RFDUL - XXXVII - 1996 - 1 - Pedro Ferreira Múrias
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fundada em 1917
Periodicidade semestral
XXXVII - N.° 1 - 1996
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(28 Doutrina
Humberto Nogueira Alcala — Constitucién y Derecho Internacional de
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Paulo de Pitta e Cunha —Problemas da Revisio do Tratado de
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Maria Adelaide Teles de Menezes Correia Leitio — Estudo sobre os
Interesses Protegidos e a Legitimidade na Concorréncia Desleal ....
Eugénia Galvado Teles — O Reconhecimento de Sentengas Estrangeiras:
O Controle da Competéncia do Tribunal de Origem pelo Tribunal
Requerido na Convengao de Bruxelas de 27 de Setembro de 1968 119
Pedro Ferreira Mirias — A Responsabilidade por Actos de Auxiliares
e o Entendimento Dualista da Responsabilidade Civil...................... 171
Ui Relatérios Académicos
José Lebre de Freitas — Direito Processual Civil II - Relatério ........... 221
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Jorge Miranda/ Jorge Bacelar Gouveia — O Crédito Bonificado a
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A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O
ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL
I
MONISMO E DUALISMO NA RESPONSABILIDADE CIVIL (7)
2. Obrigacionalidade ou contratualidade?
(3) O termo nao é, decerto, rigoroso, por isso vo as aspas, embora ele continue a ser usado por intimeros
autores sem outra precisdo.
(4) Esta afirmagao nao obsta a que se possa divisar, em termos de evolugdo do direito positivo, uma
aproximaga4o entre os dois campos da responsabilidade civil. Assim, numa andlise de direito comparado, TUNC,
p: 376s:
(°) Sobre a eventual ambiguidade do termo culpa e dos seus cognatos, cf. infra p. 10.
(5) Sao varios os autores que admitem uma fungdo preventiva, secund4ria, na responsabilidade civil, que
pode ser desempenhada até pelas previsdes objectivas de responsabilidade: aumentando-se a probabilidade de um
dever de indemnizar, os visados redobram de cuidados para o impedir; assim, SOFIA GALVAO, p. 50 (97) e 64.
CALVAO DA SILVA, p. 498, demonstra que a objectivacao da responsabilidade aumenta a eficdcia da fungao preven-
tiva: mais do que o exigivel a uma pessoa razodvel, a um bom pater familias, incentiva-se 4 maxima seguranga.
(7) Assim, VOLLMER, p. 374. Negando uma “separagao rigida entre a responsabilidade por culpa e a
responsabilidade objectiva”, MARIA VITORIA DA ROCHA, p. 61 € s..
(°) Esta ultima dicotomia nao é tao comum entre os autores. A oposi¢ao entre contrato e delito foi inicial-
mente feita por GAIUS pretendendo apresentar as duas fontes possiveis de obrigagdes. Os conceitos de contrato e
delito divergiam, contudo, dos hoje comummente.usados, abrangendo 0 contractus toda a fonte de obrigagdes
diferente do,na nossa terminologia, ilfcito extracontratual — cf. MENGONI, p. 1072.
| A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL 173
(°) Estabelecendo a distingdo pelo interesse atingido, TEIXEIRA DE SOUSA, p. 315, mas este autor sustenta
ser a presenga de um contrato que implica um regime distinto em sede de concurso de responsabilidades (p. 324
e s). Distinguindo também pelo interesse, ROMANO MARTINEZ, Cumprimento...., p. 260 e s., mas aqui a preocupagao
esta em separar, perante a violagdo de um contrato, os danos ressarciveis segundo cada uma das formas de
responsabilidade.
(!°) A absolutidade refere-se aqui 4 estrutura do direito subjectivo: Cf. a terminologia em MENEZES
CORDEIRO, Direito das Obrigagées, Vol. 1, pg. 252.
('!) A mesma dtivida levantou MANUEL DE ANDRADE, p. 127.
(2) Ou entre responsabilidade extracontratual e responsabilidade extranegocial.
('3) Estes dois termos sao verdadeiros sinénimos.
PEDRO FERREIRA MURIAS |
('4) Seja o caso dos deveres impostos aos donos de indtistrias poluentes com vista ao tratamento dos seus
efluentes — é um dever especifico do dono de cada uma dessas indlstrias; ou o do dever de limpar a neve gelada
e escorregadia em frente de cada casa — ou de algumas delas se a ordem for dada por acto administrativo; ou o
caso do dever dos proprietérios subjacente ao art. 492. O segundo destes exemplos é, originariamente, de HECK
— apud VAZ SERRA, Responsabilidade contratual e extracontratual, p. 219. Sobre deveres como os referidos versa
a andlise de VOLLMER que citamos: cf. infra.
(15) Que nem todos os autores admitem — cf. infra.
('%) Cf. os arts. 798° e ss., que se reportam, ao menos no seu teor literal, 4 violagéo de quaisquer obri-
gacées.
('7) Assim, FRADA, p. 60 e s.; este autor vai mais 4 frente interrogar-se também sobre a susceptibilidade
de reconducio dos deveres de protec¢fo, o objecto do seu estudo, ao fmbito da obrigagao: p. 86 e s.
('8) Assim, FRADA, p. 39 (67); sobre o conceito de obrigagao, ainda p. 102 (197); MENEZES LEITAO,
A responsabilidade do gestor..., p. 212 (2) — o dever do art. 465°, b), nao é, para este autor, obrigacional porque
nao é exigivel judicialmente: “A partir do momento em que 0 dominus sabe da gestaéo deixa de ter interesse em
pedir o aviso do gestor”. Refira-se que CARNEIRO DA FRADA nao deixa de admitir deveres obrigacionais, de
prestacao, com contetido e fungao idénticos aos deveres de protecgao, quando as partes assim 0 convencionem, o
que nao deixa de nos suscitar alguma perplexidade — cf. p. 61, 92, 156, 160 e 189 (384).
[ A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL _ee
|
De igual modo, se se tratar de uma obriga¢g4o de non facere, muitas vezes sera
descabida uma ac¢4o de cumprimento e ainda mais a respectiva execugao (7°).
Pelo lado contrario, ha deveres que comummente se excluem do conceito de
obriga¢ao, v.g., por serem acessérios de uma verdadeira obrigac4o ou por 0 seu escopo
ser a tutela da integridade da outra parte (7'), e que podem ser judicialmente exigidos
numa accao que devera ser qualificada como acgéo de cumprimento (22) (24).
4. Os argumentos
(77) Assim, quanto a aspectos determinados, SCHLECHTRIEM, p. 1674 e s., e, em geral, segundo se entende,
MENEZES LEITAO, Acidentes de trabalho e responsabilidade civil, p. 783 e s. (p. 794).
(78) Além de GOMES DA SILVA (op. cit, pg. 192 e ss), monista de direito positivo é também P. ALBU-
QUERQUE, se bem que num 4mbito limitado, o do prazo prescricional — é a tese que defende no trabalho que
citamos. A este respeito € acompanhado por alguma jurisprudéncia.
(7) Tanto quanto nos conseguimos aperceber, é esta a posi¢fo que defende actualmente o Prof. MENEZES
CoRDEIRO, no seu ensino oral: A divergéncia quanto ao 6nus da prova seria fundamental no momento aplicativo,
naturalmente o momento chave de qualquer instituto. A auséncia de um trabalho escrito do referido autor impede-
nos, em boa verdade, de lhe imputar a responsabilidade por esta tese. Seja ela tida em conta pelo seu valor préprio
e como hipétese de trabalho, independentemente da sua autoria. Posig¢ées opostas defendia o autor em Direito das
Obrigagées, Vol. II, pg. 275 e s. ou no parecer publicado na CJ, ano XII, cit., pg. 44. Sobre esta importancia da
regra sobre o onus da prova, cf. também Frapa, p. 190 ¢€ s., e infra.
(3°) A este respeito, parece fundamental fazer uma anidlise histérica que ilustre o aparecimento das tao
faladas “diferengas” de regime de modo a deixar claro 0 porqué de cada uma delas. Isto é tanto mais importante
quanto é certo que elas nao sao as mesmas nos varios sistemas nacionais, ainda que haja certas regularidades. Essa
andlise deve ir muito além do perfodo das codificagdes, ao direito romano, mas investigando cada uma das ditas
diferengas. Nesse sentido, cf. uma observagao breve de MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigagées..., Vol. II,
p. 259, e, em sentido oposto, JAIME DE GOUVEIA, p. 160 e s.. BECKER, p. 18, faz notar que a responsabilidade
chamada delitual tem origem comum com a responsabilidade penal, ao invés do que sucede com a oriunda de
violagdes contratuais. Idéntica atengio deveria ser dada 4 andlise comparatistica. Tanto esta quanto a anterior
costumam faltar. Também nds nfo lhes poderemos atender, visto nos limitarmos aqui a uma exposi¢4o introdutéria.
| A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL 77
violagéo ou nao de um negocio juridico ou, ao invés, pela existéncia ou nao de uma
obrigac4o prévia entre lesante e lesado (3!).
Seguindo a licfio de GOMES DA SILVA (32), a base de toda a distingao estaria,
para os seus defensores, em que nuns casos a fonte da obrigag4o de indemnizar seria
© contrato, enquanto que noutros seria a propria lei. E tese hoje perfeitamente aban-
donada em face da distingao entre o dever de prestar e o de indemnizar (37). Por curio-
sidade, olhe-se 4 sistematizagao do BGB, um cédigo que separa claramente, segundo
entendem os estudiosos alemaes, as duas formas de responsabilidade civil: No Livro
II, sobre Direito das Obrigag6es, a primeira secc4o entitula-se Conteudo das relagées
obrigacionais; ێ, no seu Titulo I, Obrigagdo a prestacgdo, que se trata a responsa-
bilidade do devedor por incumprimento, ficando para o Titulo II a mora do credor
Acrescentava um dos adeptos da teoria dualista, CARADONNA, que, na respon-
sabilidade extracontratual, o direito, que competia ao homem como cidadaio, lhe exigia
um comportamento para “garantir a coexisténcia social” e que, por isso mesmo, as
normas af violadas teriam “precedéncia légica” sobre as restantes (34). Na responsa-
bilidade contratual, diferentemente, estaria em causa um “regulamento arbitrario de
interesses” (75). Tese semelhante podemos encontrar em CARNEIRO DA FRADA, que
afirma caber 4 responsabilidade extracontratual a defesa do “minimo pressuposto da
paz juridica”, nao assegurando modificagées, v. g., patrimoniais que beneficiem certos
sujeitos, antes tendo “direccAo negativa, votada 4 defesa da integridade do status quo
patrimonial e pessoal”, 4 defesa de “bens juridicos primordiais, pilares fundamentais
da ordem social” (3°). E conhecida alguma argumentacio contra estas assergdes. La
chegaremos, mas permitamo-nos apenas chamar a atenc4o para que esta fundamentacao
parece contraditéria com a generalizada aceitagéo de que é a responsabilidade
obrigacional/contratual que d4 uma melhor tutela ao lesado. O mesmo nao se diga de
alguns outros argumentos:
Assim, chama-se a ateng4o para o facto de que na responsabilidade obrigacional
o potencial lesante est4 4 partida determinado, levando, por consequéncia, a um iter
diferente na interpretacg4o/aplicacao do direito. Esta ai em causa um risco especifico
de dano. (37)
Diz-se ainda que, nuns casos, ha um projecto particular de relacionamento e
colaboragdo humanos e expectativas pessoalmente depositadas no lesante, enquanto
nos outros se joga a ordenacéo geral dos bens e a definigéo de zonas gerais de
liberdade e de risco, no campo da pura heteronomia. (38)
GC!) Atente-se no que se disse supra sobre o ponto onde assentar a linha diviséria das suas
responsabilidades.
(3?) Cf. O dever de prestar..., p. 190 e s.
(3) Cf. infra, j4 a seguir.
(C4) PEREIRA COELHO, p. 98 e s., um autor monista, critica esta concepgio de CARADONNA.
(35) Apud GOMES DA SILVA, p. 191.
(°°) Op. cit., p. 127 e s. e, com énfase, p. 162.
(37) Cf. PICKER, p. 1053, embora a afirmagdo se integre aqui numa concep¢4o que, ainda assim, podemos
considerar monista.
(8) Assim, FRADA, p. 125 e ss.
