RFDUL - XXXVII - 1996 - 1 - Pedro Ferreira Múrias

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REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBC
fundada em 1917
Periodicidade semestral
XXXVII - N.° 1 - 1996

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Paulo de Pitta e Cunha —Problemas da Revisio do Tratado de
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Maria Adelaide Teles de Menezes Correia Leitio — Estudo sobre os
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O Controle da Competéncia do Tribunal de Origem pelo Tribunal
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Pedro Ferreira Mirias — A Responsabilidade por Actos de Auxiliares
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A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O
ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL

PEDRO FERREIRA MURIAS (')

I
MONISMO E DUALISMO NA RESPONSABILIDADE CIVIL (7)

1. A querela entre monitores e dualistas

A sistematizagao fundamental do direito da responsabilidade civil é objecto de


duvidas desde, pelo menos, ha cem anos atras. Em 1884, SAINCTELETTE, na sua obra
De la Responsabilité et de la Garantie, defende que responsabilidade contratual e
responsabilidade delitual s4o institutos de natureza totalmente diversa e, por isso
mesmo, consubstanciados em regimes também divergentes. Oito anos mais tarde,
GRANDMOULIN, no estudo Nature délictuelle de la responsabilité pour violation des
obligations contractuelles, sustenta, no pdlo oposto, nao haver diferengas de regime
nem, ainda menos, de natureza entre as duas figuras, que, afinal, so uma s6.

(') Assistente Estagidrio da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.


Este trabalho foi elaborado com vista a participagaéo no concurso para recrutamento de assistentes
estagidrios promovido pela Faculdade de Direito em Setembro de 1994. Foram intimeros, embora nao essenciais,
os aditamentos e as correcgGées posteriores.
Tendo posto termo a cinco anos de licenciatura, €é dedicado aos colegas, também de outras faculdades,
cuja amizade contribuiu para que esse percurso ficasse cheio de 6ptimas recordagGes.
(2) Dao-se os dados completos sobre as obras citadas no indice bibliogrdfico final. Nas notas de pé de
pagina, néo se da senfo a informagfio minima que permita identificar a obra em causa. Pertencem ao Cédd. Civ.
portugués vigente os arts. referidos apenas pelo respectivo nimero.
PEDRO FERREIRA MURIAS |

Esta oposicao entre um entendimento monista e um entendimento dualista da


responsabilidade civil tem perdurado até aos nossos dias, embora com certeza j4é sem
o radicalismo de anteriormente. Pode dizer-se que, no que toca a “‘natureza” (3) das
figuras em causa, i.e., ao seu enquadramento dogmatico e ao complexo de fins e
valores que lhes subjazem, muitos autores negam a disparidade, enquanto que, no
respeitante ao regime em causa, é praticamente unanime a doutrina em afirmar uma
série de diferengas. Dos que assim negam essa divergéncia fundamental dentro da
responsabilidade civil, cabe dizer, porém, que a maioria tem por justificadas as
diferengas de regime, assim como aqueles que afirmam essa divergéncia admitem uma
unificagaéo num plano mais abstracto e, por isso, menos relevante, de modo que nfo
sera porventura errado, fazendo o ponto da situagdo, dizer que o fiel da balanga pende
hoje para o lado das teses dualistas (4).
O dualismo de que se fala nao é, obviamente, o que distingue responsabilidade
civil objectiva e subjectiva, aquela a que se produz independentemente de uma censura
do ordenamento a uma acg¢Ao lesiva, esta a que exige essa censura, que exige que um
comportamento se qualifique como “culposo” (>). A este nivel, nao conhecemos gran-
des divergéncias na doutrina: apesar de se reconduzirem a um género comum, aten-
dendo designadamente 4 sua teleologia — ressarcir um dano (°) — a responsabilidade
objectiva e a subjectiva assentam em valoracées diferentes da ordem juridica, com
repercussdes no regime (’).

2. Obrigacionalidade ou contratualidade?

Usou-se acima “responsabilidade contratual” e “responsabilidade delitual”’.


Quanto a este segundo termo, falam muitos autores em responsabilidade aquiliana ou
em responsabilidade extracontratual, enquanto outros preferem contrapor responsabili-
dade obrigacional e extra-obrigacional ou, eventualmente, negocial e extra-negocial (°).
Contratual seria a responsabilidade originada pela violagéo de obrigacgdes contra-
tualmente constituidas e dos correspondentes direitos. Negocial seria a responsabilidade

(3) O termo nao é, decerto, rigoroso, por isso vo as aspas, embora ele continue a ser usado por intimeros
autores sem outra precisdo.
(4) Esta afirmagao nao obsta a que se possa divisar, em termos de evolugdo do direito positivo, uma
aproximaga4o entre os dois campos da responsabilidade civil. Assim, numa andlise de direito comparado, TUNC,
p: 376s:
(°) Sobre a eventual ambiguidade do termo culpa e dos seus cognatos, cf. infra p. 10.
(5) Sao varios os autores que admitem uma fungdo preventiva, secund4ria, na responsabilidade civil, que
pode ser desempenhada até pelas previsdes objectivas de responsabilidade: aumentando-se a probabilidade de um
dever de indemnizar, os visados redobram de cuidados para o impedir; assim, SOFIA GALVAO, p. 50 (97) e 64.
CALVAO DA SILVA, p. 498, demonstra que a objectivacao da responsabilidade aumenta a eficdcia da fungao preven-
tiva: mais do que o exigivel a uma pessoa razodvel, a um bom pater familias, incentiva-se 4 maxima seguranga.
(7) Assim, VOLLMER, p. 374. Negando uma “separagao rigida entre a responsabilidade por culpa e a
responsabilidade objectiva”, MARIA VITORIA DA ROCHA, p. 61 € s..
(°) Esta ultima dicotomia nao é tao comum entre os autores. A oposi¢ao entre contrato e delito foi inicial-
mente feita por GAIUS pretendendo apresentar as duas fontes possiveis de obrigagdes. Os conceitos de contrato e
delito divergiam, contudo, dos hoje comummente.usados, abrangendo 0 contractus toda a fonte de obrigagdes
diferente do,na nossa terminologia, ilfcito extracontratual — cf. MENGONI, p. 1072.
| A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL 173

por violagéo de qualquer negécio juridico. Obrigacional a que resultasse do incum-


primento de uma obrigac4o, independentemente da sua fonte. Pelo lado contrdrio,
extracontratual, extranegocial e extra-obrigacional seriam conceitos definidos por
exclusdo de partes. Responsabilidade delitual ou aquiliana seria a que respeitasse a
violagdo de direitos absolutos, com proteccAo erga omnes (°).
Isto resultaria do teor dos termos isolados. Defende-se, contudo, que a diferenga
é apenas terminoldégica, preferindo uns uma férmula por tradic4o, preferindo outros
outra por questées de rigor, usando muitos os diversos termos indiscriminadamente
por os considerarem equivalentes. Ao falar em responsabilidade contratual, tomar-se-ia
a parte pelo todo, visto serem os contratos a principal fonte de obrigagdes — a sua
violagao, e dos direitos de crédito correspondentes, daria origem a esta forma de
responsabilidade civil. “Extracontratual”, “extranegocial”, “extra-obrigacional”, “deli-
tual” e “aquiliana” seriam sinénimos para designar a responsabilidade originada na
violagdo de direitos absolutos (!°) e do simétrico dever geral de respeito, o neminem
laedere.
Jaé VAZ SERRA alertava, porém, nao ser liquido que as regras da responsabi-
lidade contratual se aplicassem plenamente a responsabilidade por violagao de outras
obrigacgées (!!). O problema nfo deve ser escamoteado: poderemos porventura contra-
por as duas formas de responsabilidade pelo facto de os deveres violados s6 num dos
casos se fundarem no principio da autonomia da vontade, mas entao s6 se admitira
sinonimia entre responsabilidade contratual e responsabilidade negocial (!7), sendo
preferivel, em rigor, o segundo termo. Serd admissivel separar as responsabilidades
por s6 num dos casos se violarem direitos e deveres relativos, mas logo se impora
falar em responsabilidade obrigacional e extra-obrigacional. Inaceitavel é fugir 4 op¢ao
— se acolhermos a primeira das divisdes, nado cabera fund4-la na relatividade ou nao
das situagdes em causa, pois variadas s4o as obriga¢gGes que se originam ex lege; pela
mesma raz4o, nado poderemos fundar a segunda na voluntariedade ou nao dos deveres
assumidos.
A quest4o agrava-se se, num dos termos em confronto, se falar em respon-
sabilidade delitual ou aquiliana (!4), em vez dos conceitos que se definem por exclusdo
de partes. E que, nesse caso, a dicotomia nado esgota sequer 0 universo em causa —
na verdade, além da lesdo de deveres especfficos correspondentes a direitos de crédito
e da violag4o de direitos absolutos através da violagéo do neminem laedere, do dever
geral de respeito, restam-nos as violagdes de deveres especificos que tutelam direitos

(°) Estabelecendo a distingdo pelo interesse atingido, TEIXEIRA DE SOUSA, p. 315, mas este autor sustenta
ser a presenga de um contrato que implica um regime distinto em sede de concurso de responsabilidades (p. 324
e s). Distinguindo também pelo interesse, ROMANO MARTINEZ, Cumprimento...., p. 260 e s., mas aqui a preocupagao
esta em separar, perante a violagdo de um contrato, os danos ressarciveis segundo cada uma das formas de
responsabilidade.
(!°) A absolutidade refere-se aqui 4 estrutura do direito subjectivo: Cf. a terminologia em MENEZES
CORDEIRO, Direito das Obrigagées, Vol. 1, pg. 252.
('!) A mesma dtivida levantou MANUEL DE ANDRADE, p. 127.
(2) Ou entre responsabilidade extracontratual e responsabilidade extranegocial.
('3) Estes dois termos sao verdadeiros sinénimos.
PEDRO FERREIRA MURIAS |

absolutos de um numero indeterminado de sujeitos ('*) e as violagdes de direitos


relativos por terceiros que nfo o obrigado 4 prestac4o ('>).
Bem vistas as coisas, determinar, num caso concreto, o regime de responsa-
bilidade adequado poderia resultar da aplicagéo de um de trés critérios, além de
eventuais combinacgées: o do caracter negocial ou nao da fonte do dever em causa, 0
da relatividade ou absolutidade do direito violado e o da pré-existéncia de uma relagao
juridica entre lesado e lesante. E a diferenca nao é meramente terminolégica.
A primeira vista, é mais atraente a referéncia A fonte do dever: os diferentes
valores ou principios na base do dever violado— s6 num dos campos estaria a
autonomia privada — repercutir-se-iam no regime dessa violagao. E soa bastante
aceitavel que, tratando-se de dois deveres para a tutela de bens de igual valor, seja
mais severamente tratado aquele que violou o dever que livremente aceitou. As duas
outras dicotomias assentam na estrutura das situagGes juridicas em causa — ora, esse
é um aspecto totalmente alheio aos valores que as fundamentam. Contudo, um segundo
olhar leva-nos a admitir um tratamento diferente conforme os potenciais lesante e
lesado estao 4 partida determinados, ou sé um deles esta, ou se dé o inverso. Também
estas construg6es nao sao, de modo algum, de excluir liminarmente. A lei portuguesa
parece ter enveredado por fazer a separagdo pelo cardcter obrigacional ou nao da
relacdo entre devedor e credor ('®), apesar do texto do art. 45° — recorde-se que se
tem geralmente entendido que o problema é meramente terminolédgico. Muitos autores
argumentam, contudo, tendo em atenc4o a natureza da fonte do dever violado (!’).
Ha, sem dtivida, um trabalho feito sobre 0 conceito de obrigagdo destinado a
s6 4 violagdo desta aplicar de pleno, ou directamente, o regime da responsabilidade
obrigacional. E construcdo que torna ainda mais complexa a problematica exposta,
designadamente por separar a obrigacao de outras situagdes juridicas relativas.
Para tanto, tem-se, recorrido designadamente 4 ligagao entre obriga¢gao e
accio de cumprimento, prevista no art. 817°('8). Nao se pode negar, contudo,
haver obrigagées em sentido préprio que, por natureza, nao permitem o recurso a este
meio:

('4) Seja o caso dos deveres impostos aos donos de indtistrias poluentes com vista ao tratamento dos seus
efluentes — é um dever especifico do dono de cada uma dessas indlstrias; ou o do dever de limpar a neve gelada
e escorregadia em frente de cada casa — ou de algumas delas se a ordem for dada por acto administrativo; ou o
caso do dever dos proprietérios subjacente ao art. 492. O segundo destes exemplos é, originariamente, de HECK
— apud VAZ SERRA, Responsabilidade contratual e extracontratual, p. 219. Sobre deveres como os referidos versa
a andlise de VOLLMER que citamos: cf. infra.
(15) Que nem todos os autores admitem — cf. infra.
('%) Cf. os arts. 798° e ss., que se reportam, ao menos no seu teor literal, 4 violagéo de quaisquer obri-
gacées.
('7) Assim, FRADA, p. 60 e s.; este autor vai mais 4 frente interrogar-se também sobre a susceptibilidade
de reconducio dos deveres de protec¢fo, o objecto do seu estudo, ao fmbito da obrigagao: p. 86 e s.
('8) Assim, FRADA, p. 39 (67); sobre o conceito de obrigagao, ainda p. 102 (197); MENEZES LEITAO,
A responsabilidade do gestor..., p. 212 (2) — o dever do art. 465°, b), nao é, para este autor, obrigacional porque
nao é exigivel judicialmente: “A partir do momento em que 0 dominus sabe da gestaéo deixa de ter interesse em
pedir o aviso do gestor”. Refira-se que CARNEIRO DA FRADA nao deixa de admitir deveres obrigacionais, de
prestacao, com contetido e fungao idénticos aos deveres de protecgao, quando as partes assim 0 convencionem, o
que nao deixa de nos suscitar alguma perplexidade — cf. p. 61, 92, 156, 160 e 189 (384).
[ A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL _ee
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Se Anténio se obrigar a avisar Bento quando a cotagdo das acgdes da sociedade X


atingirem certo valor — ou quando os girassdis florirem, se Bento, em vez de especulador, for
apicultor — estipulando-se até uma qualquer remuneracio, é claro que nunca poderé haver acc4o
de cumprimento ('9), mas ninguém negardé que existe aqui uma obrigacdo.

De igual modo, se se tratar de uma obriga¢g4o de non facere, muitas vezes sera
descabida uma ac¢4o de cumprimento e ainda mais a respectiva execugao (7°).
Pelo lado contrario, ha deveres que comummente se excluem do conceito de
obriga¢ao, v.g., por serem acessérios de uma verdadeira obrigac4o ou por 0 seu escopo
ser a tutela da integridade da outra parte (7'), e que podem ser judicialmente exigidos
numa accao que devera ser qualificada como acgéo de cumprimento (22) (24).

Na falta de base segura para avangar, teremos de considerar sempre a hipdétese


de a contraposigao basica a fazer dentro da responsabilidade civil ser uma ou outra
ou uma terceira. Seguros ficamos apenas de que nfo se podem tratar os problemas
indistintamente e de que a terminologia nao é, neste caso, arbitrdria. (7+)

3. Formas de monismo e de dualismo

Voltemos a querela entre monistas e dualistas. HA matizes dentro de qualquer


das correntes que convém acentuar:
O monismo mais moderado, chamemos-lhe assim, afirma que o fundamento das
duas ordens de responsabilidade é idéntico, que sao idénticos os valores chave que
lhes subjazem, mas reconhece que, por raz6es “técnicas”, por raz6es “particulares”’,
haja diferengas justificadas entre as figuras, ainda que secunda4rias, permitindo sempre
um estudo tendencialmente unitério da responsabilidade civil. (25) (2°)

('9) Cf. nota anterior.


(7°) A lei vigente s6 prevé a execucio especifica de facto negativo quando esteja em causa um dever de
non aedificandi (art. 829° C.C. e 941° C.P.C.), mas mesmo af se vé que nao hd acco de cumprimento, mas antes
uma acc¢ao para destruir os efeitos do incumprimento j4 concretizado.
(7!) Cf. FRADA, p. 86 ss.
(72) Admita-se que Daniel compra a Carlos uma maquina por este fabricada, apercebendo-se pouco depois
de que a sua utilizagdo envolve uma série de perigos impondo cuidados que s6 Carlos poderia ensinar. Este tem
o dever de o fazer e Daniel recorrera ao tribunal para o conseguir. Estes deveres, cuja teleologia é a protecgfo da
integridade das partes, sio geralmente estudados a propésito da sua violagéo com consequéncias danosas, i.e., em
sede de responsabilidade civil, mas essa perspectiva ێ incompleta, embora seja de longe mais importante para uma
visdo jurisprudencial, dado que na normalidade das situagdes levadas a tribunal é assim que as coisas se passam
— o exemplo que demos, pelo contrario, tenderia a ser resolvido amigavelmente, até pelo pouco custo que o
cumprimento teria para Carlos.
(73) MOTA PINTO pode também em causa a validade deste critério para distinguir 0 que é ou nao obrigacao,
acentuando que s6 a indeterminabilidade prévia de muitos deveres laterais, por contraposicao ao de prestaciio, é
que impedira a sua exigéncia coerciva — p. 347 (cf. especialmente a n. 3 dessa pdgina) e 403.
(74) A dificuldade em determinar com preciso o meridiano entre uma e outra forma de responsabilidade
poderé ser usada como argumento, ainda que de valor reduzido, contra essa distingfo, pela incerteza a que
necessariamente da origem. Apreciando criticamente varios dos critérios sugeridos pela doutrina, SCOGNAMIGLIO,
Responsabilita contrattuale... p. 671 e s..
(75) Ressalvando, naturalmente, as especificidades da oposic&o entre responsabilidade objectiva e
subjectiva.
(26) E a posico de PICKER, p. 1049 e 1055 e s. Seré também a de ROMANO MARTINEZ, O Cumprimento...,
p. 261.
PEDRO FERREIRA MURIAS }

Completamente diferente é a posi¢aéo dos autores que, por afirmarem essa


identidade axiolégica, defendam de jure condendo a unificagéo de regimes na
responsabilidade (*”). O regime actual, produto histérico, resultaria de preconceitos
liberais individualistas sem justificagéo nos nossos dias.
Daremos o nome de monismo radical ou de direito positivo 4 posigéo de M.
GOMES DA SILVA, ja antes defendida por GRANDMOULIN, entre outros autores, que nega
a existéncia de qualquer diferenga de regime. Essas diferengas seriam “pura ilusdo” (78).
A designacao de dualistas fica reservada para as duas construc6des seguintes:
Uma que, simplesmente, distingue os fundamentos e/ou as fungdes das duas
responsabilidades, justificando em globo as diferengas de regime que se costumam
apontar. Isto sem recusar, naturalmente, como se disse, uma unificagdo a um nivel de
abstracg¢ao superior.
Outra que, colocando-se num prisma completamente distinto das opinides até
aqui descritas, induz uma diferente natureza das duas responsabilidades a partir do
direito positivo, chamando a atencdo para a extrema importancia das diferengas de
regime consagradas. Elas sAo sem dtivida um produto hist6rico, mas esta maneira de
ver os problemas deixa conscientemente de lado a quest4o da bondade das diferengas
para atender ao seu significado em termos praticos e enquanto concretizagdo das
valoragées do legislador (77).

