Calainho, Daniela. Lusitânia Bruxa

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“Lusitânia bruxa” IN: Calainho, Daniela.

Metrópole das mandigas: religiosidade


negra e inquisição portuguesa no antigo regime. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.
Contexto de profunda vivência religiosa, tempo em que a vida e o universo mental dos
homens, em seus múltiplos aspectos estavam totalmente embebidos pelo cristianismo.
Lucien Febvre, em estudo sobre o século XVI, mostrou que não havia espaço para a
descrença
A figura do diabo completava a onipresença de Deus. No cotidiano da existência
humana, Deus e o Diabo atuavam deixando evidente sua influência e sua intervenção
nos fenômenos mais variados de ordem natural ou pessoal (p. 190)
A Europa do Renascimento estava convicta da ação de demônios e bruxas, deixando
entrever um universo onde os limites entre o real e o imaginário, o possível e o
impossível eram tênues. Abarcando todas as categorias socioculturais, a mentalidade
mágica fazia supor a crença em indivíduos com poderes de curar, fazer mal, matar,
induzir ao amor, destruir colheitas. Homens como Jean Bodin, teórico absolutista das
artes das bruxas, afirma que “duvidar que o Diabo transporta os feiticeiros de um lado
para o outro, crédulo absoluto das artes das bruxas, afirmando que “duvidar que o Diabo
transporta os feiticeiros de um lado para o outro, equivale a ridicularizar a história
evangélica.” (p. 190)
A Baixa Idade Média foi um momento de grande transformação espiritual no Ocidente e
em relação à feitiçaria associou as práticas mágicas pagãs de tempos imemorias à ação
demoníaca, a influência de São Tomás de Aquino encerra de vez a dúvida acerca da
veracidade e autenticidade dos atos mágicos.
A demonologia originou numerosos tratados marcantes na configuração de uma
doutrina teológica que foi objeto de grandes reflexões, temores e inquietações, sua
assimilação à heresia consagrou pela Bula Super illius specula, de 1326, que
possibilitou à Inquisição realizar as perseguições (p. 191)
Jean Delumeau observa que o humanismo ao resgatar as obras da Antiguidade clássica,
repletas de descrições de feitiços, ritos mágicos e feiticeiras, fez por estimular “a
obsessão e a credibilidade do mundo demoníaco ao nível da cultura dirigente” (p. 191)
Bula summis disederantes, de 1448, chamada de “canto de guerra do inferno”. Os
inquisidores italianos eram pressionados pelo papado a endurecer cada vez mais as
punições dos feiticeiros, que também eram alvo constante cada vez mais as punições
aos feiticeiros, que também eram alvo constante de repressões pelos concílios locais,
inclusive nas regiões protestantes da Europa. Jean Delumeau percebe o processo de caça
às bruxas como um estímulo a consolidação do absolutismo, que também, por sua vez,
irá reforçar os movimentos persecutórios
Martin de Castañega – Tratado muy sutil y bien fundado de las supersticiones y
hechizerias de 1529
Jean Bodin – De la démonomanie des sorciers, 1580
Pierre de Lancre – Tableau de l’inconstance des sorcieres (1602)
Urich Molitor – De Lamiis et phitonicis mulieribus Tractatus de 1489
Johanes Nider – Formicarium (1475)
O enfrentamento das feiticeiras seguidoras de Satã foi também uma causa dos Estados
absolutistas. Os juízes civis aliaram-se à Igreja na luta contra a bruxaria, a exemplo de
Felipe II, que em 1592 imprecou contra “as desgraças e abominações deste miserável
tempo”, cheio de malefícios, feitiçarias, imposturas, ilusões, prestígios e impiedades”,
ordenando perseguições implacáveis para o combate ao inimigo, “que se serve dos
homens como dos cavalos de carga, e após tê-los feito suar de fadiga neste mundo, não
tem nada para refresca-los no outro senão um tanque de fogo e enxofre que não se
extinguirá jamais”. (p. 193-194)
As interpretações mais recentes da historiografia mostram-nas não como meras criações
dos demonólogos, dos teólogos, dos juízes seculares e inquisitoriais, “pesadelo de uma
elite apavorada”, mas como fenômenos complexos, multifacetados, envolvendo também
elementos específicos da cultura e religiosidade popular (p. 194)
Foi em meados do século XIV, entre 1330 e 1340, que se registrou o primeiro caso de
um sabbat na Inquisição de Carcassone e Toulouse, difundindo-se progressivamente, a
partir daí, em várias regiões da Europa. Famosos demonólogos, como De Lancre ou
Martin Del Rio, descreveram com riqueza de detalhes os rituais sabáticos, ressaltando
seu caráter abominável e herético (p. 194)
A ideia do pacto demoníaco foi crucial na construção da feitiçaria como heresia.
