposed the entertained plans to Herodes the
Great in Jerusalem on the grounds that athletic games, the theater and
amphitheater were foreigner customs which destroyed ancient way of
16 “A política de Antíoco proibiu a maioria das práticas religiosas que definem o judaísmo. O Sábado, as Escrituras,
o Sacrifício a Yahweh, a circuncisão e o festival religioso judeu foram proibidos. O Templo já havia sido profanado.
Desta forma os judeus reagiram de três formas diferentes a esses eventos políticos (helenização). Alguns, que viram o
valor no helenismo, concordaram, mesmo que relutantemente; alguns foram martirizados antes de cederem às decisões
do rei, e outros recorreram à resistência armada” (tradução nossa).
life (GOODMAN, 1994, p. 169, grifo nosso)17
_____. Tratado de História das Religiões. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2010.
_____. Geograf ia da Religião: uma proposição temática. In: GEOUSP, São Paulo,
2002, pp. 9-19. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/geousp/article/
view/123638, acesso em 30.11.2019.
TELUSHKIN, J. Jewish Literacy. New York: William Morrow and Co, 1991.
RESUMO
O Círio de Nossa Senhora de Nazaré é uma das maiores celebrações religiosas do catolicismo
popular no Brasil. Acontece na capital paraense há mais de dois séculos e se constitui como um dos
momentosmaisfestivosdessapartedaAmazôniaBrasileira.Nestetexto,apartirdaanálisededadosde
campo,tentamoscompreenderacelebraçãoapartirdoconflitodeinteressesentreosagentespresentes
no contexto de organização. Temos como referência a Diretoria da Festa, instituição responsável
por organizar a celebração desde a primeira década do século XX, as empresas patrocinadoras e os
devotos. Nossa hipótese é de que há um desejo, por parte da Diretoria, não apenas de organizar e
controlar a celebração, mas de defini-la, dizer o que é o Círio e, consequentemente, o que ele não é.
Palavras Chave: Círio de Nazaré; Diretoria da Festa; Conflito; Igreja Católica.
INTRODUÇÃO
Os primeiros olhares sobre o Círio já primavam pela diversidade de abordagem. Assim, temos a
celebração vista como um fenômeno social de grande importância sob a ótica da Geografia Humana,
a partir da mobilidade ou “transumância” entre o interior e a cidade provocada por ocasião do Círio,
como verificou Eidorfe Moreira (1971) ou, a partir de um ponto de vista estruturalista, como fez
Isidoro Alves (1980), que concebeu o Círio como um momento ritual que, por meio da dimensão
simbólica, revela a estrutura de um amplo sistema de relações sociais. Rocque (1981) se preocupou
em registrar a história da celebração por dois séculos, fornecendo, assim, importantes informações
sobre ela. Montarroyos (1992) produziu uma literatura a partir do que se relatou a respeito do
Círio na imprensa escrita. Partindo de uma perspectiva antropológica, Maués (1995) pensou o
Círio de Nazaré como exemplo da tensão que caracteriza o catolicismo como um todo. Pantoja
(2006), tendo como ponto de partida a relação entre a Diretoria da Festa e os demais envolvidos
no processo de organização da celebração, mostrou a tensão que marca o processo de produção do
Círio, chamando atenção para a dimensão econômica presente na celebração. Ainda privilegiando
o conflito, Corrêa (2010) se debruça sobre as tensões existentes entre os elementos tradicionais
do Círio como “corda, manto e almoço” e da festa religiosa em si com seus “espaços profanos”.
Alves (2012) e Sousa (2013), do ponto de vista da Comunicação, preocuparam-se com as tensões
advindas da relação da celebração com a mídia televisiva e a Internet.
Como se vê, são muitos os estudos preocupados em compreender a celebração do ponto de
vista do conflito. Nesse texto nos aproximamos dos autores que pensam o Círio a partir dessa
perspectiva e propomos uma compreensão da celebração tendo como ponto de partida os
interesses de diferentes agentes: Diretoria da Festa, devotos e empresas patrocinadoras, presentes
no processo de organização da celebração. Ao longo do texto trabalhamos com a tese de que além
do desejo de controle (MAUÉS, 2005), há um desejo de definição do Círio por parte da instância
organizativa Diretoria da Festa (DF). Esse coletivo, formado apenas por homens, ao longo dos
Círios tenta produzir uma celebração que responda às expectativas da Igreja Católica acerca do que
essa instituição pretende que seja o Círio. Tal expectativa gera uma série de práticas, entendidas
aqui como práticas políticas, que têm como eixo a relação entre sagrado e poder.
Por se tratar de um bem de natureza simbólica, todo processo de gerência da celebração precisa
ser negociado com os demais agentes envolvidos no amplo repertório que envolve o Círio. Assim,
todas as decisões tomadas pela Diretoria em relação ao Círio precisam ser negociadas com os
devotos, com a mídia e, mais recentemente, com empresas que desde 2003 fazem parte da celebração
como patrocinadoras oficiais via modelo instituído pela Diretoria da Festa23.
Evidências do desejo de controle sobre o sagrado se manifestaram no Círio de diferentes formas
ao longo do tempo. Na atualidade, essas tentativas são percebidas de diversas maneiras: desde o
desejo de criar um conceito sobre o Círio, isto é, dizer como ele deve se apresentar e quais ritos
que dele fazem parte, até a tentativa de registro de uma marca para o Círio via Instituto Nacional
de Propriedade Industrial (INPI)24. Saindo do âmbito da DF e da Igreja Católica e partindo de
uma definição ampla e popular, o Círio possui uma série de celebrações “sagradas” e “profanas”
23 Desde 2003 a Diretoria da Festa tem inovado no que se refere à captação de recursos para a realização da
celebração. Iniciou o projeto patrocinador do Círio de Nazaré, uma espécie de profissionalização de patrocínios que
já existiam no contexto da festa, mas que não eram marcados por uma visão empresarial e contratual. Desde então o
projeto vem se especializando a cada Círio no sentido de se tornar mais eficiente.
24 O pedido foi realizado pela Diretoria no início dos anos 2000. Até então não houve decisão.
associadas25, porém, de acordo com a Diretoria, seguindo uma perspectiva eclesial, fazem parte do
Círio apenas as celebrações de natureza religiosa. Tal concepção implica deixar de fora do Círio um
conjunto de ritos e demais eventos que em seu conjunto definem e compõem aquilo que se entende
popularmente como Círio, assim como restringem o “tempo do Círio”.
A partir de dados pontuados ao longo do texto procuramos mostrar que a celebração do
Círio tem sido um instrumento que, de tempos em tempos, é objeto de disputa pelos agentes que
fazem parte da instância organizativa DF e os demais agentes com algum poder de gerência como
promesseiros da corda, empresários, mídia e o povo participante em geral. Tal disputa pelo poder
revela diferentes concepções sobre o sentido do evento enquanto celebração religiosa, patrimônio
cultural, manifestação popular, produto cultural e todas as possíveis atribuições.
Alves (1981) mencionava em sua pesquisa uma “ideologia do controle” por parte da Diretoria
da Festa em relação ao Círio, percebida sempre que o poder da diretoria se encontrava ameaçado
por outros agentes. Trata-se, segundo ele, de uma “retórica” manifestação através de um discurso,
que em determinados momentos traz à tona uma série de ideias preconcebidas sobre a devoção, e
que têm como objetivo afastar qualquer outro discurso que ameace seu controle sobre a devoção.
Pantoja (2006) trabalhou com a hipótese de que a celebração, dada a sua dimensão, constitui
aquilo que Mauss (2003) chamou de fato social total. Nesse sentido, seria possível verificar, no
interior da celebração, sujeitos, interesses, sentidos e intencionalidades diversas. Trata-se de pensar
a celebração do Círio não apenas como um objeto a ser manipulado e apropriado por esse ou aquele
agente, mas como uma coisa, ou, como no dizer de Ingold (2012, p, 29), um “acontecer”, ou melhor,
“um lugar onde vários aconteceres se entrelaçam”.
Isso permite pensar o Círio não apenas como um resultado ou produto de certa agência ou
agências (STRATHERN, 2006), mas como um processo, também político, capaz de mobilizar os
diferentes agentes que dele fazem parte, não apenas como organizadores, devotos, patrocinadores
etc., mas como fios que, via processo Círio, atualizam-se enquanto poder. Nesse sentido, a celebração
não atualizaria apenas a fé do devoto de Nossa Senhora de Nazaré; ela também expressa e atualiza
o Círio enquanto processo de fluxos, fora e dentro de si: fora quando é planejado, formatado e
idealizado pelos diferentes agentes; e dentro de si quando acontece como coisa, autônomo ao ponto
de não se expor aos desejos manifestos dos agentes, as procissões, os autos, feiras e festas na periferia
da cidade – os círios “sem controle”.
25 De acordo com documentos divulgados pela Diretoria da Festa, em 2016 havia 26 eventos associados ao Círio
que tinham a DF como entidade organizadora. No entanto, esse número é maior tendo em vista que a Diretoria não
considera como evento associado uma série de celebrações que não passam por sua gerência.
NO PRINCÍPIO ERA A FÉ...
26 Trata-se de termo mencionado em entrevista por um Diretor da Festa quando se referia ao desejo da DF em não
permitir que elementos da cultura popular como a Marujada tenham grande representação no Círio.
27 Apesar de a Diretoria da Festa ser formada em sua maior parte por leigos, nossas conclusões, a partir de observações de campo, é que estes
não são leigos comuns, pois que os dois diretores com quem mantive diálogos relataram que antes de entrarem na Diretoria já eram experientes
na vida cristã; os dois eram membros de grupos religiosos cristãos como E.C.C (Encontro de Casais com Cristo). Aliás, suponho que ser
“engajado” na vida cristã seja um critério para que um homem seja convidado ou indicado a integrar a Diretoria da Festa.
A seguir, apresento duas situações que ilustram e atualizam o desejo de controle sobre o Círio
e o conflito de interesses entre diretores da festa, devotos e empresários: a) a relação entre Diretoria
da Festa, Guardas de Nossa Senhora de Nazaré e devotos, e b) a articulação entre a celebração e o
mercado, via empresas, por meio do patrocínio oficial.
A criação da Guarda por padre Giovane tem como finalidade tornar o Círio mais católico e
menos “folclórico”, e por folclórico entenda-se popular. Para tanto, o expurgo de certos agentes e
certas práticas religiosas, a exemplo dos “macumbeiros”, são, nesse sentido, fundamentais30.
Se a Diretoria da Festa é a instituição responsável pelo processo de “pensar” a organização geral
do Círio, a Guarda de Nazaré é o grupo responsável por pôr em prática o que fora planejado pela
Diretoria para as procissões, especialmente a do Círio. A Guarda é um grupo de cerca de setecentos
homens, voluntários, responsáveis por quase todos os serviços necessários à realização do festejo
religioso. Na origem, a Guarda tinha como principal função cuidar da berlinda da santa durante as
procissões e do espaço do Arraial de Nazaré para que nele não ocorressem excessos condenáveis
pela Igreja31.
No momento de organização do Círio são poucas, quase nulas, as intervenções dos devotos
no formato do Círio, no entanto, é por ocasião da realização das procissões que eles têm uma
participação ativa e muitas vezes definitiva sobre as procissões à revelia de qualquer organização
pensada pela Diretoria da Festa ou desejo dos patrocinadores.
Mas é também no processo de acontecer que o Círio se faz à revelia de todos e ao mesmo tempo
incluindo todos. A DF e a Guarda se dizem incapazes de controlar os devotos e estes reclamam dos
excessos de diretores e guardas, é nesse movimento que o Círio se faz.
No ano de 2004 a Diretoria modificou profundamente a organização espacial da celebração ao
alterar a disposição da corda ao longo da procissão32. Por meio dos discursos que justificavam tal
alteração à época, pode-se ver como a Diretoria lida com os outros agentes presentes no contexto
do Círio.
Enquanto processo, o Círio envolve a feitura de transações financeiras. Nos últimos anos a
celebração tem tomado o lugar de mercadoria capaz de ser trocada no mercado e por meio disso
se autorrealizar, ao mesmo tempo, enquanto processo religioso econômico e político. Portanto, a
capacidade de ser mercadoria não se dá fora do contexto de ser coisa sagrada. Ao contrário, é por
ser coisa sagrada que pode ser também bem de troca. Os bens de natureza simbólica expressam,
de acordo com Rosendahl (2003, 189), “uma realidade dotada de algum valor, às vezes valor moral
e, na maioria das vezes, um tipo de valor positivo”. A idealização de uma forma de captação de
recursos que pudesse financiar a realização da celebração do Círio e seus vários ritos associados e
33 Muitos Guardas de Nazaré definem os diretores da festa como “poço de vaidades” visto que adoram “ficar dando
tchauzinho” para seus parentes que estão nos prédios olhando a procissão passar.
34 Guardas que gerenciam o trabalho de outros guardas durante os cortejos.
35 Não de trata de força ou coerção física, mas de um domínio privilegiado, que se dá através do poder da Palavra
(ALTHUSSER apud ORLANDI, 1996, p. 242).