PEDRO FERREIRA MURIAS |
Sao argumentos que cativam, mas deve-se atentar que Os primeiros servem
apenas para uma distingdo assente na relatividade das posig6es violadas, ao contrario
dos segundos, que fundaraéo uma distingdo pela fonte dessas posig¢des — em nosso
entender, eles nao sao facilmente cumulaveis. (39)
@) HA, naturalmente, outros argumentos para defesa do dualismo, ainda que nao tao determinantes ou
generalizadores; cf., p. ex°., PEREIRA COELHO, p. 104, que acusa GOMES DA SILVA de pretender socializar ou
publicizar a obrigagio, i.e., tiré-la do Ambito de plena disponibilidade das partes, da autonomia da vontade, em
que ela perfeitamente se inseria. Parece-nos que este argumento se deveria dirigir mais ao contrato do que a
obrigacao.
(4°) Cf. o que se diz infra sobre o 6nus da prova na responsabilidade civil.
(*') Assim explicava Gomes DA SILVA que 0 art. 2380° do C. Seabra, respeitante ao dever de responder
por actos de servigais ou comissdrios, abrangia também a responsabilidade contratual (p. 198). Hoje, em face do
abandono, pela nossa legislago, da distingao entre responsabilidade civil conexa ou nao com a criminal, o raciocinio
em causa perde relevo. Cf., no entanto, PEDRO DE ALBUQUERQUE, p. 828 e s., a propésito do art. 498°, n° 3, actual.
Nao atende a esta possivel conexdo, p. ex., PEREIRA COELHO, p. 96-7, (2), e 105.
(42) Fé-la GRANDMOULIN. GOMES DA SILVA distingue em termos impressivos os dois deveres quanto ao
objecto, ao fim, a fungao, a fonte e a justificagao — p. 226 e s. Cf. PEDRO DE ALBUQUERQUE, p. 800 e s. De
certo modo, cf. também PICKER, p. 1055 e s.. Autores hd, no entanto, que continuam a integrar o dever de
indemnizar na “relagdo obrigacional, entendida enquanto relacdo fundamental” — MENGONI, p. 1073.
(43) “Os prejuizos pela inexecugo de contratos séo, muitas vezes, socialmente mais graves” — GOMES
DA SILVA, p. 192. Note-se, para mais, que um entendimento estrito do que afirmam os autores dualistas esqueceria
a indemnizabilidade do lucrum cessans em sede extracontratual. O mais que o dualismo poderia dizer contra este
argumento é que a delitual assegura a “estabilidade das modificag6es patrimoniais”. Ainda é dificil, todavia,
sustentar este ponto, até pela frequente confusao, em termos de vida social, dos dois aspectos: quem destréi animais
de uma exploragdo pecudria (violando 0 neminem laedere e direitos absolutos) pagardé, grosso modo, o prejuizo
[___A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E 0 ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL
E também ponto de honra para as doutrinas monistas apelar em sua defesa para
a ideia fundamental da igualdade. Na verdade, seria indefensdvel que dois individuos
em situacdes “materialmente idénticas” fossem tratados de forma diferente. (4+)
Esclarega-se que as posicdes monistas, mesmo as de direito positivo, nado negam
que dentro de um dos campos da responsabilidade haja compartimentacg6es. Assim se
poderd talvez isolar a responsabilidade por violacdo de negécios gratuitos (*5). Afirmam
é que essas linhas divis6rias que nao passam pelo meio dos dois hemisférios
tradicionalmente considerados nao podem fundar a sua distingaéo — havera outras
separacgées que se justifiquem.
O que quer dizer também que nem um monismo radical impedira 0 relevo da
problematica do concurso de responsabilidades. (4°) (47)
5. Dualismo e “pluralismo”’
Admite-se nos dias que correm ser ainda insuficiente a biparticdo referida.
Assim sugeriu CANARIS uma “terceira pista” na responsabilidade civil (48). Por outro
lado, surgem miultiplas figuras de fronteira para cuja clarificagdo os autores indagam,
caso a caso, em face de cada diferenga de regime, qual a solugao a aplicar. Recusa-se
assim 0 conceitualismo metodologicamente irrealista de partir da qualificag&o para a
aplicagao em globo de um regime (49). Metodologicamente louvavel, esta posicdo poe
correspondente ao valor que nfo se ganha com a sua venda e a das geragées posteriores que eles produziriam
(conseguido contratualmente). E que dizer da responsabilidade delitual/extra-obrigacional, ainda que s6 em casos
de abuso de direito (cf. infra), aquando da violagao por terceiros de direitos relativos?
(44) Assim, MENEZES LEITAO, Acidentes de Trabalho..., pp. 776 ¢ 790; CALVAO DA SILVA, p. 475-480,
p6e em relevo a ideia de igualdade em face da inexisténcia de diferenciagéo de regime no D.L. 383/89, de 6 de
Dezembro, e na Dir. 85/374 por entre produtor e lesado existir ou nfo uma relacio contratual: “o fenédmeno real
dos danos dos produtos conexos ao desenvolvimento industrial 6 sempre o mesmo,” — afirma — “‘o que torna
injustificada a diferenciagdo ou discriminagao”(p. 478).
(45) SCOGNAMIGLIO, Responsabilita contrattuale..., p. 677, fornece elementos neste sentido.
(**) Deve aplicar-se sempre o regime dito contratual/obrigacional, deve deixar-se 0 lesado optar, devem
aplicar-se ambos naquilo que mais favorega o lesado ou deve aplicar-se um regime composto? Ha um concurso
de pretensdes, um concurso de fundamentos para uma s6 pretensdo, um mero concurso de normas ou um concurso
de titulos de aquisi¢éo? Cf. Terxeira DE Sousa, op. cit., passim, e, na resolugao de casos, sobretudo p. 313 e¢ s.
Este autor contesta a posigdo que vé a ilicitude contratual como especial relativamente a extracontratual e a tese
do concurso de pretensdes em favor da qualificagéo como concurso de titulos de aquisicao, caracterizado, em termos
de efeitos, pela consumpg¢do (constitutiva ou extintiva) entre os varios titulos de aquisigao (p. 141 es. e 271 es.).
(*7) SCHLECHTRIEM, p. 1597, afirma precisamente que ainda num sistema em que vigorasse um regime
unificado teria relevo o problema do concurso de responsabilidades, por existirem vdrios deveres violados numa
s6 acgao. CALVAO DA SILVA faz notar a importancia da admissibilidade da aplicagio cumulativa dos regimes de
responsabilidade civil na aceleragio da “desagregagao da tradicional diviséo da responsabilidade” (p. 476 e s.),
sendo porém perempt6rio em afirmar que essa divisao existe, “concorde-se ou nao” (p. 479).
(48) Apud FRADA, p. 249 e s., MENEZES LEITAO, A responsabilidade do gestor, p. 353 e s., ou SINDE
MONTEIRO, p. 489 e s.. RIBEIRO DE FARIA, em “nota prévia”, considera uma “omissdo de tomo” a inexisténcia na
sua obra que citamos de um “tratamento diferenciado da responsabilidade pela confianga”, figura com que CANARIS
preenche a sua “terceira pista” (vol. I, p. VII).
(4°) E o que fazem FRADA, p. 187 € s., ¢ MENEZES LEITAO, A responsabilidade do gestor..., p. 292 e s.
Note-se, contudo, que este autor nao se pode classificar como dualista e, no seu anterior escrito, Acidentes de
trabalho..., defendeu até posigdes fortemente monistas. Curiosamente, os estudos destes autores em matérias tao
proximas, alias, parcialmente sobrepostas, seguindo uma metodologia idéntica, conduzem a resultados absoluta-
mente opostos nos pontos fundamentais do 6nus da prova e da responsabilidade por actos de auxiliares. Também
defendem essa metodologia SINDE MONTEIRO, aderindo a concepcdo da “terceira via” (p. 509 e s.) e MENEZES
CORDEIRO, Parecer (cumprimento imperfeito), p. 44.
PEDRO FERREIRA MURIAS ]
em causa que cada uma dessas diferengas de regime possa assentar, afinal, naquelas
possiveis divergéncias globais de fundamento (>°). Talvez se encontre aqui um dos mais
fortes ataques da actualidade, em parte involuntario, 4 summa divisio que se estuda.
Algo de semelhante se podera dizer precisamente das varias dreas especiais
dentro do direito da responsabilidade. S40 valoracdes estranhas as que se descreveram
na separacdo dos ambitos das duas responsabilidades, vindo assim p6-las em questao.
Recorre-se entao as idiossincrasias de certas profiss6es para nelas justificar a escolha
por um ou outro regime (°'), ou ao préprio facto de ser um profissional o eventual
obrigado, ou, ainda, a singularidade da responsabilidade em situagdes “de mera
obsequiosidade” ou, como se referiu, de negécios gratuitos. (>)
6. As “diferencas”’
(°°) FRADA admite, todavia, e na sequéncia de BAPTISTA MACHADO, interpor entre responsabilidade na
autonomia e responsabilidade na pura heteronomia uma responsabilidade na heteronomia evitavel (p. 182).
(@!) Cf. PICKER, p. 1046 e s.
(7) Cf. FRADA, p. 276 s.
() Cf. arts. 487°, n° 1, e 799°, n° 1. Grande relevo dogmatico tera esta diferenca por uma inversao do
Onus a favor do lesado poder esconder uma “quase responsabilidade pelo risco” (FRADA, p. 190 e s.; cf. também
Maria ViTorIA DA Rocua, p. 63 e s.). Pensa-se ser este, aproximadamente, o entendimento actual de MENEZES
CorbeirO e, dai, a sua posigao sobre a diferente “natureza” das duas ordens de responsabilidade. Em Da boa fe...,
p. 600, (260), o autor qualificava o art. 799°, n° 1, como “ultimo e tinico ponto de diferenciagao significativa entre
as responsabilidades delitual e obrigacional, perante o Direito substantivo (Cf. também p. 639). Nao se tome o
art. 799°, contudo, como se ele tivesse aplicagaéo absoluta em sede contratual/obrigacional. Além de serem permitidas
convencées sobre o 6nus da prova (cf. art. 345°), em casos como o da responsabilizagio do devedor apenas por
dolo reverterd esse 6nus ao lesado — assim, TEIXEIRA DE Sousa, p. 147.
A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL ISt
significa senéo negligéncia, vindo ao encontro da tradi¢ao dos direitos dos paises
latinos — neste sentido, cabia distinguir culpa grave (lata), culpa leve e culpa
levissima. Por Ultimo, ha que considerar a possibilidade de o termo estar no lugar da
faute napoleénica, abrangendo assim o juizo de ilicitude e de culpa na acepcao
pos-finalista.
Temos, portanto, uma 6bvia polissemia que faz aumentar a indeterminagao do
conceito e, logo, as dificuldades na sua interpretagdo. Pode-se ent&éo questionar qual
o objecto da prova cujo 6nus é assim distribuido, e nao sera demais afirmar que muitas
das dtividas se tém originado neste ponto. (°*) (°°)
A existéncia real desta diferenga entre as responsabilidades foi combatida:
afirmava-se que a disting4o se havia de fazer pela dicotomia obrigagdes de meios/
/obrigagées de resultado (°°) ou pela contraposic¢do entre acco e omissdo, entre deveres
negativos e deveres positivos (°’). Assim, as diferengas seriam aparentes, resultando
apenas de a generalidade dos deveres (““obrigagdes”) extracontratuais serem omissivos
(4) TEIXEIRA DE SOUSA parece entender 0 art. 799° como presuncdo de negligéncia (p. 273). SA E MELLO,
y.g., Sustenta que 0 que se deve provar, no 4mbito do art. 487°, n° 1, €é a imputabilidade, e nio mais do que isso
(cf. p. 540), o que nao deixa de suscitar grandes dividas, e retira dai uma maior proximidade entre as duas
responsabilidades — nfo seria afinal toda a culpa a ter de ser provada no art. 487°, n°l. PESSOA JORGE discute
igualmente o que deve aqui ser provado, concluindo que é a falta de diligéncia por parte do lesante (p. 339 e s.).
Na verdade, no sentido em que hoje se usa “culpa”, seria absolutamente descabido impor a sua prova ao lesado
até porque estéo em jogo, afinal, causas de excluséo da culpa — materialmente, sio excepgGes A existéncia do
direito que os restantes dados fortemente indiciam, parecendo dever ter um regime igual ao dos factos extintivos
ou impeditivos do direito (cf. art. 342°, n° 2). Cf. também FRADA, restringindo, num caso concreto, 0 significado
da presungao de culpa (p. 193 — cf. 191 es.).