Especificidade dos Tempos Modernos, abriu as portas da punição à justiça inquisitorial,
obcecada em constatar o contrato diabólico, fonte última dos poderes adquiridos pelos
feiticeiros. (p. 196)
Os termos desse contrato eram claros: em regram, à noite, o Diabo seduzia o indivíduo
com poderes sobrenaturais, riquezas, habilidades curativas ou dotes divinatórios em
troca de sua subserviência, de sua alma, expressando-se o pacto por alguns símbolos
exigidos pelo Demônio, como sangue, partes do corpo, dedos e unhas, e outros
ofertados ao futuro servo, como anéis. [...] O pânico desenfreado vivido pelas
autoridades civis e eclesiásticas diante de Satã e seus seguidores, no auge das
perseguições, era evidente, alardeando-se numa profusão de discursos de toda natureza.
Para Jean Bodin, o ímpeto blasfemador do homem foi punido com a profusão de
mágicos e bruxas. (p. 196)
PORTUGAL: SATÃ DOMESTICADO (p. 97)
O caso português foi bastante atípico no que concerne à história da feitiçaria europeia,
tanto em termos de intensidade das manifestações e da repressão, como também em
relação à produção literária. Enquanto no século XVI não foi registrada uma só obra, o
século XVII se limitou a duas: o Memorial e o antídoto contra os pós venenosos que o
Demônio inventou (1631), de Manuel de Lacerda e o De incantationibus seu ensalmis
(1620), de Manuel Vale de Moura (1620)
A ausência de uma tradição literária dedicada exclusivamente ao assunto não significou,
contudo, que a elite letrada portuguesa não tenha deixado registradas suas reflexões,
mesmo que em fontes dispersas (p. 197)
As práticas mágicas estiveram na jurisdição de três instâncias repressoras, cujos códices
legais abordaram a questão da feitiçaria: Os Regimentos inquisitoriais, as Ordenações
do Reino e as Constituições diocesanas. Todos eles foram alvo de comentários
específicos, nascidos de discussões de casos em particular, considerando-os também
como núcleos de expressão do pensamento letrado. Os tratados de teologia moral
continham várias referências à bruxaria, uma vez que sua prática atentava contra o
primeiro dos Mandamentos divinos.
Outras fontes importantes foram os manuais de confessores, que instruíam os sacerdotes
nas devidas perguntas atinentes à magia ilícita, dentre outros delitos, os catecismos e
manuais de párocos, com reafirmações de doutrina que por vezes continham referências
a condutas supersticiosas e os tratados de medicina, onde médicos descreviam com
detalhes os rituais sabáticos, demonstrando conhecimentos preciosos de trabalhos de
grandes demonólogos, nesta documentação, os comentários e sugestões de cura de
doenças supostamente provocadas por ações mágicas apareciam em profusão (p. 198)
Destacam-se os processos do Santo Ofício, material rico para desvendar a mentalidade
inquisitorial (p. 198)
O imaginário em relação à sabbats e à demonologia em geral era bem conhecido das
elites letradas portuguesas, mas a presença de seus elementos integrados não foi
comum. O vôo noturno, as transformações em animais, a adoração ao demônio, as
orgias sexuais, em pouquíssimos casos apareceram concomitamente articulados.
