Brancoe Negro
Brancoe Negro
Brancoe Negro
A Livraria AMP já ia na 2.ª geração de proprietários – foi constituída em 1848, pelo pai de AMP
que respondia exactamente pelo mesmo nome2 – e era considerada um empório no seu campo
de acção, o livro. Como é sabido, em Portugal, esse era ainda um mercado incipiente, por força
dos baixos níveis de rendimento da maioria da população – incluindo-se aqui a pequena e
média burguesia – do que resultava uma escolarização reduzida ou nula e, consequentemente,
um analfabetismo generalizado e uma literacia não menos vergonhosa. A situação é conhecida
e não cabe aqui aprofundá-la. Importa sim sublinhar que, por razão do processo de
democratização que o país conhecia desde as revoluções liberais, o mercado do livro, ainda
assim, conhecia uma progressiva expansão, em todas as suas componentes: autores, leitores,
editores e edições.
O contínuo crescimento que a Livraria AMP registou desde 1848 dá testemunho desse estádio
emergente, ainda que não se possa desmerecer a vocação ou sentido empresarial que assistia
à família, sobretudo a AMP (filho), pois foi sob a sua gestão, a partir de 1880, que a empresa
mais se desenvolveu, quer em termos físicos (instalações, equipamento e recursos humanos),
quer no que toca à produção editorial. Além de ampliar a loja da Rua Augusta, por aquisição de
um espaço contíguo, adquiriu uma outra livraria no mesmo arruamento, a que deu o nome de
Livraria Moderna. Tornou-se proprietário da Typographia e Stereotypia Moderna, localizada
no Beco dos Apóstolos, 11, de cujos prelos se extraiu o Branco e Negro. Procurou ainda
expandir o negócio até ao Porto: primeiro, abriu uma sucursal da Revista Ilustrada3, de que foi
proprietário e editor com Mariano Level (1856-1894)4, entre 1890-1892, e, pouco tempo
1
António Maria Pereira (filho) nasceu em Lisboa a 16 de Dezembro de 1856. Ainda jovem foi iniciado no mister
pelo pai e não tardou a revelar aptidão para o negócio, além de gosto pela escrita. Sob vários pseudónimos,
colaborou com o Arquivo do Povo e no Almanaque de Lembranças entre 1873 a 1877. O seu primeiro projecto
editorial, a Enciclopédia Ilustrada, foi lançado com a marca da Livraria, mas sem o conhecimento do pai. Tudo
acabou em bem, deixando por memória algumas histórias curiosas. Aos 24 anos, na sequência da morte do pai,
António Maria Pereira assumiu a direcção da casa, que atingirá então o seu melhor momento.
2
António Maria Pereira (pai) nasceu em Lisboa, a 20/05/1824 e faleceu em Sintra, a 9/07/1880. Fez-se livreiro a
pulso. Começou como aprendiz e morreu proprietário de uma Livraria e editora conceituada na praça.
3
O primeiro número da Revista Ilustrada saiu a 15 de Abril de 1890. A partir de Maio de 1892, os números já não
especificam a data (dia/mês), o que indicia irregularidade na saída das edições. Nas suas páginas ficou registo do
pensamento e a assinatura de vários autores como Camilo Castelo Branco, Fialho de Almeida, José Augusto
Vieira, Maria Amália Vaz de Carvalho, Oliveira Martins, Pinheiro Chagas, Ramalho Ortigão, Serpa Pinto, Silva
Pinto. Alguns anos mais tarde, muitos deles darão a sua colaboração ao semanário Branco e Negro.
4
De seu nome completo: Mariano Level Duarte. São parcas as informações biográficas sobre este personagem.
Sabe-se que nasceu na Venezuela (S. Fernando de Apure) a 11 de Julho de 1856 e em algum momento veio para
Portugal, onde se formou médico-cirurgião, pela Escola de Lisboa. Terminou o curso em 1883. Sete anos depois,
em 1890, fundou, com o livreiro e editor António Maria Pereira, a Revista Ilustrada. Também fez algumas
traduções para a mesma Casa. Faleceu em 1894.