4. Os argumentos

A argumentacgaéo usada pelas teses em confronto é variada. Observemos os


elementos essenciais do discurso dos defensores de uma e outra tese (°°). Naturalmente
que eles variam conforme se esta a atacar ou a defender a divisdo pelo critério da

(77) Assim, quanto a aspectos determinados, SCHLECHTRIEM, p. 1674 e s., e, em geral, segundo se entende,
MENEZES LEITAO, Acidentes de trabalho e responsabilidade civil, p. 783 e s. (p. 794).
(78) Além de GOMES DA SILVA (op. cit, pg. 192 e ss), monista de direito positivo é também P. ALBU-
QUERQUE, se bem que num 4mbito limitado, o do prazo prescricional — é a tese que defende no trabalho que
citamos. A este respeito € acompanhado por alguma jurisprudéncia.
(7) Tanto quanto nos conseguimos aperceber, é esta a posi¢fo que defende actualmente o Prof. MENEZES
CoRDEIRO, no seu ensino oral: A divergéncia quanto ao 6nus da prova seria fundamental no momento aplicativo,
naturalmente o momento chave de qualquer instituto. A auséncia de um trabalho escrito do referido autor impede-
nos, em boa verdade, de lhe imputar a responsabilidade por esta tese. Seja ela tida em conta pelo seu valor préprio
e como hipétese de trabalho, independentemente da sua autoria. Posig¢ées opostas defendia o autor em Direito das
Obrigagées, Vol. II, pg. 275 e s. ou no parecer publicado na CJ, ano XII, cit., pg. 44. Sobre esta importancia da
regra sobre o onus da prova, cf. também Frapa, p. 190 ¢€ s., e infra.
(3°) A este respeito, parece fundamental fazer uma anidlise histérica que ilustre o aparecimento das tao
faladas “diferengas” de regime de modo a deixar claro 0 porqué de cada uma delas. Isto é tanto mais importante
quanto é certo que elas nao sao as mesmas nos varios sistemas nacionais, ainda que haja certas regularidades. Essa
andlise deve ir muito além do perfodo das codificagdes, ao direito romano, mas investigando cada uma das ditas
diferengas. Nesse sentido, cf. uma observagao breve de MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigagées..., Vol. II,
p. 259, e, em sentido oposto, JAIME DE GOUVEIA, p. 160 e s.. BECKER, p. 18, faz notar que a responsabilidade
chamada delitual tem origem comum com a responsabilidade penal, ao invés do que sucede com a oriunda de
violagdes contratuais. Idéntica atengio deveria ser dada 4 andlise comparatistica. Tanto esta quanto a anterior
costumam faltar. Também nds nfo lhes poderemos atender, visto nos limitarmos aqui a uma exposi¢4o introdutéria.
| A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL 77

violagéo ou nao de um negocio juridico ou, ao invés, pela existéncia ou nao de uma
obrigac4o prévia entre lesante e lesado (3!).
Seguindo a licfio de GOMES DA SILVA (32), a base de toda a distingao estaria,
para os seus defensores, em que nuns casos a fonte da obrigag4o de indemnizar seria
© contrato, enquanto que noutros seria a propria lei. E tese hoje perfeitamente aban-
donada em face da distingao entre o dever de prestar e o de indemnizar (37). Por curio-
sidade, olhe-se 4 sistematizagao do BGB, um cédigo que separa claramente, segundo
entendem os estudiosos alemaes, as duas formas de responsabilidade civil: No Livro
II, sobre Direito das Obrigag6es, a primeira secc4o entitula-se Conteudo das relagées
obrigacionais; ێ, no seu Titulo I, Obrigagdo a prestacgdo, que se trata a responsa-
bilidade do devedor por incumprimento, ficando para o Titulo II a mora do credor
Acrescentava um dos adeptos da teoria dualista, CARADONNA, que, na respon-
sabilidade extracontratual, o direito, que competia ao homem como cidadaio, lhe exigia
um comportamento para “garantir a coexisténcia social” e que, por isso mesmo, as
normas af violadas teriam “precedéncia légica” sobre as restantes (34). Na responsa-
bilidade contratual, diferentemente, estaria em causa um “regulamento arbitrario de
interesses” (75). Tese semelhante podemos encontrar em CARNEIRO DA FRADA, que
afirma caber 4 responsabilidade extracontratual a defesa do “minimo pressuposto da
paz juridica”, nao assegurando modificagées, v. g., patrimoniais que beneficiem certos
sujeitos, antes tendo “direccAo negativa, votada 4 defesa da integridade do status quo
patrimonial e pessoal”, 4 defesa de “bens juridicos primordiais, pilares fundamentais
da ordem social” (3°). E conhecida alguma argumentacio contra estas assergdes. La
chegaremos, mas permitamo-nos apenas chamar a atenc4o para que esta fundamentacao
parece contraditéria com a generalizada aceitagéo de que é a responsabilidade
obrigacional/contratual que d4 uma melhor tutela ao lesado. O mesmo nao se diga de
alguns outros argumentos:
Assim, chama-se a ateng4o para o facto de que na responsabilidade obrigacional
o potencial lesante est4 4 partida determinado, levando, por consequéncia, a um iter
diferente na interpretacg4o/aplicacao do direito. Esta ai em causa um risco especifico
de dano. (37)
Diz-se ainda que, nuns casos, ha um projecto particular de relacionamento e
colaboragdo humanos e expectativas pessoalmente depositadas no lesante, enquanto
nos outros se joga a ordenacéo geral dos bens e a definigéo de zonas gerais de
liberdade e de risco, no campo da pura heteronomia. (38)

GC!) Atente-se no que se disse supra sobre o ponto onde assentar a linha diviséria das suas
responsabilidades.
(3?) Cf. O dever de prestar..., p. 190 e s.
(3) Cf. infra, j4 a seguir.
(C4) PEREIRA COELHO, p. 98 e s., um autor monista, critica esta concepgio de CARADONNA.
(35) Apud GOMES DA SILVA, p. 191.
(°°) Op. cit., p. 127 e s. e, com énfase, p. 162.
(37) Cf. PICKER, p. 1053, embora a afirmagdo se integre aqui numa concep¢4o que, ainda assim, podemos
considerar monista.
(8) Assim, FRADA, p. 125 e ss.
PEDRO FERREIRA MURIAS |

Sao argumentos que cativam, mas deve-se atentar que Os primeiros servem
apenas para uma distingdo assente na relatividade das posig6es violadas, ao contrario
dos segundos, que fundaraéo uma distingdo pela fonte dessas posig¢des — em nosso
entender, eles nao sao facilmente cumulaveis. (39)

Pelo lado oposto, diz-se que o dualismo confunde estatistica e dogmatica. Na


verdade, algumas das regras da responsabilidade extra-obrigacional/extracontratual
estariam feitas para as violagdes cometidas por acgdo, correspondentes a deveres
omissivos, se bem que nos planos das obrigag6es ou dos contratos esses deveres apenas
sejam menos comuns (4°), Diz-se ainda que varios preceitos aplic4veis 4 responsa-
bilidade civil conexa com a criminal s6 por engano poderiam fundar a distingao que
estudamos — também a responsabilidade contratual/obrigacional poderia ser conexa
com a criminal, embora isso acontecesse muito menos frequentemente (*').
A base de todas as teses monistas é, contudo, a disting4o entre dever de prestar
e dever de indemnizar (47). Com uma ou outra subtileza, esta separagdo é ponto quase
pacifico nos dias de hoje, aceite por monistas e dualistas, acrescentando estes,
naturalmente, que distingdo entre as duas realidades nao é irrelevancia de uma para a
outra. Pelo contrario, se entendéssemos o dever de indemnizar como uma simples
modificagaéo do de prestar, dificilmente poderiamos deixar de acolher os pontos de vista
dualistas. Fazendo a disting4o, é possivel e plausivel equiparar a violagado de um dever
relativo 4 de qualquer outro.
Os autores monistas alegam ainda que é errénea a concep¢f4o que vé a
responsabilidade delitual como destinada 4 tutela de bens superiormente importantes,
eventualmente indisponiveis, ou 4 mera conservacdo da integridade pessoal e
patrimonial dos individuos. Contratos ha que visam interesses igualmente importantes.
Alias, os interesses patrimoniais teriam a mesma dignidade independentemente de a
sua tutela ser delitual/extracontratual ou obrigacional/contratual. (+3)

@) HA, naturalmente, outros argumentos para defesa do dualismo, ainda que nao tao determinantes ou
generalizadores; cf., p. ex°., PEREIRA COELHO, p. 104, que acusa GOMES DA SILVA de pretender socializar ou
publicizar a obrigagio, i.e., tiré-la do Ambito de plena disponibilidade das partes, da autonomia da vontade, em
que ela perfeitamente se inseria. Parece-nos que este argumento se deveria dirigir mais ao contrato do que a
obrigacao.
(4°) Cf. o que se diz infra sobre o 6nus da prova na responsabilidade civil.
(*') Assim explicava Gomes DA SILVA que 0 art. 2380° do C. Seabra, respeitante ao dever de responder
por actos de servigais ou comissdrios, abrangia também a responsabilidade contratual (p. 198). Hoje, em face do
abandono, pela nossa legislago, da distingao entre responsabilidade civil conexa ou nao com a criminal, o raciocinio
em causa perde relevo. Cf., no entanto, PEDRO DE ALBUQUERQUE, p. 828 e s., a propésito do art. 498°, n° 3, actual.
Nao atende a esta possivel conexdo, p. ex., PEREIRA COELHO, p. 96-7, (2), e 105.
(42) Fé-la GRANDMOULIN. GOMES DA SILVA distingue em termos impressivos os dois deveres quanto ao
objecto, ao fim, a fungao, a fonte e a justificagao — p. 226 e s. Cf. PEDRO DE ALBUQUERQUE, p. 800 e s. De
certo modo, cf. também PICKER, p. 1055 e s.. Autores hd, no entanto, que continuam a integrar o dever de
indemnizar na “relagdo obrigacional, entendida enquanto relacdo fundamental” — MENGONI, p. 1073.
(43) “Os prejuizos pela inexecugo de contratos séo, muitas vezes, socialmente mais graves” — GOMES
DA SILVA, p. 192. Note-se, para mais, que um entendimento estrito do que afirmam os autores dualistas esqueceria
a indemnizabilidade do lucrum cessans em sede extracontratual. O mais que o dualismo poderia dizer contra este
argumento é que a delitual assegura a “estabilidade das modificag6es patrimoniais”. Ainda é dificil, todavia,
sustentar este ponto, até pela frequente confusao, em termos de vida social, dos dois aspectos: quem destréi animais
de uma exploragdo pecudria (violando 0 neminem laedere e direitos absolutos) pagardé, grosso modo, o prejuizo
[___A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E 0 ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL

E também ponto de honra para as doutrinas monistas apelar em sua defesa para
a ideia fundamental da igualdade. Na verdade, seria indefensdvel que dois individuos
em situacdes “materialmente idénticas” fossem tratados de forma diferente. (4+)
Esclarega-se que as posicdes monistas, mesmo as de direito positivo, nado negam
que dentro de um dos campos da responsabilidade haja compartimentacg6es. Assim se
poderd talvez isolar a responsabilidade por violacdo de negécios gratuitos (*5). Afirmam
é que essas linhas divis6rias que nao passam pelo meio dos dois hemisférios
tradicionalmente considerados nao podem fundar a sua distingaéo — havera outras
separacgées que se justifiquem.
O que quer dizer também que nem um monismo radical impedira 0 relevo da
problematica do concurso de responsabilidades. (4°) (47)

5. Dualismo e “pluralismo”’

Admite-se nos dias que correm ser ainda insuficiente a biparticdo referida.
Assim sugeriu CANARIS uma “terceira pista” na responsabilidade civil (48). Por outro
lado, surgem miultiplas figuras de fronteira para cuja clarificagdo os autores indagam,
caso a caso, em face de cada diferenga de regime, qual a solugao a aplicar. Recusa-se
assim 0 conceitualismo metodologicamente irrealista de partir da qualificag&o para a
aplicagao em globo de um regime (49). Metodologicamente louvavel, esta posicdo poe

correspondente ao valor que nfo se ganha com a sua venda e a das geragées posteriores que eles produziriam
(conseguido contratualmente). E que dizer da responsabilidade delitual/extra-obrigacional, ainda que s6 em casos
de abuso de direito (cf. infra), aquando da violagao por terceiros de direitos relativos?
(44) Assim, MENEZES LEITAO, Acidentes de Trabalho..., pp. 776 ¢ 790; CALVAO DA SILVA, p. 475-480,
p6e em relevo a ideia de igualdade em face da inexisténcia de diferenciagéo de regime no D.L. 383/89, de 6 de
Dezembro, e na Dir. 85/374 por entre produtor e lesado existir ou nfo uma relacio contratual: “o fenédmeno real
dos danos dos produtos conexos ao desenvolvimento industrial 6 sempre o mesmo,” — afirma — “‘o que torna
injustificada a diferenciagdo ou discriminagao”(p. 478).
(45) SCOGNAMIGLIO, Responsabilita contrattuale..., p. 677, fornece elementos neste sentido.
(**) Deve aplicar-se sempre o regime dito contratual/obrigacional, deve deixar-se 0 lesado optar, devem
aplicar-se ambos naquilo que mais favorega o lesado ou deve aplicar-se um regime composto? Ha um concurso
de pretensdes, um concurso de fundamentos para uma s6 pretensdo, um mero concurso de normas ou um concurso
de titulos de aquisi¢éo? Cf. Terxeira DE Sousa, op. cit., passim, e, na resolugao de casos, sobretudo p. 313 e¢ s.
Este autor contesta a posigdo que vé a ilicitude contratual como especial relativamente a extracontratual e a tese
do concurso de pretensdes em favor da qualificagéo como concurso de titulos de aquisicao, caracterizado, em termos
de efeitos, pela consumpg¢do (constitutiva ou extintiva) entre os varios titulos de aquisigao (p. 141 es. e 271 es.).
(*7) SCHLECHTRIEM, p. 1597, afirma precisamente que ainda num sistema em que vigorasse um regime
unificado teria relevo o problema do concurso de responsabilidades, por existirem vdrios deveres violados numa
s6 acgao. CALVAO DA SILVA faz notar a importancia da admissibilidade da aplicagio cumulativa dos regimes de
responsabilidade civil na aceleragio da “desagregagao da tradicional diviséo da responsabilidade” (p. 476 e s.),
sendo porém perempt6rio em afirmar que essa divisao existe, “concorde-se ou nao” (p. 479).
(48) Apud FRADA, p. 249 e s., MENEZES LEITAO, A responsabilidade do gestor, p. 353 e s., ou SINDE
MONTEIRO, p. 489 e s.. RIBEIRO DE FARIA, em “nota prévia”, considera uma “omissdo de tomo” a inexisténcia na
sua obra que citamos de um “tratamento diferenciado da responsabilidade pela confianga”, figura com que CANARIS
preenche a sua “terceira pista” (vol. I, p. VII).
(4°) E o que fazem FRADA, p. 187 € s., ¢ MENEZES LEITAO, A responsabilidade do gestor..., p. 292 e s.
Note-se, contudo, que este autor nao se pode classificar como dualista e, no seu anterior escrito, Acidentes de
trabalho..., defendeu até posigdes fortemente monistas. Curiosamente, os estudos destes autores em matérias tao
proximas, alias, parcialmente sobrepostas, seguindo uma metodologia idéntica, conduzem a resultados absoluta-
mente opostos nos pontos fundamentais do 6nus da prova e da responsabilidade por actos de auxiliares. Também
defendem essa metodologia SINDE MONTEIRO, aderindo a concepcdo da “terceira via” (p. 509 e s.) e MENEZES
CORDEIRO, Parecer (cumprimento imperfeito), p. 44.
PEDRO FERREIRA MURIAS ]

em causa que cada uma dessas diferengas de regime possa assentar, afinal, naquelas
possiveis divergéncias globais de fundamento (>°). Talvez se encontre aqui um dos mais
fortes ataques da actualidade, em parte involuntario, 4 summa divisio que se estuda.
Algo de semelhante se podera dizer precisamente das varias dreas especiais
dentro do direito da responsabilidade. S40 valoracdes estranhas as que se descreveram
na separacdo dos ambitos das duas responsabilidades, vindo assim p6-las em questao.
Recorre-se entao as idiossincrasias de certas profiss6es para nelas justificar a escolha
por um ou outro regime (°'), ou ao préprio facto de ser um profissional o eventual
obrigado, ou, ainda, a singularidade da responsabilidade em situagdes “de mera
obsequiosidade” ou, como se referiu, de negécios gratuitos. (>)

6. As “diferencas”’

E agora chegado 0 momento de apresentar sumariamente as mencionadas,


verdadeiras ou nao, diferengas de regime entre as duas formas de responsabilidade.
Atendendo ao elevado ntiimero que os varios autores tém indicado, deter-nos-emos
apenas, e muito sucintamente, nas que tém sido consideradas de maior relevo pratico
e/ou dogmatico.

A - Preenchendo ambos os requisitos esté 0 que toca ao 6nus da prova da


culpa (>3). Devemos, no entanto, observar um especial cuidado, desde logo, na precisao
do que deva entender-se por “culpa” Este conceito, talvez rectius, este vocabulo, sofreu
desde os tempos romanos uma evolugao pouco clara.
No nosso século, durante décadas, 0 seu significado abrangeu a “imputabilidade
subjectiva” de um facto ao seu autor a titulo de dolo ou negligéncia. Apés a
implantagéo do finalismo de WELZEL, repercutido no direito civil, a culpa passou a
englobar apenas a final censurabilidade do facto que a outros titulos j4 era definido
como ilicito e qualificado como doloso ou negligente, nomeadamente em face da
liberdade do agente para agir de maneira diferente no caso concreto. Recentemente,
ROXIN distinguiu ainda culpa, i.e., permeabilidade do agente ao apelo normativo, e
responsabilidade, hoc sensu, cuja falta impediria a imputagao em situagdes como as
do estado de necessidade desculpante. No art. 483°, por seu turno, “mera culpa” nao

(°°) FRADA admite, todavia, e na sequéncia de BAPTISTA MACHADO, interpor entre responsabilidade na
autonomia e responsabilidade na pura heteronomia uma responsabilidade na heteronomia evitavel (p. 182).
(@!) Cf. PICKER, p. 1046 e s.
(7) Cf. FRADA, p. 276 s.
() Cf. arts. 487°, n° 1, e 799°, n° 1. Grande relevo dogmatico tera esta diferenca por uma inversao do
Onus a favor do lesado poder esconder uma “quase responsabilidade pelo risco” (FRADA, p. 190 e s.; cf. também
Maria ViTorIA DA Rocua, p. 63 e s.). Pensa-se ser este, aproximadamente, o entendimento actual de MENEZES
CorbeirO e, dai, a sua posigao sobre a diferente “natureza” das duas ordens de responsabilidade. Em Da boa fe...,
p. 600, (260), o autor qualificava o art. 799°, n° 1, como “ultimo e tinico ponto de diferenciagao significativa entre
as responsabilidades delitual e obrigacional, perante o Direito substantivo (Cf. também p. 639). Nao se tome o
art. 799°, contudo, como se ele tivesse aplicagaéo absoluta em sede contratual/obrigacional. Além de serem permitidas
convencées sobre o 6nus da prova (cf. art. 345°), em casos como o da responsabilizagio do devedor apenas por
dolo reverterd esse 6nus ao lesado — assim, TEIXEIRA DE Sousa, p. 147.
A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL ISt

significa senéo negligéncia, vindo ao encontro da tradi¢ao dos direitos dos paises
latinos — neste sentido, cabia distinguir culpa grave (lata), culpa leve e culpa
levissima. Por Ultimo, ha que considerar a possibilidade de o termo estar no lugar da
faute napoleénica, abrangendo assim o juizo de ilicitude e de culpa na acepcao
pos-finalista.
Temos, portanto, uma 6bvia polissemia que faz aumentar a indeterminagao do
conceito e, logo, as dificuldades na sua interpretagdo. Pode-se ent&éo questionar qual
o objecto da prova cujo 6nus é assim distribuido, e nao sera demais afirmar que muitas
das dtividas se tém originado neste ponto. (°*) (°°)
A existéncia real desta diferenga entre as responsabilidades foi combatida:
afirmava-se que a disting4o se havia de fazer pela dicotomia obrigagdes de meios/
/obrigagées de resultado (°°) ou pela contraposic¢do entre acco e omissdo, entre deveres
negativos e deveres positivos (°’). Assim, as diferengas seriam aparentes, resultando
apenas de a generalidade dos deveres (““obrigagdes”) extracontratuais serem omissivos

(4) TEIXEIRA DE SOUSA parece entender 0 art. 799° como presuncdo de negligéncia (p. 273). SA E MELLO,
y.g., Sustenta que 0 que se deve provar, no 4mbito do art. 487°, n° 1, €é a imputabilidade, e nio mais do que isso
(cf. p. 540), o que nao deixa de suscitar grandes dividas, e retira dai uma maior proximidade entre as duas
responsabilidades — nfo seria afinal toda a culpa a ter de ser provada no art. 487°, n°l. PESSOA JORGE discute
igualmente o que deve aqui ser provado, concluindo que é a falta de diligéncia por parte do lesante (p. 339 e s.).
Na verdade, no sentido em que hoje se usa “culpa”, seria absolutamente descabido impor a sua prova ao lesado
até porque estéo em jogo, afinal, causas de excluséo da culpa — materialmente, sio excepgGes A existéncia do
direito que os restantes dados fortemente indiciam, parecendo dever ter um regime igual ao dos factos extintivos
ou impeditivos do direito (cf. art. 342°, n° 2). Cf. também FRADA, restringindo, num caso concreto, 0 significado
da presungao de culpa (p. 193 — cf. 191 es.).
(55) A esta quest&o acresce, a propésito do art. 799°, n°l, a de saber quem terd de provar o préprio
cumprimento/incumprimento. Variadissimos autores afirmam ter o credor esse 6nus, pelas regras gerais (art. 342°,
n° 1), ao contrério do que sucederia se, em lugar da indemnizagao, ele viesse exigir que o devedor cumprisse (Cf.
ANTUNES VARELA, Vol. II, p. 97; RIBEIRO DE FARIA, Vol.II, p. 405; ROMANO MARTINEZ, Cumprimento..., p. 261;
MARIA VITORIA DA ROCHA, p. 63). Esta diferenga parece desrazodvel e formal, assentando numa classificagaéo
estrutural de um facto como constitutivo ou nao de um direito e contrariando, por exemplo, a possibilidade de
uma accdo de cumprimento se convolar em acgfo de indemnizacaéo — cf. art. 931°, n° 1 C.P.C.. (Neste sentido,
com outros argumentos, GALvAo TELLEs, p. 386 e s., e BIANCA, p. 174 e s., distinguindo ambos os autores entre
casos de dever positivo e de dever negativo; cf. também a posigéo de Gomes pa Sitva, p. 205.). Em sede de
cumprimento defeituoso, a prova do defeito cabe ao lesado
— RoMANO Martinez, Cumprimento..., p. 356.
(5°) E a conhecida classificagao de DEMOGUE — apud, v.g., GOMES DA SILVA, p. 205 e s. Na Alemanha
deu-se ha algum tempo um renascimento desta construgdo, mas com terminologia ligeiramente diferente e sem se
filiar no pensamento do autor francés. Assim se separam erfolgsorientierte ou erfolgsbezogene Pflichten e
Handlungspflichten. Entre nés, cf. FRADA, p. 193 e s., reduzindo a presungdo de culpa do devedor nos “simples
deveres de comportamento” ao aspecto da “censurabilidade pessoal da conduta do agente”, i.e., parece, 4 culpa
no sentido pés-finalista. Convenha-se, contudo, e jd ia nesse sentido a opiniaio de PESSOA JORGE (p. 339), que
essa censurabilidade nem o delitualmente lesado tem de provar. VOLLMER (p. 372 e passim) acolhe o entendimento
referido e estende a relevancia da distingao 4 aplicabilidade do § 278 do BGB (art. 800° do nosso céd.) a certos
casos. Cf. infra. HUET, p. 131., argumenta com esta distingio para distribuir 0 6nus da prova. MOTA PINTO chama
a atengdo para esta identidade entre a conceptologia alema e a francesa — p. 346.
(67) Assim PLANIOL e GRANDMOULIN, apud JAIME DE GOUVEIA, p. 207. Cf. a parte final da nota 2 desta
pagina, mas, af, esta distingao é feita relativamente 4 prova do cumprimento, 0 que, primo conspectu, parece mais
plausivel. JAIME DE GOUVEIA contesta tal posigéo com o exemplo do condutor que é acusado de atropelar alguém
por conduzir pelo lado esquerdo da faixa de rodagem, contra a sua obrigacfo de seguir pelo lado direito — nenhum
tribunal fundaria um jufzo de responsabilidade s6 pela prova do dano e da obrigagao, alids legal, de seguir pela
direita (p. 210). Note-se, contudo, que nao é a culpa que deve ser aqui provada, mas a pr6pria ilicitude objectiva,
que corresponde ao incumprimento nas obrigacées. Por outro lado, duvida-se que o dever ali em causa seja positivo
— o condutor tem de seguir pelo lado direito ou esté proibido de pisar a faixa esquerda?...
PEDRO FERREIRA MURIAS ]

e “de meios”, passando-se 0 inverso no outro campo. Nos casos, menos comuns, mas
inegaveis, em que se tratasse de uma obrigacdo de meios ou de non facere no campo
contratual, ou das suas simétricas em sede extracontratual, o regime a aplicar seria 0
s6 aparentemente reservado para a outra forma de responsabilidade. Os arts. 491° a
493°, de modo nenhum excepcionais, veiculariam essa ideia. Tais construgdes nao
lograram impor-se, mas invocam-se ainda estas classificagdes de obrigacdes, mormente
a que contrapde meios e resultados, para justificar solugdes diferenciadas.
Hoje, surgem correntes de opiniao que contestam nao a diferenca mas o seu
relevo: assim, 0 6nus que corre contra 0 extra-obrigacionalmente (extracontratual-
mente) lesado sofre uma atenuacdo pela admissibilidade de uma prova prima facie
possibilitada por presungGes judiciais (*%). Pelo menos, é inegdvel que as regras
atinentes ao O6nus da prova sido particularmente manusedveis pelos tribunais.
Lembre-se, designadamente, o principio da livre apreciagado da prova. (>)
Por outro lado, em casos de dtivida, fazem-se intervir critérios de solugao que
se afastam da compartimenta¢do que aqui se estuda, como o das “esferas de risco”. (©)
Por Ultimo, ha quem defenda a aboligdéo de qualquer distingdo a este
nivel. (6!) (62)