36 São termos utilizados por membros da DF para justificar as mudanças na corda.
que pudesse colaborar para as obras assistenciais da paróquia motivou a criação de um projeto que
mudaria a fisionomia e a forma de gestão do Círio: o patrocínio oficial.
Grosso modo, consiste em um contrato entre a DF e empresas públicas e privadas de nível local
e nacional que permite, via pagamento de um valor em dinheiro, que a DF dispense às empresas a
possibilidade de uso comercial de elementos ligados à celebração no mercado secular, como fotos
da imagem da santa, fitas, fotos da corda do círio, das procissões, ou de qualquer outro elemento
de forte associação com a celebração37 em sua dimensão sagrada. Dessa forma, segundo a DF,
ambas “saem ganhando”. As empresas ganham porque associam suas marcas a um bem de alto
valor simbólico com grande potencial de comercialização e a Diretoria ganha ao ter um orçamento
“fixo” para as despesas do Círio, além de se utilizar do nome de grandes e sólidas empresas para
propagandear seu produto, o Círio.
O projeto é considerado um sucesso por seus idealizadores que já não conseguem pensar a
celebração fora do contexto de patrocínio oficializado. Em conversa informal com um diretor, no
ano de 2011, ele dizia não saber o que seria do Círio se não fossem as empresas patrocinadoras.
Desde o lançamento do projeto, em 2003, o número de patrocinadores tem se mantido entre 11 e
18, e as mesmas marcas têm se mantido no negócio. O número de marcas que deseja ter seu nome
associado à celebração é bastante grande, porém, nem todas conseguem dar conta das contrapartidas
exigidas pelos contratos com a DF. Dessa forma, no ano de 2009 foi idealizado e lançado o Projeto
Apoiador do Círio de Nazaré. Tal projeto consiste em trazer empresas para o contexto da festa que
não conseguem arcar com as responsabilidades de patrocinador, mas desejam ter seus produtos
associados à celebração. Assim, as empresas apoiadoras pagam uma quantia menor e também
recebem “direitos” menores sobre o uso da marca Círio 38. Em 2003, quando o projeto foi criado,
a cota do patrocínio oficial estava em torno de R$ 50 mil reais e em 2016 o valor ficou em R$ 85
milhões.
A ideia do patrocínio oficial do Círio surgiu em um contexto de certas mudanças no cenário
religioso brasileiro. O grande crescimento do segmento evangélico confirmado pelo censo do IBGE
no ano 2000 balançou as estruturas que se pensavam sólidas da Igreja Católica. A ressonância desse
abalo foi percebida na Igreja paraense e uma série de mudanças ocorridas no contexto do Círio39
estão relacionadas à perda de fiéis pela Igreja Católica e ao avanço dos pentecostais. O Círio é
estratégico, pois se trata do momento ápice de evangelização para os católicos.
RESUMO
Oartigobuscacompreenderaexpansão,namodernidadelaicaeracional,dasigrejaspentecostais
e carismáticas e compreender como formam uma força política e quais os motivos. Para abordar
tema tão complexo, filia-se a vários campos da Geografia: Cultural e Política, mas também Geografia
Econômica e Geo-história. Procura-se compreender quais processos levaram ao fracionamento
das religiões cristãs históricas, como se formaram os convertidos às religiões pentecostais e se os
convertidos às novas denominações religiosas formam uma força política na atualidade. Considera-
se, como hipótese, que há grupos sociais receptivos às igrejas pentecostais. Uma revisão histórica
do fracionamento das religiões cristãs a partir da Idade Média até o momento contemporâneo
pretende chegar a este grupo, contextualizando-o na cidade-satélite de Samambaia, no Distrito
Federal. Como metodologia, analisa-se o discurso de duas moradoras pentecostais de baixa renda,
com as quais se apresenta o potencial político do pentecostalismo carismático. Conclui-se que o
sentimentoreligiosoproporcionasensaçãodepertencimento,abrigoeumaidentidadepositivaque,
politicamente, traduz-se no número significativo de políticos pentecostais na Capital da República.
Palavras-chave: igrejas pentecostais; religiões cristãs históricas; fracionamento; potencial político
INTRODUÇÃO
A modernidade inaugurada com o Renascimento (meados do século XIV ao fim do século XVI)
resultou de um longo processo, no qual atuaram personagens significativos que trouxeram novas
discussões e novos pensamentos. Para compreender como ocorreram mudanças tão importantes
que ainda impactam o momento presente, deve-se ter em mente as palavras de Sartre quando
escreve
41 A pesquisa de campo, da qual se analisará as falas das duas moradoras de Samambaia, foi realizada em 1995,
durante a elaboração da tese de doutorado intitulada: O MORAR NA CONSTITUIÇÃO SUBJETIVA DO ESPAÇO
URBANO. As representações sociais da moradia na cidade-satélite de Samambaia/DF. Quem trabalha numa tese sabe
que muito material significativo termina não sendo elaborado, mas merece uma análise por sua importância, ou novas
leituras permitem novos olhares sobre material já elaborado. É o caso das falas das duas mulheres, em que o tempo
passado, no qual a pesquisa foi realizada só confirma sua validade no momento presente.
Os homens fazem sua história sobre a base das condições reais
anteriores (entre as quais se podem contar os caracteres adquiridos,
as deformidades impostas pelo modo de trabalho e de vida, alienação,
etc.), mas são eles que a fazem e não as condições anteriores; caso
contrário eles seriam os simples veículos de forças inumanas que
regeriam, através deles, o mundo social (SARTRE, 1987, p.150).
Basicamente, as condições anteriores foram gestadas em três momentos e por três processos:
pelas discussões religiosas, intelectuais e políticas que se fizeram durante o período medieval e
alguns homens que fizeram história e seus momentos serão destacados pelas novas visões que se
formaram na Idade Média; pelas mudanças trazidas pelo Iluminismo e, por último, pelas novas
identidades surgidas (e mantidas?) com o capitalismo nascente.
Ao contrário do que é opinião corrente neste momento laico com predominância do econômico,
não havia uniformidade de pensamento medieval e dentro dos cânones bíblicos considerados básicos,
era possível a liberdade de interpretação e a busca de novas sínteses religiosas. ARMSTRONG (2008)
mostra que conhecimentos religiosos constantemente eram originados dos antigos em críticas ou
em novas interpretações das narrativas sagradas. Ou seja, novas construções intelectuais e místicas
surgiam e desde muito cedo, como na Escola de Alexandria (séculos II e III D.C.), em que cristãos
estudavam filósofos gregos. ARMSTRONG (2008, p. 108) assinala que na Escola de Alexandria, por
exemplo, “Da mesma forma que os rabinos, eles (os cristãos de Alexandria) viam a Bíblia como um
texto inexaurível, capaz de produzir novos significados, interminavelmente”.
A conquista de Roma pelos bárbaros levou as discussões religiosas para os mosteiros. Porém, já
no século VIII, Carlos Magno iniciava a restauração das escolas e a construção de novas que depois
dariam origem às universidades. A influência greco-romana sobre os pensadores medievais na
Baixa Idade Média incorporou definitivamente a razão como elemento importante da interpretação
religiosa, ao lado da fé e do misticismo. As universidades desenvolveram o pensamento lógico e
racional na cristandade ocidental, influenciadas principalmente por Aristóteles, e se chocaram com
o pensamento espiritual dos mosteiros, como na discussão sobre a fé e a razão entre Abelardo
(1079-1142), professor em Notre Dame, e Bernardo, monge cisterciense (ARMSTRONG, 2008). No
século XIII, Roger Bacon pretendia o estudo da Bíblia nas línguas vernáculas e Marcílio de Pádua
contestava o direito da Igreja de ser a única intérprete dos livros sagrados (ARMSTRONG, 2008).
Na vertente política, ainda no século IV, apresentou-se a separação entre a Igreja e o Estado,
com Santo Agostinho, ao se posicionar sobre as palavras de Jesus aos fariseus: “Devolvei, pois, o que
é de César a César, e o que é de Deus, a Deus.” (Mt 22,15-21) 42 (LEHMANN da SILVA, 2016). De
acordo com Lehmann da Silva
42 “Quando eles partiram, os fariseus fizeram um conselho para tramar como apanhá-lo por alguma palavra. E lhe
enviaram os seus discípulos, juntamente com os herodianos, para lhe dizerem: ‘Mestre, sabemos que és verdadeiro
e que, de fato, ensinas o caminho de Deus. Não dás preferência a ninguém, pois não consideras um homem pelas
aparências. Dize-nos, pois, que te parece: é lícito pagar imposto a César, ou não?’ Jesus, porém, percebendo a sua
malícia, disse: ‘Hipócritas! Por que me pondes à prova? Mostrai-me a moeda do imposto.’ Apresentaram-lhe um
denário. Disse ele: ‘De quem é esta imagem e a inscrição?’ Responderam: ‘De César.’ Então lhes disse: ‘Devolvei,
pois, o que é de César a César, e o que é de Deus, a Deus.’” (Mt 22,15-21).
Segundo o ensinamento agostiniano, a cidadania cristã deve ser
entendida como dupla: uma voltada para o corpóreo, externo e mutável
da ordem política, e outra voltada para uma ordem transcendente e
permanente, através da qual a primeira pode ser entendida, explicada e
julgada (LEHMANN da SILVA, 2016, p. 24).
44 Na pesquisa para a elaboração da tese de doutorado, um dos entrevistados assim se denomina, e aos outros na
mesma situação, e expressa seu desamparo: “Agora para quem é da classe baixa, classe pouca [...] Então, acho que
ninguém ajuda ninguém [...]” (PELUSO, 1998, p. 158). Outro entrevistado resume assim a aflição dos mais pobres e
as consequências da pobreza: “Chega aqui, o que acontece? Não consegue emprego, não consegue moradia. Gera o
quê? A miséria, a marginalidade” (PELUSO, 1998, p. 158).
45 Entre os autores, as denominações para as Igrejas Pentecostais não são uniformes. Visto que seus procedimentos
são bastante similares com intenso carisma, militância religiosa, moral tradicional, cultos milagrosos e leitura literal da
Bíblia optou-se, neste trabalho, por denominá-las ora pentecostais, ora carismáticas ou os dois termos juntos.
indivíduo busca colocar-se sob o jugo do melhor governo46.
No Distrito Federal encontram-se igrejas evangélicas tradicionais e igrejas evangélicas
pentecostais de todas as denominações e o mesmo se pode afirmar de Samambaia. Na seção seguinte
vai-se traçar um breve perfil da cidade-satélite e das entrevistadas.
46 Como falou uma respondente que havia fundado uma pequena igreja e reunia seus vizinhos: “A gente ora e se
protege, porque aqui é uma bandidagem só” (PELUSO, 1998). No DF foram encontradas muitas igrejas pentecostais,
o que não significa que não possa haver outras como, por exemplo: Assembleia de Deus, Comunidade Cristã da Fé,
Igreja Episcopal Apocalíptica, Sara Nossa Terra, Igrejas Plenitude de Deus, Igrejas Betel Brasileiras.
RELIGIÃO E POSITIVAÇÃO DAS IDENTIDADES: A VISÃO POLÍTICA DA
ESPACIALIDADE
“Pode falar a verdade, filha! Nós era pobre que nem Jó!”
(Mãe do Sujeito A)
“Ainda hoje a gente é, mãe.”
(Sujeito A)
A semelhança com o personagem bíblico Jó, que recuperou seus bens e a estima do povo por
manter a fé em Deus, é sugestiva, pois cria uma esperança de futuro em vidas que se repõem iguais,
não importa o espaço em que se encontrem. A expressão tem uma conotação simbólica de redenção
futura que perpassa o discurso da pobreza.
Quando, no lugar de origem, a pobreza não é sentida tão agudamente, o sujeito percebe que
deslizou na escala de valores e, agora na cidade, localizou-se num lugar socialmente muito baixo.
A casa de antes da migração para Brasília fornece o parâmetro da reposição de condições de vida
que não melhoram. O pai migrou também e a casa do passado desapareceu, mas para o Sujeito B o
passado está sempre presente como uma comparação para um presente de dificuldades:
Olha, na casa dos meus pais lá... quintal é bem grande e outra, que tudo
era muito grande. Quintal bem grande, frutas, coisas assim. Em Caxias
do Maranhão. Agora, aqui ... (Sujeito B)
Então, para mim, lá fora não tem nada porque tudo o que está
acontecendo a gente está vendo que se está cumprindo o que está
escrito na Bíblia. Então, a gente que está lá dentro... O povo hoje...
Então, cada vez que vai passando o tempo, vai aumentando as coisas.
A gente convive, assim, a gente sabe, entendeu, o outro lado. Está na
Bíblia, tem que cumprir. (Sujeito B)
Escreve Eliade (1992, p.22), que “quando o sagrado se manifesta por uma hierofania qualquer,
não só há rotura na homogeneidade do espaço, como também revelação de uma realidade absoluta,
que se opõe à não-realidade da imensa extensão envolvente”. Essa manifestação, inclusive, permite
ao Sujeito B dizer que “lá fora não tem nada”. Para que o espaço se sacralize não é necessária a
restrição ao território do templo, pois o “dentro” está em cada fiel e ele o porta, como símbolo de
sua diferença, onde quer que esteja.