1
depois, tentou adquirir uma livraria5 que, por morte de um dos sócios, se transformou em
oportunidade de negócio – mas os contactos havidos não lhe correram de feição e AMP
acabou por desistir. A produção editorial propriamente dita, acompanhou e beneficiou o
desenvolvimento da Livraria AMP, consubstanciando-se num extenso catálogo, alicerçado num
leque de autores conceituados, direccionado para variados públicos (incluindo o feminino,
infantil e juvenil) e diferentes carteiras (colecções de luxo e económicas ou populares),
abrangendo temáticas diversas como a literatura, arte, ciência, historia, desporto, recreio, livro
escolar, dicionários, almanaques, periódicos, etc.6 Uma produção que justificou a presença na
Exposição Industrial Portuguesa, que decorreu no Palácio de Cristal, do Porto, em finais de
1897. A imprensa que deu cobertura ao evento não poupou elogios ao editor AMP
considerando-o um inovador e um empreendedor sem rival: «Não tem concorrente, nem
poderia ter, porque o incansável livreiro, só por si, edita mais livros que todos os seus collegas
reunidos»; ou «a sua typographia, com uma secção de stereotipia, occupa diariamente a media
de 40 operarios trabalhando sem parar».7
ANTECEDENTES HISTÓRICOS
No que toca à edição de periódicos, importa sublinhar que o Branco e Negro não foi a primeira
iniciativa de AMP, desde que assumiu a direção da Livraria, em 1880. Como atrás foi referido,
em Abril de 1890, começou a editar com Mariano Level a Revista Ilustrada, publicação
quinzenal, que somou 60 números, até 1892. Pouco tempo depois, AMP assumiu-se editor da
Revista Nova, mensário, dirigido por Alfredo da Cunha (1863-1948) e Trindade Coelho (1861-
1908), do qual saíram apenas 5 números (Novembro/1893-Março/1894). Há ainda registo de
algumas démarches de Eça de Queirós para convencer AMP a editar uma revista que daria
continuidade ao programa da já extinta Revista Portugal (1889-1892). O projecto editorial, que
é referido em correspondência trocada, em finais de 1894, com Alberto de Oliveira (1873-
1940), que foi interlocutor de Eça junto de AMP, era assim descrito: «(…) seria uma espécie de
Magazine, ligeiro, fácil, variado, com romances, versos, viagens, memórias, fantasias, alguma
coisa no género de certas Revistas de famílias inglesas, sem excluir, está claro, os estudos de
alta critica, história e mesmo filosofia: esta Revista de 70 páginas não deveria custar mais de
200 rs., e apareceria duas vezes por mês. Suponho que tal publicação encontraria
acolhimento. Ela seria, no fundo, a velha Revista de Portugal dividida em dois fascículos, e
tornada mais viva, actual e movimentada. (…)»8 Mas a revista, que chegou a ter uma proposta
de capa concebida por Roque Gameiro, nunca superou a condição de projecto delineado nas
voltas da correspondência trocada entre Paris, onde Eça estava a residir, e Lisboa.
Esta breve evocação dos antecedentes do Branco e Negro permitimo-nos retirar duas ilações:
1.ª, que por razão do sucesso alcançado como editor e empresário, das amplas relações que
555
Tratava-se da Livraria Lugan & Genelioux, na Rua dos Clérigos, que, até 1885, fora propriedade do editor
Ernesto Chandron e se chamara Livraria Internacional. Em 1894 foi adquirida pela firma José Pinto de Sousa Lello
& Irmão.
6
Para um conhecimento mais detalhado da história da empresa recomendamos a leitura da obra Parceria A. M.
Pereira. Crónica de Uma Dinastia Livreira, referida na bibliografia consultada.
7
Cf. Primeiro de Janeiro e Commercio do Porto, de 14/10/1897. As notícias dos dois periódicos encontram-se
parcialmente reproduzidas no Branco e Negro, n.º 88, de 5/12/1897.
8
In «Eça de Queiroz – Correspondência», ed. Casa da Moeda, 1993, cit. em PEREIRA, António Maria – Parceria
António Maria. Crónica de Uma Dinastia Livreira. Lisboa: Pandora Edições, Novembro de 1998, p. 80.
2
cultivava no mundo das letras e das artes, mas também do seu perfil como cidadão e
temperamento enquanto homem, AMP foi, com alguma frequência, desafiado a assegurar a
edição de novos periódicos; 2.ª, que AMP não era tentado a assumir a direção das publicações
periódicas de que era proprietário e editor – aspecto que, em nossa opinião, reflecte a
dimensão e complexidade que a empresa atingira, o que se traduzia no volume e na
diversidade da produção que gerava.