B- Maxima importancia tera a “exclusao de principio”, em sede de responsabi-


lidade extra-obrigacional, da indemnizabilidade dos chamados danos patrimoniais
puros (°3). Omitida nos autores mais antigos, trata-se de uma teoria desenvolvida,
nestes termos, no direito alemao, mas correspondente, ao que parece, a solugdes
idénticas no direito inglés (+). Estes danos so definidos por exclusfo de partes com
base nas duas “pequenas cldusulas gerais” do art. 483°, n° 1 (®°). Designadamente, os

(8) Arts 349° e 351°. Cf. TEIXEIRA DE SOUSA, p. 318 € s., citando diversos autores, que reconhece uma
aproximagao a este nivel entre as duas formas de responsabilidade, chegando a falar em irrelevancia pratica da
disting4o entre presungdo de culpa e “prova prima facie” (p. 329). ROMANO MARTINEZ, O cumprimento imperfeito,
segue essa posicao (p. 261). Cf. FRADA, p. 191 (393), algo diferentemente. CALVAO DA SILVA refere esta
Anscheinbeweis, a res ipsa loquitur do direito inglés, identificada com as nossas presungGes judiciais, que teria
“terreno fértil” na responsabilidade do produtor, assente na “eloquéncia dos factos”; considera-a, contudo, um
expediente precdrio quando comparado com uma verdadeira inverséo do 6nus da prova (p. 188 — 395).
(5°) CALVAO DA SILVA chama porém a atencAo para a extrema dificuldade da prova da culpa do produtor
na complexidade do processo produtivo e distributivo (p. 287).
(®) E a chamada Gefahrenbereichslehre. Cf. FRADA, p. 195 ¢ s.
(1) DE CuPIS, p. 302 e s., negando que um critério de normalidade possa fundar uma presungao diferente
num e noutro caso e deixando o 6nus sempre ao lesante. A este seria mais facil fazer a prova respectiva, afirma,
entre outras consideragées.
(®2) Em Italia, na vigéncia do Céd. de 1865, e na falta de disposigéo expressa quanto 4 responsabilidade
extra-obrigacional, o que, aliés, se mantém, houve quem defendesse aplicar-se a esta, analogicamente, o disposto
em sede de incumprimento. DE CUPIS contesta-o no céd. vigente com o argumento a contrario a partir de algumas
remiss6es legais para regras da responsabilidade obrigacional e de algumas estatuig6es particulares no sentido dessa
inversdéo do énus e com base nos trabalhos preparatérios (p. 301 e s.).
(83) “Reine Vermégensschdden’”. Cf. PICKER, passim; FRADA, p. 153 e s., 174 e s.; SINDE MONTEIRO
p. 17 e s., 254 e s., DEUTSCH, p. 87.
() Cf. SINDE MONTEIRO, loc. cit..
(65) § 823, Ie II, do BGB. Nao é Ifquida a diferenga entre o dispositivo alemao e o portugués — para
evitar dividas, enumeram-se ali alguns direitos susceptiveis de serem violados, terminando-se numa referéncia a
“outro direito” (ein sonstiges Recht). No nosso direito, falta essa enumeragao, tida, na altura, por desnecessaria.
Por outro lado, o § 826 do BGB (responsabilidade por violagéo dolosa dos bons costumes) nao tem paralelo no
direito portugués, pelo que cairao sempre no nosso art. 483° os casos na Alemanha resolvidos naquele pardgrafo.
| A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL 183

direitos ai referidos nao incluirao os direitos de crédito, j4 especialmente regulados


nos arts. 798° e s. Por outro lado, nao se podera falar de um “direito ao patrim6nio”.
Verifica-se depois que 0 que esta em causa ndo é propriamente a dignidade
destes valores patrimoniais, alids, indemnizd4veis em caso de violacgdo dolosa (®).
A chave esté em entender que esta restrigao € um expediente técnico para limitar o
numero dos eventuais credores de uma indemnizac4o, desnecessario em face da
pré-determinacao de lesante e lesado na responsabilidade obrigacional ou existindo
uma Sonderverbindung. (67) (®8) (©)

(%) Na Alemanha, por recurso ao § 826, referido na nota anterior; em Portugal, através do art. 334°, permi-
tindo, alias o juizo de responsabilidade em casos de negligéncia grave (SINDE MONTEIRO p. 555 e s.). Parece-
nos, contudo, que a figura do abuso de direito nao pode fornecer, por si, a solucdo, visto nao estatuir uma obrigacfo
de indemnizar. Regresso ao art. 483°, n° 1, designadamente para analisar os restantes pressupostos desta obrigagao?
(®7) Ou seja, de uma relagdo especial (nao obrigacional) entre lesante e lesado, de que sio exemplo as
relagdes entre quem negoceia a celebragdo de um contrato (relevante no art. 227°), entre comproprietdrios, entre
vizinhos ou entre as partes de um negécio nulo. MEDICUS, p. | e 155, qualifica a prépria obrigagio como
Sonderverbindung.
(8) Tese de PICKER, p. 1053 e s., aceite por LARENZ, p. 122, (45c), SINDE MONTEIRO, p. 503 € s., €
FRADA, p. 177. Duvida-se da chamada 4 colacdo da falta de evidéncia ou aparéncia social destes danos que os
autores igualmente fazem. A ser assim, e quando assim for de facto, nao tera provavelmente havido negligéncia
na sua leséo, o problema sera outro.
(6) Nao se conhecem opinides contrarias as estas teses, 0 que de modo algum significa que elas nao
levantem dtividas: Fundamentalmente, parece que, depois das importantes construgdes de PICKER e HERRMANN
(este apud SINDE MONTEIRO, p. 196 e s.) sobre a fungao da nao indemnizabilidade destes danos, referida no texto,
se deveria procurar fazer uma comparagao com as situagdes em que sao “interesses” absolutos que esto em causa.
SINDE MONTEIRO reconhece a possibilidade de chegar a “resultados algo inequitativos”, resignando-se em face
da inexisténcia de critério alternativo praticdvel (p. 259). Inequitativo, devemos dizer, além de contra legem, seria
aplicar esta qualificagdo e este regime aos lucros cessantes, como parece fazer CALVAO DA SILVA (p. 289).
_Surpreende ainda que nao se procure estabelecer uma ponte entre os problemas aqui resolvidos e a teoria da
imputa¢do objectiva (algo imprecisamente designada também do “nexo de causalidade”): 0 caso de escola do
prejuizo do empresdrio pelo atropelamento culposo da artista por ele contratada é paradigmatico — 0 que se passa
é que a norma infringida nao visa proteger sendo a integridade fisica da primeira lesada (usa-se um dos critérios
geralmente aceites para aferir a imputabilidade objectiva). E neste quadro argumentativo que MENEZES CORDEIRO
soluciona 0 caso em aprego, Direito das Obrigagées, Vol. I, pg. 281, embora usando linguagem e critérios de
imputac4o em que nao nos revemos. Imagine-se agora que, em vez de uma artista, era atropelada uma mulher-a-
-dias e que, por efeito disso, as flores da patroa em férias, que deixaram de ser regadas, acabam por morrer — 0
caso € idéntico ao anterior e a solugdo é também idéntica, apesar de os interesses lesados serem, neste caso,
“absolutos”. Quanto ao temor manifestado por PICKER relativamente as cadeias de credores (Gldubigerketten)
lesados no seu patrim6nio enquanto tal (p. 1053), dir-se-4 também que os danos por eles sofridos nao sdo
objectivamente imputdveis. Repare-se que LORD DENNING, cit. por SINDE MONTEIRO, p. 203 e s., se interroga
precisamente sobre se, no caso que analisa, nado ser4 o dano to remote, i.e., objectivamente nao imputdvel, na nossa
terminologia. Chamando a atengaéo para a importancia da imputagdo objectiva para delimitagfo dos danos
indemnizaveis nos ordenamentos providos de uma grande cldusula geral de responsabilidade, embora sem mencionar
expressamente os danos agora em causa, EIKE SCHMIDT, p. 526. Por outro lado, nao ha dtivida de que certos danos
“meramente patrimoniais” séo indemnizdveis em sede extracontratual, ainda em casos de ilfcito negligente, v.g.,
as despesas feitas na sequéncia de uma lesdo na integridade fisica. Uma referéncia aos chamados cable cases,
mencionados por estes autores: Parece-nos tratar-se de casos particulares sujeitos a valoracdes muito especificas,
para além das que acabamos de referir: assim, invoca o autor inglés indicado o desequilfbrio entre 0 pequeno dano
que cada um dos lesados geralmente sofre e 0 montante global que o lesante se veria obrigado a pagar; o perigo
do aparecimento inflacionado de pedidos de indemnizagao, porventura falsos, prejudicial para o funcionamento
dos tribunais; a utilidade de fazer cada um contar normalmente com danos de pouco valor, em estimulo a um
pequeno esforgo para os compensar. Uma ultima nota critica relativamente 4 pouca ligagao feita entre estas doutrinas
e os estudos dedicados 4 eficdcia externa das obrigagdes — a lesdo por terceiro de um crédito ser4 um “dano
patrimonial puro”, néo cabendo na previsao (estes autores diriam “nos Tatbestdénde”) do art. 483°, que abrangeria
PEDRO FERREIRA MURIAS |

C- Nao se pode passar ao lado da recusa, por alguns autores, da ressarcibilidade


dos danos morais em sede contratual. Assinale-se que esta tomada de posicéo nao
impede, na maioria dos casos concretos, que os danos acabem por ser indemnizados,
mas com recurso as regras da responsabilidade delitual, que seriam de aplicar por
estarem direitos absolutos em jogo (7°).
Os argumentos sao essencialmente dois: a inser¢gao sistematica dos preceitos
que prevéem o dever de responder por estes danos e a inseguranga que a solucao
contraéria representaria (7!).
Em contrdario, diz-se que estas posig¢des assentam no antigo preconceito da patri-
monialidade da obrigacao, (72) sustenta-se que estes danos apenas sao mais frequen-
tes na responsabilidade delitual e nega-se qualquer inseguranga assim criada (7).
Veja-se 0 seguinte caso:
Anténio, cantor famoso, compromete-se a actuar na festa de aniversdrio de Bento. Na
altura do cumprimento, Anténio nao aparece, por culpa sua, sendo a festa um fiasco e um
vexame para Bento. As regras da responsabilidade delitual nado sao aplicaveis — O dano de
Bento deve ficar por ressarcir?

D- PEDRO DE ALBUQUERQUE, no estudo que citamos, defende, contra a doutrina


dominante, (74) a aplicabilidade do prazo prescricional dito da responsabilidade
extracontratual/extra-obrigacional a toda a responsabilidade. A sua tese assenta na
disting4o entre os deveres de prestar e de indemnizar (7>), na ratio do art. 498°, n°1
(problemas probatérios que se agravam com o decurso do tempo), na possivel conexao

apenas “direitos absolutos”. Isto é afirmado, contudo, depois de se dizer que os direitos de crédito esto
especialmente regulados nos arts. 798° e s. (v. g. RIBEIRO DE FARIA, Vol. I, p. 416). Ora, parece despropositado
excluir situagées do 4mbito de um preceito por se integrarem no de outro e afirmar, mais tarde, que nio cabem
em nenhum deles. Os arts. 798° e s. s6 regulam as relagdes entre credor e devedor, tudo o resto poderia caber no
art. 483°. Aceitando, em geral, a eficdcia externa das obrigagdes, MENEZES CORDEIRO, Direito das..., Vol. I,
p. 251 e s., e TEIXEIRA DE SOUSA, p. 62. Sustentando existir apenas uma tutela restrita perante terceiros, em
casos excepcionais como o do art. 495°, n° 3, ou recorrendo ao abuso de direito, v.g., ANTUNES VARELA, p. 77
e s., e ALMEIDA COSTA, pagina 73 e s..
(7°) Estarfamos, naturalmente, em sede de concurso de responsabilidades. Para TEIXEIRA DE SOUSA
(p. 272 e s.) s6 perante uma situagéo de concurso seriam indemnizdveis danos nao patrimoniais causados pelo
incumprimento contratual. Nao se afasta desta posig¢éo DEUTSCH (p. 82; cf. também p. 88).
(7!) Pensamos que, quando se refere inseguranga, se consideram as violagdes de deveres de contetido
patrimonial que reflexamente originam danos morais, talvez nado previsiveis a priori.
(7?) Contra as varias formas dessa concepgio, ANTUNES VARELA, Vol. I, p. 192 e s.. Critica ainda mais
radical em MENEZES CORDEIRO, Vol. I, p. 231 e s.. Com algumas hesitagdes, RIBEIRO DE Faria, vol. I, p. 93 e s..
ALMEIDA COSTA, p. 76 e s., recusa integrar a patrimonialidade no conceito de obrigacgdo, mas admite relevo do
termo para ilustrar que a execucdo, em caso de incumprimento, recai apenas sobre o patriménio do devedor.
(73) Entre outros argumentos: por exemplo, isso levaria também 4 irresponsabilidade dos médicos
contratados. Aqui, porém, seria sempre defensdvel o recurso 4s normas delituais. No sentido do texto, ALMEIDA
Costa, criticando, designadamente, a insergdo sistematica do art. 496°, n° 1, contestando que se atribua a esta um
relevo interpretativo determinante, e argumentando com a identidade essencial entre as duas formas de
responsabilidade e com o facto de os arts. 798° e 804°, n° 1, nao distinguirem tipos de danos — p. 505 € s..
Admitindo a indemnizagao por danos morais apenas em sede extracontratual, TEIXEIRA DE SOUSA, p. 138 e 273,
ANTUNES VARELA, /oc. cit., RIBEIRO DE FARIA, Vol. II, embora com diividas, p. 422.
(74) MENEZES LEITAO, A Responsabilidade do Gestor..., p. 291 (1), considera 0 ponto discutivel.
(75) Contrariando o argumento segundo o qual seria desrazodvel que alguns dos deveres oriundos do
contrato prescrevessem e outros se mantivessem intactos.
| A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL I

Bs
da responsabilidade contratual/obrigacional com a responsabilidade criminal, para
efeitos de aplicagao no n° 3 do mesmo preceito, entre outros aspectos. Nao conhecemos
criticas a esta argumentacio (”°).

E- O art. 494° prevé a reducdo equitativa do montante da indemnizaca4o se


for meramente culposo (negligente) o facto lesivo. Sistematicamente, o preceito des-
tina-se apenas a responsabilidade extracontratual/extraobrigacional, mas a questao é
duvidosa (77). Relevaria aqui um eventual reforgo do dever contratualmente assu-
mido (78)?

F- Invocam-se, ou invocavam-se, depois uma série de diferengas que podemos


considerar menores por nao implicarem divergéncias tao significativas na resolugao
dos problemas em face da qualificagao quanto a contratualidade (obrigacionalidade)
ou extracontratualidade que se faca (7).

7. Sequéncia

A responsabilidade por actos de auxiliares, representantes legais e comissarios,


categorias distintas, tem, nos cédigos continentais, tratamento diferente no capitulo
reservado ao incumprimento e no que visa tratar os restantes casos de responsabilidade.
Nos nossos dias, mais do que antes, a divisdo do trabalho e o desempenho das
funcg6es produtivas por empresas potenciam a importancia, desde sempre reconhecida,
da possivel responsabilizagao daqueles que gerem o trabalho alheio e/ou que com ele
beneficiam pelos actos praticados durante esse trabalho ou servico.
Conjugando as afirmag6es precedentes, temos a justificacgéo para o trabalho que
se prop6e: analisar a(s) responsabilidade(s) por factos de auxiliares, lato sensu (®°),

(7°) Cf. observacdes préximas de ROMANO MARTINEZ, em sede de teoria do (concurso) de responsabili-
dades, procurando aplicar o prazo do art. 498° por ser mais longo do que alguns previstos para os contratos em
especial (Cumprimento... p. 281 € s.). Sobre o relevo do concurso de responsabilidades a este propésito, cf. TEIXEIRA
DE SOUSA, p. 212 e s. e 251 e s., utilizando a prescrigao para ilustrar a existéncia de uma conex4o entre pretens6es,
apesar da independéncia dos objectos de prescri¢4o.
(’7) Pela aplicacao nos dois campos da responsabilidade, PESSOA JORGE, p. 365 e s.; em sentido contrério,
ALMEIDA COsTA, p. 453, que invoca as legitimas expectativas do contraente lesado (itélico nosso).
(78) Cf. o que se disse no ponto 2 sobre a maior razoabilidade, A primeira vista, de uma contraposi¢ao
pelo cardcter negocial ou nao do dever. Soa, todavia, razodvel a aplicag&o do art. 494° em sede contratual quando
estejam em causa prestagdes complexas, prolongadas no tempo, em que uma falha pequena seja susceptfvel de
causar danos de grande vulto.
(7°) Cf. a extensa lista apresentada por VAZ SERRA, Responsabilidade contratual e ..., p. 118 e s. Oua
de GOMES DA SILVA, p. 192 e s., por este autor absolutamente negada. Hoje, cf. as disposigdes dos arts. 805°, n°3
e 806°, n° 3, em tema de mora, que tém sido entendidos como respeitando apenas a responsabilidade delitual/
extra-obrigacional. Cf., também, o art. 45°, em sede de D.I-P., ou os dois nimeros do art. 74° do Céd. Proc. Civ..
Veja-se, por fim, o art. 497°, que impde a responsabilidade soliddria dos causadores (extracontratualmente?) de
um dano, por oposi¢gao ao art. 513°, que estatui como regra a parciariedade das obrigagdes subjectivamente
complexas. Nao costuma ser acentuado, embora talvez devesse, que o art. 513° diz respeito ao dever de prestar.
(8°) E neste sentido amplo que “auxiliares” deve ser tomado no titulo do presente estudo, abrangendo as
trés categorias referidas. Veremos depois que a indistingio nao se pode manter.
PEDRO FERREIRA MURIAS

dentro do quadro geral que se expés. Acresce a estas razées, j4 de si suficientes, que
é o problema da opc¢ao entre regimes a propdésito da responsabilidade por auxiliares,
mais importante até noutros ordenamentos, como o alemfo (®!), do que no nosso pais,
que tem dado origem a muitas das figuras intermédias entre o contrato e o
delito, (8?) (83) mostra de alguns dos maiores desenvolvimentos da dogmatica
obrigacionista das ultimas décadas (°4).
Nao se pretende estudar toda a matéria atinente aos arts. 500° e 800° do Céd.
Civ., correspondentes aos § 278° e § 831 do BGB, mas apenas o que se relacione com
a sua articulagdo nas dicotomias em causa. O contrario levaria o presente trabalho para
dimensOes por agora inabarcaveis. Note-se que é um problema preciso que se discute,
a saber, se ha uma diferenga entre os dois termos da(s) diviséo(6es) fundamental(ais)
da responsabilidade, como se descreveu, quanto ao dever de responder em lugar de
auxiliares, e se ela se justifica.
Num primeiro momento, procura-se confrontar os dispositivos legais vigentes,
sobretudo no que respeita as suas facti species, por motivos que se compreendem no
momento devido; em seguida, debate-se a identidade ou diferenga do enquadramento
dogmatico das figuras.

(8!) Designadamente, porque sé no campo contratual é desnecessaria a culpa do principal.