(55) A esta quest&o acresce, a propésito do art. 799°, n°l, a de saber quem terd de provar o préprio
cumprimento/incumprimento. Variadissimos autores afirmam ter o credor esse 6nus, pelas regras gerais (art. 342°,
n° 1), ao contrério do que sucederia se, em lugar da indemnizagao, ele viesse exigir que o devedor cumprisse (Cf.
ANTUNES VARELA, Vol. II, p. 97; RIBEIRO DE FARIA, Vol.II, p. 405; ROMANO MARTINEZ, Cumprimento..., p. 261;
MARIA VITORIA DA ROCHA, p. 63). Esta diferenga parece desrazodvel e formal, assentando numa classificagaéo
estrutural de um facto como constitutivo ou nao de um direito e contrariando, por exemplo, a possibilidade de
uma accdo de cumprimento se convolar em acgfo de indemnizacaéo — cf. art. 931°, n° 1 C.P.C.. (Neste sentido,
com outros argumentos, GALvAo TELLEs, p. 386 e s., e BIANCA, p. 174 e s., distinguindo ambos os autores entre
casos de dever positivo e de dever negativo; cf. também a posigéo de Gomes pa Sitva, p. 205.). Em sede de
cumprimento defeituoso, a prova do defeito cabe ao lesado
— RoMANO Martinez, Cumprimento..., p. 356.
(5°) E a conhecida classificagao de DEMOGUE — apud, v.g., GOMES DA SILVA, p. 205 e s. Na Alemanha
deu-se ha algum tempo um renascimento desta construgdo, mas com terminologia ligeiramente diferente e sem se
filiar no pensamento do autor francés. Assim se separam erfolgsorientierte ou erfolgsbezogene Pflichten e
Handlungspflichten. Entre nés, cf. FRADA, p. 193 e s., reduzindo a presungdo de culpa do devedor nos “simples
deveres de comportamento” ao aspecto da “censurabilidade pessoal da conduta do agente”, i.e., parece, 4 culpa
no sentido pés-finalista. Convenha-se, contudo, e jd ia nesse sentido a opiniaio de PESSOA JORGE (p. 339), que
essa censurabilidade nem o delitualmente lesado tem de provar. VOLLMER (p. 372 e passim) acolhe o entendimento
referido e estende a relevancia da distingao 4 aplicabilidade do § 278 do BGB (art. 800° do nosso céd.) a certos
casos. Cf. infra. HUET, p. 131., argumenta com esta distingio para distribuir 0 6nus da prova. MOTA PINTO chama
a atengdo para esta identidade entre a conceptologia alema e a francesa — p. 346.
(67) Assim PLANIOL e GRANDMOULIN, apud JAIME DE GOUVEIA, p. 207. Cf. a parte final da nota 2 desta
pagina, mas, af, esta distingao é feita relativamente 4 prova do cumprimento, 0 que, primo conspectu, parece mais
plausivel. JAIME DE GOUVEIA contesta tal posigéo com o exemplo do condutor que é acusado de atropelar alguém
por conduzir pelo lado esquerdo da faixa de rodagem, contra a sua obrigacfo de seguir pelo lado direito — nenhum
tribunal fundaria um jufzo de responsabilidade s6 pela prova do dano e da obrigagao, alids legal, de seguir pela
direita (p. 210). Note-se, contudo, que nao é a culpa que deve ser aqui provada, mas a pr6pria ilicitude objectiva,
que corresponde ao incumprimento nas obrigacées. Por outro lado, duvida-se que o dever ali em causa seja positivo
— o condutor tem de seguir pelo lado direito ou esté proibido de pisar a faixa esquerda?...
PEDRO FERREIRA MURIAS ]
e “de meios”, passando-se 0 inverso no outro campo. Nos casos, menos comuns, mas
inegaveis, em que se tratasse de uma obrigacdo de meios ou de non facere no campo
contratual, ou das suas simétricas em sede extracontratual, o regime a aplicar seria 0
s6 aparentemente reservado para a outra forma de responsabilidade. Os arts. 491° a
493°, de modo nenhum excepcionais, veiculariam essa ideia. Tais construgdes nao
lograram impor-se, mas invocam-se ainda estas classificagdes de obrigacdes, mormente
a que contrapde meios e resultados, para justificar solugdes diferenciadas.
Hoje, surgem correntes de opiniao que contestam nao a diferenca mas o seu
relevo: assim, 0 6nus que corre contra 0 extra-obrigacionalmente (extracontratual-
mente) lesado sofre uma atenuacdo pela admissibilidade de uma prova prima facie
possibilitada por presungGes judiciais (*%). Pelo menos, é inegdvel que as regras
atinentes ao O6nus da prova sido particularmente manusedveis pelos tribunais.
Lembre-se, designadamente, o principio da livre apreciagado da prova. (>)
Por outro lado, em casos de dtivida, fazem-se intervir critérios de solugao que
se afastam da compartimenta¢do que aqui se estuda, como o das “esferas de risco”. (©)
Por Ultimo, ha quem defenda a aboligdéo de qualquer distingdo a este
nivel. (6!) (62)
(8) Arts 349° e 351°. Cf. TEIXEIRA DE SOUSA, p. 318 € s., citando diversos autores, que reconhece uma
aproximagao a este nivel entre as duas formas de responsabilidade, chegando a falar em irrelevancia pratica da
disting4o entre presungdo de culpa e “prova prima facie” (p. 329). ROMANO MARTINEZ, O cumprimento imperfeito,
segue essa posicao (p. 261). Cf. FRADA, p. 191 (393), algo diferentemente. CALVAO DA SILVA refere esta
Anscheinbeweis, a res ipsa loquitur do direito inglés, identificada com as nossas presungGes judiciais, que teria
“terreno fértil” na responsabilidade do produtor, assente na “eloquéncia dos factos”; considera-a, contudo, um
expediente precdrio quando comparado com uma verdadeira inverséo do 6nus da prova (p. 188 — 395).
(5°) CALVAO DA SILVA chama porém a atencAo para a extrema dificuldade da prova da culpa do produtor
na complexidade do processo produtivo e distributivo (p. 287).
(®) E a chamada Gefahrenbereichslehre. Cf. FRADA, p. 195 ¢ s.
(1) DE CuPIS, p. 302 e s., negando que um critério de normalidade possa fundar uma presungao diferente
num e noutro caso e deixando o 6nus sempre ao lesante. A este seria mais facil fazer a prova respectiva, afirma,
entre outras consideragées.
(®2) Em Italia, na vigéncia do Céd. de 1865, e na falta de disposigéo expressa quanto 4 responsabilidade
extra-obrigacional, o que, aliés, se mantém, houve quem defendesse aplicar-se a esta, analogicamente, o disposto
em sede de incumprimento. DE CUPIS contesta-o no céd. vigente com o argumento a contrario a partir de algumas
remiss6es legais para regras da responsabilidade obrigacional e de algumas estatuig6es particulares no sentido dessa
inversdéo do énus e com base nos trabalhos preparatérios (p. 301 e s.).
(83) “Reine Vermégensschdden’”. Cf. PICKER, passim; FRADA, p. 153 e s., 174 e s.; SINDE MONTEIRO
p. 17 e s., 254 e s., DEUTSCH, p. 87.
() Cf. SINDE MONTEIRO, loc. cit..
(65) § 823, Ie II, do BGB. Nao é Ifquida a diferenga entre o dispositivo alemao e o portugués — para
evitar dividas, enumeram-se ali alguns direitos susceptiveis de serem violados, terminando-se numa referéncia a
“outro direito” (ein sonstiges Recht). No nosso direito, falta essa enumeragao, tida, na altura, por desnecessaria.
Por outro lado, o § 826 do BGB (responsabilidade por violagéo dolosa dos bons costumes) nao tem paralelo no
direito portugués, pelo que cairao sempre no nosso art. 483° os casos na Alemanha resolvidos naquele pardgrafo.
| A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL 183
(%) Na Alemanha, por recurso ao § 826, referido na nota anterior; em Portugal, através do art. 334°, permi-
tindo, alias o juizo de responsabilidade em casos de negligéncia grave (SINDE MONTEIRO p. 555 e s.). Parece-
nos, contudo, que a figura do abuso de direito nao pode fornecer, por si, a solucdo, visto nao estatuir uma obrigacfo
de indemnizar. Regresso ao art. 483°, n° 1, designadamente para analisar os restantes pressupostos desta obrigagao?
(®7) Ou seja, de uma relagdo especial (nao obrigacional) entre lesante e lesado, de que sio exemplo as
relagdes entre quem negoceia a celebragdo de um contrato (relevante no art. 227°), entre comproprietdrios, entre
vizinhos ou entre as partes de um negécio nulo. MEDICUS, p. | e 155, qualifica a prépria obrigagio como
Sonderverbindung.
(8) Tese de PICKER, p. 1053 e s., aceite por LARENZ, p. 122, (45c), SINDE MONTEIRO, p. 503 € s., €
FRADA, p. 177. Duvida-se da chamada 4 colacdo da falta de evidéncia ou aparéncia social destes danos que os
autores igualmente fazem. A ser assim, e quando assim for de facto, nao tera provavelmente havido negligéncia
na sua leséo, o problema sera outro.
(6) Nao se conhecem opinides contrarias as estas teses, 0 que de modo algum significa que elas nao
levantem dtividas: Fundamentalmente, parece que, depois das importantes construgdes de PICKER e HERRMANN
(este apud SINDE MONTEIRO, p. 196 e s.) sobre a fungao da nao indemnizabilidade destes danos, referida no texto,
se deveria procurar fazer uma comparagao com as situagdes em que sao “interesses” absolutos que esto em causa.
SINDE MONTEIRO reconhece a possibilidade de chegar a “resultados algo inequitativos”, resignando-se em face
da inexisténcia de critério alternativo praticdvel (p. 259). Inequitativo, devemos dizer, além de contra legem, seria
aplicar esta qualificagdo e este regime aos lucros cessantes, como parece fazer CALVAO DA SILVA (p. 289).
_Surpreende ainda que nao se procure estabelecer uma ponte entre os problemas aqui resolvidos e a teoria da
imputa¢do objectiva (algo imprecisamente designada também do “nexo de causalidade”): 0 caso de escola do
prejuizo do empresdrio pelo atropelamento culposo da artista por ele contratada é paradigmatico — 0 que se passa
é que a norma infringida nao visa proteger sendo a integridade fisica da primeira lesada (usa-se um dos critérios
geralmente aceites para aferir a imputabilidade objectiva). E neste quadro argumentativo que MENEZES CORDEIRO
soluciona 0 caso em aprego, Direito das Obrigagées, Vol. I, pg. 281, embora usando linguagem e critérios de
imputac4o em que nao nos revemos. Imagine-se agora que, em vez de uma artista, era atropelada uma mulher-a-
-dias e que, por efeito disso, as flores da patroa em férias, que deixaram de ser regadas, acabam por morrer — 0
caso € idéntico ao anterior e a solugdo é também idéntica, apesar de os interesses lesados serem, neste caso,
“absolutos”. Quanto ao temor manifestado por PICKER relativamente as cadeias de credores (Gldubigerketten)
lesados no seu patrim6nio enquanto tal (p. 1053), dir-se-4 também que os danos por eles sofridos nao sdo
objectivamente imputdveis. Repare-se que LORD DENNING, cit. por SINDE MONTEIRO, p. 203 e s., se interroga
precisamente sobre se, no caso que analisa, nado ser4 o dano to remote, i.e., objectivamente nao imputdvel, na nossa
terminologia. Chamando a atengaéo para a importancia da imputagdo objectiva para delimitagfo dos danos
indemnizaveis nos ordenamentos providos de uma grande cldusula geral de responsabilidade, embora sem mencionar
expressamente os danos agora em causa, EIKE SCHMIDT, p. 526. Por outro lado, nao ha dtivida de que certos danos
“meramente patrimoniais” séo indemnizdveis em sede extracontratual, ainda em casos de ilfcito negligente, v.g.,
as despesas feitas na sequéncia de uma lesdo na integridade fisica. Uma referéncia aos chamados cable cases,
mencionados por estes autores: Parece-nos tratar-se de casos particulares sujeitos a valoracdes muito especificas,
para além das que acabamos de referir: assim, invoca o autor inglés indicado o desequilfbrio entre 0 pequeno dano
que cada um dos lesados geralmente sofre e 0 montante global que o lesante se veria obrigado a pagar; o perigo
do aparecimento inflacionado de pedidos de indemnizagao, porventura falsos, prejudicial para o funcionamento
dos tribunais; a utilidade de fazer cada um contar normalmente com danos de pouco valor, em estimulo a um
pequeno esforgo para os compensar. Uma ultima nota critica relativamente 4 pouca ligagao feita entre estas doutrinas
e os estudos dedicados 4 eficdcia externa das obrigagdes — a lesdo por terceiro de um crédito ser4 um “dano
patrimonial puro”, néo cabendo na previsao (estes autores diriam “nos Tatbestdénde”) do art. 483°, que abrangeria
PEDRO FERREIRA MURIAS |
apenas “direitos absolutos”. Isto é afirmado, contudo, depois de se dizer que os direitos de crédito esto
especialmente regulados nos arts. 798° e s. (v. g. RIBEIRO DE FARIA, Vol. I, p. 416). Ora, parece despropositado
excluir situagées do 4mbito de um preceito por se integrarem no de outro e afirmar, mais tarde, que nio cabem
em nenhum deles. Os arts. 798° e s. s6 regulam as relagdes entre credor e devedor, tudo o resto poderia caber no
art. 483°. Aceitando, em geral, a eficdcia externa das obrigagdes, MENEZES CORDEIRO, Direito das..., Vol. I,
p. 251 e s., e TEIXEIRA DE SOUSA, p. 62. Sustentando existir apenas uma tutela restrita perante terceiros, em
casos excepcionais como o do art. 495°, n° 3, ou recorrendo ao abuso de direito, v.g., ANTUNES VARELA, p. 77
e s., e ALMEIDA COSTA, pagina 73 e s..
