Alexandre Emidio Costa
Alexandre Emidio Costa
Alexandre Emidio Costa
São Paulo
2010
ALEXANDRE EMÍDIO COSTA
São Paulo
2010
Agradecimentos
Para darmos consistência a este estudo, utilizamos como suporte teórico autores,
como Kierkegaard, Sartre e Heidegger; o sociólogo francês Michel Maffesoli; Mikhail
Bakhtin; Marc Augé, e outros que contribuem de modo significativo para a análise e
discussão do tema.
This study tries to research the storybook Bichos (1940), by the portuguese
modernist writer Miguel Torga, literary pseudonym of Adolfo Correia Rocha, the
cosmovision of the author who emerges from the land-based theme (Nature) and a series
of reflections about the human condition, from which also brings out a new conception of
humanism. We depart from the principle that, in the narratives, the man is in a "civilized"
society, corrupted by the values of his time, away out of proportion to their origin and to
find a meaning to his existence, man has to return to his origin (to Nature, which appears
in the tales within a pantheistic perspective). Returning to the origin, through contact with
one another, that is, living beings who live integrated with nature, man will "wake up"
and will "relearn" to use his sensibility and will bring to his reason. Turning thus to live in
a fraternal and balanced with all universe beings as a way to soften the harshness of the
human existential path, marked, for example: by anguish and loneliness.
Introdução……………………………………………………………………......... 08
Conclusão.................................................................................................................. 91
Bibliografia................................................................................................................ 95
Ninguém é feliz sozinho, nem mesmo na eternidade.
Miguel Torga
8
INTRODUÇÃO
Nosso trabalho objetiva analisar o livro de contos, Bichos (1940), de Miguel Torga,
pseudônimo literário de Adolfo Correia Rocha (1907-1995), apresentando a seguinte
proposta: “Os Bichos de Miguel Torga: o retorno ao elo perdido”. A escolha deste tema
foi-nos sugerida pelo fato de haver, nas narrativas, uma cosmovisão que traz à tona a
temática telúrica, bem como uma série de reflexões a respeito da condição humana, a
partir das quais emerge também uma nova concepção de humanismo.
No que tange à temática telúrica, segundo o crítico literário português João Bigotte
Chorão, Torga, em suas obras literárias, surpreende o homem a se defrontar com a terra
numa profunda conscientização dos seus laços com a natureza. Pois a terra, para Torga, é
o santuário da sua peregrinação contínua, a sua paixão, a sua obsessão. Diz ainda o
1
Neste contexto, o termo “poética” segue a acepção proposta por Luigi Pareyson em Os problemas da estética
(2001) e envolve o reconhecimento de um “programa de arte” que reúne os princípios estéticos que norteiam a
produção do escritor.
2
Torga, Miguel. Diário XIV. Coimbra: Edição do Autor, 1987, p. 30.
3
Melo, José de. Miguel Torga: a obra e o homem. Lisboa: Editora Arcádia, s/d, p. 29.
9
A tal respeito, com base em nossa leitura interpretativa, poderemos constatar que a
Natureza (o telúrico) aparece nos contos de Bichos dentro duma perspectiva panteísta.
Etimologicamente5, o vocábulo “panteísmo” deriva de duas palavras gregas: “pan”, que
significa “tudo” e “theos”, que significa Deus. O sufixo “ismo”, por sua vez, remete ao
sentido de “conjunto de idéias”, de doutrinas. A partir dessa orientação básica, podemos
conceber o termo como um conjunto de doutrinas ligadas à idéia de que Deus não é um
Ser transcendente, mas existe no plano terreno, presente em todas as coisas do mundo.
Segundo Ferrater-Mora, o panteísmo se relaciona à concepção de que “Deus e o mundo
são a mesma coisa, de modo que Deus não tem nenhum ser fundamentalmente distinto do
[ser] do mundo”.6 O filósofo ainda nos esclarece que o mundo pode ser concebido como a
única realidade verdadeira, à qual se reduz Deus, que costuma, então, ser concebido como
a unidade do mundo, como o princípio (geralmente orgânico) da natureza, como o fim da
natureza, como a autoconsciência do mundo, etc. Esse panteísmo, segundo o mesmo
autor, chama-se “panteísmo ateu” ou “panteísmo ateísta”, e tende à afirmação de que não
há nenhuma realidade transcendente e de que tudo quanto há é imanente. O mundo não é
uma “pessoa”, mas algo de natureza impessoal.
4
Chorão, João Bigotte. Como é Torga?. In: Revista Colóquio Letras. Ensaio, nº 98, Julho 1987, p. 19.
5
In: Chaui, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2002, p. 305.
6
Mora, J. F. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 545
10
Precisamos destacar que Miguel Torga é autor de vasta produção literária, que inclui
poesia, memórias e narrativas ficcionais, além de peças de teatro. Trata-se de um conjunto
que se estendeu de 1928 (com a publicação do conjunto de poesias intitulado Ansiedade7)
a 1995, ano de sua morte, quando é publicado o 16º. volume de seu Diário. Foram, então,
67 anos de ininterrupta produção literária. Entre as obras de Torga algumas se destacam:
os Contos da Montanha, Bichos, A Criação do Mundo, Senhor Ventura ou Vindima, e na
Poesia as seguintes obras: Rampa, Abismo, Lamentação, Libertação ou a obra Poemas
Ibéricos (1965).
Bichos, particularmente, é uma obra constituída por catorze contos. Em dez deles as
personagens-título são realmente bichos, como Bambo, o sapo, que teve o seu término de
vida com uma estaca espetada nas costas pelo filho do caseiro novo. Bambo conhecia,
como poucos, o quintal do velho sexagenário tio Arruda que o cumprimentava pelas
manhãs gostosas ou nos encontros frutíferos que ocorriam durante a noite. Morgado, o
jerico, era o macho alegre e diligente de um almocreve que, anos a fio, cumpria as suas
tarefas sem reclamar, sempre uma manta ao fim do dia a resguardar dos resfriados e a
manjedoura cheia de bom milho. Só que aquele dia começara mal; o dono acordara de
mau modo, e ele largou apreensivo quando este lhe anunciou seis léguas de serra. Na
verdade, chegou a noite e Morgado não mais viu o dia: o dono alegre, bonacheirão, em
hora de aperto com os lobos, para safar a própria vida entregou a dele, sem pejo, ainda
clamando pelas dezassete libras que dera por ele na feira. Miura, o toiro, “rei da
campina”, teve a sua morte lenta a chegar, numa expectativa sofrida seguida duma luta
desleal, cegado pela nuvem vermelha agitada pelo toureiro, até ao alívio da entrega final
7
Torga, M. Ansiedade. Coimbra: Imprensa Acadêmica, 1928 (fora de mercado)
11
ao gume da lâmina afiada. Nero, o “cão que se respeitava, que tinha dignidade”, configura
a morte, sublimemente descrita pelo narrador: “quando o cheiro da última perdiz se
esvaiu dentro de si, [...] quando a imagem do filho se lhe varreu do juízo, fechou duma
vez os olhos e morreu”. Mago, o felino farto e pesado, sofreu toda a sorte de humilhações
dos seus pares: ironias sobre as namoradas, a comida, a sua falta de virilidade. Ainda lhe
provocavam um arrepio as lembranças da juventude pelos telhados fora, os ciúmes, os
gritinhos de amor, mas a verdade é que o corpo acostumara-se à boa vida e, sempre que
tentava regressar aos velhos tempos, só passava vergonha junto da vizinhança ágil. Lá
para as tantas, desistiu de vez e regressou aos braços balofos de sua dona. Cega-Rega
(único animal do sexo feminino), a cigarra, ensurdece os ouvidos dos camponeses a
apregoar a sua alegria de ter asas e voz, depois de ter percorrido o longo caminho de
embrião, larva, crisálida. E a formiga, a velha formiga da fábula, repete a previsão: “A
alegria passa-lhe... É deixar vir o inverno...”. Mas chega o Poeta, isto é, “um irmão que
sabia também que cantar era acreditar na vida e vencer a morte.”
Quanto ao reino das aves, temos Tenório, o galo, que acabou na panela como
qualquer animal da sua espécie, prevendo este fim desde o momento em que ouviu, pela
primeira vez, a patroa chamar-lhe galo velho, mal o filho começou a erguer a sua voz
pelas manhãs claras e a ser mais lesto nas suas obrigações junto das frangas. Temos
também Ladino, o pardal, que, manhoso, como o próprio nome indica, preferia a proteção
do ninho às vicissitudes do ar. Obrigado à aprendizagem da vida, desta tira partido com
alegria e perspicácia. Já envelhecido, alguns atreviam-se a perguntas do gênero – “quando
é esse funeral, ti?Ladino?”-, ao que ele retrucava, sem rebuço, que “só quando acabasse o
milho em Trás-os-Montes”; Farrusco, o melro jovial, consolava a moça casadoira a quem
o cuco agoirava anos sem fim de solteira; e, finalmente, Vicente, o corvo negro, o
símbolo das contradições, configura o ser rebelde. Na luta com Deus, perante a
perplexidade dos outros animais da Arca, eleva-se “a total autonomia da criatura em
relação ao criador”. E Deus sai vencido perante “aquela vontade inabalável de ser livre”.
no conto “Jesus”, o protagonista parece contrapor-se aos demais, pois tanto a sua própria
figura e a sua ação evocam o olhar, o gesto e a experiência de uma criança “divinizada”, o
que poderia apontar para um possível resgate da inocência humana.
Este trabalho está organizado em três capítulos, sendo que cada um tem como eixo
um dos textos que selecionamos. Entretanto, repetimos, isto não significa que deixamos
de analisar os outros contos que fazem parte da obra Bichos. Isto é, a associação e a
análise serão feitas a partir de temas relacionados com as narrativas selecionadas.
A análise das narrativas tem como suporte teórico autores, como Kierkegaard, Sartre
e Heidegger, filósofos existencialistas que nos ajudam a compreender melhor a existência
das personagens que é marcada, por exemplo: pela angústia, solidão e liberdade subtraída;
o sociólogo francês Michel Maffesoli, que contribui de modo significativo quanto à noção
de “razão sensível”, bastante útil para a compreensão da ficção torguiana; Marc Augé, no
que tange ao espaço; Linda Hutcheon, no que toca à paródia, e outros autores que
enriquecem a análise e discussão do tema.
13
Além das teorias que utilizaremos para dar consistência a este estudo, importa
ressaltarmos novamente que as três narrativas escolhidas serão o ponto de partida e o
ponto de chegada das nossas interpretações. O apoio teórico, portanto, será o meio para
fazermos uma interpretação crítica tanto quanto possível consistente e que efetivamente
contribua para os nossos propósitos.
Na esteira do que diz este crítico brasileiro, depreendemos que o estudo do contexto
é imprescindível para o entendimento de uma obra literária, e é a partir dele que
poderemos compreender melhor a escritura dos contos de Bichos. Contudo, precisamos
levar em conta, que, apesar de o escritor criar sob os influxos da expectativa de arte, dos
conceitos e valores vigentes na sua época, tal fato não significa que ele irá,
necessariamente, reproduzi-los na sua obra. Ele poderá, conforme seu desejo de
expressão, inovar estes elementos contextuais ou opor-se inteiramente a eles.
8
Candido, A. Literatura e sociedade – estudos de teoria e história literária. São Paulo: Cia. Editora
Nacional, 1976. p. 4.
14
ela traduz em termos normativos e operativos um determinado gosto, que, por sua vez, é
toda espiritualidade de uma pessoa ou de uma época projetada no campo da arte.”9
Optamos por utilizar, neste estudo, este conceito pareysoniano de “Poética”, pois, a
nosso ver, os embates travados por Torga com os intelectuais de sua época e,
particularmente, com os do grupo “Presença” (como veremos adiante) resultaram numa
visão de mundo específica, cuja essência pode ser encontrada no conjunto de sua obra,
incluindo Bichos.
Ao nascer, em 1907, em São Martinho de Anta, Vila Real, Miguel Torga recebeu o
nome de Adolfo Correia Rocha. O nome ainda não era o que adotaria muitos anos depois,
e que anunciaria em 1934, no prefácio de A terceira voz, mas o fundo enraizamento à
terra já corria em seu sangue, como herança – afinal, sua região de origem – Trás-os-
Montes – é, até hoje, essencialmente rural, ainda que bastante árida e, por isso, pouco
acolhedora. Porém a terra, para Adolfo Correia/Torga, não é apenas Portugal. Num plano
biográfico, ela abrange toda a Ibéria, uma vez que a região Norte, em que se inclui Trás-
os-Montes, geograficamente, faz fronteira com a Espanha e, para esse escritor, ambas as
realidades não podem ser dissociadas em função de seu denominador comum, que é a
secura da terra. Embora não faça parte do objetivo deste trabalho, a título de ilustração do
modo como o poeta concebe essa unidade ibérica, transcrevemos o poema “Ibéria”,
abertura de Poemas Ibéricos, de 1965:
Terra
Quanto a palavra der, e nada mais.
Só assim a resume
Quem a contempla do mais alto cume,
Carregada de sol e de pinhais
Terra-tumor-de-angústia de saber
Se o mar é fundo e ao fim deixa passar...
Uma antena da Europa a receber
A voz do longe que lhe quer falar...
9
Pareyson, Luigi. Problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 18.
15
Além de mostrar a forte imagem da terra (que, pelo acréscimo de atributos, de uma
estrofe para outra, vai ganhando nuances de fundura e enraizamento: “terra”; “terra-
tumor-de-angústia de saber”; “terra de pão e vinho”; “terra nua e tamanha”), o poema é
permeado por dualidades que ampliam a visão que o Poeta tem da Península: na primeira
estrofe, o baixo (a terra) x o alto (o sol, os pinhais); na segunda, mais uma vez, o próximo
(mais baixo ainda), a raiz (“terra-tumor-de-angústia”), evocando, de um lado, a
profundidade do desejo, do sonho; de outro, o objeto do desejo: o conhecimento,
concretizado nas aventuras marítimas que levaram ao descobrimento das Américas
(espanhola e portuguesa). Na terceira, o contraste, por metonímia (o pão, o vinho, fontes
“sagradas” de vida), entre a riqueza ibérica dos tempos do Império e a fome e sede
posteriores à decadência. E, finalmente, na quarta estrofe, a positiva dualidade, observada
num último contraste, desta vez entre o Velho e o Novo (as Américas), sintetizado “no
projeto utópico do povo peninsular” (“a loucura com asas do meu povo”).
Mas, existe na vida/obra de Torga, desde que era Adolfo Correia Rocha,
paralelamente ao biográfico, uma concepção mais ampla, universal, de terra. A este
respeito vejamos o que nos diz o madeirense José António Garcia de Chaves no ensaio
intitulado “Este Marão que eu sou (uma procura, através da escrita de Miguel Torga, da
imagem e da identidade de Portugal)”:
Ao lado do caráter inóspito da terra – e talvez até também por conta disso- outro
filão lhe coube como herança: a fibra para enfrentar as adversidades. Além da vida
humilde e pobre da primeira infância, as condições econômicas da família do autor não
conseguiram evitar que ele se tornasse mais um entre o grande contingente de emigrantes
que até hoje costumam deixar a região de Trás-os-Montes. Dos 13 aos 18 anos, Torga
viveu no Brasil, fazendo um estafante trabalho braçal na fazenda de café de um tio, em
Minas Gerais. Mas nem essas dificuldades o impediram de, graças ao apoio desse mesmo
tio, estudar e formar-se em Medicina pela Universidade de Coimbra. No entanto, o bom
sucesso na vida acadêmica não é suficiente para atenuar as marcas dolorosas que o autor
carregará pela vida e que imprimirá em sua obra. Diz ele no Diário X:
10
In: alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/zips/jgarcia02.rtf acesso em 07/04/2009. O autor deste texto recebeu o
prêmio atribuído pela Federação Nacional dos Professores com um ensaio sobre Torga, intitulado “A escrita
do Desassossego” Em agosto de 2007, conquistou o “Prêmio Literário Vergílio Ferreira” com um ensaio sobre
a obra de Maria Ondina Braga, ensaio que foi publicado, em 2008, pela Editora Labirinto. Dentre as
personagens citadas, Mara Lionça integra o conto do mesmo nome, de Contos da Montanha (1941); as demais
são personagens de diferentes contos de Novos Contos da Montanha (1944)
11
In: Freire, António. Lendo Miguel Torga. Porto: Edições Salesianas, 1990, p. 179.