Como o sagrado se manifestou para a respondente B, como ela o porta dentro de si e estabelece
a diferença com o povo que está lá fora? A conversão ocorreu num momento de sofrimento, em
que sentiu faltar-lhe apoio de quem deveria atendê-la, como numa doença, principalmente se seu
comportamento até esse momento se pautou justamente pela falta da moralidade atribuída aos
pobres. Na biografia dessa respondente se entrelaçam o desamparo, o desejo de atenção, a identidade
deteriorada e o encontro com Deus, que a dota com uma identidade positiva pelo abandono daquilo
que a estigmatizava:
O que fez eu entrar nessa religião foi um problema que deu em mim.
Passei a noite desmaiando e vomitando, passando mal. Me levaram
para o hospital. Eu tinha ido para a casa de minha mãe, no Varjão.
Lá dentro, tomando umas e outras, comendo frango assado (eu bebia
muito, não sabe?), passei mal. Me levaram para o hospital. O médico
fez lá uns exames e disse que eu não tinha nada. Aí, chegou uma crente
e disse: “Vamos lá para a igreja. Deus tem uma benção especial para te
dar e Ele vai te curar.” Eu fui, não senti mais nada. Comecei a fazer uma
limpa. Larguei da vida, de roupa, aquelas coisas imundas que eu usava,
as coisas do mundo. (Sujeito B)
Ela supera a situação conflitiva e a identidade deteriorada pela religião, pois é proibido aos
fiéis aquilo pelo qual “a classe baixa, a classe pouca” é identificada: a bebida, a festa, a diversão,
a ociosidade. Converter-se para esta fé permite ao indivíduo estigmatizado mostrar que, em sua
“carreira moral”, na expressão de Goffman (1988), incorporou referenciais diferentes daqueles que
o cercam. O crente incorpora uma identidade positiva e desestigmatiza-se, pois já não possui aquele
estigma particular, a falta de moral.
A modernidade trouxe a descentração do indivíduo, o fracionamento das interpretações dos
textos sagrados, a multiplicidade de ideias, a individualização. Mas, a modernidade trouxe também
a noção de conforto nesta vida, como escreve Bruckner
Porque que eles deveriam... porque tem muita terra... O povo acha que
é dono de tudo, não é dono de nada. Deus fez a terra para a gente.
Inclusive está na Bíblia, está escrito que Deus falou: ‘Crescei, enchei
e povoai a terra’. No entanto, os homens tomaram conta de tudo, o
povo tomou conta de tudo. E estão ali as pessoas sofrendo. Muita gente
morando de aluguel porque não pode ter uma casa própria. Uns não
podem comprar por causa do salário, só dá mesmo para cuidar da
família. E outros estão ali, tentando ganhar um lote. No entanto, eles
não deram... Para mim é uma humilhação isso. (Sujeito B)
Pela leitura da Bíblia, os despossuídos percebem que, na Cidade dos Homens, muito foi dado
a César e muito pouco ao povo de Deus. No vínculo entre a religião e fatos econômico-sociais, o
indivíduo religioso está de posse de uma nova maneira de ver o mundo, que redefine a espacialidade
dos mais pobres e permite-lhes reivindicar, em nome da palavra de Deus, a terra apropriada e não
distribuída e dar uma versão política aos problemas da população de baixa renda. A esfera-mundo
toda foi apropriada e nada foi distribuído entre os pobres e humilhados.
47 Na Câmara Legislativa do DF, em 2016, 29% das cadeiras eram ocupadas por representantes das igrejas evangélicas de
seis denominações diferentes: Abençoando Nações do Brasil, Comunidade das Nações, Sara Nossa Terra, Igreja Batista, Igreja
Universal do Reino de Deus, Igreja Mistério da Fé e muitos admitem ter as igrejas como bases eleitorais e a reivindicação dos fiéis
como objetivo de suas ações (TEIXEIRA e COSTA, 2014).
E AGORA, COMO CONCLUSÃO, UMA PERGUNTA
ARMSTRONG, K. A Bíblia (uma biograf ia). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2008.
LEEDS, A.; LEEDS, E. A sociologia do Brasil urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
RESUMO
As relações entre território, religião e geopolítica parecem assumir um papel central no mundo
contemporâneo. Tento contribuir para o debate a partir de uma pesquisa em Belém do Pará sobre
o território e a identidade de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, os mórmons.
Instrumentalizadoporentrevistassemiestruturadas,observaçãodecampo,pesquisadedocumentos
oficiais da religião por uma interpretação que tenta articular estrutura e fenômeno existencial,
concluo que a expansão territorial mórmon segue um padrão espacial metropolitano em Belém do
Pará e se aprofunda – ganha agregação corpórea – na dinâmica de reelaboração subjetiva dos Santos
dos Últimos Dias (SUD); a identidade mórmon remonta sua geo-história em negociações frutíferas
e tensas com novos grupos culturais em busca de expansão; o território mórmon é realizado por
um dinâmica incontornável entre domínio e apropriação, para sustentar a unidade tensa do grupo.
Palavras-chave:GeografiadaReligião;AIgrejadeJesusCristodosSantosdosÚltimosDias(Mórmons);
Belém do Pará.
INTRODUÇÃO
A religião é a grande questão geopolítica do nosso tempo. Não uma ou outra religião, mas as
religiões em sentido relacional. Exigindo uma reflexão geográfica que seja sensível a este contexto
político cujas religiões não são epifenômenos, mas participam na constituição e nas causas
organizativas do mundo político, social e cultural muito mais do que gostaríamos admitir em
tempos de desencantamento de mundo (WEBER, 2014) e de mal-estar civilizatório (FREUD, 2011).
Se a geopolítica diz respeito ao controle estratégico dos espaços – o que, também, implica
sua (re)criação simbólica imaginada como transcendental – é preciso inscrevermos a dinâmica
geohistórica e a geoestratégia expansionista (ou de contenção de perdas) e, inevitavelmente, os
conflitos, disputas, associações e convivência das religiões na ordem do dia da reflexão geopolítica
contemporânea (AGNEW, 2006).
Proponho interpretar as relações entre território e identidade partindo de uma religião
específica – A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, os “mórmons”, em Belém do Pará
(Brasil). A escolha dos mórmons vai ao encontro da discussão entre geopolítica, espaço religioso
e existência individual/coletiva. Possibilita um debate transterritorial dado o caráter transnacional
desta religião, problematizando alguns elementos da geografia a partir do fenômeno religioso em
48 Uma versão ampliada deste artigo serviu de base à comunicação ocorrida no evento Descentered Mormonism, na
Universidade Bourdeux-Montagne, em março de 2019. O texto é uma síntese da pesquisa de mestrado que resultou na
dissertação Território e Identidade: a experiência mórmon em Belém do Pará.
contexto amazônico (PANTOJA, 2011).
Em termos geográficos, as pesquisas sobre o mormonismo, classicamente, estão centradas na
paisagem e na região cultural (MEINIG, 1965, 1972; ROSENDAHL, 2003), com destaque para
sua territorialização nos Estados Unidos. Entretanto, há lacunas na articulação entre geopolítica e
sentido do fenômeno religioso construído pelos membros em países culturalmente diversos.
Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 50 Santos dos Últimos Dias (SUD)49,
diálogos temáticos com líderes em Belém do Pará, interpretação de documentos oficiais do grupo
e observação de campo. A questão central é como a identidade dos Santos dos Últimos Dias (SUD)
se articula ao seu projeto geopolítico de expansão territorial em Belém do Pará?
Inicialmente discuto a formação geohistórica da identidade mórmon. Em seguida, explicito
sua territorialização em Belém do Pará e, por fim, busco interpretar esta territorialização tendo em
vista uma geopolítica de expansão que vai do indivíduo ao mundo.
A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (IJCSUD) surge no início do século XIX
em Nova Iorque, através da revelação de um anjo a Joseph Smith, o primeiro presidente e profeta
da igreja. A ele foi revelado traduzir um conjunto de placas de ouro enterradas no Monte Cumora
(IJCSUD, 1996), que resultaram no Livro de Mórmon – Um Outro Testamento de Jesus Cristo
(Janeiro de 1830) e Doutrinas e Convênios que, juntamente com a Bíblia, são considerados os
pilares escritos dos SUD (PANTOJA, 2011).
A elaboração do livro revelado, segundo Sachs (1988, p. 163):
49 As entrevistas foram realizadas no âmbito do projeto de mestrado (2009-2011) complementadas por outras realizadas
anteriormente (2005). Santos dos Últimos Dias (SUD) é como os membros da igreja se denominam.
Desde a formação dos mórmons50, sua postura revelava um conflito territorial triádico –
entrincheiramento comunitário dos “Santos”; necessidade de proteção das perseguições de religiões
já estabelecidas; deslocamento/expansão territorial para constituição do “Reino de Deus” (MEINIG,
1965). No plano sociopolítico, havia questões sérias de ordem civil, por exemplo: a poligamia, como
elemento bioterritorial, chocava-se com a legalidade puritana e com a jurisdição civil estadunidense.
A marcha estadunidense ao Oeste será realizada pelos SUD como uma espécie de “povo
pioneiro”, tanto como fuga quanto busca de novas terras para constituição do território de segurança
que se espacializa em região cultural (MEINIG, 1965). Tal dinâmica não se faz sem o contexto
espacial, a negociação escalar e o projeto de mundo:
a) O contexto espacial: a expansão do território areal estadunidense, diferente do padrão
reticulado nos princípios da afirmação do grupo. Isto implicava a desterritorialização de grupos
nativos americanos, a organização de uma sociedade branco/cristã em guerra com o México , cujo
espaço do futuro estado mórmon de Utah, pertencia;
b) Negociação escalar: este “êxodo territorial” dos mórmons refletirá uma forte ambiguidade
na relação do grupo com a sociedade americana – por um lado, são expulsos de diversos lugares
de maneira violenta, por outro serão convocados à “guerra duplicada” que o governo americano
vai realizar: contra os nativos ou povos originários do território e contra os detentores de parte do
território a se conquistar, no caso, os mexicanos;
c) Projeto de Mundo: O projeto de constituição da “Nova Jerusalém” antecipada pelos profetas
(Nosso Legado, 1996), às margens do Lago Salgado e emoldurado pelas Montanhas Rochosas será
recorrente no imaginário mórmon. Na fala de um viajante americano – reproduzido em livros
distribuídos na igreja – em meados do século XIX:
50 Não é importante, aqui, confrontar uma verdade factual como verdade histórica e sim revelar a historicidade como fonte de
verdade para os SUD. Para confrontação com essas verdades há uma gama de estudos científicos que contrariam a possibilidade
de um grupo ter vindo da Palestina para a América e refundado a civilização nos moldes egípcios, como uma linguagem derivada
dos hieróglifos, como sustentam os mórmons, publicando inúmeros artigos que esquentam este debate. (Cf. Foundation for
Ancient Research and Mormon Studies, baseada na Universidade Brigham Yong, Salt Lake City, Utah, Estados Unidos, 2010).
51 Terras que o Senhor promete como herança a seus fiéis seguidores e frequentemente também aos descendentes
deles. Existem muitas terras prometidas. No Livro de Mórmon, a terra da promissão várias vezes mencionada é o
continente americano (GUIA PARA O ESTUDO DAS ESCRITURAS, 1995, p. 200).
O espaço emergente desta confluência de contexto, negociação e projeto
é uma região cultural adensada por paisagens, marcas e matrizes de
significados52 para o grupo (BERQUE, 1999), “onde os santos poderiam
viver sem contato com os gentios” (MEINIG apud ROSENDAHL, 2003,
p. 218, grifos meus). Segundo ROSENDAHL (2003, p. 218).
A área de Salt Lake é marcada por uma homogeneidade interna de inúmeros códigos culturais,
que, combinados entre si, favorecem ao geógrafo reconhecer a área em estudo como uma região
cultural mórmon. Considera-se como região cultural um tipo de área que revela, no plano espiritual
e no plano material, uma concentração de representações simbólicas da cultura, vivida de modo
coletivo por um determinado número de indivíduos.
Tanto para os que vivem na região cultural, quanto para os que vivem fora dela – mas partilham
o pertencimento ao grupo – as várias paisagens, itinerários, lugares mórmons se constituem como
geossímbolos (BONNEMAISON, 2002) que reforçam sua identidade. Obviamente, uma região
cultural é produzida por um grupo de hegemonia regional que, de maneira nada sutil, domina
o espaço53. Por outro lado, além da constituição da região cultural saturada de geossímbolos, há
também a criação de uma fronteira imaginária religiosa, vagamente referida por Rosendahl (2003),
mas diretamente abordada por Cernadas (2008; 2009) e Pantoja (2011).
Cernadas e Pantoja reforçam o caráter plástico e criativamente apropriado de elementos
religiosos em novos contextos – seja na província de Formosa (Argentina), seja em Belém do Pará
(Brasil). Espaços da expansão mórmon na América Latina, iniciada nos anos de 1930, mas efetiva
nos anos de 1980 e 1990. As fronteiras da imaginação (CERNADAS, 2009) dizem respeito tanto à
posição dos “nativos” diante da expansão mórmon, sua reapropriação imaginativa dos elementos
do mormonismo por sua cultura, quanto esta tensão entre ethos religiosos que organizam relações
individuais/coletivas no/do espaço.