(8?) O contort, na expressio do inglés GILMORE
(83) Referindo a existéncia de um “esbatimento progressivo da compartimentagdo entre a ilicitude
contratual e a responsabilidade delitual”, TEIXEIRA DE SOUSA, p. 139. Como exemplos, enumera o autor as figuras
da violacdo positiva do contrato, dos deveres de protecgao, da culpa in contrahendo, da culpa post pactum finitum,
ou do contrato com eficdcia de protecg4o para terceiros.
(84) Assim, p. ex®, MOTA PINTO, p. 410, n. 3, e LARENZ, p. 121 (a propésito da culpa in contrahendo) e
225 (relativamente ao contrato com eficacia de protecg4o para terceiros). DEUTSCH, p. 88, afirma que nado poderemos
“renunciar a corrigir a responsabilidade delitual através de uma— muitas vezes artificial — responsabilidade
contratual enquanto o dever de responder por auxiliares em sede extracontratual nfo for igualado ao contratual”.
A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL pee

II
AS FORMAS DE RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES

A Regulacao Positiva

1. Hipdéteses tipicas

Por entre as dividas que se colocam sobre os ambitos de aplicacao dos pre-
ceitos em causa, quer dizer, sobre quais os casos cuja decisao juridica ha-de se basear
nestes dispositivos legais, podemos encontrar pontos firmes para iniciar uma inves-
tigacao:

Se Abel é empregado de Bento na construgao civil e, desempenhando descuidadamente


as suas tarefas, deixa que lhe salte das maos um instrumento de ferro que vai atingir um
transeunte, causando-lhe ferimentos, o art. 500° impde que Bento indemnize o lesado, podendo
depois exigir de regresso 0 que pagou a Abel, que era também responsavel, nos termos do art.
483°, n° 1, tendo a vitima a faculdade de optar entre propor a acg4o contra um, contra outro e
contra ambos. O comitente é Bento, Abel 0 comissario .
Se Carlos se comprometeu a entregar a Daniel, dono de um restaurante, uma certa
quantidade de frangos de avidrio, e o seu amigo Eduardo, a quem pedira que fizesse a entrega
dos frangos, deixar negligentemente que o calor do Sol deteriore esses frangos, nao podendo
Daniel preparar as refeigdes para os seus clientes e ndo realizando, por isso, lucros que de outra
maneira seriam certos, manda o art. 800° que Carlos pague o prejuizo de Daniel, sendo porém
duvidoso que o art. 483° conceda algum direito a este contra Eduardo. Carlos, pelo contrario,
poderia decerto exigir ao amigo 0 que se vira obrigado a desembolsar. Caylos é 0 devedor, Daniel
o credor, Eduardo o auxiliar, no sentido estrito da lei.
Se Fernando, de cinco anos de idade, é dono de uma empresa fornecedora de mobilidrio
de escritério, sendo em tudo representado por seu pai, Gilberto, e este, sem razdo justificativa,
nao da ordem para fazer uma entrega devida a Hélio, impedindo-o danosamente de abrir as
portas aos respectivos clientes, o patriménio de Fernando respondera para cobrir 0 crédito de
indemnizacao a que Hélio tem direito, por forga do art. 800°. Fernando é o devedor, Hélio o
credor, Gilberto 0 representante legal, respondendo perante Fernando em via de regresso, mas
duvidosamente desde logo perante Heélio.

Uma prevengdo terminolégica ainda: quer ao comitente, quer ao devedor que


se serve de auxiliares, daremos o nome de principal; ao comissdrio, chamaremos
também preposto; tanto o auxiliar, quanto 0 comissario e 0 representante legal, poderao
ser designados por auxiliares, lato sensu, como antes se disse.
Fiquemos, por agora, com as duas primeiras situag6es descritas e com os trechos
legais que as decidem: Nao ha dtivida de que a primeira se situa no campo
extra-obrigacional e extracontratual, sob a alcada do art. 500°, assim como a segunda
plenamente se integra no seu simétrico, havendo que a decidir nos termos do art. 800°.
Cabe contudo perguntar, com PESSOA JORGE, se numa e noutra disposigées estao
188 PEDRO FERREIRA MURIAS

reguladas situagdes correspondentes (®°). Assim tem entendido a generalidade da


doutrina, vendo o art. 800° como uma concretizacaéo da regra da responsabilidade do
comitente (8°) ou, ao invés, na grande maioria das vezes, cuidando de distinguir com
precisdo as formas de responsabilidade civil que cada um regula atendendo 4 diver-
sidade de regimes consagrados: No nosso ordenamento, em termos fundamentais, s6
o art. 500° exige uma relagao de subordinagAo, i. e., de autoridade e dependéncia, entre
principal e auxiliar (87), bem como a existéncia de obrigacgéo de indemnizar por parte
deste. No direito alemao, onde as relagGes entre estas normas tém sido particularmente
estudadas, tal como no direito suicgo, a diferenga acentua-se por nfo ser objectiva a
responsabilidade do comitente, mas antes resultar apenas da violag4o, alias presumida,
de deveres de cuidado na escolha, instrugd4o etc. do comissario, em oposi¢4o ao que
se passa com o devedor e seus auxiliares (*°8).
Ora, em face das facti species legais e de situagdes como as descritas, depara-
mos com duas diferengas patentes, num e noutro caso: a primeira, j4 mencionada, é a
do caracter obrigacional, num lado, e extra-obrigacional, no outro, das hipdéteses
pensadas — assim, fala o art. 800° em credor e devedor (8). A doutrina absolutamente
dominante aponta este elemento como tnico critério de delimitagao dos campos de
aplicacéo dos preceitos em causa (9°). Manifestar-se-ia aqui, portanto, uma nitida e
importante diferenga de regime entre as duas formas da responsabilidade civil.
A outra diferenga, talvez nao tao explicita, é que neste art. 800° é€ um dever
do principal que é objectivamente violado (?!), i.e., a ilicitude objectiva afere-se por
uma norma que vinculava o principal e nao (9?) o auxiliar; tratando-se de respon-

(85) PESSOA JORGE nega que assim seja, ao menos na medida em que isso impedisse a aplicacao
cumulativa dos dois preceitos — p. 149. Seguindo este autor, SOFIA GALVAO, p. 28, (41). FIKENTSCHER, p. 772,
admite, diferentemente, a aplicagfo paralela dos §§ 278 e 831 BGB.
(86) MENEZES CORDEIRO, Direito das..., p. 393, e Da Boa Fé..., p. 638.
(87) Negando a necessidade de uma relacgdo de subordinagfo, MENEZES LEITAO, p- 299, que assenta a
diferenga entre os dois preceitos, na sequéncia de TEIXEIRA DE SOUSA, (p. 138), em s6 no dmbito do art. 500°
haver responsabilidade quer do principal, quer do auxiliar, o que nio nos parece defensdvel, pelo menos nos casos
em que se admita a responsabilizagdéo de um terceiro pelo incumprimento. MENEZES CORDEIRO, Da Boa Fé...,
p. 638, (382), p6e em diivida a necessidade da subordinagfo, sugerindo bastar “um minimo de liberdade do
comitente”. TEIXEIRA DE SOUSA sustenta a impossibilidade de ser soliddria a responsabilidade do devedor e do
auxiliar no 4mbito do art. 800° por ser distinta a qualificagdo da responsabilidade de cada um (p. 317). Nao podemos
aderir 4 posigao que dispensa a relacgao de subordinagao, pois levaria a responsabilizar quem encomendasse qualquer
prestacgdo a um profissional auténomo pelos danos que este, p. ex®., na sua oficina, causasse a terceiros durante a
execu¢do da prestagéo. Ao discutirmos o fundamento do art. 500°, na parte final deste trabalho, teremos
oportunidade para confirmar esta ideia.
(88) O § 831 do BGB, tem paralelo no nosso art. 500°, e o § 278 no 800°.
(8°) A priori, a distingdo aqui seré mesmo pela obrigacionalidade da situagio, e nao pela existéncia de
qualquer negécio juridico, como j4 VAZ SERRA afirmava, mas é muito cedo para que 0 possamos dizer com
seguranga.
(9°) P. ex®., LARENZ, p. 296; MEDICUS, p. 155, FIKENTSCHER, p. 328, ANA PRATA, p. 684 e s., MARIA
VITORIA DA ROCHA, p. 82. Para recorrer ao art. 800°, ou aos seus congéneres, exige-se a presenca de uma obrigacado
ou, pelo menos, de uma relacdo especial equiparavel, uma Sonderverbindung. Fazem excepcao a tao largo consenso
doutrinal VOLLMER e BECKER. Descrevemos mais 4 frente as posig6es destes autores.
(?!) Parcialmente neste sentido, NUNES DE CARVALHO, p. 97 e 101. Por ser do principal o dever, é a sua
a bitola aferidora dos deveres de diligéncia — assim, FIKENTSCHER, p. 329.
(92) Pelo menos, nao necessariamente. Cf. infra. Para os defensores da chamada “eficdcia externa das
obrigagdes”, também o auxiliar ter4é de respeitar o direito do credor, embora naturalmente nao baste uma
desconformidade objectiva relativamente ao devido (pelo principal) para que surja o dever de indemnizar.
[____A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL

sabilidade do comitente, pelo contrario, é relativamente ao preposto que se concretiza,


na hipotese dada, o dever geral de respeito que abstractamente a todos obriga, ou seja,
a ilicitude objectiva é medida pela violagéo de uma norma que vincula 0 comissario.
Esta construg4o é imposta pela necessidade de que sobre ele recaia a obrigacdo de
indemnizar. Certamente que o dever geral de respeito, geralmente expresso pela
locugao latina neminem laedere, obriga também o comitente, mas é ao comissario que,
nas hipéteses em causa, a ordem juridica exige um comportamento diverso, 0 que nao
vem a ser cumprido.
Nao se discute aqui a possibilidade de, no nosso direito, 0 comitente ter de
indemnizar também quando é objectiva a responsabilidade do comissario (97), j4 que
essa andlise nos transportaria de facto para esferas alheias ao objecto deste trabalho:
as formas de responsabilidade que aqui se comparam tém de ter por base a falta ao
cumprimento de deveres, ou nao seréo compardaveis. Por outras palavras, como a
responsabilidade obrigacional/contratual assenta sempre, por defini¢4o, na auséncia do
cumprimento cabal de um dever, nao ha que compara-la com casos de responsabilidade
que fujam em absoluto a esta axiologia ().
Este basear-se a responsabilidade do comitente num comportamento ilicito do
comissdrio nfo é exclusivo dos sistemas que, como 0 nosso, consagram a respon-
sabilidade objectiva daquele. E certo que na Alemanha e na Suica é a violacao de um
dever de cuidado do principal que funda, essencialmente, a sua responsabilidade, mas
também ai é para 0 comiss4rio que, no caso concreto e em primeira mao, se concretiza
o dever geral de respeito. E também no seu comportamento que se vé da violacado
objectiva de normas juridicas, de modo que se exige na Alemanha que seja
widerrechtlich a sua conduta, passe o francesismo, que seja antijuridita, i.e., ilicita.
Nao é necessdrio que ele aja com culpa, mas tem de agir ilicitamente. Imputa-se ao
comitente uma ilicitude de segundo grau, assim qualificada nao por ser menos
importante, mas por depender de uma outra para os efeitos em causa.
Por outro lado, se atendermos a norma que, nesses sistemas, se refere ao
comitente, vemos que ela se pode distinguir das que objectivamente s4o violadas no
ambito do § 278 BGB, na medida em que estas determinam um comportamento que
directamente se destina a satisfazer 0 interesse dos credores, enquanto que, no 4mbito
da responsabilidade do comitente, o comportamento devido visa influenciar um outro
que, esse sim, ha-de imediatamente salvaguardar os bens dos potenciais lesados.
O que se concretiza num importante aspecto, a saber, o de que no § 278 o dever que

(93) Em sentido afirmativo, MENEZES CORDEIRO, Direito das ..., p. 373 e s.; negando-o, ANTUNES
VARELA, Vol I, p. 639, e NUNES DE CARVALHO, p. 97 e€ s.. A solucgdo, mais do que pelo significado do advérbio
“também” no n° 3 do art., deve passar por se poderem conceber ou no situagdes em que a actividade ou coisa
perigosa beneficiem o comissdrio, ou sera o comitente que directamente responde (lembre-se que a responsabilidade
pelo risco se pode descrever como cuius commoda, eius incommoda), mas em que é também o exercicio da
comissdo que proporciona o risco de dano — isto se a responsabilidade do comitente se puder considerar pelo
risco, 0 que de modo algum é liquido, como teremos oportunidade de ver. Nao parece que o texto do n° 3 seja tao
explicito que impega qualquer das solugées.
(4) A afirmagao do texto nio é absolutamente segura; veja-se um exemplo: se a mora do devedor se
dever a uma avaria do seu automével que nao se lhe imputa em termos de ilicitude/culpa, ele ficara por isso sempre
desonerado?
ie PEDRO FERREIRA MURIAS }

era do principal vai, em termos facticos, ser cumprido, ou incumprido, pelo auxiliar,
por oposigéo ao que acontece no § 831, em que o dever de fiscalizar, superordenar
ou de alguma forma influenciar 0 agir alheio é, em todos os sentidos, cumprido ou
incumprido pelo seu titular. O comissdrio cumprira ou nao um dever préprio. Olhando
ao § 278, uma vez verificada a auséncia do comportamento esperado ao auxiliar,
inferimos logicamente que o dever do principal ficou objectivamente por cumprir.
Olhando ao § 831, a falta do comportamento que se espera do auxiliar/comissario nao
permite concluir necessariamente por qualquer incumprimento, objectivo ou também
subjectivo, do dever do principal (%°).
Facgamos ainda uma precisao. O art. 800° nao parece impedir que o auxiliar
esteja também a cumprir um dever préprio. Esta afirmacgao é relevante pois também
ele, ainda no 4mbito de uma obrigacao, podera ser obrigado a indemnizar, de acordo
com a opinido dominante, pelo menos se agir dolosamente, numa situacgdo configuravel
como abuso de direito. Como ja se disse, para quem defenda a absolutidade das
obrigacgGes em termos de oponibilidade a terceiros (©), ou seja, a “eficdcia externa das
obrigagées”, nao sera necessdrio recorrer 4 clausula geral do abuso de direito.
Voltando atrés um momento, e resumindo, temos, portanto, que, a partida, os
trechos normativos em estudo se afastariam nas suas previsdes em dois aspectos: por
um lado, pela obrigacionalidade ou nao da forma de responsabilidade em causa; por
outro, visto que, nos casos do art. 800° e seus congéneres de outros ordenamentos, é
forgoso que (pre)exista um dever do principal a ser cumprido/incumprido pelo auxiliar,
enquanto que no 4mbito do art. 500° é originariamente do preposto o dever por si (?”)
violado. O art. 800° parece pressupor o violar de uma obriga¢4o e que essa obrigacao
seja do principal. O art. 500°, primo conspecto, requer a inexist€ncia de uma obrigagao
e a violagdo de um dever que onera 0 preposto.
Ora, nao se esgota um universo dividindo-o em dois campos definidos cada um
por dois critérios cumulativos, o que é dizer que ha, pelo menos em termos ldégicos,
situagGes que nfo se enquadram nem na responsabilidade extra-obrigacional do comi-
tente nem na responsabilidade obrigacional do devedor (°8). Teremos de investigar a
sua existéncia e decidir qual dos respectivos regimes lhes cabe, quando nao um
terceiro, porventura hibrido, salvo se simplesmente for de recusar a responsabilizagao
do principal. Essa andlise permite determinar qual o vector decisivo entre os
assinalados e, nessa altura, verificar se estamos perante uma diferenca, que sera
valorativamente justificada, entre as formas de responsabilidade em que se tem
dividido este instituto civil, ou se, afinal, como afirmou PESSOA JORGE, nao estao em
causa preceitos correspondentes em cada um desses campos (9%), nao se encontrando,

(°5) Embora o possa fazer presumir: assim optou a lei alema por impor ao comitente o 6nus de provar
que agiu nos termos exigidos.
(°6) Faz-se uso, quanto a absolutidade, da distingio de MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigagées, Vol.
I, p. 256 e s., obra em que se defende a tese referida no texto.
(97) N&o se esquece que, nos direitos alemao e sufgo, entre outros, também o comitente hé-de ter agido
ilicitamente para que exista responsabilidade sua.
(98) A terminologia ser4 aqui falfvel, pois se ha devedor também haver4 obrigagao, pelo menos a um
primeiro olhar.
(9°) No trabalho que citamos, p. 139, o autor, que assume uma posigaéo monista moderada, nao prosse-
gue, contudo, no sentido da concluséo que apresentamos no texto.
[___A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E 0 ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL__ i
|

portanto, qualquer distingao de regime adequada a summa divisio tradicional a


propésito do dever de responder por facto de outrem.

2. Violagao de obrigacées préprias pelo comissaério

Se 0 comissdério celebrar um contrato no 4mbito da sua comissdo, as obriga¢gdes


dele decorrentes serao suas, do seu comitente, ou podem ocorrer ambas as situagGes?
S6 esta tltima resposta esta correcta, como é bom de ver pela prépria distingAo legal
entre mandato com e sem representacao (!™), Trate-se de um verdadeiro mandato, que
pode dar origem a uma relagado de comissio, nos termos do art. 500°(!9!), ou, p. ex.,
de uma relacado de trabalho subordinado, tudo permite que 0 comissério contraia
obrigagdes em nome préprio na execugaéo das suas incumbéncias ou que,
contrariamente, contrate em nome do comitente, conforme tenha ou nao poderes
representativos. Considere-se entéo 0 seguinte caso:
Agnelo é um rico coleccionador de antiguidades, conhecido no meio, que pretende
adquirir um qualquer objecto sem que se saiba ser ele 0 interessado, de modo a que o preco
nao se eleve as exorbitancias que muitas vezes Ihe pedem. Nesse sentido, ordena a Belmira,
sua empregada, que diligencie no sentido dessa aquisigao, devendo fazé-la em seu préprio nome
e sem que o do empregador alguma vez venha a baila. Carolina, a proprietdria, aceita alienar 0
bem em causa, mas nao sem que Belmira se obrigasse a prestar-lhe uma série de servicos. Esta,
culposamente, nao cumpre aquilo a que se obrigou, com prejufzos relevantes para a primeira (!92),

Mau grado a insercao sistematica do art. 500°, numa secgfo que, por contra-
ponto aos arts. 798° e s., trataria apenas a responsabilidade extracontratual ou extra-
-obrigacional, e a remissdo do art. 499° para as disposigées da responsabilidade por
actos ilicitos (“delituais”) (!°), a primeira reacgaéo nao pode deixar de ser no sentido
de conceder um crédito de indemnizag4o 4 lesada contra o comitente, tao flagrante é
o cabimento da hipdétese sub judice nos termos em que estd descrita a previsio deste
art. 500°.

(19) Cf. arts. 1178° e 1180°.


('°1) Visto que o mandatdrio deve obedecer As instrug¢des do mandante — art. 1161°, al. a). Nao se sustenta,
contudo, que todos os contratos de mandato déem origem a relagdes de comissao.
(1°?) Caso em tudo semelhante a este é 0 que apresenta NUNES DE CARVALHO (p. 97, (22); cf. também
p. 103), aplicando o art. 500° por ser 0 comissdério o devedor, ao contrério do que aconteceria se houvesse um
nexo de representagéo, que levaria a que o devedor fosse o “comitente” e que se devesse aplicar o art. 800°.
O autor, contudo, apresenta uma hipétese que diz mais respeito ao dever de prestar do que ao de indemnizar,
visto que afirma ficar o principal garante da obrigagao. Por outro lado, o autor ndo retira daf consequéncias
quanto ao enquadramento sistematico da responsabilidade do comitente, nfo hesitando em classificdé -la como extra-
-obrigacional (p. 87). Devemos dizer que nos surpreende que o exemplo dado, bastante simples mas talvez
dogmaticamente significativo, nio surja em estudos mais profundos, ou mais extensos, que tivemos oportunidade
de consultar.
(1°) Elementos que nado podem ser considerados de grande importancia, j4 que nao sé o argumento da
inserg4o sistematica é reconhecidamente fragil e a responsabilidade objectiva surge até no Cédigo com uma
subsecg4o auténoma, mas também por a responsabilidade por actos ilfcitos, hoc sensu, ser usada como modelo de
regulacdo para as restantes, como se vé por também do capitulo do incumprimento para ela se remeter — cf., art.
799°, n° 2.
PEDRO FERREIRA MURIAS ]

Uma ponderagao valorativa, por seu turno, vai confirmar esta ideia (!*): Quer
entendamos a responsabilidade do comitente como um caso de responsabilidade pelo
risco do beneficiario do agir alheio, quer como um imperativo de justig¢a por parecer
correcto ser ele a sofrer a insolvéncia de quem lhe é muito mais préximo do que ao
lesado (!%) e para si actua, quer, em ordenamentos estrangeiros, sujeitemos apenas o
comitente ao encargo de provar que nao agiu negligentemente a propésito do sucedido,
ha que aplicar aqui o respectivo regime, j4 que foi no exercicio da comissao que o
dano veio a acontecer, j4 que ele surge no normal desenvolvimento dessa comissifo,
i.e., jA que ela envolvia, em si, 0 perigo desse tipo de dano, e, para o direito estrangeiro,
ja que sera muito mais facil ao empregador demonstrar, p ex°®, que deu o tempo
necessario 4 empregada para que ela cumprisse aquilo a que, por suas ordens, se
obrigara, que fez o que lhe era exigivel para verificar ter ela agido dentro do que a
ordem juridica lhe impunha ou que escolheu para a tarefa quem dava garantias de um
comportamento honesto.
Nao se diga que, ao contratar com o preposto, neste género de situacdes, é
apenas nele que se deposita a confiang¢a no bom sucesso do programa obrigacional
estabelecido, nao merecendo, por isso, a contraparte qualquer outra tutela. A respon-
sabilidade do comitente nfo subjaz qualquer ideia de tutela da confianga (!%). Um
perfeito estranho quer ao comissdério quer ao comitente sera tutelado por esta figura
legal; seria absurdo que, por haver mais um factor que faga pender a solugao para o
lado do lesado, ele deixe de ter a protecgéo de que ja dispunha.
Soa também impréprio defender que nao faria sentido que o comitente
respondesse pela auséncia de um lucro, lucrum cessans, que a prépria comissdo tinha
possibilitado, visto que nao fora o contacto com o comissdrio e nao haveria sequer
contrato. E uma argumentacdo despropositada esta, que levaria até que o prdéprio
comissaério nao fosse responsdvel senio pelo chamado interesse contratual negativo,
e assim todos os devedores. A questo é mais grave, podia bem acontecer que o lesado
tivesse tido o mesmo ganho realizando um contrato semelhante com outra pessoa,
embora nao haja sequer que investigar este aspecto. Alias, ao credor do comissdario
podem sobrevir outros danos emergentes por forga do contrato.
O problema é de apreciag4o simples. Ha entre principal e ‘auxiliar’ uma relagd4o
que se enquadra de pleno no art. 500°, ou seja, ha uma comissdo, uma relagado de subor-
dinacgao. No exercicio dessa comissao, produzem-se danos para terceiros. O comis-
sdrio é por eles responsdvel, pois agiu ilicitamente e com culpa. Nao se afigura
defensavel fugir 4 estatuigao daquele preceito. O comitente deve indemnizar, nao tendo
qualquer relevo o facto de a responsabilidade do comissdrio ser obrigacional.
Por outro lado, o art. 800° nao da qualquer indicagao sobre o caso.