17
inocência e a pureza (em “Jesus”), ou ainda outros traços de caráter que reconhecemos na
personalidade do escritor, podem ser vistos no destino construído pelos protagonistas de
Bichos.
Adolfo Correia Rocha (Miguel Torga) começou sua produção literária em Coimbra,
na década de 20, quando estabeleceu contato com o grupo da revista Presença, na qual
veio a colaborar.
No final dos anos 20, o autor enfrentou sérios problemas políticos, quando se
instaura, em Portugal, a ditadura salazarista, mais conhecida como Estado Novo,
designação de cunho ideológico e propagandístico destinada a assinalar o início de uma
nova era, que se abre com a Revolução Nacional de 28 de maio de 1926, e oficializa-se a
partir de 1933, com a publicação de uma nova Constituição. Neste sentido, o Estado Novo
encerrou o período do liberalismo em Portugal, que abrangia não só a Primeira República,
como também o Constitucionalismo monárquico. Como regime político, o Estado Novo
foi também chamado de Salazarismo, em referência a António de Oliveira Salazar, o seu
fundador e líder. Salazar assumiu o cargo de Ministro das Finanças em 1928, tornou-se,
nessa pasta, figura preponderante no governo da Ditadura Militar já em 1930 e ascendeu a
Presidente do Conselho de Ministros (primeiro-ministro) em Julho de 1932, posto que
manteve até ao seu afastamento por doença, em 1968. O Estado Novo, todavia, abrange
igualmente o período em que o sucessor de Salazar, Marcello Caetano, chefiou o governo
(1968-1974).
Miguel Torga esteve entre as vítimas da PIDE. Seu livro O Quarto Dia da Criação
do Mundo, de 1939, foi apreendido a posteriori, pois o autor sempre recusou enviar os
seus livros à censura prévia. Acusou-se a obra por supostamente conter cenas de
obscenidade, além de ser uma propaganda comunista, devido à agressiva crítica social
18
que continha. A apreensão do livro foi acompanhada também pela detenção do seu autor.
Preso em Leiria – onde exercia medicina – a 30 de Novembro de 1939, seguiu-se sua
transferência para o Aljube12, em Lisboa, onde ficou encarcerado até 2 de Fevereiro de
1940. Nessa época, Torga também respondeu a vários processos criminais e outras de
suas obras também foram apreendidas.
A Revista Presença teve vida longa (de março de 1927 a fevereiro de 1940).13
Cresceu em número de páginas, melhorou a qualidade gráfica, e nela se fizeram algumas
das mais originais experiências da época. A rede de colaboradores foi ampliada e sua
penetração atingiu outras regiões de Portugal, como Lisboa e o Porto, e chegou até o
Brasil. Fixou-se como a revista literária portuguesa mais representativa da época, pois
reunia todas as tendências modernistas que antes só apareciam em publicações
transitórias.
12
Salientando também que Torga teve a idéia de escrever os contos reunidos na coletânea Bichos, enquanto
esteve preso na cadeia do Aljube, dando largas à sua imaginação.
13
Revista Presença – ano de publicação e respectivos números: 1927 (1-8); 1928 (9-17); 1929 (18-23); 1930
(24-29); 1931 (30-33); 1932 (34-36); 1933 (30-37); 1934 (41-43); 1935 (33-47); 1936 (48); 1937 (49-50);
1938 (51-54) – (53-54 número duplo). Nova série: 1939 (1); 1940 (2).
14
Régio, José- “Literatura viva”. Presença: folha de arte e crítica. Coimbra 1 (1): 1, mar., 1927.
19
15
Régio, José – “Da geração modernista”. Presença: folha de arte e crítica. Coimbra, 1 (3): 1, abr., 1927.
16
Régio, José – “Literatura viva e literatura livresca”. Presença: folha de arte e crítica. Coimbra, 3 (9): 3, fev.,
1928.
17
Régio, José – “Da geração modernista”. Presença: folha de arte e crítica. Coimbra, 1 (3): 2, abr., 1927.
20
Literatura viva é aquela em que o artista insuflou a sua própria vida, e que
por isso mesmo passa a viver de vida própria. Sendo esse artista um
homem superior pela sensibilidade, pela inteligência e pela imaginação, a
literatura viva que ele produza será superior; inacessível, portanto, às
condições do tempo e do espaço.18
Podem ser ressaltados, então, dois pontos significativos da revista Presença: a) culto
da personalidade e originalidade; b) divulgação e crítica dos autores do grupo de Orpheu.
Não por acaso, as publicações de Presença se tornaram um dos mais vastos programas
literários das revistas portuguesas. Podemos distinguir os escritores “que mais
conscientemente se integraram na linha renovadora da revista: tal grupo, pelo que respeita
à poesia, é essencialmente constituído por: José Régio, Branquinho da Fonseca, Edmundo
de Bittencourt, Antônio de Navarro, Carlos Queiroz, Francisco Bugalho, Fausto José,
Saul Dias (pseudônimo de Júlio dos Reis Pereira, irmão de José Régio), Alberto Serpa, e
pelo autor destas linhas”.19 Esporadicamente, prestaram colaboração: Vitorino Nemésio,
Pedro Homem de Melo, Tomaz de Figueiredo, Olavo de Eça Leal. Ainda colaboravam na
revista vários escritores brasileiros, tais como Ribeiro Couto, Cecília Meireles, Jorge
Lima, Manuel Bandeira e Vinícius de Morais.20
A revista Presença, como vemos, aplicou-se na divulgação, se não das obras, pelo
menos dos nomes de inúmeros escritores europeus da primeira metade do século: Proust,
Gide, Valéry, Apollinaire, Pirandello, Cocteau, Ibsen, Joyce, Lawrence, Ortega y Gasset.
Além de poemas, crítica, algumas peças teatrais, contos ou excertos de romances, alguns
dos quais foram publicados em edições da Presença, apareceram, também, nas suas
folhas, vários artigos sobre cinema, arte, música, filosofia. A disparidade de tais
individualidades literárias não representa dispersão nos intentos da revista. Era “a
doutrina e a crítica da Presença que davam unidade à folha e imprimiam força à sua
ação”.21
18
In: http://br.geocities.com/galaaz67/jose_regio_literatura_viva.htm
19
Monteiro, Adolfo Casais – A poesia da Presença. Lisboa, Moraes Ed., 1972, p. 45.
20
Os contatos com escritores brasileiros viram-se intensificados na 2ª fase da revista, dos números 28 a 44, de
agosto de 1930 a abril de 1935. Tal aproximação na década de 30, deveu-se, em parte, a um sistema cultural
repressivo e a um isolamento cultural e político devido à ditadura portuguesa. (Gotib, Nadia Battela- O
Estrangeiro Definitivo. São Paulo, FFLCH/USP, 1977, p. 46).
21
Melo, José de – Miguel Torga. Lisboa, Arcádia, (1960), p. 86.
21
22
Simões, João Gaspar – História do Movimento da Presença. Coimbra, Atlântica, 1958, p. 41.
23
O pretexto desta cisão esteve no repúdio de certas afirmações atribuídas a J. G. Simões, na sua conferência
“Tendências e individualidade da moderna poesia portuguesa” (vide Seara Nova) onde haveria uma referência
a Régio, considerado como chefe da escola Coimbra da Presença. (Cf. Monteiro, Adolfo Casais – op. cit., p.
41.)
24
A escolha do pseudônimo - “Miguel” e “Torga” - deveu-se, em primeiro lugar, à admiração que nutria por
dois grandes vultos da cultura ibérica: Miguel de Cervantes e Miguel Unamuno. Já Torga é uma planta brava
da montanha, que deita raízes fortes sob a aridez da rocha, de flor branca, arroxeada ou de cor vinho, com um
caule incrivelmente rectilíneo. O crítico português, Eduardo Lourenço, em artigo intitulado “Um nome para
uma obra”, diz que: Esta vontade de identificação ou assimilação totêmica – se o termo é lícito fora da
referência ao reino animal - com uma planta, e nela, com a natureza no seu aspecto quase mineral, foi
integrada na leitura e exegese da sua obra como sua imagem de ressonância mítica. Assim o que quis o próprio
autor e assim o impôs aos leitores, não como simples pseudônimo, mas como “nome”, ao mesmo tempo
simbólico e natural (1994. p. 277). Ainda segundo o mesmo crítico, Por meio do novo nome, o poeta realiza
uma “auto-mitificação que se cumpre na invenção de si como Miguel Torga” (Idem, p.288)
22
O grupo presencista não apresentava uniformidade, mas era marcado por muitas
polêmicas e dissenções, sobretudo a partir da oposição estético-ideológica de literatura
social da década de 30. José Régio e João Gaspar Simões podem ser considerados os
presencistas mais típicos, porque permaneceram fiéis aos ideais do grupo. Miguel Torga,
pelo contrário, recusa-se a ser denominado presencista, pois quis que sua ruptura com o
grupo tivesse significado de uma divergência literária (já que ele defendia uma poética
distinta da adotada pelos seguidores da Presença). Ele, Torga, não poderia ser chamado
presencista, porque sua poética era outra, diferente da dos antigos companheiros. No
entanto, pode-se questionar: apesar desses protestos e da ruptura com a revista Presença,
será Torga menos presencista? Parece-nos que seu mundo literário e o grupo a que
pertencera têm algo em comum: o culto do individual.
Nos últimos anos da revista Presença (1937 – 1940), a colaboração de Jovens poetas
como Fernando Namora, João José Cochofel, Mário Dionísio, Tomas Kim, mostra uma
vaga inquietação e desejo de justiça social, alertada com o eco da Guerra Civil Espanhola.
Alguns, ainda, defendiam poéticas diferentes: a arte deveria estar a serviço de um ideal
social e político.
De um modo geral, podemos afirmar que Presença dedica especial atenção à prosa
narrativa breve. Nos contos presencistas estão evidentes alguns dos aspectos doutrinários
da revista – introspecção, psicologismo, poeticidade, ressaltados de maneira matizada.
25
A revista termina devido às divergências suscitadas pelo segundo dos “Diálogos Inúteis” de João Gaspar
Simões, incluído no último número: Adolfo Casais Monteiro, por considerar reacionários alguns dos pontos de
vista do artigo faz sair uma crítica na Seara Nova. Esta nova cisão do grupo presencista contribuiu para pôr
termo à revista. (Cf. Monteiro, Adolfo Casais- op. cit., p. 48.)
24
CAPÍTULO I
O foco da narrativa incide, acima de tudo, sobre o gato, que não habita na casa da
velha por escolha própria, mas porque o acaso o fez despencar, numa determinada noite,
do muro no pequeno quintal de Dona Sância. Por meio de um narrador onisciente, que
conhece os meandros internos do protagonista, e pelo recurso do discurso indireto livre,
podemos acompanhar os movimentos de consciência do felino, seus desejos, incertezas e
inseguranças e constatar que a convivência entre ele e sua atual dona não é nem
harmoniosa nem equilibrada. Muito pelo contrário. O narrador nos coloca diante de uma
26
Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o termo “antropomorfizado”, derivado do verbo
“antropomorfizar”, diz respeito ao ato de “atribuir a (algo) forma ou características humanas”. (Houaiss,
Antônio. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 240.)
27
O gato doméstico (Felis silvestris catus), também conhecido como gato caseiro, gato urbano ou
simplesmente gato é um animal da família dos felídeos, muito popular como animal de estimação, sendo um
predador natural de animais como roedores, pássaros e lagartixas. A primeira associação com os humanos de
que se tem notícia foi há cerca de 9.500 anos, mas a domesticação dessa espécie oriunda do continente
africano é muito mais antiga. O seu mais antigo ancestral conhecido é o Miacis, mamífero que viveu há cerca
de 40 milhões de anos, no final do período paleoceno, e possuía o hábito de caminhar sobre os galhos das
árvores. A evolução desse animal deu origem ao Dinictis, espécie que já possuía a maior parte das
características presentes nos felinos atuais. A subfamília Felinae, que agrupa os gatos domésticos, surgiu há
cerca de 12 milhões de anos, expandindo-se a partir da África subsaariana até alcançar as terras onde
atualmente está o Egito. Mas os primeiros gatos realmente tiveram sua domesticação comprovada no Antigo
Egito, onde gatos eram adorados como deuses. Dar um gato de presente era sinal de grande afeição, era o
presente mais valioso que alguém poderia receber. Em qualquer situação de risco, os gatos eram os primeiros a
serem salvos. (In: Taylor, D. Animais de estimação: gatos. São Paulo: JB Indústrias Gráficas DEHASSE,
1993)
25
relação que traz à tona a violência da domesticação. Isto porque, talvez para suprir sua
carência, a velha submete o felino às regras e normas próprias do universo civilizado, o
que contribui para que, seduzido pelo conforto castrador da vida doméstica, o gato passe a
viver o drama da dilaceração interna.
28
Estamos nos referindo ao conceito de “autor” formulado por Wayne Booth em Retórica da Ficção. Ligia
Chiappini, sobre a figura do autor implícito, diz o seguinte: “O AUTOR IMPLÍCITO é uma imagem do autor
real criada pela escrita, e é ele que comanda os movimentos do NARRADOR, das personagens, dos
acontecimentos narrados, do tempo cronológico e psicológico, do espaço e da linguagem em que se narram
indiretamente os fatos ou em que se expressam diretamente as personagens envolvidas na HISTÓRIA.” (1991,
p. 19). Um outro dado importante diz respeito à diferença entre a figura do narrador e a do autor implícito:
enquanto o primeiro apenas narra, conta os fatos, o segundo (isto é, o autor implícito) valora, julga: “o sentido
que temos do autor implícito inclui não só os significados que podem ser extraídos, como também o conteúdo
emocional ou moral de cada parcela de ação e sofrimento de todos os personagens. Inclui, em poucas palavras,
a percepção intuitiva de um todo artístico completo; o principal valor para com o qual este autor implícito se
comprometeu, independentemente do partido a que pertence na vida real. (BOOTH, Wayne C. A Retórica da
Ficção. Lisboa:Arcádia, 1980)
26
A verbalização dos sentimentos do gato em relação à sua atual dona, que ocorre com
a intervenção do narrador, também traz implícita uma ponta de ironia e, ao mesmo tempo,
um peso avaliativo, revelando a inconsistência dos bons sentimentos do bichano e o
oportunismo que rege sua conduta doméstica. Por exemplo, é possível percebermos uma
espécie de incompatibilidade entre a intenção de “delicadeza” de Mago ao não querer
acordar Dona Sância e o fato de não ver “vantagem” nenhuma em ofendê-la. Entre a
grata afeição e o pragmatismo da preocupação há uma grande distância, e esse
pensamento do felino parece deixar entrever não só a dissimulação de suas atitudes para
com a dona, mas também a hipocrisia que comanda suas atitudes no cotidiano doméstico.
No entanto, por trás das reflexões do felino parece-nos ouvir a voz do autor implícito,
suficientemente madura para operar como uma espécie de consciência, que detecta o
conflito do protagonista, cindido entre o desejo da liberdade e seus riscos e o conforto da
acomodação alienante. Esta voz (a do autor implícito) faz mais que o gato, que apenas
sofre o dilema interno, mas não assume nenhuma responsabilidade pela sua solução.