Assim como o “Oeste Americano”, os SUD vão expandir sua atuação socioespacial para fronteira
da civilização ocidental ou, para problematizar uma lógica autocentrada, vão expandir seu centro
sobre outros centros, aproximando-se de povos que seriam remanescentes das nações presentes no
Livro de Mórmon – os indígenas, antes norte-americanos e agora sul-americanos54.
A identidade em êxodo territorial será fundamental, na medida em que orienta um sentido de
expansão como revelação divina; consolida espaços geossimbólicos saturados de referências para
o grupo e, por oposição/relação, para os “gentios”; produz comunidades entrincheiradas (embora
permeáveis aos novos membros); articula-se em rede transnacional e é apropriada diferencialmente
(logo, não sem conflitos) pelos membros nos espaços de atuação com forte presença missionária e
planejamento espacial centralizado.
Identidade é um conceito escorregadio. Porém, penso a identidade como projeção intencional
do indivíduo e seu coletivo ou grupo em contexto. Se a subjetividade é uma perpétua projeção: o
52 “[...] por um lado ela [a paisagem] é vista por um olhar, apreendida por uma consciência, valorizada por uma
experiência. Julgada (e eventualmente reproduzida) por uma estética e uma moral, gerada por uma política, etc. e, por
outro lado (...) determina em contrapartida, esse olhar, essa consciência, essa experiência, essa estética e essa moral,
essa política, etc”. (BERQUE, 1999, p. 86).
53 O Oeste Americano (por si só uma referência espacial vaga, ambígua e logocêntrica), era muito mais diverso
culturalmente do que uma só região cultural poderia explicitar, por esta hegemonia saturada e ainda presente, podemos
supor ausências (MERLEAU-PONTY, 1999) e extinções culturais nada pacíficas.
54 O conteúdo contraditório e imperialista deste processo fortemente ideologizado pela ideia de que os indígenas
seriam “irmãos mórmons” será desenvolvido em outro trabalho.
homem que se repete indefinidamente e, contraditoriamente, não cessa de inovar, pelo fato mesmo
de inventar a si próprio (SARTRE, 2015), a identidade se configura na elaboração consciente e
subjetiva (logo, social e individual), tendo em vista a expressão de elementos numa repetição/
inovação contraditória e em sedimentação (HUSSERL apud BELLO, 1998). A subjetividade como
mediação “só pode tratar-se da projeção do ser de aquém sobre o ser de além. O que nos dá então a
possibilidade de compreender em que a subjetividade é indispensável para o conhecimento dialético
do social” (SARTRE, 2015, p. 55). A identidade sendo uma expressão desta subjetividade relacional
que, no plano coletivo se torna intersubjetividade politicamente mobilizada.
Concordo com Cuche (1999) no sentido de que a identidade exprime uma norma de vinculação
consciente e remete às relações de oposição, portanto, socialmente contextualizadas, que implicam,
ao mesmo tempo, vinculação e separação, pertencimento e diferença. Porém, o autor deplora a
subjetividade – ele chama de concepção subjetivista – do processo de constituição da identidade,
do que discordo. Entendo que a subjetividade, como exposto em Sartre (2015) é central para
constituição e manifestação da identidade.
A identidade pode ser fonte de significados (CASTELLS, 1999), mas não o é sem um ato dos
indivíduos que, ao subjetivarem seu contexto, (re)criam por repetição/inovação sua mediação
com o mundo – tanto simbolicamente, quanto emocionalmente, o que pode carregar um aspecto
não racionalizável ou mesmo não plenamente consciente (GONZÁLEZ REY, 2002). O território
que lhes pertence e do qual os mórmons sentem pertencer, fundamenta assim sua identidade –
relacional e situacional (CUCHE, 1999), sem menosprezar o emocional.
O quadro 1 sintetiza os elementos discutidos para apresentação da identidade religiosa dos
SUD. Obviamente, não esgota os elementos que constituem a identidade, mas são centrais para sua
intepretação, sobretudo em sua dimensão territorial, na medida em que muitas identidades têm no
território um de seus fundamentos básicos (HAESBAERT, 1999). Embora, diferentemente do autor,
nossa experiência de pesquisa exponha que muitos elementos identitários têm expressão espacial –
não estritamente territorial, de modo que a relação entre Identidade e Território, não é simétrica e
autoevidente quanto o conceito Identidade Territorial55 tenta constituir.
55 Haesbaert se coloca a questão (1999, p. 178): “Pode parecer uma contradição utilizarmos o termo ‘identidade
socioterritorial’, pois acaso o território não é sempre uma entidade social? Ocorre que nem toda a identidade [...]
tem no território um dos seus fundamentos de construção”. Obviamente, esta observação não resolve a questão da
articulação assimétrica e intencional entre identidade e território por parte de um grupo, que não cabe num quadro
bipartido entre identidades não socioterritoriais e identidades socioterritoriais que o autor evoca.
Quadro 1: Relação entre Identidade e Território dos Santos dos Últimos Dias
Construções Identitárias Dimensão Territorial
O povo eleito por Deus para refundar Comunidade entrincheirada – autossegregação e/ou “êxodos territoriais” por
o Evangelho perseguição político-religiosa; Imaginário de “fronteira” entre os santos e o
mundo.
Cristianismo na América pré- Expansão [extermínio] e assimilação negociada de povos nativos indígenas –
colombiana tanto norte-americanos quanto sul-americanos no espaço de atuação da religião;
compreensão de uma pátria de Santos dos Últimos Dias transterritorial e
transhistórica.
Culto aos Fundadores e aos Livros Construção de geossímbolos tanto em espaços altamente controlados pelo
Sagrados mormonismo (Ex. Salt Lake City) quanto em espaços pontualmente controlados
(Ex. Belém do Pará).
Forte hierarquização – obediência às Planejamento espacial dinâmico, com subdivisões em Ramos (pequenos
lideranças (o Presidente da Igreja é grupos), Alas (reunião de ramos), Estacas (reunião de alas) e Missões (escritórios
considerado profeta vivo) regionais e/ou nacionais diretamente ligados à Presidência Mundial).
Mobilidade Espacial como revelação Forte trabalho missionário, através do “Élderes” (jovens entre 18 e 26 anos que
divina divulgam a religião por dois anos ininterruptos), buscando espaços de atuação
no planeta inteiro, para constituir ramos, alas, estacas e missões – constituição
de um território-rede.
Puritanismo e (Norte) Americanismo Que se revela em diversos elementos da religião, mas enfatiza-se o caráter
retilíneo e sóbrio das construções do grupo, como Capelas e Templos, com clara
referência ao modernismo e ao estilo arquitetônico do Meio-Oeste americano,
além de uma retórica fortemente territorial.
Tabus alimentares e corporais Expressão imagética ligada à brancura (Puritanismo) e corporificação da santidade
que possibilita um “padrão santo” que explicita uma unidade amplamente
reproduzida em representações dos SUD. Inclui aí um cuidado extremo com
o corpo, a aparência e evitando bebidas ou substâncias “entorpecentes”, como
refrigerantes à base de cola e guaraná, além da proibição do café.
Atualmente, 226.509 membros da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (IBGE,
2010) residem no Brasil. No Pará são 5.615 membros residentes, a sua imensa maioria na capital,
Belém. Na contagem dos líderes os SUD – entre ativos e inativos – somam mais de 10 mil56
(PANTOJA, 2011).
A presença mórmon em Belém remonta ao final dos anos de 1970 e início de 1980, quando um
pequeno grupo de pessoas reunidas no Distrito Industrial de Icoaraci, recebeu instruções de um
missionário mórmon57. Forte trabalho missionário foi desenvolvido nos anos de 1980 e 1990. Esta
expansão territorial cria fricções inevitáveis no indivíduo e suas redes de afeto, o que fica evidente
na fala de um membro, que é representativa do conjunto: “Minha família estava indo para esta
igreja nova e eu não me permitia, isto gerava uma dificuldade na relação familiar”58.
A emergência missionária cria tensões familiares, de vizinhança, e mesmo do indivíduo
56 Na pesquisa estava mais preocupado com a visão específica dos mórmons sobre si mesmos, o que levou a uma
superestimação dos números do grupo no Brasil. Entretanto, conhecendo a metodologia do IBGE para aferição por
amostragem, não é demais supor que um número superior a 6.000 membros, mas bem inferior a 10.000 (já que os
líderes contam com membros ativos e inativos) seja mais provável.
57 Entrevista com Davi P. dos Reis, em 2005, então patriarca da igreja em Belém do Pará.
58 Entrevista com Davi P. dos Reis, em março de 2005, quando meu interesse sobre a relação entre religião e
geografia foi desperto. Pude realizar nova entrevista em 2011.
com ele mesmo, já que a religião introduz elementos identitários (cf. Quadro 1) muito marcados
espacialmente e em franca conflitualidade com religiões cristãs já estabelecidas ou modos de viver/
identificar-se. A estrutura territorial emergente segue um modelo que hierarquiza Missões, Estacas,
Alas, Ramos e Templos.
A Missão funciona como escritório/base de coordenação, garantindo a ação dos missionários,
conhecidos como “Élderes”, provendo seu sustento e disciplinando sua atuação; o Ramo se estabelece
quando já há um grupo de famílias para prover os serviços e a manutenção da igreja organizada59,
enquanto a Ala é um agregado de Ramos. Normalmente a criação da Ala supõe a construção
da capela mórmon para reuniões chamadas de “Sacramentais”, mas também para encontros de
sociabilidade comunitária. Por fim, a Estaca é um agregado de Alas; indica a consolidação efetiva
da igreja e é “ponta de lança” para novos movimentos de expansão (PANTOJA, 2011).
O templo é um espaço à parte. Não é de trânsito livre. Espaços sagrados altamente especializados,
somente neles rituais determinados podem ser feitos. “Os templos não são abertos ao público. Eles
se destinam à realização de ordenanças sagradas, tendo em vista a salvação dos vivos e dos mortos.
As principais cerimônias são os batismos, as investiduras, os casamentos, os selamentos”60 [...]
(SMITH, J. F., 1998, p. 306).
Os templos são marcadores da importância que a igreja atinge no território nacional e seu
efeito na construção da identidade dos SUD é explícito:
Como em Belém do Pará não há constituição de região cultual, a exemplo de Salt Lake City,
as capelas funcionam como “nós” em um território descontínuo em expansão. Possuem dimensão
social e simbólica (BONNEMAISON, 2002) imbricadas do ponto de vista geocultural, em que a
experiência dos sujeitos é partilhada e (re)significada em relação à memória e ao território mórmon
em expansão63.
A construção das capelas depende de vários fatores (disponibilidade e valor do terreno, facilidade
de acesso pelos SUD), como no caso dos templos, porém, a escala quantitativa e a possibilidade de
expansão em dado bairro, cidade ou estado, por parte da igreja, parece ser preponderante (segundo
entrevista com o Presidente da Missão Brasil-Belém, Presidente Campos, em 13.05.2011).
O lançamento da pedra fundamental é um ato simbólico importante, uma repetição da
cosmogonia – entendida como a história do(de) deus(es) – que refunda o próprio território
enquanto sagrado. Há uma cerimônia que retoma a geo-história do grupo
63 Geertz (1989, p. 104), coloca a questão nestes termos: “[...] a noção de que a religião ajusta as ações humanas a uma ordem
cósmica imaginada e projeta imagens da ordem cósmica no plano da experiência humana não é novidade”. E questiona que
ainda não está empiricamente esclarecido como este milagre [ajuste entre relações humanas e ordem cósmica] ocorre. Ao que
acrescento: e na Geografia, como ciência empírica, ainda há muito por se fazer para compreender este “milagre” no contexto
geopolítico das religiões.
Essa instalação implica um comprometimento com a “visão de mundo”, que não é apenas
deste mundo; possui uma solução de continuidade com o transcendente, como Eliade nos ensina.
Uma das perguntas fundamentais feitas a um possível novo membro é se ele crê e se compromete
com a visão do grupo e participará de sua constante ritualização/reatualização semanal na reunião
dominical (PANTOJA, 2011).
As capelas, como “nós” territorializados, partilham muitas outras funcionalidades. Algumas
são centros de estudo da doutrina, todas oferecem seminários para membros novos e antigos,
outras funcionam como centro de história da família (o estudo genealógico é fundamental para
o grupo), entre outras funções burocráticas necessárias ao funcionamento do território como um
todo64 (PANTOJA, 2011).
Estes espaços, evidentemente, configuram campo de sociabilidade e saturação simbólica,
rearticulam a vida dos SUD, especialmente os novos membros, em conformidade com a orientação
geral da identidade territorial.
64 Dados levantados a partir das entrevistas com lideranças, realizadas entre fevereiro e maio de 2011.
65 Sister Freitas, missionária de Igreja, em entrevista realizada em 19.03.2011).
66 A. da S. O., 61 anos, em entrevista realizada em 29.04.2011.
67 P. M. de A., 27 anos, em entrevista realizada em 29.04.2011.
Quadro 2 - A Igreja como referência imediata no processo de identificação
Referências Respostas dos Entrevistados
Frequência às Todos frequentam ou tentam frequentar todos os domingos: “Porque o domingo é o
reuniões (sobretudo primeiro dia da semana, quando nós viemos à capela; é uma preparação para a semana
aos domingos) toda. Pode perguntar para qualquer santo, quando ele não vem à capela no dia de
domingo é como se ficasse faltando algo” (R. F., entrevista em 29.04.2011)
Lugares de Dentre os entrevistados, 34 foram explícitos na modificação dos lugares que
Frequência frequentavam, deixando de ir a praias, bares, festas noturnas, casas de show, sobretudo.