(7°) Estarfamos, naturalmente, em sede de concurso de responsabilidades. Para TEIXEIRA DE SOUSA
(p. 272 e s.) s6 perante uma situagéo de concurso seriam indemnizdveis danos nao patrimoniais causados pelo
incumprimento contratual. Nao se afasta desta posig¢éo DEUTSCH (p. 82; cf. também p. 88).
(7!) Pensamos que, quando se refere inseguranga, se consideram as violagdes de deveres de contetido
patrimonial que reflexamente originam danos morais, talvez nado previsiveis a priori.
(7?) Contra as varias formas dessa concepgio, ANTUNES VARELA, Vol. I, p. 192 e s.. Critica ainda mais
radical em MENEZES CORDEIRO, Vol. I, p. 231 e s.. Com algumas hesitagdes, RIBEIRO DE Faria, vol. I, p. 93 e s..
ALMEIDA COSTA, p. 76 e s., recusa integrar a patrimonialidade no conceito de obrigacgdo, mas admite relevo do
termo para ilustrar que a execucdo, em caso de incumprimento, recai apenas sobre o patriménio do devedor.
(73) Entre outros argumentos: por exemplo, isso levaria também 4 irresponsabilidade dos médicos
contratados. Aqui, porém, seria sempre defensdvel o recurso 4s normas delituais. No sentido do texto, ALMEIDA
Costa, criticando, designadamente, a insergdo sistematica do art. 496°, n° 1, contestando que se atribua a esta um
relevo interpretativo determinante, e argumentando com a identidade essencial entre as duas formas de
responsabilidade e com o facto de os arts. 798° e 804°, n° 1, nao distinguirem tipos de danos — p. 505 € s..
Admitindo a indemnizagao por danos morais apenas em sede extracontratual, TEIXEIRA DE SOUSA, p. 138 e 273,
ANTUNES VARELA, /oc. cit., RIBEIRO DE FARIA, Vol. II, embora com diividas, p. 422.
(74) MENEZES LEITAO, A Responsabilidade do Gestor..., p. 291 (1), considera 0 ponto discutivel.
(75) Contrariando o argumento segundo o qual seria desrazodvel que alguns dos deveres oriundos do
contrato prescrevessem e outros se mantivessem intactos.
| A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL I
Bs
da responsabilidade contratual/obrigacional com a responsabilidade criminal, para
efeitos de aplicagao no n° 3 do mesmo preceito, entre outros aspectos. Nao conhecemos
criticas a esta argumentacio (”°).
7. Sequéncia
(7°) Cf. observacdes préximas de ROMANO MARTINEZ, em sede de teoria do (concurso) de responsabili-
dades, procurando aplicar o prazo do art. 498° por ser mais longo do que alguns previstos para os contratos em
especial (Cumprimento... p. 281 € s.). Sobre o relevo do concurso de responsabilidades a este propésito, cf. TEIXEIRA
DE SOUSA, p. 212 e s. e 251 e s., utilizando a prescrigao para ilustrar a existéncia de uma conex4o entre pretens6es,
apesar da independéncia dos objectos de prescri¢4o.
(’7) Pela aplicacao nos dois campos da responsabilidade, PESSOA JORGE, p. 365 e s.; em sentido contrério,
ALMEIDA COsTA, p. 453, que invoca as legitimas expectativas do contraente lesado (itélico nosso).
(78) Cf. o que se disse no ponto 2 sobre a maior razoabilidade, A primeira vista, de uma contraposi¢ao
pelo cardcter negocial ou nao do dever. Soa, todavia, razodvel a aplicag&o do art. 494° em sede contratual quando
estejam em causa prestagdes complexas, prolongadas no tempo, em que uma falha pequena seja susceptfvel de
causar danos de grande vulto.
(7°) Cf. a extensa lista apresentada por VAZ SERRA, Responsabilidade contratual e ..., p. 118 e s. Oua
de GOMES DA SILVA, p. 192 e s., por este autor absolutamente negada. Hoje, cf. as disposigdes dos arts. 805°, n°3
e 806°, n° 3, em tema de mora, que tém sido entendidos como respeitando apenas a responsabilidade delitual/
extra-obrigacional. Cf., também, o art. 45°, em sede de D.I-P., ou os dois nimeros do art. 74° do Céd. Proc. Civ..
Veja-se, por fim, o art. 497°, que impde a responsabilidade soliddria dos causadores (extracontratualmente?) de
um dano, por oposi¢gao ao art. 513°, que estatui como regra a parciariedade das obrigagdes subjectivamente
complexas. Nao costuma ser acentuado, embora talvez devesse, que o art. 513° diz respeito ao dever de prestar.
(8°) E neste sentido amplo que “auxiliares” deve ser tomado no titulo do presente estudo, abrangendo as
trés categorias referidas. Veremos depois que a indistingio nao se pode manter.
PEDRO FERREIRA MURIAS
dentro do quadro geral que se expés. Acresce a estas razées, j4 de si suficientes, que
é o problema da opc¢ao entre regimes a propdésito da responsabilidade por auxiliares,
mais importante até noutros ordenamentos, como o alemfo (®!), do que no nosso pais,
que tem dado origem a muitas das figuras intermédias entre o contrato e o
delito, (8?) (83) mostra de alguns dos maiores desenvolvimentos da dogmatica
obrigacionista das ultimas décadas (°4).
Nao se pretende estudar toda a matéria atinente aos arts. 500° e 800° do Céd.
Civ., correspondentes aos § 278° e § 831 do BGB, mas apenas o que se relacione com
a sua articulagdo nas dicotomias em causa. O contrario levaria o presente trabalho para
dimensOes por agora inabarcaveis. Note-se que é um problema preciso que se discute,
a saber, se ha uma diferenga entre os dois termos da(s) diviséo(6es) fundamental(ais)
da responsabilidade, como se descreveu, quanto ao dever de responder em lugar de
auxiliares, e se ela se justifica.
Num primeiro momento, procura-se confrontar os dispositivos legais vigentes,
sobretudo no que respeita as suas facti species, por motivos que se compreendem no
momento devido; em seguida, debate-se a identidade ou diferenga do enquadramento
dogmatico das figuras.
II
AS FORMAS DE RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES
A Regulacao Positiva
1. Hipdéteses tipicas
Por entre as dividas que se colocam sobre os ambitos de aplicacao dos pre-
ceitos em causa, quer dizer, sobre quais os casos cuja decisao juridica ha-de se basear
nestes dispositivos legais, podemos encontrar pontos firmes para iniciar uma inves-
tigacao:
(85) PESSOA JORGE nega que assim seja, ao menos na medida em que isso impedisse a aplicacao
cumulativa dos dois preceitos — p. 149. Seguindo este autor, SOFIA GALVAO, p. 28, (41). FIKENTSCHER, p. 772,
admite, diferentemente, a aplicagfo paralela dos §§ 278 e 831 BGB.
(86) MENEZES CORDEIRO, Direito das..., p. 393, e Da Boa Fé..., p. 638.
(87) Negando a necessidade de uma relacgdo de subordinagfo, MENEZES LEITAO, p- 299, que assenta a
diferenga entre os dois preceitos, na sequéncia de TEIXEIRA DE SOUSA, (p. 138), em s6 no dmbito do art. 500°
haver responsabilidade quer do principal, quer do auxiliar, o que nio nos parece defensdvel, pelo menos nos casos
em que se admita a responsabilizagdéo de um terceiro pelo incumprimento. MENEZES CORDEIRO, Da Boa Fé...,
p. 638, (382), p6e em diivida a necessidade da subordinagfo, sugerindo bastar “um minimo de liberdade do
comitente”. TEIXEIRA DE SOUSA sustenta a impossibilidade de ser soliddria a responsabilidade do devedor e do
auxiliar no 4mbito do art. 800° por ser distinta a qualificagdo da responsabilidade de cada um (p. 317). Nao podemos
aderir 4 posigao que dispensa a relacgao de subordinagao, pois levaria a responsabilizar quem encomendasse qualquer
prestacgdo a um profissional auténomo pelos danos que este, p. ex®., na sua oficina, causasse a terceiros durante a
execu¢do da prestagéo. Ao discutirmos o fundamento do art. 500°, na parte final deste trabalho, teremos
oportunidade para confirmar esta ideia.
(88) O § 831 do BGB, tem paralelo no nosso art. 500°, e o § 278 no 800°.
(8°) A priori, a distingdo aqui seré mesmo pela obrigacionalidade da situagio, e nao pela existéncia de
qualquer negécio juridico, como j4 VAZ SERRA afirmava, mas é muito cedo para que 0 possamos dizer com
seguranga.
(9°) P. ex®., LARENZ, p. 296; MEDICUS, p. 155, FIKENTSCHER, p. 328, ANA PRATA, p. 684 e s., MARIA
VITORIA DA ROCHA, p. 82. Para recorrer ao art. 800°, ou aos seus congéneres, exige-se a presenca de uma obrigacado
ou, pelo menos, de uma relacdo especial equiparavel, uma Sonderverbindung. Fazem excepcao a tao largo consenso
doutrinal VOLLMER e BECKER. Descrevemos mais 4 frente as posig6es destes autores.
(?!) Parcialmente neste sentido, NUNES DE CARVALHO, p. 97 e 101. Por ser do principal o dever, é a sua
a bitola aferidora dos deveres de diligéncia — assim, FIKENTSCHER, p. 329.
(92) Pelo menos, nao necessariamente. Cf. infra. Para os defensores da chamada “eficdcia externa das
obrigagdes”, também o auxiliar ter4é de respeitar o direito do credor, embora naturalmente nao baste uma
desconformidade objectiva relativamente ao devido (pelo principal) para que surja o dever de indemnizar.
[____A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL
(93) Em sentido afirmativo, MENEZES CORDEIRO, Direito das ..., p. 373 e s.; negando-o, ANTUNES
VARELA, Vol I, p. 639, e NUNES DE CARVALHO, p. 97 e€ s.. A solucgdo, mais do que pelo significado do advérbio
“também” no n° 3 do art., deve passar por se poderem conceber ou no situagdes em que a actividade ou coisa
perigosa beneficiem o comissdrio, ou sera o comitente que directamente responde (lembre-se que a responsabilidade
pelo risco se pode descrever como cuius commoda, eius incommoda), mas em que é também o exercicio da
comissdo que proporciona o risco de dano — isto se a responsabilidade do comitente se puder considerar pelo
risco, 0 que de modo algum é liquido, como teremos oportunidade de ver. Nao parece que o texto do n° 3 seja tao
explicito que impega qualquer das solugées.