Já vai alta a soma de caracteres e pouco se adiantou sobre o semanário Branco e Negro. Mas
considerámos importante trazer à liça a sua filiação numa editora que já somava alguns anos
de existência e que tinha como produto principal o livro, pois, em nossa opinião, isso acabou
por determinar o seu programa, o alinhamento temático e, sobretudo, o naipe de
colaboradores. Como se verá, os autores e as obras que faziam o catálogo da Livraria AMP
tiveram um tratamento e uma visibilidade especiais na publicação.
DIREÇÃO, PROGRAMA E LINHA EDITORIAL
O Branco e Negro não fez qualquer apresentação do seu projecto editorial, nem revelou a
identidade da direção ou a composição da redação. É possível que tudo tivesse sido explicado
num número espécimen, pois essa era uma prática corrente na época: permitia testar a
receptividade ao produto, assegurar um número mínimo de assinaturas, angariar anunciantes,
etc. Mas em lado nenhum se encontrou qualquer alusão à sua existência.
Foi no jornal humorístico de Rafael Pinheiro, o António Maria, que encontrámos alguma
informação. Na sua edição de 30 de Abril de 1896, fez notícia do aparecimento do novo
semanário, referindo que tinha por «directores» José Sarmento9 e Domingos Guimarães10,
além de chamar a atenção para o facto de ser «Baseado nos moldes do Branco e Negro11, o
bello semanário hespanhol», que diziam ser muito apreciado em Portugal.12
9
José de Matos Sarmento de Beja era o seu nome completo, e nasceu em Coimbra a 20/09/1870. Na mesma
cidade conclui o curso dos liceus, o que lhe bastou para iniciar uma longa carreira como jornalista, escritor e
tradutor. Na imprensa, registe-se que foi chefe de redacção do Diário de Notícias; redactor do Século, Novidades,
O Dia e Jornal da Noite; e colaborou com muitos outros títulos de natureza literária e artística, como Serões, De
Teatro, Domingo Illustrado, Noticias Illustrado, Século Illustrado, entre outros. Também exerceu cargos na
administração do Estado e no universo empresarial. Faleceu em Lisboa, a 9/11/1939.
10
Domingo Guimarães nasceu em Guimarães, no ano de 1869, mas foi no Porto que iniciou a sua carreira de
literato e de publicista. Frequentou as mais seletas tertúlias, cultivando amizade com escritores e artistas mais
notáveis da época. Na imprensa dedicou-se, sobretudo, à crítica de teatro e de literatura. Em finais Outubro de
1897, mudou-se para Paris, abandonando a direcção do Branco e Negro. Segundo José Sarmento, que lhe fez a
despedida em nome do semanário, iria assumir a função de correspondente de alguns diários informativos (n.º 84,
de 7 de Novembro de 1897). Faleceu em Guimarães no ano 1934.
11
O Blanco y Negro foi fundado por Torcuato Luca de Tena, a 10 de Maio de 1891. Alcançou de imediato uma
grande receptividade por parte do público, o que lhe valeu uma longa vida: publicou-se até 1978, em diferentes
séries. Contou com a colaboração regular dos mais prestigiados homens de letras como: Ramón del Valle-Inclán,
Romea e Luis Avendano, Jose Campo Moreno, Carlos Ossorio y Gallardo e Sinesio Delgado. Em 1909, em união
com o diário ABC, deu origem à Prensa Española SA, que lançou no mercado muitos outros títulos. In
http://es.wikipedia.org/wiki/Blanco_y_Negro_(revista) [Consultado em 26/01/2012]
12
Ver António Maria, II Série, n.º 436, de 30 de Abril, p. 175, acessível em http://hemerotecadigital.cm-
lisboa.pt/Periodicos/OAntonioMaria/1896/1896_item1/P36.html
3
De acordo com a informação que recolhemos, a Blanco y Negro13 foi uma revista de
entretenimento e informação, que cativou o público espanhol com uma oferta de leitura que
combinava a riqueza gráfica e o texto literário, pela colaboração de reputados artistas e
autores, e as atualidades. Portanto, um tipo de publicação orientada para o público em
geral, ou seja, para o leitor comum, um conceito de grande elasticidade, nomeadamente em
matéria de género, idade, interesses, orientação ideológica, etc. O próprio título, Branco y
Negro, parece querer refletir uma certa universalidade temática; também sugere a ideia de
imparcialidade, ou de compromisso com o todo, com a vida nas suas expressões de contraste
ou oposição.