O último período do fragmento (“Que, considerando bem, por essas e outras é que
chegara àquela linda situação...”) demonstra a dificuldade do protagonista em assumir a
autoria da sua história e da sua vida e a fragilidade de sua vontade. Não só neste trecho,
mas também ao longo de todo o conto percebemos que a condução de seu destino está
delegada, acima de tudo, à velha Sância, nesta etapa da sua vida, ou, antes, à mãe
biológica, a quem sempre causou preocupação e a quem chegou, de certa forma, a matar
de desgosto por causa da vida leviana, mulherenga e inconsequente que levava:
De fato, como em outros contos de Bichos, o nome das personagens não é gratuito
nem aleatório. Ao contrário, a escolha criteriosa ajuda, de algum modo, a visualizar traços
marcantes da personalidade delas, seja por meio do simbolismo onomástico, seja por
meio de figuras como a antonomásia, por exemplo. No entanto, devemos salientar que,
em grande parte dos casos, os nomes têm um valor semântico que é paródico29. Em
“Nero”, temos uma retomada paródica da personagem histórica, pois esta se sobressai
pela tirania e o cão, por sua vez, pela condescendência e bondade. A denominação “Cega-
rega”, no conto do mesmo nome, também tem um uso paródico, pois subverte a
significação usual do nome e tem um sentido positivo, com o canto da personagem
equiparando-se ao do poeta. Diferentemente do que diz o Dicionário Caldas Aulete.
Segundo ele, além de significar “cigarra”, cega-rega significa também pessoa que fala
muito, repetindo a mesma coisa e sempre no mesmo tom (ou seja, evocando o canto
desagradável da cigarra).
29
Segundo Gérard Genette, a “paródia pode ser considerada, de alguma maneira, um tipo de visão especular,
em que a imagem original se apresenta invertida, reduzida ou ampliada, de acordo com a lente utilizada”.
(Genette, Gérard. Palimpsestes. La littérature au second degré. Paris: Seuil, 1982, p. 20).
28
“as carícias de algodão em rama no cachaço da dona (p.29), “as almofadas”, “os braços
balofos de Dona Sância” (p.35)
Assim, no seu próprio nome, Dona Sância deixa entrever atributos que causam
(voluntária e involuntariamente) danos ao protagonista. Quanto ao nome do bichano, será
ele um nome escolhido arbitrariamente? Ou ele também estabelece uma íntima relação
com os atributos do protagonista? Em caso afirmativo, será uma relação paródica que se
estabelece?
30
Pois os olhos dos gatos possuem a tapetum lucidum, uma membrana posicionada dentro do globo ocular
que reestimula a retina ao refletir a luz na cavidade. Enquanto esse artifício melhora a visão noturna, parece
reduzir a acuidade visual na presença de luz abundante. Quando há muita luminosidade, a pupila em formato
de fenda fecha-se o máximo possível, para reduzir a quantidade de luz a atingir a retina, o que também
resguarda a noção de profundidade. O tapetum e outros mecanismos dão aos gatos um limiar de detecção de
luminosidade 7 vezes menor que a dos humanos. (In: Hofmann, Helga. O Gato: entendendo as necessidades e
instintos de seu gato. São Paulo: WMF, 1997, p. 175).
29
Tais traços coincidem muito bem com o comportamento do gato, que, de um lado,
submete-se a Dona Sância, obedece-lhe, mas, depois que a noite chega, foge
sorrateiramente para o mundo da liberdade. Em síntese, em relação à dona, ele comporta-
se, de fato, como uma figura histriônica. No entanto, não é só à sua dona que Mago
engana, mas também a si mesmo, pois vive encontrando justificativas para não romper as
amarras que o prendem ao falso conforto do universo doméstico.
31
Chevalier, Jean & Gheerbrant, Alain. Dicionário de Símbolos. Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas,
figuras, cores, números. p. 582.
30
32
Idem, ibidem.
31
Em “Mago”, podemos identificar, sobretudo, ambientes, uma vez que eles irradiam a
subjetividade das personagens. Por exemplo, alguns episódios nos mostram o interior da
casa de D. Sância, como a sala, ambiente que retrata a inércia do protagonista Mago:
“Aquele mormaço da sala dava cabo dele. Punha-o mole, sem acção...”(p. 27);
33
Lins, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976, p. 76.
32
“Condenado para sempre ao bafio da maldita sala de visita da D. Sância! [...] E tudo obra
do coirão da velha...”(p. 33). Outros episódios, inclusive aquele em que ocorre o clímax,
se passam em ambientes externos, que evocam a liberdade da vida autêntica ou, pelo
menos, a tentativa de alcançá-la. Há o “clube da gataria do bairro”, num “telhado corrido,
quase plano, amplo, alto (...) (p.30), ambiente em que Mago projeta suas boas lembranças
do passado, do tempo em que se julgava livre.
Além disso, na volta para a casa de Dona Sância, a sua falta de lucidez interior se
traduz pela dificuldade em enxergar direito, pelo mal-estar e pela necessidade de estar
próximo ao calor da chaminé34, signo visivelmente relacionado ao mundo urbano:
34
Sob a perspectiva simbólica, a verticalidade assume um papel muito importante na medida em que ela pode
ser lida como um “eixo do mundo”, o elemento em torno do qual o homem constrói o seu projeto de vida.
Neste conto, a chaminé não é um elemento da natureza, mas um elemento da cultura, construção humana. Por
isso o calor que dela emana não pode ser considerado como estimulador da vida autêntica. Já a torre da Igreja,
possível representação simbólica do sagrado, aparece, no conto, num contexto de morte, de estagnação:
Emergindo do seio de uma cidade que parece um cemitério, dela sai “um pio agourento”. (Torga: p.33)
33
Quanto ao tempo, ele também é de transição. A ação do conto, que se inicia in media
res, se estende da noite ao amanhecer, o que pode sugerir a transição da inconsciência
(simbolizada pela noite ou pelo caos) à iluminação da consciência de sua
responsabilidade no processo de acomodação (evocada, neste caso, pelo amanhecer). Ao
entrar em casa, depois de derrotado pelos felinos, reconhece para si mesmo que ninguém
o obrigara a voltar; voltara por conta própria:
De resto, que esforço concreto fizera para se libertar? Nenhum. Ainda não
havia uma dúzia de horas, ouvira a voz do Lambão como um eco da
própria consciência... E, afinal, ali estava outra vez! E viera de livre
vontade... Ninguém o obrigara... Já roído de remorsos? Ora, ora! Outro
fosse ele, nem aquela casa encarava mais. E voltara! Sim, voltara
miseravelmente... E à procura de quê? Da paz podre dum conforto
castrador.... Que abjeção! Que náusea! (Bichos, p. 35)
35
Por meio dos elementos descritos pelo narrador acerca do ambiente e espaço em que dona Sância e Mago
vivenciam, isto é, numa casa repleta de conforto, espaçosa com diversos cômodos (sala, quarto, cozinha...) e
exterior a ela há um jardim no quintal, uma chaminé, ao redor da casa é toda murada e também ela se faz
presente num espaço citadino, além do “fio de oiro” que comprara ao felino; faz com que pensemos que a
velha solteirona diante e aos olhos da sociedade capitalista, pareça pertencer a uma condição social média ou
burguesa.
34
Nesse sentido, podemos identificar o mundo ao qual o gato está aprisionado com o
universo da cultura, sendo a casa de Dona Maria da Glória Sância o microcosmo da
sociedade industrial, pautada pelas relações de dominação e exploração (como as que se
estabelecem entre Mago e sua dona). Neste contexto, o próprio jardim da casa é um
exemplo de “natureza domesticada”.
36
In: Heidegger, Martin. Carta sobre o humanismo. Petrópolis: editora Vozes, 1946.
35
Fugiu desvairado pelos telhados fora. A lua, cada vez mais branca lá no
alto, olhava-o com desdém. A cidade, adormecida, parecia um cemitério
sem fim. Da torre duma igreja saía um pio agourento.
Jogara naquele lance o resto de dignidade. E perdera. Dali por diante, seria
apenas uma humilhação sem esperança. Ele, que tivera nas mãos possantes
e nervosas o corpo fino e submisso da Boneca, ele, o escolhido da Moira-
Negra, ele, o companheiro de noitadas do Hilário, ele, Mago, relegado
definitivamente para o mundo das pantufas e dos tapetes! Proibido para o
resto da existência de pensar sequer numa baforada da húmida frescura que
agora lhe atravessava as ventas e lhe deixava cantarinhas no bigode.
(Bichos, p. 33)
37
In: Schneider, Daniela. “Psicologia Existencialista”.
http://www.psiclin.ufsc.br/Psicologia%2520Existencialista%2520com%2520referencia.pdf. Acesso em
18/04/09.
36
Entretanto, embora o felino revele ter alcançado a consciência reflexiva, nem por
isso conseguiu passar da consciência à ação. Em Sören Kierkegaard38 talvez possamos
encontrar a explicação para a paralisação de Mago, que só consegue fazer o mesmo
caminho de sempre, o de volta à casa de Dona Sância. Pensando na trajetória de vida do
protagonista até o episódio nuclear do conto, podemos enquadrá-la no estágio estético,
uma vez que todas as suas escolhas são orientadas pelo quanto de prazer ela, a vida, vai
lhe oferecer. Nessa fase, interessam apenas os resultados imediatos. Para ultrapassar esta
etapa e chegar à seguinte, que é a ética ou moral, seria preciso pautar-se por normas
morais. E, segundo Kierkegaard, o princípio que determina o acesso a essa outra fase é o
amor conjugal, ou seja, a felicidade no casamento. Ora, no decorrer do conto, percebemos
que Mago peca pela inconstância amorosa (em relação às namoradas), além de apresentar
outras falhas morais. Esta pode ter sido a razão de não ser capaz de assumir uma atitude
ética em relação à condução do seu destino.
38
Kierkegaard, Sören A. O Diário de um sedutor. p. 21.
37
CAPÍTULO II
“Toda a natureza está cheia de milagres. Não nos assombramos com eles,
porque estamos habituados a vê-los; sua repetição os opaca aos nossos olhos
calejados. É por isto que Deus nos reserva milagres inesperados, além dos
que se operam no curso da natureza, para que eles nos espantem pela
surpresa.”
Santo Agostinho
Oscar Wilde
39
Heidegger, Martin. Carta sobre o humanismo. Petrópolis: editora Vozes, 1946.
39
Quanto aos esponsais, o diabo é haver neles sempre tanta ética, o que é tão
enfadonho tanto quando se trata de ciência como quando se trata da vida.
Que espantosa diferença! Sob o céu da estética tudo é leve, belo, fugidio;
41
mas, assim que a ética se mete no assunto, tudo se torna duro, anguloso e
infinitamente fatigante.40
Na aldeia transmontana de Vilarinho, o meio social em que tio Arruda está inserido,
há uma orientação ética (que responde à pergunta “como viver?”), mas cuja orientação é
apresentada, a nós leitores, de modo negativo. Isso por que tal orientação cessa o direito à
liberdade do indivíduo. Desse modo, a subtração da liberdade de Tio Arruda está, em
grande parte, condicionada ao trabalho de lavrador numa propriedade rural, atividade que
aprisiona não só a ele como também aos demais habitantes da aldeia. Esse trabalho
desempenhado por todos chega a ser desumano, como explicita o narrador: “Ricos e
pobres nem no brilho do sol reparavam. Comiam, bebiam e cavavam leiras, numa
resignação de condenados” (p. 62). A leitura dos contos de Bichos feita por Maria do
Amparo Tavares aponta que o bom será o individual e o mal será o social41. Este social de
que ela fala são as regras exteriores, impostas, e o individual é o do instinto, do respeito
pela natureza, da fidelidade ao ser de cada um. Assim, a existência de tio Arruda, único
discípulo de Bambo, passa a ter sentido a partir do momento em que o sapo surge em sua
vida e o conduz ao verdadeiro sentido da existência, isto é, à comunhão íntima com a
natureza, como veremos adiante.
Ainda acerca das reflexões de Kierkegaard, vale a pena acrescentar que é somente no
estágio religioso que o indivíduo atinge a culminância de sua existência e entra em
comunhão com o Absoluto. É apenas aí que Deus passa a ser regra do indivíduo, a única
força capaz de realizá-lo plenamente. É pela fé que o homem consegue resolver a mais
intrigante das questões: o mal. No que diz respeito à aldeia transmontana de Vilarinho, ao
invés de nos referirmos à religião, é preferível falarmos em religiosidade, pelo fato de
haver nesse local um sincretismo em que se fundem catolicismo e um certo paganismo
panteísta. A referência ao catolicismo fica evidente no conto, quando o narrador relata a
confissão feita por tio Arruda aos “amigos”, acerca dos ensinamentos que o sapo lhe
transmitiu a respeito da “ciência da vida”: “confessou isso honradamente à Porta da
igreja, no domingo42” ( p. 64).
40
Kierkegaard, Sören A. O Diário de um sedutor. p. 21.
41
Tavares. O Paradigma Bíblico em Miguel Torga: “ bichos”, p. 4.
42
O dia de domingo, além de ser um dia em que os fiéis da religião católica se reúnem com mais frequência
para a missa, ele também retrata cronologicamente, segundo a Bíblia, a ressurreição de Jesus Cristo. A palavra
42
Acreditamos ser relevante chamar atenção para o substantivo Porta, que, inclusive,
aparece no fragmento grafado com a consoante P em letra maiúscula. Segundo Chevalier
e Gheerbrant43, a porta simboliza o local de passagem entre dois mundos, entre o
conhecido e o desconhecido. A porta se abre sobre um mistério. Ela tem um valor
dinâmico, psicológico, dado que não somente indica uma passagem, mas convida a
atravessá-la - passagem que simbolicamente aponta para o sagrado. Além disso,
retomando Bakhtin, podemos também pensar que o local simbólico onde a porta se faz
presente, é um espaço de limiar e intermediário que estabelece o limite que antecede as
grandes mudanças. Desse modo, tio Arruda ao entrar na igreja católica, passa a conhecer
a figura de Deus como um Ser transcendente, tal como é concebido no cristianismo.
“ressurreição” vem do hebraico Pessach, que significa Páscoa. A Páscoa simboliza, para os cristãos, a
celebração da ressurreição de Jesus Cristo que, segundo a Bíblia, teria ocorrido três dias depois da sua
crucificação. Ela é a principal festa do ano litúrgico cristão e, provavelmente, uma das mais antigas, pois
surgiu nos primeiros anos do cristianismo. Ainda que todos os domingos do ano sejam destinados pelas igrejas
cristãs de todo o mundo à celebração da ressurreição de Cristo (o que é feito por meio da eucaristia), no
domingo de Páscoa, esse acontecimento ganha destaque, já que se festeja uma espécie de aniversário da
ressurreição.
43
Chevalier, Jean & Gheerbrant, Alain. Dicionário de Símbolos. p. 734.
44
Nas palavras de Eduardo Lourenço, tirada da sua obra O Desespero Humanista de Miguel Torga e o das
Novas Gerações, menciona o seguinte: “Deus está na obra torguiana tão profundo como a terra, tão constante
como o sonho, tão disperso como a vida e tão ausente como o autor”. (p. 100)
43
Não obstante, Miguel Torga ao negar Deus, não nega a Sua existência; pelo
contrário, ele sente a Sua existência. O escritor, nega, sim, a representação que os homens
fazem Dele, isto é, um Ser transcendente ao cosmo. O que frustra o autor, além da idéia
de o homem conceber Deus como transcendente, é o dogmatismo imposto pela religião
católica ou qualquer outra, isto é, o conjunto de dogmas teológicos transmitidos pela
hierarquia da Igreja. Ao mesmo tempo, o sistema religioso, a orgânica e o peso
institucional assustam-no, embora tenha da religião um sentido de respeito, significação e
até deslumbramento, como ele próprio expressou nos seguintes termos:
Se tomarmos como base o conto “Vicente”, podemos notar que a figura de Deus
também aparece como um Ser transcendente ao cosmo. No último conto de Bichos
encontramos um Deus que age de modo autoritário e despótico quanto às Criaturas que
estão na terra. Os caracterizadores mais usados para esse Deus são: alto, imenso, infinito,
grande. Adquirem um sentido negativo na medida em que são complementados por
outros adjetivos: sinistro, terrível, medonho, gelado, implacável, tirânico. A imagem de
Deus construída ao longo do texto “Vicente” nos faz pensar na imagem de Deus dada
pelo Velho Testamento.