(4) A afirmagao do texto nio é absolutamente segura; veja-se um exemplo: se a mora do devedor se
dever a uma avaria do seu automével que nao se lhe imputa em termos de ilicitude/culpa, ele ficara por isso sempre
desonerado?
ie PEDRO FERREIRA MURIAS }
era do principal vai, em termos facticos, ser cumprido, ou incumprido, pelo auxiliar,
por oposigéo ao que acontece no § 831, em que o dever de fiscalizar, superordenar
ou de alguma forma influenciar 0 agir alheio é, em todos os sentidos, cumprido ou
incumprido pelo seu titular. O comissdrio cumprira ou nao um dever préprio. Olhando
ao § 278, uma vez verificada a auséncia do comportamento esperado ao auxiliar,
inferimos logicamente que o dever do principal ficou objectivamente por cumprir.
Olhando ao § 831, a falta do comportamento que se espera do auxiliar/comissario nao
permite concluir necessariamente por qualquer incumprimento, objectivo ou também
subjectivo, do dever do principal (%°).
Facgamos ainda uma precisao. O art. 800° nao parece impedir que o auxiliar
esteja também a cumprir um dever préprio. Esta afirmacgao é relevante pois também
ele, ainda no 4mbito de uma obrigacao, podera ser obrigado a indemnizar, de acordo
com a opinido dominante, pelo menos se agir dolosamente, numa situacgdo configuravel
como abuso de direito. Como ja se disse, para quem defenda a absolutidade das
obrigacgGes em termos de oponibilidade a terceiros (©), ou seja, a “eficdcia externa das
obrigagées”, nao sera necessdrio recorrer 4 clausula geral do abuso de direito.
Voltando atrés um momento, e resumindo, temos, portanto, que, a partida, os
trechos normativos em estudo se afastariam nas suas previsdes em dois aspectos: por
um lado, pela obrigacionalidade ou nao da forma de responsabilidade em causa; por
outro, visto que, nos casos do art. 800° e seus congéneres de outros ordenamentos, é
forgoso que (pre)exista um dever do principal a ser cumprido/incumprido pelo auxiliar,
enquanto que no 4mbito do art. 500° é originariamente do preposto o dever por si (?”)
violado. O art. 800° parece pressupor o violar de uma obriga¢4o e que essa obrigacao
seja do principal. O art. 500°, primo conspecto, requer a inexist€ncia de uma obrigagao
e a violagdo de um dever que onera 0 preposto.
Ora, nao se esgota um universo dividindo-o em dois campos definidos cada um
por dois critérios cumulativos, o que é dizer que ha, pelo menos em termos ldégicos,
situagGes que nfo se enquadram nem na responsabilidade extra-obrigacional do comi-
tente nem na responsabilidade obrigacional do devedor (°8). Teremos de investigar a
sua existéncia e decidir qual dos respectivos regimes lhes cabe, quando nao um
terceiro, porventura hibrido, salvo se simplesmente for de recusar a responsabilizagao
do principal. Essa andlise permite determinar qual o vector decisivo entre os
assinalados e, nessa altura, verificar se estamos perante uma diferenca, que sera
valorativamente justificada, entre as formas de responsabilidade em que se tem
dividido este instituto civil, ou se, afinal, como afirmou PESSOA JORGE, nao estao em
causa preceitos correspondentes em cada um desses campos (9%), nao se encontrando,
(°5) Embora o possa fazer presumir: assim optou a lei alema por impor ao comitente o 6nus de provar
que agiu nos termos exigidos.
(°6) Faz-se uso, quanto a absolutidade, da distingio de MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigagées, Vol.
I, p. 256 e s., obra em que se defende a tese referida no texto.
(97) N&o se esquece que, nos direitos alemao e sufgo, entre outros, também o comitente hé-de ter agido
ilicitamente para que exista responsabilidade sua.
(98) A terminologia ser4 aqui falfvel, pois se ha devedor também haver4 obrigagao, pelo menos a um
primeiro olhar.
(9°) No trabalho que citamos, p. 139, o autor, que assume uma posigaéo monista moderada, nao prosse-
gue, contudo, no sentido da concluséo que apresentamos no texto.
[___A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E 0 ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL__ i
|
Mau grado a insercao sistematica do art. 500°, numa secgfo que, por contra-
ponto aos arts. 798° e s., trataria apenas a responsabilidade extracontratual ou extra-
-obrigacional, e a remissdo do art. 499° para as disposigées da responsabilidade por
actos ilicitos (“delituais”) (!°), a primeira reacgaéo nao pode deixar de ser no sentido
de conceder um crédito de indemnizag4o 4 lesada contra o comitente, tao flagrante é
o cabimento da hipdétese sub judice nos termos em que estd descrita a previsio deste
art. 500°.
Uma ponderagao valorativa, por seu turno, vai confirmar esta ideia (!*): Quer
entendamos a responsabilidade do comitente como um caso de responsabilidade pelo
risco do beneficiario do agir alheio, quer como um imperativo de justig¢a por parecer
correcto ser ele a sofrer a insolvéncia de quem lhe é muito mais préximo do que ao
lesado (!%) e para si actua, quer, em ordenamentos estrangeiros, sujeitemos apenas o
comitente ao encargo de provar que nao agiu negligentemente a propésito do sucedido,
ha que aplicar aqui o respectivo regime, j4 que foi no exercicio da comissao que o
dano veio a acontecer, j4 que ele surge no normal desenvolvimento dessa comissifo,
i.e., jA que ela envolvia, em si, 0 perigo desse tipo de dano, e, para o direito estrangeiro,
ja que sera muito mais facil ao empregador demonstrar, p ex°®, que deu o tempo
necessario 4 empregada para que ela cumprisse aquilo a que, por suas ordens, se
obrigara, que fez o que lhe era exigivel para verificar ter ela agido dentro do que a
ordem juridica lhe impunha ou que escolheu para a tarefa quem dava garantias de um
comportamento honesto.
Nao se diga que, ao contratar com o preposto, neste género de situacdes, é
apenas nele que se deposita a confiang¢a no bom sucesso do programa obrigacional
estabelecido, nao merecendo, por isso, a contraparte qualquer outra tutela. A respon-
sabilidade do comitente nfo subjaz qualquer ideia de tutela da confianga (!%). Um
perfeito estranho quer ao comissdério quer ao comitente sera tutelado por esta figura
legal; seria absurdo que, por haver mais um factor que faga pender a solugao para o
lado do lesado, ele deixe de ter a protecgéo de que ja dispunha.
Soa também impréprio defender que nao faria sentido que o comitente
respondesse pela auséncia de um lucro, lucrum cessans, que a prépria comissdo tinha
possibilitado, visto que nao fora o contacto com o comissdrio e nao haveria sequer
contrato. E uma argumentacdo despropositada esta, que levaria até que o prdéprio
comissaério nao fosse responsdvel senio pelo chamado interesse contratual negativo,
e assim todos os devedores. A questo é mais grave, podia bem acontecer que o lesado
tivesse tido o mesmo ganho realizando um contrato semelhante com outra pessoa,
embora nao haja sequer que investigar este aspecto. Alias, ao credor do comissdario
podem sobrevir outros danos emergentes por forga do contrato.
O problema é de apreciag4o simples. Ha entre principal e ‘auxiliar’ uma relagd4o
que se enquadra de pleno no art. 500°, ou seja, ha uma comissdo, uma relagado de subor-
dinacgao. No exercicio dessa comissao, produzem-se danos para terceiros. O comis-
sdrio é por eles responsdvel, pois agiu ilicitamente e com culpa. Nao se afigura
defensavel fugir 4 estatuigao daquele preceito. O comitente deve indemnizar, nao tendo
qualquer relevo o facto de a responsabilidade do comissdrio ser obrigacional.
Por outro lado, o art. 800° nao da qualquer indicagao sobre o caso.
(194) E claro que ndo iremos além de uma demonstrag4o muito resumida, j4 que a melhor precisaio do
sentido desta disposigéo legal s6 sera feita na parte final do trabalho. Para uma apreciacdo das teses possfveis,
cf., por agora, MENEZES CORDEIRO, Direito das..., vol. Il, p. 376 e s., e EIKE SCHMIDT, p. 522 e s..
(195) Sobre o fundamento do art. 500°, cf infra. E de ANTUNES VARELA, vol. I, p. 641, esta segunda
construgao.
(1%) Cf. infra, na Gltima parte deste trabalho, mas adiante-se que naio se conhece quem defenda o contrario.
[ A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL
('°7) Supra, p. 9, referindo-se as posicgdes nesse sentido de FRADA, p. 187 e s., MENEZES LEITAO, A
responsabilidade do gestor..., p. 292 e s., ¢ SINDE MONTEIRO, p. 509 € s.
(1%) Do que ficou dito nao se deve inferir que s6 perante a existéncia de um mandato ou de uma situagado
idéntica se pode admitir a responsabilidade obrigacional do comitente; nao é dificil conceber exemplos que mostrem
© contrario: Veja-se o caso dos danos que causar, “no exercicio da comiss4o0”, 0 empregado de uma sociedade
hoteleira incumbido de se oferecer como guia a “turistas” (contraindo obrigagdes nesse sentido, gratuita ou
onerosamente) com vista a publicitar tanto quanto possivel os servicos prestados pela sua empregadora. Se, do
incumprimento da sua actividade de guia, resultarem danos, p. ex®., por as contrapartes ficarem impossibilitadas
de conhecer a cidade em questo, h4 que chamar & colacio o art. 500°.
('%) Cf. o Livro XV do Digesto. JAIME DE GOUVEIA, p. 412, refere estas actiones a propésito da
responsabilidade do devedor por actos dos auxiliares, salientando o autor que as situagdes sao totalmente distintas
uma vez que no nosso direito sao do principal as obrigagées que fundam essa responsabilidade. EIKE SCHMIDT, a
propésito do § 278 BGB, semelhante ao nosso art. 800°, e contrapondo-o ao § 831 BGB, que, como dissemos,
funda na sua culpa o dever de indemnizar do comitente, fala numa adjectizische Haftung. 521.
PEDRO FERREIRA MURIAS ‘|
(110) Quanto sabemos, da autoria de HECK (apud VAZ SERRA, Responsabilidade contratual..., p. 154,
(71) e, ligeiramente diferente, p. 219), aqui apresentado com algumas alteragdes. O exemplo é dado por HECK e
por VAZ SERRA a propésito da responsabilidade do comitente.
(111) B indiferente que este dever seja legal ou apenas exista quando determinado por uma autoridade
administrativa.
('!2) Esta cldusula do acordo visa, obviamente, evitar que se possa divisar no caso uma relagao de
comissao. Podia esta cldusula ter sido feita de modo mais explicito, sem especial interesse. Se estivéssemos a tratar
com 0 direito alem4o, nem seria necess4rio preocuparmo-nos nos com esse aspecto, visto que, nao havendo alguma
culpa do comitente, este néo poderia ser responsabilizado.
(13) Apud VAz SERRA, op. cit., p. 154, n. 71.
('14) No Céd. Civ., exemplo desses deveres dio, entre outros, os arts. 491° a 493°. Cf. VOLLMER, p. 371,
SINDE MONTEIRO, p. 307 e s., FRADA, p. 163 e s., MENEZES CORDEIRO, Da boa fé ..., p. 831 e s..
A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL
de sujeitos. Mais do que uma categoria descritiva, construiu-se aqui uma teoria
susceptivel de fundar uma responsabilidade por omiss6es para além das hipdéteses
especificamente previstas na lei. S40 casos de responsabilidade extracontratual, como
é manifesto, mas temos de os considerar ainda deveres extra-obrigacionais, sob pena
de subvertermos o conceito de obrigacgao, que, pela relatividade das posigdes dos
intervenientes, acabava por poder ser usado como argumento para uma distingao das
responsabilidades, ainda que nao se revelasse, de modo algum, definitivo. (!!5) (1!)
O sentimento de injustiga de HECK em face da irresponsabilizacao dos titulares
originais destes deveres pela introdugao (Einschaltung) de terceiros a quem é cometida
a tarefa de tratar do seu cumprimento é partilhado por vasta doutrina e jurispru-
déncia (!!7).
Os casos seriam faceis de resolver se se considerassem estes terceiros auxiliares
no cumprimento (Erfiillungsgehilfen) nos termos do art. 800° ou nos do § 278 BGB.