Como se pode verificar, foram aquelas premissas que modelaram o “nosso” semanário Branco
e Negro. Até do ponto de vista gráfico e organizacional, existem vários aspetos comuns, apesar
de um se assumir como “revista” e outro se afirmar “jornal”: ambos apresentavam capa; a
publicidade concentrava-se, preferencialmente, entre as capas e o corpo ou miolo da
publicação; o cabeçalho na primeira página; a existência de algumas secções bem definidas; a
distribuição das ilustrações por todo o corpo da publicação; e o mesmo número de páginas, 16.
Mas não vamos prosseguir com nenhum estudo comparativo entre os dois periódicos – que se
afigura bastante interessante, refira-se. No que toca ao tipo e à forma não restam dúvidas que
estamos perante produtos semelhantes. Mas considerando que tiveram origem ou foram
expressão de realidades diferentes – no caso espanhol, um grupo que se constitui para lançar
um revista, que, mais tarde, deu origem a uma editora; no caso português, uma Livraria e casa
editora que lança um jornal – estamos convencidos que não foram coincidentes no programa
que desenvolveram. Por agora interessa-nos conhecer o semanário Branco e Negro,
procurando uma aproximação ao seu programa, nunca explicitamente comunicado, e tentando
aferir em que medida ele foi condicionado pela Livraria e casa editora António Maria Pereira.
A leitura cuidada dos textos publicados e a sua confrontação com o catálogo da Livraria AMP,
sobre o qual existem, aliás, referências na última página de cada número, não deixa margem
para dúvidas. Podemos ser taxativos: o Branco e Negro propunha à leitura trechos das
mais recentes edições da AMP ou daquelas que se encontravam ainda em preparação.
No caso do texto literário essa coincidência ou projeção verifica-se para a esmagadora maioria
dos casos. Partindo do pressuposto da inexistência de um número espécimen, essa projeção
do catálogo no semanário não era sempre assumida de forma clara. Veja-se, logo no primeiro
número, o artigo «A Epilepsia e as pseudo-epilepsias», que faz a notícia de um lançamento,
num tom de distanciamento, que sabemos artificial:
Umas páginas mais à frente, encontra-se publicado o texto «Na Azenha», assinado por
Marcelino Mesquita, e que é acompanhado da discreta informação, em final de página e
corpo reduzido: «(Do livro inédito Na Azenha proximo a apparecer)». O dito, já se encontrava
13
A Revista Blanco y Negro está acessível na Hemeroteca do ABC, através do endereço
http://hemeroteca.abc.es/nav/Navigate.exe/hemeroteca/madrid/blanco.y.negro/1896/04/04/022.
4
abertamente publicitado, juntamente com o de Miguel Bombarda e outras edições, na última
página daquele mesmo número.
Muitos outros exemplos se poderiam ir buscar, pois foi uma linha editorial desenvolvida pelo
Branco e Negro, ao longo dos seus três anos de vida. Dela, retiravam beneficio ou vantagem
quer a Livraria AMP, quer a própria publicação. Para a primeira, representava uma forma de
publicidade e promoção das suas edições – repare-se que a estratégia não era vender a obra
na forma de fascículo, uma prática comum na época, mas sim oferecer ao leitor uma “amostra”,
uma espécie de “prova de sabor” da leitura, que, se fosse bem acolhida, poderia motivar a
compra da obra. Para o Branco e Negro era a garantia de poder ostentar nas suas páginas
a colaboração dos mais prestigiados autores, uma mais-valia que o encarecia ao olhar
do público. Ademais, esta foi uma das estratégias de afirmação mais utilizadas na época,
sobretudo, pela imprensa recreativa e informativa, mais generalista.
Como não podia deixar de acontecer, a função de canal difusor do catálogo de AMP, fez do
Branco e Negro um espelho do ambiente cultural da época, marcado pela memória recente
do Ultimatum, pela eminência de uma derrocada financeira e, em razão de tudo isso, por um
pessimismo profundo. A intelligentĭa reagiu com um movimento de retorno à raiz da
nacionalidade, em busca de modelo ou mote inspirador para a regeneração da Nação.