Como observou Francisco Bethencourt, os aspectos componentes do complexo sabático
aparecem de maneira avulsa, sem necessariamente se combinarem. O estudo de Pedro
Paiva para os séculos XVII e XVII também mostrou o caráter esporádico das idas às
reuniões diabólicas, correspondente a um total de apenas 6% dos processos de bruxaria,
insinuando que essa prática, no seu conjunto, talvez fosse estranha em algumas regiões
europeias (p. 198)
Em Portugal tais encontros apareciam na documentação como “ajuntamentos” embora
se encontrassem também os termos “assembleia”, “conventículos” e “sinagoga”
Margarida Lourenço é um dos poucos casos que todos os traços do Sabbat aparecem,
com o encontro em Val de Cavalinhos (p. 199)
Em Portugal, outros elementos do complexo sabático foram objeto mesmo de
descrença, como o vôo noturno e a metamorfose das bruxas em animais, aparecendo
pouco na documentação. Manuel de Lacerda, o já citado autor dos “... pós venenosos
distribuídos pelo demônio...”, chegou a afirmar que o Diabo é que iludia as mulheres,
fazendo-as pensar que se moviam de um lugar para o outro (p. 200)
As transformações em animais não aparecem com frequência nos processos
inquisitoriais portugueses com frequência nos processos inquisitoriais portugueses,
sendo mais comum as mulheres aparecerem nuas de cintura para cima levando nas mãos
uma candeia (p. 200)
No século XVII houve um dos poucos casos de descrição do complexo sabático em
Portugal assemelhado aos casos europeus, pelo menos na documentação inquisitorial.
Foi no processo de Leonor Fernandes, que, influenciada por uma amiga, passou a
frequentar encontros noturno junto com outras mulheres (p. 200-201)

O ceticismo dos letrados portugueses diante desses aspectos do sabbat se vincula a uma
crença na limitação dos poderes diabólicos ancorada no pensamento de Santo Agostinho
e principalmente Santo Tomás de Aquino, cuja influência na formação intelectual das
elites portuguesas foi enfatizada por Pedro Paiva.
A doutrina tomista em relação à feitiçaria foi bem moderada se comparada aos grandes
tratadistas e demonólogos dos séculos XV a XVII. Limitava-se a discorrer sobre o “mau
olhado” e a capacidade do Diabo de interferir no desempenho sexual dos homens, não
mencionando pactos, malefícios ou ritos de veneração, e enfatizando a supremacia de
Deus acima de tudo.
Assim, como a criação divina era algo inalterável não seria possível que o Diabo
transformasse homens em animais (p. 201)
A autora acredita que a moderação dos letrados portugueses baseada nessa influência
tomística foi relativa, se pensarmos na importância que o pacto demoníaco adquiriu na
configuração da feitiçaria como heresia. O discurso inquisitorial foi implacável em
rastrear malefícios inspirados por Satã, embora por vezes fosse também incrédulo em
alguns aspectos relativos ao complexo sabático europeu (p. 201)
Foi Manuel de Lacerda em Memorial e antídoto contra os pós venenosos que o
Demônio inventou (1637) a ver Satanás limitado em suas ações. Escreveu que a
devastação propociada por uma peste que assolou várias cidades no norte da Itália era
culpa do Diabo. O “príncipe das trevas” teria distribuído pós venenosos às bruxas da
região que, fiéis a ele, obraram para que a população inalasse os famigerados pós,
obtidos num dos vários encontros noturnos onde adoravam seu Senhor. No auge do
espetáculo, em figura de bode, o Diabo subitamente se consumia em fogo e das cinzas
juntas com mais outras peçonhas, faziam-se os tais pós, prêmio para que suas acólitas
dessem prosseguimento aos seus instintos malévolos, provocando doenças, desgraças,
calamidades, terrores e mortes. (p. 202). Manuel de Lacerda era professor de Coimbra e
deputado da Inquisição, o autor expressou fielmente as crenças de seu tempo, como os
sabbats e o pacto demoníaco, embora com ponderações importantes.