(194) E claro que ndo iremos além de uma demonstrag4o muito resumida, j4 que a melhor precisaio do
sentido desta disposigéo legal s6 sera feita na parte final do trabalho. Para uma apreciacdo das teses possfveis,
cf., por agora, MENEZES CORDEIRO, Direito das..., vol. Il, p. 376 e s., e EIKE SCHMIDT, p. 522 e s..
(195) Sobre o fundamento do art. 500°, cf infra. E de ANTUNES VARELA, vol. I, p. 641, esta segunda
construgao.
(1%) Cf. infra, na Gltima parte deste trabalho, mas adiante-se que naio se conhece quem defenda o contrario.
[ A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL

Dificilmente questiondvel a responsabilidade do comitente, temos de averiguar


se se trata verdadeiramente aqui de um caso de responsabilidade obrigacional e
contratual. A argumentag4o em contrdrio diria que nao existia qualquer relagdo entre
comitente e lesado que permitisse essa qualificagdo e consequente regime. Deve
assinalar-se, porém, que ja essa formulacgéo enferma do vicio metodolégico,
anteriormente apontado (!°7), de partir de um conceito, para mais de extensado vastis-
sima, para alcangar uma regulacgdo concreta. Certo seria, entéo, sustentar que nao havia
qualquer relagéo que permitisse aplicar aquele regime e consequente qualificagao.
Nem isto, contudo, pode passar. A responsabilidade do comitente é, em
Portugal, uma responsabilidade dependente, ou seja, que existe por existir uma outra,
a do preposto. Resulta daqui que o processo para determinar a responsabilidade do
comitente parte do momento em que é estabelecida a do comissdrio, subordi-
nando-se-lhe, nomeadamente, quanto ao seu objecto. Uma vez chegados a este ponto,
o regime nao é contratual/obrigacional nem o seu oposto, antes resulta do art. 500°.
Se se mantiver que a responsabilidade do comitente é extra-obrigacional, por
nao haver qualquer relagdo prévia com o lesado, estar-se-4 a admitir uma qualificagado
sem correspondéncia num contetido regulativo ou axiolégico, uma inutilidade meto-
dolégica e descritiva. O art. 500° pode determinar um dever de responder por ilicito
obrigacional.

Um apontamento (!°8), em jeito de curiosidade, para mostrar que esta solucao,


pelo menos no seu aspecto externo, nfo é nova para a ciéncia juridica: No direito
justinianeu, e no direito romano classico, este na medida em que 0 seu conhecimento
esta ao nosso alcance, as actiones adjecticiae qualitatis faziam 0 pater, 0 dominus e,
até, o “comitente” responder pelas obrigacdes contraidas pelos alieni juris ou pelos
comiss4rios quando lhes tivesse sido dado um pectilio que administrassem (!%). Salvo
andlise mais aprofundada, pensamos que a semelhanga nado vai, de facto, além da
exterioridade: na légica interna dessas acgdes é fundamental a falta de personalidade
juridica ou de capacidade de gozo das pessoas por quem se responde; na actio de in
rem verso, em especial, encontramos juizos materialmente idénticos aos que hoje
fazemos em sede de enriquecimento sem causa. Pouca ou nenhuma relacdo se encontra
com a responsabilidade do comitente dos dias de hoje.

('°7) Supra, p. 9, referindo-se as posicgdes nesse sentido de FRADA, p. 187 e s., MENEZES LEITAO, A
responsabilidade do gestor..., p. 292 e s., ¢ SINDE MONTEIRO, p. 509 € s.
(1%) Do que ficou dito nao se deve inferir que s6 perante a existéncia de um mandato ou de uma situagado
idéntica se pode admitir a responsabilidade obrigacional do comitente; nao é dificil conceber exemplos que mostrem
© contrario: Veja-se o caso dos danos que causar, “no exercicio da comiss4o0”, 0 empregado de uma sociedade
hoteleira incumbido de se oferecer como guia a “turistas” (contraindo obrigagdes nesse sentido, gratuita ou
onerosamente) com vista a publicitar tanto quanto possivel os servicos prestados pela sua empregadora. Se, do
incumprimento da sua actividade de guia, resultarem danos, p. ex®., por as contrapartes ficarem impossibilitadas
de conhecer a cidade em questo, h4 que chamar & colacio o art. 500°.
('%) Cf. o Livro XV do Digesto. JAIME DE GOUVEIA, p. 412, refere estas actiones a propésito da
responsabilidade do devedor por actos dos auxiliares, salientando o autor que as situagdes sao totalmente distintas
uma vez que no nosso direito sao do principal as obrigagées que fundam essa responsabilidade. EIKE SCHMIDT, a
propésito do § 278 BGB, semelhante ao nosso art. 800°, e contrapondo-o ao § 831 BGB, que, como dissemos,
funda na sua culpa o dever de indemnizar do comitente, fala numa adjectizische Haftung. 521.
PEDRO FERREIRA MURIAS ‘|

3. Auxiliares e “deveres de seguranc¢a no trafico”

Vimos ser possivel 0 comitente responder em sede obrigacional e contratual


pelo incumprimento por parte de um seu comissdrio de um dever que a este cabia. E
um indicio de que o fundamental na mutua delimitag4o dos arts. 500° e 800° nao é
tanto a obrigacionalidade/contratualidade da situagdo quanto a titularidade dos deveres
violados. Bem fragil seria esta afirmagao, contudo, se nao procurasse outras bases.
Cabe agora experimentar se o art. 800° pode dar a justificag4o positiva para solugdes
no campo “delitual”.
Considere-se 0 seguinte exemplo (!!°):
Admita-se que os proprietdrios de certos ediffcios tém o dever (!!!) de limpar todas as
manhas a neve gelada e escorregadia que se forme na zona fronteira a esses edificios, de modo
a evitar possiveis acidentes. Daniel, dono de um prédio nessas condicgées, acorda com Edmundo
que este tratard de limpar a neve do referido prédio, devendo fazé-lo da maneira que achar
preferivel (!!2), desde que o servico fique pronto a determinada hora. Edmundo era um sujeito
de confianga que ja tinha feito aquele trabalho outras vezes, mas, desta feita, desleixou-se,
ficando o servigo por acabar, o que levou a que um terceiro escorregasse e se magoasse,
pretendendo agora ser indemnizado por Daniel, j4 que Edmundo é uma pessoa sem recursos.

HECK, movendo-se no ordenamento alemdo, considera que, apesar de poder nao


haver qualquer culpa do “comitente” neste género de situagdes, em que os deveres
tém “um contetido completamente determinado e previsivel’, “nao é muito adequado”
que aquele possa “liberar-se com a prova da falta de culpa”, atendendo a que sao
muitas vezes empregados insolventes que cumprem esse dever (!!3). Devemos dar
continuidade a esse raciocinio e verificar que, no caso, aparenta ser indiferente a
existéncia ou nao de uma relagao de dependéncia e autoridade entre o principal e o
auxiliar. O que choca é que o inicialmente onerado possa “alijar as suas respon-
sabilidades”, passando a outros, de facto, o seu dever.
A jurisprudéncia alem4 construiu para situagdes como a destes proprietarios o
conceito de “deveres de seguranga no trafico” (Verkehrssicherungspflichten), unificados
na consideragéo de que quem domina uma fonte de perigo e dela se aproveita tem
também o dever de evitar que dela resultem danos para terceiros, dever distinto do
indiferenciado neminem laedere, simples exigéncia de absteng4o de condutas dano-
sas (!!4). Sao deveres especificos, mas que visam tutelar um nimero indeterminado

(110) Quanto sabemos, da autoria de HECK (apud VAZ SERRA, Responsabilidade contratual..., p. 154,
(71) e, ligeiramente diferente, p. 219), aqui apresentado com algumas alteragdes. O exemplo é dado por HECK e
por VAZ SERRA a propésito da responsabilidade do comitente.
(111) B indiferente que este dever seja legal ou apenas exista quando determinado por uma autoridade
administrativa.
('!2) Esta cldusula do acordo visa, obviamente, evitar que se possa divisar no caso uma relagao de
comissao. Podia esta cldusula ter sido feita de modo mais explicito, sem especial interesse. Se estivéssemos a tratar
com 0 direito alem4o, nem seria necess4rio preocuparmo-nos nos com esse aspecto, visto que, nao havendo alguma
culpa do comitente, este néo poderia ser responsabilizado.
(13) Apud VAz SERRA, op. cit., p. 154, n. 71.
('14) No Céd. Civ., exemplo desses deveres dio, entre outros, os arts. 491° a 493°. Cf. VOLLMER, p. 371,
SINDE MONTEIRO, p. 307 e s., FRADA, p. 163 e s., MENEZES CORDEIRO, Da boa fé ..., p. 831 e s..
A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL

de sujeitos. Mais do que uma categoria descritiva, construiu-se aqui uma teoria
susceptivel de fundar uma responsabilidade por omiss6es para além das hipdéteses
especificamente previstas na lei. S40 casos de responsabilidade extracontratual, como
é manifesto, mas temos de os considerar ainda deveres extra-obrigacionais, sob pena
de subvertermos o conceito de obrigacgao, que, pela relatividade das posigdes dos
intervenientes, acabava por poder ser usado como argumento para uma distingao das
responsabilidades, ainda que nao se revelasse, de modo algum, definitivo. (!!5) (1!)
O sentimento de injustiga de HECK em face da irresponsabilizacao dos titulares
originais destes deveres pela introdugao (Einschaltung) de terceiros a quem é cometida
a tarefa de tratar do seu cumprimento é partilhado por vasta doutrina e jurispru-
déncia (!!7).
Os casos seriam faceis de resolver se se considerassem estes terceiros auxiliares
no cumprimento (Erfiillungsgehilfen) nos termos do art. 800° ou nos do § 278 BGB.
Os tribunais superiores alemaes tém, contudo, recusado esta via, ja que falta aqui uma
relagdo prévia entre lesado e lesante que se assemelhe a relacdo contratual. Com
excepcio de VOLLMER e de BECKER (!!8), todos os autores consultados exigem
também, para aplicacao daquele preceito, a existéncia de, pelo menos, uma relagao
especial (Sonderverbindung), embora nao fundamentem desenvolvidamente a sua
posi¢ao. Diferente entendimento tém tido os tribunais de instancia.
Doutrina e jurisprudéncia recorreram ainda ao “argumento linguistico”, na
opiniao de VOLLMER (!!%), segundo o qual ocorreria nestes casos uma transmissdo
(Ubertragung) do dever, com a sua consequente aquisicAo pelo terceiro “introduzido”.
S6 se transmitiria, porém, o dever de tomar as concretas medidas de cuidado, e nao
também o dever de vigiar a fonte de perigo. Assim, pelo menos quanto aos resultados
praticos, as solugdes assemelhar-se-iam bastante as que se poderiam retirar, noutros
campos, do § 831 BGB.

('5) Cf. supra, na primeira parte deste trabalho.


(116) MENEZES CORDEIRO, Da boa fé..., p. 835, sustenta a qualificacgéo obrigacional destes deveres, mas
o problema parece estar antes numa desadequac4o entre a sua estrutura e fungdo e o regime que, pelo menos
aparentemente, lhes devia ser aplicado. Tenha-se em atengao que o autor faz ai equivaler obrigacao e dever
especifico. Prova de que ndo se trata de obrigagées é a inaplicabilidade, v.g., dos arts. 577° a 600°, 817° (este tido
por fundamental por varios autores — cf, supra, p. 4 e s.) a 830°, ou 837° a 873°. Por outro lado, se a preocupacao
maior é a distribuigdo do 6nus da prova, pode resolver-se 0 problema estendendo preceitos da drea delitual, como
os arts. 491° a 493° — assim, SINDE MONTEIRO, que os classifica como “direito delitual de pura 4gua”, p. 318
e s. en. 509, TEIXEIRA DE SOUSA, por seu turno (p. 325 e ss.), explica a inversdo do 6nus da prova nestes preceitos
legais por haver ai um concurso entre responsabilidade delitual e contratual, tese que enfrenta dificuldades, segundo
entendemos, quando o dever de vigiar, p. ex®., tenha origem legal.
(7) Segundo noticia de VOLLMER, p. 371.
(118) Este autor faz notar que o § 278 diz respeito ao Allgemeines Schuldrecht (“direito geral das
obrigacgdes” ou “direito geral do débito”) e nao ao direito obrigacional negocial, que o preceito nado estatui o dever
de indemnizar apenas por actos de auxiliares, mas também pelos dos representantes legais, e que os préprios créditos
indemnizat6rios (extracontratuais) poderao servir de base 4 sua aplicagéo (p. 515). O autor visa especialmente a
* possibilidade de reconduzir ao trecho legal em aprego a obrigacao de reparacao por parte do Estado (ou do “Quase-
-Estado”), estatuida em regras especificas, por violagao por um funciondrio de um dever de assisténcia
(Fiirsorgepflicht), bem como o dever de indemnizar dos notdrios por actos dos seus auxiliares. Note-se, todavia,
que esta critica do autor 4 doutrina dominante visa, precipuamente, pelo que percebemos, libertar o § 278 do campo
contratual, nio tanto do campo obrigacional.
('!9) Cf. p. 371. A breve exposic&o que fazemos sobre a discussdo deste problema na Alemanha baseia-
-se sobretudo na informagao fornecida pelas pp. iniciais do trabalho deste autor.
mil PEDRO FERREIRA MURIAS ]

VOLLMER procura fazer andlise menos formal, designadamente procurando


argumentos “dogmaticos e politico-legislativos” (dogmatisch und rechtspolitisch).
Assim, distingue o fim primdrio das normas em causa, impedir danos, do seu fim
secundario, fornecer um ponto de conexao (Ankniipfungspunkt) para uma imputa¢4o
de responsabilidade no caso de os danos efectivamente surgirem. O primeiro desses
fins podia ser prosseguido mesmo que se admitisse a transmissao do dever de tomar
as medidas, até porque, mantendo-se o dever de vigia ou fiscalizagao (Uberwachung),
em caso de necessidade, o dever principal regressaria ao anterior titular (!7°). O mesmo
nao se passaria com o fim secundario, pois o patriménio dos novos onerados podia
nao dar as menores garantias de ressarcimento aos potenciais lesados.
Quanto 4a inaplicabilidade do § 278 BGB no campo extracontratual, o autor
citado procura uma raz4o material que a sustente, encontrando-a no facto de, em seu
entender, as disposigdes dos §§ 275 e s. BGB estarem pensadas apenas para deveres
de prestacdo (e nao de protec¢4o) dirigidos 4 producgdo de um resultado de prestagao
objectivo (gegenstdndlicher Leistungserfolg) ('*'), enquanto que 0 neminem laedere
se esgota na imposicao de “deveres de comportamento”. Por serem deveres de
resultado se justificaria particularmente a tutela da confianga da contraparte. Os deveres
de seguranga, contudo, poderiam ter um contetido bem mais denso do que 0 neminem,
de que nao seriam mera concretizaga4o, podendo, por isso, ao menos nalguns casos,
levar a aplicagdo do préprio § 278, ao que poderia servir de apoio a solugao do § 836
BGB, idéntico ao nosso art. 492° — se se imp6e ai o 6nus da prova da culpa ao lesante,
€ porque este esta adstrito a um resultado determinado (!2).
Assinala-se ainda, no trabalho que se tem vindo a citar, o facto de a necessidade
de se limitar a eficdcia exoneratéria de responsabilidade, frequentemente sentida, estar
na base de algumas decisGes jurisprudenciais que, designadamente, apoiando-se na
intransmissibilidade do referido dever de vigilancia, chegam a solucdes de responsabi-
lidade verdadeiramente objectiva, sé que encoberta. E seria também esta necessidade
que estaria em grande parte subjacente aos manifestados desejos de, em alteragdo
legislativa, fazer igualar os § 831 e § 278 BGB, o que nao seduz especialmente este
autor (123).
Decisivo no seu estudo é o pensamento relativo a necessidade de uma
canalizagéo socialmente adequada dos danos, tendo em conta, nomeadamente, a
possibilidade de aquele a quem a responsabilidade é imputada recorrer aos mecanismos
da actividade seguradora, podendo eventualmente fazer repercutir o valor dos prémios
nos precos cobrados aos seus clientes. Para avaliar esta possibilidade de recurso aos
seguros, conta olhar, inclusive, a praxis dessa actividade. A final, vem o autor defender
uma ampla responsabilizagaéo do inicialmente onerado com os deveres de seguranga

(120) Esta eficdcia nao é consenténea com uma verdadeira transmisséo, mas esse é aspecto construtivo
sem relevo no quadro da argumentagao usada no estudo que temos vindo a citar.
(21) Sao os erfolgsbezogene Pflichten, deveres de resultado.
('22) VOLLMER, p. 372-374; cf também n. 21. Referimos esta relagdo entre 6nus da prova e deveres de
resultado na primeira parte deste trabalho — p. 12.
(123) Sobre este ponto, cf. a posigéo critica de EIKE SCHMIDT, p. 520 e s.
[___A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL

no trafego, quer pela referida ideia de “canalizagao” da responsabilidade, quer pela


admissao de deveres de seguranga de contetido reforgado (verschdrft), quer pela
conjugacao dos dois tépicos de argumentacao, quer, ainda, pelo entendimento de nesse
sentido se poder encontrar um principio geral no ordenamento alemao quanto a
actividades particularmente perigosas, plasmado em diversas previsOes especificas.
Recusa 0 autor a acusacdo de quebra da seguranca juridica que implicariam as suas
teses, de mais a mais incontorndveis se se quiser limitar a permisséo de uma
haftungsbefreiende Ubertragung dos deveres de seguranga no trafico com vista a uma
distribuicdo dos danos socialmente justa (!24),

A descrigao alongada, naturalmente em resumo, da construgéo de LOTHAR


VOLLMER parece justificada pelos varios elementos Uteis que nos pode fornecer: em
primeiro lugar, o reconhecimento de uma tendéncia mais ou menos generalizada para
objectivar a responsabilidade do inicialmente onerado com os deveres em causa;
depois, a dificuldade sentida no transporte para o direito delitual da previséo do § 278,
O que o autor nao subscreve, por atender apenas ao contetido mais ou menos dirigido
a um resultado (erfolgsbezogen) dos deveres; em terceiro lugar, mas néo menos
importante, a auséncia do recurso ao § 831 para tentar resolver este problema, o que
se justificara quer por este preceito exigir a culpa do principal, quer por exigir uma
relagéo de subordinagao, que nestes casos nado sera comum.
Sem desconsiderar a ideia de canalizag4o da responsabilidade, o relevo de trazer
para os t6picos argumentativos relativos 4 responsabilidade civil tudo 0 que toca aos
seguros e a importancia também nesta 4rea dos principios de justiga social que
informam 0 estado social de direito ('7>), estamos todavia convencidos de se poderem
solucionar os problemas sub judice antes de recorrer a estas tematicas.
A necessidade de limitar a chamada “transmissfo de deveres exoneratéria de
responsabilidade”
(!2°), faz-se sentir de igual modo nas 4reas contratual e extracon-
tratual. Nao pode resultar nenhum prejuizo para os sujeitos tutelados por esses deveres
da livre introdugao de terceiros no respectivo plano de cumprimento por quem por eles
esta onerado., Seria um fugir 4 responsabilidade agravado pela facilidade com que daria
azo a fraudes incontrolaveis.
No que nao podemos concordar com a andlise de VOLLMER € na restri¢ao desta
apreciacdo aos “deveres de resultado”, para usar uma terminologia mais afrance-
sada (!?7). O possivel relevo que a distingo entre “obrigagdes de meios” e “obrigacées
de resultado” tenha em sede de énus da prova nao é transponivel para a matéria da
responsabilidade por actos de auxiliares. O médico contratado que se faz substituir
por um colega responde perante o credor se ocorrerem danos que, se tivesse realizado
ele préprio a prestagdo, se veria obrigado a indemnizar. E essa é, sem ditivida, uma
obrigacdo de meios. Quem estiver obrigado a diligenciar perante outrem com vista a

(!24) Cf. p. 374-376.


('25) Sobre estas matérias, SOFIA GALVAO, esp. p. 34 e s., 43, (82).
(126) Que da titulo ao artigo de VOLLMER que citamos: Haftungsbefreiende Ubertragung von
Verkehrssicherungspflichten.
(!27) Cf. supra, p. 11, (55).
198 PEDRO FERREIRA MURIAS |

obter uma prestacgdo, decerto que ficara responsavel se um terceiro por ele incumbido
da tarefa nao a levar a bom porto por ser descuidado e negligente. Outra obrigacdo
de meios.
A tutela dos sujeitos protegidos por certas normas nao pode ser questionada
por essa distingao.
Por outro lado, a crenga optimista em que as caracteristicas definidoras do
regime de responsabilidade civil chamado contratual/obrigacional se podem reconduzir
a um fundamento comum nfo pode ser mantida acriticamente, antes exigindo uma
verificagao caso a caso. Se sao as obrigagdes de resultado que justificam a inversdo
do 6nus da prova, o que é duvidoso, nao se passa decerto 0 mesmo quanto a
responsabilidade por actos de auxiliares.
Defende-se, pois, a necessidade de sujeitar genericamente os onerados com
deveres de seguranga no trafico ao disposto no art. 800°.