Os tribunais superiores alemaes tém, contudo, recusado esta via, ja que falta aqui uma
relagdo prévia entre lesado e lesante que se assemelhe a relacdo contratual. Com
excepcio de VOLLMER e de BECKER (!!8), todos os autores consultados exigem
também, para aplicacao daquele preceito, a existéncia de, pelo menos, uma relagao
especial (Sonderverbindung), embora nao fundamentem desenvolvidamente a sua
posi¢ao. Diferente entendimento tém tido os tribunais de instancia.
Doutrina e jurisprudéncia recorreram ainda ao “argumento linguistico”, na
opiniao de VOLLMER (!!%), segundo o qual ocorreria nestes casos uma transmissdo
(Ubertragung) do dever, com a sua consequente aquisicAo pelo terceiro “introduzido”.
S6 se transmitiria, porém, o dever de tomar as concretas medidas de cuidado, e nao
também o dever de vigiar a fonte de perigo. Assim, pelo menos quanto aos resultados
praticos, as solugdes assemelhar-se-iam bastante as que se poderiam retirar, noutros
campos, do § 831 BGB.
(120) Esta eficdcia nao é consenténea com uma verdadeira transmisséo, mas esse é aspecto construtivo
sem relevo no quadro da argumentagao usada no estudo que temos vindo a citar.
(21) Sao os erfolgsbezogene Pflichten, deveres de resultado.
('22) VOLLMER, p. 372-374; cf também n. 21. Referimos esta relagdo entre 6nus da prova e deveres de
resultado na primeira parte deste trabalho — p. 12.
(123) Sobre este ponto, cf. a posigéo critica de EIKE SCHMIDT, p. 520 e s.
[___A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL
obter uma prestacgdo, decerto que ficara responsavel se um terceiro por ele incumbido
da tarefa nao a levar a bom porto por ser descuidado e negligente. Outra obrigacdo
de meios.
A tutela dos sujeitos protegidos por certas normas nao pode ser questionada
por essa distingao.
Por outro lado, a crenga optimista em que as caracteristicas definidoras do
regime de responsabilidade civil chamado contratual/obrigacional se podem reconduzir
a um fundamento comum nfo pode ser mantida acriticamente, antes exigindo uma
verificagao caso a caso. Se sao as obrigagdes de resultado que justificam a inversdo
do 6nus da prova, o que é duvidoso, nao se passa decerto 0 mesmo quanto a
responsabilidade por actos de auxiliares.
Defende-se, pois, a necessidade de sujeitar genericamente os onerados com
deveres de seguranga no trafico ao disposto no art. 800°.
A deficiente informagao de Q vem a dar origem a um acidente danoso para Ricardo, que nao
tem qualquer relagéo com a obra ou com Q. A ratio do art. 800° impde que nao corra por
Ricardo o risco que acabou por se concretizar, apesar de Q nao ser responsavel. Nuno deve
responder como se 0 nfo cumprimento do dever de seguranga a si se devesse. Se a perda da
folha de papel resultasse do descuido de um empregado, este nao responderia também, por forga
da falta de “causalidade adequada” entre a sua falha e 0 dano, i.e., por a norma por si infringida,
nao visar proteger a posicdo de terceiros como Ricardo (!3!)
O art. 492° do Céd. Civ. oferece pontos de reflexféo com marcado interesse:
Consagra este artigo um dever de seguranga no trafico para quem tiver o dominio de
uma obra implantada no solo. Trata-se, pois, de um dever de contetido legalmente
descrito — nao obstante alguma vaguidade do texto, o detentor tera de evitar que a
obra venha a ruir com danos para terceiros. E um dever individualizado, que onera o
dono ou possuidor de cada obra e nao, como é débvio, a generalidade das pessoas, ao
contrario do neminem laedere. Estabelece a lei uma presungao legal de “culpa” contra
o lesante, o que, na construg¢éo de VOLLMER, seria argumento significativo para a
aplicagao também do art. 800°. Para nés, pelo contrario, este preceito fornece a solugdo
juspositiva para os casos em apreco qualquer que seja o contetido dos deveres em causa
e de quem quer que seja o 6nus da prova relativa a culpa na sua violacgfo.
Paradoxalmente, 0 n° 2 do art. 492° determina que respondera “em lugar do
proprietério ou possuidor” quem por negocio juridico (ou, naturalmente, por forga da
lei) se obrigar a conservar o edificio ou obra, quando a falha respeite 4 sua
conservacao. O significado desse trecho legal nao é simples de alcangar.
Temos de comegar por verificar que os deveres de seguranga relativos a coisas
recaem sobre quem delas aproveita. Nesta ordem de ideias, se o proprietdrio aliena o
seu direito, o dever de seguranga correlativo transmite-se igualmente, nao respondendo
o anterior proprietario pelo comportamento ilicito do novo quanto 4 seguranga do
imével (!32). Se, em vez de vender a propriedade, se conceder um usufruto, a solucdo
é a mesma, nos termos do arts. 492°, n° 2, e 1472°, n° 1. As coisas tornam-se muito
menos nitidas no arrendamento e no comodato (!33). Ora, é para estes casos, em que
as utilidades da coisa s4o aproveitadas por terceiro, pelo menos directamente, mas
mantendo o proprietario ou possuidor em nome préprio um contacto mais ou menos
estreito com ela, que se admite que as partes regulem quem fica afinal encarregado
da seguranga de terceiros (154). S6 nestas situagdes se pode entender que a pessoa
(31) Nuno responde nos termos do art. 800°, conjugado com o art. 492°. Quanto a este tiltimo, hd, todavia,
que ter em conta 0 que segue no texto. Mostra da insuficiéncia da aplicagao do art. 500° em sede de deveres de
seguranga no trafego sao as situagdes empresariais (nao forgosamente societérias), em que pequenas falhas de per
si nio responsabilizadoras (cf. art. 487°/2) podem revelar-se danosas para terceiros. Admitir que o titular da empresa
nao respondesse nestes casos, seria de facto permitir-lhe exonerar-se dos seus deveres de seguranga. A referéncia
do art. 800° aos representantes legais aponta também para a sua aplicagdo nestes casos, j4 que muito dificilmente
reconduziriamos os pais ou tutores 4 categoria dos comissdrios, nos termos do art. 500°.
(132) Ha, portanto, aqui uma verdadeira transmisséo do dever; como vimos, argumentou-se que sempre
assim acontecia quando o onerado originariamente encarregava outrem do respectivo cumprimento, 0 que nado
pareceu entao aceitavel. Sdo opiniGes referidas por VOLLMER, p. 371.
(133) Cf. arts. 11°a 13° do R.A.U. e 1043° do Céd. Civ., por um lado, e 1135° do mesmo cédigo, por outro.
(134) Foi para os comodatérios e locatérios que VAZ SERRA, no Anteprojecto, pensou a referéncia a negécio
juridico que se manteve na versio final do céd. — Cf. Responsabilidade pelos danos causados por edificios ..,
p. 14 e 42. Argumento histérico a favor da tese defendida no texto.
PEDRO FERREIRA MURIAS
inferiores, procedesse negligentemente” (!4°). O autor nado invoca o § 278 BGB nem
disposi¢Ao ou principio correspondente para corroborar a sua posi¢ao, mas € manifesto
o paralelismo das situagdes e da argumentag4o, que se nos afigura inteiramente
procedente. Lembramos aqui a afirmac&o que VAZ SERRA cita noutro lugar ('*!) de
que, no direito francés, faltando disposigdo idéntica ao nosso art. 800°, essa regra era
aplicada, em sede contratual, sem que se notasse.
Esta é, para nés, a prova maior, até agora, da diferenga de planos dos §§ 278
e § 831 BGB e, com eles, dos arts. 500° e 800° do nosso Céd. Civ., apesar das
diferencas patentes entre os dois ordenamentos. Vé-se que, em certos casos, s6 a
conjuga¢4o dos dois preceitos pode sustentar um juizo de responsabilidade que parece
impor-se.
(14°) Responsabilidade contratual...., p. 169 e s.. Na nota 115-a da p. 168, refere VAZ SERRA a opiniado
manifestada por LARENZ na edigéo coeva do seu manual de direito das obrigagées, segundo a qual a
responsabilidade do comitente neste caso iria ao encontro do “sentimento juridico”, mas seria estranha ao BGB.
(141) Responsabilidade do devedor pelos factos dos auxiliares..., p. 260. E a opiniio de PLANIOL, RIPERT
E RADOUANT.
(42) O que é completamente diferente de dizer que esses casos sio excepcionais no direito portugués,
como o faz ANTUNES VARELA — Vol. I, p. 514. O simples facto de se poder falar no principio ubi commoda, ibi
incommoda nega essa excepcionalidade, entendida materialmente — cf., do mesmo autor, Vol. I, p. 629 e 640.
Falando em “rigido numerus clausus”, FRADA, p 207, (434). Sobre normas excepcionais em sentido formal e em
sentido material e sobre as particularidades da sua aplicacdo/interpretagao, veja-se OLIVEIRA ASCENSAO, p. 437 e s.
('43) Referindo que o principio é, no nosso sistema, o do tratamento idéntico de casos equivalentes,
OLIVEIRA ASCENSAO, p. 443.
(4) Argumentar que o art. 483°, n° 2, sé se aplicaria 4 responsabilidade extra-obrigacional nfo faria sen-
tido neste trabalho. Alias, estamos nesse campo... SCOGNAMIGLIO, Responsabilita per fatto altrui, p. 693, sustenta
nao haver razao para interpretar restritivamente os preceitos relativos 4 responsabilidade objectiva por facto alheio.
PEDRO FERREIRA MURIAS 7
Depois de algumas hesitagdes, parece hoje claro que este dever de cuidado que
se violou nao resulta do contrato, enquanto manifestagéo de autonomia privada, nem
se integra na prestacdo a que o devedor estava obrigado (!4°), Sendo, porém, um dano
“tipicamente conexo” com a execucio do contrato ('47), ou, noutro ponto de vista,
tendo sido causado no cumprimento da obrigacaéo, também por ele deve responder o
devedor, ex vi art. 800°. Adequa-se a solug4o ao texto legal e a ideia de que se o
devedor tinha de cumprir tomando certos cuidados, deve responder por as pessoas que
ele introduziu na relagdo obrigacional. nao os terem tomado, para prejuizo do credor.
Estes casos nfo sao, contudo, nada reveladores para o tema que nos ocupa, ja por se
assemelharem aos deveres de seguranga no trafico, que j4 observamos, com a agravante
de se situarem na proximidade de um contrato e/ou uma obrigacao, sendo, por isso,
menos significativo 0 seu tratamento 4 luz do art. 800°, j4 porque assim mesmo se
tem entendido haver aqui especiais deveres de protec¢do, distintos do neminem
laedere. (148)
Imagine-se agora, pelo contrario, que, no iltimo exemplo dado, o auxiliar furta
um objecto pertencente ao credor, ao dono da casa ('4%). Seguindo a terminologia
comum, com paralelo na responsabilidade do comitente (!°°), temos aqui um dano
produzido por ocasido do cumprimento que, na maioritdéria opinido da doutrina ('5!),
se deve reconduzir aos quadros gerais do “direito delitual” ('5*) e, em particular, nao
deve ser imputado ao devedor nos termos do art. 800°.
Na verdade, parece-nos manifesto nao haver, num caso de furto como este,
violagdo de dever algum que nao o neminem laedere, inalterado quer pelo contrato,
quer pelo “contacto” entre as partes, quer por algum outro dos tépicos recorrentes na
argumentacao juscivilista contemporadnea. O dever aqui incumprido pelo auxiliar nao
viu a sua matriz valorativa nem a sua estrutura alteradas; é idéntica a ilicitude que se
revela em furtar a um parceiro contratual, a um amigo ou a um estranho (153), Isto no
que toca ao dever violado — foi verdadeiramente e tao s6 o dever genérico de
abstengdo de acgées lesivas.