Visto tradicionalmente como grande sábio, o Diabo, em Portugal, era tido pelos
teólogos por malicioso, tentador, enganador de espíritos fracos, embora cerceado pela
autoridade divina. Enquanto Deus governava os céus, o Demônio tinha jurisdição sobre
a Terra, na visão de Frei Bartolomeu dos Mártires, que publicou em 1543 o seu
Cathecismo ou doutrina christã e praticas espirituais, onde via o gênero humano
“vivendo segundo as leis da carne, do mundo e do demônio, que são, como diz São
João, cobiça de deleites, cobiça de honras, cobiça de riqueza: os quais nunca entrarão no
reino de Deus” (p. 203)
O grau dos poderes do anjo decaído foi objeto de vasta reflexão havendo amplo debate
teológico no que tange à faculdade efetiva do Diabo de influenciar diretamente e mudar
o curso da vida do homem, ou apenas o dom de iludir, seduzir e enganar. Encontramos
um exemplo interessante na obra de Gil Vicente, onde é expressa a polivalência das
funções e poderes de Satã (p. 203)
Os autores portugueses não demonstraram um sentimento de pânico e terror
generalizado como fizeram os grandes demonólogos europeus [...] A tradição
portuguesa nesse sentido era mais serena, expressa na carência de relatos que apesar da
consciência dos malefícios e danos causados pelas bruxas, não eram apaixonados, mas
confiantes no poder divino e na convicção da subserviência do Diabo a Deus (p. 204)
Os sermonários e inquisidores ressaltavam a importância de fé e dos sacramentos
eclesiásticos para a libertação do demônio, expressa nas palavras de ninguém menos do
que o jesuíta Antônio Vieira, para quem o poder da Igreja e de Deus era o remédio
infalível para a vitória sobre o poder de Satã. Isso não quer dizer que não fosse
reprimida por instâncias seculares e eclesiásticas
De igual modo não se sentem os tratadistas portugueses a exigir a condenação à morte
dessas criaturas. Apesar de a pena capital estar prescrista para este tipo de delitos na
legislação portuguesa, os textos sobre o assunto nunca a reclamam e a realidade do
número de pessoas sentenciadas pelo fogo confirma-o
● O pacto como fundamento básico de todos os atos mágicos ilícitos era senso
comum e mereceu de alguns autores a diferenciação entre explícito, quando o
indivíduo se dirigia ao Demônio pessoalmente, ou implícito, quando o Diabo era
invocado por palavras ou atos significativos. A lógica da Inquisição portuguesa
no tocante à perseguição à bruxaria e às práticas mágicas centrava-se ness
relação, sendo infindáveis os exemplos nesse sentido (p. 205)
● Ressalta-se aí o caráter sedutor do Diabo, que incitava obrar malefícios ruins,
como matar crianças, instigar curandeiros. Igreja, suas habilidades para as curas
derivavam da influência e poder de Satã, configurados no pacto estabelecido
● Muitos teólogos dos séculos XVII e XVIII hierarquizam a corte demoníaca em
várias categorias de diabos. Raphael Bluteau dizia que cada um dos sete diabos
mencionados nas Sagradas Escrituras associava-se aos sete pecados capitais:
Lúcifer era a soberba; Asmodeu a luxúria, Satanás a impaciência e a ira,
Baelphegor a gula, Belzebu a inveja, Behenit a preguiça e Mammona a avareza.
(p. 206)
● A relação contratual entre os homens e o Demônio, sob a forma do pacto
diabólico, é projeção das próprias relações sociais inerentes à Época Moderna.
Essa sociedade era impregnada de um espírito jurídico “uma sociedade cujo
tradicionalismo de costumes e dependência face à religião implica uma
regulamentação geral do comportamento social do indivíduo no mais ínfimo
pormenor.” (p. 206)

Legislação dos perseguições: nas malhas do Santo Ofício


A glória demoníaca que tanto ameaçava juízes, legisladores, eclesiásticos, inquisidores
e tratadistas, ávidos por conter a sedução desmedida que movia o “Príncipe das Trevas”
a instigar homens e mulheres em suas artes perversas, tinha de ser contida a todo custo
Os espaços e as circunstâncias eram variados: dentro dos confessionários; na escuta
atenta aos sermões dos sacerdotes, proferidos do alto dos púlpitos das igrejas; na visão
chocante da leitura das sentenças dos condenados nos autos-de-fé inquisitoriais, nas
devassas das visitas pastorais; nas salas de audiência dos tribunais do Santo Ofício (p.