45
Torga, Miguel. Diário VII. p. 176.
46
O corvo é no simbolismo moderno, sobretudo europeu, uma ave de mau agouro, mensageira da morte,
ligada ao temor e prenunciadora de desgraças, naturalmente noturno. Entretanto, se visto na ótica simbólica
antiga, de gregos a chineses, o corvo é um animal solar, responsável pela criação do sol, dinâmico e
organizador; pode ser visto também como um mensageiro divino, anunciador de bons triunfos proféticos.
Segundo Chevalier & Gheerbrant seu aspecto positivo está ligado às crenças dos nômades, caçadores e
pescadores; torna-se negativo com a sedentarização e com o desenvolvimento da agricultura. (p. 295)
Na Bíblia, o corvo será aquele que primeiro sairá para verificar se a terra começa a emergir das águas pós-
diluvianas, perspicazmente, antes da pomba: No fim de quarenta dias, Noé a clarabóia que havia feito na arca,
e soltou o corvo, que ia e vinha, esperando que as águas secassem sobre a terra. (Gn 8, 6-7)
44
a sua liberdade e a dos demais, inclusive a do servo Noé, que se encontram na Arca,
esteja sendo subtraída pelo Criador que ordena que eles entrem na Arca em função do
dilúvio:
Naquela tarde, à hora em que o céu se mostrava mais duro e mais sinistro,
Vicente abriu as asas negras e partiu. Quarenta dias eram já decorridos
desde que, integrado na leva dos escolhidos, dera entrada na Arca. Mas
desde o primeiro instante que todos viram que no seu espírito não havia
paz. Calado e carrancudo, andava de cá para lá numa agitação contínua,
como se aquele grande navio onde o Senhor guardara a vida fosse ultraje à
criação. [...] a sua figura negra e seca se mantinha inconformada com o
procedimento de Deus. (Bichos, p. 129)
Podemos notar que o protesto de Vicente tem uma dimensão maior que a da luta
individual: sofre no seu corpo um “ultraje à criação”. Ao mesmo tempo, a negrura de suas
asas abertas poderia simbolizar uma bandeira negra de protesto quanto à escuridão
sinistra do céu. E a caracterização desse espaço temível e desolador, no qual o corvo se
lança sem saber ao certo o que vai encontrar, parece tanto traduzir o interior da
personagem, quanto o nível de opressão imposto por Deus aos que na arca estavam:
“Naquela tarde, à hora em que o céu era mais duro e mais sinistro, Vicente abriu as asas
negras e partiu”. Tal fragmento marca o início do dramatismo, e o fato narrado estrutura a
primeira função de seqüência que se estabelece o texto, mostrando o ponto de incerteza
sobre o qual a narrativa se inscreve: a fuga de Vicente, o ato de sua partida. Ao longo do
relato fica bastante evidente que no “duelo entre Vicente e Deus” (p. 134), o Criador cede
devido ao fato de que o corvo Vicente tem uma vontade inabalável de ser livre e neste
ponto vence Deus.
A tomada de consciência, por parte do corvo, do que é ser livre, bem como do que é
a liberdade, é perigosa para o Criador e para a sua imagem, visto que ela põe em questão
o seu caráter absoluto. A resistência de Deus quanto à fuga de Vicente tanto ao projeto,
quanto ao fato de esta ser um forte indício de que o corvo tem plena consciência de sua
liberdade, portanto, como criação que pode desvincular-se do criador. Logo, a liberdade é
Dentro dessa perspectiva bíblica se coloca “Vicente”, de Miguel Torga, como sendo um símbolo para a
solidão e o isolamento dos que querem cumprir rigorosamente os seus próprios desejos.
45
estar ciente do próprio destino e de tudo o que ele reserva para quem o assume
plenamente, como faz Vicente, vencendo dialeticamente o plano de Deus e a Ele próprio.
O corvo Vicente representa tanto o deslocamento do discurso e da linguagem bíblicas
pela óptica da criação, quanto à expressão de uma liberdade individual que vence uma
imposição divina.
Mas um outro fato que se mostra contingente no texto, é o que diz respeito à
manifestação e a colaboração do aspecto telúrico, natural, em contrapartida a uma
teofania. A manifestação de Deus, na narrativa, faz-se de forma furiosa: à ordem Divina,
raios, trovões, chuva, a voz tonitruante, se apresentam como exemplo da força que ali se
exercia. Entretanto, pode-se observar que a natureza, mesmo submetida às vontades
divinas, opera no sentido de também opor-se ao absurdo que se realizava, colocando-se ao
lado de Vicente, que na terra encontra o seu pequeno refúgio para a ira de Deus: “Terra...
Sim, existia ainda o ventre quente da mãe”.(p. 133)
Esta visão telúrica vai como que crescendo dentro do texto, à medida que se vêem
claras as oposições entre a água – operando no partido de Deus – e a terra, na sôfrega
tentativa de colaborar com o desejo do corvo. A terra significará para Vicente mais do
que um mero local de fuga, mas mais do que isso: como pedestal e meio de resistência
para o corvo, vista como mãe que o acolhe num momento de desespero e se contrapõe à
fúria cega do pai.
Este espaço telúrico tende a ganhar valor na medida em que a vitória de Vicente se
aproxima: a terra ganha com o corvo, restabelecendo com ele o vínculo primeiro que
tinha. Na concepção torguiana, a terra, como plena manifestação de vida, é que assume
um certo sentido sagrado, na medida em que promove o acolhimento e salvação de seu
filho.
Um outro aspecto ainda que podemos levantar pelo fato de também ter contribuído
de modo significativo em relação à solidão de tio Arruda e o seu modelo de vida
inautêntica, é acerca dos espaços e lugares em que o velho e os demais estão inseridos.
Pois tanto tio Arruda como os demais vivenciam num espaço campesino (espaço primário
e predominante). A relação entre os indivíduos nesse espaço em que eles passam a maior
parte do tempo trabalhando, não favorece nenhum laço afetivo ou interação social.
Enquanto que o citadino (espaço secundário), simbolizado pela figura da igreja que
podemos pressupor que seja um lugar em que se estabelece contato social (antes do e após
o término da missa) entre os habitantes de Vilarinho. Contudo, o possível contato social
entre tio Arruda e os demais na frente da igreja, faz com que pensemos que também não
há um elo relacional e afetivo entre eles, pois o velho ao contar aos “amigos” sobre a sua
união em relação ao sapo e os conhecimentos que este lhe oferece, passa a ser
escarnecido. Dessa maneira, o espaço citadino representado pela figura da igreja e o
espaço campesino em que os homens de Vilarinho realizam o trabalho e moram, parecem
contribuir de modo significativo para a solidão de tio Arruda.
O 'lugar antropológico' é definido por Augé (p. 43) como sendo aquele lugar
ocupado pelos indígenas e que nele vivem, trabalham, defendem-se, marcam nele seus
pontos fortes, guardam suas fronteiras, bem como nele detectam, também, os vestígios
47
O antropólogo nos esclarece que a oposição ao lugar existe o espaço que possui um
sentido abstrato, enquanto o lugar é onde ocorrem, por exemplo, os acontecimentos
históricos. Nota-se, portanto, que o espaço é aquele que proporciona ao indivíduo a
sensação de uma ligação abstrata com aquele espaço determinado, pois, não há nada
material que indique a existência de um lugar antropológico e por não haver esta
materialização o espaço é a base para a prática dos lugares e não do lugar, especificamente,
como sendo reflexo de todo o sentido abstrato do espaço.
47
dos poderes celestes, dos ancestrais ou dos espíritos que o povoam e que animam sua
geografia íntima. O autor diz também que os ambientes que podem ser considerados como
lugar “têm pelo menos três características comuns. Eles se pretendem (pretendem-nos)
identitários, relacionais e históricos.” (p. 52). O lugar caracterizado como “identitário” é
criador de identidade por trazer em si o lugar do nascimento, da intimidade do lar, das coisas que
são nossas. Demarca, de forma precisa, as fronteiras entre eu e os outros. É “histórico” na medida
em que os nativos vivem na história. Assim, se um lugar pode se definir como identitário,
relacional e histórico, um espaço que não preencha estas características comuns passa a
ser definido como um “não-lugar”. O lugar seria, portanto, firmado por uma relação
contígua, com o qual o ser manteria um paralelo de pertencibilidade e coerência histórica, ou
seja, um lugar ao qual o ser considera pertencer, fazer parte e, automaticamente, mantém uma
conexão.
Tendo em mente que este é o tio Arruda antes de Bambo, passemos a examinar a
existência e a transfiguração do velho sexagenário com o aparecimento de um irmão, o
sapo. Bambo é o divisor de águas, pois, a partir do convívio entre os dois, tio Arruda
passa a viver uma outra vida, diferenciando-se do modo de vida dos demais habitantes de
Vilarinho. E constataremos que a primeira mudança na vida de tio Arruda é a de
reconhecer a dualidade entre o humano e o não humano.
48
A tal respeito, Cleonice Berardinelli nos esclarece o seguinte: “Os bichos de Torga são, em verdade, muito
humanos. O seu próprio criador emprega a palavra homem para defini-los em sua maturidade”. (“De bichos e
de homens”. In: Bichos, p. 2)
49
Terra! Pisava-a pela primeira vez! Qualquer coisa de mais áspero que o
veludo do ninho, mas também quente e segura. Deu alguns passos ao
acaso, a tirar das cócegas nos dedos um prazer de que ainda tinha
saudades. (Bichos, p.92-93; grifo nosso)
49
Nos contos “Farrusco”, “Ladino”, “Cega-Rega”, “Vicente” e no conto em estudo, estas personagens-título
aparecem como animais “não domésticos”, e podemos pensar que eles constituem como figurações ou
alegorias que realçam a cosmovisão do autor. Isto é, são seres que vivem na origem da vida e dotados de
sabedoria adquirida e dada pela “Mãe-Natureza”, que, como já salientamos num momento anterior, aparece na
obra torguiana como divinizada, panteísta.
50
Nessas passagens do texto, fica bastante evidente a apreensão sinestésica do espaço natural,
num convite a que nós, leitores, junto com Ladino e com Miura, assimilemos o real natural pelos
sentidos: pelo tato, pela visão, pela audição, pelo paladar e pelo olfato. Como se fossem essas as
autênticas vias do perfeito entendimento. Se, em “Miura” temos a vitória da cultura sobre a
Natureza, metaforizada pela digna morte de Miura, em “Bambo” temos o oposto disso: a
união fraterna entre o sapo e Tio Arruda.
É interessante observarmos que Bambo não surge diante de tio Arruda de um modo
pronto, mas como um ser em processo, cuja gradual evolução segue o ritmo da natureza,
do sol e da lua, da noite e do alvorecer, da mudança de estações. É como se Bambo fosse
um ser em eterna metamorfose. Transcrevemos abaixo a descrição, feita pelo narrador, a
respeito da metamorfose50 sofrida pelo sapo até se fazer homem:
Esse fragmento deixa evidente que Bambo passou por todas as etapas de seu
crescimento físico sempre integrado ao telúrico, representado no excerto como “charco”.
Assim como ocorre em outros contos, o narrador ressalta especialmente a personagem
saboreando a vida em toda sua concretude: “com a boca de pasmo” engolia “a imensidade
do céu”. Em todos os contos de Bichos, a idéia de metamorfose está implícita, como a
sugerir a concepção de que, assim como a natureza, todos os seres são seres em processo,
sejam eles homens ou bichos. Um dos nítidos divisores de água nesse sentido pode ser
ilustrado pelo primeiro contato com o sabor da vida. Assim como Bambo “engolia a
50
De origem grega (metamorphoo), a palavra metamorfose significa transformação, transfiguração, um
processo de mudança, que ocorre naturalmente objetivando a transformação e a evolução dos seres. Em um
sentido mais amplo, entende-se por metamorfose um acréscimo de valores que modificam os seres para um
estágio de desenvolvimento maior. De acordo com Chevalier & Gheerbrant, a metamorfose simboliza as
“expressões do desejo, da censura, do ideal, da sanção, saídas das profundezas do inconsciente e tomando a
forma na imaginação criadora. [...] A metamorfose é um símbolo de identificação, em uma personagem em via
de individualização que ainda não assumiu a totalidade de seus eu e ainda não atualizou todas as suas
potencialidades”. (p. 608/609)
51
imensidade do céu”, o cão Nero, no conto do mesmo nome, soube o que era a vida pelo
sabor da primeira caça que segurou entre os dentes: “O bicharoco estava realmente
defunto. Deitou-lhe os dentes. O que era a inocência! Tinha cócegas na boca!... De
repente, um cheiro forte, penetrante e doce, inundou-lhe as ventas, penetrou-lhe o
estômago, o corpo inteiro! Foi a primeira grande hora de sua vida...” (Idem, p.18) Após
esse acontecimento, Nero também sofre uma metamorfose, marcada, na continuidade da
descrição, pela sucessão de advérbios indicando um tempo posterior a esse momento
saboroso de transição. Vale a pena trazermos para cá um dos momentos de síntese dessa
descrição: “(...) a vida sabia-lhe à maior das venturas” (p.19; grifo nosso)
Refletindo ainda a respeito da metamorfose pela qual passou a cigarra desde o estado
larvar ao estado perfeito – o estado adulto, com todas as dificuldades inerentes a esse
percurso, e atentando para as associações explícitas que o narrador faz, podemos
equiparar a transfiguração desta personagem, assim como a de Bambo, com as etapas que
o poeta vivencia interiormente, até, finalmente, chegar ao final do processo criativo, que é
o ato de criação. Usando uma linguagem metafórica para identificar a cigarra com o
poeta, podemos dizer que este ato reflete a vontade do autor em divulgar o seu canto. O
canto, assim, é uma forma de manifestação de vida, de ação, de criação. E o narrador, ao
reproduzir a alegria da cigarra e o seu tom eufórico pelo fato de aparecer um poeta em sua
existência, diz em frases exclamativas: “O Poeta! Louvado seja Deus! Até que enfim lhe
52
aparecia um irmão!... Um irmão que sabia também que cantar era acreditar na vida e
vencer a morte”. (Bichos, p. 88).
O irmão que aparece na existência da cigarra poderia chamar-se Miguel Torga, que
diz, em um livro de versos intitulado Orfeu rebelde, no poema do mesmo nome: “Orfeu
rebelde, canto como sou”. E continua: “Eu ergo a voz assim num desafio [...] Canto em
minha legítima defesa”(p. 75). Assim, a cigarra comporta-se como o próprio Torga, que,
“Orfeu rebelde”, cantou sempre, contra a desigualdade social e qualquer tipo de injustiça,
de modo que ninguém, por mais que agisse de forma imperiosa, fê-lo calar-se, até porque
“cantar era acreditar na vida e vencer a morte”. É por isso que a cigarra é identificada ao
poeta, pois ela é alguém capaz de acreditar na vida e vencer a morte através do canto.