As observagées de alguns autores, contudo, poem em evidéncia que nao
podemos extrair imediatamente do que se disse a inaplicabilidade do art. 800° (!54) a
estas situagGes:
Chamam os autores a atencg4o para o facto de que, sem a relacdo debitéria
especial que se estabeleceu, ou, se se estiver no periodo da formagado dos contratos,
sem 0 contacto social que ultrapassa, em muito, os contactos casuais habituais, o
posteriormente lesado ndo teria aberto 0 circulo dos seus bens juridicos (Rechtsgiiter-
bereich) a accao do auxiliar. O devedor, por seu turno, é que deu ao auxiliar essa
possibilidade de lesar de que a principio sé ele dispunha (!>°),
Uma relagdo obrigacional, perspectivada ou existente (!°°), deu o impulso e a
ocasiao para o acto lesivo. Sem esta relagéo obrigacional, ou sem uma conexao
adequada entre ela e a agressdo aos bens alheios, cair-se-4 no campo delitual. EIKE
SCHMIDT da um exemplo de falta de conexfo adequada:
Um aprendiz de pintor dirige-se a casa de quem encomendou um servico ao seu
mestre e, por manusear descuidadamente a escada que levava, parte a janela dessa casa, sem
que soubesse, contudo, que ai morava o seu credor, por estarem trocados os ntimeros da
porta (157),
O fundamental nem sera este desconhecimento por parte do devedor, mas antes
o facto de que qualquer pessoa podia ter causado aquele dano. Alias, falta aqui uma
confianga especial do credor a tutelar.
(15?) Exprimindo um “simples risco geral da vida” (itdlico do autor), i.e., um “risco nado tipico e
sensivelmente agravado pela entrada numa relagdo contratual.” (FRADA, p. 154, (316) e p. 169, (355)).
(153) Pelo menos no que interessa ao direito civil. As coisas serao talvez de outra maneira em direito pe-
nal, mas os diferentes tipos escondem frequentemente quer especialidades ao nivel da ilicitude quer ao nivel da
propria culpa.
('54) Assim, entre os autores que citamos, EIKE SCHMIDT, p. 508 e s., MEDICUS, p. 157 e s., e, com
algumas hesitagdes, RIBEIRO DE FARIA, Vol. II, p. 44, (3), mas o préprio LARENZ da noticia de ser mais alargado
e crescente o numero de defensores desta posigao (loc. cit.). E interessante encontrarmos mais autores em defesa
da aplicagao do art. 800° ou do § 278 a estes casos, em que nao esté em causa sendo uma violagéo do neminem
laedere, do que nas hipéteses de incumprimento de deveres de seguranga no trafego, estruturalmente mais pr6ximos
das obrigagées. Passamos a descrever brevemente a posi¢do destes autores, na versio de EIKE SCHMIDT, que
apresenta uma argumenta¢gao mais extensa.
('55) MEDICUS, p. 158, sublinha este ponto, que temos também por fulcral.
(156) E de EIKE SCHMIDT esta afirmagiio (p. 508).
('57) P. 508, sendo o caso apreciado na p. seg..
PEDRO FERREIRA MURIAS 1
(158) Locug&o que, embora expressiva, nao serd muito feliz na medida em que o auxiliar no o é na
conserva¢ao, antes a prejudicando. Pelo menos, nos casos apresentados, porque até facilmente se concebe um
auxiliar exclusivamente na conservagao.
(459) E elevada a importincia da relacao de confianga para EIKE SCHMIDT, que, em grande medida com
base nela, faz, mais a frente, o contraponto com a responsabilidade pelos actos dos representantes legais e com a
responsabilidade do comitente — p. 514 e s. e 520 e s., respectivamente.
('6) E 0 exemplo dado por EIKE SCHMIDT.
('61) Estas considerages sao tecidas da p. 508 a p. 511 no trabalho de SCHMIDT.
[__A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E 0 ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE ClVL_ |
correctas, mas que escapam aos canones mais tradicionais ('®*). Desempenha 0 mesmo
papel que, algumas décadas atrds, cabia as “declaragdes tacitas”, que permitiam o
permanente chamamento do principio da autonomia privada, trave mestra de
concepcgoes jusliberais que perduraram. Essas declaragdes ocorrem e sao a razao de
ser para algumas solucdes, mas é preciso que ocorram mesmo, nao podem ser
ficcionadas (193).
No nosso caso, 0 credor pode estar até completamente “de pé atras” com o
individuo com quem contratou, mas, se este violar o acordado, tera de indemnizar por
isso e, se for um seu auxiliar a fazé-lo, tera de indemnizar também. O credor ('®) é
que nao pode ver as suas garantias diminuidas por um acto livre do devedor. Ou, vendo
pelo outro lado, nada justifica que o devedor possa aliviar os seus encargos para
outrem (!65),
Observemos agora como isto se enquadra na delimitagao entre os arts. 500° e
800° que temos vindo a fazer: Os devedores estao adstritos nao s6 a este dever que
Ihes da o nome, em principio uma obrigagao, mas também ao dever geral de respeito
da pessoa e patrimoénio do credor. Acontece que nem todos tém oportunidade, de facto,
para violar esse dever no que toca aqueles bens; ou seja, para a generalidade dos
terceiros, existir ou nao o dever de respeitar certas posigGes juridicas activas do credor
é irrelevante, visto eles nao terem sequer a hipétese de fazer o contrario. Se tudo correr
nos termos contratualmente previstos ('%), quer dizer, se for o devedor a realizar, sem
recorrer a auxiliares, a prestagéo devida, bastard que ele aja como lhe impde o
ordenamento para que os interesses do credor 4 prestag4o e 4 conservacao fiquem
totalmente satisfeitos. Pelo contrario, se ele se usa de auxiliares, sera necessd4rio que
também eles (ou sé eles, se o devedor nao intervier facticamente) se comportem de
acordo com esses deveres para que o credor nao saia lesado. Ora, se foi o devedor
que livremente os introduziu, aumentando o leque de potenciais lesantes, fica
responsavel por eles. O credor é que nao pode ser prejudicado sujeitando-se a um risco
que outro criou. Tudo isto, nado obstante um dos deveres nao ser senéo 0 neminem
laedere referido a um conjunto determinado de bens.
('2) Critico relativamente aos exageros das teorias da confianga, cf. FRADA, p. 251 e s., pela ambiguidade
do conceito de confianga e por se esquecer, frequentemente, que a existéncia de uma situagdo juridica favordvel
pode dar origem a uma situagdo de confianga, e nao apenas o inverso, perdendo esta o seu relevo para fundamentar
a atribuigdo dessa posigao juridica.
('63) MOTA PINTO chama a atenc4o para estes falsos argumentos, exemplificando precisamente com as
“declarag6es tacitas” — p. 21 e s.. Curioso € que algumas das solugGes que assim se explicavam tinham o seu
fundamento verdadeiro na tutela da confianga (cf. p. 23). Progressivamente, foi este principio que ganhou foros
de cidade e prestigio, surgindo a apoiar solugdes que lhe sao, de facto, estranhas.
('64) *Credor”, se houver uma obrigac4o por perto; nado assim no caso dos deveres de seguran¢a no trafego,
ja vistos, cujos beneficidrios sio indeterminados
('6) Da argumentacgao apresentada, contestamos ainda, naturalmente, a necessidade de perguntar se o
devedor responderia obrigacionalmente (Nach Obligationsgesichtspunkten haften) estando no lugar do seu auxiliar.
Essa consideragao revela algum conceitualismo e pressupde um entendimento global destas matérias que no presente
trabalho precisamente se investiga.
('%) Tratando-se de uma obrigacdo contratual.
PEDRO FERREIRA MURIAS
Mais um vez, temos o art. 800° aplicado a uma responsabilidade que nao é
obrigacional nem contratual, mas antes concerne a violagdo do dever genérico de
respeito e de “direitos absolutos”, como o direito de propriedade, lesado com o furto.
E, contudo, um caso de responsabilidade em que o principal era titular do dever
objectivamente violado ('®’), s6 ele podendo cumpri-lo ou viold-lo, sendo por sua
vontade que o auxiliar ficou em idéntica situagao.
E claro que nao se pode dizer que haja uma auténtica situagdo de auxilio ou
de ajuda no cumprimento do dever negativo de no lesar; por isso também, alertou-se
que talvez nado se tratasse de uma aplicagao directa do art. 800°.
Nao restam ditividas, de toda a maneira, de que s4o as suas valoragdes que esto
em jogo. O preceito, atendendo 4a totalidade de sentido normativo que dele se pode
retirar, deverd ser formulado, doutrinariamente (!©8), de outra maneira: O onerado com
um dever responde pelos actos das pessoas a quem tenha dado a possibilidade de
prejudicar os fins visados ('®) com a sua instituigAo, como se tais actos fossem pratica-
dos pelo préprio. Quer seja lesado o “interesse de integridade” quer o “interesse na
prestagao”, o devedor, que devia respeitar ambos, tem de responder por aqueles a quem
possibilitou essa lesao
Esta fo6rmula, pese embora a ineficiéncia de todas as “férmulas”, permite fazer
realcar que a disposig4o estudada impGde ao devedor o dever de indemnizar ainda que
nunca tenha tido a intencao de “utilizar para o cumprimento da obrigagao” a pessoa
que causou a falta ou a imperfeigdo do cumprimento:
Se Manuel da a ver a Natércia, sua namorada, “para ela se entreter”’, 0 texto da tradugdo
que se obrigou a fazer, e esta, furiosa por nao ter a ateng4o que pretende, atira as folhas pela
janela do apartamento, num oitavo andar, numa noite de chuva e vendaval, provocando um
enorme atraso no cumprimento devido, Manuel nao pode furtar-se a indemnizar alegando que
nao teve culpa nenhuma e que a namorada nunca tivera comportamentos impulsivos do género.
O art. 800°, ou um dos seus irmaos gémeos estrangeiros, é o fundamento juspositivo desta
solugdo inquestionavel.
Nesta ordem de ideias, 0 art. 1044°, na sua parte final, consubstancia uma
concretizacao do art. 800°, devidamente interpretado (!7). Nao é 0 locador que deve
suportar 0 risco inerente a introdugao de terceiros pelo locatario no ambito da locagao.
Em face da clareza dos exemplos, mormente deste Ultimo, nio podemos deixar
de concluir, neste ponto, que o préprio neminem laedere, quando objectivamente
violado, pode dar azo a uma imputacgdo de responsabilidade por intermédio do art.
800°, mostrando a autonomia deste preceito perante as categorias da responsabilidade
obrigacional e contratual.
“credor” nao afasta, em geral, a aplicagio do art. 800°. O preceito do BGB acabado de referir é expresso em
responsabilizar 0 locatario pelos actos do sub-locatério ainda havendo consentimento do locador. No sentido que
defendemos, cf. ainda ANA PRATA, p. 717 € s..
('71) Mas também facilmente suprimivel, designadamente por acordo dos intervenientes. Nada se oporia,
pensamos, a validade de um negécio juridico nesse sentido.
('72) Da situagao concreta — nao se trata de uma decorréncia da comunhfo, que se pode desenvolver
no seio de uma total abertura a interveng6es externas.
wi PEDRO FERREIRA MURIAS
O enquadramento dogmatico
('73) Esta afirmagdo nao é rigorosa se notarmos que sao varios os trabalhos que sé estudam um dos
aspectos, o que seria estranho se eles fossem realmente correspondentes: assim os estudos de SOFIA GALVAO e
NUNES DE CARVALHO.
('74) No sentido de onerado com um dever qualquer, nao s6 uma obrigacao.
('75) Naturalmente que nao faz sentido falarmos, restritivamente, em auxiliares.
(75) PINTO MONTEIRO, p. 262 acolhe este entendimento, tal como MARIA VITORIA DA ROCHA, p. 80,
embora a autora o acompanhe com outras ordens de consideragdes, que apreciamos de seguida.
('71) E unadnime a equiparagdo dos representantes voluntdrios aos auxiliares.
(178) A tese da responsabilidade prépria do representante, bastante bem sucedida, foi tratada por
BALLERSTEDT, no trabalho que citamos. A doutrina posterior (cf., p. ex°., EIKE SCHMIDT, p. 518) cita-o como marco
fundamental no desenvolvimento da teoria da responsabilidade pela confianga, a que aquele autor dé a maior
importéncia
— veja-se, p. ex°®, p. 506 e s.. BALLERSTEDT (p. 525 e s.) e EIKE SCHMIDT (loc.cit.) excluem a
responsabilidade do representado legal por s6 no representante se fundar a confianga da contraparte. Note-se que,
ao contrério de EIKE SCHMIDT, BALLERSTEDT nao funda na confianga o § 278, mas apenas a relacdo pré-negocial.