207)
No seu História noturna, Carlo Ginzburg introduziu a noção de formação cultural de
compromisso, “resultado híbrido de um conflito entre cultura folclórica e cultura
erudita”, ao conceber o sabbat como um fenômeno em que as crenças pagãs são
recriadas a partir dos elementos integrantes da demonologia europeia. Este autor foi
mais preciso na percepção de que o sabbat era um mito resultante de um “complexo
coerente e difuso de crenças e grupo organizado de pessoas que as praticaram” (p. 208)
Alguns autores vão enfatizar a ideia do sabbat como construções mentais, imaginárias,
produzidas unicamente pelas elites
Trevor-Roper, estudando feitiçaria na Inglaterra nos séculos XVII e XVIII, considerou a
existência das bruxas como produto da sanha inquisitorial, associando a figura do Diabo
e a sua ampla difusão aos medos indefinidos da sociedade, postura também seguida por
Robert Muchembled (p. 208)
Norman Cohn atribuiu aos inquisidores, teólogos e magistrados a construção do
estereótipo da bruxa e do sabbat, destacando o papel significativo da tortura dos
suspeitos como forma de produzir as confissões (p. 208)
Em meio às ervas e instrumentos dos curandeiros, junto de mulheres, soprando-lhes
feitiços amorosos, adivinhando o futuro e patuás de proteção (p. 209)
O pacto construiu-se nas sessões de arguições inquisitoriais a partir das crenças e
práticas dos feiticeiros, resultando assim de um complexo de trocas culturais e religiosas
que acabaram por formular a feitiçaria como heresia, objeto da repressão do Santo
Tribunal (p. 209)
Muitos negros do Reino foram apanhados pelas instâncias de poder eclesiásticas,
imbuídas que estavam em defender a cristandade católica e extirpar as superstições e
crendices que permaneciam vivas no conjunto da população portuguesa (p. 209)
“O sabá não foi a criação de demonólogos, pesadelo de uma elite apavorada: a
interpretação de cunho mais cultural e antropológico, voltada para a análise do mito,
mostra, ao contrário, que ele se construiu a partir de trocas intensas entre universos
culturais diversos e socialmente distintos” (Laura de Mello e Souza)
Sob o filtro do poder das penas dos notários do Santo Ofício e das práticas de tortura
que obrigavam o réu a confessar mesmo o que não tinha feito, de modo indireto, por
pequenos indícios, é possível, como diria Carlo Ginzburg, decifrar aspectos de uma
determinada sociedade, de uma realidade mais profunda, tal como fazem os médicos e
detetives que, por intuição e erudição visualizaram o geral a partir de sinais particulares
(p. 2011)
Os processos e denuncias inquisitoriais fornecem pistas importantes sobre o universo
das crenças e o do próprio discurso de poder sobre elas.
A feitiçaria configurou-se em Portugal como um delito de foro misto, sendo objeto de
repressão e punição, tanto da justiça secular como da eclesiástica - episcopal e
inquisitorial - não havendo critérios específicos que determinassem exatamente as
atribuições de cada uma dessas instâncias, cabendo ao tribunal que efetivamente desse
início ao processo o julgamento dos casos. (p. 211)
Antes das ordenações régias, a feitiçaria já era objeto da legislação portuguesa, em
1385, D. João I determinava, em carta régia, a proibição de práticas como adivinhações,
encantamentos, “lançar sortes”, evocar o Diabo, dentre outras, e em 1403, uma nova lei
foi editada
Ver: Almeida F., História da Igreja em Portugal. Porto: portucalense, 1967.
Nas ordenações portuguesas, a feitiçaria foi ganhando contornos mais específicos no
que tange a descrições mais detalhadas das práticas e penas a elas referidas. Nas
ordenações Afonsinas, de 1446, a feitiçaria já vinha associada ao pacto diabólico,
punível com a morte a todos que porventura provocasse danos físicos e aos bens de uma
pessoa, além de penas mais brandas, como açoites, a adivinhadores e farejadores de
tesouros.
Nas ordenações manuelinas, de 1512, chegou-se a uma classificação específica de
crimes: evocação do demônio, uso de objetos sagrados e feitiços para “inclinar
vontades”, adivinhações, uso de objetos e partes de corpos de mortos para provocar
malefícios, curandeirismos por métodos os mais variados, fingir visões, benzeduras de
gente e animais.
Em função da gravidade, eram punidos numa escala que ia desde pena de morte,
degredo, pagamento de multas até açoites públicos, prisões e marcações no corpo com
ferro em brasa
A legislação manuelina foi que de fato definiu a postura da coroa portuguesa em relação
à feitiçaria, pois o Código Filipino, de 1603, não traz praticamente nenhum acréscimo
significativo em termos de crimes e penas
A documentação dos tribunais seculares não nos permite vislumbrar a sistemática e o
grau efetivo de sua atuação, uma vez que boa parte dos processos judiciais se perdeu (p.