Voltemos ao momento em que Bambo surge na vida de tio Arruda pela primeira vez,
interrompendo com seu “tchap” aquela noite em que o silêncio sepulcral e soturno
dominava a aldeia. O velho aproxima-se de Bambo de modo a festejá-lo, porém Bambo:
dá”, de forma espontânea, natural – um ser da vida. Amadurecido, tornou-se “um homem
[...] largo, grosso, atarracado”(p. 59). Tem olhos saídos que tudo vêem, ao contrário dos
homens da aldeia transmontana de Vilarinho, marcados pela cegueira. Suas pernas
traseiras dobráveis, “no mesmo instante um banco ou uma catapulta”(p.59-60), permitem-
lhe o salto, o impulso para além do marasmo, da quietude e da estagnação de ser apenas
“banco”. Bambo está aberto à contemplação da natureza. A imensidade do céu é
alcançada por Bambo através de sua boca aberta (disponível) e vazia como um poço em
sua grandiosa profundidade: “a boca de pasmo, com que pelas noites adiante engolia a
imensidade do céu, lhe veio de nascença aberta e vazia como um poço". (p. 60)
Tendo Bambo sob os olhos, lembremos aqui das palavras de Alberto Caeiro,
heterônimo de Fernando Pessoa: “Sei ter o pasmo essencial/ Que tem uma criança se, ao
nascer,/ Reparasse que nascera deveras.../ Sinto-me nascido a cada momento/ Para a
eterna novidade do mundo...”51 A amplitude do céu penetra no mais recôndito da “alma”
do sapo porque ele tem “olhos de ver e boca de engolir” que lhe vieram de berço de suas
origens. Andarilho e aventureiro, “o corpo lhe pedia mundo, terras novas”, tendo como
defesa o visco52, que “o defendia de tudo, à chuva e ao vento...” (p. 60)
O narrador nos diz ainda mais características desse primeiro encontro entre tio
Arruda e Bambo:
51
Pessoa, Fernando. Obra Poética. p. 204.
52
Visco, visgo ou agárico (do latim viscum, i), é uma planta arbustiva hemiparasita (um parasita que não
é completamente dependente do seu hospedeiro), da família das Lorantáceas, de flores apétala, que cresce
nos ramos de diferentes árvores (choupo, macieira, muito raramente o carvalho) e cujos frutos brancos
contêm uma substância viscosa. A planta arbustiva hemiparasita era antigamente usada como remédio
para a epilepsia e distúrbios nervosos, para doenças cardíacas, hipertensão e para a digestão. Esta planta é
nativa das regiões temperadas da Europa e do Oeste da Ásia.
O visco era considerado extremamente mágico pelos druidas, que o chamavam de "árvore dourada".
Eles acreditavam que ela possuía grandes poderes curadores e concedia aos mortais o acesso ao
Submundo. Houve um tempo em que se pensava que a planta viva, que é na verdade um arbusto
hemiparasita com folhas coriáceas sempre verdes e frutos brancos revestidos de cera, era a genitália do
grande deus Zeus, cuja árvore sagrada é o carvalho. O significado fálico do visco originou-se da idéia de
que seus frutos brancos eram gotas do sêmen divino do Deus em contraste com os frutos vermelhos do
azevinho, iguais ao sangue menstrual sagrado da Deusa. A essência doadora de vida que o visco sugere
fornece uma substância divina simbólica e um sentido de imortalidade para aqueles que o seguram na
época do Natal. Nos tempos antigos, as orgias de êxtase sexual acompanhavam frequentemente os ritos
do deus-carvalho; hoje, contudo, o costume de beijar sob o visco é tudo o que restou desse rito. (In:
MARKALE, J. Le druidisme, traditions et dieux des celtes. Paris: Payot, 1985).
54
Ah, mas Bambo não se entregava assim sem mais nem menos! Na maneira
de fitar o interlocutor, no modo reservado como se foi afastando, mostrava
claramente que não abria o coração antes de saber a quem. (Bichos, p. 61)
uma relação harmônica entre o eu e o outro. Tio Arruda sentiu-se estar diante de um
amigo: “parecia ter corda na língua”.
No que diz respeito ao tempo, vale a pena mencionar as quatro estações55: outono
(de 20 de março a 20 de junho no hemisfério sul, e no hemisfério norte: de 21 de
setembro a 21 de dezembro), do latim autumno também conhecido como o tempo da
colheita, pois é nesta época que ocorrem as grandes colheitas; inverno (de 21 de junho a
23 de setembro (hs), e de 21 de dezembro a 21 de março (hn), do latim hibernu, tempus
hibernus, associado ao ciclo biológico de alguns animais ao entrar em hibernação e se
recolherem durante o período de frio intenso; primavera (de 23 de setembro a 21 de
dezembro (hs), e de 20 de março a 21 de junho (hn), do latim primo vere56, no começo da
primavera; e verão (de 21 de dezembro a 20 de março (hs), e de 21 de junho a 23 de
setembro (hn), do latim vulgar veranum (tempus), tempo primaveril ou primaveral,
estação que sucede a primavera e antecede o outono.
54
O “buraco”, se nos orientarmos pela sua simbologia, é “símbolo de grande importância, que concerne,
essencialmente, a dois planos principais: no da vida biológica, tem poder de fecundação e se relaciona com os
ritos de fertilidade; no da vida espiritual ou transmundana, expressa a “abertura” deste mundo com respeito a
outro. [...] Como símbolo do céu, o buraco significa a passagem da vida do espaço à inespacial, da vida do
tempo à intemporal”. (In: Cirlot, Juan-Eduardo. Dicionário de Símbolos. p. 126).
55
Branco, S. M. Um passeio pelas estações do ano. p. 48-9.
56
Primo (do latim: primus, -a, -um), que está na frente de tudo, o primeiro (no tempo, no lugar); e Vere (ver,
veris) - substantivo neutro: a primavera; flores, produtos da primavera.
56
57
Vale a pena salientar que em algumas culturas, o sapo é visto como símbolo negativo, ou seja, é ligado à
feitiçaria, como é reforçado no excerto citado do conto. Por outro lado, em outras culturas, como a chinesa, “o
consideram como a divindade da Lua, sobre a qual o vêem. [...]; entre os vietnamitas, que muito o apreciam, o
sapo é, ainda, símbolo de sucesso” (Chevalier & Gheerbrant, p. 803). Percebemos que, nessas duas culturas, o
sapo é muito exaltado, respeitado e tido como um ser sensato, assim como Bambo é considerado neste conto.
58
Lopes, Teresa Rita. Miguel Torga Ofício a um “Deus de Terra”. 1993, p.52.
57
(aqui representada pelo ventre da Terra- Mãe). Como também diz Teresa Rita Lopes : “ter
fundura é ter sentido - na única direção válida – a da raiz. Torga não nega o céu –
recupera-o em sentido contrário; substitui-lhe a altura pela fundura, a sua dimensão de
além, por essa outra, íntima, do aquém.” (p.53) A mesma estudiosa enxerga Bambo como
exemplo desta comunhão regeneradora com a terra:
A comunicação com a terra tem o valor dum ritual. É o impulso dum Ícaro
em sentido contrário, no sentido da fundura. É essa intimidade, esse
contato com o seio da germinação que o poeta procura, quer tome a forma
de Bambo, o sapo ou do Caçador, para quem a caça fora a maneira de se
encontrar com as forças elementares do mundo. (Bichos, p.52)
E a mesma idéia de fundura acaba por ligar-se a tio Arruda, depois de ele apreender
as lições de Bambo. Isso nós podemos constatar pelo modo como o velho Arruda reage às
zombarias e ironias do povo acerca de sua visível transformação interior:
Não só a natureza se transforma aos olhos do velho, pois em tio Arruda a primeira
mudança é interior e surge pelo fato de ter encontrado Bambo e ter conseguido sair,
assim, da solidão. Em contrapartida, Tio Arruda, antes do aparecimento do anfíbio,
situava-se na condição de humano apático, desenraizado. Contudo, o nome “Arruda”
parece ser muito expressivo, isto é, sendo o nome de uma planta, no plano simbólico,
confere ao seu portador a possibilidade de vir a se enraizar no telúrico. Ao mesmo tempo,
se pensarmos no nome do sapo, Bambo, numa possível conotação atribuída a este
adjetivo, num primeiro sentido é aquele que hesita; e num segundo, aquele que é cheio de
amor. O primeiro sentido do adjetivo fica evidente no contato inicial entre Bambo e Tio
Arruda: “discreto, negava-se a cair nos braços do primeiro que lhe desse a salvação” (p.
60). E após outros encontros, a identificação entre eles é tão grande que Bambo ganha,
aos olhos do velho, a dignidade do homem, visto que tem comportamento urbano e é
calado como convém a qualquer pessoa sensata. O sapo chega a ser considerado por tio
Arruda como “seu semelhante”. Já em relação ao segundo sentido, o sapo propicia ao
velho o “despertar” para a vida autêntica, fazendo com que ele descubra que o amor é a
base da existência de qualquer ser vivo.
Essa modificação de tio Arruda acarreta uma nova maneira de olhar para as coisas.
Antes de sua experiência de aprendizagem com “Mestre Bambo”, o narrador qualifica Tio
59
Arruda como cego (como uma toupeira59) – não só ele, mas também todos os demais
habitantes de Vilarinho. Fazendo um contraste entre o modo de olhar de Bambo e o dos
demais, o narrador diz:
59
Talpidae é uma família de mamíferos da ordem Soricomorpha, que inclui as toupeiras e os desmanes. O
grupo habita a América do Norte, Europa e Ásia. São animais que vivem no subsolo enterrados em tocas e
galerias. As toupeiras têm o corpo alongado e coberto de pêlos. Não têm orelhas externas e, devido ao seu
modo de vida, são total ou parcialmente cegas. A sua alimentação faz-se à base de pequenos animais
invertebrados que vivem no solo. (HUTTERER, R. Order Soricomorpha. In: WILSON, D. E.; REEDER, D.
M. (Eds.). Mammal Species of the World: A Taxonomic and Geographic Reference. 3. ed. Baltimore: John
Hopkins University Press, 2005. v. 1, p. 220).
60
60
Kierkegaard, Sören A. O desespero humano. São Paulo: Martin Claret, 2002.
61
provocação a respeito da união entre tio Arruda e o sapo, marcada na narrativa pela fala
da personagem Chico Eiras: “Como vão esses amores, Tio Arruda? Já há menino?”. (p. 65)
[...] Nove meses como nove novenas! Preferia morrer, a ficar nas bocas do
mundo. Com o correr do tempo, vira-se e desejara-se para manter o
disfarce. Os últimos dias, então, pareceram-lhe anos. Felizmente, até esses
vencera sem se denunciar. Fechou-se em casa, com a desculpa de andar
adoentada, e aguardou que chegasse o momento de largar. (Bichos, p. 41)
assumira o relacionamento, também ela “Preferia morrer a ficar nas bocas do mundo.
Com o correr do tempo, vira-se e desejara-se para manter o disfarce” (p.41). Morre o
relacionamento dos dois, tal como o filho. Assim como estoicamente61 matara o
sentimento por Armindo em seu coração, também “Fechou-se em casa” (p.41), “Tratou de
enfaixar o ventre” (p.43), “fechara-se num egoísmo desumano” (p.44), quase que
impedindo a saída daquele ser que durante toda a sua caminhada em direção à Serra
Negra (alto da montanha) dera sinais de vida, a exigir as portas abertas de par em par:
“era preciso reagir contra a própria natureza e andar para diante, custasse o que custasse”
(p.39).
Assim, se por um lado tio Arruda declara aos homens de Vilarinho o seu suposto
segredo em relação ao sapo mesmo sendo alvo de risos e ironias, por outro lado temos a
personagem Madalena que se nega a revelar e querer compartilhar do seu segredo com os
outros. Dessa forma, ela parece ter mais consciência e conhecimento acerca da orientação
61
Dentro da filosofia estóica, todo o tipo de paixão, é essencialmente má, uma vez que se trata ser uma mera
irracionalidade, movida pelos instintos. Desse modo, só resta ao estóico livrar-se dela por meio do total
aniquilamento. Note-se não se trata de refrear as paixões e sim destruí-las completamente: “O ideal ético
estóico não é o domínio racional da paixão, mas sua destruição total, para dar lugar unicamente à razão:
maravilhoso ideal do homem sem paixão, que anda como um deus entre os homens. Daí a guerra justificada do
estoicismo contra o sentimento, a emoção, a paixão, donde derivam o desejo, o vício, a dor, que devem ser
aniquilados”. (Padovani, Humberto & Castagnola, Luís. História da Filosofia. São Paulo: Edições
Melhoramentos, 1978, p. 148.)
63
ética que rege duramente à comunidade da aldeia que tio Arruda. Porém, podemos pensar
que tio Arruda, após os ensinamentos de Bambo, não vive mais orientado pelo meio
social da aldeia, ou seja, a sua orientação é dada pela “Mãe-Natureza”, que o faz captar o
verdadeiro sentido da existência; levando-o a um viver com autenticidade. Já Madalena
vive de acordo com as normas e regras do meio social de Vilarinho. Isto é, a sua ação e o
seu comportamento para que possa continuar a ter uma imagem que esteja de acordo com
o que é determinado pelo meio social, faz com que execute uma ação desumana (renegar
o filho, realizando o parto por conta própria, tornando-se culpada pela morte da criança).
Por outro lado, há um aspecto que faz com que tio Arruda e Madalena se
assemelhem (além de serem vítimas das convenções sociais). Trata-se da comunhão
íntima com a natureza. O velho sexagenário, após ser vítima de tais ironias, refugia-se na
natureza para continuar a “aprender a lição de Bambo, guarda zeloso dum mundo fremente de
germinações” (64). De modo semelhante, Madalena também se refugia na natureza num momento
de desespero e angústia, em função da proximidade da hora do parto, para que o seu segredo seja
mantido distante dos outros. Assim, como mostramos anteriormente, o corvo Vicente também
recorre à natureza (terra) e a tem como um refúgio em relação à ira de Deus. Dessa maneira,
estas três personagens (o velho, a mulher e o corvo) parecem ilustrar a idéia de Torga no sentido
de terem a natureza (o telúrico) como um santuário ou uma “deusa”. Também podemos pensar
que eles a têm como uma defesa e/ou purificação da alma.
A fidelidade que o sapo Bambo mantém com a natureza, faz com que pensemos que
também há uma orientação ética. Ou seja, acreditamos que parece haver uma orientação
presente na existência de Bambo pelo fato de ele ser fiel à natureza e também pelos seus
conhecimentos acerca da “ciência da vida”, que partem da “Mãe-Natureza”, como já foi
exposto. No entanto, esta orientação dada pela natureza não subtrai a sua liberdade,
enquanto que no meio social dos habitantes da aldeia transmontana de Vilarinho, a
liberdade é subtraída. Desse modo, o sapo ao receber da natureza esta possível orientação,
passa a compartilhá-la com tio Arruda, que, antes de seus ensinamentos, tinha uma
orientação ética imposta pela civilização. De modo que Bambo, ao aproximar-se de tio
Arruda, por mais que sinta estar diante de um ser “diferente”, não dirige ao velho
julgamentos morais condenatórios, como fazem os habitantes da aldeia. O sapo,
inconscientemente, parece saber das imperfeições que estão presentes em todos os seres
sem distinção, e procede instintivamente, reforçando as palavras de Torga: “Todos temos
defeitos. E às vezes aqueles que se julgam mais limpos é que estão emboldregados... Não.
64
Ninguém tem o direito de escarnecer do semelhante, seja ele quem for. E muito menos
com a cara tapada...”62 Diferentemente do que ocorre com tio Arruda que confessa aos
amigos na porta da igreja sobre os ensinamentos que estava tendo sobre a “ciência da
vida”, os demais homens: “riram-se-lhe na cara. Quem havia de acreditar que um sapo
fosse capaz de ensinar a alguém a ciência da vida?”. (Bichos, p. 64.)