Os demais, assim como estes, embora não tenham deixado de ir a determinados
lugares, seja porque continuam hoje (1) ou porque nunca foram muito (15), afirmaram
que passaram a dedicar mais tempo às atividades e encontros na capela de sua Ala.
Tabus alimentares Dos entrevistados, 35 afirmaram a importância de manter o corpo são, não tomando
e corporeidade café ou qualquer tipo de substância “entorpecente”, além da importância da castidade
santificada antes do casamento. É importante ressaltar que esta não era uma pergunta direta na
entrevista. Aparecia nas respostas a primeira pergunta que tinha por premissa saber
se os membros acreditavam que eram diferentes dos membros de outras religiões e
o porquê. Se isto é completamente verdadeiro para cada um é irrelevante aqui. A real
importância está em como eles se representam para si e para os outros.
Obediência aos Todos ressaltaram obediência aos mandamentos e/ou aos líderes, na pergunta que
Mandamentos/Líderes versava sobre “quais os princípios mais importantes para o membro da igreja seguir”.
Os não-membros entrevistados (3), falaram da sua postura quando eram membros
ativos, neste caso.
Elaborado por Pantoja (2011), a partir de 50 entrevistas realizadas, entre 2005-2011.
A geopolítica68 nasceu de sua relação entre Estado e Espaço, especialmente relação entre
militarização e um território a conquistar – em busca de expansão e controle, logo, exercício de
poder (CASTRO, 2011). Não é difícil perceber os limites desta geopolítica na contemporaneidade
(VESENTINI, 2000; SANTOS, 2011), de modo que é preciso esclarecer que há outros agentes
espaciais que constroem sua geopolítica (VESENTINI, 2000).
Becker (2012, originalmente 1988, p. 117), afirma que “Cada vez mais o controle do espaço é
utilizado como forma de alternativa de controle social. O modo pelo qual o espaço é apropriado e
gerido e o conhecimento desse processo constituem, ao mesmo tempo, expressão e condição das
relações de poder”.
Concordo com a geógrafa, mas eu destacaria que o controle do espaço não é apenas uma forma
alternativa de controle social, mas a forma e o processo de controle social contemporâneo. A forma
supõe um projeto – no caso dos SUD, o projeto que vai do indivíduo ao mundo. Enquanto processo,
há um conjunto de estratégias para territorialização geo-histórica, não sem conflitos, no espaço de
relações humanas.
As religiões não são Estados69, embora possam ser reconhecidas como instituições ou
associações congregacionais (WEBER, 2012). Não são monolíticas e seus membros não são
fantoches – embora esta leitura seja possível – determinados por um poder “superorgânico”. Há
negociações, reelaborações e recontextualizações de estratégias e/ou diretrizes na medida em que se
68 Para uma compreensão epistemológica da geopolítica e da geografia política cf. Becker (2012); Castro (2011); Vesentini
(2000); entre outros.
69 É possível questionar as características que aproximam Estado e Religião, o mesmo se dando em estados teocráticos, como
o caso emblemático do Vaticano, mas vamos conservar esta diferenciação como componente interpretativo e, portanto, de forma
limitada neste artigo. Porém, a questão está em aberto.
busca territorialização planetária, em espaços diferentes daquele que, originariamente, se constituiu
a religião.
A forma-projeto que consubstancia a geopolítica mórmon se caracteriza pela expansão como
revelação da verdade do grupo (PANTOJA, 2011). Ou seja, o movimento é centralmente planejado
– da sede em UTAH – mas contextualmente efetivado nos lugares via modelo Ramo-Ala-Estaca-
Missão.
Em Belém do Pará este avanço segue a expansão da metrópole, de modo que há busca por
terrenos em áreas de ocupação novas, mas com infraestrutura de transporte e comunicação. O
território não se dá por contiguidade, é fragmentário em relação a outros espaços, como a região
cultural em Utah. Todavia, há uma direção de expansão que são os eixos do próprio movimento
metropolitano: a BR-316, no sentido dos municípios de Ananindeua, Marituba, Benevides e Santa
Isabel. As rodovias Augusto Montenegro e Artur Bernardes, que levam aos distritos de Icoaraci e
Outeiro, onde são construídas as novas capelas.
Uma coisa que eu não gostei muito também, é que cada missão eles te
barravam um pouco de tu te envolver um pouco mais [com as pessoas].
A Igreja é muito fria nisso. Então fica uma coisa tão cheia de regras, tão
planejada, tudo tem que ser de acordo com a palavra da Igreja. Eu já
não achei muito bacana70
A alusão à “guerra santa”, contra o mundo, contra o mal, contra os SUD que se afastaram da “igreja
perfeita”, produz uma série de ações – tanto coletivamente hierarquizadas, quanto individuais. Vão
desde programas de ações sociais para criar canais de comunicação com a sociedade, passando pela
“Obra Missionária”, com centros de treinamentos de jovens em todo o mundo, até o maior centro
de genealogia que existe no planeta, para buscar a “história das famílias” e garantir o batismo dos
mortos, através de seus parentes vivos, o que ocorre no templo. Esse é num exemplo de imanência
e transcendência geo-histórica do território corporificado nos indivíduos que exercem ativamente
essa geo-história (MERLEAU-PONTY, 1999; CSORDAS, 2008).
Subsumir os indivíduos – sua relação intersubjetiva na construção relacional e diferencial
(CUCHE, 1999; HALL, 2006) em contexto geo-histórico – à visão monolítica de instituição
impessoal, empobrece a dinâmica desta “guerra santa”, que se dá entre as religiões e dentro delas
próprias, o que revela o caráter social, associativo e subjetivo.
O sentido que estabeleço aqui para “guerra santa” – tendo como referente empírico os
mórmons – é a guerra de projetos geopolíticos de religiões diferentes que se territorializam umas
sobre as outras e que convocam seus membros a se afirmarem frente a outros; dessacralizando
outros sagrados; dessantificandos outros santos (portanto desabsolutizando a relação entre sagrado
e profano como queria Durkheim [2003]).
Porém, na medida em que as relações geográficas são vividas, a guerra se complexifica porque
o outro, como rosto (LÉVINAS, 2010), coloca-se como irredutível ao meu olhar (e à vontade de
apreendê-lo) emergindo tensas negociações, violências gritadas e/ou silenciosas, mas também
diálogos e questionamentos pessoais sobre o sentido de “ser santo” na relação consigo e com o
outro. Uma tensão absoluta que é pessoal e coletiva, objetiva e subjetiva, interna e externa, em
carne e imaginada. Trajetada71 dinamicamente na paisagem (BERQUE, 1985) e na composição de
formas-projetos geopolíticos no espaço.
Ao redor do mundo, 148 templos mórmons estão em funcionamento. Onze estão em construção72
e há incontáveis capelas para abrigar Ramos-Alas-Templos. Seguramente, em Belém do Pará, o
número de capelas saltou entre 2011 e 2015. São cerca de 14 milhões de SUD no mundo, segundo
o site da Igreja, dado que pode estar superestimado. A capacidade de investimento em construção
e comunicação é exponencial e os fundos financeiros mórmons são conhecidos no mundo e no
71 Para Berque (1985) a constituição do meio ambiente não é nem só subjetiva nem só objetiva, mas transcende dinamicamente
esta dicotomia numa relação de autoprodução entre grupo/indivíduo e espaço. Acrescento que o sentido de “transcendência” aqui
também deve ser apreendido no plano do espiritual (no sentido dado pelos grupos tematizados) e no plano escalar (como forma-
projeto de mundo em escala, o fundamento da geopolítica do grupo ou grupos em relação). Importante ressaltar que Berque trata
de meio e eu acentuo aqui o sentido de território, portanto, necessariamente, o exercício de poder – mas também de afetividade –
na construção trajetiva.
72 Cf. http://lds.org.br/, página oficial dos SUD. Nas palavras de um dos presidentes da igreja: “Este é o tempo para todas as
pessoas estudarem a verdadeira economia e começarem a poupar e livrar-se das dívidas e tornar-se um povo livre e independente.
[...] Se simplesmente cumprirmos nosso dever como santos dos últimos dias e formos sábios na utilização de nossos meios,
superaremos as dificuldades, nosso trabalho será abençoado para nós, a terra se tornará frutífera e ceifaremos colheitas abundantes
e nos regozijaremos nelas [...] Este é o tempo de cortarmos nossas despesas. Este é o tempo de eliminarmos as extravagâncias e
abster-nos de alguns prazeres materiais.” (Presidente John F. Smith, p. 167, 1998; originalmente em 19 de agosto de 1893).
Brasil, bem como seus empresários73, seguindo a cartilha da Ética Protestante (WEBER, 2014), o
que não é possível avaliar neste artigo.
Ora, se é um processo de defesa-ataque, a identidade territorial (HAESBAERT, 1999, p. 186)
não pode ser a simétrica ao território, como o autor evidencia:
A cartografia (representação desta simetria, tanto faz ser reticulada, sobreposta e/ou
descontínua) acaba por ser um decalque entre identidade e território, ou antes, a identidade no
território e vice-versa. Entre a representação e o movimento concreto do território há lapsos,
assimetrias, portanto, não um ser ou um ter, mas um “fazer-ser” contextual – que também envolve
o do próprio território, onde indivíduos e grupos hierarquicamente organizados se apropriam e
exercem domínio diferencialmente. Mais recentemente, o geógrafo (HAESBAERT; MONDARDO,
2010; HAESBAERT, 2014) vem projetando uma transterritorialidade que
73 Cf. O jeito mórmon de fazer negócio, Isto É Dinheiro (on-line), 16.08.2012, http://www.istoedinheiro.com.br/noticias/
negocios/20120816/jeito-mormon-fazer-negocios/105628.shtml,
74 Segundo Jaspers, “[...] o englobante é aquilo que apenas se anuncia sempre – pela presença dos objetos e dos horizontes – mas
que nunca se converte nem em objeto, nem em horizonte. É o que nunca encontramos de fato, mas no seio do qual encontramos
tudo o mais. Só está indiretamente presente quando, nele mergulhados, nos encaminhamos para este ou para aquele horizonte a
fim de o transpor [...] uma totalidade aberta enquanto fundamento do ser” (apud HERSCH, 1982, p. 79).
Quadro 3: momentos espaciais da forma-projeto geopolítico mórmon
Momentos Espaciais Aparecimentos Geopolíticos (forma-projeto assimétrico)
Entrincheiramento Formação de núcleos de fortalecimento identitário para defesa-ataque (PANTOJA, 2011),
comunitário sentido contaminado de lugar, exclusivista (RELPH, 2012);
Mobilidade da comunidade Sucessão de ocupação ou possibilidade de ocupação de espaços, construindo geossímbolos
nos territórios (BONNEMAISON, 2002) do território descontínuo e um itinerário apropriado pela
memória dos SUD que o representa como contínuo numa perspectiva sagrada;
Região cultural Espaço consolidado em tempo de longa duração pelo grupo, saturado de geossímbolos em
gradação centro-domínio-borda (MEINIG, 1965);
Expansão transterritorial A partir da região cultural se reticula um território planetário, que se hibridiza com outras
culturas, criando grupos de constante trânsito (missionários, por exemplo) e articulando
uma identidade sobredeterminada a outra(s) identidade(s) dos membros de diversas
nacionalidades (CERNADAS, 2008, 2009; PANTOJA, 2011);
Concidadania Planetária Autogovernar hierarquicamente o modo de ser dos SUD é reatualizar constantemente a
memória geo-histórica, mas os indivíduos e grupos culturais se reapropriam subjetivamente
(SARTRE, 2015) da identidade territorial em constante formação – repetição e renovação –
o que cria tensões tanto internas, quanto externas a esta concidadania dos SUD.
Imanência/Transcendência O projeto de mundo é que os SUD convertam o planeta inteiro, tanto os vivos quanto os
Territorial mortos, a cada um e a todos. Portanto, é um projeto não simétrico, de avanços e recuos, de
esporas soltas aqui e ali; inacabável e, por isto mesmo, eterno, no tempo e no espaço.