[___A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL (|
(185) Apud EIKE SCHMIDT, p. 523 e s.. Cf. FRADA, p. 208 e 216 e€ s., que cré subjazer este pensamento
ao art. 1044°, reconhecendo embora, com SCHMIDT, que, num desenvolvimento coerente, se teria de chegar a uma
responsabilidade por facto de coisas, p. ex®.. EIKE SCHMIDT nega que este “principio” tenha encontrado acolhimento
nas disposigdes legais que BAUR indica. Quanto a responsabilidade por facto de coisas, admitimos, em coeréncia,
que o entendimento do art. 800° que propugnamos 14 conduzira, provavelmente, quando as coisas que derem origem
aos danos tenham sido espontaneamente introduzidas pelo onerado. Encontramos facilmente exemplos, como seria
o do guarda que se fizesse substituir ou acompanhar por um cao. Este ponto, contudo, nao nos interessa
especialmente visto pretendermos apenas comparar o regime da responsabilidade do comitente com o da do devedor,
lato sensu, pelos actos dos seus “auxiliares”, nem infirma qualquer das conclusdes sugeridas. MARIA VITORIA DA
ROCHA (p. 84, (145)) estende o art. 800° aos “auxiliares electrénicos”, na sequéncia de alguma doutrina alema
que cita.
(186) E a posicio de LARENZ (p. 297), que o préprio tem por insuficiente nalguns casos (p. 300), e de
FIKENTSCHER (p. 327 e 331). BECKER, citando VON CAEMMERER, justifica o § 278 por se aproveitar (sich bedienen)
o devedor das “possibilidades da divisdéo do trabalho”, mas junta outros elementos, como a possibilidade de escolha,
vigia e substituigéo do auxiliar pelo devedor ou o conhecimento que este tem do interior da sua empresa (ao
contrario do credor). Também MARIA VITORIA DA ROCHA (p. 81) acolhe este entendimento, em paralelo com outros
elementos de fundamentagao, reconduzindo-o ao ubi commoda, ibi incommoda.
('87) P. ex®., no caso de ser o auxiliar o especialista cuja intervengao é necessdria, no de o seu chamamento
ter sido feito em suposto beneficio do credor, no de o devedor se ter limitado a fazer uma “troca” de tarefas com
0 terceiro, no de o devedor se ter obrigado por incumbéncia de quem vai agir como auxiliar, em muitos negécios
gratuitos ou, last but not least, quando o terceiro introduzido nao é um auxiliar em sentido préprio — considere-
-se © art. 1044° ou os exemplos dados na p. 40.
('88) Implicando por isso liberdade de optar. Recusando a qualificagéo de auxiliar ou a aplicagio do
preceito quando o devedor se tenha de recorrer da intervencao de terceiros que monopolizem certas actividades,
FIKENTSCHER, p. 329. Em idéntico sentido, embora dubitativamente, LARENZ, p. 299. Em sentido contrdrio,
MEDICUS, p. 157.
(!89) Criam-nos dtividas os casos em que o onerado nao permite a intervengaéo, mas nao toma também
medidas que a impegam, em algo de semelhante, no campo da ilicitude, 4 negligéncia. A vontade nao deixa, todavia,
de estar aqui presente.
A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL aii
bastante. HA muitas decisdes que, livremente tomadas, se vém a revelar danosas para
terceiros e que, por serem licitas (1%), nunca darao lugar a indemnizagao.
Resumindo, a construgao que acabamos de referir nao claudica por ilogicidade,
mas sim por insuficiéncia. Capaz de justificar a solugéo de muitos casos, nao o
consegue noutros tantos.
Indtil é, por ultimo, a referéncia ao “mercado” e as suas exigéncias ou a uma
“necessidade funcional do trafico negocial” ('9'). Falha a justificagéo # que se
aproxima, no substancial, da anterior 2 néo s6 por serem inimeros os negécios alheios
ao mercado, como € 0 caso de grande parte dos gratuitos ('9), mas também por o
regime nao variar sequer quando se trate de obrigagdes com fonte diversa, nado falando
ja nas situagGes, exteriores ao campo obrigacional, dos deveres de seguranga no trafico.
As limitagées postas pela lei ao “devedor” que pretenda exonerar-se dos seus
deveres ou fazer perigar os fins de alguns deles através da intervencdo de terceiros
sio inimeras. Assim, entre muitas, as restrigdes 4 transmissdo de dividas (595°, n°s 1
e 2), A prépria cess4o da posicdo contratual (art. 424°, n° 1), 4 concessAo a terceiros
do gozo de coisas alheias (art. 1038°, al. f), ou 1135°, al. f), por exemplo). Parece que
se integra neste grupo o art. 800°, como o 1044°, que o concretiza (!95).
Determinante é 0 contetido material que subjaz a toda a atribuigao de um dever.
Reconhece-se aqui uma andlise estrutural de situag6es juridicas que nao se reconduz,
a primeira vista, a uma ponderagaéo axioldégica. A estrutura, no entanto, reflecte
valoragdes, ou, se preferirmos, diga-se que a estrutura nao pode ser irrelevante na
solugdo do caso, qualquer que seja a ponderagao valorativa subjacente. (!%*)
Quando o ordenamento comina um dever — qualquer dever — prossegue certas
finalidades, i.e., pressup6e que o respectivo cumprimento resulta necessdria ou
provavel-mente valioso, segundo os seus critérios. Entendendo permitir, o que nem
sempre sucede, que o atingir dessas finalidades dependa também do agir de terceiros,
quando o onerado assim quiser, a Ordem Juridica nao abdica perante este, por
principio, do que obteria se fosse apenas ele a cumprir. Se virmos que essas
“finalidades” tutelam determinados (ou indeterminados) sujeitos, temos que o Direito
nfo aceita que estes percam garantias por acto livre do titular do dever. Isto é
geralmente reconhecido pelos autores (!95), criticando nés unicamente a alguns deles
juntarem fundamentagées desneces-sdrias que toldam a clareza do principio.
Numa formulacdo diversa, mas idéntica em substancia, veja-se que, sempre que
existe um dever, a obtencgdo das finalidades visadas pelo ordenamento depende de
elementos submetidos ao controlo (!9°) do onerado, em especial as suas acgées, e de
outros que Ihe escapam. Como decidir se o devedor espontaneamente aumentar o
numero de elementos que nao pode dominar? Ao Direito seria possivel simplesmente
considerar ilifcito este comportamento, mas essa solucdo geraria 2 é manifesto 2
dificuldades praticas intransponiveis, indesejaveis e, até, incompativeis com principios
fundamentais ou com as situagdes de facto subjacentes 4 imposicgao de alguns deveres.
A outra solugdo é dar ao nao cumprimento, Jato sensu, originado por esses
novos elementos um tratamento idéntico ao que surgiria se se mantivesse o dominio
do devedor. O risco tedrico associado a perda pelo devedor do controlo de certa
situagdo cabe, necessariamente, a quem quis que ela (a perda) ocorresse 2 o préprio
devedor. (!97)
Como se deixou antes entender, a fundamentacgao preconizada nao nega algum
valor 4 referéncia ao “beneficio do devedor na divisdo do trabalho”. Como se viu ('%8),
todavia, é manifesta a insuficiéncia desta construgd4o. Pretendemos frisar que decisivo
nao € o beneficio do devedor com a utilizag4o do auxiliar, mas, mais amplamente, a
sua liberdade na introdugéo de um elemento que nao domina.
Tudo o que toca a fundamentar o art. 500° é bem mais dificil. Nao assim nos
paises em que ele se reconduz 4 imputacio por culpa ao comitente (1%).
Revelar-se-ia ainda simples a tarefa se o preceito se aplicasse apenas a
actividades em si mesmas perigosas, sendo até admissivel dizer que a separacgdo entre
o dono da actividade e 0 seu executante poderia aumentar o seu perigo intrinseco pelas
contingéncias préprias da comunicagao a estabelecer entre os dois (7°). Ai, caberia
('95) P. ex®., ANTUNES VARELA, Vol. II, p. 98., embora numa linguagem pensada apenas para o campo
obrigacional. PINTO MONTEIRO, p. 262, dé antes a entender que é o devedor que nao pode ser beneficiado pela
introdugdo de terceiros.
(!%) Prefere-se aqui o francesismo.
(!97) Quanto a introdugao de outros elementos de “risco” que nao os auxiliares, veja-se, supra, nota 185.
Defende-se uma fundamentacéo comum para toda a responsabilidade por actos de auxiliares, ou melhor, de teceiros
introduzidos pelo onerado no Ambito do seu dever. Nao se nega, contudo, que, para certos efeitos, como os do
n° 2 do art. 800°, seja defensdvel uma distingdo entre diferentes categorias de auxiliares. Cf. PINTO MONTEIRO,
p. 275 e s., diferenciando conforme o auxiliar se integre ou nao no circulo de actividade do devedor, conforme o
auxiliar lhe esteja ou nao subordinado.
(198) Supra, nota 187, e o texto correspondente (p. 40).
('9) Tornam-se-nos, logo, intiteis os elementos arrolados com vista 4 fundamentagio do § 831 do BGB.
Veja-se LARENZ / CANARIS, p. 475 ¢ s..
(290) Pensamos que a questao da auséncia de uma elevagdo do risco nas situagdes recondutiveis a uma
comissao tem também relevo onde vigora a responsabilidade subjectiva do comitente, apesar de ser ai mais simples
| A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL 243
encontrar uma adequagao entre os textos legais e a fundamenta¢4o subjacente: faz sentido impor cuidado na escolha
do comissario (culpa in eligendo) quando a sua entrada para o servigo do comitente no origina um maior perigo?
Talvez se deva restringir este dever para as comissdes no 4mbito de actividades em si perigosas. O mesmo nao se
pode dizer dos deveres de instruir e de fornecer os instrumentos adequados, pois 0 seu incumprimento pode por
si criar um perigo.
(791) Integrando o art. 500° na responsabilidade pelo risco, MENEZES CORDEIRO, p. ex®., em Parecer
(Direito Maritimo), p. 43, Direito das Obrigagées, vol Il, p. 374 e s.. Criticando, pela sua vaguidade, a mera
referéncia a responsabilidade pelo risco, SCOGNAMIGLIO, Responsabilita per fatto altrui, p. 698.
(72) Mostrando que este tépico de argumentac4o nado procede em muitos casos de responsabilidade do
comitente, SCOGNAMIGLIIO, Responsabilita per fatto altrui, p. 699. Sobre o relevo de uma ideia de “responsabilidade
empresarial” na chamada responsabilidade contratual, cf. MARIA VITORIA DA ROCHA, p. 72 € s..
(793) Cf. VOLLMER, p. 374 e s., ndo se referindo a responsabilidade do comitente, mas sim a decorrente
da violag4o por auxiliares de deveres de seguranga no trafego, como vimos, embora com introducdo geral sobre o
tema.
wii PEDRO FERREIRA MURIAS
4. Seja como for, é patente a diferenga em termos dogmaticos entre os arts. 500°
e 800°. Nos casos de “responsabilidade do comitente” subsumiveis na vasta categoria
da responsabilidade pelo risco (79°) esté em causa uma perigosidade objectiva e
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abstractamente identificavel de certas actividades ou estruturas sociais acrescida pela
divisdo de tarefas na sua prossecucao. Noutras situagdes, nao aflora qualquer ideia de
risco, mas sim de uma fungao preventiva da responsabilidade civil..
Diversamente, na base do art. 800° esta a ideia de distribuigdo do risco de nao
cumprimento de um dever. Nao cumprindo total, exclusiva e pessoalmente o onerado,
por sua escolha, tem de correr por sua conta 0 risco (?!°) de que o terceiro introduzido
nao cumpra, ainda que objectiva e abstractamente, ou a priori, ndo se possa divisar
qualquer acréscimo da probabilidade de que assim suceda.
Resumindo, enquanto que ao art. 500° subjaz uma axiologia complexa, partindo
de uma fungdo preventiva da responsabilidade civil, o art. 800° colhe a sua plena
fundamentacéo na existéncia de um qualquer dever e na necessidade sentida pelo
ordenamento de assegurar a obteng4o das finalidades prosseguidas pela atribuigdo
desse dever perante a introduc4o de um terceiro no 4mbito do seu cumprimento.
*Diferenga” entre os trechos legais estudados significa entéo separagao absoluta.
Os preceitos legais e as valoragdes que os informam nao s40 comparaveis. Cada uma
das disposigdes em causa é aplicdvel tanto no campo obrigacional quanto no extra-
obrigacional.
Toma-se, portanto, uma posic4o monista radical quanto a cada um destes
aspectos do instituto da responsabilidade civil.
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(71°) Risiko em alemao. O confronto com linguas diferentes contribui para p6r a nu proximidades
meramente ou fundamentalmente linguisticas.
pe I PEDRO FERREIRA MURIAS }