Há ainda um outro aspecto que precisa ser examinado pelo fato de representar uma
possível tônica do humanismo de Torga: é a respeito da figura de Bambo e tio Arruda
como símbolos de modelos comportamentais a serem espelhados pelo homem moderno e
também por futuras gerações. Percebemos que, na união fraternal entre o velho e o sapo,
há uma interpenetração das categorias de homem e animal como forma de realizar a
fraternidade entre os seres, filhos da “Mãe-Terra”. Esse retorno, essa busca de uma
comunicação com as forças elementares do mundo, é em Bichos, segundo Teresa Rita
Lopes (1993), resultado da busca angustiada do homem moderno por sua essencialidade
perdida, por sua sensibilidade embotada. Desde o Renascimento e com força maior no
‘Século das Luzes’, o homem valoriza a razão e desvaloriza os outros seres por serem
irracionais. O mundo, no século XVIII, passa a ser dividido em três reinos: mineral,
vegetal e animal; e o homem posiciona-se acima dos demais seres por ser racional e por
desprezar a “razão sensível” existente no seu íntimo. Acerca do racionalismo no mundo
moderno, o sociólogo Michel Maffesoli, em seu livro intitulado Elogio da Razão Sensível,
ilustra o seguinte:
62
Torga, Miguel. Terra Firme. p. 76.
63
Maffesoli, Michel. Elogio da Razão Sensível. Petrópolis: Editora Vozes, 1998, p. 30.
65
Assim, podemos também depreender que Bambo, ao ensinar o enigma da vida a seu
único discípulo, o sapo parece primeiro “despertar” no âmago de tio Arruda a
sensibilidade (harmonizando-se com a razão), como meio de apreender a “ciência da
vida”. E após tal apreensão, o velho sexagenário passou a ter uma existência autêntica e a
viver numa fraternidade existencial com todos os seres vivos do universo. Esse
aprendizado de tio Arruda parece ilustrar quanto à cosmovisão de Torga, que, no Prefácio
de Bichos, faz um apelo à fraternidade existencial entre todos os seres vivos:
64
Idem, p. 28.
65
Idem, p. 189, 191 e 192.
66
O prefácio tem o sentido de preparar uma boa receptividade da obra. Desse modo,
esse discurso que saúda o leitor e enfatiza a fraternidade universal é recurso para
predispô-lo a irmanar-se com ele, autor, de modo que a apreciação feita antes de tudo seja
orientada pela sensibilidade que une todos os seres e não por critérios analíticos. Torga,
ainda, refere-se à árvore lembrando a não necessidade desta de explicar os próprios frutos.
Com isso, o caminho a seguir para a verdadeira apreciação dos seus contos seria o que se
pauta pela sensibilidade e não pela racionalidade. O escritor também fala em alegria e
contentamento. A alegria advém da interação plena com o outro, que poderá ser uma
pessoa ou não, já que fala em condição, mas não a define como a condição humana. De
fato, quando diz “onde a nossa condição se encontrou”, depreende-se que a obra objetiva
o autoconhecimento, que proporcionaria conjuntamente o conhecimento do outro e a
verificação de que os seres do universo estão naturalmente integrados. Isso tornaria
menos sofrida a travessia do Letes, referência ao mundo antigo dos gregos. Esse rio do
inferno é uma metáfora de vida e morte, pois tanto é dolorosa nossa existência terrena,
marcada pela certeza de nosso fim, como a morte em si. Por isso, o autor apela à
fraternidade universal como forma de amenizar a dureza do trajeto existencial humano.
66
Torga, Miguel. Bichos. In: Prefácio, p. 10.
67
Pessoa, Fernando, op. cit., p. 207.
67
Como vimos, a união fraterna entre o velho e o sapo foi muito bem-sucedida, e tio
Arruda tornou-se o único homem de luz na aldeia transmontana de Vilarinho. Contudo,
aquilo que é inevitável em toda a existência de qualquer ser vivo abre e fecha a narrativa,
isto é, a morte. Ainda segundo Heidegger, o Dasein é um “ser-para-a-morte”. E essa
condição é experimentada diariamente. Como “um ser-para-a-morte”, o homem só se
totaliza, quando a encontra. Não se experiencia jamais a morte alheia, por mais que ela
cause espanto e dor. Como a morte é o aniquilamento do ‘eu’, o Dasein, temeroso,
angustia-se ante a perspectiva de sua aproximação. Porém, essa angústia não é algo
negativo. Adverte Heidegger:
Mas um dia Tio Arruda morreu. Um resfriado, e ninguém lhe pôde valer.
[...] E, com a sua morte, veio novo caseiro e foi-se de Vilarinho o único
homem que sabia de ciência certa quem era Bambo, o sapo. (Bichos, p. 65)
68
Heidegger, Martin. Carta sobre o humanismo. p. 57.
68
Podemos observar que a morte de tio Arruda decorreu de uma enfermidade comum,
que pode atingir qualquer pessoa: “um resfriado”. Além disso, tio Arruda, um velho
sexagenário, já tinha chegado à última etapa do seu ciclo vital, o envelhecimento; sua
morte ocorreu de forma natural, ao contrário da morte de Bambo que foi concretizada por
um ato perverso. Ainda Teresa Rita Lopes, a respeito do sentido que a “morte natural”
possui na obra Bichos, ressalta que a morte, se natural, dará início a outro ciclo de vida69.
Desse modo, a morte é algo inerente à vida e necessária para que ocorra a sua renovação.
Assim, a morte de tio Arruda, por exemplo, pode ser pensada como uma renovação da
vida, pois, com a vinda do “novo caseiro”, um homem que pertence a uma nova geração e
também com mais vitalidade, passará a tomar conta da propriedade rural; e podemos
pensar em um outro início de ciclo de vida, que será representado pela figura da criança, o
filho do novo caseiro.
Ainda a respeito da idéia da morte como renovação de vida, tal idéia também está
presente nos contos “Nero” e “Tenório”. A personagem Nero, cujo nome, faz-nos pensar
numa possível alusão ao imperador romano pela sua simbologia (a de ser um “bicho-
homem” forte, vigoroso), aparece no início do conto, já envelhecido, num momento de
quase morte: “Sentia-se cada vez pior. Agora nem a cabeça sustinha de pé. [...] Tinha-se
despedido já de todos” (p. 13). O cão “entregava a alma ao Criador, ali, desdentado, com
as urinas em sangue, cego duma vista...”, e sua morte configura-se “quando o cheiro da
última perdiz se esvaiu dentro de si, [...] quando a imagem do filho se lhe varreu do juízo,
fechou duma vez os olhos e morreu”(p. 24). A morte de Nero assemelha-se à morte de tio
Arruda, pois o cão também morre de velhice e de enfermidades, sendo assim, podemos
visualizá-la como uma morte natural. Percebemos também que há uma renovação de vida,
isto é, Nero morre com a imagem do filho Jau na memória, o que parece significar que,
por mais que Nero se lamentasse no seu momento de transe, que o filho não tivesse
herdado o seu faro para a caça, ainda assim a renovação da vida acontece.
69
Lopes – Miguel Torga: ofícios a um deus de terra. 28 e 31-32, respectivamente.
69
etapa da vida, ou seja, chegou à velhice (encarada pelo galo de forma negativa), o que faz
com que pensemos que a sua morte estava prestes a acontecer. A aceitação da ordem
natural das coisas tornou-se menos penosa porque Tenório cumpriu enquanto pôde a sua
obrigação, a de cantar. Assim, se, no conto “Nero”, o pai, de certa maneira, aceita a idéia
do fim de sua existência e a continuidade da vida representada por seu filho, no conto
“Tenório”, o galo parece não aceitar a idéia de morrer, e muito menos a possibilidade de
ser substituído pelo filho, o que representaria a renovação do ciclo da vida.
Quanto à morte de Bambo, ela não ocorre de modo natural, isto é, concretiza-se com
um ato de violência. É com ela que se inicia o conto, cujo modo de narrar assemelha-se ao
movimento lento de uma câmera, movimento a que nós assistimos horrorizados, até que
se dá a grande crueldade: “Zás!” A estaca espetada nas costas do sapo: “O filho do
caseiro novo é que lhe fez aquilo. Devagar, muito devagarinho, chegou-se a ele e – zás!:
espetou-lhe a estaca nas costas. Depois ergueu-o e, de barriga para o ar, deixou-o ali
suspenso, a espernear ao sol.” (p. 59). Tal cena assemelha-se a um rito sacrificial.
Segundo James Frazer, em A Rama dourada, essa prática deve-se à crença das sociedades
pré-industriais de que o rito representa uma forma de proporcionar a revitalização da
existência e da vida, ligando-se aos ciclos regenerativos da Natureza. Esta possibilidade
de leitura nos levou a dizer, inicialmente, que parecia haver em “Bambo”, dois tempos: o
presente e passado. Agora já podemos atestar a presença de um terceiro tempo - o tempo
cíclico – cuja presença pode ser confirmada pela recorrência de vocábulos ligados ao
campo semântico da fecundação. A título de ilustração transcrevemos o seguinte
fragmento:
70
A metáfora Sésamo, em diálogo com o sentido que o vocábulo tem em As mil e uma noites, significa,
simbolicamente, o mistério do ventre fechado da Terra- Mãe, segundo Teresa Rita Lopes, em Miguel Torga –
ofícios a um deus da Terra.
70
O instrumento utilizado pela criança para sacrificar o animal, ele é bem significativo,
pois são estacas que costumam ser enterradas no coração de vampiros ou seres coniventes
com o mal. Assim, no plano figurativo da narrativa, é a ignorância popular, a superstição,
e a voz do senso comum que falam aos ouvidos de Joana Angélica e da criança quando os
levam a temer a figura grotesca de Bambo. O próprio tio Arruda também tinha receio do
sapo, antes de ter um contato mais próximo com o novo amigo.
Logo que nasce, o ser humano não possui a noção de “eu”. Isto só se dá quando a
satisfação de um impulso instintivo depende de outro que não ele. O ego é definido,
então, como síntese entre os impulsos básicos de origem somática e um mundo externo
objetivo. Esta objetividade ainda permanece externa e é vista pelo ego como formação de
barreiras interpostas entre o impulso e sua realização. Mas deixa de ser externa. Forma-se
no ego uma instância especial que perpetua esta influência parental, à qual se dá o nome
de superego.
71
O Id é a estrutura da personalidade original, básica e central do ser humano. É o reservatório de energia de
toda a personalidade. Apresenta a forma de instintos inconscientes que impulsionam o organismo, os de vida e
os de morte. O Id não tolera a tensão. Se o nível de tensão é elevado, age no sentido de descarregá-la. O
princípio de redução de tensão pelo qual o Id opera chama-se princípio do prazer. O Ego é a parte que está em
contato com a realidade externa. Ele se desenvolve a partir do Id, à medida que a pessoa vai tomando
consciência de sua própria identidade. O Ego protege o Id, mas extrai dele a energia suficiente para suas
realizações. Ele tem a tarefa de garantir a saúde, a segurança e a sanidade da personalidade. O Superego
desenvolve-se a partir do Ego e atua como um juiz ou sensor sobre as atividades e pensamentos do Ego, é o
depósito dos códigos morais, modelos de conduta e dos parâmetros que constituem as inibições da
personalidade. Freud atribui ao Superego três funções: consciência, auto-observação e formação de ideais.
(Braghirolli, Elaine Maria; Bisi, Guy Paulo; Rizzon, Luiz Antônio; Nicoletto, Ugo. Psicologia Geral. 13.ed.
Petrópolis: Vozes, 1995).
71
Freud afirma também que, na influência parental, atuam a índole pessoal dos pais, as
tradições familiares, raciais e nacionais que estes perpetuam as demandas do respectivo
meio social que representam. “Aquilo que é interiorizado por meio da formação do
superego poderia muito bem ser definido como um certo estágio das relações sociais que
constituem uma cultura, em outras palavras, uma sociedade” (Idem, p. 139). Portanto,
observa-se o processo pelo qual uma certa sociedade e suas demandas e regras, passam a
fazer parte do universo psíquico do indivíduo e este passa a reconhecer estas demandas e
valores como seus. A criança vive a relação com os adultos e a incorpora antes como
carga afetiva. O que significa que um valor pode estar assimilado antes de assumir uma
forma sistematizada de idéia. Desse modo, Freud considera a criança amoral, e o papel
desempenhado pelo superego está no começo entregue a um poder externo, a autoridade
parental. Assim, podemos pensar que a personagem Joana Angélica, uma adulta, cuja
personalidade está completamente formada, exerce o papel de uma autoridade parental
em relação à criança, e os seus valores morais estimularam-na a cometer tamanha
barbárie contra Bambo.
Outro fato que merece ser ressaltado, embora numa condição hipotética, é a
simbologia acerca do segundo nome da personagem Joana (a única personagem feminina
do conto). Etimologicamente podemos ligar o nome “Angélica” ao latim “angelus” (anjo),
numa alusão ao atributo da personagem, de “angelical”, pura, imaculada. No entanto, se
atentarmos ao comportamento desta personagem, descrito pela voz do narrador, podemos
conjecturar que o nome sofre, neste contexto, uma possível inversão de sentido. Isto é, o
nome - “Angélica” – está mais próximo de “demoníaca” que de angelical. Em síntese,
pensamos que há uma inversão na valoração de Bambo, o sapo, e na de Joana Angélica.
72
Iasi, Mauro. As metamorfoses da Consciência de Classe: O PT entre a negação e o consentimento. São
Paulo: Expressão Popular, 2006, p. 138.
72
Bambo é a tênue corda interior de cada um, que pode produzir notas harmoniosas ou
desconcertadas, que pode produzir seres em deslumbrante comunhão com o cântico da
vida ou divorciados do amor em árida vivência a soldo de morte. Bambo simboliza a
corda bamba que propicia o vôo à sensibilidade ou a queda no vazio existencial.
73
CAPÍTULO III
Além disso, o conto “Jesus”, que é considerado por grande parte da crítica como um
poema em prosa, em que o narrador-poeta pôs o mais delicado afeto, apresenta-nos uma
criança com o nome do Filho de Deus, que age de forma, digamos, “sacralizada”, como
veremos adiante. Isto é, Torga faz uma recorrência aos evangelhos canônicos (além de
Vicente como já expusemos), ou seja, ele se apropria da figura de Jesus Cristo, recriando
75
a sua infância e o período em que o Filho de Deus vivia na Terra, sem ser ainda a figura
encarnada de um Ser transcendente ao cosmo. O autor recria os pais do menino Jesus,
fazendo com que estas figuras canônicas estejam em função do seu propósito artístico-
crítico e de sua cosmovisão. As imagens e outros elementos contidos no conto que o autor
nos dá da criança Jesus73 (como o “divino humanizado”), resultam, em parte, do diálogo
criativo que o autor mantém com as figuras dos Evangelhos canônicos, e, em parte, da
imaginação do contista. Em função disso, devemos trazer para esta análise as
considerações de Bakhtin acerca do modo como Dostoiévski se apropria de vários
elementos do protótipo bíblico e explora as possibilidades contidas nele: “Enquanto
artista, Dostoiévski revelou na imagem dessa ou daquela idéia não só os traços histórico-
reais dessa imagem, presentes no protótipo (...) mas também as suas possibilidades, e
essas possibilidades são justamente o mais importante para a imagem artística”.74 De
modo semelhante, no conto “Jesus”, observaremos como se dá a semelhança e a diferença
da criança Jesus, no que diz respeito à figura bíblica, Jesus Cristo.
Tal diálogo que o autor mantém com as figuras dos evangelhos canônicos para a sua
produção textual, ou seja, diálogo este que é marcado pela diferença crítica, leva-nos a
pensar que temos um conto paródico.
Para Hutcheon (1985, p. 15, 16), a paródia é uma relação formal ou estrutural entre
dois textos, um modo de chegar ao acordo com os textos do passado, pois esta autora
73
A título de ilustração, vale ressaltar que o autor ao apropriar-se da figura de Jesus Cristo, retoma a
existência do filho de Deus na Sua infância. Durante toda a infância do filho de Maria e do carpinteiro José, se
nos orientarmos pelas descrições dadas pela Bíblia, podemos constatar que há falta de informações a respeito
da infância do filho de Deus. Dos quatro evangelhos que contam o surgimento do chamado Messias, somente
dois – os de Mateus e Lucas – trazem episódios da primeira fase de sua biografia. As menções são escassas e
frustram quem gostaria de saber mais da vida do menino.