Uma concidadania transterritorial tem se formado pela geopolítica mórmon, que valoriza a
brancura, a construção urbana, o puritanismo, o patriarcado, o passado mítico na América e o
sentido de movimento como expansão ininterrupta dos SUDs sobre a Terra. Ao mesmo tempo, o
mormonismo vive ressignificações de sua “visão de mundo” (CERNADAS, 2009; PANTOJA, 2011)
em contato com culturas diferentes, vive resistência a determinadas posições institucionais, tanto
internamente, sobretudo dos jovens da sociedade saturada do eu (HAN, 2015) e de outras religiões
que disputam territorialmente o espaço (BECKER, 2012). Mas uma coisa é fato – vivemos uma
conflitividade geopoliticamente feroz entre projetos de mundo religiosamente comprometidos. Os
conflitos e associações daí resultantes ainda estão por ser geograficamente interpretados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A articulação entre identidade e projeto geopolítico territorial dos Santos dos Últimos Dias
(SUD) em Belém do Pará exige um repensar das relações geopolíticas, uma negociação de uma
forma-projeto escalar que toma como missão criar espaços sagrados nos confins da civilização;
partilhando geossímbolos sagrados (concentrados e descontínuos); o culto aos fundadores e ao
passado mítico da América, os tabus ligados a um comportamento puritano. Porém, na medida
em que os mórmons se expandem para o mundo, a plasticidade da identidade entra em cena,
garantindo reelaboração, mas sem ruptura completa com os parâmetros sagrados.
Esta identidade tem sua dimensão territorial num incessante movimento de expansão e, ao
mesmo tempo, entrincheiramento comunitário, geopoliticamente informado, na medida em que
se realiza transterritorialmente e garante negociações (mas também imposições/extermínios) com
culturas locais e regionais, avançando suas construções espaciais aos membros e não-membros,
marcando seu território como urbano e que, no caso de Belém, segue o padrão metropolitano.
A geopolítica – que é forma e projeto – se revela na ação socioespacial dos indivíduos e da
“comunidade congregada”, de modo que para internalizar o domínio é preciso realizar apropriação
territorial. São inseparáveis os movimentos de atuação imanente (nos/dos indivíduos e grupo
hierarquizado) e transcendente (expansão territorial e efetivação do projeto de mundo sacralizado).
Este duplo movimento se realiza em contextos de tensão e negociação, seja no que se refere ao
próprio grupo (dissidências, espaços ainda fracamente articulados ao território, etc.), seja em
relação a outros movimentos religiosos, que possuem suas próprias estratégias geopolíticas.
Vários aspectos foram apenas mencionados, mas não aprofundados, dado os limites deste
artigo. Alguns destes aspectos são relativos: os processos de treinamento de doutrinação que
acompanham a infância na igreja; a posição da mulher dentro desta estrutura religiosa; a dinâmica
de dominação territorial e étnica; a disputa pela “verdade história” frente a outras religiões e/ou
grupo; a articulação dos mórmons com outros grupos/instituições nacionais.
É aqui que penso que é preciso avançar: o conflito entre projetos geopolíticos de modo a não
percebermos os coparticipantes das religiões como mera “massa de manobra”, mas como existências
que garantem de maneira tensa e negociada o próprio movimento das religiões. Apesar da nossa
visão “de fora” (científica?) intentar apreendê-las como homogêneas, não o são.
Interpretar, geograficamente, esta realidade plural, tensa e instável, no contexto emergente das
visões sagradas de mundo, como aglutinadoras de identidades territoriais coletivas, não é apenas
abertura temática – é uma exigência frente à realidade brasileira do 3º milênio.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
A IGREJA DE JESUS CRISTO DOS SANTOS DOS ÚLTIMOS DIAS. Guia para
o estudo das escrituras. 1995. Disponível [versão on-line]: https://www.
churchofjesuschrist.org/study/scriptures/gs/introduction?lang=por, acesso em
02.12.2019.
CUCHE, D. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru (SP): EDUSC, 1999.
FREUD, S. Totem e Tabu. São Paulo: Penguim Classic e Companhia das Letras,
2013.
RESUMO
Neste artigo será feita uma abordagem sobre a natureza numa perspectiva mítica e material, a
partir da experiência territorial do grupo religioso União do Vegetal (UDV), uma das religiões
hoasqueiras do Brasil. Esta sociedade religiosa se caracteriza pela utilização de um sacramento
originado de duas plantas, popularmente conhecidas como Mariri e Chacrona. Desenvolvemos o
debate no campo da Geografia Cultural, objetivando demonstrar a amplitude do entendimento de
Natureza para além da sua materialidade ou idealidade, como transcendente inscrito na existência.
Recorremos ao pensamento existencialista, sem esquecer algumas abordagens importantes de
outras correntes geográficas. Concluindo que a Geografia tem refletido pouco sobre a unidade
entre Natureza e Espacialidade numa perspectiva simbólica, vivida e existencial, bem como
notamos a possibilidade de outras racionalidades e grupos sociais na constituição de projetos
de mundo que contestam o sistema vigente e criam outras sociabilidades no tempo e no espaço.
Palavras-chave: União do Vegetal (UDV); Religião; Mitologia; Natureza material e mítica.
INTRODUÇÃO
Este artigo aborda o conceito de Natureza, numa perspectiva relacional – sagrada e política –
por parte das religiões hoasqueira (emergentes no território brasileiro), a partir da espacialidade
constituída/constituinte pelo Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (UDV).
O espaço de pesquisa é Brasília, projetada e visibilizada por um planejamento urbanista
moderno, que porém, dialeticamente, constitui um centro de religiosidades diversas, associada a
mitologias e mistificações da sua criação, incluindo aí a própria mistificação do moderno. Propomos
interpretar a possível construção territorial das religiões hoasqueiras, notadamente a UDV, cuja
sede está em Brasília, configurando um tipo de espaço que é, ao mesmo tempo, geopolítico e mítico.
A fundamentação do território religioso da UDV em Brasília tem, na categoria Natureza, uma
centralidade que explicita um projeto e estratégias de ação reticulares. Importante ressaltar que,
mais do que uma categoria do pensamento, assume a condição de categoria da existência. Embora
o debate sobre a Natureza seja frutífero na geografia contemporânea, acreditamos que o enfoque
aqui proposto caminha numa perspectiva diferencial: não é nem um sinônimo de criação fundante
(a natureza de algo, por exemplo), nem uma (re)criação material derivada de um valor atribuído,
como a teoria do valor relativo ou dado aos elementos da natureza como recursos em oferta material
ou simbólica (BOURDIEU, 2007).
Insistimos na unidade entre materialidade/materialização e símbolo/simbolização, sem uma
primazia entre o vivido e o concebido – entre a forma e o conteúdo – mas em relação constante
e irredutível a uma síntese (NIETZSCHE, 1992). Nosso percurso será desenvolvido a partir da
abordagem geográfica, em que pese a lacuna no desenvolvimento do tema, haja vista que este debate
não constitui um corpus abrangente e sistemático em diálogo com as ciências sociais, notadamente
a história e a sociologia.
O percurso metodológico, em explícita aproximação com a fenomenologia existencial e o pós-
estruturalismo75, partiu de uma vivência nos termos da pesquisa-ação (ainda em processo), revisão
bibliográfica do tema proposto e entrevistas semiestruturadas com membros da UDV nos espaços
de vivência da religiosidade.
Inicialmente explicitaremos os conceitos centrais para estabelecimento do debate, tendo em vista
o encaminhamento da questão: como a natureza é apropriada na constituição do território da UDV?
Em seguida, faremos um diálogo entre os conceitos e o trabalho empírico, sobretudo as entrevistas
realizadas para interpretarmos a emergência desta relação material-simbólica tensa na linguagem
dos membros da religião. Por fim, sintetizamos as ideias apontando caminhos que efetivamente
estamos tomando para aprofundar a questão. O artigo está dividido em contextualização geográfica
da Natureza, Cultura da Natureza na UDV e Considerações finais.
A geografia como ciência tem uma ampla discussão sobre o sentido de Natureza. Aliás,
os primeiros movimentos de constituição do campo disciplinar estavam voltados para certo
“determinismo ambiental” que podemos chamar de natural, inclusive quando a região se fazia o
objeto privilegiado dessa ciência (HAESBAERT, 1999). Porém, as críticas sobre esta “naturalização
da produção social”, sobretudo partindo do positivismo lógico e da corrente marxista, colocam
abaixo a argumentação de um determinismo/possibilismo tanto natural quanto ambiental.
No plano marxiano, a natureza é tematizada pela apropriação humana, ou seja, o processo de
transformação da natureza em espaço humanizado (SANTOS, 2002). Torna-se, apesar (ou com a
cumplicidade?) da crítica marxiana, uma criação derivada, natureza como recurso em constante
humanização e, dialeticamente, ocorre uma naturalização humana. Esta marcha histórica se afastaria
do franco caráter “selvagem ou não-civilizado” do ser humano. A independência da natureza, do
ponto de vista ontológico, só é concebida como “base orgânica e biológica” em leituras marxistas
(LUCÁKS, 2012), metaforizada na geografia76. Qualquer outro modo é simplesmente definido
como uma irrealidade alienante, especialmente em sua aproximação com a religião77.
No plano do positivismo lógico a natureza vira geometria, expulsando daí qualquer possibilidade
de subjetivação-simbolização que não seja a precisão do dado e da constituição de um modelo
sistêmico no sentido ecológico, algo que, obviamente, é uma faceta da natureza, mas não a esgota.
75 Temos clareza da diferença destas abordagens e, em certos aspectos, aparente oposição, porém, também vemos
pontos de convergência e diálogo, como na valorização das contingências não capturadas tão facilmente por estruturas
mais ou menos fixas de pensar e agir.
76 Mesmo que o título do livro de Santos seja A Natureza do Espaço (2014), a direção que toma não é outra senão a
marxizante, não ortodoxa, mas marxizante, segundo suas próprias palavras.
77 Há exceções na seara marxiana, por isso destacamos aqui os trabalhos de Michael Löwy (2006), sem entrar, porém,
no mérito da categoria “natureza”.
A impressão que a marcha geográfica denota, é um tipo de perda, nas palavras de Brockelman78
(2001, p. 23):
Obviamente, aqui Mészaros usa os termos “forças naturais ou quase-naturais” como uma
aceitação naturalizada de processos em curso que impedem os seres humanos de encontrarem
sua satisfação. Portanto, a sustentabilidade seria inviável sem uma mudança profunda nestes
mecanismos “quase naturais” no âmbito do capitalismo, o que é insustentável efetivamente.
Entendemos que a compreensão de natureza como ideia manipuladora, ou recurso utilizável,
não esgotam a questão, seja como conceito, seja como prática relacional. Na geografia, a dimensão
simbólica e a relação mais existencial dos indivíduos, grupos sociais em sua espacialidade vivida e
conexão com possíveis naturezas é pouco explorada.
Nesse sentido, Massey (2009), afirma a importância de pensar a natureza na constituição do
espaço geográfico, na medida em que partilhamos com outros seres e espécies este planeta, o que
implicaria uma mudança radical de nosso papel neste todo mais que orgânico, mistificação da
realidade ou irracionalismo (JAPIASSU, 1991). Esta dimensão não é redutível ao ser humano,
embora só tenha “sentido” para este, o que torna complexa sua apreensão.
Do ponto de vista da mitologia, se amplia a discussão do conceito de natureza, como uma
criação vinda do cosmo, ou de uma forma sagrada, como a Gaia criadora, fecunda, provedora
da vida para um homem religioso (ELIADE, 1999). Então a Natureza nunca é ser exclusivamente
natural, sempre está carregada de um valor. No entanto, não deixa de ser uma autocriação e, em
certos casos, criação divina e não humana, impregnando o mundo de sacralidade, mas sem uma
oposição tácita com a técnica, a ciência ou a humanidade, haja vista que:
Aqui, não só estamos nos referindo a uma criação divina de um espaço. Mais que isso, a Natureza
é o englobante da existência (JASPERS apud HERSCH, 1982), um fenômeno cósmico (ELIADE,
1999). Com a sacralização da natureza por parte do homem religioso, percebe-se o entendimento
transcendental através do simbolismo da mãe terra, nutridora das belezas, encantos e hierofania
– quando o sagrado irrompe na realidade cotidiana (ELIADE, 1999). O encantamento do homem
religioso com a natureza vem da transcendência, como algo que guia a existência e como visão e
objetiva de mundo, revelando uma consciência infinita da criação do superior (ELIADE, 1999).
Percebemos esta proposição a partir da ideia de Jaspers, para quem:
O englobante possui dois grandes modos de ser: 1. O ser que nos cerca – o mundo e a
transcendência; 2. O ser que nós somos. A natureza pode ser expressa como existência nos dois
campos de englobantes, mas enfatizaremos a sua expressão transcendente, entendida por Jaspers
(apud HERSCHE, p. 80) como “o ser que não é o mundo, mas que expressa no mundo pela
mediação do ser [...]. Se o mundo é tudo, não há lugar para a transcendência. Mas, se existe uma
transcendência, pode haver, na realidade do mundo, sinais que a indiquem”.
A transcendência revela a inesgotabilidade da existência humana (JASPERS, 1958), na medida
em que qualquer tentativa de abarcá-la em um conceito estritamente racional retira sua potência,
em prol de uma racionalização – reflexo da mudança técnico-científica de nosso tempo – portanto,
não apenas uma mudança da percepção como aponta Santos (2002), mas uma mudança no próprio
estatuto de objetividade humana (FEYERABEND, 2010).
A UDV, ao constituir sua sede em Brasília e dispersar seus “núcleos” pelo território do DF e
pelo Brasil, expõe um tipo de relação com a natureza que é ao mesmo tempo objetivo e material,
subjetivo e imaterial, com uma mediação entre estas dimensões da vida sem que elas sejam reduzidas
espacialmente, na medida em que:
É a partir desta perspectiva geográfica que queremos tratar a questão, a nosso ver, ainda pouco
aprofundada.