Tenha-se presente que os resultados obtidos com a aplicagdo do art. 800° no


campo extracontratual nao seriam possiveis através do art. 500°. Este preceito
ofereceria duas ordens de dificuldades: Por um lado, de acordo com a quase totalidade
dos autores, a sua facti species inclui uma relagdo de subordinacao entre comitente e
comissdrio. ('78) Ora, essa subordinacgdo falha aqui facilmente, como se pdde ver no
primeiro exemplo dado sobre esta matéria ('°). Por outro lado, ainda que nao se
aceitasse a subordinagAo como essencial ao art. 500°, nunca poderiamos fugir a letra
da lei na medida em que determina, como condi¢g4o sine qua non da responsabilidade
do comitente, que recaia sobre 0 comissario o dever de indemnizar. Nao fazendo uso,
como fizemos, do art. 800°, os casos em que nao se pudesse considerar culposa quer
a introdugao do terceiro quer 0 seu comportamento, que se revelou danoso, teriamos
que a sua entrada no ambito do dever de seguranga, querida pelo onerado, reverteria
sem justificacdéo em prejuizo dos beneficidrios desse dever. (!°)
Nao tem sentido resolver os casos de deveres de seguranga no trafego em que
se introduz um auxiliar através do art. 500°, porque este faz depender a responsabili-
dade do onerado da responsabilidade do auxiliar introduzido. Na verdade, se o dever
nao é do auxiliar, é por referéncia ao onerado e nao aquele que se deve aferir se
o comportamento em causa é ou nao responsabilizador. E é este 0 pensamento do
art. 800°.
Admita-se que Nuno é dono de uma obra perigosa para os transeuntes, cuja seguranga
exige particulares cuidados. A dada altura, convém-lhe confiar essa seguranga a Q, sociedade
especializada na matéria. Nuno elabora um extenso relatério em que descreve as particularidades
da obra relevantes em termos de seguranga para terceiros. Um empregado seu entrega 0 relatério
a Q, embora, por caso fortuito ou por descuido do empregado, uma pagina se tivesse perdido.

(128) Cf., infra, p. 43, (205).


(129) Cf. supra, p. 24.
(13°) Nesta medida, nio podemos concordar com a afirmagio de MENEZES CORDEIRO, Da boa feé..., p.
637 e s., no sentido de que a necessidade verificada na Alemanha de estender a aplicagio do § 278 a 4reas proximas
do campo delitual (evidentemente, no pressuposto de que esta disposi¢do se destina, a priori, 4 responsabilidade
obrigacional/contratual) nao teria cabimento no nosso pais, j4 que os arts. 500° e 800° seriam, em esséncia, idénticos.
| A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL 199

A deficiente informagao de Q vem a dar origem a um acidente danoso para Ricardo, que nao
tem qualquer relagéo com a obra ou com Q. A ratio do art. 800° impde que nao corra por
Ricardo o risco que acabou por se concretizar, apesar de Q nao ser responsavel. Nuno deve
responder como se 0 nfo cumprimento do dever de seguranga a si se devesse. Se a perda da
folha de papel resultasse do descuido de um empregado, este nao responderia também, por forga
da falta de “causalidade adequada” entre a sua falha e 0 dano, i.e., por a norma por si infringida,
nao visar proteger a posicdo de terceiros como Ricardo (!3!)

O art. 492° do Céd. Civ. oferece pontos de reflexféo com marcado interesse:
Consagra este artigo um dever de seguranga no trafico para quem tiver o dominio de
uma obra implantada no solo. Trata-se, pois, de um dever de contetido legalmente
descrito — nao obstante alguma vaguidade do texto, o detentor tera de evitar que a
obra venha a ruir com danos para terceiros. E um dever individualizado, que onera o
dono ou possuidor de cada obra e nao, como é débvio, a generalidade das pessoas, ao
contrario do neminem laedere. Estabelece a lei uma presungao legal de “culpa” contra
o lesante, o que, na construg¢éo de VOLLMER, seria argumento significativo para a
aplicagao também do art. 800°. Para nés, pelo contrario, este preceito fornece a solugdo
juspositiva para os casos em apreco qualquer que seja o contetido dos deveres em causa
e de quem quer que seja o 6nus da prova relativa a culpa na sua violacgfo.
Paradoxalmente, 0 n° 2 do art. 492° determina que respondera “em lugar do
proprietério ou possuidor” quem por negocio juridico (ou, naturalmente, por forga da
lei) se obrigar a conservar o edificio ou obra, quando a falha respeite 4 sua
conservacao. O significado desse trecho legal nao é simples de alcangar.
Temos de comegar por verificar que os deveres de seguranga relativos a coisas
recaem sobre quem delas aproveita. Nesta ordem de ideias, se o proprietdrio aliena o
seu direito, o dever de seguranga correlativo transmite-se igualmente, nao respondendo
o anterior proprietario pelo comportamento ilicito do novo quanto 4 seguranga do
imével (!32). Se, em vez de vender a propriedade, se conceder um usufruto, a solucdo
é a mesma, nos termos do arts. 492°, n° 2, e 1472°, n° 1. As coisas tornam-se muito
menos nitidas no arrendamento e no comodato (!33). Ora, é para estes casos, em que
as utilidades da coisa s4o aproveitadas por terceiro, pelo menos directamente, mas
mantendo o proprietario ou possuidor em nome préprio um contacto mais ou menos
estreito com ela, que se admite que as partes regulem quem fica afinal encarregado
da seguranga de terceiros (154). S6 nestas situagdes se pode entender que a pessoa

(31) Nuno responde nos termos do art. 800°, conjugado com o art. 492°. Quanto a este tiltimo, hd, todavia,
que ter em conta 0 que segue no texto. Mostra da insuficiéncia da aplicagao do art. 500° em sede de deveres de
seguranga no trafego sao as situagdes empresariais (nao forgosamente societérias), em que pequenas falhas de per
si nio responsabilizadoras (cf. art. 487°/2) podem revelar-se danosas para terceiros. Admitir que o titular da empresa
nao respondesse nestes casos, seria de facto permitir-lhe exonerar-se dos seus deveres de seguranga. A referéncia
do art. 800° aos representantes legais aponta também para a sua aplicagdo nestes casos, j4 que muito dificilmente
reconduziriamos os pais ou tutores 4 categoria dos comissdrios, nos termos do art. 500°.
(132) Ha, portanto, aqui uma verdadeira transmisséo do dever; como vimos, argumentou-se que sempre
assim acontecia quando o onerado originariamente encarregava outrem do respectivo cumprimento, 0 que nado
pareceu entao aceitavel. Sdo opiniGes referidas por VOLLMER, p. 371.
(133) Cf. arts. 11°a 13° do R.A.U. e 1043° do Céd. Civ., por um lado, e 1135° do mesmo cédigo, por outro.
(134) Foi para os comodatérios e locatérios que VAZ SERRA, no Anteprojecto, pensou a referéncia a negécio
juridico que se manteve na versio final do céd. — Cf. Responsabilidade pelos danos causados por edificios ..,
p. 14 e 42. Argumento histérico a favor da tese defendida no texto.
PEDRO FERREIRA MURIAS

obrigada responda “em lugar do proprietario ou possuidor”, i.e., excluindo a respon-


sabilidade deste. Admitir que o proprietario que esta no pleno gozo das utilidades do
seu direito pode desonerar-se da responsabilidade relativa 4 seguranga de terceiros
perante essa coisa limitando-se a contratar alguém que trate do assunto é trair o
principio aflorado no art 800°.
Nao se esconda, de toda a maneira, que a solugdo permitida para a locac4o e
comodato representa j4 um desvio a este principio; desvio necessdario, todavia, pela
ligagao entre dominio e dever de seguranga (!35).

Estruturalmente idéntico aos deveres de seguranga no trafego é, no direito


alem4o, o dever imposto ao comitente de escolher, instruir e vigiar 0 seu comissario,
bem como o de lhe fornecer os instrumentos de trabalho adequados, de modo a evitar
interferéncias danosas na esfera de terceiros. E limitamos esta identidade ao aspecto
estrutural porque é duvidoso haver, no 4mbito de uma comiss4o, algum risco superior
ao risco geral da vida (!9°).
Esta identidade estrutural leva-nos a questionar a possibilidade da aplicagdo do
§ 278 ao (in)cumprimento por um auxiliar do dever que o § 831 impde ao comitente.
Esta é questéo rematadamente absurda para quem entenda que os dois preceitos em
causa representam solugées diferentes para o mesmo problema nos campos apartados
das responsabilidades obrigacional/contratual e delitual.
Comecemos por notar que o segundo pardgrafo do § 831 BGB ('3’) nao da
critério de solugéo. Apenas resulta dai que também a pessoa que substitui 0 principal
terdé o dever de indemnizar, demonstrando ser igualmente seu, perante potenciais
lesados, o dever de agir cuidadosamente na direcg4o da comiss4o ('°8). O problema
coloca-se precisamente nas hipéteses em que esse intermedidrio nao tem patrimdénio
suficiente para satisfazer o lesado, o que nfo sera raro.
Aqui, defende VAZ SERRA a responsabilizagdo do comitente, como tem
defendido alguma jurisprudéncia alema ('3°), pois o contrdrio levaria a privilegiar as
“empresas de capital poderoso”, com a agravante de que o empregado superior é
muitas vezes insolvente, ou quase, ndo podendo, afinal, o comitente, “por esse meio,
subtrair-se 4* responsabilidade em que incorreria se, na escolha dos empregados

('35) A este respeito, cf. SINDE MONTEIRO, p. 309 e s..


('36) Deixamos para depois a discussdo deste aspecto. EIKE SCHMIDT classifica o dever do comitente como
Verkehrssicherungspflicht, como dever de seguranga — p. 52, (69).
('37) “Na mesma responsabilidade incorre aquele que assume perante o dono do negécio (0 comitente)
por contrato uma das fungées indicadas no primeiro pardgrafo, segunda parte (escolher 0 comissdrio, fornecer-lhe
instrumentos de trabalho, dar-lhe instrugdes ou vigid-lo)”
('38) O que, como supomos, nao afasta o critério de demarcagao entre os arts. 500° e 800° que temos
vindo a testar, ou seja, de que neste ultimo preceito hé um dever do principal que é objectivamente violado pelo
auxiliar.
(139) Assim, 0 acérdao do Reichsgerichthof citado exemplificativamente por LARENZ / CANARIS, em que
0 tribunal nado invoca o § 278, mas faz realgar que o dever do comitente (no caso, uma comitente) fora violado
através do empregado intermédio, aduzindo argumentagao do tipo da que indicd4mos quanto 4 generalidade dos
Verkehrssicherungspflichten. Na opiniao daqueles autores (p. 483), o tribunal ficciona aqui um ilfcito da comitente,
num jufzo encobertamente contra legem. Seria “direito de juizes” (Richterrecht), que os autores nao aceitam.
Cf. infra, contudo, a posigio de LARENZ numa edicao anterior do seu Lehrbuch.
[___A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL

inferiores, procedesse negligentemente” (!4°). O autor nado invoca o § 278 BGB nem
disposi¢Ao ou principio correspondente para corroborar a sua posi¢ao, mas € manifesto
o paralelismo das situagdes e da argumentag4o, que se nos afigura inteiramente
procedente. Lembramos aqui a afirmac&o que VAZ SERRA cita noutro lugar ('*!) de
que, no direito francés, faltando disposigdo idéntica ao nosso art. 800°, essa regra era
aplicada, em sede contratual, sem que se notasse.
Esta é, para nés, a prova maior, até agora, da diferenga de planos dos §§ 278
e § 831 BGB e, com eles, dos arts. 500° e 800° do nosso Céd. Civ., apesar das
diferencas patentes entre os dois ordenamentos. Vé-se que, em certos casos, s6 a
conjuga¢4o dos dois preceitos pode sustentar um juizo de responsabilidade que parece
impor-se.

De regresso ao direito portugués, devemos apontar que as solugdes indicadas


sofrem de uma dificuldade acrescida. E que o art. 483°, n°2, manifesta uma intencdo
restritiva nitida relativamente 4 responsabilidade sem culpa (!42). Ora, os caminhos que
se seguiram levam precisamente a essa situacao.
Na4o nos parece que esta disposicao afaste as solugdes alcancadas. Em primeiro
lugar, quer a auséncia do termo “expressamente”, sempre mais significativo, quer a
proliferagao de casos de responsabilidade objectiva mostram nfo ter querido o legis-
lador uma taxatividade mas sim uma tipologia delimitativa destas previsdes (!4).
Impede-se, deste modo, 0 estabelecimento de casos de responsabilidade sem facto
ilicito culposo a partir dos principios deste ramo juridico, como o j4 mencionado ubi
commoda, mas admite-se a analogia perante a particular identidade entre um caso a
decidir e um caso regulado, Desta forma, a responsabilidade civil do produtor,
estabelecida no D.L. 383/89 de 6 de Dezembro, nao poderia resultar do direito anterior,
mas ja sera possivel estender o art. 800° aos casos estudados. Em segundo lugar, e é
manifesto, nédo parece que se tenham feito aplicagdes analégicas deste artigo, mas,
meras extensdes do seu teor textual ('44). Na verdade, é perfeitamente respeitado o
“minimo literal” do art. 9°, n° 2, do Céd. Civ.. Ha aqui um “devedor” e, se nao ha
um credor, é por se estender o artigo a casos em tudo idénticos salvo quanto a
inexisténcia de uma relacdo juridica em sentido estrito.

(14°) Responsabilidade contratual...., p. 169 e s.. Na nota 115-a da p. 168, refere VAZ SERRA a opiniado
manifestada por LARENZ na edigéo coeva do seu manual de direito das obrigagées, segundo a qual a
responsabilidade do comitente neste caso iria ao encontro do “sentimento juridico”, mas seria estranha ao BGB.
(141) Responsabilidade do devedor pelos factos dos auxiliares..., p. 260. E a opiniio de PLANIOL, RIPERT
E RADOUANT.
(42) O que é completamente diferente de dizer que esses casos sio excepcionais no direito portugués,
como o faz ANTUNES VARELA — Vol. I, p. 514. O simples facto de se poder falar no principio ubi commoda, ibi
incommoda nega essa excepcionalidade, entendida materialmente — cf., do mesmo autor, Vol. I, p. 629 e 640.
Falando em “rigido numerus clausus”, FRADA, p 207, (434). Sobre normas excepcionais em sentido formal e em
sentido material e sobre as particularidades da sua aplicacdo/interpretagao, veja-se OLIVEIRA ASCENSAO, p. 437 e s.
('43) Referindo que o principio é, no nosso sistema, o do tratamento idéntico de casos equivalentes,
OLIVEIRA ASCENSAO, p. 443.
(4) Argumentar que o art. 483°, n° 2, sé se aplicaria 4 responsabilidade extra-obrigacional nfo faria sen-
tido neste trabalho. Alias, estamos nesse campo... SCOGNAMIGLIO, Responsabilita per fatto altrui, p. 693, sustenta
nao haver razao para interpretar restritivamente os preceitos relativos 4 responsabilidade objectiva por facto alheio.
PEDRO FERREIRA MURIAS 7

4. Auxiliares e 0 neminem laedere. Outros casos.

O Ultimo passo da investigagdo sobre a identidade ou diferenga de planos das


disposigdes que nos tém vindo a ocupar passa por verificar se sdo concebiveis e se
ocorrem violacdes objectivas do dever geral de respeito ('49) que, mercé da exigéncia
de culpa no art. 483°, nado sejam imputdveis para efeitos de responsabilidade senao
através do art. 800°, mas que o sejam efectivamente.
Imaginemos o seguinte caso:
Amadeu prometeu pintar interiormente a casa de Bruno pelo valor x. Para demorar
menos tempo, pediu a Crist6vao, um amigo, também pintor experiente, que o ajudasse. Este,
num dos dias por que se estendeu o servic¢o, foi trabalhar embriagado, nao tendo usado os
cuidados devidos e sujando de tinta mobilias valiosas de Bruno.

Depois de algumas hesitagdes, parece hoje claro que este dever de cuidado que
se violou nao resulta do contrato, enquanto manifestagéo de autonomia privada, nem
se integra na prestacdo a que o devedor estava obrigado (!4°), Sendo, porém, um dano
“tipicamente conexo” com a execucio do contrato ('47), ou, noutro ponto de vista,
tendo sido causado no cumprimento da obrigacaéo, também por ele deve responder o
devedor, ex vi art. 800°. Adequa-se a solug4o ao texto legal e a ideia de que se o
devedor tinha de cumprir tomando certos cuidados, deve responder por as pessoas que
ele introduziu na relagdo obrigacional. nao os terem tomado, para prejuizo do credor.
Estes casos nfo sao, contudo, nada reveladores para o tema que nos ocupa, ja por se
assemelharem aos deveres de seguranga no trafico, que j4 observamos, com a agravante
de se situarem na proximidade de um contrato e/ou uma obrigacao, sendo, por isso,
menos significativo 0 seu tratamento 4 luz do art. 800°, j4 porque assim mesmo se
tem entendido haver aqui especiais deveres de protec¢do, distintos do neminem
laedere. (148)
Imagine-se agora, pelo contrario, que, no iltimo exemplo dado, o auxiliar furta
um objecto pertencente ao credor, ao dono da casa ('4%). Seguindo a terminologia
comum, com paralelo na responsabilidade do comitente (!°°), temos aqui um dano
produzido por ocasido do cumprimento que, na maioritdéria opinido da doutrina ('5!),

('45) O sempre citado neminem laedere ou alterum non laedere.


('46) Desenvolvidamente, FRADA, p. 55-114.
(147) Idem, p. 144 € s.
(148) Cf. FRADA, p. 164-183 e, em resumo, p. 183 e s. Fazendo uso, nestes casos, do § 278 do BGB,
MEDICUS, p. 155, e LARENZ, p. 302. Em Violagao positiva do contrato, p. 134, MENEZES CORDEIRO integra os
danos que transcendem o Ambito do contrato, como os chamados “danos subsequentes” (weiterfressende Schéiden),
na responsabilidade puramente delitual. Estes danos subsequentes sio comummente ligados aos deveres de
proteccao.
('49) Naturalmente, parte-se do principio de que o devedor nao violou nenhum dever de prudéncia ao
escolher aquele auxiliar, o que nos levaria para fora do 4mbito do art. 800°.
(59) Danos produzidos no exercicio contrapdem-se a danos produzidos por ocasido do exercicio da
comissao.
(51) LARENZ, p. 302; FIKENTSCHER, p. 330; ANTUNES VARELA, Vol. II, p. 99; ALMEIDA CosTA, p. 912
(1); MARIA VITORIA DA ROCHA, p. 96.
[___A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E 0 ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL

se deve reconduzir aos quadros gerais do “direito delitual” ('5*) e, em particular, nao
deve ser imputado ao devedor nos termos do art. 800°.
Na verdade, parece-nos manifesto nao haver, num caso de furto como este,
violagdo de dever algum que nao o neminem laedere, inalterado quer pelo contrato,
quer pelo “contacto” entre as partes, quer por algum outro dos tépicos recorrentes na
argumentacao juscivilista contemporadnea. O dever aqui incumprido pelo auxiliar nao
viu a sua matriz valorativa nem a sua estrutura alteradas; é idéntica a ilicitude que se
revela em furtar a um parceiro contratual, a um amigo ou a um estranho (153), Isto no
que toca ao dever violado — foi verdadeiramente e tao s6 o dever genérico de
abstengdo de acgées lesivas.
As observagées de alguns autores, contudo, poem em evidéncia que nao
podemos extrair imediatamente do que se disse a inaplicabilidade do art. 800° (!54) a
estas situagGes:
Chamam os autores a atencg4o para o facto de que, sem a relacdo debitéria
especial que se estabeleceu, ou, se se estiver no periodo da formagado dos contratos,
sem 0 contacto social que ultrapassa, em muito, os contactos casuais habituais, o
posteriormente lesado ndo teria aberto 0 circulo dos seus bens juridicos (Rechtsgiiter-
bereich) a accao do auxiliar. O devedor, por seu turno, é que deu ao auxiliar essa
possibilidade de lesar de que a principio sé ele dispunha (!>°),
Uma relagdo obrigacional, perspectivada ou existente (!°°), deu o impulso e a
ocasiao para o acto lesivo. Sem esta relagéo obrigacional, ou sem uma conexao
adequada entre ela e a agressdo aos bens alheios, cair-se-4 no campo delitual. EIKE
SCHMIDT da um exemplo de falta de conexfo adequada:
Um aprendiz de pintor dirige-se a casa de quem encomendou um servico ao seu
mestre e, por manusear descuidadamente a escada que levava, parte a janela dessa casa, sem
que soubesse, contudo, que ai morava o seu credor, por estarem trocados os ntimeros da
porta (157),

O fundamental nem sera este desconhecimento por parte do devedor, mas antes
o facto de que qualquer pessoa podia ter causado aquele dano. Alias, falta aqui uma
confianga especial do credor a tutelar.

