Calainho, Daniela. Lusitânia Bruxa
Calainho, Daniela. Lusitânia Bruxa
Calainho, Daniela. Lusitânia Bruxa
O ceticismo dos letrados portugueses diante desses aspectos do sabbat se vincula a uma
crença na limitação dos poderes diabólicos ancorada no pensamento de Santo Agostinho
e principalmente Santo Tomás de Aquino, cuja influência na formação intelectual das
elites portuguesas foi enfatizada por Pedro Paiva.
A doutrina tomista em relação à feitiçaria foi bem moderada se comparada aos grandes
tratadistas e demonólogos dos séculos XV a XVII. Limitava-se a discorrer sobre o “mau
olhado” e a capacidade do Diabo de interferir no desempenho sexual dos homens, não
mencionando pactos, malefícios ou ritos de veneração, e enfatizando a supremacia de
Deus acima de tudo.
Assim, como a criação divina era algo inalterável não seria possível que o Diabo
transformasse homens em animais (p. 201)
A autora acredita que a moderação dos letrados portugueses baseada nessa influência
tomística foi relativa, se pensarmos na importância que o pacto demoníaco adquiriu na
configuração da feitiçaria como heresia. O discurso inquisitorial foi implacável em
rastrear malefícios inspirados por Satã, embora por vezes fosse também incrédulo em
alguns aspectos relativos ao complexo sabático europeu (p. 201)
Foi Manuel de Lacerda em Memorial e antídoto contra os pós venenosos que o
Demônio inventou (1637) a ver Satanás limitado em suas ações. Escreveu que a
devastação propociada por uma peste que assolou várias cidades no norte da Itália era
culpa do Diabo. O “príncipe das trevas” teria distribuído pós venenosos às bruxas da
região que, fiéis a ele, obraram para que a população inalasse os famigerados pós,
obtidos num dos vários encontros noturnos onde adoravam seu Senhor. No auge do
espetáculo, em figura de bode, o Diabo subitamente se consumia em fogo e das cinzas
juntas com mais outras peçonhas, faziam-se os tais pós, prêmio para que suas acólitas
dessem prosseguimento aos seus instintos malévolos, provocando doenças, desgraças,
calamidades, terrores e mortes. (p. 202). Manuel de Lacerda era professor de Coimbra e
deputado da Inquisição, o autor expressou fielmente as crenças de seu tempo, como os
sabbats e o pacto demoníaco, embora com ponderações importantes.
Visto tradicionalmente como grande sábio, o Diabo, em Portugal, era tido pelos
teólogos por malicioso, tentador, enganador de espíritos fracos, embora cerceado pela
autoridade divina. Enquanto Deus governava os céus, o Demônio tinha jurisdição sobre
a Terra, na visão de Frei Bartolomeu dos Mártires, que publicou em 1543 o seu
Cathecismo ou doutrina christã e praticas espirituais, onde via o gênero humano
“vivendo segundo as leis da carne, do mundo e do demônio, que são, como diz São
João, cobiça de deleites, cobiça de honras, cobiça de riqueza: os quais nunca entrarão no
reino de Deus” (p. 203)
O grau dos poderes do anjo decaído foi objeto de vasta reflexão havendo amplo debate
teológico no que tange à faculdade efetiva do Diabo de influenciar diretamente e mudar
o curso da vida do homem, ou apenas o dom de iludir, seduzir e enganar. Encontramos
um exemplo interessante na obra de Gil Vicente, onde é expressa a polivalência das
funções e poderes de Satã (p. 203)
Os autores portugueses não demonstraram um sentimento de pânico e terror
generalizado como fizeram os grandes demonólogos europeus [...] A tradição
portuguesa nesse sentido era mais serena, expressa na carência de relatos que apesar da
consciência dos malefícios e danos causados pelas bruxas, não eram apaixonados, mas
confiantes no poder divino e na convicção da subserviência do Diabo a Deus (p. 204)
Os sermonários e inquisidores ressaltavam a importância de fé e dos sacramentos
eclesiásticos para a libertação do demônio, expressa nas palavras de ninguém menos do
que o jesuíta Antônio Vieira, para quem o poder da Igreja e de Deus era o remédio
infalível para a vitória sobre o poder de Satã. Isso não quer dizer que não fosse
reprimida por instâncias seculares e eclesiásticas
De igual modo não se sentem os tratadistas portugueses a exigir a condenação à morte
dessas criaturas. Apesar de a pena capital estar prescrista para este tipo de delitos na
legislação portuguesa, os textos sobre o assunto nunca a reclamam e a realidade do
número de pessoas sentenciadas pelo fogo confirma-o
● O pacto como fundamento básico de todos os atos mágicos ilícitos era senso
comum e mereceu de alguns autores a diferenciação entre explícito, quando o
indivíduo se dirigia ao Demônio pessoalmente, ou implícito, quando o Diabo era
invocado por palavras ou atos significativos. A lógica da Inquisição portuguesa
no tocante à perseguição à bruxaria e às práticas mágicas centrava-se ness
relação, sendo infindáveis os exemplos nesse sentido (p. 205)
● Ressalta-se aí o caráter sedutor do Diabo, que incitava obrar malefícios ruins,
como matar crianças, instigar curandeiros. Igreja, suas habilidades para as curas
derivavam da influência e poder de Satã, configurados no pacto estabelecido
● Muitos teólogos dos séculos XVII e XVIII hierarquizam a corte demoníaca em
várias categorias de diabos. Raphael Bluteau dizia que cada um dos sete diabos
mencionados nas Sagradas Escrituras associava-se aos sete pecados capitais:
Lúcifer era a soberba; Asmodeu a luxúria, Satanás a impaciência e a ira,
Baelphegor a gula, Belzebu a inveja, Behenit a preguiça e Mammona a avareza.
(p. 206)
● A relação contratual entre os homens e o Demônio, sob a forma do pacto
diabólico, é projeção das próprias relações sociais inerentes à Época Moderna.
Essa sociedade era impregnada de um espírito jurídico “uma sociedade cujo
tradicionalismo de costumes e dependência face à religião implica uma
regulamentação geral do comportamento social do indivíduo no mais ínfimo
pormenor.” (p. 206)