O homem espiritual concebe a natureza e a sacraliza como projeto de mundo. Nas sociedades
hoasqueiras, incluindo a UDV, a sacralização – ritual e projeto – se dá por meio de duas plantas
sagradas: Mariri (Banisteriopsis Caapi) e Chacrona (Psychotria Viridis). Dessa união de vegetais
resulta um chá denominado, pelos membros da UDV, de Hoasca.
Foto 1: Chacrona. Fonte: http://panhuasca.org.br/, 2010; Foto 2: Flor do Mariri. Autoria, 2015.
Esse chá, como sacramento, é utilizado para concentração mental no ritual religioso. A ciência
pouco pode explicar a respeito da natureza divina da experiência singular que o chá proporciona
ao homem religioso. Entretanto, esta experiência singular se projeta coletivamente na preservação
e cuidado da natureza e sua valoração. Como dizem os entrevistados,
Cada vez mais procuro melhorar meu relacionamento com a natureza. Desde pequena sempre
gostei de cuidar de plantas, de mexer com terra; cresci também no meio do mato, então adorava,
desde pequena eu gostei muito da natureza. Sinto falta quando estou assim em São Paulo, um lugar
assim que não tem muita árvore o tempo todo, né? Sinto falta e procuro ir pra um parque, então
adoro o pé na areia, pé na terra desde pequena adoro, mas acho assim o contato que a gente tem
mesmo com a natureza em si e quando a gente está no preparo [do chá], lava a Chacrona, o contato
que a gente tem é de um jeito bem diferente, a gente bate o Mariri, traz muita força pra gente e pra
nossa vida mesmo, então acho que nosso contato é essencial (Membro 3)79.
A utilização destas plantas sagradas oferece uma ligação com o divino, além de um profundo
conhecimento de si mesmo. Essa ligação traz um sentido de vida, como Eliade descreve:
Então podemos perceber que a Natureza, para o homem religioso, passa por um meio físico,
mas também transcendental. A intervenção dos elementos do território vem a ser parte do conjunto
de experiências que se têm ao sacralizar as duas plantas, que formam parte do reinado vegetal. Para
sua sobrevivência, é necessário pensar a Natureza como englobante (JASPERS apud HERSCHE,
1982) e meta projetiva, “reino natural” dos dois vegetais, mas também espaço inspirador pela sua
“paisagem e conteúdo existencial”.
79 As entrevistas ocorreram em diversos “núcleos” do Distrito Federal ao longo do primeiro semestre de 2015.
Omitimos os nomes dos entrevistados por uma questão ética. Referimo-nos a eles como Membro 1, Membro 2 e
Membro 3, selecionados aqui para compor o diálogo com a matriz teórica, no total de 15 entrevistados até agora.
As entrevistas são semiestruturadas, guiadas por perguntas que promovem a consecução dos objetivos da pesquisa,
centradas em torno das categorias Território, Rede, Natureza e Tempo. A natureza é o tema em foco neste artigo.
[...] minha relação com a natureza, eu tenho louvor e alguma tristeza
também por como o ser humano tem rejeitado o presente que Deus deu.
Mas eu tenho louvor, acho muito bonito. Eu sou analista de sistemas,
então fico mexendo com texto em inglês, planilhas de Excel, sistemas
complexos que os caras inventam e tal. Não sei o que... aí a pessoa fala:
“nossa, esse assunto é complicado”, só que na mosquinha da banana
tem mais ciência que isso tudo (risos) porque o homem não fez isso,
a vida tem mais ciência que tudo isso. Então trabalhar com sistema
agroflorestal, com a natureza é muito amplo, é aprendizado e é ciência
divina mesmo. Para a gente apreender as coisas e para desenvolver e
para gente, o lugar que tem pássaros é um lugar alegre, geralmente
um lugar que tem pássaro quando as pessoas chegam sentem alegria,
quando chegam os pássaros festejam, é bom demais (Membro 2).
A UDV, nos espaços onde se realiza a comunhão do Vegetal, organiza uma área de plantio onde
se cultivam as plantas sagradas através da utilização de Sistemas Agroflorestais (SAFs). As plantas
utilizadas na preparação do Chá Vegetal são aclimatadas aos diferentes biomas brasileiros. Entre os
trabalhos empreendidos, para melhor conservação e plantação, destaca-se a seleção das melhores
matrizes e manejo de preservação genética (CORRÊA apud BERNARDINO-COSTA, 2011).
Nesse sentido, a Natureza como expressão da relação entre o mundo e o transcendente –
que engloba a vivência do grupo –, bem explícitos nas falas dos membros, possibilita também
um repensar da técnica, do conhecimento humano, como meio para um projeto de expansão da
Natureza Relacional explícita na religiosidade.
Não ignoramos uma forma de analisar esta relação de maneira bastante esquemática e, por isso
mesmo, maniqueísta, que estipula um tipo de utilitarismo neste modo de perceber a Natureza.
Entretanto, parece-nos não só empobrecedor, mas até desonesto pretender analisar e não
interpretar as falas em seu contexto existencial, já que como se comunicam em suas práticas diárias
(WATSON; GASTALDO, 2015) é revelador de sua relação totalizante – sem fechar-se em uma
totalidade, dada a inesgotabilidade da relação (JASPERS apud HERSCHE, 1982) – que não separa
racionalidade e religiosidade.
Para uma adaptação mais dócil do Mariri (também conhecido como Cipó), como é uma planta
nativa da região Amazônica, tem-se realizado observações que mostram uma tendência adaptativa
em condições de luminosidade, substrato, umidade e temperatura, sendo uma planta com alta
capacidade de adaptação em condições adversas (CORRÊA apud BERNARDINO-COSTA, 2011).
Assim, a necessidade da UDV em manter e adaptar da melhor forma possível suas plantas
sagradas, em cada território que a sociedade religiosa ocupa, liga-se diretamente ao trabalho de
conservação, reflorestamento e afirmação de uma relação íntima com a natureza.
O que a gente está procurando fazer agora é o aproveitamento dos
resíduos, né. Dos resíduos orgânicos para fazer adubo para alimentar
os plantios, as hortas; alguns núcleos já têm a horta com plantio de
hortaliças sem agrotóxico, outros já têm as composteiras para aproveitar
o resíduo que é produzido durante o dia que a gente passa aqui. Se
produz muito resíduo orgânico, então a gente vai utilizar esses resíduos
para fazer a compostagem. Alguns núcleos estão mais na frente, outros
estão começando a caminhada agora (Membro 1)
As vivências deste novo milênio reclamam o debate acerca de temas de importância para o
futuro da própria humanidade, o que está relacionado com o projeto de mundo da UDV, já que a
sociedade religiosa acredita que o trabalho inicia com uma mudança dentro de cada um e, a partir
daí, dentro da instituição como espaço de ação transformadora de mundo. O zelo pela natureza vem
desde a origem da UDV, porque está relacionada à Amazônia, onde o “Mestre Gabriel” (criador do
grupo) encontrou o “sacramento” da UDV.
A fundação do novo demanda a realização da grande viagem, por caminhos jamais cindidos, a
peregrinação pelos confins do mundo em busca da semente ou graal que fará o novo vir à existência.
Desta maneira, a essência da UDV está diretamente ligada às plantas sagradas, nas quais os
membros procuram vivenciar a experiência de uma consciência que traz consigo uma evolução
espiritual e um reconhecimento do valor da Natureza em nossas vidas, por exemplo, reverenciando-a
como algo sagrado (CONDE, 2011).
Segundo Massey (2006), se pretendemos integrar a natureza e a sociedade (não apenas na
geografia), como oportunidade no estudo dos maiores problemas do mundo, temos que ampliar
nossa compreensão geograficamente informada sobre as diferentes formas de relação, construção e
experiência da natureza.
Para esta integração, remetemo-nos às origens indígenas desta prática religiosa que, apesar
das diferenças com as reapropriações atuais, uma característica permanece: pouco importa o nome
ou o ritual que se dê a este elemento sagrado; é o movimento que integra o homem ao seu meio,
a seu grupo – não só como religião – como fator de identidade, capaz de estimular e acentuar o
sentido de pertencimento a um lugar, um grupo em um tempo (FAGUNDES, 2011). Nas palavras
do membro 3:
Obviamente é possível fazer leituras mais economicistas, como supor o chá, resultante das
plantas, um tipo de “mercadoria simbólica” (BOURIDEU, 2007) oferecida no mercado religioso
em ebulição. Não invalidamos esta perspectiva, mas nos parece reduzir um tipo de experiência
não estritamente racionalizável e, por isso mesmo, inesgotável, a um esquema que tenta capturar a
vivência a um modelo explicativo e não compreensível (JASPERS, 1958). Escapa a esta interpretação
das relações entre religiosidade, espaço e natureza, a presença da Natureza em si, dotada de uma
realidade anterior e posterior ao ser humano, só apreendida nesta relação existencial, o que recoloca
o ser da Natureza com seu valor intrínseco, mas relacional ao ser humano, no caso da UDV, que não
é o único caso.
No momento atual, de compressão do espaço-tempo (HARVEY, 1989), que altera os
entendimentos globais e “reordena as distâncias” que parecem encurtar, processos que se dão em um
lugar têm efeito imediato em outro lugar ou território (HALL, 2004, p. 23): um tipo de mentalidade
– aparentemente hegemônica – emerge aqui e ali, podendo explicitar a centralidade da Natureza
em sua transcendência. Há processos que, de tempos em tempos, marcam uma trajetória que
transcende o indivíduo, sua época ou sua cultura, sobretudo em tempos de aceleração e expansão
das redes, quando a comunicação de suas trajetórias chega a territórios e grupos longínquos. É
nestes tempos de tecnificação que novos ou renovados modos de relacionamento com a Natureza
(e seus múltiplos sentidos) podem rearticular fé e razão, como no caso da UDV, realizando uma
comunicação existencial entre ser humano e Natureza e entre os próprios seres humanos que, ainda
que cultural e espacialmente diferentes, podem imaginar realizações comuns.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
JAPIASSU, H. As paixões da ciência. 2. ed. São Paulo: Letras & Letras, 1991.
JASPERS, K. Filosof ia. 2 vol. San Ruan: Ediciones de la Universidad de Puerto
Rico, 1958.
LÖWY, M. Marxismo e Religião: Ópio do Povo? In: BORON, A. A. et. all. (orgs.).
A Teoria Marxista Hoje. Problemas e Perspectivas. Buenos Aires: CLACSO/
Expressão Popular, 2006.
RESUMO
Todos os anos, desde 1960, ocorre no Pátio do Terço, no centro do Recife (PE), a cerimônia Noite
dos Tambores Silenciosos. Esse evento, importante para os Maracatus-Nação e para as religiões de
matrizes africanas e ameríndias (Xangô, Jurema Sagrada e Umbanda), acontece à meia-noite da
segunda-feira de carnaval, quando, após as apresentações das Nações dos Maracatus, Pais e Mães de
Santo fazem preces e entoam cantos em Iorubá, homenageando os Eguns (ancestrais) e o orixá Iansã.
Nesse momento, o espaço do Pátio do Terço é ressignificado, deixando de ser o espaço do comércio
movimentado e do culto católico, e passa a ser o espaço do culto religioso de referências africanas,
tornando-se espaço sagrado para o Xangô, a Jurema e a Umbanda, definindo-se como hierofania. O
PátiodoTerçotambémpassaaserespaçodevisibilidadeedeatuaçãopolíticaporpartedomovimento
negro, já que ali se encontram diversas autoridades políticas e um número expressivo de pessoas para
assistiremaoscortejosdosMaracatuseàcerimôniareligiosa.Dessaforma,entende-sequesuaspráticas
sociais fundam o território e definem territorialidades, que repercutem das suas sedes, localizadas
em favelas ou comunidades, aos espaços públicos centrais. O objetivo deste trabalho é apresentar a
constituição de um território sagrado (hierofania) e político no Pátio doTerço na Noite dosTambores
Silenciosos e outras práticas sociais que configuram territorialidades negras no espaço público, por
meio dos Maracatus-Nação e suas associações com as religiões de matrizes africanas e ameríndias.
Palavras-chave: Maracatu-Nação; Religião; Território; Hierofania.
INTRODUÇÃO
Quem vai à cidade do Recife e a outros municípios da sua Região Metropolitana durante o
período carnavalesco se depara com uma diversidade de manifestações culturais se apresentando
nos espaços públicos das áreas centrais e das periferias, seja cumprindo um calendário oficial
divulgado pelas prefeituras, seja motivado de forma espontânea por foliões que se organizam em
agremiações, em blocos e troças carnavalescas.