(15?) Exprimindo um “simples risco geral da vida” (itdlico do autor), i.e., um “risco nado tipico e
sensivelmente agravado pela entrada numa relagdo contratual.” (FRADA, p. 154, (316) e p. 169, (355)).
(153) Pelo menos no que interessa ao direito civil. As coisas serao talvez de outra maneira em direito pe-
nal, mas os diferentes tipos escondem frequentemente quer especialidades ao nivel da ilicitude quer ao nivel da
propria culpa.
('54) Assim, entre os autores que citamos, EIKE SCHMIDT, p. 508 e s., MEDICUS, p. 157 e s., e, com
algumas hesitagdes, RIBEIRO DE FARIA, Vol. II, p. 44, (3), mas o préprio LARENZ da noticia de ser mais alargado
e crescente o numero de defensores desta posigao (loc. cit.). E interessante encontrarmos mais autores em defesa
da aplicagao do art. 800° ou do § 278 a estes casos, em que nao esté em causa sendo uma violagéo do neminem
laedere, do que nas hipéteses de incumprimento de deveres de seguranga no trafego, estruturalmente mais pr6ximos
das obrigagées. Passamos a descrever brevemente a posi¢do destes autores, na versio de EIKE SCHMIDT, que
apresenta uma argumenta¢gao mais extensa.
('55) MEDICUS, p. 158, sublinha este ponto, que temos também por fulcral.
(156) E de EIKE SCHMIDT esta afirmagiio (p. 508).
('57) P. 508, sendo o caso apreciado na p. seg..
PEDRO FERREIRA MURIAS 1

EIKE SCHMIDT acaba por chegar ao conceito de Bewahrungsgehilfe, auxiliar na


conservagao (158), diferente do auxiliar no cumprimento (Erfiillungsgehilfe), pois nao
se esta, seja por que critério for, nesse A4mbito. Ser o dano provocado por ocasiao do
cumprimento nao exclui a aplicabilidade do art. 800° ou do § 278 BGB, antes justifica
a responsabilidade no respeitante as lesdes da integridade.
A pergunta a fazer é sempre a seguinte: se tivesse 0 acto sido praticado pelo
devedor, ele responderia obrigacionalmente? Se sim, responde agora também pelo seu
auxiliar. E nao se diga que assim dispara 0 risco de responsabilidade para o devedor
Neste campo, 0 risco de um e a seguranga do outro: porqué correr pelo credor 0 risco
relativo 4 livre introdugdo do terceiro pela contraparte?
Assinala-se a existéncia de uma relacgéo de confianga entre credor e devedor.
E por ela existir que o credor abre a porta ao auxiliar (159). Determinante para
responsabilizar o devedor sera que o auxiliar tenha dado origem ao dano aproveitando
essa relacdo de confianga.
O critério, seguido pela doutrina maioritaria, dos “‘interesses ligados a relagao
contratual”, para determinar o quadro dos actos do auxiliar por que o devedor
responderia, iria excluir a responsabilidade do relojoeiro cujo aprendiz partisse um
relégio atirando-o, em ftiria, A cabega do seu mestre ('®), quando é patente que sem
a relacéo contratual nunca o aprendiz teria a possibilidade de tocar no relégio, quanto
mais de parti-lo.
Diz ainda EIKE SCHMIDT que, se 0 problema é a insolvéncia do lesante, correcto
serd que o devedor a suporte, pois foi ele que o trouxe a relagdo e tem um
relacionamento mais estreito com ele (!°).
Por nossa parte, frisamos o facto de ser o devedor que livremente insere os
auxiliares no 4mbito dos deveres que ele tinha para cumprir. Chame-se 4 colacado o
art. 767°, que s6 em casos limitados permite ao credor recusar a prestagdo apresentada
por terceiro. Ora, se um sujeito est4 assim constrangido a franquear a porta de acesso
aos seus bens, tem de ter a garantia de que quem 0 pos nessa situa¢gdo respondera pelo
que correr mal, tanto mais que esse agiu por sua escolha.
Nao concordamos é com 0 recurso ao principio da tutela da confianga que estes
autores fazem. Imagine-se 0 electricista encontrado nas “paginas amarelas” ou qualquer
prestador de servigos casualmente descoberto na imensidao de uma cidade moderna.
Que espécie de confianga é a deste credor, mais do que uma fic¢4o?
A confianga surge como um cripto-argumento muito em voga de ha uns tempos
para ca, visando ocultar dificuldades na fundamentaga4o de certas solugdes, porventura

(158) Locug&o que, embora expressiva, nao serd muito feliz na medida em que o auxiliar no o é na
conserva¢ao, antes a prejudicando. Pelo menos, nos casos apresentados, porque até facilmente se concebe um
auxiliar exclusivamente na conservagao.
(459) E elevada a importincia da relacao de confianga para EIKE SCHMIDT, que, em grande medida com
base nela, faz, mais a frente, o contraponto com a responsabilidade pelos actos dos representantes legais e com a
responsabilidade do comitente — p. 514 e s. e 520 e s., respectivamente.
('6) E 0 exemplo dado por EIKE SCHMIDT.
('61) Estas considerages sao tecidas da p. 508 a p. 511 no trabalho de SCHMIDT.
[__A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E 0 ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE ClVL_ |

correctas, mas que escapam aos canones mais tradicionais ('®*). Desempenha 0 mesmo
papel que, algumas décadas atrds, cabia as “declaragdes tacitas”, que permitiam o
permanente chamamento do principio da autonomia privada, trave mestra de
concepcgoes jusliberais que perduraram. Essas declaragdes ocorrem e sao a razao de
ser para algumas solucdes, mas é preciso que ocorram mesmo, nao podem ser
ficcionadas (193).
No nosso caso, 0 credor pode estar até completamente “de pé atras” com o
individuo com quem contratou, mas, se este violar o acordado, tera de indemnizar por
isso e, se for um seu auxiliar a fazé-lo, tera de indemnizar também. O credor ('®) é
que nao pode ver as suas garantias diminuidas por um acto livre do devedor. Ou, vendo
pelo outro lado, nada justifica que o devedor possa aliviar os seus encargos para
outrem (!65),
Observemos agora como isto se enquadra na delimitagao entre os arts. 500° e
800° que temos vindo a fazer: Os devedores estao adstritos nao s6 a este dever que
Ihes da o nome, em principio uma obrigagao, mas também ao dever geral de respeito
da pessoa e patrimoénio do credor. Acontece que nem todos tém oportunidade, de facto,
para violar esse dever no que toca aqueles bens; ou seja, para a generalidade dos
terceiros, existir ou nao o dever de respeitar certas posigGes juridicas activas do credor
é irrelevante, visto eles nao terem sequer a hipétese de fazer o contrario. Se tudo correr
nos termos contratualmente previstos ('%), quer dizer, se for o devedor a realizar, sem
recorrer a auxiliares, a prestagéo devida, bastard que ele aja como lhe impde o
ordenamento para que os interesses do credor 4 prestag4o e 4 conservacao fiquem
totalmente satisfeitos. Pelo contrario, se ele se usa de auxiliares, sera necessd4rio que
também eles (ou sé eles, se o devedor nao intervier facticamente) se comportem de
acordo com esses deveres para que o credor nao saia lesado. Ora, se foi o devedor
que livremente os introduziu, aumentando o leque de potenciais lesantes, fica
responsavel por eles. O credor é que nao pode ser prejudicado sujeitando-se a um risco
que outro criou. Tudo isto, nado obstante um dos deveres nao ser senéo 0 neminem
laedere referido a um conjunto determinado de bens.

('2) Critico relativamente aos exageros das teorias da confianga, cf. FRADA, p. 251 e s., pela ambiguidade
do conceito de confianga e por se esquecer, frequentemente, que a existéncia de uma situagdo juridica favordvel
pode dar origem a uma situagdo de confianga, e nao apenas o inverso, perdendo esta o seu relevo para fundamentar
a atribuigdo dessa posigao juridica.
('63) MOTA PINTO chama a atenc4o para estes falsos argumentos, exemplificando precisamente com as
“declarag6es tacitas” — p. 21 e s.. Curioso € que algumas das solugGes que assim se explicavam tinham o seu
fundamento verdadeiro na tutela da confianga (cf. p. 23). Progressivamente, foi este principio que ganhou foros
de cidade e prestigio, surgindo a apoiar solugdes que lhe sao, de facto, estranhas.
('64) *Credor”, se houver uma obrigac4o por perto; nado assim no caso dos deveres de seguran¢a no trafego,
ja vistos, cujos beneficidrios sio indeterminados
('6) Da argumentacgao apresentada, contestamos ainda, naturalmente, a necessidade de perguntar se o
devedor responderia obrigacionalmente (Nach Obligationsgesichtspunkten haften) estando no lugar do seu auxiliar.
Essa consideragao revela algum conceitualismo e pressupde um entendimento global destas matérias que no presente
trabalho precisamente se investiga.
('%) Tratando-se de uma obrigacdo contratual.
PEDRO FERREIRA MURIAS

Mais um vez, temos o art. 800° aplicado a uma responsabilidade que nao é
obrigacional nem contratual, mas antes concerne a violagdo do dever genérico de
respeito e de “direitos absolutos”, como o direito de propriedade, lesado com o furto.
E, contudo, um caso de responsabilidade em que o principal era titular do dever
objectivamente violado ('®’), s6 ele podendo cumpri-lo ou viold-lo, sendo por sua
vontade que o auxiliar ficou em idéntica situagao.
E claro que nao se pode dizer que haja uma auténtica situagdo de auxilio ou
de ajuda no cumprimento do dever negativo de no lesar; por isso também, alertou-se
que talvez nado se tratasse de uma aplicagao directa do art. 800°.
Nao restam ditividas, de toda a maneira, de que s4o as suas valoragdes que esto
em jogo. O preceito, atendendo 4a totalidade de sentido normativo que dele se pode
retirar, deverd ser formulado, doutrinariamente (!©8), de outra maneira: O onerado com
um dever responde pelos actos das pessoas a quem tenha dado a possibilidade de
prejudicar os fins visados ('®) com a sua instituigAo, como se tais actos fossem pratica-
dos pelo préprio. Quer seja lesado o “interesse de integridade” quer o “interesse na
prestagao”, o devedor, que devia respeitar ambos, tem de responder por aqueles a quem
possibilitou essa lesao
Esta fo6rmula, pese embora a ineficiéncia de todas as “férmulas”, permite fazer
realcar que a disposig4o estudada impGde ao devedor o dever de indemnizar ainda que
nunca tenha tido a intencao de “utilizar para o cumprimento da obrigagao” a pessoa
que causou a falta ou a imperfeigdo do cumprimento:
Se Manuel da a ver a Natércia, sua namorada, “para ela se entreter”’, 0 texto da tradugdo
que se obrigou a fazer, e esta, furiosa por nao ter a ateng4o que pretende, atira as folhas pela
janela do apartamento, num oitavo andar, numa noite de chuva e vendaval, provocando um
enorme atraso no cumprimento devido, Manuel nao pode furtar-se a indemnizar alegando que
nao teve culpa nenhuma e que a namorada nunca tivera comportamentos impulsivos do género.
O art. 800°, ou um dos seus irmaos gémeos estrangeiros, é o fundamento juspositivo desta
solugdo inquestionavel.

Nesta ordem de ideias, 0 art. 1044°, na sua parte final, consubstancia uma
concretizacao do art. 800°, devidamente interpretado (!7). Nao é 0 locador que deve
suportar 0 risco inerente a introdugao de terceiros pelo locatario no ambito da locagao.

('67) Sem embargo de que o auxiliar tinha idéntico dever.


(168) E de jure condendo, sem embargo de que as solugdes propostas sfo-no para o direito vigente.
('6) Ou os “interesses tutelados” ou os bens juridicos garantidos”. A primeira destas locugées peca,
porém, pelo seu esvaziamento ao longo do presente século, posteriormente 4 chamada “jurisprudéncia dos
interesses”; a segunda, pela ambiguidade que pode revelar: 0 bem juridico é 0 objecto do direito, € o préprio direito
ou é o valor subjacente 4 consagra¢ao desse direito?
(17°) Neste sentido, LARENZ, p. 300, a propésito do equivalente § 549, n° 3, BGB, relativo ao
arrendamento, mas aplicando directamente 0 § 278 noutras situagdes em que se concede o gozo de uma coisa.
Contra, FRADA, p. 217, e ANTUNES VARELA, II vol., p. 99, (2). Este autor assenta a sua afirmagao no facto de
nao haver aqui qualquer auxflio no cumprimento de uma obriga¢4o, o que é patente, mas nao significativo. O
anterior pretende que o art. 1044° é manifestagao de um principio de responsabilidade pelo préprio circulo de vida
(Lebensbereich). Tentamos refutar esse entendimento na ultima parte deste trabalho. ROMANO MARTINEZ, O Sub-
contrato, p. 137 e s., afasta a aplicagao do art. 1044° nos casos em que exista um subcontrato de locagdo, visto
este depender de consentimento do locador. E posig4o cuja defesa temos por dificil, visto que 0 consentimento do
[___A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL

Um outro exemplo: Oscar e Patricia sio comproprietérios de um armazém onde cada


um guarda mercadorias proprias. Oscar deve responder pelos danos que os empregados de uma
transportadora por ele contratada tenham causado nos bens de Patricia.

Esta solug4o nao depende de aceitarmos um dever especial de colaborag4o entre


os consortes, alids, bastante defensdvel (!7'), mas da singela consideragao de que, pela
natureza da situacdo ('72), ha um ntimero limitado de sujeitos capazes, de facto, de
atingir lesivamente os bens em causa e de que a extensao a terceiros daquela possibi-
lidade por iniciativa de um dos comproprietarios nao pode significar a diminui¢do das
garantias do seu parceiro. O art. 800° fornece-nos a base legal necessdria 4 decisao.
Prova final da desnecessidade de qualquer Sonderverbindung para fazer
funcionar o art. 800° sera, pensamos, 0 caso seguinte:
Rui pretende pregar uma partida 4 sua amiga Sabina fingindo apagar do computador
desta um texto que ela hé muito tempo laboriosamente prepara. Subtrai-lhe a chave de casa e,
nao podendo ou nao querendo 1a entrar pessoalmente, pede a Tiago, técnico de computadores
e pessoa da maior confianga — assim todos pensavam —, que o faga, entregando-lhe a chave.
Tiago, faz o que Rui lhe pedira, mas nao resiste a furtar um objecto de valor que estava em
casa de Sabina. Nao obstante se poder ver alguma ilicitude no comportamento de Rui, é 0 art.
800° que directamente funda a sua responsabilidade pelo sucedido, maxime se tivermos em conta
que ele tivera todos os cuidados imagindveis com vista a certificar-se da honestidade de Tiago.

Em face da clareza dos exemplos, mormente deste Ultimo, nio podemos deixar
de concluir, neste ponto, que o préprio neminem laedere, quando objectivamente
violado, pode dar azo a uma imputacgdo de responsabilidade por intermédio do art.
800°, mostrando a autonomia deste preceito perante as categorias da responsabilidade
obrigacional e contratual.

5. A regulacao positiva: conclusdes.

Neste momento, impG6e-se defender a tese de que, na nossa ordem juridica,


como noutras, nao se encontra uma diferenga de regime entre a responsabilidade
obrigacional/contratual e a responsabilidade delitual ao nivel dos chamados deveres
de responder por factos de auxiliares, Jato sensu. A presenga ou auséncia de um
contrato ou de uma obrigacao nao nos levou a optar pela aplicagio de um dos
normativos legais em detrimento do outro. Tanto o art. 500° quanto o art. 800° sao
aplicd4veis quer no campo obrigacional quer no extra-obrigacional. E a titularidade dos
deveres objectivamente violados que nos aponta a disposicAéo aplicdvel, nao podendo
estas ser postas no mesmo plano por quem queira comparar as responsabilidades
obrigacional e extra-obrigacional ou as responsabilidades contratual e extracontratual.

“credor” nao afasta, em geral, a aplicagio do art. 800°. O preceito do BGB acabado de referir é expresso em
responsabilizar 0 locatario pelos actos do sub-locatério ainda havendo consentimento do locador. No sentido que
defendemos, cf. ainda ANA PRATA, p. 717 € s..
('71) Mas também facilmente suprimivel, designadamente por acordo dos intervenientes. Nada se oporia,
pensamos, a validade de um negécio juridico nesse sentido.
('72) Da situagao concreta — nao se trata de uma decorréncia da comunhfo, que se pode desenvolver
no seio de uma total abertura a interveng6es externas.
wi PEDRO FERREIRA MURIAS

Tomamos, portanto, uma posicdo “monista de direito positivo” no que toca a


estes dois aspectos particulares do regime da responsabilidade civil, vistos pela
generalidade da doutrina como um s6, tratado diferentemente em cada um dos
campos. ('73) Nao nos classificamos desde j4 como “monistas radicais” apenas porque
falta comparar com mais ateng4o os fundamentos materiais, quer dizer, a axiologia
de cada uma das figuras, 0 que se tenta fazer em seguida.
Nao se conclua do que dissemos que temos por globalmente errada a
contraposic¢ao das duas formas de responsabilidade. Ha argumentos que, 4 partida,
permitem defender tanto uma posig4o como a outra, nao cabendo aqui aprecia-los .
Na responsabilidade do comitente por actos do comissaério e na responsabili-
dade do devedor ('74) por actos de terceiros por ele introduzidos no 4mbito do seu
dever ('75) é que nao se encontram diferengas de regime correspondentes 4 tradicional
divisio, pois cada uma das figuras € comum aos dois hemisférios.

O enquadramento dogmatico

1. Responsabilidade por factos de auxiliares

Ja abord4mos construgées, designadamente a de EIKE SCHMIDT, que apontam


0 principio da tutela da confianga como fundamento para a chamada responsabilidade
do devedor (obrigacional) pelos actos dos seus auxiliares no cumprimento ou, contra
a maioria da doutrina, por ocasiao do cumprimento. O credor confiaria num certo
desempenho conforme por parte do devedor que o faria esperar igual comportamento
por parte dos auxiliares que este utilizasse. Nao correspondendo o actuar dos auxiliares
a essa confianga, o credor mereceria ser ressarcido por aquele a quem a sua confianga
se imputava, i.e., o devedor (17°),
Esta tese permite diferenciar 0 regime aplicdvel aos actos praticados por
auxiliares, por um lado, e por representantes legais ('7”), pelo outro. No caso destes
ultimos, a confianga nao se depositaria no devedor, no seu desempenho, seria ficcioso
afirmd-lo. Pelo, contrario, fundar-se-ia no préprio representante, devendo este, alias,
responder pessoalmente em caso de quebra da confianga nele depositada (!78).

('73) Esta afirmagdo nao é rigorosa se notarmos que sao varios os trabalhos que sé estudam um dos
aspectos, o que seria estranho se eles fossem realmente correspondentes: assim os estudos de SOFIA GALVAO e
NUNES DE CARVALHO.
('74) No sentido de onerado com um dever qualquer, nao s6 uma obrigacao.
('75) Naturalmente que nao faz sentido falarmos, restritivamente, em auxiliares.
(75) PINTO MONTEIRO, p. 262 acolhe este entendimento, tal como MARIA VITORIA DA ROCHA, p. 80,
embora a autora o acompanhe com outras ordens de consideragdes, que apreciamos de seguida.
('71) E unadnime a equiparagdo dos representantes voluntdrios aos auxiliares.
(178) A tese da responsabilidade prépria do representante, bastante bem sucedida, foi tratada por
BALLERSTEDT, no trabalho que citamos. A doutrina posterior (cf., p. ex°., EIKE SCHMIDT, p. 518) cita-o como marco
fundamental no desenvolvimento da teoria da responsabilidade pela confianga, a que aquele autor dé a maior
importéncia
— veja-se, p. ex°®, p. 506 e s.. BALLERSTEDT (p. 525 e s.) e EIKE SCHMIDT (loc.cit.) excluem a
responsabilidade do representado legal por s6 no representante se fundar a confianga da contraparte. Note-se que,
ao contrério de EIKE SCHMIDT, BALLERSTEDT nao funda na confianga o § 278, mas apenas a relacdo pré-negocial.
[___A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL (|

Repetindo um pouco o que se disse ('7%), nfo se contesta, como é ébvio, o


relevo da confianga no direito das obriga¢gG6es e no direito privado em geral. Nao esta
igualmente em causa discutir a responsabilidade propria do representante. Nega-se é
que a confianga possa ser invocada para justificar que o devedor responda pelos seus
auxiliares. A argumentacdo transforma-se em cripto-argumentagdo (!8°), como se
referiu antes, se atentarmos na “regra do anonimato” que rege em muitos aspectos as
relagdes sociais nos meios urbanos modernos. Ou ainda se tivermos em conta que as
solugdes nao mudam se as partes forem absolutamente estranhas uma 4 outra, ou se
se tratar de obrigagGes nao negociais, em que a presenga de uma relacao de confianga
é contingente e irrelevante. Ou, por Ultimo, que é necessdria uma restri¢4o a “trans-
missaéo de deveres de segurancga no trafego que desresponsabilize o seu titular
origindrio” (!8!), sendo manifesto que os potenciais lesados podem nem saber quem é
0 sujeito assim onerado (!82),
Nao se pode aceitar esta tentativa de fundamentag4o e, por isso, vé-se com
grandes reservas a tentativa de limitar a responsabilidade do devedor pelos actos dos
seus representantes ao 4mbito do incumprimento da prestagdo e ja nao as lesdes do
interesse de integridade do credor, desenvolvida com base no dever de responder
aut6nomo daqueles (!83). Na verdade, parece-nos que a responsabilidade por facto de
representantes legais nado se separa tanto quanto parece da que respeita aos auxiliares
proprio sensu, embora este tema mereca uma atengd4o que nao lhe podemos aqui
dedicar.
Em primeiro lugar, a responsabilidade do representante nao exclui logicamente
a do representado, como a do auxiliar nfo exclui a do devedor e vice-versa. Depois,
tendemos a distinguir nos actos do representante aqueles que se consubstanciam em
declaragdes de vontade, negociais ou nao, que, por serem ilicitos, nio deixam de ser
imputados ao representado, por forga do art. 258°, e outros actos, em que o repre-
sentante se apresenta como um qualquer auxiliar do devedor, por ele escolhido. Aqui,
quem escolhe € 0 representante, mas essa escolha é ela prépria imputada ao incapaz.
J& houve igualmente ocasiado para impugnar a tese (!*4), sufragada por VOLLMER,
de que o fundamento ou um dos fundamentos da disposi¢4o legal em andlise é terem
os deveres em causa um contetido reforgado por se definirem em fungéo de um
resultado e nao de uma mera actividade. Uma vez determinado 0 que se exige,
independentemente da referéncia a um resultado pretendido, o onerado tera de
responder se o terceiro de quem, por escolha do principal, depender o cumprimento,
hoc sensu, prestar menos ou pior do que o devido.

('79) Supra, p. 39.