Renovava-se o interesse pelas lendas populares, pela história, pelo património, pelas tradições
mais rústicas, pelo viver simples do mundo rural, etc. No campo literário, ganhavam expressão
as correntes ligadas ao decadentismo, neo-romantismo e ao neogarrettismo, plasmadas
pelo verbo de António Nobre, Guerra Junqueiro, Pinheiro Chagas, Manuel da Silva Gaio, entre
outros. Muitos deles foram editados pela Livraria AMP e têm trechos das suas obras publicados
no Branco e Negro.
Refira-se ainda que o Brasil foi merecedor de um tratamento especial no Branco e Negro,
mercê da colaboração regular de autores brasileiros. A partir de Outubro 1896 abriu-se mesmo
uma secção específica para a «Litteratura Brazileira»14 De resto, todo o século XIX foi
marcado por um grande intercâmbio literário entre os dois lados do Atlântico, alimentado por
uma emigração de jovens portugueses, formados, em busca de fortuna ou simplesmente de se
eximir a perseguições políticas. Como era então comum na imprensa portuguesa, o “mercado
brasileiro” integrava o horizonte de vendas do Branco e Negro, como se depreende da sua
referência no preçário.
Logo no primeiro número, de Abril de 1896, o texto «O Culto da Arte em Portugal», assinado
por Ramalho Ortigão, apresentava, numa chamada de asterisco, a seguinte informação: «A
amabilidade do illustre auctor da Hollanda devemos o poder mimosear os nossos leitores com
este bello trecho, deliciosa primeur do seu novo livro O culto da arte em Portugal, que apparece
14
A partir do n.º 30, de 25 de Outubro de 1896, p. 55
5
na próxima semana, n’uma elegante edição de António Maria Pereira. (…)». O mais
surpreendente é que três semanas corridas, no n.º 4, novamente sob o mesmo título, José
Sarmento teceu um comentário elogioso à obra, que remata com um aparente apelo aos
editores, que, algum acaso feliz, tivesse feito leitor do semanário: «para o propagar e enraizar
em todos os espíritos, tornava-se preciso uma edição popularíssima e barata, ao alcance de
todas as bolsas, visto que a prosa, por claríssima, está ao alcance de todas as intelligencias.
Tente um editor este emprehendimento que não será baldado o seu empenho.»15 A obra já se
encontrava editada, claro, e até se encontrava publicitada entre as mais recentes edições, que
eram anunciadas nas últimas páginas daquele mesmo número. Que interpretação se pode
tecer sobre tão eloquente e curioso desafio?
Sublinha-se ainda a presença contínua da secção «histórias para crianças» (a partir do n.º
3), que era alimentada com contos de autores contemporâneos, como Ana de Castro Osório,
Travassos Lopes, e muitos outros, e com lendas populares enviadas por leitores ou
recolhidas por estudiosos. Escusado será dizer que as edições para o público infantil também
faziam parte do catálogo da Livraria AMP.
Esta projeção do catálogo da Livraria AMP no Branco e Negro, apesar de intensa regular e
variada na forma, não esgotava a sua oferta de leitura semanal. Do poço da atualidade
nacional e, com um menor nível de incidência, do estrangeiro o semanário também extraía
algum noticiário, reportagens, crónicas, humor gráfico e textos de natureza diversa (recensões
críticas, opinião, biografias, informação, etc.). E também neste caso, contou com a colaboração
dos “seus” autores. Incluía ainda uma secção de «coisas úteis», com sugestões de natureza
doméstica, e a «secção recreativa», de cariz didático, muito centrada na ciência.
15
Cf. nº 4, de 26 de Abril de 1896, p. 9.
16
Aparece logo no primeiro número e mantém-se até ao n.º 6, de 10 de Maio de 1896.
17
Celso Hermínio de Freitas Branco nasceu em Lisboa, no ano de 1871. A sua obra está presente em diversos
periódicos, com os quais colaborou ou que fundou, nomeadamente: António Maria, Berro, Micróbio, Universal
(suplemento), Século, Pátria, Popular, Marselhesa, Branco e Negro, Diário de Notícias, Correio da Manhã,
Geração Nova (Porto), Arte (Coimbra), Brasil Portugal, Paródia, Carantonha, entre outros. Também ilustrou livros
e expôs os seus trabalhos por diversas vezes. Em Outubro de 1897, partiu para o Brasil, mas manteve a
colaboração com o Branco e Negro. José Sarmento assume a despedida em nome do semanário e tece-lhe
rasgados elogios no n.º 80, de 12 de Outubro de 1897). Celso Hermínio faleceu em Lisboa, em 1904.