74
Bakhtin, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. p. 76.
76
também vê a paródia como uma forma de homenagear o texto anterior, como acontece
com a Eneida, uma “continuação” dos episódios da guerra de Tróia. Mas a paródia não
corresponde apenas à imitação ridicularizadora como é descrita nos dicionários. O
Ulisses, de James Joyce, é um exemplo patente da paródia do século XX. É um romance
sério, segundo a autora. O que antes era um gênero baixo ganha novo status. A proposta
de Linda Hutcheon é alargar o conceito de paródia, desmistificando a crença de que ela é
apenas um gênero ligado ao cômico ou ao ridículo. A paródia transforma, mas não precisa
ridicularizar o seu alvo. Conforme dissemos há pouco, sua raiz etimológica tem dois
significados. O mais tradicional é contra-canto, mas há um segundo sentido para isso. O
prefixo “para” também significa “ao lado de”, e sugere um acordo e intimidade entre as
partes, em vez de um contraste. Hutcheon (op. cit., p. 48) trabalha com a segunda
significação, pois esta “alarga o escopo pragmático da paródia de modo útil para as
discussões das formas de arte modernas”. E nada “existe na paródia que necessite da
inclusão de um conceito de ridículo, como existe, por exemplo, na piada ou na burla”. Diz
a autora que o prazer da ironia da paródia não provém do humor em particular, mas do
grau de empenhamento do leitor no “vaivém intertextual”, quando o leitor consegue
identificá-la com alguma passagem ou evento conhecido. Por vezes, são as convenções
tanto como as obras individuais que são parodiadas.
A autora também define a paródia como “repetição com distância crítica que marca a
diferença em vez da semelhança”75, o que a caracteriza como aproximação e
distanciamento ao mesmo tempo.
75
Hutcheon, Linda. Poética do Pós-modernismo – história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991,
p. 47.
77
Um outro aspecto que nos faz refletir é que essa família é constituída por um
triângulo, remetendo-nos às figuras bíblicas de José e Maria, pais de Jesus Cristo.
A Mãe bebia as palavras do filho, a beijá-lo todo com a luz da alma. O Pai
regressou ao caldo. Mas o menino continuou. Disse que então prendera a
cordeira a uma giesta e trepara pela árvore acima.
De novo o Pai levantou as pálpebras cansadas, e ficou tal e qual a Mãe...
(Bichos, p. 79.)
Este fragmento ratifica o que acabamos de dizer: que Torga exalta a figura da
mulher, pela sensibilidade e pela clareza de alma. Ao mesmo tempo, o escritor conduz-
nos a pensar que a figura da mãe traz harmonia para o convívio familiar, assemelhando-se
esta personagem à figura do Evangelho canônico, Maria.
Dentro desta perspectiva, parece que algo de semelhante se passou com o corvo
Vicente; pois, como já expusemos, dele dependeria um certo entendimento entre o céu e a
terra, já que a terra nunca chegaria ao céu e o céu se recusava a descer à terra. Mas
Vicente não é só o protótipo habitualmente apresentado da insubmissão a um destino fatal
(ou, muito menos, a uma vontade arbitrária): Vicente é antes de mais nada o exemplo do
assumir responsável da sua própria identidade e da recusa em ser considerado mais um
dos dependentes da barca de alguém. Nem sequer lhe interessará ser considerado um dos
eleitos sem ter feito nada por isso. E Vicente é ao mesmo tempo a coerência da liberdade
76
In: Bornheim, Gerd. Sartre. Metafísica e Existencialismo. São Paulo: Perspectiva, 2007.
79
Por que o corvo o escolhido e não a pomba? O Gênesis (8,7-8) só distingue essas
duas aves; mas diz também que a primeira a ser libertada para encontrar terra já sem água
foi o corvo e só depois a pomba; e diz também que o corvo voltou e entrou na arca,
enquanto que a pomba, ao voltar da primeira vez que não encontrou a terra, teve de ser
ajudada pelo braço de Noé para conseguir entrar. Independentemente de qualquer outra
interpretação que até o texto bíblico poderia sofrer, o corvo não deixará de ser o mais
forte entre as duas aves para se poder arriscar com mais segurança. Para além, portanto,
de qualquer outra interpretação possível, “Vicente” é o conto da responsabilidade
assumida por si e pelos outros – antes e até para poder ser um conto de liberdade.
77
Mesmo que não queiramos ver aqui a metáfora de inconsciente coletivo em que cada homem confira
racionalmente para distinguir o bem do mal, não podemos recusar o apoio necessário em certos valores
para negar outros.
80
Como podemos notar, Morgado aparece afirmado por esse esforço de ser o melhor
possível o que pode ser – e isso incluía, como burro de moleiro, subir com os quinze
alqueires a ladeira da Queda. Ao mesmo tempo, este conto faz uma referência às
condições de cumprir o dever, que são comer e beber. Mas no dia fatal em que os lobos
atacam, ele cumpre-o na mesma, apesar de “mal dormido” e “mal comido”. E cumpre-o
porque há uma relação com alguém – o patrão, com quem simpatiza, que o estima e que
partilha sentimentos com ele. Contudo, este o abandona num momento mais calamitoso, e
ao amanhecer e ao ver o seu dono caminhando pela serra, o jerico em transe e prestes a
morrer, sente a desconsideração de seu dono: “[...] sentiu os dentes do primeiro lobo
cravados no pescoço, é que reparou que a luz do dia começara a desenhar as coisas e a dar
significação a tudo”. (p. 56)
81
A subida levou tempo. Foi até preciso descansar três vezes pelo caminho,
nos tocos duros dos ramos. Por fim, o resto teve de ser a pulso, porque
eram já só vergônteas as pernadas da ponta. Transidos, nem o Pai nem a
Mãe diziam nada. Deixavam, apavorados, mudos, que o pequeno chegasse
ao cimo, à crista, e pusesse os olhos inocentes no ovo pintado. O ninho
tinha só um ovo. Aqui, o menino fez parar o coração dos pais. Inteiramente
esquecido da altura a que estava, procedera como viver ali, perto do céu,
[...] E ambos viram num relance o pequeno rolar, cair do alto, da ponta do
cedro, no chão duro e mortal de Nazaré. (Bichos, p. 80)
A passagem do fragmento “procedera como se viver ali, perto do céu”, faz com que
pensemos no seu contato íntimo e prazeroso com a natureza, tendo esta enviado-lhe um
possível “sinal” para o seu efetivo retorno à natureza, isto é:
... [A criança] vira sair um pintassilgo de dentro dum grande cedro. E tanto
olhara, tanto afiara os olhos para a espessura da rama, que descobrira o
manhuço negro, lá no alto, numa galha. (Bichos, p. 79)
82
Num estudo feito por Teresa Rita Lopes sobre a relação Céu-Terra na obra torguiana
e particularmente no poema “Querem o céu”, de Cântico do Homem, ela enfatiza que a
terra é o referencial que dá sentido à vida humana e é nela que o Céu se espelha, se
projeta. Convém transcrevermos as palavras da autora, pois elas, a nosso ver, esclarecem
a relação que existe no conto “Jesus”, entre a terra, onde está enraizada a árvore, o céu,
para onde a árvore se eleva, e, junto a tais elementos, a presença do ovo no ninho. Segue
o texto de Teresa Rita Lopes: “[...] há um descer do Céu à Terra, para no seu ventre
ganhar “presença íntima” e raiz. [...]Torga não nega o céu, recupera-o em sentido
contrário: substitui-lhe a altura pela fundura, a sua dimensão de além por essa outra,
íntima, de aquém.” (1993, p. 40)
39, 40 e 41), Novo Testamento, após o nascimento de Jesus em Belém e a ida de José,
Maria e a criança a Jerusalém onde foi anunciado o nascimento do novo Messias,
encontramos a seguinte passagem textual:
78
Chevalier & Gheerbrant, op. cit, p. 84.
83
Como podemos observar, a figura canônica e a figura de Jesus criada por Torga
possuem semelhanças quanto ao crescimento. Ambas passaram a infância em Nazaré,
cheios de vitalidade, sabedoria, pureza e com uma alma “iluminada”, ratificando, aqui,
mais uma vez, o diálogo de Torga com os Evangelhos canônicos.
Ainda acerca do fragmento do conto “Jesus”, além da atitude participativa dos pais,
maravilhados com o feito do filho, sobressai, na narrativa, a forma como este faz a sua
aproximação ao ovo:
Notamos que, por mais alto que fosse o lugar a que a criança estivesse subindo, ela
continuou confiante em sua subida. Assim que chegou ao ninho, pegou o ovo e, com o
toque de seus lábios e o seu calor, a sua pureza e ingenuidade, concretizou o seu primeiro
“milagre”, do qual nasceu um filhote de pintassilgo (pássaro canoro de cor verde e
amarela). Ressaltamos também que a esse menino, além de não ter pensado na sua
capacidade miraculosa, bastou-lhe ver o pássaro, sentir o seu nascimento. Não lhe ocorre
79
Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida. A Bíblia Sagrada: O Velho e o Novo
Testamento. In: Novo Testamento, p. 79.
84
qualquer sentimento egoísta de posse, pois o que importava era aquele exato momento em
que a vida se fez. A felicidade estava, desse modo, em deixar o outro viver da forma
como desejasse a natureza e reter aquela “novidade”, aquele momento único, que o
mundo lhe oferecia.
Seguindo ainda esta linha de pensamento, podemos também pressupor que não é
apenas a criança Jesus a única figura importante do conto; ao lado dela, aparece também o
pintassilgo. Talvez pudéssemos considerar este último (o pequeno pássaro) como o
protagonista, que seria representado, no plano humano, pela figura de Jesus (“o divino
humanizado”). Assim sendo, Jesus e o pintassilgo poderiam ser os dois lados da mesma
moeda (o natural e divino), unidos por um elemento comum, a terra, simbolizada no texto
pela “árvore da vida”. Poderíamos pensar que o episódio do encontro entre Jesus e o
pintassilgo no ninho constituiria uma imagem única, uma unidade composta por uma
TRINDADE SAGRADA: o divino humanizado, o natural e a raiz telúrica,
(representando, possivelmente, o milagre da vida).
Um outro dado ainda a ser referido pelo fato de ser relevante nesta nossa leitura, é a
respeito do batizado da figura canônica Jesus Cristo. Como é trivial, o Seu batismo foi
concretizado no rio Jordão e realizado pelo profeta João Baptista80. E após Jesus ter sido
batizado, Deus Pai fez ouvir sua voz e o Espírito Santo apareceu em forma de pomba,
como demonstra o texto de Lucas 3 (versículos 21 e 22):
80
Segundo a narração do Evangelho de São Lucas, João Baptista era filho do sacerdote Zacarias e Isabel (ou
Elizabete), prima de Maria, mãe de Jesus. Foi profeta e considerado pelos cristãos como o precursor do
prometido Messias, Jesus Cristo. Baptizou muitos judeus, incluindo Jesus, no rio Jordão, e introduziu o
baptismo de gentios nos rituais de conversão judaicos, que mais tarde foram adotados pelo cristianismo.
86
Como vimos, a criança Jesus concretizou o seu “feito heróico” e também o seu
primeiro “milagre”, isto é, após toda a sua subida em direção ao ninho, que se faz
presente no topo do cedro, o protagonista encontrou um único ovo e ao tocá-lo e beijá-lo,
nasceu um filhote de pintassilgo. Um primeiro aspecto a ser refletido sobre este episódio é
no que tange ao nascimento do pintassilgo no “ninho”. Como pudemos notar, o Filho da
Virgem Maria, após o seu nascimento, foi posto numa manjedoura. Enquanto que o
pássaro pintassilgo, ainda que dentro do ovo, já se fazia presente no “ninho” e também
teve o seu nascimento no mesmo local. Desse modo, ao que parece, Torga faz uma
inversão da versão oficial, isto é, substitui a “manjedoura” pelo “ninho” e, inclusive,
quem nasce e está no ninho não é uma criança e sim um pássaro. Daí, podemos pensar
que este pássaro poderia simbolizar a pomba (Espírito Santo) que apareceu no dia do
batizado do Filho de Deus. Como ressalta Chevalier e Gheerbrant: “Ao longo de toda a
simbologia judaico-cristã, a pomba – que, com o Novo Testamento, acabará por
representar o Espírito Santo – é, fundamentalmente, um símbolo de pureza, de
simplicidade [...]” (p. 728).
que o pássaro esteja associado à terra. Em suma: o divino habita neste mundo, mas de
modo natural.
Ao mesmo tempo, podemos também depreender que, assim como a pomba (Espírito
Santo), no cristianismo, além de outros símbolos como o peixe81 por exemplo, simboliza
a figura de Jesus Cristo como fundidos, o pássaro pintassilgo poderia simbolizar a duas
faces da mesma moeda, isto é, o Espírito Santo (como um Ser não transcendente e
Natural) e a criança Jesus (o divino humanizado).
Retomando aquela pergunta que fizemos no início deste capítulo (Por que a criança
Jesus está entre os Bichos?), acreditamos que já temos com base no que foi depreendido
acima, a resposta prometida. Em primeiro lugar, vale a pena salientar e ressaltar
novamente, que a criança Jesus é o protagonista do conto e não o pássaro. No entanto,
ambos estão interligados pela mesma força cósmica e/ou existencial que é dada pela
natureza. Torga escolheu uma criança “divinizada” como o protagonista do conto, em
virtude de exprimir pureza, ingenuidade, sensibilidade e simplicidade - características que
também estão presentes na existência do pintassilgo e também na essência da figura
canônica Jesus Cristo. Em segundo lugar, estar em harmonia e seguir a sua vitalidade de
acordo com as leis da natureza, faz da criança um ser sensato e pertencente ao mesmo
cosmo do animal. Devido a essas semelhanças entre a criança e o animal, a aproximação
entre ambos foi bem-sucedida. “Há aí uma doutrina de harmonia universal que se funda
sobre o vínculo entre o mundo interior do indivíduo e o mundo interior da natureza”.82
Seguindo ainda o pensamento de Maffesoli, o sociólogo nos alerta que o homem moderno
precisa estabelecer um novo modo de relacionamento com a natureza, isto é:
A natureza não mais como algo a dominar, conhecer com mestria, esgotar,
mas, muito pelo contrário, como uma parceira com a qual convém
81
Chevalier e Gheerbrant nos explicitam que “Cristo é freqüentemente representado como um pescador, sendo
os cristãos peixes, pois a água do batismo é seu elemento natural e o instrumento de sua regeneração. Ele
próprio é simbolizado pelo peixe” (p. 704). Além disso, os autores ainda nos esclarecem que “a simbologia do
peixe estendeu-se ao cristianismo, com um certo número de aplicações que lhe são próprias, enquanto que
outras interpretações foram evidentemente excluídas. A palavra grega Ichtus (= peixe) é, com efeito, tomada
pelos cristãos como ideograma, sendo cada uma das cinco letras gregas vista como a inicial de palavras que se
traduzem por: Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador, Iesus Christós Theou Uios Soter”. (Ibidem)
82
Maffesoli, Michel. Elogio da Razão Sensível. p. 67.