('8°) Para usar a terminologia expressiva de MOTA PINTO, p. 21 e s.
('8!) Cf. VOLLMER e supra p. 27 € s..
('82) Para mais algumas criticas, cf. FRADA (p. 251 e s.) e o que descrevemos da posicao deste autor
supra, p. 34, (162).
(183) Cf. EIKE SCHMIDT, p. 517 e s. Pelo contrério, no sentido do texto, LARENZ, p. 114 (sobretudo,
n. 32).
(184) Supra, p. 27.
PEDRO FERREIRA MURIAS |

Uma ideia de responsabilidade pelo préprio “circulo de vida” (Lebensbereich),


i.e., por tudo o que se encontra na esfera prépria de conhecimento e influéncia, na
esteira de BAUR ('85), parece-nos ser de rejeitar na totalidade: pense-se nos elementos
que, para além de perigosos para terceiros, o que nem é exigido por esta teoria,
representam ainda uma pena ou um fardo para aquele em cujo “circulo de vida” se
integram, como sejam os doentes mentais; olhe-se aos danos provocados por coisas
que s6 casual e involuntaria-mente se integram num e nao noutro “circulo”, nomea-
damente por terem sido escolhidas sem critério entre muitas exteriormente iguais;
compare-se com a légica intrinseca do res domino suo perit. Soa a arbitrariedade e a
individualismo exarcebado.
Nao é ainda correcto fundar o dispositivo em estudo no beneficio que o devedor
tera ao alargar as suas possibilidades de acgdo e, assim, de lucro, com a divisao do
trabalho (8°), Estaria o caminho aberto para a reducao teleoldgica nas hipéteses em
que assim nao sucede (!8’), fazendo correr pelos beneficidrios do dever,
incompreensivelmente, 0 risco inerente 4 livre introdugdo do terceiro. S6 nao seria
assim, possivelmente, se se alargasse o conceito de lucro ao de utilidade e se
subjectivasse esta. Nesse momento, porém, terfamos caido no jogo de palavras, pois
basta entao dizer que o preceito sé é aplicavel se a intervencado do terceiro for querida
pelo devedor (!88), 0 que nao é verdadeiramente discutido ('8°), mas nao é também

(185) Apud EIKE SCHMIDT, p. 523 e s.. Cf. FRADA, p. 208 e 216 e€ s., que cré subjazer este pensamento
ao art. 1044°, reconhecendo embora, com SCHMIDT, que, num desenvolvimento coerente, se teria de chegar a uma
responsabilidade por facto de coisas, p. ex®.. EIKE SCHMIDT nega que este “principio” tenha encontrado acolhimento
nas disposigdes legais que BAUR indica. Quanto a responsabilidade por facto de coisas, admitimos, em coeréncia,
que o entendimento do art. 800° que propugnamos 14 conduzira, provavelmente, quando as coisas que derem origem
aos danos tenham sido espontaneamente introduzidas pelo onerado. Encontramos facilmente exemplos, como seria
o do guarda que se fizesse substituir ou acompanhar por um cao. Este ponto, contudo, nao nos interessa
especialmente visto pretendermos apenas comparar o regime da responsabilidade do comitente com o da do devedor,
lato sensu, pelos actos dos seus “auxiliares”, nem infirma qualquer das conclusdes sugeridas. MARIA VITORIA DA
ROCHA (p. 84, (145)) estende o art. 800° aos “auxiliares electrénicos”, na sequéncia de alguma doutrina alema
que cita.
(186) E a posicio de LARENZ (p. 297), que o préprio tem por insuficiente nalguns casos (p. 300), e de
FIKENTSCHER (p. 327 e 331). BECKER, citando VON CAEMMERER, justifica o § 278 por se aproveitar (sich bedienen)
o devedor das “possibilidades da divisdéo do trabalho”, mas junta outros elementos, como a possibilidade de escolha,
vigia e substituigéo do auxiliar pelo devedor ou o conhecimento que este tem do interior da sua empresa (ao
contrario do credor). Também MARIA VITORIA DA ROCHA (p. 81) acolhe este entendimento, em paralelo com outros
elementos de fundamentagao, reconduzindo-o ao ubi commoda, ibi incommoda.
('87) P. ex®., no caso de ser o auxiliar o especialista cuja intervengao é necessdria, no de o seu chamamento
ter sido feito em suposto beneficio do credor, no de o devedor se ter limitado a fazer uma “troca” de tarefas com
0 terceiro, no de o devedor se ter obrigado por incumbéncia de quem vai agir como auxiliar, em muitos negécios
gratuitos ou, last but not least, quando o terceiro introduzido nao é um auxiliar em sentido préprio — considere-
-se © art. 1044° ou os exemplos dados na p. 40.
('88) Implicando por isso liberdade de optar. Recusando a qualificagéo de auxiliar ou a aplicagio do
preceito quando o devedor se tenha de recorrer da intervencao de terceiros que monopolizem certas actividades,
FIKENTSCHER, p. 329. Em idéntico sentido, embora dubitativamente, LARENZ, p. 299. Em sentido contrdrio,
MEDICUS, p. 157.
(!89) Criam-nos dtividas os casos em que o onerado nao permite a intervengaéo, mas nao toma também
medidas que a impegam, em algo de semelhante, no campo da ilicitude, 4 negligéncia. A vontade nao deixa, todavia,
de estar aqui presente.
A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL aii

bastante. HA muitas decisdes que, livremente tomadas, se vém a revelar danosas para
terceiros e que, por serem licitas (1%), nunca darao lugar a indemnizagao.
Resumindo, a construgao que acabamos de referir nao claudica por ilogicidade,
mas sim por insuficiéncia. Capaz de justificar a solugéo de muitos casos, nao o
consegue noutros tantos.
Indtil é, por ultimo, a referéncia ao “mercado” e as suas exigéncias ou a uma
“necessidade funcional do trafico negocial” ('9'). Falha a justificagéo # que se
aproxima, no substancial, da anterior 2 néo s6 por serem inimeros os negécios alheios
ao mercado, como € 0 caso de grande parte dos gratuitos ('9), mas também por o
regime nao variar sequer quando se trate de obrigagdes com fonte diversa, nado falando
ja nas situagGes, exteriores ao campo obrigacional, dos deveres de seguranga no trafico.

As limitagées postas pela lei ao “devedor” que pretenda exonerar-se dos seus
deveres ou fazer perigar os fins de alguns deles através da intervencdo de terceiros
sio inimeras. Assim, entre muitas, as restrigdes 4 transmissdo de dividas (595°, n°s 1
e 2), A prépria cess4o da posicdo contratual (art. 424°, n° 1), 4 concessAo a terceiros
do gozo de coisas alheias (art. 1038°, al. f), ou 1135°, al. f), por exemplo). Parece que
se integra neste grupo o art. 800°, como o 1044°, que o concretiza (!95).
Determinante é 0 contetido material que subjaz a toda a atribuigao de um dever.
Reconhece-se aqui uma andlise estrutural de situag6es juridicas que nao se reconduz,
a primeira vista, a uma ponderagaéo axioldégica. A estrutura, no entanto, reflecte
valoragdes, ou, se preferirmos, diga-se que a estrutura nao pode ser irrelevante na
solugdo do caso, qualquer que seja a ponderagao valorativa subjacente. (!%*)
Quando o ordenamento comina um dever — qualquer dever — prossegue certas
finalidades, i.e., pressup6e que o respectivo cumprimento resulta necessdria ou
provavel-mente valioso, segundo os seus critérios. Entendendo permitir, o que nem
sempre sucede, que o atingir dessas finalidades dependa também do agir de terceiros,
quando o onerado assim quiser, a Ordem Juridica nao abdica perante este, por
principio, do que obteria se fosse apenas ele a cumprir. Se virmos que essas
“finalidades” tutelam determinados (ou indeterminados) sujeitos, temos que o Direito

(19°) Como € 0 caso do uso de auxiliares — art. 767°, n° 1.


(191) FRADA, p. 279 € s., trazendo ainda ao discurso 0 conceito de risco de empresa, notoriamente utilizdvel
apenas em situagdes limitadas. Note-se que este autor procura um fundamento para a aplicagao do “regime da
responsabilidade contratual”, designadamente o art. 800°, aos deveres de protecgfo, mas nfo parece defender que
nas situagdes por natureza contratuais e/ou obrigacionais a justificagéo tivesse de mudar. Na p. 212, o autor,
justificando apenas o regime do art. 800°, entre variados argumentos, invoca o trafico negocial e a moderna
omnipresente divisaéo e especializagao do trabalho.
('92) Embora nao todos, o que se reconhece.
(1%) Jé o art. 1444° resulta de valoragdes mais complexas, mercé, designadamente, de um cardcter
moderadamente intuitu personae do usufruto (cf. também os arts. 1476°, n° 1, a) e 1443°, 1° parte). O art. 571°
resulta de um raciocinio paralelo ao do texto, como se cada um tivesse o dever de nao se causar danos, sobretudo
porque, pelos mecanismos da responsabilidade, os danos préprios podem resultar em prejuizo de terceiros. Note-se
a expressdo legal, alids consagrada: “culpa”.
(194) P. ex®., a existéncia de um dever (elemento estrutural) € condig4o sine qua non e fundamento para
que certa ac¢do (0 seu incumprimento) dé origem a obrigagao de indemnizar, nos termos do art. 798° ou mesmo
do art. 483°. Atrevemo-nos a sustentar que as regras gerais respeitantes 4 transmissdo, ao cumprimento e
incumprimento ou a extin¢do das obrigagdes, designadamente a maioria dos arts. 577° a 600° e 762° a 873°, tém
como pressuposto e fundamento a presenga de situacGes juridicas com uma configuracgdo determinada.
PEDRO FERREIRA MURIAS
co]
~~

nfo aceita que estes percam garantias por acto livre do titular do dever. Isto é
geralmente reconhecido pelos autores (!95), criticando nés unicamente a alguns deles
juntarem fundamentagées desneces-sdrias que toldam a clareza do principio.
Numa formulacdo diversa, mas idéntica em substancia, veja-se que, sempre que
existe um dever, a obtencgdo das finalidades visadas pelo ordenamento depende de
elementos submetidos ao controlo (!9°) do onerado, em especial as suas acgées, e de
outros que Ihe escapam. Como decidir se o devedor espontaneamente aumentar o
numero de elementos que nao pode dominar? Ao Direito seria possivel simplesmente
considerar ilifcito este comportamento, mas essa solucdo geraria 2 é manifesto 2
dificuldades praticas intransponiveis, indesejaveis e, até, incompativeis com principios
fundamentais ou com as situagdes de facto subjacentes 4 imposicgao de alguns deveres.
A outra solugdo é dar ao nao cumprimento, Jato sensu, originado por esses
novos elementos um tratamento idéntico ao que surgiria se se mantivesse o dominio
do devedor. O risco tedrico associado a perda pelo devedor do controlo de certa
situagdo cabe, necessariamente, a quem quis que ela (a perda) ocorresse 2 o préprio
devedor. (!97)
Como se deixou antes entender, a fundamentacgao preconizada nao nega algum
valor 4 referéncia ao “beneficio do devedor na divisdo do trabalho”. Como se viu ('%8),
todavia, é manifesta a insuficiéncia desta construgd4o. Pretendemos frisar que decisivo
nao € o beneficio do devedor com a utilizag4o do auxiliar, mas, mais amplamente, a
sua liberdade na introdugéo de um elemento que nao domina.

2. Confronto dos institutos

Tudo o que toca a fundamentar o art. 500° é bem mais dificil. Nao assim nos
paises em que ele se reconduz 4 imputacio por culpa ao comitente (1%).
Revelar-se-ia ainda simples a tarefa se o preceito se aplicasse apenas a
actividades em si mesmas perigosas, sendo até admissivel dizer que a separacgdo entre
o dono da actividade e 0 seu executante poderia aumentar o seu perigo intrinseco pelas
contingéncias préprias da comunicagao a estabelecer entre os dois (7°). Ai, caberia

('95) P. ex®., ANTUNES VARELA, Vol. II, p. 98., embora numa linguagem pensada apenas para o campo
obrigacional. PINTO MONTEIRO, p. 262, dé antes a entender que é o devedor que nao pode ser beneficiado pela
introdugdo de terceiros.
(!%) Prefere-se aqui o francesismo.
(!97) Quanto a introdugao de outros elementos de “risco” que nao os auxiliares, veja-se, supra, nota 185.
Defende-se uma fundamentacéo comum para toda a responsabilidade por actos de auxiliares, ou melhor, de teceiros
introduzidos pelo onerado no Ambito do seu dever. Nao se nega, contudo, que, para certos efeitos, como os do
n° 2 do art. 800°, seja defensdvel uma distingdo entre diferentes categorias de auxiliares. Cf. PINTO MONTEIRO,
p. 275 e s., diferenciando conforme o auxiliar se integre ou nao no circulo de actividade do devedor, conforme o
auxiliar lhe esteja ou nao subordinado.
(198) Supra, nota 187, e o texto correspondente (p. 40).
('9) Tornam-se-nos, logo, intiteis os elementos arrolados com vista 4 fundamentagio do § 831 do BGB.
Veja-se LARENZ / CANARIS, p. 475 ¢ s..
(290) Pensamos que a questao da auséncia de uma elevagdo do risco nas situagdes recondutiveis a uma
comissao tem também relevo onde vigora a responsabilidade subjectiva do comitente, apesar de ser ai mais simples
| A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL 243

plenamente a formulagdo tipica que subjaz as previsdes de “responsabilidade pelo


risco” (29!): Quem se aproveita de um bem ou de uma actividade perigosa tem de
suportar os danos que dela advém para terceiros. Ubi commoda, ibi incommoda.
Assinale-se, naturalmente, que esta ideia de pertencer ao comitente a actividade do
comissaério implica que este a dirija ou que seja o comitente a trazer 0 comissdrio a
actividade. Nesta segunda hipétese, contudo, os deveres de cuidado do principal terao
de ser cumpridos (também) pelo terceiro, devendo portanto ser apreciados a luz do
art. 800° os danos que este cause. Nao se podera assim fugir 4 exigéncia de uma
relagdo de subordinag4o entre os dois nos restantes casos.
Nasceré nas dificuldades de comunicacgdo referidas 0 chamado “risco de
empresa” (797), acrescido pela provavel adigéo das pequenas e imperceptiveis falhas
de cada um e dos riscos isoladamente insignificantes dos diversos bens — as préprias
maquinas e matérias primas sirvam de exemplo — no sentido de originar um facto
lesivo de terceiros. Assim se desenvolveu no direito ptblico a culpa de servico,
geradora de responsabilidade. Neste caso, como no anterior, seja responsdvel quem
beneficia com os riscos. Ora, esta ideia de “risco de empresa”, capaz de nos levar de
novo ao campo da responsabilidade pelo risco propriamente dita, nado consegue
fundamentar o dever de indemnizar do comitente nos muitos casos em que 0 art. 500°
fornece positivamente o critério decis6rio sem que qualquer empresa exista. Dai a
insuficiéncia da recondugaéo da responsabilidade do comitente 4 dogmatica do risco.
Na tentativa de fundamentar este preceito legal, teria cabimento invocar a ideia
de canalizagdo da responsabilidade, que faz entrar em linha de conta, por exemplo,
com o facto de alguns dos potenciais responsdveis terem maior facilidade em recorrer
a seguros que cubram os seus riscos de responsabilidade ou com o de outros poderem
repercutir nos clientes, como um qualquer custo, os montantes pagos em indemni-
zagdes ou em prémios do seguro (793). Acontece que os casos susceptiveis de serem
valorados a esta luz ja justificariam uma imputagdo pelo risco, por se tratar de
empresas ou de actividades intrinsecamente perigosas. Alids, se nao houver uma
perigosidade que permita falar em riscos tipicos, o préprio recurso aos seguros fica
dificultado quando nfo se torne irrealista, pelo que esta fundamentagao nfo é ainda
plenamente satisfatoria.

encontrar uma adequagao entre os textos legais e a fundamenta¢4o subjacente: faz sentido impor cuidado na escolha
do comissario (culpa in eligendo) quando a sua entrada para o servigo do comitente no origina um maior perigo?
Talvez se deva restringir este dever para as comissdes no 4mbito de actividades em si perigosas. O mesmo nao se
pode dizer dos deveres de instruir e de fornecer os instrumentos adequados, pois 0 seu incumprimento pode por
si criar um perigo.
(791) Integrando o art. 500° na responsabilidade pelo risco, MENEZES CORDEIRO, p. ex®., em Parecer
(Direito Maritimo), p. 43, Direito das Obrigagées, vol Il, p. 374 e s.. Criticando, pela sua vaguidade, a mera
referéncia a responsabilidade pelo risco, SCOGNAMIGLIO, Responsabilita per fatto altrui, p. 698.
(72) Mostrando que este tépico de argumentac4o nado procede em muitos casos de responsabilidade do
comitente, SCOGNAMIGLIIO, Responsabilita per fatto altrui, p. 699. Sobre o relevo de uma ideia de “responsabilidade
empresarial” na chamada responsabilidade contratual, cf. MARIA VITORIA DA ROCHA, p. 72 € s..
(793) Cf. VOLLMER, p. 374 e s., ndo se referindo a responsabilidade do comitente, mas sim a decorrente
da violag4o por auxiliares de deveres de seguranga no trafego, como vimos, embora com introducdo geral sobre o
tema.
wii PEDRO FERREIRA MURIAS

O facto de, tipicamente, a comiss4o corresponder a uma estrutura sécio-


-econémica determinada, comum em sede contrato de trabalho — mais abastados os
comitentes do que os comissdérios —, nao pode igualmente justificar a imputagao. Na
verdade, a fazer-se alguma comparacao, seria entre 0 patriménio do comitente e o do
lesado, mas, ainda que fosse enorme a disparidade, isso nunca fundou, s6 por si, um
juizo de responsabilidade.
Chegados a este ponto, é caso para questionar se, nos casos em que nao ha uma
empresa ou uma actividade perigosa que justifiquem a responsabilizaca4o objectiva, nos
veremos confrontados com resultados injustos na aplicagéo do art. 500° (2%).
Encontramos, todavia, uma Ultima possibilidade de fundamentagao deste dispositivo
legal na ideia de uma fungao preventiva da responsabilidade civil (7).
Partindo, por um lado, da subordinagao do comissdrio perante o comitente,
ou seja, da existéncia de um “dever de obediéncia” e da correspondente faculdade
potestativa de ordenar, e, por outro, de que é o beneficiario de uma qualquer acti-
vidade, mesmo que abstractamente ndo perigosa, que primordialmente tem de velar
para que ela nao se revele danosa para terceiros, a lei impde o dever de indem-
nizar em todos os casos em que assim suceda. /ncentivam-se assim Os comitentes
a um maximo de cuidado, possivel pelo seu poder de determinagdo do comporta-
mento dos comissé4rios, (29°) que resulta benéfico para todos os potenciais lesa-
dos. (2°7) A tipica estrutura sécio-econémica da comissao, de que falimos — com
algum paralelo na posigdo do produtor perante o consumidor final — tera facilitado
esta solucdo, pondo de parte eventuais “escripulos” do legislador (7%).
E de assinalar que, a ser como se descreve, estamos perante a situagao
interessante do prisma da metodologia e da dogmatica em que um regime de direito
privado assenta nao sé na consideracgao das posi¢des do lesado e do responsavel, mas
também no “interesse ptblico” daquela responsabilizagao.

4. Seja como for, é patente a diferenga em termos dogmaticos entre os arts. 500°
e 800°. Nos casos de “responsabilidade do comitente” subsumiveis na vasta categoria
da responsabilidade pelo risco (79°) esté em causa uma perigosidade objectiva e

(294) E a opinido de EIKE SCHMIDT sobre a proposta de “objectivar” a responsabilidade do comitente no


direito alemio — p. 520 es.. FRADA aparenta ir no mesmo sentido, mas nfo toma posigdo definitiva — p. 205 e s..
(295) E a posicao a que chega RUI DE ALARCAO, depois de excluir as restantes hipdteses — p. 96 e s.;
assim, também RIBEIRO DE FARIA, vol. II, p. 19.
(2%) Temos, portanto, como fulcral, e de acordo com a generalidade da doutrina (p. ex®., LARENZ /
CANARIS, p. 478, MENEZES CORDEIRO, Direito das..., p. 371 e s. — que, em Da Boa Fé..., p. 638, n 382, sugere
solugio oposta —, ANTUNES VARELA, Vol. I, p. 634 e s., ALMEIDA COSTA, p. 517, RIBEIRO DE FARIA, vol. II, p.
12, ANA PRATA, p. 672, SCOGNAMIGLIO, Responsabilita per fatto altrui, p. 698 e s.) a existéncia de uma relagdo
de subordinagdo. Nesta medida, quem encomenda uma estante nao responde pelo facto de o devedor, ao cumprir,
na sua Oficina, o devido, deixar escapar a ferramenta com que trabalha e que vai atingir um transeunte. Gera-nos
duvidas, por isso, a remissao dos arts. 165°, 501° ou 998°, n°l, bem como do art. 6°, n° 5 do Céd. das Socs.
Comerciais, p. ex®., para o art. 500°.
(297) Cf. SOFIA GALVAO, p. 50 (97) e 64, e CALVAO DA SILVA, p. 498,
(298) A possibilidade de, em sede de responsabilidade objectiva, fundar no art. 494° um montante
indemnizatério inferior ao dano de cdlculo — defendida, p. ex®., por ANTUNES VARELA, op. cit., Vol. I, p. 913,
— impedira resultados contrarios ao sentimento geral de justica.
(2%) Geftihrdungshaftung ou Haftung fiir erhohte Gefahr, em alemao.
| A RESPONSABILIDADE POR ACTOS DE AUXILIARES E O ENTENDIMENTO DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL

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abstractamente identificavel de certas actividades ou estruturas sociais acrescida pela
divisdo de tarefas na sua prossecucao. Noutras situagdes, nao aflora qualquer ideia de
risco, mas sim de uma fungao preventiva da responsabilidade civil..
Diversamente, na base do art. 800° esta a ideia de distribuigdo do risco de nao
cumprimento de um dever. Nao cumprindo total, exclusiva e pessoalmente o onerado,
por sua escolha, tem de correr por sua conta 0 risco (?!°) de que o terceiro introduzido
nao cumpra, ainda que objectiva e abstractamente, ou a priori, ndo se possa divisar
qualquer acréscimo da probabilidade de que assim suceda.
Resumindo, enquanto que ao art. 500° subjaz uma axiologia complexa, partindo
de uma fungdo preventiva da responsabilidade civil, o art. 800° colhe a sua plena
fundamentacéo na existéncia de um qualquer dever e na necessidade sentida pelo
ordenamento de assegurar a obteng4o das finalidades prosseguidas pela atribuigdo
desse dever perante a introduc4o de um terceiro no 4mbito do seu cumprimento.
*Diferenga” entre os trechos legais estudados significa entéo separagao absoluta.
Os preceitos legais e as valoragdes que os informam nao s40 comparaveis. Cada uma
das disposigdes em causa é aplicdvel tanto no campo obrigacional quanto no extra-
obrigacional.
Toma-se, portanto, uma posic4o monista radical quanto a cada um destes
aspectos do instituto da responsabilidade civil.

Lisboa, Junho de 1996

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