O calendário oficial do carnaval recifense apresenta uma lista de folguedos populares que,
possivelmente, tende a agradar moradores e visitantes provenientes de vários lugares do Brasil
e de outros países, que buscam por um divertimento rico em diversidade cultural. A oferta de
atrações para turistas e foliões nativos vai além do tão divulgado frevo e do bloco carnavalesco Galo
da Madrugada. É possível encontrar expressões culturais como cocos, cirandas, maracatus, bois,
ursos, tribos de índio, escolas de samba, blocos de frevo, cavalos-marinhos, papangus, caboclinhos,
afoxés, blocos afros, troças e tantas outras, que são utilizadas como forma de divulgação turística
e de incremento do período carnavalesco, difundido, desde 2002 como Carnaval Multicultural da
Cidade do Recife (KOSLINSK, 2013). No entanto, nenhuma outra manifestação cultural tem obtido
crescente destaque quanto o Maracatu-Nação, não só como uma atração carnavalesca, mas também
como uma manifestação associada à identidade cultural pernambucana (GUILLEN, 2008).
O Maracatu-Nação, também conhecido como Maracatu de Baque Virado, é uma manifestação
cultural afro-brasileira, originada há pelo menos 220 anos, no estado de Pernambuco, e é
caracterizada por um cortejo real formado por uma corte e uma parte percussiva. A corte é composta
por um rei negro e uma rainha negra, seguidos de príncipe e princesa, duque e duquesa, vassalos,
embaixadores, damas da corte e baianas. À frente da corte vão o porta-estandarte e as damas-do-
paço, que carregam bonecas denominadas Calungas. Há, ainda, o porta-pálio, que leva um grande
sombreiro, protegendo o rei e a rainha. Seguindo a corte real, há uma orquestra percussiva que
executa o baque e a parte musical do Maracatu-Nação, conhecida como loa ou toada. A percussão
é formada, essencialmente, por bombo (ou alfaia), tarol, caixas de guerra, gonguê e mineiro.
O Maracatu-Nação tem suas atividades intensas ao longo do ano em suas sedes, localizadas nos
bairros e comunidades das periferias e do centro das cidades da Região Metropolitana do Recife
(RMR), porém é no carnaval que ele ganha maior visibilidade, pois está à mostra o resultado de uma
ação coletiva da comunidade que o faz. Assim, aos olhos dos espectadores, em geral, o Maracatu-
Nação pode parecer apenas um brinquedo que participa do carnaval no sentido do divertimento
e da festa, com personagens envoltos em uma dimensão alegórica, cumprindo um protocolo
repetido há séculos. Porém, essa manifestação cultural possui uma carga simbólica constituída
por inúmeros aspectos na sua construção social, quase que imperceptíveis para quem a assiste
nas avenidas, mas que a envolve intensamente, configurando-a para além dos aspectos visíveis e
práticos. Assim, nesse universo simbólico que permeia o Maracatu-Nação e que se constitui antes
e durante as apresentações nos espaços públicos, entre os aspectos mais significativos se destacam
a dimensão religiosa e a dimensão política, as quais são elementos definidores de territorialidades
e de identidade territorial.
Nos dias de carnaval, há diferentes momentos em que os Maracatus-Nação se apresentam nos
mais de 50 polos espalhados em vários bairros do centro e das periferias da capital pernambucana.
Porém, o Pátio do Terço, localizado na área central do Recife, é um dos espaços mais emblemáticos
no período carnavalesco e é onde as dimensões religiosa e política do território estão mais em
evidência. Isto porque é nele que acontece, desde 1960, a cerimônia religiosa Noite dos Tambores
Silenciosos, às segundas-feiras de carnaval.
Este artigo, resultante de pesquisas realizadas entre 2011 a 2016 sobre os Maracatus-Nação,
dedica-se em apresentar o território religioso e político definido na cerimônia religiosa Noite
dos Tambores Silenciosos no Pátio do Terço. Diante do exposto, pergunta-se: como é definido
o território religioso e político no Pátio do Terço na Noite dos Tambores Silenciosos? Como os
Maracatus-Nação instituem uma hierofania no Pátio do Terço durante a cerimônia religiosa?
O objetivo deste trabalho é apresentar a constituição de uma hierofania e do território sagrado
e político no Pátio do Terço na Noite dos Tambores Silenciosos e de outras práticas sociais que
configuram territorialidades negras no espaço público, por meio dos Maracatus-Nação e suas
associações com as religiões de matrizes africanas e afro-ameríndias.
Parte-se do pressuposto de que o Pátio do Terço é consagrado durante a cerimônia religiosa,
configurando-se em uma hierofania, e representa um território sagrado, tendo em vista a presença
de elementos simbólicos, de aspectos ritualísticos e dos Maracatus-Nação que estão relacionados
às religiões de matrizes africanas e afro-ameríndias, como também se define como um território
político, onde há socialização, disputas, negociações por parte dos Maracatus-Nação e busca por
reconhecimento por parte da população negra do Recife.
Será apresentada inicialmente uma discussão teórica sobre território, hierofania, territorialidade
religiosa e cultura como expressão política no espaço e como resultante de práticas sociais que
definem territorialidades. Em seguida, realizar-se-á uma caracterização dos Maracatus-Nação e sua
relação com o espaço metropolitano do Recife, onde criam territorialidades nos bairros onde estão
localizadas suas sedes. Por último, será analisado o território religioso e político do Pátio do Terço,
com a cerimônia religiosa Noite dos Tambores Silenciosos, e apresentadas as considerações finais.
As três últimas sequências são bastante significativas, pois representam a apropriação, de fato,
de toda a área do Pátio do Terço. As nações permeadas de seus elementos estéticos e simbólicos e de
suas práticas religiosas instituem um território o qual não é mais o espaço do movimento comercial
nem do culto católico. O Pátio do Terço se converte em um território permeado por valores e
visões de mundo, instituídos pelos africanos e seus descendentes, e repercutem naquele tempo e
espaço, na contemporaneidade. Também, não existe apenas uma referência étnica, mas sim uma
diversidade que constitui a própria formação das religiões e dos Maracatus. É uma culminância
que revela aspectos de ancestralidade, mas que comunga com aspectos da contemporaneidade a
partir de símbolos, vestimentas, movimentos de dança, instrumentos musicais, cantos e bênçãos
que permeiam o Pátio do Terço e instituem um espaço de diálogo entre os Maracatus-Nação e o
culto religioso.
As apresentações dos Maracatus-Nação seguem até meia-noite quando, solenemente, todos os
instrumentos musicais são silenciados e são apagadas as luzes do Pátio do Terço, permanecendo
apenas luzes de tochas no palco. Em seguida, o Babalorixá Raminho de Oxóssi inicia a cerimônia
“Noite dos Tambores Silenciosos” em homenagem aos Eguns dos que morreram na África (antes
da diáspora) e de africanos e seus descendentes que morreram no Brasil no período da escravidão.
É importante destacar que o ritual aos Eguns é uma prática trazida pelos africanos que
homenageavam seus ancestrais e continuou a existir no Candomblé, porém é muito restrito aos
terreiros e apenas alguns iniciados na religião dos orixás podem presenciar, como acontece na Ilha
de Itaparica (BA). No Recife, este ritual passou por uma ressignificação para poder ser presenciado
num espaço público e visto pelos que o acompanham. Assim, a Noite dos Tambores Silenciosos é
a realização pública desse ritual no Recife. Apesar de “inventada” nos anos 60, é considerada uma
tradição pelos Maracatus-Nação, como algo já vivido e criado por seus antepassados que morreram
na escravidão (LIMA, 2007). Assim, é com o discurso da tradição que os Maracatus e as religiões
legitimam a sua apropriação do espaço, e nele constituem um território numa dimensão política.
Há, na Noite dos Tambores Silenciosos, a presença da Calunga – a boneca que, levada pela
dama-do-paço dos Maracatus-Nação, carrega a ancestralidade, ou seja, os Eguns. Todos os
Maracatus afirmam que “sem a Calunga, o Maracatu não sai, porque é ela que carrega os segredos do
mundo dos mortos e os nossos antepassados” (Pai Clóvis, presidente do Maracatu-Nação Encanto
da Alegria). E é pelos Eguns que acontece o ritual e são eles quem realizam, naquele momento, a
integração entre os Maracatus e a cerimônia, no Pátio do Terço. Para os Eguns são realizadas preces
pelos Babalorixás (Pais de Santo) e pelas Yalorixás (Mães de Santo) e são pronunciadas respostas
por muitos adeptos das religiões que assistem a cerimônia, que termina quando pombas brancas
são soltas pelo pai de santo.
O Pátio do Terço também carrega uma força simbólica para os Maracatus-Nação e para
todo o movimento negro do Recife, pois é onde se localiza a casa que pertenceu a três senhoras
importantes de referência ancestral africana. Conhecidas como as tias do terço, Sinhá, Yayá e Badia,
foram renomadas e respeitadas mães de santo que tiveram forte ligação com os principais terreiros
do Recife, como o Sítio de Pai Adão (Terreiro Obá Ogunté). Segundo Guillen (2008), no Pátio do
Terço também foi realizado um espetáculo em que Joãozinho da Goméia (pai de santo baiano)
entregou presentes à Dona Santa, rainha do mais antigo Maracatu do Recife, a Nação Elefante
(fundada em 1800).
Assim, permeado de elementos simbólicos e sagrados para as religiões e para os Maracatus-
Nação, o Pátio do Terço é apropriado e ressignificado, já que ali cotidianamente é um movimentado
centro comercial e espaço de devoção católica, onde se localiza a Igreja de São Braz (ou Igreja do
Terço). Dessa forma, o Pátio do Terço se constitui como um território sagrado para as religiões de
matrizes africanas e indígenas e se revela como uma hierofania, e é onde Calungas, Caboclos, orixás
e tantos outros elementos definem territorialidades religiosas82, já que representam um conjunto
de práticas sociais e simbólicas (ROSENDAHL, 2005) que dão significado religioso àquele espaço
público.
Paralelamente ao espaço sacralizado, há a ocorrência do espaço profano, ou seja, o espaço onde
os aspectos religiosos não instituem uma ordem em conformidade com as normas de controle do
território fundado. Becos e vielas; bares na Rua Vidal de Negreiros ou próximos a ela; calçadas
onde são comercializadas bebidas, comidas, cigarros etc. representam o caos (ELIADE, 2010),
considerando as imediações do Pátio do Terço ou tudo aquilo que está nele, mas não se vincula ao
ritual.
Neste sentido, não só aspectos religiosos estão presentes no Pátio do Terço. Em outras palavras,
não só uma realidade sagrada o constitui na Noite dos Tambores Silenciosos. O ritual acompanhado
por um número expressivo de pessoas as quais lotam o espaço estreito do Pátio do Terço adquire
grande visibilidade, assim como os Maracatus e a religiosidade afrodescendente e indígena. Como
o evento é divulgado como sendo o mais importante acontecimento do carnaval (GUILLEN, 2008),
são atraídas diversas autoridades políticas e religiosas, artistas nacionais, turistas, intelectuais,
iniciados nas religiões e muitas outras pessoas, curiosas para conhecer a cerimônia.
Assim, a Noite dos Tambores Silenciosos se torna uma ocasião em que as Nações de Maracatu e
as religiões de matrizes africanas e indígenas, das quais há a participação de ativistas do movimento
negro da RMR, são atores centrais e são o foco exclusivo dos olhares para onde são lançados
elementos estéticos, visões de mundo, práticas socioespaciais da população negra, e que são
introjetados pelos espectadores. Não é à toa que “os movimentos negros, e em especial o MNU
(Movimento Negro Unificado), decidem investir na cultura afrodescendente, com o objetivo de
afirmar sua africanidade e criar autoestima entre os afrodescendentes” (GUILLEN, 2008, p. 194).
Guillen (2008, p. 194) destaca que “a via cultural foi considerada a principal estratégia política para
se discutir o racismo e a marginalidade social que a grande maioria dos afrodescendentes ainda era
vítima”.
A Noite dos Tambores Silenciosos e o Pátio do Terço se tornam, então, tempo e espaço
apropriados para o reconhecimento da população negra enquanto possuidora da mais significativa
identidade cultural no Recife, o Maracatu-Nação. Mas também é momento de atuação política e
de visibilidade. Por mais que a população negra ainda ocupe os piores lugares do espaço urbano
do Recife, sem saúde, sem escola, sem saneamento básico, sem moradia adequada, ela é maioria e
define os aspectos identitários recifenses. E isso se torna evidente no Pátio do Terço, o qual também
se institui como território de lutas sociais muitas vezes implícitas nos Maracatus e na manifestação
religiosa, mas às vezes explícitas, quando se vê uma Nação desfilar com suas Calungas e com
todos os adereços pedidos para a ocasião, porém tem seus batuqueiros vestidos com uma camiseta
estampada “Racismo Não! – Quotas raciais para negros e negras nas universidades públicas” e
canta, acompanhada das alfaias, o Hino Nacional da África do Sul, numa referência à luta contra o
Apartheid. Trata-se do Maracatu-Nação Cambinda Estrela, que tem sua sede localizada em Chão
de Estrelas, favela localizada na zona norte do Recife.
82 Rosendahl (2005, p. 204) define territorialidade religiosa como “o conjunto de práticas desenvolvidas por
instituições ou grupos no sentido de controlar um dado território, onde o efeito do poder do sagrado reflete uma
identidade de fé e um sentimento de propriedade mútuo. A territorialidade é fortalecida pelas experiências religiosas
coletivas ou individuais que o grupo mantém no lugar sagrado e nos itinerários que constituem seu território.”
CONSIDERAÇÕES FINAIS