213). Alguns indicíos esporádicos confirmam, de algum modo, o papel da justiça
secular, consagrado nas ordenações régias: devassas realizadas por juízes do crime das
comarcas na busca de feiticeiros; cartas de perdão concedidas pela coroa, referência nos
processos inquisitoriais de devassas abertas por corregedores de comarcas e até um rol
de bruxas queimadas em Lisboa no ano de 1559 pelo juízo secular.
A legislação episcopal em relação à feitiçaria também classificou delitos e penas,
definidas em sínodos eclesiásticos desde fins do século XVIII, quando adivinhações e
“arte mágica” foram condenadas.
Nas diversas constituições de bispados, a proibição à feitiçaria aparecia claramente
como, por exemplo, nas de Coimbra (1521), Évora (1534), Lisboa (1537), Angra (1560)
e Goa (1568), a do bispado de Évora, que reproduziu praticamente as Ordenações
Manuelinas, e a de Lisboa, que mencionou a feitiçaria de modo bastante genérico.
As fontes relativas aos tribunais civis e episcopais portugueses ainda não estão
totalmente desvendadas, portanto é arriscada uma comparação. Mas a ação inquisitorial
foi inegável
No rol dos delitos que constavam da bula papal que instituiu o tribunal do Santo Ofício
português em 1536, além do judaísmo, do luteranismo e do maometanismo, estava a
feitiçaria, incluída no primeiro monitório inquisitorial (p. 214)
Os monitórios, afixados nas portas das igrejas, eram relações de práticas e crenças tidas
por heréticas, que visavam notificar à população o que devia ser objeto de confissões
e/ou denúncias. Ver: Bethencourt, F. História das Inquisições, Espanha e Itália.
A estrutura geral da Inquisição portuguesa, englobando procedimentos e funcionários,
os delitos de sua jurisdição e seus mecanismos punitivos, foi normatizada em vários
Regimentos. No que tange à bruxaria, os dois primeiros, datados de 1552 e 1613, são
omissos, embora Francisco Bethencourt mencione uma provisão de 1546 do Cardeal D.
Henrique que indicava a punição pelo tribunal inquisitorial de Évora daqueles que
“usarem de feitiçarias, conjuros e invocações de demônios e fizerem outras superstições
diabólicas no Arcebispo de Évora. (p. 215)
Foi apenas no Regimento de 1640 que efetivamente se dispôs e se penalizou aqueles
que fossem feiticeiros, adivinhadores, praticassem sortilégios e superstições envolvendo
elementos cristãos (hóstia, pedra d’ara, dentre outros), evocassem o Demônio, tendo
pacto com ele e fazendo-lhe sacrifícios, e usassem “da arte de astrologia judiaria”.
Estabeleceu-se o corpus legislativo inquisitorial que iria reger em Portugal toda a
repressão à feitiçaria pelo Santo Ofício até 1774, quando o último Regimento da
instituição não mais viu todas essas práticas mágicas como inspiradas pelo Diabo e
resultantes de um pacto (p. 215)
A eficácia das perseguições à bruxaria em Portugal pelo Santo Ofício deveu-se também
ao apoio da justiça eclesiástica. As visitas pastorais alimentaram os cárceres
inquisitoriais, chegando muitos réus dos tribunais do Santo Ofício pelas mãos dos juízes
eclesiásticos. A presença efetiva dos bispos e visitadores nas freguesias abrangidas
pelas diversas dioceses atestam a frequência dessa prática, consagrada como
fundamental no conjunto das determinações tridentinas. Feiticeiros e curandeiros
constavam tanto nos editais que anunciavam as visitas como nos manuais de visitadores
e Regimentos dos auditórios eclesiásticos das dioceses. (p. 216)
Durante os anos 40 até a década de 70, o cardeal D. Henrique acumulou enorme poder
em setores chave da sociedade da época, entre 1534 e 1578, foi arcebispo de Braga,
Lisboa e Évora, Inquisidor geral, regente do reino e rei.