18
Aparece pela primeira vez no n.º 8, 24 de Maio de 1896, mantendo-se até ao n.º 14, de 5 de Julho.
19
Cf. n.ºs 10, 12 e 14, de Junho e Julho de 1896).
6
de pseudónimos (tais como YAGO e SYVIO). O humor cáustico e diretamente relacionado com
a realidade do país, só reaparecerá a partir de Outubro. Mas foi um processo gradual, quase
hesitante, como quem “dá uma e espera para ver”… Até fim dos seus dias, o Branco e Negro
chamou às suas páginas o humor de Jorge Colaço, Leal da Câmara, Santos e outros não
identificados.
É evidente que a presença de algum humor num periódico generalista, dirigido a uma mancha
larga de leitores, pouco esclarece sobre as suas coordenadas ideológicas. Mas estão
presentes outros sinais, sentidos difusos, diluídos numa infinidade de imagens e textos de
pendor naturalista, decadentista e neo-romântico que faziam desfilar pelas páginas do Branco
e Negro, fundamentalmente, um país pitoresco, rural, católico e monárquico.
«Entre nós, (…), onde o partido socialista militante não recruta ainda os seus
membros para alem do operariado manual, esta manifestação tem ainda uma grande
oportunidade não só pelo movimento de sympathia que provoca em favor do
proletariado, como pelas adhesões que colhe nas almas mesmo d’aquellas que,
representado o capital, são por natureza os antagonistas das reivindicações
operarias.
…/…
Na Avenida o effeito que o cortejo produzia era na verdade magnifico. Levava tres
horas a desfillar de tão extenso que era, e para aquelles que procuram com os seus
olhos penetrar o mysterioso e enygmatico futuro, aquella onda enorme que,
gergolando do fundo das officinas, do negror fedorento das mansardas, do interior
mísero das ilhas e dos pateos ali ia, por enquanto contente e alegre, lyrica,
sobraçando braçados de rosas, agitando os seus allegres pendões de officio, fazia-
os pensar se seria aquella mesma, que um dia talvez em vez de agitar flamulas e
rosas rugidora empunhará chussos e espingardas.»20
São também valores humanistas e de sensibilidade social que dão a cor a uma série de
“reportagens” que fazem enfoque em instituições que prestam apoio aos mais desfavorecidos,
aos deficientes, inválidos e vítimas de doença: «O Sanatório D. Luiz I» (n.º 4, 26/04/96); o
«Asylo de Cegos de Castelo de Vide» (n.ºs 17 e 18, de 26/7/97 e 2/8/97); os «Abandonados!»
(n.º 46, de 14/02/97); a «Real Casa Pia de Lisboa», n.º 54, de 4/04/97); o «Albergue de
crianças abandonadas» (n.º 58, de 9/05/97); o «Lazareto de Lisboa» (n.º 60, de 23/05/97);
«Oficinas Branco Rodrigues» (n.º 101, de 6/03/98); ou que de forma mais ou menos velada
denunciam abusos de autoridade – «O Limoeiro» (n.º 5, de 3/05/96) ou «A Penitenciaria
Central de Lisboa» (n.º 49, de 7/03/97); a exploração do trabalho – «Como se fazem as
mascaras» (n.º 48, de 28/02/97); ou conflitos laborais – «A questão do gaz» (n.º 20, de
16/8/97). Quadros carregados de um realismo dorido que contrastava com o da página
20
Cf. n.º 58, de 11 de Maio de 1897.
7
seguinte, que podia tratar d’«A Viagem de Suas Magestades a Tancos» (n.º 7, de 17/05/96) ou
do «Casamento do duque de Órleans» (n.º 34, de 22/11/96), do «28 de Setembro de Setembro.
Aniversário Natalicio de SS. Magestades» (n.º 78, de 26/09/97) ou do «16 de Outubro.
Aniversário de S. M. A Rainha D. Maria Pia» (n.º 81, de 19/10/97), etc.