88
Há nesse excerto a idéia de um novo olhar dirigido à natureza, ou seja, o homem tem
de se conscientizar de que ele é um ser integrante e oriundo da natureza, e não como um
ser superior como ocorreu no ‘Séculos das Luzes’, isto é, quando ele passou a investigar a
natureza e apreendê-la por meio da “razão racional” (a posteriori) e esquecendo-se da
“razão sensível” (isto é, a harmonia e o equilíbrio entre a razão e a emoção). Essa ideia de
Maffesoli nos ajuda a entender a cosmovisão de Torga refletida em seu conto por meio da
personagem Jesus. Ao mesmo tempo, o aprendizado que a criança Jesus alcançou com
seu “feito heróico” jamais será preterido de sua essência. Como nos esclarece Rousseau,
segundo Rolland: “Observai a natureza e siga o caminho que ela vos traça. Ela exercita
continuamente as crianças; e endurece o seu temperamento com provas de toda espécie; e
ensina-lhes, muito cedo, o que é uma dor e o que é um prazer”.84
83
Idem, p. 134.
84
Rolland, Romain. O Pensamento Vivo de Rousseau. p. 122.
89
Deus queria levá-lo. Cada tribulação fazia com que ele chegasse mais perto do propósito
final. E finalmente, a vitória de José por ter chegado ao governo do Egito. Seu caminho
foi árduo, mas as promessas de Deus se cumpriram em sua vida. Assim, podemos inferir
que há semelhanças entre ambas as histórias, isto é, a história contada pela criança Jesus
aos seus pais e a bíblica, no sentido de exprimirem pureza e provações.
Podemos notar que o menino Jesus não apreendeu a linguagem enigmática dos pais,
que eram intelectualmente maduros e, portanto, capazes de reflexões mais abstratas. Por
outro lado, a criança foi guiada pela “eterna inocência” e pelo “não pensar”, fazendo a sua
grande descoberta existencial (a Vida) por meio das sensações; levando-nos a pensar que
esta criança poderia ser um protótipo ilustrativo da “filosofia”85 do heterônimo Alberto
Caeiro – pensamento filosófico-poético que é uma tentativa de levar o homem a re-
conhecer de novo o mundo como alguém que ainda não fosse capaz do uso da razão,
fazendo, assim, uma aproximação do outro por meio das sensações e do instinto, como
fazem os animais. Embora a mundividência de Caeiro esteja ligada ao natural, ao simples
85
Segundo Maria Helena Nery Garcez: “[...] Caeiro cria sua própria filosofia, antecipando-se às correntes que
surgiriam algumas décadas depois: a fenomenologia e o existencialismo. Pessoa-Caeiro foi capaz de ser
verdadeiramente o porta-voz de seu tempo, do mundo intelectual de sua época, de auscultar-lhe as
inquietações e de dar corpo às tendências que estavam latentes no pensamento do homem europeu do início do
século XX, ainda acossado pelas filosofias idealistas e tentando reagir a elas, buscando novas sínteses”. (In:
Garcez, Maria Helena N. Caeiro “Descobridor da Natureza”?. (Tese de Livre-Docência apresentada ao
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, 1981, p. 37)
90
e ao primitivo, a simplicidade de suas idéias é uma mera aparência. Elas guardam, de fato,
um saber que é fruto de uma reflexão de profunda complexidade.
86
Eliade, Mircea. O Sagrado e o Profano. p. 16-17.
91
CONCLUSÃO
Pelo que desvendamos, ao longo desta dissertação, dos contos de Bichos, de Miguel
Torga, pudemos verificar que há uma cosmovisão que nos evidenciou a idéia de que a
salvação do homem e da humanidade reside num regresso às origens e ao seio da deusa
“Mãe-Natureza” que dignifica tudo o que vive na sua intimidade.
À luz do antropólogo francês Marc Augé, pudemos notar que o espaço campesino
em que os habitantes de Vilarinho trabalham e vivem como também o citadino, onde se
encontram na igreja, são considerados como “não-lugares”. Pois são lugares e espaços
que não possuem significações para os homens da aldeia. Tais espaços (da religião e do
pretenso convívio social, bem como do trabalho) contribuíram apenas para o marasmo e a
solidão (muito presente na sociedade contemporânea) da personagem tio Arruda.
Como vimos, tal cosmovisão foi bem retratada através da existência da personagem
tio Arruda que levava uma vida inautêntica e mergulhada numa profunda solidão. Embora
vivesse num espaço em que a natureza se manifestava de todas as formas, precisou
aparecer o anfíbio Bambo para que aquele espaço natural transmontano se tornasse um
lugar repleto de significações e de sentido para a sua vida. A partir dos ensinamentos do
sapo, que vive integrado à natureza e é dotado de simplicidade, pureza e sensibilidade, é
que o seu único discípulo pôde encontrar um sentido para a sua existência e um novo
87
Torga, M. Diário XVI, p. 117.
88
Torga, op. cit., p. 30.
93
olhar diante da vida. Isto é, reaprendeu a usar a sua sensibilidade tornando-se um ser
dotado de uma “razão sensível”. Descobrindo, assim, que a fraternidade e a solidariedade
partilhada com todos os seres do universo, é a base de um viver com autenticidade.
Ao mesmo tempo, a re-ligação de tio Arruda ao elo perdido trouxe à tona a idéia de
panteísmo. Pois o Deus que a personagem conheceu dentro da concepção judaico-cristã,
passou a ser concebido como a própria natureza, como fundido a ela. Deste modo, a
natureza (o telúrico), na concepção torguiana, como plena manifestação de vida, é que
assume um sentido sagrado, na medida em que promove o acolhimento e salvação de seu
filho.
Aqui se fecha nossa leitura crítica, mas não as possibilidades interpretativas dos
contos de Bichos. Cada obra de arte apresenta múltiplos aspectos que dão margem a uma
infinidade de interpretações. Nosso olhar recaiu sobre um aspecto e, a partir dele,
tentamos buscar elementos presentes nas narrativas como forma de cumprir com o
propósito de nosso estudo. Porém, como Luigi Pareyson, acreditamos que “a
interpretação é um discurso inexaurível, porque o processo interpretativo é infinito, e
infinitas são as novas perspectivas pessoais, e inexaurível é a própria obra”.89
89
Pareyson, op. cit., p. 246.
95
BIBLIOGRAFIA:
1.1. Poesia
O outro livro de Job. Coimbra, ed. A. 1936; 2ª. ed. 1944; 3ª. ed. 1951; 4ª. ed. 1958.
Lamentação. Coimbra, ed. do A., 1942; 2ª. ed. 1958; 3ª. ed. 1970.
Libertação. Coimbra, ed. do A., 1944; 2ª. ed. com um poema-prefácio, 1952; 3ª. ed. 1960.
Odes. Coimbra, ed. do A., 1946; 2ª. ed. ref. e aum. 1951; 3ª. ed. rev. 1956.
Nihil Sibi. Coimbra, ed. do A., 1948; 2ª. ed. 1956; 3ª. ed. 1975.
Cântico do homem. Coimbra, ed. do A., 1950; 2ª. ed. 1950; 3ª. ed. 1954; 4ª. ed. 1974.
Penas do Purgatório. Coimbra, ed. do A., 1954; 2ª. ed. aum. 1954; 3ª. ed. 1976.
Orfeu Rebelde. Coimbra, ed. do A., 1958; 2ª. ed. rev., 1970.
Poemas Ibéricos. Coimbra, ed. do A., 1965; 2ª. ed., 1982. Tradução espanhola, 1984.
Tradução francesa, 1990.
Antologia Poética. Coimbra, ed. do A., 1981; 2ª. ed. aumentada, 1985. Tradução
norueguesa, 1979. Tradução romena, 1990.
96
1.2. Prosa
A criação do mundo- Os dois primeiros dias- 1937; 2ª. ed., revista, 1948; 3ª. ed., 1952; 4ª.
ed., refundida, 1969.
O terceiro dia da criação do mundo – 1938; 2ª. ed., refundida, 1948; 3ª. ed., revista,
1952; 4ª. ed., refundida, 1970.
O quarto dia da criação do mundo – 1939 (fora do mercado); 2ª. ed., refundida, 1971.
Bichos – 1940; 2ª. ed., 1942; 3ª. ed., 1944; 4ª. ed., 1946. Tradução espanhola, 1946.
Tradução inglesa ilustrada, 1950. Tradução romena, 1950; 5ª. ed., refundida, 1954; 6ª.
ed., remodelada, 1961; 7ª. ed. revista, 1970; 8ª. ed., 1976; 9ª. ed., 1978; 10ª. ed., 1980.
Tradução francesa, 1980; 11ª. ed., 1981; 12ª. ed., 1982; 13ª. ed., 1983; 14ª. ed., 1984.
Tradução japonesa, 1984; 15ª. ed., 1985. Tradução servo-croata, 1985; 16ª. ed., 1986.
Tradução alemã, 1986.
Contos da montanha – 1941 (fora do mercado); 2ª. ed., refundida e aumentada – Rio de
Janeiro, 1955; 3ª. ed., remodelada – Rio de Janeiro, 1962; 4ª. ed., revista e aumentada e
com um prefácio. Coimbra, 1969; 5ª. ed., 1976; 6ª. ed., revista, 1982; 7ª. ed., 1987.
Tradução espanhola, 1988. Tradução inglesa, 1991.
O senhor ventura – 1943; 2ª. ed., refundida, 1985. Tradução chinesa, 1989. 3ª. ed., 1991.
Rua – 1942; 2ª. ed., 1951; 3ª. ed., refundida, 1956; 4ª. ed., refundida e aumentada, 1967.
Tradução francesa, 1987.
Portugal – 1950; 2ª. ed., refundida, 1957; 3ª. ed., revista, 1967; 4ª. ed., 1980; 5ª. ed.,
revista 1986. Tradução francesa, 1988. Tradução chinesa, 1990.
Pedras lavradas – 1951; 2ª. ed., revista, 1958; 3ª. ed., 1976. Tradução francesa, 1982.
Tradução espanhola, 1987.
Novos contos da montanha – 1944; 2ª. ed., 1945; 3ª. ed., refundida e aumentada, 1952; 4ª.
ed., refundida e aumentada, 1959; 5ª. ed., acrescentada, revista e com um prefácio, 1967;
6ª. ed., revista, 1975; 7ª. ed., 1977; 8ª. ed., 1978; 9ª. ed., revista, 1980; 10ª. ed., 1981; 11ª.
ed., 1982; 12ª. ed., 1984; 13ª. ed., 1986. Tradução espanhola, 1986, 14ª. ed., 1988.
Tradução polaca, 1988; 15ª. ed., 1991.
Vindima – Romance, 1945; 2ª. ed., refundida, 1954; 3ª. ed., revista, 1965; Tradução
alemã, 1965; 4ª. ed., revista, 1971. Tradução inglesa, 1988.
A criação do mundo – Tradução francesa num só volume, 1985. Tradução espanhola num
só volume, 1986. Tradução catalã, num só volume. Edição conjunta, 1991.
1.3. Teatro
Terra firme, 2ª. ed., ref. 1947; 3ª. ed. ref. 1960; 4ª. ed. remodelada, 1977.
O paraíso – 1949 (esgotado). Tradução francesa, 1949; 2ª. ed., refundida, 1977.
Mar – 2ª. ed., refundida, 1958; 3ª. ed., revista, 1970; 4ª. ed., 1983.
Diário (1º. Volume) – 1941; 2ª. ed., 1942; 3ª. ed., 1946; 4ª. ed., revista, 1960; 5ª. ed.,
revista, 1967; 6ª. ed., 1978; 7ª. ed., 1989.
Diário (2º. Volume) – 1943; 2ª. ed., 1949; 3ª. ed., revista, 1960; 4ª. ed., 1977.
Diário (3º. Volume) – 1946; 2ª. ed., 1954; 3ª. ed., 1973.
Diário (4º. Volume) – 1949; 2ª. ed., 1953; 3ª. ed., 1973.
Diário (5º. Volume) – 1951; 2ª. ed., 1955; 3ª. ed., revista, 1974.
Diário (6º. Volume) – 1953; 2ª. ed., revista, 1960; 3ª. ed., 1978.
Diário (7º. Volume) – 1956; 2ª. ed., revista, 1961; 3ª. ed., revista, 1983.
Diário (8º. Volume) – 1959; 2ª. ed., 1960; 3ª. ed., 1976.
99
Diário (12º. Volume) – 1977; 2ª. ed., 1977; 3ª. ed., revista, 1986.
Diário (13º. Volume) – 1983. Tradução francesa (selecção num só volume), 1982.
Tradução espanhola (selecção num só volume), 1988. Tradução sueca (selecção num só
volume), 1990. Tradução búlgara (selecção num só volume), 1990.
2. Sobre o autor:
ALVAREZ, Fernandes; PILLAR, Eloisa Maria. Miguel Torga (Diário XII). Colóquio
Letras, Lisboa, 43:79-8, 1978.
ANIDO, Nayade . Miguel Torga e a recusa do Divino. Colóquio Letras, Lisboa, 24:31-
40, 1975.
BELCHIOR, Maria de Lourdes. Uma leitura do Diário. Colóquio Letras, Lisboa, p. 22-4,
1995.
BRASS, Denis. The art and poetry of Miguel Torga. Silages, Politiers, 2:67-93, 1973.
CESAR, Guilhermino. Miguel Torga, o Ibérida. Colóquio Letras. Lisboa, 41:34-36, 1966.
CHORÃO, João Bigotte. Como é Torga?. Colóquio Letras, Lisboa, p. 19-21, 1987.
GIL, Castro. Sá Carneiro, Miguel Torga, José Régio. Três Atitudes perante a vida.
Mensagem, Coimbra, p. 65-69, 1949.
------------------. Uma obra – Miguel Torga: um trágico cepticismo. Jornal de Letras, Artes
e Idéias, Lisboa, 19 Dez., 1983, p. 3.
------------------. “Do velho e do novo na poesia de Torga”. In: Estrada Larga. Porto,
Porto Ed., s/d, v. 3, p. 274-277.
101
LOPES, Teresa Rita. Além, aqui e aquém em Miguel Torga: análise de ‘Vicente’.
Colóquio Letras, Lisboa, 25:34-49, 1975.
-----------------. Miguel Torga Ofícios A “Um Deus de Terra”. Rio Tinto: Edições Asa,
1993.
------------------. Miguel Torga. Mito, rito e disfemismo. Bulletin des Etudes Portugaises et
Brésiliennes, Lisbonne, 35-36:205-233, 1975.
MARTINHO, Fernando J. B. “1936, um ano a três vozes: Régio, Torga e Irene Lisboa”.
Colóquio Letras, Lisboa, p. 39-47, 1994.
MELO, José de. Miguel Torga: a obra e o homem. Lisboa: Arcádia, 1960.
MOURA, Frederico de. Vestígios de Miguel Torga. (Bacelos), David Jorge Ferreira,
1977.
TORGA, Miguel. A Criação do Mundo. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1996.
--------------------. Novos Contos da Montanha. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1996.
3. Sobre o Presencismo:
RÉGIO, José. Da geração modernista. Presença: folha de arte e crítica. Coimbra, 1927.
4. Geral:
BRAGHIROLLI, Elaine Maria; BISI, Guy Paulo; RIZZON, Luiz Antônio; NICOLETTO,
Ugo. Psicologia Geral. 13 ª. ed., Petrópolis: Vozes, 1995.
CANDIDO, A. Literatura e sociedade – estudos de teoria e história literária. 5ª. ed., São
Paulo: Cia. Editora Nacional, 1976.
GARCEZ, Maria Helena N. Caeiro “Descobridor da Natureza”?. São Paulo, USP, 1981.
(Tese de Livre –Docência).
---------------------. Uma Teoria da Paródia. Trad. Teresa Louro Pérez. Portugal: Editora
70, 1985.
LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976.
PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. 4ª. ed. Trad. Maria Helena Nery Garcez.
São Paulo: Martins Fontes, 2001.
PESSOA, F. Obra Poética. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1990.
ROLLAND, Romain. O Pensamento Vivo de Rousseau. Trad. João Cruz Costa. São
Paulo: Livraria Martins Editôra, 1960.
SARAIVA, Antônio José & LOPES, Oscar. História da literatura portuguesa. Coimbra:
Editora Porto, 1987.