A engrenagem punitiva inquisitorial também se fez valer das confissões sacramentais,
que inúmeras vezes foram a ante-sala de processos nos tribunais do Santo Ofício.
Instigados pelos confessores, procuravam comissários, familiares e as próprias sedes
dos tribunais para recontar histórias que ficariam nos limites dos confessionários.
Muitos manais de confessores, produzidos com maior intensidade em Portugal a partir
da segunda metade do século XVI, eram verdadeiros questionários, explicitando
perguntas sobre delitos específicos, como foi o caso da bruxaria.
Nos processos e denúncias relativos aos feiticeiros negros em Portugal, encontramos
muitos casos remetidos ao Santo Ofício por confessores e tribunais episcopais.
A vasta rede de agentes inquisitoriais que atuaram mais diretamente junto da população
- os comissários e familiares - foi da maior importância representando a ação cotidiana
do Tribunal. Os comissários eram encarregados principalmente de receber denúncias,
inquirir testemunhas e fazer diligências necessárias ao andamento dos processos.
Estes agentes tiveram uma ação ímpar no acolhimento de denúncias e na disseminação
do pânico gerado pelo Santo Ofício, instigadores que eram das diversas delações. (p.
218)
Visita pastoral em Alcácer do Sal no ano de 1554 - aumento significativo do aumento de
casos de feitiçaria.
José Pedro Paiva, estudando os casos de bruxaria em Portugal nos séculos XVII e
XVIII, afirma que a Inquisição processou respectivamente 239 e 579 indivíduos
(excluindo-se o tribunal de Goa), totalizando assim 818 réus. Em relação ao volume
geral dos processados nos tribunais de Coimbra, Évora e Lisboa nesses dois séculos, à
feitiçaria coube 3,6%, 2,3%, 4,2%, considerada toda a atividade da Inquisição
portuguesa entre o início do século XVII e medos do século XVIII.
Mostra-nos José Veiga Torres que, entre os anos 30 e 34, houve um grande pico de
perseguição aos cristãos-novos, desviando assim a atenção do Santo Ofício de outros
delitos. Também a suspensão do funcionamento da Inquisição portuguesa, entre 1674 e
1681.
Os casos de feitiçaria oriundos do Brasil, estudados por Laura de Mello e Souza,
seguem a mesma tendência: dos 119 casos arrolados, 77 (64%) ocorreram entre 1750 e
1775 é volumoso - 48 casos - em função da extemporânea visitação, ao Grão-Pará e ao
Maranhão, ocorrida entre 1763 e 1769, num contexto já de declínio do Santo Ofício.
Desses 119 processados, 32,7% são negros e mulatos, indíce baixo, por sinal, em se
tratando de uma colônia escravista. (p. 222)
A brandura da Inquisição portuguesa em relação à bruxaria, justificada por Francisco
Bethencourt pela posição deste delito em relação à hierarquia de heresias articuladas
pelo Santo Ofício, e ainda pelo modelo de propagação do cristianismo em Portugal nos
Tempos Modernos. (p. 223)
O processo da Reconquista cristã na Península Ibérica, desde o século XI, integrou o
embate entre religiosidades e culturas diferentes, impoldo-se o cristianismo aos
muçulmanos e depois aos judeus. A criação do Santo Ofício em 1536 buscava o
rastreamento de heresias, ocupando-se o Tribunal, sobretudo, da questão judaica, e
nesse contexto as práticas supersticiosas e mágicas, tidas por feitiçarias, foram tratadas
de maneira marginal. Pedro Paiva chama a atenção para o ceticismo e o desdém das
elites em relação à bruxaria, abarcando os inquisidores e os demais funcionários do
Santo Ofício (p. 223)
O modelo de evangelização adotado em Portugal foi lento, sem uma drástica supressão
de crenças e práticas de origem pagã, já bastante enraizadas e muitas vezes imiscuídas a
crenças cristãs.
A estratégia consciente da Igreja era evitar confrontos diretos, optando pela mudança
paulatina e progressiva. (p. 223)
Em outros papéis do Santo Ofício que consultamos, como as correspondências mantidas
entre os diversos Tribunais e entre este Conselho Geral - instância suprema da estrutura
inquisitorial -, as referências à feitiçaria em geral, e as relativas aos negros em
particular, foram verdadeiramente raras. (p. 224)

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