Na infindável galeria de retratos do Branco e Negro, que denota uma preferência pelos que
se ocupam em dar sentido estético à vida, sobressaem várias figuras ligadas aos ideais
republicanos e socialistas como o Tenente Coelho, um dos líderes da insurreição
revolucionária de 31 de Janeiro de 1891, no Porto (nº 5, de 3/05/96); Azedo Gneco, líder do
partido socialista e do movimento operário (n.º 6, de 10/05/96); Anthero de Quental, escritor e
filosofo (n.º 7, de 17/05/96); Silva Pinto, polemista de imprensa (n.º 15, de 12/07/96); Francisco
Euzébio Leão (n.º 17, de 26/07/96); Rodrigo de Freitas (nº 19 e n.º 20, de 9/08/96 e 16/08/96) e
outros. Mas semanário também se faz moldura de gente remediada ou mesmo humilde,
homens que são resgatados da massa anónima pelo critério da competência, da tenacidade,
da coragem ou da abnegação, de que são exemplo, Anselmo Antunes de Carvalho, tipógrafo
(n.º 43, de 24/01/97); Arantes Pedrozo, enfermeiro (n.º 44, de 31/01/97); Manuel Luiz Villanova,
tipógrafo (n.º 54, de 4/04/97); Claudino Dias, professor (n.º 72, de 15/08/97); António Monteiro,
bombeiro (n.º 86, de 21/11/97); «O comilão d’ Almada», empregado numa fábrica de tijolo (n.º
14, de 5/07/96); ou Alfredo David, encadernador (n.º 97, de 6/02/98).
Concluímos, pois, que o Branco e Negro foi um projecto editorial arrojado, que procurou
combinar dois objetivos diferentes: um, de natureza comercial, que estava relacionado
com divulgação e a promoção do catálogo da Livraria AMP; outro, de feição mais recreativa e
formativa, que procurava inculcar nos leitores uma perspetiva de sociedade mais humana e
solidária, mais democrática mas também mais empreendedora ou dinâmica. Mas essa não foi
a única síntese que perseguiu. Também procurou conciliar o ambiente cultural do país, que
se empenhava na busca do código genético da raça, com uma postura mais aberta, mais
atenta à cultura e às experiências de outros povos, aos avanços das ciências e ao progresso.
Nesse sentido, conjugou a tradição com a modernidade. Uma mensagem tão unificadora teria
necessariamente por destinatário uma ampla fasquia de público, o que pressupunha cativar a
pequena burguesia das cidades, gente remediada, alfabetizada, mas de parcos recursos. A
questão do preço de venda do jornal era, portanto, central. António Maria Pereira resolveu-a
conciliando na mesma publicação os dois objetivos apontados. Estratégia que lhe permitiu
vender o número avulso do Branco e Negro, semanário ilustrado por reputados artistas e
redigido pelos melhores escritores, por 40 réis! – Valor bastante reduzido, quando comparado
8
com o que era praticado por outras publicações análogas. Para se ter noção dos valores em
causa, refira-se que, na época, cada número da revista Ocidente, apenas com 8 páginas,
embora de formato ligeiramente superior, custava 120 réis! Já o António Maria, também com 8
páginas, ficava por 3 vinténs, ou seja 60 réis.
Desconhece-se a tiragem alcançada pelo semanário, que se limitava a apregoar que era «o
jornal illustrado de mais larga divulgação em todo o paiz e em todo o Brazil». Mas é
indesmentível que subsistiu até à morte do editor, cumprindo as datas de publicação,
apresentando sempre publicidade de vários anunciantes e, pontualmente, algumas inserções
oficiosas. Quanto ao catálogo da Livraria somava, à data da sua morte, cerca de 700 edições21.
COLABORADORES
Ao longo dos três anos de edição, o Branco e Negro contou com um número inusitado de
colaboradores literários, muitos dos quais já tinha o nome associado à Livraria AMP, por via
dos periódicos anteriores (Revista Ilustrada e Revista Nova) ou por obra editada. São mais de
uma centena e meia de autores, pelo que a colaboração com o semanário se define pela sua
natureza passageira ou descontínua. De facto, se excluirmos o caso dos dois diretores ou
fundadores, José Sarmento e Domingos Guimarães, os autores com mais de dois textos
publicados não ultrapassa a duas dezenas. Incluem-se nesse conjunto: A. Campos (Almeida
Campos?), Ana de Castro Osório (1871-1935), Adolpho Portella (1866-1923), António Júlio
Valle e Sousa, BOB, Diniz Gomes, Eduardo Fernandes (Esculápio, 1870-1945), Gomes Leal
(1848-1921), Henrique das Neves (Porto, 1841- Lisboa, 1915), Henrique V. de C. Marques
Júnior (1881-1953), José Augusto de Castro (1862-1942), Júlio Brandão (1867-1947), Justino
de Montalvão (Coelho, 1872-1949), Maria Ribeiro Arthur, Padre Sousa Freitas (1840-1913),
Ramalho Ortigão (1836-1915), SYLVIO, Theodoro Rodrigues, Trindade Coelho (1860-1935), e
os brasileiros, Coelho Netto (Henrique Maximiano, 1864-1934), Olavo Bilac (Rio de Janeiro,
1865-1918), Luiz Delphino (dos Santos, 1834-1910) e Luís Murat (1861-1929). Mas se
quisermos acrescentar ao rol mais patriarcas da escrita que deixaram a sua assinatura no
Branco e Negro, ainda que esporádica, havia que acrescentar: Afonso Gayo, Antero de
Quental, Albertina Paraíso, Alberto Pimentel, Alice Pestana, Bulhão Pato, Carlos Malheiro Dias,
D. João de Castro, Eça de Queirós, Eugénio de Castro, Fialho de Almeida, Gervásio Lobato,
Guerra Junqueiro, Guiomar Torrezão, João Chagas, Júlio César Machado, Lourenço Cayolla,
Marcelino Mesquita, Oliveira Martins, Pinheiro Chagas, Pinto Carvalho (Tinop), Sousa Viterbo,
Wenceslau de Moraes, Xavier de Carvalho, entre muitos outros.
21
Cf. PEREIRA, António Maria – Parceria António Maria. Crónica de Uma Dinastia Livreira. Lisboa: Pandora
Edições, Novembro de 1998, p. 69.
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colaboração, pontual, de Jorge Colaço, Santos e Leal da Câmara. Com alguma frequência,
reproduziam-se, a partir de periódicos estrangeiros, como o l’Illustration, trabalhos de outros
caricaturistas, mas não foi possível a sua identificação.
O Branco e Negro também ilustrou muitas das suas páginas com desenhos e aguarelas de
Alfredo Moraes (Lisboa, 1872-1971), António Julio Valle e Sousa, Ernesto Condeixa
(Lisboa, 1858-1933), João Vaz (Setúbal, 1859 -Lisboa, 1931), Enrique Casanova (1850-1913)
e Roque Gameiro. Deste último, publicou-se, a partir de Novembro de 1897, uma série
completa de desenhos dedicada aos «Costumes Portuguezes». A gravura fez-se representar
através de artistas de renome como: CASELLAS (Domingos Casellas Branco), PASTOR
(Francisco Pastor, de Alcoy/Espanha, 1850-1922) e PEDROSO (João Pedroso Gomes da
Silva, de Lisboa, 1825-1890). O tipo de temas tratados – paisagens, monumentos, retratos,
além dos motivos ornamentais – levam-nos a crer que a maioria dos trabalhos não são
inéditos, mas sim reproduções. Uma casa editora como a AMP dispunha certamente de muito
material gráfico, que fora adquirindo ao longo do tempo, para ilustrar as suas edições.
A fotografia, enquanto arte tradutora da realidade, foi adquirindo um peso crescente no Branco
e Negro. A sua fidedignidade, rapidez de execução e baixo custo representavam certamente
um grande atrativo, pelo que era preferida para complementar os textos que tratavam do
presente (reportar viagens, espaços e acontecimentos). A ilustração domina no texto literário
ou de natureza retrospetiva. No Branco e Negro encontram-se publicadas fotografias de um
número significativo de fotógrafos e estúdios fotográficos, como Arnaldo da Fonseca (1868-
1936?), Atelier Magalhães & C.ª (Porto), Augusto Bobone (1852-1910), Carlos Relvas
(Golegã, 1838-1894), João Francisco Camacho (1833-1898), Emílio Biel (Porto, 1838-1951)
e Biel & C.ª Sublinha-se ainda a publicação de material atribuído a fotógrafos amadores, que
são invariavelmente identificados pelo nome.
Rita Correia,
BIBLIOGRAFIA
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FRANÇA, José-Augusto – O Romantismo em Portugal. Lisboa: Livros Horizonte, 3.ª edição
1999. ISBN 972-24-1066-0
PEREIRA, António Maria – Parceria António Maria. Crónica de Uma Dinastia Livreira.
Lisboa: Pandora Edições, Novembro de 1998. ISBN: 972-8247-05-2.
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